As histórias literárias e os primeiros esforços por síntese no Brasil oitocentista. Ensaio de história da historiografia. Piero Detoni

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  • 7/22/2019 As histrias literrias e os primeiros esforos por sntese no Brasil oitocentista. Ensaio de histria da historiografia.

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    A escrita da histria em questo

    Ahistria da historiografia um campo de estu-dos cada vez mais acessado dentro dosdomnios do saber histrico. H, entretanto, uma

    grande polissemia de significados conferidos aosestudos historiogrficos. De acordo com Horst

    Walter Blanke possvel vislumbrar, no mnimo,oito modalidades distintas, a saber: histria dos his-

    toriadores, histria das obras, balano geral,histria dos mtodos, histria das idias histricas,histria dos problemas, histria das funes do

    pensamento histrico, histria social dos historia-dores e histria da historiografia teoricamente ori-

    entada.2 No entraremos no mrito a respeito dasreferidas abordagens e da bibliografia produzida,pois o intuito simplesmente evidenciar os mlti-plos modos de como a histria, enquanto disciplina,

    tem repensado a historicidade de suas prpriasprticas. A histria da historiografia, segundo nossaperspectiva, encontra nos textos histricos suasfontes, objetos e problemas. No h interesse emdeslegitimar as demais formas de se compreendera histria da histria, no entanto de suma

    importncia o apontamento dos eixos quenorteiam nossos pressupostos analticos.Assim sendo, procuramos enfatizar a dimenso

    complementar entre a produo de um discurso,no caso um discurso sobre a histria, e as suas

    mltiplas relaes com a Histria enquanto exten-so do devir. A clssica afirmao do filsofofrancs Paul Ricouer de que o tempo torna-se

    tempo humano na medida em que est articuladode modo narrativo; em compensao, a narrativa significativa na medida em que esboa os traos daexperincia temporal nos parece extremamentepertinente e nos possibilita dimensionar um novo

    enfoque para o texto histrico.3A questo levanta-da por Ricouer evidencia o carter indissocivelentre experincia e linguagem, podendo a ltima,dessa forma, apresentar-se enquanto objeto privi-legiado para um inqurito de teor histrico. Dessamaneira, o texto de histria ganha grande legitimi-dade para ser explorado porquanto traz consigoalm dos procedimentos tericos e metodolgicoscaros ao ofcio do historiador, vestgios tangveis deexperincias sociais que compe o mundo da vida.Como afirma Jrn Rsen, o pensamento histrico fundamental para os homens se haverem com

    suas prprias vidas.4Acompanhando a reflexo deRsen, percebemos como a escrita da histria

    vital para os homens se orientarem no tempo. Pelahistoriografia os seres humanos procuram enten-der a intrincada relao entre memria, tempo e

    morte.5 Assim, os textos de histria deixam deser meros pretextos para se constiturem em

    1Este artigo integra o projeto de inici-

    ao cientfica Ensaio histrico e escri-ta da histria: a historiografia brasileiraentre 1870 e 1940 e contou com oapoio da FAPEMIG. Orientao: Prof.Dr. Fernando Nicolazzi. Agradeo asleituras atenciosas feitas por EduardoWright Cardoso e Fabiana de OliveiraBernardo.

    2BLANKE, Horst Walter. Para umanova histria da historiografia. In:MALERBA, Jurandir (org.). A histriaescrita: teoria e histria da histori-ografia. So Paulo: Contexto, 2006.

    3RICOUER, Paul. Tempo e narrativa.Tomo I. Trad. de ConstanaMarcondes Cesar. Campinas: Papirus,1994, p. 15.

    4RSEN, Jrn.A razo histrica. Teoriada histria: os fundamentos da cinciahistrica. Trad. de Estevo Rezende.Braslia: Editora UNB, 2001, p. 31.

    5RICOUER, Paul.A memria, a histria,o esquecimento. Trad. de Alan Franois.Campinas: Editora da UNICAMP,2007.

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    As histrias literrias e os primeiros esforos por sntese

    no Brasil oitocentista. Ensaio de histria da historiografia.

    Piero Detoni1

    Graduando em Histria/[email protected]

    Resumo: O presente artigo objetiva investigar os principais traos da historiografia literria produzida no Brasil oitocentista. Nodesenvolvimento deste trabalho verificar-se- que narrar a histria da literatura tornou-se componente fundamental no processo de

    temporalizao da experincia nacional, pois dotava a prtica literria de um carter eminentemente histrico. No limite, observa-secerta primazia da literatura enquanto documento autorizado para a representao da nascente nao, agora independente dePortugal. Dessa maneira, constatamos que atravs das histrias literrias realizaram-se as primeiras tentativas de sntese da formaohistrica brasileira, ou seja, coube a historiografia literria desvendar qual o sentido da trajetria do Brasil no tempo. Para alm destasquestes, prope-se, em um primeiro momento, uma rpida discusso sobre as possibilidades investigativas oferecidas pela histriada historiografia.

    Palavras-chave: histria da historiografia, historiografia literria, literatura

    Abstract: This study is aimed at investigating the main features of literary historiography produced in Brazil during the eighteenth cen-tury. This article makes it possible to perceive that narrating the history of literature has become a key component in the process of tem-poralizing the national experience, as it endows the literary practice with an eminent historical character. In the limit, there is some prece-dence of literature as an authorized document to representing the nascent nation, then already independent of Portugal. Thus, we notice

    that the first attempts for a synthesis of the historical formation of Brazil were held through literary histories, that is, literary historiog-raphy allowed to understanding the directions of Brazils trajectory through time. Beyond these issues, it is proposed, at first, a brief dis-cussion of the possibilities of investigation offered by the history of historiography.

    Keywords: history of historiography, literary historiography, literature

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    ncleo central da investigao historiogrfica.6

    Diante do exposto, destacamos a advertnciade Rsen acerca dos dilogos entre estruturas dis-cursivas, mais especificamente a escrita da histria,e a dinmica da experincia temporal:

    com as formas de apresentao, o pensamentohistrico remete, por princpio, s carncias deorientao de que se originou. Ele se exprime,como resultado cognoscitivo, sob a forma de his-

    toriografia, com a qual volta ao contexto da ori-entao prtica da vida no tempo. Com a histori-ografia, o pensamento histrico usa uma lin-

    guagem que deve ser entendida como resposta auma pergunta. Originada em carncias de orien-

    tao e enraizada em interesses cognoscitivos davida prtica, a cincia histrica com os resulta-dos de seus trabalhos cognoscitivos expressoshistoriograficamente assume funes e orien-

    tao existencial (...).7

    Partindo do diagnstico oferecido por Rsenverificamos que uma histria da historiografiatorna-se um empreendimento absolutamenteplausvel, pois atravs dela compreendemos a his-

    toricidade de nossa disciplina e constatamos, ainda,como a escrita da histria apresenta-se enquantouma forma destacada para trazer respostas ascarncias de orientao que distintas sociedadessofrem invariavelmente. Segundo o autor,

    novos interesses podem superar funesvigentes, de forma que o pensamento histrico,sob pena de tornar-se anacrnico, tem de mudarsuas perspectivas orientadoras com respeito aopassado. Ele tem de ajustar-se a critrios de sen-

    tido novos, que levam a novas representaes doque h de especificamente histrico na experin-cia do passado. Essas novas representaes ense-jam novas tcnicas de pesquisa, de que resultam,por sua vez, novas formas de apresentao, queestariam assim, em condio de exercer asfunes requeridas pelos novos interesses.8

    Assim, entendemos que os procedimentos de

    pesquisa e a configurao da intriga narrativasofrem alteraes de acordo com as mltiplasdemandas de ordem social. Rastrear essas alte-raes na maneira como a histria era apreendidasignifica, conseqentemente, investigar asmudanas na ordem do tempo, ou seja, na formacomo os homens prefiguravam o mundo sua

    volta. Cumpre a uma histria da historiografia, emnossa concepo, resgatar esses discursos sobre opassado, demonstrando os diferentes usos desse

    tanto em uma perspectiva sincrnica, quantodiacrnica. No basta deixar em relevo as transfor-

    maes ocorridas no interior do conhecimentohistrico, mas imprescindvel, ainda, compreen-der sob quais aspectos e em quais contextos dis-cursivos houve disputas pela forma adequada de seestruturar esse saber. Dessa forma, concordamos

    com a seguinte assertiva de Manoel Luiz SalgadoGuimares, para quem a histria na sua forma dis-ciplinar deve ser considerada como apenas uma dasinmeras formas de elaborao significativa do

    tempo decorrido, como parte de algo mais amplo

    que chamaria de cultura histrica como parte deuma cultura da lembrana.9

    A colocao efetuada por Guimares nos per-mite inquirir os distintos modos de interpretao dopassado e os recursos operacionais manipuladospelos historiadores em seu ofcio; mas, para almdessa dupla funo, a histria da historiografia podeser uma grande aliada na visualizao da constitui-o de memrias disciplinares. Em ltima instncia,as modalidades de acesso ao passado, fornecidaspelo saber histrico, so capazes de criar memriasque resultam em verdadeiros cnones de autores,

    de obras e de abordagens. A quebra desses cnones de fundamental importncia para que no trans-formemos em uma evidncia inviolvel o momentode emergncia de determinados discursos sobre opassado. Aqui a utilizao da categoria empregada

    por Roger Chartier lutas de representao10

    parece um enviesamento proveitoso para que adinmica dos debates intelectuais possa ser enfoca-da em sua total complexidade. No cerne dessaslutas de representao o que est em jogo jus-

    tamente a tentativa de silenciar a abordagemalheia, entretanto a derrota de uma perspectivapode acarretar o seu desaparecimento no interi-or de uma memria disciplinar que se constitui pau-latinamente. Novamente Guimares esclarecedorquanto ao assunto, pois para o acurado estudioso a

    [histria da] historiografia como investigao sis-temtica acerca das condies de emergnciados diferentes discursos sobre o passado, pres-supe, como condio primeira, reconhecer ahistoricidade do prprio ato de escrita daHistria, reconhecendo-o como inscrito num

    tempo e lugar. Em seguida, necessrio recon-hecer esta escrita como resultado de disputasentre memrias, de forma a compreend-la

    como parte das lutas para dar significado aomundo. Uma escrita que se impe tende a silen-ciar sobre o percurso que levou-a vitria, queaparece ao final como decorrncia natural;perde-se desta forma sua ancoragem nomundo.11

    Essa reflexo sobre os procedimentos estrutu-rantes do conhecimento histrico j est em pautah um bom tempo, desde pelo menos meados dadcada de 1980, quando Pierre Nora na introduoda grande obra coletiva Os lugares de memriaanunciava, para o contexto intelectual francs, a

    emergncia de uma conscincia historiogrfica.Para Nora, ocorre uma coisa fundamental quandoa histria comea a fazer sua prpria histria. Onascimento de uma preocupao historiogrfica ahistria que se empenha em emboscar em si

    6GUIMARES, Manoel Luiz Salgado.Usos da histria: refletindo sobre iden-tidade e sentido. Histria em Revista,Pelotas, v. 6, dezembro de 2000, p. 32.

    7RSEN, Jrn.A razo histrica. Teoriada histria: os fundamentos da cinciahistrica, p. 31.

    8RSEN, Jrn.A razo histrica. Teoriada histria: os fundamentos da cinciahistrica, p. 37.

    9GUIMARES, Manoel Luiz Salgado.Entre as luzes e o romantismo: as ten-ses da escrita da histria no Brasiloitocentista. In: Guimares, ManoelLuiz Salgado (org.). Estudos sobre aescrita da histria. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p. 70.

    10CHARTIER, Roger. beira da falsia:a histria entre incertezas e inqui-etudes. Porto Alegre: Ed.Universidade, 2002.

    11GUIMARES, Manoel Luiz Salgado.Usos da histria: refletindo sobre iden-tidade e sentido, p. 32.

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    mesma o que ela prpria, descobrindo como vti-ma da memria e fazendo um esforo para se livrar

    dela.12 Ou seja, realizar uma histria da historio-grafia significaria perceber a escrita como um pos-svel lugar de memria. Nora conclui que no interi-

    or da tradio historiogrfica francesa os domniosde Clio foram afetados diretamente pelas artima-nhas de Mnmosine. E prossegue o historiadorfrancs: o arsenal cientfico do qual a histria foidotada no sculo passado [no caso o sculo XIX]s serviu para reforar poderosamente o esta-belecimento crtico de uma memria ver-

    dadeira.13 Grosso modo, a cultura histricafrancesa (desde pelo menos a primeira metade dosculo XIX) havia se estabelecido sob os alicercesde uma tripla simbiose: histria, memria e nao.Nas palavras de Pierre Nora: pela nao que

    nossa memria se manteve no sagrado.14Antoine Prost, de modo certeiro, diferencia a

    histria da memria: a histria no consiste emcultivar a lembrana de um passado carregado deressentimentos ou de identidades que se separamirremediavelmente; ela se esfora para compreen-

    der o que se passou, e por que aquilo se passou.15

    A partir do argumento de Prost, voltamo-nos paraa histria da historiografia enquanto um campo deestudos capaz de verificar o estabelecimentodessas memrias disciplinares que podem, enfim,ser desnaturalizadas. Retornando a Nora, a histria

    entraria em uma era epistemolgica.No nos aprofundaremos em uma discussoque procure verificar se tal reflexo epistemolgicafoi levada a cabo prontamente como sugeria Nora,mas podemos afirmar que gradativamente os estu-dos historiogrficos, sob as mais distintas roupa-

    gens, passaram a ser mais freqentados. TalvezFranois Hartog esteja correto ao afirmar que essatendncia do presente a historiar-se seja um sin-

    toma de um novo regime de historicidade. ParaHartog, um regime de historicidade uma

    formulao sbia da experincia do tempo. Um

    regime de historicidade abre e circunscreve umespao de trabalho e de pensamento. Ele ritma aexperincia do tempo, representa uma ordemdo tempo, qual se pode subscrever ou, ao con-

    trrio (e mais freqentemente), querer escapar,

    procurando elaborar uma outra.16

    De acordo com Hartog, estaramos na contem-poraneidade vivenciando um novo regime de histo-ricidade, o regime dopresentismo. Deste modo, a

    histria magistra apresentava a histria, ousupostamente assim o fazia, do ponto de vista do

    passado. Pelo contrrio, no regime moderno, ahistria foi escrita, teleologicamente, do pontode vista do futuro. O presentismo implica que oponto de vista explicita e unicamente o do pre-

    sente (itlico do autor).17

    Hartog enumera uma srie de exemplos dessanova relao do homem com o tempo (amparadapela perspectiva do presente), mas, para tanto,cabe ressaltar que a histria da historiografia seriaum desses sintomas mais evidentes. Referindo-se

    aos artigos que compe a coletnea Os Lugares dememria, Hartog sugere que eles testemunham,com efeito, em razo da permanente preocupaohistoriogrfica que os atravessa, esta tendncia dopresente a historiar-se. No se trata aqui de ego-centrismo, mas de explicitao dos pressupostos

    do historiador.18

    Caso Hartog realmente esteja certo, no hgrandes motivos para preocupao quando seconstata que esse presentismo pode acarretar umpessimismo quanto ao futuro. Alis, acreditamosque a sociedade contempornea oferece alternati-

    vas interessantes (e pouco exploradas) para o for-talecimento dos laos de amor com o mundo. 19

    O rompimento com a perspectiva de histria mo-derna, em muito sentidos, nos retirou de um

    grande estado de miopia. Ou seja, naturalizamosuma maneira de se conceber a realidade que cer-ceia, inclusive, a possibilidade de olharmos para osnossos prprios ps. Se h um momento de crise,este bem-vindo, pois so nesses momentos querepensamos nossos prprios atos.

    Urge que os historiadores se atentem para essanova experincia do tempo e formulem novas

    estratgias narrativas que estejam compassadascom a mesma, pois, como nos alerta Rsen, umaescrita que no se articula com a experincia tem-poral no suscita pregnncia comunicativa, ou

    seja, no proporciona interesse a seus leitores.20

    Qui esse o motivo, em muitos sentidos, para anarrativa histrica no ser eleita entre as favoritasdo grande pblico - mas essa uma questo paraser tratada mais detidamente em outro momento.Frisamos que a histria da historiografia pode ofe-recer um estimulante incentivo para se refletir opassado, o presente e o futuro de nossa disciplina e

    de nosso ofcio, reconhecendo-o na condiohumana: diversa, mltipla e limitada.21Alm disso,ela mostra-se enquanto uma valiosa ferramentacapaz de capacitar o historiador nos enfrentamen-

    tos subjacentes ao hodierno estado de presentismo,pois o estudo da escrita da histria pode ser umlugar privilegiado para compreendermos os aspec-

    tos constituintes do nosso ser-no-mundo, da nossahistoricidade enquanto sujeitos imersos em uma

    determinada cultura.22 Pensar a histria, e mesmorefletir outras formas de reescrev-la, um com-promisso que implica uma possvel tentativa de

    mudana em nosso estado presente, ou pelomenos, uma forma de apreender a pluralidade dosdiscursos que compem os seres humanos.

    Isso posto, passamos a inventariar as represen-taes elaboradas sobre o tempo transcorrido efe-

    12NORA, Pierre. Entre memria ehistria. A problemtica dos lugares.Trad. de Yara Aun Khory. Projetohistria. So Paulo: PUC-SP, n 10.

    1993, p. 10.13NORA, Pierre. Entre memria ehistria. A problemtica dos lugares, p.10.

    14NORA, Pierre. Entre memria ehistria. A problemtica dos lugares, p.13.

    15PROST, Antoine. Como a Histria fazo historiador. Revista Anos 90, PortoAlegre, n 14, dezembro de 2000, p.13.

    16HARTOG, Franois. O tempo desori-entado. Tempo e histria: como escr-ever a histria da Frana. Trad. deEliane Cezar. Revista Anos 90, PortoAlegre, n 7, julho de 1997, p. 8.

    17HARTOG, Franois. Tempo, histriae a escrita da histria: a ordem dotempo. Trad. de Francisco MurariPires. Revista de Histria, n 148, 2003,p. 28.

    18HARTOG, Franois. Tempo, histriae a escrita da histria: a ordem dotempo.19Aqui a referncia explicitamenteamparada nas reflexes de HannahArendt. ARENDT, Hannah. Entre opassado e o futuro. Trad. de Mauro W.Barbosa de Almeida. So Paulo:Perspectiva, 1972.

    20RSEN, Jrn.A razo histrica. Teoriada histria: os fundamentos da cinciahistrica, 2001.

    21GUIMARES, Manoel Luiz Salgado. Acultura histrica oitocentista: a consti-tuio de uma memria disciplinar. In:PESAVENTO, S. J. (org.). Histria cul-tural: experincias de pesquisa. PortoAlegre: UFRGS Editora, 2003, p. 24.

    22HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo.Rio de Janeiro: Vozes, 1993.

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    tuadas ao longo do sculo XIX brasileiro. Maisespecificamente verificaremos como os historia-dores da literatura as confeccionaram, lembrando,atravs da clssica tese de Manoel Luiz SalgadoGuimares, que a escrita da histria produzida no

    oitocentos fez parte de um esforo maior de cons-truo do Estado nacional.23 No limite, percebe-remos que a historiografia (no caso da literatura),como atesta Jean Marie Gagnebin, apresenta-secomo uma entre outras possveis formas de associedades humanas produzirem uma relao como tempo decorrido (...), um dos procedimentos

    coletivos de reconstruo do passado.24

    Escrever a histria da literatura,

    edificar a nao: a historiografia

    literria romnticaAo longo da primeira metade do sculo XIXuma das premissas primordiais lanadas peloromantismo foi a de que cada nao deveria se dis-

    tinguir de acordo com seus atributos fsico-geogr-

    ficos e culturais.25 No interior dessa demanda evi-dencia-se que a literatura funcionava como elemen-

    to de destaque para alcanar tais objetivos. Deacordo com Rodrigo Turin, caberia tanto a histriaquanto a literatura desenhar um perfil para a jovem

    nao.26A partir do artigo Estudos sobre a literatu-ra de Joo Manuel Pereira da Silva, percebe-se o

    amplo espectro cultural apreensvel junto ao con-ceito de literatura no oitocentos e como tal con-cepo poderia servir enquanto eixo norteadorpara mensurar o grau de civilizao e desenvolvi-mento de um determinado pas. Nas palavras dePereira da Silva:

    (...) a litteratura hoje a reunio de tudo o que aimaginao exprime pela linguagem, abraando

    todo o imprio, em que exerce a intelligenciahumana seu poderio; o resumo dos hbitos e

    grandeza dos povos, e a historia progressiva e cir-cunstanciada do esprito humano com as suassupersties, crenas, e caracter prprio; a

    apreciao da influencia dos elementos uns sobreos outros no espirito das diferentes epochas, a

    Philosophia, a Historia, a Eloquencia e a Poesia. 27

    Nesse artigo de Pereira da Silva, publicado em1836 no segundo nmero da Revista Nitheroy28,podemos dimensionar o papel da literaturaenquanto locus privilegiado para comparao econtextualizao das diferentes pocas da nao no

    tempo e que, a partir de ento, poderiam ser orde-nadas processualmente visando um telos harmo-nioso. Narrar a histria da literatura tornava-se,

    portanto, componente fundamental para o proces-so de temporalizao da experincia nacional, poisdotava a prtica literria de um carter eminente-mente histrico. No limite, h certa primazia da li-

    teratura enquanto documento autorizado para a

    representao da sociedade brasileira. Para Pereirada Silva, a literatura sempre a expresso da civi-lisao: ambas caminham em parallelo: a civilisaoconsistindo no desenvolvimento da sociedade e do

    individuo (...).29 Alm disso, uma deliciosa eterna lembrana deixa aps de si o povo que collo-ca sua principal glria em reinar sobre os espritos

    pelas lettras (...).30

    Em ltima instncia, o que a historiografialiterria se propunha a oferecer era uma cartografiado processo da formao histrica brasileira pelosrastros literrios, na medida em que tais rastros sin-

    tetizavam o esprito da nacionalidade, sem quefosse necessrio se deter nas particularidades fac-

    tuais e nos outros constrangimentos implicados na

    historiografia stricto sensu.31 Caberia, portanto,aos estudos literrios mostrar aos brasileiros o que

    era o Brasil ou, pelo menos, o que ele deveria ser.No interior das histrias literrias podemos obser-

    var as primeiras tentativas de sintetizao da expe-rincia histrica nacional.

    Voltando a tratar os Estudos sobre a Literaturade Pereira da Silva, que nos serve enquantoamostra desse contexto literrio, o intelectualconstata que o

    Brasil conta hoje bastantes litteratos profundos,porem elles tem-se to somente contentado,(com algumas excepoens) em estudar e saber, eno se tem querido designar escrever, e des-

    taarte esforar-se em elevar sua verdadeiraessncia esta sciencia, alis to til e proveitosa

    todas as classes das sociedade, e que de algummodo est desprezada na nossa Patria, nopercebendo nossos compatriotas a influencia que

    tem sobre a poltica, sciencia do dia, que hojeno Brasil todo o mundo se d, sem se importar si

    o paiz por isso soffre.32

    Nos Estudos, o objetivo primeiro no era o deelencar nomes ou analisar cada escritor em parti-cular, mas sim estabelecer uma ordenao sucessi-

    va das diferentes literaturas de todos os povos,

    remontando antiguidade at o que chamava deestado presente das letras, no qual se teriaalcanado a civilizao mais completa. Dispostosem uma unvoca linha do tempo, as diversificadasmodalidades letradas serviriam para dar provas dosentido irreversvel dos progressos do espritohumano. A literatura brasileira, assim sendo, de-

    veria acompanhar esses desdobramentos dignosdas naes em franco estgio de desenvolvimento.Era a sntese do movimento que Pereira da Silvaalmejava deixar em relevo.

    Hans Ulrich Gumbrecht atesta que para o per-

    feito entendimento de uma concepo de histriada literatura, no transcorrer do sculo XIX, deve-mos nos atentar para um duplo vis: um deles vema ser o aparecimento do conceito moderno dehistria (...). A outra condio para a gnese da

    23GUIMARES, Manoel Luiz Salgado.Nao e civilizao nos trpicos: OIHGB e o projeto de uma histrianacional. Estudos Histricos, Rio de

    Janeiro. Vol. 1, n 1, 1988.24GAGNEBIN, Jean Marie. WalterBenjamin ou a histria aberta. In: BEN-JAMIN, Walter.Magia e tcnica, arte epoltica : ensaios sobre literatura ehistria da cultura. Trad. Sergio PauloRouanet. So Paulo: Brasiliense, 1994.

    25SOUZA, Roberto Aczelo de.Introduo Historiografia da LiteraturaBrasileira. Rio de Janeiro: Ed. UERJ,2007.

    26TURIN, Rodrigo. Narrar o passado,projetar o futuro: Slvio Romero e aexperincia historiogrfica oitocen-tista. Dissertao de mestrado emhistria. Porto Alegre: UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul, 2005.

    27SILVA, Joo Manoel Pereira da.Estudos sobre a literatura. Nitheroy,revista brasiliense. Cincias, letras eartes, n II, 1836, (Edio fac-similarorganizada por Plnio Doyle. So Paulo:Brasiliense, 1978) p. 215. Optamospor manter nas citaes em portugusa grafia original das edies consul-tadas.

    28A Revista Nitheroy considerada aresponsvel pela introduo dos val-ores estticos e viso de mundo doromantismo no Brasil. Foi publicadaem Paris no ano 1836.

    29SILVA, Joo Manoel Pereira da.Estudos sobre a literatura, p. 214.

    30SILVA, Joo Manoel Pereira da.Estudos sobre a literatura, p. 214.

    31TURIN, Rodrigo. Narrar o passado,projetar o futuro: Slvio Romero e aexperincia historiogrfica oitocen-tista, p. 63-64.

    32SILVA, Joo Manoel Pereira da.Estudos sobre a literatura, p. 217.

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    noo de histria da literatura a formao deuma conscincia concernente ao carter especialda literatura e da arte como formas de prticaque se afastaram do pragmatismo da vida diria

    (...).33 Dessa maneira, Rodrigo Turin nos apresen-ta um esquema bastante ilustrativo e que nos orien-ta na percepo das condies de possibilidadepara a emergncia de uma historiografia literria noBrasil, ou seja, para que haja historiografia literria,deve-se a) ter uma certa conscincia histrica, b)uma determinada concepo de literatura, c) a qualpossibilita pens-la como documento, d) o que,enfim, leva instituio de um arquivo, no caso, de

    um cnone.34

    Era imperioso efetuar, ainda, um trabalho crti-co de organizao, seleo, classificao e hierar-quizao, enfim, uma sistematizao de toda a

    informao recolhida segundo uma ordem apro-priada. Para essa empreitada, apelava-se para oapoio de uma srie de cincias auxiliares, como afilologia, a cronologia, a diplomtica, a numismtica,a etnografia entre outras. Cada um desses saberesse incumbiria de garantir a fidelidade, a veracidadee a pertinncia do documento para a escrita da

    histria literria.35 Sero essas as premissas queguiaram a confeco dos nascentes estudos sobre aliteratura brasileira.

    As anlises sobre a literatura nacional emergem,com vigor, paralelamente ao contexto de constitui-

    o do Estado nacional, no decorrer das dcadasde 1830 e 1840.36 Segundo Roberto Aczelo deSouza, se a nao existe ou pretende existir, necessrio que disponha de uma literatura prpria,cuja histria, concebida como narrativa de sua fun-dao e destino, se concretiza em livros e como

    disciplina inscrita no currculo escolar.37 ParaGumbrecht, a histria da literatura durante o oito-centos poderia assumir, em lugar da religio, o

    papel de propor uma cosmologia.38

    Nos estudos que Valdei Lopes de Araujo efetu-ou sobre a experincia historiogrfica brasileira da

    primeira metade do sculo XIX, momento esse daconstituio de uma moderna conscincia histrica, dedicada especial ateno aos sentidos de histori-cidade que passaram a penetrar o conceito deliteratura no Brasil oitocentista. Para Araujo, asletras eram um marcador bastante objetivo do

    grau de civilizao/perfeio alcanado por um

    corpo social e poltico.39 Novamente os estudosde Gumbrecht nos autorizam no entendimento dopapel da literatura no interior de uma experinciado tempo moderna e que concomitantemente omomento em torno da independncia poltica

    frente a Portugal. Nas palavras do pesquisadoralemo e que corroboram a assertiva de Araujo: arelao entre a histria da literatura e a histrianunca chegou a ser um problema, e uma evoluoindependente da histria da literatura ainda no

    era concebvel.40

    Araujo destaca duas obras que so exemplaresda demanda por uma literatura brasileira: o Parnasobrasileiro e o Ensaio sobre a histria da literatura doBrasil, de Janurio da Cunha Barbosa e Domingos

    Jos Gonalves de Magalhes, respectivamente. NoParnaso41 do cnego Cunha Barbosa a caractersti-ca mais importante e que salta aos olhos que aliteratura brasileira seria aquela produzida porhomens nascidos nos trpicos. Araujo reala queem nenhum momento o autor reivindicava aspi-raes quanto a uma literatura brasileira emmoldes distintos daquela efetuada pelos portugue-ses. O Parnaso no trazia nenhum critrio objetivona reunio dos poemas, a no ser o fato de seusautores terem nascido no Brasil. Entretanto,

    a aparente desordem em que os poemas soreunidos e publicados esconde a certeza deestarem j classificados enquanto pertencentes literatura nacional do Brasil, e, em outro nvel,avaliados e identificados pelo critrio universal do

    gosto e pelos tipos de arte retrica. A existnciade uma literatura nacional to certa quanto amaterialidade dos livros e manuscritos que lhe

    do forma.42

    A experincia do tempo que permeava oParnaso trazia consigo, segundo Araujo, um senti-mento de restaurao e, conseqentemente, movi-

    mentos cclicos do tempo. O Parnaso, portanto,no estava no mesmo compasso de uma plataformatemporal plenamente moderna, ou seja, umahistria vista sob o prisma do futuro. Janurio daCunha Barbosa objetivou revelar, restaurar aliteratura brasileira para a nao agora indepen-dente de Portugal. A literatura nacional brasileirasempre existiu e a tarefa que urgia realizar eraretir-la do limbo do esquecimento e da voragemdo tempo. O projeto do Parnaso, dentro dos dita-mes de Cunha Barbosa, seria mais condizente como hodierno estado que as letras brasileiras viviam,dito de outra forma, a sua coleo seria um camin-

    ho mais vivel do que uma histria da literaturapropriamente dita. Araujo constata que

    a nica operao requerida [ao Parnaso] era oestabelecimento de uma fronteira entre ummomento passado de desordens e a nova ordempresente que se abria. O Parnaso Brasileiro ,por isso, uma coleo de exemplos, e no umanarrativa histrica do desenvolvimento de umaliteratura. A experincia do tempo preponder-ante marcada pela idia de fases ou ciclos que

    se esgotam.43

    Em texto introdutrio ao seu Parnaso, intituladoAo Publico, Janurio deixa clara sua inteno.Segundo o cnego,

    empreendi esta coleo das melhores poesias

    33

    GUMBRECHT, Hans Ulrich. Histriada literatura: fragmento de uma totali-dade desaparecida? In: OLINTO,Heidrun Krieger. Histrias de Literatura:as novas teorias alems. So Paulo:tica, 1996, p. 224.

    34TURIN, Rodrigo. Narrar o passado, pro-jetar o futuro: Slvio Romero e a exper-incia historiogrfica oitocentista, 2005.

    35TURIN, Rodrigo. Narrar o passado, pro-jetar o futuro: Slvio Romero e a exper-incia historiogrfica oitocentista, 2005.

    36Outras obras j tematizavam a literatu-ra brasileira no decorrer das dcadas de1810 e 1820, entretanto tais abordagensdeslocavam a literatura produzida nostrpicos para o seio da histria da liter-atura portuguesa. Vejamos alguns exem-

    plos: Geschichte der portugiesischenPoesie und Beredsamkeit de FriedrichBouterwek; De la littrature du midi delEurope (1813) do suo Simonde deSismondi; Bosquejo da histria da poesia elngua portuguesa, introduo da antologiaParnaso lusitano (1826) de AlmeidaGarret; Rsum de lhistoire littraire duPortugal, suivi du resume de lhistoire lit-traire du Brsil (1826) de FerdinandDenis. Para um maior detalhamento dasobras ver Roberto Aczelo de SOUZA.Introduo Historiografia da LiteraturaBrasileira. Rio de Janeiro: Ed. UERJ,2007.

    37SOUZA, Roberto Aczelo de.Introduo Historiografia da LiteraturaBrasileira, p. 14.

    38GUMBRECHT, Hans Ulrich. Histriada literatura: fragmento de uma totali-dade desaparecida? p. 226.

    39ARAUJO, Valdei Lopes de.A experin-cia do tempo: conceitos e narrativas naformao nacional brasileira (1813-1845). So Paulo: Editora Hucitec, 2008,p. 108.

    40GUMBRECHT, Hans Ulrich. Histriada literatura: fragmento de uma totali-dade desaparecida? p. 224.

    41O Parnaso brasileiro, ou Coleo dasmelhores poesias dos poetas brasileiros,tanto inditas, como j impressas foipublicado entre 1829 e 1831. Constitui-se de dois tomos, cada um com quatrocadernos.

    42ARAUJO, Valdei Lopes de.A experin-cia do tempo: conceitos e narrativas naformao nacional brasileira (1813-1845), p. 108.

    43ARAUJO, Valdei Lopes de.A experin-cia do tempo: conceitos e narrativas naformao nacional brasileira (1813-1845), p. 112.

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    dos nossos poetas, com o fim de tornar aindamais conhecido no mundo literrio o gniodaqueles brasileiros que, ou podem servir demodelos, ou de estmulo nossa briosa moci-dade, que j comea a trilhar a estrada das belasletras, quase abandonada nos ltimos vinte anosdos nossos acontecimentos.44

    Na Introduo o cnego continuou a elucidarseus objetivos de reunir em uma s coleo, tan-

    tas poesias estimveis, que o tempo vai j con-

    sumindo, com prejuzo da nossa glria literria.45

    De acordo com a pena do futuro primeirosecretrio do IHGB:

    Verdade que sobejos monumentos de divinapoesia muito h adornavam os seus fastosliterrios, com os quais podiam correr a par das

    naes mais bem aquinhoadas neste gnero deglria; porm que montava nadasse ela em tantase to puras riquezas de amena literatura, se asmuito bem acabadas produes dos seus mel-hores engenhos jaziam nas trevas do esqueci-

    mento (...).46

    J no Ensaio sobre a histria da literatura doBrasil, de Gonalves de Magalhes, as perspectivaspassavam a ser outras. Publicado no primeironmero da Revista Nitheroy, esse estudo alm enfa-

    tizar que a literatura brasileira era aquela realizadapor brasileiros trazia em suas pginas a marca de

    uma experincia do tempo inteiramente moderna.Mas antes de discutir o paradigmtico texto de

    Magalhes, atentemo-nos para os dizeres deJoaquim Norberto de Sousa Silva. O artigoIntroduo sobre a literatura nacional foi publicadocinco anos aps o Ensaio de Magalhes e demons-

    trava nitidamente os anseios daquela sociedadebrasileira (pelo menos de sua elite letrada) contem-pornea aos anos do Perodo Regencial e SegundoReinado. Para Joaquim Norberto,

    (...) o sculo marcha, e com ele os povos; e a vs,

    a mocidade brasileira, cumpre marchar, que emvs reside a fora, a constncia, a inspirao e oamor, sem as quais falecem as mais sublimesempresas; vede que o edifcio que se comea emum sculo no termina-se em outro, para orgul-hoso erguer-se no porvir; trazei pois a vossapedra, que segundo seu valor e peso terei nelaquinho de glria, que ser ela o vosso nome

    gravado nas pginas da eternidade; trabalhaisobretudo com f e esperana, sem descansarnem desalentar, tanto mais elevado ser o edif-cio que tendes de transmitir s geraes futuras,

    tanto mais o vero alar-se ao longe, colocado nopresente, coroado pelos raios do horizonte de

    um lado, contemplando o passado do outro,divisando o futuro (...).47

    Frente a esse quadro de euforia vejamos, paraMagalhes, o papel da literatura na formao da

    jovem nao independente. A passagem pordemais conhecida, mas extremante proveitosa paraacompanharmos a relao entre literatura e pro-

    gresso nacional.

    A literatura de um povo o desenvolvimento doque elle tem de mais sublime nas idas, de maisphilosophico no pensamento, de mais heroico namoral, e de mais bello na natureza; o quadroanimado de suas virtudes e de suas paixes, odespertador de sua glria, e o reflexo progressi-

    vo de sua intellegencia; e quando esse povo, ouessa gerao, desapparece da superificie da terracom todas as suas instituies, crenas e cos-

    tumes, escapa a litteratura aos rigores do tempopara annunciar qual fra o caracter e a importan-cia do povo, do qual Ella o unico representante

    na posteridade.48

    E continua o autor dos Suspiros poticos esaudades,

    jamais uma nao poder prever seu futuro, sino conhece o que Ella comparativamente como que Ella foi. Estudar o passado ver melhor opresente, saber como se deve marchar paraum futuro mais brilhante (...). O que era ignora-do, ou esquecido, romper destarte oenvoltrio de trevas, e achar devido logar entreas cousas j conhecidas e estimadas.49

    Com a metfora da cpsula do tempo Valdei

    Lopes de Araujo consegue sintetizar a proposta deMagalhes: como registro espiritual de tempo elocal determinados, a literatura funciona comomemria, como espcie de cpsula do tempo dire-cionada a posteridade e que deve dar testemunhodo grau de civilizao e do carter de um povo ou

    gerao.50 Levando as ltimas conseqncias,Gonalves de Magalhes dotou a literatura deespessura histrica e pde temporalizar aexperincia brasileira. Citando novamente Araujo:Pela primeira vez, no Brasil, uniam-se passado,presente e futuro em um projeto de nao enten-

    dido como o desenvolvimento progressivo de umasubstncia histrica.51

    A historiografia literria em meio

    a um bando de idias novasEsse recuo historiografia literria romntica

    mostrou-se necessrio para que pudssemos vis-lumbrar os primeiros esforos por sntese efetua-dos no cenrio intelectual brasileiro. Atravs dosestudos sobre a literatura nacional, que nas palavrasde Antonio Candido apresentava-se como fen-

    meno central da vida e do esprito52, a trajetria

    do Brasil no tempo passou a ser interpretada, noapenas narrada em um sentido estritamentecronolgico e poltico. Tendo como documentoessencial os relatos literrios, as histrias literriasambicionaram rastrear as linhas mestras da for-

    44BARBOSA, Janurio da Cunha. AoPblico. In: ZILBERMANN, Regina;MOREIRA, Maria Eunice. O bero docnone: textos fundadores da histria da

    literatura brasileira. Porto Alegre:Mercado Aberto, 1998, p. 84.

    44BARBOSA, Janurio da Cunha. AoPblico, p. 84.

    45BARBOSA, Janurio da Cunha.Introduo. In: ZILBERMANN, Regina;MOREIRA, Maria Eunice. O bero docnone: textos fundadores da histriada literatura brasileira, p. 84.

    46BARBOSA, Janurio da Cunha.Introduo. In: ZILBERMANN, Regina;MOREIRA, Maria Eunice. O bero docnone: textos fundadores da histriada literatura brasileira, p. 86.

    47SOUSA SILVA, Joaquim Norberto de.Introduo sobre a literatura nacional.In: ZILBERMANN, Regina; MOREIRA,Maria Eunice. O bero do cnone: tex-tos fundadores da histria da literaturabrasileira, p. 207.

    48MAGALHES, Domingos JosGonalves de. Ensaio sobre a histriada literatura do Brasil. Nitheroy, revistabrasiliense. Cincias, letras e artes, p.132.

    49MAGALHES, Domingos JosGonalves de. Ensaio sobre a histriada literatura do Brasil. Nitheroy, revistabrasiliense. Cincias, letras e artes, p.145.

    50ARAUJO, Valdei Lopes de.A experin-cia do tempo: conceitos e narrativas naformao nacional brasileira (1813-1845), p. 120.

    51ARAUJO, Valdei Lopes de.A experin-cia do tempo: conceitos e narrativas naformao nacional brasileira (1813-1845), p. 133.

    52CANDIDO, Antonio. Literatura esociedade. So Paulo: T. A. Queiroz,2000, p. 119.

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    mao social e cultural brasileira. Elas objetivaram,em ltima instncia, elaborar um mapa capaz deixarem evidncia a individualidade do pas enquantonao por meio do encadeamento dos fenmenosliterrios e intelectuais. Tal como um termmetro

    consegue medir as variaes do estado da atmos-fera, a literatura capta em seu interior as transfor-maes por que passa determinado povo, per-manecendo como seu mais autntico documento

    (...).53 Era pela historicizao da literatura que oscaracteres intrnsecos do Brasil profundo poderi-am vir tona. Compreendida enquanto produtocultural no sentido que resultava da atividadeintelectual humana, a literatura no constitua ummero objeto criado pelo homem, mas um objetocuja especificidade residiria na capacidade deencarnar as prprias projees humanas, isto , a

    literatura seria portadora legtima das significaesno apenas individuais como coletivas.54

    Isso posto e para que a situao descrita acimapossa ser melhor esclarecida o nome de SlvioRomero e sua obra Histria da Literatura Brasileira(1888) so extremamente relevantes. O conceitode literatura em Romero ainda trazia quela mesmaamplitude da gerao predecessora, a romntica. Aliteratura para o polemista sergipano tem a ampli-

    tude que lhes do os escritores allemes.Compreende todas as manifestaes da intelligen-cia de um povo: - a politica, economia, arte,creaoes populares, sciencias... e no (...) smente

    as intituladas belas-letras , que cifrava-se quaseexclusivamente na poesia!...55 Parece que o pro-jeto intelectual dos romnticos ecoa na obra deSlvio Romero, pelo menos no que tange a essacompreenso alargada de literatura. Portanto, tam-bm em Romero, a histria da literatura seria oespao por excelncia para a interpretao doBrasil. Atravs da mesma seria possvel encontrar asntese do movimento que resultou na formao donosso povo. Romero deixa claro, logo no incio deseu livro, que

    um conhecimento que no se generaliza, ficaimprofcuo e estril, e, assim, a histria pin-turesca deve levar a histria pholosophica e nat-uralista.Neste terreno buscar permanecer este livro,por mais lacunoso, que elle possa vir a ser. Seufito encontrar as leis que presidiram e continu-am a determinar a formao do gnio, do espiri-

    to, do caracter do povo brasileiro.56

    No nos deteremos nas especificidades daoperao historiogrfica efetuada por SlvioRomero, entretanto a constatao daquilo queMnica Velloso denomina como tradio documen-

    talista da histria da literatura brasileira merecedestaque. De acordo com Velloso, a literatura seriao espelho da nao. A Literatura se transforma,ento, num inventrio da realidade (...). Est feita a

    associao: literatura = representao do real =documento ou inventrio. A partir da, possvelconceituar a literatura como o canal adequado paraa captura do real (entendido como mera objetivi-

    dade).57 Portanto, a produo literria apresenta-

    va-se enquanto uma instncia portadora da capaci-dade de dar a ver o universo social em sua inte-

    gralidade.Tanto Romero, quanto os romnticos procu-

    raram, ao realizar estudos sobre a literaturanacional brasileira, interpretar os caracteres polti-cos, sociais e culturais do jovem pas independente.Grosso modo, os primeiros esforos de snteseinterpretativa foram oferecidos pelas histriasliterrias romnticas e, posteriormente, houve umamaior sofisticao na Histria da Literatura deRomero. Vale lembrar que o estudioso j mobiliza-

    va em suas anlises literrias o instrumental teri-co-metodolgico das novas cincias sociais, sobre-tudo, aquelas de veia evolucionista. A tarefa do his-toriador que Romero assumiu para si era, pois,desvelar um sentido prprio para a literaturanacional e, com isso, organizar uma temporalidade

    prpria para as letras brasileiras.58 Segundo oconhecido estudo promovido por Antonio Candidoacerca da produo romeriana:

    a sua longa e constante operao foi, com efeito,elaborar uma histria literria que exprimisse aimagem da inteligncia nacional na seqncia do

    tempo projeto quase coletivo que apenas SlvioRomero pde realizar satisfatoriamente, maspara o qual trabalharam geraes de crticos,eruditos, professores, reunindo textos, editandoobras, pesquisando biografias, num esforo demeio sculo que tornou possvel a sua Histria daLiteratura Brasileira, no decnio de 80.59

    Joo Capistrano de Abreu foi outro importanteintelectual que se preocupou em compreender asociedade brasileira atravs de sua produoliterria. No ano de 1875, o jornal O Globotrouxeem suas pginas algumas conferncias (A literatura

    brasileira contempornea) proferidas pelo aindajovem aspirante ao reconhecimento enquantohomem de letras. As palavras de Capistrano sosintomticas no que concerne ao entendimento doestatuto que os estudos sobre a literatura possuamem nosso sistema intelectual do ltimo quartel dosculo XIX. Afirmava o autor de Captulos deHistria Colonial: Essas poucas palavras expressoda sociedade - dizem muito quando aplicadas

    literatura.60 Prosseguindo na perquirio de seuargumento, verificamos que o historiador cearense

    tambm lanou mo do arcabouo advindo dasnovas cincias sociais, assim como Slvio Romero

    fez anos depois, e o aplicava em suas pesquisas.

    Com efeito, [as palavras expresso da sociedade]no significam somente que a literatura um fato

    53NICOLAZZI, Fernando. Um estilo dehistria: a viagem, a memria, o ensaio .Sobre Casa Grande & Senzala e a rep-resentao do passado. Tese dedoutorado em histria. Porto Alegre:Universidade Federal do Rio Grandedo Sul, 2008, p. 318.

    54BOTELHO, Andr. Letras em buscada nao: impasses de uma histrialiterria modernista. Trapzio,Campinas. Vol. 3, 2003, p. 42.

    55ROMERO, Slvio. Histria da literatu-ra brasileira. Rio de Janeiro: H. Garnier,Livreiro-editor, 1902, p. 102.

    56ROMERO, Slvio. Histria da literatu-ra brasileira, p. 6.

    57VELLOSO, Mnica Pimenta. A liter-atura como espelho da nao. EstudosHistricos, Rio de Janeiro. Vol. 1, n 2,1988, p. 241.

    58NICOLAZZI, Fernando. Um estilo dehistria: a viagem, a memria, o ensaio.Sobre Casa Grande & Senzala e a rep-resentao do passado, p. 318.

    59CANDIDO, Antonio. Formao da lit-eratura brasileira (momentos deci-sivos). 2 vol. (1836-1880). BeloHorizonte: Itatiaia, 1997, p. 311-312.

    60ABREU, Joo Capistrano de. A li-ter-atura brasileira contempornea. In:Ensaios e Estudos (Crtica e Histria).Rio de Janeiro: Civiliza-o Brasileira,1975, p. 37.

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    social, que h estreita relao entre o elementosocial e o elemento literrio; que a evoluo, oua dissoluo deste traduzem a evoluo, ou dis-soluo daquele. Tm significao mais profundae elevada: implicam a regularidade dos fen-menos sociolgicos, a possibilidade de seus estu-

    dos cientficos.61

    A relao estreita entre literatura e sociedademostrava-se patente na abordagem capistraniana. necessrio ressaltar que por mais que a lenteanaltica tenha se transformado, dito de outromodo, por mais que certo cientificismo tivesse se

    tornado paradigmtico no ambiente letrado dostrpicos os relatos literrios permaneciam comofonte privilegiada para a efetivao do rastreamen-

    to da experincia histrica nacional. NovamenteCapistrano fornece as pistas para a confirmao das

    atestaes at aqui tecidas: A literatura aexpresso da sociedade, e a sociedade a resultantede aes e reaes: de aes da natureza sobre oHomem, de reaes do Homem sobre a

    natureza.62 Dessa forma, somente o conheci-mento adquirido junto aos novos saberes propor-cionaria ao investigador as condies favorveispara que tal tipo de estudo fosse realizado demaneira satisfatria, ou seja, que alcanasse aessncia da nacionalidade por meio do documentoliteratura. Dito isso, o estudioso realiza um elogioexplcito e veemente ao bando de idias novas

    (expresso imortalizada por Slvio Romero) quedesembarcava no Brasil nos decnios de 1870 e1880: a crena no determinismo sociolgico; aconvico de que a sociedade brasileira regidapor leis fatais; a esperana de descobrir estas leis, -

    eis o que me anima e guia.63 Em resumo, pormeio da produo literria nacional, passvel de

    temporalizao, as leis que governaram a evoluohistrica brasileira poderiam ser apreendidas.

    As ltimas dcadas do sculo XIX trouxeramconsigo uma grande particularidade para o mbitoda intelectualidade: campos de conhecimento per-meveis. Maria da Glria de Oliveira sugere que,durante o tero final do oitocentos, a profuso deobras de temticas simultaneamente literrias,histricas e etnogrficas sinalizavam um momento

    de incipientes delimitaes disciplinares (...).64

    Ou como salienta Rodrigo Turin: crtica, literaturae histria mantiveram-se, portanto, sintomatica-mente prximas, compartilhando a tarefa de deli-mitar os valores da nacionalidade. Tais asseresso verificveis em um longo desabafo do sbio deLagartos:

    E, em se tratando de cincias e disciplinas que se

    ocupam das criaes humanas, cresce o ponto deluta e a desordem aparece sempre.

    Ainda agora , L. Ward, Giddings, Nivicow,Gumplowicz, R. Worms, Bougl, Durkheimescreveram volumes inteiros para delimitar e

    definir o que seja sociologia.Sobre a moral nem preciso insistir. Levy-Brhldemonstrou num livro excelente que em seudomnio a confuso chega a ser irritante: nem aomenos se tem conseguido geralmente firmar adistino entre fatos morais e a cincia moral,entre esta e arte prtica que possa dela advir (...).

    Ainda agora, no se faz a distino precisa entreos fatos morais (agentes e impulsos da condutahumana no meio das mltiplas relaes sociais) eo conhecimento emprico desses fenmenos.Nem entre este conhecimento emprico primiti-

    vo e popular e as regras ou normas tambmempricas de conduta que da se originaram.Nem tampouco entre os aludidos fatos e a cin-cia positiva deles. Nem, finalmente, entre essesaber cientfico e as aplicaes prticas que delese possam tirar para a conduta normal doshomens (...).

    Pois bem: em crtica, o espetculo ainda maisesquisito, para no dizer deprimente (itlico do

    autor).65

    O documento literatura, como j foi exposto,ainda continuava a ser proeminente nos estudos de

    teor social no Brasil. Todavia, as variadas possibili-dades de abordagem desse (atravs das lentesevolucionistas, positivistas ou naturalistas) e deoutros assuntos impulsionaram um importanterearranjo entre as esferas de saber. Para FernandoNicolazzi, a ascenso das cincias sociais no Brasilacarretou uma significativa e gradual mudana deperspectiva. Atravs do ensasmo e da mobilizaocada vez maior das insurgentes leituras de cartersociolgico, as abordagens literrias deixaram deser a forma por excelncia de interpretao da vidascio-cultural brasileira. Para os ensastas, a lite-ratura enquanto documento no se apresentavacomo nica fonte possvel para se averiguar adinmica da sociedade no correr dos tempos.Segundo Nicolazzi, pode-se considerar que, no afde compreenso intelectual do Brasil e da elabo-rao de uma interpretao social do processo for-mativo, o ensaio histrico, em certa medida, se

    liberta das amarras da literatura, seno da forma aomenos da documentao exclusivamente

    literria.66 Portanto, a tradio do ensasmohistrico brasileiro encontra condies de possibi-lidade para sua emergncia em um momento ondeas fronteiras disciplinares esto em um paulatinoprocesso de redefinio e mesmo diferenciao.No limite, por mais que tal movimento ainda sejaum tanto incipiente, estudos literrios e cinciassociais (ainda no institucionalizadas) procuraramdelimitar seus problemas e objetos de maneiramais precisa.

    Daqui por diante, j no crepsculo do Imprio,ser o ensasmo que passar a oferecer a sntese domovimento histrico e no ser apenas pelo espec-

    tro literrio. Alm disso, tal gnero historiogrficoprocurar ordenar as fronteiras disciplinares, inclu-

    61ABREU, Joo Capistrano de. A liter-atura brasileira contempornea. In:Ensaios e Estudos (Crtica e Histria),p. 37.

    62ABREU, Joo Capistrano de. A liter-atura brasileira contempornea. In:Ensaios e Estudos (Crtica e Histria),p. 37.

    63ABREU, Joo Capistrano de. A liter-atura brasileira contempornea. In:Ensaios e Estudos (Crtica e Histria),p. 37.

    64OLIVEIRA, Maria da Glria de.Crtica, mtodo e escrita da histria emJoo Capistrano de Abreu (1853-1927).Dissertao de mestrado em histria.Porto Alegre: Universidade Federal doRio Grande do Sul, 2006, p. 17.

    65ROMERO, Slvio. Da crtica e suaexata definio. In: BARRETO, LuisAntonio (org.). Literatura, histria ecrtica. Rio de Janeiro: Imago Editora,2002.

    66NICOLAZZI, Fernando. Um estilo dehistria: a viagem, a memria, o ensaio.Sobre Casa Grande & Senzala e a rep-resentao do passado, p. 320.

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    sive, hierarquizando-as. Nesse sentido, a compar-timentao disciplinar ocorrida no sculo XX,definindo com contornos mais rgidos os limitesdos espaos de saber, foi realizada em seguida auma rearticulao importante dos campos das cin-

    cias sociais em relao esfera literria.67 Osestudos sobre a literatura, por sua vez, tenderam ase ocupar de exames mais preocupados com aaveriguao da dimenso esttica dos relatosliterrios. Na Primeira Repblica a historiografialiterria ocupou-se sobremaneira, e a obra Histriada Literatura Brasileira (1916) de Jos Verssimo significativa nesse sentido, em mostrar aquilo que

    Machado de Assis reivindicava dcadas antes68, ouseja, uma literatura brasileira menos apegada representao poltico-social, mais autnoma para

    trilhar os caminhos da apreenso do belo. O crtico

    paraense defendia que

    Literatura arte literaria. Smente o escrito como proposito ou a intuio dessa arte, isto , comos artificios de inveno e de composio que aconstituem , a meu ver, literatura. Assim pen-sando, qui erradamente, pois no me presumoinfalvel, sistematicamente excluo da histria daliteratura brasileira quanto a esta luz se no devaconsiderar literatura. Esta neste livro sinonimode boas ou belas letras, conforme a velha nooclssica.69

    Podemos constatar, com a passagem acima, que

    os estudos literrios ganharam contornos mais cir-cunscritos com a Histria de Jos Verssimo. Noh ali a inteno de vincular literatura e sociedadede forma direta e indissocivel. O que mais saltaaos olhos, e que realmente nos interessa por agora, o fato do fenmeno literrio deixar de ser o eixonorteador e a expresso nica para a definio erepresentao do nacional. Em estudo anterior,

    Verssimo apontava que a literatura tinha por obje-tivo comover o leitor. a faculdade de provocaremoes que d a um livro interesse e conseguin-

    temente condio literria.70 Machado de Assis,

    em pequeno artigo intitulado Instinto de nacionali-dade (1873), j assinalava para o mesmo caminho.Para o bruxo, a literatura brasileira necessitava sedesvencilhar de seu carter pragmtico e se eman-cipar definitivamente, mesmo que pra isso muitosesforos fossem necessrios. A passagem longa,entretanto de vital importncia para que acom-panhemos essa transformao na idia de literaturano Brasil:

    Quem examina a atual literatura brasileira recon-hece-lhe logo, como primeiro trao, certo instin-

    to de nacionalidade. Poesia, romance, todas as

    formas literrias do pensamento buscam vestir-se com as cores do pas, e no h como negarque semelhante preocupao sintoma de vital-idade e abono de futuro. As tradies deGonalves Dias, Porto-Alegre e Magalhes so

    assim continuadas pela gerao j feita e pela queainda agora madruga, como aqueles continuaramas de Jos Baslio da Gama e Santa Rita Duro.Escusado dizer a vantagem deste universalacordo. Interrogando a vida brasileira e anatureza americana, prosadores e poetasacharo ali farto manancial de inspirao e irodando fisionomia prpria ao pensamentonacional. Esta outra independncia no tem Setede Setembro nem campo de Ipiranga; no se farnum dia, mas pausadamente, para sair maisduradoura; no ser obra de uma gerao nemduas; muitas trabalharo para ela at perfaz-la

    de todo.71

    Como anunciou o futuro presidente daAcademia Brasileira de Letras, a literatura brasileirano abandonou to cedo sua misso enquantomensageira da representao da realidade nacional.

    Talvez apenas com os estudos de Verssimo, j empleno sculo XX, h de fato uma transformaomais efetiva no conceito de literatura, onde adimenso pragmtica fosse realmente deixada emum segundo plano frente s preocupaes estti-cas. Por outro lado, o ensasmo histrico ganhavadestaque por efetuar diagnsticos que almejavaminterpretar o Brasil por diferentes ngulos e enfo-ques. Em suma, na captura do processo formativobrasileiro a documentao literria no ser, a par-

    tir de agora, o nico veculo possvel e, alm disso,tal mudana de perspectiva trouxe consigo, de

    certa maneira, a amenizao do veto ao ficcionalque acompanhava a trajetria literria brasileira

    desde seus primrdios.72

    67NICOLAZZI, Fernando. Um estilo dehistria: a viagem, a memria, o ensaio.Sobre Casa Grande & Senzala e a rep-resentao do passado, p. 315.

    68Refiro-me ao conhecido textoInstinto de nacionalidade. ASSIS,Machado de. Crnicas, crtica, poesia, teatro.So Paulo: Cultrix, 1967.

    69VERSSIMO, Jos. Histria daLiteratura Brasileira. De Bento Teixeira(1601) a Machado de Assis (1908). Riode Janeiro: Livraria Francisco Alves eCia, 1916, p. 13.

    70VERSSIMO, Jos. O que literatura?In: O que literatura? e outrosescritos. So Paulo: Landy Editora,2001, p. 31.

    71ASSIS, Machado de. Instinto denacionalidade. Crnicas, crtica, poesia,teatro. So Paulo: Cultrix, 1967.

    72Com relao ao veto ao ficcionalno interior da tradio literriabrasileira ver LIMA, Luiz Costa.Controle do imaginrio: razo e imagi-nao no Ocidente. So Paulo:Forense Universitria, 1989

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    Temporalidades - Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 2, n. 2, Agosto/Dezembro de 2010 - ISSN:1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temp oralidades