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RDS VIII (2016), 1, 211-246 As cláusulas cross default no ordenamento jurídico português DR.ª DIANA SERRINHA ROSA Sumário: 1. Introdução: 1.1. Razão de ordem; 1.2. Delimitação do tema. 2. Cláusulas de garantia e/ou segurança (pari passu, negative pledge e cross default); 2.1. Gene- ralidades; 2.2. Distinção entre cláusulas pari passu, negative pledge e cross default. 3. Dogmática geral das cláusulas cross default: 3.1. Noção e generalidades; 3.2. Events of default e cross default; 3.3. Formulações da cláusula: a payment cross default e a covenant cross default; 3.4. Funcionamento da cláusula: 3.4.1. O modo de aceleração do pagamento e o conhecimento da cross default; 3.4.2. As restrições às cláusulas cross default; 3.5. A cláusula cross default e os derivados financeiros – breve nota. 4. As cláusu- las cross default, as cláusulas de hardship e os waivers: 4.1. As cláusulas de hardship e o instituto da alteração de circunstâncias; 4.2. As cláusulas de waiver. 5. O problema da qua- lificação e natureza jurídica das cláusulas cross default: 5.1. A cláusula de cross default enquanto garantia; discussão doutrinária; 5.2. A cláusula cross default como uma cláusula de exigibilidade antecipada ou como uma cláusula resolutiva expressa? 6. Síntese conclusiva. 1. Introdução 1.1. Razão de ordem A prática jurídica comercial tornou-se, ao longo das décadas, crescen- temente internacional, fruto dos avanços da globalização em todas as áreas, incluindo a Economia, o Comércio e, claro, o Direito. Em pleno século XXI assistimos a um mercado onde a maior parte dos negócios são celebrados entre vários operadores pertencentes a mais do que um ordenamento jurídico dife- rente, tornando a negociação destes contratos complexa e demorada, pela necessidade de conjugação de diferentes vontades, regras de diferentes ordena- mentos jurídicos e mesmo elementos exteriores ao Direito. Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 211 Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 211 28/07/16 16:36 28/07/16 16:36

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As cláusulas cross default no ordenamento jurídico português

DR.ª DIANA SERRINHA ROSA

Sumário: 1. Introdução: 1.1. Razão de ordem; 1.2. Delimitação do tema. 2. Cláusulas de garantia e/ou segurança (pari passu, negative pledge e cross default); 2.1. Gene-ralidades; 2.2. Distinção entre cláusulas pari passu, negative pledge e cross default. 3. Dogmática geral das cláusulas cross default: 3.1. Noção e generalidades; 3.2. Events of default e cross default; 3.3. Formulações da cláusula: a payment cross default e a covenant cross default; 3.4. Funcionamento da cláusula: 3.4.1. O modo de aceleração do pagamento e o conhecimento da cross default; 3.4.2. As restrições às cláusulas cross default; 3.5. A cláusula cross default e os derivados fi nanceiros – breve nota. 4. As cláusu-las cross default, as cláusulas de hardship e os waivers: 4.1. As cláusulas de hardship e o instituto da alteração de circunstâncias; 4.2. As cláusulas de waiver. 5. O problema da qua-lifi cação e natureza jurídica das cláusulas cross default: 5.1. A cláusula de cross default enquanto garantia; discussão doutrinária; 5.2. A cláusula cross default como uma cláusula de exigibilidade antecipada ou como uma cláusula resolutiva expressa? 6. Síntese conclusiva.

1. Introdução

1.1. Razão de ordem

A prática jurídica comercial tornou-se, ao longo das décadas, crescen-temente internacional, fruto dos avanços da globalização em todas as áreas, incluindo a Economia, o Comércio e, claro, o Direito. Em pleno século XXI assistimos a um mercado onde a maior parte dos negócios são celebrados entre vários operadores pertencentes a mais do que um ordenamento jurídico dife-rente, tornando a negociação destes contratos complexa e demorada, pela necessidade de conjugação de diferentes vontades, regras de diferentes ordena-mentos jurídicos e mesmo elementos exteriores ao Direito.

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Esta plurilocalização dos negócios internacionais causa, desde logo, pro-blemas quanto à determinação da lei aplicável, por um lado, e do Estado com-petente para dirimir possíveis confl itos, por outro1. As possíveis discrepâncias interpretativas que daqui resultam causam naturalmente grande insegurança no seio das negociações, situação que pede uma resolução que melhor acautele os interesses das partes2.

Os negócios de que aqui falamos e que assumem elevada importância para o tema que ora nos ocupa são, em especial, contratos de empréstimo inter-nacionais e a emissão de obrigações com colocação internacional. Hoje em dia, empresas de todas as dimensões celebram contratos deste tipo, sentindo a necessidade de, pela complexidade dos contratos, apor cláusulas que melhor acautelem as posições das partes3, em especial do credor.

Estes contratos de fi nanciamento são as mais das vezes, como já indicámos acima, contratados por pessoas coletivas, especialmente sociedades comerciais que procuram fi nanciamento externo, e os mutuantes são normalmente insti-tuições bancárias. As grandes quantias muitas vezes associadas a estes contra-tos, inclusive superiores àquilo que a sociedade precisaria, são uma das formas de o credor assumir o controlo fáctico da empresa, através da contratação de um certo tipo de fi nanciamento – a leveraged fi nance4. Por outro lado, é tam-bém comum a negociação de cláusulas a incluir no contrato de fi nanciamento que põem o credor numa posição de infl uência perante a sociedade devedora. O controlo excessivo que o credor acaba por ter sobre a sociedade aproxima o

1 Sobre este tema, cf. por todos, Luís de Lima Pinheiro, Contrato de Empreendimento Comum (Joint Venture) em Direito Internacional Privado, Cosmos e Almedina, Lisboa, 1998; O Problema do Direito Aplicável aos Contratos Internacionais Celebrados pela Administração Pública, in Direito e Justiça, 13, 1999, pp. 29-64; Direito Internacional Privado, vol. II – Direito de Confl itos. Parte Especial, 2.ª ed., Almedina, Lisboa, 2002, pp. 181 ss. e 319 ss.; Direito Internacional Privado, vol. III – Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, Almedina, Lisboa, 2002, pp. 74 ss. e 189 ss.2 Neste sentido, Joana Pereira Dias, Contributo para o Estudo dos Atuais Paradigmas das Cláusulas de Garantia e/ou Segurança: a pari passu, a negative pledge e a cross default, in Estudos em Home-nagem ao Prof. Dr. Inocêncio Galvão Telles, IV – Novos Estudos de Direito Privado, 2003, pp. 879-1029, em especial p. 886.3 Entre essas cláusulas típicas podemos encontrar, entre outras, cláusulas de força maior, de hardship ou cláusulas penais. Sobre estes temas, vd. Luís de Lima Pinheiro, Cláusulas Típicas dos Contratos de Comércio Internacional, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, volume XLIV, números 1 e 2, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 83-108.4 Sobre a leveraged fi nance enquanto tipo de fi nanciamento que atribui ao credor domínio da socie-dade, vd. Ana Perestrelo de Oliveira, Os Credores do Governo Societário: deveres de lealdade para os credores controladores?, in Revista de Direito das Sociedades, A. I, n.º 1, 2009, pp. 95-133, em especial pp. 98-102.

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seu papel ao de um acionista controlador5, o que torna o credor um insider da sociedade, pondo-se então a questão da possível responsabilização destes credo-res, e dos moldes em que essa responsabilização pode ocorrer6-7.

As cláusulas a que nos referimos acima são, em concreto, os chamados covenants, e têm relevância central neste nosso estudo. A aposição de covenants no contrato de fi nanciamento permite ao credor regular, em geral, a forma como serão dirigidos os assuntos da sociedade devedora, bem como fi car numa posição de extremo poder no que diz respeito a possíveis incumprimentos, por utilizar situações deste género para renegociar o contrato de fi nanciamento de modo a ter um controlo ainda mais intenso sobre a sociedade. Estando em difi culdade fi nanceira, o devedor não terá opção senão aceitar os termos da renegociação8.

Os covenants subdividem-se em geral em positivos (fazem imposições ao devedor) e negativos (contêm proibições para o devedor)9. Estas cláusulas podem incidir sobre vários assuntos: podem impor níveis de endividamento; podem fazer restrições quanto ao tipo de pagamento; podem ser cláusulas nega-tive pledge, que implicam a obrigação para a sociedade devedora de não cons-tituir novas garantias com terceiros; podem limitar a faculdade da empresa de dispor dos seus ativos ou a possibilidade de efetuar mudanças signifi cativas nos seus negócios; podem proibir fusões; podem restringir o investimento; podem restringir transações com fi liais10.

Existem, então, vários tipos de covenants, desde aqueles que se referem ao fornecimento de informação (reporting covenants), aos que visam garantir a sol-vência da sociedade (fi nancial covenants), que proíbem ou limitam a liberdade da sociedade de dispor dos seus bens (disposal of assets covenant), até àqueles que nos vão ocupar neste estudo: os que geram o vencimento da obrigação em caso de incumprimento (events of default) e, mais especifi camente, aqueles em que o incumprimento de outra obrigação da sociedade devedora perante terceiros

5 Ou até de um administrador de facto da sociedade devedora, como já foi por vezes defendido.6 Assim, Ana Perestrelo de Oliveira, Os Credores do Governo Societário…, cit., pp. 96-97.7 O tema da lender liability é um dos mais trabalhados no ordenamento norte-americano, embora continue muito ainda em aberto, pela falta de uma clara defi nição dos conceitos que devem reger o controlo pelos credores, bem como este próprio conceito. Cf. Ana Perestrelo de Oliveira, Os Credores…, cit., p. 96.8 Ana Perestrelo de Oliveira, Os Credores…, cit., p. 102-103.9 Vd. A. Saraiva Matias, Garantias bancárias ativas e passivas, Scripto, Lisboa, 1999.10 Ana Perestrelo de Oliveira, Os Credores…, cit., p. 103.

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implica o vencimento da obrigação perante o credor com a qual contratou esta cláusula (cross default)11.

A inserção destas cláusulas em contratos de fi nanciamento pode parecer de estranhar, na medida em que, à primeira vista, só quem benefi cia da sua inclu-são é o credor e não o devedor, que se vê numa posição de maior fraqueza por ter de ceder quanto a diversos aspetos da gestão da sociedade, quase perdendo o seu controlo. Na verdade, a presença destas cláusulas neste tipo de contratos pode ser explicada com recurso à aplicação ao caso da chamada teoria da agên-cia – agency theory of covenants (ATC), apresentada por Jensen/Mackling (1976) e posteriormente desenvolvida extensivamente por Myers (1977) e por Smith/Warner (1979).

O ponto de partida desta teoria é o facto de existir um desalinhamento de interesses entre, por um lado, os acionistas de uma sociedade – shareholders ou stockholders – e, por outro, os credores dessa sociedade – bondholders ou sta-keholders. Os administradores da sociedade tendem a agir de forma a favorecer os interesses dos acionistas, o que pode por em causa a solvabilidade da socie-dade e, como tal, o cumprimento das suas obrigações perante os credores12. Para contrariar estes comportamentos, os credores tomam medidas que visam proteger a sua posição na sociedade, entre as quais a inclusão de covenants nos contratos de fi nanciamento, que lhes permitem controlar a gestão da sociedade, assegurando a sua solvabilidade. Assim, de acordo com a ATC, os acionistas da sociedade pagam ex ante, quando a dívida é emitida, o risco de expropriação por parte dos credores ex post, diminuindo assim os custos de fi nanciamento13.

11 Cf., sobre estas e outras cláusulas, Ana Perestrelo de Oliveira, Os Credores…, cit., pp. 103-104 e Eilís Ferran/Look Chan Ho, Principles of Corporate Finance Law, 2.ª ed., Oxford Univer-sity Press, 2014, pp. 282 ss.12 Podem ser apontadas várias razões para esta atitude por parte dos administradores: por um lado, pode existir um esforço insufi ciente por parte destes para melhor gerir a sociedade, visto que muitas vezes não participam no capital social ou são administradores de mais do que uma sociedade ao mesmo tempo (fenómeno de interlocking); a existência de investimentos excessivos na sociedade é também um fator, bem como as estratégias de perpetuação do cargo de administrador, nomea-damente através da manipulação de resultados, utilização da chamada “contabilidade criativa” ou ainda a procura de benefícios privados.13 Assim, Ana Perestrelo de Oliveira, Os Credores…, cit., p. 105; Grupos de Sociedades e Deve-res de Lealdade. Por um critério unitário de solução do “confl ito de grupo”, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 25 ss., em relação aos grupos de sociedades; Michael Bradley/Michael R. Roberts, The Structure and Pricing of Corporate Debt Covenants, in 6th Annual Texas Finance Festival (13 de Março de 2004), disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=585882, pp. 6 ss.

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Caso não o fi zessem, teriam de aceitar juros incrivelmente mais altos do que aqueles que, com a presença destes covenants, são acordados14.

Esta justifi cação para a utilização destas cláusulas em contratos de fi nancia-mento, vista aqui em traços muitos gerais, não implica contudo que se deva concluir pela licitude das mesmas, até porque tal conclusão implica um exer-cício de conformidade dos covenants com o ordenamento jurídico português e, em especial, com as regras de direito societário. Ainda assim, a ATC ajuda-nos a entender a importância deste tipo de acordos para a economia das empresas, bem como a vislumbrar desde logo o peso da liberdade contratual das partes neste âmbito.

A análise da licitude dos covenants não será, porém, analisada nesta fase introdutória do estudo, mas apenas posteriormente, quando entrarmos a fundo no tema que mais especifi camente nos ocupa.

Como já é possível perceber do que até agora foi dito, a temática dos cove-nants e das suas implicações nas fi nanças societárias, além da sua relativa com-plexidade, é de extrema atualidade e, como tal, de grande interesse académico. Não é possível, contudo, dada a propensão relativamente sucinta da presente investigação, analisar todos os seus aspetos e potenciais problemas, pelo que é necessário delimitar o tema de que nos ocuparemos.

1.2. Delimitação do tema

Acima expusemos, em traços muito gerais, o que são covenants, em que contexto estão inseridos e qual a sua justifi cação. Vimos, nomeadamente, que estas cláusulas podem assumir inúmeras formas e modalidades, pelo que cabe desde logo delimitar o âmbito do nosso tema no que diz respeito ao tipo de covenants de que falaremos.

Assim, do largo espectro existente daquelas que podem também ser deno-minadas como cláusulas de garantia e/ou segurança15, pelo facto de pretenderem acautelar o risco de incumprimento por parte do devedor e salvaguardarem a

14 A tomada de controlo da sociedade por parte destes credores, por recurso aos covenants, que atribuem a estes um amplo poder de infl uência, auxilia à diluição entre a distinção entre capital externo e capital interno que se tem vindo a observar. Deve acrescentar-se, também, que exis-tem dois tipos de fi nanciadores externos: os adjusting creditors, credores fortes que protegem os seus interesses por recurso a estas cláusulas contratuais e que se aproximam mais de proprietários da empresa; e os non adjusting creditors, que são credores fracos que não dispõem desse poder mas muitas vezes benefi ciam da negociação feita por parte dos credores fortes. Entre estes existem também, muitas vezes, confl itos de interesse.15 Joana Pereira Dias, Contributo…, cit.

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posição do credor, como vimos acima, vamos apenas concentrar-nos no estudo das cláusulas cross default. A razão de ser desta nossa escolha prende-se com o facto destas cláusulas, a par das cláusulas negative pledge e pari passu16, ser uma das cláusulas que mais frequentemente é incluída em contratos de fi nanciamento e, além do mais, suscitar várias questões quanto à sua aplicação, nomeadamente a da sua qualifi cação, ou não, como garantia em sentido jurídico. Podemos desde já avançar que, embora se possa dizer que estes covenants servem, no mínimo, uma fi nalidade de reforço da garantia geral da obrigação – o património do deve-dor –, pergunta-se se poderão ser verdadeiramente consideradas garantias. Os contratos do comércio internacional, em geral, não dispensam algum tipo de garantia, mas não as garantias tradicionais que podemos encontrar no Código Civil português17.

Começaremos, então, por introduzir o tema das cláusulas de garantia e/ou segurança em geral, distinguindo as cláusulas cross default das pari passu e negative pledge (Ponto 2), passando depois à análise das cláusulas cross default em especí-fi co, fazendo um excurso para abordarmos a questão da inserção destas cláusulas em contratos de derivados fi nanceiros (Ponto 3). O Ponto 4 será dedicado à relação que se estabelece entre os covenants em análise e as cláusulas de hardship e os waivers, bastante comuns na prática jurídica internacional, também. Por fi m, o Ponto 5 será dedicado ao tema da qualifi cação das cláusulas de garantia e/ou segurança como garantias em sentido jurídico, tema que já introduzimos acima.

2. Cláusulas de garantia e/ou segurança (pari passu, negative pledge e cross default)

2.1. Generalidades

A terminologia até aqui introduzida na temática que ora nos ocupa é um indício claro do local de origem destas cláusulas. Foi no ordenamento anglo--saxónico que o estudo dos covenants se desenvolveu com maior afi nco, exis-tindo diversos contributos doutrinários sobre o tema, em especial, no sistema norte-americano. Mas, acima de tudo, cabe-nos notar desde já que estas cláu-

16 As três surgem quase sempre em simultâneo nos contratos internacionais, podendo dizer-se que são complementares umas das outras.17 Fernando Pessoa Jorge (A Garantia Contratual da Igualdade dos Credores nos Empréstimos Inter-nacionais, in Centro de Estudos Fiscais (ed.), Estudos em Comemoração do XX Aniversário, Sepa-rata, Lisboa, 1983, p. 5) diz-nos que, de facto, não é frequente a existência de garantias reais nos empréstimos externos, havendo quando muito uma garantia pessoal, como uma fi ança.

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sulas são construção da prática jurídica, em especial nos sistemas continentais, como o português, onde não encontramos em lugar algum da lei referência ao tema.

Sabemos, do que foi já dito, que os covenants têm presença assídua em con-tratos internacionais, pelo papel que têm na salvaguarda da posição do credor perante a sociedade devedora. Adiantámos também, no ponto precedente, que a proliferação deste tipo de cláusulas teve origem na difi culdade de determina-ção da lei aplicável que estes contratos internacionais acarretam. Mas não terá sido essa a única motivação de base para o aparecimento destas cláusulas.

Tendo em conta que este tipo de cláusulas não produz efeitos em relação a terceiros, possuindo apenas uma efi cácia inter partes, os mutuantes procuram a aposição destas cláusulas nos contratos de fi nanciamento principalmente como forma de reforçar a garantia geral, não prescindindo deste mecanismo. Dito de outra forma, uma forte razão para a constante presença destas cláusulas nestes contratos não é jurídica, mas sim prática: mesmo estando geralmente perante um devedor forte, o credor quer assegurar-se que o mutuário entende a dimen-são do negócio e as consequências do seu incumprimento, incluindo então cláusulas como estas de modo a “assustar” o devedor ao cumprimento pontual da obrigação. Se não, veja-se o caso acima explanado dos credores controlado-res, que ganham enorme poder de infl uência sobre a sociedade devedora pela aposição de covenants que o garantem, deixando esta numa posição em que tem de cumprir para evitar a expropriação.

Para além desta motivação de índole prática, podemos descortinar outras duas razões para a inclusão de covenants em contratos do comércio internacio-nal, que se prendem com uma mesma lógica: a da procura de uma alterna-tiva às garantias reais e pessoais que tradicionalmente encontramos na Lei18. Por um lado, estas cláusulas são inseridas pelas partes nos contratos de modo a preencherem uma lacuna deixada em aberto e que não é adequadamente suprida com as garantias já existentes, que não acautelam devidamente os seus interesses. Por outro lado, os meios de conservação do património previstos na lei implicam, em caso de incumprimento do contrato, processos morosos que passam pelo recurso a tribunais e verifi cação de requisitos muito apertados, que vão contra a ratio deste tipo de contratos19.

Mas não nos basta saber as razões que levam ao aparecimento destas cláu-sulas. A sua existência à margem de qualquer previsão legal no nosso ordena-mento jurídico impõe a questão da sua licitude. Por um lado, as cláusulas indi-viduais que integram os covenants poderiam ser consideradas ilícitas, na medida

18 Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., p. 889.19 Assim, Joana Pereira Dias, Contributo, cit., p. 888.

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em que, não só são acordadas pelas partes sem qualquer previsão legal, como o seu conteúdo regula aspetos centrais do contrato, como seja a obrigação de pagar o preço por parte do devedor ou, como veremos em específi co em rela-ção às cláusulas cross default, o eventual incumprimento de outros contratos que em nada estariam relacionados com o credor que as negoceia. No entanto, a falta de previsão legal não é sinónimo de ilicitude das cláusulas, nomeadamente porque, como sabemos, o nosso ordenamento permite a existência de cláusulas atípicas e socialmente típicas20. Por outro lado, entendemos que o conteúdo das cláusulas aqui analisadas deve ser livremente negociado pelas partes, valendo aqui inteiramente a autonomia privada e o princípio da liberdade contratual que, como dissemos acima, preenchem espaços lacunosos na nossa lei.

Questão relacionada é a da licitude destas cláusulas quando, resultante delas, o credor fi que com o controlo da sociedade devedora21. Nestes casos, a res-posta passa por saber se as nossas regras de direito societário, especifi camente o nosso Código das Sociedades Comerciais (CSC), abrem tal possibilidade.

Em geral, o nosso direito societário não prevê hipóteses de deslocação do poder de direção da sociedade para terceiros, a não ser no que toca ao fenó-meno específi co das sociedades em relação de grupo, nos casos de domínio total (artigo 488.º e seguintes CSC) e de celebração de um contrato de subor-dinação (artigo 493.º e seguintes CSC), em que é atribuído legalmente à socie-dade-mãe o poder de dar instruções à sociedade-fi lha (artigo 503.º CSC, por remissão do artigo 491.º no caso das primeiras e diretamente no segundo caso). Quando falamos em sociedades anónimas isoladas, por outro lado, a adminis-tração mantém sempre a sua independência dos restantes acionistas, que não podem dar qualquer tipo de instrução aos administradores22.

O que podemos retirar das regras do direito societário clássico, global-mente, é que parece existir uma clara falta de previsão e regulação desta parti-cular situação, que ocorre com crescente frequência no atual mercado. Con-tudo, tal não signifi ca que se devam considerar ilícitas as cláusulas que atribuem um poder de controlo ao fi nanciador, na medida em que a sua negociação cabe ainda, a nosso ver e à semelhança do que dissemos acima em relação à licitude das cláusulas em geral, na autonomia das partes e no princípio da liberdade con-

20 Numa lógica semelhante à que ocorre em relação aos contratos. Cf., por todos, Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, pp. 61 ss.; Rui Pinto Duarte, Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, Almedina, Coimbra, 2000, passim.21 Supra, ponto 1.1.22 Diferente é o caso das sociedades por quotas. A este propósito, vd. António Menezes Cor-deiro, Manual de Direito das Sociedades, II – Das Sociedades em Especial, 2.ª ed., Almedina, Coim-bra, 2007, pp. 403-404.

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tratual. De resto, e tendo em conta as inúmeras formulações que estas cláusulas podem assumir, caberá ao intérprete-aplicador decidir pela sua admissibilidade casuisticamente, tendo em conta os dados de Direito disponíveis e os interesses a que as partes atenderam aquando da celebração do contrato23.

Os motivos que subjazem à utilização das cláusulas de garantia e/ou segu-rança e os aspetos dogmáticos, ainda muito gerais, que vimos em relação às mesmas dão-nos uma ideia de que as vantagens que trazem são principalmente para o credor. Nestas situações, a vantagem para o devedor acaba por ser apenas aquela que resulta da lógica da já acima mencionada agency theory of covenants, nomeadamente o facto de poder a sociedade devedora, por esta via, acautelar o risco de expropriação pelo credor com a restrição voluntária da sua posição na gestão social ou em relação a outros aspetos, dependendo do conteúdo das cláusulas. Esta é, de resto, uma vantagem importantíssima, na medida em que assegura o futuro da sociedade, que provavelmente recorre a contratos deste género por estar a priori numa situação fi nanceira debilitante.

Contudo, o credor é defi nitivamente o elo mais forte desta relação e aquele que mais vantagens retira da celebração deste tipo de contrato com a aposição destas cláusulas. No fundo, tudo se resume à garantia da sua posição no contrato e perante outros credores e à conservação dos bens do devedor de um ponto de vista preventivo. Ou seja, estas cláusulas visam a tutela do credor, maiorita-riamente, numa lógica diferente daquela que guia o nosso Direito, centrada na proteção da parte mais fraca, i.e., o devedor24.

Ficou até agora claro que estas cláusulas não têm qualquer tipo de previsão e regulação da sua disciplina na Lei, o que implicaria qualifi cá-las como cláu-sulas atípicas. No entanto, e como sabemos, a tipicidade não se defi ne apenas

23 No mesmo sentido, Ana Perestrelo de Oliveira, Os Credores…, cit., pp. 108-110.24 Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., pp. 888-889., parece centrar as vantagens destas cláu-sulas no facto de assegurarem o princípio da igualdade dos credores e formarem uma relação de confi ança entre credor e devedor. Não podemos concordar com este entendimento, na medida em que estas cláusulas não são, por um lado, acordadas pelo credor com o intuito de garantir a par conditio creditorum, com a possível exceção das cláusulas pari passu, mas sim de garantir que o seu crédito é satisfeito atempadamente e que a sua própria posição em relação a outros possíveis credores está garantida – neste sentido poderíamos até denomina-las como “cláusulas egoístas”. Aliás, o caso do credor controlador demonstra precisamente que não existe interesse em fi car em pé de igualdade com outros credores, mas sim em fi car numa posição privilegiada em relação a estes. Também não entendemos que se estabeleça uma especial relação de confi ança entre credor e devedor, tendo em conta que estas cláusulas são incluídas em contratos internacionais preci-samente por existir, a um certo nível, a dúvida do cumprimento por parte do devedor, além de que, embora sejam geralmente negociadas de acordo com o tipo de devedor e com o que este pode trazer para a mesa das negociações, estas cláusulas acabam por ser um recurso de qualquer contrato, uma “go-to clause”.

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pela regulação legal, podendo ser falado também em tipicidade social25 quando certas cláusulas – à semelhança dos contratos – são utilizadas sistematicamente, estabelecendo entre si uma relação que permita à sociedade civil reconhecer uma prática comum e existindo uma consciência generalizada de que essa prá-tica é vinculativa26. Pela necessária economia do presente trabalho, não desen-volveremos a temática da tipicidade, que muito tem de rica e complexa, mas diremos apenas que as cláusulas que aqui nos ocupam são, a nosso ver, cláusulas socialmente típicas, por claramente estarem sufi cientemente difundidas na prá-tica e terem um papel de relevo na celebração destes contratos, mesmo não existindo um tipo legal correspondente27.

Vejamos então, e antes de entrarmos a fundo no tema específi co das cláu-sulas cross default, o que distingue as três cláusulas que paradigmaticamente são associadas ao grupo de cláusulas de garantia e/ou segurança e que surgem quase sempre em simultâneo: as cláusulas pari passu, negative pledge e cross default.

2.2. Distinção entre cláusulas pari passu, negative pledge e cross default

A prática jurídica internacional tem demonstrado que as três cláusulas que podemos incluir na classifi cação mais geral de cláusulas de garantia e/ou segu-rança – mas que não a esgotam, necessariamente – são apostas com frequência em contratos de fi nanciamento internacionais em conjunto, complementando--se entre si e tendo a potencialidade de fazer surgir dúvidas quanto à sua distin-ção. No entanto, pela defi nição de cada uma, podemos identifi cá-las correta-mente nestes contratos. Fazemos então uma mera aproximação, sem pretensões de exaustividade, ao conceito de cada uma, deixando o desenvolvimento das cláusulas cross default, de que nos ocupamos especifi camente neste estudo, para os pontos seguintes.

A cláusula pari passu pode ser também designada como cláusula de equal ranking ou pari passu ranking e, pela aposição dela, as partes acordam que o cré-dito do mutuante fi cará em pé de igualdade com os créditos dos restantes cre-dores comuns ou quirografários com os quais o mutuário celebrou contratos. Excluem-se deste âmbito os créditos preferenciais ressalvados no contrato28.

25 Vd. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos…, cit., pp. 61 ss.26 Ibidem, pp. 62-63.27 No mesmo sentido, Joana Pereira Dias, Contributo…, pp. 901 ss.28 Sobre a cláusula pari passu cf., por todos, Pessoa Jorge, A Garantia…, cit., pp. 141 ss.; Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., pp. 908 ss.; Florbela de Almeida Pires, Direitos e Organização dos Obrigacionistas em Obrigações Internacionais: Obrigações de Caravela e Eurobonds, Lex, Lisboa, 2001,

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Pela aposição de uma cláusula negative pledge, o devedor obriga-se perante o credor a não constituir quaisquer garantias reais a favor de outros credores durante o tempo de vida do contrato, nem a recorrer a qualquer outro meca-nismo que crie, de jure ou de facto preferências a favor de outros credores29.

Por fi m, a cláusula cross default, numa primeira aproximação que abaixo será desenvolvida, caracteriza-se por reconhecer ao credor o direito de exigir antecipadamente o cumprimento da obrigação do devedor pelo facto de este não ter cumprido pontualmente outros contratos ou ter ocorrido o vencimento antecipado daqueles por outros factos30.

Dentro da noção apresentada para cada uma destas cláusulas, estas podem assumir formas e redações diferentes, de acordo com as partes na negociação. Existe, portanto, um importante papel da interpretação no entendimento destas cláusulas, que não deve ser esquecido.

A economia deste trabalho não nos permite estender considerações acerca de cada uma destas cláusulas, do modo como se conectam e dos problemas possíveis que podem surgir na sua interpretação. De resto, a par destas cláusulas muitas outras poderiam ser abordadas, de igual importância. Não nos sendo possível fazê-lo, iremos a partir deste ponto analisar apenas os aspetos relacio-nados com as cláusulas cross default, sem prejuízo de breve menção a outros tipos de cláusulas.

pp. 113, 145, 166 e 189; Vasco Soares da Veiga, Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 1997, pp. 375-376; Romano Martinez/Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, pp. 60-61; Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, p. 319; Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 648-649; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X – Direito das Obrigações. Garantias, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 275-276.29 Sobre a cláusula negative pledge cf., por todos, Pessoa Jorge, A Garantia…, cit., pp. 150 ss.; Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., pp. 930 ss.; Florbela de Almeida Pires, Direitos e Organização…, cit., pp. 113, 145, 166 e 189; Romano Martinez/Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, ob. cit., pp. 58-60; Menezes Leitão, Garantias…, cit., pp. 318-319; Pestana de Vasconcelos, Direito…, cit., pp. 647-648; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X.., cit., pp. 272-275.30 Sobre a cláusula cross default cf. por todos, Pessoa Jorge, A Garantia…, cit., pp. 171 ss.; Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., pp. 966 ss.; Florbela de Almeida Pires, Direitos e Organização…, cit., pp. 113, 145, 166, 189 e 296; Soares da Veiga, Direito Bancário…, cit., p. 377; Menezes Lei-tão, Garantias…, cit., p. 319; Pestana de Vasconcelos, Direito…, cit., pp. 649-651; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X.., cit., pp. 276-278.

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3. Dogmática geral das cláusulas cross default

3.1. Noção e generalidades

Feita uma primeira aproximação ao conceito de cross default, vejamos agora em termos mais completos as suas especifi cidades. A cláusula cross default, ou de “incumprimento cruzado”, numa tradução literal que não é utilizada no nosso ordenamento jurídico31, consiste na estipulação pelas partes de que cer-tos factos ou eventos – events of default32 – que ocorrem no âmbito de outros contratos ou operações fi nanceiras33, a se verifi carem, constituirão causa do vencimento antecipado do contrato ora celebrado entre as partes.

Ou seja, e para se melhor compreender as repercussões desta cláusula, por via da sua aposição algo que sucede ao abrigo de um outro contrato afeta o contrato em questão, ainda que este esteja a ser cumprido pontualmente pelo devedor, podendo levar à sua cessação.

A esta grave consequência acresce o facto de a generalização de cláusulas cross default em contratos de fi nanciamento trazer grandes problemas para o mutuário, em específi co o chamado efeito-dominó – knock-on ou domino eff ect – dos contratos que tenham sido celebrados pelo devedor. Com efeito, no caso de existir incumprimento de um contrato com um mutuante, este pode esco-lher nada fazer, fi cando numa posição de força face ao mutuário que, sabendo das consequências que a cessação de um contrato por incumprimento tem nos

31 A expressão em português é apenas utilizada entre nós por Soares da Veiga, Direito Bancá-rio…, cit., p. 377.32 Vd. infra, ponto 3.2.33 Questão pertinente a responder é a de sabermos a quem respeitam os outros contratos de onde se retiram os factos ou eventos que, a se verifi carem, acionam a cláusula cross default. Um enten-dimento diz-nos que a verifi cação do facto ou evento tendente a desencadear o acionamento da cláusula cross default deve ocorrer ao abrigo de um contrato celebrado entre o devedor mutuário e um terceiro ou entre nenhuma das partes iniciais para que se possa falar em cláusula cross default (cf. Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., p. 993, nota 293). Salvo o devido respeito, na nossa opinião estamos ainda perante uma verdadeira cross default quando os eventos incluídos na cláusula digam respeito a um outro contrato celebrado entre as mesmas partes. Como veremos adiante quando abordarmos a distinção entre events of default e cross default, o critério que diferencia as duas, a nosso ver, é o do contrato a que dizem respeito os eventos. Logo, se os eventos estipulados pelas partes são referentes à celebração e cumprimento de outro contrato, ainda que esse outro contrato tenha sido celebrado pelas mesmas partes, estamos perante uma cláusula cross default, na mesma medida em que estaríamos se os eventos fossem referentes a um contrato celebrado entre terceiros alheios ao contrato onde se apôs a cláusula, ou onde apenas fosse parte um dos contraentes deste contrato.

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outros contratos onde tenham sido apostas cláusulas cross default, acaba por ceder às exigências do credor34.

Avançados desde já alguns conceitos relevantes para a disciplina das cláusu-las cross default, entramos agora na sua densifi cação, que esperamos que melhor faça transparecer as verdadeiras implicações da utilização deste mecanismo de tutela do credor na prática jurídica nacional e internacional.

3.2. Events of default e cross default

Dissemos acima que a cláusula cross default consiste, em termos simplistas, numa enumeração pelas partes de events of default respeitantes a outros contra-tos que, a se verifi carem, constituiriam causa de vencimento antecipado do contrato onde foi aposta a cláusula. No entanto, a questão não é tão linear como poderia parecer, sendo necessário e importante defi nir com mais precisão os conceitos com que aqui trabalhamos que, retirados da linguagem jurídica anglo-saxónica, podem induzir em erro um intérprete menos atento.

Em primeiro lugar, quando falamos em events of default na prática jurídica estamos a referir-nos a uma cláusula em que as partes enumeram, de forma exaustiva e com grande pormenor, todos os factos ou eventos que, na hipótese de se verifi carem, atribuem ao credor o direito de fazer cessar o contrato e exi-gir o reembolso do capital já disponibilizado.

A negociação destas cláusulas, além de envolver grande pormenor, como mencionado, tem em atenção que um event of default não deve ser qualquer situação em que o devedor incumpra uma sua obrigação decorrente do con-trato: será, desde logo, uma situação decorrente do contrato onde se apõe a cláusula; depois, terá de ser uma situação que, para o credor, constitui desvio grave ao programa contratual e lhe faz perder confi ança na capacidade de cum-primento pontual das obrigações do devedor.

Desta defi nição se retira desde logo a sua semelhança à cláusula cross default. Efetivamente, para além da denominação semelhante, ambas as cláusulas par-tilham alguns dos mesmos princípios que as defi nem, como seja o facto de

34 Vide Joachim Gruber, Cross-Default Clause in Finance Contracts, in International Business Law Journal, vol. 1997, 5, pp. 591-603, 1997, disponível em: http://heinonline.org/HOL/Page?handle=hein.journals/ibuslj13&id=591; Keith Clark/Andrew Taylor, Events of Default in Eurocurrency Loan Agreements, in International Financial Law Review, Vol. 1, 5 (September, 1982), pp. 12-15, 1982, disponível em: http://heinonline.org/HOL/Page?handle=hein.journals/intfi nr1&id=200.

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ambas preverem situações que constituem causa de vencimento antecipado da obrigação do devedor no contrato onde são apostas.

Qual é, então, a diferença entre as duas cláusulas? Embora sejam, efetiva-mente, passíveis de serem confundidas, estas cláusulas não são idênticas: a cláu-sula que defi ne os events of default de um contrato tem um âmbito mais alargado, em princípio, do que a cláusula cross default35. Mas como se relacionam, ou não, as duas?

O entendimento geral vai no sentido de considerar que a cláusula de events of default tem um âmbito mais alargado do que a cláusula cross default, como mencionámos, constituindo esta última uma sua modalidade, aliás, uma das suas “faces mais conhecidas”36.

Existe ainda quem, embora integrando as cláusulas cross default no âmbito das cláusulas de events of default, lhes dê uma outra denominação. Assim, aquando da negociação para aposição de cláusulas de events of default no con-trato, o credor entende muitas vezes que quando se verifi carem as situações aí previstas – se tal chegar a acontecer – poderá já ser demasiado tarde para ver a sua posição protegida, na medida em que outros credores podem já ter, em face de incumprimentos nos seus contratos, protegido as suas próprias posições. E é nesse sentido que surgem as cláusulas de cross default, que se inserem nos chamados early warning events of default, que acautelam a posição do credor no contrato e lhe “mostram” que o devedor daquele empréstimo pode, em breve, incumprir o seu contrato, na medida em que já o fez em relação a outros de que era devedor37.

Quanto a nós, parece-nos que a cláusula cross default será uma “modalidade” de events of default, ou não, dependendo do que as parte estipulem no contrato. Quer isto dizer que pode acontecer que credor e devedor acordem em prever no contrato que vários factos – violações de disposições contratuais, desvios ao contrato de maior ou menor gravidade, entre outras – constituam causa para resolução do contrato/exigibilidade antecipada e, no rol de factos, prevejam ainda outros tantos referentes a violações de outros contratos, entrando aqui a cláusula cross default. Mas também pode suceder que credor e devedor decidam prever apenas que certos factos referentes a outros contratos sejam causa da resolução, caso em que estaremos apenas perante uma cláusula de cross default, desligada da cláusula de events of default. De qualquer forma, caberá sempre dis-tinguir-se as duas fi guras, na medida em que os events of default dizem respeitos à previsão de factos dentro do contrato celebrado, enquanto a cross default dirá

35 Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., pp. 969-970, nota 215.36 Ibidem.37 Esta construção é apresentada por Keith Clark/Andrew Taylor, Events of Default…, cit., p. 13.

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sempre respeito a factos relacionados com o incumprimento de outros contra-tos, com o mesmo credor ou não.

3.3. Formulações da cláusula: a payment cross default e a covenant cross default

Do que até agora fi cou dito sobre as particularidades destas cláusulas, pode-mos retirar uma importante conclusão: a negociação e aposição num contrato de cláusulas cross default, pela abrangência que pode revestir e pela posição sen-sível em que põe o devedor menos avisado, torna estas cláusulas potencial-mente perigosas. Essa perigosidade deve, portanto, ser acautelada com a correta delimitação e individualização das suas construções típicas, bem como com a imposição de limites que tornem estas cláusulas viáveis. Por ora, trataremos apenas de individualizar as construções mais frequentes de cláusulas de cross default, deixando o elenco das suas restrições para o ponto seguinte.

Podemos falar de duas categorias básicas de cross default: a payment cross default e a covenant cross default38. Vejamos em que consiste cada uma delas.

Como o nome indica, a payment cross default é a cláusula pela qual se esta-belece que o não pagamento do preço devido noutros contratos – sendo que as partes estipulam quais serão, em concreto, esses contratos –, ao alertar o credor para a possibilidade de não pagamento no contrato onde é aposta a cláusula, atribui-lhe a faculdade de fazer cessar o contrato antecipadamente e exigir a restituição integral das prestações já pagas (se já tiverem sido pagas).

Por outro lado, a covenant cross default refere-se ao (in)cumprimento de outras obrigações que não o pagamento do preço. Por via de uma covenant cross default, o credor poderá fazer cessar o contrato antecipadamente e exigir resti-tuição integral do preço sempre que o devedor viole qualquer cláusula, além da obrigação principal de pagamento do preço, decorrente de contrato celebrado com um terceiro credor, desde que nesse contrato a violação dessa cláusula esteja elencada como event of default. Apesar da aparente confusão de termos que pode decorrer desta modalidade, o esquema acaba por ser algo simples, se recorrermos a um exemplo: A (sociedade devedora) e B (banco credor) cele-bram um contrato de empréstimo, no qual se estabelece que o incumprimento, por A, da sua obrigação de informar B de qualquer alteração na composição do capital social da sociedade, prevista na cláusula X do mesmo contrato, dá a B o direito de resolver o contrato e exigir todas as prestações vencidas e vincendas.

38 Vd. Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., pp. 977 ss.

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Posteriormente, A celebra outro contrato com C, independente do primeiro, mas no qual se estabelece que o incumprimento por A de qualquer cláusula do contrato anteriormente celebrado entre A e B que constitua, ao abrigo desse contrato, causa de cessação antecipada do contrato irá surtir o mesmo efeito no contrato ora celebrado. Assim, se A incumprir a cláusula X do contrato com B, não só verá esse contrato terminado e fi cará obrigado à restituição do preço e de outros valores que tenham sido acordados, como verá também o seu con-trato com C igualmente terminado, tendo também aqui de restituir o preço e outros valores que tenham sido acordados39. Desta maneira se compreende que, visivelmente, estamos perante uma cláusula que pode causar um prejuízo bastante signifi cativo ao devedor menos avisado.

Destas duas formulações básicas podemos, depois, retirar outras formula-ções que, desviando-se em alguns aspetos da cláusula-base, ainda assim se inse-rem nela. Nesta sede iremos apenas enumerar aquelas que, de acordo com os ensinamentos de Joana Pereira Dias a este respeito40, constituem as variantes da cláusula que mais encontramos nos contratos de empréstimo. No entanto, e tendo em conta que estamos num âmbito dominado especialmente pela liber-dade negocial e vontade das partes contratantes, um sem número de outras formulações destas cláusulas poderia ser verifi cada ao fazer uma análise com-parativa de vários contratos deste género. Porque seria uma tarefa demorada e porque nunca traria conclusões específi cas quanto às formulações mais comuns hoje em dia, resolvemos seguir esta subdivisão, que nos parece cobrir sufi cien-temente as variantes das cláusulas de payment e covenant cross default.

Assim, no que diz respeito às formulações mais standard da cláusula de pay-ment cross default, encontramos duas principais redações. A primeira, que pode-mos dizer ser a fórmula nuclear, é a mais comum e permite ao credor resolver o contrato e exigir o pagamento do preço ao mutuário logo que exista incum-primento da obrigação de pagamento de um outro contrato, o que diminui consideravelmente as garantias de solvabilidade do devedor. Por estarmos nor-malmente perante contratos de empréstimo, reveste também importância dife-renciar as situações em que o Banco já tenha disponibilizado o montante total acordado das situações em que isso ainda não tenha acontecido. Na primeira hipótese, a cláusula visará primordialmente a manutenção da posição do credor

39 Podemos inclusivamente dizer que o credor do contrato onde é aposta a covenant cross default tenta “apanhar boleia” de outros contratos, sem necessitar de negociar, ele próprio, os eventos que levam à cessação antecipada do contrato. Daí que se possa chamar a esta modalidade uma lazy clause. Vd. Philip Wood, International Loans, Bonds and Securities Regulation, Sweet & Maxwell, 1995, p. 48.40 Ob cit., pp. 978 ss.

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em igualdade com os restantes41; na segunda hipótese, o credor poderá sempre não disponibilizar o restante montante acordado pelas partes.

A segunda formulação da payment cross default é bastante comum e defi ne-se pela extensão da cláusula aos garantes no contrato (e.g. eventuais fi adores) e sociedades subsidiárias da devedora. A cláusula atinge aqui proporções de alto risco, tendo em conta que o incumprimento do pagamento do preço de um outro contrato pelo garante ou por sociedade subsidiária gerará, em relação ao contrato onde foi aposta a cláusula, o desencadeamento dos mecanismos de cessação do mesmo. Quer isto dizer que terceiros ao contrato – como é o caso das subsidiárias – podem vir a causar o vencimento antecipado de um contrato de empréstimo, por via da aposição desta cláusula de cross default.

Já no que diz respeito às formulações mais comuns da covenant cross default, encontramos também duas. De um lado, temos uma formulação que permite ao credor acionar a cláusula cross default sempre que um credor exterior ao con-trato promova contra o devedor uma medida de execução do seu património ou meio de conservação da garantia patrimonial, quando tal seja suscetível de por em causa a solvabilidade do património deste. O fundamento desta cláusula parece-nos bastante claro: o credor pretende acautelar o risco de não conse-guir ser pago no âmbito do contrato celebrado em casos extremos como os de insolvência do devedor, na medida em que podem existir credores (maxime, o Estado) que têm preferência de pagamento na ordem que deve ser seguida. Portanto, tecnicamente esta formulação depende sobretudo de uma atuação de um terceiro credor e não do devedor, se bem que essa atuação virá provavel-mente na sequência de incumprimento de um contrato.

A última formulação típica da covenant cross default é a também denominada cláusula capable of42 e é, na verdade, a cláusula mais usada nestes contratos. Atra-vés dela, o credor consegue benefi ciar de causas de resolução antecipada de outros contratos, sem ter de as negociar ele próprio. Aliás, esta cláusula pode ser acordada de forma a que mesmo que o terceiro credor tenha concedido um waiver43 ao devedor, ou mesmo que o suposto incumprimento se tenha devido a um erro técnico, por exemplo, e tenha sido corrigido durante o chamado grace period, o credor possa ainda assim acionar a cláusula cross default, o que demons-

41 Joana Pereira Dias, ob. cit., p. 978. Sem prejuízo daquilo que dissemos supra, ponto 2.1., nota 28, em relação à “falsa” igualdade de credores visada por esta cláusula, neste caso específi co con-seguimos admitir, contudo, que essa igualdade se consiga.42 Joachim Gruber, Cross Default…, cit., p. 594.43 Falaremos, ainda que brevemente, do signifi cado desta fi gura infra, ponto 4.2.

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tra a abrangência que esta formulação tem e justifi ca o seu uso tão frequente por credores44.

3.4. Funcionamento da cláusula

Agora que já identifi cámos corretamente os aspetos que nos permitem defi -nir as cláusulas cross default, em qualquer uma das suas modalidades, cabe-nos analisar as questões que o seu funcionamento suscita e as restrições que devem ser feitas a esse funcionamento para que, da sua aplicação, não resultem situa-ções que coloquem as partes no contrato em desequilíbrio.

O que resulta dos termos analisados até agora, em suma, é que observado um dos factos estabelecidos entre as partes como causa de acionamento da cláusula cross default – por exemplo, o devedor não cumprir a obrigação de pagamento de um outro contrato –, o mutuante tem a faculdade de considerar vencida a dívida e exigir o imediato pagamento total da mesma.

As consequências de aplicação destas cláusulas são corretamente explanadas por Pessoa Jorge, que nos diz que “a sanção principal do não cumprimento dessas cláusulas está na faculdade de o mutuante exigir desde logo o pagamento antecipado, a chamada “aceleração” do contrato, com o risco de esta se propa-gar em cadeia a outros contratos, por força das cláusulas de cross default nestes insertas. Tal risco – a que não escapa o fi ador (…) – representa uma ameaça respeitável, mesmo abstraindo de “hipóteses catastrófi cas”; é que a maior ou menor amplitude desse risco pode projetar-se na maior ou menor difi culdade de o mutuário obter novos fi nanciamentos”45.

No entanto, no que respeita ao funcionamento das cláusulas cross default e, em geral, de todas as cláusulas de salvaguarda, a prática do mercado pode ser bastante variada. Como bem nota Paulo Câmara, “o funcionamento destas cláusulas pode ser automático, ou depender de alterações na notação de risco da sociedade ou do empréstimo obrigacionista”46.

44 Para uma visão mais completa destas formulações da cláusula cross default, vd. Joachim Gruber, Cross Default…, cit., passim.45 Pessoa Jorge, A Garantia…, cit., p. 41.46 Paulo Câmara, O Regime Jurídico das Obrigações e a Proteção dos Credores Obrigacionistas, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, vol. 44, nº 1 e 2, 2003, pp. 109-142, p. 133.

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3.4.1. O modo de aceleração do pagamento e o conhecimento da cross default

Especifi camente no que diz respeito ao funcionamento da cláusula de que nos ocupamos aqui, existem duas grandes questões a responder para melhor entendermos as particularidades de regime que delas advêm. Assim, na esteira de Joana Pereira Dias47 e de Pessoa Jorge48, ocupar-nos-emos nos próximos parágrafos de dar o nosso pequeno contributo para estes temas.

A primeira questão prende-se com a altura correta para o credor acionar a cláusula cross default e exigir o pagamento antecipado do preço e, eventual-mente, resolver o contrato: pode fazê-lo desde logo, tomando conhecimento do incumprimento do contrato celebrado com terceiro, ou deve aguardar que o credor diretamente lesado aja sobre o incumprimento para também o fazer?

Duas posições podem ser ensaiadas quanto à resposta a dar a esta questão: ou não se admite a invocação pelo credor, para acelerar o pagamento do seu crédito, da violação de uma obrigação emergente de outro contrato, quando o credor diretamente lesado considerou irrelevante ou justifi cada a falta do deve-dor, dando o seu waiver; ou se admite que não é justo que o mutuante fi que dependente da vontade desse outro credor, que pode ter razões particulares para não exigir a antecipação do vencimento, além de que esta será inviável se a obrigação não estiver dividida em prestações ou se se tratar da última prestação.

Tanto Joana Pereira Dias49 como Pessoa Jorge50 dão primacial relevância à vontade das partes no contrato, por força do princípio da autonomia privada.

Mas a questão põe-se, essencialmente, em saber qual é a via que melhor assegure os interesses das partes quando estas nada dizem no contrato. Neste aspeto, Pessoa Jorge entende que depende de sabermos se a “situação de perigo” prevista se confi na ao credor do contrato onde foi aposta a cláusula ou se esse perigo se estende aos demais credores: “se, por exemplo, o mutuário não cumpre a obrigação de prestar certas informações ao mutuante (…), o event of default não representa qualquer perigo para os demais credores: só existirá perigo para estes se o credor respetivo desencadear a aceleração do pagamento ou puder ainda fazê-lo, pois tal aceleração envolve riscos evidentes para todos os credores. (…) [N]outros casos, porém, o event of default revela, por si só, que o mutuário está em situação periclitante e cria a presunção de justo receio de insolvência; é o caso de o devedor deixar de pagar, no vencimento, uma obri-gação pecuniária, sem razões jurídicas que fundamentem tal atitude, ou praticar

47 Ob. cit., pp. 986 ss.48 Ob. cit., pp. 41 ss.49 Ob. cit., p. 991.50 Ob. cit., p. 43.

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atos que revelem, com razoável probabilidade, uma situação de insufi ciência patrimonial”51.

Joana Pereira Dias segue uma posição bastante semelhante, entendendo que qualquer uma das hipóteses pode ser injusta e que tem de existir uma “via de solução intermédia, uma via capaz de atender aos interesses em presença in casu (…)”52. A Autora acaba por se socorrer da distinção entre payment cross default e covenant cross default para chegar a uma solução, concluindo que apenas quando estejamos em presença da primeira pode o mutuante acionar a cláusula e “acelerar” o contrato sem que o credor diretamente lesado se pronuncie, pois só aqui “os demais credores correm o sério risco de se verem discriminados, com a forte probabilidade (perigo) de o credor diretamente lesado desencadear a aceleração do pagamento, e assim se ver pago com prevalência em relação a todos os demais credores comuns ou quirografários”53.

Vistos os termos da discussão, cumpre tomar posição. Desde logo, parece--nos óbvio que, tendo as partes acordado no contrato os exatos termos em que o mutuante pode fazer acionar a cláusula, essa vontade terá de ser respeitada, pelo que aqui nada temos a acrescentar às duas posições supra referidas.

A questão coloca-se, portanto, quando as partes nada digam, como aliás acontece em grande parte dos problemas que se suscitam aquando da inter-pretação de contratos em geral. Neste caso, temos algumas dúvidas quanto à posição perfi lhada pelos dois Autores. Embora faça sentido que alguns tipos de incumprimento sejam mais gravosos do que outros, especialmente quando existem casos que não se traduzem num perigo sério (e real) de insolvência do devedor ou de intenção de não cumprir os restantes contratos, os factos que foram previstos pelas partes como causa de acionamento da cross default cons-tituem, em princípio, factos que preocupam o credor/mutuante e que são, para esse credor em especial, motivo sufi ciente para fazer vencer a dívida. Ora, estamos no domínio da autonomia privada: as partes acordam estas cláusulas conforme a sua vontade e, tal como nos diz Pessoa Jorge, “não vemos que, no plano dos princípios, qualquer daquelas alternativas [acelerar com ou sem prévia reclamação do credor diretamente lesado] deva ser excluída por radical-mente injusta”54. Além do mais, na grande maioria destas situações, estamos perante devedores fortes, razoáveis, que se sabem – ou espera-se que saibam – acautelar devidamente. Se consentiram na inclusão de certo facto como causa de acionamento da cláusula cross default, sabem que correm sempre o risco de

51 Ob. cit., pp. 43-44.52 Contributo…, cit., p. 994.53 Ob. cit., p. 995.54 Pessoa Jorge, A Garantia…, cit., p. 42.

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verem a sua obrigação de pagamento vencida. E isto quer estejamos perante um caso de payment cross default ou covenant cross default.

Para melhor expormos a nossa posição, veja-se o seguinte exemplo: A (mutuário) e B (mutuante) celebram um contrato de empréstimo com cláu-sula de cross default, em que se prevê que, se A incumprir algum dos deveres previstos no seu contrato com C como events of default, B pode resolver o contrato ora celebrado. A vende um bem sem a obtenção do consentimento prévio de C, facto constante da lista pormenorizada de events of default susce-tíveis de causar vencimento antecipado da obrigação no contrato entre A e C. C decide não resolver o contrato, por qualquer motivo; mas B vê neste incumprimento um “presságio” de incumprimento por parte de A, perdendo confi ança na posição de A enquanto devedor. Se existe, inclusivamente, pre-visão no contrato celebrado entre A e B do direito de este o resolver, o que o impede de o fazer? Estamos perante dois contratos diferentes, apesar de tudo, e dois credores diferentes, que podem interpretar certos comportamentos de maneira diferente.

A segunda questão a ser respondida nesta sede é a de sabermos como acio-nar, na prática, a cláusula de cross default, quando esta for acordada sem o conhe-cimento dos demais credores do devedor/mutuário.

Esta é, na verdade, uma questão prévia a todas as questões, visto que o cre-dor só pode fazer-se valer das faculdades que a cláusula cross default lhe atribui se tiver conhecimento da ocorrência do event of default que, segundo o acordado, seria suscetível de a acionar.

A este respeito, Joana Pereira Dias defende que “sempre que o devedor consinta na aposição de uma cláusula de cross default, o devedor estará, simulta-neamente, a dar o seu consentimento à troca ou “cruzamento” de informações entre as instituições de crédito, que vá além daquele que já resulta do sistema de informações recíprocas organizado entre instituições de crédito com o fi m de garantir a segurança das operações e, também, das informações que se integrem no âmbito do serviço da centralização de riscos de crédito, mas limitado às informações relativas aos contratos de empréstimo fi rmados entre o devedor e outras instituições de crédito, na medida exclusivamente necessária à atribuição de conteúdo útil à cross default. Se o devedor a isso se opuser, a cláusula de cross default será, na prática, inoperante”55.

Para entendermos melhor a solução proposta, detenhamo-nos sobre as dis-posições gerais que regem este cruzamento de informações entre instituições de crédito. Atualmente, o artigo 78.º, n.º 1 do Regime Geral das Instituições

55 Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., p. 989.

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de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) proíbe a partilha de informação “sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exer-cício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”, acrescentando o n.º 2 que “estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.” As exceções a este segredo profi ssional encontram-se no artigo 79.º, sendo de relevância para este caso o n.º1, que dispõe: “Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, trans-mitida à instituição.”

Em face do referido artigo 79.º, n.º 1, parece-nos que o cliente sempre terá de dar a sua autorização à instituição para partilha de informação. E, na esteira do defendido por Joana Pereira Dias, isso parece acontecer quando ao contrato são apostas cláusulas de cross default. Caso contrário, e como completa a Autora, estaríamos perante um caso de venire contra factum proprium por parte do devedor56.

3.4.2. As restrições às cláusulas cross default

Tendo em conta a perigosidade da cláusula cross default, se negociada com demasiada amplitude, é da maior importância que ela seja cautelosamente acor-dada pelas partes, em especial pelo mutuário, que tem todo o interesse em apor certas restrições às formulações normalmente negociadas e que já tivemos oportunidade de analisar, que de alguma forma lhe permitam ter uma maior margem de manobra para evitar o acionamento da cross default.

Existem três tipos de restrições comuns, geralmente apostas nos contratos por iniciativa do mutuário57: i) aquelas que são acordadas pelas partes de modo a restringir o âmbito de aplicação da cláusula apenas a eventos que ocorram ao abrigo de contratos de empréstimo externos – em moeda estrangeira, celebra-dos com instituições de crédito não residentes; ii) as que são acordadas de modo a apenas permitir que o credor acione a cláusula quando a dívida seja superior a um certo montante; iii) as que são acordadas de modo a apenas se poder acionar a cláusula quando estejamos perante uma cláusula de payment cross default, ou seja, apenas quando exista atraso no pagamento do preço.

56 Contributo…, cit., p. 991.57 Cfr. Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., pp. 984 ss.

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Outras restrições comuns surgem ao nível da tentativa de defi nição de con-ceitos indeterminados, especialmente porque muitos dos termos utilizados são de origem anglo-saxónica e o seu signifi cado jurídico poderá diferir em grande medida do que, em Portugal, se entende por certa expressão ou instituto jurí-dico (e.g., o termo obligation). Depois, não interessa ao mutuário que se estenda esta cláusula aos seus garante ou às suas subsidiárias, quando estejamos perante um grupo de sociedades – caso em que os mutuantes, com grande probabi-lidade, tentarão incluir no contrato cláusulas como as já atrás mencionadas, que estendam a estes sujeitos ou entidades events of default capazes de suscitar o vencimento antecipado da obrigação. As partes acordam também muitas vezes na obtenção de um prazo de graça, ou grace period extension. Esta expressão quer simplesmente signifi car que é aposta no contrato uma cláusula que determina que o mutuário terá um período de tempo, pré-defi nido pelas partes e conce-dido pelo mutuante, para cumprir a obrigação cujo incumprimento era passível de causar o acionamento da cláusula de cross default. Estas cláusulas têm relevân-cia porque o mutuário pode, por exemplo, esquecer-se de fazer o pagamento na data acordada, ou pode ainda existir algum erro técnico ou administrativo que impeça o cumprimento pontual da obrigação, o que não quer dizer que não exista a intenção de cumprimento por parte do devedor.

3.5. A cláusula cross default e os derivados fi nanceiros – breve nota

Fazemos um pequeno excurso neste nosso estudo para tratarmos de um assunto que, embora inexplorado, não deixa de suscitar interesse dogmático. Efetivamente, as cláusulas de cross default são acordadas entre as partes no con-texto de contratos de empréstimo e, por vezes, em obrigações de emissão inter-nacional, e é nesse âmbito que têm sido tratadas pela doutrina ao longo dos anos.

Contudo, as cláusulas cross default têm feito parte de mais acordos do que aqueles de que temos vindo a falar. O ISDA Master Agreement, de 2002, que consiste basicamente numa minuta utilizada pela maioria dos operadores jurí-dicos que pretendam negociar acordos OTC (over the counter) de derivados fi nanceiros, inclui, no seu capítulo de “Events of Default”, uma cláusula cross default, o que suscita questões quanto à sua aplicação, ou merece pelo menos uma nota pela relevância que estes acordos têm na prática jurídica nacional e internacional nos dias de hoje.

Neste âmbito, falaremos apenas, quanto aos derivados fi nanceiros, dos swaps, por não termos pretensões de exaustividade quanto ao tema ora em apreço. Os swaps podem ser defi nidos como “contratos através dos quais uma

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parte transfere o risco económico inerente a um ativo para outra parte, em troca de uma remuneração”58.

O ISDA Master Agreement, por sua vez, como já avançámos acima, é o acordo mais utilizado para contratos OTC de derivados fi nanceiros – onde se incluem os swaps – internacionalmente, tendo sido redigido pela International Swaps and Derivatives Association (ISDA). Este master agreement engloba vários documentos, que permitem que a negociação destas transações esteja com-pletamente documentada, e tem o propósito de servir de base para todas as transações em que as partes que o acordaram celebrem posteriormente. Isto quer dizer que a cláusula cross default estará, a princípio, presente em todas as transações acordadas entre as partes, o que poderá suscitar algumas questões.

Na verdade, a aposição de uma cláusula cross default num contrato deste género não fará divergir em grande medida as considerações que temos feito até agora sobre o regime das cláusulas. O que pode suceder, por outro lado, é surgirem alterações a esta cláusula cross default nos anexos ao master agremeent, adendas que são feitas ao acordo e que são válidas entre as partes.

Neste ponto, diz-nos Ebo Coleman que enquanto que no contexto de empréstimos internacionais, como temos vindo a falar até agora, os papéis de credor e devedor estão bastante fi xados e são exclusivos àquelas duas partes, nos “derivative agreements” as partes são ambas credor e devedor ao mesmo tempo, o que causa mais problemas. Assim, nestes casos as partes tendem a ensaiar dife-rentes versões destas cláusulas, modifi cando certas partes da cláusula do master agreement59.

Assim, o que não raras vezes sucede é a criação de novas cláusulas, com base nas originais, que melhor acautelam os interesses das partes adaptadas àquele tipo de contratos. Existem três cláusulas que, mais comummente, são adiciona-das a estes master agreements.

A primeira dessas cláusulas é a cross acceleration clause. Através desta cláu-sula, as partes acordam que o credor do contrato onde essa cláusula é aposta só pode fazer operar a mesma e exigir o pagamento quando, não só o devedor tenha incumprido uma obrigação no terceiro contrato, mas também o cre-dor diretamente lesado tenha agido sobre esse incumprimento. Ou seja, nas situações ao abrigo de uma cross acceleration clause o momento relevante para efeitos de acionamento da cláusula pelo credor é o do exercício pelo credor

58 Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 192.59 Ebo Coleman, Cross-Default Confusion, in International Financial Law Review, vol. 16, n.º 4, Abril 1997, pp. 49-52, p. 49. Disponível em: http://heinonline.org/HOL/Page?handle=hein.journals/intfi nr16&start_page=49&id=243

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diretamente lesado do seu direito a resolver o contrato e fazer vencer antecipa-damente a obrigação. Aqui poderíamos inclusivamente ver resolvidos os pro-blemas de que falámos acima relativamente ao momento em que o credor pode acionar a cláusula cross default: se uma cláusula nestes termos estivesse prevista no contrato, então seria claro que apenas poderia existir vencimento antecipado da obrigação por incumprimento de uma obrigação num outro contrato quando o credor desse contrato agisse sobre esse incumprimento.

A segunda das cláusulas que normalmente resultam da modifi cação pelas partes das cláusulas de events of default e cross default presente nos acordos ora analisados são as cross provisos. Com efeito, existem sujeitos que entendem que tanto a cross default como esta versão mais “protetora” de cross acceleration são, ainda assim, inaceitáveis. Surgiu então uma terceira via – as cross provisos. Nes-tas, é adicionada uma “proviso” – que se pode comparar, em maior ou menor medida, a uma cláusula ou considerando de um contrato – à cross default esta-belecendo que esta não pode ser acionada se o incumprimento advier de um “erro técnico” – por exemplo, o devedor esqueceu-se de pagar apesar de ter dinheiro. O problema com este aditamento à cláusula cross default, para o Autor, pode ser traduzido no seguinte exemplo60: A, devedor, falha o pagamento do contrato A-C por razões administrativas, apesar de ter o dinheiro, e só se apercebe quatro dias depois da data de vencimento, momento em que corrige logo esse erro. Transfere o dinheiro para a conta de C na manhã do 4.º dia, chegando à conta de C nessa tarde. No entanto, C resolve o contrato na manhã do 4º dia (depois da data de vencimento), por não ter havido pagamento. Pode B, credor de A no contrato AB (em que está aposta cláusula cross default com a cross proviso), desencadear o vencimento antecipado da obrigação ou resolver o contrato AB? É uma questão de interpretação, mas usando uma “linguagem corrente”, o pagamento dentro de B dentro dos cinco dias previstos na formu-lação normal da cross proviso retifi caram o erro, pelo que B não tem legitimidade para fazer vencer a obrigação de A no contrato AB, apesar de C o ter feito ao abrigo do contrato AC. Entende o Autor, portanto, que a cross proviso desvirtua o propósito da cláusula cross default e usa inclusive uma expressão ilustrativa, dizendo que “the proviso drives, or so it seems to this writer, not so much a coach and horses as a herd of stampeding elephants through the cross-default clause.”

Por fi m, as partes têm vindo também a fazer uma alteração à cláusula cross default no que diz respeito ao tipo de contrato a que o incumprimento “cru-zado” diz respeito, criando a chamada cláusula cross-confusion. Tipicamente, a cláusula cross default que consta do master agreement é acionada por um incum-

60 Ebo Coleman, Cross-Default Confusion…, cit., p. 50.

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primento a respeito de uma specifi ed indebtedness (dívida específi ca) – que se refere, de uma forma abrangente, a um empréstimo. As partes dos OTC agree-ments vêm depois acordar que estas specifi ed indebtedness dizem respeito, não só a empréstimos, mas também a outros contratos de derivados, aumentando assim o espectro de situações que podem dar origem a incumprimentos e que, como tal, trazem muitas mais vantagens para o credor na eventualidade de falha por parte do devedor do cumprimento de uma das obrigações prevista num desses outros contratos.

O relevo deste tema, para além do interesse que reveste observar este tipos de cláusulas a serem aplicadas a outros tipos de contratos – ainda que, no fundo, tenham princípios relativamente similares àqueles que encontramos nos contra-tos de empréstimo –, prende-se com a possibilidade de aplicação destas modi-fi cações feitas ao abrigo da autonomia privada a estas cláusulas àquelas apostas nos contratos de empréstimo. Efetivamente, em alguns aspetos, estas variantes da cross default poderiam ajudar a resolver alguns problemas decorrentes da apli-cação, sem mais, daquela, ou simplesmente dar um leque maior de opções às partes para proteção das suas posições. Resta dizer que a possibilidade de inclu-são destas cláusulas, como tal, num contrato de mútuo são possíveis ao abrigo da autonomia privada de que falámos.

4. As cláusulas cross default, as cláusulas de hardship e os waivers

4.1. As cláusulas de hardship e o instituto da alteração de circunstâncias

As cláusulas de hardship, bem como as cláusulas de waiver – sobre as quais falaremos abaixo – assumem um papel importante na renegociação das cláusulas de events of default e, em particular, da cláusula cross default.

Esta renegociação assume-se “(…) como fator determinante do equilíbrio contratual, permitindo ao devedor obter algumas concessões do mutuante/s, mas também enquanto elemento dinamizador do empréstimo, capaz de per-mitir ao credor, sob a ameaça do desencadeamento dos efeitos da cross default, obter condições mais favoráveis para salvaguarda da sua posição (…)”61.

Quando estamos perante cláusulas de salvaguarda e/ou garantia62, e em específi co perante cláusulas cross default, o seu acionamento pelo credor não

61 Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., p. 972.62 Referimo-nos a estas cláusulas em geral porque as considerações que teceremos relativamente às cláusulas de hardship e aos waivers aplicam-se a todas as cláusulas deste género, para além das cláusulas cross default.

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se afi gura, as mais das vezes, como a opção mais sensata em termos negociais. Falamos de procedimentos algo morosos e que não garantem que, a fi nal, o credor veja o seu crédito restituído. Desse modo, perante a verifi cação de um evento que, de acordo com a cláusula cross default aposta no contrato, daria ao credor a faculdade de resolver o contrato e desencadear o vencimento anteci-pado da obrigação, a via da renegociação afi gura-se geralmente mais razoável, dando mais opções ao credor. É nesse sentido que são apostas nos contratos de empréstimo cláusulas que obrigam à renegociação do mesmo em caso de incumprimento pelo devedor de alguma das suas obrigações63. E é precisa-mente esse o papel que desempenham no contrato as cláusulas de hardship, das quais falaremos nos próximos parágrafos.

O principal óbice à aposição deste tipo de cláusulas em contratos decorre do facto de poderem ser consideradas uma ameaça ao conceito de contrato, tendo em conta que este é reconduzido, na sua visão clássica, ao momento em que as vontades das partes de concretizam no papel, fi cando cristalizados ali64.

Esta visão perde grande parte do seu sentido quando pensamos, em espe-cial, nos contratos de longa duração, em relação aos quais faz mais sentido falar nas cláusulas de hardship.

Sobre estes contratos, diz-nos Júlio Gomes que “a sua planifi cação e execu-ção prolonga-se, em regra, por um longo período de tempo e incorpora uma importante margem de incerteza o que impossibilita uma determinação exata, à partida, dos direitos e deveres das partes. Surgem, assim, como contratos-qua-dro em que, para além do mero intercâmbio de prestações, a cooperação e a comunicação entre as partes na realização do escopo comum assume particu-lar relevância. Tais contratos são, frequentemente, particularmente sensíveis à evolução das circunstâncias e incorporam, amiúde, uma complexa distribuição de riscos”65.

Os contratos de que temos vindo a falar até agora – empréstimos interna-cionais especialmente, mas também contratos de emissão de obrigações com colocação internacional – inserem-se nessa noção de “contrato de longa dura-ção”, fazendo pois sentido tratar das hardship clauses nesta sede.

63 Estas cláusulas existem, de resto, em muitos outros tipos de contratos, sendo já standard em con-tratos que envolvam somas de dinheiro avultadas.64 António Pinto Monteiro/Júlio Gomes, A «Hardship Clause» e o Problema da Alteração das Circunstâncias (Breve Apontamento), in Juris et de Jure – Nos 20 anos da Faculdade de Direito da UCP – Porto, Porto, 1998, pp. 17-40, p. 23.65 Júlio Gomes, Cláusulas de Hardship, in Contratos: Atualidade e Evolução, coord. António Pinto Monteiro, Porto, UCP Ed., 1997, pp. 186 ss.

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Como será fácil de entender, estas cláusulas podem constituir um perigo para as partes menos conhecedoras dos meandros da negociação no mercado internacional moderno. Assim, deve ter-se em atenção que estas são cláusulas que devem ser negociadas entre partes avisadas e que provenham de contextos económicos similares: caso contrário, estaremos simplesmente perante formas de a parte mais forte no contrato sair a ganhar com a renegociação do contrato66.

As cláusulas de hardship apresentam dois aspetos essenciais: por um lado, defi nem o seu próprio campo de aplicação, na medida em que as partes deli-mitam, elas próprias, quais os factos que constituem “difi culdades” de cumpri-mento suscetíveis de desencadear este dever de renegociação. Por outro lado, as partes defi nem nestas cláusulas o caminho a seguir para encontrar a melhor forma de adaptar o contrato às novas circunstâncias.

Quanto ao primeiro aspeto, é relevante notar que as partes defi nem nestas cláusulas (ou tentam) quais as “difi culdades” que desencadeiam o surgimento do dever de renegociação; ou seja, as partes decidem, nestas cláusulas, que “alteração de circunstâncias” será considerada substancial, de forma a abrirem de novo as negociações do contrato. É neste aspeto que nos importa discutir a relação entre as cláusulas hardship e o instituto da alteração de circunstâncias, como de resto fazem António Pinto Monteiro e Júlio Gomes 67.

Os Autores falam da relação entre as duas fi guras tendo como base a juris-prudência alemã. Na Alemanha muitos consideram que, existindo uma cláusula de hardship, isso exclui a possibilidade de invocar o desaparecimento ou uma mudança na base do negócio. Isto porque esta última não pode, por defi nição, ser parte do conteúdo do contrato. Este entendimento não foi aceite pela maioria da doutrina, visto que as cláusulas de hardship não são destinadas a estabelecer um termo ou conteúdo contratual preciso, mas sim a manter um equilíbrio entre os comportamentos das partes68.

A conclusão chegada, por António Pinto Monteiro e Júlio Gomes, quanto à relação entre as duas fi guras, é a de que o artigo 437.º CC não é uma norma imperativa, podendo as partes inclusivamente acordar soluções em sentido dife-rente. Assim, a vontade das partes terá sempre importância primordial, mesmo que não seja fi nal no contexto da interpretação do contrato. Dizem os Autores que “(…) muito embora a questão da base negocial não se esgote, como nos parece, numa questão de interpretação, mesmo que chamada de integradora, das declarações das partes, é sempre pela interpretação destas que temos obviamente

66 Júlio Gomes, ob cit., p. 185.67 A «Hardship Clause»…, cit., pp. 25 ss. e Rebuc Sic Stantibus – Hardship Clauses in Portuguese Law, in European Review of Private Law, 3, 1998, pp. 319-332, pp. 323 ss.68 António Pinto Monteiro/Júlio Gomes, A «Hardship Clause»…, cit., pp. 34 ss.

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de partir. Também não nos repugna pretender que, mesmo no contexto de uma decisão ditada pelo tribunal, este deva procurar uma solução tanto quanto possível consensual ou que, ao menos, tenha em conta os interesses e propostas contrapostos dos parceiros da relação contratual”69.

Da nossa parte, parece-nos ser de aceitar a linha de entendimento acima explanada. Acima de tudo, e como já fomos notando ao longo do presente trabalho, a vontade das partes é soberana naquilo que puder ser regulado por elas – e somos da opinião, tal como António Pinto Monteiro e Júlio Gomes, que neste caso pode ser regulado, por concluirmos pelo caráter não imperativo do artigo 437.º CC. E faltando uma análise mais completa sobre o instituto da alteração e circunstâncias, que só por si gera imensas questões que faria sentido levantar, o que não se coadunaria com a extensão deste estudo, a nossa con-clusão apenas pode ir nesse sentido e nunca num sentido que contenderia com o que as partes disseram – ou quiseram dizer, por via da interpretação – no contrato.

Como dissemos acima, as cláusulas de hardship revestem importância no âmbito das cross default; sucede que as cláusulas de cross default, como temos vindo a observar até agora, são cláusulas muito perigosas e que carregam um sério risco para o devedor. Quando aposta em vários contratos, se acionada, o devedor pode ver-se numa situação em que um único incumprimento leva ao vencimento antecipado de todas as suas dívidas. Mas, na verdade, o credor também não tem, as mais das vezes, interesse em “acelerar” o contrato com base na cross default. A ele não lhe interessa que o devedor entre numa situação de insolvência, pois isso implica, geralmente, que o credor não verá a sua dívida paga. A aposição de uma cláusula de hardship a estes contratos garante, pois, que as partes terão de renegociar o contrato, em face, por exemplo, de uma repentina queda do valor das ações nos mercados que leve a uma situação de difi culdade económica para o devedor.

4.2. As cláusulas de waiver

Por fi m, fazemos uma pequena anotação, de modo a completar o que acima fi cou dito sobre a renegociação dos contratos e em especial dos contratos onde estão apostas cláusulas cross default, sobre os waivers.

Um waiver pode ser defi nido como uma cláusula, aposta no contrato, atra-vés da qual as partes acordam que certo event of default – incluindo-se aqui,

69 António Pinto Monteiro/Júlio Gomes, ob. cit., pp. 39-40.

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obviamente, a cross default – que já se verifi cou ou tem grande probabilidade de vir a ser verifi cado, ou certa disposição contratual na qual se inclui certa obriga-ção que já foi ou poderá vir a ser violada com alguma certeza deixará de relevar para efeitos de cumprimento do contrato. Ou seja, e em termos mais simples, o credor adita ao contrato uma cláusula pela qual renuncia ao exercício do seu direito de resolver o contrato ou exigir o pagamento antecipado da obrigação perante a verifi cação de certo facto que constituía, até aí, um event of default70.

Esta renúncia ao exercício do seu direito enquanto credor é feita apenas em relação àquele(s) facto(s) e naquele momento preciso, não constituindo de algum modo uma renúncia antecipada ao exercício desse seu direito caso venham a ser verifi cados outros events of default. Além disso, as mais das vezes o credor prefere conceder este waiver, à semelhança do que vimos suceder acima com as cláusulas de hardship, na medida em que em troca da concessão do waiver o credor costuma exigir condições mais favoráveis para si, como o pagamento de juros signifi cativamente mais altos.

Como se pode ver, então, os waivers e as cláusulas de hardship interligam-se, na medida em que ambas obrigam as partes a “repensar” o contrato e a não o terminarem logo, assim que existe algum incumprimento ou previsão de incumprimento.

A sua distinção passa, a nosso ver, pelo facto de as cláusulas de hardship serem previamente apostas no contrato, muitas vezes aquando a sua celebração para certos factos que podem constituir events of default, enquanto o waiver se defi ne como uma renúncia ao exercício de um direito específi co do credor, e é geralmente dado em determinados momentos, sem existir planifi cação pelas partes com grande antecedência.

5. O problema da qualifi cação e natureza jurídica das cláusulas cross default

5.1. A cláusula de cross default enquanto garantia; discussão doutrinária

Tudo o quanto vamos dizer nos dois pontos seguintes refere-se não só à cross default, como também à negative pledge e pari passu, ou seja, serve para as cláusulas de garantia e/ou segurança em geral.

70 Joana Pereira Dias, Contributo…, pp. 975-976.

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A primeira das questões que se põe neste ponto é a de saber se as cláusulas cross default – a par das cláusulas pari passu e negative pledge – são verdadeiras garantias.

Desde logo, nenhum dos três tipos de cláusulas se pode qualifi car e inserir no quadro das garantias especiais (pessoais ou reais). A noção clássica de garan-tia, em sentido jurídico estrito, não se enquadra em nenhuma destas cláusulas, como já havia fi cado algo claro ao longo da exposição.

No entanto, e como bem nota Joana Pereira Dias, podemos identifi car “uma função de garantia das cláusulas pari passu, negative pledge e cross default, no estrito quadro das relações entre credor e devedor”71.

Note-se que, para reconduzirmos estas cláusulas ao conceito de garantia, temos de tomar esse conceito como uma outra coisa que não aquele que apren-demos em Direito. Assim, temos de falar de garantia num sentido amplo, não--jurídico, que reconduz a expressão “garantia” ao seu mais básico signifi cado: o de segurança, proteção, salvaguarda.

Claro que esta aceção de garantia, por não ser jurídica, não é sequer reco-nhecida por alguns como passível de qualifi car fi guras jurídicas. Assim, o con-ceito de garantia poderá ter de ser reconduzido apenas às garantias especiais, aquelas que estão taxativamente previstas na nossa Lei.

Para Joana Pereira Dias, estas cláusulas serão garantias em sentido amplo: parte da classifi cação de Becker-Eberhard, que identifi ca três meios essenciais para a defi nição da noção ampla de garantia: direitos de garantia como meios de satis-fação; como meios de pressão; e como objeto de satisfação. Diz-nos a Autora que estamos a tratar de meios “(…) cuja verifi cação não tem de ser cumulativa, daí se concluindo que as cláusulas de garantia e/ou segurança (…), apesar de não serem garantias como um meio, nem como objeto de satisfação, ao con-trário das tradicionais garantias pessoais ou garantias reais, podem integrar a noção ampla de garantia, na medida em que funcionam como meios de pres-são, porque a satisfação do credor carece (ou não pode ser obtida à margem) da colaboração do devedor”72.

Devemos chamar a atenção, contudo, para o facto de não se visar, pela aposição destas cláusulas, a obtenção de uma oponibilidade perante terceiros. Estas cláusulas gozam de uma mera efi cácia relativa (inter partes), característica dos direitos de crédito.

Na opinião de Joana Pereira Dias, a noção ampla de garantia deve ser mais do que o que fi cou defi nido acima, ou seja, deve também compreender o previsto nos arts. 429.º e 780.º, que mencionam as garantias de solvência do

71 Ob. cit., p. 1018.72 Ob. cit., pp. 1019-1020.

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devedor. Diz-nos a Autora que estas cláusulas acrescentam algo à garantia geral: “De facto, elas reforçam a tutela preventiva geral que é conferida aos credores comuns ou quirografários pela possibilidade de recurso aos meios de conserva-ção da garantia patrimonial e ao disposto nos arts. 429.º e 780.º, desde logo por-que funcionam, apesar da sua efi cácia relativa ou inter partes, como importante meio de pressão para compelir ao seu cumprimento, e isto, sobretudo, pelas gravosas consequências que para o devedor resultam da sua violação, maxime, com a possibilidade de exigibilidade antecipada ou de vencimento imediato, consoante os casos”73.

A nosso ver, e como já dissemos acima, estas cláusulas nunca se poderiam reconduzir ao conceito de garantia em sentido jurídico – não são garantias espe-ciais, e isso é pacífi co. O problema da sua qualifi cação/natureza jurídica, como desenvolveremos já de seguida, tem sido abordado por alguns Autores, ainda que muito pouco seja falado acerca destas cláusulas. Mas, para já, importa tomar posição quanto à sua inserção nas garantias amplas – se é que estas existem.

Temos para nós que dizer que estas cláusulas são garantias em sentido amplo é apenas dizer que elas visam garantir, no tal sentido usual da palavra, o crédito do mutuante. Ou seja, de facto o credor tenta, com a aposição destas cláusulas, assegurar o seu crédito, “assustar” o devedor para que este não incumpra a sua obrigação. Mas não conseguimos identifi car nestas cláusulas as características de uma garantia especial, nem reconduzi-las a uma garantia especial.

Ainda assim, não recusamos chamá-las garantias em sentido amplo. E isto porque é, de certa forma, um auxiliar à compreensão destas cláusulas, que, como já foi dito, têm de facto essa função de garantia. De qualquer forma, essa denominação nunca terá efeitos jurídicos alguns, pois estas cláusulas, apesar dos respeitados esforços nesse sentido, não são garantias no sentido jurídico que o Direito português atribui à fi gura.

Mas vejamos como são qualifi cadas estas cláusulas pela Doutrina portuguesa em geral.

Das posições adotadas pelos Autores que falam sobre estas cláusulas no âmbito da dogmática das garantias das obrigações, verifi camos que não só não existe consenso, mas as cláusulas podem ser, ou não, consideradas garantias dependendo do Autor em questão.

Assim, enquanto para alguns estas cláusulas são garantias aparentes, que têm uma mera efi cácia obrigacional e nada acrescentam à garantia geral74, para outros estas cláusulas conduzem a um reforço da posição do credor, inserindo--se nas garantias em sentido amplo, que consistem “(…) num reforço da posição

73 Ob cit., pp. 1021.74 Pedro Romano Martinez/Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, cit., pp. 58 ss.

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(em maior ou menor grau, nalguns casos mesmo (…) muito diminuto) de um credor face aos credores comuns que pode ser obtida de diversas formas”75.

Para Menezes Leitão, estas cláusulas inserem-se no âmbito das garantias espe-ciais atípicas. Diz-nos que são situações a que a doutrina sempre reconheceu existência e em que o credor possui um reforço da garantia geral, mas que não se reconduzem nem a garantias pessoais, nem reais, nem a outras modalidades de utilização da propriedade em garantia – que o Autor autonomiza – nem garantias especiais sobre direitos ou sobre universalidades76.

Já para Menezes Cordeiro, estas cláusulas constituem acordos de defesa da garantia geral, ou seja, fora do âmbito das garantias especiais e, como tal, não as classifi cando como tal. Especifi camente quanto às cláusulas cross default, o Autor diz-nos que “(…) perante o direito civil lusófono, a cláusula cross default equivale a uma concretização convencional da perda de benefício do prazo, viável por interpretação extensiva do fi nal do artigo 780.º/1. Sem convenções adequadas, ela não atinge as garantias: 782.º”77.

Já Joana Pereira Dias, para além de falar destas cláusulas como garantias em sentido amplo, ensaia depois classifi cações para descortinar que tipo de garantias são. Assim sendo, acaba por inserir este tipo de cláusulas no âmbito das cláusulas de garantia acessória, de resultado, de garantia preventiva, aparente e negativa, embora em maior ou menor medida em cada uma dessas qualifi cações78.

Da nossa parte, e tendo em conta o que dissemos acima em relação ao facto de, ainda que possamos falar das cláusulas de garantia e/ou segurança enquanto garantias em sentido amplo, esta expressão teria sempre de ser utilizada em sen-tido não-jurídico, também não podemos optar por uma linha de entendimento que veja nestas cláusulas verdadeiras garantias. Assim, embora desempenhem uma função de garantia da obrigação, elas não possuem nenhuma das caracte-rísticas que nos permita qualifi cá-las enquanto garantias em sentido jurídico. Maxime, poderemos atribuir-lhes a mesma expressão de Menezes Cordeiro, constituindo acordos de defesa da garantia geral.

5.2. A cláusula cross default como uma cláusula de exigibilidade antecipada ou como uma cláusula resolutiva expressa?

Chegados ao último ponto deste nosso trabalho, cabe-nos analisar onde se inserem as cláusulas de garantia e/ou segurança: estamos perante uma cláusula

75 Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, cit., pp. 647 ss.76 Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, cit., pp. 317 ss.77 Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil…, cit., p. 278.78 Contributo…, cit., pp. 1022 ss.

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de exigibilidade antecipada ou, por outro lado, perante uma cláusula resolutiva expressa? Ponderemos as duas hipóteses.

Quanto à possibilidade enquadrarmos estas cláusulas no âmbito das cláusu-las de exigibilidade ou vencimento antecipado, previsto no artigo 780.º CC, a questão principal prende-se com saber “(…) se a cláusula cross default será uma cláusula lícita à luz do ordenamento jurídico nacional enquanto cláusula de exigibilidade antecipada”79.

A resposta a dar a esta pergunta não é líquida e passa por entendermos se o artigo 780.º proíbe a interpretação extensiva a convenções que visem excluir ou restringir a aplicabilidade do seu regime ou se, por outro lado, o artigo tutela o credor, permitindo-lhe a aplicação extensiva do regime a todas as situações que ampliem o seu crédito, tendo caráter excecional.

Joana Pereira Dias conclui que “o artigo 780.º surge para defesa da posi-ção do credor e não para sancionar o devedor, o que está em consonância com a escolha do legislador ao atribuir uma faculdade ao credor de exigir o vencimento e não a de determinar um vencimento automático, ope legis, da obrigação.” Logo, para a Autora, “o artigo 780.º consagra hipóteses de tutela mínima do interesse do credor na manutenção do património do devedor. Não se permitem convenções restritivas, mas permite-se uma ampliação da tutela do crédito, tendo em conta que o escopo ou fi m visado pelas partes com a aposi-ção de uma cláusula será o de garantir a posição do credor. O artigo 780.º será imperativo no que toca à proteção mínima dispensada ao credor. As partes não podem restringir, mas podem convencionar um regime mais favorável para o credor”80

Acrescenta ainda que a parte fi nal do artigo 780.º, n.º 1 não contempla os casos ora visados deste tipo de cláusulas, na medida em que do n.º 2 do mesmo artigo, relativo à substituição e reforço das garantias, podemos retirar que o legislador quis referir-se expressamente às garantias especiais81.

Também Menezes Cordeiro, como já havíamos mencionado acima, segue esta posição, entendendo que as cláusulas cross default constituem uma concre-tização convencional da perda de benefício do prazo, aplicando por interpreta-ção extensiva o n.º 1 do artigo 780.º82.

As razões pelas quais a cláusula cross default não será uma cláusula resolutiva expressa, nos termos do artigo 432.º CC, para Joana Pereira Dias, prendem-se com os efeitos que a escolha dessa via teria para o contrato. Efetivamente, a

79 Joana Pereira Dias, Contributo…, cit., p. 999.80 Ob. cit., p. 1002.81 Ob. cit., p. 1004.82 Ob. cit., p. 278.

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cláusula resolutiva implicaria a extinção do contrato com efeitos retroativos o que, no entender da Autora, não é a intenção do credor quando aciona a cláusula83.

Quanto a nós, em primeira linha parece ser de adotar esta posição, na medida em que o fi m da cláusula cross default e o facto de apenas visar dar uma “opção” de acionamento da cláusula ao credor, que muitas vezes não é exercida84 compagina-se melhor com um caso de exigibilidade antecipada prevista no artigo 780.º e não com um caso de cláusula resolutiva expressa, que visa dar um “escape” ao credor, que se pretende desvincular em caso de incumprimento.

Deste modo, embora seja certo que, no que diz respeito à realidade do Direito dos contratos, os casos de incumprimento de uma obrigação tenham as mais das vezes como consequência a resolução desse contrato, também nos parece ser certo que, na realidade muito específi ca que é a destes contratos de empréstimos com inclusão de cláusula cross default, inclusivamente pelos mon-tantes que estão em jogo e pelo facto de estarmos a lidar com credores e deve-dores fortes, aquele não terá total interesse em resolver o contrato aquando da verifi cação de um incumprimento.

Chegamos assim, portanto, a uma importante conclusão, que pensamos ter transparecido ao longo do presente estudo: a nosso ver, as cláusulas cross default, bem como as restantes cláusulas de garantia e/ou segurança, não serão mais do que cláusulas de apoio ao credor para assegurar o cumprimento do contrato pelo devedor, na medida em que o compelem a atuar, ou não, de certa forma. A existir violação dessas cláusulas, vimos que as mais das vezes o credor opta por não resolver o contrato, mas sim renegociá-lo, com condições muito mais favoráveis para si.

6. Síntese conclusiva

Tendo chegado ao fi m deste nosso estudo, cabe-nos agora fazer, por um lado, uma síntese daquilo que retiramos desta investigação e, por outro lado, apontar situações que entendemos serem de relevo, embora não tenham sido abordadas nesta sede.

Assim, as cláusulas de garantia e/ou segurança surgem, historicamente, em contratos de empréstimo internacionais e emissão de obrigações com colocação internacional. Dão às partes a possibilidade de acordar nas consequências do

83 Ob. cit., pp. 1012 ss.84 Vd. supra, ponto 4.

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incumprimento de obrigações por parte do devedor, especialmente a obrigação de pagamento do preço, na medida em que estamos geralmente perante con-tratos de somas avultadas. O credor encontra-se assim, nestes casos, numa clara posição de vantagem em relação ao devedor. Este, por outro lado, é tenden-cialmente um devedor forte, ou seja, avisado e acautelado, que conhece bem a prática jurídica desta área.

Acrescentamos que estas cláusulas, embora tenham tido a sua origem no tipo de contratos que assinalámos, são hoje em dia apostas em todo o tipo de contratos de empréstimo: a contratação de uma abertura de crédito ou mútuo com um Banco terá sempre, quase obrigatoriamente, cláusulas cross default, a par das negative pledge e pari passu, e em especial depois do rebentamento da crise económica global, como forma de acautelar os Bancos de possíveis incumpri-mentos e possibilitar, caso tal suceda, a sua renegociação em termos muito mais favoráveis a estes.

Depois, ressaltamos mais uma vez que embora existam formulações típicas destas cláusulas, as quais cobrimos nesta breve exposição, estamos num âmbito claramente dominado pela vontade das partes, bem conhecedoras deste meio e que, como tal, podem acordar variantes de cláusulas cross default aos mais dife-rentes níveis.

Por fi m, gostaríamos de retomar o que dissemos a início, quando introduzi-mos o nosso tema, para enfatizarmos a crescente importância do fenómeno dos credores controladores para o domínio do fi nanciamento das sociedades e deste tipo de cláusulas. Num plano mais alargado, todos os covenants negociados entre a sociedade devedora e os seus credores são passíveis de gerar, na esfera deste, poderes e direitos que lhe dão um controlo sem precedentes da sociedade, sem deter alguma participação social. Este fenómeno leva-nos à questão, analisada a fundo por Ana Perestrelo de Oliveira, da aplicação a estes credores dos deveres de lealdade aos quais estão sujeitos os administradores das sociedades – artigo 74.º CSC.

Sem fazermos considerações aprofundadas sobre o tema, que tem tanto de interessante quanto de complexo, deixamos a nota, contudo, da nossa con-cordância com a posição da Autora, que vê na ligação que estes credores têm com a sociedade e na posição que assumem na mesma, agindo como verdadei-ros administradores, um claro indício de aplicação dos deveres de lealdade aos mesmos85.

85 Vd. Ana Perestrelo de Oliveira, Os Credores…, cit., passim, em especial pp. 119 ss.; Grupos de Sociedades e Deveres de Lealdade…, cit.

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