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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Departamento de Letras Modernas Área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana Trabalho de Graduação Individual em Letras Modernas Edilson da Silva Cruz A outra lógica de Berceo: exemplum e tipologia em Milagros de Nuestra Señora Orientadora: Profª Dra. Maria Augusta Da Costa Vieira São Paulo, dezembro de 2010

de Berceo: exemplum e tipologia em Milagros de Nuestra …

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

Departamento de Letras Modernas Área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana

Trabalho de Graduação Individual em Letras Modernas

Edilson da Silva Cruz

A outra lógica de Berceo: exemplum e tipologia em Milagros

de Nuestra Señora

Orientadora:

Profª Dra. Maria Augusta Da Costa Vieira

São Paulo, dezembro de 2010

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

Departamento de Letras Modernas Área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana

Trabalho de Graduação Individual em Letras Modernas

Edilson da Silva Cruz

A outra lógica de Berceo: exemplum e tipologia em Milagros de Nuestra Señora

Trabalho de Graduação Individual apresentado à

Área de Graduação em Língua Espanhola do

Departamento de Letras Modernas da Faculdade

de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo, sob orientação da

Profª. Drª. Maria Augusta da Costa Vieira.

São Paulo, dezembro de 2010

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Quiéralo Jesucristo – y La Virgo Gloriosa,

sin la cual no se hace – ninguna buena cosa,

que así mantengamos – la vida laceriosa

que ganemos la otra, - durable y luminosa

(…)

Madre, de tu Gonzalo – no olvides el amor,

Que fue de tus milagros – el versificador.

Haz Tú por él, Señora, - tus preces al Creador,

Porque es tu privilegio – valer al pecador:

Gánale Tú gracias – de Dios Nuestro Seños. Amén.

(“El milagre de Teófilo”, Milagros, XXV, coplas 864,866)

(Imagem de Nuestra Señora de Marzo, a quem foi consagrado o altar da igreja de San Millán de Yuso [século XIII] e que motivou Berceo a compor em honra à Virgem Maria)

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RESUMO

Este trabalho analisa a construção e o papel que cumprem o espaço do Além e a figura

central da Virgem Maria na obra Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de Berceo, em

diálogo com a história e o imaginário medievais (LE GOFF, 1980, 1983, 1993a, 1993b), bem

como o entorno imediato que orientou Berceo em sua composição (DUTTON, 1962, 1980). A

narrativa exemplar e o relato miraculoso, gêneros comuns na Idade Média, apontam para

uma lógica didática e moralizante. Berceo, ao valer-se desses gêneros para compor em

cuaderna via, traço do mester de clerecía, incorpora neles a figura da Virgem e o espaço do

Além (como espaço de embate entre as forças do bem e do mal), e instaura uma outra lógica

na narrativa: não mais centrada na relação binária de causa e consequência, mas numa lógica

ternária que conduz a um julgamento tolerante e indulgente do pecador. Mais vale sua

devoção à Virgem que o teor de seu pecado, o que aponta para uma relação próxima entre a

estrutura dos relatos e as transformações sociais ocorridas nos séculos XII e XIII (LE GOFF,

1980). Não obstante, o espaço do Além e a presença da Virgem evidenciam sua ação em favor

do pecador, e permite uma aproximação entre a história da Queda do homem, relatada no

Gênesis, e os relatos milagrosos de Berceo, como quer Gerli (1985), o que se verifica na

repetição estrutural proposta entre ambas as narrativas. Prevalece, assim, a lógica da graça,

na qual a Virgem, Nova Eva, inverte o papel da primeira (HANSEN, 2006) e intervém

concretamente na vida cotidiana de seus fiéis, conduzindo-os à salvação.

Palavras chave: lugares do Além, Gonzalo de Berceo, literatura exemplar, construção

tipológica, Virgem Maria

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RESÚMEN

Este trabajo analiza la construcción y el papel que cumplen el espacio del “más allá” y la

figura central de la Virgen en la obra Milagros de Nuestra Señora de Gonzalo de Berceo, en

diálogo con la historia y el imaginario medievales (LE GOFF 1980, 1983, 1993a, 1993b) y el

entorno inmediato que guió Berceo en su composición (DUTTON, 1962, 1980). La narrativa

ejemplar y el relato de milagros, géneros comunes en la Edad Media, apuntan hacia una lógica

didáctica y moralizante. Berceo, al valerse de estos géneros para componer en cuaderna vía,

rasgo del mester de clerecía, les incorpora en ellos la figura de la Virgen y el espacio del “más

allá” (lugar del combate entre las fuerzas del bien y del mal), e instaura otra lógica en la

narrativa: no centrada en la relación binaria de causa y consecuencia, sino en una lógica

ternaria, lo que conduce a un juicio tolerante e indulgente del pecador. No vale la gravedad de

su pecado más que su devoción a la Virgen, lo que apunta hacia una relación muy próxima

entre los relatos y las transformaciones sociales de los siglos XII y XIII (LE GOFF, 1980). No

obstante, el espacio del “más allá”, lugar que pone en evidencia la acción de María a favor del

pecador, nos permite una aproximación entre la historia de la Caída del Hombre, según el

Génesis, y los relatos milagrosos de Berceo, como plantea Gerli (1985). Esto se verifica en la

repetición estructural propuesta entre ambas las narrativas. Prevalece, de esa manera, la lógica

de la gracia, en la cual la Virgen, Nueva Eva, invierte el papel de la primera (HANSEN,

2006) e interviene concretamente en la vida cuotidiana de sus fieles, conduciéndolos hacia la

salvación.

Palabras clave: lugares del “más allá”, Gonzalo de Berceo, narrativa ejemplar, construcción tipológica, Virgen María.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: Novos olhares sobre a obra de Gonzalo de Berceo ....................... . 6

CAPÍTULO I - A obra de Gonzalo de Berceo e o seu tempo: história

e imaginário ................................................................................................................ 13

1.1 O século XII e suas transformações .................................................................. 13

1.2 Concílio, juglaría e clerecía: as origens da prática literária de Berceo ............ 17

1.3 A constituição do espaço no Além Medieval: de sistema binário à

sistema ternário ........................................................................................................ 20

1.4 O culto à Virgem Maria na Idade Média: de Nova Eva à

Mediadora Universal ................................................................................................ 24

CAPÍTULO II – Berceo e seu diálogo com a literatura exemplar .......................... 29

2.1 A literatura do exemplum: origens e funções didáticas no período do apogeu

(séculos XII a XIV) ................................................................................................. 29

2.2 O Miraculoso na Idade Média: a fé no sobrenatural e outros interesses

nos relatos de milagres ........................................................................................... 34

2.3 A(s) lógica(s) do exemplum medieval ............................................................... 39

2.4 A outra lógica de Berceo ................................................................................... 42

2.5 Uma lógica tolerante ........................................................................................... 51

CAPÍTULO III – A Virgem Maria, o espaço do além e a construção tipológica em

Milagros de Nuestra Señora ......................................................................................... 56

3.1 “Alegoria dos poetas” e “alegoria hermenêutica” ou tipologia ........................... 57

3.2 “Es cierto que el hombre cayó por la mujer. Pero también poco podrá levantarse

sino por una mujer” ................................................................................................... 59

3.3 A lógica da graça ................................................................................................ 63

CONCLUSÃO .............................................................................................................. 71

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 77

ANEXOS ...................................................................................................................... 82

6

INTRODUÇÃO - Novos olhares sobre a obra de Gonzalo de Berceo

Desde que Brian Dutton empreendeu um importante estudo sobre a obra de Gonzalo

de Berceo, na década de 1960, a visão geral que se tem sobre sua produção literária mudou

significativamente. Se antes Berceo era considerado um autor ingênuo, piedoso, cujos temas

refletiam sua profunda simplicidade e devoção, hoje, após os estudos de Dutton, sua produção

é valorizada pela organização temática coerente, a relação dos escritos com a realidade

política e econômica de seu mosteiro, além da capacidade de sintetizar as funções didática,

retórica e propagandística das obras. Segundo Gerli (1985, p. 14),

Lo que sí hay que hacer es reconocer la realidad del hecho dilucidado por Dutton y apreciar la extraordinaria complejidad de nuestro poeta y su mundo. Más que ser un sencillo y pintoresco clérigo que se pasó la vida en la celda escribiendo obras pías, Berceo se percibe a la luz de los hallazgos de Dutton como una de las personalidades poéticas más interesantes de la literatura medieval española (…) Lejos de ser un autor ingenuo movido por arrebatos de sencilla piedad, Berceo fue un maestro de la literatura didáctica y un propagandista experto que sentía profunda lealtad por el monasterio al que estaba vinculado. (p. 14)

Com efeito, dentre as contribuições dos estudos de Brian Dutton em relação à obra de

Berceo está a de ter trazido à luz um dos objetivos primordiais que orientava o autor riojano

em suas composições: profundamente ligado ao mosteiro de San Millán de la Cogolla,

colocava todo seu empenho em servir ao mosteiro através de seu “mester”, cujos fins eram

mais que simplesmente religiosos, didáticos ou pios. Aliás, podemos afirmar que um dos

traços que tornam a obra de Berceo singular no panorama da literatura espanhola medieval

seja justamente o êxito em conciliar os interesses imediatos do mosteiro de San Millán, a

pregação catequética das verdades da fé, como cabia a um religioso, com o necessário

didatismo de uma linguagem retórica direcionada às grandes massas de peregrinos que

acorriam ao seu mosteiro. Isso tudo sem deixar de lado a preocupação com a construção da

narrativa, tanto do ponto de vista estrutural quanto temático.

Menendez Pelaez (1993), ao comentar a “intencionalidade” da obra de Berceo, à luz

dos estudos de Brian Dutton, pondera sua visão excessivamente pragmática e interessada da

obra do poeta de San Millán. Reconhece, por um lado, o caráter propagandístico de algumas

vidas de santos escritas por Berceo, mas prefere atribuir ao didatismo, ou seja, à necessidade

de adaptar conteúdos da pregação catequética da Igreja a um público maior e heterogêneo, “el

principal móvil de su obra literária” (p. 412).

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Parece-nos razoável compreender que, em se tratando de um religioso, a motivação

piedosa deva estar presente, ao mesmo tempo em que a localização do mosteiro de San Millán

( na famosa rota de peregrinação à igreja de Santiago de Compostela) e as práticas sociais e

religiosas da época, tenham levado Berceo pelos caminhos do didatismo, da necessidade de

ensinar aqueles inumeráveis peregrinos com os quais tinha contato, em sua maioria pobres e

analfabetos, os ensinamentos da fé cristã de maneira acessível. E a educação de Berceo, aliada

ao seu contato com aquele povo, o credenciava a enveredar-se por tal caminho.

No entanto, como já mencionamos, vale a pena apontar alguns elementos contextuais

levantados por Dutton e que são decisivos para aproximar, na obra de Berceo, o intuito

didático com a necessidade propagandística de divulgar o mosteiro aos que peregrinavam

naquela região.

Segundo a tese de Dutton (apud RICO, 1980, p. 148), ao longo do século XII, o

mosteiro de San Millán passou por um processo de declive financeiro, fruto da competição

com outras rotas de peregrinação, o que lhe tomou muitos fiéis. Necessitava, pois, de um

novo impulso para recompor-se financeiramente. Entre outras medidas possíveis, está a obra

de Berceo, escrita com o intuito de atrair os fiéis que peregrinavam até Santiago de

Compostela e que passavam por ali.

Assim, a Vida de San Millán teria sido escrita exatamente segundo o objetivo descrito

acima. De fato, nessa obra, Berceo traduz à língua romance documentos falsos referentes ao

Privilegio de los votos de San Millán, que justificava a necessidade de doações de peregrinos

para a manutenção do mosteiro. Com isso, justificava-se a doação de tributos “en un momento

en el que la fundación de nuevos monasterios comprometerían los ingresos y canónicos del

cenobio emilianense” (MENENDEZ PELÁEZ, 1993, p. 183).

A partir do êxito obtido com esta obra, também os monges de Silo teriam pedido a

Berceo pessoalmente que compusesse algo no mesmo sentido em favor de seu mosteiro, o que

motivou a escrita da Vida de San Domingos de Silos, cujo intento propagandístico seria

evidente, apesar de que “el pragmatismo económico está más velado” (MENENDEZ

PELAEZ, p. 183).

Também a parte de sua obra dedicada à Virgem Maria Berceo a teria escrita na

tentativa de velar pelos interesses do mosteiro de San Millán. Nas palavras do próprio Dutton:

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Las tres obras dedicadas a Nuestra Señora son, a primera vista, de interés e importancia universales. Sin embargo, tenemos razones bien fundadas para indicar que hasta estas obras tienen especial relación con San Millán de la Cogolla: por ejemplo, no sólo la nueva iglesia de San Millán de Yuso estaba dedicada a la Virgen, sino que incluso a ella – y no a San Millán – se consagró el altar mayor. En el claustro de Silos se halla la famosa imagen de Nuestra Señora de marzo, y parece que había una imagen parecida en el claustro de Yuso, a la cuál vendrían muchos peregrinos. Es a estos peregrinos a quienes se dirige Berceo en los Milagros (…) había, por lo tanto, una devoción particular a la Virgen en Yuso, y en razón de esta devoción Berceo compondría sus obras marianas (…) (apud RICO, p. 149).

Isso nos interessa diretamente. A posição de Menendez Pelaez em relação à tese de

Dutton nos parece coerente. A nosso ver Berceo se destaca justamente por ser capaz de juntar

interesses didático-catequéticos a interesses propagandísticos imediatos, de maneira a atingir

seu objetivo e o público ao qual se destinava, com uma escrita agradável a eles. Como

sintetiza Silva (2001, p. 142):

Estas obras estavam preocupadas, fundamentalmente, em estimular as peregrinações e as ofertas dirigidas ao Mosteiro de San Millán de la Cogolla e ao Mosteiro de Santo Domingo de Silos, que se encontravam unidos por intermédio de uma carta de Hermandad desde 1190. Porém, como textos de natureza hagiográfica, possuíam outras motivações: festejar e manter viva a memória de Millán e Domingo; divulgar ensinamentos espirituais e morais; entreter; servir como material de estudos e, para os que provinham de outras regiões e que não conheciam a vida e feitos dos santos, funcionavam como uma espécie de guia informativo.

No entanto, importa levar em consideração a presença, na obra de Berceo, do contexto

real do qual fazia parte e a disputa por espaço e poder inerentes aos mosteiros naquela região,

todos sustentados pelas vultosas ofertas dos peregrinos mais ricos, ou pelas modestas esmolas

dos mais pobres. Sem a renda e a divulgação que lhes garantiam as peregrinações, a

sobrevivência desses mosteiros quedava-se comprometida. Essa disputa de “aquém”,

inclusive, como veremos ao longo do trabalho, será projetada no “além” e cumprirá uma

função específica: hierarquizar as relações no Além, tendo a Virgem o lugar mais alto e

central, o que contribuirá com a função didática dos exempla: elevar a Virgem à condição de

Mediadora Universal entre Deus e os homens, através de “exemplos” de seu poder intercessor

e mediador. Ao mesmo tempo, faz supor uma hierarquização no próprio contexto do mosteiro

de San Millán, onde todos os santos são “menos poderosos” que a Virgem. Exceção feita à

Santiago, cuja subordinação à Maria, no milagre VIII, não é tão acentuada quanto sua

sabedoria em recorrer a ela quando necessário.

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Essas discussões demonstram a vitalidade da obra de Gonzalo de Berceo, sua riqueza

temática, estrutural e a importância histórica destes relatos, em contrapartida à sua difusão na

época, ao que parece muito localizada e restrita à região de San Millán (DUTTON, 1962). No

entanto, apesar de seu alcance somente local, suas especificidades ocultam uma riqueza muito

grande no que diz respeito aos elementos que remontam a um período histórico determinado,

o século XIII, marcado por transformações que projetariam a face da Europa nos séculos

seguintes.

Tendo em conta os aspectos acima citados, nos propomos neste trabalho a fazer uma

incursão na obra mariana de Berceo, Milagros de Nuestra Señora, para tentar extrair dela,

relacionando-a com aspectos históricos, teológicos e literários de seu tempo, elementos que

ajudem a entender a construção peculiar de um traço característico do imaginário medieval na

obra: os lugares do Além. A narrativa exemplar e o relato miraculoso, gêneros aos quais

Berceo incorpora a construção métrica em cuaderna via, traço do mester de clerecía, apontam

para uma lógica moralizante e didática que, em Berceo, a partir da introdução da figura da

Virgem como personagem central, e dos lugares do Além como espaço onde se dá o embate

entre as forças do bem, chefiadas por Maria, e as forças do mal, nos levam a pensar em uma

outra lógica na estruturação da narrativa: não mais centrada na relação binária de causa e

conseqüência, mas numa lógica ternária que conduz a um julgamento tolerante e indulgente

do pecador, no qual este é julgado mais pela devoção à Virgem Maria do que pelo teor de seu

pecado.

Se, por um lado, essa análise direcionará nosso olhar às relações entre a obra de

Berceo e as transformações sociais – também ao nível do imaginário – que se processaram na

Europa desde o século XI, também nos remeterá ao lugar ocupado pela Virgem Maria no

século XIII, na teologia e na cultura popular: nesse momento se dá o apogeu da devoção à

Mãe de Cristo na Europa, ancorada numa perspectiva teológica cujo principal divulgador foi

São Bernardo de Claraval (GILBERT, 1999). Sua teologia humanista, de forte teor mariano,

ajudaria a dar corpo à tese de que Maria é o “canal da graça” de Deus e o caminho para a

salvação.

Mas só seria possível ao santo dar corpo às suas idéias alicerçado numa compreensão

da História, de raiz cristã e medieval, que a entende como palco da ação de Deus, revelado em

plenitude no Novo Testamento. Segundo essa compreensão, desde os tempos da Antiga

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Aliança se antecipava com sinais, acontecimentos e personagens a realidade do Novo

Testamento, no qual Cristo é o Novo Adão e a Virgem a Nova Eva (cf. HANSEN, 2006).

Essa maneira peculiar de construção interpretativa da História, centrada nas coisas

escritas por Deus na Bíblia - a tipologia ou alegoria hermenêutica (HANSEN, 2006) –,

enquanto construção, era uma técnica empregada pelos autores medievais para estruturar

muitas de suas obras. Assim, em Milagros de Nuestra Señora percebemos uma associação

entre a história da Queda do homem, relatada no primeiro capítulo do Gênesis, e o relato dos

milagres de Berceo, como quer Michael Gerli (1985), que se verifica na repetição estrutural

proposta entre as partes de cada texto: o objetivo de Berceo é mostrar a Virgem, Nova Eva,

intervindo concretamente na vida cotidiana de seus fiéis como a Mulher que conduz o homem

a Salvação, diferente da primeira, Eva, e mostrar a intercessão de Maria que abre o caminho

da graça de Deus “al romero cansado”.

Com isso, se evidencia a capacidade de Berceo em mesclar seus objetivos didático-

catequéticos, com outros mais imediatos: ele constrói uma narrativa exemplar que populariza

um saber erudito e mostra a Virgem Maria como a Nova Eva, cotidianamente agindo para

livrar os pecadores da condenação; ao mesmo tempo, ao versar sobre a Virgem, ao

hierarquizar as relações entre os santos no Além, reproduz uma disputa bem terrena por

peregrinos e contribui para atrair os fiéis ao mosteiro em San Millán.

***

No presente trabalho, ao tomar como objeto de pesquisa a obra mariana em questão,

selecionamos 6 relatos de milagres, todos eles marcados por uma estrutura interna comum, do

ponto de vista narrativo. São eles:

• Milagre II: El sacristán impúdico;

• Milagre VII: El monje y San Pedro;

• Milagre VIII: El romero de Santiago;

• Milagre X: Los dos hermanos;

• Milagre XI: El labrador avaro;

• Milagre XII: El prior y el sacristán.1

1 Para a elaboração do presente trabalho, as citações, títulos dos milagres e referências são tiradas da versão modernizada de Daniel Devoto (1965). No entanto, ao longo da análise, foram consultadas também as edições de

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Como dissemos, a estrutura deles segue uma regularidade estrutural que opõe duas

realidades, o Além e o Aquém: o Aquém, o mundo dos vivos, é o palco dos acontecimentos

que definem a posição dos personagens no Além, este o lugar do julgamento onde intervêm

diversos personagens e onde a Virgem Maria ocupa lugar central. Essa estrutura interna nós

associamos a: 1) uma diferença em relação a outras obras de gênero exemplar da Idade

Média, o que nos pode remeter a algumas especificidades de Berceo do ponto de vista

temático, e que nos levará a tecer alguns comentários que associem à obra ao ambiente

histórico, cultural e teológico do seu tempo; 2) a construção tipológica da obra como um

desdobramento da figura da Queda e Redenção, como quer Gerli (1985), onde é importante

ressaltar novamente a centralidade da Virgem nessa interpretação teológico-tipológica.

O objetivo central de nossa análise é, portanto, evidenciar, mediante a análise de

alguns milagres, as relações expostas acima entre a obra literária e seu contexto imediato,

tentando entender como se influenciam mutuamente as transformações sociais vividas no

século XIII e as transformações literárias que engendram novos estilos e gêneros literários,

mais adequados ao determinado momento histórico. Para isso, dividimos este trabalho em três

partes:

No primeiro capítulo esboçamos uma compreensão global do contexto histórico,

literário e teológico em torno à obra de Berceo e suas implicações no imaginário social

europeu. Iniciamos nossa reflexão a partir das obras de Vauchez (1995) e Le Goff (1980),

com a recuperação das principais características que marcaram o século XII como “século de

grandes mudanças” (DUBY, apud VAUCHEZ, 1995), que obrigaram até a Igreja a se adaptar,

mediante a mudança de sua prática penitencial. Em seguida, sobretudo a partir de Menendez

Pelaez (1993), Gerli (1985) e Rico (1980), recuperamos o clima de mudança religiosa e

teológica que engendrou o IV Concílio de Latrão (1215) e permitiu o surgimento de um novo

estilo literário, o mester de clerecía, em diálogo com o mester de juglaría. Na parte seguinte,

tendo como base essencial Le Goff (1993b), descrevemos os principais traços da geografia do

Além Medieval e seu papel na luta do cristão contra as forças do mal, cujo ponto central é o

surgimento do Purgatório como lugar intermediário entre o Paraíso e o Inferno (LE GOFF,

1993b). Para encerrar este capítulo, recorremos novamente a Gerli (1985) e também a Brian Dutton (1971) e de Michael Gerli (1985). Sobretudo a de Dutton, por ser uma edição crítica, foi muito importante para elucidar algumas características das narrativas, pertinentes à nossa reflexão, além de nos remeter ao texto do original conforme os manuscritos mais antigos nos quais constam os Milagros. A edição de Gerli (1985) nos foi importante também por seu estudo inicial sobre a obra, ao qual nos remeteremos ao longo de nosso trabalho.

12

Machado (2002) e Pelikan (2000) para recuperar o momento histórico da devoção à Maria no

século XIII, com ênfase à interpretação tipológica da Virgem como Nova Eva e à doutrina

sobre a mediação universal da Virgem.

No capítulo II, após uma breve reflexão sobre a definição e uso da narrativa exemplar

na Idade Média, descrevemos também suas relações com a narrativa miraculosa e os usos

desta no medievo cristão, baseados em Vauchez (2000) e Gajano (2003). A partir daí,

passamos a refletir sobre as “lógicas” do exemplum medieval e como este, em alguns casos,

mesmo apresentando traços historicamente inovadores, permanecia centrado e fechado numa

lógica rígida e intolerante. Na parte final do capítulo, analisamos dois milagres dentre os que

Berceo atribui à Virgem, a fim de estabelecer a especificidade do seu exemplum: a presença

da Virgem e do espaço do Além que corroboram uma outra lógica, mais aberta e tolerante.

No capítulo III, abordamos o uso da técnica alegórica na Idade Média, conforme

Hansen (2006), como técnica interpretativa de textos sagrados, coisas, acontecimentos e

personagens; introduzimos a relação entre a narrativa da Queda, no Gênesis, e a interpretação

figural que dela se fez no Novo Testamento, atribuindo a Cristo o papel de Novo Adão e à

Virgem o papel de Nova Eva. Percebe-se como, tanto a estrutura dos milagres abordados

neste trabalho, quanto a de outros textos medievais, utilizam-se da tipologia da Queda e

Redenção como técnica estrutural na construção narrativa. Por fim, descrevemos uma

estrutura seqüencial na narrativa da Queda, no Gênesis, para, em seguida, analisar sua

repetição inversa na estrutura de dois milagres específicos de Berceo.

13

CAPÍTULO I - A obra de Gonzalo de Berceo e o seu tempo: história e imaginário

Ao acercar-nos à obra de Gonzalo de Berceo se faz necessária uma aproximação a

realidade social europeia do século XIII, momento de consolidação de muitas transformações

que se iniciaram no século anterior, e cujos ecos, ressonâncias e resistências encontramos

também na obra do poeta riojano. O objetivo deste capítulo é apresentar um panorama das

transformações na vida e na mentalidade europeias nos séculos XII e XIII. Para isso, após

uma breve explanação das principais características desse período, refletimos a respeito do

ofício literário de Berceo, o mester de clerecía, sua relação com o contexto das

transformações em curso na Igreja, como fruto do Concílio de Latrão (1215) e com o mester

de juglaría. Por fim, nos propomos a recuperar o imaginário social e teológico medieval no

que diz respeito à concepção da geografia do Além e à devoção à Virgem Maria.

1.1 O século XII e suas transformações

O século XII marca um período de grandes transformações históricas, cujo início

podemos situar nos dois primeiros séculos do segundo milênio cristão. Um “renascimento”

que foi impulsionado, entre outros fatores, pelo desenvolvimento do comércio, das funções e

consolidação das cidades (LE GOFF, 2003, p. 25). Nas palavras de Vauchez (1995):

É o “século do grande progresso” (G. Duby), marcado simultaneamente por uma expansão demográfica sem precedentes e pela difusão de técnicas novas que levam ao desenvolvimento da produção agrícola e artesanal. Num mundo que permanece essencialmente rural, as cidades conhecem, todavia, um verdadeiro renascimento, e surgem novos grupos sociais. (p. 75)

As cidades - anteriormente constituídas por núcleos pequenos em torno a uma

representação militar e religiosa, cuja atividade econômica resumia-se a práticas de auto

sustentação (LE GOFF, op. cit., p. 25) - se desenvolvem e se tornam grandes centros urbanos,

marcando uma nova fase na sociedade europeia. Nesse contexto, ancorada no crescimento do

comércio, surge uma nova classe social, a burguesia que, aos poucos, ocupará espaços

maiores na sociedade e reivindicará legitimidade, frente às tradicionais “classes” sociais da

época feudal.

14

Vauchez (1995, p. 78) afirma que a principal contribuição dessas transformações para

o quadro da sociedade europeia é o desenvolvimento de uma “mentalidade do lucro”,

atingindo desde o camponês, passando pelo mercador e não deixando escapar o clero: todos

acabam, aos poucos, adaptando-se, ainda que a custo de muitos conflitos, individuais e

coletivos, à nova realidade econômica e social. Além disso, a mobilidade social é um traço

que vem distinguir essa sociedade transformada, associada a um processo de desenraizamento

que impulsionará o homem medieval a ir cada vez mais longe. É dessa época o apogeu das

peregrinações, sinal das aspirações desse homem, em busca de desbravar, além de si, o mundo

ao seu redor (VAUCHEZ, op. cit. p. 78).

Na teologia, novos debates surgirão acentuando uma cada vez maior autonomia da

razão diante do pensamento teológico. Ao mesmo tempo, os ecos da reforma gregoriana

ajudarão a imprimir mais unidade à Igreja, contribuindo para a progressiva autonomia dos

“poderes eclesiais” frente aos “poderes laicos” (GILBERT, 1999, p. 90). Também a teologia

mariana ocupará um espaço cada vez mais acentuado, em consonância com o momento de

forte culto à Virgem Maria em toda a Europa. São dessa época os escritos de São Bernardo

sobre a Virgem como “mediadora das graças”.

Em sua famosa obra Para um Novo Conceito da Idade Média, o historiador francês

Jacques Le Goff nos ajuda a entender como a Igreja se adaptou a essas mudanças. Segundo

ele (LE GOFF, 1980), a concepção de trabalho que o cristianismo engendrara desde seus

primórdios e que permaneceu imóvel, latente, até o século XII, nesse momento passa por

transformações, impulsionada pelas mudanças da sociedade, e obriga a instituição a atualizar-

se, embora a muito custo. É no século XIII, com o triunfo das ordens mendicantes que se

consolidará uma nova mentalidade da Igreja ao “criar as estruturas ideológicas de

acolhimento para as necessidades espirituais ligadas à atividade profissional do mundo dos

mesteres” (LE GOFF: 1980, p. 154).

Para Le Goff, as mudanças na concepção da Igreja referentes ao trabalho nutrem-se

nas transformações políticas, sociais e econômicas do século XII e definem “uma tripla

evolução decisiva”: a subjetivação da vida espiritual, a emergência de uma teologia do

trabalho e a transformação do esquema tripartite de sociedade.

Quanto à primeira evolução, Le Goff argumenta que a sociedade feudal, da Alta Idade

Média era uma sociedade rústica, voltada para o mundo exterior, pautada pela realização de

15

tarefas, onde as pessoas eram julgadas pelos atos cometidos a partir de sua situação objetiva, e

não por sentimentos ou intenções. Isso se reflete na maneira de a Igreja tratar o pecado e o

pecador: há um olhar direcionado àquele e não a este. Além do mais, o pecado é sempre

associado a algo externo ao ser humano, uma tentação do diabo que se materializa em forma

dos pecados capitais, que conduzem o pecador diretamente à pena que lhe é imposta.

Diante disso, as transformações do século XII, a abertura da sociedade e o

desenvolvimento técnico e econômico provocam uma mobilidade social que modifica as

mentalidades e apresenta um novo elemento a ser considerado na hora de se julgar um

pecador: a consciência: “A partir de então, considera-se menos o pecado que o pecador, o erro

que a intenção, busca-se menos a penitência que a contrição” (LE GOFF, op. cit., p. 159).

Tal mudança de mentalidade engendrará, ainda segundo Le Goff, a emergência de

uma teologia do trabalho, que recuperará o prestígio do trabalho manual, pelo menos aquele

ligado diretamente à burguesia nascente, diante dos outros mesteres, como conseqüência

sobretudo da pressão das novas categorias profissionais, em busca de justificação, afirmação

de sua dignidade e possibilidade de salvação: “À concepção do trabalho / penitência substitui-

se pela ideia de trabalho como meio positivo de salvação” (p. 160).

Tal fato abala, necessariamente, os pilares da estrutura social tripartite. Mantendo a

divisão tradicional da sociedade, dividida em oratores, bellatores e laboratores (clérigos,

senhores e/ou guerreiros e trabalhadores, respectivamente – numa simplificação grosseira), foi

possível à Igreja valorizar o trabalho intelectual e guerreiro e valorar negativamente o trabalho

manual, realizado pela camada mais baixa da população. No entanto, diante do

desenvolvimento das cidades, da atividade comercial, da burguesia como classe social, a

Igreja foi obrigada a, aos poucos, adaptar-se. A princípio, recusou-se a aceitar as organizações

profissionais que se organizaram para combater o poder temporal dos bispos, enxergando

nestas uma afronta à divisão tradicional de sociedade, já consolidada e justificada como de

origem divina. Em um segundo momento, passou a admiti-las, desde que sob sua autoridade:

surgem as confrarias. Mesmo assim, a Igreja manteve, diante de muitas profissões (listas

intermináveis), sobretudo a de mercador, uma desconfiança constante. Ao mesmo tempo em

que essa desconfiança engendrava conflitos de consciência nesses trabalhadores, todos

cristãos, obviamente, também ajudou a formar uma “consciência profissional” nesses grupos.

Ao pressionar à Igreja em busca de legitimação, por fim, conseguiram fazê-la ceder e aceitar

16

os fiéis das mais variadas profissões dentro de seus quadros institucionais, legitimando-os

social e espiritualmente. Daí a emergência de uma nova teologia do trabalho.

A partir daqui, “quase todas as doutrinas do século XII” (LE GOFF, 10980) refletirão

uma nova maneira de entender a estrutura social, dando realce à sociedade como um conjunto

harmonioso onde cada trabalhador tem o seu lugar e pode contribuir, a partir de seu trabalho,

para a edificação do corpo social e para o bem comum, razões pelas quais pode pleitear a

salvação de sua alma. A atividade das ordens mendicantes, no século XIII, elas mesmas

envolvidas com “as atividades do século”, mais que seus antecessores beneditinos, teria um

papel primordial nesse processo, cujo desenvolvimento não foi algo homogêneo e pacífico,

comportando reações diversas.

Le Goff (1980), em seu estudo, mostra como os manuais de confessores ajudam a

entender a forma que adquiriu a prática penitencial, influenciada pelo processo de

incorporação das novas categorias profissionais: passa-se a considerar o pecador, em sua

relação com a Igreja e com seu mester, como central na prática penitencial, diferente do

período anterior, marcado pelo foco nos pecados capitais. Isso significa deslocar o centro da

noção de pecado e penitência para uma “prática histórica mais concreta”. Tal mudança é

extremamente relevante se entendida como uma oportunidade de reabilitação e inclusão social

das massas que outrora eram excluídas pela Igreja e pelos bellatores, pelo simples fato de

exercerem atividades manuais. A emergência dessa teologia do trabalho ressalta não somente

uma nova visão sobre a sociedade e seus estados, mas, sobretudo, numa sociedade pautada em

tudo pela religião, a importância da justificação divina, da incorporação no grupo dos que

gozam dos favores divinos através de um sistema de pensamento, o que inclui a possibilidade

de salvação e, ao mesmo tempo, o acesso aos “favores terrenos” da Igreja.

Toda essa explanação a respeito das características desse período histórico, que

encontraria seu momento de consolidação no século XIII, século de Berceo e do mester de

clerecía, são importantes para situar a perspectiva desse trabalho. A partir da análise de

algumas narrativas exemplares de Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de Berceo,

verificamos que a relação entre pecador e divindade está marcada por uma lógica mais

tolerante e justificadora, em relação a outras narrativas do mesmo gênero: a devoção à Virgem

é um elemento que garante ao fiel devoto outra chance de voltar à vida e expurgar seus

pecados, através da penitência. A introdução da Virgem e a localização do espaço do Além

como palco onde se dá sua intervenção são uma espécie de terceiro elemento que re-

17

configuram a narrativa exemplar e a inserem na continuidade desta mentalidade em

transformação, o que não quer dizer, necessariamente, um progresso ou evolução. Há que se

considerar também o objetivo tipológico de Berceo: situar a Virgem Maria dentro do “amplo

tipo bíblico” da Queda e Redenção humanas (GERLI, 1985): a Virgem é a Nova Eva que

conduz o homem à Graça.

1.2 Concílio, juglaría e clerecía: as origens da prática literária de Berceo

É nesse período histórico que surge o mester de clerecía, ofício literário de clérigos

medievais, envoltos nessas transformações pelas quais passava a sociedade europeia e,

consequentemente, a Igreja. Marcado pela reforma gregoriana do século anterior, o IV

Concílio de Latrão, de 1215, favorece o aprofundamento da política de autonomia do poder

religioso frente ao poder temporal (SILVA: 1999, p. 95). Ancorado neste objetivo e a fim de

tentar salvar a autoridade moral dos membros da hierarquia, envoltos em escândalos sexuais e

mau uso dos recursos financeiros da Igreja, o Concílio propunha fomentar o desenvolvimento

da educação dos clérigos, mediante o incentivo ao estudo do latim, da teologia e da gramática,

e o incentivo à literatura didática, com o desenvolvimento dos manuais de confessores e da

literatura dos exempla ( MENENDEZ PELAEZ, 1993, p. 159).

Apesar desses gêneros terem como fundo temático a teologia moral e dogmática, era

necessário dar mais ênfase ao seu conteúdo moralizante: “El clérigo, que compite con el

juglar, tenía que presentar su mensaje cristiano de forma animada y viva, si quería mantener la

atención de su público” (MENENDEZ PELAEZ, op. cit., p. 159). Daí a necessidade de adotar

uma linguagem compreensível, o que se traduziu no uso da língua romance e “en la

incorporación de modismos vulgares y giros juglarescos” (GERLI: op. cit., p. 17), balizados

em uma tentativa de transmitir “una autoridad irreprochable”, que valorizava a linguagem

escrita.

Francisco Rico (1980, p. 127) afirma que os poetas do mester de clerecía foram “el

primer grupo de poetas con un programa literário común” que pode ter surgido na

Universidade de Palencia, lugar de onde saíram os primeiros universitários espanhóis. Para

Menendez Pelaez (1993), essa hipótese é verossímil e encontra sustentação em algumas

evidências documentais:

18

Sin embargo, la escasa importancia que tuvo Palencia en el campo de la teología especulativa y del derecho no impide atribuirle el haber sido el centro de un tipo de literatura didáctica en consonancia con las disposiciones del IV Concilio de Letrán, como era la creación literaria del mester de clerecía. El verbiginale, manual de gramática y poética en el Estudio General de Palencia, en el primer cuarto del siglo XIII, corroboraría la existencia del taller poético del mester de clerecía (p. 159).

Assim, além da possível formação comum, Rico argumenta que estes poetas, no

século XIII, eram conscientes da produção de seus “colegas” - embora nem todos esses poetas

sejam até hoje conhecidos - o que permitiu uma “influência mútua”, se assim podemos dizer,

apesar da variedade temática das obras: da epopéia culta do Libro de Alexandre, passando

pelos textos hagiográficos de Berceo, com intuitos piedosos ou motivações econômicas, até

pequenos poemas da literatura sapiencial, como Castigos y exemplos de Catón. (RICO, op.

cit., p. 128).

De fato a produção temática do mester de clerecía não era de modo algum

homogênea, embora o seu fundo cristão e moralizante sempre estivesse presente. O que a

caracterizava, do ponto de vista formal, para seus próprios poetas era o que, ao mesmo tempo,

a diferenciava do mester de juglaría (cujas primeiras menções que se tem notícia oficialmente

em língua espanhola remontam ao ano de 1116 – MENENDEZ PIDAL, 1941, p. 15): o fato

de ser um ofício “sin pecado”, orientado dentro de um código moralizante e escrito em

cuaderna via, sem desvios de métrica (MENENDEZ PELAEZ, p. 160). O uso dos versos de

quatorze sílabas com cesura no meio, que deve sua origem provavelmente à região norte da

França e foi largamente utilizada naquela região nos séculos XIII e XIV, era uma marca

diferenciadora entre os mesteres. Já o uso da língua romance, característica dos juglares, foi

incorporado pela clerecía a fim de aproximar-se de seu público.

No entanto, ainda é causa de controvérsia na crítica as diferenças reais entre o mester

de clerecía e o mester de juglaría, considerados por alguns como, na verdade, duas formas

distintas de fazer literatura e não dois mesteres diferentes (MENENDEZ PELAEZ, op. cit. p.

164). Verificamos que Berceo, em Vida de San Domingos de Silos, inclusive, refere-se a si

mesmo como juglar:

Quierote por mi misme, padre, merçed clamar Ca ovi grant taliento de seer tu ioglar. Esti poco serviçio tu lo quieras tomar, Et quieras por mi Gonzalo al Criador rogar Padre entre los otros a mi non desampares, Ca diçen que bien sueles pensar de tus ioglares,

19

Dios me dará fin bona si tu por mi rogares, Guaresçeré por el ruego de los tus paladares 1

Com isso, o autor riojano assume toda uma tradição ligada a esse termo. Tal fato é

importante, pois, ainda que originado sob influência dos poetas juglares, e tendo escolhido

destes certas práticas literárias, o mester de clerecía, ao que parece, não se associou ao que de

má fama tinha a prática juglar. Segundo Menendez Pidal (1941, p. 31) justamente por estarem

associados a tipos sociais mendicantes e maltrapilhos que andavam pelas ruas e praças, ou

ainda a clérigos associados a uma vida devassa, os juglares mais populares eram

desprestigiados socialmente. A esses tipos sociais, opunha-se o trobador, termo que remete ao

que de mais culto existia na prática juglaresca, ligado mais à criação que a declamação dos

poemas e associado à autoridade culta do poeta que escreve a partir de suas fontes escritas,

fato valorizado na Idade Média (GERLI: p. 17). Podemos pensar em uma apropriação, por

parte dos clérigos, das características dos juglares, mediante a prática dos trobadores, mais

valorizados socialmente e mais diretamente associados à cultura letrada. De fato, é com esta

alcunha que Berceo se autodenomina em Loores de Nuestra Señora:

Aun merçed te pido por el tu trobador, Qui este romançe fizo, fue tu entendedor, Seas contra tu fijo por elli rogador, Rocabdali limosna en casa del Criador. (copla 232)

No que diz respeito ao público e à forma de difusão dos poemas da clerecía, há

motivos que os aproximam dos juglares, embora isso também não seja ponto pacífico na

crítica. Menendez Pidal (1941) afirma que o público de ambos mesteres era o mesmo: uma

poesia escrita “para el pueblo”, de modo geral (p. 17). Além disso, a forma de difusão da obra

também era a mesma, segundo Menendez Pelaez (1993): “una recitación, a modo de

salmodía, con el acompañamiento de determinados instrumentos musicales y ante un público

muy heterogeneo” (p. 166). Já outros autores, como Gybbon-Monypenny (apud MENENDEZ

PELAEZ, 1993), associam os “formalismos juglarescos” dos clérigos a tópicas discursivas da

época, sem o apelo que possuem na poesia juglaresca. Teriam os poemas uma tradição escrita

mais acentuada, tanto que tiveram pouco sucesso e difusão na Idade Média, entre os quais os

poemas de Berceo, que não ultrapassaram os círculos de San Millán, fazendo supor um

público estritamente eclesiástico.

1 Este trecho da obra Vida de San Domingos de Silos, e o próximo, de Loores de Nuestra Señora, foram

retirados de citação de MENENDEZ PIDAL, 1941 (ver Bibliografia).

20

Apesar da polêmica que envolve essa questão, nos parece clara a apropriação por parte

de Berceo, especialmente nesta obra analisada, de uma linguagem que o aproxima de fato da

poesia juglaresca e, consequentemente, do público ao qual se destinava: a massa de fiéis que

peregrinavam nos caminho de Santiago e que, nesse caso, poderia ser identificada com o

título geral de “pueblo”, pois era composta por gente simples e sem instrução letrada. O que

importa pensar é que, ao escrever suas obras, em especial Milagros de Nuestra Señora,

Berceo era motivado por objetivos específicos, o que a tornava singular: como resumido por

Gerli (1985), uma obra com intuitos pragmáticos e importância universal.

1.3 A constituição do espaço no Além Medieval: de sistema binário a sistema ternário

No imaginário dos povos europeus da Idade Média, a barreira que separava a vida

terrestre da vida do outro mundo foi em todo o tempo demasiado tênue. As interferências,

trocas e contatos entre os dois mundos eram fascinantes ao homem medieval, cuja

preocupação com o pós-morte era algo cotidiano, e os relatos de milagres eram parte essencial

desse contato. Sustentava-se que “cada hombre nace en una determinada situación y su papel

consiste en vivir de acuerdo con ella” (BLANCO AGUINAGA, 1979). Sobre isso é que seria

julgado. O sistema binário que triunfou no Cristianismo, opondo dois lugares distintos do

Além (LE GOFF, 1993B, p. 20) corroborava essa mentalidade, até que, no século XII, já

perfeitamente madura, triunfa a ideia de um lugar intermediário entre o Céu e o Inferno – o

Purgatório - que acaba por mudar sua antiga geografia.

Para Jacques Le Goff (2000, p. 21), o além medieval era o Além do Cristianismo,

“inaugurado” com a ressurreição de Cristo, mas que colheu elementos das diversas tradições:

bíblica, clássica, hindu, egípcia etc. Sua geografia era dividida de forma binária: Céu, para os

justos e bons, e Inferno, para os maus. Como não havia muita escolha, tal geografia ajudava a

corroborar no homem medieval uma consciência sobre a vida na terra como um combate

constante pela salvação: no palco da história, degladiavam-se os seres malignos contra os

seres celestiais, em confronto pela alma dos homens; estes, vulneráveis pela pena do pecado

original, deveriam estar em estado de constante atenção, a fim de livrar-se das tentações do

diabo e viver uma vida que justificasse a salvação.

Sobre esse campo de batalha de vida ou de morte que é o mundo, o homem tem por aliados, Deus, a Virgem, os santos, os anjos e a Igreja, e sobretudo sua fé e suas virtudes; mas tem também inimigos: Satã, os demônios, os heréticos e, sobretudo, seus vícios e a vulnerabilidade advinda do Pecado Original. A presença do Além deve ser sempre consciente e viva para o

21

cristão, pois ele arrisca a salvação a cada instante de sua existência, e mesmo se ele não está consciente, esse combate por sua alma é travado sem trégua aqui em baixo. (LE GOFF, op. cit., p. 22)

A origem da geografia do Além cristão remonta sobretudo ao Novo Testamento. Le

Goff (1993b) enumera algumas passagens que já traziam referências tanto ao Céu/ Paraíso,

quanto ao Inferno. Assim, na descrição de Cristo sobre o Juízo Final (Mateus 25, 31-46), já se

estabelece ao menos dois lugares distintos, um para gozo dos justos e outro para suplício dos

pecadores. Quanto ao Paraíso especificamente, que remonta ao Éden, há referências nas

palavras de Cristo ao ladrão, na cruz (Lucas 23,43), nas cartas de Paulo e no Apocalipse (2

Coríntios 12, 4; Apocalipse 2,7). Já o Inferno aparece na parábola do rico e do pobre Lázaro,

como um lugar de suplícios (Lucas 16, 22-26) e nas referências à descida de Cristo aos

infernos (1 Pedro 3,18-22; Epístola aos romanos 10, 6).

Além dessas referências, diversos textos apócrifos ou interpretações dos Padres da

Igreja serviram de base para a imaginação medieval criar as mais diversas imagens sobre os

lugares do Além, e tanto a iconografia quanto a literatura constituíram-se um “grande

reservatório de imagens, encarnando a ideologia e sensibilidade cristãs e participando na luta

escatológica do cristão” (LE GOFF, 1993b.).

Em Milagros de Nuestra Señora são muitas as referências ao outro mundo, tanto ao

Paraíso quanto ao Inferno. Todas elas se dão através de uma linguagem que faz uso de

alegorias para expressar os tormentos ou alegrias ligados a cada lugar. Assim, temos, logo na

Introdução, a descrição de um Paraíso como um prado cheio de flores que exalam odores

agradáveis, com fontes refrescantes, aves cujo canto doce supera o som harmonioso dos

órgãos das catedrais medievais, árvores de frutos doces e saborosos etc. Valendo-se dos

elementos que caracterizam a construção do locus amenus, Berceo associa o paraíso a um

lugar do gozo dos prazeres dos sentidos corporais humanos, desfrutados na mais plena

liberdade, exatamente como era o costume associar na Idade Média (LE GOFF, 1993b, p. 28).

Em seguida à descrição, Berceo revela ser o prado uma alegoria da Virgem Maria.

Cada elemento descrito revela-se como uma metáfora de alguma virtude ou característica da

Virgem ou algo relacionado a Ela. Esta, portanto, confunde-se com o Paraíso, onde

“encuentra refúgio el romero cansado” . Essa estratégia de associar o Paraíso à Virgem e à sua

devoção será usada mais vezes ao longo da obra. Os devotos da Virgem, portanto, podem

estar certos de que, depois de passar por esta vida, fiéis à Virgem, alcançarão também os

gozos deste “lugar ameno”. Percebe-se, aqui, o uso da técnica tipológica de construção

22

alegórica, como será depois evidenciado por Michael Gerli (1985), segundo a qual a Virgem

Maria está associada ao Paraíso como a Mulher que “pisa a cabeça da serpente”: de acordo

com a interpretação tipológica da História, a Virgem é a Nova Eva, que repete de maneira

inversa a história do Gênesis: “es cierto que el hombre cayó por la mujer. Pero también poco

podrá levantarse sino por una mujer”, dirá São Bernardo (OC, 1994, p. 605).

Quanto ao Inferno, aparece na obra de Berceo como o lugar para onde vão as almas

dos pecadores, por morrerem sem receber os sacramentos, sobretudo a penitência. As

imagens, utilizadas para referir-se aos sofrimentos do inferno, remontam tanto à tradição

clássica quanto às tradições orientais, hindu e egípcia, além de evidenciar seu fundo bíblico.

Podemos citar a imagem do fogo, que remete à culturas pré-cristãs, sobretudo egípcia, como

símbolo ambivalente, que representa ao mesmo tempo a regeneração e o castigo sem

possibilidade de salvação. Também encontram-se menções ao abismo, à prisão, lugar das

trevas, onde “não se vê sol nem lua”, onde também através dos sentidos serão castigadas as

almas dos pecadores:

Tomáronlo con lazos – los guerreros antiguos los que siempre nos fueron - mortales enemigos dábanle por pitanza - no manzanas ni higos sino vinagre y humo - heridas y pelcigos. (milagre X, estrofe 246); Finó el arrastrapajas - de tierras bien cargado de los diablos fue logo - en soga caltivado lo arrastraban con cuerdas - de coces bien sobado le pechaban al doble - el pan que dio mudado”. (milagre XI, estrofe 273).

Também “enfermería” e “hedionda cofradía” remetem ao desterro como castigo por

algum crime. A descrição, muitas vezes pormenorizada dos suplícios, era utilizada pela Igreja

para inculcar o medo do Inferno, mais eficaz que o desejo do Paraíso para manter os fiéis sob

suas ordens. (LE GOFF; SCHMITT, 2000, p. 30).

Toda essa constituição binária do Além, cuja existência nunca deixou de suscitar

perguntas e questionamentos por parte dos cristãos, seria profundamente modificada quando,

no século XII, se estabelece definitivamente um terceiro lugar do Além, o Purgatório,

reservado para a penitência e purgação dos pecados ditos “veniais” (LE GOFF: 1993b). O

tempo de estadia nesse lugar iria depender da quantidade/ gravidade dos pecados cometidos,

dos sufrágios oferecidos pelos vivos para salvação dessa alma e também da influência

econômica, por assim dizer, da Igreja que, através da venda de indulgências, garantia que a

23

alma do fiel podia deixar mais brevemente os suplícios do Purgatório e alcançar a salvação, o

Paraíso.

Em sua obra O nascimento do purgatório (1993b), Le Goff apresenta os fundamentos

sociais, políticos, teológicos e religiosos que condicionaram a fixação deste terceiro lugar,

lugar “intermediário” do Além. Sobre essa mentalidade do intermediário, ele assim se

expressa:

Estrutura lógica, matemática, o conceito de ponto intermediário está ligado a mutações profundas das realidades sociais e mentais da Idade Média. Não deixar mais sozinhos cara a cara os poderosos e os pobres, os religiosos e os laicos, mas antes procurar uma categoria mediana, classes medias ou ordens terceiras, é tudo a mesma tentativa e reporta-se a uma sociedade transformada. Passar de esquemas binários para esquemas ternários é dar aquele passo na organização do pensamento da sociedade, cuja importância Claude Lévi-Strauss sublinhou. (p. 21)

Com isso, se evidenciam as relações entre os espaços do Além e os espaços do

Aquém, e como as mudanças sociais, políticas, econômicas influenciam na mudança da

mentalidade de uma sociedade e na sua teologia, especificamente. No tocante à Europa pós-

século XII, podemos também associar a existência desse clima, que chamaremos de

“tolerante” à pressão das diversas categorias profissionais sobre a Igreja em busca de

legitimação e possibilidade de salvação (LE GOFF: 1980), o que conduziria a uma

reestruturação da relação entre o pecado, o pecador e a Igreja. Sobre a relação entre o

surgimento do Purgatório e as mudanças materiais e espirituais do século XII, dirá Le Goff:

Há uma estreita ligação entre o purgatório, além intermediário, e um tipo de pecado intermédio entre a pureza dos santos e dos justos e a imperdoável culpabilidade dos pecadores criminosos. A ideia, durante muito tempo vaga, de pecados ‘ligeiros”, “quotidianos”, “habituais”, bem captada por Agostinho e depois Gregório, o grande, só a longo prazo conduzirá à categoria de pecado venial – quer dizer, perdoável - que precedeu de perto o crescimento do purgatório e foi uma das condições de seu aparecimento. Mesmo se as coisas foram um pouco mais complicadas, como veremos, no essencial o Purgatório surgiu como o lugar da purgação dos pecados veniais.

Em Milagros de Nuestra Señora, embora haja apenas uma menção ao longo das

narrativas a um lugar denominado “purgatório” no plural (milagre 10 – embora a edição

modernizada consultada para este trabalho a tenha singularizado), podemos perceber que a

lógica do Purgatório, como um lugar intermediário para onde vão os pecadores a fim de

purgar seus pecados ditos “veniais” é importante para a construção estrutural dos relatos

miraculosos: esse “terceiro elemento” se faz presente tanto na pessoa da Virgem, responsável

24

por absolver os pecados de seus devotos, quanto pela presença do espaço do Além, onde se

realiza o julgamento que põe em evidência Maria como a Mediadora entre Deus e os Homens.

Constatamos, pois, que a construção dos lugares do Além em Berceo não é

simplesmente um conjunto de metáforas que fazem referência a imagens bíblicas e folclóricas

de diversas tradições religiosas, orientais e ocidentais, mas um sistema “retórico” inserido no

conjunto da obra de modo a constituir-se num lugar especifico que, como um terceiro

elemento, além de evidenciar uma outra lógica no julgamento dos pecadores, também

servirão para corroborar a visão tipológica que coloca Maria num plano especial na História

da salvação, pois sua palavra final é que decidirá, corroborada por Deus, o destino do

pecador: o Céu, o Inferno ou o retorno à vida.

1.4 O culto à Virgem na Idade Média: de Nova Eva à Mediadora Universal

Ao estudar a composição teológica das Cantigas de Santa María do rei Alfonso X,

Heloísa Machado (2002) afirma que, a partir do ano mil, o cristianismo europeu desenvolve

um forte acento cristológico, ou seja, uma centralidade na figura de Cristo. Segundo a autora,

“o avanço laicizante da vida urbana e suas inclinações humanísticas”, ajudam a “humanizar” a

figura de Deus e aplacar sua imagem de juiz punidor e distante (p. 188). Além disso, aponta a

relação entre essa centralidade de Cristo e as transformações do começo daquele milênio:

A ênfase no Cristo inscreve-se no movimento humanista e naturalista da Idade Media central, em que se agudiza a problemática das relações do homem – definido como a “complexidade teo-antropológica” corpo/ alma/ espírito – com Deus, mas também com a natureza, como podemos perceber nas Cantigas. Efetivamente, elas revelam a recuperação de dois tópicos comum e historicamente associados, isto é, a figura feminina e a matéria, indicando a consolidação de uma vertente naturalista de caráter positivo.

Ainda segundo a autora, este período histórico marca, para o Cristianismo, entre outras

coisas, o triunfo de uma teologia positiva sobre a criação, cujo ápice se deu no pensamento

franciscano. A noção de Encarnação de Deus, portanto, era central para se minimizar as

teorias segundo as quais a natureza humana seria má, uma vez que Deus se fez carne, ou seja,

isso não poderia ter acontecido se esta não fosse propícia para tal (MACHADO, 2002, p. 190-

213). Essa ideia, baseada no dogma da Encarnação, ajudaria a definir, no Cristianismo, sua

concepção de tempo e história.

25

E cumpre-nos agora observar o papel que a Virgem Maria ocupa nessa concepção.

Segundo Pelikan (2000), “o paralelo entre Eva e Maria”, estabelecido desde os primeiros

séculos do Cristianismo, contribuiria para definir com maior clareza “o sentido do tempo e a

história da humanidade, abrangendo a definição do que significa pertencer à raça humana”

(PELIKAN, p. 63).

O mesmo autor afirma que a interpretação tipológica que dá à Maria a alcunha de

Nova Eva como “reiteração” da primeira, e cuja base está no mesmo paralelo traçado por São

Paulo entre Cristo e Adão, ajudou, ao longo do tempo, a resolver alguns dos problemas

conceituais que o Cristianismo teve de enfrentar, como a própria concepção de história

“positiva”, ou seja, como lugar da intervenção misericordiosa de Deus; o combate a uma ideia

de história cíclica, segundo a qual os eventos e personagens se repetem indefinidamente, e,

por fim, sua contribuição mais importante, para ajudar a definir o dogma da dupla natureza de

Cristo, colocado em cheque desde os primórdios da fé cristã.

Ao citar Santo Irineu, cujos escritos talvez sejam os mais antigos testemunhos sobre a

concepção cristã de história baseada na técnica tipológica, Pelikan (2000) ressalta o fato de

que, no caso da comparação entre Eva e Maria, diferentemente da que fizera São Paulo, o que

importava era associar a obediência de Maria oposta à desobediência de Eva, ambas as figuras

totalmente humanas e cujas ações eram fruto do livre arbítrio, e não de uma coação de Deus

ou do diabo. Nas palavras de Santo Irineu,

Foi precisamente por meio de uma virgem transgressora [Eva] que a humanidade foi ferida e tombou, mas foi por outra Virgem [Maria] que, por ter obedecido à palavra de Deus, a humanidade ressuscitada recebeu a vida. Porque o Senhor [Cristo] veio para recuperar suas ovelhas perdidas, e estas eram a humanidade que estava perdida; e Ele não assumiu outro aspecto, mas a exemplo dela [isto é, Maria] também era descendente de Adão e preferiu preservar a semelhança de seu aspecto, porque Adão precisava necessariamente ser restaurado em Cristo para que a mortalidade fosse absorvida pela imortalidade. E Eva foi [restaurada] em Maria porque uma virgem, tornando-se advogada de outra Virgem, deveria resgatar a virginal transgressão por meio da virginal obediência (apud PELIKAN, p. 67-68, itálicos do autor).

Esse paralelo traçado entre as virgens, no qual a segunda resgata a desobediência da

primeira e abre a história definitivamente à ação misericordiosa de Deus, seria essencial para

consolidar uma visão cristã de história, como dissemos, segundo a qual esta não seria um

“caos inútil e desgovernado”; existiria nela uma “orientação divina que pode ser

misericordiosa”, nas palavras do imperador romano Marco Aurélio, contemporâneo de Irineu.

Além disso, Maria não seria simplesmente uma repetição de Eva, mas uma recapitulação, no

26

sentido de síntese definitiva, na qual estavam presentes “os padrões repetitivos”, nas palavras

de Santo Agostinho, como queria a história cíclica, mas acentuando seu caráter contínuo e

orientado a uma meta, ou seja, uma história com começo, meio e fim.

Ainda segundo Pelikan (2000), ao definir a Virgem Maria como Theotokos, a Mãe de

Deus, o Concílio de Éfeso (431 d. C.) se insere como um dos episódios históricos daquele que

foi “o mais importante conflito intelectual dos primeiros cinco séculos da história cristã”: a

polêmica a respeito da dupla natureza de Cristo. Segundo o autor, o desenvolvimento da

comparação tipológica entre Eva e Maria contribuiu diretamente para resolver a polêmica no

sentido de atestar a dupla natureza de Cristo uma vez que, tendo Maria superado a

desobediência de Eva, tornou-se a Mãe de Cristo e permitiu que este viesse ao mundo,

encarnando-se no seio de uma mulher, de carne e osso. Assim, a concepção de Cristo no seio

de Maria seria uma das principais provas de sua natureza humana, rechaçando os que a

colocavam em dúvida. Tanto que os teólogos ortodoxos faziam questão de lembrar, ao lado da

menção a Pôncio Pilatos, no Credo apostólico, o fato de Cristo ter, de fato, nascido, e nascido

da Virgem Maria, como prova de sua encarnação na história humana, logo, de sua

humanidade integral. (PELIKAN, 2000, p. 61-79).

Como veremos neste trabalho, a concepção de Maria como a Nova Eva será central

como um orientador estrutural da obra Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de Berceo. O

autor riojano reproduz, na Introdução de sua obra, de maneira geral, e em cada milagre

particular, segundo Gerli (1985), “el amplio tipo bíblico” da Queda e Redenção do homem.

Nesse tipo, a Virgem é central, pois, como Nova Eva, é aquela que, inversamente em relação

à primeira, conduz o homem à salvação e ao perdão dos pecados, anulando os efeitos da

desobediência da primeira mulher.

A ideia de Maria como a mediadora ideal entre Deus e os homens também é um

conceito presente na obra de Berceo. San Ildefonso, no século VII, e São Bernardo de

Claraval, no século XII, foram seus principais divulgadores. San Ildefonso foi o autor de um

tratado sobre a virgindade de Maria e importante reformador da liturgia mariana na igreja

visigótica espanhola, na qual já se faz presente a concepção de Maria como “mediadora en la

salvación que nos puede abrir las puertas del cielo” (GERLI, 1985, p. 21). Essas referências à

igreja visigótica espanhola atestam, segundo Mansilla (2004), a preocupação da hierarquia

eclesiástica da época em fomentar o culto à Virgem, embora pareça ter tido pouca repercussão

27

popular, o que se atestaria pela pouca quantidade de festas populares dedicadas à Maria na

mesma época.

De qualquer forma, o século XII marcaria uma mudança substancial no culto à Maria

em toda a Europa, e sua difusão no meio popular ajudaria a dar-lhe maior divulgação e

importância: “Una nueva imagen de María se enraizó en las conciencias; la "mediadora" de

los siglos VII al IX se convirtió en "protectora" y, especialmente en una "fiel amiga" para ese

peregrino en la tierra que fue el hombre medieval” (MANSILLA, 2004). As peregrinações,

aliás, seriam “fonte de informação e divulgação” dos milagres da Virgem, como é a obra de

Berceo. Além disso, o desenvolvimento das cidades fez com que a Virgem Maria,

paradoxalmente ao uso político- ideológico que se fizera de sua devoção na época bizantina e

carolíngia, fosse associada à nova classe social emergente, a burguesia, sendo tomada por

estes como símbolo da nova cidade e “patrona dos burgos e de suas liberdades” (BOFF, 2006,

p. 164-165).

Também no século XII é que surge a importante figura de São Bernardo de Claraval,

ligado à teologia desenvolvida nos círculos monasteriais de Cluny e Cister e cuja importância

foi a de participar de um movimento de renovação da teologia, imprimindo-lhe um caráter de

maior “afectividad e humanidad”, que deu origem a um novo espiritualismo (GERLI, 1985, p.

21). Contrário a algumas das novas concepções que estavam surgindo, sobretudo referentes a

uma certa autonomia da razão diante da teologia, o amplo conhecimento de Bernardo sobre as

Escrituras o levará a uma espiritualidade mais voltada a conhecer a Deus através do

conhecimento de si, o que lhe imputará o título de “Sócrates cristão” (GILBERT, 1999, p.

100-101). Sua espiritualidade mariana ficou famosa, embora tenha escrito pouco a respeito da

Virgem: “Contudo, quando o fez, foi de forma muito feliz” (SANTOS, 2001, p. 183). Apesar

de vários documentos falsamente atribuídos a ele, nos chegaram alguns sermões entre os

quais os quatro En Alabanza de la Virgen Madre, discursos nos quais reflete sobre a narração

da Anunciação do Anjo à Maria e vale-se da técnica tipológica de construção textual; e De

aquaeductu. Neste último, sobretudo, desenvolve, segundo Gerli (1985), sua teoria da

mediação universal da Virgem: “si Cristo es la fuente de la vida, las aguas redentoras de la

fuente, que son la gracia, nos llegan por medio del siempre pleno acuaeducto que es su

Madre” (apud GERLI, p. 21). Para Bernardo, Maria é a intercessora ideal entre os homens e

Deus pelo fato de ser ela totalmente humana e plena da graça de Deus, ideia que teria um

êxito muito grande e influenciaria definitivamente a concepção cristã sobre a Virgem Maria.

28

Todo esse clima de época pode ser sentido em Milagros de Nuestra Señora e, com

certeza, Berceo tinha consciência disso, como podemos perceber na construção de suas

narrativas, sempre impregnadas de uma visão da Virgem em conformidade com a teologia

difundida nessa época. Além disso, como já vimos em Dutton (1971), de fato existia em San

Millán um culto à Virgem Maria que remonta ao século X. A presença de relíquias de San

Millán no altar-mor do Santuário dedicado à Virgem foi, sem sombra de dúvidas, motivo de

peregrinação e atenção dos fiéis que partiam para Compostela. Esses fiéis eram disputados

pelos mosteiros da região e, de certo, a obra mariana de Berceo teve como um de seus

propósitos dialogar com essa massa de peregrinos e atraí-los a fim de favorecer o culto

mariano e a peregrinação ao Mosteiro de Yuso, sede do santuário mariano.

Como veremos ao longo deste trabalho, a necessidade de atrair fiéis a San Millán e o

objetivo didático da literatura exemplar, a saber, a popularização de um conteúdo erudito a

um público mais simples, serão os dois principais eixos nos quais refletiremos as

especificidades e generalidades de Milagros de Nuestra Señora, no que diz respeito à

construção estrutural de sua narrativa, a fim de tentar inferir quais as relações entre esta obra e

o contexto cultural, político e teológico que a permitiu. Assim, nosso objetivo aproxima-se

das constatações feitas por como Gerli (1985):

Estas alusiones oblicuas [al contexto en la obra], juntamente con la documentación del culto a la Virgen en San Millán, aludida por Dutton, nos permite situar los Milagros en un contexto histórico y en un clima intelectual específicos. Por medio de ellas comprendemos mejor el origen del marianismo en la obra de Berceo, y por su carácter local y público penetramos en el ambiente en que fue concebida: los Milagros surgen de una compleja realidad social e ideológica fundiendo la piedad y la tradición marianas con la necesidad práctica para crear una de las obras más interesantes y reveladoras de la vida española en el siglo XIII (p. 24).

29

CAPÍTULO II - Berceo e seu diálogo com a literatura exemplar

Ao pesquisar sobre a estrutura da sociedade medieval e suas mentalidades,

identificamos instâncias de produção do simbólico que refletem certa maneira de ver o mundo

ao mesmo tempo em que são utilizadas para justificá-las. Assim eram os exempla, gênero

retórico fundado na construção de modelos socialmente referenciados cuja origem é a própria

Retórica, enquanto conjunto de regras que regem determinadas formas discursivas com um

intuito persuasivo, ou seja, o convencimento do auditório mediante a imitação de antigos

modelos e a presença de uma “lição salutar” (LE GOFF, 1983). Teorizado desde Aristóteles,

esse gênero encontrou, na Idade Média, o lugar propício para seu desenvolvimento, já que

oferecia modelos de seguimento de vida social e correção de costumes, contribuindo de

alguma forma à manutenção de uma ordem que dificilmente se transformava. Tal gênero

encontra raízes na mentalidade disseminada na Idade Média, participando da construção do

simbólico em toda a sociedade.

Neste capítulo, descrevemos as características do exemplum medieval enquanto gênero

retórico e suas relações com a pregação medieval, o mester de clerecía e de juglaría. Também

descrevemos os principais traços da narrativa miraculosa e o uso que dela se fazia na Idade

Média, associando-a ao exemplum e à obra de Berceo. A partir daí refletimos sobre as lógicas

do exemplum medieval, passando em seguida para a descrição da outra lógica nas narrativas

de Berceo, o que se constitui como o cerne de nossa reflexão.

2.1 A literatura do exemplum: origens e funções didáticas no período do apogeu (séculos

XII a XIV)

Segundo, Jacques Le Goff (1983),

O exemplum medieval é uma historieta edificante, na maioria das vezes para uso dos pregadores, que gostam de introduzir exempla em seus sermões para que os ouvintes assimilem melhor uma lição salutar (1983, p. 151).

Menendez Pelaez (1993), por sua vez, distingue alguns gêneros relacionados ao

exemplum:

es el nombre genérico que engloba distintas formas breves, como el cuento, la fábula o el apólogo (...) se puede decir que se trata de un grupo genérico con unas características literarias bien precisas (p. 277; 279).

30

Percebemos que se trata, portanto, não somente de um gênero especifico, mas de um

conjunto de práticas discursivas ligadas ao modo como estava organizada a sociedade

medieval. Seu apogeu se deu durante os séculos XIII e XIV, tendo sido impulsionado pelas

decisões do IV Concílio de Latrão (ano 1215) que, entre outras coisas, centradas na

reorganização e centralização da estrutura eclesiástica em torno do papa, versou também

sobre a necessidade de moralização do clero e combateu os escândalos morais em que estes se

envolviam, como mau uso de recursos financeiros e escândalos de ordem sexual (VINCENT,

2001, apud SILVA, 2001 p. 202-206). Nesse contexto, segundo Menendez Pelaez, o Concílio

favoreceu o uso desse tipo de literatura “exemplar” porque “ de él se extrae una ejemplaridad,

facilmente asequible a la mente del hombre medieval, poco habituado a razonamientos

abstratos” (p. 279).

O exemplum fora já teorizado na antiguidade pelos mestres da retórica, Aristóteles,

Cícero e Quintiliano. Mas foi na Idade Média, associado, sobretudo, à pregação religiosa que

se deu o seu apogeu, entre os séculos XII e XIV. Segundo Le Goff (1993a),

O sermão sempre teve um lugar importante no apostolado da Igreja, mas o século XIII é o século do renascimento do sermão, no seio de um discurso novo, mais direto, mais realista, do qual os irmãos mendicantes são em breve os principais promotores. O sermão – e suas instruções, os exempla, é o grande meio de comunicação de massas no século XIII, a mensagem recebida por todos os fiéis, mesmo havendo alguns desertores da missa e em especial da pregação (...) O sermão recheado de exempla já não é apenas um momento esperado do ofício, desenvolve-se separadamente nas igrejas ou nas praças (...) Os pregadores da “moda” tornaram-se os ídolos das pregações cristãs. (p. 352)

Essa evidência dos exempla na prática cristã ligada às grandes massas de fiéis justifica

seu uso para além dos limites da simples pregação, embora a princípio, eram os clérigos quem

mais se interessavam por eles. Dessa forma, surgiram na Idade Média diversas compilações

de exempla, os quais serviam primeiramente aos pregadores, que tinham aí uma fonte

inesgotável de anedotas a serem utilizadas segundo o tema do sermão. Muitos desses

“ejemplarios” eram compilados em ordem alfabética de tema, o que facilitava a busca por

parte dos pregadores e clérigos. Essas compilações reuniam histórias curtas com um fundo

moralizante, em forma de avisos ou castigos. Ao longo do tempo, porém, de substrato de

apoio aos clérigos pregadores, as compilações passaram a ser utilizados também por leigos

que necessitavam transmitir algum tipo de lição “exemplar” através de seus escritos.

Entre as influências que foram essenciais para o sucesso do exemplum, podemos citar

a cultura oriental, sobretudo bíblica (MENENDEZ PELAEZ, 1993, p. 278), daí sua relação

31

com a pregação, e a contística de origem hindu, que também utilizava o exemplum com o

intuito de transmitir a “lição salutar”. Dessa forma, “el didactismo se revestía así de una

impronta existencial que convertía al exemplum en el mejor instrumento para la enseñanza

moral, que modela las conductas” (p. 279).

Torna-se evidente, a partir dos elementos até aqui apontados, que a aproximação de

Berceo ao exemplum específico não se deu ao acaso ou como simples escolha individual do

autor, algo que nem se discutia na Idade Média. Em primeiro lugar, por ser um clérigo aldeão,

entre suas funções estava uma função didática: de ensinar ao povo mediante o uso da

pregação, o que o aproximou de imediato a esse tipo de literatura exemplar, não só através de

seus estudos monasteriais, mas também, como quer Dutton (1962), provavelmente fez parte

de suas reflexões durante o tempo em que esteve estudando em Palencia, de onde, aliás, teve

contato com as novas formas métricas do mester de clerecía.

Como as obras do mester de clerecía tinham, entre outras, a função de adaptar

didaticamente os conteúdos da fé cristã a um público não erudito - às massas camponesas e

pobres que peregrinavam aos santuários europeus - a necessidade de adaptar a linguagem a

um nível que pudesse ser compreendida por este público certamente tem a ver com a

“escolha” dos autores clérigos, entre os quais Berceo, que encontraram no exemplum o

modelo ideal de estrutura para levar a mensagem - em que pesem os recursos juglarescos.

Ressalte-se, porém, que essa escolha não pode ser associada com uma escolha individual de

um autor original em sua criação, mas estava ligada, sobretudo, à função que esses clérigos

ocupavam na sociedade e à necessidade de se valer de uma estrutura inteligível ao peregrino

simples e adequada aos seus interesses. A transposição do exemplum, da pregação ao mester

de clerecía, de certo, não foi algo surpreendente, mas insere-se numa continuidade histórica

de desenvolvimento desse tipo de narrativa.

Além da proximidade com a pregação, o uso do exemplum no mester de clerecía

também se associa à tradição oral, pois as histórias de cunho moralizante contadas pelos

juglares, ou muitas delas, eram primeiramente transmitidas de boca em boca para depois

serem compiladas de forma escrita, em latim e, posteriormente, em língua romance. Berceo

foi um dos precursores desta adaptação escrita do latim à língua romance e deixa transparecer

muitos recursos a elementos orais, tais quais utilizados pelos juglares, como o diálogo entre o

autor e o auditório. Isso não apenas evidencia a origem remota das narrativas exemplares, mas

32

atende, sobretudo, a uma intenção consciente do autor, de aproximar-se ao seu público através

de uma linguagem inteligível e significativa para ele.

Outra maneira de relacionar a obra de Berceo e o exemplum é através da reflexão

sobre a “estrutura narrativa” dos exempla, tal qual descrito por Lacarra (1979). Segundo

Menendez Pelaez (1993), o estudo dessas estruturas pode aclarar a relação do exemplum

medieval com a cultura oriental e oral, além de aclarar os mecanismos que dão unidade à

aparente diversidade sem fim de exempla que se verificam nas compilações que chegaram até

nós. Assim, Lacarra nos informa que, além das estruturas de compilação que levavam em

conta a ordem alfabética e a temática dos exempla, outra forma de compilação se dava

levando em conta certa estrutura interna do exemplum. Assim, diferencia três tipos de

exemplum:

a) “novela marco”: estruturas narrativas nas quais a narração se desenvolve a partir de

uma história principal que é interrompida pela inserção de outras histórias

subordinadas, cuja função liga-se à trama principal “siendo utilizadas por el narrador

para resaltar la intencionalidade que persigue el conjunto”. Exemplos desse tipo de

compilação são os de obras como Sendabar e Calila e Dimna, além da Leyenda de

Barlaam e Josafat.

b) “La caja china”: técnica nascida da anterior como um desdobramento mais complexo,

trata-se de uma estrutura na qual um personagem da história principal começa a contar

outra história que, por sua vez contém outro relato, e assim segue sucessivamente.

Como o capítulo V de Calila e Dimna.

c) “el ensertado”: o mais utilizado nos exemplários medievais, nesse caso, os distintos

relatos independentes garantem uma unificação pela presença de certo personagem

central único ou protagonista. Este personagem pode ser um mero espectador do que

relata ou ainda alguém que participa da história relatada, o que a torna mais

assimilável emotivamente.

Ao pensar na obra de Berceo que ora analisamos, e levando em consideração a

unidade temática que a subjaz, percebe-se que a estrutura interna dos exempla narrados, ainda

que recolham traços dos diversos “gêneros” de exempla, aproxima-se mais ao que Lacarra

(1979) define como “el ensertado”: relatos independentes de milagres contados por um

33

narrador que se apresenta como um humilde clérigo a serviço da Virgem, o qual aparece ao

longo da obra em diálogo com seu público, à maneira dos juglares. Certamente, tem a ver

com esse tipo de compilação a fonte latina na qual Berceo “se inspirou” para escrever seus

relatos, com a diferença de que, em Berceo, esse narrador é muito mais vivo e atuante. Além

disso, há uma unidade narrativa em Berceo mais facilmente verificável, não só por causa

desse narrador, mas também pela técnica tipológica utilizada na construção de cada relato,

como quer Gerli (1985), o que fica evidente ao se notar o uso da amplificatio em relação às

narrativas latinas (DUTTON: 1971). Além disso, poderíamos considerar que a Virgem seria

o personagem que daria unidade à obra como um todo, já que os exempla descritos estão

compilados em torno ao tema do louvor à Virgem, dentre outros.

No entanto, vale ressaltar, ao pensar na definição do que Lacarra (1979) chama de

“novela marco”, que se define por um concatenamento de histórias independentes, porém

ligadas à trama principal, somos levados a pensar na estrutura dos milagres que ora

analisamos os quais constam, claramente, de dois lugares narrativos distintos e independentes

entre si, cuja relação é garantida pela trama que se desenvolve e seu objetivo retórico-

didático. Como veremos adiante, de um lado, temos o mundo de Aquém, o “mundo real”, dos

camponeses peregrinos, onde as histórias humanas se cruzam e de onde os personagens, na

maioria das vezes clérigos envoltos em algum tipo de pecado, cometem seus erros e acertos

até que sejam castigados com a morte. De outro lado, o Além, como um espaço independente,

onde se dá o embate entre os seres que representam as “forças do bem” e os que representam

as “forças do mal”, tendo em Maria a protagonista das “forças do Bem” sobre a qual recai

toda a centralidade narrativa, devido ao seu papel de “mediadora de todas as graças”.

Percebemos como a organização desse espaço do Além é, ao mesmo tempo, independente do

Aquém, pois tem um funcionamento próprio, e dependente “deste mundo”, já que no “outro

mundo” se dá o embate final que se iniciou nesse mundo do Aquém. Enquanto argumentos

retóricos, portanto, os espaços funcionam como dinamizadores da narração e contribuem para

o argumento principal, tal qual seja: a exaltação da Virgem e seus atributos, a fim de que sua

devoção seja valorizada e, consequentemente, os atores sociais que estão por trás dela (Igreja,

mosteiro, clérigos).

No entanto, a análise da estrutura dos exempla de Berceo não pode estar completa se

não levamos em conta sua relação com os relatos de milagres atribuídos aos santos, à Virgem

ou a outros seres celestiais. Os relatos miraculosos eram também, se assim podemos dizer, um

gênero específico de narração que, como os exempla, eram muito populares e ajudavam a

34

atrair aos centros de peregrinação europeus milhares de devotos que buscavam a cura de

doenças, físicas e espirituais, o alcance de graças entre outras coisas, o que garantia a

sobrevivência desses centros. Os relatos de milagres funcionavam como dinamizadores dessa

relação entre os devotos e o santo: ao mesmo tempo em que eram responsáveis por divulgar

as “maravilhas” realizadas pelos santos, era graças aos seus devotos que era possível

multiplicar os relatos e perpetuar a devoção, gerando dividendos, não apenas espirituais, mas

também materiais. Nesse sentido, pensar nos milagres e no uso que a Idade Média fez desse

tipo de relato é essencial para poder entender essa obra de Berceo que ora analisamos.

2.2 O Miraculoso na Idade Média: a fé no sobrenatural e outros interesses nos relatos de

milagres

Na Idade Média o relato de milagres, muito comum sobretudo até o século XII, era a

principal ponte entre o Além e o Aquém, entre este e o outro mundo. Entendido como

“momento en el que Dios interviene directamente en el mundo, prescindiendo de elementos

mediadores entre lo humano y lo divino” (GAJANO, 2003, p. 509), os milagres eram

testemunhados como verdade nos documentos medievais, nas diversas compilações e relatos

avulsos que chegaram até nós. Tais compilações eram comuns e tinham o intuito de favorecer

a devoção a algum santo ou incentivar a peregrinação a santuários depositários de relíquias

sagradas, além de servir aos pregadores na hora de compor um sermão, como as compilações

de exempla.

Partindo da constatação de Marc Bloch, citada por Vauchez (LE GOFF; SCHMITT,

2000: p. 197-198), entendemos que estudar esse tipo de fenômeno se revela bem mais

interessante e produtivo se levamos em conta o dado concreto que ele evidencia, a saber, que

existia de fato uma fé no milagre, na intervenção divina no cotidiano dos homens medievais.

Ou seja, o milagre é um acontecimento da ordem do imaginário social do medievo que não

pode ser negligenciado sob o argumento de que os relatos não eram verídicos e muitas vezes

claramente inventados e/ou encomendados. Na linha do pensamento de Bloch, a veracidade

ou não de um relato milagroso não importa tanto quanto o uso social que se fazia dele.

Nesse sentido, torna-se mais fácil entender a escolha de Berceo por esse tipo de relato

ao escrever sobre a Virgem Maria. A seguir, expomos as principais características do relato

35

milagroso na Idade Media, seguindo mais de perto a descrição feita por Vauchez (2000), com

contribuições também do estudo de Gajano (2003).

A primeira ressalva que faz Vauchez (2000) ao escrever sobre o relato de milagres é

justamente sobre a “natureza desse tipo de documento”: o que chegou até nós foram relatos de

clérigos, muitas vezes diretamente ligados a este ou aquele santo específico, com o intuito de

favorecer a devoção a ele ou às suas relíquias sagradas. Dessa forma, “as narrativas que nos

transmitiram nunca são relatos brutos, mas dependem, desde o nível mais elementar, de um

sistema de interpretação que constitui ao mesmo tempo um filtro” (p. 198). Desse ponto de

vista não é difícil entender o uso que Berceo fazia desse gênero: embora somente em

Milagros de Nuestra Señora o milagre seja o foco central das narrativas, todos os seus

escritos sobre as vidas de santos trazem relatos de milagres específicos que servem para

corroborar a santidade dos personagens em questão e favorecer a peregrinação aos mosteiros

dedicados a eles ou que tinham em relação a eles já uma tradição de devoção, como era o caso

da devoção à Virgem Maria no mosteiro de Yuso (DUTTON, 1971). Além disso, há

evidências, segundo Dutton, de que muitas das narrativas teriam sido encomendadas a Berceo

para valorizar certos atributos dos santos em questão ou da própria Virgem, a fim de favorecer

o retorno em dividendos econômicos aos mosteiros em questão. Ou seja, o milagre, em

Berceo, cumpre um papel, ademais de religioso e retórico, pragmático. Há que se acrescentar

a isso o fato de que, em Milagros de Nuestra Señora, essas narrativas servem, com base em

sua estrutura interna, para corroborar a leitura tipológica da história, enquanto técnica

exegética, que vê em Maria a “medianeira de todas as graças”, a Nova Eva portadora da

salvação, inverso da primeira, a que trouxe a perdição, como veremos no capítulo III.

Segundo Vauchez (2000), era na Bíblia que os autores medievais desde o século XII,

encontravam a principal fonte de relatos milagrosos. O Antigo Testamento, lido à luz da

técnica tipológica ilustrava os “milagres históricos feitos por Deus em favor de seu povo,

doravante à Cristandade na época das Cruzadas” (p. 198-9). Já o Novo Testamento trás o

grande modelo de taumaturgo, Jesus, cujo conteúdo e forma dos milagres foram amplamente

emulados no medievo. No entanto, a influência desse tipo de relato não teria sido tão

importante se não houvesse quem extrair da Bíblia e de outras fontes, em diálogo com

tradições antigas, inclusive de povos pagãos, a definição específica de milagre, diferente da

que temos hoje e que necessita ser esclarecida, a fim de favorecer nossa aproximação com o

universo imaginário do homem medieval.

36

As interpretações de Santo Agostinho e de São Gregório Magno foram as que mais

tiveram influência na Idade Média. O primeiro, em Da utilidade de Crer, define o milagre

como “tudo o que parece duro [de entender] e insólito, e ultrapassa as expectativas e

capacidades do homem, que fica maravilhado” (apud VAUCHEZ, p. 199). Amparado em uma

visão que não separava “lei natural” de “milagre”, para Santo Agostinho,

todos os fatos da natureza são igualmente surpreendentes e assombrosos, mas o homem acostumou-se tanto com eles que não sabe mais vê-los dessa forma. Assim, Deus reservou para si algumas obras “insólitas” para surpreendê-lo e levá-lo a reconhecer a Onipotência divina (VAUCHEZ, op.cit., p. 200)

Já Gregório Magno interpreta o milagre a partir de sua função: “ser um sinal que quer

dizer para Deus uma ocasião de teofania e para o homem uma lição ou aviso (...) os

verdadeiros milagres são os que servem à edificação do cristão e da Igreja” (p. 200).

Diferenciando milagres corporais de milagres espirituais, Gregório tenta preservar uma

concepção cristã de santidade na medida em que o primeiro tipo revela os santos; estes, por

sua vez, se constituem como tais pelo segundo tipo. O que importa é que o milagre seja

conhecido como “uma realidade pública em favor da Igreja”.

Gajano (2003) acrescenta-nos a informação de que, nos textos hagiográficos

medievais, prevalecia uma interpretação que associava o milagre à santidade do milagreiro:

Ciertamente en los textos hagiográficos hay un constante interés por establecer o, mejor, restablecer la relación teológica correcta, esto es, se intenta ver el milagro como un signum externo de una santidad espiritual que el santo construye a través de la práctica de la virtud. (…) Los milagros conservan sus características como signum pero a menudo constituyen la “revelación” de la santidad y no una “manifestación” de una santidad que ya había sido revelada” (p. 513-514)

Ao pensar na obra de Berceo em questão e associar essas ideias com a reflexão que

empreendemos sobre o gênero do exemplum, parece clara a orientação conforme a definição

gregoriana de milagre: sendo uma “lição salutar” cujo intento é servir à “edificação do

cristão”, tanto o exemplum quanto o relato de milagre adquirem uma reciprocidade que os

torna inerentes um ao outro, uma vez que, na concepção de Gregório, não se separa o fato

milagroso do uso que se faz de seu relato. Em Berceo, como já vimos, os relatos cumpriam

um papel ao mesmo tempo religioso e pragmático, servindo não só a “edificação da Igreja”,

mas aos interesses imediatos do mosteiro de San Millán, ao qual pertencia Berceo e outros

mosteiros que eventualmente pudessem “contratar” seus serviços.

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Entre outros aspectos que contribuíram para o sucesso do miraculoso cristão na Idade

Média, podemos citar o confronto com o miraculoso pagão com o “folclore dos povos

superficialmente cristianizados que viviam na Europa” (VAUCHEZ, 2000), o que levou os

clérigos, ou apenas parte deles, num primeiro momento, a uma atitude positiva frente aos

relatos milagrosos: ao invés de acumular proibições àquilo que fugia à tradição de práticas

genuinamente cristãs, os clérigos “procuraram substituir o miraculoso pagão pelo miraculoso

cristão, situando-o no mesmo nível de realismo e eficácia” (VAUCHEZ, op. cit., p. 201).

Dentre os relatos miraculosos mais comuns na Idade Média estão, ainda segundo Vauchez

(2000), os relatos de curas de doenças físicas e mentais, seguidos por milagres de libertação

de cativeiro, os que manifestam intenções favoráveis e os que relatam castigos dos santos aos

devotos que não cumpriram os compromissos prometidos.

A imensa quantidade de relatos evidencia a prática comum de fabricá-los, quando se

contratavam clérigos para criar relatos fictícios a fim de favorecer este ou aquele santo, deste

ou daquele santuário. Assim,

a concorrência entre os santuários e mais tarde entre as ordens religiosas levou às vezes certos autores a mostrarem-se pouco preocupados com a escolha dos milagres que imputavam a seu santo preferido, ou ainda em alguns casos, atribuíam-lhe algumas ressurreições esperando atrair para ele a atenção da cúria romana e obter a abertura de um processo de canonização em seu favor.

E ainda:

Os clérigos medievais sabiam bem: quando um culto ou um santuário dava sinais de decadência, eles procediam a uma translação de relíquias que não deixava de provocar uma afluência da massa (...) Nesta ocasião os paralíticos levantavam-se, os cegos recuperavam a vista e os doentes a saúde (…) Pode-se contestar a realidade destas curas ou atribuí-las a um fenômeno de histeria coletiva. No entanto parece difícil negar a eficácia do ritual e sua função multiplicadora. (VAUCHEZ, p. 205)

Segundo a pesquisa de Dutton (1980), já citada neste trabalho, é mais ou menos nessa

linha que se encaixa Berceo como um autor de obras que favoreciam mosteiros da região de

onde provinha: na tentativa de divulgar a devoção aos santos e os mosteiros, os quais estavam

em constante competição para atrair os fiéis que peregrinavam à Santiago de Compostela. A

obra Milagros de Nuestra Señora, ademais das motivações já citadas, também estaria inserida

nessa continuidade, tendo sido provavelmente declamado nessas rotas de peregrinação, para

os “romeiros cansados”, a fim de favorecer a afluência ao mosteiro de Yuso (DUTTON,

1980).

38

Por fim, vale ressaltar que a atitude dos clérigos e monges, enquanto representantes

oficiais da hierarquia eclesiástica, diante do amplo alcance da devoção popular embasada em

relatos de milagres, não era unânime: além da postura verificada de alguns que se entregavam

à tarefa de “fabricar” mais milagres, pensando na recompensa que isso levaria, também houve

quem se negasse a favorecer a “superstição” popular, mesmo que isso acarretasse um

afastamento dos fiéis e uma impopularidade grande. Assim, no século XII, assistiu-se a um

“refluxo” do miraculoso cristão, substituído por outras formas de conceber o fenômeno, mais

racionais decerto, o que levou também a Igreja de Roma a estabelecer regras mais rígidas para

se comprovar um milagre que levasse à canonização de algum postulante a santo.

No entanto, como assevera Vauchez (2000), essas atitudes não impediram que ao

longo do século XIII continuassem a se divulgar e compilar milagres, bem ao gosto popular.

As ordens mendicantes teriam um papel crucial nisso, ao compilar “relatos miraculosos mais

extravagantes nas compilações de exempla destinados a facilitar a tarefa dos pregadores”. Ao

mesmo tempo, a Igreja passaria a valorizar mais os relatos de milagres sacramentais e íntimos

(como os estigmas de São Francisco).

Com o aparecimento e a multiplicação dos milagres sacramentais, espirituais e místicos, os esforços manifestados pela Igreja no Ocidente durante cerca de um milênio para cristianizar as manifestações sensíveis do sobrenatural parecem ter atingido seu objetivo (VAUCHEZ, 2000, p. 210-211).

Assim, chegamos ao momento histórico onde se situa Berceo e seus Milagros de

Nuestra Señora, como um momento em que, por um lado marca um refluxo do maravilhoso

medieval e, por outro, o apogeu da literatura exemplar, como já comentamos. As relações que

evidenciamos entre os exempla e os relatos milagrosos, talvez ajudem a entender o porquê de

seu uso continuar em alta. Apesar disso, a intenção construtiva de Berceo, de inscrever seus

relatos numa interpretação tipológica de Maria e seu lugar na História da Salvação, algo que

faltava na fonte latina, talvez ajude a pensar numa manifestação de mudança quanto ao uso do

relato milagroso, como uma consequência já de seu refluxo: além de favorecer o afluxo das

massas e relatar curas e ressurreições, adapta-se um conteúdo erudito da fé, somente acessível

aos membros doutos da hierarquia eclesiástica, às massas dos fiéis, fazendo transparecer a

esses o caráter cotidiano e pessoal do dogma – objetivos do exemplum, segundo seu uso no

século XIII.

39

Após essa exposição a respeito do exemplum na Idade Média, seus usos, estruturas

gerais e relações com os relatos milagrosos, aproximando-nos do estudo de Berceo, cabe-nos

agora pensar a constituição do exemplum em Milagros de Nuestra Señora, quanto à sua

estrutura interna, que difere de outros exempla encontrados nos relatos medievais. Nosso

objetivo é esclarecer alguns aspectos dessa constituição, tal qual o lugar que nela ocupam o

espaço e os personagens do Além, no intuito de construir uma narrativa que ressalte o papel

central da Virgem Maria como canal da graça de Deus, levando em consideração a tipologia

da Queda e Redenção, como proposto por Gerli (1985, p. 35), ao mesmo tempo em que nos

faça compreender melhor as intrincadas relações de poder subjacentes a esses milagres e que

nos remetem ao contexto imediato de onde Berceo partiu para escrever essa obra.

2.3 A(s) lógica(s) do exemplum medieval

Quanto à constituição retórica do exemplum medieval, Menendez Pelaez (1993) e

outros autores ressaltam que sua função era, sobretudo, moralizante (op.cit. p. 279).

Percebemos, ao analisar sua constituição narrativa, que esta estrutura gira em torno de uma

relação de causa e consequência. De um lado, um comportamento concorde à moral aos

valores cristãos, cuja vivência garante ao crente a recompensa reservada a ele: tanto uma

“outra vida” no Paraíso, quanto a perfeita participação na estrutura social vigente, ou seja, a

incorporação do sujeito nas estruturas que são legitimadas nesse tipo de relato, de modo que

ele pode participar de seu cotidiano e de seus benefícios e gozar de certo status. Por outro

lado, um comportamento que foge à regra moral cristã é castigado com a perda de um bem

garantido: a ida ao Inferno ou a exclusão da participação nos benefícios do corpo social. O

que resta, portanto, é a lição salutar.

Nesse último caso, o que caracteriza a narrativa dos exempla é justamente uma quebra

de expectativa entre o comportamento esperado e o que se verifica na narrativa, como um

fator de “tensão narrativa”. Tal quebra, consiste, basicamente, na violação de algum princípio

ou valor estabelecido, vinculado à moral cristã, o que conduz o fiel a uma perda gradual de

Regra + Comportamento

Recompensa/ Condenação

Lição salutar

40

sua condição de participante dos benefícios daquele corpo social, reservados, como dissemos,

aos que aceitam e cumprem suas regras. A partir dessa perda, conclui-se a narrativa com a

“lição salutar”, a qual prova que o desvio da norma estabelecida acarreta a perda do usufruto

de um benefício somente alcançado pelo fiel mediante um comportamento dentro da moral

vigente, ou seja, das regras comportamentais calcadas no código ético que subjaz à

moralidade da narrativa, no caso, a religião cristã.

Quanto a essa perda, é importante ressaltar que ela não se resume, muitas vezes, à

perda de algum benefício imediato somente, mas frequentemente se trata da perda da

salvação, de modo que um comportamento que fuja à ortodoxia da moral cristã pode aparecer

como causa da morte e condenação do fiel/devoto: ele acaba morrendo e vai para o Inferno,

onde é castigado por seus pecados em vida.

Um exemplum tirado do Conde Lucanor pode aclarar nossa exposição. No exemplo

XL, o Conde Lucanor pede a Patronio que lhe ensine a melhor maneira de realizar uma boa

ação antes da morte, que lhe seja útil à salvação da alma e que o torne conhecido depois de

morto. Patronio argumenta que toda boa obra serve à salvação, não importando “cómo o a

quién la hagamos”. E narra uma história para ilustrar “por qué y com qué intención” devem

ser feitas as obras antes da morte. Conta-nos a história de um general muito rico que, vendo

aproximar a sua morte, reuniu alguns frades e comunicou-lhes a intenção de doar todos os

seus bens como esmola aos pobres. Feito isso, poucos dias depois, morreu. Os frades, passado

certo tempo, entram em contato com uma mulher possuída por um demônio a fim de

perscrutar a respeito do destino que levou a alma do general, certos de sua salvação, devido à

boa obra realizada no final da vida. No entanto, para sua surpresa, a mulher lhes comunica

que a alma do general está no inferno. Motivo: doara seus bens, não por zelo, mas por pura

“vanagloria y vanidad”. E conclui: “Por ello, aunque el general mandó hacer buenas obras, no

obró bien, ya que Dios no premia solamente las buenas acciones, sino las que están bien

hechas, que son hijas de una recta intención.”2

Percebemos que, nesse exemplo, ocorre uma quebra de expectativa entre um

comportamento esperado de um cristão – a doação de esmolas como gesto de caridade– e a

realização efetiva da ação – a busca por fama e glória. Essa quebra provoca um julgamento,

que, apesar de manter o confronto entre intenção e realização, traço de uma nova mentalidade

surgida na Igreja desde o século XII (LE GOFF, 1983, p. 156), culmina na condenação do

2 Cf. Anexo 1, ao final deste trabalho.

41

general. Pelo fato de não ter “recta intención” e violar um princípio estabelecido, tal qual seja,

a necessidade de desapego de seus bens (em vida não deu esmolas) e, conforme o código que

Patronio depois esboça e que encerra as normas que garantem uma reta doação da esmola, o

general acabou sendo privado do usufruto de um bem que lhe seria destinado caso se

comportasse retamente: a salvação, o Paraíso. Ao contrário, acaba sendo condenado ao

Inferno. Percebe-se a relação existente entre essa lógica de causa e consequência e a ida

direta para o Céu ou para o Inferno. Em outras palavras, o ganho ou a perda do benefício,

nesse caso, claramente a ida ao Inferno ou ao Paraíso, lugares do Além, liga-se diretamente

aos lugares “morais” do “aquém”, de modo que, ao pecar contra um princípio estabelecido em

vida ou ao se manter fiel a ele nesse mundo do Aquém, o sujeito terá como consequência o

castigo/condenação (Inferno) ou recompensa (Paraíso), respectivamente.

Apesar de mostrar uma “lei de Deus” aparentemente rígida e fechada, é curioso notar

que a explanação moral feita depois por Patronio, ao reunir cinco condições que devem ser

seguidas para se doar uma esmola, e que o general não seguiu, parece negar esse julgamento

ao dizer:

Pero si vos, o cualquier otro, por algún motivo no puede hacerlas de ese modo, no por eso debe dejar de hacerlas, pensando que, al no reunir todos los requisitos, no le servirán de nada, pues eso sería una gran equivocación y tentaríais a Dios al pensar así, ya que, de cualquier forma que se haga el bien, siempre será un bien. Sabed también que las buenas obras ayudan al hombre a abandonar el pecado y a hacer penitencia, a la vez que nos proporcionan salud corporal, riquezas, honras y buena fama ante las gentes.

Portanto, nota-se, nesse exemplum do Conde Lucanor, uma lógica fechada e

determinista, baseada em uma regra moral estabelecida por Deus, e que é rigorosamente

cumprida. Os lugares do Além estão evidenciados no que diz respeito à consecução dessa

lógica, uma vez que a recompensa ou o castigo à quebra da expectativa e da regra estabelecida

conduz o fiel ao Paraíso ou ao Inferno, respectivamente. Há, pois, uma relação binária de

causa e conseqüência lógica.

Analisemos, agora, o caso de Berceo, a fim de entender as diferenças que sua narrativa

apresenta em relação a essa lógica e as possíveis explicações para isso.

42

2.4 A outra lógica de Berceo

Passando a analisar os milagres propostos a este trabalho, percebemos que em Berceo,

há certas diferenças em relação a essa lógica fechada e determinista verificada no exemplum

do Conde Lucanor. De fato, a estrutura dos milagres é uma estrutura que conduz a um fim

moralizante. No entanto, em relação ao exemplum analisado, é diferente, sobretudo por dois

aspectos: 1) o fim dos personagens não é definido de acordo com seu pecado e 2) o que

garante essa mudança é a presença de um terceiro elemento na narrativa, a saber, a Virgem

Maria que intervém desde um lugar específico, o Além, onde acontece o julgamento que

modifica o destino determinado do personagem, através da graça concedida a ele. A Virgem,

enquanto personagem aparece com um poder quase absoluto, capaz de livrar seu fiel de todas

as formas de castigo e condenação, ainda que este fiel não tenha cumprido em vida os

preceitos e a moral cristãs. Sua presença dinamiza a narração. Ao mesmo tempo, o espaço do

Além, descrito nos milagres, é o espaço onde se dá o julgamento do devoto e,

consequentemente, o lugar que permite à Virgem aparecer como a única mediadora eficaz

entre Deus e os homens, à qual se subordinam outros personagens celestiais, como anjos e

santos. A “lição salutar” aparece somente após a incursão pelo mundo do Além, que vai

confirmar a Virgem como Mediadora eficaz e trazer de volta o fiel ao caminho reto da moral

cristã.

Portanto, existe a introdução de um terceiro elemento, que garante a mudança de

lógica da narrativa: a Virgem e o espaço do Além, onde acontecem o julgamento do devoto e

sua absolvição, agora, regido por uma outra lógica. Ao final, a lição salutar liga-se à prática

da devoção à Virgem e à garantia de que seu devoto nunca é desamparado. Temos, portanto,

uma estrutura que pode ser (rusticamente) assim sintetizada:

Para a presente análise, dividiremos cada um dos milagres analisados da seguinte

maneira:

Regra + Comportamento

Recompensa/ Conndenação

Intervenção da Virgem no Além

Lição Salutar

43

1º Pecado e condenação: descreve-se a devoção do pecador e o pecado cometido por

ele (seja monge, clérigo, lavrador...), além da pena a que é submetido por causa disso:

morre e é levado pelos diabos ao inferno; o diabo ou os seres malignos aparecem

como os provocadores do pecado;

2º Intervenção favorável: instaura-se o espaço do Além, que começa a reverter a

lógica: santos ou anjos intervém para evitar que a alma permaneça em posse dos

diabos. Há uma reivindicação da lógica anterior por parte dos diabos e, às vezes, de

Deus mesmo;

3º Intervenção da Virgem e solução da contenda: Em um terceiro momento a

Virgem aparece ou é invocada pelos anjos ou santos a fim de interceder em favor do

pecador. Evidencia-se uma outra lógica: leva-se em consideração, na hora do

julgamento, não mais o pecado cometido pelo defunto, mas a devoção que o mantivera

fiel à Virgem ou a algum santo.

4º O devoto volta à vida: Por fim, como forma de resolver a contenda, o fiel ganha o

privilégio de voltar à vida e converter-se, a fim de que, ao morrer definitivamente,

ganhe o Paraíso. Nesse momento, fica clara a orientação moralizante da narrativa

exemplar, ao mesmo tempo em que a Virgem é louvada pela graça alcançada.

Vejamos como se dá essa lógica em dois exempla concretos, o milagre II, El sacristán

fornicario (estrofes 75-100), e o milagre VIII, El Romero de Santiago (estrofes 182-219),

apontando as relações e diferenças que pode haver entre esta proposta de divisão estrutural e

lógica do exemplum, como analisado mais acima

El sacristán fornicario (estrofes 75-100)3

Nesse milagre, um monge de um mosteiro não identificado por Berceo é muito devoto

da Virgem Maria. Por orientação do diabo, cai na vida desregrada e torna-se “fornicario”. Por

isso, acaba morrendo afogado em um rio. Já no espaço do Além, é pego pelos diabos para ser

levado ao inferno. Os anjos tentam intervir sem sucesso em favor da alma, mas prevalece o

argumento dos diabos, segundo o qual a alma merecia o inferno por ter morrido em pecado. A

Virgem, então, aparece e argumenta com os diabos, lembrando que, em vida, o monge sempre

3 Cf. Anexo 2, ao final deste trabalho.

44

fora seu devoto e por isso, nesse momento ela tinha que intervir em seu favor. Um dos diabos

contra argumenta, alegando que o “Evangelho” seria menosprezado se não se pagasse ao

pecador conforme seu pecado. A Virgem, porém, lembra que seu devoto sempre lhe fora fiel,

o que lhe garante a possibilidade de fazer penitência e salvar-se. Deus, por fim, decreta o

retorno à vida ao monge, que ressuscita e narra aos seus confrades o ocorrido no Além.

Acontece aí a sua conversão: faz penitência de seus pecados e se mantém fiel à Virgem, até

que morre definitivamente, e alcança a salvação.

Acompanhemos, pois, a construção da narrativa, segundo a lógica descrita acima:

1º Pecado e condenação

Berceo começa introduzindo a narrativa com um chamado ao público, para logo

descrever o personagem, um monge de um lugar desconhecido, como devoto que “quería de

corazón bien a Santa María” (estrofe 76). Em seguida, na estrofe, 78, introduzindo a figura de

Belzebud, o diabo, narra como o monge devoto se “hizo fornicario” e, em seguida, como sua

vida desregrada acabou levando-o à morte por afogamento em um rio. Interessante notar

nesse trecho que Berceo, em relação à fonte latina de onde “adaptou” o milagre, acrescenta a

estrofe 75, que dialoga com o público4; antepõe a devoção do monge ao pecado cometido,

dando àquela maior ênfase; descreve pormenorizadamente o processo que levou o monge a

tornar-se pecador por tentação do diabo. Na fonte latina, não há a primeira estrofe; o pecado é

descrito antes de se falar da devoção e a narração da tentação e queda não ocupa mais que

duas frases curtas. De todas as formas, temos os elementos suficientes para perceber uma

certa lógica subjacente à narrativa: o monge devoto, ao tornar-se pecador, acaba morrendo em

decorrência de seu pecado. Ainda em relação à fonte latina, cabe ressaltar que, nesta, foi o

diabo quem empurrou o devoto para o rio, ao passo que Berceo não especifica isso, ficando

evidente que foi o pecado cometido que conduziu o monge ao afogamento. Há, porém, no fato

de o relato da devoção do monge vir antes da descrição do pecado um elemento que destoa da

lógica fechada e prenuncia outro desfecho. Na estrofe 85, a narração do “pleito sombrío” da

alma é retomada, com a cena do bando de diabos que vem para levar a alma ao inferno, assim

que o monge falece. A narração, caso mantivesse a lógica cerrada, poderia terminar por aqui:

um monge devoto, que preferiu pecar, morreu e foi levado pelos diabos ao inferno. De fato,

aqui se introduz o mundo do Além e a descrição de suas peripécias, o que conduzirá a outro

desfecho. 4 As referências à fonte latina são tiradas de DUTTON, 1971 (edição crítica de Milagros de Nuestra Señora); Cf. Referências Bibiliográficas, ao final.

45

2º Intervenção favorável e contenda

A partir da estrofe 86 até a estrofe 95, Berceo amplifica livremente sem grandes

modificações quanto à narrativa latina. Nas estrofes 86 e 87, narra-se a tentativa de

intervenção dos anjos que disputam com os diabos a posse da alma do monge defunto. Diz-se

que, nessa querela, os diabos insistiam que “esa alma era suya, que la fueran dejando”. Os

anjos, por sua vez “no tuvieron derecho a disputarla/ porque tuvo mal fin y debieron dejarla”.

Ou seja, nesse momento justifica-se a lógica fechada e determinista que rege um pensamento

teológico muito tradicional: segundo essa visão, a Escritura deixa claro que, ao morrer em

pecado, o fiel é julgado por seus atos, não cabendo outro recurso que não a condenação. Tanto

os diabos, quanto os anjos parecem estar concordes com isso. Assim, a intervenção favorável

dos anjos estaria fadada ao fracasso não fosse a aparição de outro personagem, o personagem

central de toda a narrativa.

3º Intervenção da Virgem: subversão da lógica

Na estrofe 88, aparece a Virgem que vem em socorro dos anjos e da alma, contra os

diabos que somente “se acordaban del mal/ mandóles atender no osaran hacer ál/ y movióles

querella muy firme y muy leal”. Ela, na estrofe 89, argumenta com os diabos, dizendo que

eles não têm nenhum direito sobre a alma do monge, porque este, em vida, “me estuve

encomendada”, ou seja, o monge sempre foi devoto da Virgem e por isso merecia, agora, sua

intervenção em favor dele.

“Por la parte contraria”, ou seja, da parte dos diabos, na estrofe 90, um deles levanta a

voz e contra argumenta:

Escrito está que el hombre – allí donde es hallado

sea en bien, o sea en mal – es por ello juzgado;

y si un decreto tal – por ti fuera falseado

el Evangelio todo – quedará descuajado.

Os diabos reivindicam “el Evangelio”, a Palavra das Escrituras para justificar sua

atitude de condenar a alma do monge ao Inferno. Invocam essa lógica rígida e fechada que

encontraria sua origem no próprio Evangelho.

46

A Virgem, então, apresenta ao diabo, desqualificando-o e ao seu discurso, seu

argumento: “Cuando salió de casa – de mí tomó licencia”. Ou seja, por mais que o monge

tenha pecado e isto seja causa pela qual merece castigo, o fato de estar encomendado à

proteção da Virgem faz com que ele tenha um privilégio: “de su pecado, yo – le daré

penitencia”. Assim, a Virgem, figura central do poema, subordina a si os diabos, esvaziando

seu argumento e garantindo ao fiel um outro desfecho, que não leve em conta o pecado

cometido, mas sim o fato do monge ser um devoto e “querer bem, de coração” à Santa Maria.

Desvia-se o olhar do pecado para o pecador, nessa outra lógica proposta pela Virgem.

4º O pecador volta à vida

Na estrofe 94, aparece a figura do “Señor de los Cielos”, Deus, “alcalde sabedor” que

soluciona a contenda: manda que a alma do devoto retorne à vida para fazer penitência de

seus pecados e “luego cual mereciese – recibiría el honor”. O monge, então ressuscita, para

surpresa de seus confrades, aos quais relata “toda la letanía/ qué decían los diablos – y qué

Santa María”. Nesse momento acontece a conversão do monge que, de volta à vida, evidencia

o sentido moralizante da narração exemplar:

Confesóse el monge – e hizo penitencia

mejoróse de toda – su mala continencia,

sirvió a la Gloriosa – mientras tuvo potencia

Finó cuando Dios quiso – sin variar su creencia.

Esse milagre, portanto, instaura uma lógica diferente da lógica rígida que observamos

na narrativa do Conde Lucanor, por exemplo. Essa outra lógica da narrativa de Berceo

apresenta-se mais tolerante, pois inverte o olhar tradicional: não se leva em conta somente o

pecado, a infração cometida pelo pecador; leva-se em conta, sobretudo, o próprio pecador e

sua devoção, que apresentam-se como formas de alcançar a graça divina. Isso se torna

possível na narrativa graças à instauração de um lugar “além” do espaço histórico onde se

dariam as tramas envolvendo o pecador e seus crimes: o espaço do Além, do outro mundo,

onde acontece o julgamento do pecador e onde é possível apontar com centralidade a

personagem da Virgem Maria. Ali, é Ela quem modifica o curso dos acontecimentos e

permite que se pleiteie uma lógica diferente da tradicional, mais tolerante e humana, que olha

o pecador mais do que o pecado, embora este não seja negado.

47

El Romero de Santiago (estrofes 182-219)5

Esse milagre também é significativo no que diz respeito à reprodução dessa outra

lógica de Berceo. Narra a história de um frade que, antes de entregar-se à vida monástica,

também cometia pecados de fornicação. Devoto de Santiago, resolve partir em romaria até a

cidade onde se encontram os restos mortais do Apóstolo. Antes, porém, de viajar, cai em

pecado e deita-se “con su amiga”, partindo para a romaria sem fazer penitência. No caminho,

o diabo se disfarça de Santiago e vai ao encontro do romeiro. Sugere-lhe que, por não ter feito

penitência do pecado cometido, isso pode desagradar à Santa Maria. O romeiro, acreditando

estar falando com o Apóstolo de España, pergunta o que deveria fazer para livrar-se do

pecado. O falso apóstolo lhe sugere que corte seus órgãos genitais, pelos quais havia pecado,

e que em seguida se degole, como forma de sacrifício a Deus em expiação de seu crime. O

romeiro assim procede, acreditando estar expiando o pecado e acaba morrendo. Já no espaço

do Além, prontamente o diabo e seus anjos auxiliares pegam a alma do romeiro e a levam “al

fuego, a los malos sudores”. O apóstolo Santiago, nesse momento, vendo a alma de seu

devoto em posse dos diabos, intervém e a reivindica. Um dos diabos, por sua vez, argumenta

com o santo dizendo que aquela alma lhes pertence porque “matóse con su mano”, ou seja,

suicidou-se e, por isso, deveria “ser juzgado de Judas por Hermano”. Santiago, diante desse

argumento, acusa os diabos de serem os culpados por isso, pois, se o diabo não tivesse se

passado por ele, nada disso teria acontecido. Então Santiago invoca a Virgem Maria a fim de

socorrer a alma de seu devoto. Esta passa a ouvir e mediar, como uma Juíza, a contenda entre

os diabos e Santiago e modifica a lógica reivindicada por aqueles: ela argumenta que, apesar

de ter se suicidado, a intenção do devoto havia sido sensata, pois acreditava estar fazendo um

sacrifício a Deus em expiação pelo pecado. Com isso, dá a sentença: que o romeiro volte à

vida e faça penitência pelo pecado cometido (a fornicação) para que, depois de morrer

definitivamente, receba “su audiencia”, ou seja, seja julgado com justiça. Após ser outorgada

a sentença por Deus, o romeiro volta à vida para surpresa de seus companheiros. No entanto,

ao ressuscitar, seus órgãos genitais não são restituídos. A notícia corre por toda Compostela

atraindo a atenção de todos e favorecendo o louvor ao apóstolo e à Virgem. Por fim, o

romeiro converte-se e passa a vestir o hábito penitente no mosteiro de Cluny.

1º Pecado e condenação

5 CF. Anexo 3, ao final do trabalho.

48

A primeira parte desse milagre é bem mais extensa do que no milagre analisado

anteriormente, pois aqui há uma intervenção mais direta do diabo no desenrolar dos

acontecimentos: ele se metamorfoseia e aparece ao romeiro instigando-lhe ao suicídio.

Também ao contrário do milagre 2, aqui, em relação à fonte latina, Berceo insere outro

elemento na narração: naquela narra-se a intenção do romeiro de partir para Santiago de

Compostela antes de se narrar seu pecado; em Berceo, primeiro narra-se, na estrofe 183, o

estilo de vida desregrado do romeiro, algo que não aparece na versão latina, para depois, na

estrofe 184, narrar sua intenção de peregrinar às terras do Apóstolo. Em seguida, Berceo

narra, na estrofe 185, o pecado de fato cometido pelo romeiro: acostar-se com uma mulher

antes da peregrinação, o que lhe fez iniciar o percurso, na estrofe 186, com esse pecado nas

costas. As estrofes 187 a 192 narram o encontro do diabo disfarçado de Santiago com o

romeiro, acrescentando, em relação à fonte latina, a estrofe 190, na qual o romeiro pergunta

ao que apareceu quem ele era e o diabo responde ser Santiago, acrescentando um comentário

sobre o romeiro: “parece que no tienes – de salvarte deseo”. Tanto o diabo, ao sugerir que o

romeiro estava em pecado e, por isso, deveria fazer uma penitência, quanto o romeiro, ao

aceitar essa sugestão, reivindicam aquela lógica fechada segundo a qual a cada pecador deve

ser dado conforme o seu pecado, com o acréscimo de que, no caso de se fazer penitência, o

pecado pode ser perdoado. Na estrofe 193, narra-se como o pecador romeiro aceitou a

sugestão do falso apóstolo e cortou seus próprios membros e em seguida degolou-se. Após

relatar a reação dos seus companheiros de romaria, ao verem o corpo do romeiro degolado

naquela situação, na estrofe 197, os diabos já estão, no Além, em posse da alma do devoto,

seguros de que esta irá ao inferno, devido ao tão grave pecado de suicídio, considerado na

Idade Média um pecado mortal, ou seja, imperdoável.

Note-se também que, neste milagre, não se relata, ao princípio, a devoção do santo à

Virgem, mas sim ao Apóstolo. A referência à Virgem virá da parte do diabo que sugere ter a

Virgem se ofendido com o pecado de fornicação cometido pelo romeiro. Isso, de alguma

maneira, antecipa o lugar central que Santiago ocupará neste milagre.

2º Intervenção favorável e contenda

Entre as estrofes 198 e 204, o espaço do Além aparece e modifica o curso dos

acontecimentos. Narra-se a disputa entre Santiago e os diabos pela posse da alma do romeiro.

Berceo amplifica, na estrofe 199, as palavras de Santiago aos diabos, bem como a resposta do

destes nas estrofes 200-201, “siguiendo la técnica de la novelización, tan explotada por

49

Berceo” (DUTTON, 1971, p. 88). Nesse trecho citado, verificamos que Santiago reivindica a

alma do devoto, dizendo que os diabos não têm parte com ela (estrofe 199). Estes, por sua

vez, argumentam que a alma merece ser levada “a los malos sudores” por ter cometido o

gravíssimo pecado de suicídio, o mesmo de Judas. A lógica que conduz o pecador à

condenação em relação ao seu pecado é reproduzida nessa contenda, pois alega-se que o

pecado deve ser punido com a morte, segundo a crença cristã medieval. A resposta de

Santiago, diferente da ação de outros personagens, santos ou anjos, não é, porém, de

resignação diante dos diabos antes de recorrer à Virgem: nas estrofes 202-204, também muito

amplificadas por Berceo, o Apóstolo parece muito seguro ao acusar diretamente os diabos de

conduzir o romeiro à morte, fazendo-se passar por ele mesmo. Santiago tem uma postura

central nesse milagre. No milagre II, que analisamos, foi a Virgem quem acusou diretamente

os diabos. Percebe-se, pois, que, ao invés de subordinar-se diretamente à Maria, somente

recorrendo a ela depois de frustradas outras tentativas, o santo recorre imediatamente à Ela,

não passando por nenhum intermediário, como se tivesse uma consciência maior a respeito

da atitude a tomar. Podemos associar essa atitude, se pensamos que as relações no Além

refletem as relações do Aquém, com o fato de Santiago ser o santo mais devotado pelos

peregrinos que ouviam os relatos de Berceo, de modo que, subordiná-lo à Maria, como se

fazia com outros santos, poderia não ser uma atitude muito dialogável com o público. Dessa

forma, ao invés de ressaltar a subordinação de Santiago – que de fato existe, afinal, nenhum

santo é superior à Maria – ressalta-se sua sabedoria em recorrer diretamente à pessoa certa,

que poderá conduzir a contenda a um desfecho favorável. Além disso, depois de o frade voltar

à vida, outra “consequência” do pecado poderá ser notada...

3º Intervenção da Virgem: subversão da lógica

Ao ser evocada pelo Apóstolo, a Virgem Maria surge na narrativa na estrofe 206 como

aquela que ouve cada uma das partes em disputa, como Juíza Sábia, e decide com justiça pelo

lado certo. Nesse caso, resolve a contenda nas estrofes 207 e 208:

El engaño sufrido – provecho debía hacer

que el romero de Santiago – cuidaba obedecer,

creyendo que por eso – en salvo debía ser

pero el engañador – lo debía padecer (207).

50

O argumento da Virgem provoca uma inversão da lógica em relação ao argumento dos

diabos: estes, após enganarem o romeiro, reivindicam sua alma devido ao pecado mortal

cometido por ele; a Virgem por sua vez, confronta intenção e realização da ação para

verificar a inocência em relação a este pecado por parte do romeiro.

Evoca-se aqui, o mesmo princípio que encontramos no exemplo citado do Conde

Lucanor: um confronto entre intenção e realização da ação, com a diferença de que, neste

caso, esse princípio, cuja origem está, como dissemos no capítulo I, nas transformações de

mentalidade pelas quais a Igreja passou no século XII (LE GOFF: 1980), favoreceu ao

personagem pecador, pois sua ação, embora má, foi direcionada por uma boa intenção. Em

relação ao primeiro pecado, o da fornicação, razão pela qual o romeiro saíra em pecado e fora

enganado pelo diabo, notamos que a Virgem é tolerante, pois decreta: “ha de volver al cuerpo

– y hacer su penitencia” (208). Com isso, sua sentença justifica outra lógica no julgamento do

devoto: mais vale a devoção e o sentimento favorável deste em consideração à Virgem e à

Santiago do que o pecado cometido que, com isso, garante a possibilidade de ser expiado

mediante penitência. Nesse sentido, este milagre diferencia-se do relato do Conde Lucanor.

Além disso, as amplificações até aqui apontadas e que se fazem presentes também no restante

da narrativa, apontam para uma tentativa de Berceo de dar maior ênfase e centralidade aos

personagens de Santiago e da Virgem, atribuindo-lhes um discurso mais incisivo do que o que

se encontra na fonte latina. Podemos afirmar que, se na fonte latina, a ênfase está na ação dos

personagens, em Berceo, está no discurso deles que revela a inversão da lógica tradicional e o

papel que cada personagem cumpre na tentativa de salvar o devoto.

4º O pecador volta à vida

Na estrofe 209, Deus ratifica a sentença da Virgem e permite que o devoto retorne à

vida a fim de fazer penitência de seu pecado e ser salvo, como se verifica na sequencia das

estrofes 210-213, novelizadas por Berceo. Encerra-se, aqui, a narração que se passa no Além,

esse espaço onde a figura da Virgem ganha status de centralidade, pois é lá o lugar onde ela

aparece como um terceiro elemento que modifica a lógica de condenação e instaura uma

lógica de tolerância em relação ao seu devoto. Em seguida, a narrativa retorna ao mundo do

Aquém, onde a graça dispensada pela Virgem e, nesse caso, com ajuda de Santiago, se tornará

a todos evidente, no cotidiano da vida dos romeiros, e será motivo de louvor, objetivo da

narrativa:

51

Rindió gracias a Dios – y a su madre María

y al apóstol tan santo – do va la romería;

se apresuró a marchar, - se unió a su compañía

tenían con el milagro – su solaz cada día” (214).

No entanto, se percebe, na estrofe 212, que o romeiro, ao ressuscitar, não teve

restituído seu órgão genital, que havia sido decepado, o que não aparece como motivo de

tristeza para o romeiro, cuja reação nem é mencionada. Nas estrofes seguintes, até o final do

milagre, quase todas acrescentadas livremente por Berceo, narra-se que o devoto, de volta à

vida, continuou a romaria até Compostela e que, na cidade, a notícia do milagre se espalhara,

gerando admiração em todos que o viram. O romeiro, por fim, após retornar à sua cidade e

ficar famoso pelo milagre com o qual foi agraciado, se recolhe ao mosteiro de Cluny e torna-

se frade, morrendo, depois, já conforme mandava a prática cristã, “vida muy buena haciendo”

(estrofe 219).

O final deste milagre torna evidente seu sentido moralizante. Apesar da tolerância da

lógica com a qual o pecador é julgado pela Virgem e por Santiago, ainda que perdoado, a

consequência de seu pecado permanece evidente em seu corpo; o devoto se arrepende do mal

caminho que antes seguia e abraça a vida monástica. Aliás, o fato do pecador perder seus

órgãos genitais e terminar a vida recluso num mosteiro, associa-o a um retorno à inocência

original, como no relato do Gênesis, que será abordado no próximo capítulo. O que fica,

portanto, é um sentido moralizante ao devoto peregrino que ouve o relato de Berceo e se

associa a esse romeiro envolto em situações que ameaçam sua inocência e sua salvação, mas

que, graças ao Apóstolo e à Virgem, tem a chance de regenerar-se, recuperar sua castidade

(inocência) perdida e continuar seu percurso entre as lutas e batalhas na terra contras as forças

do mal.

2.5 Um lógica tolerante

A partir destas constatações, propomos realizar uma breve reflexão sobre a sociedade

em torno a Berceo, no século XIII, cujas práticas materiais e a mentalidade, são fruto das

transformações sociais, políticas e econômicas que se verificaram na Europa entre o fim do

século XI e o início do século XIII. Percebemos em Berceo a presença de elementos que

apontam para uma incorporação desse novo clima social e espiritual, ao mesmo tempo em que

52

outros elementos comprovam a persistência de estruturas, materiais e mentais, que remontam

à época do apogeu da sociedade feudal.

Como dissemos no capítulo anterior, o século XII foi marcado por inúmeras

transformações no campo social, econômico e cultural: o desenvolvimento do comércio e das

cidades provocou uma mudança, em nível material e mental, que opôs uma Alta Idade Média

rústica e fechada a um “século de grande progresso”, consolidado nos cem anos posteriores

(VAUCHEZ: 1995, p. 75). A mobilidade social, consequência de todas essas transformações

apontadas, permitiu uma evolução do imaginário social, que nos relegou uma herança

importante: a introdução da consciência nas relações sociais. Um pecador não poderia mais

ser julgado pelo pecado cometido simplesmente, mas sim pela intenção que o motivou:

“considerava-se menos o pecado que o pecador, o erro que a intenção, buscava-se menos a

penitência que a contrição” (LE GOFF, 1983, p. 159); no campo profissional, principal

afetado por esse novo olhar sobre o pecado, verificou-se a necessidade de superar a penitência

somente em função dos “pecados capitais” para abarcar a diversidade de grupos sociais

incluídos e justificados pela emergência de uma nova teologia do trabalho. Era necessário,

após essa inclusão, analisar cada caso e cada profissão e verificar quais os pecados mais

comuns a cada uma e quais as penitências mais propícias.

Ao analisar os milagres narrados por Berceo, propostos neste trabalho, verifica-se

claramente, como foi apontado ao longo da análise, a existência de uma lógica positiva, na

qual os pecadores, ainda sendo os velhos clérigos de sempre, são tratados com tolerância e

cordura em relação ao seu pecado. Mesmo opondo esses milagres ao exemplum tirado do

Conde Lucanor, no qual já se percebe uma prevalência da consciência sobre o ato, na hora do

julgamento, os milagres de Berceo estão marcados mais fortemente por essa lógica tolerante.

Tal fato nos remete a um espírito de época, marcado pela renovação da mentalidade da Igreja,

no bojo das transformações de ordem material pelas quais passava a Europa.

Ao mesmo tempo, os pecados apontados, em sua maioria cometidos por clérigos, e

talvez por isso mesmo, remetem aos velhos pecados capitais, o que pode aparentar, segundo

essa linha de raciocínio, que não necessariamente se incorporou, nesse campo, as mudanças

nas definições de pecado. Além disso, os pecados sempre são atribuídos a seres externos, o

que também remete a uma mentalidade anterior a essas transformações. No entanto, devemos

ter em conta duas coisas: o fato dos clérigos ou monges pertencerem a um grupo social

legitimado desde muito tempo nas antigas categorizações das ordens sociais e o clima moral

53

da época, na qual a Igreja convivia com denúncias de crimes sexuais e envolvendo sua

administração financeira, o que tornava necessário uma atuação no sentido de reprimir nos

clérigos as tendências a esses pecados. Daí podemos supor o motivo dos clérigos personagens

de Berceo, mais individualizados que os personagens da fonte latina, se verem envoltos nos

pecados de fornicação e avareza: tal fato insere a lição moral das narrativas à própria função

do mester de clerecía, enquanto gênero de escrita exemplar, no bojo das decisões do IV

Concílio de Latrão, que versou sobre a necessidade de moralização de um clero então

desacreditado.

A presença, portanto, na obra de Berceo, de uma lógica que se verifica na própria

adaptação da instituição eclesiástica às novas condições de trabalho do ocidente europeu,

insere a sua obra na continuidade de um tempo marcado pelas transformações e adaptações

constantes, tanto na ordem material, quanto no nível do imaginário. É um elemento que pode

demonstrar como se fez presente na obra de Berceo essa mentalidade tolerante ao narrar

acontecimentos miraculosos para uma massa de peregrinos que convivia cotidianamente com

esse clima de época e buscava a superação de sua situação, talvez com esperança de que essas

mudanças pudessem chegar também a eles, o que nem sempre acontecia. A presença da

Virgem Maria, cuja exaltação era intenção de Berceo, funciona como um legitimador da nova

mentalidade, pois significa a ação de um personagem central na concepção cristã de mundo

das massas peregrinas, com a qual Berceo dialoga em seus relatos.

Em Milagros de Nuestra Señora, especificamente nos milagres trabalhados nesta

reflexão, essa lógica tolerante se realiza, como vimos, pela presença da Virgem Maria, que

atua para legitimar essa nova atitude, e pela presença do espaço do Além, onde ocorre o

julgamento do pecador, cujo pecado é suplantado por sua condição de devoto, o que lhe

garante a salvação. É, portanto, importante comentar o papel desses dois elementos para a

construção da lógica tolerante dos exempla de Berceo.

Quanto à Virgem Maria, notamos que sua devoção atingiu o apogeu no século XII. Os

escritos de São Bernardo de Claraval, cuja teologia, em geral, era caracterizada por uma

espiritualidade mais “afetiva e humana” (GERLI: 1985, p. 21) - o que também pode ser

entendido como um aspecto dessa época de mudanças e adaptações – refletem isso. No plano

da estrutura narrativa, pois, enxerga-se a Virgem Maria como uma mãe piedosa que leva em

conta a devoção do pecador e não o seu pecado, e intervém em seu favor. Com isso substitui-

se uma lógica moralista e intolerante, por uma lógica moralizante e indulgente, e confirma-se

54

a Virgem Maria como a “mediadora ideal” entre Deus e o pecador devoto. A presença de uma

forte orientação bernardina na teologia mariana desenvolvida por Berceo, portanto, é

imprescindível para a construção dessa outra lógica que se depreende de seus exempla, pois

marca o momento histórico vivido pela devoção à Virgem Maria, inserido num contexto mais

amplo de transformações sociais e de mentalidades.

Lembremos que é graças a Bernardo que se desenvolve com mais precisão a doutrina

segundo a qual a Virgem Maria é a verdadeira intercessora entre Deus e os homens, cujos

pedidos nunca são negados por Ele. Concebida sem pecado, ela é o “canal da graça divina”,

que conduz o homem a Deus. Também sua disputa com os seres malignos a insere na História

da Salvação como a Nova Eva, a Mulher que “pisa a cabeça da serpente”, ou seja, vence o

antigo inimigo e abre as portas do céu aos homens pecadores. A obra Milagros de Nuestra

Señora, como veremos no próximo capítulo, foi construída tendo isso em vista: evidenciar

num plano cotidiano e individual esse papel central de Maria, e isso se verifica na própria

estrutura das narrativas ora analisadas, cujos terceiro elemento incluído, a própria Virgem e o

espaço do Além, servem como argumentos de seu poder de intercessão e evidenciam seu

lugar no Cristianismo.

Por fim, vale lembrar que é no século XII que se dá uma mudança significativa na

estrutura geográfica do Além cristão: a introdução oficial do Purgatório, cuja característica

principal é justamente servir como lugar intermediário entre o Céu e o Inferno, mas

positivamente propenso ao Céu, pois de lá, por mais que o fiel passe por suplícios dolorosos,

ele só sai para o Paraíso. Segundo Le Goff (1993b, p. 21), esse lugar, integrado num sistema

“mais complexo e flexível” estava adequado à “evolução dos “estados sociais na terra”, ou

seja, ligado às transformações pela quais passavam a sociedade europeia neste momento

histórico que vimos analisando e que marcou a emergência de atores sociais até então

excluídos. Estes, mediante a pressão sobre a instituição eclesiástica, em busca de

legitimidade, fizeram-na adaptar-se à nova conjuntura (LE GOFF: 1980). A emergência

oficial da crença no Purgatório como “terceiro lugar”, lugar intermediário”, também faz parte

dessa pressão e marca o início de um tempo de maior tolerância, do ponto de vista teológico –

pelo menos até que se tenha novamente sob controle todo o corpo social.

55

O Purgatório, enquanto lugar autônomo do Além, não aparece claramente expresso na

obra ora analisada.6 No entanto, há uma associação do Purgatório com a vida terrestre, que

não deixa de ser um lugar de expiação de pecados, para onde retorna o pecador a fim de fazer

penitência de seu pecado e elevar-se espiritualmente para que, ao morrer definitivamente,

possa alcançar o Paraíso. Em Milagros, os espaços do Além, identificado pela descrição dos

suplícios do Inferno, das delícias do Paraíso ou pelos personagens evocados, tanto de um

lugar como de outro, servirão especificamente para instaurar essa outra lógica, o terceiro

elemento, pois é neste espaço que se dá a intervenção favorável da Virgem para salvar o

pecador e conceder-lhe uma outra chance de expiar seu pecado.

6 No milagre X, Los dos Hermanos: “murióse el cardenal - don Pedro el honrado/ y se fue al purgatório - como

lo había ganado”- estrofe 241; na edição crítica de Dutton (1971), a palavra “purgatório” aparece no plural, o que pode não indicar o lugar efetivamente criado no século XII, mas alguma versão anterior sobre os “fogos purgatórios” - cf. LE GOFF, 1993b

56

CAPÍTULO III - A Virgem Maria, o espaço do Além e a construção tipológica em

Milagros de Nuestra Señora

Michael Gerli (1985, p. 37) pleiteia para a obra Milagros de Nuestra Señora de

Gonzalo de Berceo uma unidade estrutural que dá sentido a toda a narrativa dos milagres,

sendo baseada “en el amplio tipo bíblico” da Queda e Redenção do homem. “Esto lo logra

[Berceo] por medio de las figuras que emplea en su texto y por las correspondencias de

imágenes que forja entre la Introducción de la obra y los milagros subsiguientes”. Para o

crítico,

Mientras que la Introducción cuenta por medio de figurae la historia de la Caída y Redención del primer hombre, los milagros que la siguen reflejan metonímicamente el mismo concepto en su plan individual. Estos últimos narran, no el drama de la Caída y Salvación del hombre arquetípico, sino el de los hombres, los peregrinos, nuestros vecinos nuestros contemporáneos. Por consiguiente, cada milagro ejemplifica y reafirma la validez actual de la gracia redentora de la Virgen. (p. 48)

Segundo Gerli (1985), portanto, cada milagre refletiria “metonimicamente” o tipo

bíblico da Queda e Redenção. Partimos, pois, dessa afirmação, para verificar que, quanto aos

milagres analisados neste trabalho, há uma correspondência estrutural entre cada um desses

milagres e o mito originário em questão. Nessa correspondência, o espaço do Além aparece

como central, pois nele é que se dá o embate entre as forças do Bem, centralizadas na Virgem

Maria, e as forças do mal, responsáveis pela queda do primeiro homem. Como veremos, a

repetição inversa da história do Gênesis, regra da construção tipológica, garantirá a vitória da

Virgem sobre o diabo e seus anjos. Com isso, o homem terá novamente acesso ao “paraíso da

salvação cristã”, ao passo que a Virgem será exaltada como a única intercessora capaz de

livrar seu devoto da pena do pecado original e individual, inserida que está na História da

Salvação como a Nova Eva, ao contrário daquela, portadora da vida e da redenção.

Para entender essa técnica tipológica empregada por Berceo, é necessário retornar à

diferenciação entre dois tipos de procedimentos construtivos de relações alegóricas, chamados

por Hansen (2006) de “alegoria dos poetas” e “alegoria dos teólogos”, a fim de extrair daí os

elementos que orientam, mais que uma técnica literária, mas um modo de pensar

característico da teologia e da sociedade medieval. A isso nos propomos neste capítulo de

nosso trabalho, além de analisar os milagres selecionados para este trabalho, no sentido de

aproximá-los, estruturalmente, do relato do Gênesis, a partir da técnica tipológica, na qual a

57

introdução da figura de Maria que age desde o espaço do Além inverte a lógica do texto

veterotestamentário e instaura a possibilidade de salvação aos pecadores.

3.1 “Alegoria dos poetas” e “alegoria hermenêutica” ou tipologia

Segundo Hansen (2006), a concepção de alegoria que nos chegou da Antiguidade era

diferente da que forjou o pensamento medieval; não que esta suplantasse aquela, mas

associava-se àquela enquanto procedimento linguístico-interpretativo de construção literária.

(HANSEN, 2006, p. 8-26).

A “alegoria dos poetas” era descrita nos manuais antigos de retórica como

“modalidade de elocução”, “ornamento do discurso”, “técnica metafórica de representar e

personificar abstrações” (HANSEN, op. cit., p. 7-9), que opunha sentido próprio X sentido

figurado. As regras de ornamentação do discurso forneciam os topoi, os lugares comuns que

eram utilizados como técnicas alegóricas de substituição de um discurso simples ou próprio,

por um discurso metafórico, regulado conforme o campo temático específico. Curtius (1957,

p. 121-22) enumera uma série de tópicas comuns na literatura medieval que os poetas

lançavam mão na hora de construir suas obras e assim as define:

No antigo sistema da retórica, a tópica é o celeiro das provisões. Contém os mais variados pensamentos: os que podem empregar-se em quaisquer discursos e escritos em geral (...). Ao autor competia conduzir o leitor a seu tema. Para a introdução (exordium) havia, pois, uma tópica especial; e igualmente para a conclusão. As fórmulas de modéstia, as de introdução e conclusão são obrigatórias em qualquer obra. Restringe-se o uso de outros topoi a determinados gêneros de discurso (...).

Gerli (1985) também aponta uma série de lugares comuns da poesia religiosa

utilizados por Berceo na Introdução da obra, como a tópica da peregrinatio vitae, ou do locus

amenus e hortus conclusus (p. 40-45). Para Hansen:

Estática ou dinâmica, descritiva ou narrativa, a alegoria é procedimento intencional do autor do discurso; sua interpretação, ato do receptor, também está prevista por regras que estabelecem sua maior ou menor clareza, de acordo com o gênero e a circunstância do discurso. (p. 9)

Ou seja, a alegoria era um “procedimento intencional de construção” que necessitava,

entretanto, da uma interpretação correta por parte do leitor, sob o risco de não ser

compreendida, e esta interpretação também era regulada por convenções retóricas. Com isso,

58

mantém-se a separação entre sentido próprio X sentido figurado, numa alegoria

“essencialmente linguística” (HANSEN, p. 10).

Já a “alegoria dos teólogos”, também chamada de figura, tipologia, tipo, própria do

mundo cristão medieval, “não é um modo de expressão verbal retórico-poética, mas de

interpretação religiosa de coisas, homens e eventos figurados em textos sagrados” (HANSEN,

p. 11). Sua base está no essencialismo cristão medieval, segundo o qual Deus é a origem de

todas as coisas e atua no universo de maneira a revelar-se em acontecimentos que simbolizam,

prefiguram ou pós-figuram sua causa e efeito, simultaneamente. Exemplificando, Hansen

(2006) diz:

Formando um conjunto de regras interpretativas, a alegorização cristã toma determinada passagem do Velho Testamento - o êxodo dos hebreus do Egito, guiados por Moisés, por exemplo – e propões que, numa passagem determinada do Novo Testamento, seja ressurreição de Cristo, há uma repetição. No caso, não se interpretam as palavras do texto, mas as coisas, os acontecimentos e os seres históricos nomeados por elas. Moisés, o homem, é interpretado como o exemplo (figura ou tipo) que prefigura o Cristo em seu tempo. Como Cristo é Deus, segundo o Cristianismo, Moisés também posfigura o Cristo eterno. Como sua figura, Moisés é umbra futurarum, “sombras das coisas futuras”. (op. cit., p. 12, itálicos do autor)

Assim, há nesse tipo de alegoria uma relação entre a palavra escrita e o mundo,

mediada por Deus, que se revela ao homem nas pessoas e acontecimentos. Dessa forma, a

noção de repetição é central: quando um acontecimento posterior é associado, numa relação

de semelhança, a outro anterior. Isso se dá tanto na relação do Novo com o Velho

Testamento, como na relação do mundo com as Sagradas Escrituras. Além disso, essa

repetição se dará, na maioria dos casos, num esquema essencialmente reversível (GERLI, p.

36). Por exemplo, ao associar a narrativa da Queda do homem e sua expulsão do paraíso,

conforme descrito no livro do Gênesis, a interpretação tipológica medieval verá em Cristo o

Novo Adão, que inicia uma Nova humanidade. No entanto, ao contrário daquele que, por seu

pecado, estendeu a morte a todo o gênero humano, através de Cristo e de seu sacrifício virá a

salvação dos pecados, e a graça divina da mesma maneira se estenderá a toda a humanidade.

Isto é, Cristo é a repetição inversa de Adão, assim como sua morte e ressurreição são a

repetição inversa do pecado do homem e sua expulsão do Paraíso.

Há, portanto, na alegoria dos teólogos, assim como na dos poetas, as duas instâncias

de interpretação sentido próprio X sentido figurado. No entanto, acrescenta-se outra instância

e alça-se àquela a outro patamar:

59

Os Padres fizeram a distinção de sentido literal, expresso por letras de palavras humanas como sentido literal próprio e sentido literal figurado, e sentido espiritual, revelado por coisas, homens e acontecimentos das Escrituras. (HANSEN: p. 13)

Resumindo, teremos:

Alegoria dos Poetas Alegoria dos teólogos (tipologia)

Alegoria construtiva, retórica Alegoria interpretativa, hermenêutica

Expressão: modo de falar e escrever Interpretação: modo de entender e decifrar

Criativa, como ficção Crítica, como desvelamento de uma

realidade oculta

Semântica de palavras Semântica de realidades (HANSEN: p. 9)

A alegoria dos teólogos, a tipologia, enquanto técnica hermenêutica largamente

utilizada desde os primórdios da Igreja, também possuía uma série de “tipos bíblicos”, aos

quais os autores constantemente se remetiam ao empreender seu esforço interpretativo na

análise dos fatos, personagens e acontecimentos. Como demonstra Gerli (1985), ao analisar a

Introdução de Milagros de Nuestra Señora, Berceo estrutura essa obra em torno ao tipo

bíblico da Queda e Redenção do Homem, o que se repete “de modo particular e cotidiano” em

cada milagre narrado, como um princípio que confere unidade a toda sua obra. Com isso,

Gerli nos lembra das palavras de Frye, segundo o qual “la alegoría es un elemento estructural

de la literatura” e, na continuidade, com Gerli, “ y se cultiva no solo para adornar, sino para

organizar, unificar y explicar el sentido de una obra” (GERLI, 1985: p.35).

Pensando especificamente na alegoria dos teólogos, a tipologia, cujo fim não era

unicamente a “ornamentação do discurso”, e levando em consideração o substrato linguístico

que o subjaz, evidencia-se também esse seu caráter estrutural:

En la literatura medieval religiosa la tipología fue, pues, un estilo de composición explotado para reforzar la estructura, iluminar la organización conceptual, y crear sutiles correspondencias temáticas entre las diferentes partes de una misma obra. (GERLI, 1985, p. 36)

3.2 “Es cierto que el hombre cayó por la mujer. Pero también poco podrá levantarse sino

por una mujer.”

60

Agora, pensando especificamente na obra Milagros de Nuestra Señora, seguindo a

proposta de Gerli (1985), cumpre-nos entender um pouco melhor as características gerais

desse tipo bíblico a fim de empreender nossa análise.

A associação entre Maria e o mito da Redenção do Pecado Original existia no

Cristianismo desde os tempos de Santo Irineu, sendo sua virgindade uma prova fidedigna da

anulação da pena computada à Adão e Eva por seu pecado. “Vino la muerte por medio de

Eva, y la Vida por medio de María”, diria São Jerônimo (apud GERLI, p. 37). Resumindo,

Nuestros progenitores, Adán y Eva, son expulsados del paraíso en que vivían armónicamente en estado natural. Por haber transgredido la Ley de Dios, conocen la vergüenza, cubren su naturalidad y sufren el dolor, el hambre, la fatiga y la muerte. A partir de ese momento, hasta el advenimiento de Cristo, los hombres se consideraban miembros de la massa pecati. Se concluye que por culpa de la desobediencia de Adán y Eva se perdió el Paraíso. Sin embargo, por el advenimiento de Cristo, encarnado por medio de la Virgen, se recobra lo perdido, se invierte la historia del Génesis. (GERLI, 1985, p. 38)

E ainda:

La pérdida y la restitución del Paraíso se expresan en la imaginación medieval ligando estrechamente los motivos simbólicos del jardín del Génesis y los de la Anunciación de la Virgen, y muchas veces forman una dualidad que se presenta simultáneamente en una misma obra (p.39)

Assim, a narrativa da Anunciação adquire um caráter central tanto na tipologia ora

analisada, como na devoção mariana difundida na Idade Média, pois representa o momento

em que, por meio da resposta da Virgem ao apelo divino, inverte-se a resposta de Eva à

serpente do Gênesis e se repete de maneira inversa a sua conclusão: se antes a resposta da

primeira mulher trouxe a morte ao homem, agora, a resposta de Maria confere à humanidade a

salvação e a recondução do homem ao Paraíso.

Pensando na obra de Berceo e no uso que faz desse tipo bíblico, percebemos que há,

nessa interpretação alegórica, uma relação entre dois textos: a narrativa da Queda, no Gênesis,

e a narrativa da Anunciação do Anjo, no Novo Testamento. Assim, Maria aparece como a

Nova Eva. Ao mesmo tempo, há a relação entre os milagres narrados por Berceo e o papel

que lhe é atribuído a Maria pelos Padres da Igreja na História da Salvação, conforme a

interpretação tipológica desses dois textos citados. Assim realiza-se concretamente na

História aquilo que o Novo Testamento repetiu inversamente em relação ao Antigo,

61

prenunciando as realidades futuras, de plenitude da graça, a salvação do homem. Temos,

então, o arquétipo da alegoria dos teólogos, segundo descrita por Hansen (2006).

São Bernardo de Claraval, em seu segundo discurso En Alabanza de la Virgen Madre

(OC, 1994), ao discorrer sobre a cena da Anunciação descrita pelo evangelista e valendo-se da

técnica tipológica em questão, dirige a Adão e Eva suas palavras, esclarecendo para nós o

papel de cada um na história do Homem, segundo a narrativa bíblica, bem como o papel de

Maria na “obra da Redenção”:

Alégrate, padre Adán; y tú, madre Eva, regocíjate mucho más y salta de gozo. Porque los dos fuisteis precisamente los progenitores de todos los humanos y al mismo tiempo sus homicidas. Y peor aún: homicidas antes de ser padres. Pero consolaos ambos con esta hija y una hija como ella. Especialmente tú, que engendraste el mal y de ti pasó a las demás mujeres. Se acerca la hora en que se borra la afrenta y el hombre no tendrá por qué zaherir más a la mujer. Efectivamente, ya no podrá cometer la osadía de excusarse como un niño, acusándola cruelmente: La mujer que me diste por compañera me alargó el fruto y comí. Corre, pues, Eva, hacia María; corre, madre, hacia tu hija. Ella responda de ti y quite la mancha de su madre. Hágase solidaria de su madre ante el padre. Mira: es cierto que el hombre cayó por la mujer. Pero también poco podrá levantarse sino por una mujer. ¿Qué es lo que decías, Adán? La mujer que me diste por compañera me alargó el fruto y comí. No digas necedades, que sólo sirven para agravar más tu culpa y en nada te justifican. Recuerda que la Sabiduría ha vencido a la malicia. Dios, mediante el recurso de su bondad inagotable, encontró un cauce de perdón, el que intentó alcanzar de ti al hacerte esa pregunta, y no lo consiguió. Por eso te devuelve ahora una mujer por otra mujer, una mujer sensata por otra necia, una mujer humilde por otra soberbia. Ella te dará a gustar la vida en vez del fruto de la muerte; engendrará la dulzura del fruto eterno y no el bocado emponzoñado de la amargura. Por tanto, calla, no sigas hablando así. Deja ya de acusar a la mujer injustamente y da gracias a Dios diciendo: “Señor, la mujer que me diste por compañera me alargó el fruto, comí y me supo el miel en la boca, pues por él me has devuelto la vida”. Con este fin, el ángel fue enviado por Dios a una virgen. ¡Oh mujer que mereces toda veneración y todo honor como ninguna otra! Eres la más admirable de todas las mujeres, porque reparaste la acción de los progenitores y vivificaste a sus descendientes. (p. 617-618)

Nesse trecho de São Bernardo, verifica-se que a técnica tipológica de construção da

alegoria hermenêutica é utilizada na construção do próprio texto: através do diálogo com os

personagens do Antigo Testamento e alusões à Virgem Maria, cria-se uma estrutura de

oposição entre Adão e Eva versus a Virgem Maria, de modo que esta supera os dois primeiros

por ter sido aquela que, inversamente à atitude dos primeiros seres humanos, obedeceu a

Deus.

62

São Bernardo enfatiza, ao dialogar com Adão, sobretudo a oposição entre as duas

mulheres, Eva e Maria. Podemos sintetizar essas relações, conforme seu texto, da seguinte

maneira:

Maria Eva

“una mujer sensata... ...por otra necia

una mujer humilde... ...por otra soberbia”

“Ella te dará a gustar la vida... ... en vez del fruto de la muerte

“engendrará la dulzura del fruto eterno... ... y no el bocado emponzoñado de la

amargura”

“La mujer que me diste por compañera me

alargó el fruto y comí.”

“Señor, la mujer que me diste por compañera

me alargó el fruto, comí y me supo el miel en

la boca, pues por él me has devuelto la vida”

Percebemos que a comparação entre Eva e Maria se realiza a partir da constatação de

que Maria é a mulher sensata, humilde, que “te dará a gustar la vida”, “engendrará la dulzura

del fruto eterno”, o que leva o autor a, por comparação inversa, associá-la à primeira mulher,

Eva, “necia, soberba”, que deu “el fruto de la muerte”, engendrou “el bocado emponzoñado

de la amargura”. Dessa forma, retorna à Eva para contrapô-la à Maria: daquela o homem

disse: La mujer que me diste por compañera me alargó el fruto y comí, ao passo que desta

deveria dizer: “Señor, la mujer que me diste por compañera me alargó el fruto, comí y me

supo el miel en la boca, pues por él me has devuelto la vida”; por Eva o homem caiu, e

somente por Maria poderá levantar-se; àquela engendrou o mal “y de ti pasó a las demás

mujeres”; esta, Maria, é “la más admirable de todas las mujeres, porque reparaste la acción de

los progenitores y vivificaste a sus descendientes”.

É interessante pensar na relação que estabelece Gerli (1985. p. 33-48) entre o Mito da

Queda do homem, conforme o Gênesis e a Introdução dos Milagros de Nuestra Señora. Para

o crítico, o peregrino cansado que entra no prado florido, além de remeter-nos à tópica

clássica do peregrinatio vitae e do locus amenus e aproximar sua narração dos peregrinos que

viajavam pelas rotas próximas a San Millán, “circunscribe el exilio del hombre del Paraíso y

su inestable estancia peripatética sobre la tierra”. Além disso, o prado é o retorno ao paraíso

perdido no Gênesis, retorno este garantido pela devoção à Virgem. Dessa forma, a devoção à

“Virgem cheia de graça” é a porta de entrada à graça de Deus, que quita o pecado e concede a

salvação. Nas palavras de Gerli:

63

La analogía es clara: el paraíso a que ha entrado el narrador es el antitipo de aquel en el que el hombre pecó y cayó. Al contrario del Génesis, el de Berceo es el prometido que cierra el círculo de la historia universal de la humanidad. Su Paraíso es el de la Redención Cristiana, el cumplimiento ineludible de la profecía del Edén del Antiguo Testamento. (p. 40-41)

Nesse esquema tipológico de Berceo,

Es en y por medio de María que encontramos la gracia perdida por nuestros primeros padres. Si Eva comió del árbol de la ciencia y pudo distinguir, así, el bien del mal sintiéndose avergonzada, la Virgen en la obra de Berceo simboliza la inversión de este hecho y reconstituye la inocencia perdida. (p. 41)

Dito isso, recuperamos a afirmação de Gerli (1985) citada ao princípio, segundo o qual

na narrativa de cada milagre desta obra de Berceo apresenta-se o mito do pecado original

atualizado ao nível do cotidiano, da história individual dos peregrinos e devotos, atualizando-

o, segundo a interpretação tipológica dos Padres da Igreja e revitalizando, também, o sentido

das peregrinações marianas, símbolo da luta e corrida do homem em busca da salvação e

garantia material da sobrevivência do Mosteiro de Yuso.

Dito isso, passemos à análise da estrutura dos milagres selecionados para este trabalho,

como fizemos no capítulo anterior, os quais reproduzem, em sua estrutura interna, o mito da

Queda e Redenção do Homem. Primeiramente, vamos extrair da análise do Gênesis, texto

base dessa tipologia, uma estrutura que evidencia a sequência da Queda para, em seguida,

analisando detidamente alguns milagres de Berceo, verificar as semelhanças que caracterizam

sua estrutura em relação ao texto do Antigo Testamento e as diferenças que caracterizam a

interpretação figural na qual Maria aparece com a Nova Eva, que conduz o pecador à graça de

Deus.

3.3 A lógica da graça

A seguir, dividimos o relato do Gênesis em partes que ajudam a entender sua estrutura

e o uso que se fará dela, depois, na literatura cristã medieval.

1º Homem e mulher no paraíso: a inocência anterior ao pecado

E ambos estavam nus, o homem e sua mulher; e não se envergonhavam. (Gênesis 2, 25)

64

A teologia cristã sempre enxergou no relato do Gênesis, anterior à Queda o momento

símbolo da inocência humana, antes de conhecer o pecado. Nesse trecho do relato verificamos

a condição do homem no Paraíso criado por Deus: Vivem com a simplicidade e puerilidade

infantil, sem malícia, pois ainda não conheceram o pecado.

2º Pecado, sentença e condenação

Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo, que o Senhor Deus tinha feito. E esta disse à mulher: “É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?” Respondeu a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: “Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.” Disse a serpente à mulher: “Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal.” Então, vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, comeu, e deu a seu marido, e ele também comeu. Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; pelo que coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais. (3, 1-7)

Nessa parte da narrativa, narra-se como a serpente engana a mulher, e como esta,

enganada, come o fruto proibido por Deus e o oferece ao homem. Ambos perdem a inocência,

ou seja, passam a ser conhecedores do bem e do mal, de modo que podem optar por um ou

por outro. A frase que marca essa perda da inocência é quando se diz que eles reconhecem

estarem nus e sentem vergonha.

Em seguida ao pecado, há a vergonha de se apresentar diante de Deus, pois eles estão

nus:

E, ouvindo a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim à tardinha, esconderam-se o homem e sua mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim. Mas chamou o Senhor Deus ao homem, e perguntou-lhe: “Onde estás?” Respondeu-lhe o homem: “Ouvi a tua voz no jardim e tive medo, porque estava nu; e escondi-me.”Deus perguntou-lhe mais: “Quem te mostrou que estavas nu? Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses?”Ao que respondeu o homem: “A mulher que me deste por companheira deu-me a árvore, e eu comi.” Perguntou o Senhor Deus à mulher: “Que é isto que fizeste?” Respondeu a mulher: “A serpente enganou-me, e eu comi.” (3, 8-13)

Deus, por sua vez, ao ser relatado por Adão dos acontecimentos imediatamente

anteriores a isso, decreta a sentença contra os dois e a serpente:

Então o Senhor Deus disse à serpente: “Porquanto fizeste isso, maldita serás tu dentre todos os animais domésticos, e dentre todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida. Porei

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inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua descendência e a sua descendência; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” E à mulher disse: “Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.” E ao homem disse: “Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei dizendo: Não comerás dela; maldita é a terra por tua causa; em fadiga comerás dela todos os dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos; e comerás das ervas do campo. Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás.” (3, 14-18)

A Queda é representada pela expulsão do homem do paraíso:

Chamou Adão à sua mulher Eva, porque era a mãe de todos os viventes. E o Senhor Deus fez túnicas de peles para Adão e sua mulher, e os vestiu. Então disse o Senhor Deus: “Eis que o homem se tem tornado como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Ora, não suceda que estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente.” O Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden para lavrar a terra, de que fora tomado. E havendo lançado fora o homem, pôs ao oriente do jardim do Éden os querubins, e uma espada flamejante que se volvia por todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida. (3, 20-24)

Nessa segunda parte, identificamos três momentos distintos: o pecado cometido; a

sentença de Deus e a expulsão do Paraíso. O objetivo do autor era narrar a Queda do homem e

explicar sua condição de peregrino errante no mundo, sempre às voltas com o desejo de fazer

o bem e a inclinação a cair nas tentações, contra as quais tem de lutar diariamente. Na Idade

Média, era essa a mentalidade do homem simples, desse peregrino ao qual Berceo dirige sua

obra.

3º Graça e redenção

Então o Senhor Deus disse à serpente: “Porquanto fizeste isso, maldita serás tu dentre todos os animais domésticos, e dentre todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida. Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua descendência e a sua descendência; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” (3, 14-15)

O trecho acima é um dos mais importantes da narrativa para a tradição cristã medieval.

Embora o relato do Velho Testamento indique uma lógica rígida na condenação do homem

que, por livre arbítrio, escolhe o mal e o mal paga, a frase acima era entendida como um sinal

pela teologia medieval: a chave para se interpretar alegoricamente o relato da Queda como

figura do Novo Testamento e de suas realidades, especialmente ao relacionar Eva e Maria.

Assim, o relato do Gênesis, malgrado sua estrutura binária de causa e consequência, na qual o

Homem e a Mulher que pecam são, por isso, condenados, apresenta neste versículo uma

66

espécie de profecia que se confirmaria no relato da Anunciação: ao ser abordada pelo Anjo,

ao contrário de Eva, Maria obedece a Deus por livre e espontânea vontade e “abre as portas

do Céu” ao homem, aceitando ser a Mãe de Cristo. Segundo Graef (2000, p. 13), esse

versículo foi um dos mais discutidos, pois é crucial para a doutrina de Maria como segunda

Eva, além de ter sido alvo de controvérsia a cerca da Imaculada Conceição da Virgem e da

interpretação da “mulher vestida de sol”, como aparece no livro do Apocalipse (capítulo 12).

Seguindo nossa proposta de análise, acompanhemos a narração dos milagres de

Berceo, dois especificamente, El labrador Avaro (XI, 270-280) e El prior y el Sacristán. (XII,

281-305)7, a fim de verificar o uso estrutural da tipologia da Queda na construção das

narrativas exemplares de Berceo em Milagros de Nuestra Señora.

1º Homem e mulher no paraíso: a inocência anterior ao pecado

Em analogia ao relato do Gênesis, podemos identificar nos relatos de Berceo dois

elementos que, ao serem referidos no princípio de alguns milagres, apontam a uma referência

à inocência original antes da mancha pelo pecado: a devoção à Virgem e a vida monacal.

Nas estrofes 170 e 171 do milagre XI, El labrador avaro, começa-se descrevendo o

personagem, um lavrador que “más amaba su tierra – que no a su Creador”, e fraudava os

“mojones”, as marcações de limite de propriedade a fim de beneficiar-se garantindo maior

posse de terras. Em seguida, na estrofe 172, pondera-se o fato de que, a pesar de ser mau visto

na vizinhança, o lavrador “queria bem a Santa Maria”, ouvia seus milagres, acreditava neles e

saudava a Virgem com a jaculatória Ave gratia plena. Isso nos remete à narração da

Anunciação do anjo a Maria. Há, pois, uma contraposição do pecado cometido pelo lavrador

com a devoção à Maria, antecedido pelo advérbio “aunque” na estrofe 272. Ao relatar a

devoção do pecador à Virgem, Berceo aponta para um elemento chave no desenrolar da

narração, pois garantirá ao devoto a salvação no momento oportuno. Já no milagre XII, El

prior y el sacristán, por sua vez, narra-se o milagre envolvendo um sacristão que “decía

mucha horrura”, coisas as quais era vedado dizer segundo a regra de seu mosteiro. Nas

estrofes 281 e 282, Berceo amplifica a primeira frase da versão latina, segundo Dutton (1967,

p. 111), dando mais ênfase à descrição do mosteiro como lugar “lleno de buenos hombres, -

muy santa compañia”.

7 Ambos os milagres estão reproduzidos nos anexos 4e 5, respectivamente.

67

Há, pois, uma valorização dessa vida monástica, anterior ao pecado, constante em

vários milagres, o que nos remete à concepção de vida religiosa ou monástica medieval,

associada à luta contra os poderes do mal e ao caminho de acesso a Deus, mediante a prática

das virtudes, como a castidade e a oração (VAUCHEZ, 1995, p. 60). Essas práticas ajudavam

a restabelecer o acesso a Deus, rompido pelo pecado dos “nossos primeiros pais”, mediante a

graça. Ou seja, havia um imaginário em torno à vida monástica que a ligava a um retorno à

inocência original, além de ser considerado um lugar intermediário entre o céu e a terra (LE

GOFF; SCHMITT, 2000, p. 26). Associando isso ao fato de que a maioria dos milagres narra

pecados de clérigos ou monges ligados a algum mosteiro e com uma prática de vida monacal

anterior ao pecado, verificamos que a inocência original, descrita no livro do Gênesis, é

retomada aqui nesse texto, também por essa referência explícita a um lugar cujo

desenvolvimento de uma prática piedosa, também em relação à Virgem, será apreciada por

Ela própria:

Esto es summum bonum, - servir a tal Señora

que bien sabe a sus siervos – acorrer a tal hora:

esta es buena tienda, - esta es buena pastora

que vale a todo el que – de corazón la ora.”

(estrofe 304).

Devemos ter em conta também que Berceo era um monge ligado a um mosteiro e

escrevia sua obra, entre outras coisas, para ser lida durante as peregrinações a fim de disputar

com outros mosteiros a visita e possíveis dividendos que lhes podiam dar os fiéis peregrinos.

Logo, pintar de maneira idealizada a vida nesses lugares era também, como costume da época,

uma forma de atrair os fiéis.

Assim, como signos dessa inocência original temos, nessa primeira parte da narrativa,

a descrição da devoção à Virgem, por um lado, e a descrição da vida monástica, por outro. Há

exceções, como no milagre X, na qual a devoção não aparece logo a princípio e que na

verdade é direcionada a outro santo, San Proyecto. Mas, em geral, os relatos guardam para

este momento inicial a descrição da devoção do pecador. O que importa é que a devoção

anunciada de antemão ou em outro momento será o elemento que garantirá a ação da Virgem

em favor do devoto.

2º Pecado, sentença e condenação

68

Verificamos também, nesses milagres analisados, uma segunda parte da narrativa, na

qual acontece a “queda e a condenação” do pecador, numa estrutura que remonta ao relato do

Antigo Testamento. Narra-se o pecado cometido pelo devoto: ligado à fornicação ou avareza,

aponta para a “perda da inocência” como no relato do Gênesis: conhecedor do bem e do mal,

o homem pode optar pelo mal, embora sua natureza penda para o bem, representado pela

devoção à Virgem, e embora este mal seja de origem externa, a tentação do diabo, como no

relato veterotestamentário. A queda acontece, não em vida, mas depois da morte (embora em

alguns casos, o fato de morrer já se configura como um castigo, como no milagre 2, analisado

no capítulo anterior), já em um lugar do Além, onde se dará, depois, o embate entre as forças

do bem e as forças do mal, pela posse da alma do defunto devoto.

Voltando ao milagre XI, na estrofe 273 conta-se que o lavrador morreu e foi “de los

diablos” “en soga cautivado”. Narra, também, os suplícios destinados à alma do lavrador. Na

estrofe 274, os anjos entram em cena e sentem pena da alma do pecador, que é torturada num

lugar que remete ao Inferno. Na estrofe seguinte, há uma clara disputa entre anjos e diabos no

sentido de reivindicar a alma do lavrador. No entanto, por mais que argumentassem os anjos,

“la alma por sus pecados – no salía de la prisión”. Com isso, aponta-se para a lógica da

condenação: ao pecado está destinado o castigo. A evocação implícita dessa lógica remete à

sentença de Deus a Adão e Eva, após cometerem o pecado no Éden. Os três passos do

processo de queda e condenação são repetidos: o pecado cometido, a sentença de Deus (

evocação da lógica da condenação) e a expulsão do Paraíso (morte e ida ao Inferno), selando a

“queda” do pecador. No lugar do Além, onde atuam esses personagens, é que se desenvolve a

trama que levaria a condenação definitiva do pecador, mas que acaba vertendo para outro

lado.

3ª Graça e salvação

Entramos, pois, na última parte do milagre e que marca uma virada na lógica que

vinha sendo narrada, ao mesmo tempo em que modifica a própria lógica rígida que se verifica

em muitas narrativas exemplares medievais, como vimos no capítulo anterior. Aqui, a ação da

Virgem, mesmo que mediada por outros atores, realizada no espaço do Além, define os rumos

da narrativa e marca: a) a inversão quanto à narrativa do Gênesis, segundo a lógica tipológica

que orientou Berceo, resumida na frase de São Bernardo: es cierto que el hombre cayó por la

mujer. Pero también poco podrá levantarse sino por una mujer; b) a centralidade da figura da

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Virgem Maria nessa interpretação tipológica e na História da salvação, com ênfase em um

plano individual e cotidiano, aproximando-a dos peregrinos aos quais era destinada a obra de

Berceo; c) as modificações já apontadas quanto à estrutura da narrativa exemplar e da própria

sociedade em um processo de assimilação de novas mentalidades e teologias.

Tomando a sequência narrativa do milagre XII, o prior já morto narra como passou da

morte à vida por intervenção de Maria:

Sufrí mucho tormento, - pasé mucho mal día Todo el mal que he pasado – contar no te podría, Mas hubo de pasar – por ahí Santa María Tuvo pesar y duelo – del mal que yo sufría Tomóme por la mano, - y llevóme consigo A un lugar me llevó – que es templado y abrigo, Sacóme del apremio – del mortal enemigo Y me puso en lugar – do vivo sin peligro. (estrofes 296-297)

Nesse trecho narrado pelo clérigo verifica-se exatamente o papel de Maria nessa parte

do milagre. O devoto, já morto e levado ao Inferno como pena de seus pecados, vê sua

esperança esvair-se diante do sofrimento, às vezes pormenorizadamente descrito, a que é

submetido pelos diabos. Estes aparentam estar do lado de uma lei e uma ordem que assim

estabelece que aconteça ao pecador. Se relacionamos com o relato do Gênesis, de fato, a

história terminaria aqui, pois o homem, por fim, é julgado por seu pecado, condenado e

“expulso” do Paraíso, cai e vai ao inferno. No entanto, como bem demonstra a estrofe 296, a

Virgem Maria aparece e sente pena de seu devoto. Ela o pega com carinho e o conduz a um

lugar descrito com as mesmas palavras utilizadas na introdução da obra: um lugar “templado

y abrigo”, ou seja, o Paraíso. O que garante a ação da Virgem, embora nesse milagre isto não

esteja evidenciado, é a devoção que o devoto tinha em vida pela Mãe de Cristo. Com isso,

confirma-se seu poder de intercessão e intervenção e se inverte a lógica do Gênesis: agora, a

Mulher é responsável por garantir ao pecador a misericórdia de Deus e a salvação do pecado.

O homem, agora, na individualidade de sua peregrinação terrestre, pode livrar-se “del mortal

enemigo” através desta aliada importante. Ao mesmo tempo, a Virgem ganha, diante de

outros santos (e isso é importante dizer, pensando no fato de existirem mosteiros dedicados a

vários santos, em disputa pelos peregrinos), uma autoridade que a eleva nessa hierarquia

celeste e subordina os outros santos.

70

Portanto, nos milagres abordados e analisados, se pensamos desde a ótica que se

propôs neste capítulo, e que encontra sustentação nos estudos de Gerli (1985), a Virgem

Maria adquire as características de Nova Eva, conforme a teologia desenvolvida desde os

Padres da Igreja: numa visão tipológica da história, Maria é a personagem que repete a

primeira mulher, Eva, mas de maneira invertida: se por aquela o homem conheceu a morte,

por esta, superada a morte através da encarnação de Deus, o ser humano tem a possibilidade

de alcançar à salvação. O que garante essa salvação é estar subordinado à Virgem Maria

através de uma devoção piedosa: nesses casos, Maria intervém em favor de seus devotos para

anular a “lei antiga” segundo a qual ele estaria condenado por seus pecados e que encontra

origem nas palavras de Deus proferidas aos primeiros seres humanos no Éden. Agora, nessa

nova lei, nessa nova lógica, a lógica da graça, instaurada no Novo Testamento, a Mulher é

responsável por mover o coração de Deus e fazê-lo anular a sentença antiga, concedendo ao

devoto a salvação. Em nível cotidiano e familiar, se remete a um dos dogmas mais

importantes da história do cristianismo, o que mostra que os intuitos de Berceo lograram

alcançar êxito.

Além disso, como vimos defendendo, a atitude de Maria em intervir para modificar

uma história já dada e definida, só é possível nessas narrativas, pela introdução de um outro

espaço, o espaço do Além e seus lugares específicos, onde atuam diversos personagens,

sempre no sentido de contribuir para a exaltação da Virgem. Esses lugares, que no

Cristianismo, desde o século XII, se dividem claramente em Paraíso, Inferno e Purgatório,

participam dessa trama tipológica, pois existem em função da lei antiga e ao mesmo tempo da

lei nova, a da graça, na qual o fiel, sendo fiel, sempre terá uma possibilidade de fazer

penitência do seu pecado e se salvar. Na origem do próprio Purgatório, enquanto um terceiro

lugar do além, subjazem essas ideias mais tolerantes, uma vez que modificam a estrutura do

Além, como espelho da própria sociedade que modifica suas mentalidades.

71

CONCLUSÃO

Ao propor a presente interpretação aos Milagros de Nuestra Señora de Berceo,

preocupou-nos a clareza da exposição no que concerne ao tema por vezes difícil de abordar: o

uso que se faz, do ponto de vista literário, de uma construção do imaginário social, tal qual a

construção das imagens e dos lugares referentes ao “outro mundo”, na estruturação da obra

literária. Em se tratando de um texto do século XIII, essa tarefa se reveste de uma

responsabilidade ainda maior, pois há o risco de se cair em comentários e interpretações

anacrônicas, mais próximas às nossas crenças e nosso imaginário do que daqueles a quem a

obra foi dirigida.

Tendo em conta esses aspectos, nossa análise partiu de uma reconstrução do período

histórico no qual estava situado Berceo e seu entorno, o século XIII e descreveu suas

principais características. Verificamos que este século foi marcado pelas transformações que

se iniciaram desde o final do século XI, na Europa, e que se constituíram num marco histórico

importante, o que obrigou a adaptação de toda a mentalidade da sociedade às suas novas

estruturas econômicas e políticas. Assim, a Igreja teve de adaptar-se e tornar-se mais tolerante

no que diz respeito à sua prática penitencial, como nos mostrou Le Goff (1980). Também foi

nesse período entre os séculos XII e XIII que se deu o surgimento oficial de um terceiro lugar

do Além, o Purgatório, lugar intermediário entre o Céu e o Inferno, que acolheu uma espécie

de demanda social por transformações na mentalidade para fazer frente ao anterior estado

“rústico” do pensamento europeu, sempre definido por uma lógica binária (LE GOFF, 1993a).

As novas condições históricas exigiam uma outra mentalidade e, ao se transformar o espaço

deste mundo (surgimento das cidades, desenvolvimento do comércio) transformou-se também

o espaço do Além, de esquema binário à esquema ternário.

A presença da Virgem Maria, cujo auge da devoção se deu também neste período,

como vimos, marca uma diferença na narrativa exemplar de Berceo, se a relacionamos com

outras narrativas similares da Idade Média. Se o exemplum de O Conde Lucanor, que vimos,

nos mostrou que ao pecador está reservada a condenação, embora incorporada a noção de

intenção no julgamento do pecado, os exemplos de Berceo nos conduzem a uma lógica que

não se encerra na condenação do pecador: neste momento, introduzido o mundo do Além, a

Virgem Maria intervém e livra o fiel, seu devoto, da condenação, dando-lhe mais uma chance

de voltar à vida e expiar seus pecados, antes de morrer definitivamente. Esta lógica tolerante

associamos às transformações citadas referentes à condição histórica do homem europeu no

72

século XII, especialmente no que diz respeito à demanda por justificação de alguns grupos

profissionais. Estes, ao pressionarem a Igreja, obrigaram-na a rever sua prática penitencial e

incluí-los no grupo dos que podem, com sua profissão, salvar-se e alcançar o Paraíso: o novo

olhar penitencial, voltado ao pecador e suas intenções, e não sobre o pecado cometido, será

verificado em Milagros de Nuestra Señora, na atitude da Virgem de não olhar mais do que a

devoção do devoto, permitindo-lhe ter outra chance de viver e fazer penitência.

A atitude piedosa de Maria encontra justificativa nas ideias desenvolvidas, sobretudo

por São Bernardo, segundo as quais ela é o canal da graça de Deus e a intercessora ideal entre

os homens e Deus, conduzindo aqueles à graça redentora. Além disso, a lógica que jubjaz a

ideia de “lugar intermediário” também está presente na atitude de Maria que, diante de um

julgamento que levaria ao Céu ou ao Inferno, permite ao devoto que volte à vida, numa

espécie de “purgatório” na terra, onde poderá fazer penitência e morrer na santidade.

Como vimos, no caso dos milagres analisados neste trabalho, a história não termina na

condenação do homem, mas continua, no Além, através do embate pela alma do falecido, que

terminará com a vitória da Virgem sobre as forças do mal, mediante a graça concedida por

Ela. Baseando-nos na técnica tipológica de interpretação figural, que caracterizou o

pensamento medieval, percebemos que, estruturalmente, nas narrativas de Berceo, atualiza-se

inversamente o mito do Gênesis e o ser humano, caído em pecado, tem acesso novamente à

graça redentora de Deus, por meio de Maria. O espaço do Além e seus personagens, a Virgem

em especial, tornam-se centrais nessa interpretação tipológica dos milagres, pois é este espaço

que garante a atuação da Virgem em favor de seu devoto e onde acontece a luta entre as

forças celestiais e as forças do mal, cujo fim será a salvação do devoto e a exaltação da

Virgem como Mediadora entre Deus e os homens, através da qual eles têm acesso à Graça.

Ao relacionar os 6 milagres selecionados para este trabalho com este esquema

estrutural de fundo tipológico, não queremos, com isso, negar as especificidades de cada

narrativa, sobretudo se pensamos nos objetivos que teriam direcionado Berceo e na riqueza

que os detalhes acrescentados por ele às narrativas conferem ao conjunto da obra. Apenas

queremos apontar para o que os une, do ponto de vista estrutural, a fim de entender melhor o

uso que se fazia da alegoria hermenêutica nas construções narrativas da época. Porém, é

importante citar, para concluir este trabalho, algumas características específicas que nos

remetem ao seu tempo e ao seu entorno imediato.

73

Se reparamos no milagre XII, outrora evocado, e cuja estrutura narrativa inverte a

ordem cronológica dos acontecimentos - o prior, já morto e salvo por Maria, volta para narrar

a um monge de seu mosteiro, o que lhe passou no Além -, o pecado que causara a condenação

do monge fora dizer coisas vedadas pela regra e não levar uma vida “demasiado ordenada”,

apesar de cumprir suas obrigações de monge. Também ele é julgado por causa disso: morre e

cai em “un exílio, un áspero lugar”, como consequência de seu pecado, baseando-se na

“sentença de Deus”.

Esse milagre, em relação aos outros onde, no Além, se dá a “trama narrativa” que

estamos analisando, destoa no que diz respeito ao pecado cometido pelo pecador: quase todos

remetem a desvios de clérigos, avarentos e fornicadores. Mesmo quando o personagem não é

clérigo, os mesmos pecados (ou correlatos) são relatados e se descreve suas consequências.

Tal fato, a prevalência de clérigos ou personagens fornicadores ou avaros nos remete a um

clima social da época, marcado por escândalos na Igreja, envolvendo seus membros.

Acusavam-se os membros do clero principalmente desses dois pecados específicos. Tanto

que, como dissemos, o IV Concílio de Latrão (1215), o “maior dos concílios ecumênicos

medievais” (SILVA, 1999), determinou, entre outras coisas, para conter os escândalos que

atingiam diretamente a Igreja, a observância do celibato com obrigatoriedade e a proibição de

que os clérigos se envolvessem em assuntos seculares, para não desviá-los de seu “propósito

primordial”: a pregação da Palavra (SILVA, op. cit., p. 100).

É, pois, compreensível que Berceo tenha incluído em sua obra esses milagres, tirados

de fonte latina, que evidenciavam o clérigo em posição de pecador. Ao mesmo tempo, como

não se seguia uma lógica rígida e fechada, podemos dizer que essas narrações se inserem na

continuidade (ainda que não cronológica) do espírito do IV Concílio de Latrão, cujo objetivo

era renovar as estruturas eclesiais, fortalecendo o poder da Cúria Romana diante do poder

temporal, e no qual a renovação do clero, ou seu “perdão”, era essencial para manter a

autoridade moral da instituição.

Além disso, em relação aos milagres analisados no capítulo III, percebemos que nem

sempre é a Virgem quem toma a atitude de socorrer seu devoto. Por vezes, é graças à

intervenção de algum santo ou anjo que lhe chega a notícia sobre o sofrimento de seu devoto.

Ela, prontamente, toma partido do devoto, como no milagre 2, onde diz aos diabos:

Contra esta alma, locos, - no tenéis nada.

74

Mientras vivió en su cuerpo – me estuvo encomendada

sufriría ahora daño – por ir desanmparada

(estrofe 89).

Em outros milagres, também, a atitude da Virgem não é diretamente dar à alma do

devoto a salvação eterna, mas, na verdade, permitir que ele retorne à vida e se converta,

podendo, depois, ao morrer definitivamente, alcançar a salvação. No entanto, não o faz por si

própria, mas depois de obter autorização de Deus Pai ou do Filho. Às vezes, inclusive, estes

mudam de posição em relação ao pecador graças à Virgem, como vemos no milagre XII,

estrofes 171-172:

Madre – díjole el Hijo - - no sería derechura

que el alma de tal hombre – entrara en tal holgura: sería

menoscabada – toda la Escritura;

pero por vuestro ruego – hallaremos mesura

Quiero hacer todo eso – sólo por vuestro amor: vuelva

aún a su cuerpo, del que fue morador,

haga su penitencia – como hace el pecador,

y así podrá salvarse – de manera mejor.”

Em relação a outros seres celestiais, percebe-se no milagre VII, El monge y San

Pedro, que o personagem de São Pedro não foi capaz de mover o coração de Deus como

Maria, para livrar a alma do devoto da condenação:

Dijole Jesucristo – “Pedro mi muy amado,

bien sabes tú que dijo – David en su dictado

que solo habría de holgar – en el monte sagrado

el que entró sin mancilla – y quito su pecado.

Éste por quien tú ruegas – doblada la rodilla, ni obraba

con justicia – ni vivió sin mancilla

no honra a su convento – esta tal gentecilla

¿En qué merecer pudo – sentarse en tal silla?

(estrofes 165-166)

75

Com isso, São Pedro aparece como alguém subordinado à Virgem e dependente do

socorro desta, pois somente ao recorrer “a la Gloriosa” e esta recorrer a Deus, é que pôde ver

seu pedido atendido, o que muito lhe felicita, pois vê “su negocio muy bien enderezado”

(estrofe 173). Ou seja, apesar de subordinado, tal fato é normal nesse espaço onde se dá essa

relação. Atitude parecida encontramos no milagre X, Los dos Hermanos, e nos milagres já

citados neste trabalho.

No milagre VIII, El Romero de Santiago, há, porém, uma diferença: o santo, cuja rota

de peregrinação era a mais conhecida e famosa e ele próprio gozava de uma devoção talvez

somente comparada à Virgem Maria, ao invés de subordinar-se diretamente à Maria, somente

recorrendo a ela depois de frustradas outras tentativas, recorre imediatamente à Ela, não

passando por nenhum intermediário, como se tivesse uma consciência maior a respeito da

atitude a tomar. Assim ele se dirige aos diabos que aprisionam a alma de seu romeiro:

Mucho me encoleriza – vuestra mala partida

y mirar por vosotros – mi forma escarnecida

Matasteis mi Romero – con mentira sabida

y ahora veo además – su alma mal traída

Os emplazo ante el juicio – de la Virgo María

ante Ella me clamo – en esta pleitesía

yo de otra manera – no os abandonaría

pues veo que traéis – muy gran alevosía.”

(estrofes 204-205).

Atentando-nos ao fato, já remetido, de que Berceo dialogava em sua obra justamente

com os peregrinos devotos de Santiago e desses santos que aparecem em seus milagres,

podemos inferir que tal subordinação de alguns santos à Virgem seja algo muito mais

próximo a este mundo do que àquele, do Além. Deveria interessar a Berceo subordinar à

Maria a devoção aos outros santos, o que traria ao seu mosteiro, onde havia uma devoção

especial à Mãe de Cristo, uma visibilidade maior. Ao mesmo tempo, sabendo não poder

competir com Santiago, se contêm um pouco mais ao afirmar a subordinação de Santiago à

Virgem, fazendo transparecer muito menos a superioridade de Maria em relação ao Apóstolo

do que a sabedoria deste em recorrer à pessoa certa para livrar seu devoto da condenação.

76

Por fim, concluindo este trabalho, fazemos nossas as palavras de Gerli (1985), que

melhor resumem os objetivos a que se propôs Berceo e o imenso êxito com o qual conseguiu

unir seus objetivos didáticos com os interesses que estavam por trás de sua obra:

Estas alusiones oblicuas [al contexto en la obra], juntamente con la documentación del culto a la Virgen en San Millán, aludida por Dutton, nos permite situar los Milagros en un contexto histórico y en un clima intelectual específicos. Por medio de ellas comprendemos mejor el origen del marianismo en la obra de Berceo, y por su carácter local y público penetramos en el ambiente en que fue concebida: los Milagros surgen de una compleja realidad social e ideológica fundiendo la piedad y la tradición marianas con la necesidad práctica para crear una de las obras más interesantes y reveladoras de la vida española en el siglo XIII (p. 24).

77

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82

ANEXOS

Anexo I – El Conde Lucanor – Exemplo XL

Causas por las que perdió su alma un general de Carcasona

Hablaba el Conde Lucanor con Patronio y le dijo:

-Patronio, como sé que nadie puede evitar la muerte, querría yo, antes de morir, haber podido

hacer alguna obra muy útil para la salvación de mi alma que deje memoria de mí y que todos

me recuerden por ella. Por eso os ruego que me aconsejéis la mejor manera de lograrlo.

-Señor conde -dijo Patronio-, aunque las buenas obras siempre nos ayudan para conseguir la

salvación, no importa cómo o a quién las hagamos. Para que vos sepáis por qué y con qué

intención deben hacerse, me gustaría mucho que supierais lo que sucedió a un general de

Carcasona.

El conde le pidió que se lo contara.

-Señor conde -dijo Patronio-, un general de Carcasona se puso muy enfermo y, viéndose

próximo a morir, mandó llamar al prior de los dominicos y al guardián de los franciscanos,

para tratar con ellos los asuntos de su alma. Les pidió que después de su muerte cumplieran

cuantas mandas les había dejado, para conseguir su salvación. Así lo hicieron ellos, pues el

general les había legado muchos bienes en el testamento. Los dos frailes estaban muy

contentos y confiados en su salvación, ya que todo se había hecho pronto y bien.

»Sucedió que, pasados unos días, llegó a la ciudad una mujer endemoniada, que decía cosas

maravillosas y portentosas, porque el ddiablo, que por ella hablaba, sabe cuanto se dice y se

hace.

»Los frailes que habían atendido a la salvación del general, al enterarse de lo que decía

aquella mujer, pensaron que sería conveniente hablar con ella para que les diera noticias sobre

el alma del difunto. Así lo hicieron. Cuando entraron en la casa de la endemoniada, antes de

que ellos le preguntaran, les dijo que bien sabía los motivos de su venida, pues hacía muy

poco que había salido del infierno y allí quedaba el alma del general.

»Cuando los frailes la oyeron decir esto, le contestaron que mentía, puesto que era público

cómo había tenido muy santa muerte, auxiliado con los sacramentos de la Santa Iglesia, y que,

como la religión cristiana es la única verdadera, era imposible que se hubiera condenado.

»Les replicó ella que ciertamente la fe y la religión cristianas son verdaderas, y que si él

hubiera hecho, al morir, lo que debe hacer un auténtico cristiano, habría salvado su alma.

Siguió la endemoniada diciendo que él no había obrado como verdadero y buen cristiano,

pues, aunque había mandado rezar oraciones y dar limosnas por su alma, había pedido que lo

hicieran después de su muerte, siendo su intención que lo hiciesen sólo una vez muerto, sin

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importarle su alma mientras vivía; por eso mandó que lo hicieran después de muerto, cuando

ya sus riquezas no le servían para nada ni se las podía llevar consigo. Igualmente les dijo que

el general lo había dispuesto todo así para que quedar a fama eterna de lo que había hecho,

sólo por alcanzar vgrfhyanagloria de las gentes.

»Por ello, aunque el general mandó hacer buenas obras, no obró bien, ya que Dios no premia

solamente las buenas acciones, sino las que están bien hechas, que son hijas de una recta

intención. Como la intención del general no fue buena, porque no nacía de su corazón, no

consiguió de Dios el galardón eterno que esperaba.

»A vos, señor conde, pues me pedís un consejo, os digo que, en mi opinión, hagáis en vida el

bien que deseéis hacer. Sabed, además, que, para conseguir ante Dios galardón por vuestras

buenas obras, debéis reparar primero el daño que hayáis podido hacer: de poco vale robar el

carnero y dar luego las patas a los pobres por el amor de Dios. De muy poco os valdría haber

robado y hurtado a todos para, luego, dar limosna de lo que no es vuestro. Sabed también que,

cuando la limosna es buena, concurren en ella estos cinco requisitos: primero, que se entregue

algo cuya propiedad sea legítima; segundo, que se dé cuando uno está haciendo, y

arrepentido, verdadera penitencia; tercero, que el hombre sienta desprenderse de lo que da,

bien por la cantidad o por la calidad de la donación; cuarto, que se haga en vida; y quinto, que

se haga pensando sólo en Dios y no por vanagloria o vanidad. Si se dan estas cinco

condiciones, todas las limosnas y buenas obras serán perfectas y el que así las haga recibirá

generoso galardón de Dios. Pero si vos, o cualquier otro, por algún motivo no puede hacerlas

de ese modo, no por eso debe dejar de hacerlas, pensando que, al no reunir todos los

requisitos, no le servirán de nada, pues eso sería una gran equivocación y tentaríais a Dios al

pensar así, ya que, de cualquier forma que se haga el bien, siempre será un bien. Sabed

también que las buenas obras ayudan al hombre a abandonar el pecado y a hacer penitencia, a

la vez que nos proporcionan salud corporal, riquezas, honras y buena fama ante las gentes.

Por ello os digo que toda buena obra que haga el hombre será siempre muy provechosa y útil,

pero será mucho más provechosa para la salvación si se hace reuniendo las cinco condiciones

que os he señalado.

El conde vio que era verdad lo que Patronio le decía, decidió obrar siempre así y pidió a Dios

que le ayudase para seguir los sabios consejos de Patronio.

Y viendo don Juan que este cuento era muy bueno, lo mandó escribir en este libro y compuso

estos versos que dicen así:

Haz siempre el bien, mas con recta intención, si deseas el cielo, si buscas salvación.

FIN.

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Anexo 2 – Milagros de Nuestra Señora (versão de Daniel Devoto): relatos utilizados neste

trabalho.

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