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AS REDES IMPORTAM PARA O ACESSO A BENS E SERVIÇOS OBTIDOS FORA DE MERCADOS? Eduardo C. L. Marques Este artigo apresenta resultados de uma pes- quisa recente sobre redes sociais de indivíduos po- bres que habitam diferentes locais segregados em São Paulo. Redes sociais são representações analíti- cas dos contextos e dos padrões de relações que cercam uma dada situação social. No caso dessa pesquisa, trata-se dos padrões de relações ligados à sociabilidade cotidiana dos indivíduos. Foram pesquisadas as redes pessoais de 209 habitantes de sete locais de concentração de pobreza em São Paulo, submetidos a diferentes condições de segre- gação, além de trinta indivíduos de classe média. A pesquisa tinha por objetivo investigar, mediante análises quantitativas e qualitativas, as características das redes sociais de tais indivíduos, sua variabilidade e seus efeitos sobre a pobreza urbana. Esses efeitos foram avaliados por meio da análise das conse- qüências das redes para o acesso a bens obtidos em mercados (Marques, 2008), como também a bens e serviços importantes para os processos de reprodução social dos indivíduos em situação de pobreza e obtidos por meio de ajudas e trocas sociais externas à lógica do mercado (Marques, no prelo). Nesse artigo, discuto o papel das redes no aces- so aos bens e serviços obtidos fora dos mercados. As informações utilizadas aqui são originárias de entrevistas em profundidades realizadas com vinte dos entrevistados anteriores que contavam com redes e sociabilidades de diferentes tipos. Apresen- tei aos entrevistados as redes previamente construí- das, solicitando que discutissem sua mobilização na obtenção de ajudas variadas em suas atividades cotidianas. Foram feitas perguntas ligadas à migra- ção, inclusive intra-urbana, à construção da habitação ou a pequenos reparos, aos cuidados com crianças e com a casa, a problemas de saúde, a emprésti- mos de mantimentos e dinheiro, a confidências e RBCS Vol. 24 n o 71 outubro/2009 Artigo recebido em dezembro/2008 Aprovado em agosto/2009

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AS REDES IMPORTAM PARA O ACESSO A BENSE SERVIÇOS OBTIDOS FORA DE MERCADOS?

Eduardo C. L. Marques

Este artigo apresenta resultados de uma pes-quisa recente sobre redes sociais de indivíduos po-bres que habitam diferentes locais segregados emSão Paulo. Redes sociais são representações analíti-cas dos contextos e dos padrões de relações quecercam uma dada situação social. No caso dessapesquisa, trata-se dos padrões de relações ligadosà sociabilidade cotidiana dos indivíduos. Forampesquisadas as redes pessoais de 209 habitantes desete locais de concentração de pobreza em SãoPaulo, submetidos a diferentes condições de segre-gação, além de trinta indivíduos de classe média. Apesquisa tinha por objetivo investigar, medianteanálises quantitativas e qualitativas, as característicasdas redes sociais de tais indivíduos, sua variabilidadee seus efeitos sobre a pobreza urbana. Esses efeitosforam avaliados por meio da análise das conse-qüências das redes para o acesso a bens obtidos

em mercados (Marques, 2008), como também abens e serviços importantes para os processos dereprodução social dos indivíduos em situação depobreza e obtidos por meio de ajudas e trocassociais externas à lógica do mercado (Marques, noprelo).

Nesse artigo, discuto o papel das redes no aces-so aos bens e serviços obtidos fora dos mercados.As informações utilizadas aqui são originárias deentrevistas em profundidades realizadas com vintedos entrevistados anteriores que contavam comredes e sociabilidades de diferentes tipos. Apresen-tei aos entrevistados as redes previamente construí-das, solicitando que discutissem sua mobilização naobtenção de ajudas variadas em suas atividadescotidianas. Foram feitas perguntas ligadas à migra-ção, inclusive intra-urbana, à construção da habitaçãoou a pequenos reparos, aos cuidados com criançase com a casa, a problemas de saúde, a emprésti-mos de mantimentos e dinheiro, a confidências e

RBCS Vol. 24 no 71 outubro/2009

Artigo recebido em dezembro/2008Aprovado em agosto/2009

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apoio emocional, à obtenção de cônjuge, de empre-go e de informações sobre política, serviços e po-líticas públicas.

Inicio este artigo estabelecendo alguns pontosde partida conceituais necessários para a constru-ção do argumento. Em seguida, descrevo os prin-cipais procedimentos de pesquisa adotados e resu-mo os resultados anteriores. A terceira seção discuteos tipos de ajuda disponibilizados pelos indivíduos,destacando a sua relação com as redes. Os resulta-dos evidenciam a existência de padrões na mobili-zação das redes pelos indivíduos para a obtençãode ajudas. A estrutura do texto segue esses padrões,utilizando sempre nomes fictícios para os entrevis-tados. Ao final, sintetizo os principais padrões en-contrados à guisa de conclusão.

Trocas, ajudas e confiança

Nesta seção defino conceitualmente os prin-cipais elementos envolvidos nessas relações de aju-da – as trocas, a confiança, a reciprocidade e a inti-midade. Não se trata de desenvolver uma discussãoconceitual detalhada dessas categorias nas ciênciassociais, ou de discutir demoradamente os tipos derelações existentes em dadas situações sociais, comofaz Blokland (2003), mas de estabelecer os pontosde partida conceituais necessários para o entendi-mento da análise que se segue. Por outro lado, apesquisa não objetivou alcançar categorias nativas,mas analisar esses importantes processos levandoem conta as interpretações dos entrevistados, sem apretensão de reproduzi-las.

As ajudas analisadas aqui importam em trocas.Essas trocas são todas intrinsecamente sociais (Po-lanyi, 1980) e envolvem o intercâmbio de elemen-tos materiais e imateriais, mas também dimensõessimbólicas. As ajudas e o apoio social envolvem tro-cas, pois estão submetidas às lógicas da reciproci-dade como as estudadas originalmente por Mauss.No sentido destacado pela tradição antropológicado dom, os elementos envolvidos na troca confor-mam conjuntos de sentido social e simbólico abran-gente que, em sua formulação original, forneceramchaves interpretativas para elementos societáriosamplos (Mauss, [1923] 2003) e tem sido aplicada

desde então a diversas dimensões sociais (Lanna,1995; Vilela, 2001).

Em um sentido mais específico, as trocas dife-rem entre si com relação ao seu caráter mais oumenos impessoal em um contínuo, desde trocasgeneralizadas ou impessoais até as mais personali-zadas ou específicas (Nunes, 1997), nas quais os atri-butos dos envolvidos na transação importam. Astrocas mercantis, que podem ser mediadas pelo di-nheiro ou ocorrer em espécie, são as mais intensa-mente impessoais, embora saibamos que sempreenvolvem relações sociais e, conseqüentemente, sãomediadas por diversos processos sociais, materiaise simbólicos (Weber, [1922] 1999; Polanyi, 1980). Érazoável imaginar que em contextos de pobreza,em que diversos tipos de informalidade estão pre-sentes nas trocas mercantis, o grau de impessoali-dade seja menor. Nesse caso, as trocas da economiaestão mais atravessadas pela economia das trocas.1

Uma grande parte das condições de vida nacidade envolve trocas mercantis, o que tem comoconseqüência óbvia que indivíduos de menor renda(e pior inseridos no mercado de trabalho) encon-trem maiores dificuldades de obter e manter boascondições sociais. A relação entre as redes e os ele-mentos que medeiam as trocas mercantis (renda etrabalho, principalmente) foi analisada em outrostrabalhos (Marques, 2008; no prelo) e não serãodiscutidas aqui. As demais trocas que envolvem aju-das, entretanto, podem melhorar as condições devida e solucionar problemas cotidianos de indiví-duos com baixíssimo acesso à renda, que não dis-põem de recursos econômicos para comprar bense serviços via mercado.

Nessas trocas são intercambiados bens mate-riais, como dinheiro, mantimentos, ferramentas, en-tre outros, mas também elementos imateriais, comoinformações, afetos, solidariedade, apoio emocio-nal etc. Além disso, todas essas trocas também en-volvem dimensões marcadamente simbólicas, comoreconhecimento e prestígio. Elas nem sempre en-volvem bens similares, e tampouco ocorrem deforma imediata, construindo condições de dívidainseridas na lógica da reciprocidade social. Em al-guma medida, padrões relacionais são sempre redesde trocas, não apenas pelo que pode fluir pelas re-lações, mas também pela reciprocidade envolvida

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e pelos graus de confiança e intimidade que as via-bilizam e perpetuam no tempo. Os tipos das pró-prias relações, adicionalmente, podem ser transfor-mados de acordo com as dinâmicas das trocas, areciprocidade e confiança envolvidas, como seráapontado mais adiante.

Por outro lado, todos os tipos de ajuda envol-vem também custos de várias naturezas. Esses cus-tos incluem recursos materiais como dinheiro e bens,mas também tempo despendido no auxílio, assimcomo investimentos operacionais e emocionais dequem ajuda. Evidentemente, os custos nessas práti-cas são mediados pelas condições de reciprocidadeexistentes e podem ser mitigados, em parte, pelostipos de vínculo envolvidos. Nesse sentido, quantomais custosa for a ajuda prestada, mais ela depen-derá da existência de certos tipos de vínculo e daconfiança na relação que medeia a reciprocidade(tornando mais ou menos confiável esperar a retri-buição futura). Como comentarei mais adiante, en-tretanto, a presença de reciprocidade social e deconfiança não afastam necessariamente a presençade monetarizações nas ajudas.

Por confiança entendo a segurança no cum-primento das expectativas de uma dada relação,quaisquer que sejam tais expectativas. Para algunsentrevistados, confiança depende de homofilia2 –confia-se em quem tem atributos (ou comporta-mentos) similares. Para outros, há tipos distintos deconfiança, associados a situações sociais específicas.A análise dos casos sugeriu que, dependendo dasituação, há expectativas diferentes regulando as re-lações e estabelecendo tipos diferentes de confian-ça. Foram observados ao menos três tipos de con-fiança – pessoal, profissional e política/associativa.

A primeira é a mais comum e diz respeito àsegurança do ego em relação a seus contatos noque concerne a assuntos de natureza pessoal. Ela seassocia à intimidade, mas só depende dela nas rela-ções de confidência, como veremos a seguir. A con-fiança profissional diz respeito à segurança que umdeterminado ego tem de que seus contatos vãocumprir as regras pactuadas em atividades profissio-nais. Esse tipo de confiança apareceu em entrevistascom proprietários de pequenos negócios e comoutros que contam com parceiros regulares de tra-balho. Por fim, a confiança política/associativa é a

que apareceu com menor freqüência. Refere-se àsegurança de que seus companheiros cumprirão ospactos estabelecidos no desenvolvimento de ativi-dades e no estabelecimento de alianças e disputaspolíticas. Em todos esses casos, confiança pode es-tar presente tanto em relações horizontais como emverticais, sendo compatível com desigualdades depoder e hierarquias.

Graus diferentes de confiança, por seu turno,associam-se usualmente a formas diversas de reci-procidade. Na maior parte das vezes, ajudas combaixa confiança estão associadas à reciprocidademoral e impessoal típica do pertencimento a gru-pos, como no que Blokland (2003) denomina attach-ments seguindo Weber ([1922] 1999) – relações nãoinstrumentais, mas baseadas na racionalidade e emvalores de pertencimento a grupos circunscritos poridentidades compartilhadas. Relações também mo-bilizadas pela reciprocidade que envolve permutadireta e tem dimensão mais instrumental, que Lucia-no, um entrevistado da favela do Jaguaré, chamoude “toma-lá-dá-cá”. Enquanto as relações que veicu-lam as primeiras estão associadas tanto à racionalida-de (ação deliberada e consciente) como a valores, assegundas baseiam-se em ações racionais e orienta-das a fins de maneira similar ao definido por Blok-land (2003), seguindo Weber ([1922] 1999). Nooutro lado do espectro, as relações que envolvemalta confiança associam-se a trocas específicas e areciprocidades que podem se distribuir no tempo eenvolver diferentes bens materiais e imateriais. Nessecaso, a reciprocidade é inteiramente personalizada egarantida por um tipo específico de vínculo pessoal.

Intimidade, por outro lado, também diz res-peito à segurança do cumprimento das regras dasrelações, mas é especializada em assuntos pessoaisque envolvem sigilo e depende de graus mais eleva-dos de confiança. Nas palavras de João, moradorde um conjunto habitacional na Cidade Tiradentes,“intimidade é jogo aberto”. Diferentemente de con-fiança, intimidade aparece apenas em relações compequenas diferenças hierárquicas e de poder.

Além dos custos diferenciados das ajudas, varia-ções nos tipos de vínculos e nos graus de confiançapresentes nas relações, portanto, influenciam os auxí-lios disponíveis e podem impactar sobremaneira ascondições de vida e a pobreza.

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Desenho da pesquisa e resultados anteriores

O estudo levantou as redes pessoais de 209indivíduos em situação de pobreza e trinta indivíduosde classe média, de forma a construir um padrão decomparação. De maneira a explorar os efeitos dasegregação espacial sobre as redes pessoais, esco-lhi sete locais bastante distintos sob o ponto de vis-ta da distância ao centro, dos graus de consolidaçãodas áreas, dos padrões construtivos e dos graus deintervenção do Estado, partindo de estudos ante-riores sobre pobreza em São Paulo (CEM/SAS2004). Optei por analisar redes pessoais, e não re-des de comunidades ou redes centradas em indi-víduos,3 pois considero que uma parcela impor-tante da sociabilidade que influencia a pobrezaocorre a distâncias maiores do ego do que o seuentorno imediato.4

Foram realizadas trinta entrevistas por local en-tre setembro de 2006 e agosto de 2007, incluin-do cortiços centrais, quatro favelas – Vila NovaJaguaré, Paraisópolis, Vila Nova Esperança e Guin-le –, um loteamento irregular no Jardim Ângela eo conjunto habitacional de Cidade Tiradentes,além do grupo de controle de classe média, semespecificação de local de moradia. Na verdade, alocalização da classe média indica um padrãoconcentrado no centro expandido da metrópole,embora suas redes se expandam por um amploterritório e não incluam vizinhos, em um padrãosimilar ao que Wellman (2001) denomina “comuni-dades pessoais”.

As entrevistas utilizaram um questionário semi-aberto e um gerador de nomes e foram escolhidasao acaso ao longo de percursos pelos locais estu-dados, tanto em dias de semana como durante finsde semana.5 A classe média foi definida de maneiraampla, uma vez que visava apenas a constituir umpadrão de comparação para a análise das demaisredes.

Essas informações foram tratadas com ferra-mentas de análise de redes sociais, resultando em239 redes pessoais.6 Após a realização das análisesestatísticas, escolhi intencionalmente um conjunto devinte redes pessoais para empreender a parte qualita-tiva da pesquisa, combinando tipos de redes, locaise características dos entrevistados.7 O presente artigo

explora essas informações qualitativas, desvendandoos padrões associados às redes e à sociabilidade quemedeiam o acesso dos indivíduos a bens e serviçosobtidos fora de mercados.

Antes de avançarmos, entretanto, apresento deforma resumida os principais resultados das eta-pas anteriores da pesquisa, de forma a melhor si-tuar o leitor.

Em primeiro lugar, é preciso registrar quequando comparadas com as redes de classe média,as redes pessoais de indivíduos pobres tendem aser menores, mais locais e menos variadas em ter-mos de sociabilidade. Praticamente inexistem rela-ções entre grupos sociais e de renda. Essa é uma dasmais importantes características dessas redes para areprodução da pobreza e da desigualdade social que,entretanto, não se origina nas redes, mas representaapenas uma faceta relacional da estrutura social.

Os sociogramas a seguir apresentam como ilus-tração as redes de duas mulheres, uma pobre e ou-tra de classe média, com características próximasdas médias de cada grupo. Sociogramas são repre-sentações gráficas dos padrões de vínculo, nas quaisentidades (pessoas, grupos, empresas, organizações)são representadas como pontos (os nós) e relações(de qualquer tipo) como traços (os vínculos). Comose pode observar, a primeira rede é menor, maissimples, menos “clusterizada” e mais centralizadano ego do que a segunda.

Figura 1Sociograma da Entrevistada 164

Fonte: Elaboração própria a partir de material empírico coletado.

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Figura 2Sociograma da Entrevistada 93

Fonte: Elaboração própria a partir de material empírico coletado.

Apesar disso, as redes de cada grupo variamsubstancialmente entre si. Os sociogramas a seguirapresentam também como ilustração as redes dedois indivíduos pobres com padrões relacionaispolares. Nas Figuras 3 e 4, a simbologia dos nósindica as esferas de sociabilidade onde ocorre oencontro entre o ego e cada indivíduo.

Figura 3Sociograma do Entrevistado 155

Nota: Esferas de sociabilidade: losango grande – ego; círculospretos – família; quadrados – vizinhança; triângulos – amizade;quadrados claros com sinal de mais – estudos; ampulhetas pre-tas – lazer; losangos escuros – outros.Fonte: Elaboração própria a partir de material empírico coletado.

Figura 4Sociograma da Entrevistada 142

Nota: Esferas de sociabilidade: losango preto – ego; círculospretos – família; quadrados – vizinhança; triângulo – amizade.Fonte: Elaboração própria a partir de material empírico coletado.

A análise indicou não existirem relações diretasentre variáveis socioeconômicas e padrões de rela-ção. Na verdade, as redes são influenciadas por di-versos condicionantes socioeconômicos, como sexo,idade, escolaridade, renda, migração, freqüência,templos, associações e a própria segregação.8 O efei-to desses condicionantes tende a circularidades queperpetuam as situações sociais e relacionais e repro-duzem desigualdades de forma persistente, embo-ra não necessariamente desigualdades categoriais nosentido de Tilly (2005).9

Considerando a variabilidade encontrada nasredes, construí duas tipologias – das redes e dospadrões de sociabilidade. Os achados indicaram que,embora as redes de indivíduos pobres sejam emgeral menores, mais locais e menos variadas do queos de indivíduos de classe média, também variammuito. Se, de um lado, estão presentes padrões desociabilidade muito locais e baseados em vínculosprimários (família, vizinhança e amizades), de ou-tro, uma parte significativa dessas redes apresentasociabilidade pouco local e produzida em ambien-tes organizacionais ou institucionais (trabalho, igre-ja, associativismo). O cruzamento dessas heteroge-neidades sugeriu a existência de padrões relacionaisamplos, com sociabilidade variada e homofilia po-tencialmente menor.

A análise a seguir especificou os impactos dasredes sobre as condições sociais, em especial sobrea pobreza. Ficou evidenciado que o emprego,

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inclusive o com maior proteção, e a ausência deprecariedade social tendem a ser influenciados po-sitivamente por padrões de sociabilidade pouco lo-cais e primários, ao contrário de variáveis tradicio-nais, como escolaridade, idade e renda, que não semostraram significativas. Além disso, as redes e otipo de sociabilidade ajudaram a explicar o rendi-mento dos indivíduos, em conjunto com variáveistradicionais. Os resultados de análise multivariadamostraram a significância, entre as variáveis tradicio-nais, do tamanho do domicílio e da escolaridadedos indivíduos. Além disso, entretanto, três outrasvariáveis associadas às redes também se mostraramrelevantes – o tipo de rede e de sociabilidade (redesmédias e variadas e com sociabilidade pouco locale pouco primária), o tamanho das redes e a variabi-lidade da sociabilidade, essas duas últimas em inte-ração respectivamente com ter rendimento estávele ser segregado. Redes médias e com sociabilidadepouco local e primária, portanto, geram efeitospositivos sobre a renda (Marques, 2009; no prelo).No caso de alguns indivíduos segregados, esse efei-to é potencializado pela presença de sociabilidadevariada, ajudando a combater o isolamento socialproduzido pela segregação.

Entretanto, restava compreender melhor amobilização cotidiana das redes pelos indivíduos.A seção que se segue, baseada no material qualitati-vo da pesquisa, avança nessa direção explorando ouso e a mediação da sociabilidade e das redes noacesso dos indivíduos a bens e serviços obtidos forade mercados.

Acessos e ajudas

As informações das entrevistas sugerem que asajudas que medeiam os acessos podem ser agrupa-das segundo um cruzamento entre graus de confian-ça, custos e tipos de reciprocidade. Dependendoda situação, a reciprocidade e a confiança envolvi-das ganham vários contornos e feitos, e a troca emsi pode ser mais ou menos personalizada. Por ou-tro lado, no contexto específico da reciprocidadede cada ajuda, os custos, que evidentemente não serestringem a dimensões monetárias, ganham con-teúdos distintos, misturando por vezes prestígio,

afeto, expectativa de retribuição e dinheiro. Outradimensão relevante desses custos é o tempo e a dis-ponibilidade pessoal gastos na ajuda, assim comosua freqüência e perenidade. Assim, embora nomundo dos pobres circule relativamente poucariqueza, são bastante freqüentes ajudas de custoelevado.

Por vezes é tênue o limite entre o que é intei-ramente compra via mercado e o que é troca me-diada pela reciprocidade social, mas que tambémenvolve pagamento em dinheiro. No primeiro caso,apesar de os indivíduos serem conhecidos, trata-seda compra de um serviço que poderia ser adqui-rido de outro prestador. Por outro lado, há aju-das que também podem envolver pagamento emdinheiro, mesmo para pessoas muito próximas.Nesse caso, o dinheiro é apenas uma das dimen-sões envolvidas na troca, que não é generalizada,mas específica e personalizada pela confiança envol-vida. Aparentemente, os pagamentos representamretribuições que contribuem para reduzir os custosdas ajudas, assim como elementos como prestígio,afetos e outros auxílios prestados ou devidos paraprestação em momento futuro, no contexto dareciprocidade.

Considerando essas dimensões, são basicamentetrês os tipos de ajuda observados: imediatas e combaixo custo, mais constantes e custosas, e que en-volvem confiança e intimidade. Discuto a seguir comalgum grau de detalhe esses tipos, trazendo exem-plos dos entrevistados sempre que possível. De umaforma geral, do primeiro ao último tipo crescemcontinuamente a confiança na relação necessária paraa ajuda e os custos envolvidos na sua prestação. Aomesmo tempo, cada ajuda associa-se a um tipo es-pecífico de reciprocidade.

Ajudas mais imediatas e de baixo custoe que necessitam de baixa confiança

Este tipo envolve auxílio durante crises agudasde saúde, empréstimo de ferramentas e de manti-mentos, olhar a casa durante a ausência dos donos,assim como informações para emprego e a respei-to de políticas e serviços públicos.

É também ligado muito freqüentemente porvínculos fracos e freqüentes, mas superficiais,

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definidos por Luciano, morador da favela Jaguaré,como “oi, oi, tudo bem?”. Em geral, trata-se deuma forma de ajuda que ocorre por relações mui-to pouco personalizadas e com reciprocidade bas-tante distante. Grande parte dos vínculos que a car-reiam é originária da vizinhança e tende a se quebrarfacilmente, em especial com o deslocamento daresidência. Esses vínculos, entretanto, são substituí-dos de forma relativamente fácil no novo local demoradia, embora alguns lugares possam ser consi-derados melhores do que outros pelos entrevistadosnesse sentido. Os laços que fomentam esse tipo deajuda se comportam como se correspondessem asuportes impessoais de relações de reciprocidadede ajuda cotidiana. Nesse caso, não é necessário aconfiança e a reciprocidade é tênue.

O que embasa esse tipo de ajuda é um senti-mento de solidariedade difusa. Se considerarmosque todos os tipos de solidariedade estão associa-dos a identidades, nesse caso se trata de uma iden-tidade difusa ou de pertencimento a grupos am-plos, como “nós da comunidade”, “os pobres”,“os irmãos” ou mesmo “os seres humanos”. Odiscurso dos entrevistados para justificar ajudas dessetipo é associado ao pertencimento a esses gruposou a solidariedades amplas, como para João, mo-rador de um conjunto habitacional na Cidade Tira-dentes, que sustenta que de “pessoa doente, até osinimigos se compadecem”. As crises agudas de saú-de exemplificam tais situações, onde é freqüente aajuda de vizinhos, em especial emprestando carrose conduzindo o paciente até unidades de saúde,como em situações relatadas por Lúcia, David,Luciano e Rafaela, moradores de cortiços e das fa-velas de Paraisópolis, do Jaguaré e da Vila NovaEsperança, respectivamente. Os tipos de relação queveiculam essa ajuda são principalmente o queBlokland (2003) denomina de attachments.

Mesmo que esse tipo de ajuda não necessite deconfiança prévia, ela pode ser negada pela quebrano passado da reciprocidade mínima esperada, tantode forma personalizada, como generalizada. Naspalavras de João, de Tiradentes, “ferramenta eu sem-pre emprestei muito, mas hoje não empresto mais,pois as pessoas não devolviam”. De maneira in-versa, a prestação de auxílio no caso de doença po-de levar a um aprofundamento da relação entre

indivíduos, aumentando a confiança na pessoa queajudou e levando mesmo a um grau mais elevadode intimidade. Assim, embora nem confiança nemintimidade sejam necessárias para que um indiví-duo preste esse tipo de ajuda, dado o seu caráterquase impessoal, tanto a confiança como a intimi-dade podem ser impactadas pela prestação dessesauxílios, positiva ou negativamente.

O fornecimento de informações a respeito deemprego pode se associar a todos os tipos de aju-da, mas também pode ser veiculado pelos laçosque carreiam as ajudas imediatas e de baixo custo,em especial para os empregos mais locais. Em suaforma mais extrema, a informação pode vir até dedesconhecidos. No caso de João, por exemplo, ainformação que o levou a um emprego foi dadapor um desconhecido em uma praça, e para Ed-nalva, da favela de Paraisópolis, foi obtida de umapessoa que conheceu no ônibus. Maria, desempre-gada e moradora da favela do Jaguaré, que sobre-vive catando papéis, obteve um emprego comoempregada doméstica por intermédio de uma pes-soa que conheceu quando passou a freqüentar umaigreja. O fornecimento dessas informações tembaixíssimo custo e é propagado por contatos mui-to pouco intensos e, por vezes, quase ao acaso, deforma similar aos vínculos fracos de que fala Gra-novetter (1973).

A esse respeito especificamente, alguns locaisonde informações circulam mais intensamente pa-recem gerar contatos potenciais com redes de ou-tros indivíduos que se conhecem pouco, ou atémesmo com desconhecidos. Nesse caso, não se tratade um efeito da rede de um dado ego, mas de espa-ços de convívio específicos que dão acesso a redesde outros indivíduos que podem nem mesmo par-ticipar da sua rede. Esse é o caso do salão de cabe-leireiro de Antônio, também pastor e diretor de umaorganização comunitária em Paraisópolis. Segundoas entrevistas, aquele espaço representa um impor-tante local de troca de informações, para o qual osindivíduos convergem. Às vezes isso também ocorreem torno de certos indivíduos, que, como se sabe,têm muitos contatos. Rafaela, de Vila Nova Espe-rança, e Antônio e Jorge, de Paraisópolis, por exem-plo, afirmaram serem procurados com freqüência,inclusive por desconhecidos, para perguntar se sabem

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de ofertas de emprego. Não por acaso, esses trêsindivíduos são lideranças em seus bairros e estãoenvolvidos com atividades associativas.

Entretanto, é importante reportar uma diferen-ça com relação aos resultados do influente trabalhode Granovetter. O argumento do autor a respeito daforça dos vínculos fracos na busca de emprego ba-seia-se na idéia de que, se um dado ego se encontradesempregado há algum tempo, o emprego nãochegará a ele por vínculos fortes, caso contrário elejá estaria empregado. Tecnicamente o argumentodiz respeito a uma regularidade empírica observa-da por Granovetter e batizada por ele de “tríadeaberta proibida”: se um determinado ego tem umarelação forte com A e outra com B, é muito poucoprovável que A e B não tenham relação. Por isso,informação nova não chegaria aos indivíduos porvínculos fortes, mas por vínculos fracos.10

Em uma aparente contradição com os acha-dos de Granovetter, uma parte importante dosempregos de melhor qualidade encontrados veiode vínculos fortes, inclusive da família. Entretanto,a evidência diz respeito em especial aos primeirosempregos de indivíduos recém-migrados ou queingressam no mercado de trabalho pela primeiravez. A questão está em que, quando ocorrem osprimeiros contatos dos indivíduos com as redes queos acolhem (ou que os integram ao mercado, nocaso dos adolescentes que começam a trabalhar),informações novas sobre emprego chegam tantopor vínculos fortes como por vínculos fracos.11 Esseefeito tende a ser ainda mais forte para indivíduosde baixa qualificação e que se encontram no limiteda sobrevivência, para quem virtualmente qualquerocupação pode fazer diferença.

Fazem parte dessa situação os casos de AnaLuiza, Luciano, João, Rafaela, Lúcia e David, paraquem empregos importantes em suas trajetórias vie-ram de informações trazidas por familiares. No casodos quatro primeiros, os empregos foram obtidosquando chegaram a São Paulo do Nordeste, masos casos de David e Lúcia envolvem jovens queiniciaram suas vidas profissionais no final da ado-lescência já em São Paulo.

Apesar desse ponto em comum, as trajetórias(e suas conseqüências) são muito diferentes. AnaLuíza obteve um emprego estável em uma loja de

roupas para noivas no centro de São Paulo por meiode um parente, mas planejou se transformar emautônoma. Depois de um período no trabalho,aprendeu a fazer grinaldas com ajuda de colegas epediu as contas. Desde então, produz em casa, uti-lizando os contatos que construiu na loja. Obtémum rendimento mais alto, além de ter controle so-bre o processo de trabalho e não precisar se deslo-car diariamente de Vila Nova Esperança até o Cen-tro. O caso de Luciano também merece menção.Após trabalhar junto com os irmãos em uma pa-daria de um bairro de classe média próximo à VilaNova Jaguaré, também iniciou um negócio pró-prio. Após um período de crise, quando teve quecontrair empréstimos de alto valor e vender sua casapara pagar dívidas, tem hoje uma situação bastantepróspera em termos relativos. João, de Tiradentes,também obteve o seu primeiro emprego em SãoPaulo por intermédio de um cunhado em umamarcenaria, embora sua trajetória posterior sejamuito menos bem-sucedida do que as de Ana Luí-za e Luciano. Por fim, Rafaela, da Vila Nova Espe-rança, foi ajudada pela tia em dois momentos su-cessivos. Em seu primeiro emprego em São Paulo;após um ano ela voltou para o Nordeste, e quandoretornou da migração pendular foi novamente a tiaque lhe conseguiu um emprego.

O efeito no caso de jovens paulistanos queobtêm os primeiros empregos é similar. David bri-gou com o pai no final da adolescência e saiu desua casa em Paraisópolis, obtendo seu primeiro em-prego em uma loja de fotografia conseguido poruma irmã. E os filhos de Lúcia conseguiram seusprimeiros empregos com um tio, em uma borracha-ria em um bairro próximo à Vila Nova Esperança.

Os dois primeiros casos – de Ana Luíza e Lu-ciano – ainda sugerem que o planejamento de futu-ro também pode cumprir um papel bastante im-portante para o aproveitamento das oportunidadesrelacionais que chegam até os indivíduos. A presençaou não desse planejamento está associada aos en-quadramentos culturais por meio dos quais os indi-víduos vêem a sociedade e suas situações, no sen-tido de Lamont e Small (2008, p. 8): “um esquemainterpretativo que simplifica e condensa a realidadesocial, escolhendo e codificando seletivamente ob-jetos, situações, eventos, experiências e seqüências de

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ações”. Em ambos os casos reportados acima, da-das as condições diante frente das quais foram co-locados, os entrevistados planejaram sua inserção,o que lhes permitiu utilizar o conhecimento quehaviam obtido na padaria e na loja de artigos paranoivas para iniciarem seus negócios como proprie-tário e como autônoma, respectivamente.

No outro extremo, localizam-se pessoas queapresentam uma postura mais passiva com relaçãoà sua trajetória. A situação pode ser ilustrada pelaspalavras de João, de Tiradentes, que teve longas eimportantes relações com indivíduos sem atividadeprofissional e que faziam muito pouco esforço paramelhorar sua situação. Nas suas palavras, seu com-panheiro por nove anos “não lutava”. Para ele,muitas pessoas “não têm ambição, talvez seja co-modismo ou preguiça. Falo de ambição normal,de ter uma casa, com as minhas coisinhas no armá-rio”. A questão, entretanto, não está relacionadaapenas com esforço, mas com planejamento: essaspessoas “só se lembram de comer quando tão comfome. Não dá assim. Só lembrar de plantar quan-do tá com fome”. Acredito que esse comporta-mento pode ser pensado não apenas como produ-to de escolhas, mas também como um resultadoadaptativo à cumulatividade de precariedades ocor-ridas ao longo da trajetória de certos indivíduos,reduzindo os seus graus de liberdade.

Vale acrescentar um último ponto relativo aosauxílios para acessar serviços e políticas estatais. Asinformações não sugerem a existência de ajuda per-sonalizada envolvendo reciprocidade eleitoral naobtenção de serviços e políticas públicas, ao con-trário do que sustenta uma vasta literatura sobreclientelismo político. Confirmando resultados depesquisas anteriores sobre acesso a políticas e servi-ços em São Paulo (Figueiredo, Torres e Bichir, 2006),não foi encontrada intermediação pessoal, políticaou qualquer outra associada a relações de reciproci-dade eleitoral na busca desses tipos de serviço.

Essa tendência liga-se à universalização do aces-so às políticas e aos serviços mais básicos, já de-monstrada por pesquisas específicas sobre o tema(Figueiredo, Torres e Bichir, 2006; Figueiredo et al.,2005, por exemplo). Entretanto, ela não significa ainexistência de trocas sociais associadas a acessos,mas indica, em contrapartida, o estabelecimento de

patamares mínimos de direitos, retirando destes ocaráter de moeda negociável eleitoralmente. Essadistinção é importante conceitualmente, pois a tradi-ção de estudos nesta área considera o clientelismopolítico se faz presente quando os acessos envolvemtrocas de alguma forma. Como sabemos, as relaçõessociais são em si trocas, o que torna ingênua a inter-pretação da institucionalização das políticas públi-cas como um processo de desimbricação social dasrelações entre Estado e sociedade. Basta que pense-mos em todas as dimensões sociais envolvidas naimplementação das políticas pela burocracia de ní-vel da rua indicadas por Lipsky (1980).12

A questão incide sobre o que circula nas trocasassociadas aos acessos a políticas, e não no carátermais ou menos “desencarnado” socialmente dessastrocas. O clientelismo caracteriza-se pelo estabeleci-mento de relações onde a ajuda no acesso a políti-cas é trocado por apoio eleitoral. É essa dimensãoque sofre impacto pela expansão universalista daspolíticas públicas, visto que o valor eleitoral dosapoios cai a níveis muito baixos se as políticas sãoentendidas e – muito mais importante, sentidas –como direitos.

Assim, apesar de não existirem trocas político-eleitorais no sentido clássico, apareceram com algu-ma freqüência encaminhamentos institucionais quetêm muitas vezes caráter pessoal, como a diretorada escola de Carlos, um jovem morador de cortiços,que o encaminhou e conseguiu vaga em outra escola.Esse também foi o caso de Marta, outra moradorade cortiços, que conseguiu vaga em um curso deinformática por intermédio da diretora da crechemunicipal onde estuda seu filho. Nessa mesma di-reção, técnicos de uma política podem cumprir fun-ções importantes em outras iniciativas públicas, ex-plicando procedimentos e encaminhando paraatendimento, como no caso do papel de mediado-res exercido pelos agentes comunitários de saúde(Lotta, 2006). Além disso, contatos nas redes e nasassociações comunitárias também veiculam esse tipode ajuda, em especial em redes de indivíduos muitopobres ou idosos. Em um dos locais estudados, opadre da diocese local, por exemplo, que exerceuma poderosa liderança social e política, ocupa essepapel de mediador entre a esfera local e o universoformal das instituições.

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Como essas trocas envolvem reciprocidade, osindivíduos que produzem tal mediação freqüente-mente ganham projeção e distinção, especialmenteentre os mais pobres e idosos, que dependem maisdesse tipo de apoio. Entretanto, em todos esses ca-sos, trata-se mais da disponibilização de informa-ções e da ajuda no preenchimento de formalidades(que comumente apresentam grande dificuldadepara esse grupo social) do que de intermediação nosentido clássico da expressão, associado a formasde reciprocidade envolvendo retornos eleitorais.

Ajudas mais constantes ou crônicas e custosas

Esse tipo de ajuda envolve situações crônicasde saúde que demandam atenção constante, cuida-dos cotidianos com crianças, obras na casa, ajudana migração e empréstimos de pequena monta. Emtodos esses casos, trata-se de atividade relativamen-te custosa (embora não necessariamente financeira-mente) para quem ajuda. Os casos estudados indi-cam que freqüentemente há remuneração, mesmopara pessoas muito próximas (irmãos, mãe, amigosíntimos etc.). Interpreto esses pagamentos comouma tentativa de reduzir os custos envolvidos paraquem ajuda, mas isso não deve ser considerado umacaracterística de uma relação mercantil corriqueira,pois aqui a troca envolve reciprocidade e dependede confiança. Nesse sentido, a prestação desses au-xílios de forma inteiramente mercantil e desperso-nalizada não representa ajuda no sentido emprega-do estamos empregando. No caso da classe média,ajudas custosas desse tipo são freqüentemente con-tratadas no mercado, tais como creches, babás, en-fermeiras, pedreiros e empréstimos no banco. Nocaso dos pobres, entretanto, a contratação via mer-cado se resume aos serviços especializados de cons-trução. Os demais auxílios desse tipo são prestadossocialmente e estão sujeitos às lógicas da reciproci-dade e da confiança.

Os cuidados com crianças enquanto os paistrabalham são usualmente prestados por familiares,inclusive irmãos mais velhos ou vizinhos, com ousem pagamento em dinheiro. No caso de Jorge,morador de Paraisópolis, a tarefa sempre foi pagapara uma cunhada, e de Maria, moradora da áreamais pobre do Jaguaré, vizinhos cuidavam das

crianças, também mediante pagamento. Maria che-gou a afirmar que “ninguém faz isso de graça”. Jorgee sua mulher nunca precisaram que alguém cuidassecotidianamente das crianças, mas sua cunhada levaas crianças para a escola e recebe uma pequena re-muneração mensal. Por outro lado, em alguns casosforam relatadas ajudas não remuneradas de vizinhos,embora sejam relativamente freqüentes relatos demaus-tratos. Por essa razão, a confiança é indicadacomo uma dimensão importante dessa tipo de au-xílio, embora nem sempre os indivíduos contemcom pessoas de confiança para assumir a tarefa.

Cuidados com doente crônicos também en-volvem elevados custos e necessitam de confiança.O mesmo se pode dizer do auxílio cotidiano àsmulheres que acabaram de dar à luz. Nesses casos,quase sempre é a família que presta apoio. Quandoa parturiente mora longe da família e não conta comuma rede de apoio de vizinhança forte, tende a sedeslocar provisoriamente para junto da família,mesmo que para condições habitacionais muito pi-ores. Em um caso reportado por Carlos, sua irmã,que mora fora de cortiço em casa própria de boascondições, mudou-se durante o final da gravidez,que era de risco, para o quarto no cortiço ondemoram o entrevistado, seu irmão e sua mãe.

Vale assinalar que, diferentemente do processode autoconstrução narrado amplamente pela litera-tura nos anos de 1970 e 1980 (Kowarick, 1979),não foram encontrados casos de ajuda mútua co-munitária para a construção de edificações. Embo-ra alguns entrevistados tenham afirmado que suascasas foram originalmente construídas dessa forma(parcial ou completamente), a grande maioria dasdescrições e todas as descrições de eventos maisrecentes indicam contratações via mercado ou pro-cessos coletivos, mas não comunitários, de constru-ção. Por processo coletivo entendo uma dinâmicaque envolve um grupo relativamente pequeno e sele-to de pessoas e é baseado em reciprocidade pessoal,diferentemente dos processos comunitários, queenvolvem a participação de um grande número depessoas e têm a identidade ou a solidariedade comu-nitárias como fundamento principal. Na maior partedos casos encontrados pela pesquisa, a construçãofoi executada por apenas alguns indivíduos da famí-lia e amigos muito próximos, havendo pagamento

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para parte das pessoas, em especial os que executa-ram serviços mais especializados (instalações elétri-cas e hidráulicas). Quase na totalidade das vezes es-ses serviços foram comprados no mercado porpreços locais, de forma impessoal. Os casos de Jor-ge, Lúcia e Rafaela ilustram tal prática. Jorge, umaliderança comunitária em Paraisópolis, teve ajudasó do tio da esposa e do cunhado ao construir acasa, mas teve que pagá-los. Lúcia também só ob-teve ajuda de cunhados e do filho e Rafaela só domarido e de irmãos para a construção do barracode madeira, ambos em Vila Nova Esperança. Atual-mente, Rafaela vendeu se barraco para a irmã e hojemora em uma casa de alvenaria comprada com suaseconomias de empregada doméstica.

Uma das regularidades mais presentes no con-junto dos resultados diz respeito a ajudas na migra-ção, acolhendo pessoas e ajudando na obtenção doprimeiro emprego na cidade. Por vezes quem re-cepciona o migrante recente, normalmente alguémda família ou amigo próximo do local de origem,chega a pagar os custos da viagem, com a combi-nação de receber o dinheiro de volta ou não. Algu-mas pessoas se especializam nesse tipo de ajuda.Lúcia, de Vila Nova Esperança, contou que seucunhado recebe regularmente migrantes recém-che-gados no bairro João XXIII, tanto de forma gra-tuita, como remunerada, chegando a construir pe-quenas unidades habitacionais no fundo do seu lotepara alugar. Outras pessoas não cobram por estetipo de auxílio, como a tia de Rafaela, de Vila NovaEsperança, que, além de recebê-la, alojou muitasoutras pessoas da família. A casa dela “parecia umalbergue”, diz a jovem.

Nos relatos são também relativamente comunsas migrações pendulares, como nos casos de Lucia-no, do Jaguaré, José, dos cortiços, e Rafaela, de VilaNova Esperança, que migraram várias vezes entreSão Paulo e suas cidades natais. Além desses casos,vários entrevistados contaram histórias de migraçõesde retorno. José, dos cortiços, e João, de Tiradentes,por exemplo, relataram a existência de parentes quevieram, não se adaptaram e voltaram. Nas palavrasde João, eles “não se adaptaram porque do Nor-deste para cá parece outro país. É muito diferente”.

Também foram encontrados casos de mudan-ça de migrantes no interior da cidade, utilizando

muitas vezes indivíduos de sua rede que moramem outros bairros. Essas mudanças são motivadaspor conflitos com membros da família que os aco-lheu, ou pela busca de uma melhor inserção urbanae profissional. A primeira localização, entretanto,parece ser muito importante por estar associada àsprimeiras atividades profissionais, à formação decredenciais no mercado de trabalho urbano e à cons-trução inicial da rede de relações de que disporãona cidade.

Por fim, ocorre a concessão de pequenos em-préstimos de dinheiro que, no caso dos entrevista-dos, envolvem quantias entre R$1,00 e R$10,00. Namaior parte das vezes os empréstimos são obtidoscom indivíduos da própria família ou amigos pró-ximos, seja da vizinhança, seja do trabalho ou daigreja. Evidentemente, “a gente pede para quemsabe que pode”, afirmou João, de Tiradentes. Tra-ta-se, portanto, de pessoas próximas, mas com si-tuação econômica um pouco melhor. Isso podetambém causar um sentimento de vergonha. João,que é sozinho e não conta com apoio familiar, che-gou a afirmar que já pediu a agiotas para não cor-rer o risco de “receber um não de uma pessoaquerida, aí eu ficava para morrer”.

No caso dos comerciantes, esses pedidos pa-recem ser relativamente comuns, mas Luciano, doJaguaré, afirmou que só empresta para “pais defamília de boa índole e mães de família com famí-lias firmemente constituídas. Geralmente para pes-soas de boa índole”, envolvendo um filtro moralsobre o comportamento, caso contrário “o dinhei-ro pode ser usado para beber, jogar e alimentarvícios”. Diversos entrevistados disseram que quempede devolve sempre, mantendo assim a confiançae a possibilidade de apoio futuro. Para os comer-ciantes que emprestam, o motivo parece ser a ma-nutenção das boas relações com a clientela, comoafirma Luciano: “você tem aquela pessoa como seucliente e não quer contrariar”, mas também umareciprocidade específica, pois “elas estão ali no dia-a-dia ajudando”, comprando coisas. Um impor-tante elemento simbólico envolvido aqui parece sera distinção e o respeito associados a quem empres-ta regularmente. Jorge, que é líder comunitário emParaisópolis, além de comerciante, afirma que re-cuperar o dinheiro emprestado “varia muito de

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pessoa para pessoa. Tem gente que eu nem cobro”.Nesse caso, trata-se de relações intrinsecamente as-simétricas (e até mesmo hierárquicas em algunscasos), baseadas em uma reciprocidade em que aconstrução e a manutenção de prestígio ocupamposições de destaque.

Como esse tipo de ajuda envolve confiança e épersonalizado, os indivíduos que o veiculam são dedifícil substituição. Conseqüentemente, sua saída oua redução do contato com elas (por aumento da dis-tância física, dada a economia dos vínculos, ou rom-pimentos diversos) pode piorar as condições deapoio e gerar vulnerabilidade social (e, em situaçõesextremas, até mesmo desfiliação social). Indivíduosmigrantes recentes também tendem a se ressentirde sua baixa inserção local pela dificuldade de obteresse tipo de ajuda. As entrevistas sugerem que, en-tre os migrantes, essa é uma motivação importan-te para receber parentes. Para além do sempre citadodesejo de melhora de vida para os parentes, comoafirmou João, de Tiradentes: “trouxe porque vi eainda vejo ainda muito progresso em São Paulo”, aconstituição de um núcleo familiar estendido fisica-mente próximo pode trazer grande facilidade nocotidiano, além de conforto emocional, melhoran-do o acesso a esse tipo de auxílio e ao seguinte.

Ajudas que envolvem confiança e intimidade

Esse tipo de ajuda envolve empréstimos de altovalor, confidências e apoio emocional e político(para os indivíduos com vida política e associativa).Os vínculos que viabilizam essa ajuda dependemfortemente de confiança, e mesmo de intimidade.Na maior parte das vezes tal confiança envolvehomofilia social, política ou mesmo moral.

Em alguns casos foram encontrados emprésti-mos de valor elevado, associados a entrevistadosenvolvidos com atividades comerciais. Os emprés-timos nesses casos tinham sentido bastante mercan-til, visto que apesar de não serem cobrados juros,estavam associados a compras de participação emsociedades. Entretanto, envolveram elementos evi-dentes de confiança, como é característico das rela-ções de associação comercial, aumentados pelosdiversos graus de informalidade característicos dessaesfera social, em que os vínculos da economia estão

fortemente atravessados pela economia dos víncu-los. Essa confiança é baseada em homofilia de com-portamentos, como descrito por McPherson et al.(2001). O ego não empresta necessariamente paraquem é próximo dele, mas para que tem compor-tamentos similares aos dele, considerados comoconfiáveis para os assuntos comerciais e de traba-lho. Portanto, nesses casos freqüentemente não háintimidade na relação, envolvendo indivíduos queinteragem apenas no domínio público.

Para as confidências e o apoio emocional emassuntos mais pessoais, entretanto, a situação é bas-tante diferente. No extremo, envolvem temas queLuciano, do Jaguaré, classificou como “picantes”ou momentos que Lucia, da Vila Nova Esperança,definiu como “hora da precisão”. Nesses casos, aprimeira dimensão de homofilia que aparece comforça é a de sexo – mulheres confidenciam commulheres e homens com homens. A exceção pare-ce ser entre jovens que, em alguns casos, mantêmamigos confidentes de outro sexo. Entretanto, ocaráter altamente seletivo desse tipo de apoio cre-dencia apenas uma parte dos indivíduos, mesmopróximos, para veiculá-lo.

Outro requisito para o estabelecimento de re-lações baseadas em confidências parece estar asso-ciado à ausência de assimetria, e apenas em relaçõescom baixa desigualdade esse tipo de ajuda podeser prestado. Nesse sentido, a relação com algunsmembros da família pode aparecer com sinal in-vertido, e a proximidade pode os descredenciar ase tornarem confidentes ou exercerem apoio emo-cional, embora isso por vezes não ocorra. Esse é ocaso da relação entre pais e filhos de famílias comestrutura mais tradicional ou patriarcal, em que agramática das relações envolve fortemente autori-dade ou hierarquia. A presença de confidências en-tre mãe e filhas adolescentes ou adultas, no entanto,parece ser muito comum e um dos principais pon-tos de apoio emocional para ambas. Como já dis-cutido, embora confiança possa estar presente emrelações que envolvam autoridade, intimidade nãoestá, sendo algo típico de relações entre iguais. Acre-dito que essa dimensão não é particular do gruposocial analisado.

Um elemento adicional a destacar nas confidên-cias e no apoio emocional diz respeito à homofilia

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de comportamentos, ou como afirmou João, deTiradentes, quando “as idéias batem”. Nas palavrasde Luciano, do Jaguaré, “confiança para mim é apessoa ter os mesmos hábitos que você, ela gostardas mesmas coisas que você, ela mostrar o mesmocaráter que você, freqüentar os mesmos ambientesque você e ter os mesmos gostos que você”. As-sim, é muito mais provável que indivíduos comcrenças, comportamentos e práticas similares se tor-nem confidentes do que quando isso não ocorre.Os exemplos desse caso abundam, incluindo jo-vens que confidenciam a jovens com quem têmpráticas comuns, homossexual que faz confidênciascom homossexuais, evangélicos que confidenciama evangélicos, assim por diante. Essa seletividadeparece estar ligada ao fato de que, como os assun-tos são freqüentemente pessoais, envolvem julga-mentos morais mediados pela existência de homo-filia de comportamentos e idéias. Essa homofiliapotencializa o compartilhamento de linguagens erepertórios que tornam mais fácil o entendimentodas questões discutidas.13

Para os indivíduos que têm vida associativa, asentrevistas indicaram a existência de outro tipo deconfiança específica – a política – , em que tambémestá presente um tipo de homofilia de idéias relacio-nada com a similaridade de posicionamentos polí-ticos. Por vezes, as relações são marcadas por umcaráter hierárquico, como na relação entre um lídere membros de seu grupo político. Embora nessasrelações possa existir confiança política, muito ra-ramente aparecem confiança pessoal e intimidade,pois como David, um jovem de Paraisópolis, afir-mou, “na questão política eu tenho certa dificulda-de de colocar essas questões, pois para eles a gentetem que mostrar certa capacidade, certa força, e aíeu me sinto impossibilitado e não fico à vontadeque eles conheçam fraquezas minhas”. A gramáticadas relações hierárquicas é pouco compatível coma intimidade.

No caso das ajudas mais custosas e baseadasem confiança, a redução da presença de indivíduosmobilizáveis na rede de um dado ego pode criarproblemas ainda mais dramáticos do que nas aju-das anteriores. Isso pode acontecer por desloca-mento físico, mas também por quebra de confian-ça ou redução da intimidade, levando à redução do

apoio, em especial o emocional. Em casos extre-mos, isso pode ocorrer mesmo nas relações fami-liares. É o caso de Cristina, uma jovem de 24 anosde Tiradentes, desempregada e mãe de três filhos.Na primeira entrevista a jovem morava com a fa-mília do marido. Um ano depois, havia sido agre-dida por ele, brigado com os sogros e morava nacasa dos pais, com o terceiro filho. Os seus outrosfilhos, hoje com 11 e 9 anos (de outros pais), jáeram criados por sua mãe, mas, nesse caso, não setratava de ajuda com as crianças, mas de adoção(informal), perdendo a mãe o controle sobre osdestinos das crianças.

Cristina alega que a sua família não tolera o ma-rido, pai do terceiro filho. Ele não trabalha, freqüentagangues e a maltrata fisicamente com freqüência.Toda vez que ela era agredida, seus irmãos batiamno marido, mas ela em seguida voltava com ele.Depois que esta situação se repetiu vezes, ela per-deu completamente o crédito com a família em ter-mos morais, resultando em uma situação em queos vínculos ainda existem, mas os conteúdos espe-rados (por serem de família) foram esvaziados.Assim, apesar de morar hoje na casa dos pais, aentrevistada nem mesmo fala com a maior partedas pessoas da família, que a trata com visível des-prezo. Para uma pessoa nessa situação, as relaçõesque veiculam apoio emocional e ajudas baseadasem confiança estão praticamente exauridas; Cristi-na parecia estar às portas do desespero. Segundoseu relato, a única pessoa que continuava a ajudá-laera um morador do prédio que tinha pena dela (so-lidariedade difusa e despersonalizada). No entanto,a natureza das relações familiares é tão forte que afamília a aloja e a alimenta.

O conteúdo de vínculos de uma determinadarede também pode aumentar a disponibilidade deindivíduos potencialmente associados a ajudas cus-tosas e baseadas em confiança. Isso pode ocorrerinclusive como produto das próprias ajudas pres-tadas. Um caso reportado por Joana, que mora emum cortiço com dois filhos, ilustra essa situação. Suavizinha, recém-chegada e sem conhecidos no corti-ço, tinha três filhos pequenos e não tinha com quemdeixá-los quando ia trabalhar. Como ela deixava osfilhos trancados no quarto durante todo o dia, umaoutra moradora denunciou a situação ao Conselho

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Tutelar da Infância, e a polícia apareceu para averi-guar. Joana recolheu as crianças em seu quarto, es-condendo-as da polícia, e afirmou que a denúnciaera falsa. Desde esse dia, Joana e a vizinha são mui-to próximas e se ajudam reciprocamente, tendo setornadas amigas íntimas.

Conclusão

Considerando a complexidade do padrão en-contrado, sumarizo nesta conclusão as principaisdimensões envolvidas. De uma forma geral, as in-formações sugeriram que as ajudas variavam se-gundo os custos envolvidos (materiais e imateriais)e a confiança necessária, entendida como segurançado cumprimento das expectativas da relação, quais-quer que sejam.

Em um extremo, localizam-se as ajudam pou-co custosas e que podem ser veiculadas por rela-ções de baixa confiança, baseadas em solidarieda-des difusas e impessoais. Esse grupo inclui ajudacomo, por exemplo, acudir alguém em momentosde crises de saúde, empréstimo de ferramentas e demantimentos, necessidade de olhar a casa durante aausência dos donos, além do fornecimento de in-formações sobre serviços e empregos. Esse tipode ajuda é veiculado tipicamente por relações fre-qüentes, mas pouco intensas, e que não necessitamde confiança elevada.

Em um conjunto intermediário estão ajudaspersonalizadas que envolvem custos ou esforçoscrônicos e constantes, ligadas por relações com al-guma confiança. Nesse caso, são freqüentes os pa-gamentos, mesmo para pessoas próximas, comoforma de reduzir os custos envolvidos. Como setrata de auxílio personalizado, as pessoas que pres-tam tais serviços dificilmente podem ser substituí-das, sendo que indivíduos com baixa inserção so-cial tendem a encontrar dificuldades de mobilizaresse tipo de ajuda, em um mecanismo circular deprodução de desigualdades.

Por fim temos as ajudas de alto custo ou/e queenvolvem alta confiança e são muito personalizadas.A questão mais importante aqui diz respeito a apoio,baseando-se, portanto, em confiança pessoal, pro-fissional ou política. Como as relações capazes de

viabilizar esse tipo de ajuda são relativamente raras,sua ausência pode representar um importante ele-mento de vulnerabilidade para os indivíduos.

Toda essa dinâmica guarda certa circularidade,e indivíduos com inserção social mais precária apre-sentam grandes dificuldades para mobilizar ajudasmais custosas, perpetuando as desigualdades sociais.Por outro lado, a concessão de ajudas importantespode mudar o conteúdo das relações, aumentandoa confiança e, conseqüentemente, habilitando a re-lação a veicular ajudas mais custosas e íntimas.

Notas

Devo a observação dessa dimensão e a sua formula-ção a discussões com Encá Moya e Valéria Macedo, aquem agradeço.Relações homofílicas são relações entre pessoas demesmo atributo.Ou, tecnicamente, a apenas um passo do ego.Essa decisão mostrou-se muito acertada, pois as re-des encontradas na pesquisa variaram entre cinco e148 nós.O sentido de acaso aqui não diz respeito à aleatorieda-de estatística, visto que a probabilidade de qualquerdos moradores da comunidade ter sido escolhido nãoé igual (para não dizer de outros locais de moradia deindivíduos em situação de pobreza) e os percursosnão foram exaustivos no interior de cada local de estu-do, nem se lançou mão de “pulos” sistemáticos paraa escolha de entrevistados. Diferentemente da constru-ção de uma amostra aleatória dos pobres (ou dos po-bres nos locais estudados), o desenho da pesquisa com-binou escolha intencional de locais com abordagemao acaso de moradores nas ruas das comunidades.Não disponho de espaço suficiente neste artigo paraapresentar as técnicas empregadas. Mas, de forma re-sumida, os dados relacionais oriundos das entrevis-tas foram processados em matrizes de contigüidade,a partir das quais foram geradas medidas relacionaisde centralidade, intermediação, alcance e distâncias, as-sim como das redes egocentradas no ego e relativas àestrutura das redes. Para maiores detalhes sobre osmétodos empregados, ver Marques (no prelo), e parareferências técnicas sobre redes, ver Wasseman e Faust(1994) e Hanneman e Riddle (2005).Para uma caracterização dos entrevistados e uma dis-cussão comparativa entre seus atributos e os do

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conjunto dos indivíduos das áreas estudadas, ver Mar-ques (no prelo).Considerando a complexidade do padrão de influên-cia dos condicionantes, optei por não apresentá-losnesse artigo, sendo o leitor interessado remetido aMarques (no prelo).Tilly (2005) constrói uma teoria a respeito da repro-dução de desigualdades associadas a categorias social-mente construídas como pares opostos – homem/mulher, branco/negro etc. Para ele, certos processossocietários e organizacionais tornam a reprodução detais desigualdades circular e cumulativa, o que exploraseu caráter durável e resiliente.O raciocínio, evidentemente, considera que as demaiscondições do mercado de trabalho sejam constantes eque as redes ligadas ao ego por vínculos fortes nãomudem muito, caso contrário informação nova podechegar pela transformação do ambiente econômico edas redes, independentemente da força dos vínculos.Guimarães (2004) encontrou resultados compatíveiscom essa interpretação ao aplicar um survey junto ademandantes de emprego em São Paulo. Emborasem estudar as redes diretamente, a autora indicouum decréscimo de importância relativa na busca deemprego dos círculos mais próximos dos indivíduosà medida que avança a idade.Vale destacar o paralelismo desse raciocínio com a críticade Karl Polanyi (1980) à idéia do livre mercado comocampo das relações econômicas desencarnadas das rela-ções sociais. Tanto o mercado como o Estado são par-tes constitutivas da sociedade, atravessados por vín-culos de diversos tipos, e podem ser separados delaapenas analiticamente, e mesmo de forma provisória.A ontologia das relações entre o Estado e o seu entor-no imediato (assim como do mercado), entretanto,não pode desconsiderar suas inserções mais amplas.Renata Bichir chamou-me a atenção para essa dimen-são, a quem agradeço.

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REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 24 No 7140

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REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 24 No 70188

AS REDES IMPORTAM PARA OACESSO A BENS E SERVIÇOSOBTIDOS FORA DE MERCADOS?

Eduardo C. L. Marques

Palavras-chave: Pobreza; Sociabilida-de; Redes sociais; São Paulo.

Este artigo discute o papel das redes so-ciais e da sociabilidade no acesso a bens eserviços obtidos por indivíduos pobresfora de mercados. São utilizadas infor-mações qualitativas de uma pesquisa so-bre redes de indivíduos pobres que habi-tam locais segregados em São Paulo, alémde indivíduos de classe média utilizadoscomo controle. Os resultados compro-vam a importância das redes e sugeremque as ajudas que medeiam os acessossão dependentes dos tipos de relação econfiança envolvidos, assim como doscustos de ajudar. As dinâmicas observa-das tendem a reiterar desigualdades, cons-tituindo circularidades de reprodução dapobreza.

DO SOCIAL NETWORKS MATTERFOR THE ACCESS TO GOODSAND SERVICES OBTAINEDOUTSIDE MARKETS?

Eduardo C. L. Marques

Keywords: Poverty; Sociability; Socialnetworks; São Paulo.

This article discusses the role of socialnetworks and sociability in the access bypoor people to goods and services ob-tained outside of markets. The articleuses qualitative information from a re-search about social networks of poorindividuals living in segregated places inSão Paulo, as well as middle class indi-viduals used as a control. The results showthe importance of networks and suggestthat the helps that mediate the accessesdepend upon the types of ties and trustinvolved, as well as the cost of helping.The observed processes tend to reiterateinequalities, establishing circularities ofpoverty reproduction.

EST-CE QUE LES RÉSEAUXIMPORTENT POUR L’ACCÈS AUXBIENS ET SERVICES OBTENUSEN DEHORS DES MARCHÉS?

Eduardo C. L. Marques

Mots-clés: Pauvreté; Sociabilité; Ré-seaux sociaux; São Paulo.

Cet article aborde le rôle des réseaux so-ciaux et de la sociabilité dans l’accès auxbiens et services obtenus par des indivi-dus pauvres en dehors des marchés. Nousavons, pour cela, utilisé des informationsqualitatives d’une recherche à propos desréseaux d’individus pauvres qui habitentdes quartiers ségrégés à São Paulo, outreles individus de classe moyenne, utiliséscomme contrôle. Les résultats confirmentl’importance des réseaux et suggèrent queles aides qui assurent la médiation auxaccès sont dépendantes des genres de re-lation et de la confiance qui sont enga-gés, ainsi que des coûts de cette aide. Lesdynamiques observées tendent à réaffir-mer les inégalités et constituent, de cefait, des circularités de reproduction dela pauvreté.

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