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AS REPRESENTAÇÕES DO AUTOMÓVEL NO HUMOR GRÁFICO BRASILEIRO DO INÍCIO DO SÉCULO XX
Marilda Lopes Pinheiro Queluz – UTFPR
Luciana Vicente da Silva – UTFPR - Bolsista do CNPq - Brasil Tamiris Cequinel Belli – UTFPR
Esse trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla sobre as representações da
tecnologia no humor gráfico brasileiro do início do século XX. O objetivo aqui é analisar as
charges ligadas à mobilidade urbana, especificamente no caso do automóvel. O levantamento
de caricaturas e charges foi feito acervos físicos como a Casa da Memória de Curitiba, a
Biblioteca Pública do Paraná, o Museu Paranaense. As análises possuem um caráter
interdisciplinar, considerando o conteúdo narrativo, a linguagem e o contexto histórico como
uma unidade expressiva e dialógica, alinhavada na materialidade do desenho, na organização
da forma e entre os vários níveis do texto. Com base em elementos da semiótica visual,
observou-se a linguagem plástica, a linguagem verbal e a linguagem icônica (JOLY, 1996).
A imagem aqui é pensada como cultura material, envolvendo as relações estabelecidas
entre as pessoas e os artefatos, nas esferas da produção, circulação, consumo e usos. Entende-
se tecnologia como um processo forjado nas relações entre as pessoas e os artefatos, que
envolve dimensões sociais, políticas, culturais e econômicas, constituídas historicamente.
Implica estudar o modo como a sociedade se organiza para produzir, consumir, usar, imaginar
e representar a tecnologia, ou os artefatos tecnológicos, como o automóvel, por exemplo.
As representações do automóvel propõem verdadeiras narrativas tecnológicas, no
sentido apontado por David Nye:
Tecnologias são parte de um diálogo entre seres humanos sobre suas diferentes percepções. Este diálogo toma a forma de narrativas, diferentes histórias que contamos um ao outro para dar sentido às transformações que acompanham a adoção de novas máquinas (...) Qualquer que seja a forma narrativa, as máquinas são raramente entendidas pelo público como coisas em si, puramente abstratas. Ao contrário, as tecnologias funcionam como partes centrais dos dramáticos eventos. (NYE, 1998, p.3):
Estas narrativas tecnológicas constituem e são constituídas pelo imaginário social do
período, rearticulando, simbolicamente, as mudanças sociais e urbanas, bem como as
mudanças na linguagem visual do período.
A caricatura e a charge, aliadas ao desenvolvimento da imprensa, numa incipiente
indústria cultural, especialmente a partir do final do século XIX, assumem o papel de
tradução do cotidiano e das notícias diárias, pelo viés da ironia e da ambiguidade.
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As charges redimensionaram o olhar sobre a cidade, movendo o enfoque do progresso e da modernização para os usos do espaço público, para as relações dos usuários com o mobiliário urbano, para a interação com as novas tecnologias e aparatos técnicos. O medo e o encantamento pelas máquinas, a reapropriação dos artefatos e dos espaços, as interações culturais articularam uma permanente negociação de significados e uma ressemantização da experiência urbana. (...) interceptaram os discursos mais diversos – o higienismo, a disciplinarização dos indivíduos, o esquadrinhamento do espaço, as campanhas publicitárias, etc – transformados pelas práticas cotidianas. (QUELUZ, 2002, p.167)
Para Diana Donald (1996), é possível pensar as caricaturas como artefatos complexos
que dão visibilidade às contradições das práticas culturais de uma dada época, não apenas
como reflexo do social, mas ajudando a constituir e divulgar essa visibilidade.
A República investiu numa modernização conservadora, pautada nas reformas urbanas
e nas inovações técnicas. Ferrovias, telégrafos, telefones, gramofones, luz elétrica,
saneamento, bondes elétricos, cinematógrafos, litografia, zincografia, fotografia, Exposições
Universais, automóveis, provocavam curiosidade e desconfiança na população. O medo e o
encantamento pelas máquinas, a reapropriação dos artefatos e dos espaços instauraram uma
permanente negociação de significados da experiência urbana, das novas percepções do
espaço e do tempo, no ritmo das fábricas.
Reavivando expectativas individuais de destinos futuros, as cidades brasileiras viveram, portanto, certamente em ritmos e circunstâncias desiguais, nas primeiras décadas deste século, uma experiência coletiva de encurtamento de duração que ampliou de forma redobrada a mobilidade, o consumo e o intercâmbio pessoal, forjando possibilidades ou tornando mais difusas as fronteiras do público e do privado. (SALIBA, 1998, p.328-329)
Percorrer os novos trajetos na cidade, “com todos os seus estados híbridos e
transitórios”, a convivência nem sempre tranquila entre velhos e novos hábitos, os embates
entre tradição e inovação, acabam por desencadear “respostas diversas, paixões contraditórias,
pinturas matizadas.” Imbricam-se sensações de “histeria, loucura, tédio, medo, assombro,
repulsa, encantamento” numa “escala múltipla de representações”. Estas formam “elos
mediadores, correspondências histórico-culturais entre técnica e sociedade, entre progresso
material e estados de espírito, entre o estado de coisas e as maneiras de apreendê-las.”
(HARDMAN, p. 35)
As caricaturas permitem repensar algumas dessas práticas de “criação, inserção,
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apropriação e transformação” das inovações técnicas, demonstrando novas dimensões de usos
estabelecidos no cotidiano, trazendo a ideia de tecnologia enquanto uma “experiência vivida”
(QUELUZ, p.26)
Nos debates sobre novas tecnologias apresenta-se uma encruzilhada: por um lado, a
ode à máquina, o fascínio acrítico aos progressos técnicos e, por outro, o fim de toda a
criatividade humana, a desumanização, o pessimismo e o pavor do impacto das inovações e
das consequências que ela pode trazer. São duas faces do determinismo tecnológico, ambas
apagando a agência humana e as construções sócio-culturais que as fundamentam. É
necessário reconhecer que “as máquinas, assim como os sistemas tecnológicos são
socialmente construídos”, interferindo e sofrendo interferência dos diversos grupos sociais
que interagem nas práticas cotidianas e usos dos mesmos. O termo “impacto” seria inexato, na
medida em que os sistemas tecnológicos “são extensões da vida humana: alguém faz seus
componentes, alguém os comercializa, alguns se opõem a eles, muitos os usam, e todos os
interpretam”. Os seres humanos é que dão “forma e significado” às máquinas. (NYE, 1998,
p.5)
Além disso:
Objetos, tecnologias, ainda sistemas tecnológicos – estradas de ferro e pontes, luzes elétricas, e motores - carregam, como resultado dessa complexidade e sutileza, muitos níveis de significado cultural …esses significados podem às vezes ser mais potentes para as pessoas do que as funções sociais e econômicas para as quais esses objetos, tecnologias e sistemas tecnológicos foram projetados. (COWAN, p. 218)
As diferentes formas de envolvimento com a tecnologia combinam-se com as
experiências presentes na cultura. As charges invertem a perspectiva hegemônica dos
discursos oficiais, estabelecendo cortes e rupturas, descobrindo novas faces da experiência
urbana, inventando o cotidiano. Constituem não um quadro único, mas pluralista, conjugando
fragmentação e integração. Questionam o cotidiano, convidando o leitor a se ver neste
universo. A cidade altera-se nos ritmos, na sonoridade, nos cheiros, visualmente,
reconstruindo-se a cada momento em pontos de vista múltiplos, em fragmentos.
As imagens trazem a complexa tentativa de compreender as diferentes relações e as mudanças advindas da introdução de novas técnicas e modos de vida assim como revelam como os mitos da modernidade e da cidade moderna são reelaborados na experiência cotidiana de diferentes grupos da sociedade. (SEVCENKO, p. 523).
Entre a admiração e o receio, convivia a suspeita de que os antigos problemas ainda
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conviviam com os “milagres” do progresso e de que as novas invenções não eram suficientes
para transformar a política ou a condição social. Entre a sedução e a frustração desenhavam-se
novas possibilidades de transporte e comunicação, anunciando o século XX como o século da
modernidade, da República e da construção da cidadania. As charges mostram a importância
que o “mobiliário urbano”, os objetos/artefatos, começam a ter para a população, a partir de
seus usos, interferências, ou seja, do ponto de vista das interações/mediações.
Sair de casa e movimentar-se na cidade exigia, agora, uma atenção redobrada, uma
nova disposição corporal, uma reeducação dos sentidos e gestos. Os novos meios de
transporte implicavam novos hábitos, a quebra da rotina local, a descoberta dos novos traços
urbanos, viabilizando passeios mais distantes, criando novas formas de contato e de
sociabilidade, ampliando os laços comunitários, ensinando a ver em movimento, rearticulando
as paisagens, unindo pontos estratégicos. Eram um “textos móveis” que ensinavam a reler a
cidade. (NYE, 1990, p.104)
Guillermo Giucci (2004, p.11) considera a ascensão da “automobilidade” entre 1900 e
1940, como um momento decisivo da “modernidade cinética”. “É a época da Segunda
Revolução Industrial, quando os motores elétricos e de combustão substituem em grande
parte a energia muscular humana e animal” (GIUCCI, 2004, p.11)
Henrique Santos Dumont, o irmão do inventor da aviação, foi o dono do primeiro
carro que chegou ao Brasil, e desfilou pelo centro de São Paulo, em 1893. “Oficialmente, o
primeiro acidente de carro no Brasil ocorreu em 1897 na estrada velha da Tijuca, Rio de
Janeiro. Era Olavo Bilac que se chocava contra uma árvore com o automóvel de José do
Patrocínio.” (LUDD, 2005, p. 16). A primeira placa é de 1903, pertencente ao industrial
Francisco Matarazzo. Em 1919, Henry Ford abriu uma montadora em São Paulo,
popularizando o Modelo T.
O sistema tecnológico automotriz serviu para ilustrar a tese de que a tecnologia exercia uma grande influência na mudança social. A lista de efeitos sociais realmente impressiona. Sobre a distribuição da população, os negócios, a indústria, o governo, a saúde, a morte, a família, o ócio, a sexualidade, a moral, a vida urbana e rural, os valores, a educação, a moradia, a linguagem, a percepção do tempo e do espaço. (GIUCCI, 2004, 12)
Mas os resultados, as condições de interação com os artefatos não são homogêneas,
dadas as diferentes vivências históricas e as diferentes lógicas culturais. No Brasil, a
representação do automóvel “assume uma particularidade, ora metafórica, ora de rejeição
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moralista, mas sempre paródica” (SALIBA, 1998, p.333)
Este artefato tecnológico da modernidade e da mobilidade, desenvolvido “nos
prestigiosos países do Norte” trazia envolta em sua funcionalidade uma “aura mítica” e
misturava-se às tradições escravistas de poderes assimétricos:
(...) instantaneamente se tornou símbolo de poder e instrumento de terror. Ademais, os carros começaram a fluir para cá antes que existisse uma estrutura viária, sinalização ou códigos de trânsito, gerando uma situação calamitosa, agravada pelo fato de que atropelamentos, mesmo seguidos das mortes das vítimas, eram apenas passíveis de uma multa pecuniária de valor ínfimo para os infratores. Era o convite para o terrorismo automotor que veio para ficar, acrescentando tonalidades mecânicas aos sistemas de privilégios e opressão típicos da sociedade brasileira.” (SEVCENKO, 1998, p.558)
As representações do automóvel lidavam com a ambivalência entre o símbolo do
progresso e o de criminalidade. Os carros foram chamados de máquinas mortíferas em
inúmeras charges e na figura do chofer convergiam as dúvidas e receios da população ante as
mudanças da cidade. Se os condutores de bondes já eram tidos com desconfiança, o motorista
do carro era visto como um verdadeiro criminoso, cujo poder estava no saber conduzir e
compreender a grande arma da modernidade. Apresentava-se a profissão e o uso do novo
transporte como uma ameaça pública. (Figura 1)
“Os nossos chauffeurs” Comissário: - Qual é sua profissão?
Chauffeur (distraído): Assassino. Comissário: - Assassino?
Chauffeur (caindo em si) – Quero dizer chauffeur. Figura 1 - Felix - A Bomba Ano I n.7 - 10.08.1913
Na figura 2, observa-se o carro como parte da paisagem, associado à saída dos teatros
e cinematógrafos, aos passeios, à moda. O casal em primeiro plano, caracterizado na
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elegância dos trajes e do andar, revela as marcas de distinção social imbuídas no uso dos
automóveis.
“O subterfúgio do prompto”
- Então estás disposto a me levar ao Portão de automóvel? - Estou prompto mas aquele chauffeur já matou cinco pessoas e esborrachou três automóveis...
Figura 2 - Helio Scotti - A Bomba Ano I n.8 – 08.1913
Por outro lado, embora a profissão de chofer represente um novo domínio do saber
técnico e o coloque “em uma situação claramente superior ao mero empregado”, reafirmava o
prestígio e o status do patrão, dono do automóvel (figura 3). A presença do cãozinho, o gesto
submisso do chofer, e a cabeça erguida do burguês, mostram graficamente as hierarquias
sociais.
Figura 3 - O Itibere Ano II n.- 6 ago.1920
De modo irônico e pessimista, ressaltando os danos físicos e materiais, as figuras
seguintes, atrelam o carro ao destino das pessoas, à transformação e depredação das ruas e
cidades, às surpresas advindas a cada esquina, cada cruzamento, num humor sarcástico e
muitas vezes moralista, como no da punição do chofer (figura 7)
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– “Santo Remédio”
- Como vai seu pai? Sempre paralítico? - Não senhor.
- Ah! Já sarou... - Sim senhor, um automóvel cortou-lhe as pernas. Figura 4 - Felix - A Bomba Ano I n.4 10.07.1913
“Depois do desastre...
- O auto do Macedo não vale agora nem 500 mil réis - E o poste dos bondes nem 500 réis...”
Figura 5 -A Bomba Ano I n5 20.07.1913
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O míope – Diga-me uma coisa Tiburcio, aquilo que apareceu lá na esquina é automóvel?
Figura 6 - Olavio - A Rua Ano II n18 - 18.07.1913
-Prenderam o chofer?
- Sim, está preso. É esse que aí está entalado. Figura 7 - O Itibere AnoVI n.64 - ago.1924
Até mesmo os anúncios de automóveis, nas revistas de humor, traziam certa
ambiguidade no deslumbramento com o artefato (figura 8). A velocidade, neste caso, era vista
como uma vantagem e uma desvantagem. A presença do casal idoso cria o contraponto do
passo lento, surpreendido pelos efeitos de fumaça, pela velocidade e pelo som da buzina.
Pelos trajes e posturas, evidencia-se no público alvo da propaganda o apego das elites aos
símbolos de modernização.
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Figura 8 - HERÔNIO – O Olho da Rua n. 3
A contemplação do novo, por gerações distintas, mescla a curiosidade, a tentativa de
entender como o funcionamento técnico e o receio da máquina (figura 9)
Figura 9 - A Bomba n. 16, 10/11/1913.
- O automóvel anda mais depressa que o bonde...mas onde fica o burro, papai? - Burro é quem fica na frente do automóvel...
Na comparação do bonde com o carro, define-se o espaço do povo, a divisão entre os
que são espertos para apreender as implicações das novas tecnologias, e os que são burros,
incapazes e excluídos dos benefícios do progresso. Pai e filho ficam perplexos com o tempo
instaurado nos modernos meios de locomoção (trens, bondes com tração elétrica, automóveis)
porque estes,
de certo modo, ofereciam o espetáculo de superação de distâncias, antes aparentemente enormes, graças ao movimento mecânico. E, também, de um controle possível sobre o tempo, que parecia possível alargar ou comprimir, de acordo com o uso ou não de tais maquinismos. (SUSSEKIND, p. 49)
Justapõem-se nesta charge diferentes temporalidades: o tempo do ritmo lento dos
bondes puxados por burros e o tempo da modernidade, regido pelo ritmo veloz do carro. A
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comparação entre as novas gerações de máquinas está presente não apenas no diálogo, mas na
própria presença de pai e filho e no paralelismo das diagonais: é possível ver que a linha que
une o chapéu do pai, o cabo do guarda-chuva e o chapéu do garoto, é paralela à linha do
volante e à linha inclinada da frente do carro. Também paralela é a linha onde se encontram os
personagens em relação à linha da rua por onde segue o carro.
As andanças pela cidade tomam novos contornos e as opções de deslocamento são
questionadas, como na sutil ironia ao desnecessário aprendizado do caminhar (figura 10). As
diferenças entre saberes necessários ou não são atravessadas também pelas diferenças de
classe
Figura 10 - A Rua Ano II n.15 23.05.1913
Ao mostrar os “benefícios do automóvel” (Figura 11), as mudanças de ritmos são
tratadas nos traços do desenho e na cor, nos limites entre natureza e técnica. As construções
são retas, traços, esboços. A natureza é curva e tem cores vivas. A elegância e o charme da
modernidade art nouveau contrapõem-se ao fundo da construção neoclássica. Os trajes da
moda, as curvas sensuais, justapõem a mudança constante sobre a tradição. O diálogo em
torno da relação amor e morte remete à presença do carro na vida das pessoas, seduzindo,
conduzindo. Conta-se a vida através do carro. Instauram-se tempos distintos que convivem,
interagem (tempo da moda, do carro, da vida, das construções). A imagem do automóvel é
construída pela sua ausência, como “os primitivos espetáculos de fantasmagoria” em
“manifestações fugazes, que desaparecem na velocidade dos novos meios de transporte, na
mudança célere da paisagem industrial (...)”. (HARDMAN, 1988, p. 29-30).
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Figura 11 - Hélio Scotti. “Os benefícios do automóvel” – A Bomba n. 18 – 30/11/1913
- Foi num passeio de automóvel que vi pela primeira vez meu defunto marido. Foi também num automóvel que ele me pediu em casamento e eu lhe dei o sim...Foi ainda um automóvel...
- Que os conduziu à igreja? - Não, que matou meu marido.
O automóvel provocou novas situações de sociabilidade, novos desejos e
comportamentos. “A modernidade cinética invade as palavras, que devem aceitar o imperativo
do movimento. Desde o início do século XX há a exigência de uma nova terminologia que
acompanhe as profundas transformações tecnológicas.” (GIUCCI, 2004, p. 65) O próprio
funcionamento e os princípios tecnológicos desta máquina foram apropriados nos diálogos
amorosos. “Explosão, radiador, combustão interna, amores volantes – o automóvel fornece
palavras-talismãs para enquadrar o íntimo e o individual”. (SALIBA, 1998, p.334)
A cultura material também pode ser percebida nas relações sentimentais, nos jogos de
sedução, nas ambições sociais, na constituição das identidades de gênero.
O automóvel é um emblema de poder e força, indispensável para atrair as mulheres. O carro permite multiplicar as oportunidades de contato, convívio e desfrute da companhia feminina. O carro é ele mesmo uma mulher, digno de conhecimento íntimo, zelos, atavios, carinho e amor. Daí a volúpia de ter e dirigir vários carros, de cobiçar o alheio e de trocá-los tão frequentemente quanto possível. A publicidade desde cedo se aperceberia desse potencial erótico associado aos automóveis e passaria a explorá-lo em extremo. (SEVCENKO, 1998, p. 559
Em “Os milagres do automóvel” (figura 12) mostra-se, pela irreverência, a influência
do automóvel no julgamento de um bom partido para uma filha. No julgamento do futuro
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genro, o prazer de andar de automóvel alia-se à imagem de status e poder econômico.
“Os milagres do automóvel”
- Tua mãe é que é o diabo, minha flor, não simpatiza comigo... como há de deixar que nos casemos? - O Sr. nos convida para passear de automóvel que ela deixa.
Figura 12 - Felix - A Bomba Ano I n.6 - 30.07.1913
O automóvel é metonimicamente representado em “Toques de buzina” (Figura 13),
caracterizado como uma sonoridade que interfere nas rotinas, nos percursos pela cidade,
destacando os efeitos sinestésicos da modernização. O automóvel está presente no diálogo,
nos sentimentos apreensivos, mais do que nas ruas. A própria buzina é uma novidade ainda
difícil de reconhecer. É um artefato que faz parte do carro e leva a novos modos de ação. Os
espaços são demarcados – rua, calçada, árvores podadas, controle dos transeuntes. A
associação entre toques de corneta e de buzina nos fala de reflexos, ações, ordens a serem
cumpridas (correr/recolher ao quartel, à calçada). Mas a desordem, a resistência aos novos
hábitos está na conversa no meio da rua, no fundo de árvores com mais destaque que a própria
rua.
Figura 13 - H.S. “Os toques de buzina” – A Bomba n. 13 – 10/10/1913
- Ouvi tocar a recolher e corri imediatamente ao quartel. - E chegaste a tempo?
- Não, não era corneta...era um automóvel. As charges sobre os automóveis são uma face importante para as concepções sobre
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tecnologia, rearticulando, simbolicamente, as mudanças sociais e urbanas, os
comportamentos, além das mudanças na linguagem visual do período. Resgatar essa cultura
visual pode contribuir para compreender as relações entre as pessoas e os artefatos, ampliando
os olhares sobre os modos como a sociedade se organizou para produzir, consumir, usar,
descrever e imaginar a tecnologia. As representações das experiências urbanas e dos usos do
automóvel são construídas como paródias da vida diária. Contudo, como insiste Giucci (2004,
p. 228), “Mais que uma modalidade parasitária e derivativa, inimiga da criatividade e da
originalidade vital, a paródia reorganiza esteticamente o passado e recria a tradição a partir do
presente.”
As ruas da cidade deixaram de ser apenas palcos ou molduras das práticas sociais, mas
converteram-se em personagens principais, colocando em xeque as contradições do
crescimento dos centros urbanos. Na figura 14, entrecruzam-se os olhares, as atenções, as
atuações de pedestres e motoristas, o caminhar sensual, a atitude de voyeur, a moda, os
objetos de desejo e de consumo, nas fronteiras cotidianas das apropriações dos espaços e das
negociações de significados.
“Perigo das Ruas”
- Deixa passar este perigo - Qual dos dois?
Figura 14 - Osmario Branco - O Itibere Ano IV n.42 - out.1922
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