9
64 O AS CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL o Instituto Butantan Resumo: Este artigo pretende mostrar que a pesquisa científica, que há um século marcou as vidas de Adolfo Lutz, Oswaldo Cruz, Vital Brasil, Carlos Chagas e Rocha Lima, continua sendo a condição essencial para resolver problemas de saúde no Brasil. Optar por caminhos mais curtos, além de nos condenar ao subdesen- volvimento, consagra a contradição entre sermos capazes de elucidar o genoma de uma bactéria patogênica e continuarmos importando produtos e tecnologias e exportando, a fundo perdido, nossas riquezas e inovações. Palavras-chave: história da ciência; pesquisa; política científica. Abstract: This article argues that scientific research, personified by figures such as Adolfo Lutz, Oswaldo Cruz, Vital Brasil, Carlos Chagas and Rocha Lima one hundred years ago, continues to be the single most important factor in resolving Brazil’s public health problems. By seeking shortcuts, Brazil will not only condemn itself to a future of underdevelopment, but will also reinforce a perverse paradox: though we are capable of isolating the genome of a pathogenic bacteria, we continue to import products and technologies while we practice unrestrained enthusiasm in the exportation of our most precious material and scientific resources. Key words: history of science; research; science policy. ANTONIO CARLOS MARTINS DE CAMARGO SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(4): 64-72, 2002 homem levou milênios para deixar de ser um ani- mal nômade, mas levou poucos séculos para se agrupar em vilas e cidades. Esse fenômeno as- ganismos associada à sua grande variabilidade genética, natural ou induzida, o que torna quase infinitas as possi- bilidades de sobrevivência das espécies microbianas. Tais fatores são agravados pelas mudanças ambientais provo- cadas pelo homem, que causam desequilíbrios ecológicos, criando situações inusitadas para os microorganismos e resultando em freqüentes e alarmantes aparecimentos de novas doenças e epidemias. De 1951 até 1993, pelo me- nos 28 novas doenças infecciosas foram diagnosticadas como casos isolados ou surtos epidêmicos. Entre as mais conhecidas estão a dengue hemorrágica (1953), a doença de Lyme (1975), a Ébola (1976) e a Aids (1981). Nesse período, por outro lado, ressurgiram 14 doenças infeccio- sas até então contidas, que se tornaram mais dissemina- das do que no passado, tais como cólera, câncer cervical, sífilis e tuberculose. É importante ressaltar que as mes- mas razões que, no final do século XIX, motivaram a cria- ção dos institutos de pesquisa, como o Instituto Pasteur em Paris, o Instituto Rockefeller nos Estados Unidos ou o Instituto Butantan (São Paulo) e o Instituto Manguinhos (Rio de Janeiro) no Brasil, continuam tão presentes quan- to no passado. Este artigo pretende abordar as razões his- tóricas que levaram à criação dos institutos e a evolução sumiu proporções gigantescas após a revolução industri- al, dando origem às grandes cidades de hoje. Nessa traje- tória humana, a população mundial passou de 5 milhões (neolítico) para mais de 5 bilhões nos dias de hoje. Esse fato relaciona-se a uma das características importantes das epidemias, isto é, à formação dos agrupamentos humanos em pequenas e grandes cidades à beira d’água. A água constitui não apenas o elemento essencial à vida, mas tam- bém o veículo da morte. Nas aglomerações humanas, a água, pela facilidade e rapidez em disseminar pragas e doenças, promove rapidamente suas propagações diziman- do populações inteiras. Isso porque a mesma água que recebe os dejetos animais é utilizada pelo homem para beber e lavar. Outros três aspectos que explicam as pragas humanas são: a mobilidade do homem e a conseqüente facilidade de propagação das doenças; a adaptação de microor- ganismos ao organismo humano por meio da migração de seu habitat natural para o homem, utilizando-se para isso diferentes vetores; e a rápida multiplicação dos microor-

AS CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • SO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(4) 2002

    64

    O

    AS CONTRADIES DAPOLTICA DE SADE NO BRASIL

    o Instituto Butantan

    Resumo: Este artigo pretende mostrar que a pesquisa cientfica, que h um sculo marcou as vidas de AdolfoLutz, Oswaldo Cruz, Vital Brasil, Carlos Chagas e Rocha Lima, continua sendo a condio essencial pararesolver problemas de sade no Brasil. Optar por caminhos mais curtos, alm de nos condenar ao subdesen-volvimento, consagra a contradio entre sermos capazes de elucidar o genoma de uma bactria patognica econtinuarmos importando produtos e tecnologias e exportando, a fundo perdido, nossas riquezas e inovaes.Palavras-chave: histria da cincia; pesquisa; poltica cientfica.

    Abstract: This article argues that scientific research, personified by figures such as Adolfo Lutz, OswaldoCruz, Vital Brasil, Carlos Chagas and Rocha Lima one hundred years ago, continues to be the single mostimportant factor in resolving Brazils public health problems. By seeking shortcuts, Brazil will not only condemnitself to a future of underdevelopment, but will also reinforce a perverse paradox: though we are capable ofisolating the genome of a pathogenic bacteria, we continue to import products and technologies while wepractice unrestrained enthusiasm in the exportation of our most precious material and scientific resources.Key words: history of science; research; science policy.

    ANTONIO CARLOS MARTINS DE CAMARGO

    SO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(4): 64-72, 2002

    homem levou milnios para deixar de ser um ani-mal nmade, mas levou poucos sculos para seagrupar em vilas e cidades. Esse fenmeno as-

    ganismos associada sua grande variabilidade gentica,natural ou induzida, o que torna quase infinitas as possi-bilidades de sobrevivncia das espcies microbianas. Taisfatores so agravados pelas mudanas ambientais provo-cadas pelo homem, que causam desequilbrios ecolgicos,criando situaes inusitadas para os microorganismos eresultando em freqentes e alarmantes aparecimentos denovas doenas e epidemias. De 1951 at 1993, pelo me-nos 28 novas doenas infecciosas foram diagnosticadascomo casos isolados ou surtos epidmicos. Entre as maisconhecidas esto a dengue hemorrgica (1953), a doenade Lyme (1975), a bola (1976) e a Aids (1981). Nesseperodo, por outro lado, ressurgiram 14 doenas infeccio-sas at ento contidas, que se tornaram mais dissemina-das do que no passado, tais como clera, cncer cervical,sfilis e tuberculose. importante ressaltar que as mes-mas razes que, no final do sculo XIX, motivaram a cria-o dos institutos de pesquisa, como o Instituto Pasteurem Paris, o Instituto Rockefeller nos Estados Unidos ou oInstituto Butantan (So Paulo) e o Instituto Manguinhos(Rio de Janeiro) no Brasil, continuam to presentes quan-to no passado. Este artigo pretende abordar as razes his-tricas que levaram criao dos institutos e a evoluo

    sumiu propores gigantescas aps a revoluo industri-al, dando origem s grandes cidades de hoje. Nessa traje-tria humana, a populao mundial passou de 5 milhes(neoltico) para mais de 5 bilhes nos dias de hoje. Essefato relaciona-se a uma das caractersticas importantes dasepidemias, isto , formao dos agrupamentos humanosem pequenas e grandes cidades beira dgua. A guaconstitui no apenas o elemento essencial vida, mas tam-bm o veculo da morte. Nas aglomeraes humanas, agua, pela facilidade e rapidez em disseminar pragas edoenas, promove rapidamente suas propagaes diziman-do populaes inteiras. Isso porque a mesma gua querecebe os dejetos animais utilizada pelo homem parabeber e lavar.

    Outros trs aspectos que explicam as pragas humanasso: a mobilidade do homem e a conseqente facilidadede propagao das doenas; a adaptao de microor-ganismos ao organismo humano por meio da migrao deseu habitat natural para o homem, utilizando-se para issodiferentes vetores; e a rpida multiplicao dos microor-

  • 65

    AS CONTRADIES DA POLTICA DE SADE NO BRASIL: O INSTITUTO BUTANTAN

    que sofreram por mais de um sculo, chamando a atenodos governantes para a importncia do papel que desem-penham. A comparao da situao atual entre o InstitutoPasteur, na Frana, e o Instituto Butantan, no Brasil, po-der servir para mostrar o descompasso e a responsabili-dade de nossos dirigentes quanto necessidade de apoioao desenvolvimento cientfico, fundamental para o bem-estar da sociedade pelo benefcio que proporciona sa-de pblica.

    A DESCOBERTA DO MUNDO DOS MICRBIOS

    Pode-se dizer que a modernizao da medicina come-ou no sculo XIX, quando alguns pesquisadores foramresponsveis por retirar a medicina das mos das bruxas,dos curandeiros e dos alquimistas, transferindo-a para ospesquisadores cientficos. Numa tentativa de refletir o pa-norama do sculo XIX, que conseguiu convencer desde ocampons at os imperadores da necessidade de apoio pesquisa cientfica, procurar-se- rever como algunscientistas revolucionaram a medicina.

    Simbolicamente, no dia 1o de janeiro de 1801, a cortede Weimar celebrava o nascimento de uma nova era. Comosemelhante a Atenas, o hino Criao, de Haydn, coroavaGoethe como Jpiter Olmpico, interpretando sua pea queabria um novo sculo. Em sintonia com esse esprito, acincia alem produziu cientistas que figuram entre osprincipais responsveis pela modernizao da medicina,como Jacob Henle (1809-1885), que, apesar da vida tu-multuada por amores e pela atuao poltica (antagonis-mo a Bismarck e priso em Berlin), revolucionou a ana-tomia e a patologia e descreveu, em termos modernos, queas doenas infecciosas eram causadas por microorganismosespecficos. Sua proftica viso das causas de doenascontagiosas, como a febre tifide, a varola e a escarlati-na, antes mesmo de qualquer caracterizao dos microor-ganismos, coloca-o como o criador da bacteriologia. Umagerao mais tarde, seu discpulo, Robert Koch (1843-1910), introduziu os mtodos de fixao e colorao, per-mitindo visualizar e caracterizar bacilos. A despeito dasgrandes dificuldades financeiras, Koch pde estudar me-dicina em Gttingen, onde Henle lecionava. Chegou a de-saparecer da vida acadmica por dez anos devido s con-dies adversas, mas continuou a pesquisar com omicroscpio que ganhou de sua esposa, mantendo o tra-balho at durante a guerra franco-prussiana, da qual par-ticipou como mdico. Nesse perodo, Koch esclareceu ahistria completa da esporulao bacteriana e a etiologia

    do antrax. Aps ingressar na vida acadmica, acentuousua contribuio bacteriologia moderna, que no se res-tringiu descoberta dos microorganismos causadores datuberculose, da clera e da doena do sono (tripano-somase), contribuindo para o estabelecimento da abor-dagem experimental aplicada ao estudo das patologiascausadas por microorganismos. Seus postulados, sua con-tribuio para o cultivo bacteriano e seu empenho na for-mao de discpulos marcaram o sculo XIX como o maisimportante para a medicina moderna. Um de seus disc-pulos mais destacados foi o baro Shibasaburo Kitasato(1852-1931), o cientista japons que descobriu o baciloda peste bubnica.

    Outro cientista alemo, Paul Ehrlich (1854-1915), fezdescobertas que constituram a base da quimioterapia e daimunidade. Como aluno, Ehrlich, que gostava de se diver-tir com corantes e vivia com a roupa manchada, levou aodesespero seus professores por seu aparente desinteressepela qumica. Devido ao mau desempenho universitrio,chegou a ser reprovado. Com seu temperamento casual,que preferia a tentativa e erro como mtodo de investiga-o, pesquisava como se estivesse brincando. Sua imagi-nao, mais do que suas experincias com corantes, o le-vou a introduzir os arsenicais para o tratamento da sfilis.Fez descobertas fundamentais nos primrdios da imuno-logia, criando o famoso dictum do horror autotxico, elanou as bases do entendimento das doenas auto-imu-nes. Juntamente com Eli Metchnikoff (1845-1916), rece-beu o prmio Nobel em 1908. Esse ltimo, grande cientis-ta russo, viveu na priso espiritual dos Romanoffs, o que olevou, por duas vezes, a tentar o suicdio. S passou a darvazo prpria genialidade quando se mudou para Messina,na Siclia, levando consigo a mulher com seus cinco ir-mos e irms. Na Itlia, Metchnikoff fez as observaesque lhe permitiram descrever, pela primeira vez, o fen-meno da fagocitose, da mais alta importncia na defesaimunolgica.

    A Frana tambm marcou o sculo XIX com contri-buies cientficas fundamentais para a microbiologiae o entendimento dos mecanismos das pragas que afli-gem o homem. O mais destacado cientista foi LouisPasteur (1822-1895), cuja genialidade manifestou-sepelos seus mltiplos interesses e aptides cientficos epor dedicar-se formao de seguidores que propaga-ram e lhe ampliaram as descobertas. Suas convices eresultados experimentais contriburam para banir cren-dices arraigadas na sociedade, como a da gerao es-pontnea da vida, e estabeleceram com clareza a mu-

  • SO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(4) 2002

    66

    dana dos antigos paradigmas que emperravam o de-senvolvimento da cincia mdica.

    Filho de um curtidor de couro, Pasteur vivia na peque-na cidade de Arbois, no interior da Frana. Ainda crian-a, ficou muito impressionado com a morte, por asfixia,de animais e homens mordidos por um lobo louco. Vrioseminentes pesquisadores, como Magendie e Virchow, jhaviam tentado explicar a causa da doena, sem conse-gui-lo. A dramtica experincia de infncia marcouPasteur, motivando-o, mais tarde, a esclarecer a etiologiada raiva e a introduzir a prtica da vacinao de ces parapreveni-la.

    Pasteur provou que os microorganismos atuavam nasfermentaes de bebidas e alimentos e na preservao emelhoria de suas propriedades, fazendo a demonstraoinequvoca da inexistncia da gerao espontnea. Suasdescobertas tiveram um impacto muito alm do interessedessas pesquisas para a sade pblica, embora a preven-o e o tratamento de molstias infecciosas fossem umadas suas mais importantes preocupaes. Nesse contexto,Pasteur mostrou sua genialidade lanando as bases daimunoterapia preventiva e curativa, alm de ter antecipa-do o advento dos antibiticos. A prtica da vacinaoaplicada preveno de epidemias em humanos e animaisfez de Louis Pasteur um dos cientistas que, individual-mente, mais contribuiu para o bem-estar do homem e odesenvolvimento da cincia mdica.

    O progresso da medicina no sculo XIX tambm deveumuito ao quaker escocs Joseph Lister (1827-1912), pro-fessor de medicina em Edinburgo, que introduziu a anti-sepcia na prtica cirrgica. Quando foi a Londres ensinara importncia dessa prtica no Hospital St. John, foi ridi-cularizado e insultado por mdicos, residentes e enfermei-ras. Seu artigo On the antiseptic principle in the praticeof surgery, publicado em 1867 na revista Lancet, marcouo incio de uma verdadeira revoluo na prtica cirrgica,ao descrever como se impedia que microorganismos cau-sassem as infeces to freqentemente responsveis peloinsucesso das intervenes.

    Finalmente, a humanidade encontrara um caminho parase livrar das pragas e doenas causadas pelo inimigo invi-svel, os microorganismos. A admirao universal causa-da pelas novas descobertas cientficas foi conseqncia di-reta das investigaes cientficas. Em decorrncia dessefato, vultuosos investimentos foram feitos pelos governose filantropos de vrios pases para a criao de institutosde pesquisa dedicados aplicao da cincia em benef-cio da sade pblica. Gestos como o do Czar da Rssia,

    que doou uma condecorao de diamantes a Pasteur e di-nheiro ao seu instituto, foram demonstraes do impactocausado por suas descobertas. No Brasil, os avanos dacincia mdica tambm foram sentidos. O imperador PedroII manifestou sua admirao pelo trabalho de Pasteur, doan-do uma grande soma ao Instituto Pasteur. Em retribuioao gesto, colocou-se um busto do imperador brasileiro junto biblioteca do Instituto Pasteur, em Paris.

    CRIAO DOS INSTITUTOS DE PESQUISAPARA O COMBATE SPRAGAS DA HUMANIDADE

    Com a ajuda de uma subscrio internacional, iniciadaem 1886, foi criado em 1888 o Instituto Pasteur, em Pa-ris, dedicado ao estudo e ao tratamento da raiva e de ou-tros problemas microbiolgicos. A iniciativa desencadeouem todo mundo a criao de instituies com as mesmasfinalidades. Nos Estados Unidos, por exemplo, FrederickT. Gates, assessor de John D. Rockefeller para assuntosfilantrpicos, impressionado com o sucesso alcanado pelacincia mdica europia, sugeriu, em 1897, a criao deum instituto de pesquisa com idnticas caractersticas. Adeciso de Rockefeller de doar 200.000 dlares para acriao do Instituto Rockefeller, em New York, somenteocorreu em 1901, aps a morte, aos trs anos de idade, deseu primeiro neto, vtima de escarlatina. Segundo suaspalavras, nem o melhor mdico disponvel na poca teriacondies de salv-lo.

    Curiosamente no Brasil daquele tempo, existiram ho-mens, polticos e cientistas capazes de avaliar a impor-tncia que a pesquisa cientfica poderia ter para a sadepblica. Vivamos na poca da proclamao da Repbli-ca, abolio da escravatura, expanso da lavoura cafeeirae o incio da industrializao dos Estados do Rio de Ja-neiro e de So Paulo. Esses fatores influram na criaodo Instituto Bacteriolgico de So Paulo, que contribuiupara atrair e oferecer mais segurana aos imigrantes euro-peus quanto aos perigos do pas pobre, de clima tropical,ainda considerado selvagem. Assim, em 18 de julho de1892, Cerqueira Cezar, vice-presidente do Estado de SoPaulo, e Vicente de Carvalho, secretrio do Interior, cria-ram, por meio da Lei no 43, o Instituto Bacteriolgico. Ini-cialmente, a direo do Instituto ficou a cargo do bilogofrancs Flix Le Dantec, indicado por Pasteur a pedidodo embaixador Gabriel Piza, em 18 de maro de 1893,sendo posteriormente substitudo por Adolfo Lutz, bacte-riologia e especialista em zoologia mdica.

  • 67

    AS CONTRADIES DA POLTICA DE SADE NO BRASIL: O INSTITUTO BUTANTAN

    Adolfo Lutz, nascido em 1855 no Rio de Janeiro, for-mou-se em medicina na Sua. Desde cedo interessou-sepela pesquisa microbiolgica. Sua contribuio sadepblica brasileira foi extraordinria, graas s numerosasdescobertas e realizaes em benefcio da sade pblicabrasileira, bem como por ter sido responsvel pelo incen-tivo carreira de outros grandes pesquisadores brasilei-ros, como Vital Brasil e Oswaldo Cruz.

    A histria da criao do Instituto Butantan, em SoPaulo, e do Instituto Manguinhos, no Rio de Janeiro, estintimamente ligada a um surto de peste bubnica e ao tra-balho e lucidez de Adolfo Lutz. Aproximava-se o finaldo sculo XIX quando, na cidade de Santos, irrompeu umsurto epidmico da praga, prontamente diagnosticada porLutz e confirmada por pesquisadores do Instituto Pasteur,em Paris. Era preciso preparar o soro antipestoso, urgen-temente. Em So Paulo, foi escolhida, como local idealpara instalao desse laboratrio, a Fazenda Butantan,distante 10km do centro da cidade e separada dela pelorio Pinheiros, dando origem, mais tarde, ao InstitutoButantan, fortemente identificado com o Instituto Pasteur,na Frana. No Rio de Janeiro, a mesma situao originouo Instituto Manguinhos (atualmente Fundao OswaldoCruz ou Fiocruz). Para dirigir o Instituto Butantan, foidesignado um mdico ainda desconhecido, Vital BrasilMineiro da Campanha, e para a direo do InstitutoManguinhos, escolheu-se o jovem mdico OswaldoGonsalves Cruz, de 27 anos, recm-chegado do InstitutoPasteur, de Paris.

    Um fato distinguiu, desde o incio, o Instituto Butantando Instituto Manguinhos: a preocupao de Vital Bra-sil com a alta incidncia de acidentes com animais ve-nenosos, especialmente aqueles provocados por serpen-tes. Assim como Pasteur havia sido motivado pelasdramticas conseqncias mdicas da mordida do ani-mal raivoso, Vital Brasil foi influenciado pelos efei-tos, igualmente dramticos, da mordida da serpentevenenosa. Acidentes ofdicos, que levavam ao bitomilhares de pessoas e animais em todo o pas, tinham,e ainda tm, uma relevncia muito grande para a sadepblica num pas agrcola, com fantstica biodiversi-dade. O envolvimento do Instituto Butantan com o es-tudo e o tratamento de acidentes ofdicos, que mais tardeestendeu-se aos acidentes com outros animais veneno-sos, passou a ser a segunda maior atribuio do institu-to de pesquisa recm-criado. Dessa forma, sero abor-dadas separadamente as contribuies do InstitutoButantan no combate a duas pragas distintas: as mols-

    tias infecciosas causadas por microorganismos; e aque-las provocadas por animais peonhentos.

    AS MOLSTIAS INFECCIOSAS E SUASHISTRICAS CONTRADIES

    Criados na mesma poca que o Instituto Pasteur e oInstituto Rockefeller, com a finalidade de pesquisar, pre-venir e tratar molstias provocadas por microorganismos,dois institutos de pesquisa brasileiros o Butantan e oManguinhos no conseguiram acompanhar o desempe-nho de seus similares estrangeiros. A grande diferena deve-se fragilidade do apoio atividade cientfica, no Brasil,em conseqncia do atraso cultural, poltico e econmico.A deficincia de apoio tem dificultado que a pesquisa cien-tfica no Brasil constitua um importante motor de trans-formaes e de benefcios sociais como os que ocorreramna Frana e nos Estados Unidos durante o sculo XX. Aspesquisas cientficas realizadas pelos Institutos Pasteur eRockefeller trouxeram tantos e to diversificados benef-cios sociedade que muito difcil descrev-los. Para seter uma idia da importncia dessas instituies, bastamencionar que, at hoje, nada menos que oito cientistasdo Instituto Pasteur e 20 do Instituto Rockefeller recebe-ram o Prmio Nobel pelos frutos do avano que proporcio-naram s cincias mdicas e biolgicas.

    Mesmo com todas as deficincias, houve, no Brasil, umperodo herico de memorveis conquistas realizadas porcientistas como Adolfo Lutz, Oswaldo Cruz, Vital Brasil,Carlos Chagas, Rocha Lima e tantos outros. Entretanto, oatraso cultural e o poder das oligarquias dominantes con-denaram as instituies que abrigavam tais pioneiros subservincia poltica atrelada ao imediatismo, fatoresincompatveis com o carter desses homens e a naturezadessas instituies. Aps esse perodo, as instituies vi-veram episdios descontnuos de grande efervescnciacientfica e tecnolgica, graas capacidade de resistir snumerosas crises internas e perseverana de muitos deseus pesquisadores, alguns de prestgio internacional. OInstituto Manguinhos, mais que o Butantan, apesar de osdois terem as mesmas atribuies cientficas e tecnolgi-cas no que se refere a doenas infecciosas, permaneceuidentificado com os ideais que justificaram a sua criao,isto , a pesquisa cientfica aplicada ao combate s mo-lstias infecciosas.

    Ao longo dos seus 100 anos de existncia, o melhordesempenho do Instituto Manguinhos no combate s mo-lstias infecciosas pode ser atribudo ao maior apoio fi-

  • SO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(4) 2002

    68

    nanceiro, maior produo cientfica e de patentes e aomaior nmero de pesquisadores contratados para pesqui-sas nas reas da microbiologia, imunologia, patologia,epidemiologia, entre outras disciplinas das cincias m-dicas e biolgicas (Tabela 1).

    O Instituto Butantan viveu quase um sculo s voltascom suas contradies, que se resumem no fato de ser uminstituto de pesquisa que, na maior parte da existncia,foi pressionado pelo Estado a produzir imunobiolgicospara resolver problemas urgentes de sade pblica. A pres-so criou uma situao inusitada dentro de uma institui-o de pesquisa, ao considerar essencial a produo desoros e vacinas em detrimento da atividade de pesquisacientfica. O embasamento dessa poltica de sade, queainda prevalece no Instituto Butantan, pode ser assim re-sumido: num pas pobre e populoso, o governo preferegastar seus parcos recursos para fabricar soros e vacinas,desde que o investimento financeiro necessrio para suaproduo local seja menor que o da obteno desses pro-dutos da iniciativa privada. Para situaes emergenciaisno haveria nada de errado com essa poltica se isto noimplicasse a excluso da pesquisa cientfica que funda-mentou e ainda fundamenta a existncia do InstitutoButantan e de todos os institutos de pesquisa em mols-tias infecciosas em todo o mundo. bvio, mesmo para oleigo, que, agindo dessa forma, o custo real dos soros evacinas passa a ser elevadssimo, pois passa a ser feito custa da condenao do pas ao subdesenvolvimento, ini-

    bindo as inovaes e desprezando tantos outros bene-fcios que s a pesquisa cientfica traria a toda sociedadea mdio e longo prazos. O argumento de que a pesquisacientfica deve ser feita nas universidades totalmente des-cabido pelos mesmos motivos que justificam a manuten-o da pesquisa no Instituto Pasteur e em todos institutosdo gnero no mundo.

    Boa parte do atraso no desenvolvimento cientfico nasreas de imunologia e microbiologia do Instituto Butantanpode ser explicada por esse vis da poltica cientfica etecnolgica do governo. Esse fato pode ser observado pelaleitura do relatrio bienal 1998-1999, elaborado pelo Ins-tituto Butantan, comparando-o anlise dos dados do Ins-tituto Manguinhos e do Instituto Pasteur (dados obtidospelo MedLine ). Ao contrrio daproduo cientfica de suas instituies irms, brasileirae francesa, dominada quase inteiramente pelas publica-es de trabalhos em microbiologia e imunologia, no Ins-tituto Butantan verifica-se que, no binio 1998-99, ape-nas 12% correspondem a artigos relacionados rea demicrobiologia e 5% de imunologia. No mesmo perodonenhuma patente foi depositada. Por outro lado, essa po-ltica do governo na rea da sade cria uma contradiodentro do prprio governo, que investe considerveis re-cursos pblicos na formao de cientistas e tecnlogos,cria e mantm laboratrios com alta sofisticao, se orgulhados avanos conseguidos em biotecnologia e no utiliza essepotencial para a nossa verdadeira auto-suficincia.

    A preferncia pelo imediatismo tem quase um sculode existncia, tendo sido criticada inmeras vezes ao lon-go da existncia do Instituto Butantan. J em 1913, o ale-mo Martin Ficker, que foi professor de Rocha Lima emBerlin e contratado para reerguer o Instituto, dizia: nada mais perigoso para o desenvolvimento das cincias dahigiene do que a imitao. No se pode pretender que asexperincias de um pas se apliquem mais ou menos dire-tamente a outro pas; ao contrrio, as cincias da higienedevem evoluir na localidade onde iro ser aplicadas.

    Embora sejam injustificveis as conseqncias que essapoltica governamental acarretou para o desenvolvimen-to da pesquisa em imunologia e microbiologia do Institu-to Butantan, foroso reconhecer que trouxe tambm be-nefcios sociais em curto prazo, graas ao repasse derecursos do Estado, para o fim especfico de produo desoros e vacinas. A criao da Fundao Butantan, em 1989,foi de grande importncia para a modernizao da produ-o de imunobiolgicos. Como pagamento pelo forneci-mento de soros e vacinas, verbas extra-oramentrias so

    TABELA 1

    Investimentos e Desempenho Cientfico e Tecnolgico deInstituies Brasileiras na rea da Sade e o Instituto Pasteur da Frana

    2000

    Instituto Instituto InstitutoIndicadores Butantan Manguinhos Pasteur

    Fiocruz Frana

    Recursos Oramentrios(milhes U$) 8,8 115 48

    Recursos Extra-oramentrios(milhes U$) (1) 6,5 (1) 14 (2) 144

    Pessoal Total 850 3.100 2.500

    Pesquisadores 157 620 1.025

    Publicaes (3) 55 309 731

    Nmero de Patentes Total 8 51 330

    Fonte: Instituto Pasteur ; Instituto Manguinhos Fiocruz. Relatrio Tundisi;Instituto Butantan; Mello (2000); Geopi/Unicamp.(1) Recursos pblicos(2) Recursos privados(3) Nmero de publicaes cientficas indexadas (ISI) em 2000.

  • 69

    AS CONTRADIES DA POLTICA DE SADE NO BRASIL: O INSTITUTO BUTANTAN

    repassadas pelo Ministrio da Sade quela Fundao,criando assim condies para a modernizao das ativi-dades de produo do Instituto Butantan. Graas ao enor-me e competente esforo feito pelo Prof. Isaias Raw, nes-ses ltimos anos, conseguiu-se um fantstico progresso naproduo de imunobiolgicos, beneficiando amplamentemilhes de brasileiros. Assim, os recursos captados pelaFundao Butantan foram aplicados na instalao de mo-dernos fermentadores que produzem as vacinas bsicascontra as infeces conhecidas como difteria, pertussis,ttano, raiva, tuberculose (BCG) e hepatite B. Tecnolo-gias importadas e aqui adaptadas e aperfeioadas ou de-senvolvidas pelo seu Laboratrio de Biotecnologia foramresponsveis pela produo de cerca de 50% de todas asvacinas utilizadas no Brasil.1

    Sabe-se que hoje, ainda mais do que na poca da cria-o do Instituto Butantan, corremos srios riscos pela ado-o de importao de pacotes tecnolgicos prontos para re-solver problemas de sade pblica, pois freqentementeaparecem novas molstias infecciosas que s podero seridentificadas por pesquisadores do prprio pas. Muitasvezes a importao de tecnologia tem que ser adotada porrazes indiscutveis, como as que levaram modernizaoda atividade de produo de soros e vacinas do InstitutoButantan. Entretanto, esse Instituto, como um dos maioresresponsveis pela produo de soros e vacinas do pas, de-veria ter seus alicerces plantados em laboratrios de pes-quisa que pudessem acompanhar o fantstico progresso quetem ocorrido na imunologia e microbiologia. Esses labora-trios constituiriam a infra-estrutura necessria para iden-tificao e caracterizao de microorganismos patognicos,mecanismos de transmisso e de virulncia, desenvolvimen-to de novas vacinas (vacinas de DNA, transgnicas, etc.) etantos outros conhecimentos essenciais. Essa foi a inten-o dos pesquisadores pioneiros que criaram o InstitutoButantan e o Instituto Manguinhos h mais de um sculo eque, mais do que nunca, os justificam como as primeirastrincheiras de proteo da sociedade contra as velhas e novasdoenas que afligem nossa populao, como a denguehemorrgica, a hepatite C e tantas outras.

    INSTITUTO BUTANTAN COMO LIDERANAMUNDIAL NO ESTUDO DE ANIMAISPEONHENTOS E DE SUAS TOXINAS

    Se, por um lado, o Instituto Butantan teve um desen-volvimento cientfico muito irregular nas reas demicrobiologia e imunologia durante um sculo de exis-

    tncia, o mesmo no pode ser dito de sua contribuio aoestudo dos animais peonhentos e de suas toxinas. sur-preendente verificar que a falta de apoio financeiro do Es-tado, que afetou toda instituio, foi menos deletria satividades de pesquisa nas reas de animais peonhentose suas toxinas. Ocorreu que, por mais de um sculo, fo-ram acrescentados s riqussimas colees do InstitutoButantan novos espcimes de serpentes e artrpodes,atraindo pesquisadores de todo mundo. Assim, durantetoda sua existncia, o Instituto Butantan abrigou e/ou co-laborou com pesquisadores brasileiros e estrangeiros derenome mundial, estudiosos da biologia dos animais peo-nhentos e das aplicaes biolgicas e teraputicas de suastoxinas. Dessa forma, tornou-se a Meca de todos os cien-tistas interessados na rea. At hoje, a rea de toxinasanimais e de animais peonhentos responsvel por 70%a 80% das publicaes cientficas indexadas do InstitutoButantan, sendo muitas delas publicadas em peridicosinternacionais de grande prestgio. Utilizando toxinas ani-mais, pesquisadores brasileiros e estrangeiros, em cola-borao com pesquisadores do Instituto Butantan, deramcontribuies de grande impacto s cincias biomdicas.Entre as mais importantes, podem ser citadas:- isolamento, caracterizao e cristalizao da crotoxina,extrada do veneno crotlico por Karl H. Slotta e HeinzFraenkel-Conrat (1936-1938). Foi uma das primeiras pro-tenas a ter tal grau de caracterizao;- descoberta da bradicinina por Mauricio da Rocha e Sil-va e Wilson Beraldo, com a participao de GastoRosenfeld, pesquisador do Instituto Butantan, em 1949,utilizando o veneno da Bothrops jararaca;- isolamento, por Sergio H. Ferreira (1963-1967), alunoe colaborador de Rocha e Silva, do primeiro agente anti-hipertensivo obtido do veneno da Bothrops jararaca, apartir do qual foi desenvolvido, pelo laboratrio farma-cutico americano Squibb, o captopril, uma das drogasmais utilizadas por hipertensos em todo mundo.

    O prestgio nacional e internacional do InstitutoButantan na rea de toxinas animais e de microorganismosfoi decisivo para que a instituio fosse incumbida da ta-refa de sediar um dos dez Centros de Pesquisa, Inovaoe Difuso (Cepids) criados pela Fapesp. O projeto, querene laboratrios de outras instituies, como a USP,Unifesp, Unesp e Ipen, foi aprovado, em setembro de 2000,aps uma rigorosa avaliao de cerca de 120 consultoresnacionais e internacionais designados para examinarem112 projetos concorrentes em todas as reas do conheci-

  • SO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(4) 2002

    70

    mento no Estado de So Paulo. O Centro de ToxinologiaAplicada (CAT/Cepid) dever ter o apoio da Fapesp porat 11 anos, recebendo o investimento de mais de 1 mi-lho de dlares anuais para pesquisar toxinas animais ede microorganismos, difundir os conhecimentos e estabe-lecer parcerias com a iniciativa privada. Hoje o CAT, coma participao do Instituto Uniemp (Instituto Universida-de-Empresa) e da Fapesp e em parceria com trs indstri-as farmacuticas nacionais consorciadas, desenvolve pro-jetos de aproveitamento da propriedade intelectual(patentes) de interesse mdico-farmacutico originados desuas pesquisas, visando o desenvolvimento de produtos,cuja comercializao poder retornar benefcios financei-ros s instituies e a seus pesquisadores.

    PAPERS, PATENTES E PRODUTOS

    A natureza das instituies de pesquisa no sculo XXtornou os institutos de pesquisa mais ajustados a desenvol-ver o trinmio papers, patentes e produtos do que as uni-versidades. Nos pases do Primeiro Mundo, institutos comoo Pasteur, na Frana, Max Planck, na Alemanha, RockefellerInstitute for Medical Research, Massachusetts Institute ofTechnology (MIT) e o National Institutes of Health (NIH),nos Estados Unidos, constituem a interface natural entre oconhecimento cientfico e a transferncia desse conhecimen-to sociedade. Esses institutos tm mais vocao e agilida-de do que as universidades para converter o conhecimentocientfico em produtos. Suas atividades, que exigem umvultuoso investimento de recursos, so financiadas apenasem parte pelo Estado. Os aportes financeiros do Estado aoInstituto Pasteur, por exemplo, correspondem a 31,4%, sen-do que o restante vem da venda de produtos e servios, deparcerias com indstrias, e de outras fontes.

    inegvel que, nas ltimas dcadas, o Brasil avanousignificativamente na capacitao cientfica. O fato pos-sibilitou ao pas passar das ltimas posies na produode conhecimento cientfico para a 17a colocao no cen-rio mundial. Entretanto, o significativo esforo traduzidoem papers retorna poucos benefcios sociais e riquezas sociedade. Ironicamente, a revelao de novos conheci-mentos gerados com recursos pblicos brasileiros e divul-gados por meio de revistas internacionais mais bem apro-veitada pelos pases do Primeiro Mundo. Um dos melhoresexemplos, como j abordado anteriormente, o doCaptopril, derivado do veneno de jararaca e de pesquisacientfica brasileira, que rende bilhes de dlares anuaiss indstrias farmacuticas multinacionais.

    Para que o conhecimento cientfico produzido nos ins-titutos e universidades possa gerar produto, vrias aescomplementares, derivadas de outros setores pblicos eprivados, deve pavimentar o longo caminho at a suafinalizao. Esse caminho inclui a proteo da proprieda-de intelectual (patentes, licenciamento e comercializao),a engenharia do produto, e a segurana para sua introdu-o na sociedade. Nessa rea, o Brasil possui numerososgaps que inviabilizam a transformao do conhecimen-to em produto. Se no forem resolvidos esses gaps, oBrasil se converter, na melhor das hipteses, emlicenciador de patentes sem valor agregado.

    Com o apoio da Fapesp, o CAT est procurando con-tribuir para converter suas pesquisas cientficas em pro-dutos. As toxinas de origem animal e de microorganismosconstituem um riqussimo manancial de substncias deri-vadas da biodiversidade brasileira. Essas molculas sofrmacos potenciais de grande interesse cientfico. Con-tudo, para tirar o melhor proveito desse cobiado patri-mnio da natureza, no basta fazer pesquisa cientfica dealta qualidade. necessrio atuar com eficincia na pro-teo da propriedade intelectual, no apenas patenteandoinvenes como tambm agregando valor s descobertasque vm sendo feitas no Instituto ou em laboratrios deinstituies associadas. Nesse sentido, o CAT/Cepid, oUniemp e um consrcio de indstrias farmacuticas na-cionais (Coinfar) esto empenhados na criao de umaagncia de gesto de inovao (AGI) na rea farmacuti-ca, que dever intermediar as aes necessrias conver-so de patentes em produtos. A agncia, que dever rece-ber o apoio da Fapesp, reunir especialistas nas reas dedireito propriedade intelectual, de inteligncia competi-tiva, de captao de recursos e de negociao com inves-tidores e industriais da rea farmacutica. Por outro lado,a instalao da agncia condio imprescindvel, masno basta. Para que se agregue valor a um potencial pro-duto farmacutico, necessrio adquirir competncia vi-sando o desenvolvimento do produto. Isso compreendeproduzir novas molculas a partir do prottipo natural (to-xina), com propriedades farmacodinmicas mais adequa-das, pesquisar a melhor formulao farmacutica e efetu-ar os ensaios pr-clnicos e clnicos. Todos esses passosexigiro um esforo conjunto de instituies pblicas, in-dstrias, recursos de fomento e rgos financiadores, queinduzam a implementao de programas criativos.

    Parece que finalmente o Brasil comea a despertar paraa urgncia de adequar suas estruturas ao aproveitamentode seu imenso potencial de recursos naturais e humanos.

  • 71

    AS CONTRADIES DA POLTICA DE SADE NO BRASIL: O INSTITUTO BUTANTAN

    H fortes indcios, tanto por parte do governo quanto dainiciativa privada de capital nacional, de que se est pro-curando aparar arestas para que o esforo feito pelos pes-quisadores cientficos brasileiros contribua efetivamenteao desenvolvimento social e econmico do pas. Vriosfatores contribuem para uma perspectiva mais otimista,entre os quais esto a lei de inovao que tramita no Con-gresso Nacional, a designao de recursos financeiros fe-derais especficos de apoio s inovaes, estimulando asinergia entre a indstria e as instituies de pesquisa, aimplementao de projetos como os Cepids da Fapesp, aConferncia Nacional de avaliao do potencial e das ten-dncias para o melhor aproveitamento da C&T brasileira,encomendada pelo Ministrio da Cincia e Tecnologia ea crescente convico de amplos setores da sociedade deque no mundo globalizado no h outra alternativa, se real-mente quisermos sair do subdesenvolvimento.

    CUSTOS FINANCEIROS EMODELOS DE GESTO

    Os dados da Tabela 1 mostram que o Estado de SoPaulo, que possui cerca de 2/3 do nmero de habitantesda Frana, investe no seu principal instituto de mesma fi-nalidade social que o Instituto Pasteur cerca de 12 vezesmenos. No Brasil, o Estado continua sendo o nico pro-vedor dos recursos dos Institutos Butantan e Manguinhos.Uma das justificativas para isso que somos uma socie-dade pobre e sujeita a inmeras pragas agravadas pelasprecrias condies de educao, higiene e saneamento.

    Na Frana, cerca de 68% desses recursos so prove-nientes da iniciativa privada. Em outros pases do Primei-ro Mundo, as instituies desse gnero, h muito tempo,se associaram iniciativa privada para obteno de re-cursos extra-oramentrios. A experincia de outros pa-ses tem mostrado que essa parceria no s benfica paradesonerar o Estado, como tambm acrescenta parmetrosinternacionais de qualidade e competitividade na produ-o cientfica e tecnolgica. Esse modelo empregado atmesmo em pases com alta sensibilidade social, como naFrana, por exemplo.

    No se sabe se dotar o Instituto Butantan de uma estru-tura semelhante que existe no Instituto Pasteur, na Fran-a, iria ajust-lo melhor s necessidades da sade pblicado Estado de So Paulo. Certamente no seria aplicvelpara o atendimento dos problemas das doenas rfs, isto, para aquelas que afetam a maioria da populao semcondies financeiras para a preveno ou o tratamento.

    Para isso no devem faltar recursos pblicos. Para todasas outras atividades do Instituto Butantan, h espao paraatrao de investimentos privados.

    No passado, as tentativas de introduzir as prerrogati-vas da iniciativa privada no Instituto Butantan fracassa-ram. Uma das mais antigas foi a de Arthur Neiva, em 1917.Contudo, a estrutura da instituio era, e continua sendo,incompatvel com o sistema de parceria e mais ainda coma venda direta de servios e produtos.

    importante, entretanto, que se diga que aumentar sim-plesmente o investimento do Estado no Instituto Butantan,embora necessrio, est longe de ser suficiente. A estruturada instituio precisa ser modificada para garantir que os be-nefcios sociais resultantes do aumento de investimentos nosejam comprometidos pelos interesses corporativos. Um dosaspectos estruturais que chama a ateno, sem que seja ne-cessrio aprofundar essa anlise, observar a distribuiodos recursos humanos do Instituto Butantan (Tabela 1). Ve-rifica-se que os recursos humanos para a atividade-fim re-presentam apenas 19% do total dos recursos humanos man-tidos com verbas pblicas. H mais de cinco funcionriospor pesquisador no Instituto Butantan, enquanto para o Ins-tituto Pasteur essa relao de pouco mais de dois funcion-rios por pesquisador. Este um dado objetivo que ilustra umadas inmeras distores, que ao longo de muitas dcadas fo-ram se acumulando nessa instituio de pesquisa.

    A busca de uma melhor adequao da estrutura do Insti-tuto Butantan, visando desenvolver seu imenso potencial decontribuio social e econmico, seria a melhor forma dehomenagear os grandes cientistas do passado que, direta ouindiretamente, deram origem a esse instituto. No seriammantidos apenas seus nomes nas ruas, nos museus e nas por-tas do prdio principal do Instituto Butantan, mas sim colo-cados seus exemplos de volta s bancadas dos laboratrios.

    NOTA

    1. Segundo dados da Fiocruz (Relatrio Tundisi), essa Instituio pro-duz 60% dos imunobiolgicos utilizados no Brasil.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BENCHIMOL, J.L. e TEIXEIRA, L.A. Cobras, lagartos e outros bi-chos. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1993.

    DE KRUIF, P. Microbe hunters. San Diego, Harcourt Brace and Co.,1926.

    FONSECA, F. Instituto Butant. Sua origem, desenvolvimento econtribuio ao progresso de So Paulo. So Paulo em Qua-tro Sculos. So Paulo, Instituto Histrico e Geogrfico de So

  • SO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(4) 2002

    72

    Paulo. Comisso do IV Centenrio da Cidade de So Paulo, v.2,1954.

    FUNDAO SEADE. So Paulo em Perspectiva. So Paulo, v.14,n.3, jul.-set. 2000.

    GRUPO de Estudos sobre Organizao da Pesquisa e da Inovao doDepartamento de Poltica Cientfica e Tecnolgica do Instituto deGeocincias da Unicamp. Campinas, Komedi, 2000.

    GUTHRIE, D. A History of Medicine. Londres, Edinburgh, Paris, Mel-bourne, Toronto e Nova York, Thomas Nelson and Sons Ltd., 1945.

    HAGWOOD, B.J. Karl Heinrich Slotta (1985-1987) Biochemist:snakes, pregnancy and coffee. Toxicon, 39, 2001, p.1277-1282.

    INSTITUTO PASTEUR. Disponvel em: .KARLEN, A. Plagues progress, a social history of man and disease.

    Londres, Gr-Bretanha, Orion Books Ltd., 1995.MELLO, D.L. Anlise de processos de reorganizao de institutos

    pblicos de pesquisa do Estado de So Paulo. Tese de Doutora-do. Campinas, Instituto de Geocincias, Unicamp, 2000.

    RELATRIO TUNDISI. Disponvel em: .

    ROBINSON, V. The story of medicine. Nova York, The New HomeLibrary, 1943.

    SECRETARIA DO ESTADO DA SADE. Memrias do InstitutoButantan. Relatrio Bienal. So Paulo, v.56, 1994/1995 e v.58,1998-1999.

    THE ROCKEFELLER UNIVERSITY. Achievements 1901-2001, acentury of science for the benefit of humankind. Nova York, TheRockefeller Univesity Press.

    ANTONIO CARLOS MARTINS DE CAMARGO: Mdico, Professor da USP,vice-diretor do Instituto de Cincias Biomdicas da USP. atualmentediretor de Centro de Toxinologia Aplicada, um dos Centros de Pesquisa,Inovao e Difuso da Fapesp, co-autor do Livro Negro da USP.