38
1 As Origens Nós fomos “descobertos” 250 anos depois da Bahia. Temos as mesmas características luso-brasileiras e africanas, mas de épocas diferentes e com outras misturas de povos europeus e da fronteira castelhana que eles não têm. As raízes deles são muito mais antigas e predomina a questão da colonização escravagista. Para nós aqui as guerras foram mais marcantes. Havia muita morte, muita luta e muito luto. Não éramos tão dados à música, bailes e festas, porque dos nossos 250 anos, 100 foram de guerra. Isso precisa ser analisado antropologicamente para se verificar as razões do comportamento da comunidade, as ideias políticas, a cultura e tudo mais. (Paixão Côrtes, folclorista) Antes de tudo, os índios. Cidades brasileiras como Salvador e Rio de Janeiro tinham já mais de dois séculos. Mas as ocas de palha eram as únicas construções à beira do Guaíba, quando, em 1732, chegam os primeiros sesmeiros aos chamados campos de Viamão região que ia do estuário até o litoral Norte do Estado, compreendendo a futura Porto Alegre. Não vinham pra povoar, e, sim, pra reinar absolutos sobre intermináveis campos, sediados em fazendas onde criavam gado. E mais nada. Eram apenas três: Dionísio Rodrigues Mendes, Sebastião Francisco Chaves e Jerônimo de Ornellas Menezes e Vasconcelos. Nenhum tinha a sede de suas terras onde hoje é a capital gaúcha. Mas parte das fazendas de todos passava por ali. A primeira povoação no Continente de São Pedro surgiria cinco anos depois: Vila de Rio Grande, com seu respectivo forte. Seria a sede da província até 1763, quando as eternas guerras contra os castelhanos perdem o lugarejo para os invasores da Banda Oriental. E perde feio: quase todo o território do que seria hoje o Rio Grande fica todo sob o poder dos espanhóis. O remédio é transferir o comando para outra cidadezinha, Viamão. Entre uma coisa e outra, em novembro de 1752, começa a história que nos interessa. 1752 = Ontem.

As_origens Da Música Popular Em Poa

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Musicologia

Citation preview

Page 1: As_origens Da Música Popular Em Poa

1

As Origens

Nós fomos “descobertos” 250 anos depois da Bahia. Temos as mesmas características luso-brasileiras e africanas, mas de épocas

diferentes e com outras misturas de povos europeus e da fronteira castelhana que eles não têm. As raízes deles são muito mais antigas

e predomina a questão da colonização escravagista. Para nós aqui as guerras foram mais marcantes. Havia muita morte, muita luta e muito

luto. Não éramos tão dados à música, bailes e festas, porque dos nossos 250 anos, 100 foram de guerra. Isso precisa ser analisado

antropologicamente para se verificar as razões do comportamento da comunidade, as ideias políticas, a cultura e tudo mais.

(Paixão Côrtes, folclorista)

Antes de tudo, os índios. Cidades brasileiras como Salvador e Rio de Janeiro tinham já

mais de dois séculos. Mas as ocas de palha eram as únicas construções à beira do Guaíba, quando, em 1732, chegam os primeiros sesmeiros aos chamados campos de Viamão – região que ia do estuário até o litoral Norte do Estado, compreendendo a futura Porto Alegre.

Não vinham pra povoar, e, sim, pra reinar absolutos sobre intermináveis campos, sediados em fazendas onde criavam gado. E mais nada. Eram apenas três: Dionísio Rodrigues Mendes, Sebastião Francisco Chaves e Jerônimo de Ornellas Menezes e Vasconcelos. Nenhum tinha a sede de suas terras onde hoje é a capital gaúcha. Mas parte das fazendas de todos passava por ali.

A primeira povoação no Continente de São Pedro surgiria cinco anos depois: Vila de Rio Grande, com seu respectivo forte. Seria a sede da província até 1763, quando as eternas guerras contra os castelhanos perdem o lugarejo para os invasores da Banda Oriental. E perde feio: quase todo o território do que seria hoje o Rio Grande fica todo sob o poder dos espanhóis. O remédio é transferir o comando para outra cidadezinha, Viamão.

Entre uma coisa e outra, em novembro de 1752, começa a história que nos interessa.

1752 = Ontem.

Page 2: As_origens Da Música Popular Em Poa

2

E nem falemos em padrões europeus ou orientais. Mesmo se a

gente pensa na história das Américas, Porto Alegre é uma cidade recentíssima. Benjamin Franklin provava que a luz era um fenômeno elétrico, Minas Gerais estava em pleno ciclo do ouro e até poetas tinha, e n-a-d-a havia em Porto Alegre, além do ancoradouro nos fundos das terras de Jerônimo de Ornellas. Ali, neste ano, desembarca uma tropa de oitenta paulistas comandados pelo tropeiro Cristóvão Pereira de Abreu.

Bom. Nada, nada, não. Afinal, mal eles chegam, dão de cara com um amontoado de gente – instalado de forma precária e improvisada e, ainda por cima, irritando o dono da sesmaria. Jerônimo queria era criar gado e não sustentar o que, para ele, era pouco mais que uma praga de carrapatos. Efetivamente, Ornellas não fez nada por aqueles 52 paulistas, oito negros escravos e dezenas de casais de imigrantes portugueses.

Mas de onde tinha saído aquela gente? Os paulistas e os negros, que haviam chegado antes, estavam

ali para construir as canoas que levariam os estrangeiros até as Missões, subindo o rio Jacuí. Já os tais casais estavam destinados a uma futura ocupação dos territórios recém negociados entre Portugal e Espanha no Tratado de Madri. Assinado em 1750, ele definia que os espanhóis entregavam aos portugueses os Sete Povos das Missões, em troca da pioneira e estratégica Colônia do Sacramento, situada na boca do Rio da Prata, no que hoje é o Uruguai.

Como se sabe, ninguém levou em consideração o que índios e jesuítas que moravam ali pensavam da mudança. O tempo fechou furiosa e imediatamente, nas Guerras Guaraníticas. Obviamente, o pessoal se recusava a abandonar tudo que haviam construído em quase um século. A guerra propriamente dita vai de 1754 a 1756 (e é

Page 3: As_origens Da Música Popular Em Poa

3

nela que o índio guerreiro Sepé Tiarajú se imortaliza como mito, junto com a frase “essa terra tem dono”, que 250 anos depois ainda seria um bordão de militantes gaúchos das mais variadas cores políticas). Aí imagina o rolo: justamente no meio desse entrevero chegam os pobres e inocentes imigrantes. Sua alegre e despreocupada missão era povoar a área situada justamente no coração da peleia. Quando souberam da – literal – indiada em que iam se meter, acharam que talvez fosse o caso de esperar um pouco para subir o rio.

Enquanto isso, descansariam dos quase três meses de viagem desde os Açores: pequenas ilhas perdidas no meio do Atlântico Norte, na altura de Portugal – mas muito mais perto da América do Norte do que do sul do Brasil. Pobres açorianos: se chegando no Novo Mundo encontraram esse pepino, a situação no seu arquipélago natal também não estava nada boa. Uma série de colheitas malsucedidas deixou a população quase sem ter o que comer. Foi quando, ainda em 1746, foi acertado o envio de quatro mil casais da ilha para o Brasil. Mas, destes, só mil famílias (cinco mil pessoas), peitaram a viagem em condições precárias até lugares de nomes animadores como Ilha do Desterro – a atual Florianópolis.

A tradição fala até num número exato que teria aportado nas terras de Ornellas: míticos 60 casais. Vieram colocar-se no ponto em que hoje pompeia, grande já e caminhando para o mais brilhante futuro, a nossa formosa capital. Essa frase, escrita em 1910, é de Achylles Porto Alegre, que teve o melhor de suas duas dezenas de publicações compilado pela primeira vez em 1940 no livro História Popular de Porto Alegre. E que também registra como peculiaridade açoriana a sua fecundidade extraordinária: (...) raro é o casal que não contava mais de seis filhos, e alguns, como o do Lopes, atingiram a fabulosa cifra de 21 filhos, e o do Manoel Jacintho, a de 30 filhos, sendo 15 de cada uma das mulheres com quem foi casado!!

Não é de admirar que o povoado tenha crescido rápido. Na verdade, nem povoado era aquele punhado de (ainda

segundo Achylles): choupanas de taquaras, ripas, barro e colmo, cobertas de capim, aleatoriamente distribuídas onde é hoje a Praça da Alfândega. Paralela à praia, uma única rua, evidentemente batizada…

Rua da Praia. E assim, completamente ao deus-dará, se passam vinte anos de

“acampamento provisório” do que já foi definido pelo pesquisador Eduardo Neumann como os primeiros sem-terra da história do Rio Grande.

Page 4: As_origens Da Música Popular Em Poa

4

Por volta de 1770, o cenário pelo menos contava com uma enfermaria, armazéns, aquartelamentos, alguma lavoura de trigo, plantações de frutas, cemitério e a capela de São Francisco, localizada onde é hoje a esquina da Rua da Praia com a Caldas Júnior. Além dos açorianos originais, o povoado recebia muita gente fugida dos castelhanos, que dominaram por 13 anos o sul do Estado. Isso gerou alguma atividade, como entreposto de comércio e muita frequência de militares em alerta contra um possível ataque. O toque de recolher é obrigatório: ninguém nas ruas depois das nove da noite no inverno, dez da noite no verão.

Um cenário quase desolador, que é o que se mostra aos olhos do governador José Marcelino de Figueiredo.

Sim! Um governador! Marcelino é empossado em 23 de abril de 1769 e vai ser o

primeiro grande cara da futura cidade. E vem animado, porque, em função do rio, o povoado está situado em posição muito mais estratégica do que a então capital Viamão. A 26 de março do ano da graça de 1772, Marcelino consegue que o Vice-Rei desmembre esse porto da sua sede, Viamão. A então Freguesia de São Francisco dos Casais tem já mil almas e três ruas: seguiam, paralelas à Rua da Praia, a Rua do Cotovelo (atual Riachuelo) e a Rua Formosa (hoje Duque de Caxias).

Pouco mais de um ano depois, a freguesia é promovida a capital da província, rebatizada de freguesia da Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre. E 27 anos depois, Portugal paga a promessa de terras feita aos pioneiros açorianos: desapropriam parte da sesmaria de Ignácio Francisco de Melo, finalmente tornando donos de suas terras os imigrantes que ali moravam (e alguns dos filhos dos que tinham morrido esperando). Cada família recebe um lote de meia data, cerca de 135 hectares. Obviamente, não no atual centro da cidade, mas em zonas que, em alguns casos, são campo até hoje, como os extremos suis de Porto Alegre. Como homenagem à paciência lusitana, o agora município se chamava Porto dos Casais.

José Marcelino é reeleito e, veja que exótico, ordena que os vereadores da cidade se mudem para ela – todos moravam em Viamão e pegavam o Caminho do Meio (atual avenida Protásio Alves) para vir de a cavalo* de seus sítios quando havia sessão da câmara. Em 1774, já eram 1.500 os porto-alegrenses. Um terço deles, escravos. Proporção que se manteria inalterada por mais de 100 anos.

Page 5: As_origens Da Música Popular Em Poa

5

* * *

Os açorianos são até hoje um povo pacato, cordial e festeiro.

Achylles cita um tal Acurcio Ramos e seu livro Notícia do Archipelago dos Açores: amam a música, a dança, as representações teatrais, as reuniões de máscaras, as loucuras do carnaval, as cavalhadas, as corridas de touros e as festas do Espírito Santo, as mais populares e gerais do arquipélago. Tudo isso, nos intervalos entre a feitura de um filho e outro. E o que dançavam? A chimarrita e o pezinho, por exemplo. Também é bom explicar o que eram as cavalhadas: alegóricas lutas entre mouros e cristãos, peças de resistência do folclore ibérico que teriam, no futuro, adeptos como Bento Gonçalves, Davi Canabarro e o Marechal Osório.

O rico folclore açoriano foi peça-chave na formação do que seria a música gaúcha e porto-alegrense. Duzentos e cinquenta anos depois de chegarem de sua terra, esses cantos e danças ainda fazem parte do repertório dos Centros de Tradições Gaúchas espalhados pelo mundo. Cantos e danças cuja origem se perde na memória das Ilhas, oriundos da mais profunda Idade Média continental.

A ele vão se somando as primeiras novidades culturais da cidade: no mesmo 1794 em que começa a exportação do trigo local e se torna obrigatório o calçamento na frente das casas, é inaugurado o primeiro teatro.

A Casa da Commédia era pouco mais que um comprido barracão de pau a pique, mas contava com 36 camarotes e uma plateia para mais de 300 espectadores – mais ou menos o mesmo tamanho do futuro Theatro São Pedro. E não emplacou. O pessoal gostava mesmo era das funções ao ar livre, que aconteciam aos domingos e feriados. Era montado um tablado entre os dois principais largos da cidade. E ali, conta o historiador Athos Damasceno, trupes ocasionais de instrumentistas e funâmbulos ofereciam ao povo o variado programa de suas habilidades e proezas.

Em 1803 (há quem fale em 1797), a Casa da Commédia muda de nome – e estado de espírito – para Casa da Ópera, pretensamente inoculando na população o vírus do canto lírico que viraria epidemia anos mais tarde. Mas ela também fecha suas portas rapidamente.

Mozart já tinha até morrido, a corte portuguesa estava às vésperas de se mandar pro Brasil e, desde a segunda invasão espanhola ao Rio Grande do Sul, em 1773, a futura Porto Alegre era

Page 6: As_origens Da Música Popular Em Poa

6

cercada de muros, como as cidades medievais. O único portão era guardado por soldados e, depois de certa hora, ninguém entrava nem saía. Pra completar o quadro de quase burgo medieval, tambores rufavam para avisar que havia algum novo edital a ser lido na frente do palácio do governo. O escrivão ou sargento lia, e este era repetido em voz altíssima pelo porteiro Manoel da Espada. Que, pra melhorar as coisas, era fanho.

* * * *em gauchês castiço, a pessoa pode ir de a pé ou de à cavalo

* * *

Os registros locais mais antigos sobre música são de bandas tocando pelas ruas em 1804, festejando a custosa reinauguração da Casa da Ópera pelo governador Paulo José da Silva Gama. O teatro reaberto receberia montagens dramáticas e pantomimas humorísticas encenadas pela mocidade local – só na metade do século XIX é que a ópera em si, principalmente italiana, começa a ditar moda para os postulantes à categoria de pessoa refinada. Mas, também, daí até 1900, o vasto apetite operístico da capital seria muito bem saciado, em função das temporadas de grandes artistas europeus fazendo escala entre o centro do país e o Teatro Colón, em Buenos Aires.

As apresentações aconteciam, basicamente, aos domingos. Atrações anunciadas pelos próprios artistas, ali mesmo no que foi batizado de Beco da Ópera. Dali saiam, ao meio-dia, meia dúzia de mascarados ao som de tambores, trazendo seus toscos cartazes escritos à mão. Dava certo: à noite, lá se iam as famílias assistir ao espetáculo, precedidas de negrinhos segurando lampiões – não havia iluminação pública. E seguidas de criados carregando cadeiras – não, o teatro não as fornecia.

Também se cantavam canções populares das quais só restaram os curiosos nomes, como o Dueto do Meirinho e a Pobre, ou a Ária do Galego… E há pelo menos um registro de letra, de uma ária finalizada com um trocadilho que, se alguém entendeu, explique:

Vivam as bonitas moças Que sabem enamorar;

Page 7: As_origens Da Música Popular Em Poa

7

E aquelas que consolam E nos movem a suspirar.

Ou viúvas ou donzelas, Não se há de examinar; Basta que sejam belas Para sempre se amar.

As velhas pois escusamos

Basta que conclua… à… mos.

Grupos de atores e atrizes da Corte também vinham exercitar a arte de Thalia e ganhar uns trocados. Atrizes, aliás, geravam suprema curiosidade, já que os grupos e sociedades teatrais locais ainda seguiam as mais antigas tradições europeias, contando apenas com homens – mesmo nos papéis femininos. Como curiosidade, um dos donos da Casa da Ópera era um padre chamado Amaro. Sabe-se lá que crimes cometia.

Em 1822, como se sabe, o impetuoso imperador Dom Pedro I grita “Independência ou Morte!”, e o pessoal não se acanha em agarrar a primeira opção. Porto Alegre estreia então no Brasil Império passando à cifra de dez mil almas e elevada – como todas as capitais de província - à condição de cidade.

* * *

Em 1820, o botânico francês Auguste Saint-Hilaire, ilustre

viajante de um tempo de viajantes ilustres, passa uns tempos na cidade. E escreve sobre ela: Surpreendeu-me o seu movimento. (…) Veem-se pouquíssimos mulatos. A população compõe-se de pretos escravos e de brancos, (…) homens grandes, belos, robustos, tendo a maior parte a pele corada e os cabelos castanhos. (…) Todas as casas são novas e muitas ainda em construção. Logo em seguida, conclui, esvaindo todo possível encantamento: Mas, depois do Rio de Janeiro não tinha ainda visto uma cidade tão imunda, talvez mesmo a Capital não o seja tanto (…) As encruzilhadas, os terrenos baldios e, principalmente, as margens da lagoa são entulhadas de sujeira; os habitantes só bebem água da lagoa e, continuamente, veem-se negros encher seus cântaros no mesmo lugar em que os outros acabam de lavar as mais emporcalhadas vasilhas.

Page 8: As_origens Da Música Popular Em Poa

8

Ele se surpreende como até hoje visitantes de países frios o fazem, pelos mesmos motivos: frio se repete anualmente; todos se queixam dele, o que é de admirar-se, pois ninguém toma providências para defender-se do inverno; só cuidam de agasalhar o corpo com roupas pesadas. (…) Ninguém pensa em (…) lareira.

Os hábitos sociais dessa gente também lhe causam curiosidade: Aqui as mulheres não se escondem; mas não há mais vida social em Porto Alegre do que nas outras cidades do Brasil; cada um vive em casa ou visita o vizinho, sem cerimônia, de casaco ou de capote. Em 12 de julho, o francês é convidado a participar de um típico sarau desses anos. E deixa escrito um raríssimo testemunho de época: Essa casa era uma das mais prestigiosas de Porto Alegre. (…) Encontrei num salão bem mobiliado e forrado de papel francês, uma reunião de 30 a 40 pessoas, entre homens e mulheres. Em se tratando de parentes e amigos íntimos, não havia luxo nos trajes. (…) Dançaram valsas, contradanças e bailados espanhóis; algumas senhoras tocaram piano, outras cantaram com muita propriedade, acompanhadas ao violão, e o sarau terminou com jogos de salão. No final do mês, já se despedindo, novo comentário: São frequentes as reuniões nas residências para saraus, e algumas senhoras tocam, com maestria, o violão e o piano. Curiosidade: o violão não era instrumento considerado de bem em outros estados brasileiros nesta época. E logo em seguida seria banido também dos lares porto-alegrenses.

Corroborando as informações de Auguste, em 1827, passa pela cidade um oficial do Exército Imperial Alemão, chamado Karl Schidler, e narra algo parecido: Grande recomendação ao forasteiro será saber tocar alguns instrumento de música, sobretudo piano, mesmo pouco, pois o piano se encontra em todas as boas casas. As mulheres quase todas tocam, embora mais de ouvido e prática do que por estudo regular. E segue: Encontrei maneiras distintas em todas as pessoas da sociedade. As senhoras conversavam sem constrangimento com os homens; estes as cercavam de gentilezas. (…) Desde que estou no Brasil ainda não tinha visto uma reunião semelhante. Apesar de Salvador e Rio seguirem sendo as cidades mais badaladas, ele acha a pequena vila desenvolvida e movimentada. E, a julgar por dois comentários distintos, as moças da cidade eram efetivamente menos reprimidas que a média nacional.

Mas talvez não concordasse com a afirmação de outro viajante francês, Arsène Isabelle, que esteve na capital em 1833, quando ela

Page 9: As_origens Da Música Popular Em Poa

9

já contava doze mil habitantes e construía, em média, uma casa nova por dia: conheci alegres, lindas, amáveis e…, diria, graciosas mulheres que não teriam pedido mais do que passear amiúde, frequentar a sociedade, enfeitar-se e animar com sua presença as reuniões de homens, reuniões que achei muito tristes e frequentemente insípidas, pra não dizer desagradáveis. Logo em seguida, muda de ideia: não posso silenciar: as brasileiras desta Província não são nem belas nem graciosas. Em vão exageram e sobrecarregam-se de joias, broches, flores e ninharias: tudo isso não anima sua tez, nem dá expressão a seus olhos.(…) Sua fisionomia (…) não indica nada, nem mesmo ingenuidade. Têm, em público, um rosto de autômatas e nada mais. Eis o que fizeram os portugueses! Dizem que elas são muito vivazes na intimidade e apaixonadas ao excesso, mas apaixonadas por si mesmas. E conclui, num dandismo ímpar: Um chapéu dura uma eternidade, e modas que maravilham o Brasil são antiquadas há mais de seis anos na nossa terra.

* * *

Sobre talentos individuais, nessa Porto Alegre dos 1800, sabe-se pouco: há registros de um certo Inácio Músico, que se chamava Inácio José de Figueiras, morava no Alto da Bronze e tocava órgão nas missas do Padre Vira Cambota (!), acompanhando muitas vezes o tenor Amândio.

Ou então o Correia Músico, natural de Viamão, que tocava na Casa da Ópera. E a dupla Corneta e Quinca do Violão, que se apresentava onde desse. Quinca também tocava rabeca, e foi compositor de pelo menos uma valsa e uma contradança de grande popularidade – chamadas justamente Valsa do Quinca e Contradança do Quinca. Tem ainda o alferes José Victorino Pereira Coelho, vulgo Rascada, violonista e cantor de pioneiras modinhas e lundus porto-alegrenses (e que espetacular achado seria encontrar algum registro delas). Também ficou lembrança do instrumentista Peres, com seu olho azul e outro pardo. E de João Batista Rabecão, que tocava contrabaixo – vulgo rabecão – nas missas (pra vocês verem como o troço já foi mais animado).

A todas essas, também poucos registros dos negros escravos e sua música. Nas imediações onde hoje é a rua Lima e Silva, havia o Candombe da Mãe Rita. Não, não era candomblé (ainda que Achylles Porto Alegre fale nos candomblés da rua Avahy). Era candombe,

Page 10: As_origens Da Música Popular Em Poa

10

como o ritmo criado pelos negros de Montevidéu que hoje é o gênero básico da música da capital uruguaia. O Candombe da Mãe Rita reunia domingos a tarde escravos roubados das mais variadas nações africanas, que ficavam a misturar suas diferentes músicas, tocadas com uma variedade de instrumentos de dar água na boca de qualquer percussionista atual. Além de tambores variados havia: sopapos – surdo gigante, tocado com a mão, típico do Rio Grande do Sul, hoje o instrumento símbolo do cantor, percussionista e compositor Giba-Giba; canzás - nome que pode definir o atual ganzá (chocalho) ou um tipo de reco-reco; urucungos - o berimbau original, africano, que somente entre os negros do Rio Grande do Sul tinha esse nome; e balafons - a mãe africana da marimba e do xilofone. Ao som dessa festa de percussão, os negros cantavam e dançavam até o transe religioso. Nessa época, pelo menos, a polícia não se metia.

Urucungo

Tambor de Sopapo

Page 11: As_origens Da Música Popular Em Poa

11

Canzá

Balafon

Na casa de Mãe Rita também se ensaiava os cocumbis – que

até hoje resistem no litoral norte gaúcho sob o nome de quicumbis: autos religiosos de Natal que incorporam, em sincretismo religioso, as festas de Nossa Senhora do Rosário, protetora dos negros. Vinham o rei e a rainha à frente, a juíza do ramalhete logo atrás e, em seguida, toda uma linhagem aristocrática africana. Dançavam e sapateavam em frente à Igreja Matriz, cantando com guizos amarrados nas canelas. A cerimônia guarda parecença com os maçambiques que ainda resistem em Osório, também no litoral norte. Mas os cocumbis só existiram até o vigário José Inácio Pereira ser designado para a capital. O padre que virou nome de rua mandou acabar com essa pouca-vergonha na frente da Matriz. Injuriados, os negros construíram a sua própria Igreja do Rosário. Erguida em 10 anos de trabalho voluntário: escravos à noite e negros alforriados de dia.

Nada mais coerente com o nível de exclusão da sociedade em que viviam. Afinal, no dia 13 de novembro de 1829, os vereadores haviam pedido em ofício ao governador da província providências contra ajuntamentos religiosos de negros, cujos vozerios e alaridos ofendiam a moral pública.

Por outro lado, a 21 do mesmo mês, o governador encaminhava um ofício com requerimento do preto forro Francisco Bernardo da Silva. Francisco era, creiam, rei eleito da nação congo, e ganhou autorização para ensaiar pelas ruas a festa de Nossa Senhora de Nazaré.

Carnavais, eram na base do entrudo: durante três tardes, o pessoal se armava com gamelas, bacias, seringas, copos, canecas e

Page 12: As_origens Da Música Popular Em Poa

12

até banheiras pra atirar coisas nos passantes. Moçoilas singelas atacavam de seus lares, com polvilho e pó desodorante de sapatos. Já os rapazes, a pé ou em seus cavalos, traziam criados carregando cestinhas de limões de cheiro, que eram espremidos nas moçoilas das janelas. De preferência em algum decote mais ousado, pra observar com delícia os efeitos arrepiantes do ato. Os negros, por sua vez, corriam pelas ruas, sujando tudo com água e farinha, e os brancos tentavam lhes acertar água pela janela. Tudo regado a muita comida e bebida. Um quadro singelo e encantador.

Tanto, que pimba: em 1837, o Conselho Geral declara que fica proibido o jogo do Entrudo dentro do município, qualquer pessoa que o jogar incorrerá na pena de dois mil réis a doze, e não tendo como satisfazer sofrerá de dois a oito dias de prisão. Isso, para os homens livres. Para os escravos, era cadeia e um número variável de chibatadas.

* * *

Os escravos seguiam sendo um terço da população que, em 1830, chega a 13 mil habitantes. O porto que dá nome à Capital já tem linhas regulares para as principais cidades do interior, numa média diária de 50 barcos chegando ou partindo – na sua maioria, com

Page 13: As_origens Da Música Popular Em Poa

13

bandeiras brasileiras, norte-americanas, italianas e inglesas. Italianos, ingleses, alemães e franceses começavam a chegar, imigrados, em quantidade significativa. Já havia educação primária e quatro ou cinco jornais – todos com ligações políticas.

Afinal, os ânimos estavam acirrados.

* * * Foi no vinteeeee de setembro: Senhor: em nome do povo da Província de São Pedro do Rio

Grande do Sul, depus o Presidente Braga e entreguei o governo ao substituto legal doutor Marciano Ribeiro. E em nome do Rio Grande eu lhe digo que, nesta Província extrema, afastada dos corrilhos e conveniências da Corte, dos rapapés e salamaleques, não toleramos imposições humilhantes nem insultos de qualquer espécie. O pampeiro destas paragens tempera o sangue rio-grandense de modo diferente de certa gente que por aí há. Nós, rio-grandenses, preferimos a morte no campo áspero da batalha às humilhações nas salas blandiciosas do Paço do Rio de Janeiro. O Rio Grande é a sentinela do Brasil que olha vigilante para o Rio da Prata. Merece, pois, mais consideração e respeito.

Esse era Bento Gonçalves, logo após a tomada de Porto Alegre, em carta ao Regente Feijó, então responsável pela administração do Brasil na minoridade de D. Pedro II. Era 1835, explodia a Revolução Farroupilha e os rebeldes haviam tomado a capital – que voltaria aos imperiais nove meses depois.

Entre 1836 e 1840, a cidade resistiu a três outros ataques farrapos. E foi ao resistir, que, para orgulho de muitos e vergonha de outros tantos, recebeu do império o título de leal e valerosacidade de Porto Alegre.

O entrevero, com suas idas e vindas (incluindo uma proclamação da República, separando parte do Rio Grande do Brasil!), iria até 1845 – quando o tratado de Ponche Verde encerra tudo melancolicamente. A capital é então a quarta maior cidade do Império, com 13.500 habitantes.

(E capital de um estado que adorava uma peleia. Até o final do século ainda haveria: a guerra contra o ditador argentino Juan Manuel de Rosas – 1851 –, a intervenção no Uruguai – 1864 –, a Guerra do

Page 14: As_origens Da Música Popular Em Poa

14

Paraguai – 1865 a 1870 –, a Revolução Federalista – 1893 a 1895. Sem contar, em 1874, o massacre da seita religiosa dos muckers, surgida no meio das colônias alemãs do Vale dos Sinos e liderada pela messiânica Jacobina Maurer).

(Estabilidade político-administrativa também não era o forte do pessoal: nos 67 anos entre a Independência, em 1822, e a República, em 1889, se sucederam nada menos que 86 governadores. E não melhorou depois: da proclamação, em novembro de 1889, até a deposição de Júlio de Castilhos, governador eleito em 1891, foram mais 18 presidentes da província! Em três anos).

* * *

José Joaquim de Mendanha

O grande saldo musical da Revolução Farroupilha para a cidade

atendia pelo nome de Maestro Mendanha – o primeiro grande nome da música de Porto Alegre.

Nascido em 1801, em Vila Rica (hoje Ouro Preto), José Joaquim de Mendanha fez-se irmão de caridade. Mas sua maior dádiva aos mortais e imortais seriam seus dotes de maestro servidor a Deus. Precisou de toda sua fé na justiça divina em 1837: tava lá, no bem-bom, empregado como cantor falsetista da Capela Imperial, na corte, quando o mandam para a longínqua Província de São Pedro, no posto de Mestre da Banda do Segundo Batalhão de Caçadores da Primeira Linha. E em plena Guerra dos Farrapos!

Page 15: As_origens Da Música Popular Em Poa

15

A primeira letra do Hino Farroupilha. Publicada em O Povo, n. 63, p.

265)

Em 1839 – há quem diga 38 – as forças imperiais são derrotadas em Rio Pardo, e ele cai prisioneiro dos rebeldes. Já que lá ta, que lá teje: puxa seus dotes de multi-instrumentista e passa a animar os bailes farrapos. Em seguida, recebe a encomenda: escrever nada menos que o Hino Farroupilha – hoje o hino oficial do estado. Pouco depois, é recapturado pelas forças imperiais, mas já era tarde: tinha se agradado da terra e sua gente. Terminada a peleia, estabelece-se em Porto Alegre.

Quando morreu, em 1885, tinha o título de comendador e a aclamação de estrela local: dirigira bandas, corais e orquestras, e fora professor de gerações e gerações de músicos, militando tanto na música popular quanto na sacra – foi um dos maiores divulgadores de seu contemporâneo e colega de batina padre José Maurício. Batina que nunca o impediu de, segundo relatos da época, ter especial predileção pela ala feminina dos corais que regia, desdobrando-se em salamaleques para dar a devida atenção a todas as sopranos, mezzos e contraltos. Era um gosto vel-o, arrastando os pés, todo cheio de delicadezas para com ellas (...) o que elle queria era estar entre as cantoras, entrega Achylles Porto Alegre.

Amigo de infância do poderoso Barão (e futuro Duque) de Caxias, também mexeu seus pauzinhos na corte para criar a Irmandade Santa Cecília, a padroeira dos músicos, que promovia anualmente uma festa imensa sob seu comando. Mas sua maior

Page 16: As_origens Da Música Popular Em Poa

16

herança – além do hino, claro – foi a criação, em 8 de dezembro de 1855, da Sociedade Musical Porto-Alegrense, primeira iniciativa do gênero. Orquestra de 24 músicos que é uma das atrações, por exemplo, da inauguração retumbante do Theatro São Pedro, em 1858.

* * *

E a cidade segue crescendo: em 1860 eram cerca de 20 mil almas. É quando nasce a sociedade musical Firmesa (sic) e Esperança, que ensinava música e dança e promovia bailes que varavam a noite.

Em 1872, já eram 27.751 habitantes - 8.784 deles, escravos: seguia negro mais de um terço da população da capital do estado até hoje considerado o mais europeizado do País. Segundo o Almanak Administrativo, Comercial e Industrial Rio-grandense para 1873, havia então na capital 486 estabelecimentos comerciais, 339 oficinas, 39 fábricas – e mais jornais do que no século XXI: seis. Além de 28 médicos, 23 advogados, 10 engenheiros e nove farmacêuticos.

Também o traçado da cidade se modifica: de 1869 a 1879 vão ser abertas quase todas as atuais transversais da central Rua da Praia: a Rua da Passagem (atual General Salustiano), o Beco dos Guaranis (General Vasco Alves), o Beco do Bota Bica (General Portinho), o Beco do Pedro Mandinga (General Canabarro), o Beco dos Pecados Mortais (General Bento Martins), a Rua Clara (General João Manuel), o Beco do João Inácio (General Câmara), a Rua da Bandeira (Vigário José Inácio) e a Rua Santa Catarina (Doutor Flores).

Muito diferente das melodiosas páginas que passavam pelas estantes do Maestro Mendanha eram os tonitruantes blocos de Zé-Pereira, que desde 1877 eram atrações do carnaval e inferno da vizinhança: zabumbas e cornetas ensaiavam madrugada adentro (como se adiantasse…). Valiam pela hilaridade que tomava conta das ruas quando os desconjuntados grupos saíam. Só paravam de tocar para que os oradores improvisados destruíssem sem dó nem piedade a gramática, em discursos obrigatoriamente sem pé nem cabeça.

Começam também, em 1874, os corsos, com as sociedades carnavalescas desfilando seus carros alegóricos puxados por cavalos por ruas enfeitadas para a ocasião. As mais antigas foram fundadas em 1873 com a declarada missão de conseguir o que a polícia não havia logrado: matar o entrudo. Eram elas a S.C. Esmeralda e a Venezianos, vindo a seguir os pioneiros negros e abolicionistas

Page 17: As_origens Da Música Popular Em Poa

17

do Congos, os Tenentes do Diabo, os Filhos do Inferno e a alemoada da Sociedade Germânia. Desta vez deu certo. Ta lá no jornal A Federação, na edição de 19 de fevereiro de 1874:

O inconveniente jogo de entrudo foi este ano substituído

completamente, nesta cidade, pelo Carnaval. Deve-se este acontecimento às sociedades carnavalescas

“Venezianos” e “Esmeralda”, que foram os iniciadores da reforma, secundados pelos habitantes, que visando mais um progresso, firmaram a abolição do entrudo e concorreram gostosos para o abrilhantamento da festa carnavalesca.

Nas principais ruas da cidade, não se viu jogar um só limão; e nas menos populosas aconteceu outro tanto.

Parece tudo lindo. Mas a trégua duraria míseros três anos. Em

1877, o entrudo volta com tudo, e por pressão popular. Afinal, só tinham sobrado festas de elite, e o povo queria brincar.

E o irônico é que mesmo nessas festas de elite, o bicho pegava. Como no carnaval de 1883, segundo o jornal O Século: Os Venezianos apenas primaram por uma cousa muito parecida

com grosseria ou falta de educação. Muitos interrompiam, mas por uma forma que não se explica em linguagem decente, a passagem da “Esmeralda”, em seu trajeto. – Chegaram ao ponto de quererem lançar do carro abaixo a rainha da sociedade, caceteando os pobres cavalos que o puxavam! (…) Felizmente para Porto Alegre, há sociedades da ordem da ESMERALDA e CONGOS que ainda não deixam decair no conceito do estrangeiro civilizado que assiste às nossas festas.

No mesmo jornal, se saudava a elegância dos Congos, que (…) fizeram o seu passeio e foram imensamente aplaudidos pelo fino espírito que desenvolveram.

É uma sociedade que merece toda a admiração pública, porque é composta de moços decentes que, divertindo-se sem ofender a quem quer que seja, reúnem os seus sentimentos folgazões aos de humanidade, promovendo em suas festas os meios necessários para remirem do cativeiro alguns infelizes escravos.

Page 18: As_origens Da Música Popular Em Poa

18

Fora do Carnaval, o grupo também fazia espetáculos beneficentes, sempre com muita música, para comprar cartas de alforria e libertar seus irmãos. Como este, anunciado de forma muito particular em jornais da cidade:

TEATRO DE VARIEDADES SOCIEDADE CARNAVALESCA CONGOS

Grandi trumentação!!! Grandi situsiasmo!!!

REGÁRA ÔIO! ABRE ÔBIDO!!! Sicuta esse

Nosso tomá riberação prá reárizá grandi foria ni 3 dia di cranavá; nosso vai zirifetuá com todo baruio esse fesita, a fim de nosso rancá di

féra di cravidão uma nosso pracêro; po isso nosso turo bem trazê ni frente dus ôio di branco qui gerita di ribredade, esse uato di grandi

firantropia. Agora nosso turo ficá siperando qui essi genti qui é fio dessa tera, não

bai deixá di parecê, proquê Papai di Nosso qui tá ni céu ade judá a Papai e Mamãi di fio di tera, aquere qui fá quarijuvá nosso, ni esse

borabadá. Pressita tenção!!

Siri programa bai se distribuída pro meio di esse couza qui tá casando seripece ni quagueça di gente tura i qui si chamá – Terefone – i esse di diztribuição di esse quaqué áde tê rugá ni Romingo, 4 di febrera di

ano qui tá caminhando. PREÇOS

Camarotes com 5 entradas 5$000 Cadeiras 1$000

Gerais 500 Chuta di Zambezi ni Porito Aregre, 30 di mezi qui tá prá cabá.

O 1o Crivão Paleguá Mongonguê

(De todas as sociedades de negros forros fundadas no final da

escravatura, resistiu até hoje a Sociedade Floresta Aurora. Sem vinculação direta com o Carnaval, é um dos clubes mais antigos da cidade, fundado em 1879.)

Em 1880, a grande novidade são os bailes públicos de Carnaval, que viram um sucesso imediato. Promovidos até em lugares chiques

Page 19: As_origens Da Música Popular Em Poa

19

como o Theatro São Pedro, eram abertos a qualquer um, independente de pertencer ou não a algum clube.

* * *

Quando, em 1873, a Companhia Carris inaugura sua primeira

linha de transporte, as primeiras viagens, em bondes puxados a burro, podiam demorar inacreditáveis seis horas para chegar do centro até o arrabalde do Menino Deus.

Em 1879, apenas dois anos depois de ter sido inventado, o Phonógrafo de Thomas Edison era apresentado a um Theatro São Pedro lotado por uma incrédula plateia. Athos Damasceno conta o ocorrido:

Surge-nos aqui o cavalheiro Eduardo Perris que, hospedando-se

no Hotel Lagache, faz a exibição de uma prodigiosa máquina falante, destinada a guardar o som por muitos anos e reproduzindo a voz de cada pessoa com absoluta nitidez e timbre. A máquina tem o nome de fonógrafo e é a mais recente invenção do já famoso eletricista Senhor Edison. Dentro de pouco tempo o invento pode chegar a tal perfeição que ninguém mais precisaria ir a teatros escutar orquestras e cantores, porque qualquer um poderia ter dentro de sua própria casa todas essas altas manifestações da arte.

Page 20: As_origens Da Música Popular Em Poa

20

A máquina de Edison ainda era do tipo mais primitivo, com cilindros fixos. Mas o próprio Eduardo Perris já anunciava para breve o advento do cilindro portátil e removível, quando cada um poderia escolher a música que lhe agradasse, adquirir o cilindro correspondente e levá-lo para casa. Um conceito absolutamente revolucionário.

Nesse ano de 1879, segundo a Gazeta de Porto Alegre, a capital tinha 40 mil habitantes espalhados em seis mil casas, 52 ruas, sete becos, nove praças e três travessas. Havia as sociedades Club Commercial, Esmeraldinos, Venezianos, Germânica, Leopoldina, Club dos Atiradores Allemães. Além da iluminação a gás, havia bondes puxados por burros e até trem para as colônias alemãs de São Leopoldo e Novo Hamburgo, a cerca de 40 quilômetros da capital. Iluminação que fez toda a diferença segundo Achylles Porto Alegre (escrevendo em 1919): Que eram estas ruas há pouco mais de 30 anos? (...) A iluminação, nas principais, era feita com lampiões de azeite – quando não havia luar. Às nove horas, no verão, e as dez, no inverno, o bronze médio da Matriz (o sino) tocava o silêncio. Era o sinal para o recolhimento geral. A cidade fechava e apagava-se. A população metia-se na cama.

Em 1878, um grupo de amadores e profissionais, com gente como José Araújo Vianna, ergue das cinzas da Sociedade Musical Porto-Alegrense a Sociedade Philarmônica Porto-Alegrense, que contava com 28 músicos e dividia atenções com uma banda de música composta por 16 professores.

A Philarmônica, no entanto, tinha o reforço de um coro, e alternava páginas dos clássicos com números europeus de música ligeira. Sobreviveria por 20 anos, contribuindo para o ensino musical e as noites engalanadas do São Pedro. Militavam em suas hostes tantos músicos profissionais quanto diamantes brutos da juventude local, como Luiz Roberti e Francisco Pedotti – orgulhosamente amadores.

O mesmo Roberti funda e dirige, entre 1883 e 1884, a Lira Rio-Grandense, seu primeiro jornal musical. Três anos mais tarde, teria maior sucesso com o segundo – O Guarany –, que fez história e se manteve até 1890. Pela mesma época, era impresso O Progresso, dirigido por Roberto Ludwig e que também editava partituras para piano e tratava de assuntos musicais.

Page 21: As_origens Da Música Popular Em Poa

21

É nele que está impresso o seguinte comentário de Ludwig, em primeiro de setembro de 1888, acerca da estudantina organizada por Roberti:

A Estudantina, sociedade musical, ha pouco fundada, que

cultiva, com preferencia, certo genero, muito sympathico, da musica instrumental, alcançou, no seu primeiro concerto, realizado em a noite de domingo, um optimo sucesso, olhando-se a tenra idade que ella conta.

A orchestra, composta de violões, bandurras, bandolins, um violino e um violoncelo, regida pelo professor Luiz Roberti, executou de cór todas as peças, obtendo aplausos espontaneos que, por fim, se transformaram em ovação consagrada pelo auditório a moços tão dedicados à música e animados por ella, como se patentearam “os sócios executantes” da Estudantina.

A segunda parte do concerto foi preenchida pelas distinctas amadoras e amadores que prestaram a sua coadjuvação (…) O número mais característico, porém, foi o solo para violão, com acompanhamento, executado pelos srs. Pinto Gomes e Pedro Alvares: este numero, admirável no seu desempenho, foi bisado.

Dirigimos as nossas felicitações à activa directoria e aos zelozos amadores de musica, membros da sociedade, que figuravam no referido concerto, pela sua bem sucedida estréa, saudando igualmente o progresso que a arte musical aufere da fundação de uma sociedade que tão dedicadamente se lhe devota.

Roberti é uma figura curiosa: intelectual, bom executor e

professor de diversos instrumentos de sopro e cordas (segundo o

Page 22: As_origens Da Música Popular Em Poa

22

pesquisador e violonista Márcio de Souza, é possível que tenha sido professor de Octavio Dutra – de quem falaremos ainda muitíssimo), regente, editor, empresário teatral e jornalista. Teve atuação destacada como compositor ao menos até a década de 1910 – quando compôs o schottisch Sinhá. É tão popular que chega a ser figurante do romance Estrychnina, escrito em 1898. No livro, é ele o maestro da orquestra que, no Theatro São Pedro, abre a função durante uma temporada de uma montagem local de A Dama das Camélias. Não das melhores, registre-se:

Eram passados cinco minutos e a execução, a

verdadeira execução [grifo do autor] do intermezzo, expirava, entre salvas de palmas e repetidos gritos de bis! bis!. E segue: o maestro abandonava a sua cadeira de molas, voltava-se para o público e, em sinal de agradecimento aos aplausos recebidos, curvava-se até a espinha, deixava-se permanecer por alguns segundos nessa postura respeitosa e galante de vinheta decorativa de seção de parabéns e, ao fim de estudadas mesuras, tornava a seu posto, na intenção firme de, a contragosto seu, mas devido à insuficiência quase absoluta da orquestra, acumular mais um remorso aos seus remorsos, estropiando a sonoríssima e extraordinária música de Mascagni.

* * *

Como haviam feito sistematicamente os alemães entre 1824 e

1839, a partir de 1875, italianos imigram em massa para o estado. Até que o século virasse, navios trariam para o Rio Grande do Sul 84 mil oriundi. Mais abertos a integrar-se com a população local e mais urbanos que os alemães, eles também chegam em maior número. O resultado é que, década e meia depois, em 1890, já são 10% dos 52 mil porto-alegrenses.

Há, entre eles, muitos músicos. Alguns vão ganhar parte de seu sustento nas esquinas, em grupos de formações hoje estranhíssimas, mas comuns naqueles anos: harpa, flauta e violinos. O repertório era de seleções líricas – os greatest hits de então –, preferencialmente de Verdi.

O dinheirinho era engrossado com récitas noturnas nos poucos restaurantes que havia. Como conta Athos Damasceno, no seu fundamental Palco, Salão e Picadeiro em Pôrto Alegre no Século XIX (Editora Globo, 1956), havia um virtuoso harpista milanês, de

Page 23: As_origens Da Música Popular Em Poa

23

quem não ficou o nome, que tocava só para o público mais seleto, nos restaurantes mais finos. O que não evitou que fosse protagonista de um causo impagável, no finalzinho do século: numa das tantas épocas em que serenatas viraram crime, encanaram o milanês. Aí, ao tentar explicar para o guarda que não era um serenateiro qualquer, desses que andam bêbados por aí, recebeu como resposta um incontestável argumento:

– Mas, cáspite, não se pode deixar escapar um violão deste tamanho!

Havia também a prata da casa. Como o crioulo João Batista, que, cego, floreava como poucos seu violão e jamais aceitava esmolas. Tocava apenas nas casas de comércio que o convidassem para isso, mediante um cachê que poderia até ser irrisório. Mas era cachê. Por favor…

Já que falamos em serenata… Desde o final dos anos de 1870, o hábito começa a se espalhar pelas ruas noturnas. Mas a alegria dura pouco. Com a República, foi nomeado chefe de polícia o rabugento Dr. Barros Cassal – outro que virou nome de rua. Não se sabe se ele tinha alguma filha especialmente bonita, o que lhe poderia causar dileto horror a canções em sua janela. Mas o fato é que uma de suas primeiras medidas foi a proibição de toda e qualquer espécie de cantoria noturna. Afinal, segundo ele, elas ameaçavam o novo regime.

Para conferir se sua proibição era seguida à risca, espalhava pelas ruas espiões, que deveriam infiltrar-se nos meios terrorist… boêmios. Obviamente, não deu certo: numa cidade de 50 mil habitantes, nenhum espião ficava no anonimato mais que algumas noites.

* * *

Aqui vale um parêntese para três fatos que marcariam para

sempre o imaginário local: 1) Já há algum tempo, exercia o magistério público na Capital o

professor José Joaquim de Campos Leão. Mas, aos poucos, ele seria cada vez mais hostilizado por suas excentricidades. Coisas como rebatizar-se com a alcunha de Qorpo Santo, ou escrever peças tão radicais como a que terminava com o incêndio do teatro. Neste caso,

Page 24: As_origens Da Música Popular Em Poa

24

o mesmo São Pedro que recém inaugurara. Qorpo Santo passaria quase um século esquecido ou ridicularizado por nossos intelectuais (Achylles Porto Alegre), até ser retomado como gênio da dramaturgia nos anos 1960.

2) Por volta de 1865 foi a única que vez que toda e qualquer festividade foi cancelada na cidade. A culpa foi da epidemia de cólera, que causou expressivas baixas na população, cancelando toda diversão em grupo.

3) Um ano antes, em 1864, a polícia tinha prendido o açougueiro José Ramos e sua mulher, Catarina Palse. Ela seduzia inocentes homens. Ele os matava e, literalmente, os fazia virar linguiça, vendendo a especiaria a uma cidade que, horrorizada, descobria tarde demais que tinha comido colegas de espécie. Deu notícia até em Paris.

* * *

Brilhavam então nos palcos as sociedades dramáticas formadas por jovens da sociedade que lhes dedicavam as não poucas horas vagas. Os melhores escritores da época escreveriam peças para agremiações como a Jovem Thalia. Era uma epidemia: quase 50 grupos diferentes. Salvo engano, nem no século XXI, com uma população dezenas de vezes maior, Porto Alegre repetiu a cifra de 50 grupos teatrais. O momento era de inegável efervescência artística.

Na literatura, pipocam efêmeros jornais específicos como O Guayba (1856). Entre 1868 e 1880, surge mais de uma dezena de associações de escritores e amantes das letras, como a fundamental Sociedade Partenon Literário – que durou até 1885, tinha uma biblioteca de seis mil volumes, editava sua revista e marcou a primeira geração da literatura porto-alegrense. Promoviam saraus de música e teatro, eram militantes abolicionistas e defendiam a alfabetização de graça para a população carente. Não é de estranhar que um de seus participantes, Carlos Pinto, seja o dono da Livraria Americana, a primeira da cidade e do Estado, fundada em 1875.

Os grandes nomes do grupo, como Apolinário e Achylles Porto Alegre, Bernardo Taveira e Caldre e Fião são pioneiros numa discussão que seguiria obsessiva 150 anos mais tarde: qual é, afinal, a identidade cultural do gaúcho? E do porto-alegrense? Como bem definiu o professor Luís Augusto Fischer, estudioso do tema, eles

Page 25: As_origens Da Música Popular Em Poa

25

criaram ali um idealizado, quase mítico, fator de união “nacional” do Rio Grande do Sul.

Fião havia publicado, em 1847, o primeiro romance de um autor rio-grandense (e segundo do Brasil). Mais que isso: Porto Alegre era o cenário da história de A Divina Pastora – reeditado nos anos 1990 pela RBS Publicações.

O século vai se fechando em grandessíssimo estilo. Até luz elétrica já tinha: em 1895 havia sido inaugurada a usina da Fiat Lux.

* * *

Outra figura curiosa desses anos é contemporânea da carioca Chiquinha Gonzaga e disputaria com ela o posto de primeira compositora brasileira. Seu nome é Lídia Knorr e, infelizmente, dela se sabe quase nada. A não ser que casou com João Negreiros de Sayão Lobato, que era filho de Francisco Riopardense de Macedo (homônimo e certamente ascendente do futuro historiador, artista plástico e arquiteto) e Francisca Romana Sayão Lobato, todos nomes importantes na história da cidade.

Lídia deixou para a posteridade um álbum inteiro de partituras de suas músicas, editado em 1881 (só pra se ter a medida, o primeiro sucesso de Chiquinha, Atraente, é de 1877). Páginas como a lírica polka Esmeraldina, gravada mais de 100 anos depois, no começo da

Page 26: As_origens Da Música Popular Em Poa

26

década de 1990 pelo pianista Giovanni Porzio – para o CD que acompanha o fascículo As Origens da série A Música de Porto Alegre, editada pela Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre.

Enquanto Lídia preparava seu álbum, em 1880, nascia o grupo Os Cubanos, dirigido, segundo as palavras do pesquisador Hardy Vedana, pelo nobre comerciante de profissão e pianista nas horas vagas Domingos de Campo Moreira Porto – o popular Mingotão. O conjunto era uma espécie de rancho – ao estilo dos ranchos carnavalescos -, que saía às ruas entre o Natal e o Dia de Reis, tocando e cantando. Música não sobrou nenhuma pra contar a história, mas tem uma letra que, se não é exatamente um tijolo a mais na construção do idioma de Camões, ao menos vale como antropologia cultural:

Saem hoje os Catidumbas Tendo à frente o Mingotão

Cantando Uê, Pai João Saem os Catidumbas

Sem pandeirinho na mão,

Sem cornetas, nem zabumbas; Saem hoje os Catidumbas Tendo à frente o Mingotão

Em 1883, ele deixa a direção do grupo. Mas regala à

posteridade mais uma pérola, chamada Ah! Que vai!, sucesso no ano seguinte. E com uma curiosidade: o ritmo já era chamado de… samba, 30 anos antes das primeiras gravações do gênero. Não, não é pra sair gritando que os gaúchos inventaram o samba três décadas antes – já já falaremos dessa confusão de nomenclaturas bem típica das décadas da virada do século.

Domingos saíra dos cubanos para fundar um conjunto de homens travestidos (já!?!): os Negros-Minas. E seguia, do final de janeiro a seis de fevereiro, dirigindo o mais estimado grupo de Terno de Reis da capital, do qual fazia parte um monte de gente da alta-sociedade, como o Luiz Ferreira da loja de couros e Artur Rocha, que virou até nome de rua.

Figurinha carimbadíssima, Mingotão circulava muito, sempre bem apessoado (um bello typo de homem, descreve Achylles Porto

Page 27: As_origens Da Música Popular Em Poa

27

Alegre), sempre de casaca bem talhada e batuta em punho. Aproveitando-se do renome que tinha também como pianista e compositor, desde moço também ensinava piano às meninas prendadas da urbs. E, além de música para o Carnaval, escreveu também muitas valsas – como Júlia – e até tangos-baianos (sic!) – como o Querida Mariposa.

Mesmo calcadas na música dos negros, suas partituras eram sucesso nos serões familiares. O que não evitou que, nestes tempos amadores, Domingos terminasse seus dias não como músico, mas dono do restaurante Continental, na Rua da Praia. Que, diga-se de passagem, fazia muito mais sucesso pelas prendas de seu dono ao piano do que ao fogão. Isso quando ele não enfileirava os copos de cristal do estabelecimento, afinava-os com água e mandava ver etéreas melodias no seu copofone.

E há que registrar que nem os pregões dos vendedores ambulantes de balas escaparam ao cara: nosso personagem comporia e editaria em partitura para piano, com grande voga nos pianos da cidade (ainda Achylles) variações sobre dois deles: Bala-balô, de um napolitano chamado justamente Bala-Balô, e Araúna, de uma baiana, quarentona, tipo masculino. Nenhum exemplar dessas partituras, que se saiba, chegou aos nossos dias. Seria um achado e tanto.

* * *

E aí chega 1890, quando a capital gaúcha da agora República

conta com 50 mil almas – 42.115, segundo o censo de 1888. E, pelo menos, trezentos telefones.

Page 28: As_origens Da Música Popular Em Poa

28

Primeiro modelo comercial de telefone usado no Brasil. Aparelho sueco, já da marca Ericsson (sim,

a Ericsson não surgiu na era do celular...), de 1882.

Telefones?!?!? Pois então. Apenas 10 anos depois de sua invenção pelo genial

Graham Bell, a telefonia já tinha gerado a Companhia Telefônica de Porto Alegre. No dia 15 de setembro de 1886, a cidade seria a sexta a receber a nova tecnologia no Brasil, incentivada por Dom Pedro II, um entusiasta de toda e qualquer novidade. O serviço era caro, pago anualmente, mas se espalhou rapidamente pelo comércio, principalmente, gerando algumas das primeiras tele-entregas do mundo.

Enquanto isso, uma região da cidade ia concentrando de tal forma a população negra que foi batizada de Colônia Africana. Ficava entre o atuais bairros Rio Branco e Bom Fim. Em todo o país – e não haveria porque ser diferente em Porto Alegre – a vida dos negros não melhorou muito com a abolição. Aboliu-se, na verdade, o chicote. Mas as condições seguiam desumanas para os muitos que continuavam trabalhando para senhores brancos, praticamente sem remuneração, em troca de pouco mais que casa e comida.

E isso que a capital, instigada pelo pessoal do Partenon Literário, libertou entre 1884 e 1887 quase todos seus 5.790 escravos. Quando entrou a Lei Áurea, em Porto Alegre apenas 58 pessoas ainda pertenciam a outras. Claro que não foi tão altruísta o gesto geral. Muitos dos libertos tinham de seguir trabalhando de graça por até cinco anos pra pagar sua alforria. Outros senhores libertavam

Page 29: As_origens Da Música Popular Em Poa

29

seus negros para deixar de pagar impostos sobre a “propriedade” – mas continuavam, na prática, a escravizar seus “funcionários”.

A Colônia viraria ponto turístico, como bem descreveria com indisfarçável deleite Achylles Porto Alegre:

(...) o Beco do Poço, o do Jacques e a Rua da Floresta eram

sítios de eleição para o batuque. Nos dias de folia, já de longe se ouviam a melopeia monótona do canto africano e o som cavo de seu originalíssimo tambor. (…) O batuque prosseguia pelo dia e pela noite adentro (…) e os garrafões de cachaça se sucediam uns aos outros. Não havia, porém, algazarra. O africano não grita. Eram a melopeia, em coro, e ao som compassado do tambor. (…) Havia também os batuques ao ar livre. (…) Um dos mais populares era o do Campo do Bom Fim, em frente à capelinha então em construção. Cada domingo que Deus dava era certo um batuque ali, e o interessante é que muita gente se abalava da cidade para ir ver a dança dos negros.

* * *

Fecha-se o século com duas grandes novidades: A primeira.

Kinetoscópio

Page 30: As_origens Da Música Popular Em Poa

30

No dia cinco de novembro de 1896, num salão do número 349 da Rua da Praia, Porto Alegre recebe mais uma invenção do inquieto Thomas Edison: o Scinomotograf. Que projeta numa tela os filmetes Danse Serpentine e L’Arrivée d’un Train em Gare de La Ciotat, ambos dos irmãos Lumiére, mais Bois de Bologne, de George Méliès. Por um conto de réis por cabeça, o empresário paulista Francisco de Paola Xavier mostrava à cidade pela primeira vez o milagre das imagens em movimento. Os três filmes, juntos, não chegam a três minutos de projeção. Mas ninguém reclamou e a atração ficou em cartaz por algum tempo.

Apenas três dias depois já aparece concorrência, e a poucos metros de distância (no número 230): o francês Georges Renouleau, fotógrafo radicado na cidade, passa num legítimo cinematógrafo francês construído pelos irmãos Lumiére outros três filmes: O Carroção, Uma Criança Brincando com Cachorros e Exercício de Equitação por Militares.

(Quase todos podem ser vistos hoje, com dois ou três cliques no Google).

E aí, entre 1897 e 98, estreia, no São Pedro, Sul na Ponta. Era uma das primeiras – se não a primeira – peça de revista escrita no estado. Achylles:

Era uma revista apimentada, escrita maliciosamente, com uma

música alegre e saltitante (…) Um verdadeiro sucesso. Foi recebido entre palmas, toda vez que subiu à cena da revista o Ora, Tome, Mariquinhas. Versos brejeiros que fariam corar um frade de pedra, e era sempre bisado.

Cinematographo

Page 31: As_origens Da Música Popular Em Poa

31

Realmente, os tempos eram definitivamente outros. E o estado finalmente começava a se recuperar do imenso trauma que foi a revolução de 93, que levou a barbárie a níveis sem precedentes – com a selvagem prática da degola disseminada entre ambos os lados do confronto, com aprovação dos chefes de ambas as partes. Não há números exatos, mas pode ter chegado a 2.500 o número de pescoços cortados a sangue frio, numa guerra civil onde de três a quatro por cento da população do Rio Grande do Sul foi morta. O que chegou a chocar mesmo um estado acostumado a confundir gente se matando com macheza e trabalho honrado.

* * *

É nessa virada de século que, por todas as Américas, se intensifica como em nenhuma outra época o fascinante processo de nascimento das músicas nacionais. O esquema é sempre o mesmo, e é curioso pensar que, de todas as músicas populares que se transformaram em fenômenos culturais globais ao longo do século XX e entrando no XXI, só a música eletrônica não foi parida desta mesma síntese: sons de negros ex-escravos + sons de europeus imigrantes, misturados em terras do Novo Mundo (americanas). De diferentes combinações destas matrizes nasceu o jazz, o tango, o samba, o choro, as marchinhas, os ritmos cubanos, o blues. E, deles, mais tarde o rock, a bossa-nova, o soul, etc. etc. etc.

Só o parágrafo anterior daria uma tese de pós-doutorado, mas cabe aprofundar um pouco aqui, dando uma rápida passada no processo de síntese que gerou cada um dos gêneros populares que viriam a se estabelecer na cidade (e alguns, a desaparecer mais tarde) ao longo do século XX.

O tradicionalista avant la léttre Cezimbra Jacques, escrevendo nesse final de século XIX sobre um tempo já então remoto, resume a cena de que partiremos:

(...) entre as altas classes, o fandango, que até pelos anos de

1839 e 1840 ainda era muito usado, foi sendo substituído pelas danças vindas da Europa, como o ril, a gavota, o sorongo, o montenegro, a valsa, e mais tarde aspolcas, os chotes, as contradanças, as mazurcas, e finalmente as lindas havaneiras, expressão musical do langor e dos requebros.

Page 32: As_origens Da Música Popular Em Poa

32

Além desses ritmos, havia também o lanceiro, a grulha e a maior novidade dos salões de meados de 1850: uma dança chamada miudinho.

Mas se, por um lado, as famílias mais aristocráticas ainda bailavam comportada e afetadamente ao som dessas europeíces em encontros familiares nos salões das casas abastadas, por outro o populacho ainda se divertia a valer com as açorianas chimarritas, tiranas e canas-verdes – todas já com mais de um século de vida porto-alegrense e já devidamente adaptadas.

Afinal, essas novas danças de salão da elite eram tão complexas que criaram um novo emprego: o mestre de cerimônias, também conhecido como animador de bailes. E chegava junto com toneladas de quinquilharias e artigos de luxo adquiridos pelas famílias que iam aos poucos se endinheirando e buscando uma possível europeização.

Isso fez com que começassem também a proliferar professores de dança e de piano – instrumento que estreara no Brasil na bagagem da Família Real, em 1808, vai aparecendo pelas províncias das décadas seguintes, e se populariza em Porto Alegre em meados do século. Por volta de 1860 já há dezenas de professores – como nosso já citado Mingotão – dedicando-se a iluminar os mistérios do teclado para as moçoilas casadoiras, que tinham na sua execução uma das mais relevantes e airosas prendas domésticas. Como contaram os viajantes nos capítulos anteriores, toda casa de família que se prezasse obrigatoriamente promovia esfuziantes saraus literários e musicais, onde as filhas tocavam, os pais declamavam versos que lhe haviam soprado as musas e uma que outra tia solteirona exercitava seus dotes líricos.

Pipocavam as valsas francesas e alemãs, polcas, schottischs, mazurkas e cançonetas, deixando para trás as velhas quadrilhas, nascidas na Inglaterra e incluídas na categoria das contradanças –country dances: ritmos de fora da cidade, onde a moral ainda campeava e as pessoas não dançavam em pares (ooohhh, indecência!), mas em grupos.

Esses novos ritmos para casais acabaram dominando o começo do século XX, quando seriam misturados, adaptados, definitivamente abrasileirados e, em alguns casos, agauchados. Alguns mantiveram seus nomes originais, apesar de ganharem características diferentes em cada região do Brasil e conforme o estilo dos executantes. Como a valsa – primeira dança especificamente para pares: uma valsa

Page 33: As_origens Da Música Popular Em Poa

33

campeira é bem diferente de uma valsa tocada por um grupo de choro, por exemplo.

Outros viraram produtos 100% brasileiros. Como o teuto-escocês schottisch, que virou chotis ou xotis, e

depois, finalmente, chote (como é no sul) ou xote (como é chamado no nordeste). Possivelmente nascido na Escócia, daí o nome, há quem sustente que isso não quer dizer grande coisa e afirme que sua pátria original é mesmo a Alemanha. O fato é que ele cai em cheio no agrado dos alemães do começo do século XIX. Em 1848, vira moda na Inglaterra e na França. Daí para o Brasil, seriam três anos: em 1851, o professor de dança Jules Toussaint o ensina aos cariocas da Corte, e logo se populariza. Nas mãos dos futuros chorões, algumas de suas variantes se desacelerariam e acabariam fundidas com a já veterana modinha, outras virariam elementos essenciais das futuras marchinhas. Se espalham pelo Brasil e, no Rio Grande do Sul e no Nordeste, aportam junto com o início da difusão da gaita, fole, acordeom, sanfona ou seja lá como o amigo queira chamar o instrumento. Resultado, como se viu: logo o chote/xote terá sotaques bem diversos no sul e no nordeste.

Mais um exemplo: a habaneira, que tanto encantou Cezimbra Jacques. Essa vem de longe e viajou uma barbaridade…

Thomas Edison. Sim, era meio surdo. Sim, era um gênio.

Page 34: As_origens Da Música Popular Em Poa

34

Tudo começa em meados do século XIX, quando uma country dance tradicional do interior da Inglaterra começa a se espalhar pela Europa. Na França, coerente com o hábito local de afrancesar as palavras estrangeiras, virou contredanse (mudando inclusive o sentido de seu nome: de dança do campo virou dança contrária). Foi com esse nome que a contredanse foi exportada para colônias francesas como a de Santo Domingo, no Caribe – a mais próspera colônia europeia da época.

Aí, quando os negros escravos resolveram botar os franceses pra correr – proclamando a independência da Ilha, que passou a se chamar Haiti – o pessoal de lá fugiu pro lugar mais perto: Cuba, colônia espanhola.

Inevitavelmente, a contradanse acabou se misturando aos ritmos espanhóis e locais, principalmente na cidade de Santiago de Cuba, onde virou contradanza. E aí quando chegou a Havana já ninguém mais sabia de onde aquele negócio tinha saído. Acabaram achando que era de lá mesmo – de certa forma até já era – e batizaram: habanera. Isso já era final do século XIX, e sua dolência era tão sedutora que se espalhou pelo mundo, virando hit nas pistas de dança de Cuba, México e Espanha. Foi até tema de ópera do francês Bizet – a celebérrima La Habanera deCarmen. Na Argentina, foi uma das matrizes do tango. No Rio, influenciou fortemente Ernesto Nazareth, que a acelerou e rebatizou de tanguinho.

Pois então. Ela aparece em Porto Alegre pela primeira vez na década de

1880. Mas logo muitos dos compositores locais passam a se dedicar ao gênero, com peças para piano solo até as mais variadas formações – algumas delas editadas em partitura. Dali a pouco, o ritmo começa a acelerar e pegar uma certa cor local. De Porto Alegre, ruma para o interior, onde tem seu nome aportuguesado já nas primeiras décadas do século XX. De havaneira vira “a vaneira”: vaneira. Acabaria ainda mais acelerada, e lá vem o aumentativo puxando seu nome para… vanerão! Mas aí já estávamos na década de 1950.

Long and winding road: a brava vaneira, o glorioso vanerão, defendido com unhas e dentes pelos mais ortodoxos e xenófobos tradicionalistas adeptos do “gaúcho melhor em tudo”, nasceu lento e cubano, e só chegou aqui graças a compositores e instrumentistas europeus. Mundo velho sem porteira.

E esse é um dos aspectos mais fascinantes do estudo dos ritmos e seus desdobramentos: gêneros hoje associados ao mais

Page 35: As_origens Da Música Popular Em Poa

35

profundo interior gaúcho aportaram, como se viu, em contextos urbanos. Outros ainda não só seguem existindo – com suas adaptações às linguagens regionais – como se misturam e geram variados filhos.

É como explica o pesquisador argentino Pedro Ochôa, em um ainda inédito livro sobre o tango em Porto Alegre. Ele conta que, ao final do século XIX, valses, polcas, cuadrillas, lanceros, mazurcas, schottischs, habaneras, no faltan en el carnet de baile de ninguna niña casadera desde La Habana hasta Buenos Aires. Passando, evidentemente, pelo Porto dos Casais.

Ah, pois é.

* * *

E ainda nem falamos da… polca! Essa então é especialmente fascinante: promíscua como só ela,

a polca (polka) foi uma espécie de rock’n'roll do século XIX. Explodiu como febre mundial e misturou-se a outros ritmos onde quer que chegasse, deixando pelo caminho filhos tão diferentes quanto o choro, o tango, o samba e o maxixe.

Polska quer dizer Polônia. Mas, na verdade, o ritmo é da Silésia, que fazia parte da Boêmia, região oeste da hoje República Tcheca. Nascida no começo do oitocento, a polska começa a se disseminar pela Europa a partir de 1837, quando chega a Praga, capital cultural do poderoso Império Austro-Húngaro. Dali, vira febre por toda a Europa, mais contagiosa que a gripe espanhola. No mês de setembro de 1844 já estava em Lisboa. E dia sete de julho de 1845, um concerto no Teatro São Pedro do Rio de Janeiro apresenta “oficialmente” o ritmo aos brasileiros. Se instala a epidemia. No ano seguinte estava disseminada pelos quatro cantos do Império.

A coisa foi tão avassaladora que gerou até um verbo: polcar. Bem definida pelo pesquisador José Ramos Tinhorão como uma verdadeira loucura coletiva, Machado de Assis ironizou genialmente a situação num retrato de época que é um de seus melhores contos: Um Homem Célebre. Nele, Pestana é um celebrado compositor de polcas de sucesso que tenta em vão se consagrar como autor de sofisticadas peças eruditas. Mas seu talento era para polcas de sucesso, imediatamente editadas, tocadas por todos e assoviadas nas ruas. O que quer que ele tentasse, virava polca epidêmica.

Page 36: As_origens Da Música Popular Em Poa

36

No Rio Grande do Sul, ela chega como dança de salão, das

cidades maiores – mas inevitavelmente voltaria ao campo, ainda que décadas e milhares de quilômetros distante de seu berço natal. Em pleno século XXI, além de ser categoria do Grammy – best polka performance – ela segue firme pelos suis, ainda limpando bancos em bailes regionalistas, sob o nome de polca mesmo, ou sob as alcunhas de limpa-banco, serrote ou gasta-sola.

* * *

História mais longa que essa, só a da valsa. Primeiro ritmo popularmente global, a valsa nasceu em Viena,

na Áustria, em meados do século XVIII – espalhando-se pela Europa ao final do mesmo. Na França, ganharia um andamento mais lento e solene, e é esta primeira variação que chega ao Brasil, junto com a Família Real Portuguesa. Foi uma das mais curiosas novidades trazidas pela turma de Dom João VI em 1808. Nos anos 1820 já é tocada e dançada em todas as cidades mais importantes do Brasil. E, mais pro final do século, se fundiria com os mais variados nascentes sotaques regionais desse país continental.

Page 37: As_origens Da Música Popular Em Poa

37

Assim, na mão de chorões do Rio de Janeiro, Porto Alegre e sabe-se lá mais aonde, iria desenvolver-se cheia de contracantos nas cordas graves dos violões, às vezes meio seresteira na sua fusão com a modinha, rumo à valsa-canção. E influenciaria até a própria modinha, que é em compasso binário, enquanto a valsa é ternária (alguns defendem que existe modinha ternária, mas essa discussão não é pra cá). No Brasil, ela também incorporaria as modulações (trocas de tom) típicas das polcas e a inevitável melancolia brasileira.

No Rio Grande do Sul dos primeiros anos do século XX, sua pulsação ternária iria se abagualando na forma da valsa campeira, além de se misturar com a (polonesa) mazurka e com a rancheira – um dos gêneros mais populares até hoje no Estado e quase extinto no resto do Brasil. Mas na capital, como se vai ver, é que seria cultivada à exaustão até a década de 1930, gerando o que chegou a ser chamado de valsa porto-alegrense. Voltaremos a falar muito sobre isso.

* * *

Pra fechar: o tango. Há menções à palavra em Buenos Aires

desde os princípios do século XIX, como sinônimo de baile de negros, ao som de tambores. Alguns afirmam que o tango na verdade teria nascido na Andaluzia, Espanha, um pouco mais tarde: meados do século XIX. Outros, como o pesquisador argentino Enrique Binda, contestam completamente a ideia, e apontam o Rio da Prata como sua terra natal – e, efetivamente, há uma matéria no jornal Sudamerica, em 1888, que cita as diferenças entre tango, zarzuela e habanera num recente lançamento de um arranjo para piano feito por uma pianista e compositora local (contemporânea de Chiquinha Gonzaga e da gaúcha Lídia Knorr, aliás).

O fato é que há uma espécie de habanera que vai se chamar tango e se desenvolve, paralelamente, tanto no Rio de Janeiro quanto em Porto Alegre, Montevideo e Buenos Aires. No Brasil, ele começa a aparecer na década de 1870, quando Henrique Alves de Mesquita, compositor bastante popular, começar a escrever seus… tangos. Na verdade, se pode afirmar com boa dose de certeza que Henrique efetivamente inventou o que ele mesmo batizaria de “tango brasileiro”, misturando tango andaluz, habanera, polca e lundu – o primeiro resultado da mistura é Olhos Matadores, de 1868 (editado quatro anos depois).

Page 38: As_origens Da Música Popular Em Poa

38

A partir daí, ninguém é capaz de definir precisamente quando deixa de ser “tango brasileiro” (ou, no apelido carinhoso, tanguinho) para virar maxixe, choro ou mesmo samba. Só sabe o nome do santo que fez o milagre. Santa, aliás: Chiquinha Gonzaga.

O clássico Odeon, escrito por Ernesto Nazareth em 1910, por exemplo: é um tanguinho, não um choro. Nazareth, aliás, escreveu mais de 90 tangos. Pedro Ochoa, músico, compositor, bailarino (de tango) e pesquisador argentino:

Los tangos de Nazareth son plenamente brasileños; no obstante,

en algunos momentos, cuando conservan el pie con puntillo (a pulsação de semínima pontuada) y la melodía sentimental de la habanera, recuerdan a Francisco de Caro o a Enrique Delfino (grandes nomes do começo do tango argentino como o conhecemos).

Na verdade, vale escutar tangos brasileiros e argentinos da

mesma época para sentir o quanto eles se assemelham. Mas, ops!, nesse vai e vem já viramos de século há horas.

Paremos para retomar o fio da história.