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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Ascensão e declínio da pirataria marítima no Chifre da África: Territórios, territorialidades, escalas de ação e políticas de seguridade internacional Luana Alves Lessa 1 Resumo A pirataria marítima é uma atividade antiga que data desde 735 a.C (Botting, 1978). Em processos de ascensão e declínio, a pirataria marítima veio ao longo da história acompanhando as grandes rotas comerciais no globo. A atual conjuntura internacional marcada pela globalização de intensas trocas comerciais, onde 90% dos transportes comerciais são efetuados via transporte marítimo (Guedes, 2008; Kirby, 2008), se configura enquanto um cenário atraente para emersão dessa atividade. Nas últimas décadas, a região do Chifre da África despontou como um dos espaços de ação privilegiados da pirataria marítima, tendo seu ápice em 2011, contabilizando 237 ataques (IMB). Contudo, nos últimos anos, os números de ataques reportados vêm despencando nessa região, observando-se apenas 9 ataques em 2014 (IMB). Compreendendo a importância das estratégias de luta contra a pirataria marítima para a seguridade internacional, o presente artigo busca colaborar para a discussão de temas em voga na política internacional. Palavras-chave: Territórios; Territorialidades; Escalas de Ação; Políticas de Seguridade Internacional. Introdução A pirataria marítima, localizada em diversos pontos estratégicos (chock points) da circulação marítima mercantil, consiste em uma atividade criminosa que desafia o equilíbrio e a segurança do comércio internacional. Nesse âmbito, a pirataria marítima no Chifre da África, se insere enquanto importante caso a ser solucionado por agências internacionais de repressão a pirataria marítima, sendo a pirataria nessa região o objeto de estudo dessa pesquisa. O presente artigo tem como foco principal compreender a vital importância da manutenção da segurança nos mares como estratégia de luta contra o terrorismo. Desse modo, busca-se analisar com o objeto de estudo supracitado, as motivações que culminaram no surgimento da pirataria no Chifre da África, suas escalas de ação, seus territórios e territorialidades, no intuito de compreender as formas de atuação das estratégias de repressão dessa atividade, assim como o seu impacto sobre a pirataria nessa região. Para atingir o objetivo desse artigo, se faz necessário compreender os múltiplos contextos inseridos em diferentes escalas, para que se possa ter um entendimento amplo sobre o fenômeno em análise. Sendo assim, as escalas utilizadas nesse trabalho serão a nacional, regional e global, na busca de compreender como e de que forma o contexto de crise na Somália, acoplado com uma 1 Graduanda de Licenciatura em Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected] . UFRJ.

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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

Ascensão e declínio da pirataria marítima no Chifre da África: Territórios,

territorialidades, escalas de ação e políticas de seguridade internacional

Luana Alves Lessa

1

Resumo

A pirataria marítima é uma atividade antiga que data desde 735 a.C (Botting, 1978). Em processos de ascensão e

declínio, a pirataria marítima veio ao longo da história acompanhando as grandes rotas comerciais no globo. A atual

conjuntura internacional marcada pela globalização de intensas trocas comerciais, onde 90% dos transportes comerciais

são efetuados via transporte marítimo (Guedes, 2008; Kirby, 2008), se configura enquanto um cenário atraente para

emersão dessa atividade. Nas últimas décadas, a região do Chifre da África despontou como um dos espaços de ação

privilegiados da pirataria marítima, tendo seu ápice em 2011, contabilizando 237 ataques (IMB). Contudo, nos últimos

anos, os números de ataques reportados vêm despencando nessa região, observando-se apenas 9 ataques em 2014

(IMB). Compreendendo a importância das estratégias de luta contra a pirataria marítima para a seguridade

internacional, o presente artigo busca colaborar para a discussão de temas em voga na política internacional.

Palavras-chave: Territórios; Territorialidades; Escalas de Ação; Políticas de Seguridade Internacional.

Introdução

A pirataria marítima, localizada em diversos pontos estratégicos (chock points) da circulação

marítima mercantil, consiste em uma atividade criminosa que desafia o equilíbrio e a segurança do

comércio internacional. Nesse âmbito, a pirataria marítima no Chifre da África, se insere enquanto

importante caso a ser solucionado por agências internacionais de repressão a pirataria marítima,

sendo a pirataria nessa região o objeto de estudo dessa pesquisa.

O presente artigo tem como foco principal compreender a vital importância da manutenção

da segurança nos mares como estratégia de luta contra o terrorismo. Desse modo, busca-se analisar

com o objeto de estudo supracitado, as motivações que culminaram no surgimento da pirataria no

Chifre da África, suas escalas de ação, seus territórios e territorialidades, no intuito de compreender

as formas de atuação das estratégias de repressão dessa atividade, assim como o seu impacto sobre a

pirataria nessa região.

Para atingir o objetivo desse artigo, se faz necessário compreender os múltiplos contextos

inseridos em diferentes escalas, para que se possa ter um entendimento amplo sobre o fenômeno em

análise. Sendo assim, as escalas utilizadas nesse trabalho serão a nacional, regional e global, na

busca de compreender como e de que forma o contexto de crise na Somália, acoplado com uma

1 Graduanda de Licenciatura em Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected] .

UFRJ.

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instabilidade geopolítica regional, possibilitou o surgimento e desenvolvimento da pirataria, assim

como também compreender os impactos dessa atividade no mundo globalizado.

Somália (um Estado Nacional esfacelado) e a dinâmica geopolítica regional

A Somália é um dos países mais críticos do ponto de vista da seguridade internacional.

Estando no topo do ranking de Estados Falidos (Failed States)2, seu solo, ao longo dos últimos

anos, se tornou em um cenário de constantes crises políticas, pobreza, disputas territoriais e atuação

de atividades ilícitas como a pirataria marítima. Nesse âmbito, Kowalski (2011) atenta para o fato

de que a falência de um Estado Nação pode ser um agravante e/ou um facilitador para a ocorrência

e surgimento de atividades criminais.

“(...), contudo uma outra questão que deve ser tida em conta é a de que estados

incapazes de exercerem a sua soberania serem potenciais bases de actividade para

grupos de criminalidade organizada transnacional, ligados ao tráfico de seres

humanos, ao tráfico de armas, ao narcotráfico ou à pirataria, bem como de

organizações terroristas” (KOWALSKI, 2011).

A atual situação político-administrativa da Somália é fruto de um passado recente de

constantes conflitos geopolíticos na região do Chifre da África, assim como também possui forte

relação com a incapacidade de adequação das estruturas, político-sociais-administrativas, que

compõe os Estados Nação modernos ocidentalizados às sociedades africanas tradicionais.

Mendonça (2004) endossa, que essa falta de adequação estrutural tem como reflexo a ineficácia de

legitimidade desses Estados perante as suas populações. Nesse âmbito, se tratando especificamente

da Somália, Gerard Chaliand (1982) afirma que a estrutura organizacional somali é baseada na

divisão entre diversos clãs. Sendo assim, esse modelo social esbarra no molde estrutural dos

Estados Nação, tendo como reflexo a busca dos clãs por influência política e poder dentro do

governo.

O panorama conflituoso na região do Chifre da África assume seu ápice no período referente

a Guerra Fria, onde muitos países africanos buscaram o apoio dos EUA, da URSS e seus aliados

para angariar forças e armamentos em seus próprios conflitos territoriais. Nesse sentido, a Somália,

que havia iniciado suas disputas territoriais após a sua independência em 1960, sofre um golpe de

Estado nove anos depois, na qual Siad Barré, um general militar, assume o poder e estreita laços

2 Deve se ater que o termo Estados Falidos (Failed States) não se finca em um terreno conceitual sólido, pois os

diversos casos de falência estatal ainda desafiam os teóricos e estudiosos sobre o fenômeno a criar um conceito que

abarque e explique com exatidão a falência de Estados Nação.

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com a URSS, em prol de fortificar seus exércitos promover os seus conflitos territoriais. Os países

fronteiriços com a Somália, que possuíam regiões historicamente somalis – como a região de

Ogadén na Etiópia -, receosos com uma invasão somali em seus territórios, começaram a

implementar alianças para defesa mútua entre si e com grandes potencias (PREISS, 2005). Com a

expansão somali e a derrubada de Hailé Selassié do poder em 1974, a Etiópia assinou um tratado de

amizade e cooperação com Moscou e Cuba, revertendo o quadro conflituoso com a Somália em

1977. Abandonada por seus aliados da URSS, a Somália então resolve aceitar a ajuda oferecida

pelos EUA, que apoiavam o movimento somali de unidade nacional (PREISS, 2005). O poio

soviético e cubano à Etiópia pressionou a Somália, fazendo com que essa retirasse suas tropas de

Ogadén. Desse modo, em um jogo geopolítico complexo, a região do Chifre da África era palco de

intensos conflitos territoriais, dos quais tinham o apoio e o financiamento dos EUA e URSS, com o

intuito de expandir suas áreas de influência na região.

A situação da Somália era crítica, pois além da insuficiência na produção alimentícia

desafiar a segurança alimentar da população, também havia rastros fortes da guerra e um abuso dos

direitos humanos exercido por Barré, que embargava as ajudas humanitárias vindas do ocidente.

Nesse âmbito, a crescente insatisfação popular na Somália culminou na formação de movimentos

insurgentes, jogando o país em uma guerra civil. Em 1991, com a atuação de diversos grupos

militantes, o governo de Siad Barré foi deposto, aumentando, assim, as disputas por controle

territorial dentro do país. A incapacidade de promover um governo que controlasse toda a extensão

territorial da Somália e centralizasse o poder no Estado nacional, mergulhou o país em um total

descontrole estatal, deixando o governo reprimido a agir apenas na capital Mogadíscio. Ferreira

(2010) afirma, “Mesmo com a criação de condições para a resolução formal de vários conflitos na

presente década, derivada em boa parte de um maior protagonismo de actores africanos nesses

processos, as condições que determinam a fragilidade do Estado permanecem no longo-prazo”.

Desse modo, como atentado anteriormente, a incapacidade do governo Somali de controlar o seu

território possibilitou o surgimento de atividades ilícitas como a pirataria marítima e atuação de

grupos ligados a criminalidade como as milícias locais. Nesse sentido, Ferreira (2010) atenta, “(...)

uma fraca capacidade institucional, propicia o ressurgimento de conflitos e dificulta a consolidação

de uma verdadeira cultura democrática”.

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Surgimento e desenvolvimento da pirataria marítima no Chifre da África

O esfacelamento do Estado Nacional da Somália propiciado através da guerra civil, em um

processo de reterritorialização do espaço somali por grupos clânicos e milícias locais, teve como

consequência a reorganização espacial do poder no país, gerando assim, um cenário de

multiterritorialidades. Nesse sentido, de acordo com Haesbaert (2004), “ o que entendemos por

multiterritorilaidade é, assim, antes de tudo, a forma dominante, contemporânea ou „pós-moderna‟,

da reterritorialização, a que muitos autores, equivocadamente, denominam desterritorialização”

(HAESBAERT, 2004). Nesse âmbito, a Somália se tornou em um espaço de disputas territoriais,

caracterizando, assim, um processo de múltiplas territorialidades exercidas por diversos clãs e

milícias armadas no país. Para Sack (1986), a territorialidade é definida como sendo a “ tentativa,

por indivíduo ou grupo, de afetar, influenciar, ou controlar pessoas, fenômenos e relações, ao

delimitar e assegurar seu controle sobre certa área geográfica” (SACK, 1986). Desse modo, a

existência de vários territórios, que de acordo com Lopes (2013), seriam “relações de poder

espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial” (LOPES, 2013),

acoplado a um processo de desterritorialização do Estado Nacional Somali, que Haesbaert (2004)

define como sendo fruto do afastamento ou da fragilidade do Estado, impossibilitando a existência

de um aparato judicial nacional que vigore e seja legitimado em todo o país. De acordo com

Bonavides (1967), “chama-se princípio de legitimidade o fundamento do poder numa determinada

sociedade, a regra em virtude da qual se julga que um poder deve ou não ser obedecido”, desse

modo " a legitimidade é a legalidade acrescida de sua valoração", onde “a legalidade é referente ao

aparato jurídico, onde o Estado e o seu poder deve agir em legalidade, ou seja, agir de acordo com o

aparato legal das legislações vigentes em seu território nacional” (BONAVIDES, 1967). Sendo

assim, o processo de falência do Estado Nação da Somália, culminou em uma completa ineficácia

dos aparatos estatais que garantem a seguridade territorial do país e serviços de bem-estar social,

possibilitando, assim, a existência de espaços de atuação de atividades ilegais e a entrada de jovens

(desprovidos de expectativas de sobrevivência e melhora de vida) nos meios criminais.

Dentro desse panorama, a ineficácia de um patrulhamento marítimo atrelado a uma

inexistência de um aparato jurídico forte para manter o mar territorial da Somália protegido, fez

desse um espaço vulnerável perante a outros Estado, se tornando, assim, um alvo da prática de

pesca ilícita e depósito de lixo tóxico (GUEDES, 2010). Assolados pela fome; pobreza; faltas de

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recursos à saúde e sem um aparato estatal forte a quem recorrer, populações pesqueiras e antigas

guardas costeiras – frente a crise dos recursos piscatórios e o caos salutar causado pela ressurgência

dos barris de lixo tóxico (trazidos através do tsunami de 2004) do fundo do mar para a orla das

praias, atrelado pela impunidade que sustentavam os atos de pesca ilícita – desenvolveram

estratégias de proteção da costa marítima somali. Essas estratégias consistiam em práticas de

pirataria marítima, onde o principal alvo eram os navios pesqueiros estrangeiros, tendo como

objetivo o ataque seguido de sequestro e liberação após pagamento de resgate (ZAGO e MINILLO,

2008).

Desse modo, a pirataria marítima definida pela Organização Marítima Internacional (OMI) –

agência da ONU especializada em assuntos marítimos - como sendo “Qualquer ato ilícito de

violência, detenção ou qualquer ato de depredação cometidos: (I) em alto mar, contra outro navio

ou aeronave, ou contra pessoas ou bens a bordo dos navios ou aeronaves; (II) um navio ou uma

aeronave, pessoas ou bens em lugar não submetido à jurisdição de qualquer Estado; (art 101 –

UNCLOS , 1982), surge na região do Chifre da África à priori como estratégia de proteção à costa

somali, contudo, a prática dessa atividade se mostrou altamente lucrativa, atraindo, assim, novos

atores como senhores da guerra e milícias locais, fato este que propiciou o desenvolvimento e

especialização da mesma, tornando-a, posteriormente, em uma atividade econômica ilícita

endêmica na região (ZAGO e MINILLO, 2008).

Desse modo, no que tange a sua localização, a Somália é beneficiada por sua posição

geoestratégica privilegiada, ocupando uma extensão de 3.025 km de costa, contornando a maior

parte da zona costeira do Chifre da África, que por sua vez, consiste em um espaço chave para a

circulação marítima mercantil entre a Ásia a Europa. Desse modo, de acordo com as lógicas

territoriais de atuação da pirataria marítima, onde os ataques piratas têm como prioridade espacial

de atuação os pontos estratégicos (chock points) das redes marítimas de circulação de mercadorias,

a região do Chifre da África se torna um espaço interessante para a prática dessa atividade, pois o

alto fluxo de navios se reverte em um alto lucro para atividade pirata (ver mapa 1).

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Mapa 1

(Fonte: Revista de Marinha)

Nessa perspectiva, a transformação da pratica da pirataria em uma atividade econômica para

muitos somalis, fez com que se alargasse o perfil dos alvos de ataques, ou seja, se em um primeiro

instante os piratas tinham como objetivo proteger a costa da Somália atacando apenas os navios

pesqueiros, em um segundo momento há uma mudança de objetivo, onde o foco passa a ser

puramente o lucro da atividade, fazendo com que qualquer navio que transitasse pela região se

tornasse em um alvo em potencial (ZAGO e MINILLO, 2008).

A especialização da pirataria marítima na região, assume características próprias de

organizações criminosas, onde segundo Gomes (1999) a atuação dessas contam, entre outros

fatores, com: estrutura hierárquica; utilização de tecnologias sofisticadas; recrutamento e

direcionamento de funções; estrutura empresarial de planejamento da atividade; intuito de obtenção

de lucros ilícitos; poder de intimidação e conexão com outras organizações criminosas (GOMES,

1999). Nesse sentido, o desenvolvimento dessa atividade passa por uma lógica econômica de

ampliação de lucros, que, por sua vez, é possibilitada através de dinâmicas territoriais, onde a

ampliação das escalas de ação é o principal trunfo estratégico da pirataria marítima nessa região.

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Segundo Cox (1998), a atuação de atividades econômicas, políticas e sociais tendem a se

territorializar em áreas denominadas por ele como “espaços de dependência”, onde a partir das

necessidades de expansão econômica e/ou territorial, sobrepujam suas fronteiras de dependência,

expandindo suas áreas de atuação, caracterizadas de “espaços de engajamento”, onde se formam

diferentes escalas de ação (Cox,1998). Sendo assim, a atuação da pirataria marítima segue em linha

cronológica uma expansão de suas escalas de ação (ver mapa 2).

Mapa 2

Desse modo, a expansão de suas escalas de ação propiciou um aumento expressivo na

quantidade de ataques ocorridos. Esse fato é endossado quando se compara a ampliação dos espaços

de atuação, demonstrados no mapa 2, com os dados fornecidos pela International Maritime Bureau

(IMB), onde foram reportados à instituição, 45 ataques em 2005, tendo uma evolução quantitativa

em 2011, marcando, assim, 237 ataques (ver gráfico 1). Nesse sentido, de 2005 a 2011, verifica-se

um período de ascensão da atividade pirata no Chifre da África.

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Gráfico 1

Impactos da pirataria marítima no mundo global

Em um mundo marcado pela globalização de intensas trocas comerciais, onde essas são

efetuadas majoritariamente por transporte marítimo, constituindo cerca de 90% do movimento de

cargas comerciais (GUEDES, 2008), a pirataria marítima atinge um grau de importância

proeminente.

O processo de globalização, ao mesmo tempo em que dinamiza a circulação de fluxos

comerciais, financeiros e informacionais, também potencializa a dimensão de certos fenômenos de

uma escala local para uma global. Nesse sentido, a pirataria marítima, situadas em escalas locais e

regionais, podem vir a tomar proporções problemáticas em escala global, uma vez que ameaçam a

segurança e a fluidez do mercado mundial. Sendo assim, a globalização aumenta o potencial de

ameaças à seguridade internacional, o que por sua vez reflete numa modificação da percepção e

proposição de soluções de organizações internacionais perante à conflitos ocorridos em escalas

locais, como a pirataria marítima no Chifre da África.

Nesse âmbito, a pirataria ocorrida nessa região, em especial, impacta e assusta a comunidade

internacional, devido a magnitude da quantidade de ataques já ocorridos e pela extensão de seus

espaços de ação. De acordo com o relatório expedido pelo Banco Mundial (THE PIRATES of

SOMALIA: Ending the Threat, Rebuilding a Nation), os impactos gerados pela pirataria no Chifre

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da África chegam a equivaler um aumento de 1.1 percentual sobre os valores das cargas que

transitam pelo Golfo de Áden. Esse relatório afirma que em 2010, as estimativas de gastos gerados

pela pirataria no mundo chegam a marca de US$18 bilhões (±US$6 bilhões), sendo que os

transportes comerciais que transitam por ano na região do Chifre da África carregam em valores

uma média de US$1.62 trilhões. Outro relatório expedido pelas Nações Unidas em 2010 (The

globalization of crime: a transnational organized crime thresat assessment), estimava que os lucros

obtidos pelos piratas da Somália chegavam a contabilizar 100 milhões por ano (UNODC, 2010). A

UNDC, aponta que de 2008 para o final de 2009, houve um aumento considerável dos prêmios de

seguros para navios que operam nas águas dessa região, onde os valores despontam de US$ 20.000

para US$ 150.000. Nesse sentido, os impactos causados pela pirataria na região implicam

fundamentalmente em gastos exorbitantes à economia mundial, que por sua vez refletem um

aumento expressivo no valor final das mercadorias que transitam por regiões de instabilidade de

segurança.

Estratégias de repressão e declínio da pirataria marítima no Chifre da África

O impacto financeiro gerado pela pirataria marítima no Chifre da África ameaça

circunstancialmente a estabilidade do comércio internacional. Nesse sentido, há um grande interesse

da comunidade internacional em garantir a segurança dos mares. A criação de novas rotas que

evitam a passagem por regiões de periculosidade, no entanto, nem sempre se mostram enquanto

alternativas mais eficazes, sendo muitas vezes mais dispendiosas e custosas. Sendo assim, a

segurança da circulação marítima através de patrulhamento dos mares e guarda armada, é tida como

o método mais eficaz na estratégia de luta contra o terrorismo.

A criação de organizações internacionais de monitoramento de crimes marítimos, como a

International Maritime Bureau (IMB), que fornece dados expressivos sobre os casos de pirataria no

mundo, assim como acordos entre diversas nações que compõem a Combined Maritime Forces (ver

figura 1), se tornam essenciais para compreender a dispersão espacial e o modo operatório das redes

de pirataria marítima, criando assim estratégias eficazes de repressão a essa atividade.

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Figura 1

De acordo relatório da UNODC (2010), citado precedentemente, o Conselho de Segurança

da ONU, estabeleceu em 2009 a criação de um grupo denominado Contact Group on Piracy off the

Coast of Somalia (CGPCS), para facilitar os esforços empreendidos por 60 países e 20 organizações

internacionais na luta contra a pirataria marítima. A criação de uma base de monitoramento em

Djibuti, a Regional Anti-Piracy Prosecutions Intelligence Coordination Centre (RAPPICC) junto

ao programa de parceria da Comissão Anti-Pirataria no Oceano índico, são um trunfo estratégico na

luta contra essa atividade no Chifre da África, complementando assim, a atuação de prevenção e

segurança marítima na região (UNODC, 2010). Essas organizações internacionais buscam o

reconhecimento das escalas de ação utilizadas pelos piratas, para atuar nos pontos específicos de

maior vulnerabilidade, garantindo assim a segurança nos mares. Nesse sentido, os esforços anti-

piratia buscam ampliar suas escalas de ação em um processo de acompanhamento e controle sobre

os espaços de ação da pirataria marítima na região (ver figura 2).

Figura 2

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As estratégias de prevenção contra a pirataria marítima contam com duas linhas de atuação:

ação setorial, que consiste na prevenção (a partir de divulgação de manuais de instrução e difusão

de informações) e na autodefesa com contratação de empresas de segurança; e ação internacional,

formada a partir de organizações internacionais que garantem a vigilância e a presença militar nos

mares.

Os esforços de prevenção a pirataria marítima tiveram como reflexo a expressiva queda dos

números de ataques exercidos nessa região nos períodos de 2011 a 2014 (ver gráfico 1). Nesse

âmbito, é visível a importância da defesa internacional na resolução dos casos de pirataria marítima

no Chifre da África.

Conclusão

As ações da pirataria marítima impactam diretamente sobre a atividade econômica global,

em especial a pirataria localizada no Chifre da África, uma vez que essa região ocupa um local

proeminente e estratégico para as rotas comerciais. Os valores em dinheiro que essa atividade

movimenta e impacta à economia global são exorbitantes, o que por sua vez revela a necessidade de

ações internacionais em reverter essa situação.

No âmbito do surgimento da pirataria marítima, o presente artigo busca atentar sobre o fator

principal de sua ocorrência, que consiste no esfacelamento do Estado Nacional somali e sua

consequente ineficácia em dispor as condições necessárias para a manutenção da segurança/controle

territorial e qualidade de vida aos cidadãos da Somália. Desse modo, o intuito do artigo é relatar que

para além da necessidade de combater os atos de pirataria praticados na região, também se faz

importante empreender ações internacionais que auxiliem a Somália a se reestabelecer

economicamente e politicamente, vendo nesse caminho uma possível alternativa de minar as

possibilidades de mais jovens somalis ingressarem em organizações criminosas, como a pirataria

marítima. Nesse sentido, acredita-se que em um ambiente de falta de emprego e qualidade de vida,

o ingresso às atividades criminosas se torna uma opção viável para populações em situação de

pobreza. Desse modo, a ideia trazida aqui é de que o fim da pirataria nessa região passa por dois

importantes caminhos, sendo eles o reestabelecimento e fortalecimento do Estado Nacional da

Somália e a prevenção e combate dessa atividade.

No que concerne ao considerável declínio da pirataria marítima no Chifre da África, a

atuação de diversas organizações internacionais na prevenção e combate a essa atividade foram o

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ponto primordial para a queda da mesma. Sendo assim, o presente artigo busca endossar a

importância da atuação dessas organizações na luta contra o terrorismo, demonstrando, a partir

desse estudo de caso, que a cooperação entre as nações, no intuito de minimizar e erradicar as ações

de terror e insegurança internacionais, é um caminho eficaz e frutífero.

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