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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO
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AS POLÍTICAS HABITACIONAIS E O DIREITO URBANO: O CASO DA VILA AUTÓDROMO - RJ
CARINE BOTELHO PREVIATTI1
THYMON BRIAN ROCHA SANTANA2
Resumo: Esse trabalho discute a função social da propriedade e a relação dialética desse
instrumento jurídico e urbanístico na construção de cidades cada vez mais fragmentadas e desiguais nas grandes cidades brasileiras. Utilizando como estudo de caso a comunidade Vila Autódromo, na cidade do Rio de Janeiro, analisa a utilização desse instrumento, tanto pelo poder público em suas diversas tentativas de remoção das famílias dessa vila de pescadores, como pelos próprios moradores, na busca por sua permanência no espaço que será vizinho ao Parque Olímpico Rio-2016.
Palavras-chave: Função social da propriedade, megaevento, Vila Autódromo.
Abstract: This paper discusses the relationship between the social function of property and the
dialectical relationship of this legal and town planning instrument in the construction of increasingly fragmented and unequal cities in large Brazilian cities. Using as a case study the community of Vila Autódromo, located in the city of Rio de Janeiro, analyzes the use of this instrument, both by the government in its various attempts of removal of this fishing village, as by the residents on the search for their stay in the space that will be adjacent to the Olympic Park Rio-2016.
Keywords: Social function of property, mega event, Vila Autódromo.
1 – Introdução
As politicas habitacionais e o direito urbano têm como lastro comum o
princípio fundamental da função social da propriedade, que determina, de modo
geral, que os direitos individuais relativos à propriedade devem coexistir com os
direitos sociais. Neste sentido, a discussão da perspectiva relativa à limitação da
propriedade privada é fundamental, dado que cada vez mais se estreitam as
relações entre as politicas habitacionais, o setor imobiliário e o mercado financeiro.
Ocorre que, não raro, instrumentos como o zoneamento e políticas como o
financiamento habitacional e a regularização fundiária, que deveriam garantir o
direito à terra aos mais necessitados, acabam sendo utilizados em favor do próprio
1 Mestranda no Programa de Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da Universidade de São Paulo. E-mail de contato: [email protected]. 2 Mestrando no Programa de Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da Universidade de São Paulo. E-mail de contato: [email protected].
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mercado, causando contraditoriamente a exclusão dos mais vulneráveis a partir de
instrumentos e políticas prioritariamente sociais. Neste sentido, este trabalho busca
analisar, a partir de estudo de caso da Vila Autódromo – RJ, o processo de remoção
de habitações de moradores de baixo poder econômico em função da realização de
um megaevento esportivo. Tais dinâmicas seriam motivadas pelos ideais de
desenvolvimento local e urbano expostos no discurso do poder público e na
materialização econômica dos agentes privados interessados no modelo de política
pública através do desenvolvimento estratégico, voltado para os megaeventos e
para os grandes projetos urbanos, enquanto ferramentas para sua realização.
Escolheu-se para estudo uma comunidade de moradores que reside há mais
de quarenta anos no entorno do antigo Autódromo Nelson Piquet na Barra da Tijuca.
Optou-se pelo estudo dessa comunidade principalmente pela mobilização política de
seus moradores, pelo histórico de resistência de moradia em tentativas passadas de
remoção e pelo fato de a grande maioria dos moradores possuir concessão de uso
da terra por 99 anos, concedida pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Verificou-se que seria fundamental estudar os conflitos que levam as remoções das
famílias, os atores envolvidos nos processos e a questão dialética dos interesses da
população e das grandes empresas que firmaram parcerias com o poder público
para a construção do megaevento.
2 – Função Social da Propriedade
A propriedade da terra urbana, na lógica da produção e reprodução capitalista
do espaço, se desenvolveu no ultimo século de forma a reafirmar a propriedade
como um direito absoluto. Essa compreensão do espaço não convive com a
concepção da submissão da propriedade ao interesse social. Isto, no entanto, se dá
de forma complexa, em processos evidentemente não lineares e com elementos
políticos e históricos muito peculiares. Esses processos são caracterizados pelos
conflitos que não são duais (no sentido de serem representados pela polarização
entre movimentos de luta e mercado imobiliário, por exemplo), mas plurais, onde
diversos sujeitos sociais (públicos e privados) se relacionam. Neste sentido, no
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Brasil, temos a expressão do conflito deste processo na materialização da
apropriação do espaço por esses diversos sujeitos e seus respectivos interesses
específicos. A submissão da propriedade ao interesse social é um princípio
constitucional consolidado no instituto da Função Social da Propriedade. Este
princípio, regulamentado (quando urbano) pelo Estatuto da Cidade e Planos
Diretores teve, até 1988, um papel social inexpressivo, mas um conteúdo econômico
muito bem delineado que reafirmava a propriedade privada e seu direito irrestrito, ao
estabelecer como funcionalização social a produção e, como “pena” pela
inobservância do princípio, a desapropriação mediante pagamento ao proprietário
infrator. Foi somente com a constituição de 1988 e a maior participação dos
movimentos populares que o instituto passou a incorporar novos significados.
Evidentemente que esta nova perspectiva mais social relativa ao uso da terra não foi
recebida de forma pacífica pelos grandes proprietários e grupos conservadores do
congresso ligados aos setores imobiliários (Fernandes, 2012) ocasionando grande
embate politico, não por acaso o Estatuto da Cidade, que regulamenta o capítulo da
constituição relativo à politica urbana e que regulamenta também o instituto da
Função Social da Propriedade, tramitou durante 13 anos no congresso. Deste
embate surgiu um conceito intermediário e bastante genérico sobre o significado e a
estrutura do instituto, conforme demonstra Fernandes:
O direito de propriedade imobiliária urbana é assegurado desde que cumprida sua função social, que por sua vez é aquela determinada pela legislação urbanística, sobretudo no contexto municipal. Cabe ao governo municipal promover o controle do processo de desenvolvimento urbano, através da formulação de politicas de ordenamento territorial nas quais os interesses individuais dos proprietários necessariamente coexistem com outros interesses sociais culturais e ambientais de outros grupos e da cidade como um todo. Para tanto, foi dado ao poder publico o poder de, através de leis e diversos instrumentos urbanísticos, determinar a medida desse equilíbrio - possível – entre interesses individuais e coletivos quanto à utilização desse bem não renovável essencial ao desenvolvimento sustentável da vida nas cidades, qual seja, o solo urbano. (Fernandes, 2012. p. 14-15)
A nova perspectiva social do Princípio, ainda hoje divide espaço com o seu
sentido econômico e produtivo. Isso quer dizer que a Função Social da Propriedade,
estabelecendo-se ou não em contradições de conteúdo, tem por inequívoca sua
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utilização por diferentes esferas e sujeitos sociais em um plano de conflitos da
produção e da reprodução do espaço. A utilização do princípio pelos diversos
sujeitos sociais em geral não ocorre de forma direta, isso porque o instituto não tem
seu fim na norma, o que nos permite compreendê-lo em suas dimensões normativa
e principiológica. De acordo com Fernandes:
Em ultima análise, toda e qualquer lei urbanística – ou ambiental – implica em materializar o principio da função social da propriedade, que é sem duvida o princípio fundamental do Direito Urbanístico e do Direito Ambiental (Fernandes, 2012. p. 14)
Desta maneira, toda a lei e instrumentos urbanísticos devem se desenvolver
de modo a controlar os processos urbanos através de politicas urbanas, normas e
instrumentos de um modo geral que garantam a coexistência dos interesses
individuais e coletivos. Ocorre que o que cada vez mais se verifica é a apropriação
(ou mesmo a criação), destes “elementos de equilíbrio” por sujeitos específicos,
direcionando-os para o mercado, sob justificativa ideológica social, transformando-os
em produtos de desigualdade e exclusão social. Como exemplo, temos a utilização
do zoneamento excludente e das desapropriações por utilidade publica que é
seletiva. Esta forma de apropriação do princípio ocorre a todo o momento no
processo de produção e reprodução do espaço, no entanto ele se dinamiza e se
potencializa em condições propícias à reprodução do capital, como é o exemplo da
comunidade Vila Autódromo, que será analisado neste trabalho. Esta apropriação do
princípio pelo mercado, para se desenvolver, carece da absolutização da
propriedade privada, o que, como já defendido, necessariamente agride o interesse
social coletivo. Essa dinâmica de apropriação é tão violenta que invade diversos
direitos sociais para sua efetivação, ocasionando um verdadeiro estado de exceção
(Rodrigues, 2013) como poderá ser observado neste estudo.
3 – Vila Autódromo e os conflitos de moradia
A Vila Autódromo foi construída a partir do ano de 1960 como uma vila de
pescadores e, ao longo dos anos seguintes, teve um significativo crescimento
populacional ocasionado, principalmente, pela construção do Autódromo Nelson
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Piquet e de um conjunto residencial da Aeronáutica Brasileira nos anos 70. Em
função dessas grandes obras, incluindo também o aterro de algumas lagoas da
região, houve assentamento na comunidade de trabalhadores da construção civil
que tinham se mudado temporariamente para a região e que por lá acabaram se
estabelecendo de forma permanente. Nos anos 80 foi criada a AMPAVA,
Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo, através de iniciativa dos
moradores, com o objetivo principal de reivindicar melhorias na comunidade, tais
como: instalação de luz elétrica, rede de saneamento básico, água encanada e
registro no IBAMA3 dos pescadores.
...em 1994, a antiga Secretaria da Habitação e Assuntos Fundiários do RJ assentou legalmente mais sessenta famílias na Vila Autódromo. Em 1997, cento e quatro famílias receberam titulação do Governo de Estado. Em 1998, os moradores da faixa marginal da Lagoa receberam Concessão de Uso Real por noventa e nove anos por essa mesma Secretaria, publicada no D. O. de 31/12/1998. Em 12/01/2005, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro decretou parte da Comunidade como Área de Interesse Social por meio da Lei Complementar n° 74/2005 (Plano Popular Vila Autódromo, 2012, p.8).
Hoje a Vila Autódromo está localizada ao lado do muro do antigo autódromo,
entre a lagoa de Jacarepaguá e o canal Pavuninha e na confluência das avenidas
Salvador Allende e Embaixador Abelardo Bueno. Situada numa zona limítrofe entre
os bairros da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá, está localizada espacialmente na
região administrativa da Barra da Tijuca, zona norte da cidade do Rio de Janeiro.
A estrutura das construções está distribuída portanto, nessa faixa de terra
entre o muro do Autódromo e a lagoa de Jacarepaguá. No começo do ano de 2014,
existiam 10 ruas principais e travessas, todas com nomes que foram dados pelos
próprios moradores, sendo apenas parte da Avenida do Autódromo asfaltada. As
residências mais antigas se situavam também nessa avenida, principalmente no
trecho denominado de “faixa marginal da lagoa”.
O histórico de tentativas de remoção da comunidade começou oficialmente
em 1993, no primeiro mandato do então prefeito César Maia, através de uma ação
3 IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Disponível em:
http://www.ibama.gov.br/
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civil pública por “danos estéticos e ambientais” à área. O principal argumento do
processo era de que as famílias ocuparam a faixa marginal da lagoa sem
respeitarem o recuo mínimo para construção previsto em lei e necessário para
garantir a preservação desse ecossistema.
Em contrapartida, o governo do Estado em 1994, na gestão de Leonel Brizola,
outorgou 85 termos de Concessão de Uso do terreno de sua propriedade para os
moradores através da Secretaria da Habitação e Assuntos fundiários, pelo prazo de
30 anos, revogáveis. Nesse caso, a comunidade se beneficiou diretamente de uma
disputa política entre partidos opostos que ocupavam cargos no governo do Estado
e na Prefeitura da cidade. Em 1998, o então governador Marcello Alencar estendeu
o prazo de concessão de uso para 99 anos e outorgou mais 162 termos de uso,
totalizando, portanto 247 famílias com titulação de propriedade para uso com fins de
moradia. As famílias beneficiadas com a titulação começaram a fazer melhorias em
suas residências, como construção de mais pavimentos, pintura e acabamento,
garagem e até mesmo a edificação de sobrados ou pequenas quitinetes para
locação. Mesmo sem se beneficiarem dos serviços públicos que a Prefeitura deveria
ter realizado na área - visto que muitos moradores pagavam desde então o Imposto
Predial e Territorial Urbano (IPTU) - como pavimentação das ruas, saneamento
básico e distribuição de água encanada, os moradores construíram um grupo auto
colaborativo, através da AMPAVA, para realização dessas obras de infraestrutura.
Um sentimento de pertencimento tomou conta da comunidade. Além da convivência
harmoniosa entre os moradores, outro ponto que distinguia a Vila Autódromo de
outras comunidades da cidade do Rio de Janeiro era justamente a ausência do
crime organizado, tráfico de drogas ou de milícias – grupos paramilitares que
cobram valores dos moradores de determinadas localidades em troca de suposta
segurança.
Adicionalmente, em 2005, parte da comunidade foi declarada Área de
Especial Interesse Social – AEIS – pela Câmara Municipal, que é basicamente um
instrumento de política urbana que demarca parcelas do espaço destinadas à
moradia de populações de baixa renda, à regularização fundiária e à recuperação
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urbanística4. Isso preservava ainda mais o direito dos moradores de permanecerem
na comunidade e em suas residências. No entanto, a pressão pela remoção das
famílias continuou acontecendo ao longo dos anos, destacando-se o período da
realização dos Jogos Pan-americanos, em 2007. Desde 2009, após o anúncio da
cidade do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos Rio-2016, essa pressão
pela remoção se intensificou. Nesse momento, os três entes governamentais
estavam alinhados em prol de um objetivo em comum: a realização do megaevento
esportivo. Ficou claro para os moradores que não haveria mais conflitos políticos
que pudessem intervir em favor da permanência da comunidade na região.
Diante desse novo quadro e com apoio dos movimentos sociais de luta por
moradia e de duas universidades públicas do Rio de Janeiro (Universidade Federal
do Rio de Janeiro UFRJ e Universidade Federal Fluminense UFF), os moradores
ajudaram a construir o Plano de Desenvolvimento Urbano, Econômico, Social e
Cultural da Vila Autódromo, ou Plano Popular da Vila Autódromo de 2012, como
ficou mais conhecido. Com colaboração de todos os moradores, foi feito um
cadastro que continha informações censitárias sobre cada família (número de
membros, renda, escolaridade), o numero de famílias residentes em cada terreno,
quem eram os proprietários ou locatários e especialmente, quantos possuíam a
concessão para uso dos terrenos. O objetivo do Plano era, principalmente, realocar
as famílias dentro do espaço da própria comunidade e realizar melhorias na
infraestrutura do espaço. Desde então, o projeto do Plano Popular foi entregue à
Prefeitura para análise, sem nunca ter sido, contudo, oficialmente reconhecido pela
municipalidade; ganhou um prêmio internacional e passou por três modificações na
tentativa de adequar o projeto as modificações físicas que estavam acontecendo na
comunidade. Essas alterações espaciais ocorreram, principalmente, através da
desocupação de vários imóveis de moradores, que começaram, desde 2013, a
negociar com a Prefeitura indenizações ou reassentamento.
4 Art. 182 da Constituição de 1988, art. 4º, inciso V; Lei 10.257/2001 do Estatuto da Cidade e Art. 47, inciso V
da Lei 11.997/2009.
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Uma das negociações foi um apartamento no conjunto habitacional Parque
Carioca, construído pela Prefeitura em parceria público privada com a
concessionária Rio Mais, através do programa federal para construção de habitação
popular denominado Minha Casa Minha Vida, com a garantia da Prefeitura de que
os valores referentes ao novo empreendimento seriam custeados pelo município e
não pelo morador. Estabelecia-se assim uma troca que teoricamente era bem
simples: o morador entregava seu imóvel para a Prefeitura e recebia em troca um
apartamento.
No entanto, foram verificadas algumas irregularidades com relação a essa
proposta de reassentamento, que vão desde a escolha do terreno para a construção
do conjunto de prédios que, segundo a Defensoria Pública do Estado do Rio de
Janeiro pertencia a duas empresas que foram doadoras de campanha para eleição
do atual Prefeito Eduardo Paes, bem como ao valor superfaturado pago pelo
terreno, de R$19,9 milhões (Processo Nº 0075959-18.2013.8.19.0001, Anexo 6,
p.11-61). Outra irregularidade foi apontada por laudo técnico do Instituto de
Geotécnica do Município – Geo-Rio, que afirma que o local onde foi construído o
Parque Carioca é uma área de risco de deslizamento. Por fim, os moradores que
aceitaram esse tipo de indenização pela Prefeitura assinaram um contrato com a
Caixa Econômica Federal, que custeia o programa, para pagamento de parcelas de
quitação do valor do imóvel. Os moradores não têm, portanto, qualquer prova
jurídica de que a Prefeitura irá de fato arcar com os custos dos apartamentos, como
foi acordado na entrega das chaves. Da mesma forma, quaisquer tipos de comércio
que esses moradores mantinham antes em seus terrenos na comunidade tiveram
que ser suspensos, por questões legais e normativas do Programa Minha Casa
Minha Vida. Templos religiosos, quartos para locação, quitinetes, não poderiam mais
ocupar o mesmo espaço da habitação.
Outros moradores negociaram com a concessionária o pagamento de
indenizações pelas construções de suas casas; valores que foram publicados no
Diário Oficial do Rio de Janeiro, mas que não seguem uma normatização de custos
publicados pela Prefeitura. Os valores variam de R$2 milhões até R$100 mil.
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No ato da entrega das chaves para os apartamentos ou do cheque com o
valor da indenização, o morador deveria assinar um termo que autorizava a imediata
demolição do seu imóvel na Vila Autódromo e concedia à Prefeitura, total
propriedade do seu terreno. Com essas medidas, as famílias que permanecem na
comunidade estão vivendo com entulho e lixo gerado pelas demolições que, além de
darem à localidade uma aparência de guerra, comprometem a estrutura dos imóveis
que não foram demolidos e até mesmo a integridade física dos moradores. Até
então, o discurso da Prefeitura era de que os moradores que quisessem ficar o
poderiam, desde que suas moradias não estivessem dentro das áreas para obras de
infraestrutura da região ou da construção do Parque Olímpico. Quanto aos
moradores que saíram, a declaração do município é de que o fizeram por livre e
espontânea vontade, segundo inclusive, diversas declarações do próprio Prefeito
Edardo Paes de quem quisesse ficar, poderia. (Youtube, 2013).
No entanto, em março de 2015, a Prefeitura decretou a desapropriação de 58
residências da comunidade por utilidade pública (Diário Oficial, 2015). Novamente
houve arbitrariedade nos valores ofertados a essas famílias, bem como uma
pulverização espacial dessas desapropriações. As 58 casas não estão dispostas
lado a lado nem pertencem às mesmas quadras, mas estão localizadas em pontos
diferentes da comunidade, o que reforça ainda mais a prerrogativa de total
desapropriação da área pelo poder público. Estima-se que, pelos termos assinados
que foram anexados aos processos pela Prefeitura, do total das famílias que
habitavam a região da Vila Autódromo, 344 tenham optado pelo Parque Carioca,
108 tenham preferido indenizações e 88 ainda permanecem no local.
Tendo em perspectiva todos os fatos relatados, é possível afirmar que o
poder público utilizou ao longo dos anos, discursos diversos para a remoção das
famílias da Vila Autódromo, sendo alguns deles nos últimos anos, ligados à
realização dos Jogos Olímpicos de 2016. Contudo, como discutido anteriormente, a
temporalidade das propostas de remoção da Vila Autódromo é anterior ao
megaevento esportivo e é também muito mais profunda. É necessário,
primeiramente, entender como o espaço é apropriado pelo capital em favor de uma
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minoria e como essa exclusão socioespacial se faz presente de forma cada vez mais
crescente nas cidades mundiais.
5 – Conclusões parciais
No caso aqui discutido, o princípio da função social da propriedade tem sido
utilizado por diversos sujeitos sociais, por um lado direcionando esse princípio para
o mercado e, por outro lado, se apropriando do mesmo para lutar por direitos que
vem sendo negados.
Nesse contexto, mudanças bruscas na legislação em vigor são ferramentas
utilizadas pelos órgãos públicos para propiciar a acumulação do capital e a
transformação da cidade como mercadoria, inserida num contexto neoliberal. É
propagada a ideia de que a competitividade entre as cidades demanda
investimentos, na maioria das vezes públicos, na construção de uma cidade voltada
para a venda da sua imagem, da sua modernidade e da sua segurança. Nesse
cenário, o turismo e a realização de megaeventos são ferramentas fundamentais
para a atração de mais capital, justamente pela abrangência global que produzem
na promoção da imagem das cidades.
De modo geral, o que as políticas espaciais dessa natureza parecem revelar é a mercantilização total de um espaço social e histórico, de um valor civilizatório, que é a cidade. Assentadas nos projetos urbanos estruturantes, nas operações urbanas estratégicas, essas políticas aparecem como o instrumento capaz de inseri-las no rol dos investimentos que circulam no mercado mundial, transformando-as em negócio. Na verdade, não se coloca à venda a cidade real, marcada por contradições, por profunda desigualdade socioespacial, mas elegem-se alguns de seus atributos como sendo a cidade em si, desprovendo-a de seu conteúdo histórico e social. Nesse sentido, o valor de troca se impõe sobre o uso e o valor de uso, e a constituição de novas centralidades aparece como necessidade nesse espaço configurado de acordo com os interesses da acumulação. (Alvarez, 2011, p.78).
Como alguns dos lugares para a realização das obras de infraestrutura para a
realização dos megaeventos estão ocupados, o Estado cumpre o papel de
“esvaziar” essas áreas, removendo a população residente que são, quase na
totalidade, pessoas de baixo poder aquisitivo e que constituem um entrave para o
desenvolvimento urbano que foi previsto nos projetos. Dessa forma, segundo
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Rodrigues (2013), estabelece-se uma priorização aos interesses privados de
apropriação do espaço em detrimento da realidade social desses mesmos espaços
e todos os problemas inerentes. Para essa mesma autora, ainda não se pode falar
em participação social no Brasil quando o direito à moradia e o princípio da função
social da cidade e da propriedade são alterados pelo urbanismo ad hoc, imposto por
organizações privadas com claros interesses econômicos.
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