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1 As Redes Sociais do Samba e do Carnaval de Rua Carioca 1 . Andréa Almeida de Moura Estevão Jornalista, Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ. Professora da UNESA. Jorge Edgardo Sapia Cientista Social pela UFF, Mestre em Sociologia pelo IUPERJ, Professor da UNESA e Professor Temporário da UFRRJ Palavras-chave: BLOCOS CARNAVALESCOS, SAMBA , REDES SOCIAIS. Introdução Nos últimos dois anos temos nos dedicado a pesquisar sobre o movimento de retomada do carnaval de rua carioca, iniciado na década de 1980. Essa pesquisa tem como algumas de suas diretrizes mapear personagens, lugares de memória, fatos e narrativas que permitam o resgate da história recente desse movimento; assim como as disputas não apenas em torno do espaço festivo carnavalesco, mas também em torno dos desejos de cidade presentes no Rio de Janeiro, nas últimas décadas. Convidados a participar do II Congresso Nacional do Samba, encontro que propõe uma releitura da Carta do Samba, elaborada há cinquenta anos pelo folclorista Edison Carneiro, buscaremos contribuir com algumas considerações sobre a relação íntima, os laços estreitos e afetivos entre alguns desses blocos de carnaval da retomada 2 , no Rio de Janeiro, com os botequins e as rodas de samba da cidade. A Carta Nacional do Samba é de 1962, momento em que as ideias de nação e de cultura popular pontuavam o debate no qual o samba, desde o final da década de 1930, tinha sido escolhido símbolo da identidade brasileira e convocado para viabilizar o projeto de construção da Nação. Projeto que só será concretizado com a implantação, a partir de meados de 1960, de um sistema de comunicação via satélite, permitindo a consolidação de uma indústria cultural. Produto da indústria cultural, o Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão, embalado entre 1 Trabalho apresentado no Segundo Congresso Nacional do Samba. UNIRIO. Rio de Janeiro. 1e 2 de Dezembro de 2012. 2 Blocos, são grupos carnavalescos, abertos à participação de todos, sem cordas e sem obrigatoriedade de indumentária própria. Os participantes desfilam em cortejo, cantando durante o percurso uma música autoral feita especificamente para a ocasião. Para o presente trabalho propomos a seguinte classificação: blocos da primeira geração, Cacique de Ramos, Bafo da Onça, Boemios de Irajá e Clube do Samba; blocos da segunda geração ou da retomada, Barbas, Simpatia é quase Amor, Suvaco de Cristo, bloco de Segunda, Carmelitas, Meu Bem Volto Já, Escravos da Mauá e Que Merda é Essa; e blocos do crescimento, que incluem todos aqueles formados no terceiro milênio e que, no carnaval do ano 2012, totalizaram aproximadamente 500 agremiações.

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    As Redes Sociais do Samba e do Carnaval de Rua Carioca1.

    Andra Almeida de Moura Estevo

    Jornalista, Mestre em Comunicao e Cultura pela ECO/UFRJ. Professora da UNESA.

    Jorge Edgardo Sapia

    Cientista Social pela UFF, Mestre em Sociologia pelo IUPERJ, Professor da UNESA e Professor

    Temporrio da UFRRJ

    Palavras-chave: BLOCOS CARNAVALESCOS,

    SAMBA , REDES SOCIAIS.

    Introduo

    Nos ltimos dois anos temos nos dedicado a pesquisar sobre o movimento de retomada

    do carnaval de rua carioca, iniciado na dcada de 1980. Essa pesquisa tem como algumas de

    suas diretrizes mapear personagens, lugares de memria, fatos e narrativas que permitam o

    resgate da histria recente desse movimento; assim como as disputas no apenas em torno do

    espao festivo carnavalesco, mas tambm em torno dos desejos de cidade presentes no Rio de

    Janeiro, nas ltimas dcadas. Convidados a participar do II Congresso Nacional do Samba,

    encontro que prope uma releitura da Carta do Samba, elaborada h cinquenta anos pelo

    folclorista Edison Carneiro, buscaremos contribuir com algumas consideraes sobre a relao

    ntima, os laos estreitos e afetivos entre alguns desses blocos de carnaval da retomada2, no Rio

    de Janeiro, com os botequins e as rodas de samba da cidade.

    A Carta Nacional do Samba de 1962, momento em que as ideias de nao e de cultura

    popular pontuavam o debate no qual o samba, desde o final da dcada de 1930, tinha sido

    escolhido smbolo da identidade brasileira e convocado para viabilizar o projeto de construo

    da Nao. Projeto que s ser concretizado com a implantao, a partir de meados de 1960, de

    um sistema de comunicao via satlite, permitindo a consolidao de uma indstria cultural.

    Produto da indstria cultural, o Jornal Nacional da Rede Globo de Televiso, embalado entre

    1 Trabalho apresentado no Segundo Congresso Nacional do Samba. UNIRIO. Rio de Janeiro. 1e 2 de Dezembro

    de 2012. 2 Blocos, so grupos carnavalescos, abertos participao de todos, sem cordas e sem obrigatoriedade de

    indumentria prpria. Os participantes desfilam em cortejo, cantando durante o percurso uma msica autoral feita

    especificamente para a ocasio. Para o presente trabalho propomos a seguinte classificao: blocos da primeira

    gerao, Cacique de Ramos, Bafo da Ona, Boemios de Iraj e Clube do Samba; blocos da segunda gerao ou da

    retomada, Barbas, Simpatia quase Amor, Suvaco de Cristo, bloco de Segunda, Carmelitas, Meu Bem Volto J,

    Escravos da Mau e Que Merda Essa; e blocos do crescimento, que incluem todos aqueles formados no terceiro

    milnio e que, no carnaval do ano 2012, totalizaram aproximadamente 500 agremiaes.

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    duas telenovelas, ajudou a construir um imaginrio que privilegiou a ideia de modernizao e

    de construo de um Brasil potncia. Nesse contexto, no que diz respeito produo de gostos

    musicais, modernizar-se implicava, como afirma Alejandro Ulloa, estar em sintonia com a

    msica e a cultura pop norte-americanas, que faro a cabea das novas geraes. quando o

    samba comea a perder sua hegemonia na mdia ante um pblico que tem outros gostos, porque

    ser educado sob outros modelos, os do cancioneiro da msica internacional (baladas, rock,

    heavy metal, Beatles). (ULLOA, 1998: 161)

    Hoje, 50 anos mais tarde, as ideias de nao e de popular, se encontram em declnio e

    as questes culturais so discutidas em outros termos, o que no impede que ainda existam

    atores engajados na preservao do gnero musical que funcionou como amlgama da nao

    brasileira. A ideia de preservao num momento de consolidao da indstria e mercado

    cultural internacional o objetivo premente, que se constata na letra da prpria carta, ao

    esclarecer o esforo que esta representa: esforo para coordenar medidas prticas e de fcil

    execuo para preservar as caractersticas tradicionais do samba sem, entretanto, lhe negar ou

    tirar a espontaneidade e perspectiva de progresso.

    Nosso trabalho trilhar de algum modo o eixo de articulao da preservao do samba,

    no tanto numa discusso sobre o quanto o samba como gnero segue as tradies ou se inova.

    Nosso interesse pensar os vnculos dos blocos que retomam o carnaval de rua e as prticas

    culturais em torno do samba como acontecimento, como encontro, que convoca e rene

    (ULLOA, 1998: 89). Para tanto, trabalharemos com as noes de festa, de memria e de

    circuito.

    Procuramos neste artigo alinhavar algumas ideias em torno do papel das redes sociais

    construdas no processo de retomada do Carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro3. Processo

    que comea a ser constituido em meados da dcada de 1980, no contexto da transio

    3 Por retomada carnavalesca fazemos referncia, embora no exclusivamente, s agremiaes que surgem a partir

    de 1985 no vcuo da campanha pelas eleies diretas e que, a partir de 2000, formaram a Sebastiana Associao Independente dos Blocos da Zona Sul, Santa Teresa e Centro da cidade de So Sebastio de Rio de Janeiro. A

    associao resultou da necessidade de pensar o fenmeno do crescimento, dos impactos e consequncias que a

    festa carnavalesca produz. Essa vontade associativa surge quando seus integrantes percebem que, para alm dos

    encontros simblicos, a festa se transformava em arena que colocava em contato vises de mundo diferentes.

    Discutimos essas questes em SAPIA, Jorge Edgardo; ESTEVO, Andra Almeida de Moura. Consideraes a respeito da retomada carnavalesca: o carnaval de rua no Rio de Janeiro. Textos escolhidos de cultura e arte populares. Rio de Janeiro, v.9, n.1, p. 201-220, mai. 2012.

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    democrtica. Talvez possamos ler essa retomada como uma resposta ao sentimento de que o

    samba e o carnaval de rua se encontravam, por vrios fatores, em declnio. A criao do Bloco

    carnavalesco Clube do Samba, em 1979, de alguma maneira faz parte de um impulso de

    preservao e resgate. Este, assim como os tradicionais blocos de embalo Cacique de Ramos4,

    Bafo da Ona e Bomios de Iraj sero fonte de inspirao para a formao dos primeiros blocos

    da retomada: o Bloco do Barbas e o Simpatia Quase Amor.

    Voltei, aqui o meu lugar.

    O Bloco do Barbas e o Simpatia Quase Amor, assim como outros que foram

    inventados na sequncia, resultaram das redes criadas em torno do movimento associativo que

    vicejou durante o longo processo de transio democrtica: associao de moradores,

    movimento a favor da anistia poltica e, posteriormente, o movimento multitudinrio das

    Diretas J. As redes criadas em torno das rodas de samba que aos poucos ocuparam diversos

    espaos, particularmente, na Zona Sul e no Centro da Cidade, de um certo modo, deram

    continuidade aos encontros da militncia anterior. O associativismo, a militncia poltica, e o

    mundo do samba so redes de relaes recprocas construdas a partir de um capital social,

    acionado durante um longo percurso, que nos permite pensar, hoje, na existncia de um

    imaginrio coletivo que v os blocos carnavalescos como parte do patrimnio imaterial da

    cidade. Patrimnio que resultado de um longo e prazeiroso processo de organizao, de

    definio e de administrao da festa, que sempre , como lembra Nelson da Nbrega Fernandes

    (2001), coisa de gente que tem muito o que fazer.

    Isso nos leva a pensar que a festa do carnaval de rua um espao de observao

    privilegiado que permite vislumbrar aspectos da cultura e das redes de sociabilidade cariocas,

    pois coloca em circulao na esfera pblica, novas formas de imaginao e criatividade social

    que intensificam as trocas sociais e simblicas durante o tempo da festa e ajudam na construo

    de pontes que integram diversos setores sociais memria coletiva da cidade (HALBWACHS,

    2004). H nessas manifestaes uma potica e uma esttica que precisam ainda ser devidamente

    compreendidas.

    A fase atual se caracteriza pela descoberta de uma realidade desenhada por uma

    multiplicidade de propostas, manifestaes e eventos, produzidos por novos atores que

    4 Sobre a relao entre o samba e o Cacique de Ramos, ver Carlos Alberto Messeder Pereira. Cacique de Ramos:

    uma histria que deu certo. E-papers, 2003.

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    disputam a arena festiva. Na virada do sculo XXI, segmentos cada vez maiores da populao

    jovem urbana descobrem a festa e tambm a cidade, num quantitativo de aproximadamente 500

    blocos que animam a dilatada folia momesca5.

    Da gama diversificada de atores e instituies cujos diversos olhares permitem

    identificar a existncia de uma arena prenhe de conflitos e significaes, vamos citar apenas

    alguns. As indstrias ligadas s reas da hotelaria e do turismo, por exemplo, vem no

    crescimento das festas de rua, boa oportunidade de negcios. A mdia outro ator que, num

    primeiro momento, produziu um olhar eivado de elementos negativos e, hoje, apresenta uma

    leitura mais complacente com relao multido, ressaltando esses novos formatos de festa na

    cidade. Esses novos formatos de festa, por sua vez, instauram uma disputa entre os

    essencialistas, que entendem que o carnaval do Rio de Janeiro deva, necessariamente, estar

    vinculado ao samba, e aqueles que defendem posies inovadoras6. Algumas das associaces

    de moradores das reas consideradas nobres da cidade reclamam do carnaval de rua,

    mobilizadas que esto na defesa da preservao de seus espaos. As empresas transnacionais,

    atores onipresentes, desenvolvem agressivas estratgias de marketing e de comercializao dos

    espaos da cidade por onde passam os cortejos carnavalescos. J o poder pblico, tem se

    mostrado particularmente comprometido com o desenvolvimento de polticas pblicas que

    confirmam a tendncia contempornea de privatizao e comercializao da atividade cultural.

    (FORTUNA e SILVA, 2002:429).

    5 Foi aproximadamente esse quantitativo de blocos que obtiveram autorizao para desfilar no ano de 2012.

    Nmeros que revelam a diversidade de propostas e perspectivas que se deixam notar na criao de blocos com

    formatos to diversos: blocos musicais (Cu na Terra, Boitat, Songoro Cosongo, Os Siderais); blocos de gnero

    (Mulheres de Chico); blocos temticos (Sargento Pimenta, Toca Raul, Fogo e Paixo, Bloco Cr) etc. Alm

    daqueles que compartilham a proposta da Desliga carnavalesca, que tem por base o bloco Boi Tolo, dissidncia do bloco musical Cordo do Boitat. Alm deste, h outros blocos que compartilham a posio de que a festa carnavalesca no pode ter restries espaciais ou temporais. Alguns deles so: o Cordo umbilical; O centro vai

    virar mar; o Zoobloco; o Etnobloco; o Super Mrio Broz; etc. 6 A multiplicidade de blocos evidencia uma disputa pela identidade da festa, uma demarcao de fronteiras e

    elaborao de identidades sociais que confrontam vises essencialistas e inovadoras. Sobre os primeiros indicamos

    o artigo do produtor cultural Lef Almeida. O poder de resistncia dos cariocas publicado na editoria de Opinio do jornal o Globo em 25 de fevereiro de 2007 e o artigo Muito bloco, pouco samba, do Msico Henrique Cazes publicado na editoria de Opinio do Jornal O Globo em 24 de fevereiro de 2012. As posies inovadoras podem

    ser encontradas no Manifesto do Carnaval Nmade Cf.

    http://carnavalnomade.blogspot.com.br/2010/12/manifesto-do-carnaval-nomade.html

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    A Lapa confirmando a tradio.

    As redes de sociabilidade criadas em torno do universo dos blocos teve importante

    participao nas transformaes produzidas em algumas reas da cidade, particularmente, no

    tradicional bairro da Lapa, no Centro. O bairro foi objeto de um processo de revitalizao que

    comea no projeto Quadra da Cultura, criado no governo de Leonel Brizola. Em meados da

    dcada de 1990 um pblico de folies e compositores, vinculados aos blocos carnavalescos que

    posteriormente fundaro a Sebastiana, marcam presena nos espaos seminais desses circuitos

    do samba na cidade. Fazem parte do circuito: o pioneiro Arco da Velha que ocupava o espao

    do ltimo arco da Lapa, na esquina da Rua Joaquin Silva, na diagonal da Comuna do Semente;

    o bar Coisa da Antiga, nos fundos de um antiqurio na Rua do Lavradio 100 e, posteriormente,

    o Bar Carioca da Gema, na Av. Mem de S. Espaos que, sob a produo musical de Lef

    Almeida, do continuidade as rodas de samba do bar Sobrenatural, de propriedade da Srvula e

    do mestre Wilson Moreira, ou substituem o lugar vazio deixado pelo Bar Mandrake. Este ltimo,

    conhecido reduto do samba do bairro de Botafogo, responsvel pela divulgao desse gnero

    musical entre uma nova gerao de jovens msicos e novos folies. Sua roda de samba era

    frequentada e formada por msicos, tanto amadores quanto profissionais, da classe mdia e por

    militantes de grupos polticos de esquerda como constata, na sua pesquisa, Alejandro Ulloa7.

    Entre os profissionais podemos citar Edmundo Souto, Paulinho Soares, Beth Carvalho, Micau,

    Walter Alfaiate e Paulo Sete Cordas, s para citar alguns dos msicos e compositores que

    marcavam presena no lugar. Estes ltimos diretamente vinculados formao do Bloco do

    Barbas, aos quais devemos acrescentar os nomes de Mauro Duarte e Cristina Buarque de

    Hollanda. Comparecem nesse ponto de encontro tambm uma srie de produtores culturais como

    Paulinho Figueiredo, produtor da Velha Guarda da Portela; Nei Barbosa, fundador do Barbas e

    posterior produtor do Zeca Pagodinho; o j citado Lef Almeida, compositor e intransigente

    defensor do que ele denomina de MPC, Msica Popular Carioca.

    oportuno citar a tradicional roda do bar XPTO, na Rua do Matoso e, claro, o Bip Bip,

    em Copacabana, na medida em que so vistos pelos seus frequentadores como lugares de

    7 Sobre as caractersticas das rodas de samba do Mandrake, ver Ulloa, Alejandro. Pagode: a festa do samba no Rio

    de janeiro e nas Amricas. Rio de Janeiro. MultiMais Editoria, 1998.

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    resistncia, tanto quanto de comunicao em torno do universo do samba. Universo do qual

    fazem parte as rodas do Bar da Rampa, organizadas por Nzio Simes e Nego da Abolio. Nos

    ltimos anos, cabe ressaltar a importncia da Roda do Trabalhador, no Renascena Clube,

    organizado pelo msico e compositor Moacyr Luz, este tambm responsvel pela fundao do

    bloco carnavalesco Nem muda, nem sai de cima, na Zona Norte da cidade, com sede no Bar da

    Maria. Do outro lado da baa, em Niteri, podemos mencionar o terreiro do Candongueiro,

    comandado por Ilton Lopes Mendes. Circuitos que dialogam com j tradicional roda de samba

    do Cacique de Ramos, definida por Beth Carvalho, como a Sierra Maestra do samba.

    Felipe Trotta observa que as rodas de samba so lugares de expresso simblica de uma

    viso de mundo, que possibilitam desenvolver o que ele denomina de experincias musicais-

    sociais, isto , eventos sociais nos quais a msica atua como agente de unio e elemento

    agregador entre as pessoas. As experincias musicais-sociais so momentos onde os repertrios

    musicais sero utilizados e interpretados coletivamente pelos frequentadores na construo de

    seus gostos e identidades (TROTTA, 2004:3)

    Seu garom faa o favor.

    Entre ns, o botequim funcionou e funciona como ponto de encontro, lugar de

    sociabilidade, de prestao de pequenos servios. Alm disso, desempenha importante papel

    tanto na histria da cidade, quanto de suas principais manifestaes culturais8. Em seu trabalho

    Feitio Decente: transformaes do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), Carlos Sandroni

    (2001) argumenta que o botequim, por ser mais pblico e socialmente mais aberto, foi

    responsvel pela substituio dos lugares de consagrao do samba que, no nicio do sculo,

    estavam vinculados s casas das tias baianas. O botequim, ento, alm de permitir uma maior

    circulao deste gnero musical, se encontra associado ao novo estilo de samba caracterizado

    pelo uso de instrumentos de percusso - que tem sua origem no bairro carioca do Estcio de S,

    bairro que viu nascer a Deixa Falar, primeira escola de samba que, curiosamente, nunca foi

    escola. Foi na verdade, um bloco carnavalesco, criado em 1928. Cabral (1996:41)

    8 Cafs, livrarias, confeitarias e revistas sempre foram ponto de encontro e espaos de atuao de uma

    intelectualidade no abrigada nas instituies do Estado. Cf. Monica Pimenta Velloso. Modernismo no Rio de

    Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getlio Vargas, 1996.

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    Os botequins, diz Resende de Carvalho, se apresentam como espaos-sntese da

    cidade, so capazes de evocar uma multiplicidade de referncias simblicas que resultam da

    nossa qualidade de seres urbanos e, portanto, do fato de sermos autores da nossa cidade,

    construtores permanentes da sua significao e da sua personalidade (CARVALHO, 1994:

    96). O botequim, como lugar de encontro dos folies acaba transformando-se em uma espcie

    de espao cultural. O Bloco do Barbas um exemplo. Sua fundao em 1984, no bairro de

    Botafogo, resulta de uma sugesto feita pelo compositor Mauro Duarte o Bolacha

    frequentador do botequim com o mesmo nome do bloco. Dessa maneira, alguns espaos

    culturais podem ser lembrados na trajetoria destes atores: a Cobal de Botafogo, vinculada h 25

    anos ao Bloco de Segunda; o mercadinho So Jos, no bairro de Laranjeiras, sede do Imprensa

    que eu Gamo; a Taberninha do bairro do Leme, local de encontro dos folies que fundaram o

    bloco Meu Bem, Volto J; o bar Jia, no Jardim Botnico, sede do Suvaco de Cristo e o bar do

    Serginho, nas ladeiras do Bairro de Santa Teresa, ponto de concentrao do bloco das

    Carmelitas, no carnaval, e dos folies o ano inteiro. Vamos ficar s nestes, e aguardar um

    mapeamento mais completo no futuro.

    Entendemos que essas referncias nos permitem pensar a respeito da importncia dos

    diversos blocos com seus territrios. No s a presena fsica, mas se acompanharmos as letras

    dos sambas que embalam seus desfiles, podemos facilmente verificar a importncia que o

    bairro, que o local, tem na conformao da identidade dessas agremiaes. Por isso, qualquer

    proposta como j foi feita - de concentrar os desfiles de blocos da cidade numa espcie de

    blocdromo, foi enfticamente rejeitada pelos responsavis por essas agremiaes.

    Botequins, blocos carnavalescos, o samba e as festas podem ser vistos a partir da noo

    de lugares de memria proposta por Pierre Nora. Nos lugares de memria coexistem aspectos

    materiais, simblicos e funcionais. O aspecto material se refere ao seu contedo demogrfico;

    o aspecto funcional diz respeito possibilidade de cristalizao da lembrana e de sua

    transmisso e o aspecto simblico permite que uma experincia vivida por um pequeno grupo

    possa ser experimentada como prpria por aqueles que no participaram da experincia .

    (NORA, 1981:22). Michel Pollak (1992) ampliar a rede de significados e, alm dos

    acontecimentos vividos pessoalmente, chama a ateno para o que denomina de

    acontecimentos vividos por tabela, isto , acontecimentos vividos pelo grupo do qual a pessoa

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    no faz parte, porm, se sente pertencer. Talvez esteja nesse imaginrio uma das chaves

    compreensivas da revitalizao e do crescimento dos blocos na cidade.

    Desta maneira, se os acontecimentos, personagens e lugares so vetores de produo de

    memria, individual e coletiva, suas sedes, isto , os diversos botequins espalhados pela

    cidade, e seus trajetos, reproduzidos durante os cortejos carnavalescos, podem ser considerados

    como lugares de apoio memria transformamdo-se, por conseguinte, como sugere POLLAK

    (1992) em lugares de comemorao.

    Jos Guiherme Magnani sugere a noo de circuito para pensar aquilo que une

    estabelecimentos, espaos e equipamentos caracterizados pelo exerccio de determinada

    prtica em espaos urbanos no contguos e conhecidos basicamente pelos seus usurios

    (MAGNANI, 1996:45). Os espaos acima citados fazem parte de um circuito do samba, fazem

    parte do patrimnio cultural da cidade, so como acabamos de sugerir, lugares de memria. As

    rodas embaixo da tamarineira do Cacique de Ramos, na rua Uranos, ou bar Bip Bip, em

    Copacabana so, como observa Felipe Trotta, lugares de expresso simblica de uma viso de

    mundo, que permitem o desenvolvimento de experincias musicais sociais e se transformam

    em instncias que promovem a circulao de msica pela sociedade, exercendo um papel de

    legitimao perante os repertrios utilizados nesses eventos. (TROTTA, 2004:3).

    o juzo final

    Uma caracterstica fundamental do carnaval de rua e o clima de celebrao e festa, de

    contagiante alegria, de produo de felicidade, que deveria, como no Buto, ser incorporada

    oficialmente no ndice de medio da qualidade de vida da populao. Esta dimenso crucial,

    pois como aponta Mikhail Bakhtin, em A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento:

    o contexto de Franois Rabelais, as festas emanam dos fins superiores da existncia humana,

    isto , do mundo dos ideais e so uma forma primordial da civilizao humana:

    As festividades tiveram sempre um contedo essencial, um sentido profundo,

    exprimiram sempre uma concepo de mundo. Os exerccios de regulamentao e aperfeioamento do processo do trabalho coletivo, o jogo no trabalho, o descanso ou a trgua no trabalho nunca chegaram a ser verdadeiras festas. Para que o sejam, preciso um elemento a mais, vindo de

    uma outra esfera da vida corrente, a do esprito e das ideias. (BAKHTIN,

    1987:7-8)

  • 9

    Enquanto produto social, a festa produtora de identidade entre os participantes, pois

    estes compartilham do smbolo que comemorado e que, portanto, se inscreve na memria

    coletiva como um ato emotivo, como a juno dos afetos e expectativas individuais, como um

    ponto em comum que define a interao dos participantes. (GUARINELLO, 2001)

    La Freitas Perez discute no artigo Festa, religio e cidade: corpo e alma do Brasil

    trs categorias de ligao, que so, como diz a autora,

    Trs formas fundamentais de ligar, trs formas eminentes de sociao, por

    intermdio das quais se realizam a troca e a comunicao, dois fundamentos

    essenciais da experincia humana em coletividade. Ligao/comunicao

    com os afetos e com as emoes, ligao/comunicao/troca com o sagrado

    e com os deuses, ligao/negociao com os deveres e com as obrigaes.

    (PEREZ, 2011:26)

    Portanto, a festa uma categoria boa para pensar sobre os processos de integrao, de

    confronto e de conflitos que esto na base dos processos de interao social e das formas de

    sociao, categoria central na sociologia de George Simmel. Para o autor, a sociao s

    comea a existir:

    Quando a coexistncia isolada dos indivduos adota formas determinadas de

    cooperao e de colaborao, caem sob o conceito geral da interao. A

    sociao , assim, a forma realizada de diversas maneiras, na qual os

    indivduos constituem uma unidade dentro da qual realizam seus interesses.

    E na base desses interesses tangveis ou ideais, momentneos ou duradouros, conscientes ou inconscientes, impulsionados causalmente ou

    induzidos teleologicamente que os indivduos constituem tais unidades pela qual os indivduos se agrupam em unidades que satisfazem seus

    interesses. (SIMMEL, 1983:60)

    Nesse sentido nossa preocupao se orienta para o mundo da vida, entendido enquanto

    lugar de afetos, sentimentos e paixes que se fazem particularmente presentes no tempo e no

    espao da rua, lugar como sabemos, privilegiado das festas carnavalescas. (SCHUTZ, 1979)

    As festas so, como lembra Roberto DaMatta, o extraordinrio construdo pela e para

    a sociedade, (DAMATTA, 1978: 37), encontram-se situadas fora do dia a dia repetitivo e

    rotineiro e se caracterizam pelo carter aglutinador de pessoas e grupos sociais. No caso que

    escolhemos investigar, esse carter aglutinador projeta-se alm do tempo e do espao do

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    carnaval, permitindo a construo de novos olhares que talvez nos permitam entender o que os

    blocos podem revelar sobre a cidade e sobre a festa do samba.

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    Referncias Bibliogrficas:

    ALBURQUERQUE JNIOR, Durval Muniz. Festas para que te quero: por uma historiografia do festejar. Patrimnio e Memria. UNESP-FCLAs-CEDAP, v.7, n.1, p.134-150, jun.2011.

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