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AS PROFESSORAS DE PIANO Bruno de Faria Crônicas e Contos Rio de Janeiro, 2008-2010

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AS PROFESSORAS DE

PIANO

Bruno de Faria Crônicas e Contos Rio de Janeiro, 2008-2010

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Bruno de Faria

As Professoras de Piano

(A Revolta dos Contos)

Livro Registrado na Biblioteca Nacional - ISBN

Protegido por direitos autorais.

Rio de Janeiro, 2008-2010

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Bruno de Faria

As Professoras de Piano

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Índice:

1 Marlene 6

2 Os Catadores de Cocô 12

3 As professoras de Piano 15

4 A Mão que Me Manteve Vivo 26

5 Baile de Máscaras 31

6 O Enforcado 35

7 Serenata… de Amor, claro 40

8 Braço Direito 45

9 Ô Claudinha... 49

10 Tia Dorina 51

11 Elas 60

12 Verdades de verdade 62

13 Pequenos Malefícios Maternos 65

14 Identidade, Ética, Profissionalismo e Paixão 69

15 Refletindo Diante do Aspirador de Pó 75

16 Acontece 77

17 Vó com Açúcar 79

18 Domingo de Ramos 82

19 Boina do Gianecchini 86

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20 Como Sobreviver ao Mundo 88

21 Cercado de Cuidados 90

22 E tanto... para... 96

23 Era uma Vez... Três Vezes 97

24 Sociedade Fálica e Confusa 101

25 Mirtes 104

26 O Diário de Vovô Lilico 105

27 O Homenzinho e o Temporal 110

28 O menino e o beija-flor 113

29 A Aula de Neurologia 124

30 Operação Trocadilho de Beira de Estrada 127

31 Sob a Égide de Tánatos 129

32 Você se Sente 131

33 O Lado Ingênuo da Aristocracia 133

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1 Marlene

Marlene era negra, gorda, pobre e falava alto. Por

outro lado, aparentava calma. Muita calma. Depois de dois

maridos, três namorados, dois ficantes e quarenta e três anos

de vida, Marlene decidira que sozinha iria muito bem dali em

diante. E adotara um menino, Robson, pequeno, malcriado,

inteligente e mulato, pois o sonho de Marlene era casar-se com

um homem branco, preferentemente de olhos claros, para ter

um filho assim, mulato, mais ou menos qualquer coisa,

diferente de todas as cores, de preferência de olhos verdes que

chamassem à atenção. Mas não casou nem engravidou:

arrumou o filho assim mesmo, de uma amiga vizinha,

Aparecida, que engravidou sabe-se-lá-de-quem e não iria criar.

O menino nasceu de parto normal, parto-normal-de-parteira, e

depois dos seis meses de amamentação foi para a casa de

Marlene. Era o filho. Ela e a vizinha-amiga manteriam segredo

daquela criança por toda a vida, as duas, promessa de

cumplicidade proximal. Se bem que não mais estreitaram seus

laços depois disto.

Daí Marlene deixou de ser apenas dona de casa para

ser também “mulher de negócios”, como ela mesma se definia

de muito bom-humor, quando foi admitida para trabalhar num

laboratório de análises clínicas.

- Sou uma mulher de negócios, porque nessa bolsa

aqui eu carrego um monte de negócios, quer ver? - e mostrava

a bolsa cheia de frascos de urina, de fezes, e de tubos de

ensaio com sangue coagulado: - “é esses os negócio” que eu

carrego.

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Saía de manhã e deixava Robson "com a menina".

Um trânsito dos diabos de Alcântara para chegar ao Rio de

Janeiro. Colhia material num pequeno posto dentro de um

hospital que quase hospital nem era. Colhia sangue, recebia

fezes, urina e esperma numa clínica em Botafogo. Isto na parte

da manhã. De tarde Marlene portava aquela bolsa cheia dos

"negócios" para a "tal de matriz", como ela também

denominava. A “tal de matriz” era a... matriz mesmo, do

laboratório, em São Gonçalo. Ao menos bem perto de sua

casa, para onde ia depois, a pé.

Ao meio-dia Marlene começava a reclamar da vida:

- Ninguém merece ir pra São Gonçalo numa hora dessa, “cruz

n‟credo”. É calor, é aperto, é gente vendendo coisa, é guarda

municipal dando porrada nos cristão, olha: só vivendo prá vê.

- Era o mínimo que Marlene falava, ao sair, todas as manhãs.

E ia, ônibus até a praça XV, barca até Niterói, outro ônibus até

sabe-se-lá-que-cafundó de São Gonçalo. Depois o sorriso de ir

prá casa, a pé, para encontrar o filho.

Chegando em casa, encontrava Robson com a

"menina", que recebia de Marlene dois reais todos os dias e ia

embora. Paz de mãe e filho pelo resto do dia. Vinha sendo

etéreo ver aquele menino crescer, menino que conseguira

acreditar ser filho dela. Passara a ter até mesmo certeza da

existência da gravidez que não houve. E contava para as

amigas de churrasco, nos fins-de-semana, como havia sido a

dor do parto, da qual se lembrava vividamente. E o quanto ele

era faminto, mamando de duas em duas horas "até a teta

secar".

- O menino tinha uma esganação, uma fome dos

horrores, parecia que queria minha teta prá ele. - E as amigas

riam, engatilhando histórias sobre seus próprios filhos.

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- Olha, se eu tivesse dez teta, ele ia querer mamar

nas dez teta! – riam e riam, envoltas pelo calor irradiado do

cimento, o cheiro da cerveja e o batuque do pagode.

E contava de como tinha sido seu casamento com o

"falecido", pai de Robson. - Pena que o menino nunca viu o

pai, que se foi durante minha gravidez. Mas eu me lembro da

noite que eu encomendei o Robson. Falei prá minha amiga

Aparecida; "Aparecida, hoje eu vou encomendar meu filho" -

e fui prá casa. naquela mesma noite eu tive as relações e fiquei

grávida desse aqui.

Marlene havia conseguido ser algo que considerava

viável socialmente, não necessariamente uma mulher casada,

pois mulheres casadas eram raridade em qualquer faixa etária,

mas uma mulher que trabalhava fora e uma mulher com um

filho para criar, com dignidade e responsabilidade. Para

Marlene a vida só teria sentido se sentisse o orgulho de ter

com quem se preocupar além de si. Pois viver de si mesma era

meio aborrecido e sem sentido. Assim cresceu Robson, cinco,

seis, sete, dez anos, sendo o motivo para tudo na existência de

Marlene, que era uma mulher “de negócios” de cinqüenta e

três anos totalmente realizada.

Certa tarde muito quente e úmida Marlene resolveu

dar uma passada em casa antes de deixar os “negócios” na

matriz. Queria um pouco de água no rosto e um pouco

também na garganta. Chegou em casa com muita dor de

cabeça e encontrou a "menina" lívida, jogando dados com o

menino, mas com aquele ar de tragédia dissimulada tão

facilmente detectável por uma mulher de tantos dissabores,

cicatrizes e feridas como Marlene. E quis saber o que ocorrera.

O menino apenas olhava; a "menina" apenas queria ir embora

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o quanto antes. Dali nada se extraiu. Dois reais na mão da

"menina" e ela se foi.

Dias após os outros e cada vez mais a "menina"

tinha a tal cara de tragédia na recepção a Marlene. E o menino

também, aparentando esconder alguma coisa.

- Minha filha, desembucha, o que aconteceu com

você: você deu?

- Dei não senhora, da'Marlene.

- Se deu, a gente conversa: toda menina dá: eu já fui

menina, já dei a primeira vez e posso te ajudar em alguma

coisa! - E a "menina" nada de falar.

O problema era que o menino também tinha cara de

coisa estranha. Então Marlene decidiu pela força de sempre.

Os dois contra a parede:

- Cês querem porrada, então vem porrada que na

porrada tudo e resolve! Sem essa informação você não sai

daqui hoje, menina, e Robson não tem biscoito por duas

semanas!

A "menina" queria ir logo, pois tinha coisa prá fazer.

Robson queria biscoito imediatamente, como todos os

meninos querem assim que se fala em biscoito. Assim, a

"menina" e Robson se olharam:

O menino: - É que a tia Aparecida...

A "menina": - Dona Aparecida aí do lado...

Marlene: - Que foi que essa bruaca fez, me conta logo que eu

to nervosa.

A "menina": - Ela disse que o Robson não é filho da senhora,

que é filho dela.

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Robson ficou apenas olhando, com cara de

espantado.

- Ah, filha da puta, eu vou acabar com a raça dessa

vagabunda agora! - E saiu porta afora, furiosa, vociferando

tudo o que lhe vinha à cabeça, com a bolsa do trabalho ainda

no ombro esquerdo, repleta dos "negócios".

A "menina" saiu apressada, como se fosse embora.

Robson ficou na sala, quase chorando, mas sem saber ainda se

aquilo era motivo para chorar, e o quanto deveria chorar. Não

entendia muito bem o que estava acontecendo.

Marlene entrou sem bater na casa de Aparecida e a

encontrou vendo o "Jogo da Vida" na televisão. Pôs-se a

berrar com ela: - Você quer roubar meu filho, sua vagabunda!

Aparecida não perdeu a calma fria:

- O filho é meu e vai ser sempre meu. Eu pari e

emprestei pra você. Posso ter emprestado prá sempre: não

quero ele de volta. Já até pensei em pegar de volta, mas não

quero. Desisti.

- E tu ta vendo esse programa por quê, sua safada,

vai escrever pra apresentadora por acaso?!

- Não se preocupe que não vou pedir o exame do

DNA do Robson. Mas se eu quisesse ter ele de volta, você

sabe que o DNA bastava.

- Cala a boca que tu não vai pedir nada, sua filha da

puta! - E esmurrou Aparecida até que ela caísse no chão; e

asfixiou Aparecida até a morte, possuidamente como uma mãe

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verdadeira. E gritou muito depois a vitória. E a vizinhança

apareceu na casa de Aparecida para assistir Marlene ainda

matando, quebrando os frascos de sangue sobre o corpo, e

abrindo frascos de fezes e de urina para cobrí-la ainda quente

com toda aquela excrescência. E berrava, e chorava, e suava,

e não havia quem conseguisse controlar. Não que assim o

quisessem, pois era espetáculo bom o que se via.

E na cena do cadáver de mulher coberto de sangue e

excrementos, rodeado de gente curiosa e faminta de desgraça

maior, chegou o carro da polícia. Detiveram Marlene. Dali

saíram a procurar o menino. Depois de procurar por toda a

casa e quintal, foram informados por uma das vizinhas que o

menino, o menino Robson filho de Marlene, tinha saído há

pouco com a "menina", aquela menina que tomava conta dele.

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2 Os Catadores de Cocô

Moro num lugar engraçado, no primeiro andar, de

frente para uma mini-mangueira (deve ter uns 4 metros de

altura) que dá mangas gigantescas, e de uma pracinha. No

lugar que moro quase todo mundo tem cachorro. E meu

passatempo, muitas vezes, tão misantropo que me tornei, é

ficar trancado no ar-condicionado observando pelo vidro da

janela da sala as pessoas, cedo na manhã ou tarde na noite,

passeando com seus cachorros.

Quem tem cachorro hoje em dia tem uma obrigação

cívica de não deixar a rua cagada (ta no dicionário esta

palavra). A imensa maioria anda com saquinhos do Sendas (o

supermercado mais próximo) dentro dos bolsos, sempre à

postos para catar um excremento, e torcendo para que o

cachorro não esteja desarranjado, o que obriga o dono a

acocorar-se às pressas, colocar o saco aberto no chão ali

mesmo e com boa mira sob o cu do cão (também cu está no

dicionário), torcendo também para que o cão não ache o gesto

brusco ameaçador o suficiente para mudar o trajeto do

trabalhinho.

Minha mãe é uma dessas catadoras de cocô. Ela tem

uma poodle mais quieta do que um repolho e todos os dias de

tarde ela sai com a pequenina, que xixi faz no jornal mas cocô

não, por mais que tenha sido recompensada com biscoitinhos

nas vezes que não se agüentou e fez ali mesmo, no jornal que

fica sempre no chão da área de serviço. Questão de

preferência, e o que fazer.

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O relato de minha mãe é muito interessante, pois ela

é bem sincera e irônica quando conta seus causos. Ela sai com

a cachorrinha já indignada, pois sabe que terá que catar cocô.

Um misto de vergonha antecipada e ego ferido, pois catar

bosta aos sessenta e cinco anos não estava bem em seus planos

de aposentadoria. Quando a pequenina finalmente se excita

para exonerar, ela retira o saquinho do Sendas do bolso

apressadamente, pois cocô de poodle é bolotinha dura que rola

pela calçada. Sai catando então bolinha por bolinha, sentindo o

calorzinho interno da cachorrinha que, de missão cumprida e

alheia a tudo, já está puxando a coleira para que o passeio

continue. Triste função.

Mas na pracinha aqui em frente ao meu prédio

acontece de tudo relacionado à catação de cocô: tudo que se

possa imaginar.

Tem aqueles que catam naturalmente. Catam, dão o

nozinho no saco do Sendas e pronto: rumo à primeira lixeira.

Mas têm aqueles que não dão o nozinho no saco que isolaria o

odor e o “vazamento”: o gari deve ficar tiririca se algo se

desensaca. Tem gente que tira o saquinho do bolso, olha em

volta e, se não tiver nenhuma testemunha, guarda no bolso de

volta e deixa o cocô lá: são os falso-civilizados, os

dissimulados sociais. Eita tipo comum esse... Tem aqueles que

pegam o cocô com o saquinho, despejam no bueiro das águas

pluviais (!) e guardam o saquinho novamente para um futuro

uso, e isto pode ser interpretado tanto como porcaria (pela

poluição da galeria) quanto como catação de cocô sustentável

(sob o ponto de vista do saco plástico). Tem gente que cata o

cocô com uma folha de amendoeira e sumariamente joga

dentro das lixeiras laranjas presas aos postes e, sem nenhum

pudor, saem andando com a folha na mão como se estivessem

carregando um cachorro-quente ou um taco mexicano.

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Dependendo do tamanho e da fragmentação das fezes, fazem

diversas viagens até a lixeira. E tem, ainda na facção dos da

folha de amendoeira, os arremessadores; atiram o cocô no

asfalto, próximo à guia de calçada, para que seja varrido pelos

– novamente – pobres garis ou atropelado por pneus durante

as manobras de estacionamento.

Hoje vi uma cena interessantíssima: um senhor ruivo

e barrigudo e que usa camisas enormes e floridas, e que tem

um cachorrão preto-e-branco, daqueles cães de caça ingleses

bem inquietos, que correm sem parar. Ele passeia com o

cachorro e, enquanto anda pelas calçadas, cata todos os cocôs

que encontra, depositando vários saquinhos premiados nas

lixeiras. Seus bolsos da bermuda são recheados de muitos e

muitos saquinhos. Uma novidade este tipo que muito me

surpreendeu: é um catador de cocô voluntário. Ou compulsivo.

Os homens que passeiam com poodles têm vergonha

de catar, como se a feminilidade do poodle e a pequenez dos

excrementos lhes diminuísse a masculinidade. Já os donos dos

cachorrões, pitbulls e rottweillers, estes catam com jeitão de

ameaça. Fico até com medo de passar perto, tanto pela

ferocidade dos cães como da possível animosidade dos donos.

Isto sem contar o tamanho do cocô.

Mas algo é inerente à praticamente todos os

catadores. Sempre olham em volta, ou para as janelas dos

edifícios, para certificar-se de que terá alguém olhando, como

que num desejo íntimo de sentir vergonha do que estão

fazendo. É fato que a maioria, quando procura testemunhas, dá

de cara comigo na janela, logo eu que decidi há tantos anos

que nunca mais cuidaria de nenhum cocô a não ser do meu

mesmo.

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3 As professoras de Piano

Dinah tinha seus 50 anos, mas aparentava muito

mais. A seqüela de paralisia infantil a obrigava a usar um

sapato com plataforma para compensar a perna que não

cresceu. Mesmo assim mancava e muito. A combinação de

seus óculos de armação vermelha com sua pele cheia de

cicatrizes de espinhas, os cabelos sempre em cachos para

cima, seus vestidos floridos e sua manqueira lhe davam a total

aparência assustadora. Além de tudo tinha voz feia,

dissonante, cheia de altos e baixos num sotaque mineiro

carregado, de Caratinga. E como toda mineira, só falava em

saudade de Minas, além de sempre oferecer doce de leite,

queijo, canjica e chuvisco.

Dinah era intolerante e se irritava muito facilmente.

Mas como alguém conseguir ser tolerante comigo? Eu era

impossível. Tinha sete anos. Começava a ler as partituras e

prosseguia de ouvido, fazendo o que bem me desse na cabeça

com as obras eruditas, ignorando completamente o que o autor

imprimira para a eternidade. Eu bem que tentava nas aulas

simular que não fazia isso em casa, mas de vez em quando, de

tanto costume de florear, mostrava minhas garrinhas

anarquistas e durante a aula escapava um floreio. Ela pegava

meus dedos e espremia contra as teclas do piano, quase os

quebrava, irritada, vermelha como geléia de morango,

esganiçando mais ainda como uma gralha e revirando os

olhos. Eu enlouquecia Dinah. Além de tudo eu tinha nojo do

piano dela, pois as teclas muito velhas de marfim já estavam

totalmente impregnadas de gordura e suor humanos. Eu

limpava com o paninho verde, o que deixava ela na maior da

fúria e com os olhos piscando como asas de borboleta. E

Dinah tinha um hábito de enfurecer qualquer pessoa que tenha

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tímpano: enquanto se tocava, ela batia com o lápis na madeira

do piano, impondo o ritmo dela. Se havia um metrônomo em

cima do piano (que funcionava), por que ela escolhia o ruído

insuportável das estacas de um lápis? Este mistério nunca foi

solucionado.

Quando minha mãe me mudou de professora (não

me lembro o motivo), o que mais me fez falta foi a sala de

estar da casa da Dinah. Nela havia sofás de couro asquerosos,

daqueles com rachaduras que, quando alguém senta, bufam

cheiro de morrinha. Não, não era do sofá bufão a minha

saudade, mas sim de um relógio cuco que ficava na parede em

frente a ele, no meio de um monte de pratos de louça

inclinados para frente como se fossem cair. Eu chegava mais

cedo, às vezes até uma hora antes, apenas para ver duas

performances do passarinho. Como a aula era às nove horas,

eu geralmente ouvia a cucada das oito, das oito e meia e, se

Dinah atrasasse, o que muito acontecia, a apresentação das

nove. Aquele passarinho compensava todo o horror que eu

tinha ao humor e à aparência de Dinah. Quando ela me

chamava para a aula, saía do reino do passarinho para o quarto

da bruxa, onde havia apenas o piano, dois banquinhos, um

sofá, eu e... a bruxa.

Marina não era melhor que Dinah. Era bem pior. Era

uma mulher problemática, magricela, sempre com os cabelos

louros completamente despenteados, vivia tomando uísque e

estava recém-separada do marido. Eu tinha uns 12 anos.

Morava com a mãe, uma tal Dona Amineres centenária, num

apartamento de esquina com a rua Miguel Lemos e a Avenida

Atlântica.

Na casa de Marina não havia relógio cuco e nem

distração na sala de espera, senão uma garrafa gigante de

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uísque Grant´s que ficava numa espécie de suporte gangorra.

Quando ninguém me via, eu gangorreava aquela garrafa para...

nada.

Marina tinha uns 20 graus de miopia, talvez. Ou

mais, e também ceratocone. Tão míope que usava os óculos e

uma lente de aumento; e ainda se aproximava a um centímetro

das partituras para conseguir ler. Ou seja, era semi-cega.

Depois que a vi se aproximando a um centímetro do papel

para poder ler, passei a ter certeza de que ela me reconhecia

apenas pela voz. Ou pelo cheiro. Às vezes eu desconfiava que

Marina estava bêbada nas aulas, e foi disto que ela morreu

recentemente, de cirrose hepática. A maioria dos alunos de

Marina era de judeus. Como seus sobrenomes eram todos

difíceis, eu inventava sinônimos para eles e eles me odiavam.

Não apenas pelo fato de não ser judeu (que por si já basta para

eles), mas também pela minha criatividade, eles mantinham

total distância de mim. Afinal, o gentio é uma besta, é não-

humano. Eu menos ainda que as bestas. A pequena Sara

Intrator virou "Maquininha", porque seu sobrenome me

lembrava os tratores e as colheitadeiras. Já sua irmã mais

velha, por ser muito feia, virou a "Maquininha Feia". A mãe

delas, claro, era a Maquinona. Samuel Itchkovski virou o

"Coceirinha", porque seu sobrenome começava com itch, que

é coceira em inglês. Infeliz mesmo foi o Lew Cukierman, pois

alguém me disse que o sobrenome significava "homem da

cabeça de merda" e eu nem fui constatar se era verdade: pedia

um apelido e ele passou a ser o Menino Cabeça de Merda e

ninguém mais tascava isso de mim.

Se fosse hoje, eu teria percebido que o que me

apartava do mundo era justamente minha criatividade. Tinha

direito de ser irônico e sarcástico, mas tinha que ser à custa

dos outros?

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E tudo teria sido diferente. Ou não.

Marina, como todas as professoras de piano, reunia

os alunos para a audição de fim de ano. Com uns 14 anos,

minha peça a ser executada seria uma Mazurka de

Moszkovski. Seria não, foi. Faltando 3 meses para a audição

eu quebrei o braço esquerdo patinando no gelo. Foram 28 dias

engessado e todo o trabalho técnico perdido para executar uma

obra difícil, prestissimo, e tive que reiniciar com o braço um

pouco atrofiado. Consegui quase 80% do que tinha atingido.

Mas...

O modo como Marina tentava me estimular era o

modo que mais me travava em tudo na vida: censurando-me,

comparando-me com a Maquininha ou com o Cabeça de

Merda, e também me desafiando. De outubro a dezembro

aquela míope cretina ficava dando chilique comigo, porque eu

não conseguia recuperar a agilidade que tinha antes de me

aventurar no gelo. Meu braço esquerdo teve um retrocesso

que, sinceramente, acho que só agora aos 40 anos recuperei.

Mas ela não compreendia. Talvez se eu fosse míope ou semi-

cego como ela houvesse uma identificação que despertasse

nela o entendimento. Mas não. Era como se eu fosse o pior

aluno dela. Marina, ao invés de bater com o lápis no piano,

tinha um aparelho de fazer ritmos. Um trambolho que ela

ligava e, nas caixas de som, saíam uns batuques de péssimo

gosto. Eu penso até hoje que Marina me fazia tocar com

aquele ritmo no fundo apenas para dizer que tinha aquela

porcaria. E ritmo nunca me faltou. Bem, vá saber.

Não precisava dizer, portanto, que a partir do

momento em que quebrei o braço, Marina passou a ser um

objeto do meu maior desprezo. Para mim ela virou a "Mulher-

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Merda". Eu não falava sobre isso em casa porque minha mãe

queria que eu estudasse piano. Eu também queria, mas não era

eu que arcava com o custo e, por isto, respeitava a decisão de

minha mãe. E, para piorar, eu considerava meus problemas de

relacionamento sinceramente graves, vivia me sentindo

culpado. Era uma tão cruel autocrítica. Mas a coragem de

dizer isto também só surgiu aos 40 anos.

Até que um dia eu estourei com Marina. Não me

lembro o motivo, mas estourei. E, pelo telefone, minha mãe,

não sei qual motivo, estourou também. Acho que o motivo foi

apenas defender a cria. Fiquei uns 3 meses sem freqüentar

aulas de piano. Até que surgiu uma proposta.

Minha mãe teve a idéia de que eu estudasse piano

popular com a técnica de Amyrton Vallim, que morava numa

casa de vila na rua Tonelero, quase esquina de Siqueira

Campos. Eu, que morava na Xavier da Silveira, considerava

aquele lugar quase a Ásia. Eu aceitei, mas tinha um problema:

Amyrton era cego e minha mãe me conhecia desde o útero: eu

debochava de tudo. Da manca pra míope e então para o cego.

Deus abençoasse meu próximo professor, depois de Amyrton

(será revelado em breve nesta crônica).

Amyrton tinha uma técnica sem partituras

convencionais. Ele criou um método que necessitava ser lido

(mas qual!), mas que era em bom português mesmo, com as

notas escritas (dó, si, fá) e o acompanhamento em cifras de

violão na parte inferior. O ritmo era ditado na apresentação da

partitura. Havia um problema, e grave. Amyrton exigia que se

copiasse o modo dele tocar. Nota por nota, no mesmo ritmo,

tudo. Ligava o metrônomo e, com seu ouvido

espetacularmente desenvolvido de homem cego, implicava

com cada detalhe sem perguntar antes se aquilo era a

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expressão de minha individualidade. Tinha que ter os dedos

iguais aos dele, o ritmo dele, tudo dele. Ah, quantas caretas e

quantos gestos feios eu fiz pro cego. Como eu nunca fui de ser

discípulo de ninguém, cada vez que ele implicava com meus

improvisos (que deveriam ser estimulados!), eu o mandava

solenemente tomar no cu com a mão e, vocalmente, eu dizia:

"claro, professor". E assim este casamento durou muito pouco,

eu já estava na idade de 16 anos de me rebelar e me rebelei

cordialmente e à francesa, dizendo em casa que nunca mais

iria lá e que a hipótese de me despedir dele estava

desconsiderada peremptoriamente.

Foi aí que conheci uma espécie de guru. Luiz Eça.

Luizinho. Pioneiro da Bossa Nova com um histórico

fenomenal na música. Meio doido, mas eu talvez seja mais.

Mancava também, como Dinah, mas nunca perguntei se ele

tinha sido acometido de alguma paralisia ou algum acidente.

Ele contava que havia ficado oito anos em coma, que havia

viajado à Índia para que uma rosa lhe fosse materializada na

mão por um hindu e, assim, a vitalidade lhe tivesse sido

devolvida. Tudo bem, eu não estava ali para acreditar ou

desacreditar, até porque no caso dele isto não fazia a menor

diferença. Estava ali para me tornar um pianista popular.

Mas... não havia como. Não havia como ser nem um décimo

do que Luizinho era, ou nem mesmo meio por cento. Ele era

simplesmente um fenômeno de técnica, de improviso e de

sentimento. Era um gênio. Acima de tudo isto, Luizinho era

um amigo, ou um pai, por quem eu me apaixonei. Ele tinha

resposta para todas as minhas perguntas de adolescente e para

todas as minhas dúvidas de conduta e ética. Coisas que eu não

tinha coragem de falar para meus pais ou a eles perguntar. Eu

realmente precisava da experiência dele para que pudesse

compreender a mim mesmo, à minha família e à minha

condição humana. Luizinho foi quem me deu um pontapé na

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bunda e disse: "porra, passe a gostar de si mesmo e a se

conhecer, e mais, a se aceitar!".

Foi Luizinho que me disse uma frase absolutamente

sensacional: “para apresentar 99%, estude para apresentar

200%. Enquanto não for capaz de 200%, não apresentará 99.”

O modo de estudar técnica de piano de Luizinho era

ainda mais bizarro, e funcionava. Eu me deitava todos os dias

antes de dormir, no escuro, na minha cama, e com os braços

suspensos no ar eu realizava movimentos lentíssimos com os

dedos individualmente, contando as incursões respiratórias

como na ioga. Aquilo era ioga. Eu pensava cada músculo,

cada centímetro cúbico de ar que incorporava, cada feixe

muscular que contraía. E quando me sentava ao piano, a

música saía.

Luizinho me deu também aulas de Harmonia e de

Orquestração. Orquestração eu dominei de cara. Mas a

Harmonia... Depois de um ano tendo aulas semanais com ele,

Luizinho me deu um acorde dissonante por escrito:

- Escuta este acorde?

- Sim.

- Ele é seu ponto de partida. A partir deste acorde eu quero 32

acordes de 4 notas.

- Por que 32?

- Porque 32 é um número perfeito em música. A partir deste

acorde eu quero mais 32. Cada acorde que se seguir deve ter

íntima relação com o anterior, coerente em cada nota. Cada

nota individualmente deve ser uma melodia, de modo que haja

4 melodias individuais - e bonitas, quero melodias bonitas!

Você tem 4 semanas.

- Pra quê, Luizinho?

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- Har mo nia !!

- Mas não é cedo para...

- Cedo o quê? O que é cedo? Tudo é tarde na vida, Bruno,

tudo é tarde!

- Tá...

Fui para casa naquele dia completamente enfurecido.

Não sabia se ele era meu professor de piano ou o Coelho de

Alice. Passei as quatro semanas irritado sobre o piano,

dividindo mentalmente cada acorde em 4 melodias,

executando aquela seqüência centenas de vezes, sempre quatro

vezes seguidas para ouvir cada melodia individualmente.

Quatro semanas depois eu estava com a minha

seqüência harmônica pronta. Pronta para ir pro lixo.

- Que merda é essa? (foi a primeira vez que Luizinho disse um

palavrão comigo)

- A seqüência que você pediu...

Ele abriu um enorme livro e, de dentro dele, tirou

uma apostila: Invenções a três vozes, de Bach.

- É isto que eu quero de você.

- Bach?!

- Sim, Bach. Em cada peça destas há três melodias

simultâneas. Enquanto você não puder ouvir as três melodias

individualmente enquanto executa, nada de orquestração mais.

Toma.

- O quê? (eu estava em estado de choque, tremendo de cima

abaixo)

- Leva pra casa, fotocopia, eu quero todas as peças em um

mês, prontas.

- E a seqüência harmônica?

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- Depois você fará de novo.

Fui para casa quase chorando e pensando

“filhodaputa filhodaputa filhodaputa”. Um livro de trinta

páginas com partituras do grande matemático Johann

Sebastian Bach. E eu refém dos dois, de Luizinho e de Bach,

por mais quatro semanas.

Não consegui tocar todas as peças. Havia um limite

para mim, um limite de raciocínio, de boa-vontade, de

paciência, que impedia que eu raciocinasse como Bach, ou

como Luizinho, ou como Luizinho queria. Um mês depois

toquei, com dificuldade, as três primeiras Invenções. Só. Foi

humilhante.

- E as outras?

- Não consegui.

- Está bem.

- Mas...

- Eu pensei que você só tocaria a primeira. Três, você é um

sucesso! Mais 4 semanas e eu quero a seqüência pronta.

Quatro semanas depois, testando a seqüência

milhares de vezes, chorando na frente do piano diante de uma

estatueta de Bronze de Beethoven que me olhava ferozmente

(mas surdo, graças a Deus), terminei a seqüência. Entrei na

casa de Luizinho quase evacuando. Fazia calor ou eu suava

como se fizesse. Ele estava, como sempre, com um copo de

mate com gelo sobre um guardanapo bordado, sobre o piano.

Não me deixou sentar no piano, arrancou o caderno de minha

mão e sentou-se ele:

- Vamos ver isto aqui.

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Luizinho executou o primeiro acorde:

- Este é o meu acorde.

- É.

- Shh...!

Ele continuou. Em cada acorde ele deixava o piano

ressonar por uns três segundos. A partir do quinto acorde ele

começou a cantar uma das melodias, a encolher os ombros, a

chorar. Quando terminou os 32 acordes, Luizinho estava aos

prantos.

- Você está pronto.

- Como assim, Luizinho?

- Pronto, Bruno. Pronto. É isso aqui o que você sabe fazer,

uma das seqüência mais lindas que já ouvi na vida.

- Eu não acho.

- Merda !! Quantas vezes já te disse que você deve gostar de

você?

Luizinho pegou o caderno onde estava escrita a

seqüência e, ainda tremendo com a caneta escreveu na parte

livre da folha: "Meus infinitos parabéns. Luizinho Eça".

Esta partitura guardo até hoje e não posso vê-la

muito: é de chorar. Executá-la quase nunca. Prefiro a memória

acústica que tenho de Luizinho, de ombros encolhidos,

tocando e cantando.

Nas aulas seguintes Luizinho desandou a falar de

um projeto de montar uma escola de piano popular onde eu

seria um dos professores. Mas esta idéia não se concretizou,

não houve tempo: Luizinho enfartou antes disto. E

sinceramente foi uma das minhas maiores perdas - ele. Eu não

queria ser professor para ele. Nunca tive a técnica necessária,

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nem o raciocínio harmônico. Não tenho até hoje; nunca

consegui aprender teoria musical direito e o fracasso diante de

Bach significava para mim que eu não era músico, e do

contrário ele nunca me convenceu.

- Mas eu preciso de seu sentimento!

Então eu compreendi. Mas o que faria um

sentimento isoladamente?

Bem, eu não estaria sozinho.

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4 A Mão que Me Manteve Vivo

Quem me conhece minimamente sabe de minha

intolerância com crianças, embora eu seja um fã ardoroso da

lógica que elas carregam e divulgam, da energia que doam aos

adultos indiscriminadamente, sem contar a honestidade com

que desovam seus sentimentos, sem medir conseqüência.

Hoje foi um dia de estar com uma criança. Não uma

criança qualquer: o sobrinho de meu melhor amigo. O

programa proposto foi interessante, porém cansativo: ir a um

museu onde há diversos aviões, informações sobre eles e até

uma réplica do 14-bis. Porém um museu distante, apesar de

dentro da cidade: cerca de cinqüenta quilômetros daqui de

casa. E tem gente (de Sampa) que ainda acha o Rio de Janeiro

pequeno... Um programa interessante e rico, ainda mais na

companhia de uma pessoinha de cinco anos repleta de

conclusões inéditas para nos contar, diante da vastidão de

informações e objetos que via.

Na caminhada longa pelo Museu Aeroespacial o

pequenino não parava quieto. Queria sentar em todos os

lugares improváveis de sentar, escalar coisas nunca escaladas,

correr descalço para todos os lados e conversar com qualquer

um que lhe aparecesse na frente. Para um adulto de mais de

quarenta anos, o incômodo que isto causa é, em alguns

momentos, desesperador. E havia muito para se ver. Chapéus

de pilotos, aviões, turbinas funcionando com sensores de

presença que surpreendiam em súbito movimento, material

bélico vasto, foguetes que o país desperdiça na Base de

Lançamentos de Alcântara, aeronaves de guerra e de aviação

comercial abertos para visitação, cheios de poeira e fedendo

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tanto a mofo. Criança endoidece com isto e o menininho

estava completamente possuído por um espírito circense e

curioso. Talvez isto estivesse gerando nele tamanha

inquietação e desnorteio. Eu estava exausto. A mãe dele estava

exausta. O tio dele já estava desligado da bagunça do menino,

que já estava descalço correndo com os pezinhos pretos de

tanta sujeira. Já não adiantava mais pedir-lhe uma pausa nas

correrias e nos gritos. A mãe cansou-se de vez e sentou-se

num banco de uma pequena praça de alimentação. Sequer

tinha força para seguir tomando conta dele e me disse um

extenuado “olha ele pra mim um pouco”. Então tive a idéia

brilhante de lhe oferecer sorvetes. O garoto quis sabor de uva,

sujando-se inteiro com tinta roxa escorrida pelas mãos, queixo

e pela blusa branca. Depois quis sorvete de limão. Pior ainda,

depois de tanta imundícia não quis lavar nem o rosto e nem as

mãos: foi um sufoco pedagógico convencê-lo a lavar-se com

água abundante para ficar socialmente apresentável. Depois de

muito insistir até o limiar da perda de paciência com crianças,

ele se lavou. Voltou com uma carinha indignada, molhada de

não se secar, e furiosa:

- Eu não queria lavar minha mão. É que quando eu

sentisse saudade do sorvete, eu ia querer tanto lamber minha

mão – assim ele disse, brilhantemente.

Como eu nunca havia pensado nisto? Tão simples

lambuzar-se com comida para comer os restos depois. Ah, a

lógica infantil.

Terminada a longa visitação ao museu, por dois

hangares longos e quentes, todos decidimos almoçar num

shopping center que vive abarrotado de gente. O menininho

quis arroz, feijão e carne apenas. O prato ficou enorme.

Compus meu prato com peito de peru ao molho escabeche,

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vagem cozida e uns bolinhos fritos de queijo e presunto, pois

também tenho meu lado criança de comer coisas apenas

gostosas, mesmo que não sejam nutritivas. Mas o menino

falou durante todo o almoço que havia esquecido a batata frita,

e que almoço para ele era sempre arroz, feijão, carne e batata.

Depois de repetir mais de dez vezes e ser ignorado pela mãe, o

que foi compreensível pela simples lógica da sobrevivência

materna, eu me levantei e disse que ia comer mais. Enchi um

prato de batatas fritas e de bolinhos de presunto e queijo.

Levei à mesa e o garotinho arregalou os olhos de surpresa.

Mas ele já havia comido muito arroz, muito feijão e muitos

pedacinhos de carne. Comeu uma batatinha, comeu a segunda

batatinha e a terceira, sempre me olhando nos olhos. Lá pela

quinta batatinha, ele apenas mordeu a pontinha e ficou

mastigando devagar. Com toda a sinceridade do mundo, que

só existe nas crianças de cinco anos, ele me disse recheado de

comida, vergonha e desapontamento: “eu já estou com a

barriga muito cheia...” Sim, claro que ele recebeu de volta um

imenso sorriso meu e a resposta de que não era necessário

comer mais. O que eu não sabia era que ele estava

incuravelmente desapontado de não conseguir comer todas as

batatinhas fritas que lhe surpreenderam tanto. Afinal, que

homem era aquele, que nem seu pai era, que lhe trazia tantas

batatinhas fritas sem nenhuma obrigação?

Acredito que sua maior decepção tenha sido estar

com o estômago cheio. Mas, mesmo assim, sem entender

ainda que não se possa agradar a todos, a culpa o invadiu de

alguma forma que a lógica infantil explica – mas que não sou

capaz de compreender muito bem. Ele quis deitar-se no meu

colo de todo jeito, depois de comer. Era o aconchego de

agradecimento.

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- Mas por que você quer se deitar, logo agora depois

do almoço?

- É que eu preciso fazer a digestão… - ele

dissimulou.

Tentei explicar:

- Mas para fazer a digestão você precisa fazer o

contrário: precisa caminhar ou ficar sentado. Sabia? Senão a

comida não se mexe dentro de você.

- Mas a comida não se mexe dentro de mim, tio!

Expliquei então, ou tentei, que tem um trenzinho dentro da

nossa barriga. E que para este trenzinho andar, a gente precisa

se mexer e muito. Ele ignorou, acho que nem prestou atenção.

A idéia do trenzinho não lhe convenceu de absolutamente

nada. Deitou sua cabeça entre minhas pernas e soltou os

braços para os lados, como num desmaio, para que eu o

segurasse inteiro. E assim eu fiz, abraçando-o em pictórica

proteção. Mas logo chegou a hora de sairmos do restaurante

antes que o garçom nos desejasse a morte, pois certamente o

nó no pano de prato já estava dado, em nosso nome, em algum

lugar da copa.

O menino andava devagar no shopping. Estava

cansado e de estômago cheio. Fez questão de ficar de

mãozinha dada comigo todo o tempo. Acontece que era um

garotinho de mãos suadas. E eu tenho tal aversão às mãos

suadas, mas claro que tenho mesmo é aversão às mãos suadas

dos adultos. Pelo menos até aquele momento era isto que eu

pensava sobre minhas convicções. A experiência com a

mãozinha suada de uma criança, entretanto, não era menos

desagradável: apenas a mão era muito menor. Depois de andar

todo o primeiro andar do shopping, eu já sentia certo

desespero de segurar aquela mãozinha inteiramente molhada e

quente: é que sou muito calorento também. Criei coragem e

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pedi a ele que segurasse apenas meus dois dedos, o segundo e

o terceiro, da mão direita. Assim eu ficaria com minha palma

da mão livre do calorzinho dele, e de seu suor caudaloso. Mas

qual foi minha surpresa diante do seu protesto:

- Tio, sempre que eu segurar sua mão, eu quero

segurar sua mão inteira. Eu não quero segurar só seus dedos

porque eu gosto muito de você.

Ele acabava de me provar que as crianças estão

sempre ávidas por nos amar. A partir desse instante e até o fim

do nosso passeio, não larguei mais aquela mãozinha molhada

e tórrida. A mão mínima, colada na minha, era minha única

ligação com a sobrevivência e nada, rigorosamente nada além

daquela pequenina mão, seria capaz de me manter vivo. Muito

pelo contrário, eu tinha a sensação de que morreria

instantaneamente se perdesse o contado com aquela mão de

amor.

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5 Baile de Máscaras

Mário chegou sozinho na festa de casamento de sua

''colega'' Heloísa. Aspas porque ela já havia sido amiga dele,

mas ele não: ele necas de ser colega dela; Mário era de uma

capacidade invejável – invejável até certo ponto - de não sentir

nada por ninguém, de orbitar em si mesmo, não deixar a

costeleta à mostra na janela da torre de seu castelo. Respirou

fundo uma única vez - era o suficiente para ele - e entrou

naquele salão onde a música já tornava as conversas

proibitivas e os olhos da maioria já avermelhavam de bebida.

''Quem sou eu no mundo'' - apesar de já ter esta

resposta há muitos anos, saber que era um total clandestino,

que não era nada e nem ocupava qualquer posição, ainda se

perguntava por resíduo de esperança. Olhou para trás e a balsa

do Caiçaras ia ruidosa buscar mais convidados. Ajeitou o

terno azul-marinho, certificou-se da simetria da gravata

vermelha na noite parda e se os sapatos não estavam

engolindo as barras das calças. Estava esteticamente rigoroso.

Dirigiu-se à noiva e a beijou pelo casamento. Cumprimentou

palidamente o noivo semi-desconhecido e foi lentamente para

o salão. Sua miopia desarmada proposital permitia vultos

braços musicais; luzes piscando e a música, bela música,

desagradavelmente alta. Da janela do salão a mancha verde

era o gramado sombreado.

Aquelas pessoas dançando, sorrindo, gargalhando,

brincando umas com as outras: ''quem sou eu no mundo''. Ah,

sim, e n‟alguns nichos era notável a dança do acasalamento.

Então eram felizes, mesmo que em datas marcadas.

Assim era a humanidade e ponto-final. Tantas roupas

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brilhantes, cabelos impecáveis, homens de colete, alguns de

polainas, copos brindantes de pro secco, pessoas desfilando e

cumprimentando umas às outras em série, por vezes

convidando-se umas às outras para dançar. ''Então são todos

felizes''.

Sentou-se. A cada dois minutos um garçon lhe

oferecia uma fritura a qual ele recusava. Seus olhos estavam

fixos nos sorrisos daquelas pessoas que eram tão, tão felizes.

''Por que eu não sou assim?…''. Não era. Sua felicidade era

mesmo marginal, suas músicas, seus livros, seu pão francês

com toneladas de requeijão nos domingos de manhã e um

copo de Coca-Cola, vil líquido negro. Seus cinco travesseiros,

seu DVD da Mercedes Sosa. Mas ali as pessoas sorriam

muito, eram lindas, cheirosas e dançantes: ''então é isto a

felicidade. O que estou fazendo de errado?''.

A noiva reapareceu e lhe agradeceu o presente; o

noivo aproveitou para lhe dizer que ele estava mais magro no

peso que mantinha há vinte anos. E seu celular tocou: era seu

melhor amigo: outro homem com quem ele havia decidido

passar o resto de seus dias - e versa-vice - muito embora

nenhum dos dois sentisse atração sexual por homens. Retirou-

se e, enquanto conversava, afastando-se da festa em direção à

lagoa, o ruído esmaecia, surgia aos poucos uma súbita paz de

festa distante, consagrada pelo encontro de quatro bancos de

ferro em círculo, protegidos pelo gigantesco flamboyant que

atapetara tudo ali com flores vermelhas caducas. Sentou-se

para conversar com sua alma-gêmea. ''Esta parece ser uma

felicidade, das muitas possíveis''. E uma grande folha marrom,

no chão, obedecia ao vento de um modo diferente. Miopia

corrigida pelo aperto das fendas dos olhos: era um sapo. E

como estava assim diante de uma total espontaneidade

solitária e batráquia, sentiu-se plenamente feliz. ''Eu, o mar,

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esta árvore, este sapo, meu melhor amigo no telefone. Quem

pode querer mais.''

Voltou para a festa semi-refeito. Sentou-se no

mesmo lugar de onde saíra e prosseguiu sua contemplação.

Ver como o mundo era feliz e ele não. O que fazer?… Sabe-se

lá: far niente.

Surge finalmente uma conhecida: ex-cunhada da

noiva. Ela traz uma cadeira e senta-se com ele. ''Ta gostando

da festa, Mário?'' Mário consente, pois aprendera a

produtividade do consentimento. ''Ta nada, você ta odiando!''

Admite, pois aprendera também a nobreza de admitir.

E eis que Laura - este é o nome dela - lhe passa a

contar detalhes da vida alheia. ''Veja que crianças

interessantes, fáceis, brincando nesses sofás. Elas é que estão

se divertindo.'' Era verdade. As crianças pulavam os ritmos e

brincavam com adereços. Havia espontaneidade tal qual a

espontaneidade do sapo coaxante, mais pesado que as flores

vermelhas, ao sabor da brisa, marrom à beira da lagoa em

meio àqueles bancos de ferro, aproveitando-se da miopia

alheia desarmada para se fingir de folha de amendoeira.

"Aquela ali está condenada, tem câncer de pâncreas". A

condenada dançava, via-se agora que seu semblante não era

plenamente alegre e que se sentava um pouco ofegante, com

ritmada freqüência. "Aquele ali é um primo meu, já transamos

três vezes, a esposa dele nem sonha". A mulher do primo

dançava amistosamente com o marido que julgava ser posse

dela e, como os viu olhando em sua direção, acenou. "Aquele

pôs prótese peniana, imagine". Era um careca de lente de

contato verde, o que não deixa de ser outra prótese. "Aquele

ali largou a faculdade e foi morar no mato, misturado a um

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grupo de ciganos, para tristeza dos pais. Nem sei o que está

fazendo aqui".

"Nem eu. Que saiam todos"

Ao longe, um casal visivelmente decidia o destino

de seus ciúmes.

Assim, pouco a pouco, o baile de máscaras se

reconfigurava: menos pessoas, mais embriaguez e quietude,

música que ia ficando abandonada, cansaço de alguns, tristeza

de outros que por fim se viam nus e sem propósito. Alguns

rostos faziam perguntas sem resposta, como se isto fosse

possível: não responder qualquer pergunta que se imagine

formular. E se perguntam diversos porquês indignados,

quietinhos em seus cantos de meio-de-salão: por que comi e

bebi tanto, por que ri tanto, por que dancei tanto, como se nada

fosse aceitável sem uma boa dose de culpa ou remorso.

Também como se houvesse um contraste devastador entre

suas vidas e aquele momento, de profano que deveria ser,

acabava tendo a obrigatoriedade de ser divino.

"Pode ser que eu seja, já há tanto tempo, tão feliz".

Este foi o último consciente de Mário antes de se despedir da

amiga, ates de se reencontrar com seu carro e seus asfaltos,

depois seu chuveiro de água quente e maternal e, por fim, seus

cinco travesseiros amantes. Se o céu não estivesse encoberto

haveria Lua, para mais rapidamente sonhar.

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6 O Enforcado Não, não é a carta do baralho do tarô onde figura um

homem de cabeça para baixo, preso pelo pé. Trata-se de um

enforcado de verdade, em carne desvitalizando e osso,

realmente pendurado pelo nó no pescoço. É uma cena horrível

de se ver. Deveria ser proibido. Mas foi isto que ele quis fazer,

e a vontade própria é respeitável. Fico imaginando nos

“antigamentes”, quando as pessoas se reuniam nas praças de

execução penal para ver condenados a morrer na forca. Que

tipo de motivação leva uma pessoa a ver alguém ser

enforcado? Bem verdade que é uma característica genética

nossa, um gostinho delicioso de ver o próximo sofrer.

Aglomeram-se diante de qualquer sangramento, qualquer

atropelamento ou assassinato. É uma avidez por líquidos

orgânicos e tragédias de fim de vida, que sempre são

horrorosas. E acendem velas para si mesmas, fingindo ser para

o defunto, como forma de se desculpar pela atração mórbida e

aética de ver o próximo sofrer até morrer. É o paradoxo da

compaixão e do gozo pelo fim do outro.

Vou contar aqui a história de uma mulher

aparentemente comum. Digo aparentemente porque, naquela

época, era o jeito que ela vivia que era assim chamado, de

comum: era casada, tinha uns filhos, era dona de casa ocupada

com limpezas, culinária e recepção: tinha algumas amigas e

primas para servir um bolo no fim do dia e falar mal de

alguém. Após cuidar dos filhos durante a manhã, despachá-los

para a escola e ver um pouco de televisão, recebia suas amigas

à tarde, e depois os filhos de volta, aprontava-os para o sono

próximo e ficava à espera de rever o marido, enquanto assistia

a uma novela. Era assim, uma vida assim, comum mesmo.

Mas não era mulher feliz. Detestava dois dos seus três filhos,

especialmente o mais velho. Detestava o marido e fazia disto o

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seu assunto diário com as amigas, na hora do chá. Detestava

ser dona de casa, mas não tinha coragem de procurar emprego,

pois não fora educada para tal e achava que os homens tinham

obrigação de sustentar as mulheres. Detestava também ser

mulher. Isso mesmo, um horror a ser mulher. Queria ser

homem, pois assim poderia apaixonar-se por outra mulher sem

sentir-se castigada por deus ou mesmo envergonhar-se diante

da sociedade sempre tão inquisitória e… devastadora.

Esta mulher tinha um relacionamento muito ruim

com seu pai. Ele morava a apenas duas quadras dela, sozinho e

viúvo. As conversas ao telefone eram breves e irônicas, bem

como as visitas eram breves e espetadas. Contava para as

amigas ela que tinha mágoas de seu pai, incorrigíveis; seu pai

dizia a todos que tinha mágoas dela, também incorrigíveis. A

verdade é que nenhum dos dois sentia muita vontade de se

corrigir em nada, nada mesmo. Iam levando suas vidas, nesta

cadeia de ódio entre gerações, de mágoas facetadas, mal-

explicadas e em mão-dupla, sempre em pé de guerra e

fingindo não serem guerreiros.

Para piorar suas latências dolorosas, ela nutria uma

forma de amor e libido por sua prima-irmã, que sempre ia lhe

ver às tardes para conversar sobre sogras e maridos, enquanto

comiam bolo e tomavam chá e café.

Acontece que sua indignação com a própria

existência foi tornando-se insuportável e assim, num ímpeto

de seguir vivendo, a mulher tomou a decisão de que mudaria

tudo. E começaria verbalizando, falando todas as verdades,

mesmo que invertidas fossem, a todos por quem nutria ódio,

mágoa ou inseria culpa. O primeiro a sofrer foi seu pai,

justamente seu pai, que não estava muito preparado para ouvir,

apesar dos oitenta anos. Saiu de casa andando apressada e

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pisando forte na calçada como se fosse um soldado

determinado. E “matou” seu pai mais ou menos assim:

- Eu não gosto de você. Jamais gostei. Pelo

contrário, sinto raiva, nossos encontros me fazem mal. Não

quero mais ficar vindo aqui vê-lo toda hora. Quero que

combinemos o seguinte: que me telefone quando sentir-se mal

ou necessitar que eu compre alguma coisa. Só.

O pai engoliu em seco e concordou, porque é mais

conveniente concordar com os filhos crescidos.

O segundo a sofrer verdades corridas foi seu filho

mais velho, assim que chegou da universidade:

- Eu não gosto de você, jamais gostei. Pelo

contrário, sinto ódio mortal de você. Arrependo-me de não ter

lhe abortado. A partir de hoje não quero mais vê-lo no jantar.

Não me peça mais para fazer batata-frita. Mantenha-se no seu

quarto e eu estarei rezando no meu, para que arrume logo sua

vida e saia da minha casa o mais rápido quanto possível.

O filho entalou com a determinação da mãe, sentiu

vontade de matá-la, mas era mais conveniente ficar quieto,

pois não tinha teto e nem dinheiro suficiente naquele momento

para rebater-lhe com o que pensava e, muito menos, tomar

atitudes.

O terceiro a sofrer foi o marido, assim que chegou

do trabalho:

- Não te amo mais. Tenho asco do nosso sexo e do

seu suor. Nossas conversas me enfadonham e o dia a dia

contigo é monótono. Não suporto vê-lo sem roupa. Não quero

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mais requentar o prato de comida para você, quando chegar

tarde do trabalho. A partir de hoje, quando quiser sexo, apague

a luz para que eu não o veja.

Cada etapa deste “livramento” desta mulher lhe

insuflou uma auto-estima torta e falsamente poderosa, que ela

confundiu com vitalidade. Ela entendia, com aqueles atos,

estar conquistando alguma coisa para si, desconsiderando o

sofrimento dos outros. Ela não percebia que, em verdade, sua

perda era ainda maior e incalculável.

Assim passou duas semanas numa euforia que

confundiu cegamente com felicidade. Pensou que estava se

tornando uma pessoa melhor. Acreditou que exercer suas

decisões em forma de maldade lhe traria uma liberdade de

juízo pleno e justo. Foram duas semanas em que comprou

roupas novas e andou pelas areias da praia com chapéu e

óculos escuros respirando, profundamente e de rosto erguido,

a brisa do mar. Convidou a prima não apenas para o chá, mas

para o almoço e para ir ao cinema. Ignorou o marido quando

chegou do trabalho, esqueceu que tinha filhos, principalmente

o mais velho, sentindo-se solta, livre e vingada.

Mas na terceira semana preocupou-se com seu pai,

pois ele não lhe telefonara para nada até aquele momento.

Discou seu número, mas ele não atendeu. Decidiu então que,

no dia seguinte, assim que acordasse, iria a casa dele levar uns

biscoitos e uma pequena cesta com alimentos. Sentiu-se um

pouco severa demais com ele e, já satisfeita com a pequena

vingança verbal, planejou um desjejum para os dois. Assim

fez. Acordou na manhã seguinte bem cedo, foi ao

supermercado e encheu uma sacola com biscoitos sortidos,

iogurte, queijo branco e dois pães franceses para que

comessem com manteiga. Como ele demorou para abrir a

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porta depois que ela tocou a campainha, ela usou a cópia da

chave que possuía para entrar. Seu pai estava na posição

vertical, pendurado pelo pescoço em uma corda que o

sustentava no corrimão do segundo andar da casa. Tinha as

mãos cerradas, o rosto arroxeado e não existia mais. Ela

fraquejou as pernas, deixou as compras soltarem-se de suas

mãos ao chão. Em cima da mesa onde planejava o desjejum,

havia um terno completo, até com gravata e abotoaduras.

Sobre o terno um bilhete escrito à caneta trêmula: “este é o

terno do meu enterro”.

Imediatamente menstruou. Ainda faltavam duas

semanas para a regra descer, mas menstruou. E foi a última

vez que sangrou mensalmente.

Esta história tem uma continuidade longa e triste,

extensamente longa e morbidamente triste, que eu prefiro

manter em segredo. É que, neste dia de última hemorragia,

esta nossa personagem conseguiu um pouco do que quis a vida

inteira: deixar, em parte, de ser mulher. Ela nunca mais viu

seu filho mais velho. Seu marido, após alguns meses, foi-se

para muito longe e encontrou outra mulher para amar às

claras. Ela passa até hoje, todos os dias, tentando fazer novos

amigos, inventando para eles uma vida que não teve,

mitificando um passado feliz de realizações familiares.

Arrependida, sim, mas convicta de que viveu o que não

existiu. Idealizou o passado e passou a se apresentar ao mundo

como a mulher mais feliz e realizada do mundo, mas que

perdeu o contato com sua família de crápulas e egoístas que

não lhe deram nenhum valor como mãe e esposa. E todos os

dias, quando decide dormir, ela pede a deus, em quem

acredita, que a perdoe e traga de novo sua regra menstrual,

nem que seja por uma única e última vez.

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7 Serenata… de Amor, claro

O pequeno Gabriel saiu de casa puxando seu velocípede

vermelho e azul, com o auxílio de uma cordinha feita por seu

pai e presa ao guidão, até o lugar onde poderia pedalar. Era

um grande momento, o de poder pedalar novamente, pois era

sua primeira convalescência de muitas que a vida traria. Uma

felicidade só. Sorrisos, pulinhos, pequenos gritos e correria. E

ainda melhor: estava sem camisa, pois estava bastante calor!

Sua mãe, atenta da janela que dava diretamente para o pátio

dos fundos do edifício, não poupou recomendações

impacientes: “não pode isso! Não pode aquilo!” Mas ele é que

sabia o que podia, e certamente podia tudo!, sua mãe é que

não se lembrava mais como as crianças se recuperam rápido

dos problemas de saúde. Havia apenas sete dias que ele se

submetera a uma cirurgia para retirar as amígdalas que

estavam bem, bem grandes e inflamadas, e lhes rendia antes

muitos dias na cama apenas vendo TV, sem conseguir falar

direito e, geralmente, com febre alta e vontade de chorar. O

que ele não imaginava é que, depois da cirurgia, ele sentiria

muito mais ardor lá no fundo da boca, porém por menos dias;

isso sem contar a bruta dor no corpo. Sua mãe o enganou bem,

como fazem as mães quando educam os filhos para irem

tranqüilos e confiantes para as cirurgias: “Gabriel, o doutor vai

lhe dar um cheirinho e você não verá nada: quando acordar, já

estará novinho em folha e nunca mais sentirá dor na

gargantinha”. Ele tinha que acreditar, não havia escolha, afinal

era sua mãe que estava lhe dizendo aquilo. Mas bem que a

questionou logo em seguida, no pós-operatório, com aquela

baita dor cem vezes pior e sem conseguir falar absolutamente

nada de verdade, isso sem contar o braço preso na cama com

um canudinho entrando nele e com uma tabuinha amarrada na

mão. Chegou a se perguntar se aquilo aconteceria todas as

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vezes que sentisse alguma coisa ruim como era a dor de

garganta, e pensou em não aceitar mais nenhum cheirinho

inofensivo mesmo que sua mãe lhe dissesse que sairia melhor

dele. Além disso, marcaram a cirurgia bem na véspera de seu

aniversário, o que certamente aqueles adultos bobos deveriam

considerar coisa boa, pois levaram balões, chapeuzinho e

sorvete de creme para ele em pleno hospital, sem que nada

daquilo interessasse a ele. Achou aquilo tudo uma boa

porcaria, pois preferia bolo e bagunça com outras crianças

como foi no ano que passou, mas fingiu gostar de ser

agradado. Além de sua primeira cirurgia e primeira

convalescência, foi também seu primeiro fingimento, de

muitos necessários ou propositais que também viriam com o

tempo.

Mas o pequeno Gabriel estava já pedalando no pátio dos

fundos quando, subitamente, lembrou-se da existência de

Luana.

Luana era a menina do terceiro andar. Uma menina

bonita e de sorriso fácil, que fazia muito bem a ele. Por vezes

ele chegava lá e encontrava-se casualmente com Luana. Ela,

com bonecas e panelinhas, pedia sempre para pedalar um

pouco no seu velocípede. Enquanto ela pedalava, ele xeretava

as miniaturas coloridas de mulher-grande com as quais Luana

brincava. Depois cada um ficava com seus brinquedos e,

enquanto cada um usava o que tinha para imaginar um monte

de coisas, ferravam um papo bobo, de frases aleatórias e

descrições soltas, que só eles entendiam – e muito bem.

Conversa que adulto não entende jamais e ainda pensa que os

pequenos são tolinhos, achando muita graça e contando para

os amigos nos fins de semana regados à cerveja e amendoim,

por pura falta de assunto, mesmo.

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Com saudade de Luana, Gabriel parou seu velocípede

em frente à sua janela:

- Lua-naaaaaaaaa!

E nada de Luana aparecer. Mas apareceu sua mãe (a

dele), numa voz austera, firme e definitiva: “eu falei pra você

não gritar, Gabriel!” – mas ele ignorou:

- Lua-naaaaaaaaa!

Luana finalmente apareceu, entre as grades de

alumínio bastante oxidadas, da janela de sua casa.

- Luana, eu já to bom, to com saudade de você, vem

brincar comigo!

- Não posso, Gabriel! – ela estava sendo taxativa e

convicta!

- Por que não pode, Luana? – aquilo era inaceitável.

- Porque minha mãe não ta em casa, eu tenho que

esperar ela chegar pra ela me ver da janela.

Gabriel ficou decepcionadíssimo. E logo esqueceu,

pois sua mãe apareceu de repente na sua frente, com pernas

compridíssimas que entravam num peignoir florido, dando-lhe

uma bronca de apenas ouvir com medo do grito virar palmada.

Ela não queria que ele usasse a voz de jeito nenhum, “pra não

forçar a garanta”. Seja lá o que isso significasse, ele tinha que

obedecer. Ouviu até o fim com a cabeça toda para trás para

poder ver sua mãe inteira, com os cabelos pendurados

cobrindo o pescoço, e achou melhor deixá-la a ir embora para

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poder pedalar novamente, já que ela podia, sabe-se deus por

que, até proibir-lhe de continuar no velocípede. Pedalou mais

um pouco e logo aquela aventura de dar voltas no pátio

sozinho perdeu o sentido. Foi novamente à frente da janela de

Luana:

- Lua-naaaaa!

A menina apareceu.

- Se eu cantar uma música para você, você desce pra

brincar comigo?

- Não posso, Gabriel, minha mãe não ta em casa…

- Mas nem se eu cantar muito?

- Não posso…

Gabriel decepcionou-se bastante, mas olhando pro

chão, depois para o velocípede, e feliz de sua mãe não ter

aparecido novamente na sua frente para aplicar-lhe o golpe

final de ter que retornar para dentro de casa, resolveu cantar.

Para si, que fosse, ou para o comemorar seu dia de poder

brincar pela primeira vez depois de sete, desde que Luana

ouvisse e sua mãe não aparecesse:

- “Eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras

não sei dizer: como é grande o meu amor por você…”

Cantava altíssimo, cada vez mais, e esquecera-se de

tudo: de sua mãe, da garganta, da Luana que não viria mesmo;

esquecera até mesmo de que estava pedalando. Até que

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empacou numa frase, pois além dessa frase não sabia mais a

música:

- “Nem mesmo o céu, nem as estrelas, nem mesmo o

mar, e o infinito”

E repetiu esta frase dezenas de vezes, pedalando

freneticamente ao redor do pátio, como numa fúria de não ter

perto de si Luana rodeada de panelinhas rosas e amarelas. Até

que cansou-se de tudo; parou, ficou olhando para o nada que

estava bem diante de si.

- Gabriel! – era Luana na janela.

Ele olhou para cima, novamente levando os cabelos

da nuca até a base do pescoço.

- Gabriel, você canta tão bem…

Luana estava o tempo todo na janela vendo Gabriel

brincar: ele é que não havia percebido. Ela sentia tanta

vontade de estar com ele em vez de ficar trancafiada em casa

com aquela empregada desatenciosa e mecânica, esperando

sua mãe chegar para a tal da autorização sempre cheia de

poréns. No fundo, pensou ela, e também pensou ele, foi uma

brincadeira diferente: a primeira brincadeira do afeto, de

muitas, sim, muitas mesmo, que ainda viriam por aí. A

primeira brincadeira de sentir saudade, de agradar o objeto da

saudade e atraí-lo para si, de sentir felicidade com a presença

de outra pessoa e de cantar, sem sentir vergonha, para quem,

por existir, faz tanto bem. “Não é melhor, não é maior, nem

mais bonito”

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8 Braço Direito

Estava debruçado sobre o paciente de boca aberta,

súbita sensação de infarto agudo do miocárdio, igualzinho ao

que se descrevia na TV: dor no peito, no braço esquerdo, um

enjôo, um tal frio. Um mês depois, ainda internado no

hospital, tomando anticoagulante, sem a perna esquerda.

Como se um século houvesse passado diante de si, projetado

na persiana do hospital de dias e noites e dias e noites: “eu era

assim, aquilo tudo; agora sou assim, isto aqui. Para quê

sirvo?” Uma necessidade de redimensionamento urgente de

tudo.

Sem o trabalho, sem a perda, sem seguro-saúde. Sem

a esposa já estava há dois anos, ela que desaparecera como

tantos desaparecem, e ressurgira nos braços de uma novidade.

Pelo menos não teve a pachorra – ela – de dizer ao sair que

iria comprar cigarros. A quantidade de gente que desaparece

por ter ido comprar cigarros era impressionante. Era o caso até

de se incluir nos anúncios de cigarros da TV, na tela azul que

vem depois: o Ministério da Saúde Adverte: Fumar Provoca

Desaparecimento de Pessoas.

Nunca imaginou que, aos 40 anos, fosse necessitar

de cirurgia, UTI, remoções, transferências, enfermeiras,

reabilitação. Precisou disto tudo e de muito mais. Vendeu seus

dois apartamentos e ainda se endividou.

Por sorte seu colega de profissão, com quem dividia

o consultório, estava dando conta de todos os pacientes. Para

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isto se desdobrara em dois, trabalhara quase o dobro de seu

horário, e nos sábados, às vezes domingos, a fim de honrar os

tratamentos já iniciados pelo amigo mutilado pela trombose

arterial que lhe custara a perna e toda, inteirinha, completa

auto-estima.

O que restava estava ali, imóvel, visualizando

passado e futuro na persiana bege de um hospital. E sem saber

muito o que fazer. Bem verdade que vontade de fazer coisa

alguma. De passar a ser um contador de histórias numa cadeira

de rodas ou de balanço. Muita vontade de morrer, mas de

viver também, por medo de morrer ou desejo de sonhar,

impossível acertar. E eis que no momento de menor vontade

de qualquer coisa, entra o médico responsável:

- Seu Dimas, vamos pra casa hoje?

- Vamos.

Este “vamos” era, em verdade, um “não sei”. Porque não

sabia mesmo. Vontade tinha, mas não sabia exatamente para

quê. Se não sabia exatamente para quê estar no mundo sem a

perna, imagine-se então ir para casa, para quê?…

Foi. No minúsculo conjugado e sua nova casa, troco

da venda de um apartamento e quitação de parte das dívidas,

toda uma equipe de reabilitação que o ensinaria a andar com a

perna nova. “Perna nova” é a coisa mais engraçada de se dizer

da falta de perna. Não deixava de ser, de todo modo, uma

perna nova. Não deu em nada. Não se adaptou de modo algum

à perna mecânica: tombava, tropeçava, e assim foram meses

de tentativa, de insistência, de frustração, e lhe rompeu com

força total a psoríase refreada por mais de quarenta anos. Uma

psoríase contida pelo fenótipo que lhe floreou todas as dobras,

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o flanco, e até o pênis. E assim decidiu morrer. Era, além de

um homem sem perna e sem poder trabalhar, um homem com

a pele detestável. Com a pele repulsiva por placas

avermelhadas que descamavam e repugnavam. Decidiu e

pronto. Era morrer. Além de tudo as placas coçavam. Não

poderiam coçar. Sensações demais. Desconforto demais.

Desilusão demais.

Pois antes de morrer decidiu que brigaria

definitivamente com deus. Nunca foi de rezar, mas de

conversar.

- Porra, seu filho da puta! Eu sempre fui tão correto, nunca

roubei nem matei, sempre me preocupei em tratar bem as

pessoas, em ser-lhes útil, e é isto que para mim você reserva?

Esta desgraça? Agora me diz, em quê eu mereço isto?

Ou talvez merecesse mesmo. No entanto, preferia ter

certeza de que não. Afinal, era um homem essencialmente do

bem.

E mais meses se passaram. A solução para a falta da

perna não terminou nem sendo muletas – que lhe feriam ainda

mais as placas de psoríase, mas um andador destes de velho

bem velhinho. E ele ia pelas calçadas do Flamengo, pé à

frente, andador perseguindo, pé à frente, andador…

Encontrava o psicanalista duas vezes por semana, tomava seus

anticoagulantes, seus antidepressivos, aplicava os ungüentos

que os especialistas em pele prescreviam, sem muito sucesso.

Por sorte seu colega ainda lhe ajudava no

consultório. Cria ele que seus doentes o esperavam

ansiosamente. Mas um dia sua secretária lhe telefonou para

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outra finalidade que não a de perguntar se ele estava bem. Seu

colega, o que o vinha amparando profissionalmente há tantos

meses, desaparecera.

- Doutor Dimas, os clientes estão ligando, querendo

tratamento, o que eu faço?

Foi aí que a vontade de viver lhe abarrotou como uma

nova trombose fosse. Então era o trabalho que o faria andar, e

andar rápido, do fim ao começo do Flamengo, para reassumir

seu território. Andou. Fez bolha no pé que vinha sendo sub – e

super também – utilizado por todos aqueles meses. E os bíceps

incharam, de pressa furiosa e vital, rumo a seu quartel-general.

Na portaria do edifício onde ficava seu consultório,

o porteiro quase desmaiou quando o viu: “Ah, Doutor Dimas

ta morto!”. E saiu imediatamente dali o faxineiro do prédio,

totalmente cardecista que era, berrando pela portaria, avisando

aos quatro cantos e aos circulantes que doutor Dimas o estava

assombrando, que todos tinham que vir ver o espírito de

doutor Dimas.

Mesmo assim entrou no elevador, entrou em seu

consultório, assumiu sua cadeira e seus instrumentos,

ocupando, definitivamente, seu território.

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9 Ô Claudinha...

Moro aqui há três anos. Antes morava na região dos

grandes e imundos lagos fluminenses.

Logo que cheguei, primeira providência: Telemar,

instalação de telefone. Telefone é sempre aborrecimento.

Vieram, instalaram um número tão difícil que eu mesmo

esqueço pelo menos uma vez por semana.

Logo na primeira semana começa a tocar pra cá um tal número

com prefixo de Botafogo...

- A Claudinha?

- Número errado, senhor. Clic.

Novamente, na manhã seguinte:

- A Claudinha, por favor.

- Não tem Claudinha aqui, senhor. Adquiri este telefone

recentemente. Clic.

Acontece que a coisa não parava. Todos os dias, sem

tréguas de fim de semana, feriados, nunca. O sujeito acordava

sempre pelas 5, 6 da manhã, sempre morrendo de saudade da

Claudinha. E telefonava para ela (eu), muitas vezes ébrio,

incoerente, sem noção de ridículo. Sim, eu acabava acordando

junto. A Claudinha, o alvo da importunação, esta felicíssima

estava imune! Qual!

Aquilo foi me deixando tão enfurecido, mas tão

transtornado de ser surpreendido com a mesma situação todas

as manhãs que, um dia, antes de sequer ouvir a voz do sujeito,

atendi o telefone aos berros:

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- Porra, 'putaquepariu', não tem merda de Claudinha aqui, ô

cacete! Pára de ligar pra minha casa a esta hora, seu filho-da,

filho-do, filho-de ! - eu simplesmente não parava de exorcizar

o insistente, em taquicardia, suor frio e cara vermelha e

quente.

Para minimizar a chateação, inclusive para tentar me

poupar de futuros e certeiros descontroles, comprei uma

secretária eletrônica; assim, ouvindo minha voz masculina e

propositadamente cavernosa mais algumas vezes, quem sabe,

o sujeito desistiria de procurar a tal Claudinha que, pelo visto,

era um amor totalmente não-correspondido. Mas não. Agora,

todos os dias, mesmo ouvindo a minha voz de homem na

gravação, o infeliz faz questão de registrar na secretária

eletrônica:

- Ô Claudinha, faz isso comigo não, meu amor. Atende esse

telefone. Eu te amo tanto, minha deliciosa. Não me deixa,

Claudinha. etc etc etc.

Agora é minha vez: Poxa, Claudinha... eu lhe imploro! - se

você lê isto aqui, procura este raio desse homem, dá cabo dele

de vez ou volta pra ele, desde que eu passe a ter o direito de

dormir além das cinco da manhã...

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10 Tia Dorina

Tia Dorina é uma “idosa” de oitenta e cinco anos

que acaba de receber alta do Hospital da Ordem Terceira da

Penitência, após dois meses na Unidade de Tratamento

Intensivo, a tal UTI. Depois de um derrame em decorrência de

hipertensão arterial negligenciada, passou mal, teve dor de

cabeça, perdeu a força e o movimento dos lábios e de um dos

braços, e foi parar toda torta no hospital, com sangramento lá

dentro do cérebro. Ô azar.

A internação foi penosa, necessitou de coma

induzido e de tubos. Mas aos poucos recuperou-se, voltou a

falar, desentortou-se o rosto e já está de volta a casa, até

pensando em escolher uma nova cor para pintar os cabelos.

Minha mãe vibrou ferozmente com a desgraça de

Tia Dorina. Eu não. Nunca fez parte de meu modo de ser isto

de ser feliz com sofrimentos dos outros, por mais que os

outros possam ter feito por merecer. Disse ela – minha mãe –

que vinha desejando um fim trágico para ela há cerca de

quarenta anos – que é quase a minha idade. Pois quando eu

nasci, um dos primeiros netos ou sobrinhos-netos da família,

nasci com os vinte dedinhos – como era hábito temeroso

contar no berçário naquela época de talidomida, mas

desafortunadamente nasci sem um pequenino pedaço da orelha

esquerda. E, segundo conta minha mãe, mitomaniacamente ou

não, tia Dorina fez deste considerado “defeito físico” motivo

de grande escárnio e comemoração na gigantesca família onde

fui inserido, no meio de dez tias-avós absolutamente

fofoqueiras e maledicentes. Tia Dorina teria ferido minha mãe

em seu maior temor, talvez, no medo de ter um filho

defeituoso de corpo ou de caráter. No meu modo de ver

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durante a infância e a adolescência, a falta de um pedaço do

lóbulo de minha orelha foi mesmo um motivo de vergonha

para minha mãe somente, pois talvez se considerasse uma

fêmea má geradora ou má nutriz, já que seu filho tinha pedaço

de menos no corpo. Passou minha infância e adolescência me

assediando para me submeter a uma cirurgia plástica, na qual

uma pequena pele da nádega seria transplantada para a orelha

e eu, finalmente, teria o corpo “perfeito”, talvez neutralizando

o escárnio de tia Dorina. Para isto eu teria que ser exibido

novamente à família, como se fosse um troféu de novo no

berçário. Acontece que eu sempre gostei muito mais de minha

orelha defeituosa do que da outra teoricamente perfeita, porém

maior e menos harmoniosa com meu rosto – aos meus olhos.

E com o tempo passando, verdade isto é, nem me lembrava

mais que orelha eu tinha, a não ser na hora do banho, por ser

parte do corpo tão sebácea e tão dada a odores azedos,

merecendo o maior dos caprichos com o sabonete. E sim,

como esquecer, quando ia ao pediatra, Dr. Gregório, que

sempre me dizia que o que faltava na orelha estaria muito

provavelmente sobrando no cérebro. Acho que ele pensava

que me consolava dizendo essa grande idiotice. Ou minha mãe

transmitia a ele este trauma envergonhado de ter um filho com

a orelha diferente. Hoje entendo que certas asneiras têm que

ser ditas, se delas resultar um período de conforto e harmonia

a quem as ouve.

Mas vamos às verdades.

Tia Dorina tem responsabilidades graves na família.

Poucas pessoas gostam de Tia Dorina. Ela, junto com minha

avó que faleceu de pneumonia bem há pouco, foram

responsáveis por boa parte de todos os desentendimentos entre

todos, se não rigorosamente por todos. E eram desprovidas de

escrúpulos. As duas possuíam uma habilidade duofacetária de

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estabelecer um disse-me-disse que, em poucos minutos, se

espalhava por toda a gigantesca família de doze irmãos, trinta

e seis sobrinhos e cento e doze netos, fora os sobrinhos-netos.

Depois que todos se inimizavam acreditando nos “disses” de

uns e nos “me-disses” de outros, criando um cenário de ódio e

desconfiança generalizados, elas novamente entravam em cena

como grandes apaziguadoras. Ô safadas. As pessoas, sabe-se

lá por que falha de julgamento, acreditavam no resultado final,

no qual as duas desejavam apenas fazer reinar o bem-estar da

família e muito contribuíam para isto.

Eu rompi com isto aos quinze anos. Mais

precisamente no dia do meu aniversário de quinze anos. Neste

dia minha mãe insistiu em me fazer um bolo e centenas de

brigadeiros, o que eu detestava (não os brigadeiros, mas a cena

dela os enrolando e reclamando do trabalho que dava, embora

estivesse determinada a terminar), e convidar algumas primas

e tias-avós, além de minha madrinha de batismo e minhas

avós. Seguramente eram convidadas apenas as pessoas que

certamente me dariam algum presente em dinheiro e que

passariam a tarde inteira tagarelando e gargalhando numa

espécie de conspiração contra o resto da família que não

estivesse presente para se defender, ou confrontar. Era um

nojo quando as piores víboras da família (justamente as

convidadas!) se reuniam, geralmente na casa de minha avó,

comentando as roupas, as vozes, os gestos, rindo do infortúnio

dos ausentes, dos casamentos desfeitos, da feiura dos genros.

A tônica era sempre a aversão à figura do homem. Sim, elas

aparentavam ser todas muito inimigas do sexo masculino.

Tia Dorina foi a primeira a chegar, como sempre,

por ansiedade e por morar muito perto. Tia Dorina gostava de

acompanhar o circo todo, desde a compra dos bilhetes,

passando pelos trapezistas quase suicidas e pelos ridículos

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palhaços, até o grande incêndio final. Morava a uma quadra de

nós e tinha uma empregada que lhe trocava até os absorventes

íntimos. Nunca trabalhou na vida. Nunca fez rigorosamente

nada a não ser comprar bijuterias. Seu ex-marido, conhecido

contraventor da zona sul carioca, era também reformado pelo

exército como incapaz (embora fosse de todo capaz), e dava-

lhe metade do soldo como acordo de desquite. Uma das

distrações de minha mãe era falar da vida sexual de tia Dorina,

que tinha um amante no andar de cima, casado com outra,

legítima, e que bastava um estuque com o cabo de vassoura no

teto do quarto para que ele descesse as escadas e mandasse

brasa nela. Outra distração era falar da inutilidade de tia

Dorina, seu sedentarismo, sua futilidade manifestada nas suas

coleções de sabonetes envoltos com malhas de crochê,

dezenas de águas de colônia, brincos e anéis vagabundos.

Mas fugi muito do assunto, desculpem-me: tia

Dorina foi a primeira a chegar. Não me deu nada de presente.

Sentou-se no sofá e puseram-se, minha mãe e ela, a falar mal

de minha avó e de minha madrinha. Ouvi-las falar mal das

pessoas era divertido, afinal eu estava em plena fase de

absorção e queria aprender a conviver e a conversar. Pena que

o exemplo que eu tinha era aquele, o de um bando de

endemoniadas sempre furiosamente dispostas a difamar e

blasfemar contra os outros.

Em seguida chegaram minha avó e minha dinda.

Minha mãe e tia Dorina ficaram um tempo com aquela cara de

quem peidou na igreja ou dentro do elevador lotado, aquela

cara de idiota que todos nós fazemos quando estamos falando

mal de quem que, em seguida, aparece na nossa frente, num

súbito incapacitante, sem que tenhamos tempo de nos

recuperar do próprio veneno; mas habilidosamente elas

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recuperaram a naturalidade. E, agora em grupo de quatro

mulheres, puseram-se a falar mal de Nádia.

Nádia foi a que chegou em seguida. Nádia era a puta

assumida da família. Orgulhava-se em dizer que só não

arranjava um homem pra conhecer sua cama quando decidia

sair nas ruas olhando para o chão. Era uma mulher com cara

mesmo de sexo, e que pintava os cabelos com um tom de

louro que só existe nos albinos, o que realçava uma mancha

avermelhada que tinha no canto esquerdo da boca. A voz de

Nádia era detestável: uma voz miada, lasciva como sempre

estivesse fingindo orgasmo. E talvez esta voz fizesse parte do

personagem proposital. Seu modo de seduzir os homens na rua

era particularmente interessante: ela se aproximava deles e

dizia que eles tinham “cara” de que gostavam de arte. Em

seguida à receptividade, ela dizia que tinha um Debret em casa

(e tinha mesmo, na parede sobre seu criado mudo – ainda bem

que mudo). Então perguntava ao homem já fisgado se ele

gostaria de conhecer seu Debret. E o homem ia conhecer... o

“Debret” de Nádia. Era assim. Um respeitável talento para o

acasalamento. Nádia abriu a carteira discretamente, assim que

entrou sala adentro, ao lado do piano, e me estendeu uma nota

de cem cruzeiros, a nota de maior valor naquela época. Minha

mãe, sempre cobiçando, mandou-me logo esconder o dinheiro

no quarto, afirmando que mais tarde se concentraria comigo

para decidir a melhor forma de gastá-lo. Pura cobiça. Cumpri

a ordem, guardando o dinheiro na gaveta central de minha

escrivaninha, voltando para a sala.

As cinco mulheres então se puseram a falar mal de

minha avó paterna que estava para chegar. Falar mal de minha

avó era o prato cheio de minha mãe. Afinal, era sua sogra. Em

todas as reuniões de família ela dava um jeito de inserir

maledicências sobre minha avó nas conversas. Isto estimulava

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as demais, e o assunto passava a ser uma grande desova

generalizada e comparativa de maledicências sobre as sogras

de cada uma. Competiam para ver quem teria a pior

experiência com a respectiva sogra, a que falava mais, a que se

metia mais no casamento da nora. Curioso era que, já naquela

época, eu percebia o quanto havia de mentira nas verves

daquelas mulheres. Talvez por saber que era lorota pelo menos

oitenta por cento de tudo que minha mãe falava sobre minha

avó, eu dava um desconto também no que as outras falavam. E

as considerava notáveis discípulas de Lúcifer. Infelizmente,

devido a isto, criei nos meus arquivos uma idéia de que

mulher talvez não fosse bicho de se confiar.

Minha avó paterna, a sogra, a bola da vez, foi a que

chegou por último. E quando ela tocou a campainha, fez-se

um enorme silêncio de surpresa que ninguém conseguiu

naturalmente passar a falar sobre a morte da bezerra. As testas

de todas, os olhares perdidos, denunciavam que coisa boa não

estariam falando, e minha avó entrou na sala com o ar

aristocrático inabalável que tinha, sempre sabendo de tudo

mas fingindo não perceber nada. Não que minha avó paterna

fosse santa. Ao contrário, era bem chegada aos

endemoniamentos tal como as outras, mas nunca, nunca

mesmo, pude considerar as pequenas maldadezinhas de minha

avó graves como as maldades das mulheres da minha

ascendência materna.

Ela entrou, beijou-me e desejou feliz aniversário.

Abriu a bolsa e tirou de dentro dela um pacote com um

baralho de plástico Kem, sonho de consumo meu naquele

momento da vida. Depois pediu licença, sentou-se e

posicionou a bolsa ao seu lado no sofá. Ficou olhando para as

outras com fingimento de naturalidade, fitando rosto a rosto, o

que sabia fazer como ninguém, e com aquela cara de “e agora,

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o que conversaremos?”. E como as demais estavam totalmente

paralisadas diante de terem sido surpreendidas sem

inteligência e improviso suficientes para transmutar o assunto

cruel na simples morte da bezerra, puseram-se a me

bombardear. Minha tia Dorina foi a primeira, como sempre, a

pioneira:

- Você agradeceu à sua avó o presente que ela lhe deu?

- Claro que sim.

- Não vi você agradecer. - ela arrematou, por falta de assunto.

- Agradeci sim.

Eu, que estava sentado no braço da poltrona onde

minha madrinha estava, abaixei meu rosto e fiquei olhando

para o carpete cinza, desejoso de que o tempo voasse como

um falcão e todos aqueles discípulos do inferno saíssem da

minha casa.

Tia Dorina, ainda sem imaginação sobre o que

conversar, insistiu:

- Mas nós aqui não vimos você agradecendo à sua avó!

- Agradeci sim, claro que agradeci, não foi, vó?

- Agradeceu. - foi o que minha avó fez, abreviadamente e

balançando a cabeça afirmativa e lentamente, olhando para

todos a fim de terminar aquele assunto. Seu rosto era

pragmático, grave e enojado.

Mas não conseguiu. Tia Dorina, num rompante

inexplicável de sadismo, resolveu me obrigar a agradecer

novamente à minha avó “na frente de todos”, para que fossem

testemunhas de que eu realmente havia agradecido o presente.

Eu, como era de se esperar, comecei a chorar. Fui ao banheiro

e lá me tranquei, molhei o rosto, vomitei em seguida, fiz um

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pipi sentado, fantasiando em como envenenar todas aquelas

mulheres com cianureto de potássio, caso o possuísse.

Recuperei-me, sequei as últimas lágrimas dos meus quatorze

anos na toalha. Fui à sala; parei em frente a todas:

- Atenção - todas olharam, ainda impactadas com a presença

de minha avó paterna – Vocês estão me vendo e me ouvindo?

- Estamos. - apenas tia Dorina respondeu.

- Pois olhem bem meu rosto; ouçam bem minha voz. Guardem

bem na cabeça. Pois é a última vez que vocês me verão.

Saí, fui para o meu quarto. Tranquei-me lá e não

ouve toctoc insistente de mãe ou avó que me fizessem abrir a

porta. Só saí quando certamente a casa não tinha mais nenhum

inimigo. Obviamente a situação foi apenas o motivo maior

para eu tomar esta decisão. Muito aconteceu antes. Muito

assédio moral, humilhações públicas, maledicências que

atingiram direta e definitivamente a formação de meu caráter,

definindo meu modo de ser e de agir, especialmente em

relação às mulheres.

Estou com mais de 40 anos. Não sei como tia Dorina

ficou depois de velha. Não sei se aquelas mulheres todas

deixaram de maldizer e de semear discórdia. Nem lhes dei

chance. Nem me arrependo, tampouco. Na verdade nem sei se

ainda está viva neste exato momento a tia Dorina, pois afirmei

ontem que não faço questão de saber notícias de pessoas que

não existem a não ser em forma de fantasmas. Nunca fui nem

aos enterros de familiares, nem mesmo ao enterro de minha

avó. E olhem que morreu muita gente, já. Jurei e cumpri, que

ninguém na família de minha mãe jamais me veria novamente.

Literalmente tirei meu corpo fora. Já meu espírito,

este passou a vigorar de modo totalmente distinto do que eu

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planejei. Mas o resultado foi adequado, digamos assim.

Dorina.

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11 Elas

Elas eram assim: ela canceriana com ascendente em

Aquário; ela-outra capricorniana com ascendente em Áries.

Conheceram-se na internet e foram se encontrar acreditando

que já se entendiam bastante, o que foi o maior dos

estranhamentos. Para piorar, no horóscopo chinês, ela era tigre

e ela-outra, macaco. Viva a diferença. Ela engenheira química,

ela-outra gerente de uma loja de roupas em um shopping

Center movimentado. Foram a dois astrólogos brincar de

acreditar em sinastria: o primeiro disse que elas não tinham

longa vida juntas. O segundo disse que elas seriam muito

felizes enquanto estivessem juntas, apesar da lua em oposição

a saturno. Ficaram confusas. Eram destinos distintos para suas

vidas, mas reformularam seus projetos num destino

denominado - por elas - comum. Ela-outra então foi no

terreiro, tomou um banho de manjericão e de arruda, limpou-

se para o relacionamento dar certo. Só como precaução,

mesmo não acreditando em mandingas. E ela, ela foi no padre

gay - poucos sabiam que era - que prestava uma certa

assistência psicopedagogico-cristã aos homossexuais nos quais

ele depositava confiança de se confessar. O padre foi claro:

"vivam a vida de vocês" - bem frase de padre. Ela-outra foi

então na taróloga-ichingueira, numeróloga, uma espécie de

guru polivalente budo-indiana que ela-outra apelidara

ironicamente de Shana-shava-shiva-shota. A guru testou todos

os seus métodos para predizer - tentar - algo para as duas, mas

limitava-se a ecoar "É, esquisito; é... esquisito" enquanto

fuçava seus baralhinhos e suas pedrinhas. Ela saiu dali, então,

um tanto frustrada e inconformada, mas decidida a viver o

presente. Na alegria, na tristeza, na tosse, no câncer, no que

viesse. Pediram conselhos aos amigos, mas cada um

aconselhava de acordo com o que fosse mais conveniente e

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gerasse mais resultado para si. E foram vivendo. No primeiro

mês foram ao sul do país e acordavam muito felizes. No

segundo mês ela-outra trocou de carro e fizeram a estréia num

fim-de-semana em Paraty, lugar que ela odiou. No terceiro

mês ela passou uma semana com a família, em Ourinhos,

deixando ela-outra cheia de saudade; por outro lado, ela-outra

trocou de emprego e ficou eufórica, dando mais importância

ao trabalho novo do que a ela. O quarto mês elas consumiram

trabalhando, vendo TV de mãos dadas nos fins-de-semana e

cuidando do filhote de labrador, presente de ela-outra para ela.

No quinto mês os corações congelaram: ela bateu com o carro

num ônibus, ferindo gravemente os passageiros e gerando um

processo legal; ela-outra perdeu o emprego, ficando bastante

deprimida e ansiosa, bem como sem proventos – o que sempre

dá uma rasteira no amor. No sexto mês elas foram ao padre, na

guru, ao terreiro, aos astrólogos, e pediram conselhos aos

amigos - que estavam apaixonados para ter suas amigas de

volta. No sétimo mês ela e ela-outra conversaram bastante - e

morreram.

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12 Verdades de verdade

Existem as verdades que são genuinamente

verdadeiras. Mas são poucas e são tão nobres. Ou são muitas e

eu venho formando um conceito errado, amedrontado e

desconfiado, acerca delas. Existem as verdades mentirosas,

ilícitas – são tantas nas quais temos que fiar ou fingimos

acreditar, até. Há verdades transitórias, também chamadas de

vigentes, convenientes ou apropriadas. E há verdades

ficcionais. Há verdades míticas! E verdades antagônicas.

Existem verdades históricas que nem se sabe se são mesmo

veridicidades, mas a História é sempre tão convincente,

interessante e elegante. Ô, como há verdades. Há verdades

secretas, ocultas, camufladas de mentira e até verdades

íntimas, como pérolas cultivadas, que nada mais são que…

bolinhas de plástico.

A minha verdade é funcional e até vital para mim,

mas pode ser fatal para você. Não existe uma verdade

unânime, muito menos uma verdade atemporal. A minha

verdade se transforma, a sua pode nunca mudar. Ou pode a sua

verdade convicta alterar daqui a anos favorecendo a minha

verdade, mas ser tarde demais. E nossas verdades, de um dia

para outro, tornarem-se inimigas e divisórias, completamente

inválidas ou inúteis, ah não é nada raro isto acontecer.

Existe a verdade do agora, do antes de tudo, a

verdade improvisada; e a verdade do daqui a pouco, do depois

que ninguém vê ou depois do ninguém soube.

Existe a verdade da noite, do dia, das portas

fechadas, das janelas abertas, da presença dos pais ou dos

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filhos, da troca de roupa em vestiário público e a verdade

doida e, muitas vezes, doída, dos papéis sociais – que nem

sempre são… de verdade.

A verdade pode ser apenas um começo, mas pode

ser também um meio, um fim, um meio de vida ou uma via de

fato. Existe a verdade revelada, a verdade póstuma, a verdade

fofocada ou aquela em que é mais cômodo acreditar. Existe

também uma verdade estranha: a que não se quer saber jamais.

A verdade impossível é, para muitas pessoas, a única

forma de sobreviver com sua própria verdade, que pode ser

tosca, omitida e vergonhosa. E há a verdade inventada do

passado, na qual se passa a acreditar para poder sobreviver,

especialmente quando se teve um passado do qual se quer

desligar.

A verdade velada, batizada de meia-verdade,

sinceramente me é incompreensível. Juro que faço de tudo

para crer que ela é metade de uma crônica maior, mas não

consigo. É que minha verdade é, às vezes, limitada e presa à

verdade total.

Existe verdade falada, gritada, afônica, rouca e

sussurrada. Existe verdade silenciosa, paralisada, assustada e

até a verdade que nem precisa ser verbalizada. Existe verdade

dos olhos, da boca, das rugas da testa, das pernas trêmulas, do

vazio no ventre e até do suor das nossas mãos.

Existe verdade emocionada, aliviada, intencional,

arrependida e aturdida. Existe até verdade sem querer: por

descuido – e pode ser chamada de verdade incontinente.

Existe verdade trocada, direcionada à pessoa errada, ou

equivocada, mesmo que por alguns instantes. Existe verdade

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súbita, verdade demorada, verdade preguiçosa, atrasada e até

verdade apressada. Existe uma verdade gananciosa,

oportunista, falso-modesta e, portanto, pouco garantida.

Existe verdade sem memória, e esta é tão perigosa

depois.

E existe verdade em dor, em choro, em reza, em

sacrifício, de joelhos, implorada, em poema e em música.

Existe verdade saborosa, hilariante, tenebrosa e até a

verdade que jamais deveria ter o direito de ser verdade.

A verdade suicida é aquela que, subitamente, separa

algo ou alguém de outra coisa ou de outra pessoa. E passa a

ser verdade polêmica, duvidada, desastrosa ou até mesmo

esquecida, se for melhor assim. E há a verdade incrementada,

aquela baseada numa tola passagem, mas que exige tornar-se

muito interessante para que se possa contar aos outros e os

distintos se interessem em ouvir. E olhem a narrativa da

verdade, acreditando, nos olhos de quem a descreve.

Ah, como existem verdades...

Existe a verdade do futuro, a verdade muito

sonhada, tão imaginada, delirante até, pois que alguns a

chamam de esperança…

Eu acredito em todas estas verdades.

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13 Pequenos Malefícios

Maternos O menino sofreu por toda a infância com desníveis

afetivos e emocionais. Sentia alívio, em seguida a um grande

desespero. Mas o alívio era curto, pois uma nova semente de

desespero era-lhe depositada no pensamentozinho que queria

tudo que conhecer, tudo que ver, menos tudo que sofrer.

Certa vez sua mãe lhe disse: “você não é meu filho,

sinto muito; você foi encontrado na lixeira, assim como sua

irmã”. O menino desesperou de verdade, por uns dois dias,

chorando quase todo o seu soro fisiológico, chorando até ter

cãibras, quando finalmente a mãe se satisfez com tamanha

crueldade, e por (talvez) saciedade satânica ou, mais

otimisticamente, culpa auto-criticada, resolveu devolver ao

menino a verdade: que era sim, sua mãe, e que sim,

certamente, o menino passara uns 8 ou 9 meses se

desenvolvendo dentro de sua barriga. Isso em seguida à

fecundação realizada pelo pai. Sim, o pai também haveria

introduzido seu pinto nela, para que isto acontecesse. Todas

essas perguntas houveram que ser respondidas para que o

menino conseguisse acreditar, desconfiadamente para todo o

sempre, que era sim filho daqueles dois.

A mãe tinha o costume cruel e irônico de sair de

casa dizendo sempre que, se não retornasse, poderiam contar

que haveria morrido de alguma morte qualquer. E que teriam

que se virar sem ela, o que afirmava categoricamente ser

impossível. As crianças ouviam isto todos os dias e, se a mãe

demorasse mais do que uns minutos além do previsível, era

desespero certo: estaria morta, seqüestrada, ou seqüestrada-e-

morta. Até isto a mãe fazia com os filhos: inseria-lhes no

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íntimo, registrava na memoriazinha faminta deles, várias

formas de morrer para si mesma, sempre horríveis, sempre

sofisticadas, deixando as crianças em total desamparo mesmo

na presença dela.

A mãe também sentia muito prazer em dizer aos

filhos que o fato deles não terem sido abortados e ter-lhes sido

permitido, por um descuido do superego, a vida, a inserção

milagrosa da consciência individual, era-lhes um favor, um

benefício ao qual não mereciam, e um malefício ao qual ela

também não merecia, a este fardo insuportável de ser mãe.

A mãe também sofria descargas de cortisona e de

opióides em dizer aos filhos que, a qualquer deslize deles,

mesmo que fosse andar com a coluna torta pela casa, seriam

eles expulsos, para sempre, para um lugar onde seriam

internados, e onde seriam infestados por piolhos, e pela sarna,

e onde provavelmente pegariam tuberculose até que as

cavernas pulmonares lhes matassem de falta de ar.

A mãe também preferia, ao invés de promulgar

segurança, ameaçar os filhos de não terem mais onde morar,

de irem morar nas ruas como morava o homem que cheirava

éter ou a mulher de branco de Ipanema, isto sem motivo, sem

mesmo rol de exigências, apenas pelo prazer de dizer que tudo

lhes era esmola, a casa, a água, o feijão, o sabonete.

O carinho, a mão nos cabelos, o beijo no rosto, ah,

estes não existiam. Existiam sim, quando nas ruas, na frente de

amigas da mãe, de aparentados da mãe, para que os outros

tivessem a idéia de que naquele lar perfeito de tortura

inigualável, existia atenção continuada e positiva.

Mas era pura Dor.

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O menino, fatalmente, teve que inventar uma forma

de sobreviver. Teve que aceitar desde muito cedo que aquela

mulher não poderia ser sua mãe. E, para isto, elegeu outras

mães, alguns modelos certos e outros errados, algumas mães

bonitas e outras bem feias, algumas muito saudáveis e sutis,

outras bastante rudes e doentes. Mas muitas mães. À medida

em que foi crescendo, a dúvida de ser seu filho verdadeiro

desapareceu, isso da desconfiança genética. Tinha seus dentes,

seus pés e seus cabelos. Mas teve que aceitar para si que

aquela mulher, no seu íntimo organocerebral, não poderia

jamais ser sua mãe. Escolhera modelos éticos e polarizados de

muita positividade e vida.

Entretanto, o fantasma do medo de ruína e do

desamparo já lhe haviam sido plantados desde sempre.

Este menino, quando tinha quarenta anos, tinha uma

esposa. Casou-se tarde, aos trinta e oito, pois só a esta idade

conseguiu acreditar que nem todas as mulheres seriam

terríveis, traiçoeiras e cobras. Mas sua esposa, certa vez,

viajou de avião, do Rio para Salvador, para um Congresso. O

meninão solicitou que ela, ao chegar lá, ela lhe telefonasse

para dizer que chegara bem.

O tempo passou um pouco e, alguns minutos depois

da hora prevista, o meninão entrou em desespero. Ela poderia

ter morrido, ter sido seqüestrada ou pior, ter sido seqüestrada e

morta. Ela poderia ter desaparecido. Poderia ser também que

ela não o considerasse mais seu esposo, seu companheiro, e

que tivesse decidido abandoná-lo. Ainda pior, ela poderia estar

lhe condenando ao exílio sem motivo.

O meninão dirigiu até o aeroporto e lá esperou uns

vinte minutos, urinando a cada dois, até que entrasse no avião

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para Salvador. E chegando em Salvador, entrou no primeiro

táxi já com uma nota de cinqüenta na mão para que o

motorista o conduzisse muito rapidamente àquele hotel. No

hotel ele subiu apressadamente pelas escadas.

Quando ela abriu a porta do quarto, ele caiu no chão

de fraqueza. E chorou pelos quarenta anos que investira no

controle de poder sofrer até o limite. Chorou até ter cãibras.

Chorou até seu soro fisiológico acabar.

Ela o abraçou e o acolheu. Ela o proporcionou

conforto e segurança naquelas horas que se seguiram e

dormiram juntos.

Mas ele negou-se a explicar o motivo de ter sofrido

tanto.

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14 Identidade, Ética,

Profissionalismo e Paixão

Hoje, dia 26 de março de 2008, foi um dia que, se a

demência não vier, lembrarei até mesmo no meu momento

derradeiro na vida. Um dia no qual ganhei um abraço. Mas

não um abraço qualquer. Um abraço. Desses que fazem os

pêlos eriçarem. Desses sem definição possível. Desses.

Reunião da Sociedade de Dermatologia. Eu, como

sempre, um dos primeiros a chegar. Sento-me, como sempre,

numa das últimas fileiras, onde estou ao mesmo tempo isolado

e satisfeito em meu voyeurismo de ver pessoas entrando e

saindo, levantando e sentando, virando as cabeças e mexendo

em suas coisas, sejam cabelos ou objetos que carregam.

Lá na frente, na primeira fileira, vejo a pessoa que

mais admiro no meio acadêmico. Minha professora preferida.

Eu a reconheci pelos cabelos, sempre revoltos e despenteados,

alourados. Seu jeito quase ausente.

Hesitei. Não sabia se deveria ou poderia falar com

ela. Mas queria.

Entrei na faculdade de Medicina em 1986 e a

conheci em 1988. Até o fim da graduação e depois até o fim

da especialização, foram 8 anos de convivência, sempre

estreita, até 1996. Eu a admirava tanto que a admirei de cara,

de reflexo. Seu modo simples, seu silêncio, sua presença

gigantesca. Seu conhecimento sempre franco, sempre amplo, e

sua irrestrição em transmiti-lo. Sua boa-vontade. Tantos

predicados.

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Entretanto, havia alguma barreira. Eu percebia que,

diante de minha tentativa de aproximação, ela se afastava.

Talvez por causa dessas definições sociais de homens e de

mulheres, dessa sociedade fálica e heterossexista, nas quais os

homens estão sempre à procura das vaginas das mulheres. Não

sei. Preferi acreditar que ela não gostava de mim como aluno

tanto quanto eu a venerava como professora. E respeitei seu

distanciamento.

Mas nunca desisti de me manter perto dela, nos

mesmos ambulatórios, nos mesmos horários de enfermaria,

sempre ávido por sua orientação.

Ela parecia ser uma pessoa fria, distante. Aos poucos

fui percebendo que ela sofria de um problema semelhante ao

meu: éramos os dois pessoas de certa diferenciação

antropológica. E para quem pensa que esta definição se refere

a algo no contexto da eugenia, engana-se. Nossa nobreza

antropológica significava o seguinte: éramos nós mesmos e

pagávamos um preço caríssimo por isto. Tentávamos fingir

diplomacia, mas não conseguíamos. Por mais que tentássemos

esconder nossas definições, elas transpiravam sem que

pudéssemos controlar – e todo mundo percebia. E como “todo

mundo” era, na verdade, um exército de predadores

insaciáveis no fogaréu de suas vaidades cretinas e

dissimuladas, repletas de carreirismos e devastadorismos,

apreciávamos certa distância.

Até que, um dia, sempre sozinho, isolado pelos

outros da especialização, cheguei no ambulatório na parte da

tarde bem mais cedo do que deveria. E pus-me a arrumar

gavetas. E a limpar o que considerava inaceitavelmente sujo.

Menos de quinze minutos depois de mim ela chegou. Abriu as

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gavetas e as encontrou arrumadas. A pilha de prontuários

estava na ordem de atendimento e já com todas as datas

preenchidas. Então ela sentou-se de modo menos confortável,

com as pernas unidas debaixo da mesa, segurou um lápis e

permaneceu olhando para frente. Ela não dizia uma palavra

sequer. E eu tinha um todo medo de perguntar.

Atendemos um paciente. E outro, e mais outro. Ela

dava pouca atenção aos pacientes e menos ainda para mim.

Escrevia mecanicamente e mal girava a cabeça. Até que criei

coragem:

- Professora, aconteceu alguma coisa?

- Não.

- Eu sei que aconteceu. O que foi que eu fiz que te

deixou assim? Por favor fale.

Ela respirou. E respirou mais uma vez. E fechou os

olhos por trás de seus óculos de armação rosada. E os abriu,

olhando para a frente. Eu sentia medo, mas estava certo de que

tinha feito a pergunta de modo correto. Até que ela, de olhos

semicerrados e olhando para a parede:

- Sabe o que é, Bruno. É muito esquisito e difícil

quando se encontra uma pessoa tão parecida com a gente.

Aquilo foi uma declaração de amor. Sim, se foi. Eu

era amado, finalmente havia reciprocidade. A tarefa daquele

momento em diante era provar que a reciprocidade não era,

jamais seria, perigosa.

A partir daquele dia não houve mais qualquer limite

entre nós dois no que se refere à franqueza. Ela me dizia tudo

o que pensava e eu a ela. Das pessoas que odiávamos – porque

a nós nos odiavam - falávamos o que bem desejássemos, de

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preferência antes das 7 da manhã. Sem medo. E sabíamos que

nossos códigos, nossos subtextos, nossas informações veladas,

eram segredos nossos que não tínhamos como esconder um do

outro, mesmo que nem no assunto específico falássemos.

A especialização acabou e conversamos outra vez

por telefone, dois ou três anos depois, quando conheci duas

crianças de Cabo Frio que tinham xeroderma pigmentoso, uma

doença rara na qual um não se pode expor ao sol. As crianças

eram conhecidas como Filhas da Lua no bairro em que

moravam, a Ilha da Gigoga. Encaminhei as crianças para o

Hospital Universitário e ela, além de gratidão, demonstrou

satisfação e admiração pelo conhecimento que eu lhe

proporcionava. Cuidou das crianças como cuidava de seus

alunos, com total entrega, e resolveu não publicar um artigo

científico por considerar que era um caso meu, exclusivamente

meu, e que eu, caso assim decidisse, teria sozinho o direito de

publicar um artigo sobre elas.

Boa parte… grande parte do que exerço como ética,

tanto pessoal, cívica e profissional, aprendi com ela.

E, acima de tudo, aprendi que a forma mais eficaz de

se aprender alguma coisa é quando se admira alguém.

E hoje a vejo sentada, isolada na fila da frente do

auditório, exalando sua grandeza. Exatos dez anos depois que

a vi pela última vez. Eu grisalho, ela já uma senhorinha. Qual

seria a reação?

Eu na minha indecisão, na minha eterna expectativa

de rejeição – uma doencinha que tenho, hesitei por uns dez

minutos antes de ir até ela.

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E sabia que não deveria demonstrar muito afeto, pois

ela não gostava de manifestações exageradas de afeto. O que

talvez ocorresse fosse um aperto de mão, no máximo um beijo

breve no rosto, já em retirada. Um par de elogios, talvez.

Que medo eu estava de ser recebido friamente!

Levantei-me. Fui até ela e apenas a olhei. Ela

arregalou os olhos, levantou-se e me dirigiu o rosto para um

beijo. Quando a beijei, ela abriu os braços e me deu um abraço

que, para mim, durou a eternidade. Talvez uns 20 segundos.

Mas para mim foram oito mais dez anos de abraço. Dezoito.

Oito da nossa convivência e dez de nossa separação.

E para minha surpresa, ela me perguntou como eu

estava profissionalmente. Perguntou se eu estava feliz na

minha vida pessoal.

Detalhei minha vida como está andando e ela

demonstrou felicidade de mãe. Sem perder o velho costume de

cumplicidade que só os que se identificam como sozinhos

compreendem, ela arriscou:

- Você tem vindo nessa reuniãozinha, sempre?

- Tenho, sim, na maioria delas.

- E…?

Eu sorri:

- E têm sido razoáveis. Há algumas performances,

claro, como sempre houve, mas são menos performáticas,

especialmente depois do…

Ela apenas sorriu com os olhos, esperando.

Continuei:

- …do falecimento.

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- Ah, sim, do falecimento! – ela sorriu e mostrou os

dentes. Era a alusão à morte de um professor que chefiou a

especialidade, que nos odiava e nós reciprocamente a ele, e

que praticamente atravancou minha vida, de modo

fantasmagórico, por alguns anos.

Em seguida chegaram alunas dela e se meteram

entre nós, em pleno ataque de ansiedade porque iriam

apresentar um caso clínico em público.

- Bem, eu me vou, para que vocês conversem.

- Bruno, nunca deixe de me dar notícias. Você é uma

pessoa muito especial para mim.

- E você, para mim.

- Que bom, Bruno.

Abraçou-me uma segunda vez. Beijou-me no rosto.

E se eu tivesse mais alguma coisa a dizer, seria a

tentativa frustrada de denotar esta lágrima. Esta aqui. Não há

outro modo de terminar este escrito.

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15 Refletindo Diante do

Aspirador de Pó

Um dos momentos em que mais me entrego à reflexão

sobre a vida e a morte é na hora em que limpo o filtro do

aspirador de pó. A cada duas semanas. Aspirando em dias

alternados um pequeno apartamento de dois quartos que fica

quase sempre lacrado, recolho cerca de 150 gramas de pó e de

cabelos, lascas de piso e de parede, além de muitos insetos

mortos, fibras não-identificáveis, pequenos ferrinhos, farelos

de pão, resíduos de cera e de verniz dos móveis. E sempre me

assola um espanto que é o mesmo espanto que se me dá

quando olho estrelas, algo raríssimo de se ver hoje em dia, ou

quando vi a cauda do cometa deixando um rastro de seu resto,

ou vejo um velório em plena decomposição, ou mesmo um

recém-nascido em ávida aquisição tecidual e organização

funcional das células. E me ocorre uma espécie de porrada no

pensamento: ao pó retornarás. E de onde vem tanto pó, de

minhas células sempre desprendendo-se de minha superfície

(li que 80% do pó de uma casa é pura pele!), da tinta das

paredes esfoliando de ressecamento, das solas dos sapatos que

trazem das ruas restos de tudo que se possa imaginar, das

fibras de algodão e de linho desentrelaçando-se das roupas que

uso, de meus cabelos caindo, e do sal evaporando de meu

suor. O sal condensa-se novamente, por ressecamento, e cai ao

chão. Assim retorno a cerca de sessenta bilhões de anos,

quando tudo já estava em esfarinhamento. Poeira de estrelas?,

ou as estrelas são realmente gigantescas ou somos

simplesmente a menor das miniaturas. E penso nas criaturas

que habitavam aqui, há tanto tempo, que foram sendo

substituídas por criaturas cada vez menores. Ainda hoje as

criaturas maiores tendem a desaparecer. A miniaturização

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parece ser a única forma de sobrevivência. E o ser humano,

que tinha cerca de um metro e sessenta, hoje chega a dois

metros tão facilmente, tenderá ao desaparecimento devido ao

agigantamento? Pois parece que chegamos ao tamanho crucial

de risco para o nosso fim. Tento não me desconcentrar: é

limpeza de aspirador e nada mais. Porém retorno à visão

tenebrosa de saírem 150 gramas de pó em duas semanas de

aspiração. O caminho parece ser invariavelmente aquele.

Encho minha mão com aquele pó, compacto com ajuda de um

pouco de água e o atiro um tijolinho feito dele no vaso

sanitário. Ali ele se expande, mas dou a descarga antes que

leve outro susto. Será espalhado na unidade de tratamento de

esgoto, e depois no meio do oceano, de onde provavelmente

servirá de alimento, poluente, veneno, evaporativo para

formação de outras coleções de criaturas que, por sua vez,

estão também a caminho do destino em pó.

O pó me assusta. Mais ainda me assusta tudo o que

faço para que consiga atrasar ao máximo o meu próprio

destino, que é esfarinhar, ressecar, até que eu me resuma de

novo a nada.

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16 Acontece

Acontece que era um homem fascinado por ostras e

outros bichos marítimos que vivem em conchas. E comia as

ostras após gotas de limão, escorregando-as pela garganta,

como se estivesse adornando-se com ouro e pedras preciosas.

Como se fosse um faraó, suas tâmaras, sendo abanado por

eunucos. Fazia isto em todas as oportunidades.

Um dia a oportunidade surgiu do outro lado, de

dentro das conchas. Este homem foi à um restaurante em

Arraial do Cabo onde havia mostruários, viveiros, criadouros,

culturas de todos os tipos de ostras e outros seres

enconchados. O mar lhe fascinava, assim como as sereias e os

tritões. Ele ficou completamente abilolado querendo saber o

que havia dentro de cada um daqueles seres de conchas

gemelares, a sentir o gosto de cada uma delas, independente

de suas similaridades. Pediu um prato onde vinham dezenas de

conchas abertas e cozidas no vapor. E pôs-se a comê-las

vertiginosamente. Limão e ostra, limão e ostra. Não resistiu e

atacou também alguns mexilhões, os quais sabia identificar

perfeitamente se eram machos ou fêmeas. "Este aqui é macho;

eu sei; vou comê-lo" - e comia. Seus olhos diminuíam,

tornavam-se minúsculos de prazer enquanto mastigava.

Saiu dali meio enjoado, mas foi para a praia

comemorar com o sol, que estava escaldante e disposto a

vinganças. Sob o astro-rei ficou duas ou três horas tomando

cerveja, mas pouca cerveja, pois queria preservar o estômago,

ainda não sabia bem do quê.

À noite começou a se coçar. Suas palmas das mãos

ficaram maiores do que as próprias mãos. Depois vomitou

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umas cinco ou seis vezes e ficou ofegante. E coçando-se sentiu

uma forte dor no abdome. E aí sim seus olhos ficaram

realmente miúdos. Depois de muita espuma, perdi um amigo.

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17 Vó com Açúcar

Eu tive uma avó que morreu louca. Se bem que minhas

tias-avós e minhas tias diziam que ela havia já nascido louca.

Minha visão de menino, de menino adolescente e até mesmo

de adulto não era esta: eu a percebi, a ouvi e vi enlouquecer.

Ou talvez tenha enlouquecido junto, num processo conhecido

como folie à deux. Mas acho que não. Eu entendia seus

motivos para tal, apenas não concordava com o modo como

ela lidava com suas adversidades, seus poréns e

circunstâncias. Ela tinha uma tal característica de matar um

pouco de si e a boa parte dos mais próximos, em acordo com o

que julgava ser sua única solução para a sobrevivência. Assim

todos morriam, um pouco, a cada dia, até que chegou o

derradeiro momento no qual ela se viu sozinha, e que cada

qual foi exercer sua loucura um pouco distante dela na

tentativa de enlouquecer ao menos de modo diferente. Menos

suicida, menos traumático, menos fatal.

Esta minha avó era uma mulher pequena de metro e

meio e muito, morbidamente gorda. Feia, de nariz largo e

narinas abertas, pele muito branca e cabelos ralos, tingidos de

escuro até seus oitenta anos, quando os deixou definitivamente

brancos. Usava vestidos largos e compridos de tecido

estampado que ela mesmo confeccionava. Tinha uma

habilidade culinária invejável, primordialmente de pratos

salgados, salgadinhos e farofas. Eu era capaz de abandonar

meu prato de comida na minha casa, o que deixava minha mãe

completamente indignada, para ir a casa dela comer bolinhos

de arroz, ou de vagem, ou rissoles de carne moída. Era uma

pessoa desesperada, arregalada, com olhar perdido e, ao

mesmo tempo, sempre à procura de algo. Tinha um cacoete

com os 3 últimos dedos da mão direita, e os esfregava como

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quem roda uma aliança. O cacoete era sempre muito evidente

pois sua mão estava sempre apoiada no braço do sofá.

Esta minha avó tinha uma necessidade de domínio, de

demonstração de poder mas, sobretudo, de obter prazer

maltratando os outros, preferentemente em público. Ou

melhor, com platéia. As cenas, geralmente sem motivos

capitais, continham um misto de constrangimento,

humilhação, olhos arregalados, ameaça, verdadeiras decepções

definitivas para filhos, netos. Minha irmã rompeu cedo com

este tipo de relação sado-masoquista: ela sempre foi bem

menos submissa do que eu. Aos quinze anos ela simplesmente

chegou em casa e disse de público: “nunca mais vou na casa

da vovó” – e nunca mais foi, mesmo. Eu não. Meu defeito era

o de testar até que ponto eu era capaz de suportar sofrimento

sem morrer de fato. Tinha uma particular dificuldade de

inventar esperança, de cegar-me para o pior que as pessoas

possuíssem no caráter e, em contrapartida, exacerbar de

importância o que tivessem de bom, mesmo que mínimo

desprezível fosse. E vovó era assim: uma mulher louca,

sádica, especialista em matar e morrer, mas que tinha

qualidades notáveis. Eu pagava com sofrimento moral o

usufruto de seus bolinhos de arroz, suas estórias que sempre

continham muita História, seu ouvido para meus desabafos tão

mal-fundamentados, ou de inabilidade de enfrentamento da

vida.

Vovó era uma mulher tão aparentemente forte, tão

belicosa, tão dona da verdade que todos nós tínhamos a

impressão de que íamos morrer antes dela. Ela era tão

demonstrativa de força que parecia ser imortal. Mas com a

mesma força que ela transformava a família em um fogo

cruzado devido às suas maledicências e manipulações de

informações de uns sobre os outros, ela conseguia atrair para

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si a confiabilidade máxima e enganada de todos nós. Todos

nós sabíamos que podíamos confiar nela, mesmo tendo a

certeza de que ela, em menos de um dia, usaria nossas

conversas a seu modo, seja para que nós nos

desentendêssemos, seja para puro exibicionismo dela. E

definitivamente, com uma força dissimuladamente acanhada,

ela entrava em cena novamente quando todos estavam se

digladiando, desta vez como uma grande apaziguadora, e

triunfava. Assim, por décadas, ela se alimentou de nossas

fraquezas, de nossas indecisões e incapacidades

relacionamentais. O resultado foi o óbvio: ela sozinha na casa

dela e cada célula de nossa família em sua casa, minimamente

com um filho ou um marido, ou sem mesmo marido ou

esposa, pois todos, rigorosamente todos se separaram e jamais

se entenderam novamente, ficando cada um sozinho em um

pequeno apartamento e pior: sem crença nenhuma mais; sem

iniciativa, sem qualquer indício de desejo de retornar a um

relacionamento saudável ou apenas respeitoso que fosse, entre

nós. Seria comparável a uma granada que explodiu: cada

fragmento foi alojar-se ou perdeu-se num canto qualquer,

ficando localizável apenas o pino que lhe foi retirado.

Vovó finalmente morreu de uma morte doída e

abandonada.

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18 Domingo de Ramos

Todo mundo carregando capim na rua.

Eu tinha uns quatorze ou quinze anos quando deixei

de frequentar as missas de domingo, mas até então adorava

quando chegava o Domingo de Ramos - eu era de fato temente

a Deus. No domingo anual de ramos havia uma das poucas

oportunidades da missa ser um tiquinho diferente. Um

tiquinho só, coisa escassa. O sermão era noutro tom, não

menos estranho que os habituais (a carapuça nunca me servia),

mas era diferente. O padre dizia coisas que o J.Cristo disse na

Cruz e isto naquele momento parecia mais interessante do que

as chatices dos outros domingos que sempre começavam com

“Naquele tempo…”. A missa enchia e muita gente ficava em

pé, por falta de lugar. Como os velhos daquela época não eram

emergentes nem tão irritadiços como os de hoje, e nem o

estatuto do idoso existia, as crianças ficavam todas

sentadinhas e os velhos todos em pé numa boa. Ninguém

brigava ou reclamava. A coisa era assim e permanecia assim,

pacífica. Velhos pra lá e crianças pra cá, sem cobiça pelos

assentos, sem ódio ao conforto alheio. Os pecadores pré-

cadastrados no Inferno iam todos neste dia, como que a

oportunidade de se arrepender fosse única e imperdível.

Afinal, Cristo estava morrendo na Cruz. Uma vizinha nossa,

Dona Celestina (que ironia o nome), que vivia tentando fazer

com que o apartamento de um outro vizinho nosso, Seu

Valpone, fosse leiloado, estava sempre lá, empunhando o

capim, e na hora do mea culpa mea culpa mea culpa, ela batia

com o capim no peito com força! O mato amarrotava que só.

Em seguida ela alisava as folhas para cima, para que

desdobrassem e ficassem como o chumaço de todos os outros,

ereto até o fim da missa.

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Depois de alguns anos deixei de pegar a folhagem na

entrada da missa. Cacete demais ficar com a mão fechada por

quarenta e cinco minutos segurando aquilo apenas pro padre

ver, vez ou outra gerava cãibra, sem contar que às vezes me

dava coceira.

Quando crianças eu e minha irmã ainda por cima

levávamos o mato pra casa. Era ordem de mamãe. Ela dizia

que o mato era bento e que o significado era sagrado. Até

acreditávamos. E quando o capim murchava ainda

dobrávamos e guardávamos dentro de um livro qualquer,

como preciosidade, como se fosse um pedacinho do abadá

para ir pro Céu. Sabe-se lá para quê... Depois de alguns anos

as folhas secas eram encontradas perdidas dentro dos livros,

deformando as páginas, e iam mesmo para o lixo.

A educação lá em casa foi bem singular no que se

refere à religiosidade. Por mais que nenhum de nós

conseguisse acreditar em nada sobrenatural, fosse

celestialidades cristãs ou de outro religare qualquer, tínhamos

que assumir o tempo todo que éramos pecadores, que éramos

sujos, e que se somente pensássemos em sexo ou em outra

coisa da lista interminável de impropérios, estaríamos

condenados certamente a ir morar com o Cão após a morte, a

não ser que nos arrependêssemos muito, mas muito mesmo, e

nos apressássemos para não morrer antes da próxima

confissão ou perder a hora da extrema-unção pr‟uma parada

cardíaca. Era uma tal pressa paranóica de esterilizar a alma.

Quantas vezes, morrendo de medo de não sobreviver até o

próximo domingo, saí à procura de um confessionário

disponível durante a semana, para correndo livrar-me de todo

o mal. Tínhamos que despejar nossos segredos ao Padre

Junqueira, que não passava de um fofoqueiro: ele que ia

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depois contar tudo aos pais de todas as crianças sem mais se

lembrar quem era filho de quem; para se fazer de amigo e de

confidente, de conselheiro e de exemplo, na verdade

arruinando a paz daquelas famílias que, depois de muita

confusão em casa nos dias que se seguiam, estariam então

condenadas à missa da semana seguinte para, quem sabe,

resolver mais questões em falso-definitivo.

Mas ninguém percebia isto… A sacristia no pós-

missa ficava lotada dos pais que queriam saber o que seus

filhos tinham lhe contado na casinha de jacarandá da treliça

indiscreta.

Bem, eu só via capim e mais capim. Até via bonito

ver o povo todo presente, as crianças todas com cara de sono,

olho inchado e algumas com resto de manteiga na bochecha;

aquelas matronas de véu preto, outras de véu cinza, e meninas

de véu branco, declarando a todo mundo se já tinham dado ou

se ainda não tinham dado. A sala das velas praticamente

incendiava, e danava-se o aquecedor global. Eu gostava.

Gostava de ver o que uma simples data era capaz de gerar

como desespero. Gostava de ver que uma suposta memória,

comemorada então em fantasia, era capaz de mobilizar um

monte de gente repleta de culpa e medo de ir para as Trevas

Eternas. Isso sem contar que muito matagal ficava sem capim.

Gostava de ver que as quatro carolas do coral cantavam com a

voz muito mais forte, inspiradas pelo sacrifício do Filho de

Deus, e desafinavam mais do que o habitual por forçar as

vozes além do que o fole e as cordas da garganta lhes eram

capazes. Na missa da semana seguinte estavam sempre roucas,

as quatro.

Hoje fui passear na orla e fiquei muito assustado.

Com as pessoas, com a feiúra das pessoas, com o fedor das

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pessoas e com a pressa das pessoas até mesmo para o lazer. É,

eu sei que isso nada tem a ver com o Domingo de Ramos. Mas

é que dei de cara na rua com três homens crucificados. Uma

encenação. As cruzes iluminadas e lá, os três homens,

fingindo-se de mortos, com as caras caídas pros lados. O

homem da cruz central era saradinho, bronzeadinho. Os das

cruzes laterais, além de pálidos, tinham esse tal tipo físico do

século XXI. Ou seja, sobrepeso, índice de massa alto, pneus

com estrias, coxas grossas, ginecomastia e braços fracos. É

muito nugget. O Cristo não, era bem malhadinho, parecia que

nada tinha sofrido até ali. Ou sua Via Crucis tinha sido na

Body-Tech. Mas estava lá com a cara caída pro lado, meio

mortificado. Cheguei a pensar que estivesse dormindo. Nem

barba tinha. Ao redor da cruz central, essa do Cristo, umas

criaturas mal-ensaiadas com peitoral de plástico dourado e

capa vermelha fingiam-se inaptos de soldadinhos romanos. Os

elmos eram largos, e para levantar as espadas de plástico e

fingir certa fúria de exterminar o Cristo, eles todos seguravam

os elmos para não ficarem sem chapéu. Uma tal falta de

divertimento que me deu até gargalhada. Uma cena realmente

escalrichada. E os três lá em cima, alheios, com as caras

caídas pros lados. Poucas dúzias de pessoas assistiam, e não

tinham no semblante nenhum interesse. Nenhum som. Uma

coisa que nem quero mais lembrar que vi.

Nas Filipinas tem gente que se crucifica de verdade,

eu já vi na TV. É horrível. Cada um carrega sua fé à seu modo,

seja num simples capim fingido, seja pregando-se na cruz.

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19 Boina do Gianecchini

Os erros de português a seguir são reprodução

exata da mensagem recebida.

“Olá, eu encontrei o seu email no site Dominio

Feminino, eu preciso muito que você me ajude a conseguir

comprar a boina preta usada por Reynaldo Gianecchini na

novela Esperança. Essa boina é tão importante pra mim quanto

um disco raro para um colecionador. É muito mais muito

importante pra mim, eu já tentei de tudo para consegui-la, se

você me ajudar eu serei eternamente grato a você, eu fui

informado que era vendida na Emporio Armani mas a coleção

do ano passado já acabou em todo o mundo, e as novas

coleções não vem com a mesma boina, além de ser difícil

encontrar lojas de boina, aqui onde eu moro não tem, e eu

queria muito aquela. Escrevi para a Rede Globo de Televisão

mas não obtive resposta. Já tentei de tudo, falei com muitas

pessoas, só Deus sabe o que eu já fiz para conseguir isso. Essa

boina é tão importante pra mim porque eu sou infeliz porque

não consigo ter um penteado e o meu cabelo é ruim eu já fui

no cabeleireiro e não resolvi, como me sinto um lixo saindo de

casa assim, pensei em usar chapéu e até peruca (descartei logo

porque é muito cara e quem usa fica mais feio ainda) desisti

porque não consegui o chapéu que gostava, até o dia em que

olhei a boina na novela Esperança (novela que não assistia), e

falei Meu Deus é a minha última opção. Já parei de sair de

casa por causa disso, porque me sinto infeliz desse jeito, se

você puder me ajudar a conseguir com a Rede Globo de algum

jeito, por favor entre em contato comigo, não quero tomar o

seu tempo com o meu problema, obrigado por ter respondido a

minha primeira mensagem só quero que alguem me ajude

porque sei que sozinho jamais conseguirei realizar esse sonho

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sim para muitos que não me entendem pode parecer bobagem

mas para mim é mais importante que tudo espero que você

tenha me entendido e que possa me ajudar a comprá-la porque

já não sei mais o que fazer. Um abraço. Que Deus te ilumine.”

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20 Como Sobreviver ao Mundo

Vive-se uma época na qual as pessoas foram

transformadas em desesperadas devoradoras de sonhos e de

propostas de felicidade. O capitalismo, a globalização e a

descartabilidade geraram criaturas pós-modernas que se tratam

ora como lixo, ora como latas de lixo. Tudo é efêmero e

insuficiente. Não há dose ideal. Não há matéria o bastante,

nem sensações bastantes. A regra emocional dos sapiens é a

infelicidade. É desejar sem ter nunca o suficiente. Ai de vós se

não fordes infelizes. Ai de você se sentir-se satisfeito. Nunca

houve tanta gente depressiva pensando em suicídio ou

simplesmente sentindo-se morta sem encontrar sentido para

nada. Motivação então nem pensar, substituída pela

insatisfação de não ter tudo que, teoricamente, todo mundo

tem (e ninguém precisa ter). Pois a TV a cabo não tem mais

canais o suficiente e nem programação interessante o

suficiente; automóveis não trazem acessórios suficientes;

telefones celulares servem, afinal, para muito pouco, apesar de

tudo que fazem; nos cabeleireiros todos os tratamentos juntos

não servem para coisa alguma e infelizmente, apesar da

quantidade de cores de tinta para cabelo nas prateleiras,

justamente aquela que se quer ainda não foi inventada. E os

alisamentos mudam de nome todos os meses, para arrebanhar

mais pessoas de cabelo ondulado a fingirem que tem cabelos

lisos. E deprime-se com o fim do efeito da toxina botulínica, já

que ruga tornou-se doença. As pessoas acreditam nas

promessas da publicidade, de que podem deixar de ser velhas

ou de ser feias. As promessas exageradas de produtos caça-

níqueis nunca se cumprem. Impossível copiar as imagens e as

sensações usadas como atrativos de consumo: somos

devorados por nossas próprias percepções de valor. Variar

desesperadamente, então,vira regra, pois não há opção. Uma

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confusão total de valores. Eu me pergunto se, antes do

processo de globalização, as viagens para se conhecer culturas

e coisas novas não eram de certa forma um lenitivo para a

tradicional insatisfação humana. Hoje viagem é sensação,

sexual ou numa aventura radical, muitas vezes envolvendo

risco de vida. A intangibilidade de determinados sonhos não

era mais saudável? Não sei, mas creio que sim. Não procurarei

esta resposta exata. Prefiro inventar respostas e criar um self-

habitat onde falo meu idioleto, vivo quase minimalescamente,

dando importância ao necessário para ser feliz: e é tão pouco.

Minha mais grave frustração é não conseguir mais reunir meus

amigos. Pois eles só se disponibilizam para tal se desistem

temporariamente da suas buscas loucas, muitas vezes atrás do

próprio umbigo perdido; depois de horas com a TV ligada e

conectados à internet atrás de mais coisas para comprar e mais

pessoas para conhecer. Se nada conseguem, e geralmente não

mesmo, cedem uma curta presença para mim. Mas sem muita

energia para interagir. Sem vontade de me ouvir, apenas de

falar. E quando me olham falando, o olhar é perdido de quem

sequer está diante de mim. Assim, deste modo, não me

interessa. Não quero ser o consolo da procura frustrada de

ninguém. Somos então buracos-negros personificados, em

desespero de incorporação: eu aceito, mas não compreendo.

Mas o buraco jamais deixa de sê-lo. Por vezes a existência em

coletividade, pelos motivos acima, muito me exaure. Chega,

estou exausto. Gostaria tanto de criar cabras, tratar de

podridão de cascos e até levar uma cabeçada de um bode

ciumento.

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21 Cercado de Cuidados

Uma das formas de se aperceber que a velhice chegou é

lembrar-se freqüentemente de fatos muito antigos, ao contrário

dos fatos recentes dos quais se esquece com muita, muita

facilidade.

O envelhecimento parece ter um ar de resgate.

Recuperação de antigas formas de ser, de antigas

convivências, de métodos menos eficazes porém mais

familiares e espontâneos, de se negociar o cotidiano.

O obstáculo, porém, aparece logo após cada tentativa de

viver de modo primordial: limitação física, preguiça de

procurar antigos amigos, sensação de incompetência ou

fracasso em resgatar relações familiares já tão carregadas de

histórias e de suturas, portanto, conclusões impeditivas ou

desfavoráveis à qualquer continuidade eficiente.

Hoje pela manhã tive uma dessas afloradas de memória

primordial, enquanto assistia na TV a um programa de

entrevistas onde uma atriz falava de seu mais novo filho, e da

quantidade de cuidados que reservava para ele nos seus

primeiros meses de vida. Da escolha das babás, do modo de

preparar a mama para o aleitamento, da limpeza dos lençóis do

berço, do cronograma de horários de visita ao neném,

impedindo o estresse e o assédio de familiares e paparazzi.

Achei tudo muito engraçado.

E lembrei-me de quando nasceu meu primo Eleno.

Eleno foi uma criança muito aguardada, por ter sido o último

de nossa geração a nascer. Eu já tinha treze anos e minha irmã

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acabara de completar oito. Minha tia estava casada há dez

anos e não tinha engravidado – porque nunca quisera.

Entretanto, como em toda família repleta de tias e de primas –

e só de tias havia dez, um disse-me-disse cruel era a umidade

relativa de todas as conversas telefônicas. “Luzia não

engravida porque tem adenomiose”; “Luzia até agora não

engravidou porque odeia o marido”; “Se Luzia engravidar, é

de outro, de tão puta que é”. Entre outras malditas ainda

piores. Não que não houvesse verdade no que as pessoas

diziam, pois Luzia era realmente adúltera compulsiva e

certamente odiava o marido. O que me incomodava era a falta

de ética; e a capacidade de devastação de um bando de tias e

primas tão, tão fofoqueiras e corajosamente inconseqüentes.

Não é à toa que hoje cada um isolou-se em seu inferno

particular. Era uma época diferente, na qual as mulheres

viviam para detestar os maridos, tentar tirar-lhes todo o

dinheiro que pudessem ganhar, falar mal deles para as amigas

e fingir tragédia desabafando com suas mães e sogras. Ah,

mas das sogras também falavam e muito, pois era um bom

costume detestar as sogras. O pior é que isto era ensinado de

geração a outra.

Mas voltando a Luzia, minha tia, esta que finalmente

engravidou e deu a luz a Eleno. Ela não queria ser mãe. Mas

para dar à família uma prova de fertilidade e tentar curar-se da

adenomiose – doença que, naquela época, acreditava-se curar

após a gravidez, ela cultivou a criança por nove meses.

Foram nove meses… ridículos. Até hoje não sei se ela

enlouqueceu ou fingiu-se de louca, pois era atriz com curso

superior em artes cênicas. Chorava muito, pedia misto-quente

no meio da madrugada se ouvisse a Rita Lee cantar “misto-

quente, sanduíche de gente”, e lá ia o marido à cozinha ou a

um fast-food providenciar-lhe o desejo, que era imediatamente

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vomitado depois. Fora os escândalos, a gritaria, as brigas

freqüentes e inúteis, dia após dia, que culminaram com a

obrigatoriedade de que um psiquiatra fosse visitado e, sem

prescrever nenhuma medicação, apenas proferiu a frase que

foi o prato do dia para todas as tias e primas, até o fim da

gravidez:

- Luzia precisa de porrada, de limite. É histérica, só. Está se

aproveitando da barriga para maltratar os outros, fazer e falar

o que quer.

Mas quando o minúsculo Eleno veio ao mundo,

todas as fofocas e disse-me-disses dissiparam e se

transformaram no instinto maternal coletivo: todas queriam

ver Eleno, pegar no colo e, de preferência, deixar Eleno dar

uma mamadinha em todas as suas tetas. Minha avó, ela

mesma, punha a mama de fora e deixava o menino sugar por

um tempo, sugar em seco, segundo ela “para que se

acalmasse”.

(nunca vi Eleno nervoso ou berrando: o menino era pura

apatia recém-nata)

Se isto é instinto, de deixar filho dos outros mamar

em si, se é normal, se é necessidade de mulher, não sei. Para

mim era apenas nojento.

Até que, alguns dias depois que Eleno foi para casa

com sua mãe, a adúltera Luzia, minha mãe mandou-nos, eu e a

minha irmã, ao banho caprichado e nos recebeu ainda úmidos

com perfume de alfazema (sempre detestei) que ela

encharcava no ápice das nossas cabeças, além de vestidos com

roupas limpas, recém-passadas e cheirosas. Fomos à casa de

Luzia, que morava com minha avó, visitar o pequeno Eleno.

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Quando entramos, mandaram-nos sussurrar e não

gritar para nada, além de pisar macio num tapete que já era

espesso. A casa estava numa penumbra detestável, com apenas

um abajur aceso na sala, e cuja lâmpada havia sido trocada por

uma de apenas 15 watts. Luzia estava sentada no sofá de cara

inchada e os cabelos mais despenteados que já vi em toda a

minha vida. Era como se tivesse chegado de uma tragédia, que

era o parto ou aqueles nove meses, não sei. Mantinha uma cara

de cansada e de sofredora, fazendo jus artístico à máxima de

que „ser mãe é padecer no paraíso‟. Minha avó nos olhava

como se fôssemos Herodes e nos vigiava em cada gesto,

controlando-nos com seu olhar eugenista e genocida. Ficamos

quietos no sofá enquanto minha avó, minha mãe e minha tia

Luzia foram ao quarto ver se Eleno estava acordado e em

condições de receber visitas (!).

Elas voltaram com caras de mães. Alertaram que

Eleno estava dormindo e que poderíamos vê-lo rapidamente,

mas não poderíamos encostar nele, e que, se fôssemos tocá-lo,

que lavássemos antes as mãos, e jamais pegássemos em suas

mãozinhas ou pezinhos, para que ele não levasse nossas

sujeiras à sua boquinha vermelha como geléia de morango.

Éramos realmente um perigo para Eleno.

Fomos. Minha irmã, obviamente, queria pôr a mão

em Eleno, queria pentear os cabelinhos de Eleno com a escova

de cabo de prata e cerdas macias, o que lhe foi negado. Eu

não. Queria mesmo sair dali, daquele quarto escuro que mais

parecia um velório de recém-nascido. E que se danasse o fato

de Eleno ser meu primo-irmão. Honestamente eu não sentia

absolutamente nada por aquela criança e havia em mim muito

desprezo por aquelas mulheres e suas regras e ditames hostis.

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Fiz um gesto brusco para sair do quarto e fui pego

pelo braço por minha avó, pois a porta só poderia ser aberta

quando todos dali resolvessem sair, para que não entrasse

muita luminosidade no quarto. Meu Deus, quanto tempo seria

necessário para que a criança fizesse esta transição lenta da

escuridão do útero submarino para o sol incandescente da terra

firme? Fiquei então como espectador expectante. Quando as

mulheres satisfizessem seus instintos, eu seria livre.

E não me lembro do que se passou naquele

mausoleuzinho enquanto estávamos ali. Elas cochicharam um

monte de coisas, passaram os dedos levemente na testa da

criança que realmente era muito bonitinha, contaram

espartanamente os dedos dos pés e das mãos. Finalmente a

porta da liberdade se abriu e pude ir para a sala que, pelo

menos, era iluminada com uma lâmpada de 15 watts, e fui

com bastante resignação para ouvir as mulheres falarem

exaustivamente sobre a criança por umas duas horas,

comparando as narinas com as do pai, o cabelo com o da mãe,

e mais uma série de comparações fantasiosas sobre o

temperamento que ainda nem existia.

Dali a algum tempo, minha irmã fingiu ir ao

banheiro e desapareceu por minutos a mais. Logo minha avó

percebeu:

- Cadê a Leninha?

- Foi ao banheiro – respondi.

As mulheres todas ficaram de pé, sinalizando o

perigo dela ter ido ao quarto de Eleno ao invés do sanitário.

Talvez Leninha houvesse sufocado Eleno, talvez estivesse

infectando Eleno com suas bactérias, quanto perigo! E foram

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em exército atrás dela, que foi pega saindo do mausoléu do

garoto com a cara mais santa do mundo.

- O que você fez aí sem a gente? – foi a inquisição de minha

avó.

- Nada. – ela simulava inocência.

- Você acordou meu filho? – Luzia perguntou, ávida por uma

bronca bem dada assim que ouvisse a resposta.

- Ele acordou, sim. Mas eu dei um “penteio” nele e ele dormiu

de novo.

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22 E tanto... para...

E tanto contato com a natureza na infância para

viver numa imensa aglomeração urbana. E tanto silêncio para

aprender os estudos do mundo para viver no futuro dos

insuportáveis ruídos. E tantos conselhos e planos para ter em

troca a total insegurança social. E tanta calma no aprender

para enfrentar a necessidade de urgência em tudo. E tanta

concentração num objetivo para receber em troca um excesso

de informações que estimulam o medo. E tanto aprendizado de

jogo para jogar em completa deslealdade na competição. E

tanto tempo estudando para a carência de oportunidade para

todos. E tanto jogo de cintura para a falta de participação nos

processos decisórios. E tanto esmero para um excesso de

responsabilidades. E tanta compaixão para a falta de

solidariedade. E tanto romantismo para a ausência de um

relacionamento afetivo significativo. E tanto improviso para

um excesso de mudanças. E tanto pensamento para a

impaciência. E tanta postura para aparentar ser forte. E tanta

aquisição para ter que gerar recursos que mantenha. E tanta

tensão para chegar à realização pessoal. E tanta frustração para

não conseguir o que se quis depois de tanto lutar. E tanto

conflito para ignorar a culpa. E tanto litígio para conseguir

dissimular o suficiente. E tanto alheio para a despersonificação

dos desejos. E tanta ioga para não conseguir relaxar nem por

um átimo. E tanta desilusão para a desistência. E tanta

desesperança para a derrota. E tanto deus para esquecer-se do

eu. E tanto credo para o desencanto. E tanta insistência para a

desistência.

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23 Era uma Vez... Três Vezes

Era uma vez um menino que ainda acreditava que

estar vivo era consentir. E este menino consentiu uma primeira

paixão em sua vida, por sua colega de colégio bem feia e

nariguda, cheia de cravos no nariz e com o cabelo ensebado de

gomalina. Ela era horrenda consentida. E ele o apaixonado que

consentira.

Este menino consentiu que iria pela primeira vez ao

cinema convidando o sexo oposto. Chamou a menina, colega

horrenda de colégio, objeto da paixão. Esperava pessimista

que ela consentisse que ele pegasse a mão dela durante o

filme, um pouquinho ao menos. Sem que isto significasse

molestação.

A mãe do menino consentiu que ele fosse ao cinema

sozinho, desde que na primeira sessão. Alertou sobre a

existência dos tarados, especialmente nos cinemas de

Copacabana. E a mãe da menina horrenda consentiu que ela

pegasse um ônibus de Ipanema para Copacabana, apesar do

medo da violência, desde que ela telefonasse assim que lá

pusesse os pés, em um bairro que considerava infecto. Porém

era o habitat do menino. Este a esperava ansiosamente na

porta do cinema, esquina de Bolívar com Avenida Nossa

Senhora de Copacabana, consentindo o tremendo barulho dos

ônibus e a fumaça gordurosa do pipoqueiro em seu rosto, um

mendigo debridando sua ferida numa hora de pouca esmola e

algumas ciganas atrás de clientes. Procurava a paixão na porta

de saída de todos os coletivos. Seus pés escorregando de tanto

suor colinérgico.

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O menino esperou cinco minutos. A menina não

apareceu. Consentiu que ela se atrasase mais dez minutos e

completou-se o quarto-de-hora elegante. E nada dela aparecer.

Então o filme começou: ele escutou o rumor lá de dentro da

sala de projeção do gigantesco cinema Roxy. Entrou no meio

de "Atualidades Atlântida", o que consentiu a si mesmo

prestar atenção. Todas as pessoas que entravam atrasadas eram

a menina e não eram a menina.

Uns vinte minutos depois do filme ter começado,

apareceu na tela iluminada pelo filme norte-americano um dos

personagens enforcado. E o menino finalmente conseguiu

chorar.

Pela segunda vez: era uma vez o mesmo menino que

combinou de ir ao cinema com uma outra menina. Ela também

morava em Ipanema e ele ainda em Copacabana. Como já

tinham os dois dezesseis anos, bastou que se dissesse aos pais

que iam ao cinema. Que lá estariam juntos por duas horas.

Que talvez fossem ao Bob's depois do filme. E como eram os

dois muito responsáveis, os pais apenas ficaram tranqüilos e

“entregaram a Deus”, como os pais gostam de dizer.

Combinaram de se encontrar em frente ao Bruni

Ipanema às dezesseis horas. Ele estava lá às 15:30h,

ansiosíssimo, com as mãos úmidas e geladas, os lábios pálidos

de tempo que não passa. Para que o tempo acompanhasse seu

ritmo, deu uma volta vagarosa na praça Nossa Senhora da Paz

e uma bisbilhotadinha na renovação carismática da Igreja da

esquina.

Às dezesseis horas a menina não havia chegado.

Como tinha se tornado um menino impaciente e não agüentava

mais o cheiro de pipoca e nem o barulho dos ônibus, entrou no

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cinema às 16:05h e que se danasse a menina. Meninas talvez

não servissem para ir ao cinema.

O filme começou. E era chatíssimo. Tratava de

espionagem russa.

Depois de uns quinze minutos as luzes da sala de

projeção foram acesas. E apareceu a menina lá na entrada

junto com o lanterninha berrando o nome do menino, à cata

dele. Como ele quis se vingar da menina, abaixou-se o

máximo que pôde e deixou que ela o procurasse em vão, em

desespero, já que ninguém ali o conhecia mesmo. E sentiu um

enorme prazer com isto.

Vaiaram até que as luzes se apagassem. A menina,

envergonhada, desistida até de si mesma, foi-se embora. E o

filme voltou do ponto em que estava, como se cinema fosse

videocassete e se pudesse atordoar assim uma platéia. Mas

faz-se uma idéia da histeria da menina para que ocorresse toda

esta mobilização. Merecia ser castigada.

O filme era cacete, mas ele o assistiu até o fim

sozinho. Depois foi ao Bob's como queria ir desde antes. Por

estar muito feliz em ter castigado sua primeira mulher

atrasada, resolveu ir para Copacabana à pé. Demorou mais do

que o cinema e o Bob's consumiriam do tempo. Lentamente

pelas calçadas da praia de Ipanema, cortando até Copacabana

pelo Parque do Arpoador e todos aqueles gatos famintos

roendo cabeças de frango.

Chegou em casa e foi recebido aos berros. Na sala os

pais e os quatro avós, um delegado amigo da família, a vizinha

maníaco-depressiva em sua fase maníaca e um médico-legista.

A menina histérica aos prantos. A mãe da menina consolando-

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a como podia, albergando nos braços aquela diátese

psicossomática.

A mãe do menino já havia inspecionado as

geladeiras do Instituto Médico Legal atrás de seu corpo. O

delegado estava com um boletim de ocorrência pronto a ser

preenchido. O médico-legista estava sorrindo. A vizinha

maníaca falando sem parar e ninguém sequer a olhava. O

menino, que mastigava um pé-de-moleque, limitou-se à

pergunta fria: "quem mandou se atrasar?" e foi para seu quarto

trocar de roupa. Um gosto delicioso de amendoim e açúcar.

Não contava com uma festa-surpresa.

Pela terceira vez: era uma vez um menino que

combinou de ir ao cinema com outra menina. Como tinha

vinte anos e já o primeiro emprego, e como os dois moravam

em Copacabana, ele caminhou do posto seis ao posto três,

esperou que ela descesse à portaria perfumada de jasmim e

caminharam juntos ao cinema, desta vez o Art-Palácio. O

filme era apenas um filme. A sessão era a segunda, para que o

fim da projeção coincidisse com o pôr-do-sol que tinham

combinado de ver em Ipanema.

O cheiro de pipoca era convidativo e ele comprou-

lhe pipoca doce. Como ele era menino e tinha emprego, pagou

a entrada dela. E fugiram do barulho dos ônibus logo entrando

para a sala de espera.

O filme era apenas a companhia dela. Ele nervoso,

as mãos úmidas. Ela paralisada, olhando apenas para a frente.

Depois de uns quarenta minutos, ele encostou o joelho nela.

Ela apôs sua mão delicada e fria no joelho dele. E depois de

uns dez minutos, ele segurou sua mão.

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24 Sociedade Fálica e Confusa

O menino acordou bem mais cedo do que de

costume, pelas cinco da manhã, sem ter muito o que pensar

deitado na cama até que o sol clareasse o quarto, e foi direto

ao banheiro urinar. Quando levantou a tampa do vaso

sanitário, a surpresa de encontrar uma camisinha desenrolada,

estirada e boiando sobre um pouco de papel higiênico

dobrado. Que camisinha grande! Ou melhor, que pênis

enorme! E era o pênis de seu pai, que certamente havia feito

amor com sua mãe naquela noite, e prestando mais atenção à

água do vaso, quem sabe encontraria ainda alguns

sobreviventes candidatos à fecundação por ali; como seriam os

seres flagelados tão nervosos que saíam do prazer final do

sexo? Era uma oportunidade única.

Mas nada. Era apenas uma camisinha estirada e

desenrolada no vaso sanitário. Como nunca havia visto uma

camisinha utilizada e depois descartada, sua lógica infantil o

fez concluir que, depois do sexo, aquele anelzinho sempre

palpável escondido na fronha do travesseiro da mamãe,

dilatava-se ao mesmo tempo em que seu pai se excitava,

assumindo o exato tamanho do pênis de seu pai, então era

aquele, sim, a cópia do tamanho do pênis de seu pai! – assim

sua lógica determinou.

Mas que vergonha!, tinha que imediatamente dar

descarga no vaso, antes que sua irmã cinco anos mais nova se

deparasse com a fôrma (tem circunflexo?) do pênis de seu pai

à mostra, denunciando não apenas o tamanho como também o

fato ocorrido naquela madrugada, o sexo, ao qual não tinham

idéia do que fosse, e como fosse, se limpo ou se sujo, se

demorado ou imediatamente breve, e que conseqüência traria.

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Então viria um irmão novo? Não, mas somente se a

camisinha estivesse intacta. Correu ao quarto na ponta dos pés

descalços, a procurar um palito de sorvete dentro da gavetinha

de palitos de sorvete já sorvidos. Correu de volta ao banheiro

para remexer aquela camisinha inteira à procura de um furo ou

pequeno rasgo, e remexeu até que o papel higiênico que lhe

servia de leito para não afundar se desfizesse e tudo se

tornasse uma grande confusão de celulose e látex. De certo

não queria mais um irmão, por ciúme, mas se houvesse ali

algum furo na borracha, seriam nove meses dali em diante

para fantasiar louca e diuturnamente o crescimento de uma

criança dentro da barriga da mamãe.

Largou ali mesmo o palito de sorvete e ia se

levantando para dar descarga no vaso sanitário, quando

aconteceu o inesperado. A descarga ocorreu. Pela mão de seu

pai, que surgiu em pé, imenso, ao seu lado, e seu rosto – o do

menino – pôs-se apenas a olhar para a calçola do pijama dele,

à procura do que estaria dentro da camisinha há pouco tempo.

- Não fale com sua irmã que encontrou isto aqui.

- Ta…

- Nem com sua mãe.

- Tá bom.

Foi embora dali o pai, para requentar o café e

misturar com leite e tomar sentado, calado e quietamente

inerte, junto com um pedaço de pão engordurado de manteiga.

A cabeça do menino confundiu-se de vez. Era

normal aquilo e não era, era proibido de se contar ou era fato

usual de dia-a-dia de adultos? Talvez um motivo para

vergonha, não saberia tão cedo, e menos ainda se vergonha

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dele ou de seu pai, ou de ambos. Coragem de fazer perguntas

então, nem pensar. Então nesta sociedade era permitido usar o

pênis para urinar e se excitar, mas obrigatório esconder que o

pênis encapado era usado nas madrugadas. Concluir assim,

então? Que baita confusão. Afinal, era motivo de orgulho ou

descontentamento? Deveria ser exibido, escondido ou

camuflado?

Na confusão de tantas variáveis sem respostas e

desencorajadoras, escovou seus dentes. Passou água nos olhos.

Era bom retornar à cama de boca fresca e olhos limpos.

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25 Mirtes

Mirtes, para mim, é nome de galinha. Não da puta,

mas daquela denotativa mesmo, que se assusta quando bota

um ovo: Mon Dieu.

Mirtes, de preferência, é uma galinha branca e

gorduchenta, mas não obesa. Galinha que cisca, pasta, pára e

finge que está tendo um brilhante pensamento. Anda dois

passos de cada vez e paralisa por cansaço e por não se lembrar

para onde ia e sequer o que iria fazer; tem no olhar aquela

pergunta eterna: para que tenho asas se não consigo voar? Sem

conseguir responder à pergunta, dá mais dois passos e tranca-

se novamente: “quem sou eu?”.

Mirtes é triste. Odeia ter que sair correndo em todas

as direções para não ser pisoteada no terreiro, o que acontece

com freqüência, ter que correr sem fôlego. Sem imaginar que

sempre desviarão dela, ao invés de pisar.

Mirtes é sedentária, nunca sente vontade de fazer

nada. E perde um semelhante por dia. Além disso, nunca sabe

onde foram parar extamente seus ovos e vai dormir todos os

dias com esta dúvida cruel. Mas no dia seguinte esquece.

E quando Mirtes vê, pela manhã usualmente, o ovo

imenso e duro que saiu de si "a duras penas", fica um tempo a

observá-lo e, mesmo que o cozinhe por vinte e oito dias crente

da finalidade, esquece várias vezes por dia de que dali sai

pinto. Mirtes olha cada ovo novo, sabe que tem que aquecê-lo,

mas não consegue senão um único pensamento infame e

inédito: "de onde veio isso, meu Deus?".

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26 O Diário de Vovô Lilico

A vida, que engraçado. Fase de não gostar e de

gostar. Passa. Fase de querer saber tudo nossa menores

detalhes. Como funciona, como nasce, como morre, por que

morre. Passa. Fase de gostar e de não gostar. Só. Volta. Fase

de viver. De esquecer da morte. De temê-la. De desejá-la.

Viver. Não gostar. Gostar.

Parou diante da casa da avó. A porta.

"Estou sozinho. Estou em casa. Estou sozinho, estou

em casa. Estou sozinho e estou em casa." Vontade de voltar,

mas tinha a chave e a fechadura diante de si. A vontade de

passar a chave por debaixo da porta. Obrigações. Desejos

refratários e em desacordo com sua vontade.

Decisão. Chave na fechadura, dentro. Duas voltas,

clique. Entrou. A avó jazia no sofá. Magra como de costume,

mas com rosto redondo e bochechudo. Lia jornal sem óculos.

"Qual será sua primeira reclamação…"

- Vovó, sou eu...

- Oi, meu filho... passei tão mal a noite...

- Imagino.

- Andei pela casa a noite toda, feito um zumbi, mijei

pacas, pois meu diabetes está descontrolado, tão nervosa, tão

trêmula, mas por outro lado... descobri uma coisa.

- É?...

- É. Herdei esta minha doença do meu avô.

- Como é que é isso?

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- Você sabe que eu tenho uma caixa grande de

fotografias, de recortes, de manuscritos, pois esta noite eu

peguei nesta caixa, pensei assim: "nada que fazer, vou ver aqui

o que tem para me lembrar..." (...) pois imagine que encontrei

o seguinte bilhete. Posso ler?

- Claro.

- Escuta esta: "Rio de Janeiro, 12 de fevereiro de

1914. Vovô Lilico acaba de morrer. Há quatro anos que eu o

vejo sentindo tantas dores no corpo todo. Suas pernas têm que

ser erguidas à cama quando se decide por dormir, pois não tem

força para tanto mais. Agora vovô Lilico está longe de tudo, é

uma pena, mas longe mais ainda da doença que lhe doía tanto.

Suas pernas arquearam com o tempo, como dois alicates.

Descanse em paz, vovô Lilico. Zezé." Está ouvindo?

- Sim.

- (...) e era esta a minha doença, que pulou a geração

e me atingiu. Espero que pulando a da sua mãe não lhe atinja,

senão, a quem irá atingir esta doença? Um coração bom, com

certeza, pois os corações maus não sofrem influência de nada,

isto eu tenho certeza... Ainda bem que os corações bons são

também os mais valentes.

- Vovó, não pense assim.

- Penso. E vou te dizer porque penso. Porque tenho

oitenta anos. E quase tudo que há para se pensar na vida, eu já

pensei.

- Entendo.

- E vou te contar mais. Telefonei para minha irmã

que tem o diário de vovô Lilico. Ela, lendo comigo pelo

telefone, encontrou o seguinte: "Rio de Janeiro, em 16 de

dezembro de 1851. Não agüento de dor nas minhas pernas.

Queria que houvesse cura para isto. Quando ando, perco as

forças. Elas bambeam, como se não fossem minhas."

- Mas vovó, você tem que levar em conta todo o

lirismo da época.

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- Não... dor, com lirismo ou sem lirismo, é a mesma

dor. O tempo passa, mas a dor que se sente é sempre a mesma

dor, veja você, há um século ele sentia exatamente o que eu

sinto. E não adianta a medicina ser o que é, quantos remédios,

neto, quantos… com a única finalidade de combater a dor… e

a dor continua invencível.

O telefone toca. Ele se levanta e vai atender, muito

feliz pela interrupção.

- Alô.

- Rapaz! - era sua tia - Acabo de comer um prato

enorme de macarrão. Comi feito uma louca

faminta, de uma vez só, nem senti o gosto!

Sabe por quê?

- Hã... diga.

- Por causa do vovô Lilico!

Vovô Lilico estava causando estragos, mais de cem

anos depois. Em que dimensão estaria vivendo aquela avó. E

aquela tia, capaz de engolir um prato de macarrão por puro

nervosismo. O tempo, se o beneficiasse com a sobrevida, diria.

Traria respostas ou pratos de macarrão, o que viesse primeiro

e tomasse conta de si.

E não vos falei do cisto sinovial que nasceu no dorso

da mão da tal vovó. Ela passou a semana inteira às voltas com

aquilo. Telefonemas incessantes, horas a fio falando do

pequeno cisto e contando milhares de estórias familiares de

coisas semelhantes, com mil parêntesis, mil parêntesis... até

que um dia seu problema desapareceu:

- Neto, imagine... aquele caroço que eu te mostrei na

minha mão, lembra-se? Pois sumiu, rapaz! Eu fiquei fazendo

uma massagem nele, todas as noites, até que ontem eu rezei,

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rezei muito, mas demais mesmo, pedi à Nossa Senhora assim:

“poxa, Nossa Senhora, a Senhora que ajuda a tantos, que

resolve tantos problemas, por favor... resolva o meu. Eu, que

sou uma velha doente, o dia inteiro sem poder participar do

mundo... resolve, Nossa Senhora.” – e quando acordei, meu

filho, o caroço não estava mais lá.

- Ah, vovó... não me diga que está acreditando que

seu caroço sumiu por causa da Nossa Senhora?!

- Estou dizendo sim, rapaz. Porque este caroço aqui,

se não foi Ela que tirou, foi a minha fé. A fé remove

montanhas, o que dirá caroços! Ela está ali que não me deixa

mentir… - e apontou para a imagem de Notre Dame.

Como é complicado conviver com certos

temperamentos, ou (des)temperamentos, como é o caso desta

vovó. Ela encontra normal o interesse por Getúlio Vargas.

Claro que o neto não se interessa por Getúlio ma altura do

campeonato. E nem pelo modo como o padeiro entregava o

pão em mil novecentos e vinte e poucos. Mas isto para ela é de

suma importância, a comparação com o passado.

Para o neto, o passado servia apenas como citação.

Passou, o substantivo já diz: foi embora. Quando em

circunstâncias raras, significa alguma coisa. O passado, em

raras exceções, significa muito pouco para algum passo futuro.

- Não quero ficar velho falando no passado o tempo

todo, ah, como tenho medo disto…

- Medo de quê?

- Do futuro, vó.

- E não adianta nada Ter medo do futuro. Tem

que ter medo do agora.

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- E como assim? - ele não tinha curiosidade

alguma.

- Você mesmo tem a resposta.

- Como se eu, daqui a 50 anos, ficasse falando

para a juventude como era o modo de se assistir televisão hoje.

Sim, até porque eu imagino que, daqui a alguns anos, a

televisão venha a ser uma espécie de miniprojetor que a gente

colocará sobre alguma coisa e aquela coisinha projetará a

imagem super nítida em alguma parede. E Só. Mas isto não é

nada. Pior são os detalhes.

Ela o olhou demoradamente. Achou melhor não

falar nada. Pelo silêncio que cultivava, ele se incomodou:

- Vó, o que foi?

- Nada.

- Está sentindo alguma coisa?

- Dor.

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27 O Homenzinho e o Temporal

Um homenzinho de braços cruzados, arrepiado, olhando

a chuva torrencial sobre a piscina, e sob um enorme guarda-

sol. Queria nadar, estava trajado para (ou quase despido para),

mas não tinha coragem de entrar na piscina aquosa ávida por

descargas elétricas, transbordando de trovões. Queria nadar,

mas tinha medo. A cada trovoada, tremia e se encolhia, um

sorrisinho de medo na sua cara redonda rodeada por seus

cabelos arrepiados e grisalhos. Era um homenzinho, um

homenzinho frágil como todos os homenzinhos que passam de

um metro e oitenta e também, por sorte, dos quarenta anos. De

nada lhe servia a barba, os pêlos pelo corpo, a aliança no

anular da mão esquerda, pois era um homenzinho com medo

da chuva e de levar um choque do céu. Só.

Em volta dele outros homenzinhos, encolhidos sob o

guarda-sol, esperando a chuva passar para mergulhar na

piscina. Paradoxo de água da chuva versus água clorada, as

duas que molham, mas uma delas merece que se fuja, sabe-se

lá o motivo, talvez respingos, talvez sabe-se Deus. É

interessante, por exemplo, ver como as pessoas saem da praia

quando começa a chover, se o propósito de ir à praia é nada

menos que jogar-se no mar... Da chuva a fuga, da piscina

vontade de se molhar. Coisas que só as entendem os

homenzinhos. Ou deixam de entender para não entender nada

de uma vez. Vá entender: prefiro não.

Do lado de fora do guarda-sol havia um outro

homenzinho tomando chuva, arrepiando-se com cada gota na

pele, pois isto não acontecia há mais de vinte anos, isto de

tomar chuva. Ele olhava para o céu, para a água da piscina de

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uma superfície totalmente singular de banheira de chuva

destilada, assim como ele, pingos do alto escorrendo pelo

nariz, interessante, não fugir da chuva, nem dos trovões.

- Eu não vou nadar pois não estou preparado para morrer

ainda. – disse o homenzinho que se escondia sob o guarda-sol.

- Eu estou preparado para morrer. – homenzinho do lado de

fora.

- Quem aqui está preparado para morrer? – bradou a todos o

homenzinho sob, como numa enquete exibicionista de

sociedade machista, e todos paralisaram diante da pergunta.

E ninguém mesmo respondia. Estar preparado para

morrer, diante de uma piscina que recebia água da chuva, sob

um céu trovejante e relampejado, e ainda mais diante de um

homem molhado de chuva preparado para morrer, era

simplesmente um dilema sem resposta. E fez-se silêncio longo

e esquisito.

O mais velho de todos, na casa dos cinqüenta anos,

encheu-se de capacidade de falar:

- Estou doido pra nadar. – E depois de um longo silêncio em

que todos se molharam de tanto olhá-lo, prosseguiu mesmo

apercebendo-se da ausência de interesse dos outros: - Mas

para morrer ainda não. Se este aí quer morrer, que morra, que

se agarre num pára-raios de um telhado e espere morrer. É

rápido assim: “tzzz” e morre. Mas eu acho melhor ir embora.

E foi.

O homenzinho molhado, aquele que estava se

molhando desde o início desta história, sorria de escárnio

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secreto. Seus pés já estavam roxos. E até disto ele gostava.

Claro que queria, como os outros, nadar. Mas a chuva o fazia

bem. Sem a água em poça, a água que empoça serve.

A probabilidade de cair um raio na piscina era cada

vez menor, pois a distância de tempo entre os lampejos e o

barulho era cada vez maior. Mas a covardia ainda era o

comportamento de todos.

Os homenzinhos foram, aos poucos, um a um,

embora, e sobrou o homenzinho já molhado, nadando ao ar-

livre, vendo a água da piscina voltar aos poucos à cor e

“textura” normais. Ao longe os edifícios voltavam a aparecer

nítidos. Mas não havia mais ninguém ali para nadar, nem

mesmo o professor para orientar. E ele abdicou em seguida,

por não haver mais sentido. É que, como muitos homenzinhos,

ele necessitava receber ordens para exercitar-se. Ao menos se

molhou bastante.

Como era um homenzinho desistido, pôs sua camisa

de malha, sua bermuda de nylon azul, calçou chinelos à prova

d‟água (sim, eu sei que quase todos são) e foi para sua casa.

Estava aprontado para morrer. Mas não foi daquela

vez. Ainda bem que não.

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28 O menino e o beija-flor

O menino tinha quatorze anos. E nenhum fio de barba. E

nenhum fio no pube. E nenhum desejo outro que aprender

apenas novidades. O menino tinha tantos quatorze anos.

Tantos que eram apenas. Acordou bem cedo, como sempre,

pois tinha insônia já há quatorze anos. Desceu as escadas e foi

para a varanda de Santa Teresa ver a claridade da aurora que

era tímida como ele. Sentou-se numa cadeira de vime e

observou a grama ainda verde demais. E as onze-horas todas

esperando sua vez. E eram quatorze anos. Só. Tudo isto.

Esperou o beija-flor vermelho que todas as manhãs

vinha com seu barulhinho de abelha sugar a água-com-açúcar

pendurada em uma das samambaias. As formigas eram mais

vivas, nunca deixavam a trilha atrás do açúcar que pingava, o

trabalho era incessante. Veio o pássaro preto, veio o azulado.

Brigaram pelo bebedouro, saíram ganindo os dois em vôo

desesperado de duelo de asas de beija-flor. O vermelho miúdo

ainda estava por vir.

Um pingo d‟água lhe caiu bem no meio da cabeça e não

soube de onde veio. Ainda bem que não era cocô de

passarinho. Cheirou o pingo e era água mesmo. Uma água

qualquer da natureza. Só. Ateve-se novamente aos dois beija-

flores que voltaram para disputar a água açucarada e prendeu-

se por um longo período de tempo nada perdido observando

como as sombras das árvores diminuíam tão lentamente. E

nada do beija-flor vermelho aparecer.

O menino esperava aquele beija-flor. Só. Quatorze anos.

Ausência.

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- Varre aqui em baixo que eu varro lá em cima. - apareceu a

avó com duas vassouras na mão. - E quando me ouvir

descendo com o pó pelos degraus, traz a pá para recolher o pó

no pé da escada.

- O menino levantou-se indignado, mas fingindo boa-vontade.

Pegou a vassoura e pôs-se a varrer a casa bem devagar para

não fazer ruído: ouvido tenso procurando o tempo todo o

barulhinho de abelha do beija-flor vermelho que ainda não

vira, e todas as vezes que passava perto da varanda parava um

pouco para procurá-lo. Nada.

- Já acabou de varrer aí em baixo?

- Não.

- Estou descendo com o pó. Vou jogar aí em baixo mesmo e

você depois recolhe. E eu subo de novo para limpar o

banheiro.

- Cadê o vovô?

- Seu avô foi rezar. Esqueceu de que hoje é Domingo?

- É. Saiu cedo.

- Pois já são nove horas, menino!

E iam conversando de segundo para primeiro andar.

- Você poderia ter ido com ele.

- Ele não me chamou - era claro que não gostaria de ter ido.

- Não chamou porque isto tem que partir de você, acompanhar

seu avô. Não é ele que tem que ficar atrás de você sempre. E

ele gosta muito de você, você sabe. Todos nós aqui gostamos

muito de você. E ele é que é o mais velho. Os mais novos é

que se chegam aos mais velhos, ora essa.

Não entendeu muito bem o porque desta

unilateralidade. Mas era coisa de gente antiga. Melhor

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esquecer. Por que o menino estava com os avós não importa

muito. Mas ele tinha pai e mãe, sim. Problemáticos, mas tinha.

E tinha irmãos também, assim como amigos. Mas naqueles

dias estava com os avós. Um tempo. E tinha quatorze anos.

- Vó.

- Fala alto que estou com a torneira aberta.

- A que horas o vovô saiu?

- Às sete.

- Eu já estava acordado.

- Foi direto pro carro, você não deve ter visto. Saiu cedo.

Queria ir à Igreja antes que a Igreja enchesse e encontrasse

com a Circe. Você sabe que a Circe é uma chata, pega seu avô

e não larga falando aqueles assuntos chatos dela.

- É. E por que você não foi com ele?

- Você sabe que sou espírita.

- E daí?

- E daí que não entro em Igrejas.

Ele não entendeu nada, então deu a conversa por

encerrada já que ele, mesmo tendo educação religiosa,

também preferia nunca entrar em igrejas. Continuou a varrer a

casa para ajudar sua avó e procurar a visita do beija-flor

vermelho. Recolheu o pó que veio da escada, degrau por

degrau, foi aos fundos e jogou no canteiro de plantas, onde

regou com água depois.

- Já te disse que pó não é no canteiro que se joga! - gritou a

avó do segundo andar.

- Mas vó. Pó e terra são parecidos.

- São nada. Você assim mata minhas plantas.

- A senhora joga pó de café...

- Pó de café é nutritivo. Pó da casa não.

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Apesar de ter quatorze anos, pó e pó poderiam bem

ser a mesma coisa e ponto-final. Pó de café usado e pó de casa

de desagregação da matéria eram a mesma coisa. E só. Pó ao

pó retornava, como se lia nos cemitérios. E um canteiro com

plantas sempre lhe lembrou cemitérios. Limpou a vassoura e

levou-a ao quarto dos fundos. Arrumou num canto e voltou

para a varanda. Nada do beija-flor. Deu o tempo por perdido e

acreditou que o pássaro já tivesse vindo durante sua ida aos

fundos. E só. No dia seguinte o esperaria de novo. A avó

passou por ele com uma vassoura e pano úmido. A casa ficou

tão limpa que não dava mais vontade de sair dela.

- Vai descascando essas batatas aqui que eu vou descascando

as cenouras. - a avó com duas tigelas na mão repletas de

batatas e cenouras. - Vou fazer um ensopado hoje de carne,

batata e cenoura. Você gosta?

- Gosto.

Não, ele não gostava. Mas nunca diria que detestava

ou que era indiferente. Assim como também não gostava de

descascar legume nenhum. Mas descascou todas as batatas,

enquanto conversava com a avó.

- Hoje faz dez anos que sua bisavó morreu.

- É?

- Por isto que digo: você deveria ter ido à Igreja com seu avô.

Eu não. Eu não gostava dela. Mas ela adorava você.

- É verdade. Mas está morta, n‟é, vó?

- Que desrespeito…

- Desrespeito com o quê?

- Com seu avô e com sua bisavó…

- Não vejo desrespeito. Ela não está morta?

- Está. E por isto mesmo.

- Por isto mesmo o quê?

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- Temos que respeitar os mortos.

- Ah… Eu estou desrespeitando?

- Deveria ter ido com seu avô à igreja.

Ele não entendeu, da mesma forma que não entendia

o porquê dela lhe pedir para descascar legumes. Aliás, não

entendia nem por que deveriam ser descascados. Mas deixava

a coisa continuar. A tal coisa da vida que poderia ser apenas

fruto de sua ignorância jovem. Os quatorze anos. E ia

aprendendo.

- Sua bisavó lhe deu uma vez um terço de pérolas, você ainda

o tem?

- Tenho - e não tinha mais nada. Havia dado o terço a uma

amiga de colégio que ficara encantada com as pequeninas

pérolas barrocas. E se lembrava bem da frase que dissera

quando a presenteara com o terço: “Eu não rezo mesmo. Pode

ficar”.

- Guarde bem aquele terço.

- Guardo sim.

- Se um dia você precisar vender, ele vale dinheiro. Aquelas

pérolas são todas verdadeiras. Maciças, não são meras pérolas

cultivadas. E o Cristo é de prata.

- Pois é, vó. Isto tudo para rezar, não é esquisito?

- É uma obra de arte, menino.

- Isto é. - e para ele não era.

O que a avó não sabia é que era apenas uma obra de

arte. Ele não sabia mais onde andava nem a menina que

recebera o terço de presente, quanto mais o terço com suas

pérolas e o Cristo de prata.

- E o relógio que seu avô lhe deu, aquele de ouro, ainda tem?

- Tenho. - esse tinha mesmo.

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- A caneta de ouro, tem?

- Tenho. - e não tinha mais. Perdera no caminho de volta para

casa.

- Aquela caneta foi usada para assinar nosso casamento.

- Que lindo, vó. - e não achava nada demais. Nem mesmo

interessante.

A avó ficou um tempo olhando para a frente, onde se

via as árvores do outro lado da rua. Ele sabia no que ela estava

pensando.

- Vou deixar isto tudo adiantado e depois não temos mais

trabalho. Quando seu avô chegar, é só esquentar e pronto:

temos o almoço. E vê se não come biscoito antes da hora.

- Não como não. - Será que ela não sabia que todas as crianças

sem exceção comiam biscoito antes do almoço e que isto não

trazia prejuízo nenhum?

Assim que ela subiu a escada, ele foi à cozinha e

pegou um punhado de biscoitos, foi para o jardim comê-los.

Se a avó não o tivesse lembrado, ele não estaria comendo os

biscoitos. Pois naquela manhã, até a avó o lembrar de que

biscoitos existiam, sua única preocupação era encontrar o

beija-flor vermelho. De estômago cheio de biscoitos, sentou-se

de novo na cadeira de vime e abraçou uma almofada. Ali ficou

e sonhou. Acordou com barulho de chaves no seu ouvido: o

avô com uma sacola de supermercado e sacudido as chaves

como sinos para acordá-lo.

- Oi, vô.

- Você hoje acordou tarde, hein? Nem me viu sair.

- Vovó disse que você saiu pelos fundos.

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- Eu não. - e saiu atrás da avó (do menino, claro). Subiu as

escadas devagar, sempre balançando bastante as chaves para

anunciar sua presença. Era um tanto exibicionista.

E foi uma manhã de sono, sonho e cochilo. Uma

manhã morna de deixar o tempo passar. O tempo passou,

rapidamente.

- Vamos almoçar?

- Já? - ele se surpreendeu.

- O almoço já está atrasado até. Já é meio-dia e meia.

- Nossa. Nem percebi. - e espreguiçou-se lenta e longamente.

- Vamos. Seu avô já está sentado na mesa.

- Agora é que estou sentindo o cheiro do ensopado. - uma

forma de dizer que cheiro de ensopado jamais lhe tiraria de um

cochilo.

Foi vagarosamente em direção à cozinha, onde

aconteciam os almoços informais, e vagarosamente

propositadamente, para pensar mais, para ralentar o início do

almoço atrasado, fome que não tinha. Quando chegou lá, sua

tia-avó estava sentada à mesa e mais um mistério: o

aparecimento de sua tia-avó sem que ele soubesse. Como ela

teria aparecido lá? Não importava. Talvez enquanto estivesse

cochilando e não o tenham acordado. Comida era combustível.

Aquela gente sua família e companhia para o abastecimento

do corpo preguiçoso.

- Vovô nunca rezou antes de comer, não?, que engraçado. Vai

à Igreja, mas não reza antes de comer.

- Eu rezo silenciosamente. - disse o velho sem sequer levantar

os olhos. - Já rezei e ninguém percebeu.

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- Desculpe, é que eu estou acostumado com filmes

americanos, novelas, as pessoas fazem aquela ceninha antes de

comer. Até na casa da Catarina o pai dela…

- Aqui cada um tem que rezar por si. - abreviou o avô.

E era indício de que o almoço seria de silêncio. Ou

quase.

Por um tempo ouvia-se apenas o barulho dos

talheres cuidadosos pelos pratos, catando o que comer,

garfando pedacinhos de cenoura e batata que haviam sido

descascados por ele naquela manhã. Ele olhava para a cara

esquisita das pessoas comendo. Um misto de obrigação e de

vontade. Esquisito demais. Uma certa indiferença de todos.

Seu avô parecia ter pressa de acabar a comida do prato. Sua

avó parecia não comer. Sua tia-avó sentia o maior dos

prazeres.

- A comida é uma delícia. Temos o que comer, graças a deus.

Sabe que acabei de chegar de Hong Kong? - perguntou a tia.

- Soube, sim. A senhora conhece o mundo todo, é?

- Conheço.

- Não falta nenhum lugar para conhecer, não?

- Falta, claro, a África.

- Ah, logo imaginei. A África que ninguém quer, né? Nem

aqui...

- Mas fui à África do Sul.

- Ah, essa é boa, tia, a África do Sul…

- Este mês ele faz quinze anos. - interrompeu a avó.

- Sim, quinze anos. - o avô.

- Quinze anos. - o menino.

- Quando eu tinha oito anos - o avô - eu já andava com todas

as pequenas do bairro onde a gente morava.

- Que garanhão. - debochou o menino.

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- Seu avô está falando a verdade. - disse a avó.

- Que diferença faz… - e voltou a catar pedacinhos e misturar

com arroz.

- Não deboche assim - continuou a avó - Você sabe muito bem

que já está na hora de você começar a procurar as pequenas

também, por aí. Não tem um monte delas dando sopa?

- Tem.

- Pois procure elas. Pegue nas partes delas.

- Prá quê, vó? Prá ser processado?

- Que ser processado, menino, deixe de dizer besteira. As

meninas estão doidas para que os meninos façam isto.

- A senhora nesta idade estava doida para que os meninos

fizessem isto com a senhora?

- Eu já estava comprometida em casar com seu avô.

- Sei. Então ele já pegava nas suas partes, é?

- Deixa disso, menino! - a tia se meteu na conversa. Estamos

falando de tempos diferentes. No tempo da sua avó, e no meu

tempo também, era tudo muito diferente. Hoje em dia é que é

tudo fácil.

- Sei. E eu tenho que ser como vocês acham que é hoje em

dia?

Fez-se um longo e desconfortável silêncio. Ninguém

tinha o que falar. Nem o menino. Muito menos o menino.

- Você sabe que, se não usar isto aí, atrofia, não sabe?

- Como, vó? - Ele fingiu que não entendeu. Mas sua avó

acabara de ameaçá-lo de atrofia do pênis por falta de uso.

- Atrofia. Até desaparecer.

Depois de ser ameaçado de desaparecimento de seu

pênis, o menino calou-se. Calou-se de vez. Terminou o

ensopado. Foi a pia e lavou seu prato e seus talheres com

muito vagar e tristeza. Os velhos vieram com seus pratos, pois

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trataram logo de terminar de comer, e puseram dentro da pia

para que ele também lavasse todo o resto da louça. E sua avó

deu-lhe um beijo no rosto:

- Um bom neto é este, que ajuda os avós em tudo.

Ele sentiu dor deste beijo. Um beijo de guerra. Os

três velhos saíram da cozinha e ele ficou ali espiando pela

janela da cozinha, que dava para a área de serviço onde as

roupas balançavam. A água da pia corria quente, água de casa,

de caixa d' água exposta ao sol durante a manhã. E era bom.

Estar sozinho na cozinha, mesmo que trabalhando, era

igualmente bom. Secou a pia com o pano e, pela última vez,

retirou o que restava de gordura das mãos. Sem nojo.

Na sala que dava para a varanda onde se esperava o

beija-flor todas as manhãs, os três velhos estavam sentados

assistindo a qualquer coisa na televisão. Sentiu um certo nojo

que não sabia explicar de onde vinha, nem mesmo se era de si,

do mundo ou dos velhos. A tia-avó acrescentou ruído ao da

televisão:

- Estávamos mesmo falando de você, menino bonzinho. Lava

a louça de seus avós sem reclamar. Bom menino você.

- É, eu sou muito bonzinho mesmo.

- Eu acho, vou ser sincera - ela continuou - em dizer que seus

avós têm razão quando dizem que já está na hora de você

procurar mulher.

O menino olhou para dentro de si um pouco. Sentou-

se no único sofá vazio daquela enorme sala, mas bem próximo

dos velhos. Respirou profundamente duas ou três vezes

enquanto olhava para a varanda e para as plantas lá fora

suavemente ao sabor do vento.

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- Pode ser sua neta, tia?

E apareceu o beija-flor, numa hora incomum, no

início da tarde. Entrou na casa, deu com o bico nas naturezas-

mortas em forma de óleo sobre tela, bateu diversas vezes pelos

quadros com seu som de abelha e foi-se com a mesma rapidez

pela sala procurando como escapar. Insistiu inutilmente nos

mesmos quadros, pois estava confuso e fora de hora. O avô

saltou da cadeira, animado, e foi correndo em direção às

portas da varanda. A avó gritou, assanhada, que se fechasse

correndo as portas para que o beija-flor não escapasse. O avô

apressou-se a fechar as portas de correr. A tia-avó olhou tudo

com indiferença. O menino contentou-se apenas em ouvir o

barulho das asas infantis do pássaro. O pássaro, de sua parte,

percebeu finalmente que os quadros não eram flores de

verdade e voou em direção à liberdade. O avô terminou de

fechar as portas da varanda exatamente no beija-flor.

E o menino apenas escutou o ruído da coincidência do

tempo.

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29 A Aula de Neurologia

Eu e minhas enrascadas. A última que caí, hoje, foi no

consultório de um médico de oitenta e cinco anos. Tudo

começou pelo fato de estar completando quarenta anos (eu). É

que aos quarenta a licença para dirigir veículos vence e tem-se

que se apresentar ao órgão, como se fosse um alistamento

militar. E lá se declara que se terá 40 anos em breve, e

submete-se à entrega de uma série de documentos e de cópias

de documentos, e se declara um endereço, e se agenda exames

de vista, neurológico e uma tal prova escrita, delicadamente

denominada por eles “prova de atualização”.

Cancelei alguns dias de trabalho por conta desta

burocracia toda. Tudo bem, não tenho muito do que reclamar,

pois estão me tratando com uma cortesia surpreendente para

quem está acostumado, há quarenta anos – assumo, com a

barbárie do amoralismo e comportamento aético tão

característicos da nossa… nação, por assim dizer – já que é

assim que se deve dizer, concordando ou não.

O primeiro dia foi da entrega de documentos.

Fotografaram meu rosto, e que medo que estou de como ficou,

escanearam minhas dez digitais das mãos, para que todas?

Não sei. Ou melhor, sei. Agendaram um exame de vista. Lá

fui eu, noutro dia, para o médico que acende as luzes dos

sinais de trânsito e pergunta a cor. E que pergunta qual das

luzezinhas verdes está mais perto, a da direita ou a da

esquerda. Ok, passei, desde que eu prometa usar os óculos

para dirigir. Afinal, aos 40 anos sou ainda míope,

surpreendentemente enxergo de perto que é uma beleza.

Quanto mais perto, melhor para mim. O que é um

orgulhozinho secreto.

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O segundo dia foi o de levar o automóvel para a

tradicional vistoria anual de acende aqui, apaga ali, engata

aqui e farol alto farol baixo, raspa número de chassi e dá o ok.

Sempre me dão o ok sem inspeção de gases, acho super

esquisito. Pois é do meu catalisador de que mais me orgulho.

O terceiro dia foi hoje, e deste nunca mais me

esquecerei. Lá fui eu para um exame neurológico num

consultório de um desses edifícios de Copacabana que tem 40

salas por andar. O consultório era uma pocilga, fora a

temperatura de 40 graus lá dentro. Na recepção de paredes

imundas e porta meio-pintada (desistiram por algum motivo e

a porta ficou meio tinta nova, meio tinta velha), havia uma

geladeira – frigobar - com uma impressora em cima. Surreal.

Três cadeirinhas para esperar, dessas que os parafusos puxam

o fio da calça – e furam a bunda.

O médico, de 85 anos, era uma espoleta. Não parava

quieto e não parava de falar. Ah, como as pessoas que não

param de falar me deixam mal. Essas pessoas me exaurem.

Não sobra nada de mim. O velho me identificou como médico

também e pôs-se a comparar seu tempo com o meu. Tudo que

eu mais detesto. Juro, por tudo que há de mais sagrado, que

quando ficar velho, bem velho, calarei a minha boca.

Exatamente como fez minha bisavó, que foi falando cada vez

menos até que expiou.

Durante uma hora o velho me martelou todos os

tendões, fez com que eu me equilibrasse num pé e depois no

outro, andasse de lá prá cá e de cá pra lá, fizesse o tal do

quatro, logo eu que caio à toa, e ainda mirasse a ponta do dedo

em tudo que é ponta de nariz, inclusive o dele. E falava,

falava, sem vírgula, ponto ou travessão, ou aspas que fosse...

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Algum remédio aquele velho toma, tenho certeza, algum

excitante para senis. E tinha acabado de tomá-lo misturado

com café. Ou algo pior, nunca se sabe.

A maior preocupação do velho, por fim, era me dar

dicas para passar na prova escrita. Acontece que as dicas se

resumiam a uma apenas: saber que a palavra „água‟ tinha 4

letras. E que, por espirrar água em alguém, passando de carro

com os pneus sobre uma poça, eu perderia 4 pontos na carteira

de motorista. Só. Isso porque a palavra „água‟ tinha quatro

letras. Oh my beloved God.

Saí de lá sem condições de dirigir automóvel.

Precisamente saí de lá sem condições mesmo até de atravessar

a rua sozinho. Fui pro trabalho de ônibus mesmo.

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30 Operação Trocadilho de

Beira de Estrada

A importância da articulação das palavras sempre tem

exemplos extraordinários nos telejornais.

Uma entrevista com um inspetor de qualquer coisa,

dessas operações anti-acidentes e anti-irregularidades de

feriadão, todas com nome de batismo (operação Transformers,

operação Speed Racer), que nada mais servem para aporrinhar

os condutores incorrigíveis, mal-educados e mal-caráteres no

tráfego de algazarra baixa e cretina das ruas cariocas. Falo

“aporrinhar”, porque o importante não é nenhuma mega-

operação de fiscalização, mas uma seleção de quem pode

guiar automóvel. Eu, sinceramente, acho que as pessoas

deveriam fazer por onde merecer seus direitos... Ça va. Un

jour nous verons.

O tal inspetor tinha vícios de linguagem, característica

de quem não tem vocabulário nem conhecimento de quase

nada e que, quando se mete a falar difícil expressão que defina

melhor não há: se f...erra.

O vício de linguagem do analfabeto funcional era

perguntar ao entrevistador se ele havia entendido o que ele

havia falado:

- Nanã, terê, caquê, tará, blalá, entendido?

- Iê, oá, catá, parê nená, entendido?

Um saco.

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Já o vício de linguagem heavy duty era sensacional.

Tudo o que ele falava era principal. E o sufixo ~mente, para os

limítrofes lingüísticos, é a maior prova de cultura e

intelectualidade – e de superioridade. “Principalmente”,

portanto, é uma palavra de justa atividade cerebral. E por tudo

ser principal, era um “sipalmente a velocidade, sipalmente a

chuva, sipalmente quando, sipalmente os carro”, e por aí ia,

“entendido”? O mais formidável foi a frase: “o poblema é a

falta de educação das pessoa, sipalmente”

Senhor inspetor: pau não mente. Se pau mente, eu não

sei que mentira ele lhe pregou. Mas de certo lhe convenceu.

Quem mente somos nós. Ou nozes, se preferir. Nozes

sipalmente.

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31 Sob a Égide de Tánatos

Hoje atendi uma paciente que muito estimo; chama-se

Minácia. Nome estranho, sim, que nome! Ela mesma gosta

que eu divulgue que gosto dela. Então taí, Minácia, agora é

público que eu adoro você e quem quiser que tome ciência,

reprove ou apóie.

Minácia é altamente evoluída, totalmente culta,

professora disto e daquilo, daquilo-outro de vários algos mais.

É multidisciplinar ate dizer chega. E é de um improviso

sentimental que invejo. Tem respostas para muitas das minhas

mortes. Acho que esta última só você entendeu, Mina. É que

ela conhece muito da minha vida. Conhece a década em que

fiquei distante dos morredores da minha família e sabe o

quanto isto me fez bem. Mas se os morredores reapareceram,

não é?, eu que aprenda a neutralizar.

Hoje Mina me provou que fui educado sob a égide de

tánatos. E que meus pais são especialistas em morte. Mina,

aqui da matrix te confesso que só não abri o berreiro naquela

hora porque eu estava protegido pelo meu laptop, pela minha

mesa que nos separava e pelo hábito de desenroscar e enroscar

sem parar a ponteira da caneta enquanto escuto algo que me

comove.

É, Mina, filho dos especialistas em morrer. É por isto

que acordo todos os dias tão feliz, tão vivo e loquaz, tão

apaixonado pelas folhas verdes e pela umidade das primeiras

horas do dia; e termino sempre calado, decepcionado e

desistido: porque minha vida toda foi assim: acordar, preparar-

se pra morrer e morrer confiante no dia seguinte. Viciei neste

modus maldito de acordar e morrer todos os dias. Por isto o

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terror noturno, de sensação iminência de morte no meio da

noite: é o medo de não viver nunca, nem ao menos uma vez,

nem ao menos um dia.

Mas de agora em diante será mais diferente, Mina. Digo

“mais” porque já vinha mudando mas não tive coragem de te

dizer, pois sempre que nos encontramos invertemos os papéis,

eu me entrego à seu diagnóstico. Venho vivendo de uma

forma muito interessante. Venho sentindo vida em muitas

coisas. Você me deu esta dica na hora em que eu mais acredito

em mim. Na hora em que eu virei minha própria mesa. Na

hora em que eu reconheço tão facilmente os discípulos da

morte e os desprezo tanto, tanto que chego a rir de suas verves

dissimuladas e reclamações traiçoeiras e obtusas. Aprendi que

a morte se finge de boa, mata e se esquece que matou. E que

passamos a vida fugindo da eutanásia.

Mina, obrigado por respeitar minha incapacidade de

acreditar em Deus. Que bom que você concorda comigo, em

que o mundo precisa de ética, não de religião. E que a religião

cada vez mais fanatizada serve, na verdade, de máscara

incompleta das mais variadas e torpes fugas da ética.

Mina: obrigado.

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32 Você se Sente

Você se sente vazio por não ter o que fazer e nem

conseguir inventar. Você se sente privilegiado porque um gato

veio deitar-se no seu colo. Você se sente culpado porque passa

vendo sem ver o mendigo sem perna no chão da rua. Você se

sente sozinho porque está num elevador lotado. Você se sente

um predador porque está com uma doença contagiosa. Você se

sente vivo por ter acordado disposto e ter sonhado. Você se

sente elétrico por ter visto uma barata correndo e

desaparecendo numa fresta. Você se sente louco por ter ficar

horas esperando por alguém que queria ver. Você se sente

envergonhado por ter descoberto uma única variz em sua

perna. Você se sente raso por ter acabado de mentir. Você se

sente cafona por ter brincado de bem-me-quer-mal-me-quer

com uma margarida. Você se sente órfão porque seu irmão – e

não seus pais – viajou. Você se sente exausto por ter passado o

dia inteiro ouvindo. Você se sente nu por ter contado que tem

medo de dormir sozinho. Você se sente forte por escutar os

graves problemas alheios. Você se sente renascido por ter-se

curado da gripe. Você se sente dividido por ter conhecido

outra pessoa além da que ama. Você se sente tenso por querer

sair de onde está – mesmo sem saber para onde ir. Você se

sente apressado porque querem que você se sinta. Você se

sente oco por não entender, subitamente, nada. Você se sente

morto por saber que a morte virá invariavelmente. Você se

sente inútil por não terem seguido seu conselho. Você se sente

pobre por haver tão poucos ricos. Você se sente rico por haver

tantos pobres. Você se sente ileso por não ter sido assaltado.

Você se sente contaminado por ter visto alguém com lepra.

Você se sente ofendido por terem lhe perguntado a idade.

Você se sente mortal por ter ido a um velório. Você se sente

no escuro porque não tem ninguém ao seu lado. Você se sente

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desprezado porque esperou mais do que quinze minutos e não

ouviu um pedido de desculpa. Você se sente frustrado porque

plantou duzentas sementes e colheu apenas duas. Você se

sente sonolento porque alguém falou sem parar no seu ouvido.

Você se sente um ser superior por estar diante de uma mosca.

Você se sente criança porque toma refrigerante de laranja com

um canudinho. Você se sente imortal porque vê seus filhos

brincarem. Você se sente lindo porque se olha no espelho

depois do êxtase do amor.

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33 O Lado Ingênuo da

Aristocracia

Algum tempo depois de ter saído da casa de meus pais

para morar sozinho, cansado do trabalho doméstico, contratei

uma faxineira que vinha duas vezes por semana e passava

minhas roupas. Era terrível. Limpava a casa de qualquer jeito,

passava mal minhas camisas, deixando vincos irrecuperáveis,

roubava enlatados e matava o serviço, sempre saindo mais

cedo. Eu chegava em casa procurando suas falhas, o que

terminava numa nova faxina minha, à meu modo. E ainda

passava de novo as camisas.

Muito furioso, certo dia deixei um bilhete para ela, antes

de sair para o trabalho:

“Marlene! Estou cansado da sujeira. Limpe todas as

superfícies horizontais! Minhas camisas estão mal-passadas.

Não carregue minhas latas de milho e de ervilha, por favor!

Não mexa na máquina de lavar. Se preferir, pode ir embora.”

Cheguei do trabalho com a certeza de que estava em

alívio e nunca mais a veria. Entretanto, encontrei o bilhete

abaixo:

“Patrão, usei “Passe Bem” nas suas camisa. Eu não

carrego suas lata, elas estão escondidas atrás dos papel-toalha.

Não encontrei a tal de superfice horizontal que o senhor falou,

então não limpei. Depois o senhor mostra onde fica. Deixei as

roupa de molho na máquina. Fui embora sim. Até a próxima

terça.”

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Para Luíza Costa Duque-Estrada, minha

bisavó, a senhora mais ética que já vi, e em

quem me espelhei e me espelho em inúmeras

decisões na minha vida.

Contato:

[email protected]

[email protected]