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Oralidade e Literaturamanifestaes e abordagens no Brasil
Diretora
Conselho Editorial
Maria Helena de Moura Arias
Abdallah Achour JuniorEdison Archela Efraim Rodrigues Jos Fernando Mangili Jnior Marcia Regina Gabardo CamaraMarcos Hirata Soares Maria Helena de Moura Arias (Presidente) Otvio Goes de Andrade Renata Grossi Rosane Fonseca de Freitas Martins
Editora da Universidade Estadual de Londrina
Reitora
Vice-Reitora
Ndina Aparecida Moreno
Berenice Quinzani Jordo
Frederico Augusto Garcia Fernandes (Organizador)
Oralidade e Literaturamanifestaes e abordagens no Brasil
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
Londrina2013
Direitos reservados a
Editora da Universidade Estadual de LondrinaCampus UniversitrioCaixa Postal 6001Fone/Fax: (43) 3371-4674E-mail: [email protected] Londrina - PR
Impresso no Brasil / Printed in Brazil Depsito Legal na Biblioteca Nacional
2013
Catalogao elaborada pela Diviso de Processos Tcnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
O63 Oralidade e literatura : manifestaes e abordagens no Brasil [livro eletrnico] / Frederico Augusto Garcia Fernandes (organizador). Londrina : Universidade Estadual de Londrina, 2013. 1 Livro digital.
Inclui bibliografia. Disponvel em: http://www.uel.br/editora/portal/pages/ livros-digitais-gratutos.php ISBN 978-85-7216-698-0
1. Literatura folclrica Brasil. 2. Poesia popular. 3. Cultura popular. I. Fernandes, Frederico Augusto Garcia.
CDU 82:398.2(81)
o indivduo j no capaz de dominar o retrato escrito do mundo.
(Hubert Fichte, Etnopoesia)
SuMRiO
ApresentaoFrederico Augusto Garcia Fernandes
Os Guarani Mby e a Oralidade Discursiva do MitoLuiz Carlos Borges
Imagens da Matinta Perera em Contexto AmaznicoJosebel Akel Fares
Oralidade no Pantanal: vozes e saberes na pesquisa de campo .........Eudes Fernando Leite & Frederico Augusto Garcia Fernandes
Literato em terra de antroplogo ....................................................Srgio Paulo Adolfo
A Cultura Popular em uma Perspectiva Empenhada de Anlise ......Maria Ignez Novais Ayala
Uma literatura oral ps-moderna nas letras de blocos afro do carnaval baiano...............................................................................Piers Armstrong
1
21
43
65
81
113
ix
De malocas e vagabundos: Adoniran Barbosa e a imagem paulistanaMaurcio Martins do Carmo
Lembranas do meu serto: memrias caipiras atravs de canesMaria de Ftima da Cunha
A obra As Mil e Uma Noites na literatura oral brasileiraNeuza Neif Nabhan
Bibliografia
143
161
173
191
Frederico Augusto Garcia FernandesAPRESENtAO
xi
Apresentao
Em 1881, quando Paul Sbillot, em Littrature Oral de la Haute-Bretagne, explica que o termo, que dava ttulo ao seu livro, abrange toda produo literria de pessoas que no lem, mas que se vinculam Li-teratura, ele incitava, entre outras coisas, a expanso dos estudos crticos de
potica para alm da produo escrita. No se pode afirmar que o trabalho de
Sbillot foi pioneiro no trato destas manifestaes, mas a literatura oral (cujo
primeiro registro a ele atribudo) deflagrou todo um rastro de preconceitos e
de conceitos, de associaes aos estudos folclricos diletantes, s pesquisas em
cultura popular e de ligaes com diferentes disciplinas da rea de Humanas.
Ensaios sobre a origem e significados em torno de modinhas, cantos, lendas,
mitos e causos foram se articulando e se desmontando no decorrer dos tempos.
No ltimo sculo, a discusso acerca da oralidade obteve um desenvolvi-
mento significativo. Tambm teses foram levantadas e questionadas, mas ainda
pulsa a herana dos tericos da Oral Formulaic; da ligao com o Estruturalis-
mo e com o pensamento selvagem; da interpretao da voz enquanto resistncia
sociocultural; do vnculo memria e identidade; e do redimensionamento
culturalista, a reboque da condio ps-moderna do pensamento ocidental.
No campo das Letras e, sobretudo, da literatura, as relaes entre ora-
lidade e gneros literrios vm se consolidando, seja devido divulgao do
poema em forma de cano, prtica tropicalista que se mantm at hoje, e mais
recentemente poesia sonora com presena na produo potica brasileira
contempornea, ou em razo dos estudos bakhtinianos, que perscrutam e in-
terpretam a voz, redimensionando-a para um problema de ordem culturalista.
xii
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
Pode-se dizer que certos fatores contribuem para isso, tais como: a valorizao
dos saberes ruminados margem da sociedade letrada, a ateno dada ao nar-
rador e ao discurso no-cientfico; crise do conceito de esttica,1 que abala os
departamentos literrios mundo afora ou, num plano mais subjetivo, o prazer
que a pesquisa de campo pode causar em qualquer acadmico. Os Anais da
Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Letras e Lingstica
(ANPOLL), que desempenha importante papel no campo de estudos literrios
brasileiros, trazem tona um conjunto de trabalhos que abrange inmeras
manifestaes (canes tocadas nas rdios, relatos dos rinces amaznicos,
mitos e ritos de diferentes etnias e comunidades, festejos etc.)2. Ou seja, numa
viso panormica sobre as dcadas de 1980 e sua posterior percebem-se in-
meros projetos de pesquisa em oralidade, o que levou ao debate, reflexo e
articulao de idias em torno das manifestaes orais espalhadas pelo Pas.
No parte, inmeros congressos, cada vez mais segmentados e especializados
so organizados em vrios estados do Brasil. Esta fermentao, por seu turno,
corresponde a uma abordagem polidrica quando o assunto toma o rumo,
parafraseando Paul Zumthor, da letra e da voz.
Compreender a importncia do oral na rea de Letras corresponde
tambm a dar um tratamento diferenciado ao que se entende por literrio. O
trabalho com oralidade, no demais enfatizar, , essencialmente, o trabalho
com a voz. Dessa maneira, a literatura deixa de ser captada pelo seu sentido
etimolgico de littera (letra), ou seja, tudo o que est escrito, e passa a ser enten-
dida lato sensu como cultura. Ela figura como uma espcie de arte do cotidiano,
isto , requisitada para diferentes manifestaes e ocorrncias no dia-a-dia, o
que varia das contaes de causos, das cantigas entoadas, despretensiosamente,
durante as lidas domsticas ou nas mais variadas profisses.
Da, o trabalho com a oralidade rompe com o conceito clssico de
literatura, o qual a circunscreve produo escrita3. Esta abertura do concei-
to d-se em razo da ampliao do leque de manifestaes a serem estudadas
como literatura. Tudo literatura? ou o que literatura? so questes que
comeam a surgir quando o cnone descentralizado. Para no desestabilizar
o cnone, o erudito e o que complexo (isto , no que diz respeito aos distintos
gneros formados no decorrer de uma literatura escrita plurissecular, em relao
ao implexo oral), separa-se o joio do trigo. Nesse sentido, as diferenas entre as
xiii
Apresentao
produes escritas e as orais tendem a ser simplificadas com um posicionamento
das manifestaes orais num gnero especfico: o da literatura oral/popular.
Se, num primeiro momento, isto pode tranqilizar o estudioso, pois
a extenso das manifestaes artsticas no escapa ao escopo literrio e, por
conseguinte, potica da voz dado um enfoque inferior em relao da
escrita; num segundo tempo, os critrios de abordagem dos textos orais so
os mesmos que os da escrita, o que acarreta vrios problemas de interpretao
do texto oral. Como alerta Ruth Finnegan, no suficiente enxergar a questo
como uma discusso sobre gnero, mas entend-la em seu prprio campo de
atuao. Na introduo de sua obra Oral poetry, ela define as manifestaes
orais como [...] um trabalho de arte efmero, e que no possui existncia ou
continuidade longe de sua performance. E logo em seguida acrescenta: A
capacidade e personalidade do performer, a natureza e reao do auditrio, o
contexto, a inteno so aspectos essenciais para o artista e para o significado
de um poema oral4. O livro de Finnegan ainda ajuda a desmitificar algumas
questes quanto composio do texto oral, em que o poeta aparece como figura
de primeiro plano no campo de investigaes, algo que at ento, no Brasil
(refiro-me aos manuais de folclore e literatura oral),5 os critrios de definio
para as manifestaes orais giravam em torno da antigidade, da persistncia
e do anonimato.
Ao que tudo indica, o principal problema de se trabalhar a literatura
com suas manifestaes orais reside no tipo de abordagem que feito: no caso,
inferir ao texto oral os mesmos significados e interpretaes que se conferem ao
escrito. Soma-se a isso a questo das distintas maneiras de veiculao da poesia
oral, das formas de composio e da transmisso em tempo e espao do texto
oral que muitas vezes ignorada. No se trata, apenas, de diferenciar o escrito
do oral; a palavra transmitida pela voz produo de sentido e, enquanto tal,
existem diferentes formas pelas quais o texto se ordena ou reordena. A falta de
preparo para ouvir leva o estudioso a afinar sua interpretao no diapaso de
um pensamento escrito. preciso, ento, que as manifestaes e abordagens do
texto oral sejam mais bem pensadas e discutidas na formao do profissional de
Letras. Novamente tomando o caso brasileiro como meridiano, o profissional
que quiser fazer um estudo sobre oralidade ir se deparar com diferentes meto-
dologias e manifestaes ao seu redor. Assim, o que norteou a organizao deste
xiv
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
livro foi abordagem de algumas destas manifestaes, apresentando trabalhos de
grupos de pesquisadores em oralidade das cinco regies geogrficas brasileiras.
Nesse sentido, o captulo Imagens da Matinta Perera em contexto ama-
znico liga-se ao Ifnopap (Projeto de Pesquisa Integrado O Imaginrio nas
Formas Narrativas Orais da Amaznia Paraense), que desde 1995 congrega
vrios pesquisadores em torno das narrativas orais da Bacia Amaznica. Sendo
aqui representado pelo estudo de Josebel Akel Fares, que analisa 600 contos
coletados por este projeto entre os anos de 1993 a 1995, a matinta perera
enfocada em suas diferentes formas. Para Fares, este mito s vezes est na gua,
e at transita no fogo, mas sua matria fundamental a areo-terrestre. O tra-
balho de memria com velhos em asilos de Belm, visitados pela pesquisadora,
revela lembranas de festas populares como as marujadas bragantinas e de vrios
mitos amaznicos, que so tratados no segundo captulo.
Do LEO (Laboratrio de Estudos de Oralidade), que desempenha im-
portante papel na recolha e produo audiovisual com repentistas paraibanos,
desde 1996, h um captulo assinado por sua coordenadora, Maria Ignez Novais
Ayala. Em A cultura popular em uma perspectiva empenhada de anlise so
levantadas discusses em torno da experincia da pesquisa de campo, medida
que a autora vai conduzindo o leitor para a importncia da participao do
pesquisador em relao comunidade com a qual trabalha. Com quase 30
anos de pesquisa em oralidade, Ayala trata de questes polmicas e necessrias
para o trabalho com a cultura popular. Alerta para a maneira como tm sido
analisadas e definidas as diferentes prticas culturais no Brasil, as limitaes
destas definies, bem como a complexidade e diversidade de manifestaes
da cultura popular e seus contextos. Em seu texto h ainda um estudo de caso
com o repentista-operrio Joo Cabeleira, migrante nordestino, que se tornou
trabalhador nas fbricas paulistanas, e uma reviso dos trabalhos da Misso de
Pesquisas Folclricas, coordenadas por Mrio de Andrade na dcada de 1930, que
so contemporizados com fontes coletas neste sculo, pelos pesquisadores do
LEO; alm de discorrer sobre a prtica de produo de fontes orais miditicas.
Tanto o Ifnopap quanto o LEO trazem como caracterstica a consolidao de
um projeto sobre poesia oral e a formao de geraes de pesquisadores em
oralidade em Instituies Federais de Ensino Superior (no caso, a Universidade
Federal do Par e a Universidade Federal da Paraba).
xv
Apresentao
Outros dois projetos desenvolvidos em instituies pblicas de ensino
superior so o de Srgio Paulo Adolfo, com o projeto A voz dos deuses na voz
dos homens, junto ao Departamento de Letras Vernculas e Clssicas da Uni-
versidade Estadual de Londrina e o Histria oral e memria: histrias e estrias,
coordenado pelo professor Eudes Fernando Leite, da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul. No primeiro, o objetivo principal foi recolher, cotejar e
publicar narrativas mticas do candombl, em Londrina (PR). Em Literato
em terra de antroplogo, Adolfo inicia com um testemunho sincero acerca das
dificuldades e entraves postos ao literato, quando ele deseja desenvolver pesquisa
de campo. Fruto de experincias anteriores, como as com ciganos Calon e Rom,
que tambm so mencionadas em seu texto, seu trabalho com o candombl
em Londrina parte de sua prpria iniciao no candombl de nao Nago, no
qual ele atua como Og. Este texto, alm de observaes perspicazes quanto
dinmica oral dos mitos cosmognicos nas Casas de Santo de Londrina, alerta
para a disparidade existente entre os trabalhos acadmicos e as prticas rituais
desenvolvidas entre os fiis. Conforme afirma Adolfo, h determinadas nuan-
as, na academia, que nem os orixs desconfiam. No outro prisma, do projeto
Histria oral e memria: histrias e estrias, que j reuniu mais de 70 horas de
entrevistas de Histria oral de vida e temtica, com pantaneiros no municpio de
Corumb (MS), sai o captulo, a quatro mos: Oralidade no Pantanal: vozes e
saberes na pesquisa de campo. Escrito por mim e por Leite, o texto est dividido
em dois momentos principais: um que discorre sobre uma contadora, Dirce,
e o outro que traz nfase no relato de seu Vad, ambos pantaneiros. Assim, o
papel da mulher na sociedade local pontilhado de modo a mostrar como,
atravs do ato de narrar, ela assume uma identidade, autoridade e autoria sobre
o que conta. Somado a isso, est o homem, representado na fala de seu Vad,
que revela um imaginrio de mitos e crenas, os quais vo filtrando seu modo
de viver e lidar com os acontecimentos a seu redor. Neste captulo, alm de
informaes sobre as terras encharcadas, encontram-se questionamentos acerca
da pesquisa de campo, procurando sensibilizar o leitor para os tipos de saberes
transmitidos pela narrativa oral.
Direta ou indiretamente outras instituies e programas de Ps-Gradu-
ao, com linhas de pesquisa voltadas para a cultura oral, marcam presena nos
demais captulos deste livro. O captulo inaugural, assinado por Luiz Carlos
xvi
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
Borges, fruto de sua pesquisa de doutoramento em Lingstica, desenvolvida
junto Universidade Estadual de Campinas, cujo tema versa sobre a oralidade
entre os ndios Guarani Mby. Os guarani mby e a oralidade discursiva do
mito prope uma compreenso dos mitopoemas mby luz da Anlise do
Discurso. O autor verifica os modos como os ndios dessa nao, por meio de
sua discursividade, estruturam o seu existir no mundo, problematizando,
ainda, a contradio entre o mundo imperfeito em que se funda a nao guarani
e a utopia da Terra Sem Males. Situando a narrativa mtica como um evento
de linguagem, Borges vislumbra os nexos entre o esttico e o tico, presentes
nos relatos mticos; a manifestao artstica individual e a tradio. Dessa
maneira, sua anlise aborda elementos muito caros poesia oral, ao tratar da
representao narrativa (performance e dramatizao) e do ato criativo ligado
dinmica do relato mtico.
Da anlise discursiva dos Guarani Mbay parte-se para outra manifesta-
o, em que se discute a letra e a msica: os cantos afro-baianos. Piers Armstrong,
da Universidade Estadual de Feira de Santana, faz um ensaio sobre as letras de
blocos canarvalescos luz das tenses em torno do artista e sua comunidade,
da relao do tradicional com a modernidade e dos discursos ps-modernos
dos letristas. A anlise de Armstrong, presente no captulo Uma literatura
oral ps-moderna nas letras de blocos afro do carnaval baiano, corresponde
a uma pesquisa de campo, na qual ele perscruta o compositor Juraci Tavares,
do bloco Il-Ay, acerca do processo de criao das letras, bem como analisa
vrios versos entoados pelos integrantes do bloco Olodum. Entre outras coisas,
o autor situa os problemas inerentes massificao das composies, dentro do
fenmeno do ax music, demostrando como valores coletivos ainda persistem,
medida que a norte-americanizao percebida em certos comportamentos
e atitudes. O Pelourinho, espao de encontro dos blocos soteropolitanos, e o
tema tnico das composies so outros aspectos trabalhados neste captulo.
De Salvador para So Paulo, as canes continuam na berlinda. Os
captulos de autoria de Maurcio Martins do Carmo e Maria de Ftima da
Cunha abordam Adoniran Barbosa e a cano caipira, respectivamente. Em
De malocas e vagabundos: Adoniran Barbosa e a imagem paulistana, Carmo
descreve a trajetria de Adoniran, enfocando desde suas composies e seu
sucesso na interpretao do malandro Charutinho. O que est em evidncia
xvii
Apresentao
neste captulo so as mudanas de comportamentos e valores do paulistano, o
qual passa a cultuar menos as normas burguesas tradicionais, do que os trejeitos
maloqueiros, manifestados por Adorinan. O autor ainda situa seu estudo sobre
a oralidade dentro da cultura popular e de massa, demonstrando atravs de
sua anlise como certas manifestaes passam a ser disseminadas e assimiladas
entre os diferentes padres culturais. J no captulo Lembranas do meu serto:
memrias caipiras atravs de canes, Cunha abre com a seguinte pergunta:
o que significa nos dias de hoje ser caipira, pertencer ao serto? A partir da,
ela demonstra como as transformaes urbansticas brasileiras, no incio do
sculo XX, no apenas atenderam a um esprito modernizador republicano,
como tambm a mudanas de comportamentos. Estabelecem-se, por esta razo,
dois eixos dicotmicos em seu texto: cidade/campo, progresso/serto. por
meio da msica caipira que a autora procura dar suas respostas para a indaga-
o feita no incio. Em canes como Mgoa de boiadeiro, Saudade de minha
terra, entre outras que so analisadas nesse captulo, possvel perceber traos
peculiares da cultura caipira somados viso do homem acerca do progresso.
Para tanto, a autora confere s canes o carter mnemnico, ao demonstrar
que elas atuam como o registro das transformaes sociais no mundo caipira.
Embora estejam sendo apresentados conjuntamente, estes dois captulos, com
suas especificidades, so marcados por um enfoque contextual, por meio do qual
seus autores discutem a cano em relao s transformaes sociais ocorridas
tanto na cidade de So Paulo, em decorrncia da imigrao e da migrao,
e tambm seu contraponto, a representao do xodo, do serto paulista, na
msica caipira. Estes trabalhos alinham-se s discusses acerca oralidade me-
diatizada. Diferentemente dos outros captulos, as pesquisas concentram-se na
voz percebida enquanto registro sonoro e fonogrfico.
Neuza Neif Nabhan fecha o livro com um ensaio sobre os temas miliu-
manoitescos presentes na oralidade brasileira. A reflexo de Nabhan, presente
no captulo intitulado A obra As Mil e Uma Noites na literatura oral brasileira,
perpassa todo um conjunto de trabalhos de folcloristas brasileiros e europeus
(como os de Nina Rodrigues, Cmara Cascudo e Leite de Vasconcellos), rastre-
ando as histrias de As mil e uma noites em antologias de contos populares. A
fixao deste repertrio na tradio oral brasileira tambm preocupao desta
autora, que elabora toda uma conjuntura acerca do fenmeno de transmigrao
xviii
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
de narrativas, tendo por base as histrias de Ali Bab e os quarenta ladres,
O pescador e o Infrit e Aladim e a lmpada maravilhosa. Nessa perspectiva,
a autora revisa vrias teses, ocidentais e orientais, que versam sobre a origem
de As Mil e Uma Noites.
Dada esta apresentao, pode-se dizer que este livro possui uma dupla
perspectiva: um passeio pelo Pas, levando seu leitor a conhecer um pouco
mais da diversidade da cultural oral, manifestada pelos contos e cantos; ao
passo que tambm traz vrias reflexes sobre a poesia oral brasileira. Tendo em
vista que este assunto ganha espao nos Parmetros Curriculares de Ensino de
Lngua Portuguesa, os diferentes temas e abordagens aqui evidenciados levam
o profissional de Letras a pensar a oralidade de uma maneira menos singular
e mais ampla. Isto ajuda a combater preconceitos em torno da linguagem e a
repensar o papel da voz enquanto geradora e reprodutora de sentidos.
Devo, por fim, expressar meu agradecimento ao professor Mrio Cezar
Silva Leite, ento coordenador do Grupo de Trabalho de Literatura Oral
e Popular da ANPOLL, por sugerir alguns nomes e contribuir com idias
para este livro; aos professores Eudes Fernando Leite e Elisa Maria Amorim
Vieira, pelas leituras e comentrios; aos alunos do grupo de estudo Cultura
Escrita e Oralidade e do projeto de extenso Ler e contar histrias: a transmisso
de saberes, da tradio oral literatura, por mim coordenados, cujas dvidas,
questionamentos e debates me levaram elaborao deste trabalho; e tambm
a todos os profissionais que aceitaram o convite para compor este mosaico das
pesquisas em oralidade no Brasil.
Notas
1 Remeto-me aqui ao ensaio de Leyla Perrone-Moiss, publicado no caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, em 18 de junho de 2000, intitulado Em defesa da literatura, no qual a autora observa: Estudar a literatura como arte, com base em critrios estticos universalizantes, tornara-se politicamente incorreto. A prpria palavra esttica passou a ser considerada como um palavro idealista, logocntrico e patriarcal (p.12).
2 A ANPOLL foi fundada em 1984, em Braslia. Em 1985, foi criado o Grupo de Trabalho Literatura Oral e Popular que, entre outras coisas, teve como objetivo promover a pesquisa em oralidade, possibilitar a reflexo sobre a poesia oral por meio de encontros, cursos de curta durao e ciclo de conferncias, bem como divulgar as manifestaes poticas orais resultantes das pesquisas realizadas.
xix
Apresentao
3 De acordo com Roland Barthes, Aula. Traduo de Leyla Perrone-Moiss, So Paulo: Cultrix, s.d. Entendo por literatura no um corpo ou uma seqncia de obras, nem mesmo um setor de comrcio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prtica: a prtica de escrever (p.16-17).
4 Ruth Finnegan. Oral poetry: its nature, significance and social context. Nova Yorque: Cam-bridge University Press, 1992, p. 28. A traduo do trecho de minha responsabilidade.
5 Ver a respeito: Lus da Cmara Cascudo. Literatura oral no Brasil. 3. ed. So Paulo: EDUSP/Belo Horizonte: Itatiaia, 1984 e Amrico Pellegrini Filho. Literatura Folclrica. So Paulo: EDUSP / Nova Stella, 1986.
Luiz Carlos BorgesOS GuARANi MBy E A ORALiDADE DiS-
CuRSivA DO MitO
23
Os Guarani Mby e a oralidade discursiva do mito
o mito como eveNto discursivo
A oralidade uma presena constante em nosso cotidiano enunciativo. Ela
nos circunda e produz diversos efeitos lingsticos e comunicacionais que, de to
familiares, no nos so perceptveis. Mas basta apurar os ouvidos com um certo
distanciamento e logo nos damos conta de musicalidades, ritmos, recursos plsticos
de sonoridade e gestualidades que no conseguem ser transpostos a no ser muitas
vezes na forma de uma caricatura para a realidade linear, visual e unidimensio-
nal da escrita. Em algumas sociedades, no entanto, a oralidade se institui como
a ordem dominante. Nessas sociedades, como em geral nas sociedades indgenas
e, em particular, na dos Guarani Mby 1, o processo enunciativo, a produo e a
transmisso de saberes ocorrem no domnio lingstico e discursivo da oralidade.
Muitos so os caminhos da oralidade. Dentre esses, escolho o que leva ao do-
mnio do mito. A razo bem simples: mito e oralidade so parceiros de imemorial
data. nessa relao necessria e constitutiva com a ordem do oral que o mito se
faz materialidade e elemento indispensvel no processo de formao pedaggica e
tica em sociedades indgenas. Mas tampouco posso falar das sociedades indgenas
em geral (muitos menos de uma sociedade indgena genrica e sem identidade).
Por isso, ser em torno a referncias (explcitas ou no) aos Guarani Mby que
pretendo tecer a minha interveno nesse complexo de dilogos que tem a cultura
oral como objeto temtico.
Ao tratar de uma anlise acerca da discursivizao do mito, tal qual este
intervm numa sociedade de tradio oral, importante discutir, ainda que ligei-
24
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
ramente, a minha perspectiva terico-metodolgica, bem como algumas questes
relativas aplicao de seu dispositivo analtico ao territrio do mito.
Se, de acordo com Maingueneau (1991), o objeto de que trata a Anlise
de Discurso (simplesmente referida como AD daqui em diante) diz respeito a
um conjunto definido por uma identidade enunciativa historicamente circuns-
crita, ento h como sustentar a afirmao de que o mito, cujas caractersticas
enunciativas permitem recuperar a sua inscrio na histria, apresenta-se como
um acontecimento discursivo e, como tal, configura-se como um objeto da AD.
O mito, compreendido como discurso, enquadra-se na categoria de discurso
fundador, uma vez que funciona, segundo Orlandi (1993), como referncia bsica
no imaginrio constitutivo dos povos, visto que o discurso fundador apresenta-se
como aquele em que a voz da imemorialidade, ou da ancestralidade, dimensionada
em/por um tempo originrio, se faz ouvir/agir atravs de um narrador (ou de um
texto narrado) que, neste caso, representa a voz da instituio ou do imaginrio
tribal instituinte. Destarte, dizer fundador no significa originrio, nem que se
constitua no lugar de um sentido absolutizado, mas que se instaura como uma
garantia histrica de sentido. Alm do mais, analisando a sociedade mby fica
evidente que existem relaes constitutivas entre os mitos e a formao do sujeito/
mby. No sujeito-mby atua uma dinmica de remisses (a palavra rememorao
e a recordao atualizada), as quais pela discursividade do materialidade e/ou
historicidade ao sentido e unidade de ser guarani mby.
O estudo da mitologia de povos indgenas, na perspectiva da AD, no tem
por fim discernir ou atribuir um ou mais sentidos s narrativas mticas. A preocu-
pao da AD a de prover uma explicitao acerca das condies que produzem
e pem em funcionamento o mito enquanto discurso (sua historicidade). Assim
sendo, a anlise de um mito (texto), nessa perspectiva terico-metodolgica, implica
um enfoque no qual o que deve ser evidenciado e explicitado so os processos
de produo de sentido e os elementos que o constituem (ORLANDI, 1990)
processos e elementos que implicam na historicidade do texto. Com relao ao
texto mtico, o enfoque discursivo importa na problematizao da relao entre
o sujeito-ndio e o mito. A partir disso, e considerando que no discurso ocorre o
cruzamento de diversos textos, constato que o mito fundador se configura como
o discurso no qual diferentes textos e prticas discursivas se articulam para produ-
25
Os Guarani Mby e a oralidade discursiva do mito
zir a forma-discurso mby. Por forma-discurso mby entendo o funcionamento
discursivo que tem por sujeito a pessoa-mby ou o ser-mby.
Assim, proceder leitura/anlise dos mitopoemas2 guarani mby consiste,
sobretudo, em compreend-los em sua plena discursividade. Ou seja, a anlise visa
verificar os modos como, na materialidade da lngua (o discurso mtico), os Mby
estruturam a racionalidade do seu existir no mundo, na contradio fundadora que
lhes peculiar: estar confinado ordem do mundo imperfeito (Ywy Mbae Megu),
mas tendo como objeto obsessional de desejo a Terra Sem Males (Ywy Mar E).
algumas coNsideraes sobre as razes do mitopoema
O mito , em suma, o espelhamento discursivo que reflete/refrata o imagi-
nrio e a ideologia de um povo. Com isto, quero dizer que toda realidade atra-
vessada pela linguagem que, num movimento simultneo, transparece e opacifica
essa mesma realidade. Sendo, por sua vez, uma forma discursiva que possibilita
compreender o complexo cultural, histrico e cognitivo de um povo, o mito medra
no territrio da ideologia.
Segundo Rocha (1985), o mito , pois, capaz de revelar o pensamento de
uma sociedade, a sua concepo da existncia e das relaes que os homens devem
manter entre si e com o mundo que os cerca. Em que pese a concepo conteu-
dstica dessa assertiva, na qual est pressuposta uma imaginria transparncia na
relao processo mtico/organizao social, no resta dvida de que, atravs da
compreenso dos processos discursivos da mitologia, possvel acessar os mecanis-
mos que atuam em dada sociedade. Isto s possvel em virtude do fato de que,
na discursividade do mito, inscrevem-se as representaes que, nas sociedades de
tradio oral, so estabelecidas entre povo, territrio e histria. neste contexto
que iremos encontrar a territorializao discursiva do mito.
Deste modo, o mito insere-se numa formao discursiva determinada que,
por sua vez, o remete a uma formao ideolgica, cuja historicidade se materializa
na prtica discursiva dos povos mticos 3. A formao e a prtica ideolgicas, como
26
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
a instncia constitutiva de toda sociedade, comportam um complexo de noes-
-representaes-imagens, de um lado e, de outro, montagens-comportamentos-
-conduta-atitudes-gestos. Este complexo, por seu turno, configura a formao
histrico-ideolgica de uma sociedade, isto , o conjunto de instncias ou de
processos institucionalizantes que regulam, organizam e promovem sentido vida
e aos sujeitos sociais.
Assim, ocorre nos povos mticos uma iluso discursiva instituinte, resultante
do efeito de pr-construdo, segundo a qual, ao relatar e/ou (re)contar) um mito,
o narrador o est (re)contando tal qual este fora transmitido pela voz imemorial
da ancestralidade (voz cujo estatuto constitutivo o de autor originrio). Trata-se
da iluso constitutiva da prpria discursividade mitopotica, de que o mito assim
relatado (de acordo com a ritualidade que lhe prpria) se apresenta como ntegro,
autntico, original, em suma, verdadeiro.
No mito intervm, sem limites, a heterogeneidade discursiva, uma vez que,
por suas prprias caractersticas de arquivo oral e de autoria imemorial, no existe
um relato que possa ser classificado como relato-matriz. A incompletude das ver-
ses mticas atua no campo da memria e do imaginrio, tanto do mitonarrador
quanto da audincia. devido funo de imagem dialtica 4 e de rememorao
atualizada5 desses campos que as alteraes, lapsos e imprecises vo sendo hete-
rogeneamente preenchidos e reinterpretados. Isto , a inteligibilidade dos textos
oralmente transmitidos decorre da ao da memria e das formaes discursivas
que interpelam os interlocutores na cena narrativa.
Sendo o mito uma matria oralizante/oralizada de memria, so os mecanis-
mos de transmisso oral, principalmente no espao da ritualidade, que asseguram
sua eficcia na constituio discursiva desses povos. Em suma, o mito se realiza
como um discurso sobre o real e como a territorializao do real.
por isso que o mito considerado a palavra originria (efeito de imemo-
rialidade produzido pela dinmica da narrativa na qual fatos da histria irrompem
e se integram, sem causar descontinuidades), a voz que profere o discurso inaugural
no qual so encontrados os traos fundadores, e est em constante reescritura, da
memria discursiva em seu ininterrupto fazer-se. O mito funciona como atestado
da existncia (veracidade e materialidade), uma vez que aquilo que ele anuncia passa
a existir na realidade sociocultural e no imaginrio dos povos.
27
Os Guarani Mby e a oralidade discursiva do mito
a discursivizao do mito em sociedades de tradio oral
Assim definido, o mito apresenta-se como reflexo/refrao das condies
histricas de um povo, ou, nos termos de Castoriadis (1982), como constituinte
do imaginrio radical que encena a construo das sociedades indgenas. Como
prtica discursiva, o mito responde ao imaginrio e formao ideolgica que,
mediante mecanismos de ordem histrico-social, produzem efeitos de identidade.
Por essa razo, no e pelo mito que essas sociedades se instituem, uma vez que a
narrativa mtica se apresenta como a explicao de seu prprio existir e da existn-
cia do mundo. Ao mesmo tempo, por meio do mito, possvel analisar o modo
peculiar como as sociedades de tradio oral recortam, tipologizam, explicam e
compreendem o seu universo, bem como o modo pelo qual representam as relaes
que a so estabelecidas.
Nas sociedades de tradio oral, o relato mtico apresenta-se como uma
dimenso discursiva porque institucionalizado, como parte de um arquivo, e
porque regulamentado pela ritualizao, que determina quem, onde, como e
quando este pode ser proferido/representado. As regulamentaes ritualsticas
so entendidas, na perspectiva da AD, como uma rede de coeres generalizadas
que distribuem papis e inscrevem nas formaes ideolgicas tanto o sujeito
enunciador, o sujeito destinatrio, o gnero discursivo selecionado, como a
prpria enunciao.
Considero que o acervo mtico de uma sociedade de tradio oral deve ser
categorizado como arquivo, pois como arquivo que comparece na interpelao
dos sujeitos que nele se constituem. Trata-se de um arquivo de natureza oral,
estabelecido imaginariamente na memria social (e individual), pelos efeitos de
imemorialidade e ancestralidade. E se a leitura de arquivo insere-se entre a lngua
(sistema, sentido) e a discursividade (insero na histria de efeitos de sentido),
ento, no resta dvida de que, ao proceder leitura de um mito, nos encontramos
diante da leitura de um arquivo.
O imaginrio constitutivo do arquivo, como espao fundador e legitimador
do poder dizer, encontra-se, pois, ligado produo de sentido. Maingueneau
aponta similaridades discursivas entre o mito e o arquivo, visto que para um como
28
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
para outro trata-se de considerar a posio enunciativa que liga o funcionamento
textual identidade de um grupo. (1991, p. 23). O que desejo realar, a partir
dessa assertiva, que o mito se constitui, para as sociedades tribais de oralidade, no
arquivo que lhes possibilita a discursividade. Recorrendo (e deslocando) definio
de arquivo em Pcheux (1994), pode-se entender o mito como um campo de
documentos pertinentes e disponveis sobre uma questo.
A propriedade de rememorao que caracteriza o discurso mtico associa-se
diretamente a uma outra propriedade: a oralidade. Via de regra, as sociedades de
tradio oral no apresentam um classificador absoluto que distinga os diferentes
gneros narrativos. Gallois (1994) faz referncia existncia de uma polifonia
de formas tais como formas dialogadas, diferentes falas de locutores distintos,
narrativas de uma mesma pessoa em diferentes contextos ligadas ao processo de
transmisso oral.
O que caracteriza a oralidade, enquanto sistema de transmisso, a conti-
nuidade da transmisso. Deste modo, de acordo com Gallois,
a narrativa no precisa ser completa nem a descrio exaustiva, pois na forma dialogada e na retransmisso que o argumento se constri e toma sentido. Depende, portanto, da continuidade da transmisso dos smbolos prprios cada cultura, em que as imagens reiteradas por uns so ouvidas e realimentadas por outros. (1994, p. 26)
A transmisso oral, ento, evoca uma memria do futuro 6 pois a rememo-
rao e a interpretao so garantidas pela transmisso, que privilegia a evocao
inexata, a qual funciona como reconstruo, apoiada em formas narrativas ou
no 7 pelas quais as diferentes verses (sempre se referindo ou remetendo a uma
forma identificada como original) vo sendo incorporadas. Este processo de me-
moralizao por deslocamento exige um tempo de esquecimento para permitir o
ressurgimento de imagens e smbolos antigos da identidade e da auto-imagem, as
quais, por sua natureza, devem permanecer, sempre, num processo de construo.
Sendo sujeitos do devir (VIVEIROS DE CASTRO, 1987), os Mby manifestam
uma memria ou uma nostalgia do futuro porque, estando sobredeterminados
pela palavra, se lembram e essa lembrana (das palavras fundadoras, das normas e
da promessa) que os move, como negao e como desterritorializao, em busca
da terra onde a realizao plena de ser sujeito-mby se efetiva.
29
Os Guarani Mby e a oralidade discursiva do mito
De modo geral, nas sociedades de tradio tribal/oral, o mito apresenta-se
como uma estrutura complexa e multidimensional. Uma dessas funes de ser
a histria verdadeira em que se funda a sociedade. Processando-se como memria
atualizadora, o mito estabelece a ligao entre as vrias geraes, permitindo criar
um efeito identitrio, atravs do qual a nao-povo manifesta uma conscincia
de homogeneidade e continuao. Como muito bem expressa Tedlock (1983):
POETRY is oral History/and oral History/is POETRY.
Entendido, ento, como narrativa fundadora que explica o presente a
partir de eventos que se realizaram no passado imemorial (MALI, 1994), o
mito funciona como um mecanismo aberto de fazer a histria, que se sustenta
na/pela memria. Deste modo, conquanto seja documento de uma historiao
(ou de uma (re)memoriao), o testemunho mtico no se desenrola no linear
das cronologias.
Na enunciao do mitopoema, os tempos se cruzam permanentemente.
Passado e presente se entretecem, formando um tempo singular. A narrao
mitopotica realiza uma converso temporal: traz o passado do relatado para o
presente da narrao, atualizando-o. Nas sociedades de tradio oral, o discurso
mtico remete a um tempo singular, radicalmente distinto da realidade histrica.
a esta forma de temporalidade se pode chamar de tempo-zero do evento. Esta
estrutura de temporalidade e de veracidade, caracterstica do discurso mitopoti-
co, atravessa a histria desses povos e se constitui na coluna de sustentao de sua
mundivivncia. O mitopoema funda essa histria, porque funda a identidade e o
sustentculo (ideologia, imaginrio, assujeitamento e tradio: sua racionalidade)
da explicao que esses povos tm de si mesmos e do mundo.
Assim, essa relao discurso/histria, nas sociedades caracteristicamente
marcadas pela oralidade, evidencia-se no/pelo discurso mtico. De igual modo,
nos mitos que a histria dos povos de oralidade se edifica.
Assim, v-se que uma das propriedades do discurso mtico a acronia.
Propriedade que, lingisticamente, marcada por diticos temporais difusos. No
Canto I do Ayvu Rapyta 8, por exemplo, h indicaes da passagem do tempo do
caos para o tempo do cosmos (fala-se na noite originria, nos ventos originrio e
novo, do tempo primitivo e do novo). Alm dos diticos temporais, na narrativa
mtica tambm aparecem diticos espaciais e diticos subjetivos, que so igualmente
de carter genrico (fala-se que a divindade criadora estava no corao da noite
30
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
originria, indica-se a morada terrena).
Uma outra propriedade, de igual modo relacionada caracterizao temporal
e oral do mito, a anacronia. Contudo, considerando que a anacronia (propriedade
pela qual ocorre uma discordncia entre a histria e a enunciao) um recurso
bastante utilizado em gneros narrativos, no se pode apont-la como uma carac-
terstica especfica dos mitos. O fato importante, para a anlise e compreenso do
mito, que essa propriedade lhe constitutiva, sendo responsvel pela explicao
da aparente desordem temporal da narrativa mtica.
a potica da oralidade
Parto, agora, de uma afirmativa que, creio, no suscita maiores controvr-
sias, a de que toda fala um acontecimento. Como acontecimento, o ato de fala
constitui um desempenho-atuao-representao (ou uma performance), que
determinado pelo contexto social e situacional (classe, instituio, ritualidade)
particular em que o acontecimento-fala ocorre. Todo ato de fala, por conseguinte,
seja formal ou informal, sujeita-se a regras que so tanto gramaticais quanto sociais,
pois falar no se configura como um prtica linguajeira isolada do corpo social.
Alm do mais, os atos de fala do cotidiano implicam numa relao dialogante, entre
sujeitos sociais determinados, bem como situaes social e culturamente marcadas
e que, em suma, determinam o acontecimento da fala como prtica scio-histrica.
De acordo com o que j foi dito at aqui, a narrativa mtica deve ser
enfocada como uma fala, ou melhor, um evento de linguagem. E, como tal, s
pode ser apreendido no contexto de sua produo e da situao social em que se
insere e da qual, afinal, resulta. Se assim , o mito, em sua condio de evento de
linguagem, um discurso. Ora, tratar o mito como discurso implica relacion-
-lo necessariamente ideologia, isto , estrutura poltica e social, ao modo de
produo e s relaes a partir da estabelecidas, s crenas coletivas e individuais,
bem como s relaes sociais entre os diversos segmentos do grupo. Todos esses
aspectos produzem marcas (como materialidade histrica) nas diversas prticas
discursivas prprias da sociedade indgena.
A arte verbal configura-se, nas sociedades tribais, como um momento
singular em que as regras sociais esto sendo materializadas e, por isso mesmo,
31
Os Guarani Mby e a oralidade discursiva do mito
revela-se o instante em que o esttico (individual) apreende o tico (coletivo) e
o transforma em representao artstica. Neste sentido, a arte verbal dos povos
indgenas afigura-se como parte inextricvel do seu ser social (ethos tribal), e no
uma atividade individualizada, embora assente-se na habilidade e artisticidade
individual. Trata-se de uma forma de expresso, um gnero discursivo, integrado
s atividades e ao universo cultural da tribo.
No cenrio em que o artista tribal se apresenta no ocorre a suspenso da
tica, antes, a ordem tica que subjaz realizao da manifestao artstica in-
dividual. Assim, o conjunto das manifestaes eidticas constitui a materialidade
histrica dessa confluncia entre o tico e o esttico, ou ainda, entre os processos
individuais de expresso artstica e aqueles que fazem parte do acervo coletivo
(arquivo), de natureza histrico-social. Como j antes referido, estabelece-se um
nexo indispensvel entre a criao individual (a polissemia) e o respeito tradio
(parfrase), condio fundamental para que a obra seja criada e apresentada.
Existe uma dinmica parafrstico-polissmica prpria da performance pela
qual, invocando-se e conformando-se tradio (ao arquivo de formas estabilizadas)
ou intertextualidade, ela renova e se renova. Discursivamente, a performance
trabalha na tenso entre o pr-construdo (o sempre j-l dito, o repetvel) e o
deslizamento dos sentidos. Lembrando Pcheux (1994), ao dizer que todo enun-
ciado passvel de sofrer deslocamento de sentido e de forma, compreende-se que
o mito, cuja materialidade se historiciza no ato de narr-lo, no possa ser nem
homogneo, nem esttico.
Nesse sentido, a performance implica, de um lado, a existncia de uma forma
institucionalizada pela qual a comunidade reconhece a autoridade e a legimitidade
de que conta e, de outro, uma ritualidade referente execuo formal da narrativa,
como condio de habilitao artstica, na qual evidencia-se o uso de um tipo de
linguagem que se diferencia da linguagem ordinria. Essa caracterstica aponta
para o funcionamento do magma de significncia, sendo que uma de suas marcas
mais salientes a sua singularidade.
O papel discursivo do mitonarrador, determinado pela instituio tribal,
no o circunscreve a repetir neutralmente um texto memorizado, mas o investe de
legitimidade para interagir com ele. O narrador improvisa o seu texto, interpreta-
-o, recria-o a cada nova apresentao. O narrador tem por funo (re)textualizar
32
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
o texto da tradio, de forma que ele no somente o ator mas o autor de uma
nova verso e, ao mesmo tempo, seu comentador. O que deve ser ressaltado
quanto a isso que o texto da tradio no uma frmula fixa, indefinidamente
igual a si mesmo. Por ser oral e matria de memria (elaborao, apresentao
e transmisso), o texto encontra-se em permanente processo de discursivizao.
No sendo frmula, cabe a cada mitopoeta (e audincia) no apenas representar
mas vivificar o texto.
etnopotica ou a mitologia como arte verbal
De acordo com a situao atual dos estudos etnopoticos no h dvida
quanto constatao de que esses povos manifestam, em vrios nveis, uma ativi-
dade potica. Segundo Sherzer & Urban (1986), falar em potica, relativamente
produo oral de grupos indgenas, significa insistir fortemente na referncia s
formas especficas e peculiares de como esses povos fazem uso esttico-expressivo
dos recursos lingsticos de que dispem. a existncia desse tipo de produo que
justifica dizer que entre os povos indgenas manifesta-se uma literatura. Quanto ao
que devemos entender por literatura, em contexto de tradio oral, recorro a Bright
(1984), segundo quem h duas maneiras de conceitu-la: ela pode ser entendida
de um modo mais genrico a arte cuja matria so as palavras , ou de um modo
mais restrito: arte escrita com palavras. em sua acepo mais genrica que se deve
situar a arte com palavras que os povos de oralidade produzem. Em sua acepo
mais paradigmtica, o termo literatura deve ser entendido como se referindo ao
conjunto de textos que so considerados dignos de ser transmitidos e preservados.
Dessa forma, a literatura de povos de tradio oral deve compreender o
conjunto de realizaes produzidas, transmitidas e apresentadas oralmente. Nas
sociedades indgenas, a produo literria freqentemente se refere aos mitos, s
lendas e a outras formas de expresso verbal. Outra caracterstica dessa produo
literria que, mesmo quando apresentada ou representada em forma escrita, ela
permanece, devido s suas especificidades de forma artstica estritamente verbal,
um exemplar de literatura oral.
A partir desse ponto, j no deve causar nenhum estranhamento falar em
literatura oral ou verbal, ou em potica oral ou verbal, ou em arte verbal ou ainda
33
Os Guarani Mby e a oralidade discursiva do mito
em etnopotica. O uso de termos tradicionalmente consignados para indicar a pro-
duo escrita, justifica que, ao ser empregados para classificar a produo artstica
de grupos de tradio oral, eles sejam delimitados pelos adjetivos oral ou verbal,
os quais especificam que se trata de produo potica no escrita.
Assim sendo, a potica verbal se define pela presena de uma fala marca-
damente estilizada, formalizada e ritualizada, constituindo um estilo em que o
meldico e as figuras de linguagem predominam. Ela engloba a narrao de mitos
e todos os eventos ritualizados de fala em uma comunidade tribal, caracterizada
pela oralidade. Como toda representao artstica, a arte verbal sustenta-se em
critrios formais: ritmo, rima, mtrica, msica, explorao dos recursos da lngua,
e na tradio. Ao mencionar a tradio, o que fica implicado o acervo narrativo
prprio do grupo, os diversos gneros e a interdiscursividade/intertextualidade.
Trata-se, pois, de um estgio em que o domnio dos recursos expressivos (gra-
maticais e simblicos) da lngua funde-se com a sabedoria (da arte de narrar, do
conhecimento da histria e dos destinos da tribo), e ambos confluem para uma
experincia de totalidade, da qual participam o prazer da narrativa e o xtase. Nas
sociedades de tradio e transmisso oral, essas formas de falar bonito constituem
elementos de grande importncia para a preservao dessas sociedades e para a
manuteno de sua identidade intra e intertribal.
A definio do que ou no potico, no conjunto da produo verbal de
um grupo indgena, requer um olhar analtico que leve em conta o ponto de vista
da comunidade, pois no interior do sistema lingstico e em relao a recortes
do tipo ritual, fala poltica ou cantos de cura, que o potico transparece. A con-
siderao dessas instncias de uso lingstico e potico em sociedades tribais, nas
quais a funo esttica ocorre imbricada constitutivamente com outras funes
social-histricas, no pode prescindir do valor e do julgamento de elaborao
lingstica que somente os crticos nativos podem asseverar.
Assim, ento, o requisito especfico para que um texto seja considerado
como produto da literatura oral , obviamente, que ele tenha forma e fruio
esttica. Que ele possa ser percebido como objeto provocador de uma reao es-
ttica. A condio de ser produzido e/ou transmitido oralmente necessria, mas
no suficiente para garantir que um texto seja classificado como arte verbal. Para
preencher tal condio, imprescindvel que o texto apresente uma elaborao
34
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
artstica e seja, conseqentemente, avaliado como tal pela comunidade nativa.
Ou seja, o que distingue, nas culturas de tradio oral, um texto comum de um
artstico , semelhana do que ocorre em qualquer outro tipo de sociedade, a
sua poeticidade, a sua capacidade de ser consumido/frudo por suas caractersticas
ou efeitos estticos.
A produo artstica dos povos indgenas contribui, alm disso, para nos
esclarecer que as narrativas orais constituem em forma autnoma de arte, e no
como meros ancestrais da narrativa escrita. Dizendo que a arte verbal dos povos
indgenas uma forma de expresso artstica cuja especificidade decorre da ora-
lidade, muito tambm dito acerca da capacidade mental (intelectual, cultural)
desses povos, cuja arte, tal qual a das sociedades ditas de escrita e de civilizao,
altamente elaborada.
Tedlock (1983) considera que caracterizar as narrativas orais como poesia
dramtica apresenta vantagens analticas (e, acrescento, discursivas), desde que se
leve em conta que o que efetivamente caracteriza a arte verbal a dramatizao
voco-gestual da narrativa, mediante o desempenho-atuao-representao do
narrador. Em vista disso, por exemplo, a distribuio dos segmentos (linhas, ou
versos, e estrofes) da narrativa deve obedecer no a cnones baseados na gramtica
da lngua, mas ao jogo dinmico da representao dramtica de cada mitopoeta.
Por outro lado, uma das importantes questes metodolgicas que a etno-
potica se/nos pe respeita ao problema crucial da apresentao do texto oral em
forma escrita, sem que, nessa transposio, a especificidade expressiva e significa-
tiva oral do texto seja silenciada. Em primeiro lugar, uma constatao de natureza
consoladora, e ao mesmo tempo desafiadora, mostra que na transposio do oral
para o escrito, mesmo que haja uma rgida preocupao de glosar na escrita a
muldimensionalidade do oral, e no importando quo sofisticado seja o sistema
de transcrio, sobrevm perdas inevitveis, tais como as relativas a inflexes da
voz, mediante as quais o narrador dramatiza a narrativa e prende o interesse da
platia; o jogo das nfases vocais (e mesmo gestuais) usado para realar pontos
especficos da narrativa; o estilo entre falado, cantado e falacantado; a imitao
de outras vozes, etc.
As caractersticas orais acima listadas remetem a um repertrio de recursos
estilstico-expressivos prprios da arte potica verbal, cuja dificuldade de trans-
35
Os Guarani Mby e a oralidade discursiva do mito
crio e recuperao so incontornveis. Existem, entretanto, propostas meto-
dolgicas (TEDLOCK, 1983; SHERZER, 1990) que visam, se no recuperar
integralmente os recursos da oralidade, ao menos aproximar-se da formatao
oral, mediante a recuperao da expressividade oral, por meio de recursos grficos
e pelo uso de didasclias.
O objetivo desses sistemas de transcrio , sobretudo, promover uma
visualizao da dramatizao vocal, pois seguramente esse um dos aspectos mais
relevantes a ser evidenciado, quando se trata de poesia oral. Um sistema de trans-
crio bem elaborado apreende os traos essenciais da representao oral, sejam
eles morfossintticos, fonolgicos ou voco-dramticos. A transcrio de um texto
oral deve levar em considerao no somente os aspectos gramaticais que so ma-
nipulados pelo narrador, mas igualmente os processos ou recursos especificamente
poticos, sejam eles formais (distribuio do fluxo narrativo em estruturas rtmicas
e de sentido dramtico), sejam estilsticos (processos retricos, recortes narrativos).
Em suma, um processo de transcrio de produtos da arte verbal para a formatao
escrita deve prioritariamente evidenciar a materialidade verbo-potico do texto base.
guisa de fechameNto
O que genericamente tem caracterizado o estudo das formas poticas indgenas
uma atitude em que a potica da oralidade escapa. Quando muito, como o caso
dos mitos traduzidos por Clastres9, apresenta-se um texto que intenta representar
o potico, embora descure da potica nativa, e do qual tanto a oralidade como a
discursividade esto ausentes. Na outra ponta desse procedimento, encontram-se
as anlises de cunho lingstico que visam expor a construo (ou estruturao)
oral dos enunciados, como os estudos de Soares (1991) e Souza (1991 e 1998),
cujas anlises tratam minuciosamente da oralidade e da ordem discursiva das ln-
guas indgenas respectivamente enfocadas, mas nada dizem acerca do potico dos
textos. E, no que tange representao escrita dessas narrativas, o mais usual no
reproduzir graficamente a expressividade da oralidade, marcando processos como
o alongamento de vogais e consoantes, pausas, entonao, forma falada, cantada
e falacantada, ritmo de fala, qualidade de voz, dentre outros.
36
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
Enquanto prtica discursiva oral, a narrativa mitopotica se apresenta
como um gnero da arte verbal e, como tal, deve ser analisada como um processo
cultural e socialmente contextualizado e [uma forma de] arte verbal contextuali-
zante (SHERZER, 1990). Como forma de representao narrativa (dramatizao,
performance verbalizada), o mitopoema afigura-se como uma forma peculiar de
arte verbal, na qual esto envolvidos contadores, replicadores e audincia, em um
espao scio-simblico fortemente ritualizado.
Categorizado como arte verbal, o discurso mitopotico insere-se em uma
tradio imemorial, a partir de um repertrio ou memria coletiva, os quais formam
o paradigma (o arquivo) que referencia e referenda cada apresentao artstica.
A produo artstica bem como sua fruio sustentam-se na tradio, isto , no
conjunto de narrativas, de regras, de recursos expressivos que formam o complexo
dinmico das formas culturais tribal.
neste sentido que possvel afirmar que, ao contar um mitopoema, o
artista tribal o est recontando, ao mesmo tempo em que introduz as marcas
de sua individualidade artstica, atravs de seu desempenho dramtico e do
uso que faz dos recursos lingsticos e gestuais, mediante os quais recorta e
remonta o mitopoema.
Essa estruturao dinmica da narrativa mitopotica (e, de modo geral, da
produo artstica em sociedades indgenas), visibiliza uma caracterstica marcante
desse tipo de sociedade, que a ausncia de contradio entre a criao individual
e a propriedade coletiva dos meios de produo. Por mais respeitado que seja o
mitopoeta, o seu prestgio e a sua criatividade derivam de se encontrarem inseri-
dos numa linhagem tradicional e institucionalizada que, em suma, legitima cada
atuao criadora individual (ou coletiva). O mitopoeta utiliza-se do material que
existe na tradio tribal (repertrio de uso coletivo) e deve, necessariamente, pr-se
de acordo com essa tradio, condio para que sua atividade seja reconhecida e
possa, efetivamente, realizar-se social e poeticamente.
Trata-se, pois, de uma atividade potica que combina o engenho artstico
de cada mitonarrador com a legitimidade da tradio. Isto , cada texto deve no
apenas ter uma relao constitutiva com a intertextualidade, mas ser constitudo
pela rede intertextual do arquivo tribal. A estruturao potico-discursiva de cada
texto deve mostrar a sua vinculao textual com a rede de textos tradicionais. Ora,
37
Os Guarani Mby e a oralidade discursiva do mito
porque inscrito em determinada formao discursiva que o sujeito enunciador
(no papel de artista verbal) se habilita a jogar com as coeres e realizar, assim,
as escolhas que so possveis e realizveis. E que desse jogo entre as coeres
genricas e a prtica discursiva efetivada que se constri a eficcia da performance
individual (ou coletiva). Neste caso, a performance entendida como a prtica
discursiva efetivamente realizada segundo as condies textuais e rituais que a
regulamentam e legitimam.
Uma performance , ento, caracterizada ainda, alm daquilo que respeita
ao uso apropriado da linguagem, da expressividade vocal e da gestualidade como
recursos poticos, pela relao dinmica e dialtica entre o estar imerso na tradi-
o e, ao mesmo tempo, ser capaz de distinguir-se individualmente. Relao que
insistentemente manipulada pelos artistas tribais. Assim, cada performance
nica. E essa irrepetibilidade decorre de vrios fatores: a) sua natureza verbal e
memorial, b) s condies situacionais singulares: platia, ocasio, fervor individual,
c) aos objetivos especficos a que ela atende. Cada nova performance exige novos
esforos e novas combinaes artsticas e, ao mesmo tempo, mobiliza a tradio e
a inovao, o coletivo e o individual, o parafrstico e o polissmico.
A voz imemorial e a voz da historicidade no se excluem nas narrativas
mitopoticas. Os novos fatos se incorporam e passam a fazer parte do tradicional,
do originrio, do sempre-j-l do imaginrio. Este testemunho da temporalidade
faz parte da forma dinmica pela qual o mitopoema se institui socialmente na
memria. Essas duas vozes, que se mesclam continuamente, so manipuladas
pelos artistas tribais, e fazem do mitopoema um texto, um discurso, imemorial e
histrico, enquanto relato da histria de um povo fundado na oralidade, e como
memria ou arquivo. natural, portanto, que na sucesso do tempo e dos eventos,
novas matrias sejam anexadas e fundidas s antigas, num processo permanente
de (re)atualizao mitopotica.
Notas
1 O termo genrico guarani refere-se a uma diversidade de aldeamentos que se espalham pela Amrica do Sul (Argentina, Brasil, Bolvia, Paraguai), com eixo e autodenominaes especficas. poca do incio da colonizao europia, os guarani encontravam-se majoritariamente dispersos
38
Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
pela bacia platina. Atualmente, os guarani do Brasil, encontram-se divididos em subgrupos e, dentro dos subgrupos, em diversas aldeias, com uma distribuio bastante dispersa. Encontram-se divididos em 3 subgrupos: os nhandeva, os mby e os kayov. A lngua guarani um membro da famlia lingstica Tupi-Guarani, do Tronco Tupi. O mby, dentre as variedades lingsticas guarani, o que apresenta uma distribuio mais diversificada territorialmente.
A distribuio dos guarani mby a mais ampla entre os sugbrupos guarani. Eles podem ser encontrados no Paraguai e tambm ao norte da Argentina. No Brasil, localizam-se em So Paulo, Santa Catarina, Paran, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Esprito Santo. Os mby brasilei-ros, em sua maioria, so descendentes dos mby paraguaios, provavelmente como resultado de levas migratrias dirigindo-se para leste, em busca da Terra Sem Males. A populao mby, no Brasil, conta com aproximadamente 5.000 a 7.000 indivduos, espalhados por cerca de 35 a 40 localidades.
Para maiores informaes sobre os Guarani, bem como aspectos concernentes mitologia e ao funcionamento discursivo, consultar: Borges (1999), Cadogan (1959), Pierre Clastres (1990), Dooley (1994), Meli (1992), Rodrigues (1986) e Schaden (1974).
2 Considerando o mito como um gnero de arte verbal, cabe tambm denomin-lo de mitopo-ema, mitopoesia, e seu autor como mitopoeta ou mitonarrador. Ao estudo geral do mito nessa perspectiva, pode-se denominar de mitopotica.
3 Denomino de povos mticos aqueles em cuja constituio histrico-social o mito comparece como a sustentao imaginria.
4 De acordo com Williams (1979), o conceito de imagem dialtica refere-se a um conjunto de processos scio-histricos e psicolgicos concernentes cristalizao, no sujeito e na sociedade, de valores e formas de significao, como algo que, saturado de historicidade, representa uma imagem de totalidade.
5 A recordao atualizada aquela que no fica inerte, como uma espcie de saudosismo nostlgico, mas que se presentifica, que atua no dia-a-dia, que incentiva a busca e motiva a vida. Finalmente, aquela memria plena de sentidos fertilizadores que impedem que haja o esquecimento, conforme observa Sartre (1967).
6 A expresso memria do futuro refere-se lgica cclica do mito e lgica da histria, em que ambas se sustentam pela repetio e, com isso, esto ligadas lgica da transmisso oral.
7 De acordo com as indicaes de Grahan (1995) e Le Goff (1994).
8 O Ayvu Rapyta um conjunto de mitos e preceitos coligidos e analisados por Cadogan (1959) e que funciona como memria e legislao Guarani Mby.
9 Pierre Clastres (1990). Nessa obra patente que a manuteno do potico (mesmo na traduo) se desloca para o potico em escritura ocidental, silenciando o potico oral das narrativas guarani.
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Os Guarani Mby e a oralidade discursiva do mito
Josebel Akel FaresiMAGENS DA MAtiNtA PERERA EM CON-
tExtO AMAzNiCO
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Imagens da Matinta Perera em Contexto Amaznico
Oestudo, apresentado nesse captulo, inicia-se pela leitura do corpus de narrativas do Ifnopap (Projeto Integrado O Imaginrio nas Formas Narrativas Orais da Amaznia Paraenense, do Centro de Letras da
Universidade Federal do Par) e, em seguida, envolve uma pesquisa de campo re-
alizada no municpio de Bragana. A urdidura do texto compreende (I) o processo
de trabalho e (II) a sntese de algumas concluses.
I
o movimeNto da escolhao reconhecimento do material
No primeiro momento do meu projeto de pesquisa1 , pensei em coletar
narrativas populares orais em asilos de Belm e constituir um mapa do Estado de-
senhado pela procedncia da memria dos velhos que l residem. Mas, ao conhecer
o corpus do Ifnopap, percebi a riqueza das fontes orais apresentadas por este projeto
e optei pela suspenso da etapa da recolha. Ento, passei leitura do material j
coletado: uma primeira olhada da fruio, sem muita preocupao acadmica.
Depois passei a assinalar a produo coletada e registrada em Bragana, Altamira,
Castanhal, Marab e Belm, nos anos de 1993 a 1995. Nesta etapa, detive-me em
cerca de 600 contos que o projeto oferecia naquele momento.
Os contos de assombrao, incluindo viagens, encontros com a morte,
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Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
principalmente, as histrias da moa do txi, so os de maior recorrncia na grande
parte dos municpios visitados. Os depoimentos em forma de histrias de vida, o
cotidiano da cidade, as festas de santo, fatos inusitados, como o do crime da mala,
e outras passagens histricas dos municpios aparecem como segunda maior recor-
rncia. Contos de fadas, piadas e adivinhas, mesmo com um percentual reduzido,
no deixam de aparecer no corpus. Salpicados de matizes regionais, alguns contos,
considerados nacionais, surgem com grande expressividade. Entre eles, curupiras,
lobisomens, gente que vira bicho, fogos-ftuos, mes-dgua, alm de anhangs,
capelolos e ps de garrafa, estes ltimos especialmente em Marab. Na mtica
amaznico-paraense, quase sempre protagonizada por pescadores e caadores, esto
as matintas, os botos, as cobras-grandes ou cobras norato e os atades.
a definio por bragana
O movimento das mos abandona o olhar panormico e tecla um zoom em
direo ao alvo. Do close ao detalhe da boca dos contadores de Bragana, que me
fazem revisitar a cidade de outrora; as palmeiras imperiais beirando o rio Caet, a
igreja de So Benedito, o trapiche dos passeios e das atracaes dos barcos mon-
tam o cenrio para a entrada das marujas em cena. ms de dezembro, o ms das
festividades de So Benedito, um dos cultos mais antigos da cidade, criado pelos
escravos. A festa, de carter profano e religioso, inicia-se bem antes do ms natalino,
com as esmolaes e ladainhas que circulam as regies circunvizinhas em busca
de donativos para o ritual. Na parte sagrada, consta o novenrio e a procisso. O
lado profano constitui-se da lavagem da igreja, da marujada. Diferente do auto
dramatizado da tragdia martima da Nau Catarineta, conhecido em todo Brasil,
a marujada bragantina caracteriza-se pela dana marcada por um grupo de pau
e corda. A capitoa e a subcapitoa comandam um espetculo de alta poeticidade,
numa ritualstica de f e de anis cravados de tradio. A plasticidade do cenrio
alia-se ao figurino dos participantes as marujas de blusa branca, saia vermelha
ou azul e chapu enfeitado de espelhos, plumas e fitas coloridas, descendo pelas
costas; os marujos, personagens coadjuvantes, usam cala e camisa branca e a
movimentao cnica d-se por conta da dana, centrada no motivo musical do
retumbo. A festa evolui com almoos, leiles e muita dana retumbo, mazurca,
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Imagens da Matinta Perera em Contexto Amaznico
valsa e o tradicional xote bragantino.
Os visitantes participam do espetculo com a ajuda das marujas e marujos que
lhes ensinam os passos. A noite avana... Em outras pocas, o apito do trem zuniria,
anunciando a partida e indicando o final da festa, nesta, o cessar do luzir dos flashes
das cmeras fotogrficas ou das filmadoras e o acionar do stop dos gravadores que
definem o tempo do acontecimento. Os registros audiovisuais so guardados em
arquivos apropriados e os registros (re)velados na memria ficam na recordao,
no sentido primeiro da palavra de voltar ao corao, simulacros de uma realidade
construdos pela ao da tcnica ou pelo subjetivismo do imaginrio.
Agora, a cidade visitada a Bragana da mitopotica. Como em todas as
manifestaes culturais, as vozes espelham mesclas dos que pisaram este pedao de
solo amaznico: primeiro os Caet, da nao Tupinamb; em seguida, os brancos e,
por ltimo, os negros, em proporo menor. No sculo XX, o processo migratrio
intensifica-se com implantao da Estrada de Ferro Belm-Bragana (1908-1965)
e a chegada de um grande fluxo de pessoas, especialmente nordestinos.
As marcas deste percurso miscigenatrio e de dominao branca evidente.
A festa de So Benedito, criada pelos negros em louvor ao santo padroeiro, est
completamente assimilada pela cultura cabocla; no bairro da Aldeia, que pode ter
a conotao dos stios indgenas ou dos lugarejos portugueses, os casarios de feies
europias convivem com uma arquitetura de resolues amaznicas; a vila Caet,
de nome indgena, passa a se chamar Bragana, nome de santo portugus (Nossa
Senhora do Rosrio de Bragana), como a cidade lusitana. Em relao aos mitos,
o lobisomem, de origem europia, assume ares de sonho, vira lobisonho e sofre os
mais variados tipos de metamorfose homens ou mulheres transformam-se em
bode, porco e ona desprezando a prpria etimologia do nome: lobo + homem.
A nativa matinta tem ares das bruxas do mundo medieval, mas tambm miscigena-
-se com outros personagens do lendrio universal e regional. O saci e o curupira,
de origens diversas, aglutinam-se em um mito com as mesmas caractersticas e
compleies. Esta leitura, da predominncia do elemento tnico, minada de
complicaes e no se incorporar tnica da anlise textual.
Antes de seguir pelos caminhos imaginrios do mundo natural, esclareo
que das 259 narrativas recolhidas na cidade plo da zona bragantina e arredores,
elimino, a priori, os textos no-narrativos e aqueles cuja fragmentao no deixa
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Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
a leitura fluir. Posteriormente, abro mo das adivinhaes, piadas, fbulas, depoi-
mentos, assombraes, principalmente o culto aos mortos, e dos contos de fada.
Encaminho minha escolha para os ditos contos mticos, aqueles que Cascudo
(1983) classifica como primitivos e gerais, secundrios e locais. Enquadram-se, na
primeira categoria, os curupiras, os lobisomens e as mes-dgua. Os demais, na
segunda categoria, que o autor chama de locais, mas prefiro chamar de regionais,
pois, por exemplo, o boto uma personagem que navega nos rios amaznicos, ao
passo que o atade s se atola na lama bragantina. O primeiro um mito regional,
o segundo, um mito local.
Ento, numa segunda instncia, opto por organizar as narrativas mticas
a partir do elemento de composio natural, pois, apesar de entender que esses
formadores mticos se entrelaam, percebo a possibilidade de perscrutar o som
mais forte desta ou daquela matria elementar.
Assim, a imagtica do fogo expressa-se nas histrias de alucinao, em que as
personagens alumbram-se com o fogo-ftuo. O componente ar surge nas aparies
das bruxas e narrativas de pessoas que se metamorfoseiam em aves e encontram-se
singularizadas na figura da matinta perera. As guas so marcadas pela presena
de botos, iaras, cobras-grandes, atades. Na terra habitam seres como curupiras,
lobisomens, gente que vira bicho (porco, cachorro, cobra, ona, entre outros
animais terrestres) e, novamente, as matintas. Algumas personagens pertencem a
mais de uma esfera, todavia h, em geral, um elemento predominante: a matinta,
por exemplo, s vezes est na gua, e at transita no fogo, mas sua matria funda-
mental a areo-terrestre.
a escolha da matinta
O objeto para o estudo verticalizado estreita-se da seguinte maneira: ele-
mento terra; habitantes da mata; protagonista, o curupira. Como areia fina, esse
motivo se esvai por entre meus dedos. Preciso de flego para tomar coragem de
sair do porto seguro.
O corpus lido aponta o curupira como mito de maior recorrncia entre
os habitantes da mata. Esta personagem percorre todos os cantos onde o verde
prolifera, assume variadas formas, denominaes e se mistura com outros: um
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Imagens da Matinta Perera em Contexto Amaznico
mito geral. A segunda maior recorrncia a matinta perera, personagem das matas,
dos ares e dos rios amaznicos: um mito regional. Esta narrativa tem sido objeto
temtico de variadas formas de expresso artstica msica, teatro, plstica, lite-
ratura mas desconheo qualquer estudo especfico sobre a bruxa amaznica. O
fato de a matinta ser uma personagem de cor local, ser a segunda maior recorrncia
entre os mitos bragantinos e o desconhecimento da existncia de trabalhos tericos
sobre o assunto so a base objetiva da mudana de rota.
um leNol de histriasuma conversa
Um dia desses qualquer, numa conversa com uma amiga, ela me revela a
sua vida de menina no interior, no Gurupi, cidade que divisa o Par do Maranho.
Entre os relatos que faz das formas de vida de uma cidade na beira da estrada,
um me interessa particularmente. Conta que era s o sol desaparecer e toda a
molecada corria para a porta de uma bragantina moradora daquele lugarejo,
nos idos dos anos sessenta. O que os leva aos encontros dirios o repertrio de
histrias que aquela senhora sabe e que narra aos ouvintes vidos. Ali, lembra
minha amiga, passa a conhecer os diferentes personagens do imaginrio ama-
znico, at ento desconhecidos da garota de sete anos. Um dia, a curiosidade
infantil pergunta o motivo da contadora saber tantas histrias e, ento, naquela
noite, ela fez a moldura dos retratos da experincia noturna que transferia ao
auditrio cotidianamente.
Em Bragana, no tempo da colheita de feijo das pequenas roas, quase
caseiras, os vizinhos se avizinhavam para ajudar a descascar os favos. Pessoas de
todas as idades e sexos se renem em torno de um grande lenol branco estendido
na sala ou na cozinha, onde se amontoam os favos e se separam os gros. Junto
com o debulhar das sementes, o debulhar de histrias nutre o trabalho e as noites
se passam entre gargalhadas e sobressaltos. Na poca, as casas no so to prximas
umas das outras, uma certa distncia separa as pessoas, por isso, ao trmino da
atividade, os conhecidos saem agrupados e uns deixam os outros em suas casas.
E como nessa poca no h os temores dos assaltos, nem outros medos materiais,
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Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
os temores das ruas soturnas e das encruzilhadas vinham do mundo sobrenatural.
No outro dia, quando a solidariedade humana desloca-se para outra morada e
um novo lenol branco se abre, os encontros noturnos da vspera saem da boca
daqueles que vivem a dita ou a desdita.
Foi assim que aquela senhora, puxada pela mo materna, ouviu as histrias
contadas nas noites do Gurupi e as assimilou.
Esse relato exemplifica um contar histrias na zona rural brasileira, o envol-
vimento da audincia e pontos relativos ao narrado e ao narrador.
o narrador
O lenol de histrias me leva a cenas construdas por outras vozes poticas.
Vejo o campons na terra, vejo as lavadeiras na beira dos igaraps, vejo os seres
beira de fogueiras: espaos plenos de palavras que andam pelos ouvidos e pelas
bocas, tecidos da experincia e resultado de um trabalho cooperativo construdo em
torno de muitos lenis brancos, similar ao das penlopes nos seus teares ou ao dos
oleiros, nos blocos de argila. A artesania lavrada corresponde artesania potica.
Os gestos repetem as marcas do social, acrescidos da vivncia individual, e fazem
com que a matria ouvida seja memorizada com mais facilidade pela audincia,
como lembra Zumthor (1993). O ritmo do trabalho, associado ao ritmo do contar,
faz o ouvinte esquecer de si, devanear na cena, criar imagens, associ-las a pessoas
conhecidas ou a momentos vividos, por isso guarda o fio do reconto. A sabedoria
dos crculos dos lenis brancos a do homem que vive a terra e conhece suas
tradies e histrias, a do campons sedentrio, umas das categorias de narrador
descritas por Walter Benjamin (1993).
Assim, o processo de transmisso afeta os indivduos e as culturas de ma-
neiras diferentes. O narrador d o tom, mas no sabe como vai ser a recepo nos
ouvidos individuais ou nacionais; por esse motivo, a variao do texto expressa o
momento interior, o tempo histrico, o espao vivencial do narrador e a memria
coletiva rola permeada de singularidades.
a performance
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Imagens da Matinta Perera em Contexto Amaznico
A memria arquiva a voz potica e a gestualidade: o verbal e o visual se
fundem num movimento de inteireza. A questo da performance tem sido uma
das dificuldades nos estudos de oralidade; as verses escritas dos textos orais no
transmitem os efeitos das pausas dramticas, dos olhares e do gestual.
Ao sentir este embarao, congelo, por um tempo, os registros escritos,
volto palavra do narrador gravada, sofro a impossibilidade dialgica e a falta da
visualizao cnica. Recuo alguns passos e chego em Bragana.
Ando em busca das vozes registradas e das performances. Os bolsistas do
Ifnopap no municpio acompanham as andanas. Encontro alguns contadores do
corpus selecionados, contudo outros no, alguns dos que ouvi nem constam entre
os narradores escolhidos. Desolo-me. Mas os, aproximadamente, 500 quilmetros
das idas e das voltas ao municpio fazem-me constatar o j sabido, ou seja, que
jamais recomporia a cena do primeiro registro e isto, de alguma forma, alenta-me.
Nestas viagens, ouo narcisistas e gente muito tmidas, pessoas de vozes e
gestos medidos, e de gestos largos e vozes tagarelas; cada um, ao seu modo, conta
histrias, fala de si, da famlia, do trabalho e depe sobre as origens dos relatos.
Algumas narrativas so vivenciadas pelo contador, principalmente os que vm da
mata ou do rio; outras experienciadas atravs da voz alheia, a maioria avs, pais
ou pessoas prximas.
Indago sobre as audincias e eles contam que a tradio do contar histrias
est em via de extino, pois no h mais pblico para ouvir e indicam como
justificativa a falta de tempo ou o desinteresse pelas coisas do passado. Esta fala
contradita pela ao: sempre que vou ao encontro dos narradores, uma audincia
est espera, com certeza tem curiosidade em conhecer os pesquisadores e observar
as mquinas, mas os adolescentes, adultos, crianas, da famlia ou da vizinhana,
que acompanham o ato, no contm a lngua e comeam a solicitar esta ou aquela
pea do repertrio e, ainda, interferem com consertos no espetculo que se desen-
rola, fazem vocalizes ou solam partes do contado. A platia conhece o repertrio
e tambm narra fragmentos das histrias em performance (provavelmente, alguns
j so repassadores ou se tornaro imortalizadores da experincia de narrar).
a composio da ceNaas personagens
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Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
Escolho quatorze narrativas orais para analisar a figura da bruxa amaznica.
A seleo feita a partir de critrios referentes construo dos textos, aqueles no
muito em runa 2, e a recorrncia temtica. Aconselho-me tambm com os regentes
na escolha das partituras para compor este concerto popular, pois h muita ma-
tinta escondida nas coxias. Alm destas narrativas recolhidas em Bragana, trouxe
algumas coletadas em outros tempos e em outros lugares.
a cena
Como num concerto popular de coros, os regentes sobem ao palco para
contar dos seus guardados da memria. A ordem da entrada em cena definida
pela ausncia ou presena da metamorfose nos seus cantos. So trs os processos
de apario: 1) a invisibilidade das matintas, no h a passagem do humano ao
sobrenatural ou vice-versa; 2) a passagem metamrfica, com a manifestao de
apenas um elemento, o outro continua invisvel; 3) a metamorfose com a presen-
a dos dois elementos, o humano e o sobrenatural. E, como referncia textual,
codifico-as de acordo com a ordem de sua entrada em cena.
o mtodo
As leituras so feitas a partir do referencial terico solicitado pelo discurso
ou pela fbula, o objeto quem define o mtodo. Sobre a tese em questo, Adorno
(1986, p.50) atenta para o fato de que as cincias sociais no podem, por amor
clareza e exatido, colocar em risco o objeto de estudo; a metodologia no pode
sacrificar o objeto renegando-o a um segundo plano: Os mtodos no dependem
do ideal metodolgico e sim do objeto.
As temticas, as simbologias e alegorias se repetem texto a texto. Este fator
me leva a refletir sobre a necessidade de evitar repeties e redundncias nas leituras
das narrativas. Portanto, quando h recorrncia deste ou daquele aspecto, tento
analisar em apenas um dos contos e, caso o faa em outros, a interpretao a
partir de um ponto de vista diferenciado.
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Imagens da Matinta Perera em Contexto Amaznico
II
O dia esconde os ltimos raios de sol, a noite adentra, os corpos esto em
queda nas camas ou nas redes, um rasgo sonoro rompe a calma noturna: fite, fite,
fiuiite... O assobio no cala: fite, fite, fiuite... Os que se amam ou aqueles que
descansam precisam sossegar. Ento, oferecem: amanh de manh vem buscar
uma cachimbada de tabaco..., de outro canto uma nova oferenda: vem tomar
caf conosco, matinta perera. assim que o silncio se restabelece at a aurora.
Algum j desvirado, vir buscar a prenda ao amanhecer. a matinta perera.
O ncleo invariante configurador das matintas bragantinas aponta que:
1) a ao acontece em trs momentos fundamentais: a apario da personagem
mtica desassossegando os humanos com o assobio; o oferecimento de uma
prenda e o restabelecimento da ordem; a cobrana da ddiva prometida pela
personagem desvirada e o pagamento da promessa;
2) a personagem mtica multifacetada e segue num crescente que caminha da
invisibilidade materialidade. Tem-se as matintas invisveis, as matintas pssaros
e as matintas terrestres. As primeiras compreendem seres voejantes, terrenos e
outros, que no se conseguem definir, caracterizam-se pela invisibilidade. As
seguintes configuram-se em seres areos, na maioria das vezes pssaros. Final-
mente, as que tm as feies diversas, entre elas a das bruxas construdas pelo
imaginrio popular medieval, que se pontificam at os dias de hoje;
3) a personagem humanizada, ou seja, desvirada, pode constituir-se em pessoa
jovem ou idosa, homem ou mulher, branca ou negra; no entanto, a maior
recorrncia de mulheres idosas;
4) o espao de circulao do mito areo, mas as matintas tambm circulam a p;
5) o tempo da epifania quase sempre noturno, rarssimas vezes o ser mtico se
move luz solar. Em relao ao ser desmetamorfoseado, o tempo diurno;
6) os elementos mgicos capazes de calar o canto das matintas so o caf ou o
tabaco, e os antdotos para obstruir seu caminho vo de objetos produzidos
pela cultura a vegetais plantados pelo homem.
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Oralidade e Literatura: manifestaes e abordagens no Brasil
as coNfiguraes do mito
Por uma questo de sntese, deixo de lado a categoria das matinta invisveis,
abordada no trabalho original, devido ao fato de que, de alguma forma, a maioria
dos exemplos aponta marcas textuais, que descrevem a audio de um assobio que
vem de cima ou que d rasantes, de um balanar de rvore ou de um cair de folhas.
Sendo, assim, possvel identific-las como areas ou terrenas.
as matintas areas
Considerando os elementos primordiais da natureza, o espao areo
um dos de maior trnsito das matintas bragantinas. O areo, por onde passeia
a personagem, o elemento da verticalidade, o lugar do vo e do percurso da
queda dos pssaros, ainda que a distncia e a quilometragem do voejar, muitas
vezes, o tornem opaco.
No bestirio das matintas voejantes, elas assumem formas variveis e po-
dem configurar-se em andorinhas, gavies, morcegos ou, simplesmente, pssaros.
Como entes voadores da famlia dos ornitomrficos, dos mamferos quirpteros,
ou pertencentes ao mundo dos espritos, so apresentados em muitos dicionrios
e em alguns estudos gerais sobre a mtica amaznica e/ou brasileira.
Verbetes em dicionrios:
Mati (subst.) 1) Saci (subst.). Exemplo: Espcie de pssaro. Tapera naevia, Cuculdeo. Etimologia: onomatopia do grito. 2) Matinta perera (subst.). Exemplo: esprito da beira do rio que imita o canto do pssaro do mesmo nome. Etimologia: do nome do pssaro. (GRENARD; FERREIRA, 1989, p.99)Matintapereira; mati, mati-taper, nome de uma pequena coruja, que se considera agourenta [...] segundo a crena indgena, os feiticeiros e pajs se transformam neste pssaro para se transportarem de um lugar para outro e exercerem suas vinganas [...] A matinta perera uma modalidade do mito do saci perer na sua forma ornitomrfica. A matinta perera no realmente uma coruja, mas uma cuculida, tapera naevia, tambm conhecida como
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Imagens da Matinta Perera em Contexto Amaznico
sem-fim (CASCUDO, 1988, p.484).Matintapereira [var. de matinta perera, do tupi [matintapere] S.m. Bras. Amaz. V. Saci. [voc. onom]. S.m. Ave culiforme, da famlia dos cuculdeos. Tapera naevia (L), com duas sub-espcies, uma das quais ocorre ao N e L e outra no S do Brasil. Tem colorao geral pardo-amarelada, com numerosas manchas escuras na cobertura das asas, topete avermelhado, com manchas claras e escuras, garganta, sobrancelhas e abdmen brancos. Alimenta-se de insetos e costuma pr ovos em ninhos de joo-tenenm. Sinnimos: matim--perer, martim-perer, matintaper [...] peixe frito, peito ferido, peitica, piririgu, roceiro-planta, seco-fico, sem-fim, sede-sede, tempo-quente, crispim, fenfm. (FERREIRA, 1975, p. 899-1257)
Autores pioneiros no estudo da mitopotica brasileira, como Couto de
Magalhes (1875), Verssimo (1887), Nery (18