As Tensões No Do Corpo Medieval

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  • 7/23/2019 As Tenses No Do Corpo Medieval

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    As tenses no/do corpo medieval

    Por Fernanda Luzia Lunkes*

    A concepo do corpo, o lugar que ocupa na sociedade e sua

    presena no imaginrio sofreram modificaes com o decorrer da

    histria, e Le Goff e Truong entendem que h uma grande lacuna

    histrica no que se refere ao corpo na Idade Mdia. A escolha deste

    perodo histrico, para os autores, deve-se, entre outros fatores, ao

    fato de que a Idade Mdia provocou uma revoluo nos conceitos enas prticas corporais desde o triunfo do cristianismo, nos sculos IV

    e V; porque a Idade Mdia aparece como a matriz do nosso presente

    mais do que qualquer outra poca, ajudando-nos a compreender

    melhor nosso tempo, tanto por suas convergncias surpreendentes

    como por suas irredutveis divergncias; porque na Idade Mdia

    que as instituies faro uso das metforas do corpo e o iro

    modelar.

    Os autores partem da hiptese de que algumas tcnicas vo

    traando uma histria para e no corpo, e que mesmo a vergonha, o

    constrangimento e o pudor tm uma histria. necessrio, portanto,

    sair de uma perspectiva natural desses acontecimentos para um olhar

    poltico sobre o civilizar o corpo. E mostrar suas tenses na Idade

    Mdia, o qual era glorificado e reprimido, exaltado e rechaado (p.29), das quais o cristianismo foi um dos grandes responsveis.

    No primeiro captulo, Quaresma e Carnaval: uma dinmica do

    Ocidente, os autores mostram como a Igreja buscava controlar os

    gestos corporais. O esperma e o sangue eram repugnados. Houve um

    intenso trabalho da Igreja no sentido de estabelecer a diferena entre

    o sangue de Cristo e o sangue impuro dos homens, inclusive o

    sangue menstrual da mulher. O sexo era controlado at mesmo entre

    os casais, cujo objetivo nico era o de procriar. No entanto, citando

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    muita polmica, porque havia os que defendiam a doena ligada ao

    corpo e aqueles que viam a doena como um castigo pelos pecados.

    Por isso, em geral, os milagres atribudos aos santos so milagres de

    curas.

    E neste sentido, a Igreja foi uma crtica terica da novidade

    (p. 114). A medicina buscava meios para atenuar os sofrimentos

    fsicos, mas mesmo assim permaneceu bastante estagnada, porque

    era inaceitvel considerar o corpo sem a alma. A medicina era antes

    uma medicina da alma. Houve, todavia, importantes inovaes

    tcnicas, principalmente na rea cirrgica.

    Foi a partir do tratado dos cuidados devidos aos mortos, de

    Agostinho, escrito em 421 e 422, que a Igreja inaugurou sua carta

    funerria para o Ocidente (p. 121). A Igreja passou a se encarregar

    dos mortos, ritualizando e regulamentando a morte. A morte passou

    a ser individualizada.

    A presena dos mortos ganhou muitos significados na Idade

    Mdia. As narrativas com espectros passaram a ser difundidas pela

    Igreja aps serem acusadas de supersticiosas e pags. O discurso

    cristo passou a apresentar o corpo dos mortos glorificado

    juntamente com a alma. Houve a redeno do corpo morto que era

    desprezado em vida. Mas uma questo atormentou telogos e

    provocou muita polmica na Idade Mdia: os corpos dos eleitos

    ficaro nus ou vestidos no paraso? Em geral optou-se pela nudez.

    Pela nudez codificada, civilizada. A partir da segunda metade do

    sculo XII, surgiu um terceiro lugar alm do cu e do inferno: o

    purgatrio, uma espcie de sala de espera para os pecadores

    comuns.

    As piores descries dos sofrimentos e dos castigos infernais

    eram corporais, principalmente a danao, que priva o condenado de

    ver a Santssima Trindade. Diversificaram-se os suplcios e procurou-

    se adaptar o castigo falta cometida. A Igreja tentou negar o corpo,

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    mas pela necessidade de dar visibilidade ao inferno, deu forma e

    volume aos corpos, no os excluiu.

    No terceiro captulo, Civilizar o corpo, os autores falam sobre

    a criao, pelo cristianismo e pela sociedade de corte nascente, deuma instituio das boas maneiras. Abordam tambm os modelos

    alimentares herdados pela Idade Mdia: a civilizao do trigo e a

    civilizao da carne e quais as conseqncias no imaginrio medieval.

    Uma delas, bastante relevante, foi que no lugar da oposio entre a

    civilizao do po e a da carne, que separava a civilizao dos antigos

    e dos brbaros, aparece ento a oposio entre pobres e ricos, que,

    de algum modo, se reveza com ela e a substitui (p. 137). Estapreocupao fez surgir os livros de culinria entre os sculos XIII e

    XIV. O alimento se transformou em cultura e a cozinha em

    gastronomia, dando refeio um carter social, codificado,

    hierarquizado.

    Os movimentos e os gestos corporais eram centrais na vida

    social na Idade Mdia, acentuando a tenso de uma sociedade naqual o corpo oscilava entre o glorificado e o desprezado. A nudez, por

    exemplo, encontrava-se no limiar entre a inocncia anterior ao

    pecado original e a luxria. Houve uma significao na passagem da

    nudez roupa, principalmente nos personagens iminentes da

    sociedade, e a nudez tornou-se cada vez mais associada selvageria.

    A beleza feminina dividia-se entre Eva, a tentadora, e Maria, a

    redentora, personagens que constituram os plos da belezafeminina na Idade Mdia.

    Os esportes na Idade Mdia eram praticados, embora no

    apresentem nem o carter de referncia sociedade de organizao

    institucional, nem as condies econmicas que foram as do esporte

    na Antigidade ou quando de seu renascimento, no sculo XIX (p.

    149). Os exerccios fsicos na Idade Mdia foram uma contribuio aoprocesso de civilizar o corpo.

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    No captulo O corpo como metfora, os autores mostram

    como na Idade Mdia se enraza o uso da metfora do corpo para

    designar uma instituio, seja na religio, na cincia, na literatura. H

    um trabalho poltico em associar certos rgos e lados com melhor e

    pior, superior e inferior. O corao tornou-se o lugar do sofrimento,por exemplo, enquanto o fgado foi associado s partes inferiores,

    vergonhosas. A mo repousou sobre uma grande tenso:

    representava a proteo e o comando ao mesmo tempo em que era

    um instrumento de penitncia, de trabalho inferior.

    O discurso poltico tambm se apropriou da metfora do corpo,

    utilizada com mais entusiasmo no sculo XII, principalmente nostratados. De modo geral, a cabea foi associada a permanecer ou a

    se tornar lder do corpo poltico. A metfora corporal estendeu-se

    tambm cidade, cuja idia a da necessidade solidria entre o

    corpo e os membros (p. 172), representando um conjunto funcional

    de solidariedades das quais o corpo foi o modelo.

    Le Goff e Truong conseguem abordar as prticas polticasinstitucionais com relao ao corpo e desconstruir noes

    cristalizados na sociedade atual. certo que o corpo no foi ignorado

    por algumas instituies que, cientes de sua importncia, tiveram o

    cuidado de control-lo, de civiliz-lo. A obra consegue, sem dvida,

    atentar para um perigoso jogo poltico com relao ao esquecimento

    do corpo na histria.

    * Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maring. Integra

    os Grupos de Pesquisa CNPq: GELCE: Grupo de Estudos UEM;

    NECOIM-Memria, Cultura, Oralidade e Imagem UNB. E-mail:

    [email protected]