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1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03003 AS MARIOLOGIAS MEDIEVAIS: ANÁLISE COMPARADA DAS OBRAS O DUELO DE LA VIRGEN DE GONZALO DE BERCEO, O LIBER MARIAE DE GIL DE ZAMORA E AS CANTIGAS DE SANTA MARIA DE ALFONSO X ANTUNES JR, Guilherme (Universidade Gama Filho – RJ) O presente artigo é resultado parcial da minha pesquisa de mestrado defendida em 2010 na Universidade Federal do Rio de Janeiro pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da mesma instituição e sob orientação da Prof.ª Dr.ª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. Em minha dissertação analisamos a obra intitulada Duelo de la Virgen, do século XIII, do clérigo riojano Gonzalo de Berceo e a comparamos com o sermão mariológico conhecido como De Aquaeductu de Bernardo de Claraval, do século XII, tendo o gênero como eixo teórico. Pretendemos a partir de agora concentramos nossa pesquisa nas seguintes obras: o Duelo de la Virgen de Gonzalo de Berceo, o Liber Mariae de Gil de Zamora e as Cantigas de Santa Maria de Alfonso X, todas produzidas na Península Ibérica no século XIII. O três autores elaboraram trabalhos dedicados à Virgem Maria em forma de narrativas de milagres. Iremos comparar as representações de Maria contidas em cada obra levando em consideração a categoria gênero como reflexão teórica. Entendemos gênero como uma episteme ligada à chamada história cultural e que gradativamente se afastou de outro campo conhecido como história das mulheres a partir das décadas de setenta e oitenta. Acreditamos que os estudos centrados especificamente nas “mulheres” reduziria nossas reflexões acerca das representações da figura feminina medieval que estudamos, ou seja, Maria. Os discursos sobre a Virgem vão além do “sexo” e evidenciam maneiras de representar e legitimar diferentes visões dos autores sobre corpo, religiosidade, maternidade, salvação, sexo, etc. Para a historiadora estadunidense Joan Scott, a sua definição de gênero é “... um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos,

AS MARIOLOGIAS MEDIEVAIS: ANÁLISE … · Sennora e Milagros de Nuestra Señora. Também produziu obras hagiográficas, Também produziu obras hagiográficas, doutrinárias e hinos,

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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03003

AS MARIOLOGIAS MEDIEVAIS: ANÁLISE COMPARADA DAS

OBRAS O DUELO DE LA VIRGEN DE GONZALO DE BERCEO, O

LIBER MARIAE DE GIL DE ZAMORA E AS CANTIGAS DE SANTA

MARIA DE ALFONSO X

ANTUNES JR, Guilherme (Universidade Gama Filho – RJ)

O presente artigo é resultado parcial da minha pesquisa de mestrado defendida em

2010 na Universidade Federal do Rio de Janeiro pelo Programa de Pós-graduação em

História Comparada da mesma instituição e sob orientação da Prof.ª Dr.ª Andréia Cristina

Lopes Frazão da Silva. Em minha dissertação analisamos a obra intitulada Duelo de la

Virgen, do século XIII, do clérigo riojano Gonzalo de Berceo e a comparamos com o

sermão mariológico conhecido como De Aquaeductu de Bernardo de Claraval, do século

XII, tendo o gênero como eixo teórico.

Pretendemos a partir de agora concentramos nossa pesquisa nas seguintes obras: o

Duelo de la Virgen de Gonzalo de Berceo, o Liber Mariae de Gil de Zamora e as Cantigas

de Santa Maria de Alfonso X, todas produzidas na Península Ibérica no século XIII. O três

autores elaboraram trabalhos dedicados à Virgem Maria em forma de narrativas de

milagres. Iremos comparar as representações de Maria contidas em cada obra levando em

consideração a categoria gênero como reflexão teórica.

Entendemos gênero como uma episteme ligada à chamada história cultural e que

gradativamente se afastou de outro campo conhecido como história das mulheres a partir

das décadas de setenta e oitenta. Acreditamos que os estudos centrados especificamente

nas “mulheres” reduziria nossas reflexões acerca das representações da figura feminina

medieval que estudamos, ou seja, Maria. Os discursos sobre a Virgem vão além do “sexo”

e evidenciam maneiras de representar e legitimar diferentes visões dos autores sobre

corpo, religiosidade, maternidade, salvação, sexo, etc.

Para a historiadora estadunidense Joan Scott, a sua definição de gênero é “... um

elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos,

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e gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1989, p.42.).

Uma das contribuições dos estudos de gênero para os estudos históricos foi contestar áreas

do cientificismo, dentre elas a médico-biológica, que tentam tornar as diferenças entre

femininos e masculinos em categorias fixas e ahistóricas. Conceitos como feminino e

masculino são variáveis no tempo e devem ser compreendidos a partir de categorias que,

normalmente, tendem a tratá-los como normativos e complementares. E se articularmos

esses pressupostos com os da psicanalista Jane Flax: “... para entender o gênero como

relação social, as teóricas feministas precisam desconstruir, além disso, os significados que

damos a biologia/sexo/gênero/natureza.” (FLAX, 1992, p.238)

Temos que pensar as identidades de gênero como construções históricas com

múltiplas especificidades; logo não são fixas, refletindo e subornando-se às relações

humanas em diferentes sociedades.

Para articularmos as três obras, faremos uso da história comparada como método.

Ao compararmos dois ou mais processos históricos, podemos vislumbrar elementos

específicos pertencentes a cada um deles. Isto abre a possibilidade heurística, segundo

Kocka (FLAX, 1992, p. 238), de iluminar questões, antes negligenciadas, quando não se

utilizava a comparação como método. Seguindo as perspectivas do historiador alemão, é

possível analisar separadamente os três textos de nossa proposta, obtendo dessa forma

tanto as singularidades de cada um, quando aquilo que é coerente.

Assim, nosso objetivo será apresentar os autores e suas obras; comparar as três

obras sob à luz do método comparado; e, ao final, identificar em cada discurso os

elementos constitutivos das identidades de gênero através dos relatos sobre virgindade e

maternidade de Maria, destacando o culto denominado mater dolorosa na obra de Berceo

As Cantigas de Santa Maria de Alfonso, o Sábio

Uma obra referencial para os estudos mariológicos ibéricos são As Cantigas de

Santa Maria, de Alfonso X, conhecido pela alcunha de “Rei Sábio”. Escritas em Castela

entre 1257 e 1279, há um consenso entre os especialistas de que a obra esteve sob a direção

de Alfonso X e que, portanto, ele não as redigiu sozinho ou talvez nem sequer tenha

participação direta na composição, questão que não discutiremos neste trabalho (TUDELA

Y VELASCO, p. 297-320, 1992.). Nove décimos das Cantigas inscrevem-se no conjunto

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de poemas conhecidos como cantigas de milagros (cantigas de milagres), enquanto,

alternadamente, um décimo são cantigas de loor (cantigas de louvor). Essa obra medieval

foi escrita em galego-português e se denominou cantigas porque eram peças poético-

musicais feitas para serem cantadas.

Quatro códices transmitiram a obra e estão localizados hoje em três diferentes

lugares. Há manuscritos que datam ainda do século XIII e outros copiados no século XIV.

Esses códices estão organizados nas nomenclaturas TO, T, F (que parece ser continuação

de T) e E. Eles estão localizados, respectivamente, na Biblioteca Nacional de Madrid, na

Real Biblioteca de San Lorenzo de el Escorial, na Biblioteca Nazionale Centrale de

Florencia e no Escorial novamente. A edição que consultamos está disponível no Portal

Galego da Língua.1

Diferentes estudos sobre a obra alfonsina destacaram os elementos relacionados às

mulheres e os papéis exercidos por elas frente aos dos homens. Esse tipo de estudo evoca a

restrita participação feminina no sistema de dominação misógino medieval. Para Connie L.

Scarborough, a análise da obra alfonsina, em especial as Cantigas, depende do

entendimento do sistema social e coletivo dominante na época, em particular o patriarcado

(SCARBOROUGH, p. 16-24, 1994.). Em um claro diálogo com a chamada História das

Mulheres, a preocupação da autora estadunidense é recuperar os discursos produzidos pelo

autor a respeito das personagens femininas da obra. Assim, Scarborough tenta filtrar as

interferências masculinas para dar voz às mulheres e assim evidenciar um sistema

androcêntrico controlador.

Embora seja importante a verificação dos discursos sobre as mulheres, entendemos

que é necessário interrelacioná-los com as construções das identidades de gênero presentes

na obras. Fazer sobressair as vozes femininas filtradas pelo masculino dominador depende,

também, das características dessas linguagens, e não apenas atribuir ao binômio

masculino-feminino, como um sistema de significantes e significados, as interpretações

textuais presentes naquela sociedade do século XIII. Retomaremos a este ponto a frente.

1AS CANTIGAS DE AFONSO X. Disponível em http://agal-gz.org/modules.php?name=Biblio. Acesso em 22 de abril de 2009.

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O Liber Mariae de Gil de Zamora

A data de nascimento do franciscano Juan Gil de Zamora é obscura. Talvez tenha

nascido na primeira metade do século XIII. Sabe-se que em 1246 entrou para o monastério

de Zamora, fundado naquele ano, ainda muito jovem (FERRERO HERNÁNDEZ, 2002, p.

9). Além disso, teria Gil de Zamora estudado em Paris a fim de concluir o curso de

doutorado (Idem. p. 15).

Vale destacar as relações do círculo alfonsino, no qual Gil de Zamora participou

ativamente. Com a morte de Afonso X, as questões sucessórias em relação ao trono de

Leão e Castela se acentuaram. O primogênito de Afonso X, Fernando, morreu ainda

durante o reinado do pai. A partir disso os netos do rei Sábio, filhos de Fernando,

reivindicam o poder régio entrando em choque com Sancho IV, filho também de Afonso

X. A posição dos franciscanos foi de apoio a Sancho IV, que sucedeu realmente Afonso e

que governou até 1295. Como preceptor do infante Sancho, Gil de Zamora escreveu uma

obra conhecida como De Praeconiis, sendo o capítulo Crónica de Alfonso X dedicado ao

rei Sábio e à defesa da subida de Sancho ao trono.

Entretanto, as relações institucionais que Gil de Zamora manteve com a dinastia

alfonsina não se limitavam apenas a questões políticas. O autor zamorano teria sido

scriptor e secretário régio. Além disso, há consenso entre os pesquisadores de que Gil de

Zamora teria sido compilador de milagres marianos para o rei de Castela (MORENO

BERNAL, p. 171-185, 2004). A pesquisadora María Rosa Vílchez analisou justamente um

dos tratados do Liber Mariae para compará-lo ao conjunto de obras de milagres produzidos

por Alfonso X (ROSA VÍLCHEZ, 2007).

A obra conhecida como Liber Mariae foi escrita em latim, em forma de tratado,

entre os anos de 1278 e 1284. Ela se caracteriza como um conjunto de milagres

perpetrados por Maria, seguindo a tradicional narrativa medieval sobre o tema. Os tratados

IV, V, VI, VII, VIII, XI, XV e XVI mencionam milagres de Nossa Senhora. Os

manuscritos preservados datam do século XIV e estão em letras góticas. São três versões

latinas: a de Gobio, a de Cerratense e, o principal, conhecido como manuscrito 110, da

Biblioteca Nacional de Madrid. Contudo, segundo a pesquisadora espanhola Rosa Vílchez,

alguns fólios do 110 foram perdidos, inclusive o primeiro fólio, que provavelmente teria a

dedicatória a Alfonso X (Idem, p. 35). A autora também afirma que algumas passagens da

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obra foram retiradas propositalmente pelos copistas, por ser, segundo ela, ofensivo ao

dogma da “Imaculada Conceição”, posição que discordamos porque, para nós, a idéia de

imaculada conceição de Maria ainda não se constituía como dogma naquela conjuntura. Os

manuscritos se encontram atualmente na Biblioteca Nacional de Madrid e na Biblioteca do

Palácio de Madrid. A obra que consultamos foi editada por Francisco Rodriguez

Monistirol em 2007 (JUAN GIL DE ZAMORA, 2007).

A obra foi publicada pela primeira vez, mas não em sua totalidade, pelo padre Fidel

Fita, na coleção conhecida como Monumentos Antiguos de la Iglesia, em 1882 (FITA,

1882). O Liber Mariae está dividido em vinte e três tratados, sendo que não temos o quarto

e os números dezenove a vinte três porque se perderam ao longo do tempo. Além disso, há

um apêndice conhecido como Ofício de la Virgem, que não analisaremos.

O Duelo de la Virgen de Gonzalo de Berceo

A obra Duelo, também conhecida como Aqui Escomienza el Duelo que Fiz la

Virgen Maria el Dia de la Pasion de su Fijo Jesucristo, foi escrita no século XIII pelo

poeta riojano Gonzalo de Berceo, clérigo secular, oriundo da região de La Rioja. Segundo

o filólogo inglês Brian Dutton (DUTTON, 1964, p. 239-248), Berceo nasceu

provavelmente entre 1195-6 e morreu na segunda metade do século XIII. O poeta riojano é

autor de outros dois poemas de caráter mariano, conhecidos como Loores de Nuestra

Sennora e Milagros de Nuestra Señora. Também produziu obras hagiográficas,

doutrinárias e hinos, sempre usando um formato específico, intitulado cuaderna via.

O Duelo de la Virgen, que foi composto em duzentas e dez estrofes, não foi

conhecido através dos manuscritos originais do século XIII, mas sim por meio de cópias

realizadas em séculos posteriores. Uma dessas foi feita pelo monge Tomás Antonio

Sánchez no século XVIII, que, por sua vez, copiou de outro clérigo contemporâneo,

conhecido como Ibarreta.2 No início do século XX descobriu-se outra cópia no mosteiro de

San Millán de Gogolla, feita por Fr. Diego de Mecolaeta entre 1741 e 1752. Neste

momento o poema foi finalmente publicado integralmente pela Biblioteca Nacional de

2 Segundo Resano trata-se da primeira publicação das obras de Berceo, denominada Colección de poesias castellanas anteriores al siglo XV, de 1780. Cf. RESANO, Gaudioso G. El mester poetico de Gonzalo de Berceo. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 1976. p. 15.

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Madrid. Para nossa pesquisa faremos uso da edição crítica organizada por Isabel Uría e

publicada em 1991 (BERCEO, 1991).

No Duelo de la Virgen, nas três estrofes iniciais, aparece a figura fictícia de

Benardo de Claraval solicitando a presença de Maria, que narrará a Paixão de Cristo. Em

seguida, entre as estrofes quatro e quatorze, ela demonstra como sua condição de mãe de

Cristo trouxe enorme dano e tristeza. A partir do verso quinze e até o duzentos e um, ela

descreve a Paixão propriamente dita, até que, nos versos finais, a personagem afirma o seu

papel na redenção dos pecados da humanidade e exalta a Igreja e a si própria como

mediadores na relação metafísica homem–cristandade.

As mariologias ibéricas medievais

Podemos relacionar alguns aspectos representativos de Maria nas obras

mencionadas. A primeira delas é a questão virginal que envolve as concepções sobre as

diferentes teologias medievais sobre o tema. Gil de Zamora e Alfonso X se aproximam em

diversos pontos. Por serem compilações de narrativas de milagres medievais, portanto,

possuindo fontes em comum, os autores fazem alusões à manutenção da virgindade

mariana mesmo após o parto em que nasceu, segundo a tradição cristã, Jesus. Concepção e

manutenção virginais também são indissociáveis nestes textos e são considerados

elementos centrais nos textos.

Em um milagre, de número cinco, conhecido como Santa Maria e a abadessa

grávida, que aparece na obra Gil de Zamora, alude-se à virgindade como uma condição das

que seguem a vida religiosa. No milagre em questão, uma abadessa pede à Maria que a

perdoe do pecado da gravidez, sendo imediatamente atendida. O feto desaparece de seu

ventre, e o violador é punido pelo bispo local. A nossa interpretação é de que a condição

acerca da vida monástica, sobretudo em relação às mulheres, é de se manter a integridade

virginal, sendo a própria Maria figura exemplar de tal conduta. Esse milagre também

aparece nas Cantigas de Alfonso X e nos Milagros de Berceo, obra não trabalhada neste

artigo.

O oitavo milagre do primeiro tratado é conhecido como Santa Maria e a mulher

estéril e relata uma intervenção. Na igreja de um mosteiro franco, uma mulher pede

desesperadamente à Virgem para engravidar, pois se considera vítima da “infame

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esterilidade” (GIL DE ZAMORA. Op. Cit. p. 87) e os vizinhos e conhecidos já a vêem

com reprovação. Maria intervém e permite que a mulher engravide, mas não há menção de

casamento ou relações sexuais. No entanto, a criança, varão, morre logo depois de nascida.

Novamente a mulher pede a ajuda da Virgem, que também era considerada mãe, que

ressuscita o bebê.

A principal prerrogativa para que Maria atenda a mulher estéril é a combinação de

fé e defesa da maternidade. Como a Virgem sempre aparece como mãe dos cristãos, ela

também é uma compartilhadora da maternidade. Entretanto, verifica-se que uma das

funções marianas medievais é a de geratriz, segundo Börrensen (BØRRESEN, p. 18-29,

1976). Essa atribuição permite a disseminação dos discursos relacionados ao sentido de ser

mãe. No relato milagroso zamorano, Maria admite o nascimento e a ressurreição da criança

no momento em que é deixada clara a fé cristã da mulher estéril. Podemos verificar

também que as questões sobre o pecado original e a salvação dos cristãos passam pelas

perspectivas sobre virgindade.

A doutrina imaculista presente na obra de Alfonso X pode ser percebida de forma

direta e indireta. Havia em parte na Europa do século XIII, sobretudo na Península Ibérica,

no campo da teologia, a idéia de que Maria concebeu Cristo sem a mancha do pecado

original (o que se entende também como um parto sem dor nem sangramento). Seu papel

seria, portanto, de redimir os Cristãos, tornando-se a Nova Eva. A cantiga que corrobora

com essa concepção é a LX:

Entre Av' e Eva

gran departiment' á.

Ca Eva nos tolleu

o Parays' e Deus,

Ave nos y meteu;

porend', amigos meus:

Entre Av' e Eva

gran departiment' á.

Eva nos foi deitar

do dem' en sa prijon,

e Ave en sacar;

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e por esta razon:

Entre Av' e Eva

gran departiment' á.

Eva nos fez perder

amor de Deus e ben,

e pois Ave aver

no-lo fez; e poren:

Entre Av' e Eva

gran departiment' á.

Eva nos ensserrou

os çeos sen chave,

e Maria britou

as portas per Ave.

Entre Av' e Eva

gran departiment' á.3

Na obra Duelo de Berceo, não há intervenções milagrosas. Mas, o papel de Maria

na narrativa é fundamental, pois ela é a personagem guia do drama que reconta a chamada

Paixão de Cristo a partir de sua óptica. O que é exaltado é sua condição de mãe, fiel e

seguidora incondicional do filho.

Se pensarmos a chamada concepção virginal de Maria no Duelo de la Virgen,

podemos verificar que a questão está dispersa na obra e não aparece de forma clara. Num

diálogo entre mãe e filho, Berceo admite que Cristo era filho de Maria e que dela nasceu,

ou seja, parió, como lemos no poema no original na estrofe cento e treze e na sessenta e

um (BERCEO, 1991, p. 819). Entretanto, Berceo não se preocupa em mencionar se houve

a reconstituição corpórea após o parto, questão que marcaria uma posição do autor riojano

acerca das discussões teológicas sobre a concepção virginal.

Non era maravella si la que lo parió

Con duelo de tal Fiio si se amorteçió:

3Disponível em: http://brassy.club.fr/PartMed/Cantigas/CSMtext/c60.html. Acesso em 05 de abril de 2009.

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En los signos del çielo otro tal conteçió,

Todos fiçieron duelo quando elli morió.

Fiio de tal natura de Madre non nasçió:

Demas, mal nunca fizo nin mal non mereçió,

Siempre derecho fizo, derecho cobdiçió,

Nunca tal creatura babtismo resçibió.

Berceo se preocupa em destacar que o parto foi “normal”, ou seja, Maria teve a

mesma dor que outras mulheres: “... Con duelo de tal Fiio si se amorteció.” Há uma

referência indireta ao livro bíblico do Gênesis (3,16): “E à mulher disse: Multiplicarei

grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será

para o teu marido, e ele te dominará.” Isso significa que Berceo compreende Maria como

mulher, como as demais, ou seja, que possuem as mesmas atribuições sociais

teologicamente justificadas. Para Berceo, a dor da parturiente é intrínseca a sua própria

condição feminina. Mas Maria, mesmo passando por tais dores como mãe, recebeu de

Cristo, devido sua dedicação e resignação, funções superioras às das demais mulheres.

No Duelo há uma preocupação mais aguda em relação à maternidade mariana.

Berceo reforça essa condição de Maria em várias estrofes e procura reafirmá-la utilizando-

se de um vocabulário expressivamente maternal, assim, como o clérigo riojano associa as

palavras ligadas à maternidade às funções próprias dessa condição. Vejamos as estrofes,

vinte e dois, e sessenta:

Io sabia el pleito qui fo, o don viniera,

Ca de la leche misma mía lo apaçiera.

Pero non asmarie nadi la mi rencura,

Ca nunca parió Madre Fiio de tal natura.

Assim, não há menção direta sobre sua virgindade no parto e a manutenção dessa

condição após o nascimento de Cristo, mesmo porque Berceo menciona o adjetivo Virgen,

mas como título formalmente estabelecido. Entretanto, a santidade de Maria não se

estabelece pela virgindade corpórea. Segundo Berceo, ela se dá pela função maternal.

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Maria, assim, é vista como aquela que nutre o filho com seu leite protetor: “... La que de

las tus tetas mamantest a Messia”, “... Ca de la leche misma mía lo apaçiera.” (apaçiera:

alimentara), e parturiente, “... Ca nunca parió Madre Fiio de tal natura.”

Se analisarmos estas questões dentro de uma concepção de gênero, a legitimidade

da condição de mãe de Maria não se estabelece pela concepção, mesmo porque Berceo

afirma sua qualidade de virgem, mas pelas funções de amamentadora e mãe, ou seja,

posições destinadas a outras mulheres. Já nas obras de Gil de Zamora e Alfonso X, a

virgindade é modelar e é ela, em parte, que legitimiza o papel de co-salvadora dos cristãos.

Dessa forma, tanto a concepção virginal quanto a virgindade perpétua de Maria não

são temas centrais no Duelo, porque as preocupações teológicas de Berceo eram de

singularizar os papéis de Maria frente às outras mulheres que aparecem na obra, mas

apenas nas questões relacionadas à santidade e não nas funções sociais destinadas às

mulheres, como por exemplo, as tias de Cristo, que são mencionadas junto com Maria

Madalena, nas estrofes vinte e vinte e um, que, com a Virgem, acompanham, em prantos,

Cristo no calvário:

Andaban aiulando fueras por las erias,

Del mi fiio dulçissimo ambas eran sus tias.

María la de Magdalo delli non se partie,

Ca fuera io, de todas ella maes lo querie

Berceo, entretanto, ressaltou de uma maneira particularmente mais recorrente a

questão da maternidade de Maria. Ou seja, as discussões sobre a concepção virginal e a

virgindade perpétua são secundárias nesta obra, na medida em que elas não implicam

diretamente nos discursos mais centrais no Duelo. Já a maternidade mariana apresenta-se

como um eixo definidor de papeis tributários às mulheres.

No Duelo, a Virgem acompanha Cristo em toda a Via Crucis, o que interpretamos

como uma forma de estabelecer algum tipo de igualdade entre ambos, ou, pelo menos,

Berceo deu um grau maior de importância à figura de Maria em relação às narrativas dos

textos bíblicos. Como dissemos, o autor riojano coloca outras mulheres para

acompanharem a crucificação, mas elas têm papéis secundários e são mencionadas apenas

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duas vezes no poema. Podemos citar o exemplo da estrofe quinze, que narra a prisão de

Cristo, sendo que, diferente dos testos bíblicos, Maria estava, no Duelo, presente no

Cenáculo.

El dia de la çena quando fuemos çenados,

Prissiemos Corpus Domini, unos dulçes bocados:

Fizose un roido de peones armados,

Entraron por la casa commo endiablados

Conclusão

Para nossa discussão neste artigo temos que pensar o Duelo de la Virgen dentro

uma outra tradição mariana ainda pouco aprofundada, a chamada mater dolorosa (mãe

dolorosa ou lacrimosa) e diferente das obras que envolveram relatos de milagres marianos,

como os de Alfonso X e Gil de Zamora. Nos séculos XII e XIII, circularam na Europa

variadas representações que exploravam a dor de Maria ao lamentar a morte do filho, Jesus

Cristo, sobre a cruz. As imagens possuíam intenso apelo emocional. Maria, pictoricamente,

envolvia os sofredores e os protegia, num intenso processo intimista e de humanização de

Cristo e Maria (DUBY, 1997. p. 113).

Jaroslav Pelikan aponta que essa tradição foi muito forte no Ocidente medieval,

embora possa ser encontrada também no Oriente. Pelikan, no entanto, não identifica as

motivações para o surgimento dessa prática devocional no medievo, mas acrescentou que

se tratava de um recurso expressivamente subjetivo da teologia em contato com a idéia de

Maria como mediadora:

Se o esclarecimento sistemático do título de Mediadora foi a principal expressão objetiva do marismo e a mais importante contribuição teológica do ensinamento cristão durante esse período, esse fato também pode ser visto como uma conexão criativa com o crescimento de uma das mais importantes expressões subjetivas, da forma literária e do motivo devocional da Mater Dolorosa: Maria lamentou a morte de Cristo porque era seu filho e simultaneamente se alegrou com ela, porque era o seu Salvador e o Salvador do mundo. (PELIKAN, 2000. p. 172).

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No fim do século XI já havia diversas manifestações no Ocidente concernentes a

Maria como sofredora e como intermediária. Para Mariana Warner, a piedade cristã do

Ocidente medieval recebeu um novo impulso baseada nas imagens marianas e estimulada

pela exploração do culto a mater dolorosa. Tanto para Bernardo de Claraval, quanto para

os franciscanos, a humanidade de Cristo “... se traduzia primeiro na criança desamparada

no colo de sua mãe ou dormindo no berço de feno e mais tarde como o Homem triste

sangrando, intimidado pela crueldade do homem” (WARNER, 1976, p. 210).

Essa nova espiritualidade, que segundo Warner teve início a partir do século XII,

era compartilhada entre os cistercienses e os franciscanos e era parte de uma prática

religiosa baseada nas experiências de amor e fé. Elementos como o sangue, os ferimentos,

as lágrimas e o corpo de Cristo eram explorados como maneira de atingir a catarse no

expectador. Devemos lembrar que o Duelo de Berceo é formado por imagens de

sofrimento de Maria, o que sugere que esta obra berceana estava vinculada às temáticas da

chamada mater dolorosa. Emília García Jiménez estudou as manifestações corpóreas de

Maria no poema Duelo de la Virgen e observou que há elegias que exploram

estilisticamente imagens de Maria ligadas à dor, aos lamentos, aos gemidos, aos prantos,

aos desmaios, à morte, à loucura, ao luto, às privações, etc.:

Recursos de este tipo no sólo se reiteran poema a poema, sino que aparecen de una forma recurrente en las composiciones, actuando como verdaderos estribillos. Berceo acude a ellos constantemente puesto que, en gran parte, el clima característico de la elegía, esa pena hiperbólica que en tronca al género con el planto oral, depende de su presencia en los textos (GARCÍA JIMÉNEZ, on line).

Portanto, entendemos que a presença da chamada mater dolorosa no Duelo de la

Virgen, mais do que um recurso é uma constatação de que havia diversos instrumentos

discursivos na construção da imagem de Maria. O drama mariano é, na obra berceana, uma

forma de afirmar seu papel na economia da salvação, mas de também, paralelamente,

subordiná-la a condição de dependente, secundária e excessivamente frágil.

REFERÊNCIAS

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WARNER, Mariana. Alone of all her Sex – The myth and the cult of the Virgin Mary. Nova

York: First Vintage, 1976.