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UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA Carlos Mário Paes Camacho AS REPRESENTAÇÕES DA CIDADE MEDIEVAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA DO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO Vassouras 2008

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UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA

Carlos Mário Paes Camacho

AS REPRESENTAÇÕES DA CIDADE MEDIEVAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE

HISTÓRIA DO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO

Vassouras

2008

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Carlos Mário Paes Camacho

AS REPRESENTAÇÕES DA CIDADE MEDIEVAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE

HISTÓRIA DO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em História da Universidade Severino Sombra, Área de Concentração: História Social, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em HistóriaOrientador: Prof. Dr. José D’Assunção Barros da Costa

Vassouras

2008

2

AS REPRESENTAÇÕES DA CIDADE MEDIEVAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE

HISTÓRIA DO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO

CAMACHO, Carlos Mário Paes. As Representações da Cidade Medieval Ocidental nos Livros Didáticos de História do Ensino Médio. Dissertação de Mestrado em História. Área de Concentração: História Social, apresentada ao Programa de Mestrado em História da Universidade Severino Sombra, 2. semestre de 2008. p. 279.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

Prof. Dr. José D’Assunção Barros da Costa (Orientador)

Universidade Severino Sombra / RJ

______________________________________________

Profa. Dra. Lúcia Helena Pereira da Silva

Universidade Severino Sombra / RJ

______________________________________________

Prof. Dr. Flávio de Campos

Universidade de São Paulo / SP

Examinada a Dissertação:

Conceito:

Vassouras, _____ de ______________________ de 2008.

3

A Idade Média não existe. Este período de quase mil anos, que se estende da

conquista da Gália por Clóvis até o fim da Guerra dos Cem Anos, é uma

fabricação, uma construção, um mito, quer dizer, um conjunto de

representações e de imagens em perpétuo movimento, amplamente difundidas

na sociedade, de geração em geração, em particular pelos professores do

primário, os “hussardos negros” da República, para dar à continuidade

nacional uma forte identidade cultural, social e política.

CRISTIAN AMALVI

Todo ser humano tem consciência do passado (definido como o

período imediatamente anterior aos eventos registrados na

memória de um indivíduo) em virtude de viver com pessoas mais

velhas. Provavelmente todas as sociedades que interessam ao

historiador tenham um passado, pois mesmo as colônias mais

inovadoras são povoadas por pessoas oriundas de alguma

sociedade que já conta com uma longa história. Ser membro de

uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu passado

(ou da comunidade) ainda que para rejeitá-la. O passado é,

portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um

componente inevitável das instituições, valores e outros padrões

da sociedade humana. O problema para os historiadores é analisar

a natureza desse “sentido do passado” na sociedade e localizar

suas mudanças e transformações.

ERIC HOBSBAWM

O mínimo que se exige de um historiador é que seja capaz de

pensar a história, interrogando os problemas do presente através

das ferramentas próprias do seu ofício. O mínimo que se exige de

um educador é que seja capaz de pensar a sua ação nas

4

continuidades e mudanças do tempo, participando criticamente na

renovação da escola e da pedagogia.

ANTÓNIO NÓVOA

Aos meus pais, Mário Rodrigues Camacho e

Nelsina Paes Camacho, cujas lições de vida

fundamentais para o meu crescimento humano.

Aos meus avós Nelson de Freitas Paes e Paulina

Xavier Paes e Delminda Rodrigues Camacho

que também foram presenças importantes em

minha vida e deixaram muitas saudades. Esta

dissertação é também dedicada ao professor Dr.

José D’Assunção Barros por acreditar no

trabalho e pela firmeza e presteza na orientação

acadêmica. Ao professor José Ventura e a Zeil

cuja convivência e o aprendizado humano e

intelectual jamais esquecerei. Ao João Carlos

Borges, que através de suas análises, vem

contribuindo para o meu crescimento pessoal e

5

intelectual. E ao meu grande amor, minha

querida Beth.

6

AGRADECIMENTOS

No decorrer dos anos em que me dediquei a este trabalho, convivi com várias pessoas que, de

forma direta ou indireta, participaram da sua realização. Em primeiro lugar, aos professores do

Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Severino Sombra em especial à

professora doutora Philomena Gerbran e ao professor doutor Alberto Moby Ribeiro da Silva

pelas sugestões durante o exame de qualificação. Em segundo lugar aos funcionários,

professores e alunos do Instituto de Laticínios Cândido Tostes e da Escola Degraus, ambos de

Juiz de Fora. Em terceiro lugar, à professora Nadime Bara pela revisão do texto acadêmico.

Por fim, gostaria de registrar um agradecimento especial aos professores Gerson Occhi, Nelson

Luiz Tenchini e Danielle Braga Chelini Pereira todos do Instituto de Laticínios Cândido Tostes

em função do apoio em minhas incursões pelos caminhos da pesquisa.

7

RESUMO

Os livros didáticos são uma importante fonte para o estudo do processo histórico, ensejando

aos estudiosos uma compreensão das idéias, dos conceitos e representações aos estudantes. As

pesquisas e as representações da Idade Média sempre despertaram o interesse dos

historiadores. Nos livros didáticos destinados aos alunos do ensino médio e fundamental,

contudo ainda permanecem alguns mitos sobre tal período, crucial para a constituição do

Ocidente. A História do ensino de História Medieval no Brasil não pode ser examinada fora do

contexto da História do ensino de História no Brasil que, por sua vez, está condicionada

igualmente pelo processo histórico brasileiro. Professores e pesquisadores de vários lugares do

país, com a abertura política e fim do regime militar conscientizaram-se e mobilizaram-se

sobre a necessidade de mudanças nos currículos de História. O ensino de História Medieval no

Brasil só pode ser compreendido por intermédio do desenvolvimento da História do ensino no

Brasil através dos tempos. Acresce- se a isto, os temas e as concepções que nortearam os

educadores, no que concerne à Idade Média, estiveram inegavelmente ligados à produção

historiográfica engendrada na Europa. O meio rural medieval é que mais recebe destaque nos

livros de História do ensino médio brasileiro. A compreensão da cidade na Idade Média tem

engendrado uma série de questões para o entendimento do fenômeno urbano medieval. Apesar

de estar em interação com o mundo rural medieval, a cidade desenvolveu uma organização

política, econômica, social e cultural que lhe foi própria. As representações que os homens e as

mulheres do período medieval, abrem uma série de possibilidades para o historiador, no que

diz respeito à compreensão do fenômeno urbano medieval. O conceito de representação foi

8

estudado pelos pesquisadores vinculados à História Cultural, que se desenvolveu, sobretudo na

França. Os avanços da Historiografia, no que concerne à teoria, como também à metodologia

são notórios, o que contribuiu para o crescente interesse pela História no Brasil. As pesquisas

sobre a estrutura curricular estão vinculadas a uma série de pesquisas temas que tentam a

renovação da educação e tornar a escola um espaço mais atrativo para os nossos alunos. No

Brasil, a literatura ocidental sobre as pesquisas dos currículos escolares, sofreram a influência

dos trabalhos produzidos por estudiosos norte-americanos. A História, enquanto disciplina, faz

parte de um currículo escolar que é composto por uma série de conhecimentos que são

trabalhados nas salas de aulas. Na relação entre a História produzida pelas universidades pelas

universidades e aquelas ensinadas nas escolas, não se pode, em nome da autonomia escolar,

conceber um divórcio entre a produção acadêmica e o saber escolar. O crescimento de

trabalhos que têm tomado o livro didático como objeto de estudo favorece não só a pesquisa

acadêmica voltada para o conhecimento histórico, como também aquelas que se voltam para a

educação. A imposição cada vez mais do livro didático , como objeto de estudo nas instituições

de ensino superior no Brasil, insere-se nas reflexões que envolvem o saber escolar e o saber

acadêmico. O livro didático determina a confecção de currículos e programas escolares, assim

como o cotidiano das instituições de ensino. As origens dos livros didáticos situam-se no

desenvolvimento do processo histórico europeu ocidental. No resgate do livro didático pode-se

asseverar que desde o século XIX há uma tendência do Estado brasileiro em se preocupar com

os conteúdos trabalhados nas salas de aulas. A presença mais evidente do Estado brasileiro no

tocante ao controle sobre o livro didático em pleno regime militar (1964-1985). O Programa

Nacional do Livro Didático (PNLD), implantado após o fim do regime militar substituiu os

órgãos que regulamentaram o livro didático no Brasil. Atualmente tal programa, além de

fortalecer o processo avaliativo dos manuais didáticos, forneceu aos meios escolares no Brasil

novas ferramentas para se repensar o livro didático para a educação brasileira. O processo de

incremento industrial usado na produção dos manuais didáticos, veio acompanhado de uma

competição entre os editores. O período medieval foi contemplado com a publicação no

mercado brasileiro com uma série de paradidáticos. Nos livros didáticos do ensino médio

brasileiro nas décadas de 1980 e 1990, a cidade medieval do ocidente europeu foi representada

fundamentalmente em suas funções econômicas. A Cidade Medieval na Europa Ocidental,

embora ainda seja estudada em sua função econômica e comercial pelos manuais do início do

9

século XXI, aos poucos passou a ser representada, por intermédio de temas como a família, a

cultura popular, dentre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Livro Didático. Idade Média. Cidade Medieval. Ensino de História.

Representações. Ensino Médio.

10

ABSTRACT

Textbooks are an important source for the study of the historical process, providing studious an

understanding of ideas, concepts and representations for students. Researches and

representations of the middle ages always attracted the interest of historians. In textbooks for

students of high school and fundamental, however still some myths about this period, crucial

for formation of the West. The History of teaching medieval history in Brazil can not be

considered outside the context of the history of teaching of history in Brazil which, in turn, is

influenced also by the Brazilian historical process. Professors and researchers from several

places in the country, with the opening policy and end of the military regime is aware and

mobilized on the need for change in the curricula of history. Teaching of medieval history in

Brazil can only be understood through the development of history of education in Brazil

through the ages. In addition to that, the themes and ideas that guided the educators, with

regard to the Middle Ages were undeniably linked to production historiographical engendered

in Europe. The medieval is that rural areas receive more emphasis in the history books of

Brazilian high school. To understand the city in the Middle Ages has devised a series of

questions to the understanding of medieval urban phenomenon. Despite being in interaction

with the rural medieval, the city developed a political organization, economic, social and

cultural as last own. Representations that men and women of the medieval period open a

number of possibilities to the historian, regarding to understand the medieval urban

phenomenon. The concept of representation has been studied by researchers linked to the

Cultural History, which has developed, mainly in France. Advances in Historiography, with

regard to the theory, and methodology are most evident, which contributed to the growing

interest in history in Brazil. Researches on the curriculum structure are linked to a series of

research subjects who try to renew education and make the school more attractive space for our

students. In Brazil, the western literature on the research of school curricula, suffered the

influence of the work produced by American scholars. The history, as discipline, is part of a

school curriculum that consists of a series of knowledge that are worked in the classrooms. The

relationship between history produced by universities and those taught in schools, we can not

11

on behalf of school autonomy to a divorce between productions and learn academic school.

The growth of jobs has taken the textbook as an object of study not only encourages academic

research focused on the historical knowledge, but also those who turn to education. The

imposition of increasingly textbook as an object of study in institutions of higher education in

Brazil, were in the thoughts that surround the school and academic learning knowledge.

Textbook provides the preparation of curricula and syllabuses as well as everyday life in

educational institutions. The origins of textbooks are in the process of developing western

European history. In the rescue of a schoolbook can assure itself that since the nineteenth

century there is a tendency of the Brazilian state in worrying about the contents learned in the

classrooms. The most obvious presence of the Brazilian state with regard to control over the

textbook in the military regime (1964-1985). The National Program of the Textbook (PNLD),

deployed after the military regime replaced the organs that regulate textbook in Brazil.

Currently such a program, in addition to strengthening the evaluation process of teaching

materials, provided the schools in Brazil new tools to rethink the textbook for the Brazilian

education. The process of increasing industrial use in the production of teaching materials

came together in a competition among publishers. The medieval period was covered by the

publication in Brazilian market with a series of para. In high school textbooks of Brazil in the

1980s and 1990s, the medieval town of West European was represented primarily by their

economic functions. The Medieval city in Western Europe, but still is studied depending on

their economic and commercial textbooks by the beginning of the century, little by little began

to be represented, through topics such as family, popular culture, among others.

KEY WORDS: Textbook. Middle Ages. Medieval town. History education. Representations.

High school.

12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO------------------------------------------------------------------------------------- 15

1 MUNDO MEDIEVAL: REPRESENTAÇÕES, HISTÓRIA E ENSINO----------- 19

1.1 As Representações da Idade Média Ocidental------------------------------------------- 19

1.2 A História do ensino de História no Brasil------------------------------------------------24

1.3 A História do ensino de História Medieval no Brasil----------------------------------- 33

1.4 Considerações Finais-------------------------------------------------------------------------- 49

2 A CIDADE E O MUNDO MEDIEVAL--------------------------------------------------- 53

2.1 Cidade e História: os antecedentes da cidade medieval-------------------------------- 53

2.2 A compreensão do fenômeno urbano medieval------------------------------------------ 56

2.3 A construção do conceito de cidade medieval-------------------------------------------- 83

2.4 Considerações Finais-------------------------------------------------------------------------- 86

3 REPRESENTAÇÕES E CURRÍCULOS NO BRASIL--------------------------------88

3.1. A História Cultural e a noção de representação----------------------------------------88

3.2 Representação e iconografia----------------------------------------------------------------96

3.3 A Estrutura curricular no Brasil: uma breve História--------------------------------108

3.4 O Currículo de História no Brasil---------------------------------------------------------129

3.5 Considerações Finais-------------------------------------------------------------------------135

4 O LIVRO DIDÁTICO E AS REPRESENTAÇÕES DA CIDADE MEDIEVAL----139

4.1 A Renovação historiográfica e a História da Educação----------------------------------139

4.2 O Livro na cultura ocidental-------------------------------------------------------------------145

4.3 O Livro didático no Brasil----------------------------------------------------------------------147

4.3.1 O Livro paradidático no Brasil--------------------------------------------------------------163

13

4.4. A análise dos livros didáticos do ensino médio brasileiro-------------------------------188

4.4.1 Introdução---------------------------------------------------------------------------------------183

4.4.2 Os Livros didáticos de História nas décadas de 1980 e 1990-------------------------185

4.4.3 Os Livros didáticos no Brasil do limiar do século XXI e o Programa Nacional do

livro para o Ensino Médio (PNLEM)-------------------------------------------------------------207

4.5 Considerações Finais----------------------------------------------------------------------------243

CONSIDERAÇÕES FINAIS----------------------------------------------------------------------256

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS -------------------------------------------------------- 271

14

INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como objeto de pesquisa o estudo, As Representações da Cidade

Medieval nos Livros de História do Ensino Médio Brasileiro. A escolha se deve à constatação

de que a Idade Média vem sendo estudada, compreendida e ensinada nas instituições

universitárias e nas escolas do ensino fundamental e médio a partir de um ângulo

fundamentalmente rural.

O estudo quer contribuir em primeiro lugar para uma valorização da Idade Média no

ensino médio brasileiro. Em segundo lugar, colaborar para o questionamento sobre os

estereótipos que ainda vigoram sobre esse período que foi imprescindível para a constituição

da cultura ocidental da qual somos herdeiros. Em terceiro lugar, incentivar também o debate no

que concerne à percepção de que a Idade Média, apesar de predominantemente rural, conheceu

uma vida urbana marcada por um grande dinamismo. Por fim, pesquisar como os livros

didáticos de História do ensino médio brasileiro, a partir da década de 1980, representam a

cidade medieval e em que medida tais representações não estariam contribuindo para a

manutenção dos estereótipos sobre o período medieval. Por exemplo, em que medida, ao

priorizarmos estudos sobre o mundo rural medieval, não estaríamos fomentando o mito

historiográfico Idade Média, como “Idade das Trevas” ?

Como fonte básica para o presente estudo, foram selecionadas inicialmente seis obras

didáticas amplamente adotadas nas escolas brasileiras nas décadas de 1980 e 1990, cujos

autores alcançaram um grande prestígio nacional. Tais obras foram selecionadas também em

razão de suas contribuições para a renovação do ensino de História no Brasil. Elas, contudo,

não passaram por uma avaliação sistemática do Ministério da Educação.

15

Os outros seis livros didáticos selecionados correspondem a obras que estão em

circulação no mercado editorial brasileiro desde o final do século XX. Elas foram escritas por

autores já conhecidos, com exceção talvez dos autores Gislane Campos Azevedo e Reinaldo

Seriacopi, que escreveram o manual didático que foi denominado por: História. Tais manuais

foram confeccionados e revisados em conformidade com os parâmetros estabelecidos pelo

Programa do Livro para o Ensino Médio (PNLEM). Tal catálogo utilizado neste trabalho

corresponde ao do ano de 2008.

Defendo como hipótese central a idéia de que as representações realizadas sobre a

cidade no medieval nos manuais examinados ainda privilegiam as funções econômicas,

notadamente as que dizem respeito ao comércio, embora nos manuais publicados mais

recentemente perceba-se uma preocupação em relativizar um pouco a função econômica das

cidades medievais por intermédio da abordagem de temas que remetem ao cotidiano e às

representações culturais. Como uma segunda hipótese, creio que a ênfase na representação da

Idade Média rural diminui o espaço destinado ao estudo da vida urbana, comprometendo assim

a percepção da dinâmica e pluralidade da vida cultural das cidades medievais pelos nossos

estudantes do ensino médio. Por isso, corre-se o risco de se perder as representações das

cidades medievais como um aliado importante no combate ao mito historiográfico que associa

a Idade Média à “Idade das Trevas”.

Compete acrescentar que o presente trabalho está em dividido em quatro capítulos. O

primeiro, intitulado “Mundo Medieval: Representações, História e Ensino”. Ele almeja

inicialmente problematizar as representações da Idade Média, chamando a atenção para a

importância das representações do mundo medieval nos livros didáticos. Posteriormente, o

texto abre-se para uma breve consideração sobre a História do ensino de História no Brasil,

tomando como base a periodização tradicional da História brasileira. Finalmente, o capítulo é

16

encerrado com uma breve reflexão sobre a História do ensino de História Medieval no Brasil,

juntamente com os novos temas que surgiram e que surgem com as freqüentes renovações da

historiografia medieval.

No segundo capítulo, nomeado “A Cidade e o Mundo Medieval”, há no início uma

tentativa de se promover algumas considerações teóricas sobre a relação “Cidade e História”

para o entendimento da cidade medieval. Em seguida, o texto busca promover a compreensão

do fenômeno urbano medieval, tomando como base alguns trabalhos que enriquecem a

historiografia medieval ocidental das cidades. O capítulo é finalizado com algumas reflexões

que tem como ambição a tentativa de construção de um conceito de cidade medieval. Desse

modo, o texto recorre a uma série de informações que juntas pretendem favorecer as

compreensões e representações da cidade medieval no ocidente europeu.

No terceiro capítulo, “Representações e Currículos no Brasil”, há uma exposição inicial

sobre a noção de representação utilizada nesta dissertação. Ela foi estudada e empregada pelos

historiadores vinculados à História Cultural, que se desenvolveu e ainda se processa sobretudo

na França. Após, há uma abordagem sobre o tema: Representação e Iconografia. Nesse

momento, a dissertação abre-se para uma pequena reflexão sobre o uso de imagens que

oportunizam aos historiadores se aproximarem de novos objetos de estudos. Prosseguindo, o

trabalho tenta esboçar uma breve História da Estrutura Curricular no Brasil. Os trabalhos sobre

a estrutura curricular estão vinculados a uma série de pesquisas-tema que buscam não só

renovar a educação, como também tornar a escola uma instituição mais atrativa para os nossos

alunos. O último tópico do capítulo em questão põe em evidência a História como disciplina,

constituinte de um currículo escolar formado por um número de disciplinas que representam

uma série de conhecimentos que são trabalhados nas salas de aulas.

17

No quarto e último capítulo, “O Livro Didático e as Representações da Cidade

Medieval”, tem a intenção de demonstrar inicialmente o papel da renovação historiográfica

sobre os estudos que concernem à História da Educação no Brasil. Assim, tem-se o objetivo de

indicar que o crescimento dos trabalhos sobre o livro didático favorece a pesquisa acadêmica

destinada ao conhecimento histórico e à educação propriamente dita. Em seguida há a análise

do livro na cultura ocidental o qual assumiu um papel muito importante em estudos

empreendidos por historiadores que se filiaram à História Cultural. Posteriormente, o capítulo,

promove uma reflexão sobre o livro didático no Brasil que vem sendo tomado como objeto de

estudo por uma série de pesquisadores no Brasil. No interior do mesmo tema há um exame

sobre os livros paradiáticos que se tornaram importantes no ensino brasileiro, sobretudo nos

anos de 1990. Nesse ponto, além de destacarmos a relevância dos paradidáticos que versavam

sobre temas medievais, apresentamos ainda as principais informações e análises realizadas pelo

historiador José Rivair de Macedo no livro: Viver nas Cidades Medievais. Tal decisão deve-se

ao fato de que o paradidático assinalado foi um dos pioneiros na análise de temas sobre a

cidade que, antes, ficavam restritos aos meios acadêmicos. Finalmente, o tópico final é

reservado para a pesquisa de uma seleção de livros didáticos de História do ensino médio.

Cumpre dizer que o estudo se restringiu a doze livros fornecem uma boa visão sobre os

manuais escolares de História os quais se estendem de 1980 aos dias atuais.

18

I- MUNDO MEDIEVAL: REPRESENTAÇÕES, HISTÓRIA E ENSINO.

Se, numa conversa com homens medievais utilizássemos a expressão “Idade Média”, eles não teriam idéia do que estaríamos falando. Com todos os homens de todos os períodos históricos, eles viam-se na época contemporânea. De fato, falamos em Idade Antiga ou Média representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da necessidade de se dar nomes aos momentos passados. No caso do que chamamos de Idade Média, foi o século XVI que elaborou tal conceito. Ou melhor, tal preconceito, pois o termo expressava um desprezo indisfarçado em relação aos séculos localizados entre a Antigüidade Clássica e o próprio século XVI. Este se via como o renascimento da civilização greco-latina, e portanto tudo que estivera entre Aquiles picos de criatividade artístico-literário (de seu próprio ponto de vista, é claro) não passara de um hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo intermediário, de uma Idade Média.

Hilário Franco Júnior1

1.1. As Representações da Idade Média Ocidental

Uma importante fonte para o estudo do processo histórico, inclusive o da educação,

são os livros didáticos que, se forem entendidos em suas especificidades, como os manuais

de História, oportunizam aos estudiosos uma compreensão das idéias, dos conceitos e

representações transmitidas aos estudantes. Deste modo, as representações sobre a Idade

Média Ocidental nos livros didáticos de História favorecem aos pesquisadores avaliarem

melhor as transformações sobre o ensino de História em nosso país.

No Brasil a presença da Escola dos Annales e mais recentemente a influência de

historiadores franceses do porte de Jacques Le Goff e Georges Duby, contribuíram para o

crescimento do interesse pela História Medieval entre os pesquisadores brasileiros. A

herança francesa aquilatou os trabalhos desenvolvidos pelos medievalistas brasileiros2. O

estudo e as representações da Idade Média sempre despertaram o interesse dos

historiadores brasileiros, cuja contribuição de tais pesquisadores para o crescimento da 1 A passagem foi retirada do livro: FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001.2 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira em artigo denominado “Velhos temas, novos objetos: os estudos medievais no Brasil de hoje” diz o seguinte sobre a influência ibérica e francesa sobre os pesquisadores da Universidade de São Paulo: “O mundo ibérico estava fora das preocupações dos medievalistas brasileiros, ainda fortemente comprometidos com “escola” francesa. Mas a grande viragem em direção aos estudos ibéricos ocorreu com a chegada do historiador Joaquim Manoel Godinho Braga Barradas de Carvalho (1920-1980), que talvez tenha sido o professor estrangeiros que mais deixou marcas de sua passagem. Foi um intelectual que nos ensinou a aprimorar a pesquisa documental rigorosa e nos aproximou dos clássicos portugueses.” (NOGUEIRA, 2006, p. 29-30)

19

historiografia medieval merece destaque3. Todavia a expansão dos estudos sobre a Idade

Média no Brasil, juntamente com novas traduções e disponibilidades de fontes sobre tal

período, não pode iludir o medievalista brasileiro. Ou seja, os historiadores brasileiros

medievalistas, ainda têm muito o quê pesquisar sobre a Idade Média Ocidental. Assim, os

resultados das novas pesquisas poderão ser incorporados pelos livros didáticos,

estimulando cada vez mais o combate em relação aos estereótipos e ao surgimento de

novas representações sobre este período que é fundamental para a compreensão da História

do Brasil4. As novas abordagens, poderão servir aos professores e medievalistas

combaterem com mais veemência a hegemonia de uma vertente historiográfica mais

comprometida com uma história mais contemporânea.

O resgate da Idade Média mobiliza nos dias atuais considerável parte dos

pesquisadores. Anne Lemonde no texto “História da história na Idade Média”, diz-nos da

necessidade de utilização de escritos provenientes de escritores e historiadores medievais.

E, seguindo as reflexões de Lemonde antes do limiar do século XII a escrita da história era

resultado do trabalho de minoria. A produção histórica do período tinha a marca da cultura

e mentalidade cristã. Portanto, consoante a historiadora francesa: “A cristianização

transformou radicalmente a percepção do tempo, impondo uma concepção linear e unitária

do tempo inteiramente regido por Deus, da criação do Apocalipse (escatologia)”

(LEMONDE, 2007, p. 37).

As representações dos acontecimentos empreendidas pelos historiadores no que tange

ao período em que viveram buscam apreender e aquiescer os episódios ancorados em uma

visão cristã. E, embora os historiadores medievais tivessem tido o mérito da preservação de

fontes que indubitavelmente são importantes para a compreensão do período histórico em

questão, a história não era percebida como um gênero maior (Ibidem, p. 39). Porém, a

3 Nery de Barros Almeida em artigo intitulado “A história da Idade Média: impasses e perspectivas futuras” compartilha da tese de que as pesquisas sobre a Idade Média Ocidental no século XX, não só contribuiu para a renovação e ampliação da historiografia sobre tal período, como também “forneceu os instrumentos mais poderosos, duradouros e de repercussão mais larga do movimento de renovação que varreu a historiografia no início do século XX, sobretudo na França, e pode-se tornar campo importante para a consideração do impacto das mudanças e das soluções possíveis à atual crise da historiografia.” (ALMEIDA, 2006, p. 35)4 Em artigo recém publicado na revista de História da Biblioteca Nacional, “Somos todos da Idade Média”, Hilário Franco Júnior sugere que há no ensino brasileiro a presença de uma idéia que associa a Idade Média como um período distante dos alunos brasileiros. A partir daí, o autor de O Ano I000: Tempo de medo ou de esperança ?, as heranças políticas, econômicas, econômicas, sociais e culturais da Idade Média em relação à História do Brasil.

20

partir da Baixa Idade Média com a disseminação da vida urbana e das universidades

ocorreram mudanças.

As cidades e as universidades medievais estimularam transformações culturais que

não só beneficiaram o crescimento da produção histórica, como também a cultura em seu

todo. A vida intelectual e cultural letrada deixou de ser apanágio do clero católico. A

burguesia urbana e os intelectuais que desenvolviam cursos nas universidades,

patrocinaram a proliferação de uma cultura com contornos mais seculares, ou seja laico. As

palavras de Anne Lemonde exprimem bem esta idéia:

O desenvolvimento acadêmico foi apenas o aspecto institucional de um fenômeno muito mais amplo de difusão da cultura que ultrapassava a clausura monástica ou capitular. Na cidade, além do pioneirismo universitário, havia um círculo erudito que se instaurou progressivamente no seio da burguesia urbana. Essa mesma burguesia veio a constituir um verdadeiro mercado para o livro e, sobretudo, para a literatura histórica. A imprensa rapidamente encontraria o público necessário par o seu desenvolvimento (LEMONDE, 2007, p. 41).

O crescimento do número de historiadores por força dessas transformações

impulsionou a introdução de novas técnicas, no que concerne a produção do conhecimento

histórico. Um exemplo disto, foi a preocupação dos historiadores no rigor quanto a

identificação e procedência das explanações sobre um dado acontecimento que chegavam

até eles. Além disso, observa-se outra preocupação: aquilatar o espaço geográfico da

ocorrência dos relatos (Ibidem, 2007, 43).

Em texto recém-publicado, o historiador e medievalista, José Rivair Macedo, adverte

que: “A Idade Média ensinada na escola, todavia, não é a Idade Média dos pesquisadores”

(MACEDO, 2003, P. 112). Contudo, Régine Pernoud em livro publicado originalmente em

1978, já apontava que na França, país marcado por um grande avanço da historiografia

medieval, o ensino da História Medieval destinado às crianças ainda era caracterizado pela

memorização. Logo, as pesquisas produzidas pelas academias francesas que renovaram as

visões e as representações sobre a Idade Média, não chegaram às escolas (PERNOUD,

1994, p. 09). Além disso, os mitos sobre o período permaneceram e ainda são reproduzidos,

não só na França, como também no Brasil.

21

Embora o principal desses mitos, aquele que associa o período medieval à Idade das

Trevas5, seja muito questionado entre professores e alunos brasileiros de nossas escolas, ele

ainda consegue persistir. Le Goff em obra recém publicada no Brasil, A Idade Média

explicada aos meus filhos assevera que os estudiosos do limiar do Renascimento forjaram o

nome “Idade Média”, com o intuito de mostrar a importância do seu tempo como resgate

da Antiguidade, cujos valores culturais teriam sido eclipsados ao longo do período

medieval6.

Jérôme Baschet no livro A Civilização Feudal: do ano mil à colonização da

América, além de refutar os mitos em torno do período, considera que o principal desafio

para os professores e pesquisadores não seja o de reabilitar a Idade Média. E, concordando

com Le Goff, ele diz o seguinte: “Mas o essencial é escapar da caricatura sinistra tanto

quanto da idealização: ‘nem legenda negra, nem legenda rosa’, escreveu Jacques Le Goff.

A Idade Média não é um buraco negro da história ocidental nem o paraíso perdido. É

preciso renunciar ao mito tenebroso tanto quanto ao conto de fadas” (BASCHET, 2006, p.

24).

Deste modo, hoje em dia boa parte dos estudos procuram combater tal mito,

demonstrando-se que as origens da cultura ocidental, mesmo se considerada a influência

grega e romana, estão na Idade Média. Conforme Jônatas Batista Neto:

Seria longo e talvez inútil elaborar a lista de realizações medievais. Em defesa do período basta dizer que, queiramos ou não, constitui o ponto de partida da civilização européia. Nele, como num espelho, podemos ver nossa cultura e, conseqüentemente, a nós mesmos. Lá estão a religião cristã, o dinamismo econômico, a concepção de amor cortês e de paixão , instituições ainda vigorosas (como o Parlamento inglês), a injustiça social e a rebeldia contra ela, o amor pela guerra, a violência, a idealização da mulher, o casamento monogâmico, etc (BATISTA NETO, 1989, p. 223).

5 FRANCO JÚNIOR (2001, p. 11) afirma que “Admirador de clássicos, o italiano Francisco Petrarca (130-1374) já se referia ao período anterior como tenebrae: nascia o mito historiográfico da idade das Trevas. Em 1469, o bispo Giovanni Andréa, bibliotecário papal, falava em media tempestas, literalmente ‘tempo médio’, mas também com o sentido figurado de ‘flagelo’, ‘ruína’. A idéia enraizou-se quando em meados do século XVI Giorgio Vasari, numa obra biográfica de grandes artistas do seu tempo, popularizou o termo ‘Renascimento’. Assim, por contraste, difundiram-se em relação ao período anterior expressões media aetas, media antiquitas e media tempora.”6 Le Goff conclui também na mencionada obra o papel do Iluminismo para o aviltamento da Idade Média: “O século XVIII, principalmente – o século das Luzes, como vocês bem lembraram ainda há pouco – conheceu uma onda de desprezo pelos homens e pela civilização da Idade Média. A imagem dominante era a de um período de obscurantismo, no qual a fé em Deus esmagava a razão dos homens. Os humanistas e os iluministas, filósofos do século das Luzes, não compreendiam a beleza e grandeza daqueles séculos.” (LE GOFF, 2007, p. 17).

22

Em entrevista a Jean-Maurice de Montremy, publicada recentemente, o grande

medievalista francês Jacques Le Goff alerta sobre o perigo da representação idealizada do

período (LE GOFF, 2005, p. 20). Assim, se a visão negativa reproduzida sobre o período pelos

renascentistas e iluministas7 não fornece uma idéia esclarecedora do período, o mesmo se pode

afirmar sobre a visão idealizada fundada na concepção romântica do século XIX8, a qual, na

Europa, foi marcada pela presença do Romantismo na literatura e nas artes em geral, buscando

na Idade Média as origens de muitas nacionalidades européias. O professor Hilário Franco

Júnior, seguindo a mesma linha de raciocínio de Jacques Le Goff, também afirma que:

Romantismo da primeira metade do século XIX inverteu, contudo, o preconceito em relação à Idade Média. O ponto de partida foi a questão da identidade nacional, que ganhara forte significado com a Revolução Francesa. As conquistas de Napoleão tinham alimentado o fenômeno, pois a pretensão do imperador francês de reunir a Europa sob uma única direção despertou em cada região dominada uma valorização de suas especificidades, de sua personalidade nacional, de sua história, enfim. Ao mesmo tempo, tudo isso punha em xeque a validade racionalismo, tão exaltado pela centúria anterior, e que levara a Europa àquele contexto de conturbações, revoluções e guerras. A nostalgia romântica pela Idade Média fazia com que ela fosse considerada o momento de origem das nacionalidades, satisfazendo assim os novos sentimentos do século XIX (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 12).

Bernard Guenée, autor do artigo intitulado História e que está inserido no Dicionário

Temático do Ocidente Medieval organizado por Jacques Le Goff & Jean-Claude Schmitt,

propõe no início do texto a seguinte questão: “quem eram os historiadores na Idade Média, em

que se assemelhavam aos historiadores de hoje, em que eram diferentes ?” (GUENÉE, 2002, p.

523).

7 De uma maneira geral há um consenso entre os historiadores em relação às representações que os filósofos do Iluminismo realizaram sobre a Idade Média: As representações dos filósofos iluministas sobre a Idade Média, impediram que eles enxegassem a própria dinâmica interna do período.8 Jacques Le Goff em obra recém publicada A Idade Média explicada aos meus filhos demonstra a origem da expressão “Idade Média”. Em primeiro lugar a expressão Idade Média indica a existência de um período marcado pelo declínio em relação à Antiuidade Clássica. Os disseminadores de tal concepção ficaram conhecidos como humanistas que igualmente enfatizavam as qualidades dos seres humanos. Em segundo lugar, o século XVIII e os seus filósofos ao nomearam a civilização medieval como obscura que preteria a razão, também favoreceu consolidação do nome Idade Média, concomitantemente aos estereótipos e preconceitos. Nas palavras do próprio Le Goff: “Resumindo, a Idade Média é aquela que se estende entre dois períodos que são tidos como superiores: a Antiguidade e os Tempos Modernos, que começam com o Renascimento – uma palavra também muito particular, a Antiguidade ‘renasce’, a partir dos séculos XV e XVI, como se a Idade Média fosse um parêntese.” (LE GOFF, 2007, p. 17)

23

Inicialmente, o historiador francês destaca que hoje a história é considerada um ofício,

inferindo-se daí que o produtor do conhecimento histórico busque, cada vez mais, um rigor

metodológico e teórico. No período medieval, contudo, além de não ocorrer um rigor com

relação ao conhecimento histórico, houve uma expressiva presença do clero nos trabalhos

produzidos (GUENÉE, 2002, p. 524).

Se nos dias atuais os historiadores conseguem pôr em prática um significativo rigor, no

que concerne à utilização das fontes, o mesmo não acontecia na Idade Média. E mais, embora

os historiadores medievais compusessem trabalhos, tomando como base relatos que adquiriam

no cotidiano, eles chegaram a duvidar das narrativas que chegavam até eles (GUENÉE, 2002,

p. 527).

Na Idade Média os historiadores não desenvolveram uma crítica apurada, séria e

sistematizada com relação à produção histórica, consoante os da atualidade. Foi na Idade

Média Ocidental, porém, que foi estabelecido o calendário cristão que até hoje é utilizada pelos

historiadores9. Além disso, conforme Bernard Guenée:

De fato, as falsificações são inúmeras do início ao fim da Idade Média. No século IX, particularmente sob Carlos, o Calvo, apareceram falsificações que marcaram toda a cultura medieval. No fim do século XV, João Nanni, também conhecido por Annio de Viterbo, publicou em Roma as obas de vários autores da Antiguidade que se acreditavam perdidas: ele tinha escrito todas. Seguramente, a falsificação marca a Idade Média. Resta saber se ela revela certa ingenuidade (GUENÉE, 2002, p. 529).

1.2. A História do ensino de História no Brasil.

No Brasil, no período conhecido por período colonial, o ensino e a educação letrada

ficaram a cargo dos padres jesuítas. Essa opção jesuítica na América de Colonização

Portuguesa estivesse em consonância com os princípios da Contra-Reforma, que tem como

base o Concílio de Trento (1545-1563). Nas primeiras escolas implantadas pelos inacianos, 9 Segundo Bernard Guenée: “Inicialmente, devemos à Idade Média a elaboração de nosso sistema cronológico. Foi no século VI que Dionísio, o Pequeno, achou pouco conveniente usar referências pagãs no tempo e fez do nascimento, ou mais precisamente, segundo seus cálculos, da morte de Cristo, a referência fundamental. Beda foi o primeiro, no século VIII, adotar em sua História eclesiástica do povo inglês o ano encarnação de Cristo. Contudo, o costume de situar os acontecimentos em relação à encarnação de Cristo só se tornou usual no século XII. E apenas no final do século XIII apareceu, aqui ou ali, o hábito sistemático de datar os acontecimentos anteriores a Cristo em relação a ele. Esse uso retrospectivo da era da Encarnação espalhou-se realmente com o sucesso do best-seller que foi o Fasciculus temporum, de Werner Rolevinck, no final do século XV. Foram necessários os dez séculos de Idade Média para construir e difundir o sistema cronológico que é o nosso.” (GUENÉE, 2002, p. 532)

24

estabeleceu-se a seguinte estrutura de ensino: “a) letras humanas; b) filosofia e ciências (ou

artes); c) teologia e ciências sagradas, destinadas respectivamente à formação do humanista, do

filósofo e do teólogo” (ARANHA, 2000, p. 101). Além dos colégios, os seminários também

serviam como locais de ensino, os quais assumiram a educação de uma elite branca que

dominava o poder colonial. O ensino também avocou um caráter propedêutico, na medida em

que visava “à preparação dos filhos dos colonos brancos para futuros complementares na

Europa” (FILHO, 2001,p. 26).

As reformas pombalinas, em Portugal, reconheceram a importância da educação para o

processo de modernização do Estado português no século XVIII. Influenciado pelo

Iluminismo, o Marquês de Pombal (1750-1777) não só procurou reformar o Estado português,

como também diminuir a influência da Companhia de Jesus sobre Portugal e os seus domínios

coloniais. O desdobramento disso foi a expulsão dos jesuítas de Portugal e de seus territórios

coloniais.

As reformas criadas pelo então ministro estabeleceram orientações ao estudo da

História, principalmente nos curso superiores (FONSECA, 2004, p. 41). Não houve ainda

naquele período porém, a constituição da História como disciplina escolar. Logo, ela fazia

parte de um conjunto de conhecimentos ligados a temas humanísticos (FONSECA, 2004, p.

42).

Inicialmente já na França do século XVIII, ocorreu o processo de constituição da

História escolar (SCHMIDT; CAINELLI, 2004, p. 09). Nesse contexto, a história desse país

foi aquilatada pelas lutas revolucionárias que desembocaram na Revolução Francesa em 1789.

A partir daí, respaldado pelo ideário iluminista, a educação pública começou a ser estruturada

como forma de fomentar a cidadania, concepção que se tornou uma das bandeiras dos

princípios revolucionários.

Por outro lado, a transferência do governo português para o Brasil não só favoreceu

mudanças políticas e econômicas no Brasil, como também mudanças culturais que acabaram

repercutindo na educação. Nesse momento, foram tomadas medidas que viabilizaram, ao longo

do século XIX, a criação de cursos superiores no Brasil, sendo os mais tradicionais os de

Direito e de Medicina. Porém, no que se conhece hoje como Ensino Fundamental e Médio, a

situação era precária e daí pouco evoluiu (ARANHA, 2000, p. 153).

25

O estabelecimento da História como disciplina ocorreu no século XIX. Sua constituição

como tal esteve inextricavelmente relacionada à preocupação de se consolidar no Brasil o

Estado nacional. Além disso, no nível do ensino secundário, a criação do Colégio D. Pedro II

em 1837, contribuiu para o estabelecimento da História como disciplina escolar (ABUD, 1997,

p. 29). E ao longo do século XIX, o ensino de História foi se caracterizando cada vez mais

como voltado para a valorização de temas eminentemente políticos e nacionalistas. Ou seja, o

objetivo da História era o de incutir nos educandos valores morais que ensejassem o respeito ao

império brasileiro e ao cristianismo10 (FONSECA, 2004, p. 47).

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que foi fundado no mesmo ano

do Colégio D. Pedro II, imprimiu a sua marca no que concerne à concepção vigente de História

no Brasil do século XIX. Logo, o referido instituto, concomitantemente ao Colégio D. Pedro II,

estabeleceu, não só os currículos que determinaram o ensino de História nas escolas, como

também as representações do conhecimento histórico que povoavam o imaginário dos

professores da época.

Ao mesmo tempo em que havia o predomínio de uma História que buscava a

valorização do Estado nacional brasileiro e dos personagens que se destacaram na sua

construção, acreditava-se na importância “do branco, do negro e do índio para a formação da

população brasileira” (ABUD, 1997, p. 30). Nesse sentido, as questões e os desafios que

marcaram o Império brasileiro no século XIX forneceram aos historiadores da época todos os

instrumentos a fim de que eles se debruçassem no passado brasileiro ensejando também a

seleção de um elenco de personagens e fatos que pudessem explicar a História do Brasil11.

10 Em obra dedicada ao estudo da “história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de Macedo”, a professora Selma de Mattos, assim se refere às concepções gerais formuladas sobre o ensino de História do Brasil no século XIX: “Contudo, a crença na importância e no papel do Brasil no Novo Mundo, e por extensão do seu lugar no conjunto das ‘Nações civilizadas’, não resultava exclusivamente de condições de natureza geográfica. Ela se nutria também no valor que era atribuído ao passado, à formação do povo e (talvez seja interessante recordar aqui como os românticos falam de povo, e não de sociedade), à constituição da nação com entidade histórica, religiosa e lingüística – à História, enfim. E não por outra razão deveria existir também uma aula de História do Brasil – isto é, a “narração...de sucessos civis, militares, literários, eclesiásticos, políticos, etc”. de acordo com aquele mesmo dicionarista.” (MATTOS, 2000, p. 63)11 Kátia Abud em texto publicado no livro O Saber histórico na sala de aula, organizado por Circe Bittencourt e intitulado, Currículos de História e políticas públicas: os programas de História do Brasil na escola secundária, utiliza-se das concepções de História de Von Martius que em 1843 venceu o concurso promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico, respondendo a pergunta: “Como se deve escrever a História do Brasil ?”. Pode-se inferir que Abud, considerava o trabalho de Martius como formador de uma concepção hegemônica de História que marcou não só gerações de professores de História, como também de alunos. Logo, a passagem retirada do texto da professora da Universidade de São Paulo, e ilustrativo sobre a presença até hoje de temas que povoam os livros didáticos do ensino médio brasileiro: “Enfatizou o papel dos portugueses no descobrimento e colonização, compreendido somente em conexão com suas façanhas marítimas, comercais e guerreiras. Foi Martiuns também

26

As transformações ocorridas no final do século XIX, notadamente a partir da década de

1880 que coincide com o ocaso do escravismo em nosso País, juntamente com a expansão das

cidades e imigração, puseram em evidência a importância da escola e da educação, além de,

com a Proclamação da República, a questão da cidadania tornar-se relevante, pelos menos na

retórica republicana.

No ideário republicano a educação seria o caminho a ser trilhado, no que se referisse à

possibilidade de se construir um novo cidadão. Além disso, valores como civilização, ordem e

progresso foram associados pelos republicanos à educação (CARVALHO, 1989, p. 07). Pode-

se perguntar, porém: por que a expansão da educação consoante o imaginário republicano era

um desafio a ser vencido ?

Inicialmente cabe responder que necessidade de vencer o analfabetismo era fator

primordial para a expansão da cidadania, pois como consolidar nos cidadãos os novos símbolos

do novo regime, se a grande maioria da população na sabia ler e escrever ? Um segundo fator

ligava-se à Constituição de 1891 que aboliu o voto censitário, mas estabeleceu a proibição do

voto do analfabeto. Daí, se de um lado o exercício da cidadania respaldado na renda fora

abolido, de outro o analfabetismo tornava-se concretamente o grande obstáculo para a difusão

da cidadania republicana. Logo, o ensino de História passou a ter um novo objetivo: “integrar

setores sociais anteriormente marginalizados no processo educacional sem, contudo, incluir

nos programas curriculares a participação de deles na construção história da Nação”

(BITTENCOURT, 2004, p. 64).

Isso posto, seguindo de perto as reflexões de Circe Bittencourt, pode-se considerar que

a história ensinada não diferiu em sua essência da história lecionada no Brasil império, pois

também estava vinculada a justificação do Estado nação no Brasil, embora a ela fossem

acrescidos os novos símbolos republicanos, como os de ordem e progresso. Há de se

acrescentar que o ensino de história deveria consolidar no imaginário dos cidadãos

republicanos a noção de que se, por intermédio dos tempos, o Brasil foi conduzido por uma

elite composta por homens que haviam sacrificado os seus interesses individuais e até as suas

vidas pela pátria, os novos líderes iriam continuar essa tarefa. Daí, o testemunho da história

quem lembrou que não se poderia perder de vista o desenvolvimento civil e legislativo e os movimentos do comércio internacional. Apontou para a importância da transferência para o Brasil das instituições municipais portuguesas e o desenvolvimento que tais instituições tiveram. Destacou o papel dos jesuítas na catequese e na colonização e a importância de se estudar as relações entre a Igreja Católica e a Monarquia. Mostrou ainda o interesse das ciências e das artes e os aspectos da vida dos colonos.” (ABUD, 1997, p. 30-31)

27

ensinada, naquela época, atestar ironicamente que o regime republicano que buscava execrar a

memória e os valores do regime monárquico, ter mantido em linhas gerais a concepção de

História que exaltava a nação e o papel dos grandes líderes da nação. Além disso, conforme

trabalho recente de Circe Bittencourt, Ensino de História: fundamentos e métodos, temas que

já haviam sido integrados aos currículos de História, continuaram a ser lecionados, tais como:

Os livros escolares elaborados no início do século XX mostram como o patriotismo passou a ser o objetivo organizativo central dos conteúdos escolares de História. Em seu famoso livro Por que me ufano de meu país, Afonso Celso sintetizou os conteúdos básicos da História da Pátria: a riqueza e a beleza da terra, das matas e rios, o clima, a gente mestiça risonha e pacífica, a história dos portugueses, representantes da civilização, e a cristianização, que possibilitou uma moral sem preconceitos (BITTENCOURT, 2004, p. 65).

Embora, na Primeira República, o ensino de História ainda preconizasse a valorização

do Estado nacional e assimilasse os novos símbolos do novo regime, as concepções da Escola

Nova, na década de 1920, alicerçada nos pressupostos educacionais de John Dewey, que

inspiraram educadores e ofereceram perspectivas para o ensino de História. O professor de

História do Colégio D. Pedro II, Jonathas Serrano, produziu obras voltadas para o ensino de

História. Uma delas, a Metodologia da História na aula primária, produzida em 1917, mesmo

incorporando valores patrióticos, criticava já de forma pioneira o ensino de História calcado na

memorização e ainda apontava a necessidade de uma melhor formação do professor de História

(BITTENCOURT, 2004, p. 70).

Prosseguindo na compreensão das idéias de Serrano sobre o ensino de História, deve-se

apontar que o professor do Colégio Pedro II propunha em seu tempo12 um ensino que

despertasse a atenção dos discentes (SCHIMIDT, 2004, p. 192). Pode-se inferir, portanto, que

o professor em destaque conseguia em seu momento histórico, antecipar uma série de práticas

pedagógicas que hoje são consenso entre os professores que se propõem renovar o ensino de

12 Maria Auxiliadora Schmidt em artigo intitulado, História com Pedagogia: a contribuição da obra de Jonathas Serrano afirma que o professor foi contagiado pela atmosfera otimista com relação à importância da educação para o Brasil. Nesse sentido, conforme a pesquisadora da Universidade Federal do Paraná: “Tratava-se do chamado ‘entusiasmo pela educação’ que se destacou principalmente na década de 1920. Entre os elementos constitutivos desse movimento estão: a constituição e o aumento do grupo de profissionais interessados nos problemas educacionais, o aparecimento dos ‘educadores profissionais’, a multiplicação das obras sobre a temática e a promoção de congressos, inquéritos e conferências com o intuito de debater os mais variados problemas ligados à educação.” (SCHIMIDT, 2004, p. 194).

28

História. Ainda sobre a importância do professor no interesse do aluno pelos estudos históricos,

Maria Auxiliadora Schmidt assevera que o educador, que atuava profissionalmente no Rio de

Janeiro, defendia como princípio que as possíveis antipatias e simpatias nutridas pelo aluno à

disciplina, estavam indissociavelmente relacionados ao exercício da docência e os métodos

usados pelo professor na sala de aula (SCHMIDT, 2004, p. 197).

Com relação à historiografia que possivelmente embasou as reflexões de Serrano sobre

o ensino de História, Schmidt informa-nos inicialmente que ela é oriunda do século XIX.

Assim, ele concebia a História, “como uma ciência que tem como objeto o estudo da origem e

do desenvolvimento das sociedades humanas, a partir dos fatos mais importantes, que devem

ser explicados de forma encadeada, em suas causas e conseqüências” (SCHIMIDT, 2004, 198).

Além disso, ao compreender os acontecimentos na perspectiva de causa e conseqüência,

Jonathas Serrano buscava prosseguindo, no caminho aberto por Maria Schmidt, compreender a

trajetória humana, identificando os pontos e os dilemas que atravessam a história das

sociedades humanas. O autor compartilha de uma cronologia inspirada na visão eurocêntrica13

de História (SCHMIDT, 2004, p. 198).

*

* *

Com a criação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930, houve uma reorganização

da educação brasileira. A centralização política, que marcou o Brasil nos anos de 1930 e 1940,

estendeu-se para o campo da educação (FONSECA, 2004, p. 52). Assim, o novo ministério, no

que concerne à educação, teve como objetivo organizar uma série de procedimentos para que o

País ganhasse um sistema educacional nacional que estaria em consonância com os objetivos

gerais da chamada Era Vargas (BOMENY, 2001, p. 46). O ministro Francisco Campos, mesmo

considerando que tenha ficado apenas dois anos à frente do Ministério da Educação, realizou

grandes mudanças, notadamente no ensino secundário. Além disso, organizou as bases da

13 Assim Serrano propunha a seguinte cronologia, tomando como base a história da civilização ocidental: “História antiga (Antiguidade oriental, Antiguidade clássica); História da Idade Média; História Moderna e História Contemporânea (esta última até da Primeira Guerra Mundial).” (SCHIMIDT, 2004, p. 198)

29

primeira universidade brasileira, ou seja, a universidade São Paulo USP, surgida em 1934

(FILHO, 2001, p. 91).

A gestão Gustavo Capanema, à frente do Ministério da Educação e Saúde no Estado

Novo, além de reformar os ensinos secundário e universitário, engendrou as bases do que se

convencionou chamar de sistema educacional brasileiro (BOMENY, 2001, p. 52). Daí, os

ministérios de Francisco Campos e Gustavo Capanema buscarem a efetiva construção de uma

educação que oportunizasse a construção e consolidação do Estado brasileiro, personificado na

figura de Vargas.

Tanto as reformas de Francisco Campos quanto as de Gustavo Capanema evidenciaram

o estudo e o ensino de História como instrumentos centrais para a educação política do cidadão

(FONSECA, 2004, p. 52-53). E no período Capanema, a História do Brasil deixou de ser

tratada como tema da História das Civilizações, ganhando assim privilégio de disciplina

escolar. Além disso, os programas curriculares e as orientações metodológicas, no que

concerne ao ensino de História, objetivavam o tratamento de temas como a pátria, a família e

nação14 (FONSECA, 2004, p. 54).

A política de centralização que caracterizou o Brasil da Era Vargas, embora tenha

diminuído na década de 1950, prosseguiu e foi ampliada pelos governos militares (1964-1985).

Cabe lembrar, no entanto, o momento que compreende o final do Estado Novo e o golpe

militar que marcou o fim do governo João Goulart em 1964, ficaram conhecidos como período

da redemocratização.

Com relação à educação, pode-se considerar que as idéias da chamada “Escola Nova”

foram dominantes até 1964, pois, nas décadas de 1950 e 1960, Paulo Freire foi o educador que

mais se preocupou com a educação popular. Ou seja, as formulações e os projetos pedagógicos

desenvolvidos por ele tiveram como alvo principal as camadas populares. Freire criou um

método de alfabetização que partia do pressuposto de que o aluno deveria ser educado a partir

de sua realidade. Nesse sentido, educar também era uma ação política que propiciava ao

14 Circe Bittencourt ainda afirma o seguinte: “Os anos 30 foram marcados pela consolidação de uma memória histórica nacional e patriótica nas escolas primárias. A partir dessa época, com a criação do Ministério da Educação, o sistema escolar foi organizado-se de maneira mais centralizada e os conteúdos escolares passaram a obedecer as normas mais rígidas e gerais. Duas características identificaram o ensino de História nas escolas primárias a partir de então: a sedimentação do culto aos heróis da Pátria, consolidando Tiradentes como o ‘herói nacional’e os festejos também nacionais do 7 de Setembro; a obrigatoriedade, como fruto dessa política educacional, da História do Brasil para os alunos que desejavam ou possuíam condições de prosseguir os estudos secundários, integrando os programas dos exames de admissão aos cursos ginasiais.” (BITTENCOURT, 2004, p. 66-67)

30

educando o desnudamento da sua realidade, incentivando-o a ser um agente de transformação,

fomentando, assim, a cidadania.

A profissionalização de toda uma geração de professores de História, desde 1934,

favoreceu paulatinamente a expansão da pesquisa histórica em nosso País. Os professores, a

partir daí, apontavam para a necessidade de se rever o ensino de História que, segundo eles,

estava em conformidade como uma “erudição histórica”, portanto desvinculada das questões

políticas, econômicas e sociais do País15 (BITTENCOURT, 2004, p. 82). Compete acrescentar

que o esquema quadripartite (História Antiga, História Medieval, História Moderna e História

Contemporânea), de origem francesa, permanecia nos manuais de História destinados aos

alunos brasileiros (FONSECA, 1993, p. 49).

As políticas educacionais implementadas pelos governos militares seguiram a tradição

centralizadora que emergiu no Brasil na década de 1930. O ensino de História foi determinado

e enquadrado no contexto da Doutrina de Segurança Nacional (FONSECA, 2004, p. 56).

Assim, nas escolas brasileiras, o ensino passou a ser controlado pelos conselhos de educação.

A História passou a ser estudada também no campo de conhecimento chamado de

Estudos Sociais. Inspirado no modelo de escolas norte-americanas, os estudos sobre a

implantação da disciplina no Brasil, na verdade, reportavam-se à década de 1930. Com isso,

tanto os conteúdos programáticos de Geografia e História foram diluídos16 na disciplina

Estudos Sociais, voltada inicialmente para o antigo primeiro grau (BITTENCOURT, 2004, p.

73). Posteriormente, o regime militar, principalmente através da lei 5.692 de agosto de 1971,

estendeu a disciplina Estudos Sociais para o antigo primeiro grau (BITTENCOURT, 2004, p.

73).

15 Criado em 1955 no governo Café Filho, o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) só começou a funcionar efetivamente no governo JK, contribuindo, assim, para a formação do ideário que tinha como base o nacionalismo-desenvolvimentista. Com relação ao pensamento isebiano, podemos asseverar, em primeiro lugar, que o mesmo acreditava que a sociedade brasileira no período pós-1930 passava por um período pré-desenvolvimentista. Ou seja, para os intelectuais isebianos, o Brasil vivia um período de transição marcado pela presença de um setor moderno, mas convivendo ainda com um setor tradicional. Em segundo lugar, podemos observar que o ideário do ISEB defendia a tese de que o principal antagonismo da sociedade brasileira seria a contradição nação X antinação. Ou seja, o Brasil convivia como forças tradicionais que acabavam alimentando alienação do povo e da sociedade brasileira. Isso posto, sugere-se como hipótese a idéia de que a crítica à chamada “erudição histórica”.16 Selva Guimarães afirma o seguinte sobre a integração da História com os temas Geografia, OSPB e Educação Moral e Cívica: “Percebemos que a integração dos temas dos vários afins, Geografia, História, Educação Moral e Cívica e OSPB, assume aqui o caráter de proposta metodológica que o professor vai executar, de acordo com suas possibilidades. A integração não anuncia a dimensão descaracterizadora das diversas disciplinas, com a diluição das mesmas para, a partir de seus fragmentos, constituir o corpo Estudos Sociais.” (GUIMARÃES, 1993, p. 57)

31

Com a abertura política, os professores e os pesquisadores conscientizaram-se da a

necessidade de mudanças, não só com relação aos currículos, como também ao próprio ensino

de História. Daí, a partir dos anos de 1980, houve um consenso sobre a necessidade de uma

história mais crítica. As propostas de Minas Gerais e São Paulo sobre as reformas curriculares,

no que concerne ao ensino de História, ganharam destaque e foram amplamente debatidas.

Segundo Selva Guimarães: “o repensar do ensino de História ganha espaços em associações

com ANPUH, SBPC; associações sindicais como APEOESP-SP e UTE-MG; congressos,

seminários, debates envolvendo os três graus de ensino” (FONSECA, 1993, p. 86).

No decorrer dos anos de 1990, as discussões sobre o Ensino e os currículos de História

prosseguiram. De uma maneira geral, as propostas, que se fundamentavam nos modos de

produção e nos eixos temáticos, criticavam o ensino de História embasado em uma concepção

que valorizava a ação dos grandes personagens e tornavam o historiador e os pesquisadores

passivos frente ao fato histórico Os debates sobre o ensino de História giram em torno de

questões como, por exemplo a importância dos alunos como agentes ativos. As indagações

feitas por Circe Bittencourt exemplificam bem os grandes debates atuais sobre o ensino de

História no Brasil:

O aluno é sujeito da história ou pode sê-lo pela compreensão de que é igualmente produto de uma história ? Quais os limites da ação histórica individual ? Como a história vivida de cada “cidadão” interfere e se relaciona com a história da sociedade ? Conhecer a realidade circundante em que o aluno vive implica fazer do estudo de História um instrumento fundamental para a desmistificação da sociedade moderna ? Como o estudo do passado se relaciona com o desvendamento da realidade presente ? Para responder a tais questões, torna-se necessário especificar, nos textos curriculares, o conceito de cidadão (BITTENCOURT, 1997, p. 21).

As concepções, o ensino e os livros de História respondem, em linhas gerais, aos

desafios do seu tempo. Nesse sentido, as diversas propostas de renovação do ensino de História

buscam responder às questões propostas por Circe Bittencourt que ainda permanecem atuais.

Com relação ao ensino da História Medieval no Brasil, constata-se inicialmente que o

mesmo foi aquilatado pelas mudanças do ensino de História. Todavia, pode-se constatar

inicialmente que o ensino de História, não só nas instituições universitárias, mas

principalmente, no ensino fundamental e médio, tem dado destaque ao mundo rural no estudo

da Idade Média Ocidental.

32

1.3. A História do ensino de História Medieval no Brasil.

A duração e o significado da Idade Média são duas questões que devem ser enfrentadas

pelos pesquisadores e professores de História (LE GOFF, 2007, p. 10). Quanto ao primeiro

deve-se considerar a própria nomeação do período que ficou comprometida em função dos

estereótipos. Em relação à segunda deve-se considerar a necessidade de se pensar o período

medieval, por intermédio de outros temas que estão ligados ao cotidiano e à vida privada. Além

disso, cumpre-se avaliar a importância de se estudar a Idade Média na América no século XXI.

Assim, pode-se perguntar, a partir do estudo de Baschet: Por que estudar o período medieval

ocidental, tomando como ponto de partida o Brasil ? Como convencer o aluno do ensino médio

brasileiro sobre a importância de tal período para a compreensão da História do Brasil ?

A chegada dos europeus na América em 1492, conforme análise de Baschet favorece

inicialmente uma conexão entre o período medieval e a chamada História Moderna. Deve-se

considerar que o processo histórico não só da Europa Ocidental Moderna, como também da

América em tempos de colonização foram aquilatados pelo histórico medieval17. O

medievalista brasileiro e americano de uma maneira geral deve perceber a dinâmica que une a

Idade Média Ocidental e a América, sem perder de vista a especificidade histórica de ambos.

Daí, pode-se concluir outrossim:

Estudar a Idade Média européia é, então, voltar o olhar para a civilização que está na origem da conquista a América. Esta não é o resultado de uma sociedade que, repentinamente, rompeu com a estagnação medieval e foi bruscamente iluminada pela claridade do Renascimento. Se a Europa se lança nessa aventura, que é somente a primeira etapa de um processo mais geral que conduz, sob formas variadas, à dominação ocidental de todo o planeta, não é sob o efeito do toque da varinha mágica de um Renascimento autoproclamado. Defender-se-á, aqui, a idéia de que a conquista e a colonização não são ações de uma sociedade européia liberada do obscurantismo e do imobilismo medievais e já inseridas na modernidade. São muito mais o resultado

17 Jérôme Baschet ao referir-se a Cristóvão Colombo e concordando com as reflexões de Pierre Vilar e Tzvetan Todorov, considera que tal navegante albergava uma mentalidade de base medieval, pois: “No entanto, certos autores, como Pierre Vilar ou Tzvetan Todorov, sublinharam corretamente que o ouro e a evangelização não deviam ser percebidos como objetivos contraditórios. Eles combinam-se sem dificuldade no espírito dos conquistadores; e se Colombo está preocupado até a obsessão com o ouro, é notadamente porque este deve servir para financiar a expansão da cristandade e, em particular, o projeto da cruzada destinada a retomar Jerusalém dos otomanos, do qual ele espera convencer Fernando Aragão.” (BASCHET, 2006, p. 29)

33

de uma dinâmica de crescimento e de expansão, de uma lenta acumulação de progressos técnicos e intelectuais, próprios aos séculos medievais e dos quais o momento mais intenso toma forma por volta do ano mil. (BASCHET, 2006, p. 33).

Posto isso, estudar a Idade Média como ponto de partida para a compreensão, não só da

colonização da América de Colonização portuguesa, como também da América de

Colonização espanhola é partir do pressuposto de que as estruturas políticas, econômicas,

sociais, religiosas, culturais e mentais medievais são fundamentais para a compreensão do

processo histórico americano. O entendimento desta questão, enseja igualmente a refutação do

mito historiográfico, “idade das trevas”. E, como corolário o professor do ensino médio poderá

utilizar-se da idéia acima para convencer o aluno sobre o papel determinante da Idade Média

Ocidental para a compreensão da História do Brasil.

No cotejamento entre a sociedade medieval e as sociedades ocidentais contemporâneas,

Baschet tomando como base a noção de longa Idade Média sugere que a tradicional oposição

entre Idade Média e Renascimento fica comprometida. E, embora as bases políticas,

econômicas, sociais, culturais mentais do mundo contemporâneo ocidental estejam

sedimentadas no mundo medieval, os dois mundos são marcados por diferenças fundamentais.

Conforme Baschet:

Entretanto, a despeito de sua contribuição fundamental ao desenvolvimento do Ocidente e à sua dominação sobre a América e o mundo, a (longa) Idade Média deve ser considerada um universo oposto ao nosso: mundo da tradição anterior ao triunfo do Estado, mundo de dependências interpessoais anterior ao assalariamento. Em resumo, a Idade Média é para nós um antimundo, anterior ao reinado do mercado. Essas rupturas não devem ser creditadas ao Renascimento, mas, no essencial, à Revolução Industrial e à formação do sistema capitalista. Aí está a barreira histórica decisiva, que faz da Idade Média um mundo longínquo, um tempo de antes, no qual tudo se torna opaco para nós (BASCHET, 2006, p. 45).

Posto isso, deve-se asseverar em primeiro lugar que as representações históricas

opositoras entre a Idade Média e o Renascimento precisam ser revistas, pois na realidade além

do segundo ter se originado ainda no período medieval, ele guarda uma relação de

continuidade com o mesmo. Em segundo lugar, que na comparação com o mundo

contemporâneo capitalista e ocidental, a Idade Média Ocidental deve ser compreendida,

tomando como base as suas diferenças que são frutos das transformações do processo histórico

localizado entre os dois períodos. Por isso, trazer a Idade Média para perto das sociedades

34

contemporâneas em especial para a sociedade brasileira dos primórdios do século XXI,

significa percebê-la como um momento gerador da cultura ocidental da qual somos herdeiros18.

*

* *

O ensino de História Medieval no Brasil só pode ser compreendido por intermédio do

desenvolvimento da história do ensino de história no Brasil através dos tempos. Além disso, os

temas e as concepções que norteavam os educadores, no que concerne à História Medieval,

estiveram inegavelmente ligados à produção historiográfica engendrada na Europa.

Ao se representar a Idade Média como um período que faz parte da história do

ocidente, considerando-a numa perspectiva evolucionista, que tem como emblemas o progresso

e o avanço científico, perdem-se, assim, as especificidades sobre o período, ensejando

outrossim os mitos e estereótipos sobre o período. Logo se deve compreender a Idade Média a

partir do que homens e mulheres do período a representara.

Sob essa ótica, torna-se imperioso compreender um pouco os caminhos trilhados sobre

o ensino da história medieval na Europa. As reflexões de Régine Pernoud serão tomadas

inicialmente como referências. Os trabalhos da historiadora francesa buscam revisar alguns

mitos e estereótipos que convergem para a idéia de que a Idade Média, além de ser considerada

um período intermediário, teria sido marcada por um interregno, no que diz respeito à criação

cultural19.

Na obra Idade Média: o que não nos ensinaram, Pernoud apresenta-nos um pouco da

trajetória do ensino da história medieval na França, forjando uma desmistificação de uma série

de temas que não só foram reproduzidos na Europa, como também nos livros didáticos

18 Donald Matthew afirma o seguinte ao vincular a Idade Média à Europa Ocidental: “A idade Média deve ser aceita como um conceito cultural basicamente ligado à Europa Ocidental, criado numa fase da sua própria história em que tentava se reconciliar com o seu passado.” (MATTHEW, 2004, p. 15)19 Segundo Régine Pernoud a cultura clássica que se inspirou na Antigüidade Clássica foi responsável: “Certamente há um consenso de preconceitos a enfrentar, uma montanha de indiferença a transpor, mas pode-se considerar que o passo decisivo já está dado; porque foi a formação clássica, a ética clássica que , até época muito recente, nos impedia de ver nas obras da Alta Idade Média outra coisa que obras ‘rudes e bárbaras’”. (PERNOUD, 1994, p. 52)

35

brasileiros. Um dos temas identificados diz respeito à preservação do pensamento filosófico

clássico e ao possível papel de Avicenas e Averróis20. Ou seja, os livros de história, ao

acentuarem o papel dos filósofos muçulmanos no que concerne à preservação do pensamento

filosófico antigo, desprezam a contribuição de pensadores da própria Europa ocidental para a

conservação de tal pensamento (PERNOUD, 1994, p. 54).

O legado medieval para o mundo ocidental estendeu-se para os campos da literatura21,

arte e cultura em geral. A compreensão da cavalaria é uma das bases para o entendimento das

representações literárias na Idade Média22. O teatro e a música foram valorizados naquele

período histórico, transmitindo igualmente sua herança aos períodos posteriores da história

ocidental. Esses temas, que também enfatizam a importância do período para a formação da

cultura ocidental, não têm recebido o devido destaque dos manuais didáticos.

Uma das representações que favoreceram uma imagem negativa do período em questão

e disseminada também nos livros didáticos foi à idéia de que os nobres maltratavam os

camponeses, destruindo as suas colheitas (PERNOUD, 1994, p. 67). Além disso, consoante

setores expressivos da historiografia medieval do século XIX, o feudalismo foi representado

como sinônimo de anarquia que teria sido abolido pelos homens que fizeram A Revolução

Francesa em 178923. Mais uma vez a autora de Luz sobre a Idade Média assevera que a

20 Os pensamentos político e filosóficos medievais expressaram as principais questões do período, que também conhecemos por feudal. Inicialmente, na Primeira Idade Média (IV-VIII) e na Alta Idade Média (meados do século VIII-fins do X), os pensadores foram influenciados pelo Novo Testamento e por pensadores da Antigüidade Clássica, notadamente Platão. E com o gradativo crescimento dos poderes religioso e político da Igreja Católica, o pensamento filosófico e o político foram assimilando a idéia de submissão. Além disso, o bom cristão era aquele também que deveria obedecer ao poder espiritual, representado pela igreja e pelo Papa, e ao poder temporal, representado pelo Estado e monarcas.21 Na livro A Criação literária, Massaud Moisés informa que sobre o gênero literário que ficou conhecido por romance: “A palavra ‘romance’ remonta, pois, a vários séculos. Não assim a forma literária, em prosa, que o vocábulo veio a rotular. O romance surge, como o entendemos hoje em dia, nos meados do século XVIII. Por outros termos, aparece com o Romantismo, ampla revolução cultural originária da Escócia e da Prússia. É que o romance se coadunava perfeitamente com o novo espírito implantado em conseqüência do natural desgaste das estruturas sócio-culturais trazidas pela Renascença. A todas as configurações de absolutismo monárquico até a época em voga (em política, o despotismo monárquico; em religião, o dogmatismo inquisitorial e jesuítico; nas artes, a aceitação dum receituário baseado nos protótipos ou arquétipos representados pelos antigos), sucedeu um clima de liberalismo franqueador das comportas do sentimentalismo individualista” (MOISÉS, 1975, p. 182)22 No Dicionário Temático do Ocidente Medieval há uma série de reflexões sobre o significado e o lugar da literatura na Idade Média. Segundo Michel Zink, o nome literatura tinha a mesma acepção de grammatica . No período medieval, a palavra literatura por ser utilizada no sentido que empregamos modernamente. Nas palavras de Zink: “Sem dúvida, existe na Idade Média uma consciência da atividade literária em seu conjunto e em sua especificidade, consciência também de um corpus literário. Isso é visível no latim e no olhar lançado às letras antigas. Compreende-o a palavra litterae, no sentido de cultura literária”. (ZINK, 2002, p. 79)23 Régine Pernoud afirma ainda: “O estranho é ter-se falado, em 1789, em abolir a ‘feudalidade’. A expressão era a mais inexata possível, tendo o regime da terra evoluído consideravelmente em quase quatrocentos anos. Com escreveu Albert Soboul: ‘A feudalidade, no sentido medieval da palavra, não corresponde a mais nada em 1789’;

36

existência de uma rede de relações marcadas por uma grande hierarquia atesta que a noção de

“anarquia feudal” não serve para nomear o feudalismo (PERNOUD, 1994, p. 68).

O tema da servidão24 é também motivo de polêmica, no que concerne à sua abordagem

no ensino da Idade Média ocidental. E mais, de uma maneira geral, ela é abordada de modo

intransigente. Segundo Pernoud: “É curioso notar, quando se manuseiam os livros de História,

a discrição com que ela é mencionada; quer se trate do desaparecimento da escravidão logo no

início da Alta Idade Média, ou de seu brusco reaparecimento no começo do século XVI,

testemunha-se, a este respeito, uma rara moderação” (PERNOUD, 1994, p. 87).

Isso posto e prosseguindo o caminho aberto por Régine Pernoud, deve-se considerar

inicialmente que um dos pilares sobre o qual se sustenta o mito historiográfico “Idade das

Trevas” é o trabalho servil. Nesse sentido, a servidão25 fundamentava a exploração feudal,

mantendo o camponês nas “trevas da ignorância”. Em segundo lugar, a autora de Idade Média:

o que não nos ensinaram destaca que, embora o camponês estivesse preso a terra e sujeito a

uma série de obrigações, ele tinha realmente uma situação melhor do que o escravo, pois não

era uma mercadoria que poderia ser comercializada de acordo com as demandas do senhor.

Portanto, geralmente uma das representações mais freqüentes sobre o período realizadas nas

salas de aula, associa a Idade Média com a barbárie e o atraso em função da ocorrência do

trabalho servil. Por isso, pode-se considerar: Por que a grandeza do Império Romano não foi

ofuscada, mesmo em se considerando que a escravidão tenha se desenvolvido com

envergadura em tal império ? Por que a escravidão moderna desenvolvida na América colonial

não ofuscou os avanços culturais e científicos engendrados pelo Renascimento ?

mas, acrescenta ele, ‘para os contemporâneos, burgueses e, principalmente, camponeses, este termo abstrato encobria uma realidade que conheciam muito bem (direitos feudais, autoridade senhorial) e que foi finalmente banida’”. (PERNOUD, 1994, p. 81)24 Jacques Le Goff em A Civilização do ocidente medieval diz-nos o seguinte: “A finalidade econômica do Ocidente medieval é de prover a necessitas. Esta necessidade legitima a atividade, e leva mesmo a derrogação de certas regras religiosas” (LE GOFF, 2005, p. 218). Logo, o eminente medievalista aponta ao leitor mesmo que indiretamente um caminho para se compreender a servidão, qual seja a relacioná-la com o seu contexto histórico. Por conseguinte, a servidão só pode ser compreendida se vinculada à dinâmica de uma economia agrária. Além disso sugere-se evitar noções como atraso para se mensurar o papel do trabalho servil para a Idade Média ocidental.25 Régine Pernoud informa-nos também: “Os cartulários mais antigos contêm inúmeras cartas de alforria, chegando, às vezes, a centenas, duzentos, quinhentos servos (em alguns casos, membros de uma mesma família) ou mesmo um só homem. Aconteceu com a servidão o mesmo que acontece com toda restrição à liberdade do homem: consideradas suportáveis por tanto tempo quanto representa uma contrapartida imposta por necessidades vitais, elas se tornam intoleráveis desde o momento em que o homem pode garantir sua própria subsistência. O camponês pode considerar válido o fato de viver em uma propriedade da qual não podiam expulsá-lo, mas, quando encontra meios de subsistir longe dela, se sente mais dotado para percorrer estradas, comerciais, prefere a liberdade.” (PERNOUD, 1994, p. 93)

37

A resposta para as questões acima está inextricavelmente ligada ao modelo de teoria e

historiografia aos quais se filia o estudioso. A manutenção, todavia, nos livros de História de

uma visão que representa o período medieval vinculado ao obscurantismo impede os

estudantes de perceberem as inovações ocorridas e transmitidas à cultura ocidental. Nesse

sentido, a servidão ofusca o período, ao contrário da escravidão que não conseguiu, por

exemplo, eclipsar o mundo ateniense igualmente aquilatado pela escravidão.

Embora haja uma preocupação crescente com o ensino de História Medieval nas

escolas brasileiras, alguns temas ainda permaneçam desconhecidos do grande público escolar,

acalentado, por isso, à permanência de uma série de representações equivocadas sobre o

período. Os temas concernentes ao cotidiano e à vida privada que foram resgatados de forma

contundente pelos historiadores filiados à História das Mentalidades são um exemplo disso.

Jacques Le Goff no conjunto de sua obra, além de abordar de forma pioneira temas

tradicionais e recorrentes em outros autores vêm chamando a atenção de pesquisadores e

professores sobre a importância de outros assuntos. Assim, a comparação entre o citadino e o

homem que vive no meio rural, juntamente como temas como a pobreza e a fome são expostos

e analisados pelo pesquisador. E, por intermédio da análise do fenômeno urbano medieval, o

historiador francês destaca não só a criatividade do período, como também os seus

pioneirismos. Nas palavras do próprio estudioso: “Mas a Idade Média foi também, acho até

principalmente, um grande período criativo. Podemos ver isso nos domínios da arte, das

instituições, sobretudo nas cidades (por exemplo, nas universidades), ou ainda no campo do

pensamento – a filosofia que chamamos de “escolástica”atingiu altos patamares do saber.

Também vimos até que ponto a Idade Média criou “lugares de encontro” comerciais e festivos

(as feiras, as festas), que continuam a nos inspirar”. (LE GOFF, 2007, p. 112).

Em obra igualmente importante para a compreensão, não só dos aspectos formadores

do mundo medieval, como também para a percepção de algumas representações incorretas

sobre o período, Régine Pernoud mais uma vez se destaca na valorização do ensino da Idade

Média26.

26 Luz sobre a Idade Média foi publicada pela primeira na França em 1981. Posteriormente foi publicada em língua portuguesa pela editora Europa-América. Há de se acrescentar que o volume utilizado não apresenta o ano da edição.

38

No que tange à organização social, Pernoud refuta a representação clássica da

sociedade medieval presente nos manuais de história, ou seja, a divisão da mesma em ordens27:

“clero, nobreza e terceiro estado” (PERNOUD, s/a, p. 17). A pesquisadora afirma que tal

divisão está adequada sobretudo ao período da História Moderna. Logo, ela propõe como tese a

idéia de que a compreensão da organização familiar seria a chave para o entendimento da

sociedade medieval (PERNOUD, s/a, p. 18). Assim, seguindo as trilhas confeccionadas pela

historiadora francesa, a Revolução Francesa pôs abaixo o Antigo Regime francês moderno e

não o modelo de sociedade medieval, embora seja mister reconhecer que as suas bases estão na

Idade Média.

Tanto Le Goff quanto Pernoud convergem para um ponto: as representações realizadas

sobre a Idade Média baseada no esquema das três ordens não conseguem dar conta da dinâmica

da vida social no período medieval. Nesse sentido, se as reflexões da historiadora francesa

indicam a necessidade de se estudar a organização familiar para a compreensão da sociedade

medieval, as análises do historiador e medievalista francês apontam, na verdade, para a

classificação e conhecimento dos sujeitos que formariam os grupos dominantes do período. As

palavras de Le Goff são mais precisas para a ilustração da idéia acima:

De onde virá, em francês, o termo “lavradores” que, desde o século 10º, designa a camada superior do campesinato, a dos que possuem ao menos uma parelha de bois e seus instrumentos de trabalho. Assim, o esquema tripartido – mesmo se alguns, como Adalberón de Laon aí façam entrar o conjunto do campesinato, identificando os laboratores com os servos – representa antes apenas o conjunto das camadas superiores: a classe clerical, a classe militar, a camada superior da classe econômica. Compreende apenas o melior pars, as elites (LE GOFF, 2005, p. 261).

Outro aspecto do período em exame concerne à questão do vínculo feudal. Nesse ponto,

a compreensão das relações políticas, econômicas, sociais e culturais depende do entendimento

da rede de relações engendradas na Idade Média. A noção de fidelidade constituía-se como o

alicerce de tal rede. Além disso, esta noção implicava um contrato no qual existia a devoção e

27 Novamente Jacques Le Goff, em A Civilização do ocidente medieval diz-nos o seguinte sobre o significado da sociedade de ordens: “Qual o significado da tripartição funcional ? E, em primeiro lugar, que as relações mantém entre si as três funções, ou melhor, as classes que as representam ? É claro que o esquema tripartido é um símbolo de harmonia social. Tal qual o apólogo de Menenius Agripa intitulado Os membros e o estômago, é um instrumento imagético de desarmamento da luta de classes e de mistificação do povo. Mas, embora tendo-se visto que tal esquema visava a manter os trabalhadores – a classe econômica, os produtores – numa posição de submissão em relação às duas outras classes, não se tem suficientemente percebido que este esquema, que é clerical, visa também a submeter os guerreiros aos sacerdotes, fazendo deles protetores da Igreja e da religião.” (LE GOFF, 2005, p. 260)

39

a proteção (PERNOUD, s/a, p. 31). Exemplificando, se ao camponês cabia a prestação de

serviço e a obediência ao senhor, por outro lado, este devia proteger o servo. E, de uma

maneira geral a ausência de Estados centralizados favoreceu a emergência dos poderes locais,

contribuindo para a disseminação dessas redes, dinâmica que estavam em consonância com o

processo de criação do Feudalismo.

Os manuais de História, no entanto ao destacarem mais a questão da fragmentação

política e do feudo como unidade agrária de produção, acabam perdendo a oportunidade de se

deterem um pouco mais sobre a questão da fidelidade. Assim, pode-se perguntar: por que se

deter um pouco mais em torno da questão da noção de fidelidade feudal ?

Respondendo de forma abrangente cumpre destacar a importância da fidelidade feudal

como noção-chave para a compreensão das representações que os homens e mulheres

realizaram sobre o período. Por conseguinte, no âmbito das diversas relações sociais, o

imaginário feudal esteve fundamentado pela noção de fidelidade28, que era base das

representações políticas, econômicas, sociais, culturais e do cotidiano.

Uma das figuras recorrentes e portanto mais representadas nos livros didáticos é o

camponês. Apesar de não ter tido uma posição de mando na vida política medieval, o cotidiano

campesino, notadamente o trabalho no campo, foi alvo de imagens e representações.

O ensino de História e os manuais didáticos utilizam-se de forma expressiva as imagens

do trabalho camponês para representarem a Idade Média como um período de predomínio

rural. Por isso, as imagens e representações da vida urbana são postas em segundo plano. Dessa

forma, temas como o comércio, a burguesia, as cruzadas e as corporações de ofício, embora

sejam abordados nos livros de História, não o são de modo aprofundado. Há de se acrescentar

que a cultura citadina permanece pouco explorada.

28 Em A Idade Média: nascimento do ocidente, Hilário Franco Júnior diz nos seguinte sobre a noção de fidelidade a partir de passagem sobre o processo de aristocratização na Alta Idade Média: “No começo do século VIII, quando Carlos Martel buscava recursos para enfrentar a invasão muçulmana, confiscou terras da Igreja para entregar aos guerreiros de que necessitava. Abria-se desta forma uma questão perigosa. Para contorná-la, imaginou-se unir instituições preexistentes, a do benefício e da vassalagem. A primeira, sabemos, era a concessão da posse (e não da propriedade) de uma terra para remunerar determinado serviço. A segunda, que designara no século VI a dependência servil de uma pessoa a outra, e no século VII uma relação de homens livres inferiores, a partir do século VIII indicava uma ligação social entre elementos da aristocracia. Desde então, somente um vassalo (servidor fiel) poderia receber um benefício – termo substituído entre fins do século IX e fins do XI, conforme o local, por feudo – como remuneração por seus serviços. As relações sociais entre membros da aristocracia (laica e/ou clerical) davam-se através de práticas econômicas (terra entregue ou recebida), políticas (poderes naquela terra) e religiosas (juramento de fidelidade).” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 87)

40

O avanço da pesquisa histórica tem proporcionado novas interpretações e

representações sobre o poder político na Idade Média ocidental. Assim, em relação ao poder

central pode-se afirmar que a sua existência foi difícil, uma vez que no período em questão

havia a presença de uma sociedade hierarquizada que engendrava uma rede de dependências e

fidelidades. A autoridade real, de fato, foi fundada na força moral, e a mentalidade religiosa

que favoreceu a manutenção da autoridade real era consagrada.

O cristianismo e a Igreja Católica29 sempre foram temas enfatizados pelos manuais de

história no ensino médio das escolas brasileiras, porque no período medieval, a Europa

ocidental tinha como identidade maior o cristianismo (PERNOUD, s/a, p. 77). Por ser

constituída por fiéis, o período em exame favoreceu, pois a autoridade eclesiástica cristã, nas

representações cristãs o poder material e eclesiástico deviam defender-se mutuamente. Pode-se

acrescentar que, conforme Régine Pernoud, as relações entre o poder do papado e o poder

temporal, apesar da existência de conflitos, apresentaram resultados positivos, isto é ambos os

poderes buscavam respaldo um com o outro.

Juntamente com as heresias, o Tribunal do Santo Ofício é representado nos livros

didáticos como exemplos de intransigência e obscurantismo, ainda que, conforme Pernoud, a

inquisição moderna fora mais violenta que a medieval.

Além disso, foi no período medieval que se realizou uma vigorosa conciliação,

tomando como base a filosofia antiga e o cristianismo. Então pode-se perguntar: como

sustentar a tese que advoga a idéia de uma mentalidade cristã intransigente, se ela realizou uma

síntese entre o pensamento filosófico antigo e o cristianismo ? Eis um outro tema abordado de

forma simplificada nos livros de História.

Um dos caminhos possíveis para se refutar o mito historiográfico, “Idade das Trevas”, é

o de se constatar o quanto o período estudado contribuiu para o avanço do ensino e da cultura

na sua totalidade. A universidade30, um dos maiores legados da Idade Média à cultura

29 Segundo Hilário Franco Júnior os novos temas engendrados em torno da questão eclesiástica: “Até há relativamente pouco tempo, a História da Igreja era identificada com a das elites eclesiásticas. A preocupação central era com as instituições clericais, com o pensamento oficial da Igreja e com seus altos dirigentes. A espiritualidade dos fiéis quase sempre ficava à margem, vista como grosseira e cheia de superstições, oposta à dos clérigos. Mais recentemente, porém, recuperou-se o sentido original de “igreja” (do grego ecclesia, “comunidade de cidadãos”, no caso cristão “comunidade dos fiéis”), englobando portanto a hierarquia eclesiástica e a massa dos leigos. E é nesse sentido, acreditamos, que se deve ver a Igreja medieval.” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 67)30 Conforme Hilário Franco Júnior sobre as origens das universidades: “De fato, no século XIII as escolas se fixam, se organizam, se corporativizam, dando origem às universidades. Na verdade, universitas designava qualquer comunidade ou associação, como o termo passando a ser usado exclusivamente para uma corporação de professores e alunos apenas a partir de fins do século XIV. Até então, falava-se em studium generale. De toda

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ocidental, posto que estivesse sob a influência do cristianismo, promover a criação de um leque

expressivo de conhecimentos científicos31 e filosóficos (PERNOUD, s/a, p. 102). Nas

universidades, o docente já era avaliado e respeitado em função do seu saber. Além do mais,

seguindo as informações de Régine Pernoud, as universidades eram valorizadas pelos papas e

os reis (PERNOUD, s/a, p. 107). Logo, como aceitar sem restrições as formulações que

consideram o período marcado pelo obscurantismo e pela ignorância ? Assim, as

representações feitas por Pernoud em relação às universidades medievais, sugerem a refutação

de assertivas que veicularam o tão famoso mito historiográfico.

Jacques Le Goff afirma em Por amor às cidades que a universidade foi favorecida pela

expansão do meio urbano medieval (LE GOFF, 1998, p. 60). O desenvolvimento de uma

cultura urbana na Idade Média teve como aspectos importantes a expansão da escrita e da

linguagem que propiciaram o desenvolvimento de um pensamento fundamentado na razão. A

cidade, ao estimular o fervilhar de várias atividades econômicas, provocou, outrossim, a

disseminação de novas idéias e novas formulações intelectuais32. Igualmente, por intermédio

dos seus estudantes que no meio urbano tinham demandas materiais, a universidade favoreceu

a expansão das atividades econômicas ( LE GOFF, 1998, p. 63). Conforme Le Goff:

Em compensação, na cidade há um uso muito maior da língua escrita que se aprende na escola e nas universidades. É na praça pública que a arte do comício faz também sua aprendizagem. No século XV, numa cidade como Metz, afixam-se chamados para reuniões que se situam entre a manifestação religiosa e a manifestação política. Isso também testemunha a criatividade urbana (LE GOFF, 1998, p. 60).

Por ser uma das instituições mais importantes engendradas pelo mundo medieval, as

universidades legaram à cultura ocidental33 um expressivo número de informações escritas.

maneira, a associação visava fazer frente às interferências dos podres locais, eclesiásticos (bispado) ou laicos (monarquia, comuna). Para tanto, conseguiu o importante apoio do papado e sua política universalista, que precisava da produção intelectual dela para enfrentar as heresias. Aparecia assim a grande contradição da universidade: mesmo tendo em seus quadros leigos e clérigos que não tinham ainda recebido as ordens sacerdotais, ela permanecia um ‘corporação eclesiástica’ que, sem cortar os laços nacionais ou comunais, passava a ser vista com reserva por todos os poderes e segmentos sociais.” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 117)31 Seguindo trabalho de Régine Pernoud, na Idade Média, o domínio da ciência esteve ligado ao da imaginação e poesia. Além disso, a historiadora francesa propõe como tese a idéia de que a mesma teve, uma importância significativa ao contrário do que se possa pensar.32 Em texto sobre A Educação na Idade Média Ana Paula Gomes Mancini diz o seguinte sobre a importância da universidade, no que diz respeito à ameaça aos dogmas da Igreja Católica: “Funcionando como centro de grande atividade intelectual, as universidades começaram a ameaçar o dogmatismo da Igreja Católica, fazendo com que esta criasse a Inquisição, que se espalhou pela Europa a partir do século XII.” (MANCINI, 2006, p. 72)33 Ruy Afonso da Costa Nunes em seu livro História da educação na Idade Média afirma de modo peremptório que a universidade é uma criação do mundo medieval. Além disso, ele informa que o termo “universitas” passou a

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Daí, não ser difícil perceber sua importância para aquele mundo. Consoante Jacques Verger,

em seu livro Homens e saber na Idade Média, “as primeiras universidades apareceram em

Bolonha, em Paris, em Montpellier, em Oxford nos primeiros anos do século XIII” (VERGER,

1999, p. 81).

As origens das universidades medievais estão indissociavelmente vinculadas aos

interesses políticos das regiões onde elas emergiram, mesmo se considerando iniciativas de

mestres e alunos. Elas porém, reagiram às tentativas de controles de agentes externos, como o

papado e com os poderes políticos localizados nas cidades (LE GOFF, 1998, p. 65)34. Há de se

acrescentar que o debate historiográfico sobre o tema ainda permanece aberto, esperando novas

conclusões e avanços teóricos e metodológicos. Assim, utilizando mais uma vez as palavras de

Verger:

Seja como for, uma coisa é certa: o surgimento das primeiras universidades não foi um fenômeno espontâneo, simplesmente uma pura criação de mestres e estudantes. Mesmo que a ação pessoas destes possa ter sido indispensável, ela sempre foi sustentada por uma vontade política que permitiu conseguir vencer as resistências (principalmente aquelas dos poderes locais, do bispo e de seu chanceler em Paris, da cidade em Bolonha) e oferecer à nova instituição sua legitimidade e seu estatuto jurídico. Essa vontade política foi, ao mesmo tempo, aquela do príncipe (particularmente visível na Inglaterra, mais discreta, mas real em Paris) e aquela do papa (especialmente ativo em Paris e em Bolonha). (VERGER, 1999, p. 83).

Em obra escrita em 1957, Os intelectuais na Idade Média, posta à disposição do

público brasileiro apenas em 1988, Jacques Le Goff defendeu a tese de que os intelectuais

daquele período surgiu, por intermédio da disseminação da vida urbana35. O historiador francês

ser utilizado na acepção de associação. Além disso: “No século XIII, nessa mesma acepção, ele passou a ser empregado para designar as corporações de mestres e estudantes que se consagravam de modo organizado ao estudo das artes liberais, do direito, da medicina e da teologia”. (NUNES, 1979, p. 211)34 Le Goff assevera ainda em Por amor às cidades o seguinte: “Na verdade, a atitude das cidades com respeito aos universitários, e sobretudo os estudantes, é ambígua ou, antes, ambivalente. De um lado, as cidades celebram suas universidades porque encontram nisso prestígio e mesmo lucros, mas, de outro, não se aplaca a hostilidade que se experimenta a seu respeito. Os estudantes constituem um mundo de jovens, e os jovens da Idade Média – talvez isto não tenha mudado tanto – são agitadores. Como se dizia nas abadias, eles tornam mais difíceis o consenso e o bom governo, que se buscava tão febrilmente tanto ontem como hoje. A inovação intelectual e social freqüentemente andava de mãos dadas com a agitação, como em todos os setores do viveiro urbano.” (LE GOFF, 1998, p. 67)35 Le Goff na mesma obra alerta ao leitor a cidade no Ocidente medieval, chamando a atenção para o fato de que a mesma sempre foi uma realidade em todo a Idade Média. Contudo, diferencia a cidade que tem origens entre os séculos X a XII, das surgidas ao longo do Império Romano. Assim, consoante o historiador: “Sem dúvida, sempre houve cidades no Ocidente, mas os restos de cidades romanas do Baixo Império não encerravam dentro de suas muralhas mais que um punhado de habitantes organizados em torno de um chefe militar, administrativo ou religioso. Cidades episcopais, sobretudo, elas reuniam apenas um pequeno laicado em torno de um clero um pouco mais numeroso, sem qualquer vida econômica além de um pequeno mercado local destinado às necessidades cotidianas.” (LE GOFF, 1993, p. 21)

43

destaca que tais intelectuais aos poucos se configuravam como indivíduos que tinham

habilidades no que tange aos atos de “escrever” e “ensinar” (LE GOFF, 1993, p. 21).

Ao delinear os possíveis aspectos da mentalidade e da formação do intelectual

medieval, o autor de A Civilização do Ocidente Medieval chama a atenção para o fato de que

muitos intelectuais acreditavam “serem homens novos” e de estarem forjando um novo mundo

(LE GOFF, 1993, p. 23). Eles, prosseguindo com Jacques Le Goff, alcunhavam-se como

modernos. Daí, conforme o pesquisador e medievalista francês:

Tanto no falar como no escrever, é recorrente o uso da palavra moderni para se designar os escritores de seu tempo. Modernos, eis o que eles são e sabem ler. Mas modernos que não contestam absolutamente os antigos; pelo contrário, os imitam e se nutrem deles, se apóiam em seus ombros. Não se passa das trevas da ignorância para a luz da ciência”, afirmava Pedro de Blois, “senão relendo com amor sempre mais vivo as obras dos antigos. Podem latir os cães e grunhir os porcos, não serei por isso menos partidário dos antigos. Para eles orientarei todos os meus cuidados, e a aurora de cada dia me encontrará a estudá-los” (LE GOFF, 1993, p. 23).

O texto acima é emblemático no que diz respeito à compreensão das gêneses do mito

historiográfico que vinculou de forma cabal a Idade Média como o momento das “trevas”.

Neste sentido, o imaginário e a mentalidade do intelectual se orientaram para a idéia de que a

modernidade e os possíveis novos tempos tinham que se deparar novamente com a

Antigüidade Clássica.

Os intelectuais do Ocidente medieval já vislumbravam a conexão entre ensino e

conhecimento fundado na ciência (LE GOFF, 1993, p. 57). Em uma sociedade, em que aos

poucos ia angariando características que se tornaram visíveis na época do capitalismo, as idéias

produzidas nas universidades e escolas circulavam, concomitantemente, às mercadorias que

eram transacionadas pelos mercadores. Daí, a assertiva do eminente medievalista francês: “No

espaço urbano, o professor se aproxima, no mesmo impulso produtivo, do artesão e do

mercador” (LE GOFF, 1993, p. 57).

44

Posto que estivessem inseridas no espírito das corporações medievais36, as

universidades assimilaram e reproduziram também a cultura citadina que, em muitos aspectos,

contrapunham-se à cultura do mundo rural medieval. Desse modo, o meio universitário

contribuiu para a criação de novas concepções de mundo em questão nas raízes do mundo

burguês e capitalista que se consolida, notadamente, a partir da Revolução Industrial e das

Revoluções Burguesas dos séculos XVIII e XIX.

Ao fazer parte de uma corporação universitária que enfrentava a permanência entre a

“independência” ou “privilégio”, segundo Le Goff, o intelectual do mundo medieval lotado no

espaço citadino tinha a sua atuação aquilatada por tal condição. Explica-se, se o ambiente

universitário corporativo propiciava-lhe a livre circulação de idéias, de outro, ele exercia um

controle sobre o seu ofício.

Concluindo as reflexões sobre os intelectuais e as universidades na Europa da Idade

Média Ocidental, pode-se expressar mais uma vez sobre tais temas para o ensino da História

Medieval. No caso específico dos livros didáticos destinados aos alunos do Ensino Médio,

pode-se afirmar que o primeiro é abordado de forma ínfima por alguns manuais. O outro,

apesar de ser destacado com mais ênfase, é representado de uma maneira geral como

desdobramento do chamado Renascimento comercial e urbano. Aliás, fornecer mais realce às

universidades do que aos intelectuais não pode parecer um paradoxo, na medida em que não

existe universidade sem intelectuais ? Há de se acrescentar que, se tais temas fossem tratados

de forma mais ampla, as representações sobre a cidade medieval, em tal nível de ensino,

poderia favorecer um questionamento mais profundo do mito historiográfico “idade das

trevas”.

As artes e a literatura no período medieval também se tornaram referencia para a

compreensão da posterior evolução cultural no ocidente. Todavia, consoante Pernoud, não

obstante haver um número considerável de trabalhos, por exemplo, sobre a literatura, não há

ainda “uma idéia justa sobre a literatura medieval” (PERNOUD, s/a, p. 111).

36 O próprio Le Goff chama a atenção para uma possível contradição no interior das universidades medievais elencadas ainda aos princípios corporativos: “O século XIII é o século das universidades porque é o das corporações. Em cada cidade onde existe um ofício agrupando um número significativo de membros, estes se organizam para a defesa de seus interesses e a instauração de um monopólio em seu proveito. Esta é fase institucional do desenvolvimento urbano, que materializa em comunas as liberdades políticas conquistadas, e em corporações as posições adquiridas no domínio econômico. Liberdade aqui é equívoca: independência ou privilégio ? Reencontraremos essa ambigüidade na corporação universitária.” (LE GOFF, 1993, p. 59)

45

A literatura, conforme alerta da autora Idade Média: o que não nos ensinaram, não

pode ser traduzida como representando simplesmente a idéia do amor cortês (PERNOUD, s/a,

p. 129). Principalmente a poesia que marcou a produção literária medieval. Os temas37 que

serviram de base para produção literária estavam fortemente vinculados ao seu contexto,

ensejando assim mais um caminho para a compreensão do processo histórico medieval. Afinal,

há que se considerar a importância do maravilhoso do imaginário medieval na confecção das

diversas obras literárias, podendo assim ensejar também novas possibilidades para o ensino de

História Medieval. `

Um dos temas que tem contribuído para a renovação dos estudos sobre a Idade Média

relaciona-se ao estudo do cotidiano. Com isso, o período em questão tem ensejado pesquisas e

trabalhos que fogem um pouco dos temas relacionados fundamentalmente aos temas, político e

econômico. Nesse sentido, a vida cotidiana vem angariando preferências entre os

medievalistas.

Os estudos sobre o cotidiano medieval não podem preterir o mundo agrário, pois a vida

nesse período encontrava-se fundamentalmente centrada nos domínios senhoriais. Mas, o

cotidiano e a vida privada citadina tornam-se cada vez mais objetos de estudos dos

historiadores medievalistas. Assim, um dos caminhos possíveis para a renovação dos estudos

sobre a Idade Média encontra-se nos temas do cotidiano. Por isso, tais estudos também iriam

contribuir mais uma vez para a refutação do mito historiográfico que vincula a Idade Média às

trevas.

Juntamente com os temas relacionados ao cotidiano, daqueles vinculados às

mentalidades vêm despertando a atenção entre os pesquisadores. Com relação ao ensino de

História, todavia tanto a história do cotidiano, quanto à das mentalidades ainda são pouco

exploradas pelos professores, motivando daí que as aulas sobre o período medieval ainda

destacam os aspectos políticos, econômicos e sociais.

O estudo das mentalidades38 enseja aos alunos a compreensão de uma série de

símbolos, valores e representações que explicam as diversas atuações dos atores históricos em

um dado momento da história. O estudo dos temas que estão em torno das mentalidades,

aproxima os homens e mulheres da atualidade, dos que viveram na Idade Média. Há de se 37 Segundo Régine Pernoud, à mulher foi à razão da poesia medieval. 38 Hilário Franco Júnior, julga que as mentalidades busca “ver em profundidade as motivações e os moldes da histórica econômica, política, social e cultural. Enfim, aprender a globalidade histórica requer análise das relações entre os níveis mais dinâmicos e os mais lentos da realidade humana.” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 138)

46

acrescentar que, se a História das Mentalidades dá aos estudiosos uma compreensão daquilo

que permanece na História, ou seja, de valores, atitudes e gestos, despertando entre os alunos e

nos próprios professores um interesse maior. Daí, o exame das mentalidades e cotidiano

aproximar mais ainda os homens e mulheres do seu passado.

*

* *

A historiografia medieval e as interpretações sobre a Idade Média refletem os

momentos históricos nos quais os historiadores debruçaram-se. Nesse aspecto, cabe destacar

que os grandes avanços da historiografia ocidental no século XX e início do XXI contaram

com a presença expressiva de pesquisadores que se notabilizaram com trabalhos realizados

sobre o período medieval.

Pode-se afirmar que o futuro da História da Idade Média Ocidental no século XXI

receberão a marca das questões do presente século. Logo, pode-se perguntar: o que os

historiadores brasileiros e o ensino da história no Brasil poderão beneficiar-se com o estudo da

História da Idade Média Ocidental ? Como os avanços da historiografia medieval podem

contribuir para a dinamização do ensino de História Medieval no Brasil ?

Inicialmente, cabe afirmar que a Expansão Ultramarina portuguesa e a posterior

colonização do Brasil são desdobramentos do processo histórico medieval39. Pode-se, portanto,

constatar que as marcas da Idade Média ocidental para a história brasileira são profundas e

39 Em livro recém publicado no Brasil, A Civilização feudal: do ano mil à colonização, Jérôme Baschel, propõe uma pergunta: “por que se interessar pela Europa Medieval ?” Inicialmente o autor faz coro com outros historiadores e chama a atenção para as representações que contribuíram para os preconceitos sobre a Idade Média. Posteriormente ele lança uma questão que considero ser inspiradora para os historiadores latino-americano que se preocupam com o estudo da História Medieval, mesmo considerando que ele se atêm no caso mexicano: “Mas que sentido existe estudar o Ocidente medieval a partir das terras americanas e, em particular, mexicanas ? A data de 1492, ponto de articulação convencional entre Idade Média e Tempos Modernos, fornece um primeiro elemento de resposta. Este ano marcado por uma constelação de eventos de primeiro elemento de resposta. Este ano é marcado por uma notável constelação de primeira importância para a Península Ibérica e para o Ocidente: além da chegada de Colombo às ilhas das Caraíbas, o glorioso fim do cerco de Granada levado a cabo por Fernando de Aragão e Isabel, a Católica, a expulsa dos judeus dos reinos de Aragão e Castela, sem falar da primeira gramática de uma língua vernácula, a Gramática castellana, de Antônio de Nebrija. A conjunção desses eventos em alguns meses não se deve ao acaso, mas corresponde, ao contrário, a um encadeamento lógico, bem sublinhado por Bernard Vicent. Interessa-nos, particularmente, aqui, o laço entre o fim da Reconquista e o início da aventura marítima lançada em direção ao Oeste, que rapidamente conduzirá à Conquista.” (BASCHET, 2006, p. 26-27)

47

ainda não foram suficientemente avaliadas. Além disso, a compreensão da importância da

Idade Média para o nosso País está intrinsicamente ligada aos estudos sobre o período na

Europa, e igualmente sobre os estudos que comprovem cada vez mais a importância e a ligação

do mundo medieval com o nosso40.

As representações sobre o ensino da História Medieval nos manuais didáticos estarão

sempre vinculadas às pesquisas realizadas, tanto sobre a Idade Média ocidental na Europa,

quanto em relação à importância e influência da Idade Média para a história brasileira. Então, o

ensino da Idade Média portuguesa pode ser trilhado pelos historiadores para o despertar do

estudo da Idade Média em nosso País. Assim, tudo isso poder favorecer não só as novas

representações sobre o período no Brasil, como também o crescimento do interesse do período

entre os estudantes brasileiros. Segundo José Rivair Macedo:

A ênfase no ensino de aspectos históricos da Península Ibérica teria mais propriedade educativa do que o ensino da História modelada na França ou na Inglaterra, pelos simples fato de pertencermos a um conjunto cultural específico, no caso, o ibero-americano. Ao tornar a Península Ibérica, o ensino de História cumpriria melhor o seu papel de revelar aos estudantes aspectos de nosso passado que continuam a interagir com o presente. Com efeito, é na especificidade da formação dos reinos cristãos ibéricos que se encontram os elementos explicativos do por que a Portugal e Espanha esteve reservado o papel de alargamento marítimo do mundo europeu, o e nos diz respeito diretamente (MACEDO, 2003, p. 116).

Tanto o texto de José de Assunção Barros, quanto o de José Rivair de Macedo

convergem no sentido de chamar a atenção sobre as vantagens da valorização dos estudos

sobre a Idade Média em Portugal e na Espanha. Conseqüentemente, temas da História

Medieval Ibérica poderiam ser trabalhados a fim de que os alunos pudessem perceber de forma

mais contundente a relação do passado medieval com o mundo latino-americano

contemporâneo.

40 José D’Assunção em texto intitulado “Problemas para o estudo de História Medieval no Brasil”, contribui para a valorização da História Medieval no Brasil. O texto propõe como problematização a importância da História medieval portuguesa para o Brasil. Todavia, além de levantar questões sobre as possibilidades do ensino da História Medieval portuguesa para o ensino da História do Brasil, ele apresenta a seguinte questão: “O estudo da História medieval no Brasil, particularmente o relativo à medievalidade portuguesa, apresenta freqüentemente uma série de dificuldades e problemas a serem enfrentados pelos estudantes e pesquisadores que resolvem se dedicar a este campo. Que dificuldades são estas ? Até que ponto algumas destas dificuldades são concretas, e não imaginárias ? Quando existem efetivamente obstáculos ao estudo da História Medieval no Brasil, até que ponto estes obstáculos não são contornáveis ? Até que ponto as dificuldades realmente existentes não são excessivamente exageradas, e – pergunta mais delicada (!) – a que interesses atendem estes exageros ?” (BARROS, 2000, p. 01)

48

Apesar de se poder reconhecer que, muitas vezes, o ensino e os manuais de História

que priorizam a Idade Média francesa e inglesa, tornarem-se pouco atrativos, há que se

considerar sua importância. Sob esse prisma, os estudos sobre a Idade Média na França e na

Inglaterra, principalmente os empreendidos pelos historiadores filiados à História das

Mentalidades e à Nova História Cultural, têm diversificado os temas, tornando-os assim de

interesse para os historiadores, professores e estudantes. Portanto, como não encontrar na

história medieval inglesa e francesa explicações sobre as nossas origens ?

O reconhecimento da história medieval ibérica, para uma melhor compreensão do

passado brasileiro, não significa um aviltamento da Idade Média francesa e inglesa. Pelo

contrário, a sua valorização reforçaria, por intermédio de um cotejamento com o estudo da

Idade Média ibérica, um amplo painel para os nossos alunos sobre a Idade Média Ocidental.

Desse modo, o estudo das diversas realidades medievais estimula e favorece uma compreensão

holística do processo histórico medieval. Some-se ainda que, para o pesquisador e professor

brasileiros afeitos ao estudo do período, o acesso permanente aos avanços da historiografia

inglesa e francesa não devem ser deixados de lado.

A imagem e a palavra foram instrumentos determinantes no que concerne à

comunicação entre homens e mulheres no período em questão. Assim, em um momento em

que poucos tinham acesso à educação, estudar as representações engendradas sobre o período,

utilizando-se dos símbolos que foram expressos nas imagens e palavras, constitui-se como um

caminho que não pode ser preterido. Conforme José Rivair de Macedo, o uso de tais

representações torna-se um recurso indispensável na medida em que o Ocidente Medieval foi

na verdade: “Civilização dos gestos, a Idade Média foi também uma civilização da palavra e da

voz” (MACEDO, 2003, p. 121). Há de se acrescentar que o apelo às características culturais

enseja uma maior abertura no que concerne ao ensino da História Medieval. Utilizamos ainda

as palavras da historiadora Régine Pernoud para se concluir tal capítulo:

Devemo-nos contentar, de momento, em admirar a maneira como os artistas da idade Média souberam fazer da sua casa de orações como que o resumo e o apogeu da sua vida e das suas preocupações. Ela era não apenas o testemunho visível da sua fé, da ciência sagrada e profana, da liturgia, mas ainda o reflexo das suas ocupações quotidianas: lado a lado com um magistral “Julgamento Final”, súmula viva da majestade divina e dos últimos fins do homem, vêem-se camponeses a atar espigas, a aquecerem-se ao canto da lareira, a matar o porco. E encontramos igualmente testemunhos desse robusto sentido da beleza que possuíam os nossos antepassados, do seu amor pela vida, da sua alma serena, amante do trabalho bem feito, da usa imaginação vagabunda, sempre a inventar formas novas (saber-se-á que nunca se

49

vêem lado a lado dois motivos de folhagem idênticos na ornamentação ?), da sua veia folgozona, que não conseguem refrear mesmo na igreja – alguns rostos de vitrais são autênticas caricaturas e certas estátuas alegres brincadeiras (PERNOUD, s/a, p. 157).

1.4. Considerações Finais.

No ensino de História no Brasil, tanto no ensino fundamental, quanto no ensino médio,

os livros didáticos desempenham um papel importante. Para o pesquisador que se debruça

sobre a História do ensino de História no Brasil, eles podem revelar aspectos fundamentais da

trajetória da História, enquanto disciplina.

A Idade Média Ocidental sempre despertou a curiosidade dos pesquisadores brasileiros.

Nesse ponto, a historiografia sobre o ocidente medieval vem sendo enriquecida freqüentemente

pelos trabalhados dos medievalistas brasileiros. Todavia, os resultados das pesquisas

acadêmicas realizadas no Brasil sobre tal período, de uma maneira geral, são lentamente

apresentados nos livros didáticos destinados aos alunos do ensino médio. Por isso,

determinados mitos historiográficos sobre a Idade Média insistem em permanecer no

imaginário dos estudantes brasileiros.

A História do ensino de História Medieval no Brasil não pode ser avaliada fora do

contexto da História do ensino de História no Brasil que, por sua vez, está aquilatada

igualmente pelo processo histórico brasileiro. Assim, no período colonial, a educação letrada

foi de um modo geral apanágio da Igreja Católica, embora, com as reformas pombalinas, o

Estado português tivesse tido a intenção de diminuir a influência dos Jesuítas na educação.

A transferência do governo português para o Brasil e, posteriormente a Independência,

trouxeram mudanças significativas para a educação. A criação dos primeiros cursos superiores

atesta isso. O estabelecimento da História como disciplina ocorreu no século XIX. A

constituição de tal disciplina esteve profundamente relacionada com a preocupação de se

consolidar no Brasil, o Estado nacional.

No novo Estado republicano implantado a partir de 1889, a educação seria o caminho a

ser trilhado, no que ativesse à possibilidade de se construir um novo cidadão. No tocante ao

50

ensino de História no início da República ele não diferiu em sua essência do ensino ministrado

no período imperial (1822-1889).

Tanto as reformas de Francisco Campos quanto às de Gustavo Capanema, a partir de

1930, puseram o estudo e o ensino de História como instrumentos centrais para a educação do

cidadão que deveria ser despertado para o respeito à nação e aos seus valores. Por fim, cabe

informar que a política de centralização da Era Vargas prosseguiu e foi ampliada pelos

governos militares (1964-1985).

Especificamente quanto ao ensino de História, desde os anos de 1930, houve aos

poucos o crescimento da pesquisa histórica no Brasil. As políticas educacionais implantadas

pelos governos militares, porém acabaram por enquadrar o ensino de História nos quadros da

Doutrina de Segurança Nacional. Os conselhos de educação testemunham o controle sobre o

ensino nas escolas. Além disso, com a implantação dos cursos de Estudos Sociais, a formação

do historiador e do professor de História ficaram comprometidas.

Com a abertura política e o fim do regime militar, professores e pesquisadores de vários

lugares do país conscientizaram-se e mobilizaram-se sobre a necessidade de mudanças nos

currículos de História. As propostas de Minas Gerais e São Paulo sobre as reformas

curriculares, ganharam destaque e foram amplamente discutidas. Porém, os debates vêm

prosseguindo até os nossos dias.

O ensino de História Medieval tem dado destaque ao meio rural. Por isso, as imagens e

representações da vida urbana são postas por muitos manuais de História em segundo plano.

Assim, temas como o comércio, a burguesia, as cruzadas e as corporações de ofício e o poder

político nas cidades, embora sejam abordados nos livros de História, não o são de modo

aprofundado. A representações e as imagens sobre a cultura citadina permanece pouco

explorada.

O próximo capítulo intitulado “A Cidade e o mundo Medieval” examinará inicialmente

o tema, Cidade e História: os antecedentes da cidade medieval. Tal capítulo terá como alvo

propor algumas questões concernentes ao fenômeno urbano. Posteriormente, serão examinados

alguns aspectos da cidade antiga, tomando como base a Mesopotâmia e o Egito Antigo.

O segundo tema, “A Compreensão do fenômeno urbano Medieval” analisará o

desenvolvimento das cidades na Idade Média, levando em conta os traços políticos,

51

econômicos, sociais, culturais e mentais. Além disso, o capítulo tem a intenção de apresentar

uma série de indagações para a compreensão do fenômeno urbano medieval.

O terceiro tema, “A Construção do conceito de cidade medieval”, buscará examinar

algumas tentativas realizadas por historiadores no que diz respeito à definição de cidade

medieval. Há de se acrescentar que, para alguns estudiosos, o conceito de cidade medieval está

relacionado à compreensão da figura do citadino.

II. A CIDADE E O MUNDO MEDIEVAL.

52

A cidade contemporânea, apesar de grandes transformações, está mais próxima da cidade medieval do que esta última cidade antiga. A cidade da Idade Média é uma sociedade abundante, concentrada em um pequeno espaço, um lugar de produção e de trocas em que se mesclam artesanato e o comércio alimentados por uma economia monetária. É também o cadinho de um novo sistema de valores nascido da prática laboriosa e criadora do trabalho, do gosto pelo negócio e pelo dinheiro.

Jacques Le Goff41

2.1. Cidade e História: os antecedentes da cidade medieval.

O ensino de história nas instituições universitárias e principalmente nos ensinos

fundamental e médio, tem dado destaque ao mundo rural no estudo da Idade Média

Ocidental. Por isso, pode-se dizer que, apesar dos avanços metodológicos e teóricos no

ensino de história no Brasil, os livros didáticos praticamente não alteraram muito suas

abordagens, no que concerne à cidade medieval. Antes de se examinar a cidade na

Idade Média, no entanto, há que se considerar algumas reflexões gerais sobre o

fenômeno urbano por intermédio de estudos, sobretudo os vinculados às ciências

humanas.

Na tentativa de configurar algumas definições sobre o fenômeno urbano, Manuel

Castells em seu livro A Questão urbana diz preliminarmente na primeira parte da obra

que a expressão urbanização contempla dois significados específicos: 1) o significado

de “concentração espacial de uma população”; e 2) a urbanização como comportando

igualmente, a “difusão de valores, a atitudes e comportamentos denominados cultura

urbana” (CASTELLS, 1983, p. 39). O autor propõe que, na verdade, a cultura urbana,

posta em foco é aquela que está em consonância com o sistema capitalista. Por isso, há

uma preocupação em se investigar, e em conjunto à urbanização, temas como o da

industrialização.

Posteriormente, e de forma sumária, o sociólogo nascido na Espanha examina a

evolução do processo urbano desde os primeiros núcleos42 em civilizações como a

41 A passagem foi retirada do livro: LE GOFF, Jacques. Por Amor às Cidades. São Paulo: UNESP, 1998.42 Lewis Munford em seu livro A Cidade na História afirma o seguinte sobre as origens da cidade: “Que é a cidade ? Como foi que começou existir ? Que processos promove ? Que funções desempenha ? Que finalidades

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Mesopotâmia até a urbanização engendrada pela industrialização. As cidades, neste

momento histórico, constituíam-se como espaços ocupados pelas pessoas que não

tinham a incumbência de trabalhar na produção agrícola. O excedente agrícola,

consoante Castells, favoreceu a expansão de uma série de ofícios que dinamizaram os

então incipientes centros urbanos (CASTELLS, 1983, p. 42). O autor de A Questão

urbana, porém, não se restringe a enfocar o papel econômico da cidade, pois ela na

verdade desempenha também um papel político e a administrativo. As palavras do

estudioso exprimem melhor essa idéia:

Lendo estes dados numa ordem teórica, fica bem claro que a cidade é o lugar geográfico onde se instala a superestrutura político-administrativa de uma sociedade que chegou a um ponto de desenvolvimento técnico e social (natural e cultural) de tal ordem que existe uma diferenciação do produto em reprodução simples e ampliada da força de trabalho, chegando a um sistema de distribuição de troca, que supõe a existência: 1. de um sistema de classes sociais; 2. de um sistema político permitido ao mesmo tempo o funcionamento do conjunto social e o domínio de uma classe; 3. de um sistema institucional de investimento, em particular no que concerne à cultura e à técnica; 4. de um sistema de troca com o exterior (CASTELLS, 1983, p. 42-43).

Embora não desconsidere a função econômica da cidade, Mumford destaca os

centros urbanos antigos em suas gêneses como locais que representam aspectos

culturais. Assim, o autor destaca temas como cerimônia e aldeia (MUMFORD, 1998, p.

16).

Na relação entre as aldeias e as cidades, Leonardo Benevolo, em História da

cidade, diz que as segundas surgiram das primeiras. Não se deve compreender de forma

automática, todavia que a cidade seja simplesmente “uma aldeia que cresceu”

(BENEVOLO, 2003, p. 23). Igualmente, as cidades se constituem por pessoas que não

estão mais ocupadas com a produção agrária43.

O desenvolvimento das cidades é mais rápido e está em consonância com a

dinâmica das civilizações. Nas primeiras civilizações, as que se originaram na

preenche ? Não há definição que se aplique sozinha a todas as suas manifestações nem descrição isolada que cubra todas as suas transformações, desde o núcleo social embrionário até as complexas formas da sua maturidade e a desintegração corporal da sua velhice. As origens da cidade são obscuras, enterrada ou irrecuperavelmente apagada uma grande parte de seu passado, e são difíceis de pesar suas perspectivas futuras.” (MUNFORD, 1998, p. 09)43 Segundo Benevolo: “Ela se forma, como pudemos ver quando as indústrias e os serviços já não são executados pelas pessoas que cultivam a terra, mas por outras que não têm esta obrigação, e que são mantidas pelas primeiras com o excedente do produto total.” (BENEVOLO, 2003, p. 23)

54

Mesopotâmia, seu excedente econômico foi açambarcado pelas elites. Conforme

Benevolo:

O cultivo dos cereais e das árvores frutíferas nos ricos terrenos úmidos proporciona colheitas excepcionais, e pode ser ampliado melhorando e irrigando terrenos cada vez maiores. Parte dos víveres pode ser acumulada para as trocas comerciais e os grandes trabalhos coletivos. Começa, assim, a espiral da nova economia: o aumento da produção agrícola, a concentração do excedente nas cidades e ainda o aumento de população e de produtos garantido pelo domínio técnico e militar da cidade sobre o campo (BENEVOLO, 2003, p. 26).

As cidades-estado da Mesopotâmia eram independentes politicamente em uma

região caracterizada pelas adversidades climáticas, mas que foi contemplada pelas obras

de irrigação. As cidades na antiga Mesopotâmia não avançaram mais em razão dos

conflitos políticos que ora determinava que, uma cidade, exercesse a hegemonia política

sobre as outras44.

No Egito Antigo, a presença do Estado faraônico avaliou o fenômeno urbano

diferenciando-o da Mesopotâmia. Segundo estudo de Benevolo, “as grandes cidades

mais recentes, como Mênfis e Tebas, se caracterizam por monumentos de pedra, tumbas

e templos, não pelas casas e pelos palácios nivelados sob os campos e as habitações

modernas.” (BENEVOLO, 2003, p. 40). Há de se acrescentar que o faraó, se comparado

aos governantes da Mesopotâmia antiga, era detentor do poder centralizado que na pior

das hipóteses estendia-se ao longo do território do antigo Egito.

Castells ainda chama a atenção ao abordar o meio urbano no mundo antigo

clássico de que as cidades romanas, além de serem centros econômicos, tinham um

papel destacado no exercício do poder político. Ao exercer uma política de conquistas, o

Império romano pôs em prática aquilo que o estudioso denomina de “colonização

urbana”, ou seja, a disseminação das bases administrativas e políticas dos romanos

sobre os povos conquistados, ensejando com isso a exploração econômica (CASTELLS,

1983, p. 43). Sobre a situação urbana, no decorrer do ocaso do Império romano do

Ocidente, o autor de Cidade, democracia e socialismo tem a dizer o seguinte:

44 Conforme Benevolo mais uma vez: “Até meados do III milênio, as cidades da Mesopotâmia formam outros tantos Estados independentes, que lutam entre si para repartir a planície irrigada pelos dois rios, então completamente colonizada. Estes conflitos limitam o desenvolvimento econômico, e só terminam quando o chefe de uma cidade adquire tal poder que impõe seu domínio sobre toda a região. O primeiro fundador de um império estável (durante cerca de um século, por volta de 2500) é Sargão de Acad; mais tarde, sua tentativa é repetida pelos reis sumérios de Ur, por Hamurabi da Babilônia, pelos assírios e persas.” (BENEVOLO, 2003, p.32)

55

Então, é lógico que a queda do Império romano do Ocidente ocasiona quase o desaparecimento da forma sócio-espacial da cidade, pois tendo funções político-administrativas centrais sido substituídas pelas dominações locais dos senhores feudais, não houve outro fundamento social a encargo das cidades a não ser o das divisões da administração da Igreja ou a colonização e a defesa das regiões fronteiras (por exemplo na Catalunha ou na Prússia oriental). (CASTELLS, 1983, p. 43).

As representações simbólicas ainda são alvos do estudo de Manuel Castells. Ele

investiga o espaço urbano e as perspectivas de representações simbólicas. Nesse

sentido, o espaço urbano deve ser compreendido por intermédio das representações

simbólicas realizadas pelos homens nas suas relações sociais no interior da cidade45.

Desse modo, as mudanças ocorridas nas cidades através dos tempos não se

verificaram exclusivamente no tocante ao seu espaço geográfico. Também no plano

simbólico, as representações que os homens efetuaram nas cidades alteraram-se com o

passar dos tempos. Daí poder falar-se em cidades imaginadas e concebidas que variam

de tempos em tempos.

2.2. A compreensão do fenômeno urbano medieval

A historiografia sobre o ocidente medieval, embora se ocupe mais do mundo

rural, tem sido beneficiada com estudos sobre o mundo urbano na Idade Média. Os

trabalhos de Jacques Le Goff, Roberto Sabatino Lopez e José D’Assunção Barros

atestam isso46. Mas, como se compreender o fenômeno urbano no período medieval

ocidental ?

Foi no século XIX que houve uma preocupação mais sistemática no que diz

respeito a uma compreensão das cidades no mundo ocidental (BARROS, 2003, p. 9).

Na Europa ocidental, o desenvolvimento do capitalismo, primeiramente na Inglaterra,

no final do século XVIII, e depois nos demais países, engendrou grandes

45 Castells diz ainda o seguinte sobre as imagens produzidas sobre as cidades: “Só existe imagem quando ligada a uma prática social. Não só porque ela é produzida socialmente, mas porque não pode existir (‘tremular’...) a não ser dentro das relações sociais, da mesma forma que, definitivamente, não existe linguagem sem palavra. É neste sentido que Raymond Ledrut tenta corrigir as tentativas de Lynch, estudando a imagem da cidade a partir das práticas sociais, em particular a partir das representações que os cidadãos fazem da sua cidade.” (CASTELLS, 2006, p. 305)46 Respectivamente: LE GOFF, Jacques. O Apogeu da cidade medieval. LOPEZ, Robert S. a Cidade Medieval. BARROS, José D’Assunção. A Cidade medieval: os grandes debates historiográficos.

56

transformações políticas, econômicas e sociais, que marcaram o cotidiano das pessoas

não só no continente europeu, como também no resto do mundo.

A cidade tornou-se o grande palco do mundo burguês. A civilização burguesa,

por meio de suas grandes produções industriais, concomitantemente a um grande

avanço tecnológico e científico, criou novos ambientes e destruiu outros. O mundo das

máquinas criou o tempo útil (DE DECCA, 1982, p. 15)47. O ritmo de vidas das pessoas

do novo mundo burguês passa a ser ditado pela produção de mercadorias. O trabalho no

capitalismo foi alienado, mesmo considerando que o mundo e os valore burgueses o

tinham como um valor positivo.

Por isso, ao observarem o vai-e-vem das pessoas pelos grandes centros urbanos,

escritores, poetas, cronistas e romancistas do século XIX não puderam deixar de relatar

as contradições geradas pelo mundo capitalista, porque a opulência material contrastava

com a degradação material e moral de muitos seres humanos na Europa Ocidental.

Violência urbana, prostituição, mendicância e desemprego ceifavam milhares de vidas.

O desenvolvimento do capitalismo na Europa gerou uma grande instabilidade no

mercado de trabalho. A alta taxa de desemprego resultou em um aviltamento da mão-

de-obra livre. A ausência de uma estrutura urbana (ausência de moradia e condições

sanitárias adequadas), juntamente com a instabilidade de empregos, levou grandes

contingentes de trabalhadores a se aglomerarem nos centros das cidades, como Paris e

Londres, dois grandes centros industriais do século XIX (BRESCIANI, 1984, p. 37).

Pode-se concluir que o desenvolvimento do capitalismo juntamente com a

expansão das atividades industriais puseram a cidade no foco da atenção de diversos

estudiosos. Aliás, em outro estudo, Maria Stella Martins Bresciani informa que

“somente no início do século XX, a ciência das cidades – o urbanismo – encontra sua

configuração completa, configuração que mantém pouco alterada até nossos dias”

(BRESCIANI, 2002, p. 23). A expressão “urbanização” surge em 1860 (BARROS,

2003, p. 10). Conforme José D’Assunção de Barros:

47 Le Goff afirma que “Essa imposição de normas e valores próprios de determinados setores da sociedade pode ser percebida decisivamente quando tomamos a noção de tempo útil produzida pela ambição da gente trabalhadora. Essa introjeção de um relógio moral do corpo de cada homem demarca decisivamente os dispositivos criados por uma nova classe em ascensão. Autodisciplina, controle de si mesmo, crítica à ociosidade, são exigências imperiosas para o comerciante que se envolve na esfera do mercado.” (LE GOFF, 1992, p. 145)

57

Para o desenvolvimento destes vários interesses nos tempos modernos contribuíram, sem sombra de dúvida, os processos acelerados de urbanização e industrialização. Foi diante deste novo mundo urbano que ao mesmo tempo o fascinava e o ameaçava – fenômeno que por outro ajudou a gestar a contrapartida romântica de uma literatura evasiva que apregoava o regresso à natureza – que o homem ocidental também se pôs a refletir cientificamente sobre a cidade. Buscava talvez, compreender os problemas específicos deste habitat ao qual boa parte da humanidade parecia destinar-se. Queria refletir sobre a organização da vida citadina, sobre as origens imemoriais do fenômeno urbano, e sobre as formas históricas de urbanização – talvez na ânsia de legitimar aquela novas formas de urbanização à qual parecia estar cada vez mais confinada (BARROS, 2003, p. 10-11).

A compreensão da cidade na Idade Média tem engendrado uma série de

questões para o entendimento do espaço urbano medieval. Então, podem ser propostas

as seguintes questões: como compreender a cidade medieval em um universo que

possui uma essência rural ? Como os medievalistas têm compreendido isso ? Como a

cidade medieval é representada nos livros didáticos de história do ensino médio

brasileiro ?

Castells sugere em seu estudo que a cidade medieval se desenvolve a partir do

contexto político, econômico e social medieval. A constituição de mercado,

concomitantemente à criação de novas instituições político-administrativas, são

características desse desenvolvimento (CASTELLS, 1983, p. 43). Além disso, ele

defende a tese que tem como base a idéia de que a formação das cidades na Idade

Média expressou a luta da burguesia em face ao feudalismo e a um suposto poder

central. No entanto, o autor em questão diz que o prosseguimento da trajetória das

cidades, dependeu das relações que aquelas contraíam com o mundo medieval como

um todo. Nas palavras do próprio estudioso:

Como a cidade medieval representa a libertação da burguesia comerciante na sua luta para emancipar-se do feudalismo e do poder central, sua evolução será bem diferente conforme os laços estabelecidos entre burguesia e nobreza. Assim, onde estes laços foram estreitos, as relações entre a cidade e o território circunvizinho, dependendo dos senhores feudais, organizaram-se de modo complementar. E, ao inverso, o conflito destas classes ocasionou o isolamento urbano (CASTELLS, 1983, p. 44).

58

O estudo sobre a cidade na Idade Média tem sido beneficiado por questões

freqüentemente postas pelos historiadores. Jacques Le Goff48 é um deles. E, segundo

José D’Assunção Barros, o medievalista francês propõe três questões fundamentais:

O estudo da Cidade Medieval tem se aberto no século XX a algumas questões a algumas questões primordiais. Três delas, para dar um primeiro exemplo foram formuladas por Jacques Le Goff nos seguintes termos: (1) Como se integra a cidade no mundo de produção feudal ? (2) De onde provém, antes disto, a formação e o desenvolvimento do urbanismo medieval ? (3) O que representa a cidade, por fim, para o cristianismo medieval – funcionando este simultaneamente como religião e como ideologia dominante ? (BARROS, 2003, p. 11).

As questões aventadas pelo historiador francês sugerem que a historiografia

medieval na atualidade não consegue desvincular o estudo da cidade do mundo

medieval como um todo. Assim, a cidade na Idade Média mantém uma autonomia no

que diz respeito à organização política, à econômica e à social, mas não está dissociada

do mundo rural e feudal. A burguesia citadina e os demais grupos sociais não se

colocavam em confronto com o mundo rural no período medieval (BARROS, 2003, p.

88).

No verbete intitulado Cidade, Jacques Le Goff indica que a história das cidades

na Idade Média deve ser considerada a partir do estreitamento daquilo que se pode

denominar cidade real e a cidade imaginária, ou seja representada por intelectuais e

artistas (LE GOFF, 2002, p. 219). Além disso, a vida econômica, social e política e o

cotidiano expressam-se pelas imagens e símbolos determinados por formulações

realizados por membros do clero e intelectuais de um modo geral.

48 Em Ensaio Bibliográfico intitulado de “Cidade e Civilização: luzes e fronteiras da Idade Média”, Flávio de Campos aponta caminhos importantes, no que concerne ao papel das cidades na extensa obra de Jacques Le Goff. Inicialmente, Le Goff é apresentado como um estudioso que devota grande amor pela cidade. O autor de tal ensaio diz-nos em seguida que já nas primeiras obras do historiador francês ocorre o resgate de fenômeno urbano medieval. Como corolário, Flávio de Campos reconhece a influência que Le Goff exerceu e exerce até hoje sobre os historiadores mais contemporâneos, no que diz respeito à definição e importância da cidade medieval para o mundo ocidental. Mas a importância de Le Goff não se resume à nomeação da cidade em seus aspectos administrativos e econômicos. Ele busca resgatar o homem medieval no seu cotidiano. Daí, ele empreender estudos sobre personagens que aquilataram a Idade Média, tais como São Luís e São Francisco. O ensaio busca identificar o percurso intelectual de Jacques Le Goff, por intermédio de suas principais obras e das influências teóricas recebidas, a partir dos Annales. Neste sentido, a associação da cidade com a civilização, faz com que o autor de que o autor de O Apogeu da Cidade Medieval, defenda a tese que apregoa à existência de uma Civilização do Ocidente Medieval. Por isso, suas posições atuais sobre a comunidade européia estão fortemente ancoradas na delimitação e compreensão da Idade Média Ocidental.

59

A Antigüidade clássica foi marcada pela presença das cidades que atestaram o

desenvolvimento político, econômico e cultural. Já no período que marca o fim do

mundo antigo e início do mundo medieval, no entanto, ocorre a intensificação do

processo de ruralização que determinou a história da Idade Media Ocidental49.

Nas discussões sobre a passagem do mundo antigo para a Idade Média,

Ferdinand Lot considera que a Idade Média não veio a se manifestar de modo abrupto

com relação à Antigüidade Clássica (LOT, 1950, p. 13). Mas, adverte sobre a

necessidade de se pensar o problema da intermitência entre seus dois períodos da

história ocidental (LOT, 1950, p. 13).

No tocante à questão das cidades e do comércio no período da crise do Império

Romano e na Alta Idade Média, o autor de O Fim do mundo antigo e o princípio da

Idade Média, assevera que ocorreu uma paralisação do comércio, favorecendo, assim a

retração da vida nas cidades50. Nesse ponto, o processo de ruralização foi intensificado.

As palavras de Lot afiançam as assertivas desse parágrafo:

Um indício infalível da insignificância econômica da vida da Alta Idade Média reside na fraca extensão da superfície das cidades e na sua estagnação. Já vimos que as incursões bárbaras tinham forçado as cidades, num simples recanto da sua antiga extensão. A cidade do Baixo Império é um posto defensivo de uma superfície insignificante (10 a 20 hectares), que não comporta senão uma população extremamente reduzida, 3 000 ou 6 000 habitantes, no máximo. Neste pequeno espaço, só há lugar, e à justa, para o palácio do praeses, e posteriormente do conde, para a igreja catedral, que substitui o tempo e para as moradias do clero e dos servidores do bispo (LOT, 1950, p. 385).

Marc Bloch, em sua obra clássica A Sociedade feudal, critica a vertente

historiográfica que considera a economia feudal como fechada, ou seja, que se movia

em torno do feudo e por isso em torno das atividades econômicas agrárias. Bloch faz

referência ao mercado e às cidades que eram procuradas pelos camponeses que

vendiam os seus produtos (BLOCH, 1982, p. 88).

49 Todavia, Jacques Le Goff no mesmo texto relativiza a idéia de ruralização no fim do mundo antigo e início do mundo medieval, afirmando o seguinte: “As escavações arqueológicas e os estudos históricos recentes permitem matizar o declínio urbano e afirmar ‘uma vitalidade insuspeita da vida urbana na época romana tardia e nos primeiros séculos da Idade Média’ (Colóquio de Paris-X, abr. 1993). Mas, para mim, o essencial está mais na mutação qualitativa que no declínio quantitativo da cidade ocidental.” (LE GOFF, 2002, p. 220)50 Benevolo em consonância com Lot diz que no período posterior à queda do Império Romano do Ocidente, “a vida das cidades diminui e, em muitos casos, se interrompe.” (BENEVOLO, 2003, p. 251)

60

As discussões historiográficas sobre o lugar e a importância da cidade medieval

ganharam relevância a partir da tese que propugnava a idéia de que o fechamento do

Mar Mediterrâneo em função da expansão do Islã sobre a Europa Ocidental, entre os

séculos VII e VIII, causou a interrupção do comércio, concomitantemente com a

falência da vida urbana (LE GOFF, 2002, p. 222). O autor destaca, contudo, também a

tese contrária que adverte sobre o papel dos muçulmanos para o avanço do comércio,

ensejando a gênese da cidade medieval51.

Ao expor as duas teses antagônicas, Le Goff revela mais uma vez um dos

grandes debates historiográficos que acabam pondo em evidência a cidade medieval.

Mas, como compreender a tradicional expressão “renascimento do comércio” e do meio

urbano, na medida em que hoje os trabalhos assinalam, mais e mais, uma continuação

das atividades comerciais por toda a Idade Média Ocidental ? Além disso, tal

interrogação poderia ser utilizada no que concerne às cidades, ao aceitar a tese que

apregoa o fim da vida urbana na Alta Idade Média se hoje há um consenso entre os

novos trabalhos de que a vida urbana prosseguiu ?

Desse modo, pode-se inferir que a expressão “revigoramento do comércio” seja

mais adequada para nomear o crescimento das atividades comerciais, notadamente a

partir do século XI. Há de se acrescentar que tal expressão também poderia ser utilizada

para a compreensão do crescimento econômico que inclui a expansão da produção

agrária, que favoreceu e caracterizou o desenvolvimento do comércio.

Em O Apogeu da cidade medieval, Jacques Le Goff estabelece inicialmente que

o século XII determinou o ápice da civilização cristã medieval e as cidades representam

um dos sintomas deste auge. A Igreja Católica, juntamente com a nobreza, imprime

marcas ao novo mundo que é engendrado no meio urbano, embora a Igreja se ajustasse

à vida e cultura citadina, além de ter que combater a proliferação dos movimentos

heréticos nas cidades52.

51 Há de se acrescentar que Le Goff diz ainda que cidades criadas na Antigüidade sobreviveram na Alta Idade Média: “a cidade antiga tinha sobrevivido durante a Alta Idade Média e que a partir do século IX, o renascimento urbano manifestou-se não sob a influência do comércio internacional, mas a partir do alargamento do raio local da atividade econômica dos núcleos pré-urbanos de origem antiga.” (LE GOFF, 2002, p.222)52 Le Goff diz o seguinte: “Sob a égide de uma Igreja que se adapta à evolução e triunfa sobre a ameaça herética, particularmente viva em centros urbanos, uma nova sociedade, marcada pelo cunho urbano, manifesta-se num relativo equilíbrio entre nobreza, que participa do movimento urbano mais do que se tem afirmado, burguesia que dá o tono, se não o tom, à sociedade; e classes trabalhadoras, das quais uma parte – urbana – fornece a massa de mão-de-obra às cidades, e a outra – rural – alimenta a cidade e é penetrada pelo seu dinamismo.” (LE GOFF,

61

O crescimento demográfico das cidades foi conspícuo entre os séculos XII e XIII

(LE GOFF, 1992, p. 3). No tocante à França medieval, parte da Europa mais estudada

por Le Goff, o crescimento populacional foi dobrado. Os estudiosos em demografia

apontam que o crescimento urbano na França sobrepujou a média do crescimento

global53.

Na busca da compreensão da especificidade e da mensuração das características

da cidade da Idade Média, o modelo destacado por Jacques Le Goff se adequa ao das

cidades a partir do século XI. Por isso, o medievalista francês diz que “a cidade

medieval já não é a cidade da Antigüidade e da Alta Idade Média” (LE GOFF, 1992, p.

05).

As discussões sobre o conceito de cidade medieval ganharam fôlego no século

XX, visto que diálogo, cada vez mais freqüente entre a história e o urbanismo,

favoreceu tais discussões (BARROS, 2003, p. 41). O combate às teses formuladas pelo

historiador belga Henri Pirenne juntamente com a presença da muralha para a definição

da cidade medieval também ensejou várias proposições que enriqueceram o debate

historiográfico (BARROS, 2003, p. 42). Além disso:

Avancemos na complexidade. Na segunda metade do século XX, alguns economistas e geógrafos modernos propuseram uma definição de cidade (não especificamente medieval) em função do papel desempenhado por ela em um território ou em uma rede mais ampla, considerando fundamental para o estatuto urbano o oferecimento de uma determinada gama de serviços voltados para fora de si. Esta consideração é importante para o caso da cidade medieval. Ela exclui do estatuto urbano aquela aldeia camponesa que, embora se mostrando como lugar de um mercado ou de uma feira local, não desempenha qualquer função em um universo mais amplo que não a de menor voltado para o campo ao qual se vinculam os seus camponeses. O seu mercado, enfim, é estritamente local para o preenchimento de necessidades exclusivas da aldeia e da pequena região a ela adstrita (BARROS, 2003, p. 43).

Na nomeação sobre as origens das cidades, Jacques Le Goff aponta o papel da

população rural, cuja origem aos centros urbanos é proveniente do campo. A cidade

1992, p. 1)53 Consoante Le Goff em O Apogeu da cidade medieval: “Os especialistas em demografia histórica são mais ou menos concordes em estimar que a população global do reino da França no mínimo duplicou entre os anos mil e 1328, passando de cerca de 6 milhões de habitantes para 13,5 milhões, 16 a 17 milhões com as regiões que desde então se tornaram francesas. Nesse número o crescimento da população deve ter sido proporcionalmente muito superior à média e da ordem, para nos mantermos prudentes, do triplo da população inicial; e múltiplos indícios levam a pensar que o essencial desse crescimento ocorreu entre 1150 e 1300, aproximadamente. Enfim cumpre sublinhar que o impacto das variações da população urbana sobre a vida de uma nação é nitidamente maior que o das variações da população rural.” (LE GOFF, 1992, p. 4)

62

medieval posiciona-se entre a cidade antiga, que se caracterizava pela oposição

“urbs/rus” e a cidade engendrada pela industrialização que açambarcou o campo (LE

GOFF, 1992, p. 15).

As muralhas54 atestam a singularidade da cidade medieval em face do desenvolvimento

histórico urbano, exercendo elas funções militares que se tornaram notórias. No que diz

respeito ao seu papel simbólico, ela foi importante para demarcar o espaço urbano geográfico

diante do mundo rural, contribuindo assim para a consolidação da cultura citadina, e, as

palavras de Le Goff mais uma vez tornam-se necessárias para exemplificar o parágrafo acima:

A guarda e a manutenção desses muros e de suas portas constituiu desde logo um aspecto da luta dos novos cidadãos para assumir eles próprios suas responsabilidades. Mas também, sem que seja possível distinguir o que prevaleceu, a vontade dos citadinos ou o desejo do senhor ou do rei, tem-se a impressão de que o desejo de livrar-se desse encargo de vigilância levou esses senhores ou o rei a conceder mais facilmente ou mais cedo, contra seu compromisso de vigiar as portas e os muros, outros privilégios aos habitantes das cidades (LE GOFF, 1992, p. 18).

Persistindo com as reflexões de Jacques Le Goff em sua obra O Apogeu da Cidade

Medieval, deve-se destacar que o medievalista francês ressalta como ponto importante o papel

do sistema de muralhas para as cidades, no que se refere à comunicação com o mundo exterior.

Por intermédio das muralhas e das suas portas, a cidade convive com o mundo externo,

recebendo dele uma grande influência, mas também influenciando-o de maneira notável55.

Dessa forma, em torno das portas das muralhas, localizaram-se mercados e até ordens

religiosas (LE GOFF, 1992, p. 25).

54 Geoges Duby no livro Europa em la Edad Media no capítulo intitulado La Catedral, La Cidad, La Escuela diz que além de ser definida como a igreja do bispo, a catedral é uma igreja urbana e casa do povo da cidade. Duby considera que o vigor dos centros urbanos deve-se outrossim ao meio rural. Porém, a criação das muralhas atesta o medo que o habitante da cidade tinha em relação ao do campo. Nas palavras de Duby: “No obstante, lãs ciudades pretendem estar separadas Del país Ilano. El burguês desprecia a los rústicos. También les teme. Se atrinchera ante ellos. Cada ciudad es um recinto com puertas que se cierran cuidadosamente por la noche, com muralhas que se modernizam gracias a esos rápidos adelantados que favorecieron a la arquitectura militar tanto como a la de las Iglesias.” (DUBY, 1986, p. 72)55 Le Goff afirma literalmente sobre a função do sistema de muralhas para a cidade medieval: “O sistema de muralhas leva a privilegiar elementos essenciais do ponto de vista tanto funcional quanto simbólico: as portas. Elas são o instrumento da dialética do exterior e do interior. Por elas entram, para o melhor ou o pior, os produtos da terra e as mercadorias mais longínquas, os homens, imigrantes, camponeses, mercadores, soldados; por elas saem os produtos e os homens da cidade, tudo o que ela elabora em suas oficinas econômicas, intelectuais e espirituais, em suas praças, em suas barracas, tavernas, escolas, igrejas.” (LE GOFF, 1992, p. 24)

63

As muralhas que tinham a intenção de proteger a cidade em relação ao invasor não

impediu o engendramento de redes de comunicações entre o campo e a cidade56. Logo, a

cidade que se alastra em direção ao meio rural também recebeu a influência do campo e teve o

seu processo histórico aquilatado por aquele (LE GOFF, 1992, p. 27). Há de se acrescentar que

as muralhas ao mesmo tempo que geram nos citadinos a sensação de proteção, atestam o

quanto o medo e a insegurança estiveram presentes no imaginário do homem medieval. Elas

representavam as angústias e as incertezas dos seres humanos daquele momento.

Em entrevista concedida a Marino Berengo, Roberto Sabatino Lopez compreende a

“cidade com muralhas” como mais agregada se cotejada com as cidades modernas que tendem

sempre a perder os seus limites geográficos em relação a outros meios urbanos. Dessa feita, as

muralhas e os portões das cidades situam a cidade em dado espaço. Em outra perspectiva, elas

determinam o lugar da cidade no contexto histórico e hierárquico do mundo medieval. Por fim,

as muralhas garantem aos habitantes da cidade, não só a segurança material, como também a

proteção psicológica LOPEZ, 1988, p. 10)57.

As relações entre os habitantes das cidades e os senhores feudais que buscavam impor

sua hegemonia sobre os moradores dos centros urbanos tornaram as relações entre o campo e a

cidade difíceis. Daí os citadinos almejarem sua independência, ainda que, não fosse incomum

um acordo entre os senhores e as cidades. As palavras de Jacques Le Goff são insubstituíveis

na ilustração da questão:

Portanto, se houve, durante o período de formação da comunidade, choques mais ou menos violentos entre os habitantes que lutavam por uma certa autonomia e os senhores desejosos de renunciar apenas o mínimo possível aos seus direitos e lucros, se, uma vez constituídas e reconhecidas a cidade e a burguesia no sentido jurídico, ainda existem conflitos latentes e abertos, no mais das vezes senhores e habitantes das cidades chegaram a acordos que

56 Em Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun, Jacques Le Goff mais uma vez discrimina a importância das muralhas para a a definição das cidades: “A cidade da Idade Média é um espaço fechado. A muralha a define. Penetra-se nela por portas e nela se caminha por ruas infernais que, felizmente, desembocam em praças paradisíacas. Ela é guarnecida de torres, torres das igrejas, das casas dos ricos e da muralha que a cerca.” (LE GOFF, 1998, p. 71)57 Respondendo a Marino Berengo, Roberto Sabatino Lopez diz o seguinte sobre o sentido das muralhas para a cidade medieval: “Uma cidade com muralhas é mais compacta e estruturada que os aglomerados urbanos modernos que, geralmente, perderam inclusive a cerca que definia as portagens. As muralhas e portas medievais servem, antes de mais nada, para definir a cidade no espaço. Em segundo lugar, conferem à cidade uma posição hierárquica privilegiada, e aos seus habitantes um status de cidadão, ao qual voltaremos a seguir. Por outro lado, a ausência de muralhas torna indefeso qualquer aglomerado urbano. Quando Rotario conquista e pretende punir Génova, arrasa-lhe as muralhas; Frederico Barba-Ruiva fará o mesmo em relação à Milão, não destruirá todo o aglomerado (como em tempos erradamente se julgou), mas mandará arrasar as muralhas.” (LOPEZ, 1988, p. 10)

64

satisfaziam a ambas as partes, fossem eles mais ou menos voluntariamente concedidos pelos senhores ou arrancados pelos habitantes das cidades (LE GOFF, 1992, p. 57).

Isso posto, Le Goff chega à conclusão, corroborando a tese do historiador argentino

José Luis Romero58, de que a cidade achou o seu espaço no feudalismo, “não como aliada mas

como parte integrante (LE GOFF, 1992, p. 58). No entanto, a partir do momento em que a

economia senhorial, fundada na exploração econômica, estabeleceu obstáculos para a

continuação do desenvolvimento das atividades mercantis, o sistema feudal constituiu-se como

um empecilho (LE GOFF, 1992, p. 58). Com isso, pode-se depreender que o comércio na

Idade Média Ocidental não foi um “corpo estranho” no interior da economia feudal e, além

disso foi configurado a partir de suas relações com o meio rural.

Nas relações com o mundo rural, a burguesia foi beneficiada, e, embora sofresse uma

resistência advinda do poder eclesiástico, ela teve acesso a terras de “tipo dominial” (LE

GOFF, 1992, p. 60). Outro fator a ser considerado, no que diz respeito às relações sociais

asseguradas entre a burguesia e os grupos sociais que habitavam o mundo, foi o endividamento

de camponeses e senhores em face da burguesia comercial. Por isso, a conclusão de Jacques Le

Goff:

É fácil imaginar que esse espaço de “liberdades” ligado à cidade se tenha tornado um espaço de dominação do campo pela cidade. É aquele que fornece à cidade o grosso do que ela consome, do que ela revende. Em Besançon encontra-se por vezes, significativamente, vignoblium (vinhedo) como equivalente de territorium – espaço do endividamento tanto dos senhores quanto dos camponeses em face dos burgueses da cidade; espaço onde outros citadinos que não os burgueses fazem sentir o peso de sua dominação econômica e social (LE GOFF, 1992, p. 62).

O reconhecimento da dependência da cidade em relação ao campo no período medieval,

juntamente com a identificação da influência e em muitos casos do domínio burguês sobre a

nobreza e os camponeses, mostra, em uma primeira conclusão, reconhecer o quanto o mundo

urbano estava intimamente vinculado ao mundo rural medieval. Como segunda conclusão,

tomando como base o texto de Le Goff, infere-se o vigor do mundo citadino. Por isso, como

sustentar de forma tão linear a representação da Idade Média Ocidental como exclusivamente

rural, diante de estudos que evidenciam cada vez mais uma Idade Média urbana e detentora de

uma série de pioneirismos que se estendem das realizações econômicas às culturais ? 58 O livro de José Luiz Romero, Crise e ordem no mundo feudoburguês defende a tese de que a sociedade feudoburguesa iniciou a sua constituição, a partir do século XII.

65

O desenvolvimento das atividades comerciais e artesanais estavam ligadas às atividades

econômicas desenvolvidas no campo. Além disso, as atividades industriais e comerciais

variavam de cidade para cidade, pois, não há como pensar o desenvolvimento histórico das

cidades medievais de forma homogênea. Portanto, se o comércio desenvolveu-se de maneira

expressiva em determinadas cidades, o mesmo se poderia dizer com relação às atividades

industriais.

No comércio que envolvia as feiras, os nobres forneciam proteção militar. Ao lado

disso, elas representam a expansão do comércio e das atividades urbanas. Jacques Le Goff,

afirma que os senhores davam segurança às feiras, através do controle das estradas e das

próprias atividades mercantis (LE GOFF, 1992, p. 72).

Na caracterização econômica pode-se acrescentar que a cidade medieval foi também

consumidora. Consoante, Jacques Le Goff tal aspecto singulariza o meio urbano em relação

meio rural (LE GOFF, 1992, p. 74).

Na identificação da cidade medieval, Leonardo Benevolo diz que determinadas cidades

cresceram a partir de vestígios materiais e arquitetônicos das cidades antigas. Com o desenrolar

do tempo, no entanto, elas aproximam-se das cidades contemporâneas em algumas de suas

características (BENEVOLO, 2003, p. 251).

Nos séculos XI e XII59 a expansão da economia agrária, aliado ao crescimento

demográfico favorece o crescimento do comércio e das cidades60. Roberto Sabatino Lopez, no

livro El Nacimiento de Europa, utiliza a noção de Revolução Comercial para identificar a

expansão das atividades econômicas e comerciais, vinculando-as ao desenvolvimento das

cidades61 (LOPEZ, 1965, p. 138). Jônatas Batista Neto destaca o aparecimento da burguesia62,

59 Batista Neto considera que as transformações econômicas ocorridas entre os séculos XI e XII fazem parte do denominado Renascimento do Comércio.60 Roberto Sabatino Lopez em seu livro A Revolução comercial da Idade Média: 950-1350 enuncia a tese as cidades muralhadas e o meio rural tornaram-se cenários da revolução comercial. Nas palavras do próprio autor: “nem catedrais nem castelos mas, sobretudo, as cidades muralhadas e os campos que foram palco de uma revolução comercial entre os séculos X e XIV. Aqui, pela primeira vez na história, uma sociedade subdesenvolvida conseguiu desenvolver-se, principalmente pelo seu próprio esforço”. (LOPEZ, 1980, p. 7)61 Roberto Sabatino Lopez afirma em El Nacimiento de Europa exemplifica o crescimento populacional de Milão, indicando assim todo um movimento que se relaciona ao avanço da economia medieval como um todo. Assim, o estudioso expõe o exemplo milanês: “A fines del siglo XIII, Milán es provablemente la ciudad mas poblada de la Europa católica; pero Venecia, Florência y Génova, también deben de rebasar la cifra 100 000 habitantes. Muchas otras cudades italianas cuentan más de 20 000.” (LOPEZ, 1965, p. 282)62 Hilário Franco Júnior no livro A Idade Média: nascimento do Ocidente, diz o seguinte sobre a relação transformações sociais e burguesia: “O fator que melhor refletiu e acelerou as transformações sociais foi, porém, o aparecimento de um segmento burguês. O crescimento demográfico e econômico, as cidades da Idade Média Central revigorou, pois para aqueles que fugiam dos laços compulsórios da servidão a vida urbana oferecia muitos

66

enquanto grupo social (NETO, 1989, p. 93). Por outro lado, o autor de História da Baixa Idade

Média: 1066-1453) defende a tese de que o comércio continuou na Alta Idade Média, mesmo

admitindo a intensificação do processo de ruralização na idade Média Ocidental.

Segundo as reflexões de Batista Neto, entre os séculos XI e XIV, as cidades medievais

tenderam a intensificar o comércio a longa distância, cujos efeitos desta aspiração foi a geração

das Hansas63. O crescimento das atividades comerciais favoreceu a demanda pelo aumento da

circulação de moedas64. A autorização para a confecção de novas moedas cabia aos monarcas

europeus que, além disso, detinham também a aplicação da justiça e controle das armas

(NETO, 1989, p. 97).

A disseminação do intercâmbio comercial favoreceu a multiplicação e a variedade dos

meios circulantes que tem como desdobramento o benefício das práticas cambiais, embora a

Igreja Católica e a sua doutrina do “justo preço” se opusessem contrários àquilo que ela

denominava de riqueza incomensurável. A igreja pôs a atividade comercial sob suspeita,

consoante o historiador Jônatas Batista Neto:

A atitude da Igreja em relação ao comerciante foi, em geral, de moderada desconfiança. Os eclesiásticos admitiam que os comerciantes fossem recompensados pelo seu trabalho, como por exemplo o esforço de transportar bens, podendo, portanto, vender mais caro os seus produtos e obter lucros. Mas opunham-se vigorosamente à ambição de riqueza desmedida. Cria-se assim a figura do justo preço, que deveria ser determinado pelas necessidades do negociante e não pela avidez, permitindo ao filho de um comerciante viver como o seu pai (NETO, 1998, p. 98)

Le Goff diz-nos em estudo recente que a cidade medieval consolidou-se entre os séculos

X e XIII. Ele chega a propor que a consolidação da mesma cidade ocorreu num contexto de

atrativos.” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 95)63 Segundo o historiador Jônatas Batista Neto a Hansa medieval seria: “uma aliança de cidades interessadas em coordenar esforços para fazer comércio em regiões difíceis, lutar contra piratas e recrutar pilotos e tripulação. Ela se organiza, em parte, porque os imperadores alemães, interessados na política italiana, tinham abandonado Alemanha à própria sorte, descuidando-se especialmente da área setentrional. Mais ainda, as cidades tinham de fazer frente às dificuldades criadas pela monarquia dinamarquesa, cada vez mais forte na segunda metade do século XIV. Foi justamente o ataque de Valdemar IV da Dinamarca à cidade de Visby (1361) que determinou a constituição definitiva da Hansa. Reunindo setenta cidades, ela nunca foi uma organização política; era mais um organismo de colaboração entre as comunidades urbanas do norte, cujas principais decisões se tomavam numa Dieta que se reunia na cidade alemã de Lübeck.” (BATISTA NETO, 1989, p. 96)64 Le Goff em seu estudo A Civilização do Ocidente Medieval, além de apontar que burguesia fora beneficiada pelo avanço da economia monetária, diz-nos o seguinte sobre as conseqüências do avanço da economia monetária: “Os inegáveis progressos da economia monetária tiveram graves repercussões sociais. Começaram a subverter o estatuto das classes pela expansão dos assalariados, principalmente na cidade, mas também cada vez mais o fosso entre as classes, ou melhor, entre as categorias sociais no interior das classes. Isto foi visto no que respeita às classes rurais: senhores e camponeses. É mais verdadeiro ainda para as classes urbanas. Uma camada superior começou a se destacar do povo médio e miúdo dos artesãos, dos trabalhadores.” (LE GOFF, 2005, p. 255)

67

urbanização bastante amplo (LE GOFF, 2002, p. 221). O historiador francês propõe também

como assertiva que a cidade na Idade Média não deve ser considerada como um renascimento

da cidade da Antigüidade Clássica e nem como um singelo prosseguimento das cidades que

emergiram, sobretudo no mundo romano (LE GOFF, 2002, p. 221).

Sobre a dinâmica de funcionamento da cidade na Idade Média há que se considerar de

início o lugar da burguesia, pois a maioria dos estudos sobre o fenômeno urbano medieval

converge para o ponto que releva o papel desempenhado da burguesia desempenhado, não

somente no âmbito das relações econômicas, como também no da política e das relações

sociais65.

As mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais no interior das diversas cidades

medievais devem ser analisadas, tomando como escopo a influência da ação do mundo rural

medieval sobre o mundo urbano. A questão, porém, deve ser compreendida igualmente como

uma via de mão dupla, porque o processo de desenvolvimento urbano engendra mudanças

consideráveis sobre o campo66. Nas palavras de Benevolo:

O desenvolvimento das cidades promove e acelera as mudanças nos campos. A cidade mercantil importa víveres e matérias-primas e exporta os produtos da indústria e do comércio. Os campos – pelas exigências destas trocas e pelo crescimento geral da população – devem aumentar a produção agrícola: colonizar novas terras, e aproveitar, de modo mais racional, as já cultivadas (BENEVOLO, 2003, p. 262).

Na caracterização da organização política e administrativa, as cidades medievais

variaram no tempo e no espaço. Se levarmos em conta que elas, de uma maneira geral, se

subordinaram a um senhor67 ou a um determinado monarca, pode-se asseverar a presença de

governos próprios. Os habitantes acabavam com isso tendo as suas liberdades pessoais

resguardadas (BENEVOLO, 2003, p. 262).

65 Benevolo enumera de uma maneira geral os principais órgãos políticos e administrativos das cidades medievais: “1) um conselho maior, formado pelos representantes das famílias mais importantes; 2) um conselho menor, que funciona como junta executiva; 3) um certo número de magistrados eleitos ou sorteados: os consoli na Itália, os jurés na França, os échevins em Flandres.” (BENEVOLO, 2003, p. 260)66 Roberto S. Lopez ao comparar a vida na cidade com a vida no campo assevera que nos meios urbanos havia um dinamismo maior. 67 Le Goff em O Apogeu da cidade medieval diz ainda o seguinte sobre a subordinação das cidades ao poder aristocrático diz o seguinte: “Lembremos, em primeiro lugar, que as cidades permanecem no dominium de um ou vários senhores, conde, duque ou visconde, bispo, arcebispo ou abade, e o rei, imediatamente no domínio monárquico que aumenta consideravelmente durante o período, e em toda parte, em virtude de seu direito eminente.” (LE GOFF, 1992, p. 79)

68

Ainda sobre a gestão política das cidades medievais, cumpre acrescentar a relação da

administração e recursos financeiros, cuja eficácia da gerência política variou de cidade para

cidade. Segundo estudo de Le Goff, as cidades medievais, no entanto, tenderam a um contínuo

endividamento (LE GOFF, 1992, p. 116). O historiador francês, reportando-se aos casos

específicos das cidades francesas na Idade Média, assinala a presença de monarcas na

ingerência de finanças públicas (LE GOFF, 1992, p. 119)68. Ao utilizar a expressão “tendão de

Aquiles” para demonstrar o quanto a economia monetária assumia uma condição indispensável

para o funcionamento e sobrevivência das cidades, o historiador francês antecipa a cidade

medieval e as suas instituições financeiras como antecedentes da economia capitalista

contemporânea.

As cidades medievais enveredaram por querelas que envolviam os poderes senhorial e

real69. Isso deveu fundamentalmente a questões relativas à economia. Segundo, Le Goff: “O

interesse das cidades no uso de moedas estáveis, na luta contra a arbitrariedade senhorial em

matéria de moeda, é evidente” (LE GOFF, 1992, p. 89). A moeda tornou-se com o avanço do

desenvolvimento processo histórico medieval, o esteio da economia, moldando não apenas as

atividades econômicas, como também as redes de relacionamentos sociais.

Os conflitos políticos e econômicos que envolviam, contudo as cidades na Idade Média

não eram somente os relacionados ao patriciado70 urbano e os poderes senhoriais. Eles se

prolongavam em direção aos artesãos e trabalhadores que se ocupavam de outras atividades71.

Além disso, o perfil urbano medieval foi aquilatado pela função realizada por cada cidade.

Portanto, o comércio, as ordens religiosas, as universidades e as lutas políticas e sociais

imprimiram marcas indeléveis nas cidades (ABREU, 2004, p. 2).

Cumpre dizer que nas relações e conflitos entre os citadinos de um modo geral e a

nobreza, os primeiros almejavam impor aos segundos àquilo que comumente se denominou por 68 Le Goff diz ainda: “As finanças foram o tendão de Aquiles das comunidades urbanas. Os burgueses senhores da cidade, quase sempre mercadores e financistas, tinha aprendido nesse século XIII, que é também o do surto do número e do cálculo, a contar bem. Mas os homens do rei, ao mesmo tempo, tinham aprendido a contar com exatidão.” (LE GOFF, 1992, p. 1992, p. 121)69 Há exemplos, segundo Le Goff na obra O Apogeu da cidade medieval diz que em determinados momentos, os monarcas apoiavam o poder citadino, a fim de abalar o poder senhorial. Neste sentido, as circunstâncias políticas, econômicas e sociais decidia sobre as relações entre o poderes senhorial, real e citadino. Ou seja, não há como asseverar a existência de um único modelo de relação entre estes poderes.70 O patriciado urbano era na sua essência composto por um número reduzido de homens provenientes de setores intermediários feudais, comerciantes e artesãos.71 Jean Luiz Neves Abreu no artigo “Sociedade urbana e conflitos sociais na Idade Média” diz que os conflitos sociais que estiveram presentes nas cidades medievais marcaram as suas trajetórias históricas. Eles se relacionam igualmente ao avanço econômico que se verificou na Idade Média Ocidental, a partir do século X.

69

respeito às liberdades individuais. A conquista da liberdade de comércio e da autonomia

administrativa está inserida na dinâmica das lutas sociais que moldaram os diversos processos

históricos das cidades, a partir do século X (Ibidem, p. 3).

No tocante aos conflitos ocorridos internamente nas cidades, eles tiveram uma

acentuada conotação social. Eram provenientes de grupos populares que estavam insatisfeitos

com as condições de trabalhos, que lhe eram impostas pelos mercadores. E, de uma maneira

geral, a outra parte era decorrente da pobreza e miséria72. Ambos, ensejavam a proliferação da

violência que acabava tendo como palcos a rua e a taverna. Conforme José Luiz Neves Abreu:

O próprio ambiente urbano favorecia o desenvolvimento de atos criminosos e violentos. A desordem e a estreiteza da rua medieval a transformavam em um ambiente propício ao crime e a emboscadas. A ria era o palco de revoltas, motins, roubos e estupros. Outro local privilegiado para o desenvolvimento da violência era a taverna. As bebedeiras quase sempre terminavam em brigas e golpes sujos desferidos na escuridão das ruas estreitas. Cerca de 35% dos assassinatos e agressões na região de Touraine estava relacionado ao alto consumo de álcool consumido nas tavernas. A taverna não era lugar bem visto pelas autoridades, pois ela integrava toda a “contra-sociedade dos excluídos” (ABREU, 2004, p. 8).

Há de se acrescentar que à representação tradicional construída pela historiografia

medieval de associar a cidade ao espaço da liberdade em contraponto ao campo – guardião da

tradição e do conservadorismo – deve ser adicionada a idéia de que a mesma foi engendrada

também pelos inúmeros conflitos sociais73. Por isso, a cidade ideal representada não só por

grupos sociais da Idade Média, como também por setores da historiografia medieval foi

confrontada pela cidade real. Assim, valores como a liberdade e a civilidade74, são

confrontados com a opressão e exclusão de grupos sociais populares.

72 A Ética Cristã buscou compreender e justificar a pobreza que crescia no espaço urbano medieval. Neste sentido, amparar o pobre, exercendo a caridade significava para os ricos salvar sua alma. Todavia, tal ideologia não respaldava os pobres que tinham condições de trabalhar. Por isso, o combate ao ócio foi implacável em cidades da cristandade ocidental medieval.73 Jean Luiz Neves Abreu diz ainda o seguinte sobre o fenômeno urbano medieval: “O fenômeno urbano representou uma realidade ao mesmo tempo insólita e nova para os homens daquela época. No século XII, a cidade atrai homens de diversas categorias sociais e origens. Para ela convergem os mercadores, os homens do campo, a nobreza, os intelectuais das universidades, as ordens mendicantes, mas também homens que nada têm, e vêem na cidade uma possibilidade de enriquecer. A cidade também é, nesse sentido, o lugar onde se proliferam pobres, miseráveis e excluídos, a exemplo dos judeus.” (NEVES, 2004, p. 4)74 Tomando como base o trabalho de José Luiz Neves de Abreu, pode-se inferior que as cidades medievais ao contrário do campo, criaram condições para o florescimento da idéia de valorização do trabalho hoje tão comum nas sociedades capitalistas contemporâneas. Além disso, a exclusão social fomentada no interior das cidades, favorece uma aproximação entre a Idade Média e o mundo contemporâneo.

70

Analisando um pouco melhor o espaço e os seus aspectos inerentes, propõe-se

considerar inicialmente que as cidades medievais moldaram-se de acordo com as ações dos

grupos sociais nos seus respectivos momentos históricos. Por isso, como primeira tipificação

da cidade medieval, convém afirmar que, embora sua arquitetura e geografia fossem

irregulares, suas “ruas são organizadas de modo a formar um espaço unitário, no qual sempre é

possível orientar-se e ter uma idéia geral do bairro ou da cidade” (BENEVOLO, 2003, p. 269).

Como segundo aspecto tipificador, deve-se considerar que mesmo que haja uma continuação

entre espaço público e privado, no primeiro são abrigados os múltiplos poderes da cidade qual

seja: “o episcopado, o governo municipal, as ordens religiosas e as corporações”

(BENEVOLO, 2003, p. 269). Em uma terceira expressão, a cidade medieval representa a

expansão e o privilégio do poder político burguês (BENEVOLO, 203, p. 269). Por fim, as

cidades medievais foram alcançando suas configurações urbanas75 definitivas no decorrer da

Idade Média Ocidental.

*

* *

O universo cultural medieval tem recebido um considerável destaque por parte dos

medievalistas. Com relação ao cotidiano da vida privada, Jacques Le Goff, em seu já clássico

A Civilização do ocidente medieval, defende a tese de que a mentalidade, a sensibilidade e as

ações dos homens e mulheres foram marcadas pelo “sentimento de insegurança” (LE GOFF,

2005, p. 325). As adversidades materiais, expressadas, por exemplo, pela má colheita que

gerava fomes, contribuíram para a expansão de um imaginário que evocava o medo.

Outrossim, pode-se afirmar que os infortúnios materiais eram explicados a partir de uma

75 Mais uma vez utilizando-se do estudo de Leonardo Benevolo deve-se considerar a seguinte informação: “Os dados sobre a população são incertos, e não é possível deduzi-los pelas superfícies, visto que a densidade das construções nos últimos cinturões varia bastante. As cidades mais populosas – Milão e Paris – alcançaram talvez 200.000 habitantes, Veneza, 150.000; Florença, 100.000; Gand e Bruges, 80.000; Siena, 50.000. Nenhuma superou as capitais dos reinos árabes na Europa (Palermo com 300.000 habitantes, Córdova com mais de meio milhão) e ficam, naturalmente, longe das grandes metrópoles orientais, Constantinopla e Bagdá, com um milhão e mais de habitantes.” (BENEVOLO, 2003, p. 283)

71

mentalidade que valorizava o sobrenatural. Por isso, o medo do pecado76 e a presença do diabo

no imaginário medieval foram freqüentes.

Georges Duby, ao escrever a obra do Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos,

realizou uma comparação entre os medos de homens e mulheres que viveram na Idade Média e

os medos de homens e mulheres contemporâneos. O medievalista francês, ao tratar o medo

como objeto de estudo, propõe como tese a idéia de que as “concepções de mundo” medievais

“não estavam tão distanciadas das nossas” (DUBY, 1989, p. 13). O medo da pobreza, doença,

guerra e violência foram examinados pelo estudioso. Isso posto, pode-se inferir que os medos

elencados acima podem ser explicados por intermédio da mentalidade e do imaginário

medieval que estavam voltados para a concepção de pecado.

Hilário Franco Júnior resume em seu livro, Feudalismo: uma sociedade religiosa e

camponesa, alguns aspectos da mentalidade medieval que aquilataram o cotidiano e a cultura

do período, alvo de nosso estudo. O estudioso mesmo ressalta que a mentalidade do homem e

da mulher na Idade Média estava em convergência com o sobrenatural (FRANCO JÚNIOR,

1999, p. 43). Embora preso às necessidades materiais, tanto o homem quanto a mulher tinham

uma enorme preocupação com a chamada vida espiritual que marcava o cotidiano e as diversas

manifestações culturais. Pode-se concluir, também, que a cultura erudita e a cultura popular do

período medieval tiveram uma forte presença de valores religiosos, porque, acrescente-se, as

manifestações religiosas e espirituais estiveram presentes na cultura citadina do mundo

medieval. A presença dessas manifestações, entretanto, entrou em conflito com os novos

valores culturais do meio urbano e ensejaram novas representações da vida e do cotidiano77.

76 No Dicionário temático do ocidente medieval, Carla Casagrande e Silvana Vecchio, analisam a relação entre tempo histórico e pecado na Idade Média. Assim, elas asseveram o seguinte: “O tempo histórico é um tempo pontuado pelo pecado: antes e depois da Queda, antes da vinda de Cristo, antes e de pois do Juízo final. As fases da história da humanidade sucedem-se de acordo com os acontecimentos cruciais da história do pecado: o ato da desobediência a Deus de Adão e Eva assinala a passagem de um estado original de perfeição para uma condição dominada pela presença do pecado; a Encarnação desencadeia um processo de salvação, de libertação do pecado; o fim dos tempos assinala a condenação definitiva dos pecadores e a glória eterna dos não-pecadores. O tempo individual situa-se no interior desse tempo histórico e começa no erro, quando, com o nascimento, o homem contrai o Pecado Original; continua após o batismo, quando o homem, liberto da mancha original, adquire capacidade de lutar contra os numerosos pecados cometidos, ele será alvo ou condenado para a eternidade. Um tempo pontuado pelo pecado, que se desenrola, por sua vez, em espaços definidos e organizados pelo pecado: O Paraíso terrestre, onde não há absolutamente lugar para o pecado; a terra, que pelo contrário foi invadida por ele e onde é preciso construir um espaço de expiação, separado e protegido (o mosteiro); o além, estruturado em espaços diversos (Paraíso, Inferno, Purgatório, Limbos), de acordo com o tipo e intensidade do pecado cometido.”77 No dicionário temático do ocidente medieval, Françoise Piponnier assim nos informa sobre a noção de cotidiano desenvolvido em relação ao mundo medieval: “Aplicado ao domínio histórico, o termo evoca fatos que, por sua freqüência e reiteração, revestem-se de um certo caráter de banalidade. Tais fatos foram negligenciados pelos cronistas, mais preocupados em relatar os grandes feitos – proezas de guerreiros ou de mártires, ou ainda de

72

Noções como cotidiano, imaginário e mentalidades foram desenvolvidas pelos

historiadores medievalistas, renovando, de modo contundente, a historiografia em relação ao

ocidente medieval. Com isso, o exame do cotidiano e da cultura medieval, tanto no meio rural,

quanto no meio urbano, foram agraciados com novos objetos e temas que convergiam no geral

para as manifestações da chamada cultura popular, ainda que a cultura erudita não fosse

preterida.

A religiosidade medieval tratava e compreendia os assuntos materiais por via do

sagrado. Daí, as peregrinações e os movimentos cruzadistas78 que foram impulsionados pela

mentalidade cristã obcecada pelo medo do pecado e do diabo79. A Igreja Católica, que

procurava deter o monopólio do sagrado, teve um papel importante naquele período.

A trajetória da Igreja80 no período medieval foi determinante pela presença de dois

protótipos engendrados no mundo antigo: “a Igreja dos apóstolos e a Igreja de Constantino, o

Grande (306-377), e seus sucessores” (ARNALDI, 2002, p. 567). Com relação aos trabalhos

desenvolvidos sobre a igreja, a religiosidade popular vêm ganhando espaço na historiografia

sobre o ocidente medieval. Além disso, os movimentos heréticos que puseram em risco a

unidade da Igreja Católica, juntamente com a Inquisição, sempre tiveram destaque entre os

medievalistas.

fundadores de Ordens Religiosas – e, durante muito tempo, também pelos historiadores, mais atentos aos atos dos governantes, de guerreiros ou diplomatas, aos movimentos religiosos, ao grande comércio ou à produção artística. Pouco a pouco, desenvolveu-se o interesse por fatos e personagens de menor expressão, pela atividade agrícola ou artesanal, pelo folclore e pela piedade popular. Enfim entraram em cena os atores mais discretos da história: os pobres, os marginais, as mulheres e as crianças, na trivialidade de sua existência diária.” (CASAGRANDE; VECCHIO, 2002, 337)78 Ao concluir obra sobre o movimento cruzadista, Hilário Franco Júnior afirma que: “As Cruzadas foram uma espécie de síntese da Idade Média também no que se refere às atitudes e emoções: reverência, fidelidade, dedicação, desprendimento, credulidade, cupidez, traição, incompreensão.” (FRANCO JÚNIOR, 1999, p. 76)79 Mais uma vez reportando-se ao dicionário temático do ocidente, Jérôme Baschet apresenta o seguinte sentido do diabo no imaginário medieval: “Sob seus diversos nomes e como suas aparências multiformes, o Diabo – Satã e seus demônios – é seguramente uma das figuras mais importantes do universo do Ocidente medieval: encarnação do mal, oponente das forças celestes, tentador do justo, inspirador dos ímpios e dos pecadores, verdugo dos condenados, ele é onipresente e seu terrível poder se faz sentir em todos os aspectos da vida e das representações medievais.” (BASCHET, 2002, p. 319)80 Hilário Franco Júnior em A Idade Média: Nascimento do Ocidente, examina o seguinte sobre os estudos em relação à igreja em tal período histórico: “Até há relativamente pouco tempo, a história da Igreja era identificada com a das elites eclesiásticas. A preocupação central era com as instituições clericais, com o pensamento oficial da Igreja e com seus altos dirigentes. A espiritualidade dos fiéis quase sempre ficava à margem, vista como grosseira e cheia de superstições, oposta à dos clérigos. Mais recentemente, porém, recuperou-se o sentido original de ‘igreja’ (do grego ecclesia, ‘comunidade de cidadãos’, no caso cristão ‘comunidade de fiéis’), englobando portanto a hierarquia eclesiástica e a massa de leigos. E é nesse sentido, acreditamos, que se deve ver a Igreja medieval.” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 67)

73

A historiografia sobre o ocidente medieval que se ocupa hoje dos estudos sobre a igreja

vem procurando valorizar a noção de espiritualidade de fiéis81, ou seja, dos homens e mulheres

que não tiveram notoriedade na Europa Ocidental. Logo, o sentimento religioso do homem e

da mulher comum é examinado, buscando-se deixar de lado estereótipos como de

supersticioso. Mas, os estudos sobre o desenvolvimento histórico da igreja, enquanto

instituição, e do clero ainda prosseguem.

No auge da Idade Média, a igreja atuou para consolidar a sua autoridade religiosa e

política no conjunto da cristandade européia ocidental. Nesse contexto de auge do feudalismo,

caracterizado pela expansão agrícola e crescimento das atividades urbanas, junto ao

crescimento das cidades, o cristianismo foi fortalecido. A Igreja Católica na Alta Idade Média,

que se confrontou com o desejo de submissão dos imperadores, procurou no apogeu do

feudalismo ampliar o seu poder, imiscuindo-se em assuntos que se estendiam do político ao

cotidiano. Compete ainda dizer mais uma vez, que enquanto instituição que tinha a ambição de

pôr sobre o seu controle os dogmas religiosos da cristandade e a espiritualidade dos fiéis82, a

Igreja Católica impetrou uma forte influência sobre a cultura do campo e da cidade.

Na realidade, os estudos sobre o papel da Igreja Católica na Idade Média, por mais que

afiancem o desejo de tal instituição em exercer o controle sobre a vida espiritual dos fiéis,

reconhecem os limites do clero para o exercício das ações cristianizadoras. Desse modo, esta

pretensão ficou comprometida, proporcionando assim o desenvolvimento de uma relevante

vida autônoma dos cristãos no que diz respeito à espiritualidade, tanto dos cristãos que estavam

alojados no campo, quanto os da cidade.

81 Um exemplo disso é o livro Ocidental A Espiritualidade na Idade Média: séculos VIII a XIII de André Vauchez que preocupa-se em compreender a importância da religiosidade popular nesse período crucial da história da cultura ocidental.82 A historiografia sobre o Ocidente Medieval vem através dos tempos, consagrando em seu interior, um expressivo número de trabalhos acadêmicos sobre as heresias e o Santo Ofício. Porém, pode-se dizer que em linhas gerais que a expansão dos movimentos heréticos esteve relacionada com a conduta equivocada do clero em relação aos fiéis e aos assuntos que concerniam aos valores espirituais de muitos fiéis. Consoante Daniel Valle Ribeiro no livro A Cristandade do ocidente medieval, a proliferação dos chamados movimentos heréticos pode ser explicada da seguinte forma: “O despreparo e a atuação negligente do clero geraram uma crescente reação contra o sistema eclesiástico e grande descrédito do sacerdócio. Recriminava-se o clero paroquial por sua vida dissoluta e pelo deficiente atendimento aos fiéis. De sua parte, o episcopado estava pouco atento às necessidades espirituais do povo. Os sacerdotes ignorantes e pouco zelosos, procuravam garantir sua subsistência exercendo outra atividade, como de jardineiro, pastor, vaqueiro. A ausência de seminários para a formação de padres equiparava os sacerdotes ao paroquiano. Entre os membros do clero rural, o ensino do catecismo praticamente não existia. Em decorrência disso, as carências espirituais e a inconsistência teológica dos sacerdotes davam margem à ação dos disseminadores de heresias.” (RIBEIRO, 1998, p. 79)

74

Na compreensão e representação da cultura e do universo citadino medieval, a

burguesia tem certamente um papel relevante. Le Goff, constata a partir do século XII, a

constituição de “uma nova sociedade urbana” ( LE GOFF, 1992, P. 144). Quanto ao valor da

burguesia para tal universo urbano, o estudioso francês propõe duas questões fundamentais:

“Há um problema quanto à burguesia: falamos da mesma coisa no século XIII e no século XIX

? Qual o verdadeiro lugar ocupado pela burguesia medieval na história ?” (LE GOFF, 1992, p.

145).

Ao se buscar a resposta para a primeira indagação, deve-se levar em conta que a

burguesia européia do século XIX estava inserida em um contexto histórico bem diferente dos

séculos consoantes à Idade Média Ocidental. Enquanto no século XIX, o Capitalismo industrial

já estava formado no período que se estende dos séculos XI ao XIV, alguns aspectos que mais

tarde iriam se integrar ao sistema capitalista ainda estavam em gestação. Além disso, a cultura

do homem burguês medieval não era obviamente a mesma do homem burguês das sociedades

capitalistas contemporâneas.

Na busca da resposta para a segunda pergunta posta por Le Goff, é imperativo

considerar que o revigoramento das atividades comerciais na Baixa Idade Média, constatado

pela expansão populacional das cidades, favoreceu e determinou a importância da burguesia

para o desenvolvimento do Ocidente Medieval. Nesse aspecto, e seguindo de perto o estudo de

Hilário Franco Júnior, A Idade Média: o nascimento do ocidente, a própria nomeação

“burguês” como referência para assinalar o habitante da cidade em detrimento do homem do

campo, atesta o destaque que a burguesia teve em relação ao universo urbano ocidental83.

Some-se ainda que, especificamente no plano cultural e das representações sobre o

mundo medieval, a cidade além de se tornar identificada com a burguesia, passou a ser vista

pelo imaginário do citadino como espaço da liberdade, transformando-se em contraponto à

83 Hilário Franco diz textualmente o seguinte sobre a relação burguesia e desenvolvimento do mundo urbano medieval: “o fator que melhor refletiu e acelerou as transformações sociais foi, porém, o aparecimento de um segmento burguês. O crescimento demográfico e econômico, as cidades da Idade Média Central revigorou, pois para aqueles que fugiam dos laços compulsórios da servidão a vida urbana oferecia muitos atrativos. Como dizia um célebre provérbio alemão da época, ‘o ar da cidade dá liberdade’. Isto é, depois de morar certo tempo numa cidade (o que podia variar de um a dez anos, conforme o local), o camponês tornava-se homem livre.” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p.95

75

servidão do campo. Daí, inferir-se que o homem burguês84 passou a ser qualificado como

aquele que propala e defende a liberdade.

As representações que idealizavam a cidade, associando-as ao valor da liberdade,

atraíram muitas pessoas que buscavam nela uma vida sem amarras da servidão, mas, a

realidade concreta do meio citadino desfazia esse sonho. Por isso, a utopia de uma cidade,

valorizada pela harmonia entre os grupos sociais, seria desfeita. Na realidade, o que prevalecia

era o conflito entre tais grupos.

A historiografia sobre o ocidente medieval vem destacando os conflitos entre os grupos

sociais, ensejando o leitor à percepção de que nos centros urbanos não predominava a

igualdade. A cobrança de impostos, segundo Le Goff, favoreceu o descontentamento do povo

em relação à elite dirigente (LE GOFF, 1992, p. 150). Há de se acrescentar que os monarcas

aproveitavam-se da insatisfação popular para se imporem politicamente. As palavras do

historiador francês que exemplifica tal situação, a partir de Bruges são irretocáveis e

reveladoras:

O rei, em sinal de boas-vindas, acedeu ao pedido daqueles que gritavam, o que desagradou muito aos patrícios da cidade, que tiravam proveito desse imposto. De Gand o rei dirigiu-se a Bruges. O povo de Bruges foi encontrá-lo em trajes extraordinariamente ornados e, em meio a justas e torneios, deram-lhe presentes de grande valor. Os escabinos e patrícios de Bruges, desejosos de se fazerem reembolsar pelos presentes dados ao rei e pela decoração de suas vestes, decidiram que tais despesas seriam pagas com a sisa, enquanto os preparativos do povo seriam pagos com seus próprios recursos, decisão essa que aumentou a cólera do povo (LE GOFF, 1992, p. 150).

A cidade medieval foi o palco por onde desfilou um grande número de trabalhadores

que vivia à margem do sistema produtivo, antecipando o que se revelou uma tendência das

grandes cidades do mundo capitalista ocidental. Jacques Roussiaud, no texto “O Citadino e a

vida na cidade”, destaca documentos que já no século XII representam a cidade na sua

pluralidade. Assim, depreende-se das informações uma preocupação com os grupos sociais

84 Hilário Franco Júnior diz ainda o seguinte sobre a condição legal do chamado homem burguês: “Mais do que isso, tornava-se burguês (habitante do burgo, ou seja, da cidade), o que significava uma situação jurídica própria, bem definida, como obrigações limitadas e direitos de participação política, administrativa e econômica na vida da cidade. É verdade que desde fins do século XII os imigrantes não encontravam nas cidades as oportunidades com que sonhavam, formando um proletariado que freqüentemente acabou por se chocar com a burguesia dona das lojas e oficinas. Mas, utopicamente, os centros urbanos continuaram a seduzir os homens do campo.” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 95)

76

que, além de serem potenciais “perturbadores” de uma suposta ordem pública, poderiam

transformar o meio urbano em um local temido85 (ROUSSIAUD, 1989, p. 99).

Ao citar na introdução do seu texto as representações realizadas pelo monge de

Winchester em relação a Londres, Roussiaud oferece ao leitor um quadro bastante interessante

sobre a cidade que se desenvolve, mas que se torna efetivamente plural. Essa pluralidade,

todavia, apresenta-se para muitos como assustadora. Por isso, as expressões que concebiam a

cidade como o espaço da igualdade e da harmonia, passam a conviver com as representações

que viam o meio urbano como local perigoso.

Diante disso, deve-se assinalar que, quanto mais as cidades cresciam e diversificavam,

mais elas se tornavam vigiadas pelo incipiente poder público que ora se constituía. Duby

aponta também a presença de “bairros perigosos” (DUBY, 1998, p. 119). Compete acrescentar

que o historiador francês faz referência àquilo que ele denomina de “zonas pacíficas” (DUBY,

1998, p. 119).

A associação entre classes pobres e classes perigosas foi utilizada de maneira mais

constante, a partir de estudos feitos por sociólogos e historiadores que se debruçaram sobre a

análise das sociedades capitalistas. “Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza”,

Maria Stella M. Bresciani, neste estudo, analisa a sociedade capitalista industrial e os seus

desdobramentos sociais, e a rua, a multidão e a pobreza tornam-se alvos do estudo de

Bresciani. Pode-se perguntar, contudo: em que sentido a presença de grupos marginalizados na

Idade Média, pode ser comparado com os grupos marginalizados na sociedade capitalista

moderna ?

O estudo das possíveis representações da cidade medieval revela uma pluralidade de

grupos sociais que atuavam no cotidiano e que muitas vezes entravam em conflitos. Tais

representações prosseguiram após o período medieval, chegando assim ao período do

85 Jacques Roussiaud faz referência as impressões do monge de Winchester sobre os moradores de Londres. Conforme o historiador francês tal monge refere-se à cidade e os seus moradores da seguinte maneira: “Esta cidade não me agrada. Há pessoas de todos os gêneros, vindas de todos os países possíveis; cada raça traz consigo os seus vícios e os seus costumes. Ninguém pode viver aqui sem se manchar com qualquer delito. Os bairros estão repletos de obscenidades revoltantes [...]. Aí, os parasitas são infinitos. Atores, bobos, jovens efeminados, mouros, aduladores, efebos, pederastas, bailarinas especializadas na dança do ventre, feiticeiros, charlatães, raparigas que cantam e dançam, extorsionários, noctívagos, magos, mimos, mendigos: eis o gênero de pessoas que enchem as casas. Por isso, se não quiserem conviver com malfeitores, não venham viver para Londres. Não digo nada contra as pessoas instruídas; contra os religiosos ou os judeus. Considero, todavia, que, vivendo no meio de patifes, serão também menos perfeitos do que em qualquer outro lugar...” (ROUSSIAUD, 1989, p. 99)

77

capitalismo industrial. Além disso, os estereótipos que marcaram grupos sociais na sociedade

capitalista já estavam presentes na Idade Média Ocidental.

Jacques Roussiaud, no texto citado, apresenta igualmente um outro documento do

século XII, de autoria de Guillaume Fitz Stephen, mais precisamente da mesma época do

monge Richard. E, ao contrário do primeiro, o segundo documento apresenta uma visão

otimista sobre a cidade de Londres. Portanto, os moradores da cidade e os seus costumes são

avaliados de forma positiva. E mais, a visão positiva era respaldada por uma concepção cristã

(ROUSSIAUD, 1998, p. 99).

O desenvolvimento e a configuração geográfica e material da cidade medieval,

ocorreram paralelamente ao desenvolvimento da cultura e do imaginário urbano (LE GOFF,

2002, p. 225). Ao contrário, as fontes históricas resgatam muito mais as representações e

símbolos das cidades medievais86. Assim, a compreensão da trajetória das diversas cidades pela

história deve ser reconstruída por intermédio dos signos e dos símbolos que fazem parte do

imaginário dos citadinos e que são imprescindíveis para as representações das cidades da Idade

Média Ocidental87.

Acrescente-se que a produção artística e literária fornece bons caminhos para a

compreensão da cultura e da mentalidade da mulher e do homem citadino. Consoante Le Goff:

“Graças às canções de gestas e aos romances cortesãos do século XII, pode-se distinguir

diversos tipos de comportamento, aliás freqüentemente misturados” (LE GOFF, 2002, p. 226).

No tocante à contribuição deve-se ressaltar que a cultura e a mentalidade do citadino

são herdeiras do cristianismo, e com a expansão da vida urbana, a Igreja Católica lançou sobre

o espaço urbano medieval a sua estrutura eclesiástica de natureza rural. Há de se somar que Le

Goff, repaldando-se em Georges Duby, diz-nos que: “a arquitetura cisterciense do século XII

prefigura a arquitetura urbana da época gótica, é essencialmente contra a cultura monástica que

vai se instalar uma cultura urbana nos séculos XII e XIII” (LE GOFF, 2002, p. 229). Nesse

sentido, pode-se deduzir que a expansão do gótico no meio urbano expressa uma religiosidade

mais afeita à cultura e mentalidade urbana.

86 Na obra A Cidade das letras, que já se tornou referência para a compreensão das relações que envolvem a cidade e a literatura, Angel Rama propõe como perspectiva a compreensão e a representação da produção literária e dos seus signos a partir do espaço urbano.87 Contudo Le Goff alerta o leitor sobre o papel dos grupos dominantes, não só no desempenho das atividades econômicas e políticas, como também na configuração do imaginário sobre a cidade medieval. Neste sentido, os grandes monumentos arquitetônicos representam as visões sobre as cidades medievais que nos foram legadas pelos grupos dominantes medievais.

78

Prosseguindo no estudo da identificação da cultura e mentalidade urbana medieval,

convém agora estabelecer a seguinte questão: É possível caracterizar o habitante da cidade ?

Os estudos que tentam explicar as diversas representações urbanas têm privilegiado o

estudo do cotidiano medieval para compreender os múltiplos grupos sociais que constituíam a

cidade na Idade Média Ocidental. Consoante isso, o historiador tem a difícil tarefa de encontrar

não o indivíduo e, sim, os vários indivíduos, mas, dentro dos limites deste trabalho, proponho

apresentar algumas características do citadino medieval e contrapô-las, dentro do possível, com

o indivíduo que vivia no campo.

No processo histórico de constituição do Feudalismo na Europa Ocidental, ocorreu a

ruralização da economia e o desmembramento do poder político centralizado. O

desdobramento disso foi a criação de uma sociedade de essência rural que valorizava a

formação de relações pessoais fundamentadas na subordinação, isto é, as relações de

vassalagem fundamentadas nos vínculos entre vassalos e suseranos atestam tal fato. Por isso, o

homem medieval do campo estava preso a uma rede de relações que comprometiam a

afirmação de uma personalidade individual. Uma vez que o homem e a mulher medievais que

viviam no campo não eram individualistas. Ambos estavam presos a uma hierarquia social que

tendia para uma forte rigidez88. Cabe acrescentar que os rituais e as práticas culturais dos

habitantes do meio rural medieval estão intimamente relacionadas às redes de subordinação

que foram sendo estabelecidas. Porém as palavras de Le Goff nesse caso são insubstituíveis:

A concessão de um feudo pelo senhor ao vassalo era feita numa cerimônia, a investidura, que consistia num ato simbólico, na entrega de um objeto (estandarte, cetro, vara, anel, faca, pedaço de palha, etc). Em geral ela ocorria após o juramento de fidelidade e a homenagem, e antes do século 13 sua consignação mediante ato escrito ocorria apenas em casos excepcionais. O feudalismo era um mundo de gesto, não da escrita (LE GOFF, 2005, p. 85).

O processo de desenvolvimento das cidades medievais esteve relacionado ao conjunto

do sistema feudal, na medida em que elas não se constituíam como corpos estranhos em um

mundo de essência rural, pois sua dinâmica política, econômica, social e cultural deve ser

compreendida em consonância com aquilo que se pode denominar por Idade Média rural. Mas,

88 Jacques Le Goff, apresenta uma definição de feudalismo vinculada à idéia de “laços pessoais que unem entre si, hierarquicamente, os membros das camadas dominantes” (LE GOFF, 2005, p. 84). Daí, o contrato vassálico, a homenagem, a investidura e o feudo constituírem-se em elementos fundamentais para uma definição de feudalismo (LE GOFF, 2005, p. 84). Neste sentido, a concessão de um feudo é marcada por gestos e rituais que determinaram as relações pessoais e o imaginário medieval.”

79

como mensurar e discriminar as características que são intrínsecas às cidades medievais ?

Quais seriam as características do homem citadino que o diferenciam do homem do meio

rural ?

A multiplicidade das atividades econômicas marca aos poucos o desenvolvimento das

cidades medievais. Embora as cidades medievais tivessem sido caracterizadas muitas vezes em

função do desenvolvimento comercial, elas desenvolveram outras atividades econômicas. E, se

no plano social o mundo rural medieval colaborou para a criação de uma sociedade

hierarquizada que prendia o indivíduo a uma rede de dependências, as cidades na Idade Média

desenvolveram malhas de relações que não eram tão rígidas como aquelas da sociedade rural,

porque os citadinos tinham uma maior mobilidade no interior do espaço urbano. Há de se

acrescentar que a vida na cidade representa para o citadino o compartilhamento da vida

civilizada. Na visão de Jacques Le Goff, no livro Por Amor às cidades: conversações com

Jean Lebrun: “A Idade Média opõe a cidade, lugar de civilização, ao campo, lugar de

rusticidade” (LE GOFF, 1998, p. 119).

Jacques Roussiaud considera que, se cotejada com a família do meio rural, a do meio

urbano é reduzida. Além disso, seguindo as trilhas abertas pelo historiador francês, a cidade

cumpriu uma ação desagregadora em relação aos emaranhados familiares (ROUSSIAUD,

1989, p. 104). No entanto, as palavras de Jacques Roussiaud explicam melhor tal ação das

cidades sobre a organização familiar no mundo medieval ocidental:

Os citadinos têm uma consciência muito clara da fragilidade familiar e lamentam as distâncias, sempre crescentes, entre parentes, separados pelas suas atividades, pelo tipo de vida e, por vezes, pelas residências e pelos litígios. O fascínio da nobreza deriva, em parte, desse fator; o modesto burguês sonha com uma solidariedade de linhagem, com parentes ativos e generosos. Os autores dos fabliaux dizem: quando tens necessidade dos teus primos, eles põem-te na rua. Por conseguinte, a cidade pela sua economia, pelo seu ambiente, pela sua ética, exerce uma função destruidora dos laços familiares; as epidemias abundam, a solidariedade enfraquece, os danos morais ameaçam toda a gente, a autoridade do chefe de família é posta em perigo. O citadino, freqüentemente sem antepassados e desprovido de bens, não pode contar muito com os seus “amigos carnais” (ROUSSIAUD, 1989, p. 104).

Compete dizer que, ao gerar múltiplas atividades econômicas, a cidade medieval criou

um novo indivíduo que passou a perceber e representar o seu mundo de maneira própria, ainda

que suas visões de mundo tivessem pontos de interseção com o homem medieval que habitante

do campo. E, conforme Jacques Le Goff, o homem que vivia nas cidades já convivia com a

80

perspectiva da pluralidade e da transformação (LE GOFF, 2002, p. 231). Embora convivesse

em grupos, ele experimentou uma privacidade se comparada ao do homem do campo89.

Le Goff concebe o meio urbano como portador de uma força capaz de gerar indivíduos

que adquirem uma cultura com potencial de mudar também a própria cidade. Por isso, há uma

relação única entre o citadino, que atua e transforma o seu meio urbano, mas que também têm

suas ações e visões de mundo aquilatado pelo meio urbano.

O dinheiro e o trabalho paulatinamente transformaram-se em fatores que não só

afirmaram a liberdade, como também a individualidade90 do citadino na Idade Média

(ROUSSIAUD, 1989, p. 106). Desse modo, surgiram novas representações sobre o valor do

trabalho que gera riqueza, antecipando assim valores que se tornaram comuns nas sociedades

capitalistas e liberais.

Mesmo considerando a individualidade como algo já pertencente ao homem citadino,

notadamente ao homem burguês, pode-se intuir, por intermédio do trabalho amplamente citado

de Hilário Franco Júnior, que tanto o homem da cidade, quanto o do meio rural da Idade Média

Ocidental tiveram sua cultura e mentalidade determinadas por uma visão de mundo ancorada

no sagrado e na percepção cristã que afiançavam a existência sobrenatural (FRANCO

JÚNIOR, 2001, p. 139). Isso posto, deve-se considerar que o cristianismo, tanto no universo

rural, quanto no universo urbano, marcou a cultura e a mentalidade, bem como influenciou nas

representações que eles confeccionaram sobre o contexto histórico em que viveram.

Além de ter engendrado um imaginário específico que norteou a conduta e os valores

dos citadinos, a cidade propiciou uma nova concepção de tempo que se associava também à

nova economia mercantil e às noções de trabalho. Consoante, Le Goff: “Durante três séculos,

do XII ao XIV, uma áspera luta se desenrola em torno do tempo urbano, tempo dos mercadores

89 Le Goff diz ainda o seguinte sobre a relação coletividades urbanas e indivíduo: “A cidade elaborou, sobretudo, uma cultura comunitária feita para novas coletividades urbanas, cultura forjada pela escola, pela praça pública, pela taverna, pelo teatro, pela pregação, mas que também contribuiu para a emancipação do casal e do indivíduo. Ali se vê a estrutura mudar com a evolução do dote, que no meio urbano se constitui essencialmente de bens móveis e dinheiro. A cidade é uma pessoa, feita de pessoas que ela modela.” (LE GOFF, 2001, p. 232)90 Hilário Franco Júnior em Idade Média: nascimento do ocidente diz o seguinte sobre a importância da burguesia para a noção de individualidade, tomando como exemplo a casa: “A casa de um burguês de boas condições tinha vários cômodos – o conceito de individualidade e privacidade nasceu com ele, nas cidades de fins da Idade Média. Vários desses cômodos estavam reservados às atividades profissionais, salas para trabalho dos artesãos, quartos para estes dormirem, depósitos de matérias-primas, loja com abertura para a rua. A disposição e o tamanho desses espaços naturalmente variavam conforme as características da cidade e das atividades do burguês.” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 134)

81

em primeiro lugar, contra o tempo da Igreja, resistência, em seguida, dos ‘miúdos’ ao tempo

dos ‘graúdos’, dos patrícios” (LE GOFF, 1992, p. 195).

Na relação proposta, tempo da igreja e tempo do mercador, Jacques Le Goff em Para

um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente, defende a tese de

que, apesar das desconfianças em face às atividades mercantis, a igreja resguardou o

comerciante e o seu ofício (LE GOFF, 1993, p. 43). Especificamente no que tange ao tempo, o

historiador francês discute que a noção de tempo representada pelo cristianismo a partir Idade

Antiga até a Idade Média, embasava-se no pressuposto de que o tempo estava associado ao

fenômeno teológico91.

Com relação ao tempo desenvolvido nas cidades e inegavelmente ligado ao trabalho e

às atividades econômicas que surgiam e se expandiam, Le Goff, que toma como personagem o

mercador92 que simboliza a vida econômica, assevera que aquele está intrinsicamente

vinculado aos fenômenos da natureza (LE GOFF, 1993, p. 51). Daí, a possibilidade de o tempo

mensurado, favorecendo, por isso, os homens na orientação das atividades econômicas.

Contudo, ao mesmo tempo o mercador citadino teve que pôr em prática uma ética que

justificasse a riqueza e o lucro, esteve às voltas com a sua consciência religiosa, fundamentada

em uma ética cristã que a princípio via com desconfiança o comerciante e o lucro. As palavras

do historiador francês, além de caracterizar melhor o tempo do mercador, proporcionam uma

melhor comparação entre as duas concepções de tempo:

Da mesma forma que o camponês, o mercador está submetido, na sua atividade profissional, em primeiro lugar ao tempo meteorológico, ao ciclo das estações, à imprevisibilidade das intempéries e dos cataclismos naturais. Neste aspecto, e durante muito tempo, ele só necessitou de submissão à ordem da natureza e de Deus e só teve, como meio de ação, a oração e as práticas supersticiosas. Mas quando se organiza uma rede comercial, o tempo torna-se objeto de medida. A demora de uma viagem, por mar ou por terra, de um lugar para outro, o problema dos preços que, no decorrer de uma mesma operação comercial, e mais ainda quando o circuito se complica, sobem ou descem, aumentam ou diminuem os lucros, a duração do trabalho artesanal

91 Le Goff diz literalmente o seguinte: “O tempo da Bíblia e do cristianismo primitivo é, antes de mais, um tempo teológico. ‘Começa com Deus’ e é ‘dominado por ele’. Por conseqüência, a ação divina, na sua totalidade, está tão naturalmente ligada ao tempo que este não poderia constituir um problema; é, pelo contrário, condição necessária e natural de todo o ato ‘divino”. (LE GOFF, 1993, p. 45)92 Em outra obra de Le Goff, intitulada Em busca da Idade Média, esclarece mais uma vez o principal obstáculo religioso enfrentado pelos mercadores: “O mercador-banqueiro confronta-se, porém, com um difícil caso de consciência. A Igreja medieval, marcada pelo ascetismo dos monges, e que leu nas Escrituras a condenação do empréstimo a juros, ensinava a desprezar o dinheiro. E eis que esses mercadores, não contentes de fazer aparecer o dinheiro na vida social, nele encontraram um interesse profissional e humano. Nova categoria, os mercadores devem, além disso, sua fortuna a uma atividade arriscada, com sucessos frágeis. Bons cristãos querem justificar esse dinheiro.” (LE GOFF, 2003, p. 97)

82

ou operário (o mercador é também quase sempre um dador de trabalho) – tudo isto se impõe cada vez mais à sua atenção e se torna objeto de regulamentação cada vez mais minuciosa (LE GOFF, 1993, p. 51).

A organização do trabalho e das atividades econômicas, por intermédio do tempo

favorece a burguesia no que diz respeito ao acúmulo de riquezas. Além disso, antecipa a

formação de um mercado capitalista que aos pouco, não só irá disciplinar93 a mão-de-obra,

como também o cotidiano do citadino que representará o seu mundo como sendo o do trabalho.

Disso, a razão de se fazer presente passo a passo nas atividades econômicas e no próprio

mercado. O corolário disso foi a ordenação da vida dos citadinos. Além disso, a Igreja Católica

e as futuras religiões reformadas terão como desafio adaptar suas teologias ao mundo que gira

em torno do mercado, do trabalho e do dinheiro.

Analisando a dinâmica da vida citadina e seguindo de perto as análises de Jacques Le

Goff, deve-se inferir, portanto, que o equívoco da tese que punha em confronto o tempo da

igreja e o tempo do mercador necessita ser reavaliada, pois na realidade a igreja e o

cristianismo realizaram necessárias concessões em relação às novas atividades comerciais.

Assim, enquanto as atividades comerciais permaneceram mais restritas a grupos humanos já

secularmente estigmatizados pela igreja (como foi o caso dos judeus), foi possível aos cristãos

combater práticas econômicas que almejassem o lucro. Porém, porquanto tais práticas foram

sendo exercidas também por grupos que não eram marginalizados pela cristandade medieval,

ficou mais difícil combater essas práticas. Nas palavras de Le Goff:

Não se pode, por isso, falar de um enfrentamento: Igreja contra mercadores. O lugar-comum segundo o qual a Igreja se oporia à economia e ao progresso é parte do velho arsenal das Luzes, retomado no século XIX. A verdade é totalmente outra: a partir dos séculos XI e XII desenvolve-se uma legitimação do dinheiro. Há uma consciência do perigo que o dinheiro representa, há uma consciência do obstáculo em que ele se constitui no caminho da salvação, mas não se deixa de reconhecer cada vez mais sua legitimidade embutida numa verdadeira “economia” moral” ( LE GOFF, 2005, p. 101).

2.3. A construção do conceito de cidade medieval.

93 No dizer de Jacques Roussiaud: “Numa cidade mercantil, tudo é ratio; o citadino deve agir de uma forma razoável, após contabilização e dedução lógica. Mas a razão, capacidade de se entender o passado, analisar o presente e prever o futuro, implica também uma ordem do universo e, por conseguinte, uma medida do tempo.” (ROUSSIAUD, 1989, p. 119)

83

A construção de um conceito da cidade medieval passa em nossa avaliação e segue de

perto as análises de José D’Assunção Barros, pela compreensão de como os homens e

mulheres percebiam o chamado espaço urbano. Assim, os estudos atuais sobre a cidade

medieval, se bem que não neguem a sua vinculação da mesma com o mundo rural, reconhecem

que a “cidade do período feudal tem uma identidade própria que é preciso recuperar”

(BARROS, 2003,p. 49). Neste aspecto, a cidade medieval pode ser definida da seguinte

maneira: como o espaço que, apesar de estar em interação com o mundo rural medieval,

desenvolveu uma organização política, econômica, social e cultural que lhe foi própria. Os

homens, as mulheres e os grupos sociais do período, construíram as suas visões, imagens e

escritas sobre as suas cidades, também as representaram.

Tais representações abrem uma série de possibilidades para o historiador no que

concerne à compreensão do mundo urbano medieval. No século XX, as interpretações sobre a

importância da cidade para o período medieval ganharam novos enfoques, sendo um deles a

reavaliação da relação entre campo e cidade. Conforme José D’Assunção de Barros, os

trabalhos de historiadores como Jacques Le Goff, passaram a “ressaltar a interpenetração física

entre cidade e campo, mesmo que sob a intermediação limitadora da muralha” (BARROS,

2003, p. 50)94. Logo, deduz-se que, embora a muralha estivesse como um possível ponto de

limite entre o meio urbano e rural, ela não serve de justificativa para uma possível tese que

tenha como base a concepção de que os dois mundos não seriam na verdade complementares.

O livro A Europa: gênese de uma civilização de Lucien Febvre contribui para a

tentativa de construção do conceito de cidade medieval. Por intermédio de tal estudo pode-se

concluir que o historiador francês considera a burguesia e a própria cidade como

identificadores de um novo mundo que se forma no processo histórico da Europa Ocidental

Medieval (FEBVRE, 2004, p. 143). Febvre assevera que a cidade medieval não é na verdade

um “corpo estranho” na Idade Média e, sim, um complemento ao universo dos castelos,

senhores e camponeses que expressam um mundo rural. Há de se acrescentar que a cidade

representada e conceituada por Febvre tem na burguesia um componente básico que difere dos

senhores e servos que simbolizam a Idade Média rural.

94 Barros afirma ainda que Le Goff considera que “a cidade medieval é filha do campo, apesar das diversidades mais ou menos impressionantes entre estes dois mundo”. (BARROS, 2003, p. 51)

84

Em trabalho recém publicado, As Raízes medievais da Europa, Jacques Le Goff,

procura definir não só a cidade, como também o citadino na Europa Medieval. Reportando-se a

Jacques Roussiaud, ele considera que as práticas comerciais que se amalgamam com o

artesanato, gerando uma economia monetária, constituem um componente notável para a

construção de um conceito de cidade medieval. Em seguida, e citando Roussiaud, o autor de O

Apogeu da cidade medieval considera outrossim o trabalho e os produtos que dele advém. Por

fim, Le Goff, permanecendo na citação do texto de Roussiaud, reforça o papel das muralhas e

das redes de convivência social criadas no interior das cidades (LE GOFF, 2007, p. 158-159).

Após chamar a atenção desses elementos básicos para conceituação da cidade

medieval, Le Goff destaca um indicador novo: a “construção da cidade como obra de arte”

( LE GOFF, 2007, p. 159). Todavia, ele adverte ao leitor sobre o aspecto idealizador dessa

representação, quando ela reporta-se “à visão de uma sociedade igualitária” (LE GOFF, 2007,

p. 159). Pois, nas palavras do historiador francês:

Esta imagem da cidade medieval é sem dúvida um pouco idealizada quanto à visão de uma sociedade igualitária. Viu-se formar-se uma elite dominante que institui a injustiça, sobretudo no domínio fiscal, e que esmaga uma massa, sem cessar crescente, de pobres. É a Europa da miséria urbana. Mas é verdade que o modelo burguês é – no ideal – igualitário e visa, em todo caso, a uma hierarquia horizontal e não vertical, como na sociedade rural e senhorial. Nesse mundo, só o mito da Távola Redonda fez sonhar num grupo de iguais em torno de uma mesa que abole as hierarquias, com a exceção de um chefe, o Rei Artur. Mas é um sonho de igualdade aristocrática. A igualdade burguesa é um princípio violado na realidade, mas é o fundamento teórico de uma igualdade que leva ao único modelo medieval igualitário, ou seja, a comunidade monástica onde cada monge, no capítulo, tem uma voz igual, materializada por uma fava branca ou preta para o sim ou para o não (LE GOFF, 2007, p. 159).

A longa citação do texto de Le Goff justifica-se, em primeiro lugar, pela constatação da

pobreza no meio urbano medieval que põe em dúvida a representação sobre a utopia da cidade

medieval, enquanto “sociedade igualitária”. Em segundo lugar, enseja uma comparação de

mitos que se forjaram, tanto no meio rural, quanto no meio urbano. Logo, o ideal de igualdade

do mundo medieval rural ancora-se na realidade em uma concepção aristocrática. Em terceiro

lugar as representações sobre a igualdade nas cidades permitem aos historiadores

85

depreenderem a origem do princípio burguês que, no plano teórico e jurídico, afiançam de fato

que todos os homens são iguais.

No tocante a uma possível construção do conceito de citadino, Le Goff apela

inicialmente, mais uma vez, para Jacques Roussiaud, e posteriormente, para Maurice Lombard.

Desse modo, ele reproduz uma série de questões retiradas do texto de Jacques Roussiaud, O

Citadino e a vida na cidade95, que termina em nossa avaliação, antes voltando a uma questão:

O que havia de convergente entre os diversos grupos sociais que viviam na cidade da Idade

Média Ocidental ?96

A resposta estaria inicialmente na convivência imposta pelos limites e possibilidades

geradas pelo espaço urbano, porque a geografia urbana das cidades medievais pôs em

circulação homens e mulheres de grupos sociais diferentes que mesmo ansiando pelas

possibilidades de afirmação da liberdade individual, foram confrontados pelos limites do

território urbano e das malhas sociais, que foram criadas. Em seguida, a resposta poderia ser

buscada na dinâmica da vida econômica que também contribuiu para o fortalecimento das

relações sociais, através da economia monetária. Logo, o dinheiro paulatinamente transformou-

se não só no grande impulsionador da vida econômica e na configuração do perfil do citadino.

Em conseqüência, a partir dos componentes elencados pelo autor de Em busca da

Idade Média, pode-se afirmar que a construção do conceito de cidade medieval não deve

prescindir da caracterização da sociedade e dos diversos grupos sociais do universo urbano

medieval. Por isso, a ampliação do conceito de cidade medieval, depende do avanço das

pesquisas históricas que devem em nossa avaliação resgatar as múltiplas representações da

cidade medieval as quais foram feitas por homens e mulheres.

2.4. Considerações Finais.

Embora os estudos sobre a cidade medieval já sejam expressivos, o meio universitário

ainda privilegia as pesquisas sobre a Idade Média Rural. O corolário disso é o predomínio de 95 A passagem a qual Le Goff cita textualmente é a seguinte: “O que há de comum entre o mendigo e o burguês, entre o clérigo e a prostituta, todos citadinos ? Entre o habitante de Florença e o de Montbrison ? Entre o neocitadino do desenvolvimento primitivo e o seu descendente do século XIV ?” (LE GOFF, 2002, p. 231)96 A passagem de Maurice Lombard citada por Le Goff, acabam convergindo com as de Roussiaud, na medida em que Lombard vê o citadino medieval como vivendo em um espaço urbano que o obriga a contrair redes de solidariedade e convivência, limitando assim as possíveis liberdades individuais.

86

um ensino que prioriza, por exemplo, temas como a economia agrária e a servidão do

camponês.

O Capitalismo e a Revolução Industrial favoreceram o crescimento do interesse dos

estudiosos em relação às cidades. Nesse sentido, no século XX, os estudos sobre a cidade

medieval foram estimulados e cresceram, sem falar que as cidades da Antigüidade vem sendo

alvo de uma série de estudos.

A historiografia sobre o desenvolvimento da cidade no ocidente medieval tem sido

beneficiada por uma série de estudos que buscam, não só comprovar uma relação de

complementaridade entre campo e cidade, mas também sua função econômica, juntamente com

a importância da burguesia. A cultura e a mentalidade do citadino, bem como as representações

que eles realizavam sobre a cidade medieval, todavia, têm sido relevados pelos historiadores.

A construção do conceito de cidade medieval está intimamente relacionada ao avanço

dos trabalhos que compõem a historiografia sobre o ocidente medieval. Especificamente no

que diz respeito à cidade na Idade Média, o crescimento das pesquisas proporcionam uma

ampliação do conceito de cidade medieval.

No próximo capítulo intitulado “Representações e Currículos no Brasil” tratará

inicialmente sobre a noção de representação, bem como a sua relação com a chamada História

Cultural. Tal história é resultado do desenvolvimento historiográfico, gerado principalmente na

França do século XX. Pode-se considera também que o sucesso da História Cultural nos meios

acadêmicos relaciona-se com a redescoberta da obra do sociólogo alemão Norbert Elias.

Em um segundo momento, há uma abordagem sobre a relação representação e

iconografia, favorecendo assim a exploração de novas fontes no processo de produção do

conhecimento histórico. Os trabalhos dos medievalistas Jacques Le Goff e Jean-Claude

Schmitt, demonstram à importância das fontes iconográficas para a compreensão da Idade

Média.

Em um terceiro momento, pretende-se estudar a estrutura curricular no Brasil. As

reflexões de Apple e Antonio Flávio Moreira são fundamentais para a compreensão do papel

dos currículos no interior do processo educacional. Por fim, há uma tentativa de capturar um

do pouco da trajetória história dos currículos, através da História do Brasil.

Por fim, o que se segue buscará explicar a História como disciplina escolar. A partir

daí, há um esforço de se pensar a História como disciplina escolar na sua relação com a

87

História produzida nos meios universitários. Por isso, questões que tem como base a

construção de um currículo de História para o ensino médio também tornam-se alvos de

reflexões no próximo capítulo.

III. REPRESENTAÇÕES E CURRÍCULOS NO BRASIL.

88

É sempre bem mais fácil pensar sobre a escola ideal do que sobre a escola real; mais fácil descrever um programa escolar do que narrar como foi utilizado. Nos escritos dos grandes pedagogos, nos textos fundadores, nas regras e programas de estudos, podemos ler por que e como é preciso instruir e educar os alunos, mas muito pouco podemos saber como as coisas funcionam no dia-a-dia. No entanto, existe, também, a “caixa preta” da escola, escrita com base em documentos polêmicos de contemporâneos, lembranças dolorosas de antigos alunos, queixas de professores sobre as condições desastrosas da profissão, sobre o absurdo ou a perversão do sistema. Os reformadores de todos os tempos sempre tiraram proveito desses fracassos da instituição, citando-os abundantemente, para legitimar seus projetos renovadores. Entre os textos que descrevem a escola ideal e os registros das suas falhas inadmissíveis, como situar a “escola real” ?

Anne-Marie Chartier97

3.1. A História Cultural e a noção de representação.

Com relação à noção de representação, é mister afirmar que da mesma foi

estudada pelos historiadores ligados à história cultural, que se desenvolveu e ainda se

processa sobretudo na França. Todavia tal noção vem sendo enriquecida por intermédio

de historiadores brasileiros como os trabalhos realizados por José D’Assunção Barros e

Sandra Jatahy Pesavento98.

A França destacou-se, no século XX, como o País gerador de boa parte dos

avanços da historiografia. O historiador Peter Burke considerou a Escola dos Annales

tão importante que a denominou de “A Revolução Francesa da Historiografia”

(BURKE, 1992, p. 11).

A Escola dos Annales foi fruto da revista dos Annales, publicada pela primeira

vez em 1929 (Ibidem, p. 11). A primeira geração dos Annales, liderada pelos seus

fundadores Marc Bloch e Lucine Febvre, ao valorizar só domínios do simbólico,

ensejou uma preocupação com as mentalidades. A segunda geração, liderada por

Fernand Braudel, teve um enfoque mais econômico-social. A terceira geração, que teve

97 Tal passagem foi retirada do livro: CHARTIER, Anne-Marie. Práticas de leitura e escrita: história e atualidade. Belo Horizonte: Ceale/Autêntica, 2007.98 Os livros O Campo da história: especialidades e abordagens e História & história cultural, respectivamente de José D’Assunção e de Sandra Jatahy Pesavento, atestam isto.

89

como um de seus expoentes o medievalista Jacques Le Goff, retomou e valorizou

atitudes mentais (PESAVENTO, 203, p. 31).

Peter Burke diz, entretanto, que a Nova História francesa, como associada

inicialmente à revista dos Annales, pôs-se em oposição ao “paradigma tradicional”, que

tinha como uma de suas bases a história política tradicional fundamentada na história

dos acontecimentos, como sugere Braudel (BURKE, 1992, p. 12). Por isso, o destaque

para os estudos das transformações econômicas e sociais ao longo dos tempos.

A expressão francesa “La nouvelle histoire”, segundo ainda Peter Burke, foi o

título empregado por Jacques le Goff a uma coleção de ensaios (Ibidem, p. 9). Os três

volumes tratavam de temas que se relacionavam aos “novos problemas, novas

abordagens e novos objetos” (Ibidem, p.9). É uma história francesa. Mais precisamente

falando, a “Nova História” referia-se à chamada História das Mentalidades, que marcou

época na historiografia francesa a partir dos anos de 1970. Segundo Ronaldo Vainfas,

no ensaio História das mentalidades e História cultural:

História das Mentalidades, filha dileta da “Escola dos Annales”, eis um juízo de valor várias vezes reiterado e apregoado pelos historiadores franceses nos 70, tempo em que, bem ou mal, celebrava-se a história das mentalidades como prima donna da chamada Nova História. Trata-se, na realidade, de um juízo só parcialmente verdadeiro. Verdadeiro porque, queira-se ou não, a preocupação com os “modos de sentir e pensar” ocupou a atenção dos annalistes desde os primórdios da revista Annales, quando não antes, nos estudos de Marc Bloch e de Lucien Febvre na década de 1920 (1997, p. 129).

Embora a História das Mentalidades se preocupe com temas precisos, voltados para a

vida privada e para o cotidiano, como o amor e a morte, por exemplo, o conceito de

mentalidade “não era preciso; a corrente pretendia furtar-se à classificação classista, mas sua

amplitude também não era fixada pelos historiadores que trabalhavam nesse enfoque. A

história das mentalidades apontava para os caminhos mentais e dos fios de sensibilidade que

percorriam o social de ponta a ponta, mas não se definia teoricamente” (PESAVENTO, 2003,

p. 31).

José D’Assunção de Barros considera a História das Mentalidades, em uma tentativa de

defini-la como a preocupação com o “mental e aos modos de sentir” (BARROS, 2004, p. 37).

Assim, a inovação de temas, a “retomada” da narrativa e a preocupação com a longa duração

das estruturas mentais são fundamentais para a compreensão da História das Mentalidades.

90

Cabe acrescentar que “é preciso reconhecer que a História das Mentalidades, sobretudo através

dos historiadores franceses da Nouvelle Histoire, proporcionou uma significativa abertura aos

novos modos de fazer a história, inclusive deixando sua margem de influências na

historiografia brasileira da década de 1980” (BARROS, 2004, p. 42-43).

Apesar de já questionado antes no mundo, o paradigma marxista só começou a sê-lo no

Brasil dos anos de 1990, embora o Materialismo Histórico predominasse nos meios

acadêmicos, contribuindo assim para uma expressiva renovação dos estudos no campo das

ciências humanas. Logo, as críticas em relação aos pressupostos teóricos marxistas puseram,

em dúvida, as pretensões de uma História voltada para a totalidade e de base racional

(PESAVENTO, 2003, p. 31). Nesse sentido, o chamado paradigma pós-moderno tornou-se um

contraponto ao paradigma marxista. A História das Mentalidades, nesse contexto brasileiro,

ganhou destaque, proporcionando a incorporação de novos temas aos estudos históricos. Temas

vinculados ao cotidiano ganharam importância entre os nossos estudiosos brasileiros. Logo,

noções, como as de imaginário foram utilizadas por historiadores em trabalhos que acabaram

questionando o paradigma marxista e promovendo um encontro cada vez maior da História,

notadamente, com a Antropologia e a Psicanálise.

O triunfo da História Cultural99 nos meios acadêmicos dos anos de 1990 relaciona-se

com a redescoberta da obra do sociólogo alemão Norbert Elias. Luiz Carlos Ribeiro, que

escreveu o texto “Norbert Elias e a história cultural”, sugere que os escritos de Elias inspiraram

tal domínio dos estudos históricos (RIBEIRO, 2005, p. 89). E, se recuar um pouco mais no

tempo, historiadores como Michelet e Burchardt, ambos do século XIX, abordaram temas que

hoje são desenvolvidos pelos historiadores da Nova História Cultural (PESAVENTO, 2003, p.

22). Então, pode-se perguntar: Por que a História Cultural triunfou sobre a História das

Mentalidades ?

Conforme Ronaldo Vainfas, o triunfo da História Cultural deve-se, em primeiro lugar, à

preservação dos temas ligados ao mental e à afirmação da história como disciplina, aspecto que

99 Roger Chartier em artigo intitulado “A Nova História Cultural”existe ?”, inserido no livro em História e linguagens: texto, imagem, oralidade e representações diz o seguinte sobre a presença da expressão “nova história cultural”: “A categoria de ‘nova história cultural’ entrou no léxico comum dos historiadores há mais de uma dezena de anos, quando Lyn Hunt publicou, com este título, uma obra que reunia oito ensaios que reunia oito ensaios que apresentavam diferentes modelos e exemplos desse novo modo de fazer história. Na sua introdução sublinhava os três traços essenciais que davam coerência a trabalhos cujos objetos (textos, imagens, rituais, etc) eram muito diversificados.” (CHARTIER, 2006, p. 29)

91

ficou comprometido no diálogo da História das Mentalidades com outros campos de saberes.

Em

segundo lugar, seguindo ainda as reflexões do professor Vainfas, a História Cultural, ao se

preocupar tanto a cultura elitista quanto com a popular, ganhou destaque entre os historiadores.

Em terceiro, ao não abandonar a “luta de classes”, a Nova História Cultural procura resgatar no

cotidiano o conflito social. Finalizando com o pesquisador da Universidade Federal

Fluminense, “a chamada história cultural é uma história plural, apresentando caminhos

alternativos para a investigação histórica, do que resulta, muitas vezes, uma série de desacertos

e incongruências igualmente presentes na corrente anterior” (VAINFAS, 1997, p. 148-149).

Em artigo intitulado “História cultural e história das idéias: diálogos historiográficos”,

José D’Assunção de Barros afirma que a História Cultural consolidou-se, tanto na Europa,

quanto na América no final do século XX. A “noção de cultura” respalda toda a produção

historiográfica que tem como base aquilo que denomina História Cultural (BARROS, 2006, p.

131). Isso posto, pode-se propor a seguinte questão: Por que a História Cultural100 tornou-se um

campo historiográfico tão importante, a ponto de mobilizar tantos estudiosos ?

Prosseguindo, junto com as idéias produzidas pelo historiador José D’Assunção, deve-

se considerar que para se responder é imperativo ter em mente que no século XIX, período em

que ocorre uma preocupação em se delimitar o território de atuação do historiador, a concepção

de cultural estava associada a uma noção elitista, ou seja, ter acesso à cultura significava ser

portador de uma série de conhecimentos que, de uma maneira geral, remetiam à idéia de

erudição. Portanto, as representações engendradas pelas camadas populares sobre a sociedade

eram preteridas e não eram consideradas manifestações culturais. Por isso, pensar e falar em

cultura e História cultural antes do final do século XX, tinha o seguinte significado:

100 Na apresentação coletânea História cultural: várias apresentações, a historiadora Philomena Gebran diz o seguinte sobre o lugar e contribuição da História Cultural para os pesquisadores: “Importante reconhecer que a História Cultural, além de incorporar as áreas afins como a antropologia, a sociologia, a geografia e, enfim, todas as ciências humanas e sociais, trouxe também para si outros objetos de conhecimento, abrangendo ainda, mentalidades, mitos, religião, simbologia, artes, literatura, cinema, moda, arquitetura, para além da realização de outro importante feito: a inclusão das sociedades agrárias, das etnias latino-americanas e africanas.” (GEBRAN, 2006, p. 10)

92

Ao ignorar a inevitável complexidade da noção básica que a fundamentava, a História Cultural tal como era praticada nos tempos antigos era uma história elitizada, tanto nos sujeitos como nos objetos estudados. A noção de “cultura” que a perpassava era uma noção demasiado restrita, que os avanços da reflexão antropológica vieram desautorizar. Não que as produções culturais que as várias épocas reconhecem como “alta cultura”, ou que a produção artística que está hoje sacramentada pela prática museológica tenham perdido interesse para os historiadores. Ao contrário, estuda-se Arte e Literatura do ponto de vista historiográfico muito mais do que nos séculos anteriores ao século XX. Apenas que a estes interesses mais restritos acrescentou-se uma infinidade de outros. Tal parece ter sido a principal contribuição do último século para a História Cultural. Para além disto, passou-se a avaliar a Cultura também como processo comunicativo, e não como a totalidade dos bens culturais produzidos pelo homem. Este aspecto, para o qual confluíram as contribuições advindas das teorias semióticas da cultura, também representou um passo decisivo (BARROS, 2006, p. 133).

A História Cultural do final do século XX e limiar do século XXI mobilizou e tende a

continuar a mobilizar muitos pesquisadores, pois consagrou em seu acervo noções como

“práticas”, “representações”, “visões de mundo” e “expressões culturais” que ensejam uma

aproximação mais consistente da História com outros campos do conhecimento (BARROS,

2006, p. 137). Nesse sentido, a História Cultural ainda está longe de uma possível

conceituação, pois ela mesma está ainda em construção e não foi afetada pelos reducionismos.

Nas palavras de Roger Chartier: “Neste sentido, a nova história cultural não é, ou já não é,

definida pela unidade da sua abordagem, mas pelo espaço de intercâmbio e de debates

construído entre os historiadores que têm como identidade comum a sua recusa de reduzir os

fenômenos históricos a uma só das suas dimensões, e que se afastaram tanto das ilusões do

93

linguístic turn como das heranças redutoras que postulavam ou o primado do político ou o

poder absoluto do social” (CHARTIER, 2006, p.41).

O conceito de representação101, que se pretende utilizar na presente dissertação,

relaciona-se aos trabalhos dos pesquisadores ligados na História Cultural. Inicialmente Roger

Chartier chama a atenção para o fato de que: “A história cultural, tal como a entendemos, tem

por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma

determinada realidade social é construída, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 16-17). Daí, o

historiador francês asseverar que as representações de uma determinada realidade histórica

exprimem os interesses e os conflitos de determinados grupos sociais (Ibidem, p. 17). Por fim,

Ronaldo Vainfas sugere que o conceito de “representação102, segundo Chartier, permite ‘ver

101 O Dicionário de análise do discurso, organizado por Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau, apresenta uma rápida incursão sobre a noção de representação. No entanto, o verbete escrito por Patrick Charaudeau tem o título de representação social. Nesse sentido, o autor afirma inicialmente que o conceito de representação surgiu da idéia de “representação coletiva”, formulada por Émile Durkheim. Logo, na perspectiva sociológica, a noção de representação busca compreender a vinculação “entre a significação, a realidade e sua imagem”. Com relação à filosofia, Charaudeau diz-nos que em uma primeira perspectiva, representação estaria mais ligada às “falsas aparências do mundo sensível”. No entanto, em uma segunda perspectiva, as representações, “são aquilo em razão do que tomamos conhecimento do mundo”. Wittengenstein e Bourdieu, seguindo as informações de Charadeau, defendem essa noção de representação. Ou seja, as representações na verdade confundem-se com a realidade. Na Psicologia Social, o autor do verbete informa-nos que a noção de representação social foi reexaminada e novamente posta em evidência por Moscovici em 1972. Nesse sentido, representação social, no que concerne a um enfoque que tem como base a Psicologia Social, pode ser definida, por intermédio da idéia de que os homens em sociedade engendram crenças sobre um objeto de uma determinada realidade. Por fim, tomando como base os trabalhos relacionados ao campo da “análise de discurso”, a noção de representação vincula-se ao “dialogismo” de Bakhtin. Por fim, Patrick Charaudeau “confere às representações três funções sociais: de ‘representação coletiva’, que organiza os esquemas de classificação, de ações e de julgamentos; de ‘exibição’ do ser social por meio dos rituais, estilizações da vida e signos simbólicos que os tornam visíveis; de ‘presentificação’, que é uma forma de encarnação, em um representante, de uma identidade coletiva. Essa posição acarreta um certo número de conseqüências: (1) ‘já que as representações constroem uma organização social do real por meio das próprias imagens mentais veiculadas por um discurso [...] elas estão incluídas no real, são, até mesmo dadas pelo próprio real’ (CHARAUDEAU, 1997, p. 47). Assim, as representações se configuram em discursos sociais que testemunham, alguns sobre o saber de conhecimento sobre o mundo, outros, sobre um saber de crenças que encerram sistemas de valores dos quais os indivíduos se dotam para julgar essa realidade. (2) Esses discursos sociais se configuram ora de maneira explícita, ‘objetivando-se’ (Bourdieu, 1979) em signos emblemáticos (bandeiras, pinturas, ícones, palavras ou expressões), ora de maneira implícita, por alusão desempenham um papel identitário, isto é, constituem a mediação social que permite aos membros de um grupo construírem uma consciência de si e que parte de uma identidade coletiva.” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 432)102 José D’Assunção Barros em seu livro O Campo da História: especialidades e abordagens, alerta-nos sobre a noção de Representação: “Práticas e Representações são ainda são ainda noções que estão sendo elaboradas no campo da História Cultural. Mas, tal como já ressaltamos, elas têm possibilitado novas perspectivas para o estudo historiográfico da cultura, porque juntas permitem abarcar um conjunto maior de fenômenos culturais, além de chamarem a atenção para o dinamismo deste fenômeno. Por outro lado, citamos atrás algumas ‘representações do poder que produzem associações como um determinado imaginário político (centralizado, periferia, marginalização). Quando uma representação liga-se a um círculo de significados fora de si e já bem entronizado em uma “comunidade discursiva”, esta representação começa a se avizinhar de uma outra categoria importante para a História Cultural que é o ‘símbolo’ (BARROS, 2004, p. 83-84).

94

uma coisa ausente’, quer como ‘exibição de presença’, é conceito que o autor considera

superior ao de mentalidade” (VAINFAS, 1997, p. 154).

O historiador italiano Carlo Ginzburg, no livro Olhos de madeira, informa que a

representação “faz as vezes da realidade representada e, portanto, evoca ausência; por outro

lado, torna visível a realidade representada e, portanto, sugere a presença”(GINZBURG, 2001,

p. 85). A obra recém-publicada intitulada O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício, defende

a tese de que, no estudo do passado e do presente, há “uma contenda pela representação da

realidade” (GINZBURG, 2007, p. 9). O sociólogo Pierre Bourdieu, na obra O Poder simbólico,

contribuiu para o enriquecimento do conceito de representação, quando ele evoca o poder

simbólico. Conforme o pensador francês, há uma relação entre produção de idéias e

representações (BOURDIEU, 2005, p. 9). Ou seja, Bourdieu afirma que uma dada realidade é

engendrada por intermédio de símbolos que contribuem para que homens e mulheres possam

ler, compreender e, portanto representar o seu tempo.

Na obra O que é História Cultural ?, Peter Burke diz que na verdade, na década de

1970, ocorreu aquilo que ele denomina de “redescoberta da história cultural” (BURKE, 2004,

p. 7). Nesse sentido, em tal obra, a proposta do autor é a de definir o que é história cultural.

Porém, quais seriam os territórios freqüentados pelos historiadores que se dedicam a interpretar

temas da história , por intermédio da história cultural ?

Burke diz-nos que temas relacionados ao simbólico fazem parte do campo da história

cultural. O historiador inglês, contudo, faz no começo da obra um inventário sobre o termo

cultura com o objetivo de diferenciar a noção de cultura no século XIX com os temas tratados

pela história cultural, notadamente a partir do final do século XX.

Prosseguindo, por intermédio das informações de Peter Burke, o período que se estende

de 1800 a 1950 constitui-se como um período da “história cultural clássica” (Ibidem, p. 16).

Neste momento, obras como A cultura do Renascimento e o Outono da Idade Média,

exemplificam trabalhos ligados à história cultural que Burke denomina de “história cultural

clássica” (Ibidem, p.16). A história cultural, porém, recebeu oposições de historiadores que se

ocupavam da tradicional história política que se ocupavam de documentos oficiais. Conforme

Burke: “A história cultural foi descartada de Leopold Von Ranke, considerada marginal ou

amadorística, já que não era baseada em documentos oficiais dos arquivos e não ajudava na

95

tarefa de construção do Estado” (Ibidem, p. 16). Há de se acrescentar que estudiosos como

Burckhardt e Huizinga produziram obras que chegaram a um grande público (Ibidem, p. 17).

Os estudiosos, que se dedicavam à sociologia, acabaram favorecendo a história cultural.

Na Alemanha, Max Weber em A Ética protestante e o espírito do capitalismo ao estudar as

origens culturais do sistema capitalismo, também contribuiu para as pesquisas que

posteriormente ensejaram uma relação entre capitalismo e cultura (BURKE, 2004, p. 20).

Assim, o sociólogo alemão, além de contribuir com mais um estudo sobre o capitalismo,

favorece ao leitor a criação de um novo caminho para a compreensão de tal sistema

econômico103.

Peter Burke mais uma vez evoca os alemães, no que concerne às contribuições para o

desenvolvimento dos estudos relacionados à cultura. O historiador inglês refere-se ao estudioso

Norbert Elias que igualmente em sua obra O processo civilizador favoreceu a expansão da

história cultural (BURKE, 2004, p. 20). O historiador inglês considera o sociólogo alemão,

talvez um dos mais estudados atualmente no Brasil e um dos precursores da história cultural.

Na obra citada acima, Norbert Elias respaldado também nos estudos do século XIX como os

elaborados por Huizinga, empreende estudos sobre modos e costumes dos europeus, ensejando

por isso uma valiosa contribuição para a história cultural. As palavras de Burke são

insubstituíveis sobre a importância de Norbert Elias: “Apoiado na pesquisa de Huizinga sobre

‘a mente apaixonada e violenta daquele tempo’, Elias dirigiu o foco para a história dos modos à

mesa, a fim de mostrar o desenvolvimento gradual do autocontrole ou do controle sobre as

emoções nas cortes da Europa Ocidental, ligando-se o que ele chamou de ‘pressões sociais pelo

autocontrole” entre os séculos XV e XVIII à centralização do Estado e à submissão ou

domesticação de uma nobreza guerreira’” (BURKE, 2004, p. 21).

Burke chama a atenção para a “descoberta” da cultura entre os historiadores ingleses.

Tanto, Hobsbawm, quanto Thompson104, estudiosos com sólida formação intelectual marxista,

103 Burke diz ainda o seguinte sobre A Ética protestante e o espírito do capitalismo: “O ponto central do texto era, essencialmente, apresentar uma explicação cultural para a mudança econômica. Weber acentuava o papel do ethos ou sistema de valor protestante, especialmente a idéia de “chamada”, na acumulação de capital e na asecensão do comércio e da indústria em grande escala. Em outro estudo, Weber argumentou que o ethos do confucionismo, assim como o do catolicismo, era hostil ao capitalismo.” (BURKE, 2004, p. 20)104 Peter Burke considera da seguinte maneira o estudo de Thompson: “O mais influente dos estudos feitos na década de 1960 A formação da classe operária inglesa (1963), de Edward Thompson. Nesse livro, Thompson não se limita a analisar o papel desempenhado pelas mudanças econômicas e políticas na formação de classe, mas examina o lugar da cultura popular nesse processo. Seu livro inclui descrições vigorosas dos rituais de iniciação de artesãos, do lugar das feiras na “vidas cultural dos pobres”, do simbolismo dos alimentos e da iconografia das agitações sociais, indo de bandeiras e pedaços de pão presos a um pau até o enforcamento de efígies de pessoas

96

também brindaram o público com obras históricas que enveredam decisivamente em direção à

história cultural. Os estudos de Thompson sobre a classe operária, tomando como base a

cultura influenciou estudos na Europa e no restante do mundo. Além disso, por intermédio da

cultura popular, as pesquisas do autor A formação da classe operária inglesa ensejaram uma

aproximação da história cultural com a cultura popular.

Ao evocar Thompson e a sua inegável importância para a historiografia da classe

operária, o autor de Testemunha ocular considera possível que os historiadores marxistas

valorizem a cultura como forma de representar o cotidiano dos trabalhadores. Nesse sentido,

“A Formação da classe operária inglesa (1963), aparece como um marco na história cultural

britânica” (BURKE, 2004, p. 37).

Continuando, por intermédio da obra O que é História cultural, pode-se asseverar que

entre os anos de 1960 e 1990 os trabalhos ligados ao conhecimento antropológico105 despertou

a atenção tanto dos historiadores que se dedicaram à História das mentalidades, quanto dos que

se empenharam em pesquisas históricas, concernentes ao campo da História cultural.

Consoante Burke, historiadores como Robert Darnton autor de uma copiosa produção

historiográfica, declaram que um dos aspectos marcantes da História cultural é o da

compreensão da alteridade (BURKE, 2004, p. 53).

Ao concluir o seu livro dedicado a não só responder aos leitores os aspectos que

compõem a noção de História cultural, como também a um pouco de sua própria história, o

historiador inglês considera que a História cultural continua vigorosa e, portanto, propensa a

continuar a influenciar os historiadores. Além disso, como Chartier, Burke compreende que a

História cultural tem a vantagem de ensejar ao historiador um contato promissor com outros

campos do conhecimento. Por isso, talvez resida aí a grande força que oportuniza a

sobrevivência e renovação desse campo historiográfico.

3.2. Representação e iconografia.

odiadas.” (BURKE, 2004. p. 30)105 Burke diz ainda que “a maioria dos historiadores culturais da última geração, especialmente nos Estados Unidos, foi inspirada por Clifford Geertz, cuja ‘teoria interpretativa da cultura’, como ele chama, está a quilômetros de distância da teoria de Lévi-Strauss. Criticando a definição de Edward Tylor para cultura, ‘o conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume’, que para ele, ‘oculta muito mais que revela’, Geertz enfatiza o significado e aquilo que ele chamou, em um famoso ensaio com este título de ‘descrição densa’. Em sua própria definição, cultura é ‘um padrão, historicamente transmitido, de significados incorporados em símbolos, por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atitudes acerca da vida’”. (BURKE, 2004, p. 51-52)

97

Os avanços da historiografia, no que concerne à teoria como também à metodologia, são

notórios, o que contribui para o crescente interesse pela história no Brasil. E, se nos anos de

1970 e 1980 havia uma preocupação em representar a história como ciência, nos dias atuais os

estudiosos almejam não só um diálogo mais constante com outros campos do conhecimento,

como também explorar novas fontes no processo de produção do conhecimento histórico.

Publicada originalmente na Europa, em 1987, e dez anos depois no Brasil a obra

Imagens e imaginário na História: fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade

Média até o século XX contribuiu para uma discussão teórica e também metodológica acerca

do uso das imagens para análise de um determinando período histórico. Vovelle, que se

notabilizou nos meios acadêmicos franceses e do mundo como um dos maiores estudiosos da

Revolução Francesa, também se interessou por temas como a morte e acabou, por intermédio

de suas pesquisas, estimulando também trabalhos que se filiaram à História das Mentalidades.

Desse modo, sem preterir a sua formação marxista, o historiador francês valorizou os temas

ligados às Mentalidades que estimulou, junto aos historiadores, o uso de imagens para o

desvelamento do processo histórico, através da idéia de “longa duração”106. Compete acrescer

que o autor de Ideologias e Mentalidades tem a ambição de destacar a importância, não só da

nomeada “longa duração” que fornece ao estudioso a possibilidade de investigar aquilo que

permanece na História, como também o tempo revolucionário que é igualmente importante,

pois oferece ao estudioso a compreensão da ruptura entre o antigo e o novo.

Por tudo isso, Vovelle enfatizou o estudo das imagens para a compreensão do cotidiano

e das mentalidades de uma determinada época a iconografia tornou-se fonte para a

compreensão de um determinado período histórico. Há de se acrescentar que os medievalistas

buscaram e buscam por meio das imagens compreender o passado da sociedade medieval

ocidental.

Há de se acrescentar que os estudos sobre a relação entre cultura popular e erudita

favoreceram o avanço da História das Mentalidades e também a curiosidade em relação às 106 No prefácio a edição brasileira, Renato Janine Ribeiro explícita a divergência entre os historiadores marxista e os pesquisadores em História herdeiros da chamada Escola dos Annales: “Na verdade, o ponto de choque entre os herdeiros dos Annales e a esquerda marxista está no fato de que um pensamento revolucionário inevitavelmente confere relevo aos momentos de ruptura, àqueles tempos fortes em que tudo muda – ao passo que a história das mentalidades, tendo por conceitos-chave o tempo de ‘longa duração’ e mesmo a idéia de uma inércia das sensibilidades, reluta em aceitar grandes e decisivos cortes, como este que cinde a história francesa e a mundial entre o Antigo Regime e a modernidade revolucionária.” (RIBEIRO, 1997, p. 8)

98

imagens. Nas palavras do próprio Vovelle: “De certo modo, a indagação sobre o popular levou

à diversificação de recursos, relativizando o primado do escrito e valorizando outras fontes, tais

como o documento oral e a iconografia, ardil legítimo para se romper o silêncio de mundos mal

conhecidos. Essa mesma indagação conduziu ao quantitativo ou ao serial, como meio de se

apreender o pensamento médio a partir das atitudes e da sensibilidade anônima dos que não

podiam se proporcionar o luxo de uma expressão individual” (VOVELLE, 1997, p. 17).

No caso específico da Idade Média, as reflexões de Vovelle sobre as imagens e as

pinturas que retratam cenas do cotidiano ensejam o leitor a pensar tal período como resultado

das ações de homens e mulheres portadores de concepções culturais diferentes. Ou seja, o

período medieval não deve ser representado somente como um período marcado pelo domínio

dos nobres em relação aos servos. Além disso, a reprodução e representação do cristianismo

como valor religioso dominante pode dificultar a representação de outros valores culturais e

religiosos que marcaram a Idade Média.

Le Goff, abordando o imaginário religioso da Idade Média, considera fundamental a

percepção do cristianismo para a compreensão do sobrenatural para a vida de homens e

mulheres no período em questão. Todavia, por mais que tal imaginário expressasse um mundo

cristão em formação, ele se abriu para outras manifestações culturais e religiosas, que remetiam

à permanência de práticas religiosas e culturais pagãs107.

Um dos temas estudados pelo historiador diz respeito ao estudo de obras de arte que

versam sobre a morte e a festa. O universo popular é posto à tona, apresentando ao leitor uma

Idade Média diferente da que é abordada pelos manuais tradicionais de História (VOVELLE,

1997, p. 42).

Por fim, Michel Vovelle propõe compreender, no presente estudo por meio do acervo

iconográfico histórico europeu, as representações coletivas, o imaginário e as sensibilidades

coletivas em relação ao purgatório, contribuindo com isso para a expansão da História das

Mentalidades nos meios acadêmicos.

107 Jacques Le Goff em A Idade Média explicada aos meus filhos diz o seguinte sobre a relação entre cristianismo, religião e imaginário no período medieval: “E era assim mesmo. Na cristandade medieval, era fácil apelar para a crença no além. Deus e os personagens sobrenaturais estavam muito presentes na vida cotidiana. A religião cristã estimulava a imaginação dos homens e mulheres, e criou um ‘imaginário’ próprio do cristianismo, ou seja, um mundo de imagens e de símbolos que marcaram a Europa por muito. Particularmente, pensava-se que o céu era habitado não apenas por Deus e pela Virgem Maria, mas também por seres sobrenaturais, uns bons e outros maus.” (LE GOFF, 2007, p. 91)

99

A utilização de imagens, na tentativa de resgatar o passado de uma determinada

sociedade, vem atraindo uma série de historiadores108. Serge Gruzinski em texto intitulado, “De

Matrix a Camões: História cultural e história global entre a mundialização ibérica e

mundialização americana”, além de destacar a produção cinematográfica como um campo de

possibilidades a ser explorada pelo historiador, propõe que a História Cultural colabore com o

pesquisador, no que diz respeito à aproximação com novos temas e fontes. Ele propõe, por

intermédio de filmes mais atuais, o seguinte cotejamento: “Mas a história do século XVI nos

permite também voltar ao presente e retornar o paralelismo entre Camões e Matrix”

(GRUZINSKI, 2006, p. 19).

A preocupação dos historiadores, ao se interessarem pelo uso das imagens oportuniza

uma maior aproximação da História com novos objetos e fontes. Eduardo França Paiva no livro

História & imagens, diz logo na introdução: “No lugar disso, as fronteiras tornaram-se menos

rígidas e privilegiamos as práticas interdisciplinares, estabelecendo diálogos com outras áreas

do conhecimento, e tomando delas o empréstimo de procedimentos, conceitos e experiências”

(PAIVA, 2002, p. 11). Embora não se deva preterir questões clássicas sobre a veracidade e

procedências das fontes, é imperativo observar que elas de uma maneira geral, representam o

passado e não o reconstitui como se tivesse acontecido. Isso posto, a História Cultural pôs em

evidência novas questões sobre o ofício do historiador, ensejando a valorização de novas fontes

para a produção do conhecimento histórico. As palavras de Miriam de Souza Rossini, em texto

que empreende análise sobre o uso de fontes audiovisuais, resumem bem a questão:

A discussão que pretendo suscitar envolve o ofício do historiador e as escolhas de suas fontes e objetos. Por muito tempo, dentro do campo da história, pensou-se a pesquisa embasada basicamente por fontes escritas, pois estas garantiriam ao trabalho do historiador seu caráter de cientificidade e de objetividade investigativa, algo que outras fontes dificilmente apresentariam. Assim, a crítica interna e externa do texto, a criação correta da fonte, etc., foram sempre habilidades desenvolvidas pelo historiador no que tange às suas atividades (ROSSINI, 2006, p. 113).

108 Os trabalhos de Peter Burke e Serge Gruzinski, respectivamente Testemunha ocular: história e imagem e A Guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner atestam isso. Além disso, o livro de Eduardo França Paiva, História & imagens que introduz o historiador e leitor em geral, no que diz respeito às possibilidades do uso das imagens para o desvelamento do processo histórico, atesta outrossim o quanto a utilização da imagem tem despertado a atenção do historiador brasileiro para a relação representação e iconografia.

100

Jacques Leenhardt, em texto intitulado “Imagem e História em viagem pitoresca ao

Brasil, de Jean-Baptiste Debret: o enterro do filho de um rei negro”, ao estudar a importância

da imagem, em especial a pintura109 para a história, assevera sobre o papel desempenhado pela

História Cultural no que diz respeito ao diálogo com outros campos do conhecimento das

chamadas ciências humanas110.

Retornando ao trabalho do historiador Eduardo Paiva e atendo-se às fontes

iconográficas, deve-se considerar que os livros de história de uma maneira geral apelavam para

o uso das imagens para facilitar ao leitor a “compreensão” do processo histórico. Todavia, na

prática, elas eram aproveitadas mais para ilustrar do que propriamente explicar111. Nesse

sentido, as imagens eram, muitas vezes, evocadas pelo seu apelo estético e eram

compreendidas como se fossem portadoras de uma determinada verdade sobre um determinado

momento histórico (PAIVA, 2002, p. 19).

Ao estudar e relevar o papel das imagens ao longo da história brasileira, o historiador

Eduardo França Paiva exemplarmente sugere que quadros clássicos, como a primeira missa de

Victor Meirelles, utilizados por professores e pesquisadores, sejam que as imagens usadas

pelos historiadores que confundem representações da realidade com a própria realidade

(PAIVA, 2002, p. 93)112.

Peter Burke, em Testemunha ocular: história e imagem, defende no início da obra, a

tese que os chamados historiadores tradicionais não acreditam nas imagens como fontes para o

desvelamento do processo histórico. O historiador inglês defende a tese de que a utilização das

imagens, concomitantemente ao uso de outras fontes históricas, fornecem uma série de

109 Cristina Maria Teixeira em artigo intitulado “Musas vitorianas – a corpografia e o olhar”, além de destacar o papel fundamental da arte para os indivíduos e a sociedade aponta outrossim a sua função para os pesquisadores, no que diz respeito a representação de um determinado momento histórico.110 Leenhardt diz ainda sobre a história cultural no contexto das transformações das ciências humanas: “Ou seja, para entender o que seja a história cultural, é preciso atentar para o seu significado e a sua função no processo de transformação dos discursos que ocorre no âmbito das ciências humanas.” (LEENHARDT, 2006, p. 121)111 A utilização de fontes iconográficas, conforme os estudos atuais é tão importante como qualquer outro registro. Conforme Eduardo Paiva: “A iconografia é tomada agora como registro histórico realizado por meio de ícones, de imagens pintadas, desenhadas, impressas ou imaginadas e, ainda, esculpidas, modeladas, talhadas, gravadas em material fotográfico e cinematográfico. São registros com os quais os historiadores e os professores de História devem estabelecer um diálogo contínuo.” (PAIVA, 2002, p. 17)112 Eduardo Paiva ainda alerta que o uso das imagens em mundo marcado pela tecnologia pode favorecer ao estudioso, desde que o mesmo não caía na armadilha do chamado “anacronismo histórico”. Ou seja, é mister considerar que uma determinada pintura ou imagem deve ser compreendida, por intermédio de questões que foram suscitadas pelo seu tempo. Por isso, na análise de uma determinada fonte iconográfica, deve-se considerá-la não como verdade e sim como representação de um determinado acontecimento histórico. Ou seja, elas expressam aquilo que os estudiosos denominam por verossímil.

101

possibilidades para o estudioso na compreensão do passado. Todavia as imagens e as

representações iconográficas devem ser pesquisadas de forma cautelosa (BURKE, 2004, p. 8).

O estudioso inglês considera Gilberto Freyre como um precursor de usos de imagens em

estudos realizados na década de 1930.

Avançando em direção à década de 1960, a História das Mentalidades e, recentemente,

a História Cultural ensejaram nos historiadores o despertar para o uso de novas fontes, dentre

as quais as iconográficas. Por isso, deve-se inferir que os dois campos da História estão

favorecendo o estudo não só de pinturas, como de imagens fotográficas e cinematográficas

para as pesquisas históricas. Mas uma parte considerável dos historiadores atuais ainda

utilizam as imagens como meras ilustrações em suas pesquisas (BURKE, 2004, p. 12).

No tocante aos historiadores filiados à História Cultural clássica, como Burchardt e

Huizinga, já focalizavam a imagem como fontes para o uso da história. Eles foram pioneiros e,

no mundo atual, as pinturas e as imagens engendradas pelo cinema e televisão não podem mais

serem preteridas.

A utilização das imagens requer do historiador o cuidado de perscrutar, através dela

testemunhos de uma época. Se as fontes escritas porém, não retratam a realidade como ela foi,

o mesmo ocorre quanto às fontes iconográficas. Ou seja, elas servem aos historiadores no que

diz respeito às representações de um determinado passado (BURKE, 2004, p. 18). Daí, o

historiador inglês alertar sobre o perigo de se “tomar uma imagem pela realidade”, porque isso

é uma possibilidade que ameaça ao historiador que lida como fontes iconográficas (BURKE,

2004, p. 25). Por outro lado, se forem contextualizadas e interrogadas de forma conveniente,

elas podem servir como testemunhos de uma época. Por isso, Burke alerta os pesquisadores

sobre os perigos no que concerne aos usos das fontes iconográficas:

Como no caso de fotografias muitos de nós possuímos um forte impulso para visualizar retratos como representações precisas, instantâneos ou imagens de espelho de um determinado modelo como ele ou ela realmente eram num momento específico. É necessário resistirmos a esse impulso por diversas razões. Em primeiro lugar, o retrato pintado é um gênero artístico que, como outros gêneros, é composto de acordo com um sistema de convenções que muda lentamente com o tempo. As posturas e gestos dos modelos e os acessórios e objetos representados à sua volta seguem um padrão e estão freqüentemente carregados de sentido simbólico (BURKE, 2004, p. 31).

102

Burke discute que obras da pintura clássica deliberadamente tiveram a intenção de

esconder aspectos dos objetos que foram representados. Assim, como o historiador que utiliza,

por exemplo, fontes escritas, o artista selecionou o modo como representar o seu personagem.

Mas, como não considerar as fontes iconográficas como fontes que refletem sobre a

sociedade ?

Levando em conta as possíveis distorções e limites das fontes iconográficas, estas

podem ser utilizadas como documentos que ajudam o historiador a representar a realidade. Há

de se acrescentar que, mesmo partindo do pressuposto de que as possíveis distorções das fontes

iconográficas precisam ser aquilatadas, essas fontes colaboram para o conhecimento de um

determinado passado humano.

Na utilização das fontes iconográficas para a produção do conhecimento histórico,

pode-se considerar que as mesmas fontes devem ser contextualizadas e, por isso, as perguntas

àquelas fontes devem estar em consonância com o momento histórico que elas exprimem. E,

enveredando em direção à produção cinematográfica. Burke admite que não existe

neutralidade, no que diz respeito à criação, ao enredo e à filmagem.

Prosseguindo no estudo de Burke as imagens da mesma forma que o texto, têm a função

de comunicar com um leitor determinados conteúdos. No caso específico das imagens, seus

autores não se preocupam em fornecer informações para os historiadores. Os estudiosos, ao

compreenderem as imagens empreendem um trabalho de iconografia ou iconologia (BURKE,

2004, p. 42). O historiador inglês, porém, promove uma distinção entre iconografia e

iconologia. Além disso, as expressões iconografia e iconologia surgiram no campo da história

da arte entre as décadas de 1920 e 1930 (BURKE, 2004, p. 43).

Tanto iconografia e iconologia foram engendradas para se oporem à concepção que

propõe que uma determinada obra de arte seja analisada de maneira formal, ou seja, sem a

preocupação com a descrição e nem com contexto no qual ela foi criada. Estudiosos alemães

colaboraram para a criação de um método de leitura de imagens e pinturas. O historiador

inglês, ao contrário, faz uma diferenciação, isto é, enquanto a iconografia faz uma descrição da

obra, a iconologia tem a preocupação de contextualizar a obra de arte, buscando, outrossim,

decifrar os seus códigos culturais (BURKE, 2004, p. 46). Burke adverte o leitor sobre a

iconografia/ iconologia: “A iconologia é ainda mais especulativa, e os iconologistas correm o

risco de descobrir nas imagens exatamente aquilo que eles já sabiam que lá se encontrava, o

103

Zeitgest. O enfoque iconografia também pode ser condenado por sua falta de dimensão social,

sua indiferença ao contexto social.” (BURKE, 2004, p. 50).

Após diferenciar a iconografia de iconologia, Peter Burke alerta o leitor e estudioso

sobre a ilusão de que as imagens representam o espírito de uma época. Nesse sentido, pode-se

inferir que a utilização das imagens deve ser utilizada, concomitantemente com outras fontes

Por fim, tanto a iconografia, quanto a iconologia auxiliam o historiador na compreensão do

processo histórico (BURKE, 2004, p. 56). Nas palavras de Burke: “os enfoques iconográfico e

iconológico assumem um papel, auxiliando os historiadores a reconstruir sensibilidades do

passado” (Burke, 2004, p. 56).

Ainda se reportando à obra Testemunha ocular: história e imagem, pode-se inferir que

em sociedades marcadas pela pouca difusão da mensagem escrita, as imagens113 foram úteis

para as religiões, no que concerne à doutrinação (BURKE, 2004, p. 57). Historicamente no

ocidente europeu em momentos como a Idade Média, o cristianismo diabolizou práticas

religiosas que fugiam da ortodoxia cristã. Nesse aspecto, analisar uma imagem ou pintura que

representa um certo momento da história é mister sugerir os seguintes caminhos para a análise

de tais obras: 1) A origem da obra e do autor, 2) O contexto histórico em que ela foi produzida

e as concepções que nortearam as representações que estão presentes na obra e 3) O que a obra

revela e não revela sobre tal momento histórico. Além disso, seguindo sugestão de Burke, uma

imagem religiosa, por exemplo pode informar ao estudioso da história aspectos que não se

restrinjam pura e simplesmente à religião. Ou seja, o historiador atento pode retirar de uma

imagem ou pintura, que aparentemente tenha um assunto em destaque, informações

importantes sobre os temas, como os relacionados ao cotidiano e a mentalidade de homens e

mulheres114.

113 Burke nos informa ainda: “Imagens significavam muito mais do que um simples meio de disseminação do conhecimento religioso. Eram por si só mesmas agentes, a que eram atribuídos milagres, e também objetos de cultos.” (BURKE, 2004, p. 62)114 Peter Burke em Testemunha ocular: história e imagem, sobre a importância e as possibilidades quanto ao uso das imagens e pinturas pelos historiadores. Por exemplo, por intermédio de pinturas pode-se compreender a espiritualidade dos fiéis: “Fiéis faziam longas peregrinações para ver imagens, reverenciavam-nas, ajoelhavam-se diante delas, beijavam-nas e lhes pediam favores. A imagem de Santa Maria dell’Impruneta, por exemplo, era freqüentemente levada em procissão a fim de trazer chuva ou de proteger os florentinos contra ameaças políticas. Encomendar a artistas a produção de imagens também era uma forma de expressar agradecimentos por favores recebidos, tais como escapar de um acidente ou curar-se de uma doença.” (BURKE, 2004, p. 62)

104

Na relação história e imagem, a fotografia115 também vem ganhando destaque entre os

estudiosos. Ana Maria Mauad empreende estudo, buscando analisar o espaço que é destinado à

fotografia para a compreensão da produção do conhecimento histórico (MAUAD, 1996, p. 74).

A fotografia, juntamente com a pintura, arquitetura, cinema e televisão também constitui-se

como uma alternativa a mais para o estudo da história. E, se no início a fotografia era tomada

como uma prova irrefutável que registrava um determinado acontecimento, pois consoante a

maioria dos analistas ela supostamente registrava de modo fidedigno um determinado

momento da vida humana e do próprio ambiente, hoje em dia, os estudiosos analisam a

fotografia não como o real e, sim, como uma das várias possibilidades de representação desse

real.

O desenvolvimento das técnicas fotográficas e a crença de que a fotografia eterniza um

determinado momento lançam sobre os estudiosos novos desafios. Porém, os desafios

persistem, e a historiadora Ana Maria Mauad destaca duas questões que, em nossa percepção, é

decisiva para o historiador que utiliza tal tipo de fonte: “No entanto, a fotografia lança ao

historiador um desafio: como chegar ao que não foi imediatamente revelado pelo olhar

fotográfico ? Como ultrapassar a superfície da mensagem fotográfica e, do mesmo modo que

Alice nos espelhos, ver através da imagem ?” (MAUAD, 1996, p.80).

As questões suscitadas por Ana Mauad e Boris Kossoy apontam para desafios

metodológicos de como utilizar a fotografia na produção do conhecimento histórico sem cair

na tentação de que tal meio reproduza de forma fiel um determinado momento da história. Por

isso, é mister sugerir que o “Olhar fotográfico”, expressão utilizada por Ana Mauad, pode sim

captar um fragmento de uma cena do passado, mas que foi selecionada e feita por um fotógrafo

que era um homem do seu tempo e que, portanto, em função de valores e idéias, selecionou um

determinado ângulo, deixando, por conseguinte, outros que poderiam ver igualmente uma

determinada realidade. Por conseguinte, atingir àquilo que não foi revelado pela “máquina de

tirar retratos”, implica o cotejamento da fotografia com outras fontes documentais. Nesse foco,

pode-se inferir que além de não retratar aquilo que aconteceu a fotografia, concomitantemente

115 Em livro intitulado Fotografia e História, propõe logo no limiar da obra as seguintes questões metodológicas, no que diz respeito ao uso da fotografia como fonte para se estudar o passado: “Em que medida são as fotografias documentos históricos ? Qual o valor, o alcance e os limites das fotografias enquanto meios de conhecimento da cena passada ? Com podemos empregá-las enquanto instrumentos de pesquisa e interpretação da vida histórica ? Onde se encontram as fotografias do passado ? Como identificá-las e situá-las no espaço e no tempo ? Quem foram seus autores ? Em que medida os conteúdos são ‘verdadeiros’ ? Por que razão a iconografia fotográfica tem sido pouco utilizada no trabalho histórico ?” (KOSSOY, 1989, p. 9)

105

a outras fontes históricas, representa um possível momento da história. Está mais próxima do

verosímil do que daquilo que de fato está registrado pela imagem. Aliás, os possíveis acervos e

fontes tradicionalmente utilizados pelos historiadores, bem como aqueles que virão a serem

utilizados no estudo do passado provavelmente não terão condição de retratar aquilo que

aconteceu na história. Estudar o passado por intermédio da fotografia e de outras fontes

iconográficas requer do estudioso da história a sensibilidade da percepção daquilo que é

revelado de maneira explícita, como também as possíveis omissões do fotógrafo e do pintor.

*

* *

O estudioso da história deve reconhecer que a iconografia, como qualquer outra fonte

para se estudar a história, apresenta limites e deve ser tratada de forma cuidadosa como

qualquer outra fonte. Assim, o estudioso deve-se inteirar das especificidades dos documentos

iconográficos ao serem utilizados na produção do conhecimento histórico. Daí, mais uma vez

ser imperativo o contato do estudioso da história com as técnicas, que permitem a criação da

fotografia e também aquelas utilizadas pelo pintor. Além disso, em um mundo cada vez mais

aquilatado pela mensagem audiovisual, o conhecimento técnico de veículos de comunicação

como o cinema e a televisão igualmente tornam-se fundamentais. Há de se acrescentar também

uma outra questão: como os historiadores estão pensando e propondo o uso da Internet como

fonte para o estudo da história ?

Os livros didáticos destinados aos estudantes, tanto do ensino fundamental, quanto do

ensino médio estão incorporando cada vez mais a iconografia. Contudo, como já exposto no

presente capítulo, as imagens116 que possivelmente ilustrariam uma determinada época não são

116 Serge Gruzinski que tem se dedicado a estudos sobre a iconografia da América de Colonização Espanhola, tem coloborado para a compreensão do uso das imagens pelos historiadores. E, ao referir-se ao filme Blade Runner, clássico da ficção científica produzido por Ridley Scott, ele nos alerta sobre o seguinte: “Filmado em 1982 por Ridley Scott, Blad Runner, obra maior da ficção científica contemporânea, talvez seja o ponto de chegada ou uma das conclusões desta história, quando a guerra das imagens se torna uma caçada aos ‘replicantes’. Os “replicantes” são andróides criados para executar tarefas perigosas nos astros longínquos. São cópias tão perfeitas do ser humano que é difícil diferenciar um do outro, imagens que se tornam tão ameaçadoras que é indispensável ‘retirá-las”, ou seja, eliminá-las. Alguns ‘replicantes’ são dotados de uma memória enxertada que se agarra a um punhado de fotografias velhas fotografias, falsas lembranças destinadas a inventar e manter artificialmente um passado que nunca existiu. Antes de expirar o último andróide abre ao humano que o persegue os horizontes de um saber sem limites, de uma experiência quase metafísica adquirida nos confins do universo , nos esplendores da

106

ainda utilizadas com o devido cuidado e ainda persiste a noção de que elas devem ilustrar os

manuais didáticos. O alerta de Gruzinski, ao reportar-se ao filme Blade Runner, ecoa como um

aviso ao historiador e ao professor de história que pretendem utilizar a imagem como fontes

históricas. Ou seja, se no filme em questão os andróides buscam uma identidade humana, a

ponto de imitar os humanos na busca de traços que revelem à existência de um passado, eles

não são humanos e, sim, apenas representam com as suas pretensões atitudes que poderiam

revelar ações que seriam intrinsicamente humanas. Assim, os andróides de Blade Runner

utilizados com cuidados, ensejam ao estudioso as várias possibilidades da vida humana em

nosso mundo.

As fontes iconográficas realmente podem possibilitar um avanço para a popularização

do ensino da história em nossas escolas, mas, se elas continuarem a serem utilizadas como

meras ilustrações pouco contribuirão para o despertar do interesse de nossos alunos para o

estudo da história. Portanto, é necessário conhecê-las mais a fundo e não se contentar com as

possíveis aparências que elas revelam, pois, nas palavras de Ana Mauad:

Não é de hoje que a história proclamou sua independência dos textos escritos. A necessidade dos historiadores em problematizar temas pouco trabalhados pela historiografia tradicional levou-os a ampliar seu universo de fontes, bem como a desenvolver a abordagens pouco convencionais, à medida que se aproximava das demais ciências sociais em busca de uma história total. Novos temas passaram a fazer do elenco de objetos do historiador, dentre eles a vida privada, o quotidiano, as relações interpessoais etc. Uma micro-história que, para ser narrada, não necessita perder a dimensão macro, a dimensão social, totalizadora das relações sociais (MAUAD, 1996, p. 82).

Ao citar passagem do artigo “Através da imagem: fotografia e história – interfaces”,

pode-se concluir que o uso da iconografia, da pintura, da imagem e dos meios audiovisuais

como um todo, relacionam-se aos avanços metodológicos, teóricos e do reconhecimento pelos

historiadores, não só sobre a necessidade de se buscar novos objetos e novas fontes na eterna

busca pelo desvelamento e entendimento do processo histórico. Há de se acrescentar que o uso

da iconografia, pintura e demais fontes audiovisuais, relaciona-se também com o estreitamento

da história com a sociologia e a antropologia, por exemplo.

*

porta de Tannhäuser que nenhum olho humano jamais contemplou.” (GRUZINSKI, 2006, p. 13-14)

107

* *

A contínua renovação das pesquisas sobre a Idade Média Ocidental tem favorecido os

estudos das imagens. O estudo de Jean-Claude Schmitt, intitulado O Corpo das imagens:

ensaios sobre a cultura visual na Idade Média, é um exemplo disso. E, logo na introdução, o

autor diz-nos que a imagem ocupou um papel de destaque no interior da sociedade medieval.

Nessa perspectiva, as imagens favorecem um conhecimento do período.

Schmitt considera que a imagem no mundo medieval é aquilatada pelo paradigma

cristão e ela representa a relação entre os homens e o mundo sobrenatural. As imagens sobre o

mundo medieval atestam a conexão entre os fiéis e os símbolos que expressam o exercício da

religiosidade117.

Prosseguindo no exame do uso das imagens pelos historiadores, Jean-Claude Schmitt

afirma que o interesse pela utilização das imagens118 ocorre, concomitantemente ao interesse

pela história da arte. Todavia, como explicar “o desencontro” entre a história da arte e a

história social, política e cultural ?

Na perspectiva de Schmitt, a importância conferida tanto à história social quanto à

história política e cultural em detrimento da história da arte, deve-se ao fato de que a

linguagem acaba se sobrepondo às outras funções simbólicas. Além disso, a tradição positivista

com relação à noção de documento escrito contribuiu também para o desprezo em relação à

arte e à imagem para a compreensão que os atores históricos fizeram com relação ao seu

momento histórico (SCHMITT, 2007, p. 28).

Especificamente, no tocante à conexão entre história da arte e imagens, deve-se

considerar que o historiador, consoante Jean-Claude Schmitt, tem um grande desafio, ou seja,

compreender a arte em suas características singulares juntamente com a sociedade que a

engendrou. Dessa forma, as imagens e as iconografias podem revelar as diversas

representações de um dado momento histórico (SCHMITT, 2007, p. 33). Conforme Schmitt:

117 Jean-Claude Schmitt diz ainda o seguinte: “Entre a imagem e o devoto, a troca de olhares é desde o primeiro momento determinante: ao fixar a imagem dos olhos, este último sente-se invadido por uma presença viva, antes de encontrar em sonho a confirmação de seu poder ativo.” (SCHIMITT, 2007, p. 19)118 Schmitt assevera igualmente sobre as possibilidades do uso pelas imagens historiadores: “De onde a ilusão de que bastaria nomear o que ela representa para ter dito tudo da representação. Mas a verdadeira questão não está aí, e as próprias imagens conseguem mais de uma vez nos lembrar que sua função é menos representar uma realidade exterior do que construir o real que lhe é próprio.” (SCHMITT, 2007, p. 27)

108

Reiteremos enfim, como idéia central, que a imagem não é a expressão de um significado cultural, religioso ou ideológico, como se este lhe fosse anterior e pudesse existir independentemente dessa expressão. Pelo contrário, é a imagem que lhe faz ser como o percebemos, conferindo-lhe sua estrutura, sua forma e sua eficácia social. Dito de outro modo, a análise da obra, de sua forma e de sua estrutura é indissociável do estudo de suas funções. Não há solução de continuidade entre o trabalho de análise e a interpretação histórica (SCHMITT, 2007, p. 42).

Por fim, as imagens e as iconografias para o estudo das representações que foram

registradas sobre o mundo medieval, proporcionam em primeiro lugar, o reconhecimento de

que tal período da história foi marcado pela presença das imagens. Portanto, a chamada

civilização medieval, na qual a cultura letrada foi apanágio de todos, teve nas imagens o aliado

poderoso no que diz respeito à disseminação do cristianismo e dos seus valores religiosos.

3.3. A Estrutura curricular no Brasil: uma breve História.

Os estudos sobre a estrutura curricular119 associam-se a uma série de estudos que

buscam não só renovação da educação, como também tornar a escola uma instituição mais

atrativa para os nossos alunos. Tais estudos foram incrementados, principalmente a partir da

década de 1980 em um contexto histórico marcado paulatinamente pelo fim do regime militar,

oficialmente encerrado em 1985. Os “novos tempos” que se iniciavam puseram em curso

119 Sobre o significado central do curriculo para a estruturação da escola, Jaime Cordeiro no livro Didática afirma que a noção de currículo associa-se à idéia de padronização e organização do conhecimento. Logo, os currículos favorecem a mediação entre educadores e educandos na relação ensino-aprendizagem. Nas palavras do próprio autor: “Durante o processo histórico que resultou na escola que conhecemos hoje, muitas mudanças ocorreram. Uma das mais significativas refere-se à organização dos conteúdos escolares predominantemente por disciplinas e à sua distribuição ao longo do período de estudos. Trata-se da produção e estruturação do currículo escolar, mediante o qual constitui um modo padronizado de aprender e de se relacionar com o conhecimento. As pessoas que freqüentam a escola estabelecem um tipo de relação com a cultura e como o conhecimento que passa um tipo de relação com a cultura e com o conhecimento que passa pela aquisição de um conjunto mais ou menos de saberes. Estes, além disso, são apresentados mais ou menos na mesma maneira, de tal modo que todas as pessoas que passam pela escola acabam adquirindo um conjunto de critérios comuns de julgamento e de avaliação do saber.” (CORDEIRO, 2007, p. 30)

109

mudanças políticas e econômicas que estavam inseridas no período que, de uma maneira geral,

ficou conhecido como a “Transição do autoritarismo para a democracia”. Os estudiosos da

educação no Brasil almejaram e almejam até hoje a construção de novos caminhos para a

educação. Por isso, trabalhos que tinham e que têm até hoje a ambição de oferecerem novas

reflexões em torno de temas como a didática e o currículo estão colaborando para a criação de

uma copiosa literatura educacional120. Como corolário disso tudo, os estudos sobre os

currículos e os livros didáticos de História, não só para o ensino fundamental, como também

para o ensino médio em nosso país aumentaram. Aliás, cabe acrescentar que, se hoje a

historiografia sobre a História do ensino da História expandiu-se e continua a crescer, isso se

deve àquilo que ouso chamar de a grande revolução dos estudos sobre a educação brasileira.

*

* *

Em um mundo determinado pelo avanço do processo de Globalização que engendrou

avanços tecnológicos e que tem disseminado diversas informações nos meios de comunicações

como a televisão e a Internet, convivemos ainda com profundas desigualdades entre os países e

no interior dos próprios países. Além disso, o desenvolvimento científico e tecnológico não foi

ainda capaz de extirpar das sociedades as seculares desigualdades humanas. Por isso, pode-se

perguntar: Como pensar a educação e os seus mecanismos de reprodução em um mundo que já

se encontra em pleno limiar do século XXI ?

Michael Apple, em Ideologia e currículo121, defende a tese de que a educação de uma

maneira geral dissemina as questões que são pertinentes ao seu tempo. Explica-se, ela não só

120 Os estudos de Vera Maria Candau, A didática em questão; José Carlos Libâneo, Didática; e Selma Garrido Pimenta Garrido Pimenta (org.) Didática e formação de professores: percursos e perspectivas no Brasil e em Portugal, atestam isto. Além disso, estudos como os de Michael W. Apple, Ideologia e currículo também têm colaborado para o surgimento de reflexões em torno de temas como currículo e sociedade. E, especificamente, no que concerne as reflexões sobre o currículo e o ensino de História, o livro de Geraldo Balduíno Horn e Geyso Dongley, intitulado O Ensino de História e seu currículo: teoria e método, igualmente contribui par o surgimento de novos enfoques sobre o ensino de História no Brasil.121 Apple logo no prefácio da edição brasileira fornece ao leitor uma das preocupações centrais que pretende desenvolver ao longo da obra: “Tenho sustentado a idéia de que há um conjunto muito real de relações entre quem, de um lado, tem poder econômico, político e cultural na sociedade e, de outro, os modos pelos quais se pensa, organiza e avalia a educação.” (APPLE, 2006, p. 7)

110

está aberta aos valores e idéias do seu tempo, como também influencia-o, formando alunos que

realizam, segundo convicções morais representações sobre o seu mundo. Insisto, mais uma vez

na concepção teórica da Representação, na medida em que embora muitos possam acreditar

que suas idéias conseguem dar conta sobre a explicação do seu tempo, elas na verdade, quando

muito, realizam um quadro verossímil de sua realidade.

Na aproximação do sistema educacional às necessidades sociais, Apple envereda suas

reflexões em direção às demandas da economia e do mercado. Nesse prisma, o autor encontra-

se com o neoliberalismo, propondo a seguinte questão: “é possível fazer algo diferente, que

interrompa as políticas e ideologias neoliberais e neoconservadoras, que tenha uma política

muito diferente de conhecimento legítimo e seja baseado em um real compromisso de criar

escolas intimamente relacionadas a um projeto maior de transformação social ?” (APPLE,

2006, p. 13).

O educador, ainda que reconheça a força do neoliberalismo e da economia de mercado

que aquilatam os currículos e os projetos escolares, crê no poder de transformação social que

pode ser engendrado pela educação. A escola e a educação não devem ser percebidos

simplesmente como reprodutores do sistema econômico capitalista, pois, nas escolas, os

currículos e as concepções educacionais assumem uma expressiva autonomia, mesmo se

considerarmos que a educação esteja inserida em um determinado contexto social.

Especificamente, quanto ao currículo, mesmo defendendo a tese de que a escola pode

promover a transformação social, Apple acredita que os currículos escolares sempre

representaram os conflitos sociais que são inerentes às sociedades humanas. O estudioso norte-

americano chega a asseverar que nas escolas há um controle, não apenas sobre os currículos,

como também sobre os professores122. Além disso, o exame dos currículos enseja ao estudioso

uma percepção de como a escola funciona e de como os estereótipos e discriminações

funcionam no cotidiano escolar (APPLE, 2006, p. 25).

122 O trabalho de Apple, oferece ao leitor brasileiro um painel bastante considerável sobre a educação nos Estados Unidos, país fortemente marcado por uma economia de mercado. Por isso, há da parte do autor uma preocupação em verificar a educação e os currículos escolares e a sua relação com o capitalismo que podem ser explicados tomando como base as seguintes palavras: “A tese era a de que, se os professores e os currículos fossem controlados mais de perto, estando mais intimamente relacionados às necessidades do mundo empresarial e industrial, mais tecnicamente orientados, como mais ênfase aos valores tradicionais e às normas e disposições do mercado de trabalho, então os problemas de alcance de resultados, de desemprego, de competitividade econômica internacional, de desintegração das áreas centrais das grandes cidades, etc.” (APPLE, 2006, p. 21)

111

O acompanhamento do cotidiano educacional é importante, uma vez que permite ao

estudioso verificar que os currículos nas escolas, ensejam a criação de noções que patrocinam a

criação de representações que colaboram para a formação de consciências humanas,

considerando-se como normais determinadas atitudes e comportamentos. A própria idéia, que

hoje relaciona a educação como instrumento para a formação de profissionais aptos para o

exercício profissional, está confirmada entre os educadores e os cidadãos de uma maneira

geral. Daí, a consolidação daquilo que poderíamos denominar senso comum.

Seguindo de perto as reflexões de Apple, pode-se desenvolver as seguintes indagações:

1) Como desvendar as representações sociais que estão intrínsecas nos currículos das escolas ?

Como são selecionados os conteúdos e conhecimentos que fazem parte dos currículos escolares

?

O trabalho de Apple diz respeito à compreensão da educação em uma sociedade

capitalista e altamente industrializada como os Estados Unidos. Nesse sentido, quando ele

utiliza denominações como ideologia e hegemonia de grupos poderosos ligados aos interesses

econômicos do capitalismo, a educação descrita e analisada naquele país está em consonância

com a reprodução do capitalismo que possibilita uma consciência que põe o indivíduo como

responsável pelo seu destino. Logo, a educação deposita exageradamente sobre o indivíduo a

responsabilidade sobre o êxito ou o fracasso individual (APPLE, 2006, p. 44).

Isso posto, deve-se afirmar que a educação e a escola representam o individualismo que

é intrínseco à sociedade norte-americana. E, de uma maneira geral, os currículos das escolas

dos Estados Unidos expressam o individualismo de uma sociedade altamente competitiva do

ponto de vista econômico. O estudioso norte-americano, contudo, crê na possibilidade de se

pensar um currículo que destaque a figura do educador e também propicie uma educação que

transforme a sociedade (APPLE, 2006, p. 45).

Após tomar como exemplo o trabalho de Michael Apple, que tem a preocupação de

caracterizar a educação nos Estados Unidos, é mister examinar de forma detida como os

currículos escolares representam a educação naquele país. Inicialmente, deve-se considerar e

analisar a escola como uma instituição que dá o conhecimento. Na organização dos currículos

de maneira consciente ou não os educadores nas escolas selecionam conteúdos, tomando como

base o seu tempo, o que deve e não deve ser ensinado. Portanto não há currículo neutro, ele

112

nasce de uma escolha e representa as questões pertinentes de uma época. Daí valer a pena

reproduzir a seguinte assertiva de Apple:

A maior parte, se não a maioria, dos educadores não está bastante familiarizada com esse problema. Temos a tendência a perceber o conhecimento como um “artefato” relativamente neutro. Fizemos dele um “objeto” psicológico (que ele de fato é, em parte). Ao fazê-lo, contudo, quase que totalmente, quase que totalmente despolitizamos a cultura que as escolas distribuem. Todavia há um grupo crescente de estudiosos do currículo e de sociólogos da educação que está levando muito mais a sério as questões “De quem é a cultura ?”, “A que grupo social pertence esse conhecimento ?” e “No interesse de que determinado conhecimento (fatos, habilidades, propensões e inclinações) é ensinado em instituições culturais como as escolas ?”. Como observei em outro lugar, os melhores exemplos desse trabalho são encontrados em textos recentes dos ingleses (APPLE, 2006, p. 50).

Prosseguindo, por intermédio dos caminhos descortinados por Apple, pode-se afirmar

que os currículos desenvolvidos nas escolas comportam as questões políticas, econômicas e

sociais, concernentes a um determinado país em um certo contexto histórico. Por isso, o

desvelamento e a compreensão dos currículos possibilitam ao estudioso desfazer o mito de que

o conhecimento repassado aos alunos é o correto e, portanto não passível de ser questionado

(APPLE, 2006, p. 65). A análise dos currículos possibilita igualmente ao estudioso

compreender a hierarquização de poder concernente à sociedade em que vivemos. Compete

acrescentar que o planejamento curricular expressa aquilo que foi selecionado e, portanto deve

ser ensinado, independente da conotação ideológica dos seus executores.

Em uma sociedade de classes, consoante Michael Apple, o currículo acaba funcionando

para beneficiar os grupos dominantes. Nesse aspecto, o estudioso norte-americano aponta uma

tendência universal do ensino, ou seja as instituições educacionais são em sua essência

refratárias às mudanças (APPLE, 2006, p. 82). Diante disso, o estudioso também chega a uma

outra conclusão:

Quero defender aqui a idéia de que o problema do conhecimento educacional, do que ensina nas escolas, tem de ser considerado como uma forma de distribuição mais ampla de bens e serviços de uma sociedade. Não é meramente um problema analítico (o que devemos construir como conhecimento ?), nem simplesmente um problema técnico (como organizar e guardar o conhecimento de forma que as crianças possam ter acesso a ele e “dominá-lo” ?), nem finalmente, um problema puramente psicológico (como fazer com que os alunos aprendam x ?). Em vez disso, o estudo do conhecimento educacional é um estudo ideológico, a investigação do que determinados grupos sociais e classes, em determinadas instituições e em determinados grupos sociais e classes, em determinadas instituições e em determinados momentos históricos, consideram conhecimento legítimo (seja este conhecimento do tipo lógico “que”, “como” ou “para”) (APPLE, 2006, p. 83).

113

Além de admitir a relação entre grupos sociais e currículos escolares, o estudo do

pesquisador norte-americano afirma que o currículo está inextricavelmente ligado ao controle

social. Além disso, as escolas carregam em sua trajetória a carga do seu passado histórico. Por

isso, a compreensão dos currículos depende igualmente de como representamos a escola em

que vivemos.

Na análise da função do currículo na educação escolar, é inevitável lembrar a relação

entre a aquela e o poder econômico. A escola, além de refletir a época em que está inserida

como foi dito atrás, expressa os anseios econômicos e culturais do sistema econômica em voga.

Tomando como base o estudo de Michael Apple, os currículos das escolas norte-americanas,

historicamente, além de almejar uma sociedade homogênea, buscava também criar uma

sociedade que contemplasse a idéia baseada na concepção de que certos homens exerceriam a

função de liderança e os outros se conformariam com uma situação de submissão.

*

* *

No Brasil, a literatura educacional sobre as pesquisas dos currículos escolares sofreram

a influência dos trabalhos produzidos por estudiosos norte-americanos. Um exemplo disso, são

os trabalhos de Michael W. Apple, como Ideologia e currículo. Além disso, Antonio Flávio

Barbosa Moreira considera que as pesquisas em torno dos currículos escolares no Brasil têm

recebido destaque cada vez mais123 (MOREIRA, 2002, p. 63).

O estudo dos currículos pode contribuir para a compreensão do fracasso escolar, bem

como outros dilemas concernentes à educação. Inspirando-se no artigo “O campo do currículo

no Brasil: os anos noventa”, como enfrentar a construção de currículos que favoreçam a

incorporação de várias representações culturais ?

123 Todavia, Antonio Flávio Barbosa Moreira chama a atenção sobre a importância de novas pesquisas sobre os currículos escolares no Brasil.

114

Uma das dificuldades para se buscar responder à questão acima ironicamente é o fato

de que o crescimento de referenciais teóricos e metodológicos sobre os currículos pode

dificultar o exame dos currículos e o seu funcionamento no cotidiano escolar (MOREIRA,

2002, p. 70). Logo:

A complexidade da questão curricular, aceitando-se o que diz Apple, obviamente precisa ser abordada por teorizações complexas. Todavia, se o currículo envolve um ambiente em permanente mutação, se o currículo o que se passa na experiência educacional, o especialista interessado em elucidá-lo, em captar as relações entre conhecimento, identidade e poder, não se pode perder em abstrações nem evitar a “contaminação” com os desafios, as lutas, as conquistas, as resistências e as perdas que, dia-a-dia, tornam o cotidiano escolar um espaço rico, imprevisível, imponderável, incompleto e estimulante no qual diferentes atores traduzem e redefinem o que se esboça como possibilidade e como regulação em planos, propostas e políticas (MOREIRA, 2002, p. 71).

Na relação que envolve os estudos teóricos sobre os currículos e a verificação empírica

sobre o seu funcionamento, o estudioso deve tomar cuidado a fim de que ele não impeça de

perceber o funcionamento real do currículo. Portanto, o currículo e a sua percepção, por isso,

não podem ser descolados da experiência escolar cotidiana (MOREIRA, 2002, p. 71).

Ao finalizar o artigo, Antonio Flávio Moreira que tem o mérito de problematizar e

pensar o currículo escolar brasileiro, considera que seja imperativa uma mudança sobre o

ensino e a pesquisa sobre o currículo em nossas instituições de ensino superior. Logo, formar o

futuro docente com uma mentalidade que conceba o currículo não com um meio de promover

uma uniformização do conhecimento e, sim, como um caminho para que sejam contempladas

várias expressões culturais, torna-se um desafio para aqueles que desejam debruçar-se sobre o

estudo do currículo em nosso país.

Dessa forma, pode-se aquilatar que os estudos sobre os currículos de História no Brasil

inserem-se nas questões e dilemas gerais sobre a educação e os currículos. E, de uma maneira

geral, os estudiosos da História, que hoje se propõem a resgatar o estudo da História do ensino

115

de História no Brasil, igualmente acabam tendo de responder questões relativas ao ensino da

disciplina, ao currículo e aos livros didáticos.

*

* *

Em obra intitulada, Sociedade, educação e currículo no Brasil: dos Jesuítas aos anos

de 1980, Solange Aparecida Zotti busca investigar a trajetória dos currículos escolares. A

autora, por intermédio de cada contexto histórico brasileiro, buscou resgatar a educação como

um todo e chegar até a história do currículo oficial no Brasil (ZOTTI, 2004, p. 01). A

compreensão do currículo e das suas finalidades está inextricavelmente relacionada aos

diversos momentos da História do Brasil (LIBÂNEO et all, 2006, p. 130). Há de se acrescentar

que a estudiosa compartilha a tese de que os estudos sobre o currículo no Brasil foram

influenciados por estudos empreendidos por pesquisadores norte-americanos124.

Deve-se, então afirmar inicialmente que os primeiros passos da trajetória dos currículos

escolares no Brasil estão intimamente relacionados às ações dos Jesuítas. De uma maneira

geral, Zotti destaca duas fases da educação jesuítica na América de Colonização Portuguesa. A

primeira aquilatada pelas ações do padre Manoel da Nóbrega e teve como objetivo maior a

constituição de fiéis que, além de professarem o cristianismo, estariam submetidos ao

colonizador português. A segunda fase teria como meta uma educação mais afinada com os

interesses das elites dominantes coloniais. O corolário disso foi a implantação de um currículo

escolar que representava o modelo europeu de educação. Segundo o estudo de Solange Zotti:

A proposta curricular contemplava a educação literária, filosófica e teológica nos níveis elementar, secundário e superior. O curso de humanidades (secundário) foi o mais difundido, pois era o alicerce do ensino jesuítico. Eminentemente literário de diferenciar e reforçar a dominação, na medida em que as atividades intelectuais eram para os poucos que tinham garantido suas necessidades materiais pela exploração da

124 Consoante caminho aberto por Solange Zotti, a educação nos Estados Unidos sofreu o impacto do desenvolvimento industrial intensificado entre o final do século XIX e XX. Nas palavras da própria autora: “A escola, nesse contexto, é vista como a instituição responsável pela compensação dos problemas da sociedade mais ampla. Para isso, o foco do currículo é deslocado do conteúdo para a forma, ou seja, a preocupação é centrada na organização das atividades, como base nas experiências, diferenças individuais e interesses das crianças.” (ZOTTI, 2004, p. 4)

116

mão-de-obra escrava. O currículo, essencialmente humanista visava à formação de intelectuais comprometidos com as orientações da Igreja católica e do modelo econômico, atendendo ao que se propunha sob o ponto de vista das classes dominantes (ZOTTI, 2004, p. 31-32).

O currículo das escolas dos Jesuítas fundamentado no ideário humanista europeu,

recomendava ainda o ensino do latim, concomitante a uma didática que se fundamentava na

repetição e memorização125.

As reformas empreendidas pelo marquês de Pombal (1750-1777) promoveram em

Portugal uma reforma da educação baseada na filosofia iluminista126, retirando dos jesuítas o

controle sobre a educação. Todavia, a educação na América de Colonização Portuguesa que era

controlada pela Companhia de Jesus, foi desarticulada. Acrescente-se que os portugueses não

estabeleceram na colônia um sistema educacional capaz de substituir os pilares da educação

jesuítica.

Ao instalar o governo português na América, D. João VI promoveu medidas que

alteraram as relações entre o Brasil e Portugal. No que compete à educação, a grande referência

do período joanino foi a instauração dos primeiros cursos superiores. A educação primária e a

secundária, por fim, não foram estimuladas, permanecendo em sua essência funcionar,

consoante os moldes estabelecidos pelos jesuítas (ZOTTI, 2004, p. 35).

Após a Independência do Brasil, não se pode negar a existência de tentativas de se

incrementar a educação no Brasil127. Entretanto, as políticas educacionais de uma maneira geral

não se concretizaram. As províncias do Império, que teriam a incumbência de promoverem a

expansão da escola primária e secundária, não conseguiram realizar tal tarefa. No caso 125 Segundo Maria Lúcia de Arruda Aranha diz ainda sobre a importância dos Jesuítas na educação brasileira: “Os jesuítas se tornam famosos pelo empenho em institucionalizar o colégio como local por excelência da formação religiosa, intelectual e moral das crianças e jovens. A fim de atingir esses objetivos instauram rígida disciplina, aplicada nos novos internatos criados para garantir proteção e vigilância. Além de controlar a admissão dos alunos, concedem férias bem curtas para evitar que o contato com a família afrouxasse os hábitos morais adquiridos.” (ARANHA, 2000, p. 93)126 No século XVIII a filosofia iluminista alcança o seu apogeu, expandindo-se na França. Aliás, as “luzes” passam a ser o principal emblema da moral do iluminismo. O uso da razão poderia contribuir para o combate aos privilégios da sociedade de ordens ou estamental que marcaram a Europa ocidental. Além disso, racionalizar a vida dos homens significava, na moral iluminista, torná-los mais felizes. Os philosophes engendraram a concepção de uma história associada ao progresso, abandonando assim a representação da mesma como associada à decadência. 127 O estudo de Solange Zotti ao inventariar as mudanças propostas, tanto para os currículos do ensino primário, quanto para o ensino secundário demonstra não só as tentativas de mudanças no ensino brasileiro do século XIX, bem como os seus malogros. Por exemplo as realizações que tinham como objetivo transformar o ensino no Rio de Janeiro, então capital do Império. Além disso, as transformações econômicas e sociais ocorridas no período monárquico, ensejaram igualmente tentativas de mudanças na educação. As reformas curriculares sucederam-se, conforme as propostas educacionais eram propostas.

117

específico da escola primária, as províncias não tinham condições de arcar com o ônus

financeiro, no que diz à organização de uma estrutura material e humana (VIDAL; FILHO,

2005, p. 49). Com relação às escolas secundárias, compete asseverar que os seus currículos

foram aquilatados em função da preparação dos alunos para o ingresso no curso superior.

O governo central, embora tivesse a incumbência de viabilizar o ensino superior, não

conseguiu torná-lo acessível para todos. Conforme Maria Lúcia de Arruda Aranha, o ensino

superior no século XIX: “Mesmo no ensino superior, os cursos, às vezes transformados em

faculdades, permanecem como institutos isolados, sem que haja interesse na formação da

universidade (ARANHA, 2000, p. 153). Embora houvesse com o passar do tempo uma

diversificação no tocante a oferta de cursos, estes continuavam a não atender às demandas

sociais do Brasil do século XIX, e por isso estavam desvinculados da realidade nacional. Os

currículos representavam as desvinculações desses cursos em relação à realidade brasileira do

século XIX.

No Brasil da Primeira República, o ensino secundário e superior prosseguiram como

prioridades. A constituição de 1891, além de manter a descentralização educacional promovida

pelo Ato Adicional de 1834, estabeleceu que os Estados se responsabilizassem pelo ensino

primário. A justificativa para tal situação está no federalismo da primeira constituição de 1891.

No entanto, os novos agentes econômicos e sociais que iam se fortalecendo com o avanço

industrial influenciaram setores educacionais. Na década de 1920, surgiu um movimento em

favor da educação que ficou conhecido por “otimismo pedagógico”. Tal movimento, na

realidade, foi construído ao longo da Primeira República e alcançou o seu apogeu nos anos de

1920. Teve o mérito de chamar para a importância da educação nos diferentes níveis (NAGLE,

2001, p. 135)128.

Ainda que almejasse que tivesse como alvo o ensino primário da capital da República,

a Reforma Benjamin Constant foi a única do período que se preocupou com tal nível de ensino

porque, por intermédio dessa reforma tentou-se melhorar o currículo das disciplinas escolares.

Assim, a Reforma Constant estabeleceu que o ensino a escola primária estaria assim

organizado: “de 1º. grau para crianças de 7 a 13 anos e de 2º. grau para crianças de 13 a 15 128 Corroborando a tese de Jorge Nagle, Educação e sociedade na Primeira República, Solange Aparecida Zotti diz-nos o seguinte sobre o “otimismo pedagógico”: “A política educacional brasileira, até então voltada para o ensino superior, sofre pressões sociais que defendem a necessidade de pensar o ensino popular. A década de 1920 marcou a educação brasileira mais pela discussão do que propriamente pelos resultados concretos. Os educadores, reunidos em movimentos conhecidos como entusiasmo pela educação, num todo articulado do primário ao superior, já que a educação era vista como a grande responsável pelo progresso do país.” (ZOTTI, 2004, p. 70)

118

anos” (ZOTTI, 2004, p. 71). O Positivismo129, subjacente às idéias que nortearam tal reforma,

tentou debelar com um currículo de forte conotação humanista, estabelecendo um outro

enriquecido por disciplinas científicas.

A Lei Rivadávia Correia de 1911, além de revogar as medidas da reforma anterior,

acabou com a necessidade de um curso secundário modelo. E, quanto às orientações

curriculares, a lei foi influenciada por uma concepção teórica positivista que almejava dar ao

educando uma formação que pudesse cobrir as exigências práticas da vida. Tal reforma, além

de desobrigar o Estado mais uma vez a não se responsabilizar pela educação, contribuiu para o

malogro do secundário (Ibidem, 2004, p. 77).

Em 1915, mais uma reforma que se propunha transformar a educação brasileira foi

promulgada. Trata-se da Reforma Carlos Maximiliano (decreto n. 11. 530 de 18/03/1915) que

contemplou, na realidade, pontos entre a Reforma Constant e Rivadávia Correia. Ou seja,

tomando como base o ensino secundário, pode-se asseverar que, se um lado ela manteve a

autonomia de tal nível de ensino, de outro ela buscou engendrar mecanismos que

vislumbravam uma ação precisa do governo federal, no tocante ao ensino secundário130.

De forma sumária, Jorge Nagle afirma que, na realidade o ensino secundário entre 1890

e 1920, teve o objetivo de preparar uma elite que deveria ingressar nos cursos superiores

tradicionais. Consoante pesquisa do autor de Educação e sociedade na Primeira República,

pode-se concluir que tal estágio de escolarização, além de não incorporar as camadas populares

ao processo de ensino e aprendizagem, não tinha um perfil definido estando na verdade às

expensas do curso superior. E, especificamente no que tange ao ensino médio, havia uma

hegemonia dos estudos literários com relação aos estudos científicos. As disciplinas

tradicionais da época, como História, Geografia, Línguas, Matemática e Ciências integravam o

currículo (NAGLE, 2001, p. 192).

129 Maria Lúcia de Arruda Arranha realiza o seguinte comentário sobre o Positivismo na Primeira República: “A influência positivista da Primeira República no plano educacional teve efeitos passageiros, além de que vários projetos sequer foram implantados. Alguns intelectuais, como Rui Barbosa, até acusam os positivistas de conhecerem superficialmente as doutrinas pedagógicas de Comte. De ato, ao introduzir as ciências físicas e naturais nas escolas do primeiro e de segundo graus, a reforma contraria a orientação comtista, que as recomenda apenas para os maiores de 14 anos.” (ARANHA, 1996, p. 197)130 Jorge Nagle, autor do já clássico Educação e sociedade na Primeira República defende a seguinte tese: “Instituindo a autonomia relativa, a nova lei reintroduz a tarefa disciplinadora e aperfeiçoadora do Governo Federal na instrução do país. De modo particular, reintegra o Colégio Pedro II na sua função de estabelecimento-modelo, voltando-se para mecanismos anteriormente adotados.” (NAGLE, 2001, p. 192)

119

A Reforma João Luís Alves de número 16.782-A de 13/01/1925), ocorre em um

contexto em que havia um crescimento das demandas da sociedade em torno da educação. O

contínuo desenvolvimento das atividades industriais e a paulatina diversificação das atividades

profissionais oportunizam aos intelectuais daquele da época a refletirem sobre o papel e

importância da escola para a formação profissional do cidadão131. No que diz respeito ao

aspecto precípuo da reforma deve-se afirmar que a reforma, além de implantar o ensino seriado

e “a freqüência obrigatória”, estabeleceu que o governo deveria fiscalizar o funcionamento do

ensino secundário no Brasil (ZOTTI, 2004, p. 79). A base curricular, além de favorecer os

conteúdos vinculados às humanidades embora incluísse disciplinas científicas, endossou

também a feição enciclopédica e propedêutica do ensino brasileiro.

O fim da Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918) determinou a crítica do ensino

elitista e do currículo. No decorrer da década de 1920, ocorre no Brasil um clima de

entusiasmo pela educação, e um dos desafios a ser vencido era o analfabetismo. Acrescente-se

que em alguns Estados foram patrocinadas reformas educacionais132.

As idéias e reformas concebidas pelos pioneiros expressaram uma fundamental ruptura

com a escola tradicional. Sob esse ângulo, a teoria educacional do currículo, formulada por

Anísio Teixeira, exemplifica de modo geral o pensamento educacional dos pioneiros. Também

consoante Teixeira, o currículo escolar deve ter a criança como alvo de todo o processo

educacional. O currículo deve orientar o professor a organizar as suas atividades, projetos e

problemas, tomando como base o educando (MOREIRA, 2002, p. 93).

A partir da década de 1920, a “Política dos Governadores” e a dominação oligárquica

entraram em processo de crise que culminou com o Movimento de 1930, marcado pela

ascensão de Vargas ao poder republicano. Getúlio Vargas, que inicialmente governou o Brasil

de 1930 a 1945 e, posteriormente, de 1951 a 1954, aprece como um dos maiores nomes da

131 Helena Bomeny no livro Os intelectuais da educação afirma que na Primeira República 80 % da população brasileira estava condenada ao analfabetismo. Todavia, na década de 1920 com a criação da Associação Brasileira de Educação (ABE) e o movimento que ficou conhecido por Escola Nova, surgiram críticas mais contundentes, no que concerne à situação da educação brasileira. Nas palavras de Bomeny tal movimento: “Tinha como objetivo influir na implantação de políticas para a educação. A ABE abrigou em seu programa de debates e conferências a elite dos educadores que se empenhavam em difundir no Brasil os avanços no campo da educação em vigor na Europa e nos Estados Unidos. A ciência se punha a serviço da melhoria da educação em bases mais sistemáticas. O movimento da Escola Nova é a síntese mais acabada desse empenho”. (BOMENY, 2001, p. 31)132 Antonio Flávio B. Moreira em Currículos e programas no Brasil, destaca por exemplo as reformas educacionais de Antônio Sampaio Dória em São Paulo e a de Anísio Teixeira na Bahia. Esta última “representou o primeiro esboço para introduzir algumas das inovações que iriam mais tarde caracterizar a abordagem escolanovista de currículo e ensino”. (MOREIRA, 2002, p. 88-89)

120

República brasileira. Nesse período, temas como o populismo, nacionalismo, trabalhismo,

modernização, industrialização e autoritarismo tornaram o período como um dos mais

decisivos da História do Brasil. Os debates, os projetos e as propostas de reformas

educacionais ganharam fôlego e foram aquilatados por tais temas.

Com a criação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930, houve uma reorganização

da educação brasileira. A centralização política, que marcou o Brasil nos anos de 1930 e 1940,

estendeu-se para o campo da educação (FONSECA, 2004, p. 52). Assim, o novo ministério, no

que lhe diz respeito, teve o seguinte papel: “Estado liderou o programa geral de reformas com

o objetivo de criar uma unidade de orientação, de sistematizar um conjunto de procedimentos

que fossem referência em todo o país” (BOMENY, 2001, p. 46). O ministro Francisco

Campos, posto que tenha ficado apenas dois anos à frente do ministério, realizou grandes

mudanças, notadamente no ensino secundário. Além disso, organizou as bases da primeira

universidade brasileira, ou seja, a universidade de São Paulo, USP, surgia em 1934 (FILHO,

2001, p. 91).

A conhecida Reforma Francisco Campos estabelecida na realidade entre os anos de

1930 e 1931 foi acompanhada de uma série de debates entre os intelectuais que pensavam e

propunham novos rumos para a educação brasileira. Na verdade, tais discussões estenderam-se

ao longo da década de 1930. Os intelectuais brasileiros mais afeitos ao liberalismo propunham

e defendiam uma educação laica, escola pública obrigatória e gratuita, bem como a educação

fundamentada no direito de igualdade entre os sexos. Confrontando-se no período com os

intelectuais que compartilhavam do ideário liberal, os intelectuais que advogavam os ideais

educacionais da Igreja católica, combateram a escola pública e alertavam sobre o perigo do

enfraquecimento da escola privada133. Compete acrescentar que o Manifesto dos Pioneiros da

Educação Nova teve a intenção de tornarem públicas as suas teses sobre educação134 que

133 Solange Zotti, afirma que tal temor existente entre os dirigentes e intelectuais católicos, deve-se ao fato de que a Igreja católica poderia ser “ameaçada por uma nova ordem social burguesa, que passa a reivindicar uma educação para atender às necessidades impostas pelo desenvolvimento urbano-industrial.” (ZOTTI, 2004, p. 89) 134 Na obra Educação escolar: políticas, estrutura e organização, José Carlos Libâneo, João Ferreira de Oliveira e Mirza Seabra Toshi assim consideram a concepção liberal defendida por muitos educadores e inscritas no chamado Manifesto dos Pioneiros: “A proposta dos liberais, inscrita no Manisfesto dos Pioneiros, de 1932, de uma escola pública única, laica, obrigatória e gratuita foi contemplada em sua maior parte na Constituição Federal de 1934, o que permitiu fazer avançar o debate e a mobilização da sociedade civil em torno da questão da educação. Com a Constituição de 1937, que consolidou a ditadura de Getúlio Vargas, o debate sobre pedagogia e política educacional passou a ser restrito à sociedade política, em clara demonstração de que a questão do poder estava mesmo presente no processo de centralização ou descentralização.” (LIBÂNEO et al, 2006, p. 135)

121

influenciaram as discussões sobre a educação presentes nos debates concernentes às

constituições de 1934 e 1937 (ZOTTI, 2004, p. 90).

A Reforma Campos negligenciou o ensino primário, fortalecendo assim uma concepção

elitista de ensino. Nesse ponto, tal reforma estabeleceu decretos que tinham como alvo buscar

novos rumos para o ensino médio e para o ensino superior. E, especificamente sobre o nível

médio, a reforma sedimentou em relação a ele duas tendências: o ensino secundário voltado

para uma minoria que ambicionava chegar ao ensino superior e o profissionalizante135 para as

camadas populares.

Sobre o currículo para o ensino secundário deve-se considerar no início que o mesmo

tornou-se seriado, “organizado em dois ciclos distintos, o fundamental e o complementar,

ambos indispensáveis ao ingresso no ensino superior” (ZOTTI, 2004, p. 103). Tal currículo,

entretanto, não conseguiu romper com a tradição verbalista e enciclopedista da educação

brasileira. Cumpre acrescentar que o curso secundário foi dilatado em nome de uma suposta

modernização dos conteúdos de ensino (Ibidem, 2004, p. 103).

Teve importância, conforme Helena Bomeny, a gestão Gustavo Capanema, à frente do

Ministério da Educação e Saúde, além de reformar os cursos secundário e universitário: “De

qualquer forma, ainda que tenha prevalecido a orientação conservadora e elitista, as linhas

mestras em torno das quais se movimentou o sistema educacional brasileiro foram definidas e

desenhadas no pós-1930, mais profundamente no ministério Capanema” (BOMENY, 2001, p.

52). Contudo fortaleceu a tradição que ramificou o ensino médio em secundário e

profissionalizante136.

135 Silvia Maria Manfredi em Educação profissional no Brasil afirma que as pesquisas sobre a educação privilegiam de uma maneira geral o ensino superior e o ensino médio em prejuízo ao ensino profissionalizante. O fim da escravidão e a expansão da economia já no final do século XIX e o limiar do regime republicano, ensejam um crescimento industrial e tecnológico, engendrando no limite a necessidade de uma mão-de-obra mais qualificada. Todavia, a criação de uma política nacional que buscou impulsionar a educação profissionalizante no Brasil ganhou contornos mais definitivos, a partir do Estado Novo varguista. Nas palavras de Silvia Manfredi: “A política educacional legitimou a separação entre o trabalho manual e o intelectual, erigindo uma arquitetura educacional que ressaltava a sintonia entre a divisão social do trabalho e a estrutura escolar, isto é, um ensino secundário destinado às elites condutoras e os ramos profissionais às classes menos favorecidas.” (MANFREDI, 2002, p. 95)136 Na obra Educação escolar: políticas, estrutura e organização, José Carlos Libâneo, João Ferreira de Oliveira e Mirza Seabra Toschi, afirmam que: “As leis orgânicas editadas entre 1942 e 1946 – a chamada Reforma Capanema, que recebeu o nome do então ministro da Educação – reafirmaram a centralização da década de 30, com o Estado desobrigando-se de manter e expandir o ensino público, ao mesmo tempo, porém, em que decretava as reformas de ensino industrial, comercial e secundário e criava, em 1942, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).” (LIBÂNEO et al, 2006, p. 136)

122

No que diz respeito aos possíveis antecedentes da Reforma Capanema, é imperioso

asseverar que a mesma foi sistematizada, a partir do modelo da reforma Couto Ferraz da época

do Império. O ensino secundário passou a ter um ciclo fundamental de quatro anos que era o

alicerce para o colegial com três anos (ZOTTI, 2004, p. 108). Além disso, o curso colegial

passou a oferecer duas alternativas: o clássico e o científico137.

Tanto a reforma Francisco Campos, quanto a reforma Gustavo Capanema, ao

estabelecerem os currículos das escolas, acabaram não gerando espaço no que se refere a um

possível debate sobre os principais problemas curriculares. Além disso, ocorreu uma

diminuição da influência das idéias escolanovistas, notadamente no período do Estado Novo,

que buscou centralizar as decisões educacionais138.

A abertura política, iniciada em pleno Estado Novo, acabou gerando uma nova relação

entre o governo e a população, ou seja, se antes do processo de abertura política o Estado

varguista foi marcado pela repressão, posteriormente, as camadas populares começaram a

serem utilizadas como cúmplices de um determinado projeto ou campanha política. É nesse

sentido que se pode enquadrar a Campanha Queremista: por seu intermédio dela, a figura de

Vargas é associada a valores como o nacionalismo econômico e o trabalhismo.

Mesmo com a queda de Vargas, um novo fenômeno político começou a ganhar fôlego e

destaque no Brasil: o populismo139. Segundo Francisco Weffort, a massificação dos

trabalhadores, engendrada pela industrialização e a presença de um líder carismático são

elementos fundamentais para a ocorrência do populismo e do pacto populista (WEFFORT,

1980, p. 28).

137 Solange Zotti diz ainda sobre o colegial e as duas alternativas: “Na essência, os planos de estudos dos cursos clássico e científico eram muito semelhantes, sendo diferenciadas apenas a disposição e a dosagem das disciplinas nas três séries.” (ZOTTI, 2004, p. 109)138 Antonio Flávio B. Moreira diz o seguinte sobre o INEP (Instituto criado Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) em 1938 e que portanto estavam em consonância com os objetivos centralizadores do Brasil do período do Estado Novo: “O INEP foi criado em 1938 para funcionar como centro de estudos de todas as questões educacionais relacionadas com os trabalhos do Ministério da Educação e Saúde. Suas ‘missões’ eram: a) organização de documentos pedagógicos; b) promoção de inquéritos e pesquisas educacionais nacionais e internacionais; d) promoção de investigações no terreno da psicologia educacional e da orientação profissional; e) assistência aos serviços estaduais, municipais e particulares de educação; f) difusão do conhecimento pedagógico; e g) cooperação com Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) na seleção e treinamento de funcionários públicos”. (MOREIRA, 2002, p. 99)139 Ressalta-se aqui sobre o populismo que, o fato de que, apesar do seu período clássico ter sido de 1945 a 1964, suas origens estão na década de 1930. Getúlio Vargas, além de expressar de maneira contundente como líder populista, também representa o político que, na realidade inaugura o populismo no Brasil.

123

O período da história do Brasil que se estende de 1945 a 1964 foi caracterizado pelo

predomínio de temas tais como o nacionalismo, populismo140, desenvolvimentismo,

industrialização e democratização. Os governos e os partidos políticos que atuaram no período

estiveram envolvidos com tais temas. Cumpre acrescentar que esse período foi encerrado pelo

golpe militar que inaugurou um longo período da história brasileira caracterizado pela falta de

liberdade e pelo arbítrio.

No que compete à educação pode-se asseverar que as idéias da chamada “Escola Nova”

foram dominantes até 1964, as quais foram retomadas em consonância com o processo de

redemocratização a partir de 1946, ano da promulgação da Constituição de 1946. As principais

concepções educacionais da Escola Nova eram embasadas na filosofia rousseuaniana e de

filósofos liberais. No Brasil, Anísio Teixeira um dos nomes mais importantes da chamada

“Escola Nova”, foi o responsável pela entrada das idéias educacionais de Dewey (FILHO,

2001, p. 108). Teixeira, no ano de 1952, assumiu a direção do INEP, promovendo um

inventário sobre a situação do sistema educacional no Brasil. Por intermédio do Centro

Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), ele organiza nas principais capitais do Brasil

cursos sobre currículo (MOREIRA, 2002, p. 100).

No ano de 1956, no limiar do governo Juscelino Kubitschek141, houve a criação do

PABAEE (Programa de Assistência Brasileiro-Americana no Ensino Elementar) que tinha um

departamento de currículo e supervisão cuja incumbência era não só promover cursos, como

também fornecer aos profissionais da educação uma assistência técnica (MOREIRA, 2002, p.

140 Segundo Francisco Weffort, em sua já clássica obra, O Populismo na política brasileira, a massificação dos trabalhadores engendrada pela industrialização e a presença de um líder carismático são elementos fundamentais para a ocorrência do populismo e do pacto populista. Todavia, o conceito de Populismo tornou-se hoje em dia cada vez mais alvo de crítica. O livro O Populismo e sua história: debate e crítica, organizado por Jorge Ferreira é composta de uma série de artigos que puseram em questão alguns alicerces clássicos do conceito de populismo.141 Embora o governo JK tivesse posto em prática uma política econômica desenvolvimentista que incentivasse uma penetração maciça de capital estrangeiro no Brasil, o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) criado oficialmente em 1955 e que só começou a funcionar efetivamente no governo Kubitschek, tinha uma orientação diferente. Ou seja, tal instituto contribuiu para a afirmação do ideário que tinha como base, o nacionalismo-desenvolvimentista. Com relação ao pensamento isebiano, podemos asseverar, em primeiro lugar, que o mesmo acreditava que a sociedade brasileira no período pós-30 passava por um período pré-desenvolvimentista. Ou seja, para os intelectuais isebianos, o Brasil vivia um período de transição marcado pela presença de um setor moderno, mas convivendo ainda com um setor tradicional. Em segundo lugar, podemos observar que o ideário do ISEB, defendia a tese de que o principal antagonismo da sociedade brasileira seria a contradição nação X antinação. Ou seja, o Brasil convivia com forças políticas, econômicas e sociais que ajudavam o País a adquirir uma “personalidade histórica”, mas também convivia com forças tradicionais que acabavam alimentando a alienação do povo e da sociedade brasileira. Em terceiro lugar, e este parece-nos o seu aspecto mais marcante, podemos dizer que o nacionalismo foi a ideologia que predominou dentro do ISEB, notadamente durante os Anos de JK. Por isso, é importante que afirmemos que os isebianos tinham como objetivo a defesa e a consolidação de um capitalismo nacional para o Brasil.

124

110). O trabalho de tal programa na avaliação de Antonio Flávio B. Moreira, foi de

proporcionar aos educadores uma série de “procedimentos, métodos e recursos” que teriam

como incumbência proporcionar aos professores, no que diz respeito ao planejamento e à

organização curricular (Ibidem, 2002, p. 115). Há de se acrescentar que as bases teóricas do

chamado PABAEE foram aquelas elaboradas por estudiosos norte-americanos (Ibidem, 2002.

p. 115).

No fim do Estado Novo e limiar do período de redemocratização, ocorreu a

reorganização do currículo e do Ensino Primário, o qual foi estabelecido pelo decreto-lei n.

8.529 de 2/1/1946 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei n.4.024 de

20/12/1961). A confecção da primeira LDB142 foi efetuada em um momento de relativa

tranqüilidade democrática. Há de se acrescentar que as contendas em torno dos principais

pontos da LDB retardaram a sua conclusão, que só foi concretizada, de fato, no ano de 1961

(ZOTTI, 2004, p. 117).

Especificamente sobre a primeira LDB é imperioso asseverar que ela pretendeu ser mais

adaptável à realidade nacional, buscando favorecer o ensino primário em tal nível de ensino. O

seu objetivo foi o de fornecer orientações gerais que pudessem nortear a educação brasileira.

Logo, os currículos tinham a pretensão de acatar as demandas e particularidades de cada

região. As orientações da LDB, contudo foram seguidas de modo semelhante na maioria dos

Estados e regiões do Brasil.

No que tange ao ensino secundário, a primeira LDB manteve dois projetos pedagógicos:

preparar o discente para o ensino superior e fornecer ao mercado de trabalho mão-de-obra

especializada. Ou seja, as orientações educacionais que propunham uma bifurcação do ensino

médio, prevaleciam. No que diz respeito às disciplinas obrigatórias do currículo do ensino

médio: “os currículos do ensino médio deveriam ser organizados levando-se em conta quatro

componentes: a) as disciplinas intelectuais (obrigatórias – português, história, geografia,

matemática e ciência): b) as práticas educativas artísticas ou úteis; c) as práticas educativas

físicas; d) a educação moral e cívica e religiosa (também consideradas práticas educativas)”

(ZOTTI, 2004, p. 124).

Compete acrescentar que em relação ao ensino médio, a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação promoveu a maleabilização do ensino médio, no que se refere ao ensino superior. A

142 Consoante estudo de Solange Zotti, mesmo no período da redemocratização (1946-1964), “as leis orgânicas da Reforma Capanema continuaram em vigor”. (ZOTTI, 2004, p. 118)

125

organização curricular foi caracterizada pela flexibilidade e houve uma certa descentralização

das diretrizes curriculares. Além disso, tal lei, que pretendeu regulamentar o ensino no Brasil,

reduziu o número de disciplinas exigidas e substituiu disciplinas tradicionais por disciplinas

científicas. Daí, almejar-se a constância entre a formação humanista e científica (Ibidem, 2004,

p. 134-135).

O golpe militar de 1964 encerrou mais uma página da história brasileira. A partir daí, a

vida política, econômica, social e cultural do Brasil foi marcada pela presença dos governos

militares. A promulgação dos Atos Institucionais, número um, dois, três, quatro e cinco

atestaram a evolução e o crescimento do autoritarismo militar. O conhecido “Milagre

Brasileiro”, que assinalou o auge da expansão econômica brasileira no período militar, veio

acompanhado de um período marcado pela limitação às liberdades individuais e pelas

perseguições, que redundaram em torturas e mortes. Os governos dos generais Geisel (1974-

1979) e Figueiredo (1979-1985), porém, assinalam o período de decadência do regime militar e

início do processo de abertura política no Brasil. A crise do petróleo e a compreensão de que a

resolução dos problemas sociais e econômicos brasileiros passaria pela redemocratização

levaram, aos poucos, a sociedade civil a posicionar-se cada vez mais contra a presença dos

militares no comando da vida política nacional. Se, de um lado, existiam grupos políticos que

queriam acelerar o processo de redemocratização, de outro, todavia havia setores das forças

armadas que pretendiam o processo de abertura política. Finalmente a eleição de Tancredo

Neves, por via indireta no colégio eleitoral, marcou o ocaso do regime militar em nosso país.

Assim, tem início o processo de reconstrução democrática inaugurado em 1985.

No tocante à educação, pode-se asseverar inicialmente que as políticas educacionais

implementadas pelos governos militares prosseguiram com a tradição centralista que

emergiram no Brasil da década de 1930. Os governos militares não se comprometeram com o

fomento da educação pública em nosso país, haja vista que, no plano ideológico, a educação

brasileira teve que estar em consonância com a idéia que associava o desenvolvimento com a

segurança. Cumpre acrescentar que os militares engendraram uma concepção tecnicista sobre a

educação, isto é, ela deveria estar inextricavelmente associada a um projeto nacional que no

limite estaria conectado à doutrina de segurança nacional (LIBÂNEO et al, 2006, p. 156).

126

A constituição de 1967, que embasou os princípios dos governos militares143, consolida

aspectos da primeira LDB de 1961 e também a presença do ensino particular. Há de se

acrescentar que a conhecida lei n. 5.692/71 não rompeu de forma total com a lei de n. 4.024/61,

mais conhecida como a primeira LDB (ZOTTI, 2004, p. 145).

A Lei 4.0224/61 passou por regulamentações na década de 1960. Uma delas concerne à

obrigatoriedade do ensino de educação física. Aliás, tanto a educação física, quanto a educação

moral e cívica foram disciplinas que, no ensino primário, tiveram os seus currículos

aquilatados pela doutrina de segurança nacional que era a base do regime militar no Brasil.

Some-se que no ensino médio a educação moral e cívica, além da despolitização, buscava

incutir nos estudantes noções como o dever do cidadão para com a comunidade e a pátria

(Ibidem, 2004, p. 151).

No período que se estende 1964 a 1968, os militares deparavam-se com a crescente

necessidade de mais vagas para o ensino superior. Para solução de tal problema, era mister,

portanto reformar o ensino como um todo. A lei 5.692 estabeleceu que os currículos de 1º. e 2º.

graus seriam portadores de um núcleo comum, os quais tinham outrossim uma preocupação

com a formação profissionalizante (ZOTTI, 2004, p. 166). Além disso, a legislação

educacional do período esteve em conformidade com o modelo econômico. Ou seja, dentro da

perspectiva educacional concebida pelos militares, a educação deveria igualmente capacitar

mão-de-obra especializada capaz de atender aos novos desafios tecnológicos e do

desenvolvimento econômico144.

143 As políticas e os projetos educacionais formulados pelos governos militares da história recente do Brasil estiveram em sintonia com os objetivos da doutrina de segurança nacional do período. O Estado, por intermédio da Constituição de 1967, diminuiu os gastos com o ensino. Selva Guimarães Fonseca no livro Caminhos da história ensinada diz o seguinte sobre os investimentos dos governos militares na educação: “Nesse sentido, uma das principais características da proposta é a desobrigação do Estado com o financiamento do ensino, especialmente dos níveis médio e superior. A Constituição de 1967 deixou de vincular a porcentagem de verbas destinadas ao ensino ao orçamento geral da União. A partir daí, o Estado passa a diminuir sucessivamente os investimentos no setor educacional. A participação do Ministério da Educação e Cultura no orçamento decresceu de 10,6% em 1965 para 4,3% em 1975, e manteve-se no patamar médio de 5,5% até 1983. Em contrapartida, a rede de ensino privado cresce em todo o país, especialmente no ensino superior, anteriormente concentrado quase exclusivamente em instituições católicas. A mesma tendência ocorreu com o ensino de 2º. Grau, chegando a responder por 41% das matrículas em 1982, basicamente nos cursos preparatórios para as universidades e cursos profissionalizantes, predominantemente noturnos.” (FONSECA, 1995, p. 19)144 Otaíza de Oliveira Romanelli na obra História da educação no Brasil, assim se posiciona sobre a relação educação e desenvolvimento no período dos governos militares: “Se o significado da educação como fator de desenvolvimento foi percebido desde o início da implantação do novo regime, isso não foi demonstrado, pelo menos em toda a sua plenitude, senão a começar de 1968. Como esse ano assinala também o início de mudanças mais profundas na vida da sociedade e a da economia – já que foi a época em que a expansão foi retomada de forma mais acelerada – pode-se perceber que o sistema educacional foi marcado por dois momentos nitidamente definidos em sua evolução, a partir de 1964.” (ROMANELLI, 1984, p. 196)

127

O Conselho Federal de Educação145, por meio do parecer de n. 853/71 e da resolução

n.8/71, determinou o núcleo comum dos currículos que deveriam ter uma abrangência nacional

e de caráter obrigatório. Por isso, caberia aos Estados relacionarem as disciplinas selecionadas

e comporiam a matriz curricular que seria, em uma perspectiva geral, a base curricular do

ensino tanto do 1º grau, quanto do 2º. grau (Ibidem, 2004, p. 189).

*

* *

Embora os governos militares tentassem, pelas legislações educacionais e pelo

Conselho Federal de Educação, engendrar uma concepção de currículo que, além estar em

consonância com a ideologia de segurança nacional, buscava também despolitizar a educação,

o Brasil dos anos de 1960 aos de 1990 conheceu as teorias educacionais de Paulo Freire. As

formulações e os projetos pedagógicos desenvolvidos pelo educador tiveram como alvo

principal as camadas populares, que foram secularmente oprimidas pelas elites dominantes. O

método de alfabetização criado por Paulo Freire partia do pressuposto de que o aluno deveria

ser educado a partir de sua realidade. Assim, educar também era uma ação política que

propiciava ao educando o desnudamento de sua realidade, incentivando-o a ser um agente de

transformação, fomentando, então, a cidadania.

Isso posto, na perspectiva freiriana, os currículos deveriam expressar a conscientização

e opção pelos oprimidos. Daí, eles favorecerem a politização das questões que estão em torno

da educação cuja pedagogia e currículo concebidos pelas de teorias de Paulo Freire valorizam

o diálogo e a realidade social na qual está incluído o aluno.

Os governos Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985) assinalaram o período de

decadência do regime militar e início do processo de abertura política no Brasil. A crise do

145 Segundo Antonio Flávio B. Moreira, no livro Currículos e programas no Brasil, “O estabelecimento dos currículos mínimos dos cursos de graduação era também tarefa do CFE, o que significa que a introdução de currículos e programas na universidade brasileira foi decidida pelo conselho. A base universitária do campo – o curso de pedagogia – foi criada em 1962 quando o curso foi reformulado pelo CFE (parecer no. 251/1962)”. (MOREIRA, 2002, p. 125)

128

petróleo e a compreensão de que a resolução dos problemas sociais e econômicos brasileiros

passariam pela redemocratização levaram aos poucos a sociedade civil a posicionar-se cada

vez mais contra a presença dos militares no comando da vida política nacional. Todavia, se, de

um lado, existiam grupos políticos que queriam acelerar o processo de redemocratização, de

outro, havia setores das forças armadas que queriam retardar o processo de abertura política.

Finalmente, a eleição de Tancredo, por via indireta no colégio eleitoral, marcou o ocaso do

regime militar no Brasil, tendo início o processo de reconstrução democrática que está em

curso no Brasil.

Com a abertura política, os professores e os pesquisadores conscientizaram-se sobre a

necessidade de mudanças na educação e nos currículos e programas de ensino nos níveis de

ensino, passando os currículos a refletir o incipiente processo de redemocratização

implementado pela chamada Nova República.

O governo Sarney, no tocante à educação, ficou marcada pela divulgação do

documento “Educação para todos”. Tal documento destaca a necessidade de expansão da

escolarização em um contexto histórico que tinha como pretensão a expansão e consolidação

do Estado de direito e democrático. Por isso, esse governo elegeu a educação como uma de

suas prioridades, a fim de que as injustiças sociais pudessem ser combatidas. Mas, consoante

Solange Zotti: “Os problemas cruciais da educação, como a valorização do professor,

democratização, proposta curricular, analfabetismo, entre outros, persistiram no mesmo ritmo

do Governo Figueiredo. Então, comprovamos que a construção de propostas diferenciadas não

significa necessariamente uma prática diferenciada. Continua a ambigüidade demonstrada no

Governo Figueiredo, um discurso e uma prática” (ZOTTI, 2004, p. 199).

A partir do balanço geral realizado por Solange Zotti sobre a educação, pode-se apontar

que o malogro da escola de primeiro grau confirma uma tendência, ou seja a incapacidade do

poder público em formular políticas educacionais que atendam ao conjunto da população

brasileira ao longo da história. Some-se a isso a concepção dualista que marcou o ensino de

segundo grau também foi criticada pelo então governo. Desse modo, o currículo que

preconizava um ensino voltado para a preparação para o ensino superior e o outro que indicava

a formação técnica para a qualificação em relação ao mercado de trabalho, foi posto em

questão, ainda que a noção de trabalho continuasse a nortear os objetivos dos currículos das

129

escolas do então ensino de segundo grau146. Compete enfatizar que historicamente a

organização escolar brasileira, por intermédio de uma série de mecanismos, dentre os quais os

currículos, excluiu a grande maioria dos cidadãos ao direito à educação.

*

* *

Na década de 1980, em especial no período que coincide com o momento de

redemocratização do Brasil, as discussões sobre a educação e os currículos foram

intensificadas. Logo, um dos desafios postos àqueles que objetivavam uma mudança na

concepção sobre os currículos era o de minimizar a influência dos teóricos norte-americanos147.

A “retomada” das formulações de teóricos europeus sobre a educação, concomitante à

expansão dos cursos de mestrado e doutorado no país, abriu perspectivas para uma visão mais

crítica em relação ao papel dos currículos na educação brasileira. Nas palavras de Antonio

Flavio B. Moreira:

Em síntese, a influência das condições internacionais na evolução do campo currículo foi, no período que vimos discutindo, significativamente diferente da que se verificou anteriormente. A influência de autores americanos diminuiu à medida que a de autores europeus aumentou. Por outro lado, a influência das condições societárias e processuais intensificou-se consideravelmente. Tanto a forças inter-relacionadas de redemocratização do país como a criação de espaços institucionais para discussões e propostas críticas constituíram-se em elementos cruciais na definição das principais tendências do campo contemporâneo do currículo e das respostas às questões curriculares levantadas (MOREIRA, 2004, p. 161).

146 Solange Zotti assevera que na Nova República a noção de trabalho perpassou os currículos, não só do ensino de primeiro grau, como também do segundo grau: “O currículo, tanto de 1º. grau como de 2º. grau, foi organizado para atender aos princípios da continuidade e da terminalidade. Isso significou que a formação geral deveria proporcionar uma base comum de conhecimentos a todos, como condição indispensável ao prosseguimento dos estudos. A formação especial refere-se à preparação para o trabalho, que deveria ser garantida a cada grau de ensino para que o educando tivesse condições de ingressar no mercado de trabalho, se fosse necessário.” (ZOTTI, 2004, p. 209)147 Antonio Flávio B. Moreira diz que a partir do regime militar e no período que coincide com o processo de redomocratização, ocorreu uma tentativa de rechaçar a influência norte-americano, no que diz respeito ao pensamento teórico sobre os currículos no Brasil: “O foco no discurso educacional europeu, mais que no americano, assim como ao aumento de pós-graduação realizadas no Brasil e o desenvolvimento de centros nacionais de excelência parecem representar tanto uma tentativa de definir uma tradição pedagógica mais autônoma como uma reação contra a influência americana nos anos sessenta e setenta, quanto o Brasil importou modelos educacionais americanos que contribuíram para a divisão do trabalho pedagógico e o surgimento de especialistas em educação, inclusive do supervisor e do curriculista.”

130

No final da década de 1980 e limiar de 1990, ocorreu a retomada dos estudos sobre

currículos realizados por autores norte-americanos marxistas para a análise dos estudos dos

currículos. Um dos autores foi Michael W. Apple, autor de Ideologia e currículo. Convém

notar que, as pesquisas sobre os currículos no Brasil tendem atualmente a enveredar para a

idéia de que os educadores e pesquisadores brasileiros não incorporaram pura e simplesmente

as teorias curriculares de estudiosos estadunidenses, bem como aquelas concebidas por

estudiosos europeus.

3.4. O Currículo de História no Brasil.

A História, enquanto disciplina escolar, faz parte de um currículo escolar que é

composto por uma série de disciplinas que representam um conjunto de conhecimentos que são

trabalhados nas salas de aulas. Por isso, as indagações de Circe Bittenourt são exemplares no

que diz respeito ao papel da História em nossas escolas. Tais questões são as seguintes: “O que

é, afinal, uma disciplina escolar e quais são suas especificidades ? Quais as relações entre

disciplina escolar e disciplina acadêmica ? Como os estudos históricos se constituíram para os

níveis secundário e primário ao longo da história escolar ? Qual tem sido a participação dos

professores na construção da disciplina História nas salas de aula ?” (BITTENCOURT, 2004,

p. 33).

Ao se almejar responder à primeira pergunta deve-se ter em conta, inicialmente que a

noção de disciplina escolar deve ser associada às concepções de educação de um país que, por

sua vez, varia com o tempo, porque as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais

ensejam representações diferentes, não só sobre a educação, como também da História,

enquanto disciplina.

Na tentativa de se definir o que seja uma disciplina escolar, a autora de Ensino de

História: fundamentos e métodos, diz-nos que, para uma parte, por exemplo, dos educadores e

estudiosos franceses e ingleses, uma disciplina escolar seria pura e simplesmente uma

“transposição didática”, melhor dizendo, elas resultam da produção de conhecimentos

engendrados nos meios acadêmicos (Ibidem, 2004, p. 35-36). Então, pode-se inferir que tal

131

concepção acaba contribuindo para a consolidação da idéia de que o professor seria um mero

reprodutor dos conhecimentos produzidos pelos pesquisadores universitários148.

Compete ainda dizer que a expressão “transposição didática” associa o conhecimento

escolar como um corolário das pesquisas acadêmicas, patrocinam um hiato entre conhecimento

universitário e as denominadas técnicas educacionais comumente reconhecidas como recursos

didáticos. O professor em sala de aula não se apresenta como um sujeito ativo no que tange ao

conhecimento, acabando por transformar-se em um sujeito passivo frente ao objeto estudado

pela disciplina História.

Os críticos da noção de “transposição didática”, consoante Bittencourt consideram esta

noção como a que enfatiza “a hierarquização de saberes como base para a constituição de

conhecimento para a sociedade” (BITTENCOURT, 2004, p. 37). Nesse ponto, as disciplinas

escolares têm autonomia, não sendo por isso um simples desdobramento do conhecimento

engendrado nos meios acadêmicos. A escola é vista como uma entidade que realiza um saber

próprio. E, embora esteja inserida em uma sociedade que age sobre ela, a escola é portadora de

uma cultura própria. As disciplinas escolares e os currículos fazem parte igualmente da cultura

escolar149. Por isso, segundo Circe Bittencourt:

Em decorrência da concepção de escola como lugar de produção de conhecimento, as disciplinas escolares devem ser analisadas como parte integrante da cultura escolar, para que se possa entender as relações estabelecidas com o exterior, com a cultura geral da sociedade. Conteúdos e métodos, nessa perspectiva, não podem ser entendidos separadamente, e os conteúdos escolares não são vulgarizações ou meras adaptações de um conhecimento produzido em “outro lugar”, mesmo que tenham relações com esse outros saberes ou ciências de referência (BITTENCOURT, 2004, p. 39).

Atendo-se mais à História como disciplina escolar, deve-se afirmar inicialmente que a

sua relação com a História confeccionada nas universidades nem sempre seguiu um mesmo

148 Circe Bittencourt ao citar a noção de Yves Chevallard sobre a disciplina escolar afirma o seguinte: “Essa abordagem considera a disciplina escolar dependente do conhecimento erudito ou científico, o qual, para chegar à escola e vulgarizar-se, necessita da didática, encarregada de realizar a ‘transposição’. Conseqüentemente, uma ‘boa’ didática tem por objetivo fundamental evitar o distanciamento entre a produção científica e o que deve ser ensinado, além de criar instrumentos metodológicos para transpor o conhecimento científico para a escola da forma mais adequada possível.” (BITTENCOURT, 2004, p. 36)149 Em obra coletiva organizada por Juarez Dayrell e intitulada Múltiplos olhares sobre a educação e cultura, os pesquisadores responsáveis pelos artigos, além de aproximarem a educação a outros campos do conhecimento como a antropologia destacam de uma maneira geral que os atores que atuam nas escolas, tais como alunos, professores e a própria comunidade na qual a escola está inserida, apresentam maneiras de representarem e conceberem a escola. Ou seja, tais atores nutrem expectativas e também desiluções sobre a escola. Assim, a cultura escolar é forjada, aquilatando também os currículos e as práticas escolares.

132

padrão, pois, se muitas vezes os historiadores das academias buscaram uma aproximação com

os professores que se dedicavam ao ensino da História nas escolas, na maioria das vezes a

distância prevaleceu. No entanto pode-se se lançar as seguintes indagações: É possível

incorporar automaticamente novidades acadêmicas ao saber escolar ? É necessário que a

História escolar assimile sempre a produção acadêmica ?

Na relação entre a História produzida pelas universidades e aquela ensinada nas escolas,

não se pode, em nome da autonomia escolar, conceber um divórcio entre a produção

acadêmica e o saber escolar. Em nome disso, não se deve acreditar que o conhecimento gerado

nas universidades possa ser passado integralmente para as escolas do ensino fundamental e

médio. Logo, o que se deve ensinar nas escolas ?

As seleções dos temas que podem fazer parte dos currículos de História dependem da

formação teórica do professor, da escola, e das disciplinas estabelecidas. Além disso, a

História, enquanto disciplina, concomitante à escola como um todo, deve ser uma parceira dos

alunos, no que diz respeito a um desvendamento crítico do mundo.

O papel da História como disciplina escolar, que pode contribuir para o entendimento

da sociedade de modo crítico, depende igualmente da capacidade do docente em pôr os

conteúdos estabelecidos em contato com outros campos do conhecimento. Assim, cabe ao

professor perceber o conhecimento histórico a partir de outros domínios do conhecimento, em

especial aqueles engendrados pelas ciências humanas. Logo, urge propor: Como ensinar

História, tomando como base a necessidade de se estabelecer um encontro da História com

outros domínios do conhecimento ?

Em primeiro lugar, é mister ao professor construir um currículo de História que tenha

como base o conhecimento do processo histórico como resultado das indagações que o

pesquisador engendra a partir das questões e dilemas que ele formula por intermédio do

presente. Além disso, o pesquisador deve compreender que os atores históricos registraram as

suas impressões e representações do seu tempo. Daí, como preterir as concepções filosóficas,

sociológicas e psicológicas, dentre outras que nortearam as ações de tais atores ? As palavras

de Fernando Seffner exemplificam o estado da questão:

O trabalho em História busca produzir busca produzir explicações sobre o mundo e, nessa medida, ele se vincula muito diretamente a outras áreas das ciências humanas, uma vez que envolve diretamente a outras áreas das ciências humanas, uma vez que envolve raciocínios utilizando conceitos da Economia, da Antropologia, da Ciência Política, da Sociologia, da Filosofia, da Geografia, etc. Assumindo isso, temos que

133

perceber que o ensino de História deve abrir espaço para tratar de temas e categorias conceituais que pertencem até mais diretamente ao terreno dessas outras disciplinas do social, mas que se tornam importantes na História, pois é através delas que nossa disciplina deixa de ser puro relato do que aconteceu (SEFFENER, 2000, p. 263)

Cumpre acrescentar que a consolidação da aproximação da História com os demais

campos do conhecimento das áreas de humanas favorece também a percepção do

conhecimento como ser revisado e pesquisado constantemente. Assim, a concepção de

currículo escolar torna-se também dinâmica, pois o mesmo passa a ser visto como algo que foi

construído, não só pelo saber escolar e pelo meio acadêmico. Em ambos, as noções de

conhecimento não são estáticas, visto que o professor e o pesquisador partem de problemas

suscitados do seu momento.

*

* *

Na obra O Ensino de História e seu currículo, os autores Geraldo Balduíno Horn e

Geyso Dongley Germinari afirmam que o Materialismo Histórico favoreceu novas pesquisas

com relação ao currículo (HORN;GERMINARI, 2006, p. 15). Tomando como base as

contribuições teóricas do Marxismo, os autores consideram que os currículos atendem às

concepções educacionais de um determinado período histórico. Logo, deve-se asseverar que os

currículos da disciplina História refletem também as experiências do saber escolar, bem como

assimilam a produção acadêmica de sua época. Como conceber um determinado currículo de

História sem uma reflexão consistente no que concerne a questões teóricas e metodológicas ?

As reflexões de Fernando Seffner mais uma vez são úteis na medida em que favorece a

percepção sobre a ausência de referências teóricos e metodológicos no tocante ao ensino de

História voltado para a escola de nível fundamental e médio. Por isso, as palavras de Seffner

exemplificam bem a questão:

Aquilo que se aprende de teoria da História nas licenciaturas é praticamente

esquecido quando o professor vai para a escola lecionar, ou então reduzido a seus

termos mínimos. Nos livros didáticos, em geral, o espaço concedido a discussões de

ordem teórica está centrado na pergunta “o que é a História”, colocada no primeiro

134

capítulo, e ali encerrada. Discutir como se dá a produção da narrativa histórica é algo

praticamente ausente dos livros didáticos. Nos programas de ensino e planos de curso

verifica a mesma coisa: o que ali se entende como a “matéria” a ser “dada” nas aulas

de História é um conjunto interminável de acontecimentos. Diz-se de um programa

que ele é “bom” quando “cobre” toda a matéria (de preferência aquela que “cai” no

vestibular” ). (SEFFNER, 2000, p. 265)

Entretanto, se formos capazes de reconhecer à importância da teoria para a produção do

conhecimento histórico, como se conceber um ensino de História voltado para os alunos do

ensino fundamental e médio que tem como alvo a teoria ? É possível conciliar um saber escolar

que é engendrado no cotidiano escolar com o saber acadêmico ? Ou seja, como o saber

acadêmico pode dialogar com o saber escolar a fim de que os professores das escolas

fundamental e média possam assimilar os novos avanços teóricos metodológicos ?

As respostas das três questões anteriores dependem de mais duas indagações. Os cursos

de graduação em História no Brasil ensejam aos acadêmicos um pensar teórico e metodológico

capaz de ser absorvido pelo saber escolar ? É possível propiciar a geração de uma linguagem

histórica em consonância com o saber acadêmico e que perspective aos alunos a compreensão

de uma série de pressupostos teóricos e metodológicos próprios da História ?

No livro Ensinar História no século XXI: em busca do tempo entendido, Marcos Silva e

Selva Guimarães propõem, de modo geral, pensar o ensino de História neste século que se

encontra em seu limiar. Logo, ambos esclarecem que a entrada em um novo século não

pressupõe de forma mecânica mudanças teóricas e metodológicas nas ciências humanas.

Refletem igualmente sobre as futuras tendências em relação ao ensino de História e a

necessidade de se manter aquilo que foi conquistado sobre tal ensino. Além disso, a obra tem a

preocupação de considerar o papel da cultura escolar150 “dotada de especificidades” nas suas

relações com a cultura acadêmica. Eles consideram as práticas culturais desenvolvidas nas

escolas como portadoras de outras formulações culturais, também consideram a possibilidade

de um contato promissor entre as duas culturas. Tal contato depende da formação de nossos

docentes, porém.

150 Marcos Silva e Selva Guimarães consideram o seguinte sobre a cultura escolar: “A cultura escolar, dotada de especificidades, mantém laços com outros espaços culturais, desde a formação dos professores (universidade), passando pela produção erudita com que estes profissionais tiveram e continuam a ter contato (artigos, livros) e pela divulgação de saberes (livros didáticos, cursos, exposições, simpósios) elaborada naqueles mesmos espaços.” (SILVA; GUIMARÃES, 2007, p. 8)

135

As análises e discussões sobre o papel da conexão ensino e pesquisa estiveram em pauta

no Brasil desde os anos de 1980. Aliás, tal binômio serviu para propor a superação de uma

formação voltada para a erudição que tornava, na realidade, o professor de História um simples

repetidor de conteúdos advindos de uma bibliografia tradicional e que era respaldada pelos

manuais de história tradicionais que, de uma maneira geral, não conseguiam aflorar na grande

maioria dos alunos um interesse real pela história. Na década de 1990, tal situação criou

condições e obstáculos no que concerne à formação do pesquisador e professor de história.

Retornando ao trabalho de Marcos Silva e Selva Guimarães, a superação dos governos

militares e do chamado período de transição que coincide com o governo Sarney, reforçou nos

anos de 1990 a necessidade de profissionais de História que tivessem uma sólida formação,

tanto no ensino de História (por isso, a intensificação sobre as discussões sobre a didática),

quanto nos aspectos teóricos e metodológicos no que tange à produção do conhecimento

histórico. Mas o processo de globalização fundamentado ideologicamente no neoliberalismo

impôs os contornos que aquilataram o processo educacional brasileiro e a formação do docente

em História151.

Por isso, seguindo de perto as análises sustentadas por Marcos Silva e Selva Guimarães,

deve-se concluir que as lutas por melhores condições salariais e de trabalho nos períodos de

greves e no cotidiano da escola, repercutiram nas representações realizadas pelos professores

sobre a educação. Portanto, a aquisição de uma contínua cultura acadêmica, bem como a

contínua aquisição cultura escolar no contexto histórico esteve em consonância com o processo

sistemático de proletarização e profissionalização do profissional de História.

Atendo-se mais de perto às questões da formação docente de História deve-se tomar

como imperativa a noção de que a mesma requer em primeiro lugar o princípio de que no

momento da licenciatura, o futuro professor seja orientado no sentido de compreender os

fundamentos teóricos e metodológicos do conhecimento histórico em relação direta com o

saber escolar. Entende-se que há que se pensar que o futuro profissional deva conhecer as

especificidades da cultura e das práticas escolares para então buscar os caminhos que levem os

resultados das pesquisas acadêmicas em História para as salas de aulas de História do ensino

151 Marcos Silva e Selva Guimarães defendem a tese que tenha como base a idéia de que os profissionais de educação ao terem os seus salários aviltados estaria movendo-se entre a “proletarização” e a “profissionalização”.

136

médio brasileiro. Assim, tal afirmação ajuda a responder em parte as três primeiras questões

postas acima152.

O futuro profissional de História, terá que se reconhecer como um agente ativo em face

de práticas culturais escolares e em face do conhecimento engendrado nos centros acadêmicos.

Melhor dizendo, ele terá que ter um bom conhecimento sobre o saber escolar, e obviamente,

terá que construir paulatinamente uma mentalidade que o insira cotidianamente no trabalho da

pesquisa. Daí, a importância da linguagem para o professor-pesquisador despertar no aluno da

escola do ensino médio o interesse pelo conhecimento histórico.

O uso de uma linguagem que deve estar em total sintonia com a cultura escolar, mas

que não viole as especificidades do conhecimento produzido pelas universidades, deve vir

acompanhada de um programa de História que contemple a curiosidade dos alunos,

despertando neles o gosto pela pesquisa. Nas palavras de Fernando Seffner: “É tarefa e

objetivo do ensino de História propiciar ao aluno de ter condições de ter uma experiência, de

realizar uma experiência, fazer com ele se sinta interpelado, e tenha que responder a essa

interpelação argumentando seu ponto de vista” (SEFFNER, 2000, p. 271).

Por fim, compete acrescentar que o encontro de professores e alunos com o passado de

uma tal sociedade em um determinado espaço geográfico depende também das interrogações

que são estabelecidas sobre o tempo presente. Como corolário, pode-se dizer que os currículos

e programas de História não podem ter a pretensão de contemplar muitos temas a serem

abordados. Daí, nas palavras de Silva e Selva a concepção de currículo como associadas à

noção de construção: “Concebemos currículo como uma construção, um campo de lutas, um

processo, fruto de seleção e da visão de alguém ou de algum grupo que detém o poder de dizer

e fazer. Logo, o currículo revela e expressa tensões, conflitos, acordos, consensos,

aproximações e distanciamentos153. É histórico, situado, datado no tempo e no lugar social.”

(SILVA; SELVA, 2007, p. 44).

152 As questões suscitadas nesta dissertação e que concernem no limite as relações entre a formação contínua do docente de história, a cultura escolar e a cultura acadêmica foram inspiradas também no trabalho já citado de Marcos Silva e Selva Guimarães. Neste sentido, tal obra busca inicialmente questionar o divórcio que tem como base os “saberes teóricos” e os denominados de “saberes práticos”. O primeiro produzido nas universidades e o segundo produzido nas escolas do ensino fundamental e médio. Além disso, os autores sugerem a existência de uma ainda precária política publica de formação contínua dos educadores de uma maneira geral.153 A noção de currículo defendida pelos dois pesquisadores está associada à noção de pluralidade cultural que está bastante em voga neste contexto histórico aquilatado pelo processo de globalização.

137

3.5. Considerações Finais.

A noção de representação estudada pelos historiadores ligados à História Cultural, que

se desenvolveu e ainda se processa sobretudo na França. Compete acrescentar que a França

destacou-se, no século XX, como o País de boa parte dos avanços da historiografia.

O triunfo da História Cultural nos meios acadêmicos dos anos de 1990, relaciona-se

com a redescoberta da obra do sociólogo alemão Norbert Elias. Todavia, se recuarmos um

pouco mais no tempo, historiadores como Michelet e Burchardt, ambos do século XIX,

abordaram temas que hoje são desenvolvidos pelos historiadores da Nova História Cultural.

A História Cultural do final do século XX e limiar do século XXI mobilizou e tende a

continuar a mobilizar muitos pesquisadores, pois consagrou em seu acervo noções como

“práticas”, “representações”, “visões de mundo” e “expressões culturais” que oportunizam uma

aproximação da História com outros campos do conhecimento. Portanto, a História Cultural

ainda está ainda em construção.

Os avanços da historiografia, no que concerne à teoria, como também à metodologia são

notórios, o que contribuiu para o crescente interesse pela História no Brasil. E, se nos anos de

1970 e 1980 havia uma preocupação em representar a história como ciência, nos dias atuais os

estudiosos almejam não só um diálogo mais constante com outros campos do conhecimento,

como também a exploração de novas fontes no processo de produção do conhecimento

histórico.

A preocupação dos historiadores ao se interessaram pelo uso de imagens oportuniza

uma maior aproximação da História com novos objetos e fontes. Ainda que, não se deva

preterir questões clássicas sobre a veracidade e procedências das fontes, é imperativo observar

que elas de uma maneira geral representam o passado e não o reconstitui como se tivesse

acontecido. Isso posto, a História Cultural pôs em evidência novas questões sobre o ofício do

historiador, proporcionando a valorização de novas fontes para a produção do conhecimento

histórico.

O estudioso da História deve reconhecer que a iconografia, como qualquer outra fonte

para se estudar a História apresenta limites e deve ser tratada de forma cuidadosa, inteirando-se

das especificidades dos documentos iconográficos utilizados na produção do conhecimento

histórico.

138

Os livros didáticos destinados aos estudantes, tanto do ensino fundamental quanto do

ensino médio, estão incorporando mais a iconografia. Como já exposto, contudo, no presente

capítulo, as imagens que possivelmente ilustrariam uma determinada época não são ainda

utilizadas com o devido cuidado e ainda persiste a noção de que elas devem ilustrar os manuais

didáticos.

A contínua renovação das pesquisas sobre a Idade Média Ocidental tem favorecido os

estudos sobre as imagens. Jean-Claude Schmitt, autor de O Corpo das imagens: ensaios sobre

a cultural visual na Idade Média, considera que a imagem no mundo medieval é determinado

pelo paradigma cristão. Elas representam a relação entre os homens e o mundo sobrenatural e

as imagens sobre o mundo medieval atestam a conexão entre os fiéis e os símbolos que

expressam o exercício da religiosidade.

Os estudos sobre a estrutura curricular estão vinculados a uma série de pesquisas que

buscam não só a renovação da educação, como também tornar a escola uma instituição mais

atrativa para os nossos alunos. Como desdobramento disso tudo, os estudos e os livros

didáticos de História, não só para o ensino fundamental, e para o ensino médio, em nosso país,

aumentaram. Aliás, cabe acrescentar que, se hoje a historiografia sobre a História do ensino da

História expandiu-se e continua a crescer, isso se deve àquilo que ouso chamar de a grande

revolução dos estudos sobre a educação brasileira.

Além de admitir a relação entre grupos sociais e currículos escolares, Michael W. Apple

em Ideologia e currículo afirma que o currículo está inextricavelmente ligado ao controle

social. Por isso as escolas carregam, em sua trajetória, a carga do seu passado histórico. A

compreensão, portanto, dos currículos depende igualmente de como representamos a escola em

que vivemos.

No Brasil, a literatura ocidental sobre as pesquisas dos currículos escolares, sofreram a

influência dos trabalhos produzidos por estudiosos norte-americanos. E no Brasil, as pesquisas

em torno dos currículos escolares têm recebido uma atenção cada vez mais expressiva por

parte dos pesquisadores, embora a compreensão do currículo e das suas finalidades esteja

inextricavelmente relacionada aos diversos momentos da História Brasil.

A História, enquanto disciplina, faz parte de um currículo escolar que é composto por

um conjunto de disciplinas que representam uma série de conhecimentos que são trabalhados

nas salas de aulas. Deve-se, outrossim, afirmar inicialmente que a sua relação com a História

139

confeccionada nas universidades nem sempre seguiu um mesmo padrão. Mas, em nome da

autonomia escolar, não se pode conceber um divórcio entre a produção acadêmica e o saber

escolar.

Compete acrescentar que o futuro profissional de História terá que se reconhecer como

um agente ativo, não apenas face às práticas culturais escolares, mas também face ao

conhecimento engendrado nos centros acadêmicos. Ele terá que ter um bom conhecimento

sobre o saber escolar e obviamente terá que construir paulatinamente uma mentalidade que o

insira cotidianamente no trabalho da pesquisa.

No próximo capítulo, intitulado “O Livro didático e as representações da cidade

medieval”, tratará inicialmente sobre a Renovação historiográfica e a História da Educação.

Assim, o tema desta dissertação, ainda que esteja inserida na perspectiva da história do ensino

de História, não pode ser desvinculada da História das Disciplinas Escolares, que por sua vez,

introduz-se em um domínio de pesquisa maior que é a História da Educação.

Posteriormente, o capítulo versará sobre o Livro na cultura ocidental. Assim, os

historiadores que se ocupam de tal tema, valorizam o livro como um objeto importante, para a

compreensão da trajetória histórica da cultura engendrada pelos intelectuais e para a sua

difusão dentro da sociedade.

Em seguida, o Livro didático no Brasil será abordado. A imposição do livro didático

como objeto de estudo nas instituições de ensino superior no Brasil insere-se nas reflexões que

envolvem as reflexões entre o saber escolar e o saber acadêmico. Tais reflexões, entretanto

almejam superar teses que apregoam a superioridade do saber acadêmico que muitas vezes

inferioriza o lugar ocupado pelo livro didático no processo de ensino-aprendizagem. Os

manuais didáticos, por sua vez são portadores não só dos saberes acadêmicos, como também

daqueles engendrados nas escolas que experimentam as relações entre professores e alunos.

Além disso, o livro didático será estudado, levando em conta as editoras, o mercado e os

autores.

O capítulo será encerrado com o estudo sobre as representações da cidade no ocidente

medieval, nos livros didáticos produzidos no Brasil a partir dos anos de 1980. Neste sentido,

serão analisados os manuais didáticos que foram adotados em muitas escolas do ensino

brasileiro, bem como por aqueles que foram indicados pela avaliação do Programa Nacional do

Livro Nacional do Livro para o Ensino Médio.

140

IV. O LIVRO DIDÁTICO E AS REPRESENTAÇÕES DA CIDADE MEDIEVAL.

Olhar para as cidades pode dar um prazer especial, por mais comum que possa ser o panorama. Como obra arquitetônica, a cidade não é uma construção no espaço, mas uma construção em grande escala, uma coisa só percebida no decorrer de longos períodos de tempo. O design de cidade é, portanto, uma arte temporal, mas raramente pode usar as seqüências controladas e limitadas de outras artes temporais, como a música, por exemplo. Em ocasiões diferentes e para pessoas diferentes, as seqüências são invertidas, interrompidas, abandonadas e atravessadas. A cidade é vista sob todas as luzes e condições atmosféricas possíveis.

Kevin Lynch154

4.1. A Renovação historiográfica e a História da Educação.

154 A passagem a cima foi retirada do livro: LYNCH, Kevin. A Imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

141

O expressivo aumento de trabalhos que têm tomado o livro didático como objeto de

estudo favorece não só a pesquisa acadêmica voltada especificamente para o conhecimento

histórico, como também àquelas que se voltam para a educação. Assim, o tema desta

dissertação, embora esteja inserida na perspectiva da história do ensino de História, não pode

ser desvinculada da História das Disciplinas Escolares que, por sua vez, insere-se em um

domínio de pesquisa maior que é a História da Educação155.

Em artigo publicado no livro Historiografia brasileira em perspectiva, Marta Maria

Chagas de Carvalho observa a presença nos últimos anos de uma renovação consistente no

campo da historiografia educacional brasileira. Assim, novos trabalhos têm possibilitado

“redefinições, temáticas, conceituais e metodológicas que põem em questão a forma

tradicional” (CARVALHO, 2003, p. 329). Todavia, é imperativo perguntar: Quais as

concepções, teorias e metodologias que estão sendo superadas, quando se fala no campo de

estudo conhecido como História da Educação ?

Dermeval Saviani, em texto publicado na obra intitulada, História da educação em

perspectiva: ensino, pesquisa, produção e novas investigações, afirma que, em cursos voltados

para a educação no Brasil a partir do período monárquico, a disciplina história da educação não

estava presente nos currículos escolares até pelo menos o ano de 1946. Contudo, a perspectiva

de que na década de 1930 os estudos de educação pudessem alcançar o ensino superior

favoreceu a expansão das discussões em torno da História da Educação, enquanto disciplina e

campo de estudo (SAVIANI, 2005, p. 7).

Avançando um pouco mais e seguindo de perto as reflexões de Saviani, pode-se afirmar

que a então Universidade do Brasil foi a responsável pela concepção de ensino superior que

vigorou de 1940 a 1968. Tal concepção foi na realidade um contraponto, por exemplo, ao que

foi engendrado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

Nesse sentido, enquanto na primeira não havia um divórcio entre ensino e pesquisa, na segunda

ocorria justamente o contrário (Ibidem, 2005, p. 15).

Assim, os cursos de Pedagogia formaram especialistas em educação que estavam

desvinculados do trabalho da pesquisa. Como desdobramento disso, a disciplina História da

Educação acabou desligando-se efetivamente dos domínios da História. As pesquisas em torno

155 Décio Gatti Júnior no livro A Escrita escolar da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990) e igualmente em uma série de artigos, vem defendendo essa tese, contribuindo assim não só para a renovação dos estudos sobre o ensino de História, como também para os que versam sobre a História da Educação.

142

de temas da História da Educação foram consideravelmente comprometidas, pois o professor e

pesquisador não analisava mais de perto as mudanças e continuidades no complexo processo

histórico brasileiro.

O contexto histórico brasileiro da década de 1980, caracterizado pela intensificação do

processo de redemocratização brasileiro e que tem como um de seus símbolos a Constituição

de 1988, favoreceu não só os debates em torno da formação docente no Brasil, como também

da necessidade de se operar mudanças nas pesquisas em torno da educação. A História da

Educação, tanto no âmbito da pesquisa, quanto no ensino, foi favorecida por tais mudanças. As

condições para uma maior aproximação entre a História da Educação e os domínios da História

estavam amadurecidos e tornaram-se promissores156. O caminho para uma tal aproximação,

todavia continua aberto, ensejando novas investigações que, além de seduzirem professores e

pesquisadores, certamente trarão novas perspectivas teóricas e metodológicas para a educação.

*

* *

A aproximação entre Educação e História tem gerado uma série de trabalhos que estão

renovando os dois campos do conhecimento. Angela Maria Souza Martins no artigo,

“Educação e História Cultural: algumas reflexões teóricas” reconhece isso, embora ponha em

relevo as dificuldades causadas por essa aproximação. E, no caso específico da relação entre

Educação e História Cultural, a estudiosa aponta a dificuldade que se encontra nas “poucas

discussões de caráter epistemológico sobre algumas categorias teóricas que embasavam a

história e, principalmente, a história cultural. A dificuldade aumentava caso quiséssemos fazer

156 Décio Gatti Júnior em texto nomeado de “Dimensões do Ensino de História da Educação: História, fontes e formas didático-pedagógicas”, conclui que a apesar dos avanços no campo da pesquisa educacional no Brasil, as insatisfações entre pesquisadores e professores ainda persistem, no que concerne a relação entre História da Educação e o conhecimento histórico. Assim, ele afirma o seguinte: “os problemas atuais vivenciados por docentes de história da educação que se encontram insatisfeitos com os modelos explicativos existentes e procedem a uma luta contra a banalização do passado, bem como contra o afastamento dos alunos das narrativas históricas escritas e verbais, colocando-se, por fim, a seguinte questão: como traduzir no ensino a sedução da pesquisa ?” (GATTI JÚNIOR, 2005, p. 177)

143

o entrecruzamento com a área educacional” (MARTINS, 2006, p. 109). E, corroborando a tese

defendida por Angela Martins, pode-se inferir que os instrumentais teóricos e metodológicos

que estão aproximando cada vez mais, a Educação e a História Cultural estão ainda em

formação.

O pesquisador, contudo, deve ter o cuidado de lembrar que as pesquisas que vinculam a

História da Educação ao conhecimento histórico foram beneficiadas pelos trabalhos de

historiadores vinculados, não só à Escola dos Annales, como também ao Marxismo. Os

paradigmas teóricos das duas correntes teóricas possibilitaram o encontro entre o político, o

econômico e o social na interpretação do processo histórico. Tais paradigmas contribuíram,

assim, para o repensar da disciplina e do campo de pesquisa História da Educação, ensejando

no limite uma aproximação com a área de História e os seus pesquisadores.

Na relação entre Marxismo, História e a Educação, a obra de Edward Thompson acabou

sendo muito importante. Como um dos expoentes da História Social inglesa, ele criticou

determinada vertente do Materialismo Histórico que se apóia na relação base e superestrutura

na explicação do processo histórico. O desdobramento disso foi a valorização dos atores

históricos na produção da cultura com relação à sociedade157. Além de não abandonar as teses

centrais do pensamento marxista, o pensador inglês compreende e dissemina a noção de que a

construção cultural da classe trabalhadora vincula-se às relações sociais contraídas no trabalho.

Lynn Hunt destaca, na apresentação do livro A Nova História Cultural, a importância

de Thompson para o papel da experiência cotidiana e cultural sobre o trabalho. A partir daí, é

imperativo deixar registrado que o autor de A Formação da classe operária inglesa: a árvore

da liberdade158 vem exercendo uma considerável influência sobre as novas gerações de

historiadores Europa, Estados Unidos e no Brasil. Nos meios acadêmicos brasileiros, os atuais

trabalhos sobre a História da educação estão sendo beneficiados pelo legado teórico do

historiador inglês.

157 Décio Gatti Júnior no artigo “Dimensões do ensino de História da Educação: história, fontes e formas didático-pedagógicas”, diz o seguinte sobre a importância de Thompson para a produção acadêmica brasileira: “No início da década de 1980 é divulgado no Brasil o pensamento de Thompson (1981), para quem a experiência social, tomada como experiência de classe, é a resultante do desenvolvimento das relações sociais de produção.” (GATTI JÚNIOR, 2005, p. 181)158 No prefácio da edição brasileira de A Formação da classe operária inglesa, Thompson explica ao leitor a noção de classe ligada a de fazer-se que está subjacente a tal obra: “Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre efetivamente ( e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas.” (THOMPSON, 2004, p. 9)

144

O encontro entre o conhecimento histórico e a história da educação tem-se revelado

cada vez mais promissor em função da renovação historiográfica proporcionada pela História

Cultural. Assim, a avaliação do processo histórico educacional brasileiro, por exemplo, tem

motivado o emergir de novos temas. O emprego da Nova História Cultural na análise do

processo histórico educacional favorece ao estudioso a utilização de conceitos como os de

representação, apropriação e de mediações culturais. Consolida-se, entre os pesquisadores que

se voltam para a História da Educação, a idéia de que há no cotidiano educacional a construção

de uma identidade cultural escolar159. Por tudo isso, deve-se inferir que o historiador da

educação, ao utilizar os referenciais teóricos da História Cultural deve estar atento às

representações que se consolidaram em torno da educação através dos tempos, bem como as

apropriações e práticas.

Cyntia Greive Veiga, em artigo intitulado “História Política e História da Educação”

busca destacar as mudanças ocorridas no interior da chamada “nova história política”, e

também as suas relações com a História Cultural e da História da Educação. Tais

transformações beneficiaram os estudos da História da Educação (VEIGA, 2003, p. 13). E,

referindo-se a trabalhos recentes que se ocuparam de tais relações, a autora chama a atenção

para o fato de que a História Cultural apropriou-se de temas de estudos que até então eram

percebidos como atinentes ao campo educacional. Ela constata que embora haja uma maior

aproximação entre história e história da educação, “é pouco o diálogo entre historiadores e

historiadores da educação” (Ibidem, p.19). E, no tocante à especificidade da História da

Educação, deve-se ter como referência que o seu campo de investigações está associado a

temas como: a escola, o processo de ensino de aprendizagem, a importância do livro didático

para a cultura escolar, dentre outros.

No que concerne a uma aproximação maior entre e “História Política e a História da

Educação”, Cyntia Veiga acaba propondo a problematização, envolvendo a educação e os seus

temas por intermédio da História Política. A autora propõe, no entanto, uma história política

que rompa com a chamada vertente factualista que produz uma história política em sintonia

com o Estado e também com a corrente marxista que vincula mecanicamente os 159 Angela Maria Souza Martins diz o seguinte sobre as principais categorias teóricas utilizadas por Chartier e que são utilizadas pelos historiadores da educação: “Na análise de Chartier, três categorias são fundamentais para a compreensão da história cultural: representações, prática e apropriação. A história cultural pode penetrar no social quando trabalha com as representações que os grupos fazem de si e dos outros. Pois, assim, volta a sua atenção para estratégias que minam posições e relações, e para a “apreensão” que as classes, grupos etc. têm de si, possibilitando a construção de sua identidade.” (MARTINS, 2006, p. 130)

145

acontecimentos políticos a um possível reflexo do econômico e do social. A autora, perfila-se

ao lado dos estudiosos que apregoam uma autonomia do político em face aos campos do social

e do econômico. Daí, este estudo no limite, propor pontos de intersecções entre a História

Política e a História Cultural160, evidenciando a continuação de uma renovação historiográfica

que favorece de igual forma a História da Educação. Seguindo a autora em questão, cumpre

acrescentar que o poder visto, a partir das relações estabelecidas pelos homens e das

representações econômicas, sociais, culturais e do cotidiano, interessa ao historiador que estuda

a educação por intermédio de um viés político.

Compete acrescentar que o desvelamento das relações e representações sociais e

culturais, juntamente com a presença do imaginário que oportuniza pensar a noção de

dominação simbólica, oferece também ao pesquisador mais uma vez aproximar a História

Cultural e Política, bem como ampliar o campo de estudos e abordagens para o historiador da

educação. Desse modo, as ações dos diversos atores sociais para a construção do processo

histórico educacional foram aquilatadas pelas representações que eles fizeram das sociedades

em seus respectivos tempos. Tais representações estiveram no centro das discussões políticas

que se estenderam do Estado para as escolas.

No texto intitulado “História da Educação e História Cultural”, Thais Nívia de Lima e

Fonseca, após fazer um rápido inventário das transformações historiográficas no século XX,

destaca a importância da História Cultural para as reflexões atuais em torno da História da

Educação. Os temas que se relacionam à educação, através dos tempos, dá ao estudioso161 a

possibilidade de compreender, a partir deles, diversas representações que foram feitas por

homens e mulheres.

No aprofundamento das relações entre História Cultural e História da Educação, deve-

se considerar, segundo Thais Nívia a existência de duas hipóteses. Pode-se asseverar, como

uma primeira hipótese, que a História da Educação seria um campo historiográfico com

160 Veiga ainda insiste sobre a aproximação entre História Política e História Cultural, afirmando o seguinte: “Como poderíamos sintetizar as orientações que vêm definindo o campo da nova história política ? Tais indicações se fazem pelo distanciamento do método da história política tradicional, o que já apresenta possibilidades de desdobramento em um outro método, cujas características estão, evidentemente, bastante coladas ao movimento da nova história de maneira geral e, em particular, com a nova história cultural.” (VEIGA, 2003, p. 22)161 Conforme Thais Nívia de Lima e Fonseca: “De maneira mais explícita, diversos historiadores europeus, ligadas à Nova História e influenciados pelas abordagens propostas, inicialmente pela História das Mentalidades, detiveram-se sobre a educação como uma dimensão importante da conformação cultural de uma sociedade e como um dos indicadores das diferentes relações nela estabelecidas.” (FONSECA, 2003, p. 54)

146

aspectos semelhantes à História Cultural, “isto é, a existência de pressupostos teórico-

metodológicos específicos que a diferenciam de outros campos e que, ainda, pudessem torná-la

referencial para diferentes campos de investigação” (FONSECA, 2003, p. 57). Como segunda

hipótese, a História da Educação é compreendida como campo de investigação influenciada

pelos referenciais teóricos da História Cultural (Ibidem, p. 56).

Isso posto, cabe acrescentar que a relação entre a História Política e a História Cultural

pode ser enriquecida pela presença da antropologia. O conceito de imaginário, que foi muito

utilizado pelos historiadores das mentalidades, pode beneficiar os estudos sobre a educação.

Além disso, noções como circularidade e até referenciais da micro-história podem favorecer as

pesquisas sobre a História da Educação162.

4.2. O Livro na cultura ocidental.

Um significativo número de historiadores ligados à História Cultural vêm se dedicando

mais à história do livro no Ocidente, os quais, ligados a este domínio da História, estão

valorizando o livro como um objeto importante, não só para a compreensão da trajetória

histórica da cultura engendrada pelos intelectuais, como também para a sua difusão dentro da

sociedade. Um deles, Roger Chartier, afirma que na relação com o leitor, o livro e o texto

impressos, os sentidos e os significados da leitura são reinventados freqüentemente163. Logo, os

homens e mulheres, em suas relações com os textos impressos, absorvem-nos de maneira

criativa, engendrado assim um processo de mediação entre a leitura e a realidade. E,

162 Além disso, Thais Nívia refere-se aos chamados mediadores culturais: “Suas propostas de estudo das diversas formas de manifestação dessas culturas e a busca dos diferentes caminhos trilhados na sua constituição levaram à construção do conceito de passeurs culturels, por nós traduzido como mediadores culturais. Os passeurs culturels são elementos – pessoas, objetos – que atuam como mediadores entre tempos e espaços diversos, contribuindo na elaboração e na circulação de representações e do imaginário.” (FONSECA, 2003, p. 68)163 Em artigo intitulado Textos, impressão, leituras, Roger Chartier mais chama a atenção para o seguinte sentido da leitura: “Não obstante, a experiência mostra que ler não significa apenas submissão ao mecanismo textual. Seja lá o que for, ler é uma prática criativa que inventa significados e conteúdos singulares, não redutíveis às intenções dos autores dos textos ou dos produtores dos livros.” (CHARTHIER, 1992, p. 214)

147

prosseguindo com Chartier pode-se perguntar: Como a análise do processo histórico pode

favorecer na compreensão da relação dos leitores com os livros ? (CHARTIER, 1992, p. 215).

Norbert Elias, que é considerado por Roger Chartier um dos grandes precursores da

História Cultural relacionou em sua obra O Processo civilizador: uma história dos costumes, o

desenvolvimento das civilizações no ocidente com a história da leitura e dos livros. Elias ao

desenvolver o conceito de civilização, torna-o amplo, possibilitando que tal conceito abarcasse

uma multiplicidade de fatos: “ao nível da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento

dos conhecimentos científicos, às idéias religiosas e aos costumes” (ELIAS, 1990, p. 24). O

presente autor estabelece ainda uma reflexão entre civilização e cultura, tomando como base a

noção alemã. A noção de civilização, vista na perspectiva de comparação entre os povos,

possibilita ao leitor ver o que há de comum entre os povos, pois tal noção, consoante análise do

sociólogo alemão, tende a uma universalização, enquanto a noção de cultura, sobretudo aquela

advinda dos alemães, prioriza a caracterização nacional. Isso posto, o livro, as práticas de

leitura e as representações que os leitores empreendiam por intermédio das idéias veiculadas

por eles estão em conformidade com o estágio da civilização e cultura de um determinado

povo. Os intelectuais dos Estados alemães pesquisados por Norbert Elias constituem exemplos

de comportamentos e representações de mundos moldados pelas leituras e livros que

expressam valores e idéias das civilizações.

Retornando, a Chartier, a história do livro e dos leitores permite a percepção de como os

significados são apreendidos. Também verifica como os leitores, por intermédio da leitura

representavam o seu mundo a partir daí. Por conseguinte, a análise dos conteúdos dos livros

ajuda igualmente o pesquisador a compreender o papel dos livros para o leitor no que concerne

à representação do seu tempo (Ibidem, p. 215). Os livros, por conseguinte, permitem aos

homens a interiorização de idéias que muitas vezes se transformam em crenças e atitudes as

quais os impulsionam a atuar e a mudar a sua realidade.

O papel e o significado dos livros para as representações que os homens realizam sobre

os seus tempos estão ligados à maneira como os livros e os textos em geral se disseminam pela

sociedade. Portanto, entender os caminhos que o levam até o leitor torna-se tarefa importante.

Nas palavras de Robert Darnton em O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução, o

percurso que leva o livro ao consumidor segue o seguinte itinerário: “Este pode ser descrito

como um circuito de comunicação que vai do autor ao editor (se não é o livreiro que assume

148

esse papel), ao impressor, ao distribuidor, ao vendedor, e chega finalmente ao leitor”

(DARNTON, 1990, p. 112). Logo, o autor pensado em função do circuito representado por

Darnton, acaba não sendo o único a ter o controle de sua obra, pois suas idéias e representações

da realidade, na verdade, só se concretizam a partir do editor e dos eleitores.

Darnton revela-nos na obra, cujo título destacamos acima, que no século XVIII havia

um mercado editorial em formação na França pré-revolucionária164. Mas, o comércio livreiro

não era realizado de forma homogênea pois, se de um lado havia os grandes livreiros que já

contavam com uma estrutura, avançando firmemente para os padrões capitalistas de produção e

distribuição, de outro lado os pequenos livreiros ainda estavam reféns de produções e de

distribuições artesanais, por conseguinte com feições pré-capitalistas (Ibidem, p. 116-117). No

entanto, algumas lacunas precisam ser preenchidas sobre a história do livro que ainda não

alcançou destaque em muitos países. Uma delas expressa-se na seguinte questão: Como se

constituía uma carreira literária ? E, como desdobramento: Como funcionava a relação entre os

escritores, os editores, o mercado editorial e o público no geral ?

A carreira de escritor estava intrinsecamente vinculada aos editores, bem como ao

mercado editorial e aceitação de sua obra pelo público. Darnton diz-nos, tomando como base a

realidade francesa, que os editores estabeleciam acordos com os autores, além de firmarem

parcerias com os livreiros para a difusão do seu produto. Há de se acrescentar que a penetração

de uma dada obra dependia também da habilidade do editor no que diz respeito ao contato com

as autoridades políticas (Ibidem, 1990, p. 124).

No que tange especificamente à relação entre o escritor, os seus escritos e público,

devemos considerá-la funcionando como uma via de mão dupla, ou seja, se de um lado a

leitura gera no leitor determinadas habilidades para compreender e representar o seu contexto

histórico, de outro, o leitor influenciado pelos valores do seu tempo lê um certo texto,

tangenciando um pouco o próprio objeto de leitura. Nas palavras de Darnton: “A história da

leitura terá de levar em conta a coerção do texto sobre o leitor, bem como a liberdade do leitor

com o texto. A tensão entre essas tendências existe sempre que as pessoas estão diante de

livros, e gerou alguns resultados extraordinários, como a leitura dos Salmos por Lutero, a

164 Por intermédio de Rigaud, livreiro que já trabalhava de acordo com as demandas do mercado, Darnton atesta tal mercado em formação: “Dessa forma, ele conservava o capital, minimizava os riscos e montou um estoque tão grande e diversificado que sua livraria se tornou um centro de atendimento de todos os tipos de demandas literárias na região.” (DARNTON, 1990, p. 115)

149

leitura de Le misantrope por Rousseau, a leitura do sacrifício de Isaac por Kierkegard”

(Ibidem, p. 128).

Cabe ainda considerar que a leitura e a palavra imprensa motivaram uma maior

circulação de idéias165. O historiador e os demais estudiosos da área de humanas, portanto,

devem perceber o quanto o livro divulgava valores e representações de um dado contexto

histórico. Nesse sentido, as reflexões de Darnton ajudam-nos a analisar que, nas sociedades

contemporâneas, o livro didático contribui decisivamente para a moldagem do perfil intelectual

tanto dos alunos, quanto dos professores. Os conhecimentos históricos assimilados e

representados pelos docentes e discentes das escolas do ensino médio sofrem a influência

direta dos conteúdos e idéias veiculadas por tais livros.

4.3. O Livro didático no Brasil.

A imposição, cada vez mais do livro didático como objeto de estudo nas instituições de

ensino superior no Brasil, faz parte das reflexões que envolvem as relações entre o saber

escolar e o saber acadêmico. Tais reflexões, entretanto almejam superar teses que apregoam a

superioridade do saber acadêmico que, muitas vezes, inferioriza o lugar ocupado pelo livro

didático no processo de ensino-aprendizagem. Os manuais didáticos, por sua vez, são

portadores não só dos saberes acadêmicos, como também daqueles engendrados nas escolas

que experimentam as relações entre professores e alunos.

Em texto intitulado “O conceito de história-ensinada: entre a razão pedagógica e a razão

histórica”, Carmen Teresa Gabriel destaca inicialmente a necessidade da ampliação dos

debates sobre os livros didáticos, embora reconheça que tal objeto cultural vem recebendo

crescente atenção dos estudiosos brasileiros. Assim, o reconhecimento da importância desses

manuais para a educação, confirma que: “De fato, criticado ou idolatrado, o livro didático 165 No livro Leituras e leitores na França do Antigo Regime, Roger Chartier assevera que os livros e as práticas de leituras estão inseridas dentro do seu contexto histórico e cultural. Assim, conforme o autor: “Uma vez escrito e saído de prensas, o livro, seja lá qual for, está suscetível a uma multiplicidade de usos. Ele é feito para ser lido, claro, mas as modalidades do ler são, elas próprias, múltiplas, diferentes segundo as épocas, os lugares, os ambientes. Durante muito tempo, uma necessária sociologia da desigual distribuição do livro mascarou essa pluralidade de usos e fez esquecer que o impresso, sempre, é tomado dentro de uma rede de práticas culturais e sociais que lhe dá sentido”. (CHARTIER, 2003, p. 173)

150

continua sendo uma referência de peso, um suporte pedagógico de veiculação do saber

histórico escolar, dos mais utilizados” (GABRIEL, 2005, p. 241). Isso posto, como mensurar o

debate acadêmico recente em torno do livro didático ?

Carmem Teresa Gabriel propõe três momentos distintos, tomando como ponto de

partida os anos de 1970. No primeiro momento estão elencadas a discussões que têm como

pressupostos teóricos os conceitos de ideologia e de classes que serviram de alicerce para a

rotulação do livro didático como instrumento divulgador de estereótipos166. O livro de Maria de

Lourdes Chagas Deiró, As Belas Mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos, insere-

se nesta perspectiva, pois, a partir de uma expressiva pesquisa realizada no Espírito Santo, a

autora chegou à conclusão de que os livros didáticos adotados disseminavam a ideologia

dominante, contribuindo assim para a manutenção da opressão em relação as classes

dominadas167. Então, tais objetos culturais estariam a serviço da justificação da ordem

dominante168. A matriz teórica marxista169, que sustentava tal visão, começou a ser posta em

xeque, “reabilitando”, por isso o livro didático.

O segundo momento inicia-se a partir de estudos que pretendem questionar a noção que

associa o livro didático como portador pura e simplesmente da ideologia dominante, pois esses

manuais, confeccionados dentro de um determinado contexto histórico, acabam refletindo as

contradições sociais do seu tempo. Além disso, aos poucos os manuais escolares são resgatados

em sua importância como instrumentos importantes para a relação ensino-aprendizagem. As

166 Em artigo denominado “Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil”, Kazumi Munakata diz que nos anos de 1970 e 1980 houve no Brasil a divulgação de obras que considerava o livro didático como portador de ideologias que estavam em conformidade com os interesses das classes dominantes. Nas palavras de Munakata: “Nos anos de 70 e 80, um gênero literário fez relativo sucesso no Brasil: o que poderia denominar ‘As Belas Mentiras’. Tendo talvez como matriz a obra Mentiras que parecem verdades, de Eco e Bonazzi (1980), ou também A manipulação da história no ensino e nos meios de flagrar nos livros didáticos e paradidáticos brasileiros a presença insidiosa da mentira, da manipulação, do preconceito, da mistificação, da legitimação da dominação e da exploração burguesas – em suma, da ideologia.” (MUNAKATA, 2003, p. 271)167 Maria de Lourdes Chagas Deiró, além de considerar que os livros pesquisados reproduziam a ideologia dominante capitalista, busca colocar em destaque a noção de que a educação em seus aspectos gerais difunde a ideologia da classe dominante. Há de se acrescentar que a autora estudou como a ideologia dominante capitalista dominante estava presente em temas como a família, a escola, a pátria, dentre outros.168 O livro Ideologia no livro didático de Ana Lúcia G. de Faria analisa as representações sobre o trabalho nos livros didáticos direcionados às primeiras séries do ensino. Nesse sentido, em conformidade com o trabalho de Maria de Lourdes Chagas Deiró, propõe como tese a idéia de que o livro didático dissemina entre as crianças a ideologia dominante capitalisa. 169 A matriz teórica marxista à qual nos referimos trata do reducionismo econômico que muitas vezes impede que o estudioso possa perceber o objeto estudado sob vários ângulos. Cumpre acrescentar que o reducionismo marxista vem sendo, criticado por setores do pensamento marxista, principalmente aqueles ligados ao marxismo inglês que comporta nomes de peso como Thompson. Aliás, tal estudioso como já foi dito neste mesmo capítulo, enveredou os seus estudos para a História Cultural sem abandonar o legado teórico de Marx.

151

análises refletem uma tendência que se consolida posteriormente, ou seja, os livros destinados

às escolas têm uma função importante para o ensino e têm algo a dizer na compreensão da

educação. Tais estudos, porém, não preterem o Materialismo Histórico, pois conforme Carmem

Teresa Gabriel:

Se, por um lado, a chegada do paradigma marxista no campo da educação foi indispensável para se redimensionar a vertente política e a questão do poder, inerente a todo processo educativo, por outro lado, a utilização dos conceitos importados do campo da sociologia, sem o devido tratamento empírico, acarretou um empobrecimento destes próprios conceitos, que passaram a ser usados de forma mecânica, como também a deslegitimação da escola que passou a ser identificada apenas enquanto instância reprodutora da ideologia dominante, sem a menor autonomia ou capacidade de intervenção na sociedade (GABRIEL, 2005, p. 244).

A crítica à idéia que associa linearmente a escola e o livro didático como reprodutores

da ideologia dominante insere-se na renovação e revigoramento da teoria marxista nos meios

universitários brasileiros. Então, descortinam-se outros caminhos para diferentes análises sobre

esses livros, que favorece no limite o entendimento deles à luz da evolução do processo

histórico-educacional brasileiro.

No terceiro momento, os pesquisadores almejam ampliar o foco de estudo, trazendo à

tona novos objetos de estudos que priorizam a relação do livro didático com as disciplinas

escolares, e também outras questões que envolvem a escola e a educação. Por conseguinte, há

“a entrada ou retorno da razão pedagógica no debate acerca dos livros didáticos de história”

(Ibidem, 2005, p. 245). O conhecimento histórico engendrado nos manuais tornou-se, portanto

mais investigado a ponto de os estudiosos concebê-los não simplesmente como agentes de uma

suposta ideologia dominante. Além disso, buscou-se questionar e relativizar igualmente a tese

de que esses instrumentos didáticos distorciam os conhecimentos produzidos nas academias

brasileiras. Mas, os erros não deixaram de ser focalizados ! Isso posto, como pensar o livro

didático no Brasil na educação brasileira ?

O livro didático, que é um objeto cultural, embora tenha sua trajetória histórica no

Brasil forçosamente ligada à educação e as disciplinas escolares, tem um percurso histórico

que se insere na história dos textos impressos. Logo, pensar tais manuais significa também

relacioná-los a seu processo de produção, bem como sua aceitação e formatação pelo mercado.

Por isso, além de situá-lo no seu contexto histórico, é imperativo considerá-lo na sua dinâmica

152

de produção, distribuição e consumo170. Como problematizar o livro didático, enquanto um

objeto de pesquisa ?

Circe Bittencourt considera-o como um dos produtos didáticos mais presentes na escola,

através dos tempos. No entanto, defini-lo não constitui uma tarefa fácil. Além disso, as

possíveis críticas a tais manuais podem, segundo Bittencourt, escamotear uma possível

pretensão dos críticos, ou seja, crer que seja possível projetar e concretizar um livro “didático

ideal” (BITTENCOURT, 2004, p. 300). Desse ponto, a crítica ao livro didático não deve ficar

somente em torno dos seus erros de conteúdos e, sim, reconhecer que os vícios da educação

brasileira, bem como a insuficiente formação do professor contribui para a disseminação de

precários manuais didáticos171. Além disso, seguindo de perto as reflexões de Cláudia

Wasserman, os meios acadêmicos devem pensar, simultaneamente, a formação teórica do

professor e os livros didáticos que são postos no mercado editorial. (WASSERMAN, 2000, p.

255).

Kazumi Munakata considera as possíveis interrogações sobre o livro didático. Deve-se

levar em conta, em primeiro lugar que esse objeto é confeccionado por um conjunto de

profissionais dentro de uma rede de produção cujo objetivo é o mercado editorial. Em segundo

lugar, o livro didático é confeccionado com o fim de atender as disciplinas escolares. O autor

destaca, por isso, a importância do livro didático como meio de divulgação do saber acadêmico

nas escolas brasileiras do ensino fundamental e médio, portanto, os livros didáticos não são

obstáculos para a popularização do conhecimento científico nas escolas (MUNAKATA, 2000,

p. 304).

Por isso, a investigação sobre o conteúdo dos manuais escolares, não nos parece

suficientemente para a definição deles. É imperativo tomar como objeto de investigação

170 Maria Auxiliadora Schmidt e Marlene Cainelli, no livro Ensinar História, chamam a atenção do livro didático no que tange ao seu aspecto pedagógico a partir dos seguintes pontos: “Por essas considerações, e do ponto de vista estritamente pedagógico, estudos sugerem que os livros precisam ser considerados com base em pelos menos, três pontos principais: a relação entre educação e livros didáticos, a relação com as perspectivas de popularização do saber e dos critérios de análise e sua utilização.” (SCHMIDT; CAINELLI, 2004, p. 136)171 Cláudia Wasserman no artigo “O Livro didático: aspectos teórico-metodológicos relevantes na sua produção” conduz-nos a um debate em que relaciona o livro didático aos problemas da educação brasileira e ao desafio em pensar os conteúdos teóricos-metodológicos em função do ensino fundamental e médio. E, com relação ao posicionamento do docente quanto aos debates sobre o livro didático, ela nos diz o seguinte: “O professor deve estar preparado para entender e participar dos debates teórico-metodológicos que estão por trás de aparentes erros conceituais do livro didático. Aparentes porque, na verdade, o que chamamos de erros conceituais do livro didático são reflexo de discussões acadêmicas levadas adiante em nome do desenvolvimento científico e, muitas vezes, os escritores dos livros tomam partido de um dos lados da polêmica, exaltando as qualidades de estudar aquele viés da História das sociedades.” (WASSERMAN, 2000, p. 254)

153

igualmente que tais produtos educativos são feitos por um autor cujo trabalho é determinado

por um editor que possui uma equipe responsável pela formatação da mercadoria e que tem no

limite a missão de gerar lucros. A dinâmica descrita acima, embora mais complexa nos dias de

hoje, esteve presente na história mais recente do livro172.

Explicitando melhor, no que se refere à dinâmica educacional, o livro didático

determina a confecção de currículos e programas escolares e o cotidiano da sala de aula

(Ibidem, p. 301). Os manuais didáticos influenciam concepções pedagógicas, a partir do

momento em que elas são efetivadas nas escolas, pois, muitas vezes, eles são os únicos

instrumentos que tornam possível a mediação entre concepções pedagógicas, professores e

alunos (GALVÃO; BATISTA, 2003, p. 166). Entretanto, eles são influenciados pelas políticas

educacionais expressadas nos currículos escolares e também são gerados a partir das

experiências das salas de aulas. Os livros didáticos refletem ainda o seu tempo, não só quanto

ao conteúdo, como também quanto ao seu projeto editorial que está ancorado na dinâmica do

mercado. Com relação ao conteúdo, a formação do autor, sua concepção de história e a

atualização quanto à historiografia, são aspectos fundamentais para a compreensão desses

instrumentos didáticos para a veiculação de valores e ideologias. No que diz respeito ao caráter

editorial, a presença cada vez maior de um número também maior de funcionários para a

confecção dos livros e o cuidado com a linguagem e as imagens, atestam uma produção que se

vincula, cada vez mais, com as determinações do mercado.

*

* *

Nas diversas sociedades do mundo ocidental, o uso do livro didático vincula-se

diretamente a um sistema administrativo escolar. O Estado, que se tornou também um condutor

das políticas educacionais, acabou por regular tais manuais didáticos. Os governos, por mais

172 Anne-Marie Charier diz-nos que no século XIX francês, a seleção e distribuição dos manuais didáticos estavam determinadas pelo Estado. Igualmente ocorreu uma vinculação entre editoras, Estado e distribuição.

154

que fossem sensíveis às ações da iniciativa privada, nunca deixaram de regulamentar a

educação, as idéias e as noções que eram veiculadas. No entanto, como explicar as origens dos

materiais voltados para o ensino ?

Décio Gatti assevera que muitos estudantes universitários europeus, antes da invenção

da imprensa, chegaram a criar os seus próprios “cadernos de textos”, na medida em que os

livros disponibilizados não eram suficientes para todos. Com a invenção da imprensa, porém,

houve um crescimento da reprodução de livros, na perspectiva de uma disseminação maior do

conhecimento. Compete acrescentar que: “Percebe-se, desse modo, que os livros didáticos

eram vistos desde o século XVII como tendo a função que conservam até os tempos atuais: a

de portador dos caracteres das ciências” (GATTI JÚNIOR, 2005, p. 381).

Ao se associar o livro didático no século XVII ao conhecimento científico, deve-se

registrar que esta noção liga-se à idéia iluminista de que o livro deve ser o veículo que divulga

a ciência e a razão. Logo, o livro didático na concepção iluminista reforça igualmente o papel

da escola como o espaço divulgador do conhecimento científico e da razão.

Prosseguindo as reflexões de Décio Gatti Júnior, pode-se considerar que a noção

iluminista sobre o livro didático marcou a história do livro didático no Brasil. Tal assertiva

ancora-se na idéia de que: “No Brasil, até a década de 1920, a maior parte dos livros didáticos

era de autores estrangeiros, editados e impressos no exterior, especialmente na França e em

Portugal” (Ibidem, p. 382). Compete acrescentar que, embora o ensino de História do Brasil

fosse valorizado e portasse noções que valorizassem o Estado Nacional brasileiro, a História

geral angariava grande prestígio e prevalecia no currículo de História.

As transformações educacionais que ocorrem aos poucos no Brasil a partir da década de

1930, repercutem também em relação aos livros didáticos que passaram, paulatinamente, a

serem confeccionados por autores brasileiros. Autores provenientes do colégio D. Pedro II, que

alcançou fama desde o século XIX, começaram a ganhar destaque na produção desses livros.

Mas essas obras ainda estavam limitadas à existência de um incipiente mercado editorial,

juntamente com a ausência de uma linguagem adequada para os alunos daquele período

(Ibidem, p. 382). Cabe acrescentar que tais características e tendências permaneceram, em

linhas gerais até a década de 1960.

Em estudo intitulado de “Em Busca da qualidade: Pnld História – 1996-2004”, Holien

Gonçalves Bezerra e Tânia Regina de Luca consideram que desde o século XIX, no Brasil, há

155

uma tendência do Estado brasileiro em se preocupar com os conteúdos dos materiais didáticos,

impressos a serem utilizados nas escolas. Essa tendência, que se configurava, estava em

conformidade com as políticas educacionais dos tradicionais Estados europeus do ocidente

europeu em relação aos manuais escolares173. Assim, especificamente em relação ao ensino de

História tanto nos Estados tradicionais europeus, quanto no Estado brasileiro houve

preocupação de formular políticas que disciplinassem tal ensino.

Os manuais didáticos que versavam sobre a História do Brasil do século XIX eram

feitos por escritores que angariaram prestígio nacional. E, de uma maneira geral, os conteúdos

expostos tinham o objetivo de exaltar os grandes acontecimentos, concomitantemente aos

feitos dos chamados grandes personagens que no limite remetia os alunos a valorizarem a

nacionalidade brasileira. O conhecimento e as representações dos conhecimentos históricos

veiculados nos manuais, além de fragmentados, não favoreciam o desenvolvimento da análise

crítica entre os estudantes.

No Estado Novo, os conteúdos de história também tinham a pretensão de exaltar a

pátria e os valores nacionais. Percebe-se uma ingerência mais contundente do governo federal,

no que tange ao livro didático, daí ocasionando a criação de uma Comissão Nacional de Livros

Didáticos que regulamentaram normas, não só para a produção e compra, como também para o

uso do livro didático no Brasil daquela época (MIRANDA; LUCA, 2004, p. 124)174. Tal

preocupação com a regulamentação, concernente aos manuais, relacionam-se segundo Sônia

Regina Miranda e Tânia de Luca à ideologia estadonovista. Nas palavras das autoras: “Nesse

sentido, a educação constituiu-se em veículo privilegiado para introdução de novos valores e

modelagem de condutas, sobretudo com base nos mecanismos prescritivos no campo do

currículo e do material instrucional, entre os quais o livro didático emergia como peça

ideológica fundamental, que desempenha importante papel estratégico na difusão dos valores

apregoados pelo regime” (Ibidem, p. 125). Por isso, o livro didático de História e o sistema

educacional do período em questão estavam sintonizados com os valores e símbolos do Estado

173 Holien Gonçalves Bezerra e Tânia Regina de Luca afirmam ainda o seguinte sobre a preocupação dos Estados europeus sobre os manuais didáticos: “É conhecida a importância atribuída às coleções de livros didáticos na França da Terceira República, que consagrou o modelo de escola laica, gratuita e obrigatória.” (BEZERRA; DE LUCA, 2006, p. 27)174 Holien Gonçalves Bezerra e Tânia Regina de Luca destacam a criação do Ministério da Educação e Saúde como “um marco inicial para a fase de ações concretas em relação à produção, compra e distribuição de livros didáticos”. Além disso, no ano de 1939 houve a criação da Comissão Nacional do Livro Didático que tinha como incumbência analisar o conteúdo dos manuais didáticos.

156

Novo, que expressavam evidentes feições totalitárias. A história ensinada no período acabava

justificando o processo de centralização política da época, vendendo a imagem de um Estado e

governo que levariam o Brasil para o caminho do progresso e de uma nação forte. As

representações dos períodos anteriores da história brasileira na época explicam muito mais o

período varguista do que os períodos que o antecederam175.

A presença mais evidente do Estado brasileiro no tocante ao controle sobre o livro

didático ocorreu em pleno regime militar (1964-1985). Delimitando melhor, no ano de 1966 a

criação da Comissão do Livro Técnico e Livro Didático (COLTED), comprova isso. O

programa do livro didático naquele momento conseguiu o apoio financeiro oriundo “do acordo

MEC-USAID (United States Agency for internacional Development)” (BEZERRA; LUCA,

2006, p. 80). O crescimento da demanda escolar fez com que o livro didático passasse a

orientar o trabalho docente com mais freqüência. Além disso, a precariedade da formação de

muitos docentes, juntamente com a ausência de uma política de formação contínua para os

nossos professores, tornou tal “artefato cultural” um mediador privilegiado entre o educador e

os seus alunos176.

Na década de 1970, as ações do governo brasileiro foram intensificadas em relação aos

manuais didáticos, por intermédio da criação do Instituto Nacional do Livro Didático (INLD).

Tal instituto administrou os recursos financeiros que foram canalizados para o Programa do

Livro Didático para o Ensino Fundamental (PLIDEF). Ao longo do regime militar, embora a

aquisição e a distribuição tenham ocorrido de forma específica de acordo com o momento,

pode-se asseverar que ela foi determinada pelo Estado autoritário, cerceador das liberdades

175 Marc Ferro, cujas reflexões sobre o ensino de História exerceram uma forte influência sobre os pesquisadores nos estudos sobre os livros didáticos, diz o seguinte no prefácio do livro A Manipulação da História no ensino e nos meios de comunicação: “Não nos enganemos: a imagem que fazemos de outros povos, e de nós mesmos, está associada à História que nos ensinaram quando éramos crianças. Ela nos marca para o resto da vida. Sobre essa representação, que é para cada um de nós uma descoberta do mundo e do passado das sociedades, enxertam-se depois opiniões, idéias fugazes ou duradouras, com um amor...mas permanecem indeléveis as marcas das nossas primeiras curiosidades, das nossas primeiras emoções.” (FERRO, 1983, p. 11)176 No período que se estende entre as décadas de 1970 e 1990, embora ocorresse em alguns círculos universitários uma preocupação com o ensino de História e a formação do professor, prevalecia na prática um divórcio entre o saber acadêmico e o saber escolar. Por conseguinte, os temas de dissertações de mestrado e doutorado que enfocavam o ensino de História ainda eram pequenos. Há de se acrescentar que nos meios universitários brasileiros, predominava a cultura que estimulava a formação do pesquisador em detrimento do professor. Por fim, as disciplinas de cunho mais pedagógico eram desvalorizadas, inclusive pelos alunos.

157

democráticas177. No ano de 1983 a Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), “assumiu as

responsabilidades para com o livro didático” (Ibidem, p. 31).

O ano de 1985, além de marcar o fim do governo militar, determinou o início do

processo de transição para o regime democrático. Nesse sentido, o Programa Nacional do Livro

Didático (PNLD) substituiu os órgãos que regulamentaram o livro didático no Brasil. A

compra e a distribuição do livro didático com recursos público passou a ser feita pela FAE. Foi

na década de 1990, entretanto, que o Estado, através do Plano Decenal de Educação para

Todos estabeleceu como objetivo melhorar qualitativamente os manuais didáticos. Como

corolário disso, chegou-se à conclusão de que a melhoria da avaliação dos livros, estava

inegavelmente vinculada ao aperfeiçoamento profissional do professor brasileiro. Cabe ainda,

informar, que no ano de 1994, o governo federal, por meio do Ministério da Educação criou

uma comissão composta por especialistas de áreas distintas para analisar os conteúdos

programáticos dos livros didáticos mais requeridos pelos docentes para “as quatro séries

iniciais do Ensino Fundamental” (Ibidem, p. 32).

Após, o trabalho da comissão de 1994, que identificou problemas sérios nos livros

voltados para os alunos das séries iniciais, o Ministério da Educação iniciou de fato, em 1996,

uma avaliação sistemática dos manuais escolares. Foi determinado que o governo só efetuaria a

compra de livros que fossem aprovados por tal avaliação oficial178. Assim, se o governo por

intermédio de recursos públicos adquiria os manuais didáticos para serem distribuídos nas

escolas, e portanto tornava-se o principal cliente das editoras, era imperativo que ele

aperfeiçoasse e criasse mecanismos cada vez mais eficientes para selecionar as principais obras

disponíveis no mercado. Ao longo da década de 1990, verificava-se ainda a ausência de uma

política pública que dispusesse recursos para a capacitação docente. Logo, pode-se perguntar:

177 Segundo Sonia Regina Miranda e Tânia Regina de Luca o período autoritário assim se fez presente sobre a educação e a produção didática: “Neste contexto particular, destaca-se o peso da interferência de pressões e interesses econômicos sobre a história ensinada, na medida em que os governos militares estimularam, por meio de incentivos fiscais, investimentos no setor editorial e no parque gráfico nacional que exerceram papel importante no processo de massificação do uso do livro didático no Brasil.” (MIRANDA; DE LUCA, 2004, p. 125)178 Segundo mais uma vez o texto de Holien Gonçalves Bezerra e Tânia Regina de Luca a avaliação tomou como referência os livros que seriam destinados aos alunos da 1ª. a 4ª. Séries que foram a base do PNLD de 1997. Além disso, segundo os autores: “O processo ocorreu sob a formação da Secretaria do Ensino Fundamental (SEF) do MEC. Foram nomeados coordenadores para cada área do conhecimento – Ciências, Geografia, História, Língua Portuguesa e Matemática – que por sua vez, selecionaram professores para atuarem como avaliadores." (BEZERRA; DE LUCA, 2006, p. 32)

158

Como melhorar o ensino de História, investindo na melhoria do livro didático e não na

formação contínua do professor ?

O trabalho de avaliação de obras e coleções didáticas em três PNLDs fez com que o

Ministério da Educação, por intermédio das coordenações, repensasse e aprofundasse todo o

processo avaliativo. Ao longo do ano de 2000, portanto a Secretaria de Ensino Fundamental

promoveu aquilo que ficou conhecido por “avaliação da avaliação” (Ibidem, p. 33). O

desdobramento disso foi a publicação do balanço conhecido como “Recomendações para uma

Política de Livros Didáticos” (Ibidem, p. 33). Esse documento foi importante, na medida em

que serviu de parâmetro para os PNLDs que vieram depois. Sendo assim, a consolidação do

Programa Nacional do Livro Didático, além de fortalecer o processo avaliativo dos manuais

didáticos, forneceu aos meios escolares no Brasil novas ferramentas para se repensar o livro

didático para a educação brasileira. Nas palavras de Sonia Miranda e Tania de Luca:

Ainda que o processo de aperfeiçoamento dos critérios e procedimentos de avaliação seja bastante recente, a relação de continuidade dessa política por quase uma década teve efeitos incontestáveis na forma e no conteúdo do livro didático brasileiro. Na área de História é patente a transformação: de um cenário marcado pelo predomínio de obras que veiculavam, de modo explícito ou implícito, todo tipo de estereótipo e/ou preconceitos, para um quadro em que predominam cuidados evidentes, por parte de autores e editores, em relação aos critérios de exclusão de uma obra didática. (MIRANDA; LUCA, 2004, p. 127)

A presença do Estado regulamentando a educação brasileira, gerou conseqüências na

organização curricular das escolas e em relação aos materiais didáticos trabalhados pelos

professores. O livro didático não deve ser só avaliado pelos conteúdos e idéias que ele veícula.

Por isso, há que se considerar igualmente além do papel do Estado, a maneira como ele é

produzido e divulgado.

*

* *

159

Na década de 1970 ocorreram mudanças na produção e divulgação do livro didático que

até hoje caracterizam o mercado editorial no Brasil. Uma das mais visíveis diz respeito aos

autores, ou seja se até a década de 1960 os escritores confeccionavam as suas obras de modo

individual, a partir dos anos de 1970, em função das determinações do novo mercado editorial,

eles passaram na realidade a fazer parte de uma equipe que tinha como objetivo produzir um

produto capaz de atingir o seu público-alvo: as instâncias governamentais e os professores.

Pode-se acrescentar, conforme livro de autoria de Décio Gatti Júnior, A Escrita escolar da

História: o livro didático e ensino no Brasil (1970-1990) que, a partir de 1970, a produção de

livros didáticos cresceu consideravelmente, chegando no topo do mercado editorial brasileiro

(GATTI, 2004, p. 43).

As propostas de mudanças para o ensino de História, juntamente com as que propunham

novos caminhos para a formação do professor, contribuíram para a implantação de uma nova

política editorial para o livro didático, notadamente a partir do período que se estende de 1970

a 1990. Desse modo, as críticas feitas sobre os erros de conteúdo, concomitantemente aos

estereótipos e preconceitos encontrados nos livros didáticos, favoreceram as mudanças, nos

conteúdos teóricos e no seu formato. Compete esclarecer que as avaliações realizadas pelas

comissões do Ministério da Educação apontavam erros conceituais dos manuais e também

indicavam aqueles livros que possuíam uma boa formatação. Essas transformações incidiram

sobre a produção industrial que foi intensificada no período discriminado acima

(NUMAKATA, 2001, p. 274).

No que diz respeito à produção dos manuais didáticos o processo de incremento

industrial veio acompanhado de uma competição acirrada entre os editores. A situação assim

fez com que um livro didático ou mesmo uma coleção tivessem que ser periodicamente

revisadas para não perder força no mercado179. Um dos sintomas de tal mudança diz respeito ao

vocabulário dos manuais que passou a estar mais perto da realidade do educando, afastando-se

de um vocabulário mais acadêmico. A transformação do perfil dos autores de livros didáticos

foi um desdobramento natural desse novo contexto. Os autores, em razão das necessidades de

179 Numakata no artigo “História que os livro didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil”, relaciona uma série de informações que atestam a complexificação, no que tange à produção do livro didático. Segundo o autor: “As próprias editoras reorganizam o processo de trabalho, consolidando-se como verdadeiras indústrias. Empresas que antes funcionavam com três ou quarto trabalhadores capazes e dispostos a fazer todo tipo de serviço foram recrutando mais e mais profissionais, distribuindo-os numa minuciosa divisão de trabalho de acordo com funções cada vez mais especializadas: edição e copidesque, leitura crítica, revisão, edição de arte, diagramação e paginação, ilustração, pesquisa iconográfica etc.” (NUMAKATA, 2003, p. 275)

160

um mercado cada vez mais competitivo, tiveram que adequar as suas linguagens a um público

que se diversifica muito e que trazia consigo uma escolaridade precária. Mas, como

caracterizar o perfil dos autores que escreveram livros didáticos a partir dos anos de 1970 ?

Os escritores de livros didáticos, a partir dos anos de 1970, foram desafiados a

escreverem um texto que fosse acima de tudo acessível para os estudantes que faziam parte de

uma escola que se massificava paulatinamente. Logo, a medida da eficácia dos manuais tinha

como parâmetro principal a sua funcionalidade, tinha que estar sintonizado com uma

linguagem que atraísse e levasse o aluno a compreender os conteúdos educacionais. Impõe-se

aos editores e escritores a criação de um material didático em consonância com os saberes

escolares.

O autor de A Escrita escolar da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990)

realizou em seu trabalho entrevistas com profissionais de História que se tornaram autores de

livros didáticos muito conhecidos que tinham uma larga experiência nos atuais ensino

fundamental e médio. Eles beneficiaram-se igualmente do material didático produzido em sala

de aula. Além disso, todos os pesquisadores entrevistados por Gatti também atuaram no ensino

superior. Assim, as experiências adquiridas por eles nas salas de aulas foram fundamentais para

a sedimentação de uma linguagem própria, favorecendo por isso o processo de ensino

aprendizagem180. Há de se acrescentar que tal tendência persiste, ensejando com isso a

continuação do processo de profissionalização da produção do livro didático.

Ao atuar em conformidade com as políticas públicas relacionadas ao livro didático, as

editoras brasileiras, ao produzirem os manuais de História, passaram a recrutar profissionais da

área. Desse modo, ocorre aos poucos a substituição dos profissionais que não eram da área

pelos profissionais graduados em História. Nas palavras de Décio Gatti: “O fato das editoras

manterem coleções de História com autores de área diversa da publicação era, sem dúvida, um

risco que as editoras pareciam não querer correr mais” (GATTI JÚNIOR, 2004, p. 52).

180 No artigo “Entre políticas de estado e práticas escolares: uma história do livro didático no Brasil”, Décio Gatti assinala algumas aspectos que marcaram o livro didático no Brasil a partir da década der 1970, dentre as quais: “1) tiveram grande aumento na velocidade de elaboração e renovação, como conseqüente mudança dos autores de livro didáticos que são cada vez mais solicitados a exercer atividades de divulgação de suas próprias coleções; 2) passaram a comportar diferentes propostas didático-pedagógicas de claro teor cognitivista na configuração das metodologias de ensino; 3) Sofreram modernização gráfica e editorial, sendo produzidos pela indústria, com o concurso do trabalho de diversos profissionais especializados; 3) Assinalam a mudança do perfil dos autores que passaram a ser professores das escolas destinadas às classes médias com larga experiência no magistério e, em menor escala, professores que tiveram carreira acadêmica nas faculdades e universidades do país.” (GATTI JÚNIOR, 2005, p. 383-384)

161

No processo de produção do livro didático, os novos autores ganharam a companhia de

novos profissionais. As determinações dos órgãos públicos e as tendências do mercado levaram

as editoras a estabelecerem a formatação e conteúdo dos livros e a incluírem novos

profissionais que, de uma maneira direta ou indireta, influenciaram a disposição dos conteúdos

e outros aspectos da composição dos manuais. Tal tendência acentua-se e consolida-se no

decorrer dos anos de 1990181. Compete acrescentar que na produção e absorção do livro

didático formou-se uma rede que envolve o mercado, as instituições escolares, os professores e

os alunos. (MIRANDA; DE LUCA, 2004, p. 131).

Os livros didáticos engendrados pelos novos autores, bem como os novos processos de

produção, trouxeram mudanças significativas para os manuais didáticos brasileiros. Delineando

melhor, os livros destinados ao ensino de História melhoraram significativamente pelo

conteúdo, e pelas características sobre o aspecto gráfico. Eles foram enriquecidos com mapas,

textos de aprofundamento, gravuras, indicações de usos de filmes, etc. O resultado disso, foi

uma avaliação positiva do Ministério da Educação. Os livros de História, contudo que caíam

no gosto de professores, não eram muitas vezes aqueles que eram bem conceituados pelos

órgãos governamentais. Embora fossem aceitos em função de uma linguagem acessível e de

fornecerem dicas ao docente de como se desenvolver uma determinada atividade, os livros

eram portadores de uma concepção de história que se ancorava fundamentalmente na descrição

de fatos narrados em uma perspectiva cronológica. Assim, pode-se concluir sem nenhuma

dificuldade que as novas metodologias e teorias sobre o ensino de História não foram

interiorizadas pelos professores daquele contexto. Compete acrescentar que, em boa parte das

escolas públicas do ensino médio brasileiro, o livro didático não era sequer adotado. As

palavras de Décio Gatti resumem bem tal questão:

Na década de 1990, os professores das escolas públicas do ensino médio dificilmente adotavam livros didáticos e quando os adotavam tinham que ser muito tolerantes com a maioria dos alunos que não os adquiriam. Mas essa escola de ensino médio possuía poucos alunos que conseguiam ingressar nas melhores universidades sem fazer “cursinhos” particulares. O que fica patente nesta questão, do acesso aos livros didáticos, é que ele acabava por ser uma marca a mais de distinção e, por conseqüência, de discriminação social. os melhores professores, os melhores livros,

181 Gatti Júnior no livro A Escrita escolar da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-199), diz ainda o seguinte: “Na década de 1990, os autores já parecem saber de antemão sob qual padrão devem trabalhar. O formato do livro, suas divisões internas, seus exercícios, etc. são definições preestabelecidas pelo mercado consumidor, especialmente pelos órgãos governamentais e, conseqüentemente, pelas editoras.” (GATTI JÚNIOR, 2004, p. 66)

162

as melhores condições de infra-estrutura escolar estavam, no final da década de 1990, nas escolas particulares. (Ibidem, p. 77).

A partir daquilo que foi citado acima, deve-se concluir, em primeiro lugar, que o uso do

livro didático mesmo em escolas que os adotavam não era usado por todos os alunos. Em

segundo lugar, pelo menos até o final dos anos de 1990, os manuais em sua grande maioria

eram adotados pelas escolas particulares, da onde saíam muitas vezes os professores que

faziam os manuais escolares. Por fim, por mais que houvesse uma preocupação com a melhoria

dos manuais didáticos, estes por si só, não mudariam logicamente a realidade precária do

ensino brasileiro. Portanto, fica evidente que outras ações educacionais teriam que ser

realizadas para a melhoria, não só do ensino de História, como também das outras disciplinas.

*

* *

A produção de um livro didático de História e sua posterior revisão estavam

determinadas outrossim pela concepção de História que o autor tinha, bem como a sua

condição de assimilar as novas teorias e metodologias. O crescimento da competição entre as

editoras impunha também, entretanto limites para a produção e revisão dos manuais. Assim,

consoante Décio Gatti: “As editoras, dessa forma, sem sobrecarregar seus autores, que no mais

das vezes exerciam uma série de outras atividades, produziriam novas coleções a baixo custo e

rapidamente, pois velocidade, como já está claro, era o que lhes interessava” (Ibidem, p. 92).

Compete acrescentar que a revisão de uma obra ou coleção dava-se em função das demandas

do seu contexto histórico que estava inegavelmente ligada ao mercado editorial.

Os conteúdos de uma obra didática estão relacionados à produção universitária. Melhor

dizendo, a eficácia e a atualidade de um manual didático podem ser medidos, também, pela

capacidade e disposição do autor em se atualizar, no que concerne à produção historiográfica

gerada nos meios acadêmicos brasileiros e internacionais. A constatação da importância do

163

saber escolar, no entanto, faz com que os autores dos livros escolares se preocupem em se

manterem atualizados no que tange aos avanços da literatura escolar. O desdobramento disso,

se expressa na evidente melhoria da qualidade dos nossos manuais de história.

Ao entrevistar autores de livros didáticos que se tornaram muito conhecidos no Brasil

desde a década de 1980, Décio Gatti Júnior constata que eles reconhecem que o avanço

historiográfico, bem como o avanço tecnológico, transformaram o ofício do escritor de livros

didáticos no Brasil182. Além disso, o escritor teve que conviver, cada vez mais com outros

profissionais envolvidos direta ou indiretamente na produção do livro didático183. Daí, pode-se

perguntar: Quais foram às transformações vivenciadas pelas editoras no Brasil ? Por que o

livro didático ganhou expressivo espaço entre as principais editoras brasileiras ?

As editoras brasileiras, além de se expandir e incorporar novas tecnologias, teve como

um de seus alvos prediletos o livro didático184. O Estado e as políticas educacionais

implementadas, a partir da década de 1970, estimularam o setor do mercado editorial. Por isso, 182 Décio Gatti informa ainda sobre as entrevistas realizadas com dois dos mais importantes autores de livros didáticos do Brasil, ou seja os professores Jobson Arruda e Ricardo de Moura Faria: “Tanto o prof. Ricardo Faria quanto o prof. Jobson Arruda começaram a publicar em editoras que na década de 1970 eram pequenas, mas que ao final de 1990 estavam entre as maiores do ramo didático. É interessante observar, também, o fato de que os livros didáticos do começo da década de 1970 eram impressos geralmente em preto e, branco e na década de 1990, especialmente os destinados ao ensino fundamental eram, em sua maioria, impressos a quatro cores. Os destinados ao ensino médio, por seu turno, salvo algumas exceções, eram impressos com uma cor além do preto e branco.” (GATTI JÚNIOR, 2004, p. 105-106)183 Sonia Regina Miranda e Tania Regina de Luca dizem o seguinte sobre os principais agentes na produção do livro didático: “A produção de livros didáticos envolve uma densa trama entre saberes de referência, autores e editoras. Já o seu consumo envolve tramas não menos imbricadas entre Mercado, projetos escolares, compradores e leitores finais. Entre uma ponta e outra, os efeitos normatizadores implementados pela ação avaliadora vinculada ao Estado agregam elementos que não podem ser na compreensão das relações possíveis entre produção e consume, uma vez que os efeitos determinantes do Mercado impõem limites ao processo de renovação do perfil das obras e ao diálogo entre o saber escolar didático e os saberes provenientes das ciências de referência.” (MIRANDA; DE LUCA, 2004, p. 131-132)184 No artigo intitulado “Entre políticas de estado e práticas escolares: uma história do livro didático no Brasil”, Décio Gatti promove entre os livros didáticos produzidos entre as décadas de 1930 e 1960 e as obras confeccionadas a partir de 1970. Tal comparação levou em conta a presença da obra no mercado, o perfil dos autores, a característica central das editoras e a linguagem. Assim, entre 1930 e 1960, os manuais didáticos tinham as seguintes características: “1) permaneciam longo período no mercado, sofrendo poucas alterações; 2) possuíam autores provenientes de lugares tidos como de alta cultura, como o Colégio D. Pedro II; 3) Eram publicadas por poucas editoras que muitas vezes, não tinham como mercadoria principal; e 4) não apresentavam um processo de didatização e adaptação de linguagem consoante às faixas etárias para as quais se destinavam”. (GATTI JÚNIOR, 2005, p. 382). As obras produzidas a partir da década de 1970 tinham as seguintes características: “1) Tiveram grande aumento na velocidade de elaboração e renovação, como conseqüente mudança da atuação dos autores de livros didáticos que são cada vez mais solicitados a exercer atividades de divulgação de suas próprias coleções; 2) Passaram a comportar diferentes propostas didático-pedagógicas de claro teor cognitivista na configuração das metodologias de ensino; 3) Sofreram modernização gráfica e editorial, sendo produzidas pela indústria, com o concurso do trabalho de diversos profissionais especializados; e 4) Assinalam a mudança do perfil dos autores que passaram a ser professores provenientes das escolas destinadas às classes médias com larga experiência no magistério e, em menor escala, professores que tiveram carreira acadêmica nas faculdades e universidades do país.” (GATTI JÚNIOR, 2005, p. 383-384)

164

pode-se constatar que no final dos anos de 1990 um número expressivo de editoras dedicaram-

se à fabricação de manuais didáticos (GATTI JÚNIOR, 2004, p. 157).

O crescimento das editoras que se dedicavam à confecção de livros didáticos revela, em

primeiro lugar, a presença de um mercado promissor e estável em função da existência do

poder público. Em segundo lugar, e apoiando-se no estudo de Gatti Júnior, as políticas públicas

em relação aos manuais didáticos não foram suficientes obviamente para a melhoria da

qualidade do ensino no Brasil (Ibidem, p. 159).

As demandas do mercado, concomitantemente à necessidade de atualização das obras

didáticas já disponíveis no mercado, mobilizaram e ainda mobilizam as editoras e os autores

que passaram a trabalhar em um ritmo muito forte em um curto período de tempo. O que

estava em jogo, portanto, era a sobrevivência da obra que deveria estar em consonância com o

mercado. A utilidade superava muitas vezes o conteúdo. As palavras de Décio Gatti resumem

bem a questão: “Nesse sentido, era comum no final da década de 1990, a adaptação dos livros

didáticos em uma velocidade surpreendente às modas didáticas e às mudanças curriculares

estabelecidas pelos setores públicos afetos à área educacional, pois as editoras não podiam

deixar de fornecer o produto solicitado pelo mercado, sob o risco de perder o rico filão que lhes

dava sustentação básica” (Ibidem, p. 160).

A boa recepção de uma obra didática no mercado fazia com que, muitas vezes, ela se

tornasse referência para uma editora concorrente. As novidades na formatação e na tecnologia

eram então assimiladas por outros livros. A presença de consultores para julgar os originais,

bem como a melhoria na formatação de textos auxiliares, mapas, gravuras e imagens atestam

as transformações ocorridas na indústria que tem, sempre como alvo, o livro didático185. Tudo

isso, acaba favorecendo o avanço da especialização e da profissionalização dos profissionais

envolvidos na fabricação dos manuais escolares.

Isso posto, é imperativo afirmar que o avanço da produção do livro didático, juntamente

com os avanços da historiografia, contribuiu para a melhoria do ensino de História. Além

disso, as editoras que se ocupavam da confecção de livros didáticos passaram a se ocupar

185 Décio Gatti na obra A Escrita escolar da História: livro didático no Brasil (1970-1990), diz ainda o seguinte sobre a relação entre o livro didático e editoras: “As editoras brasileiras especializadas em livros didáticos estavam passando na época de investigação, 1997, por um intenso processo de especialização, produzindo, sobretudo os livros didáticos, responsáveis pelo grosso de seu faturamento, mas também, ocupando-se da fabricação dos chamados paradidáticos, que eram pequenos livros, com temas únicos, empregados como auxiliares do processo de ensino, para além do livro didático.” (GATTI JÚNIOR, 2004, p. 167)

165

igualmente com os chamados paradidáticos que supriram temas que ou eram preteridos ou

tratados de forma residual pelos manuais escolares.

4.3.1. O Livro paradidático no Brasil.

As obras paradidáticas tornaram-se importantes para o ensino brasileiro, notadamente a

partir dos anos de 1990. Além disso, os temas desenvolvidos por eles, além de completarem as

lacunas deixadas pelos livros didáticos, estavam em consonância com as necessidades do

mercado editorial, bem como com as necessidades do ensino fundamental. Nem todas as

escolas, contudo, podiam usá-lo em função dos seus custos e dos conteúdos e análises que

muitas vezes não eram acessíveis para os estudantes.

Desse modo, os manuais paradidáticos eram usados concomitantemente aos livros

didáticos. As escolas particulares, segundo Décio Gatti Júnior, foram aquelas em razão da

situação financeira dos alunos, que tinham condições de adotar os livros. Qual seria a

importância do uso do paradidático para o ensino médio ?

Os livros paradidáticos aproximaram o saber acadêmico do chamado saber escolar, pois

buscavam disponibilizar, sobretudo aos alunos das escolas do ensino médio, os temas

históricos que estavam renovando o conhecimento histórico. De uma maneira geral eles eram

escritos por especialistas que atuavam como professores e pesquisadores nas principais

universidades brasileiras e a linguagem utilizada almejava ser acessível para os alunos do

ensino médio.

A presença dos manuais paradidáticos na realidade, criados por editoras que também

tradicionalmente publicavam livros didáticos, ficou em grande parte restrita aos alunos das

escolas particulares. Nesse sentido, eles foram engendrados, seguindo as necessidades do

mercado editorial brasileiro. Por isso, além de possuírem uma linguagem concernente ao

público a que se destinava, eles foram confeccionados com um número de páginas limitados.

Nas palavras da Décio Gatti: “Todavia, a maior parte desses pequenos textos, ao menos na área

de História, era escrita por acadêmicos. Obviamente que em uma linguagem acessível e com

um número de páginas limitados para não inviabilizar a vendagem por questões econômicas, já

que o paradidático, no Brasil, é quase sempre, um livro acessório, ou seja adquirido pelos pais

dos alunos para além do didático” (Ibidem, p. 212).

166

O período medieval foi contemplado com a publicação no mercado brasileiro com uma

série de paradidáticos que não só trouxeram para os alunos brasileiros reflexões de temas

pouco explorados pelos livros didáticos tradicionais, como também demonstraram o crescente

interesse de pesquisadores em relação à Idade Média. Tais obras, na realidade, não ficaram

restritas ao ensino médio, pois elas acabaram servindo de apoio para alunos e professores do

ensino superior. A fim de ilustração, abordaremos algumas questões concernentes aos

paradidáticos elaborados pelos professores Hilário Franco Júnior, Ruy de Oliveira Andrade

Filho e José Rivair de Macedo. Hilário Franco Júnior, um dos maiores medievalistas da

atualidade, publicou quatro livros paradidáticos que tiveram grande repercussão no mercado

brasileiro. Dois deles em parceria com Ruy de Oliveira Andrade Filho. Este publicou sozinho o

paradidático Os Muçulmanos na Península Ibérica.

Com relação ao primeiro paradidático destacado, Feudalismo: Uma sociedade religiosa,

guerreira e camponesa, Hilário Franco Júnior, tomando como base a formação, a estrutura,

dinâmica e crise do Feudalismo, a edição de 1999 apresenta um quadro vigoroso do

desenvolvimento da Idade Média Ocidental. Assim, além de destacar as transformações

políticas, econômicas e sociais, tal obra introduz temas que praticamente ficavam restritos aos

meios acadêmicos, como a mentalidade medieval. Percebe-se, então, um esforço de se levar

aos alunos do ensino médio algumas temáticas restritas aos pesquisadores dos meios

universitários. Deve-se acrescer que o autor enriqueceu a obra por intermédio de documentos

de época, estimulando assim o aluno a conviver com fontes primárias. Todavia é mister

mencionar que na primeira edição de 1983, a obra em questão tratou de temas usualmente

abordados no Brasil em relação à Idade Média, tais como ruralização da economia e poder

político descentralizado.

O segundo livro a ser destacado e de autoria de Hilário Franco Júnior foi As Cruzadas:

Guerra Santa entre Ocidente e Oriente que teve uma primeira edição na década de 1980. Ele

estuda o tema, propondo explicar as motivações materiais, e as motivações psicológicas, as

Cruzadas no Oriente Médio, As Cruzadas na Europa e a herança das Cruzadas. Além disso,

como no primeiro paradidático apresentado, o historiador aborda temas da mentalidade

européia medieval, como o belicismo e o contratualismo que impulsionaram os cristãos

europeus em busca do oriente. A obra, na edição de 1999, foi acrescida de documentos,

estimulando igualmente o leitor a entrar em contato com fontes primárias. Nesse viez, percebe-

167

se mais uma vez um esforço de se levar aos alunos do ensino médio às novas abordagens e

renovações historiográficas sobre a Idade Média Ocidental186.

A atualização das obras publicadas por Hilário Franco Júnior atesta, em primeiro lugar,

o avanço das pesquisas no Brasil em torno de temas sobre a Idade Média Ocidental. Em

segundo lugar, há uma preocupação recorrente de se combater os estereótipos mais comuns

sobre a Idade Média, como demonstrar a sua herança para a cultura ocidental. E, em terceiro

lugar, aproximar o chamado saber acadêmico do saber escolar por intermédio de uma

linguagem clara, embora nem sempre acessível a todos os alunos das escolas brasileiras.

Portanto, atendo-se nesse aspecto, percebe-se que as deficiências do ensino brasileiro acabaram

limitando o acesso dessas obras a um número menor de alunos. Compete dizer igualmente que

tais obras serviram de referência, inclusive, para os alunos que estavam freqüentando cursos de

História no Brasil187.

Deve-se asseverar, ainda, que a proliferação de paradidáticos que versados sobre a

Idade Média ocorre em um contexto de renovação dos currículos e do ensino de História. Por

isso, pode-se dizer que o empenho dos pesquisadores em levar aos alunos do ensino médio

novos temas e novas abordagens de temas tradicionais sobre o período medieval estava em

sintonia com os avanços do ensino de História. Há de se acrescentar que os livros paradidáticos

que continham temas sobre o medievo fizeram tanto sucesso quanto os paradidáticos que eram

destinados, por exemplo, a temas sobre a História do Brasil.

*

186 Nas décadas de 1980 e 1990, o mercado editorial foi contemplado com uma série de livros paradidáticos que não só chegaram às escolas do ensino médio, sobretudo as particulares, como também serviram de textos introdutórios para os alunos que estavam, ingressando no ensino superior de História. Dentre elas destacamos: O Mundo Carolíngio de Sônia Regina Mendonça, A Caminho da Idade Média de Waldir Freitas de Oliveira, As Cruzadas e O Império de Carlos Magno José Roberto Mello, O Feudalismo: economia e sociedade de Hamilton M. Monteiro, História Ibérica de Flávio de Campos, Os Muçulmanos na Península Ibérica de Ruy Andrade Filho, A Cristandade do Ocidente Medieval de Daniel Valle Ribeiro, A Mulher na Idade Média de José Rivair de Macedo e Guerra e Poder na Sociedade Feudal de Cyro de Barros Rezende Filho.187 Publicado pela primeira vez em 1986, o livro A Idade Média: O Nascimento do Ocidente foi concebido por Hilário Franco Júnior para ser um manual de referência para os estudantes universitários brasileiros. E, além de apresentar as estruturas econômicas, sociais e políticas, tal obra buscou trazer para o público leitor brasileiro temas como a mentalidade, além de dedicar um capítulo para refutar o mito historiográfico que associava a Idade Média como a Idade das Trevas. Na segunda edição revista e ampliada pelo autor, além da inserção do tema estruturas cotidianas, há a incorporação de temas como São Francisco e a espiritualidade. A publicação e a posterior atualização desta obra, atesta a evolução da historiografia sobre a Idade Média Ocidental em nosso país.

168

* *

O livro de José Rivair de Macedo merece um destaque especial pois, além de ser um

dos primeiros a ter como tema a cidade na Idade Média, ele indicou uma série de caminhos no

que diz respeito à abordagem da cidade medieval para os alunos do ensino médio188. Por isso

na apresentação, o autor expõe ao leitor as representações tradicionais em torno do Ocidente

Medieval, ou seja a Idade Média rural das aldeias, dos camponeses, da igreja e dos nobres que

possuíam castelos. Tais representações reforçam estereótipos e acabam escamoteando a

história da cidade medieval189. Daí, a proposta de tratar a cidade medieval levando em conta a

sua dinâmica de desenvolvimento, destacando as mudanças e “permanências” (MACEDO,

2006, p 02). Há de se acrescentar que o livro em questão tem a pretensão de, maneira holística,

enfocar a evolução das cidades ao longo do período medieval, destacando não só a vida

política e econômica, como também os grupos sociais, a cultura e o cotidiano de homens e

mulheres. E, por fim o historiador propõe: “O que as experiências coletivas das velhas cidades

européias têm a ensinar a nós, que nascemos e crescemos dentro de uma sociedade

predominantemente urbana ?” (Ibidem, p. 03).

Na caracterização da Alta Idade Média o historiador José Rivair de Macedo considera

de início que o fenômeno urbano é bem anterior ao período estudado. A partir daí, ele destaca

cidades, como Roma, que desempenharam um papel importante do ponto de vista político

como econômico. Posteriormente, o autor afirma que a crise do Império Romano do Ocidente

concomitante às invasões bárbaras favoreceu a ruralização da vida européia da parte ocidental,

esvaziando assim a vida nas cidades190. O número reduzido de pessoas nos meios urbanos

188 Tal obra está dividida da seguinte maneira: Apresentação, As cidades amuralhadas na Alta Idade Média, As transformações urbanas na Baixa Idade Média, O governo municipal, A burguesia e o comércio, A “indústria” medieval, Vida e trabalho dos artesãos, Condição feminina e trabalho urbano, Nascer e crescer nas cidades, Áreas de lazer, competições e espetáculos, O espaço da festa, Marginais e excluídos: as minorias urbanas, Palavras finais: o tempo das mutações.189 José Rivair de Macedo ao buscar a cidade medieval propõe a seguinte teorização sobre as cidades: “De fato, as cidades estão intimamente relacionadas como o desenvolvimento dos processos históricos. Elas guardam, em sua própria configuração espacial, em seus edifícios e monumentos, em sua aparência, traços visíveis das mudanças sucessivas acumuladas ao longo do século e, em alguns casos, dos milênios. Mas também permanências.”190 O autor diz ainda o seguinte sobre as estimativas numéricas da população na Alta Idade Média: “A população diminuiu, concentrando-se dentro de muros erguidos para proteger as cidades. Vejamos, por exemplo, o que

169

ensejou a continuação de atividades profissionais, tais como o artesanato. Além de se referir a

Roma, o autor de Viver nas cidades medievais, faz menção às cidades que continuaram as suas

trajetórias em regiões da França, Inglaterra, Espanha e Portugal. Desse modo, a obra reforça a

tese da continuidade da vida urbana na Idade Média e também aspectos do cotidiano de

homens e mulheres que em grande maioria são deixados de lado pelos livros didáticos191.

A predominância da vida rural na Alta Idade Média não conseguiu apagar a

importância da vida urbana, embora no aspecto econômico sua função tivesse ficado

comprometida. Macedo considera que as suas funções administrativas continuaram e

exemplifica tal idéia a partir da informação de que os reis bárbaros instalavam as suas cortes

em cidades como Braga, Toulouse, Barcelona, Toledo, dentre outras. Os bispos da Igreja

Católica que ora se transformava na principal instituição religiosa do ocidente, escolheram

igualmente os centros urbanos por intermédio dos quais controlavam os seus domínios

territoriais e rurais. Além disso, consoante o pesquisador: “Muitas tornaram-se dioceses , de

modo geral, a presença do bispo garantia-lhes um mínimo de organização interna.” (Ibidem, p.

08).

Ao mesmo tempo em que desempenhavam papéis administrativos na Alta Idade Média,

as cidades medievais representadas no paradidático em questão, exerciam papel militar. A

edificação de muralhas expressa isso. Tal representação, quase nunca explorada pelos manuais

didáticos, está em convergência com a historiografia renovada sobre a cidade medieval cujo

papel econômico e comercial das cidades são relativizados, embora jamais desconsiderados.

Cabe acrescentar que o destaque para os papéis administrativos e militares das cidades

favorece a ampliação da noção de cultura citadina que, muitas vezes, é associada de modo

aconteceu com a mais importante cidade da Antiguidade, Roma. De acordo com os cálculos e estimativas dos especialistas, no século IV, ‘a cidade eterna’ teria aproximadamente 300 mil habitantes. Um século depois, esse número caiu para 200 mil. Aos poucos, ela ganhou o aspecto de uma fortaleza, e o número de seus moradores continuou a diminuir, de modo que, no final do século VI, os habitantes não passavam dos 20 mil. Ainda assim, Roma constituía exceção, pois outras cidades abrigavam número ainda menor de pessoas. Paris, no século IX, tinha pouco mais de 4 mil habitantes !”. (MACEDO, 2006, p. 10)191 A seguinte passagem atesta a preocupação com o cotidiano de homens e mulheres nas cidades da Alta idade Média: “Não devia ser muito fácil, nem muito cômodo, viver nas pequenas aglomerações. Sobrava pouco espaço para a confraternização entre os habitantes. Nas ruas muito estreitas, apertavam-se moradias de um ou dois andares. Algumas construções destinavam-se a residências de pessoas ligadas ao artesanato, enquanto outras serviam como estabelecimentos comerciais de gêneros alimentícios – como pão e carne, por exemplo – ou e vestuários e calçados.” (MACEDO, 2006, p. 11)

170

linear ao aspecto comercial. Melhor dizendo, a cultura do citadino não pode ser só pensada,

tomando como base a função econômica das cidades192.

Reconhecer a função das muralhas para os habitantes das cidades não significa

considerá-las como um corpo isolado do mundo rural. O medo e a insegurança não impediram

a formação de redes de comunicações entre os habitantes da cidade e do campo193. Também

nesse aspecto, o livro paradidático organizado por José Rivair de Macedo inspira professores e

alunos do ensino médio a refletirem e a representarem o mundo Medieval Ocidental em outra

perspectiva.

Na continuação da análise do fenômeno urbano, o historiador em questão reforça a

expansão das cidades na Baixa Idade Média, utilizando a expressão “renascimento da vida

urbana” (Ibidem, p. 12). O autor justifica tal uso através da idéia que ele apregoa que no século

XI estava em curso no Ocidente Medieval a expansão econômica fator importante para o

crescimento e para a reorganização das cidades. As transformações que beneficiaram o meio

urbano estão conectadas ao auge do feudalismo. As cidades que cresceram em razão da

expansão feudal, contribuíram igualmente para mudanças significativas na ordem feudal como

um todo. José Rivair de Macedo chega a afirmar, apoiando-se em Fernand Braudel, que as

cidades desagregam a vida rural do feudalismo194.

No prosseguimento do estudo acerca do desenvolvimento urbano na Baixa Idade

Média, o livro alerta o leitor da necessidade de se pensar o crescimento populacional das

cidades medievais dentro do seu contexto histórico, ou seja elas foram bem menores do que o

crescimento ocorrido no período da Revolução Industrial européia iniciada pioneiramente na

Inglaterra, entre os anos de 1760 e 1780. Mas, como as mudanças verificadas na produção

agrícola medieval beneficiaram as cidades ?

192 A renovação historiográfica sobre a cidade medieval incorporada e utilizada por José Rivair de Macedo no seu livro, permite ao estudioso e professor de História abordá-la junto aos alunos do ensino médio, compreender o imaginário, a mentalidade e as representações que homens e mulheres que viviam na Idade Média faziam do próprio período. Ou seja o medo da guerra e da morte estão expressos nas muralhas. 193 Aliás o medo da pilhagem, consoante o Rivair de Macedo reforçou as relações entre o mundo rural e urbano. Nas palavras do autor: “Desde o século VI, condes, a quem os reis confiaram o governo e a proteção militar das comunidades, mantinham grupos de guerreiros, chamados milites, aos quais competia guardar as portas das cidades. Medida realmente necessária, porque até pelos menos o final do século X as incursões de grupos armados provocavam a insegurança constante da população.” (MACEDO, 2006, p. 15) 194 O autor diz textualmente o seguinte: “Pode-se dizer que o renascimento urbano foi o principal responsável pela desestruturação da vida rural típica do feudalismo. Segundo o historiador francês Fernand Braudel, ‘as cidades são como transformadores elétricos: aumentam as tensões, precipitam as trocas, urdem incessantemente a vida dos homens...São aceleradores de todo o tempo da História’.” (MACEDO, 2006, p. 15-16)

171

Macedo toma como ponto de partida a tese que tem como premissa as transformações

que resultaram em melhorias na produção agrícola. O desenvolvimento de novas técnicas de

cultivo e o aumento da mão-de-obra campesina estão entre outros avanços que ensejaram um

crescimento da agricultura. O autor utiliza a expressão “revolução agrícola”, cunhada por

Duby, para avaliar as transformações agrícolas no meio rural. Além disso, o medievalista

brasileiro diz ainda o seguinte: “De fato, paralelamente à recuperação das velhas cidades,

houve um movimento progressivo de exploração da terra, em áreas florestais atém então

praticamente intocadas. Os desbravamentos agrícolas, ou ‘arroteamentos’, abriram brechas

importantes nos bosques. Terras virgens e pântanos a ser habitados, dando lugar a aldeias,

paróquias, mosteiros e novas áreas de cultivo” (Ibidem, p. 14).

Continuando a análise do fenômeno urbano medieval, Rivair de Macedo destaca na

Península Ibérica as cidades que foram fundadas em função de necessidades militares em um

contexto histórico determinado pela Reconquista da Península Ibérica. Nesse contexto, o autor

mostra que os reinos de Castela, Aragão, Leão, Navarra e Portugal tiveram papéis expressivos.

Rivair de Macedo, por isso, acaba pondo em relevo um aspecto pouco mencionado nos

manuais didáticos, ou seja, a importância das cidades na Península Ibérica que foram

configuradas pelo aspecto militar. Mais uma vez, portanto, o livro examinado sugere aos

professores e alunos do ensino médio refletirem sobre as várias origens das cidades na Idade

Média Ocidental.

*

* *

As cidades medievais no ocidente, em função da expansão econômica, passaram por

mudanças em suas geografias urbanas. As construções de novas muralhas comprovam o

avanço das cidades em direção ao meio rural. Novos bairros representam a criação também de

novas configurações sociais. A título de exemplo, o autor assevera que: “No século XIII, nas

cidades com maior número de habitantes começaram a surgir novos bairros e quarteirões,

172

ficando as famílias de artesãos e pequenos comerciantes restritas à periferia, junto aos muros

ou burgos. Assim, nasceu a designação burguês, utilizada para identificar inicialmente os

habitantes associados ao artesanato e ao pequeno comércio, e depois estendida a toda a

população” (Ibidem, p. 15).

Na Baixa Idade Média, segundo Rivair de Macedo, as cidades que se expandiam

economicamente ampliaram a sua influência sobre o meio rural. A produção rural passou a

atender sempre mais às demandas do meio urbano. Isso posto, as reflexões do autor contribuem

mais uma vez para os alunos do ensino médio perceberem não só a forte dependência entre

cidade195 e campo, como também relativizar a excessiva afirmação de um mundo medieval

como essencialmente rural.

Atendo-se mais às descrições geográficas das cidades, observa-se que o autor de Viver

nas cidades medievais diz-nos que os portões e a muralhas tinham a função de serem os elos de

ligação um determinado espaço urbano e o mundo exterior. Por conseguinte, elas não eram

abertas como as de hoje. No seu interior, as ruas eram tortuosas, refletindo uma ocupação que

se processou de forma irregular. A divisão do espaço refletia a influência do poder político e

religioso. O estudo da geografia urbana depreendido, a partir do trabalho de Macedo,

oportuniza os professores e alunos a perceberem os seus espaços urbanos como herdeiros da

cidade medieval196.

As transformações surgidas nas cidades na Baixa Idade Média podem ser visualizadas

em suas organizações políticas e administrativas. Tais mudanças estão em conformidade com a

diversidade econômica e complexidade social em virtude dos novos grupos sociais que se

moviam no espaço urbano. As cidades medievais, embora de uma maneira geral estivessem

sob a jurisdição de membros da nobreza e setores eclesiásticos, desenvolveram por meio dos

seus habitantes valores e representações políticas, econômicas e sociais diferentes dos homens

195 Ao utilizar as noções de espaços públicos e paisagem urbana, José Rivair de Macedo empreende a seguinte definição de cidade, tomando como base o seu desenvolvimento, através dos tempos: “As cidades definiam-se, antes de mais nada, como espaços de convivência, sua aparência, enfim, lhes conferiam uma personalidade própria, que as distinguiam do mundo rural, dominado pela paisagem rural. Quer dizer, elas modelavam sua própria fisionomia, aproximando as pessoas, criando pontos de identificação e sentimentos de identidade coletiva”. (MACEDO, 2006, p. 20). Todavia, o autor ao assimilar tal definição de cidade, coadunada com a noção de cidade medieval, não a toma como um espaço desvinculado do meio rural medieval.196 Nas cidades brasileiras da atualidade, principalmente nas pequenas, não é difícil identificar uma relação de continuidade entre elas e as cidades medievais se levarmos em conta a localização de um templo religioso bem no centro. Tal templo acaba reforçando os laços comunitários entre as pessoas.

173

e mulheres que viviam no campo197. Assim, pode-se perguntar: em que sentido o homem

citadino medieval aproximava-se do homem atual ?

A luta empreendida pelas diversas cidades na Idade Média, exemplificada nos

movimentos comunais e expresso juridicamente na carta de franquia, demonstra a presença do

ideal de liberdade política no interior delas198. A presença das corporações e de uma expressiva

hierarquia social, afiança a forte permanência de valores culturais do homem do campo sobre o

homem da cidade. O individualismo símbolo do homem do nosso tempo, embora ainda não

impregnasse o homem medieval, estava em gestação no mundo medieval urbano.

Na gestão das cidades medievais, destacavam-se em linhas os comerciantes e os nobres

que constituíam o chamado patriciado urbano. As cidades, por isso acabavam sendo

controladas por aqueles que detinham a riqueza. A análise de Rivair Macedo sobre este aspecto

também permite aos alunos e professores do ensino médio criarem uma representação mais

ampla do funcionamento do governo das cidades. Há de se acrescentar que a vertente

historiográfica que maximiza o papel dos comerciantes à frente dos governos dos centros

urbanos é posta em dúvida199.

Especificando mais sobre o funcionamento da economia das cidades na Baixa Idade

Média, o autor põe em relevo o papel do comércio e da burguesia. A cidade foi representada

também como um lugar de troca, pois, mais e mais as atividades comerciais demandavam um

197 Rivair de Macedo, comentando a representação que Guilbert de Nogent faz da vida comunal, promove a seguinte comparação entre os valores do homem da cidade e do campo: “Nas palavras de reprovação do escritor, encontramos algumas idéias fundamentais relacionadas com o movimento urbano: liberdade política, espírito comunitário, aquisição de direitos pelos moradores. De fato, a instituição municipal, diferente do que se observava no sistema feudal. No sistema feudal, as relações sociais eram pessoais e ocorriam de cima para baixo, gerando laços de dependência entre senhores e vassalos, rendeiros e servos. Quer dizer, eram relações verticais. Em meio urbano, os moradores, mesmo os servos fugitivos, tornavam-se juridicamente livres depois de um ano. Todos se mantinham unidos por um juramento coletivo, por um pacto comum. As relações, no plano jurídico, ocorriam de forma horizontal. A desigualdade jurídica, portanto, existia apenas entre comunidade e o senhor. As primeiras reivindicações urbanas tinham o objetivo de diminuir os poderes senhoriais. As comunidades lutavam muito para obter isenções de impostos e liberdade político-administrativa.” (MACEDO, 2006, p. 23)198 Macedo informa ainda que no século XIII, boa parte das cidades na Idade Média Ocidental tinham conquistado uma certa independência em face ao domínio senhorial. Além disso, faz referência à presença nas cidades de conselhos administrativos que eram incumbidos do governo municipal. Todavia, pode-se inferir que as cidades tinham administrações que lhe eram peculiares.199 O autor de Viver nas cidades medievais diz também sobre papel dos comerciantes na administração governamental: “A participação direta dos comerciantes nas decisões governamentais tomadas nos municípios começou a ocorrer em meados do século XIII. Nas poderosas cidades italianas, os cargos públicos eram, em geral, ocupadas por integrantes das ricas famílias de comerciantes de tecidos ou por banqueiros. Mas a pressão política também era exercida por grupos profissionais ligados ao trabalho artesanal. A partir do século XIV, o controle do poder local passou a depender do grau de influência das associações profissionais nas instituições municipais.” (MACEDO, 2006, p. 26)

174

lugar fixo para o exercício de tal atividade200. O mercado, ponto de encontro dos comerciantes

e compradores, geralmente estava instalado no centro, e abastecia ainda os habitantes das áreas

rurais vizinhas dos centros urbanos, e no cotidiano, ele alojava comerciantes de pequeno porte,

entre eles padeiros e açougueiros.

A expansão das atividades comerciais, bem como a intensificação comércio entre o

ocidente e o oriente, estimulou o avanço das feiras que envolviam o grande comércio em torno

das cidades maiores e congregavam grandes comerciantes de várias regiões especializados em

um determinado produto. Estavam localizadas em regiões próximas de rios, que permitiam a

navegação, e de regiões bem conhecidas do comércio. Cabe expor ainda que as feiras

favoreceram a difusão de práticas, como o intercâmbio de moedas que eram permutadas, por

intermédio da equivalência cambial201.

A disseminação das práticas comerciais pelas várias regiões européias engendrou

transformações na base social e econômica européia. A economia urbana, fundamentada na

moeda e circulação de mercadorias impôs-se mais ainda. O comércio se organizava

paulatinamente de modo a tornar comuns serviços como os de contabilidade. O corolário

dessas alterações econômicas foi a consolidação da burguesia. Setores da Igreja, no entanto,

ainda criavam obstáculos para a burguesia, pois prevalecia a ética cristã que associava o lucro à

usura202.

As reflexões de José Rivair Macedo sobre o comércio, o mercado, a burguesia, a

economia monetária e a ética cristão, embora reforcem a vocação da cidade como espaço para

200 Macedo considera ainda que a própria denominação burguês estava vinculada ao local em que o comerciante vivia. 201 Rivair de Macedo exemplifica no livro o funcionamento das feiras realizadas na Champanha: “Nas Feiras de Champanha, todos os tipos de lã de Flandres e do norte da França, sedas da cidade de Luca (Itália), artigos de couro da Espanha, África e Provença, peles e linho da Alemanha. Os italianos traziam artigos de fora da Europa: especiarias, açúcar, temperos, madeiras das quais seriam extraídos corantes para tingir tecidos. Além desse produtos, também eram comercializados cereais, vinhos e cavalos, mas o setor mais importante era o do comércio de tecido e de lã.” (MACEDO, 2006, p. 28)202 A ética cristã associava o lucro com o roubo e o pecado, pois ela tinha como base a idéia de que o cristão deveria utilizar-se de modo necessário dos recursos materiais para a sua sobrevivência. Porém, a disseminação da economia monetária, tornou o dinheiro mais comum ao cotidiano de homens e mulheres. E, com a associação cada vez mais comum entre a produção de mercadorias, o tempo e o lucro, o juro passou a ser uma prática comum na medida em que o empréstimo de uma determinada quantia significava o não investimento dela, oportunizando a cobrança assim de uma soma para compensar o dinheiro não aplicado na produção e transações comerciais. Macedo destaca a seguinte que passagem que favorece a compreensão da ética cristã: “A Igreja não via com bons olhos as atividades dos novo-ricos urbanos. Prática da usura (agiotagem), baseada na aquisição de vantagens ou na obtenção de lucro, foi condenada com freqüência, apesar de os próprios papas recorrerem a empréstimos de acordo com suas necessidades. Para se ter uma idéia, basta dizer que a usura em geral era denunciada como um crime pelos pregadores e escritores cristãos.” (MACEDO, 2006, p. 31)

175

o desenvolvimento das a atividades mercantis, assinalam aos professores e alunos do ensino

médio a compreenderem as funções econômicas nas suas vinculações com as relações políticas

e sociais. Pode-se inferir outrossim que no caso específico da ética cristão, percebe-se um

enfrentamento entre valores cristãos e o da nova economia urbana, ampliando então a noção de

economia que não pode ficar circunscrita, propriamente dita, ao plano da circulação de

mercadorias. Ou seja, pensar tal contenda contribui ainda para a compreensão das ações

humanas sobre o econômico.

Ao abordar as atividades econômicas ligadas ao artesanato, o autor considera ser

possível referir-se à presença de atividades industriais. É mister reforçar, contudo, a tese de que

não se trata do mesmo tipo de atividade industrial desenvolvida a partir do século XVIII,

período aquilatado pela passagem do trabalho manual para o trabalho fabril, que utilizava a

máquina no processo de produção. Isso posto, cumpre dizer que a unidade básica industrial nas

cidades medievais eram as oficinas fundamentadas no trabalho manual203.

Através do funcionamento das oficinas de tecidos, Rivair de Macedo discorre de modo

sucinto sobre as relações estabelecidas por mestres, jornaleiros e aprendizes. Os jornaleiros,

cujo trabalho era pago através de salários, são os antecedentes do operário que emergiu a partir

da Revolução Industrial. Os aprendizes que viviam na casa do mestre não recebiam nada além

da alimentação e da moradia e poderiam alcançar no futuro a condição de mestre e, assim criar

a sua própria oficina.

O universo de atividades e ofícios foi ampliado no decorrer da Baixa Idade Média. O

crescimento da área urbana motivado pela expansão econômica incrementou o setor de

construções que foi beneficiado com as construções de edifícios, ruas, muralhas e catedrais. A

Igreja Católica, consoante Rivair de Macedo, foi a instituição que mais absorveu o trabalho de

pedreiros e carpinteiros.

A mineração e a metalurgia também se desenvolveram na Europa, porque havia uma

procura expressiva por ouro e prata. Outros minerais como o chumbo e o ferro, eram

encontrados em várias localidades da Europa, tanto do leste, quanto do oeste. E, em função dos

203 Macedo destaca as seguintes diferenças entre a indústria medieval e a indústria atual: “A principal diferença entre a indústria medieval e a indústria atual encontra-se no modo pelo qual se dava a organização do trabalho. Não existiam as fábricas, isto é, vastos espaços ocupados por equipamentos e mão-de-obra especializada. A unidade fundamental de produção era a oficina, e a forma básica de fabricação de mercadorias baseava-se na execução de atividades manuais. As diferenças são consideráveis, começando pela capacidade produtiva: as fábricas atuais produzem muito mais e envolvem um número bem maior de trabalhadores do que as oficinas.” (MACEDO, 2006, p. 33)

176

altos custos para a extração de minerais, essa atividade ficou restrita a um pequeno grupo de

mineradores204.

Além de abordar temas, como a mineração e a metalurgia, pouco ou quase nada

explorados pelos manuais didáticos do ensino médio, o autor de Viver nas cidades medievais,

examina questões que parecem circunscritas aos dias de hoje. Ele refere-se à questão ecológica.

Na Baixa Idade Média, o avanço da economia trouxe efeitos negativos para a natureza como,

por exemplo, a devastação das florestas. Nesse sentido, cumpre observar mais uma vez que a

abordagem de assuntos como tais favorecem uma aproximação maior da Idade Média da

chamada Idade Contemporânea. No caso específico do Brasil, como pensar a questão

ecológica, por intermédio do período medieval, em um país que se encontra em estágio

avançado de industrialização ? Como a questão ecológica trazida por Rivair de Macedo pode

auxiliar na dinamização, no que concerne ao ensino de História Medieval para os professores e

alunos do ensino médio ?

Não resta dúvida que a dinamização do ensino de História Medieval no Brasil precisa

encontrar outros caminhos para romper com os estereótipos e torná-lo mais atrativo para os

nossos alunos. Assim, pensar as questões e os problemas que estão em torno da ecologia no

Brasil, tomando como base as informações sobre tal na Idade Média, pode nos ajudar a

vislumbrar uma série de outros que poderão ser gerados com o avanço da industrialização em

nosso país. O cotejamento entre a Idade Média e o Mundo Contemporâneo, períodos que estão

muito distantes no tempo aparentemente pouco pode nos ajudar na compreensão da nossa

época205. Compete ainda destacar as agressões ao meio ambiente que fazem parte das

sociedades contemporâneas e começaram a ganhar as feições hoje conhecidas por nós,

justamente na Idade Média. E, ainda, no limite do desenvolvimento das cidades medievais, que

geraram uma série de componentes econômicos que hoje fazem parte das economias mundiais,

igualmente poderão ensejar a professores e alunos do ensino médio a compreender uma série

fatores que contribuem para o agravamento do problema ecológico no mundo.

204 O autor ainda informa o seguinte sobre a exploração de minérios: “A exploração mineral beneficiava as autoridades municipais, bem como os monarcas. Sendo proprietários das terras em que se encontravam as jazidas, eles reservavam para si uma série de direitos em troca da autorização para a exploração ali empreendida.” (MACEDO, 2006, p. 37)205 Segundo ainda Rivair de Macedo: “Isso nos leva a pensar na relação necessária entre a atividade industrial, educação e bem-estar social. Nos países europeus, cujo desenvolvimento aumentou bastante após a Idade Média, a poluição e a devastação da natureza ocasionaram problemas sérios, que os movimentos ecológicos do século XX procuram resolver.” (MACEDO, 2006, p. 39)

177

*

* *

Na descrição da vida e trabalho dos artesãos, José Rivair de Macedo envereda em

direção à compreensão do cotidiano dos trabalhadores na Idade Média Ocidental. Mas, antes de

abordar a vida dos trabalhadores urbanos no período medieval, o pesquisador retoma algumas

considerações sobre a sociedade urbana medieval.

Dessa forma, mais uma vez tomando como base o cotejamento com as sociedades

urbanas contemporâneas, o estudioso afirma que as sociedades medievais urbanas, que se

consolidaram na Baixa Idade Média, eram na verdade pré-industriais. Tais diferenças ocorrem

no plano econômico e social. Todavia, como mensurar tais diferenças ?

Nas sociedades contemporâneas, de um modo geral, a chamada economia de mercado

prevalece, estimulando a livre iniciativa, o livre mercado e o trabalho assalariado. Assim, o

individualismo econômico prevalece, comprometendo as formas coletivas de existência. Na

Idade Média, embora já houvesse uma produção voltada para o mercado, a economia na

realidade não funcionava segundo os princípios da livre iniciativa. As corporações de ofício

que controlavam o preço e a qualidade exemplificavam tal visão econômica que favorecia

muito mais o monopólio do que o livre comércio206.

A intensificação das práticas mercantis e a complexidade de uma economia cada vez

mais caracterizada pelo dinheiro tornavam o produtor dependente de recursos financeiros que

eram controlados por grandes comerciantes.

Sobre as condições de vida dos trabalhadores que viviam da jornada de trabalho, pode-

se afirmar que, em função das condições de vida e do trabalho, em determinados momentos

havia revoltas e greves. Porém, ao comparar a vida dos trabalhadores, que se dedicavam às 206 Além de fornecer privilégios econômicos, pode se inferir que as corporações engendravam privilégios políticos. Macedo diz o seguinte sobre tais privilégios: “Pertencer a uma corporação permitia a obtenção de privilégios políticos no interior da cidade, como ser indicado para o Conselho Municipal, eleger os cônsules e indicar funcionários para a administração. Nos séculos XIV e XV, as corporações participavam ativamente do governo municipal, o que lhes permitia manter preços de compra vantajosos para as matérias-primas de seu ofício e preços de venda elevados para seus produtos acabados, na medida em que toda a concorrência era proibida.” (MACEDO, 2006, p. 41)

178

construções medievais, com o trabalho dos operários da atualidade, pode-se considerar que os

primeiros levavam uma vida melhor. O cotejamento entre trabalhadores de momentos

históricos diferentes deve ser feito com cuidado, pois como estabelecer os critérios para tal

comparação ? Além disso, a comparação posta pelo livro Viver nas cidades medievais é

possível ?

Ao usar o recurso da comparação, o livro paradidático em questão tem a possibilidade

de tornar o texto mais acessível e atraente para alunos e professores do ensino médio. O

cotejamento, então, torna-se um recurso importante para a materialização da idéia que todo

professor História desenvolve para seus alunos, ou seja, a relação passado e presente que faz do

resgate do processo histórico uma realização do estudioso. Assim, estabelecer comparações

significa deixar claro o que comparar e também que os pontos comparados variam de acordo

com aquilo que se quer buscar na História para compreender o processo histórico que resultou

o nosso presente. Desse modo, um dos critérios escolhidos por Rivair de Macedo, a noção de

qualificação, atesta que as condições de vida dos trabalhadores nas construções da Idade

Medieval fora melhor. O estabelecimento de critérios, portanto, favorece a comparação entre

contextos históricos diferentes.

A renovação historiográfica sobre o mundo medieval ocidental pode ser exemplificada

pelo aparecimento de trabalhos que resgataram a história das mulheres. Tal resgate demonstra

a contribuição de medievalistas para o avanço dos estudos históricos ocidentais. Aliás, as

grandes renovações dos estudos históricos, sobretudo na França, teve a participação de

historiadores que se dedicaram a pesquisas sobre o período medieval.

Numa obra paradidática, a abordagem de temas que, inclusive, ainda não recebem uma

abordagem sistemática nos meios acadêmicos, constitui-se como um avanço que deve ser

avaliado com muita atenção pelos pesquisadores. Rivair de Macedo aborda o cotidiano do

trabalho e da vida privada de mulheres na Idade Média do Ocidente207.

Nas cidades, a mão-de-obra feminina foi importante no tocante ao desenvolvimento das

atividades econômicas. Consoante Macedo, a maioria das mulheres, que se dedicavam a um

ofício econômico, ocupava-se dos trabalhos artesanais que executavam atividades como o de

bordadeiras e luveiras, por exemplo. Há de se acrescentar que as mulheres, aos ingressarem em

207 Em outro livro paradidático, intitulado A Mulher na Idade Média e publicado inicialmente em 1990, mas que já está na quinta edição, José Rivair de Macedo aborda temas que vão desde o casamento, passando pela família até chegar a assuntos como representações e modelo femininos.

179

um mercado caracterizado pela presença masculina, acabavam seguindo os controles

perpetrados pelas corporações de ofício.

As mulheres vinculadas às famílias burguesas chegaram a se dedicar ao comércio. No

intuito de exemplificar tal realidade, é mister informar a existência de mulheres viúvas que, por

exemplo, continuaram os negócios dos maridos. A informação sobre a atuação feminina na

Idade Média demonstra que, principalmente nas cidades, a imposição das mulheres nos centros

urbanos não foi algo raro. Logo, como pensar a Idade Média de uma forma estática se os

estudos que compõem a renovação historiografia medieval atestam a mobilidade do sexo

feminino ?208

As mudanças quanto à abordagem da mulher na sociedade medieval favorecem aos

professores e alunos do ensino médio a amenizar um pouco a idéia bastante difundida nos

livros didáticos de que à época havia o predomínio do homem. Assim, vivendo em uma

sociedade dominada por homens, a mulher medieval impôs as suas pretensões e representou o

seu cotidiano de forma particular. Além disso, seguindo as reflexões de Rivair de Macedo, a

sociedade medieval não criou obstáculos tão intransponíveis assim para a mulher209.

Ao descrever o cotidiano das cidades, buscando encontrar a trajetória de homens e

mulheres, Macedo encontra em primeiro lugar a infância, outro tema praticamente inexistente

nos livros didáticos no Brasil. Assim, do tratamento aos bebês ao ensino das primeiras letras, o

livro propõe novos temas a serem abordados.

As universidades, um dos maiores legados da Idade Média à humanidade, espalharam-

se por todas as partes da Europa, caracterizadas por sua severidade, no que concerne aos seus

estudantes. O Rivair de Macedo oferece ao leitor curiosidades como o trote aos universitários

que era lhes aplicado muitas vezes de forma perversa, bem como a presença de castigos físicos.

208 Macedo diz ainda o seguinte sobre o lugar da mulher na sociedade urbana medieval: “Assim, dependendo do lugar ocupado na sociedade urbana, as chances de sucesso não estavam completamente bloqueadas ao sexo feminine. Algumas chegaram a conquistar independência financeira em relação aos homens. Entre os testamentos dos burgueses germânicos de Lübeck do século XIV encontra-se o de Matilde de Bremen. Ela declarava possuir, além de dinheiro e jóias, certo número de imóveis. Outra comerciante, Alaíde de Bremen, deixou em testamento ao seu marido não apenas a notável soma de 400 marcos, jóias valiosas e baixela de prata, mas também a própria casa em que o casal morava.” (MACEDO, 2006, p. 50)209 Acompanhando ainda de perto as reflexões de José Rivair de Macedo, da compreensão da trajetória histórica das mulheres do Ocidente Medieval até os dias de hoje, pode-se inferir a permanência dos traços da mulher sobre a mulher contemporânea. Logo, a pergunta confeccionada por Macedo: “Tomando como base as informações anteriores, será que a situação das mulheres das cidades medievais não se parece um pouco com a das de hoje em dia ?” (MACEDO, 2006, p. 50)

180

Um número expressivo de estudantes, ao abandonar as instituições, ficavam a vagar pelas

cidades e eram assíduos freqüentadores das tavernas210.

Ao sugerir um leque maior de possibilidades sobre a abordagem da universidade

medieval, o autor remete o aluno e o professor do ensino médio a pensar tal instituição na

relação com o cotidiano das pessoas. Dessa forma, assuntos como o currículo e o desenrolar

das atividades acadêmicas não são obviamente excluídos pela obra, embora estejam articulados

a outros como a violência dos trotes universitários que ainda são tradicionais e

lamentavelmente persistem em nossas instituições de ensino.

A abordagem do cotidiano, na obra em exame, avança para temas como o espaço da

convivência na cidade medieval que são tradicionalmente vinculados às atividades econômicas

e analisados na obra de Rivair de Macedo como igualmente de vivenciais sociais. Por isso, ao

mesmo tempo em que o mercado por exemplo era o espaço da troca de mercadorias era

outrossim domínio de trocas culturais além das atividades musicais e teatrais desenvolvidas em

tais lugares.

Lugares como os templos religiosos e outros reservados para os chamados banhos

públicos também estimulavam o desenrolar de práticas culturais de grupos diversos. A

pluralidade das áreas de vivências coletivas atesta, portanto nos centros urbanos medievais à

existência de formas coletivas que se desenvolviam fora do âmbito religioso. E, mais uma vez

o autor não só relata uma Idade Média urbana vigorosa e plural para alunos e professores,

como também minimiza a ênfase religiosa posta sobre o período. É imperativo ressaltar,

entretanto, que o autor não desvincula as ações desenvolvidas por homens e mulheres fora dos

templos religiosos da mentalidade e dos valores cristãos, ou seja, embora modos de

representações e práticas sociais estivessem se moldando em espaços plurais, as sociedades

urbanas medievais ainda eram profundamente religiosas211.

210 Rivair de Macedo ainda diz o seguinte: “Afastados temporariamente do ambiente escolar, os alunos perambulavam pelas ruas, metendo-se em muita confusão. Longe da família, e livres da vigilância dos mestres e bedéis (inspetores), nada impedia os mais afoitos de freqüentar bordéis e tavernas, assediar mulheres solteiras ou casadas, participar de jogos de azar e até roubar. Muitos se envolviam em violentas brigas, na disputa por mulheres, por exemplo, ou, entre uma ou outra confusão, tornavam-se alvo de vingança de algum marido traído.” (MACEDO, 2006, p. 58)211 A informação do autor sobre os regulamentos urbanos presentes nas cidades atestam a nosso ver tal assertiva. Assim destacamos a seguinte passagem: “os regulamentos urbanos proibiam a entrada de leprosos nas casas de banho e estabeleciam dias especiais aos judeus e prostitutas, para evitar o contato com cristãos e mulheres de famílias. Mas as autoridades religiosas não se cansavam de denunciar as indecências desses estabelecimentos, por que podiam ser freqüentados indistintamente por homens e mulheres, que se banhavam juntos em completa nudez.” (MACEDO, 2006, p. 61)

181

A análise das festas que promoviam representações sobre os espaços urbanos

medievais, realizados por homens e mulheres foram trazidos à tona pelo autor de Viver nas

cidades medievais. Eles engendraram laços de convivência e fortaleceram laços culturais

cristãos e por que não dizer laços culturais oriundos de expressões e práticas culturais pagãs.

Macedo considera que as festas têm significados sociais e que, portanto, favorecem a

fortalecimento de valores e hierarquias sociais, permitindo compreender como funcionam o

poder econômico, político e social de um determinado grupo. Assim, tais eventos favorecem os

estudantes do ensino médio, a perceberem que o poder e a sujeição de grupos por outros não

acontece sempre de forma explícita e, sim, muitas vezes por mecanismos que se expressam e

são interiorizados no cotidiano212. Há de se acrescentar que tais rituais políticos representam

valores culturais em torno do poder e que permite um cotejamento com as simbologias e

práticas políticas presentes nas sociedades contemporâneas do mundo ocidental capitalista.

As festas que exultavam a religiosidade ganharam destaque no conjunto da Idade Média

Ocidental. Nas cidades, o cotidiano foi ordenado por festas que interiorizaram em mulheres e

homens valores religiosos que consolidados favoreceram as representações que eles faziam do

seu tempo. As cerimônias que engendravam as festas eram organizadas pelas lideranças

religiosas em torno das igrejas. De um modo geral, a grande maioria das festas religiosas

almejavam recordar o nascimento, o sofrimento e a ressurreição de Cristo. Elas decorriam com

muita alegria e até zombarias, embora num clima marcado pela seriedade e comoção

religiosa213. Então, deve-se considerar que o clima religioso convivia com manifestações que

oportunizam pensar à existência de manifestações de representações e práticas que pretendem

no mínimo ironizar a ordem dominante.

As festas religiosas, que acabaram por expressar o cotidiano de homens e mulheres,

possibilitam a compreensão de festas como o carnaval. Aliás, segundo o texto de José Rivair, a

212 A passagem seguinte representa em nossa perspectiva uma espécie de teatralização do poder feita por intermédio das festas: “Em torno dos governantes, aliás, havia diferentes ocasiões em que as municipalidades organizavam festas. Elas ocorriam no momento em que um rei era entronizado ou quando se casava, quando nascia o sucessor do trono real ou por ocasião da morte de um governador. A ‘entradas’ marcavam, justamente, o primeiro contato dos novos senhores com suas comunidades. Eram realizadas por ocasião da primeira chegada dos reis e príncipes a suas cidades ou, ainda, por ocasião do retorno dos líderes depois de vitórias obtidas em guerras.” (MACEDO, 2006, p. 68)213 Na descrição de Rivair Macedo: “Dentro da igreja, os participantes dançavam, saltavam, comiam em demasia e entoavam canções profanas, jogando dados e outros jogos de azar. No final da ‘missa’, ao anúncio do ‘Vai em paz, que o senhor vos acompanhe’, todos respondiam com gritos, risos e zurros debochados. Começava, então, uma procissão ‘às avessas’ fora do recinto, na qual se cantavam canções obscenas, fazia-se pilhéria e chacota com as autoridades, tudo sob o comando do ‘bispo loucos’”. (MACEDO, 2006, p. 73)

182

designação de folião é proveniente do francês que significa tolo ou louco. O crescimento das

festas fez com que as lideranças da Igreja Católica combatessem as manifestações dos

carnavais. Daí a delimitação dos dias festivos214.

As chamadas minorias urbanas, que eram excluídas das sociedades urbanas medievais,

também são abordada pelo autor de A Mulher na Idade Média, cuja presença, afiança as

vertentes historiográficas que concluem a presença de conflitos no interior das sociedades. E,

consoante o pesquisador, a exclusão dava-se inclusive por intermédio do aviltamento da figura

humana.

A prostituição, prática comum nas cidades medievais, foi condenada, na medida em que

havia uma reprovação moral em função da venda do corpo pelo dinheiro, entretanto foi

permitida e exercida em locais que eram estabelecidos pelas autoridades215. O meretrício,

embora fosse reprovado e posto à margem da sociedade incluía uma rede de pessoas que

favoreceram o seu funcionamento. Daí, estar ela profundamente incluída na dinâmica de

funcionamento das cidades medievais216.

Ao arrolar os homens que freqüentavam os locais destinados à prostituição, o

historiador diz-nos que, embora o discurso das autoridades variasse entre tolerância e a

condenação, o meretrício acabava sendo mesmo estimulado. Além disso, os homens mais

jovens, passando pelos casados e religiosos tinham sexo com prostitutas217.

214 Macedo informa-nos sobre a época estabelecida para o carnaval desde o período medieval: “O período carnavalesco tendeu a ser fixado nos dias imediatamente anteriores à Quaresma, isto, é o tempo correspondente às quatro semanas anteriores à Paixão de Cristo, em que a Igreja exigia abstinência sexual e moderação no comer e beber, proibindo que se comesse carne vermelha. O próprio termo carnaval está relacionado com o estado de espírito permitido nesses momentos de total liberdade, em que ainda era possível em abundância: daí a palavra ‘carnaval’(carnevale) indicar comer carne vermelha em quantidade.” (MACEDO, 2006, p. 215 Reservamos a seguinte passagem que ilustra bem tal assertiva: “Esses estabelecimentos às vezes eram alugados às cafetinas pelos burgueses ricos, chefes municipais, e até mesmo por autoridades eclesiásticas. Ali, as atividades sexuais eram realizadas livre e oficialmente. Havia bordéis particulares, independentes do controle municipal. Vários deles eram dirigidos por esposas ou viúvas de artesãos.” (MACEDO, 2006, p. 76)216 No paradidático intitulado A Mulher na Idade Média, José Rivair Macedo diz ainda o seguinte sobre a prostituição na Idade Média: “Os testemunhos da prostituição começam a aparecer em maior número apenas do século XIII em diante, momento a partir do qual a documentação variada e rica produzida nas cidades revela em maiores detalhes aos nossos olhos os traços dessa atividade ancestral. Em linhas gerais, ao longo de toda a Idade Média existiu a prostituição no mundo rural, mas escapava ao controle das autoridades. Esta evoluiu no mundo urbano, passando a ser organizada e situada em zonas delimitadas, sob vigilância e o controle dos governos municipais.” (MACEDO, 2002, p. 37). A partir de tal afirmativa depreende-se a idéia de que a permissão e o controle da prostituição medieval estavam diretamente relacionados com o avanço da vida urbana na Idade Média Ocidental. Ou seja se no campo não houve um controle sobre o meretrício, nas cidades aonde se desenvolveram formas de vida coletivas mais apuradas, ele foi possível. 217 No livro A Mulher na Idade Média, José Rivair Macedo informa-nos que a prostituição serviu para a resolução de problemas ligados a violência juvenil, homossexualidade masculina combatida por governantes das cidades italianas e até para religiosos que acabavam na prática relutando contra a castidade.

183

A moral e a ética cristã buscaram estimular a prática de ações que tinham o intuito de

apresentar soluções para o problema da mendicância na Europa Medieval. No contexto

histórico a crise do feudalismo era dever do cristão praticar a caridade para com os mendigos e

indigentes cujo número cresceu significativamente entre os séculos XIV e XV.

Nos meios urbanos, contudo, as legislações que versavam sobre a mendicância

tornaram-se severas com o passar do tempo. De uma maneira geral, além da restrição quanto à

presença de indigentes nas cidades, muitos mendigos foram presos e, em alguns casos, eram

punidos com a pena de morte.

Os doentes mentais, segundo reflexões Rivair Macedo, também estão incluídos entre as

pessoas que eram marginalizadas pela ordem feudal, cujo acolhimento na sociedade medieval

era melhor, comparando-se ao dispensado aos mendigos. No caso daqueles doentes que tinham

acessos de fúrias, o tratamento era diferente. Os doentes, entretanto, que eram portadores de

doenças contagiosas acabavam confinados a espaços que eram previamente determinados. Em

períodos de disseminação de epidemias, como a Peste Negra que matou boa parte da população

européia, o medo e o temor aumentavam, principalmente em relação àqueles que estavam

infectados218.

Tomando como base a noção de minorias sociais, Rivair Macedo destaca que a presença

dos judeus no Ocidente pode ser percebida desde a Antigüidade Clássica. Na Europa Medieval,

os judeus foram segregados em razão de questões religiosas. Eles não professavam o

cristianismo. Nas cidades havia grupos judaicos que, de uma maneira geral, habitavam bairros

específicos. Cabe acrescentar que a intolerância em relação aos judeus aumentou na Baixa

Idade Média. Por isso, pode-se indagar o seguinte: como explicar o crescimento da intolerância

em relação aos judeus no mencionado período ?

Pode-se inferir, em primeiro lugar como fator explicativo, por intermédio das reflexões

de Macedo, que o crescimento das atividades econômicas que trouxeram como desdobramento

a disseminação de práticas como os empréstimos a juros, alimentaram a ojeriza em relação aos

judeus. Isso, obrigou os grupos judaicos a organizarem formas de proteção, dentre as quais

destacam-se os laços entre eles e a proteção de governos às comunidades judaicas, recebendo 218 Em Viver nas cidades medievais há a seguinte passagem que exemplifica tal questão: “Quando se tratava de doenças contagiosas, a situação mudava. As sucessivas ondas de epidemias (peste bubônica, meningite, coqueluche) ocorridas em toda a Europa após a Peste Negra de 1348 criaram um estado generalizado de medo e insegurança em relação aos doentes infectados. As cidades, por concentrar maior população, eram locais em que a transmissão de doenças se dava de forma mais fácil e mais rápida. Por isso mesmo, as autoridades tomavam medidas para separar os indivíduos saudáveis dos pestilentos.” (MACEDO, 2006, p. 79)

184

com isso compensações financeiras. Em segundo lugar, Rivair Macedo considera as ações da

Igreja Católica, que acabaram alimentando o ódio contra as comunidades judaicas219.

A obra exemplifica, tomando como base regiões da Europa, movimentos anti-semitas,

que patrocinaram ondas de perseguições que culminaram no massacre de muitas comunidades

judias. O autor alonga-se mais no exame da opressão dos judeus na Espanha, que cresceu mais

no final da Idade Média. Tanto na Espanha, quanto em Portugal, ocorreram expulsões em

massa de grupos judaicos. Compete acrescentar que os episódios discriminatórios em relação

aos judeus acabaram antecedendo a violência do tribunal da inquisição moderna e, segundo

Rivair Macedo anuncia, também o holocausto nazista do século XX.

Ao esquadrinhar temas do cotidiano das cidades como as festas, a prostituição e a

perseguição das chamadas minorias medievais, o historiador favorece, através do seu texto,

condições para que os professores e alunos do ensino médio possam refletir sobre temas como

a intolerância e a marginalização de grupos sociais. Além disso, a comparação utilizada pelo

autor ao longo do texto torna o livro acessível para um público que não tem um contato

sistemático com a história medieval.

*

* *

Ao concluir o livro, o autor de Viver nas cidades medievais refaz de forma sucinta

alguns temas desenvolvidos ao longo do texto, por intermédio de um cotejamento com as

cidades atuais. Por isso, de início, o autor chama a atenção para a permanência de traços

urbanos medievais em municípios do Brasil.

219 As ações da Igreja Católica favoreceram o crescimento da segregação em relação aos judeus na Europa. Nesse sentido, nas palavras de José Rivair Macedo: “A segregação cresceu a partir do século XIII. No IV Concílio de Latrão, ocorrido em 1215, o papa Inocêncio III (pontífice de 1198 a 1216) decretou a obrigatoriedade do uso de marcas distintivas para os judeus, de modo que pudessem ser identificados pelos fiéis. Assim, deveriam vestir-se com peças de vestuário de cor amarela, portar uma braçadeira ou um chapéu cônico, ou a rouelle (rodela), a marca da infâmia em forma de roda costurada em suas roupas.” (MACEDO, 2006, p. 82)

185

Em segundo lugar, as discrepâncias sociais, bem como os conflitos sociais, étnicos e

religiosos analisados nas cidades medievais podem ajudar professores e alunos brasileiros a

compreenderem as desigualdades e os diversos problemas que marcam o Brasil no mundo

contemporâneo.

Em terceiro lugar, o autor, mesmo considerando que a Idade Média não conheceu aquilo

que se convencionou denominar por sociedade de massa e todos os seus desdobramentos,

considera válido, tomando como base as cidades pequenas e médias no Brasil, que ainda

expressam traços rurais, um cotejamento com as cidades medievais. Nesse sentido, por mais

que as cidades atuais tenham um passado cujos traços urbanos estejam mais próximo da

industrialização, é possível aproximá-las dos meios urbanos medievais.

Por fim, a convivência representada pelas festas nos espaços públicos medievais,

segundo Rivair Macedo favoreceriam os professores e alunos do ensino médio brasileiro a

pensarem as formas comunitárias que se desenvolvem no Brasil atual. Portanto, pensar o

desenvolvimento das cidades medievais a partir das diferentes formas de vivências dos

diversos grupos sociais, a partir das relações políticas, econômicas, sociais e culturais pode nos

ajudar na compreensão dos principais desafios que envolvem as cidades contemporâneas.

4.4. A Análise dos livros didáticos de História do ensino médio brasileiro.

4.4.1. Introdução.

Os processos avaliativos sobre o livro didático no Brasil têm se aperfeiçoado cada vez

mais. A conexão que envolve o governo federal e os centros universitários brasileiros muito

enseja a chegada ao mercado brasileiro de obras didáticas de História de melhor qualidade, não

só no que tange ao conteúdo, como à formatação.

O catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM) do presente

ano considera logo no início, especificamente na chamada carta aos professores, que o livro

didático ainda se constitui como uma ferramenta valiosa para professores e alunos. Porém, ele

só continuará a ter um papel importante no processo de ensino e aprendizagem se for

constantemente avaliado.

O documento ressalta mais uma vez, na introdução, a importância do livro didático para

o ensino, embora destaque a responsabilidade que o educador e a escola têm na hora da escolha

186

do manual didático. O PNLEM, em razão disso, almeja oferecer ao docente a análise de uma

série de obras de História para o ensino médio inscritas pelas editoras a fim de que o professor

possa ter subsídios para escolher aquela que ele julga poder favorecer o seu trabalho em sala de

aula. Cumpre acrescentar que as obras avaliadas por uma equipe de especialistas foram

resenhadas220, conforme uma estrutura previamente selecionada.

A equipe de avaliadores relata ao leitor os princípios e critérios comuns à avaliação de

obras didáticos para o ensino médio, partindo da justificativa inicial de que o momento

histórico educacional brasileiro e contemporâneo impõe a presença de professores que possam

despertar nos alunos a curiosidade pelo conhecimento, por intermédio de novas vivências

pedagógicas. Desse modo, o PNLEM abre-se para a perspectiva de contribuir com os

professores para a geração de novas gestões pedagógicas.

Isso posto, um primeiro princípio norteador para a confecção de um livro didático de

História, tomando como base o PNLEM, deve ser o de relacionar a sua moção científico-

pedagógica às necessidades dos alunos e professores. O livro didático como artefato cultural

voltado para o ensino médio deve estar atento às especificidades do saber escolar.

Um segundo princípio orientador do PNLEM para a criação de um livro didático é o

papel que ele deve ter na constituição e valores que estimulem a cidadania e a conduta ética.

Por isso, o seu conteúdo, escrito ou baseado em imagens, não pode veicular estereótipos e nem

informações, conceitos e análises que possam levar os estudantes a erros grotescos.

Por fim, o PNLEM recomenda os autores de livro didático da necessidade de obras que

respeitem a liberdade docente e que tal instrumento abra espaço para o professor adicionar ao

seu trabalho outras ferramentas didáticas para o aperfeiçoamento do seu trabalho educacional.

Assim, o livro didático pode ser usado não como um meio exclusivo no processo de ensino e

aprendizagem.

4.4.2. Os Livros didáticos de História nas décadas de 1980 e 1990.

O livro História das sociedades: Das comunidades primitivas às sociedades medievais,

escrito por Rubim Santos Leão de Aquino, Denize de Azevedo Franco e Oscar Guilherme Pahl

220 As resenhas elaboradas estão assim estruturadas: 1. Síntese avaliativa; 2. Sumário da obra; 3. Análise da obra; e 4) Recomendações aos professores.

187

Campos Lopes221 pode ser considerado como uma obra símbolo, no que concerne às

renovações do ensino de História na década de 1980. Os autores escreveram ainda um outro

volume para o ensino médio, intitulado História das sociedades: Das sociedades modernas às

atuais.

Os dois volumes foram organizados no contexto em que o Materialismo Histórico

consolidava-se nos meios acadêmicos e entravam timidamente nas escolas brasileiras num

contexto histórico em que predominava um ensino de História que valorizava as narrativas

políticas contempladoras de datas e ações dos chamados “grandes personagens”. A adoção dos

livros nas escolas do ensino médio brasileiro, embora tivesse crescido no decorrer da década de

1980, teve a sua expansão limitada em função das deficiências teóricas dos docentes e da

precariedade dos alunos e das escolas. É imperativo informar ainda o uso dos livros para os

primeiros períodos dos cursos de graduação em História em virtude da limitada bagagem

cultural dos alunos quanto ao conhecimento histórico.

Atendo-se agora ao livro História das sociedades: Das comunidades primitivas às

sociedades medievais, deve-se considerar que a obra foi composta de oito unidades, mais a

introdução e conclusão, reservando quatro partes para a abordagem da Idade Média. Na

introdução e na primeira parte, os autores promovem uma boa reflexão sobre os principais

aspectos e questões que estão em torno do conhecimento histórico. Os autores iniciam a obra,

destacando o mundo de sua época que, segundo eles, estava em crise. A constatação a que eles

chegaram sobre o seu mundo serve para afirmar a idéia sobre as transformações inerentes ao

processo social. Por isso, a história, ao descortinar as experiências dos povos através dos

tempos, pode nos auxiliar na compreensão do mundo e sua transformação.

Ao nomearem a primeira parte da obra de “A História é um profeta com o olhar voltado

para trás”, há a finalidade de mostrar ao leitor que o historiador, ao se voltar para o passado,

compreende a dinâmica da história, bem como as transformações que geraram o presente.

Posteriormente, os autores destacam a seguinte pergunta: Que é História ? As definições sobre

o que é História devem ser respondidas de acordo com o tempo, pois o ofício do historiador

muda com o tempo. Além disso, não só o ofício de historiador, como também o próprio

historiador deve ser compreendido por intermédio do seu contexto histórico.

221 A edição utilizada na obra é: AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das sociedades: das comunidades primitives às sociedades medievais. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.

188

Ainda na primeira parte, ocorre um resumo das principais características assumidas pela

historiografia ocidental até o século XX. Os autores assinalam a opção pelo Materialismo

Histórico para a compreensão do processo histórico ocidental.

Ao encerrarem a primeira parte, a obra analisa noções inerentes ao conhecimento

histórico como documento, crítica histórica e classificação das fontes históricas. Por fim,

concluem ressaltando mais uma vez a importância da consciência histórica e social, bem como

a luta por melhores condições de vida e trabalho, o qual, é uma categoria teórica central usada

pelos autores para a compreensão do processo histórico.

Os temas concernentes à História Medieval estão localizados na quinta, sexta, sétima e

oitava parte, ou seja metade do livro. Cada parte está dividida em unidades. Na quinta parte,

mais precisamente na primeira unidade intitulada “Os Tempos são tão confusos”, os temas

abordados convergem no sentido de explicar as origens do feudalismo. A unidade segunda

chamada de “Não há senão sombras de reinos”, têm o intuito de mostrar o processo de

constituição dos reinos romano-germânicos.

A sexta parte, intitulada,”Comércio e Fé”, é constituída por duas unidades. A primeira

unidade com o nome de “Rica em prestígio, mais ainda em dinheiro”, estabelece a análise do

Império Bizantino, apontando fundamentalmente as suas origens, bem como as suas relações

com a Europa Ocidental. Na segunda unidade, o objeto de estudo é a sociedade muçulmana,

em que, o mundo árabe, berço da religião islamita, é examinado com o intuito de se

compreender o triunfo do Islã e a sua posterior expansão pelo mundo que afetou o

desenvolvimento do processo histórico europeu na Idade Média.

A sétima parte na unidade intitulada, “Fora dela não há salvação”, os autores examinam

a igreja no mundo medieval. Na primeira unidade, o Cristianismo tem a sua história estudada

no contexto histórico do Império Romano a partir do seu arraigamento primeiro entre os

grupos populares e, posteriormente, entre os setores aristocráticos. Na segunda unidade, cujo

nome é “O Poder mais alto”, a trajetória do cristianismo na Idade Média é examinada

juntamente com a da Igreja Católica. Pode-se se considerar que o poder da igreja que

ambicionava o monopólio do cristianismo verificou-se na política, na economia, na sociedade e

na cultura. Visto isso, pode-se considerar que os temas examinados nas partes cinco, seis e sete

vinculam-se ao contexto de gestação do feudalismo que, consoante os autores, foi aquilatado

pelo avanço do processo de ruralização e declínio das cidades.

189

Na oitava parte, chamada de “Alguns rezam, outros combatem e outros trabalham” há

na unidade primeira a caracterização do feudalismo a partir de suas estruturas políticas,

econômicas e sociais. Tal parte, de um modo geral, ocupa-se de assuntos que estão em

consonância com o período do ápice da sociedade feudal. Na segunda unidade, o livro ocupa-

se do estudo das Cruzadas, a partir das suas motivações material e religiosa. Na unidade

terceira, “O Renascimento do comércio e das cidades” é estudado. As origens da expansão

urbana na Baixa Idade Média, bem como o papel das cidades e do comércio para o feudalismo

são evidenciados. Por fim, a unidade é encerrada uma reflexão sobre as origens da crise do

feudalismo que ocorreu entre os séculos XIV e XV. Na unidade quatro, a obra busca resgatar

os aspectos que estão em torno das monarquias feudais que foram base para a formação dos

Estados nacionais modernos. Além de destacarem os fatores que contribuíram para a formação

das monarquias feudais, os autores examinam a formação das monarquias na França e na

Inglaterra. A oitava parte é encerrada, através da unidade cinco, que trata sobre a cultura

medieval. Nesse ponto, a arte, a arquitetura, o teatro, a literatura e a filosofia são objetos de

estudo.

Cabe salientar que os autores problematizarem a expressão Idade Média, criticando os

estereótipos em torno dela, têm a intenção de resgatar o referido período, destacando a sua

singularidade e a presença de uma civilização como, por exemplo a cristã ocidental, bizantina e

muçulmana. Todavia, a obra adverte que dentro da tradição humanista houve uma valorização

do ocidente em detrimento de outros povos.

Os autores questionam também a divisão tradicional sobre a Idade Média e sustentam

que ela está ancorada nas relações econômicas e sociais. Eles apresentam sucintas informações

sobre as polêmicas que dizem respeito ao início e fim da Idade Média. Por fim, a discussão é

concluída a partir da idéia de que, segundo eles, a sociedade feudal sobreviveu ao contexto da

transição do feudalismo ao capitalismo.

Na unidade terceira, os autores consideram que a Idade Média Ocidental entre os

séculos V e X passou por intenso processo de ruralização. Nesse ponto, seguindo uma

tendência que se verifica nos livros didáticos investigados nesta dissertação, os autores

ignoram a vida nas cidades no referido período. Por isso, eles acabam propondo a seguinte

questão: quais foram os fatores que contribuíram para o Renascimento do comércio e das

cidades ?

190

Em seguida, os autores associam o chamado “Renascimento do comércio e das cidades”

com o apogeu do feudalismo. Assim, eles não compactuam da tese que considera o comércio

como uma atividade desvinculada do sistema feudal. Além disso, em um primeiro momento

reforçou a servidão feudal. No limite, eles consideraram as cidades como integradas ao

feudalismo, e a economia urbana adequou-se a ele. Na expansão do sistema feudal, contudo, os

novos agentes da economia mercantil contribuíram para a crise do feudalismo.

A representação que o presente manual faz das cidades medievais relaciona-se à idéia

de esvaziamento da vida urbana, entre os séculos V e X. Daí, a tese dos autores de que muitas

cidades na Idade Média terem sido repovoadas ou fundadas em razão do desenvolvimento

comercial.

No que diz respeito ao aspecto político-administrativo, as cidades estavam inicialmente

sujeitas aos senhores feudais. A carta de franquia e o movimento comunal expressam a luta

pela autonomia das cidades. O livro representa ainda igualmente as corporações que tipificam

as cidades medievais, e com o passar dos tempos, elas se tornaram entraves ao

desenvolvimento econômico. Há de se acrescentar que os autores relacionam melhorias das

condições materiais da vida urbana com o desenvolvimento comercial que influenciou também

no desenvolvimento da arquitetura.

No tópico “Renascimento do Comércio”, os autores retomam as seguintes afirmações:

1) na Alta Idade Média, o comércio conheceu uma lenta retração, tornando-se local; 2) No

século XI, houve uma tendência de expansão comercial que se verifica até os séculos XIV e

XV; e 3) Paralisação das incursões normandas, húngaras e muçulmanas, bem como as cruzadas

favoreceram a expansão comercial.

Os autores, além de elencarem as principais dificuldades para o desenvolvimento

comercial, destacam a função das feiras, e apontam igualmente as guildas, que formaram

rígidos monopólios, garantindo a seus associados o livre comércio dentro da cidade. Eles

destacam os efeitos do comércio para o meio rural e os fatores que contribuíram para a crise

dos séculos XIV e XV.

As gravuras utilizadas destacam a função comercial das cidades e são explicadas de

modo sucinto, havendo uma coerência entre elas e o texto que informam sobre as cidades na

Baixa Idade Média, ou seja, elas visam representar o papel econômico dos centros urbanos.

191

Compete acrescentar que os autores usam o concurso das charges para ilustrar o texto escrito,

tornando-o mais agradável.

Cabe acrescentar que, em relação à cultura medieval ocidental, as manifestações

presentes nas artes, literatura, ciências e filosofia são residualmente associadas ao

desenvolvimento das cidades, enfatizando a função econômica da cidade, deixando de lado a

possibilidade de abordar as diversas representações políticas, sociais e culturais.

*

* *

O historiador José Jobson de Andrade Arruda, autor da obra História Antiga e

Medieval222 que será examinada a partir de agora, foi um autor importante, pois, além de atuar

como professor no ensino médio, atuou igualmente no ensino superior223. A docência em

cursos pré-vestibulares fez com que o autor elaborasse apostilas que posteriormente serviram

de base para a confecção dos livros didáticos. Há de se acrescentar que o livro História

Moderna e Contemporânea foi escrito em 1974, portanto antes do manual que será analisado

nesta dissertação. Consoante o próprio historiador, ele foi escrito em dois meses em razão da

larga experiência adquirida por ele na sala de aula (GATTI JÚNIOR, 2004, P. 87).

Na apresentação da obra, que em 1982 alcançou a quinta edição, o autor crê que a

análise do político e religioso deve ser realizada no contexto da vida econômica e social. Ele

informa ainda ao leitor a exclusão das civilizações da Índia, da China e do Japão, pois admite a

necessidade de concentrar o estudo no processo histórico ocidental, mesmo não explicando tal

opção de forma mais detalhada. Ele ainda tem a preocupação de aproximar o leitor das fontes.

Além disso, há no primeiro capítulo o esclarecimento dos conceitos usados no estudo da

222 A indicação utilizada é: ARRUDA, José Jobson de A. Antiga e medieval. 5.ed. São Paulo: Ática, 1982.223 Décio Gatti Júnior no livro A Escrita escolar da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990), relata o itinerário profissional de José Jobson de Andrade Arruda, tomando como base a vivência que ele no ensino médio e superior. Nas palavras de Gatti Júnior: “Este extenso relato do prof. Jobson Arruda deixava claro que seu envolvimento profissional simultâneo na Universidade e no Ensino Médio trouxe-lhe uma formação muito especial, pois permitiu-lhe um contato tanto com o conhecimento científico de ponta como com a prática pedagógica desenvolvida nos cursinhos da época.” (GATTI JÚNIOR, 2004, p. 60)

192

História, apontando o público-alvo ao qual a obra se destina. O livro discorre sobre a Idade

Média a partir da seguinte divisão: Alta idade Média e Baixa Idade Média. Pode-se dizer assim

que metade da obra versa sobre o período medieval, incluindo-se também aqueles

acontecimentos que culminaram na decadência do Império Romano do Ocidente.

Na introdução do livro, José Jobson define de maneira ampla a historiografia.

Analisando os três momentos da História, ou seja, a História heróica,a História científica e a

História total. Após, há a discussão dos conceitos que o pesquisador considera importante na

apreensão do processo histórico, tais como continuidade, rupturas e revoluções, e prossegue

caracterizando conceitos básicos tais como modo de produção, sistema, estrutura e conjuntura.

Como corolário disso ele insere a História no conjunto das ciências humanas.

A periodização da História é destacada igualmente pelo autor como fator fundamental

para o seu estudo, reconhecendo e destacando a importância do uso do calendário cristão.

Adverte, todavia para as dificuldades, no que diz respeito ao uso da periodização. Por fim,

chama a atenção para os limites da periodização que é utilizada de forma recorrente pelos

livros de História224.

O livro História Antiga e Medieval utiliza duas partes para o estudo da Idade Média. A

primeira, intitulada a “Alta Idade Média”, aborda no início o Império Bizantino, destacando as

origens de Constantinopla que se tornou o centro do Império Romano do Oriente, juntamente

com o governo de Justiniano. Em seguida, há o estudo sobre a civilização muçulmana. O autor

explica no intróito o significado da palavra islã, associando o islamismo a um Estado

teocrático. Posteriormente, a Arábia pré-islâmica é estudada, concomitante à conversão de

Maomé ao islamismo. Por fim, a expansão islâmica militar e religiosa é enfatizada, assim como

os seus efeitos sobre o ocidente medieval.

Seguindo ainda na Alta Idade Média, José Jobson de A. Arruda promove um estudo

sobre a formação dos reinos bárbaros na parte ocidental da Europa. Daí, a relação entre reinos

bárbaros e ruralização. O reino dos Francos, dentre outros, é destacado, principalmente em

função da importância posterior dos Merovíngios e Carolíngios, e os últimos, em função do seu

papel no que tange à consolidação do feudalismo e do Renascimento Cultural.

A Igreja Católica e o Sacro Império são analisados no contexto da Alta Idade Média.

Inicialmente o autor promove uma relação entre a ruralização da economia e da igreja. Em um

224 O autor refere-se à seguinte periodização: Pré-História, História Antiga, História Medieval, História Moderna e História Contemporânea.

193

segundo momento, a obra mostra o desempenho da igreja na época do Sacro Império,

definindo o poder dos papas. E, finalmente no terceiro momento há uma reflexão sobre o

papado e o império. Há de se acrescentar que o livro oferece informações sobre a constituição

do sacro Império e também sobre a chamada “Querela das Investiduras”.

Encerrando a parte sobre a Alta Idade Média, consta um estudo sobre o funcionamento

do sistema feudal. Na introdução, de forma breve, o autor explica as origens do nome Idade

Média, bem como a questão da visão pejorativa forjada sobre o período. Em seguida, há a

definição do sistema feudal e igualmente dos fatores que contribuíram para a sua formação,

reportando-se aos fatores estruturais e conjunturais. Em um outro momento, há uma explicação

sobre o funcionamento do sistema feudal e do regime de trabalho, concomitante a informações

sobre as instituições políticas e religiosas. Posto isso, a ênfase recai sobre a Idade Média rural,

tangenciando assim a vida urbana antes da Baixa Idade Média que acaba sendo somente

abordada em três capítulos.

A partir do tema, As Cruzadas e o Renascimento Comercial, o autor inicia o estudo da

Baixa Idade Média, cuja introdução considera que na Alta Idade Média ocorreu a formação e

consolidação do sistema feudal, enquanto na Baixa Idade Média iniciou-se a transformação do

feudalismo e posterior formação do capitalismo. Em seguida, há a exposição dos fatores que

propícia a eclosão das Cruzadas, cuja razão do seu fracasso, por fim é expostos, assim como as

repercussões do movimento no ocidente.

O Renascimento Urbano é o segundo tema inserido na Baixa Idade Média, consoante

proposta do livro. Logo na introdução, o autor afirma que no século XI ocorreu uma crise do

sistema feudal que teria favorecido a vida nas cidades. O desdobramento disso é a

representação das cidades medievais como produto do Renascimento Comercial. A obra

explica ainda o crescimento das cidades, bem como a organização da comunidade urbana e os

tipos de cidades, discorre ainda a discorrer sobre a administração urbana, as finanças públicas e

as origens das corporações225.

Na parte dedicada ao desenvolvimento do comércio internacional, José Jobson de A.

Arruda demonstra que, com o passar dos tempos, a atividade comercial tornou-se mais

complexa, arrolando após os obstáculos ao desenvolvimento comercial. Cabe ainda mencionar

225 Embora reconheça que a tese mercantil não seja suficiente para explicar as origens das cidades, há uma tendência do livro em enfatizá-la. Logo, há explícita consideração da tese de Pirenne.

194

a atenção dispensada à descrição das rotas marítimas e terrestres no tocante à organização do

comércio de longa distância226.

A transformação do feudalismo na Baixa Idade Média foi igualmente alvo da obra

didática examinada. A tese proposta pelo autor tem como pressuposto a idéia de que, enquanto

o feudalismo entrava em decomposição, o capitalismo estava em formação. Em seguida, o

autor focaliza os fatores de tal transformação e o processo que levou ao fim do feudalismo,

dentre os quais o Renascimento Comercial e Urbano. Finalmente ocorre a explicação sobre os

fatores que favoreceram a crise do feudalismo entre os séculos XIV e XV.

Em mais duas partes, concernentes à Baixa Idade Média a ênfase recai nas

transformações políticas que propiciaram o fortalecimento das monarquias nacionais,

evidenciando, fatores como a Guerra dos Cem Anos, a decadência do poder aristocrático e a

reafirmação do poder real. Tal análise não destaca de modo contundente a importância das

cidades medievais em tais mudanças políticas.

O autor relaciona a evolução religiosa, juntamente com a cultura, e desse modo, a Igreja

Católica é representada inicialmente como a detentora ou monopolizadora das manifestações

culturais. As transformações culturais, no entanto, exemplificadas pela emergência das

universidades, da filosofia medieval, do desenvolvimento da literatura e das transformações na

arte também são apontadas como inovações na Idade Média. Tais transformações não são

conectadas à expansão urbana medieval.

O livro de José Jobson é ilustrado com gravuras que destacam a função da cidade como

centro comercial, as quais têm a incumbência de reforçar a tese de que as cidades teriam

primordialmente uma função econômica.

*

* *

226 A obra ainda reforça a importância das companhias mercantis, juntamente com a complexidade da circulação monetária e do crédito.

195

Escrito por duas autoras227 que contribuíram para a renovação das reflexões sobre o

ensino de História a partir da década de 1970, o livro História Geral: Antiga e Medieval228,

também favoreceu para uma inovação da abordagem da História Medieval no ensino médio.

Elas atuaram no ensino médio e no ensino superior. O livro examinado é o da primeira edição

de 1987.

Na apresentação, as autoras destacam que o livro tem como objetivo descrever e

analisar o mundo antigo e medieval a partir do Ocidente. A divisão dos conteúdos atende à

tradicional periodização que se estende da Pré-História ao mundo Contemporâneo229. Assim, o

processo histórico europeu ocidental é o principal objeto de estudo.

A obra almeja também estimular o aluno a compreender as relações entre o passado e

presente, bem como levá-los a pensar historicamente, o que demandaria uma postura crítica.

Cumpre ainda apontar que a seleção dos conteúdos históricos está em conformidade com a

visão que as autoras têm sobre o conhecimento histórico. Por isso, elas as autoras apresentam a

visão que tem como suporte a noção de que estudar História não resgatar exatamente aquilo

que aconteceu.

No tocante à abordagem, o manual ambiciona capturar o processo histórico por

intermédio da noção de totalidade, ou seja, o tripé economia, sociedade e política. Os assuntos

relacionados à cultura, no entanto, não são preteridos, consoante as autoras. A obra busca

outrossim familiarizar os estudantes e os professores com o trabalho interdisciplinar para uma

melhor compreensão da cultura no interior do processo histórico ocidental.

Sobre as orientações metodológicas e os planejamentos escritos com o objetivo de

melhor orientar o trabalho docente, Elza Nadai e Joana Neves asseveram a importância dos

exercícios para um melhor desempenho dos alunos, no que concerne ao entendimento da

História na perspectiva holística. Todo este planejamento, todavia, deve ser monitorado pelo

professor que deve informar aos alunos os caminhos necessários a serem trilhados para o êxito

227 Elza Nadai e Joana Neves participaram, por intermédio de debates, seminários e textos publicados de reflexões que influenciaram e influenciam até hoje historiadores e educadores que se ocupam com estudos e cursos que estão, renovando o ensino de História. Cabe também acrescentar que elas publicaram ainda os seguintes livros didáticos: História Geral: Moderna e Contemporânea; História do Brasil; e História da América.228 A edição utilizada é: NADAI, Elza; NEVES, Joana. História geral: antiga e medieval. São Paulo: Saraiva, 1987.229 Embora utilizem a noção Pré-História, as autoras compartilham a crítica de que ela é um equívoco. Nas palavras das autoras: “A noção de Pré-História, por exemplo, foi criticada e explicitada bem como e quando o conhecimento histórico daquela sociedade foi elaborado, além da construção ideológica que justifica a existência de povos sem história.” (NADAI; NEVES, 1987, p. 4)

196

nos estudos. Por fim, há o estabelecimento dos objetivos cognitivos, conteúdos e sugestões de

avaliações que deveram ser perseguidos pelo professor nas quatro unidades em que o livro está

dividido.

Na primeira unidade intitulada “A História: Noção e Significado”, na visão das autoras,

o ensino médio deve propiciar aos alunos uma maior capacidade de análise, crítica e

sistematização do conhecimento histórico. Por isso, em primeiro lugar os alunos devem

compreendê-lo como ele foi engendrado230. Cumpre acrescentar que as questões discriminadas

pelas autoras no limite poderiam ser resumidas em uma única: Como resgatar o conhecimento

histórico ?

Especificamente no capítulo nomeado, “O estudo da História”, ocorre a afirmação de

que o estudo da História ocupa-se da compreensão da atuação dos homens através dos tempos.

O desdobramento disso é a percepção da História como construção humana. Posto isso, a

dinâmica do processo histórico revela-se na construção da existência material que, segundo o

manual examinado, também favorece os homens e mulheres a representarem por idéias e

valores o mundo do seu tempo. Pode-se inferir, por isso, que o Materialismo Histórico embasa

a visão de História das autoras231.

A História Medieval é descrita e analisada na unidade quatro. Ela está dividida em nove

capítulos. No primeiro capítulo, as autoras, além de destacarem o fim do Império Romano

juntamente com as invasões bárbaras, analisam o reino Franco, e o império Carolíngio. O

capítulo é encerrado com uma discussão que até hoje divide os historiadores, ou seja a

transição da Antigüidade para a Idade Média232.

230 Nas palavras das próprias autoras: “Portanto, resgatar o conhecimento histórico implica o domínio do próprio conteúdo histórico bem como na reflexão e análise das formas de como ele foi elaborado, veiculado e preservado até os nossos dias. Assim, convém iniciar o estudo da História formulando algumas questões: O que sabemos sobre determinando assunto ? Como sabemos que ele ocorreu ? Quais são as nossas fontes principais para este estudo ? As suas respostas indicarão algumas noções importantes a serem apreendidas: fato histórico, fontes históricas, procedimentos metodológicos e História.” (NADAI, NEVES, 1987, p. 7)231 O capítulo ainda discorre sobre os seguintes assuntos: O significado da palavra História; A História como ciência; A Origem grega do termo, bem como o desenvolvimento e mudanças das noções sobre o conhecimento histórico no ocidente. O capítulo abre-se igualmente para reflexões sobre as indicações metodológicas, assim como a problematização que envolve a relação tempo e História. O capítulo é encerrado com passagens do livro A Ideologia alemã (Feuerbach) e tem como objetivo discutir a História na perspectiva de Marx e Engels. Os exercícios conseguem oferecer aos estudantes e professores uma boa perspectiva de revisão e apreensão dos conteúdos arrolados ao longo do capítulo.232 O texto escolhido para essa discussão é o de Jacques Le Goff extraído do livro: A Civilização do Ocidente Medieval. Cabe dizer que a reflexão dirigida para os professores e alunos tem como base uma questão: Da Antigüidade à Idade Média: continuidade ou ruptura ?

197

Na seqüência, temas como a Igreja Católica, a Sociedade Feudal e as Cruzadas são

estudados. Com relação ao primeiro, a obra considera inicialmente a importância das primeiras

comunidades cristãs, e posteriormente, das ações da igreja na Europa Ocidental. No tocante ao

segundo, as autoras descrevem a estrutura econômica, política e social, enfatizando o caráter

essencialmente agrário da Europa Medieval. Sobre o terceiro tema apontado antes da cidade

medieval, o manual didático busca uma definição do fenômeno e, logo em seguida, identifica

os fatores que contribuíram para a sua eclosão, assim como uma breve descrição das Cruzadas

e as suas conseqüências.

A cidade na Idade Média é tratada em relação ao desenvolvimento econômico que teve

como sustentação o avanço do comércio realizado nas localidades e em longas distâncias. A

análise do fenômeno urbano medieval233 considerado pela obra é o que se verifica a partir do

século, reforçando assim a tese de que o mundo medieval ocidental, desde o fim do império

romano foi essencialmente rural. Depreende-se, desse modo, a inexistência de informações

sobre o desenvolvimento urbano antes do século XI e as possíveis funções desempenhadas

pelas cidades. Há de se acrescentar que as indagações sobre as cidades buscam no limite

identificá-las no seu ofício econômico.

O surto demográfico e o desenvolvimento econômico são considerados como fatores

iniciais que explicam o desenvolvimento comercial e o renascimento urbano234. Nessa relação,

não se pode considerar entre eles uma relação de causa e efeito. Os dois fatores foram

favorecidos pelo crescimento da produção agrícola que, por sua vez foi, favorecida pelas

inovações técnicas.

As autoras consideram que o renascimento comercial é um desdobramento dos fatores

acima. Por isso, a circulação de moedas cresceu, concomitantemente ao avanço paulatino da

economia mercantil. O livro considera igualmente que o desenvolvimento comercial esteve

integrado ao conjunto da economia medieval.

O renascimento urbano está intimamente conectado à expansão comercial. Assim, as

cidades cresciam e se impunham aos poderes senhoriais e conseguiam as suas liberdades por

233 As autoras formulam uma série de questões para a compreensão do fenômeno urbano medieval a partir do século XI: “Que fatores devem ser buscados para explicar esta nova conjuntura ? O desenvolvimento urbano ocorreu integrado ao sistema feudal, contribuindo para o seu apogeu ? Ou, ao contrário, teria contribuído para sua dissolução ? O feudo e a cidade expressam interesses opostos ? Qual a relação entre o desenvolvimento urbano e as atividades comerciais ? Foram as cidades conseqüência do comércio ?” (NADAI; NEVES, 1987, p. 194)234 As autoras, porém ressaltam que “nem todas as cidades da Europa Ocidental tiveram sua origem no comércio.”

198

meio de pagamento para um determinado senhor feudal ou através de ações militares. A Carta

de Franquia ou Foral é o documento que representa a liberdade das cidades235.

A obra discute ainda os efeitos do renascimento comercial e urbano. O expressivo

avanço econômico ecoou em toda a sociedade medieval. As conseqüências, contudo, não se

fizeram repercutir de forma homogênea no mundo europeu medieval. No plano social, a

nobreza também foi influenciada, na medida em que as suas rendas gravitavam em torno de

uma economia monetária. A burguesia, porém representou no plano social236 o resultado mais

acabado de tais mudanças comerciais e urbanas.

As gravuras utilizadas no livro de Elza Nadai e Joana Neves destacam a função

econômica das cidades e estão em consonância com as informações elencadas. Há de se

acrescentar que há uma gravura que representa uma cidade cercada por muralhas.

A cultura medieval no ocidente é destacada, levando-se em conta a filosofia, a

literatura, a arquitetura e as ciências. Na introdução do capítulo, o manual discute

residualmente a atribuição do Renascimento no que concerne ao estereótipo “Idade das

Trevas” que rotulou a Idade Média. A partir daí, as autoras utilizam a religião como fio

condutor explicativo para a compreensão das manifestações religiosas do período237.

A filosofia medieval é representada, sobretudo, a partir da Escolástica, cujo nome de

maior destaque foi Santo Tomás de Aquino. Ela propunha demonstrar a conexão entre fé e

razão, extraindo da filosofia aristotélica a sua sustentação teórica. Os pensadores que se

filiaram ao pensamento filosófico escolástico atuaram nos principais universidades européias

da época238. As autoras, no entanto, não promovem explicações, envolvendo o avanço do

pensamento filosófico que foi estimulado pelos meios universitários com os meios urbanos.

Na Idade Média Ocidental, o latim foi o idioma oficial e, portanto base da produção

literária. As autoras consideram que na Alta Idade Média a produção literária foi pequena em 235 Embora as autoras destaquem de uma maneira geral a função econômica das cidades, elas informam alguns aspectos marcantes do meio urbano, tais como as muralhas. Além disso, as corporações de ofício são destacadas e caracterizadas.236 O livro ainda aponta uma questão pertinente ao aspecto social: “A hierarquia social definida não só em relação ao dinheiro, mas também segundo um outro novo valor: o trabalho”. (NADAI; NEVES, 1987, p. 201)237 Nas palavras de Elza Nadai e Joana Neves: “Neste contexto, as manifestações humanas – artísticas, científicas e culturais – forma condicionadas pelos princípios religiosos do cristianismo bem como foram expressão deste novo contexto mental: Deus como centro de todas as coisas e os homens criados à sua imagem e para sua glorificação.” (NADAI; NEVES, 1987, p. 218)238 O livro ainda descreve outras escolas filosóficas: “Ao lado da escolástica, surgiram outras escolas filosóficas de menor expressão; dentre elas, podem ser citadas: mística, representada principalmente por Rusbroek (1298-1381) e Gerson (1363-1429); a empírica, dirigida por Rogério Bacon (1214-1294); e a combinatória, criada por Raimundo Lulio (1235-1315).” (NADAI; NEVES, 1987, p. 219)

199

detrimento da Baixa Idade Média, marcada pela expansão e diversificação literária. Convém

acrescentar que houve igualmente o crescimento de obras de cunho filosófico, escritas em

latim. Não há ainda uma vinculação entre a produção e diversificação literária como

desenvolvimento das cidades.

No tocante à arquitetura, a obra assinala como ponto central o princípio de que ela

representou os valores religiosos. Ocorreu a ascendência dos estilos românico e gótico; o

primeiro expressou-se em igrejas que tinham características rígidas e que refletiam uma

sisudez religiosa. O segundo, embora represente de forma cabal toda a mentalidade religiosa

medieval, abre-se outrossim para uma cultura que já na Baixa Idade Média experimentava um

processo de secularização. Reside aí uma aproximação desse estilo com o desenvolvimento das

cidades que, segundo as autoras ancora-se fundamentalmente no desenvolvimento comercial.

O desenvolvimento das ciências na Alta Idade Média, consoante a obra examinada,

ficou comprometido em função do clima de insegurança provocado por guerras e invasões.

Depreende-se então que em tal período não ocorreu um desenvolvimento do pensamento

científico, enquanto o desenvolvimento comercial e a expansão das cidades estimularam o

avanço das ciências. Mais uma vez o manual provoca uma aproximação entre as mudanças

culturais e o meio urbano.

*

* *

O livro História Antiga e Medieval: da Comunidade Primitiva ao Estado Moderno,

publicado nos anos de 1980239, foi escrito por dois estudiosos que também exerciam na época a

docência no ensino superior.

Na sucinta apresentação da obra, os autores enfatizam o trabalho como meio para a

criação do próprio homem. Nessa ótica, o livro procura mostrar os modos pelos quais as

sociedades humanas se organizaram para a produção da vida material, do período que vai das 239 Não há no manual indicação sobre o ano da primeira edição e nem informações sobre os autores. A indicação completa é: MELLO, Leonel Itaussu A; COSTA, Luís César Amad. História antiga e medieval: da comunidade primitiva ao Estado moderno. São Paulo: Scipione, s/e.

200

comunidades primitivas até as sociedades medievais. A Idade Média é abordada por meio de

duas unidades.

No início da unidade que versa sobre a Alta Idade Media, a obra promove uma reflexão

sobre estereótipo “idade das trevas”, chamando a atenção para noções como ignorância e

superstições que respaldavam tal estereótipo. Os autores, ainda que ensaiem uma abordagem

crítica sobre o tema acabam por justificar o clichê sobre o período medieval240.

O capítulo primeiro da unidade terceira aborda “Os Reinos Bárbaros na Europa” e as

várias tribos germânicas, o cotidiano das tribos germânicas e as invasões no fim do Império

Romano são estudados. No capítulo dois, O Império Bizantino é o tema. Outros, temas como

as origens do império, e o governo de Justiniano, e sua organização política e social são aí

discutidos. No capítulo três, estudam-se a História do mundo muçulmano, a partir da Arábia

Pré-Islâmica, a importância de Maomé e a unificação política e religiosa. No capítulo quatro, o

tema em destaque é o Império Carolíngio cujos assuntos relacionados são: a formação do

Reino Franco, a formação do Império Carolíngio, a organização do Império Carolíngio, a

divisão do Império Carolíngio e o Sacro Império Romano Germânico. O último capítulo,

intitulado O Sistema Feudal, trata dos seguintes temas: as origens do feudalismo, as

características gerais do feudalismo e o cotidiano da sociedade feudal. De uma forma geral, o

capítulo destaca o mundo rural como predominante na Idade Média. Por fim, na parte final da

unidade há um bom número de gravuras que representam os valores religiosos e o cotidiano de

senhores e servos em um período marcado pela hegemonia da vida rural.

No limiar da unidade nomeada A Baixa Idade Média: séculos XI ao XV, o autor oferece

um resumo dos conteúdos contidos nos capítulos. No primeiro, intitulado Os Conflitos entre o

papado, os assuntos estudados são os seguintes: A organização da Igreja Católica, A Criação

da Ordem de Cluny e A Querela das Investiduras. No capítulo segundo, nomeado de As

Cruzadas, os temas abordados são: a situação da Europa no século XII, a Convergência de

interesses nas Cruzadas, as Cruzadas do Ocidente, as Cruzadas no Oriente e as conseqüências

das Cruzadas. No capítulo intitulado O Renascimento Comercial e Urbano, os assuntos

estudados são os seguintes: As origens do Renascimento Comercial e Urbano, O Renascimento 240 Os autores dizem textualmente o seguinte: “Na época medieval, a sociedade teria sido caracterizada pela ignorância, superstição e miséria, esquecendo-se do conhecimento, preocupada apenas com a vida após a morte na Terra. Essa idéia é baseada na equivocada conclusão de que todo o período medieval possuiu traços culturais idênticos. Na verdade, as instituições européias do século VI são, fundamentalmente, diferentes das posteriores ao século XI. A chamada ‘Idade das Trevas’ não caracterizou mais que quatro séculos (V ao VIII), abarcando, portanto, apenas uma parcela da Alta Idade Média.” (MELLO; COSTA, s/e, p. 185-186)

201

Comercial, As associações de artesãos e comerciantes e O Renascimento Urbano e a formação

da burguesia. O Capítulo cujo nome é a Formação das Monarquias Nacionais aborda os

seguintes temas: Características gerais das monarquias nacionais, A formação da monarquia

portuguesa, A monarquia francesa e A formação da monarquia inglesa. O capítulo cinco versa

sobre a Crise do século XIV, ou seja, a crise do feudalismo que aborda os seguintes temas:

Fatores responsáveis pela decadência do feudalismo, Guerra dos Cem Anos e As rebeliões dos

servos. A unidade é concluída pelo capítulo A Cultura Medieval, que está assim dividido: A

filosofia do final da Idade Média, O pensamento econômico medieval, A ciência medieval e As

artes medievais.

Atendo-se ao capítulo sobre o “Renascimento Comercial e Urbano”, deve-se afirmar

que para os autores do livro o crescimento das cidades está relacionado às transformações

econômicas verificadas na Baixa Idade Média. O aumento demográfico é utilizado como o

primeiro fator explicativo, no que se refere às mudanças no feudalismo que, por sua vez,

favoreceu o desenvolvimento comercial e urbano. O desdobramento de tal fenômeno fez com

que ocorresse o amento de mão-de-obra, fator importante para o crescimento da produção, bem

como para a expansão do comércio nas cidades. Além disso, as inovações tecnológicas

propiciaram o aumento da produção agrícola que igualmente alimentou as atividades mercantis

nos meios urbanos.

As Cruzadas, que estabeleceram relações regulares, consoante os autores do livro entre

o ocidente e o mundo oriental também beneficiaram o chamado Renascimento Comercial e

Urbano. Convém lembrar que a multiplicação do comércio fez crescer as feiras e as ligas de

comerciantes. A paisagem urbana ficou caracterizada também pela presença de associações

artesãos e comerciantes, representações feitas pelo manual ora examinado e que reforça a

função econômica da cidade medieval.

O livro didático em questão utiliza o termo “ressurgimento das cidades” para

representar o fenômeno urbano na Idade Média. A expressão utilizada liga-se

fundamentalmente ao termo Renascimento Comercial e Urbano e ambos acabam reforçando o

setor historiográfico medieval que vincula as cidades a uma função econômica. Mas os autores,

ao mencionar a função das muralhas e as condições de higiene nas cidades, acabam por indicar,

mesmo que de forma tímida, novos olhares sobre o meio urbano medieval. Há de se considerar

202

que os autores comungam da tese de que a formação do Estado Moderno favoreceu

posteriormente a expansão do comércio e das cidades.

Ao abordar a cultura medieval, o manual didático põe em evidência inicialmente o

pensamento filosófico, destacando a escolástica de Santo Tomás de Aquino. Posteriormente, os

autores relatam aspectos do pensamento econômico medieval, tomando como base a visão da

igreja e da burguesia. Em seguida, a ciência medieval é examinada, tomando como a sua

relação a mentalidade religiosa. Assim, os autores compartilham da tese de que o

desenvolvimento das ciências na Idade Média ocidental foi obstaculizado pela ação da Igreja

Católica. Por fim, no tópico intitulado Artes Medievais, os estilos da arquitetura românico e

gótico são destacados. Pode-se afirmar, portanto, que as representações feitas pelos autores

sobre a cultura medieval não ensejam uma vinculação de suas manifestações com o

desenvolvimento urbano. Por fim, as gravuras inseridas na quarta unidade fornecem um bom

panorama das manifestações arquitetônicas e das cidades, no que diz respeito à função

econômica.

*

* *

Publicado pela primeira vez em 1985, o livro História Antiga e Medieval foi escrito241

por Antonio Pedro, professor universitário com larga experiência no magistério. Na

apresentação, o autor propõe ao público uma obra com temas do mundo antigo e medieval a

partir de uma perspectiva analítica renovada e afirma que os mapas e as ilustrações têm como

objetivo de reforçar a concepção crítica do manual242.

O livro é composto por cinco unidades, sendo que a quarta e a quinta foram destinadas

ao estudo da Idade Média. Na introdução do tema “A passagem da Antiguidade para a Idade

241 O autor reconhece na página anterior ao sumário que a obra teve quatro colaboradores, três deles elaboraram capítulos e um outro os quadros cronológicos. A edição utilizada é: PEDRO, Antonio. História antiga e medieval. São Paulo: Moderna, 1985.242 Na década de 1980, em razão da precária formação de muitos alunos que alcançavam o ensino superior, alguns manuais didáticos confeccionados para o então segundo grau, era utilizado no primeiro período do curso de graduação em História. O próprio professor Antonio Pedro reconhece que o seu trabalho poderia ter tal destinação: “O livro, pelo seu caráter abrangente, pode ainda ser utilizado como obra de consulta também para os cursos básicos universitários.” (PEDRO, 1985, p. 1)

203

Média”, o autor não só situa cronologicamente a Alta Idade Média, como também promove

uma breve reflexão sobre a visão dos humanistas, responsável pelo estereótipo “Idade das

Trevas”. A obra, porém, concorda com o clichê restringindo-o à Alta Idade Média que é visto

como um momento de estagnação no que diz respeito à organização cultural e econômica, e o

capítulo ocupa-se do mundo germânico desde o seu contato com o império romano do

ocidente. Em seguida, alguns aspectos da organização política, econômica e social dos povos

germanos são expostos. Na conclusão, chega-se à idéia de que o contato dos povos germanos

com o ocidente reforçou a característica bélica de tal povo, endossando o avanço deles em

relação ao império romano do ocidente. No capítulo sobre o Império Bizantino, caracterizado

também pelo desenvolvimento das cidades, na introdução há um cotejamento com a Europa

ocidental marcada pela ruralização. Posteriormente, o livro aborda as origens do império, a

sociedade e a organização do Estado bizantino. O dinamismo da vida urbana é vinculado ao

desenvolvimento comercial. Em seguida, o lugar da religião e da igreja no império bizantino

são discutidos, tomando como base as relações com o Estado e Igreja católica romana do

ocidente. O capítulo encerra-se com uma análise sobre o governo de Justiniano e da cultura

bizantina. O capítulo intitulado “A expansão dos árabes muçulmanos” contextualiza de modo

sucinto o mundo árabe na década de 1980, cuja religião muçulmana tornou-se o ponto de

partida para a descrição do processo histórico desse povo. Inicialmente, o povoamento da

península arábica é posto em relevo, juntamente com o comércio caravaneiro que tipificou a

região. Em seguida, Maomé e a unificação da Arábia, assim como a consolidação do islamismo

são examinados, culminando com a expansão territorial árabe e a cultura árabe.

Ainda na Alta Idade Média, o manual em questão discorre sobre os reinos bárbaros em

dois capítulos. Povos como os vândalos, ostrogodos, visigodos são descritos sumariamente. A

partir daí, o reino franco, que se desenvolveu até se transformar no chamado império

Carolíngio, é alçado à condição de objeto de estudo. Temas como o Renascimento Carolíngio e

a organização política do império ajudam na compreensão da constituição do feudalismo. No

capítulo seguinte, nomeado “O feudalismo e a igreja”, o destaque recai inicialmente sobre as

origens do sistema feudal, suas gêneses germânicas e romanas. Posteriormente, a dinâmica

feudal e as suas características são arroladas. Visto isso, o capítulo trata da igreja medieval,

tomando como base a sua organização institucional e ainda o seu papel político, econômico e

204

social. A unidade é encerrada, com a evolução política na França, Inglaterra, Alemanha, Itália e

Península Ibérica.

Na quinta unidade, a Baixa Idade Média é representada como o momento do auge do

feudalismo, cujo capítulo, com a mesmo denominação trata das transformações do feudalismo,

das mudanças econômicas, exemplificadas com o crescimento demográfico e o aumento da

produção, que estimularam o crescimento do comércio e das atividades urbanas no geral. O

capítulo seguinte aborda o renascimento comercial e urbano, embasando-se no comércio nas

cidades e os de longa distância. No capítulo posterior, o tema em destaque é as Cruzadas. O

contexto religioso, político, social e econômico europeu e a sua repercussão é destacado. O

capítulo seguinte põe em relevo os fatores que contribuíram para a eclosão da crise do

feudalismo.

Atendo-se mais especificamente às representações das cidades medievais, cabe

considerar inicialmente que o autor advoga a tese de que o comércio não acabou na Alta Idade

Média. Em seguida, o autor considera que, a partir do século XI com a expansão comercial, as

cidades cresceram as quais eram partes da própria dinâmica do desenvolvimento e não se

desenvolveram fora do mundo feudal243.

Embora destaque a cidade na sua função econômica244, a obra pretende representar os

grupos sociais que atuaram no seu interior. Nesse sentido, os conflitos que envolviam as

cidades não eram só externos245, mas entre os seus habitantes e os senhores feudais. Há que se

considerar que, conforme o autor, no interior das cidades o chamado patriciado urbano entrava

em conflito com os grupos populares.

A ênfase na representação da cidade medieval como voltada para o desenvolvimento

das atividades econômicas acaba sendo reforçada nos aspectos que são utilizados na avaliação

da vida cultural da Idade Média. Desse modo, o estudo sobre as manifestações na arquitetura,

filosofia e literatura por exemplo praticamente não são vinculados à dinâmica da vida citadina.

O livro de Antonio Pedro não utiliza gravuras que retratem a função econômica da

cidade e o cotidiano no geral. No capítulo relativo à cidade medieval, há apenas um mapa para

243 O autor diz textualmente o seguinte: “As cidades faziam parte do mundo medieval. Muitas dessas novas cidades eram patrocinadas e financiadas pelos senhores feudais que, com isso, pretendiam aumentar os mercados e, conseqüentemente, seus lucros, como cobranças de impostos.” (PEDRO, 1985, p. 319)244 A obra analisa outrossim a importância das manufaturas e guildas para o comércio e das manufaturas para as cidades na Idade Média.245 A luta pela autonomia política, empreendida pelas cidades geralmente contra um determinado senhor feudal foi realizada através ou de forma violenta ou pacífica por intermédio da aquisição das cartas de franquia.

205

ilustrar as principais rotas do comércio. No capítulo sobre a Vida e cultura na Idade Média, no

entanto, as gravuras representam a arquitetura, sobretudo os estilos românico e gótico. A

referência às cidades é mínima, sendo representadas, exclusivamente, por uma gravura que tem

como pano de fundo uma catedral românica.

*

* *

Os professores Ricardo de Moura Faria, Adhemar Martins Marques e Flávio Costa

Berutti tornaram-se bem conhecidos no Brasil da década de 1990 em função dos seus livros

didáticos. A partir de agora será analisado o livro História Antiga e Medieva246l publicado em

1996247.

A obra, segundo os autores na breve introdução, criada para atender os alunos que

pretendiam prestar o vestibular, foi dividida em duas unidades, totalizando cinco capítulos. Os

conteúdos organizados estavam em consonância com os programas de histórias das principais

universidades de Minas Gerais e do Brasil.

A unidade dois é concernente à Europa Medieval. O primeiro capítulo, intitulado “Os

Elementos formadores do mundo feudal”, discrimina na introdução os marcos cronológicos

tradicionais: o início da História Medieval em 476, com a queda de Roma e o fim com tomada

de Constantinopla. Em seguida, os autores anunciam a opção pela seguinte divisão do período:

a Alta Idade Média (V-X) e a Baixa Idade Média (XI-XV), afirmando que os estereótipos

246 A edição utilizada é: FARIA, Ricardo de Moura et al. História: antiga e medieval. Belo Horizonte: Lê, 1996.247 Os autores publicaram em 1998 o manual, História para o ensino médio, volume único. As unidades primeira e segunda são constituídas pelos conteúdos da obra publicada em 1996, embora alguns conteúdos tivessem sido suprimidos. No entanto, ao se verificar o texto de aprofundamento percebe-se que os autores inovam mais uma vez, oferecendo para os alunos e professores do ensino médio informações sobre a Idade Média que estavam circunscritas ao meio acadêmico, como a questão feminina e a prostituição. Há de se acrescentar que o manual intitulado História volume três voltado para o então segundo grau e publicado em primeira edição no ano de 1989 não contemplava conteúdos do período medieval. Aliás, a única referência sobre o período ocorria quando o tema abordado era a crise do feudalismo.

206

sobre o período foram assimilados pelo imaginário coletivo, sem entrar em detalhes no texto

básico sobre tal afirmação248.

O tópico “A crise do Império Romano” é resgatada para a compreensão da idéia de que

há uma continuidade entre o mundo antigo e medieval. A partir daí, sempre de forma resumida,

o manual aponta os motivos da crise do império romano. Em seguida, o assunto trazido à tona

é “O Cristianismo e a Igreja Católica”. Inicialmente, há informações sobre o percurso da

religião no império, desde os seus momentos iniciais até a sua elevação à condição de religião

oficial. Em seguida, a Igreja Católica é examinada no contexto da Alta Idade Média, tomando

como base a religião, a economia e a política. Na Baixa Idade Média, a Igreja Católica

deparou-se com movimentos heréticos que tiveram como desdobramento o Tribunal da

Inquisição. A noção de bárbaro engendrada pelos gregos é o ponto de partida para a

caracterização dos Reinos Germânicos. O livro considera que no contexto das invasões

bárbaras, o império romano já estava em crise, cujos efeitos é a formação dos diversos reinos

que assimilaram características administrativas de Roma. Os autores destacam, o reino dos

Francos que foi a base do Império Carolíngio exercendo influência contundente para a

consolidação do feudalismo. O Islamismo igualmente foi alvo de estudo, inicialmente a partir

da Arábia pré-islâmica, palco das pregações religiosas de Maomé, fundador do Estado árabe

muçulmano, cujos fundamentos religiosos estavam ancorados no Alcorão. O livro ainda aborda

a expansão territorial e militar árabe, no oriente e também na Europa Ocidental. Desse modo,

consoante a obra em análise, tal expansão contribuiu para a ruralização da economia,

resultando na formação do feudalismo. O último tópico do capítulo refere-se ao Império

Bizantino, cuja capital, Constantinopla, alcançou um paulatino crescimento comercial e foi o

centro do império. A estrutura política é representada pela noção de teocracia. O imperador

Justiniano, além de pôr em prática uma política externa de conquistas que ambicionava a

restauração do Império Romano, buscou a preservação das instituições administrativas e da

248 Na parte da obra referente ao texto de aprofundamento, os autores realizam uma ampla abordagem sobre as origens dos preconceitos em torno da Idade Média. Nesse sentido, os humanistas, em primeiro lugar, e depois os filósofos do Iluminismo estabeleceram as bases ideológicas de tal mito historiográfico. Em um segundo momento, há informações sobre a importância do Romantismo, no que concerne à “reabilitação” da Idade Média. E, no terceiro momento o texto expõe a importância das transformações historiográficas, não só para a renovação dos estudos sobre a Idade Média, como também para a refutação dos clichês que fundamentam os preconceitos sobre o período. Compete acrescentar que o texto foi construído, fundamentalmente, através do livro de Hilário Franco Júnior, intitulado: A Idade Média e o nascimento do Ocidente.

207

legislação. Por último, existem considerações sobre as relações religiosas do Império do

Oriente com o papa do ocidente. Tal situação teve como efeito o chamado “Cisma do Oriente”.

O segundo capítulo põe em destaque O Sistema Feudal e sua dinâmica. O Feudalismo

na Europa Ocidental, é alçado à condição de objeto de estudo pelas suas principais

características249. Posteriormente, há uma análise sobre o desenvolvimento comercial e urbano.

As Cruzadas são estudadas em seguida, a partir das suas vinculações com o renascimento

comercial e urbano. Além disso, tal movimento é vinculado à mentalidade religiosa da época e

ao poder da igreja e da nobreza. Por fim, o capítulo é encerrado com o estudo da vida cultural

medieval. Logo no início, ocorre uma breve retomada da noção de Idade Média, por meio da

expressão “trevas culturais”. Os caminhos da cultura medieval são avaliados na Alta e Baixa

Idade Média.

Diante disso, o objetivo agora é o de identificar as representações que o livro didático

faz em relação às cidades medievais. No início do tópico, os autores relembram que na Alta

Idade Média, a Europa foi basicamente rural, e tal reflexão corrobora a tese de que nesse

período a vida urbana diminuiu, mas não acabou. O corolário disso é a refutação da idéia do

desaparecimento das atividades comerciais entre os séculos V e XI. Por isso, os autores,

embora utilizem a expressão “renascimento comercial”, não a considere adequada250.

Na descrição das cidades medievais, os autores inicialmente apontam que elas

cresceram com as transformações econômicas, reforçando a tese que as vincula a funções

primordialmente econômicas. Assim, as representações feitas pelo manual consideram tanto as

cidades que foram criadas na idade Média, quanto as que foram formadas no mundo antigo

como centros comerciais251. Cabe acrescentar que a localização de muitas delas refere-se a

lugares estratégicos como castelos, feiras e rotas (fluviais e terrestres).

A representação da cidade como centro de atividades ligadas à indústria artesanal

fortalece a afirmação feita pelos autores da cidade medieval como voltada para funções

249 As principais características são as seguintes: 1) Existência de relações servis de produção, 2) Fragmento do poder político, 3) Economia com tendência à auto-suficiência e baseada na produção agrícola, 4) Existência de uma rígida divisão social (senhores feudais – nobreza e clero; e dependentes – servos e vilões).250 Os autores assim se expressam: “Observe que as expressões ressurreição das cidades e renascimento comercial estão entre aspas. Não é por acaso. Na verdade, a teoria do desaparecimento das cidades e do comércio durante a fase inicial da Idade Média, corresponderia a um mito, segundo a historiografia atual, uma vez que nem as cidades e comércio desapareceram inteiramente durante a Alta Idade Média, mesmo o grande comércio internacional.” (FARIA et al, 1996, p. 97)251 A seguinte passagem atesta a representação feita pelos autores entre cidade e comércio: “É importante considerar, ainda os fatores responsáveis pela dinamização dos centros urbanos já existentes, a partir da generalização do comércio.” (FARIA, et al, 1996, p. 103)

208

econômicas, de modo que há a prevalência de uma descrição que associa cidade e economia.

As oficinas artesanais, e as corporações de ofício também estão associadas ao seu papel

econômico.

No que diz respeito às relações que envolviam os senhores feudais e os habitantes das

cidades, os autores afirmam que elas foram marcadas por conflitos. O movimento comunal,

abordado pelos autores, atesta isso. Assim, muitas cidades alcançaram sua autonomia pelo uso

da violência, conquistando a “Carta de Franquia”, documento que sacramentava a sua

independência política. Muitas cidades, no entanto, através de acordos conseguiam a sua

liberdade política, não tendo mais as cidades livres252 arcarem com o pagamento de impostos,

porque formavam um sistema administrativo próprio, juntamente com um exército próprio.

Após descrever os conflitos entre a nobreza e os habitantes que foram denominados

genericamente na época como burgueses, os autores registram de forma sumária os conflitos

internos: as altercações entre os grupos dirigentes portadores do domínio político e econômico

e os grupos populares denominados por “povo miúdo”. Posto isso, percebe-se uma

preocupação em tangenciar as descrições que enfatizavam a função econômica da cidade. Há

de se acrescentar que o texto avança na perspectiva de mostrar que a cidade medieval

engendrou valores culturais e mentais que se opunham à cultura e à mentalidade de uma Idade

Média rural253.

Sobre a vida cultural, os autores tratam o tema, tomando como base a divisão adotada.

Em relação às manifestações culturais na Alta Idade Média, o manual didático analisado afirma

que a Igreja Católica exerceu um monopólio cultural. Em seguida, e trazendo à baila um tema

pouco freqüente nos livros didáticos, os autores destacam que no período focalizado havia um

hiato entre a cultura erudita e popular, seguindo-se informações sobre o Renascimento

Carolíngio.

Ao destacar a cultura na Baixa Idade Média, os autores mostram que ocorreram

mudanças significativas, cuja base foi a expansão urbana representada como referência para a

disseminação das universidades, assim como o surgimento de novas com concepções

científicas e filosóficas. Tais inovações engendraram a diminuição da influência e do domínio 252 Os autores relatam ainda que, na França, as cidades livres eram conhecidas como Comunas, enquanto, na Itália, e no Sacro Império Romano-Germânico, elas eram denominadas respectivamente de Repúblicas e Cidades-Livres.253 Os autores, a partir de um texto extraído do livro A civilização do Ocidente medieval, tentam ensaiar uma discussão que tem como base o confronto entre a mentalidade do homem burguês e homem da nobreza, a partir da idéia de que os valores do primeiro valorizavam a usura em relação ao dinheiro.

209

da igreja sobre o conhecimento. Cumpre ainda relatar a influência árabe e bizantina na Europa

Medieval em tempo de expansão urbana.

A obra analisada utiliza gravuras que reforçam a função econômica da cidade,

notadamente no que tange ao comércio. Além disso, há o uso de mapas que igualmente

enfatizam o renascimento comercial e urbano que tem como base os centros urbanos. Na parte

que aborda a cultura, há gravuras que representam catedrais românica e gótica. E, mais uma

vez os autores utilizam mapas que identificam os principais centros culturais da Europa

Medieval ocidental.

4.4.3. Os livros didáticos no Brasil do limiar do século XXI e o Programa Nacional

do Livro para o Ensino Médio (PNLEM).

A presença mais efetiva do Estado no que diz respeito a um maior rigor avaliativo

sobre a educação contribuiu para uma melhoria dos conteúdos dos manuais didáticos de

História voltados para o ensino médio. Na realidade, os livros didáticos destinados ao ensino

de História, entretanto, já vinham mostrando sinais de inovações desde a década de 1990. Isso

posto, a partir de agora a presente dissertação terá como alvo a análise de manuais didáticos,

que abordando a cidade medieval, livros inscritos e recomendados pelo no Programa Nacional

do Livro para o Ensino Médio. Cumpre acrescentar que os manuais selecionados são aqueles

que têm uma grande circulação nacional e que foram escritos por autores que são bem

conhecidos pelos professores e alunos do ensino médio.

*

* *

O autor da obra História Global: Brasil e Geral254 é um dos autores de livros didáticos

mais conhecidos do Brasil, além de obras obras que também foram destinadas para o ensino

fundamental. De uma maneira geral, os livros de Cotrim conquistaram, frente aos professores,

um prestígio muito grande em função da clareza em que eram expostos os seus conteúdos.

254 A edição utilizada é: COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

210

No manual do professor, há expectativa de que a obra possa colaborar para um ensino

de História mais dinâmico. Além disso, o manual almeja incentivar os alunos a adquirirem uma

postura crítica, não só em relação ao processo histórico, como também em face à sociedade. A

obra, pretende, consoante o autor, incorporar pontos dos denominados parâmetros curriculares

nacionais de História e expõe igualmente a estrutura da obra, concomitante a orientações sobre

a sua utilização255.

No primeiro capítulo da primeira unidade, intitulada Tempo e História, o autor propõe

uma reflexão sobre o conhecimento histórico, calcada a partir da experiência humana256. No

primeiro tópico que aborda a relação entre História e historiadores, o pesquisador é

representado como um homem que escreve sobre passado, mas que tem a sua escrita

profundamente influenciada pelo seu presente. Na segunda parte, Cotrim discorre sobre as

fontes históricas, discriminando as fontes escritas e não-escritas. No terceiro tópico, há uma

avaliação sobre: História e ficção; História e processo vivido; História e conhecimento; e

Relacionando histórias. Por isso, o manual pretende exemplificar as relações do conhecimento

histórico com os outros ramos do conhecimento. No quarto ponto, a obra evidencia as

concepções de tempo do autor, tomando como base o seu papel no ordenamento social dos

homens. No quinto tópico, o calendário cristão é destacado no estudo da História das

sociedades ocidentais. Por fim, a periodização da história é discutida, relevando aquela

tradicional usada pela esmagadora maioria dos manuais.

255 A obra consta do catálogo do PNLEM/2008, sendo aprovada e recomendada aos professores brasileiros. Isso posto, destacarei de forma sumária alguns aspectos relativos à avaliação desse manual. Os avaliadores afirmam de modo geral que o manual didático fornece um estudo holístico da História do Mundo Ocidental, tomando como base a divisão cronológica tradicionalmente utilizada. Ressalta ainda que o vocabulário está em consonância com o público-alvo do ensino médio. A avaliação ressalta ainda que a obra tem o cuidado de questionar a relação passado-presente no estudo do processo histórico. Esmiuçando mais a avaliação do manual, os examinadores compreendem que metodologia de ensino-aprendizagem almeja destacar a comunicação dos conteúdos históricos. A proposta da obra, no entanto não se efetiva constantemente, pois impera uma narrativa dos fatos, comprometendo com isso a perspective de um ensino mais analítico. A renovação historiográfica, segundo ainda os avaliadores, não consta de maneira homogênea ao longo da obra, ou seja, ela é percebida somente na abordagem de alguns períodos. Os conceitos empregados não são alvos de uma análise mais detida. O livro utiliza documentos escritos que expressam a vida pública dos atores históricos, mas as gravuras acabam simplesmente tendo uma função ilustrativa no manual. O assunto cidadania, recomendado para ser explorado nos manuais pelos avaliadores, no livro em questão está contemplado. O Manual do Professor tem como objetivo explicar a conexão entre as propostas-metodológicas com os caminhos utilizados para a elaboração da obra. Os fundamentos, no que diz respeito à escolha dos temas do manual, não são apresentados. Além disso, as referências teóricas sobre obras voltadas para a educação não são suficientes. 256 Nesse sentido a pergunta que servirá de bússola para o autor no exame do capítulo é a seguinte: “Com entender as relações entre o passado e o presente ?” O capítulo foi dividido em seis tópicos.

211

A Idade Média é tratada em duas unidades. A primeira é intitulada de Idade Média

Oriental, e estuda dois assuntos: Império Bizantino e Mundo Islâmico. Sobre o primeiro há o

destaque para Constantinopla que assumiu um papel importante no comércio entre o oriente e o

ocidente. Em seguida, o governo de Justiniano, que tinha como objetivo central restaurar o

Império Romano, é elevado à condição de destaque. A economia, a sociedade religião e a

cultura que foram controladas pelo Estado são examinadas. Por fim, o estudo alcança o período

relativo à crise que culminou na tomada de Constantinopla em 1453. Sobre o mundo islamita,

ocorre uma descrição da Arábia antes e posterior ao profeta Maomé. Em seguida, os princípios

do islamismo consolidados no Corão são identificados. Por fim, a expansão árabe é arrolada,

tomando como base a difusão da religião muçulmana pelo mundo.

A Idade Média Ocidental é estudada em quatro capítulos. O primeiro, denominado

“Reinos germânicos e Império Carolíngio”, estuda as migrações dos povos bárbaros e a

constituição dos reinos que herdaram características dos romanos. A partir daí, a evolução

histórica do reino Franco é realçada, possibilitando assim a compreensão da emergência do

Império Carolíngio. Este é examinado, a partir de temas como a organização administrativa257 e

Renascença Carolíngia. Por fim, a dissolução do império é avaliada, juntamente com a invasão

de povos, como os vikings sobre a Europa Ocidental. O segundo capítulo versa sobre o

“Feudalismo”, em cuja introdução há uma referência sobre o clima de insegurança gerado

pelas invasões dos séculos IX e X, o que ocasionou segundo o autor uma expressiva migração

de pessoas das cidades para o campo, acentuando o processo de ruralização. Em seguida, o

poder político é discriminado, relevando-se as relações entre suseranos e vassalos, há uma

descrição da sociedade feudal, com o relato das funções dos principais grupos sociais. Essa é

representada no manual como de ordens, e praticamente sem mobilidade social. Por fim, ocorre

o relato sobre a economia em que o senhorio e a servidão são postos em destaque, reforçando

assim o princípio de que a base econômica do feudalismo está ligada a terra.

O capítulo sobre a Igreja e Cultura Medieval considera em linhas gerais a função dessa

instituição religiosa para a constituição da civilização medieval. A partir daí, o estudo recai

sobre a organização do clero e da Questão das Investiduras. Em seguida, o autor dedica-se de

modo breve a tecer considerações sobre as universidades258 sem, no entanto, relacioná-las com 257 O autor informa ao leitor sobre a presença de nobres que consolidaram os seus poderes no interior do império, favorecendo com isso a consolidação do Feudalismo.258 O autor, neste momento, faz uma breve avaliação sobre a noção Idade Média, tomando como base Cellarius, autor da divisão tradicional da História: Antiga, Medieval e Moderna. Ou seja, tal autor foi fundamental para a

212

o desenvolvimento urbano. A arquitetura, a pintura, a música, a ciência, a filosofia, a literatura

e a cultura popular259 são elencados, mas não são analisados em relação ao desenvolvimento

urbano. Mais adiante e encerrando o capítulo, o manual põe em evidência a atuação da igreja

no combate às heresias, através do Tribunal da Inquisição. A breve descrição das Cruzadas

encerra o capítulo, enfatizando os seus efeitos para a História da Europa.

As representações da cidade medieval estão restritas a uma parte do capítulo, “Os

Séculos Finais da Idade Média”, que encerra outrossim a segunda unidade sobre o mundo

medieval. A Baixa Idade Média, no tocante ao desenvolvimento econômico, é considerada em

duas fases260. O corolário disso é a análise dos avanços na produção agrícola, juntamente com o

crescimento populacional que culminou ainda na expansão comercial e urbana. Dessa forma,

as cidades medievais no período examinado são associadas a funções econômicas e comerciais.

Embora, haja referências às muralhas na fortificação dos burgos, concomitante a uma breve

informação sobre as administrações urbanas, a representação da cidade medieval vincula-se ao

fator econômico e o capítulo é encerrado com informações sobre os motivos261 que levaram à

crise do feudalismo.

As gravuras e os mapas fornecem uma boa visão de conjunto sobre a Idade Média rural.

Por isso, nas duas unidades há somente uma gravura que representa a cidade de Constantinopla

no que diz respeito a sua função no comércio entre o oriente e o ocidente. Na parte que analisa

a cidade na Baixa Média, o autor ilustra as principais rotas comerciais através de um mapa.

*

* *

consolidação da idéia de que o período medieval foi uma fase intermediária entre a época antiga e moderna.259 Ela foi cotejada com a cultura oficial.260 Cotrim assevera que a primeira fase (séculos XI a XIII) foi determinada pela expansão econômica, enquanto a segunda fase (séculos XIV e XV) pela retração.261 Os motivo relacionam-se aos aspectos políticos, econômicos e religiosos, sendo que mais uma vez não há referência sobre o impacto da crise do feudalismo sobre o meio urbano.

213

Publicado pela primeira vez no final da década de 1990262, o livro História Geral e

Brasil de José Geraldo Vinci de Moraes foi reformulado em conformidade com os parâmetros

do Catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio. À época do seu lançamento,

foi apontada como uma obra renovadora. O autor dedica-se atualmente ao ensino superior,

exercendo a docência no curso de História da Universidade de São Paulo.

No manual pedagógico, de início, o autor expõe não só as dificuldades para a confecção

de um manual didático, como também os seus componentes constituintes. Ele sugere que a

obra seja capaz de incluir as renovações da historiografia e que seja flexível, a fim de que os

professores e os alunos possam manuseá-lo da melhor maneira possível263. Mesmo assim,

nenhum manual didático consegue acompanhar e incorporar rigidamente as novas aquisições

do conhecimento histórico produzido no meio acadêmico, ou seja, há freqüentemente um hiato

entre o livro didático e a renovação historiográfica.

Além disso, o autor oferece subsídios aos docentes na utilização do livro didático,

destacando a sua função precípua de colaborar para o desenvolvimento do processo de ensino e

aprendizagem. Nesse ponto, a periodização utilizada pela obra é reconhecida como

importante, ainda que não possa ser percebida como determinante para o estudo da História,

porque um dos resultados que deve ser alcançado com o ensino das sociedades humanas,

através dos tempos, é a de ensejar ao educando compreender o seu mundo. Reside aí, portanto,

a necessidade de o professor, desenvolver frente aos alunos mecanismos para o entendimento

da relação passado e presente.

O autor orienta ainda os professores no tocante às atividades dos capítulos. O uso de

documentos é sugerido, pois coloca o aluno em contato com as fontes históricas, base do

trabalho do historiador. O professor, porém, deve alertar os alunos de que a documentação não

representa fielmente a realidade estudada. Assim, o professor pode dividir a turma em grupos e

juntamente com os alunos justificar a escolha das fontes264. Complementando as atividades, há

262 Precisamente, a obra foi publicada inicialmente em 1998 pela editora Atual com o seguinte nome: Caminhos das civilizações: História Integrada Geral e Brasil. A edição que é examinada nesta dissertação é de 2005.263 O autor utiliza a expressão consagrada pelo ensaísta e estudioso da literatura Umberto Eco, “obra aberta”. Nas palavras do pesquisador: “Por isso, em oposição a essa situação, um livro como ‘obra aberta’ é mais bem compreendido se visto como um ‘modelo’ flexível que possa ser manobrado por alunos e professores, colaborando para o desenvolvimento criativo do ato de educar.” (MORAES, 2005, p. 3)264 O autor fornece uma dica interessante para os professores ao associar o trabalho do historiador ao do detetive que, através das pistas deixadas pelo criminoso reconstitui o crime. Nas palavras do próprio autor que se inspira também em Marc Bloch: “O historiador francês Marc Bloch afirmou que os documentos se assemelham à às testemunhas de um crime, pois só nos dizem coisas úteis se soubermos fazer-lhes as perguntas adequadas e pertinentes.” (MORAES, 2005, p. 6). Posto isso, na verdade José Geraldo Vinci de Moraes sugere aos professores

214

trabalhos que são desenvolvidos por unidade, cujos exercícios265 procuram estabelecer uma

articulação entre os conteúdos. Por fim, a parte que o autor denomina “O historiador e o seu

ofício”, visualiza para os alunos uma série de noções teóricas concernentes ao conhecimento

histórico266.

A Idade Média é tratada em única unidade, desenvolvida em três capítulos. O primeiro

capítulo versa sobre a Alta Idade Média que, na sua introdução, propõe uma divisão da idade

Média em Alta Idade Média e Baixa Idade Média. Posteriormente, o autor considera que no

primeiro período do mundo medieval houve a formação do feudalismo. Em seguida, há uma

sumária discussão sobre as origens do preconceito em relação ao período, tomando como base

a noção de “Idade das Trevas”. Os humanistas do Renascimento estabeleceram uma série de

pontos que sustentaram o preconceito em relação ao período. Posteriormente, os povos

bárbaros que se estabeleceram na parte ocidental do antigo império romano do ocidente são

destacados, tomando como base a sua organização política, econômica e social. O reino dos

francos e o Império Carolíngio que contribuiram para a disseminação das relações servis

igualmente são estudados.

A obra volta também sua atenção para o Império Romano do Oriente que ficou

conhecido com Império Bizantino, por meio da organização política (com ênfase ao governo

de Justiniano), econômica e social. Ainda há uma análise sobre a igreja e a cultura bizantina. O

Mundo Árabe também é alçado à condição de objeto de estudo a partir de temas como Maomé

e o Islamismo. A expansão e a fragmentação do Império Árabe, juntamente com a cultura são

analisadas.

Na introdução do segundo capítulo destinado ao estudo da Idade Média e intitulado

“Feudalismo e Cultura Medieval” o autor defende a tese de que o feudalismo restringiu-se à

Europa, e suas gêneses vinculam-se à união das formações históricas romanas e germânicas. A

que o questionamento das fontes favorece igualmente a capacidade do desenvolvimento da consciência crítica entre os estudantes.265 O livro oferece igualmente um resumo dos exercícios das unidades do livro.266 Consoante o Catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM/2008), a obra integra-se na perspectiva de integrar a História Geral com a História do Brasil. A narrativa do texto destaca-se pela sua qualidade. A análise da realidade social do educando, no entanto, é deixada de lado e dificultam as reflexões sobre a cidadania. A metodologia de ensino-aprendizagem está respaldada na autonomia de professores e alunos que são valorizados como atores ativos no processo de construção do conhecimento histórico. O texto didático é coerente com aquilo que se propõe no suplemento destinado ao docente. O livro destaca igualmente um conhecimento histórico que é constituído por visões e interpretações diferentes. As fontes escritas e a imagens utilizadas no manual estão em conformidade com o texto básico do livro. O livro respalda-se igualmente em uma cronologia clássica, embora o autor reconheça seus limites, pondo em questão a noção de verdade histórica. O manual não oferece ao professor uma orientação pedagógica que seria importante para o seu trabalho em sala de aula.

215

desintegração do Império Romano do Ocidente, a consolidação das propriedades rurais e o

comitatus estabeleceram as bases para a formação do sistema feudal. Em seguida, o feudo,

alicerce da economia, é dividido do seguinte modo: manso senhorial, manso servil e manso

comunal. A política e a sociedade na Idade Média são estudadas, a partir da idéia de que o

poder era descentralizado, fundamentado nas relações de suserania e vassalagem. A terra

respaldava tais relações. A Igreja Católica, por intermédio da religião, criou uma representação

da sociedade e a sustentou.

As Cruzadas, que tiveram início no século XI, expressam não só a mentalidade

religiosa, como também as transformações políticas, econômicas e sociais operadas no período

enfocado. O movimento religioso, que tinha como alvo o combate aos muçulmanos que

dominavam a Palestina, considerada a terra santa, congregou igualmente, conforme o autor, os

marginalizados da ordem feudal. O manual examinado de forma sumária informa ainda a

existência de uma vertente historiográfica que tem a pretensão de resgatar a visão dos

muçulmanos sobre o movimento cruzadista. Cumpre acrescer que a obra destaca os interesses

comerciais das cidades italianas pelo movimento em direção ao oriente.

O tema Cultura Medieval do presente capítulo enfatizam o cristianismo e a suas

tradições que moldaram as manifestações culturais do período. O autor, na análise de tal tema,

toma as mudanças operadas a partir do século XI como base do estudo. Desse modo, a

expansão das universidades, juntamente com o pensamento filosófico e as manifestações

artísticas são destacados. As manifestações populares rurais oriundas da Alta Idade Média, e da

Baixa Idade Média são descritas de forma sumária267. As cidades medievais, no entanto que

foram o sustentáculo de tais representações culturais, no entanto, não são não mencionadas.

O terceiro capítulo, reservado ao exame do período histórico em evidência, é chamado

de Baixa Idade Média, no qual se fizeram presentes as transformações que culminaram com o

apogeu do feudalismo. O fim das invasões bárbaras, assim como o fim das guerras e o

crescimento populacional, foram determinantes para a expansão da produção agrícola,

comercial e urbana. O pesquisador e autor do livro utiliza o termo “Renascimento urbano”,

267 O autor faz referência aos goliardos que são assim descritos: “Entre os séculos XII e XIII, os goliardos – religiosos afastados da vida eclesiástica que viviam como artistas, poetas ou bufões – elaboravam poemas em que enalteciam os prazeres da vida e criticavam a nobreza, a Igreja e a burguesia.” (MORAES, 2005, p. 88)

216

para representar aquilo que ele denomina como expansão das cidades, a qual se associa ao

revigoramento do comércio268 que mudou o perfil das cidades.

As cidades medievais na Baixa Idade Média são representadas como centros

econômicos que se vinculam ao comércio, fortalecendo a imagem que as associam às funções

econômicas. O corolário disso é a descrição delas nas relações entre senhores feudais e

burgueses. Em seguida, a obra põe em destaque os movimentos pela liberdade alcançados, ou

de forma pacífica ou através de movimentos armados. O desfecho de tal era a formação de

governos dirigidos pelos setores sociais enriquecidos com o comércio. Adiante, há informações

sobre o funcionamento do trabalho, levando em conta a manufatura e as corporações de ofício

que não só disciplinavam o trabalho e a produção, como também tinham como princípio a

eliminação da livre concorrência entre os agentes econômicos.

O revigoramento comercial, base da monetarização da economia, é associado ao

desenvolvimento urbano, em que o comércio e a utilização cada vez mais da moeda nas

transações comerciais, ensejaram o crescimento do comércio local e de longa distância. Esta

nova realidade, consoante o manual examinado, embora tenha sido gerada por transformações

inerentes ao sistema feudal, acabou, gerando as condições para a decadência do feudalismo.

No contexto da crise, a fome, a peste negra, concomitantemente à guerra dos cem anos,

marcaram o período. No plano social, mudanças como a consolidação da burguesia e o

enfraquecimento da nobreza que foi afetada pelo recuo da servidão também se fizeram

presentes. Reside aí, mais uma representação trazida à tona pelo manual, ou seja, a

consolidação da cidade na Europa Ocidental269. Na parte da obra, vamos refletir, sobre uma

passagem de Giovanni Boccaccio. O autor discorre brevemente sobre o cotidiano de Florença à

época da peste negra e esta informação é complementada por uma reflexão oriunda de uma

passagem extraída de uma obra de Jacques Le Goff. A abordagem do contexto histórico

europeu no período da crise encerra-se com a descrição sobre a formação das monarquias na

Inglaterra, na França, na Espanha e em Portugal.

268 Enquanto a maioria dos manuais didáticos usa sempre a expressão Renascimento comercial, José Geraldo Vinci de Moraes inova, por intermédio do nome “Revigoramento do comércio”. Logo, o autor sugere o que maioria dos outros manuais não sugere: a permanência e a continuidade de uma vida econômica entre a Alta Idade Média e a Baixa Idade Média, tomando como referência a cidade. 269 A passagem onde o autor narra as transformações é a seguinte: “Nítidas transformações afetavam também a estrutura social. O surgimento de uma nova classe social, a burguesia, que cada vez mais se fortalecia com a crise da nobreza e do sistema feudal, deslocava o eixo econômico do universo rural agrícola para o comércio urbano.” (MORAES, 2005, p. 92)

217

Embora o número de gravuras e imagens prevaleça ao longo dos capítulos que se

dedicam ao estudo da História Medieval, o manual didático em estudo oferece para os alunos e

professores um bom número de mapas que conseguem ilustrar bem e ajudam a compreensão

do processo histórico. As imagens, de um modo geral, aparecem com explicações ao lado,

contribuindo para uma boa ilustração do período e reforçam uma representação rural da Idade

Média Ocidental. No que tange especificamente à cidade, deve-se considerar inicialmente que

tais ilustrações não são suficientes para a ilustração e compreensão da vida urbana na Idade

Média270.

*

* *

A obra História271, em volume único publicada pela primeira vez em 2005 e assinada

pelos autores Gislane Campos Azevedo e Reinaldo Seriacopi, apresenta uma informação que

exemplifica a presença cada vez maior de um número de profissionais de outras áreas na

confecção do livro didático de História. Seriacopi, além de ser bacharel em Letras e graduado

em Jornalismo, é um editor especializado na área de História, segundo constam as informações

do próprio livro. Visto isso, percebe-se que as exigências estabelecidas pelo Programa

270 Com exceção da gravura que ilustra a abertura do capítulo sobre a Baixa Idade Média representando um aspecto do cotidiano de uma rua francesa no final da Idade Média e das imagens que se referem aos estilos românico e gótico, não há mais sinalizações visuais sobre a vida urbana na Idade Média. Além disso, não há nenhum mapa que represente o desenvolvimento comercial e urbano.271 A edição utilizada é: AZEVEDO, Gislane Campos; SERIACOPI, Reinaldo. História. São Paulo: Ática, 2007.

218

Nacional do Livro Didático272 têm engendrado nas editoras brasileiras uma preocupação, não

só com o conteúdo, mas também com a linguagem e a formatação da obra.

No manual do professor no tópico, os autores situam os tempos atuais como marcados

por uma série de novidades, notadamente em relação ao desenvolvimento científico e

tecnológico. A exclusão econômica e social, porém, impede que muitos tenham acesso à

cidadania. A expansão da educação, torna-se, assim, cada vez mais um caminho necessário

para a criação de um mundo mais justo.

A partir daí, os autores situam o ensino de História neste contexto, partindo do

pressuposto de que ele pode favorecer os alunos na visualização e compreensão das diversas

experiências políticas, econômicas, sociais e culturais. O professor, ao abordar a História nessa

perspectiva deve fazer com que o aluno se perceba como um sujeito social, capaz de ser um

agente de mudança da sua realidade. Assim, o livro didático deve contemplar e refletir as novas

tendências que estão em torno do ensino de História.

Em seguida, os autores expõem a metodologia subjacente ao manual didático. O ponto

de partida foi a constatação de que os interesses dos alunos são múltiplos e que, por isso, o

livro deve ilustrar os vários ângulos da vida em sociedade, buscando o manual didático

contemplar as experiências de povos, como a dos africanos.

A obra visa trabalhar com conceitos que são fundamentais para a consolidação do

conhecimento histórico entre os alunos. Os capítulos são estruturados com o objetivo de

promover o diálogo freqüente entre o passado e o presente. Os docentes recebem também

272 Na avaliação realizada sobre o livro didático em destaque, feita pelo Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM/2008), há no início a constatação de que a proposta sugerida pelos autores é inovadora. A conexão entre a metodologia de ensino e a construção conceitual que favorece a expansão do raciocínio crítico entre os estudantes atesta isso. Os autores dividem os capítulos a partir de uma perspectiva cronológica, sendo que os conceitos usados na obra podem ser assimilados pelos professores e alunos. Os textos de abertura de cada unidade oportunizam uma reflexão entre o passado e o presente por intermédio da unidade. Os avaliadores compreendem ainda que os conceitos utilizados buscam inserir-se na perspectiva da historicidade. A contextualização e a interdisciplinaridade constituem-se eixos da abordagem metodológica da obra. Os conteúdos de História Geral e do Brasil são integrados e articulados a outros ramos do saber. As atividades sugeridas aos professores estimulam nos alunos habilidades como a comparação e a interpretação. Partindo da diferenciação entre processo histórico e história, a Metodologia da História tem como objetivo discutir com os alunos à idéia de provisoriedade do conhecimento histórico. As fontes escritas e as imagens são variadas, concorrendo igualmente para se pensar o processo histórico de forma plural, construído por atores diferentes. O livro, apesar de adotar uma organização cronológica, enfatiza a perspectiva processual da dinâmica histórica das sociedades. A obra abre-se para uma renovação historiográfica, contribuindo para a diminuição do hiato entre saber acadêmico e saber escolar. A História de determinados povos que normalmente são deixados de lado por outros manuais, é incorporada no presente manual como, por exemplo, a História da África. A tomada da perspectiva que associa o ensino de História com a noção de cidadania igualmente é contemplada. Por fim, a editoração e a formatação da obra é tida como exemplar pelos avaliadores que destacam a boa qualidade na impressão de mapas, gravuras e imagens.

219

informações sobre a elaboração do texto central, bem como dos mapas, imagens, gráficos e

tabelas. Cumpre ainda asseverar a existência de sugestões de filmes, livros e do uso dos boxes.

Em relação aos procedimentos didáticos, a obra foi feita para ser usada nas três séries

do ensino médio e o professor deverá encontrar o melhor meio de utilizar os conteúdos da obra

e em classe. O uso dos conceitos intrínsecos ao conhecimento histórico deve estar o mais

próximo do cotidiano do aluno. A utilização dos boxes é fundamental na medida em que eles

possuem textos dos próprios autores e de outros estudiosos, geralmente das ciências humanas.

O professor deve ter com as imagens o mesmo cuidado que dispensa para com o texto escrito,

pois o aluno deve entender que elas não são para ilustrar pura e simplesmente o livro. Por fim,

os autores fazem uma reflexão sobre a relação entre cinema e história273 e o seu uso no

cotidiano escolar, bem como o significado dos mapas e glossário.

No tocante às propostas de avaliação, há um breve questionamento sobre a razão de se

avaliar, percebendo em um primeiro momento em que medida os alunos avançaram intelectual

e pedagogicamente. Finalmente, é imperativo dizer que os autores compartilham a idéia de que

a melhor avaliação é aquela que se realiza continuamente.

Considerando a proposta temática da obra, a Idade Média Ocidental que, geralmente era

estudada com o Império Bizantino e o Mundo Árabe, ganha a companhia de novos povos. O

período medieval é estudado através do assunto que dá nome à unidade: “Diversidade

religiosa” que está dividida em oito capítulos. O primeiro, chamado274 “a Ásia durante o

período medieval” expõe de forma resumida alguns tópicos da história da China, do Japão e de

regiões que hoje formam países como o Vietnã, partindo da tese de tais povos formaram

civilizações características próprias. Posto isso, a noção de civilização medieval disseminada

em outros manuais restringe-se à História Ocidental. O capítulo seguinte, “o Mundo Árabe”,

inicia-se com a constatação de que no momento presente a religião muçulmana é a segunda

maior em número de seguidores275. A constatação sugerida é o ponto de partida para a narrativa

273 Nesse ponto os autores advertem aos professores que o filme que almeja representar um dado contexto histórico é produzido em outra situação, sofrendo por isso as determinações ideológicas do seu tempo. Pode-se acrescentar também que, se considerarmos o filme como uma das fontes para a análise de um dado momento histórico, ele deve ser cotejado a outros documentos que igualmente permitem ao historiador representar o momento histórico em questão.274 Por se tratar do primeiro capítulo sobre a Idade Média, os autores promovem uma reflexão sobre a noção que estereotipa o período. Nesse sentido, o humanismo renascentista é posto em evidência.275 Os autores utilizam o fragmento de texto extraído do livro O mundo muçulmano de Peter Demant que foi publicado em 2004, evidenciando a preocupação dos autores em aproximar o ensino médio das pesquisas recentes do campo da História.

220

do processo histórico árabe. A península Arábica antes e depois do islamismo é o primeiro

tema explicado. Seguem o estudo da expansão militar e territorial e o legado científico e

cultural do mundo árabe e muçulmano. Posteriormente, os Reinos africanos são estudados,

começando com uma informação sobre a Etiópia que teve na época da penetração territorial da

Itália fascista um patrimônio retirado do seu território pelos invasores. A partir daí, temas

como “As duas Áfricas” e os reinos africanos que apresentavam diferenciações entre si são

examinados. Após o estudo introdutório e importante para o resgate da História da África, os

autores se concentram no estudo do Império Bizantino cujo exame começa com a constatação

de que Istambul, hoje capital da Turquia e no passado Constantinopla, capital do Império

Romano do Oriente, ainda é um ponto de confluência entre o oriente e ocidente. A partir dessa

questão geradora, a obra ocupa-se em descrever o lugar de Constantinopla e do império para o

ocidente e as bases do império, exemplificado por temas como o governo de Justiniano e a

Igreja Ortodoxa. Por fim, o livro descreve o declínio do império que tem como marco a queda

de Constantinopla.

A partir do capítulo intitulado A Europa Medieval e o Império Carolíngio, a obra se

volta para o estudo do processo histórico da Europa Medieval Ocidental. A questão motivadora

do capítulo é o prêmio Carlos Magno, ofertado a personalidades ou instituições que atuam em

favor da integração européia. Assim, a União Européia é o tema desencadeador para que

professores e alunos encontrem o Império Carolíngio na História que buscou resgatar a unidade

do antigo Império Romano. O ponto de partida do estudo vincula-se aos povos germânicos que

criaram reinos nas antigas regiões do império que cresceu em torno de Roma. Depois, há

informações sobre o poder da Igreja que foi favorecido pela expansão do reino Franco, base do

chamado Império Carolíngio. Os autores traçam uma breve descrição, sobretudo da situação

política e administrativa, perspectivando assim aos estudantes uma compreensão da

consolidação das instituições feudais. As configurações gerais do Renascimento Carolíngio,

bem como os motivos da fragmentação política Carolíngia que atesta o triunfo do feudalismo

são examinados por último.

A partir de um dado estatístico da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a

melhoria das condições de vida que redunda no crescimento da expectativa de vida hoje em

dia276, os autores começam o estudo do mundo feudal, partindo da caracterização do

276 Conforme informação fornecida pelos autores no século VIII, a média a expectativa de vida na Europa Ocidental não ultrapassava os trinta anos.

221

Feudalismo. Desse modo, tem-se no limiar do capítulo as origens de tal sistema e as bases de

um mundo que é representado como rural. O manual, todavia remete professores e alunos277 a

refletirem acerca de objetos de estudos, como o casamento na Idade Média que consolidaram a

renovação historiográfica medieval.

O capítulo “Igreja e Poder” inicia-se com uma notícia que tem como personagem

principal, o papa João Paulo II que em 2002 pediu desculpas ao mundo pelos erros cometidos

pela Igreja Católica. Ele referiu-se, consoante alguns observadores, ainda que não que de forma

direta, à Inquisição e às Cruzadas. Por isso, a questão problematizadora que tem como objetivo

estimular os professores e alunos a compreenderem a trajetória da igreja na Idade Média é a

intolerância religiosa.

Inicialmente os autores asseveram que o poder material e espiritual cresceu

paulatinamente ao longo do período. Além disso, há informações sobre o funcionamento da

hierarquia eclesiástica, mas a crise moral que marcou o clero católico, no entanto, pôs em risco

a sobrevivência da instituição. Em seguida, ocorre uma caracterização do movimento

cruzadista como religioso, embora os autores afirmem outrossim que tal movimento era

alimentado em função de interesses de poder relacionado ao clero dominante. Posteriormente,

há uma série de informações sobre a trajetória histórica do Sacro Império Romano-Germânico

que se vincula à história da igreja. Por fim, o capítulo é encerrado, por intermédio de um

estudo sobre a Inquisição e os Judeus, residindo aí, uma preocupação em problematizar, por

intermédio da história, assuntos como a intolerância presente no mundo atual.

O último capítulo intitulado “O Renascimento Comercial e Urbano” é introduzido com

uma notícia sobre a doença Síndrome Respiratória Aguda Grave que se tornou conhecida em

2003 cujas informações buscam chamar a atenção para as epidemias que vez por outra assola a

humanidade, causando um número elevado de óbitos. Dessa forma, o tema gerador tem a

pretensão de estimular alunos e professores no mundo urbano medieval.

As transformações que favoreceram a dinamização comercial e urbana na Idade Média

têm origem no campo a partir dos avanços tecnológicos que propiciaram um crescimento da

produção agrícola. A partir daí, os autores destacam os principais aspectos do Renascimento

Comercial que é representado como base para o crescimento das cidades. 277 Por intermédio de um texto de Duby extraído do livro Guerreiros e camponeses Gislane e Reinaldo, promovem um cotejamento entre aspectos do casamento medieval e as transformações que se operaram no Brasil, por meio da instituição do novo Código Civil implantando em 2003 e que alterou pelo menos na lei as questões familiares, envolvendo homens e mulheres.

222

Os autores destacam que as antigas cidades cresceram e que outras foram criadas a

partir do desenvolvimento comercial, dinamizando a economia urbana. O desenvolvimento

comercial e urbano atraiu, segundo os autores, setores da nobreza além de vilões e servos que

escapavam dos meios rurais em razão da opressão278. Muitos camponeses que chegaram nas

cidades dedicaram-se às atividades manufatureiras que eram regulamentadas por regras rígidas.

Nas oficinas, que produziam produtos manufaturados, a hierarquia era severa, pois tanto os

aprendizes, quanto os jornaleiros estavam submetidos ao mestre. O livro faz referências

igualmente à criação das corporações de ofício que emergiram com o objetivo central de

proteger os interesses das diversas categorias profissionais que se ocuparam com o controle de

qualidade dos produtos produzidos entre os seus membros.

Desse modo, pode-se considerar que as informações e análises realizadas pelo livro

sobre a cidade medieval no ocidente privilegiam as representações que as associam à função

econômica comercial. As descrições sobre as transformações acontecidas no plano cultural

fazem com que o livro didático em questão minimize a ênfase da cidade medieval, no que

tange ao seu papel econômico. Por isso, há o exame das mudanças culturais promovidas em um

período em que a vida urbana cada vez mais se impõe. Uma delas consiste na diminuição da

influência da igreja em face à educação. Além disso, o surgimento da universidade fez com que

determinadas áreas do conhecimento se desenvolvessem, dentre as quais pode-se destacar a do

direito, enquanto que a disseminação da dialética e da lógica favoreceram o avanço da

produção científica nos meios universitários.

Ao destacar a cultura popular que se desenvolvia nas tavernas e nas praças, através de

jogos e espetáculos circenses, os autores trazem à tona características que possibilitam

professores e alunos perceberem e representarem a cidade medieval além da sua função

econômica. Abre-se, então, o caminho para a percepção do meio urbano na Idade Média como

plural, constituído por pessoas grupos que tinham representações próprias sobre o seu tempo.

O exame da fome e da Peste Negra promove o fim do capítulo. A doença que veio do

Oriente foi trazida para a Europa Ocidental por intermédio de um navio genovês. As precárias

condições de higiene e de vida da grande maioria facilitaram a rápida propagação da doença

que eram transmitidas às pessoas por meio de pulgas alojadas em pelos de ratos. Os autores

278 A obra sugere que na Alta Idade Média, momento em que houve uma diminuição das atividades comerciais, os feudos tenderam a se tornar auto-suficientes. Nesse sentido, além do trabalho na terra, os camponeses realizam ainda atividades relacionadas ao setor manufatureiro.

223

tornam esse assunto motivador, narrando situações do cotidiano que acabavam alimentando a

irradiação do mal279. No entanto, não há uma referência direta sobre os efeitos da Peste Negra

nas cidades, embora os estudos atuais ofereçam informações preciosas sobre o impacto de tal

doença para os centros urbanos.

No conjunto dos capítulos estudados, há um bom número de gravuras, imagens e mapas

que auxiliam o docente no seu trabalho de sala de aula. As gravuras e as imagens estão

intercaladas a fotografias que se reportam geralmente aos dias atuais. Elas estão bem impressas

e as explicações, situando-as no corpo do texto, beneficiam o docente e o discente no processo

de ensino-aprendizagem. Os mapas, em número menor estão bem situados no texto escrito e

também favorecem o aprendizado. Há indicações das fontes em que foram extraídos os mapas,

ainda que o manual ofereça informações mínimas sobre os mapas, comprometendo assim a sua

utilização.

Especificamente em relação à cidade medieval, os autores foram felizes na escolha das

gravuras e imagens que não só retratam o cotidiano do comércio medieval, como também os

momentos que se referem às manifestações culturais do cotidiano. Há também um mapa que

ilustra as principais rotas comerciais da Europa na Idade Média, se bem que com referências

informativas escritas mínimas.

*

* *

A obra História: Das cavernas ao terceiro milênio280 está dividida em três volumes e foi

escrita por duas autoras que possuem experiência no Ensino Médio, sendo que uma delas atua

também no ensino superior. O volume que será alçado à condição de objeto de estudo desta

279 Na utilização do A história e suas epidemias, informam que o uso de uma mesma cama por mais de uma pessoa, favorecia o contágio por exemplo de toda uma família. Por isso, junto com o estudo da doença há notícias sobre o cotidiano e a vida privada na Idade Média.280 A edição utilizada é: BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam. História das cavernas ao terceiro milênio: das origens da humanidade à reforma religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2005.

224

dissertação é o primeiro, cujo subtítulo é: Das origens da humanidade à reforma religiosa na

Europa281.

No suplemento confeccionado para fornecer apoio ao trabalho do professor, as autoras

partem do princípio de que o mundo contemporâneo é presença constante da informação. O

mundo contemporâneo que tem como um dos seus fundamentos a comunicação está ancorado

na dialética entre o local e o global.

Diante disso, é mister considerar que a produção e o conhecimento histórico sofrem a

influência das demandas da sociedade de informação cujo conhecimento é marcado pela

participação do sujeito que conhece. Consoante os autores, daí a importância de se conhecer o

passado por intermédio da sua relação com o presente.

Com relação à estruturação, a obra baseia-se em uma pedagogia que os autores

nomeiam de “não-diretiva” (MOTA; BRAICK, 2005, p. 5). O docente poderá ainda explorar o

manual de diferentes modos, aprofundando por exemplo temas que ele julgar necessário.

Compete acrescentar que os capítulos apresentam uma problemática ou uma questão geradora

que visa estimular um ensino de História, tomando como base a relação passado e presente.

Na parte que se refere aos textos complementares, há uma diversificação dos tipos de

leitura. Pretende-se com isso favorecer a capacidade de entendimento dos alunos. Os princípios

avaliativos propostos pelos autores devem refutar a noção de que a avaliação seja estabelecida

para promover o controle sobre os estudantes. Assim, a avaliação deve oportunizar aos alunos

analisar e perceber as suas dificuldades e os seus avanços282.

281 O Segundo e o terceiro volumes apresentam respectivamente os seguintes subtítulos: Da conquista da América ao século XIX e Da proclamação da República no Brasil aos dias atuais.282 Na avaliação cumprida pelo Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio, há a informação de que a obra estuda os conteúdos da História Geral de forma integrada aos da História do Brasil. O livro tem como um dos seus objetivos precípuos enfatizar as relações entre passado e presente para a compreensão do processo histórico. A obra está em consonância com as Diretrizes e os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, buscando igualmente incorporar as inovações historiográficas em sua metodologia histórica. Na abertura dos capítulos, há questões geradoras fundamentadas em questões atuais, estimulando assim a discussão sobre as relações entre o passado e o presente. A metodologia de ensino-aprendizagem é desenredada no decorrer da obra. Os avaliadores, todavia chamam atenção para a presença do “presentismo” que obstaculiza as diferenciações entre passado e presente. O texto construído, embora almeje uma articulação entre a História Geral e do Brasil e com uma linguagem apropriada para os alunos do ensino médio, acaba reforçando a cultura da memorização. As atividades e os exercícios de fixação são diversificados e estão em conformidade com os conteúdos discorridos. Sobre a metodologia da História, a obra, embora tenha o mérito de incorporar temas oriundos de uma historiografia renovada, acaba enveredando pos caminhos que enseja “simplificações explicativas”. Na avaliação, percebe-se outrossim uma confusão entre o conceito de História como conhecimento produzido com o de História feita pelos homens em sociedade, portanto resultado das ações humanas. O manual didático contempla objetos e temas, concernentes à historiografia atual como, por exemplo a história das mulheres. A cultura é estudada de maneira integrada com as dimensões política, econômica e social. As noções de trabalho e a economia emergem de maneira integrada. As fontes históricas escritas e visuais são amplas e os seus usos estimulam o conhecimento

225

O estudo da Idade Média está inserido na segunda unidade, batizada por: A Construção

dos Sentidos. O capítulo introdutório, A Alta Idade Média é introduzido, através da questão

geradora que pretende discutir a influência dos movimentos migratórios sobre o crescimento da

xenofobia entre povos. As autoras comparam os movimentos atuais de migração com os

ocorridos em direção à Europa Medieval Ocidental entre os séculos IV e V283. A partir daí,

portanto, o livro não só discute as origens do termo bárbaro, como também, por meio de um

texto de Jacques le Goff, discute a diversidade cultural e os aspectos gerais da economia,

política e cultura dos povos que entraram no antigo Império Romano. As migrações realizadas

por estes povos relacionam-se a dois momentos: o primeiro, marcado por um contato inicial

que foi pacífico e o segundo já a partir da segunda metade do século IV, caracterizado pela

violência.

Após a caracterização geral desses povos, as autoras promovem uma reflexão sobre as

representações que edificaram o estereótipo: “Idade das Trevas” (MOTA; BRAICK, 2005, p.

97). Os acontecimentos posteriores ao fim do Império Romano do Ocidente que ensejaram o

vilipêndio da civilização greco-romana serviram, segundo as autoras, de base para que os

humanistas do século XVI forjassem o referido estereótipo. Concomitante a isto, a intolerância

inquisitorial e as guerras também reforçam o preconceito contra o período. A presença

posterior ao período de autores que escreveram, ressaltando os avanços e as invenções do

período favoreceu a criação de uma nova visão sobre o período284.

Uma passagem interessante merece uma consideração, ou seja a citação de um texto que

aborda “A vida intelectual na Alta Idade Média” 285. O fragmento escolhido faz referências a

pensadores da filosofia que foram resgatados da Antigüidade. Desse modo, além de demonstrar

a permanência de características da cultura greco-romana no período, o excerto é utilizado para

pôr em dúvida o preconceito contra o mundo medieval. Visto isso, as autoras sustentam,

histórico. A obra tem a intenção de incentivar nos estudantes temas atuais, conectando-os à idéia de construção de cidadania. O Manual do Professor torna-se uma ferramenta didática importante para o docente. A editoração é um dos pontos fortes da obra. Por fim, o livro tenta demonstrar para os alunos que a História não deve ser reduzida a um acúmulo de informações que fortaleçam a cultura da memorização. Daí mais uma vez, a insistência dos autores em estimular entre os discentes a percepção da relação passado e presente para o processo de ensino-aprendizagem. 283 Os povos envolvidos no movimento migratório na Europa Medieval do período são denominados genericamente por povos bárbaros.284 As autoras não indicam o período e nem os autores. Elas asseveram igualmente que as construções de catedrais indicam a presença de uma forte religiosidade no período. Tal enunciação parece ser utilizada também como contraponto ao mito historiográfico “Idade das Trevas”.285 O texto foi extraído do livro: A Civilização ocidental: uma história concisa de Marvin Perry.

226

consoante a vertentes da historiografia medieval, que o mundo em exame foi resultado da

junção entre os povos germânicos e as populações romanas286.

Um dos reinos que mais se destacaram no período foi o dos Francos o qual promoveu

uma expansão territorial e militar que serviu de base para a constituição do Império Carolíngio,

cujo imperador Carlos Magno, além de converter os povos dominados ao cristianismo, foi

coroado pelo papa Leão III. No interior do império, o imperador buscou, consoante as autoras,

se opor às forças políticas descentralizadoras que avançavam em razão do avanço do processo

de ruralização da economia que atingiu o seu apogeu com o Feudalismo.

Após isso, há uma definição de Feudalismo por intermédio de um texto de Jacques Le

Goff retirado do livro, Para um novo conceito de Idade Média. Em seguida, há o arrolamento

de uma série de características do feudalismo, destacando-se as relações de vassalagem, bem

como organização econômica do feudo. Posteriormente, a obra retoma as informações sobre as

origens germânicas e romanas, explicando o colonato e o comitatus.

A sociedade feudal ganha um destaque especial no livro, pois além de descrever as

ordens que as constituíram, põe em evidência a função desempenhada pela Igreja Católica para

a sua manutenção. Reside aí, uma inovação do livro que exemplifica o poderio da igreja,

recorrendo a temas do cotidiano e de sua mentalidade, como o medo do inferno e a crença na

salvação para aqueles que seguissem os princípios do cristianismo287.

No tocante aos grupos sociais, a nobreza que se definia também pelo seu caráter militar,

também é alçada à condição de estudo, definindo-se igualmente pela posse da terra e por seu

poder político, sobretudo nos feudos. A vocação guerreira do nobre, bem como a sua moral

determinada pelo princípio da fidelidade, são examinados288. Em seguida há informações sobre

o trabalho dos camponeses e os impostos aos quais eles estavam submetidos.

Ao finalizar o capítulo a obra mais uma vez renova, pois disponibiliza para os alunos e

professores do Ensino Médio temas que não são abordados com freqüência. O universo

feminino que vem recebendo bastante atenção dos medievalistas, é o primeiro. As autoras

286 As autoras utilizam nas passagens do texto didático ora o nome bárbaro, ora o germânico.287 O livro ilustra a representação feita na Idade Média sobre a sociedade por meio de uma passagem do livro As três ordens ou o imaginário do feudalismo de George Duby. Além disso, por intermédio de um texto extraído do livro Religiosidade e messianismo na Idade Média de José Rivair de Macedo, discute-se o sincretismo religioso que ainda vigorava na Idade Média.288 O manual busca auxílio em um texto retirado do livro A sociedade feudal de Marc Bloch para definir a idéia de vocação guerreira da nobreza e reporta-se a obras da literatura medieval, tais como As histórias do Rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda que desenvolveram representações da nobreza que até hoje são disseminadas pelos livros didáticos.

227

discorrem sobre a atuação das mulheres no trabalho agrícola e nas tarefas que eram atinentes à

produção artesanal. O outro tema, menos ainda freqüente nas aulas de História Medieval, diz

respeito à alimentação e à dieta dos grupos sociais cujos costumes alimentares estavam

também vinculados ao calendário cristão. Havia nessas ocasiões celebrações que enveredavam

para as “comilanças” e “bebedeiras” de uma maneira geral, farta para os nobres e reduzida para

os pobres, segundo a descrição feita pelo livro.

O segundo capítulo relaciona a Idade Média ao nascimento e expansão do islamismo. O

tema que introduz o capítulo e que pretende gerar uma discussão sobre a conexão passado e

presente é o 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, o qual acabou pondo em evidência a

relação entre o islamismo e o mundo ocidental. O clima de intolerância dos norte-americanos

em relação aos muçulmanos foi ampliado, cumprindo ainda dizer que o Islamismo é a religião

que mais cresce no mundo.

No que tange ao processo histórico, a obra discute as origens da religião, tomando como

base as origens históricas da Arábia pré-muçulmana e os caminhos que levaram Maomé e os

seus seguidores ao poder. Em seguida, a obra desvela os princípios de tal religião e dá

informações sucintas sobre a família muçulmana que hoje são objetos de questionamento entre

o mundo ocidental289. Posteriormente, há o exame da expansão militar e territorial do islã,

estabelecendo como base a presença dos árabes na Península Ibérica. Em último lugar, a

desagregação do império muçulmano é analisada concomitante à expansão otomana.

No capítulo seguinte, A Civilização Bizantina, a introdução se dá, a partir de uma

notícia que tem como foco uma representante da Igreja Ortodoxa Russa, afirmando que o atual

papa, Bento XVI, é um interlocutor capaz de favorecer um diálogo maior entre a sua igreja, e a

católica do ocidente. Tal informação transforma-se no tema gerador ao estimular os estudantes

a se interessarem por um assunto que geralmente não desperta muito a atenção dentro das

escolas do ensino médio. A partir daí, o livro parte da constatação de que o distanciamento

entre as duas igrejas deve-se, em linhas gerais, às divergências, no tocante a questões políticas

e econômicas entre o papa e o imperador bizantino. Acrescem-se a isso, as questões religiosas

relativas aos princípios e exercício religioso290.

289 Por intermédio do texto “Por Baixo do véu das muçulmanas”, extraído de um texto publicado no Jornal do Brasil em 2001, as autoras almejam levantar alguns mitos sobre a condição feminina no islamismo. Eles alcançaram mais ressonância após os atentados terroristas ao World Trade Center.290 As autoras destacam em um texto inserido no corpo do texto didático a questão das heresias. Dentre elas destacam-se o monofisismo e a questão iconoclasta.

228

As origens da denominada Igreja Ortodoxa são mencionadas bem como as diferenças

dogmáticas em relação à Igreja Católica Apostólica Romana do ocidente. Visto isso, o livro

abre-se a caracterização do Império Bizantino e da sua cultura, cujas gêneses estão em relação

direta com o processo de desagregação do Império Romano do Ocidente. Daí, em 395, a

fixação do império do oriente em Constantinopla. O império era constituído por regiões

diferentes que lhe imprimiram uma peculiaridade, dificultando o processo de romanização

tentado por Justiniano291.

A cidade de Constantinopla é relacionada como centro comercial da Idade Média e

desvelada igualmente em seu cotidiano. Portanto, a convivência entre grupos sociais e a

arquitetura que expressava a vida cotidiana são examinados de forma sucinta292. E, no último

momento, a obra encerra o capítulo, por intermédio de um resumo que se estende do governo

de Justiniano que é representado como ápice do império e a queda de Constantinopla,

exemplifica a decadência do império.

O último capítulo do período em estudo é a “Baixa Idade Média” cujo assunto pretende

gerar uma reflexão sobre a situação do trabalhador rural, principalmente no Brasil, no que diz

respeito à luta pela terra. Pode-se inferir que tal problema gerador almeja também fazer com

que os alunos se interessem por uma realidade histórica aquilatada pelo espaço e pela vida

rural.

Isso posto, o livro apresenta as mudanças que se seguiram ao século XI, na economia,

política, sociedade e cultura. A representação da sociedade nas três esferas que aparecem

sempre nos manuais de História, permanecerem na Baixa Idade Média293. O livro mais uma vez

é inovador, pois em seguida desloca o foco da abordagem política e econômica para o da

cultura e do cotidiano. É imperativo também mencionar que o livro insere no contexto histórico

291 A obra ilustra a influência do conjunto de culturas provenientes do oriente por intermédio de um texto extraído do livro O Império Bizantino de autoria de Hilário Franco Júnior e Ruy Andrade Filho. A Civilização Bizantina é, na realidade, produto da constituição de várias etnias que determinaram fortemente os seus aspectos culturais.292 Por intermédio de um texto retirado do livro do primeiro volume da História da Vida Privada, organizado por Georges Duby e Philippe Áries, o manual apresenta de forma rápida informações sobre o casamento. 293 As passagens assinaladas extraídas do texto didático ilustram bem a representação que as autoras realizaram sobre a sociedade medieval: “A sociedade na Baixa Idade Média permanecia dividida em três categorias. Na primeira situavam-se aqueles que faziam a intermediação entre os homens e Deus: o clero. Seguiam-se os que combatiam, encarregados da proteção dos feudos, dos fracos e das mulheres: a nobreza leiga. Enfim, encontravam-se na terceira categoria os servos (camponeses ligados à terra, encarregados de produzir o sustento das camadas privilegiadas), os vilões (trabalhadores sem vínculo e obrigações para com o senhor feudal) e os comerciantes”. Cumpre dizer que os vínculos sociais são respaldados pela ideologia e mentalidade religiosa da época consoante a obra em destaque. Tal assertiva é exemplificada por uma passagem de Duby, extraída do livro: As três ordens ou o imaginário do feudalismo.

229

estudado a função das universidades para a afirmação de novos valores culturais e

científicos294.

No tópico, “A bolsa e a vida”, as cidades medievais são examinadas. No início, a

produção agrícola e as demais atividades vinculadas a terra são apontadas como a base

econômica do mundo medieval. O Feudalismo, que foi o sistema determinante da época, não

foi incompatível com o desenvolvimento do comércio segundo as autoras. No período anterior

à Baixa Idade Média, as atividades comerciais se desenvolveram nos domínios senhoriais. Os

burgos que emergiram com o crescimento das atividades comerciais apareceram em lugares

estratégicos e estavam sob controle de nobres. Além disso, as cidades criadas no mundo antigo

foram dinamizadas em razão do desenvolvimento comercial.

No seu interior, as atividades manufatureiras avançaram, favorecendo a diversificação

de produtos. A maior circulação de moedas fez com que as atividades bancárias, juntamente

com as operações de câmbio e de crédito, se multiplicassem295. Nos meios urbanos medievais,

as corporações de ofício tinham a incumbência de apurar a qualidade dos produtos, e a sua

distribuição. Elas ainda protegiam, segundo a obra em exame, os seus membros da

concorrência estrangeira, a partir controle do mercado.

As representações da cidade medieval, discorridas no manual analisado, estão

nitidamente conectadas ao papel econômico dos centros urbanos, cujo espaço é ínfimo se

cotejado com o destinado com a Idade Média rural. O outro ponto que chama atenção no livro,

relaciona-se ao fato de que se temas do cotidiano e da cultura que fazem parte da História das

Mentalidades e da História Cultural, são empregados na abordagem da vida do camponês, e o

mesmo não se repete com relação ao citadino.

Depois do estudo das cidades, o manual ocupa-se das Cruzadas. No início, ocorre a

definição do movimento, auxiliada por um fragmento de texto retirado de um livro de Jacques

Le Goff296. Há uma tendência do manual em destacar o componente religioso, como aquele que

impulsiona os cristãos a combaterem pela expulsão dos muçulmanos da Palestina.

Posteriormente, há informações sobre as dificuldades enfrentadas pelos cruzados no oriente,

294 Duby vem à tona novamente, por intermédio do fragmento tirado do livro, O domingo de Bouvines. O texto ilustra o imaginário do camponês no que concerne ao medo do castigo divino.295 A Igreja no contexto dessas transformações foi beneficiada, segundo informações do manual, com “generosas doações”, embora se posicionasse com suspeita frente às pessoas, como os judeus envolvidos com tais atividades.296 O livro em questão é: La Baja Edad Media.

230

assim como os desdobramentos do movimento cruzadista para o desenvolvimento futuro da

civilização européia.

O capítulo é concluído a partir da descrição de acontecimentos que marcaram a crise

dos séculos XIV e XV, que resultou no fim da Idade Média. A peste negra que dizimou boa

parte da população, a sua chegada ao ocidente medieval e suas formas de transmissão são

explicados. As concentrações urbanas, concomitante às precárias condições de higiene,

tornaram os habitantes das cidades presas fáceis do flagelo297. A crise da produção agrícola e as

revoltas camponesas e de trabalhadores urbanos são analisadas no contexto da crise. Por fim,

“a Guerra dos Cem Anos” que enfraqueceu a nobreza, sedimentou o processo de formação dos

Estados Nacionais que foi, conforme a obra didática em questão, apoiado pela burguesia.

As imagens e as gravuras que cobrem os capítulos, concernentes à Idade Média,

figuram em bom número. Elas aparecem junto com as fotografias que remetem os professores

e os alunos a acontecimentos e expressões do mundo atual. Tal cotejo favorece a relação entre

o passado e o presente. Tanto as gravuras e imagens, quanto às fotografias estão bem

identificadas e definidas no texto. Os mapas estão bem distribuídos no decorrer do texto

didático, mas não apresentam outras informações, além daquelas que identificam o título e a

sua origem (fonte de extração).

Em relação às cidades medievais, o número de gravuras e imagens deixa a desejar. Há

na parte que aborda a cidade no período da Baixa Idade Média somente uma gravura que realça

a função econômica da cidade e um mapa que ilustra as feiras medievais, tomando como base

cidades conhecidas do período. No entanto, ao longo das outras partes há a presença de

fotografias que ilustram o meio como, por exemplo, uma foto de 2000 da Mesquita azul na

Turquia.

*

* *297 A destacar mais uma passagem de Georges Duby, desta vez extraída do livro, Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos, as autoras destacam os medos coletivos que tornaram judeus e leprosos como expiatórios da crise engendrada pela peste. O texto faz também uma breve referência às atitudes contemporâneas em face à aids. Posto isso, é importante destacar mais uma vez o que as autoras inovam nesta parte do texto didático, deixando um pouco de lado a representação econômica da cidade, aproximando-se assim de temas que representam o cotidiano, mesmo considerando que a obra sinaliza fundamentalmente a cidade na sua função econômica.

231

A obra História do Mundo Ocidental298 foi escrita por três autores, entre os quais está

Antonio Pedro que, além de professor universitário tem uma grande experiência na produção

de livros didáticos de História. A autora Yone de Carvalho, que juntamente com Lizânias de

Souza Lima, completa o trio de responsáveis pela obra, possui mestrado em História Medieval.

No manual do professor, logo no início são apresentados os objetivos gerais do livro,

logo após os pressupostos teóricos e metodológicos são discutidos, tomando como base a

associação da História como conhecimento científico, portanto a História, como ciência, é

respaldada na visão do historiador francês Marc Bloch que considera o conhecimento histórico

como sendo aquele capaz de resgatar o estudo dos homens, através do tempo.

Os autores aprofundam o exame da conexão entre o conhecimento histórico e

conhecimento científico através da constatação de que o segundo almeja delinear leis gerais

para a explicação dos fenômenos estudados. Desse modo, se os acontecimentos históricos são

únicos, como estabelecer pressupostos teóricos na análise do processo histórico ? Os autores

concluem que a compreensão da história como ciência favorece a verificação de que há

semelhanças entre os processos históricos das sociedades humanas, mesmo se considerarmos

as especificidades políticas, econômicas, sociais e culturais dos grupos sociais através dos

tempos. Assim, o livro em exame propõe que o conhecimento histórico deve almejar a

reconstituição global de diversos contextos históricos. Ou seja, o entendimento da economia de

uma determinada sociedade no tempo depende igualmente da compreensão da política, da

sociedade e da cultura, por exemplo.

O livro didático é constituído pela historiografia disponível. O seu objetivo precípuo é o

de introduzir o estudante no mundo do conhecimento histórico. A obra didática, além disso

representa o saber escolar, assim como as teses acadêmicas expressam o saber acadêmico. Por

fim, o ensino médio deve priorizar uma visão holística do conhecimento histórico,

oportunizando os estudantes a uma cultura geral, embora, consoante os autores, tal nível de

ensino possa introduzir dentro do possível assuntos mais concernentes ao meio universitário.

O presente manual também destaca as conexões entre o saber histórico e os demais

campos do conhecimento como por exemplo a história e a literatura. No final, há uma reflexão

298 A edição utilizada é: PEDRO, Antonio et al. História do mundo ocidental. São : FTD, 2005.

232

sobre a avaliação, partindo do princípio de que ela não deve ter uma função disciplinadora e,

sim, fornecer dados que permitam ao educador tomar decisões, no que concerne à

aprendizagem299.

A Idade Média Ocidental é examinada em duas unidades. A primeira, intitulada “O

Mundo medieval” retoma na introdução de forma sucinta alguns fatores que contribuíram para

o ocaso do Império Romano do Ocidente. Em seguida, há a exposição da influência da cultura

germânica sobre o ocidente. Por fim, os autores encerram a apresentação, optando pela divisão:

Alta Idade Média e Baixa Idade Média, bem como uma breve informação sobre ambos.

O primeiro capítulo denominado, “A Alta Idade Média” tem como característica básica

a formação do feudalismo. Nesse contexto, os autores descrevem os reinos bárbaros a partir

das grandes migrações e o primeiro momento da formação dos reinos bárbaros. Em seguida, há

a descrição da segunda fase de constituição dos reinos bárbaros. Em um terceiro momento, há a

exposição sobre o desenvolvimento do reino franco e da dinastia merovíngia. Posteriormente, o

livro examina a formação da dinastia carolíngia que engendrou o Império Carolíngio. Tal

experiência histórica, que tentou restaurar o império romano na parte ocidental na Europa, não

resistiu às forças políticas descentralizadoras e acabou favorecendo a consolidação do

feudalismo. Por fim, há uma sumária informação sobre o momento da desagregação do

império.

299 Na avaliação do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio, há o reconhecimento de que existe uma articulação entre as histórias geral, do Brasil e da América, na composição da obra. Todavia, o manual não fornece orientações que perspectivem ao professor concretizar uma ligação entre os temas e conteúdos. Os autores acabam, conciliando uma abordagem que combina o fundamento cronológico com o temático. A utilização de obras que contemplem a denominada renovação historiográfica não se concretiza. Desse modo, a obra não utiliza diferentes visões da História. Os autores cometem equívocos na abordagem de períodos históricos, como a História Antiga e a História Medieval, pois realizam simplificações explicativas. A relação entre o passado e o presente não está completamente problematizada em tal manual. O manual do professor não explicita de maneira tácita a metodologia do ensino. Na parte reservada aos pressupostos teóricos e metodológicos são discutidas algumas questões sobre o caráter científico do conhecimento histórico. A linguagem utilizada na elaboração do texto didático é acessível para os alunos do ensino médio. Os trechos retirados de obras conhecidas da historiografia européia e do Brasil, ao invés de estimular, pode desestimular os estudantes, no que diz respeito ao conhecimento histórico. Os exercícios e as atividades de fixação que compõem a obra não são criativos. A obra não desenvolve passagens em que são desenvolvidos problemas e hipóteses. A noção de cultura não se vincula as outras noções utilizadas no estudo das diversas realidades históricas. A noção de memória é pouco abordada. Os estudo sobre as relações entre política e poder estão restritas ao plano político institucional. Conceitos como os de mudança e permanência, básicos no que tange ao estuda da história, também não desenvolvidos. O livro é formado por várias fontes escritas de origens diversas. A utilização inadequada das gravuras acaba não contribuindo para a compreensão do processo histórico. O conceito de cidadania apresentado pelos autores é restrito, na medida em que não há caminhos para a identificação de conflitos e diferenças, aspectos básicos para a assimilação dos princípios da cidadania. Por fim, os autores não disponibilizam uma bibliografia capaz de contribuir para a formação contínua do docente que utilizar o livro.

233

O capítulo encerra-se com as informações que pretendem explicar as origens e a

consolidação do feudalismo. No tocante ao primeiro, a percepção do encontro da formação

social dos bárbaros com a da romana é fundamental para a compreensão do sistema feudal. Os

autores ainda discutem a importância de povos como os árabes, eslavos e normandos para a

sedimentação da ruralização na Europa medieval. O corolário é o arrolamento de informações

que dizem respeito a características políticas, econômicas e sociais do feudalismo, seu conceito

e a descentralização política, a economia rural e a sociedade de ordens (estratificada)300. Há

uma breve consideração sobre a Igreja Católica no período, tomando como base os momentos

de crise, assim como a constituição de um grande poder alcançado por tal instituição,

construído nos planos religiosos, cultural e material. Por último, os autores inovam com um

texto complementar que discute a relação entre a igreja no combate às crenças populares que

seriam na visão do clero um obstáculo a ser superado para a edificação do cristianismo na

Europa301.

O segundo capítulo nomeado, “A Baixa Idade Média”, tem como eixo explicativo as

mudanças que surgiram na Idade Média, a partir do século X que redundaram no

desenvolvimento econômico e social. Os novos modos de produção agrícola, provenientes do

avanço tecnológico como por exemplo o emprego da charrua, resultaram no crescimento da

produção agrícola. O desdobramento disso, foi a redução de epidemias e no limite o

crescimento populacional. Cumpre ainda dizer que tais fatores foram beneficiados com a

diminuição das invasões e das guerras.

A partir daí, a obra volta-se para a compreensão do “Renascimento Comercial e

Urbano”. As informações e análises que embasam as representações sobre a cidade medieval

no contexto de tais alterações. Tais expressões, portanto, associam os meios urbanos medievais

às funções econômicas, notadamente às comerciais. A ênfase no funcionamento das

corporações de ofício com destaque para o controle da qualidade das mercadorias e de sua

circulação, concomitante à constituição hierárquica, recebem a atenção do manual

examinado302.

300 Os autores descrevem outrossim as principais características da composição militar feudal, levando em conta a figura do cavaleiro e as suas principais funções.301 O fragmento de texto foi extraído do livro de Duby, A Europa na Idade Média e refere-se a uma crença em torno do cão Guinefort.302 Os atores envolvidos na produção artesanal eram os seguintes, consoante os autores: o mestre artesão, o companheiro, o aprendiz e o jornaleiro que era remunerado, segundo empreitada combinada com antecedência.

234

As atividades comerciais estenderam-se a longas distâncias, favorecendo a consolidação

das operações bancárias e o fortalecimento das rotas comerciais que relevavam a importância

econômica das cidades, que, de uma maneira geral, eram cercadas por muralhas que as

protegiam em tempos de guerras. Um outro aspecto informado pelo manual é que as cidades da

Idade Média não foram concebidas através de planejamentos e não ofereciam uma estrutura

urbana adequada aos seus moradores. Ao desviar o foco da representação econômica para

outros aspectos e funções da cidade, como o da representação militar e da infra-estrutura, a

obra enseja uma representação mais holística.

A representação política ganha relevância, quando as relações entre os moradores da

cidade e os nobres são examinadas. Com o passar do tempo, elas alcançaram a liberdade

política, ou pela concessão espontânea dos senhores da “carta de franquia”, ou pelo recurso da

violência empregada pelos moradores em relação à nobreza. Cabe acrescentar que, com o

passar do tempo, consoante indicação da obra, o poder político e a administrativo ficou restrito

a uma oligarquia urbana de comerciantes303.

Depois de estudar o fenômeno urbano medieval, a obra ocupa-se das Cruzadas cujo

ponto de partida proposto para a compreensão do fenômeno é o contexto religioso e a posição

da igreja no feudalismo que favoreceu a constituição de um formato de sociedade determinado

pela hierarquização e religiosidade. Depreende-se daí o estímulo necessário para que muitos

cristãos deixassem o ocidente e fossem combater os muçulmanos na Palestina o quais foram

representados como infiéis.

As representações dos interesses comerciais de cidades como Gênova e Veneza em

relação às Cruzadas são destacadas de forma ínfima. O empreendimento militar acabava sendo

um bom negócio para os comerciantes envolvidos no movimento. Prosseguindo, os autores

abordam o desenvolvimento do fenômeno no oriente e ocidente, regiões em que o movimento

de Reconquista da Península Ibérica foi associado ao movimento cruzadista304.

303 Após ater-se às representações sobre o desenvolvimento urbano na Baixa Idade Média o livro, através do tópico história e saúde, remete os professores e alunos para o estudo de um tema praticamente desconhecimento: a alimentação. O assunto é abordado a partir da passagem retirada do texto de Antoni Riera-Melis, inserido no livro História da alimentação organizado por Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari. O texto trata da dieta alimentar dos grupos sociais ao longo do período medieval. Contudo, não há uma referência direta da dieta alimentar dos grupos sociais estabelecidos nos centros urbanos. 304 O tema é encerrado, a partir de informações sobre o filme, “O incrível exército de Brancaleone”, uma comédia que satirizava cavalaria medieval nos tempos das Cruzadas. Tal obra representa os aspectos que compõem a sociedade medieval, dentre eles a importância do cristianismo e a composição hierárquica social.

235

Em seguida ao tema das Cruzadas tem-se o estudo da crise e desagregação do

Feudalismo cujas relacionam-se aos problemas da agricultura a qual entrou em processo de

retração no final do século XIII. Tal situação atingiu a economia mercantil e as atividades que

estavam em torno dela e nesse contexto, a Peste Negra e a Guerra dos Cem Anos ceifaram

milhares de vidas, comprometendo assim o funcionamento da economia feudal305. Há de se

acrescentar que nesse momento houve o aceleramento do processo de formação dos Estados

Nacionais, tendo como referência a monarquia.

O estudo sucinto da cultura medieval na Baixa Idade Média encerra o capítulo.

Passemos a analisá-lo em primeiro lugar, o capítulo apresenta a análise da arquitetura que foi

vinculada aos valores religiosos; o românico e o gótico são assinalados em suas características

principais, e o pensamento medieval e a importância das universidades são enfatizados, ao

mesmo tempo em que a literatura medieval e as suas principais manifestações e obras são

sublinhadas. Embora faça referência às universidades, o manual em questão não promove

nenhuma conexão entre as manifestações culturais descritas com a cidade medieval306.

A Idade Média Oriental é analisada em dois capítulos. Na apresentação, a civilização

bizantina é destacada pela riqueza da sua vida urbana. Depois, os autores situam a civilização

árabe, por intermédio da formação de um império gerado em nome do Islamismo. O destaque

para a herança bizantina e muçulmana em relação ao Ocidente Medieval, estabelece o fim

dessa pequena introdução.

O primeiro capítulo da unidade, intitulado “O Império Bizantino: um império milenar”,

mostra, primeiramente, o funcionamento da sociedade e do Estado da civilização em destaque.

O manual didático, embora represente a cidade de Constantinopla, enfatizando a sua função

econômica, abre espaço para informações sobre o cotidiano, do Estado bizantino, foi marcado

pela centralização política. Em segundo lugar, as questões religiosas e o governo de Justiniano

são descritos. Em último lugar, a decadência do império que culminou na queda de

Constantinopla, bem como uma breve informação sobre a cultura finalizam o capítulo.

O segundo capítulo, “O Império Muçulmano”, trata antes da Arábia pré-islâmica com

destaque para o comércio caravaneiro. Em segundo lugar, o lugar de Maomé para a religião e a

unificação da Península Arábica. Em terceiro lugar há a exposição sobre a expansão militar, 305 Os autores fazem uma rápida referência sobre o impacto da crise nas cidades. Neste sentido, a obra destaca as rebeliões de trabalhadores urbanos.306 O manual incluiu no final da unidade um glossário, contendo definições de termos fundamentais para o estudo da Idade Média.

236

territorial e religiosa muçulmana e alguns pontos importantes para a cultura islamita307. Por

fim, há uma brevíssima informação sobre a desagregação do império árabe-muçulmano.

A distribuição das gravuras e das imagens pelas unidades que foram examinadas é

adequada, com informações suficientes, embora algumas delas não contribuam para ilustrar

plenamente aquelas contidas no texto didático. Há um bom número de mapas que no entanto,

não estão bem distribuídos nas duas unidades. As informações restringem-se ao tema e não há

indicações sobre as fontes de onde eles foram retirados.

Em relação às cidades na Idade Média, o número de gravuras e imagens deixa a desejar,

especificamente sobre as cidades no ocidente em que não há uma única gravura que ilustre a

vida urbana. Aliás, só há duas gravuras relativas ao meio urbano e que concernem à cidade de

Constantinopla. Existem dois mapas que ilustram o fenômeno urbano medieval. O primeiro

representa o comumente denominado renascimento comercial, indicando cidades na parte

oriental e ocidental da Europa. O segundo busca representar as rotas criadas pelos cruzados

europeus (da primeira à quinta), indicando cidades importantes do período.

*

* *

A obra didática, A escrita da História308 foi escrita por dois autores que possuem uma

grande experiência docente. O primeiro, Flávio de Campos, além de ter produzido

anteriormente livros paradidáticos e didáticos, dedicou-se ao ensino médio e hoje atua como

professor e pesquisador na Universidade de São Paulo309. O segundo, Renan Garcia Miranda,

307 A obra faz menção a um texto de Foucher de Chartres que foi exatraído do livro de Jacques Le Goff, A Civilização medieval. O texto aborda os efeitos da aproximação entre o oriente e o ocidente.308 A edição utilizada é: CAMPOS, Flávio de; MIRANDA, Renan Garcia. A escrita da História. São Paulo: Escala Educacional, 2005.309 O professor Flávio de Campos ocupa-se atualmente do ensino de História Medieval.

237

possui experiência como docente de História em escolas das redes pública e privada do ensino

médio.

No manual formulado para os docentes, logo na introdução do primeiro tópico, “A

história numa conjuntura crítica”, os autores citam passagens importantes de textos

confeccionados por estudiosos que angariaram um grande prestígio entre os historiadores310. A

partir daí, o trabalho do historiador na produção do conhecimento histórico torna-se objeto de

estudo, tomando como princípio a noção de que a subjetividade está presente no trabalho do

pesquisador. O Positivismo, portanto, ancorado na idéia de que estudar História pressupõe o

conhecimento dos “grandes acontecimentos” com a participação dos “grandes personagens”

está descartada. Dessa forma, segundo as orientações do presente manual, a pesquisa história,

concomitante ao ensino, devem resgatar o processo histórico em uma perspectiva holística

trazendo à tona, por exemplo, à história dos movimentos sociais. Conclui-se então que os

trabalhos dos professores em sala de aula têm conotações políticas e ideológicas. Assim, os

manuais didáticos representam e mudam, consoante as mudanças gerais na educação e ainda

expressam as transformações no ensino de História e na historiografia.

Em relação às renovações teórico-metodológicas, os pesquisadores promovem uma

resumida discussão sobre a possível crise do paradigma teórico marxista em face às ciências

humanas. Pode-se inferir que os críticos do marxismo teriam proposto a decadência das

preocupações políticas, no que diz respeito ao conhecimento histórico. Por isso, os autores

afiançam que, nos dias atuais, não há consenso entre os historiadores para o resgate dos

diversos processos históricos das sociedades humanas311.

Ao experimentarem múltiplos caminhos na pesquisa em História, os estudiosos, expõem

enunciados, tais como os de cultura e representação. Eles alertam então para o perigo de se

comprometer a percepção de uma História que contemple o exame da totalidade. Reside aí,

portanto, o risco de se estudar objetos que desencadeiam a pulverização do conhecimento

histórico. Cumpre estabelecer ainda que, em dias de indefinições metodológicas, o historiador

310 Os estudiosos citados são os seguintes: Michel De Certeau e Eric Hobsbawm que escreveram, respectivamente, A escrita da História e Sobre história.311 Neste momento as palavras dos autores tornam-se insubstituíveis: “Como em nenhum momento, a História hoje caracteriza-se por uma completa ausência de consenso. Por uma salutar busca de caminhos. As imprecisas fronteiras entre a economia, a sociedade, a política e a cultura tornaram-se obsoletas. A transdisciplinaridade tornou-se um imperativo.” (CAMPOS; MIRANDA, 2005, p. 4)

238

pode percorrer trajetos que o tornem frágil e sem defesas em relação às armadilhas da pesquisa

em História312.

Encerrando o primeiro tópico há um questionamento sobre a relação política e a cultura.

As preocupações com temas sobre as representações do cotidiano têm levado os historiadores a

percorrerem direções inusitadas. O espaço da análise política que estava circunscrita ao espaço

do Estado e dos sindicatos, por exemplo, foi ampliado, açambarcando novos territórios, como a

família e a cultura. As alterações no foco dos estudos relacionam-se também às mudanças

verificadas nas sociedades contemporâneas.

O segundo tópico presente no manual destinado aos docentes tem como título: História

e cidadania. As duas epígrafes313 presentes na introdução remetem o educador a um desafio:

como pensar a História sem situar no mundo como cidadão ?

O primeiro tema tratado e que fornece suporte ao título do segundo tópico diz respeito

àquilo que os autores denominam: intoleráveis intolerâncias. O aviltamento da figura humana,

ocorre por meio da discriminação sexual, do racismo e de uma série de estereótipos. Portanto,

esse seria o primeiro desafio a ser considerado pelo professor que ministra História, ou seja

formar alunos que se oponham às intolerâncias. O segundo relaciona-se com o primeiro e

refere-se ao mundo do trabalho capitalista que inocula, cada vez mais, nos seres humanos

idéias que respaldam o individualismo e a competição314.

O segundo assunto diz respeito ao papel do educador em formar alunos imbuídos de

valores que oportunizem a constituição de uma cidadania plural. Um dos valores é a tolerância

que é igualmente um alimento importante para a sedimentação daquilo que os autores

denominam: “cidadania participativa” (CAMPOS; MIRANDA, 2005, p. 06) .

312 Embora, alerte os profissionais para os riscos gerados pela fragmentação do conhecimento histórico, os autores destacam a importância dos avanços teóricos e metodológicos em função do encontro do conhecimento histórico com outros campos do conhecimento das áreas das ciências humanas. A passagem assinalada em seguida indica isto: “A fértil aproximação da História com a Antropologia e a Lingüística, registrada pelos menos desde a década de 1960, trouxe novas interrogações e conceitos, ampliando o universo da ação política e da intervenção social. A cultura, tratada basicamente até então em sua vertente erudita (Burckhardt, 1990; Huizinga, 1978), foi Buscada entre os grupos subalternos, em suas ramificações populares e nas suas interrelações com a cultura das elites (Thompson, 1981; Ginzburg, 1987; Burke, 1989; Ladurie, 1975; Vovelle, 1983; Áries, 1977; Bakthin, 1993).313 Segundo Sócrates autor da primeira: “Não sou de Atenas, nem da Grécia, mas do mundo”. A epígrafe seguinte de autoria de Jacques Le Goff diz o seguinte: “Quis ser cidadão para ser melhor historiador, sempre me preocupei em ser um homem do meu tempo para ser melhor um homem do passado.”314 O individualismo e a competição entre os seres humanos nas sociedades capitalistas contemporâneas engendram os denominados: “medos coletivos” e “individuais”. O corolário disso é muitas vezes a indiferença perante as situações que degradam a figura humana.

239

O terceiro e último tema que tem a pretensão de sedimentar a relação História e

cidadania, recebeu o nome de História crítica. A consecução dessa proposta passa, segundo o

manual, pelo entendimento das lutas e conflitos entre os grupos sociais. Por fim, os autores

assumem que a presente obra recebe uma grande influência da História da cultura.

O primeiro tema que sustenta à idéia de “Uma História em Construção” foi assim

intitulada: “De olhos bem fechados”. A cultura ocidental é respaldada por uma educação

permanente do olhar. A obra sugere que o professor, por intermédio do ensino de História,

desenvolva uma sensibilidade apurada para a compreensão do desvelamento das “muitas

janelas” que ajudam no entendimento do mundo.

Desafios para o ensino de História é o segundo tema que sustenta igualmente o tópico

examinado. O ponto de partida é a constatação de que a confecção de um manual didático de

História, envolve uma série de desafios. A acessibilidade da obra aos estudantes é o primeiro.

O segundo é a possibilidade de tal instrumento contribuir de forma eficiente para o professor

no dia a dia. Por isso, ele deve alimentar paulatinamente nos alunos e professores a curiosidade

pelo conhecimento científico. Especificamente no caso da História, ele deve estimular no aluno

não só a curiosidade pelo passado, como a capacidade de compreender as transformações

históricas. O estudante, portanto, desenvolve igualmente a capacidade intelectual importante

para a compreensão critica do mundo. Compete ainda dizer que as “simplificações da História”

é um outro obstáculo importante a ser ultrapassado, juntamente com o malfadado anacronismo

histórico, talvez um dos maiores equívocos dos historiadores.

Diálogos pertinentes é o último esteio, no que diz respeito ao tópico que apregoa, “Uma

História em construção”. A História Cultural favorece o diálogo da História com outras áreas

do conhecimento, justificando-se tal proposta a necessidade do conhecimento histórico almejar

a totalidade.

O quarto tópico, “Conteúdos e objetivos”, visa explicar de maneira sucinta a estrutura

do livro. Além de especificar número de unidades e os capítulos, os autores fornecem

informações sobre passagens presentes nos capítulos, como a seção, intitulada: Um outro

240

olhar. O quinto tópico do manual do professor contém o comentário das unidades que formam

a obra315.

A Idade Média316 é abordada na unidade segunda, e é composta de dois capítulos. O

primeiro capítulo, que corresponde ao quinto do conjunto da obra, recebeu o nome de: A

formação da Idade Média. Ele inicia-se com o estudo: Da queda de Roma e a formação dos

Reinos Bárbaros-Cristãos. O texto didático propõe no início uma discussão em relação ao

tempo, tomando como base as reflexões de Santo Agostinho. Depois, existem notícias sucintas

sobre o processo que culminou com a queda de Roma, que resultou na obra que, talvez, tenha

notabilizado o bispo de Hipona, ou seja, A cidade de Deus, determinando os rumos do

pensamento cristão no decorrer do período medieval ocidental.

Em seguida ocorre o exame dos reinos bárbaros-cristãos propriamente ditos, partindo da

constatação de que o processo de ruralização foi intensificado. Tais reinos acabaram

assimilando as estruturas administrativas do antigo império romano. Com a noção de

fidelidade, fruto de uma organização de base tribal. A vida urbana diminuiu e muitas cidades

nesse contexto histórico desapareceram.

Ao contrário da parte ocidental, o Império Bizantino experimentou uma dinamização da

vida urbana, por intermédio das atividades comerciais. Constantinopla, além de centro político

e econômico, ainda conviveu com um grande avanço cultural. Com a expansão de escolas e

bibliotecas, juntamente com o crescimento das atividades literárias e filosóficas. 315 A síntese avaliativa do Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio aponta em um primeiro momento que as fontes históricas diversas trabalhadas pelos autores de A escrita da História foram bem exploradas. No segundo momento, entretanto, determinados conceitos, notadamente os concernentes à “diversidade social, cultural e temporal”, aparecem de maneira simplificada. No Manual do Professor, os avaliadores afirmam que a metodologia de ensino-aprendizagem não é “valorizada”. Há uma consonância entre a estruturação do texto e exercícios e “princípios” básicos para o estudo da História. Sobre as características do texto didático, a avaliação aponta que ele está em conformidade com a realidade do estudante, embora ressaltem a não existência de elementos que vinculem os conteúdos de História Geral com a da História do Brasil. Nos exercícios, os autores almejam estabelecer cotejamentos entre o passado e o presente, por intermédio de fontes escritas e visuais. A metodologia da História expõe o conhecimento histórico em dois significados: estudo das ações humanas pelo tempo e perspectiva de “construção do conhecimento”. Retornando aos exercícios, os avaliadores indicam a ausência de um uso “sistemático” e “contínuo” das fontes escritas. Os mapas são bem cuidados, estimulando o aprendizado dos estudantes. Os conceitos históricos, no que tange a abordagem expõem problemas, dentre os quais “ao tratamento dos conceitos de cultura e de tempo e da relação entre espaço e natureza”. Ainda neste ponto, os examinadores insistem que o livro não consegue privilegiar a História Cultural como tratamento metodológico, pois paradigmas como processo de produção, recepção, apropriação e circularidade não são estudados de modo suficiente. No que diz respeito, ao conceito de cidadania, quesito requisitado pelo programa de avaliação, não há uma preocupação clara e sistemática com os conflitos e diferenças, além dos aspectos econômicos e políticos. Por último, o projeto gráfico é boa para estimular professores e alunos no momento da utilização.316 O título da unidade é: Idade Média, Idade dos Homens. A capa de apresentação da unidade é lustrada com gravuras que fornecem uma boa visão de conjunto do período, introduzindo bem os professores e alunos no tema.

241

Apesar de ter contribuído para a manutenção de uma série de componentes da cultura

romana317, as relações entre o Império Bizantino e o Império Romano do Ocidente não foram

pacíficas. As disputas religiosas, envolvendo os papas e os imperadores do oriente, atestam

isso. Cumpre informar igualmente que as ações militares dos imperadores bizantinos

favoreceram a contenção dos árabes sobre o império, impedindo um avanço maior sobre o

conjunto da Europa.

A religião muçulmana é uma das que mais crescem pelo mundo. Partindo dessa

informação atual, a obra didática em questão pretende estimular alunos e professores para o

estudo da História do mundo árabe. Assim, em um primeiro momento, há uma caracterização

da Península Arábica antes do Islamismo, ressaltando os grupos humanos, bem como a

situação geográfica, econômica, as principais cidades e o início da pregação de Maomé. Em

seguida, há o estudo das lutas que tiveram como desdobramento a unificação política e

religiosa da região em torno do islamismo. Posteriormente, o manual elenca os princípios

religiosos do islã, e a expansão religiosa, política e territorial em direção ao oriente e ocidente.

O legado cultural desses povos é apresentado por último318.

Após discorrer sobre as civilizações acima, cujas histórias são importantes para a

compreensão do processo histórico europeu ocidental na Idade Média, os autores se debruçam

sobre o estudo da Igreja Católica. Afirmam que o “antropocentrismo greco-romano” entrou em

declínio no período medieval. A partir daí, a relação entre a igreja e as manifestações culturais

e religiosas denominadas de pagãs são investigadas. Depreende-se, então que a herança pagã

verificava-se no cotidiano, por meio de uma cultura mais ligada às questões temporais.

O ideal de vida dos monges é resgatado através de práticas religiosas e culturais. Como

princípio religioso, eles apregoavam a defesa de valores espirituais cristãos, preterindo assim a

vida material e quanto à cultura, tiveram uma atuação destacada na preservação de boa parte do

acervo cultural da Antigüidade319.

A evolução histórica do Império Carolíngio, tomando como partida o reino dos Francos,

é objeto de estudo. Clóvis, um dos mais importantes reis francos, converteu-se ao cristianismo

317 Os autores fazem referência ao governo de Justiniano (527-565) na preservação das leis romanas, através de um código de leis.318 Por meio de um fragmento retirado do livro de Jorge Luís Borges, intitulado, Sete noites, os autores buscam problematizar questões sobre o clássico da literatura árabe: As mil e uma noites.319 Esta parte encerra-se com uma breve avaliação sobre a heresia ariana que ocupou a atenção do imperador Constantino que chegou a convocar o Concílio de Nicéia para resolver as questões subjacentes a tal heresia.

242

e auxiliou a Igreja Católica no combate aos reinos germânicos que posteriormente foram

dominados e postos na órbita de controle dos papas.

Carlos Magno, inscreveu como mais vigor o seu nome na evolução histórica em

questão, pois suas ações, além de ter almejado o resgate do antigo império romano, acabou na

verdade favorecendo o avanço do processo de feudalização na Europa. O Feudalismo foi

consolidado, após a morte de Carlos Magno, na medida em que as forças políticas

descentralizadoras cada vez mais se impuseram.

O segundo capítulo a abordar o período enfocado recebeu o nome de “O Mundo

Feudal”. Na introdução, os autores alertam os professores e alunos sobre a função da

religiosidade para este período da História. Representações sobre o Apocalipse e o

Milenarismo320 impregnaram a mentalidade de homens e mulheres. O Feudalismo foi, acima de

tudo, uma resposta à ausência de um poder político centralizado.

A dinâmica de funcionamento da sociedade feudal é colocada em evidência. A terra e as

atividades a ela relacionadas aparecem em primeiro lugar cuja posse estava restrita aos

membros do clero e da nobreza. Eles ainda exerciam o controle religioso e militar da ordem

medieval. Além disso, tais grupos estavam inseridos em uma sociedade sedimentada naquilo

que os autores denominaram por: “contrato feudo-vassálico”.

Os trabalhadores321 estavam submetidos ao poder da nobreza e do clero os quais

constituíam a grande maioria dos habitantes e estavam incumbidos de todo o trabalho que

fornecia o provimento das necessidades materiais da nobreza e do clero. A mentalidade e a

ideologia medieval estavam profundamente ligadas aos valores religiosos cristãos que

acabavam respaldando a existência de uma sociedade hierarquizada que justificava a

subserviência de grupos em relação a outros.

As terras ou os domínios senhoriais foram a base da produção agrária no período

medieval os quais são representados a partir das reservas senhoriais de terras cultiváveis. Os

mansos servis eram constituídos por terrenos destinados aos camponeses. Compete ainda dizer

que no feudo havia as chamadas glebas de uso comum que geralmente coincidiam com as áreas

de bosques e florestas.

320 Ao evocar aspectos gerais da mentalidade medieval, a obra menciona temas que só foram incorporados recentemente nos livros didáticos de História do Ensino Médio, tangenciando assim a abordagem política, econômica e social.321 O manual em exame denomina por trabalhadores os seguintes grupos sociais: “servos, artesãos, pequenos camponeses e comerciantes”.

243

A análise do tempo em conexão com o poder da Igreja Católica ocupou, da mesma

forma, os autores dessa obra didática. O tempo religioso, portanto, subjugava o tempo da

natureza. Tal representação do tempo enseja alunos e professores ao acesso a tema geralmente

restrito ao mundo acadêmico. Concomitante a isso, o livro discute o casamento na perspectiva

cristã, que foi edificada no período. O controle da sexualidade foi um dos principais alvos do

matrimônio medieval. Cabe ainda asseverar que o tempo religioso, consoante os autores,

determinava o cotidiano e o controle de instituições como o casamento.

As representações sobre a cidade medieval no ocidente europeu emergem no livro junto

com as transformações econômicas verificadas na agricultura e no comércio. O ponto de

partida é o século XI, período em que a parte ocidental da Europa experimentou um período de

paz em função do fim das invasões de povos como os vikings. O desdobramento disso foi o

crescimento da produção agrícola322 que alimentou o comércio, embora ele nunca tenha

deixado de existir no período da Alta Idade Média.

A população das cidades cresceu em termos populacionais e tornaram-se cada vez mais

vinculadas, conforme representações dos autores, a centros comerciais. Os centros urbanos

especializaram em diferentes ramos artesanais, atraindo assim servos que fugiam do campo,

onde submetidos à servidão, fugiam do campo para a cidade conquistarem a liberdade.

A descrição sobre a vida nas cidades faz com que os autores conciliem a abordagem

econômica com as questões políticas e sociais. Os moradores das cidades, que ficaram

conhecidos inicialmente como burgueses, na realidade exerciam ofícios diversificados, tais

como os de banqueiros e artesãos. No tocante às atividades e ao poder político, as assembléias

que contavam com a participação dos cidadãos eram responsáveis pela gestão das cidades.

Compete afirmar ainda que as cidades conseguiam a sua autonomia política, ora por meio das

cartas de franquia ora por meio de ações beligerantes.

O texto didático representa a cidade no ocidente europeu medieval, não só através das

mentalidades, como também pelas manifestações culturais. Em relação ao primeiro deve-se

considerar que o crescimento das cidades resultou uma nova mentalidade que associava aos

poucos o tempo com o trabalho, responsável pela riqueza323. Nesse ponto, esse tempo passou a

322 A obra em exame faz uso da expressão expansão feudal para identificar o aumento geral da produção econômica do período. Cabe ainda informar que a charrua é mencionada como um exemplo de avanço técnico importante para o crescimento da produção agrícola.323 O tempo das cidades vinculado à noção de produção e riqueza é o tempo concernente à uma Idade Média urbana que não é muito valorizada nos manuais de História voltados para o Ensino Médio.

244

conviver com o tempo religioso de uma Idade Média rural. Em relação às diversas

manifestações culturais, depreende-se a importância das cidades como centros que fomentavam

a produção intelectual, porque, elas ofertaram para os seus habitantes desde a mais simples

formação até as mais sofisticadas oferecidas pelas universidades.

A cultura urbana na Idade Média, no século XIII, ainda pôs em destaque a cultura

greco-romana e o racionalismo. Tais manifestações são associadas às demandas e interesses da

burguesia que abriram caminho para a emergência do Renascimento.

Na parte relativa às “Visões do Paraíso”, os autores enveredam mais uma vez para o

tema das Mentalidades. A religiosidade estimulou o imaginário medieval a assimilar idéias

como a busca do Paraíso Terrestre. As precárias condições de vida favoreceram tal busca. Há

de se acrescentar que os autores promovem também uma vinculação entre as Cruzadas e a

mentalidade religiosa que impulsionou os cristãos a combaterem os muçulmanos na Palestina.

Por fim, a busca de especiarias, juntamente com os relatos sobre as maravilhas e mistérios do

Oriente, narrados notadamente por Marco Pólo, também povoaram a mentalidade e o

imaginário dos europeus do ocidente.

A Crise do XIV marcou o fim da Idade Média. Tal momento é representado como o

resultado de uma série de fatores, entre os quais a fome e a peste que afetaram tanto o mundo

rural, como o mundo urbano. As guerras e as revoltas assolaram também o mundo medieval

como um todo. As Grandes Navegações, que se constituíram como um desdobramento natural

da crise do feudalismo, ensejaram a criação daquilo que os autores denominam de uma nova

geografia do imaginário aquilatado pelas viagens e conquistas da Europa, sobretudo em relação

à América.

O capítulo é encerrado a partir de uma análise que representa o Renascimento na sua

relação de continuidade com a Idade Média. O ponto de partida de tal constatação diz respeito

às mudanças culturais verificadas nas cidades italianas a partir do século XII. Os centros

urbanos medievais, portanto foram fundamentais para a gestação de novos valores culturais

que alavancaram o Renascimento inspirado na cultura clássica que, na realidade, já estava

sendo cultivada desde a Idade Média324. 324 Embora e seguindo de perto as orientações dos autores, o movimento renascentista pretendesse resgatar as tradições culturais da Antiguidade Clássica, isso na prática não se efetivou, pois os homens daquele período estavam na realidade vinculados ao mundo medieval. A Escolástica que teve em Santo Tomás de Aquino o seu maior expoente, inspirou-se na tradição filosófica de Aristóteles, exemplificando por isso a assimilação da cultura clássica por pensadores medievais. Cumpre ainda observar que o capítulo em foco vincula a cultura renascentista às demandas da classe burguesa, bem como exemplifica a presença dela no que diz respeito às artes plásticas.

245

Nas atividades e exercícios que encerram a unidade, a obra utiliza textos e gravuras que

contribuem para a fixação dos conteúdos. Um dos textos diz respeito às origens dos

estereótipos em relação ao período, chamando a atenção para a ação dos humanistas para a

formação deste mito historiográfico. Por fim, a obra didática pretende despertar a atenção de

docentes e alunos do ensino médio para a tese que advoga a idéia de continuidade entre a Idade

Média e o Renascimento.

As gravuras e as imagens, juntamente com as fotografias que se referem ao mundo

moderno, estão em bom número e reforçam os conteúdos inseridos ao longo do texto didático.

Os autores facilitam a sua utilização pelo professor em sala de aula, porque nelas há

informações adequadas e objetivas. Há um bom número de mapas que também ajudam o

docente e o discente na compreensão do processo histórico.

O número de gravuras e imagens que se referem à cidade medieval é pequeno. Conclui-

se então que se ao longo do texto didático, os autores fornecem representações que ultrapassam

a noção que vincula os centros urbanos a funções econômicas e comerciais, as gravuras e

imagens por conseguinte não ilustram isso325.

4.5. Considerações Finais.

O aumento de trabalhos que têm tomado o livro didático como objeto de estudo

favorece não só a pesquisa acadêmica voltada para o conhecimento histórico, mas também

aquelas que se voltam para a educação. A aproximação entre Educação e História, por

conseguinte tem gerado, uma série de trabalhos que estão renovando os dois campos do

conhecimento. 325 Compete insistir mais uma vez que a obra didática em questão, embora destaque a função econômica das cidades, representa a cidade medieval, desde os grupos sociais, passando pelas mentalidades até chegar às manifestações culturais.

246

O estudioso deve ter o cuidado de lembrar que as pesquisas que vinculam a História da

Educação ao conhecimento histórico foram beneficiadas pelos trabalhos de historiadores

vinculados à Escola dos Annales e Marxismo. Os paradigmas teóricos das duas vertentes de

pensamentos possibilitaram o encontro entre o político, o econômico e social na interpretação

do processo histórico. Tais paradigmas favoreceram o repensar da disciplina e do campo de

pesquisa da História da Educação, ensejando uma aproximação com a área de História e os

seus pesquisadores.

Na relação entre Marxismo, História e Educação, a obra de Edward Thompson acabou

sendo muito importante, criticando determinada vertente do Materialismo Histórico e valorizou

os atores históricos na produção da cultura com relação à sociedade. Visto isso, pode-se

asseverar que o legado teórico do pensador inglês está beneficiando os meios acadêmicos

brasileiros por intermédio de trabalhos sobre a História da Educação.

O encontro entre o conhecimento histórico e a história da educação tem se revelado

cada vez mais promissor em função da renovação historiográfica proporcionada pela História

Cultural. O emprego da Nova História Cultural na análise do processo histórico educacional,

favorece ao estudioso a utilização de conceitos como os de representação, de apropriação e de

mediações culturais.

Um significativo número de historiadores ligados à História Cultural vem se dedicando

mais à história do livro no ocidente. Os historiadores estão valorizando o livro como um objeto

importante para a compreensão da trajetória histórica da cultura engendrada pelos intelectuais e

para a sua disseminação dentro da sociedade.

A história do livro e dos leitores, segundo Roger Chartier, permite perceber de como os

significados são apreendidos e verificar como os leitores a partir daí representavam o seu

mundo. A análise dos conteúdos dos livros ajuda igualmente o pesquisador a compreender o

papel de tais obras para o leitor, no que diz respeito à representação do seu momento histórico.

O historiador, então deve perceber o quanto o livro divulga valores e representações de um

dado contexto histórico.

A imposição cada vez mais do livro didático como objeto de estudo nas instituições de

ensino superior no Brasil, insere-se nas reflexões que envolvem as relações entre o saber

escolar e o saber acadêmico. Desse modo, o livro didático, que é um objeto cultural com sua

247

trajetória histórica no Brasil forçosamente vinculada à educação e às disciplinas escolares, tem

um percurso histórico que se insere na história dos livros impressos.

No que se refere à dinâmica educacional, o livro didático determina a confecção de

currículos e programas escolares, assim como o cotidiano das instituições de ensino. Eles

influenciam concepções pedagógicas e no entanto é influenciado pelas políticas educacionais

representadas nos currículos escolares. Os livros didáticos refletem ainda as experiências do

seu tempo e das salas de aulas, não só quanto ao conteúdo, como também no seu projeto

editorial que está ancorado na dinâmica do mercado. Com relação ao conteúdo, a formação do

autor, sua concepção de história e a atualização quanto à historiografia são aspectos

fundamentais para a compreensão desses instrumentos didáticos para a veiculação de valores e

ideologias. Por fim, a presença cada vez maior de um número maior de funcionários para a

confecção dos livros e o cuidado com a linguagem e as imagens atestam uma produção que se

vincula com as determinações do mercado.

Nas sociedades ocidentais, o uso do livro didático vincula-se diretamente a um sistema

administrativo escolar. O Estado, tornando-se também um condutor das políticas educacionais

acabou por regular tais manuais didáticos.

As origens dos livros didáticos relacionam-se inicialmente à situação de que não havia

nos meios universitários europeus livros suficientes para todos. Os estudantes criaram os

“cadernos de textos” com objetivo de disseminar o conhecimento. Posteriormente, no século

XVII sob a ingerência do Iluminismo, o livro passou a ser representado como veículo que

divulga a ciência e a razão. O livro didático, por conseguinte, na concepção iluminista reforça

o papel da escola como o espaço divulgador do conhecimento científico e da razão. Tal

concepção marcou a história do livro didático no Brasil.

Os livros didáticos veiculados no Brasil na década de 1920 eram oriundos de países

como França e Portugal. Os conteúdos de História Geral, embora o ensino de História do Brasil

fosse valorizado em função da ideologia nacionalista que exaltava o Estado Nacional

Brasileiro, angariava grande prestígio e prevalecia no currículo de História.

As transformações educacionais ocorridas no Brasil, a partir da década de 1930,

repercutiram sobre os livros didáticos que passaram paulatinamente a serem confeccionados

por autores brasileiros. As obras produzidas desde então, estavam limitadas à existência de um

incipiente mercado editorial concomitante à ausência de uma linguagem adequada para os

248

alunos das escolas brasileiras do período. Cumpre acrescentar que tais características e

tendências permaneceram em linhas gerais até a década de 1960.

Retornando-se um pouco mais na História, pode-se considerar que, desde o século XIX

no Brasil, há uma tendência do Estado brasileiro em se preocupar com os conteúdos dos

materiais didáticos, impressos a serem utilizados nas escolas. Essa tendência, que ora se

configurava, estava em conformidade com as políticas educacionais dos tradicionais Estados

europeus.

Os conteúdos de História expostos nos manuais de História do Brasil tinham o objetivo

de exaltar os grandes acontecimentos, conjuntamente aos feitos dos grandes personagens que

no limite remetia os alunos a valorizarem a nacionalidade brasileira. O conhecimento e as

representações dos conhecimentos históricos veiculados nos manuais, além de fragmentados,

não favoreciam o desenvolvimento da análise crítica entre os estudantes.

No Estado Novo, o livro didático de História e o sistema educacional do período em

questão estavam sintonizados com os valores e símbolos do Estado Novo que expressavam

feições totalitárias. A história ensinada no período acabava justificando o processo de

centralização política da época que vendia a imagem de um Estado e governo que levariam o

Brasil para o caminho do progresso e de uma nação forte.

A presença mais evidente do Estado brasileiro no tocante ao controle sobre o livro

didático ocorreu em pleno regime militar (1964-1985). A criação da Comissão do Livro

Técnico e Livro Didático (COLTED), em 1966 comprovam isso. Pode-se ainda dizer que o

crescimento da demanda escolar fez com que o livro didático passasse a orientar o trabalho

docente com mais freqüência em um contexto marcado pela precariedade de formação de

muitos deles.

Na década de 1970, as ações do governo brasileiro foram intensificadas em relação aos

manuais didáticos pela criação do Instituto Nacional do Livro Didático (INLD). Tal instituto

administrou os recursos financeiros que foram canalizados para o Programa do Livro para o

Ensino Fundamental (PLIDEF). O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), implantado

após o fim do regime militar, substituiu os órgãos que regulamentaram o livro didático no

Brasil. Foi na década de 1990, entretanto, que o Estado, através do Plano Decenal de Educação

para Todos, estabeleceu como prioridade melhorar qualitativamente os manuais didáticos. No

ano de 1994, o governo federal, por meio do Ministério da Educação, criou uma comissão

249

composta por especialistas de áreas distintas para analisar os conteúdos programáticos de livros

didáticos mais conhecidos e destinados para as quatro séries iniciais do Ensino Fundamental.

Atualmente o Programa Nacional do Livro Didático, além de fortalecer o processo

avaliativo dos manuais didáticos, forneceu aos meios escolares novas ferramentas para se

repensar o livro didático para a educação brasileira. Compete dizer ainda que a presença do

Estado, regulamentando a educação brasileira, gerou conseqüências na organização curricular

das escolas, e nos materiais didáticos trabalhados pelos professores. O livro didático, logo, não

deve ser só avaliado pelos conteúdos e idéias que ele veicula. Por isso, há que se considerar

igualmente o papel do Estado, e a maneira como ele é produzido e divulgado.

Na década de 1970 correram mudanças na produção e divulgação do livro didático que

até hoje condicionam o mercado editorial no Brasil. Uma das mais visíveis diz respeito aos

autores. Se até a década de 1960 os escritores confeccionavam as suas obras de modo

individual, a partir dos anos de 1970, em função das determinações do novo mercado editorial,

eles passaram, na realidade, a fazer parte de uma equipe que tinha como objetivo produzir uma

mercadoria capaz de atingir o seu público-alvo, ou seja as instâncias governamentais e os

professores. A produção de livros, por conseguinte tornou-se ainda mais sofisticada e

expandiu-se a ponto de muitas obras didáticas terem atingido a liderança no mercado editorial.

As propostas de mudanças para o ensino de História, juntamente com as que propunham

novos caminhos para a formação do professor, contribuíram para a implantação de uma nova

política editorial para o livro didático, notadamente a partir do período que se estende de 1970

a 1990. As críticas feitas sobre os erros de conteúdo, concomitantemente aos estereótipos e

preconceitos encontrados nos livros didáticos, igualmente favoreceram as mudanças dos

conteúdos teóricos e também no seu formato.

O processo de incremento industrial, usado na produção dos manuais didáticos, veio

acompanhado de uma competição acirrada entre os editores. Os escritores foram desafiados a

escreverem um texto que fosse, acima de tudo, acessível para os estudantes que faziam parte de

uma escola que se massificava paulatinamente.

Ao atuar em conformidade com as políticas públicas em relação ao livro didático, as

editoras brasileiras, ao produzirem os manuais de História, passaram a recrutar profissionais da

área. Ocorre, portanto, aos poucos a substituição dos profissionais que não eram da área pelos

250

profissionais graduados em História. Os novos autores, porém, ganharam a companhia de

novos profissionais.

Os livros didáticos engendrados pelos novos autores, e com novos processos de

produção trouxeram mudanças significativas para os manuais didáticos. Explicitando melhor,

os livros didáticos voltados ao ensino de História melhoraram significativamente não só pelo

lado dos conteúdos, como também pelas características concernentes ao aspecto gráfico. Pode-

se afirmar, porém que nem todos os alunos tiveram acesso ao livro didático, e, pelos menos até

a década de 1990, os manuais em sua grande maioria eram adotados pelas escolas particulares,

de onde saíam muitas vezes os docentes que elaboravam as obras didáticas.

A produção de um livro didático e a sua posterior revisão estava determinada pela

concepção de História que o autor tinha e a sua condição de assimilar as novas teorias e

metodologias. O crescimento da competição entre as editoras impunha, entretanto limites para

a produção e a revisão dos manuais.

Os conteúdos de uma obra didática estão relacionados à produção universitária. Melhor

dizendo, a eficácia e a atualidade de um manual didático podem ser medidos, também, pela

capacidade e disposição do autor em se atualizar, quanto à produção historiográfica. A

constatação da importância do saber escolar faz com que os autores dos livros escolares se

preocupem em se manter atualizados no que tange aos avanços da literatura escolar. O

desdobramento disso, se expressa na evidente melhoria da qualidade dos nossos manuais de

História.

A boa recepção de uma obra didática no mercado fazia com que, muitas vezes, ela se

tornasse referência para uma editora concorrente. As novidades na formatação e na tecnologia

no geral eram então assimiladas pelos outros livros. A presença de consultores para julgar os

originais, a melhoria na formatação de textos auxiliares, mapas, gravuras e imagens atestam as

transformações nas editoras voltadas para a produção do livro didático.

O avanço na produção do livro didático, juntamente com o avanço historiográfico

contribuiu para a melhoria do ensino de História. Compete ainda afirmar que as editoras que se

ocupavam da confecção de livros didáticos passaram a se preocupar também em publicar os

chamados paradidáticos que supriam outrossim temas que ou eram preteridos ou tratados de

forma residual pelos manuais escolares.

251

As obras paradidáticas tornaram-se importantes para o ensino brasileiro, principalmente

a partir dos anos de 1990. Os temas desenvolvidos por eles, além de completarem as lacunas

deixadas pelos livros didáticos, estavam em consonância com as necessidades do mercado

editorial, bem como as necessidades do ensino fundamental. Contudo, nem todas as escolas

podiam usá-lo, não só em função dos seus custos, como também dos conteúdos e análises que

muitas vezes não eram acessíveis para os estudantes.

Os paradidáticos aproximaram o saber acadêmico do chamado escolar, pois buscavam

disponibilizar aos alunos das escolas do ensino médio os temas que estavam renovando o

conhecimento histórico. Eles eram escritos, de ordinário, por especialistas que atuavam como

professores e pesquisadores nas principais universidades brasileiras. A linguagem utilizada

almejava ser acessível para os alunos do ensino médio. Na verdade, a utilização dos manuais

ficou reservada aos alunos das escolas particulares. Eles também foram criados por editoras

que pretendiam atender às demandas do mercado externo. Por isso, além de possuírem uma

linguagem que pretendia estar em consonância com o público a que se destinava, eram

formatados com um número de páginas limitados.

O período medieval foi contemplado com a publicação no mercado brasileiro com uma

série de paradidáticos que trouxeram para os alunos brasileiros reflexões de temas pouco

explorados nos livros didáticos, e demonstraram o crescente interesse de pesquisadores em

relação à Idade Média. Essas obras, na realidade, não ficaram restritas ao ensino médio, pois

elas acabaram servindo de apoio para alunos e professores do ensino superior.

Os processos avaliativos sobre o livro didático no Brasil têm se aperfeiçoado cada vez

mais. A conexão que envolve o governo federal e os centros universitários brasileiros enseja a

chegada ao mercado brasileiro de obras didáticas de História de melhor qualidade, não só no

que tange ao conteúdo e à formatação.

O catálogo do Programa Nacional para o Ensino Médio (PNLEM) do ano de 2008,

considera logo no início, especificamente na chamada carta para os professores, que o livro

didático ainda se constitui uma ferramenta valiosa para professores e alunos. Ele só continuará,

porém, a desempenhar um papel importante no processo de ensino aprendizagem se for

constantemente avaliado.

O documento ressalta na introdução, mais uma vez a importância do livro didático para

o ensino, embora destaque a responsabilidade que o educador e a escola devam ter na hora da

252

escolha do manual didático. Tal programa, em razão disso, almeja oferecer ao docente a análise

de uma série de obras de História para o ensino médio inscritas pelas editoras, a fim de que o

professor possa ter subsídios para escolher aquele que ele julgar poder favorecer o seu trabalho

em sala de aula.

A renovação do ensino de História foi favorecida igualmente pelo aparecimento de uma

série de obras didáticas amplamente adotadas nas escolas brasileiras do ensino médio. Tais

obras, examinadas neste capítulo, tiveram papel importante no Brasil das décadas de 1980 e

1990 para a efetivação de uma História analítica e crítica e que pôs em dúvida a História

factual e calcada na memorização.

O Materialismo Histórico, então no auge no Brasil, fundamentava as reflexões

históricas desses manuais, respaldando-se a análise do processo histórico em categorias

teóricas, tais como: forças produtivas, relações de produção, trabalho, dentre outras. Cumpre

dizer ainda que os livros didáticos enfatizavam o processo econômico e social.

Nos livros didáticos do ensino médio brasileiro nas décadas de 1980 e 1990, a cidade

medieval do ocidente europeu foi representada fundamentalmente em suas funções

econômicas, e definições como “Renascimento Comercial e Urbano” foram destacadas por tais

manuais.

A presença mais efetiva do Estado, no que diz respeito a uma maior avaliação na

educação, contribuiu para uma melhoria do conteúdo dos manuais didáticos de História

voltados para o ensino médio. Na realidade tais obras já vinham mostrando sinais de inovações

desde a década de 1990. Os livros didáticos no Brasil do limiar do século XXI estão em

consonância com os objetivos pretendidos pelo Programa Nacional do Livro para o Ensino

Médio (PNLEM).

O Marxismo continuava e ainda continua a influenciar com destaque as análises

históricas dos manuais do início deste século. A renovação historiográfica, contudo, que já

vinha se processando desde a década de 1980, trazendo à tona novos temas e abordagens,

estimularam a presença da História das Mentalidades e da História Cultural nos livros de

História.

A Cidade Medieval na Europa Ocidental, embora ainda fosse estudada em sua função

econômica e comercial, aos poucos passou a ser representada, por meio de temas como a

família, a mulher, a cultura popular, entre outros. Por isso, o destaque dado pelos autores a

253

temas que dizem respeito à mentalidade e à cultura dinamizaram o ensino da Idade Média nos

livros de História do ensino médio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para muitos dos homens medievais, a Cidade era o lugar do pecado, mas também de

novas formas de religiosidade – como a das ordens mendicantes e a das discussões

teológicas que tinham como ponto de conexão as Catedrais e as primeiras

Universidades. De igual maneira a Cidade, já na Idade Média, queria-se aberta para

um mundo onde o comércio passava a desempenhar um novo papel entre realidades

sociais e culturais diversas, mas ao mesmo tempo esta Cidade era também o lugar de

um viver murado e fechado, de uma vida protegida e limitada por muralhas que dão

bem a tônica central de uma ambígua conexão entre o aberto e o fechado, gerando

contradições e tensões diversas entre os grupos sociais e indivíduos que compunham

a sua heterogênea população.

JOSÉ D’ASSUNÇÃO BARROS

Os livros didáticos, se forem entendidos em suas especificidades, são uma importante

fonte para o estudo do processo histórico, dando aos estudiosos uma compreensão das idéias,

dos conceitos e representações transmitidas aos estudantes. A pesquisa e as representações da

Idade Média sempre despertaram o interesse dos historiadores brasileiros, cuja contribuição

para o crescimento da historiografia medieval merece distinção. Nos livros didáticos

254

destinados aos alunos do ensino médio e fundamental, contudo ainda permanecem alguns

mitos sobre tal período, crucial para a constituição do Ocidente.

Apesar de a principal desses mitos, aquele que vincula o período examinado à “Idade

das Trevas”, estar muito questionado atualmente entre professores e alunos brasileiros, ele

ainda sobrevive. Cumpre acrescentar que boa parte dos estudos procuram combatê-lo,

demonstrando que as origens da cultura ocidental, mesmo consideradas a influência grega e

romana, estão na Idade Média.

Jacques Le Goff alertou sobre o perigo do mito Idade das Trevas e da representação

idealizada do período. Logo, se a visão negativa reproduzida sobre o período pelos

renascentistas e iluministas não fornece uma visão esclarecedora do período, o mesmo se pode

afirmar sobre a visão idealizada fundada na concepção romântica, a qual, na Europa, foi

determinada pela presença do Romantismo na literatura e nas artes em geral, buscando na

Idade Média as origens de muitas nacionalidades européias.

A História do ensino de História Medieval no Brasil não pode ser examinada fora do

contexto da História do ensino de História no Brasil que, por sua vez, está condicionada

igualmente ao processo histórico brasileiro. Acrescente-se a isto, a constatação de que os temas

e as concepções que nortearam os educadores na compreensão da Idade Média estarem

inegavelmente vinculados à produção historiográfica engendrada na Europa.

No período colonial, as escolas estavam sob o controle da Igreja Católica. No século

XIX a transferência do governo português para o Brasil e, posteriormente, a Independência,

causaram mudanças significativas para a educação. A História tornou-se disciplina escolar no

então século. No novo Estado republicano implantado a partir de 1889, a educação seria o

caminho a ser percorrido no que ativesse à possibilidade de se construir um novo cidadão. No

tocante ao ensino de História no início da República, ele não diferiu em essência do ensino

ministrado no período imperial (1822-1889) posto em evidência na década de 1930, pois seria

um dos instrumentos centrais para a educação que deveria ser despertado para o respeito à

nação e aos seus valores. Tal visão permaneceu, em linhas gerais, até o golpe militar de 1964.

As políticas educacionais implantadas pelos governos militares acabaram, porém, por

enquadrar o ensino de História nos quadros da Doutrina de Segurança Nacional. Os conselhos

de educação testemunham o controle sobre o ensino nas escolas. Além disso, com a

255

implantação dos cursos de Estudos Sociais, a formação do historiador e do professor de

História ficaram comprometidas.

Com a abertura política e fim do regime militar, professores e pesquisadores de vários

lugares do país conscientizaram-se e mobilizaram-se sobre a necessidade de mudanças nos

currículos de História. As propostas de Minas Gerais e São Paulo nas reformas curriculares

ganharam destaque e foram amplamente discutidas, embora os debates venham prosseguindo

até os nossos dias.

Ao se representar a Idade Média como um período que faz parte da história do ocidente,

considerando-a numa perspectiva evolucionista que tem como emblemas o progresso e o

avanço científico, perdem-se, assim, as especificidades sobre o período: os mitos e

estereótipos. Logo se deve compreender a Idade Média a partir do que homens e mulheres do

período a representaram.

O meio rural medieval é o que mais recebe destaque nos livros de História do ensino

médio. Por isso, as imagens e representações da vida urbana são postas por muitos manuais de

História em segundo plano. Assim, temas como comércio, burguesia, cruzadas e corporações

de ofício e poder político nas cidades, mesmo que sejam abordados nos livros de História, não

o são de modo aprofundado. As representações e as imagens sobre a cultura citadina

permanecem pouco exploradas. Posto isso, pode-se dizer que, embora haja os avanços

metodológicos e teóricos no ensino de história no Brasil, os livros didáticos não alteraram

muito as suas abordagens no que concerne à cidade medieval.

Foi no século XIX que houve uma preocupação mais sistemática no que diz respeito a

uma compreensão do fenômeno urbano na cultura ocidental. Na Europa ocidental, o

desenvolvimento do capitalismo, primeiramente na Inglaterra, no final do século XVIII, e

depois nos demais países, provocou grandes transformações políticas, econômicas e sociais. A

cidade tornou-se o grande palco do mundo burguês. A expansão das atividades industriais no

meio urbano, juntamente com o desenvolvimento do capitalismo, pôs a cidade no foco da

atenção de diversos estudiosos.

A compreensão da cidade na Idade Média tem motivado uma série de questões para o

entendimento do fenômeno urbano medieval. Dentre elas, destaca-se em primeiro lugar, a

importância da compreensão da cidade em universo que possui uma essência rural. Em

segundo lugar, a função econômica e comercial dos centros urbanos. Em terceiro lugar as

256

relações políticas entre as cidades e os nobres, bem como entre os seus habitantes. Por fim, as

manifestações culturais, assim como o entendimento de temas do cotidiano e da vida privada.

Apesar de estar em interação com o mundo rural medieval, a cidade desenvolveu uma

organização política, econômica, social e cultural que lhe foi própria. Por conseguinte, os

homens, as mulheres e os grupos sociais do período, ao construírem as suas visões, imagens e

escritas sobre as suas cidades, também as representaram.

Tais representações abrem uma série de possibilidades para o historiador no que se

refere à compreensão e à definição do fenômeno urbano medieval. No século XX, as

interpretações sobre a importância da cidade para o mundo medieval ganharam novos

enfoques, sendo um deles a reavaliação da relação entre campo e cidade. Desse modo, a

construção de um conceito ou mesmo de definição de cidade medieval está intimamente

conectada ao avanço das pesquisas sobre o ocidente medieval.

O conceito de representação foi estudado pelos pesquisadores vinculados à História

Cultural, que se desenvolveu, sobretudo, na França. Cumpre ainda indicar que tal país

destacou-se no século XX como o responsável por boa parte dos avanços da historiografia na

Europa. A História Cultural que obteve êxito nos meios acadêmicos nos anos de 1990

mobilizou e tende a continuar a mobilizar muitos pesquisadores. Ela consagrou princípios

como “práticas”, “representações”, “visões de mundo” e “expressões culturais” que suscitou

uma aproximação da História com outros campos do conhecimento.

Os avanços da historiografia, relativos à teoria, como também à metodologia são

notórios, o que contribuiu para o crescente interesse pela História no Brasil. E, se nos anos de

1970 e 1980 havia uma preocupação em representar a história como ciência, nos dias atuais os

estudiosos almejam um diálogo mais constante com outros campos do conhecimento e a

exploração de novas fontes no processo de produção do conhecimento histórico. Um exemplo

disso, é a utilização de imagens. O historiador, entretanto, deve compreender que a iconografia,

como qualquer fonte para se estudar a História, apresenta limites e deve ser tratada de forma

criteriosa, inteirando-se ele das especificidades dos documentos iconográficos utilizados na

pesquisa de uma determinada realidade histórica. Compete acrescentar que tal alerta pode

servir aos professores que se deparam com as imagens incluídas nos manuais didáticos, pois

eles ainda empregam as imagens como ilustração.

257

As pesquisas sobre a estrutura curricular estão vinculadas a uma série de pesquisas-tema

que tentam não só renovação da educação, como também tornar a escola um espaço mais

atrativo para os nossos alunos. Como corolário disso tudo, os estudos e os livros didáticos de

História para o ensino fundamental e para o médio em nosso país cresceram. Aliás, cabe

acrescentar que, se hoje a historiografia sobre a História do ensino da História expandiu-se e

continua a crescer, isso se deve àquilo que ouso de denominar de a grande revolução dos

estudos sobre a educação brasileira.

No Brasil, a literatura ocidental sobre as pesquisas dos currículos escolares, sofreram a

influência dos trabalhos produzidos por estudiosos norte-americanos, dentre os quais, Michael

W. Apple que, além de admitir a relação entre grupos sociais e currículos, afirma que o

currículo está inextricavelmente ligado ao controle social. A História, enquanto disciplina, faz

parte de um currículo escolar que é composto por um conjunto de disciplinas que representam

uma série de conhecimentos que são trabalhados nas salas de aulas. Deve-se, também afirmar

inicialmente que a sua relação com a História produzida nas universidades nem sempre seguiu

um mesmo padrão. Porém, em nome da autonomia escolar, não se pode conceber um hiato

entre a produção acadêmica e o saber escolar.

No Brasil, os primeiros passos da trajetória dos currículos escolares estão intimamente

relacionados às ações dos Jesuítas. Eles foram fundamentados no ideário humanista europeu.

As reformas afiançadas pelo marquês de Pombal patrocinaram em Portugal uma reforma da

educação calcada no Iluminismo, retirando da Companhia de Jesus o controle sobre a

educação.

No que compete à educação, a grande referência do período joanino foi a criação dos

primeiros cursos superiores, apesar de a educação primária e secundária e os seus respectivos

currículos permanecerem sob o controle dos padres jesuítas. Contudo, no período imperial, as

províncias que teriam a determinação de promoverem a expansão da escola primária e

secundária, não cumpriram tal tarefa.

No Brasil da Primeira República, o ensino secundário e superior prosseguiram como

prioridades. Embora, a constituição de 1891 estabelecesse a descentralização educacional,

deixando a cargo dos Estados a responsabilidade sobre o ensino médio, cresceram ao longo do

período idéias que chamavam a atenção sobre a importância do ensino primário.

258

O fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) determinou a crítica do ensino elitista e

do currículo. No decorrer da década de 1920, ocorre no Brasil um clima de entusiasmo pela

educação, e um dos desafios a ser vencido era o analfabetismo. Portanto, as idéias e reformas

concebidas no referido contexto expressavam uma fundamental ruptura com a escola

tradicional.

A década de 1930 aquilatou uma reorganização da educação brasileira que queria, em

linhas gerais, gerar orientações educacionais que fossem seguidas em todo o país. Cumpre

afirmar igualmente que as discussões sobre o melhor modelo de educação envolveram

intelectuais, notadamente os de orientação católica e liberal. Assim, as questões que envolviam

os currículos tanto do ensino primário, quanto do ensino secundário vieram à baila.

No que compete à educação no período do pós-1945, pode-se asseverar que as idéias da

chamada “Escola Nova” se puseram como dominantes até 1964, as quais foram retomadas em

consonância com o processo de redemocratização, a partir de 1946, ano da promulgação da

Constituição de 1946. As principais concepções educacionais da Escola Nova eram embasadas

na filosofia rousseauniana e de filósofos liberais.

O golpe militar de 1964 finalizou mais uma página da história brasileira. No tocante à

educação, pode-se asseverar que as políticas educacionais implementadas pelos governos

militares prosseguiram com a tradição centralista que emergiram no Brasil da década de 1930.

A constituição de 1967, que embasou os princípios dos governos militares, consolida aspectos

da primeira LDB de 1961 e também a presença do ensino particular.

No período que se estende de 1964 a 1968, os militares deparavam-se com a crescente

necessidade de mais vagas para o ensino superior. Para solução de tal problema, era mister,

portanto, a reforma o ensino como um todo. A lei 5.692 estabeleceu que os currículos de 1º.e

2º. graus seriam portadores de um núcleo comum, os quais facultariam a formação

profissionalizante. Por fim, o Conselho Federal de Educação, por intermédio do parecer de n.

853/71 e da resolução n. 8/71, determinou o núcleo comum dos currículos que deveriam ter

uma abrangência nacional e de caráter obrigatório.

Os governos militares desejaram, pelas legislações educacionais e pelo Conselho

Federal de Educação, concretizar uma concepção de currículo que, além de estar em

consonância com a ideologia de segurança nacional, buscava também despolitizar a educação.

Com a intensificação da abertura política, os professores e os pesquisadores, entretanto

259

conscientizaram-se sobre a necessidade de mudanças na educação e nos currículos e programas

de ensino nos níveis de ensino, passando os currículos a refletir o incipiente processo de

redemocratização executado pela chamada Nova República.

No final da década de 1980 e limiar de 1990, ocorreu a retomada e intensificação dos

estudos sobre os currículos no Brasil. Convém notar que as pesquisas sobre os currículos ainda

que, embora sejam influenciadas por autores norte-americanos, em especial os trabalhos de

Michael W. Apple, tendem atualmente a enveredar para a idéia de que os educadores e

pesquisadores não incorporaram pura e simplesmente as teorias curriculares de estudiosos

estadunidenses, bem como aquelas concebidas por estudiosos europeus.

A História, enquanto disciplina escolar, faz parte de um currículo que é composto por

uma série de disciplinas que representam um conjunto de conhecimentos que são trabalhados

nas salas de aulas. As pesquisas sobre o que é uma disciplina escolar, bem como as relações

entre elas e as disciplinas acadêmicas, por exemplo, têm sinalizado uma série de questões no

que diz respeito ao papel da História em nossas escolas. Por conseguinte, as conexões entre a

História como disciplina escolar e a História confeccionada nas universidades nem sempre

seguiram um mesmo padrão, pois, se muitas vezes os historiadores das academias pretendiam

uma aproximação com os professores que se dedicavam ao ensino de História nas escolas, na

maioria das vezes a distância prevaleceu.

Na relação entre a História produzida pelas universidades e aquela ensinada nas escolas,

porém não se pode, em nome da autonomia escolar, conceber um divórcio entre a produção

acadêmica e o saber escolar. Em nome disso, não se deve acreditar que o conhecimento gerado

nas universidades possa ser passado integralmente para as escolas do ensino fundamental e

médio.

As seleções dos temas que podem fazer parte dos currículos de História dependem da

formação teórica do professor, da escola e das disciplinas estabelecidas. Além disso, o papel da

História como disciplina escolar, que pode contribuir para o entendimento da sociedade de

modo crítico, depende igualmente da capacidade do docente de pôr em prática os conteúdos

estabelecidos em contato com outros campos do conhecimento.

O crescimento de trabalhos que têm tomado o livro didático como objeto de pesquisa

estimula a pesquisa acadêmica voltada para o conhecimento histórico e aquelas que se voltam

260

para a educação. O contato freqüente entre Educação e História, por conseguinte, tem gerado

uma série de trabalhos que estão renovando os dois campos do conhecimento.

O pesquisador deve ter o cuidado de lembrar que as pesquisas que vinculam a História

da Educação ao conhecimento histórico foram beneficiadas pelos trabalhos de historiadores

vinculados à Escola dos Annales e ao Marxismo. Além disso, o encontro entre a História e a

História da Educação tem se revelado cada vez mais promissor em função da renovação

historiográfica proporcionada pela História Cultural.

Um significativo número de historiadores ligados à História Cultural vem se dedicando

cada vez mais à história do livro no ocidente. Os historiadores destacam o livro como um

objeto de pesquisa importante para a compreensão da trajetória histórica da cultura engendrada

pelos intelectuais e para a sua disseminação dentro da sociedade.

A emergência do livro didático, como instrumento de pesquisa nas universidades

brasileiras, inclui-se nas análises que envolvem o conhecimento escolar e o acadêmico. Nesse

sentido, tal modalidade de livro é um objeto cultural, cuja trajetória histórica no Brasil está

indissociavelmente em conexão com a educação e às disciplinas escolares. Além disso, os

manuais didáticos têm um percurso histórico que se insere na história dos livros impressos.

O livro didático determina a confecção de currículos e programas escolares, assim como

o cotidiano das instituições de ensino. Eles influenciam concepções pedagógicas, ainda que

sejam influenciados pelas políticas educacionais expressadas nos currículos escolares. Os

manuais didáticos espelham ainda as experiências do seu tempo e das salas de aulas. Tais

instrumentos educacionais no que se refere ao conteúdo e ao seu projeto editorial que estão

respaldados na dinâmica do mercado. O conteúdo, a formação do autor, sua concepção de

história e a atualização quanto à historiografia são aspectos fundamentais para a compreensão

desses instrumentos didáticos para a veiculação de valores e ideologias. Cumpre ainda dizer

que a presença maior de profissionais na produção das obras e o cuidado com a linguagem e as

imagens confirmam uma produção que se conecta mais ainda com as demandas do mercado.

As gêneses dos livros didáticos situam-se no desenvolvimento do processo histórico

europeu ocidental. Muitos estudantes que não conseguiram ter acesso aos livros

disponibilizados criaram os “cadernos de textos” com o objetivo de disseminar o

conhecimento. No século XVII, sob o impacto do Iluminismo, o livro passou a ser

representado como meio que veicula a ciência e a razão. O livro didático, por conseguinte, na

261

idealização iluminista sustenta outrossim a função das instituições escolares como espaço

propagador do conhecimento científico e da razão. Tal princípio aquilatou a história do livro

didático no Brasil.

Os livros didáticos divulgados no Brasil da década de 1920 eram originários de países

como França e Portugal. Os temas de História Geral dominavam, apesar do prestígio da

História do Brasil que exultava a ideologia nacionalista e o Estado Nacional Brasileiro. Na

década de 1930, todavia, as mudanças educacionais incidiram sobre os livros didáticos, apesar

do incipiente mercado editorial que limitava a proliferação desses instrumentos educacionais.

Os manuais na realidade ainda estavam desprovidos de uma linguagem que estivesse em

conformidade com os alunos brasileiros do período. Urge ainda considerar que tais

características e tendências permaneceram, de um modo geral, até a década e 1960.

No resgate da História do livro didático no Brasil pode-se asseverar que, desde o século

XIX, há uma tendência do Estado brasileiro em se preocupar com os conteúdos trabalhados nas

salas de aulas. Em uma perspectiva geral, eles tinham a pretensão de pôr em destaque os

grandes acontecimentos, concomitantemente aos feitos dos grandes personagens que no limite

remetia os professores e alunos a valorizarem a nacionalidade brasileira. O conhecimento e as

representações dos conhecimentos históricos, contudo, além de fragmentados, não favoreciam

o desenvolvimento da análise crítica entre os alunos. Cabe adicionar que tal tendência

predominou fundamentalmente até os anos de 1980, embora em anos anteriores algumas

iniciativas isoladas almejassem mudar tal concepção de ensino.

No regime militar brasileiro (1964-1985), o controle sobre o livro didático tornou-se

mais contundente. O estabelecimento da Comissão do Livro Técnico e Livro Didático

(COLTED) em 1966 provam isto. A disseminação deste instrumento didático orientou

cotidianamente o trabalho do professor, cuja formação acadêmica e profissional ainda deixava

muito a desejar.

O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), implantado após o fim do regime

militar, substituiu os órgãos que regulamentaram o livro didático no Brasil. Foi na década de

1990, entretanto, através do Plano Decenal de Educação para Todos que o Estado, estabeleceu

como primeiro objetivo o de melhorar qualitativamente os manuais didáticos. No ano de 1994,

o governo federal, por meio do Ministério da Educação, criou uma comissão composta por

262

especialistas de Áreas distintas para analisar os conteúdos programáticos de livros didáticos

mais conhecidos e destinados para as quatro séries iniciais do Ensino Fundamental.

No contexto atual o Programa do Livro Didático, não só fortalece o processo avaliativo

dos manuais didáticos, como também ofereceu às escolas brasileiras, novos referenciais com o

intuito de se reavaliar a função do livro didático para o sistema educacional brasileiro. Cumpre

ainda asseverar que o papel do Estado, como gestor da educação brasileira, trouxe efeitos

determinantes para a organização curricular e materiais didáticos das escolas.

Na década de 1970, surgiram mudanças na confecção e propagação do livro didático

que até nos dias atuais determinam o mercado de editoras no país. Uma das mais salientes,

refere-se aos escritores, porque se até a década de 1960 os autores produziam os seus trabalhos

de maneira individual, a partir de 1970, em razão das transformações no mercado editorial, ele

passou na verdade a fazer parte de um grupo que tinha como alvo criar uma mercadoria para

atingir um público específico: as instâncias governamentais e os professores. A confecção de

tal artefato cultural ficou ainda mais complexa e propagou-se a ponto de muitas obras didáticas

atingirem o topo do mercado livreiro.

As novas diretrizes surgidas para a alteração do ensino de História, concomitante com

as que ofereciam novos trajetos para a graduação do professor, favoreceram a constituição de

uma nova linha editorial para o livro didático, principalmente a partir do período que se

estende 1970 a 1990. As incorreções apontadas em relação às obras didáticas, juntamente aos

estereótipos e preconceitos presentes nos livros didáticos, também favoreceram mudanças nos

conteúdos teóricos e nos formatos dos manuais feitos para os estudantes.

A produção dos manuais didáticos que foi dinamizada ocorreu junto com uma tenaz

disputa entre os editores. Os autores foram desafiados a produzirem um texto que fosse

portador de uma linguagem adequada para os alunos que freqüentavam uma escola que se

massificava aos poucos. As editoras, portanto pautaram ações em consonância com as políticas

publicas para o livro didático. Além disso, as editoras selecionavam entre os profissionais

especializados de cada área, os autores que seriam responsáveis pela produção da obra didática.

Os novos autores, entretanto tiveram que conviver com novos profissionais no processo de

produção do livro didático.

As novas obras geradas pelos novos escritores, bem como os atualizados mecanismos

de produção possibilitaram transformações expressivas para o recompensador mercado

263

editorial brasileiro. Pode-se afirmar que, pelo menos até a década de 1990, as obras didáticas

em sua grande parte eram adquiridas pelos estabelecimentos privados de ensino. Aliás de lá

foram recrutados, uma parte significativa dos escritores.

A confecção de um manual didático e a sua posterior revisão está condicionada à

percepção de História do autor, juntamente com a perspectiva de assimilação das novas teorias

e metodologias. Desse modo, a eficácia e a atualidade de um manual didático logo podem ser

medidos, também, pela potencialidade e disponibilidade do autor em se atualizar, no que se

refere à produção historiográfica. É imperativo ainda destacar que os escritores em função dos

desafios impostos pelo saber escolar estão cada vez mais atentos aos avanços da literatura

escolar.

A repercussão favorável de um livro didático transformava-o em uma obra de referência

para as editoras que disputavam o mercado consumidor. Assim, as novidades tecnológicas

embutidas no produto eram logo açambarcadas. À recorrência ao trabalho de especialistas que

julgavam as partes componentes da obra demonstram as mudanças, na fabricação do livro

didático.

As editoras, que se ocupavam da confecção do livro didático, passaram a se preocupar

também em publicar os chamados paradidáticos que supriram temas que, ou eram preteridos ou

tratados de forma residual pelos manuais escolares. Elas tornaram-se importantes para o ensino

brasileiro a partir de 1990. Há de se acrescentar que, além de completarem as lacunas deixadas

pelos livros didáticos, estavam em consonância com as necessidades do mercado editorial e

com as necessidades do ensino médio, apesar de nem todas as escolas poderem utilizá-los em

função dos seus custos e dos conteúdos que eram inacessíveis para os estudantes. Os

paradidáticos, porém, aproximaram o saber acadêmico do chamado saber escolar, pois

buscavam disponibilizar, sobretudo aos alunos das escolas do ensino médio, os temas que

estavam renovando o conhecimento histórico. Eles eram escritos por especialistas que atuavam

como professores e pesquisadores nas principais universidades brasileiras.

A Idade Média foi agraciada com a chegada de um grupo de paradidáticos que

proporcionaram aos estudantes acesso a temas pouco abordados nos livros didáticos e

demonstraram a crescente curiosidade de estudiosos em relação à Idade Média. Tais livros, na

realidade, não permaneceram, contudo restritos ao ensino médio, pois serviram de apoio para

alunos e professores do ensino superior.

264

As avaliações institucionais sobre o livro didático avançam qualitativamente em nosso

país. A pareceria entre o governo federal e a universidade brasileira favorece a chegada ao

mercado brasileiro de livros de História que possuem um bom conteúdo e uma boa formatação.

O catálogo do Programa Nacional para o Ensino Médio (PNLEM) do ano de 2008,

destaca a importância do livro didático para o ensino, embora ressalte a responsabilidade que o

educador e a escola têm na hora da escolha do manual didático. Tal programa oferece ao

docente a análise de uma série de obras de História para o ensino médio inscritas pelas editoras

a fim de que o professor possa ter subsídios para escolher aquele que ele julga favorecer o seu

trabalho em sala de aula.

A melhoria do ensino de História foi beneficiada também pelo surgimento de obras

didáticas que foram largamente utilizadas nas instituições escolares brasileiras do ensino médio

nas décadas de 1980 e 1990. Elas favoreceram à presença de uma História fundamentada na

crítica e na análise e que se opunha frontalmente a História factual e calcada na memorização.

O Materialismo Histórico, então no auge no Brasil, fundamenta as reflexões históricas

desses manuais. Assim, o estudo do desenvolvimento histórico amparava-se nas seguintes

categorias históricas: forças produtivas, relações de produção, trabalho, dentre outras. Cumpre

dizer ainda que os livros enfatizavam o processo econômico e social.

Nos livros didáticos do ensino médio brasileiro nas décadas de 1980 e 1990, a cidade

medieval do ocidente europeu foi representada fundamentalmente pelas suas funções

econômicas. Definições como Renascimento Comercial e Urbano foram destacadas. O termo

“renascimento”, usado de maneira recorrente nos manuais escritos nas décadas discriminadas

acima, é pouco problematizado, reforçando na prática a idéia de que na Alta Idade Média as

atividades comerciais teriam desaparecido juntamente com a vida urbana. Por isso, tais

representações acabam reforçando a Idade Média Ocidental rural nos livros didáticos do ensino

médio, na medida em que o desenvolvimento comercial e urbano não é visto a partir de uma

relação de continuidade entre a Alta Idade Média e a Baixa Idade Média. Compete informar

ainda que os manuais do período examinados por esta dissertação dedicaram-se

fundamentalmente ao estudo da História Antiga e História Medieval.

O rigor avaliativo do Estado sobre a educação como já fora dito anteriormente,

concorreu para a melhoria do conteúdo dos manuais didáticos de História reservados para o

ensino médio. Na verdade, as obras criadas e destinadas ao ensino de História do nível

265

fundamental e médio, entretanto já vinham mostrando sinais de inovações desde a década de

1990. Os livros didáticos no Brasil do limiar do século XXI estão em conformidade com os

objetivos pretendidos pelo Programa do Livro para o Ensino Médio (PNLM). Dito isso, é

imperioso registrar que, além de enfatizar a importância do livro didático para o trabalho do

professor de História, o governo federal, por meio do referido programa destaca a função da

História para a consolidação entre os alunos de valores que privilegiam a cidadania,

fornecendo aos docentes a geração de novas gestões pedagógicas.

O Marxismo continuava e ainda continua a influenciar com destaque as análises

históricas dos manuais do início deste século. A renovação historiográfica, contudo, já vinha se

processando desde a década de 1980, trazendo à tona novos temas e abordagens que

estimularam a presença da História das Mentalidades e da História Cultural nos livros didáticos

de História.

A Cidade Medieval na Europa Ocidental, embora ainda fosse estudada em sua função

econômica e comercial, aos poucos passou a ser representada por intermédio de temas como a

família, a mulher, a cultura popular, dentre outros. Por isso, o destaque dado pelos autores a

temas que dizem respeito à mentalidade e à cultura, dinamizaram o ensino da Idade Média nos

livros de História do ensino médio.

Por conseguinte, é prudente destacar agora duas questões que podem contribuir para a

consolidação do papel do livro didático de História em relação ao processo de ensino e

aprendizagem. A primeira diz respeito à necessidade da continuação do rigor avaliativo do

Ministério da Educação, porque reforça entre os autores e editoras a preocupação com um

ensino de História voltado para a análise, estimulando mais ainda uma aproximação de nossos

autores com a renovação historiográfica que se verifica nos meios acadêmicos e com questões

sobre o saber escolar que igualmente ganham destaque nos meios universitários. A segunda

refere-se à necessidade e à participação maior de pesquisadores na elaboração dos manuais,

embora desde os anos de 1980, até aos dias atuais, o envolvimento dos estudiosos nessa

empreitada venha crescendo mais ainda.

Atendo-se mais especificamente ao período medieval, cumpre tecer duas questões que

considero importantes sobre as representações da cidade medieval européia nos livros

didáticos. A primeira diz respeito a uma exploração maior sobre os temas propostos pelos

autores, pois, de um modo geral, o espaço reservado para o estudo da História Medieval é

266

pequeno se comparado com os outros períodos. O cotejamento entre os manuais das décadas de

1980 e 1990 com os produzidos no limiar do presente século nos autoriza a confirmar que os

primeiros dedicavam um espaço maior não só para a História Antiga, como também para a

História Medieval. Aliás, os manuais das décadas examinadas voltavam-se exclusivamente

para os dois períodos, posto que enfatizassem a função econômica e comercial das cidades, e

fizessem, com destaque, referências à dinâmica política e às manifestações culturais como a

arquitetura, literatura, filosofia e educação. Os livros atuais, apesar de ampliarem o “leque” na

abordagem do mundo urbano medieval enveredando para temas do cotidiano e da cultura,

acabaram diminuindo a área destinada para a Idade Média Ocidental e para a Idade Média

Oriental. Eles também analisam a dinâmica política e as manifestações culturais destacadas

pelos manuais das décadas de 1980 e 1990. Dessa forma, a limitação do campo, voltado para o

período em evidência, acaba reforçando entre os docentes e discentes do ensino médio a noção

que representa a Idade Média como essencialmente rural. A demarcação de tal espaço constrói

em nossa percepção a noção de que Idade Média foi um período de transição que ajuda na

compreensão das origens dos mundos moderno e contemporâneo. Por isso, é necessário

ampliar tal espaço para que novas abordagens possam ser feitas a fim de que a identidade

histórica do período medieval possa ser bem trabalhada pelos professores junto aos estudantes.

A segunda relaciona-se a uma tendência que se verifica em todos os manuais estudados

nesta dissertação, ou seja a ausência de maiores informações e reflexões sobre os núcleos

urbanos na Alta Idade Média. As informações existentes relacionam-se em linhas gerais à

diminuição do tamanho das cidades em função da desagregação do Império Romano do

Ocidente, concomitantemente ao processo de ruralização que teve como corolário o processo

de feudalização. Assim, embora os manuais defendam a idéia de que a vida citadina e o

comércio não desapareceram, há poucas informações sobre a continuidade da vida econômica e

ainda menos, sobre o cotidiano e a cultura. Reside aí igualmente um aspecto relevante: os

manuais escritos nas décadas de 1980 e 1990 não vinculam sistematicamente a emergência de

manifestações culturais e educacionais, como as universidades com o processo de expansão

urbana das cidades. Portanto, vale a pena, mais uma vez, destacar a importância dos

paradidáticos que podem indicar novos caminhos para novas representações da cidade

medieval ocidental nos manuais brasileiros. Há de se acrescentar que os manuais estudados

267

nesta dissertação comparam de forma sucinta e precária a situação das cidades na Alta Idade

Média, com o vigor comercial e urbano de Constantinopla.

Cabe, por derradeiro afirmar que, se de uma maneira geral, o mito historiográfico que

associa a Idade Média com “idade das trevas” encontra-se bastante questionado entre os

professores e os estudantes, ainda há muito o que fazer para a valorização da Idade Média em

nossas escolas do ensino médio. Um dos novos desafios para os autores dos livros didáticos é o

direcionamento do foco de estudos em direção ao exame das cidades medievais, tanto na Alta

idade Média, quanto na Baixa Idade Média. Assim, o mundo medieval para os professores e

estudantes do ensino médio adquirirá, cada vez mais, sentido e poderá igualmente ser muito

útil para a compreensão do nosso mundo.

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