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As mais pofcts das NOVELA de AFONSO RIBEIRO —Deixe-me! Agora deixe-ane! Súplica, gemido, grito de angústia, as palavras ficaram a vibrar no quarto. Encheram o quarto. Depois, um suêncio pesa- do e longo. Uma como que paralisia da Vida. Algo de obscuro, doloroso e terrível—a sensação do Nada medida através de al- guns minutos de existir. Uma voe, por fim, rasgou aquela mu- dez. Voz de pedinte. Das que, rastejando a pedir, parecem im- plorar perdão per não poderem oferecer. —Filha! 'Minha filha! Estavam ali, sentadas ca beira da cama, havia muito. Desde que a noite começara a cair. Mas, porque nenhuma dera volta ao comutador, a fundavam-se num negrume espesso que as aliviava e oprimia a um tempo. Olharem-se, uma a seguir no rosto da outra o fluir e refluir dos sentimentos mais confusos e contraditórios—dor, espanto, piedade, vergonha...—era, elas o adivinhavam, acrescer de agonias novas a agonia daquela hora. Teriam, de resto, a coragem de enfrentar a luz? De se enfrentarem à luz, em tal instante, quando punham a desco- berto o que se escondia em si próprias? As confidências reque- rem escuridão. Do mesmo modo que o amor. E quem já, em pleno dia, amoui Integralmente? A luz retrai. E' chumbo a pesar nas allmas que anseiam põr-se a nu. Pudor que retém o segredo mais banal. Por isso os confessionários estão ma penumbra. E o amor procura a noite. Sem velas ou electricidade. A noite- escuridão. Por instinto, mais que por raciocínio, ficaram, pois, nas trevas. Mas sentiam as respirações. Talvez o pulsar das arté- rias. A's vezes tateavam-se. Então, nervos tensos, espremiam as mãos até a dor lhes arrancar gemidos. E era precisamente messes segundos de sofrimento comum, embora provocado, que uma força estranha as impelia a mostrar o que lá dentro tra- ziam bem oculto. Compreendendo isso, ambas, sem uma palavra de inteli- gância, foram acentuando a pressão dos dedos. Espremendo mais. Sempre mais. Até cada uma .perceber, por sua banda, que as unhas da outra se cravavam na sua. carne. E sem dis- tinguirem bem se essas unhas eram as suas ou as dela. Sem desejarem distinguir. Apenas sentidos para a dor física que as unia. Que as havia de amassar niuma só apagando em suas consciências o que nelas teimava a separá-las. A separar as suas revelações, as dúvidas e os pensam anitos que as trabalha- vam—todo o desordenado mundo interior em efervescência. O momento tão ansiado quão temido, chegara enfim, des- truindo todos os prejuízos da conisanguiiiniidade. Esses pequeni- nos nadas, que são montanhas, erguidos por uma educação ar- tificiosa, rígida e cruel, entre homem e mulher, pai e filho, irmão e irmã. Desta sorte niveladas péla dor, uma simpatia profunda foi, lentamente, na peça fechada e escura, unindo as duas mulheres. Não eram mais mãi e filha dizendo-se coisas íntimas e penosas. Anolisando-se. Dois seres, somente, projectados para além da família. Compreendendo-se acima das opiniões for- madas. Amando-se sem constrangimentos. Humanamente. / / Tempos atrás—floria a macieira no quintal—começara a mãl a notar em Máxima singulares perturbações. Foi, primeiro, uma inquietação "vaga. Tícs nervosos no rosto e lábios. Cóleras súbitas e infundadas. Ausência de apetite—e uma necessidade constante de movimento. Sempre a sentar-se e a levantar-se, a fugir de um lugar e a voltar a êle, a estentíier-se, vestida, no leito, e a pôr-se a pé. Sempre insatisfeita. Sempre desigual como o fogo e o mar. Ora incompreensivelmente carinhosa, ora exigente e dura. Em casa, no entanto, não estranharam. Desde os seus quinze anos, pela primavera, que aqueles sintomas dum mal indefinido com regularidade se lhe manifestavam. Depois, na quadra dos grandes calores, af undava-se, ia-se afundando num langor sem intermitênclas. Deprimida, sim, mas serena. Dor- mia melhor. As contracções musculares desapareciam. E seus actos de ternura, sobretudo, perdiam a vivacidade febril, um não sabiam quê de instintivo, sensorial e medonho. No desper- tar do outono, por vezes, as agitações voltavam. Mas mais beni- gnas. E logo recaia em calma, como se saísse de uma dessas enfermidades que não inspiram cuidados. Absorvido com a sua sífilis, o pai, um homem baixinho, de orelhas a despegarem-se do crânio, face chupada e olhar incerto, não atentava naquilo. E se, cheia de medo, a esposa lhe dava conta de suas observações, dlala invariavelmente o mesmo. Nervos. Eram nervos. Pois que havia de ser? —E mudanças de temperatura. Compreendes? Embora tais falas lhe não dissessem nada ou, embora dissessem, as não entendesse bem, a segurança com que eram proferidas consolavam -aia. E, lassim, rolaram anos. Cinco, seis, oito anos. Quando, porém, Máxima entrava nos vinte, as crises prin- cipiaram, ainda que de modo lento, a prolongar-se, surgindo, para mais, em qualquer época. Conitutío, tanto nas suas par- ticularidades, como ainda na forma de se revelarem, tais alte- rações em nada diferiam das anteriores. Dai, por Já habitua- dos, ninguém, em casa, afora a mãi, reparar multo nelas. Desta vez, entretanto, a enfermidade tomara aspectos novos. Os mesmos caprichos, iras, infantilidades durante se- manas. Mas, depois, quando todos esperavam a lassidão habi- tual, uma quási absoluta indiferença por pessoas e coisas, vi- ram-na, pelas salas, mais triste e silenciosa que uma sombra, a desfazer ^se em prantos. Interrogavam -na. Ela não respon- dia. A mãi amargurava-se. Uma voz intima boquejava-lhe coisas funestas. Teve medo. Um medo medular, corrosivo, re- pleto de interrogações. Chorava multo. Em presença da filha, não obstante, dominava-se. Em certas ocasiões, porém, não se podia conter. E as lágrimas eobriam-tllhe as faces. Mas Máxima não dava conta. Um dia, um médico, após auscultá-la com demora e inte- resse, afirmou-ihe que ela não tinha nada. Que não compreen- dia o que pudesse ter. De-repente, ao saber-ihe a idade, teve uma exclamação: —Ah! julguei que fosse mais nova...—e othou-a, com- pungido. (Máxima, reataiente, com os seus vinte e três anos feitos, infundia piedade. Pequenina, uma corcova imensa nas costas, escrófulas sob o queixo... Peito raso. Grande, aos altos e baixos, caía-lhe o nariz sobre a boca. Dir-se-ia que um deus incle- mente o forjara. Se divertira a íorjá-fla. Para cúmulo, a cabeça, descomunal para o resto do corpo, balouçava -lhe na extremi- dade de um pescoço 'fino e longo, como um fósforo. Na rua, ao passar, sempre havia quem, atarefado ou não, quedasse para seguir aquela aparição de Quasímodo com saias. Os garotos riam-lhe na cara. Ela fazia que não via. Mas seu rosto pálido, da palidez dos mortos, a fogueava-se; e os olhos enchiam-se-lhe de lágrimas. Perante o pasmo do homem de ciência, a mãi não soube que pensar. Era certeza sua que èle não dissera tudo que sabia. Que escondera alguma coisa. Alguma coisa de horrível, por certo. Talvez uma tuberculose óssea ou um principio de lou- cura. Como adivinhar, porém? Se Máxima, ao menos, fosse mais comunicativa... E o médico julgara-a mais nova! Que que- reria dizer com aquilo? Se pudesse saber... Porque èle escon- dera uma ideia. Uma ideia! Qual? Forçava o cérebro. Toda ela a transbordar daquela Interrogação. Havia instantes em que chegava a persuadlr-se que ia atingir a verdade—uma verdade longínqua e pavorosa que a deixaria sem pinga de sangue. E, ao conivencer-se de que essa verdade continuava inacessível ao seu entendimento, uma sensação de alivio a tomava. Então a necessidade que em dados momentos todo o ser conhece de subornar-se a si próprio, de se iludir, vinha, sorrateira e blan- dioiosa, aninhar-se em seu seio. Afinal, talvez exagerasse. Tal- vez a doença se resumisse a uma grande fraqueza. E a nervos, como assegurava o marido. Um mês no campo e estaria curada. Os bons ares, os passeios pelas matas, as águas puras e ali- mentação sadia, sem molhos e pimentas, operariam o milagre. Máxima, porém, fora intransigente. Não, não e não! O campo metia-ihe horror. De resto passava perfeitamente. As suas lágrimas, as suas insónias, todos os achaques que tanto os mortificavam? Ora! ninharias. Pois que Imaginavam? Ela sem- tla-se forte. Andava forte. Que ia, nesse caso, fazer à aldeia? Ver árvores, montanhas, homens lavrando a terra, vacas, um regato... E isso tudo que lhe poderia interessar? Não. Não iria. Fossem todos. Mas deixassem-na. A mãi Uuidia-se mais. Uma resistência assim não demons- trava à saciedade a sem razão de iseus receios? Não, se Máxima tivesse, de_-íacto, uma moléstia a mimánla, o próprio instinto de conservação a levaria a aceitar, como supremo favor, a pro- posta de uma temporada em clima mais favorável à cura. Dis- correndo desta sorte, sentia desejos de cantar. Entretanto, dias idos, quando não horas ou apenas segundos, a dúvida voltava a morar em si. A desnorteá-la. Como um vento multo forte que agarra de uma folha e a leva por aí fora, sem destino. E, crendo para em seguida descrer, arquitectando em seu espírito convicções que o seu mesmo pensamento se encane- SutZOHOS . * . garia de derrubar, que, tinha a certeza, havia de derrubar, sen- tla-se Infinitamente desgraçada. A-pesar-de Jamais ter conhe- cido o que era ventura. O que era um riso espontâneo. Nunca amara. Seu casamento fora um negócio vulgar que a família impusera e ela aceitou com a Indiferença com que aceitaria um bilhete de lotaria que de antemão sa.be estar branco. O primo Ijauro com o seu corpo de bebé corroído de sífilis, o seu egoís- mo entranhado, já nesse período mostrava o que seria sempre: um maníaco que a doença fechava em si. Um molusco metido aia sua concha. Ela compreendia isso muito bem. Oh!, muito bem. Não obstante aceitara aquele hemem para seu compa- nheiro sem um protesto. Sam uma lágrima. No ifundo com um cibo de reconhecimento, até. A vida, junto dos seus, não a ten- tava. O pai nascera um desiqulMtorado. Sempre metido com mu- lheres. Sempre atrás de saias. E alcoólico. A mãl, velha antes do tempo, ciumenta, feroz com os seus ciúmes, chorando am altos gritos pela casa. batendo nos filhos e nas criadas. E, de- pois, as cenas que ambos armavam, horas mortas, quando êle chegava das suas aventuras. De pôr a pé a vizinhança inteira. No teatro, na rua, apontavam-na. «E' a filha dos Abreus. 'A outra largou com um actor. Dos rapazes, um está preso por desfalque. lUlmia miséria.* Contudo nunca, como agora, seu cora- ção vivera tão repleto de amargura. Nunca andara tão triste. Á sua menina mirrava-se. Morria aos poucos. E ela não lhe valia. Não lhe podia valer. Por que a castigava Deus, assim? Porque aquilo era um castigo de Deus. Mas por quê, se nunca, nunca que se lembrasse, fizera mal a alguém? Ou estaria, à maneira des filhos de Adão. a pagar os erros dos progenitores, para os quais não contribuíra, nem multo nem pouco? Dobrada sobre sl, a frase do doutor era interrogação a er- guer-se constantemente em seu espirito. «Ah! Julguei que fosse mais >nova...» Mais nova! Que dependência podia existir entre a idade de sua filha e os seus sofrimentos? Entre as suas lá- grimas e Q8 seus anos? Pensa, pensa, gastava os dias. Dc noite acordava a preguntar-se que relação seria essa tão furtiva, que, por mais que fizesse, mão conseguia penetrar. E, no en- tanto, punha o pescoço sob um cutelo, o médico não soltara aquelas palavras por acaso. Um pensamento qualquer lhas ditara. E Máxima sabia qual. Disso não tinha dúvidas. Ao afirmar que seus choros eram sem motivo, mentia. Mentia a sua mãl uma dais raras pessoas que a amavam. Talvez a única que a amava. Virgem, por quê esse procedimento para ÇOtn ela? Acaso lho merecia? A sua menina com um segredo! A ocufltar-lhe um se- gredo! E o médico descobrira-o... Mas, realmente, existiria? Pingo de azeite a alastrar num pano, a Ideia fol-a Inva- dindo. Lentamente. Medrosamente. Por fim, ocupou-a tilda. Não, não duvidava mais. AM havia um mistério. Ali, no ar oue ela respirava. Sob o seu olhar. E, contudo, não o atingia. Encapava aos seus raciocínios. Ao seu coração de mãl. Foi por essa altura, ao almoço, ura dia, que ela reparou na agitação inquieta de Máxima sempre que Artur, no intervalo de um prato para outro prato, suavemente acariciava os dedos da esposa. E. aquilo, foi um jacto de luz a iluminar as trevas cm que se debatia. Uma revelação instantânea. Como não atin- gira há mais tempo uma verdade tão .palpável? Oh!, a cegueira das mâiis que por terem amamentado os filhos os jiuilgavam sempre como quando os traziam ao colo e que Jamais, jamais se habituavam a vê-los homens só pelo facto de os haverem conhecido de palmo. Não obstante ela envelhecia. Vlra-se en- velhecer de ano para ano. Quási de hora para hora. Por que, nesse caso, lhe .passara despercebida a gradual e inevitável transformação de Máxima? Por que. na sua inconsciência, a julgara subtraída às leis da Natureza, inexoráveis como uma fatalidade? Céus. onde um amor de mãl podia arrastar! Nesse instante revelador, mil factos pretéritos lhe acu- diram à memória. Incidentes mínimos a que, então, não ligara importância. Mas que, inesperadamente, a assaltavam, aju- ciando-a a ver claro. A ver mais claro. A sua Máxima... Coita- dinha! Coitadinha! Como, afinal, tudo era simples! A meter-se l^eíios olhos dentro. Ela é que andava cega. E' que teimava em vê-la ainda de babelro. O que ela devia ter sofrido... Coitadi- nha I Cheia de ternura ergueu os olhas, encarou-a. E foi camo se a visse pela primeira vez. A sua menina! Aquela era a 'sua menina!... Pos-se a observá-la. E, vendo-a toda trémula e an- siosa, as pupilas irresistivelmente atraídas para os noivos, lelmlbrou-se que as lágrimas dela datavam, precisamente, da época em que o irmão do Lauro viera, com a esposa, passar aqueles meses com eles. Ao ergucr-se da mesa ia estonteada. Vivas que nem brasas as recordações continuavam a acudlr-lhe, em feixes, atropelan- do-se. E sua alma. todo o seu ser, como uma esponja embebida em água, parecia imergir num mar vasto e prof undo._ Não pen- sava mais. Não queria pensar mais. De resto, para quê? Se tudo se mostrava da transparência do vidro! Sentara-se numa cadeira, junto da janela, no seu quarto. O sol brilhava num céu macio e doce. Sobre o rio, asas bambas, aãgumas gaivotas volteavam. E ela, olhando sem ver as gai- votas, o céu e sol, pensava: «E agora? E agora?» Sentia a cabeça pesada e uma dor lancinante lá dentro, no peito. A's vezes julgava asfixiar. As fontes latejavam-lhe. A sua menina... Virgem, que la ser da sua menina! O relógio bateu três horas. Depois quatro, cinco. E a mes- ma ideia, obstinada e fixa, a ballar-lhe no pensamento. A cres- oar. A absorvê-la. Dc-repente. uma dúvida: não teria sonhado? O cérebro parecia querer fugir-lhe. Apertou as têmporas. E se mndoldccesse? dc pé. quis reentrar em sl. Serenar. Mas pensamentos e sensações eram tela emmaranhada. A emmaranhar-se cada vez mais. Caiu de-novo sobre a cadeira. A tembar para o ocaso, mas ainda escaldante, o sol idava-lhe de chapa, no rosto. Ela, contudo, não o sentia. Não sentia nada. A sensação de que ia mergulhando num mar sem termo desfizera-se. Agora julgava- sc suspensa e inerte numa noite infinita, noite que estando em sl ficava multo longe, para lá de todo o cálculo. E foi ali. diante da janela, pálpebras descidas e tronco flectido para a frente, como se o sono a houvesse assaltado, que a filha a velo encontrar. —Mamã... Vagarosamente, ela erguera a cabeça. —E's tu? Ah!... Flcou-se a olhá-la. A olhá-la muito. Com a certeza de que lhe queria dizer alguma coisa mas sem saber, ao certo, o que pudesse ser. —E's tu? Ah!... —Que pálida estás, mamã! —Dóí-me a cabeça, sabes? Levara a mão à fronte. —Já ao almoço... Suspendeu-se. A névoa dissipava-se. Ao almoço... Quando descobrira... —Minha filha... Puxou-a para si. As lágrimas rebentavam-ihe. —...O que deves ter sofrido! Uma grande paz bolava na tarde a morrer. A casa, em si- lêncio, lembrava uma tumba. —Sofrido? Que Ideia! Sem unia 'Objecção, ela descera a vidraça. Depois, abra- çando -a pela cinta, l«vou-a para o fundo da peça, onde o leito sobressaía com a sua colcha branca. —Sofres. Eu sei que sofres. —Não, mamã. Não. Por largo espaço, debateu-se. —Não! Não! Mas a noite foi descendo, seus dedos premendo-se e, quando o aposento, não era mais que montão de sembras, confessou, enfim. Era verdade, sofria. Horrivelmente. Pavorosa- mente. Não lhe preguntasse, porém, por quê. —E' uma ansiedade atroz. Uma insatisfação em todo o meu ser, como se alguma coisa de essencial me faltasse. Os ouvidos zunicm-me. Toda eu tremo. E, porque me interrogo- e não encontro que responder-me, choro. Cálou-se. Logo, baixinho a voz, seguiu: —4Há momentos em que nas minhas velas corre fogo. Em que toda eu ardo num braseiro imenso. Rebolo-me pelo sobrado. A gemer mordo os pulsos. Mas a dor mais me excita. Então cruzo os braços sobre o peito e, Com forças que dlr-se-la virem doutrem, aperto, aperto ate sufocar. Falou ainda, rebuscando o que lhe ficava de suas crises. Não escondeu nada. —E' só isto, imamã. Mas, isto, que é? Desesperada e exhausta deitou-se a todo o comprimento da cama, a soluçar. —Se, ao menos, compreendesse... A mãl fê-la soerguer. Acariciou-lhe os cabelos. —Eu sei. E. sem vergonha, acariciando-a sempre, lndustriou-a. Máxima ouvia. Muda. Inteiriçada. No fim, aquele grito: —J3eixe-me. Agora deixe-me! Num repente, com remorsos da humanidade que a levara àquilo, lembrou-se a mãi do corpo da pobre. Da sua corcova terrível, da sua face sem sangue, do seu petscoco... daquele esboço de imulher defeituosa para que ninguém olharia sem um sorriso de comiseração, de troca ou pasmo. —Filha! Minha filha! O coração estaiava-lhe. Quis beijà-la. Consolá-la. Mas que lhe poderia dizer? Que lhe poderia dar? ante pé desandou. E, já no corredor, encostada à porta, pôs-se a chorar de mansinho, longamente.

As mais pofcts das SutZOHOS

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As mais pofcts das N O V E L A de A F O N S O RIBEIRO

—Deixe-me! Agora deixe-ane! Súplica, gemido, grito de angústia, as palavras ficaram a

vibrar no quarto. Encheram o quarto. Depois, um suêncio pesa­do e longo. Uma como que paral is ia da Vida. Algo de obscuro, doloroso e terrível—a sensação do Nada medida através de a l ­guns minutos de existir . Uma voe, por fim, rasgou aquela mu­dez. Voz de pedinte. Das que, rastejando a pedir, parecem im­plorar perdão per não poderem oferecer.

—Fi lha! 'Minha fi lha! Estavam ali, sentadas c a beira da cama, havia muito.

Desde que a noite começara a cair . Mas, porque nenhuma dera volta a o comutador, a fundavam-se num negrume espesso que as aliviava e oprimia a um tempo. Olharem-se, uma a seguir no rosto da outra o fluir e refluir dos sentimentos mais confusos e contraditórios—dor, espanto, piedade, vergonha...—era, elas o adivinhavam, acrescer de agonias novas a agonia daquela hora. Ter iam, de resto, a coragem de enfrentar a luz? D e se enfrentarem à luz, em tal instante, quando punham a desco­berto o que se escondia em si próprias? As confidências reque­rem escuridão. Do mesmo modo que o amor. E quem já , em pleno dia, a m o u i Integralmente? A luz retrai . E ' chumbo a pesar n a s allmas que anseiam põr-se a nu. Pudor que retém o segredo m a i s banal . Por isso os confessionários es tão ma penumbra. E o amor procura a noite. Sem velas o u electricidade. A noite-escuridão.

Por instinto, mais que por raciocínio, ficaram, pois, nas t revas. Mas sent iam as respirações. Talvez o pulsar das ar té­rias. A's vezes ta teavam-se. Então, nervos tensos, espremiam as mãos até a dor lhes a r r anca r gemidos. E e ra precisamente messes segundos de sofrimento comum, embora provocado, que u m a força es t ranha as impelia a mostrar o que lá dentro t ra ­ziam bem oculto.

Compreendendo isso, ambas , sem uma palavra de inteli-gância, foram acentuando a pressão dos dedos. Espremendo mais . Sempre mais . Até cada u m a .perceber, por sua banda, que a s unhas da outra se cravavam na sua. carne. E sem dis­tinguirem bem se essas unhas e ram as suas ou as dela. Sem desejarem distinguir. Apenas sentidos para a dor f ís ica que as unia. Que a s havia de amassar niuma só apagando em suas consciências o que nelas teimava a separá-las. A separar as suas revelações, as dúvidas e os pensam anitos que as t rabalha-vam—todo o desordenado mundo interior em efervescência.

O momento t ão ansiado quão temido, chegara enfim, des­truindo todos os prejuízos da conisanguiiiniidade. Esses pequeni­nos nadas, que são montanhas , erguidos por uma educação a r ­tificiosa, rígida e cruel, en t re homem e mulher, pai e filho, i rmão e i rmã.

Desta sorte niveladas péla dor, u m a simpatia profunda foi, lentamente , na peça fechada e escura, unindo as duas mulheres. Não e r a m mais mãi e filha dizendo-se coisas ín t imas e penosas. Anolisando-se. Dois seres, somente, projectados para a lém d a família. Compreendendo-se a c i m a das opiniões for­madas . Amando-se sem constrangimentos. Humanamente.

/ / Tempos atrás—floria a macie i ra n o quintal—começara a

mã l a no ta r em Máxima singulares perturbações. Foi, primeiro, u m a inquietação "vaga. T í c s nervosos no rosto e lábios. Cóleras súbitas e infundadas. Ausência de apetite—e u m a necessidade constante de movimento. Sempre a sentar-se e a levantar-se, a fugir de u m lugar e a voltar a êle, a estentíier-se, vestida, no leito, e a pôr-se a pé. Sempre insatisfeita. Sempre desigual como o fogo e o mar. Ora incompreensivelmente carinhosa, ora exigente e dura.

E m casa , no entanto, não es t ranharam. Desde os seus quinze anos, pela primavera, que aqueles s intomas dum mal indefinido com regularidade se lhe manifestavam. Depois, na quadra dos grandes calores, a f undava-se, ia-se afundando num langor sem intermitênclas . Deprimida, sim, mas serena. Dor­mia melhor. As contracções musculares desapareciam. E seus actos de ternura, sobretudo, perdiam a vivacidade febril, um não sabiam quê de instintivo, sensorial e medonho. No desper­t a r do outono, por vezes, a s agitações voltavam. Mas mais beni­gnas . E logo recaia em calma, como s e saísse de uma dessas enfermidades que n ã o inspiram cuidados.

Absorvido com a sua sífilis, o pai, um homem baixinho, de orelhas a despegarem-se do crânio, face chupada e olhar incerto, não a ten tava naquilo. E se, cheia de medo, a esposa lhe dava con ta de suas observações, dlala invariavelmente o mesmo. Nervos. E r a m nervos. Pois que havia de ser?

— E mudanças de temperatura. Compreendes? Embora tais fa las lhe não dissessem n a d a ou, embora

dissessem, as n ã o entendesse bem, a segurança com que eram proferidas consolavam -aia. E, lassim, rolaram anos. Cinco, seis, oito anos.

Quando, porém, Máxima en t rava nos vinte, a s crises prin­cipiaram, ainda que de modo lento, a prolongar-se, surgindo, pa ra mais , em qualquer época. Conitutío, tanto nas suas par­ticularidades, como ainda na forma de se revelarem, tais a l t e ­rações em n a d a diferiam das anteriores. Dai, por Já habi tua­dos, ninguém, em casa, afora a mãi, reparar multo nelas.

Desta vez, entre tanto , a enfermidade tomara aspectos novos. Os mesmos caprichos, iras, infantilidades durante se­manas . Mas, depois, quando todos esperavam a lassidão habi ­tual, uma quási absoluta indiferença por pessoas e coisas, vi-ram-na , pelas salas, mais t r is te e silenciosa que uma sombra, a desfazer ^se em prantos. Interrogavam -na. Ela não respon­dia. A mãi amargurava-se. Uma voz int ima boquejava-lhe coisas funestas. Teve medo. Um medo medular, corrosivo, r e ­pleto de interrogações. Chorava multo. Em presença da filha, não obstante, dominava-se. Em cer tas ocasiões, porém, não se podia conter. E as lágrimas eobriam-tllhe as faces. Mas Máxima não dava conta .

Um dia, um médico, após auscultá-la com demora e inte­resse, afirmou-ihe que ela não t inha nada . Que não compreen­dia o que pudesse ter. De-repente, ao saber-ihe a idade, teve u m a exclamação:

—Ah! julguei que fosse mais nova...—e othou-a, com­pungido.

(Máxima, reataiente, com os seus vinte e t rês anos feitos, infundia piedade. Pequenina, uma corcova imensa nas costas, escrófulas sob o queixo... Pei to raso. Grande, aos altos e baixos, ca ía - lhe o nariz sobre a boca. Dir -se- ia que um deus incle­men te o forjara. Se divertira a íorjá-fla. Pa ra cúmulo, a cabeça, descomunal pa ra o res to do corpo, balouçava -lhe na extremi­dade de um pescoço 'fino e longo, como um fósforo.

N a rua, ao passar, sempre havia quem, atarefado ou não, quedasse para seguir aquela aparição de Quasímodo com saias. Os garotos r iam-lhe na ca ra . Ela fazia que não via. Mas seu rosto pálido, d a palidez dos mortos, a fogueava-se; e os olhos enchiam-se- lhe de lágr imas .

Pe ran te o pasmo do homem de ciência, a mãi n ã o soube que pensar. Era certeza sua que èle não dissera tudo que sabia. Que escondera alguma coisa. Alguma coisa de horrível, por certo. Talvez uma tuberculose óssea ou u m principio de lou­cura. Como adivinhar, porém? S e Máxima, ao menos, fosse mais comunicat iva. . . E o médico ju lgara -a mais nova! Que que­reria dizer com aquilo? Se pudesse saber. . . Porque èle escon­dera uma ideia. Uma ideia! Qual? Forçava o cérebro. Toda ela a t ransbordar daquela Interrogação. Havia instantes em que chegava a persuadlr-se que i a at ingir a verdade—uma verdade longínqua e pavorosa que a deixar ia sem pinga de sangue. E, ao conivencer-se de que essa verdade continuava inacessível ao seu entendimento, u m a sensação de alivio a tomava. En tão a necessidade que em dados momentos todo o ser conhece de subornar-se a si próprio, de se iludir, vinha, sorrateira e blan-dioiosa, an inhar -se em seu seio. Afinal, talvez exagerasse. T a l ­vez a doença se resumisse a uma grande fraqueza. E a nervos, como assegurava o marido. Um m ê s no campo e estaria curada. Os bons ares, os passeios pelas matas , as águas puras e ali­mentação sadia, sem molhos e pimentas , operariam o milagre.

M á x i m a , porém, fora intransigente. Não, não e não! O campo met ia - ihe horror. De resto passava perfei tamente. As suas lágrimas, as suas insónias, todos os achaques que tan to os mort if icavam? Ora! ninharias . Pois que Imaginavam? Ela sem-t la - se forte. Andava forte. Que ia, nesse caso, fazer à aldeia? Ver árvores, montanhas , homens lavrando a terra, vacas, um regato.. . E isso tudo que lhe poderia interessar? Não. Não ir ia. Fossem todos. Mas deixassem-na.

A mãi Uuidia-se mais . Uma resistência assim não demons­trava à saciedade a sem razão de iseus receios? Não, se Máxima tivesse, de_-íacto, uma moléstia a mimánla, o próprio instinto de conservação a levaria a acei tar , como supremo favor, a pro­pos ta de uma temporada em c l ima mais favorável à cura. Dis­correndo desta sorte, sentia desejos de can t a r . Ent re tanto , dias idos, quando n ã o horas ou apenas segundos, a dúvida voltava a morar em si. A desnorteá-la . Como um vento multo forte que agar ra de u m a folha e a leva por aí fora, sem destino.

E , crendo pa ra em seguida descrer, arquitectando em seu espírito convicções que o seu mesmo pensamento se e n c a n e -

SutZOHOS . * . garia de derrubar, que, t inha a certeza, havia de derrubar, sen-t la-se Infinitamente desgraçada. A-pesar-de Jamais ter conhe­cido o que era ventura . O que era um riso espontâneo. Nunca amara . Seu casamento fora um negócio vulgar que a família impusera e ela acei tou com a Indiferença com que acei tar ia um bilhete de lotar ia que de an temão sa.be estar branco. O primo Ijauro com o seu corpo de b e b é corroído de sífilis, o seu egoís­mo entranhado, j á nesse período mostrava o que seria sempre: um maníaco que a doença fechava em si. Um molusco metido aia sua concha. Ela compreendia isso muito bem. Oh!, muito bem. Não obstante acei tara aquele hemem para seu compa­nheiro sem um protesto. Sam uma lágrima. No ifundo com um cibo de reconhecimento, até. A vida, jun to dos seus, não a ten­tava. O pai nasce ra um desiqulMtorado. Sempre metido com mu­lheres. Sempre a t rás de saias. E alcoólico. A mãl , velha antes do tempo, ciumenta, feroz com os seus ciúmes, chorando am al tos gritos pela casa . batendo nos filhos e n a s criadas. E, de­pois, a s cenas que ambos armavam, horas mortas, quando êle chegava das suas aventuras. De pôr a pé a vizinhança inteira. No teatro, n a rua, apontavam-na. «E' a filha dos Abreus. 'A ou t ra largou com um actor. Dos rapazes, um está preso por desfalque. lUlmia miséria.* Contudo nunca, como agora, seu cora­ção vivera tão repleto de amargura. Nunca andara tão triste. Á sua menina mirrava-se. Morr ia aos poucos. E ela não lhe valia. Não lhe podia valer. Por que a castigava Deus, assim? Porque aquilo era um cast igo de Deus. Mas por quê, se nunca, nunca que se lembrasse, fizera mal a alguém? Ou estaria, à maneira des filhos de Adão. a pagar os erros dos progenitores, pa ra os quais não contribuíra, nem multo nem pouco?

Dobrada sobre sl, a frase do doutor era interrogação a e r -guer-se constantemente em seu espirito. «Ah! Julguei que fosse mais >nova...» Mais nova! Que dependência podia existir ent re a idade de sua filha e os seus sofrimentos? En t re as suas l á ­grimas e Q8 seus anos? Pensa, pensa, gastava os dias. Dc noite acordava a preguntar-se que relação seria essa tão furtiva, que, por mais que fizesse, mão conseguia penetrar. E , no en­tanto, punha o pescoço sob um cutelo, o médico n ã o sol tara aquelas palavras por acaso. Um pensamento qualquer lhas ditara. E Máxima sabia qual. Disso não t inha dúvidas. Ao af i rmar que seus choros eram sem motivo, ment ia . Mentia a sua mãl uma dais raras pessoas que a amavam. Talvez a única que a amava. Virgem, por quê esse procedimento para ÇOtn ela? Acaso lho merec ia? A sua menina com um segredo! A ocufltar-lhe um se­gredo! E o médico descobrira-o.. . Mas, realmente, exist ir ia?

Pingo de azeite a a lastrar num pano, a Ideia fol-a Inva­dindo. Lentamente . Medrosamente. Por f im, ocupou-a tilda. Não, não duvidava mais . AM havia um mistério. Ali, no a r oue ela respirava. Sob o seu olhar. E , contudo, não o atingia. Encapava aos seus raciocínios. Ao seu coração de mãl .

Foi por essa altura, ao almoço, ura dia, que ela reparou na agitação inquieta de Máxima sempre que Artur, n o intervalo de um prato para outro prato, suavemente acariciava os dedos da esposa. E. aquilo, foi um j a c t o de luz a iluminar as trevas cm que se debat ia . Uma revelação instantânea. Como não a t in­gira h á mais tempo u m a verdade t ã o .palpável? Oh!, a cegueira das mâiis que por terem amamentado os filhos os jiuilgavam sempre como quando os traziam ao colo e que Jamais , j ama i s se habi tuavam a vê-los homens só pelo facto de os haverem conhecido de palmo. Não obstante ela envelhecia. Vlra-se en­velhecer de ano p a r a ano. Quási de hora para hora. Por que, nesse caso, lhe .passara despercebida a gradual e inevitável t ransformação de Máxima? Por que. na sua inconsciência, a ju lgara subtraída à s leis da Natureza, inexoráveis como uma fatalidade? Céus. onde um amor de m ã l podia ar ras tar !

Nesse instante revelador, mil factos pretéritos lhe acu­diram à memória. Incidentes mínimos a que, então, não ligara importância. M a s que, inesperadamente, a assaltavam, a j u -ciando-a a ver claro. A ver mais claro. A sua Máxima. . . Coi ta­dinha! Coitadinha! Como, afinal , tudo era simples! A meter-se l^eíios olhos dentro. E la é que andava cega. E' que teimava em vê-la ainda de babelro. O que ela devia ter sofrido... Coitadi­n h a I

Che ia de ternura ergueu os olhas, encarou-a. E foi camo se a visse pela primeira vez. A sua menina! Aquela e r a a 'sua menina! . . . Pos-se a observá-la. E, vendo-a toda trémula e a n ­siosa, as pupilas irresistivelmente atraídas para os noivos, lelmlbrou-se que as lágrimas dela datavam, precisamente, da época em que o irmão do Lauro viera, com a esposa, passar aqueles meses com eles.

Ao ergucr-se da mesa ia estonteada. Vivas que nem brasas

as recordações continuavam a acudlr-lhe, em feixes, a t ropelan-do-se. E sua alma. todo o seu ser, como uma esponja embebida em água, parecia imergir num m a r vasto e prof undo._ Não pen­sava mais . Não queria pensar mais. De resto, para quê? Se tudo se mostrava da transparência do vidro!

Sentara-se numa cadeira, jun to da jane la , no seu quarto. O sol brilhava num céu macio e doce. Sobre o rio, asas bambas, aãgumas gaivotas volteavam. E ela, olhando sem ver as gai ­votas, o céu e sol, pensava: «E agora? E agora?» Sentia a cabeça pesada e uma dor l anc inan te lá dentro, n o peito. A's vezes ju lgava asf ixiar . As fontes la te javam-lhe . A sua menina. . . Virgem, que la ser da sua menina!

O relógio bateu t rês horas. Depois quatro, cinco. E a mes ­ma ideia, obstinada e fixa, a bal lar- lhe no pensamento. A cres-oar. A absorvê-la. Dc-repente. uma dúvida: não ter ia sonhado? O cérebro parecia querer fugir-lhe. Apertou as têmporas. E se mndoldccesse?

J á dc pé. quis reentrar em sl. Serenar . Mas pensamentos e sensações eram tela emmaranhada . A emmaranhar -se cada vez mais . Caiu de-novo sobre a cadeira. A tembar para o ocaso, mas ainda escaldante, o sol idava-lhe de chapa, n o rosto. Ela, contudo, não o sentia. Não sentia nada. A sensação de que ia mergulhando num mar sem termo desfizera-se. Agora julgava-sc suspensa e inerte n u m a noite infinita, noite que estando em sl ficava multo longe, pa ra lá de todo o cálculo.

E foi ali. diante da jane la , pálpebras descidas e tronco flectido para a frente, como se o sono a houvesse assaltado, que a filha a velo encontrar .

—Mamã.. . Vagarosamente, ela erguera a cabeça. —E's tu? Ah!... Flcou-se a olhá- la . A olhá- la muito. Com a certeza de

que lhe queria dizer alguma coisa mas sem saber, ao cer to , o que pudesse ser.

—E's tu? Ah!... —Que pálida estás, mamã! —Dóí-me a cabeça, sabes? Levara a mão à fronte. — J á ao almoço. . . Suspendeu-se. A névoa dissipava-se. Ao almoço.. . Quando

descobrira.. . —Minha filha... Puxou-a para si. As lágrimas rebentavam-ihe. —...O que deves ter sofrido! Uma grande paz bolava na tarde a morrer. A casa, em s i ­

lêncio, lembrava uma tumba. —Sofrido? Que Ideia! Sem unia 'Objecção, ela descera a vidraça. Depois, a b r a ­

çando -a pela c inta , l«vou-a para o fundo da peça, onde o lei to sobressaía com a sua colcha branca.

—Sofres. Eu sei que sofres. —Não, mamã. Não. Por largo espaço, debateu-se. —Não! Não! Mas a noi te foi descendo, seus dedos premendo-se e,

quando o aposento, não era mais que montão de sembras, confessou, enfim. Era verdade, sofria. Horrivelmente. Pavorosa­mente . Não lhe preguntasse, porém, por quê.

— E ' uma ansiedade atroz. Uma insatisfação em todo o meu ser, como se alguma coisa de essencial m e faltasse. Os ouvidos zunicm-me. Toda eu tremo. E, porque me interrogo-e n ã o encontro que responder-me, choro.

Cálou-se. Logo, baixinho a voz, seguiu: —4Há momentos em que nas minhas velas corre fogo.

Em que toda eu ardo n u m braseiro imenso. Rebolo-me pelo sobrado. A gemer mordo os pulsos. Mas a dor mais me excita. En tão cruzo os braços sobre o peito e, Com forças que dlr -se- la virem doutrem, aperto, aperto a t e sufocar.

Falou ainda, rebuscando o que lhe ficava de suas crises. Não escondeu nada.

— E ' só isto, imamã. Mas, isto, que é ? Desesperada e exhausta deitou-se a todo o comprimento

da cama , a soluçar. — S e , ao menos, compreendesse... A mãl fê- la soerguer. Acariciou-lhe os cabelos. —Eu sei. E . sem vergonha, acar iciando-a sempre, lndustriou-a. Máxima ouvia. Muda. Inteir içada. No fim, aquele grito: —J3eixe-me. Agora deixe-me! Num repente, com remorsos da humanidade que a levara

àquilo, lembrou-se a mãi do corpo da pobre. Da sua corcova terrível, da sua face sem sangue, do seu petscoco... daquele esboço de imulher defeituosa pa ra que ninguém olharia sem um sorriso de comiseração, de troca ou pasmo.

—Fi lha! Minha filha! O coração estaiava-lhe. Quis beijà-la. Consolá-la. Mas que

lhe poderia dizer? Que lhe poderia dar? Pé an te pé desandou. E , j á no corredor, encostada à porta,

pôs-se a chorar de mansinho, longamente.