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UM LUGAR CHAMADO LIBERDADE: MÚSICA POPULAR, TRADIÇÃO E BOEMIA EM PELOTAS Thaís de Freitas Carvalho 1 O presente artigo é fruto de um trabalho de conclusão do curso de História, proveniente da cidade de Pelotas, localizada no extremo sul do Brasil, e teve como ponto de partida o Bar e Restaurante Liberdade, situado no centro urbano desta – Rua Marechal Deodoro, nº 753. O bar é reconhecido pela música ao vivo executada nas noites de sextas e sábados há mais de trinta anos, com músicos e repertório bastante ligados ao desenvolvimento do choro e do samba na região. Após intenso trabalho de campo com o intuito de analisar a sociabilidade boêmia perceptível no local, a musicalidade presente em tal espaço trouxe a relação história-música para o primeiro plano: ficou claro que a sociabilidade em questão era pautada pela tradição musical. Mas o aspecto mais curioso deste cenário foi justamente a peculiaridade não só do repertório, mas também dos músicos, da estética e do comportamento percebidos no espaço. As características de um botequim carioca do século XX, com muito choro, samba e 'gente bamba' estavam presentes ali, em um bar na metade sul do Estado brasileiro mais ao sul, cujos governantes, mais de uma vez na história, manifestaram posturas separatistas perante o resto do país. 2 Como pôde o choro firmar-se – e com um número bastante extenso de músicos e admiradores – e afirmar-se tão acentuadamente nesta região de fronteira cercada de regionalismos não só musicais, mas até políticos? Essa tradição musical veio com o aparecimento deste espaço – o bar – ou antes dele? Quais são as características destes músicos e de sua formação musical? A estas indagações e estranhamentos que a pesquisa procurou responder. De certa forma, pode-se dizer que o objetivo mais geral do estudo em questão foi visualizar alguns traços que passam despercebidos na História de Pelotas. Traços referentes a uma vida noturna e boêmia que existiu – e que ainda existe -, e merece estudos mais atentos às suas peculiaridades. Nesta busca, o trabalho permeou relações sociais de memória e 1 Universidade Federal de Pelotas, Mestranda em História, e-mail: [email protected]. 2 Além do separatismo presente na Revolução Farroupilha (1835-1845), movimentos separatistas como “O Sul é Meu País” têm proposto discussões a respeito da questão federativa principalmente desde meados da década de 90, alegando a arrecadação de impostos por Brasília (DF) como um dos principais fatores que travam o desenvolvimento dos Estados da região sul do Brasil.

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UM LUGAR CHAMADO LIBERDADE:

MÚSICA POPULAR, TRADIÇÃO E BOEMIA EM PELOTAS

Thaís de Freitas Carvalho1

O presente artigo é fruto de um trabalho de conclusão do curso de História,

proveniente da cidade de Pelotas, localizada no extremo sul do Brasil, e teve como ponto de

partida o Bar e Restaurante Liberdade, situado no centro urbano desta – Rua Marechal

Deodoro, nº 753. O bar é reconhecido pela música ao vivo executada nas noites de sextas e

sábados há mais de trinta anos, com músicos e repertório bastante ligados ao desenvolvimento

do choro e do samba na região. Após intenso trabalho de campo com o intuito de analisar a

sociabilidade boêmia perceptível no local, a musicalidade presente em tal espaço trouxe a

relação história-música para o primeiro plano: ficou claro que a sociabilidade em questão era

pautada pela tradição musical. Mas o aspecto mais curioso deste cenário foi justamente a

peculiaridade não só do repertório, mas também dos músicos, da estética e do comportamento

percebidos no espaço. As características de um botequim carioca do século XX, com muito

choro, samba e 'gente bamba' estavam presentes ali, em um bar na metade sul do Estado

brasileiro mais ao sul, cujos governantes, mais de uma vez na história, manifestaram posturas

separatistas perante o resto do país.2 Como pôde o choro firmar-se – e com um número

bastante extenso de músicos e admiradores – e afirmar-se tão acentuadamente nesta região de

fronteira cercada de regionalismos não só musicais, mas até políticos? Essa tradição musical

veio com o aparecimento deste espaço – o bar – ou antes dele? Quais são as características

destes músicos e de sua formação musical? A estas indagações e estranhamentos que a

pesquisa procurou responder.

De certa forma, pode-se dizer que o objetivo mais geral do estudo em questão foi

visualizar alguns traços que passam despercebidos na História de Pelotas. Traços referentes a

uma vida noturna e boêmia que existiu – e que ainda existe -, e merece estudos mais atentos

às suas peculiaridades. Nesta busca, o trabalho permeou relações sociais de memória e

1 Universidade Federal de Pelotas, Mestranda em História, e-mail: [email protected]. 2 Além do separatismo presente na Revolução Farroupilha (1835-1845), movimentos separatistas como “O Sul é Meu País” têm proposto discussões a respeito da questão federativa principalmente desde meados da década de 90, alegando a arrecadação de impostos por Brasília (DF) como um dos principais fatores que travam o desenvolvimento dos Estados da região sul do Brasil.

subjetividade na expectativa de perceber o contexto histórico analisado sob uma ótica vivida,

parte da corrente historiográfica que se aproxima das ações cotidianas e de atores sociais antes

ignorados ou colocados à margem das transformações e do curso da história. Para tanto,

utilizou-se a metodologia da História Oral temática no recurso às entrevistas com o

proprietário do bar, músicos e frequentadores, bem como contribuições informais através da

observação participante em noites de sexta-feira ao longo dos anos de 2008, 2009 e primeiro

semestre de 2010. Confrontar o desenvolvimento desta tradição, visto de dentro, com a

história da música popular, mostrou-se a melhor alternativa para compreender os fatores

sociais que envolvem o contexto de formação destes hábitos culturais. Assim, um objetivo

intrínseco a esta pesquisa é “alargar nossos horizontes em relação às possibilidades de vida

humana, é vivenciar outras existências” (ALBERTI, 2004, p. 18).

Para este artigo, foram selecionadas quatro entrevistas e, na tentativa de visualizar este

contexto de diferentes ângulos, escolhi dois músicos, uma freqüentadora assídua e o

proprietário do bar. São eles: Avendano Jr., o músico solista que dá nome ao grupo (falecido

em 2012); Milton Alves, o violonista do conjunto; Sônia Porto, cantora, freqüentadora assídua

das noites de música do bar e Dilermando Lopes Tabeleão, o ‘Seu Lopes’, proprietário do

Liberdade.

A Sociologia e a Antropologia têm íntima relação com os estudos aqui pretendidos

sobre a sociabilidade boêmia existente no Bar Liberdade. Envolvendo a dicotomia público x

privado, as reflexões de Roberto Damatta (1997) auxiliam ao pensar sobre a apropriação do

espaço por determinado grupo, afinal, o bar está inserido em um âmbito público, sem impor

restrições étnicas, de classe, faixa etária ou ocupação profissional. Entretanto,

[...] a oposição casa/rua tem aspectos complexos. É uma oposição que nada tem de estática ou de absoluta. Ao contrário, é dinâmica e relativa porque, na gramaticidade dos espaços brasileiros, rua e casa se reproduzem mutuamente, posto que há espaços na rua que podem ser fechados ou apropriados por um grupo, categoria social ou pessoas, tornando-se sua “casa” ou seu “ponto” (DAMATTA, 1997: 55).

A afirmação de Roberto Damatta não poderia ser mais apropriada para descrever a

sociabilidade formadora das noites boêmias do Bar e Restaurante Liberdade. De uma simples

reunião de músicos a reduto dos amantes do choro em Pelotas, o bar não precisou de muito

tempo. A música ‘selecionou’ o público e abrigou desde meados de sua fundação (1974)

nomes formadores da tradição do choro em Pelotas,3 atraindo uma parcela da sociedade

ligada, por inúmeros fatores, a uma tradição musical originada no âmbito carioca, mas

recheada de valores e influências de diversas regiões do Brasil. Como diz Napolitano (2007,

p. 5), “a música popular, entre outras propriedades, é uma espécie de repertório de memória

coletiva” e é nesta fusão que se assenta a tradição.

Ao longo dos projetos e das fases que compuseram este trabalho, a proximidade com a

Etnomusicologia também se tornou indispensável, ao ponto de os objetivos gerais desta

disciplina se confundirem com as pretensões deste trabalho. O diálogo entre a História e a

Etnomusicologia mostrou-se intenso e produtivo, proporcionando reflexões a respeito dos

efeitos da música na sociedade e de como esses significados são capazes de fortalecer as

interações sociais e as visões de mundo de determinado grupo – ou os juízos compartilhados

de Guarinello -, construindo uma sociabilidade específica.

[...] para entender os efeitos da música na audiência, é necessário entender de que maneira a performance afeta tanto os executantes quanto a audiência. De fato, música é mais que física. Esta afirmação pode ser considerada uma das primeiras justificativas para o estudo etnográfico da música na cultura. Se queremos entender os “efeitos dos sons no coração humano” devemos estar preparados para traçar com os ouvintes os “costumes, reflexões e miríades de circunstâncias” que dotam a música de seus efeitos (SEEGER, 1992: 9).

A construção de uma música que possa efetivamente ser chamada de popular está,

inevitavelmente, no centro de tensões, conflitos e interações entre diversos grupos sociais de

uma sociedade. Do contrário, se fosse algo instituído por determinado segmento, apenas, esta

poderia constituir a música de certo povo, povoado ou mesmo um clube social, mas nunca

uma música popular. Ou seja, é necessário ver a cultura popular não como algo estabelecido e

definido socialmente, pois o popular só é efetivo enquanto condensação das diferenças num

todo acessível. O conceito, aqui, refere-se à dinâmica da vida em sociedade. Nesse sentido,

explica-se o fato de o popular consolidar-se, preferencialmente, em circuitos médios da

sociedade, onde os extremos socioculturais encontram um elemento de ligação.

Não é à toa que os espaços cariocas do século XX referidos pelos historiadores como

os locais privilegiados da fusão musical que daria origem ao samba, são justamente as casas

3 Ver o artigo de Ana Paula Silveira e Raul Costa d’Ávila, “Avendano Jr.: a tradição do choro em Pelotas” (2004).

das ‘tias baianas’ que haviam conquistado alguma estabilidade econômica e respeitabilidade

social no Rio de Janeiro e que reuniam em suas residências não só a comunidade negra como

também políticos e intelectuais brancos.

O choro carioca, segundo José Ramos Tinhorão (1998), teria surgido no Rio de

Janeiro com a decadência da música de barbeiros, fenômeno do século XVIII que consistiu na

especialização musical de tais profissionais – já que dispunham de tempo livre e habilidades

manuais -, em sua maioria negros livres ou a serviço de seus senhores. Os barbeiros teriam

refletido a necessidade de música para as festas populares, resultado do adensamento do

quadro urbano. Tocavam ‘de orelha’ e aprendiam da maneira mais livre possível, executando

‘peças alegres’ à entrada das igrejas e nas celebrações de festas. O autor enquadra os

“mestiços da nascente baixa classe média urbana da era pré-industrial” que formariam o choro

como herdeiros da música de barbeiros, o que, sem dúvida, pode ser expresso pelo

autodidatismo presente em seus expoentes e, ainda hoje, no legado dos chorões antigos aos

admiradores do choro da moderna era industrial. (TINHORÃO, 1998, p. 173)

Os músicos do Liberdade4 constituíram a formação típica dos conjuntos regionais de

choro (violão, cavaquinho, flauta) acrescidos de alguns ritmistas (surdo, pandeiro e, às vezes,

agê). Ao longo dos anos, substituições tiveram de ser feitas – até porque diversos músicos

desta tradição pelotense nasceram nas primeiras décadas do século XX e muitos já não podem

ser mais ouvidos – e algumas destas funções são desempenhadas informalmente hoje em dia,

não havendo mais o compromisso oficial de um músico com determinado posto instrumental

do conjunto.

A música de barbeiros que formaria a base dos grupos de choro conferiu ao gênero o

jeito descomprometido de tocar, permitindo improvisos e inovações, considerando que,

inicialmente, os grupos de choro tocavam polcas e canções populares vindas da Europa,

adaptando-as ao ritmo e à “maneira lânguida de tocar” (TINHORÃO, 1998, p. 202). Ao longo

desta pesquisa, ficou claro que o choro, nesta tradição pelotense do Avendano e seu regional,

não se restringe a um repertório musical delimitado. Seguindo a característica da música de

4 Conhecidos como Avendano Jr. e seu regional, o conjunto era formado no período da pesquisa por Paulino (surdo), Jacó (pandeiro), Roberval (cavaquinho base), Avendano (cavaquinho solo) e Milton (violão de sete cordas).

barbeiros, o choro do Liberdade confere a sonoridade lânguida deste gênero musical a

diversas músicas populares, nacionais ou mesmo estrangeiras. Pode-se ouvir até alguns

clássicos da banda inglesa The Beatles, surgida nos anos 1960, no lamento do cavaquinho.

Estabelecendo como fonte de análise também as observações etnográficas realizadas

ao longo da pesquisa, pode-se dizer que o repertório musical executado nas noites de sexta e

sábado no Bar e Restaurante Liberdade não deixa dúvidas quanto à ligação estabelecida com a

música popular brasileira, desde os chorinhos de Pixinguinha, os ‘sambas de asfalto’ de Noel

Rosa, os ‘sambas de morro’ de Cartola, passando pelas influências regionais do baião de Luiz

Gonzaga, do samba-canção de Lupicínio Rodrigues, dos sambas abolerados da década de 40 e

mesmo pela MPB de Jobim, tão afastada da ‘verdadeira’ música popular requerida por

Tinhorão. Todas estas expressões da diversidade cultural brasileira são executadas pelo

regional de Avendano e, em algumas vocalizações, interpretadas ao melhor estilo Nelson

Gonçalves pelo cavaquinho-base, Roberval, ou mesmo no canto descomprometido e

improvisado dos frequentadores.

A liberdade da audiência em dialogar e improvisar uma interpretação com os

músicos fica evidente pelo fato de que não há, na estrutura física do local, uma distinção entre

o nível dos músicos e dos frequentadores. Em suma, não há um palco elevado, embora haja

uma disposição prévia de mesas e cadeiras que acomodam o conjunto em um local

privilegiado para ver e ser visto (ver Fig. 1). Entre os músicos e a audiência, reserva-se um

pequeno espaço sem mesas para dançar, onde a proximidade com os músicos é tamanha, que

é preciso certo cuidado para não atrapalhar a execução. Esta proximidade revela a construção

e a afirmação de uma sociabilidade boêmia que insere músicos e frequentadores numa esfera

de respeito e camaradagem, onde a admiração e a música originam amizades que atravessam

gerações.

Figura 1: Espaço destinado aos músicos no interior do bar (2009)

Autor(a): pesquisadora Fonte: acervo da pesquisa etnográfica

Figura 2 - Interior do bar (2009)

Autor(a): pesquisadora Fonte: acervo da pesquisa etnográfica

Fazendo uso de alguns conceitos de Halbwachs (2006) podemos explicar a estética

deste espaço – afinal, não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial –,

sua estrutura física, disposição dos móveis, organização do balcão, mesas e cadeiras, enquanto

uma sociedade que remete a um contexto passado, a um imaginário social em torno da

memória dos botequins e armazéns dos subúrbios (Fig. 2) “Em cada época há uma estreita

relação entre as atitudes, o espírito de um grupo e o aspecto dos lugares em que este vive.”

(HALBWACHS, 2006, p. 88) É evidente que, enquanto espaço de uma tradição cultural, as

mudanças e adaptações – redes de convenção e rotina mencionadas por Hobsbawm (2006) –

ao longo do tempo são inevitáveis, mas os costumes ligados à tradição mantêm os elos

conectados e ajusta as modificações de acordo com a melhor compatibilidade com o

‘tradicional’.

Assim, cada sociedade recorta o espaço à sua maneira, mas de uma vez por todas ou sempre segundo as mesmas linhas, de maneira a constituir um contexto fixo em que ela encerra e encontra as suas lembranças [...] é justamente a imagem do espaço que, em função de sua estabilidade, nos dá a ilusão de não mudar pelo tempo afora e encontrar o passado no presente (HALBWACHS, 2006, p. 188)

Esta preservação estética relaciona-se, também, com uma política conservadora

assumida e empreendida por Seu Lopes, o proprietário do estabelecimento, a qual perpassa

não só a cultura material como também hábitos e costumes, por exemplo, no concernente a

certos padrões de comportamento relacionados à dança, às demonstrações de afeto, etc. Em

suas palavras: “Eu fui um conservador. Aliás, eu fui, não: eu sou um conservador. Eu ainda

tenho aqueles meus limites do tempo da vovó.” Seu Lopes também manifesta o seu orgulho

em situar o Liberdade como um dos bares mais antigos de Pelotas. De fato, o bar mudou de

endereço em diversos momentos, embora privilegiando sempre os quarteirões nos arredores

do calçadão da Andrade Neves, bem no centro da cidade.5 Em decorrência destas mudanças, o

público frequentador do Restaurante Liberdade – isto é, o público diurno – passou de

funcionários públicos citadinos a uma massa numerosa de agricultores e trabalhadores rurais

que vêm do interior, alguns diariamente, resolver assuntos os mais variados durante o dia, e

têm no Liberdade o espaço para fazer suas refeições e aguardar os horários de saída dos

ônibus, dada a proximidade do estabelecimento com as paradas destinadas aos mesmos em

direção ao interior do município.

Este aspecto confere ainda mais particularidade ao espaço do Liberdade, pois,

tomando como foco de análise uma sexta-feira qualquer, pode-se afirmar que a apropriação

sociocultural do espaço muda do dia para a noite, razão pela qual o bar tem o apelido de

‘transformista’ (segundo Seu Lopes). E as transformações não ficam por aí: de uma maneira

geral, é possível perceber a heterogeneidade do público boêmio atual, mas nem sempre foi

5 10 de maio de 1974 (ano de fundação): Félix da Cunha, 624; 1978: Marechal Deodoro, 707; 1984: Marechal Deodoro, 715; 1987: General Netto, 1254 (casa foi vendida); 2000: Sta. Tecla, 712 e, finalmente, desde 24 de julho de 2002, Marechal Deodoro, 753 (segundo Seu Lopes).

assim. Seu Lopes conta que até meados dos anos 80, a presença de mulheres era

condicionada, na maior parte das vezes, à presença do marido ou algum companheiro, quadro

que foi se modificando após a abertura política do período ditatorial, já no final do governo

Figueiredo (1979-1985). Na década de 90, verifica-se outra mutação: a apropriação gradual

do espaço por um público jovem cada vez mais numeroso e basicamente universitário, relação

que perdurou e aumentou desde então. A relação de alguns músicos do regional com o

Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas, ainda que efêmera, rendeu

muitos frutos. Alguns professores, enquanto admiradores da música popular, acompanharam

esse vínculo cada vez maior entre as universidades e a música popular do Liberdade, bem

como um diálogo entre o erudito e o popular. Avendano e o regional se apresentaram

inúmeras vezes no Conservatório desde então e receberam o reconhecimento da academia. O

crescente interesse do público jovem pela música popular e pelo choro local trouxe à tona um

sem-número de estudantes de música entre os frequentadores, o que acabou fazendo do

Liberdade também um espaço complementar de aprendizado.

Portanto, é possível diagnosticar dois sintomas dessa tradição que se encaixam

surpreendentemente, formando este espaço tão peculiar das noites pelotenses. De um lado, o

caráter preservacionista e conservador, representado pelas concepções envolvendo estética,

comportamento e música; de outro, a renovação, exemplificada no crescente interesse do

público jovem pela música popular executada daquela maneira lânguida por aqueles senhores

de cabeça branca e sorriso fácil.

Aspecto de extrema relevância sobre os entrevistados envolvidos com música (todos

exceto Seu Lopes) foi o ano de nascimento: todos são de 1939, por isso foi possível traçar um

paralelo mais efetivo entre seus relatos. Inúmeras referências em comum foram encontradas,

inclusive a mais frequente envolvendo músicos: a influência musical dos pais, principalmente

nos casos de Avendano e Soninha.Na fala de Milton, foi possível encontrar uma relação

também mencionada por Tinhorão: a ligação do choro e do samba com as companhias

militares. Milton conta que, no serviço militar em Suez,6 a sua condição de músico trouxe

6 “primeira participação brasileira em forças de paz da ONU [...]. Trata-se da Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF – I), no Oriente Médio. O Brasil contribuiu para a força com vinte contingentes ao longo dos dez anos entre 1956 até 1967, empenhando um efetivo total de 6300 homens, nas fronteiras entre Israel e Egito. O

algumas vantagens, como comida extra, calçados e uma colocação na retaguarda. Os músicos

- principalmente aqueles ligados ao samba, à música popular - eram muito valorizados na

situação de guerra, de conflitos militares, pois ajudavam as tropas a abstrair da árdua rotina e

das saudades de casa. Avendano e Milton prestaram o serviço militar juntos e, a partir daí,

iniciava uma parceria musical duradoura. Nas palavras de Avendano: “Eu comecei a tocar no

quartel, com 18 anos [...] e quem me botou o cavaquinho na mão foi aquele que toca violão

comigo, o Milton, nós servimos juntos. A culpa é dele. (risos)” Ele também conta que ganhou

discos dos sargentos no quartel, quando souberam que ele estava treinando para tocar

cavaquinho. Ele e Milton vivenciaram um dos maiores paradoxos dessa tradição: se de um

lado os militares valorizavam, de outro os policiais reprimiam. O auge da época de suas

serenatas coincidiu com o período da ditadura, em que a repressão policial, principalmente à

noite, era rigorosa. Este aspecto também é encontrado por Vianna (1999, p. 114): “O toque do

pandeiro era reprimido por policiais e, ao mesmo tempo, convidado a animar recepções de um

senador da República.”

Os músicos contam que se encontravam durante os dias de semana, após o

expediente, em um botequim perto de casa para fazer rodas de samba e “tomar uma

cachacinha”. Aos finais de semana, eram convidados a tocar em festas particulares de

conhecidos e vizinhos, nas quais ganhavam, em troca da música, comida e bebida apenas, sem

interesse financeiro - o que, mais uma vez, aparece também nas pesquisas de Tinhorão sobre a

‘orquestra dos pobres’ no Rio de Janeiro. Após essas ‘festinhas’ saíam a fazer serenatas para

as moças e para os conhecidos admiradores do samba e do chorinho.

“Naquele tempo a serenata fazia parte da noite, hoje não. Ninguém mais dá serenata,

até porque tu sai na rua e te roubam o instrumento. Mas naquele tempo a gente passava a

noite dando serenata, às vezes amanhecíamos o dia.” (Milton) “Peguei muita gripe com

serenata... (risos) Ah, é, porque era inverno e verão e no inverno era brabo. É que pra aquecer,

a gente tinha que tomar uns ‘traguinhos’... aí tomava demais, aquecia demais e já não tocava

nada.” (Avendano) Eles contam que foi justamente o problema da falta de segurança nas ruas

que fez com que eles parassem com as serenatas e procurassem um lugar fixo, um ponto de

período da missão vai do término da chamada Guerra do Sinai e início do confronto denominado Guerra dos Seis Dias.” (LOPES, 2005, p. 1)

encontro onde pudessem tocar, o qual veio a ser o Liberdade – à época, ainda na Félix da

Cunha. E este encontro teve um mediador: Carlos Nogueira era um dos ritmistas do grupo, e

indicou o bar para essas reuniões informais. Isso é confirmado pelos músicos e por Seu

Lopes, o qual admite que sequer conhecia esse tipo de música antes de Nogueira (então fiscal

da prefeitura) trazer os rapazes e iniciar essa tradição.

O rádio também trouxe a notoriedade e o reconhecimento a esses músicos locais.

Soninha foi cantora profissional de rádio desde os 5 anos, em Rio Grande, e Avendano

chegou a ter um programa de rádio em Pelotas. Desde 1941, a Rádio Nacional podia ser

captada em todas as regiões do Brasil, devido à inauguração das transmissões em ondas curtas

A partir de 1930, segundo Tinhorão, ocorre que os últimos chorões antigos do Rio de Janeiro

começam a desaparecer e “os mais novos já se profissionalizam tocando nas rádios e para

gravações em discos” (TINHORÃO, 1998, p. 199). Na memória de Soninha: “O rádio era

uma coisa maravilhosa, tu sabe por quê? Porque o rádio unia as famílias! Quem não tinha

rádio, ia lá pra casa do Chiquinho escutar. E ali, depois já virava uma roda de música.”

Talvez a constatação mais importante retirada das entrevistas tenha sido a influência

das zonas portuárias na gênese dessa tradição. É sabido que as interações entre Rio Grande e

Pelotas fizeram a ponte cultural entre muitos músicos e hábitos sociais, mas é preciso lembrar

que esta última também já vivenciou um contexto portuário muito mais ativo. Segundo

Milton:

Quando eu era guri [...] eu me lembro de ver navios grandes atracarem aqui. E tinha muito marinheiro. E onde tem marinheiro, ele traz uma cultura diferente, bem variada, de tudo que é canto. [...] O porto de Pelotas está desativado, mas ficou aquela semente plantada.

A efervescência cultural proveniente de tais contextos é incalculável, pois pressupõe

uma série de trocas advindas de relações boêmias com marinheiros cariocas, nordestinos e de

inúmeros outros confins brasileiros. Os relatos mostram que não só estes influenciaram, mas

também levaram consigo inúmeros hábitos, macetes e informações culturais desta região,

noticiando a existência desta tradição pelo país afora. As relações com o porto perpassam as

entrevistas: “O meu pai era portuário. Não dá pra viver da música, nunca deu. [...] E ele,

muitas vezes, deixava de fazer extra no porto – ele era guindasteiro – pra ir tocar, porque

chamavam ele” (Soninha). Já no concernente aos músicos que iniciaram com Avendano e

Milton, é significativo que a maior parte deles morasse na chamada Zona do Porto (arredores

da rua Benjamin Constant), o que também insere o contexto pelotense nessa herança cultural

portuária.

Nesse sentido, é possível perceber que a geração de músicos do Liberdade já é fruto

de uma semente mais antiga de trocas com a música popular brasileira. Os músicos da década

de 1950 já cresceram com a Era do Rádio e do disco, o que acelerava o ritmo da interação

musical e permitia uma relação muito mais íntima com os diferentes estilos e execuções

musicais divulgadas pelo rádio e pela indústria cultural. As restrições e divisões internas em

defesa de uma ‘autenticidade’ da música popular, que tanto marcaram a conjuntura carioca,

parecem ter sua importância reduzida no choro do Liberdade. A boemia de Avendano e seu

regional vê na languidez dos chorinhos uma marca da música brasileira e, assim, deixam essa

marca em suas performances com um repertório variado de música popular, sem uma

restrição folclorista a determinada classificação musical.

Ao fim das entrevistas, foi possível ampliar um pouco mais o campo de visão sobre a

noite pelotense. Reconhecer nas ruas da cidade os lugares por onde passaram estes seresteiros

e imaginar portas e janelas se abrindo para ouvir os choros – ou assistir os músicos correndo

da polícia – é saber que a história vista de dentro é muito mais do que o passado; é a relação

mútua entre presente e passado, entre paralelos que se entrelaçam. A música popular nas

noites boêmias de serenata encontra-se com a vigilância e a repressão, que mais tarde será

substituída pela ausência de vigilância, ou seja, a insegurança das ruas. Destas circunstâncias

nascem as noites boêmias do Bar Liberdade, o refúgio da música popular em Pelotas.

REFERÊNCIAS:

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LOPES, Fabiano Luis Bueno. Batalhão Suez: História Memória e Representação Coletiva (1956-2000), 2005. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Disponível em: <http://www.poshistoria.ufpr.br/documentos/2006/Fabianoluizbuenolopes.pdf> Acesso em: 18/07/2010. NAPOLITANO, Marcos. História e música: história cultural da música popular. 3ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. _____________. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. 1ª Ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007 – Coleção História do Povo Brasileiro. SEEGER, Anthony. Etnografia da Música. Trad. Giovanni Cirino. MYERS, Helen. Ethnomusicology. An Introduction. Londres, The MacMillan Press, 1992. TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1998. VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Ed. UFRJ, 1995.