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1 AS ROSAS SECAS DO CASARÃO CLAUDIA SALOMÃO 1 São Paulo. Uma manhã ensolarada da primavera. O céu azul faz às vezes da alegria que não sentimos, das histórias que não vivemos. Uma pomba atravessa a rua, alguns pássaros se divertem na amoreira que eu vejo da janela do meu apartamento, três cômodos em uma rua esquecida no bairro da Pompéia, zona oeste da capital. Debruçada no parapeito da janela eu vejo as venezianas vermelhas da casa em frente ao prédio. Uma mulher sempre se despede de um homem por trás daquelas venezianas, penso eu. E as flores continuam coloridas. De repente somos todos anônimos acorrentados uns aos outros por nossos olhares. É melhor acreditar que somos feitos de vento e relâmpagos de alta voltagem. Acendo um cigarro. O disco da Fiona Apple toca com defeito na terceira música. Vestida apenas com uma cacinha florida e uma camiseta branca. Observo minhas coxas brancas que não me convencem mais, ainda que me atreva a um vestidinho preto todo colado em noites escuras. Uma pequena roseira de botões amarelos espalha ilusão pelos cantos da parede, dançando nas sombras ofuscadas pelos raios de sol. - Bom dia, menina! Dizem que nada é mais triste do que a perda de um grande amor. Como assim, perda? Ele morreu ou atravessou a rua sem olhar para trás? Desceu a Rua Augusta e se perdeu na multidão de engravatados ou fugiu de balão para a Escócia? O metrô partiu ou um avião caiu? Não sei se está na moda prender os cabelos com laços de fitas de cetim, mas me olhando no espelho até que pareço bonita. Preciso trabalhar, preciso de afeto. Confiro as horas no relógio, um sapinho de plástico. Faltam quinze minutos para as oito horas da manhã. Acho que não dá tempo de tomar um banho. Mas nada me custa passar um batom vermelho e botar uma saia comprida, e minhas sandálias rasteiras. O micro-ondas me avisa que a água do café já ferveu. Bem que eu queria ter uma máquina de café expresso, mas misturo uma colher de Nescafé com algumas gotas de adoçante. Ligo a televisão e assisto alguns minutos do noticiário matutino, que contabiliza os mortos da madrugada. Não são apenas números, são almas no purgatório, algumas virando abelhas, outras virando ratos. Outras reencarnadas por Allan Kardec. Ah... Menina loira dos países bálticos... Será poeta também? Desligo a televisão e pego a minha bolsa. Conto os trocados para o ônibus e deixo o meu apartamento. A fatura do cartão de crédito enfiada por debaixo da porta e dois lances de escada. O eco do miado desesperado do gatinho da vizinha. Será uma dorzinha na barriga de fome ou manha mesmo. Na rua as pessoas passeiam com seus cachorros ou compram um jornal. Na padaria todos comem seu pãozinho com manteiga e tomam um copo de café com leite. Caminho tranquila até o ponto de ônibus, onde três pessoas se distraem com os aplicativos dos seus celulares enquanto esperam o ônibus, que aparece depois de uns cinco minutos. Quase vazio durante todo o trajeto até a Avenida Paulista, eu me distraia com a possibilidade de existência de tantos pobres paulistanos. Quem saberá de nós, a não ser quem nos faz chorar durante a madrugada? Existirá um mesmo beijo na lembrança de tantas pessoas, ou tudo o que é perecível? Desço do ônibus e desço a Alameda Ministro Rocha Azevedo, onde fica o escritório

AS ROSAS SECAS DO CASARÃOde crédito enfiada por debaixo da porta e dois lances de escada. O eco do miado desesperado do gatinho da vizinha. Será uma dorzinha na barriga de fome

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AS ROSAS SECAS DO CASARÃO

CLAUDIA SALOMÃO

1

São Paulo. Uma manhã ensolarada da primavera. O céu azul faz às vezes da alegria que

não sentimos, das histórias que não vivemos. Uma pomba atravessa a rua, alguns pássaros se

divertem na amoreira que eu vejo da janela do meu apartamento, três cômodos em uma rua

esquecida no bairro da Pompéia, zona oeste da capital. Debruçada no parapeito da janela eu

vejo as venezianas vermelhas da casa em frente ao prédio. Uma mulher sempre se despede de

um homem por trás daquelas venezianas, penso eu. E as flores continuam coloridas. De

repente somos todos anônimos acorrentados uns aos outros por nossos olhares. É melhor

acreditar que somos feitos de vento e relâmpagos de alta voltagem. Acendo um cigarro. O

disco da Fiona Apple toca com defeito na terceira música. Vestida apenas com uma cacinha

florida e uma camiseta branca. Observo minhas coxas brancas que não me convencem mais,

ainda que me atreva a um vestidinho preto todo colado em noites escuras. Uma pequena

roseira de botões amarelos espalha ilusão pelos cantos da parede, dançando nas sombras

ofuscadas pelos raios de sol.

- Bom dia, menina!

Dizem que nada é mais triste do que a perda de um grande amor. Como assim, perda?

Ele morreu ou atravessou a rua sem olhar para trás? Desceu a Rua Augusta e se perdeu na

multidão de engravatados ou fugiu de balão para a Escócia? O metrô partiu ou um avião caiu?

Não sei se está na moda prender os cabelos com laços de fitas de cetim, mas me olhando no

espelho até que pareço bonita. Preciso trabalhar, preciso de afeto. Confiro as horas no relógio,

um sapinho de plástico. Faltam quinze minutos para as oito horas da manhã. Acho que não dá

tempo de tomar um banho. Mas nada me custa passar um batom vermelho e botar uma saia

comprida, e minhas sandálias rasteiras. O micro-ondas me avisa que a água do café já ferveu.

Bem que eu queria ter uma máquina de café expresso, mas misturo uma colher de Nescafé

com algumas gotas de adoçante. Ligo a televisão e assisto alguns minutos do noticiário

matutino, que contabiliza os mortos da madrugada. Não são apenas números, são almas no

purgatório, algumas virando abelhas, outras virando ratos. Outras reencarnadas por Allan

Kardec. Ah... Menina loira dos países bálticos... Será poeta também? Desligo a televisão e pego

a minha bolsa. Conto os trocados para o ônibus e deixo o meu apartamento. A fatura do cartão

de crédito enfiada por debaixo da porta e dois lances de escada. O eco do miado desesperado

do gatinho da vizinha. Será uma dorzinha na barriga de fome ou manha mesmo. Na rua as

pessoas passeiam com seus cachorros ou compram um jornal. Na padaria todos comem seu

pãozinho com manteiga e tomam um copo de café com leite. Caminho tranquila até o ponto

de ônibus, onde três pessoas se distraem com os aplicativos dos seus celulares enquanto

esperam o ônibus, que aparece depois de uns cinco minutos. Quase vazio durante todo o

trajeto até a Avenida Paulista, eu me distraia com a possibilidade de existência de tantos

pobres paulistanos. Quem saberá de nós, a não ser quem nos faz chorar durante a

madrugada? Existirá um mesmo beijo na lembrança de tantas pessoas, ou tudo o que é

perecível? Desço do ônibus e desço a Alameda Ministro Rocha Azevedo, onde fica o escritório

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de arquitetura em que trabalho, no sexto andar de um prédio antigo, de grandes janelas na

fachada.

- Bom dia, Rodolfo...

- Oi, moça... Como está?

- Segunda-feira é sempre bom.

O elevador sobe direitinho, embora eu sempre sinta um calafrio na espinha. Atravesso

a porta de vidro, bom dia para todos... Gosto desse menino que se senta ao meu lado, o

estagiário novo. Ele tem os olhos tão azuis que chega a ser constrangedor encará-lo por mais

de dez segundos.

- Rebeca!

Os olhos saltados do meu chefe, um velhinho simpático que usa boinas na cabeça, e

que no final do expediente sempre fuma um charuto.

- O que foi, Dr. Mendes?

- Fechei o projeto de reforma de uma casa na Vila Madalena. A casa é velha, não temos

as plantas. Pode convocar o Marcelo para te ajudar no levantamento. Façam isso hoje a tarde,

aqui está o endereço e a chave da casa.

Olhei para os olhos azuis de Marcelo:

- Deve ser mal-assombrada.

- Mas você é acostumada à fantasminhas, não é?

- Que ofensa, Marcelo. Você devia era se curar dessa paixão platônica que sente por

mim.

- Ah, Rebeca... Você sabe que isso é impossível.

- Quando você nasceu, as minhas bonecas já estavam todas criadas.

- Preconceituosa...

Rimos. Liguei o computador e chequei os meus e-mails. Nenhuma mensagem de um

eventual admirador anônimo. Ou algum pedido de perdão. Ai, que chata é a vida nesse início

de século XXI. Nada mais passa pelos correios, ou vem amarrado num buquê de flores. Depois

iniciei o Autocad e fui cuidar da minha vida. Ou melhor, de uns sanitários de um restaurante

em Higienópolis. Sabia que o cliente quer tudo branco? Até o papel higiênico, acredita?

- Vai almoçar onde, hoje, Rebeca?

- No mesmo lugar de sempre.

- Sabia que abriram um restaurante indiano no final do quarteirão?

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- E estagiário lá tem dinheiro para pagar a conta de um restaurante indiano?

- Você sabe que eu sou rico, Rebeca.

- Qual a graça de trabalhar quando se é rico?

- Imagina eu numa balada, com a menina mais gata... Ela me pergunta o que eu faço

da vida. Aí eu digo: Nada, sou rico. Ou seja, perco a gata. Mas se digo que trabalho num

escritório de arquitetura...

- Boa sacada.

- Sou bem esperto.

- Mas, voltando ao assunto... Quer pagar um almoço para mim no restaurante indiano?

Não me importo se você é rico ou estagiário de arquitetura.

- Demorou...

O restaurante novinho em folha era muito charmoso. Todo decorado com artefatos

indianos, desde as luminárias até as paredes revestidas por tecidos lindos.

- Qual é a especialidade da casa?

- Sei lá... Carneiro com curry.

- Não como carneiro...

- É igual bode.

- Que nojo, Marcelo.

- Não, Rebeca... O mundo é que é hipócrita.

- Marcelo... Você é gay?

- Vai postar no seu Facebook que está num restaurante indiano com o seu melhor

amigo gay?

- Sabe que é uma boa ideia.

- Sabe que ele não te adicionou à lista de amigos?

- Não somos apenas amigos, somos almas gêmeas...

- Que lindo... Tão ultrapassado...

- Como ultrapassado, Marcelo? O mundo está para acabar... É importante que todas as

almas gêmeas estejam sintonizadas umas com as outras...

- Posso pedir o carneiro?

- Você não é nada romântico, Marcelo...

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- Sou prático, apenas... Quer uma taça de vinho?

O carneiro estava realmente delicioso, e depois de duas taças de vinho em pleno

horário de almoço de uma trivial segunda-feira, juro que já estava achando que o mundo tinha

jeito.

- Quer voltar lá para o escritório para pegar alguma coisa antes de irmos?

- Assim meio bêbada, Marcelo? Não... Eu já peguei tudo. Papel, caneta e trena.

- Então vamos.

- Bonito o seu carro, hein?

- Você sabe que eu sou rico.

- Você já foi à Miami?

- Fazer o que em Miami? Comprar uma I-Pad de última geração?

- Conhecer o Mickey Mouse, Marcelo...

- Que cara é essa, Rebeca?

- Todas as minhas amigas já foram para Miami.

- Não, eu nunca fui para Miami. Mas fiz seis meses de um curso de inglês em Olympia,

uma cidadezinha perto de Seattle.

- E o que você fazia lá em Olympia?

- Tem dois reais aí?

- Pra quê?

- Para ajudar aquele mendigo.

- Ele não é um mendigo. É um artista de rua.

- Se acha que para ele isso faz alguma diferença?

- Claro que sim. Onde fica a dignidade?

- Dignidade é uma coisa que a gente carrega no olhar, depende para que lado você

olha.

- Bonito isso...

- Qual o nome da rua?

- Rua Isabel de Castela.

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- Que casa velha.

- O Dr. Mendes me disse que compraram por uma pechincha.

- Será que eles sabiam que no pacote vinham morcegos?

- Não existem morcegos em São Paulo, minha amiga.

- Logo que existe. Dizem que existem até elefantes...

- Vamos, entre... E sinta-se à vontade.

O cheiro de madeira velha e pó quente subiram pelas minhas narinas. Acho que

daquela casa não se aproveitaria nem as paredes grossas, cheias de rachaduras. Comecei a

passar mal, e pedi à Marcelo que abrisse as janelas para entrar um pouco de ar, mas

descobrimos que estavam trancadas à cadeado.

- Não dá para medir nada nessa escuridão.

- Não seja tão pessimista. Os vidros só estão um pouco sujos.

- Tem dois centímetros de pó em tudo...

- Você acha que morreu alguém aqui?

- Talvez...

- Veja... Ainda tem alguns móveis...

- Os que não conseguiram vender para nenhum antiquário...

- E um quadro da Santa-Ceia.

- Os paulistanos são bons cristãos...

- Deixa de ser irônica, Rebeca.

- Vai anotando aí... Quatro metros e setenta e dois centímetros.

- E aquela parede?

- Três metros e cinquenta e oito centímetros.

- Logo a gente termina.

- Não quer dar uma olhada lá em cima?

- Depois... Me ajude a medir a escada.

- Tenho certeza de que essa escada vai ser a primeira coisa a ser demolida.

- Por quê?

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- Olha esse quartinho debaixo dela...

- Não vou entrar aí...

- É o esconderijo perfeito em filmes de terror...

- Para o assassino, você quer dizer...

- Venha... Tem uma coisa aqui.

- Claro que sim, um grande rato morto.

Aproximei-me da entrada do quartinho, e Marcelo estava ajoelhado no chão, tentando

alcançar alguma coisa...

- Cuidado.

- É só uma caixa.

- Deixa eu ver...

Marcelo saiu do quartinho segurando uma pequena caixa de madeira. Quando abriu,

fez uma cara de desapontamento.

- O que tem aí?

- Nada..., -disse, largando a caixa no chão. – Vou dar uma espiada lá em cima.

Ajoelhei-me diante da caixa e a abri. No seu interior havia uma foto em preto e branco

de um menino sorridente, um pião de madeira e uma folha de papel dobrada ao meio. Peguei

a folha de papel, e escrito à caneta, havia as seguintes palavras, que meus olhos leram em

silêncio.

Fantasmas sempre brotam do chão frio de seus passos

Seu sorriso podia fazer tudo acabar, mas você chora...

Lágrimas que sempre ficarão presas entre essas paredes

Molhando suas roupas sujas de sangue

Meu coração ainda quer te encontrar

Para um sentido qualquer para todas as casas vazias do fim da rua.

Esperando que alguém abra a porta

E nos conduza a uma tarde fria de sábado.

Dobrei o pedaço de papel, observei profundamente a fotografia, um menino de seis ou

sete anos de olhos claros. No seu verso estava escrito: Paulinho, 1983. Guardei tudo dentro da

minha bolsa e devolvi a caixa no fundo do quartinho. Depois subi as escadas... Marcelo

percorria os cômodos medindo tudo e fazendo as anotações...

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- Vamos terminar isso logo, - me disse.

- Aqui está bem mais arejado...

- É... Consegui abrir duas janelas...

Depois de uns quarenta minutos nós deixamos a casa...

- Marcelo... Vamos até aquela pracinha para eu poder fumar um cigarro...

- Vamos... Nossa, que calor insuportável...

- Mais tarde deve cair uma tempestade...

Sentamos os dois num banco da pracinha, e eu acendi um cigarro.

- Em que está pensando...

- Na memória que se perde nessa vida...

- Fala das bilhões de pessoas que já morreram?

- Daquelas cujos nomes nunca constaram no Google...

- Não deixaram de viver por isso...

- Por exemplo... Essa mísera pracinha se chama Fioravante Salomão. Quem será que foi

esse homem? Será que alguém ainda se lembra de como ele sorria, das histórias que ele

contava, qual era a sua comida preferida...

- Com certeza tem bisnetos ou tataranetos...

- E quem é que tem a chance de conhecer o seu bisavô?

- Eu conheci um dos meus... Era um velhinho bem legal.

- Na verdade essa vida é bem bizarra...

- Ficou assim agora só porque entramos naquela casa caindo aos pedaços...

- Fico pensando nos jantares que havia naquela casa. Todos reunidos ao redor da

mesa, tomando sopa, contando suas histórias...

- A verdade, Rebeca, é que ninguém conta as suas histórias...

- Só escritores antes de se suicidarem...

- Vamos... Me dê um cigarro.

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O ponto de ônibus estava lotado, como todos os finais de tarde na Avenida Paulista. O

temporal das cinco horas havia feito muito estrago pelas ruas da cidade, o que refletia no

trânsito caótico. Eu observava os paulistanos em seus momentos de trégua, fumando seus

cigarros, ouvindo música pelos fones de ouvido. Existirá um Deus de ouvidos surdos a tantos

pensamentos? Um Deus do silêncio... Ou um Deus que consegue dormir durante a madrugada.

Um Deus que não ouve os gritos de pinguins morrendo. Um Deus que não frequenta

sinagogas, um Deus que nunca fez amor, um Deus que não conhece o inferno... Ou será que

para tanto ele é apenas Deus? O ônibus aparece lotado. Eu fico em pé, segurando no cano de

um banco. É difícil acreditar, não? Que apenas o homem criou esse mundo à sua imagem e

semelhança, com inveja das estrelas assimétricas. Em frente ao Cemitério do Araçá eu observo

as barracas de flores na calçada. Sempre me perguntei se todas aquelas flores eram realmente

vendidas. Rosas, girassóis, lírios... Murchos sobre nossas sepulturas, o mesmo destino de

beleza morta. Faz tempo que não frequento cemitérios... Tenho medo de tanto abandono.

Tenho medo dos meninos que se escondem entre os jazigos para fumar crack. Tenho medo de

ver um punhado de ossos dentro de caixinhas empilhadas. Tenho medo de sentir o vento dos

mortos varrendo as folhas secas do chão. Enfim, tenho medo de achar a morte a nossa última

poesia. Depois de descer do ônibus, o céu ainda claro por causa do horário de verão, caminho

lentamente até a minha casa. Nas ruas, as pessoas politicamente corretas se preparam para

dar o dia por vencido, atirando-se diante da televisão, dando banho nos filhos, preparando a

carne assada, calculando o dinheiro que resta na conta bancária. Eu apenas subo as escadas do

meu prédio e giro a chave na fechadura. Tiro minhas sandálias e piso o chão frio do meu

quarto. Um resto de vinho tinto na geladeira e um desfile de moda no GNT. Acendo um

cigarro, bebo o vinho gelado, sonho com um vestido lindo todo rendado. Nos meus lábios os

beijos que nunca dei, e todos os que desperdicei. Abro a bolsa e pego aquela fotografia

perdida.

- Por onde anda, Paulinho?

Algumas lágrimas escorrem dos meus olhos, misturando o tudo e o nada. Que anjo

feito de desilusões percorre todos os corações? Será uma linha de cobre que une todos os

nossos encontros? Um desconhecido no metrô, o vocalista de uma banda de rock, um menina

que se atirou da ponte no noticiário da TV, uma bailarina com anorexia, um mendigo

atropelado em frente ao Shopping Center, a fotografia de um menino chamado Paulinho... É

isso? A razão sem razão? O acaso? Não pareço triste diante dos meus olhos, mas é sempre a

mesma bruma que envolve os meus sonhos, esforçando-me para encontrar a cor dos seus

olhos em meio a confusão dos meus sentidos. Será que ainda tenho tempo? Levanto-me da

cama, procuro um pacote de macarrão instantâneo. A noite começa a cair... Eu preciso

encontrar alguém, preciso procurar e te encontrar... Como quem inventa nomes para

personagens de um romance e depois descobre pela internet que eles realmente existem, que

moram no subúrbio de Kiev, ou numa cidadezinha ao norte da França. E os escritores riem

porque não estão mais sozinhos, enquanto os leitores ficam procurando em cada frase algo

que reconheçam em suas vidas, para não se sentirem mais sozinhos... A solidão não é ruim, é

apenas um egoísmo de nossos sonhos. Boto um disco do Bob Dylan que comprei na esperança

de algum dia gostar de Bob Dylan, mas a verdade é que não gostei nem um pouco, o que me

faz ter um ataque de riso enquanto tiro a roupa para tomar banho. Acho até que é um

sacrilégio, mas eu já sabia que não ia gostar... Mas verdades se tornam mentiras e mentiras se

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tornam verdade, não nos restando uma coisa nem outra... Ai, estou bêbada... Se um dia eu

subir num palco, todos saberão que eu estou mentindo, que não dá para fazer poesia com a

verdade. E a verdade só é mentira para mim, e para alguns loucos que não tem mais nada a

perder. Pura vaidade, largada no chão do banheiro, depilando as minhas pernas e forjando o

quanto sou desejada. Todos já nos braços de seus próprios erros, distantes da hipocrisia de

suas paixões. Uma camiseta velha, um livro entre as dobras dos lençóis... Um dia ele me falou

para ler um livro, falou que dava para visualizar bem a história, em todos os seus detalhes.

Tantas tragédias em meia dúzia de romances do mesmo escritor e agora não tiro aquelas ruas

da minha cabeça... Nem o casarão abandonado da Vila Madalena. Não me abandone, eu te

suplico...

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Manhã de sábado na capital paulistana... Bom dia, cidade! Quando vocês vão salvar a

Síria? Ouço um barulho infernal no apartamento ao lado, que está teoricamente desocupado.

Acendo um cigarro e preparo uma xícara de café. Ligo a televisão e percebo que os desenhos

animados ensinam as criancinhas a ser subversivas, o que é uma perda de tempo pois,

acabarão gerando criancinhas subversivas antes de completarem quinze anos e deixarão de

ser subversivas, apenas neuróticas. O quê? Visto a primeira roupa que encontro pela frente e

vou dar uma espiada no corredor, para ver o que está acontecendo... Abro a porta e constato

que está bloqueada por uma máquina de lavar roupas.

- O que está acontecendo aqui?

- Mudança, moça...

Um jovem moreno, bem forte, vestindo uma camisa branca, as calças jeans

arregaçadas até os joelhos... Fiquei olhando para ele por uns instantes...

- Prazer, sou o novo vizinho, Bruno.

- Ah... E essa máquina de lavar?

- Precisa sair agora?

- Tenho umas coisas para resolver na rua.

- E qual o seu nome, moça?

- Rebeca, sua nova vizinha.

- Prazer, Rebeca... Depois que ajeitar tudo vou dar uma pequena festa para inaugurar o

meu novo apartamento. Está convidada.

- Obrigada pelo convite, mas...

- Pensa, Rebeca... Pode beber à vontade e em dois passos já está em segurança na sua

cama.

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- Bom... Depois a gente vê isso, mas no momento, precisa tirar essa máquina de lavar

da porta do meu apartamento.

- Pode deixar.

Fechei a porta e voltei para dentro da minha casa, procurando um par de botas pra

calçar. Olhei para a minha roupa e vi que trajava displicentemente um vestido florido, bem

velhinho, mas que me deixava com um ar feliz. Escovei meus longos cabelos e prendi com uma

fivela. Peguei o óculos de sol e a bolsa. Quando abri a porta novamente, a máquina de lavar já

havia desaparecido. Espiei dentro do apartamento e dei um grito:

- Obrigada, Bruno.

Desci as escadas correndo, e segui em direção ao ponto de táxi, onde dois carros

estavam estacionados, enquanto seus motoristas conversavam distraídos.

- Moço?

- Pode entrar, moça.

Entrei no táxi e lhe estendi um pedaço de papel com o endereço.

- É aqui pertinho.

- Tudo bem, eu sei onde é...

O táxi seguia pela Avenida Pompéia, em direção à Vila Madalena. Mas hein? É isso

mesmo, vou voltar lá e bancar a detetive, como nas histórias policiais. Em menos de dez

minutos o táxi já contornava a pracinha e me deixou em frente ao casarão. Aproximei-me de

uma casa ao lado e toquei a campainha... Uma mulher de uns sessenta anos, com os cabelos

envoltos em um lenço apareceu à porta.

- Pois não?

- Bom dia, senhora... Eu sou arquiteta, e estou trabalhando na reforma dessa casa ao

lado e, bem... Será que a senhora podia me dar algumas informações sobre os antigos

moradores? A casa parece estar abandonada há muito tempo...

- Bem... Quer entrar para tomar um café? Acabei de passar...

- Sim, claro.

Um cachorrinho cego de um olho apareceu, pulando nas minhas pernas enquanto eu

entrava na casa.

- Não se preocupe... Ele é inofensivo... E já está bem velhinho...

- Tudo bem...

A mulher me conduziu até o interior de sua casa, e me ofereceu uma cadeira na mesa

da cozinha.

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- Qual o seu nome?

- Rebeca.

- Que bom que vão reformar a casa... Sabe alguma coisa sobre os novos moradores?

- Um casal de advogados sem filhos.

- Bom... Durante anos os únicos moradores dessa casa era uma mulher e o seu neto.

- Sim...

- Ela já devia ter quase noventa anos quando faleceu, há dois anos atrás. O jovem era

bastante recluso, quase não saía de casa, e nos últimos anos desenvolveu alguma espécie de

doença mental... Era um jovem muito bonito, dizia que queria ser escritor, mas acabou

enlouquecendo. A sua avó mal tinha condições de cuidar de si, que dirá do neto... Mas

sobreviviam sozinhos... Quando ela morreu o neto vendeu todas as suas coisas e foi embora

sem deixar pistas... Aí apareceram alguns parentes brigando pela propriedade... Não sei como

acabou essa história, mas pelo visto conseguiram vendê-la. Bom... Acho que não posso mais te

ajudar com nenhuma informação...

- E qual era o nome do jovem?

- Era o Paulinho... Paulo Hierro.

- Ah, sim... Paulo...

- Gostou do café?

- Sim... Estava delicioso.

Deixei a casa daquela senhora e dei uma olhada na fachada caída do casarão. É

impressionante como uma construção parece ter alma, e aquela em particular, parecia ocultar

muita dor. Caminhei à esmo pelas ruas do bairro, fumando um cigarro. Depois peguei um táxi

e voltei para casa. Já passava das duas horas da tarde... Estava morrendo de fome, e cansada,

o calor que fazia era insuportável. Passei no mercado e comprei três latinhas de cerveja e uma

lasanha congelada. O meu vizinho parecia já ter acomodado toda a sua tralha no apartamento,

e o corredor estava em silêncio. Abri a porta de casa, descalcei as minhas botas e me

esparramei na cama, com uma latinha de cerveja. Estava morrendo de vontade de procurar na

internet alguma informação sobre Paulo Hierro, mas me contive. Apenas me deixei saborear a

brisa fresca que invadia o quarto, e me deixar levar pela sonolência alcoólica a que me induzia.

Liguei a televisão e me esqueci nos programas estúpidos daquela tarde, fumando um e outro

cigarro, até que adormeci, depois das três latinhas de cerveja, sem mais nenhuma pretensão.

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Acordei quando a noite já caia, e as luzes e o burburinho dos bares ecoava pelas ruas.

Podia ouvir algumas risadas no apartamento do meu vizinho. A festa! Levantei-me o observei a

minha cara inchada no espelho. Estava toda suada, precisava de um bom banho, ainda

considerando a possibilidade de dar um pulo na tal festa. Liguei o chuveiro e fiquei uns vinte

minutos debaixo da água quase fria. Preciso comprar um sabonete, pensei, ao ver o que

restava todo amolecido. Desliguei o chuveiro e me enrolei na toalha. Liguei o computador e no

Google, digitei o nome Paulo Hierro. Apenas uma ocorrência, com conta no Facebook. Cliquei

no link e a página se dizia removida. Um belo começo... Encontrá-lo seria mais difícil do que

encontrar uma agulha no palheiro. Senti-me profundamente desanimada. Desliguei o

computador e procurei uma roupa para vestir. Passei batom, coloquei um par de brincos, vesti

uma saia vermelha... Debrucei-me no parapeito da janela e acendi um cigarro. Órfãos

anônimos... Quem os encontrará? Não me restava muito a fazer, como o encontraria?

Colocaria um anúncio no jornal? Contrataria um detetive? Não poderia importunar os

compradores do casarão com perguntas inconvenientes. Meu chefe me esganaria se colocasse

o negócio a perder. Bom... O melhor a fazer é aproveitar a festa. Uma garrafa fechada de rum,

é tudo o que eu tinha na despensa, então...

- Boa noite!

- Achei que fosse uma festa só para meninos, mas seja bem vinda...

Confesso que ainda meio constrangida, fui logo procurando o anfitrião...

- Olá, Rebeca... Que bom que veio...

- O seu amigo me disse que era uma festa só para meninos...

- O quê? Não... Ele estava só brincando...

- Mas a verdade é que não estou vendo nenhuma outra menina por aqui...

- Venha, pegue uma cerveja...

O apartamento era bem pequeno, e seis jovens se espremiam entre a cozinha e o sofá

de couro vermelho, outros dois fumando na janela. E adivinhe: No som tocava o disco novo do

Bob Dylan, aquele que eu não havia gostado. Bebi duas cervejas em silêncio, ouvindo as

conversas que vazavam de uma ou outra boca, bastante deslocada.

- E então... Faz o que da vida, Rebeca? – perguntou-me um menino de cabelos

raspados.

- Sou arquiteta. E você?

- Ah... Quase todos nós trabalhamos com eventos...

- Ah, sei... Devem conhecer bastante gente, não?

- Mais ou menos... É um meio um tanto quanto restrito.

- O Bruno também trabalha nisso?

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- Sim... É um dos melhores que conheço. E um grande sujeito, amigo para todas horas.

Esperei uma folguinha na janela e aproveitei para acender um cigarro. Alguém me

ofereceu um copo plástico cheio de vinho.

Aqueles sujeitos eram meio suspeitos. Sussurravam em seus ouvidos, fumavam mais

do que eu, trocavam olhares cúmplices, e devoraram algumas carreiras de cocaína. E eu ficava

cada vez mais enjoada e meio sufocada com aquele cheiro de homem e cigarro mentolado.

- Bruno... Estou meio cansada... Mas, valeu a festa. Obrigado por me convidar...

- O prazer foi meu, vizinha.

Abri a porta do meu apartamento e me atirei na cama. Liguei a televisão e passava um

filme antigo no Telecine Cult. Um mulher perdida numa cidade do Oriente Médio, em meio à

uma revolução. Abracei o meu travesseiro, acreditando no amor cúmplice dos esquecidos e

amaldiçoados. Um último cigarro para se viver em paz.

5

Na reunião com os compradores do casarão, meu chefe discutia as possíveis

modificações da planta baixa, atento às necessidades de seus clientes, enquanto eu anotava

tudo no meu caderno.

- Não precisamos de três quartos em cima. Esse espaço é perfeito para o meu closet. –

dizia a moça de brincos dourados e batom reluzente.

- E precisamos de dois banheiros, pois não abrimos mão de uma suíte.

- E a escada? – perguntou meu chefe. – É uma peça central na área de estar. Que tal

demolirmos tudo e construir uma nova escada em estrutura metálica, com corrimãos de vidro?

- Parece uma boa ideia.

- E vai dar para construir uma sala de ginásticas na área dos fundos?

Carregada de plantas e anotações, voltei para a minha mesa de trabalho. O lápis

deslizava sem rumo sobre os cômodos da planta baixa. Imaginava em que lugar daquela casa

Paulo repousava a sua cabeça em suas noites aterrorizantes... Será a loucura o último estágio

de nosso desligamento desse mundo? Será que as sombras nas paredes somos nós mesmos

aprisionados em outras dimensões?

- Que foi, Rebeca? Desenhando ratinhos no porão do casarão?

- Havia um porão?

- Você não viu? Uma portinha bem na frente da casa.

- Não, não notei...

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- Será que existe algum esqueleto esquecido lá no fundo?

- Credo, Marcelo...

Levantei-me da minha mesa e fui tomar um café na copa do escritório. Enchi a xícara e

me sentei na banquetinha... Olhava a cidade lá fora, distraída. O céu ameaçava uma

tempestade. Não, eu não tinha nenhuma pista. Paulo poderia estar escrevendo poemas em

Madri, ou esquecido em algum sanatório, ou fumando um cigarro na janela de algum

apartamento do centro da cidade. Aaahhh! Logo seria eu quem estaria louca. Depois do

expediente seguia à esmo pela Avenida Paulista. A chuva tão ameaçadora não passou de uns

respingos. Virei na esquina da Rua Augusta e segui em direção ao cinema do Espaço Unibanco.

Entrei no lobby do cinema e me sentei numa mesa do café. Não havia muita gente por lá, uma

e outra pessoa comprando o ingresso para a próxima sessão. Pedi uma dose de licor e um

pedaço de torta de chocolate. Acho esse lugar perfeito para se esquecer de tudo, e sempre me

traz boas recordações. Uma vez entrei numa sala para assistir à um filme e só havia mais um

espectador. Ele me convidou a ficar ao seu lado, pois estávamos completamente sozinhos.

Depois deixamos o filme e fomos jogar fliperama num bar das redondezas. Nunca mais o vi,

mas me diverti bastante. Numa outra vez, reencontrei um colega que eu não via há mais de

quinze anos. Fomos tomar uma cerveja e antes de nos despedirmos, já no ponto de ônibus ele

me deu um beijo. Histórias... É verdade que não gosto muito de relembrar o passado, mas é a

sua inocência que faz com que um adeus sempre seja o início de uma eternidade. E assim,

caminhando pela calçada eu me deparo com um vendedor de livros usados, espalhados sobre

uma mesa de madeira improvisada...

- Leva um, moça... É só cinco reais.

Um livro é sempre algo precioso, mesmo que esteja com suas páginas amareladas.

Meus dedos correram para a capa de um livro de Breton. “Nadja”. Alguém já havia me dito

algo sobre esse livro, mas nunca tive oportunidade de conhecê-lo, nem nos tempos em que eu

revirava as estantes de literatura estrangeira na biblioteca da universidade, obcecada por algo

que me distanciasse do meu tempo. Peguei o exemplar de capa rosada e folheei algumas

páginas. Mas ao perceber o que estava escrito na última página, quase deixo o livro cair no

chão.

“ Nossa história começa na última página. Prazer, eu me chamo Paulo Hierro.”

- Que foi, moça? Não gostou? Leva outro... Tem para todos os gostos.

- Vou levar esse mesmo. Quanto é?

- Só cinco, moça.

Dei o dinheiro para o homem e ainda atônita, apertando o livro entre os meus dedos,

segui em direção ao ponto de ônibus. Mas assim que dobrei a esquina fui surpreendida por

uma cena que me fez esquecer Paulo imediatamente. Cercado por uma multidão de pessoas

chocadas, um cadáver jazia sobre uma poça negra de sangue.

- Ninguém viu quem foi, - disse-me uma mulher de trajes de aeromoça.

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E assim, como se fosse imediatamente empurrada para a realidade delirante de nossas

existências, algumas lágrimas escorreram dos meus olhos. Não pelo homem morto, mas pelo

ponto vazio entre a vida e a morte. Um ponto de luz e escuridão. Entrei no ônibus e me deixei

esquecer... A chuva voltou bem fraca, salpicando de gotas os vidros do ônibus. Nas fachadas

dos prédios, a inércia de vidas roubadas. O mesmo lamento abafado pelo ruído dos

televisores. Desço do ônibus, acendo um cigarro... O livro de Breton apertado contra o meu

peito, como se de repente alguém apareceria e o roubaria de mim... Roubaria Paulo das

minhas fantasias, e de um dia que nunca termina, protegido por bolhas de plástico colorido. O

corredor estava escuro, parecia que a luz tinha acabado. Entrei em casa, larguei a minha bolsa

sobre a mesinha e fui até a cozinha preparar um café. Tirei meus sapatos e me acomodei sobre

a cama, folheando as páginas do livro, que continha pequenos rabiscos nos cantos das páginas.

Olhos, sorrisos, mãos... Peguei a fotografia e marquei uma das páginas, aleatoriamente. Quem

formulava as coincidências? Anjos, deuses, demônios? Naquele caso em específico, acho

mesmo que havia sido Breton, surrealista.

6

Numa manhã de quinta-feira eu descia do táxi em frente à um hotel próximo ao Largo

do Arouche. Meu chefe havia me mandado para lá, para conversar com o gerente do hotel,

que queria reformar a recepção. O hotel era bem derrubado. Oito andares e uma fachada de

vidro suja. Escadaria em granito e um lustre de uns duzentos anos pendurado bem na entrada.

O gerente me flagrou olhando feio para o lustre...

- Ele pode não ser assim tão moderno, mas é relíquia da família.

- Então ele fica, não é mesmo?

- Não. Estamos pensando em colocá-lo em outro lugar mais... Digamos, conveniente.

- Conveniente?

- Temos um bar de estilo francês no terraço.

- Ah, sim...

- Bom, prazer... Sou o gerente, pode-me chamar de Bezerra.

- Prazer, Sr. Bezerra.

- Bom... O que queremos é dar uma modernizada nesse espaço. Trocar o papel de

parede, reformar o balcão, colocar uma iluminação bacana... O piso ainda está bonito, não

queremos mexer nele... Espelhos naquela parede... Bom, a arquiteta aqui é você, podemos

fazer dar certo.

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- Ok. Vou tirar as medidas, elaborar um estudo preliminar e aí conversamos de novo, e

é claro, apresentaremos um orçamento estimativo. Tem ideia de quanto está pensando em

gastar?

- Ah, sim... Algo ao redor de trinta ou quarenta mil reais, no máximo.

Perdi uma meia hora tirando as medidas e fotografando o lugar. Depois o Sr. Bezerra

me perguntou se não queria tomar um suco de laranja no bar do terraço. Subimos pelo

elevador, que não era dos mais confiáveis, mas a vista lá em cima era realmente bonita. São

Paulo ainda me emociona, na decência de todos nós, uma última centelha de esperança nos

olhos da cidade. Tomei o meu suco, troquei mais uma dúzia de palavras com o Sr. Bezerra, que

exaltava a todo o instante as maravilhas do seu hotel.

- Todos os quartos tem wi-fi, - com um sorriso gostoso em seu rosto.

Depois me despedi e fui embora, tropeçando em dois mendigos e num menino que me

empurrou três panfletos. Enquanto procurava uma lixeira para jogar os panfletos, corri os

olhos em seus dizeres. E no menor, em letras pretas simples, as seguintes palavras:

PERDEU O GRANDE AMOR DA SUA VIDA NA VIRADA DO MILÊNIO? NÃO SE

PREOCUPE, POIS NÓS O ENCONTRAREMOS PARA VOCÊ, ONDE QUER QUE ELE ESTEJA.

DETETIVE ESPECIALIZADA EM PESSOAS DESAPARECIDAS PELO MELHOR PREÇO.

NÃO PERCA SEU TEMPO. LIGUE AGORA: 98320-0957

Será meu total desespero? O fato é que antes de pensar eu já estava ligando para

aquele número. A voz suave de uma mulher no outro lado da linha...

- Pois não?

- Oi... Eu recebi um panfleto sobre os seus serviços e gostaria de maiores

informações...

- Está falando do centro de São Paulo?

- Sim...

- Qual o seu nome?

- Rebeca.

- Pois não, Rebeca... Você poderia vir até o meu escritório na Rua Santa Isabel, 33, bem

pertinho da Praça da República.

- Agora?

- Pode ser?

- Sem compromisso?

- Claro.

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Bom, eu já estava ali do lado, que me custava a curiosidade?Acendi um cigarro e

caminhei até a tal da Rua Santa Isabel, quase debaixo do Minhocão. Um prédio cor-de-rosa se

estendia por meia dúzia de pavimentos. Toquei o interfone e a porta se abriu. Subi as escadas

até o segundo andar. Bati na porta e em questão de segundos fui apresentada à Laura, uma

estudante de advocacia que nas horas vagas dava uma de detetive.

- Você é bem jovem, não esperava...

- Muitas se prostituem para pagar os estudos, mas eu prefiro apenas observar os que

se prostituem.

- Uma belíssima explicação.

- Então, Rebeca... Quem quer encontrar?

- Encontrei alguns objetos pessoais de um jovem e gostaria de encontrá-lo para lhe

devolver tudo. Mas tudo o que eu sei é o seu nome.

- Bom, e a história verdadeira?

- Curiosidade... Ele parece ser uma pessoa especial.

- E independente do que possa descobrir, não vai me acusar de nada, não?

- Só quero saber onde ele mora, um telefone bastaria...

- É claro que não... Precisa de algumas fotos para saber se ele vale a pena, não é

mesmo?

- Eu sei que vale... Pelas coisas que eu encontrei...

- Sei... Bom, meus honorários, considerando que acho que será bem fácil, ficam em mil

reais. Metade agora e a outra metade quando eu te der as informações que está procurando.

- Mil reais?

- E precisa assinar um contrato de sigilo absoluto. Nem eu nem você sabemos de nada.

- Coincidências?

- Sim.

- Aceita cheque?

Cinco pares de sapato pelo paradeiro de Paulo Hierro. Parece justo, embora não esteja

acostumada a comprar cinco pares de sapato de uma vez só, o que vai me apertar um bocado

no final do mês, mas... Sim, estou feliz que tenha enlouquecida o suficiente. Voltei para o

escritório, sem saber se ia ou se vinha. Ilusões... Labirintos de escadas sem degraus. Abdução é

crime.

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As obras do casarão haviam começado. E fazia quase um mês que eu telefonava para

Laura na esperança de alguma novidade, mas ela dizia que ainda estava relacionando as

informações que dispunha. Caçambas e mais caçambas de entulhos eram retiradas da obra.

Pelo menos uma vez por semana eu ia até lá, conferir o trabalho e fazer uma lista de

providências. Até que veio um feriado, e eu aproveitei para passar uns dias descansando no

apartamento de um casal de amigos no Guarujá.

- Precisa encontrar alguém, Rebeca, - dizia a minha amiga, quase como se lamentasse.

– É só o que falta para ser feliz.

Mas a verdade é que quase todo mundo que eu conhecia, nos bares ou nas festas,

parecia coberto de pregos, e nem um beijo tinha o gosto da paixão. Um menino bonito, com a

mão nas minhas coxas em um bar à beira da praia, enquanto eu tomava uma caipirinha.

- E aí? Vai querer dormir lá em casa?

- O quê?

- Tem até piscina, você vai adorar...

- Não... Tenho que voltar cedo para São Paulo

- Então a gente só dá uma transada, - sussurrou enquanto me apertava um pouco,

enfiando a língua no meu ouvido.

- Olha, não vai dar mesmo...

- Olha só, gata... Se vai ficar fazendo doce eu tenho mais o que fazer.

- E eu, uma caipirinha para tomar.

- Fala sério... Na boa, já perdi o tesão.

E se levantou rapidinho, acelerando a moto na avenida vazia. Tomei mais uma

caipirinha, acendi um cigarro e caminhei até a praia, sentindo a areia fria roçar meus pés.

Sentei-me no chão, abracei os meus joelhos e juro que senti toda a solidão do mundo, aquela

que não sabe para onde vai e não tem a menor intenção de saber. Perdemos tanto tentando

amar, tentando jogar os dados, tentando nos amar. O perdão, a pequena morte da nossa

consciência, num foda-se atemporal. Os rasgos e as emendas, cravadas na carne, sem gratidão.

Minha amiga e o seu namorado jogavam uma partida de baralho quando eu cheguei no

apartamento. Observaram-me pelos cantos dos olhos...

- E então... Como foi com o Otávio?

- Um perfeito idiota.

- Como você é pessimista, Rebeca... Olha para mim e para o Lucas. O nosso primeiro

encontro foi um desastre, não conseguimos nem tocar na comida. Lucas falou um monte de

bobagens e eu achei ele um babaca. Hoje temos que rir, pois não vivemos um sem o outro.

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- Só não estou com espírito para grandes romances, então.

- Deixa de ser irônica e pega uma cerveja na geladeira. Nós pedimos uma pizza, deve

estar chegando.

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- Rebeca? É a Laura.

- E?

- Tenho novidades. Pode dar um pulo aqui agora? E traga o talão de cheques...

Dei um pulo da cadeira e me deparei com o olhar assustado de Marcelo.

- Que foi, Rebeca? Conseguiu finalmente ver algum fantasma?

- Fantasmas não existem, Marcelo...

- Bom, tem vários bebendo no bar da esquina. E fumando também...

- Tenho um compromisso, preciso sair...

- Já avisou o chefe?

- Vou falar com ele.

Deixei o prédio e segui em direção à estação de metrô. Eram quase três horas da

tarde. Eu mal podia conter a minha ansiedade. Nos olhares distantes de qualquer usuário de

metrô eu tentava me distrair. Não existe nesse mundo nenhum outro lugar onde a reflexão

humana é tão profunda. E o tempo, só o intervalo entre uma estação e outra. Estação

República... Caminhei apressadamente em direção ao escritório de Laura. Toquei o interfone e

ouvi a voz de Laura...

- Sobe, Rebeca...

Subi aos pulos, a porta estava encostada...

- E então, Laura?

- Sente-se amiga... O Paulo me deu uma canseira... Muito esperto o seu amigo, não

gosta de deixar rastros...

- Conseguiu alguma coisa?

- Bom... Quer começar pelas fotos?

- Pode ser...

- Não são lá grande coisa, mas veja como ele é bonito...

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Na fotografia em preto e branco, um menino lindo, magro, alto, os cabelos negros

contrastando com a pele branca, fumando um cigarro numa mesa de bar...

- Por que a foto em preto e branco?

- Você desmaiaria de emoção se visse seus olhos verdes...

- E então, ele faz o quê?

- Trabalha numa galeria de arte, aqui no centro... E de gosto meio duvidoso... Artistas

da nova geração...

- Ah... E tem um telefone?

- Telefone, telefone, eu não consegui encontrar... Mas vive num apartamento nos

Campos Elíseos, aqui está o endereço.

- Campos Elíseos?

- É... Um prédio bem derrubado, se quer minha opinião... Enfim...

- Quinhentos reais?

- Isso.

- Ah... Também consegui o seu e-mail: [email protected].

- Ai, obrigada, Laura... Nem sei como te agradecer...

- Precisando de mais alguma coisa, estarei aqui...

- Não quer tomar uma cerveja comigo?

- Acho que não, Rebeca.

- Tudo bem, então...

9

Desci do ônibus na Avenida São João, e caminhei por uns duzentos metros até

encontrar o prédio em que Paulo morava. Olhei para cima do pequeno projeto de arranha-céu,

que se estendia acima do Elevado, vulgo Minhocão. E é certo que mantenha esse nome, pois a

tristeza daquelas janelas só se encontra em olhos de minhoca, se é que elas tenham olhos.

Fiquei parada na porta de entrada, protegida por uma grade escura. Um pequeno cartaz

colado na parede anunciava um imóvel para alugar. Apertei o botão do interfone do

apartamento 42. Depois de alguns minutos uma voz me atendeu...

- Pois não?

- É sobre o imóvel que está para alugar...

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- Sobe.

Subi pelas escadas, o elevador jamais seria confiável, nem com a melhor das reformas.

Um cheiro meio azedo exalava das paredes... O apartamento do Paulo ficava no sexto andar,

mas fui surpreendida pela dona do apartamento que estava ao pé da escada, vestida num

trapo que dava dó...

- Oi, moça... Quer dar uma olhada e ver se você gosta?

- O apartamento é seu?

- Não. Estou voltando para a minha terra, no interior de Minas. São Paulo não é lugar

para gente com um mínimo de bom senso, mas a gente sempre vem acreditando...

- E fé não tem bom senso, não é mesmo?

- Vamos, entre.

O apartamento não era tão menor do que o que eu morava. Exceto pelo cinza das

paredes, e o cheiro insuportável. A mulher me ofereceu um café, e eu perguntei se podia

fumar um cigarro na janela...

- Fique à vontade.

A visão é sempre aterradora, mas absurdamente libertadora... Um canto esquecido no

mundo, penso eu... Os carros percorrendo o Elevado, sonhados em um filme de ficção

científica. E as janelas, Deus! As janelas vazias e vítimas de uma explosão nuclear... A vida no

alarde, e nas últimas inocências...

- Quanto é o aluguel, moça?

- Quatrocentos reais...

Eu só podia estar louca quando mencionei aquelas palavras...

- Gostei. Vou ficar com ele.

A mulher me deu o telefone da imobiliária, e me disse que precisava de mais duas

semanas para deixar o apartamento. Depois fechou a porta atrás de mim. Conferi as horas no

relógio. Já passava das cinco e meia da tarde. Relutei por um instante ao pé da escada, mas

depois me lembrei que só estava ali por um motivo... Subi os dois lances de escada e me

deparei com a porta do apartamento 61. Por trás daquela porta estavam todos os segredos de

Paulo. Toquei de leve a maçaneta fria... Tantas impressões digitais de Paulo naquela

maçaneta... Antes que eu enlouquecesse de vez e resolvesse beijar a maçaneta, saí de fininho.

Já na calçada, esperando o ônibus debaixo do elevado, considerei a possibilidade absurda de

me mudar para aquele lugar. Bom, a estação de metrô é bem pertinho... Era o único ponto a

favor. Mas dizem que o destino também sabe ser voluntarioso, fazendo suas próprias

exigências. O ônibus seguiu pela Avenida Matarazzo, e me deixou em frente ao Estádio do

Palmeiras. Acendi um cigarro enquanto pressentia a tempestade se formando acima da linha

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do horizonte, esse céu nosso de cada dia. Acho que eu precisava rezar um pouco, cantarolando

baixinho uma música de minha própria autoria...

Aqui na Terra todos se perguntam de você...

Por onde tem andado desde que me abandonou...

Meninas e meninos na esquina,

Já sabem tudo do nosso amor

Mas quando o céu escurece

E tenebroso parece o meu fim

Lá vem eles me mandarem catar

As conchinhas que caíram dos seus cabelos

Quando você me abandonou...

Acho mesmo, que vou procurar outro amor.

Alguém que me ensine a rezar pra você.

Não sou uma poetisa assim tão desclassificada, imagino... Mas talvez não mereça

nada, nem mesmo um por do sol na eternidade. Quem dirá ao menos uma garrafa de vinho...

Assim que chego em casa a tempestade desaba. Ligo a televisão é São Paulo já está toda

inundada, com suas baratas mortas e pontas de cigarro.

10

Fazia uma semana que eu tinha fechado com a imobiliária a locação daquele

apartamento, e por isso, eu já estava encaixotando as minhas coisas. Uma noite, perdida entre

livros e roupas, achei que não seria uma má ideia mandar um e-mail para o Paulinho... Entrei

no site do Yahoo e criei uma conta nova, [email protected], e fumando dois cigarros, eu

lhe enviei uma mensagem...

Mistérios inconclusos

A morte é enterna em seu próprio sentido

Mas você me assopra as minhas pálpebras quando durmo

E eu acordo com a ponta dos dedos manchadas de sangue

Da cor dos nossos lábios

Da exceção de nossos destinos

Mais do que sonhar

É me agarrar aos teus pés

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Cortados pelo vale de pedras

Nas lágrimas azuis do seu coração.

Sent. E é o que dá sentido. Sent – ido. Proporções meteóricas. O grito dos gados

durante a madrugada. Lá onde tudo é morte e salvação. Para que crer quando vivemos para

consertar os erros do paraíso? Desliguei o computador. E mesmo esperando, nunca houve

resposta na minha caixa postal. Pelo menos pelas próximas horas. Não que eu esperasse

alguma coisa, mas passar em frente à galeria de arte em que Paulo trabalhava em plena tarde

de sábado não foi uma boa ideia.

- Tem um cigarro para me arranjar?

Parecia que tremia, mas dei o meu melhor sorriso.

- É uma galeria de arte, -perguntei-lhe enquanto ele acendia o cigarro. Seus olhos eram

realmente verdes.

- Sim... Quase. Bom, pelo menos essa foi a minha intenção...

- Você é o dono?

- Sim.

- Parece legal...

- Não quer entrar?

Timidamente botei os pés dentro da galeria. Havia algumas coisas lindas ali, mas

outras realmente tenebrosas.

- Já sei o que está pensando...

- Como pode saber?

- Todas as pessoas são parecidas... Arte sempre é arte.

- E todos os fantasmas tem a mesma cara?

- Esperta, você.

- Desculpe-me, mas tenho que ir...

- Não quis te ofender...

- Não... É que estou indo ver um apartamento para alugar, e estou um pouco atrasada.

- Tudo bem...

Saí correndo de lá. Como explicaria a coincidência quando ele me descobrisse sua

vizinha? Tinha botado tudo a perder, como sempre, pensei... Mas e se? Podia sorrir

cinicamente quando nos cruzássemos nas escadas...

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- Oi? Você por aqui?

Tudo daria certo, pensei... Apesar de ter bolado tudo do jeito mais complicado. Podia

ter simplesmente comprado uma gravura e convidá-lo para tomar uma cerveja... Mas a

verdade é que vou me lascar inteira, porque todo mundo sabe que mentira tem perna curta.

Olha, lá vem o ônibus...

11

A campainha tocou. Estava escolhendo uma cor de tinta para pintar as paredes do meu

novo apartamento. Será que esse cinza fica bom? Ah, mas sempre quis ter uma parede

vermelha... Já vou atender!

- Oi, Bruno!

- E aí, Rebeca... Estava pensando se não queria ir comigo e uns amigos numa festa

numa boate na Rua Augusta...

- Agora? Não sei...

- Deixa de ser enjoada... Sei que esse seu apartamento vive às moscas e ninguém vem

te visitar, só eu mesmo.

- Então entra e toma uma cerveja enquanto me arrumo.

Abri o armário e peguei a primeira roupa que encontrei, toda preta, só para variar...

- Me diga, Rebeca... Não tem ninguém mesmo?

- E você, tem alguém?

- Vários...

- Vários... Isso inclui algum francês?

- Vamos, conte-me... O que descobriu ao meu respeito?

- Digamos que a janela do seu banheiro tem uma pequena ligação mofada para a

janela do meu banheiro.

- Era só um amigo...

- Não entendo muito de francês, mas algumas palavras me soaram bem...

- Intimas.

- Certo.

- Vamos, não é preconceituosa, é?

- Imagina... Transaria de olhos fechados com a Lana Del Rey.

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- É... Ela parece ser bem quente.

- Uma princesa...

- Você também está parecendo uma princesa...

- Vamos, Bruno.

São Paulo e suas luzes de neon. Seus cadafalsos de embriaguez... Algumas pessoas

ainda vivem em outros tempos, apesar das grades nas janelas. O mundo ainda não encontrou

o seu umbigo, mas rezamos para o sol sempre brilhar, ele que já se mostra entediado e

urgente em seu adeus.

- Sabe que eu vou me mudar na semana que vem?

- Não acredito, Rebeca...

- Nem eu.

- Mas por quê?

- Estou apaixonada por uma ideia...

- E essa ideia também é francesa?

- Não. Ele se chama Paulo Hierro.

- Que perfume sofisticado...

- Piadinha sem graça, Bruno.

Uma dose de uísque, uma banda performática no palco, sob um véu de lantejoulas

coloridas. A música me desviava de olhares pervertidos. Sempre acreditei que estava sozinha

no mundo, e agora parece que preciso acreditar que estou mesmo sozinha. Meu maior defeito

é a inveja do amor de Deus. Sim, ele é perfeito em tantos sonhos coloridos, e rabiscou com giz

o caminho pontilhado do meu destino, o que me faz desviar do ponto infinito que eu nunca

consegui vislumbrar. E eu ficaria feliz se me tornasse o anjo da guarda de um patinho. Mas

não quero ouvir o lamurio das aranhas, ou saber se um molusco tem algum projeto de vida. A

verdade é que Bruno desapareceu atrás de uma porta. Vi quando se retirou da boate em

companhia de um sujeito, e quando apareceu à cinco horas da manhã, quando as cadeiras já

estavam viradas com as pernas para cima, e um homem varria todo o chão enquanto lançava

para mim um olhar de piedade.

- Onde estava, Bruno?

- Desculpe-me se te deixei sozinha...

- Tudo bem. Estou transpirando uísque...

- E nem chorou, que bom...

- Dez minutos trancada no banheiro, beijando os azulejos...

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- Que paixão, hein?

- Preciso tomar um café...

- Vamos... Quero ver o sol nascer.

Uma cor linda no céu, parecendo ausente de nós, obra de um artista que acorda cedo,

e não precisa de aplausos. Seguimos até a pracinha no alto da Cerro Corá. Descemos do carro

e acendemos um cigarro, segurando um copo de café quente.

- As últimas horas do sono dos inocentes...

- É bonito, não?

- Rebeca, você já se tocou que eu sou um garoto de programa?

- Também já fiz esse papel, algumas vezes...

- É... Mas a verdade é que é um lance que te suga ao ponto de você não perceber se

lhe ainda resta inocência.

- Sabe qual é a verdade, Bruno? É essa nossa moeda ilegal que é o nosso corpo. E

quase tudo é negociável com ela. Até a nossa esperança.

- Você é uma pessoa especial, sabia?

- Mas eu ainda ando com velas...

- Todos nós, minha amiga... Todos nós.

12

Bruno me ajudou com a mudança. E quase teve um ataque quando viu onde eu estava

indo me enfiar.

- Ele não pode valer tanto assim, Rebeca...

- Acredite se quiser...

- Não vai durar nem duas semanas... Já viu o buraco que é esse lugar?

- Ah, não é tão mal assim, e está cheirando a tinta fresca... E eu comprei uma pia nova

para o banheiro.

- Deixa eu ver...

- Bacana, não?

Eu encostada na porta do banheiro, enquanto Bruno conferia a pia nova...

- Arquitetos...

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- É um novo modelo da Deca.

- E combina perfeitamente com esses azulejos dos anos cinquenta...

- Venha, vamos tomar uma cerveja enquanto eu descubro porque a televisão não está

funcionando.

- Deve ser porque a antena sofre a interferência dos rádios dos carros que percorrem o

elevado.

- Diz que também achou a visão maravilhosa?

- Aposto que é a única que vai deixar a janela aberta...

- É o único lugar em São Paulo que me faz perceber a existência de Deus...

- Acho que é porque o seu Deus mora no sexto andar...

- E o seu Deus, Bruno... Vive onde?

- O meu Deus? Aposto que está morto, ou na melhor das hipóteses, escalando a

montanha mais alta do planeta na esperança de esquecer que criou esse mundo.

- E então, acha que eu devia tocar a sua campainha e pedir um pouco de açúcar?

- Tem aquela música da Ana Carolina, não... Como é mesmo? ...Vou aparecer à sua

porta completamente nua...

- Não seria uma má ideia.

- Sinceramente, Rebeca... Espero que vocês não se esbarrem quando tiver botando o

lixo para fora de casa.

- Nem sei se tem lixeira nesse prédio.

Bruno olhou bem no fundo dos meus olhos e caímos na risada.

- Mas tome cuidado quando andar por aí, tarde da noite... Esse lugar é da pesada...

- Acho que pelo menos o rádio está funcionando...

Depois que Bruno foi embora, e já passava das seis horas da tarde de um sábado

bastante ensolarado, acendi um cigarro na pequena sacada que havia no meu apartamento.

Um resto de cerveja quente na latinha, um cobertor forrando o chão... Sentei-me no canto e

fiquei admirando aqueles invasores anônimos, passando a toda velocidade em frente aos

meus olhos. Às vezes parecia que alguns olhares me percebiam, e talvez se perguntassem

quem eu era, ou o que pensava, e principalmente, o que eu fazia ali. Depois de uns vinte

minutos e fechei a porta que dava para a sacada e dei uma espiada no meu apartamento.

Estava quase tudo ajeitado, com exceção de algumas caixas empilhadas e da televisão que não

funcionava. Será que Paulo estava em casa? Supondo a sua respiração há poucos metros de

distância me atirei sobre o colchão, os pés descalços enfiados em um par de meias. A antiga

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moradora havia me deixado a chave da porta que dava para a cobertura do prédio, onde os

moradores estendiam suas roupas para secar. O sol estava se pondo e achei uma boa ideia dar

uma conferida no local. Subi todos os lances de escada até o décimo primeiro andar. A porta

era de ferro e estava toda enferrujada. Enfiei a chave na fechadura e abri a porta. E logo tinha

a cidade aos meus pés. A visão do sol se ponto sobre tantos telhados esquecidos era

deslumbrante. A vida e a morte se encontrando em um instante de poesia. Aproximei-me da

borda da platibanda e acendi um cigarro...

- Cuidado para não se assustar com as pombas...

Assustei-me ainda mais quando me virei e me deparei com Paulo.

- Acabou ficando mesmo com o apartamento, não é mesmo?

- Nossa, que coincidência...

- Você acha? São Paulo é feita de linhas paralelas, linhas perpendiculares... Algumas

tangenciais...

- Só esse lugar aqui já valeu o aluguel...

Paulo se aproximou de mim e acendeu um cigarro...

- Qual é o seu nome?

- Rebeca.

- Então, Rebeca... Bem vinda ao meu prédio.

- Seu prédio?

- É. Meu prédio... Eu sou o dono de todos os apartamentos, e antes que você me

pergunte, não, não dá para consertar o elevador.

- E porque não ficou com essa cobertura só para você?

- Não sou tão egoísta assim...

- Ah, mas eu sim...

- E então, Rebeca... Está a fim de comer uma pizza de boas vindas?

- Tudo bem.

Paulo parou diante do elevador e apertou o botão.

- Vamos, não tenha medo...

- E o que acontece se ficarmos presos e ninguém aparecer para nos socorrer?

- Eu sei sair pelo teto.

- Aposto que já se divertiu bastante fazendo isso, não?

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Entrei no elevador e em alguns segundos a porta se abriu no sexto andar.

- Eu vou ligar para a pizzaria... Quer beber alguma coisa? Tem meia garrafa de vinho na

geladeira.

- Aceito. Eu sou quase alcoólatra...

- Sei...

- Sério, Paulo... Às vezes eu me imagino milionária, em algum lugar, sem fazer nada,

apenas fumando e bebendo.

- Você me chamou de Paulo...

- E não é o seu nome?

- Não me lembro de ter te dito...

- Ah, sei lá... Foi o primeiro nome que me apareceu na cabeça...

- Então está assumindo a culpa?

- E você tentando me confundir com essa conversa...

- Sou bom nisso, disse-me rindo.

Bebi o vinho em goles pequenos, enquanto tentava espiar as instalações simples do

apartamento de Paulo. Na sala havia apenas um tapete com três ou quatro almofadas

coloridas, uma mesinha com velas, uma estante repleta de livros e um banquinho de madeira.

- Fique à vontade, Rebeca, - disse-me sentando-se no chão, preparando um cigarro...

- Isso não faz mal para a cabeça?

- Se quer saber se sou louco, é bom descobrir que sou um caso perdido para a

medicina. Embora já tenha lido vários livros psiquiátricos e não me considerar tão louco

assim...

- Tenho certeza de que me parece absolutamente normal...

- Vamos, fume um pouco... Não precisa se fingir de moralista... O nosso mundo já é a

pior droga que consumimos.

- O que te fez comprar um prédio?

- Herança de família... Eu vivia num casarão na Vila Madalena... Quando minha avó

morreu ela deixou tudo para mim apareceu um bocado de gente querendo me botar num

sanatório. Mas eu convenci os advogados de que era a única pessoa que se importava com ela

e fiquei com o casarão. Vendi por quase um milhão de reais e comprei esse prédio, que como

pode perceber, está caindo aos pedaços... Mas me rende vinte alugueis por mês, que é quase

uma fortuna.

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- E a galeria de arte?

- Quase um passatempo, e um meio de colaborar com a cultura nessa terra tão

necessitada.

- E você também é artista?

- Sou escritor... Amador, é claro... Mas quem sabe algum dia...

- Sim, todos nós esperamos por esse dia.

- Que vai chegar, sem sombra de dúvida... E não pode nos encontrar de mãos vazias...

Ou corações sombrios...

A campainha tocou.

- Pizza!!!

Enquanto comíamos e eu terminava de esvaziar a garrafa de vinho, Paulo me olhou no

fundo dos meus olhos e me perguntou:

- E você, Rebeca... Que tem pra me contar?

- Eu? Bem... Nada de muito interessante. Sou arquiteta, moro no quarto andar e não

tenho cachorro.

- Misteriosa...

- E o meu melhor amigo é gay.

- Aí você foi maldosa...

- Não... É que São Paulo é uma cidade de pessoas solitárias.

- A solidão não é um vazio...

- Rilke.

- Então entende de literatura? Achei que só ligasse para pontes suspensas...

- Paulo e suas metáforas...

- Quer fazer uma coisa legal hoje à noite?

- Adoraria.

13

Paulo andava pelas ruas do centro concentrado no seu cigarro. Falava alguma coisa

engraçada, depois ficava distante, como se sugado por seu abismo impenetrável. Mas de

repente ele voltava para esse mundo, sorria e até me puxava pelo braço quando topávamos

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com algum mendigo ou encapetado. Caminhamos até chegar num prédio quase na Avenida do

Estado.

- Sabe... Vai chegar um dia que ninguém vai precisar se procurar... É disso que essa

instalação fala.

Descemos por umas escadarias até o subsolo do prédio. Um grande balcão de plástico

branco limitava a entrada do espaço. Lá, cada um de nós era cadastrado pelo nome e e-mail e

recebíamos um chip, que vinha dentro de um pingente com uma luz vermelha num colarzinho

de barbante. Segundo Paulo, todas as informações públicas das pessoas que estavam ali eram

cruzadas e caso estivéssemos a menos de cinquenta metros de alguém que tivesse alguma

relação conosco, nossos chips acionariam a luzinha e nos terminais espalhados pela instalação

poderíamos acessar esses dados, bem como a sua localização. Já pensou encontrar o seu amor

se esfregando com outra no banheiro? Bom, Paulo estava bem ao meu lado, e mal podia

imaginar como foi que nossos chips conseguiram se encontrar em São Paulo. E para entreter

as duzentas pessoas que circulavam pela instalação, tinha uma sala cheia de balões de gás

brancos grudados no teto, um palco onde se apresentariam algumas bandas, e um lugar onde

eram servidas doses de uísque barato.

- Achou legal?

- Interessante.

- Se algum dia recebeu um e-mail anônimo, quem sabe não se esbarra com ele por aí...

- É isso que está procurando, um e-mail anônimo?

- Não. Sou avesso a essas tecnologias... Só acho engraçado porque quanto mais nos

aproximamos de alguém virtualmente, mais a afastamos da nossa realidade.

- Isso é verdade.

- Vamos tomar uma dose de uísque?, - disse-me puxando um dos balões brancos.

- O que tem aí dentro?

Paulo enfiou as unhas no balão, que estourou... Dentro havia um pequeno papel

vermelho. Paulo desdobrou o pedaço de papel e sorriu...

- O que está escrito?

- Hug me.

- É para aproximar as pessoas afastadas.

- Mas você está bem perto, - disse-me, abraçando-me com força, até sentirmos nossas

respirações quentes.

Deixamos a instalação depois de nos embriagarmos com três doses de uísque.

Andávamos de mãos dadas, através da escuridão imensurável do centro da cidade. Já passava

da meia-noite.

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- Acho que dá para pegar o último metrô.

Entramos na estação de metrô da Praça da Sé e seguimos até a plataforma de

embarque. Estava praticamente vazia. O metrô apareceu em dois minutos... Tinhamos o vagão

inteiro só para nós. Paulo às vezes me olhava nos olhos, depois desviava... Depois de seis

minutos já subíamos as escadas da Estação Marechal. As ruas desertas, os olhares famintos de

alguns transeuntes. Acendi um cigarro quase na porta de entrada do prédio.

- Vamos de elevador?

- Não... Acho que vou subir pelas escadas mesmo...

- Não quer tomar um café lá em casa?

- Estou cansada... Tive um dia bem cheio por causa da mudança...

- Acho que vou andar de bicicleta amanhã cedo... Depois podemos almoçar juntos...

Que tal um belo espaguete?

- Parece ótimo.

- Então tá... Boa noite.

Subi as escadas do prédio meio que me escorando nas paredes. Abri a porta do

apartamento e tropecei no tapete, caindo de joelhos no chão. Puxei uma almofada e fiquei por

ali mesmo durante uns quinze minutos. Depois me levantei e enchi um copo com água.

Aproximei-me da janela... O silêncio do elevado, as últimas luzes acesas nos prédios,

acreditando em suas existências. Fumei um cigarro e desabei sobre a cama. Eu ainda podia

sonhar...

14

A boca seca às dez horas da manhã, e o burburinho das pessoas passeando sobre o

elevado sob o sol de domingo. Abri as janelas, senti o vento fresco a brincar com os meus

cabelos. Estava morrendo de fome. Será que tem algum mercado nas redondezas? Esqueci-me

de perguntar ao Paulo. Ainda estava vestida com a roupa do dia anterior... Melhor seria

arriscar um banho. Despi-me lentamente e liguei o chuveiro, que fazia um barulho

insuportável, apesar da água estar na temperatura perfeita. Fiquei uns quinze minutos debaixo

do chuveiro, considerando as possibilidades do meu plano estar dando certo. Que plano, meu

Deus? Comecei a rir... Paulo era perfeito, tinha o olhar idealista, as mãos quentes... Tentei

imaginar uma cena de amor, mas não consegui... De tudo, era o que me fugia à imaginação...

Conseguia apenas me imaginar deitada sobre o seu peito, as mãos entrelaçadas em um tempo

eterno. Terminei o banho e botei a primeira roupa que encontrei ao abrir a minha mala. Um

vestido de alcinhas todo amarrotado. Peguei a minha bolsa e ao abrir a porta de casa, na

soleira, havia um pequeno vaso de rosas miúdas... Não parecia ter sido comprado em um

supermercado, pois apenas dois ou três botões estavam abertos e algumas folhinhas estavam

secas. Uma fitinha amarela parecia ter sido colocada propositalmente ao redor do vasinho.

Peguei o vasinho e levei para a varanda. Depois fechei a porta do apartamento e desci as

escadas do prédio. Ao lado do prédio havia uma loja de móveis usados e perguntei se havia

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algum mercado por ali, e me indicaram dobrar a esquina e seguir por dois quarteirões. E lá

estava, o Mercado Salsichão, um corredor comprido com prateleiras dos dois lados. Comprei

um litro de leite, um pacote de café, dois pacotes de biscoitos e uma garrafa de vinho barato.

Voltei pra casa e botei o leite no forno de micro-ondas. Acendi um cigarro na varanda,

observando o vasinho de rosas. Ao meio-dia Paulo bateu à minha porta.

- Oi...

- Obrigado pelo vasinho de flores...

- Gostou?

- Muito, - disse-lhe beijando seu rosto.

- E então... Quer subir para prepararmos o almoço?

- Comprei uma garrafa de vinho...

Dois lances de escada e já ouvindo o som de um jazz que ecoava pelo seu

apartamento.

- Gosta de jazz?

- Sinceramente, não conheço muito...

- O que você gosta de ouvir?

- Ilusões...

- Ilusões são essencialmente visuais...

- Isso foi uma crítica?

- O que você gosta de ouvir?

- Poesia... Nada de alarde ou ódio.

- E quem te odiaria?

- Faz tempo que eu não te vejo nos meus pesadelos...

Paulo sorriu timidamente, e depois beijou a minha testa...

- Mesmo não tendo me visto eu estava ao seu lado impedindo que se tornassem

piores...

- Então acredita no ódio?

- Ódio? Sim, principalmente dos que amam...

- E sobre o que você escreve?

- Sobre a imoralidade de nossas vidas...

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- Humm...

- Você acredita, Rebeca?

- Se acredito?

- Sim... Se explodisse uma bomba bem aqui, ao nosso lado... Você ainda acreditaria?

- Eu nunca acreditei, se é o que você quer saber... Mas não posso deixar de invejar a

verdade absoluta desse universo.

- Protegida por um fio tão tênue que é quase invisível.

- Logo que é invisível... É feito de elétrons, e eu nunca vi um elétron.

- Nem eu.

E começamos a rir, enquanto a água do macarrão fervia e esvaziávamos a garrafa de

vinho. Vinte minutos depois comíamos o espaguete com molho de tomate, sentados no chão

da varanda do seu apartamento. Depois lavamos os pratos e fumamos nossos cigarros.

- Como andam os seus segredos, Rebeca?

- Com duas perninhas...

- Engraçadinha...

- Segredos... Nem mesmo nós podemos desvendá-los...

- Alguma paixão lavada junto com os lençóis?

- Lavada com água sanitária?

- Você entendeu...

- Já tive. Dessas doidas e carcomidas... Viu? Até rimou...

- Mas no final só nos resta os lençóis sujos...

- É difícil acreditar que a todos são concedidos os mesmos segundos... Daí a terem o

mesmo significado...

- Você quer ficar comigo?

Havia certa tristeza no olhar de Paulo, quase imperceptível, mas eu o beijei assim

mesmo, e pelo resto da tarde repousamos em nossos abraços, laços que ligam e partem, em

pedaços minúsculos, toda a paixão. Fizemos amor e nossos gemidos foram abafados pelas

paredes mortas daquele edifício. São Paulo se tornou silenciosa, e seus milhões de habitantes

sumiram dos meus olhos, só me restando o último sorriso, e algumas lágrimas de gratidão.

Deus se esconde de nós por causa da sua timidez, e porque em todas as guerras, nunca deixa

ninguém sozinho, embora a água possa molhar apenas nossos calcanhares, é ela quem purifica

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e quem dá a vida, o resto são apenas sintomas de uma febre que não passa, já o sangue

quente demais.

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- Onde você trabalha mesmo?

- Numa travessa da Paulista...

- É... E eu tenho que ir para a galeria, dar uma passada por lá...

- Que cara de preguiça...

- Que horas são?

- Quase sete...

- Vou preparar um café...

Depois de tomarmos o café, despedi-me de Paulo e voltei para o meu apartamento,

para me arrumar para o trabalho. Minhas roupas ainda estavam largadas no canto, dentro das

malas, e em algumas caixas. Peguei uma calça jeans, uma blusa azul de mangas largas e calcei

a minha bota. Saí apressada, botando os brincos enquanto descia as escadas. Atravessei a pista

e segui em direção à estação do metrô. E que volta até descer na Avenida Paulista... Vagões

cheios, entra e sai de pessoas esquecida... Nessas horas me pergunto se ainda existe amor, ou

é apenas a vontade de persistir na luta diária que nos impulsiona. Eu estava com Paulo, e um

sorriso nostálgico persistia em meu rosto, e os pensamentos não encontravam a última

palavra. Era para ser. Era para viver. E o resto seria apenas pedriscos amontoados nos cantos

da sarjeta. Cheguei ao trabalho...

- Bom dia, Rebeca...

- Tudo bem, Marcelo?

- Está com um sorriso suspeito na cara... A noite deve ter sido ótima...

- E hoje nem parece segunda-feira.

- E o chefe estava te chamando...

Meu chefe me pediu para ir até a obra do casarão, conferir alguns detalhes de

acabamento. Peguei um táxi e fui direto para lá, tentando saborear a liberdade do meu amor,

observando as pichações nas fachadas das construções esquecidas, e procurando em rostos

anônimos um sinal de ilusão. O táxi me deixou em frente ao casarão. A grade antiga estava

sendo arrancada, e o mestre de obras olhava confuso para o jardim de roseiras secas...

- Oi, Sr. Alceu...

- Ah... Oi, Rebeca... Nem te vi chegar...

- O que foi?

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- Essas roseiras... Posso arrancar tudo?

- Acho que sim... A entrada nova não vai ficar desse lado?

- Eu posso replantá-las lá atrás, no jardim de pedras...

- Jardim de pedras?

- Foi aquele moço, o paisagista que falou que naquele canto lá trás vai ter um jardim

de pedras...

- Sei...

- Bom, o que eu faço?

- Arranca tudo.

De repente ouvi uma voz que me partiu o coração... Talvez porque tivesse ecoado bem

dentro de mim...

- É mais fácil assim, né? Arrancar tudo...

Ao me virar me deparei com o rosto mais desiludido que eu já havia visto. Era Paulo.

- Oi, Rebeca... Trabalhando muito, não?

- Paulo... Eu posso explicar...

- Explicar o quê, Rebeca?

- Isso.

- Isso o quê? Não é apenas coincidência você estar trabalhando na reforma desse

maldito casarão?

- Não acho que seja maldito...

- As paredes não sussurraram nadinha pra você?

- E daí se você morava aqui?

- Você não entendeu nada mesmo, não é?

- Paulo... Volte aqui... Eu posso me explicar... Eu...

- Chega, Rebeca... Você não faz ideia de como isso é bizarro...

E Paulo se afastou, empurrando a sua bicicleta, disfarçando as lágrimas que escorriam

pelo seu rosto... Eu fiquei ali, sem saber o que fazer, e sem ter como explicar para o Sr. Alceu o

que havia se passado por ali...

- É...

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- Não é nada do que está pensando...

- Melhor não mexer nas roseiras secas do menino...

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A noite caiu junto com a tempestade. Meus sapatos encharcados da água suja que

escorria pelas ruas. Subi as escadas do prédio, sem acreditar muito que conseguiria o perdão

de Paulo. Carregando uma garrafa de vinho, a primeira coisa que fiz foi encher um copo com a

bebida. Acendi um cigarro sentada na varanda, etérea, vendo os pássaros se esconderem nos

vãos dos edifícios, vendo os carros rasgarem a chuva com seus faróis ligados. Não tinha

coragem de importunar Paulo... Era melhor dar um tempo, esperar a raiva dele passar. Com a

sua fotografia nas mãos, embriagando-me lentamente. Acho que fiquei duas horas ali, sentada

no chão, ouvindo uma rádio qualquer. As músicas abafadas pela minha tristeza seca, incapaz

de derrubar uma lágrima que fosse. Não deveria ter sido a ladra daquele sentimento,

ocultando do destino o seu sentido, mas... Como eu amava aquele menino, pensei. E no

lamento, já embriagada, adormeci...

Eram três horas da madrugada quando despertei, os olhos embaçados ao ver os

números no relógio digital. Levantei da cama e fui ao banheiro, espiada pela lâmpada

pendurada no teto. Depois tomei dois copos de água, que acabei vomitando... Abri a porta que

dava para o corredor... Um silêncio sepulcral... Peguei o livro de Breton, aquele com os dizeres

de Paulo, e subi as escadas até o sexto andar. Ele devia estar dormindo, pensei, embora

pudesse jurar que ouvia uma música distante, muito distante... Deixei o livro sobre o tapete

aos pés da porta e voltei para o meu apartamento.

A semana transcorreu normalmente, embora eu estivesse distante, com o coração

apertado... Na sexta-feira, depois do expediente eu me encontrei com o Bruno num bar da Rua

Augusta para tomar uma cerveja.

- Conseguiu o que queria, mas no final deu tudo errado...

- Só para variar...

- Ah, sei lá... Vocês precisam conversar...

- E agora, o que eu faço naquele apartamento horroroso? Que saudades do meu

cantinho na Pompéia...

- É... E alugaram o seu apartamento para uma menina linda, que só anda com o cabelo

trançado...

- Já vi tudo...

- Vai ver é o destino...

- Destino... Isso é coisa de metrô...

E assim, depois de quatro cervejas e vários cigarros, Bruno me deixou em casa. Resolvi

subir até o terraço, espairecer um pouco, fumando um cigarro, certa de que não havia estrelas

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cadentes no céu de São Paulo. Sentei-me sobre uma plataforma de concreto e me deixei

esquecer, tentando imaginar as histórias de solidão que morrem anônimas, ofertadas à Deus.

- Oi, Rebeca...

- Paulo?

- Achei que já tivesse se mudado...

- Por quê?

- Ah... Alguém como você vir parar num lugar desses... Devia ter desconfiado...

- Eu só tinha uma fotografia, um poema e um pião. Essa é a verdade...

- Então foi você quem encontrou o meu tesouro?

- Você me pareceu um tesouro bem mais valioso.

- Aquele dia que eu passei lá em frente ao casarão... Eu estava tão feliz que queria

enterrar de vez aquele lugar, e toda a loucura de nunca conseguir sair de lá em meus

pesadelos...

- Você era feliz lá?

- Fui muito feliz naquele casarão. Tenho lembranças inesquecíveis... Mas nas sombras,

aquilo era o inferno... Os fantasmas atravessavam as paredes e me sufocavam... Eu me

rastejava pelo chão, quase imobilizado... Enlouqueci o suficiente para compreender que as

pedras também possuem alma.

- E agora?

- Por que não me contou a verdade?

- Por vergonha...

- Onde encontrou aquele livro?

- Num vendedor de rua...

- Isso sim, parece o destino...

- E é a parte mais cruel...

- Ler Breton?

- Acreditar que fosse realmente o destino, apenas implorando por uma ajuda...

- É... Milhões de paulistanos que se encontram todos os dias, sem saberem um do

outro...

- Você me desculpa, Paulo? Eu não podia ter invadido a sua vida... Não tinha esse

direito...

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- Sabe, gostei muito do texto que me enviou...

- Como se tivesse alguma coisa que você não soubesse...

- Tem muita coisa que eu ainda não sei...

- Por exemplo?

- Não sei quase nada de você...

Paulo se aproximou e me abraçou. Depois nossas mãos se entrelaçaram e ficamos ali

por um bom tempo, em silêncio, ouvindo o barulho dos carros sobre o elevado. São Paulo às

vezes parece vazia, em olhares afogados em copos de bebidas, ou em cigarros que nunca se

apagam. Mas também é o lugar perfeito para se sonhar...

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