13
As marcas de oralidade em relatos pessoais escritos por alunos do Ensino Médio Tatiane Cristina Becher (UNIOESTE) Sanimar Busse (UNIOESTE) Resumo: Apresentam-se, neste trabalho, reflexões preliminares sobre a escrita de alunos do Ensino Médio. A investigação parte do texto como lugar de ensino/aprendizagem e de diálogo entre outros textos, conforme destaca Geraldi (1997). Trataremos, aqui, de uma proposta de produção de texto do gênero relato pessoal, realizada em três turmas pertencentes a um colégio estadual da cidade de Cascavel/PR. Nos textos produzidos pelos alunos, verifica-se a tendência ao comportamento menos monitorado do uso da linguagem, por meio de marcas de oralidade provenientes do discurso oral falado do aluno, como sujeito que se utiliza de sua própria linguagem cotidiana, de forma espontânea, mesmo no momento da escrita. O roteiro de investigação compreende a descrição e a análise da natureza dos fenômenos registrados nas redações analisadas, as quais apresentaram, em diversos momentos, a aproximação da modalidade falada com a modalidade escrita. Os dados, ainda iniciais, revelam uma tentativa de manifestação de conhecimentos já construídos, marcados por hipercorreções e ausência de controle sobre a arbitrariedade da escrita. Palavras-chave: escrita; marcas de oralidade; Ensino Médio Abstract: In this paper, preliminary considerations related to the writing of High School students are presented. The investigation regards the text as a place for teaching/learning and for dialogue among other texts, as emphasized by Geraldi (1997). We deal, here, with a composition proposal of the text genre personal report, given in three classes which belong to a state school in the city of Cascavel/PR. On the texts produced by the students, it’s possible to notice the tendency to a less monitored behavior while using language, through marks of orality coming from the student’s oral speech, who is considered a subject that uses one’s own daily language, in a spontaneous manner, even when writing. The investigation guide comprehends the description and analysis of the registered phenomena’s nature in the compositions analyzed, which frequently presented approximation between spoken and written modalities. The data, still initial, reveal an attempt to manifest knowledge that is already built, marked by overcorrection and lack of control towards the arbitrariness of writing. Keywords: writing; marks of orality; high school Considerações iniciais A disciplina de Língua Portuguesa está inserida na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, a qual, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio - PCNEM (BRASIL, 2000), tem sua diretriz registrada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96 e no Parecer do Conselho Nacional da Educação/Câmara de Educação Básica nº 15/98. Segundos os PCNEM (BRASIL, 2000), o ensino da Língua Portuguesa deve ser articulado aos pressupostos de sua área, englobando leitura/literatura, estudos gramaticais

As marcas de oralidade em relatos pessoais escritos por ... · em “uma sequência verbal escrita formando um todo acabado, definitivo e publicado” (GERALDI, 1997, p. 101)

Embed Size (px)

Citation preview

As marcas de oralidade em relatos pessoais escritos por alunos do Ensino Médio

Tatiane Cristina Becher (UNIOESTE)

Sanimar Busse (UNIOESTE)

Resumo: Apresentam-se, neste trabalho, reflexões preliminares sobre a escrita de alunos do

Ensino Médio. A investigação parte do texto como lugar de ensino/aprendizagem e de diálogo

entre outros textos, conforme destaca Geraldi (1997). Trataremos, aqui, de uma proposta de

produção de texto do gênero relato pessoal, realizada em três turmas pertencentes a um colégio

estadual da cidade de Cascavel/PR. Nos textos produzidos pelos alunos, verifica-se a tendência

ao comportamento menos monitorado do uso da linguagem, por meio de marcas de oralidade

provenientes do discurso oral falado do aluno, como sujeito que se utiliza de sua própria

linguagem cotidiana, de forma espontânea, mesmo no momento da escrita. O roteiro de

investigação compreende a descrição e a análise da natureza dos fenômenos registrados nas

redações analisadas, as quais apresentaram, em diversos momentos, a aproximação da

modalidade falada com a modalidade escrita. Os dados, ainda iniciais, revelam uma tentativa

de manifestação de conhecimentos já construídos, marcados por hipercorreções e ausência de

controle sobre a arbitrariedade da escrita.

Palavras-chave: escrita; marcas de oralidade; Ensino Médio

Abstract: In this paper, preliminary considerations related to the writing of High School

students are presented. The investigation regards the text as a place for teaching/learning and

for dialogue among other texts, as emphasized by Geraldi (1997). We deal, here, with a

composition proposal of the text genre personal report, given in three classes which belong to

a state school in the city of Cascavel/PR. On the texts produced by the students, it’s possible

to notice the tendency to a less monitored behavior while using language, through marks of

orality coming from the student’s oral speech, who is considered a subject that uses one’s own

daily language, in a spontaneous manner, even when writing. The investigation guide

comprehends the description and analysis of the registered phenomena’s nature in the

compositions analyzed, which frequently presented approximation between spoken and written

modalities. The data, still initial, reveal an attempt to manifest knowledge that is already built,

marked by overcorrection and lack of control towards the arbitrariness of writing.

Keywords: writing; marks of orality; high school

Considerações iniciais

A disciplina de Língua Portuguesa está inserida na área de Linguagens, Códigos e suas

Tecnologias, a qual, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio -

PCNEM (BRASIL, 2000), tem sua diretriz registrada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional nº 9.394/96 e no Parecer do Conselho Nacional da Educação/Câmara de Educação

Básica nº 15/98. Segundos os PCNEM (BRASIL, 2000), o ensino da Língua Portuguesa deve

ser articulado aos pressupostos de sua área, englobando leitura/literatura, estudos gramaticais

e produção textual, os quais eram, antigamente, separados em aulas específicas, como se não

tivessem relação entre si.

Dentre os objetivos propostos à disciplina de Língua Portuguesa, ao nos atentarmos às

atividades que propõem explorar a capacidade do aluno de se expressar por meio da escrita,

segundo as Diretrizes Curriculares da Educação Básica Língua Portuguesa/DCEs (PARANÁ,

2008), ao produzir uma redação, o aluno deve ser capaz de desenvolver textos que representem

sua autoria e seu posicionamento quanto à sua leitura do mundo. Não obstante, conforme as

DCE, “a produção escrita possibilita que o sujeito se posicione, tenha voz em seu texto,

interagindo com as práticas de linguagem da sociedade”. (PARANÁ, 2008, p. 56)

No entanto, conforme afirma Marquesi (2014), a dificuldade que alunos do Ensino

Médio apresentam para se expressarem por meio da escrita é recorrente, sendo que, muitas

vezes, esses alunos limitam-se a transcrever trechos ou clichês de textos lidos em suas redações,

o que presume a ausência de um fio condutor orientador de sua escrita.

Um dos objetivos de grande parte dos alunos deste nível de ensino consiste em obter a

aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), com o intuito de auxiliar na

conquista de uma vaga nas mais variadas universidades do país. Para conseguir uma nota

suficiente neste exame, uma das obrigações estipuladas ao estudante é demonstrar seu domínio

quanto ao uso da linguagem para defender sua opinião sobre o tema apresentado na proposta

de redação.

De acordo com as informações contidas na Cartilha do Participante Redação no Enem

(2016), o ENEM propõe, em sua etapa de redação, que o aluno se posicione acerca de um tema,

apresente uma tese e, por meio de um texto dissertativo-argumentativo, exponha sua opinião,

apoiada em argumentos consistentes, estruturados com coesão e coerência, formando uma

unidade textual. Esse texto deve ser escrito respeitando a modalidade formal da Língua

Portuguesa, sendo que um dos requisitos para uma redação adequada ao gênero é a “ausência

de marcas de oralidade e de registro informal”.

A redação do ENEM, assim como em qualquer outra situação de uso formal da língua,

como em redações para vestibulares em geral, escrita acadêmica, trabalhos escolares, textos

produzidos em um ambiente de trabalho, dentre outros, requer um domínio relativamente

elevado da capacidade de escrita de qualquer pessoa que utiliza essa modalidade da linguagem.

Para Marcuschi (1997), a escrita representa um bem indispensável para se viver em sociedade

na atualidade, podendo ser vista, inclusive, como essencial à nossa sobrevivência.

Uma das considerações avaliadas em testes classificatórios como o ENEM é o uso

formal da linguagem, como se estabelece na própria Cartilha do Estudante para a Redação do

Enem, em que uma das instruções para o uso adequado dessa modalidade escrita é a ausência

de expressões escritas que se aproximem da fala informal. No entanto, segundo Crescitelli e

Reis (2014), “o homem é um ser que fala; portanto, todas as práticas sociais que ele realiza

decorrem da oralidade, incluindo-se a escrita.” (CRESCITELLI; REIS, 2014, p. 38). Assim, há

a influência direta existente entre as capacidades da fala e da escrita em qualquer indivíduo

capaz de escrever. A habilidade de adequar o uso da linguagem de acordo com diferentes

contextos, objetivos e circunstâncias representa um dos papeis do educador cuja função remete

ao ensino da língua e suas diversas possibilidades de uso – como é o caso da adequação da

linguagem a ser utilizada em uma produção textual como a do ENEM.

Neste artigo, serão, primeiramente, abordadas as noções de texto, produção textual e

diferenciação entre fala e escrita, a partir de estudos de autores como Geraldi (1997), Koch

(2008), Marcuschi e Dionisio (2007), Marcuschi (1997), dentre outros, para, em seguida,

apresentarem-se os dados dos fenômenos morfossintáticos presentes nas redações analisadas,

refletindo acerca das marcas de oralidade presentes do corpus, com aporte teórico nos autores

apresentados e em documentos como as Diretrizes Curriculares da Educação Básica Língua

Portuguesa (DCE) e os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM), na

intenção de abordar a necessidade de conscientizar o aluno-escritor acerca das adequações

pertinentes entre as diferentes modalidades de uso da linguagem.

O texto como ambiente de manifestação dos fenômenos da linguagem

Com o intuito de se discorrer acerca dos fenômenos de escrita relacionados à oralidade

encontrados nas produções de alunos do Ensino Médio, este estudo foi realizado a partir do

material textual ao qual nos referimos como o “texto”. Há, no entanto, variadas formas de se

conceber a noção do que se trata um texto. Conforme Geraldi (1997), o texto caracteriza-se

como uma atividade discursiva, por meio da qual uma pessoa diz algo para outra, o que consiste

em “uma sequência verbal escrita formando um todo acabado, definitivo e publicado”

(GERALDI, 1997, p. 101).

Para Costa Val (1999, p. 3), “pode-se definir texto ou discurso como ocorrência

linguística da língua falada ou escrita, de qualquer extensão, dotada de unidade

sociocomunicativa, semântica e formal”. Costa Val (1999) concorda com Geraldi (1997) no

sentido de que um texto representa uma unidade de linguagem em uso que possui a função de

promover a comunicação entre dois seres.

Guimarães (2004) descreve o texto como qualquer enunciado, verbal ou escrito, extenso

ou curto, antigo ou moderno, sinônimo de discurso, assim como os autores Halliday e Hasan

(1976) afirmam que um texto pode ser falado ou escrito, em prosa ou em verso, em forma de

monólogo ou diálogo, abrangendo desde um simples provérbio até uma peça completa, desde

um grito para se pedir ajuda até uma discussão em um comitê que dure um dia.

Ruiz (2001) aponta para uma diferenciação existente entre concepções que entendem a

linguagem como um sistema, seja como representação do pensamento ou como instrumento de

comunicação, e a concepção denominada “sociointeracionista”, a qual considera a linguagem

uma atividade de interação social, onde indivíduos produzem-se como sujeitos. Para a autora,

a atividade linguística não é representada por frases isoladas ou um conjunto delas, mas sim

sequências linguísticas maiores, as quais possibilitam uma continuidade de sentidos, o que

significa considerar como objeto de análise o texto. A pluralidade de teorias concernentes ao

conceito de texto reflete a complexidade deste objeto de estudo.

Acerca da consideração dos gêneros textuais nos quais os textos se enquadram, de

acordo com Bakhtin (1992), as esferas de atividade humana regulam a utilização da língua,

sendo que o enunciado reflete as especificações e finalidades intrínsecas a cada uma dessas

esferas sociais, as quais estabelecem tipos relativamente estáveis de enunciados, aos quais nos

referimos como gêneros do discurso.

Koch (2008) baseia-se nos estudos de Bakhtin (1992) para apontar que essas práticas

comunicativas também são representadas pelos gêneros textuais, os quais são constituídos de

determinado modo e possuem funções específicas coerentes com as esferas sociais às quais

estão inseridos, o que torna possível reconhece-los e produzi-los quando necessário.

Segundo Koch (2008, p. 107), “todo gênero é marcado por sua esfera de atuação que

promove modos específicos de combinar, indissoluvelmente, conteúdo temático, propósito

comunicativo, estilo e composição”, mesmo que, ainda segundo a autora, os gêneros sejam

dinâmicos e sofram variações em sua constituição. Para Koch (2003), dentro da esfera escolar,

há o desdobramento do gênero, o qual deixa de ser apenas uma ferramenta de comunicação e

passa a ser, também, um objeto de ensino/aprendizagem.

No que concerne à habilidade de escrita, Ilari (1997) afirma ser o objetivo da produção

textual escolar a possibilidade de levar o aluno a observar os aspectos textuais do uso da língua,

utilizando-se de textos coesos e adequados, sendo a redação um exercício de roteiros

relacionados às funções do texto e seus registros linguísticos, atentando-se à coesão interna do

texto que se cria, representando, ainda, uma prática de controle dos fatores de informatividade

e redundância dentro do texto.

Acerca das modalidades falada e escrita da língua

O uso da língua não se restringe apenas ao material escrito, sendo a noção de texto

muito mais abrangente do que apenas a grafia. Segundo Marcuschi (1997, p. 126), “a fala seria

uma forma de produção textual-discursiva oral, sem a necessidade de uma tecnologia além do

aparato disponível pelo próprio ser humano. A escrita seria, além de uma tecnologia de

representação abstrata da própria fala, um modo de produção textual-discursiva com suas

próprias especificidades”.

Destaca-se a relação entre as diferentes formas de manifestação da língua. Marcuschi e

Dionisio (2007) afirmam que a língua se manifesta e funciona de duas maneiras: como

atividade oral e como atividade escrita. A expressão “fala” corresponde às formas orais do

material linguístico, enquanto o termo “escrita” refere-se ao material linguístico escrito, sendo

que se tratam de realizações integradas da língua, uma vez que é impossível identificar

determinados fenômenos formais de diferenciação entre oralidade e escrita que sejam

exclusivos da escrita ou da fala – todos os parâmetros linguísticos podem aparecer em algum

momento em ambas. Os autores continuam que não há dois sistemas linguísticos diversos em

uma mesma língua, ou seja, tanto a fala quanto a escrita seguem o mesmo sistema linguístico.

Mesmo assim, conseguimos identificar cada uma dessas habilidades de maneira clara, tendo

em vista que apresentam similaridades e diferenças, constantemente entrelaçadas.

Marcuschi (1997) aponta a existência de terminologias para as seguintes dicotomias:

língua padrão vs variedades não-padrão, língua culta vs língua coloquial, norma padrão vs

normas não-padrão. Para o autor, as relações entre fala e escrita tratam da questão dos

diferentes usos da língua, sendo que “o interessante nesta perspectiva é que a variação se daria

tanto na fala quanto na escrita, o que evitaria o equívoco de identificar a língua escrita como a

padronização da língua, ou seja, impediria identificar a escrita como equivalente a língua

padrão” (MARCUSCHI, 1997, p. 132).

Rodrigues (1999) enfatiza que, quando se escreve, há um distanciamento maior entre

escritor e leitor do que na língua falada, que prevê uma situação conversacional face-a-face,

momentânea, na qual o sujeito para quem se fala recebe a mensagem instantaneamente. Na

escrita, a mensagem do autor não é transmitida de imediato ao leitor. Dessa maneira, o escritor

possui mais tempo para pensar sobre o que e de que maneira escreve, da mesma forma que o

leitor irá dispor de mais tempo para entender sobre o que foi escrito. Por isso, o escritor tem

condições de produzir seu texto com mais cautela do que em uma situação conversacional,

organizando sua escrita de maneira mais cuidadosa.

Análise do corpus

Com o intuito de se identificar e analisar de que maneira a modalidade falada se

entremeia com a modalidade escrita, o que se manifesta ao utilizar-se da grafia, o corpus que

compõe esta pesquisa consiste em 48 textos produzidos por alunos do Ensino Médio de um

colégio público estadual, localizado na cidade de Cascavel/PR. A proposta de escrita foi

realizada no início do ano letivo de 2017, assim como a coleta dos dados, sendo que a amostra

abrangeu todas as séries pertencentes ao Ensino Médio: 1º, 2º e 3º anos. A atividade foi aplicada

pela professora regente e envolveu a apresentação escrita dos alunos, os quais foram instruídos

a apresentarem-se por meio desse relato pessoal, comentando sobre aspectos de sua

personalidade, suas preferências, sua rotina e atividades diversas que praticam no dia-a-dia.

Marcuschi (2010) utiliza os termos “oralidade” e “letramento” para tratar de práticas

sociais, e “fala” e “escrita” para se referir a modalidades de uso da língua. Para o autor, os

textos de cada modalidade – fala e escrita – são correlacionados e distinguidos pelos gêneros

textuais, nos quais há diversas variações, resultando em semelhanças e diferenças ao longo de

contínuos sobrepostos. Pode-se perceber, por exemplo, que uma carta se assemelha mais com

textos orais do que textos acadêmicos, mesmo que ambos sejam materiais escritos.

Dessa forma, podemos prever que as redações aqui analisadas se enquadram em uma

modalidade escrita que se aproxima da modalidade falada e, portanto, apresenta uma tendência

maior a apresentar ocorrências de marcas na escrita que se aproximam da oralidade, ou seja,

marcas de escrita próximas à maneira como o aluno utiliza a linguagem em sua fala cotidiana.

Vejamos alguns casos apresentados pela escrita dos alunos pertencentes à amostra:

1) “[...]e reparei que sem estudo agente vai acabar em nada[...]”

2) “Gosto de fazer textos de auto-ajuda, segundo a meus amigos e familiares eu levo

jeito.”

3) “[...]levei meus estudos na brincadeira[...]”

4) “[...]sempre me dei bem em atividades escolares.”

5) “Eu estuda em um colégio de irmãs, tudo muito rígido, mas divertido era tudo

certinho e bem puxado, mas nessa caminhada tive amigos, que não vejo mais e

amigos que ainda se vemos, mas hoje vejo a a minha filha passando por tudo isso

muito bom.”

Cada um desses trechos foi copiado de redações diferentes. Em todos os exemplos, há

expressões escritas que se aproximam da linguagem oral-dialogada, mais informal, coloquial,

como “agente vai acabar em nada”, “levo jeito”, “levei na brincadeira”, “me dei bem” e “bem

puxado”. Para Dijk (2002), o discurso é produzido por um falante e recebido por um ouvinte

inseridos em situações específicas de comunicação, ou seja, consiste em um processo funcional

inserido em um contexto social. Dessa maneira, ainda segundo o autor, ao comunicar-se, o

sujeito utiliza não apenas objetos linguísticos, mas também os resultados provenientes de

algum tipo de ação social. Os exemplos trazidos apresentam-se como resultantes de processos

sociais intermediados pela fala em situações mais coloquiais. Certamente, todas essas

expressões informais indicadas provêm da maneira como esses alunos se comunicam

informalmente, por meio da linguagem oral-dialogada.

Marcuschi (1997) destaca que o ser humano foi concebido como um ser que fala, e não

como um ser que escreve; daí deriva a noção de consideração da fala como primário e da escrita

como secundária. Segundo o autor, todos os povos já existentes compartilharam ou

compartilharam da linguagem oral, enquanto relativamente poucos têm ou tiveram acesso à

língua escrita. Ademais, mais relevante do que apontar qualquer espécie de supremacia entre

as duas modalidades, faz-se relevante, na verdade, esclarecer a natureza das práticas sociais

envolvidas com o uso da língua escrita e oral, pois cada uma delas possui um papel e um grau

de relevância para a sociedade.

Segundo Crescitelli e Reis (2014, p. 32), “o contexto interacional escolar deve

concorrer para que o aluno seja um usuário competente da linguagem e capaz de adequá-la em

instância pública dialógica diversificada e complexa, a qual envolve inúmeras situações do

exercício da cidadania sujeitas a avaliações”. Para as redações analisadas neste trabalho,

compreende-se que o conteúdo sobre o qual os alunos redigiram estes textos possibilita o uso

de uma linguagem mais informal e, outrossim, percebem-se várias marcas da língua oral

presentes na escrita. Outro exemplo é apresentado abaixo:

6) “[...] não me recordo ao certo quando comecei a estudar desde lá não se esforcei

muito ai acabei reprovando na 3ª série nos mudavamos muito ai não gostava de ir

a aula, levei meus estudos na brincadeira, ai reprovei de novo no 9º ano.”

No exemplo 6, a oralidade é marcada pelo uso da expressão “ai” como conectivo

textual, o qual pode ser considerado, baseando-se em Marcuschi (1997), como um fenômeno

dialógico e discursivo de uso de um conectivo textual na modalidade oral, impreciso, não-

planejado e não-normatizado. Marcuschi (1997) destaca a dicotomia fala x escrita ao trazer

exemplificações de suas características, apontando a fala como contextualizada, implícita,

redundante, não-planejada, imprecisa e não-normatizada, enquanto a escrita é

descontextualizada, explícita, condensada, planejada, precisa e normatizada. Segundo o autor,

essa perspectiva caracteriza-se por uma visão imanentista, que sugere essa separação entre a

língua em uso e a língua como um sistema de regras, o que decorreu ao ensino da língua a partir

de regras gramaticais. Por esse motivo, esse viés, de caráter restritamente formal, não abre

espaço para os fenômenos dialógicos e discursivos.

A partir desses pressupostos, faz-se devida a conscientização, por parte da escola, da

existência de tais fenômenos dialógicos e discursivos, assim como de sua adequação quanto à

situação de uso da língua. O conectivo “ai”, recorrente na fala de muitos alunos, não seria

considerado adequado em um texto dissertativo-argumentativo, como é o caso da redação do

ENEM, por exemplo. Mesmo assim, essa linguagem oral informal pertence ao sistema

linguístico desse aluno – o que também deve ser visto com naturalidade pela instituição

educadora. Não se trata de um “erro”, como seria classificado em muitos casos. Trata-se de

uma necessidade de adequação da linguagem conforme as diferentes situações sociais, o que

não excluir a possibilidade de se utilizar expressões informais como essa em contextos

específicos. Segundo Tarallo (2005), há diversas maneiras de se dizer a mesma coisa, dentro

de um mesmo contexto, com o mesmo valor de verdade, ao que se denomina “variante

linguística”. Existem variantes padrão/não padrão, conservadoras/inovadoras,

estigmatizadas/de prestígio.

Outros exemplos de marcas de oralidade percebidas nos textos analisados são descritos

a seguir:

7) “[...] agora eu to no último ano do ensino médio.”

8) “[...] eu estudo aqui nesta escola desdo 6º ano do fundamental [...]”

9) “[...] estudei na 2ª serie num colegio que eu não lembro o nome e estudei na 1ª

serie em outro colegio que não lembro o nome [...]”

O exemplo 7 apresenta uma marca da fala, na qual o aluno escreve um termo

exatamente como está habituado a pronunciá-lo: “tô” ao invés de “estou”. Para Rodrigues

(1999, p. 31), “as diferenças entre língua falada e língua escrita são de outra natureza, [...] elas

resultam de diferenças entre os processos de falar e de escrever, ou entre condições de produção

do texto falado e do escrito”. No exemplo 7, a utilização do termo “tô” para se designar ao

termo lexical “estou” representa não apenas de uma informalidade, mas uma marca da fala, de

fato. Afinal, subtração de sílaba em “tô” para a designação verbal conjugada “estou” é

frequentemente utilizada pelos falantes do português, especialmente em situações que não

requerem qualquer nível de formalidade, mas não faz parte da norma padrão da língua

portuguesa, em sua modalidade escrita. Mais uma vez, o que se apresenta é uma necessidade

de conscientização acerca da variação da língua, inserida em diferentes contextos, com

diferentes propósitos – o que difere de uma dicotomização entre os extremos “certo” e “errado”.

Conforme Vieira e Brandão (2007), entende-se por “normas” um conjunto de “regras”,

“funções”, “modelos”, “princípios”, “leis”. No entanto, há uma lacuna entre a norma idealizada

e a norma praticada de fato, mesmo quando utilizada pelos falantes com alto nível de

escolaridade – o que nos leva à necessidade de, constantemente, repensar nosso código

gramatical e buscar atualizá-lo. Nesse contexto, surgiu o fenômeno da língua falada brasileira

na sua variante culta, que passou a ser o modelo, a norma, contrastando as variantes cultas das

populares.

Nos exemplos 8 e 9, há a contração informal de conjunção e artigo, característica da

língua falada, em “desdo” (desde + o) e “num” (em + um). Partindo de uma perspectiva

fundamentada na norma denominada “padrão”, mais tradicionalista, esse uso da linguagem é,

na maioria das vezes, rechaçado quando usado no contexto escolar, especialmente quando se

trata da modalidade escrita, pois, conforme Marcuschi (1997, p.120), “a fala é adquirida

naturalmente em contextos informais do dia-a-dia. A escrita, em sua faceta institucional, se

adquire em contextos formais: na escola. Daí também seu caráter mais prestigioso como bem

cultural desejável”.

No entanto, embora seja também papel da escola capacitar o aluno para o correto uso

da língua considerada padrão, há, conforme anteriormente ressaltado, a importância de

salientar a variação existente entre diferentes contextos sociais. Segundo Freitag (2011), cabe

ao professor de língua portuguesa o reconhecimento de que cada aluno pertence a uma

realidade linguística diferente e que, de algum modo, tais diferenças irão se manifestar na

maneira como aprendem o código linguístico. Não obstante, para as DCE (2008), a escola,

como instituição democrática, tenciona garantir a socialização de conhecimentos e, para tanto,

deve acolher alunos independentemente de sua origem quanto à variação linguística que

utilizam. Conforme consta nas próprias DCE (2008),

A acolhida democrática da escola às variações linguísticas toma como ponto

de partida os conhecimentos linguísticos dos alunos, para promover situações

que os incentivem a falar, ou seja, fazer uso da variedade de linguagem que

eles empregam em suas relações sociais, mostrando que as diferenças de

registro não constituem, científica e legalmente, objeto de classificação e que

é importante a adequação do registro nas diferentes instâncias discursivas.

(PARANÁ, 2008, p. 55).

Temos, ainda, no exemplo 9, a repetição de termos. Segundo Crescitelli e Reis (2014),

a repetição consiste em uma estratégia de construção do texto falado, assim como a correção,

o parafraseamento, a parentetização e a referenciação.

No âmbito escolar, marcas de oralidade utilizadas na modalidade escrita, como os

exemplos trazidos neste artigo, são, muitas vezes, criticados e considerados “erros”, sem

qualquer conscientização quanto à adequação da escrita em diferentes contextos sociais, sendo

que, segundo Marcuschi (1997), a supervalorização da escrita acarreta uma carga ideológica

de superioridade para sociedades letradas, ou até mesmo para grupos específicos que dominam

a habilidade de escrita dentro de uma sociedade desigualmente desenvolvida. De encontro à

essa supervalorização da escrita, tem-se um dos sentidos da área de ensino de linguagens,

presente nos PCNEM (BRASIL, 2000, p. 8): “analisar, interpretar e aplicar os recursos

expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza,

função, organização das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção”.

Além disso, ainda conforme os PCNEM (BRASIL, 2000), os parâmetros também

deixam claro como uma das competências objetivadas ao longo do processo de ensino-

aprendizagem de alunos do Ensino Médio a seguinte diretriz: “compreender e usar os sistemas

simbólicos das diferentes linguagens como meios de organização cognitiva da realidade pela

constituição de significados, expressão, comunicação e informação” (BRASIL, 2000, p.9). Por

essa razão, faz-se necessária a consideração das diferentes funções da escrita, inclusive dentro

da escola, tornando claro para o aluno que, assim como se adequa a linguagem falada mais

apropriada conforme o contexto, o mesmo ocorre com a linguagem escrita.

Marcuschi (1997) salienta a função da escrita nos diferentes contextos sociais, como

escola, família, dia-a-dia, trabalho, vida burocrática e atividade intelectual, sendo que, para

cada situação, há distintas ênfases e objetivos para a escrita. Por conseguinte, escrita e contexto

entrelaçam-se, resultando em diferentes tipos e formas textuais, assim como terminologias e

expressões específicas. Por isso, seria benéfico o trabalho escolar focado nessas relações,

orientando o aluno quanto à seleção e definição de níveis de linguagem apropriados de acordo

com os diferentes contextos.

Considerações finais

A análise realizada nos permite perceber de que maneira a fala influencia na escrita,

uma vez que consistem em modalidades que se intermeiam, mesmo apresentando distinções

claras entre si. Como apontado por Crescitelli e Reis (2014), o ser humano é, primeiramente,

um ser que fala, adquirindo a habilidade de se comunicar por meio da linguagem oral-dialogada

para, posteriormente, apropriar-se da capacidade de escrita. Por essa razão, a escola, como

instituição democrática de inclusão, deve considerar a linguagem em suas diferentes

modalidades de uso, mostrando que diferentes situações sociais requerem diferentes usos da

linguagem, tanto na modalidade falada quanto na escrita, assim como deve levar o aluno a

apropriar-se dessa capacidade de adequação linguística.

Sendo assim, os profissionais docentes devem estar cientes das ideologias presentes nos

DCE e nos PCNEM com relação à consideração da linguagem e suas variações, para que a

escola seja essa instituição de inclusão que tenciona ser – inclusão esta, inclusive, linguística –

respeitando os diferentes usos da língua, em suas distintas modalidades, além de trabalhar com

suas variações, de modo a capacitar o estudante a refletir acerca de seu próprio uso da

linguagem, ultrapassando a noção de ensino que se limita aos meros conceitos de “certo” e

“errado”, a qual exclui a capacidade de adequação da língua - uma vez que esta necessidade de

adequação de fato existe e está presente em qualquer contexto.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros

Curriculares Nacionais (Ensino Médio). Brasília: MEC, 2000.

BUSSE, S.; GEDOZ, S. A pontuação e seus efeitos de sentido: elementos para a leitura. In:

Terezinha da Conceição Costa-Hübes; Douglas Correa da Rosa; Lauciane Piovesan Zago;

Luciane Wathier; Sueli Gedoz. (Org.). Descritores da Prova Brasil (5º Ano): estudos e

proposições didáticas. 1ed. São Carlos: 2014.

COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade: texto e linguagem. 2ª ed. São Paulo:

Martins Fontes, 1999.

CRESCITELLI, Mercedes Canha; REIS, Amália Salazar. O ingresso do texto oral em sala de

aula. In: ELIAS, Vanda Maria (org.). Ensino da língua portuguesa: oralidade, escrita e

leitura. São Paulo: Contexto, 2004.

DIJK, Teun Adrianus van. Cognição, discurso e interação. São Paulo: Contexto, 2002. Org:

Koch

DIRETORIA DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA. Redação do Enem 2016

cartilha do participante. Brasília, 2016. Disponível em: < http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/

guia_participante/2016/manual_de_redacao_do_enem_2016.pdf> Acesso em: 22 ago. 2017.

FREITAG, Raquel Meister Ko. Entre norma e uso, fala e escrita: contribuições da

sociolinguística à alfabetização. Nucleus, v.8, n.1, p. 1-10, abr., 2011. Disponível em:

<http://www.nucleus.feituverava.com.br/index.php/nucleus/article/view/542> Acesso em: 22

jun. 2017.

GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem: texto e linguagem. 4ª ed. São Paulo:

Martins Fontes, 1997.

GUIMARÃES, Elisa. A articulação do texto. São Paulo: Ática, 2004.

HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, Rugaia. Cohesion in English. London: Longman, 1976.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Desvendando os segredos do texto. 2ª ed. São Paulo: Cortez,

2003.

KOCH, Ingedore G. Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender os sentidos do texto.

2ª ed. São Paulo: Contexto, 2008.

ILARI, Rodolfo. A linguística e o ensino da língua portuguesa: texto e linguagem. 4ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 1997.

MARCUSCHI, Luiz Antônio; DIONISIO, Angela Paiva (Orgs.). Fala e escrita. Belo

Horizonte: Autêntica, 2007.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 10ª ed.

São Paulo: Cortez, 2010.

______ . Oralidade e escrita. Signótica, v. 9, n. 1, p. 119-145, jan./dez., 1997. Disponível em:

< https://www.revistas.ufg.br/sig/article/view/7396>. Acesso em: 22 jun. 2017.

MARQUESI, Sueli Cristina. Escrita e reescrita de textos no ensino médio. In: ELIAS, Vanda

Maria (org.). Ensino da língua portuguesa: oralidade, escrita e leitura. São Paulo: Contexto,

2004.

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica -

Língua Portuguesa. Curitiba, 2008.

RODRIGUES, Ângela Cecília Souza. Língua falada e língua escrita. In: PRETI, Dino (org.).

Análise de textos orais. 4ª ed. São Paulo: Humanitas Publicações FFLCH/USP, 1999.

RUIZ, Eliana. Como se corrige redação na escola. São Paulo: Mercado de Letras, 2001.

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 2005.

VIEIRA, Silvia Rodrigues; BRANDÃO, Silvia Figueiredo. Ensino de gramática: descrição e

uso. São Paulo: Contexto, 2007.