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AS FACETAS DA PROJEÇÃO E DA IDENTIFICAÇÃO PROJETIVA
NA PRÁTICA CLÍNICA
(Facets of projection and projective identification in clinical practice)
Fernanda Cesa Ferreira da Silva
RESUMO
Este trabalho aborda os mecanismos defensivos da projeção e da identificação projetiva na
prática clínica. Apesar de serem recursos muito primitivos, eles são comumente utilizados por
um grande número de pessoas. O uso de tais defesas, sempre em plano inconsciente e
automático, poderá estar a serviço de mecanismos adaptativos ou de uma patologia. Durante o
processo psicoterápico, cabe ao terapeuta proporcionar a maior integração e coesão possível
do ego do paciente, através da escuta, compreensão e posterior devolução do material trazido
pelo mesmo.
Palavras-chaves: ansiedade, mecanismos de defesa, projeção, identificação projetiva.
ABSTRACT
This study explores the defense mechanisms like projections and projection identifications in
the clinical practice. Although of been a very primitive resources, they are very used by a lot
of people. The use of these defenses, always in a unconscious and automatic level, could be
working to the adaptative mechanisms or some patology. During the psychotherapeutic
process, is a therapeutic function afford as intense integration and cohesion to the patients
ego, through the listening, comprehension and after that making devolution of the material
worked by himself.
Key-words: anxiety, defense mechanism, projection, projection identification.
INTRODUÇÃO
Os indivíduos constantemente lidam com conflitos psicológicos geradores de
ansiedade. Tais conflitos, sejam eles no plano consciente ou inconsciente, caracterizam-se
como um momento crítico, de ameaças, oposições afetivas incompatibilidade de valores,
divergências morais, entre outros aspectos (ALMEIDA, 1996). A fim de obter proteção e
equilíbrio, o ego faz uso de mecanismos defensivos que amenizam a ansiedade e permitem
lidar melhor com as vicissitudes do cotidiano.
O presente artigo nasceu da necessidade de discorrer sobre determinados mecanismos
defensivos utilizados pelos sujeitos e percebidos ao longo da experiência do estágio em
psicologia clínica. Dessa forma, o objetivo deste estudo é compreender o uso da projeção e da
identificação projetiva no contexto da prática clínica, a partir de uma revisão teórica e de
relatos de casos clínicos.
PROJEÇÃO
Segundo a teoria psicanalítica, projeção designa um dos vários mecanismos de defesa
pelo qual o ego se protege da ansiedade, repelindo os seus maus objetos internos e projetando
em objetos externos (CABRAL & NICK, 1999). Assim, a ansiedade é neutralizada na medida
em que o ego conserva apenas incorporados os bons objetos. De acordo com Kusnetzoff
(1982), o mecanismo de defesa projeção é apoiado no ato biológico da ejeção, ou seja, que
tem como finalidade transformar um perigo ou um fato não aprazível, interior em exterior, já
que do externo se pode fugir e do interno não. Conforme Atkinson (2002), todos os indivíduos
têm traços indesejáveis que não reconhecem. A projeção protege esses do reconhecimento de
suas qualidades indesejáveis, distribuindo-as em grandes quantidades a outras pessoas; em
contrapartida, ela não permite que o indivíduo perceba em si próprio o que parece muito claro
nos outros.
O material projetado poderá ser qualidades, sentimentos e desejos, desde que
pertençam originalmente à pessoa e sejam atribuídos ao outro (ALMEIDA, 1996). Como tipos
de projeção, têm-se: a depositação, que consiste em transferir para um terceiro
responsabilidades próprias; as fantasias projetivas, entendidas como devaneios em que a
pessoa enxerga o seu redor pelas lentes da sua imaginação; a generalização projetiva, na qual
a pessoa é perturbada por uma visão egocêntrica no modo de observar o mundo, percebendo-o
de uma maneira muito subjetiva, sob o enfoque das necessidades, conflitos, desejos e
motivações pessoais censuradas; o pensamento reverberante, no qual os sons externos são
alvo da projeção, ou seja, os ruídos do ambiente reverberam ao ouvido como se fossem vozes
alheias, traduzindo pensamentos próprios; a transferência de culpas, em que a pessoa se nega
a assumir a realidade de seus conflitos, culpando um terceiro por dificuldades de sua dinâmica
pessoal (ALMEIDA, 1996).
Laplanche e Pontalis (2001) salientam que a projeção está relacionada tanto a
manifestações psicológicas normais como patológicas, citando entre essas a paranóia e a
fobia. Nas estruturas paranóides, o indivíduo projeta as suas representações intoleráveis que
voltam a ele do exterior sob a forma de recriminações, ou seja, “... o conteúdo efetivo
mantém-se intacto, mas há uma mudança na localização do conjunto” (p. 375). Na construção
fóbica, há uma projeção no real do perigo que é pulsional, ou seja, o ego comporta-se como se
a angustia não proviesse de uma moção pulsioinal interna, mas sim de uma percepção,
podendo reagir contra esse perigo exterior através das tentativas de fuga próprias aos
evitamentos fóbicos.
Sandler (1989), refere que a projeção inclui preconceito, rejeição da intimidade por
meio da suspeita, excessiva cautela contra perigos externos e colecionamento de injustiça. O
mecanismo permite que a pessoa permaneça cega a importantes impulsos da personalidade,
embora sua influência distorça a imagem que ela faz do mundo exterior. A projeção associa-se
com a negação e com a repressão.
IDENTIFICAÇÃO PROJETIVA
Para a melhor compreensão do mecanismo da identificação projetiva, cabe uma alusão
à teoria de Melanie Klein, dos estágios etários precoces do desenvolvimento da criança, mais
especificamente à posição esquizo-paranóide. Para Melanie Klein (1984), os bebês já nascem
com uma tendência em cindir objetos devido à falta de coesão do ego primitivo. Para o bebê,
o corpo da mãe é inicialmente sentido como uma extensão de seu próprio corpo. O desejo da
gratificação proveniente da libido oral contribui para que a criança sinta existir tanto um seio
ideal (nutriente e solícito) como um seio mau (perigoso e devorador), os quais são mantidos à
parte na mente infantil. O seio materno, para a criança, é bom quando satisfaz e mau quando
sente fome e não é imediatamente satisfeita, sendo alvo de fantasias agressivas do bebê (como
os impulsos destrutivos e a ansiedade persecutória). O bebê apresenta as fantasias sádicas de
esvaziar o corpo da mãe de tudo o que possui de bom e desejável e encher o mesmo corpo
com as substâncias más e com as partes do self que foram cindidas e, então, projetadas nela.
Dessa forma, o bebê separa o que é hostil do que é bom, projetando a sensação de
aniquilamento para o externo, e protegendo e mantendo consigo o positivo. Nessas fantasias,
o ego, por projeção, toma posse do objeto externo (a mãe), e torna-o uma extensão do self. O
objeto torna-se, de certo modo, um representante do ego, sendo a base da identificação por
projeção, ou identificação projetiva.
Conforme Perestrello (1979), a identificação projetiva implica em cindir partes do self
e projetá-las em objetos externos, que se tornam então possuídos e controlados pelas partes
projetadas, e com elas identificado. As partes destrutivas e odiadas do self que são cindidas e
projetadas podem ser sentidas como um perigo para o objeto que foi alvo da projeção, dando
origem ao sentimento de culpa, refletindo a culpa do self para outrem. Entretanto, não
somente partes más do self são expelidas e projetadas, como também partes boas. A projeção
de sentimentos bons e de partes boas da personalidade é importante para a capacidade de
desenvolver boas relações objetais e para a integração do ego, dando origem a sentimentos
como a empatia.
A identificação projetiva apresenta diversas finalidades: pode ser dirigida no sentido
do objeto ideal, a fim de evitar a separação, ou então dirigir-se no sentido do objeto mau, para
alcançar o controle da fonte de perigo. A parte escolhida do self que será projetada também
depende do objetivo a ser alcançado: partes más do self podem ser projetadas a fim de livrar-
se delas, assim como para atacar e destruir o objeto; as partes boas podem ser projetadas para
evitar o afastamento ou para mantê-las a salvo das coisas más de dentro, ou ainda, para
melhorar o objeto mediante uma primitiva espécie de reparação projetiva (SANDLER, 1989).
Como visto anteriormente, o uso da identificação projetiva apresenta vários objetivos,
porém todos com o fim último de aliviar-se da ansiedade. É um mecanismo utilizado tanto em
personalidades vistas sob o aspecto da normalidade como sob o da patologia, destacando os
estados esquizofrênicos e as personalidades borderline.
Segundo Perestrello (1979), o esquizofrênico demonstra uma confusão resultante de
diversos fatores, sobretudo da fragmentação do eu e do excessivo uso da identificação
projetiva, sentindo-se em pedaços e misturado com outras pessoas. Revela ser incapaz de
distinguir entre uma parte boa e má de si próprio, entre o objeto bom e mau e entre a realidade
interna e externa, impossibilitando que o uso da identificação projetiva lhe beneficie (como
esperado para a maioria das pessoas).
No caso das personalidades borderlines, Almeida (1996) aponta para as características
dessas que são compatíveis ao retorno obtido pelo uso da identificação projetiva: negação da
realidade psíquica, controle onipotente do outro, defesa contra inveja, sentimento de
despersonalização e relação parasitária (vivendo dentro do outro).
CASOS CLÍNICOS*
A partir da revisão teórica das manifestações dos mecanismos de projeção e
identificação projetiva, serão ilustrados os atendimentos psicoterápicos prestados durante a
realização do Estágio de Psicologia Clínica, em um contexto de psicoterapia breve numa
clínica multidisciplinar. Os atendimentos eram realizados na freqüência de uma vez por
semana, sendo quarenta e cinco minutos cada sessão, e o número total de encontros variava
conforme a demanda trazida pelo paciente. As sessões eram supervisionadas semanalmente,
através de relatos dialogados. Os nomes dos pacientes foram trocados por nomes fictícios,
para preservar suas identidades e particularidades.
Caso Marina:
Marina é uma mulher de 32 anos, que morava com a mãe e um irmão adotado. Ela foi
gerada em um relacionamento conturbado, no qual sua mãe era amante de seu pai, que era
casado e tinha outra família estruturada. Diante disso, Marina cresceu sob muitas restrições,
tanto financeiras quanto relacionadas ao ambiente que poderia freqüentar. Sua mãe a
* Os pacientes dos casos clínicos ilustrados assinaram um termo de consentimento informado, autorizando a publicação de suas histórias e para fins científicos.
superprotegia, a educando rigidamente, evitando que ela fosse criticada em qualquer aspecto.
Marina não tinha muitas amigas, pois devia ficar em casa com sua mãe, a qual possuia
insuficientes recursos financeiros, sendo que o pai não ajudava nessa questão. Todos tentavam
manter em segredo a história do casamento pai, já que ele freqüentava a casa de Marina como
se realmente lá morasse, mas ia embora ao anoitecer. Como Marina se sentia muito sozinha,
aos 14 anos solicitou que a mãe adotasse uma criança, sendo aceito o pedido, até mesmo pelo
fato da mãe ter conseguido um emprego melhor, que pudesse sustentar um novo membro.
Marina, então se apegou muito ao irmão, tratando dele como um filho. Os pais, entretanto,
abdicaram da responsabilidade de educá-lo, evidenciando grande discrepância entre o
tratamento dado a Marina e a ele. Quando esse cresceu, não mais obedecia às ordens de
Marina, mostrando-se livre e independente para tomar suas decisões (já que os pais nunca o
influenciaram). Marina, então, desenvolveu um ódio muito grande para com esse irmão, já
que ele fazia suas vontades próprias, não era restringido por nada, não precisava da constante
aprovação dos pais (como Marina) e ganhava dinheiro da mãe quando solicitava. Marina
projetou no irmão todos seus desejos relacionados à rigidez em sua criação e sua vontade em
ser mais autônoma, negando em si mesma tais anseios. Criticava as atitudes independentes do
irmão, seus relacionamentos, sua preguiça em acordar cedo e de trabalhar, suas festas, sua
irresponsabilidade diante dos acontecimentos da casa, enfim, todos os aspectos que Marina, na
verdade, deseja obter, mas eram vistos como maus, conforme a educação que recebeu. Aos
poucos, Marina reconheceu que ela não odiava os comportamentos do irmão, mas sim os
almejava. Entretanto, inicialmente, era muito ansiogênico reconhecer em si tais desejos, pois
refletiam seu lado “mau”; dessa forma, projetou-os no irmão e livrou-se deles, para somente
depois poder identificá-los e reconhecê-los como seus, integrando-os novamente em seu
psiquismo. Após essa aceitação, pôde re-analisar o que é bom ou ruim para ela, a partir de
seus próprios critérios, adotando novas atitudes.
Caso Gisele:
Gisele tem 35 anos, é casada e tem uma filha de um ano. Sua queixa principal foi o
ódio e a dificuldade de relacionamento em relação à sogra. Gisele é uma pessoa que apresenta
necessidade em controlar o ambiente e as pessoas que a cercam, que demonstra grande rigidez
em seus pensamentos, considerando-os como certos, sem ouvir a opinião alheia. Além disso,
mostra-se possessiva em relação ao seu marido e à sua filha, preocupando-se em demasia com
a educação dela e temendo a separação dessa quando a criança vai visita a avó paterna (já que
Gisele não acompanha o marido quando ele vai à casa da mãe). Durante os encontros, Gisele
trazia as características da sogra que faziam detestá-la, como a inflexibilidade, a necessidade
de dominar as pessoas ao seu redor, principalmente o marido, a possessividade com a neta,
impedindo que os outros tenham acesso à menina, “a mania de estar sempre certa”, entre
outros aspectos. Entretanto, Gisele não se dava conta de que as características detestadas na
sogra eram compatíveis às suas próprias características. Porém, ela não consegue reconhecê-
las, lançando seus traços indesejáveis para fora de si, para a sogra, mantendo-se boa. A
necessidade do controle, bem como a possesividade, são características geradoras de intensa
ansiedade nela, das quais deseja livrar-se. Dessa forma, as projeta na sogra, criando a fantasia
de que não as possui. Esse é o exemplo típico do mecanismo defensivo da projeção, ou seja,
projeta seus aspectos considerados ruins no outro e livra-se deles.
Caso Lia:
Lia é uma mulher de 38 anos, sempre morou com o pai e é homossexual, tendo uma
namorada. Sua mãe faleceu há nove anos, sendo que até hoje ela relata não ter conseguido
elaborar o luto. É uma pessoa reservada, que apresenta inibição, dificuldade de interação e
diminuído autocontrole. Está afastada do emprego por apresentar, além de restrição física,
fobia de público. Considera o relacionamento com seu pai como terrível. Está em constante
atrito com o mesmo. Freqüentemente critíca seus atos, não aceita a namorada dele, avalia seus
afazeres como coisas fúteis, julga errado o fato de divertir-se nos finais de semana, entre
outros aspectos. Verbaliza que ele não se importa com ela e nem a ama como filha, pois trata
os estranhos de uma maneira melhor do que a trata. Geralmente, ele passa os finais de semana
com sua namorada, retornando em casa apenas segunda ou terça-feira. Antes da saída, é
comum haver discussões entre eles, as quais não são concluídas nem retomadas em seu
retorno, deixando-as em aberto e causando acúmulo de raiva em Lia. Dessa forma, ela passa
os finais de semana em casa, chateada com as discussões, ocupando seu pensamento com isso,
não se permitindo sair e procurar descontração. Atualmente, sua namorada está com
problemas de saúde, necessitando de repouso na casa dos pais, o que impossibilita o encontro
das duas (já que os pais da mesma não admitem o relacionamento). Em seu caso, Lia
demonstra projeção do tipo “transferência de culpas” (ALMEIDA,1996), pois ela culpa seu
pai pelos seus próprios problemas, negando-se em assumir a realidade de seus conflitos e as
dificuldades de sua dinâmica pessoal. Ela projeta todas as coisas ruins que acontecem com ela
e que são de sua propriedade para o pai, responsabilizando-o de sua infelicidade e de seus
desprazeres. Ela assume uma atitude imatura, pois regride a uma postura infantil de não
perceber a sua responsabilidade e delegá-las à figura paterna (a qual é esperado que dê
proteção e apoio). A escolha do objeto não foi por acaso (pai = provedor), entretanto, como
esse pai é alvo de projeções de seus aspectos agressivos e persecutórios, ele é percebido como
uma pessoa ruim, que deve ser odiada.
Sua dificuldade em controlar-se decorre da grande agressividade que mantém dentro
de si, a qual tenta projetar no meio externo e no pai. Dessa maneira, desenvolveu um tipo de
fobia, a de público, pois toda a agressão que se encontra nela é percebida como vinda de fora,
criando um mecanismo que a possibilite controlá-la, evitando-a. Assim, não interage com
desconhecidos, temendo-os, pois acredita que eles possam descontrolar-se com ela da mesma
maneira que ela se descontrola, projetando um atributo seu ao público.
Lia apresenta-se como uma paciente bastante resistente, que oscila muito entre
momentos de maior contato e outros de afastamento, bem como de progresso e de retrocesso
terapêutico. Evidencia, com isso, sua frágil e primitiva estrutura, a qual, muitas vezes,
necessita manter cristalizados os recursos defensivos para melhor adaptar-se.
Caso Paulo:
Paulo tem 33 anos, separado há poucos meses, tem um filho de quatro anos, mora com
a mãe, é usuário de drogas e é extremamente religioso. Abandonou o processo
psicoterapêutico. Durante o mesmo ele foi diagnosticado com Transtorno da Personalidade
Borderline. A busca pelo atendimento se deu devido a separação, que foi vivida como uma
experiência muito traumática para ele. Em seu caso, o denso e excessivo uso da identificação
projetiva, cindindo partes de seu ego, projetando tais partes e identificando-se com essas,
fortaleceram os aspectos desadaptativos de seu ego. O relacionamento que tivera foi sendo
desgastado, principalmente, pelo fato de Paulo ser usuário de drogas, o que não sua esposa
não aceitava. Além disso, Paulo era hostil com ela, agredindo-a fisicamente. Ela pediu o
divórcio, expulsando-o de casa. Paulo, então passou a vê-la como totalmente má, transferindo
toda a culpa do término para ela. Por vezes, até mencionava ter grande parcela da culpa, mas
atribuía à ela toda sua hostilidade, avaliando-a como mentirosa, sem caráter, desumana (pois
não quis ajudar-lhe em livrar-se das drogas), oferecida para outros homens, e outros, entrando
num processo de vitimização. Além disso, percebia o ambiente à sua volta da mesma maneira
que estava vendo sua ex-esposa, realizando o que é chamado de generalização projetiva. Em
todas as demais situações de seu cotidiano, enxergava-se como vítima, como se todos
estivessem conspirando contra ele e fossem alvos de desconfiança. Apresentava, ainda,
fantasias projetivas, pois acreditava que demônios estavam cercando-o, e que os dizeres
bíblicos relacionados ao fim do mundo estavam por acontecer. Tal comportamento pode ser
interpretado pelo medo de seu próprio aniquilamento e destruição, os quais eram expelidos
para fora de si e generalizados para o ambiente circundante. Na verdade, Paulo não suportava
manter dentro de si a culpa pelo término e a ansiedade decorrente desse, projetando todos os
fatores que pudesse ameaçá-lo de alguma maneira. Entretanto, devido à sua frágil estrutura,
tais recursos não se mostravam eficazes, deixando-o por vezes mais perturbado e com
sentimentos de despersonalização, já que muitas partes de seu self estavam projetadas. Cabe
destacar que, no início processo psicoterapêutico, a terapeuta terminava os atendimentos de
Paulo percebendo em sim mesma os seguintes sentimentos: confusão, perturbação e sensação
de vazio após seus encontros. Pode-se perceber, somente algum tempo depois, que tais
sentimentos decorriam do mecanismo de identificação projetiva, os quais eram sentidos pela
terapeuta através da contratransferência. Como descreve Kernberg (2000), o desaparecimento
dos limites entre terapeuta e paciente produz uma confusão entre o si-próprio e o objeto, o que
deriva dos intensos fenômenos projetivos a que os pacientes recorrem em sua luta pelo
manejo da angústia. Cada projeção do paciente, na imagem do analista, é acompanhada de
uma imagem correspondente do si próprio e de um determinado estado afetivo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os recursos utilizados pelo ego para amenizar a ansiedade devem ser delicadamente
analisados nos processos psicoterapêuticos, pois podem estar a serviço de um mecanismo
adaptativo ou de uma patologia. As defesas constituem-se como o mais primitivo recurso do
ego para permanecer íntegro, fazendo parte da estrutura constitutiva da personalidade. O seu
uso adequado ou não, em plano inconsciente e automático, é que definirá os pólos saúde-
doença, sempre em busca de preservação da homeostase psíquica.
Em relação aos mecanismos de projeção e identificação projetiva, estudados neste
trabalho, cabe salientar que as pessoas que mais recorrem aos mesmos apresentam uma
estrutura de personalidade mais arcaica. Tais recursos são utilizados em estágios etários muito
precoces do desenvolvimento da criança, nos quais o ego não se encontra totalmente
integrado. Em decorrência disso, pode-se inferir que o retorno a esses estágios, através da
utilização das defesas relativas a eles, pode refletir uma regressão para fase de indiferenciação
com a mãe. A fase de simbiose do bebê com a mãe ocorre quando a criança cinde seu ego e o
projeta no corpo dessa, entrando de volta a um objeto a partir das partes projetadas e
identificadas, tornando-se indiferenciado pela confusão entre o que é seu e o que pertence ao
outro. Tal indiferenciação proporciona alívio para as ansiedades do bebê, pois caberá à mãe
responder às essas. Dessa forma, o denso uso desses mecanismos na fase adulta poderá
comprometer a coesão do ego, salientando a delegação do que é seu para um terceiro.
Os casos clínicos apresentados expuseram como o nível evolutivo do desenvolvimento
da personalidade, bem como o momento do processo psicoterapêutico, influenciam para a
compreensão, por parte dos pacientes, de suas dinâmicas psíquicas. Dessa maneira, percebe-se
que o principal papel do terapeuta, nesses casos, é o de proporcionar a maior integração e
coesão possível do ego do paciente. A escuta e a posterior devolução dos materiais trazidos
são ferramentas muito importantes nesse processo. Sentindo-se compreendidos, eles mesmos
acabavam compreendendo-se melhor, trazendo para o nível da consciência aspectos
conflitantes do psiquismo (podendo integrá-los novamente).
A psicoterapia propicia a expressão de sentimentos, temores, ansiedades, desejos,
fantasias e, fundamentalmente, de aspectos desconhecidos pelo paciente, a partir do vínculo e
de um espaço seguro. Cabe ao terapeuta ser continente a esses conteúdos, a ponto de elucida-
los para o paciente no momento em que esteja preparado para receber e ressignificar seus
conteúdos latentes.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, W. Defesas do Ego: leitura didática de seus mecanismos. São Paulo: Agora, 1996.
ATKINSON, R. Introdução à Psicologia. 13º ed. Porto Alegre: Artmed, 2002.
CABRAL, A.; NICK, E. Dicionário Técnico de Psicologia. 10º ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.B. Vocabulário da Psicanálise. 3º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
KERNBERG, O. Psicoterapia Psicodinâmica de Pacientes Borderline. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
KLEIN, M. Inveja e Gratidão: um estudo das fontes inconscientes. Rio de Janeiro: Imago, 1984.
KUSTEZNOFF, J. Introdução à psicopatologia psicanalítica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PERESTRELLO, M. Evolução do conceito de identificação projetiva: contribuições teóricas e clínicas. II Simpósio Interno da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, 1979.
SANDLER, J. Projeção, identificação e identificação projetiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.