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As Maravilhas de Alice

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CRÓNICAS DE NUNO CRATO SOBRE “ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS” E “ALICE DO OUTRO LADO DO ESPELHO” DE LEWIS CARROLL (Fevereiro e Março de 2010) AS MARAVILHAS DE ALICE Se Lewis Carroll não tivesse escrito as duas aventuras de Alice, não seria conhecido por esse pseudónimo mas sim pelo seu verdadeiro nome: Charles Lutwidge Dodgson (pronuncia-se dód-san). E se não tivesse escrito esses dois livros e vários outros de histórias maravilhosas não seria conhecido como escritor, mas talvez como fotógrafo - Dodgson foi um dos primeiros a encarar a fotografia como uma arte e não como um mero registo de imagens. Os seus retratos ainda hoje são pungentes, em especial as imagens de crianças em poses melancólicas. E se não tivesse sido nem escritor nem fotógrafo seria certamente conhecido como um dos vultos da época na sua disciplina: a matemática.

Todo o humor absurdo que perpassa por "Alice no País das Maravilhas" e pelas suas outras obras de ficção é um humor que muitos matemáticos reconhecem como seu. Os trocadilhos e as pequenas brincadeiras revelam uma preocupação com o significado das palavras e expressões e a construção de contradições derivadas de ambiguidades. É um uso da lógica e da matemática que ainda hoje surpreende os leitores.

Quem esteja um pouco mais desperto para a leitura de temas científicos verá também deliciosas referências a tópicos eruditos de matemática, lógica e astronomia. Logo no princípio, quando Alice cai pelo buraco do coelho e pergunta a si própria quantas milhas terá caído, quando pensa que se aproxima do centro da Terra e procura

recordar-se da dimensão do planeta, ela está a protagonizar uma metáfora científica muito discutida na época vitoriana - na realidade, uma metáfora que vem da antiguidade clássica.

Perto do século VIII a.C., o poeta grego Hesíodo tinha imaginado uma bigorna a cair dos céus e escrito que ela demoraria nove dias a atingir a Terra. Deixando-a cair da Terra para

os infernos, ela demoraria também nove dias a cair no fundo do universo. O tema foi retomado na era romana pelo historiador e ensaísta grego Plutarco (46-120). Sabendo que a Terra é esférica, Plutarco perguntou o que aconteceria a um corpo que caísse por um buraco que levasse a uma Terra oca: pararia no centro? O problema ocupou muitos filósofos e homens de ciência. Galileu foi o primeiro a solucioná-lo correctamente. Imaginou um túnel que atravessasse a Terra de um lado ao outro, passando pelo seu centro. Um objecto largado à superfície desceria aceleradamente pelo túnel até alcançar o centro. Nessa altura, continuaria a sua viagem, mas em velocidade decrescente, até alcançar o outro extremo do planeta. Nesse momento estancaria e, deixado livremente, voltaria a cair pelo túnel,

acelerando, passando pelo centro da Terra, desacelerando e regressando ao ponto de partida. Deixado a si próprio, esse corpo oscilaria indefinidamente, entre um extremo e outro do planeta.

Galileu estava certo, desprezando o atrito do ar e o movimento da Terra. O problema voltou a ser discutido por Newton e Euler, e continua a sê-lo nos dias de hoje como exercício de mecânica e de cálculo. Feitas as contas, Alice demoraria 42 minutos a atingir o centro da Terra e outro tanto a reaparecer nos antípodas - nas "antipatias", segundo a brincadeira de Lewis Carroll.

As referências científicas atravessam todas as aventuras de Alice. Nada como lê-las, pensá-las e revisitá-las. Voltaremos a fazê-lo.

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AS DESVENTURAS DE ALICE

A segunda parte de "Alice no País das Maravilhas" inclui algumas das mais famosas passagens e personagens de Lewis Carroll. Contém também alguns dos seus mais divertidos absurdos: as lições da tartaruga fingida, os disparates do chapeleiro louco e o julgamento final em que a rainha, desejosa de cortar a cabeça à jovem heroína profere a célebre frase: "Primeiro a sentença, depois o veredicto!".

Os dois livros de Alice revelam o humor de um matemático que brinca com a lógica e faz alusões veladas a temas científicos. A maioria das vezes, as alusões são indirectas, e muito se tem discutido sobre algumas passagens. Logo no capítulo 2, por exemplo, Alice parece enganar-se nas contas: "quatro vezes cinco é doze, e quatro vezes seis é treze, e quatro vezes sete - oh! Assim nunca mais chego a vinte!".

Teria o matemático Charles Dodgson, escrevendo sob o pseudónimo de Lewis Carroll, avançado estes números ao acaso? Há quem pense que não e verifique que as contas estão certas se as bases forem sendo incrementadas. Assim, se em vez de usarmos a

base 10, como é habitual, usarmos a base 18, em que o número 18 se escreveria 10, então 12 significaria 18+2 e a primeira conta estaria certa. Igualmente, se usarmos a base 21, então 13 significaria 21+3 e a segunda conta também estaria certa. Subindo de três unidades a base à medida que se avança, o esquema vai funcionando até 19, mas a

seguir não se alcança 20 (pois 4x13 não se escreve 20 na base 42). Estaria o escritor de Alice a pensar num esquema tão complicado? Apesar de haver quem o defenda, não é possível garanti-lo. Mas o leitor interessado poderá ler os argumentos de Francine Abeles publicados na "Historia Mathematica", de 1976 (3, 183-84).

O mesmo se passa, por exemplo, no capítulo 7, quando se sabia que se estava em Maio, mas se desconhecia o dia. O chapeleiro louco pergunta a Alice o dia do mês e esta responde "quatro". Ora, 4 de Maio era o dia de aniversário de Alice Liddell, a menina que inspirou Dodgson a escrever estas aventuras. Não é certamente uma

coincidência. Mas que dizer da exclamação do chapeleiro que comenta a data dizendo: "Errada por dois dias!"?

Acontece que 4 de Maio de 1862, data em que pela primeira vez a história foi contada e começada a escrever, o calendário oficial estava apenas dois dias e alguns minutos afastado do calendário lunar (a lua nova ocorrera dois dias antes de 1 de Maio). Um dos comentadores de Alice diz que o lunático chapeleiro se orientava pela Lua, daí a sua exclamação (A.L. Taylor, "The White Knight", 1952). Será isto verdade? De novo não é possível sabê-lo, apesar de a teoria ser curiosa.

Pode-se ainda especular que o País das Maravilhas ficava situado perto do centro da Terra, local em que o calendário solar não é útil, mas o lunar sim, pois as fases da Lua seria também interpretáveis de um ponto central em que seria sempre dia.

Outro tópico divertido, ainda no capítulo 7, é a conversa do chapeleiro sobre o tempo e o relógio parado. É um tema caro ao autor de Alice. Anos antes de escrever estas aventuras tinha oferecido à irmã esta adivinha com que aqui deixamos o leitor: "O que é melhor, um relógio que esteja certo apenas uma vez por ano ou um que esteja certo duas vezes por dia?".

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DO OUTRO LADO DO ESPELHO

A segunda aventura de Alice possui ainda mais referências eruditas e científicas do que a obra anterior de Charles Dodgson. Escrevendo sobre o pseudónimo de Lewis Carroll, este professor de Matemática de Oxford tinha aqui o propósito de entreter jovens e não de ensinar Matemática e Lógica. E é assim que as aventuras de Alice devem ser lidas. Mas o público adulto não pode deixar de notar as subtilezas da narrativa.

O começo é profético. Ao passar pelo espelho, Alice fica igual? O leite simétrico, o leite do outro lado, é tão bom como o deste? O problema transcende o tratamento matemático da simetria. Geometricamente, é possível duplicar tudo no espelho e o mundo novo irá funcionar perfeitamente. Mas, sem o saber, Dodgson põe o dedo num problema que só seria resolvido em meados do século XX quando os físicos, nomeadamente Lee e Yang, que receberam em 1957 o Nobel por esse seu trabalho, mostraram a existência de assimetria nas partículas elementares. Como o nota Martin Gardner ("The Annotated Alice", 1970, p. 152), o leite perfeitamente simétrico seria constituído por antimatéria, pelo que Alice e o leite explodiriam por simples contacto.

Mas o trecho mais citado desta segunda aventura é, sem dúvida, a exortação da rainha à corrida. Aparece logo no capítulo 2. "Aqui, vês, é preciso correr o mais depressa possível para ficar no mesmo sítio". Os políticos e economistas modernos percebem bem a profundidade do dito.

Mais à frente, no capítulo 4, aparece um gigantesco corvo que escurece subitamente a cena e interrompe a luta entre os dois caricatos irmãos. O episódio parece ter sido inspirado numa história verídica de uma batalha do século VI a. C. O biólogo e evolucionista britânico J. B. S. Haldane, nascido em Oxford em 1892, quando o autor de Alice ainda aí residia e trabalhava, não tem dúvidas. No seu livro de ensaios "Possible Words" (1927, p. 8), diz que "A verdadeira história é a seguinte: Aliates, rei da Lídia, estava há cinco anos em guerra com Ciaxares, rei dos Medos. No seu sexto ano, em 28 de Maio de 585 a. C., como se sabe, a batalha foi interrompida por um eclipse total do Sol. Os reis pararam a batalha". Nas palavras do historiador grego Heródoto, "ficaram mais que ansiosos por estabelecer a paz" ("Histórias", 1.73-4)

No capítulo seguinte, Lewis Carroll retorna a um dos seus temas favoritos, o tempo. Agora, coloca-o a andar para trás, o que surpreende Alice. Sabe-se que Dodgson gostava de rodar as caixas de música em sentido inverso,

para perceber como resultavam as melodias tocadas ao contrário. Toda esta discussão poderá ter inspirado o escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald a escrever em 1922 a novela "O Estranho Caso de Benjamim Button", adaptada com imenso sucesso ao cinema há dois anos. Com o tempo a andar para trás, a rainha de Alice tem memória nos dois sentidos: lembra-se do que passou e do que vai acontecer! Naturalmente também prevê o passado. Aliás, segundo um conhecido provérbio inglês, a previsão mais difícil é a do futuro.

Deixemos o leitor com um desafio de previsão do passado que Dodgson incluiu na sua colecção de "Problemas de Travesseiro" (1893, nº 5): uma caixa tem uma única bola, preta ou branca, não se sabe; junta-se-lhe uma bola branca e sacode-se; tira-se uma bola ao acaso, que se verifica ser branca; que é mais provável, que a caixa tivesse originalmente uma bola preta ou uma branca?

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ALICE TORNA-SE FILÓSOFA

Na parte final de "Alice do Outro Lado do Espelho" que hoje é distribuída com o Expresso, a nossa heroína envolve-se em algumas discussões aparentemente absurdas. São conversas muito ao gosto do seu autor, o matemático Charles L. Dodgson que aqui escreve sob o pseudónimo de Lewis Carroll, como temos referido.

No capítulo 6, Humpty Dumpty considera-se no direito de dar às palavras um significado arbitrário: "Quando eu emprego uma palavra ela quer dizer exactamente o que me apetecer... Nem mais nem menos". E Alice fica confusa com alguns significados que o estranho ser inventa. As palavras, na realidade, são arbitrárias. Poder-se-ia chamar 'caneta' a uma árvore e 'alice' a uma cadeira, que todos os raciocínios seriam válidos desde que se mantivessem evidentes os sentidos subjacentes. Por isso, para Humpty Dumpty o significado pode ser exacto - "nem mais nem menos", o que não quer dizer que seja perceptível na comunicação.

Na linguagem científica evita-se discutir palavras e símbolos. Para isso, explicitam-se desde o início o significado em que os termos são usados. Na matemática, talvez a mais precisa das disciplinas, há definições e designações alternativas que não estão nem mais certas nem mais erradas que outras. São aceites desde que sejam coerentes e permitam o desenvolvimento dos temas. Muitas vezes, os artigos científicos começam por repetir conceitos conhecidos, apenas para que se percebam melhor as designações que vão ser usadas no resto do trabalho.

Em poesia, literatura e outras artes acontece frequentemente o contrário. Pode-se ganhar com a imprecisão. O uso ambíguo de um termo pode condensar todo o significado poético de uma frase e a dúvida que persiste na conclusão de uma obra de arte pode ser o que lhe dá a maior beleza.

O mais grave é o uso da linguagem ambígua onde ela deveria ser clara. Em Alice, o contraponto à arbitrariedade da linguagem e a descrição da ambiguidade aparece logo no capítulo seguinte ('O Leão e o Unicórnio'). A instâncias do rei, que lhe pergunta quem vê na estrada, Alice responde "Ninguém". E o rei comenta: "Como eu gostava de ter boa vista, para conseguir ver ninguém a esta distância".

Pode-se daqui inferir que Lewis Carroll está a tratar 'ninguém' como sendo uma entidade, da mesma forma que os matemáticos tratam o conjunto vazio como algo existente. Mas o que ressalta nesta passagem tal como na seguinte em que o rei interroga o mensageiro, é a confusão derivada do uso ambíguo de termos. Será que, tal como Humpty Dumpty, o rei dá a 'ninguém' o significado de um ente que pode ser visto? Para se comunicar é necessário que haja acordo no significado das palavras. E nesse sentido as palavras não são arbitrárias.

A mais famosa história do uso ardiloso da ambiguidade de 'ninguém' aparece na "Odisseia". No Canto IX, Ulisses, prisioneiro do Ciclope Polifemo, declara chamar-se 'Ninguém' (365). Quando cega o monstro com um tronco de oliveira incandescente, este grita por ajuda dizendo "Ninguém está a matar-me" (405). Os outros Ciclopes, pensando que ninguém lhe estava a fazer mal, não lhe acodem e o astucioso Ulisses consegue fugir da gruta e regressar ao seu navio.

Para que as coisas se percebam é necessário distingui-las. "Como se pode falar com uma pessoa que diz sempre a mesma coisa?", interroga-se Alice no início do capítulo final. Sabe-se em teoria matemática da informação que é necessário pelo menos uma distinção binária para que algo se transmita.