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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 256 2 AS POLÍTICAS HABITACIONAIS E O DIREITO URBANO: O CASO DA VILA AUTÓDROMO - RJ CARINE BOTELHO PREVIATTI 1 THYMON BRIAN ROCHA SANTANA 2 Resumo: Esse trabalho discute a função social da propriedade e a relação dialética desse instrumento jurídico e urbanístico na construção de cidades cada vez mais fragmentadas e desiguais nas grandes cidades brasileiras. Utilizando como estudo de caso a comunidade Vila Autódromo, na cidade do Rio de Janeiro, analisa a utilização desse instrumento, tanto pelo poder público em suas diversas tentativas de remoção das famílias dessa vila de pescadores, como pelos próprios moradores, na busca por sua permanência no espaço que será vizinho ao Parque Olímpico Rio-2016. Palavras-chave: Função social da propriedade, megaevento, Vila Autódromo. Abstract: This paper discusses the relationship between the social function of property and the dialectical relationship of this legal and town planning instrument in the construction of increasingly fragmented and unequal cities in large Brazilian cities. Using as a case study the community of Vila Autódromo, located in the city of Rio de Janeiro, analyzes the use of this instrument, both by the government in its various attempts of removal of this fishing village, as by the residents on the search for their stay in the space that will be adjacent to the Olympic Park Rio-2016. Keywords: Social function of property, mega event, Vila Autódromo. 1 Introdução As politicas habitacionais e o direito urbano têm como lastro comum o princípio fundamental da função social da propriedade, que determina, de modo geral, que os direitos individuais relativos à propriedade devem coexistir com os direitos sociais. Neste sentido, a discussão da perspectiva relativa à limitação da propriedade privada é fundamental, dado que cada vez mais se estreitam as relações entre as politicas habitacionais, o setor imobiliário e o mercado financeiro. Ocorre que, não raro, instrumentos como o zoneamento e políticas como o financiamento habitacional e a regularização fundiária, que deveriam garantir o direito à terra aos mais necessitados, acabam sendo utilizados em favor do próprio 1 Mestranda no Programa de Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. E-mail de contato: [email protected]. 2 Mestrando no Programa de Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. E-mail de contato: [email protected].

AS POLÍTICAS HABITACIONAIS E O DIREITO URBANO: O CASO DA ... · princípio pelo mercado, para se desenvolver, carece da absolutização da propriedade privada, o que, como já defendido,

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO

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AS POLÍTICAS HABITACIONAIS E O DIREITO URBANO: O CASO DA VILA AUTÓDROMO - RJ

CARINE BOTELHO PREVIATTI1

THYMON BRIAN ROCHA SANTANA2

Resumo: Esse trabalho discute a função social da propriedade e a relação dialética desse

instrumento jurídico e urbanístico na construção de cidades cada vez mais fragmentadas e desiguais nas grandes cidades brasileiras. Utilizando como estudo de caso a comunidade Vila Autódromo, na cidade do Rio de Janeiro, analisa a utilização desse instrumento, tanto pelo poder público em suas diversas tentativas de remoção das famílias dessa vila de pescadores, como pelos próprios moradores, na busca por sua permanência no espaço que será vizinho ao Parque Olímpico Rio-2016.

Palavras-chave: Função social da propriedade, megaevento, Vila Autódromo.

Abstract: This paper discusses the relationship between the social function of property and the

dialectical relationship of this legal and town planning instrument in the construction of increasingly fragmented and unequal cities in large Brazilian cities. Using as a case study the community of Vila Autódromo, located in the city of Rio de Janeiro, analyzes the use of this instrument, both by the government in its various attempts of removal of this fishing village, as by the residents on the search for their stay in the space that will be adjacent to the Olympic Park Rio-2016.

Keywords: Social function of property, mega event, Vila Autódromo.

1 – Introdução

As politicas habitacionais e o direito urbano têm como lastro comum o

princípio fundamental da função social da propriedade, que determina, de modo

geral, que os direitos individuais relativos à propriedade devem coexistir com os

direitos sociais. Neste sentido, a discussão da perspectiva relativa à limitação da

propriedade privada é fundamental, dado que cada vez mais se estreitam as

relações entre as politicas habitacionais, o setor imobiliário e o mercado financeiro.

Ocorre que, não raro, instrumentos como o zoneamento e políticas como o

financiamento habitacional e a regularização fundiária, que deveriam garantir o

direito à terra aos mais necessitados, acabam sendo utilizados em favor do próprio

1 Mestranda no Programa de Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e

Humanidades da Universidade de São Paulo. E-mail de contato: [email protected]. 2 Mestrando no Programa de Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e

Humanidades da Universidade de São Paulo. E-mail de contato: [email protected].

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mercado, causando contraditoriamente a exclusão dos mais vulneráveis a partir de

instrumentos e políticas prioritariamente sociais. Neste sentido, este trabalho busca

analisar, a partir de estudo de caso da Vila Autódromo – RJ, o processo de remoção

de habitações de moradores de baixo poder econômico em função da realização de

um megaevento esportivo. Tais dinâmicas seriam motivadas pelos ideais de

desenvolvimento local e urbano expostos no discurso do poder público e na

materialização econômica dos agentes privados interessados no modelo de política

pública através do desenvolvimento estratégico, voltado para os megaeventos e

para os grandes projetos urbanos, enquanto ferramentas para sua realização.

Escolheu-se para estudo uma comunidade de moradores que reside há mais

de quarenta anos no entorno do antigo Autódromo Nelson Piquet na Barra da Tijuca.

Optou-se pelo estudo dessa comunidade principalmente pela mobilização política de

seus moradores, pelo histórico de resistência de moradia em tentativas passadas de

remoção e pelo fato de a grande maioria dos moradores possuir concessão de uso

da terra por 99 anos, concedida pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Verificou-se que seria fundamental estudar os conflitos que levam as remoções das

famílias, os atores envolvidos nos processos e a questão dialética dos interesses da

população e das grandes empresas que firmaram parcerias com o poder público

para a construção do megaevento.

2 – Função Social da Propriedade

A propriedade da terra urbana, na lógica da produção e reprodução capitalista

do espaço, se desenvolveu no ultimo século de forma a reafirmar a propriedade

como um direito absoluto. Essa compreensão do espaço não convive com a

concepção da submissão da propriedade ao interesse social. Isto, no entanto, se dá

de forma complexa, em processos evidentemente não lineares e com elementos

políticos e históricos muito peculiares. Esses processos são caracterizados pelos

conflitos que não são duais (no sentido de serem representados pela polarização

entre movimentos de luta e mercado imobiliário, por exemplo), mas plurais, onde

diversos sujeitos sociais (públicos e privados) se relacionam. Neste sentido, no

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Brasil, temos a expressão do conflito deste processo na materialização da

apropriação do espaço por esses diversos sujeitos e seus respectivos interesses

específicos. A submissão da propriedade ao interesse social é um princípio

constitucional consolidado no instituto da Função Social da Propriedade. Este

princípio, regulamentado (quando urbano) pelo Estatuto da Cidade e Planos

Diretores teve, até 1988, um papel social inexpressivo, mas um conteúdo econômico

muito bem delineado que reafirmava a propriedade privada e seu direito irrestrito, ao

estabelecer como funcionalização social a produção e, como “pena” pela

inobservância do princípio, a desapropriação mediante pagamento ao proprietário

infrator. Foi somente com a constituição de 1988 e a maior participação dos

movimentos populares que o instituto passou a incorporar novos significados.

Evidentemente que esta nova perspectiva mais social relativa ao uso da terra não foi

recebida de forma pacífica pelos grandes proprietários e grupos conservadores do

congresso ligados aos setores imobiliários (Fernandes, 2012) ocasionando grande

embate politico, não por acaso o Estatuto da Cidade, que regulamenta o capítulo da

constituição relativo à politica urbana e que regulamenta também o instituto da

Função Social da Propriedade, tramitou durante 13 anos no congresso. Deste

embate surgiu um conceito intermediário e bastante genérico sobre o significado e a

estrutura do instituto, conforme demonstra Fernandes:

O direito de propriedade imobiliária urbana é assegurado desde que cumprida sua função social, que por sua vez é aquela determinada pela legislação urbanística, sobretudo no contexto municipal. Cabe ao governo municipal promover o controle do processo de desenvolvimento urbano, através da formulação de politicas de ordenamento territorial nas quais os interesses individuais dos proprietários necessariamente coexistem com outros interesses sociais culturais e ambientais de outros grupos e da cidade como um todo. Para tanto, foi dado ao poder publico o poder de, através de leis e diversos instrumentos urbanísticos, determinar a medida desse equilíbrio - possível – entre interesses individuais e coletivos quanto à utilização desse bem não renovável essencial ao desenvolvimento sustentável da vida nas cidades, qual seja, o solo urbano. (Fernandes, 2012. p. 14-15)

A nova perspectiva social do Princípio, ainda hoje divide espaço com o seu

sentido econômico e produtivo. Isso quer dizer que a Função Social da Propriedade,

estabelecendo-se ou não em contradições de conteúdo, tem por inequívoca sua

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utilização por diferentes esferas e sujeitos sociais em um plano de conflitos da

produção e da reprodução do espaço. A utilização do princípio pelos diversos

sujeitos sociais em geral não ocorre de forma direta, isso porque o instituto não tem

seu fim na norma, o que nos permite compreendê-lo em suas dimensões normativa

e principiológica. De acordo com Fernandes:

Em ultima análise, toda e qualquer lei urbanística – ou ambiental – implica em materializar o principio da função social da propriedade, que é sem duvida o princípio fundamental do Direito Urbanístico e do Direito Ambiental (Fernandes, 2012. p. 14)

Desta maneira, toda a lei e instrumentos urbanísticos devem se desenvolver

de modo a controlar os processos urbanos através de politicas urbanas, normas e

instrumentos de um modo geral que garantam a coexistência dos interesses

individuais e coletivos. Ocorre que o que cada vez mais se verifica é a apropriação

(ou mesmo a criação), destes “elementos de equilíbrio” por sujeitos específicos,

direcionando-os para o mercado, sob justificativa ideológica social, transformando-os

em produtos de desigualdade e exclusão social. Como exemplo, temos a utilização

do zoneamento excludente e das desapropriações por utilidade publica que é

seletiva. Esta forma de apropriação do princípio ocorre a todo o momento no

processo de produção e reprodução do espaço, no entanto ele se dinamiza e se

potencializa em condições propícias à reprodução do capital, como é o exemplo da

comunidade Vila Autódromo, que será analisado neste trabalho. Esta apropriação do

princípio pelo mercado, para se desenvolver, carece da absolutização da

propriedade privada, o que, como já defendido, necessariamente agride o interesse

social coletivo. Essa dinâmica de apropriação é tão violenta que invade diversos

direitos sociais para sua efetivação, ocasionando um verdadeiro estado de exceção

(Rodrigues, 2013) como poderá ser observado neste estudo.

3 – Vila Autódromo e os conflitos de moradia

A Vila Autódromo foi construída a partir do ano de 1960 como uma vila de

pescadores e, ao longo dos anos seguintes, teve um significativo crescimento

populacional ocasionado, principalmente, pela construção do Autódromo Nelson

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Piquet e de um conjunto residencial da Aeronáutica Brasileira nos anos 70. Em

função dessas grandes obras, incluindo também o aterro de algumas lagoas da

região, houve assentamento na comunidade de trabalhadores da construção civil

que tinham se mudado temporariamente para a região e que por lá acabaram se

estabelecendo de forma permanente. Nos anos 80 foi criada a AMPAVA,

Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo, através de iniciativa dos

moradores, com o objetivo principal de reivindicar melhorias na comunidade, tais

como: instalação de luz elétrica, rede de saneamento básico, água encanada e

registro no IBAMA3 dos pescadores.

...em 1994, a antiga Secretaria da Habitação e Assuntos Fundiários do RJ assentou legalmente mais sessenta famílias na Vila Autódromo. Em 1997, cento e quatro famílias receberam titulação do Governo de Estado. Em 1998, os moradores da faixa marginal da Lagoa receberam Concessão de Uso Real por noventa e nove anos por essa mesma Secretaria, publicada no D. O. de 31/12/1998. Em 12/01/2005, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro decretou parte da Comunidade como Área de Interesse Social por meio da Lei Complementar n° 74/2005 (Plano Popular Vila Autódromo, 2012, p.8).

Hoje a Vila Autódromo está localizada ao lado do muro do antigo autódromo,

entre a lagoa de Jacarepaguá e o canal Pavuninha e na confluência das avenidas

Salvador Allende e Embaixador Abelardo Bueno. Situada numa zona limítrofe entre

os bairros da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá, está localizada espacialmente na

região administrativa da Barra da Tijuca, zona norte da cidade do Rio de Janeiro.

A estrutura das construções está distribuída portanto, nessa faixa de terra

entre o muro do Autódromo e a lagoa de Jacarepaguá. No começo do ano de 2014,

existiam 10 ruas principais e travessas, todas com nomes que foram dados pelos

próprios moradores, sendo apenas parte da Avenida do Autódromo asfaltada. As

residências mais antigas se situavam também nessa avenida, principalmente no

trecho denominado de “faixa marginal da lagoa”.

O histórico de tentativas de remoção da comunidade começou oficialmente

em 1993, no primeiro mandato do então prefeito César Maia, através de uma ação

3 IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Disponível em:

http://www.ibama.gov.br/

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civil pública por “danos estéticos e ambientais” à área. O principal argumento do

processo era de que as famílias ocuparam a faixa marginal da lagoa sem

respeitarem o recuo mínimo para construção previsto em lei e necessário para

garantir a preservação desse ecossistema.

Em contrapartida, o governo do Estado em 1994, na gestão de Leonel Brizola,

outorgou 85 termos de Concessão de Uso do terreno de sua propriedade para os

moradores através da Secretaria da Habitação e Assuntos fundiários, pelo prazo de

30 anos, revogáveis. Nesse caso, a comunidade se beneficiou diretamente de uma

disputa política entre partidos opostos que ocupavam cargos no governo do Estado

e na Prefeitura da cidade. Em 1998, o então governador Marcello Alencar estendeu

o prazo de concessão de uso para 99 anos e outorgou mais 162 termos de uso,

totalizando, portanto 247 famílias com titulação de propriedade para uso com fins de

moradia. As famílias beneficiadas com a titulação começaram a fazer melhorias em

suas residências, como construção de mais pavimentos, pintura e acabamento,

garagem e até mesmo a edificação de sobrados ou pequenas quitinetes para

locação. Mesmo sem se beneficiarem dos serviços públicos que a Prefeitura deveria

ter realizado na área - visto que muitos moradores pagavam desde então o Imposto

Predial e Territorial Urbano (IPTU) - como pavimentação das ruas, saneamento

básico e distribuição de água encanada, os moradores construíram um grupo auto

colaborativo, através da AMPAVA, para realização dessas obras de infraestrutura.

Um sentimento de pertencimento tomou conta da comunidade. Além da convivência

harmoniosa entre os moradores, outro ponto que distinguia a Vila Autódromo de

outras comunidades da cidade do Rio de Janeiro era justamente a ausência do

crime organizado, tráfico de drogas ou de milícias – grupos paramilitares que

cobram valores dos moradores de determinadas localidades em troca de suposta

segurança.

Adicionalmente, em 2005, parte da comunidade foi declarada Área de

Especial Interesse Social – AEIS – pela Câmara Municipal, que é basicamente um

instrumento de política urbana que demarca parcelas do espaço destinadas à

moradia de populações de baixa renda, à regularização fundiária e à recuperação

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urbanística4. Isso preservava ainda mais o direito dos moradores de permanecerem

na comunidade e em suas residências. No entanto, a pressão pela remoção das

famílias continuou acontecendo ao longo dos anos, destacando-se o período da

realização dos Jogos Pan-americanos, em 2007. Desde 2009, após o anúncio da

cidade do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos Rio-2016, essa pressão

pela remoção se intensificou. Nesse momento, os três entes governamentais

estavam alinhados em prol de um objetivo em comum: a realização do megaevento

esportivo. Ficou claro para os moradores que não haveria mais conflitos políticos

que pudessem intervir em favor da permanência da comunidade na região.

Diante desse novo quadro e com apoio dos movimentos sociais de luta por

moradia e de duas universidades públicas do Rio de Janeiro (Universidade Federal

do Rio de Janeiro UFRJ e Universidade Federal Fluminense UFF), os moradores

ajudaram a construir o Plano de Desenvolvimento Urbano, Econômico, Social e

Cultural da Vila Autódromo, ou Plano Popular da Vila Autódromo de 2012, como

ficou mais conhecido. Com colaboração de todos os moradores, foi feito um

cadastro que continha informações censitárias sobre cada família (número de

membros, renda, escolaridade), o numero de famílias residentes em cada terreno,

quem eram os proprietários ou locatários e especialmente, quantos possuíam a

concessão para uso dos terrenos. O objetivo do Plano era, principalmente, realocar

as famílias dentro do espaço da própria comunidade e realizar melhorias na

infraestrutura do espaço. Desde então, o projeto do Plano Popular foi entregue à

Prefeitura para análise, sem nunca ter sido, contudo, oficialmente reconhecido pela

municipalidade; ganhou um prêmio internacional e passou por três modificações na

tentativa de adequar o projeto as modificações físicas que estavam acontecendo na

comunidade. Essas alterações espaciais ocorreram, principalmente, através da

desocupação de vários imóveis de moradores, que começaram, desde 2013, a

negociar com a Prefeitura indenizações ou reassentamento.

4 Art. 182 da Constituição de 1988, art. 4º, inciso V; Lei 10.257/2001 do Estatuto da Cidade e Art. 47, inciso V

da Lei 11.997/2009.

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Uma das negociações foi um apartamento no conjunto habitacional Parque

Carioca, construído pela Prefeitura em parceria público privada com a

concessionária Rio Mais, através do programa federal para construção de habitação

popular denominado Minha Casa Minha Vida, com a garantia da Prefeitura de que

os valores referentes ao novo empreendimento seriam custeados pelo município e

não pelo morador. Estabelecia-se assim uma troca que teoricamente era bem

simples: o morador entregava seu imóvel para a Prefeitura e recebia em troca um

apartamento.

No entanto, foram verificadas algumas irregularidades com relação a essa

proposta de reassentamento, que vão desde a escolha do terreno para a construção

do conjunto de prédios que, segundo a Defensoria Pública do Estado do Rio de

Janeiro pertencia a duas empresas que foram doadoras de campanha para eleição

do atual Prefeito Eduardo Paes, bem como ao valor superfaturado pago pelo

terreno, de R$19,9 milhões (Processo Nº 0075959-18.2013.8.19.0001, Anexo 6,

p.11-61). Outra irregularidade foi apontada por laudo técnico do Instituto de

Geotécnica do Município – Geo-Rio, que afirma que o local onde foi construído o

Parque Carioca é uma área de risco de deslizamento. Por fim, os moradores que

aceitaram esse tipo de indenização pela Prefeitura assinaram um contrato com a

Caixa Econômica Federal, que custeia o programa, para pagamento de parcelas de

quitação do valor do imóvel. Os moradores não têm, portanto, qualquer prova

jurídica de que a Prefeitura irá de fato arcar com os custos dos apartamentos, como

foi acordado na entrega das chaves. Da mesma forma, quaisquer tipos de comércio

que esses moradores mantinham antes em seus terrenos na comunidade tiveram

que ser suspensos, por questões legais e normativas do Programa Minha Casa

Minha Vida. Templos religiosos, quartos para locação, quitinetes, não poderiam mais

ocupar o mesmo espaço da habitação.

Outros moradores negociaram com a concessionária o pagamento de

indenizações pelas construções de suas casas; valores que foram publicados no

Diário Oficial do Rio de Janeiro, mas que não seguem uma normatização de custos

publicados pela Prefeitura. Os valores variam de R$2 milhões até R$100 mil.

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No ato da entrega das chaves para os apartamentos ou do cheque com o

valor da indenização, o morador deveria assinar um termo que autorizava a imediata

demolição do seu imóvel na Vila Autódromo e concedia à Prefeitura, total

propriedade do seu terreno. Com essas medidas, as famílias que permanecem na

comunidade estão vivendo com entulho e lixo gerado pelas demolições que, além de

darem à localidade uma aparência de guerra, comprometem a estrutura dos imóveis

que não foram demolidos e até mesmo a integridade física dos moradores. Até

então, o discurso da Prefeitura era de que os moradores que quisessem ficar o

poderiam, desde que suas moradias não estivessem dentro das áreas para obras de

infraestrutura da região ou da construção do Parque Olímpico. Quanto aos

moradores que saíram, a declaração do município é de que o fizeram por livre e

espontânea vontade, segundo inclusive, diversas declarações do próprio Prefeito

Edardo Paes de quem quisesse ficar, poderia. (Youtube, 2013).

No entanto, em março de 2015, a Prefeitura decretou a desapropriação de 58

residências da comunidade por utilidade pública (Diário Oficial, 2015). Novamente

houve arbitrariedade nos valores ofertados a essas famílias, bem como uma

pulverização espacial dessas desapropriações. As 58 casas não estão dispostas

lado a lado nem pertencem às mesmas quadras, mas estão localizadas em pontos

diferentes da comunidade, o que reforça ainda mais a prerrogativa de total

desapropriação da área pelo poder público. Estima-se que, pelos termos assinados

que foram anexados aos processos pela Prefeitura, do total das famílias que

habitavam a região da Vila Autódromo, 344 tenham optado pelo Parque Carioca,

108 tenham preferido indenizações e 88 ainda permanecem no local.

Tendo em perspectiva todos os fatos relatados, é possível afirmar que o

poder público utilizou ao longo dos anos, discursos diversos para a remoção das

famílias da Vila Autódromo, sendo alguns deles nos últimos anos, ligados à

realização dos Jogos Olímpicos de 2016. Contudo, como discutido anteriormente, a

temporalidade das propostas de remoção da Vila Autódromo é anterior ao

megaevento esportivo e é também muito mais profunda. É necessário,

primeiramente, entender como o espaço é apropriado pelo capital em favor de uma

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minoria e como essa exclusão socioespacial se faz presente de forma cada vez mais

crescente nas cidades mundiais.

5 – Conclusões parciais

No caso aqui discutido, o princípio da função social da propriedade tem sido

utilizado por diversos sujeitos sociais, por um lado direcionando esse princípio para

o mercado e, por outro lado, se apropriando do mesmo para lutar por direitos que

vem sendo negados.

Nesse contexto, mudanças bruscas na legislação em vigor são ferramentas

utilizadas pelos órgãos públicos para propiciar a acumulação do capital e a

transformação da cidade como mercadoria, inserida num contexto neoliberal. É

propagada a ideia de que a competitividade entre as cidades demanda

investimentos, na maioria das vezes públicos, na construção de uma cidade voltada

para a venda da sua imagem, da sua modernidade e da sua segurança. Nesse

cenário, o turismo e a realização de megaeventos são ferramentas fundamentais

para a atração de mais capital, justamente pela abrangência global que produzem

na promoção da imagem das cidades.

De modo geral, o que as políticas espaciais dessa natureza parecem revelar é a mercantilização total de um espaço social e histórico, de um valor civilizatório, que é a cidade. Assentadas nos projetos urbanos estruturantes, nas operações urbanas estratégicas, essas políticas aparecem como o instrumento capaz de inseri-las no rol dos investimentos que circulam no mercado mundial, transformando-as em negócio. Na verdade, não se coloca à venda a cidade real, marcada por contradições, por profunda desigualdade socioespacial, mas elegem-se alguns de seus atributos como sendo a cidade em si, desprovendo-a de seu conteúdo histórico e social. Nesse sentido, o valor de troca se impõe sobre o uso e o valor de uso, e a constituição de novas centralidades aparece como necessidade nesse espaço configurado de acordo com os interesses da acumulação. (Alvarez, 2011, p.78).

Como alguns dos lugares para a realização das obras de infraestrutura para a

realização dos megaeventos estão ocupados, o Estado cumpre o papel de

“esvaziar” essas áreas, removendo a população residente que são, quase na

totalidade, pessoas de baixo poder aquisitivo e que constituem um entrave para o

desenvolvimento urbano que foi previsto nos projetos. Dessa forma, segundo

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Rodrigues (2013), estabelece-se uma priorização aos interesses privados de

apropriação do espaço em detrimento da realidade social desses mesmos espaços

e todos os problemas inerentes. Para essa mesma autora, ainda não se pode falar

em participação social no Brasil quando o direito à moradia e o princípio da função

social da cidade e da propriedade são alterados pelo urbanismo ad hoc, imposto por

organizações privadas com claros interesses econômicos.

6 – Bibliografia

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