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1 1 As origens do Trabalhismo Brasileiro José Augusto Ribeiro AS ORIGENS DO TRABALHISMO BRASILEIRO

AS ORIGENS DO TRABALHISMO BRASILEIRO...Sem a preparação do ser humano, não há desenvolvimento. A violência é fruto da falta de educação. Leonel Brizola Partido Democrático

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11 1As origens do Trabalhismo Brasileiro

José Augusto Ribeiro

AS ORIGENS DO TRABALHISMO BRASILEIRO

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21 As origens do Trabalhismo Brasileiro

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“Todas as crianças deveriam ter direito à escola, mas para aprender devem estar bem nutridas. Sem a preparação do ser humano, não há desenvolvimento.

A violência é fruto da falta de educação. Leonel Brizola

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Partido Democrático Trabalhista - PDT

Brasília - DF2012

AS ORIGENS DO TRABALHISMO

BRASILEIRO

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Partido Democrático Trabalhista - PDT

Sede Nacional Brasília

SAFS, Quadra 02, Lote 02/03

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Tel: (61) 3224-9139 / 3224-0791

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Sede Nacional Rio de Janeiro

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Autoria: José Augusto Ribeiro

Apoio Editorial e Revisão: José Augusto Ribeiro, Célia Romeiro e André Menegotto

Edição e Artes Gráficas: Michele França

Todos os direitos reservados.

José Augusto Ribeiro

AS ORIGENS DO TRABALHISMO BRASILEIRO

NOTA: A representação dos artigos nessa edição são de inteira responsabilidade do autor.

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Apresentação Este trabalho foi inspirado pessoalmente por Leonel Brizola, ao sugerir

ao autor a elaboração do livro que viria a ser publicado em três volumes, em 2001, com o título A Era Vargas. A sugestão original de Brizola era a de uma espécie de manual do trabalhismo, o que o autor não conseguiu fazer, por não ter qualquer experiência de professor. A conselho de Neiva Moreira, então 1º. Vice-Presidente nacional do PDT, o autor passou a fazer o que achava saber:

- Você é jornalista – disse Neiva. – Faça reportagem.

A sugestão de Brizola e o conselho de Neiva resultaram na longa série de reportagens que seria A Era Vargas, livro hoje completamente esgotado. Este trabalho retoma alguns dos temas desse livro, e começa, aliás, por uma afirmação de Brizola ao autor, na primeira conversa que tiveram sobre o projeto do livro.

Brizola não quis dar qualquer entrevista formal para o livro. E, ao receber o texto provisório dos primeiros capítulos, decidiu que não os leria nem comentaria. “Qualquer comentário meu – disse ao autor – será uma invasão da tua liberdade.” Frase de extraordinária delicadeza, de que alguns adversários não imaginariam Brizola capaz. Mas ele era capaz - e contumaz - de delicadezas ainda maiores. Por extensão, qualquer entrevista dele seria uma interferência, embora oblíqua, nessa mesma liberdade.

Nessa primeira e longa conversa, ele fez questão de insistir em sua afirmação de que o trabalhismo brasileiro não era uma cópia do trabalhismo britânico, era originalmente e visceralmente brasileiro. Ele próprio era testemunha disso e dos acontecimentos no Brasil, na época em que o próprio Getúlio Vargas desmontava a ditadura do Estado Novo1:

Ele [Brizola], jovem estudante, era naturalmente contra a ditadura. Todos eram – até Getúlio Vargas, o Presidente da República e chefe do Estado Novo.

Ao surgirem os novos partidos, alguns sabem logo onde situar-se, de acordo

_______________________________________________________

1 V. O encontro com o PTB e com Getúlio Vargas, do autor, na serie “Cadernos Trabalhistas” do MAPI, Movimento

dos Aposentados, Pensionistas e Inativos, do PDT, dirigido por Maria José Latgé.José Augusto Ribeiro

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ou com suas convicções ou com suas conveniências – e até, em alguns casos, de acordo com ambas.

Não os jovens. Especialmente um como Leonel Brizola, que chegara adolescente a Porto Alegre, movido pela obsessão de estudar, que fora engraxate e carregador de malas na estação da estrada de ferro e administrador da balança de uma farmácia - e mais tarde diria que por pouco escapara de tornar-se um pequeno marginal, o que explicaria outra de suas obsessões: abrir escolas, criar oportunidades para crianças, adolescentes e jovens sem horizontes, como ele era ao partir para a grande cidade.

Não eram apenas jovens inexperientes politicamente, mas jovens profundamente vividos, como Leonel Brizola, que nesse momento procuravam um caminho.

O jovem Leonel Brizola não precisou procurar muito. Dos partidos que surgiam, ele viu que não pensava como eles. Moço, estudante, independente, vivido e curtido na adversidade, opunha-se ao Estado Novo, mas não se sentia identificado com os partidos que surgiam, de um lado os partidos conservadores, do outro o comunista, com seus dogmas e fetiches.

Do lado conservador, situavam-se os partidos das elites, sobretudo a UDN oposicionista e o PSD governista.

Dos conservadores, Brizola diria:

- Eram todos todos a mesma coisa. O pessoal dos punhos de renda.

Eram todos a favor de uma situação, ou melhor, de um modelo econômico que jovens como ele queriam mudar.

No espectro de escolhas que se oferecia aos jovens de 1945, destacava-se o Partido Comunista, que lutava pelos pobres, pelos trabalhadores – e estava associado às lutas contra a barbárie nazi-fascista, desde a Guerra Civil Espanhola, a partir de 1936, e especialmente na Segunda Guerra Mundial, com a resistência na França, dos partisans na Itália, os guerrilheiros de Tito na Iugoslávia e a oposição de todos os povos da União Soviética à invasão de sua terra desde junho de 1941.

Mas o Partido Comunista era uma escolha intelectual, doutrinária, sectária Leonel Brizola

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e excludente: em 1945, era muito mais uma escolha para intelectuais em desconforto de consciência que uma escolha para jovens que tivessem, literalmente, como no verso dessa época de Carlos Drummond de Andrade, “duas mãos e o sentimento do mundo”.

- Para tudo - diria Brizola já perto dos 80 anos - eles tinham resposta pronta. Qualquer que fosse a questão, democracia, petróleo, siderurgia, reforma agrária, eles puxavam um polígrafo com a resposta. Não havia o que discutir.

Polígrafo era o nome que se dava, em algumas escolas de ensino superior, a textos mimeografados, isto é impressos a partir de matrizes datilografadas ou mesmo manuscritas, em folhas ou lâminas de um papel especial que deixava os caracteres em relevo, permitindo sua reprodução em equipamentos chamados pantográficos ou mimeógrafos.

Por ser pequeno, pouco maior que uma máquina comum de escrever, e, assim, facilmente camuflável, o mimeógrafo fazia parte do enxoval de muitas organizações e de muitos militantes clandestinos, inclusive comunistas. Servia sobretudo para imprimir manifestos e documentos políticos, e até pequenos jornais, mas também para produzir os polígrafos que davam resposta pronta a qualquer dúvida ou indagação do jovem Leonel Brizola.

Nessa gritaria de ofertas, Leonel Brizola e outros jovens estudantes foram atraídos por outro chamado, quase silencioso, de um grupo de trabalhadores, sindicalistas, que numa pequena sede no centro antigo de Porto Alegre formavam aquilo que viria a ser a seção local do Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB.

Brizola e seus companheiros de juventude andavam por Porto Alegre, em busca de um destino, e afinal cruzaram com uma passeata de homens maduros, modestamente vestidos, que exibiam cartazes igualmente modestos em defesa das leis trabalhistas do Presidente Vargas e da preservação de seu projeto nacionalista de desenvolvimento.

Seguindo a passeata, Leonel Brizola e seus companheiros estudantes chegaram aos altos de um sobrado tão modesto quanto a roupa e o rosto daqueles homens. Era a sede do PTB, o Partido Trabalhista Brasileiro, que começava a ser organizado por um grupo de líderes sindicais. Aparentemente não havia pantógrafos e a discussão era livre.

Leonel Brizola

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Em agosto de 1945, Leonel Brizola estava filiado ao PTB - ao qual pertenceria até sua extinção, em 1965, junto com todos os demais partidos, pelo segundo Ato Institucional do ciclo militar iniciado em 1964.

Para o autor, essas revelações de Brizola eram como que a pista para um perdigueiro – o que um repórter não deixa de ser (em geral, sem a mesma competência). Foi atrás dessa pista e de outras – e teve sorte. Como Brizola não queria dar qualquer entrevista ou fazer qualquer comentário, foi preciso acompanhar seus frequentes pronunciamentos. Cada vez que Brizola presidia alguma reunião do PDT ou da Fundação Alberto Pasqualini, para discutir questões do futuro ou do presente, o passado enfiava-se em sua exposição e lá vinham a lembrança e o testemunho de acontecimentos do passado – lembrança e testemunho que balizaram as muitas pesquisas a que se entregou o autor.

Brizola – deve o autor dizer com muito orgulho – gostou do resultado, vendo nele a leitura, “do nosso ponto de vista”, dos acontecimentos que percorrem A Era Vargas. Nem o tamanho do livro, três volumes, assustou-o. Antes desse livro, o monumental “O Ciclo de Vargas”, de Hélio Silva, saira em 16 volumes.

Uma noite, no Rio, Brizola recepcionou, naturalmente numa boa churrascaria, uma grande delegação chinesa, presidida por um ministro ou vice-ministro do Comércio da China Popular, e convidou o autor para estar presente. Os chineses adoraram aquela abundância de carne, mas adoraram ainda mais as caipirinhas de todas as frutas imagináveis. No fim do jantar houve uma simpática troca de presentes – e o autor ganhou uma bela gravata vermelha de seda, com o desenho de furiosos dragões soltando fogo pelas ventas. O presente de Brizola ao ministro chefe da delegação foram os três volumes de A Era Vargas, acompanhados de uma sugestão:

- Vocês deviam publicar este livro na China. Vai ser muito útil.

Diante de um gesto assombroso como esse, de tanta ousadia e generosidade, o autor só pode acrescentar que pede licença para dedicar este trabalho à memória das duas pessoas que mais tiveram influência sobre ele e mais decisivamente atuaram para que ele viesse a existir – Leonel Brizola e Neiva Moreira.

Com muita saudade e muita emoção. Neiva Moreira

Sumário

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PARTE I

A questão social não era caso de polícia

1. Uma cópia do trabalhismo britânico? 14

2. A questão social existe, sim! 16

3. A Revolução de 1930 retoma as propostas

de José Bonifácio 23

4. Abolicionistas e republicanos 34

PARTE II

Avanços e recuos na Primeira República

1. A República não podia esperar 46

2. Da República à campanha de Getúlio 53

3. A plataforma da Aliança Liberal 60

4. São Paulo, o despertar das massas 74

Sumário

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PARTE III

As leis trabalhistaseram fascistas?

1. Da revolução ao governo 80

2. Por que um Ministério do Trabalho? 85

3. As primeiras leis trabalhistas 93

4. Um balanço da atuação do Ministério 101

PARTE IV

Uma herança de quase duzentos anos

1. O salário mínimo 107

2. O Estatuto da Lavoura Canavieira: reforma

agrária e sindicalização rural 109

3. A Justiça do Trabalho 120

4. A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT 125

5. De ontem para amanhã 132

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13As origens do Trabalhismo Brasileiro

PARTE I

A questão social não era caso de polícia

Uma cópia do trabalhismo britânico?

A questão social existe, sim!

A Revolução de 1930 retoma as propostas de José Bonifácio

Abolicionistas e republicanos

Leonel Brizola

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1413 As origens do Trabalhismo Brasileiro

1. Uma cópia do trabalhismo britânico? Por muito tempo ouvimos dizer que o trabalhismo brasileiro,

originalmente o do PTB, o Partido Trabalhista Brasileiro fundado em 1945 por inspiração de Getúlio Vargas, e depois o do PDT, fundado por Leonel Brizola em seguida à anistia e à reforma partidária de 1979, era uma cópia do trabalhismo britânico, que assumira o poder na Inglaterra em julho de 1945, vitorioso na primeira eleição geral naquele país depois da Segunda Guerra Mundial.

Não teria nada demais o PTB ter sido fundado em 1945 por inspiração do Partido Trabalhista britânico, que realizava uma obra notável de avanços sociais e econômicos, sob a liderança do Primeiro-Ministro Clement Attlee.

Acontece, porém, que o PTB brasileiro já existia desde maio, e Attlee só venceu as eleições na Inglaterra em julho de 1945. Até a convocação dessas eleições, o trabalhismo inglês, o Labour Party, era caudatário do governo de coalizão, o chamado governo nacional do ainda Primeiro-Ministro Winston Churchill, líder do majoritário Partido Conservador.

Depois de vencer as eleições de julho e tornar-se Primeiro-Ministro, mas sobretudo depois de pôr em prática suas propostas econômicas e sociais, Attlee tornou-se uma estrela com luz própria, deixando de ser um satélite de Churchill. Entre as medidas revolucionárias de seu governo estavam a nacionalização da energia elétrica, das minas de carvão e das ferrovias, e, no plano social, a criação do Serviço Nacional de Saúde, a socialização da medicina, que deu ao povo britânico um sistema de assistência médica de fazer inveja até hoje.

Um sistema de assistência médica gratuita que a própria Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, teve medo de extinguir, já na década de 1980, trinta e cinco anos depois. Esse fato foi revelado a um grupo de jornalistas brasileiros1 por Felipe Gonzáles, então Primeiro-Ministro da Espanha, em visita a São Paulo.

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1 Entre os quais o autor deste trabalho.Leonel Brizola

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15As origens do Trabalhismo Brasileiro

Felipe Gonzáles convivia com Thatcher nas reuniões da OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, e outras entidades européias e um dia resolveu partir para uma provocação:

- Você – disse ele a Thatcher – prometeu privatizar tudo e privatizou quase tudo. Mas por que não acabou com o Serviço Nacional de Saúde?

Felipe era simpático e insinuante, mesmo ao partir para uma provocação como essa, e Thatcher não se ofendeu. Ao contrário, foi simpática, no mínimo para fazer um agrado às convicções socialistas de Felipe. E respondeu:

- No dia em que tomei posse, pedi a meu Ministro da Saúde que em duas semanas me apresentasse um plano de privatização da saúde pública. Uma semana depois ele me procurou e alertou: vai ser um perigo acabar com o Serviço Nacional de Saúde, porque não temos nada para colocar no lugar dele. Resolvi manter o Serviço e recomendei que o ministro ficasse quieto. A oposição trabalhista é que não ia cobrar a privatização.

Com o tempo, a medicina privada foi avançando, protegida pelos ventos gerais do arrastão neoliberal e muito se perdeu da medicina socializada do governo trabalhista de 1945. Mas na década de 1980 nem a Dama de Ferro, Margaret Thatcher, teve a ousadia de acabar com ela.

Não seria desdouro, portanto, o trabalhismo brasileiro ter por inspiração o trabalhismo britânico. Aliás, não teria cabimento o PTB brasileiro ignorar a ação do governo trabalhista na Inglaterra. Mas

foi só em 1948, quando Getúlio Vargas teve de assumir pessoalmente a presidência nacional do PTB, em virtude de conflitos regionais dilacerantes, que ameaçavam a própria sobrevivência do partido, que o PTB interessou-se em ter mais informações sobre o trabalhismo britânico. A pedido de Getúlio, o Vice-Presidente nacional do PTB, Salgado Filho, solicitou ao diplomata brasileiro Pio Correia, então servindo na embaixada do Brasil em Londres, documentos e informações a respeito do governo e do Partido Trabalhista na Inglaterra.

A título de curiosidade, convém registrar que o diplomata Pio Correia, depois adversário do governo João Goulart e, como embaixador no Uruguai, encarregado de patrulhar e perseguir Jango e Leonel Brizola, tinha servido no Gabinete Militar do primeiro governo Vargas. Por isso, empenhou-se em atender pronta e integralmente ao pedido de informações de Salgado Filho.

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1615 As origens do Trabalhismo Brasileiro

Além do fato de o PTB ter sido fundado meses antes da instauração do governo Attlee na Inglaterra, havia outros antecedentes a demonstrar a improcedência da suposta subordinação do trabalhismo brasileiro ao trabalhismo britânico.

O PTB brasileiro, fundado em 1945, era herdeiro direto da Revolução de 1930 e do primeiro governo do Presidente Getúlio Vargas, sobretudo de seus avanços sociais, econômicos e políticos – como a legislação trabalhista, o voto secreto, o voto feminino, a multiplicação da escola pública, os projetos de Volta Redonda (siderurgia), Paulo Afonso (energia hidrelétrica) e da indústria do petróleo .

A Revolução de 1930 e o primeiro governo Vargas eram, por sua vez, herdeiros das propostas e realizações do Partido Republicano Riograndense, o PRR, um partido não só republicano como como apaixonadamente abolicionista, fundado em 1882. Se o trabalhismo era herdeiro do PRR, este, de novo, era anterior ao Labour Party britânico, que só seria fundado na década de 1890.

Assim como a Revolução de 1930, o PRR não nasceu do nada. Nasceu da efervescência das idéias republicanas no Brasil, na segunda metade do século 19, e, sobretudo, dos impulsos da campanha abolicionista nesse período. A campanha republicana e a campanha abolicionista eram alimentadas, ideologicamente, pelo fermento do positivismo e das outras correntes filosóficas e científicas que renovavam o conhecimento humano e desafiavam o pensamento conservador em toda a Europa e, também, no Novo Mundo.

Esse encadeamento de heranças será melhor compreendido se adotarmos como ponto de partida nesta discussão um documento fundamental do que hoje podemos chamar a Era Vargas: a plataforma da Aliança Liberal, ou seja, da candidatura de Getúlio Vargas à Presidência da República nas eleições de 1º. de março de 1930, plataforma lida em comício na Esplanada do Castelo, no Rio, na noite de 2 de janeiro desse ano.

2. A questão social existe, sim!

Esse encadeamento de h Na Plataforma da Aliança Liberal, Getúlio afirmara, contestando a posição do então Presidente Washington Luís, que a questão social existia, sim, e teria de ser enfrentada com urgência e coragem:

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17As origens do Trabalhismo Brasileiro

- Não se pode negar – disse Getúlio - a existência da questão social no Brasil, como um dos problemas que terão de ser encarados com seriedade pelos poderes públicos. O pouco que possuímos em matéria de legislação social não é aplicado ou só o é em parte mínima, esporadicamente, apesar dos compromissos que assumimos...

Por uma razão, Getúlio, na plataforma, tinha de afirmar essa verdade óbvia, da existência da questão social no Brasil, existência não só naquele momento, mas desde sempre – pelo menos desde o Brasil-Colônia, com a escravização, primeiro, das populações indígenas (e com o genocídio destas) e depois com a escravização do negro capturado na África e de seus descendentes. Nesse regime escravagista é claro que não havia leis de proteção à minoria de trabalhadores livres e assalariados (e muito menos aos escravos).

A razão que exigia de Getúlio reafirmar a verdade óbvia da existência de uma questão social era que o Presidente Washington Luís negava a existência dessa questão e chegara a afirmar, por outras palavras, que ela era apenas caso de polícia.

Washington Luís não dissera isso literalmente, mas dissera a mesma coisa, de outra maneira, em sua plataforma de governo, em 1926, quatro anos antes.

A eleição anterior, de Arthur Bernardes, fora precedida e seguida de violentos atos de contestação, como a revolta de 5 de julho de 1922 no Forte de Copacabana, no Rio, a revolução de 5 de julho de 1924, em São Paulo, e a Coluna Prestes, de 1924 a 1926. Com exceção de poucos meses, Arthur Bernardes atravessara seus quatro anos de mandato presidencial com o país em estado de sítio, com censura feroz à imprensa e centenas, talvez milhares de presos políticos.

Depois desses quatro anos de tensão e violência, Washington Luís aparecia (e parecia) simpático, bonachão, com fama de grande realizador, adquirida em seu período de governador de São Paulo: uma verdadeira promessa de paz e progresso. Esperava-se até que ele concedesse anistia aos civis e militares processados e condenados pelas revoltas iniciadas em 1922, ainda no governo de Epitácio Pessoa, antes da posse de Bernardes.

Já, porém, em sua plataforma de candidato à Presidência, apresentada em fins de 1925 (a eleição seria em março de 1926), Washington Luís começara a decepcionar aqueles que depositavam esperanças em sua presidência. Seus amigos e especialmente os inimigos de Getúlio Vargas tentaram depois desmentir,

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1817 As origens do Trabalhismo Brasileiro

e tentam ainda hoje, que Washington Luís tivesse considerado a questão social simples caso de polícia.

A verdade, preservada em documentos, livros e jornais, é que nessa plataforma de 1925 ele dissera, com todas as letras:

- ... entre nós, a questão operária é uma questão que interessa mais à ordem pública que à ordem social...2

Era o mesmo que dizer que a questão social era caso de polícia. Um jornalista europeu chamado Wanderwelt, que estava no Brasil, leu essa frase, espantou-se com ela e traduziu-a desta forma: “a questão social é caso de polícia”. Pior, não foi desmentido nem por Washington Luís nem por seus amigos - nem pelos fatos subsequentes.

Washington Luís, diante da reação veemente a essa espantosa declaração, prometeu que apresentaria algumas leis de proteção ao trabalho. Mas seu governo foi o oposto disso: foi o governo das leis compressoras, da chamada lei celerada, ou lei bandida, que vinha do governo Epitácio Pessoa, uma lei de repressão a atividades supostamente subversivas, mas usada, na prática, para impedir virtualmente todas as formas de luta social e particulamente o funcionamento dos sindicatos. Foi um governo para o qual, na verdade, a questão social, a questão política, a questão econômica eram, todas elas, simples casos de polícia.

A candidatura oposicionista de Getúlio Vargas não surgira por causa da polêmica da questão social, mas por um conjunto de razões em que, de início, a questão social não era das maiores frações. Mas, a partir do comício da Esplanada do Castelo, no qual Getúlio afirmara a existência e a urgência da questão social, ela cresceu exponencialmente, sobretudo com a visita do candidato a São Paulo, onde leria de novo a plataforma e onde foi recebido por tal massa de trabalhadores e trabalhadoras dos bairros operários (a cidade já tinha muitas mulheres operárias, principalmente na indústria têxtil) que essa manifestação espantou e assustou até os políticos tradicionais que o apoiavam nesse Estado.

A eleição presidencial foi fraudada, como se esperava, e seguida pela revolução, que levaria Getúlio Vargas ao poder. Assim como na candidatura de Getúlio Vargas, na revolução a questão social era, de início, apenas uma fração, que se compunha com a revolta pela fraude, em extensão jamais vista antes,

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2 Rosa Maria Barbosa de Araújo . O Batismo do Trabalho, a esperiência de Lindolfo Collor, Rio, Civilização Brasileira, 1981, p.46.

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19As origens do Trabalhismo Brasileiro

pelas violências do governo na campanha eleitoral (em extensão também jamais vista antes) e, é claro, pela situação econômica do Brasil, profundamente atingido pela crise econômica mundial decorrente do crash da Bolsa de Nova York em 1929.

Mas o avanço militar da revolução e o apoio popular que recebia em todo o país mostravam como a questão social tornava-se, em seu contexto, cada vez maior.

O DISCURSO DE POSSE DE GETÚLIO VARGAS

Em seu discurso de posse na Presidência, vitoriosa a Revolução, Getúlio disse:

- O movimento revolucionário, iniciado, vitoriosamente, a 3 de outubro .... foi a afirmação mais positiva que até hoje tivemos de nossa existência como nacionalidade. Em toda a nossa história política não há, sob esse aspecto, acontecimento semelhante. Ele é efetivamente a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro, afinal senhor de seus destinos e supremo árbitro de suas finalidades coletivas.

- No fundo e na forma, a Revolução escapou, por isso mesmo, ao exclusivismo de determinadas classes.

Nem os elementos civis venceram as classes armadas, nem estas impuseram àqueles o fato consumado. Todas as categorias sociais, de alto abaixo, sem diferença de idade ou de sexo, comungaram de um idêntico pensamento fraterno e dominador: a construção de uma Pátria nova, igualmente acolhedora para grandes e pequenos, aberta à colaboração de todos os seus filhos.

- O Rio Grande do Sul, ao transpor as suas fronteiras, rumo a Itararé, já trazia consigo mais da metade do nosso glorioso Exército. Por toda parte, como, mais tarde, na Capital da República, a alma popular confraternizava com os representantes das classes armadas, em admirável unidade de sentimentos e aspirações.

- Realizamos, pois, um movimento eminentemente nacional.3

Depois dessa explicação e justificação do movimento revolucionário que o levava ao poder, Getúlio passa a tratar das responsabilidades do governo que assume nesse momento.

_______________________________________________________

3 Getúlio Vargas, A nova Pilítica do Brasil, Rio, ed. José Olympio, volume I, 1938, pgs.69 e seguintes.

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2019 As origens do Trabalhismo Brasileiro

- Passado, agora, o momento das legítimas expansões pela vitória alcançada, precisamos refletir, maduramente, sobre a obra de reconstrução que nos cumpre realizar. Para não defraudarmos a expectativa alentadora do povo brasileiro; para que este continue a nos dar seu apoio e colaboração, devemos estar à altura da missão que nos foi por ele confiada.

- Ela é de iniludível responsabilidade. Tenhamos a coragem de levá-la a seu termo definitivamente, sem violências desnecessárias, mas sem contemplações de qualquer espécie.

- O trabalho de reconstrução que nos espera não admite medidas contemporizadoras...

Não era só de reconstrução o trabalho à espera do novo governo. Era, sobretudo, de construção. Getúlio resume, então, em 17 itens, as idéias centrais de seu programa de governo. Começa pela concessão da anistia, que reclamara, com veemência, na plataforma da Aliança Liberal, em janeiro.

Os anos turbulentos e violentos dos governos de Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, antes do governo de Washington Luís, tinham provocado episódios como a revolta dos 18 do Forte (de Copacabana), em 5 de julho de 1922, ainda no governo Epitácio; o segundo 5 de julho, em 1924, que chegara a dominar a cidade de S. Paulo; e a Coluna Prestes, de 1924 até o fim de 1926, que, se outro mérito não tivesse, teria o de exibir ao país legal, de tantas fantasias, o país real de tanto atraso, tanta miséria e injustiça.

Washington Luís assumira a Presidência, candidato de conciliação como praticamente fora, sem qualquer adversário para valer, sob a expectativa de realizar um governo de descontração, o que começaria pela decretação da anistia, esperança de milhares de famílias, de militares envolvidos nas lutas do tenentismo, e de milhares de civis perseguidos e processados por essas lutas e também por envolvimento em campanhas reivindicatórias ligadas não à questão militar mas à questão social.

No momento da posse de Washington Luís, e esperando pela anistia, a própria Coluna Prestes se desfizera, internando-se na Bolívia. Infelizmente Washington Luís não foi capaz de compreender nada disso. Não concedeu a anistia e aplicou com todo o rigor a legislação repressiva que encontrou em vigor, vinda dos anos e das décadas anteriores.

Quatro anos depois, era natural que, vitoriosa a Revolução de 1930, seu governo provisório colocasse em primeiro lugar a decretação da anistia. Em seguida a ela, Getúlio mencionava, em seu discurso de posse, metas como a criação do Ministério da Educação; a reforma do sistema eleitoral, “tendo em vista,

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21As origens do Trabalhismo Brasileiro

precipuamente, a garantia do voto” (voto secreto); convocação de uma Constituinte; extinção progressiva, e sem violência, do latifúndio, “mediante a transferência direta de lotes de terras de cultura ao trabalhador agrícola”; e a instituição do Ministério do Trabalho, “destinado a superintender a questão social, o amparo e a defesa do operariado urbano e rural”.

Criado apenas três semanas depois da posse de Getúlio Vargas na Presidência da República, o Ministério do Trabalho precisou apenas de

dezesseis dias para produzir, a 12 de dezembro, a primeira das leis trabalhistas do governo da Revolução de 1930 – a Lei dos Dois Terços, de nacionalização do trabalho (ela exigia que 2/3 de todos os empregos no país fossem reservados para brasileiros; na época, por exemplo, 80% dos empregos no setor de restaurantes, bares e similares eram ocupados por estrangeiros, enquanto a multidão de desempregados brasileiros aumentava, sobretudo em virtude da crise econômica mundial desencadeada pelo crash da Bolsa de Nova York em outubro de 1929).

A rapidez dessas duas iniciativas – a criação do Ministério do Trabalho e a lei de nacionalização do trabalho – não resultavam de irreflexão ou de sofreguidão. Assim, também, não resultaria de alguma ansiedade apressada a lei seguinte, de 19 de março de 1931, a lei dos sindicatos, talvez a mais importante desse período do governo provisório. É que essas questões estavam muito maduras, não só no espírito de Getúlio Vargas e seus companheiros da Revolução e do governo provisório, como em toda a opinião pública.

JOSÉ BONIFÁCIO E A ABOLIÇÃO

Esse amadurecimento vinha de longe. Para os maiores teóricos do Direito do Trabalho no Brasil, nossa primeira lei social, ou trabalhista, foi a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, que aboliu a escravidão.

A escravidão tinha sido imposta ao Brasil pela colonização portuguesa, iniciada na passagem do século 15 para o século 16, com a chegada das caravelas de Pedro Álvares Cabral, no ano de 1500.

Inicialmente os portugueses tentaram escravizar o índio, mas isso não deu certo e logo trataram de importar o escravo negro, capturado na África.

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2221 As origens do Trabalhismo Brasileiro

Desde o início houve luta e resistência contra a escravidão. A favor dos índios foi muito forte e veemente a palavra do Padre Antônio Vieira, no Maranhão. Em defesa dos escravos negros, tivemos a epopéia dos quilombos, sobretudo o de Zumbi, Palmares, que resistiria - e pouco sabemos disso - por quase cem anos!

No início do século 19, José Bonifácio de Andrada e Silva, paulista de Santos e, então, um dos maiores cientistas da Europa, voltou ao Brasil, que deixara na juventude para estudar em Coimbra. Era o ano de 1821 e logo, por ato do Príncipe-Regente D. Pedro, futuro Imperador Pedro I, José Bonifácio foi feito Ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros, o primeiro brasileiro a ser Ministro num governo do Brasil.

O Rei D. João VI acabava de voltar a Portugal, depois de 13 anos no Brasil, para onde viera em 1808, escapando à invasão do território português pelos exércitos de Napoleão.

Até hoje, D. João é ridicularizado no Brasil como um comilão obeso, porco, bobalhão, covarde e fujão. Não era esse o julgamento do próprio Napoleão, que dominou o mundo europeu de então e submeteu a seu domínio quase todos os poderosos, mas dizia, de D. João:

- Foi o único que conseguiu me enganar.

D. João enganou Napoleão ao transferir a sede do império português de Lisboa para o Rio, a isso induzido por seus conselheiros ingleses, espertíssimos e senhores dos mares, o que garantia a D. João travessia tranquila do Tejo, em Lisboa, à baía de Guanabara, no Rio.

Napoleão era um cérebro superiormente dotado em pensamento militar, mas talvez não o fosse em matéria de pensamento econômico. Napoleão não percebeu, de início, que, ao deixar Portugal pelo Brasil, D. João largava o pedaço mais pobre de seu Império, para instalar-se no pedaço mais rico, do outro lado do Oceano e longe dos exércitos napoleônicos.

Os 13 anos de D. João no Brasil foram um período de enorme progresso econômico, sobretudo porque a transferência para o Rio da sede do governo português foi eliminando as proibições que pesavam sobre a atividade econômica no território colonial brasileiro.

Antes eram proibidas, por exemplo, as tipografias – de escasso significado econômico, mas de enorme significado cultural e político. Com D. João veio também o equipamento para a montagem da Imprensa

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23As origens do Trabalhismo Brasileiro

Régia, que publicaria o primeiro jornal brasileiro, um jornal oficial, chapa branca, de notícias da corte, mas que liberaria a existência de muitos outros. Com esse equipamento vieram também os muitos livros que constituiriam o primeiro acervo da Biblioteca Nacional, entre os quais uma Bíblia impressa pelo próprio Gutemberg.

À proibição das tipografias, que imprimiam livros, esse produto sempre subversivo, correspondia a inexistência de universidades. Na América do Sul hispânica havia universidades desde o século 16 ou do século 17, caso da Universidade de São Marcos, em Lima, no Peru. No Brasil, a primeira universidade só surgiria depois da Revolução de 1930 (no primeiro governo de Getúlio Vargas e graças a ele).

Era também proibida no Brasil a existência da indústria têxtil, que é historicamente, a mãe de todas as indústrias. (Em seu fascinante livro O voo da humanidade, uma história da tecnologia na aventura humana, o General José Carlos Amarante demonstra que, após o controle do fogo, e muito antes da invenção da roda, a segunda descoberta tecnológica foi a invenção da roupa, matriz da indústria têxtil. Com a invenção da roupa, o homem teve condições de ocupar até as regiões de clima mais inóspito de nosso planeta.4)

Não foi só a liberação da atividade econômica. D. João criou também instrumentos de fomento dessa atividade, como o primeiro Banco do Brasil.

D. João deixou o Brasil em 1821, chamado de volta a Portugal por uma revolução que já decidira adotar uma constituição e organizar um governo o quanto possível democrático.

José Bonifácio estava de volta ao Brasil desde 1819.

3. A Revolução de 30 retoma as propostas de José Bonifácio O governo provisório de Getúlio Vargas e da Revolução de 1930 realizou, já em maio de 1933, eleições

para a investidura de uma Assembléia Nacional Constituinte. Pela primeira vez na história do Brasil, graças a Getúlio, essas eleições foram realizadas com a garantia do voto secreto. E pela primeira vez as mulheres tiveram o direito de votar e ser votadas. (Na questão do voto feminino, o Brasil antecipou-se até à França tão civilizada, que só concedeu o direito de voto às mulheres em 1946.)

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4 José Carlos Amarante, O vôo da humanidade, Rio, Biblioteca do Exército Editora, 2008, passim.

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No dia 15 de novembro de 1933, na instalação da Constituinte, Getúlio apresentou a ela um documento da maior importância, até hoje pouco conhecido. Nesse documento ele explicava suas maiores decisões no governo provisório, como a criação dos Ministérios da Educação e do Trabalho e a adoção das primeiras leis trabalhistas. E atribuía a inspiração dessas decisões a José Bonifácio.

José Bonifácio de Andrada e Silva foi o primeiro brasileiro a ser feito ministro de um governo do Brasil.Enquanto o governo português estava em Portugal e de Portugal governava o Brasil, entendia-se que

não houvesse brasileiros em seu ministério. O Brasil, embora muito mais rico que a metrópole, embora produzisse muito mais do que ela e em grande medida a sustentasse, era apenas uma colônia. Mesmo depois da transferência para o Brasil do governo português, em 1808, demorou mais de dez anos a abertura do ministério a um brasileiro, José Bonifácio, nomeado ministro em 1822.

José Bonifácio, nascido em Santos, São Paulo, em 1763, era filho de um comerciante, o segundo mais rico da cidade. Revelara tanto talento nos estudos, na infância e adolescência, que os padres seus professores convenceram o pai a mandá-lo a Coimbra, sede, então, da mais importante universidade de língua portuguesa no mundo.

O Brasil era um poço de atraso, por imposição dos governos reacionários e obscurantistas de Portugal. Não havia no Brasil, mais produtivo que Portugal, escolas superiores. E estavam proibidas as fábricas e até as tipografias. José Bonifácio esgotou todas as possibilidades de estudar no Brasil e teve sorte de conseguir matrícula em Coimbra em 1783, quando estava com 20 anos. Se não fosse isso, correria o risco de envolver-se em conspirações como a Inconfidência Mineira e acabar no laço de uma corda, enforcado como Tiradentes.

Em Lisboa, logo ao chegar, e em seguida em Coimbra, nos anos em que foi aluno de sua universidade, José Bonifácio viu-se diante de um novo mundo. Segundo seu biógrafo Octávio Tarquínio de Souza, autor da História dos Fundadores do Império do Brasil, José Bonifácio “já tivera notícia, sem dúvida, de que nesse outro continente um vasto movimento de reforma política e de renovação intelectual se processava. Agora, a despeito de persistirem restrições e censuras, poderia tomar contacto com ele, ler os livros dos filósofos e pensadores que pregavam o domínio das luzes, o progresso do espírito humano, a felicidade dos povos, contra o obscurantismo, a rotina, o despotismo”.

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Em Coimbra, José Bonifácio deixaria registradas, em seus escritos, idéias como a de liberdade para os índios, de terra para os índios, de supressão do regime de tutela do índio e de acesso à educação para o índio. Quanto aos escravos, diz Octávio Tarquínio, José Bonifácio queria “a extinção do comércio de carne humana e do regime de trabalho servil, preocupado com sua corruptora influência moral e social, com as suas injustiças e malefícios”.

Esses mesmos escritos revelam outras idéias de José Bonifácio no período de estudante em Coimbra: ele queria uma biblioteca e uma tipografia em cada capitania do Brasil e, segundo Octávio Tarquínio, “esboçava planos para acabar com as imensas propriedades territoriais que eram as sesmarias do tempo da colônia”: ou seja, planos para a reforma agrária.

Voltaire e Rousseau – acrescenta Octávio Tarquínio – foram talvez os autores cuja companhia mais buscou. Em toda a Europa do século 18, nenhum outro pensador, nenhum outro escritor foi mais inconformista e mais rebelde que esses dois. Nenhum foi mais longe na defesa da igualdade que Rousseau, nem mais longe na defesa da liberdade que Voltaire.5

UM BRASILEIRO NA REVOLUÇÃO FRANCESA

Formado em Coimbra em 1789, José Bonifácio viajou para Paris em 1790, em plena Revolução Francesa, meses depois da queda da Bastilha. Ainda em 1788, Marat, um dos primeiros líderes e tribunos da revolução, lia e comentava o Contrato Social, de Rousseau, nas ruas e nas praças de Paris, sob o aplauso de auditórios entusiasmados.

Terá José Bonifácio ouvido do próprio Marat – que continuava ativo no debate revolucionário em 1790 - ou de outros líderes da Revolução Francesa a leitura e o comentário, nas ruas de Paris, dos textos de Rousseau, de Voltaire e dos demais autores que contestavam o absolutismo dos governos e as injustiças da vida econômica?

José Bonifácio esteve dois anos na França, 1790 e 1791, em plena revolução (cujo início é considerado o 14 de julho de 1789, data da queda da Bastilha). De 1792 a 1794, estudou na Alemanha, na Escola de Minas de Freiberg, e fez várias viagens pela Áustria, pela Itália e pela própria Alemanha. De 1796 a 1798 ficou entre a Suécia e a Noruega. Em 1799 foi à Dinamarca e em 1800 voltou para Portugal. Viagens, todas, de caráter científico.

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5 Octávio Taquínio de Sousa, História dos Fundadores do Império do Brasil, vol. I (José Bonifácio), Rio, 1957, ED. José Olympio, pp. 64-66.

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2625 As origens do Trabalhismo Brasileiro

Mais tarde ele teria de lutar muito para poder voltar ao Brasil. Nesse momento, preferiu ficar na metrópole. No Brasil pós-Inconfidência, no Brasil de uma repressão terrível, não havia universidades, não havia livros, não havia prelos. Homem de ciência, a essa altura reconhecido em toda a Europa, ele teria mais o que fazer num Velho Mundo que se renovava do que num Novo Mundo que a submissão envelhecia.

José Bonifácio ficou em Portugal. Fez pesquisas mineralógicas, trabalhou em engenharia florestal, criou a cadeira de Metalurgia da Universidade de Coimbra e afinal teve de acumular, sem vantagem pecuniária, uma porção de encargos – intendente geral das minas e metais do Reino, membro do tribunal de minas, diretor da casa da moeda, superintendente das minas e bosques de todos os domínios portugueses, superintendente das sementeiras de pinhais (para o plantio de pinheiros cuja madeira seria empregada na construção de navios), superintendente das obras públicas de Coimbra e diretor das obras de encanamento e dos serviços hidráulicos da Finta de Maranhães.

Em 1806, aos 43 anos de idade, mais de metade dos quais passados fora do Brasil, ele pedia:

- Estou doente, aflito e cansado, e não posso com tantos dissabores e desleixos. Logo que acabe meu tempo em Coimbra e acabe minha jubilação, vou deitar-me aos pés de Sua Alteza Real [o Príncipe Regente D. João, futuro Rei D. João VI], para que me deixe ir acabar o resto dos meus cansados dias nos sertões do Brasil...

Não só esse pedido não foi atendido, como ainda o trataram pior.

JOSÉ BONIFÁCIO DEFENDE PORTUGAL DE ARMAS NA MÃO

Em 1808, D. João, Príncipe Regente, decidiu abandonar Portugal e instalar-se no Brasil, ameaçado pelos exércitos franceses de Napoleão, que assolavam a Península Ibérica, como, de resto, toda a Europa, e já lhe avançavam pelo reino adentro. Também o pressionavam os aliados ingleses, que queriam, mais que tudo, derrotar Napoleão.

O Brasil foi elevado de colônia a Reino Unido ao de Portugal e o Rio de Janeiro tornou-se a capital efetiva de um Império ainda considerável, que se constituía de Portugal, Brasil e possessões portuguesas na África (Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) e na Ásia (Timor, Macau, Goa, Damão e Diú). D. João permaneceu no Brasil de 1808 a 1821. Nesse período, nenhum brasileiro teria a oportunidade de servir como ministro. Nem mesmo José Bonifácio, embora seu nome tivesse sido proposto mais de uma vez com o maior empenho.

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27As origens do Trabalhismo Brasileiro

Quando D. João, o futuro D. João VI, então Príncipe Regente, deixou Portugal, ainda vivia (e viveria até 1816) sua mãe, a Rainha D. Maria I, a Louca, que mandara enforcar Tiradentes.

Só recentemente viemos a saber que nessa fuga veio para o Brasil menos gente do que nos diziam. O que continua certo é que veio um bando considerável de parasitas da corte, gente inútil, intrigante e insaciável. Um homem da seriedade, do prestígio e da credibilidade de José Bonifácio foi obrigado a permanecer em Portugal.

Deixado para trás, José Bonifácio, que não era português, mas brasileiro, arrecadou armas e reuniu homens para a resistência, para defender o solo e o povo português, que o Portugal oficial abandonara. E alistou-se como especialista em munições e foi ao mesmo tempo uma das cabeças da resistência e um dos braços da produção de guerra. Na segunda invasão napoleônica, em 1809, José Bonifácio alistou-se como combatente. Estava com 46 anos de idade.

Com tanta bravura e competência combateu que passou de major a tenente-coronel e de tenente-coronel a comandante. Ousado, encarregava-se pessoalmente dos reconhecimentos mais arriscados. Desobediente, marchava sempre na vanguarda da tropa sob seu comando – e foi preciso uma ordem expressa para que sossegasse no lugar próprio a seu posto, na retaguarda.

Só em 1819, já distante a ameaça de Napoleão, derrotado definitivamente em 1815 e encarcerado na distante ilha de Santa Helena, onde morreria em 1821, o governo português instalado no Rio permitiu que José Bonifácio voltasse para o Brasil, que ele deixara no século anterior. Para que lhe expedissem o passaporte, teve de provar antes, com todo o papelório que a burocracia não dispensa, que não furtara, “que não malbaratara os bens públicos confiados à sua gestão”. Aos burocratas que assim trataram José Bonifácio não consta que se tenham pedido contas: nem de seu zelo pelo erário, nem de sua covardia em face do inimigo.

Na sessão de 24 de junho de 1819, José Bonifácio despediu-se da Academia de Ciências de Lisboa, da qual era o secretário-perpétuo. Tinha entrado para a Academia com 27 anos e agora a deixava com 56.

- É esta a derradeira vez – disse ele – sim, a derradeira vez, e com pesar o digo, que tenho a honra de ser o historiador de vossas tarefas literárias e patrióticas, pois é forçoso deixar o antigo, que me adotou como filho, para ir habitar o novo Portugal, onde nasci.

De seus 56 anos de vida, José Bonifácio passara 36 fora desse novo Portugal, o Brasil, onde nascera.

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2827 As origens do Trabalhismo Brasileiro

NUM BRASIL DE ESCRAVOS

José Bonifácio queria apenas instalar-se numa pequena propriedade rural em São Paulo, o Sítio dos Outeirinhos, e explorá-lo sem o concurso do trabalho escravo, mas com trabalhadores livres, assalariados, procedentes da Europa.

Era impossível, porém, que um homem dessa dimensão e dessa importância conseguisse confinar-se a si mesmo, nesse generoso projeto privado, em momento como aquele. José Bonifácio não se pertencia – pertencia ao país e à época em que nascera.

Um de seus irmãos, Antonio Carlos, escapara por pouco da condenação à morte na Revolução Pernambucana de 1817 – uma revolução em favor da independência e já da república, como a Inconfidência Mineira, um quarto de século antes. A Revolução Pernambucana de 1817 foi tão importante que muitos historiadores, como Oliveira Lima e Barbosa Lima Sobrinho, fazem dela – em vez do 7 de setembro de 1822 – a data verdadeira da independência do Brasil.

O Brasil ao qual José Bonifácio voltava tinha quatro milhões de habitantes, menos de um terço da população da Grande São Paulo de hoje. Desses quatro milhões, um milhão, a quarta parte, era de escravos. A taxa de analfabetismo chegava a 90% do total da população.

Com a fuga de D. João VI e de toda a corte, em 1808, para o Rio, teve de mudar de figurino a exploração do Brasil pela Coroa e pelas classes dominantes de Portugal – e pelos interesses já multinacionais, especialmente ingleses, a elas associados, ou melhor, que as vampirizavam e, em certo sentido, assalariavam. Já não bastava arrancar do chão da colônia e embarcar para os cofres e armazéns da metrópole riquezas naturais esgotáveis como o ouro e as pedras preciosas, ou mesmo renováveis, a longo ou a curto prazo, como o pau brasil e o açúcar.

Até a transferência da corte para o Rio, Portugal proibia qualquer atividade industrial no Brasil. Nem mesmo prelos de impressão podiam existir na colônia – sem falar em teares e outras máquinas. Quando José Bonifácio chegou de volta, a indústria e o comércio estavam liberados e a economia se desenvolvia – na agricultura, nas minas, na fundição de ferro, nos meios de comunicação e transporte - porque o Brasil passara da condição de colônia à de reino unido ao de Portugal.

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6 Ibidem, p. 66.

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- Mas – escreverá Octávio Tarquínio de Souza na biografia de José Bonifácio – não se tocava no essencial, o regime da propriedade e do trabalho.6

José Bonifácio deve ter chegado ao Brasil mais ou menos como os primeiros astronautas chegaram à Lua. O país que de Portugal ele observava de longe era como outro corpo celeste, tão inatingível deve ter-lhe parecido depois de 36 anos de separação. Talvez por isso ele tenha visto em conjunto e em detalhe muita coisa que a própria Inconfidência Mineira não ousara enfrentar ou só enfrentara pela metade, como a escravidão.

Entre os papéis apreendidos aos inconfidentes figurava um projeto de constituição para o Brasil. Em face de divergências entre os chefes principais do movimento, esse projeto previa uma solução de compromisso para o problema da escravidão – a liberdade dos escravos nascidos no Brasil, enquanto os nascidos na África e trazidos para o Brasil permaneceriam escravos.

PRIMEIRAS PROPOSTAS DE INDEPENDÊNCIA

Logo depois de chegar ao Brasil, em 1819, José Bonifácio escrevera que “a sociedade civil tem por base primeira a justiça e por fim principal a felicidade dos homens”. Em nome disso, ele pedia a “expiação de crimes e pecados velhos”, a começar pela abolição total e imediata do tráfico negreiro (que seria imposta, anos depois, pela Inglaterra) e a continuar pela extinção da escravatura, “feita gradualmente, para evitar traumatismos e súbitas perturbações”.

Se tivessem sido adotadas nesse momento, leis como a do Ventre Livre e dos Sexagenários teriam reduzido tanto a escravidão em algumas décadas que ela poderia ter sido extinta em definitivo, muito antes da Lei Áurea de 1888.

Em abril de 1821, D. João teve de voltar para Portugal, intimado por uma revolução liberal deflagrada na cidade do Porto. Essa revolução queria estabelecer em Portugal um regime constitucional, mas logo depois voltou-se contra o Brasil, pretendendo recolonizá-lo. O retorno de D. João para Portugal seria fundamental para os acontecimentos subsequentes: facilitava algumas coisas; mas dificultava outras.

D. Pedro, o filho mais velho de D. João foi nomeado Regente do Brasil e permaneceu no Rio. Mas os compromissos constitucionais e liberais ou supostamente liberais (no sentido da liberdade política, não do sentido econômico dos postulados do neoliberalismo de hoje) da Revolução do Porto, esses compromissos contagiavam também o Brasil. Suas províncias organizavam-se e mobilizavam-se para exercícios de democracia representativa.

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Em São Paulo, o próprio governador e comandante militar, General João Carlos Oyenhausen, convocou eleições para a organização de um governo provincial representativo. Paralelamente, eram eleitos seis representantes da província às Cortes de Lisboa, que elaborariam a Constituição do Reino Unido, uma constituição única para Portugal e o Brasil. José Bonifácio foi escolhido para redigir a plataforma desses representantes. Submetida às câmaras municipais da província, a plataforma seria aprovada com poucas restrições.

A plataforma começava por opor-se à tendência dominante nas Cortes de Lisboa, que era a recolonização do Brasil, a ser realizada pela subordinação de cada uma de suas províncias ao governo de Portugal. José Bonifácio propunha, para garantir a unidade do Brasil, a existência de um governo geral executivo, ao qual ficariam sujeitos os governos provinciais. Já era, em embrião, a independência.

Além desse governo central brasileiro, a plataforma propunha a catequese e civilização dos índios, que não eram escravos e não podiam, teoricamente, ser escravizados, e a emancipação dos escravos, “de modo a se tornarem cidadãos ativos e virtuosos”.

Ao lado da independência, a plataforma de José Bonifácio tratava da questão do trabalho, pela emancipação dos escravos e a civilização dos índios – e também por um novo regime de terras, com a subdivisão da propriedade territorial, uma reforma agrária - e associava às duas a questão da educação, propondo a instalação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e freguesias consideráveis – e um ginásio em cada província, “para o ensino das ciências úteis”.

Redigida por um homem como José Bonifácio, que tivera o privilégio de estudar e ensinar na Universidade de Coimbra, conviver com os mais importantes centros científicos da Europa do fim do século 18 e ser eleito membro e secretário-perpétuo da Academia de Ciências de Lisboa – além de tornar-se um dos cientistas de maior renome da Europa – essa plataforma não evitaria o passo naturalmente seguinte, por mais ousado e atrevido que pudesse parecer: a criação, “desde logo”, de uma universidade com quatro faculdades – de filosofia, de medicina, de jurisprudência e de economia, fazenda e governo. (As primeiras universidades reconhecidas no Brasil teriam de esperar pelo século 20, pela Revolução de 30 e por Getúlio Vargas, verdadeiro sucessor de José Bonifácio.)

A resposta às propostas de José Bonifácio, antes mesmo que os seis representantes eleitos de São Paulo chegassem a Portugal, veio em dois decretos das Cortes de Lisboa, que muito acelerariam a independência do Brasil: o primeiro criava no Brasil governos provinciais subordinados a Lisboa e o segundo determinava o retorno imediato do Principe D. Pedro a Portugal.

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JOSÉ BONIFÁCIO MINISTRO

É aí que começa o movimento popular e político para que D. Pedro permaneça no Brasil – movimento que ocorre simultaneamente e espontaneamente no Rio, em Minas e São Paulo. O governo provincial de São Paulo, eleito e colegiado, encarrega José Bonifácio de redigir uma representação a D. Pedro:

- Apenas fixamos nossa atenção sobre o primeiro decreto... – escreve José Bonifácio nessa representação - vimos nele exarado o sistema da anarquia e da escravidão... O segundo [decreto] nada menos pretende que desunir-nos, enfraquecer-nos e deixar-nos em mísera orfandade... Como agora esses deputados de Portugal, sem esperar pelos do Brasil, ousam já legislar sobre os interesses mais sagrados de cada província e de um reino inteiro?

É esse memorial redigido por José Bonifácio que pela primeira vez diz ao Príncipe D. Pedro que não vá,

que fique aqui:

- Vossa Alteza deve ficar no Brasil, quaisquer que sejam os projetos das Cortes Constitucionais, não só para o bem geral mas até para a independência e prosperidade futura do mesmo Portugal.

D. Pedro resolveu ficar e anunciou essa decisão a 9 de janeiro de 1822 – o Dia do Fico - ao receber representação no mesmo sentido que lhe foi entregue, em nome do Rio de Janeiro, pelo presidente do Senado da Câmara da cidade, José Clemente Pereira. Uma semana depois, a 16 de janeiro, D. Pedro nomeava José Bonifácio ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros – na prática, um Primeiro-Ministro.

Já vimos quais eram as preocupações, as prioridades e as propostas de José Bonifácio para o Brasil – propostas de reforma social com as quais ele ia muito além das maiores ousadias da Inconfidência Mineira. Mas ao ser escolhido por D. Pedro, o primeiro brasileiro nomeado ministro, 14 anos depois da transferência da sede do Reino de Lisboa para o Rio, José Bonifácio sabia que, antes dessa reforma social, o Príncipe Regente confiava-lhe, “talvez sem uma idéia muito clara, missão das mais complexas: fundar um governo nacional, impedir a secessão das províncias, coordenar os impulsos revolucionários num sentido construtivo, preparar a ruptura com a antiga metrópole”.7

Nos nove meses que antecederam a proclamação formal da independência, de janeiro a setembro de 1822, José Bonifácio entregou-se a cumprir essa missão, de manter a unidade nacional do Brasil. Com _______________________________________________________

7 Ibidem, p. 177.

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3231 As origens do Trabalhismo Brasileiro

arrebatamento sim, mas, sobretudo, com inteligência, serenidade e competência. Ainda em janeiro, ele deu ordem para que nenhuma lei vinda de Portugal fosse executada no Brasil sem autorização por escrito de D. Pedro.

Era, de fato, a independência: em vez de as ordens do governo do Rio dependerem da confirmação de Lisboa, as ordens de Lisboa é que passavam a depender da autorização do governo do Rio.

Só depois da proclamação da independência, no dia 7 de setembro de 1822, da aclamação de D. Pedro em outubro, de sua coroação em dezembro, da eleição da Assembléia Constituinte, no início de 1823, e de sua instalação, a 3 de maio desse ano, foi possível retomar o debate das questões da escravidão, da terra, do trabalho e da educação.

‘OS NEGROS SÃO HOMENS COMO NÓS’

Assim que instalada a Constituinte, já em 1823, José Bonifácio, na condição de principal ministro do agora Imperador Pedro I, mandou-lhe uma representação na qual procurava demonstrar a superioridade do trabalho livre sobre o trabalho escravo. Com o acréscimo da seguinte observação: “Ainda que assim não fosse, a justiça social nos diria que os negros eram homens como nós, sentiam e pensavam como nós.”

José Bonifácio considerava um absurdo conciliar na mesma Constituição, de um lado o liberalismo político, a democracia e o estado de direito, e, do outro lado, a manutenção da escravatura e do tráfico negreiro.

Essas idéias e as atitudes das quais as fazia acompanhar tornaram inevitável, em julho de 1823, o rompimento com D. Pedro, cada vez mais dominado por seus sequazes pró-portugueses, e a renúncia de José Bonifácio ao cargo de Ministro do Reino. Ele fora eleito constituinte por São Paulo e passou a colaborar com o irmão Antonio Carlos, também deputado, na comissão encarregada de elaborar o projeto de constituição.

O projeto, ao ser apresentado, tinha a encabeçá-lo as assinaturas de Antonio Carlos e José Bonifácio. Para conseguir maioria na comissão e neutralizar as reações mais hostis na própria Assembléia, José Bonifácio era mais moderado e cauteloso que as idéias por tanto tempo defendidas por ele próprio e seu irmão.

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33As origens do Trabalhismo Brasileiro

O projeto propunha apenas a criação de estabelecimentos para a catequese e civilização dos índios, a emancipação lenta dos escravos e contratos entre senhores e escravos, fiscalizados pelo governo.

A idéia desses contratos criava um fato novo. Se o escravo podia ser parte contratante, isso significava que ele era sujeito de direitos, e portanto pessoa, e não um mero objeto em relação ao qual o senhor dispusesse de direitos de vida e de morte. Era sem dúvida um ardil, mas era um passo à frente.

Publicado o projeto, que transigia até com a escravidão mas dava os primeiros passos para acabar com ela, José Bonifácio propôs que D. Pedro fizesse aprová-lo por aclamação pública. A situação interna do país, contudo, estava cada vez mais complicada e o governo e a Assembléia Constituinte viviam um confronto cada vez mais fundo.

D. Pedro não aceitou a idéia da aclamação, a crise transformou-se em impasse. Em novembro de 1823, D. Pedro, num ato de força muito mais violento que a proposta de José Bonifácio, de aprovar em plebiscito um projeto não votado, fechou a Constituinte.

José Bonifácio foi preso, levado para a Fortaleza de Laje, na entrada da Baía de Guanabara, “recolhido a um subterrâneo, lugar imundo, úmido, com as paredes porejando água; nessa primeira noite, serviu-lhe de cama um pedaço de tapete velho, por extrema bondade de um oficial”.8 Logo depois, ele e muitos outros foram exilados.

Com base no próprio projeto de Antonio Carlos e José Bonifácio, que servira de pretexto para o fechamento da Constituinte, D. Pedro encomendou a seu Conselho de Estado uma Constituição que seria outorgada por ele, ditatorialmente, em janeiro de 1824, e vigorou até a proclamação da República, em 1889, mais de sessenta anos depois. Essa constituição continha algumas proclamações democráticas, mas suprimira todas as propostas sociais de José Bonifácio e Antonio Carlos.

Ela não cuidava da emancipação dos escravos, como se não se constituísse de escravos a quarta parte da população do país; não cuidava dos índios, não cuidava dos trabalhadores livres, não cuidava da questão da terra, inseparável da questão do trabalho; e não acolhera a proposta de instalação de uma escola em cada vila e de um ginásio em cada sede de comarca, proposta formulada por José Bonifácio em seus dias de jovem estudante em Coimbra e incluída na plataforma que elaborara para os deputados de São Paulo às Cortes de Lisboa em 1821 e igualmente no projeto da comissão constitucional presidida por Antonio Carlos. _______________________________________________________

8 Ibidem, p. 286.

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3433 As origens do Trabalhismo Brasileiro

Essa idéia coincidia com um decreto da Imperatriz Maria Teresa, da Áustria, mulher extraordinariamente esclarecida e inteligente e avó da Princesa e depois Imperatriz Leopoldina, primeira mulher de D. Pedro, que se apaixonou intelectualmente por José Bonifácio, tornou-se uma espécie de filha espiritual deste e conspirou ativamente para que o jovem e arrebatado marido fizesse a independência do Brasil.

Infelizmente, D. Pedro, influenciado por seus amigos pró-portugueses e pela Marquesa de Santos, sua namorada, afastou-se de Leopoldina e de José Bonifácio e sancionou, pela Constituição de 1824, o regime do trabalho escravo.

Essa constituição preservaria a escravidão por mais 64 anos, até 1888.

4. Abolicionistas e republicanos

José Bonifácio constituía um exemplo que estava longe, mas seria retomado por Getúlio Vargas em 1930. Porque a Revolução de 1930 era herdeira desse passado e do futuro que nele se escondia.

Os antecedentes da Revolução de 30 se revelariam anteriores à própria proclamação da República, em 1889. Eles situavam-se na corrente mais avançada do movimento republicano e abolicionista do século 19, o Partido Republicano Riograndense (do Rio Grande do Sul), o PRR.

Na campanha abolicionista, o PRR não se contentara com a propaganda das idéias e das leis de extinção do trabalho servil, e realizara o mais extraordinário movimento de alforria de escravos de que se tem notícia no Brasil. Dos sessenta mil escravos que existiam no Rio Grande em 1882, quando o partido foi fundado, sobravam apenas cerca de seis mil em 1888, ao ser votada a lei da abolição da escravatura, a Lei Áurea. Mais de cinquenta mil escravos tinham sido libertados sem o pagamento de qualquer indenização.

Na proclamação da República, em 1889, o PRR garantiria o apoio dos comandos militares do Rio Grande à derrubada da monarquia, assegurando a vitória republicana.

A participação na campanha republicana não bastaria para caracterizar o Partido Republicano Riograndense como um movimento precursor da Revolução de 1930. Assim como o PRR era republicano e abolicionista, havia partidos republicanos (como os das então províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo) francamente escravagistas.

O que deu esse caráter precursor ao partido riograndense foram as lutas que empreendeu na campanha abolicionista, na campanha republicana e, já na república, no Congresso Constituinte de 1890-

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91, convocado para votar a primeira Constituição republicana federal; e ainda na Assembléia Constituinte do Estado e no governo do Rio Grande do Sul.

Essas lutas tinham começado sob a liderança de um jovem advogado e jornalista chamado Júlio de Castilhos e sob a inspiração do pensador francês Augusto Comte e de sua filosofia positivista.

Em países como a França, os herdeiros de Augusto Comte deslocariam o positivismo para posições conservadoras e até reacionárias. Na França, país de nascimento de Augusto Comte, fundador do positivismo, algumas das correntes deste descambando na Ação Francesa, de Charles Maurras, monarquista, reacionária, anti-semita e depois pró-nazista. A pretexto disso, estabeleceu-se que todas as influências positivistas seriam reacionárias e autoritárias.

No Brasil, porém, o positivismo era o progresso, embora, por muito tempo, não fosse compreendido e pelo menos estudado sem preconceitos.

AUGUSTO COMTE E O POSITIVISMO

Em primeiro lugar, era uma grande injustiça atribuir posições reacionárias a Augusto Comte, uma das maiores figuras intelectuais do século 19 e um dos melhores seres humanos de sua época. Comte nasceu em 1799 no sul da França, em Montpellier, e teve tais dificuldades com o pai, autoritário e intolerante, que saíu de casa adolescente e foi viver em Paris, como estudante na Escola Politécnica, talvez a melhor escola superior do mundo na primeira metade do século 19. Comte sustentava-se de aulas particulares que dava a colegas e outros estudantes. Destacou-se tanto na escola que, no último ano, foi convocado para substituir o professor de matemática, quando este adoeceu.

Recém-formado, Comte trabalhou por algum tempo como secretário de Henri de Saint-Simon, um dos mais famosos e importantes pensadores da época e um dos fundadores do pensamento socialista na Europa, precursor, inclusive, de Marx.

Em seguida, tornou-se professor e empreendeu a redação de uma enorme obra filosófica e científica que assentaria os fundamentos do positivismo. Ao mesmo tempo, entregava-se à tarefa de dar aulas diárias, gratuitamente, nos sindicatos de trabalhadores – o que desde logo faz dele um dos mais importantes precursores do trabalhismo e do sindicalismo no mundo.

Independente do que Augusto Comte escreveria, sua vida pessoal foi o desmentido das acusações intelectuais que lhe fizeram. Vivendo sozinho e por conta própria desde a adolescência, Comte envolveu-se

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em Paris com mais de uma mulher. Uma delas, chamada Caroline, era prostituta. Davam-se bem, passaram a viver juntos e um dia ela foi chamada a registrar-se ou a renovar um registro na polícia de Paris. Comte decidiu que deviam casar-se.

- Você, casada – disse ele – não terá mais de submeter-se a essas humilhações na polícia.

Era esse o homem, o oposto do reacionarismo que lhe atribuiram.

Comte foi o fundador da sociologia, a ciência da sociedade, e adotara como ponto de partida de seus estudos e teses uma espécie de agnosticismo pragmático. Não podemos, diz ele, saber com certeza como o universo foi criado. Nem podemos saber com certeza se existe uma finalidade no universo e na criação. Mas sabemos uma porção de coisas que podem ajudar o homem a melhorar o mundo e a vida dos homens. Ele pensava em coisas que poderiam melhorar a vida de todos os homens.

Entre essas coisas, Comte situava o conhecimento científico e o que hoje chamaríamos a tecnologia, os processos da produção industrial ou artesanal resultantes do avanço do conhecimento científico ou causadores desse avanço. Aos avanços econômicos decorrentes da mobilização do conhecimento científico e da tecnologia, Comte acrescentava uma cobrança que raramente é mencionada e faz muita diferença: ele preconizava a incorporação do proletariado aos benefícios da sociedade moderna. Aos benefícios, não às servidões dessa sociedade.

Comte sempre manifestou grande admiração e respeito por todos os movimentos socialistas de sua época. Achava, porém, que os socialistas revolucionários estavam equivocados num ponto: ao entenderem que bastava o proletariado assumir o controle dos meios de produção para transformar irreversivelmente as sociedades. Para que se consolidassem avanços irreversíveis, seria preciso que o controle dos meios de produção pelos trabalhadores fosse acompanhado de mudanças de mentalidade, aquilo a que hoje daríamos o nome de uma revolução cultural – empreendimento tentado na segunda metade do século 20 pela China de Mao Tsé-tung, com resultados, no caso, desastrosos.

Aqui não estamos discutindo se Augusto Comte estava certo ou errado em suas previsões, mas o caráter de suas idéias políticas. Estas, pelo que vimos até aqui, não poderiam ser consideradas idéias reacionárias e de direita.

Só isso bastaria para encerrar a discussão, mas temos ainda um argumento. O historiador Eric Hobsbawm, marxista e insuspeito de simpatias ou cumplicidade por idéias de direita, e além disso bom conhecedor do Brasil, escreveu, em A Era dos Impérios, que o positivismo de Augusto Comte degenerou em reacionarismo na França e outros países da Europa, mas foi extremamente positivo e progressista em

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três países – a Turquia de Kemal Ataturk, o México dos chamados “científicos”, ainda no século 19, e o Brasil dos militares e civis positivistas que fizeram a Abolição, a República e, depois, a Revolução de 1930.9

A HERANÇA DA REPÚBLICA FARROUPILHA

Formando-se em direito, em São Paulo, em 1881, com 21 anos, Júlio de Castilhos voltou para Porto Alegre, com o projeto profissional de advogar e o projeto político de engajar-se na luta pela abolição e pela República.

No Rio Grande, as idéias republicanas vinham da Revolução Farroupilha e sua República de Piratini, de 1835 a 1845. O Rio Grande não só lutara pela República-idéia como vivera a experiência de uma república de fato, uma república física, em seu território. As lembranças da Guerra dos Farrapos tinham determinado, no Rio Grande, uma atitude coletiva de recusa da monarquia.

Foi com essa herança das tradições farroupilhas de 1835 a 1845 que os movimentos republicano e abolicionista começaram a abrir caminho no Rio Grande do Sul. No momento em que Júlio de Castilhos voltava de São Paulo, recém-formado, o Clube Republicano de Porto Alegre convocava para fevereiro de 1882 uma convenção republicana regional, da qual ele já participou, como relator da comissão de imprensa partidária, dada a experiência jornalística que trazia dos anos de Faculdade e do jornal A Evolução, que fundara e editara. Do relatório de Castilhos e sobretudo de sua ação pessoal nos dois anos seguintes resultaria o lançamento, pelo Partido Republicano, do jornal A Federação, publicado a partir de 1º. de janeiro de 1884.

A convenção, que reunira mais de cinquenta delegados, elegeu uma comissão executiva provisória para organizar o partido e dirigi-lo em todo o Rio Grande. Até então – e a partir daí isso mudou radicalmente – o movimento republicano no Rio Grande procurava contemporizar com as posturas do Partido Republicano de São Paulo, até mesmo na questão da escravatura. O partido paulista, escravagista, não podendo fingir que o problema não existia, propunha que o governo central delegasse a cada província a reforma do regime servil, “de acordo com seus interesses peculiares e suas circunstâncias econômicas”, e defendia o pagamento de indenização aos proprietários que perdessem seus escravos, “em respeito aos direitos adquiridos e para conciliar a propriedade de fato com o princípio de liberdade”.10

_______________________________________________________

9 Eric Hobsbawm, A Era dos Impérios, Rio, Paz e Terra, 1988, p. 115

10 Sérgio da Costa Franco, Júlio de Castilho e sua época, Porto Alegre, Editora Globo,1967, p. 22

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3837 As origens do Trabalhismo Brasileiro

Em 1883, o Partido Republicano Riograndense realizou seu 1º. Congresso e prestou homenagem, a 21 de abril, ao martírio de Tiradentes, o que ainda constituía um atrevimento. Tiradentes, afinal, fora enforcado por ordem da Rainha D. Maria, a Louca, de Portugal, bisavó de Sua Majestade, o Imperador Pedro II.

No segundo Congresso, em 1884, Castilhos já era o secretário da Comissão Executiva e em seu relatório acentuou a expansão do partido, por meio de clubes republicanos, em todo o Rio Grande. Nesse momento, já funcionavam vinte clubes na Província: em Porto Alegre, Rio Pardo, Cachoeira, Santa Maria, São Martinho, Cruz Alta, Palmeira, Santo Ângelo, São Luís, São Borja (liderado pelo General Manoel do Nascimento Vargas, pai de Getúlio Vargas), Itaqui, Uruguaiana, Alegrete, Santana do Livramento, São Vicente, São Gabriel, Caçapava, São Sepé, Bagé e Jaguarão.

ABOLIÇÃO JÁ!

O segundo Congresso tomou posição firme e radical pelo abolicionismo, abandonando a linha de contemporização com o conservadorismo escravagista dos partidos de São Paulo e da província do Rio. Um documento chamado de “Bases do Programa dos Candidatos Republicanos”, redigido por Júlio de Castilhos e Demétrio Ribeiro, coincidentemente os dois positivistas da Comissão Executiva, e aprovado pelo Congresso, assim definia a posição dos republicanos do Rio Grande sobre a abolição:

Sobre este melindroso assunto, entende o partido que não pode haver republicano algum que não seja abolicionista e inimigo desta instituição bárbara. Para a resolução do problema entende o Congresso que o melhor alvitre a tomar é entregar quanto antes, por disposição da lei geral, às províncias, plenos poderes para obrar cada uma como entender. Quanto à nossa Província, a abolição deve ser imediata e pronta, desde que a nossa assembléia receba os poderes necessários para legislar sobre o assunto.11

A Revolução de 30 teve vínculos fortíssimos com a campanha abolicionista. Nesta reconstituição da

história de alguns de seus precursores, basta situar a importância do documento dos republicanos do Rio Grande em 1884 – um desafio irrecusável, em primeiro lugar aos Partidos Conservador e Liberal, que se alternavam no comando da maioria do Parlamento imperial e na condução dos Conselhos de Ministros. Desafio que se estendia aos próprios republicanos menos dispostos a lutar pela abolição.

O governo e o parlamento imperial tinham adotado em 1871 a chamada Lei do Ventre Livre, pela qual não seriam mais escravos os filhos de escravos. Para as forças conservadoras, isso resolvia o problema _______________________________________________________

11 Sérgio da Costa Franco, Julio de Castilhos.., pg. 27

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da abolição e nada mais se devia fazer até que morressem os derradeiros escravos – o que poderia levar no mínimo uns cinquenta anos, considerando que continuariam escravos o filhos de escravos nascidos até 1871.

Era de tal ordem a predominância das forças conservadoras que o Imperador Pedro II queixava-se de não conseguir um Primeiro-Ministro disposto a propor e fazer aprovar a abolição imediata do regime servil. Nesse quadro, seria um bom recurso tático reivindicar para as províncias a prerrogativa de decidir cada uma delas, por sua assembléia de representantes, se aceitava ou abolia imediatamente a escravidão. No Rio Grande, dizia o documento do Congresso republicano, a abolição seria imediata. Com os avanços já realizados nas províncias do Amazonas e do Ceará e com os que ocorressem em outras províncias, a escravidão ficaria confinada sobretudo às províncias de São Paulo e do Rio de Janeiro, e não teria condições de resistir e sobreviver por muito tempo mais.

Em 1885, certamente para retardar por mais alguns anos – quem sabe até o século 20! – a abolição definitiva, o Parlamento imperial votou a chamada Lei dos Sexagenários, que libertava os escravos chegados aos 60 anos de idade. Nas condições de vida daquela época, mesmo homens livres e abastados ou já tinham morrido ou estavam velhos e em muitos casos incapacitados para o trabalho bem antes dos 60 anos. Mesmo nos países mais ricos, a expectativa média de vida era inferior a essa idade. O próprio Imperador de longas barbas brancas contava apenas 59 anos quando a lei foi aprovada. Na verdade, a Lei dos Sexagenários era um achado reacionário – libertava mais o senhor que o escravo, porque o senhor deixava de ser responsável pelo sustento e moradia do novo liberto.

Apesar dessa vantagem para os proprietários, a Lei dos Sexagenários levou um ano para ser aprovada. Numa primeira tentativa, em julho de 1884, a Câmara dos Deputados derrubara por 59 a 52 votos, o gabinete Souza Dantas, autor da proposta.

No dia seguinte à aprovação da lei, Castilhos escrevia palavras proféticas em seu artigo para A Federação, dizendo que D. Pedro II estava preso entre as pontas de um dilema perigoso: ou “afasta de si as simpatias de uma classe que tem sido a mais fiel servidora do trono, o que é um perigo para a monarquia; ou cede à pressão dos interesses coligados dos senhores de escravos e isola-se do movimento nacional irresistível, o que constitui um perigo ainda mais grave para a monarquia, que pode acompanhar a escravidão na sua morte”.

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O RIO GRANDE LIBERTA 90% DE SEUS ESCRAVOS

D. Pedro dissolveu a Câmara que negara apoio até à Lei dos Sexagenários e convocou eleições para um novo parlamento, das quais surgiria uma nova maioria também anti-abolicionista. Os republicanos do Rio Grande iniciaram nova campanha de alforria sem indenização. Já em agosto, podiam festejar em Porto Alegre:

- Ao cabo de poucos dias de ativo trabalho – escreve Castilhos - o povo, em uma brilhante manifestação de regozijo, pôde proclamar ontem a liberdade de mais de metade dos escravos existentes na cidade. Já um distrito inteiro, o terceiro, não possui mais escravos, conquistando a glória da primazia e fornecendo à capital um poderoso e saudável estímulo. Mas o que ainda vem dar maior lustre à exemplaríssima agitação de que é hoje teatro Porto Alegre, o que fá-la realçar ainda mais, é que a abolição aqui se vai operando sob este moralíssimo princípio: abolição sem indenização pecuniária. Não tem direito à indenização aquele que, cedendo aos impulsos do dever, restitui o homem ao domínio de si mesmo. O princípio cardeal inscrito na bandeira do abolicionismo é este severo princípio moral: a liberdade humana não se compra, nem se vende.12

Libertados mais de metade dos escravos, os republicanos entram na segunda etapa da campanha e pretendem “ver raiar o sol do dia 7 de setembro para iluminar este comovente espetáculo: Porto Alegre esfacelando a gargalheira do seu último escravo.”

Júlio de Castilhos percebe e mostra que as derrotas do abolicionismo, como a eleição de 1884, são agora derrotas da monarquia:

- O Imperador, não podendo mais furtar-se às exigências da opinião nacional, manifestamente contrária à conservação do escravo, mandou que o seu governo apresentasse ao parlamento um projeto de abolição gradual. O parlamento, composto na sua maioria de senhores de escravos e representantes de um eleitorado quase todo escravagista, repeliu bruscamente o projeto.

- Durante os longos 44 anos do seu reinado – diz Castilhos - o Sr. D. Pedro II, com engenho, mas sem patriotismo, tem conseguido protelar a solução de todos os graves problemas de que depende a vida nacional, fazendo permanecer o Brasil, por assim dizer, na mesma situação em que se achou ao libertar-se do regime colonial.

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12 Sérgio da Costa Franco, Julio de Castilhos.., pg. 32

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Nos três meses de agosto a outubro de 1884, os republicanos levam a campanha da alforria ao interior do Rio Grande. Júlio de Castilhos escreverá:

- O abolicionismo operou no Rio Grande verdadeiros prodígios. Iniciada a regeneradora agitação em Porto Alegre, ela difundiu-se com rapidez instantânea por toda a província, pondo em sítio a negra instituição infamante.

- Pode-se dizer que em algumas dezenas de dias, mais de 30 mil pessoas foram arrancadas ao sinistro ergástulo da escravidão. E para uma tão moralizadora reivindicação não foi mister lançar mão da violência, fazer uso da força, perturbar a paz entre os cidadãos, acender o facho da discórdia social.

Em 1887, a matrícula periódica dos escravos – que eram propriedade e, portanto, objeto de escrituras e registros – revelou permanecerem em escravidão em todo o Rio Grande entre seis e sete mil pessoas. Em 1884, quando o segundo Congresso republicano decidira radicalizar sua posição abolicionista, havia 60 mil escravos na província.

- Vê-se, pois – diria Castilhos - que em pouco mais de dois anos foram arrancadas às cruezas do escravismo cerca de cinquenta mil cabeças. Um esforço mais, e podemos proclamar extinto o escravismo em nosso território. Se não hesitou o abolicionismo rio-grandense ao iniciar a cruzada libertadora, quando povoavam os ergástulos da escravidão sessenta mil escravizados, muito menos deve vacilar agora que não mais de sete mil mourejam no trabalho servil.13

Quase 90% dos escravos tinham sido alforriados no Rio Grande antes da abolição. Sem indenização. Nada menos que 54 mil escravos tinham sido libertados, nesses poucos anos, graças à campanha desses republicanos - incansáveis, eloquentes e ousados, além de obstinados em sua pregação: era uma vergonha - diziam em toda parte e a todo mundo - um homem ser dono de outro homem. E vergonha ainda maior um homem pretender ou aceitar dinheiro em troca da liberdade de outro ser humano.

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13 Sérgio da Costa Franco, Julio de Castilhos.., pg. 33

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A campanha da Abolição fora também a mais emocionante da história do Brasil independente.

1888Ciúmes da PátriaJOSÉ DO PATROCÍNIO

D. Pedro II, o Imperador, estava na Europa, doente, quase entrevado, quando recebeu a notícia de que sua filha, a Princesa Isabel, Regente do Trono, assinara a Lei de 13 de maio de 1888, a Lei Áurea, que abolia de todo e de uma vez só, em todo o país, a escravidão remanescente, mas ainda muitíssimo numerosa e cada vez mais vergonhosa e humilhante.

-- Afinal, afinal... - teria dito D. Pedro, os olhos inundados de lágrimas, a garganta áspera de emoção: - O dia mais feliz de minha vida!

Qualquer que seja o julgamento final da história sobre o papel do Imperador e da Princesa sua filha na tardia libertação dos escravos no Brasil, o que as biografias registram é que D. Pedro II, com todos os seus poderes, não tinha a prerrogativa de propor leis ao Parlamento: só por intermédio do Primeiro-Ministro ele o poderia fazer. D. Pedro, segundo seus biógrafos, mudou três ou quatro gabinetes até conseguir um Primeiro-Ministro que se dispusse a propor ao Parlamento uma lei de abolição.

Esse dia 13 de maio de 1888, o mais feliz na vida do Imperador, deve ter sido o mais feliz também, ou o mais intenso, o mais arrebatado, na vida do mais apaixonante dos líderes da campanha abolicionista, José do Patrocínio, o Tigre da Abolição, jornalista, negro, filho de escrava, a voz que ganhou a alma das ruas do Rio de Janeiro.

Nos últimos dias da campanha abolicionista, essa voz fora posta à prova num dos grandes palcos das estrelas do canto, que também era uma das maiores tribunas políticas. Não era ainda o Teatro Municipal do Rio, que só seria construído depois.

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Num ato público em 1888, com o teatro lotado, da platéia às torrinhas, as mais altas galerias, José do Patrocínio começa a falar, e uma voz prepotente, da platéia, do balcão nobre ou das galerias, interrompe:

- Cala a boca, burro!

Muito mais tarde os comícios seriam substituídos pela televisão, em estúdios fechados, a salvo das interrupções. Mas naquele ano de 1888, assim como por bem mais de meio século depois disso, essa era uma figura esperada: o bebum do comício, alcoolizado ou a maioria das vezes não; aquele que, sóbrio ou alterado, interrompe e tenta desconcertar os oradores. Patrocínio não toma conhecimento e retoma o fio do discurso.

A voz, porém, insiste:

- Cala a boca, macaco!

José do Patrocínio contém-se, de novo, e prossegue. Negro, plebeu, filho de escrava, sempre na contramão do poder e da fortuna, sustentando-se e a seus jornais com os meios da época e até com dinheiro tomado a comerciantes por sugestões discutíveis, José do Patrocínio vai ficar mal, no momento mesmo da Lei Áurea, com algumas lideranças do movimento abolicionista, porque no dia seguinte ao 13 de maio levará uma rosa de ouro à Princesa Isabel.

Nesta noite, porém, no teatro, o negro, o plebeu, o jornalista, o tribuno José do Patrocínio é - e sabe disso - a consciência da história.

Mas a outra voz, aquela voz abusada e estridente da platéia, a voz do bebum volta a falar:

- Cala a boca, negro!

Quando pela terceira vez essa voz se manifesta, alguma descarga eletriza José do Patrocínio. Há uma pausa, que deixa nervosos os espectadores, e ele já não retoma o discurso no ponto onde fora interrompido. Diante do cenário e da platéia de tantas óperas, Patrocínio

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volta a si e responde, como se fosse o personagem de uma delas:

-- Negro! Negro! Negro, sim! Negro como Otelo, para ter ciúmes de minha Pátria!

Negro Otelo, negro Patrocínio! Semanas depois, tarde da noite de 13 de maio de 1888, José do Patrocínio consegue que um amigo o leve em casa, no subúrbio. Ao longo do dia e mesmo agora, fora obrigado a parar em todas as esquinas: queriam ouvi-lo, queriam que discursasse como naquela noite no teatro.

Quando, afinal, chega em casa, Patrocínio não pode sequer despedir-se do amigo que o levara. Na madrugada do primeiro dia de um Brasil sem escravos, José do Patrocínio não tem um último, um escasso fio de voz. Não consegue ao menos dizer “obrigado”, desejar “boa noite”. A grande voz da Abolição fora afinal silenciada.

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45As origens do Trabalhismo Brasileiro

PARTE II

Avanços e recuos na Primeira República

A República não podia esperar

Da República à campanha de Getúlio

A plataforma da Aliança Liberal

São Paulo, o despertar das massas

Getúlio Vargas

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4645 As origens do Trabalhismo Brasileiro

Getúlio Vargas

1. A República não podia esperar

Para muitos monarquistas e até para alguns republicanos, a república poderia ter esperado pela morte do bom Imperador Pedro II, poupando-lhe a humilhação da queda e a crueldade do exílio. Talvez por isso, a proclamação da República, a 15 de novembro de 1889, foi, para alguns republicanos, uma surpresa.

Não para Castilhos, que ainda na véspera escrevera sobre boatos de abdicação de D. Pedro II já em dezembro.

A abdicação ou a morte do Imperador elevariam ao trono sua filha, a Princesa Isabel, casada com um nobre francês da casa de Orleans, o Conde d’Eu, e por ele muito influenciada. Já fazia algum tempo que os republicanos – e muitos monarquistas – preocupavam-se com a iminência do Terceiro Reinado, cuja chefia efetiva seria exercida pelo Conde e não pela Imperatriz Isabel. A Constituição conferia ao Imperador – e isso valia para uma Imperatriz reinante – as prerrogativas do Poder Moderador, um conjunto de poderes grandes demais para que pudessem ficar nas mãos de um tipo como o Conde d’Eu, o “avarento Orleans” como o qualificava Castilhos nesse artigo.

Na Guerra do Paraguai, o Duque de Caxias considerara que as hostilidades deviam ser suspensas em seguida à queda da capital paraguaia, Assunção, sendo indiferente capturar Solano Lopes, o Presidente derrotado e em fuga. A decisão do governo brasileiro, no Rio, seria continuar a luta. Caxias abandonou o comando e foi substituído pelo Conde d’Eu, que queria credenciar-se precisamente para o Terceiro Reinado e empreendeu, contra os paraguaios derrotados, uma guerra verdadeiramente genocida, de extermínio da população civil inocente, a pretexto de capturar o “tirano Lopes”.

No Brasil o Conde era dono e explorador dos mais infames cortiços do Rio de Janeiro. Chamá-lo de avarento, como o fez Castilhos, foi pouco.

A proclamação da República tinha de ser feita antes do golpe da abdicação e foi garantida pela ação de Júlio de Castilhos no Rio Grande. Ele conseguiu que o principal comandante militar no sul do Brasil, o Visconde de Pelotas, herói da Guerra do Paraguai, aceitasse a República e a indicação de seu nome para chefiar o governo do novo Estado do Rio Grande do Sul. Ao saber disso, Rui Barbosa, um dos principais ministros do governo provisório do Marechal Deodoro, teria dito:

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- Está salva a república.

Sem a tomada de posição do Visconde de Pelotas, as guarnições do sul poderiam negar apoio à república e, por influência de Gaspar Silveira Martins, o poderoso chefe monarquista do Rio Grande, sublevar-se em defesa do Imperador destronado.

AS PRIMEIRAS PROPOSTAS SOCIAIS

Proclamada e garantida a república, os republicanos do Rio Grande organizaram-se para a primeira eleição republicana, destinada à escolha do Congresso Constituinte que votaria um projeto de Constituição elaborado por Rui Barbosa. Assim como no Partido Republicano Riograndense, havia no governo provisório da República uma presença positivista atuante e influente – exercida por Benjamim Constant e pelo mesmo Demétrio Ribeiro que redigira, com Castilhos, o documento abolicionista do congresso republicano riograndense de 1884.

O movimento positivista no Brasil tinha nesse momento dois líderes de autoridade incontestável, Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Eleito e instalado em 1890 o Congresso Constituinte, os dois submeteram-lhe um conjunto de propostas que exprimiam as idéias políticas do positivismo.

Muitas dessas idéias são até hoje objeto de controvérsia – por exemplo a de que Augusto Comte defendia a ditadura como modelo de governo. O que ele de fato defendia, assim como Júlio de Castilhos, era a existência de governo com o efetivo poder de regular a vida social. Esse governo atuaria paralelamente a uma assembléia que o controlaria pelos orçamentos e seria encarregada de aprovar e fiscalizar a execução orçamentária.

Na opinião de um dos mais fiéis expositores das idéias do positivismo no Brasil, o embaixador Paulo Carneiro, “o nome dado por Comte a esse tipo de governo criou equívocos e suspeitas que até hoje perduram”:

- É totalmente absurdo confundir seu sistema com os regimes totalitários, que ele foi o primeiro a repelir, fundando a política moderna na mais ampla liberdade espiritual.

- Dá-se a algumas expressões de Augusto Comte o sentido corrente e vulgar, quando ele mesmo lhes deu um sentido filosófico em muitos pontos diferentes. Augusto Comte proclama, com efeito, e frequentemente,

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a necessidade do regime ditatorial. Mas o que se deve entender por isso? A noção de ditadura é, para ele, inseparável da idéia de liberdade, da mais completa liberdade de expressão e de discussão. Cumpre igualmente levar em conta a vigilância que, no seu esquema, a assembléia financeira, eleita pelo povo, exerce sobre o governo, ao qual pode sempre recusar as verbas de que carece.

- A concepção de Augusto Comte não tem o caráter que lhe quiseram emprestar. Não se trata, absolutamente, no seu pensamento, de conferir, a quem quer que seja, um poder absoluto.

- É, a rigor – conclui Paulo Carneiro - um governo presidencial o que Augusto Comte propõe. A palavra “ditadura”, adquiriu conotações tão contrárias ao sentido que lhe atribuía que deve ser substituída por “poder central”, expressão equivalente. Foi, aliás, o que fez Júlio de Castilhos, que jamais usou a palavra ditadura ao redigir a Constituição do Rio Grande.1

O que aqui, porém, nos interessa são as propostas de caráter social, as propostas de defesa do trabalho e dos trabalhadores sustentadas pelos positivistas que tanta influência tinham exercido sobre a campanha abolicionista e a campanha republicana.

As propostas positivistas não esperaram pela eleição do Congresso Constituinte. Nas horas seguintes à proclamação da República, em novembro de 1889, o Apostolado Positivista, a organização hierarquicamente mais importante do positivismo no Brasil, levou a Benjamim Constant, Ministro da Guerra do governo provisório, um anteprojeto redigido por Miguel Lemos e Teixeira Mendes para realizar o ideal de incorporação do proletariado à sociedade moderna, “em nome de uma verdadeira política republicana”.

O documento que expunha essas propostas era apresentado, como diziam Miguel Lemos e Teixeira Mendes, “depois de uma consulta democrática a cerca de quatrocentos operários, que o haviam discutido em reuniões proletárias realizadas na primeira semana das novas instituições”.

A primeira reivindicação dos positivistas era a decretação, para os operários de oficinas e outros estabelecimentos estatais, de um salário mínimo que protegesse seu poder aquisitivo. O salário mínimo não seria um “salário ínfimo”, mas o suficiente, como no caso dos funcionários públicos, para o sustento da família do trabalhador. A jornada de trabalho ficaria limitada a sete horas por dia, com descanso obrigatório nos domingos e feriados, e os trabalhadores teriam direito de 15 dias de férias por ano.

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1 Paulo Carneiro, Organizador, As ideías políticas de Júlio de Castilhos, Brasília, Senado Federal, 1982, pgs. 26/27

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O salário seria composto de duas parcelas, uma fixa e a outra ajustada aos resultados do trabalho. Em caso de doença, sua ou de pessoa da família; de dia santificado segundo sua religião; e ainda de gala (casamento ou nascimento de um filho) ou de luto, o trabalhador continuaria recebendo a parte fixa do salário.

O trabalhador alcançaria estabilidade no emprego após sete anos de efetivo exercício. Depois disso, só poderia ser demitido se cometesse falta contra os regulamentos do trabalho, evidenciada em processo regular. Se ficasse inválido por qualquer motivo, seria aposentado com direito pelo menos à parte fixa do salário. Aos 63 anos de idade, ele poderia, independente de doença ou invalidez, aposentar-se com uma pensão equivalente a pelo menos a parte fixa do salário. Em caso de morte do trabalhador, a viúva, as filhas solteiras e os filhos menores de 21 anos teriam direito a pensão equivalente a dois terços do salário do morto.

Tais propostas referiam-se apenas aos assalariados de estabelecimentos estatais, porque a lei e o espírito da época – cem anos exatamente depois da Revolução Francesa! – não admitiam que o Estado interferisse na “liberdade” contratual de empregadores e empregados privados. Ainda assim, poucas propostas foram aceitas. As que o foram sairam com a ressalva de serem meramente normativas, ou seja, não-obrigatórias, “quanto às indústrias privadas que às mesmas aderissem”. A adoção de um salário mínimo e de uma jornada de trabalho limitada só se tornaram realidade mais de quarenta anos depois, com a Revolução de 1930.

O GOVERNO AVANÇA E A CONSTITUINTE RECUA

O governo provisório do Marechal Deodoro mostrou-se sensível à reivindicação de medidas sociais e de proteção ao trabalho – e a rigor não poderia ir muito além do que foi. A Constituinte é que poderia avançar e, no entanto, recuou. Não só recuou em relação a esses pequenos, mas sugestivos e quem sabe contagiosos avanços do governo provisório da República, como adotou normas que impediam até a futura adoção, pelo Congresso, de atos de regulamentação das relações de trabalho.

As propostas de Miguel Lemos e Teixeira Mendes ao Congresso Constituinte, em nome do Apostolado Positivista, seguiam a mesma linha dos projetos apresentados em novembro de 1889 ao governo provisório, mas tinham de tratar também da organização política da República. Melhor que expô-las e discuti-las uma a uma é verificar, com alguns exemplos, como votaram os constituintes republicanos do Rio Grande do Sul.

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O projeto do governo previa a eleição indireta do Presidente da República. A Comissão Geral encarregada de opinar sobre o projeto, conhecida como Comissão dos 21, da qual participava um representante de cada Estado e um do Distrito Federal2 e na qual Júlio de Castilhos era o representante do Rio Grande do Sul, não aceitava a eleição indireta, mas propunha um sistema complicadíssimo de eleição direta, pelo qual cada Estado teria um voto, conferido ao candidato majoritário em seu território. Na prática, isso podia significar que um candidato com menos votos no total do eleitorado, mas vitorioso em muitos Estados, derrotaria o candidato com mais votos no conjunto do país (como aconteceu nos Estados Unidos no ano 2000, com a eleição do Presidente George W. Bush, que teve menos votos, no conjunto do país, que seu adversário Albert Gore).

Tanto na comissão como, em seguida, no plenário do Congresso Constituinte, Júlio de Castilhos adotou o ponto de vista que acabaria prevalecendo - nem a eleição indireta, nem a tal eleição por Estados:

- Entendo - declarou ele - que o supremo funcionário nacional deve ser eleito pela Nação, representada pela maioria do eleitorado, que se compõe de todos os cidadão ativos. Desde que seja eleito pelos Estados, representando cada um destes um voto, pode facilmente acontecer que seja eleito pela minoria nacional o Presidente da República.3

Na eleição direta do Presidente, Castilhos e seus companheiros venceram na Constituinte. No mesmo capítulo da organização política, perderam em outra questão da mesma importância. Castilhos e seus companheiros republicanos do Rio Grande apoiaram a concessão do direito de voto aos analfabetos, que foi recusada e só se tornaria realidade quase cem anos depois, em 1985.4

Nisso, o Congresso Constituinte republicano recuou até mesmo em relação à Constituição do Império, de 1824. Esta não consagrava o voto universal, mas um voto censitário (só votava quem tivesse propriedades ou renda além de certo valor), e não proibia o voto do analfabeto – até porque o número de pessoas alfabetizadas em 1824 era tão reduzido, talvez entre 5 e 10% da população, que ou votavam os analfabetos (com renda ou propriedades) ou não haveria eleitorado. Proibir o voto do analfabeto dois anos depois da abolição da escravatura era privar os antigos escravos de qualquer direito político – era metê-los no seu lugar!

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2 A cidade do Rio de Janeiro era o Distrito Federal, sede do governo da República. Em Abril de 1960, a capital federal foi transferida para Brasília, que passou a ser o Distrito Federal. A cidade do Rio de Janeiro tornou-se o Estado da Guanabara, depois fundido ao Estado do Rio de Janeiro, do qual foi feita capital

3 Sérgio Costa Franco, Júlio de Castilhos...pg.92

4 Sérgio Costa Franco, Júlio de Castilhos...pg.93

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A derrota do voto do analfabeto já era sinal do destino de toda e qualquer proposta de avanço social e proteção ao trabalho e ao trabalhador. Cairam todas. Pior que isso. Caíu também uma tentativa de Castilhos, de transferir para os Estados a prerrogativa de adotar cada um os códigos de direito comum que mais lhes conviessem. Como as questões trabalhistas eram consideradas objeto da lei civil ou da lei comercial e não havia a menor disposição de reconhecer as relações de trabalho como objeto de leis específicas, transferir aos Estados a prerrogativa de disporem de seus próprios códigos seria permitir que os mais avançados politicamente adotassem leis mais avançadas de proteção ao trabalho e ao trabalhador.

A primeira Constituição republicana do Brasil foi promulgada em 24 de fevereiro de 1891, muito copiada da Constituição dos Estados Unidos, de cem anos antes, e absolutamente indiferente aos problemas sociais de um país que acabava de abolir a escravidão e trocar a monarquia pela república.

A CONSTITUIÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL

De volta a Porto Alegre, os representantes republicanos no Congresso Constituinte prestaram contas, em comício na Praça da Alfândega, de sua atuação e de seus votos. Com isso, cumpriam dois preceitos do código de ética do positivismo: “Viver às claras” era o primeiro. “Viver para outrem”, o segundo.

Cada Estado devia agora votar a sua Constituição, nos limites da Constituição Federal. Castilhos elaborou o projeto de uma Constituição estadual que conseguiu introduzir em seu texto a primeira norma constitucional de proteção ao trabalho e aos trabalhadores de que temos notícia em nossa história. Em nome do princípio positivista de incorporação do proletariado na sociedade moderna, a mesma norma fora proposta à Constituinte Federal e por ela rejeitada. Dizia apenas:

- Ficam suprimidas quaisquer distinções entre os funcionários públicos de quadro e os simples jornaleiros, estendendo-se a estes as vantagens de que gozarem aqueles.

Funcionários públicos todos sabemos o que são. Jornaleiros eram os operários e assemelhados do serviço público – operários dos serviços braçais nas estradas de ferro estatais, serventes de pedreiro em obras públicas, trabalhadores não qualificados na construção e manutenção de rodovias, faxineiros, jardineiros, zeladores.

Esse artigo adotado pela Constituição do Rio Grande do Sul, depois de rejeitado na Constituição Federal, não pretendia equiparar os salários desses trabalhadores braçais ao trabalho intelectual realizado pelos

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funcionários burocráticos mais qualificados, nem ao trabalho menos intelectual, mais mecânico, em parte manual, realizado por secretárias, datilógrafas e outros burocratas menos qualificados do serviço público.

Pretendia apenas estabelecer que, com salários diferentes, os direitos fundamentais seriam os mesmos: estabilidade por tempo de serviço, repouso semanal, férias, aposentadoria, licença remunerada em períodos de doença. Os jornaleiros, operários, não teriam nenhum direito que não coubesse aos funcionários. Mas o que fosse concedido a estes seria estendido a eles.

Era pouco, pouquíssimo, e restrito aos jornaleiros a serviço de órgãos do Estado. Era, porém, simbólico, sobretudo do que o Estado e sua Constituição estavam proibidos de fazer e do que a Constituição Federal - uma constituição republicana! - proibira ao próprio Congresso Nacional.

Essa única medida de caráter social não ficou letra morta na Constituição do Rio Grande.

Nos anos seguintes, Júlio de Castilhos foi Presidente do Rio Grande e regulamentou, nos termos desse único e solitário dispositivo constitucional, os direitos dos trabalhadores contratados para os serviços de dragagem das lagoas do Estado. Eles teriam salário mínimo; jornada de trabalho limitada a 9 horas nos meses de inverno, 10 na primavera e outono e 11 no verão; pagamento da remuneração normal nos dias em que o mau tempo ou outra circunstância extraordinária impedisse o trabalho; e pagamento de dois terços dos salários aos que adoecessem em serviço ou em conseqüência deste.

Na ausência praticamente total de normas de proteção ao trabalho em que então viviam os brasileiros, um simples regulamento como esse já era uma iniciativa revolucionária.

AS SEMENTES DA REVOLUÇÃO DE 30

A Constituinte e a Constituição do Estado estavam limitadas pela Constituição Federal. Não, porém, o Partido Republicano Riograndense. Um novo programa, aprovado depois da carta constitucional do Estado, assinada a 14 de julho de 1891, aniversário da Queda da Bastilha, continha propostas que não poderiam figurar nem na Constituição, nem, naquele momento, nas leis do Estado. E que não seriam aprovadas pelo governo federal ou pelo Congresso Nacional.

O novo programa do Partido Republicano Rio Grandense incluía entre suas teses econômico-financeiras as seguintes tarefas: animar o desenvolvimento da agricultura, a criação e indústrias rurais; promover os

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meios de transporte; organizar o plano geral de viação, como garantia da defesa do território nacional, do desenvolvimento industrial do País e facilidade de suas relações exteriores; protecionismo, proteção às indústrias do País; socialização dos serviços industriais, desde que o objeto da exploração seja um serviço público e que esse serviço não possa ser explorado pelos particulares, senão sob a forma de monopólio ou privilégio; educação e instrução popular; ensino técnico-profissional; supressão de quaisquer distinções entre os funcionários públicos do quadro e os simples jornaleiros, estendendo-se a estes as vantagens daqueles; concurso oficial do Estado às leis de assistência aos operários urbanos e rurais e que proporcionem, aos proletários, as condições materiais suficientemente estáveis à sua existência...; regime de oito horas de trabalho nas oficinas do Estado e nas indústrias; regime de férias aos trabalhadores; propagar, junto aos chefes agrícolas, comerciais e industriais, a necessidade de harmonizar os interesses do capital com o trabalho; proteção e defesa do íncola selvagem, garantindo-lhe a posse do território, acolhendo-o, educando-o, incorporando-o ao convívio nacional; proteção aos menores, mulheres e velhos; direito de greve, tribunal de arbitragem para resolver os conflitos entre patrões e operários.

Júlio de Castilhos deixou o governo do Rio Grande em janeiro de 1898 e foi sucedido por um de seus mais próximos colaboradores e amigos, Antonio Augusto Borges de Medeiros. Fora do governo, Castilhos, que fora advogado e jornalista antes de ser deputado e Presidente do Estado, decidiu que não tinha mais o direito de advogar. Considerava imoral postular como advogado perante juízes que ele próprio nomeara. Passou, por isso, a viver exclusivamente de suas atividades de pecuarista – e estabeleceu uma regra que seria observada por seu sucessor, Borges de Medeiros, e pelo sucessor deste, Getúlio Vargas.

Júlio de Castilhos morreu em 1903 e foi saudado, nas cerimônias fúnebres, por um estudante que disse:

- Ele não semeou em terra sáfara. Os belos ensinamentos que nos deixou serão continuados por aqueles que o seguiram e compreenderam.

Esse estudante chamava-se Getúlio Vargas.

2. Da República à campanha de Getúlio

Era essa, a dos abolicionistas e republicanos do Rio Grande do Sul, a herança política de Getúlio Vargas e seus companheiros da Revolução de 1930. Quando a candidatura de Getúlio à Presidência, nas eleições de 1º de março desse ano, foi proposta pelo Governador de Minas, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada,

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descendente da família de José Bonifácio, pouco se sabia dessa herança fora do Rio Grande.

A candidatura de Getúlio ainda não tinha nada a ver com a questão social e resultava da teimosia de Washington Luís. Este sucedera ao mineiro Arthur Bernardes e esperava-se que fosse sucedido por outro mineiro, no caso Antonio Carlos, de acordo com o esquema, chamado de café com leite, de revezamento de paulistas e mineiros na Presiência da República.

Washington Luís detestava Antonio Carlos e vetou sua candidatura, aproveitando para impor o nome de Júlio Prestes, Governador de São Paulo. Não era só a aversão a Antonio Carlos. Washington Luís estava dominado pela obsessão de garantir a continuidade de sua política financeira, que considerava prioritária a conversibilidadade da futura moeda brasileira, o cruzeiro, em substituição ao antigo mil-réis.

Vetado por Washington Luís, Antonio Carlos lançou o nome de Getúlio Vargas, Governador do Rio Grande do Sul. No regime eleitoral da época, sem voto secreto e sem Justiça Eleitoral, Minas e o Rio Grande poderiam compensar o peso eleitoral de São Paulo (que ainda não era o primeiro eleitorado do país; o primeiro era o de Minas). Getúlio tinha pacificado o Rio Grande e podia conseguir (como conseguiu) o apoio dos grupos antes opostos ao Partido Republicano Riograndense e liderados pelo libertador Assis Brasil. A Minas ao Rio Grande uniu-se a pequena Paraíba, que forneceu o candidato a Vice, seu Governador João Pessoa. Getúlio tinha também alguma força na cidade do Rio de Janeiro, então Capital da República e seu Distrito Federal, assim como em São Paulo, graças a uma dissidência do Partido Republicano que formara o Partido Democrático.

Já se sabia que a eleição presidencial seria mais fraudada e mais violenta do que todas as anteriores e muitos dos adeptos de Getúlio admitiam e até diziam que a eleição seria seguida pela revolução.

UM SOCIALISTA REVOLUCIONÁRIO

Em setembro de 1929, já candidato à Presidência, Getúlio receberia no Palácio Piratini, em Porto Alegre, a visita de um professor de Direito do Trabalho chamado Joaquim Pimenta, cuja história pessoal é inevitavelmente parte desta história.

Nas primeiras linhas das memórias de Joaquim Pimenta veremos por que:

- Uma impressão que muito cedo se me gravou no espírito de criança foi o que eu ouvia contar do

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tratamento que era dado aos escravos. Por qualquer motivo fútil, amarrados ao tronco e açoitados. Se o açoite não era castigo suficiente para apagar a falta ou aplacar a cólera do senhor, retalhavam-se-lhes as nádegas a navalha, as quais eram salgadas, em seguida.5

Joaquim Pimenta nasceu em Tauá, no Ceará, em 1886, quatro anos depois do nascimento de Getúlio Vargas, em São Borja, no Rio Grande do Sul. Assim como Getúlio, ele não teve tempo de ver escravos açoitados e

retalhados. O Ceará e o Rio Grande foram províncias pioneiras na libertação dos escravos. Mas a impressão que ficou na memória do menino Joaquim Pimenta não terá sido substancialmente diferente daquela que se fixara no espírito do menino Getúlio Vargas.

Getúlio Vargas, porém, cresceu vivendo experiências diferentes. Seu pai, o General Manoel do Nascimento Vargas, emancipara, sem indenização, todos os escravos que tinha. A experiência de Joaquim Pimenta era esta:

- O que mais me causava pena era ver pretas velhas, anos após a Abolição, ansiosas pelo marido, pelo filho, pelo neto, vendidos para outros municípios ou Estados distantes. Liberata era uma delas. Fora escrava de meu avô materno, tendo ficado conosco, mesmo depois de livre. Era uma das nossas mães pretas. Velava por nós e ralhava-nos com autoridade. Tinha um filho único, o Luís, nome que jamais esqueci, de tantas vezes que o ouvi por entre lágrimas. Tinha sido vendido a um senhor de escravos do Piauí. Passaram-se tempos, veio o 13 de maio e quando, em 1909, deixei Tauá, Liberata continuava a esperar, chorando, o filho que não voltava.6

Como Getúlio Vargas, Joaquim Pimenta fora profundamente marcado pela Abolição. Isso explica que, tão diferentes em temperamento, em origem e em formação, os dois se tivessem tornado tão próximos em pensamento.

A família de Pimenta era muito pobre e ele só conseguiu iniciar os estudos graças ao padre Joaquim Ferreira de Melo, pároco de Inhamum, pequeno município do qual Tauá era um distrito. O padre ensinou as primeiras letras ao menino, que começou a trabalhar ainda na infância, como cobrador de impostos nas feiras, alfaiate, sacristão e professor de uma escola noturna para menores. _______________________________________________________

5Joaquim Pimenta, Retalhos do Passado, Rio, 1949, ed. A. Coelho Branco Filho, p.11.

6 Ibidem,p.12

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Em 1904, com 18 anos, Joaquim Pimenta seguiu para Fortaleza, para continuar os estudos. Com a experiência que já acumulara, conseguiu emprego como professor primário, enquanto fazia o curso e exames preparatórios no Liceu do Ceará. O Liceu foi possivelmente a primeira escola que Joaquim Pimenta freqüentou como aluno; em 1906, com vinte anos, entrou para a Faculdade de Direito de Fortaleza.

Já era jornalista e socialista. Nessa época, no Brasil, mesmo no Rio, a Capital Federal, e em São Paulo, a segunda maior cidade, pouquíssimos jornalistas o eram profissionalmente, em condições de sustentar-se do trabalho jornalístico. Para a maioria, o jornalismo constituía atividade literária ou política; ou atividade política e secundariamente literária. Para Joaquim Pimenta, era sobretudo atividade política. Em compensação, era muito mais fácil que hoje, ou melhor, ainda era possível os jornalistas criarem seus próprios jornais. Com um grupo de amigos e colegas de Faculdade, Joaquim Pimenta fundou sucessivamente uma revista de oposição, A Fortaleza, um jornal anticlerical, O Demolidor, e outro de propaganda socialista, O Regenerador. Nos jornais grandes colaborava quando deixavam. Um artigo no Jornal do Ceará levou-o pela primeira vez à prisão.

Em 1909, Joaquim Pimenta transferiu-se para a Faculdade de Direito do Recife, em Pernambuco, pela qual se formou.

Socialista, jornalista, professor e advogado, era natural que Joaquim Pimenta se aproximasse do movimento sindical, ainda incipiente, mas já vigoroso, e fosse por ele adotado como um de seus maiores conselheiros.

Em 1919, Joaquim Pimenta liderou uma greve geral dos trabalhadores do Recife, contra a multinacional Pernambuco Tramways, que explorava os serviços de energia elétrica e bondes e demitira todos os seus empregados que tinham comparecido à assembléia de fundação do sindicato dos trabalhadores na empresa. A fundação do sindicato coincidira com a reivindicação de aumento de salários (a Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918, provocara enormes aumentos de preços) e da adoção da jornada de trabalho de oito horas.

A greve isolou Recife e teve o apoio da maior parte da população da cidade, muito mal servida pela Tramways e ainda mais por sua atitude indiferente e arrogante, o que era a conduta habitual das todo-poderosas multinacionais concessionárias de serviços públicos no Brasil. Com esse apoio e mais o dos sindicatos e dos trabalhadores de todo o Estado, a greve foi vitoriosa e a Tramways teve de aceitar um acordo pelo qual atendia a quase todas as reivindicações dos grevistas.

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Em 1921, Joaquim Pimenta lideraria outra greve, chamada a “Campanha da Fome”, ainda maior e de repercussão nacional. A Assembléia de Pernambuco aprovara um aumento de impostos, em especial impostos indiretos, sobre vendas a varejo, que ficou conhecido como “Orçamento-Monstro”. Eram tão pesados os impostos que o aumento de preços correspondente tornaria inacessíveis aos assalariados até os produtos mais baratos.

As fábricas e os transportes foram paralisados pelos trabalhadores e Pimenta conseguiu a adesão dos empresários do comércio, que fecharam lojas e armazéns. O governo do Estado e a Assembléia foram obrigados a ceder e os novos impostos tiveram redução substancial. Mas as lideranças conservadoras da política pernambucana chegaram à conclusão de que estava na hora de enquadrar os sindicatos e pessoas como Joaquim Pimenta.

Ameaçado de morte, o que não o intimidava, amigos convenceram-no de que também sua mulher e seus filhos corriam perigo. Ele acabou concordando em mudar-se para o Rio.

Socialista revolucionário, Joaquim Pimenta procurava não ser dogmático, intolerante e inflexível. Suas

convicções políticas vinham muito mais da vida e da experiência que dos livros – embora raros teóricos, se é que algum, tivessem lido mais que ele. Os anos de ação política, a mais radical, na vida sindical tinham-no convencido de que, em vez de entregar o destino dos trabalhadores e dos explorados em geral a um remoto e indefinido futuro, devia aproveitar as oportunidades que o presente oferecesse.

Foi assim que, já no Rio, ele participou em 1926 da fundação do Partido Democrático Nacional, partido de oposição. Seguindo a mesma linha, de não ser dogmático e do contra, Joaquim Pimenta compareceu, em agosto de 1929, à convenção em que o Partido Democrático decidiu incorporar-se à Aliança Liberal e, por 343 votos a dois, apoiar a candidatura de Getúlio Vargas à Presidência da República.

Joaquim Pimenta foi um dos 343 votos a favor:

- Mas aproveitei o momento para uma série de considerações sobre a batalha que se ia travar em torno do problema da sucessão presidencial, cujo desfecho eu apontei, preso a um dilema: ou a vitória pelas urnas ou a vitória pelas armas. Já eu acreditava mais nesta do que naquela, em que a violência e a fraude é que sempre decidiam a favor dos governos.

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Na noite de 7 de setembro de 1929, Joaquim Pimenta estava em Belo Horizonte, num comício da Aliança Liberal, diante do Palácio da Liberdade, sede do governo de Minas. Passava de meia-noite, o público e os oradores estavam sonolentos, quando Antonio Carlos, o Presidente de Minas e principal articulador da Aliança Liberal, pediu a Joaquim Pimenta que falasse, para encerrar o comício, que estava morno e desinteressante, depois de um professor que lera as vinte laudas de um ensaio histórico-sociológico certamente da maior importância, mas não para as milhares de pessoas que estavam ali, de pé, horas a fio, na expectativa, na melhor das hipóteses, de esperanças. Na pior, de palavras de ordem.

- Fale você – disse Antonio Carlos a Joaquim Pimenta – e dê o comício por terminado.

Pimenta falou menos de dez minutos, e terminou dizendo:

- Agora, o lema vai ser este: o voto no bolso e o rifle nas costas, para garantir o voto!...

No dia seguinte, Joaquim Pimenta foi despedir-se de Antonio Carlos. Tinha de voltar pelo noturno, o trem da noite, ao Rio. Antonio Carlos acolheu-o com um abraço efusivo:

- Conseguiu ontem uma coisa que dificilmente se consegue dos mineiros: sacudir-lhes os nervos. Você eletrizou-os com aquele lema do voto no bolso e do rifle nas costas ... Deu-me, então - diz Pimenta - uma carta de apresentação para o Dr. Getúlio Vargas, em Porto Alegre, para onde segui logo após o meu regresso ao Rio.7

ENCONTRO COM GETÚLIO

Joaquim Pimenta passou talvez duas semanas no Rio Grande do Sul:

- Senti-me diante de um povo cujo passado, de sangrentas e famosas escaramuças históricas, tivera nos pampas os seus campos de treinamento. O gaúcho ainda trazia nas veias o sangue farroupilha, das insurreições avoengas, borbulhando, refervendo, por décadas a fio, em lutas fratricidas, acesas por rivalidades e ódio hereditários, entre republicanos e federalistas ou “maragatos”. Mesmo assim, com um sentimento de brasilidade, talvez mais vivo ou mais vigilante do que em outro qualquer Estado...

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7 Ibidem, pp. 381-382.

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- Foi, sobretudo, o que bem depreendi ao tomar parte em um comício de intensa vibração cívica, com passeata pelas ruas de Porto Alegre, em propaganda das candidaturas da Aliança Liberal à presidência e vice-presidência da República.

Depois de tudo o que tinha vivido, depois do comício de Belo Horizonte e, nele, de sua proclamação revolucionária, Pimenta não fora ao Rio Grande como simples jornalista, para observar e descrever a cena política daqueles dias. Pela carta de Antonio Carlos e pelo que já soubesse de Joaquim Pimenta, Getúlio Vargas percebia não ser disso que se tratava.

Em Porto Alegre, Joaquim Pimenta esteve três vezes com Getúlio Vargas.

- Além de uma visita de cortesia, duas vezes estive com o Dr. Getúlio Vargas, no palácio do governo, onde ele residia com a família. Na primeira, pediu-me impressões dos Estados do Norte, do ponto de vista eleitoral e em relação à sua candidatura.

Na última visita, abordou-se a questão social no Brasil. E Pimenta decidiu ser extremamente hábil e delicado, o que não era de seu hábito:

- Comecei como apalpando o terreno, que eu reputava delicado para atacá-lo logo de frente, dada a sua complexidade, sobretudo em um país do qual podia dizer-se que, em matéria de direito do trabalho, continuava na retaguarda de outros, [que se encontravam] industrialmente em plano igual e com uma população proletária numericamente inferior.

O indômito Joaquim Pimenta estava cerimonioso, talvez intimidado diante do Presidente do Rio Grande do Sul, candidato oposicionista a Presidente da República.

Getúlio, porém, surpreendeu Joaquim Pimenta com a declaração categórica de que seria um dos pontos essenciais do seu programa de governo ir ao encontro do operariado, proporcionando-lhe um regime de proteção dos seus interesses profissionais.

- Fiquei mais à vontade, mais desembaraçado para manifestar-me sem reservas.

Pimenta, porém, tinha data marcada de volta ao Rio – em navio, como quase sempre na época, e não em avião, como depois. Getúlio Vargas, que o recebera na dupla condição de Presidente do Rio Grande e candidato à Presidência da República, despediu-se dele pedindo que apresentasse, por escrito, “o que pudesse ser objeto de uma legislação trabalhista”.

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Isso foi em setembro de 1929. Mais de um ano depois, Chefe do Governo Provisório da Revolução vitoriosa, Getúlio Vargas chamaria de novo o perigoso revolucionário Joaquim Pimenta, não mais para apresentar propostas, mas para elaborar leis. Mas ainda estamos em setembro de 1929:

- De Pelotas, e em papel de carta do hotel onde me hospedei apenas um dia, para realizar naquela cidade uma conferência pública, lhe enviei um pequeno plano... Sugeria que fossem reformadas as poucas leis que já tínhamos, começando pela lei sindical, que era de 1907, as de acidentes de trabalho, de férias, de cooperativas, e que se tornasse o seguro social, até então circunscrito a caixas de aposentadorias e pensões para ferroviários e portuários, extensivo a todos os trabalhadores, sem distinção de categoria profissional, além de outras medidas não menos inadiáveis. Ainda era um programa mínimo, porque, com a minha experiência pessoal, teria de levar em conta a resistência que as “classes conservadoras”, e em um governo que só poderia ser “conservador”, naturalmente iriam opor a um plano de reformas sociais mais avançado ou mais amplo.

Para o socialista revolucionário Joaquim Pimenta, o governo resultante de uma vitória eventual da Aliança Liberal só poderia ser “conservador”. Mas teve uma primeira surpresa:

- Com surpresa, verifiquei que na plataforma, lida na Esplanada do Castelo, em que traçava os rumos do seu governo, se fosse eleito, o Dr. Getúlio Vargas ia além das sugestões que eu apresentei.8

3. A Plataforma da Aliança Liberal

A campanha presidencial foi marcada pela violência. Para evitar que ela fosse ainda maior, Getúlio decidiu ficar no Rio Grande e só realizar um comício com sua presença, no Rio, em 2 de janeiro de 1930.E viajou de Porto Alegre para o Rio, de avião, na tarde de 30 de dezembro de 1929.

Já a recepção a Getúlio, no início da noite de 30 de dezembro, demonstrava, como escreveria o jornalista gaúcho Rubens Vidal Araújo, que “o Rio parecia tomado pelo delírio político”.9

- O avião que traria Getúlio Vargas de Porto Alegre era esperado entre as 6 e as 7 horas da tarde. Duas

horas antes, a Avenida Rio Branco estava apinhada de gente. A Polícia Militar espalhou em toda a extensão

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8 Ibidem, pp. 383 a 385.

9 Rubens Vidal Araújo, Os Vargas, Rio, Ed. Globo, 1985, p. 81

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da avenida vários contingentes de cavalaria. Talvez pretendesse só atemorizar; mas depois, raciocinando melhor, mandou retirar parte dos soldados.

- Às 7 horas, já estava escuro, o hidroavião do Condor Syndikat, que trazia Getúlio, pousou nas proximidades do Touring Club.

O que se conhecia e por muito tempo continuaria a ser conhecido por Touring Club era a principal estação de embarque e desembarque de passageiros do Porto do Rio - passageiros de navio.

Com o desenvolvimento da aviação e a inexistência de bons e acessíveis aeroportos, não só no Rio como em todo o país, o tráfego aéreo para cidades como o Rio e Porto Alegre era feito principalmente por hidroaviões.

O Porto do Rio começava, exatamente pela estação do Touring, na Praça Mauá, hoje decadente e degradada, mas na época a grande porta de entrada da cidade. Na Praça Mauá tinha início a Avenida Rio Branco, antiga Avenida Central, que atravessava o centro da cidade e terminava diante do mar, no início das avenidas litorâneas que percorriam a Glória, o Flamengo e Botafogo - até chegar a Copacabana, um lugar e um nome ainda sem a magia das décadas seguintes.

- Vargas - e aqui retomamos a narrativa de Rubens Vidal Araújo - desembarcou acompanhado de D. Darcy, de um assistente militar e de seu secretário particular. Ele e João Pessoa [o candidato a Vice, que chegara pouco antes ao Rio] tomaram um automóvel aberto, com a capota arriada. Atrás deles se formou um cortejo de automóveis, que começou a se movimentar lentamente, em direção à avenida [a Avenida Rio Branco].

- A Praça Mauá, segundo a expressão de João Neves, que vinha no segundo automóvel, ladeado pelas esposas dos dois candidatos, parecia um “mar de povo”. A massa impedia o carro de entrar na avenida.

- A partir daí, o automóvel de Getúlio foi empurrado a pulso.

(Coisa da mesma ordem acontecera nos tempos da Belle Époque, quando os jovens e os poetas livraram de seus arreios os cavalos que a conduziam e passaram a levar, a pulso, a carruagem de Sarah Bernhardt, a maior das atrizes e a mais desejada das mulhares de seu tempo.)

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- A polícia militar - prossegue a narrativa de Rubens Vidal Araújo - teve de encostar os cavalos nas paredes, para dar passagem ao povo. Quando o cortejo atingiu a altura da rua do Ouvidor, Batista Lusardo emergiu de uma janela.

Lusardo já era um dos mais ardentes e famosos tribunos da Aliança Liberal. Numa época tão anterior à era da televisão, era mais conhecido no Rio que muitas das celebridades, tão artificiais e insignificantes, de nossos dias. Lusardo, de sua janela, aponta para o primeiro carro do cortejo e pergunta, ao povo, na rua:

- Quem vem lá? É o Rio Grande, com Getúlio Vargas!

O cortejo detém-se, a multidão que o acompanhava pára também, para ouvir o grande tribuno. Depois dele, falam outros oradores. É uma parada de meia hora, para esse comício improvisado.

- A revolução - diz Rubens Vidal Araújo - já tinha começado, mas eles não sabiam.10

O próximo episódio dessa revolução que já tinha começado seria o comício de Getúlio no Rio, o comício da Esplanada. Nem o Presidente da República, Washington Luís nem Getúlio poderiam imaginar o que seria esse comício. A Aliança Liberal, que já tinha desistido dos planos de uma campanha de grande envergadura, em moldes “americanos”, como se dizia, conformara-se com a realização, para a leitura da plataforma, de um ato público em recinto fechado - por exemplo, o plenário da Câmara dos Deputados, onde já se realizara a convenção da Aliança Liberal, para lançamento das candidaturas de Getúlio e João Pessoa.

A intolerância e a obtusidade dos amigos de Washington Luís (e dele próprio) levaram-nos, porém, a sugerir ao Presidente da Câmara, Rego Barros, que recusasse as instalações do Palácio Tiradentes. O que foi feito.

Os dirigentes da Aliança Liberal pensaram, então, no Teatro Municipal, que a Prefeitura do Rio, acionada pela mesma inspiração, também negou. Salas particulares foram igualmente tentadas e negadas, por pressão do governo ou temor a ele.

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10 Rubens Vidal Araújo, Os Vargas, Rio, ed. Globo, 1985, p. 81

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Afinal, por falta de alternativa, a Aliança decidiu-se pela Esplanada do Castelo, então um imenso descampado ainda mal urbanizado, resultante do desmonte do Morro do Castelo.

Apenas um imenso descampado, a Esplanada tinha a vantagem de ficar perto da Avenida Rio Branco, ponto de maior intensidade de vida política no Rio, da Câmara dos Deputados, das linhas e paradas de bondes - nas Barcas, na Praça Quinze, no Tabuleiro da Baiana (Largo da Carioca), na Lapa, na Rua Primeiro de Março. Numa cidade amena e novidadeira como o Rio, a Esplanada do Castelo era muito mais convidativa para as pessoas comuns que o recinto da Câmara dos Deputados, o Teatro Municipal ou o salão do Automóvel Club.

A afluência de público ao comício da Esplanada do Castelo, onde apenas se armara um palanque ou coreto para Getúlio e os outros oradores, foi uma coisa nunca vista, não só na Capital como no resto do país. Milhares de cariocas, que tinham recebido Getúlio na Praça Mauá, na Avenida Rio Branco e na Avenida Beira Mar, até o Hotel Glória, onde sua comitiva se hospedou, voltaram ao centro da cidade a 2 de janeiro, para ouvi-lo no comício do Castelo.

Pela urgência e pela improvisação, poucos dos milhares de espectadores do comício da Esplanada conseguiram ouvir o discurso de Getúlio Vargas.

Para a maioria, o resumo do discurso era este: a questão social não é caso de polícia.

As multidões cariocas - as que recepcionaram e acompanharam Vargas em sua chegada, na noite de 30 de dezembro, e as que, mal despertadas do revéillon, foram a seu comício a 2 de janeiro na Esplanada do Castelo - souberam melhor, pelos jornais do dia e dos dias seguintes, o que Getúlio Vargas dissera no comício.

Também pelos jornais, as futuras multidões de São Paulo devem ter tido a mesma notícia.

O QUE GETÚLIO DISSE

Quatro anos antes, em sua plataforma de candidato à Presidência, apresentada em fins de 1925 (a eleição seria em março de 1926), Washington Luís dissera, com todas as letras, decepcionando aqueles que depositavam esperanças em seu governo:

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- ... entre nós, a questão operária é uma questão que interessa mais à ordem pública que à ordem social...11

Era o mesmo que dizer que a questão social era caso de polícia. Washington Luís, diante da reação veemente a essa espantosa declaração, prometeu que apresentaria algumas leis de proteção ao trabalho. Mas seu governo foi o oposto disso: foi o governo das leis compressoras, da chamada lei celerada, ou lei bandida, que vinha do governo Epitácio Pessoa, uma lei de repressão a atividades supostamente subversivas, mas usada, na prática, para impedir virtualmente todas as formas de luta social e particulamente o funcionamento dos sindicatos. Foi um governo para o qual, na verdade, a questão social, a questão política, a questão econômica eram, todas elas, simples casos de polícia.

Mais de quatro anos depois, a 2 de janeiro de 1930, no comício da Esplanada do Castelo, Getúlio Vargas dirá o contrário da plataforma e da prática de Washington Luís, ao ler a plataforma da Aliança Liberal.

Getúlio começa dizendo que aquele era um programa mais do povo que do candidato. E explica por que:

- Apesar de nem sempre terem dos fatos uma visão de conjunto, são realmente as classes populares, sem ligações oficiais, as que sentem, com mais nitidez, em toda a extensão, pelo instinto e pelo reflexo da situação geral do país sobre suas condições de vida, a necessidade de modificação dos processos políticos e administrativos.

Os partidários do governo Washington Luís – prossegue Getúlio – exaltam uma “realidade brasileira” que não sabem bem qual é e que na prática “reduz-se aos fenômenos materiais da produção da riqueza”, fenômenos ligados, na maioria dos casos, a “censuráveis privilégios e monopólios”.

Getúlio defende a anistia, que beneficiará os perseguidos políticos dos governos anteriores, especialmente os militares e civis rebelados em 1922, 1924 e na Coluna Prestes. A anistia parecia estar entre os compromissos de Washington Luís mas vinha sendo negada por ele em todos os momentos de sua presidência.

- Não é, apenas, esta ou aquela parcialidade partidária que a solicita. É o país que a reclama - diz Getúlio. _______________________________________________________

11 Rosa Maria Barbosa de Araújo, O Batismo do Trabalho, a experiência de Lindolfo Collor, Rio, Civilização Brasileira, 1981, p. 46.

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Assim como a anistia, a liberdade do voto é outro pressuposto dessa revolução em marcha, que pretendia confinar-se aos limites pacíficos de uma revolução pelo voto. Getúlio denuncia:

- Em muitos Estados, excetuadas as capitais e as cidades mais importantes, não se fazem eleições. Dias antes dos pleitos, os livros eleitorais percorrem as circunscrições, recebendo as assinaturas dos eleitores “amigos”. De acordo com essa coleta, lavram-se as correspondentes atas, que são encaminhadas, após, com todas as exteriores formalidades oficiais. No dia do pleito, ao se apresentarem, os eleitores oposicionistas e os fiscais dos respectivos candidatos não encontran nem os mesários nem um oficial público...

Para estabelecer um mínimo de verdade no voto, Getúlio propõe, em primeiro lugar, o voto secreto. Adverte, porém, que ele não será suficiente: é preciso criar a Justiça Eleitoral, transferir a realização e a apuração das eleições de instâncias políticas, como o Congresso Nacional, para magistrados independentes, sem qualquer sujeição ao governo.

Afinal, Getúlio trata daquilo que é o essencial, que Washington Luís, em 1925, considerara um problema de ordem pública, ou seja, de polícia. Getúlio diz:

- Não se pode negar a existência da questão social no Brasil, como um dos problemas que terão de ser encarados com seriedade pelos poderes públicos. O pouco que possuimos em matéria de legislação social não é aplicado ou só o é em parte mínima, esporadicamente, apesar dos compromissos que assumimos a respeito, como signatários do Tratado de Versalhes...

(O Tratado de Versalhes, assinado em 1919 no palácio desse nome, nos arredores de Paris, restabelecera a paz entre os países participantes da Primeira Guerra Mundial, 1914-1918, e impusera pesadas reparações à Alemanha derrotada. Por sugestão do Presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, o Tratado incluía o compromisso, por parte dos países signatários, entre os quais o Brasil, de promover o avanço da legislação social em seu território e em benefício de sua população.)

- Se o nosso protecionismo favorece os industriais, em proveito da fortuna privada – prossegue Getúlio - corre-nos também o dever de acudir ao proletário com medidas que lhe assegurem relativo conforto e estabilidade e o amparem nas doenças como na velhice.

- A atividade das mulheres e dos menores, nas fábricas e estabelecimentos comerciais, está, em

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todas as nações cultas, subordinada a condições especiais que, entre nós, até agora, infelizmente se desconhecem...

- Tanto o proletariado urbano como o rural necessitam de dispositivos tutelares, aplicáveis a ambos, ressalvadas as rspectivas peculiaridades. Tais medidas devem compreender a instrução, educação, higiene, alimentação, habitação; a proteção às mulheres, às crianças, à invalidez e à velhice; o crédito, o salário e até o recreio, como os desportos e a cultura artística.

- É tempo de se cogitar da criação de escolas agrárias e técnico-industriais, da higienização das fábricas e usinas, saneamento dos campos, construção de vilas operárias, aplicação da lei de férias, lei do salário mínimo, cooperativas de consumo etc.

UMA CÓPIA DE MUSSOLINI?

Getúlio será acusado, pelo resto dos seus dias, e, ainda depois, pelas décadas transcorridas desde a manhã de sua morte, 24 de agosto de 1954, de ter imposto ao Brasil uma cópia da legislação fascista e corporativa italiana do trabalho, a Carta del Lavoro, de Mussolini.

O fascismo era um regime de proteção aos grandes interesses econômicos, locais e estrangeiros, mascarado sob a aparência de proteção aos trabalhadores. Teve, por isso, o apoio das forças conservadoras e reacionárias na Itália e fora dela. Winston Churchill, por exemplo, dizia, antes da Segunda Guerra Mundial, que, se fosse italiano, seria fascista.

A afirmação de que Getúlio impusera ao Brasil uma cópia da legislação fascista será repetida, uns copiando os outros, tanto por acusadores de esquerda como por acusadores de direita. Mas ainda em 1930, quatro meses apenas depois do comício da Esplanada do Castelo, o Capitão Luís Carlos Prestes, exilado em Buenos Aires, romperá com seus antigos companheiros de 1922, de 1924 e da Coluna Prestes, porque estes aderem quase todos à Aliança Liberal e à candidatura de Getúlio Vargas, enquanto ele acaba de optar pelo marxismo-leninismo, decide fundar uma liga de ação revolucionária e evidentemente considera a hipótese de filiar-se ao Partido Comunista.

No documento em que expõe suas razões e seu programa, divulgadíssimo no Brasil, publicado na íntegra por vários jornais e conhecido como “Manifesto de Maio”, Prestes propõe praticamente tudo isso que Getúlio propusera na plataforma da Aliança Liberal. Prestes, no momento em que se declarava comunista, também estaria sob a influência do fascismo, de Mussolini e da Carta del Lavoro?

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GETÚLIO PROPÕE A REFORMA AGRÁRIA

Getúlio, na plataforma da Aliança Liberal, propôs também a reforma agrária:

- É necessário atender à sorte de centenas de milhares de brasileiros que vivem nos sertões, sem instrução, sem higiene, mal alimentados e mal vestidos, tendo contacto com os agentes do poder público apenas

através dos impostos extorsivos que pagam.

- É preciso grupá-los, instituindo colônias agrícolas; investi-los da propriedade da terra, fornecendo-lhes os instrumentos de trabalho, o transporte fácil, para a venda da produção excedente às necessidades do seu sustento...

- Tal é a valorização básica, essa sim, que nos cumpre iniciar quanto antes - a valorização do capital humano, por isso que a medida da utilidade social do homem é dada pela sua capacidade de produção.

Em outro capítulo da plataforma, o do desenvolvimento econômico, Getúlio voltará à questão da terra, em termos ainda mais precisos:

- Em não poucas das regiões mais próprias para a agricultura, impera ainda o latifúndio, causa comum do desamparo em que vive geralmente o proletariado rural, reduzido à condição de escravo da gleba. Nessas regiões, seria conveniente, para os seus possuidores e para a coletividade, subdividir a terra, a fim de colonizá-la, fazendo-se concessões de lotes, a estrangeiros como a nacionais, a preços módicos, mediante pagamento a prestações, além do fornecimento de máquinas agrícolas, mudas e sementes...

Também seria fascista essa proposta de divisão do latifúndio?

Em lugares como o Rio e São Paulo, essa proposta de reforma agrária - que situava a questão da terra nos termos em que ainda seria furiosamente discutida mais de meio século depois - pode ter parecido uma coisa muito remota, que dissesse respeito a um Brasil de vastidões interiores e distantes, desconhecido do Brasil das grandes cidades, quase todas a beira-mar e as outras a pouca distância do litoral.

Mas o simples fato de reconhecer a existência e a urgência de uma questão social - que Washington Luís tratava como caso de polícia - identificou Getúlio com as multidões das grandes cidades. Qual dos

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presentes a essas duas primeiras manifestações de democracia de massas - o comício do Rio e o de São Paulo - considerar-se-ia indiferente a propostas como o salário mínimo, a aposentadoria, a lei de férias, a proteção ao trabalho da mulher e do menor e a expectativa da casa própria?

O próprio inventário de problemas suscitados por Getúlio mostra como era absoluto o atraso em que se realizavam as relações econômicas no Brasil de Washington Luís e como era incrivel a indiferença do governo e do Presidente da República diante desse atraso.

UM PROJETO NACIONALISTA DE DESENVOLVIMENTO

A proposta de reforma social seria inconsequente se não estivesse associada a um projeto de desenvolvimento econômico. Nos Estados Unidos, mesmo depois do crash da Bolsa em outubro de 29, Herbert Hoover, um Presidente em tanta coisa parecido com Washington Luís, continuava a acreditar que o “mercado” resolveria todos os problemas, sem outra interferência do governo a não ser o repasse de recursos aos bancos, que fariam esse dinheiro, mediante módica remuneração, descer até as raizes da economia, para irrigá-las. Hoover persistiu nessa crença obstinada até ser derrotado pelo futuro Presidente Franklin D. Roosevelt na eleição presidencial de novembro de 1932.

No Brasil, fundamente atingido pela crise da economia mundial, deflagrada pela queda da Bolsa de Nova York, em 1929, Getúlio propõe, como Roosevelt faria nos Estados Unidos, uma política de desenvolvimento a longo prazo e uma política econômica de curto prazo, para enfrentar a situação de pânico na economia.

As primeiras perguntas, quanto ao que fazer de imediato, teriam de ser estas:

Manter ou mudar o famoso plano financeiro de Washington Luís, verdadeiro fetiche que levava o Presidente da República a todas as loucuras para fazer de Júlio Prestes seu sucessor?

Manter ou mudar a política chamada de valorização do café, que se transformara num mecanismo de subsídios afinal açambarcados pelas empresas estrangeiras que operavam no comércio exportador e dominavam cada vez mais a lavoura cafeeira e as atividades intermediárias?

Getúlio era Presidente de um dos Estados mais importantes, fora Ministro da Fazenda, tinha de saber que nas questões de dinheiro não há cuidado que seja excessivo. Ele, portanto, responde com extrema cautela à primeira pergunta.

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O êxito do plano financeiro de Washington Luís, que pretende a estabilização e o fortalecimento da moeda, não depende nem da moeda nem do plano, mas da situação geral do país. Abandonar pura e simplesmente o plano pode produzir prejuízos maiores que os benefícios da mudança brusca de diretriz. É necessário enfrentar o problema com a visão do conjunto dos problemas do país e não apenas unilateralmente.

Getúlio não diz, mas deixa claro que Washington Luís agiu unilateralmente, obcecado pelo plano, com o qual pretendia consagrar-se como um estadista de larga visão - embora só o tivesse inventado quando soube, em viagem pela Europa, já eleito, que a idéia das moedas fortes era a última moda econômica na França e na Itália.

É curioso que Washington Luís não tivesse sabido, nessa viagem, que ainda em 1925, um economista inglês talentosíssimo, chamado John Maynard Keynes, opusera-se a uma idéia parecida a essa última moda francesa e italiana, que era o retorno da Inglaterra ao padrão ouro, à taxa, em vigor antes da guerra, de 4.86 dólares por libra.

Keynes causara impacto em toda a Europa, em 1919, ao renunciar ao posto de conselheiro econômico do Primeiro-Ministro britânico Lloyd George na Conferência de Paz de Versalhes, protestanto contra o espírito de chicana da conferência e o irrealismo de suas decisões - entre as quais a de impor à Alemanha derrotada reparações de guerra que ela jamais poderia pagar (e que seriam a rampa de subida para que Adolf Hitler chegasse ao poder).

Em apenas dois meses, Keynes escreveu um livro devastador, As Consequências Econômicas da Paz, que foi um sucesso.

Em 1925, quando se opôs ao retorno da Inglaterra ao padrão-ouro, Keynes antecipou algumas das conclusões dos livros que publicaria em 1930 (Tratado da Moeda) e 1935 (Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda) e que seriam a grande fundamentação teórica da economia do século 20. Já em 1925 Keynes estava preocupado com o persistente desemprego, na Inglaterra, entre os mineiros de carvão, os operários da construção naval e os trabalhadores têxteis, e apoiou os programas do Partido Liberal em favor da realização de obras públicas (e, portanto, de gastos públicos) que dessem trabalho aos desempregados.

Washington Luís, com seu otimismo arbitrário, viu apenas o êxito de Poincaré na França, sem levar em conta que a França era a cabeça de um imenso império colonial e explorava em seu benefício as riquezas

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naturais e o trabalho de seus súditos em toda a Indochina, em boa parte do norte da África (Argélia, Tunísia, Marrocos), na chamada África Equatorial Francesa (do Senegal, no Atlântico, aos limites do Sudão, já chegando ao vale do Nilo), na própria América do Sul e no Caribe (Guiana Francesa, Martinica) - e ainda dispunha de um mandato conferido pela Sociedade das Nações para a administração, em conjunto com a Inglaterra, de pedaços do Oriente Médio (na Síria, no Líbano, na Palestina).

Essa França, imperial em pleno século 20, era uma bomba de sucção sobre vastíssimas e riquíssimas regiões do mundo, e a boa administração de seus ganhos externos podia estabilizar a moeda e garantiu que a França só fosse atingida pelos efeitos da depressão mundial em 1931, dois anos depois do crash da Bolsa de Nova York.

O Brasil, porém, era vítima de várias bombas de sucção externas e padecia de um processo de perdas internacionais cada vez maior. O Brasil perdia, nos juros dos empréstimos que tomava no estrangeiro para bancar a valorização de sua moeda; e perdia outro tanto na transferência dos lucros da economia cafeeira e dos próprios subsídios destinados à sua sustentação para os grandes consórcios estrangeiros que exploravam indiretamente a lavoura, e diretamente as atividades intermediárias e a exportação do café.

Entre o plano e o país, Washington Luís, que só tinha olhos para as soluções conservadoras e conseguira passar pela Europa imune às proféticas advertências de John Maynard Keynes, ficara com o plano. Getúlio acha melhor pensar primeiro no país.

A meta de Washington Luís era, depois de estabilizar o câmbio, ou seja, a paridade do mil-réis brasileiro com o dólar norte-americano, a libra esterlina inglesa e outras moedas fortes, substituir aquele mil-réis inconversível por outra moeda, o cruzeiro, que seria de ouro ou lastreado em ouro, pelo qual poderia ser trocado.

Para Getúlio, o plano continuava na primeira fase, em busca da estabilização do mil-réis. Ainda quando isso fosse conseguido (se o fosse), “tornava-se necessário um compasso de espera, para que, em torno da nova taxa cambial, se processasse o reajustamento de nossa vida econômica”.

- Após o decurso de um tempo que não pode ser fixado com precisão, porque depende do nosso desenvolvimento econômico, do aumento da nossa capacidade produtora e do aumento do estoque ouro da Caixa de Estabilização, é que se poderá atingir a parte final do plano: o resgate do papel inconversível e a instituição da circulação metálica.

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Washington Luís apegava-se obsessivamente a seu plano de estabilização monetária, que hoje se pareceria muito com o plano argentino de paridade entre o peso e o dólar adotado na Argentina na década de 1990 pelo governo de Carlos Menem, com a ruína de uma economia e de um país que já tinham vivido momentos brilhantes.

Em 1930, porém, o dólar ainda estava longe de ser a moeda mundial que é hoje e não podia servir de “âncora”, digamos assim, para o plano de Washington Luís. O plano deste era tornar o futuro dinheiro brasileiro, o cruzeiro, conversível não em dólar, mas em ouro.

Deslumbrado por essa expectativa, delirando com ela, Washington Luís decidiu lutar pela forma de reeleição que lhe pareceu possível: fazer um sucessor que ele próprio pudesse controlar de perto, a cada passo e em cada instante. Esse sucessor, na cabeça de Washington Luís, só poderia ser Júlio Prestes, que fora seu líder na Câmara e era Presidente de São Paulo.

Para fazer Júlio Prestes Presidente, Washington Luís isolou-se de Minas e do Rio Grande, que tinham avalizado e viabilizado sua eleição; e vetou o principal chefe político mineiro, Antonio Carlos, um Andrada da estirpe de José Bonifácio, o Patriarca da Independência. Esse veto levou Antonio Carlos a levantar a candidatura de Getúlio Vargas e, pela primeira vez em quarenta anos de República, oferecer a Presidência ao Rio Grande, que, afinal, nas palavras do próprio Rui Barbosa, garantira o trinfo republicano no dia de sua proclamação, 15 de novembro de 1889. Foi por aí, pela reeleição oblíqua, na pessoa de Júlio Prestes, e pela obsessão com um plano monetário insustentável nas condições da economia brasileira e da própria economia mundial, que Washington Luís começou a sepultar seu governo ainda vivo e a própria República Velha.

Estas eram as circunstâncias em que se iniciava a campanha presidencial e em que Getúlio Vargas apresentava os pontos de sua plataforma de governo, na condição de candidato de oposição, apoiado por apenas três Estados (Minas, Rio Grande e Paraíba) e fadado a uma derrota inevitável numa eleição fraudada como seria a de março de 1930.

Com ou sem possibilidade de vencer, Getúlio fazia questão de expor suas propostas com clareza e precisão. Ele não podia descartar de imediato o plano monetário, sob pena de aprofundar uma crise já grave. Dizia, porém, que era preciso observar “o reajustamento de nossa vida econômica” e o “aumento de nossa capacidade produtora” e do estoque de ouro do Banco do Brasil para confirmar a conversibilidade da moeda, isto é, a obrigação do governo de trocar por ouro cédulas e moedas do mil-réis ainda circulante e do cruzeiro que o substituiria.

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- Por isso mesmo – adverte Getúlio - não excluo, é claro, a possibilidade de [introduzir no plano] as modificações e melhoramentos que a experiência aconselhar.

A DEFESA DO CAFÉ

Outra questão de política econômica de curto prazo, ainda mais urgente, era a do café, objeto da advertência seguinte do candidato:

Segundo Getúlio, a defesa do café constituía o maior e mais urgente dos problemas econômicos do Brasil naquele momento. O café concorria com mais de dois terços do ouro necessário ao equilíbrio da balança comercial do país. Dele dependiam o câmbio e a estabilização do valor da moeda:

- O plano que agora falhou, com estrépito, alarmando o país todo – diz Getúlio - visava menos a defesa propriamente dita da produção cafeeira do que a sua valorização imediata.

Getúlio argumenta que aumentar o preço de determinada mercadoria nem sempre é defendê-la.

- Foram os produtores estrangeiros, e não os nossos, os beneficiários da valorização que aqui se pôs em prática... Tal valorização, aliás, dava apenas aos interessados, entre nós, a ilusão do lucro, pois eles se satisfaziam com o elevado preço de venda, sem atentar no custo, cada vez mais exigente, da produção.

É claro que com esses preços aumentados graças a subsídios pagos por todo o país, era maior o ganho das grandes casas exportadoras controladas por grupos estrangeiros. O que Getúlio propõe é apoiar diretamente o produtor - e cortar as asas desses intermediários:

- Pelo barateamento [da produção] é que devia ter começado a política de defesa do café. Isso é que seria racional. Obtidas a redução dos gastos de produção e transporte, a diminuição de impostos e a supressão, tanto quanto possível, dos intermediários, que são os que mais ganham ... o café, embora a preços eliminadores de qualquer concorrente, proporcionaria aos lavradores lucro pelo menos tão compensador como os auferidos em virtude da valorização artificial e muito mais certo e sólido do que o desta.

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Se ganhavam mais com preços mais altos, os intermediários e especuladores exerciam com isso maior poder político sobre a economia cafeeira e sobre o governo. Bastava que, com duas ou três manobras combinadas, os intermediários derrubassem as cotações internacionais do café brasileiro, para que o governo fosse obrigado a injetar mais dinheiro nas operações de compra de café (e talvez, para isso, a tomar mais empréstimos).

Pelas mesmas razões que em relação ao plano de valorização da moeda, Getúlio não podia ir mais longe na revelação do que pretendia fazer em relação ao café dali a quase um ano: se vencesse a eleição, só tomaria posse a 15 de novembro. E ainda estávamos a 2 de janeiro.

PRODUZIR MUITO E PRODUZIR BARATO

Mais adiante, Getúlio faz uma reflexão cujo texto original seria encontrado muito tempo depois, em folha solta entre as páginas do primeiro caderno de seus diários, iniciados na tarde de 3 de outubro de 1930, horas antes de começar a revolução que o levaria ao poder:

- O problema econômico pode-se resumir numa palavra - produzir, produzir muito e produzir barato o maior número aconselhável de artigos, para abastecer os mercados internos e exportar os excedentes... Só assim poderemos dar sólida base econômica ao nosso equilíbrio monetário, libertando-nos não só dos perigos da monocultura, sujeita a crises espasmódicas, como também das valorizações artificiais, que sobrecarregam o lavrador em benefício dos intermediários.

Essa reflexão tem como ponto de partida um discurso de 1906, quase um quarto de século antes, em que o jovem estudante Getúlio Vargas saudava o Presidente eleito Afonso Pena; e, nesse discurso, o trecho em que ele denunciava a coação da história sobre países, como o Brasil, condenados a exportar suas matérias primas a preço vil e a importar a preço cada vez mais alto produtos industriais elaborados com essas mesmas matérias primas.

Combinados, esses dois trechos, o do discurso de 1906 e o da plataforma de 2 de janeiro de 1930, constituem a maior diretriz de política econômica sustentada por Getúlio Vargas em seus dois governos. Diretriz de uma política econômica nacionalista, voltada para o desenvolvimento e capaz de sustentar uma política e uma legislação trabalhista voltadas para a justiça social. Ainda não se falava explicitamente em trabalhismo, mas ele já estava aí, inteiro.

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4. São Paulo, o despertar das massas

Getúlio decidira que, do Rio, depois do comício do Castelo, voltaria para o Rio Grande - não para Porto Alegre e o Palácio do Governo, mas para São Borja, onde permaneceria, licenciado do governo do Estado, até 1º. de março, o dia da eleição, dali a exatos dois meses.

Mas alguns partidários da Aliança em São Paulo, um pequeno grupo composto por Paulo Nogueira Filho e outros dirigentes do Partido Democrático, decidiram levar Getúlio de qualquer maneira a São Paulo. Viajaram para o Rio e tanto insistiram que Getúlio decidiu parar em São Paulo no caminho de volta ao Sul. Teria tanto sucesso quanto no Rio?

O êxito do comício do Rio poderia ser explicado até pela impossibilidade de realizá-lo em recinto fehado, na forma habitual dos atos públicos de então. Ou pelo fato de ser o Rio o centro nevrálgico da vida política e, ainda, da própria vida econômica do país. São Paulo era menor que o Rio, era uma cidade muito diferente, sem o espírito frívolo e novidadeiro da Capital, e não tinha nenhuma razão, assim parecia, para recepcionar o adversário do candidato de São Paulo, Presidente do Estado, à Presidência da República.

Ninguém esperava que a viagem de Getúlio a São Paulo tivesse êxito de longe comparável ao da viagem ao Rio. Nas estações em que o trem parou, ao longo do vale do rio Paraíba, havia sempre grupos à espera, “palmas, vivas, democráticos a postos, bom entusiasmo”, mas nada de extraordinário, segundo o próprio inspirador e organizador da viagem, Paulo Nogueira Filho. Mesmo a chegada à estação da Central do Brasil em São Paulo em nada se comparou ao desembarque de Getúlio no Rio, na semana anterior.

- O cortejo se pôs em marcha pela Avenida Rangel Pestana, no Brás, o bairro industrial - lembraria Paulo Nogueira em suas memórias. - Muita gente nas calçadas, até aí tudo normal e previsto. O que começou a surpreender foi que, aclamado o candidato, aquela gente toda, em vez de voltar para casa, incorporava-se ao cortejo, que se ia avolumando espantosamente.

Como responsável pela manifestação, Paulo Nogueira antecipou-se ao cortejo e foi esperar Getúlio na entrada do centro da cidade, no Largo do Tesouro, no alto da Ladeira do Gasômetro:

- Assim que, por volta das 20 horas, despontou o cortejo na Várzea do Carmo, tive um arrepio. Não era possível o que via! Caminhava não um cortejo, mas uma imensa multidão. Que sucederia quando toda aquela gente se encontrasse com a que estava em cima da ladeira?

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- Santo Deus! Não sei como passei os minutos que mediaram o instante em que divisei a coluna popular em marcha e o encontro com o público da cidade... No amplexo daquelas multidões em meio de frenesi coletivo, alguém bradou: “Nós que-re-mos Ge-tú-lio!” A multidão, como nunca São Paulo vira igual, repetia: “Nós queremos, nós queremos Getúlio!”

O comício programado praticamente não aconteceu, porque os oradores não eram ouvidos.

- Era um vozerio só e imenso a se alçar nos acordes do Hino Nacional. Nada mais se ouvia nem se ouviu, a não ser: “Nós queremos Getúlio, nós queremos Getúlio!”12

Hélio Silva, 1926: a Grande Marcha, pgs. 405/406, citando as Memórias de um Burguês Progressista, de Paulo Nogueira Filho.

Mesmo em São Paulo, era uma noite quente de verão e um temporal desabou sem aviso sobre a multidão.

- Chovia a cântaros - escreveu o repórter do jornal O Combate. - Respondia o povo: “Pode chover, queremos Getúlio!” E desse modo prosseguiu até meia noite. Horas formidáveis que só de século em século uma cidade pode viver. Parecia uma loucura coletiva. Nem uma nota dissonante. Nós vimos, na Rua do Gasômetro, duas moças saltarem à frente do cortejo, gritando numa fúria entusiástica: “Que é do amigo dos operários? Onde ele está?” Era a questão social. Homens de todas as classes e de todas as idades, de todos os Estados e de todos os países numa apoteose marulhante, harmoniosa, na qual se percebia a imensa sinfonia da metrópole paulista, cujas notas fortes enchiam a alma popular.13

Mesmo levando em conta o estilo derramado da maioria dos jornais da época, o que o repórter de O

Combate esceveu foi mais uma epopéia que uma reportagem. Essa narrativa exagerada, que reúne na mesma apoteose homens de todos os países e homens de todos os Estados, tem, no entanto, uma verdade maior, que é exprimir o clima dessa noite em São Paulo.

Jornais mais sóbrios, como O Estado de S. Paulo e a Folha da Manhã (futura Folha de S. Paulo), dizem, de outra forma, a mesma coisa. Ou muito mais. Para o Estado, trata-se do “despertar das massas”, da manifestação do “descontentamento latente, mas profundo, da massa popular contra a situação existente”.

_______________________________________________________

12 Hélio Silva, 1926: a Grande Marcha, pgs. 405/406, citando as Memórias de um Burguês Progressista, de Paulo Nogueira Filho.

13 Hélio Silva, 1926: a Grande Marcha, pg. 407.

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A Folha da Manhã descreve e como que justifica a multidão, “pacífica e disciplinada, somente assistindo ao desfile”. Mesmo fazendo dela uma inofensiva multidão passiva, a Folha sente nisso tudo “o aparecimento de forças populares pedindo a mudança do antigo funcionamento da repúlica”; e admite que a Aliança Liberal pode capitalizar essas forças...14

Getúlio, que fora ouvido tão longe no comício da Esplanada do Castelo, no Rio, a ponto de se saber

no bairro operário do Brás, em São Paulo, o que ele dissera dois dias antes sobre a questão social, não chegou a ser ouvido no comício de São Paulo.

Mais alta do que podia ser a sua, era aquela voz coletiva que abafara até o Hino Nacional: “Nós queremos, nós queremos Getúlio!” Depois do comício, porém, ele teve oportunidade de manifestar-se, em entrevista a O Estado de S. Paulo, sobre os problemas, inseparáveis da questão social, da crise que devastava a economia mundial desde o crash da Bolsa de Nova York, em outubro de 29, e da crise da economia cafeeira do Brasil, que vinha de muito antes mas agora assumia o tamanho de uma voragem capaz de levar o país inteiro ao colapso.

Em São Paulo, mais que em qualquer outro lugar, Getúlio deve ser cuidadoso ao falar da economia e do café num momento de crise internacional. Ele, em primeiro lugar, endossa a opinião do próprio jornal, que foi o animador e é o principal sustentáculo do Partido Democrático e, portanto, da Aliança Liberal em São Paulo. Getúlio reconhece ser o café a linha mestra da economia brasileira - e não precisa, nesse momento, ir adiante, lembrando como, no governo do Rio Grande, promovera alternativas à monocultura da carne. O redator do Estado escreve:

- S. Exa. não se perde no labirinto dos pormenores ... mas é evidente a percepção da necessidade de articular num conjunto sistemático o regime fiscal, a orientação das tarifas aduaneiras, as novas vias de comunicação e o aparelho bancário, a ação de nossa diplomacia, num mecanismo harmônico para resolver construtivamente o problema economico brasileiro, que se cifra, em última análise, em produzir muito e produzir barato...

AS DUAS MOÇAS DO POVO

Isso Getúlio dissera na plataforma da Alianca Liberal, no comício da Esplanada do Castelo. Mas ele não estava recomendando produzir ainda mais café. _______________________________________________________

14 Vavy Pacheco Borges, Getúlio Vargas e a Oligarquia Paulista, pg. 183.

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O mais importante dessa entrevista não é qualquer das cuidadosíssimas declarações de Getúlio, mas o comentário final do redator do Estado de S.Paulo:

- Getúlio Vargas não compreende a política financeira sem desenvolvimento econômico.15

Paulo Nogueira surpreendeu-se com as duas multidões que viu na chegada de Getúlio a São Paulo: a que o aguardava no bairro industrial do Brás e incorporou-se a seu cortejo até o centro da cidade; e a que se formou no centro e fundiu-se, no “amplexo” citado por ele mesmo, com a que vinha da periferia, da São Paulo industrial e operária.

Aquelas duas multidões não eram de adeptos do Partido Democrático. Nem o partido tinha tantos eleitores assim, nem a classe média - que encontrava no PD um canal e uma forma de expressão - era assim tão numerosa. Aquilo era uma realidade nova - uma primeira e espontânea manifestação de um fenômeno que São Paulo e o Brasil desconheciam, a democracia de massas.

O Partido Democrático e a própria Aliança Liberal não tinham tal penetração e liderança popular: os votos com que a Aliança contava para eleger Getúlio Presidente eram os chamados 500 mil redondos de Minas, mais 300 mil do Rio Grande - votos iguais aos que teria Júlio Prestes, produto, uns como os outros, das eleições de cabresto, das atas falsas e da fraude sem freios.

Mas essa multidão nas ruas de São Paulo não era um préstito de fantasmas ou de alucinações. Quem mais se espantava - e assustava - com sua presença inesperada de carne e osso era Paulo Nogueira Filho, o organizador de um evento que saíu maior que suas mais fantasiosas esperanças.

A única explicação para o que aconteceu naquela noite em São Paulo talvez esteja nas hipérboles do repórter de O Combate, ao contar como “duas moças do povo” (certamente trabalhadoras) perguntam, não necessariamente com o apuro literário do repórter:

- Que é do amigo dos operários?

(Elas devem ter perguntado: “Cadê o amigo dos operários?”)

Para falar assim, deviam ser operárias, provavelmente da indústria têxtil, que já empregava muitas

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15 Vavy Pacheco Borges, Getúlio Vargas e a Oligarquia Paulista, pg. 194.

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mulheres. E não seriam ativistas do movimento sindical - então muito à esquerda de Getúlio e mais ligado às lideranças anarquistas e comunistas, estas divididas, já nesse momento, entre os seguidores da linha justa, da ortodoxia, e os seguidores de Luís Carlos Prestes. Ativistas do movimento sindical não considerariam Getúlio o amigo dos operários.

Getúlio, como Presidente do Rio Grande, só obliquamente poderia ser considerado um amigo dos operários. O Rio Grande ainda não era um centro fabril, como São Paulo - não tinha uma população operária comparável ou proporcional à de São Paulo.

Mas, amigo do desenvolvimento e da industrialização, devia-se a ele, no Rio Grande, um surto de crescimento econômico, gerador de emprego e de renda.

O que deve ter ganho o povo de São Paulo para Getúlio foi o que ele dissera, dois dias antes, no comício do Castelo, no Rio. Seu discurso e a plataforma da Aliança Liberal estavam em muitos jornais.

O que ele tinha dito sobre o café e outras questões econômicas não reuniria a centésima parte dessa multidão (embora pudesse reunir mais de metade, mais de setenta por cento do produto interno bruto de São Paulo).

Por mais discreto e até discricionário que fosse o noticiário dos jornais, as palavras de Getúlio sobre a questão social fizeram a diferença. Elas produziram a assombrosa multidão de São Paulo.

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PARTE III

As leis trabalhistas eram fascistas?

Da revolução ao governo

Por que um Ministério do Trabalho?

As primeiras leis trabalhistas

Um balanço da atuação do Ministério

Getúlio Vargas

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Getúlio Vargas

1. Da revolução ao governo

A eleição presidencial foi realizada no dia 1º de março e, em virtude da fraude e de outros fatores já mencionados, seguida da revolução, cujas operações militares tiveram início no fim da tarde de 3 de outubro, simultaneamente no Rio Grande do Sul e em Minas e depois no Nordeste. Em apenas três semanas, a revolução estava militarmente vitoriosa e uma junta militar instaurada no Rio depôs e prendeu o Presidente Washington Luís. Com o triunfo da revolução, Getúlio tomou posse da Presidência da República com o título de Chefe do Governo Provisório.

Em seu discurso de posse, a 4 de novembro, ele anunciou, entre outras medidas, a criação do Ministério do Trabalho.O discurso começa por uma avaliação do movimento revolucionário, na qual ele parece acentuar não as possibilidades abertas pelo triunfo mas as responsabilidades impostas por ele.

- O movimento revolucionário - diz o novo Presidente da República (embora assuma o cargo com o título mais modesto de Chefe do Governo Provisório) - foi a afirmação mais positiva que até hoje tivemos da nossa existência como nacionalidade. Em toda a nossa história política não há, sob esse aspecto, acontecimento semelhante. Ele é, efetivamente, a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro, afinal senhor de seus destinos e supremo árbitro de suas finalidades coletivas.

Estará ele dizendo que sua revolução foi o acontecimento mais importante da história política do Brasil? Mais importante que a república, que a abolição, que a independência? Será que a vitória e o poder já lhe subiram à cabeça?

Não. O que ele quer dizer é que as responsabilidades do governo provisório são maiores porque a revolução foi um movimento mais amplo. Em primeiro lugar, porque a população do Brasil é hoje muito maior que a dos anos da campanha abolicionista e da propaganda republicana, meio século antes. Muito maior, também, é a população urbana, politizada, alcançada pelos jornais, pelos debates parlamentares e já agora pelo rádio. Já é expressiva, numerosa e, para alguns, temível, a massa operária que se manifestou em São Paulo, na chegada de Vargas como candidato à Presidência em 4 de janeiro. Era, como disse um jornal paulista, o “despertar das massas”.

Além disso, e por isso, a revolução foi um movimento muito mais includente - não foi exclusivo de determinados grupos:

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- No fundo e na forma, a Revolução escapou, por isso mesmo, ao exclusivismo de determinadas classes. Nem os elementos civis venceram as classes armadas, nem estas impuseram àqueles o fato consumado. Todas as categorias sociais, de alto a baixo, sem diferença de idade ou de sexo, comungaram um idêntico pensamento fraterno e dominador: a construção de uma Pátria nova, igualmente acolhedora para grandes e pequenos, aberta à colaboração de todos os seus filhos.

Vargas conhece os preconceitos contra o Rio Grande, desde a Revolução Farroupilha e sua República de Piratini, de 1835 a 1845, preconceitos realimentados, nos centros mais conservadores do país e em suas regiões de agricultura dependente do trabalho escravo, como as do café e da cana de açúcar, pelo desabrido abolicionismo dos republicanos gauchos, liderados por um grupo de ideólogos apresentados como positivistas. Mas o velho Correio Paulistano percebera e denunciara logo que esse Getúlio Vargas, Presidente do Rio Grande e líder dessa revolução, é de fato um comunista disfarçado... (No futuro, o Correio e quem pense como ele não conseguirão explicar por que esse “comunista” disfarçado será tão acusado de pendores fascistas e se converterá, em 1935, em alvo de um levante armado do Partido Comunista destinado a derrubá-lo e, se necessário, matá-lo.)

Se a revolução quer realizar no conjunto do país a mesma obra de pacificação realizada por Vargas no Rio Grande, como Presidente do Estado, é preciso desarmar tais prevenções. É preciso isolar os fios desencapados que são as manifestações do Correio Paulistano, o mais fiel e radical intérprete do pensamento mais profundo do reacionarismo ainda escravagista e ainda inconformado que foi buscar refúgio e trincheira nos partidos republicanos provinciais antiabolicionistas.

Para essas correntes, o objetivo da revolução era humilhar São Paulo. Um jornal que acusava Getúlio Vargas de ser comunista podia perfeitamente acreditar que o Rio Grande, não tendo conseguido, cem anos antes, separar-se do Brasil para perpetuar sua República de Piratini, queria agora conquistar o Brasil - e começaria pela invasão e pela humilhação de São Paulo.

Vargas mostra, então, defensivamente, em que circunstâncias o Rio Grande do Sul avançara além das fronteiras de seu território:

- O Rio Grande do Sul, ao transpor suas fronteiras rumo a Itararé, já trazia consigo mais de metade do nosso glorioso Exército.

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Não havia, portanto, uma intenção do Rio Grande de invadir e humilhar São Paulo. Não houve ocupação militar de São Paulo, embora alguns comunicados se referissem a isso. Tanto que, sem qualquer oposição, os trens, primeiro de João Alberto e depois de Vargas e Góis Monteiro, atravessaram rapidamente o território de São Paulo, sem qualquer oposição ou ato hostil, passando por cidades históricas como Itapetininga e Sorocaba, até chegarem à cidade de São Paulo, onde Getúlio Vargas teria uma acolhida consagradora, maior talvez que a de 4 de janeiro de 1930.

- Por toda parte, como, mais tarde, na Capital da República - lembra ele no discurso - a alma popular confraternizava com os representantes das classes armadas, em admirável unidade de sentimentos e aspirações. Realizamos, pois, um movimento eminentemente nacional.

As forças que assumiram o controle de comandos militares em São Paulo não eram forças gaúchas invasoras, eram forças nacionais, que se limitavam a substituir comandantes fiéis à situação deposta por novos comandantes, comprometidos com a revolução.

Defendendo, a seguir, sua atitude diante da Junta Militar, Vargas diz:

- Quando, nesta cidade, as forças armadas e o povo depuseram o Governo Federal, o movimento regenerador já estava, virtualmente, triunfante em todo o país. A Nação, em armas, acorria de todos os pontos do território pátrio. No prazo de duas ou três semanas, as legiões do Norte, do Centro e do Sul bateriam às portas da Capital da República.

Esse prazo, talvez calculado pelo coronel Góis Monteiro, com seu costumeiro realismo, com certeza seria menor na prática. Antes mesmo da deposição de Washington Luís, tropas governistas debandavam e rendiam-se diante das forças revolucionárias que flanqueavam Itararé, preparando-se para o ataque maciço afinal abortado pela suspensão das hostilidades. No que derrotassem as forças governistas em Itararé, as colunas revolucionárias encontrariam caminho aberto até São Paulo, e caminho livre de São Paulo ao Rio.

- Não seria difícil - prossegue Vargas - prever o desfecho dessa marcha inevitável. À aproximação das forças libertadoras, o povo do Rio de Janeiro, de cujos sentimentos revolucionários ninguém poderia duvidar, se levantaria em massa para bater, em seu último reduto, a prepotância inativa e vacilante.

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- Compreendestes, Senhores da Junta Governativa, a delicadeza da situação e, com os vossos valorosos auxiliares, desfechastes, patrioticamente, sobre o simulacro daquela autoridade claudicante o golpe de graça... Integrastes definitivamente o restante das classes armadas na causa da Revolução... Poupastes à Pátria sacrifícios maiores de vidas e recursos materiais e resguardastes esta maravilhosa Capital de danos incalculáveis.

UM PROGRAMA DE 17 PONTOS

Para alguns participantes desses episódios e alguns comentaristas posteriores, os revolucionários ficaram profundamente decepcionados com a perda da oportunidade de entrarem no Rio combatendo e completando a marcha vitoriosa iniciada em Porto Alegre. Dizer isso, porém, é esquecer que, chamado a marcar a data definitiva da revolução, Vargas condicionou sua resposta à viagem ao Rio de um emissário encarregado de propor aos chefes militares menos hostis à revolução que eles fizessem o que acabaram fazendo, ou seja, depor Washington Luís para antecipar o fim dos combates.

Todas essas explicações do discurso são uma espécie de depoimento prévio que fica para a história - pois não pode haver a menor dúvida, na cabeça de Vargas, de que suas atitudes e decisões entrarão logo em julgamento.

Dadas essas explicações, que valerão também para a posteridade, ele diz que é preciso “refletir maduramente sobre a obra de reconstrução que nos cumpre realizar”:

- O trabalho de reconstrução, que nos espera, não admite medidas contemporizadoras. Implica o reajustamento social e econômico de todos os rumos até aqui seguidos... Precisamos, por atos e não por palavras, cimentar a confiança da opinião pública no regime que se inicia.

Ele anuncia, então, um programa de 17 pontos, que não chegam a esgotar as propostas da plafatorma da Aliança Liberal, apresentada em janeiro, mas são o ponto de partida para sua realização:

1 - Concessão de anistia - [a mesma anistia que era esperada pelo menos desde novembro de 1926, quatro anos antes, no momento da posse de Washington Luís. Na esperança de que ela fosse concedida, e para dar condições a Washington Luís de propô-la, a Coluna Prestes encerrou a luta e internou-se na Bolívia no início de 1927].

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2 - Saneamento moral e financeiro, extirpando ou inutilizando os agentes de corrupção...

3 - Difusão intensiva do ensino público, principalmente técnico-profissional, estabelecendo, para isso, um sistema de estimulo e colaboração direta com os Estados. Para ambas as finalidades, justificar-se-ia a criação de um Ministério da Instrução e da Saúde Pública, sem aumento de despesas.

4 - Instituição de um Conselho Consultivo, composto de inidividualidades eminentes, sinceramente integradas na corrente das idéias novas,

5 - Nomeação de comissões de sindicância, para apurarem a responsabilidade dos governos depostos e seus agentes, relativamente ao emprego dos dinheiros públicos.

6 - Remodelação do Exército e da Armada, de acordo com as necessidades da defesa nacional.

7 - Reforma do sistema eleitoral, tendo em vista, precipuamente, a garantia do voto.

8 - Reorganização do aparelho judiciário, no sentido de tornar uma realidade a independência moral e material da magistratura, que terá competência para conhecer do processo eleitoral em todas as suas fases. [Com essa ampliação das atribuições da Justiça, o Congresso não teria mais a prerrogativa de degolar mandatos, por meio da qual os governos da República Velha mantinham os dissidentes longe do poder.]

9 - Feita a reforma eleitoral, consultar a Nação sobre a escolha de seus representantes, com poderes amplos de constituintes, a fim de procederem à revisão do Estatuto Federal, melhor amparando as liberdades públicas e individuais e garantindo a autonomia dos Estados contra as violações do governo central.

10 - Consolidação das normas administrativa, com o intuito de simplificar a confusa e complicada legislação vigorante, bem como de refundir os quadros do funcionalismo, que deverá ser reduzido ao indispensável, suprimindo-se os adidos e os excedentes.

11 - Manter uma administração de rigorosa economia, cortando todas as despesas improdutivas e suntuárias - único meio eficiente de restaurar nossas finanças e conseguir saldos orçamentários reais.

12 - Reorganização do Ministério da Agricultura, aparelho, atualmente, rígido e inoperante, para adaptá-lo às necessidades do problema agrícola brasileiro.

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13 - Intensificar a produção pela policultura e adotar uma política internacional de aproximação econômica, facilitando o escoamento de nossas sobras exportáveis.

14 - Rever o sistema tributário, de modo a amparar a produção nacional, abandonando o protecionismo dispensado às indústrias artificiais, que não utilizam matéria prima do país e mais contribuem para encarecer a vida e fomentar o contrabando.

15 - Instituir o Ministério do Trabalho, destinado a superintender a questão social, o amparo e a defesa do operariado urbano e rural.

16 - Promover, sem violência, a extinção progressiva do latifúndio, protegendo a organização da pequena propriedade, mediante a transferência direta de lotes de terras de cultura ao trabalhador agrícola, preferentemente ao nacional, estimulando-o a construir com as próprias mãos, em terra própria, o edifício de sua prosperidade.

17 - Organizar um plano geral, ferroviário e rodoviário, para todo o país, a fim de ser executado gradualmente, segundo as necessidades públicas, e não ao sabor de interesses de ocasião.

- Como vedes - diz Vargas depois de expor esses 17 pontos - temos vasto campo de ação, cujo perímetro

pode ainda alargar-se em mais de um sentido, se nos for permitido desenvolver o máximo de nossas atividades.

Quem ouvisse esse discurso, tão sóbrio, e prestasse atenção no programa de 17 pontos exposto pelo

novo Presidente, não poderia imaginar que ali começava outra revolução, muito maior que aquela ali encerrada.

2. Por que um Ministério do Trabalho ?

No mesmo discurso de posse, a 4 de novembro de 1930, no qual anunciara a próxima criação do Ministério do Trabalho, Getúlio anunciou também a criação do Ministério da Educação. A questão do trabalho e a da educação estavam intimamente ligadas, no espírito de Getúlio, à totalidade de sua herança política, e com essa questão ele assumira compromissos explícitos na campanha presidencial.

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Por essas decisões, cuja importância ninguém discute hoje, ele foi muito acusado na época, sob a alegação de que criava os dois ministérios para dar abrigo, num caso, a um protegido do ex-Governador do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros (o Ministro do Trabalho Lindolfo Collor), e, no outro, a um protegido do ex-Governador de Minas, Antonio Carlos, e do novo Governador, Olegário Maciel (Francisco Campos, Ministro da Educação).

Se conseguissem libertar-se, por um instante, do preconceito (e da preguiça), os acusadores encontrariam sem dificuldade o que, sobre a criação desses dois Ministérios, o próprio Getulio diria em sua mensagem de prestação de contas à Assembléia Nacional Constituinte eleita em maio de 1933.

Nessa mensagem, lida na sessão de instalação da Assembléia, no dia 15 de novembro desse ano, Getúlio criticava com veemência o Império e a República Velha, por sua conduta sistematicamente omissa diante das questões do trabalho e da educação no Brasil.

O Império, dizia Getúlio, recusou-se sempre a enfrentar o problema do trabalho servil.

Quando teve de abolir a escravidão, pela Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, foi porque não conseguiria adiar mais uma vez um desfecho – tanto que o Brasil conquistou o privilégio humilhante de

ser o último país dito civilizado a proibir o trabalho escravo. O Haiti, para nós tão atrasado e selvagem, fizera sua abolição em

1794, quase cem anos antes.

Getúlio Vargas

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Pressionado pela Inglaterra, que controlava a economia brasileira, o Império proibira o tráfico negreiro. Se não o proibisse, a Inglaterra, senhora e rainha dos mares, apresaria em alto mar ou mesmo em nossas costas os navios carregados de escravos e destinados ao Brasil. E sua carga.

A Inglaterra não fazia isso por pretender-se a vanguarda da civilização e dos direitos humanos, mas por interesse econômico. Ela estava no lado lucrativo da coação da história denunciada por Getúlio já em 1906: ela comprava, cada vez mais baratos, produtos primários brasileiros, agrícolas e minerais; e vendia ao Brasil, cada vez mais caros, produtos industrializados, que iam de enxadas a tecidos, de louça a locomotivas. Para que o Brasil pudesse comprar mais artigos ingleses, era preciso que aumentasse seu mercado interno, sua população consumidora - da qual os escravos não faziam parte. Impedido o tráfico negreiro, o Brasil teria de importar trabalhadores livres, emigrantes, que não comprariam locomotivas, mas comprariam roupa e viajariam de trem.

Antes da Abolição, o parlamento imperial brasileiro votara, pressionado pela campanha abolicionista, duas leis que pretendiam reduzir, mas apenas prolongariam a escravidão - e dariam mais vantagens aos senhores que aos escravos.

1. A primeira foi a Lei do Ventre Livre. Ela emancipava, ao nascerem, os filhos da mulher escrava. Com os avanços da campanha abolicionista e a escravidão notoriamente no fim, não valia a pena sustentar bebês escravos que não chegariam a trabalhar para pagar a roupa, o teto e até mesmo o leite do seio materno, propriedade, em certo sentido, do dono dessa mãe.

2. A segunda seria a Lei dos Sexagenários, que emancipava automaticamente os escravos chegados à idade de 60 anos. Foi uma boa ajuda ... aos senhores, que não mais teriam de garantir o sustento aos escravos velhos e menos prestantes no trabalho.

Não que faltassem propostas ou fórmulas para a abolição. Por exemplo, as de José Bonifácio, o grande cérebro e o grande homem de ação da independência do Brasil. Entre as propostas de José Bonifácio, é preciso registrar desde logo a de instalação obrigatória de aulas públicas em todas as vilas e cidades e de ginásios em todas as capitanias (depois províncias e hoje Estados) – proposta mencionada expressamente por Getúlio na mensagem à Assembléia Constituinte. Essa proposta é, sem dúvida, precursora da política educacional do primeiro governo Vargas.

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TRABALHO E EDUCAÇÃO, OS DOIS MAIORES PROBLEMAS

Na mensagem que leu na sessão de instalação da Assembléia Nacional Constituinte, a 15 de novembro de 1933, Getúlio retoma o fio da história no ponto em que fora deixado por José Bonifácio em 1823, e refere-se aos problemas do trabalho e da educação como duas heranças negativas legadas pelo Império à República:

- O problema da escravatura, encerrando o da organização do trabalho, fundamental para o nosso desenvolvimento econômico, não teve a solução que mais convinha. Retardada, procrastinada, erigida em ponto nevrálgico da existência do regime, atuou até como fator de perturbação, pela forma brusca e pelo ambiente de exaltação política em que se operou a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre.

- A campanha abolicionista foi, indiscutivelmente, um de nossos grandes movimentos de opinião. Empolgou totalmente o país, numa solidariedade admirável de todas as suas forças espirituais. Vitoriosa, os resultados surpreenderam, entretanto, aos seus próprios paladinos. Os centros produtores, principalmente os da exploração agrícola, cairam em colapso, ante a desordem e o êxodo das massas trabalhadoras, entregues repentinamente à inexperiência da liberdade. Dominados pela idéia generosa, os pró-homens do abolicionismo não haviam cogitado sequer do que convinha e cumpria fazer dos escravos libertados.

- Se o problema do trabalho escravo teve solução, ainda que defeiturosa e tardia, o mesmo não aconteceu com o da educação popular, quase completamente esquecida até no seu aspecto mais elementar, o ensino primário.

Getúlio, em seguida, refere-se ao projeto de Constituição de José Bonifácio e seu irmão Antônio Carlos:

- No projeto de Constituição de 1823 fora ele [o problema da educação popular] encarado de frente e praticamente, estabelecendo-se a criação obrigatória de aulas públicas nos termos e liceus nas sedes de todas as comarcas. A Constituição outorgada [em janeiro de 1824, por D. Pedro I, após o golpe do fechamento da Constituinte em novembro de 1823] eliminou, porém, essa sábia disposição, que, adotada e cumprida, teria pelo menos evitado os males do analfabetismo.

- Em resumo, o Império encerrou sua atividade deixando insolúveis os dois maiores problemas nacionais: o da organização do trabalho livre e o da educação.

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Se pudesse haver dúvidas, essa referência expressa confirma o vínculo entre as idéias de Getúlio, em 1930, e as de José Bonifácio mais de cem anos antes.

Na segunda parte da mensagem, ao tratar das atividades de cada um dos ministérios do governo provisório, Getúlio retoma o tema da educação:

- Ao balancear, na primeira parte desta mensagem, as realizações do regime monárquico, deixei acentuado que o país, depois de meio século de vida política independente, estava ainda com dois problemas capitais de sua organização para resolver: o trabalho e a educação...

- Todas as grandes nações, assim merecidamente consideradas, atingem nível superior de progresso pela educação do povo... Nesse sentido, nada temos feito de orgânico e definitivo... Convençamo-nos de que todo brasileiro poderá ser um homem admirável... Para isso conseguirmos, há um só meio, uma só terapêutica, uma só providência: é preciso que todos os brasileiros recebam educação.

O EXEMPLO DO JAPÃO

O que José Bonifácio propusera, desde seus dias de Coimbra até a Constituinte de 1823, tinha sido realizado, depois de José Bonifácio, não no Brasil, mas no Japão. Getúlio diz:

- Relembrai o exemplo do Japão. O Imperador Matuzahito, certo dia, baixou um édito determinando “fosse o saber procurado no mundo, onde quer que existisse, e a instrução difundida de tal forma que em nenhuma aldeia restasse uma só família ignorante e que os pais e irmãos mais velhos tivessem por entendido que lhes cabia o dever de ensinar os seus filhos e irmãos mais moços”.

- O Imperador foi obedecido. O milagre da instrução, em pouco mais de quarenta anos, de 1877 a 1919, fez com que a exportação e a importação do país centuplicassem; o Japão vencia a Rússia e entrava para o rol das grandes potências.

Getúlio referia-se à chamada Restauração Meiji. O Japão isolara-se, desde a era das grandes navegações, do avanço dos países europeus e, em seguida, dos Estados Unidos, sobre a Ásia. Em meados do século 19, porém, tornara-se impossível manter esse isolamento.

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A China já tinha sofrido as Guerras do Ópio, com as quais os países ditos civilizados decidiram obrigá-la a importar e consumir ópio, que ela não produzia. Seu litoral fora transformado num colar de feitorias estrangeiras, nas quais sua lei fora substituída pela lei dos ocupantes.

Em cidades submetidas à lei dessas feitorias estrangeiras, havia praças proibidas a chineses e cachorros. Como, nos Estados Unidos, ainda no século 20, haveria banheiros, assentos de ônibus, bancos de praça e outros inimagináveis lugares proibidos a negros.

Temendo ver o Japão submetido a semelhante destino, o Imperador, que nesse momento era quase exclusivamente um líder religioso, retomou os poderes de governo delegados por seus antecessores aos xóguns (os senhores feudais) e, a partir desse édito sobre a educação, promoveu um dos mais velozes programas de desenvolvimento de que se tem registro na história da economia mundial.

O Japão pôde, assim, abrir suas portas e seus portos ao comércio com todos os países do mundo sem ser, como a China, submetido, dominado e colonizado pelos mais fortes.

Ao contrário, o Japão tornou-se tão forte, rapidamente, que, em 1905, desafiado pela orgulhosa e poderosa Rússia dos Czares, derrotou-a e destruíu sua marinha de guerra.

Pouco antes da Restauração Meiji, os japoneses, que só conheciam navios de madeira, assombraram-se ao ver chegar às suas costas um navio americano de casco de aço. Na Guerra Russo-Japonesa, foi com uma esquadra de navios moderníssimos, de casco de aço, construída quase toda em estaleiros japoneses, de capitais japoneses, por engenheiros e operários japoneses, que o Japão destruíu a esquadra russa.

De lá para cá, o Japão sempre teve posição preponderante na economia mundial e um sistema de ensino público tão bom que lá só existiriam escolas particulares para filhos de diplomatas, empresários, executivos, técnicos e outros residentes estrangeiros – escolas com ensino em língua estrangeira. Não que fossem proibidas as escolas particulares para japoneses e em idioma japonês: elas eram permitidas, apenas não existia mercado para elas.

- É dever do governo provisório – acrescentava Getúlio, concluindo suas observações sobre o modo como o Japão enfrentara a questão educacional – interessar toda a nação, obrigando-a a cooperar, nas múltiplas esferas em que o seu poder se manifesta, para a solução desse problema.

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A POPULAÇÃO AUMENTA UM TERÇO - AS MATRÍCULAS, TRÊS VEZES

De fato, o governo provisório obrigou toda a nação a mobilizar-se em torno de um grande programa educacional. Na trilha do exemplo japonês, o governo provisório de Getúlio Vargas recorreria a todos os seus poderes para promover essa mobilização.

Um decreto conhecido como o Código dos Interventores e destinado a regular os poderes e atribuições dos Interventores nomeados para responder pelos governos estaduais, determinou que os Estados empregassem 10%, no mínimo, das respectivas rendas na instrução primária, e deu a eles o poder de exigir até 15% das receitas municipais para aplicação nos serviços de segurança, saúde e instrução pública, quando por eles exclusivamente atendidos.

A criação do Ministério da Educação e, principalmente, essa vinculação de recursos substanciais para o ensino produziram mudanças revolucionárias.

Em 1931, de cada mil brasileiros aptos a estudar, 513, mais da metade, não chegavam a entrar na escola. Dos 487 que entravam na escola, 110 matriculavam-se mas não frequentavam as aulas; 178 frequentavam-nas ao longo do primeiro ano, não chegando bem a ler; 85 frequentavam somente até o segundo ano, alfabetizando-se muito superficialmente; 84 avançavam um pouco além, mas sem concluir os estudos; e apenas 30 adquiriam integralmente a instrução elementar comum. Trinta brasileiros em mil adquiriam, em 1931, a instrução elementar comum. Desses trinta, quantos frequentariam e concluiriam o ginásio e quantos chegariam à universidade?

Nos orçamentos de 1931 e 1932, o

governo federal destinaria 5,14% de suas

verbas para o Ministério da Educação,

quase o dobro das verbas do Ministério

da Agricultura (2,84%).1

GETÚLIO NÃO SE LIMITOU A EXIGIR RECURSOS DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS.

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1 Rosa Maria Barboza de Araújo, O Batismo do Trabalho, Rio, 1981, Civilização Brasileira, p. 71.

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De 1930 para 1940, houve um salto quantitativo impressionante, que não pode deixar de ter sido também um salto qualitativo. Os números desse salto são os que figuram nos recenseamentos nacionais. Como não houve recenseamento em 1930, só é possível cotejar os dados de 1920 com os do recenseamento de 1940 – o que não altera muito as coisas se considerarmos a verdadeira estagnação social em que o Brasil viveu nos anos anteriores à Revolução de 30.

o Brasil tinha 30 milhões de habitantes e um milhão

de matrículas no ensino primário; ou seja, a relação

entre matrículas e população era de 3,4%. EM 1920

EM 1940

ENSINO SECUNDÁRIO

Em 1940, a população subira para 41 milhões e as

matrículas para 3 milhões: a população aumentara um

terço, as matrículas, três vezes, e agora correspondiam

a 7,4% da população. É claro que esse aumento

ocorreu, quase todo, depois de 1930.

No ensino secundário, os números eram igualmente

expressivos. Em 1920, havia 109 mil matrículas para

30 milhões de habitantes, 0,36%. Em 1940, com 41

milhões de habitantes, ou seja um aumento de um

terço na população, o número de matrículas subira

para 260 mil, quase duas vezes e meia, ou 0,63% da

população.2

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2 Celso de Rui Besiegel, “Educação e Sociedade no Brasil”, em História Geral da Civilizção Brasileira, direção de Bóris Fausto, vol. 11, O Brasil Republicano/Economia e Cultura (1930-1964), São Paulo, Difel, pp. 383-384.

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Estatísticas mais recentes, citadas pelo brasilianista Stanley Hilton, mostram que essa revolução revelou-se ainda maior, embora os esforços do governo fossem “severamente prejudicados” por dificuldades orçamentárias:

- O número de estudantes por mil habitantes – escreve Stanley Hilton - cresceu de 50, em 1929, para 80 dez anos depois. A Revolução encontrou 28 mil escolas primárias em todo o Brasil; até 1940, conseguiria um acréscimo de 14 mil [ou seja, um aumento de 50% em dez anos]. A população que frequentava as escolas primárias aumentara em 75%, quando do início da guerra, em comparação com a de 1931; e o total de estudantes inscritos em escolas de nível secundário aumentou de 90 mil para 227 mil...3

3. As primeiras leis trabalhistas

Na opinião de Getúlio Vargas, exposta em sua mensagem à Assembléia Nacional Constituinte em novembro de 1933, a Revolução de 30 tinha de iniciar o resgate de duas dívidas sociais, que a República herdara do Império e este do Brasil-Colônia: a educação e o trabalho.

O Império, ao desmoronar, dizia Getúlio, deixara intacta a questão do trabalho, porque a escravidão chegara até as portas da República e o trabalho livre permanecera sem qualquer organização. A Primeira República também não se preocupara com isso e sua Constituição, votada em 1891, limitou-se a garantir o livre exercício de qualquer profissão. Só em 1926, 35 anos depois, uma emenda constitucional permitiu que o Congresso votasse leis trabalhistas.

São percentuais quase inacreditáveis. Em dez anos,

o número de escolas primárias cresceu 50%; o número

de estudantes por mil habitantes, 60%; a matrícula nas

escolas primárias, 75%; e o total de alunos do ensino

secundário, 150%.

ESCOLAS PRIMÁRIAS

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3 Stanley Hilon, O Brasil e as Grandes Potências, Rio, 1977, Civilização Brasileira, p. 54.

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- Cristalizara-se – diz Getúlio - a mentalidade política ... que julgava o problema operário, no Brasil, simples caso de polícia... No terreno da organização do trabalho, estava tudo por fazer. A Revolução teve de começar pela providência inicial: a criação do órgão governamental incumbido da importante tarefa, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.

O Ministério do Trabalho foi criado por decreto de 26 de novembro de 1930, menos de um mês depois da instalação do governo provisório. Com sua criação e, em seguida, com a aprovação das leis de proteção ao trabalho e a instituição da Justiça trabalhista, Getúlio realizaria a segunda das grandes propostas de José Bonifácio - a outra era a relativa à educação - e completaria o resgate da dívida social que o Império transferiria à República.

A 12 de dezembro, menos de um mês depois da criação do Ministério, o governo aprovaria a primeira de suas leis trabalhistas – a chamada Lei dos Dois Terços, ou lei de nacionalização do trabalho.

EMPREGO PRIMEIRO PARA OS BRASILEIROS

O Brasil era um mercado de trabalho ainda muito pequeno, de poucos empregos para os próprios brasileiros. Apesar disso praticava, não em seu interesse mas no de países estrangeiros, aos quais seus governos anteriores não queriam desagradar, uma política de imigração indiscriminada e sem controle.

O resultado é que faltavam empregos para brasileiros perfeitamente aptos, em setores nos quais era absoluto o predomínio do trabalhador estrangeiro. Isso não acontecia só em ocupações de alta qualificação profissional, técnica ou mesmo científica: nos restaurantes, por exemplo, 80% de todos os empregos eram ocupados por estrangeiros.

A Lei dos Dois Terços, diria o Ministro do Trabalho Lindolfo Collor em sua exposição de motivos, não

tinha por objetivo forçar o desemprego de estrangeiros e sim garantir a preferência legal para os brasileiros. Nem se tratava de uma lei original.

- Todos os países cuidadosos de sua ordem social e de seu desenvolvimento econômico – acrescentava o ministro – praticam a defesa de seu território contra invasões desordenadas de estrangeiros.

A lei estabelecia, como regra geral, que dois terços dos empregos, em qualquer empresa, deveriam ser reservados a trabalhadores brasileiros. Salvo, é claro, o caso de empregos que exigissem qualificação profissional, técnica ou científica de que pretendentes brasileiros não dispusessem.

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Para que a lei não fosse acusada de xenofobia,a exposição de motivos citava a legislação semelhante de mais de vinte países, entre os quais os Estados Unidos, a Alemanha, a França e a Inglaterra. E ainda o documento “Regulamentação das Migrações”, do Bureau Internacional do Trabalho, precursor da atual Organização Internacional do Trabalho, segundo o qual as restrições à imigração constituíam remédio legítimo contra o desemprego. Cada país, além disso, tinha o direito de escolher os elementos que, por sua qualificação, preenchessem as lacunas da mão-de-obra nacional.

Essa primeira lei criou alguns problemas de curto prazo e exigiu pequenas adaptações: depois incorporou-se naturalmente aos hábitos da vida econômica e profissional do Brasil.

O regime de prioridade para o trabalhador nacional, vigente em todos os países - e com mais ferocidade no mais rico de todos os tempos, os Estados Unidos - seria abalado no Brasil pelo arrastão neoliberal do fim do século 20. Com a abertura comercial indiscriminada e descontrolada, passamos a exportar empregos para os países produtores das mercadorias e componentes que comprávamos, naquilo a que se deu o nome de a “farra dos importados” e ia de automóveis a brinquedos, de caviar a sucos de fruta, de canetas a computadores.

Com as privatizações e o escancaramento da economia brasileira ao capital internacional, passamos a receber grande número de funcionários estrangeiros das multinacionais agora controladoras de antigas estatais e de empresas privadas desnacionalizadas. Esses estrangeiros passaram a desalojar brasileiros de funções técnicas e até de empregos não-qualificados.

A LEI DOS SINDICATOS ERA FASCISTA?

A segunda lei trabalhista importante, a lei dos sindicatos, de 19 de março de 1931, é que estigmatizou toda a legislação social da Revolução de 30, acusada de fascista e de ter sido inspirada na Carta del Lavoro, o código trabalhista de Mussolini.

Teoricamente, a Lei dos Sindicatos reafirmava apenas o que estava numa lei do início do século 20, que reconhecia o direito dos trabalhadores, de se organizarem em associações representativas e incumbidas da defesa de seus interesses coletivos e profissionais.

Na prática, ela ia muito mais longe. Ela estabelecia, por exemplo, o reconhecimento dos sindicatos pelo Ministério do Trabalho, e previa a organização dos sindicatos, tanto de trabalhadores quanto de

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empregadores, em federações profissionais, regionais ou nacionais, e em confederações nacionais. Estabelecia também o princípio da unicidade sindical: em cada circunscrição territorial haveria apenas um sindicato, de trabalhadores ou empregadores, de cada categoria profissional ou econômica.

Algumas semelhanças acidentais com a legislação italiana serviram, desde logo, para a tentativa de estabelecer uma identificação ideológica entre essa lei e a Carta del Lavoro de Mussolini, embora a lei brasileira tivesse mais semelhanças ou mais pontos de contacto com a legislação francesa, que de nenhum modo poderia ser considerada fascista.

No início, só a Lei dos Sindicatos foi identificada com a Carta del Lavoro. Com o tempo, todas as leis trabalhistas passariam a ser tratadas da mesma forma. Seria isso verdade?

Menos de um mês depois da investidura do governo provisório, o Ministério do Trabalho tinha sido criado e começava a funcionar. O Ministro era o ex-deputado Lindolfo Collor, do Rio Grande, que se especializara, como jornalista e parlamentar, em questões econômicas e financeiras.

Dos parlamentares que mais se tinham dedicado à luta pelos direitos trabalhistas, nenhum se destacara mais que Maurício de Lacerda, deputado socialista pelo então Distrito Federal, que desde os anos dez liderava esse debate na imprensa e na Câmara. Maurício de Lacerda mais tarde seria mais conhecido como pai de Carlos Lacerda, mas em 1930 era mais famoso do que seria o filho. Num de seus livros, A Evolução Legislativa do Direito Social Brasileiro, Maurício de Lacerda escreverá que foi convidado por Getúlio para ser o primeiro Ministro do Trabalho, mas não aceitou.4

Esse convite talvez explique uma suposta demora de Vargas para aceitar o nome de Lindolfo Collor.

Maurício de Lacerda tinha mais experiência que ninguém para as tarefas que seriam conferidas ao Ministério do Trabalho, mas com certeza era radical demais para as forças mais conservadoras que tinham apoiado a Revolução.

Aceitando nomear Lindolfo Collor, Getúlio tomou a iniciativa – que Collor não rejeitou nem contestou – de cercá-lo de especialistas nas questões do direito do trabalho. Os dois primeiros foram o socialista Joaquim Pimenta e o também professor Evaristo de Morais, igualmente socialista.

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4 Maurício de Lacerda, A Evolução Legislativa do Direito Social Brasileiro, Rio, Nova Fronteira, 1980, página xxxii.

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Aos dois juntaram-se dois outros socialistas, ainda mais radicais, Carlos Cavaco e Agripino Nazaré, e o industrial paulista Jorge Street, que não era socialista mas tinha assumido tais posições em defesa dos direitos sociais que fora obrigado a deixar os postos de direção que exercia em entidades empresariais de São Paulo.

Lindolfo Collor ficou pouco tempo no Ministério do Trabalho. Joaquim Pimenta permaneceu, trabalhando como assessor jurídico com os sucessores de Collor, a começar por Salgado Filho, o primeiro deles. Eis o balanço que Joaquim Pimenta fez da ação do Ministério do Trabalho no período entre a criação do Ministério, em novembro de 1930, e a instalação da Assembléia Nacional Constituinte, em novembro de 1933:

- Basta ... considerar que, em três anos de governo provisório, atingimos, nos domínios do Direito do Trabalho, o mesmo nível de legislação de qualquer dos países europeus ou americanos, culturalmente mais avançados ou mais antigos do que o Brasil. O fato é tanto mais digno de apreço, porque, até 1930 ... estávamos nós em um humilhante posto de retaguarda, ao lado, se não abaixo de nações que não ofereciam o mesmo nível de progresso industrial, nem tão pouco as condições materiais de existência de que já dispunha o povo brasileiro.5

Essas primeiras leis trabalhistas, especialmente a dos sindicatos, foram todas elaboradas por Joaquim Pimenta, que, na lei dos sindicatos, contou com a colaboração de Evaristo de Morais. Como seriam fascistas leis elaboradas por socialistas das convicções de Joaquim Pimenta e Evaristo de Morais?

No caso da lei dos sindicatos, temos ainda uma espécie de laudo técnico definitivo nos estudos do professor Evaristo de Morais Filho, filho de Evaristo de Morais, que em seus livros faz críticas veementes ao Presidente Vargas, mas ressalva ter essa lei muito mais identidade com a lei francesa correspondente que com qualquer outra. A França não estava – longe disso – submetida a qualquer regime fascista.

No Brasil, os grupos de nosso espectro político mais aparentados com o fascismo, manifestaram-se contra a Lei dos Sindicatos. Em ato público em Fortaleza, Ceará, com a presença do Ministro Lindolfo Collor, o presidente da Legião Cearense do Trabalho, Severino Sombra (ele e ela precursores da futura Ação Integralista), condenou a Lei de Sindicalização, porque ela proibia a pregação política nos sindicatos.6

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5 Joaquim Pimenta, obra citada, p. 385.

6 Rosa Maria Barboza de Araújo, O Batismo do Trabalho, a experiência de Lindolfo Collor,

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Não só os grupos de extrema direita tomavam posição contrária à política trabalhista e especialmente às leis de proteção ao trabalho do governo Vargas. No Rio Grande do Sul, foi assim, fato registrado por Rosa Maria Barboza de Araújo:

– Se a oligarquia gaúcha fez algumas restrições ao Ministro Collor, estas se devem menos às posições do Ministro do que as de seus assessores, cujo socialismo reformista, como o de Joaquim Pimenta e Evaristo de Morais, ou o socialismo revolucionário, proclamado por Carlos Cavaco, assusta os conservadores riograndenses.7

Afinal, há um último depoimento que deve ser registrado – o de Mario Pedrosa, um dos mais importantes intelectuais da esquerda brasileira, integrante e líder de sua facção mais radical, o trotsquismo. Insuspeito de condescendência com o Presidente Vargas, filiado em 1945 à UDN, a União Democrática Nacional, à qual se associou iniciamente boa parte da esquerda antigetulista, Mario Pedrosa diria muitos anos depois, em 1978, em entrevista ao Jornal do Brasil:

- Nós, da esquerda, queríamos sindicatos livres da tutela do Estado e combatíamos a nova lei. Mas não há dúvida de que existia um ponto positivo – ela garantia os sindicatos contra invasões policiais, frequentes e comuns na época... Todos diziam que a nova lei era fascista, mas no interior, se os sindicatos não recebessem as garantias que ela oferecia, não teriam condições de sobrevivência.8

Como disse Joaquim Pimenta, os elaboradores dessa e outras leis trabalhistas do início do primeiro

governo Vargas não estavam preocupados com filigranas intelectuais, mas com os meios de garantir efetivamente a organização e o funcionamento dos sindicatos.

O governo provisório da Revolução sabia-se efêmero e precisava ter certeza de que, depois, os sindicatos não seriam fechados e proibidos, como tantas vezes antes – violência da qual Joaquim Pimenta fora vítima pessoalmente em Pernambuco. Essa certeza dependia de mecanismos como aqueles estabelecidos na Lei dos Sindicatos de 1931.

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7 Ibidem, p. 83.

8 Ibidem, p. 152.

A abertura e o funcionamento de sindicatos só se tornaram possíveis com o apoio do Exército, contra a violência de governos e polícias estaduais, de prefeitos e empregadores e até de

autoridades religiosas.leionel Brizola

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Como escreveu um autor insuspeito de qualquer parcialidade a favor do Presidente Vargas, Leôncio Martins Rodrigues, a ação do Ministério do Trabalho favoreceu a rápida multiplicação dos sindicatos.

- Tomando por base o ano de 1930, o numero de sindicatos aumentou mais de três vezes até 1939. A tendência foi a formação de sindicatos fora da área do Rio e São Paulo, que contava, em 1934, com 44% do total de sindicatos, passando para 21% em 1939. A ação governamental favoreceu a criação de sindicatos nas regiões mais atrasadas do país. Em 1945, no final do Estado Novo, existiam no Brasil 873 sindicatos de empregados registrados no Ministério do Trabalho.9

Mais que a lei dos sindicatos em si, a ação do governo provocou reações que retardaram a decretação

das demais leis trabalhistas em estudo no Ministério. Seria, aliás, inútil decretar uma lei atrás de outra, numa verdadeira enxurrada, sem condições de fazer cumprir cada uma delas. A lei dos dois terços fora quase uma decisão de emergência, para atenuar a crise de emprego e para sinalizar a determinação do governo provisório quanto a seus compromissos diante da questão social finalmente reconhecida. A lei dos sindicatos abriu caminho para as leis trabalhistas que viriam depois.

AS LEIS DA PREVIDÊNCIA

Enquanto os sindicatos se organizavam e registravam, o Ministério do Trabalho cuidava de sua própria organização e o grupo de consultores e assessores liderado por Evaristo de Morais e Joaquim Pimenta discutia e elaborava os projetos que deveriam converter-se nas leis seguintes.

De todas elas, só foi aprovada ainda na gestão de Lindolfo Collor a chamada Lei das Caixas, a principal de um conjunto de leis de reorganização e ampliação do pouco de previdência social que existia no Brasil. Decretada em outubro de 1931, ela foi precedida de nove leis menores e preparatórias, assinadas a partir de dezembro de 1930, para viabilizar as mudanças maiores que viriam em seguida.

A primeira permitia que os recursos das caixas de aposentadorias e pensões já existentes – e limitadas a poucas categorias profissionais, praticamente só os ferroviários e os portuários – fossem aplicados também na construção de casas para os associados, desde que com suficientes garantias hipotecárias.

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9 Leôncio Martins Rodrigues, “Sindicalismo e Classe Operária”, em História Geral da Civilização Brasileira, direção de Bóris Fausto, São Paulo, Difel, 1986, vol. 10, O Brasil Republicano / Sociedade e Política (1930-1964), p. 528.

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A segunda, também de dezembro de 1930, apenas um mês e meio depois da instalação do governo provisório, estendia ao pessoal dos serviços de força, luz, bondes e telefones, tanto estatais como privados, os benefícios das caixas de aposentadorias e pensões, até então restrito ao pessoal das ferrovias e dos portos. Esse decreto não só ampliava o sistema das caixas como impedia que empregados com mais de dez anos de serviço fossem despedidos sem inquerito administrativo que provasse a ocorrência de falta grave. Era o primeiro passo substancial para para a estabilidade no emprego, que depois as leis trabalhistas estenderiam a todos os trabalhadores.

A discussão das questões da previdência não se limitou à assessoria do Ministério do Trabalho, mas foi levada a uma grande comissão, cujos debates eram diários e publicados pelos jornais. Mais de setecentas emendas, procedentes de todas as regiões do país, chegaram à comissão e muitas foram aproveitadas.

Assinada a 1º. de outubro de 1931, a nova Lei das Caixas de Previdência tratava especialmente dos recursos financeiros das Caixas, resultantes da contribuição dos associados ativos, ou seja os trabalhadores e empregados, proporcionalmente ao salário de cada um, dos associados aposentados e das empresas, à base de 1,5% de sua receita bruta (mas a contribuição da empresa não poderia ser inferior ao total arrecadado de seus empregados). O governo também contribuiria, com fundos provenientes do aumento das tarifas dos serviços públicos a que estivessem vinculadas as caixas. Essas receitas seriam aplicadas exclusivamente em titulos federais, no financiamento da casa própria e na compra de sede própria das caixas.

Os associados teriam direito à aposentadoria,

correspondente a 70 a 100% da média dos salários dos três ultimos anos. A pensão para a família do trabalhador ou do aposentado morto corresponderia à metade da aposentadoria. A lei garantia também aos empregados das

empresas ligadas a cada Caixa a estabilidade

no emprego após dez anos de serviço, salvo caso de falta grave, apurada em inquérito.

AOS 50 ANOS DE IDADE E 30 DE SERVIÇO EFETIVO

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4. Um balanço da atuação do Ministério Ao fim do primeiro ano da Revolução de 1930, no dia 3 de outubro de 1931, Getúlio leu, no Teatro

Municipal do Rio, um longo manifesto em que historiava os acontecimentos desse período.

Ele começou dizendo:

- Após um ano de governo, marcado dia a dia, por tenaz esforço, visando normalizar a vida do país ... o povo já pode compreender a impossibilidade de transformar, de momento, em paradigma de ordem e prosperidade, uma situação confusa e ruinosa, agravada, ainda, pelo desequilíbrio econômico universal, que não poupou, sequer, sólidas e velhas organizações...

- No primeiro aniversário da revolução redentora ... devemos recordar a magnitude do movimento nacional que empolgou o país... Jamais, no Brasil, se verificou acontecimento cívico de maior extensão e profundidade.

É um longo manifesto, que se detém em cada um dos setores do governo provisório. Sobre o Ministério do Trabalho, Getúlio diz:

- Não exageraremos recordando que, para a mentalidade predominante no regime passado, o problema operário, no Brasil, era simples questão de polícia. Em círculo de concepção tão estreita, não cabiam as justas reivindicações proletárias, conquistas correntes que se haviam incorporado à legislação social da maioria dos países civilizados. Garantias mínimas, quase universalmente outorgadas às classes trabalhadoras, aqui ainda consistiam em vagas aspirações, algumas displicentemente consubstanciadas em leis sem aplicação, outras, em maior número, de que o poder público absolutamente não cogitava.

Ele sempre pensara de forma diferente e em sua plataforma de candidato tinha declarado:

“Não se pode negar a existência da questão social no Brasil, como um dos problemas que terão de ser encarados com seriedade pelos poderes públicos”.

Getúlio Vargas

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Na sequência, Getúlio recapitula o que dissera em janeiro de 1930 na plataforma da Aliança Liberal, para, afinal, acrescentar:

- A criação deste Ministério [do Trabalho], com o programa que vem executando, além de cumprir promessas solenemente feitas e obedecer aos imperativos da época, impunha-se ao governo provisório, como o primeiro passo para a organização, no país, do trabalho, da indústria e do comércio, não somente nas suas mútuas relações, como, também, no campo de ação que lhes compete. Iniciou-se, com ele, um movimento que, no presente período de evolução social, não podia ser adiado, sob pena de ficarmos fora de nosso tempo, como força inútil e sem medida na permuta universal de valores. - A legislação que tem sido elaborada por intermédio dessa secretaria de Estado, com alto espírito de conciliação, sem extremismos de escolas ... começa a produzir os primeiros frutos.

- Além das suas funções administrativas, que compreendem as questões do trabalho, indústria, comércio, previdência social, estatística, imigração e colonização e do patrimônio nacional, o novo Ministério iniciou trabalhos de legislação social e industrial cuja importância seria inútil sublinhar.

O Ministério fora criado com o nome de Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, mas o conceito de trabalho englobava também o de previdência. A indústria e o comércio ficaram ligadas a ele porque ainda era cedo para a existência de um ministério próprio para elas, ministério que só seria instalado em 1961, trinta anos depois, no início do governo Jânio Quadros. Além disso, era perfeitamente natural, naquele momento, num país que se preparava para saltar de uma economia predominantemente agrícola para uma economia industrial, associar o trabalho à indústria e ao comércio.

As questões de imigração e colonização foram subordinadas ao Ministério porque diziam respeito diretamente aos problemas do trabalho. A primeira das leis trabalhistas da Revolução de 30 foi a Lei dos Dois Terços, destinada a garantir emprego para brasileiros em setores nos quais a presença do trabalhador estrangeiro imigrante era majoritária, caso do setor de restaurantes, bares e similares, com 80% de empregados estrangeiros. A questão da colonização estava intimamente ligada à da imigração e às questões do trabalho – tanto porque o objetivo dos projetos de imigração era trazer trabalhadores altamente qualificados para a agricultura brasileira, de modo a expandir suas fronteiras e elevar sua produtividade, quanto porque projetos de colonização, precursores da reforma agrária, poderiam atrair para

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o campo muitos trabalhadores urbanos desempregados como porque tais projetos poderiam transformar trabalhadores rurais sem terra em trabalhadores rurais com terra.

Talvez parecesse estranho serem também agregadas ao Ministério do Trabalho as questões do patrimônio nacional, mas na época isso aparentemente não foi discutido.

Quanto à legislação social, prioridade do Ministério, Getúlio destaca:

- 1º., a lei e o regulamento de proteção ao trabalho nacional – a chamada Lei dos Dois Terços;

- 2º., a reforma da lei de aposentadorias e pensões;

- 3º., a ampliação do âmbito dessa lei, fazendo beneficiários dela os trabalhadores e empregados marítimos, tranviários [dos serviços de bondes], telegráficos, telefonistas e radiotelegrafistas, todos os operários de serviços públicos, em suma;

- 4º., a lei referente à organização das classes (lei de sindicalização);

- 5º., os projetos de lei já publicados sobre

a) oito horas de trabalho diário ou 48 horas semanais, nas indústrias e no comércio;

b) organização de um critério para estabelecimento dos salários mínimos;

c) convenções ou contratos coletivos de trabalho;

d) a instituição de comissões permanentes e mistas de empregadores e empregados, para solução dos conflitos de trabalho (comissões de conciliação e arbitramento).

Essas comissões permanentes e mistas para a solução de conflitos de trabalho seriam precursoras da Justiça do Trabalho, criada formalmente pela Constituição de 1934 e instalada depois pelo governo Vargas. A organização de um critério para o estabelecimento dos salários mínimos enfrentaria grandes resistências e dificuldades e a primeira tabela de salários mínimos, variáveis conforme as regiões do país e o custo de vida em cada uma delas, só seria decretada em 1940.

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AS OUTRAS LEIS

Em março de 1932, Lindolfo Collor deixou o Ministério do Trabalho, rompendo com Getúlio Vargas, da mesma forma que outros gaúchos do governo, como o Ministro da Justiça Maurício Cardoso e o Chefe de Polícia Batista Luzardo, no curso de uma crise em que boa parte das lideranças políticas do Rio Grande do Sul passou para a oposição.

O novo Ministro do Trabalho, Joaquim Pedro Salgado Filho, manteve os assessores de Collor - especialmente Joaquim Pimenta - e encaminhou a Getúlio Vargas todos os projetos deixados pelo ex-ministro.

Com exceção da lei do salário mínimo, que só entraria em vigor, efetivamente, em 1940, os projetos elaborados na gestão de Lindolfo Collor foram convertidos em lei ainda em 1932.

No Brasil, curiosamente, a lei da jornada de trabalho enfrentou menos reações que, por exemplo, a lei de férias e a regulamentação do trabalho do menor, se bem que as entidades patronais tivessem conseguido introduzir nela algumas exceções (por exemplo, a de que em caso de necessidade a empresa industrial poderia estender a jornada de trabalho a até 12 horas, pagando por fora as horas extras.)

A mesma coisa aconteceu com a lei de regulamentação do trabalho da mulher, que proibia o trabalho noturno e qualquer trabalho nas quatro semanas anteriores e nas quatro semanas posteriores ao parto

Figurava a limitação da jornada de trabalho, que em todo o mundo fora a maior e mais sangrenta batalha das lutas sociais. O Ministério, ao propor a redução da jornada de trabalho a oito horas diárias ou 48 semanais lembrara que o regime anterior era “caótico”: na indústria, por exemplo, a jornada variava de oito a doze horas.

ENTRE AS LEISDE 1932

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(nessas oito semanas de trabalho proibido, a empresa teria de pagar metade do salário à empregada licenciada).

Ainda em maio de 32 foi decretada – e bem recebida pelos industriais – a lei que instituía comissões mistas de arbitramento e conciliação, forma embrionária dos futuros organismos da Justiça do Trabalho. Em agosto, o Presidente Vargas assinou a lei das convenções coletivas de trabalho. Esta foi mal recebida pelas entidades empresariais, porque suas lideranças mais conservadoras, ou melhor, mais reacionárias, temiam os dispositivos que permitiam aos sindicatos fiscalizar a execução das convenções. Também foi mal recebida a lei de acidentes do trabalho, porque, como a das convenções coletivas, dava poderes de fiscalização aos sindicatos.

Todas essas leis foram elaboradas pelos mesmos assessores que tinham redigido a lei dos sindicatos, especialmente os socialistas Evaristo de Morais e Joaquim Pimenta, que permaneceram no Ministério do Trabalho depois da saída de Lindolfo Collor e ao longo da gestão de Salgado Filho, cuja ação assegurou que os projetos do período Collor viessem a transformar-se em leis.

Nesse momento, o Brasil situou-se na dianteira dos Estados Unidos, mergulhados na grande depressão decorrente da crise das bolsas de valores em 1929. Em novembro de 1932, Franklin Roosevelt venceu as eleições presidenciais nos Estados Unidos, em oposição ao então Presidente Herbert Hoover, que achava que o mercado seria capaz de resolver todos os problemas sociais.

Roosevelt tomou posse em março de 1933 e tentou, quase imediatamente, regulamentar salários e jornada de trabalho. Essa tentativa, impugnada pelos grandes grupos econômicos, foi considerada inconstitucional pela Corte Suprema dos Estados Unidos.

O Presidente Getúlio Vargas, portanto, conseguiu nesse momento avançar mais que Roosevelt nos Estados Unidos. E como isso contrariava interesses poderosos, passou a ser acusado de fascista, enquanto Roosevelt era acusado de chefiar um governo de tendências... comunistas!

João Goulart

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PARTE IV

Uma herança de quase duzentos anos

O salário mínimo

O Estatuto da Lavoura Canavieira: reforma agrária e sindicalização rural

A Justiça do Trabalho

A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT

De ontem para amanhã

João Goulart

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1. O Salário Mínimo O salário-mínimo já estava anunciado explicitamente na plataforma

da aliança liberal, lida por Getúlio no grande comício da Esplanada do Castelo, no Rio, na noite de 2 de janeiro de 1930.

Ao contrário, porém, de outras leis trabalhistas – até mesmo a reivindicação secular da jornada de trabalho de oito horas, que tanto

sacrifício e sangue custaria em todo o mundo – a lei do salário mínimo enfrentou tais e tantas resistências que só veio a entrar em vigor em 1940, dez anos depois da criação do Ministério do Trabalho (enquanto a lei da jornada de trabalho de oito horas passou logo nos primeiros anos da década de 1930).

O Ministério do Trabalho foi conhecido, desde seus primeiros dias de funcionamento, como o Ministério da Revolução, aquele que mais promissor parecia quanto ao cumprimento, até ampliado, dos compromissos da Revolução de 1930.

A verdade, porém, é que o Ministério do Trabalho foi impedido não só de ampliar tais compromissos, como também de cumprir todos os seus compromissos iniciais. O Ministério do Trabalho fora criado com a tarefa prioritária de produzir leis de proteção ao trabalho, tanto o trabalho urbano como o trabalho rural, o que evidentemente incluía o salário mínimo para o trabalhador urbano e para o trabalhador rural.

Na plataforma da Aliança Liberal, na noite de 2 de janeiro, Getúlio dissera:

- Tanto o proletariado urbano como o rural necessitam de dispositivos tutelares, aplicáveis a ambos, ressalvadas as rspectivas peculiaridades. Tais medidas devem compreender a instrução, educação, higiene, alimentação, habitação; a proteção às mulheres, às crianças, à invalidez e à velhice; o crédito, o salário e até o recreio, como os desportos e a cultura artística.

- É tempo de se cogitar da criação de escolas agrárias e técnico-industriais, da higienização das fábricas e usinas, saneamento dos campos, construção de vilas operárias, aplicação da lei de férias, lei do salário mínimo, cooperativas de consumo etc.

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Os horizontes do Ministério do Trabalho foram, porém, reduzidos desde logo, em virtude das resistências provocadas por sua criação.

O Ministério destinava-se a promover a defesa dos trabalhadores urbanos e rurais, mas, na prática, legislou quase exclusivamente para os trabalhadores urbanos. Em 1930, Getúlio teve de restringir aos trabalhadores urbanos a legislação trabalhista, que pretendia universal – abrangendo os trabalhadores urbanos e também os rurais. Ele percebeu que o governo provisório não teria força suficiente para sobreviver à imposição dessas leis tanto na cidade quanto no campo.

Era melhor, portanto, fazer o que fosse possível, duradouro e irreversível. No caso do salário mínimo, anunciado já na plataforma da Aliança Liberal, lida no comício da Esplanada do Castelo, na noite de 2 de janeiro de 1930, a ação do governo deu um passo considerável com o projeto apresentado em 1931 ao Presidente Vargas pelo Ministro do Trabalho Lindolfo Collor, para definir os critérios de fixação do salário mínimo.

Na exposição de motivos desse decreto, Lindolfo Collor dizia:

- A fixação do salário mínimo é não só uma medida de justiça social e de amparo aos direitos dos que trabalham, mas ainda, entre os empregadores, um passo decisivo para o cancelamento de injustificáveis diferenças nos custos de produção, observáveis em centros em que se encontram os mesmos níveis nos custos de subsistência.

O salário teria de corresponder às necessidades mínimas de subsistência do trabalhador, de acordo com as condições de vida na região em que vivesse. O governo decidiu, então, organizar uma equipe técnica do Ministério do Trabalho para realizar um inquérito, naturalmente demorado, sobre o custo de vida em todas as regiões do país.

No primeiro aniversário da Revolução, 3 de outubro de 1931, Getúlio leu no Teatro Municipal, no Rio, um manifesto de prestação de contas, no qual incluira o inventário das leis trabalhistas já adotadas pelo governo (por exemplo, a lei dos dois terços, a lei dos sindicatos, a reforma da lei de aposentadorias e pensões) e o inventário de projetos já publicados sobre a jornada de trabalho de oito horas, as convenções e contratos coletivos de trabalho, a criação das comissões de conciliação e arbitramento, embrião da futura Justiça do Trabalho, e a definição de critérios para o estabelecimento dos salários mínimos.

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O inquérito nacional sobre o custo de vida em cada região do país estava em andamento quando foi instalada a Assembléia Nacional Constituinte eleita em maio de 1933. Ainda que o inquérito estivesse pronto, Getúlio não poderia prevalecer-se dele para decretar as primeiras tabelas de salário mínimo, porque a Constituinte discutia essa questão e poderia impor critérios diferentes daqueles do governo.

Assim, a tarefa de redemocratização e reconstitucionalização conferida à Constituinte, que era a

prioridade do momento, retardava o avanço das medidas de justiça social e legislação trabalhista iniciadas pelo governo em 1930. De fato, a Constituinte paralisou possiveis medidas de adoção do salário mínimo, da mesma forma como retardaria a instalação da Justiça do Trabalho, tema, igualmente, de seus debates.

Aprovada a nova Constituição, em julho de 1934, foi preciso esperar por uma lei de 1936, votada pelo Congresso, para a instalação das Comissões de Salário Mínimo. O trabalho dessas comissões talvez se superpusesse ao do inquérito nacional sobre o custo de vida, instituido já em 1931, mas foi com base nele que, em 1938, já no Estado Novo (e revogada a Constituição de 1934), Getúlio regulamentou as normas acumuladas sobre o salário mínimo e, em 1º. de maio de 1940, decretou as primeiras tabelas desse salário, a ser pago a partir de agosto do mesmo ano.

2. O Estatuto da Lavoura Canavieira: reforma agrária e sindicalização rural

Ao criar o Ministério do Trabalho em novembro de 1930, Getúlio Vargas pretendia que ele produzisse

leis e fornecesse proteção tanto aos trabalhadores urbanos quanto aos trabalhadores rurais. Mas enfrentou tais resistências que, numa primeira etapa, teve de retardar a defesa dos trabalhadores rurais e acelerar a dos trabalhadores urbanos.

Já na plataforma da Aliança Liberal, lida no comício de 2 de janeiro desse ano no Rio, ele tinha dito:

- Tanto o proletariado urbano como o rural necessitam de dispositivos tutelares, aplicáveis a ambos, ressalvadas as respectivas peculiaridades. Tais medidas devem compreender a instrução, educação, higiene, alimentação, habitação; a proteção às mulheres, às crianças, à invalidez e à velhice; o crédito, o salário e até o recreio, como os desportos e a cultura artística.

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- É tempo de se cogitar da criação de escolas agrárias e técnico-industriais, da higienização das fábricas e usinas, saneamento dos campos, construção de vilas operárias, aplicação da lei de férias, lei do salário mínimo, cooperativas de consumo etc.

Estava explícito na plataforma que Getúlio preconizava medidas de defesa tanto do trabalhador urbano quanto do trabalhador rural. Isso valeria até para o salário mínimo, que só entraria em vigor dez anos depois.

Mas o governo provisório da Revolução de 1930 não era tão forte nem tão invulnerável quanto poderia parecer – tanto que em 1932, apenas dois anos depois, teve de enfrentar a chamada Revolução Constitucionalista de São Paulo (em defesa, pretensamente, de eleições que já tinham sido convocadas por Getúlio). Em 1935, três anos depois, e já em pleno regime da Constituição de 1934, Getúlio enfrentou e venceu a insurreição, o levante armado da Aliança Libertadora Nacional (ALN), conhecido como a intentona comunista. E em 1938 quase foi assassinado no Palácio Guanabara, na madrugada de 11 de maio, num levante da extrema-direita, o Partido Integralista.

Era preciso, sempre, avançar com cuidado. No caso da questão trabalhista, a escolha era entre fazer alguma coisa e não fazer nada. O governo resolveu que a prioridade era o trabalhador urbano e, com o apoio do patronato rural, tratou de estabelecer uma legislação moderna de proteção ao trabalho urbano.

Não se tratava de uma escolha arbitrária. O projeto maior do governo provisório da Revolução de 1930, em matéria de política econômica, era romper radicalmente com o modelo de país essencialmente rural que escravizava o Brasil e o fazia dependente da monocultura do café.

Se uma crise externa, como o crash da Bolsa de Nova York, em outubro de 1929, atingia algumas partes do resto do mundo, o Brasil sofria horrivelmente, ainda mais que as matrizes do capitalismo. A queda das exportações de café e a queda ainda maior de seus preços internacionais provocava desemprego e miséria no campo, o que transbordava para a cidade. Assim como o trabalhador do campo, que ou tinha sua renda radicalmente reduzida ou ficava desempregado, o trabalhador da cidade perdia o emprego – e não sabia por que.

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Ao assumir o governo, em novembro de 1930, Getúlio queria retomar – e retomou – o tema de seu discurso de 1906, quando, jovem estudante, saudou o Presidente eleito Afonso Pena, em visita a Porto Alegre e disse, em nome de seus colegas:

- Vós sois o representante de uma revolução pacífica que mudou os rumos da política nacional. Vós sois uma reivindicação popular.

Getúlio falava de improviso, mas com tal segurança que contemporâneos da Faculdade de Direito, estando a seu lado, tinham a impressão de ouvir a leitura de um discurso escrito e longamente meditado. Ele não quer homenagear Afonso Pena senão na medida do necessário para dizer o que esperam dele e de seu próximo governo esses jovens de vinte anos que o saúdam.

- Apesar de todas as grandes manifestações de solidariedade patriótica – diz Getúlio - o Brasil ainda não atingiu o ponto de fusão que caracteriza a formação definitiva de uma personalidade... Mas nós, os juízes de amanhã, nós temos confiança na grandeza da Pátria futura...

Por enquanto, a Pátria futura é vítima de uma coação da história:

- Quantas causas de estagnação pesam sobre um país novo... Amarga resultante para quem se vê coacto a comprar, manufaturados no estrangeiro, os gêneros da própria matéria prima que exporta!

Isso que Getúlio vê em 1906, pelos sintomas ou pelos efeitos, é o quadro econômico contra o qual ele

vai lutar pelo próximo meio século, pelos 48 anos que ainda viverá. Como tantos outros países periféricos, o Brasil era exportador de matérias-primas e importador de produtos manufaturados. Nesse momento, o minério de ferro do Brasil impressiona os técnicos das indústrias siderúrgicas da Europa e dos Estados Unidos, mas o Brasil importa até enxadas e machados – e o regime tarifário e cambial fechara pequenas fundições nacionais que produziam essas ferramentas.

Nessas poucas palavras, sobre a coação da história a estrangular o futuro de países como o Brasil, encerra-se toda a política econômica da Revolução de 1930 e do governo: fazer do Brasil um país que

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transformasse em aço o ferro de seu subsolo, que explorasse seu petróleo e suas fontes de energia elétrica, que produzisse tratores, caminhões, automóveis e até aviões, um país não mais vítima dessa coação da história, mas protagonista e criador de seu futuro.

Por isso era preciso, na legislação trabalhista, dar prioridade ao trabalhador urbano, o trabalhador na

indústria.

O PACTO

Mais de meio século depois, em 1985, Tancredo Neves, Presidente eleito da República (e Ministro da Justiça de Getúlio em seu segundo governo, de junho de 1953 até a manhã de sangue de 24 de agosto de 1954, o momento do suicídio de Getúlio), disse a Francisco Dornelles, ao informá-lo de que Dornelles seria seu Ministro da Fazenda:

- Você feche a porta do cofre e jogue a chave no fundo do mar. Não vamos gastar. Mas separe antes o dinheiro da reforma agrária.

- Dr. Getúlio – acrescentou Tancredo na conversa com Dornelles – teve de fazer um pacto com burguesia rural para garantir a reforma das relações econômicas urbanas. Daí a legislação trabalhista da Revolução de 1930.

- Nós – concluíu Tancredo – somos herdeiros de Getúlio. Como herdeiros dele vamos fazer um pacto, agora, com a burguesia da cidade, a burguesia urbana e industrial, para garantir a reforma das relações econômicas no campo, ou seja, a reforma agrária. Você jogue no fundo do mar a chave do cofre, mas antes separe o dinheiro da reforma agrária. Isso nós devemos a Dr. Getúlio.

Francisco Dornelles ao autor, em várias conversas, confirmadas em entrevistas gravadas para documentários como Tancredo Neves, mensageiro da liberdade, das produtoras FBL, de Fernando Barbosa Lima e Rozne Braga, e Lúmen, de Nina Luz e Claudia Castello; José Sarney, um nome na história, da FBL; e Tancredo, a travessia, da Intervídeo, de Roberto d’Ávila e Cláudio Pereira, dirigido por Sílvio Tendler.

Em 1930, Getúlio teve de restringir aos trabalhadores urbanos a legislação trabalhista, que pretendia universal – valendo também para os trabalhadores rurais.

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NÃO ESQUECER O TRABALHADOR RURAL

A decisão de Getúlio não significava esquecer o trabalhador rural: era preciso, porém, encontrar ou inventar uma oportunidade para ele. Demorou, mas em 1938 ela apareceu.

No governo provisório de 1930, Getúlio criara o Instituto do Açúcar e do Álcool, para proteger a agro-indústria canavieira, especialmente a do Nordeste. Esse Instituto fora criado por proposta de um gaúcho, Leonardo Truda, não de um nordestino. Truda era jornalista, foi diretor do Banco do Brasil, e convencera Getúlio de que o Rio Grande devia apoiar essa agro-indústria. Quando ela entrava em crise, a crise atingia profundamente o Rio Grande do Sul, reduzindo suas vendas de charque para o Nordeste.

A estabilidade da economia do açúcar e do álcool beneficiava o Nordeste, o Rio Grande do Sul e o resto do Brasil – e o Instituto do Açúcar e do Álcool foi fundamental para isso.

Embora criado por um gaúcho, o Instituto do Açúcar e do Álcool logo se transformou, assim como o Ministério da Agricultura, numa trincheira de Pernambuco e de pernambucanos.

O grande jornalista pernambucano Barbosa Lima Sobrinho não apoiara a Revolução de 1930. Por isso recusou, em 1933, ser candidato à Assembléia Nacional Constituinte por Pernambuco, a convite de seu amigo Agamenon Magalhães, ligado ao governo provisório de Getúlio Vargas e fundador do Partido Social Democrático pernambucano.

Em 1935, já reconstitucionalizado o país, pela aprovação e vigência da Constituição de 1934, Agamenon fez novo convite a Barbosa Lima, para ser candidato a deputado federal. Já não havia qualquer constrangimento moral para essa candidatura e Barbosa Lima aceitou e foi eleito. Na Câmara, tornou-se relator, a pedido de Agamenon, Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, do projeto do governo de criação do Instituto de Resseguros e nacionalização da indústria seguradora, prescrita pela nova Constituição.

O substitutivo apresentado por ele não chegou a ser votado, porque a Câmara foi fechada pelo golpe de novembro de 1937, que instaurou o Estado Novo. Getúlio, porém, adotou o substitutivo de Barbosa Lima, por achá-lo melhor que seu próprio projeto, e decretou a nacionalização dos seguros e a criação do Instituto de Resseguros de acordo com as linhas propostas nesse substitutivo.

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Isso finalmente aproximou Barbosa Lima de Getúlio. Em 1938, Agamenon Magalhães governava Pernambuco como interventor federal e convenceu Barbosa Lima a aceitar a presidência do Instituto do Açúcar e do Álcool. Barbosa Lima conhecia bem a questão econômica do açúcar e do álcool e também seus dramáticos problemas sociais.

Os pequenos fornecedores de cana às usinas eram muito mal pagos e, quando não tinham terra própria e trabalhavam nas terras das usinas ou de terceiros eram com frequência despejados arbitrariamente e sem qualquer indenização. Além disso, suas tentativas de organizar-se em associações ou sindicatos eram sempre dificultadas e quase sempre inviabilizadas pela ação dos usineiros.

Eleito presidente do Instituto por sua comissão executiva, composta de representantes do governo e dos empresários do setor, Barbosa Lima dedicou-se, junto com as tarefas de defesa da economia do açúcar e do álcool, a medidas de proteção aos fornecedores de cana, sobretudo os pequenos, que trabalhavam em terra dos usineiros ou de terceiros, e os assalariados.

Informações de Barbosa Lima Sobrinho ao autor, na década de 1990, quando o autor trabalhava em sua biografia.

Essa questão vinha de longe e não avançou nos três anos de vigência da Constituição de 1934, que complicara as relações entre o governo e o Congresso e deixara o governo de mãos amarradas, apesar de ter sido a primeira Constituição brasileira a conter um capítulo sobre a ordem econômica e social e as primeiras normas de proteção ao trabalho e de estímulo à justiça social.

Só com os poderes discricionários de que o governo dispunha no Estado Novo foi possível a decretação do Estatuto da Lavoura Canavieira em 1941, em decreto-lei que seria complementado por outro, já em 1944.

O RELATÓRIO DE BARBOSA LIMA SOBRINHO

No minucioso relatório em que prestou contas de sua atuação no Instituto, ao deixá-lo em 1946, Barbosa Lima Sobrinho reconstituíu todas as etapas e dificuldades transpostas na realização do trabalho.

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Barbosa Lima Sobrinho, A ação do Instituto do Açúcar e do Álcool, Rio, 1946, edição do Instituto.

No início desse relatório, Barbosa Lima diz, referindo-se a seus oito anos na presidência do Instituto, de 1938 a 1946:

- Oito anos de economia dirigida, numa fase de agitação, encontrando pela frente as realidades e as consequências uma guerra mundial, constituem, de certo, amplo domínio de experiências e ensinamentos. Confesso que, não obstante as dificuldades da intervenção, não creio nos regimes que exageram, no domínio econômico, a invocação da liberdade. A liberdade, em economia, significa supressão e aniquilamento dos interesses das classes desamparadas, ao passo que permite e assegura a predominância dos que agem escudados pela organização bancária e pela força esmagadora dos grandes capitais.

Quanto mais de perto encara a realidade da vida econômica, “no entrechoque dos interesses e das classes”, mais Barbosa Lima se convence da verdade de um conceito da Rerum Novarum, a encíclica de 1891 do Papa Leão XIII:

- A classe rica faz de seus haveres como que uma fortaleza e tem menos necessidade de tutela pública. A classe indigente, ao invés, sem riquezas para se pôr a coberto de injustiças, precisa contar principalmente com a proteção do Estado. Que o Estado, pois, sob particularíssimo título, se faça a proteção dos trabalhadores, que em geral pertencem à classe pobre.

Além da Rerum Novarum, Barbosa Lima menciona o presidente da Liga Democrática Belga, Arhur Verhaegen, numa citação deste ao Presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt:

- Nem era diverso [do de Leão XIII] o ensinamento de Franklin Roosevelt, qundo se referia às “exigências feitas por todos, de que seja posto um fim a essa espécie de licença, muitas vezes erroneamente denominada liberdade, que permite a um punhado da população tirar do resto do povo muito mais do que o seu quinhão tolerável”.

Mesmo com a possibilidade de fazer de seus haveres uma fortaleza, muitos integrantes da classe rica, talvez por culpa deles mesmos, tinham sido atingidos e ainda o eram pelas consequências econômicas da crise mundial de 1929. Por isso, o governo tinha de salvar primeiro a economia açucareira, como tivera antes de salvar a economia cafeeira, para salvar junto os empregos e outras formas de trabalho que essas economias proporcionavam e para conduzir a melhor tratamento a questão social na agroindústria canavieira.

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116115 As origens do Trabalhismo Brasileiro

- No caso, por exemplo, do Instituto do Açúcar e do Álcool – acrescentava Barbosa Lima Sobrinho – ao panorama geral do amparo à pequena usina, ao fornecedor de cana, ao colono, ao trabalhador rural, há que acrescentar a necessidade de conciliar os interesses das regiões brasileiras, dentro das altas conveniências de uma Federação. Num regime, aliás, de absoluta liberdade de produção de açúcar, os Estados do Norte, o Estado do Rio de Janeiro e o Estado de Minas Gerais sofreriam crises fatais, ou profundamente perturbadoras, pois que seria fácil a São Paulo expandir sua produção de açúcar até o ponto de dispensar qulquer importação dessa mercadoria, indo mesmo fazer concorrência a Minas Gerais no mercado mineiro. Daí resultaria uma luta comercial mais viva entre os produtores de Minas e os do Estado do Rio. O colapso dos preços seria inevitável. Nesse momento, a crise alcançaria também São Paulo, pois que o produtor em desespero teria que admitir quotas de sacrifício para salvar alguma coisa de seu trabalho.

- Não estamos fantasiando, mas descrevendo apenas um panorama, muito cohecido na história do país. No período de 1928 a 1931, a crise foi geral e não poupou ninguém. Ficaram praticamente arruinadas as usinas de todo o país. Mesmo em São Paulo, industriais que figuravam entre os mais empreendedores, não tinham com que fazer face aos seus maiores compromissos. Pagavam aos seus fornecedores em espécie, isto é, entregando-lhes açúcar. Houve mesmo quem chegasse a uma situação de verdadeiro desespero. Por isso os casos das usinas iam formando fila na Carteira de Liquidações do Banco do Brasil. E foi aí que surgiu, para salvar a indústria, a idéia de uma intervenção que, consubstanciada inicialmente na Comissão de Defesa do Açúcar, em 1931, convertia-se, em 1933, no Instituto do Açúcar e do Álcool.

Ao deixar a presidência do IAA, em 1946, Barbosa Lima podia afirmar que a economia açucareira, mais do que salva, estava próspera:

- Se há hoje alguma usina em crise, convém verificar como tem sido administrada. Porque a situação geral é de prosperidade, não somente do usineiro, como, em geral do plantador de cana.

- O maior benefício resultante da criação e da ação do Instituto está na defesa do produtor contra o intermediário. O comissário de açúcar desapareceu de todos os grandes centros produtores.

O comissário e as casas comissárias eram, sobretudo no comércio do açúcar e no café, intermediários controlados quase sempre por interesses estrangeiros e especuladores a serviço da derrubada das cotações internacionais desses produtos. Eles e seus controladores ganhavam rios de dinheiro – em geral remetido para fora do Brasil - graças ao esforço dos produtores nacionais e dos trabalhadores empregados por estes, ou como assalariados, ou como fornecedores ou como colonos.

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O IAA acabou com os comissários, oferecendo financiamento a juros baixos (6% ao ano) tanto aos usineiros quanto aos plantadores, na safra e na entressafra:

- Graças a esses elementos finananceiros, o produtor vende sua mercadoria através das cooperativas de classe. Vende diretamente aos atacadistas ou aos refinadores dos centros de consumo. O açúcar que é consumido, por exemplo, no Distrito Federal [então a cidade do Rio de Janeiro], tem o seguinte circuito: é vendido pelas cooperativas de produtores aos refinadores cariocas, que o distribuem aos estabecimentos varejistas. Não há possibilidade e maior simplificação no comércio de qualquer produto. Mas isso depois do Instituto. Antes do Instituto, o açúcar saía do produtor para o comissário e deste para o grande comerciante do sul, o qual nem sempre era refinador e nunca deixava de parte a possibilidade de especulação... Não há financiamento do Instituto do Açúcar e do Álcool em favor de intermediários... Como se vê, nessas linhas gerais, o Instituto defende realmente o produtor, incluindo nessa categoria não só o industrial [o usineiro] como o plantador de canas e os colonos das usinas.5

A EXPLORAÇÃO DO PEQUENO FORNECEDOR

Com todos os problemas que ameaçavam a agro-indústria canavieira, o IAA dedicou-se, desde a eleição de Barbosa Lima Sobrinho para sua presidência, a tratar do problema trabalhista nessa indústria, do que resultaria, em 1941, o Estatuto da Lavoura Canavieira.

A grande questão social era conhecida como a questão do colonato. Colonos eram os pequenos produtores, trabalhadores pobres, que em geral plantavam canas em terras das usinas ou de terceiros, e aos quais os usineiros não queriam pagar o mesmo que pagavam aos grandes fornecedores.

- O Estatuto – escreveria Barbosa Lima – não se deixou arrastar pela influência da diferença de títulos, nem considerou o colono como entidade diversa do fornecedor pelo fato de ele ter outro nome. O que ele considerou foi a situação de cada cultivador de canas, distinguindo-os em duas categorias perfeitamente destacadas: os que correm e os que não correm o risco agrícola. Aqueles seriam fornecedores e os últimos salariados. O colono, conforme sua atividade, poderia pertencer a uma ou a outra categoria, dependendo tudo de sua posição em face do risco agrícola.

A situação era clara. O colono, o pequeno fornecedor, deveria ter tratamento igual ao do grande fornecedor, porque, trabalhando em terra alheia, corria o risco agrícola. Muitas vezes, embora pequeno e

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5 Idem, pgs. 1 a 9.

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pobre, precisava contratar auxiliares, para o corte da cana, por exemplo, e pagar por sua conta, não do usineiro, o ganho desses auxiliares. Se alguma calamidade climática ou alguma praga devastasse seu plantio, o prejuízo seria dele, não do usineiro.

Já o assalariado estaria limitado ao aluguel de seu trabalho e não teria de contratar e pagar auxiliares nem arcar com os prejuízos das pragas e do clima. Não correndo o risco agrícola, não poderia ser equiparado ao fornecedor. Naturalmente o assalariado ganhava mal, como todos os trabalhadores rurais, mas não tinha de pagar pelo uso da terra, o que acontecia com o colono (além arcar com os eventuais prejuizos e o salário de seus auxiliares. Como dizia o relatório de Barbosa Lima Sobrinho:

- A alegação, frequentemente feita, de que os colonos lavram terras que lhes são dadas gratuitamente não corresponde à realidade dos fatos, de vez que a renda da terra, embora não ostensivamente cobrada, está efetivamente incluída ou na percentagem que a usina deduz ... ou na diferença entre o preço da cana ... e o preço realmente pago pela usina.

Os colonos – segundo Barbosa Lima – “lavram as terras com recursos próprios, empregando todos os membros da família, e, em muitos casos, trabalhadores por eles pagos, utilizando instrumentos de trabalho que lhes pertencem, empenhando economias próprias no trato da lavoura, pagando ao preço fixado pela usina todos os serviços de aração, sulcação etc., comprando pelo preço fixado pela usina adubos e mudas de cana”

Como explicar, então, que a cana por ele entregue à usina, exatamente a mesma entregue pelos fornecedores reconhecidos, fosse paga à razão de 33,50 cruzeiros, ou menos, enquanto a cana entregue pelos fornecedores era paga a 54 cruzeiros?

O Estatuto da Lavoura Canavieira, elaborado por Barbosa Lima Sobrinho e pelo consultor jurídico do IAA, Vicente Chermont de Miranda (com a colaboração de Leonardo Truda, ex-presidente do Instituto, e do futuro governador de Pernambuco Miguel Arrais, então funcionário do Instituto), enfrentaria todas essas injustiças, mas antes foi preciso normalizar a economia açucareira, em virtude de um surto de superprodução.

Até a Revolução de 1930, a economia açucareira do Brasil era dominada e sempre punida pelos mercados externos, por intermédio das casas comissárias. Se havia super-produção, os preços caíam

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vertiginosamente e muitos produtores e seus dependentes eram arruinados de um mês para outro. Com a Revolução, e antes mesmo da criação do IAA em 1933, as medidas de defesa do açúcar e a gradual eliminação dos comissários e outros intermediários e especuladores, os preços tornaram-se mais estáveis e, em seguida, garantidos pelos financiamentos a juros baixos do Instituto.

Isso levou as usinas a terem interesse no plantio da cana, o que antes preferiam deixar sobretudo para

os fornecedores e colonos. Usinas que antes produziam apenas 6% de sua cana passaram a produzir até 60%, o que exigiu contra-medidas do governo, no Estatuto da Lavoura Canavieira, com a adoção de quotas garantidas para os fornecedores e colonos (e até, para estes, com garantias contra o despejo arbitrário das terras que alugavam).

MEDIDAS (INTELIGENTES) CONTRA A SUPER-PRODUÇÃO

Antes do Estatuto e já em 1939 Barbosa Lima Sobrinho teve de tomar medidas efetivas contra a super-produção, que ameaçava arruinar toda a economia açucareirae a economia de todo o Nordeste.

Ele limitou a produção de açúcar pelas usinas, o que de início seria um sacrifício e um prejuízo para elas, mas, a longo prazo, a garantia de sua sobrevivência e de suas vendas futuras. Essa limitação foi compensada por outra medida, das mais inteligentes: a produção de cana não seria limitada – o que garantia o trabalho e a remuneração dos fornecedores, colonos e seus dependentes. A cana que sobrasse da produção limitada de açúcar poderia ser usada livremente na produção de álcool-motor.

Com a Segunda Guerra Mundial e dificuldades cada vez maiores na importação de derivados de petróleo, a oferta de álcool-motor aliviou consideravelmente no Brasil os efeitos do racionamento de gasolina.

Ao mesmo tempo, o agravamento dos conflitos entre usineiros e fornecedores e colonos acelerou a elaboração do Estatuto da Lavoura Canavieira, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 3.855, de novembro de 1941.

Em outubro de 1944, o Estatuto foi complementado pelo Decreto-Lei nº. 6969, que adotava medidas de caráter mais acentuadamente trabalhista, em grande parte inspiradas pela Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, do ano anterior.6

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7 V., a seguir, Cap. 13.

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- Esse decreto estabeleceu algumas garantias de salário, moradia, assistência médica e educacional e indenização por demissão sem justa causa. Pelo art. 1º., os trabalhadores que realizavam a exploração agrícola da cana de açúcar sob regime de colonato, co-participação ou parceria em terras pertencentes às usinas ou a terceiros, seriam considerados fornecedores, com situação regulada pelo IAA. Segundo Barbosa Lima Sobrinho, esse decreto equivalia a uma reforma agrária setorial.7

Não apenas a uma reforma agrária setorial. Barbosa Lima Sobrinho sustentava também, como disse muitas vezes ao autor deste trabalho, que, além de terem sido uma experiência pioneira de reforma agrária, o Estatuto e sua legislação complementar haviam promovido também uma primeira experiência de sindicalização rural no Brasil.

De fato, o Estatuto e essa legislação tinham garantido ao trabalhador sem terra a posse da terra por ele trabalhada, a salvo do despejo arbitrário, e às associações e cooperativas de trabalhadores e fornecedores o direito de existirem e atuarem. Eram, sem dúvida, experiências pioneiras de reforma agrária e sindicalização rural.

3. A Justiça do Trabalho Uma das maiores realizações da Revolução de 1930 e do Ministério do Trabalho, a Justiça do Trabalho

só foi completamente instalada em 1941, embora começasse a ser criada e posta em funcionamento muito antes, com a criação, em 1932, das primeiras comissões de conciliação e arbitramento.

As primeiras leis trabalhistas, elaboradas pela assessoria jurídica do Ministério do Trabalho, estabeleciam normas cujo cumprimento deveria ser acompanhado e fiscalizado pelo próprio Ministério, por seus órgãos de fiscalização. Em certos casos, porém, seria necessária a avaliação judicial ou do conflito individual entre um empregador e um empregado ou do conflito coletivo entre um conjunto de empregados e um conjunto de empregadores.

Foi demorada a elaboração do direito capaz de resolver em definitivo essas questões e o governo teve de agir por etapas. A decretação das primeiras leis trabalhistas – a primeira, a lei dos dois terços,

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7 Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, , coordenação Israel Beloch e Alzira Alves de Abreu, Rio, ed. Forense Universitária/Finep, 3º. volume, verbete Barbosa Lima Sobrinho.

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já nas primeiras semanas de funcionamento do Ministério do Trabalho – pressupunha a montagem de mecanismos de fiscalização de seu cumprimento e de discussão e decisão sobre conflitos individuais e coletivos entre empregadores e empregados quanto à aplicação dessas leis. Os órgãos da justiça comum não estavam preparados para isso e, absorvidos por outras causas, eram demoradíssimos nas questões de trabalho.

A montagem de mecanismos de fiscalização era um problema apenas administrativo e foi avançando à medida que o Ministério do Trabalho instalava e ampliava seus serviços. Já a montagem de mecanismos de conciliação e julgamento, como viriam a ser chamados, envolvia questões teóricas e práticas das mais complexas, cuja solução foi reconstituída, já em 2004, pelo ex-Ministro do Trabalho e ex-Ministro e Vice-Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Arnaldo Lopes Sussekind, em depoimento para o livro Arnaldo Sussekind, um construtor do direito do trabalho.8

Sussekind, jovem funcionário do Ministério do Trabalho e em seguida procurador do que seria o Ministério Público do Trabalho, participou tanto da instalação da Justiça do Trabalho, em 1941, quando da elaboração da CLT, a Consolidação das Leis do Trabalho, decretada em 1943.

Nesse longo e minucioso depoimento, ele conta como evoluíu a adoção de medidas que desembocaram na instalação e funcionamento da Justiça do Trabalho.

Em 1932, o Ministro Salgado Filho, sucessor de Lindolfo Collor no Ministério do Trabalho, conseguiu a aprovação do Presidente Vargas para os projetos mais importantes que haviam sido deixados prontos na gestão de Collor, criando as Juntas de Conciliação e Julgamento, para os litígios individuais do trabalho, e as Comissões Mistas de Conciliação, para os litígios coletivos.

- Do funcionamento desses dois órgãos, com o tempo, ergueu-se a Justiça do Trabalho. Órgãos administrativos do Ministério do Trabalho, as Juntas de Conciliação e Julgamento não tinham poder de execução. Se o empregador fosse condenado e não cumprisse voluntariamente a decisão, a parte vencedora tinha de entrar com uma ação executiva na Justiça Comum, que, não raro, revia as decisões, num processo demorado. Já as Comissões Mistas de Conciliação tratavam apenas de mediar os conflitos coletivos de trabalho. Obtido o acordo, estava cumprida a sua finalidade. Não obtido o acordo, não havia uma solução jurídica: cada parte teria de aguentar o que pudesse, para não ceder à outra. Tudo isso daria origem à criação da Justiça do Trabalho, prevista pela Constituição de 1934.

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8 Organização de Ângela de Castro Gomes, Elina G. da Fonseca Pessanha e Regina de Moraes Morel, publicado pela Editora Renovar (Rio, S. Paulo, Recife).

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- Na Assembléia Constituinte, foi o deputado Abelardo Marinho que apresentou a proposta de criação da Justiça do Trabalho. Simultaneamente, o então deputado Waldemar Falcão – futuro Ministro do Trabalho – apresentou outra proposição no mesmo sentido. Prado Kelly incumbiu-se de fundi-las e a aprovação se deu. De maneira que foi a Constuição de 1934 que instituíu ou determinou a criação da Justiça do Trabalho, fixando sua competência etc.

- Vargas e seu novo Ministro do Trabalho, o político pernambucano Agamenon Magalhães, articularam-se e nomearam uma comissão, presidida por Oliveira Viana, para elaborar o projeto de lei que tornaria efetiva a Justiça do Trabalho. Enviado ao Congresso Nacional, o projeto foi distribuido à Comissão de Constituição e Justiça, presidida pelo então professor de direito comercial da Universidade de São Paulo, Waldemar Ferreira, que se avocou o encargo de relatá-lo.

- Notável foi o debate público que se travou, então, entre o relator e autor do projeto. Waldemar Ferreir não admitia certas normas intervencionistas da Justiça do Trabalho, basicamente o seu poder de editar normas ao resolver um dissídio coletivo. Para ele, isso significava uma deturpação do Poder Judiciário, posto que, do ponto de vista material, a decisão normativa se equipararia a uma lei, caracterizando delegação de poder que a Constituição vedava. Oliveira Viana retrucava, dizendo não ser possível examinar o projeto à luz de conceitos do direito tradicional; era precisamente porque os tribunais da justiça comum não satisfaziam – ao decidir conflitos coletivos de trabalho - que se pensara em criar uma justiça para o trabalho. Portanto, ela deveria ter fundamentos e natureza diversos. Lembrava que, como um contrato coletivo de trabalho podia criar normas para a categoria, tendo, portanto, corpo de contrato e alma de lei (pois criava normas), assim também a sentença normativa, repetindo uma frase de Carnelutti, o grande processualista italiano, tinha corpo de sentença e alma de lei, e que tal era necessário.

- Acirrada e extensa, a discussão ... levou a que só em fins de 1937 o projeto fosse examinado na Comissão de Legislação Social e aprovado na de Constituição e Justiça... Foi quando Getúlio Vargas instituíu o Estado Novo, também chamado Estado Nacional, e fechou o Congresso, alegando, entre outras razões, a sua resistência a criar a Justiça do Trabalho.

- O projeto de Oliveira Viana foi retomado por Vargas?

- Sim. O texto, revisto e atualizado, foi levado a Vargas, que o aprovou, atendendo ao preceituado na nova Constituição, elaborada pelo então ministro da Justiça Francisco Campos, a quem Oliveira Viana ajudou na parte trabalhista.

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Constituição de 10 de novembro de 1937 (capítulo da Ordem Econômica):

Art. 136. O trabalho é um dever social...

Art. 137. A legislação do Trabalho observará, além de outros, os seguintes preceitos:

a) os contratos coletivos de trabalho, concluídos pelas associações, legalmente reconhecidas, de empregadores, trabalhadores, artistas e especialistas, serão aplicados a todos os empregados ... que elas representam;

b) os contratos coletivos de trabalho deverão estipular obrigatoriamente a sua duração, a importância e as modalidades do salário, a disciplina interior e o horário de trabalho;

c) a modalidade do salário será a mais apropriada às exigências do operário e da empresa;

d) o operário terá direito ao repouso semanal aos domingos e, nos limites das exigências técnicas da empresa, aos feriados civis e religiosos, de acordo com a tradição local;

e) depois de um ano de serviço ininterrupto em uma empresa de trabalho contínuo, o operário terá direito a uma licença anual remunerada;

f) nas empresas de trabalho contínuo, a cessação das relações de trabalho, a que o trabalhador não haja dado motivo, e quando a lei não lhe garanta a estabilidade no emprego, cria-lhe o direito a uma indenização proporcional aos anos de serviço;

g) nas empresas de trabalho contínuo, a mudança de proprietário não rescinde o contrato de trabalho, conservando os empregados, para com o novo empregador, os direitos que tinham em relação ao antigo;

h) salário mínimo, capaz de satisfazer, de acordo com as condições de cada região, as necessidades normais do trabalho;

i) o dia de trabalho de oito horas, que poderá ser reduzido, e somente suscetível de aumento nos casos previstos em lei;

j) o trabalho à noite, a não ser nos casos em que é efetuado periodicamente por turnos, será retibuído com remuneração superior à do diurno;

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k) proibição de trabalho a menores de 14 anos; de trabalho noturno a menores de 16 e, em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres;

l) assistência médica e higiênica ao trabalhador e à gestante, assegurado a esta, sem prejuízo do salário, um período de repouso antes e depois do parto;

m) a instituição de seguros de velhice, de invalidez, de vida e para os casos de acidente do trabalho;

n) as asociações de trabalhadores têm o dever de prestar a seus associados auxílio ou assistência, no referente às práticas administrativas ou judiciais relativas aos seguros de acidentes do trabalho e aos seguros sociais.

Artigo 138. A associação profissional ou sindical é livre. Somente, porém, o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de representação legal dos que participarem da categoria...

Artigo 139. Para dirimir os conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados, reguladas na legislação social, é instituída a justiça do trabalho, que será regulada em lei e à qual não se aplicam as disposições desta Constituição relativas à competência, ao recrutamento e às prerrogativas da justiça comum.

- Seria por decreto-lei – e aqui voltamos ao depoimento de Arnaldo Sussekind - que Getúlio Vargas iria instituir a Justiça do Trabalho, segundo o projeto do novo Ministro do Trabalho, Waldemar Falcão, que sucedera a Agamenon, nomeado interventor em Pernambuco. Ele criou uma comissão para elaborar os textos que se tranformariam no Decreto-lei nº. 1.237, de 1939, criando a Justiça do Trabalho...

- Nacionalmente, a comissão encarregada de dispor sobre o funcionamento da Justiça do Trabalho, elaborar os regulamentos, as instruções etc. ... fez um trabalho tão bom que no dia 2 de maio de 1941 as 36 Juntas [de Conciliação e Julgamento] começaram a funcionar em todo o Brasil...

- Os seis conselhos – que corresponderiam hoje aos tribunais regionais – também começaram a funcionar no dia 2 de maio.9

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9 Pgs. 58 a 68.

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4. A Consolidação das Leis do Trabalho - CLT

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), assinada no dia 1º. de maio de 1943, foi uma iniciativa do Ministro do Trabalho Alexandre Marcondes Filho, antecipada pelo próprio Presidente Getúlio Vargas, em

mensagem à Assembléia Nacional Constituinte, lida por ele próprio na instalação desta, a 15 de novembro de 1933.

Nessa mensagem, Getúlio prestava contas dos atos do governo provisório, entre os quais a criação do Ministério do Trabalho. E acrescentava:

- A Revolução assumiu o compromisso de honra de introduzir nas leis do país as providências aconselhadas para amparar o trabalho e o trabalhador, assegurando-lhes garantias e direitos que não lhes haviam sido reconhecidos. Esse compromisso foi cumprido ... através da enunciação de atos praticados por intermédio do Ministério do Trabalho, formando uma legislação orgânica sobre os problemas sociais. Mas o Governo Provisório não estacionou nessas iniciativas. Prossegue, serenamente, o programa que se traçou. Outras medidas estão em estudo, para oportuna adoção, contando-se entre elas ... a elaboração do Código do Trabalho.

Getúlio pensava num Código do Trabalho, muito mais complexo que a Consolidação afinal realizada. Mas teve de contentar-se com a Consolidação, ainda hoje em vigor. A Consolidação era possível em pouco tempo, o Código exigiria muito mais trabalho. Ainda assim, a Consolidação só foi possivel em 1943, quando a Constituição de 1934 não existia mais, revogada pela de 1937.

Em 1933, quando dessa mensagem à Constituinte e três anos depois da criação do Ministério do Trabalho e da decretação das primeiras leis trabalhistas, já se podiam perceber diferenças e contradições entre essas leis, diferenças e contradições que dificultavam sua aplicação e que se acentuariam a seguir, com a aprovação e a vigência da nova Constituição, promulgada em julho de 1934.

As primeiras leis trabalhistas haviam sido decretos do governo provisório investido em novembro de 1930, logo depois da vitória da Revolução daquele ano. Novas leis resultariam das normas econômicas e sociais que seriam postas na nova Constituição pela Assembléia Nacional Constituinte e pela legislação que, com base nessa Constituição, viesse a ser adotada em seguida pelo Congresso Nacional.

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Nos pouco mais de três anos de vigência das leis trabalhistas decretadas pelo governo provisório, já se verificavam problemas que era preciso corrigir. Com a nova Constituição, Getúlio Vargas, eleito Presidente constitucional, não poderia mais fazer isso como antes, por decreto, como na vigência do Governo Provisório. Isso agora dependeria de leis votadas pelo Congresso.

A nova Constituição incorporava a suas normas e princípios os avanços determinados pela legislação trabalhista do governo provisório de Getúlio e pela primeira vez incorporava um capítulo dedicado à ordem econômica e social (Título IV da Constituição de 1934).

Isso estava em moda na época. Em 1917, o México adotara – em consequência de sua revolução social, iniciada em 1910, uma Constituição que, pela primeira vez, continha normas de direito social. Em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha derrubou seu governo monárquico e imperial e, transformada na chamada República de Weimar, nome da cidade em que votou sua nova Constituição, republicana, também introduziu nessa Constituição normas de direito social equivalentes às que a Constituição brasileira de 1934 absorveria das primeiras leis trabalhistas do governo provisório da Revolução de 1930.

Também a Revolução Soviética de outubro/novembro de 1917 produziria na futura União Soviética a adoção de sucessivas normas constitucionais de proteção aos direitos dos trabalhadores.

Assim, nada era mais natural que, no Brasil, a Constituição de julho de 1934, perfilhar as leis já postas em vigor pelo governo provisório da Revolução de 1930, além de outras.

O título da Ordem Econômica e Social da Constituição de 1934 dizia:

Art. 115 – A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites é garantida a liberdade econômica.

....

Art. 120 – Os sindicatos e as associações profissionais serão reconhecidos de confirmidade com a lei.

Parágrafo único – A lei assegurará a pluralidade sindical e a completa autonomia dos sindicatos.

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[A primeira lei sindical do governo provisório, em 1931, estabelecera o princípio da unicidade sindical – apenas um sindicato de cada cateroria profissional ou econômica numa determinada jurisdição, para evitar a formação de sindicatos artificiais, financiados por grandes interesses econômicos. A norma da Constituição de 1934, da pluralidade sindical, seria revogada depois do golpe do Estado Novo, de 10 de novembro de 1937, com o estabelecimento do princípio da unicidade, em vigor até hoje.]

Art. 121 – A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do país.

Parágrafo 1º. – A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador:

a) proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo,

nacionalidade ou estado civil;

b) salário mínimo, capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região, as necsssidades normais do trbalhador;

c) trabalho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis nos casos previsos em lei;

d) proibição do trabalho a menores de 14 anos, de trabalho noturno a menores de 16; e, em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres;

e) repouso hebdomadário, de preferência aos domingos; f) férias anuais remuneradas;

g) indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa;

h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurado a esta descanso, antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e dos casos de acidente de trabalho ou de morte;

i) regulamentação do exercício de todas as profissões;

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128127 As origens do Trabalhismo Brasileiro

j) reconhecimento das convenções coletivas de trabalho. Parágrafo 2º. – Para o efeito deste artigo, não há distinção entre o trabalho manual e o

trabalho intelectual ou técnico, nem entre os profissionais respectivos. Parágrafo 3º. – Os serviços de amparo à maternidade e à infância, os referentes ao lar e ao

trabalho femininino, assim como a fiscalização e a orientação respectivas, serão incumbidos, de preferência, a mulheres habilitadas.

Parágrafo 4º. – O trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial, em que se

atenderá, quanto possível, ao disposto neste artigo. Procurar-se-á fixar o homem ao campo, cuidar da sua educação rural e assesgurar ao trabalhador nacional preferência na colonização e aproveitamento das terras públicas.

Parágrafo 5º. – A União promoverá, em cooperação com os Estados, a organização de

colônias agrícolas, paraonde serão encaminhados os habitantes de zonas empobrecidas, que o desejarem, e os sem trabalho.

Parágrafo 6º. – A entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necesssárias à garantia da integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo, porém, a corrente imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de dois por cento sobre o número dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinquenta anos.

Parágrafo 7º. – É vedada a concentração de imigrantes em qualquer ponto do território da União, devendo a lei regular a seleção, localização e assimilação do alienígena.

Parágrafo 8º. – Nos acidentes de trabalho em obras públicas da União, dos Estados e dos municípios, a indenização será feita pela folha de pagamento, dentro de quinze dias depois da sentença, da qual não se admitirá recurso ex-officio.

Artigo 122 – Para dirimir questões entre empregadores e empregados, regidas pela legislaçõ

social, fica instituída a Justiça do Trabalho, à qual não se aplica o disposto no Capítulo IV do Título I.

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129As origens do Trabalhismo Brasileiro

[Esse Capítulo IV do Título I tratava do Poder Judiciário, de seus órgãos e integrantes, da Corte Suprema (como era renomeado o Supremo Tribunal Federal), dos juízes e tribunais federais, da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar. Assim, a Justiça do Trabalho ficava fora das regras gerais do Poder Judiciário, ao qual só seria incoporada pela Constituição de 1946.)

Parágrafo único – A constituição dos Tribunais do Trabalho e das Comissões de Conciliação obedecerá sempre ao princípio da eleição de seus membros, metade pelas associações representativas de empregados, e metade pelas dos empregadores, sendo o presidente de livre nomeação do Governo, escolhido dentre pessoas de experiência e notória capacidade moral e intelectual.

Artigo 123 – São equiparados aos trabalhadores, para todos os efeitos das garantias e dos

benefícios da legislação social os que exercem profissões liberais.

Quase tudo isso já tinha sido realizado pelos decretos do governo provisório de novembro de 1930. O salário mínimo é que ainda teria de esperar e só seria exigido em 1940.

A Constituição de 1934 era complicadíssima e fora feita para tolher os movimentos do governo. Em sua curta vida de apenas três anos e alguns meses, ela não permitiu que Getúlio, eleito Presidente constitucional por ela própria, avançasse com sua legislação social. Além disso, ela foi duramente golpeada pela insurreição militar de novembro de 1935, a chamada intentona, promovida pela Aliança Nacional Libertadora, na verdade pelo Partido Comunista, para derrubar o governo pela violência.

Dessa tentativa de insurreição resultou a decretação, pelo Congresso, do estado de guerra, que imobilizou o governo, dominado pelas instituições e comandos militares, e afinal encontrou saída na decretação do Estado Novo e de sua Constituição, em 10 de novembro de 1937.

Sob o regime do Estado Novo, o governo teve condições, já em 1938, de decretar o Estatudo da Lavoura Canavieira – objeto do Capítulo 11 deste livro.

Era Ministro do Trabalho o advogado paulista Alexandre Marcondes Filho, que percebeu, desde logo, a necessidade de pelo menos consolidar a legislação trabalhista, que vinha do governo provisório da Revolução de 1930, passara pelos três anos do regime constitucional da Constituição de 1934 e entrara no regime discricionário do Estado Novo e de sua Constituição de 10 de novembro de 1937.

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O DEPOIMENTO DE ARNALDO SUSSEKIND

Assim que convidado para o Ministério do Trabalho, Marcondes Filho procurou Arnaldo Lopes Sussekind, que já trabalhava no Ministério, convidando-o para ser seu assessor:

- Em seu primeiro despacho comigo – contaria Sussekind - Marcondes Filho10

reportou-se às contradições e omissões da legislação do trabalho e da previdência, resultantes de fases

diferentes...: decretos legislativos, de ... 1930 a julho de 1934 [a Constituição desse ano foi promulgada e entrou em vigor no dia 16 de julho]; leis do Congresso a partir daí até 10 de novembro de 1937 [quando foi decretada a Constituição do Estado Novo]; e decretos-lei dessa data em diante. E pediu-me que montasse um quadro capaz de lhe dar uma visão de conjunto acerca do assunto. Então minha mulher costurou duas cartolinas, sobre as quais desenhei uma grande chave de todas as leis em vigor.

- O ministro cogitava de uma Consolidação que unificasse tudo... Depois de consultado o Presidente Vargas, ordenou que eu fosse anotando os nomes que viriam a compor a comissão encarregada de elaborá-la. Por indicação do próprio Presidente da República, o dr. Segadas Viana, que era um bom procurador; por escolha do próprio Marcondes, Oscar Saraiva, consultor jurídico do Ministério...

- A comissão não deveria ser muito numerosa e eu já estava para dar o despacho por encerrado quando [Marcondes Filho] reclamou da falta de um nome. Caneta em punho, me dispus a anotá-lo e me surpreendi ao ouvi-lo dizer: “Arnaldo Sussekind”... Marcondes Filho pretendia, através de nós, assessores dele, manter-se informado da evolução dos trabalhos.

- Inspiramo-nos nas teses do I Congresso de Direito Social...11

nos pareceres de Oliveira Viana e Oscar Saraiva12 Consultores jurídicos do Ministério do Trabalho., aprovados pelo Ministro do Trabalho, criando uma jurisprudência administrativa... na encíclica Rerum Novarum e nas convenções da Organização Internacional do Trabalho. Essas foram as nossas três grandes fontes materiais...

_______________________________________________________

10 Alexandre Marcondes Filho, advogado e futuramente senador por São Paulo. Foi nomeado Ministro do Trabalho em 1941, quando Joaquim Pedro Salgado Filho, sucessor de Lindolfo Collor, deixou esse cargo para assumir o de Ministro da Aeronáutica, então criado. Marcondes convocou Arnaldo Sussekind para sua assessoria

11 Realizado no Rio, em 1941, no cinquentenário da encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, de 1891. Essa encíclica é considerada até hoje um dos maiores documentos da Igreja sobre a questão social. Em 1931, comemorando seus quarenta anos de publicação, o Papa Pio XI, publicou outra grande encíclica sobre a questão social, a Quadragesimo Anno. Elas só encontrariam paralelo cerca de setenta anos depois da Rerum Novarum, com as encíclicas de João XXIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris, já no início da década de 1960.

12 Consultores jurídicos do Ministério do Trabalho

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- Todos os decretos-leis expedidos entre 1940 e 1942 foram transplantados para a Consolidação, sem qualquer modificação, uma vez que a Consolidação deveria ser um complemento da lei maior. Outro capítulo em que, praticamente, não houve alteração alguma foi o da Justiça do Trabalho, instalada em 1941, e o seu processo, sobre o que não cabia modificação. No mais, o que a comissão fez teve por inspiração essas três fontes materiais a que me referi.

- A alegação de que a CLT é uma cópia da Carta del Lavoro13, repetida por 99% de pessoas que nunca leram esse documento de Mussolini, é absolutamente falsa. Desde logo convém lembrar que a CLT tem 922 artigos, e a Carta apenas 30. Desses, somente 11 diziam respeito aos direitos e à magistratura do trabalho. Quase todos repetiam princípios e normas historicamente consagrados, tipo: o trabalho noturno deve ter remuneração superior ao diurno; o empregado tem direito ao repouso semanal, em regra coincidente com o domingo; após um ano de serviço, o trabalhador tem direito a férias remuneradas; a despedida a que o trabalhador não deu causa lhe assegura direito de indenização proporcional; a mudança de propriedade da empresa não resolve [não revoga] os contratos de trabalho; o novo emprego pode ficar sujeito a um período de prova, com direito recíproco de denúncia; o contrato coletivo se aplica ao empregado a domicílio.

O anteprojeto foi publicado no Diário Oficial em 5 de janeiro de 1943 e aberto a críticas e sugestões. Tenho, até hoje, as folhas em carbono dos originais datilografados dos relatórios que assinamos, na seguinte ordem: Luís Augusto do Rego Monteiro, Arnaldo Lopes Sussekind, Segadas Viana e Dorval Lacerda.

- Houve uma solenidade na ocasião?

- Foi no Catete. Toda a comissão estava presente e, além dela, integrantes de outras comissões, que vinham estudando o Código de Propriedade Industrial e as leis de Previdência Social.

- Em 10 de novembro de 1942, na exposição de motivos redigida por Marcondes Filho ... o presidente dera um despacho louvando os autores ... e mandando que se designasse uma nova comissão14

A CLT permitiu que a Justiça do Trabalho, então recentemente instalada, defendesse com mais amplitude os direitos trabalhistas e que o Ministério do Trabalho, por seus órgãos de fiscalização, e os próprios sindicatos agissem com mais eficácia no controle do cumprimento das normas de proteção ao trabalho.

_______________________________________________________

13 A principal lei trabalhista do regime fascista de Benito Mussolini na Itália, datada de 1927.

14 Rego Monteiro, Segadas Viana, Dorval Lacerda e Arnaldo Sussekind.

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5. De ontem para amanhãA Revolução de 1930, as propostas de Getúlio Vargas na plataforma da Aliança Liberal, sua contestação

de que a questão social fosse caso de polícia, a criação dos Ministérios do Trabalho e da Educação, as leis trabalhistas e em especial a CLT, e mais remotamente, as lutas pela abolição e pela república, a Revolução Farroupilha e as idéias e propostas de José Bonifácio no momento da independência do Brasil foram e são as grandes inspirações do trabalhismo brasileiro.

Os dois governos de Getúlio Vargas não tiveram condições de realizá-las todas.

Em 1930, por exemplo, ao assumir a chefia do governo provisório em seguida ao triunfo da Revolução, ele pretendia que as leis trabalhistas fossem aplicáveis tanto aos trabalhadores urbanos quanto aos trabalhadores rurais. Mas logo percebeu que não teria condições para isso e, naquele primeiro momento, limitou-as aos trabalhadores urbanos.

Em 1941, porém, ele assinou o Estatuto da Lavoura Canavieira, elaborado pelo grande brasileiro que era Barbosa Lima Sobrinho, então presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool. O Estatuto foi uma primeira experiência de extensão das leis trabalhistas ao trabalhador rural e, além disso, de reforma agrária e sindicalização rural.

Na campanha eleitoral de 1950, que o levaria de volta à Presidência da República, Getúlio propôs de novo a extensão das leis trabalhistas ao trabalhador rural e propôs também a reforma agrária. Como Presidente, não conseguiu que o Congresso acolhesse essas propostas, bloqueadas pelas forças conservadoras.

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Em 1963, porém, no governo do Presidente João Goulart, seu ex-Ministro do Trabalho e um de seus herdeiros políticos, o Congresso aprovou o Estatuto do Trabalhador Rural, que estendia ao homem do campo a proteção das leis trabalhistas. E o governo de João Goulart conseguiria promover e completar a organização dos sindicatos rurais, com tal eficiência que os governos do ciclo autoritário pós-1964 não ousaram acabar com ela.

Quanto à reforma agrária, até hoje não se completou, porque, quando isso acontecesse, ela iria ferir de morte uma estrutura fundiária multi-secular, feudal, reacionária, que vem dos primórdios da colonização portuguesa no Brasil, ainda no século 16, há mais de quinhentos anos.

Vimos, páginas atrás, que Tancredo Neves, o primeiro Presidente da República eleito livremente desde 1964, embora pelo voto indireto do colégio eleitoral (mas com todos os votos da representação trabalhista do PDT nesse colégio, como acentuaria Leonel Brizola), compreendeu a situação de Getúlio Vargas em 1930, o pacto que ele fora obrigado a assumir com a burguesia rural, para tornar possível a reforma das relações econômicas na cidade, com a legislação trabalhista. Tancredo considerava de seu dever a realização de novo pacto, com a burguesia das cidades, para completar a obra de Getúlio pela reforma das relações econômicas no campo, a reforma agrária.

A morte de Tancredo frustrou as expectativas que, a partir dessa sua compreensão dos dilemas de Getúlio, ele poderia realizar. Se tivesse sido eleito no pleito seguinte, em 1989, já pelo voto direto, não há dúvida de que Leonel Brizola teria avançado muito com a reforma agrária, até porque a Constituição de 1988, votada por uma Assembléia Nacional Constituinte livremente eleita em 1986, já no governo civil do Presidente José Sarney e longe da sombra e das ameaças dos Atos Institucionais, dava ao governo poderes para isso,

Em seu segundo governo, Getúlio Vargas pedira ao Congresso a regulamentação de um dispositivo da Constituição de 1946, votada pela Assembléia Nacional Constituinte desse ano, dispositivo relativo à desapropriação por interesse social. As outras formas de desapropriação permitidas eram por necessidade ou utilidade pública: necessidade quando alguma emergência social o exigisse: por exemplo, uma enchente; utilidade quando a prefeitura, para abrir uma rua, tivesse de desapropriar duas ou três casas.

Para um começo de reforma agrária, a regulamentação das desapropriações por interesse social seria um primeiro passo indispensável. Nem isso, porém, a maioria conservadora do Congresso permitiu. Mas a questão da terra teve avanços nos anos seguintes. Leonel Brizola, eleito governador do Rio Grande do Sul em 1958, quatro anos depois da morte de Getúlio, conseguiu distribuir grandes extensões de terra em regiões conflagradas por conflitos fundiários – numa experiência pioneira que fez história.

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A ELETROBRÁS E A ENERGIA ELÉTRICA

Getúlio também não conseguiu aprovar no Congresso os projetos da Eletrobrás, e queixou-se disso em sua Carta Testamento. A Eletrobrás, porém, foi criada em 1962, há cinquenta anos, na fase parlamentarista do governo do Presidente João Goulart, numa curiosa aliança partidária. O Presidente era do PTB, o partido de Getúlio. O Primeiro-Ministro, Tancredo Neves, do PSD, o maior dos partidos no Congresso, que se dividira no segundo governo Vargas, uma parte apoiando, alguns fazendo oposição e outros indiferentes. O Ministro das Minas e Energia era Gabriel Passos, da UDN, o maior dos partidos de oposição a Getúlio e a Jango, mas também dividido. Gabriel Passos pertencia à minoria nacionalista da UDN e fazia parte da Frente Parlamentar Nacionalista. Até começar a tentativa de desmontá-la, já na década de 1990, a Eletrobrás, em trinta anos, aumentara em 500% a capacidade de geração de energia elétrica no Brasil.

Brizola, novamente, deu um grande passo para o avanço da Eletrobrás e para o projeto de Getúlio de tornar o Brasil senhor e soberano de suas fontes de energia, antes entregues a interesses estrangeiros. Em 1959, recém-empossado no governo do Rio Grande do Sul, Brizola encampou os serviços e o patrimônio da subsidiária do grupo Bond & Share no Estado. Esse grupo, alegando insuficiência de tarifa, não realizava investimentos, não expandia seu parque gerador e, assim, paralisava o desenvolvimento da indústria gaúcha. A desapropriação dessa subsidiária acelerou a votação do projeto da Eletrobrás, a instalação da empresa e, em seguida, a nacionalização das concessionárias estrangeira no Brasil inteiro. Graças a isso a Eletrobrás pôde produzir os avanços que produziu, dos quais o mais notável é a Usina de Itaipu, a maior hidrelétrica do mundo.

A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA

Na reconstituição das origens e história do Ministério do Trabalho, chegamos até a decretação da CLT, a Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, treze anos após a criação do Ministério em novembro de 1930.

De lá para cá, houve grandes avanços e mas também grandes retrocessos.

A CLT continua em vigor, apesar do muito que se fez para revogá-la ou desfigurá-la, a pretexto de cortar o chamado “custo Brasil”, o alegado ônus imposto às empresas pela contratação de trabalhadores, como as contribuições previdenciárias e outras. Esse “custo Brasil” era muito menor que outro custo, o dos juros, em alguns momentos os mais altos do mundo, pagos pelas empresas ao sistema bancário para a rolagem de seu capital de giro (e, às vezes, para a relização de alguns investimentos).

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A partir de certo momento, a CLT e os compromissos inerentes a ela e às demais leis trabalhistas serviram de pretexto para um processo brutal de terceirização, acompanhado do aumento do trabalho informal e da redução correspondente do trabalho formal – sempre em prejuízo dos trabalhadores. Esse processo parece hoje contido e em regressão, em benefício da recuperação do trabalho formal, com as garantias da lei.

Em anos recentes, houve esforços para que alguma medida legal ou constitucional sobrepusesse à lei, a CLT: acordos ou convenções que poderiam ignorá-la. Tais acordos poderiam reduzir salários, direitos assegurados em matéria de jornada de trabalho, décimo-terceiro salário e outras garantias que vinham da Revolução de 1930.

Essas propostas felizmente não vingaram e não prosperou o princípio de que o negociado teria precedência sobre o legislado. Assim, o que prevalece hoje é a lei, a CLT.

O salário-mínimo, previsto desde a plataforma da Aliança Liberal, em janeiro de 1930, só seria efetivamente imposto mais de dez anos depois, em 1940. Em parte, paradoxalmente, pela eleição da Assembléia Nacional Constituinte em maio de 1933 e pela Constituição por ela promulgada em julho de 1934.

Essa Constituição, como já vimos, incluíu entre seus dispositivos de proteção ao trabalho o salário mínimo, mas estabeleceu tantos estudos e complicações para sua efetiva aplicação que as correspondentes providências burocráticas foram prolongadas indefinidamente e atravessaram, com os atrasos inevitáveis, todas as crises daquele período turbulento e violento daquele período, como o levante comunista de novembro de 1935, o estabelecimento do estado de guerra decretado pelo Congresso, a instauração do Estado Novo em 1937 e, em maio de 1938, o levante integralista e a tentativa de assassinato do Presidente Getúlio Vargas no Palácio Guanabara.

O início da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939, tumultuou ainda mais a vida econômica e social de todos os países, entre os quais o Brasil, que saira bem melhor que os países mais ricos das consequências da crise mundial de 1929.

Ainda assim, o Ministério do Trabalho de certo modo comemorou em 1940 os dez anos de sua criação com o estabelecimento dos primeiros índices do salário mínimo, que variavam de região para região. Esses índices seriam reajustados em 1943, em virtude da inflação provocada pela guerra. Com a deposição

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do Presidente Getúlio Vargas, em outubro de 1945, os índices do salário mínimo de 1943 permaneceram congelados ao longo do governo seguinte, do General Eurico Gaspar Dutra, de 1946 a 1951, embora nesse período a inflação tivesse chegado à marca de 60%.

De volta ao governo, Getúlio decretou um primeiro reajuste do mínimo no início de 1952, um reajuste nominal de mais de 200%. No dia 1º. de maio de 1954, decretou outro aumento, agora de 100%, metade, nominalmente, do reajuste anterior, mas muito maior em termos reais (o que, por falta de estatísticas suficientes, ainda não se podia calcular com um mínimo de certeza).

Esse aumento de 100% no salário mínimo foi uma das razões da violenta campanha desfechada contra Getúlio em agosto de 1954 e que o levaria ao suicídio na manhã da terça-feira 24 desse mês. O suicídio garantiu a preservação das conquistas econômicas, sociais e nacionais de Getúlio. O novo governo, chefiado pelo antes Vice-Presidente Café Filho, não ousou mexer no salário mínimo, nem na Petrobrás nem em outras iniciativas de Getúlio.

O salário mínimo de 1954, aumentado em 100%, permitiu, pouco depois, que o Presidente Juscelino Kubitschek, eleito como herdeiro de Getúlio, elevasse o valor do mínimo a 500 dólares, seu maior valor desde 1940, graças a um projeto acelerado de desenvolvimento em que a economia brasileira crescia em média a 7% ao ano. Além disso, o dólar da época, a década de 1950, era um dólar poderoso, em ascensão, não essa moeda de hoje, em queda, degradada, que permite a brasileiros abonados serem os reis das compras até em Paris, cujos grandes magazines os cortejam como se fossem nababos dos países pertrolíferos do mundo árabe.

Imediatamente depois de Juscelino, o valor do salário mínimo foi preservado ao longo dos sete meses de governo do Presidente Jânio Quadros e dos dois anos e seis meses do governo do Presidente João Goulart.

No governo João Goulart foi promulgado e entrou em vigor o Estatuto do Trabalhador Rural, que estendeu a esses trabalhadores a proteção que as leis da Revolução de 1930 haviam garantido aos trabalhadores urbanos. Com o salário mínimo e outros direitos estendidos aos trabalhadores rurais, os avanços na distribuição de renda foram ainda mais longe.

Em 1964, quando da deposição do Presidente João Goulart e da instalação do ciclo de governos militares que se prolongaria por vinte anos, os rendimentos do trabalho correspondiam a cerca de 60%

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do PIB brasileiro, e os rendimentos do capital, a cerca de 40%. Ao longo dos anos e décadas seguintes, essa equação inverteu-se: os rendimentos do trabalho cairam para 40% ou menos do PIB e os do capital subiram para 60% ou mais.

No fim de 2010, quando se comemovam os 80 anos de criação do Ministério do Trabalho, os rendimentos do trabalho voltavam a avançar em termos reais, graças aos aumentos reais do salário mínimo e também à retomada do desenvolvimento da economia brasileira.

Assim, os fatos de hoje realimentam o projeto do trabalhismo brasileiro, que vem de longe. Não apenas de Getúlio Vargas, mas das luta pela abolição e pela república, dos ideais da Revolução Farroupilha e até das generosas propostas de José Bonifácio no momento da independência do Brasil. É uma herança de quase duzentos anos.

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