As Eras Dos Encontros

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  • 8/7/2019 As Eras Dos Encontros

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    AS ERAS DOS

    ENCONTROS

    (as ideologias e faces dosencontros de estudantesde arquitetura)

    Daniel J. Mellado PazSalvador, 28 de Novembro de 2003

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    ProlegmenosAo contrrio dos outros textos que fiz, este tem um carter mais pessoal. Vem de uma necessidadeque tenho de dar um sentido maior ao que vi, vivi e ouvi falar. Depois de um certo tempo, e de umadistncia razovel, acredito poder fazer isso.

    O Encontro um evento nico, um patrimnio dos estudantes de Arquitetura e Urbanismo, uma

    oportunidade nica na vida de muita gente. Essa crena a que move este depoimento.

    Ao contrrio dos outros textos que fiz, vou fundir funcionamento, ideologia, atividades e desenhofsico-espacial em uma coisa s. Aqui, no vale a pena separar em partes, analisar cartesianamente.Aqui, vale entender os rumos das coisas.

    Ao contrrio dos outros textos que fiz, este descaradamente tendencioso. Emito minha opinio.No quero ficar em cima do muro. Acho que minha opinio tem fundamento. Mas ainda opinio.

    Um apelo s Comisses Organizadoras o de tentarem ver sua iniciativa sempre interpretada noplano pessoal (claro!, um empreendimento que afeta toda a vida de uma pessoa) como mais umade uma srie de mais de 25 anos, 25 geraes de estudantes propondo e criando. Sem perceber, far

    parte de uma continuidade.

    Trato de identificar as ideologias por traz da organizao dos Encontros. Essas ideologias no soto claras, elas se confundem. Perpetuam-se de maneiras diferentes. Mais parece um emaranhado,jardim de caminhos que se bifurcam e se re-encontram em todos os cantos. Uma mesma ideologiapode voltar a manifestar-se alguns anos depois, em um outro canto da Amrica Latina, sem relaodireta. E em um mesmo evento vo co-existir discursos, e trechos de discurso, diferentes, sem quese perceba a contradio que existe a cada momento.

    Uma ironia: todo modelo traz consigo a semente de sua anttese.

    Isso vale para os grandes artistas, grandes pensadores, que j trazem na sua obra a semente de sua

    superao, aquilo que lhe passou despercebido e que no teve viso ou coragem para desenvolver. Eisso vale tambm para os Encontros, como construes ideolgicas e filosficas.

    E, por ltimo, este documento uma das faces mais recentes de uma postura que tenho desde queentrei no movimento estudantil (postura que foi ficando mais madura, com o tempo, acho): preciso que as coisas mudem, sempre.

    Mas no a mudana para qualquer lado, e sim para que evoluam.

    Qual a melhor maneira de um projeto se perder? Como uma idia se corrompe?

    Copiando o projeto sem refletir, congelando a idia. O esprito de uma idia sua contnua

    melhoria, a resposta criativa a ele, sua apropriao crtica. A ele vai virando apndice, coisavestigial, que est ali sem ter um porqu, que vira dogma. Pode ganhar outro papel, outra dimenso(ateno para isso!). Mas pode ser um apndice.

    E vamos s Eras dos Encontros...

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    A 1 ERAO Encontro como atividade poltica, ou

    o ENCONTRO-MANIFESTO

    Esta viso do Encontro eu constru com base em depoimentos soltos, e material escrito, da histria

    dos ENEAs e de outros Encontros de estudantes. Portanto, tem falhas que nem posso imaginar ondeestejam.

    Os Encontros nasceram como so hoje ou re-nasceram no regime militar, no anos 70. Todoespao de reunio de livres pensadores virava frum poltico, como aconteceu com os IABs, porexemplo. Com os Encontros de Arquitetura, no foi diferente. A UNE tinha sido dissolvida, muitospartidos estavam na clandestinidade.

    Os temas eram coisas pertinentes arquitetura, que estavam despontando: ensino, patrimniohistrico, identidade cultural. E o que se fazia com elas? Ora, se discutia e se decidia! O Encontroera o frum mximo dos estudantes, e a idia que os estudantes, como categoria, precisavamanifestar-se perante a sociedade, como forma de mostrar que tinha voz ativa, e com isso

    influenciar em algo o mundo. No final das contas, o objetivo sempre salvaro mundo.

    O produto eram textos e algumas vezes Atos Pblicos, com todo o aparato que era devido, comofaixas, bonecos, etc. e a conscientizao dos estudantes.

    Ento, toda a estrutura do Encontro se volta para isso: painis, mesas redondas, debates, grupos detrabalho, palestras. Conscientizando os alunos sobre o assunto, trocando experincias, e avanandoem decises. Opinies assumiam o formato de teses (esse era o nome dado), que iam Plenria.Na Plenria, os estudantes, em assemblia, falando em nome dos estudantes de todo o Brasil,votavam a favor ou contra as teses.

    Ah... o formato era no somente assemblesta, mas todo calcado na representatividade. S votavam

    os Delegados das Escolas, que eram de Centros Acadmicos ou nomeados por listas de assinatura.

    da que vm algumas coisas comuns a todos os Encontros de estudantes: credenciamento, mesasredondas temticas, e plenrias. Essa arquitetura existe em funo do fim poltico do evento.

    Claro, quem quisesse levar moes diversas Plenria, tinha todo o direito. E votava-se que osestudantes eram a favor de algo, e contra outras coisas. Isso virava cartas abertas imprensa, eencerrava-se por a. O Encontro era uma caixa de ressonncia dos militantes, que produziamanifestos, em suas diversas faces.

    Isto que falo pode estar enganado. No vivi essa poca. Mas isso o que pude interpretar. Podehaver mais idas e vindas. Fico espera de que outros completem esse captulo de nossa histria.

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    A 2 ERAO Encontro na cidade,

    ou o ENCONTRO-SOLIDRIO

    O marco definitivo foi o ano de 1995.

    Em julho houve o XIX ENEA Santos, e em setembro, o V ELEA Valparaso.

    O que ambos diziam : preciso sair cidade. Sair do formato tradicional, de ver e ouvir arquitetos,em auditrios, e ir para as ruas, ver a cidade, ouvir a sociedade. Em ambos os Encontros, asatividades ocorriam na cidade, interagindo com outros profissionais, lideranas locais, e outros.Des-construiu-se o Encontro fechado em si mesmo, umbigo que tinha se tornado, falando umalngua que ningum entendia.

    Esse foi o primeiro passo. O passo seguinte foi desenhar uma nova forma de ao, de salvar omundo.

    Props-se nesse ano e se implantou no ano seguinte, no VI ELEA Montevideo, que se construssealgo na cidade. Nesse ano foram objetos escultricos e paisagsticos. No ano seguinte, junto comcomunidades carentes. E esse modo de interagir, a aproximao prvia com as comunidades, atecnologia construtiva, foi sendo aperfeioada ano aps ano.

    Essa evoluo se deu com mais fora nos ELEAs. Teve um dilogo com alguns Encontrosbrasileiros o XXII ENEA Rio de Janeiro e XIV EREA Campinas, em 1998 que no seguiumuito adiante.

    Esse modo de agir e pensar o Encontro faz parte de uma viso mais ampla, que ganha clareza e umrosto nos Atelis de Ao Urbana. Mas, quais so seus pilares, suas crenas?

    Uma delas o incrementalismo: as mudanas se fazem com aes concretas e pontuais, aos poucos,irradiando melhorias. A outra a urgncia: preciso agir agora! Sim, h poucos dias no Encontro...ento, que se adapte a metodologia para isso, e que se introduza o estudante a uma realidade que eledar continuidadefora do evento.

    A relao com a sociedade pra de ser via imprensa, via grandes manifestos, mas com projetosconcretos com comunidades. uma nova cara para a militncia.

    Outras nfases importantes so o uso da tecnologia intuitiva e da bio-arquitetura. Sim, influnciaclara e direta do ITIB Instituto de Tecnologia Intuitiva e Bio-Arquitetura. Isso casou com aviabilizao especfica de uma construo no curto tempo de um Encontro.

    Isso se entende hoje, que se tornou algo conhecido e aceitvel, condio essencial para as ONGs e oTerceiro Setor em geral. Mas quando surgiu essa idia nos Encontros, a mudana era clara: parar defalar e escrever, e comear a agir. E fora do lugar de sempre, mas na cidade real, com as outraspessoas.

    Por uma caracterstica implcita em seu modo de ser, esse conhecimento no se escrevia. No temosmuitos registros disso.

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    No entanto, isso cheguei a ver, e conhecer as pessoas que propuseram essas mudanas, e portantosua viso do que era o Encontro. Esta uma outra razo para este depoimento: suprir a falta deregistro que existe desses rumos ideolgicos, e sua influncia no que temos hoje.

    Ateno! Direcionar o Encontro para a cidade no significa automaticamente no encontrofragmentrio, disperso na cidade. A relao da cidade no se d somente e por conta da distribuio

    espacial, mas sim de sua proposta e atividades concretas.

    Os ELEAs, at hoje, so os melhores representantes do Encontro-ONG. Sua dinmica oscila entredois plos intensos, as sadas e a cidade-sede, que uma cidade somente em faixas de horrioprprias, de permanncia (noite e manh).

    Sua anttese surge em si prprio, com a Cidade-Encontro

    A 3 ERA

    O Encontro vira uma cidade,ou o ENCONTRO-UMBIGO

    Sim, esta uma crtica, e mesmo uma auto-crtica. O termo Encontro-Umbigo pejorativo.

    A idia surge em 1996, na concepo do VI ELEA Montevideo. Imaginava-se juntar o que havia demelhor no IV ELEA So Paulo (1993) e no V ELEA Valparaso (1995), que era a concentrao defunes em um prdio (que foi na FAU-USP) e a dinmica de workshops na cidade (que foi emValparaso). Falaram em Encontrpolis, mas isso dentro da Comisso Organizadora.

    O Encontro-Umbigo se constri com clareza e salta como ideologia comum a todos a partir de1999. Em julho houve o XXIII ENEA Goinia, e em outubro o IX ELEA Salvador.

    Com o XXIII ENEA Goinia, a infra-estrutura dos Encontros alcanam uma qualidade nica, quemarcou poca. Principalmente a alimentao, os banheiros e chuveiros (pela primeira vezimpecveis, limpos e sem problemas) e os alojamentos. Em belos edifcios da UCG, e com umteatro de arena no meio, funcionando como rea de concentrao. Por limitaes oramentrias,sadas com vagas bastante limitadas para outras cidades (visitas orientadas) e intervenes (osPACs).

    O contraponto foi o IX ELEA Salvador, que popularizou o espao fsico tpico dos ELEAs, e usoucomo pea de divulgao o termo Cidade ELEA.

    Isso no quer dizer que a centralizao de funes e atividades no existisse antes, mas no se tinha

    elevado condio de valorque se justifica a si mesmo. Ele, por si s, basta. Quando ocorre afalncia das atividades externas por sua fragilidade ou pela ausncia do pblico o Encontro setorna um umbigo, sem relacionar-se com a cidade e avanar em um sentido propositivo. No foiisso que aconteceu no XXIV ENEA Taubat (2000) e XXV ENEA Joo Pessoa (2001)?Principalmente em Taubat, onde as pessoas no tinham o qu fazer e para onde ir durante o dia.

    Parte do discurso original da Cidade-Encontro tem uma orientao deplanejamento e ambincia:deincorporar no lugar elementos inspirados na cidade (ex.: sinalizao, caixa automtico, lanchonetese praa de alimentao, reas de exposio, lavanderia, revelao fotogrfica, tudo isso j foi

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    implantado em Encontros), aumentando sua auto-suficincia. Uma outra dimenso, presente nosprimeiros idelogos dessa forma de cidade, desapareceu, que era o do formato de cidade como umestmulo do exerccio da cidadania dos Participantes, explorando formas de auto-gesto e derelacionamento entre si.

    Mas isto se perdeu, como inteno, e o ideal da Cidade-Encontro limita-se a justificar uma escolha

    logstica (concentrao de funes e atividades) na esperana de que isso j estabelea interaesmais fortes.

    S que nem sempre isso acontece. E j se viu que essa interao pode acontecer em Encontros degrande mobilidade, sem ter que privilegiar a inrcia e a permanncia na Cidade Encontro.

    No Brasil, sem o contraponto da circulao pela cidade durante longos perodos, e sem umpropsito maior, as Cidades-Encontro se umbigaram.

    INDEFINIES DA TRANSIOPequenas Ideologias que se RepetemNos ltimos 10 anos, sem que tenham criado escola

    O Encontro se apaixona por si mesmo,ou o ENCONTRO-EM-SI

    O XIX ENEA Santos (1995) foi o primeiro a reconhecer como objetivo oficial o ato de encontrar-se. uma verdade inegvel que, por trs de todos os motivos que podem orientar a ao de umEncontro, o primeiro ato, e o mais apaixonante, a aventura de encontrar-se.

    O que acontece uma situao contraditria. Evidente que o importante ter acontecido o evento,

    j que muito difcil montar o dito cujo, reunir gente para isso, e sair ileso da experincia. Porm, oque tem acontecido que o discurso do encontrar-por-encontrar tem justificado a ausncia de umsentido maior no Encontro, em um pra-qu se encontrar. Muitas vezes usado quando o propostose diluiu, por motivos justos ou injustos.

    A idia do Encontro-Em-Si esvazia qualquer sentido propositivo que se pode ter, e impede umaavaliao crtica e uma evoluo.

    A importncia de se encontrar uma das molas-mestras da vida. Mas acho que j se disse que maisimportante do que estar junto, fazer algo juntos. Independente disso, o que eu vi at o momentofoi a fragilidade conceitual e operacional dos Encontros que e limitaram a essa filosofia.

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    O Encontro como evento para a juventude,ou o ENCONTRO-FESTIVAL

    Essa uma dimenso assustadora do mundo contemporneo: a espetacularizao da vida e domundo. E os Encontros seguiram isso. Os festejos noturnos comearam como uma pulso natural.Onde tem gente junto, se festeja, se dana, se canta, se bebe, se apaixona-se...

    As Comisses Organizadoras comearam a estruturar as festas noturnas com uma boa inteno, debrindar um divertimento a mais, aps um dia cheio, e mesmo de mostrar valores locais. Quando issovira um encargo a mais, esperado e cobrado pelos Participantes, razo mesma deles irem aoEncontro, algo est alterado.

    Temos o Encontro-Festival, onde o estudante espectador, e o que ele tem a repetio dosprocessos das casas-de-espetculo no Encontro. A partir da o pblico se auto-alimenta, e passa avir cada vez mais pessoas que tm isso como expectativa do Encontro, em um crculo-vicioso.

    Ns sabemos que existem diversas formas de se divertir juntos noite. Desde rodas-de-violo,ENEMAs da vida, batucadas coletivas e hoje-ningum-dorme, at shows com msicos locais, oumesmo famosos. uma dimenso da vida, e da juventude, fundamental.

    A pergunta : o que acontece quando a festa o nico referencial do Encontro? Quando o sinnimode qualidade uma infra-estrutura maior? Quando um Encontro pode ter atividades vazias, masdeve garantir ainda a Festa? E quando a Festa passa a exigir uma infra-estrutura pesada,praticamente autnoma em relao ao Encontro?

    O Encontro como instncia acadmicaou o ENCONTRO-CONGRESSO

    o oposto do Encontro-Festival, pelo menos na histria dos debates sobre Encontros. Toda vezque se diz que existe muita farra (bebida e libido) no Encontro, o oposto o Encontro srio, quesignifica que ele, para ter contedo e ser respeitado, tem que repetir o formato acadmico.

    Essa idia raramente levada at as ltimas conseqncias. Tem a reao das pessoas, asdificuldades financeiras e logsticas de sobrevivncia, que acabam vindo antes (alojamento,refeio, etc.), e a crena de que isso no faz parte (e no faz mesmo!) da cultura e condies doParticipante. C entre ns, o melhor lugar para se dormir em um Encontro um auditrio: tudoescuro, confortvel e refrigerado...

    Mas... bem, essa forma a tradicional, a que sempre feita na Academia. Por mais que se diga quea Universidade seja uma vanguarda da sociedade, ns sabemos muito bem que ela tem seus ritos etradies to engessados quanto qualquer outro setor da sociedade em alguns casos, at mais. Nssabemos que a forma de ensino em sala de aula, a prpria idia de sala de aula, algo que vem daIdade Mdia, e os poucos professores que conseguem perceber isso no conseguem mudar a forado hbito (nem neles mesmos!).

    Ento, no meu ver, o Encontro-Congresso ele sofre das deficincias crnicas da Universidade. Elese estrutura de modo ao estudante ser espectador. Dizer que em uma mesa redonda h debate, quase sempre uma inverdade. E se h debate, poucas vezes com o estudante. S o mais desbocadoconsegue discutir com o expositor, ainda mais quando tem muita gente assistindo. O protagonista

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    est no palco, o estudante platia. Temos a dois componentes: a hierarquia do saber, e ritosrgidos de comportamento. Ora, o prprio espao de um auditrio induz a parte desses ritos ns,arquitetos, melhor do que ningum sabemos isso.

    O Encontro-Congresso traz ainda um outro porm, que no tem a ver com seu formato, mas com oque deixa de ser. Na maioria das vezes, os estudantes aceitam com mais facilidade e incentivam

    novos assuntos (permacultura, acessibilidade e desenho universal, etc.) e novos meios didticos, nansia de explorar e conhecer mais. Coisas que na Academia, e com os profissionais de sempre, noacontece. difcil esperar dos profissionais (professores e arquitetos) de sempre algo realmentediferente: eles j esto catalogados dentro da rea, j se conhece o seu discurso, e seu teorrevolucionrio j foi podado ou encaixado, ou nem mesmo existiu o verdadeiro revolucionrioteria sido eliminado antes.

    O Encontro-Congresso perde a chance de ser o que a Academia no pode ser: de vanguarda,inovadora, em formatos e assuntos, livre, questionadora, efervescente. O prprio Encontro-Solidrio bastante assim, ao pleitear assuntos que nas Escolas no se vem: contato com comunidades,arquitetura social e bio-construo, e o ato de construir.

    O Encontro como reproduo do mundoou o ENCONTRO-PLURAL

    Todo Encontro podia ser diferente. E toda opo so vrias renncias. um fato delicado saber queum formato de Encontro vai atender a um pblico e negligenciar outros. Qual a soluo?

    Esses dilemas aparecem a todo momento. Que gnero musical escolher? Colocar um pra todos osgostos todos os dias, ou mais de um palco? Na alimentao, vai incluir o vegetariano? Noalojamento, vai dar espao para quem tem e quem no tem barraca? Claro, alm da boa inteno,isso sempre esbarra na capacidade que se tem de fazer isso: gente, infra-estrutura e dinheiro.

    H o ideal do Encontro-Plural, ou mesmo Total, que tente abrigar o mximo de diferenaspossveis, ao mesmo tempo. Que tenha sesses de cinema, atividades esportivas, ldicas, etlicas,etc. Infelizmente, quase sempre financiados pela Comisso Organizadora.

    Ele sempre naufraga por conta da falta concreta de recursos (e de brao!). A outra questo deordem filosfica. Ainda que reproduzisse a diversidade do mundo conhecido, ainda assim... quemno est insatisfeito com o mundo? Se mesmo o que existe no contenta a todos, o que dir de umEncontro?

    Ainda assim, a idia do Encontro-Plural motor de muitos estudantes. Que se manifesta em aesespordicas, como o ralfpara skate do XXIV ENEA Taubat (2000), ou o cinema do XXIII ENEA

    Goinia (1999), a exposio de fotos de outros Encontros no XI ELEA Montevideo (2001). Ou avariedade desconcertante de atividades ao mesmo tempo do XXII ENEA Rio de Janeiro (1998)

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    O Encontro como faa-o-que-tu-queresou o ENCONTRO-ABERTO

    Essa outra ideologia. Todas as ideologias existem no Encontro, como filosofia e como fato. Masconvivem entre si. Esta a idia de que o Participante faz o que bem entende e faz. E como elefaz isso, deve fazer ainda mais. E deve ser responsabilidade fazer as coisas. Se virar. Correr atrs.Ningum pai de ningum. Todo mundo adulto.

    Claro, para inventar e fazer zoeira, argumenta-se, todos se mexem, conseguem dinheiro, sedescobrem na cidade. Por qu no para o resto? Verdade e mentira.

    Sabemos que no assim. Uma coisa poder, a outra querer, e outra saber. As decises tomadasem prol de um Encontro-Aberto so vlidas, mas raramente se lembram de avisar os Participantes.Para que eles se preparem, fsica e espiritualmente.

    No adianta programar uma Festa, colocar no site e nofolder, e na hora H avisar aos estudantes quevai ter Festa Fantasia. No se deu a chance do sujeito trazer a fantasia, certo?

    No adianta chegar e dizer: o local do Refeitrio fica a 2km daqui, voc pega os nibus tal e tal,porque nego no vai (se que no vo ficar fulos da vida) e, se vai, vai de muita m vontade. Sim,isso aconteceu no XXII ENEA Rio de Janeiro (1998). Claro que ningum entendeu a ideologia portrs: acharam que foi descaso e preguia, quando no uma tremenda sacanagem.

    A idia do Palco Livre, no V EREA Paraty (2002) foi nessa linha, com resultados melhores.

    Agora, pontos mais filosficos. Na terra do faa-o-que-tu-queres, h uma desonestidade... porque aComisso Organizadora abre espaos, e alguns casos complica o acesso a algumas coisas... mas obar est do lado (quem vai perder esse dinheiro?). Ento, a bebida comea ganhando na corrida, porconta dos prprios Organizadores. O Encontro no to aberto assim, afinal.

    O Encontro-Aberto se vende como livre, como receptculo para todos os estudantes. No verdade.Tem muita gente que no vai ao Encontro porque ele muito Aberto. Ah, esse pessoal careta,certo? Tudo bem... mas que no se diga que o Encontro-Aberto democrtico. No, ele exige quese tenha um Participante-Aberto, que curta construir sua situao a cada momento.

    O Encontro-Aberto poderia exercitar formas de cidadania, mas no faz. Se no h destinos comuns,o que existe convvio pontual. Sem um prvio desenho desse exerccio, de como se pode estimularisso, o que se tem a lei-do-mais-forte. Embore eu goste do pode-dormir-pode-cochilar e dohoje-ningum-dorme, e ache que seja a cara dos Encontros que vivi, no posso negar que sobrincadeiras autoritrias, a lei-do-mais-forte.

    A lei-do-mais-forte tem a uma faceta mais inocente, mais ldica. Mas pode ter outras facetas

    desagradveis.

    Sem um exerccio mais pr-ativo da cidadania, sem rumos claros do que se pretende, de novo oEncontro perde impulso, uma idia propositiva.

    preciso, verdade inegvel!, que haja momentos no evento de puro encontro, sem maiorespropostas. Do simples estar-junto, e de preferncia com muita gente, para se ter uma noo dostantos que esto ali. Porm... no meu ver, o Encontro tem que ter ainda uma carga utpica,representar um projeto de futuro.

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    RUMO A UMA 4 ERAO Encontro como nexo,

    ou o ENCONTRO-INCUBADORA

    A partir daqui, o que opinio pura e simples fica escancarado. E tento vender meu peixe! Quemvai comprar, quem vai comprar?

    Para comear, eu renego toda forma de ideologia que se satisfaz em ser como o hoje. E renegotoda apropriao que no vise a contnua melhoria. Sempre se pode melhorar.

    No vejo sentido em um evento de estudantes se ele no estiver pulsando de vitalidade e de sonho.Se ele no estiver disposto a propr novas formas de ver o mundo, de se trocar idias, e novasidias. O estudante no pode ser um arquiteto-tradicional-mirim, mas a semente para um arquitetodiferente. O filho (estudante) o pai do homem (arquiteto). O Encontro de Estudantes, se no forutpico, no diz para que veio. E o estudante que no tem aspiraes j est velho.

    O Encontro ele tem que ter utopia em cada momento seu. Tem que ser um territrio novo, diferente,um balo de ensaio. Nele as pessoas trocam idias, sem preconceitos, ou disciplinas fechadas emuradas, como acontece na Academia. Nele as pessoas convivem em diferentes momentos docotidiano, e vo se conhecendo como ser humano. Ele diferente, e tem que explorar essadiferena, em vez de se render a outros formatos e perder o seu potencial.

    Qual o nosso futuro? Qual deveria ser a nossa 4 Era dos Encontros?

    O ltimo ENEA, o XXVII ENEA Ouro Preto (2003), foi um autntico Encontro-Congresso, o maisfiel representante (talvez o nico) dessa ideologia. Sua estrutura comportava simpsios com temasdistintos e abrangentes, e dentro deles formatos como mesas-redondas, oficinas e palestras. Seu

    modo de pagamento era por composio de pacotes. Justia seja feita: muito do des-encontro se deupela pulverizao dos estudantes em Ouro Preto, e no pela forma de Encontro-Congresso.

    Mas, nesse ENEA estavam lanadas as sementes de seu oposto.

    Destaco: o Conselho de Gesto, as reunies dos EMAUs (mais a Oficina de Extenso comoComunicao) e o CICAU (em sua terceira edio).

    O que eles tm de especial?Que os participantes so e podem ser os protagonistas. H um intercmbio mais eficiente. Criam-selaos que perduram para mais alm da semana do evento (o que est havendo entre os EMAUs exemplo e prova disso). Porque so experincias de auto-gesto dos encontristas, administrando

    atividades dentro do ENEA.

    Ainda marginal, parte... mas por qu no pode ser maior?

    A viso que hoje defendo parte de coisas que j existem... tom-las como sementes para uma facedo Encontro diferente.

    Que incentive a gesto partilhada por grupos interessados. Que abra espaos, incubadoras, para asiniciativas dos estudantes... j existem estes teros, ainda no seu estgio inicial, para a pesquisa

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    cientfica (CICAU), para uma forma especfica de extenso universitria (EMAUs), e para aslideranas estudantis (Conselho de Gesto). Existem outras dimenses... outras formas deextenso, a produo artstico-literria, a produo acadmica, a questo dos estgios, etc.

    Hoje em dia, o estudante j entra em contato com muito desses outros mundos via Encontros...

    esse modelo novo tornaria isso ainda mais intenso. Permitira que se criassem mais contatos, emultiplicaria o nmero de pessoas interessadas em auto-gerir o Encontro e em fazer movimentoestudantil.

    Nas primeiras verses, alguns destes espaos no andariam bem das pernas...mas delegarresponsabilidades isso.

    Ora, esse Encontro-Incubadora seria heterogneo. Mas... ser que um objetivo o Encontro-unidade, onde tudo remete ao tema? Como o tema em si interessa apenas a um punhado deestudantes... ser que essa a melhor forma de atingir os estudantes, e de reconhecer seu potencial eproduo? Ou um vcio de formao do arquiteto, como autor da obra de arte total?

    E isso pode ir mais alm... pode incorporar formas de auto-gesto nos espaos, alm de nasAtividades. Indo mais alm apenas da limpeza do alojamento.

    Claro, houve iniciativas vrias nesse sentido: no XXI ENEA Porto Alegre (1997) estimulava-se aque as Delegaes trouxessem bandas de estudantes para tocar nas noites, e teve exposies detrabalhos acadmicos. Mas tem sido iniciativas isoladas, e no algo estrutural do Encontro.

    O Encontro seria um nexo entre vrios fluxos diferentes, um momento de intercmbio, de renovaras energias, de expr-se o trabalho que vem sendo feito para todo o Brasil, de seduzir outraspessoas, de influenciar e deixar-se influenciar. Isso j acontece. Mas pode ser melhor.

    Eu defendo as mudanas? Mas tambm defendo as continuidades e resgates... Uma coisa muito

    difcil no movimento de rea criar Atividades e espaos nicos, que lidem com a essncia de seucurso. Os Atelis de Ao Urbana (ou PACs, ou Oficinas Construtivas na cidade, no importa onome) so uma delas. Pode e merece ser evoludo, ir mais alm.

    O CICAU uma conquista inegvel.

    Essa 4 Era que defendo no uma inveno do nada. uma percepo de algumas conquistas queconseguimos, com muito custo, dedicao e ousadia. Caramba!: o material de referncia do Atelide Ao Urbana do XI ELEA Montevideo (2002) feito com uma qualidade que muito profissionalno alcana!

    Trata-se de perceber as sementes que j existem, e dar espao para elas crescerem. E aprender a

    lio que elas nos do. No tenham dvida: as sementes da 4 Era, seja ela qual for, j esto a. Ofuturo se enraza no presente.

    Para quem souber ver as sementes do tempo, e saber qual ir germinar, e qual no.Fredric Jameson,As Sementes do Tempo

    Com a diferena que est nas mos de vocs decidir em quais sementes apostar, e em quais no. Somais do que espectadores, ou personagens secundrios, mas sim os heris da histria.

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    Qual, ento, seria a meta de cada Encontro em si? No deixar essas petecas carem, melhorarem,deixando-as mais leves, mais aerodinmicas, at o dia que elas mesmas tenham vo prprio, esirvam como gestoras de seus espaos nos Encontros. E lanar novas bolas ao ar, na esperana deque voem tambm.

    O exemplo que eu dou o que eu vivi no IX ELEA Salvador (1999) descontando o que houve debom e ruim, os risos e choros, depois de alguns anos... Os mritos so dois: ter mantido emelhorado (um pouquinho) a idia dos Atelis (e visto que nos anos seguintes se evoluiu aindamais) e ter lanado no ar a idia (que no aproveitamos, e no se aproveitou ainda) da Cidade-Encontro, do Encontro como lugar de exerccio da cidadania e de outras formas de viver maisjustas.

    O XXVII ENEA Ouro Preto (2003) cantou outras pedras: teve o Conselho de Gesto, os EMAUstiveram mais espao, consolidou o CICAU, lanou a idia (que foi vivel) da Maratona de Projetos(que deve ser evoluda, aperfeioada, adaptada).

    E por a vai.

    Qual o papel que o prximo Encontro (seja l se Regional, Nacional ou Latino-Americano) vai ter?Como ele se encaixa no trabalho coletivo das geraes? Um Encontro uma construo coletiva: noagora e nos anos.

    Um alerta! Achar que se nico e individual, que se vai partir do zero (como infelizmente acontecede quando em quando), cometer dois erros: o de pre-potncia (vou fazer o que os outros noconseguiram fazer) e o de ingenuidade (tenho idias novas e exclusivas, quando no so nemuma nem outra).

    Cada gerao tem o direito e a misso de inventar sua parte, de levar a tocha adiante. Mas, tem odever de deixar algo para os outros. Comeando pelo repasse financeiro, e indo muito mais alm:

    no concebo continuidade sem que os ex-membros de Comisso Organizadora no compareamdepois para dar uma mo aos seus sucessores. E tem o compromisso de fazer valer o esforo detantos outros que vieram antes pelo esprito da idia, que a evoluo.

    A vida inventa! A gente principia as coisas, no no saber por que, e desde a perde o poder decontinuao - porque a vida mutiro de todos, por todos remexida e temperada.

    Guimares Rosa, Grande Serto: Veredas, pp. 293.

    Vo tomar as idias dos outros e brincar com elas. E vo brincar com as suas idias. Remex-las etemper-las. Mutiro de todos.