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Lisboa 2015
Tese de Doutoramento em Filosofia
(Especialidade em Antropologia Filosoacutefica)
Aspectos fundamentais da
experiecircncia da vida
Bruno Pedro Peixoto Venacircncio
Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessaacuterios agrave obtenccedilatildeo do grau
de Doutor em Filosofia (Especialidade em Antropologia Filosoacutefica) realizada sob a
orientaccedilatildeo cientiacutefica do Professor Doutor Maacuterio Jorge Pereira de Almeida Carvalho
AGRADECIMENTOS
Devo uma primeira menccedilatildeo aos Professores Doutores Antoacutenio de Castro Caeiro Carlos Joatildeo
Correia Luiacutes Umbelino Mafalda Eiroacute Gomes Maria Joatildeo Silveira Nuno Ferro Paulo Lima Pau-
lo Lourenccedilo e Siacutelvia Rosado por numa ou noutra fase da realizaccedilatildeo desta tarefa nela terem to-
mado parte ou a terem incentivado
Tenho uma diacutevida para com a Unidade de Investigaccedilatildeo e Desenvolvimento LIF ndash Linguagem In-
terpretaccedilatildeo e Filosofia sediada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e em es-
pecial para com o seu director o Professor Doutor Antoacutenio Martins por se ter associado a este
projecto
Tive a sorte de vir a ter como colegas no Departamento de Filosofia da Universidade Nova de
Lisboa um grupo de jovens investigadores excepcionalmente talentosos e empenhados que
acompanharam e contribuiacuteram significativamente para esta tarefa Lembro-me nesta hora de
Baacuterbara Silva Bernardo Enes Dias e Tomaz Fidalgo lembro-me de Nuno Marques da Silva e da
sua tese de Doutoramento intitulada ldquoIdentidade e Vida em Virginia Woolf ndash Uma anaacutelise da
expressatildeo literaacuteria de um problema filosoacuteficordquo ndash tese de que a minha eacute em muitos aspectos
herdeira e lembro-me em especial de Heacutelder Telo Samuel Oliveira e Vasco de Jesus cuja ami-
zade e generosidade excedeu em muito a que eu mereci
Esta tese deve-se ao Professor Doutor Maacuterio Jorge Carvalho Deve-se a ele antes de mais a
sua existecircncia material ndash por nunca se ter deixado vencer pela minha desorientaccedilatildeo e pela te-
nacidade que lhe foi necessaacuteria para levar a tese a bom porto E deve-se a ele principalmente
o conteuacutedo ndash que resulta de uma tentativa de fixar uma pequena parte das investigaccedilotildees a que
dedicou a vida
Natildeo posso esquecer todos aqueles que possam ter sido pessoalmente negligenciados ao longo
dos anos que esta tarefa durou Espero ainda ir a tempo de os alcanccedilar e de partilhar com eles
o que reste de caminho
Devo tambeacutem mencionar aqueles que natildeo estatildeo porque me abasteccedilo daquilo que deixaram
A uacuteltima palavra eacute para a famiacutelia Para a D Eduarda que me aceitou como um dos seus para a
minha avoacute e a minha matildee que satildeo as verdadeiras responsaacuteveis por tudo de bom que eu vier a
alcanccedilar para a Duda e a Mia que satildeo a minha casa Porque eacute precisamente isso que quero di-
zer tomo como minhas essas palavras amaldiccediloadas Obrigado por tudo
ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA EXPERIEcircNCIA DA VIDA
Bruno Pedro Peixoto Venacircncio
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE experiecircncia vida natildeo-indiferenccedila ipseidade superlativo possibili-
dade significado
A tese que de seguida se esboccedila assenta sobre uma inquietaccedilatildeo fundamental o facto de cada um dar por si atirado na vida de quando cada um daacute por si dar por si a ser vida etc Acontece que logo que se tenta focar mais precisamente de que eacute de que se trata quando se trata da ldquovidardquo nota-se que esse fenoacutemeno tem habitualmente a forma de um acontecimento anoacutenimo natildeo se sabe bem a que eacute que corresponde que conteuacutedos tem que estruturas fundamentais a suportam etc Isto eacute somos levados pela vida (passamos pela vida atravessamo-la estamos expostos a ela etc) sem saber exactamente a que eacute que estamos expostos o que eacute que nos leva sobre que pilares assenta a nossa vivecircncia e a nossa compreensatildeo dela etc A tese que se segue natildeo tem a pretensatildeo de deixar definitivamente respondidas estas perguntas tudo o que faz na verdade eacute meramente proceder a um breve levantamento ou a um registo de algumas das estruturas fundamentais da vida a partir do acircngulo da experiecircncia da vida E como se espera deixar claro procurar a resposta a partir do acircngulo da experiecircncia (do acircngulo da experiecircncia da vida) natildeo eacute algo acidental ou fortuito O que se procuraraacute apurar eacute se natildeo haveraacute tais laccedilos de afinidade entre ldquovidardquo e ldquoexperiecircnciardquo que todas as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia tecircm lugar numa vinculaccedilatildeo e estatildeo subordinadas agraves estruturas fundamentais da vida (estruturas que ultrapassam o acircmbito da ldquoexperiecircnciardquo) e que assim tambeacutem a vida tenha de raiz no modo como nela somos levados e conduzidos a estrutura ou a forma da ldquoexperiecircnciardquo
THE ldquoEXPERIENCE OF LIFErdquo KEY ASPECTS
Bruno Pedro Peixoto Venacircncio
ABSTRACT
KEYWORDS experience life non-neutrality ipseity superlative possibility meaning
The thesis we will try to outline rests upon the fact that each of us finds himself thrown into life upon the fact that when one happens to find oneself one finds one-self already in life or being life But as it turns out when one tries to focus exactly what one means by ldquoliferdquo it becomes clear that such phenomenon presents itself broadly speaking as an anonymous event when under pressure we realize it is un-certain what we mean by ldquoliferdquo and we find ourselves hesitating to come forward with a strict and precise definition ndash and that for no other reason than the fact that by ldquoliferdquo we mean many different and sometimes conflicting things And that being so we are led by life (we go through life we cross life we are exposed to life and so on) without any clear insight as to what are we exposed to as to what guides us as to upon which foundations is set our understanding of it The purpose of this thesis is not to set any conclusive answers to these questions in fact all it does is merely to carry out a brief survey or a brief record of some of the fundamental structures of life having as a start-ing point the experience of life We hope to show that to search for the answer having as the starting point the ldquoexperience of liferdquo is no random search We will try to ad-dress the possibility of a connection between ldquoliferdquo and ldquoexperiencerdquo such as that all the operations of ldquoexperiencerdquo are linked to the fundamental structures of ldquoliferdquo and such as that ldquoliferdquo presents itself as we cross it as ldquoexperiencerdquo
Aspectos fundamentais da
experiecircncia da vida
Versatildeo corrigida e melhorada apoacutes a defesa puacuteblica
Tese de Doutoramento em Filosofia
(Especialidade em Antropologia Filosoacutefica)
Lisboa 2015
Para a Mia
a quem tenho a deixar pouco mais
do que aquilo que aprendi
IacuteNDICE
PREAcircMBULO
sect0 O fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo enquanto problema filosoacutefico ndash Determinaccedilatildeo do acircn-
gulo deste estudo um levantamento ou um registo de algumas das estruturas fundamentais
da vida a partir do acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash A estrateacutegia ldquoimpressionistardquo de investi-
gaccedilatildeo que se seguiraacute
LIVRO I EXPERIEcircNCIA
INTRODUCcedilAtildeO
sect1 A dispersatildeo dos usos quotidianos do termo experiecircncia e a necessidade de remissatildeo agrave no-
ccedilatildeo de ἐμπειρία em Aristoacuteteles (Metafiacutesica I I e Analiacuteticos Posteriores II XIX) paacuteg 2
sect2 O desdobramento da noccedilatildeo de ἐμπειρία na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica os aspectos da doa-
ccedilatildeo da duraccedilatildeo e da impossibilidade de antecipaccedilatildeo paacuteg 7
sect3 A ἐμπειρία integrada no quadro geral de identificaccedilatildeo da σοφία a ἐμπειρία como uma
modalidade de saber possiacutevel do intervalo global entre o miacutenimo e o maacuteximo de saber ndash A
desformalizaccedilatildeo da σοφία apresentada no modo de uma escala de possibilidades de acesso
e a pergunta que posiccedilatildeo ocupa na escala o acontecimento de acesso em que nos temos paacuteg 11
I EXPERIEcircNCIA
sect4 A forma de aparecimento que mais deixa escondido isso que de algum modo potildee jaacute agrave
mostra paacuteg 26
sect5 A noccedilatildeo histoacuterica de αἴσθησις na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica e a pergunta de que eacute feito o
aparecimento paacuteg 29
sect6 A fulcral inflexatildeo aristoteacutelica a αἴσθησις como modalidade de acesso com uma perspec-
tiva confinada no que diz respeito ao tempo ndash A ininteligibilidade entre o modo de acesso
meramente esteacutesico e o modo de acesso que nos constitui paacuteg 33
sect7 A μνήμη como persistecircncia do jaacute percebido o factor da supressatildeo da vertigem perceptiva
e o factor do desdobramento temporal ndash A co-apresentaccedilatildeo do tempo e a sucessatildeo paacuteg 44
sect8 O confinamento em que incorre a μνήμη a μνήμη natildeo potildee nada que abra perspectiva so-
bre o futuro paacuteg 52
sect9 Abordagem agrave ἐμπειρία a partir da chave ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος
μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν ἀποτελοῦσινrdquo (Metafiacutesica 980b28) ndash O contraste entre a pluralida-
de mneacutesica e a unidade empiacuterica paacuteg 58
sect10 A transgressatildeo do dado e a produccedilatildeo de fixaccedilotildees de estados-de-coisas permanentes paacuteg 64
sect11 O caraacutecter de evidecircncia o encobrimento da projecccedilatildeo empiacuterica atraveacutes da fixaccedilatildeo de
uma lei paacuteg 69
sect12 A mudanccedila da matriz do reconhecimento da realidade produzida pela ἐμπειρία a fixa-
ccedilatildeo da ldquonaturezardquo do que aparece e a operaccedilatildeo de desconfinamento da perspectiva para to-
talidades muito para laacute do que de cada vez se tem dado paacuteg 72
sect13 A trama de confirmaccedilotildees e corroboraccedilotildees implicada na ἐμπειρία e os riscos em que con-
tinuamente incorre a projecccedilatildeo empiacuterica paacuteg 81
CONCLUSAtildeO
sect14 A ἐμπειρία enquanto algo que incide sobre o καθόλου ndash Um elo de conexatildeo entre ἐμπει-
ρία e γνωμολογία paacuteg 91
sect15 A ilusatildeo de acompanhar e perceber o ldquoporquecircrdquo das coisas paacuteg 104
sect16 A ἐμπειρία enquanto algo que ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo que natildeo cumpre o
que promete e que natildeo procura aquilo que jaacute julga ter paacuteg 111
LIVRO II EXPERIEcircNCIA DA VIDA
INTRODUCcedilAtildeO
sect17 Os sentidos muito diversos da noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo a ldquoexperiecircncia da vidardquo co-
mo mero ramo da experiecircncia ou toda a experiecircncia tal como acontece em noacutes sempre jaacute
de raiz ldquoexperiecircncia da vidardquo paacuteg 117
sect18 O caraacutecter oacutebvio vago desfocado e equiacutevoco da noccedilatildeo habitual de ldquovidardquo ndash Abordagem
preliminar agrave noccedilatildeo de ldquovidardquo a unidade maacutexima do aparecimento na primeira pessoa paacuteg 121
II EXPERIEcircNCIA DA VIDA
PRIMEIRA PARTE
sect19 A experiecircncia tal como tem lugar em noacutes estaacute vinculada a um quadro determinado
quanto ao teor e agrave amplitude ndash O acircmbito das totalidades a que a experiecircncia e a organizaccedilatildeo
da experiecircncia dizem respeito ndash O desfazamento entre a magnitude do empreendimento da
ἐμπειρία e as caracteriacutesticas das determinaccedilotildees disponiacuteveis o modelo ldquoalfabeacuteticordquo paacuteg 128
sect20 A variabilidade da ἐμπειρία quanto agrave amplitude da ascensatildeo em direcccedilatildeo a determina-
ccedilotildees mais geneacutericas e quanto agrave forma de cristalizaccedilatildeo na captaccedilatildeo da afinidade a scala praelig-
dicamentalis paacuteg 138
sect21 A complexidade da experiecircncia e os modos de cruzamento das determinaccedilotildees entre si ndash
A experiecircncia sintonizada por unidades colectivas de determinaccedilotildees paacuteg 143
sect22 A variaccedilatildeo no niacutevel de acuidade a relaccedilatildeo entre o grau de determinaccedilatildeo com que as
ldquocoisasrdquo nos aparecem e a exigecircncia de determinaccedilatildeo que enfrentam ndash A inadvertecircncia em
relaccedilatildeo agrave multiplicidade de determinaccedilotildees que conformam o teor do que nos aparece paacuteg 150
sect23 O desdobramento da experiecircncia em dois planos a superfiacutecie e a profundidade da expe-
riecircncia (Kant) ndash Pascal e ldquolrsquoautomaterdquo paacuteg 167
sect24 Diversos modelos possiacuteveis de organizaccedilatildeo da multiplicidade das determinaccedilotildees nexos
de coordenaccedilatildeo nexos de subordinaccedilatildeo regimes mistos e suas implicaccedilotildees paacuteg 177
sect25 A distribuiccedilatildeo das diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees por diferentes pla-
nos de relevacircncia ao longo do campo do que nos aparece ndash O nuacutecleo de importacircncia superla-
tiva como aquilo de que fundamentalmente trata o acontecimento de acesso ndash A possibilida-
de de a scala praeligdicamentalis traduzir a forma como estaacute internamente organizada a fixa-
ccedilatildeo do que nos aparece paacuteg 186
sect26 Uma certa margem de heterogeneidade que tem que ver com a diversidade do ldquoquecircrdquo da
experiecircncia experiecircncia de factos experiecircncia de significados e experiecircncia de factos e de
significados paacuteg 207
sect27 A variaccedilatildeo da experiecircncia consoante esteja ou natildeo sob algum tipo de pressatildeo (consoan-
te tenha ou natildeo algum tipo de ldquoem causardquo) ndash A pressatildeo de natildeo-indiferenccedila de natureza praacuteti-
ca o cuidado consigo mesmo paacuteg 220
sect28 As variaacuteveis sensus proprius e sensus communis paacuteg 229
sect29 A nossa como uma modalidade de experiecircncia entre muitas outras modalidades de ex-
periecircncia possiacuteveis ndash Como a experiecircncia que temos eacute sempre jaacute uma experiecircncia do campo
perceptivo uma experiecircncia do campo de familiaridade e uma experiecircncia do exterior do
campo de familiaridade paacuteg 239
SEGUNDA PARTE
sect30 A tentativa de remontar agrave origem da morfologia e da sintaxe da experiecircncia como tenta-
tiva condenada ndash A morfologia de toda a experiecircncia daacute lugar a uma sintaxe de toda a expe-
riecircncia paacuteg 263
sect31 Aquilo que aparece sob a pressatildeo de satisfazer a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que o per-
passa ndash A estrutura de complexidade do aparecer algo-a-aparecer-a-algo ndash A focagem da
componente testemunhal paacuteg 267
sect32 A impossibilidade de indiferenccedila a si ndash O aparecimento como acontecimento centrado na
ldquotestemunha globalrdquo o ldquoquemrdquo a quem aparece o que aparece como o factor que impossibi-
lita a neutralidade do aparecimento ndash A relaccedilatildeo de si a si sob a pressatildeo de um programa de
caraacutecter praacutetico paacuteg 275
sect33 A estrutura da auto-consciecircncia na sua relaccedilatildeo com o objecto em Hegel (Fenomenologia
do Espiacuterito IV B) paacuteg 287
sect34 O caraacutecter natildeo-punctiforme ou natildeo-estigmaacutetico do ponto de vista a natildeo-indiferenccedila ao
que seraacute e a flexatildeo do si-mesmo na forma de uma prescriccedilatildeo indefinida de si paacuteg 302
sect35 A ipseidade tende natildeo soacute para o superlativo quantitativo mas tambeacutem para um superla-
tivo qualitativo ndash O superlativo de superlativos a foacutermula ldquosuperlativo quantitativo x super-
lativo qualitativordquo paacuteg 311
sect36 O territoacuterio da possibilidade do si a dedicaccedilatildeo ao que seraacute-de-si e a pressatildeo gerundiva ndash
O caraacutecter labiriacutentico do quadro de possibilidades do vir-a-ser-de-si paacuteg 318
sect37 O duplo ldquobig bangrdquo do si-mesmo a propagaccedilatildeo sobre a totalidade de si e a propagaccedilatildeo
sobre a totalidade do que aparece ndash A ldquopeccedilardquo de si paacuteg 332
sect38 A organizaccedilatildeo global do que aparece considerada a partir da estrutura de ciacuterculos con-
cecircntricos de Hieacuterocles a presidecircncia centrada do αὐτός e o ldquolugarrdquo das ldquocoisas paacuteg 337
sect39 A vida como ldquoordquo objecto da auto-consciecircncia o modo como a auto-consciecircncia experi-
menta a independecircncia da vida e o que aparece como manifestaccedilatildeo da vida em Hegel (Feno-
menologia do Espiacuterito IV B) paacuteg 354
CONCLUSAtildeO
sect40 O facto de o aparecimento e a experiecircncia terem em noacutes o caraacutecter de aparecimento e
experiecircncia de significados ndash O facto de o ldquosignificadordquo ter um caraacutecter funcional sempre re-
lativo a um criteacuterio global de que eacute portador quem assiste ao aparecimento paacuteg 369
sect41 A noccedilatildeo de significado em V Woolf tudo o que aparece percebido como manifestaccedilatildeo
da forma da vida ndash A vida como objecto de si proacutepria ndash Tudo o que se passa como dado com-
portamental ou traccedilo de caraacutecter da proacutepria vida ndash A relaccedilatildeo com a vida assente sempre jaacute
na antecipaccedilatildeo de um resultado global ndash Como a avaliaccedilatildeo da vida eacute sempre a avaliaccedilatildeo do
ldquocaraacutecterrdquo ldquodisto tudordquo paacuteg 377
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS paacuteg 405
ldquoDesocupado lector sin juramento me podraacutes creer que quisiera que
este libro como hijo del entendimiento fuera el maacutes hermoso el
maacutes gallardo y maacutes discreto que pudiera imaginarse Pero no he
podido yo contravenir al orden de naturaleza que en ella cada cosa
engendra su semejanterdquo
(Do Proacutelogo de Don Quijote de la Mancha de Miguel de Cervantes)
PREAcircMBULO
sect0
O fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo enquanto problema filosoacutefico ndash Determinaccedilatildeo do
acircngulo deste estudo um levantamento ou um registo de algumas das estruturas funda-
mentais da vida a partir do acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash A estrateacutegia ldquoimpressionis-
tardquo de investigaccedilatildeo que se seguiraacute
O que se segue eacute um estudo filosoacutefico sobre o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo
Por si soacute a afirmaccedilatildeo ndash breve e sucinta ndash com que abrimos este breve preacircmbulo pare-
ce natildeo gerar problemas de maior No entanto ela introduz explicitamente um conjunto de pis-
tas que expotildeem desde jaacute uma estrateacutegia ndash pistas que eacute importante e uacutetil natildeo perder de vista
de modo a acompanhar eficazmente o desenvolvimento deste trabalho
Assim conveacutem ter presente antes de mais que este estudo eacute um estudo filosoacutefico e
que o que se visa eacute o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo enquanto problema filosoacutefico
Isto quer dizer antes de mais que a investigaccedilatildeo que se levaraacute a cabo natildeo trataraacute de
pocircr a questatildeo da ldquoexperiecircncia da vidardquo a partir de uma compreensatildeo habitual que tenhamos
desse fenoacutemeno
Aquilo que se pode dizer desde jaacute eacute que noacutes estamos agrave partida na posse de uma noccedilatildeo
quotidiana (ie natildeo-filosoacutefica por assim dizer) do que eacute a ldquoexperiecircncia da vidardquo Isto eacute ao fa-
larmos de ldquoexperiecircncia da vidardquo no sentido mais habitual e comum do termo aquilo de que
se fala natildeo nos eacute de tal modo alheio ou estranho que natildeo sabemos em absoluto de que eacute que se
estaacute a falar Pelo contraacuterio haacute um grau de familiaridade com o tema de tal modo que temos
uma noccedilatildeo ndash mesmo que baccedila desfocada imperfeita etc ndash do que eacute que isso quer dizer do
que eacute que corresponde a tal coisa etc
Neste sentido natildeo parece ser necessaacuterio adoptar um ponto de vista filosoacutefico para que
o tema da ldquoexperiecircncia da vidardquo se produza O tema da ldquoexperiecircncia da vidardquo faz parte (de
forma mais ou menos distante mais ou menos determinado etc) das nossas ocupaccedilotildees quoti-
dianas de tal modo que mesmo num qualquer acircmbito natildeo-filosoacutefico estariacuteamos em condi-
ccedilotildees de dizer algo sobre o assunto
No entanto quando visamos o problema a partir de um meacutetodo filosoacutefico no sentido
do termo ldquofilosofiardquo que aqui estaacute em jogo sentido que natildeo vai ser discutido no curso deste
trabalho aquilo que desde logo nos move eacute uma tensatildeo para averiguar se a noccedilatildeo de ldquoexperi-
ecircncia da vidardquo a que natildeo somos completamente alheios no quotidiano seraacute adequada para dar
efectivamente conta do que se passa quando se fala de ldquoexperiecircncia da vidardquo
Isto eacute na medida em que o ponto de vista filosoacutefico tal como aqui o consideramos
estaacute constituiacutedo sob a pressatildeo de um ideal cognoscitivo (tese que se assume aqui de forma
dogmaacutetica e que natildeo estaraacute no curso deste trabalho exposta a debate) o ponto de vista filosoacute-
fico como que ldquodesconfiardquo da noccedilatildeo quotidiana de ldquoexperiecircncia da vidardquo e potildee-na directa ou
indirectamente a exame E do exame a que o ponto de vista filosoacutefico potildee a noccedilatildeo quotidiana
de ldquoexperiecircncia da vidardquo pode muito bem resultar que se descubra que a noccedilatildeo de ldquoexperiecircn-
cia da vidardquo que sempre jaacute temos em operaccedilatildeo tem defeitos insuficiecircncias falecircncias etc de
tal modo que se encontra exposta agrave possibilidade de natildeo soacute ser questionada mas se encontra
ateacute exposta agrave possibilidade de ser corrigida ou no limite posta em causa invalidada etc
Ora na verdade a anaacutelise que se segue natildeo iraacute pocircr expressamente a exame no sentido
referido do termo a noccedilatildeo mais comum e quotidiana de ldquoexperiecircncia da vidardquo Ou seja natildeo
iremos no curso deste trabalho confrontar abertamente o conceito de ldquoexperiecircncia da vidardquo
que sempre jaacute temos as suas modalidades formas conteuacutedos etc Se em certo sentido fazecirc-
lo poderia ser uacutetil para se conseguir ldquodescolarrdquo em direcccedilatildeo a um ponto de vista filosoacutefico
(ie se fazecirc-lo poderia ser uacutetil como ponto de partida base de trabalho etc) o que de facto
estaraacute aqui em causa natildeo eacute senatildeo o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo a partir do acircngulo da
filosofia Aquilo que podemos desde jaacute admitir no entanto eacute que o estudo que se segue pode
natildeo deixar incoacutelume a noccedilatildeo habitual
Se por um lado o que caracteriza a nossa atitude habitual relativamente ao fenoacutemeno
da ldquoexperiecircncia da vidardquo pode muito bem ser o facto de julgarmos que jaacute sabemos muito bem
o que isso eacute ndash de tal forma que nos dispensamos logo agrave partida de qualquer exame (de acircmbi-
to filosoacutefico ou de qualquer outro acircmbito) sobre aquilo que constitui o fenoacutemeno ndash por outro
lado poreacutem o esforccedilo de focagem que se procuraraacute aplicar de seguida pode muito bem per-
verter o entendimento do fenoacutemeno que espontaneamente temos e que opera em noacutes
Isto eacute no curso deste trabalho a ter-se alguma perspectiva sobre a compreensatildeo habi-
tual que temos deste fenoacutemeno ela natildeo seraacute obtida senatildeo por um impliacutecito contraste com as
acepccedilotildees do fenoacutemeno a que daremos atenccedilatildeo poreacutem pode muito bem resultar do que se se-
gue que se entenda que haacute uma outra noccedilatildeo de ldquoexperiecircncia da vidardquo diferente da noccedilatildeo que
habitualmente jaacute temos tributaacuteria do acircmbito filosoacutefico que se revele mais apropriada para dar
conta daquilo que estaacute em jogo no fenoacutemeno ndash de tal modo que esse entendimento que se ob-
tenha produza no interior da noccedilatildeo que de cada vez temos adoptada uma modificaccedilatildeo que
natildeo a deixa incoacutelume mas que pelo contraacuterio a potildee em causa ou no limite a invalida
O que desde jaacute deve ficar claro eacute que por um lado iremos partir inicialmente de uma
compreensatildeo filosoacutefica ndash temos o nosso ponto de partida por assim dizer no interior do proacute-
prio ldquodiscurso filosoacuteficordquo ndash do fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo e que por outro o ponto
de vista filosoacutefico tem uma relaccedilatildeo com uma noccedilatildeo de ldquoexperiecircncia da vidardquo que agrave partida
pode natildeo corresponder agrave noccedilatildeo que usamos quotidianamente
Adicionalmente no entanto haacute um outro complexo de problemas que estas uacuteltimas
consideraccedilotildees deixam ver agora de forma mais clara
Eacute que por uma parte natildeo haacute algo como um empreendimento ou um meacutetodo filosoacutefico
(ie natildeo haacute algo como um uacutenico modo de considerar ou de conceber a ldquoexperiecircncia da vidardquo a
partir de um ponto de vista filosoacutefico) Pelo contraacuterio aquilo com que nos deparamos ao con-
siderar a histoacuteria da filosofia ou apenas um determinado momento dessa longa histoacuteria eacute uma
larga variedade de empreendimentos ou de meacutetodos contraacuterios ou ateacute contraditoacuterios entre si
que visam este e outros fenoacutemenos a partir de acircngulos muito diferentes entre si que procuram
evidenciar diferentes elementos de um mesmo fenoacutemeno etc
Assim e por outra parte o que resulta daqui eacute que natildeo haacute exactamente algo como um
conceito de ldquoexperiecircncia da vidardquo no acircmbito do debate filosoacutefico Na verdade pode ateacute acon-
tecer que natildeo haja entre as diferentes ldquoexperiecircncias da vidardquo visadas a partir desses diferentes
empreendimentos ou meacutetodos nada de propriamente comum de tal modo que as diferentes
ldquoexperiecircncias da vidardquo visadas a partir de diferentes empreendimentos ou meacutetodos resulta-
riam de facto em ldquofenoacutemenosrdquo muito distintos
Ora o estudo que de seguida apresentamos natildeo pretende passar por ser um estudo
exaustivo ndash nem por um estudo exaustivo dos empreendimentos ou meacutetodos filosoacuteficos que
visando ou natildeo directamente o problema da ldquoexperiecircncia da vidardquo tecircm algo a dizer sobre ele
nem um estudo exaustivo das diversas definiccedilotildees ou dos diversos conceitos de ldquoexperiecircncia
da vidardquo que os diferentes empreendimentos ou meacutetodos filosoacuteficos que efectivamente se de-
bruccedilaram sobre ele produziram
Um estudo exaustivo ou integral do fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo implicaria
menos do que uma discussatildeo integral ndash uma discussatildeo que incluiacutesse uma tentativa de consi-
derar o fenoacutemeno da experiecircncia da vida de todos os pontos de vista possiacuteveis a partir dos
quais o fenoacutemeno pudesse ser visado (ie a partir de todos os empreendimentos ou meacutetodos
filosoacuteficos que efectivamente se debruccedilaram sobre ele a partir de todos os empreendimentos
filosoacuteficos que natildeo se debruccedilando sobre ele tecircm algo a dizer sobre ele a partir de todos os
empreendimentos filosoacuteficos que o negligenciaram e natildeo tecircm nada a dizer sobre ele etc)
Mais implicaria um efectivo confronto criacutetico com cada uma dessas perspectivas (com as que
tecircm algo a dizer sobre ele mas tambeacutem do mesmo modo com as que natildeo tecircm nada a dizer
sobre ele com aquelas para quem o fenoacutemeno eacute negligenciaacutevel ou irrelevante etc) de modo
a explorar as suas possibilidades as suas vantagens ou desvantagens no modo como cada uma
considera o fenoacutemeno as suas forccedilas e fraquezas etc
Acontece que o que se segue natildeo tem ndash nem de perto nem de longe ndash uma tal magni-
tude Aquilo que se propotildee no seguimento natildeo eacute uma anaacutelise exaustiva de todas as perspec-
tivas e pontos de vista do que se entende por ldquoexperiecircncia da vidardquo
Ora o facto de o estudo que se segue natildeo ser uma anaacutelise exaustiva do que a filosofia
entende por ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo impede que mesmo que este estudo ponha em praacutetica a
discussatildeo de apenas um uacutenico ponto de vista ndash parcial fraacutegil limitado passiacutevel de revisatildeo
passiacutevel de poder vir a ser infirmado por perspectivas natildeo consideradas etc ndash sobre o fenoacute-
meno natildeo impede diziacuteamos que este estudo natildeo possa entrar ainda assim em contacto com
aspectos fundamentais da constituiccedilatildeo do fenoacutemeno justamente esses aspectos fundamentais
que o nosso estudo procuraraacute expor na continuaccedilatildeo e a que o tiacutetulo alude
Quer dizer a pretensatildeo do estudo que se segue eacute a de procurar despistar aspectos fun-
damentais do fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash ie eacute a de procurar inventariar factores
que fundam ou que estatildeo em causa no fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo e que qualquer ou-
tro estudo sobre o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo deve de algum modo no limite levar
em linha de conta sem os quais qualquer outro estudo sobre o assunto estaraacute de certo modo
incompleto etc
Sendo assim importa ter presente que ponto de vista orienta o nosso estudo filosoacutefico
sobre o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo E esse ponto de vista eacute o seguinte
O estudo que de seguida se esboccedila assenta sobre uma inquietaccedilatildeo fundamental o facto
de cada um de noacutes dar por si atirado na vida de quando cada um de noacutes daacute por si dar por si a
ser vida etc Acontece que se se tenta focar mais precisamente de que eacute de que se trata quan-
do se trata da ldquovidardquo aquilo que se nota eacute que esse fenoacutemeno tem habitualmente a forma de
um acontecimento fugidio que natildeo se sabe bem a que eacute que corresponde que natildeo se sabe
bem que conteuacutedos tem que estruturas fundamentais o suportam etc Isto eacute somos levados
pela vida (passamos pela vida atravessamo-la estamos expostos agrave vida etc) e no entanto
pode muito bem dar-se o caso de natildeo sabermos exactamente a que eacute que estamos expostos o
que eacute que nos leva sobre que pilares assenta a nossa vivecircncia e a nossa compreensatildeo dela
etc
O estudo que se segue natildeo tem obviamente a pretensatildeo de deixar definitivamente res-
pondidas estas e outras perguntas de iacutendole similar o que faz eacute meramente proceder a um bre-
ve levantamento ou a um registo de algumas das estruturas fundamentais da vida a partir do
acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo
Como se espera que fique claro na continuaccedilatildeo procurar a resposta sobre o que eacute que
se trata quando se trata da vida a partir do acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo eacute algo aciden-
tal ou fortuito
O que a dada altura se procuraraacute apurar eacute se natildeo haveraacute tais laccedilos de afinidade entre
ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo que todas as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia tecircm lugar numa vincu-
laccedilatildeo a e estatildeo subordinadas agraves estruturas fundamentais da vida (estruturas que ultrapassam o
acircmbito da ldquoexperiecircnciardquo) e que assim tambeacutem a vida tenha de raiz no modo como nela so-
mos levados e conduzidos a estrutura ou a forma da ldquoexperiecircnciardquo
Quer dizer pode muito bem suceder que natildeo soacute aquilo que estaacute em causa na ldquoexpe-
riecircnciardquo conforme e torne possiacutevel o que estaacute em causa na ldquovidardquo como tambeacutem que aquilo
que estaacute em causa na ldquovidardquo conforme e torne possiacutevel o que estaacute em causa na ldquoexperiecircnciardquo
Assim o fenoacutemeno que aqui pretendemos estudar (a ldquoexperiecircncia da vidardquo) soacute pode
ser entendido se procurarmos examinar com precisatildeo qual o papel que ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo
representam na relaccedilatildeo um com o outro (nessa relaccedilatildeo complexa que conforma a ldquoexperiecircncia
da vidardquo)
Isto eacute o que veremos de seguida no curso do trabalho que se segue eacute de que modo in-
flui a experiecircncia na nossa forma de compreender a vida e de que modo influi a vida na nossa
forma de compreender a experiecircncia que aspectos conteacutem a experiecircncia que sejam funda-
mentais para compreender a vida e que aspectos conteacutem a vida que sejam fundamentais para
compreender a experiecircncia se podem ser uma sem a outra e se se tratam de acontecimentos
isolados ou se pelo contraacuterio satildeo interdependentes e haacute laccedilos de continuidade entre elas
como se organizam e se relacionam entre si experiecircncia e vida que relaccedilotildees de influecircncia es-
tatildeo em operaccedilatildeo qual eacute a forccedila a relevacircncia ou o peso que exercem uma sobre a outra (ie
que forccedila relevacircncia ou peso tem a experiecircncia na compreensatildeo da vida e que forccedila relevacircn-
cia ou peso tem a vida na compreensatildeo da experiecircncia) etc e por fim que complexo resulta
da sua conjugaccedilatildeo (ie o que eacute que se entende no sentido desta conjugaccedilatildeo de factores agrave par-
tida diacutespares entre si por ldquoexperiecircncia da vidardquo)
Ora tambeacutem isso seria possiacutevel a partir de um conjunto muito vasto de alternativas de
procedimentos metodoloacutegicos E sobre o procedimento metodoloacutegico que este trabalho iraacute
adoptar interessa dizer muito brevemente o seguinte
Esta eacute uma tese por assim dizer impressionista ndash eacute uma tese que responde a estiacutemulos
daqui e dali que capta momentos avulsos de obras que natildeo se deteacutem em mais do que mo-
mentos ou fragmentos de obras etc
Aquilo que estamos a procurar dizer eacute que natildeo se faraacute uma incidecircncia sobre a noccedilatildeo de
ldquoexperiecircncia da vidardquo a partir de um qualquer movimento filosoacutefico ou a partir de um qual-
quer autor Aquilo que de seguida estaraacute em causa natildeo estaacute por assim dizer vinculado a um
acircngulo especiacutefico que em virtude das suas caracteriacutesticas imponha preacute-condiccedilotildees ou impli-
que jaacute um conjunto de preceitos que regulem o acesso ao fenoacutemeno Pelo contraacuterio esta tese
ndash mais do que uma anaacutelise de um movimento ou de um autor ndash procura fazer uma anaacutelise te-
maacutetica assim o que se poderaacute encontrar eacute uma anaacutelise que natildeo estaacute centrada em nenhum au-
tor ou movimento particular mas que procura em vez disso recorrer ao auxiacutelio de vaacuterios au-
tores consoante se entenda que esses autores respondem melhor ou mais detidamente agraves pis-
tas que se vatildeo abrindo e que interessa perseguir
Quer dizer se por um lado num determinado momento os passos que dermos corres-
pondem ao que se encontra nas teses de um determinado autor (ie tecircm com as teses de um
determinado autor uma certa continuidade correspondem a um recurso ao complexo dos
enunciados do autor que tecircm relevacircncia para a mateacuteria etc se seguem as questotildees suscitadas
por um determinado autor em virtude de esse acompanhamento permitir tomar essas questotildees
como mapa de orientaccedilatildeo de permitir avanccedilar na clarificaccedilatildeo ou na especificaccedilatildeo do quadro
de perguntas que satildeo relevantes etc) por outro lado no entanto nunca se pode perder de vis-
ta que natildeo se seguiratildeo as teses de um determinado autor ateacute ao fim que natildeo se teraacute em vista o
quadro de teses mais vasto em que um determinado autor labora e no qual inclui aqueles frag-
mentos a que recorreremos que natildeo se questionaraacute os restantes fenoacutemenos a que o fragmento
de cada vez em causa surge associado quanto ao significado de que se revestem quanto agrave co-
nexatildeo ou agrave relaccedilatildeo que tecircm com a fragmento em causa quanto agrave forma como o esclarecimen-
to deles poderia contribuir para o esclarecimento e a anaacutelise do fragmento em causa etc
Na verdade vendo bem a ldquonarrativardquo do estudo que se segue natildeo eacute muito diferente da
narrativa de uma investigaccedilatildeo policial ndash em que cada fragmento que se encontra e que esteja
relacionado com aquilo que se pretende investigar ganha o estatuto de ldquopistardquo (de uma ldquopistardquo
mais ou menos relevante mais ou menos central no ldquopuzzlerdquo da investigaccedilatildeo etc) de tal mo-
do que aquilo de que se trata na investigaccedilatildeo eacute de perseguir essa ldquopistardquo e que a perseguiccedilatildeo
dessa ldquopistardquo abre a novas ldquopistasrdquo ldquopistasrdquo que por sua vez tambeacutem seratildeo perseguidas e que
abrem ainda a novas ldquopistasrdquo que por sua vez tambeacutem seratildeo perseguidas etc ndash gerando-se
de tudo isto algo como uma linha de investigaccedilatildeo (uma ldquolinhardquo cuja conformaccedilatildeo eacute a do elo
ou da conexatildeo das proacuteprias ldquopistasrdquo com que a investigaccedilatildeo se deparou e eacute a conformaccedilatildeo das
decisotildees do caminho a tomar por entre o conjunto total das ldquopistasrdquo com que se deparou e que
se entendeu perseguir)
Ora por uma questatildeo de estrateacutegia metodoloacutegica a primeira ldquopistardquo que entendemos
seguir foi a ldquopistardquo da ldquoexperiecircnciardquo E eacute justamente tendo a experiecircncia por referecircncia e guia
que de seguida se iniciaraacute a pesquisa pelos aspectos fundamentais do fenoacutemeno da ldquoexperi-
ecircncia da vidardquo
LIVRO I
EXPERIEcircNCIA
2
INTRODUCcedilAtildeO
sect1
A dispersatildeo dos usos quotidianos do termo experiecircncia e a necessidade de remissatildeo agrave no-
ccedilatildeo de ἐμπειρία em Aristoacuteteles (Metafiacutesica I I e Analiacuteticos Posteriores II XIX)
Seja devido agrave diversidade de abordagens e de tratamentos filosoacuteficos seja devido ao
desgaste que adveacutem do uso quotidiano do termo e das suas diversas aplicaccedilotildees o facto eacute que a
noccedilatildeo de ldquoexperiecircnciardquo parece equiacutevoca Esta afirmaccedilatildeo eacute testemunhada pelos diversos usos
que se daacute agrave noccedilatildeo e pelos diversos campos a que a ela se aplica
Por um lado experiecircncia indica o ser afectado ou passar por uma situaccedilatildeo ou cir-
cunstacircncia ndash no sentido de vivecircncia Por outro indica natildeo apenas o acto metoacutedico de observa-
ccedilatildeo que passa por pocircr ou ter posto agrave prova como tambeacutem a aquisiccedilatildeo de conhecimentos que
descende do acto de observaccedilatildeo que potildee agrave prova e ateacute mesmo a aplicaccedilatildeo de conhecimento
adquirido (adquirido por este ou por outro meacutetodo)
Esta dispersatildeo registada de modo muito geral e a cujos estilhaccedilos se voltaraacute na conti-
nuaccedilatildeo natildeo resulta de uma mera confusatildeo lexical
Na verdade a dispersatildeo tem que ver com o complexo ldquonovelordquo da proacutepria constela-
ccedilatildeo de fenoacutemenos em que o campo semacircntico de experiecircncia radica O que isto quer dizer eacute
que o que caracteriza a constelaccedilatildeo de fenoacutemenos em que o campo semacircntico de experiecircncia
radica eacute natildeo apenas a complexidade ndash ie a circunstacircncia de envolver diversos elementos com
profundas diferenccedilas estruturais entre si ndash mas tambeacutem o facto de essa constelaccedilatildeo de fenoacute-
menos se encontrar marcada por confusatildeo e falta de transparecircncia
Assim no modo como habitualmente compreendemos a noccedilatildeo de experiecircncia (e assim
tambeacutem no modo como habitualmente acompanhamos o complexo de fenoacutemenos a que essa
noccedilatildeo reporta) haacute importantes componentes que se eclipsam ao ponto de lhes perdermos o
rasto haacute fenoacutemenos diferentes que parecem ser iguais ou equivalentes e haacute ainda alguns ou-
tros que mesmo que soacute sejam possiacuteveis mediante uma determinada forma de constituiccedilatildeo
3
habitualmente aparecem tatildeo ldquomascaradosrdquo que podem produzir a impressatildeo de terem as pro-
priedades opostas agraves daquilo que efectivamente os edifica etc
Sendo assim o que eacute necessaacuterio para desfazer as ambiguidades ou os equiacutevocos a que
a noccedilatildeo de experiecircncia se acha vulgarmente associada eacute muito mais do que um esforccedilo de es-
clarecimento terminoloacutegico Na verdade eacute necessaacuterio focar a proacutepria constelaccedilatildeo de fenoacuteme-
nos em causa e para tal seguir pelo menos alguns dos aspectos fundamentais do seu intrinca-
do ldquonoacuterdquo Soacute deste modo o fenoacutemeno a que a noccedilatildeo de experiecircncia reporta nos poderaacute aparecer
mais claro
A abordagem que aqui se seguiraacute para cumprir este propoacutesito (ie para recuperar os
componentes essenciais do fenoacutemeno da experiecircncia) passa pelo regresso agrave noccedilatildeo original a
que o termo ldquoexperiecircnciardquo se refere ndash a noccedilatildeo de ἐμπειρία
Poreacutem o que estaraacute de seguida em causa natildeo seraacute um levantamento histoacuterico da noccedilatildeo
de ἐμπειρία tratar-se-aacute mais propriamente de procurar captar (nesse que eacute o ponto de parti-
da dos desenvolvimentos que a noccedilatildeo de experiecircncia veio a ter) algumas determinaccedilotildees fun-
damentais que a noccedilatildeo reunia em si e que poderatildeo fornecer pistas que nos orientem na com-
preensatildeo do ldquonoacuterdquo em que a noccedilatildeo de experiecircncia habitualmente parece ldquoenredadardquo
Ora a dificuldade que imediatamente se apresenta passa por compreender que o termo
ἐμπειρία tem uma longa tradiccedilatildeo
O termo ἐμπειρία pode ser encontrado por exemplo tanto jaacute nos tratados hipocraacuteticos1
como tambeacutem em Platatildeo2 E qualquer um desses casos contribui muito significativamente
1 Para recuperar o termo em Hipoacutecrates tomemos por exemplo Cambiano G La preistoria del con-
cetto di empeiria tra medicina e filosofia Humanamente 9 Firenze 2009 (em especial as paacutegs 87-
91) e ainda Bourgey L Observation et expeacuterience chex les meacutedecins de la collection hippocratique
Paris Vrin 1953 O que estaacute em causa nestes autores natildeo eacute tanto natildeo uma definiccedilatildeo do que se deve
entender por ἐμπειρία mas eacute mais uma tentativa de circunscrever e descrever o complexo de fenoacuteme-
nos que a noccedilatildeo compreende ou determinar quais os campos em que o termo aparece incide ou se
aplica ndash em resumo eacute uma tentativa de compreender de que modo a actividade do meacutedico pode ser en-
tendida como exerciacutecio de ἐμπειρία e o que daiacute se pode extrair sobre o que determina ou caracteriza a
ἐμπειρία
2 No caso concreto de Platatildeo o exerciacutecio de resgatar os instantes em que o termo surge e as suas diver-
sas instacircncias natildeo poderia deixar de ser um exerciacutecio precaacuterio haacute uma enorme dispersatildeo do termo ao
longo da obra platoacutenica e em cada apariccedilatildeo o termo parece adquirir a coloraccedilatildeo dos termos que o ro-
deiam ou dos assuntos que estatildeo efectivamente a ser focados Isto natildeo eacute no entanto dizer que a noccedilatildeo
de ἐμπειρία eacute em Platatildeo uma noccedilatildeo vaga ou dispersa que se aplica de modo indiferenciado sem cri-
4
quer para a reflexatildeo sobre o tema quer para a histoacuteria posterior do conceito ndash em todos os
seus desenvolvimentos e encruzilhadas
Sendo assim e na medida em que iremos concentrar o nosso esforccedilo na anaacutelise da no-
ccedilatildeo de ἐμπειρία que encontramos desenvolvida nos escritos de Aristoacuteteles importa natildeo deixar
de justificar a adopccedilatildeo deste ponto de partida
O que faz com que a anaacutelise da noccedilatildeo de ἐμπειρία nos escritos de Aristoacuteteles mereccedila
especial protagonismo natildeo seraacute tanto como jaacute fomos adiantando o facto de Aristoacuteteles ter
introduzido um conceito inteiramente novo Se haacute como procuraremos ver na continuaccedilatildeo
elementos novos na focagem aristoteacutelica do problema natildeo devemos apesar de tudo desvalori-
zar o facto de que um dos aspectos que tornam essa focagem determinante eacute precisamente o
caso de ela envolver uma recapitulaccedilatildeo dos desenvolvimentos precedentes ndash e especialmen-
te uma recapitulaccedilatildeo dos desenvolvimentos de Platatildeo
O que eacute decisivo ndash e que justifica este nosso ponto de partida ndash eacute que ao focar o fenoacute-
meno da experiecircncia Aristoacuteteles natildeo analisa soacute de forma detida as condiccedilotildees e a estrutura do
fenoacutemeno De facto o que faz eacute salientar o papel central que a experiecircncia desempenha en-
quanto constituinte da apresentaccedilatildeo que temos das coisas Mais ainda Aristoacuteteles procede a
essa anaacutelise de tal forma que nos coloca justamente na pista do ldquonoacuterdquo em que a noccedilatildeo de expe-
riecircncia habitualmente parece ldquoenredadardquo ndash ldquonoacuterdquo que por isso eacute passiacutevel de ser posto a
teacuterio ou de modo acriacutetico a nossa intenccedilatildeo quer somente notar que o que estaacute em causa na experiecircncia
nunca eacute focado per se mas pelo contraacuterio eacute sempre posto em saliecircncia enquanto momento de uma
discussatildeo que natildeo tem por centro a determinaccedilatildeo do que experiecircncia eacute ou do que corresponde a isso
mas em que apesar de tudo a experiecircncia natildeo deixa de ter um papel relevante e central Assim a ex-
periecircncia mostra quer a sua importacircncia quer a sua abrangecircncia nos diversos assuntos em que se intro-
mete em que a sua presenccedila eacute decisiva e naquilo que eacute da experiecircncia e que assim eacute intrometido Uma
anaacutelise compreensiva da noccedilatildeo de ἐμπειρία no corpus platonicum natildeo poderia deixar de ter em conta
para reunir um breve inventaacuterio e para citar apenas estas passagens as suas ocorrecircncias em textos
como Gorg (461b-466a) Rep (em especial IX 582a-e) Fil (55e) ou inclusive Feacuted (96a-b) texto em
que Platatildeo natildeo menciona mas deixa subentendido o termo ἐμπειρία e de certo modo toca sem no
entanto os desenvolver alguns dos fundamentos em que vai assentar Aristoacuteteles em especial a extrac-
ccedilatildeo de έπιστήμη a partir de αἴσθησις μνήμη e δόξα e a pesquisa pela αἱτία de todas as coisas ndash pontos
que estaratildeo de seguida (expliacutecita ou implicitamente) em anaacutelise
Considerem-se por exemplo as anaacutelises a esse propoacutesito de Constacircncio J Notas sobre a noccedilatildeo de
experiecircncia na Repuacuteblica de Platatildeo In Quid ndash Revista de Filosofia nordm 1 Lisboa 2000 paacutegs 9-72
ou Trindade Santos J A noccedilatildeo de experiecircncia nos diaacutelogos platoacutenicos In Joaquim Cerqueira Gon-
ccedilalves (org) A dinacircmica do pensar Lisboa Dept de Filosofia da UL 1991 paacutegs 243-253
5
descoberto e em certo sentido desfeito Eacute a demonstraccedilatildeo disto mesmo que nos iraacute deter nas
proacuteximas secccedilotildees3
Acontece poreacutem que ao analisar-se os escritos de Aristoacuteteles (e mais propriamente ao
analisar-se os escritos de Aristoacuteteles procurando focar a questatildeo da ἐμπειρία) o que eacute antes de
mais claro para o leitor eacute que Aristoacuteteles natildeo chega a apresentar propriamente uma definiccedilatildeo
do que entende por ἐμπειρία O uso que Aristoacuteteles faz do termo ἐμπειρία eacute se assim se pode
dizer um uso operativo isto poderaacute ter algo a ver com o facto de o termo estar jaacute de certo
modo ldquoenraizadordquo no discurso filosoacutefico como haacute pouco se frisou e haver entatildeo jaacute uma defi-
niccedilatildeo (expressa ou natildeo) em curso em relaccedilatildeo agrave qual Aristoacuteteles reage
Ora o facto de natildeo apresentar uma definiccedilatildeo natildeo impede que em alguns textos funda-
mentais ndash designadamente Metafiacutesica I I (980a22 e ss) e Analiacuteticos Posteriores II XIX
(99b15 e ss) passagens que aqui estaratildeo em especial destaque ndash Aristoacuteteles forneccedila os ele-
mentos necessaacuterios para se perceber de que eacute que se trata (ie para perceber o que eacute proacuteprio
da experiecircncia enquanto tal) e para se ganhar a pista do intrincado complexo de fenoacutemenos
que corresponde agrave noccedilatildeo de ἐμπειρία
Eacute tendo isto em vista que importa desde jaacute fazer notar que o fundamental das anaacutelises
de Aristoacuteteles a respeito da ἐμπειρία natildeo tem que ver com o acompanhamento deste ou daque-
le aspecto circunscrito natildeo se deteacutem neste ou naquele domiacutenio da experiecircncia nem se con-
centra sobre este ou aquele objecto
Natildeo soacute a anaacutelise de Aristoacuteteles eacute abrangente como o que eacute determinante na abordagem
aristoteacutelica eacute a anaacutelise da experiecircncia como peculiar forma de acesso ndash uma forma de acesso
susceptiacutevel de ter lugar nos mais diversos acircmbitos ou sobre os mais diversos objectos E isto
de tal modo que em todos os diversos acircmbitos em que tem ou pode ter lugar a experiecircncia se
caracteriza por um mesmo conjunto de propriedades fundamentais ndash precisamente o que jus-
tifica falar-se de uma e a mesma forma de acesso
Ora a identificaccedilatildeo desta peculiar forma de acesso eacute nas anaacutelises aristoteacutelicas feita
por marcaccedilatildeo de contrastes entre formas de acesso ndash mais exactamente entre essa forma de
3 Natildeo esqueccedilamos a advertecircncia de Heidegger ldquoZwar hat Aristoteles erstmals begriffen was έμπειρία
(experientia) heiszligt das Beobachten der Dinge selbst ihrer Eigenschaften und Veraumlnderungen unter
wechselnden Bedingungen und somit die Kenntnis der Weise wie sich die Dinge in der Regel verhal-
tenldquo (Heidegger Die Zeit des Weltbildes GA vol 5 paacutegs 80-81)
6
acesso que corresponde agrave experiecircncia e outras formas de acesso possiacuteveis (de que a forma de
acesso da experiecircncia se acha separada por saltos ou descontinuidades)
O que isto sugere eacute que os ldquomesmosrdquo ldquoobjectosrdquo ou as ldquomesmasrdquo ldquorealidadesrdquo ndash todos
os diversos acircmbitos ou os diversos objectos sobre os quais eacute susceptiacutevel de ter lugar ndash podem
ser apresentados de diferentes modos ou sob diferentes formas de acesso e que de entre esses
diferentes modos ou formas de acesso alternativas existe o modo ou a forma de acesso da ex-
periecircncia
Mais o modo da experiecircncia eacute vincadamente diferente do modo de outras formas de
acesso Isto eacute o facto de serem apresentados no modo da experiecircncia ou no modo de outras
formas de acesso alternativas corresponde a ldquoreconhecimentosrdquo das ldquomesmasrdquo ldquorealidadesrdquo
ou dos ldquomesmosrdquo ldquoobjectosrdquo completamente diferentes uns dos outros (em que o que apare-
ce eacute muito diferente)
Dito por outras palavras a anaacutelise aristoteacutelica sobre a experiecircncia distingue-se pela
forma como foca ao mesmo tempo a composiccedilatildeo do acesso de que dispomos (sc daquilo que
se acede nele) a multiplicidade dos elementos envolvidos nesse acesso as propriedades que
caracterizam cada um dos diferentes modos de acesso os saltos e descontinuidades que os
separam uns dos outros bem como as implicaccedilotildees de que tudo isto se reveste no que diz res-
peito ao modo como as coisas aparecem ou agravequilo que se chega a descobrir delas
Ora como no seguimento pretendemos deixar ficar claro a experiecircncia natildeo eacute pura e
simplesmente uma de entre muacuteltiplas modalidades de acesso possiacutevel agraves ldquocoisasrdquo ndash na verda-
de a experiecircncia eacute o modo de acesso agraves ldquocoisasrdquo em que habitualmente nos achamos
O que isto quer dizer eacute que tudo o que de ordinaacuterio nos aparece tem uma constituiccedilatildeo
empiacuterica ndash ie estaacute dominado pela forma de acesso tem o modo do aparecimento (sc a for-
ma de reconhecimento) proacuteprio da experiecircncia eacute o que a experiecircncia deixa ver do que haacute
etc
Isto eacute tanto assim que uma das razotildees por que temos dificuldades em perceber a cons-
tituiccedilatildeo da experiecircncia eacute o facto de na verdade natildeo conhecermos outra coisa e de precisa-
mente por estarmos ldquoembrenhadosrdquo nesse modo de acesso nos faltarem meios de contraste
para perceber de que eacute que a experiecircncia eacute feita os meandros disso em que estamos ldquoembar-
cadosrdquo etc
Tudo isto a que aqui nos referimos de forma muito sucinta estaraacute em anaacutelise quando
analisarmos a noccedilatildeo de ἐμπειρία nos passos do corpus aristotelicum que de seguida analisare-
7
mos Poreacutem e para compreender melhor o caraacutecter inovador da tese de Aristoacuteteles importa
considerar mais detidamente a tradiccedilatildeo a que Aristoacuteteles se reporta e a que atraacutes fizemos refe-
recircncia
sect2
O desdobramento da noccedilatildeo de ἐμπειρία na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica os aspectos da doa-
ccedilatildeo da duraccedilatildeo e da impossibilidade de antecipaccedilatildeo
A tradiccedilatildeo a que Aristoacuteteles se reporta estaacute naquilo que aqui nos importa considerar
no acircmbito da identificaccedilatildeo da ἐμπειρία marcada por trecircs aspectos
O primeiro aspecto eacute esse que faz associar a noccedilatildeo de ἐμπειρία agrave ideia da doaccedilatildeo
A noccedilatildeo de ἐμπειρία implica algo como um contacto directo um encontro em primei-
ra matildeo ou na ldquoprimeira pessoardquo Um exame mais rigoroso mostra que esta ideia central en-
volve na verdade dois componentes
Em primeiro lugar a ἐμπειρία estaacute ligada agrave ideia do testemunho directo ndash do ver por si
proacuteprio desse que constitui o ldquoprivileacutegio gnosioloacutegicordquo da αὐτοψία4
Este ldquoprivileacutegio gnosioloacutegicordquo tem que ver por um lado com o caraacutecter imediato do
testemunho e por outro com o facto de o testemunho natildeo estar dependente de mediadores ndash a
respeito de cuja fiabilidade em uacuteltima anaacutelise natildeo haacute garantias O que com tudo isto se expri-
me eacute que o acesso directo ndash o acesso na ldquoprimeira pessoardquo ndash eacute uma modalidade de acesso in-
substituiacutevel Mais tudo isto exprime o caso de haver determinaccedilotildees ou conteuacutedos de saber a
que natildeo se pode aceder senatildeo no modo de um acesso directo
Isto eacute pelo menos em certos casos (pelo menos em relaccedilatildeo a determinaccedilotildees ou a ldquocon-
teuacutedosrdquo de certo tipo) nenhuma outra modalidade de acesso poderia eficazmente passar por
ou fazer as vezes dum contacto directo qualquer outra modalidade de acesso ficaria muito
4 Para a noccedilatildeo de αὐτοψία ver por exemplo Galeno Tres tractats sobre lrsquoart de la medicina Tarra-
gona Publicacions URV 2013 paacuteg 102 ou Fausti La presenza del linguaggio medico nel De signis
di Filodemo Comunicare la Cultura Antica ndash I Quaderni del Ramo drsquoOro Online nordm 5 2012 em es-
pecial as paacuteginas 71 e 72 em que a autora potildee em contraste a αὐτοψία (a experiecircncia directa) com a
ἱστορία (a experiecircncia mediada) e a μετάβασις κατὰ τὸ ὅμοιον (a similitude)
8
aqueacutem do contacto directo e natildeo conseguiria sequer dar ideia daquilo a que soacute o contacto di-
recto permite aceder etc5
Em segundo lugar a ἐμπειρία daacute a conhecer algo pela proacutepria presenccedila imediata disso
e neste sentido depende da presenccedila disso (da viabilizaccedilatildeo do encontro ou do contacto direc-
to com isso que aparece)
A ideia de encontro directo estaacute associada agrave ideia de que se trata de algo que vem (ou
seja agrave ideia de um advento) ndash ie estaacute associada agrave ideia de algo vir ao encontro e estaacute na de-
pendecircncia dessa vinda dessa disponibilizaccedilatildeo do objecto Estar na dependecircncia de uma doa-
ccedilatildeo significa que o encontro poderia natildeo ocorrer ca-so nada viesse ao encontro E tanto eacute as-
sim que o experimentar o que se daacute a experimentar no contacto directo (o conhecer disso a
que soacute se pode aceder por um contacto directo) depende de haver doaccedilatildeo depende da ldquovindardquo
do que vem ao encontro ndash e ficaria irremediavelmente prejudicado e inviabilizado caso a vin-
da disso que vem ao encontro ou o encontro com isso que vem ao encontro natildeo ocorresse
Consideremos de seguida um segundo aspecto que diz respeito ao acircmbito de identifi-
caccedilatildeo da ἐμπειρία
Este segundo aspecto prende-se com o facto de a noccedilatildeo preacute-aristoteacutelica de ἐμπειρία
tambeacutem estar associada agrave ideia de natildeo se revelar natildeo se descobrir natildeo se ter acesso a tudo de
uma vez soacute natildeo haver algo como uma doaccedilatildeo total de uma assentada etc
Este segundo aspecto adiciona ao que vimos a ideia de qualquer coisa como um pro-
cesso de algo que se desenrola a pouco e pouco ndash de uma sucessatildeo de fases ndash que requer tem-
po duraccedilatildeo faseamento Em resumo algo que vem vindo que se abre ou que vai sucedendo
uma operaccedilatildeo em curso etc
Tambeacutem em relaccedilatildeo a este aspecto haacute uma multiplicidade de aspectos associados e
que importa salientar
Por um lado estaacute aqui em causa o facto de o contacto directo ter se assim se pode di-
zer lotaccedilatildeo limitada Isto eacute estaacute em causa o facto de que natildeo se pode produzir ao mesmo
5 Na verdade e neste sentido o que estaacute em causa eacute algo como o nosso experimentar ndash quando se fala
por exemplo de experimentar um sabor O que estaacute a ser focado quando falamos de experimentar o
sabor de por exemplo uma laranja eacute o caso de a descriccedilatildeo do sabor de uma laranja natildeo fazer as vezes
do saborear efectivo da laranja e de a uacutenica forma de se aceder ao sabor de uma laranja ser o contacto
directo com o sabor (ou como tambeacutem dizemos a experiecircncia do sabor) a que a mera descriccedilatildeo do
sabor estaacute impedida de que natildeo faz as vezes etc
9
tempo senatildeo uma pequena parte da totalidade de doaccedilotildees (do contacto directo do saber tira-
do do contacto directo etc) que para noacutes seria possiacutevel que haacute algo como uma dilaccedilatildeo do
contacto com os diferentes ldquoconteuacutedosrdquo que podemos descobrir por doaccedilatildeo na medida em
que os ldquoconteuacutedosrdquo natildeo satildeo todos possiacuteveis ao mesmo tempo que o contacto que estaacute em cau-
sa no modo de acesso da experiecircncia obriga a algo como um itineraacuterio de descoberta uma
manifestaccedilatildeo a prestaccedilotildees etc
Mas por outro lado este segundo aspecto tambeacutem tem que ver com o facto de haver
ldquoconteuacutedosrdquo mais complexos ndash ldquoconteuacutedosrdquo que apenas satildeo passiacuteveis de contacto directo na
sequecircncia de qualquer coisa como uma travessia de doaccedilotildees (de um processo de uma suces-
satildeo de fases etc) e que soacute no curso dessa travessia acabam por se revelar
Neste segundo aspecto o que estaacute em causa natildeo eacute soacute a impossibilidade de manifesta-
ccedilatildeo directa de tudo ao mesmo tempo o que estaacute em causa satildeo determinaccedilotildees (objectos de sa-
ber formas de saber etc) que nunca se poderiam manifestar numa doaccedilatildeo imediata porque
pela sua proacutepria natureza como que natildeo ldquocabemrdquo no acircmbito de uma apresentaccedilatildeo instantacirc-
nea Em suma trata-se de ldquoconteuacutedosrdquo ou de determinaccedilotildees que estatildeo ligados agrave proacutepria mu-
danccedila agrave passagem do tempo agravequilo que soacute se pode manifestar por meio da mudanccedila e da
passagem do tempo etc
O que estaacute em causa eacute portanto algo que pode ser descrito como um viacutenculo de condi-
cionamento para se alcanccedilar o produto da ἐμπειρία eacute indispensaacutevel uma travessia de acesso
Sem a travessia de acesso (quer dizer sem esse acesso em forma de travessia) haacute determina-
ccedilotildees ldquoconteuacutedosrdquo ou objectos de saber que natildeo chegam a aparecer natildeo tecircm condiccedilotildees para
se revelar para serem sabidos etc
Em uacuteltima anaacutelise a travessia a que se alude eacute uma travessia de doaccedilotildees Poreacutem im-
porta ter presente que aleacutem da ideia de doaccedilatildeo a ἐμπειρία pode ser compreendida de tal modo
que o que se acentua eacute justamente a proacutepria ideia de travessia enquanto tal Sendo assim a
ἐμπειρία estaacute ligada agrave ideia de uma forma complexa de acesso constituiacuteda por uma multiplici-
dade de passos e que requer o preenchimento de todo um conjunto de requisitos etc
Tal como a respeito da doaccedilatildeo tambeacutem neste uacuteltimo caso o que estaacute no centro da no-
ccedilatildeo de ἐμπειρία eacute a dependecircncia de uma vinda de um advento ndash que tambeacutem pode natildeo acon-
tecer de tal modo que caso natildeo ocorra fica prejudicada a possibilidade de saber que para se
constituir requer experiecircncia Mas o que neste uacuteltimo caso se destaca eacute a doaccedilatildeo como doaccedilatildeo
alargada extensa como sequecircncia de doaccedilotildees ndash natildeo com uma doaccedilatildeo meramente pontual
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mas como algo que se prolonga e cujo prolongamento corresponde na verdade a um intervalo
com uma certa (ou ateacute muito significativa) ordem de grandeza
O que acabamos de dizer permite enfim perceber um terceiro aspecto que desempe-
nhava um papel central na noccedilatildeo de ἐμπειρία tal como esta se desenhava antes de Aristoacuteteles
globalmente a noccedilatildeo estaacute associada agrave negaccedilatildeo da antecipaccedilatildeo ou agrave impossibilidade da ante-
cipaccedilatildeo
Enquanto estaacute ligada agrave ideia de doaccedilatildeo (de dependecircncia da doaccedilatildeo etc) a ἐμπειρία
exprime o absoluto impedimento de saber aquilo a que a doaccedilatildeo diz respeito antes de ndash e in-
dependentemente de ndash isso mesmo vir a doaccedilatildeo Em suma a noccedilatildeo estaacute associada ao caso de
natildeo se saber agrave partida soacute se saber mediante doaccedilatildeo Este aspecto eacute reforccedilado na segunda
componente ndash que acrescenta por assim dizer a ideia de um intervalo (de um percurso ou de
uma travessia que tem de se fazer e sem o qual natildeo se chega a alcanccedilar uma determinada
forma de saber) Por outras palavras a segunda componente alarga ainda mais a distacircncia
relativamente a esse oposto da ἐμπειρία que eacute a antecipaccedilatildeo ndash o oposto que a afirmaccedilatildeo da
dependecircncia relativamente agrave ἐμπειρία nega em noacutes De tal modo que se pode dizer que en-
quanto estaacute ligada agrave ideia de doacccedilatildeo e de uma travessia de doacccedilotildees a ἐμπειρία exprime o
absoluto impedimento de saber aquilo a que a travessia de doacccedilotildees diz respeito antes de ndash e
independentemente de ndash essa mesma travessia se vir a realizar
Em suma poderia dar-se o caso de que a doaccedilatildeo fosse obtida num uacutenico acontecimen-
to de testemunho directo ndash de tal modo que uma uacutenica ocorrecircncia bastasse para obter o saber
que soacute se pode alcanccedilar por doaccedilatildeo Poreacutem natildeo eacute isso que sucede ndash e eacute a ausecircncia disso que
se acha expressa na noccedilatildeo de ἐμπειρία haacute como que uma dupla impossibilidade de antecipa-
ccedilatildeo Por um lado a dependecircncia da doaccedilatildeo impossibilita a posse antecipada disso que soacute po-
de ser obtido por doaccedilatildeo Por outro a dependecircncia de uma travessia impossibilita a posse
antecipada daquilo que soacute se pode aceder por travessia
Ao salientarmos brevemente estes trecircs aspectos que marcavam a tradiccedilatildeo preacute-aristoteacute-
lica o que estamos a fazer natildeo eacute mais do que inventariar alguns elementos essenciais que a
posiccedilatildeo de Aristoacuteteles leva em linha de conta e em relaccedilatildeo aos quais a posiccedilatildeo de Aristoacuteteles
faz contraste Ao mesmo tempo fazecirc-lo deixa-nos agora em melhores condiccedilotildees de conside-
rar o que se encontra nos passos referidos do corpus aristotelicum e de compreender como eacute
que o que se descobre nesses passos potildee na pista do intrincado complexo de fenoacutemenos que
corresponde agrave noccedilatildeo aristoteacutelica de ἐμπειρία
11
sect3
A ἐμπειρία integrada no quadro geral de identificaccedilatildeo da σοφία a ἐμπειρία como uma mo-
dalidade de saber possiacutevel do intervalo global entre o miacutenimo e o maacuteximo de saber ndash A des-
formalizaccedilatildeo da σοφία apresentada no modo de uma escala de possibilidades de acesso e a
pergunta que posiccedilatildeo ocupa na escala o acontecimento de acesso em que nos temos
Se considerarmos os paraacutegrafos iniciais de Metafiacutesica I o que desde logo se nota eacute que
a noccedilatildeo de ἐμπειρία ocorre integrada numa escala A escala a que aludimos ndash e que se dese-
nha em 980a27 e seguintes ndash tem como pri-meira instacircncia a αἴσθησις passa pela μνήμη tem
por terceiro momento a ἐμπειρία e culmina no par τέχνηἐπιστήμη6
Para se perceber bem em que sentido e com que alcance Aristoacuteteles fala de ἐμπειρία eacute
preciso portanto determinar o que eacute que estaacute em causa nesta escala Importa portanto res-
ponder a algumas questotildees qual eacute a natureza e o propoacutesito desta escala A que pergunta ou
a que perguntas a escala responde Como estaacute constituiacuteda Que criteacuterios determinam a sua
composiccedilatildeo Que funccedilotildees satildeo chamados a desempenhar os elementos que entram na sua
composiccedilatildeo
Eacute essencial ter presente que a escala apresentada por Aristoacuteteles em Metafiacutesica I estaacute
definida por duas ordens de determinaccedilotildees igualmente importantes
Em primeiro lugar o sentido da escala (e assim tambeacutem o sentido de cada um dos
componentes da escala ndash o sentido em que Aristoacuteteles fala de αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία τέχνη
e ἐπιστήμη) depende de elementos de natureza formal cuja compreensatildeo eacute decisiva para se
ganhar a pista daquilo para que Aristoacuteteles aponta Agrave primeira ordem de determinaccedilatildeo ndash que
diz respeito ao sentido e ao enquadramento da escala ndash vem juntar-se uma segunda que tem
que ver com cada um dos componentes que Aristoacuteteles faz entrar na sua composiccedilatildeo
O sentido de cada um desses diversos elementos eacute obtido perguntando o que estaacute em
causa neles que carga de determinaccedilotildees eacute proacutepria de cada um como eacute que as cargas proacute-
prias de cada elemento se relacionam umas com as outras como eacute que cada um destes com-
ponentes eacute chamado a desempenhar funccedilotildees numa escala como aquela que se define na pri-
6 φύσει μὲν οὖν αἴσθησιν ἔχοντα γίγνεται τὰ ζῷα ἐκ δὲ ταύτης τοῖς μὲν αὐτῶν οὐκ ἐγγίγνεται μνήμη τοῖς
δ᾽ ἐγγίγνεται (980a28 e seguintes) E logo depois τὰ μὲν οὖν ἄλλα ταῖς φαντασίαις ζῇ καὶ ταῖς μνήμαις
ἐμπειρίας δὲ μετέχει μικρόν τὸ δὲ τῶν ἀνθρώπων γένος καὶ τέχνῃ καὶ λογισμοῖς (980b26 e seguintes)
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meira ordem de factores de determinaccedilatildeo que funccedilotildees ocupam na escala a αἴσθησις a μνή-
μη a ἐμπειρία e a τέχνηἐπιστήμη e como eacute que a conjugaccedilatildeo a) da carga de determinaccedilotildees
proacutepria de cada uma e b) do que estaacute em causa na escala determina a posiccedilatildeo que αἴσθησις
μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη ocupam nela etc
Ora a resposta agrave pergunta pelo que estaacute em causa na escala comeccedila a ser obtida se se
tiver em conta que os capiacutetulos iniciais da Metafiacutesica de Aristoacuteteles se debatem com o proble-
ma da identificaccedilatildeo da σοφία
Se natildeo eacute este o lugar para o levantamento da questatildeo da identificaccedilatildeo da σοφία como
se acha expressa nestes e noutros passos do corpus aristotelicum importa apesar de tudo con-
siderar aqui os aspectos fundamentais que permitam perceber de que eacute que se trata quando se
fala da σοφία e em especial os aspectos fundamentais que permitam perceber o que eacute que is-
so pode ter que ver com a escala apresentada por Aristoacuteteles7
O que antes de mais Aristoacuteteles parece procurar evidenciar eacute que temos facticamente
um conceito de σοφία (ou de sabedoria)
Poderia dar-se o caso de natildeo ser assim Poderia dar-se o caso de se ter um quadro de
determinaccedilotildees composto de tal modo que natildeo incluiacutesse qualquer conceito de σοφία (ou nada
de equivalente) Natildeo eacute esse no entanto o nosso caso
Ora do facto de se ter um quadro de determinaccedilotildees que inclui um conceito de σοφία
decorre o problema de saber a que eacute que um conceito de σοφία corresponde Eacute com esse pro-
blema que Aristoacuteteles se bate nos primeiros capiacutetulos da Metafiacutesica
Aristoacuteteles no entanto natildeo se limita ao confronto em geral com a questatildeo de com-
preender a que eacute que corresponde o conceito de σοφία que facticamente temos O que estaacute em
curso eacute algo distinto Desde o princiacutepio de Metafiacutesica I Aristoacuteteles estaacute a reagir a uma tese
que natildeo chega a referir ou a citar explicitamente mas que procura desmontar e se seguirmos
a sequecircncia dos passos que daacute (daquilo que procura pocircr em evidecircncia) percebemos que na
verdade natildeo apenas estaacute a referir essa tese mas estaacute a procurar mais exactamente infirmaacute-la
ndash abrindo assim o caminho para a adopccedilatildeo da perspectiva oposta
7 Para as muacuteltiplas referecircncias no corpus aristotelicum agrave noccedilatildeo de σοφία ver por exemplo Ret (em
especial I 9 5 I 11 27 II 11 5) Et Nic (em especial 1098b 1103a 1139b 1141a-b 1143b 1144a
1145a 1177a) e Met (em especial Livro A 981a-b 982a 992a Livro Γ 995b 996b Livro Δ 1004b
1005b Livro Λ 1059a 1060a-b Livro Μ 1075b) [sublinhado nosso]
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A tese que Aristoacuteteles natildeo chega a referir ou a citar explicitamente eacute a seguinte na
medida em que o que estaacute em causa para os seres humanos eacute a proacutepria vida (sc a conduccedilatildeo
da vida) entatildeo o conceito de σοφία (de sabedoria saber etc) que os seres humanos tecircm ou
que eacute relevante para os seres humanos diz meramente respeito ao saber de orientaccedilatildeo ndash ao sa-
ber conduzir a vida
Analisemos um pouco melhor esta tese Isto eacute analisemos a possibilidade de identi-
ficar a σοφία com a forma de saber relativo agrave conduccedilatildeo da vida e suficiente para esse efeito ndash
e mais precisamente com o tipo de saber a que Aristoacuteteles chama φρόνησις8
Uma identificaccedilatildeo da σοφία com a forma de saber a que Aristoacuteteles chama φρόνησις
restringiria a σοφία a uma modalidade de conhecimento orientada para o horizonte vital Nes-
se caso a σοφία soacute teria que ver com a conduccedilatildeo da vida (tratar-se-ia fundamentalmente de
saber viver saber pilotar a vida saber conduzir a vida etc) Ora o que Aristoacuteteles procura
pocircr em evidecircncia nos primeiros capiacutetulos de Metafiacutesica I eacute precisamente que a referida tese
carece de fundamento
Assim a) os seres humanos para aleacutem de um conceito de saber ou sabedoria relativo
agrave conduccedilatildeo da vida tecircm um outro conceito de saber inteiramente irredutiacutevel agravequele b) eacute tan-
to assim que em vez de dois conceitos de σοφία (diferentes e em regime de paridade) sucede
que haacute um uacutenico conceito de σοφία c) o conceito de σοφία (ou sabedoria) que os seres huma-
8 O uso que Aristoacuteteles daacute ao termo φρόνησις eacute extenso e natildeo cabe aqui um inventaacuterio das suas muacutelti-
plas ocorrecircncias ou das suas muacuteltiplas determinaccedilotildees na totalidade da sua obra Eacute possiacutevel no entanto
ganhar uma pista do que se entende por φρόνησις considerando o estudo aprofundado que Aristoacuteteles
dedica ao fenoacutemeno no livro VI V da Eacutetica a Nicoacutemaco Mas tambeacutem uma anaacutelise integral de toda a
complexidade e de todas as possibilidades de compreensatildeo do fenoacutemeno e do seu campo de incidecircncia
que essa secccedilatildeo abre excede em muito o inqueacuterito que aqui se leva a cabo o que nos interessa eacute apenas
reter dois pontos essenciais Por φρόνησις (ou sensatez) entende-se antes de mais uma capacidade de
caacutelculo avaliaccedilatildeo e deliberaccedilatildeo que orienta ou potildee a caminho de um determinado objectivo final
Estaacute em causa portanto uma avaliaccedilatildeo ou deliberaccedilatildeo que eacute tanto circunspecta e prudente quanto
tem por resultado uma correcta orientaccedilatildeo ndash ie a φρόνησις natildeo desorienta nem faz perder o rumo
mas potildee efectivamente a caminho do objectivo final para que se estaacute em tensatildeo A este estaacute associado
um segundo ponto E esse eacute o caso da φρόνησις ter que ver com a avaliaccedilatildeo e deliberaccedilatildeo correcta do
que eacute bom para si proacuteprio na relaccedilatildeo que o indiviacuteduo estabelece com a conduccedilatildeo da vida em geral
Assim o objectivo final para que a φρόνησις orienta natildeo eacute senatildeo por assim dizer a vida boa ndash a quali-
dade de vida o viver bem em geral etc ndash o que faz igualmente notar que o que estaacute em causa na φρό-
νησις natildeo eacute um objectivo parcial ou restrito a uma parcela particular da vida mas um objectivo geral
abrangente que abarca a totalidade da vida ou que visa a vida em geral
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nos tecircm estaacute mais ligado agravequele conceito que eacute irredutiacutevel ao saber de orientaccedilatildeo ou de con-
duccedilatildeo da vida do que a este uacuteltimo
A tentativa aristoteacutelica de fundamentaccedilatildeo destas teses passa por diferentes passos que
eacute preciso recuperar
Em primeiro lugar Aristoacuteteles chama a atenccedilatildeo para o facto de que por maior que se-
ja a nossa vinculaccedilatildeo agrave vida e agrave questatildeo da orientaccedilatildeo dela noacutes temos de todo o modo uma
noccedilatildeo de saber enquanto tal ndash de saber independentemente da sua vinculaccedilatildeo agrave vida Dito de
outro modo haacute em noacutes alguma noccedilatildeo de um saber ordenado pura e simplesmente a si mes-
mo medido para e simplesmente por si mesmo e sem outra preocupaccedilatildeo que natildeo o cumpri-
mento do programa do saber enquanto tal
Aleacutem disso Aristoacuteteles chama a atenccedilatildeo para um segundo aspecto igualmente decisi-
vo O aspecto a que nos referimos eacute um dos aspectos mais insistentemente focados nos capiacutetu-
los iniciais de Metafiacutesica I a saber natildeo soacute temos uma noccedilatildeo do saber (sc do conhecer inde-
pendentemente da sua aplicaccedilatildeo na conduccedilatildeo da vida) como a nossa sensibilidade ao concei-
to de saber ou de conhecer enquanto tal eacute tambeacutem uma sensibilidade agrave diferenccedila entre saber
mais e saber menos ou entre conhecer mais e conhecer menos
Seria exaustivo inventariar aqui todos os passos de Metafiacutesica I em que Aristoacuteteles
foca este aspecto O que deve ficar claro eacute que Aristoacuteteles considera justamente casos em que
uma dada forma de saber eacute percebida como equivalente a um saber mais (na ordem do saber
enquanto tal) mas se reveste de menos relevacircncia para efeitos de conduccedilatildeo da vida E chama
a atenccedilatildeo para o facto de sendo assim ndash porque esse saber menos relevante para a conduccedilatildeo
da vida eacute compreendido como equivalente a algo superior na ordem do saber enquanto tal
(ie no que diz respeito agrave diferenccedila entre saber menos e saber mais enquanto essa diferenccedila
nada tem que ver com a relevacircncia para a vida) ndash tendermos a compreender esse saber como
mais proacuteximo do que estaacute em causa no conceito de σοφία
O que se desenha agrave medida que Aristoacuteteles vai percorrendo as diversas instacircncias de
saber mais e saber menos eacute que o conceito de σοφία corresponde como que ao terminus ad
quem (ou ao ponto de fuga) da diferenccedila entre saber menos e saber mais a que os seres huma-
nos satildeo sensiacuteveis Por outras palavras o conceito de σοφία corresponde a um conceito formal
relativo agrave maximizaccedilatildeo do saber enquanto tal (do conhecimento enquanto tal) ndash ie corres-
ponde a uma forma superlativa de saber enquanto tal
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Acontece no entanto que a desformalizaccedilatildeo disto que ainda seria um conceito formal
de σοφία poderia fazer-se de formas muito distintas
Na verdade o conceito formal de σοφία pode assumir contornos muito diferentes con-
soante a noccedilatildeo que se tenha de como o conhecimento pode aperfeiccediloar-se e portanto do que
corresponderaacute agravequela forma de saber que eacute superlativa (ou que jaacute natildeo admite qualquer aper-
feiccediloamento) Na medida em que o que estaacute em causa na σοφία eacute um superlativo formal entatildeo
agrave σοφία corresponderaacute sempre ao grau maacuteximo de qualquer progressatildeo de saber possiacutevel A
desformalizaccedilatildeo da σοφία (ie a resposta agrave pergunta qual eacute o grau maacuteximo de saber possiacute-
vel) depende em suma da finitude do acircngulo de acesso da concepccedilatildeo que se tem de quanto
ou ateacute onde o saber pode progredir
Assim num quadro de diferenciaccedilatildeo do saber menos e do saber mais que se caracteri-
za por ter notiacutecia de A B C e D e por essa notiacutecia estar constituiacuteda de tal modo que D aparece
como superior a A B e C seraacute D que aparece como correspondendo ao conceito de σοφία
Mas por outro lado se se vier a perceber que aleacutem de D tambeacutem haacute a possibilidade de E e F
(e isto de tal modo que F parece ser superior tanto a E quanto a D) entatildeo a identificaccedilatildeo da
σοφία mudaraacute pois nesse caso F eacute que corresponderaacute ao conceito de σοφία ndash e assim sucessi-
vamente Poreacutem se o acircngulo for finito e deixar de fora possibilidades de saber que estatildeo para
laacute do campo de incidecircncia do acircngulo (se se caracterizar apenas por ter notiacutecia de A B C e D e
deixar de fora E e F) entatildeo daraacute azo a que se compreenda o superlativo regional (que soacute eacute su-
perlativo em resultado da finitude do acircngulo) como o superlativo absoluto (que eacute o que estaacute
efectivamente em causa na σοφία) Em suma a identificaccedilatildeo do superlativo eacute sempre relativa
ao intervalo total da progressatildeo de saber possiacutevel que cada acircngulo de consideraccedilatildeo permite
identificar
Com estas consideraccedilotildees fica desde jaacute claro o que a escala desenhada por Aristoacuteteles
procura determinar no quadro de identificaccedilatildeo da σοφία o problema que se potildee eacute o de perce-
ber qual o intervalo total de progressatildeo do saber
Isto deixa imediatamente agrave consideraccedilatildeo dois aspectos
O primeiro eacute que eacute decisivo que o intervalo seja total ndash ie eacute essencial que natildeo sub-
sistam acircngulos cegos
Quer dizer o que isto significa eacute que em uacuteltima anaacutelise para se saber em que eacute que
consiste a σοφία (o que eacute que equivale agrave σοφία etc) eacute necessaacuterio ter uma efectiva sinopse (um
olhar totalmente desimpedido totalmente natildeo confinado sobre o intervalo total da progressatildeo
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do saber desde o saber miacutenimo ao saber maacuteximo que jaacute natildeo seja passiacutevel de ser amplificado
para um saber ainda mais etc) Sem esta sinopse a possibilidade de identificaccedilatildeo da σοφία
ficaria ldquoenviesadardquo O que nesse caso sucederia seria tomar-se o comparativo por superlativo
ndash e de facto tomar-se por superlativo absoluto algo que estaacute muito longe de o ser
Por outro lado o que a escala apresenta eacute tanto um levantamento do intervalo global
entre o miacutenimo de saber e o maacuteximo de saber quanto a identificaccedilatildeo de quais e quantas satildeo
as etapas de progressatildeo relevantes no quadro desse intervalo global Ou seja eacute igualmente
decisiva a identificaccedilatildeo das diferenccedilas ou dos passos de significativo desconfinamento no ca-
minho do miacutenimo para o maacuteximo de saber
Acontece que quando se olha para a escala apresentada por Aristoacuteteles o que resulta
desde logo evidente eacute que parece haver um muito marcado contraste entre a magnitude do
empreendimento proposto (entre a pretensatildeo de conhecer o intervalo total de progressatildeo do
saber possiacutevel ndash ie mapear todas as possibilidades de saber relevantes entre saber miacutenimo e
saber maacuteximo) e o cardinal das etapas da progressatildeo que satildeo apresentadas por Aristoacuteteles De
facto o inventaacuterio de etapas de desenvolvimento do saber (ie o itineraacuterio global entre o miacute-
nimo e o maacuteximo de saber) que Aristoacuteteles apresenta natildeo inclui mais do que quatro momen-
tos fundamentais αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη
Esta magnitude do cardinal das etapas referidas por Aristoacuteteles estaacute associada a um as-
pecto que tambeacutem chama a atenccedilatildeo e aumenta ainda mais a perplexidade ndash sobretudo se tiver-
mos em conta que eacute de uma tentativa de identificaccedilatildeo da progressatildeo total (do levantamento
do intervalo total correspondente agrave progressatildeo do saber miacutenimo para o saber maacuteximo) que se
trata Esse outro aspecto tem que ver com o facto de Aristoacuteteles natildeo fazer a mais pequena re-
ferecircncia a questotildees de amplitude (ou a diferenccedilas de amplitude) do saber
Percebe-se imediatamente que se se considerasse o problema da amplitude do acesso
isso bastaria para provocar uma multiplicaccedilatildeo dos passos de progressatildeo (sc das diferenccedilas
relevantes no intervalo entre saber menos e saber mais) Poreacutem o facto eacute que Aristoacuteteles natildeo
parece atribuir nenhum papel relevante agraves questotildees de amplitude
Ora isto tem implicaccedilotildees e potildee problemas
Se natildeo estamos a ver mal o que parece implicado na escala aristoteacutelica tal como se
apresenta em Metafiacutesica I e Anal Post XI 19 eacute que a perspectiva que apenas tenha αἴσθησις
de um dado ldquoobjectordquo sabe menos do que a perspectiva que inclua μνήμη dele e esta por sua
vez sabe menos do que uma perspectiva que jaacute se eleve ao plano da ἐμπειρία ndash e que tambeacutem
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esta sabe menos do que uma perspectiva correspondente a τέχνη ou ἐπιστήμη O simples facto
de um acesso envolver μνήμη eacute suficiente soacute por si para que esse acesso corresponda a um
ldquosaber maisrdquo do que aquele que eacute alcanccedilado por um acesso soacute provido de αἴσθησις o sim-
ples facto de um acesso envolver ἐμπειρία eacute suficiente soacute por si para que esse acesso corres-
ponda a um ldquosaber maisrdquo do que aquele que eacute alcanccedilado por um acesso soacute provido de μνή-
μη o simples facto de um acesso envolver τέχνη ou ἐπιστήμη eacute suficiente soacute por si para que
esse acesso corresponda a um ldquosaber maisrdquo do que aquele que eacute alcanccedilado por um acesso soacute
provido de ἐμπειρία
A irrelevacircncia das questotildees de amplitude pode ter portanto que ver com o facto de se
estar a considerar a possibilidade de progressatildeo do saber em relaccedilatildeo a cada cognosciacutevel
Mas por outro lado o ldquosilecircnciordquo relativamente a questotildees de amplitude tambeacutem pode
significar que ndash mesmo que suceda que um acesso que jaacute envolva μνήμη se caracterize por
uma amplitude de αἴσθησις (e portanto de μνήμη) muito restrita enquanto o acesso soacute pro-
vido de αἴσθησις tivesse pelo contraacuterio uma amplitude extraordinaacuteria (no limite ateacute a ampli-
tude correspondente a qualquer coisa como uma αἴσθησις total) ndash o ponto de vista mneacutesico sa-
be mais do que o ponto de vista meramente esteacutesico (pelo simples facto de um ser jaacute mneacutesico
e o outro natildeo) E o mesmo fenoacutemeno se verificaria nas relaccedilotildees entre μνήμη e ἐμπειρία e entre
ἐμπειρία e τέχνη ou ἐπιστήμη
As questotildees que no seguimento disto se devem pocircr satildeo justamente as de saber a) se
faz sentido que o levantamento de um intervalo total da progressatildeo de saber menos para sa-
ber mais faccedila ldquotaacutebua rasardquo das questotildees de amplitude b) qual eacute o sentido do ldquosilecircnciordquo de
Aristoacuteteles relativamente agraves diferenccedilas de amplitude (ie a de saber se o que estaacute em causa eacute
a primeira ou a segunda das possibilidade referidas) e c) em qualquer dos casos qual o fun-
damento da perspectiva assim adoptada na construccedilatildeo da escala
Comeccedilamos a compreender o fundamento que preside agrave construccedilatildeo da escala (ou seja
o fundamento que deixa perceber o sentido da escala e o que estaacute em causa em cada uma das
suas etapas) se considerarmos alguns aspectos estruturais da escala aristoteacutelica
O primeiro aspecto que interessa considerar tem que ver com a importacircncia das fron-
teiras entre os diversos momentos da escala Aristoacuteteles regista o conjunto relevante dos estaacute-
dios correspondentes a diversos graus de eficaacutecia cognoscitiva
O proacuteprio facto de a escala ignorar questotildees de amplitude faz que ela seja uma escala
de diferenccedilas qualitativas se assim se pode dizer uma escala de modos de acesso ou de con-
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trastes quanto ao modo de acesso Em suma eacute uma escala de saltos qualitativos O que as
fronteiras destacam (aquilo que datildeo a ver sobre a relaccedilatildeo entre as etapas) satildeo por assim dizer
os momentos de descontinuidade qualitativa
Ora esta formulaccedilatildeo pode suscitar equiacutevocos se se entender que se trata entatildeo pura e
simplesmente de uma escala de modos de acesso ndash porque sendo assim (tratando-se de uma
mera escala de modos de acesso) entatildeo todas diferenccedilas se situariam ldquodesserdquo lado e portanto
natildeo teriam que ver com diferenccedilas quanto agravequilo que aparece Na verdade aos contrastes
quanto ao modo do acesso (ou quanto agrave ldquoqualidaderdquo do acesso) que estatildeo em causa na escala
de Aristoacuteteles correspondem tambeacutem diferenccedilas no que diz respeito agravequilo que aparece o
que aparece eacute diferente conforme o patamar da escala em que se esteja
O que isto quer dizer eacute que a escala de Aristoacuteteles eacute tambeacutem uma escala de desconti-
nuidades qualitativas em relaccedilatildeo ao teor daquilo que aparece Ou seja o que aparece agrave αἴσ-
θησις difere do que aparece agrave μνήμη que por sua vez difere do que aparece agrave ἐμπειρία que
por sua vez difere do que aparece a τέχνη ou a ἐπιστήμη
Sendo assim a descontinuidade entre as etapas apresentadas por Aristoacuteteles pode ser
descrita do seguinte modo cada momento da escala estaacute numa relaccedilatildeo com o momento que
lhe antecede e com o momento que lhe sucede Cada etapa da escala corresponde a qualquer
coisa como um intervalo ndash mais propriamente agravequele intervalo que vai da sua fronteira infe-
rior agrave sua fronteira superior
Por outras palavras cada momento da escala aristoteacutelica define-se por vencer a des-
continuidade relativa agrave etapa inferior e por ficar aqueacutem da descontinuidade que tem de ser
vencida para se alcanccedilar a etapa superior A ser assim cada etapa eacute portanto um intervalo
num intervalo ndash ie cada etapa eacute uma secccedilatildeo do intervalo global que corresponde agrave progres-
satildeo total do saber
Mas aqui importa ter em atenccedilatildeo algo que pode passar despercebido e que eacute igualmen-
te significativo
A escala apresentada por Aristoacuteteles eacute tanto uma escala de possibilidades relevantes
de avanccedilo quanto eacute uma escala de possibilidades relevantes de finitude
Isto eacute a escala a que aludimos eacute tambeacutem uma escala de possibilidades de retenccedilatildeo ndash
de formas de ficar aqueacutem de uma plena realizaccedilatildeo do saber Na verdade eacute uma escala da de-
fectividade do saber
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Importa natildeo perder de vista esta ldquoduplicidaderdquo Por um lado cada etapa superior mar-
ca em relaccedilatildeo agrave inferior qualquer coisa como um avanccedilo ou um desconfinamento de perspec-
tiva ndash um desenvolvimento relevante na progressatildeo do miacutenimo ao maacuteximo de saber Por ou-
tro lado cada etapa inferior marca tambeacutem em relaccedilatildeo agrave superior uma forma de confinamen-
to de perspectiva como que de fechamento de acircngulo
Ou seja haacute algo como um duplo significado de cada fronteira Na escala de Aristoacute-
teles enquanto significa a fronteira inferior de uma etapa da escala cada fronteira marca o
desconfinamento de perspectiva que daacute origem a essa etapa mas enquanto significa a fron-
teira superior da etapa precedente essa mesma fronteira marca o confinamento de perspecti-
va proacutepria da etapa precedente (a saber o desconfinamento que essa etapa ainda natildeo conse-
gue alcanccedilar e cuja falta a define)
Devemos notar que isto implica natildeo apenas que a determinaccedilatildeo exacta do confina-
mento ou da finitude de uma etapa intermeacutedia estaacute marcada pela relaccedilatildeo agrave etapa imediata-
mente superior a essa mas implica mais exactamente que o confinamento ou a finitude de
uma etapa intermeacutedia estaacute tambeacutem marcada pela relaccedilatildeo a todas as etapas superiores ndash e no
limite estaacute marcada pela relaccedilatildeo agrave uacuteltima etapa Na verdade o confinamento a que uma dada
etapa estaacute sujeita soacute pode ser plenamente determinado a partir do desconfinamento maacuteximo
(da σοφία) ndash ie soacute pode ser determina-do a partir da etapa que natildeo admite mais nenhum des-
confinamento
Isto que acabou de se descrever eacute igualmente vaacutelido para os dois extremos da escala ndash
embora com uma particularidade
A primeira etapa (a αἴσθησις) tem como limite inferior a total ausecircncia de saber O
que eacute superado no seu limite inferior eacute a total ausecircncia de saber ndash total ausecircncia de saber que
jaacute se situa fora da escala
Analogamente a τέχνη ou ἐπιστήμη tecircm como limite superior justamente nada a τέχνη
ou ἐπιστήμη define-se pela sua insuperabilidade por natildeo ser passiacutevel de nenhum incremento
ou aperfeiccediloamento De sorte que tambeacutem neste caso aquilo que se situa para laacute do limite jaacute
natildeo pertence agrave escala (quer dizer jaacute natildeo pertence ao intervalo ou ao horizonte de saber por-
que pura e simplesmente natildeo pode haver nada de superior a τέχνη ou ἐπιστήμη)
Mas haacute ainda dois aspectos adicionais dignos de nota
Poderia acontecer que uma escala com as caracteriacutesticas que descrevemos ateacute agora
estivesse constituiacuteda de tal modo que o seu segundo niacutevel correspondesse a uma forma de sa-
20
ber totalmente diferente da forma de saber em causa no primeiro niacutevel (completamente hete-
rogeacuteneo em relaccedilatildeo a ele) ndash e assim tambeacutem no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre terceiro e se-
gundo niacutevel ou entre o quarto e o terceiro A ser assim o segundo niacutevel natildeo teria nada do pri-
meiro o terceiro nada do segundo e o quarto nada do terceiro
No entanto natildeo parece ser isto que Aristoacuteteles tem em vista
A escala desenhada no livro I da Metafiacutesica e na secccedilatildeo XI XIX dos Analiacuteticos Poste-
riores tem um caraacutecter tal que cada etapa posterior inclui no seu acontecimento as anteriores
ndash mais precisamente cada etapa inclui a etapa imediatamente anterior e por via dela tam-
beacutem a que a procede Isto eacute cada etapa equivale agraves etapas inferiores transformadas por um
desconfinamento que as integra no seu terminus ad quem ndash mas justamente transformadas ou
transfiguradas por um desconfinamento
Assim o segundo niacutevel equivale a qualquer coisa como o primeiro niacutevel transformado
por um desconfinamento que integra o primeiro niacutevel no seu terminus ad quem o terceiro niacute-
vel equivale a qualquer coisa como o segundo niacutevel transformado por um desconfinamento
que integra o segundo niacutevel no seu terminus ad quem e o quarto niacutevel equivale a qualquer
coisa como o terceiro niacutevel transformado por um desconfinamento que integra o terceiro niacutevel
no seu terminus ad quem
Ora e em segundo lugar isto significa que a escala de Aristoacuteteles tem o caraacutecter de
uma escala geneacutetica
Vendo bem as diferentes etapas formam a base de desenvolvimento umas das outras e
estatildeo constituiacutedas na forma do desenvolvimento das etapas precedentes O que estaacute efectiva-
mente em causa nas diversas etapas eacute algo como um tracircnsito de anterioridade e posterio-
ridade sequecircncia e sucessatildeo Haacute qualquer coisa como um condicionamento em virtude do
qual cada etapa superior natildeo eacute possiacutevel directamente por si soacute ndash cada etapa superior soacute eacute pos-
siacutevel sobre o fundo ou sobre a condiccedilatildeo de possibilidade que constituem para ela as etapas an-
teriores
Tudo isto configura uma relaccedilatildeo entre as etapas da escala marcada por dois aspectos
que se vistos em certo sentido parecem incompatiacuteveis
Se por um lado cada nova etapa eacute caracterizada por incluir em si a precedente (de tal
modo que se poderia falar de um ldquofiordquo de continuidade) por outro lado haacute uma vincada des-
continuidade entre os diferentes niacuteveis
21
Quer dizer por mais que a segunda etapa inclua em si a primeira (e que por sua vez a
terceira etapa inclua em si a segunda e portanto mediatamente inclua tambeacutem em si a pri-
meira e que por sua vez a quarta etapa inclua em si a terceira e portanto mediatamente in-
clua tambeacutem em si a primeira e a segunda) a verdade eacute que na primeira ainda natildeo haacute absolu-
tamente nada do que eacute proacuteprio da segunda (ainda natildeo haacute absolutamente nada disso que eleva
a segunda acima da primeira disso que a segunda potildee de proacuteprio etc) ndash da mesma forma
que na segunda natildeo haacute absolutamente nada do que eacute proacuteprio da terceira e na terceira natildeo haacute
absolutamente nada do que eacute proacuteprio da quarta
O esclarecimento desta aparente incompatibilidade passa por notar que o que estaacute em
jogo na escala aristoteacutelica eacute algo como uma sucessatildeo de passos de desconfinamento que mo-
dificam muito significativamente natildeo a amplitude mas a forma do acesso que se tem agraves coisas
(e portanto tambeacutem o teor daquilo que aparece)
O facto de haver um nexo de integraccedilatildeo (o fio de continuidade que poderia ser expres-
so recorrendo agraves foacutermulas 2=1+1 passo de desconfinamento 3=2+1 passo de desconfinamen-
to ie 3=[2(=1+1 passo de desconfinamento)+1 passo de desconfinamento] 4=3+1 passo de
desconfinamento ie 4=[3=[2(=1+1 passo de desconfinamento)+1 passo de desconfinamen-
to] + um passo de desconfinamento]) natildeo impede nem diminui o hiato (o salto ndash e como se
veraacute o extraordinaacuterio salto) entre os diferentes niacuteveis que compotildeem a escala
Se as caracteriacutesticas e o aspecto de uma etapa inferior eacute retroperspectivado a partir da
etapa em que se estaacute e do que uma tal etapa potildee de seu entatildeo isto implica a impossibilidade
de antecipaccedilatildeo do que se seguiraacute ie dos passos possiacuteveis da escala Ainda que uma dada
etapa tenha a sua identidade sempre jaacute marcada pelo facto de ficar aqueacutem do desconfina-
mento imposto por uma etapa seguinte (e no limite por todas as etapas seguintes e por fim
pela uacuteltima etapa) o facto eacute que o patamar em que se estaacute eacute sempre totalmente cego sobre as
possibilidades do seu desconfinamento do desenvolvimento que dele possa advir
Eacute precisamente isto que encontramos desenhado por Aristoacuteteles num conceito que
constitui um dos componentes essenciais da histoacuteria da noccedilatildeo de escala o conceito de ἐφεξῆς
Aristoacuteteles define o termo na Metafiacutesica (1068b30 e ss) e encontram-se diversas ocor-
recircncias tanto na Retoacuterica quanto na Poeacutetica9 Poreacutem os elementos essenciais que conveacutem ter
9 Ver por exemplo Met V XXIV (1023b9) XI XII (1068b33-1069a11) XII I (1069a21) XIII V
(1080a20-30) XIII VII (1081b6) XIII VIII (1083a32) XIII IX (1085a3-7) Ret I VII (1363b) III
XVI (1416b) III XVII (1418a) Poet VI 1450a29 VII 1451a13 X 1451b38 XXIII 1459a27
22
em conta com o fim de se entender o conceito de ἐφεξῆς e a sua relaccedilatildeo com o que foi dito ateacute
aqui podem encontrar-se num passo do De Anima
Aristoacuteteles comeccedila por dizer que haacute diversos niacuteveis de ψυχή (θρεπτικόν ὀρεκτικόν
αἰσθητικόν κινητικὸν κατὰ τόπον διανοητικόν) antes de estabelecer que as relaccedilotildees entre as
diversas ψυχαὶ equivalem agraves relaccedilotildees que haacute entre quadrilaacuteteros e triacircngulos (414b28 e ss)
Ora se se considerar um quadrilaacutetero verifica-se que inclui sempre em si algo como
um triacircngulo de facto um quadrilaacutetero equivale a um triacircngulo mais algo para laacute do triacircngu-
lo Por outras palavras se considerarmos a composiccedilatildeo de qualquer quadrilaacutetero (aquilo que
tem de ser posto para a partir de ldquozerordquo se constituir um quadrilaacutetero) verificamos que passa
sempre por um triacircngulo mas justamente natildeo se fica por aiacute implica a ldquoultrapassagemrdquo do
triacircngulo (um ir para aleacutem dele) Em suma haacute sempre um triacircngulo inscrito num quadrilaacutetero
e inversamente a constituiccedilatildeo de um quadrilaacutetero implica um triacircngulo mais um acreacutescimo
No entanto o acreacutescimo sobre o triacircngulo ndash acreacutescimo sem o qual na verdade natildeo
haveria qualquer quadrilaacutetero ndash como que ldquoapagardquo o triacircngulo substituindo a forma do triacircn-
gulo por uma outra resultante do acreacutescimo de que o triacircngulo enquanto tal ainda natildeo con-
teacutem nada Eacute isso que Aristoacuteteles quer dizer quando diz que o quadrilaacutetero estaacute (em potecircncia
entenda-se) no triacircngulo10
Eacute justamente algo desta ordem que estaacute em causa na escala de Metafiacutesica I ndash mas se
assim se pode dizer com iteraccedilatildeo a segunda etapa faz de ldquoquadrilaacuteterordquo em relaccedilatildeo ao ldquotriacircn-
gulordquo da primeira por sua vez a terceira etapa assume o papel de ldquoquadrilaacuteterordquo e potildee a se-
gunda a equivaler a um ldquotriacircngulordquo e por fim a quarta etapa faz o mesmo em relaccedilatildeo agrave ter-
ceira
Assim mesmo que Aristoacuteteles natildeo o diga explicitamente a noccedilatildeo de ἐφεξῆς ndash a forma
de sequecircncia que a noccedilatildeo de ἐφεξῆς designa ndash expressa exactamente o peculiar nexo de conti-
nuidade e de descontinuidade que apontaacutemos como sendo proacutepria quer da escala quer das
10
(Παραπλησίως δ ἔχει τῷ περὶ τῶν σχημάτων καὶ τὰ κατὰ ψυχήν ἀεὶ γὰρ ἐν τῷ ἐφεξῆς ὑπάρχει δυνά-
μει τὸ πρότερον ἐπί τε τῶν σχημάτων καὶ ἐπὶ τῶν ἐμψύχων οἷον ἐν τετραγώνῳ μὲν τρίγωνον ἐν αἰσθη-
τικῷ δὲ τὸ θρεπτι- κόν) Ὥστε καθ ἕκαστον ζητητέον τίς ἑκάστου ψυχή οἷον τίς φυτοῦ καὶ τίς ἀνθρώ-
που ἢ θηρίου (414b28 e ss)
23
etapas de desconfinamento significativo do tracircnsito do miacutenimo para o maacuteximo de saber tal
como as desenha Aristoacuteteles11
Isto conduz-nos a uma uacuteltima consideraccedilatildeo que tem que ver com isso a que podemos
chamar o complexo jogo de perspectivas silenciosamente implicado numa escala como aquela
que eacute desenhada por Aristoacuteteles
Se o problema a que procura dar resposta eacute o da identificaccedilatildeo da σοφία (enquanto a
σοφία equivale a um conceito formal de saber superlativo) entatildeo a escala de Aristoacuteteles tem a
pretensatildeo de natildeo ser apenas uma escala parcial de natildeo retratar somente uma parte do inter-
valo entre o miacutenimo de saber e o saber superlativo A escala de Aristoacuteteles procura apresen-
tar de facto o intervalo total ndash e apresentar todas as diferenccedilas relevantes que o pontuam Em
suma o que estaacute em jogo eacute no sentido eacutetimoloacutegico do termo um ldquopanoramardquo das possibili-
dades de saber ndash ldquopanoramardquo que eacute (e tem de ser) totalmente desconfinado
O que isto significa eacute que se perguntarmos qual eacute o ponto de vista ao qual se oferece
a escala ou qual eacute o ponto de vista a partir do qual se tem a perspectiva sinoacuteptica que a es-
cala pretende oferecer resulta claro que se trata de qualquer coisa como um ponto de vista si-
lenciosamente concebido como testemunha de todo o itineraacuterio de progressatildeo do saber e que
se caracteriza pela sua capacidade irrestrita ie por ter justamente uma visatildeo sinoacuteptica ca-
paz de alcanccedilar todos os momentos da escala (quer dizer toda a progressatildeo desde o miacutenimo
ao maacuteximo de saber) sem que nada permaneccedila fora da sua perspectiva
11
O termo ἐφεξῆς indica portanto sequecircncia ou sucessatildeo ndash com isso querendo por um lado apontar a
uma ordenaccedilatildeo o caso de haver uma precedecircncia do triacircngulo em relaccedilatildeo ao quadrilaacutetero e do quadri-
laacutetero sobrevir ao triacircngulo de tal modo que haacute entre as duas figuras continuidade No entanto por
outro lado a continuidade natildeo resulta de uma mera distribuiccedilatildeo temporal (que ponha o quadrilaacutetero a
vir depois do triacircngulo) mas de uma relaccedilatildeo que potildee o acontecimento do quadrilaacutetero tanto dependente
de quanto caracterizado a partir do acontecimento do triacircngulo O ἐφεξῆς natildeo reporta a uma mera ad-
jacecircncia ou a um mero alinhamento contiacuteguo mas ao caso de y ser extraiacutedo a partir de x do aconteci-
mento de y ser atravessado pelo acontecimento de x etc O ἐφεξῆς tem portanto a acepccedilatildeo de seacuterie ndash
de uma seacuterie em que o segundo procede do primeiro e o terceiro do segundo etc E tanto assim que o
que resulta da seacuterie eacute o segundo elemento da seacuterie ter caraacutecter de segundo ndash ie de natildeo ser primeiro
mas algo que procede de ou sucede ao primeiro que eacute extraiacutedo dele Assim o primeiro elemento da
seacuterie natildeo tem o que eacute necessaacuterio para constituir o segundo elemento da seacuterie inversamente o segundo
elemento da seacuterie aniquila no seu acontecimento o elemento de que precede O primeiro de qualquer
seacuterie pode ser o princiacutepio de uma continuidade infinita que sempre pressupotildee o primeiro mas em
qualquer caso o primeiro estaacute aniquilado no segundo no terceiro etc ndash dito de outro modo o segun-
do conteacutem o primeiro e aniquila-o o terceiro conteacutem o primeiro e o segundo e aniquila-os etc
24
Acontece no entanto que se perguntarmos qual eacute esse ponto de vista (quem o ocupa
ou possui) a resposta eacute que se trata justamente do nosso ponto de vista que o ponto de vista
que de certo modo natildeo estaacute dentro dela mas eacute o ponto de vista testemunha da escala eacute o
nosso Quer dizer quem compreende a escala e acompanha o itineraacuterio que nela se desenha
somos noacutes ndash somos noacutes quem tem o panorama (o itineraacuterio total) em causa
A escala de Aristoacuteteles eacute por assim dizer uma escala antropoloacutegica
Poreacutem o caraacutecter ldquoantropoloacutegicordquo da escala (quer dizer o facto de a ldquoloacutegicardquo interna
da escala ter o seu foco sobre o ser humano ser de certo modo antropocentrada etc) pode-
ria corresponder a vaacuterios desdobramentos
Por um lado poderia ter expressatildeo no facto de a escala ser uma escala que correspon-
desse exclusivamente ao ser humano ndash ie ser uma escala em que cada um dos seus momen-
tos fosse um momento possiacutevel do ser humano na sua relaccedilatildeo com o saber (como diferentes
ldquoerasrdquo ou ldquoidadesrdquo do ser humano uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo esteacutesica uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo mneacute-
sica uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo empiacuterica e uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo teacutecnica ou episteacutemica)
Por outro lado poderia dar-se o caso de ao ser humano corresponder apenas um mo-
mento da escala ndash caso no qual consoante a posiccedilatildeo na escala que coubesse ao ser humano
todos os outros momentos possiacuteveis seriam desenvolvimentos aqueacutem eou aleacutem do ser huma-
no Neste sentido o que a escala procuraria fazer seria apurar qual a posiccedilatildeo do humano pe-
rante a amplitude do saber que lhe eacute possiacutevel ndash ie apurar a posiccedilatildeo do ser humano perante
a amplitude do saber possiacutevel (ou mais exactamente a posiccedilatildeo do ser humano perante a am-
plitude do saber que eacute possiacutevel ao ser humano conceber)
Ora o proacuteprio sentido da escala ndash enquanto esta escala procura retratar o intervalo de
toda a progressatildeo possiacutevel do saber desde o miacutenimo ao maacuteximo de saber etc ndash implica que
natildeo pode haver nenhum ponto de vista exterior ao que nela se acha retratado Seja como for
o ponto de vista que testemunha a escala tem de ter uma posiccedilatildeo definida no quadro da esca-
la Digamos assim se o que estaacute em causa eacute justamente a escala total das possibilidades de
confinamento e desconfinamento do acesso entatildeo o acesso de que qualquer ente dispotildee (en-
tenda-se qualquer ente ou ser vivo que esteja constituiacutedo na posse de um acesso agraves ldquocoisasrdquo)
deveraacute ser situaacutevel na escala
Assim a escala de Aristoacuteteles tem uma natureza tal que constitui como que uma ldquoreacute-
guardquo para medir ndash ou um ldquoquadrordquo para localizar ndash qualquer acontecimento de acesso Se
pelo seu sentido ainda que tenha o seu foco sobre o ser humano a escala natildeo eacute especialmente
25
relativa a noacutes ao mesmo tempo vale naturalmente tambeacutem a nosso respeito e suscita a per-
gunta onde se situa nela o nosso ldquoolharrdquo o acesso em que nos achamos de que dispomos
A resposta agrave pergunta ldquoonde se situa o nosso ldquoolharrdquo na escala aristoteacutelicardquo eacute com-
plexa ndash e eacute-o desde logo no plano formal
Poderia acontecer que a resposta passasse pela mera identificaccedilatildeo de uma etapa da es-
cala que correspondesse agrave forma de acesso que nos eacute proacutepria Mas vendo bem natildeo eacute forccedilosa-
mente assim
Na medida em que a escala aristoteacutelica tem a natureza de uma escala de possibilida-
des de acesso nada implica que o acontecimento de acesso ou a forma de saber proacutepria de um
determinado ente (sc de um dado ser vivo) ndash e designadamente o acontecimento de acesso
em que damos connosco ndash tenha forccedilosamente de corresponder a apenas uma etapa da esca-
la Com efeito pode suceder que o acesso de um dado ente ndash e designadamente o acesso que
eacute o nosso ndash tenha um caraacutecter tal que possa mudar de localizaccedilatildeo na escala ou seja tenha a
possibilidade de transitar de uma etapa para outra (e na verdade natildeo apenas de uma etapa
para outra mas de uma etapa para outras) Eacute isto que se desenha no plano meramente formal
Mas resulta claro que a resposta agrave referida pergunta soacute pode ser dada a partir de uma
anaacutelise que natildeo se limite somente aos aspectos formais que tentaacutemos passar brevemente em
revista A resposta passa por uma anaacutelise detida das proacuteprias determinaccedilotildees ou formas con-
cretas de acesso que Aristoacuteteles faz corresponder agraves diferentes etapas da sua escala Dito por
outras palavras a resposta agrave pergunta pela localizaccedilatildeo do acontecimento de acesso em que
nos temos na escala de Aristoacuteteles depende de uma averiguaccedilatildeo disso a que Aristoacuteteles chama
αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη
Eacute que como dissemos a escala desenhada por Aristoacuteteles define-se pela combinaccedilatildeo
de duas ordens de factores temos por um lado os factores formais e temos ainda por outro
as determinaccedilotildees concretas ou ldquomateriaisrdquo que satildeo postas em conexatildeo com elas Uma vez
vistos sumariamente os primeiros trata-se agora de pocircr as diferentes articulaccedilotildees formais fo-
cadas em ligaccedilatildeo com aquilo que as desformaliza
Assim o que procuraremos fazer de seguida seraacute determinar a que eacute que corresponde
cada um dos conceitos que definem as etapas da escala aristoteacutelica ndash a que eacute que correspon-
dem αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη
26
I EXPERIEcircNCIA
sect4
A forma de aparecimento que mais deixa escondido isso que de algum modo potildee jaacute agrave mostra
A compreensatildeo do sentido em que a primeira etapa da escala aristoteacutelica corresponde
agrave αἴσθησις depende naturalmente da proacutepria carga especiacutefica do conceito de αἴσθησις
Agrave partida a compreensatildeo do que corresponde agrave αἴσθησις parece satisfeita quando se
faz passar a αἴσθησις por algo como sensaccedilatildeo percepccedilatildeo ou o que quer que seja desta ordem
Aliaacutes num certo sentido seria possiacutevel fazer essa leitura a partir da proacutepria obra de
Aristoacuteteles Bastaria considerar por exemplo os passos do corpus aristotelicum em que se
desenvolvem mais detidamente os fundamentos da αἴσθησις12
O que se encontra em Anal
Post 99b35 eacute a compreensatildeo da αϊσθησις num quadro de inclusatildeo e de exclusatildeo de conteuacute-
dos (consoante incida ou natildeo sobre eles) A αϊσθησις corres-ponderia agrave incidecircncia (e o seu
contraacuterio a ἀναισθησία a natildeo-incidecircncia) Quer dizer a αϊσθησις corresponderia a essa acccedilatildeo
de incidir em ou de incidir sobre de estar caiacutedo ou lanccedilado sobre algo precipitado em algo
deposto perante algo etc en-quanto esse acto eacute condiccedilatildeo sine qua non do contacto directo
(em primeira matildeo na ldquoprimeira pessoardquo) que se analisou na secccedilatildeo anterior
12
Natildeo podemos deixar aqui de reforccedilar o facto de que o que estaacute em causa nesta secccedilatildeo natildeo eacute de mo-
do nenhum uma identificaccedilatildeo global da noccedilatildeo de αἴσθησις ou dos seus diversos usos na obra de Aris-
toacuteteles Uma identificaccedilatildeo desse geacutenero teria de considerar uma quantidade de passos do corpus aris-
totelicum ou uma quantidade de caracteriacutesticas do que estaacute implicado na noccedilatildeo a que esta secccedilatildeo natildeo
pode dar atenccedilatildeo Ter-se-ia por exemplo que considerar todo o complexo de fenoacutemenos a que a αἴσ-
θησις se abre em vaacuterios momentos da Metafiacutesica (livro III 997b 999b livro IV 1009b-1011b livro
V 1016a 1018b 1020b livro VII 1035b-1036a livro IX 1047a-b livro X 1053a-1054a livro XI
1062b-1064a livro XII 1072b-1074b livro XIII 1077a livro XIV 1088a etc) da Eacutetica a Nicoacutemaco
(1098b 1103a 1109b 1113a 1118a-b 1126b 1139a 1142a 1143b 1149a 1161b 1170a-1171b
1173b-1175b etc) do De Anima II (4 e 5 414a15-418a6) da Eacutetica a Eudemo (1226a 1230b-1231a
1235b-1236a 1245a etc) da Retoacuterica (em especial I 11) etc Mais ainda esta advertecircncia eacute espe-
cialmente importante na medida em que Aristoacuteteles dedica especial atenccedilatildeo ao tema ndash neste caso par-
ticular na forma de um tratado (o De sensu et sensibilibus) em que o assunto eacute exposto em toda a sua
amplitude
27
Poreacutem quando fala de αἴσθησις no contexto da escala (na moldura formal que vimos
na secccedilatildeo anterior) Aristoacuteteles introduz uma determinaccedilatildeo radical de αἴσθησις que natildeo estaacute
necessariamente presente na compreensatildeo mais comum do termo o facto de ser a forma miacuteni-
ma de acesso ndash ou seja aquele acesso que por assim dizer dista um soacute grau da total ausecircncia
do aparecimento ou do saber
Neste sentido o problema que eacute decisivo suscitar para se perceber de que eacute que Aris-
toacuteteles estaacute a falar quando fala da αἴσθησις na moldura formal da escala adveacutem da posiccedilatildeo em
que Aristoacuteteles potildee a αἴσθησις na escala que desenha E ao colocar a αἴσθησις na primeira
posiccedilatildeo da escala Aristoacuteteles estaacute de facto a destacar algo que poderia ser descrito em trecircs
aspectos
Em primeiro lugar estaacute a procurar destacar que a primeira posiccedilatildeo da escala equivale
ao primeiro momento de algo jaacute distinto de uma ignoracircncia total
O primeiro patamar da escala corresponde ao lance de subtracccedilatildeo original ao natildeo-sa-
ber absoluto a uma forma miacutenima de acesso (a um rasgo ou desconfinamento) que introduz a
diferenccedila entre o natildeo acesso e o acesso (ie entre natildeo saber e saber entre natildeo conhecer e
conhecer etc) O que estaacute em jogo eacute em suma a αἴσθησις enquanto lance de abertura en-
quanto eacute jaacute um primeiro estaacutedio de eficaacutecia cognoscitiva
Dito doutro modo a primeira etapa da escala marca a fronteira limiacutetrofe entre o que
cai dentro e o que cai fora do domiacutenio da escala ndash mais precisamente neste caso o que cons-
titui o limite miacutenimo da escala Fica-se com isto a saber que a total ausecircncia de saber estaacute ex-
cluiacuteda da escala (estaacute do lado de fora da escala) e que o primeiro momento que a escala inclui
eacute jaacute um momento do saber
Isto leva a um segundo aspecto
Esse segundo aspecto eacute o que faz notar que a diferenccedila entre o natildeo-saber e o saber
natildeo eacute uma diferenccedila quantitativa mas qualitativa
O rasgo ou desconfinamento em causa na primeira etapa da escala opera uma trans-
formaccedilatildeo de natureza a primeira etapa da escala eacute sempre jaacute algo qualitativamente diferente
da total ausecircncia do nada do escondimento etc O limite miacutenimo da escala assinala a radical
heterogeneidade entre o dentro e o fora da escala ndash mas isto de tal maneira que o limite miacute-
nimo da escala (isso que marca o que jaacute cai dentro da escala) assinala uma linha de separa-
ccedilatildeo entre dois domiacutenios irreconciliaacuteveis entre si
28
Acontece que estes dois aspectos satildeo ainda aspectos meramente formais ndash e tanto quer
dizer que o rasgo ou o desconfinamento que anunciam poderia assumir formas concretas mui-
to variadas E na verdade o rasgo ou o desconfinamento que anunciam poderia assumir uma
forma distinta da forma da αἴσθησις
Assim o terceiro aspecto que se deve ter em conta eacute esse que faz notar que o rasgo ou
o desconfinamento em causa tem a forma de αἴσθησις
De entre vaacuterias modalidades alternativas de rasgo ou desconfinamento possiacuteveis a
modalidade concreta que opera a transformaccedilatildeo entre o estaacutedio de total ausecircncia de saber e
o estaacutedio de saber eacute a αἴσθησις Eacute a αἴσθησις a modalidade de desconfinamento ou acesso que
supera de forma miacutenima o natildeo-saber absoluto essa modalidade cujo desvio em relaccedilatildeo ao
natildeo-saber resulta iacutenfimo Ou seja a αἴσθησις eacute a modalidade de desconfinamento ou acesso
mais proacutexima do natildeo-acesso ou a modalidade de saber que imediatamente se segue ao natildeo-
saber absoluto
O lance da αἴσθησις eacute em suma o lance pelo qual eacute dado a ver (ie dado a saber da-
do a conhecer etc) algo que natildeo era visto (que natildeo era sabido conhecido etc) ndash eacute portanto o
lance radical que rompe irreversivelmente a barreira do escondimento Poderiacuteamos dizecirc-lo
assim o lance da αἴσθησις eacute o lance a partir do qual o escondimento natildeo eacute senatildeo sempre jaacute
visado como mero negativo do aparecimento ndash aparecimento em que em virtude do rasgo ou
desconfinamento que a αἴσθησις produz sempre jaacute se estaacute lanccedilado quando se estaacute posto na si-
tuaccedilatildeo de ver de saber ou de conhecer
No sentido em que aqui a estamos a analisar a αἴσθησις corresponde ao acesso primaacute-
rio e primeiro ao que aparece (na verdade a tudo o que aparece) ndash ie agrave condiccedilatildeo de possibi-
lidade do proacuteprio aparecimento do que quer que seja do proacuteprio aparecimento de tudo o que
aparece Poreacutem e em simultacircneo a αἴσθησις eacute a forma de acesso marcada por uma maacutexima
subsistecircncia de escondimento ndash por aquela maacutexima subsistecircncia de escondimento que eacute com-
patiacutevel com haver jaacute algum aparecimento ou saber de algo Em suma a αἴσθησις eacute a forma de
aparecimento de algo que mais deixa escondido esse algo que potildee de algum modo jaacute agrave
mostra
Ora o que interessa analisar na continuaccedilatildeo eacute precisamente o que eacute que corresponde
exactamente agrave αἴσθησις ou como eacute que a αἴσθησις ldquoencarnardquo o saber miacutenimo (esse saber que
menos sabe que sendo jaacute saber mais ignora etc)
29
sect5
A noccedilatildeo histoacuterica de αἴσθησις na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica e a pergunta de que eacute feito o
aparecimento
Compreender a tese de Aristoacuteteles a este respeito assim como compreender a carga
que a noccedilatildeo de αἴσθησις tem no quadro da escala que vimos implica de novo pocirc-la em con-
traste com a tradiccedilatildeo a que Aristoacuteteles se reporta
Se por um lado devemos natildeo perder de vista que esta tradiccedilatildeo eacute lateral agrave escala aris-
toteacutelica e natildeo estaacute expressamente focada na concepccedilatildeo que Aristoacuteteles apresenta a seu respei-
to por outro uma batida pela carga histoacuterica e semacircntica da noccedilatildeo de αἴσθησις iraacute ajudar-nos
a compreender melhor tanto o ponto de partida quanto a especificidade e originalidade da no-
ccedilatildeo tal como a usa Aristoacuteteles
Tal como vimos na secccedilatildeo anterior no caso da ἐμπειρία tambeacutem a noccedilatildeo de αἴσθησις
estaacute marcada pelo facto de ter jaacute uma tradiccedilatildeo ou uma carga proacutepria anterior aos desenvolvi-
mentos que Aristoacuteteles lhe iraacute imprimir Platatildeo por exemplo dedica-lhe extensas passagens
da sua obra13
A pergunta a que a noccedilatildeo tradicional ou histoacuterica de αἴσθησις procura antes de mais
dar resposta eacute de que eacute feito o aparecimento
O que em primeiro lugar se tende a sugerir em resposta a esta pergunta eacute que o apare-
cimento eacute constituiacutedo por qualquer coisa como qualidades sensiacuteveis E natildeo apenas constituiacutedo
por qualidades sensiacuteveis ndash na verdade o que se tende a sugerir eacute que o aparecimento eacute inte-
gralmente composto de qualidades sensiacuteveis O que estaacute implicado nesta resposta eacute que o apa-
recimento (ie tudo o que aparece) eacute feito de determinaccedilotildees sensiacuteveis (como cores sons
cheiros etc) ndash e tanto assim que se se fi-zesse o exerciacutecio de retirar ao que aparece as deter-
minaccedilotildees sensiacuteveis natildeo restaria nada
Esta concepccedilatildeo parece assente no facto de que o que estaacute em jogo na αἴσθησις eacute uma
modalidade de acesso maciccedilo ndash ou seja a αἴσθησις eacute um acesso a um todo
13
Considerar por exemplo a especial incidecircncia dada agrave noccedilatildeo em Teet 151e-168b Fil 33c-35a e
38b-41d Fed 73c-76d 79a-c Leis (livros II X XI XII) Rep (livros VI e VII) etc
30
A αἴσθησις natildeo eacute um acontecimento regional um acontecimento com lacunas que
deixe de cobrir uma qualquer secccedilatildeo do campo de aparecimento (do campo de incidecircncia
perceptiva etc) Pelo contraacuterio a αἴσθησις cobre integralmente a totalidade do campo de
aparecimento ndash e tanto quer dizer que todo o campo de aparecimento (ie todo o campo de
incidecircncia perceptiva) estaacute sem excepccedilatildeo preenchido de qualidades sensiacuteveis
A este primeiro aspecto vem juntar-se um segundo o preenchimento do campo de
aparecimento natildeo resulta de um processo de completaccedilatildeo gradual ou progressivo
Vendo bem o acontecimento de aparecimento que a αἴσθησις propicia eacute produzido de
uma vez soacute Isto quer dizer que as qualidades sensiacuteveis satildeo contemporacircneas entre si e de uma
soacute vez ocupam a totalidade do campo de aparecimento disponiacutevel em todas as suas dimen-
sotildees Na verdade todo o campo de incidecircncia perceptiva aparece de cada vez totalmente
preenchido
Tudo isto tem que ver com o facto de as determinaccedilotildees sensiacuteveis serem o que avulta
na apresentaccedilatildeo que temos das coisas ndash ao ponto de natildeo se dar pela presenccedila imediata de
mais nada para aleacutem delas Em resumo as determinaccedilotildees sensiacuteveis satildeo se assim se pode di-
zer o conteuacutedo expresso do aparecimento
Assim por um lado a αἴσθησις eacute uma modalidade de acesso (de descobrimento de
desocultaccedilatildeo etc) associada agrave noccedilatildeo de doaccedilatildeo que analisaacutemos na secccedilatildeo anterior ndash no caso
eacute uma modalidade de acesso associada agrave doaccedilatildeo de qualidades sensiacuteveis Por outro lado a
presenccedila imediata de qualidades sensiacuteveis como algo que se impotildee num testemunho directo eacute
compreendida como efeito de uma afecccedilatildeo pelas qualidades que de algum modo pertencem
agraves proacuteprias coisas ndash eou que se manifestam como uma ldquotranscri-ccedilatildeordquo das proacuteprias coisas
Assim o conceito de αἴσθησις no sentido tradicional estaacute tambeacutem associado agrave ideia
de afecccedilatildeo (sc agrave ideia de algo como uma transcriccedilatildeo em presenccedila directa das proacuteprias
qualidades que inerem agraves coisas as qualidades sensiacuteveis directamente testemunhadas)
Este sentido da noccedilatildeo αἴσθησις estaacute ainda hoje presente na compreensatildeo mais comum
do que se entende por percepccedilatildeo ou por sensaccedilatildeo
O modo habitual de conceber a percepccedilatildeo ou a sensaccedilatildeo faz da percepccedilatildeo ou da sensa-
ccedilatildeo um acto instantacircneo de captaccedilatildeo ou recolha disso sobre que incide ndash um acto que conju-
ga o funcionamento do aparelho sensorial agrave presenccedila imediata do que aparece e que gera sem
intervenccedilatildeo de qualquer outro factor uma noccedilatildeo correcta e distinta do que aparece (do que
vem ao encontro do que por esse meio afecta ou impressiona etc)
31
Neste sentido a αἴσθησις eacute um modo de aparecimento atravessado por um modelo de
auto-interpretaccedilatildeo espontacircnea do proacuteprio aparecimento (de auto-compreensatildeo espontacircnea do
acesso etc) Isto eacute natildeo diz soacute respeito ao modo de presenccedila de algo mas diz respeito agrave com-
preensatildeo daquilo que se apresenta imediatamente como correspondendo a uma transferecircn-
cia agrave transferecircncia do que estaacute num territoacuterio para laacute da αἴσθησις ateacute agrave posse disso na αἴσθη-
σις (ie ateacute ao aparecimento disso na forma de impressotildees ou de qualidades sensiacuteveis) ndash tudo
isto em correspondecircncia ao modelo de um acesso transparente (transparecircncia em relaccedilatildeo
agravequilo que aparece nele)14
Quer dizer a transferecircncia que estaria em causa na percepccedilatildeo ou na sensaccedilatildeo seria
uma transferecircncia que para o dizer assim teria o que aparece transposto nas qualidades sen-
siacuteveis ndash qualidades sensiacuteveis que acederiam a algo que efectivamente corresponde ao que
aparece
A tudo isto acresce ainda um outro aspecto natildeo menos significativo
As qualidades sensiacuteveis tecircm grosso modo o caraacutecter de uma ldquomanchardquo (uma ldquoman-
chardquo de cor uma ldquomanchardquo de som uma ldquomanchardquo de qualidades aacutepticas uma ldquomanchardquo de
quente e frio etc) Sendo assim sucede que este facto tende a sugerir uma outra componente
da ideia de αἴσθησις que tambeacutem envolve um elemento de auto-interpretaccedilatildeo da ldquomanchardquo
sensiacutevel a sa-ber que a ldquomanchardquo corresponde a uma multiplicidade que enquanto multipli-
cidade eacute decomponiacutevel e sugere a sua proacutepria composiccedilatildeo a partir de unidades baacutesicas
Este eacute um aspecto decisivo da noccedilatildeo de αἴσθησις ndash seja ela usada no singular ou no
plural
O que esta concepccedilatildeo sugere eacute que haacute qualquer coisa como elementos ndash momentos
simples de qualidade sensiacutevel (sc momentos simples de afecccedilatildeo) ndash cuja agregaccedilatildeo produz as
14
A ambiguidade que aqui se refere estaacute tambeacutem ela ainda hoje presente no entendimento que se faz
do verbo perceber que tem raiz no latino percipere O verbo perceber sintetiza um duplo sentido por
um lado perceber designa o acto de receber afecccedilotildees ou impressotildees pelos sentidos Nesta acepccedilatildeo
perceber eacute antes de mais o acto fiacutesico e mecacircnico de encontro com o que eacute doado (de estar disponiacutevel a
ou de acolher isso que eacute doado) Por outro lado no entanto o verbo perceber designa algo de muito
diferente de um mero acto fiacutesico ou mecacircnico designa a capacidade de entender discernir distinguir
ou saber apreciar ndash e tambeacutem estar na posse do sentido do que eacute recebido etc ldquoPerceberrdquo designa
uma intervenccedilatildeo cognitiva que anula aquilo que poderia ser entendido na primeira acepccedilatildeo como
uma mera passividade ldquomecacircnicardquo
32
ldquomanchas sensiacuteveisrdquo Em resumo a noccedilatildeo de αἴσθησις aponta para uma estrutura de ldquomosai-
cordquo
Falar de αἰσθήσεις (no plural) tanto pode significar sensaccedilotildees de diferentes sentidos
como a multiplicidade de sensaccedilotildees do mesmo sentido iguais ou diferentes Poreacutem em uacutelti-
ma anaacutelise todas elas estatildeo dependentes de unidades elementares ou baacutesicas (unidades baacutesi-
cas de qualidades sensiacuteveis que satildeo ao mesmo tempo unidades baacutesicas de afecccedilotildees)
Falar de αἴσθησις (no singular) sugere uma unidade baacutesica uma ldquopeccedilardquo do ldquomosaicordquo
sensiacutevel ndash uma peccedila simples cuja agregaccedilatildeo a outras produz ldquomanchas sensiacuteveisrdquo (as qualida-
des sensiacuteveis na forma como habitualmente as experimentamos)15
Ora se a αἴσθησις eacute um acesso constituiacutedo por uma ldquomanchardquo de sensaccedilotildees entatildeo haacute
aqui uma ambiguidade que importa natildeo perder de vista Vendo bem a mancha sensiacutevel eacute de-
componiacutevel natildeo de uma mas sim de duas maneiras
Poderiacuteamos tender a pensar que a decomposiccedilatildeo da mancha resultaria exclusivamente
numa decomposiccedilatildeo espacial por assim dizer Poreacutem isso seria perder de vista que a αἴσθη-
σις eacute decomponiacutevel em unidades simples tambeacutem no plano temporal O que aparece na αἴσθη-
σις ndash a presenccedila de qualidades sensiacuteveis o estado de afecccedilatildeo ndash tem uma duraccedilatildeo ocupa uma
extensatildeo de tempo etc
De facto a ambiguidade assinalada estaacute presente na noccedilatildeo de αἴσθησις enquanto a no-
ccedilatildeo de αἴσθησις envolve a ideia de unidade baacutesica jaacute que em uacuteltima anaacutelise αἴσθησις signi-
fica a unidade simples de sensaccedilotildees (um conjunto de unidades simples de sensaccedilotildees) tanto
num sentido quanto no outro
Vistos estes aspectos introdutoacuterios da noccedilatildeo de αἴσθησις estamos agora em condiccedilotildees
de focarmos os dados que resultam da anaacutelise de Aristoacuteteles e em especial da estrutura da es-
cala
15
O que estaacute aqui em causa eacute isso a que Kant chama o modelo da composiccedilatildeo real Para uma defini-
ccedilatildeo de ldquocompositum realerdquo por exemplo Metafiacutesica Mrongovius 29 826-828 ou Criacutetica da Razatildeo
Pura A 214-15B 261 Para uma anaacutelise mais detida ver Paton Kantrsquos Metaphysic of Experience
Vol II p 323
33
sect6
A fulcral inflexatildeo aristoteacutelica a αἴσθησις como modalidade de acesso com uma perspecti-
va confinada no que diz respeito ao tempo ndash A ininteligibilidade entre o modo de acesso
meramente esteacutesico e o modo de acesso que nos constitui
Para comeccedilar a delinear a radical inflexatildeo que Aristoacuteteles introduz em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo
de αἴσθησις devemos natildeo perder de vista que potildee a μνήμη como limiar superior da αἴσθησις
Ou seja a αἴσθησις corresponde agrave total ausecircncia de μνήμη a um patamar totalmente aqueacutem
da constituiccedilatildeo de memoacuteria
Isso parece significar que tal como a αἴσθησις se apresenta na escala o que estaacute em
causa ndash ie o que constitui o contraste entre a primeira e a segunda etapa da escala ndash eacute a uni-
dade baacutesica da duraccedilatildeo na sua simplicidade antes de se constituir qualquer retenccedilatildeo ou re-
cuperaccedilatildeo dela a partir de um outro tempo (o qual jaacute pertence agrave esfera da memoacuteria) Se natildeo
estamos a ver mal o que Aristoacuteteles nos mostra eacute que para efeitos do que estaacute em causa nesta
escala o aspecto da composiccedilatildeo da mancha eacute irrelevante e o ponto decisivo eacute aquele que tem
que ver com a unidade e a divisatildeo temporal
Eacute na posse desta chave que procuraremos determinar as caracteriacutesticas da αἴσθησις e
procuraremos entender de seguida a que poderia corresponder um ponto de vista meramente
esteacutesico de acordo com o que eacute possiacutevel apurar na escala desenhada por Aristoacuteteles
Eacute que o facto de a αἴσθησις ser uma modalidade de acesso com perspectiva confinada
no que diz respeito agrave questatildeo do tempo diz-nos algo sobre a αἴσθησις ndash diz-nos que a αἴσθησις
seraacute algo de instantacircneo que tem um grau zero de perspectiva sobre o exterior do instante
que ocorre
Para compreender bem o que isto quer dizer eacute importante antes de mais dizer o se-
guinte quando associada agrave αἴσθησις a nota da instantaneidade pode ser equiacutevoca
A natureza do equiacutevoco estaacute no facto de se tender a introduzir inadvertidamente um
ldquoponto de vista testemunhardquo que assiste agrave αἴσθησις como algo instantacircneo no meio da suces-
satildeo Ou seja tendemos a compreender a instantaneidade da αἴσθησις como um recorte fino de
tempo ndash como um momento intermeacutedio transitivo ndash no meio de um antes e de um depois Este
ldquoponto de vista testemunhardquo caracteriza-se pelo facto de ver cada instante como um mo-mento
que herda o tempo do momento anterior e conduz ao momento seguinte
34
Em suma esse ponto de vista vecirc o instante como que de fora numa oacuteptica excessiva
relativamente a ele Esse ldquoponto de vista testemunhardquo caracteriza-se precisamente por natildeo ter
em conta exclusivamente o proacuteprio instante (por natildeo corresponder portanto agraves condiccedilotildees que
satildeo proacuteprias de um ponto de vista puramente esteacutesico)
Note-se bem a perplexidade em que se cai quando se fala de um instante para descre-
ver um acesso exclusivamente perceptivo logo se faz a advertecircncia de que a isso que se des-
creve se deve tirar qualquer noccedilatildeo de sucessatildeo ou continuidade (ie se deve tirar qualquer
noccedilatildeo de tempo) Acontece que tal como o entendemos (tal como o ldquoponto de vista testemu-
nhardquo assiste a ele) o instante eacute precisamente uma instacircncia temporal ndash e daqui decorre que a
acepccedilatildeo de um instante no qual o tempo natildeo intervenha parece aludir a um ldquoconceito inanerdquo
no qual o tempo teria e natildeo teria parte em simultacircneo
Tendo isto em vista a diferenccedila aqui em causa eacute tal que por um lado como jaacute vimos
um ponto de vista completamente fechado num instante natildeo faz a mais pequena ideia da proacute-
pria sucessatildeo em que se inscreve (precisamente porque natildeo faz a mais pe-quena ideia do que
quer que seja que se situe para laacute do instante em causa) Mas por outro lado inversamente
um ponto de vista com notiacutecia da sucessatildeo (ie qualquer ponto de vista com notiacutecia do tempo
ndash como o eacute jaacute por exemplo o ponto de vista mneacutesico) natildeo consegue restituir eficazmente um
ponto de vista fechado num instante
Ora se tal como se desenha na escala um acesso constituiacutedo meramente de αἴσθησις
seraacute algo de absolutamente confinado no que diz respeito agrave questatildeo do tempo entatildeo a instan-
taneidade associada agrave αἴσθησις corresponde a algo como um presente absoluto ndash um instante
completamente fechado no presente e sem gerar qualquer perspectiva tanto sobre o passado
(sobre a retenccedilatildeo de percepccedilotildees jaacute ocorridas que eacute o que estaacute em causa na μνήμη) quanto so-
bre o futuro
Afirmar que a αἴσθησις seria algo como um presente absoluto (algo de exclusivamente
presente) natildeo eacute de modo nenhum dizer que a αἴσθησις natildeo participe numa ordem de suces-
satildeo As unidades de sensaccedilotildees natildeo soacute tecircm uma duraccedilatildeo como se sucedem ndash se entendermos
por sucessatildeo a contiguidade entre as unidades de sensaccedilatildeo distribuiacutedas num quadro de dis-
tribuiccedilatildeo temporal No entanto o que de facto resulta da escala aristoteacutelica eacute que uma unida-
de exclusiva-mente esteacutesica ainda que fazendo parte duma ordem de sucessatildeo natildeo teria
qualquer notiacutecia dessa sucessatildeo Isto porque a noccedilatildeo de sucessatildeo implica sempre um miacutenimo
35
de excesso sobre o presente ndash implica sempre antes e depois a delimitaccedilatildeo de uma baliza
temporal e de territoacuterios temporais delimitados etc
Por outras palavras um acesso meramente esteacutesico seria se assim se pode dizer um
presente sem qualquer nota de passado ou futuro (sem qualquer nota de retenccedilatildeo ou de pro-
tensatildeo para usar a linguagem de Husserl) Seria em resumo um acontecimento fulgurante de
presente A ser algo deste geacutenero entatildeo estamos a falar de algo como um presente constituiacutedo
em vertigem um presente que de cada vez irrompe jaacute a desvanecer ndash sempre jaacute em fuga (sem
cessar efeacutemero fugaz) ndash e que ao constituir-se estaraacute sempre jaacute a desfazer-se em absoluto
esvaimento16
Na verdade segundo esta leitura se um ponto de vista esteacutesico natildeo envolve qualquer
μνήμη eacute entatildeo o presente absoluto que carece completamente de passado que carece comple-
tamente de duraccedilatildeo ndash mas na verdade eacute tambeacutem o presente absoluto que carece completa-
mente de futuro
Vendo bem a noccedilatildeo de ldquopresente absolutordquo ndash que eacute a que exprime o que aqui estaacute em
causa ndash tem o caraacutecter de um oximoro Pois o presente eacute algo que soacute podemos conceber na
forma do ldquoponto de vista testemunhardquo acima referido (como momento da passagem entre pas-
sado e futuro) e o que caracteriza o ldquopresente absolutordquo aqui em causa eacute o facto de ser com-
pletamente cego em relaccedilatildeo a pas-sado e futuro ndash e tanto quer entatildeo dizer o ser presente num
sentido absolutizado que natildeo es-tamos em condiccedilotildees de conceber
A αἴσθησις eacute de facto tanto uma modalidade de aparecimento quanto eacute uma modali-
dade de fuga ou de obliteraccedilatildeo natildeo gera conteuacutedos fixos e estaacuteveis ie natildeo gera conteuacutedos
que se estendam no tempo
Mas na verdade a radical alteridade de um ponto de vista encerrado no presente em
relaccedilatildeo a um ponto de vista constituiacutedo temporalmente natildeo se cinge a uma alteridade formal
A alteridade repercute-se tambeacutem no conteuacutedo ndash sc no proacuteprio ter daquilo que aparece (e po-
de aparecer) a um ponto de vista com este recorte temporal
Em primeiro lugar eacute preciso ter presente que se trata de um ponto de vista a) fechado
num instante absoluto (sem qualquer notiacutecia do que quer que seja para laacute do instante em que
16
Para exprimir o que estaacute aqui em causa poderiacuteamos recorrer ao exemplo da sucessatildeo de fotogra-
mas Mas o caso natildeo poderia ser o de um ponto de vista que acompanhasse o movi-mento entre foto-
gramas e sim o de um ponto de vista encerrado de cada vez no interior de um uacutenico fotograma sem
qualquer noccedilatildeo de mais do que ele
36
de cada vez estaacute) e b) constituiacutedo exclusivamente por percepccedilotildees (pela presenccedila de determi-
naccedilotildees sensiacuteveis de uma determinada ldquomanchardquo de qualidades sensiacuteveis)
Ora isso significa que um acesso a um ponto de vista assim constituiacutedo (ie comple-
tamente desprovido de qualquer apresentaccedilatildeo de outra ordem) teria a perspectiva inteiramen-
te fechada nessa ldquomanchardquo sem quaisquer condiccedilotildees para ter notiacutecia de nada para laacute dela
A ldquomanchardquo perceptiva poderia ser maior ou menor consoante as circunstacircncias (como eacute
maior ou menor para noacutes) Contudo o que eacute decisivo eacute que independentemente da variaccedilatildeo
da dimensatildeo a ldquomanchardquo perceptiva esgotaria de cada vez todo o apresentado ndash seria de
cada vez a uacutenica coisa de que se teria notiacutecia E natildeo haveria condiccedilotildees para fazer ideia do
que quer que seja que fosse para laacute dela
Em suma cada ldquomanchardquo perceptiva (por maior ou menor que fosse) passaria por ser
a totalidade do ldquomundordquo Na incapacidade de gerar recogniccedilatildeo o ldquomundordquo esgotar-se-ia ex-
clusivamente no conteuacutedo sensiacutevel de que a cada instante se dispusesse Um ponto de vista
constituiacutedo deste modo nunca poderia pocircr mais do que isso que a cada instante estivesse per-
ceptivamente dado
A este aspecto relativo ao proacuteprio teor daquilo que aparece (de cada vez a ldquomanchardquo
perceptiva como algo que esgota a realidade e constitui todo o ldquomundordquo ndash e natildeo apenas uma
parte dele) acresce um outro de natildeo menos importacircncia Referimo-nos agravequele que tem que
ver com a novidade absoluta que a cada instante caracterizaria tudo aquilo que aparecesse
Nada impede que as percepccedilotildees que de cada vez aparecessem a um ponto de vista pu-
ramente esteacutesico fossem em tudo iguais a outras jaacute anteriormente tidas Mas um ponto de vista
puramente esteacutesico seria completamente desprovido de memoacuteria e teria por isso de cada vez
zero de perspectiva sobre o que jaacute houve
Ora isso significa que por mais que as determinaccedilotildees que de cada vez aparecessem
viessem na sequecircncia de outras anteriormente havidas um ponto de vista esteacutesico estaria
sempre num comeccedilo absoluto ndash sem quaisquer antecedentes ou sem qualquer histoacuteria para si
mesmo
Nesse sentido a um ponto de vista puramente esteacutesico o que aparece eacute sempre novo
absolutamente novo Mas natildeo se trata de uma novidade em contraste com um antigo por natildeo
haver nada a que se pudesse comparar A novidade seria portanto a novidade de uma primei-
ra vez fulgurante que a cada instante se inauguraria e no mesmo instante se extinguiria Ca-
da percepccedilatildeo de algo seria o primeiro contacto com esse algo a cada percepccedilatildeo tudo o que
37
aparecesse teria aparecido pela primeira vez numa primeira vez absoluta ndash e seria imediata-
mente perdido no fim da percepccedilatildeo
Em suma cada ldquorecantordquo perceptivo por mais ou menos angulado seria a cada ins-
tante a totalidade do ldquomundordquo E todo o ldquomundordquo seria a cada instante sempre novo
Acontece que isto que acabamos de descrever estaacute muito distante do modo de acesso
que noacutes temos ao que nos aparece
O que todas estas consideraccedilotildees nos permitem perceber satildeo as relaccedilotildees de alteridade
que separam um ponto de vista esteacutesico (completamente anterior ao advento de μνήμη) e as
caracteriacutesticas de um ponto de vista mneacutesico resultante desse advento e incapaz de se desfa-
zer dele (ou seja incapaz de se desfazer do desconfinamento em relaccedilatildeo agrave mera αἴσθησις que
a μνήμη traz consigo)
Por um lado o acesso em que nos encontramos estaacute sempre jaacute em excesso sobre o
ldquoinstante absolutordquo da αἴσθησις ndash tem sempre jaacute notiacutecia da proacutepria sucessatildeo enquanto tal (vecirc
cada instante no meio de mais do que ele) Por outro lado isso faz que a ldquomanchardquo perceptiva
que haacute a cada instante natildeo apareccedila como esgotando a realidade nem apareccedila como equivalen-
te ao ldquomundordquo
Aleacutem disso tatildeo pouco estamos em condiccedilotildees de ter de cada vez o que aparece como
sendo completamente novo ndash toda a novidade que se consegue perceber eacute tal justamente em
contraste com algo que se contrapotildee e eacute anterior a isso
Com efeito o regime de determinaccedilatildeo em que laboramos tem como elemento perma-
nente a siacutentese de recogniccedilatildeo (que se produz ou na forma do reconhecimento da identidade
ou na forma do reconhecimento da natildeo-identidade) ndash de tal modo que natildeo nos conseguimos
desprender deste regime e retomar a um modo de apreensatildeo do que aparece marcado pela to-
tal ausecircncia dele A nossa tentativa de conceber algo como um ldquoinstante absolutordquo natildeo resulta
senatildeo na constituiccedilatildeo de uma ldquoideia negativardquo
Em suma dizer que os dois pontos de vista ndash um ponto de vista esteacutesico e um ponto de
vista mneacutesico ndash vecircm coisas completamente diferentes natildeo quer dizer apenas que um ponto de
vista esteacutesico natildeo faz a mais pequena ideia daquilo que aparece a um ponto de vista trans-
formado pela μνήμη Na verdade quer dizer que um ponto de vista marcado pela μνήμη tam-
beacutem natildeo faz a mais pequena ideia do que seja um ponto de vista esteacutesico ndash ie um ponto de
vista correspondente agrave ausecircncia de μνήμη que soacute poderia recuperar por via daquela subtrac-
ccedilatildeo de μνήμη que natildeo estaacute em condiccedilotildees de executar
38
Eacute claro que pode acontecer que a partir de um ponto de vista mneacutesico se conceba o
ponto de vista esteacutesico como aquele que resulta do proacuteprio ponto de vista mneacutesico se lhe for
subtraiacuteda a μνήμη Sucede poreacutem que a acccedilatildeo de subtracccedilatildeo natildeo eacute susceptiacutevel de ser realiza-
da inteiramente E isso sugere que ou se tem uma aguda consciecircncia do que a noccedilatildeo do ponto
de vista esteacutesico eacute uma noccedilatildeo puramente apofaacutetica e que natildeo faz ideia daquilo para que apon-
ta ndash ou entatildeo se cai num equiacutevoco o equiacutevoco de ao se conceber o ponto de vista esteacutesico
(sc as αἰσθήσεις as percepccedilotildees sensaccedilotildees etc) na verdade estar a conceber-se algo com as
caracteriacutesticas daquilo que jaacute pertence a um plano que excede o que proacuteprias αἰσθήσεις e
que potildee mais do que elas
Eacute que vendo bem a tese que Aristoacuteteles desenha na escala eacute a de que ainda que dois
pontos de vista estivessem equipados com o mesmo ldquoaparelho sensiacutevelrdquo e o mesmo grau de
acuidade se um deles eacute um ponto de vista meramente esteacutesico e o outro estaacute jaacute a jusante do
advento da μνήμη o que aparece a um e a outro satildeo coisas muito diferentes ndash e na verdade
com muito pouco em comum
Mas na verdade o ponto a que agora fazemos referecircncia natildeo eacute um ponto que se esgote
na relaccedilatildeo entre um acesso meramente esteacutesico e qualquer outro modo de acesso na verdade
como se veraacute este mesmo fenoacutemeno atravessa a totalidade da escala e as vaacuterias relaccedilotildees entre
as diversas etapas
Para compreender o que estaacute aqui em jogo devemos antes de mais retomar a anaacutelise
sobre o ἐφεξῆς e fixar um aspecto fundamental do que se seguiraacute
Analisando o ἐφεξῆς descreveu-se um processo de acumulaccedilatildeo ndash uma sequecircncia em
que um segundo procede de um primeiro um terceiro de um segundo (e assim sucessivamen-
te) mas de tal modo que o terceiro implica o primeiro e o segundo e em que o terceiro tem um
excesso em relaccedilatildeo ao segundo e ao primeiro (ou inversamente que um segundo e um pri-
meiro estatildeo em deacutefice em relaccedilatildeo a um terceiro) etc Ora isto nada diz sobre a mobilidade
entre os patamares
Poderia muito bem acontecer que uma vez estabelecida a escala e os diversos patama-
res o tracircnsito entre os diversos patamares estivesse desimpedido ndash de tal modo que estando
por exemplo no terceiro patamar nada obstasse a que se pudesse transitar sem perda para o
primeiro ou para o segundo Acontece que isto eacute o contraacuterio do que eacute sugerido o caraacutecter ge-
neacutetico do ἐφεξῆς natildeo parece ser reversiacutevel
Consideremos o experimentum de saltar livremente de patamar em patamar
39
Saltar livremente de patamar em patamar resultaria em que se saltasse por exemplo
para o patamar da αἴσθησις natildeo pudesse ter perspectiva quer sobre a μνήμη quer sobre a con-
tinuidade da escala o que resultaria em estar preso agrave αἴσθησις e resultaria do mesmo modo
na ausecircncia de uma nota de a αἴσθησις ser um deacutefice em relaccedilatildeo aos patamares que se se-
guem De facto resultaria na impossibilidade de saltar de patamar em patamar ou ateacute na im-
possibilidade de regressar a um patamar que tivesse visitado anteriormente pela absoluta fal-
ta de noccedilatildeo da sua existecircncia (ie pelo total encerramento numa perspectiva que natildeo abre
qualquer perspectiva sobre uma outra perspectiva alternativa a essa)
Assim o experimentum soacute eacute admissiacutevel na sua modalidade retrospectiva se um pata-
mar superior inclui o inferior pode de certo modo abrir perspectiva sobre ele e colocar-se na
situaccedilatildeo de tentar compreender a que conteuacutedos corresponde um patamar inferior Mas como
vemos o caso eacute que um experimentum desse tipo soacute poderaacute ter alguma eficaacutecia enquanto ex-
perimentum
Adicionalmente estes desenvolvimentos fazem-nos recuperar a noccedilatildeo de que a deter-
minaccedilatildeo do que corresponde a um qualquer momento da escala natildeo obedece apenas agrave diferen-
ccedila em relaccedilatildeo a um patamar imediatamente superior mas de facto depende da diferenccedila em
relaccedilatildeo a todo o complexo de fronteiras superiores E na verdade a determinaccedilatildeo do que cor-
responde a qualquer momento da escala depende da posiccedilatildeo da escala em que se esteja
De tudo isto resulta que uma tentativa de determinar os caracteres da αἴσθησις a partir
de uma posiccedilatildeo em que a eficaacutecia cognoscitiva natildeo exceda o plano da μνήμη obteacutem algo mui-
to diferente de uma outra tentativa de determinar os caracteres da αἴσθησις a partir de uma po-
siccedilatildeo com a eficaacutecia cognoscitiva da ἐμπειρία ou ainda com a eficaacutecia cognoscitiva da τέχνη e
da ἐπιστήμη
Ora se por um lado nos eacute dito que um patamar superior eacute obtido a partir de um pata-
mar inferior por outro lado natildeo nos eacute dito que um patamar inferior tenha perspectiva sobre a
continuidade da escala ndash ie natildeo eacute dito que qualquer patamar tenha perspectiva sobre o mais
a adquirir (sobre as possibilidades de desenvolvimento futuro sobre os patamares seguintes
etc)
Daqui poder-se-ia tirar a ilaccedilatildeo de que a impossibilidade de tracircnsito se limitava ex-
clusivamente ao tracircnsito desde a etapa que constituiacutesse um ldquomenosrdquo ateacute agrave etapa ou agraves etapas
que pusessem ldquomaisrdquo do que essa potildee ndash jaacute que a etapa que constitua um ldquomenosrdquo em relaccedilatildeo
a uma outra natildeo teria qualquer perspectiva sobre o excesso que o patamar ou os patamares su-
40
periores ponham a mais Mas o que na verdade a escala de Aristoacuteteles desenha eacute uma inco-
municabilidade nos dois sentidos tanto do ldquomenosrdquo para o ldquomaisrdquo quanto do ldquomaisrdquo para
o ldquomenosrdquo
Se eacute verdade que a escala estaacute constituiacuteda por transiccedilotildees de ldquomenosrdquo para ldquomaisrdquo eacute
tambeacutem verdade que estaacute constituiacuteda por transiccedilotildees de ldquomaisrdquo para ldquomenosrdquo Ou seja ainda
que o ldquomaisrdquo que uma etapa superior ponha inclua o ldquomenosrdquo de uma etapa ou de etapas in-
feriores uma etapa superior natildeo consegue subtrair o excesso que potildee a mais
Em suma um ponto de vista jaacute marcado pelo advento da μνήμη estaacute separado de um
ponto de vista esteacutesico por ldquoclaacuteusulasrdquo ou condiccedilotildees que potildeem os dois se assim se pode dizer
num ldquopeacuterdquo completamente diferente Uma vez que se acha jaacute provido de μνήμη e da forma de
saber que lhe corresponde um ponto de vista natildeo consegue anular esse saber mais nem com-
preender a partir do ldquomaisrdquo o ldquomenosrdquo que este que este abrange (mas que abrange com ex-
cesso sobre ele)
Sendo assim seraacute possiacutevel a partir de um qualquer ponto de vista ganhar perspectiva
sobre a complexidade dos passos de que esse mesmo ponto de vista eacute cumulativamente consti-
tuiacutedo Quer dizer μνήμη ἐμπειρία τέχνη e ἐπιστήμη satildeo modos de acesso que tecircm na sua
composiccedilatildeo algo de esteacutesico ἐμπειρία τέχνη e ἐπιστήμη satildeo modos de acesso que tecircm na sua
composiccedilatildeo algo de esteacutesico e de mneacutesico e τέχνη e ἐπιστήμη satildeo modos de acesso que tecircm na
sua composiccedilatildeo algo de esteacutesico de mneacutesico e de empiacuterico
Mas se os diversos patamares resultam em diferenccedilas irreconciliaacuteveis de estaacutedio para
estaacutedio (se em suma resultam em modos exclusivos de saber e de conhecer) entatildeo uma ten-
tativa de subtracccedilatildeo estaacute marcada por uma impossibilidade de se cumprir ndash ie estaacute marcada
pela impossibilidade de vencer as diferenccedilas irreconciliaacuteveis entre os estaacutedios De facto uma
tentativa de subtracccedilatildeo natildeo pode senatildeo produzir uma concepccedilatildeo defeituosa do patamar infe-
rior visado sempre jaacute extraiacutedo de ou obtido a partir de um modo de conhecer que eacute qualitati-
vamente distinto dele mas que eacute a matriz a partir da qual se vem a ter sobre ele uma perspec-
tiva
Com estes desenvolvimentos estamos em condiccedilotildees de analisar um uacuteltimo ponto
E o ponto eacute o seguinte vendo bem eacute por meio deste contraste entre os diversos pata-
mares que se adquire a noccedilatildeo do ponto de vista em que qualquer ente constituiacutedo na posse de
um acesso agraves coisas estaacute
41
Mais ainda se como vimos na secccedilatildeo anterior o ldquoponto de vista testemunhardquo ndash o pon-
to de vista que sub-repticiamente assiste a todas as etapas a partir do interior da proacutepria es-
cala que diferencia as etapas e as distribui em planos distintos a partir da proacutepria localiza-
ccedilatildeo que ocupa ndash eacute o nosso entatildeo eacute tambeacutem por este contraste que se adquire noccedilatildeo do ponto
de vista em que damos connosco
A noccedilatildeo do ponto de vista que nos corresponde eacute ganha na medida em que por um la-
do tem uma posiccedilatildeo na escala de ldquomaisrdquo e de ldquomenosrdquo que se desenhou e por outro a sua
posiccedilatildeo se apresenta ou como ldquomaisrdquo ou como ldquomenosrdquo na relaccedilatildeo com os outros pontos de
vista possiacuteveis
Vejamos melhor como pode ser assim
Se numa escala em modo de ἐφεξῆς as etapas superiores satildeo formadas por epigeacutenese
entatildeo cada patamar resulta em metamorfose e em alargamento do acircngulo em relaccedilatildeo ao que o
patamar anterior propunha daiacute resulta que as etapas estatildeo umas em relaccedilatildeo com as outras ou
numa loacutegica de acircngulo alargado (excesso) ou numa loacutegica de acircngulo confinado (deacutefice) con-
soante a ldquorelaccedilatildeo loacutegicardquo entre elas seja respectivamente de sucessatildeo ou de antecedecircncia
De facto o alargamento de acircngulo ou o excesso que um qualquer patamar superior
acrescenta a um qualquer patamar inferior natildeo pode senatildeo ter os modos de acesso dos patama-
res inferiores como acircngulos confinados e como deacutefice a αἴσθησις ainda natildeo tem o que eacute proacute-
prio da μνήμη e portanto uma perspectiva mneacutesica da αἴσθησις resultaria na nota de uma fal-
ta ndash e assim tambeacutem no caso de uma perspectiva empiacuterica sobre αἴσθησις e μνήμη ou no caso
de uma perspectiva teacutecnica ou episteacutemica sobre a totalidade dos outros modos de acesso
Mas o que importa reter eacute que a relaccedilatildeo entre excesso e deacutefice se fixa ie que todo o
deacutefice o eacute de um excesso E detectar um deacutefice eacute detectar a presenccedila do excesso que jaacute o
compotildee de tal modo que se pode delimitar a natureza do deacutefice em causa e determinar a que
excesso corresponde um tal deacutefice ndash ie de tal modo que se pode analisar o que eacute que estaacute
posto a mais quando analiso uma dada etapa da escala e a que patamar pertence isso que estaacute
posto a mais e que eacute impossiacutevel de ser retirado No limite o excesso da μνήμη na sua relaccedilatildeo
com a αἴσθησις eacute distinto do excesso da ἐμπειρία na sua relaccedilatildeo com a αἴσθησις ou do excesso
da τέχνη ou da ἐπιστήμη na sua relaccedilatildeo com a αἴσθησις
Com isto estamos jaacute em condiccedilotildees de saber que o tempo eacute radical do ponto de vista
que nos corresponde porque na verdade o entendimento que nos eacute possiacutevel do presente estaacute
atravessado de mais do que ele (estaacute atravessado de continuidade ou de sucessatildeo) e portanto
42
eacute diferente desse acontecimento fulgurante de presente que corresponderia um ponto de vista
meramente esteacutesico
Assim o factor que daqui em diante interessa considerar eacute esse factor que cria as con-
diccedilotildees para o caso da αϊσθησις ser recuperaccedilatildeo ou reconhecimento e natildeo um acesso de cada
vez original
Podemos compreender a percepccedilatildeo tal como eacute possiacutevel ao ponto de vista em que nos
achamos recorrendo ao siacutemile de um fluxo no qual haacute uma contiacutenua renovaccedilatildeo do que a ca-
da momento constitui o horizonte perceptivo
Assim o horizonte perceptivo muda agrave mais sensiacutevel mudanccedila de posiccedilatildeo a mais ligei-
ra mudanccedila de posiccedilatildeo muda o aspecto dos ldquoobjectosrdquo que temos na percepccedilatildeo Isto parece
aludir agrave mediaccedilatildeo de um movimento numa dupla acepccedilatildeo da palavra
Por um lado pode indicar a mudanccedila de posiccedilatildeo que ocorre no espaccedilo a percepccedilatildeo er-
ra sobre o que aparece vagueia sobre o que aiacute encontra transita de um ldquoobjectordquo para outro
varre o conteuacutedo do campo perceptivo Esse movimento eacute uno mas ainda assim identifica di-
ferenccedilas (este ldquoobjectordquo aquele ldquoobjectordquo) mais do que isso a cada instante do fluxo estaacute
num ponto espacial distinto do anterior e nessas ligeiras cambiantes se modifica o quadro
geral apresentado em cada ponto espacial particular
Por outro lado pode indicar um sentido temporal haacute percepccedilotildees que satildeo anteriores a
outras a percepccedilatildeo actual eacute precedida de outra etc Esta acepccedilatildeo jaacute natildeo implica necessaria-
mente um movimento em sentido espacial podemos estar quietos contemplando um mesmo
ldquoobjectordquo ndash e no entanto a percepccedilatildeo que tivemos dele haacute um minuto atraacutes estaacute perdida e deu
lugar a outra percepccedilatildeo que substitui quer a percepccedilatildeo anterior quer toda a seacuterie de percep-
ccedilotildees anteriores
Assim quaisquer percepccedilotildees anteriores se perderam irremediavelmente no fluxo das
percepccedilotildees tidas ndash e esse eacute precisamente o seu novo estatuto satildeo percepccedilotildees que natildeo se tecircm
actualmente natildeo satildeo percepccedilotildees no sentido de um acesso presente a isso a que acedem Satildeo
percepccedilotildees completamente perdidas e irrecuperaacuteveis enquanto algo que se tem e que adqui-
rem o estatuto de algo a que tendo sido percepccedilatildeo se soma o caraacutecter de passado de algo
que tendo sido neste preciso instante natildeo eacute
Acontece no entanto que a validade da percepccedilatildeo tida natildeo parece comprometida por
esta radical mudanccedila de estatuto O facto de num dado momento ter havido percepccedilatildeo de
algo parece fixar qualquer coisa que natildeo desaparece na efectiva perda perceptiva Dito de
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outro modo algo de uma percepccedilatildeo tida parece continuar ndash de tal modo que natildeo se pode di-
zer que uma percepccedilatildeo actual de um qualquer ldquoobjectordquo seja uma percepccedilatildeo original do ob-
jecto
A ser assim a percepccedilatildeo tida parece associar em si simultaneamente uma perda e um
ganho A perda corresponde agrave aniquilaccedilatildeo da percepccedilatildeo que foi percepccedilatildeo actual mas jaacute natildeo
se tem como percepccedilatildeo actual o ganho corresponde a uma continuaccedilatildeo ou uma preservaccedilatildeo
de algo dessa percepccedilatildeo que se transfere para a percepccedilatildeo actual
A percepccedilatildeo anterior estaacute aniquilada enquanto percepccedilatildeo actual e no entanto trans-
mite algo agrave percepccedilatildeo actual que lhe sucede Haacute uma constante persistecircncia ou uma reinci-
decircncia do passado perceptivo De facto parece ser claro que a percepccedilatildeo que temos neste
preciso instante natildeo parece estar desligada da percepccedilatildeo que tivemos ainda agora Haacute uma
relaccedilatildeo de continuidade ndash mas uma continuidade constituiacuteda de diferenccedila
De facto haacute uma irredutiacutevel diferenccedila entre quaisquer duas percepccedilotildees a mais radi-
cal diferenccedila eacute a natildeo actualidade da percepccedilatildeo tida Esse eacute o grau miacutenimo do desvio ndash que
sendo um acontecimento passiacutevel de distensatildeo temporal da interposiccedilatildeo de novas percepccedilotildees
entre quaisquer duas percepccedilotildees no limite se pode tornar em perda total de notiacutecia percepti-
va
O que se pretende com isto vincar eacute que na diferenccedila entre duas percepccedilotildees haacute sem-
pre algo que acresce por meio da relaccedilatildeo de continuidade Por um lado a percepccedilatildeo tida eacute
preservada transmite-se exime-se agrave total aniquilaccedilatildeo por outro a percepccedilatildeo actual adquire
um nexo de encadeamento
Assim se a percepccedilatildeo tida reitera a sua validade isso tem como resultado que o per-
cepcionado e o passado de certo modo se presentificam ndash isso colabora na preservaccedilatildeo e na
solidificaccedilatildeo da sua validade natildeo soacute se lhe atribui como proacuteprio dessa percepccedilatildeo o ter sido
presente algures no passado como de algum modo a sua presenccedila natildeo se ateacutem ao passado
mas alarga-se ateacute ao presente
Assim tambeacutem a percepccedilatildeo actual adquire uma proveniecircncia ndash e a conjugaccedilatildeo destes
factores gera um curso perceptivo uma organizaccedilatildeo das percepccedilotildees que tem a actual como
seu culminar
Ora tal como a temos estado a ver a percepccedilatildeo tida natildeo eacute nunca um momento irrecu-
peraacutevel da percepccedilatildeo como seria se estivesse fechada num presente que jaacute foi e que natildeo vol-
ta na medida em que natildeo seria possiacutevel retomar esse presente tal como foi a recuperaccedilatildeo dis-
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so que tinha entatildeo sido percebido seria tambeacutem impossiacutevel O que parece estar em causa eacute
mais propriamente algo como um desdobramento temporal
O tempo constitui-se em plano de base as diferentes percepccedilotildees assentam no plano
temporal As percepccedilotildees ganham encadeamento no encadeamento reportam ou referem-se
umas agraves outras
Eacute esta cadeia de percepccedilotildees o que permite gerar sucessatildeo ou sequecircncia o que permite
recuar ateacute uma percepccedilatildeo passada essa reporta agrave percepccedilatildeo presente ndash natildeo estaacute dissociada
dela haacute entre elas um viacutenculo de conexatildeo ou solidariedade Isso permite que a partir do pre-
sente haja possibilidade de reconhecimento ou de reconstituiccedilatildeo de uma qualquer percepccedilatildeo
passada
Eacute tendo isto em vista que iremos analisar a segunda etapa da escala de possibilidades
de acesso (a μνήμη) A μνήμη tem na sua composiccedilatildeo algo de esteacutesico mas corresponde sem-
pre jaacute a uma modalidade de alargamento dos conteuacutedos da percepccedilatildeo
A preservaccedilatildeo duma percepccedilatildeo anterior ao mudar de posiccedilatildeo ou a constituiccedilatildeo duma
sucessatildeo de percepccedilotildees (que por um lado repetem os percebidos e por outro lado se ocu-
pam de percebidos diferentes) exige natildeo uma mera acumulaccedilatildeo mas sim uma transformaccedilatildeo
dos conteuacutedos da percepccedilatildeo Daacute-se o caso de que aos conteuacutedos da percepccedilatildeo se somam quer
o plano temporal quer um estatuto de caraacutecter natildeo-perceptivo assim gerando algo diferente
da percepccedilatildeo
Em suma na secccedilatildeo seguinte visaremos a μνήμη a partir do acircngulo de que eacute a μνήμη
que cria as condiccedilotildees para que haja a siacutentese de recogniccedilatildeo que sempre jaacute atravessa o regi-
me de determinaccedilatildeo em que laboramos
sect7
A μνήμη como persistecircncia do jaacute percebido o factor da supressatildeo da vertigem perceptiva e
o factor do desdobramento temporal ndash A co-apresentaccedilatildeo do tempo e a sucessatildeo
A compreensatildeo do sentido em que cada etapa da escala aristoteacutelica corresponde a um
certo conceito depende naturalmente antes de mais da proacutepria carga especiacutefica do conceito
No entanto o que vimos foi que no contexto da escala as determinaccedilotildees radicais dos con-
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ceitos aiacute em causa parecem mudar e esses mesmos conceitos parecem ganhar determinaccedilotildees
que natildeo estatildeo presentes na compreensatildeo mais comum que deles se faz
Assim a introduccedilatildeo de um dado conceito na escala do mesmo modo que a posiccedilatildeo
que esse conceito ocupa na escala acentua determinadas caracteriacutesticas em detrimento de
outras destaca ou pelo contraacuterio relega determinados conteuacutedos para papeacuteis principais ou
secundaacuterios etc
Isto que vimos na secccedilatildeo anterior ser o que se passa com a αἴσθησις tambeacutem eacute o que
se passa no caso da μνήμη
Tambeacutem a μνήμη tal como acontecia com a αἴσθησις tem uma carga proacutepria especiacutefi-
ca ou uma tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica Seria possiacutevel uma vez mais usar as muacuteltiplas ocorrecircn-
cias do termo no corpus platonicum como fundamento suficiente para sustentar uma afirma-
ccedilatildeo deste geacutenero17
No caso especiacutefico da μνήμη a compreensatildeo do que corresponde a esse conceito pa-
rece plenamente satisfeita quando o termo eacute habitualmente nos seus vaacuterios usos vertido por
memoacuteria Poreacutem uma compreensatildeo desse geacutenero por mais vaacutelida pouco adianta sobre as de-
terminaccedilotildees que identificam a μνήμη enquanto estaacutedio da escala aristoteacutelica18
Enquanto estaacutedio da escala o quadro geral a partir ou no interior do qual procurare-
mos descrever a μνήμη eacute o seguinte agrave μνήμη cabe superar o seu limiar inferior (cabe ultra-
17
Considerar por exemplo a especial incidecircncia dada agrave noccedilatildeo em Fedro 249c-254b Fil 19d-21d
33c-35d ou 38b-39a Rep (livros VI X) Teet 163d-e Feacutedon 96b etc
18 Natildeo podemos deixar aqui de reforccedilar como jaacute fizeacuteramos numa secccedilatildeo anterior em relaccedilatildeo agrave αἴσθη-
σις o facto de que o que estaacute em causa nesta secccedilatildeo natildeo eacute de modo nenhum uma identificaccedilatildeo abran-
gente da noccedilatildeo de μνήμη ou dos seus diversos usos na obra de Aristoacuteteles Uma identificaccedilatildeo desse geacute-
nero teria de considerar uma quantidade de passos do corpus aristotelicum ou uma quantidade de ca-
racteriacutesticas do que estaacute implicado na noccedilatildeo a que esta secccedilatildeo natildeo pode de modo nenhum dar aten-
ccedilatildeo Tambeacutem no caso da μνήμη esta advertecircncia eacute especialmente importante na medida em que Aris-
toacuteteles dedica especial atenccedilatildeo ao tema ndash neste caso particular na forma de um tratado (o De memoria
et reministentia) em que procura focar as caracteriacutesticas da μνήμη estabelecendo pontos de encontro e
pontos de contraste com o fenoacutemeno da ἀνάμνησις No caso sublinhando a diferenccedila que distingue a
μυήμη entendida como mera conservaccedilatildeo de percepccedilotildees que readquire sem esforccedilo da άνάμησις que
alude agrave recuperaccedilatildeo de lembranccedilas vagas que resistem e cuja recuperaccedilatildeo exige mobilizaccedilatildeo Para
mais esclarecimentos ver por exemplo Bowin J De anima II 5 on the Activation of the Senses in
Ancient Philosophy 32 nordm 1 Pittsburgh 2012 87-104 ou Caston V The Spirit and the Letter Aris-
totle on Perception in R Salles (ed) Metaphysics Soul and Ethics Themes from the work of Ri-
chard Sorabji 245ndash320 Oxford Oxford University Press 2005
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passar a αἴσθησις) enquanto por outro lado lhe cabe ficar aqueacutem e ser condiccedilatildeo de possibi-
lidade da ἐμπειρία ndash que se situa acima do limiar superior da μνήμη Isto quer dizer em su-
ma que a μνήμη introduz um acreacutescimo em relaccedilatildeo agrave αἴσθησις mas estaacute ainda em situaccedilatildeo de
deacutefice em relaccedilatildeo agrave ἐμπειρία (e assim tambeacutem em relaccedilatildeo a τέχνη e agrave ἐπιστήμη)
Para tentar ganhar a pista ao que eacute que a μνήμη acrescenta agrave αἴσθησις consideremos
por exemplo Anal Post 99b38 Nesse passo a μνήμη eacute descrita como persistecircncia da αἴσθη-
σις ndash ie como persistecircncia do jaacute percebido O que Aristoacuteteles procura salientar neste passo eacute
o facto de a μνήμη natildeo se deter nem se ater exclusivamente agrave αἴσθησις No factor do persistir
ou do perdurar da percepccedilatildeo estaacute desde logo o sinal de uma distinccedilatildeo entre os planos da
αἴσθησις e da μνήμη
O que essa distinccedilatildeo mostra eacute que por um lado o acontecimento perceptivo natildeo estaacute
esgotado no instante do seu acontecer (no presente absoluto que vimos corresponder a um
ponto de vista meramente esteacutesico) mas pelo contraacuterio algo da percepccedilatildeo eacute passiacutevel de ser
conservado Mas por outro o que eacute decisivo eacute que isso da percepccedilatildeo que eacute passiacutevel de ser
conservado acontece num plano distinto do plano da αἴσθησις Interessa considerar mais deti-
damente este ponto ndash agora a partir de um ponto de vista mneacutesico
Importa fazer notar antes de tudo o mais que a μνήμη eacute diferente de uma mera acu-
mulaccedilatildeo de conteuacutedos esteacutesicos
Para compreender como pode ser assim consideremos dois aspectos
Por um lado a nota de αἰσθήσεις (a nota de um plural de percepccedilotildees) eacute completamente
excecircntrica agrave αἴσθησις tal como se viu na secccedilatildeo anterior Por outro a precedecircncia da αἴσθη-
σις em relaccedilatildeo agrave μνήμη faz com que de facto o percebido seja o objecto da memoacuteria
Poreacutem sobre o fundo do percebido a μνήμη opera uma transformaccedilatildeo De tal modo
que o que se estaacute a desenhar pode ser expresso na seguinte foacutermula a memoacuteria do sensiacutevel jaacute
natildeo eacute sensiacutevel
Foquemos melhor este ponto
Poderiacuteamos tender a supor que a percepccedilatildeo resulta naturalmente em memoacuteria ndash que a
memoacuteria seria por assim dizer o ldquodestino naturalrdquo da percepccedilatildeo Esta asserccedilatildeo natildeo parece no
entanto estar de acordo com o que temos visto Na verdade como vimos a percepccedilatildeo pode-
ria estar encerrada no seu acontecimento sem intervenccedilatildeo de qualquer outro factor Mais
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ainda a sofrer a intervenccedilatildeo de qualquer factor externo natildeo haacute nada que aponte para que esse
factor tivesse de ser necessariamente a memoacuteria
Propor a memoacuteria como o ldquodestino naturalrdquo da percepccedilatildeo parece sugerir a) que a μνή-
μη estaacute analiticamente compreendida no acontecimento da αἴσθησις ou b) que o que cabe agrave
memoacuteria eacute ser algo como o mero depoacutesito de percepccedilotildees Quer num caso quer no outro a
memoacuteria natildeo seria mais do que um processo posterior agrave colecccedilatildeo de percepccedilotildees ndash processo
que resultaria num arquivo morto de percepccedilotildees
Ora o que Aristoacuteteles desenha da μνήμη na escala tem uma configuraccedilatildeo muito dife-
rente de um arquivo morto
Vendo bem a μνήμη natildeo poderia ser um acontecimento posterior agrave αἴσθησις ndash pelo
simples facto de que no sentido que vimos corresponder agrave αἴσθησις no curso da sucessatildeo a
percepccedilatildeo estaria jaacute perdida ou ultrapassada
Assim a μνήμη eacute algo que acompanha a αἴσθησις ndash ie que faz com que em simultacirc-
neo com o acontecimento da αἴσθησις haja outra instacircncia que suprime a vertigem perceptiva
que corresponderia a um acesso meramente esteacutesico De facto a μνήμη surge como o registo
ou a retenccedilatildeo do percebido no proacuteprio instante da ocorrecircncia da percepccedilatildeo
A este factor do registo ou retenccedilatildeo deve adicionar-se um segundo factor o factor da
transmissatildeo O que a μνήμη introduz eacute algo que poderia ser descrito como uma cadeia de
transmissatildeo
Por via do acompanhamento mneacutesico da αἴσθησις o percebido natildeo fica totalmente en-
cerrado no instante do seu acontecimento mas eacute transferido para o instante seguinte De facto
o que a μνήμη faz eacute introduzir um desdobramento de tal modo que no instante subsequente ao
da ocorrecircncia de uma qualquer αἴσθησις haacute em simultacircneo tanto a percepccedilatildeo actual quanto
a memoacuteria do instante anterior
Mas isto ainda eacute insuficiente
Se a μνήμη fosse a mera subsistecircncia do percepcionado isso significaria que o instante
absoluto ndash que vimos corresponder ao acontecimento da αἴσθησις ndash apenas acumularia mais
conteuacutedo Ou seja a μνήμη corresponderia a um mero amontoado de todos os conteuacutedos per-
ceptivos tidos acumulados no conteuacutedo perceptivo actual A ser assim a μνήμη corresponde-
ria agrave mera retenccedilatildeo de presentes absolutos (ou seja presentes absolutos completamente fe-
chados em si sem perspectiva de uns sobre os outros e todos apresentados em simultacircneo
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etc) Por outras palavras a mera subsistecircncia do anteriormente percepcionado corresponderia
a algo como um ldquoacorderdquo no instante absoluto
Na verdade o desdobramento que a μνήμη introduz expressa-se no encadeamento ou
no alinhamento das percepccedilotildees ndash mas de tal modo que o resultado do encadeamento ou do ali-
nhamento eacute uma fluidez ou continuidade no tracircnsito entre as percepccedilotildees
Ou seja o acompanhamento mneacutesico faz com que natildeo haja entre uma percepccedilatildeo e a
percepccedilatildeo seguinte uma quebra ou uma radical heterogeneidade ndash a radical heterogeneidade
que corresponderia agrave mera retenccedilatildeo de presentes absolutos radicalmente heterogeacuteneos entre
si
Aquilo que se desenha na μνήμη para o condensar numa expressatildeo eacute algo como uma
ldquomelodiardquo de percepccedilotildees
O caso eacute o seguinte haacute uma heterogeneidade radical entre qualquer percepccedilatildeo tida e
a percepccedilatildeo actual E no entanto parece haver uma convergecircncia entre a percepccedilatildeo tida e a
percepccedilatildeo actual (de tal modo que qualquer percepccedilatildeo actual herda de uma percepccedilatildeo tida) o
que resulta no caso peculiar de uma percepccedilatildeo actual ser natildeo apenas a heranccedila recebida mas
a continuaccedilatildeo do ldquolegadordquo do que foi herdado
De facto a convergecircncia entre as duas percepccedilotildees (ie o encontrarem-se e coincidi-
rem na percepccedilatildeo actual) eacute condiccedilatildeo de possibilidade da nota de ldquoactualidaderdquo que acompa-
nha a percepccedilatildeo actual ndash assim como eacute condiccedilatildeo de possibilidade por exemplo de uma melo-
dia cuja identidade depende natildeo da mera contiguidade de dois sons mas mais propriamente
da transiccedilatildeo do primeiro para o segundo (de tal modo que quando o segundo for escutado o
primeiro estaacute ainda presente) e do produto de uma tal transiccedilatildeo (isso que corresponde a um
aumento ou uma diminuiccedilatildeo de tom de intensidade de ritmo etc e que soacute eacute posto quando haacute
transiccedilatildeo ie quando haacute coincidecircncia de duas percepccedilotildees e dessa coincidecircncia se extrai a
relaccedilatildeo entre elas)
Assim parece haver algo como um nexo de causalidade
A percepccedilatildeo passada alarga-se sobre o presente (presentifica-se) como se de certo
modo antecipasse jaacute a sua continuidade no futuro ainda a haver ao mesmo tempo a percep-
ccedilatildeo actual adquire uma proveniecircncia De tudo isto resulta algo como um curso perceptivo ndash
uma organizaccedilatildeo encadeada (tida por natural) das percepccedilotildees que tem a actual como seu cul-
minar e que de certo modo jaacute antecipa a seguinte
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A tentativa de determinaccedilatildeo do que corresponde agrave μνήμη na escala aristoteacutelica deve ter
agora em conta uma ldquoclaacuteusulardquo adicional Eacute que a μνήμη apresenta um conteuacutedo na ausecircncia
perceptiva dele
Natildeo apenas conseguimos recuperar por via da μνήμη isso que foi (mas jaacute natildeo eacute) os
locais onde estivemos (mas jaacute natildeo estamos) os tempos que vivemos no passado (mas que jaacute
natildeo vivemos no presente) como o que estaacute na μνήμη (ie o que estaacute para aleacutem da percepccedilatildeo)
estende-se ao longo do curso da percepccedilatildeo e conforma o que aparece perceptivamente
Ora isto aproxima a μνήμη de um outro fenoacutemeno de apresentaccedilatildeo dos conteuacutedos na
ausecircncia perceptiva deles a saber o fenoacutemeno da φαντασία
Natildeo eacute este o local nem para uma apresentaccedilatildeo exaustiva e integral da φαντασία nem
para o levantamento dos diversos aspectos que uma apresentaccedilatildeo minuciosa do que estaacute em
jogo na φαντασία traria agrave tona na obra aristoteacutelica Para mais devemos natildeo perder de vista
que nem o conceito de φαντασία nem a rela-ccedilatildeo entre φαντασία e μνήμη estatildeo expressamente
focadas nos passos do corpus aristotelicum que aqui temos em vista
A menccedilatildeo da φαντασία tem portanto tanto um intuito quanto um acircmbito muito redu-
zidos De facto daremos atenccedilatildeo a um uacutenico aspecto do fenoacutemeno da φαντασία que posto em
relaccedilatildeo e em contraste com o que vimos nos pode ajudar a determinar o que propriamente
corresponde agrave μνήμη19
O problema pode ser expresso do seguinte modo a percepccedilatildeo fornece os conteuacutedos
perceptivos mas natildeo parece ter sobre os conteuacutedos perceptivos exclusividade ndash haacute pelo que
se depreende conteuacutedos perceptivos fora da percepccedilatildeo e mais ainda a conformar a percep-
ccedilatildeo Eacute esse o caso da μνήμη a μνήμη assenta sobre conteuacutedos perceptivos mas o que adiciona
atravessa os conteuacutedos da αἴσθησις e natildeo os deixa incoacutelumes eacute tambeacutem esse o caso da φαντα-
σία
19
Para uma consideraccedilatildeo da noccedilatildeo de φαντασία na obra de Aristoacuteteles ver por exemplo Ret (I 11 II
5) Eacutetica a Nicoacutemaco (1114a-b 1147b etc) Met (livro I 980b livro IV 1110b livro V 1024b-
1025a etc) Para um estudo mais aprofundado do conceito ver por exemplo Bredlow L Aristotle
on pre-Platonic theories of sense-perception and knowledge in Filosofia Unisinos Satildeo Leopoldo 11
(3) 2010 paacutegs 204-224 Heidegger M GA vol 18 Basic concepts of aristotelian philosophy Indi-
ana Univ Press 2009 pp 93-97 133-136 e 168-170 Long C Aristotle on the nature of truth Cam-
bridge Univ Press 2011 pp 81-93 109-115 131-151 166-171 211-123 etc Scheiter K Images
appearances and phantasia in Aristotle in Phronesis 57 Boston 2012 paacutegs 251-278 ou Watson G
Φαντασία in Aristotle De Anima 33 in The Classical Quarterly 32 No 1 Cambridge 1982 paacutegs
100-113
50
O que Aristoacuteteles diz sobre a φαντασία e que neste passo nos interessa destacar pode
ser sintetizado em dois pontos a) a φαντασία eacute de certo modo causada pela αἴσθησις (ou se-
ja estaacute dependente da ocorrecircncia de αἴσθησις) e b) a φαντασία eacute similar agrave αἴσθησις (De Ani-
ma 428b10 ss) Algo muito semelhante poderia ser dito sobre a μνήμη
Em relaccedilatildeo ao primeiro ponto o que estaacute em causa eacute o facto de tanto μνήμη quanto
φαντασία terem a αἴσθησις por seu objecto Isto eacute tanto μνήμη quanto φαντασία procedem
sobre o ldquofundordquo do percebido
Em relaccedilatildeo ao segundo ponto o que deve ser frisado eacute que o desdobramento que ca-
racteriza a μνήμη natildeo potildee perante dois conteuacutedos esteacutesicos (um primeiro meramente esteacutesico
e um segundo atravessado por μνήμη) Pelo contraacuterio no ponto de vista em que nos temos haacute
apenas um uacutenico conteuacutedo ndash conteuacutedo que a um olhar desatento pode parecer isento de qual-
quer outro factor e pode portanto passar por um conteuacutedo meramente esteacutesico
Haacute ainda um outro problema que vem reforccedilar as ligaccedilotildees entre μνήμη e φαντασία
A φαντασία parece estar a jusante do fenoacutemeno da αἴσθησις ndash como se fosse um pro-
duto possiacutevel do tratamento do que a αἴσθησις colhe e que deixaria incoacutelume o fundo ou os re-
cursos disponiacuteveis em que assenta
Se Aristoacuteteles nos diz que a φαντασία eacute uma modalidade enfraquecida de αἴσθησις
(ponto que natildeo estamos nestes passos em condiccedilatildeo de considerar) logo acrescenta que tanto o
homem que relembra (o homem que revecirc o passado) quanto o homem que espera (o homem
que prevecirc o futuro) tecircm de permeio a φαντασία do que relembram ou do que esperam (Ret I
XI 6 1370a)
Ora deixando de lado as consideraccedilotildees sobre o futuro que natildeo cabem na anaacutelise da
μνήμη o aspecto que Aristoacuteteles nos apresenta eacute o aspecto da φαντασία ser de algum manei-
ra um operador que interveacutem na constituiccedilatildeo de μνήμη Ou seja o aspecto que Aristoacuteteles
nos apresenta eacute o aspecto de a constituiccedilatildeo de μνήμη estar perpassada de φαντασία
O que com isto Aristoacuteteles parece sugerir eacute que a μνήμη eacute uma modalidade especiacutefica
de φαντασία E o que eacute especiacutefico da modalidade de φαντασία que eacute a μνήμη eacute co-apresentar
o tempo Dito por outras palavras o que caracteriza a ldquofantasia mneacutesicardquo eacute o facto de fazer
entrar em cena o factor da sucessatildeo
Na verdade eacute o factor da sucessatildeo o que possibilita a ldquomelodiardquo ndash ou seja eacute a co-apre-
sentaccedilatildeo do tempo (ie da sucessatildeo) o que abre o acircngulo para laacute do presente absoluto esteacutesi-
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co O que vimos eacute que um ponto de vista meramente esteacutesico seria atemporal Acontece que
embora a μνήμη implique a posse da αἴσθησις a μνήμη natildeo eacute uma instacircncia atemporal A in-
troduccedilatildeo do factor ldquotempordquo colabora na modificaccedilatildeo qualitativa do acesso que se tem ao per-
cebido
Aristoacuteteles reforccedila amiuacutede a condiccedilatildeo temporal da memoacuteria em De memoria e remi-
nistencia diz-nos que a memoacuteria soacute eacute possiacutevel quando haacute lapso de tempo (449b24) e que a
memoacuteria acontece quando a um impulso relativo ao facto se junta um outro relativo ao pre-
sente do seu acontecimento (452b24) ndash embora faccedila notar que esse segundo dado pode ser de-
terminado (quando haacute uma recuperaccedilatildeo da cronologia) ou natildeo (nas situaccedilotildees em que se natildeo
estaacute seguro do quando ou em que o quando eacute indeterminado) (452b30)
Natildeo estamos aqui em condiccedilotildees de perseguir estas formulaccedilotildees em toda a sua exten-
satildeo Aquilo que nos cabe eacute ver melhor o modo como a μνήμη enquanto instacircncia temporal
muda o enquadramento do que aparece
Se se considerar a possibilidade de uma mera acumulaccedilatildeo de αἰσθήσεις o que daiacute se
obteria seria o facto de os conteuacutedos percebidos tidos terem sido mas jaacute natildeo serem Na verda-
de a mera acumulaccedilatildeo de percepccedilotildees tidas seria uma acumulaccedilatildeo de percepccedilotildees passadas
totalmente encerradas no presente do seu acontecimento Seriam de facto percepccedilotildees sem a
nota de terem sido
Ora a transformaccedilatildeo operada pela μνήμη eacute entatildeo uma transformaccedilatildeo de alargamen-
to a μνήμη tanto conserva a percepccedilatildeo tida (como presente no passado) como a transporta
ateacute ao presente (como passado do presente) A sucessatildeo eacute o factor que faz com que cada per-
cepccedilatildeo esteja de algum modo ampliada no sentido em que estaacute preenchida de todas as per-
cepccedilotildees tidas percepccedilotildees com que eacute posta numa relaccedilatildeo de continuidade
Se notarmos que a percepccedilatildeo estaacute obrigada a um menor grau de exigecircncia quanto
maior o patrimoacutenio perceptivo retido isso indica-nos que o que estaacute em jogo natildeo eacute apenas
uma acumulaccedilatildeo (se por isso se entender um amontoar que varie no volume mas que natildeo leve
em linha de conta isso que acumula) Vendo bem a reincidecircncia provoca uma mudanccedila de
natureza nos dados ndash a tal ponto que isso tem efeito nas incidecircncias futuras precisamente a
diminuiccedilatildeo de exigecircncia de acuidade da percepccedilatildeo Em suma natildeo haacute apenas acumulaccedilatildeo de
percepccedilotildees haacute uma transformaccedilatildeo das percepccedilotildees ndash e uma transformaccedilatildeo que deixa seque-
las que tem consequecircncias etc
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A ser assim o que Aristoacuteteles sugere eacute que a co-apresentaccedilatildeo do tempo faz que os
conteuacutedos perceptivos sejam modificados na μνήμη por estarem postos em ordenaccedilatildeo tempo-
ral por estarem em relaccedilatildeo com o percebido que antecede a percepccedilatildeo actual etc
Mas mais ainda na verdade eacute a μνήμη que cria as condiccedilotildees para haver algo como
uma siacutentese de recogniccedilatildeo
Se uma qualquer percepccedilatildeo estaacute posta em relaccedilatildeo com todas as percepccedilotildees passadas
entatildeo dessa relaccedilatildeo ou eacute gerado um reconhecimento de identidade ou eacute gerado um reconheci-
mento de natildeo-identidade ndash reconhecimento do qual adveacutem o caraacutecter de novidade ou de rein-
cidecircncia da percepccedilatildeo actual Quer dizer soacute haveraacute ausecircncia de novidade nos conteuacutedos da
percepccedilatildeo actual porque haacute influecircncia da memoacuteria sobre os conteuacutedos da percepccedilatildeo A falta
de novidade assinala que o que eacute actualmente percebido natildeo adiciona nada ao jaacute anteriormen-
te percebido
Se por um lado isso confirma e reforccedila os dados da memoacuteria por outro lado isso pa-
rece exigir menos da percepccedilatildeo actual parece exigir apenas confirmaccedilatildeo reforccedilo ratificaccedilatildeo
etc Digamos assim quanto maior o patrimoacutenio da memoacuteria menor o grau de exigecircncia a que
a percepccedilatildeo estaacute obrigada Este eacute aliaacutes um factor decisivo na consideraccedilatildeo do fenoacutemeno da
percepccedilatildeo desatenta ndash da percepccedilatildeo que no acesso que gera deixa escapar parcelas maiores
ou menores disso a que acede
Na verdade o que nesta anaacutelise estamos desde jaacute a despistar satildeo as condiccedilotildees para
uma matriz de acesso radicalmente distinta da possibilidade de acesso que corresponde agrave
αἴσθησις
Acontece que todos estes desenvolvimentos satildeo ainda insuficientes para determinar in-
tegralmente as caracteriacutesticas da μνήμη tal como se apresentam na escala aristoteacutelica
sect8
O confinamento em que incorre a μνήμη a μνήμη natildeo potildee nada que abra perspectiva
sobre o futuro
De facto para perceber o terminus ad quem da transformaccedilatildeo que a μνήμη introduz
importa natildeo apenas considerar o limite inferior do ponto de vista mneacutesico (em que estaacute em
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causa o excesso sobre a αἴσθησις) mas importa tambeacutem considerar o limite superior (em que
estaacute em causa a limitaccedilatildeo ou o confinamento em que incorre a μνήμη ndash no caso em relaccedilatildeo agrave
terceira etapa agrave ἐμπειρία)
O que desde logo fica claro na anaacutelise que temos em curso eacute que a sucessatildeo mneacutesica eacute
aquela que diz respeito agrave multiplicidade de momentos compreendida entre o passado mais re-
moto (ie a primeira αἴσθησις tida) e o presente (ie a αἴσθησις mais recente) A μνήμη limi-
ta-se a ser um ponto de vista que para aleacutem de estar a percepcionar o que actualmente per-
cepciona soacute tem o ter havido percepccedilatildeo do que percepcionou
Isto quer dizer que um ponto de vista constituiacutedo por αἰσθήσεις presentes acrescidas
da memoacuteria de αἰσθήσεις passadas ndash e que natildeo tem nenhuma outra forma de notiacutecia senatildeo es-
sa ndash a) por um lado acrescenta realidade agravequela de que de cada vez tem percepccedilatildeo mas b) por
outro resulta em que a realidade que acrescenta eacute toda ela passada
O acreacutescimo da μνήμη natildeo eacute senatildeo retrospectivo Dito de outro modo a μνήμη natildeo
potildee nada que abra perspectiva sobre o futuro
O ponto que interessa sublinhar nesta secccedilatildeo eacute justamente este
Eacute claro que a isso de que tem percepccedilatildeo no presente se acrescenta toda a realidade de
que teve percepccedilatildeo no passado ndash mas a percepccedilatildeo que foi tida no passado junta-se agrave percep-
ccedilatildeo presente justamente como realidade passada Dito de outro modo a percepccedilatildeo tida no
passado apresenta-se como realidade distinta da realidade presente Daqui resulta que a cada
presente a uacutenica realidade que haacute para um ponto de vista assim constituiacutedo eacute aquela de que
tem percepccedilatildeo Isto eacute no presente aquilo que de cada vez tem percepccedilatildeo esgota o ldquomundordquo
Tomemos por exemplo a sala de trabalho ndash sala em que jaacute estivemos e de que tive-
mos percepccedilatildeo anteriormente percepccedilatildeo passada agrave qual se acrescenta a realidade de que nes-
te instante temos percepccedilatildeo
Na verdade por via da μνήμη a sala natildeo se limita a ser (como seria no caso de um
ponto de vista meramente esteacutesico) um recanto perceptivo mas eacute sempre jaacute composta da acu-
mulaccedilatildeo de todas as percepccedilotildees tidas percepccedilotildees agraves quais se junta (e que tecircm como culminar)
a percepccedilatildeo actual Neste sentido a sala ndash tal como eacute vista por um ponto de vista meramente
mneacutesico ndash adicionaria agrave percepccedilatildeo actual toda a colecccedilatildeo de percepccedilotildees passadas (com um
cardinal de multiplicaccedilatildeo maior ou menor consoante tenha tido mais ou menos percepccedilotildees)
distribuiacutedas ao longo do tempo
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Poreacutem um ponto de vista meramente mneacutesico limitar-se-ia a ter as percepccedilotildees passa-
das da sala estritamente como passado como ter estado laacute Por outras palavras um ponto de
vista mneacutesico estaacute fechado naquilo a que se poderia chamar a histoacuteria perceptiva ndash e natildeo tem
condiccedilotildees para dar um soacute passo que vaacute para laacute dela
Ora o que na verdade caracteriza a histoacuteria perceptiva eacute um fluxo de aparecimento e
de desaparecimento O que um ponto de vista mneacutesico teria seria a mera acumulaccedilatildeo de todas
as fulguraccedilotildees perceptivas alinhadas em sucessatildeo teria um aspecto da sala que desaparece
dando o lugar a um outro aspecto da sala que por sua vez desaparece dando o lugar a um cor-
redor que por sua vez desaparece dando lugar a um quarto ndash e assim sucessivamente
A histoacuteria perceptiva tem a forma de qualquer coisa como um tuacutenel de travessia per-
ceptiva onde se vatildeo sucedendo diversos aparecimentos
A capacidade da μνήμη esgota-se na capacidade de reactivar a sucessatildeo ou seja na
capacidade de fazer reaparecer A que eacute diferente de B que eacute diferente de C que eacute diferente de
D etc numa sucessatildeo dos seus acontecimentos Eacute que a realidade que pode ser reconhecida
por um ponto de vista mneacutesico tem justamente esta estrutura a da mera transiccedilatildeo de ter havi-
do A para ter havido B (e desapareceu A) para ter havido C (e tambeacutem desapareceu B) ndash e as-
sim sucessivamente Em suma para um ponto de vista mneacutesico haacute um ldquomundordquo de morfolo-
gia variaacutevel construiacutedo de tal modo que a uacutenica forma de articulaccedilatildeo entre os campos de re-
alidade sucessivamente percepcionados eacute precisamente a proacutepria sucessatildeo
Ora isto permite perceber um ponto decisivo que a partir do que foi visto ainda natildeo
fica a descoberto em todo o seu alcance Este ponto ficaraacute mais claramente desenhado quando
se tiver fixado aquilo que eacute proacuteprio da ἐμπειρία mas de todo o modo jaacute se pode esboccedilar em
especial em relaccedilatildeo ao que foi sendo dito nas secccedilotildees anteriores O ponto eacute o seguinte muta-
tis mutandis vale a respeito do ponto de vista mneacutesico o que antes se disse a respeito do aces-
so a um ponto de vista esteacutesico
Na secccedilatildeo anterior vimos que a diferenciaccedilatildeo entre um ponto de vista puramente esteacute-
sico e um ponto de vista mneacutesico eacute tal que ainda que com capacidades sensoriais absoluta-
mente idecircnticas o que aparece num e no outro satildeo coisas completamente diferentes Como
entatildeo foi dito se tivessemos um ponto de vista puramente esteacutesico da sala em que nos encon-
tramos na verdade natildeo veriacuteamos nada do que vecirc um ponto de vista assistido por μνήμη E in-
versamente um ponto de vista assistido por μνήμη natildeo consegue fazer nenhuma ideia adequa-
da do que se passa (ie do que aparece) onde natildeo haacute mais do que αἴσθησις
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Ora algo de equivalente se verifica no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre um ponto de
vista mneacutesico e um ponto de vista empiacuterico
Aplica-se agrave tentativa de reconstituiccedilatildeo de um ponto de vista puramente mneacutesico a par-
tir do ponto de vista empiacuterico a impossibilidade de vencer as diferenccedilas irreconciliaacuteveis entre
estaacutedios natildeo se consegue acompanhar adequadamente um ponto de vista meramente mneacutesico
a partir de um ponto de vista empiacuterico
Ora isso diz algo sobre o ldquolugarrdquo da escala em que nos encontramos Eacute que se natildeo es-
tamos a ver mal tambeacutem se daacute o caso de a partir do nosso ponto de vista ser impossiacutevel
acompanhar um ponto de vista meramente mneacutesico
Em primeiro lugar verifica-se que a perspectiva em que estamos quando falamos de
um ponto de vista mneacutesico excede ndash excede muito significativamente ndash o que eacute proacuteprio de um
ponto de vista mneacutesico Assim e nos termos que vimos o ponto de vista em que estamos tem
sobre um ponto de vista puramente mneacutesico um excesso que eacute impossiacutevel de anular e que nos
separa inexoravelmente de um ponto de vista mneacutesico E isto eacute claro se tivermos em conta
antes do mais que quando falamos de um ponto de vista puramente mneacutesico fazemo-lo a
partir de uma perspectiva que estaacute muito longe de natildeo ter qualquer ideia do futuro
De facto o nosso ponto de vista soacute consegue representar como um experimentum algo
como um ponto de vista totalmente encerrado em relaccedilatildeo ao futuro Um ponto de vista como
o nosso natildeo consegue reduzir-se ou reconstituir efectivamente um ponto de vista que ldquovejardquo
assim
Devemos notar que o facto de a μνήμη se resumir a conteuacutedos perceptivos tidos (que
tecircm o seu limite maacuteximo na percepccedilatildeo actual) impede qualquer prospectiva sobre o que viraacute
a ser deles no momento seguinte
Nesta medida a uacuteltima percepccedilatildeo de um qualquer conteuacutedo seria tambeacutem a uacuteltima no-
tiacutecia dele O presente seria a extremidade da seacuterie do tempo e a cada instante se diluiria em
passado abrindo um nexo de continuidade com o que foi mas natildeo com o que viraacute a ser Natildeo
seria possiacutevel portanto antever o que quer que fosse que tivesse a ver com o acontecimento
futuro de um dado conteuacutedo natildeo seria possiacutevel antecipar por exemplo se a sala que temos
perante noacutes persistiria no futuro o que viria a ser dela no momento imediatamente a seguir
ao instante actual etc
Em suma o ponto de vista mneacutesico nunca poderia constituir uma expectativa de futu-
ro
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Ora o facto eacute que noacutes natildeo vivemos na incerteza de saber se a sala que temos perante
noacutes iraacute ou natildeo desaparecer no momento seguinte pelo contraacuterio o suacutebito desaparecimento da
sala provocaria estupefacccedilatildeo
Isto parece indicar que a partir do ponto de vista a que acedemos a ela a histoacuteria
perceptiva eacute permeada por outros factores de natureza distinta dos factores meramente per-
ceptivos ndash ie parece indicar que operam no ponto de vista em que nos achamos factores de
projecccedilatildeo
Na verdade estes factores estavam jaacute muito subtilmente a operar se considerarmos de
perto a noccedilatildeo de siacutentese de recogniccedilatildeo que se aplicou atraacutes
O que estaacute em jogo na siacutentese de recogniccedilatildeo eacute uma modalidade de reincidecircncia ndash o
que nos potildee na pista de que o que estaacute em causa seraacute ou uma intermitente ou uma contiacutenua
incidecircncia do ldquomesmordquo que de cada vez de novo eacute captado
A nota do ldquomesmordquo (o factor de identidade ou de semelhanccedila) que a cada vez de novo
incide natildeo eacute alheia agrave μνήμη tal como nos eacute possiacutevel conceber a μνήμη no ponto de vista em
que nos termos Na verdade sem a fixaccedilatildeo de identidades diacroacutenicas (factor que excede em
absoluto o acircmbito da μνήμη e assim tambeacutem o acircmbito da αἴσθησις) aquilo que de cada vez
apareceu agrave percepccedilatildeo e que eacute retido pela μνήμη consistiria de cada vez em diferenccedilas irre-
conciliaacuteveis de umas percepccedilotildees em relaccedilatildeo a outras
Ou seja o caso de serem diferentes percepccedilotildees do ldquomesmordquo natildeo se deduz das percep-
ccedilotildees nem da memoacuteria natildeo seria possiacutevel dizer que foi o ldquomesmordquo que apareceu de cada vez
jaacute que natildeo haveria uma identificaccedilatildeo que atravessasse todas as percepccedilotildees
Nesse caso as percepccedilotildees ndash e mesmo duas percepccedilotildees iguais ndash seriam incomparaacuteveis
umas em relaccedilatildeo agraves outras por falta da fixaccedilatildeo de algo que servisse a aproximaccedilatildeo ou a com-
paraccedilatildeo entre elas
Tambeacutem no que diz respeito agrave conformaccedilatildeo global do que aparece se verifica algo
correspondente
Se considerarmos a forma como lhe acedemos o campo perceptivo em que de cada
vez nos encontramos aparece-nos como parte de um complexo de realidades muito mais vas-
to de realidades que lhe satildeo simultacircneas Ora o acreacutescimo da retenccedilatildeo eacute insuficiente para
nos dar a ver o ldquomundordquo tal como o temos habitualmente
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O ldquomundordquo tal como o temos natildeo estaacute limitado agraves percepccedilotildees que tivemos e temos
dele temos notiacutecia de um ldquomundordquo ndash temporal e espacialmente ndash muito mais vasto que as
percepccedilotildees que tivemos e que temos dele A nossa notiacutecia do mundo estaacute atravessada por um
excesso em relaccedilatildeo quer agrave nossa percepccedilatildeo quer agrave nossa histoacuteria perceptiva dele a ldquogeogra-
fiardquo do ldquomundordquo natildeo se limita agrave quantidade de ruas por onde passaacutemos nem a populaccedilatildeo do
ldquomundordquo estaacute limitada ao nuacutemero de pessoas com que me deparaacutemos no curso desta travessia
Em suma o ldquomundordquo correspondente a um ponto de vista mneacutesico eacute muito diferente
do ldquomundordquo que nos aparece
E tambeacutem aqui devemos recuperar uma estrutura que jaacute vimos anteriormente natildeo eacute
soacute o ponto de vista puramente mneacutesico que natildeo faz a mais remota ideia daquele em que nos
encontramos O inverso eacute tambeacutem verdade Quer dizer a ldquocegueirardquo natildeo ocorre apenas do
ldquomenosrdquo para o ldquomaisrdquo
Sucede igualmente que o ponto de vista em que estamos natildeo consegue desfazer o ex-
cesso sobre o ponto de vista puramente mneacutesico natildeo tem condiccedilotildees para reconstituir ade-
quadamente o que possa ser a oacuteptica desse ldquomenosrdquo
Dito de outro modo ainda que o ponto de vista mneacutesico represente um extraordinaacuterio
desconfinamento em relaccedilatildeo ao ponto de vista esteacutesico ainda que se aproxime muito mais do
que o ponto de vista esteacutesico do ponto de vista em que nos encontramos ndash de todo o modo
essa aproximaccedilatildeo eacute apenas relativa e estaacute ainda muito aqueacutem da perspectiva que nos corres-
ponde
Eacute no sentido de ganhar a pista a essa forma de desconfinamento que corresponde ao
tracircnsito da μνήμη para a ἐμπειρία ndash e em simultacircneo responder agrave pergunta onde se situa nela
o nosso ldquoolharrdquo o acesso em que nos achamos ou de que dispomos ndash que interessa analisar
de seguida a terceira etapa da escala de possibilidade de acesso desenhada por Aristoacuteteles
Eacute portanto a ἐμπειρία e os diversos elementos que a constituem que estamos pela pri-
meira vez e tendo por auxiliares as ldquochavesrdquo que no curso desta anaacutelise fomos adquirido em
condiccedilotildees de focar detidamente
58
sect9
Abordagem agrave ἐμπειρία a partir da chave ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος
μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν ἀποτελοῦσινrdquo (Metafiacutesica 980b28) ndash O contraste entre a pluralida-
de mneacutesica e a unidade empiacuterica
Perceber o que estaacute em causa naquilo a que Aristoacuteteles chama ἐμπειρία passa por to-
mar como ponto de partida e por foco da anaacutelise o enunciado de Metafiacutesica I (980b28 e ss)
ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν ἀποτελοῦσινrdquo Este enun-
ciado ndash que poderia ser vertido para a foacutermula ldquona medida em que eacute de vaacuterias memoacuterias da
mesma coisa que uma experiecircncia eacute produzidardquo ndash concentra os aspectos decisivos
Poreacutem e em simultacircneo este enunciado pode induzir em erro e criar pistas falsas em
especial se natildeo se atender com suficiente cuidado agrave especificidade daquilo para que aponta
Esta passagem sublinha antes de mais que a multiplicidade de memoacuterias constitui
uma condiccedilatildeo da passagem agrave ἐμπειρία Ora isto significa algo que tem sido visto ao longo
das secccedilotildees anteriores a saber que cada etapa superior soacute eacute possiacutevel sobre o fundo ou sobre
a condiccedilatildeo de possibilidade que constituem para ela as etapas anteriores
No caso quer dizer que a ἐμπειρία supotildee algo como uma travessia perceptiva que re-
sulta numa acumulaccedilatildeo de memoacuterias (ie que a ἐμπειρία natildeo eacute possiacutevel sem a travessia per-
ceptiva e sem a acumulaccedilatildeo mneacutesica que haacute algo como um miacutenimo de travessia perceptiva e
de acumulaccedilatildeo mneacutesica sem o qual a ἐμπειρία simplesmente natildeo tem condiccedilotildees para ocorrer
etc)
Poreacutem em segundo lugar Aristoacuteteles sublinha que a multiplicidade de μνῆμαι eacute uma
multiplicidade de memoacuterias τοῦ αὐτοῦ πράγματος Por outras palavras a ἐμπειρία tem como
condiccedilatildeo sine qua non qualquer coisa como uma repeticcedilatildeo20
20
Aquilo a que se deve dar atenccedilatildeo na nota da repeticcedilatildeo (na noccedilatildeo de que a multiplicidade de memoacute-
rias eacute da ldquomesmardquo ldquocoisardquo) estaacute jaacute de certo modo posto no prefixo re- Este prefixo expressa algo que
acontece outra vez uma vez mais que acontece novamente que torna a acontecer etc Isto eacute indica
que o que acontece (o que acontece outra vez uma vez mais novamente etc) estaacute posto em relaccedilatildeo
com algo cuja existecircncia antecede ou eacute preacutevia ao acontecimento actual com algo que estaacute para traacutes
Na verdade eacute isso que estaacute para traacutes que acontece outra vez uma vez mais novamente etc ndash de tal
modo que esta outra vez estaacute em referecircncia a uma primeira eacute mais uma que se adiciona agrave primeira
renova a primeira etc
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Isto quer dizer o seguinte se cada αἴσθησις tivesse um teor diferente ndash de tal modo
que nada tivesse que ver com o teor das outras ndash e se natildeo houvesse qualquer afinidade entre
as μνῆμαι (ie se as memoacuterias fossem todas desencontradas se natildeo houvesse reincidecircncia
do ldquomesmordquo) entatildeo ficaria prejudicada a possibilidade de se produzir ἐμπειρία
A isto acresce um outro terceiro aspecto o contraste entre a pluralidade das μνῆμαι e
a unidade da ἐμπειρία Agrave pluralidade das μνῆμαι corresponde na ἐμπειρία algo de uno eacute pa-
ra isso que Aristoacuteteles aponta quando fala de μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν Parece evidente que o
que estaacute em causa eacute algo como uma condensaccedilatildeo ou contracccedilatildeo numa uacutenica perspectiva em-
piacuterica que cobre uma multiplicidade de ocorrecircncias ou instacircncias mneacutesicas
Poreacutem esta descriccedilatildeo eacute demasiado vaga e apaga a peculiaridade da modificaccedilatildeo em
causa Ou seja natildeo permite perceber bem que eacute que eacute proacuteprio da μνήμη e o que eacute que eacute proacute-
prio da ἐμπειρία Uma batida pelo corpus aristotelicum mostraraacute mais claramente de que mo-
do isto natildeo deixa perceber o que eacute proacuteprio da μνήμη e o que eacute que eacute proacuteprio da ἐμπειρία
Em Anal Post 99b38 Aristoacuteteles faz passar a μυήμη por uma persistecircncia da αϊσθη-
σις Isto indica que quando o acto da percepccedilatildeo finda algo ainda eacute retido dele Assim a μυή-
μη natildeo se deteacutem ou natildeo se ateacutem exclusivamente agrave αϊσθησις Neste ldquofazer perdurarrdquo ou na re-
tenccedilatildeo estaacute como vimos na secccedilatildeo anterior a marca da distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave mera αϊσθησις
Acontece que em 100a1 e eacute isso que nos interessa no seguimento considerar Aristoacute-
teles nota que a eventual repeticcedilatildeo da retenccedilatildeo gera notiacutecias de coerecircncia na persistecircncia
Ora poderia pensar-se a partir daqui que as percepccedilotildees gerariam por si ou a partir
de si mesmas solidariedades e que na reiteraccedilatildeo perceptiva por reincidecircncia ou repeticcedilatildeo
(ie na μνήμη) estaria a base do isolamento dos ldquomesmosrdquo conteuacutedos
Um ldquoobjectordquo seria entatildeo nesta perspectiva algo como um miacutenimo denominador co-
mum entre percepccedilotildees que acumulando-se e sobrepondo-se deixariam ver coincidecircncias nos
conteuacutedos percebidos e iniciariam um processo de isolamento de caracteres que por verifi-
caccedilatildeo ou confirmaccedilatildeo viriam a ser de cada vez caracteres do ldquomesmordquo
Acontece que uma tal operaccedilatildeo parece exceder em muito a natureza das percepccedilotildees
Se se compreender como vimos atraacutes a percepccedilatildeo como um fluxo ndash um fluxo no qual
haveraacute uma constante renovaccedilatildeo do que a cada momento constitui o quadro perceptivo ndash en-
tatildeo tudo apareceria a cada momento sob aspectos irreconciliaacuteveis entre si (ie cada ldquocoisardquo
apareceria de cada vez em diferentes pontos espaciais do quadro perceptivo seria vista a par-
60
tir de acircngulos que revelariam facetas originais dela seria posta em relaccedilatildeo com a totalidade de
um quadro que teria tambeacutem a cada vez uma composiccedilatildeo inteiramente nova e poria os conteuacute-
dos em relaccedilotildees novas entre si etc)
A retenccedilatildeo natildeo poderia servir de muito a retenccedilatildeo ou acumulaccedilatildeo natildeo adicionaria agrave
αϊσθησις senatildeo uma variaccedilatildeo de quantidade natildeo modificaria a forma apenas abrangeria mais
distribuindo essa diferenciaccedilatildeo numeacuterica por assim dizer ao longo do tempo ndash ie assente jaacute
numa noccedilatildeo miacutenima de sucessatildeo Em suma seria a retenccedilatildeo apenas a acumulaccedilatildeo de percep-
ccedilotildees radicalmente diferentes entre si de percepccedilotildees de cada vez originais singulares e novas
Isto leva-nos ainda a um segundo ponto que pode ser visto com toda a nitidez lem-
brando o seguinte num mundo ldquonominalistardquo pura e simplesmente natildeo haveria qualquer ἐμ-
πειρία
A ἐμπειρία tem que ver com comunidade entre percepccedilotildees ndash com comunidade entre as
diferentes instacircncias de μονὴ τοῦ αἰσθήματος A experiecircncia parece corresponder a uma opera-
ccedilatildeo de identificaccedilatildeo de homogeneidade entre os diversos conteuacutedos perceptivos A ἐμπειρία
passa em suma por uma multiplicidade de instacircncias do ldquomesmordquo nas memoacuterias que se tecircm
nela estaacute em causa o acto de pocircr identidade onde havia diversidade perceptiva etc
Com efeito vendo bem jaacute pode haver uma ldquocondensaccedilatildeordquo (contracccedilatildeo de uma multi-
plicidade de memoacuterias em algo de uno) no proacuteprio plano da memoacuteria
Na verdade eacute justamente isso que tende a acontecer ndash eacute essa a forma ldquonaturalrdquo de me-
moacuteria em noacutes Se considerarmos as memoacuterias que temos desta sala ou na nossa infacircncia por
exemplo damo-nos conta que natildeo tecircm a forma correspondente agrave sua sucessatildeo real (o primei-
ro momento de memoacuteria da sala o segundo momento de memoacuteria da sala o terceiro momen-
to de memoacuteria da sala etc) Acontece pelo contraacuterio que a nossa relaccedilatildeo com essa multipli-
cidade de memoacuterias se faz a partir de um nuacutecleo uacutenico (de uma unidade) que se caracteriza
pela propriedade de se multiplicar ou se resolver a partir de si mesma numa multiplicidade
de instacircncias que partem dela ndash e que se caracterizam precisamente pelo facto de a unidade
remeter para mais do que aquilo que de cada vez jaacute consigo seguir
O que estamos a tentar sublinhar eacute o facto de a identidade do ldquomesmordquo parecer ga-
rantida agrave revelia da retenccedilatildeo da diversidade perceptiva que constituiria a μυήμη estamos a
chamar atenccedilatildeo para o facto de a retenccedilatildeo da diversidade perceptiva natildeo resultar em diversi-
dade absoluta
61
Se fosse uma operaccedilatildeo meramente mneacutesica entatildeo agrave retenccedilatildeo da variaccedilatildeo do quadro
perceptivo sucederia a variedade absoluta do percebido A memoacuteria corresponderia entatildeo agrave
retenccedilatildeo da diversidade Mas natildeo eacute isso que se passa
O que se passa eacute que em simultacircneo com a diversidade perceptiva (e com a conse-
quente retenccedilatildeo da diversidade perceptiva) estaacute constituiacutedo algo que inibe a diversidade ab-
soluta e que pelo contraacuterio fixa identidade
A diversidade perceptiva eacute na verdade tal como estamos constituiacutedos diversidade do
ldquomesmordquo (ie deixa ver algo de diferente de cada vez mas de cada vez eacute sempre jaacute do
ldquomesmordquo) Ou seja a fixaccedilatildeo da memoacuteria do ldquomesmordquo (a memoacuteria da sala por exemplo) jaacute
implica um ldquomesmordquo constituiacutedo enquanto tal (ou seja enquanto identidade)
O que isto quer dizer eacute que memoacuteria e experiecircncia colaboram o ldquomesmordquo e a diversi-
dade das ocorrecircncias do ldquomesmordquo concorrem constituindo-se simultaneamente e em depen-
decircncia muacutetua as diversas ocorrecircncias satildeo do ldquomesmordquo e eacute o fundamento de um ldquomesmordquo
que propicia ou resulta na diversidade de ocorrecircncias (na constituiccedilatildeo de diversos instantes
de uma identidade)21
21
Esta eacute uma chave possiacutevel para compreender o ponto do corpus aristotelicum em que eacute dito que um
percebido individual logo que eacute tido eacute um primeiro instante da presenccedila de um universal (Anal Post
100a15) Natildeo interessa entrar aqui muito a fundo nesta questatildeo mas interessa apenas salientar o se-
guinte Como vimos se encerrada no seu proacuteprio territoacuterio toda a αἴσθησις seria radicalmente original
individual etc No entanto como vimos tambeacutem natildeo eacute assim que a vemos Quer dizer por um lado
ela eacute em si mesma radicalmente individual Poreacutem por outro lado o nosso ponto de vista natildeo a vecirc na
sua radical individualidade Na verdade tal como o temos a partir do nosso ponto de vista toda a per-
cepccedilatildeo e todo o campo perceptivo satildeo integralmente compostos de um conjunto de ldquomesmosrdquo em rein-
cidecircncia ndash isso que neste passo tem o caraacutecter de universal (de identidade abstraiacuteda de cada uma das
suas ocorrecircncias) Ora o que isto quer dizer eacute que haacute uma imediata contemporaneidade de αἴσθησις e
ἐμπειρία A tese de Aristoacuteteles poderia admitir uma leitura temporal de tal modo que a αἴσθησις teria
precedecircncia ou seria um acontecimento anterior do qual a ἐμπειρία seria um desenvolvimento poste-
rior e sofisticado Mas natildeo eacute isso que se passa num ponto de vista constituiacutedo no plano empiacuterico Um
ponto de vista constituiacutedo no plano empiacuterico natildeo acede a uma qualquer αἴσθησις sem instantaneamente
introduzir um universal Assim se fizermos uma sondagem pela sala de trabalho encontramos vaacuterios
tipos de identidade formados deste modo (livros estantes canetas etc) ndash tanto eacute assim que natildeo nos eacute
possiacutevel abstrair o campo visual das identidades que laacute encontramos e que constituem o conteuacutedo do
aparecimento Isto eacute natildeo se tem notiacutecia da percepccedilatildeo enquanto mero exerciacutecio mas sempre jaacute como
exerciacutecio transitivo de trazer algo ndash e trazer algo com caraacutecter de universal ndash agrave percepccedilatildeo Eacute isso que
quer dizer no sentido em que aqui compreendemos o fenoacutemeno o acto da αϊσθησις envolver o univer-
sal fazemos uma sondagem pelo campo visual e para retomar o exemplo de Aristoacuteteles vemos Cal-
lias Mas se em qualquer caso natildeo se reconhecer esse homem ainda assim vemos uma outra identida-
62
Neste passo eacute importante vincar vaacuterios aspectos
A unidade que acabamos de referir constitui-se a partir de uma travessia perceptiva ndash
como depoacutesito e resultado dela Mas formou-se justamente algo que jaacute natildeo eacute a travessia per-
ceptiva (ou a simples transcriccedilatildeo mneacutesica da travessia perceptiva) formou-se uma perspecti-
va condensada ndash uma unidade
Essa unidade tomou o lugar por assim dizer da sucessatildeo mneacutesica de que resultou ndash de
tal modo que a relaccedilotildees se invertem na sua origem esteve a proacutepria sucessatildeo perceptiva (sc a
acumulaccedilatildeo mneacutesica) que deu lugar agrave unidade em causa mas uma vez formada a unidade eacute
a unidade que toma precedecircncia (no caso eacute a unidade que leva agraves diferentes instacircncias de
memoacuteria que potildee em contacto com elas que tem um caraacutecter como que ldquomultiplicativordquo e
potildee a partir de si as muacuteltiplas memoacuterias)
Em suma parece haver uma uacutenica ldquomemoacuteriardquo (geral ou agregadora) da sala que even-
tualmente se desdobra em muacuteltiplas ocorrecircncias perceptivas (e eventualmente em muacuteltiplas
ocorrecircncias mneacutesicas) a sala quando anoitece a sala no dia x agraves tantas horas a sala no dia em
que laacute se deu o acontecimento tal etc
Assim a recuperaccedilatildeo de cada uma das incidecircncias perceptivas particulares da sala de
uma dada travessia perceptiva natildeo seria o mero resultado de se ldquoreverrdquo a incidecircncia percepti-
va em causa sem mais mas estaria jaacute atravessada por uma ldquoexperiecircnciardquo da sala (por uma
memoacuteria geral da sala se assim se pode dizer uma memoacuteria contraiacuteda ou constituiacuteda a partir
de todas as memoacuterias) constituiacuteda a partir da reincidecircncia perceptiva e da qual a incidecircncia
perceptiva recuperada constitui um desdobramento especiacutefico
Isto eacute aliaacutes extensiacutevel agrave percepccedilatildeo
Ainda que todas as percepccedilotildees natildeo actuais estejam jaacute perdidas (sejam precisamente ti-
das como percepccedilotildees natildeo-actuais) eou estejam a caminho da perda total a perda perceptiva
natildeo eacute vivida como perda Parece ser possiacutevel recuperar (ou presentificar) uma dada percep-
ccedilatildeo Acontece que essa recuperaccedilatildeo (essa presentificaccedilatildeo da percepccedilatildeo tida) parece ter como
condiccedilatildeo um quadro ou um nuacutecleo geral do qual a percepccedilatildeo eacute secundaacuteria ou derivada
A recuperaccedilatildeo de uma percepccedilatildeo particular implicaria em primeiro lugar a memoacuteria
unificada disso e soacute a partir da base dessa memoacuteria unificada eacute que a percepccedilatildeo particular
de universal (um homem) ou se estiver tatildeo longe que natildeo se consiga identificar sequer uma forma hu-
mana ainda assim vemos identidades universais uma linha uma mancha etc
63
poderia ter lugar ndash precisamente como particularidade ou especificidade da memoacuteria unifica-
da que a possibilita que por sua vez eacute jaacute especificaccedilatildeo de uma ἐμπειρία (de uma ldquomemoacuteria
geralrdquo)
Assim a percepccedilatildeo particular que num dado momento apareceu na sua integridade
maacutexima natildeo eacute se se tentar reaver a sua integridade (se se tentar rever a percepccedilatildeo ela mes-
ma sem mais) recuperada senatildeo como aquilo que transporta os detalhes (as particularida-
des as especificidades etc) de uma memoacuteria geral (ie de algo constitutivamente natildeo per-
ceptivo)
Com tudo isto fica claro que transformaccedilatildeo estaacute em causa na transposiccedilatildeo entre o pa-
tamar da memoacuteria e o patamar da experiecircncia a origem de uma experiecircncia parece estabele-
cer-se na correspondecircncia entre a pluralidade de retenccedilotildees e uma siacutentese do ldquomesmordquo
Ora neste ponto natildeo devemos perder de vista o seguinte
Na medida em que a experiecircncia natildeo eacute um acontecimento singular algo que esteja
possibilitado por uma uacutenica ocorrecircncia (mas eacute pelo contraacuterio algo que tem como condiccedilatildeo
muacuteltiplas ocorrecircncias e na medida em que dessas ocorrecircncias que satildeo entre si diacutespares ou
ateacute eventualmente contraditoacuterias se forma um conteuacutedo agregador) entatildeo natildeo podemos dei-
xar de notar que o conteuacutedo agregador que assim se obteacutem eacute produzido por abstracccedilatildeo das di-
ferenccedilas Quer dizer a sala eacute abstraiacuteda do anoitecer disso que era no dia x agraves tantas horas do
que era quando se deu o acontecimento tal etc
Podemos dizecirc-lo assim a memoacuteria geral da sala que de cada vez tenho assenta prin-
cipalmente em traccedilos gerais
Isto parece contrariar o modo como tendemos a compreender habitualmente a expe-
riecircncia a experiecircncia natildeo parece ser na acepccedilatildeo que temos aqui em jogo a progressiva espe-
cificaccedilatildeo de ldquoobjectordquo tido mas o processo da progressiva generalizaccedilatildeo dele ndash generaliza-
ccedilatildeo que tem por resultado a contracccedilatildeo do ldquoobjectordquo em caracteres nucleares
Assim o que interessa desde jaacute estabelecer eacute que a experiecircncia parece atirar os casos
particulares para uma posiccedilatildeo perifeacuterica assim reforccedilando os caracteres constantes ou estaacute-
veis
Isto eacute claro se tentar recuperar cada uma das percepccedilotildees e das memoacuterias da sala ape-
sar de termos uma ldquomemoacuteria geralrdquo da sala eacute-nos impossiacutevel reconstituir cada um dos aces-
64
sos perceptivos ou mneacutesicos das muacuteltiplas incidecircncias dela A custo conseguimos recuperar
algumas determinaccedilotildees particulares
Mais a especificidade de cada ocorrecircncia no acesso agrave sala empobrece a cada ocorrecircn-
cia acrescentada ndash ie as percepccedilotildees ou memoacuterias de cada acesso singular agrave sala perdem-se
ou diluem-se na memoacuteria geral (ie na experiecircncia) da sala
Pocircr tudo isto em evidecircncia eacute fazer ao mesmo tempo duas coisas
Por um lado eacute chamar a atenccedilatildeo para o facto de que a mera contraposiccedilatildeo entre a
multiplicidade (de memoacuterias) e uma unidade (que as condensa) natildeo eacute ainda suficiente para
identificar o que eacute proacuteprio da ἐμπειρία ndash tanto assim que jaacute haacute operaccedilotildees de unificaccedilatildeo na
proacutepria esfera da memoacuteria
Por outro lado eacute chamar atenccedilatildeo para facto de que o que eacute decisivo para identificar o
que eacute proacuteprio da ἐμπειρία natildeo eacute o caso de a muacuteltiplas memoacuterias do mesmo corresponder algo
de uno mas sim uma forma especiacutefica de constituiccedilatildeo dessa unidade ou uma forma especiacutefica
de condensaccedilatildeo A questatildeo estaacute portanto em saber que forma especiacutefica eacute essa
sect10
A transgressatildeo do dado e a produccedilatildeo de fixaccedilotildees de estados-de-coisas permanentes
Comecemos por notar o seguinte seria possiacutevel que todo o processo que se estaacute a des-
crever resultasse de uma variaccedilatildeo de quantidade Quer dizer poderia dar-se o caso de que a
partir de um nuacutemero x de ocorrecircncias de αϊσθησις se obtivesse μυήμη e a partir de um nuacutemero
de ocorrecircncias x de μυήμη se obtivesse έμπειρία Nesse caso a transiccedilatildeo entre etapas estaria
condicionada pelo cumprimento de factores numeacutericos e logo que se congregasse uma quan-
tidade determinada o salto entre etapas seria automaacutetico
Poreacutem o que parece ser decisivo nesta transposiccedilatildeo natildeo eacute o nuacutemero de ocorrecircncias
mas a identificaccedilatildeo formal das ocorrecircncias numa unidade ndash de um nuacutemero indeterminado de
ocorrecircncias de αϊσθησις (natildeo parecendo decisivo que sejam duas ou mil) obteacutem-se uma μυήμη
e de um nuacutemero indeterminado de ocorrecircncias de μυήμη uma έμπειρία
65
A ser assim o foco da experiecircncia natildeo estaacute na acumulaccedilatildeo na quantidade no haver
mais ou menos etc a experiecircncia parece ser uma questatildeo de qualidade Eacute a forma ndash que re-
sume a multiplicidade numa unidade ndash o que parece garantir que haacute uma mudanccedila de estado
Ora a pista para encontrar a resposta agrave pergunta pela forma especiacutefica de constituiccedilatildeo
de unidade que eacute proacutepria da ἐμπειρία situa-se na proacutepria indicaccedilatildeo dada por Aristoacuteteles
quando fala de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος enquanto condiccedilatildeo de possibilidade da
ἐμπειρία
Vendo bem se considerarmos o que caracteriza as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος
de que em regra dispomos verificamos que estas tecircm um caraacutecter entrecortado22
Se considerarmos as ldquocoisasrdquo mais banais e mais proacuteximas (a casa o local de trabalho
os parentes as pessoas conhecidas a sala etc) verifica-se que tecircm uma presenccedila descontiacute-
nua interrompida por periacuteodos mais curtos ou mais longos em que pura e simplesmente natildeo
figuram (em que natildeo haacute qualquer αἴσθησις delas ndash e portanto tambeacutem natildeo haacute qualquer me-
moacuteria)
Isto eacute se analisarmos a histoacuteria perceptiva apuramos que de quase tudo soacute tivemos
percepccedilotildees descontiacutenuas intervaladas pela presenccedila de outras coisas a que datildeo lugar As di-
ferentes ocorrecircncias disso a que Aristoacuteteles chama τοῦ αὐτοῦ πράγμα vatildeo e vecircm ndash um pouco
como personagens que entram e saem de um palco onde muitas vezes (sc muito ndash ou ateacute a
maior parte ndash do tempo) natildeo aparecem
Poreacutem ao considerar o modo como as compreendemos chama desde logo a atenccedilatildeo o
facto de que natildeo as tomamos por realidades que se constituem quando me aparecem (por
realidades que se constituiacuteram de cada vez que me apareceram) ou por realidades que se
desvanecem quando desaparecem (por realidades que se desfizeram de cada vez que deixaacute-
mos de ter percepccedilatildeo delas) ndash de sorte que pura e simplesmente natildeo satildeo enquanto natildeo temos
qualquer percepccedilatildeo delas (ou que natildeo ldquoforamrdquo nos periacuteodos em que natildeo figuram na nossa
memoacuteria)
Em vez disso compreendecircmo-las como realidades ininterruptas realidades que conti-
nuaram a ldquoestar laacuterdquo mesmo que natildeo me tenham aparecido mais ainda temos a decidida e
22
Natildeo se discute aqui se porventura haacute algum elemento das memoacuterias que temos que seja contiacutenuo (se
haacute alguma sensaccedilatildeo ou ateacute sensaccedilotildees que se distingam pelo seu caraacutecter incessante contiacutenuo etc) O
que de qualquer modo podemos compreender eacute que a haver constituem uma excepccedilatildeo
66
firme convicccedilatildeo ndash mais propriamente temos o que se pode descrever como a plena evidecircncia
ndash de que serem realidades ininterruptas natildeo sofre duacutevidas que eacute absolutamente assim etc
A perspectiva em que assim nos encontramos distingue-se por uma peculiar relaccedilatildeo
com a μνήμη
Por um lado vem dela tem nela a sua fonte etc A evidecircncia de que as realidades em
causa ldquoestatildeo laacuterdquo mesmo nos periacuteodos natildeo cobertos pelas minhas πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ
πράγματος resulta das sensaccedilotildees e das memoacuterias que tivemos daquilo que se desenha entre
elas do nexo de concordacircncia que sustentam entre si etc Poderiacuteamos dizecirc-lo de outro modo
a perspectiva que temos sobre a forma como as realidades em causa ldquoestatildeo laacuterdquo mesmo quando
natildeo haacute percepccedilatildeo delas e ldquoestiveram laacuterdquo no tempo que natildeo se acha coberto pelas minhas me-
moacuterias procede da referida condensaccedilatildeo das muacuteltiplas memoacuterias numa perspectiva uacutenica de
sinopse a seu respeito
Poreacutem sendo assim a verdade eacute que essa perspectiva que temos sobre as realidades
que ldquoestatildeo laacuterdquo mesmo quando se acham ndash ou que ldquoestavam laacuterdquo na altura em que se achavam ndash
ldquofora de cenardquo excede muito significativamente aquilo de que efectivamente tivemos percep-
ccedilatildeo (e portanto aquilo de que temos memoacuteria)
Por outras palavras a perspectiva que surge como evidente para noacutes de modo nenhum
se ateacutem agravequilo de que tivemos percepccedilatildeo e temos memoacuteria distingue-se por transgredir todos
os dados disponiacuteveis e produzir fixaccedilotildees a respeito daquilo que se situa para laacute da percepccedilatildeo
ou da memoacuteria
Vendo bem esta transgressatildeo do dado comporta vaacuterios momentos
Em primeiro lugar a transgressatildeo do dado preenche o intervalo entre as πολλαὶ μνῆμαι
τοῦ αὐτοῦ πράγματος de que dispomos e completa a respectiva seacuterie tornando-a assim numa
seacuterie contiacutenua ou sem lacunas Nesse sentido potildee laacute algo muito diferente do entrecortado das
memoacuterias qualquer coisa como um estado-de-coisas permanente Ou seja o que a experiecircn-
cia promove eacute um brutal alargamento
Os conteuacutedos tidos projectam-se sobre os muacuteltiplos intervalos de falta de acesso co-
mo se os abarcassem privilegiando os componentes constantes dos vaacuterios instantes de acesso
a um objecto Haacute uma associaccedilatildeo discreta que prolonga a uacuteltima percepccedilatildeo ateacute agrave percepccedilatildeo
actual e que gera um viacutenculo de continuidade Por um lado o acesso daacute-se de forma entrecor-
tada ou intermitente por outro lado no entanto temos uma noccedilatildeo de um acompanhamento
integral
67
Isto eacute assim porque eacute acrescentado agraves percepccedilotildees tidas um operador de propagaccedilatildeo ndash
as caracteriacutesticas que se recolhem passam a abranger toda a seacuterie de percepccedilotildees possiacuteveis co-
mo se o tempo da ausecircncia (o tempo em que natildeo ouve percepccedilatildeo) correspondesse a um con-
junto de percepccedilotildees em potecircncia que cada um de noacutes por via da falta episoacutedica de acesso a
isso natildeo actualizou mas que sabe muito bem a que eacute que corresponderia se laacute tivesse estado
Em suma adicionam-se claacuteusulas de estabilidade ou de consistecircncia
Isto natildeo eacute apenas formal ndash tem tambeacutem consequecircncias ao niacutevel do conteuacutedo
Que haacute algo como uma antecipaccedilatildeo da continuidade tambeacutem a niacutevel do conteuacutedo eacute
claro se se considerar por exemplo o ldquochoquerdquo que se sente no regresso agrave sala depois de vin-
te anos de ausecircncia por exemplo O ldquochoquerdquo corresponde agrave diferenccedila ou agrave falta de coinci-
decircncia entre o conteuacutedo da projecccedilatildeo (que se estendia indefinidamente) e o conteuacutedo da per-
cepccedilatildeo actual
O que o ldquochoquerdquo mostra eacute que mesmo que a esse conteuacutedo tiveacutessemos adicionado o
factor da modificaccedilatildeo (a modificaccedilatildeo que a passagem de vinte anos provoca em algueacutem ou
em alguma coisa) isso natildeo nos iliba do ldquochoquerdquo porque apesar de tudo entre um e outro
instante de acesso valiam como permanentes as caracteriacutesticas verificadas na uacuteltima ocor-
recircncia ou o produto da sinopse das vaacuterias ocorrecircncias (a memoacuteria geral)
Mas e em segundo lugar a perspectiva que temos adoptada prolonga esse estado-de-
coisas permanente mesmo para laacute da primeira percepccedilatildeo que tivemos dele (ou seja para laacute
do primeiro momento da sequecircncia de memoacuterias)
Na verdade natildeo se vecirc a realidade em causa como algo que se constituiu no momento
em que dela se teve o primeiro testemunho perceptivo mas como algo que jaacute era antes de nos
aparecer
Daacute-se este fenoacutemeno peculiar antes da percepccedilatildeo de um dado ldquoobjectordquo poderiacuteamos
natildeo ter qualquer notiacutecia da existecircncia dele mas acontece que logo que se acede a ele se o faz
natildeo como a algo que a percepccedilatildeo pusesse pela primeira vez a ser mas como a algo que tem
existecircncia para laacute da primeira percepccedilatildeo dele (como a algo que tem uma existecircncia preacutevia)
Assim tambeacutem a uacuteltima percepccedilatildeo de um dado ldquoobjectordquo natildeo o relega para a inexis-
tecircncia Acede-se a ele natildeo como a algo que a uacuteltima percepccedilatildeo pusesse pela uacuteltima vez a ser
mas como algo que tem uma existecircncia posterior agrave uacuteltima percepccedilatildeo que se tiver dele
68
Com efeito a perspectiva de evidecircncia que em noacutes domina natildeo se caracteriza apenas
por preencher os intervalos das πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος ou por prolongar a respec-
tiva evidecircncia para laacute do comeccedilo da seacuterie de memoacuterias Distingue-se tambeacutem pelo facto de
antecipar a continuaccedilatildeo da realidade em causa para laacute da uacuteltima apresentaccedilatildeo que dela se
teve ndash e mesmo para laacute do presente em direcccedilatildeo a um futuro ainda a haver
Assim se ao olhar para o que quer que seja (cuja doaccedilatildeo perceptiva nunca vai e natildeo
pode ir para laacute do presente) isso se desvanecer diante dos nossos olhos ficamos perplexos
E ficamos perplexos justamente na medida em que a perspectiva em que estamos em-
barcados avanccedila de cada vez para laacute do presente em que estaacute ndash em antecipaccedilotildees daquele que
lhe sucede (mais precisamente em antecipaccedilotildees que prescrevem a subsistecircncia do mesmo es-
tado-de-coisas permanente daquele que foi ldquopostordquo nos intervalos entre as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ
αὐτοῦ πράγματος e eacute prolongado para traacutes do comeccedilo da sequecircncia de memoacuterias) ndash no tempo a
vir
Ora esta primeira pista em relaccedilatildeo agravequilo que constituiraacute a ἐμπειρία ndash enquanto a ἐμ-
πειρία eacute mais do que a mera acumulaccedilatildeo de memoacuterias ndash permite perceber que tambeacutem na ἐμ-
πειρία haacute uma unidade proveniente da acumulaccedilatildeo de memoacuterias ndash uma unidade que se substi-
tui agrave sucessatildeo de memoacuterias que lhe deu origem de tal modo que o contacto com essa suces-
satildeo das memoacuterias passa a estar mediado por essa unidade
Mas acontece que diferentemente do que sucede com a unidade mneacutesica a unidade
empiacuterica (a μία δύναμις da ἐμπειρία) natildeo se limita a pocircr a partir de si a multiplicidade das
memoacuterias de um dado estado-de-coisas Na verdade a unidade empiacuterica tem um caraacutecter tal
que a multiplicidade que potildee a partir de si excede multiplamente aquela que constitui a sua
base E isto de tal modo que o que eacute especificamente empiacuterico eacute precisamente o excesso ou a
ultrapassagem da base percep-tiva ou da base mneacutesica
Tocamos um ponto essencial em virtude do qual o que de facto constitui a ἐμπειρία eacute
muito diferente do que espontaneamente associamos ao conceito
A ἐμπειρία tende a ser associada agraves noccedilotildees de doaccedilatildeo de travessia perceptiva de apu-
ramento por via de uma travessia perceptiva (de uma multiplicidade de doaccedilotildees que mos-
tram) etc E como vimos atraacutes esta associaccedilatildeo natildeo eacute completamente desprovida de funda-
mento a ἐμπειρία natildeo eacute possiacutevel sem doaccedilatildeo sem travessia perceptiva sem a preservaccedilatildeo
mneacutesica da travessia perceptiva etc
69
Poreacutem ndash e este eacute o ponto que agora deve merecer atenccedilatildeo ndash contrariamente ao que po-
de parecer a ἐμπειρία tambeacutem natildeo eacute possiacutevel se soacute houver doaccedilatildeo travessia perceptiva e
preservaccedilatildeo mneacutesica da travessia perceptiva
Quer dizer a ἐμπειρία natildeo eacute possiacutevel num ponto de vista que se atenha estritamente agrave
travessia perceptiva (sc agrave doaccedilatildeo de que dispotildee) Para o dizer de forma incisiva um ponto
de vista que se atenha estritamente agrave doaccedilatildeo de que efectivamente dispotildee eacute ndash e soacute pode ser ndash
um ponto de vista mneacutesico
Isto eacute a ἐμπειρία propriamente dita comeccedila onde se excede a esfera do dado ndash onde se
produzem fixaccedilotildees sobre aquilo de que natildeo se teve αἴσθησις e de que natildeo haacute μνήμη Em su-
ma o terreno disso de que natildeo houve percepccedilatildeo nem haacute memoacuteria eacute propriamente o terreno
da ἐμπειρία (sc das fixaccedilotildees empiacutericas) A experiecircncia comeccedila com a transgressatildeo do dado
ndash pura e simplesmente natildeo haveria sem tal transgressatildeo
Trata-se de uma transgressatildeo que parte de doaccedilotildees (que as invoca que se sente fun-
dada nelas que as encara como suficientes para justificar a transgressatildeo em que a ἐμπειρία
propriamente consiste etc) Mas isso em nada altera o facto de se tratar de transgressotildees ndash
que fixam ou estatuem sobre algo de que natildeo houve percepccedilatildeo nem haacute memoacuteria
Ora tudo isto potildee vaacuterios problemas que importa focar numa anaacutelise um pouco mais
detida
sect11
O caraacutecter de evidecircncia o encobrimento da projecccedilatildeo empiacuterica atraveacutes da fixaccedilatildeo de uma
lei
Um primeiro aspecto a ter em conta eacute o da natureza peculiar da μία δύναμις empiacuterica
que se potildee no lugar das muacuteltiplas μνῆμαι do ponto de vista mneacutesico ndash e acrescentamos tam-
beacutem daquilo a que se pode chamar ldquoverdade mneacutesicardquo
O que caracteriza a ἐμπειρία eacute que a unidade empiacuterica (a peculiar forma de condensa-
ccedilatildeo na posse de algo de uacutenico que potildee em si e a partir de si uma multiplicidade de momentos)
natildeo se resolve somente na multiplicidade de percepccedilotildees do que haacute memoacuteria mas em vez dis-
so resolve-se numa seacuterie contiacutenua que abrange essas percepccedilotildees (sc memoacuterias) e muito mais
do que elas
70
Quer dizer a fixaccedilatildeo empiacuterica potildee algo que se traduz tanto a) nas percepccedilotildees ou nas
memoacuterias correspondentes aos momentos de tempo em que algo apareceu no curso da histoacute-
ria perceptiva (nos momentos de tempo t1 t2 t3 t34 t35 t37 t57 t283 t284 t286 t287
t390 t2526 t2527 t2528 t2529 t253 t2730 etc) quanto se traduz b) em pocircr essa realidade
em causa numa sequecircncia contiacutenua (que vai para laacute do primeiro contacto com essa realidade
que natildeo se interrompe quando se suspender o contacto com ela e que deveraacute continuar tam-
beacutem no tempo a vir)
Nesse sentido pode-se falar de qualquer coisa como um estado-de-coisas-permanente
ndash que por ter a determinaccedilatildeo da permanecircncia implica em si tanto as instacircncias de si que fo-
ram testemunhadas no curso da histoacuteria perceptiva quanto aquelas que natildeo o foram
Ora o que de facto acontece eacute que tanto aquelas que foram testemunhadas no curso da
histoacuteria perceptiva quanto aquelas que natildeo o foram ficam equiparadas ndash ie a partir do mo-
mento em que se acha produzida a fixaccedilatildeo do estado-de-coisas permanente (disso que eacute mui-
to mais do que as doaccedilotildees que dele dispomos ou do que aqueles momentos de si que corres-
pondem agraves doaccedilotildees) os momentos testemunhados estatildeo tatildeo implicados nas determinaccedilotildees de
permanecircncia e satildeo vistos como estando tatildeo ldquolaacuterdquo (como sendo tatildeo reais e devendo ser tatildeo re-
conhecidos) como aqueles de que houve testemunho perceptivo e haacute testemunho mneacutesico
Ou seja a diferenccedila entre uns e os outros torna-se secundaacuteria ndash e o facto de ter ou natildeo
havido testemunho perceptivo passa a ser visto como algo por assim dizer adjectivo em rela-
ccedilatildeo agrave proacutepria permanecircncia ou ao estado-de-coisas permanente que se acha reconhecido
Haacute em suma algo como um testemunho natildeo-presencial Isso fica claro se nos pergun-
tarem num momento em que natildeo estejamos laacute se a nossa casa existe a resposta surgiraacute pe-
remptoacuteria e sem hesitaccedilatildeo
Isto potildee-nos na pista de um aspecto nuclear que apesar de natildeo ser posto em destaque
por Aristoacuteteles estaacute na verdade no centro deste excesso da ἐμπειρία sobre a μνήμη e eacute o fac-
tor de diferenccedila entre a forma de unidade-que-potildee-a-multiplicidade que tambeacutem haacute na esfera
da μνήμη e a unidade-que-potildee-a-multiplicidade proacutepria da ἐμπει-ρία O factor a que agora se
alude jaacute foi assinalado en passant mas neste passo interessa consideraacute-lo melhor
O factor eacute o seguinte vendo bem o que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία ndash o que leva a
pocircr aquilo de que natildeo se tem nenhum testemunho perceptivo ndash eacute qualquer coisa como uma
evidecircncia
71
Ainda que esteja fundada nas ocorrecircncias perceptivas (nas πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ
πράγματος) eacute somente porque se apresenta como evidecircncia que consegue impor o alarga-
mento (que consegue operar a passagem para laacute das ocorrecircncias perceptivas) tambeacutem eacute so-
mente porque se trata de uma evidecircncia que esse arredondamento tem a amplitude de que se
falou a forccedila da evidecircncia a respeito do estado-de-coisas-permanente eacute suficiente para pocircr a
proacutepria permanecircncia (que se instala justamente como evidente etc)
Eacute tambeacutem porque se trata de uma evidecircncia que o que eacute posto apenas por projecccedilatildeo (o
que natildeo pertence ao patrimoacutenio das πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος antes o excede) fica
equiparado agraves μνῆμαι ndash isto de tal modo que a diferenccedila entre os momentos efectivamente tes-
temunhados e aqueles que natildeo foram efectivamente testemunhados perde peso ndash e a equipara-
ccedilatildeo a que aqui se alude tem o seu rasto apagado resultando no ldquomaciccedilordquo do estado-de-coisas
permanente (maciccedilo entenda-se em que natildeo estaacute claramente marcado o que pertence ao cam-
po do efectivamente dado e o que pertence ao campo do projectado ndash campo que eacute convertido
em quase-dado em como-que-dado pe-la forccedila desta mesma evidecircncia)
Ora se procurarmos compreender qual eacute a forma desta evidecircncia e o que lhe permite
exercer as funccedilotildees a que eacute chamada na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία o que verificamos eacute que a
evidecircncia em causa tem a forma de um ldquoter-de-serrdquo
Este ldquoter-de-serrdquo eacute o que encontramos se pusermos em causa a projecccedilatildeo empiacuterica (se
tocarmos o facto de natildeo se ter senatildeo uma base de doaccedilatildeo entrecortada e de na verdade ser
possiacutevel que a ldquocoisardquo natildeo esteja laacute nos momentos em que natildeo foi perceptivamente testemu-
nhada ou em que natildeo beneficiou de qualquer doaccedilatildeo) Com efeito se suscitarmos este proble-
ma ou se aventarmos esta possibilidade impotildee-se-nos a evidecircncia de que as nossas πολλαὶ
μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος satildeo suficientes para mostrar o estado-de-coisas-permanente em
questatildeo
Que ldquotem de ser assimrdquo quer dizer se haacute uma sequecircncia de repetidos testemunhos
perceptivos (sc mneacutesicos) de algo essa sequecircncia significa ndash e soacute pode significar ie signi-
fica necessariamente ndash que haacute um estado-de-coisas permanente O motor da ἐμπειρία eacute esta
evidecircncia de um ter-de-ser a evidecircncia de que aquilo que estaacute testemunhado por πολλαὶ μνῆ-
μαι tem de ser um estado-de-coisas-permanente
Percebe-se a partir daqui um ponto que tambeacutem natildeo estaacute expressamente sublinhado
por Aristoacuteteles mas que de facto estaacute no centro dos fenoacutemenos para que aponta a noccedilatildeo de
ἐμπειρία De facto este eacute um factor fundamental da passagem a um ponto de vista empiacuterico e
72
da completaccedilatildeo do dado (que eacute igualmente como vimos uma antecipaccedilatildeo) ndash um factor sem o
qual natildeo haacute ἐμπειρία
Esse ponto pode ser expresso dizendo que a projecccedilatildeo empiacuterica tem no seu fulcro esta
evidecircncia de necessidade (esta evidecircncia de natildeo-poder-ser-de-outro-modo) e possui assim a
forma de uma lei
Dizer isto natildeo significa de maneira nenhuma dizer que a ἐμπειρία tem um conceito ex-
pliacutecito de ldquoleirdquo que reconhece o papel desta lei na sua proacutepria constituiccedilatildeo etc Eacute tatildeo pouco
assim que a ἐμπειρία tende a compreender-se como mero registo como verificaccedilatildeo ou como
constataccedilatildeo de dados
Mas o que acontece eacute que o que assim se apresenta como registo verificaccedilatildeo ou cons-
tataccedilatildeo do dado (constituiacutedo por pura travessia perceptiva etc) natildeo seria nada do que eacute se natildeo
houvesse transgressatildeo do dado se essa transgressatildeo natildeo tivesse como motor a evidecircncia
transgressora que se referiu e se essa evidecircncia natildeo assumisse a forma de uma evidecircncia de
natildeo-poder-ser-de-outro-modo ndash se natildeo possuiacutesse portanto neste sentido a forma de uma lei
sect12
A mudanccedila da matriz do reconhecimento da realidade produzida pela ἐμπειρία a fixaccedilatildeo
da ldquonaturezardquo do que aparece e a operaccedilatildeo de desconfinamento da perspectiva para tota-
lidades muito para laacute do que de cada vez se tem dado
Este ponto eacute decisivo porque ele mostra se assim se pode dizer a radical mudanccedila de
ldquoparadigmardquo ou a mudanccedila de matriz que separa a μνήμη da ἐμπειρία
O que agrave primeira vista mais chama a atenccedilatildeo eacute a diferenccedila de amplitude a ἐμπειρία
salta das ldquopartesrdquo ndash e ateacute de umas poucas partes ndash correspondentes agraves πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐ-
τοῦ πράγματος para uma totalidade (sc para totalidades) que as excedem em muito Pode
mesmo dizer-se que o correlato da ἐμπειρία ndash que aquilo que a ἐμπειρία potildee ndash satildeo sempre
totalidades
Por outro lado importa perceber que natildeo se trata pura e simplesmente de totalidades
com um modo de ser no fundamental idecircntico agravequele que jaacute tinham as partes (ainda natildeo tidas
como partes das totalidades empiacutericas) da μνήμη Na verdade haacute uma mudanccedila de modo-de-
ser Esta mudanccedila tem com que ver com a entrada em cena do modo-de-ser do regulado (ie
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daquilo que estaacute sujeito a uma regra mais a uma regra que eacute vista como natildeo podendo natildeo
ser ndash ie a qualquer coisa como uma lei)
Reavaliemos a partir deste acircngulo o que se viu
Se considerarmos o que caracteriza a μνήμη enquanto tal e o modo-de-ser daquilo que
lhe aparece (o modo-de-ser daquilo que tem de aparecer enquanto a μνήμη for apenas μνή-
μη) o que verificamos eacute que tem um caraacutecter totalmente aberto Que num momento apareccedila A
eacute algo que absolutamente nada diz sobre o que apareceraacute na sequecircncia do momento em
questatildeo
A realidade puramente mneacutesica eacute intrinsecamente proteiforme pode inflectir agrave vonta-
de eacute inteiramente variaacutevel natildeo haacute na μνήμη nada que contenha ou contrarie a possibilidade
de variaccedilatildeo Quer dizer no caso da μνήμη se haacute variaccedilatildeo haacute variaccedilatildeo se natildeo haacute variaccedilatildeo
natildeo haacute variaccedilatildeo
O fundamental eacute que cada instacircncia de variaccedilatildeo ou natildeo variaccedilatildeo soacute diz respeito a si
mesma nada potildee para laacute de si ndash e o que quer que seja para laacute de si manteacutem-se inteiramente
livre em relaccedilatildeo ao que vai sendo posto ou registado na travessia perceptiva (sc na travessia
mneacutesica) Poderiacuteamos dizer em suma que a pura μνήμη eacute inteiramente faacutectica
Ora o que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία eacute precisamente a entrada em cena da regulaccedilatildeo
(sc da prescriccedilatildeo)
O caso de em dado momento ser assim e de num outro momento voltar a ser assim e
de num terceiro momento voltar a ser assim ndash e assim sucessivamente ndash assume um significa-
do para laacute do momento em questatildeo ndash regula fixa prescreve para laacute deles E regula fixa
prescreve para laacute deles de tal modo que essa regulaccedilatildeo fixaccedilatildeo prescriccedilatildeo tem a forccedila de soacute-
poder-ser-assim (sc natildeo-poder-ser-de-outro-modo) ndash tudo isto de tal forma que eacute essa forma
(a forma do ter-de-ser-assim ou do natildeo-poder-ser-de-outro-modo ie a forma da lei) que
sustenta a extraordinaacuteria amplitude da projecccedilatildeo empiacuterica
O que isto significa eacute como dissemos uma mudanccedila do modo-de-ser uma mudanccedila
da matriz do proacuteprio reconhecimento da realidade ndash ou como tambeacutem podemos dizer uma
mudanccedila do ldquoquecircrdquo
Tal como a diferenccedila entre a αἴσθησις e a μνήμη tambeacutem a diferenccedila entre a μνήμη e a
ἐμπειρία eacute uma diferenccedila da proacutepria forma da proacutepria determinaccedilatildeo fundamental do que apa-
rece
74
O que estaacute em causa na transiccedilatildeo de um ponto de vista puramente esteacutesico para um
ponto de vista mneacutesico eacute natildeo apenas uma mudanccedila de modo de acesso mas eacute mais exacta-
mente uma mudanccedila de modo de acesso que envolve tambeacutem uma mudanccedila no proacuteprio teor
do ldquoquecircrdquo (do ldquoquecircrdquo de cada ponto de vista correlativo agrave proacutepria finitude do acircngulo desse pon-
to de vista)
Algo de semelhante se passa na transiccedilatildeo do ponto de vista mneacutesico para o ponto de
vista empiacuterico
Se eacute certo que a μνήμη envolve uma significativa aproximaccedilatildeo agrave forma como vemos
ou ao teor daquilo que vemos (se deixa de se estar fechado no oximoro ou instante absoluto
se haacute reconhecimento etc) por outro lado natildeo deixa de corresponder a um ldquoquecircrdquo fechado
no presente e no passado (e sem qualquer abertura para um tempo a haver) fechado na histoacute-
ria perceptiva (sem qualquer abertura para o que quer que seja para laacute dela) e para aleacutem dis-
so fechado na total ausecircncia de qualquer regra que obrigue aquilo que se passa
A ἐμπειρία traz consigo algo completamente desconhecido na oacuteptica da μνήμη traz a
realidade na forma de realidade regulada
Ou seja traz o estado-de-coisas permanente cuja permanecircncia se acha constituiacuteda
justamente natildeo apenas por uma verificaccedilatildeo faacutectica de que eacute (aquela que haveria se αἴσθησις e
μνήμη fossem ininterruptas contiacutenuas etc) mas por algo muito diferente a saber a regra en-
quanto tal a lei
E o que caracteriza a ἐμπειρία eacute precisamente a adopccedilatildeo deste modelo justamente co-
mo regra fundamental da realidade (algo que soacute aparece e soacute pode aparecer no modo do
acesso excessivo relativamente ao proacuteprio dado que eacute o modo da ἐμπειρία) aquilo que apare-
ce estaacute globalmente sujeito agrave condiccedilatildeo de ser regulado (regulado deste ou daquele modo
com estes e aqueles conteuacutedos de regulaccedilatildeo etc)
Agrave primeira vista isto pode parecer estranho ndash e pode parecer estranho em virtude de
uma insuficiente captaccedilatildeo do que estaacute em causa quando se fala em estados-de-coisas-perma-
nentes e dos estados-de-coisas-permanentes como sendo o correlato da ἐμπειρία
Com efeito a noccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes presta-se ndash e na verdade tende
ndash a ser entendida como se dissesse respeito a realidades subsistentes (que natildeo se vatildeo que fi-
cam pelo menos algum tempo etc) como se isso fosse o que estaacute em causa quando se fala
de permanecircncia (e portanto fosse isso que estaacute em causa na ἐμπειρία)
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Ora a ser assim a ἐμπειρία natildeo se aplicaria ao tipo de realidades que tecircm o caraacutecter
de acontecimentos que natildeo subsistem e que ao caso de terem lugar mais ou menos imediata-
mente se segue o deixarem de ser
Vejamos este problema considerando justamente as realidades que se caracterizam
pela sua impermanecircncia um som que se faz ouvir um espirro etc
Analisemos como reagiriacuteamos se porventura sucedesse que um som se tornasse per-
manente e ficasse como ficam as mesas e as cadeiras ou se algo semelhante sucedesse com
um espirro e este se convertesse em qualquer coisa de contiacutenuo ndash que natildeo deixa a breve tre-
cho de ser
Um aspecto importante do que sucederia nessas circunstacircncias eacute a surpresa ndash o espan-
to ndash que isso natildeo deixaria de suscitar Esse espanto documenta uma perspectiva levada aleacutem
do que eacute proacuteprio da μνήμη
Um ponto de vista puramente mneacutesico natildeo teria condiccedilotildees para se espantar se as
mesas ou as cadeiras subitamente desaparecessem ndash da mesma forma que natildeo teria condiccedilotildees
para se espantar se os sons ou se os espirros se tornassem permanentes Isto porque um ponto
de vista mneacutesico se cinge a uma verificaccedilatildeo do que lhe ocorre e eacute completamente desprovido
de qualquer componente de projecccedilatildeo daquilo que jaacute estaacute dado na histoacuteria perceptiva para
aquilo que ainda vem
Semelhante projecccedilatildeo eacute como temos visto ao longo desta secccedilatildeo caracteriacutestica da ἐμ-
πειρία
Um ponto de vista puramente mneacutesico natildeo faz mais do que registar o que lhe aparece
sem qualquer perspectiva da relaccedilatildeo ao que quer que seja para laacute do dado No momento em
que se produz uma doaccedilatildeo ela natildeo se vem inscrever em qualquer expectativa resultante de
doaccedilotildees jaacute havidas (as diferentes instacircncias ou os diferentes momentos de doaccedilatildeo nada ldquodi-
zemrdquo para laacute de si mesmos satildeo completamente mudos em relaccedilatildeo a esse para-laacute-de-si etc)
Por isso num ponto de vista puramente mneacutesico natildeo haacute lugar para qualquer surpresa ou pa-
ra qualquer espanto
Assim o facto de nos espantarmos se um som ou se um espirro se tornassem perma-
nentes radica numa projecccedilatildeo para laacute do dado ndash uma projecccedilatildeo que ocorre tanto no caso de
coisas subsistentes (cuja natildeo subsistecircncia espanta) quanto no caso de coisas natildeo-subsisten-
tes (cuja subsistecircncia espanta igualmente)
76
Nos dois casos o que permite o espanto eacute o mesmo fenoacutemeno a percepccedilatildeo que gera
espanto natildeo se daacute sozinha Sucede em vez disso que a percepccedilatildeo se vem inscrever numa ope-
raccedilatildeo em que ao mesmo tempo actua uma projecccedilatildeo decorrente das percepccedilotildees de que haacute
memoacuteria (que natildeo se perderam nessa forma que corresponde ao ponto de vista esteacutesico) e que
fixa jaacute antecipadamente como a nova percepccedilatildeo deve ser (o curso que a continuaccedilatildeo da histoacute-
ria perceptiva deve seguir)
Por outras palavras tanto num caso como no outro haacute espanto porque a) haacute projecccedilatildeo
e porque b) o conteuacutedo da percepccedilatildeo (sc das percepccedilotildees) que tem (ou tecircm) lugar natildeo satisfa-
zem a projecccedilatildeo (ie natildeo concorda com ela) Caso contraacuterio natildeo nos poderiacuteamos surpreender
se aquilo que outrora tive natildeo se viesse a confirmar no futuro se por exemplo a sala natildeo ti-
vesse continuidade na casa mas se abrisse a uma praia ou a um deserto logo que saiacutessemos a
porta
Mais ainda vendo bem nos dois casos natildeo haacute apenas alguma projecccedilatildeo (como se no
entanto a projecccedilatildeo em causa em cada um dos casos fosse diferente quanto agrave natureza) De
facto nos dois casos haacute uma projecccedilatildeo do mesmo tipo
Por um lado estaacute em causa a homogeneidade em relaccedilatildeo agraves instacircncias perceptivas jaacute
decorridas (quer dizer em relaccedilatildeo ao que se registou na histoacuteria perceptiva e na histoacuteria mneacute-
sica) Por outro a forma da projecccedilatildeo eacute exactamente a mesma tem que ver com uma evidecircn-
cia de natildeo-poder-ser-de-outro-modo (ou seja tem a forma da lei)
O espanto que se produziria por igual nos dois casos decorre justamente de a pro-
jecccedilatildeo em causa ter este caraacutecter e retira a sua intensidade do facto de tanto o suacutebito desapare-
cimento de uma realidade que se presume ser persistente quanto a permanecircncia de uma reali-
dade que se presume evanescente contrariarem uma fixaccedilatildeo com forma de lei (uma projecccedilatildeo
ndash que eacute uma mera projecccedilatildeo mas parece ser muito mais do que isso)
Este eacute um ponto decisivo em que natildeo eacute demais insistir ainda que o que esteja em cau-
sa nos dois casos sejam dados opostos (permanecircncia e impermanecircncia) do ponto de vista for-
mal o que os caracteriza eacute exactamente o mesmo natildeo-congruecircncia com uma antecipaccedilatildeo que
se revestia da pretensatildeo de corresponder a um natildeo-poder-ser-de-outro-modo (e nesse senti-
do a uma lei)
Tudo isto faz compreender melhor o que estaacute efectivamente em causa quando se fala
de estados-de-coisas-permanentes como correlatos da ἐμπειρία O objecto da ἐμπειρία tem
sempre o caraacutecter de um estado-de-coisas-permanente tal como a realidade posta pela ἐμπει-
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ρία eacute uma realidade feita de estados-de-coisas-permanentes E se virmos bem natildeo acontece
de maneira nenhuma que haja um estado-de-coisas permanente no caso das mesas das cadei-
ras ou de outras realidades de tipo subsistente e no caso dos sons ou dos espirros suceda o
contraacuterio Haacute um estado-de-coisas-permanente nos dois casos o estado-de-coisas permanente
segundo o qual as cadeiras as mesas etc devem subsistir e o estado-de-coisas permanente
segundo o qual os sons os espirros etc devem dei-xar-de-ser a breve trecho
Por outras palavras o estado-de-coisas permanente em causa na ἐμπειρία natildeo eacute o da
subsistecircncia das realidades (porque como vimos tambeacutem pode ser a insubsistecircncia) o esta-
do-de-coisas-permanente em causa na ἐμπειρία eacute a proacutepria instacircncia reguladora (a instacircncia
correspondente agrave projecccedilatildeo empiacuterica com forma de lei) que determina que as realidades de
um tipo devam ter sempre determinadas caracteriacutesticas (caracteriacutesticas que podem ser tanto
de subsistecircncia quanto de insubsistecircncia)
Com tudo isto desenha-se com maior nitidez o que se disse sobre a diferenccedila entre a
matriz de reconhecimento (reconhecimento daquilo que aparece) que eacute proacutepria da μνήμη e a
matriz de reconhecimento que eacute proacutepria da ἐμπειρία
Ora independentemente das questotildees que teriam de ser levantadas e consideradas para
fundar e precisar a afirmaccedilatildeo que se segue (questotildees que natildeo cabe aqui considerar) pode-se
dizer que o correlato da ἐμπειρία eacute justamente isso que estaacute em causa quando numa palavra
se fala de ldquonaturezardquo
O ponto de vista mneacutesico tem se assim se pode dizer um grau nulo de natureza Por
contraste o que caracteriza o ponto de vista empiacuterico eacute natildeo apenas introduzir o quadro de de-
terminaccedilatildeo que se traduz no conceito mas tambeacutem o facto de produzir globalmente a molda-
gem de tudo aquilo que aparece com a forma do complexo de estado-de-coisas-permanentes
que estaacute em causa quando se fala de natureza
Percebe-se a partir daqui como a ἐμπειρία constitui o que podemos descrever como
uma extraordinaacuteria operaccedilatildeo de desconfinamento (ou de ldquodomesticaccedilatildeordquo) de campos de rea-
lidade
Considerando a esfera de apresentaccedilatildeo coberta pela memoacuteria verificamos que tem o
caraacutecter dum ldquotuacutenelrdquo A histoacuteria perceptiva cobre campos perceptivos de amplitude que eacute
sempre relativamente restrita e que se somam uns aos outros ndash na forma da sucessatildeo
Poreacutem a ἐμπειρία natildeo apenas junta esses campos perceptivos uns aos outros no mesmo
tempo (mais em todos e cada um dos instantes da sucessatildeo temporal) como cobre os hiatos
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ou as lacunas e continua a projecccedilatildeo para laacute da mera estabilizaccedilatildeo (como estados-de-coisas
permanentes) dos campos efectivamente percepcionados
Pois a projecccedilatildeo de ldquomais homogeacuteneordquo (isso que a tiacutetulo de exemplo Galeno nomeou
τοῦ ὁμοίου μετάβασις)23
estende-se para laacute do proacuteprio territoacuterio do que alguma vez foi objec-
to de percepccedilatildeo na ante-cipaccedilatildeo de que nestes ou naqueles aspectos (nota bene nestes ou
naqueles aspectos fundamentais) seraacute semelhante agravequilo de que jaacute se teve percepccedilatildeo Essa
projecccedilatildeo faz mesmo que a consciecircncia de limitaccedilatildeo perceptiva natildeo se veja como uma ldquocla-
reirardquo rodeada de um ldquomarrdquo de incoacutegnita
Numa palavra a ἐμπειρία consiste numa extraordinaacuteria operaccedilatildeo de ldquoamostragemrdquo ndash
de transformaccedilatildeo por via da projecccedilatildeo empiacuterica do territoacuterio perceptivo desbravado com di-
mensotildees de facto bastante reduzidas num terreno incomparavelmente mais vasto de realidade
desbravada (domesticada dominada etc)
Na verdade natildeo eacute exagero falar de um ldquosaltordquo de uma multiplicidade bi-dimensional
para uma multiplicidade tridimensional No plano cognitivo (da dimensatildeo da realidade rdquodes-
bravadardquo) a ἐμπειρία junta algo de equivalente ao acrescento da ldquoterceira dimensatildeordquo ndash e isto
de tal modo que por outro lado este salto justamente aparece como tal
Pois como vimos o que caracteriza a constituiccedilatildeo da ἐμπειρία eacute o facto de a projec-
ccedilatildeo natildeo se dar a conhecer como tal ser tatildeo eficaz ou tatildeo evidente (ter tanto daquilo que estaacute
em causa quando se fala de ldquoleirdquo) que equipara os momentos efectivamente perceptivos e os
momentos projectados (o dado e o natildeo-dado) apaga o rasto da proacutepria projecccedilatildeo (da opera-
ccedilatildeo de amostragem etc) e constitui um terreno aparentemente homogeacuteneo em que a diferen-
ccedila entre o propriamente dado e aquilo que eacute posto por projecccedilatildeo empiacuterica estaacute completamen-
te apagada
Eacute a este terreno alargado que constantemente nos reportamos
E o facto de natildeo nos vermos fechados no ldquotuacutenelrdquo mneacutesico e estarmos antes num cam-
po de realidade com uma amplitude muito mais forccedilada radica justamente nas caracteriacutesticas
desta operaccedilatildeo de extraordinaacuteria transgressatildeo do propriamente dado que eacute a ἐμπειρία
Estas breves consideraccedilotildees potildeem-nos na pista de outro aspecto igualmente essencial
23
Deichgraumlber K Die griechische Empirikerschule Sammlung der Fragmente und Darstellung der
Lehre Berlin Weidmannsche Buchhandlung 1930 paacuteg 91
79
Vendo bem a projecccedilatildeo empiacuterica tem sempre que ver com uma espeacutecie de completa-
ccedilatildeo do dado
O que isso significa eacute que o terminus ad quem da projecccedilatildeo empiacuterica ndash aquilo que apa-
rece na ἐμπειρία (o que eacute caracteriacutestico que apareccedila na ἐμπειρία) ndash corresponde sempre a tota-
lidades mais precisamente a totalidades muito para laacute do efectivamente dado (a totalidades
de que o dado constitui somente uma pequena parte)
Estamos em condiccedilotildees de analisar melhor este ponto a partir daquilo que jaacute vimos so-
bre os estados-de-coisas-permanentes
Estamos sempre em tensatildeo para o exterior do percebido Apesar de a percepccedilatildeo ser
por natureza limitada (no acircngulo de incidecircncia na amplitude etc) e apesar de a nossa per-
cepccedilatildeo se cingir a um recanto espaacutecio-temporal do ldquomundordquo (e a um recanto muitiacutessimo limi-
tado) a nossa relaccedilatildeo com o ldquomundordquo nunca se circunscreve ao que a percepccedilatildeo apresenta ndash
temos uma notiacutecia mesmo que vaga de uma indefinida continuaccedilatildeo do ldquomundordquo (espacial e
temporal) para laacute do territoacuterio coberto pela nossa percepccedilatildeo
Esse exterior impliacutecito contamina e co-determina o que cai no quadro da percepccedilatildeo na
medida em que o campo coberto pela percepccedilatildeo eacute apenas parte de uma extensatildeo maior natildeo
eacute senatildeo um momento de uma extensatildeo maior
Isto indica-nos que temos uma noccedilatildeo impliacutecita de totalidade quando representamos a
parte (ie o campo efectivamente coberto pela percepccedilatildeo) A referecircncia a uma tal totalidade eacute
o que possibilita que veja a parte como parte A representaccedilatildeo da parte eacute sempre jaacute a do todo
em que se funda em que a parte se constitui etc
Isto indica-nos tambeacutem que aquilo que funda a nossa representaccedilatildeo da parte em que
nos concentramos se projecta homogeneamente sobre a totalidade Tanto quanto se percebe
aquilo que se recolhe na parte ou no segmento que nos cabe tem efeitos sobre a totalidade de
espaccedilo e tempo
Jaacute viramos atraacutes um caso em que a reincidecircncia provoca uma mudanccedila de natureza nos
dados entatildeo estava em causa a exigecircncia de acuidade da percepccedilatildeo Estaacute agora a ser visada
outra consequecircncia intrinsecamente relativa a essa na percepccedilatildeo haacute aquisiccedilatildeo e projecccedilatildeo
ad infinitum de um quantum de continuidade e homogeneidade
Ora as totalidades em que consiste o correlato da ἐμπειρία natildeo satildeo as totalidades dos
estados-de-coisas-permanentes no sentido que primeiramente se sugere
80
Se fosse assim natildeo haveria totalidade no caso das realidades reconhecidas como natildeo-
subsistentes De facto o que eacute decisivo eacute a constituiccedilatildeo de totalidades de modo-de-ser (justa-
mente o que confusamente estaacute em causa quando falamos de ldquonaturezardquo)
O decisivo eacute a constituiccedilatildeo da totalidade da instacircncia reguladora que de cada vez eacute o
motor da projecccedilatildeo empiacuterica e aquilo que a projecccedilatildeo empiacuterica vecirc naquilo que lhe aparece
um horizonte de realidade aberto e presidido por uma regra ou por um modo-de-ser (modo-
de-ser que se multiplica numa pluralidade de instacircncias todas igualmente reguladas por ele
expressatildeo dele etc) No caso das realidades subsistentes a totalidade derivada constituiacuteda
por esta totalidade originaacuteria (de modo-de-ser) e a totalidade correspondente a realidades sub-
sistentes no caso das realidades evanescentes a totalidade deriva da constituiccedilatildeo por esta to-
talidade originaacuteria (a totalidade de modo-de-ser) e a totalidade corresponde a realidades eva-
nescentes etc
Eacute a constituiccedilatildeo destas totalidades que faz a diferenccedila Se ela natildeo se constituiacutesse natildeo
haveria experiecircncia
Se nos ativeacutessemos exclusivamente ao dado (e se o dado soacute a si mesmo dissesse res-
peito) tudo aquilo de que disporia como dado (um dado que se limitaria ao passado e a um
domiacutenio relativamente circunscrito) seria inteiramente mudo a respeito do que se situa fora
da sua esfera Em suma a acumulaccedilatildeo de memoacuterias de nada valeria (de pouco ou nada nos
serviria) para efeitos de orientaccedilatildeo
Tocamos aqui um ponto a que voltaremos na continuaccedilatildeo e que eacute decisivo
O acontecimento de aparecer natildeo eacute um acontecimento sem quaisquer requisitos adi-
cionais ndash constituiacutedo de tal modo que aquilo que aparece natildeo enfrenta qualquer exigecircncia ou
pressatildeo que estaacute ou natildeo em condiccedilotildees de satisfazer Sucede precisamente o contraacuterio
Aquilo que aparece eacute confrontado com o que podemos designar como um conjunto de
quesitos cognitivos (um programa de esclarecimento se assim se pode dizer uma pressatildeo de
interesse) que o que aparece estaacute ou natildeo em condiccedilotildees de satisfazer
Ora esse programa ou esse interesse incide tambeacutem ndash e em certo sentido incide ateacute ndash
sobre o que de cada vez natildeo estaacute a ser dado ou tudo o que ainda natildeo foi dado (como eacute o caso
de tudo quanto se situa no quadrante do futuro) Acontece que αἴσθησις e μνήμη justamente
natildeo bastam para satisfazer esse programa ou esse interesse na medida em que natildeo providenci-
ariam a ldquoinformaccedilatildeordquo de que precisamos
81
A experiecircncia ao abrir a perspectiva para totalidades muito para laacute do que de cada
vez se tem dado natildeo se limita a constituir totalidades com um caraacutecter ldquofacultativordquo
A completaccedilatildeo empiacuterica do dado vem dar satisfaccedilatildeo a uma pressatildeo de esclarecimento
ou a quesitos de orientaccedilatildeo que de outro modo ficariam completamente por satisfazer (de tal
modo que a nossa situaccedilatildeo seria desde logo no plano praacutetico de completa desorientaccedilatildeo)
Eacute este o quadro de fenoacutemenos que permite falar aqui de qualquer coisa como uma do-
mesticaccedilatildeo da experiecircncia (da transgressatildeo do dado que tem no seu centro e sem a qual pura
e simplesmente natildeo tem lugar) como domesticaccedilatildeo do natildeo-dado
Faz sentido falar de domesticaccedilatildeo porque o essencial da operaccedilatildeo em que consiste a
ἐμπειρία eacute uma transferecircncia do que ficou adquirido na travessia perceptiva (e tanto quer di-
zer na ldquoacumulaccedilatildeordquo mneacutesica) ndash e que forma assim o jaacute domeacutestico (a ldquocasardquo da captaccedilatildeo da
realidade de cada vez construiacuteda por via perceptiva) ndash para o campo do que ficou fora ou
ainda estaacute fora da travessia perceptiva
Assim a experiecircncia ldquodomesticardquo o que se manteacutem alheio (alheio ao territoacuterio da per-
cepccedilatildeo) porque potildee nesse exterior aquilo que eacute da ldquocasardquo perceptiva Por essa via converte o
exterior da travessia perceptiva em algo que tambeacutem eacute da ldquocasardquo (que estaacute dominado etc)
ainda antes de haver percepccedilatildeo disso e ateacute mesmo que natildeo chegue a haver qualquer percep-
ccedilatildeo disso
O que isto significa eacute que o acontecimento da ἐμπειρία eacute sempre um acontecimento de
estabelecimento de domiacutenio de soberania de controlo etc ndash um acontecimento de domiacutenio
que se estende ateacute onde natildeo haacute nem houve nada de natureza perceptiva que efectivamente
conquista
sect13
A trama de confirmaccedilotildees e corroboraccedilotildees implicada na ἐμπειρία e os riscos em que con-
tinuamente incorre a projecccedilatildeo empiacuterica
Tudo isto permite finalmente compreender um pouco melhor um ponto decisivo dos
fenoacutemenos em questatildeo ndash ie permite compreender melhor a noccedilatildeo comum de experiecircncia e o
nexo que tem com aquilo que jaacute a anaacutelise de Aristoacuteteles pocircs em evidecircncia como proacuteprio da
82
ἐμπειρία) Este ponto presta-se a equiacutevocos e sempre de novo baralha a noccedilatildeo daquilo de que
se estaacute a falar quando se fala de experiecircncia
Como vimos nas secccedilotildees iniciais a noccedilatildeo de experiecircncia parece ter uma ligaccedilatildeo intriacuten-
seca agrave ideia de doaccedilatildeo (de dado etc) ndash uma ligaccedilatildeo tal que resulta surpreendente que se fale
da experiecircncia como algo que soacute comeccedila com a transgressatildeo do dado (e que aquilo que cons-
titui a experiecircncia tenha de facto uma natureza tal que soacute comeccedila com a transgressatildeo do da-
do) Vimos igualmente que a surpresa resulta em grande parte da proacutepria natureza da projec-
ccedilatildeo empiacuterica ndash da forccedila de evidecircncia de que se reveste (da evidecircncia e da forccedila que equipara o
resultado da projecccedilatildeo a algo dado que faz viver o resultado da projecccedilatildeo como algo dado
etc)
Vendo bem se a ἐμπειρία soacute comeccedila com transgressatildeo do dado (com projecccedilatildeo etc)
essa transgressatildeo ou projecccedilatildeo natildeo pode ocorrer senatildeo sobre a base de uma doaccedilatildeo ndash de uma
doaccedilatildeo com determinadas caracteriacutesticas (uma travessia perceptiva retida em μνήμη com as
caracteriacutesticas daquilo que Aristoacuteteles aponta quando fala de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγμα-
τος etc) Por outras palavras a ἐμπειρία eacute sempre a transformaccedilatildeo de uma travessia percep-
tiva (quer dizer de uma travessia de doaccedilotildees ndash exprime a travessia vive dela etc)
A noccedilatildeo comum de experiecircncia traduz esta compreensatildeo digamos unilateral do que eacute
a ἐμπειρία ndash unilateral porque atende exclusivamente agrave base de doaccedilatildeo e perde de vista a com-
ponente de arredondamento de projecccedilatildeo especiacutefica da ἐμπειρία sem a qual soacute teriacuteamos αἴσ-
θησις e μνήμη
Poreacutem o caso de a experiecircncia juntar conteuacutedos perceptivos como que para suprir
uma lacuna natildeo pode ser tomado como uma medida benigna e natildeo deve levar a pensar que
se limita a fazer isso Na medida em que o faz a experiecircncia modifica os conteuacutedos ndash gera um
conteuacutedo novo completamente autoacutenomo dos dados da percepccedilatildeo e que age sobre a percep-
ccedilatildeo
Isto eacute a experiecircncia estaacute intrinsecamente ligada aos dados da percepccedilatildeo ndash eacute a esses
que reporta e reconduz Mas na medida em que natildeo se ateacutem aos dados da percepccedilatildeo estes
satildeo mera mateacuteria de uma transformaccedilatildeo a experiecircncia gera um processo de abstracccedilatildeo ndash e de
tal modo que na experiecircncia os dados da percepccedilatildeo natildeo estatildeo presentes
Mas haacute ainda um outro aspecto igualmente decisivo
Quando falamos de transgressatildeo do dado falamos de algo que poderia ser bastante di-
ferente disso que se exprime pelo conceito de projecccedilatildeo
83
A transgressatildeo do dado poderia pocircr no campo exterior agrave esfera de doaccedilotildees efectiva-
mente disponiacuteveis algo de completamente exterior a essa esfera que nada tivesse que ver com
o seu teor etc Acontece que natildeo eacute assim
A ἐμπειρία eacute essencialmente ἐμπειρία do dado Eacute-o desde logo porque parte do dado
mas tambeacutem o eacute porque aquilo a que leva na transgressatildeo dele natildeo eacute outra coisa senatildeo o
proacuteprio ldquoconteuacutedordquo do dado A operaccedilatildeo da ἐμπειρία eacute uma operaccedilatildeo de expansatildeo (de multi-
plicaccedilatildeo se assim se pode dizer) do dado muito para laacute do restrito acircmbito em que houve tes-
temunho dele
Eacute justamente nesta medida que se pode dizer que ainda que o acontecimento da ἐμπει-
ρία seja sempre um acontecimento de estabelecimento de domiacutenio de soberania de controlo
etc na verdade se trata de uma conquista ldquovirtualrdquo ndash uma conquista que a forccedila da evidecircncia
proacutepria da ἐμπειρία equipara como vimos agrave conquista perceptiva (e ao ponto de como tam-
beacutem vimos fazer desaparecer o rasto dessa equiparaccedilatildeo e da diferenccedila entre o que for con-
quista ldquorealrdquo e o que se manteacutem puramente virtual nessa conquista) mas que natildeo conquista
efectivamente isso que pretende ter conquistado
A todos estes aspectos ndash que decorrem ao mesmo tempo das indicaccedilotildees dadas por
Aristoacuteteles e de uma tentativa de anaacutelise dos fenoacutemenos para que apontam ndash vem juntar-se um
outro que natildeo se acha expressamente referido por Aristoacuteteles mas que faz parte integrante dos
fenoacutemenos em causa Esse aspecto tem que ver com aquilo a que se pode chamar a trama de
conexotildees ndash e de confirmaccedilotildees ou corroboraccedilotildees ndash que estaacute implicada na ἐμπειρία
Vejamos um pouco melhor do que se trata
Como vimos se soacute houvesse acumulaccedilatildeo mneacutesica cada momento da doaccedilatildeo soacute a si
mesmo diria respeito ndash ou de todo o modo natildeo diria respeito a quaisquer outros momentos da
histoacuteria perceptiva na forma de antecipaccedilatildeo ou de prescriccedilatildeo do que neles deve ocorrer
Ora o que caracteriza a ἐμπειρία eacute justamente o facto de constituir um complexo de
prescriccedilotildees ndash de tal modo que cada percepccedilatildeo vem tomar lugar num quadro onde jaacute se acha
prescrito por projecccedilatildeo empiacuterica pelo menos uma parte do que se deve ou natildeo deve encon-
trar nela
Isso significa como oportunamente se indicou que natildeo haacute apenas percepccedilotildees (num
contexto soacute preenchido por elas mesmas) as percepccedilotildees que vatildeo ocorrendo encontram-se
com antecipaccedilotildees empiacutericas que vecircm confirmar ou infirmar (e tanto quer dizer que podem
em parte confirmar em parte infirmar etc)
84
Se a percepccedilatildeo infirma a antecipaccedilatildeo empiacuterica potildee-se um problema de validade das
assunccedilotildees empiacutericas ndash que acaba por ser decidido em funccedilatildeo da continuaccedilatildeo da travessia per-
ceptiva e da forma como esta confirma ou a antecipaccedilatildeo empiacuterica ou a que decorre do novo
ldquomaterial perceptivordquo A aquisiccedilatildeo de um ponto de vista empiacuterico em que uma vez constituiacute-
do esse ponto de vista nada seja desprovido de significado empiacuterico ndash de tal modo que cada
percepccedilatildeo natildeo se limita a ser confrontada com um quadro de percepccedilotildees empiacutericas jaacute consti-
tuiacutedas ndash tem ela mesma um caraacutecter tal que se natildeo concorda com essas projecccedilotildees traz a su-
gestatildeo de uma nova projecccedilatildeo empiacuterica (conforme com o seu conteuacutedo e oposta agraves projec-
ccedilotildees empiacutericas anteriormente em vigor)
Se pelo contraacuterio uma nova percepccedilatildeo congrui com a projecccedilatildeo empiacuterica a que se
vem juntar entatildeo confirma-a ndash quer dizer confirma a forccedila da proacutepria ἐμπειρία confirma o
bom fundamento da projecccedilatildeo empiacuterica a evidecircncia de que se reveste etc
Ora isto daacute uma nova dimensatildeo agravequilo que vimos sobre esta mateacuteria ndash e que agora se
apresenta como insuficiente ou unilateral
Em mateacuteria de evidecircncia a projecccedilatildeo empiacuterica natildeo se apoia apenas numa evidecircncia
original do ter-de-ser (natildeo-poder-ser-de-outro-modo etc) a que anteriormente foi feita refe-
recircncia Sucede em vez disso que a evidecircncia da projecccedilatildeo empiacuterica se vecirc reforccedilada pela con-
firmaccedilatildeo por parte dos domiacutenios de percepccedilotildees sobre que recai
Do que vimos resulta que as projecccedilotildees empiacutericas na verdade excedem sempre o
presente em que de cada vez nos encontramos e onde de cada vez acaba o material perceptivo
efectivamente disponiacutevel Por outras palavras haacute sempre mais ndash e muito mais ndash projecccedilotildees
empiacutericas do que percepccedilatildeo
Poreacutem isso natildeo impede que a percepccedilatildeo que de cada vez vem entre em cena como al-
go antecedido por uma prescriccedilatildeo empiacuterica e ao congruir com ela natildeo apenas reforce a pro-
jecccedilatildeo empiacuterica especificamente em causa mas para aleacutem dela reforce a proacutepria forccedila da
projecccedilatildeo empiacuterica enquanto tal (e tanto quer dizer justamente aquilo que faz com que nem
sequer apareccedila como projecccedilatildeo mas como muito mais do que isso como algo absolutamente
adquirido como algo de certo modo dado etc)
Assim em vez de formar um mero aglomerado de percepccedilotildees retidas em memoacuteria a
apresentaccedilatildeo de que a ἐμπειρία dispotildee tem o caraacutecter de uma ldquomalhardquo ou de um ldquoprocessordquo
com os diferentes momentos da travessia perceptiva atados uns aos outros e envolvidos numa
espeacutecie de silenciosa transacccedilatildeo entre os vaacuterios momentos
85
Isto eacute as diversas αἰσθήσεις ldquodizemrdquo umas sobre as outras actuam umas sobre as ou-
tras de tal modo que haacute como que uma acccedilatildeo reciacuteproca (satildeo ao mesmo tempo condicionantes
e condicionados de tal modo que nenhum se aguenta por si mesmo e em vez disso sucede
que cada um estaacute de peacute em virtude do que lhe vem dos outros etc)
Isto traduz-se num outro fenoacutemeno que eacute discreto mas tem um papel importante na
constituiccedilatildeo das fixaccedilotildees empiacutericas
Mesmo que natildeo chame a atenccedilatildeo o processo habitual de montagem da ἐμπειρία envol-
ve qualquer coisa como um crescendo contiacutenuo de corroboraccedilatildeo de tal modo que a proacutepria
continuaccedilatildeo do ldquoprocessordquo (a continuaccedilatildeo do funcionamento da ldquotramardquo empiacuterica) traz con-
sigo qualquer coisa como uma cada vez maior confianccedila na ndash ou uma cada vez maior forccedila
da ndash projecccedilatildeo empiacuterica24
24
Estas consideraccedilotildees permitem-nos enfrentar uma dificuldade que se poderia antever Eacute que tal
como a temos visto poderia entender-se da tese de Aristoacuteteles que tanto a crianccedila como o velho satildeo
experientes Na verdade a experiecircncia de que fala Aristoacuteteles natildeo eacute algo que parece adquirir-se no fim
de um processo extenso (se com isso se supuser uma extensatildeo longa) tal como a vimos a έμπειρία po-
de ser produzida em qualquer quantidade de amplitude ou de extensatildeo Se de facto a έμπειρία se pro-
duz com as cambiantes que temos visto entatildeo o lance da έμπειρία natildeo eacute um lance que se atrase ou se
adie para o mais tarde possiacutevel (assim se ganhando em consistecircncia) mas eacute sempre um lance precoce
(que acontece mais cedo do que tarde por assim dizer) Quer dizer a crianccedila tambeacutem tem έμπειρία ndash
tem έμπειρία logo que esteja produzida esta contracccedilatildeo Poreacutem a consideraccedilatildeo de que uma crianccedila jaacute eacute
portadora de έμπειρία parece estar em contradiccedilatildeo com uma tese que Aristoacuteteles defende por exemplo
na Eacutetica a Nicoacutemaco Num passo afirma que um jovem natildeo eacute experiente e que eacute preciso muito tempo
para ter experiecircncia (1142a12ss) Enfrentemos esta dificuldade fazendo notar que a noccedilatildeo de έμπειρία
que Aristoacuteteles aplica neste passo parece sofrer um desdobramento o desdobramento por que passa na
abertura dum nexo com a φρόνησις A φρόνησις concerne como fica claro no passo citado agraves situa-
ccedilotildees praacuteticas particulares em que cada um de cada vez se encontra situaccedilotildees que implicam um conhe-
cimento praacutetico assente em sageza ou em prudecircncia Assim agrave luz do que vimos ainda agora a declara-
ccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser lida do seguinte modo natildeo eacute que os jovens tenham experiecircncia zero ndash pelo
que se viu natildeo haacute qualquer razatildeo para que um jovem natildeo tenha έμπειρία O que os jovens natildeo tecircm eacute
por um lado o tipo de experiecircncia especiacutefica que implica φρόνησις O que Aristoacuteteles faz ao fazer co-
incidir os termos έμπειρία e φρόνησις eacute uma qualificaccedilatildeo ou um desdobramento do que indica por έμ-
πειρία dando a entender que na vida praacutetica a έμπειρία equivale a φρόνησις e natildeo havendo φρόνησις
a έμπειρία natildeo tem utilidade praacutetica ou natildeo produz resultados sensatos e sagazes A inexperiecircncia
juvenil a que Aristoacuteteles alude corresponde agrave insensatez ou agrave imprudecircncia juvenil (Ret 1395a2) ndash
em qualquer caso ao ainda natildeo ter cumprido todos os requisitos necessaacuterios quaisquer que sejam agrave
aquisiccedilatildeo de φρόνησις (Acerca das diferenccedilas entre os jovens e os anciotildees ver Ret 1389a5 e
1389b15) Isto por um lado Por outro o que Aristoacuteteles mostra ao trazer agrave liccedila o factor ldquotempordquo eacute
acentuar muito claramente que o velho eacute mais experiente que o jovem E tanto quer dizer que com a
passagem do tempo (ie com a variaccedilatildeo da quantidade de tempo de contacto) haacute uma variaccedilatildeo da
86
Agrave primeira vista poderia talvez parecer que natildeo eacute assim ndash isto se se tiver em conta que
natildeo se verifica soacute confirmaccedilatildeo das projecccedilotildees empiacutericas mas tambeacutem pelo menos uma certa
margem de infirmaccedilatildeo delas Ou seja pode parecer que a corroboraccedilatildeo de que se falou eacute
compensada por uma significativa margem de infirmaccedilatildeo em virtude da qual a descriccedilatildeo que
acabaacutemos de fazer eacute unilateral
Importa por isso focar um pouco mais atentamente os fenoacutemenos aqui em causa
Por um lado haacute que ter em conta que as projecccedilotildees empiacutericas que resultam das αισθή-
σεις passadas resultam de uma multiplicidade muito complexa de elementos de afinidade
entre as coisas percepcionadas (e nesse sentido de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος)
Isso tem que ver com o facto que aqui natildeo podemos considerar senatildeo muito breve-
mente de as proacuteprias percepccedilotildees estarem constituiacutedas na forma de totalidades confusas de
determinaccedilotildees formadas de tal modo que se acompanha essas totalidades sem que esse acom-
panhamento signifique uma consciecircncia minimamente diferenciada das determinaccedilotildees que as
compotildeem25
qualidade da experiecircncia ndash e no caso da experiecircncia que diz respeito agraves situaccedilotildees praacuteticas particulares
em que cada um de cada vez se encontra situaccedilotildees que implicam um conhecimento praacutetico etc Quer
dizer com o acumular de tempo de contacto daacute-se um efeito de amplificaccedilatildeo providenciado pelo vo-
lume da corroboraccedilatildeo (ou pelo contraacuterio pelo volume da infirmaccedilatildeo) A noccedilatildeo quotidiana de expe-
riecircncia parece privilegiar precisamente este factor a quantidade da experiecircncia (ter ldquomuitordquo disso ter
passado por muito etc)
25 Eacute isto que estaacute muito precisamente desenhado por Aristoacuteteles nos passos iniciais da Fiacutesica Nesse
passo pode ler-se πέφυκε δὲ ἐκ τῶν γνωριμωτέρων ἡμῖν ἡ ὁδὸς καὶ σαφεστέρων ἐπὶ τὰ σαφέστερα τῇ
φύσει καὶ γνωριμώτερα οὐ γὰρ ταὐτὰ ἡμῖν τε γνώριμα καὶ ἁπλῶς διόπερ ἀνάγκη τὸν τρόπον τοῦτον
προάγειν ἐκ τῶν ἀσαφεστέρων μὲν τῇ φύσει ἡμῖν δὲ σαφεστέρων ἐπὶ τὰ σαφέστερα τῇ φύσει καὶ γνω-
ριμώτερα ἔστι δ ἡμῖν τὸ πρῶτον δῆλα καὶ σαφῆ τὰ συγκεχυμένα μᾶλλον ὕστερον δ ἐκ τούτων γίγνε-
ται γνώριμα τὰ στοιχεῖα καὶ αἱ ἀρχαὶ διαιροῦσι ταῦτα (I I 184a16 e seguintes) Aristoacuteteles estaacute a sa-
lientar dois aspectos O primeiro eacute que haacute algo como uma falta de paridade entre as coisas que satildeo
mais manifestas e claras para noacutes e as coisas que satildeo mais claras e conhecidas por natureza O que
Aristoacuteteles nos mostra eacute que estes dois fenoacutemenos satildeo por um lado momentos distintos na verdade
satildeo momentos opostos (os momentos mais distantes um do outro os pontos que mais radicalmente di-
ferem na perspectiva que tecircm sobre o que haacute para fazer etc) Por outro lado satildeo momentos distintos
de um mesmo caminho ndash isto na medida em que um corresponde ao terminus a quo (ao ponto de parti-
da ao caminho totalmente por percorrer etc) e o outro ao terminus ad quem (ao ponto de chegada
ao caminho totalmente percorrido etc) O caminho em causa eacute como se percebe o caminho da cons-
tituiccedilatildeo do saber Aristoacuteteles procede neste passo agrave identificaccedilatildeo (ou agrave desformalizaccedilatildeo) do grau maacute-
ximo de saber ndash no caso fazendo o grau maacuteximo de saber corresponder a conhecer a natureza das
ldquocoisasrdquo (ie a estar na posse do αἴτιον da αἰτία etc) O segundo aspecto a reter eacute o aspecto da pro-
87
De tudo isto resulta que se considerarmos uma qualquer percepccedilatildeo nova as determi-
naccedilotildees em jogo nela satildeo muacuteltiplas
Sucede que a presenccedila confusa de uma determinaccedilatildeo resulta na projecccedilatildeo confusa
dela ndash e isto de tal modo que quanto mais constante for a determinaccedilatildeo em causa mais natu-
ral seraacute que natildeo chame a atenccedilatildeo (ou seja natildeo haja qualquer consciecircncia distinta dela)
Assim a composiccedilatildeo confusa das αἰσθήσεις (e portanto das μνῆμαι que as retecircm) natildeo
impede que a projecccedilatildeo empiacuterica tambeacutem tenha uma composiccedilatildeo confusa (quer dizer seja a
projecccedilatildeo das afinidades confusamente registadas na travessia empiacuterica)
Por outro lado acontece tambeacutem que satildeo igualmente muacuteltiplas as projecccedilotildees (as ante-
cipaccedilotildees de determinaccedilotildees os feixes de prescriccedilatildeo que sobre ela recaem etc)
Assim em vez de acontecer que a corroboraccedilatildeo ou a infirmaccedilatildeo seja simples sucede
pelo contraacuterio que eacute complexa ndash e mesmo muito complexa (ou seja a ldquomalhardquo ou a transac-
ccedilatildeo entre os diferentes momentos da travessia perceptiva estaacute de cada vez desdobrada em
muitiacutessimos elementos muito numerosos fios muito numerosos fluxos de transacccedilatildeo etc)
Eacute isto que nos permite ver o essencial que eacute preciso ter em vista para se perceber as
caracteriacutesticas da ἐμπειρία comum no funcionamento normal da ἐμπειρία eacute muito maior o vo-
lume de corroboraccedilotildees do que de infirmaccedilotildees ndash haacute algo como uma incriacutevel desproporccedilatildeo ldquoes-
tatiacutesticardquo Mas aleacutem disso mesmo nos casos em que haacute infirmaccedilatildeo a infirmaccedilatildeo diz respeito
a algumas determinaccedilotildees no meio de um maciccedilo de prescriccedilotildees ou de antecipaccedilotildees empiacutericas
amplamente corroboradas
Quer dizer mesmo nos casos em que aparece algo que choca com as projecccedilotildees empiacute-
ricas o choque natildeo diz respeito a todas as determinaccedilotildees mas apenas a algumas ndash e mesmo
neste caso (ou seja mesmo em relaccedilatildeo agraves percepccedilotildees que vecircm ao arrepio da ἐμπειρία) eacute mui-
porcionalidade inversa as coisas mais manifestas e claras para noacutes satildeo as menos manifestas e claras
por natureza (ou como tambeacutem podiacuteamos dizer na sequecircncia do que foi dito atraacutes as coisas mais
transparentes para noacutes satildeo aquelas cuja natureza se revela mais opaca) Na verdade a transformaccedilatildeo
que se daacute pelo caminho (a modificaccedilatildeo no modo-de-ver as coisas) eacute uma transformaccedilatildeo na qualidade
do acesso Implica na verdade uma modificaccedilatildeo de perspectiva tal que o foco deixe de estar nas ldquocoi-
sasrdquo tal como nos aparecem e passe a estar colocado na natureza das coisas Assim ao percorrer o ca-
minho abandona-se a posiccedilatildeo inicial (a posiccedilatildeo em que a natureza das ldquocoisasrdquo eacute menos clara para
noacutes) e passa-se progressivamente a ver melhor o que as ldquocoisasrdquo satildeo por natureza (adquire-se uma
perspectiva em que a natureza das ldquocoisasrdquo eacute mais clara para noacutes em que conhecemos o que as ldquocoi-
sasrdquo efectivamente satildeo o que satildeo em si mesmas qual eacute a causa delas etc) de tal modo que no final
do caminho haacute uma radical inversatildeo de qualidade do acesso agrave natureza das ldquocoisasrdquo
88
to mais o que tecircm de determinaccedilotildees conformes com as projecccedilotildees empiacutericas sobre que se vem
inscrever do que o que tecircm de determinaccedilotildees em conflito com elas
Eacute claro que tem de se ter em conta que a questatildeo natildeo eacute puramente quantitativa antes
depende em larga medida do peso (da relevacircncia ou da importacircncia) das determinaccedilotildees em
causa Mas tambeacutem aiacute se verifica algo de equivalente ao que acabaacutemos de dizer no que diz
respeito agraves determinaccedilotildees mais marcantes eacute muito mais o que costuma haver de continuida-
de e corroboraccedilatildeo do que o contraacuterio
A infirmaccedilatildeo das projecccedilotildees costuma afectar uma porccedilatildeo menor e menos relevante do
ldquoedifiacuteciordquo empiacuterico ndash de tal modo que o conflito tem em regra a forma de algo episoacutedico no
meio de um maciccedilo (um maciccedilo quantitativo entenda-se) e de um patrimoacutenio de fixaccedilotildees fun-
damentais marcado por um bem sucedido funcionamento da ἐμπειρία
Assim se considerarmos as caracteriacutesticas e a estrutura da ἐμπειρία tal como a ela es-
tamos habituados percebemos que estaacute muito longe de corresponder a qualquer coisa como
troccedilos de ἐμπειρία que funcionam de um determinado modo mas de tal forma que a certa al-
tura satildeo interrompidos por infirmaccedilotildees globais que suspendem tudo ndash e datildeo lugar a outros
troccedilos de ἐμπειρία caracterizados por neles vigorarem determinaccedilotildees em contraste com
aquelas que antes dominavam26
26
Pense-se por exemplo em ldquoAlice in Wonderlandrdquo Poderiacuteamos salientar muacuteltiplos aspectos desta
obra mas interessa neste passo destacar apenas os seguintes Em primeiro lugar haacute entre o ldquomundordquo
em que Alice daacute consigo e o ldquomundordquo anterior a esse pontos de continuidade de tal modo que o
ldquomundordquo da ldquoWonderlandrdquo natildeo eacute radicalmente novo Poreacutem aquilo que eacute decisivo e que mais marca
Alice ao entrar nesse ldquomundordquo satildeo os pontos de contraste os animais falantes as caracteriacutesticas pecu-
liares da gravidade enquanto cai na toca do coelho o estranho efeito das poccedilotildees etc Ora por um lado
tudo isso soacute espanta Alice precisamente na medida em que gera contraste e por outro tudo isso soacute ge-
ra contraste na medida em que estaacute contraposto a uma experiecircncia distinta (a um ldquomundordquo distinto)
em curso justamente um ldquomundordquo em que natildeo haacute experiecircncia de animais falantes em que a gravidade
se comporta de uma determinada maneira em que as poccedilotildees natildeo geram modificaccedilotildees radicais de ta-
manho etc ie um ldquomundordquo que eacute em relaccedilatildeo ao anterior um ldquomundordquo novo Em segundo lugar
aquilo que eacute decisivo eacute que a experiecircncia anterior eacute substituiacuteda pela do ldquomundordquo da ldquoWonderlandrdquo to-
mando a experiecircncia da ldquoWonderlandrdquo o lugar de experiecircncia que no curso do momento actual em
que Alice se encontra estaacute a valer Na verdade a experiecircncia da ldquoWonderlandrdquo toma o lugar de expe-
riecircncia-presidente E isto eacute tanto assim que Alice daria por si espantada se as leis da proacutepria ldquoWonder-
landrdquo natildeo se cumprissem (se desse com um animal que natildeo falasse se a poccedilatildeo natildeo gerasse qualquer
modificaccedilatildeo no seu tamanho etc) assim como precisa de se readaptar (de recuperar as leis antigas se
assim se pode dizer) quando por fim desperta do sonho e volta ao regime de experiecircncia anterior
89
No curso normal da ἐμπειρία que costuma ter lugar em noacutes natildeo haacute cortes desse tipo
precisamente por isso faz sentido falar de um ldquocurso normalrdquo Isso mostra a que ponto a his-
toacuteria da ἐμπειρία (a histoacuteria da ἐμπειρία a que cada um de noacutes estaacute habituado) eacute muito mais a
histoacuteria da corroboraccedilatildeo (e portanto da continuidade) com a natildeo-corroboraccedilatildeo ou a des-
continuidade a ter um caraacutecter mais ou menos episoacutedico esparso etc do que o contraacuterio
Mas sendo assim nada disto impede um outro aspecto que tambeacutem resulta da forma
como a ἐμπειρία tem o caraacutecter de um ldquoprocessordquo ndash de algo sempre em curso etc
Se eacute verdade que no seu funcionamento ldquonormalrdquo a ἐμπειρία ldquobate certordquo beneficia
de um reforccedilo constante em crescendo etc natildeo eacute menos verdade que a cada instante sem-
pre de novo eacute posta em causa precisamente porque a cada instante estatildeo de novo em jogo as
suas fixaccedilotildees Ou seja porque envolve projecccedilatildeo (porque prevecirc e porque a cada instante a
previsatildeo estaacute a ser posta agrave prova) a ἐμπειρία estaacute continuamente em causa ou estaacute continua-
mente a arriscar a sua validade
Por contraste com a percepccedilatildeo ndash que se caracteriza por aquele caraacutecter de absoluta e
definitiva aquisiccedilatildeo de que falam os antigos quando dizem que nem os deuses podem dizer
que aquilo que foi natildeo tenha sido ndash a ἐμπειρία eacute algo sempre de novo exposto agrave violabilidade
agrave possibilidade de vir a ser desfeito por mudanccedilas no material perceptivo ndash e na verdade
sempre de novo passa (mesmo que numa margem circunscrita) por mudanccedilas dessa ordem
A fragilidade vem do caso de por exemplo o futuro natildeo confirmar a expectativa tida
sobre ele Recorrendo a um exemplo anterior a fragilidade vem do caso de saindo a porta do
sala natildeo encontrar o que esperava encontrar mas a sala se abrir a uma praia ou a um deserto
Isso marca a possibilidade de um conflito entre o dado que a experiecircncia natildeo tem mas
que apesar de tudo fixa e o dado percebido efectivo com que nos deparamos
A breve sinopse que se levou a cabo nesta secccedilatildeo e que permitiu inventariar algumas
caracteriacutesticas fundamentais da ἐμπειρία natildeo esgota ainda o que haacute para dizer sobre ela
Na verdade o que esteve em jogo nesta secccedilatildeo foi meramente a descontinuidade entre
a ἐμπειρία (enquanto terceiro estaacutedio da escala de possibilidades de acesso desenhada por
Aristoacuteteles) e os estaacutedios que a antecedem Poreacutem segundo o esquema de relaccedilotildees entre os
diversos estaacutedios haacute tambeacutem uma descontinuidade entre a ἐμπειρία e o uacuteltimo estaacutedio da es-
cala (estaacutedio que correspondem τέχνη e ἐπιστήμη)
90
Resta saber como ndash e o esclarecimento deste aspecto constitui tambeacutem como se veraacute
uma componente decisiva natildeo soacute para a compreensatildeo daquilo a que Aristoacuteteles chama ἐμπει-
ρία mas tambeacutem para a compreensatildeo do complexo de fenoacutemenos para que remete este concei-
to e aqui se trata de tentar pocircr a claro
91
CONCLUSAtildeO
sect14
A ἐμπειρία enquanto algo que incide sobre o καθόλου ndash Um elo de conexatildeo entre ἐμπειρία
e γνωμολογία
Com tudo o que tem de esquemaacutetico e fugidio a descriccedilatildeo que tentaacutemos traccedilar nas
secccedilotildees anteriores pretende fixar no fundamental o que a ἐμπειρία tem de proacuteprio ndash ou me-
lhor pretende fixar a forma como a ἐμπειρία avanccedila sobre a μνήμη (e portanto mediatamen-
te sobre a αἴσθησις) e como constitui um ponto de vista empiacuterico (um ponto de vista comple-
tamente diferente dos anteriores)
Ora tudo o que vimos ateacute este ponto sobre a ἐμπειρία corresponde no essencial agrave evi-
denciaccedilatildeo da ἐμπειρία como salto como mais etc ndash ie agrave marcaccedilatildeo da fronteira inferior
Trata-se agora de focar a fronteira superior da ἐμπειρία ndash a sua fronteira com a τέχνηἐπιστήμη
Resulta da anaacutelise que fizemos sobre a estrutura da escala aristoteacutelica que tambeacutem no
caso da ἐμπειρία vale o que eacute caracteriacutestico de cada uma das etapas da escala que se trata de
algo fixado como um intervalo de tal modo que o que a define eacute ao mesmo tempo a) a forma
como se eleva sobre a etapa anterior (quer dizer a fronteira que eacute ao mesmo tempo a fronteira
superior da etapa antecedente e a fronteira inferior da etapa em causa) e b) a forma como fica
aqueacutem da etapa seguinte ou eacute ultrapassada por ela justamente porque deixa espaccedilo para ela
(ou seja a fronteira que eacute ao mesmo tempo a fronteira superior da etapa em causa e a fronteira
inferior da que se segue)
Acontece que uma compreensatildeo da etapa seguinte ndash enquanto a etapa seguinte (ie da
quarta e uacuteltima etapa da escala) diz algo sobre a ἐμπειρία ndash natildeo pode passar por uma anaacutelise
integral da proacutepria τέχνηἐπιστήμη Natildeo soacute isso nos levaria muito longe como ndash e principal-
mente ndash nos obrigaria a desviarmo-nos do propoacutesito de analisar a experiecircncia enquanto tal
Eacute indispensaacutevel contudo seguir detidamente pelo menos alguns aspectos essenciais
daquilo que separa a ἐμπειρία de τέχνηἐπιστήμη E isto na medida em que eacute necessaacuterio com-
preender que aspectos definem a finitude da proacutepria ἐμπειρία (a sua fragilidade) Quer dizer
92
os aspectos que interessa destacar na continuaccedilatildeo satildeo os que fazem que a ἐμπειρία natildeo seja a
uacuteltima etapa da escala (e tanto quer dizer os que fazem que a ἐμπειρία constitua uma forma
de apresentaccedilatildeo das coisas que esconde ao mesmo tempo que mostra ndash e que na verdade es-
conde justamente isso que jaacute mostra produzindo como que um desvio relativamente a isso
mesmo)
Vistas estas advertecircncias preliminares sobre a tarefa que se trata agora de levar a cabo
consideremos entatildeo a fronteira entre a terceira e a quarta secccedilatildeo da escala de Aristoacuteteles
O primeiro aspecto que importa ter em atenccedilatildeo eacute uma falsa pista
Referimo-nos ao alegado estado-de-coisas em virtude do qual a ἐμπειρία diz respeito a
factos singulares (καθ᾽ ἕκαστόν etc) e soacute a τέχνηἐπιστήμη constitui fixaccedilotildees universais (κα-
θόλου)
Vejamos entatildeo o fundamental do que haacute a dizer sobre esta mateacuteria
Agrave partida aquilo que estaacute em causa quando Aristoacuteteles aponta que a ἐμπειρία diz res-
peito a factos singulares (καθ᾽ ἕκαστόν etc) e soacute a τέχνηἐπιστήμη constitui fixaccedilotildees univer-
sais (καθόλου) parece ser uma forma de diferenciaccedilatildeo clara e suficiente entre os dois planos
Na verdade essa forma de diferenciaccedilatildeo tende a absorver e a dominar a compreensatildeo da dife-
renccedila entre ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη e parece natildeo deixar espaccedilo a mais27
Esta passagem no entanto merece uma anaacutelise cuidada para natildeo se prestar a equiacutevo-
cos
Para o fazer comeccedilaremos por considerar aquilo que se desenha nos fenoacutemenos em
causa ndash aqueles que vimos corresponderem ao conceito de ἐμπειρία Depois de os termos ana-
lisado passaremos entatildeo ao exame dos enunciados de Aristoacuteteles mais precisamente a) ao
exame da forma como uma parte deles parece exprimir justamente o que acabamos de descre-
ver como ldquofalsa pistardquo b) ao exame da forma como uma outra parte desses enunciados con-
grui perfeitamente com o que encontramos nos fenoacutemenos e finalmente c) ao exame da for-
ma como eacute possiacutevel entender os enunciados focados em a) de tal modo que natildeo implicam
27
A passagem a que nos expressamente referimos eacute a famosa passagem da Metafiacutesica (981a12 e ss)
em que se pode ler πρὸς μὲν οὖν τὸ πράττειν ἐμπειρία τέχνης οὐδὲν δοκεῖ διαφέρειν ἀλλὰ καὶ μᾶλλον
ἐπιτυγχάνουσιν οἱ ἔμπειροι τῶν ἄνευ τῆς ἐμπειρίας λόγον ἐχόντων αἴτιον δ᾽ ὅτι ἡ μὲν ἐμπειρία τῶν
καθ᾽ ἕκαστόν ἐστι γνῶσις ἡ δὲ τέχνη τῶν καθόλου αἱ δὲ πράξεις καὶ αἱ γενέσεις πᾶσαι περὶ τὸ καθ᾽
ἕκαστόν εἰσιν
93
qualquer conflito nem com aquilo que encontramos nos fenoacutemenos em causa nem com os
enunciados de Aristoacuteteles
O primeiro aspecto a considerar tem que ver com o facto de a ἐμπειρία ter que ver
sempre com semelhanccedila ndash com uma semelhanccedila na diversidade Quer dizer com uma se-
melhanccedila entre aquilo que natildeo eacute idecircntico no sentido pleno e estrito
Eacute isso mesmo que se acha expresso por Aristoacuteteles no passo de Met I (980b28ss) a
que sempre de novo voltamos (ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματοςrdquo) e eacute o que se deve
focar quando se fala do nexo entre ἐμπειρία e τοῦ ὁμοίου μετάβασις A saber a ἐμπειρία passa
sempre por um estabelecimento de nexos entre instacircncias natildeo absolutamente idecircnticas O seu
ponto de partida eacute a multiplicidade de μνῆμαι relativas a momentos de tempo diferentes (quer
dizer a ocorrecircncias perceptivas que natildeo satildeo rigorosamente idecircnticas)
Naturalmente que a base da ἐμπειρία tem que ver com aquilo que une ndash e natildeo com
aquilo que separa ndash essas vaacuterias ocorrecircncias Mas importa natildeo perder de vista que haacute justa-
mente um momento fundamental de natildeo-identidade absoluta e que o terreno em que se move
a ἐμπειρία eacute de raiz o terreno dessa natildeo-identidade
O que caracteriza a ἐμπειρία como vimos eacute que natildeo se limita a verificar a identidade
de conteuacutedos entre diferentes ocorrecircncias perceptivas (as ocorrecircncias perceptivas interrompi-
das dispersas que satildeo proacuteprias da μνήμη) antes potildee justamente ainda mais patrimoacutenio de di-
versidade ndash tudo aquilo que corresponde ao acreacutescimo do volume de realidade posta pela ἐμ-
πειρία (enquanto eacute proacuteprio dela preencher os intervalos em que natildeo houve percepccedilatildeo de nada
correspondente agraves πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος prolongar a seacuterie para aleacutem do seu
comeccedilo prolongaacute-la tambeacutem no futuro etc)
Ora isso significa um ponto muito importante que a proacutepria aparente eficaacutecia da ἐμπει-
ρία pode fazer esquecer se considerarmos aquilo que espontaneamente nos aparece como rea-
lidades singulares (esta mesa os oacuteculos a parede uma pessoa etc) natildeo se trata de algo que
jaacute laacute esteja antes da ἐμπειρία Vendo bem trata-se de um produto da ἐμπειρία (de algo que soacute
se constitui mediante a ἐμπειρία como resultado dela etc)
Quer dizer ao contraacuterio do que pode parecer agrave primeira vista o que espontaneamente
nos aparece como ldquorealidade singularrdquo ndash aquilo que constitui por assim dizer o limite da ἐμ-
πειρία ndash natildeo tem o caraacutecter de um dado a que a ἐμπειρία se ativesse ou tivesse de se ater por
se tratar de algo absoluto (por se tratar de algo preacute-existente agrave ἐμπειρία e que esta natildeo tivesse
condiccedilotildees de ultrapassar)
94
Acontece que eacute a proacutepria ἐμπειρία a constituir essa forma de singularidade ndash e isto de
tal modo que essa singularidade tem ela proacutepria um caraacutecter tal que resulta de uma siacutentese do
natildeo-idecircntico (ou para o dizer de modo a que fique mais claramente vincado o que pretende-
mos sublinhar de uma siacutentese do natildeo-singular)
Mas sendo assim poderia em todo o caso acontecer que a ἐμπειρία natildeo tivesse recur-
sos para avanccedilar para laacute das realidades singulares que ela proacutepria contribui para constituir Ou
seja poderia acontecer que a projecccedilatildeo empiacuterica (a τοῦ ὁμοίου μετάβασις empiacuterica) se esgo-
tasse em realidades singulares e nunca fosse mais aleacutem da constituiccedilatildeo de estados-de-coisas
permanentes como esta e aquela mesa esta e aquela parede esta e aquela pessoa etc Ou
como tambeacutem poderiacuteamos dizer poderia acontecer que a natureza fixada pela ἐμπειρία fosse
sempre soacute a natureza de realidades singulares e o complexo das fixaccedilotildees empiacutericas correspon-
desse no seu todo a qualquer coisa como uma multiplicidade de fixaccedilotildees todas elas apenas
dessa ordem (rigorosamente cingidas ao estabelecimento de estados-de-coisas singulares)
Acontece que natildeo eacute assim A projecccedilatildeo empiacuterica de modo nenhum se ateacutem a realida-
des singulares do tipo referido28
Satildeo vaacuterios os fenoacutemenos que ilustram esse facto ndash e natildeo cabe aqui consideraacute-los no
seu todo Focamos apenas alguns que bastam para pocircr na pista daquilo que se trata de focar
Quando por exemplo vemos pela primeira vez algueacutem ou alguma coisa estamos co-
mo que num momento inaugural da histoacuteria perceptiva relativa agrave realidade singular em causa
ndash natildeo haacute para traacutes quaisquer αἰσθήσεις ou quaisquer μνῆμαι disso Se a ἐμπειρία se ativesse a
realidades singulares e nunca ultrapassasse a sua fronteira entatildeo ao aparecer pela primeira
vez qualquer realidade singular careceria absolutamente de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγμα-
τος que pudessem constituir a base de qualquer ἐμπειρία a seu respeito ndash e teria de ocorrer
uma travessia perceptiva (e tanto quer dizer uma travessia mneacutesica) ateacute que se pudesse che-
gar a qualquer perspectiva empiacuterica a respeito disso
Acontece que natildeo eacute assim
Tal como as coisas se passam no preciso momento em que pela primeira vez vemos
uma parede num siacutetio onde nunca estivemos antes ou em que entra no nosso horizonte uma
pessoa que nunca tiacutenhamos visto antes isso que nos aparece natildeo nos aparece como uma reali-
28
Natildeo se discute aqui se natildeo comeccedila por esse tipo de fixaccedilotildees ndash de tal modo que soacute pas-sa para aleacutem
delas uma vez jaacute constituiacutedo esse tipo de projecccedilatildeo do dado O ponto decisivo a ter em conta eacute que de
todo o modo mesmo que assim seja natildeo se fica por aiacute
95
dade que acabou de se constituir agrave nossa frente nem tatildeo pouco nos aparece como algo tal que
se de repente desaparecer natildeo provoca espanto
Quer dizer no preciso momento em que vemos tais realidades pela primeira vez elas
aparecem-nos como realidades que vecircm de uma existecircncia passada (que eacute posta laacute por projec-
ccedilatildeo empiacuterica) e que vatildeo a caminho de uma continuaccedilatildeo de si (que eacute posta laacute por projecccedilatildeo
empiacuterica) De sorte que o espanto que se experimentaria se logo de seguida desaparecessem
sem deixar rasto tem que ver com o facto de nesse preciso momento em que aparecem pela
primeira vez jaacute estarem sob o efeito de uma projecccedilatildeo empiacuterica
Ou seja jaacute haacute ἐμπειρία a respeito de algo de que ainda natildeo haacute qualquer histoacuteria percep-
tiva (de que ainda natildeo haacute qualquer travessia de doaccedilatildeo no qua toca a essas realidades em cau-
sa) E nesse sentido deve perguntar-se de onde vem ela em que eacute que se funda
A resposta passa justamente pelo facto de a ἐμπειρία natildeo se ater de modo nenhum a
instacircncias singulares Sucede pelo contraacuterio que a ἐμπειρία tende naturalmente para fixa-
ccedilotildees que transgridem as fronteiras entre realidades singulares
A resposta passa pelo facto de os estados-de-coisas permanentes que a ἐμπειρία tem
propriamente como objecto (as leis ou instacircncias reguladoras que como vimos a ἐμπειρία
tem propriamente por objecto) de modo nenhum se cingirem a casos singulares avulsos O
que caracteriza a ἐμπειρία propriamente dita eacute o salto para a fixaccedilatildeo de leis ou instacircncias re-
guladoras que fazem que uma multiplicidade dada pareccedila ter de ser completada por mais do
que aquilo que foi dado (e pareccedila ter de ser completado em virtude de qualquer coisa como
um ter-de-ser-assim natildeo-poder-ser-de-outro-modo etc)
A ἐμπειρία transforma a semelhanccedila verificada numa multiplicidade de ocorrecircncias
percepcionadas na necessidade de ter-de-ser-assim fora dessa multiplicidade O facto de ser
assim constituiacuteda inclina-a a natildeo se ficar pelo domiacutenio desta ou daquela realidade singular e a
prosseguir a sua peculiar operaccedilatildeo de homogeneizaccedilatildeo para laacute das fronteiras das proacuteprias rea-
lidades singulares que como vimos ela mesma constitui
Por outras palavras a ἐμπειρία natildeo se limita a prescrever o comportamento que as per-
cepccedilotildees teriam de ter tido ndash se tiveacutessemos estado laacute quando natildeo estivemos ndash e que as percep-
ccedilotildees teratildeo de ter no futuro ndash se ou quanto viermos a estar laacute junto da realidade singular em
causa Aplica-se tambeacutem agraves πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος registaacuteveis entre diversas rea-
lidades ndash de tal modo que quando haacute o τὸ αὐτὸ πρᾶγμα correspondente agrave semelhanccedila (seme-
lhanccedila de determinaccedilotildees semelhanccedila de comportamento etc) entre realidades singulares a
96
ἐμπειρία faz exactamente o mesmo que levou agrave constituiccedilatildeo dessas realidades singulares
projecta semelhanccedila com base na semelhanccedila registada (neste caso a semelhanccedila transsingu-
lar) Isto eacute projecta estados-de-coisas permanentes (ie como vimos instacircncias reguladoras
de semelhanccedila trans-singular) ndash de tal modo que vecirc a semelhanccedila trans-singular perceptiva
efectivamente registada (ie a semelhanccedila trans-singular efectivamente registada) como ma-
nifestaccedilatildeo de uma regra de semelhanccedila trans-singular que vai aleacutem do campo perceptivo efec-
tivamente percorrido)
Eacute por isso que no primeiro momento em que vemos uma determinada realidade singu-
lar natildeo acontece que estejamos a seu respeito numa perspectiva preacute-empiacuterica Acontece em
vez disso que assim como a nova percepccedilatildeo de uma realidade singular de que jaacute haacute πολλαὶ
μνῆμαι natildeo ocorre sozinha (antes coincide com e se vem inscrever no quadro de uma anteci-
paccedilatildeo do que deve ocorrer) assim tambeacutem a primeira percepccedilatildeo de uma realidade singular
natildeo estaacute absolutamente sozinha coincide com a antecipaccedilatildeo que prescreve semelhanccedila a par-
tir de uma fixaccedilatildeo empiacuterica trans-singular ndash e que nesse sentido prescreve o que deve ser
(ou melhor aquilo que na oacuteptica empiacuterica tem de ocorrer)
O que assim se configura eacute apenas um indicio de um estado-de-coisas muito mais am-
plo e de que importa dar aqui uma ideia sucinta
Se considerarmos as funccedilotildees que a ἐμπειρία exerce na ldquodomesticaccedilatildeordquo do que nos ro-
deia verificamos que um dos seus efeitos mais essenciais eacute o de situar de cada vez o campo
perceptivo (aquela mancha de percepccedilotildees que de cada vez se tem) num campo de familiari-
dade correspondente aos estados-de-coisas permanentes resultantes das memoacuterias acumula-
das na travessia perceptiva dos campos de realidades circundantes
Nessa medida se nos reportarmos a cada momento de tempo (T1) onde soacute haacute um
campo perceptivo (P) verificamos que a realidade reconhecida como tendo lugar em T1 exce-
de a realidade percebida em P ndash e isto antes do mais pela conversatildeo em estados-de-coisas
permanentes das realidades percepcionadas (e retidas em μνήμη) antes de T1 Daiacute resulta que
na oacuteptica empiacuterica todos os campos perceptivos estejam sempre jaacute situados no meio de um
quadro de realidade (nota bene um quadro de realidade a ter lugar no proacuteprio instante de tem-
po de cada vez em causa) muito maior do que P
Mas por outro lado de maneira nenhuma acontece que a totalidade desse campo de
realidade correspondente ao conjunto das realidades singulares jaacute percepcionadas convertidas
em estados-de-coisas permanentes apareccedila por sua vez como uma clareira de realidade do-
97
mesticada no meio de um horizonte de perfeita incoacutegnita Seria assim que as coisas nos deve-
riam aparecer se o acircmbito da projecccedilatildeo empiacuterica se esgotasse na esfera das realidades singula-
res jaacute percepcionadas e de que jaacute haacute πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος
Com efeito se fosse assim tudo o que se situasse para laacute das realidades singulares jaacute
exploradas devia estar completamente em aberto (e corresponder nesse sentido agraves caracteriacutes-
ticas que vimos serem as de um ponto de vista inteiramente preacute-empiacuterico) Poreacutem natildeo eacute
assim
Quando olhamos para o exterior do campo de familiaridade no sentido referido temos
clara noccedilatildeo de que nunca laacute estivemos ndash mas isso natildeo faz que o encaremos como uma pura
incoacutegnita e para perceber que natildeo o encaramos como uma ldquopura incoacutegnitardquo basta ver como
reagimos agrave possibilidade de por exemplo esse exterior ser exactamente uma repeticcedilatildeo do
campo de familiaridade (quer dizer corresponder tal qual corresponder a uma repeticcedilatildeo ou a
uma seacuterie de repeticcedilotildees dele etc) Se o exterior do campo de familiaridade fosse uma absolu-
ta incoacutegnita essa absoluta incoacutegnita tambeacutem incluiria necessariamente esta possibilidade ndash
assim como incluiria neces-sariamente a possibilidade de se tratar de algo em tudo radical-
mente diferente (tal que por exemplo fosse inteiramente vazio ou ateacute natildeo tivesse nenhuma
estabilidade e variasse freneticamente o seu conteuacutedo ou se achasse preenchido por determi-
naccedilotildees completamente dissemelhantes etc)
Ora vendo bem na forma como vemos o exterior do campo de familiaridade natildeo estaacute
contemplada nem a possibilidade daquela repeticcedilatildeo integral nem a possibilidade desta dispari-
dade draacutestica
O que na verdade domina a nossa perspectiva sobre esse exterior eacute a) algo diferente de
uma perspectiva completamente aberta que corresponderia ao efectivo reconhecimento de
uma pura incoacutegnita (de sorte que na verdade mesmo quando reconhecemos a nossa ignoracircn-
cia a seu respeito natildeo julgamos saber alguma coisa sobre esse exterior) e b) algo que se ca-
racteriza por excluir ao mesmo tempo a possibilidade de algo absolutamente igual e de algo
absolutamente diferente
Para o expressar na linguagem de Leibniz a nossa perspectiva sobre o exterior estaacute
marcada pelo domiacutenio de qualquer coisa como um princiacutepio de semelhanccedila (a que Leibniz
98
chamou princiacutepio de Arlequim) e um princiacutepio de dissemelhanccedila (a que chama princiacutepio de
Tasso)29
Mas por outro lado vendo bem a nossa perspectiva sobre o exterior do campo de fa-
miliaridade natildeo estaacute dominada apenas por estes dois princiacutepios
Sucede em vez disso que jaacute estaacute decidida uma relaccedilatildeo de forccedilas entre eles ndash justamen-
te aquela que antecipa que a variaccedilatildeo se daraacute na observacircncia de semelhanccedila no que diz respei-
to agraves estruturas fundamentais da realidade (ou como Leibniz diz o princiacutepio de Arlequim diz
respeito ao ldquofonds des chosesrdquo e o princiacutepio de Tasso diz respeito a ldquodes manieres et apparen-
cesrdquo) Por outras palavras a perspectiva que temos sobre o exterior do campo de familiaridade
estaacute marcada por uma subordinaccedilatildeo de princiacutepio de Tasso ao princiacutepio de Arlequim Eacute aliaacutes
tanto assim que em uacuteltima anaacutelise natildeo se trata propriamente de dois princiacutepios mas apenas
de um traduzindo-se ao mesmo tempo numa antecipaccedilatildeo de semelhanccedila e de variaccedilatildeo
Em uacuteltima anaacutelise a variaccedilatildeo que se antecipa a respeito do exterior do campo de fami-
liaridade eacute uma variaccedilatildeo do tipo daquela que foi registada no seu acircmbito (sc na travessia per-
ceptiva que constitui a base da projecccedilatildeo empiacuterica responsaacutevel pelo campo de familiaridade)
Ou como tambeacutem podemos dizer o exterior do campo de familiaridade eacute visto como devem-
do ter de dissemelhante em relaccedilatildeo ao campo de familiaridade um prolongamento (uma pro-
jecccedilatildeo de prolongamento convertida em evidecircncia empiacuterica) do mesmo tipo de variaccedilatildeo (e
tanto quer dizer da relaccedilatildeo de forccedila entre a variaccedilatildeo e a semelhanccedila) que se registou na tra-
vessia perceptiva
Tudo isto corresponde apenas a uma anaacutelise sucinta de um fenoacutemeno bastante comple-
xo que natildeo cabe analisar aqui Mas o ponto fundamental que se pretende pocircr em evidecircncia
desenha-se com suficiente nitidez a partir do que se expocircs a projecccedilatildeo empiacuterica natildeo apenas
29
Podemos encontrar estes princiacutepios delineados em geral em dois passos da obra de Leibniz
Encontramos o princiacutepio de Arlequim em Nouveaux essais sur lrsquoentendement humain (cap XVII sect16
p 422) passo em que Leibniz escreve ldquoEntretiens pleins desprit et de savoir sur la pluraliteacute des
mondes a dit de jolies choses lagrave-dessus et a trouveacute lart deacutegayer une matiegravere fort difficile on dirait
quasi que cest dans lempire de la lune dArlequin tout comme icirdquo Quanto ao princiacutepio de Tasso po-
demos encontraacute-lo na Carta a Lady Masham datada de 8 de Maio de 1704 (GP 3 paacuteg 348) ldquoVoilagrave en
peu de mots toute ma philosophie bien populaire sans doute puisque elle ne reccediloit rien qui ne reacuteponde
agrave ce que nous experimenton et qursquoelle est fondeacutee sur deux dictions aussi vulgaires que celuy du thea-
tre italien que crsquoest ailleurs tout comme icy et cet autre du Tasse che per variar natura egrave bella qui
paroissent se contrarier mais qursquoil faut concilier en entendant lrsquoun du fond des choses lrsquoautre des ma-
nieres et apparencesrdquo
99
continua para laacute do limite das realidades singulares com que houve contacto na travessia
perceptiva mas de facto continua mesmo muito para laacute
A ἐμπειρία estaacute constituiacuteda de tal modo que tende justamente a produzir o registo da
semelhanccedila e a converter a semelhanccedila registada em qualquer coisa como um ter-de-ser soacute li-
mitado pelas restriccedilotildees que a proacutepria travessia perceptiva documenta
Assim por um lado se houver momentos de semelhanccedila natildeo-desmentida na totalidade
da travessia perceptiva estes momentos tendem a ser convertidos num ter-de-ser irrestrito Se
por outro lado houver elementos de semelhanccedila restringida (ie que eacute percebida como ape-
nas parcial ou regional) dentro do proacuteprio acircmbito da travessia perceptiva essa semelhanccedila
natildeo seraacute projectada como irrestrita
O que de qualquer modo eacute claro eacute que a proacutepria regra de variaccedilatildeo (o proacuteprio jogo de
semelhanccediladissemelhanccedila) que for registada como total ndash como natildeo desmentido no curso da
travessia perceptiva ndash eacute empiricamente projectada como algo com validade tambeacutem para o ex-
terior do campo de familiaridade
Ora como vimos antes a discussatildeo sobre as teses de Aristoacuteteles que visam estes as-
suntos tende a passar ao largo do facto de a ἐμπειρία natildeo se quedar na fixaccedilatildeo de realidades
singulares (por mais que tudo isto que agora vimos admita esta leitura) e costuma centrar-se
numa pretensa diferenciaccedilatildeo clara entre os planos da ἐμπειρία (enquanto a ἐμπειρία diz respei-
to a factos singulares καθ᾽ ἕκαστόν etc) e da τέχνηἐπιστήμη (enquanto τέχνηἐπιστήμη cons-
tituem fixaccedilotildees universais καθόλου etc)
Sendo assim poderia suceder com efeito que o caminho seguido na nossa anaacutelise dos
fenoacutemenos em causa e o caminho seguido por Aristoacuteteles fossem divergentes Mas vendo
bem natildeo eacute assim E importa recuperar alguns elementos do corpus aristotelicum que permi-
tem perceber com nitidez que natildeo eacute assim
Natildeo se trata aqui de seguir pari passu todos os enunciados de Aristoacuteteles que haveria
que considerar numa anaacutelise exaustiva desta questatildeo Atemo-nos a um que parece ser muito
significativo e que nos potildee na pista do fundamental
100
Num passo da Retoacuterica (II 21 1394a e ss) Aristoacuteteles fala da conexatildeo entre ἐμπειρία
e γνωμολογία O que vinca nesse passo eacute um nexo de correlaccedilatildeo ie aponta os adaacutegios como
expressatildeo tiacutepica daquilo que estaacute em causa na ἐμπειρία30
A descriccedilatildeo de Aristoacuteteles passa por mostrar que o que caracteriza os adaacutegios eacute preci-
samente a circunstacircncia de a sua extensatildeo ser supra-singular ie de natildeo se aterem a ldquoindiviacute-
duosrdquo Esta descriccedilatildeo de Aristoacuteteles traduz exactamente algo caracteriacutestico dos adaacutegios dize-
rem respeito a uma determinada classe ou a um determinado tipo de realidades
Considerem-se por exemplo os adaacutegios ldquoMarccedilo Marccedilagatildeo manhatilde de Inverno tarde
de Veratildeordquo ldquoDe pequenino eacute que se torce o pepinordquo etc
As classes em causa podem ser de maior ou de menor amplitude e essa variaccedilatildeo pode
ateacute ser muito significativa Poreacutem o que caracteriza os adaacutegios eacute o facto de mesmo quando a
amplitude da classe ou tipo em causa eacute menor (e portanto a extensatildeo do juiacutezo em causa o eacute
tambeacutem) o miacutenimo de amplitude ou extensatildeo caracteriacutestico de um adaacutegio ser sempre algo
que agrupa uma multiplicidade de instacircncias singulares e corresponde agrave fixaccedilatildeo de um esta-
do-de-coisas trans-singular
Por outro lado percebe-se tambeacutem em que sentido Aristoacuteteles pode falar de um nexo
entre os adaacutegios e a ἐμπειρία
Natildeo parece dar-se o caso de que todas as fixaccedilotildees empiacutericas se exprimam em adaacutegios
ndash e tambeacutem natildeo eacute este o lugar para averiguar que eacute que determina que umas se exprimam des-
se modo e outras natildeo O uacutenico ponto que interessa fazer notar e que resulta do jaacute exposto eacute
que fixaccedilotildees empiacutericas na esfera de realidades singulares natildeo se traduzem em adaacutegios O que
importa aqui eacute o facto de os adaacutegios darem expressatildeo a fixaccedilotildees de natureza empiacuterica e serem
justamente exemplos acabados do tipo de fixaccedilatildeo que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία
Por outras palavras se natildeo houvesse ἐμπειρία (se a perspectiva em que nos encontra-
mos fosse uma perspectiva puramente esteacutesica ou mneacutesica) natildeo haveria qualquer lugar para
adaacutegios ndash os quais tecircm de proacuteprio justamente uma decisiva componente de antecipaccedilatildeo ou de
30
Cf com os Prolegomena (A1112) de Kant ldquoWenn Einsicht und Wissenschaft auf die Neige gehen
alsdann und nicht eher sich auf den gemeinen Menschenverstand zu berufen das ist eine von den sub-
tilen Erfindungen neuerer Zeiten dabei es der schalste Schwaumltzer mit dem gruumlndlichsten Kopfe getrost
aufnehmen und es mit ihm aushalten kann Solange aber noch ein kleiner Rest von Einsicht da ist
wird man sich wohl huumlten diese Nothuumllfe zu ergreifen Und beim Lichte besehen ist diese Appella-
tion nichts anderes als eine Berufung auf das Urteil der Menge ein Zuklatschen uumlber das der Philo-
soph erroumltet der populaumlre Witzling aber triumphiert und trotzig tutrdquo
101
μετάβασις τοῦ ὁμοίου ndash e isto de tal modo que o horizonte (o terminus ad quem da transgres-
satildeo constitutiva do adaacutegio) corresponde sempre agrave totalidade das instacircncias singulares de um
determinado modo-de-ser
Assim no caso do adaacutegio ldquoMarccedilo Marccedilagatildeo helliprdquo o que estaacute em causa natildeo eacute um de-
terminado Marccedilo nem uns poucos Marccedilos (natildeo se trata da expressatildeo de μνῆμαι) mas sim a
classe dos ldquoMarccedilosrdquo ndash quer dizer de todos os Marccedilos De tal modo que mesmo que o adaacutegio
natildeo recorra ao ldquoquantificadorrdquo universal o que estaacute em causa nele eacute justamente isso uma re-
gra universal ou uma lei ndash quer dizer um estado-de-coisas no sentido que vimos ser o dos es-
tados-de-coisas que constituem o correlato da ἐμπειρία
E algo de equivalente vale tambeacutem para ldquoDe pequenino eacute que se torce o pepinordquo Na
sua forma metafoacuterica o adaacutegio torna expressa a μετάβασις τοῦ ὁμοίου e enuncia uma regra ndash
uma lei que pretende ser vaacutelida para um conjunto muito vasto de coisas a respeito das quais se
diz que se se pretende moldaacute-las haacute que comeccedilar a intervir cedo etc
Em suma a diferenccedila entre ἐμπειρία e aquilo que se situa acima dela na escala eacute tatildeo
pouco uma diferenccedila de extensatildeo (ou de ldquoquantificadoresrdquo) que em uacuteltima anaacutelise pode mui-
to bem acontecer que o complexo das projecccedilotildees empiacutericas que estatildeo postas de peacute num dado
campo de aparecimento (por exemplo aquele em que damos connosco) tenha exactamente a
mesma extensatildeo (a mesma amplitude de pretensatildeo de validade) que aquilo que Aristoacuteteles si-
tua na quarta etapa da escala
Sendo assim Aristoacuteteles declara que a ἐμπειρία diz respeito ao καθ᾽ ἕκαστόν e soacute aqui-
lo que se situa para laacute da ἐμπειρία (a τέχνη ou ἐπιστήμη) capta o universal por duas razotildees fun-
damentais31
Em primeiro lugar mesmo que a ἐμπειρία possa muito bem recorrer a generalizaccedilotildees
(a operadores universais etc) o recurso a essas generalizaccedilotildees (ou a esses operadores univer-
sais) tem na ἐμπειρία um caraacutecter casuiacutestico preocupado sobretudo com uma aplicaccedilatildeo con-
creta em casos singulares
Isso eacute justamente algo que se exprime no uso dos adaacutegios quando se diz que ldquoMarccedilo
Marccedilagatildeo manhatilde de Inverno tarde de Veratildeordquo ou ldquoDe pequenino eacute que se torce o pepinordquo o
que estaacute em causa eacute aquilo com que se deve contar num determinado Marccedilo ou o tempo em
31
Atemo-nos aqui ao fundamental Para uma discussatildeo mais detida ver Carvalho MJ Erfahrung
und Endlichkeit Grundzuge und Zweideutigkeit des Erfahrungsbegriffs im Ausgang von Aristoteles
in Quid ndash Revista de Filosofia nordm 1 ed Cotovia (Lisboa 2000) pp 180 e seguintes
102
que se deve intervir se efectivamente se pretende moldar a forma de uma determinada coisa
Quer dizer a projecccedilatildeo empiacuterica recorre a functores ou a fixaccedilotildees universais de tal modo que
os usa para fixar estados-de-coisas singulares ndash e estaacute sobretudo focada nestes uacuteltimos
Nesse sentido o contacto da ἐμπειρία com os operadores universais a que recorre eacute co-
mo que centriacutefugo Trabalha com eles mas natildeo os considera detidamente eacute moldado por eles
mas natildeo os tem como objecto
Daqui decorre que se por um lado a ἐμπειρία eacute relativa ao καθ᾽ ἕκαστόν por outro la-
do o modo como eacute relativa ao καθ᾽ ἕκαστόν deve ser posto em contraste com o se passa no ca-
so das ἐπιστήμαι e com o modo como as ἐπιστήμαι satildeo relativas ao καθ᾽ ἕκαστόν Uma das ca-
racteriacutesticas das ἐπιστήμαι eacute precisamente o estarem focadas nos proacuteprios operadores univer-
sais enquanto tais ndash o facto de terem os proacuteprios operadores universais expressamente como
objecto
Tambeacutem podemos exprimir este contraste dizendo que a ἐμπειρία recorre inexpliacutecita-
mente a leis (ou pretensas leis fixaccedilotildees com forma de lei) mas estaacute voltada sobretudo para o
que resulta da sua aplicaccedilatildeo ao passo que aquilo que se situa acima da ἐμπειρία estaacute voltada
para a identificaccedilatildeo e compreensatildeo das proacuteprias leis enquanto tais
Isto leva-nos a um segundo aspecto que permite compreender que eacute que Aristoacuteteles
pode ter em vista quando escreve que a ἐμπειρία incide sobre o καθ᾽ ἕκαστόν e soacute aquilo que
jaacute eacute superior agrave ἐμπειρία incide sobre o καθόλου Esse segundo aspecto tem que ver com a pe-
culiaridade da terminologia aristoteacutelica ndash ou com uma diferenccedila entre a semacircntica do seu uso
de καθόλου e aquilo que tendemos a associar ao conceito de ldquouniversalrdquo
Tal como o entendemos o termo ldquouniversalrdquo designa sobretudo uma propriedade de
extensatildeo Poreacutem haacute alguns passos do corpus aristotelicum (veja-se por exemplo Met
982a20) que tomam outra direcccedilatildeo Quando dizemos que tomam outra direcccedilatildeo isso natildeo sig-
nifica que o καθόλου tal como Aristoacuteteles usa o termo natildeo tenha nada que ver com extensatildeo
significa que natildeo tem que ver apenas com extensatildeo
Com efeito Aristoacuteteles estabelece um nexo sobre o καθόλου e aquilo que eacute responsaacute-
vel por as coisas (as coisas abrangidas pelo καθόλου em causa) serem como satildeo Quer dizer a
posse do καθόλου natildeo eacute apenas a posse de uma determinaccedilatildeo com determinadas caracteriacutesti-
103
cas de extensatildeo ndash eacute a posse da determinaccedilatildeo que permite compreender o ldquoporquecircrdquo de um de-
terminado estado-de-coisas32
32
O termo usado por Aristoacuteteles eacute o termo αἱτία O termo αἱτία eacute frequentemente traduzido por causa
mas a noccedilatildeo de ldquocausardquo dada a sua forte carga histoacuterica e semacircntica pode ser uma noccedilatildeo equiacutevoca e
talvez o seu sentido fique mais claro levando em conta que o que Aristoacuteteles diz eacute que o que tem ex-
periecircncia acompanha o que se passa mas natildeo o de onde ou o por que do que se passa Um breve peacute-
riplo pelo corpus aristotelicum poderaacute mostrar-nos o que estaacute efectivamente em jogo nesta noccedilatildeo
O exemplo a que Aristoacuteteles recorre eacute o exemplo do acompanhamento de uma doenccedila A ἐμπειρία pa-
rece capaz de acompanhar o estado de sauacutede e o estado de doenccedila e de contrapor um ao outro ndash mas
isso parece corresponder a uma mera sinalizaccedilatildeo dos efeitos ou das consequecircncias desses estados
Assiste aos estados em bruto catalogando dados e caracteriacutesticas de um e outro estado e isolando o
estado da doenccedila tendo desse estado experiecircncia ou tendo com ele familiaridade ateacute eacute capaz de regis-
tar o que se passa e prescrever o medicamento y para a doenccedila x Isto eacute por via da experiecircncia conse-
gue-se seguir casos particulares e registar uma relaccedilatildeo entre a doenccedila x e o medicamento y que nos ca-
sos particulares seguidos a curou Mas tudo isto sem dispor de uma compreensatildeo eficaz do por que da
doenccedila ou do por que da cura ndash e isto porque a ἐμπειρία natildeo estaacute em condiccedilotildees de garantir a universa-
lidade da cura a todos os casos possiacuteveis da doenccedila para que estaria capacitada se tivesse a αἱτία dela
Dito de outro modo a ἐμπειρία faz um acompanhamento da doenccedila mas de tal modo que deixa escapar
algo de fundamental acerca da doenccedila a αἱτία dela isso que a faz Regista o que se passa mas natildeo ace-
de ao por que se passa assim Haacute jaacute um acesso ndash e com ele a pretensatildeo de captaccedilatildeo mas nesse acesso
escapa a αἱτία ndash e por isso fica aqueacutem de τέχνη e έπιστήμη Eacute a isso que Aristoacuteteles se refere quanto
em Anal Post 87a31 afirma que o conhecimento simultacircneo do que se passa e da causa do que se
passa por contraste ao conhecimento de um sem a outra eacute mais preciso e tem precedecircncia E sintetiza
em 981a27 soacute aquele que tem τέχνη estaacute na posse da αἱτία
Jaacute estamos portanto em melhores condiccedilotildees para dizer algo acerca da αἱτία Por αἱτία devemos enten-
der o agente activo que marca a diferenccedila entre algo ser e natildeo ser o agente que faz com que algo ve-
nha a ser Eacute algo que tem portanto um ascendente sobre um seu correlato que vem a ser na forma de
uma responsabilidade sobre o vir a ser do seu correlato ndash eacute isso o que faz com que o seu correlato ve-
nha a ser e sem o qual esse natildeo viria a ser Nesse sentido a αἱτία gera algo antes natildeo existia (no caso
por exemplo a doenccedila onde antes havia sauacutede) seraacute portanto um limiar de origem sine qua non a
transposiccedilatildeo do natildeo ser ao ser do correlato natildeo se daria e que responde pelo que vier a ser do correlato
que tem sobre ele influecircncia ou predomiacutenio decisivo Assim o que viraacute a ser do correlato estaacute preacute-de-
terminado pela αἱτία o correlato viraacute a ser em funccedilatildeo da αἱτία que o potildee condicionado por ela Essa
condiccedilatildeo tem expressatildeo nos efeitos ie no modo como o correlato se manifesta no que o correlato
efectivamente eacute Veja-se o caso da doenccedila as expressotildees da doenccedila satildeo sintomas iacutendices os modos
da sua manifestaccedilatildeo e por isso a pergunta pela αἱτία da doenccedila eacute de facto a pergunta pelo ser da doen-
ccedila no sentido de que a αἱτία da doenccedila eacute isso por que a doenccedila veio a ser doenccedila e que tem por conse-
quecircncias as manifestaccedilotildees da doenccedila que a ἐμπειρία acompanha Essas manifestaccedilotildees esses efeitos
satildeo portanto derivados recebidos de algo precedente em relaccedilatildeo ao qual estatildeo e seraacute a partir destas
consideraccedilotildees que comeccedilamos a compreender as diferenccedilas entre a perspectiva sobre a doenccedila que
tem a ἐμπειρία e a perspectiva sobre a doenccedila que tecircm τέχνη ou έπιστήμη
104
Em suma no conceito aristoteacutelico de καθόλου cruzam-se duas determinaccedilotildees a) uma
determinaccedilatildeo relativa agrave extensatildeo a respeito da qual se acrescenta que isso que se caracteriza
pela extensatildeo em causa tambeacutem tem um caraacutecter tal que eacute um princiacutepio responsaacutevel por as
coisas serem como satildeo e b) uma determinaccedilatildeo relativa ao exerciacutecio da funccedilatildeo (ser o ldquopor-
quecircrdquo) a respeito do qual se acrescenta que o ldquoporquecircrdquo natildeo tem um caraacutecter singular mas sim
o caraacutecter de qualquer coisa como uma ldquoleirdquo que se aplica a todo um domiacutenio de modalida-
des
Ora este segundo aspecto potildee-nos na pista daquilo que eacute efectivamente decisivo para
se compreender a finitude da experiecircncia (ie para se compreender o modo como fica aqueacutem
da etapa seguinte da escala)
sect15
A ilusatildeo de acompanhar e perceber o ldquoporquecircrdquo das coisas
O que se comeccedilou a desenhar no fim da secccedilatildeo anterior eacute que Aristoacuteteles parece cha-
mar a atenccedilatildeo para o facto de a experiecircncia natildeo saber que eacute que ldquofazrdquo aquilo com que lida
Ora se considerarmos as secccedilotildees anteriores estamos em condiccedilotildees de avanccedilar que is-
so tem que ver antes de mais com a ligaccedilatildeo entre a ἐμπειρία e as αἰσθήσεις
Como vimos o conteuacutedo das αἰσθήσεις (retido em μνῆμαι) eacute modificado por uma ex-
traordinaacuteria inovaccedilatildeo formal ndash a extraordinaacuteria inovaccedilatildeo correspondente agrave figura do ldquoestado-
de-coisas permanenterdquo que os conteuacutedos das αἰσθήσεις passam a revestir E se a relaccedilatildeo entre
as μνῆμαι e as αἰσθήσεις tem qualquer coisa de um idem sed aliter o mesmo se pode dizer
tambeacutem em relaccedilatildeo agrave ἐμπειρία
Note-se adicionalmente que a introduccedilatildeo do factor da αἱτία elimina em definitivo a possibilidade de a
diferenccedila entre ἐμπειρία e τέχνη e έπιστήμη ser uma diferenccedila numeacuterica ou de quantidade Poder-se-ia
objectar o que natildeo eacute suficiente para obter dados fiaacuteveis eacute a amostra de uns poucos casos ndash mas a tese
de Aristoacuteteles natildeo eacute essa a ἐμπειρία falha porque natildeo tem a αἱτία da doenccedila Natildeo tem o que a consti-
tui o que a faz ou o que a potildee a ser Quer dizer mesmo o acompanhamento de todos os casos seria
ainda insuficiente caso faltasse a αἱτία A ἐμπειρία tem os efeitos apartados da αἱτία que os faz ndash natildeo
haacute τέχνη ou έπιστήμη sem a reposiccedilatildeo deste nexo sem que os efeitos sejam efeitos da αἱτία que os faz
A ἐμπειρία limita o seu acompanhamento aos efeitos e deixa escapar o ser proacuteprio das coisas Enfim a
diferenccedila entre a terceira e a quarta etapa da escala eacute uma diferenccedila qualitativa
105
Em certo sentido a ἐμπειρία natildeo faz senatildeo multiplicar exponencialmente os conteuacutedos
das αἰσθήσεις Essa multiplicaccedilatildeo exponencial natildeo poderia fazer-se sem a extraordinaacuteria ino-
vaccedilatildeo que ela proacutepria introduz
Contudo a inovaccedilatildeo em causa opera justamente com os conteuacutedos das αἰσθήσεις ndash eacute
inovadora enquanto projecccedilatildeo mas o que projecta satildeo αἰσθήσεις (determinaccedilotildees de ἀισθή-
σεις) E eacute esse aspecto que estaacute na base do conceito mais comum de experiecircncia ndash que tende a
esquecer a transgressatildeo do dado e acentua unilateralmente a dependecircncia da experiecircncia em
relaccedilatildeo agrave travessia perceptiva e a sua fidelidade agravequilo que eacute encontrado no curso dessa tra-
vessia
Acontece que se eacute assim haacute que ter presente por outro lado que os conteuacutedos das
αἰσθήσεις testemunham a presenccedila de algo mas natildeo mostram que eacute o que ldquofazrdquo (o que eacute que
transporta a diferenccedila entre isso e a sua ausecircncia) Quer dizer a doaccedilatildeo que eacute proacutepria das ἀισ-
θήσεις testemunha a presenccedila desta ou daquela determinaccedilatildeo mas natildeo identifica aquilo que eacute
responsaacutevel por ela (natildeo faz ideia como estaacute ldquomontadordquo aquilo a que assiste sobre ldquoquecircrdquo eacute
que estaacute ldquomontadordquo aquilo a que assiste etc)
Ora na medida em que projecta e multiplica os conteuacutedos das αἰσθήσεις e natildeo acede a
outros tambeacutem a ἐμπειρία partilha dessa falta de perspectiva e natildeo faz a mais pequena ideia
do que efectivamente ldquopotildeerdquo ou ldquofazrdquo as determinaccedilotildees com que lida33
33
Em Anal Post 88a5 Aristoacuteteles afirma que o valor do universal estaacute em expor a αἱτία Mas imedia-
tamente antes diz algo que poderia pocircr agrave tese que temos vindo a defender alguns problemas que a ob-
servaccedilatildeo de instacircncias repetidas de um dado acontecimento poderia fazer-nos alcanccedilar o universal e
acrescenta ainda que eacute a partir da repeticcedilatildeo de experiecircncias particulares que se ganha perspectiva sobre
o universal Isto parece dar a indicaccedilatildeo de que afinal a αἱτία eacute passiacutevel de ser captada por via estatiacutesti-
ca e de que a posse da αἱτία eacute passiacutevel de ser provada a cada nova instacircncia que o que se sabe
Vejamos qual eacute o assunto sobre o qual se debruccedila Aristoacuteteles para compreender melhor o que estaacute em
causa Desde 87a28 o problema que ocupa Aristoacuteteles eacute o de tentar provar que a έπιστήμη natildeo pode
ser adquirida por meio da αἴσθησις A αἴσθησις como jaacute vimos providencia um complexo de qualida-
des a contracccedilatildeo dessas num ldquoobjectordquo implica que a αἴσθησις estaacute jaacute permeada de ἐμπειρία Levanta-
se entatildeo um problema mesmo assumindo que a αἴσθησις captasse um ldquoobjectordquo em qualquer caso a
αἴσθησις captaria um ldquoobjectordquo particular (num dado espaccedilo e tempo com uma conformaccedilatildeo particu-
lar etc) e natildeo um objecto tipificado ou universal a partir do qual se pudesse deduzir uma demonstra-
ccedilatildeo
Acontece que aquilo que eacute universal natildeo pode ser captado pela αἴσθησις precisamente porque natildeo eacute
dado por um espaccedilo por um tempo ou por uma conformaccedilatildeo particular mas aplica-se a todos os es-
paccedilos a todos os tempos e a todas as conformaccedilotildees
106
Na verdade o caso eacute ainda mais complexo
O caso eacute mais complexo porque a inovaccedilatildeo formal que eacute caracteriacutestica da ἐμπειρία (en-
quanto a ἐμπειρία tem que ver com a assunccedilatildeo da forma de lei) cria justamente a ilusatildeo de
aceder agravequilo que ldquofazrdquo que as determinaccedilotildees perceptivamente testemunhadas sejam ndash ou te-
nham de ser ndash como satildeo Ou seja porque tem a forma de lei a ἐμπειρία cria a ilusatildeo de
acompanhar e perceber o ldquoporquecircrdquo das coisas
Para perceber como eacute assim haacute que ter presentes sobretudo dois aspectos
Em primeiro lugar a projecccedilatildeo empiacuterica quando se produz natildeo tem nenhum outro da-
do para laacute daquele que transgride ndash eacute uma fixaccedilatildeo em uacuteltima anaacutelise sempre abusiva e que
natildeo tem nada que a sustente
Se por uma parte como vimos esse facto eacute compensado pela peculiar evidecircncia de
um ter-de-ser-assim (de um natildeo-poder-ser-de-outro-modo pela extraordinaacuteria forccedila dessa evi-
decircncia que faz que a experiecircncia assuma a forma de uma lei) por outra parte a experiecircncia
natildeo produz mais do que a mera aparecircncia de uma lei
A ldquoleirdquo empiacuterica natildeo eacute outra coisa senatildeo a proacutepria regularidade empiacuterica arvorada em
mais do que isso A ldquoevidecircnciardquo do ter-de-ser-assim (do natildeo-poder-ser-de-outro-modo todo o
caraacutecter necessitante da projecccedilatildeo empiacuterica etc) estaacute montada em falso natildeo tem nada que
Poderia ainda assim dar-se o caso de que por um qualquer acidente aquilo que a αἴσθησις captasse de
um objecto particular dissesse igualmente respeito a todos os objectos do mesmo tipo desse mas isso
em qualquer caso natildeo poderia ser garantido por meio da αἴσθησις jaacute que a αἴσθησις continuaria apli-
cada apenas em cada caso particular e natildeo ganharia perspectiva para laacute desse Apesar de tudo a ser
possiacutevel essa coincidecircncia ela estaria sob oacutenus de prova Daqui decorre que a prova se obteria pela
observaccedilatildeo de instacircncias repetidas de um dado acontecimento e a partir da repeticcedilatildeo de experiecircncias
particulares ganhar-se-ia perspectiva sobre o universal
Ora segundo a nossa leitura o resultado dessa prova seria empiacuterico e natildeo como diz Aristoacuteteles epis-
teacutemico aquilo que se obteria seria a confirmaccedilatildeo de que o que quer que fosse que se tivesse captado
tivera de novo ocorrecircncia em cada uma das instacircncias particulares em que tinha estado a teste natildeo se
podendo extrair daiacute validade universal ndash seria por outras palavras um reconhecimento de que foi
assim ou de que tem sido assim mas natildeo a antecipaccedilatildeo de que sempre seraacute assim
Acontece que a repeticcedilatildeo permite ter em vista a αἱτία jaacute que a repeticcedilatildeo nos abre a uma constacircncia
nessa constacircncia haacute um vislumbre da αἱτία jaacute que a αἱτία eacute o que potildee a constacircncia O que dissemos
atraacutes manteacutem-se vaacutelido porque da repeticcedilatildeo podemos ser ou natildeo ser bem sucedidos na captaccedilatildeo da
αἱτία haacute um salto o salto que vimos atraacutes corresponder agrave mudanccedila do terceiro para o quarto patamar
da escala entre detectar ou registar uma repeticcedilatildeo e compreender a αἱτία que potildee a ser ou que obriga a
ser assim Se se tiver sucesso em obter da mateacuteria que essa repeticcedilatildeo constitui αἱτία entatildeo haacute έπιστήμη
107
efectivamente a sustente Eacute justamente por isso que natildeo estaacute ao abrigo da possibilidade de vir
a ser infirmada
Em segundo lugar embora a experiecircncia tenha como correlato esse excesso sobre a re-
gularidade perceptivamente registada (as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος) embora a ex-
periecircncia tenha propriamente como correlato o estado-de-coisas permanente a ldquoquase-leirdquo
empiacuterica ndash aquilo que a caracteriza enquanto experiecircncia eacute natildeo fazer ideia do que constitui
esse estado-de-coisas permanente (ie o que a caracteriza eacute a ldquoquase-leirdquo que tem por correla-
to)
Tomemos por exemplo a projecccedilatildeo empiacuterica de que a mesa agrave nossa frente a caneta
com que escrevemos a matildeo etc vatildeo continuar a ser nos momentos que se seguem e daqui a
dois minutos e daqui a uma hora etc Esperamos o tempo devido e a projecccedilatildeo empiacuterica em
causa vecirc-se confirmada Poreacutem o registo de que eacute assim natildeo implica que tenhamos ideia do
que faz que assim seja ndash natildeo implica que tenhamos ideia de como a realidade da mesa e da ca-
neta e da matildeo etc se transmite de um momento ao momento seguinte e desse a outro e desse
a outro e assim sucessivamente
Vendo bem a projecccedilatildeo empiacuterica tem um caraacutecter formal ndash ela eacute precisamente isso
uma forma (a forma ldquoestado-de-coisas permanenterdquo a forma da quase-lei empiacuterica etc) E
pode-se falar de ldquoformardquo precisamente porque ela eacute exactamente a mesma para todos os muito
diversos conteuacutedos perceptivos a que eacute aplicada
Em terceiro lugar sendo assim a ἐμπειρία tambeacutem natildeo faz ideia do que ldquofazrdquo esta
quase-lei que tem sempre no seu centro
Quer dizer se a ἐμπειρία tem uma constituiccedilatildeo formal tambeacutem natildeo faz ideia do que
faz a sua proacutepria forma ndash de qual eacute a determinaccedilatildeo que lhe corresponde Na verdade como vi-
mos nem sequer se apercebe da sua proacutepria composiccedilatildeo (de que tem uma composiccedilatildeo formal
etc)
Este eacute um ponto de particular importacircncia quer em relaccedilatildeo agravequilo que ldquoimportardquo da
αἴσθησις (sc da μνήμη) quer em relaccedilatildeo agravequilo que ela mesma acrescenta e com que trans-
forma os conteuacutedos da αἴσθησις e da μνήμη a ἐμπειρία soacute lida com determinaccedilotildees a respeito
das quais pura e simplesmente natildeo sabe em que eacute que consistem ndash que eacute que as ldquofazrdquo Em uacutelti-
ma anaacutelise a ἐμπειρία eacute formal pelas determinaccedilotildees da αἴσθησις e da μνήμη arvoradas em
muito mais do que isso ndash mas arvoradas em muito mais do que isso por forccedila de um operador
que na verdade eacute cego
108
Tocamos aqui a particular combinaccedilatildeo de propriedades que faz que por um lado a ex-
periecircncia represente como vimos um extraordinaacuterio ldquosaltordquo (uma explosatildeo de perspectiva)
em relaccedilatildeo agrave αἴσθησις e agrave μνήμη mas por outro lado fica muito aqueacutem de realizar efectiva-
mente aquilo que parece Eacute esse se assim se pode dizer o paradoxo da ἐμπειρία
Por um lado a ἐμπειρία distingue-se pela extraordinaacuteria forccedila de que se reveste Essa
ldquoforccedilardquo tem que ver com a extraordinaacuteria amplitude da ἐμπειρία ndash com a forma como produz
por atacado fixaccedilotildees que cobrem domiacutenios de extraordinaacuteria dimensatildeo E tem que ver sobre-
tudo com aquilo que permite esta extraordinaacuteria amplitude e que eacute por assim dizer o ldquoponto
arquimeacutedicordquo da ἐμπειρία a forma de lei (aquilo a que acabamos de chamar a ldquoquase-lei em-
piacutericardquo) Por outro lado no entanto a ἐμπειρία ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo estaacute
montada completamente ldquoem falsordquo
Isto eacute assim por diversas razotildees
A primeira razatildeo tem que ver com a falta de base ndash com a desproporccedilatildeo entre aquilo
que serve de base da ldquoamostragemrdquo e o territoacuterio a respeito do qual a ἐμπειρία legisla Diz-se
que a experiecircncia ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo porque na verdade a experiecircncia natildeo
tem fundamento suficiente para a legislaccedilatildeo (para a quase-lei para o ter-de-ser-assim etc)
que produz
A segunda razatildeo tem que ver com o facto de a ἐμπειρία natildeo dominar as proacuteprias deter-
minaccedilotildees com que lida
A terceira razatildeo tem que ver com o facto de que quando se acentua unilateralmente o
problema do abuso que a ἐμπειρία comete quando produz a μετάβασις τοῦ ὁμοίου e legisla so-
bre aquilo que natildeo se vecirc sobre a base do que se vecirc a focagem unilateral do primeiro ponto faz
esquecer o segundo E o resultado eacute que inadvertidamente se labora na pressuposiccedilatildeo inex-
pliacutecita de que a experiecircncia domina perfeitamente as determinaccedilotildees com que lida percebem
muito bem os conteuacutedos em causa etc
Assim a acentuaccedilatildeo unilateral de um dos aspectos ldquobeneficiardquo a ἐμπειρία ndash porque faz
esquecer que a ἐμπειρία tambeacutem ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo no que diz respeito agraves
determinaccedilotildees com que labora pois produz a impressatildeo de saber muito bem o que as faz
quando na verdade aquilo que toma como fonte desse saber eacute algo que se for posto em foco
acaba por se revelar com um caraacutecter de punctum caeligcum
Por outras palavras ao contraacuterio do que parece no centro das suas fixaccedilotildees a ἐμπειρία
tem nem se sabe bem o quecirc
109
Isso natildeo quer dizer que a ἐμπειρία natildeo funciona Acontece que no centro da sua ex-
traordinaacuteria forccedila estaacute uma extraordinaacuteria fraqueza ndash que vai mesmo ao ponto de no fulcro
das operaccedilotildees que constituem a ἐμπειρία estarem nem mais nem menos do que puncta coeca ndash
qualquer coisa como um vazio de conteuacutedo
De tudo isto resulta algo muito peculiar a ἐμπειρία funciona enquanto estiver distraiacuteda
relativamente agrave forma como estaacute composta ndash quer dizer numa atmosfera de falta de acuidade
Eacute esse o seu meio natural onde preserva toda a sua forccedila e manteacutem escondida a sua fraqueza
Se pelo contraacuterio for submetida a exame (e esse exame se processar com efectivo
acreacutescimo de acuidade) acaba por revelar ateacute que ponto vai a sua fragilidade cognitiva a sua
falta de fundamento e o que tem de cego acabam por se revelar como algo que a acompanha e
a mina de uma ponta agrave outra
Mas por outro lado a sua forccedila eacute tal que tende a resistir a este exerciacutecio de desmasca-
ramento ndash e a continuar a afirmar-se como se nada fosse Na verdade mesmo quanto temos
plena consciecircncia das fraquezas da ἐμπειρία (mesmo quanto expomos como temos tentado fa-
zer nesta secccedilatildeo as suas falecircncias) ela continua a operar em noacutes intacta e soacute quando cada
um de noacutes se torna ciente desse facto se tem pela primeira vez plena consciecircncia da forccedila da
ἐμπειρία e do modo como apesar de tudo se impotildee
Isto permite-nos perceber a relaccedilatildeo entre os fenoacutemenos aqui em causa (os fenoacutemenos
que constituem a experiecircncia) e aquilo que encontramos numa das mais antigas descriccedilotildees de-
les ndash aquilo que encontramos no livro VII da Repuacuteblica de Platatildeo (516c5 e ss)
Ao descrever o tipo de acesso que haacute no fundo da caverna Soacutecrates realccedila que os pri-
sioneiros natildeo compreendem nada do que se estaacute a passar na situaccedilatildeo em que se encontram
(natildeo fazem a menor ideia do que eacute aquilo que vecircem natildeo sabem o que faz aquilo que vecircem
etc) mas desenvolvem uma grande periacutecia na detecccedilatildeo de padrotildees de regularidade naquilo
que lhes aparece
Na verdade natildeo se trata apenas de padrotildees de regularidade em regime puramente nu-
meacuterico Trata-se da constituiccedilatildeo de complexos de antecipaccedilotildees que lhes permitem aventurar-
se em relaccedilatildeo ao que haacute-de aparecer
Ora ainda que o texto natildeo fale explicitamente de ldquoexperiecircnciardquo ou natildeo aborde o as-
sunto senatildeo num sentido operativo estamos em condiccedilotildees de compreender tendo em conta o
que vimos atraacutes que esses padrotildees de regularidade convertidos em antecipaccedilotildees tomam pa-
110
ra os prisioneiros a forma de leis (sc de quase-leis no sentido oportunamente referido) De
sorte que aquilo de que se estaacute a falar eacute de facto o fenoacutemeno da experiecircncia
Importa-nos este passo da Repuacuteblica porque ele potildee em contraste por um lado o que
seria uma captaccedilatildeo aguda do que aparece (no caso a compreensatildeo das sombras como som-
bras a compreensatildeo da situaccedilatildeo em que ocorrem daquilo que lhes daacute origem etc) e por ou-
tro aquele tipo de captaccedilatildeo que os prisioneiros tecircm em relaccedilatildeo agrave qual ateacute podem desenvolver
grande periacutecia a detecccedilatildeo de padrotildees de regularidade e a sua conversatildeo num sistema de do-
miacutenio do que aparece por via de antecipaccedilotildees
O ponto que nos interessa sublinhar eacute o caraacutecter natildeo-agudo natildeo-penetrante da capta-
ccedilatildeo empiacuterica tal como Platatildeo a descreve neste passo E se mais adiante veremos um pouco
melhor de que eacute que se estaacute a falar quando se fala de acuidade (veremos que o proacuteprio campo
da experiecircncia estaacute marcado por diferenccedilas quanto ao niacutevel de acuidade etc) por agora inte-
ressa focar que a experiecircncia se caracteriza globalmente por um deacutefice de acuidade ndash por
aquilo que podemos descrever como o caraacutecter ldquorombordquo da experiecircncia
Platatildeo parece sublinhar que a experiecircncia tem de proacuteprio precisamente o contraacuterio de
uma perspiciecircncia na captaccedilatildeo de um ldquoobjectordquo
Se por um lado a experiecircncia corresponde a uma forma de perspicaacutecia por outro la-
do a perspicaacutecia empiacuterica tem que ver exclusivamente com a detecccedilatildeo de padrotildees de regulari-
dade
Quer dizer a perspicaacutecia empiacuterica eacute uma perspicaacutecia dirigida agrave construccedilatildeo de anteci-
paccedilotildees ndash ie natildeo eacute uma perspicaacutecia nem que diga respeito a) agrave compreensatildeo do ldquoquecircrdquo daquilo
com que lida (as diferentes determinaccedilotildees que lhe vecircm da αἴσθησις e da μνήμη) nem que diga
respeito b) agrave compreensatildeo dos proacuteprios operadores com que lida (as determinaccedilotildees que utiliza
na montagem de estados-de-coisas permanentes ou das pretensas leis que potildee de peacute)
A experiecircncia regula-se sobretudo pelos contrastes imediatos ndash pelas determinaccedilotildees
em regime de ldquopronto-a-usarrdquo que lhe vecircm da αἴσθησις e da μνήμη e deixa-se absorver na re-
gularizaccedilatildeo do ldquotracircnsitordquo desses contrastes mais precisamente na fixaccedilatildeo de padrotildees e na ge-
raccedilatildeo de antecipaccedilotildees que permitem orientaccedilatildeo no meio desses contrastes e do seu tracircnsito
Para usar um termo muito em voga como palavra de ordem em algumas correntes filo-
soacuteficas do seacuteculo XX a experiecircncia natildeo tem uma vocaccedilatildeo ldquoessencialistardquo Caracteriza-se uma
perspectiva cronicamente distraiacuteda em relaccedilatildeo ao ldquoquecircrdquo
111
Mas sendo assim por outro lado tambeacutem a acentuaccedilatildeo deste aspecto tem o seu quecirc de
unilateral Com efeito se a experiecircncia tem como acabamos de dizer uma vocaccedilatildeo ldquonatildeo-es-
sencialistardquo e padece de qualquer coisa como uma croacutenica distracccedilatildeo relativamente ao ldquoquecircrdquo
nada disso impede que esteja montada como se fosse ldquoessencialistardquo e como se expusesse agrave
evidecircncia o que de relevante haacute para pocircr em evidecircncia em relaccedilatildeo ao ldquoquecircrdquo
Na verdade por mais natildeo-essencialista que a experiecircncia seja eacute justamente a expe-
riecircncia que originalmente suscita o quesito do ldquoquecircrdquo ndash resolvendo-o com a montagem de es-
tados-de-coisas permanentes (ie de ldquoleisrdquo com a pretensatildeo cognitiva que lhes inere)
Quer dizer por mais que se diagnostique agrave experiecircncia o seu caraacutecter ldquonatildeo-essencialis-
tardquo que se procure reduzi-la agrave sua real dimensatildeo de administradora de regularidades e gestora
de antecipaccedilotildees a experiecircncia tem montada uma pretensatildeo de saber que ndash na ldquomeia luzrdquo de
acuidade em que se move e que lhe eacute proacutepria ndash vale como pretensatildeo de saber o ldquoquecircrdquo (uma
pretensatildeo que como vimos nem sequer estaacute ciente de como ela proacutepria estaacute constituiacuteda)
Em suma o que caracteriza a experiecircncia eacute natildeo apenas o fenoacutemeno da quase-lei (da
pretensa lei ou da pretensa posse de leis) caracteriza-a tambeacutem uma pretensa posse do ldquoquecircrdquo
ou uma pretensatildeo de saber o que ldquofazrdquo as coisas
sect16
A ἐμπειρία enquanto algo que ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo que natildeo cumpre o que
promete e que natildeo procura aquilo que jaacute julga ter
Tocamos aqui um outro aspecto da ambiguidade que jaacute pusemos em foco quando falaacute-
mos da forccedila e da fraqueza da experiecircncia Referimo-nos agrave ambiguidade que a caracteriza em
relaccedilatildeo agravequilo que poderaacute haver acima dela (no que diz respeito agrave escala de Aristoacuteteles a am-
biguidade da ἐμπειρία em relaccedilatildeo agrave quarta secccedilatildeo ndash agravequilo a que Aristoacuteteles chama τέχνη ou
ἐπιστήμη)
Dado o que dissemos sobre a forma como a experiecircncia eacute cronicamente distraiacuteda em
relaccedilatildeo a todas as determinaccedilotildees com que labora (e em uacuteltima anaacutelise pura e simplesmente
natildeo faz ideia das determinaccedilotildees com que potildee em contacto) pode-se dizer que quando jaacute se
tem experiecircncia ainda estaacute por saber o essencial
112
Por outras palavras a fragilidade cognitiva da experiecircncia faz que quer no que toca agrave
possibilidade de se ver infirmada (possibilidade a que estaacute exposta por carecer de qualquer
fundamento suficiente para as suas projecccedilotildees) quer no que diz respeito ao conhecimento do
ldquoquecircrdquo (do que constitui as ldquocoisasrdquo do que faz o que quer que seja etc) a experiecircncia ainda
deixe por saber o que eacute decisivo
Isto eacute a) mesmo uma vez jaacute constituiacutedo um campo de experiecircncia pela natureza das
projecccedilotildees empiacutericas ainda continua por estabelecer o que a experiecircncia jaacute ldquoestabelecerdquo b)
mesmo admitindo que as projecccedilotildees empiacutericas satildeo todas elas certas continua ainda assim a
acontecer que tudo aquilo a que a experiecircncia diz respeito continua integralmente por desco-
brir no seu ldquoquecircrdquo (naquilo em que consiste etc)
Por outro lado sendo assim no entanto isto de modo nenhum impede que no plano
de distracccedilatildeo e deacutefice acuidade e distracccedilatildeo em que reina a experiecircncia natildeo apenas pretenda
alcanccedilar tudo isto que na realidade natildeo alcanccedila mas de facto faccedila valer essa pretensatildeo de tal
modo que parece alcanccedilar tudo isso Eacute este o ponto que agora interessa pocircr em destaque
Digamos antes de mais o seguinte a experiecircncia pretende ser jaacute mais do que sufici-
ente pretende ter feito tudo o que haacute a fazer em mateacuteria cognitiva De sorte que por mais in-
completa que possa ser natildeo admite nada acima de si
Em condiccedilotildees normais natildeo haacute qualquer nota de falta a experiecircncia passa por ser uma
apresentaccedilatildeo cabal e adequada do que haacute E isso potildee-nos (para usar a figura de estilo platoacuteni-
ca) de ldquocostas voltadasrdquo para o que quer que seja mais ndash e tanto quer dizer tambeacutem de ldquocostas
voltadasrdquo para as iniciativas de investigaccedilatildeo cientiacutefica
Podemos exprimir este estado-de-coisas dizendo o seguinte se a ἐμπειρία tal como
habitualmente reina em noacutes tivesse de traccedilar uma escala como aquela que eacute desenhada por
Aristoacuteteles essa escala soacute teria trecircs secccedilotildees e acabaria na ἐμπειρία
Melhor a proacutepria ἐμπειρία tal como habitualmente reina em noacutes nem sequer traccedilaria
uma escala com trecircs secccedilotildees Com efeito em virtude da sua distracccedilatildeo a si mesma (agravequilo que
a compotildee etc) tenderia a natildeo diferenciar com suficiente nitidez a αἴσθησις a μνήμη e a proacute-
pria ἐμπειρία ndash e a pocircr tudo mais ou menos ldquono mesmo sacordquo De sorte que a escala da ἐμπει-
ρία (quer dizer a nossa tal como habitualmente vemos as coisas) soacute teria uma secccedilatildeo ndash e
portanto natildeo seria uma escala
Este ldquoestar de costas voltadasrdquo para as ciecircncias tem que ver com algo que encontramos
formalizado no corpus platonicum natildeo se procura aquilo que jaacute se julga ter
113
Quando dizemos que a ἐμπειρία ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo tocaacutemos o prin-
ciacutepio que permite a geacutenese das ciecircncias As ciecircncias arrancam sempre da percepccedilatildeo de que a
ἐμπειρία natildeo cumpre o que promete ndash quer dizer as ciecircncias arrancam de uma cisatildeo mediante
a qual se reforccedila o que eacute que a ἐμπειρία permite efectivamente alcanccedilar e o programa gnosio-
loacutegico de que eacute portadora sob a forma de o dar por adquirido
Nesse sentido o programa cognitivo da ἐμπειρία jaacute prefigura aquilo que eacute procurado
nas ciecircncias E em certa medida toda a travessia de investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma travessia a
caminho disso que a ἐμπειρία distraidamente jaacute pretende ter alcanccedilado Ora eacute isso ndash natildeo a
indiferenccedila em relaccedilatildeo ao conhecimento mas a pretensatildeo de jaacute o ter aquilo a que no corpus
platonicum se chama οἴεσθαι εἰδέναι mais precisamente o οἴεσθαι εἰδέναι referente agrave ἐμπει-
ρία ndash que potildee a ἐμπειρία de ldquocostas voltadasrdquo para o empreendimento da procura do saber em
falta (ie para as ciecircncias)
Todas estas consideraccedilotildees sobre o limite superior da ἐμπειρία (quer dizer sobre a
falha cognitiva de que ela padece) podem ndash e na verdade tendem a ndash ser despedidas como
se no fundo soacute resultassem da aplicaccedilatildeo de uma bitola demasiado exigente e desajustada (li-
gada a qualquer coisa como um desiderium inane de perfeiccedilatildeo cognitiva) E natildeo eacute difiacutecil de
compreender que o que em noacutes estaacute por traacutes desta reacccedilatildeo de menosprezo eacute a proacutepria ἐμπει-
ρία (com a sua forccedila aparente a pretensatildeo de suficiecircncia de que se reveste etc) que resiste a
ser posta em causa
Contudo importa ter presente que a fragilidade cognitiva da ἐμπειρία natildeo eacute uma fragi-
lidade apenas relativa a criteacuterios desmedidos ou uma exigecircncia de perfeiccedilatildeo exagerada Trata-
se de uma imperfeiccedilatildeo real ndash uma imperfeiccedilatildeo que a atinge no seu proacuteprio fulcro e que faz
que em uacuteltima anaacutelise a ἐμπειρία natildeo cumpra rigorosamente nada do que parece E isto eacute
assim mesmo no que diz respeito agraves funccedilotildees de orientaccedilatildeo que efectivamente exerce (quer di-
zer agrave forma como permite ldquoandar no tracircnsitordquo do que nos aparece) a ἐμπειρία ldquofuncionardquo na
maioria dos casos ndash mas natildeo constitui nada do saber que pretende ter adquirido
Ora quando se avanccedila com a foacutermula ldquoa experiecircncia funciona na maioria dos casosrdquo
jaacute se estaacute a abrir campo agrave intromissatildeo a uma minoria de casos em que natildeo funciona ndash em que
as quase-leis empiacutericas revelam na verdade o seu caraacutecter de ψευδεῖς
Eacute esse o caso quando haacute espanto naquilo que diz respeito agrave ἐμπειρία o espanto revela
a fragilidade da ἐμπειρία no cumprimento do projecto de saber
114
Jaacute atraacutes consideraacutemos o fenoacutemeno do espanto Dissemos entatildeo que o espanto resulta
de uma falta de coincidecircncia entre o conteuacutedo da projecccedilatildeo empiacuterica e o conteuacutedo das percep-
ccedilotildees que efectivamente tecircm lugar Neste sentido o espanto poderia corresponder a um factor
de arranque a partir do erro detectado na lei empiacuterica Isto eacute o espanto coloca-nos a a vislum-
brar a fronteira entre a terceira para a quarta etapa da escala
Poreacutem natildeo apenas o advento do espanto natildeo eacute suficiente para fazer arrancar o projecto
cientiacutefico (em virtude do facto de na verdade uma lei empiacuterica poder muito bem ser substi-
tuiacuteda por outra lei empiacuterica sujeita aos mesmos constrangimentos da primeira e que pode de-
por na situaccedilatildeo de apaziguar o espanto) como como vimos o espanto tende a confinar-se a
umas poucas projecccedilotildees empiacutericas (no meio de um maciccedilo de projecccedilotildees aparentemente imu-
nes)
Quer dizer em primeiro lugar ao contraacuterio da transiccedilatildeo entre os outros patamares da
escala a transiccedilatildeo entre a etapa da ἐμπειρία e a etapa de τέχνη e ἐπιστήμη natildeo eacute instantacircnea
mas exige mobilizaccedilatildeo ndash exige que se gere uma tensatildeo para o passo ulterior da escala para
superar o que parece ser um acesso interdito agrave τέχνη ou έπιστήμη (em virtude de a ἐμπειρία ter
a aparecircncia de τέχνη ou έπιστήμη e em virtude de parecer que o que τέχνη e έπιστήμη poderiam
propiciar estaacute alcanccedilado)
Em segundo lugar a geraccedilatildeo de τέχνη e έπιστήμη natildeo parece implicar a totalidade do
saber mas apenas a secccedilatildeo maior ou menor em que o espanto se deu A crise por que a ἐμπει-
ρία passa natildeo seria portanto geral mas regional diria respeito meramente ao acircmbito da falha
ndash de tal modo que tudo o mais pareceria ilibado pareceria natildeo suscitar duacutevidas nem gerar pro-
blemas Assim o fundo geral constituiacutedo por ἐμπειρία pareceria manter-se ileso
Daqui decorre que a ἐμπειρία nunca perde no geral na sua grande maioria o caraacutecter
de evidecircncia que atraacutes se viu corresponder-lhe Neste sentido τέχνη e έπιστήμη aparecem co-
mo especificaccedilotildees da ἐμπειρία agrave partida τέχνη ou έπιστήμη natildeo aparecem como revoluccedilotildees de
perspectiva mas aparecem como mera focagem (que daacute lugar a uma captaccedilatildeo mais rica ou
mais precisa)
Isto eacute neste sentido τέχνη e έπιστήμη tomariam parte numa perspectiva que se mante-
ria na sua grande maioria perspectiva empiacuterica Logo τέχνη e έπιστήμη surgiriam como pro-
longamento de uma perspectiva natildeo-teacutecnica ou natildeo-episteacutemica
Ora o que Aristoacuteteles descreve quando fala do espanto como momento de arranque
das ciecircncias eacute algo muito diferente disto
115
Aristoacuteteles descreve a transiccedilatildeo entre a terceira e a quarta etapa da escala como uma
explosatildeo de espanto como um movimento de expansatildeo de perplexidades ndash uma expansatildeo que
se alargaria agraves causas primeiras
Na verdade em uacuteltima anaacutelise o projecto cientiacutefico ou episteacutemico teria sempre de cor-
responder a um projecto total ndash a um projecto que natildeo deixasse nenhuma lei ou projecccedilatildeo em-
piacuterica por verificar A transiccedilatildeo do patamar da ἐμπειρία para o de τέχνη ou έπιστήμη implicaria
uma remodelaccedilatildeo total da perspectiva
Esta sugestatildeo eacute dada em Met 983a11 a aquisiccedilatildeo de τέχνη ou έπιστήμη deve revelar
uma perspectiva diferente da perspectiva empiacuterica e natildeo apenas uma perspectiva diferente
mas uma perspectiva contraacuteria jaacute que se passa de natildeo estar para estar na posse da identidade
do ldquoquecircrdquo das coisas Em suma τέχνη ou έπιστήμη propiciariam uma mudanccedila global de pers-
pectiva
Ora o caso eacute que embora natildeo constitua nada do saber que pretende ter adquirido a
ἐμπειρία parece ldquofuncionarrdquo na maioria dos casos E isto eacute tanto assim que se considerarmos
aquilo que estaacute especialmente em causa nesta investigaccedilatildeo ndash a vida ndash e perguntarmos que eacute
que a experiecircncia da vida pode alcanccedilar em relaccedilatildeo agrave vida entatildeo a resposta eacute a seguinte se a
experiecircncia da vida eacute ἐμπειρία no sentido que aqui tentaacutemos desenhar pode muito bem ter-se
experiecircncia da vida (e ateacute experiecircncia da vida resultante de uma larga travessia perceptiva)
sem saber absolutamente nada do que constitui o que quer que seja pode muito bem ter-se ex-
periecircncia da vida sem saber nada do que constitui a vida (o ldquoquecircrdquo da vida) e pode muito bem
ter-se experiecircncia da vida ateacute mesmo sem perceber que natildeo se percebe nada disto julgando
pelo contraacuterio ter percebido tudo muito bem
Se a experiecircncia tem as caracteriacutesticas que enunciaacutemos o que a caracteriza eacute o facto
de as suas aquisiccedilotildees terem que ver com a orientaccedilatildeo no ldquotracircnsitordquo do que aparece ndash num regi-
me de relativa distracccedilatildeo relativamente ao ldquoquecircrdquo do que quer que seja
116
LIVRO II
EXPERIEcircNCIA DA VIDA
117
INTRODUCcedilAtildeO
sect17
Os sentidos muito diversos da noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo a ldquoexperiecircncia da vidardquo como
mero ramo da experiecircncia ou toda a experiecircncia tal como acontece em noacutes sempre jaacute de
raiz ldquoexperiecircncia da vidardquo
Um componente essencial que as secccedilotildees anteriores deixaram por desenhar diz respei-
to ao quadro em que se produz o tipo de captaccedilatildeo do proprium da experiecircncia que nelas en-
saiaacutemos Vendo bem no quadro que as secccedilotildees anteriores esboccedilaram concebe-se a experiecircn-
cia como uma operaccedilatildeo numa espeacutecie de ldquoeacuteterrdquo
Se o fenoacutemeno da experiecircncia correspondesse meramente ao resultado da anaacutelise leva-
da a cabo nas secccedilotildees anteriores o que teriacuteamos seria a experiecircncia entendida como uma for-
ma ldquosoltardquo de constituiccedilatildeo de um aparecimento mais complexo e essa forma ldquosoltardquo seria
compreendida independentemente daquilo a que concretamente se aplica (e isto tanto no que
diz respeito ao teor quanto no que diz respeito agrave amplitude daquilo a que se aplica)
Poderiacuteamos dizecirc-lo assim segundo o modelo que vimos ateacute agora a estrutura da expe-
riecircncia constituiria algo de invariaacutevel e constituiria por outro lado em simultacircneo uma forma
abrangente de aplicaccedilatildeo geral Na medida em que a experiecircncia constituiria uma uacutenica for-
ma (na medida em que tem o mesmo conjunto de propriedades fundamentais em qualquer ca-
so) entatildeo a forma da expe-riecircncia seria susceptiacutevel de ter lugar nos mais diversos acircmbitos ou
de se aplicar sobre os mais diversos objectos
Quer dizer vista como a vimos ateacute este ponto a experiecircncia poderia ser do que quer
que fosse ndash na medida em que a todos os objectos de que se tem ou se pode ter experiecircncia se
aplica a forma da experiecircncia Poderia dizer-se em suma segundo o modelo que vimos ateacute
este momento que a forma da experiecircncia se aplicaria de modo indiferenciado
Ora essa consideraccedilatildeo ldquoabstractardquo da experiecircncia pode fazer perder de vista a possibi-
lidade de justamente natildeo ser assim
118
Isto eacute ela pode fazer perder de vista a possibilidade de o quadro em que estamos cons-
tituiacutedos em relaccedilatildeo agrave experiecircncia ser muito diferente deste registo aberto a toda a espeacutecie de
possibilidades de aplicaccedilatildeo
A perspectiva em que laboraacutemos nas secccedilotildees precedentes esquece a possibilidade de
as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia terem sempre lugar no quadro de uma vinculaccedilatildeo por
estarem sempre jaacute voltadas para um dado complexo de teores ou de ldquoobjectosrdquo com uma de-
terminada amplitude
Na verdade pode muito bem acontecer que a experiecircncia nunca seja alheia a um qua-
dro dessa ordem Isto eacute pode acontecer que a experiecircncia se caracterize sempre jaacute por uma
grelha de determinaccedilotildees e por uma amplitude fixa natildeo sendo de raiz indiferente nem a uma
nem agrave outra E isto de tal modo que ateacute pode acontecer que esse quadro seja justamente tal
que se preste a ser fixado na forma ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash e que toda a experiecircncia tal como
acontece em noacutes seja sempre de raiz uma experiecircncia da vida (e nunca menos do que isso)
Para seguirmos na pista desta possibilidade consideremos o seguinte
Eacute notaacutevel que ndash mesmo quando se faz valer que a nossa forma de acesso eacute uma forma
de acesso empiacuterica como as secccedilotildees anteriores procuraram demonstrar ndash o modelo que conti-
nua sub-repticiamente a subsistir eacute o modelo da experiecircncia como algo avulso
Isto eacute agrave revelia do que vimos atraacutes o modelo que continua a subsistir eacute um modelo em
que uma mesma forma abrange ou abarca muitos ldquoobjectosrdquo se dirige a x ou a y (mas natildeo
por exemplo a z) ndash como uma ldquoviagemrdquo com vaacuterios ldquodestinosrdquo O modelo que subsiste eacute em
suma um modelo que assenta no caraacutecter distributivo da forma da experiecircncia
Neste sentido a experiecircncia incidiria sobre alguns ldquoconteuacutedosrdquo (ao mesmo tempo que
deixaria de fora todos os ldquoconteuacutedosrdquo em que natildeo incidisse) constituiria ramos consistiria em
pequenos focos isolados etc
Na verdade eacute assim ndash ie seguindo subtilmente o modelo de experiecircncia avulsa ndash que
habitualmente se tende a conceber a experiecircncia Quando falamos de ldquouma experiecircnciardquo ou de
ldquoexperiecircnciasrdquo o modelo que inconscientemente aplicamos faz sobressair o caraacutecter pontual
ou circunscrito do que aparece ou do que ocorre O termo ldquoexperiecircnciardquo isola habitualmente
uma ocorrecircncia singular ndash uma ocorrecircncia que eacute apartada do resto das ocorrecircncias O que
com isso se salienta eacute um certo caraacutecter excepcional excecircntrico por ldquoexperiecircnciardquo toma-se
por assim dizer algo de perfeitamente localizado destacado diacutespar etc Tem-se experiecircncia
de x mas natildeo de y ou z etc
119
O que isto quer dizer eacute que no sentido habitual do termo ldquouma experiecircnciardquo eacute algo
que aparece como uma ldquoilhardquo no meio de um ldquomarrdquo de ocorrecircncias que natildeo tecircm a forma da
experiecircncia
Eacute isto que daqui em diante importa reconsiderar E eacute no acircmbito desta reconsideraccedilatildeo
que entra em cena o conceito de ldquoexperiecircncia da vidardquo
Vendo bem a noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo pode acolher sentidos muito diversos
eventualmente contraditoacuterios entre si Isto tem que ver com o facto de poder ser abordada de
vaacuterios acircngulos que modificam muito significativamente a nossa perspectiva a seu respeito
Natildeo cabe considerar aqui todas essas perspectivas Mas haacute alguns aspectos que deve-
mos pocircr em destaque
Ao considerarmos habitualmente a ldquoexperiecircncia da vidardquo tendemos a supor que es-
tamos a falar de um campo de aplicaccedilatildeo particular de algo como um ramo da experiecircncia
geral se assim se pode dizer
Essa perspectiva natildeo se acha desmentida nas secccedilotildees precedentes De facto o modelo
que vimos ateacute agora sugere justamente que a) a experiecircncia pode ter diversos ldquoobjectosrdquo (po-
de ser de diversas ldquocoisasrdquo e ter diversas amplitudes de aplicaccedilatildeo) e que b) entre os ldquoobjec-
tosrdquo possiacuteveis da experiecircncia se encontra tambeacutem o ldquoobjectordquo ldquovidardquo
Nesta oacuteptica a noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo compreenderia a contracccedilatildeo de dois ter-
mos (ldquoexperiecircnciardquo e ldquovida) sem qualquer nexo essencial entre si
A ldquovidardquo natildeo seria mais do que um mero tema ou um domiacutenio possiacutevel da experiecircn-
cia Dito de outro modo a ldquovidardquo seria algo como um ldquoobjectordquo entre outros que se limitaria
a ser entendido sob a matriz da experiecircncia como uma variaccedilatildeo dessa matriz etc
Mais ainda natildeo apenas a experiecircncia da ldquovidardquo seria uma mera variedade de experiecircn-
cia (de entre uma variedade de outras experiecircncias possiacuteveis) como seria um ramo facultativo
ndash um ramo que se poderia constituir em ldquoobjectordquo ou natildeo
Ao mesmo tempo isto quereria dizer que natildeo haveria qualquer relaccedilatildeo de interacccedilatildeo
ou coordenaccedilatildeo entre os diferentes ldquoramosrdquo Ou seja a constituiccedilatildeo de experiecircncia de qual-
quer ldquoobjectordquo natildeo estaria dependente de uma eventual constituiccedilatildeo de experiecircncia da ldquovidardquo
ndash e o contraacuterio seria igualmente verdadeiro No limite a experiecircncia de qualquer ldquoobjectordquo (e
assim tambeacutem a experiecircncia da ldquovidardquo) seria uma experiecircncia avulsa completamente isolada
120
da experiecircncia de qualquer outro ldquoobjectordquo (ie sem interferir de modo algum com a experi-
ecircncia de qualquer outro ldquoobjectordquo)
Eacute claro que este modelo de constituiccedilatildeo separada da experiecircncia e da vida (que os
concebe como dois domiacutenios separados ndash ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo ndash susceptiacuteveis de se junta-
rem cruzarem etc) chama a atenccedilatildeo para o facto de termos habitualmente noccedilatildeo de qual-
quer coisa como uma experiecircncia da vida Isto quer dizer que estamos constituiacutedos de tal mo-
do que a vida eacute algo de que se tem experiecircncia e faz sentido falar de algo como ter-se ldquoexpe-
riecircnciardquo da ldquovidardquo
Isto eacute mesmo que fosse assim (mesmo que se aplicasse o modelo que vimos ateacute ago-
ra) a ldquovidardquo traria algo agrave equaccedilatildeo jaacute que a ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo se distinguiria de todas
as outras variaccedilotildees de experiecircncia possiacuteveis Na medida em que natildeo seria idecircntica a nenhu-
ma das outras variaccedilotildees de experiecircncia possiacuteveis entatildeo caberia agrave ldquoexperiecircncia da vidardquo ser
uma experiecircncia particular especiacutefica etc Poreacutem seja como for a variaccedilatildeo natildeo seria mais
do que uma mera variaccedilatildeo quanto ao ldquoobjectordquo (quanto ao teor e agrave amplitude) A matriz fun-
damental da experiecircncia seria univer-salmente vaacutelida (e aplicaacutevel a todos os ldquoobjectosrdquo) E o
que a ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo traria de particular e especiacutefico seria algo secundaacuterio um caso
particular dessa matriz fundamental etc
Acontece que ao considerar mais detidamente este modelo (e o facto de estarmos fa-
miliarizados com algo como a ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo) resulta que toda a compreensatildeo que
se tem disso manteacutem aberta ou indeterminada a relaccedilatildeo que a ldquovidardquo tem com a ldquoexperiecircn-
ciardquo
Na evidecircncia de que temos uma noccedilatildeo de ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo estaacute totalmente por
compreender como eacute que a vida tem que ver com a experiecircncia como eacute que a experiecircncia da
vida se distingue de todas as outras modalidades de experiecircncia a que ldquoobjectordquo se refere
etc Fica igualmente por esclarecer se a vida desempenharaacute algum papel na constituiccedilatildeo da
experiecircncia e no caso de uma resposta positiva que papel desempenha a vida na constituiccedilatildeo
da experiecircncia
121
sect18
O caraacutecter oacutebvio vago desfocado e equiacutevoco da noccedilatildeo habitual de ldquovidardquo ndash Abordagem
preliminar agrave noccedilatildeo de ldquovidardquo a unidade maacutexima do aparecimento na primeira pessoa
Se natildeo estamos a ver mal a perspectiva que habitualmente se tem quando se com-
preende a ldquovidardquo como um mero campo de aplicaccedilatildeo entre outros (como um mero ldquoobjectordquo
possiacutevel da experiecircncia) corresponde a uma forma muito peculiar de relaccedilatildeo com aquilo que
estaacute em causa na noccedilatildeo de ldquovidardquo
Todo este modelo de constituiccedilatildeo separada da experiecircncia e da vida parece assentar na
pressuposiccedilatildeo de que se sabe muito bem de que eacute que se trata quando se fala da ldquovidardquo ndash ie
de que a ldquovidardquo tem um caraacutecter oacutebvio
Ora se tentarmos identificar um pouco mais precisamente o que estaacute em causa quando
se fala na ldquovidardquo surgem problemas
Eacute que o conceito de ldquovidardquo tambeacutem admite diversos usos e tambeacutem se aplica a diver-
sos campos eacute que tambeacutem ele se dispersa por uma constelaccedilatildeo de fenoacutemenos eventualmente
distintos ou contraditoacuterios entre si
Na verdade a forma como habitualmente usamos o conceito de ldquovidardquo ndash e percebe-
mos como entre outros tambeacutem a vida pode ser um objecto da experiecircncia de tal modo que
haacute qualquer coisa como uma experiecircncia da vida etc ndash ressente-se deste caraacutecter vago des-
focado equiacutevoco etc
Este ponto eacute particularmente importante para o complexo de questotildees que aqui preten-
demos analisar em relaccedilatildeo agrave ldquoexperiecircncia da vidardquo
Com efeito eacute justamente esse caraacutecter vago (desfocado equiacutevoco etc) do que estaacute
em causa na ldquovidardquo (os contornos pouco definidos essa relaccedilatildeo frouxa com o que constitui a
vida etc) que faz que seja igualmente frouxo o nexo entre ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo no concei-
to mais comum de ldquoexperiecircncia da vidardquo
Como ficaraacute mais claro na continuaccedilatildeo uma anaacutelise de como estaacute constituiacutedo o fenoacute-
meno da ldquovidardquo acabaraacute por apurar que o nexo com a experiecircncia natildeo eacute de modo nenhum
frouxo nem facultativo O que se apura eacute de facto o contraacuterio que toda a ldquoexperiecircnciardquo eacute
sempre jaacute ldquoexperiecircncia da vidardquo e assim tambeacutem que a vida tem de raiz a estrutura ou a
forma da ldquoexperiecircnciardquo
122
Se tivermos em conta o modelo de constituiccedilatildeo separada da experiecircncia e da vida o
que se desenha eacute que os ldquoobjectosrdquo da experiecircncia natildeo afectam de modo nenhum a ldquoformardquo da
experiecircncia (precisamente na medida em que a mesma ldquoformardquo se aplica a uma variedade de
ldquoobjectosrdquo que a ldquoformardquo eacute independente dos ldquoobjectosrdquo a que se aplique etc) O que isto
parece querer dizer eacute que o que ldquoobjectordquo ndash qualquer que ele seja ndash natildeo desempenha nenhum
papel na constituiccedilatildeo da experiecircncia
Poreacutem o que nos interessaraacute considerar mais detidamente nas secccedilotildees que se seguem eacute
que a vida natildeo eacute apenas um campo secundaacuterio ou perifeacuterico onde se ganhem meramente de-
terminaccedilotildees acessoacuterias ou suplementares a uma matriz fundamental
Na verdade o horizonte que de seguida se abriraacute altera radicalmente o modo como o
fenoacutemeno da ldquoexperiecircnciardquo nos aparece e isto de tal modo que se deixaacutessemos esta possibi-
lidade por considerar natildeo soacute a) o fenoacutemeno da ldquoexperiecircnciardquo nos apareceria incompleto e
mutilado de uma parte do que o compotildee como b) poderiacuteamos deixar simplesmente escapar
os factores que modificam o modo como a experiecircncia nos aparece e que ndash e este eacute o ponto
decisivo ndash a potildeem a ser de certo modo o contraacuterio de algo abstracto e independente daquilo
que tem por ldquoobjectordquo
Eacute que se natildeo estamos a ver mal como numa secccedilatildeo anterior jaacute tiacutenhamos mencionado
de passagem as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia tecircm lugar no quadro de uma vinculaccedilatildeo
A experiecircncia estaacute desde a raiz sob a pressatildeo de quesitos e a sua constituiccedilatildeo responde a
exigecircncias
O que isto indica eacute que a experiecircncia natildeo eacute por assim dizer de ldquogeraccedilatildeo espontacircneardquo
Muito pelo contraacuterio a experiecircncia estaacute fundada sobre (ou eacute dependente de) uma estrutura
fundamental que ultrapassa o seu acircmbito
Ora como veremos mais detalhadamente na continuaccedilatildeo a ldquovidardquo eacute precisamente
isso que define ao mesmo tempo a circunscriccedilatildeo do teor e da amplitude dos ldquoobjectosrdquo para
que a experiecircncia estaacute sempre jaacute voltada
Daqui decorre que a ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo eacute algo de facultativo (algo que se po-
deria constituir em objecto ou natildeo) tal como natildeo eacute algo sem qualquer intervenccedilatildeo sobre os
restantes ramos da experiecircncia Qualquer ldquoramordquo da experiecircncia estaacute vendo bem depen-
dente da ldquoexperiecircncia da vidardquo subordinado a ela a constituiccedilatildeo da experiecircncia do que
quer que seja natildeo estaacute agrave revelia da experiecircncia da vida etc
123
Para percebermos isto eacute indispensaacutevel dar lugar mesmo que de forma muito geneacuterica
a vaacuterios aspectos da equivocidade do conceito de ldquovidardquo
A vida pode ser entendida no quadro da scala naturaelig (ie no quadro da sequecircncia
esse ndash vivere ndash perciperesentire ndash intelligere)34
ldquoVidardquo significa no quadro da scala naturaelig um determinado modo-de-ser que faz
parte de um complexo de modos-de-ser que tende a aparecer-nos a) como esgotando todas as
possibilidades de modos-de-ser e b) como tendo caraacutecter tal que os modos mais complexos soacute
satildeo possiacuteveis em relaccedilatildeo aos menos complexos que vecircm transformar na superveniecircncia que
os excede
Natildeo estamos neste passo em condiccedilotildees de considerar em toda a extensatildeo a que questatildeo
ou complexo de questotildees responde esta escala de que modo estaacute esta escala formada ou em
especial que ldquolugarrdquo ocupa a vida na escala Interessa mostrar apenas muito brevemente dois
aspectos que a escala expotildee
Por um lado que o que estaacute em causa na scala naturaelig eacute uma precedecircncia de uns niacute-
veis da escala sobre outros A scala naturaelig apresenta uma etapa como sendo uma deduccedilatildeo da
anterior Assim essere tem precedecircncia sobre vivere que por sua vez tem precedecircncia sobre
sentire que tem enfim precedecircncia sobre intelligere
O que a scala naturaelig parece apontar eacute que essere eacute condiccedilatildeo de possibilidade de vive-
re sentire e intelligere que vivere eacute condiccedilatildeo de possibilidade de sentire e intelligere e que
sentire eacute ainda condiccedilatildeo de possibilidade de intelligere ndash de tal modo que invertendo a esca-
34
Natildeo interessa fazer aqui uma historiografia nem da noccedilatildeo formal ldquoscala naturaeligrdquo nem das muacuteltiplas
desformalizaccedilotildees que mereceu ao longo da histoacuteria Uma historiografia exaustiva mostraria antes de
mais um questionamento quanto agrave origem (quer agrave proacutepria origem da noccedilatildeo quer agrave origem do uso ope-
rativo de algo como uma scala naturaelig) se alguns autores referem o Timeu de Platatildeo outros citam o
De Generatione Animalium de Aristoacuteteles por exemplo Ao mesmo tempo uma historiografia exaus-
tiva como a de Lovejoy (The great Chain of being A Study of the History of an idea 1969 Cambrid-
ge Harvard University Press) mostra tambeacutem uma incriacutevel variedade de escalas muito distintas entre
si ndash quer em relaccedilatildeo ao cardinal de niacuteveis de que eacute composta quer em relaccedilatildeo aos conteuacutedos que ocu-
pam os diversos niacuteveis ndash tudo isto consoante os diversos autores e as diversas eacutepocas que se debruccedila-
ram sobre o tema Ora o que nos interessa neste passo eacute apenas fazer notar que o formato que estamos
aqui a adoptar (esse ndash vivere ndash perciperesentire ndash intelligire) corresponde agrave fixaccedilatildeo produzida em tex-
tos como os de Mezger (Quatuor gradus naturae esse vivere sentire et intelligere Salisburgum
Mayr 1664) ou de Tomaacutes de Aquilo (Summa Theologiae Textum Leoninum Romae 1889 q 76 a 4
ad 3) e que aquilo a que estamos em geral a apelar ao fazer uso desta noccedilatildeo eacute a uma estrutura funda-
mental que espontacircnea e anonimamente domina o modo como estamos constituiacutedos
124
la intelligere natildeo eacute possiacutevel sem sentire vivere e essere que por sua vez sentire natildeo eacute possiacute-
vel sem vivere e essere e que por fim vivere natildeo eacute possiacutevel sem essere Dito por outras pa-
lavras tudo o que eacute vivo teria a propriedade de ser tudo o que sente teria a propriedade de
ser e de ser vivo e tudo o que tem intelecto teria a propriedade de ser de ser vivo e de sentir
Por outro lado no entanto os diversos patamares natildeo se influenciam unidireccional-
mente ndash do essere (que compreende todas as outras camadas) ao intelligere (que eacute compreen-
dido por todas as outras) O caso parece aliaacutes ser o contraacuterio
Ainda que ldquoo que eacuterdquo natildeo dependa de ser ldquovivordquo para ldquoserrdquo depende de ser ldquovivordquo pa-
ra ter perspectiva sobre o facto de ldquoserrdquo
Isto eacute a escala sugere que haacute algo como uma estrutura retrospectiva de acesso agrave etapa
precedente ndash isto de tal modo que um ser ldquonatildeo vivordquo natildeo tem qualquer perspectiva sobre o
facto de ser que um ser ldquonatildeo sensiacutevelrdquo natildeo tem qualquer perspectiva sobre o facto de ldquoestar
vivordquo e que um ser sem intelecccedilatildeo natildeo tem qualquer perspectiva sobre o facto de ser um ldquoser
vivo sensiacutevelrdquo
Ora entendida neste sentido meramente formal (no sentido de constituir um modo-de-
ser e de constituir um modo-de-ser que abre perspectiva sobre ldquoo que eacuterdquo) a vida deixa aberto
o horizonte para uma miriacuteade de formas de abordagem (e tanto quer dizer tambeacutem para uma
miriacuteade de concepccedilotildees de acircngulos etc) consoante as disciplinas que sobre ela se debruccedilam
consoante os seus pressupostos teoacutericos e morfologias etc
Na verdade haacute uma incriacutevel variedade de disciplinas que se dedicam agrave vida Poreacutem
aquilo que notamos ao considerar individualmente cada uma dessas disciplinas eacute que elas in-
troduzem um movimento de restriccedilatildeo de acircmbito ndash o movimento de restriccedilatildeo de acircmbito que
diz respeito ao proacuteprio conceito operativo de ldquovidardquo que cada uma aplica
O que daqui resulta eacute que nenhuma disciplina esgota de modo nenhum a ldquovidardquo en-
quanto objecto de estudo Na verdade cada disciplina deixa em aberto o horizonte para uma
miriacuteade de outros acircngulos e outros meacutetodos de abordagem ndash expresso na miriacuteade de outras
disciplinas que versam precisamente o ldquomesmordquo assunto a partir de outros acircngulos e de ou-
tras abordagens ndash assim como deixa de fora tudo o resto que constitui a vida (tudo o resto
que compotildee isso a que habitualmente nos referimos quando falamos de ldquovidardquo)35
35
Considere-se por exemplo a biologia Por mais que a biologia tenha por objecto a vida a verdade eacute
que o objecto ldquovidardquo considerado a partir da oacuteptica da biologia deixa de fora todo um conjunto de as-
125
Eacute neste sentido que o conceito de ldquovidardquo pode ser equiacutevoco ndash e pode ser equiacutevoco pre-
cisamente porque se presta a usos ou a acircngulos de abordagem que satildeo por vezes totalmente
incompatiacuteveis entre si
Ora o sentido da noccedilatildeo de ldquovidardquo que aqui se teraacute em mente eacute muito diferente do que
vimos ateacute agora O sentido que aqui se tem em mente eacute o fenoacutemeno da ldquovidardquo como de cada
vez eacute tido na primeira pessoa e que tem um caraacutecter de totalidade
Vejamos um pouco melhor o que queremos dizer com isto
A ldquovidardquo no sentido do termo que aqui temos em jogo corresponde agrave unidade maacutexima
do proacuteprio aparecimento ndash na medida em que natildeo se encontra dispersa como uma ldquoilhardquo to-
talmente perdida em si mesma e privada de qualquer relaccedilatildeo com o que se situa para laacute de si
E como veremos melhor na continuaccedilatildeo esta unidade maacutexima na primeira pessoa (a vida)
produz uma unificaccedilatildeo global de tudo o que aparece constituindo um uacutenico horizonte
Eacute verdade que por outro lado essa unidade maacutexima na primeira pessoa se distingue
por ser apenas isso a unidade maacutexima na primeira pessoa ndash e tanto quer dizer uma iacutenfima
parte no meio de um maciccedilo de realidade com dimensotildees absolutamente esmagadoras em re-
laccedilatildeo agraves suas
Ao falar de vida neste sentido o que estaacute sempre jaacute em causa eacute a forma de aconteci-
mento em que cada um daacute por si em que cada um estaacute atirado em que se estaacute sempre jaacute pos-
to etc
Mas natildeo apenas isso Trata-se na verdade de algo de exclusivo (de algo de particular
de privado de pessoal etc) ndash de algo que de certo modo se atravessa pelo proacuteprio peacute que eacute
meramente desse a quem pertence ou que nela estaacute atirado etc
Mais trata-se precisamente de algo que estaacute encerrado nesse a quem pertence que
nela estaacute atirado ou em que daacute por si Isto eacute trata-se de algo que impassiacutevel de ser passado a
outro (de algo que eacute incomunicaacutevel insusceptiacutevel de ser transmitido ou partilhado etc)
Mas mesmo sendo assim isso natildeo impede que tudo quanto a exceda ndash e em relaccedilatildeo
ao qual tem as dimensotildees de um iacutenfimo recanto ndash tambeacutem faccedila parte dela e esteja incluiacutedo na
pectos que compotildeem a vida tal como a entendemos habitualmente ndash e com isso pode muito bem
acontecer que os aspectos que deixa de fora sejam aspectos essenciais para compreender isso a que ha-
bitualmente nos referimos quando falamos de ldquovidardquo
126
unidade maacutexima na primeira pessoa que aqui pretendemos pocircr em destaque Isto eacute trata-se
de algo que tem caraacutecter de totalidade
Por um lado a vida natildeo eacute algo que esteja de tal modo fechado em si que natildeo tenha
qualquer relaccedilatildeo com o exterior A vida ndash mesmo no sentido de ldquoisso que corresponde a cada
umrdquo ndash eacute algo que estaacute englobado num campo de realidade muito mais vasto
Mas natildeo estaacute englobado nesse campo mais vasto como se tivesse posto numa relaccedilatildeo
de radical heterogeneidade em relaccedilatildeo a ele Pelo contraacuterio como veremos mais precisamen-
te na continuaccedilatildeo a vida estaacute constituiacuteda de tal modo que tudo lhe eacute interior tudo faz parte
dela etc ndash isto na medida em que tudo o que aparece assume de certo modo um papel ne-
la36
Natildeo se trata neste passo de discutir este aspecto com qualquer preocupaccedilatildeo de tentar
compreender os seus meandros ndash esta peculiar instacircncia de propriedade a que cada um chama
a sua vida e ao mesmo tambeacutem ldquoardquo vida O que interessa assinalar eacute que com tudo o que
tem de paradoxal de difiacutecil de determinar e de entender constitui um fenoacutemeno central no
acontecimento em que nos achamos constituiacutedos ndash neste εἶναι τοῖς ποῖ δεῖ βαδίζειν ἀγνοοῦσι
que (como se diz em Met 995a) eacute o que noacutes somos
O que se trata eacute precisamente de tentar focar este peculiar fenoacutemeno de perceber
melhor os seus traccedilos na medida em que eacute em relaccedilatildeo a ele que se pretende averiguar o nexo
de ligaccedilatildeo agrave experiecircncia ndash e tanto quer dizer tambeacutem o nexo de ligaccedilatildeo da experiecircncia a esta
peculiar forma de totalidade
Em suma o que estaacute em causa quando se aborda a ldquoexperiecircncia da vidardquo (ie quando
se foca o nexo entre ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo) natildeo eacute como se veraacute claramente na continuaccedilatildeo
apenas uma regiatildeo de contacto entre duas instacircncias nucleares alheias uma agrave outra Eacute na
verdade algo muito diferente a saber que vidardquo e ldquoexperiecircnciardquo natildeo podem ser plenamente
compreendidas isoladamente
36
Toca-se aqui uma paradoxal propriedade da unidade maacutexima na primeira pessoa a que chamamos
ldquovidardquo o facto de corresponder a qualquer coisa semelhante a uma fita de Moumlbius ie o facto de se
caracterizar pela estranha possibilidade de o envolvente ser envolvido e vice-versa de o interior se
revelar exterior e o exterior interior etc A este propoacutesito ver Silva N Identidade e vida em Virginia
Woolf uma anaacutelise da expressatildeo literaacuteria de um problema filosoacutefico Tese de Doutoramento UNL
Lisboa 2011 p 73-85
127
A experiecircncia soacute se manifesta tal como efectivamente tem lugar quando eacute percebida
na sua relaccedilatildeo com a vida e inversamente a vida soacute se manifesta como efectivamente tem lu-
gar na sua relaccedilatildeo com a experiecircncia
Haacute e seraacute isso que as secccedilotildees seguintes tentaratildeo pocircr a claro um entretecimento uma
muacutetua implicaccedilatildeo a compreensatildeo do que estaacute em causa na ldquovidardquo estaacute incompleta e desfo-
cada sem a compreensatildeo simultacircnea do que estaacute em causa na ldquoexperiecircnciardquo e a compreen-
satildeo do que estaacute em causa na ldquoexperiecircnciardquo estaacute incompleta e desfocada sem a compreensatildeo
simultacircnea do que estaacute em causa na ldquovidardquo
O que se deixaraacute ver eacute que se levarmos este modelo ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircn-
cias a experiecircncia do que quer que seja eacute no limite sempre experiecircncia da vida ndash e tanto
quer dizer estaacute na dependecircncia da vida estaacute assente sobre as fundaccedilotildees da vida tem a vida
por base e por objecto etc E assim tambeacutem a vida estaacute constituiacuteda no modo de uma experi-
ecircncia da vida ndash e tanto quer dizer estaacute na dependecircncia da experiecircncia estaacute assente sobre as
fundaccedilotildees da experiecircncia tem a experiecircncia por base tem por inerecircncia ou de raiz a forma
da experiecircncia etc
O que se trataraacute de saber nas secccedilotildees posteriores eacute como eacute que isto se daacute
A resposta agrave pergunta ldquocomo eacute que laquoexperiecircnciaraquo e laquovidaraquo soacute se manifestam tal como
efectivamente tecircm lugar na sua relaccedilatildeo uma com a outrardquo eacute a que guiaraacute todos os passos
que daremos daqui em diante E a resposta a essa pergunta passaraacute por uma anaacutelise atenta de
alguns aspectos fundamentais da ldquomorfologiardquo e da ldquofisiologiardquo da ldquoexperiecircnciardquo ndash e tanto
quer dizer de alguns aspectos fundamentais da ldquomorfologiardquo e da ldquofisiologiardquo da ldquoexperiecircncia
da vidardquo
128
II EXPERIEcircNCIA DA VIDA
PRIMEIRA PARTE
sect19
A experiecircncia tal como tem lugar em noacutes estaacute vinculada a um quadro determinado
quanto ao teor e agrave amplitude ndash O acircmbito das totalidades a que a experiecircncia e a organiza-
ccedilatildeo da experiecircncia dizem respeito ndash O desfazamento entre a magnitude do empreendimen-
to da ἐμπειρία e as caracteriacutesticas das determinaccedilotildees disponiacuteveis o modelo ldquoalfabeacuteticordquo
Podemos resumir a inflexatildeo que se comeccedilou a desenhar na introduccedilatildeo deste segundo
livro do seguinte modo a experiecircncia ndash entendida como uma forma solta ndash pode correspon-
der a muito diversos quadros de aparecimento consoante as variaccedilotildees do teor e da amplitude
que determinam o seu modo e o seu campo de aplicaccedilatildeo Neste sentido a experiecircncia ndash a for-
ma da experiecircncia tal como procuraacutemos defini-la ndash eacute insuficiente para determinar o quadro
de aparecimento em que se estaacute
Ao contraacuterio do que fica sugerido a partir da noccedilatildeo de experiecircncia como ldquoforma soltardquo
(ou de um entendimento distraiacutedo do que significa o facto de estarmos sempre num ponto de
vista empiacuterico) a experiecircncia tal como tem lugar em noacutes estaacute vinculada a um quadro deter-
minado (tanto no que diz respeito ao seu teor quanto no que diz respeito agrave sua amplitude) de
tal modo que tem sempre lugar nesse quadro
Sucede entretanto que esta inflexatildeo tem ainda um caraacutecter puramente formal e muito
vago
Para compreender de modo mais agudo o que estaacute em causa falta ver em concreto a)
de que variaccedilotildees quanto ao teor e agrave amplitude estamos a falar (ie que variaccedilotildees satildeo rele-
vantes como eacute que mudanccedila do ldquolequerdquo do teor e da amplitude da experiecircncia pode dar lugar
a resultados ndash ou a ldquoexperiecircnciasrdquo ndash muito diferentes entre si etc) e b) que multiplicidade de
factores de fixaccedilatildeo (tanto do teor quanto da amplitude) satildeo determinantes na definiccedilatildeo do
quadro a que a experiecircncia tal como sempre tem lugar em noacutes estaacute vinculada
129
Assim num primeiro momento trata-se de focar mais detidamente as variaccedilotildees de
que podem resultar ldquomundosrdquo muito diferentes entre si e muito diferentes daqueles com que
estamos familiarizados Num segundo momento trata-se de focar a peculiar figura de con-
tracccedilatildeo ndash contracccedilatildeo relativamente ao universo de realidades em causa no primeiro momento
ndash que estaacute consagrada na forma como em noacutes tem lugar o fenoacutemeno da experiecircncia
Comecemos por considerar a questatildeo da amplitude
Por um lado o domiacutenio a que a experiecircncia se estende (o domiacutenio que a experiecircncia
ldquocobrerdquo o territoacuterio sobre o qual se exerce etc) pode ser muito diverso E pode ser muito di-
verso em relaccedilatildeo a duas variaacuteveis fundamentais uma determinada ldquomanchardquo (ou amplitude)
no espaccedilo e uma determinada ldquomanchardquo (ou amplitude) no tempo
Vendo bem o acircmbito das totalidades a que a experiecircncia eacute relativa ndash o tamanho espaacute-
cio-temporal do territoacuterio da ἐμπειρία o facto de a sua amplitude global ser mais limitada ou
mais extensa ser riacutegida ou pelo contraacuterio flexiacutevel etc ndash interfere com a organizaccedilatildeo da ex-
periecircncia
Quer dizer por um lado estaacute em causa uma pergunta pelo acircmbito ou pela amplitude
da experiecircncia ndash uma pergunta pelo seu limite maacuteximo ateacute onde se estende quais satildeo as
suas dimensotildees etc Por outro lado a proacutepria organizaccedilatildeo da experiecircncia depende da am-
plitude global a que se refere de tal modo que consoante a amplitude global a que se refere
haacute vaacuterias possibilidades de organizaccedilatildeo da experiecircncia
O facto de a experiecircncia envolver sempre uma ldquoexplosatildeordquo das dimensotildees do que fica
dado por assente (e implicar sempre a assunccedilatildeo de naturezas permanentes correspondentes agrave
forma da ldquoleirdquo empiacuterica) natildeo impede que quer a) o terminus ad quem da ldquoexplosatildeordquo (ou o
ldquoterritoacuteriordquo domesticado pela captaccedilatildeo empiacuterica) quer b) o ldquoprazo de validaderdquo dos estados-
de-coisas-permanentes (ou o ldquohorizonte temporalrdquo a que a projecccedilatildeo empiacuterica diz respeito)
possam ainda corresponder a amplitudes muito diversas Mais estas diferentes possibilidades
configuram tambeacutem muito diversas possibilidades de conformaccedilatildeo do ponto de vista empiacuterico
ndash ou seja configuram ldquoexperiecircnciasrdquo com caracteriacutesticas muito diversas
Ou seja por uma parte a experiecircncia eacute sempre relativa a uma ldquototalidaderdquo mas por
outra parte a totalidade a que a experiecircncia eacute relativa pode ter diversas dimensotildees E consoan-
te o acircmbito ou a amplitude a que a totalidade em causa se reporte a experiecircncia pode resultar
em coisas muito diferentes
130
Isto eacute assim quanto agrave amplitude da experiecircncia (fixada por este ou aquele acircngulo de
abertura mais ou menos abrangente etc) mas eacute tambeacutem assim no que diz respeito ao con-
traste entre experiecircncias com um acircngulo fixo (seja ele maior ou menor) e experiecircncias que
natildeo estejam vinculadas em mateacuteria de acircngulo e tenham possibilidade de modificar a sua proacute-
pria abertura ou amplitude37
Mas este eacute somente um primeiro aspecto
Soacute por si o ldquoterritoacuteriordquo (a amplitude espaacutecio-temporal) da ἐμπειρία natildeo basta para de-
terminar que formaccedilotildees empiacutericas (que rede de projecccedilotildees etc) se produzem no seu quadro
Com efeito a mesma delimitaccedilatildeo da amplitude (no sentido do termo que agora mesmo
vimos ndash ie no sentido da delimitaccedilatildeo espaacutecio-temporal) pode corresponder a muito diversas
configuraccedilotildees consoante o cardinal de determinaccedilotildees que estatildeo em jogo e que entram na
composiccedilatildeo da ἐμπειρία Tudo depende da densidade e da variedade de determinaccedilotildees que
ldquopovoamrdquo o territoacuterio e satildeo convertidas em projecccedilotildees empiacutericas
Ora esta variedade quanto agrave multiplicidade das determinaccedilotildees envolvidas (e agrave trama
de projecccedilotildees empiacutericas que dela resultam) depende de diversos factores Foquemo-las num
raacutepido esboccedilo ndash e com a precisatildeo que eacute possiacutevel num esboccedilo desta ordem
Em primeiro lugar o tecido da ἐμπειρία depende do proacuteprio conteuacutedo da αἴσθησις
Mesmo sem entrarmos numa anaacutelise detida resulta claro que a mesma forma empiacuterica
pode aplicar-se a quadros de αἰσθήσεις muito diferentes entre si e com resultados (termini ad
quos das percepccedilotildees empiacutericas quer dizer um tecido de estados-de-coisas-permanentes) mui-
to diversos
37
Para se perceber bem o que estaacute aqui em causa tenha-se presente o seguinte nada impede que um
campo de ἐμπειρία esteja constituiacutedo em posiccedilatildeo fixa e com um raio de alcance de por exemplo dez
metros quadrados Isso natildeo prejudica a possibilidade de constituiccedilatildeo de uma ἐμπειρία que em relaccedilatildeo
ao raio de alcance temporal seja muito semelhante agravequela com que estamos familiarizados Inversa-
mente tambeacutem nada impede por exemplo que um campo de ἐμπειρία com um raio de alcance espacial
muito semelhante ao nosso constitua estados-de-coisas permanentes com um prazo de validade muito
mais reduzido ndash porque o proacuteprio acircngulo de abertura temporal soacute vai ateacute um certo limite (natildeo tem a
forma de prolongamento indefinido que nos eacute proacuteprio) Se for assim haveraacute excesso sobre a μνήμη
transgressatildeo do dado e ἐμπειρία (mesmo que uma ἐμπειρία com uma constituiccedilatildeo algo diferente) Mas
o resultado dessa ἐμπειρία (aquilo em que se fica deposto por forccedila da trangressatildeo empiacuterica) distin-
guir-se-aacute por ter um recorte muito diverso daquele que espontaneamente tendemos a tomar por ine-
rente agrave ἐμπειρία
131
A variaccedilatildeo passa desde logo pelas diferentes conformaccedilotildees dos limiares perceptivos
pelos diversos tipos de ldquomalhardquo que pode ter a ldquorederdquo do αἰσθάνεσθαι etc
Mas passa tambeacutem pela possibilidade de haver diversas conformaccedilotildees no que diz res-
peito aos sentidos que intervecircm na constituiccedilatildeo da αἴσθησις Na verdade nada impede que es-
tes sentidos possam ser em maior ou menor nuacutemero do que aqueles a que estamos habituados
ndash e com determinaccedilotildees de que natildeo fazemos a mais pequena ideia
Em segundo lugar aquilo que resulta da ἐμπειρία tambeacutem depende da forma como se
produz a conversatildeo de αἰσθήσεις em μνήμη (ie tambeacutem depende da forma como a μνήμη
cobre o patrimoacutenio da αἴσθησις e envolve ou natildeo um certo afunilamento ou simplificaccedilatildeo da
multiplicidade da αἴσθησις)
Em terceiro lugar o tecido da ἐμπειρία tambeacutem depende da amplitude das ldquomalhasrdquo
de captaccedilatildeo e registo das πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος que constituem propriamente
a base da ἐμπειρία
Quer dizer o tecido da ἐμπειρία depende igualmente do grau de acuidade na leitura
de semelhanccedilas no curso da histoacuteria perceptiva ndash que pode variar muito significativamente e
dessa forma dar lugar a resultados empiacutericos (a complexos de projecccedilatildeo empiacuterica) muito di-
ferentes
Ora este processo de leitura das sequecircncias perceptivas (ou melhor da sequecircncia
mneacutesica) depende em larga medida dos complexos de determinaccedilotildees e acircngulos em que se or-
ganiza ndash ie da variedade e complexidade das determinaccedilotildees em funccedilatildeo das quais se produz
ndash a comparaccedilatildeo dos dados perceptivos
A comparaccedilatildeo dos dados perceptivos natildeo decorre pura e simplesmente das proacuteprias
determinaccedilotildees esteacutesicas ou mneacutesicas que estatildeo na sua base De facto depende em grande par-
te do complexo de determinaccedilotildees categoriais que interveacutem na colaccedilatildeo dos dados empiacutericos ndash
e isto tanto no que diz respeito a) agravequilo a que podemos chamar as ldquogrelhas de comparaccedilatildeordquo
quanto no que diz respeito b) agrave forma da comparaccedilatildeo ser mais ou menos apertada (e se apro-
ximar ou se manter mais afastada de pocircr em agudo confronto ldquotudo com tudordquo)
De tudo isto resulta que uma ldquomesmardquo ldquomanchardquo (um ldquomesmordquo ldquoterritoacuteriordquo espaacutecio-
temporal de ἐμπειρία) pode corresponder a ldquomalhasrdquo de projecccedilatildeo empiacuterica muito diversas ndash
mais simples e pobres ou mais complexas e ricas ndash consoante a conjugaccedilatildeo destes factores
132
Mais natildeo se trata apenas da possibilidade de ndash dentro do ldquomesmordquo ldquoterritoacuteriordquo espaacute-
cio-temporal ndash a variaccedilatildeo destes factores dar lugar a redes de projecccedilatildeo empiacuterica bastante di-
ferentes Na verdade o que estaacute aqui em causa eacute que ateacute mesmo as experiecircncias com idecircntica
esfera de aplicaccedilatildeo espaacutecio-temporal podem ser tatildeo contrastantes entre si que os respectivos
ldquomundosrdquo (quer dizer os quadros de realidade que lhes correspondem) tecircm muito pouco a
ver uns com os outros
Mas isto eacute ainda soacute uma muito pequena parte do que importa ter em vista
Com efeito aquilo a que nos referimos quando falamos dos diferentes ldquolequesrdquo de de-
terminaccedilatildeo que ldquopovoamrdquo a esfera da αἴσθησις e da μνήμη e que entram na conformaccedilatildeo da
ἐμπειρία tem que ver natildeo apenas com questotildees de cardinal (ou como dissemos com a malha
da ldquorederdquo da αἴσθησις ou da proacutepria μνήμη) mas tambeacutem com diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave forma
como se acha constituiacuteda a multiplicidade das determinaccedilotildees que compotildee a base da projec-
ccedilatildeo empiacuterica
Poderia acontecer que a multiplicidade do que aparece (que como vimos estaacute sempre
na base da projecccedilatildeo empiacuterica) tivesse tal natureza que fosse composta por determinaccedilotildees ab-
solutamente singulares e irrepetiacuteveis
Quer dizer poderia acontecer que cada αἴσθησις tivesse um conteuacutedo proacuteprio e intei-
ramente original
Contudo e para que esse conteuacutedo pudesse dar lugar a qualquer coisa como πολλαὶ
μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος (sem as quais como vimos natildeo haacute ἐμπειρία) seria indispensaacutevel
que o conteuacutedo uacutenico e original de cada αἴσθησις tivesse alguma afinidade ou semelhanccedila
com outras (algo de comum que pudesse ser identificado etc) e desse modo pudesse consti-
tuir a base para a τοῦ ὁμοίου μετάβασις que sempre estaacute no fulcro da ἐμπειρία Neste caso o
problema estaria justamente em saber como eacute que diferentes determinaccedilotildees absolutamente
originais poderiam ter algo de semelhante entre si e como poderiam dar lugar a πολλαὶ μνῆ-
μαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος
Para se perceber o que estaacute em causa nesta primeira possibilidade digamos que este
seria um regime de determinaccedilatildeo correspondente a um puro nominalismo
Num tal regime natildeo haveria qualquer espeacutecie de repeticcedilatildeo de determinaccedilotildees Cada
αἴσθησις teria o seu apresentado proacuteprio completamente novo relativamente a qualquer outro
Ora natildeo eacute assim que estamos constituiacutedos
133
Note-se que isto natildeo quer dizer que natildeo possa dar-se o caso de o nominalismo ter ra-
zatildeo e de o ldquomundordquo se renovar a cada instante de tal modo que tudo o que nos aparece eacute de
cada vez outro absolutamente outro sem nada de comum com o que quer que seja O que di-
zemos eacute que mesmo que seja assim (ie mesmo que tudo seja sempre novo a cada instante)
natildeo estamos em condiccedilotildees de aceder a ele de tal modo que acompanhemos a permanente
inauguraccedilatildeo de tudo (a absoluta singularidade de cada instante e de cada ldquocoisardquo ndash ou melhor
de cada componente da realidade)
Com efeito as αἰσθήσεις e as μνῆμαι acham-se constituiacutedas de tal modo que em vez
de terem de cada vez um apresentado ou um conteuacutedo absolutamente original recorrem repe-
tidamente agraves mesmas determinaccedilotildees ou aos mesmos ldquoconteuacutedosrdquo
O que estamos a procurar sublinhar eacute o facto de o cardinal das determinaccedilotildees que pre-
enchem a multiplicidade de αισθήσεις e de μνῆμαι que temos ser consideravelmente menor
do que o cardinal da multiplicidade do que aparece Por outras palavras haacute repeticcedilatildeo das
mesmas determinaccedilotildees numa multiplicidade de instanciaccedilotildees delas ndash e a diferenccedila entre estas
uacuteltimas natildeo passa por terem cada uma um conteuacutedo absolutamente singular ou original mas
sim por terem uma determinaccedilatildeo complexa correspondente a qualquer coisa como uma com-
binatoacuteria38
38
Αο contraacuterio do que pode parecer uma determinaccedilatildeo sensiacutevel que se achasse absolutamente isolada
ndash por exemplo a impressatildeo de uma dada matiz de uma cor ndash natildeo teria nada de ldquoindividualrdquo no sentido
que habitualmente damos a este termo O que a torna indivisiacutevel nesse sentido eacute a sua ligaccedilatildeo ou o seu
cruzamento com toda uma seacuterie de outras determinaccedilotildees Ou como tambeacutem podemos dizer o que a
torna ldquoindivisiacutevelrdquo eacute todo um complexo de relaccedilotildees entre a determinaccedilatildeo em causa e muitas outras
Quer dizer de maneira nenhuma sucede o que corresponderia a termos impressotildees sensiacuteveis propria-
mente ldquosingularesrdquo ou individuais (soacute por si independentes de tudo o mais estritamente uacutenicas um
ldquoesterdquo absoluto e inconfundiacutevel etc) Ora natildeo se discute aqui se haacute ou natildeo determinaccedilotildees singulares
ndash ie se haacute ou natildeo determinaccedilotildees que correspondam a ou identifiquem uma ndash e natildeo mais do que uma
ndash ocorrecircncia de algo Tampouco curamos de discutir aqui se entre as representaccedilotildees que noacutes mesmos
temos ndash entre as determinaccedilotildees a que acedemos ndash haacute ou natildeo haacute algo dessa ordem E na verdade tam-
beacutem natildeo estamos a tentar negar que tenhamos a ideia de individualidade ou de singularidade absoluta
O que dizemos eacute que a haver em noacutes (naquilo a que acedemos) determinaccedilotildees propriamente singula-
res a) tais determinaccedilotildees constituem uma excepccedilatildeo b) elas estatildeo inseridas num quadro geral muito
mais abrangente de determinaccedilotildees repetidas que constituem a maioria do que nos aparece e c) eacute ape-
nas no acircmbito de um quadro de determinaccedilotildees repetidas (e por referecircncia a ele em contraste com ele
em contraponto com ele etc) que estaacute constituiacuteda para noacutes a esmagadora maioria do que nos apare-
ce como ldquorealidades singularesrdquo ndash e isto de tal modo que d) na maior parte dos casos a singularidade
natildeo eacute simples mas o contraacuterio resulta do cruzamento de determinaccedilotildees O que faz de um dado azul
134
Para caracterizar melhor a possibilidade que aqui levantaacutemos consideremos a seme-
lhanccedila entre o que estamos a procurar desenhar e aquilo que se passa com a liacutengua ndash uma se-
melhanccedila que nos permite designar a possibilidade a que aqui fazemos referecircncia como mode-
lo ldquoalfabeacuteticordquo
Poderia acontecer que a multiplicidade da liacutengua fosse feita de determinaccedilotildees sempre
novas (sempre novos sons ndash de tal modo que a ldquoflorestardquo a perder de vista das palavras e das
liacutenguas correspondesse a um conjunto de diferentes sons com cardinal natildeo inferior ao de tudo
o que eacute diferenciaacutevel nesta mateacuteria o cardinal de todos os diferentes elementos de todas as
palavras de todas as liacutenguas)
Acontece poreacutem que a multiplicidade da liacutengua recorre a algo como um ldquoalfabetordquo de
determinaccedilotildees
Vejamos um pouco melhor o que isto quer dizer
Em primeiro lugar o que parece que caracterizar a linguagem (na sua pujanccedila ndash no
ldquofestival de multiplicidaderdquo que imediatamente chama a atenccedilatildeo em cada liacutengua e que por
maioria de razatildeo parece caracterizar as diferentes liacutenguas e a fortiori a totalidade delas ndash a
totalidade das liacutenguas vivas mortas e por constituir toda a multiplicidade de Babel) eacute uma di-
versidade a perder de vista De tal modo que na experiecircncia mais habitual da liacutengua a uacuteltima
coisa que nos ocorre eacute a possibilidade de toda a multiplicidade de Babel corresponder agrave va-
riaccedilatildeo de um conjunto de elementos com cardinal de pouco mais de vinte
Quando aqui falamos de alfabeto o que estaacute em causa natildeo eacute um sistema de notaccedilatildeo de
sons (que eacute muito variaacutevel ateacute mesmo porque ainda que jaacute se esteja na pista de qualquer coi-
sa como uma notaccedilatildeo propriamente foneacutetica a tendecircncia eacute muitas vezes para ficar por nota-
ccedilotildees silaacutebicas ndash ie para natildeo chegar agrave identificaccedilatildeo dos elementos uacuteltimos) O que temos em
mente eacute o proacuteprio conjunto dos ldquofonemasrdquo ou dos componentes elementares que se repetem
na composiccedilatildeo de todas as siacutelabas de todas as palavras de todas as liacutenguas Ou seja o que te-
mos em mente eacute o extraordinaacuterio facto de toda a multiplicidade de Babel poder estar compos-
ta por simples combinaccedilatildeo de um conjunto de elementos com cardinal tatildeo reduzido
Ora sendo assim resulta tambeacutem claro para que eacute que aponta o conceito de ldquoalfabeto
de determinaccedilotildeesrdquo ndash do alfabeto de determinaccedilotildees que forma a apresentaccedilatildeo de que dispomos
este azul bem diferenciado natildeo eacute o proacuteprio azul mas sim o ser a cor disto e daquilo com estas e
aquelas caracteriacutesticas nesta e naquela posiccedilatildeo espaacutecio-temporal etc
135
o alfabeto que domina a composiccedilatildeo da αἴσθησις domina a composiccedilatildeo da μνήμη e tambeacutem
domina a composiccedilatildeo da ἐμπειρία (de sorte que podemos dizer que no nosso caso a αἴσθησις
a μνήμη e a ἐμπειρία tecircm algo a que se pode chamar uma composiccedilatildeo alfabeacutetica)
A multiplicidade do que nos aparece tem uma composiccedilatildeo alfabeacutetica se como no caso
da liacutengua se verifica que em vez de constar de um conjunto de determinaccedilotildees com um car-
dinal equivalente ao da proacutepria multiplicidade em causa se verifica que o cardinal das deter-
minaccedilotildees que a preenchem eacute incomparavelmente mais baixo do que o cardinal da proacutepria
multiplicidade ndash de sorte que a extraordinaacuteria multiplicidade do que nos aparece estaacute preen-
chida por repeticcedilatildeo de determinaccedilotildees (por uma extraordinaacuteria margem de repeticcedilatildeo de deter-
minaccedilotildees) e a incriacutevel variedade do que nos aparece natildeo resulta como pode parecer de contiacute-
nua inovaccedilatildeo das proacuteprias determinaccedilotildees mas em vez disso apenas da novidade do cruza-
mento de determinaccedilotildees (ie de uma novidade na combinaccedilatildeo de um conjunto fixo de ele-
mentos)
Em suma o conceito de ldquomodelo alfabeacuteticordquo exprime a possibilidade de uma multipli-
cidade de cardinal muito elevado e com um extraordinaacuterio grau de variaccedilatildeo natildeo resultar de
uma correspondente variaccedilatildeo das determinaccedilotildees originais que a compotildeem mas de facto da
combinatoacuteria de um conjunto de determinaccedilotildees originais com cardinal pequeno e ateacute mesmo
muito pequeno E o que estamos a considerar eacute a possibilidade de mutatis mutandis toda a
multiplicidade de determinaccedilotildees que entram na composiccedilatildeo da ἐμπειρία (tanto as determina-
ccedilotildees da αἴσθησις e da μνήμη quanto as da sua colaccedilatildeo) radicar em qualquer coisa como aqui-
lo a que Leibniz chama um ldquoalphabetum cogitationum humanarumrdquo39
um conjunto de deter-
minaccedilotildees repetiacuteveis muito menos numeroso do que o que corresponde agrave sua repeticcedilatildeo (agrave sua
combinaccedilatildeo etc)
39
Haacute mais do que uma referecircncia a um ldquoAlphabetum cogitationum humanarumrdquo na obra de Leibniz
Poderia considerar-se por exemplo aquela que se encontra em Couturat L (ed) Opuscules et frag-
ments ineacutedits de Leibniz Extraits des manuscrits de la Bibliothegraveque Royale de Hanovre Paris Alcan
1903 480 ldquoAlphabetum cogitationum humanarum est catalogus earum quae per se concipiuntur et
quorum combinatione ceterae ideae nostrae exurguntrdquo Veja-se tambeacutem De alphabeto cogitationum
humanarum Berlin-Brandenburgischen Akademie der Wissenschaften (VI iv 270) ldquoAlphabetum co-
gitationum humanarum est catalogus notionum primitivarum seu earum quas nullis definitionibus cla-
riores reddere possumusrdquo Para mais ver Saumlmtliche Schriften und Briefe hrsg von der Berlin-Bran-
denburgischen Akademie der Wissenschaften und der Akademie der Wissenschaften zu Goumlttingen
Berlin Akademie-Verlag 1999 Philosophische Schriften IV 4 ou ainda Die philosophische Schrif-
ten hrsg von Gerhardt VII Berlin 1890 reed HildesheimNY Olms 1978 paacuteg 185
136
Ora o que aqui importa ter presente eacute o seguinte natildeo soacute a αἴσθησις e a μνήμη podem
ter regimes diferentes consoante possuam ou natildeo uma composiccedilatildeo de tipo alfabeacutetico mas
para aleacutem disso pode haver diferentes alfabetos de determinaccedilotildees (o regime alfabeacutetico pode
ter conformaccedilotildees muito diversas)
Esta possibilidade tende a escapar-nos em virtude de embora habitualmente natildeo nos
apercebamos de que o acesso em que nos achamos constituiacutedos tem uma composiccedilatildeo alfabeacute-
tica reinar globalmente em noacutes a evidecircncia impliacutecita mas absolutamente assente de que o re-
gime de determinaccedilotildees a que recorre a apresentaccedilatildeo de que dispomos corresponde no funda-
mental ao regime de determinaccedilatildeo segundo o qual estatildeo montadas ldquoas proacuteprias coisasrdquo ndash de
tal modo que pura e simplesmente natildeo haacute alternativa vaacutelida Poreacutem a verdade eacute que em uacutelti-
ma anaacutelise nada haacute que possa garantir que eacute assim (que o alfabeto de determinaccedilotildees em vigor
na forma como vemos eacute mesmo o uacutenico possiacutevel ou de todo o modo o uacutenico que tem corres-
pondecircncia nas ldquoproacuteprias coisasrdquo tal como satildeo etc)
Foquemos um pouco melhor o que resulta de tudo isto
Em primeiro lugar desenha-se qualquer coisa como uma correlaccedilatildeo entre a proacutepria
ἐμπειρία e aquilo a que chamaacutemos ldquocomposiccedilatildeo alfabeacuteticardquo do acesso (composiccedilatildeo alfabeacutetica
da αἴσθησις e da μνήμη como antecedentes da ἐμπειρία e composiccedilatildeo alfabeacutetica da proacutepria ἐμ-
πειρία)
Acontece no entanto que estamos tatildeo dominados pela composiccedilatildeo alfabeacutetica do aces-
so em que nos achamos constituiacutedos (quer dizer tatildeo familiarizados com ela vemos de tal ma-
neira sempre jaacute segundo um alfabeto de determinaccedilotildees e estamos tatildeo afeitos a ele etc) que
natildeo costumamos ter qualquer ideia do proacuteprio alphabetum cogitationum humanarum (para di-
zer como Leibniz) nem da sua composiccedilatildeo
Neste aspecto passa-se portanto algo muito parecido com aquilo que se regista na
esfera da liacutengua Pois como vimos tambeacutem no caso da liacutengua a experiecircncia habitual dela eacute
analfabeta (em relaccedilatildeo ao proacuteprio ldquoalfabeto foneacuteticordquo) ndash tanto no sentido de natildeo identificar os
fonemas a que recorre (e com que estaacute em relaccedilatildeo pois se natildeo estivesse em relaccedilatildeo com eles
natildeo poderia falar nem compreender o que se diz) quanto no sentido de natildeo fazer mesmo a
mais pequena ideia de haver qualquer coisa como um pequeno conjunto de elementos foneacute-
ticos e nesse sentido um alfabeto
137
Em segundo lugar importa fazer notar que haver uma tal correlaccedilatildeo entre a experiecircn-
cia e a constituiccedilatildeo alfabeacutetica do que nos aparece natildeo significa de modo nenhum que haja e soacute
possa haver um uacutenico alfabeto
Para poder ocorrer o fenoacutemeno da experiecircncia tem de ter lugar num acontecimento de
acesso com composiccedilatildeo alfabeacutetica (ou de que pelo menos uma parte tem composiccedilatildeo alfabeacuteti-
ca) Ora essa correlaccedilatildeo diz respeito a um tipo ou forma de composiccedilatildeo do acesso a compo-
siccedilatildeo alfabeacutetica enquanto tal Natildeo diz respeito agrave conformaccedilatildeo concreta do alfabeto Essa pode
variar ndash e de facto ateacute pode variar muito A razatildeo por que temos dificuldade em conceber tal
variaccedilatildeo eacute o facto de estarmos ldquopresosrdquo a um determinado alfabeto de tal modo que natildeo con-
seguimos sair dele Mas isso natildeo impede o ponto decisivo esse alfabeto natildeo eacute o uacutenico possiacute-
vel (natildeo haacute nada que legitime efectivamente a assunccedilatildeo de um tal estatuto ndash a situaccedilatildeo em que
nos encontramos a este respeito natildeo consente como perspectiva legiacutetima senatildeo uma perspec-
tiva aberta)
Isto significa que o que caracteriza o acesso em que nos achamos natildeo eacute apenas ter um
caraacutecter empiacuterico e portanto possuir uma composiccedilatildeo alfabeacutetica Dizer que um ponto de vis-
ta tem um caraacutecter empiacuterico ou uma composiccedilatildeo alfabeacutetica natildeo eacute suficiente para determinar o
seu teor
Se um ponto de vista tem uma composiccedilatildeo alfabeacutetica que possibilita a constituiccedilatildeo da
ἐμπειρία tudo depende de qual eacute esse alfabeto (de como estaacute formado de quais satildeo os seus
elementos) Isto eacute o que o caracteriza eacute estar montado sobre um dado alfabeto que constitui
o ldquomaterialrdquo a partir do qual se forma todo o ldquotecidordquo da ἐμπειρία
Nesse sentido dois pontos de vista podem ser empiacutericos podem ter uma composiccedilatildeo
alfabeacutetica e ainda assim caeteris paribus serem completamente diferentes em resultado de
diferenccedilas quanto agrave composiccedilatildeo concreta e agraves caracteriacutesticas do alfabeto que lhes serve de
base
Em suma tudo o que nos aparece no quadro da constituiccedilatildeo da ἐμπειρία (em sede da
αἴσθησις μνήμη e ἐμπειρία) radica num ldquoalfabetordquo com estas caracteriacutesticas ndash de que habitual-
mente natildeo temos consciecircncia e que tal como no caso da liacutengua temos dificuldade em apurar
ndash mas que nem por isso deixa de constituir sempre jaacute por mais ldquoanalfabetardquo que se mantenha
a forma como olhamos para a multiplicidade do que aparece a base da sua composiccedilatildeo aqui-
lo de que eacute feito tudo com que temos contacto e de que temos experiecircncia
138
sect20
A variabilidade da ἐμπειρία quanto agrave amplitude da ascensatildeo em direcccedilatildeo a determina-
ccedilotildees mais geneacutericas e quanto agrave forma de ldquocristalizaccedilatildeordquo na captaccedilatildeo da afinidade a scala
praeligdicamentalis
Haacute outro aspecto igualmente decisivo que tambeacutem interfere como factor de diferencia-
ccedilatildeo do cunho que a experiecircncia toma Esse aspecto tem que ver com algo ao mesmo tempo
parecido com aquilo que eacute proacuteprio do ldquomodelo alfabeacuteticordquo e diferente dele
Como vimos o que caracteriza o ldquomodelo alfabeacuteticordquo eacute haver uma multiplicidade de
determinaccedilotildees repetiacuteveis ndash cada uma das quais eacute comum ao conjunto das suas diversas instan-
ciaccedilotildees
No entanto no ldquomodelo alfabeacuteticordquo propriamente dito natildeo haacute nada comum agraves proacute-
prias determinaccedilotildees comuns ndash natildeo haacute letras comuns a letras natildeo haacute se assim se pode dizer
afinidades de segundo grau Tudo o que haacute satildeo as afinidades correspondentes aos proacuteprios
ldquoelementosrdquo Natildeo haacute fonemas comuns aos proacuteprios fonemas ndash isso seria incompatiacutevel com o
estatuto elementar dos fonemas enquanto tais
Mas se eacute isso que se passa no ldquomodelo alfabeacuteticordquo natildeo eacute necessariamente isso que se
passa no quadro de determinaccedilotildees em que nos movemos ndash quer dizer no quadro de determi-
naccedilotildees em que se pode mover a constituiccedilatildeo da ἐμπειρία no quadro de determinaccedilotildees de que
se compotildee a αἴσθησις e portanto a μνήμη etc
Vendo bem pode muito bem acontecer o que tradicionalmente se exprime na organi-
zaccedilatildeo da chamada scala praeligdicamentalis (tal como se acha traduzida nas figuras da ldquoaacutervore
de Porfiacuteriordquo) Isto eacute pode suceder que a multiplicidade de determinaccedilotildees repetiacuteveis a que re-
corre o que aparece comporte determinaccedilotildees comuns de primeira ordem de segunda ordem
de terceira ordem etc40
Vejamos um pouco melhor o que estaacute em causa neste ponto
40
Aquilo a que se estaacute a fazer referecircncia ao falar de uma ldquoaacutervore de Porfiacuteriordquo natildeo eacute como a tradiccedilatildeo
jaacute estabeleceu algo que corresponda a algo proposto pelo proacuteprio mas eacute mais exactamente uma tenta-
tiva de representaccedilatildeo visual da interpretaccedilatildeo de Porfiacuterio do tratado sobre as Categorias de Aristoacuteteles
(Porfiacuterio Introduction to the logical Categories of Aristotle in The Organon or Logical Treatises of
Aristotle with the Introduction of Porphyry volume 2 London 1853 paacutegs 609-633)
139
Antes do mais trata-se da possibilidade de aquilo que agrave primeira vista parece ser jaacute
simples (ter um caraacutecter elementar indecomponiacutevel que justifica falar-se de componentes de
um alfabeto) acabar por se revelar suceptiacutevel de decomposiccedilatildeo
A escala predicamental significa que se considerarmos mais atentamente determina-
ccedilotildees especiacuteficas (que satildeo aquelas que mais semelhanccedilas tecircm com os elementos de um alfabe-
to entendido no sentido exposto acima) apuramos que se prestam a serem descobertas como
contracccedilotildees de determinaccedilotildees mais geneacutericas que por sua vez tambeacutem se prestam a serem
descobertas como contracccedilotildees de determinaccedilotildees mais geneacutericas e assim sucessivamente
Eacute tambeacutem isso que se acha retratado na forma das ldquoaacutervores de Porfiacuteriordquo As ldquoaacutervoresrdquo
apontam para qualquer coisa como uma escala de ramos
Assim as determinaccedilotildees mais gerais ramificam-se em determinaccedilotildees menos gerais
que por sua vez ainda se ramificam em determinaccedilotildees menos gerais etc Ou inversamente as
determinaccedilotildees mais especiacuteficas apresentam-se como ramificaccedilotildees de geacuteneros que por sua
vez se apresentam como ramificaccedilotildees (ou espeacutecies) de geacuteneros mais amplos que ainda se
apresentam como ramificaccedilotildees (ou espeacutecies) de geacuteneros mais amplos ndash ateacute chegar a geacuteneros
no sentido mais estrito do termo (que natildeo satildeo especificaccedilotildees de nada superior)
Esta peculiar estrutura corresponde por um lado a qualquer coisa que podemos des-
crever como um dado de facto eacute efectivamente possiacutevel identificarmos entre as determina-
ccedilotildees repetiacuteveis que povoam o acontecimento de acesso em que nos achamos qualquer coisa
como afinidades de segunda terceira e quarta ordem etc ou uma estrutura como aquela que
se traduz nos conceitos de a) espeacutecies que natildeo satildeo geacutenero de nada b) determinaccedilotildees que ser-
vem de geacutenero em relaccedilatildeo a outras mas por outro lado tecircm o caraacutecter de espeacutecies de determi-
naccedilotildees superiores c) vaacuterios graus de iteraccedilatildeo desse nexo ateacute chegar a d) geacuteneros que jaacute natildeo
satildeo espeacutecies de nada com uma extensatildeo maior que a deles
Mas por outro lado se eacute assim (se a scala praeligdicamentalis eacute um fenoacutemeno natildeo muito
difiacutecil de verificar) tal verificaccedilatildeo natildeo impede a subsistecircncia de duas ordens de problemas
Em primeiro lugar perceber que haacute qualquer coisa como uma scala praeligdicamentalis
(e que entre todas as determinaccedilotildees com que lidamos haacute uma complexa rede de nexos de afi-
nidade) natildeo leva de modo nenhum a identificar sem mais qual eacute essa rede de estruturas ldquoarbo-
riformesrdquo de afinidade entre todas as suas determinaccedilotildees
140
Por outras palavras perceber que haacute uma estrutura ldquoarboriformerdquo natildeo eacute o mesmo que
perceber que determinaccedilotildees satildeo ramificaccedilotildees de que outras qual o desenho concreto da(s) aacuter-
vore(s) em causa qual o seu radical (ou os seus radicais) uacuteltimo(s) etc
A esta primeira dificuldade vem juntar-se uma segunda ndash que diz respeito ao estatuto
da proacutepria scala praeligdicamentalis
Com efeito o reconhecimento de que haacute afinidade de segundo grau de terceiro grau
etc no sentido referido natildeo permite decidir sem mais se a scala praeligdicamentalis resulta pura
e simplesmente de processos abstractivos ou tem alguma intervenccedilatildeo na proacutepria constituiccedilatildeo
daquilo que espontaneamente nos aparece sem nenhuma iniciativa de anaacutelise da nossa parte
Expliquemo-nos melhor
Pode acontecer que os geacuteneros os geacuteneros de geacuteneros os geacuteneros de geacuteneros de geacutene-
ros etc soacute entrem em cena mediante operaccedilotildees de abstracccedilatildeo que tecircm um caraacutecter superve-
niente e facultativo em relaccedilatildeo agravequilo que temos apresentado no curso habitual das nossas ldquore-
presentaccedilotildeesrdquo Se for assim as coisas que de ordinaacuterio vemos natildeo estatildeo ldquomontadasrdquo sobre de-
terminaccedilotildees dessa ordem e estas uacuteltimas soacute tecircm em noacutes uma presenccedila por assim dizer inter-
mitente (quando realizamos operaccedilotildees de abstracccedilatildeo)
Mas tambeacutem pode acontecer que na verdade natildeo seja assim ndash que suceda justamente o
oposto
Ou seja pode acontecer que as determinaccedilotildees mais especiacuteficas estejam constituiacutedas de
tal modo que resultam sempre da contracccedilatildeo de determinaccedilotildees mais geneacutericas e soacute sejam pos-
siacuteveis a partir delas Dito de outro modo pode acontecer que por exemplo de cada vez que se
vecirc um coelho esta determinaccedilatildeo recorra sempre jaacute agrave determinaccedilatildeo mais geral ldquoanimalrdquo que
esta por sua vez recorre sempre jaacute agrave determinaccedilatildeo mais geral ldquocorpordquo e que esta recorra
sempre jaacute agrave determinaccedilatildeo ainda mais geral ldquounidade colectiva e determinaccedilotildeesrdquo etc41
41
Constituiacuteda de tal modo que comporta ao mesmo tempo uma multiplicidade (A ne B ne C ne D) e a in-
tegraccedilatildeo de toda ela em algo que salva identitate atravessa a respectiva diferenccedila e a integra na mes-
midade de si De cada vez que representamos um corpo representamos jaacute algo com estas caracteriacutes-
ticas ndash mas de tal modo que este nuacutecleo de determinaccedilatildeo que eacute o paradigma da unidade colectiva de
determinaccedilotildees tem uma extensatildeo mais ampla que o conceito de ldquocorpordquo A tudo isto acresce ainda que
o troccedilo da scala praeligdicamentalis que assim se desenha natildeo acaba necessariamente no que assim aca-
baacutemos de identificar como radical ou nuacutecleo Com efeito se considerarmos a proacutepria determinaccedilatildeo
ldquounidade colectiva de determinaccedilotildeesrdquo verificamos que tambeacutem ela recorre sempre jaacute a um nuacutecleo de
determinaccedilatildeo ainda mais radical e extenso o proacuteprio conceito de ldquosiacutenteserdquo que consagra a possibilida-
141
Em suma pode acontecer que a scala praeligdicamentalis tenha se assim se pode dizer
uma constituiccedilatildeo descendente ndash a partir das determinaccedilotildees mais universais como condiccedilotildees
de possibilidade das determinaccedilotildees mais especiacuteficas
Ora se assim for isso significa que o alfabeto das nossas determinaccedilotildees ndash o ldquoalphabe-
tum cogitationum humanarumrdquo ndash tem uma composiccedilatildeo bastante diferente daquela que antes
se sugeriu Tratar-se-aacute de um alphabetum constituiacutedo na forma da scala praeligdicamentalis com
radicaccedilatildeo dos elementos mais especiacuteficos nos elementos mais geneacutericos ndash de tal modo que
seratildeo estes uacuteltimos a desempenhar verdadeiramente o papel de elementos
Natildeo pertence aqui analisar a fundo este problema O que pretendemos indicar eacute apenas
que a questatildeo da composiccedilatildeo do alphabetum cogitationum humanarum eacute ainda mais comple-
xa do que parecia a partir do que antes se viu
Quando mencionaacutemos a possibilidade de haver vaacuterios alfabetos ou vaacuterias composiccedilotildees
do alfabeto de determinaccedilotildees sobre cuja base se constitui a experiecircncia isso parecia significar
que o lote das determinaccedilotildees poderia variar mas justamente natildeo previa a ldquocomplicaccedilatildeo adicio-
nalrdquo que tem que ver com a possibilidade de o alfabeto de determinaccedilotildees ndash e na verdade jus-
tamente o nosso alfabeto de determinaccedilotildees ndash ter a forma de uma scala praeligdicamentalis des-
cendente
Por outras palavras onde viacuteamos a) a possibilidade de vaacuterias conformaccedilotildees de um al-
phabetum cogitationum mais parecido com o alfabeto da proacutepria liacutengua aparece agora b) a
alternativa entre um alphabetum cogitationum desse tipo e um alphabetum cogitationum com
a forma de uma scala praeligdicamentalis descendente e ainda c) a alternativa entre vaacuterias poss-
ibilidades de conformaccedilatildeo concreta do alfabeto com a forma da scala praeligdicamentalis des-
cendente
Podemos exprimir tudo isto dizendo que o que estaacute em causa eacute o diferente significado
que na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία pode ter aquilo que Aristoacuteteles designa como πολλαὶ μνῆμαι
τοῦ αὐτοῦ πράγματος (do mesmo estado-de-coisas)
Com efeito este τοῦ αὐτοῦ πράγματος pode significar coisas muito diferentes consoan-
te a margem de afinidade entre diferentes αἰσθήσεις e diferentes μνῆμαι for se assim se pode
dizer ldquounidimensionalrdquo (cingindo-se ao registo de uma afinidade de primeiro grau a afinida-
de de aquilo que eacute diferente (e corresponde portanto agrave forma A ne B) possa ainda assim coincidir ndash
de tal modo que os diferentes estatildeo um no outro se determinam um ao outro
142
de entre espeacutecies) ou pelo contraacuterio compreender tambeacutem afinidades de segundo terceiro
quarto grau (afinidades de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros
etc)
E por outro lado neste segundo caso tudo depende ainda de dois factores de variaccedilatildeo
Por um lado tudo depende justamente da amplitude desta margem de alargamento da
afinidade a nuacutecleos de determinaccedilatildeo mais extensos (quer dizer tudo depende de haver apenas
afinidade e projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes de segundo grau ou tambeacutem de ter-
ceiro grau ou de quarto grau etc ndash ie tudo depende de ateacute onde vai a possibilidade de as-
censatildeo em qualquer coisa como uma scala praeligdicamentalis)
Por outro lado tudo depende tambeacutem de como estiver organizada a scala praeligdica-
mentalis Ela pode estar organizada de diferentes maneiras e essas diferentes linhas de crista-
lizaccedilatildeo se assim se pode dizer da scala praeligdicamentalis tambeacutem fazem que caeteris pari-
bus a experiecircncia possa ganhar contornos muito diferentes
Atentemos um pouco mais no uacuteltimo aspecto
Este uacuteltimo aspecto significa que aquilo a que chamaacutemos afinidade de segundo tercei-
ro grau etc pode acontecer com muito diversas configuraccedilotildees (com muito diversas organiza-
ccedilotildees das linhas de afinidade) ndash tanto no que diz respeito agraves ramificaccedilotildees mais proacuteximas dos
conceitos repetiacuteveis com maior extensatildeo e menor compreensatildeo (ou seja a geacuteneros) quanto
no que diz respeito agrave fusatildeo de diferentes ramos em determinaccedilotildees de menor extensatildeo e maior
compreensatildeo (ou seja a espeacutecies)
O que isto quer dizer eacute que a multiplicidade das determinaccedilotildees repetiacuteveis pode estar
constituiacuteda de tal modo que a) consente ou natildeo consente afinidades de segundo grau terceiro
grau etc (ie qualquer coisa de correspondente agrave scala praeligdicamentalis) b) pode dar lugar
a muito diferentes quadros de afinidade de segundo grau terceiro grau etc e tambeacutem c) po-
de corresponder a diferentes graus de facilidade ou dificuldade de detecccedilatildeo da afinidade e de
correspondente ascensatildeo na scala praeligdicamentalis ndash quer dizer a diferentes graus de facili-
dade ou dificuldade na captaccedilatildeo das determinaccedilotildees mais afastadas das espeacutecies
Ora tudo isto se reflecte na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία
Vendo bem a projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes pode produzir-se apenas
em ldquonavegaccedilatildeo costeirardquo (que se ateacutem a determinaccedilotildees mais especiacuteficas) ou pelo contraacuterio
143
pode produzir-se em ldquonavegaccedilatildeo de mar altordquo ndash subindo na scala praeligdicamentalis detectan-
do afinidades de segundo terceiro grau etc e produzindo projecccedilotildees empiacutericas dessa ordem
Em suma a ἐμπειρία eacute variaacutevel quer no que diz respeito agrave amplitude da ascensatildeo em
direcccedilatildeo a determinaccedilotildees mais geneacutericas quer no que diz respeito agrave proacutepria forma de ldquocristali-
zaccedilatildeordquo na captaccedilatildeo da afinidade e essa variaccedilatildeo depende da organizaccedilatildeo da scala praeligdica-
mentalis que entrar em funccedilotildees na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία E o ponto decisivo eacute que tambeacutem
desta forma a organizaccedilatildeo da experiecircncia (o quadro concreto de projecccedilotildees de estados-de-
coisas-permanentes) natildeo apenas pode variar mas pode variar muito significativamente e dar
lugar a ldquoreconhecimentos de realidaderdquo muito diversos mesmo que o ldquoterritoacuteriordquo (a delimi-
taccedilatildeo espaacutecio-temporal) e todos os outros factores determinantes da ἐμπειρία sejam exacta-
mente os mesmos
sect21
A complexidade da experiecircncia e os modos de cruzamento das determinaccedilotildees entre si ndash A
experiecircncia sintonizada por unidades colectivas de determinaccedilotildees
Tudo isto nos leva a um outro aspecto implicado no que estamos a ver e que importa
pocircr em relevo
Quando se fala das determinaccedilotildees que entram na composiccedilatildeo da ἐμπειρία pode pen-
sar-se que se trata de uma multiplicidade constituiacuteda por mera justaposiccedilatildeo dos seus diversos
elementos De facto poderia ser assim
Poreacutem uma anaacutelise do nosso ponto de vista mostra algo que jaacute estava de certo modo
impliacutecito atraacutes e que agora importa acentuar a saber que parece haver algo como um cruza-
mento das diversas determinaccedilotildees entre si
Ora o cruzamento das diversas determinaccedilotildees entre si tem efeitos na complexidade da
experiecircncia quanto mais complexo e intrincado for este cruzamento de determinaccedilotildees tanto
mais complexa poderaacute ser tambeacutem a experiecircncia que se faz do que aparece Haacute por assim di-
zer uma relaccedilatildeo directa entre o cardinal de determinaccedilotildees (conteuacutedos de saber formas de
saber ldquoconteuacutedosrdquo objectos de saber etc) de um ldquoalfabetordquo e a complexidade da experiecircn-
cia que dele se extrai
144
Consideremos por exemplo a janela que temos perante noacutes na sala de trabalho Ou
mais precisamente consideremos um momento o mais simples possiacutevel do caixilho da jane-
la
Ao analisar este momento da janela notamos que ele eacute composto de uma multiplicida-
de de determinaccedilotildees eacute branco ldquoerdquo resistente ldquoerdquo liso ldquoerdquo tem uma determinada posiccedilatildeo no es-
paccedilo e no tempo ldquoerdquo tem continuidade tanto em relaccedilatildeo ao que havia quanto em relaccedilatildeo ao
que haveraacute ldquoerdquo tem identidade diacroacutenica ldquoerdquo tem um determinado grau de resistecircncia ldquoerdquo tem
uma existecircncia puacuteblica de tal modo que o suponho como podendo ser testemunhado por uma
multiplicidade ldquoerdquo ao mesmo tempo eacute-lhe negada a capacidade de qualquer movimento
autoacutenomo etc Haacute por assim dizer coincidecircncia de determinaccedilotildees em cada momento do que
temos apresentado42
O fenoacutemeno que estaacute aqui em causa eacute expresso por Aristoacuteteles na foacutermula τι κατά τι-
νος43
Esta noccedilatildeo aponta para o facto de as muacuteltiplas determinaccedilotildees de que o nosso acesso eacute
composto estarem reciprocamente entretecidas umas nas outras (ldquometidas umas nas outrasrdquo
entrelaccediladas etc) numa relaccedilatildeo de co-implicaccedilatildeo
Assim por um lado o branco o resistente o liso etc a) satildeo determinaccedilotildees natildeo idecircn-
ticas entre si e b) satildeo determinaccedilotildees de algo que natildeo eacute inteiramente idecircntico a nenhuma delas
(estaacute em causa para usar uma expressatildeo do De Anima 430b3 uma siacutentese do natildeo-idecircntico)
Mas se olharmos para a forma como estatildeo presentes num qualquer ldquopontordquo do cai-
xilho da janela apuramos que elas aparecem como determinaccedilotildees umas das outras (afectam-
se umas agraves outras estatildeo implicadas umas nas outras etc)
O que estamos a procurar salientar eacute o facto de os diversos momentos da ldquomanchardquo do
que se acha apresentado terem uma ligaccedilatildeo com isso que as associa ou que as integra
Quer dizer aleacutem de haver a) uma multiplicidade de momentos do caixilho da janela (a
multiplicidade que faz o proacuteprio caixilho e sem a qual natildeo se apresentaria caixilho nenhum)
haacute tambeacutem b) uma multiplicidade de determinaccedilotildees implicadas em cada momento do caixilho
da janela (e de tal forma que tambeacutem sem ela natildeo se apresentaria caixilho nenhum ou de todo
42
Sobre este fenoacutemeno da conjunccedilatildeo vejam-se as anaacutelises de Hegel sobre a consciecircncia (Phaumlnomeno-
logie des Geistes A II paacuteg 65 e seguintes)
43 Ver por exemplo Anal Ant I 24a30 40b30 De Interpretatione 17a25 ou De Anima 430b20
145
o modo natildeo se apresentaria um caixilho com estas caracteriacutesticas) mas para aleacutem disso ainda
haacute c) uma determinaccedilatildeo que junta as multiplicidades referidas como a) e b) fazendo que todas
elas pertenccedilam a algo comum a elas o caixilho (de sorte que tambeacutem sem este terceiro ele-
mento natildeo se apresentaria nada do que vemos como ldquocaixilho da janelardquo)
De facto todas as determinaccedilotildees com que lidamos ao termos perante noacutes o que quer
que seja fazem parte de unidades colectivas de determinaccedilotildees ndash unidades que resultam de
uma modalidade peculiar de cruzamento de determinaccedilotildees (de algo marcado por ser mais do
que uma mera justaposiccedilatildeo de determinaccedilotildees) O que decorre deste cruzamento de determina-
ccedilotildees eacute a organizaccedilatildeo dos diversos momentos (marcados por determinaccedilotildees ou propriedades
muacuteltiplas) em muacuteltiplos casos disso a que chamamos ldquocoisasrdquo
Consideremos um pouco mais detidamente este aspecto
Em primeiro lugar estamos a falar de duas formas possiacuteveis de constituiccedilatildeo da expe-
riecircncia (mais precisamente de duas formas possiacuteveis de constituiccedilatildeo da sua base ndash da αἴσθη-
σις e da μνήμη ndash e por via disso tambeacutem da ἐμπειρία)
Se tendemos a deixar escapar a diferenccedila entre estas duas possibilidades eacute porque pa-
ra noacutes a experiecircncia estaacute sempre jaacute ldquosintonizadardquo por unidades colectivas de determinaccedilotildees
Acontece poreacutem que essa natildeo eacute a uacutenica forma possiacutevel da sua ocorrecircncia antes consente al-
ternativas ndash por exemplo um quadro de experiecircncia de tipo ldquopontilhistardquo se assim se pode di-
zer
Expliquemos melhor o que se quer dizer com isto
Se considerarmos aquilo que habitualmente se nos apresenta na ldquoinvasatildeordquo do acesso
(na presenccedila de algo que continuamente ocorre em noacutes) verificamos que tem na sua base
qualquer coisa como um contiacutenuo de identidades e diferenccedilas na forma A ne B ne C ne D ne E e
assim sucessivamente
Essa eacute por assim dizer a proacutepria forma da multiplicidade que estaacute suposta na proacutepria
constituiccedilatildeo da multiplicidade enquanto tal Nas paredes que nos rodeiam no chatildeo no tecto
etc o proacuteprio aparecimento da multiplicidade remete continuamente para uma sucessatildeo de
unidades simples cada em identidade consigo mesma e a diferir das outras
O que estaacute em jogo eacute a proacutepria compreensatildeo de qualquer composto como compositum
reale para usar a noccedilatildeo de Kant (ou aquilo que foi expresso por Leibniz quando fala da com-
146
preensatildeo da multiplicidade como rebanho e da necessaacuteria filiaccedilatildeo da realidade do rebanho na
realidade de cada um dos ldquobrebisrdquo que entram na sua composiccedilatildeo)
Por razotildees que jaacute veremos melhor em relaccedilatildeo a realidades como parede chatildeo as nos-
sas proacuteprias matildeos etc o nosso olhar estaacute habitualmente retido num registo confuso de tal
modo que natildeo se acha preparado para identificar propriamente as unidades em questatildeo
Se nos concentramos no que confusamente aparece como um ponto da parede acaba-
mos por apurar que afinal corresponde a uma superfiacutecie ndash e isto de tal modo que natildeo estaacute em
condiccedilotildees de identificar nem qual o cardinal das unidades que entram na sua composiccedilatildeo nem
qual a conformaccedilatildeo de cada uma dessas unidades (o que corresponde entatildeo propriamente a
um ponto)
Poreacutem mesmo sendo assim isso natildeo impede que a composiccedilatildeo daquilo que aparece
pareccedila remeter justamente para ndash e radicar em ndash qualquer coisa como um complexo de unida-
des simples cuja multiplicaccedilatildeo forma as manchas com que estou em contacto ndash de tal modo
que se natildeo houvesse esta trama baacutesica de identidades e diferenccedilas (A ne B ne C ne D ne E ne F)
tambeacutem natildeo haveria a proacutepria multiplicidade
Ora sendo assim a proacutepria descriccedilatildeo que acabamos de fazer da composiccedilatildeo do que
nos aparece potildee em evidecircncia que na forma como as coisas nos aparecem haacute como que um
desvio ou uma distacircncia em relaccedilatildeo agrave mera presenccedila de um complexo de unidades simples de
aparecimento postas em nexo de justaposiccedilatildeo umas agraves outras
Quer dizer por um lado tudo remete para uma trama contiacutenua de identidades e dife-
renccedilas que constituti de raiz a proacutepria multiplicidade do que nos aparece Mas por outro la-
do tambeacutem haacute algo diferente dela (algo mais do que ela) ndash e isto de tal modo que esse algo
mais (esse algo de diferente dela) afasta da trama baacutesica potildee de certo modo fora dela e faz
que o proacuteprio contacto com ela soacute ocorra a partir do filtro (desse algo diferente da proacutepria tra-
ma baacutesica) Resulta daiacute que natildeo temos acesso agrave trama baacutesica de identidade e diferenccedila a partir
do seu proacuteprio ponto de vista mas antes soacute a partir do ponto de vista disso que difere dela e
lhe estaacute como que aposto
Se perguntarmos a noacutes mesmos o que eacute que nos aparece percebemos que a resposta
que tendemos a dar tem a forma uma parede uma mesa uma estante uma cadeira uma jane-
la etc ndash e natildeo a forma um primeiro momento de branco um segundo momento de branco
um terceiro momento de branco um quarto momento de branco ndash e assim sucessivamente
147
Isto torna clara a distacircncia em relaccedilatildeo agrave trama baacutesica de identidades e diferenccedilas a que fize-
mos referecircncia
A questatildeo estaacute entatildeo em perceber que eacute isso que estaacute aposto agrave trama baacutesica de identi-
dades e diferenccedilas ndash qual a sua natureza qual a sua estrutura etc
A primeira coisa que chama a atenccedilatildeo eacute que ao identificarmos aquilo que nos aparece
o nosso olhar como que salta da diferenccedila entre a parede e a mesa para a diferenccedila entre a me-
sa e a estante e desta para a diferenccedila entre a estante e a parede etc Quer dizer haacute diferenccedilas
que estatildeo como que acentuadas em posiccedilatildeo toacutenica enquanto outras (aquelas que correspon-
dem agrave conformaccedilatildeo da multiplicidade dentro da mesa dentro da estante dentro da parede
etc) estatildeo como que desacentuadas postas em posiccedilatildeo aacutetona de relativo apagamento etc
Por outro lado sendo assim natildeo eacute difiacutecil ver que este contraste entre diferenccedilas toacuteni-
cas e diferenccedilas aacutetonas natildeo tem que ver com algo que se passe apenas com as primeiras mas
com uma propriedade que afecta todos os momentos da trama baacutesica
Isto eacute a razatildeo por que as diferenccedilas referidas tecircm uma posiccedilatildeo toacutenica eacute o facto de to-
dos os diferentes momentos compreendidos no intervalo entre os limites da mesa os limites
da estante os limites da parede etc estarem unidos entre si por algo que soacute os liga a eles
(ie que soacute liga os diferentes momentos da mesa os diferentes momentos da estante os dife-
rentes momentos da parede etc e que estaacute ausente na relaccedilatildeo entre o que pertence agrave mesa e o
que pertence agrave estante ou entre o que pertence a esta uacuteltima e o que pertence agrave parede etc)
Por outras palavras a razatildeo por que as diferenccedilas entre a mesa a estante a parede
etc satildeo toacutenicas e as demais diferenccedilas satildeo aacutetonas tem que ver com o facto de os diferentes
momentos da trama baacutesica que pertencem agrave mesa (agrave estante agrave parede etc) natildeo estarem ape-
nas justapostos (como numa multiplicidade pontilhista) mas fundidos entre si
Isto potildee-nos na pista de um outro fenoacutemeno essencial esta fusatildeo natildeo passa apenas
pela ligaccedilatildeo entre diferentes momentos da proacutepria trama baacutesica ndash ela envolve essencialmente
a intervenccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo de outra ordem (diferente das determinaccedilotildees da trama
baacutesica de identidades e diferenccedilas) Trata-se justamente da peculiar modalidade de determina-
ccedilatildeo que estaacute em causa quando se fala de ldquomesardquo de ldquoestanterdquo de ldquocadeirardquo de ldquoparederdquo etc
Determinaccedilotildees desta natureza distinguem-se pela propriedade de pura e simplesmente
natildeo serem possiacuteveis como determinaccedilotildees simples determinaccedilotildees desta ordem soacute satildeo possiacute-
veis como determinaccedilotildees intrinsecamente colectivas ou intrinsecamente sinteacuteticas que jun-
tam uma multiplicidade
148
Ora apesar de algo como uma mesa simples uma cadeira simples uma parede sim-
ples etc ser pura contradictio in adjecto isso natildeo impede que estas determinaccedilotildees apareccedilam
como determinaccedilotildees com um teor proacuteprio idecircntico a si mesmo e completamente irredutiacutevel
natildeo apenas a cada um dos elementos da multiplicidade sem a qual natildeo podem ocorrer mas
tambeacutem a essa multiplicidade enquanto ela constitui uma mera justaposiccedilatildeo dos seus elemen-
tos
Este eacute o ponto decisivo as determinaccedilotildees colectivas desta ordem (mesa estante pare-
de etc) satildeo natildeo soacute diferentes umas das outras mas tambeacutem diferentes dos elementos que in-
tegram ndash e na verdade tatildeo diferentes deles quanto eles satildeo diferentes uns dos outros mas sen-
do assim estas determinaccedilotildees diferentes natildeo vecircm juntar-se agrave multiplicidade daquilo que inte-
gram como mais um elemento justaposto nela (como mais um elemento da mera justaposi-
ccedilatildeo)
Sucede o contraacuterio
As determinaccedilotildees colectivas do tipo que estamos a considerar disinguem-se pelo facto
de a sua identidade parecer constituiacuteda de tal modo que integra em si salva identitate a mul-
tiplicidade dos elementos que ldquofazem parterdquo da mesa da cadeira da estante da parede etc
Ou seja apesar de a mesa (a cadeira a estante etc) ser diferente dos seus elementos e
de estes serem diferentes entre si a identidade deste tipo apresenta-se como capaz de integrar
em si o diferente e de o converter em momento seu ou em momento de si
Esta estrutura estaacute tatildeo profundamente implantada na forma como vemos que habitual-
mente natildeo damos por ela natildeo nos apercebemos da sua morfologia dos problemas que levan-
ta etc Eacute ela que faz que tudo o que nos aparece tenha como vimos a estrutura de um apare-
cimento de ldquocoisasrdquo
O que aqui apresentamos natildeo eacute mais do que uma anaacutelise muito breve que fica muito
longe de dar conta de todos os aspectos e de focar o complexo de problemas que tudo isto le-
vanta Limitamo-nos a considerar trecircs pontos que podem ajudar a perceber melhor a questatildeo
dos diversos factores que podem moldar a constituiccedilatildeo da experiecircncia
Em primeiro lugar o que acabamos de dizer significa que em uacuteltima anaacutelise na forma
de aparecimento em que damos connosco natildeo haacute apenas um alfabeto de determinaccedilotildees mas
dois a) um alfabeto de determinaccedilotildees disso a que chamaacutemos a trama baacutesica de identidades e
diferenccedilas e b) um alfabeto de determinaccedilotildees intrinsecamente colectivas ou sinteacuteticas (ie um
alfabeto daquilo que constitui as unidades colectivas de determinaccedilotildees) E isto de tal modo
149
que os problemas anteriormente referidos (designadamente a questatildeo da scala praeligdicamenta-
lis e das determinaccedilotildees de afinidade de primeira segunda terceira ordem etc) se potildeem em
duplicado (a respeito dos dois alfabetos)
Em segundo lugar a integraccedilatildeo dos elementos da ldquotrama baacutesicardquo em unidades colec-
tivas de determinaccedilotildees (quer dizer a sua integraccedilatildeo nas peculiares modalidades de identidade
que satildeo as determinaccedilotildees intrinsecamente sinteacuteticas acima referidas) estaacute marcada por um fe-
noacutemeno de assimetria
Se considerarmos um momento do caixilho da janela verificamos que ele eacute diferente
do proacuteprio caixilho mas que tal como me aparece perdeu completamente a sua proacutepria iden-
tidade independente do caixilho O que caracteriza um momento do caixilho da janela eacute que
embora seja diferente do caixilho da janela tem a sua proacutepria identidade sempre jaacute definida
pela identidade colectiva ndash estaacute reduzido a um momento dela posto sob o seu ascendente etc
De tal modo que por mais que o caixilho precise dos momentos de que eacute constituiacutedo para po-
der ser isso mesmo que eacute para o exprimir na formulaccedilatildeo loacutegica tradicional natildeo eacute o caixilho
que eacute dos seus momentos mas sim os momentos do caixilho que satildeo dele
Por outras palavras o nexo entre os dois alfabetos estaacute marcado pelo claro ascendente
de um sobre o outro pela preponderacircncia de um sobre o outro (pela reduccedilatildeo de um a funccedilotildees
de composiccedilatildeo interna em relaccedilatildeo ao outro) E eacute isso que se exprime no facto de se pergun-
tarmos o que nos aparece dizermos ldquoparederdquo ldquoestanterdquo ldquocadeirardquo ldquojanelardquo etc e natildeo dar-
mos uma resposta ldquopontilhistardquo
Em terceiro lugar como dissemos tudo o que nos aparece tem esta forma (eacute um apare-
cimento de ldquocoisasrdquo) mas com um peculiar arranjo ndash de tal modo que corresponde a uma de-
terminada modalidade dentro das vaacuterias que pode ter um aparecer (uma apresentaccedilatildeo) com es-
tas caracteriacutesticas
Com efeito se virmos como estatildeo constituiacutedas as unidades colectivas de determi-
naccedilotildees que nos aparecem verificamos que haacute uma variaccedilatildeo na sua constituiccedilatildeo no centro do
que nos aparece quer dizer na esfera mais proacutexima as unidades colectivas de determinaccedilotildees
tecircm uma determinada ldquobitolardquo (recorrendo agrave terminologia loacutegica tecircm uma determinada com-
preensatildeo e uma determinada extensatildeo) Se passarmos do centro para a periferia (para o mais
distante) verificamos que a forma global (a organizaccedilatildeo de tudo em unidades colectivas de
determinaccedilotildees) se manteacutem mas a ldquobitolardquo muda ndash passa a haver outra compreensatildeo e outra ex-
tensatildeo Ou mais precisamente no centro (na esfera de proximidade) as unidades colectivas
150
de determinaccedilotildees tecircm maior compreensatildeo e menor extensatildeo ao transitar do centro para a
periferia passa a suceder o contraacuterio aumenta a extensatildeo e diminui a compreensatildeo
Acontece que estamos tatildeo ldquocoladosrdquo agrave forma que o aparecimento e a experiecircncia cos-
tumam ter para noacutes que natildeo eacute faacutecil percebermos o cabimento de formas alternativas Mas na
verdade nada impede que houvesse experiecircncia regulada por essas formas alternativas Neste
sentido o que caracteriza a nossa perspectiva natildeo eacute apenas o ser empiacuterica mas ainda o facto
de tambeacutem neste ponto seguir uma de entre vaacuterias conformaccedilotildees possiacuteveis ou se ser apenas
uma de entre diversas conformaccedilotildees possiacuteveis da ἐμπειρία
Ora o que vimos nesta secccedilatildeo permite-nos perceber uma outra ldquoencruzilhadardquo ou uma
outra possibilidade de variaccedilatildeo da experiecircncia A saber
A experiecircncia pode produzir-se no quadro de um aparecimento pontilhista e ser uma
experiecircncia pontilhista ndash ou em alternativa pode estar sintonizada por unidades colectivas
de determinaccedilotildees aleacutem disso uma experiecircncia sintonizada pelo modelo das unidades colecti-
vas de determinaccedilotildees pode ter ou pelo contraacuterio natildeo ter o regime de variaccedilatildeo do centro pa-
ra a periferia que acabamos de descrever
sect22
A variaccedilatildeo no niacutevel de acuidade a relaccedilatildeo entre o grau de determinaccedilatildeo com que as ldquocoi-
sasrdquo nos aparecem e a exigecircncia de determinaccedilatildeo que enfrentam ndash A inadvertecircncia em re-
laccedilatildeo agrave multiplicidade de determinaccedilotildees que conformam o teor do que nos aparece
Mesmo que o que vamos vendo nas sucessivas secccedilotildees jaacute corresponda a um quadro
bastante mais complexo do que aquele que se desenhou no iniacutecio padece ainda de uma muito
significativa margem de simplificaccedilatildeo
Eacute assim entre outras razotildees porque aquilo que dissemos sobre a constituiccedilatildeo da expe-
riecircncia ainda natildeo leva em conta o papel que cabe ao niacutevel de acuidade e agrave variaccedilatildeo do niacutevel
de acuidade
Comecemos por explicar que eacute que temos em vista quando falamos de acuidade e va-
riaccedilatildeo de acuidade
151
Por um lado o quadro do que aparece natildeo se caracteriza por uma acuidade constan-
te Por outro lado consoante varia o grau de acuidade varia tambeacutem ndash e varia muito signifi-
cativamente ndash o quadro do que aparece
Isto eacute claro se considerarmos por exemplo a apresentaccedilatildeo visual agrave distacircncia Agrave medi-
da que se transita do proacuteximo para a distacircncia haacute uma muito clara diminuiccedilatildeo da acuidade
Isto eacute com a distacircncia haacute uma diminuiccedilatildeo proporcional da definiccedilatildeo com que se
apresenta aquilo que aparece ndash fenoacutemeno que se poderia verter na foacutermula quanto maior a
distacircncia maior a imprecisatildeo
Isto tem um efeito directo sobre as determinaccedilotildees do que aparece Vendo bem signifi-
ca que o que aparece estaacute ou pode estar marcado por um defeito de definiccedilatildeo (estaacute ou pode
estar marcado por uma diminuiccedilatildeo das determinaccedilotildees por um aumento da indefiniccedilatildeo quanto
agraves suas determinaccedilotildees etc)
Por outro lado vendo bem este fenoacutemeno de diminuiccedilatildeo da acuidade natildeo se verifica
apenas na visatildeo agrave distacircncia De facto tem lugar ateacute mesmo na proximidade em relaccedilatildeo ao in-
terior dos corpos opacos Dos corpos opacos o que temos propriamente dito satildeo superfiacutecies
exteriores (de cada vez uma parte das suas superfiacutecies exteriores)
Ora acontece que essas superfiacutecies natildeo satildeo vistas apenas como superfiacutecies exteriores
(ie em neutralidade relativamente a haver o que quer que seja aleacutem delas) Na verdade as
superfiacutecies satildeo acompanhadas por uma co-apresentaccedilatildeo do interior dos corpos (se assim se
pode dizer por um ldquoconteuacutedordquo que ldquopotildee laacuterdquo o interior dos corpos ndash de tal modo que eacute precisa-
mente isto que os constitui como corpos maciccedilos ndash e natildeo apenas como superfiacutecies ou corpos
opacos)
No entanto se procurar fixar que determinaccedilatildeo tecircm estes ldquoconteuacutedosrdquo responsaacuteveis
pelo preenchimento do interior dos corpos verifico que o seu regime de determinaccedilatildeo eacute muito
mais pobre do que o das superfiacutecies que os rodeiam
Se por exemplo considerarmos o nosso proacuteprio corpo a matildeo com que escrevemos ou
o braccedilo verificamos que logo a seguir agrave superfiacutecie exterior comeccedila o territoacuterio desta co-apre-
sentaccedilatildeo impliacutecita do interior que por uma parte eacute diferente da percepccedilatildeo das superfiacutecies
mas por outra parte estaacute integrada nela (molda-a de sorte que a percepccedilatildeo das superfiacutecies se-
ria muito diferente se natildeo incluiacutesse este elemento) Mas o que estaacute posto logo debaixo da pele
a preencher o interior da matildeo ou do braccedilo natildeo tem cor propriamente definida eacute muito impre-
ciso quanto agrave sua morfologia etc
152
Assim a perspectiva que temos sobre aquilo que natildeo vemos do nosso proacuteprio corpo
natildeo eacute inteiramente vazia inclui um certo conjunto de determinaccedilotildees (que natildeo eacute oco que eacute soacute-
lido que eacute algo que de certo modo sentimos que tem estas e aquelas propriedades em relaccedilatildeo
ao movimento que existe independentemente da apresentaccedilatildeo que disso temos etc) mas de
tal modo que b) essas determinaccedilotildees satildeo incomparavelmente mais pobres do que as determi-
naccedilotildees que preenchem as superfiacutecies ldquoexpostasrdquo (as superfiacutecies cobertas pela percepccedilatildeo direc-
ta)
Algo semelhante acontece em relaccedilatildeo a tudo o que temos apresentado fora do campo
perceptivo no sentido estrito do termo
Temos de cada vez um campo perceptivo ndash que pode variar quanto agrave sua dimensatildeo Se
estamos numa sala e natildeo estamos em posiccedilatildeo de olhar pelas janelas o campo perceptivo em
sentido estrito reduz-se agrave sala Se conseguimos olhar pelas janelas o campo perceptivo inclui
tambeacutem ldquonesgasrdquo do exterior variaacuteveis quanto agrave sua amplitude Se vamos numa avenida o
campo perceptivo passa a ter dimensotildees ainda maiores E assim por maioria de razatildeo se su-
birmos ao miradouro de um castelo etc
Sendo assim sucede que nunca se tem um campo perceptivo absoluto natildeo vemos as
coisas como se o campo perceptivo esgotasse a realidade Acontece o contraacuterio o campo per-
ceptivo em sentido estrito aparece sempre como uma pequena parte do que haacute
Isso significa que a nossa relaccedilatildeo com qualquer campo perceptivo que de cada vez te-
mos estaacute marcado por uma co-apresentaccedilatildeo inexpliacutecita desse para-laacute ndash sempre presente e
sempre a afectar com a sua presenccedila a forma como nos aparece o campo perceptivo que de
cada vez temos Daiacute resulta que ao contraacuterio do que pode parecer agrave partida a maior parte do
que de cada vez temos apresentado excede o campo perceptivo que de cada vez se acha cons-
tituiacutedo natildeo eacute percepccedilatildeo mas algo muito diferente da percepccedilatildeo com um caraacutecter inexpliacutecito
natildeo declarado (quer dizer que natildeo se encontra expresso e natildeo eacute passiacutevel de ser encontrado no
ldquoeacutecranrdquo do que nos aparece da mesma forma que aiacute podemos encontrar aquilo que pertence ao
campo perceptivo)
Ora este exterior do campo perceptivo pode estar presente de duas formas
153
A primeira que acabamos de referir corresponde agravequilo que Husserl muitas vezes
descreve como co-presenccedila em regime de horizonte (ou co-presenccedila horizontal)44
A segunda tem que ver com o fenoacutemeno da presentificaccedilatildeo (aquilo a que Husserl
chama Vergegenwaumlrtigung)45
Natildeo podemos analisar aqui detidamente as caracteriacutesticas destas duas formas de pre-
senccedila e o modo como se articulam entre si Interessa sobretudo um aspecto a presentificaccedilatildeo
eacute sempre muito mais definida (tem conteuacutedos muito mais determinados) do que a co-presenccedila
horizontal
Consideremos por exemplo o caso em que estamos de costas voltadas para o resto da
sala
Ao considerarmos o caso de estarmos de costas voltadas para o resto da sala aquilo
que compreendemos eacute que nunca estamos num quadro de realidade reduzido agrave parte da sala
para que estamos voltados e a que temos acesso directo ou perceptivo A sala em que estamos
eacute sempre a sala no seu todo Poreacutem a mera co-presenccedila horizontal eacute sempre muito menos de-
finida do que aquela que os objectos da sala passam a ter se os presentificamos na parede ao
fundo haacute uma estante uma secretaacuteria etc
Por outro lado se eacute assim sucede tambeacutem que a forma como estaacute presente por exem-
plo a estante se a presentificamos eacute muito diferente daquilo que passa a haver se nos volta-
mos e temos acesso agrave estante de forma perceptiva
44
Husserl desenvolve o termo com especial incidecircncia nas suas Cartesianische Meditationen em par-
ticular nas secccedilotildees sect19-sect22 da Segunda Meditaccedilatildeo A bibliografia sobre o ldquohorizonterdquo eacute muito extensa
e natildeo interessa dar aqui ser especialmente exaustivo Podem encontrar-se explicaccedilotildees detidas do fenoacute-
meno em obras como as de Geniusas S The Origins of the Horizon in Husserlrsquos Phenomenology
Dordrecht Springer 2012 Klein T The world as horizon Husserlrsquos constitutional theory of the ob-
jective world Rice University Tese de Doutoramento 1967 Tengelyi L Erfahrung und Ausdruck
Phaumlnomenologie im Umbruch bei Husserl und seinen Nachfolgern Dordrecht Springer 2007
45 Husserl desenvolve muito profundamente o termo Vergegenwaumlrtigung em vaacuterios momentos da sua
obra e natildeo cabe aqui uma anaacutelise do que estaacute implicado na noccedilatildeo Basta fazer notar que um levanta-
mento do termo por mais breve teria necessariamente de o resgatar em textos tatildeo diversos como
Phantasie Bildbewuszligtsein Erinnerung Vorlesungen zur Phaumlnomenologie des inneren Zeitbewuszligt-
seins Erfahrung und Urteil etc Encontra-se um debate dos temas que aqui temos em vista por exem-
plo em Oliveira I Perceptum fictum e imaginatum ndash a imaginaccedilatildeo fiacutesica em Husserl Revista Filosoacute-
fica de Coimbra nordm 36 2009 paacutegs 315-364 ou Saraiva M Lrsquoimagination chez Husserl Haia Marti-
nus Nijhoff 1970
154
Vendo bem a estante presentificada natildeo tem um nuacutemero definido de prateleiras (ie
natildeo estaacute incluiacuteda na presentificaccedilatildeo a clara determinaccedilatildeo de quantas satildeo as prateleiras que
ldquovatildeordquo do chatildeo ao tecto) E o mesmo acontece por exemplo em relaccedilatildeo aos livros haacute uma in-
dicaccedilatildeo de multiplicidade e de que os livros tecircm lombadas multicolores mas a presentificaccedilatildeo
natildeo inclui nenhuma sequecircncia definida de cores e tamanhos das lombadas O que a caracteriza
a presentificaccedilatildeo eacute ter um preenchimento muito impreciso com determinaccedilotildees puramente ge-
neacutericas (coorrespondentes agrave definiccedilatildeo de um tipo de realidade)46
Acontece entretanto que a descriccedilatildeo que acabamos de fazer eacute muito incompleta ndash e
na verdade tatildeo incompleta que envolve uma significativa margem de distorccedilatildeo do fenoacutemeno
em causa
Com efeito o que constitui a acuidade ndash e a variaccedilatildeo de acuidade ndash natildeo eacute apenas o
grau de definiccedilatildeo (a riqueza das determinaccedilotildees com que aquilo que aparece se apresenta sc a
variaccedilatildeo desse grau de definiccedilatildeo) Haacute uma outra componente essencial da acuidade tatildeo im-
portante quanto esta que acabamos de tentar pocircr em foco ndash e isto de tal modo que aquilo que
nos aparece nunca depende apenas da acuidade no sentido do grau de determinaccedilatildeo com que
as coisas nos aparecem mas sempre da relaccedilatildeo entre as duas componentes em questatildeo
Vejamos um pouco melhor como eacute assim comeccedilando por considerar o caso da visatildeo agrave
distacircncia
Como vimos agrave medida que os objectos se distanciam perdem definiccedilatildeo mas se se
perguntar se habitualmente temos noccedilatildeo de que eacute assim (e a que ponto eacute assim) a resposta
que temos de dar eacute negativa
46
Para usarmos a linguagem do empirismo claacutessico quando contrasta a representaccedilatildeo das diversas es-
peacutecies de triacircngulo e a representaccedilatildeo geneacuterica de triacircngulo e insiste em que nunca tempos propriamen-
te esta uacuteltima mas sempre uma representaccedilatildeo especiacutefica de triacircngulo ou equilaacutetero ou isoacutesceles ou es-
caleno etc podemos dizer o seguinte o que caracteriza a presentificaccedilatildeo eacute que pelo menos uma gran-
de parte daquilo que representamos desta forma tem precisamente as caracteriacutesticas que os argumentos
empiristas negam Quer dizer a tese empirista poderia ser vaacutelida no plano da percepccedilatildeo propriamente
dita (natildeo cabe aqui discutir se o eacute ou natildeo) Mas natildeo eacute vaacutelida na esfera da presentificaccedilatildeo ndash e a fortiori
natildeo eacute vaacutelida em relaccedilatildeo agrave esfera da co-presenccedila horizontal Nestas esferas a maior parte do que temos
apresentado estaacute apresentado no regime cujo cabimento as teses empiristas negam E isso significa pe-
las razotildees que vimos que as referidas teses empiristas natildeo satildeo vaacutelidas para aquilo que de cada vez
constitui a maior parte do que temos apresentado (o ldquomaciccedilordquo em que o campo perceptivo de cada vez
se acha integrado de tal modo que constiui apenas um pequeno enclave no meio dele)
155
Quer dizer temos uma noccedilatildeo global de que as coisas agrave distacircncia satildeo menos definidas
Mas isso natildeo significa de modo nenhum que as vejamos com uma consciecircncia definida do seu
grau de indefiniccedilatildeo
Se por hipoacutetese como no exemplo do Filebo vemos algo ao longe a respeito do qual
natildeo temos condiccedilotildees para determinar se eacute uma pessoa ou uma imagem (se eacute ou natildeo uma pes-
soa determinada ou se ao caminhar nos aparece algueacutem ao longe que nos parece estar a an-
dar mas de tal modo que temos condiccedilotildees para determinar se vem no sentido contraacuterio ao nos-
so aproximando-se ou se se desloca no mesmo sentido que noacutes etc) percebemos com gran-
de nitidez a indeterminaccedilatildeo do que me aparece Mas quando isso acontece todas as realidades
que nos aparecem agrave mesma distacircncia (e por maioria de razatildeo aquelas se situam ainda mais
longe) ou padecem do mesmo deficit de determinaccedilatildeo ou padecem de um deficit ainda maior
Ora acontece que em condiccedilotildees normais pura e simplesmente natildeo nos apercebemos
disso
A questatildeo estaacute em saber por que eacute assim E a resposta eacute no fundamental a seguinte
Aquilo que decide a forma como as coisas nos aparecem natildeo eacute apenas o grau de deter-
minaccedilatildeo com que se apresentam mas tambeacutem a exigecircncia de determinaccedilatildeo que enfrentam
que tecircm de satisfazer etc
Quer dizer haacute como diziacuteamos uma segunda componente de acuidade (e uma segunda
componente de variaccedilatildeo de acuidade) a precisatildeo de definiccedilatildeo que eacute aplicada agravequilo que apa-
rece e a que aquilo que aparece deve corresponder
Se considerarmos o que se passa na visatildeo agrave distacircncia damo-nos conta de que aquilo
que varia agrave medida que os objectos aparecem mais ao longe natildeo eacute apenas o grau de definiccedilatildeo
com que se apresentam ndash eacute tambeacutem a exigecircncia de definiccedilatildeo a que satildeo sujeitos consoante es-
tejam mais ao perto ou mais ao longe
Isto eacute natildeo haacute apenas um continuum de variaccedilatildeo mas dois ndash e isto de tal modo que os
dois continua em questatildeo correm paralelos um ao outro em perfeita correspondecircncia um ao
outro
Em uacuteltima anaacutelise a forma como nos aparece aquilo que nos aparece na visatildeo agrave distacircn-
cia natildeo depende de nenhum destes dois factores considerados soacute por si em isolamento de-
pende da relaccedilatildeo que de cada vez haacute entre eles (ie da correspondecircncia ou falta dela entre o
156
grau de determinaccedilatildeo com que isto ou aquilo se apresenta e o grau de exigecircncia de definiccedilatildeo
que recai sobre os objectos em causa e que eles satildeo chamados a satisfazer)
Precisamente por isso (porque a nitidez aparente do que nos aparece depende do en-
contro ou desencontro entre as duas componentes de acuidade que aqui procuramos pocircr em
contraste uma com a outra) o que habitualmente caracteriza a visatildeo agrave distacircncia eacute uma peculiar
impressatildeo de nitidez constante (ou de todo o modo um recohecimento da variaccedilatildeo da nitidez
que fica muito aqueacutem da variaccedilatildeo que efectivamente ocorre)47
Se isto eacute assim no que diz respeito agrave visatildeo agrave distacircncia algo muito semelhante se passa
tambeacutem no caso do interior dos corpos opacos
Embora haja uma diferenccedila suacutebita e abrupta entre o grau de definiccedilatildeo com que se
apresentam as superfiacutecies percepcionadas dos corpos opacos e o interior que subjaz a essas
superfiacutecies habitualmente natildeo nos apercebemos dessa diferenccedila E natildeo nos apercebemos dela
justamente porque tambeacutem neste caso haacute uma consideraacutevel variaccedilatildeo do niacutevel de exigecircncia e o
olhar que volvemos (mais exactamente o olhar que natildeo chegamos propriamente a volver)
para o interior dos corpos opacos eacute um olhar muito menos exigente do que aquele com que
acompanhamos as superfiacutecies expostas
Para percebermos a que ponto eacute assim basta um exerciacutecio muito simples
Como vimos o interior de um corpo opaco que nunca abrimos natildeo tem sequer uma cor
determinada natildeo tem uma morfologia determinada etc Eacute assim por exemplo em relaccedilatildeo ao
47
Isto eacute a uma dada distacircncia 3 o grau de perda de definiccedilatildeo eacute -3 e o grau de afrouxamento da exi-
gecircncia de definiccedilatildeo tambeacutem eacute -3 a uma dada distacircncia 8 o grau de perda de definiccedilatildeo eacute -8 e o grau de
afrouxamento da exigecircncia de definiccedilatildeo tambeacutem eacute -8 ndash e assim sucessivamente em perfeita correspon-
decircncia Podemos exprimir isto tudo nos termos a que aqui recorremos
distacircncia 3 distacircncia 6 distacircncia 9
grau de
definiccedilatildeo 3 6 9 e assim
mdashmdashmdash mdash = 1 mdash = 1 mdash = 1 sucessivamente
exigecircncia 3 6 9
de definiccedilatildeo
A estrutura das duas variantes correndo paralelas uma agrave outra resulta na impressatildeo global de nitidez
constante
157
interior do corpo de algueacutem com quem falo Mas a percepccedilatildeo ldquoprotestariardquo espontaneamente
se uma superfiacutecie expressa vista ao perto (por exemplo o rosto da pessoa com quem falamos)
nos aparecesse com esse tipo de indeterminaccedilatildeo Isso significa que haacute na percepccedilatildeo das su-
perfiacutecies e dos interiores dos corpos como que dois pesos e duas medidas
Eacute isso que permite perceber o que acontece no caso do Filebo e em casos semelhantes
relativos agrave visatildeo agrave distacircncia daacute-se uma alteraccedilatildeo em virtude da qual um objecto que se apre-
senta a uma certa distacircncia em vez de enfrentar o niacutevel de exigecircncia correspondente agrave distacircn-
cia a que se encontra passa a enfrentar um niacutevel de exigecircncia (a segunda componente de acui-
dade) diferente Ou seja tanto no caso de superfiacutecies exteriores que se apresentassem com o
deficit de determinaccedilatildeo que eacute caracteriacutestico dos interiores quanto nos casos do tipo referido
por Platatildeo no Filebo haacute um desencontro entre as duas componentes de acuidade e eacute esse de-
sencontro que daacute lugar agraves experiecircncias de deficit de nitidez
O mesmo se pode tambeacutem dizer a respeito da presentificaccedilatildeo
Quando presentificamos a estante atraacutes das costas sem nos voltarmos (ie sem termos
qualquer acesso perceptivo a ela) experimentamos aquilo que costumamos exprimir em rela-
ccedilatildeo aos fenoacutemenos de presentificaccedilatildeo quando dizemos ldquoparece que estou a verrdquo
De facto a presentificaccedilatildeo tem um caraacutecter quasi-perceptivo ndash vive-se como se fosse
percepccedilatildeo com uma impressatildeo de equivalecircncia que eacute decisiva para a forma como estaacute consti-
tuiacuteda Ou seja a presentificaccedilatildeo tem a estrutura de um oxiacutemoro eacute uma quase-percepccedilatildeo (uma
como-que-percepccedilatildeo) em aberto quanto ao seu proacuteprio conteuacutedo
O ponto decisivo eacute que sendo assim a experiecircncia normal da presentificaccedilatildeo natildeo se
daacute conta de nada disto natildeo vecirc a indeterminaccedilatildeo vecirc como se estivesse a percepcionar Isso soacute
eacute possiacutevel porque a presentificaccedilatildeo vecirc como que atraveacutes de um veacuteu que dissolve a proacutepria
acuidade do olhar e faz que aceite a falta de acuidade daquilo que se lhe apresenta
Eacute indispensaacutevel focar ainda um aspecto sem cuja consideraccedilatildeo a perspectiva que aca-
bamos de desenhar sobre o papel da acuidade e a sua influecircncia na conformaccedilatildeo do que nos
aparece ndash e portanto tambeacutem na conformaccedilatildeo da experiecircncia ndash deixa de fora uma componen-
te decisiva
Se atentarmos na forma como ateacute aqui consideraacutemos a questatildeo da acuidade verifica-
mos que sem disso estarmos cientes tomaacutemos como padratildeo o registo de acuidade ndash quer di-
zer tanto do niacutevel de determinaccedilatildeo quanto de exigecircncia de determinaccedilatildeo ndash que eacute proacuteprio da
percepccedilatildeo proacutexima de superfiacutecies expostas
158
Assim concebemos a variaccedilatildeo de acuidade sempre por defeito em relaccedilatildeo a esse pa-
dratildeo pondo em evidecircncia (como nos casos da visatildeo agrave distacircncia da co-apresentaccedilatildeo dos inte-
riores dos corpos opacos e da presentificaccedilatildeo) que tanto o niacutevel de determinaccedilatildeo com que os
ldquoconteuacutedosrdquo se apresentam quanto o niacutevel de exigecircncia de determinaccedilatildeo que tecircm de satisfazer
satildeo bastante mais baixos do que na percepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas
Ao proceder assim aceitaacutemos ndash sem sequer dar conta disso ndash que o niacutevel de acuidade
proacuteprio da percepccedilatildeo de superfiacutecies proacuteximas constitui de algum modo um nec plus ultra de
acuidade ndash um maacuteximo de acuidade insusceptiacutevel de ser ultrapassado (ou de todo o modo de
ser ultrapassado significativamente)
Vendo bem essa pressuposiccedilatildeo eacute desprovida de fundamento
Natildeo acontece de maneira nenhuma que o niacutevel de acuidade proacuteprio da percepccedilatildeo de
superfiacutecies expostas proacuteximas corresponda a um maacuteximo ou a um superlativo insusceptiacutevel de
ser significativamente ultrapassado Na verdade sucede algo muito diferente o niacutevel de acui-
dade proacuteprio da percepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas situa-se algures no meio do inter-
valo ou da escala de acuidade (e tanto quer dizer numa posiccedilatildeo tal que haacute niacuteveis inferiores ndash
um numeroso conjunto de niacuteveis inferiores ndash mas tambeacutem niacuteveis superiores ndash um numeroso
conjunto de niacuteveis superiores)
A razatildeo por que esse niacutevel pode parecer superlativo e inultrapassaacutevel eacute o facto de ha-
bitualmente o nosso ponto de vista estar se assim se pode dizer estabilizado ldquoa meiordquo da es-
cala e natildeo costumar ter acesso a nada que ultrapasse o niacutevel de acuidade proacuteprio da percepccedilatildeo
de superfiacutecies expostas proacuteximas
Em suma para usar a expressatildeo da tradiccedilatildeo esse superlativo eacute apenas quoad nos e a
concepccedilatildeo da escala da acuidade que situa toda a variaccedilatildeo abaixo desse niacutevel (compreenden-
do-o como topo da escala) eacute uma concepccedilatildeo ldquoprovincianardquo que confunde os limites da nossa
percepccedilatildeo habitual com os limites daquilo que eacute possiacutevel simpliciter (confundindo o que eacute ha-
bitualmente o maacuteximo ἡμῖν ou πρὸς ἡμᾶς com aquilo que eacute possiacutevel τῇ φύσει)
Natildeo cabe aqui analisar em todas as suas aplicaccedilotildees o que permite afirmar que a per-
cepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas natildeo tem de modo nenhum o caraacutecter de um nec plus
ultra antes estaacute situada algures ldquoa meio da escalardquo da variaccedilatildeo de acuidade que eacute possiacutevel
Atemo-nos a um aspecto que permite perceber o essencial e potildee na pista do mais que haveria
que ter em conta
159
O aspecto que pretendemos focar e que permite perceber o caraacutecter ldquomedianordquo da
acuidade proacutepria da percepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas tem que ver com o fenoacutemeno
das representaccedilotildees confusas no sentido que jaacute se desenha no primeiro capiacutetulo do livro Α da
Physica de Aristoacuteteles e cuja concepccedilatildeo foi depois objecto de importantes desenvolvimen-
tos designadamente no pensamento de Leibniz
Se se considerar por exemplo qualquer ponto de uma superfiacutecie exposta proacutexima eacute
claro que nos aparece justamente como um quase ponto ndash como se correspondesse a qualquer
coisa de individual Mas por outro lado se olharmos mais detidamente para a sua constitui-
ccedilatildeo percebemos que na verdade tem o caraacutecter de uma pequeniacutessima ldquomanchardquo ndash quer dizer
de uma multiplicidade de uma superfiacutecie etc
Em relaccedilatildeo a essa superfiacutecie haacute fundamentalmente duas coisas que vendo bem natildeo
sabemos a) qual o cardinal dos elementos que a compotildeem e b) qual a determinaccedilatildeo ou natu-
reza proacutepria desses elementos (na medida em que o que habitualmente temos como ldquopontordquo
satildeo justamente ainda superfiacutecies e nos falta por inteiro o conhecimento da determinaccedilatildeo dessa
natildeo-superfiacutecie que estaacute em causa)
O que nos importa aqui natildeo eacute naturalmente discutir este problema mas sim focar o
seguinte quando habitualmente vemos superfiacutecies expostas proacuteximas natildeo estamos cientes
deste fenoacutemeno
Isto significa por um lado que haacute um defeito de determinaccedilatildeo na forma como se apre-
sentam essas superfiacutecies elas satildeo feitas se assim se pode dizer de pseudo-pontos de multi-
plicidades indeterminadas ou insuficientemente definidas quanto agrave sua composiccedilatildeo mas por
outro lado tambeacutem significa que a nossa perspectiva quando vemos assim e aceitamos o que
assim aparece sem nos apercebermos do defeito de definiccedilatildeo aiacute implicado estaacute como que tol-
dada por um deficit de acuidade no segundo sentido que procuraacutemos pocircr em evidecircncia um
defeito quanto ao niacutevel de exigecircncia de definiccedilatildeo
Isto natildeo eacute tudo
Vendo bem a multiplicidade que estaacute implicada no aparecimento do que nos aparece
como um quase-ponto natildeo eacute apenas a multiplicidade da ldquomanchardquo ndash a multiplicidade da su-
perfiacutecie que de facto faz esse quase-ponto (e em virtude da qual justamente natildeo se trata pro-
priamente de um ponto mas apenas de um quase-ponto) Haacute ainda um outro aspecto natildeo me-
nos decisivo
160
Esse outro aspecto tem que ver com o facto de as determinaccedilotildees que preenchem esse
quase-ponto e que estatildeo envolvidas na fixaccedilatildeo do seu teor tambeacutem serem multiplicidade ndash e
de facto uma multiplicidade bastante numerosa
Natildeo importa discutir aqui a multiplicidade das determinaccedilotildees ou das teses envolvidas
na fixaccedilatildeo do teor do que quer que seja E tambeacutem natildeo cabe aqui tentar levar mais a fundo o
recenseamento do verdadeiro ldquoenxamerdquo de determinaccedilotildees e teses que assim comeccedilam a dese-
nhar-se como ldquoingredientesrdquo do quase-ponto do caixilho da janela48
48
Ao ter apresentado o quase-ponto em causa o nosso olhar estaacute afectado pela presenccedila dessas deter-
minaccedilotildees (vecirc o quase-ponto em causa segundo essas determinaccedilotildees ndash com essas determinaccedilotildees ndash e
natildeo sem elas ou numa posiccedilatildeo de neutralidade relativamente agrave sua presenccedila ou ausecircncia) um quase-
ponto do caixilho da janela tem uma dada cor que lhe atribuiacutemos o estado soacutelido a resistecircncia sem a
qual teria o caraacutecter de um fantasma e se deixaria atravessar pelos nossos dedos a coesatildeo em virtude
da qual se relaciona de uma determinada maneira com os outros momentos do caixilho etc Acresce
tambeacutem que por exemplo natildeo aparece apenas como o quase-ponto de uma superfiacutecie mas tambeacutem
posto em relaccedilatildeo com aquilo que estaacute debaixo da superfiacutecie de tal modo que faz parte de um corpo
opaco estaacute integrado numa unidade colectiva de determinaccedilotildees (o caixilho da janela) posto sob o as-
cendente dessa unidade colectiva etc Aleacutem disso o seu aparecimento inclui a atribuiccedilatildeo de um deter-
minado lugar no espaccedilo (e tanto quer dizer uma taacutecita representaccedilatildeo da proacutepria multiplicidade do
espaccedilo) e ainda de uma posiccedilatildeo no tempo (o que por sua vez tambeacutem natildeo eacute possiacutevel sem alguma re-
presentaccedilatildeo da proacutepria multiplicidade do tempo) No que diz respeito ao espaccedilo a representaccedilatildeo do
quase-ponto em causa tambeacutem inclui a) a atribuiccedilatildeo agrave realidade em causa da propriedade de poder
ocupar diversos lugares no espaccedilo (o quase-ponto do caixilho natildeo tem nenhuma ligaccedilatildeo necessaacuteria ao
lugar que neste momento ocupa pode sair dele) mas tambeacutem b) um determinado regime de movimen-
to (pode-se mover sim mas estaacute-lhe negada a propriedade da auto-cinese soacute se pode mover por in-
fluecircncia de outra coisa etc) No que diz respeito ao tempo o quase-ponto do caixilho da janela estaacute
marcado pela co-representaccedilatildeo da duraccedilatildeo (natildeo tem apenas uma posiccedilatildeo no tempo dura) e pela taacutecita
co-apresentaccedilatildeo de que tambeacutem jaacute foi antes (de tal modo que o quase-ponto agora vem na continuaccedilatildeo
do quase-ponto imediatamente antes ndash e imediatamente antes de imediatamente antes e assim sucessi-
vamente) e de que haveraacute algo semelhante imediatamente a seguir ndash e imediatamente a seguir de ime-
diatamente a seguir e assim sucessivamente (a surpresa que teria se de repente o caixilho e o quase-
ponto aqui em causa desaparecessem) Por outro lado no que diz respeito agrave duraccedilatildeo a forma como o
quase-ponto do caixilho me aparece natildeo inclui apenas a ideia de duraccedilatildeo de facto inclui tambeacutem a de
identidade diacroacutenica Quer dizer natildeo vejo o quase-ponto em causa apenas como antecedido no tempo
por algo semelhante (e vindo de algo semelhante) um outro quase-ponto do caixilho em tudo seme-
lhante a este mas natildeo idecircntico a ele Sucede o contraacuterio vejo o quase-ponto que era (antes antes de
antes antes de antes de antes etc) como sendo exactamente o mesmo que era antes e o mesmo que
haacute-de ser ainda a seguir (e a seguir de a seguir etc etc) Soacute para dar mais alguns exemplos da conste-
laccedilatildeo de determinaccedilotildees envolvidas na fixaccedilatildeo de um quase-ponto como aquele de que aqui se trata
tambeacutem eacute decisiva na sua fixaccedilatildeo a atribuiccedilatildeo do estatuto de realidade puacuteblica directamente testemu-
nhada por um nuacutemero indefinido de sujeitos e natildeo apenas por mim ndash e isto de tal modo que estaacute na in-
161
O que importa eacute ter presente como essa multiplicidade de determinaccedilotildees e teses estatildeo
de facto implicadas no quase-ponto do caixilho da janela e satildeo na formulaccedilatildeo a que acaba-
mos de recorrer ldquoingredientesrdquo disso E isto de tal modo que se suprimir ou negar qualquer
uma destas determinaccedilotildees ou se passarmos a nossa perspectiva para uma posiccedilatildeo neutra a seu
respeito (se tirarmos ao quase-ponto do caixilho da janela uma uacutenica determinaccedilatildeo ndash a cor
branca a coesatildeo a resistecircncia a posiccedilatildeo no espaccedilo a posiccedilatildeo no tempo as suas caracteriacutesti-
cas de mobilidade a sua pertenccedila agrave unidade colectiva de determinaccedilotildees que eacute o caixilho a du-
raccedilatildeo a identidade diacroacutenica o caraacutecter puacuteblico a existecircncia independente etc ndash ou se natildeo
negar nenhuma destas determinaccedilotildees e teses mas se passar a ter uma perspectiva aberta sobre
a sua presenccedila ou ausecircncia) o quase-ponto do caixilho da janela passa a aparecer com uma
conformaccedilatildeo significativamente diferente
Ora se eacute assim por outro lado o que caracteriza o nosso contacto habitual (o nosso
contacto imediato etc) com o quase-ponto do caixilho da janela eacute o facto de natildeo se ter qual-
quer consciecircncia de cada um destes factores de determinaccedilatildeo (ie de ver segundo eles com
eles de ter um olhar moldado por eles etc mas sem os ver a eles mesmos antes soacute o resulta-
do da sua intervenccedilatildeo)
tersecccedilatildeo dessa multidatildeo de olhares que podem comungar sem qualquer dificuldade no acesso a ele e
o tecircm todos apesar da sua diferenccedila entre si como algo de perfeitamente idecircntico Quando escrevo a
respeito do quase-ponto eacute precisamente isto que pressuponho Mas esta pressuposiccedilatildeo natildeo se constitui
apenas porque ao escrever entro em contacto mais directo com a presenccedila de outrem Sucede antes
que este caraacutecter puacuteblico jaacute costuma estar atribuiacutedo sem mais agraves realidades do tipo do caixilho da ja-
nela Soacute para mencionar ainda mais um elemento igualmente decisivo e que estaacute relacionado com este
que acabamos de ver a forma como aparece o quase-ponto do caixilho da janela encerra tambeacutem em si
a vigecircncia de uma tese sobre o caraacutecter independente dessa realidade ndash sobre o facto de ela estar aiacute a
ocorrer mesmo que ningueacutem a testemunhe e natildeo haja qualquer apresentaccedilatildeo dela Por outras palavras
o quase-ponto do caixilho da janela aparece espontaneamente como uma realidade independente ndash e
esta tese eacute uma tese profundamente enraizada que resiste se a tentarmos pocircr em causa Vendo bem a
proacutepria tese assim constituiacuteda tem um caraacutecter complexo envolve uma multiplicidade de elementos
Por uma parte ela supotildee alguma compreensatildeo de que o quase-ponto do caixilho e o seu aparecimento
natildeo satildeo bem a mesma coisa que aquilo que tenho quando tenho o quase-ponto da superfiacutecie do caixi-
lho envolve ao mesmo tempo o proacuteprio quase-ponto em causa mas tambeacutem algo que natildeo estaacute implica-
do nele que se lhe acha acrescentado ou lhe eacute sobreveniente o acontecimento de isso aparecer (um
aparecer a mim ou a quem quer que seja) Por outra parte a tese em causa envolve a ideia da total irre-
dutibilidade do quase-ponto do caixilho ao seu aparecimento a decidida recusa do esse = percipi a
evidecircncia de que ldquoestaacute laacuterdquo (tem por forccedila de estar laacute natildeo eacute possiacutevel que natildeo esteja laacute) mesmo que
ningueacutem saiba dele (e que eacute esse estar laacute sc o conteuacutedo ou o teor desse estar laacute independentemente de
ser sabido ou natildeo que eacute sabido em qualquer saber dele)
162
Tocamos aqui uma segunda componente fundamental do fenoacutemeno da confusatildeo e do
deficit de acuidade que estaacute no seu centro
A confusatildeo natildeo consiste apenas no deficit quantitativo a que primeiramente fizemos
referecircncia Passa tambeacutem ndash e passa essencialmente ndash por esta segunda modalidade pela inad-
vertecircncia em relaccedilatildeo agrave multiplicidade de determinaccedilotildees e teses que conformam o proacuteprio
teor daquilo que nos aparece
Tambeacutem aqui o fenoacutemeno da confusatildeo estaacute ligado agrave dupla composiccedilatildeo da acuidade
(sc do deficit de acuidade) que acima procuraacutemos pocircr em evidecircncia
Com efeito natildeo se trata soacute de as determinaccedilotildees e teses que intervecircm na fixaccedilatildeo do teor
daquilo que nos aparece natildeo estarem discriminadas no seu aparecimento ndash mas antes fundi-
das sumidas como que apagadas no seu resultado conjunto
Na verdade tudo passa tambeacutem pelo facto de a nossa relaccedilatildeo com o teor daquilo que
nos aparece ldquoembarcarrdquo nessa fusatildeo (nessa ldquoperda de vistardquo nesse ldquoapagamentordquo etc) Ou
dito de outro modo tudo passa por termos em relaccedilatildeo ao teor do que nos aparece uma rela-
ccedilatildeo distraiacuteda que natildeo cura de discriminar que determinaccedilotildees e teses estatildeo implicadas na sua
fixaccedilatildeo
Mesmo que isso possa passar despercebido a perspectiva que assim se introduz tem
qualquer coisa de anaacutelogo agrave abertura de uma caixa de Pandora
Pois o que assim se desenha natildeo eacute apenas que aquilo que habitualmente de forma
inexpliacutecita e distraiacuteda ndash mas nem por isso menos decidida ndash vale como sendo o nec plus ultra
da acuidade (um nec plus ultra com que nos relacionamos de cada vez que para apurar me-
lhor as caracteriacutesticas do que quer que seja procuramos passar a ter a seu respeito o tipo de
percepccedilatildeo que corresponde agraves superfiacutecies expostas proacuteximas) de facto natildeo eacute o nec plus ultra
de acuidade que parecia ser mas para aleacutem disso tambeacutem nem sequer sabemos a que distacircn-
cia eacute que esse nec plus ultra ldquodestronadordquo fica do que efectivamente corresponderaacute a um nec
plus ultra
Vejamos um pouco melhor o que isso significa
Por um lado significa que todo o aparecer do que quer que seja que aparece agrave nossa
volta eacute relativo a um regime de acuidade (a uma determinada ldquoafinaccedilatildeordquo ou ldquosintonizaccedilatildeordquo de
acuidade) que consente alternativa
163
Mas por outro lado porque natildeo se sabe a distacircncia a que o nec plus ultra ldquodestro-
nadordquo fica de um efectivo nec pluc ultra tambeacutem natildeo se sabe que transformaccedilotildees eacute que po-
dem ocorrer no caminho que vai do nec pluc ultra destronado agravequilo que corresponde a um
efectivo nec pluc ultra
Por outras palavras o regime de acuidade que estaacute instalado no nosso modo de ver e
que condiciona toda a nossa experiecircncia natildeo eacute apenas um regime que consente alternativa de
facto eacute um regime que consente alternativas (no plural) ndash sem que se tenha noccedilatildeo de quantas
satildeo as alternativas a que margem de transformaccedilatildeo correspondem etc
Tendemos a achar que a) se haacute aparecimento e b) se o aparecimento tem a forma da
ἐμπειρία ou da experiecircncia forccedilosamente corresponderaacute mais ou menos agravequilo com que esta-
mos familiarizados O que procuraacutemos pocircr em evidecircncia indica que natildeo eacute de modo nenhum
assim
A forma da experiecircncia (o excesso sobre a mera αἴσθησις e a mera μνήμη constituiacutedo
nos moldes que focaacutemos na primeira parte desta investigaccedilatildeo) pode dar lugar a aparecimen-
tos muito diferentes ndash a quadros de experiecircncia muito diversos uns dos outros e que abrem se
assim se pode dizer para ldquomundosrdquo que tecircm muito pouco que ver uns com os outros (de tal
modo que aqueles que estatildeo familiarizados com um desses ldquomundosrdquo se sentiriam completa-
mente perdidos e ficariam inteiramente estupefactos nos outros)
Para ganharmos plena consciecircncia da medida em que eacute assim tomemos como ponto
de partida a perspectiva desenhada por Pascal no sect199 dos Penseacutees
Interessa-nos em particular o passo em que Pascal fala da possibilidade de haver den-
tro do espaccedilo daquilo que nos parece ser um ldquoaacutetomordquo nada menos que algo correspondente
ao que estaacute em causa no conceito de ldquomundordquo ndash e de por outro lado haver ainda dentro da-
quilo que em relaccedilatildeo a esse ldquomundordquo tem o caraacutecter de um ldquoaacutetomordquo nada menos do que algo
correspondente agravequilo para que aponta o conceito de ldquomundordquo (e assim sucessivamente)49
49
ldquoJe veux lui faire voir lagrave-dedans un abicircme nouveau Je lui veux peindre non seulement lunivers visi-
ble mais limmensiteacute quon peut concevoir de la nature dans lenceinte de ce raccourci datome quil y
voie une infiniteacute dunivers dont chacun a son firmament ses planegravetes sa terre en la mecircme proportion
que le monde visible dans cette terre des animaux et enfin des cirons dans lesquels il retrouvera ce
que les premiers ont donneacute et trouvant encore dans les autres la mecircme chose sans fin et sans repos
quil se perdra dans ces merveilles aussi eacutetonnantes dans leur petitesse que les autres par leur eacutetendue
car qui nadmirera que notre corps qui tantocirct neacutetait pas perceptible dans lunivers imperceptible lui-
164
A primeira coisa que importa ter presente a este respeito eacute que Pascal estaacute a pocircr em fo-
co que o nosso regime de fixaccedilatildeo das dimensotildees das coisas no espaccedilo tem uma pretensatildeo de
validade absoluta que eacute claramente abusiva
Se o aumento das dimensotildees aparentes de um objecto tem que ver com uma diminui-
ccedilatildeo da distacircncia que nos separa dele isso eacute visto como uma aproximaccedilatildeo agrave dimensatildeo real do
objecto Pelo contraacuterio se esse aumento de dimensatildeo natildeo estaacute acompanhado por diminuiccedilatildeo
de distacircncia ao objecto isso jaacute eacute percebido como uma ampliaccedilatildeo (como o empreacutestimo de uma
dimensatildeo que natildeo estaacute laacute que eacute criada artificialmente ndash como numa lupa num microscoacutepio
etc)
Nessa medida a dimensatildeo com que as coisas se apresentam em posiccedilatildeo de proximida-
de eacute percebida como sendo a sua dimensatildeo absoluta ndash e todo o aumento em relaccedilatildeo a ela eacute
compreendido como um aumento irreal
Sucede que este regime converte indevidamente uma limitaccedilatildeo contingente (uma limi-
taccedilatildeo nossa) ndash a incapacidade de alterar naturalmente o regime de resoluccedilatildeo oacuteptica por outro
meio que natildeo seja a variaccedilatildeo da distacircncia e a impossibilidade de prolongar o aumento da di-
mensatildeo aparente dos objectos para laacute do limite da proximidade maacutexima ndash em algo de absolu-
to
Vendo bem aquilo que fazem os instrumentos oacutepticos (lupas microscoacutepios etc) eacute
exactamente o mesmo que habitualmente tem lugar em noacutes por via da alteraccedilatildeo da distacircncia
uma modificaccedilatildeo do regime de resoluccedilatildeo oacuteptica E um objecto ampliado natildeo eacute um objecto su-
jeito a um outro processo que natildeo aquele mesmo que ocorre quando dele nos aproximamos e
ele como que se expande e passa a ter uma dimensatildeo aparente maior
A este primeiro aspecto vem juntar-se um segundo tambeacutem posto em evidecircncia por
Pascal e que eacute o seguinte natildeo acontece apenas que o que haacute onde nos aparece um quase-pon-
to possa ter grandes dimensotildees e na verdade ateacute as dimensotildees de qualquer coisa como um
ldquomundordquo (de tal modo que nesse sentido a visatildeo proacutexima eacute uma ldquovisatildeo agrave distacircnciardquo com
uma extraordinaacuteria margem de ldquocondensaccedilatildeordquo e ldquoabreviaturardquo) para aleacutem disso acontece
tambeacutem que natildeo se sabe qual a amplitude desta condensaccedilatildeo ou desta abreviatura (ie a que
distacircncia se estaacute de um regime de apresentaccedilatildeo que deixe de envolver perda sumariaccedilatildeo re-
duccedilatildeo etc) no acompanhamento que se faz dos domiacutenios de realidade sobre que incide
mecircme dans le sein du tout soit agrave preacutesent un colosse un monde ou plutocirct un tout agrave leacutegard du neacuteant ougrave
lon ne peut arriverrdquo (Pascal Penseacutees sect199)
165
Eacute isso que Pascal exprime quando fala de ldquoaacutetomosrdquo que encerram ldquomundosrdquo cujos
ldquoaacutetomosrdquo por sua vez tambeacutem encerram ldquomundosrdquo e chama a atenccedilatildeo para a sucessiva alte-
raccedilatildeo deste nexo ou desta conversatildeo do ldquoaacutetomordquo em ldquomundordquo50
A este segundo aspecto vem juntar-se por outro lado um terceiro de que Pascal natildeo
fala no sect199 dos Penseacutees mas que corresponde a algo jaacute anteriormente referido
Como vimos a captaccedilatildeo perceptiva pode variar quanto aos seus limiares e tambeacutem
quanto agraves determinaccedilotildees a que eacute sensiacutevel Quer dizer a percepccedilatildeo pode ter ldquoredesrdquo com uma
malha mais larga ou mais apertada
Tendemos a conceber esta possibilidade de variaccedilatildeo por defeito em relaccedilatildeo a quadros
de determinaccedilotildees com que estamos familiarizados Mas observou-se que a variaccedilatildeo tambeacutem eacute
possiacutevel na direcccedilatildeo inversa porque as determinaccedilotildees a que somos sensiacuteveis natildeo esgotam o
horizonte da percepccedilatildeo possiacutevel porque haacute mais possibilidades de percepccedilatildeo do que aquelas
que estatildeo exploradas no nosso caso porque haacute determinaccedilotildees muito diferentes daquelas que
se acham contempladas no alfabeto de determinaccedilotildees em que estaacute escrito o αἰσθάνεσθαι ndash e
portanto tambeacutem a μνήμη e a ἐμπειρία ndash que forma o nosso ponto de vista
Ora quando concebemos esta possibilidade toda a nossa inclinaccedilatildeo espontacircnea eacute para
a conceber como correspondendo a uma margem como que residual
Ou seja tendemos a conceber qualquer coisa de pequena amplitude completando aqui
e ali o espectro do que se acha coberto pelo aparecimento que costuma ter lugar em noacutes Mas
a verdade eacute que semelhante limitaccedilatildeo da amplitude do que assim poderaacute estar a ser deixado de
fora na apresentaccedilatildeo que temos natildeo possui nenhuma base real
De facto pode acontecer que tambeacutem no plano qualitativo se assim se pode dizer as
relaccedilotildees de forccedilas entre o que entra e o que eacute deixado de fora no acesso de que costumamos
dispor sejam justamente as inversas Ou seja tambeacutem se pode dar algo de equivalente agravequilo
que o sect199 foca no plano qualitativo mundos de determinaccedilotildees onde nos aparece algo relati-
vamente simples
50
Para totalmente sermos fieacuteis ao texto teriacuteamos de fazer notar que Pascal fala de uma ldquoprossecuccedilatildeo
infinitardquo e de procurar determinar o que eacute que isso implicaria o que quereria dizer etc No entanto pa-
ra o que aqui estaacute em causa basta sublinhar o caraacutecter indeterminado e indefinido dessa abertura de
ldquoabismosrdquo de dimensatildeo no que pareceria jaacute pelo menos proacuteximo de ser simples e portanto desprovido
de dimensatildeo
166
E isto de tal modo que tambeacutem nesta ldquoreacuteplica qualitativardquo do que se acha focado no
sect199 dos Penseacutees de Pascal haacute uma indeterminaccedilatildeo anaacuteloga agravequilo para que Pascal chama a
atenccedilatildeo naquele fragmento em uacuteltima anaacutelise natildeo se sabe qual eacute a margem de perda (a que
distacircncia se estaacute do que corresponderaacute agrave total supressatildeo de qualquer perda a que distacircncia
se estaacute ter um regime de apresentaccedilatildeo efectivamente proporcionado agravequilo que haacute etc)
Este raacutepido bosquejo cria condiccedilotildees para se perceber ainda um outro aspecto ndashaquele
aspecto que mais propriamente corresponde agrave questatildeo da acuidade tal como a procuraacutemos pocircr
em evidecircncia
Tanto no sect199 (quer dizer no que diz respeito aos aspectos quantitativos) quanto na-
quilo a que chamaacutemos a ldquoreacuteplica qualitativardquo do sect199 o que estaacute em causa eacute a relaccedilatildeo entre o
que temos apresentado e o que se acha deixado de fora naquilo que noacutes temos apresentado
As duas versotildees ndash quantitativa e qualitativa ndash da possibilidade de explosatildeo para que Pascal
aponta datildeo uma medida da extraordinaacuteria margem de variaccedilatildeo que pode haver no campo da
experiecircncia mesmo que a experiecircncia incida exactamente sobre o ldquomesmordquo campo de realida-
de
Poreacutem o que estaacute em causa no fenoacutemeno da acuidade ndash e o que estaacute em causa no fenoacute-
meno da confusatildeo ndash natildeo eacute bem isto
Na versatildeo ndash tanto quantitativa quanto qualitativa ndash do Gedankenexperiment de Pascal
o modelo eacute um modelo de incompletude marcado por qualquer coisa como uma alternativa
simples entre inclusatildeo e exclusatildeo umas coisas entram no aparecimento ou na ldquorepresentaccedilatildeordquo
que temos outras natildeo Mas o fenoacutemeno da variaccedilatildeo da acuidade e o fenoacutemeno da confusatildeo
apontam para outra coisa bastante diferente o que temos pode estar constituiacutedo de tal modo
que a) ele proacuteprio remete para algo mas b) natildeo chega a seguir isso mesmo para que remete
de sorte que c) isso para que jaacute remete lhe escapa
Trata-se de uma forma muito peculiar de cegueira a cegueira em relaccedilatildeo a algo de
que jaacute se tem alguma apresentaccedilatildeo ndash uma cegueira que vem da frouxidatildeo na relaccedilatildeo que jaacute se
tem com algo
O que assim se desenha eacute diferente tanto do que estaacute em causa no sect199 quanto do que
estaacute em causa na sua reacuteplica qualitativa Pois trata-se de qualquer coisa como um abismo in-
terior ao proacuteprio acontecimento da apresentaccedilatildeo que por natildeo se acompanhar bem a si mes-
167
mo (por opacidade na sua relaccedilatildeo consigo mesmo e com aquilo que dele faz parte) deixa de
fora isso mesmo que o constitui (sc a sua proacutepria composiccedilatildeo)51
sect23
O desdobramento da experiecircncia em dois planos a superfiacutecie e a profundidade da expe-
riecircncia (Kant) ndash Pascal e ldquolrsquoautomaterdquo
O que acabamos de ver potildee-nos na pista de um outro factor de configuraccedilatildeo da expe-
riecircncia ndash e portanto tambeacutem da variaccedilatildeo do que aparece em resultado das projecccedilotildees empiacuteri-
cas
Este outro factor tem que ver com aquilo a que Kant chama ldquoBathos der Erfahrungrdquo
(ldquoprofundidade da experiecircnciardquo) e tem que ver em especial a) com a diferenccedila entre expe-
riecircncia com ldquoprofundidaderdquo e experiecircncia sem ldquoprofundidaderdquo e b) com a diferenccedila entre as
vaacuterias formas como pode haver algo de correspondente ao conceito de ldquoprofundidade da expe-
riecircnciardquo52
51
Em diversos textos Kant exprime este estado de coisas e fala dele em termos que potildeem em destaque
a sua semelhanccedila com aquilo que encontramos desenhado no sect 199 Diz por exemplo na Anthropolo-
gie Mrongovius AA XXV 1221 bdquoDie MenschenSeele ist am meisten mit dunklen Vorstellungen be-
schaftigt (sic) und diese sind auch der Grund zu den klaren Vorstellungen () Sie spielen eine so gro-
szlige Rolle in den Handlungen der MenschenSeele daszlig wenn sich ein Mensch all dieser Vorstellungen
auf einmal bewuszligt werden koumlnte er uumlber den Vorrath derselben erstaunen moumlchte() Cf tambeacutem
por exemplo Menschenkunde AA XXV 868 bdquoDie dunklen Vorstellungen machen den groumlszligten Theil
der menschlichen Vorstellungen aus und wenn sich ein Mensch aller Vorstellungen bewuszligt werden
koumlnnte die wirklich in seinem Gemuumlthe liegen die aber nur bei Gelegenheit hervortreten so wuumlrde er
sich fuumlr eine Art von Gottheit halten und uumlber seinen eigenen Geist erstaunen denn er hat keinen Be-
griff von einem Wesen von so ungeheurer Erkentniszlig als er selbst hatldquo Veja-se ainda Refl 176 AA
XV 65 Refl 1482 AA XV 665 Anthropologie Busolt AA XXV 1440 Metaphysik Mrongovius
AA XXIX 879 Anthropologie in pragmatischer Hinsicht AA VII 135f Metaphysik L1 AA XXVIII
52 ldquoHohe Thuumlrme und die ihnen aumlhnliche metaphysisch groszlige Maumlnner um welche beide gemeiniglich
viel Wind ist sind nicht fuumlr mich Mein Platz ist das fruchtbare Bathos der Erfahrung und das Wort
transcendental dessen so vielfaumlltig von mir angezeigte Bedeutung vom Recensenten nicht einmal ge-
faszligt worden (so fluumlchtig hat er alles angesehen) bedeutet nicht etwas das uumlber alle Erfahrung hinaus-
geht sondern was vor ihr (a priori) zwar vorhergeht aber doch zu nichts mehrerem bestimmt ist als
lediglich Erfahrungserkenntniszlig moumlglich zu machenrdquo (in Prolegomena Ediccedilatildeo da Academia vol IV
168
Vejamos mesmo que soacute num breve esboccedilo o complexo de fenoacutemenos para que tudo
isto aponta
A tendecircncia que costuma dominar a nossa compreensatildeo de como se acha constituiacutedo o
aparecimento em que damos connosco (e tanto quer dizer tambeacutem de como se acha constituiacute-
da toda a experiecircncia) passa por entender tudo como se o aparecimento fosse uacutenica e exclusi-
vamente constituiacutedo por componentes declarados e natildeo houvesse nele nada que natildeo esteja agrave
mostra
Natildeo se pode excluir o cabimento de algo constituiacutedo deste modo (e isso quer dizer
tambeacutem de uma experiecircncia constituiacuteda desse modo) Mas importa ter presente que por um
lado o aparecimento e o fenoacutemeno da experiecircncia em que nos achamos constituiacutedos natildeo tem
nada que ver com um aparecimento inteiramente transparente para si mesmo e a que natildeo es-
capa nada da sua proacutepria composiccedilatildeo e por outro lado que se efectivamente haacute a possibili-
dade de acontecimentos de acesso constituiacutedos desse modo noacutes na verdade natildeo fazemos a
menor ideia do que isso seja pois o acesso natildeo estaacute constituiacutedo em noacutes desse modo
Agrave primeira vista natildeo parece ser assim
Estamos tomados por uma forte impressatildeo de contacto imediato e franco com a proacute-
pria composiccedilatildeo do aparecimento em que nos temos E isto ao ponto de parecer difiacutecil admitir
que possa haver qualquer significativa margem de opacidade neste domiacutenio
Ora que importa perceber que essa impressatildeo de acesso imediato e irrestrito eacute ilusoacute-
ria
O que nos aparece estaacute cunhado e moldado por uma multiplicidade muito ampla de
momentos de fixaccedilatildeo (quer dizer por uma multiplicidade muito ampla de diferentes mo-
mentos de representaccedilatildeo) de que natildeo temos consciecircncia A impressatildeo de acesso irrestrito a
tudo o que estaacute implicado no ndash ou compotildee o ndash aparecimento que temos vem justamente do ca-
raacutecter inconspiacutecuo dos elementos de profundidade (ie vem de estarmos de tal modo ldquopresosrdquo
agrave superfiacutecie fechados numa visatildeo da superfiacutecie etc) que natildeo temos sequer noccedilatildeo de que haja
qualquer profundidade (de que a superfiacutecie seja apenas isso a superfiacutecie do aparecimento e
de que haja o que quer que seja para laacute dela)
p 373) Aquilo a que se procederaacute de seguida seraacute uma anaacutelise abreviada Para mais ver Carvalho
MJ Profundidade da experiecircncia (Kant) In Razatildeo e Liberdade Homenagem a Manuel Joseacute do
Carmo Ferreira Lisboa 2010 vol II paacutegs 1113-1151
169
Acontece que como vimos por exemplo na anaacutelise da multiplicidade de determinaccedilotildees
que afectam cada momento mesmo o mais simples do que temos apresentado eacute como que a
resultante de um sistema de forccedilas (quer dizer neste caso de um sistema de diversas re-
presentaccedilotildees) que determinam essa resultante e o que acontece eacute que em regra soacute nos aparece
a proacutepria resultante (como se fosse tudo) e natildeo a multiplicidade das forccedilas que a constituem
de que ela eacute a experiecircncia Nesse sentido o proacuteprio aparecimento enquanto tal tem o caraacutecter
de qualquer coisa como um icebergue de que habitualmente aparece soacute a ponta
A isto tudo acresce um outro aspecto que foi claramente posto em evidecircncia nas anaacuteli-
ses do fenoacutemeno da confusatildeo por aqueles que mais detidamente se bateram com ele (por
exemplo aquelas que foram levadas a cabo por Leibniz ou Kant)
Quando falamos de superfiacutecie e profundidade este modo de falar pode sugerir que se
trata de qualquer coisa como uma simples alternativa um autaut constituiacutedo de tal modo que
soacute haacute por assim dizer dois planos ou dois niacuteveis ndash e nada mais
Vendo bem natildeo eacute necessariamente assim ndash e de facto natildeo eacute assim no aparecimento em
que nos achamos constituiacutedos e no processo de formaccedilatildeo da experiecircncia que ocorre em noacutes
De facto tambeacutem pode acontecer ndash e acontece connosco ndash que o proacuteprio domiacutenio da
profundidade esteja organizado numa multiplicidade de niacuteveis cada vez mais profundos A
diferenccedila de niacutevel de profundidade aqui em causa passa por aquilo que foi posto em evidecircncia
na referida tradiccedilatildeo ndash e que eacute o seguinte
Pode muito bem acontecer que a resultante com que lidamos agrave superfiacutecie do que nos
aparece radique num complexo de representaccedilotildees (chamemos-lhe A B C D E e F) mas de
tal modo que cada uma destas representaccedilotildees tenha por sua vez um caraacutecter tal que tambeacutem
equivale agrave resultante de outro complexo de representaccedilotildees (chamemos-lhe α β γ δ em rela-
ccedilatildeo a A e κ λ μ ν ο em relaccedilatildeo a B etc)
O ponto decisivo eacute que natildeo haacute apenas um uacutenico nexo entre ldquosistema de forccedilasrdquo e resul-
tante mas qualquer coisa como a iteraccedilatildeo deste nexo ndash porque algumas das forccedilas do sistema
natildeo satildeo simples tecircm um caraacutecter intrinsecamente complexo e podem tambeacutem elas sair do
seu ldquoanonimatordquo lograr algum reconhecimento etc sem que isso implique tambeacutem a ldquodesa-
nonimizaccedilatildeordquo das forccedilas (ie do complexo de representaccedilotildees impliacutecitas) que as compotildeem
Eacute por isso que aqui falamos de niacuteveis de profundidade (no plural)
Mas por outro lado isto natildeo eacute tudo
170
O que estaacute em causa natildeo eacute apenas a iteraccedilatildeo mas tambeacutem a reiteraccedilatildeo deste nexo ndash de
tal modo que algo semelhante se pode passar de novo com o segundo niacutevel de maior profundi-
dade (e com um terceiro um quarto etc)
Sendo assim a questatildeo eacute a de saber em cada campo de aparecimento constituiacutedo deste
modo com elementos submersos ateacute onde se estende a profundidade ndash onde se encontra o
fundo (quer dizer a que distacircncia a superfiacutecie fica desse fundo submerso e que margem de
transformaccedilatildeo teria de ocorrer para que o submerso deixasse de se manter submerso e a
apresentaccedilatildeo passasse a ser totalmente transparente para si mesma)
Isto significa globalmente uma extraordinaacuteria alteraccedilatildeo das dimensotildees que pode ter
um acontecimento de acesso (de aparecimento de representaccedilatildeo etc)
Tendemos espontaneamente a achar que a dimensatildeo de um acontecimento de apresen-
taccedilatildeo ou acesso (e tanto quer dizer tambeacutem a dimensatildeo de um campo de experiecircncia) depen-
de da sua extensatildeo declarada ndash da amplitude do que se acha escancarado nele Contudo o que
aqui se comeccedila a desenhar eacute que natildeo eacute propriamente assim
Na verdade a dimensatildeo de um acontecimento de acesso ou de aparecer tambeacutem passa
pela inclusatildeo ou natildeo inclusatildeo de uma profundidade de uma componente submersa etc e
passa pela amplitude (ie pelo niacutevel de profundidade) desta componente submersa
Em certo sentido o campo do que se tem de forma declarada eacute equivalente a qualquer
coisa como uma multiplicidade bidimensional enquanto os elementos submersos correspon-
dem a qualquer coisa como uma ldquoterceira dimensatildeordquo ndash ao salto geomeacutetrico ou agrave explosatildeo geo-
meacutetrica da terceira dimensatildeo E ao contraacuterio do que pode parecer uma mancha de apareci-
mento declarado com dimensotildees relativamente modestas pode ser a resultante de uma profun-
didade da experiecircncia muito difiacutecil de sondar e na verdade com extraordinaacuterias dimensotildees
Tambeacutem aqui podemos de novo recorrer agrave figura da abertura de uma caixa de Pandora
Com efeito esta possibilidade significa natildeo apenas que pode haver puncta caeca no
proacuteprio terreno do que nos aparece no proacuteprio curso do aparecer enquanto tal mas que o ter-
reno do que aparece pode estar integralmente dobrado natildeo apenas por puncta caeca e ateacute por
uma multiplicidade de puncta caeca para cada ldquopontordquo declarado mas tambeacutem por uma
multiplicidade de niacuteveis de puncta caeca que fazem corresponder a cada ponto declarado
uma multiplicidade como que tridimensional de pressupostos inexpliacutecitos (submersos cada
vez mais profundos de que cada ponto declarado eacute a resultante etc)
171
A questatildeo eacute entatildeo a de saber o que eacute que este contraste entre duas possibilidades de
constituiccedilatildeo do aparecimento tem que ver com contrastes na forma de organizaccedilatildeo da expe-
riecircncia
Aparentemente mesmo que aconteccedila que um campo de aparecimento esteja constituiacute-
do com profundidade (sobre a base de componentes submersas etc) isso natildeo se parece re-
flectir nos processos de projecccedilatildeo empiacuterica que nele tecircm lugar
Isto eacute a um primeiro olhar (a um olhar desatento) a experiecircncia tem lugar justamente
agrave superfiacutecie e natildeo eacute senatildeo um fenoacutemeno de superfiacutecie Neste sentido a experiecircncia tem como
base αἰσθήσεις declaradas (e tem como base αἰσθήσεις declaradas mesmo que estas uacuteltimas ra-
diquem em qualquer coisa como um βάθος no sentido que Kant daacute a este termo)
Ora acontece que de facto as coisas natildeo se passam necessariamente assim
Com efeito ainda que a base das projecccedilotildees empiacutericas sejam αἰσθήσεις que se produ-
zem de forma declarada ndash ou melhor μνῆμαι que se produzem de forma declarada ndash esse ca-
raacutecter declarado da base da projecccedilatildeo empiacuterica natildeo significa necessariamente que a projecccedilatildeo
empiacuterica tambeacutem tenha de decorrer com um caraacutecter declarado no terreno daquilo a que cha-
maacutemos o terreno da resultante ndash agrave superfiacutecie do que nos aparece
De facto nem sequer acontece que a proacutepria μνήμη (ou melhor as proacuteprias μνῆμαι τοῦ
αὐτοῦ πράγματος que constituem a base da ἐμπειρία) tenha enquanto constitui o terminus a
quo da ἐμπειρία de ter um caraacutecter declarado expliacutecito etc
Por um lado pode muito bem acontecer que mesmo enquanto αἰσθήσεις estejam nu-
ma posiccedilatildeo apagada tal que natildeo se chega a dar por elas sem que isso impeccedila a sua traduccedilatildeo
em μνήμη Por outro lado mesmo que as αἰσθήσεις que datildeo origem agraves μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγ-
ματος tenham tido lugar de forma expressa declarada etc isso natildeo significa que as corres-
pondentes μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος tambeacutem tenham de ter o mesmo tipo de presenccedila ex-
pressa
Finalmente ndash e este eacute talvez o ponto decisivo ndash tatildeo-pouco acontece que a proacutepria cons-
tituiccedilatildeo da ἐμπειρία soacute possa ocorrer em ldquoterreno descobertordquo
Isto quer dizer ao mesmo tempo duas coisas
Em primeiro lugar a operaccedilatildeo de transgressatildeo do dado de projecccedilatildeo de um estado-de-
coisas-permanente etc ndash a proacutepria τοῦ ὁμοίου μετάβασις que estaacute no fulcro da ἐμπειρία ndash natildeo
172
precisa de se processar de forma consciente declarada tambeacutem pode acontecer de modo taacuteci-
to sem que se decirc por isso
O mesmo vale tambeacutem para o resultado dessa projecccedilatildeo ndash para os proacuteprios estados-de-
coisas-permanentes (quer dizer para as leis ou pseudo-leis empiacutericas e para as realidades que
elas ldquopotildeem aiacuterdquo) Tambeacutem isso pode muito bem ter um caraacutecter taacutecito inexpliacutecito ndash ldquoestar aiacuterdquo
sem que a sua presenccedila tenha o que quer que seja de declarado e possa ser directamente en-
contrado no ldquoconteuacutedo expressordquo do que nos aparece
Na verdade este eacute o ponto decisivo os estados de coisas permanentes que constituem
o terminus ad quem da ἐμπειρία (o que a ἐμπειρία constitui aquilo em que depotildee o seu resul-
tado etc) natildeo precisam de estar constituiacutedos e presentes de forma expressa Para ldquoestarem aiacuterdquo
ndash e para estarem a afectar a nossa perspectiva ndash basta que estejam presentes em co-apresenta-
ccedilatildeo inexpliacutecita53
53
Em relaccedilatildeo ao modelo que desenhaacutemos quando falaacutemos de niacuteveis de profundidade mais e menos
profundos a proacutepria composiccedilatildeo da ἐμπειρία ilustra a diferenccedila Por um lado as operaccedilotildees de μετάβα-
σις τοῦ ὁμοίου de projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes etc tecircm o caraacutecter como que de um
sistema de forccedilas em relaccedilatildeo ao qual os estados-de-coisas-permanentes que a ἐμπειρία potildee e que cons-
tituem como vimos o seu correlato desempenham o papel de qualquer coisa como uma resultante
Mas por outro lado o facto de ser assim natildeo significa de maneira nenhuma como acabamos de ver
que o proacuteprio estado-de-coisas-permanentes postos pela projecccedilatildeo empiacuterica tenha de ter uma presenccedila
declarada expressa Tambeacutem eles podem muito bem estar ndash e na sua esmagadora maioria estatildeo ndash
numa posiccedilatildeo de presenccedila inexpliacutecita que afecta a nossa perspectiva sem se dar a conhecer expressa-
mente sem se declarar etc Quer dizer tambeacutem eles estatildeo numa posiccedilatildeo submersa e tambeacutem eles de-
sempenham funccedilotildees de forccedilas integrando um sistema de forccedilas de que aquilo que aparece expressa-
mente no foco temaacutetico constitui a resultante Por outras palavras ao mesmo tempo que satildeo um termi-
nus ad quem ndash resultante de um sistema de forccedilas mais profundas (as operaccedilotildees implicadas na sua
proacutepria constituiccedilatildeo) ndash os estados-de-coisas postos pela ἐμπειρία tambeacutem desempenham as funccedilotildees de
terminus a quo como ponto de partida de uma segunda resultante ndash que eacute aquilo que aparece expres-
samente posto como apresentaccedilatildeo declarada (o que como vimos se caracteriza precisamente por estar
ao mesmo tempo moldado por uma complexiacutessima multiplicidade de estados de coisas permanentes de
raiz empiacuterica) Nesse sentido poderiacuteamos dizer que aquilo que aparece expressamente estaacute moldado a)
por vaacuterias camadas ou estratos de profundidade empiacuterica (vaacuterias camadas ou estratos de excesso so-
bre a μνήμη e trangressatildeo do dado) e tambeacutem b) por uma multiplicidade de factores de determinaccedilatildeo
cada um deles assim constituiacutedo por mais do que uma camada de profundidade Este eacute um ponto par-
ticularmente importante em cada instante o que molda a nossa perspectiva eacute uma multiplicidade com-
vergente de factores de determinaccedilatildeo ndash grande parte dos quais com origem empiacuterica E o patrimoacutenio
de fixaccedilotildees empiacutericas que de cada vez interfere eacute ao mesmo tempo muacuteltiplo e em cada caso constituiacute-
do por diversas camadas (vaacuterios graus de profundidade) Observe-se finalmente que estas camadas
na verdade podem ser mais do que duas Pusemos em evidecircncia que satildeo pelo menos duas porque haacute
173
Assim a cada instante estamos a regular-nos por uma ldquomultidatildeordquo de projecccedilotildees empiacute-
ricas por forccedila das quais temos domesticada a realidade futura a que nos dirigimos e julga-
mos saber que essa realidade futura corresponderaacute no essencial agravequilo que aiacute se encontra no
presente Se natildeo fosse assim (se houvesse um efectivo em-aberto nesta mateacuteria) estariacuteamos
completamente desorientados
Mas sendo assim nada desta ldquomultidatildeordquo de estados-de-coisas-permanentes figura co-
mo conteuacutedo expresso no que me aparece E quando ao chegar convertido em presente uma
parte do futuro a que as projecccedilotildees de estados-de-coisas-permanentes dizem respeito tanto as
projecccedilotildees empiacutericas quanto os estados-de-coisas em causa continuam a encontrar-se em posi-
ccedilatildeo inexpliacutecita ndash e as proacuteprias relaccedilotildees (o ldquocommerciumrdquo as transacccedilotildees etc) entre o conteuacute-
do expresso e as projecccedilotildees empiacutericas satildeo vividas sem que tanto as projecccedilotildees empiacutericas
quanto os estados de coisas permanentes em questatildeo alguma vez cheguem a sair dessa posi-
ccedilatildeo inexpliacutecita em que se encontram
O que estaacute aqui em causa eacute aquilo que Pascal tatildeo bem pocircs em evidecircncia quando vin-
cou que a constituiccedilatildeo de convicccedilatildeo em noacutes (se assim se pode dizer a contracccedilatildeo da nossa
perspectiva na adopccedilatildeo de uma determinada tese) natildeo se produz soacute na forma da inspecccedilatildeo (da
consideraccedilatildeo expressa) mas tambeacutem na forma daquilo a que chamou ldquolrsquoautomaterdquo ndash forma
que se caracteriza precisamente por corresponder a uma fixaccedilatildeo que para se produzir natildeo
carece de qualquer consideraccedilatildeo expressa e pode produzir-se sem qualquer componente de
apresentaccedilatildeo expressa54
pelo menos os dois niacuteveis correspondentes agraves operaccedilotildees constituintes da ἐμπειρία e aos estados-de-coi-
sas-permanentes que formam o respectivo resultado Mas na verdade nada impede que os niacuteveis sejam
em nuacutemero superior pois pode haver projecccedilotildees empiacutericas de segundo terceiro quarto grau etc
montadas sobre a ligaccedilatildeo entre estados-de-coisas-permanentes jaacute de origem empiacuterica (quer dizer em
que as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος jaacute dizem respeito a siacutenteses de diferentes estados-de-coisas-
permanentes ou agrave detecccedilatildeo de afinidade entre estados-de-coisas-permanentes)
54 Natildeo pertence aqui analisar os textos de Pascal e os diversos conceitos que desempenham um papel
na sua descriccedilatildeo do complexo de fenoacutemenos aqui em causa Assinale-se que em alguns fragmentos o
contraste que aqui estaacute em causa (o contraste entre a convicccedilatildeo que se tem de forma considerativa e
aquela que natildeo passa por nenhuma consideraccedilatildeo ou incidecircncia sobre as mateacuterias judicativas de que se
trata) tambeacutem eacute posto em relaccedilatildeo com a oposiccedilatildeo entre instinct e coeur (em que radicam os primeiros
princiacutepios) ou coeur e ldquola raisonrdquo Eacute claro que os conceitos cunhados por Pascal natildeo tecircm exactamente
os mesmos contornos que a diferenccedila entre convicccedilotildees ou teses de natureza inexpliacutecita e convicccedilotildees
ou teses de natureza expliacutecita ndash que eacute aquele que para noacutes aqui tem importacircncia Mas por outro lado eacute
174
Pascal tambeacutem focou o ponto decisivo ao apontar para o facto de as fixaccedilotildees (as con-
tracccedilotildees de convicccedilatildeo) constituiacutedas na esfera de ldquolrsquoautomaterdquo natildeo serem em nada mais fracas
do que aquelas que tecircm lugar na esfera da consideraccedilatildeo ou da apresentaccedilatildeo expressa A haver
alguma diferenccedila de forccedila essa diferenccedila eacute a favor das convicccedilotildees constituiacutedas a tergo ou de
forma inexpliacutecita ndash e natildeo o contraacuterio
Finalmente Pascal tambeacutem potildee no caminho certo quando vinca que o foco de incidecircn-
cia tem em noacutes um calibre ou uma lotaccedilatildeo bastante restrita e soacute pode atentar de cada vez a
um pequeno conjunto de coisas ndash de sorte que o nuacutemero de teses ou de determinaccedilotildees para
que olhamos em consideraccedilatildeo e reconhecimento expliacutecitos eacute sempre muito pouco numeroso
corresponde a um minuacutesculo foco no meio de um maciccedilo de teses e determinaccedilotildees inexpliacuteci-
tas que constitui de cada vez a esmagadora maioria das nossas teses e das determinaccedilotildees
que temos adoptadas ndash uma imensa maioria de teses e determinaccedilotildees sem a qual tambeacutem de-
sapareceria a imensa maioria da realidade que de cada vez temos apresentada55
Por outras palavras se de repente se desvanecesse esse maciccedilo de co-apresentaccedilatildeo in-
expliacutecita e a nossa perspectiva sobre as coisas ficasse reduzida agravequilo que de cada vez figura
expressamente apresentado mudariam fundamentalmente duas coisas 1) o apresentado fica-
tambeacutem claro que o reconhecimento desta uacuteltima e do complexo de fenoacutemenos que aqui resumida-
mente procuraacutemos pocircr em evidecircncia aparece claramente desenhado no texto de Pascal
55 Em uacuteltima anaacutelise eacute isto que estaacute em causa quando Pascal em sect821 contrasta a lentidatildeo da razatildeo e
a rapidez do ldquosentimentrdquo Diz a certo passo ldquoLa raison agit avec lenteur et avec tant de vues sur tant
de principes lesquels il faut quils soient toujours preacutesents quagrave toute heure elle sassoupit ou seacutegare
manque davoir tous ses principes preacutesents Le sentiment nagit pas ainsi il agit en un instant et tou-
jours est precirct agrave agir Il faut donc mettre notre foi dans le sentiment autrement elle sera toujours vacil-
lanterdquo Vendo bem o que estaacute em causa natildeo eacute propriamente uma diferenccedila de velocidades mas a proacute-
pria diferenccedila na forma como se constitui a convicccedilatildeo nos dois casos e o entrave que resulta da exigui-
dade do foco considerativo As operaccedilotildees da ldquoraisonrdquo processam-se por exame ndash requerem a presenccedila
das mateacuterias judicativas no foco temaacutetico Mas porque o foco tem um calibre limitado (ou como tam-
beacutem podemos dizer porque natildeo podemos prestar atenccedilatildeo ao mesmo tempo a mais do que um pequeno
conjunto de coisas) a consideraccedilatildeo ou a inspecccedilatildeo do que quer que seja que pela sua complexidade
exceda o calibre do foco temaacutetico soacute pode ter lugar em sucessatildeo ndash se assim se pode dizer por deslo-
caccedilatildeo do foco como se fosse um cursor que deixa de cobrir A B C e D para passar a cobrir F G H e
I Eacute isso que faz a lentidatildeo da razatildeo O autoacutemato (o sentimento o instinto etc) ndash quer dizer constitui-
ccedilatildeo de convicccedilatildeo atemaacutetica ndash natildeo tem este problema porque natildeo passa pelo foco e natildeo tem o calibre
limitado dele Soacute podemos prestar atenccedilatildeo de cada vez a um pequeniacutessimo nuacutemero de coisas ndash mas a
presenccedila atemaacutetica (o nuacutemero de teses por que a cada vez podemos estar afectados sem lhes prestar-
mos qualquer atenccedilatildeo ou termos qualquer consciecircncia delas) natildeo parece estar limitada por qualquer
restriccedilatildeo
175
ria automaticamente reduzido ou ao campo perceptivo de cada vez presente ou agravequilo que de
cada vez estivesse a ser presentificado ndash e isso converter-se-ia de cada vez em algo absoluto
pois natildeo se teria nada que nos pusesse em contacto com o que quer que fosse para aleacutem disso
2) o proacuteprio campo perceptivo (ou aquilo que de cada vez estivesse a ser presentificado) fica-
ria completamente ldquodespovoadordquo da maior parte das determinaccedilotildees que habitualmente o po-
voam e que soacute satildeo ldquolaacuterdquo postas por co-apresentaccedilotildees inexpliacutecitas Quer dizer nem sequer se
teria o campo perceptivo (ou aquilo que eacute presentificado) na forma a que estamos habituados
ndash desapareceria a maior parte das determinaccedilotildees que os estruturam e estatildeo implicados no re-
conhecimento do seu teor
Para encurtar de razotildees o que importa reter eacute sobretudo que no nosso caso a esmaga-
dora maioria do processo de constituiccedilatildeo da ἐμπειρία e a esmagadora maioria dos seus corre-
latos (do que fica ldquoposto de peacuterdquo por forccedila da ἐμπειρία) se situa justamente no territoacuterio da
presenccedila inexpliacutecita e cairia completamente por terra se a nossa perspectiva ficasse reduzida
agravequilo que de cada vez temos apresentado de forma expressa
Se virmos bem quase tudo aquilo que descrevemos na primeira parte deste estudo
quando analisaacutemos o que eacute a experiecircncia (a forma como ultrapassa a μνήμη transgride o dado
tem que ver com a constituiccedilatildeo de estados de coisas permanentes etc) tem um caraacutecter exclu-
sivamente inexpliacutecito ou atemaacutetico passa-se sem que nos demos conta da sua presenccedila e do
seu teor
Ora mesmo que possa acontecer que ocasionalmente uma parte das projecccedilotildees empiacute-
ricas ou da evidecircncia resultante delas entre no foco e ganhe uma presenccedila de ordem conside-
rativa mesmo aiacute isso soacute se passa de maneira avulsa em relaccedilatildeo a esta ou agravequela tese ndash en-
quanto a maioria das teses empiacutericas continua presente e a actuar de forma perfeitamente im-
pliacutecita ou submersa E se por outro lado se procura contrariar esta tendecircncia e produzir qual-
quer coisa como um ldquorastreiordquo das nossas teses empiacutericas o caraacutecter limitado do foco faz que
ateacute aquelas teses que jaacute passaram pelo foco de incidecircncia e que com isso ganharam uma pre-
senccedila expliacutecita agrave medida que se vai passando agrave consideraccedilatildeo de outras teses voltem a cair na
mesma forma de presenccedila inexpliacutecita a tergo que habitualmente eacute proacutepria da ἐμπειρία
Em suma nem sequer acontece que a presenccedila inexpliacutecita seja para noacutes a forma na-
tural da experiecircncia mas que ainda assim possamos ndash se quisermos ndash mudar isso e converter
o patrimoacutenio da experiecircncia que de cada vez temos constituiacutedo num patrimoacutenio expresso
176
Sucede exactamente o contraacuterio em noacutes haacute um nexo indissoluacutevel entre a experiecircncia
e a presenccedila inexpliacutecita Nunca conseguimos alterar este estado de coisas ndash estamos se assim
se pode dizer ldquoprisioneirosrdquo dele Nesse sentido a experiecircncia que tem lugar no nosso ponto
de vista eacute essencialmente confusa no sentido teacutecnico do termo
Importa contudo ter presente que se eacute assim connosco isso de modo nenhum signifi-
ca que toda a experiecircncia tenha obrigatoriamente de ser constituiacuteda deste modo
De facto natildeo eacute necessariamente assim Acontece eacute que um campo de experiecircncia
constiuiacutedo de forma inteiramente declarada (expressa com integral consciecircncia de todos os
seus passos e de todos os estados de coisas permanentes ndash de todas as leis ndash que tecircm lugar ne-
le etc) eacute algo muito diferente de um campo de experiecircncia maciccedilamente constituiacutedo de ma-
neira inexpliacutecita
De resto para que a diferenccedila seja muito grande nem sequer eacute preciso que o patrimoacute-
nio empiacuterico seja inteiramente expresso ou declarado basta que o ldquocalibrerdquo ou a ldquolotaccedilatildeordquo do
foco de incidecircncia sejam significativamente maiores do que sucede no nosso caso permitindo
que pelo menos uma significativa parte da experiecircncia ou das projecccedilotildees empiacutericas se desen-
volva de forma declarada e que o seu resultado esteja presente tambeacutem de forma declarada
Para se ter alguma ideia da amplitude da diferenccedila natildeo eacute preciso mais do que ter pre-
sente que uma grande parte da forccedila da ἐμπειρία tal como tem lugar em noacutes proveacutem de natildeo
se ter nenhuma consciecircncia de como se acha constituiacuteda de qual a sua base real da transgres-
satildeo em que consiste etc
Quer dizer a aparente solidez das fixaccedilotildees empiacutericas radica em grande parte no facto
de se estar deposto no seu resultado (na ldquoresultanterdquo) e de natildeo se ter qualquer consciecircncia do
sistema de forccedilas que a desencadeia O simples facto de um ponto de vista empiacuterico ter plena
consciecircncia de que o eacute (ter plena consciecircncia dos seus proacuteprios passos etc) torna-o muito
menos soacutelido (muito menos firmemente implantado e ldquoindiscutiacutevelrdquo) Neste caso a falta de
transparecircncia (o aparecer apenas a ldquosuperfiacutecierdquo do aparecimento em que estamos constituiacutedos
ndash e natildeo a sua ldquoprofundidaderdquo) eacute uma condiccedilatildeo importante da proacutepria estabilidade da ἐμπειρία
pois contribui decisivamente para que o ponto de vista empiacuterico natildeo se decirc conta de que de
facto ldquovive muito acima das suas possibilidadesrdquo
Em suma tambeacutem neste aspecto a experiecircncia tal como tem lugar em noacutes correspon-
de apenas a uma das modalidades de experiecircncia possiacutevel Tanto quanto se consegue determi-
nar natildeo teria forccedilosamente de ser assim como se passa connosco Ou seja tambeacutem neste as-
177
pecto o que conhecemos natildeo eacute a expriecircncia tout court mas antes qualquer coisa como uma
contracccedilatildeo
sect24
Diversos modelos possiacuteveis de organizaccedilatildeo da multiplicidade das determinaccedilotildees nexos de
coordenaccedilatildeo nexos de subordinaccedilatildeo regimes mistos e suas implicaccedilotildees
A experiecircncia que tem lugar em noacutes tambeacutem estaacute determinada pela conformaccedilatildeo de
um outro aspecto que a molda de tal modo que sem a conformaccedilatildeo deste outro aspecto (sc
com outra conformaccedilatildeo dele) seria bastante diferente
Este outro aspecto que interessa agora considerar tem que ver com o facto de haver di-
versos modelos possiacuteveis de organizaccedilatildeo da multiplicidade das determinaccedilotildees
Natildeo cabe aqui fazer um inventaacuterio exaustivo dos diversos modelos possiacuteveis mas inte-
ressa que fiquem claros alguns aspectos formais desta relaccedilatildeo
Em primeiro lugar aquilo a que se alude quando se fala de organizaccedilatildeo da multiplici-
dade das determinaccedilotildees eacute um certo sentido da noccedilatildeo de ldquocomposiccedilatildeordquo que estaacute implicado na
proacutepria etimologia do termo mas de que se pode ndash e tende a ndash perder o rasto
A noccedilatildeo de ldquocomposiccedilatildeordquo remete originalmente para a co-posiccedilatildeo dos componentes
(dos que constituem integram ou tomam lugar no composto dos associados dos elementos
que concorrem que se potildeem ou satildeo postos em conjunto etc) Isto eacute a ldquoco-posiccedilatildeordquo alude agrave
sincronia das determinaccedilotildees ndash ao facto de as determinaccedilotildees coincidirem no mesmo conjunto
(fazerem parte dele ao mesmo tempo etc)
Em segundo lugar o que isto quer dizer eacute que a relaccedilatildeo entre as determinaccedilotildees natildeo eacute
uma relaccedilatildeo de mera contiguidade (de mera vizinhanccedila adjacecircncia etc) Poderia dar-se o ca-
so de a ligaccedilatildeo entre as determinaccedilotildees corresponder meramente a uma justaposiccedilatildeo ndash de tal
modo que se mantivessem perfeitamente alheias umas agraves outras Mas de facto natildeo eacute isso que
se passa
Na verdade a relaccedilatildeo entre as diversas determinaccedilotildees eacute uma relaccedilatildeo de conjunccedilatildeo ndash
ie as determinaccedilotildees afectam-se (intrometem-se umas nas outras estatildeo em relaccedilatildeo umas com
178
as outras etc) Vendo bem esse entretecimento das determinaccedilotildees eacute universal a todas as de-
terminaccedilotildees que compotildeem aquilo que nos aparece as determinaccedilotildees afectam-se mutuamente
(sustentam como dizia a tradiccedilatildeo qualquer coisa como um commercium ndash ou como tambeacutem
podemos dizer determinam-se umas agraves outras interferem umas com as outras etc)
Visto isto interessa que fiquem claros dois pontos quanto agrave natureza da relaccedilatildeo das
determinaccedilotildees
Em primeiro lugar haacute vaacuterias possibilidades de conformaccedilatildeo da experiecircncia porque
haacute vaacuterias possibilidades de organizaccedilatildeo da multiplicidade que aparece
Vaacuterios aspectos disso jaacute foram tocados nas anaacutelises que precedem Tratar-se-aacute agora
de considerar em especial um aspecto que tem que ver com qualquer coisa como relaccedilotildees de
poder na forma como as diferentes componentes da multiplicidade se ligam umas agraves outras e
interferem umas com as outras
Ora essas diferentes relaccedilotildees de forccedila tecircm lugar no entretecimento submerso de que
resulta aquilo que aparece declaradamente Quer dizer produzem-se na esfera da profundida-
de mas tecircm reflexos no plano da superfiacutecie
Assim dois acontecimentos de aparecimento organizados de modo diferente no que
diz respeito a este aspecto que agora procuramos focar natildeo satildeo diferentes apenas quanto agrave tes-
situra que como vimos natildeo aparece exposta satildeo tambeacutem diferentes no que diz respeito agravequi-
lo que tecircm imediatamente apresentado
Em segundo lugar interessa igualmente assinalar que entre si as diversas formas de
organizaccedilatildeo da multiplicidade que aqui estatildeo em causa tanto podem ser alternativas (exclusi-
vas etc) quanto complementares Quer dizer as relaccedilotildees entre as determinaccedilotildees tanto podem
corresponder a um uacutenico modelo de relaccedilatildeo como podem estar associadas pela conjunccedilatildeo
de dois ou mais modelos de organizaccedilatildeo
Por outras palavras pode acontecer a) que um dado acontecimento de acesso esteja to-
do ele organizado por uma uacutenica forma de relaccedilatildeo entre os seus vaacuterios elementos b) que um
outro acontecimento de acesso esteja todo ele organizado por uma outra forma de relaccedilatildeo en-
tre os seus vaacuterios elementos e c) que um terceiro acontecimento de acesso esteja organizado
de forma mista conjugando em si as duas formas de relaccedilatildeo que nos outros dois casos soacute tecircm
lugar como que ldquoem estado purordquo
179
A nossa relaccedilatildeo com as diferentes possibilidades de organizaccedilatildeo dos diferentes mo-
mentos da multiplicidade apresentada eacute bastante limitada pois estamos prisioneiros daquelas
com que temos contacto e temos dificuldade em ldquolibertarrdquo a nossa perspectiva
Isto eacute este eacute um ponto em que estamos como que fechados num ldquocachotrdquo qualitativo
(para usar a formulaccedilatildeo de Pascal no sect199) e natildeo sabemos bem o que se pode passar fora da
nossa cela ndash e ateacute que ponto pode ir o contraste entre esse exterior e aquilo com que estamos
familiarizados
Concentramo-nos por isso em duas formas de organizaccedilatildeo da multiplicidade a que te-
mos acesso directo ndash porque neste aspecto o campo de aparecimento em que damos connos-
co tem um caraacutecter misto Estamos a falar do nexo de coordenaccedilatildeo e do nexo de subordina-
ccedilatildeo
Para o fazer podemos partir daquilo que Kant diz logo na secccedilatildeo I sect2 II da disserta-
ccedilatildeo ldquoDe mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiisrdquo haacute nexos de coordenaccedilatildeo
quando a relaccedilatildeo entre os termos relatos eacute como diz Kant reciacuteproca e homoacutenima56
O caraacutecter reciacuteproco da relaccedilatildeo traduz o facto fundamental de natildeo ser possiacutevel uma re-
laccedilatildeo entre A e B que natildeo seja eo ipso tambeacutem uma relaccedilatildeo entre B e A
Acontece que o facto de a relaccedilatildeo ser reciacuteproca natildeo significa forccedilosamente que tam-
beacutem seja homoacutenima
Quer dizer o facto de a relaccedilatildeo ser reciacuteproca natildeo indica forccedilosamente que A exerccedila
sobre B exactamente o mesmo tipo de condicionamento que B exerce sobre A (ie em simul-
tacircneo o mesmo grau de condicionamento e um condicionamento do mesmo teor)
Ora um nexo de coordenaccedilatildeo distingue-se precisamente pelo facto de como Kant diz
natildeo ser apenas reciacuteproco mas tambeacutem homoacutenimo
No nexo de coordenaccedilatildeo os elementos postos em conexatildeo estatildeo em perfeita paridade
quanto agrave forma como os termos se afectam reciprocamente Em cada direcccedilatildeo de coordena-
ccedilatildeo se assim se pode dizer o nexo eacute exactamente o mesmo nos dois sentidos
Este eacute um ponto decisivo para compreender esta forma de nexo entre os elementos da
multiplicidade
56
In AA Vol II Vorkritische Schriften II 1757-1777 paacutegs 385-420
180
A coordenaccedilatildeo implica que todas as determinaccedilotildees directamente envolvidas tecircm o
mesmo peso na constituiccedilatildeo do complexo que compotildeem As determinaccedilotildees estatildeo por assim
dizer horizontalmente niveladas umas em relaccedilatildeo agraves outras (nenhuma supera as outras tem
precedecircncia sobre as outras etc) e constituem um sistema de forccedilas absolutamente propor-
cionais entre si
Sendo assim tambeacutem os teor das relaccedilotildees entre as diversas determinaccedilotildees natildeo eacute di-
ferenciado Isto eacute as relaccedilotildees entre determinaccedilotildees satildeo neste modelo da mesma iacutendole Haacute
se assim se pode dizer uma completa simetria Em suma as diferenccedilas entre as determina-
ccedilotildees natildeo comportam qualquer variaccedilatildeo da natureza e do grau de influecircncia ou interferecircncia
de umas sobre as outras
Natildeo eacute assim no caso dos nexos de subordinaccedilatildeo No caso da subordinaccedilatildeo a relaccedilatildeo eacute
reciacuteproca mas natildeo eacute homoacutenima
Quer dizer haacute uma assimetria no modo como um dos termos da relaccedilatildeo condiciona o
outro ndash de tal modo que consoante o sentido da relaccedilatildeo (se eacute uma relaccedilatildeo de A para B ou de
B para A) muda o grau e tambeacutem o teor do condicionamento em causa Por outras palavras
na relaccedilatildeo de subordinaccedilatildeo um dos elementos prevalece sobre o outro (actua sobre ele de
forma diferente daquilo que se passa no sentido inverso ndash e de tal modo que por exemplo A eacute
mais marcante de B do que o contraacuterio)
A partir daqui percebe-se melhor o quadro de possibilidade de variaccedilatildeo que assim se
desenha a partir das formas de organizaccedilatildeo da multiplicidade com que noacutes mesmos estamos
familiarizados
Em primeiro lugar pode haver acontecimentos de acesso ou aparecimento com uma
multiplicidade exclusivamente organizada em regime de coordenaccedilatildeo e tambeacutem poderaacute ha-
ver acontecimentos de acesso ou aparecimento com uma multiplicidade exclusivamente orga-
nizada em regime de subordinaccedilatildeo aleacutem disso haacute tambeacutem acontecimentos de acesso ou apa-
recimento constituiacutedos de forma mista conjugando a coordenaccedilatildeo e a subordinaccedilatildeo57
57
Para percebermos melhor o que isto quer dizer consideremos por exemplo o que caracteriza o ne-
xo entre os diferentes elementos daquilo a que chamaacutemos a trama baacutesica de identidade e diferenccedila Os
elementos constitutivos desta trama baacutesica estatildeo sempre acompanhados de forma confusa ndash de tal mo-
do que a estrutura A ne B ne C ne D etc eacute muito mais uma estrutura representada em regime de repre-
sentaccedilatildeo simboacutelica do que algo a que se tenha acesso propriamente intuitivo Mas sendo assim isso
natildeo impede que o nexo entre os elementos desta multiplicidade seja justamente um nexo de coordena-
ccedilatildeo ndash e natildeo um nexo de subordinaccedilatildeo A trama baacutesica de identidades e diferenccedilas natildeo corresponde a
181
Em segundo lugar dentro destes uacuteltimos pode haver variaccedilatildeo determinada por dife-
renccedilas na quota-parte que cabe ao nexo de coordenaccedilatildeo e ao nexo de subordinaccedilatildeo Essa va-
riaccedilatildeo eacute soacute por si caeteris paribus susceptiacutevel de dar lugar a diferenccedilas muito significativas
ndash quer dizer eacute susceptiacutevel de dar lugar a quadros de aparecimento com enormes contrastes en-
tre si
Em terceiro lugar a variaccedilatildeo tambeacutem pode provir de diferenccedilas quanto aos operadores
de subordinaccedilatildeo que entram em funccedilotildees Haacute diversos tipos de nexos de subordinaccedilatildeo e dife-
rentes regimes de aparecimento ndash diferentes conformaccedilotildees do que aparece consoante a) o al-
fabeto de nexos de subordinaccedilatildeo que eacute utilizado (alfabeto que pode ser mais rico ou mais po-
uma pura justaposiccedilatildeo de momentos que natildeo se chegassem a determinar uns aos outros (que estives-
sem soacute determinados por si mesmos ndash cada um por si num regime de exclusiva auto-determinaccedilatildeo
tautoloacutegica) Em uacuteltima anaacutelise natildeo sabemos a que eacute que isso corresponderia ndash temos uma noccedilatildeo me-
ramente apofaacutetica disso Natildeo tal como tem lugar em noacutes a trama baacutesica de identidades e diferenccedilas jaacute
envolve qualquer coisa como um commercium de determinaccedilatildeo reciacuteproca entre as suas componentes
ateacute mesmo porque ndash aleacutem do mais ndash a proacutepria constituiccedilatildeo de cada componente natildeo se faz no absoluto
isolamento de si mas em relaccedilatildeo a outras a que eacute contraposta De tal modo que para o exprimir na lin-
guagem de Platatildeo nenhuma dessas componentes eacute monoeideacutetica e preacute-sinteacutetica sucede antes que to-
das satildeo intrinsecamente sinteacuteticas e intrinsecamente constituiacutedas pela proacutepria relaccedilatildeo de umas com as
outras (a relaccedilatildeo de contraposiccedilatildeo de umas agraves outras) Mas sendo assim o que caracteriza esta consti-
tutiva relaccedilatildeo entre os diferentes momentos da trama baacutesica de identidades e diferenccedilas eacute o caraacutecter
inteiramente reciacuteproco e homoacutenimo da relaccedilatildeo Podemos expressaacute-lo aliaacutes natildeo apenas em relaccedilatildeo ao
nexo entre os diferentes momentos (A B C D E F etc) mas tambeacutem em relaccedilatildeo agraves proacuteprias com-
ponentes formais da trama baacutesica a identidade e a diferenccedila Vendo bem nenhuma delas tem uma po-
siccedilatildeo de ascendente sobre a outra Tal como as representamos supotildeem-se sempre jaacute uma agrave outra a
identidade supotildee a contraposiccedilatildeo ao natildeo-idecircntico e eacute constitutivamente mediada pela representaccedilatildeo da
diferenccedila e o mesmo vale tambeacutem no sentido inverso Em suma cabe aqui algo semelhante agravequilo
que eacute posto em evidecircncia no Sofista de Platatildeo no passo sobre a chamada comunicaccedilatildeo dos geacuteneros
Este mesmo fenoacutemeno permite-nos ao mesmo tempo compreender melhor o que dissemos sobre o ca-
raacutecter misto (simultaneamente marcado por coordenaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo) do que nos aparece Com
efeito a circunstacircncia de ter uma constituiccedilatildeo de natureza coordenativa natildeo impede que a trama baacutesica
de identidades e diferenccedilas seja incorporada (nb constantemente incorporada incorporada absoluta-
mente sem excepccedilatildeo) em nexos de natureza subordinativa Eacute o que sucede por exemplo em relaccedilatildeo agraves
unidades colectivas de determinaccedilotildees que jaacute voltaremos a considerar para melhor percebermos este
ponto Vendo bem a conjugaccedilatildeo entre os dois operadores de conexatildeo eacute mesmo de tal ordem que cada
momento do que temos apresentado (cada momento discerniacutevel da trama baacutesica de identidades e dife-
renccedilas) estaacute ao mesmo tempo envolvido em nexos de coordenaccedilatildeo (numa muito complexa rede de ne-
xos de coordenaccedilatildeo) e em nexos de subordinaccedilatildeo (numa muito complexa rede de nexos de subordina-
ccedilatildeo)
182
bre) e b) a quota-parte que cabe a cada um destes nexos (sc o papel relativo que desempe-
nham na organizaccedilatildeo da multiplicidade do que aparece)
Ora se mantivermos inalterados todos os demais aspectos referidos o quadro de cons-
tituiccedilatildeo da experiecircncia muda radicalmente consoante envolva soacute nexos de coordenaccedilatildeo ou
pelo contraacuterio tambeacutem envolva nexos de subordinaccedilatildeo Mais o quadro de constituiccedilatildeo da
experiecircncia tambeacutem muda muito significativamente em funccedilatildeo da composiccedilatildeo concreta do re-
gime de subordinaccedilatildeo que estiver em vigor
No que vimos anteriormente jaacute haacute indiacutecios de nexos de subordinaccedilatildeo vimos por
exemplo que as muacuteltiplas determinaccedilotildees cruzadas no preenchimento de cada momento do
que nos aparece (as muacuteltiplas determinaccedilotildees cruzadas na fixaccedilatildeo de cada momento da janela)
satildeo como forccedilas de um sistema de forccedilas e tecircm ascendente sobre a resultante
Tudo isto eacute de grande importacircncia para a constituiccedilatildeo da ἐμπειρία porque potildee na pista
da possibilidade de tambeacutem as projecccedilotildees empiacutericas estarem organizadas destas duas formas
(coordenaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo) ndash e na verdade com diferentes regimes de subordinaccedilatildeo entre
elas
Isto eacute por um lado pode acontecer que todas as projecccedilotildees empiacutericas estejam ligadas
por nexos de coordenaccedilatildeo ndash e apenas por coordenaccedilatildeo pode acontecer que uma parte delas
esteja associada por nexos de coordenaccedilatildeo mas que outra parte dos nexos entre projecccedilotildees
empiacutericas envolva subordinaccedilatildeo finalmente tambeacutem natildeo estaacute excluiacutedo que possa haver mul-
tiplicidades de projecccedilotildees empiacutericas constituiacutedas de tal modo que entre elas soacute haja nexos de
subordinaccedilatildeo
Natildeo cabe aqui analisar todas estas possibilidades e determinar a que eacute que poderaacute cor-
responder cada uma delas Mas importa ter presente que em princiacutepio a ἐμπειρία pode estar
organizada destes diversos modos ndash e tambeacutem que os quadros de subordinaccedilatildeo susceptiacuteveis
de determinarem a ligaccedilatildeo entre as diversas projecccedilotildees empiacutericas podem variar muito signi-
ficativamente (dando assim lugar a resultados ndash isto eacute a ldquoexperiecircnciasrdquo ndash muito significati-
vamente diferentes)
Para se perceber o que estaacute aqui em jogo importa exemplificar ndash importa considerar
concretamente que nexos de subordinaccedilatildeo pode haver e como a sua interferecircncia muda efecti-
vamente o panorama daquilo que se nos apresenta
183
Um primeiro exemplo tem que ver com a proacutepria organizaccedilatildeo do que nos aparece em
unidades colectivas de determinaccedilotildees postas sob o ascendente de nuacutecleos de determinaccedilatildeo de
identidade
Como vimos se perguntarmos o que nos rodeia natildeo comeccedilamos por uma ponta qual-
quer e identificamos por exemplo um primeiro momento de branco um segundo momento
de branco um terceiro momento de branco e assim sucessivamente (como numa travessia
ldquopontilhistardquo) Estamos sempre jaacute rodeados por unidades colectivas de determinaccedilotildees pare-
des estantes cadeiras (ou num percurso mais atento este livro aquele livro etc)
Mas sendo assim se considerarmos cada uma destas unidades verificamos que cada
uma eacute ao mesmo tempo constituiacuteda por uma trama baacutesica de multiplicidade (este momento
aquele momento mais aquele etc) e por um nuacutecleo de determinaccedilatildeo intrinsecamente sinteacuteti-
ca que natildeo se limita a juntar-se agraves outras no mesmo regime de justaposiccedilatildeo em que se acham
umas em relaccedilatildeo agraves outras antes tem a capacidade de as integrar na sua proacutepria identidade ndash
de tal modo que ficam justamente convertidas em momentos dela Tudo isto jaacute foi visto ndash o
que agora se trata de pocircr em relevo eacute como isto envolve a entrada em cena de nexos de subor-
dinaccedilatildeo
Em uacuteltima anaacutelise cada um dos momentos integrados difere tanto da identidade co-
lectiva em que fica integrado quantos dos outros momentos que tambeacutem se integram nela E
por outro lado havendo uma integraccedilatildeo dos diversos momentos na identidade colectiva da
ldquocoisardquo isso significa um nexo que afecta tanto cada momento (pondo-o em relaccedilatildeo com a
identidade colectiva) quanto a proacutepria identidade colectiva (pondo-a em relaccedilatildeo com cada
um dos momentos) Nesse sentido a teia de relaccedilotildees envolvida na constituiccedilatildeo de uma ldquocoi-
sardquo (de uma unidade colectiva de determinaccedilotildees) eacute uma teia de nexos reciacuteprocos
Mas por outro lado vendo bem os nexos em causa natildeo satildeo homoacutenimos Haacute algo que
quebra essa ldquosimetriardquo e faz que tal como nos aparece por exemplo numa caneta vermelha o
nexo entre a caneta e o vermelho tenha um caraacutecter tal que ndash como muitas vezes se formulou
nos tratados de loacutegica ndash seja o vermelho que eacute da caneta e natildeo a caneta que eacute do vermelho
Quer dizer haacute qualquer coisa sempre jaacute ldquodecididamenterdquo posta na forma como as uni-
dades colectivas de determinaccedilatildeo (as ldquocoisasrdquo) nos aparecem e em virtude da qual os nexos
que perpassam a multiplicidade das respectivas determinaccedilotildees na sua relaccedilatildeo com a unidade
em que se acham organizadas envolvem prevalecircncia ou ascendente do nuacutecleo de identidade
colectiva sobre as determinaccedilotildees nela integradas
184
Assim se considerarmos por exemplo uma matildeo cada um dos momentos da sua su-
perfiacutecie tem uma identidade proacutepria cuja diferenccedila em relaccedilatildeo aos outros faz a proacutepria multi-
plicidade sem a qual a proacutepria superfiacutecie em causa se desfaria por completo
Contudo vendo bem cada um desses momentos perdeu a sua identidade absoluta (ou
melhor natildeo estaacute definido nem apenas nem fundamentalmente por ela) A instacircncia identitaacuteria
fundamental (aquilo que fundamentalmente define a identidade de cada momento da palma da
matildeo) estaacute transferida para a proacutepria determinaccedilatildeo colectiva matildeo (M) De sorte que a identi-
dade ou cada momento da palma da matildeo tem se assim se pode dizer a forma M1 M2 M3
M4 etc E o fundamental desta forma de fixaccedilatildeo da identidade eacute justamente a prevalecircncia de
M sobre 1 ou 2 ndash ie a forma como 1 ou 2 aparece como contracccedilatildeo ou determinaccedilatildeo de M
fundamentalmente definida por M (e natildeo por si proacutepria pela sua identidade absoluta 1 ou 2)
Tudo isto jaacute nos potildee na pista de um estado-de-coisas de que eacute indispensaacutevel ter clara
consciecircncia a presenccedila destes nexos de subordinaccedilatildeo (e natildeo apenas de coordenaccedilatildeo) natildeo
ocorre apenas em ldquobolsasrdquo ou domiacutenios circunscritos Na verdade tem lugar por toda a parte
do ldquotecidordquo daquilo que temos apresentado
Sem que disso tenhamos aguda consciecircncia todas as unidades colectivas que nos apa-
recem (todas as ldquocoisasrdquo tudo o que aparece etc) estatildeo montadas sobre nexos de subordina-
ccedilatildeo desta ordem De tal modo que se natildeo houvesse nexos de subordinaccedilatildeo (ou se os nexos de
subordinaccedilatildeo natildeo fossem deste tipo) o campo do que nos aparece teria uma conformaccedilatildeo
muito diferente (e a experiecircncia que nele teria lugar seria tambeacutem uma experiecircncia muito di-
ferente)
Quer dizer nesse caso natildeo sucederia aquilo que eacute essencial na experiecircncia com que es-
tamos familiarizados ela envolver sempre a projecccedilatildeo desta estrutura fundamental ndash que por
assim dizer a acompanha sempre de tal modo que todas as determinaccedilotildees projectadas satildeo
projectadas com esta estrutura e no quadro dela Ou dito de outro modo o que caracteriza
essa experiecircncia eacute o facto de tanto no seu terminus a quo quanto no seu terminus ad quem do-
minar justamente esta peculiar ldquomatrizrdquo de nexos de subordinaccedilatildeo
Ora apesar de tudo este nexo de subordinaccedilatildeo entre a determinaccedilatildeo unificante e as
restantes determinaccedilotildees poderia ser o uacutenico nexo de subordinaccedilatildeo entre as muacuteltiplas determi-
naccedilotildees que compotildeem uma unidade colectiva
Ou seja poderia muito bem dar-se o caso de a relaccedilatildeo entre as determinaccedilotildees subordi-
nadas (ie entre todas as outras determinaccedilotildees excluindo a determinaccedilatildeo unificante) ser uma
185
relaccedilatildeo de pura coordenaccedilatildeo Nesse sentido as restantes determinaccedilotildees seriam entre si igual-
mente subordinadas agrave determinaccedilatildeo unificante ndash de tal modo que entre si estariam horizon-
talmente niveladas (teriam o mesmo peso constituiriam o mesmo tipo de relaccedilotildees etc)
Acontece que natildeo eacute assim
As muacuteltiplas determinaccedilotildees de que eacute composta uma unidade colectiva natildeo tecircm todas o
mesmo peso nem estatildeo associadas por relaccedilotildees do mesmo tipo Quer dizer pode acontecer (e
acontece) que uma dada determinaccedilatildeo da coisa ndash chamemos-lhe A ndash natildeo estaacute em relaccedilatildeo com
B com C D E etc da mesma forma que B C D E etc estatildeo em relaccedilatildeo com A Haacute uma
enorme variaccedilatildeo quanto ao peso das determinaccedilotildees e quanto agrave relaccedilatildeo que sustentam entre
si
Dito por outras palavras natildeo haacute apenas subordinaccedilatildeo do conjunto de determinaccedilotildees
em relaccedilatildeo agrave determinaccedilatildeo unificante Vendo bem as determinaccedilotildees subordinadas ao nuacutecleo
da identidade da coisa estatildeo associadas por nexos que fazem que tambeacutem elas natildeo estejam ho-
rizontalmente niveladas mas sim verticalmente niveladas Quer dizer as diferentes determi-
naccedilotildees subordinadas estatildeo tambeacutem elas associadas numa hierarquia
Notou-se atraacutes que ndash de entre a totalidade de determinaccedilotildees de que eacute constituiacuteda uma
unidade colectiva ndash havia uma determinaccedilatildeo que tal como estaacute constituiacuteda supera todas as
restantes determinaccedilotildees de que a unidade eacute composta A essa determinaccedilatildeo ndash no seguimento
da terminologia da tradiccedilatildeo claacutessica ndash poderia chamar-se ldquoformardquo (a determinaccedilatildeo intriacutenseca-
mente colectiva)
O que entatildeo se viu foi que a ldquoformardquo se impotildee (se sobrepotildee toma precedecircncia etc)
de tal modo que a) todas as outras determinaccedilotildees estatildeo por um lado na sombra da ldquoformardquo
(tecircm uma presenccedila vaga opaca discreta indistinta constituem o fundo etc) e b) satildeo por ou-
tro lado meras determinaccedilotildees predicativas dela (estatildeo ldquosubsumidasrdquo nela satildeo derivadas dela
subordinadas dela etc)
Ora agora estaacute em causa especificamente uma outra possibilidade a saber a possibili-
dade de entre as diferentes determinaccedilotildees cruzadas dessa forma haver natildeo apenas nexos de
coordenaccedilatildeo mas tambeacutem nexos de subordinaccedilatildeo com uma complexa hierarquia de ascen-
dentes
Isto pode acontecer entre outras razotildees porque entre a determinaccedilatildeo colectiva que fi-
xa a identidade de uma coisa e as determinaccedilotildees ldquosimplesrdquo que formam isso a que chamaacutemos
a ldquotrama baacutesicardquo haacute uma multiplicidade de niacuteveis intermeacutedios
186
Esses niacuteveis intermeacutedios caracterizam-se por um lado pela sua subordinaccedilatildeo agrave iden-
tidade da proacutepria coisa ndash por estarem integrados nela postos sob o seu ascendente Mas por
outro lado tambeacutem se caracterizam por exercerem funccedilotildees anaacutelogas em relaccedilatildeo agraves determi-
naccedilotildees mais simples que entram na sua composiccedilatildeo
Quer dizer as instacircncias intermeacutedias de siacutentese que estatildeo envolvidas na constituiccedilatildeo
interna de uma unidade colectiva de determinaccedilotildees tecircm um primado anaacutelogo ao da proacutepria
identidade global da coisa ndash de tal modo que tambeacutem em relaccedilatildeo a elas vale que os seus mo-
mentos perdem a respectiva identidade absoluta e assumem uma identidade subordinada agrave das
instacircncias intermeacutedias Acontece eacute que ao mesmo tempo as instacircncias intermeacutedias tambeacutem
perdem a sua identidade absoluta a favor da identidade da proacutepria unidade colectiva de de-
terminaccedilotildees
O que em suma constitui uma unidade colectiva de determinaccedilotildees (uma ldquocoisardquo) eacute
como que uma cadeia de ldquoabdicaccedilotildeesrdquo da identidade proacutepria uma cadeia de subordinaccedilotildees a
instacircncias sinteacuteticas cada vez mais amplas ndash cadeia de abdicaccedilatildeo ou de subordinaccedilatildeo que tem
o seu termo na identidade da proacutepria ldquocoisardquo Mas isso significa justamente que no proacuteprio
quadro das determinaccedilotildees subordinadas natildeo soacute haacute nexos de subordinaccedilatildeo mas haacute de facto
toda uma cadeia de nexos de subordinaccedilatildeo anaacutelogos agravequeles que se registam entre a identida-
de colectiva da ldquocoisardquo e tudo o mais nela
sect25
A distribuiccedilatildeo das diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees por diferentes planos
de relevacircncia ao longo do campo do que nos aparece ndash O nuacutecleo de importacircncia superlati-
va como aquilo de que fundamentalmente trata o acontecimento de acesso ndash A possibili-
dade de a scala praeligdicamentalis traduzir a forma como estaacute internamente organizada a fi-
xaccedilatildeo do que nos aparece
Para ganharmos alguma perspectiva sobre como pode ser assim podemos comeccedilar por
considerar as relaccedilotildees entre as proacuteprias unidades colectivas de determinaccedilotildees constituiacutedas da
forma que grosseiramente tentaacutemos descrever
187
Poderia acontecer que todas as unidades colectivas de determinaccedilotildees aparecessem me-
ramente coordenadas umas em relaccedilatildeo agraves outras de tal modo que houvesse perfeita ldquoparida-
derdquo entre si (e de tal modo que a ldquosociedaderdquo de unidades colectivas de determinaccedilotildees fosse
inteiramente ldquoigualitaacuteriardquo) Mas isto natildeo eacute assim na forma como as ldquocoisasrdquo nos aparecem
Sucede pelo contraacuterio que haacute unidades colectivas de determinaccedilotildees com funccedilotildees pro-
tagonistas outras com funccedilotildees deuteragonistas outras ainda mais distantes de terem prota-
gonismo ndash isto num ldquocontinuumrdquo muito complexo de gradaccedilotildees de que podemos natildeo estar
cientes mas que nem por isso deixa de ser marcante e mesmo decisivo
De facto o campo do aparecimento (e da experiecircncia) com que estamos em contacto
caracteriza-se pela propriedade de nele estar qualquer coisa em causa (ou seja por se achar
perpassado por tensotildees de natildeo-indiferenccedila) Isso eacute assim em toda a extensatildeo do campo do
aparecimento Na verdade o que varia eacute a intensidade e a relevacircncia do nexo que cada ldquocoi-
sardquo tem com aquilo que estaacute em causa
Quer dizer o que varia eacute precisamente a intensidade e a relevacircncia do nexo que cada
ldquocoisardquo tem com as diversas tensotildees de natildeo-indiferenccedila que dominam o campo de apareci-
mento ndash de tal modo que a maior ou menor importacircncia de cada ldquocoisardquo depende ao mesmo
tempo do tipo de nexo que tem com este ou aquele fluxo das tensotildees de natildeo-indiferenccedila a que
estaacute ligada e da proacutepria relaccedilatildeo de forccedilas entre os diferentes fluxos de natildeo-indiferenccedila
Podemos exprimir tudo isto dizendo que as unidades colectivas de determinaccedilotildees que
nos aparecem a) estatildeo sempre percebidas com atribuiccedilatildeo de posiccedilotildees funcionais em relaccedilatildeo
aquilo que nos importa de tal modo que b) se acham sempre revestidas de um determinado
iacutendice de importacircncia
Em muitos casos esse iacutendice de importacircncia pode corresponder justamente agrave natildeo-atri-
buiccedilatildeo de qualquer relevacircncia (de ser tal que a ldquocoisardquo ou unidade colectiva de determinaccedilotildees
em causa nos aparece como completamente indiferente) Poreacutem isso natildeo significa que natildeo
tem qualquer iacutendice de importacircncia Equivale antes a algo que soacute eacute possiacutevel no quadro de uma
tensatildeo de natildeo-indiferenccedila orientada de uma determinada forma e que porque estaacute orientada
de uma determinada forma atira para um ldquofundordquo de irrelevacircncia tudo o que natildeo exerce (ou
parece natildeo exercer) quaisquer funccedilotildees significativas a seu respeito
De facto vendo bem o iacutendice de importacircncia natildeo eacute uma determinaccedilatildeo secundaacuteria
com pouco peso Acontece precisamente o contraacuterio o iacutendice de importacircncia eacute um dos princi-
pais e mais decisivos elementos na fixaccedilatildeo da identidade de cada ldquocoisardquo
188
O que estamos a descrever eacute qualquer coisa como um ascendente ndash um nexo de subor-
dinaccedilatildeo ndash desta determinaccedilatildeo o iacutendice de importacircncia sobre pelo menos muitas das outras
Por mais taacutecita que seja a sua presenccedila o iacutendice de importacircncia estaacute sempre ldquolaacuterdquo em cada
ldquocoisardquo (afecta imediatamente o seu aspecto eacute um dos elementos fundamentais por que nos
regulamos etc)
Para percebermos o complexo de fenoacutemenos que aqui estaacute em causa importa pocircr em
relevo alguns aspectos essenciais
O primeiro ponto para que importa chamar a atenccedilatildeo eacute o facto de o iacutendice de impor-
tacircncia natildeo se constituir de forma inteiramente avulsa numa relaccedilatildeo ldquoa soacutesrdquo com cada unida-
de colectiva de determinaccedilotildees A importacircncia tem um caraacutecter intrinsecamente relativo
Por um lado tem que ver com a relaccedilatildeo entre as diferentes coisas que aparecem e as
tensotildees de natildeo-indiferenccedila que percorrem o campo do aparecimento em relaccedilatildeo agraves quais as
diferentes coisas que aparecem tecircm maior ou menor peso Por outro lado este maior ou me-
nor peso que as diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees tecircm potildee-nas numa determi-
nada articulaccedilatildeo umas em relaccedilatildeo agraves outras ndash ou como tambeacutem podemos dizer produz co-
mo que uma distribuiccedilatildeo do que aparece58
Sendo assim tambeacutem importa ter presente um segundo ponto
A distribuiccedilatildeo dos iacutendices de importacircncia natildeo se faz por uma avaliaccedilatildeo de cada uma
das unidades colectivas de determinaccedilatildeo passadas em revista e sopesadas uma por uma Na
verdade se considerarmos o modo como estamos constituiacutedos natildeo haacute habitualmente nenhu-
ma espeacutecie de processo de avaliaccedilatildeo que tenha lugar de forma consciente
Por um lado se virmos bem verificamos que a maior parte das vezes jaacute estaacute estabele-
cido e em vigor um determinado regime de atribuiccedilatildeo de niacuteveis de importacircncia ndash algo a que
podemos chamar uma ldquoordem estabelecidardquo
Se esporadicamente acontece que nos interrogamos sobre a importacircncia de que se re-
veste x ou y isso natildeo soacute acontece esporadicamente como quando acontece natildeo significa de
58
Tambeacutem podemos exprimir isto dizendo que a importacircncia (a variaccedilatildeo dos niacuteveis de importacircncia) daacute
lugar a um fenoacutemeno anaacutelogo agravequele que a Gestalttheorie designou como forma ou fundo O que eacute
mais importante ndash as unidades colectivas de determinaccedilotildees mais importantes ndash ldquochega-se agrave frenterdquo e
tende a exercer funccedilotildees de forma O que eacute menos importante tende a exercer funccedilotildees de fundo E isso
traduz-se portanto numa organizaccedilatildeo do proacuteprio apareci-mento da multiplicidade das coisas natildeo
apenas no modo ou nas propriedades com que aparece cada uma
189
modo nenhum que se esteja a procurar construir de raiz uma ordem de importacircncia A posiccedilatildeo
em que habitualmente damos connosco fica a jusante do estabelecimento de um quadro de im-
portacircncias eacute uma posiccedilatildeo sempre jaacute integrada numa ordem estabelecida na verdade se espo-
radicamente acontece que nos interrogamos sobre a importacircncia de que se reveste x ou y estaacute-
se apenas a procurar determinar a posiccedilatildeo de x ou y dentro de uma ordem jaacute estabelecida
Acresce a este um segundo aspecto que eacute o fundamental
Poderia pensar-se que de todo o modo o estabelecimento dessa ordem de importacircncia
teraacute a forma de qualquer coisa como uma ldquoalfacircndega geral da importacircnciardquo por que tudo o que
nos aparece haacute-de ter passado mesmo que de forma inconsciente no regime daquilo que Pas-
cal chama ldquolrsquoautomaterdquo etc
De facto natildeo eacute assim
A fixaccedilatildeo do valor de importacircncia do que nos aparece tem a forma de identificaccedilatildeo de
um nuacutecleo de coisas que importam porque satildeo objecto da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva
(porque tendemos para elas) ou porque satildeo objecto de uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila negativa
(porque procuramos evitaacute-las) Constitui-se assim o que podemos descrever como uma ldquocla-
reirardquo de importacircncia dentro da qual as diversas unidades colectivas de determinaccedilotildees estatildeo
afectadas por iacutendices de relevacircncia relativamente fortes
Dito de outro modo tudo se passa como se no silecircncio do aparecimento do que nos
aparece estivesse constantemente feita uma pergunta ldquoque eacute que importardquo e a essa pergunta
estivesse tacitamente dada a resposta ldquoimporta x e yrdquo ndash ou melhor ldquoimporta x e mais ainda y e
acima de tudo zrdquo
O facto de onde noacutes estamos estar sempre jaacute em vigor uma resposta com estas caracte-
riacutesticas eacute que constitui aquilo a que chamaacutemos a ldquoclareira de importacircnciardquo A clareira de im-
portacircncia eacute povoada por tudo aquilo que de algum modo figura nessa resposta que temos dada
agrave pergunta ldquoque importardquo ndash e tudo aquilo que natildeo figura nessa resposta fica fora da clareira
de importacircncia
Consideremos um terceiro ponto
Uma clareira de importacircncia pode sugerir que os iacutendices de importacircncia satildeo de facto
um fenoacutemeno de alcance puramente regional que afecta apenas uma parte do que nos apare-
ce Na verdade natildeo eacute assim
190
A constituiccedilatildeo desta clareira estaacute associada a qualquer coisa como um ldquodecretordquo glo-
bal de relegaccedilatildeo de importacircncia que afecta tudo o mais sem qualquer excepccedilatildeo
Quer dizer tudo aquilo que fica fora da ldquoclareira de importacircnciardquo estaacute automatica-
mente marcado por um iacutendice de falta de importacircncia que lhe cabe em sorte por exclusatildeo ndash
ie natildeo faz parte da clareira de importacircncia (conta como ldquofiguranterdquo como uma espeacutecie de
ldquopaisagemrdquo ou de ldquocenaacuteriordquo em relaccedilatildeo agravequilo que efectivamente importa etc)
O caraacutecter global deste ldquodecretordquo ndash que tem a forma de um juiacutezo indefinido ndash faz que
absolutamente tudo (mesmo que seja totalmente desconhecido) esteja marcado por esta pecu-
liar forma de determinaccedilatildeo que se propaga como uma espeacutecie de explosatildeo total a que nada
escapa59
O quarto ponto que interessa reter diz respeito ao facto de a ldquoclareira de importacircnciardquo
ter dimensotildees reduzidas
O facto de a ldquoclareira de importacircnciardquo ter dimensotildees reduzidas natildeo deve ser interpreta-
do como se significasse que as dimensotildees da clareira de importacircncia satildeo pequenas em termos
absolutos ou que a sua composiccedilatildeo eacute relativamente simples
Na verdade a clareira de importacircncia soacute eacute pequena comparativamente pode muito
bem ter uma amplitude bastante grande acontece eacute que essa amplitude grande se apequena
em comparaccedilatildeo com a extensatildeo indefinida daquilo que deixa de fora
E vendo bem a organizaccedilatildeo interna da clareira de importacircncia (a organizaccedilatildeo interna
do complexo dos iacutendices de importacircncia do primeiro tipo) pode ser bastante complexa
59
E assim sucede exactamente o contraacuterio do que agrave primeira vista pode parecer ndash haacute um iacutendice de im-
portacircncia afectando absolutamente todas as unidades colectivas de determinaccedilotildees que nos aparecem
Acontece eacute que na esmagadora maioria dos casos esse iacutendice de importacircncia eacute um iacutendice de falta de
importacircncia ndash um iacutendice de irrelevacircncia que retira peso agravequilo a que eacute aposto Ou dito de outra ma-
neira no modo como estamos constituiacutedos (como estaacute constituiacutedo o aparecimento em que nos temos)
haacute dois tipos muito diferentes de iacutendices de importacircncia aquele que faz pertencer agrave ldquoclareirardquo e aquele
que corresponde agrave exclusatildeo dela A esfera de aplicaccedilatildeo destes dois tipos de iacutendices eacute muito diferente
aquele que tem que ver com a pertenccedila agrave clareira de importacircncia soacute se aplica num nuacutemero comparati-
vamente diminuto de coisas aquele que tem que ver com a falta de importacircncia eacute claramente maioritaacute-
rio e aplica-se a um esmagador maciccedilo (como que a uma periferia indefinidamente extensa) Mas o
facto eacute que apesar desta diferenccedila ndash ou melhor por forccedila dela ndash o fenoacutemeno do iacutendice de importacircncia
eacute absolutamente universal e como dissemos o iacutendice de importacircncia (o iacutendice de atribuiccedilatildeo de algu-
ma importacircncia positiva ou negativa e o iacutendice de relegaccedilatildeo de negaccedilatildeo da importacircncia) desempe-
nham um papel decisivo na definiccedilatildeo do que quer que seja que nos aparece
191
Com efeito tal como se acha constituiacuteda em noacutes a clareira de importacircncia estaacute mar-
cada por uma propriedade fundamental dos iacutendices de importacircncia (tal como funcionam no
nosso caso) ndash uma propriedade que sofre alternativa (e na verdade uma multiplicidade de al-
ternativas de sorte que a sua variaccedilatildeo pode dar lugar a quadros de aparecimento muito dife-
rentes daquele com que estamos familiarizados) a saber a grande complexidade da ldquopaletardquo
de iacutendices de importacircncia que podem afectar aquilo que nos aparece
Poderia acontecer que houvesse por exemplo apenas dois cambiantes ou matizes
(ldquoimportanterdquo e ldquonatildeo importanterdquo) ndash ou a haver mais que fosse uma escala relativamente
simples com poucos intervalos Todavia o que se encontra no nosso caso eacute algo muito dife-
rente disso o que encontramos eacute uma escala muito diferenciada com um elevado cardinal de
niacuteveis (tanto no que diz respeito a cada fluxo de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila quanto no que diz
respeito agrave resultante se assim se pode dizer que decorre de todas elas e da relaccedilotildees de forccedilas
que elas proacuteprias sustentam entre si)
Daqui decorre algo que podemos descrever do seguinte modo o campo do que nos
aparece tem as diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees distribuiacutedas por diferentes
planos de maior ou menor relevacircncia ndash anaacutelogos agravequilo que acontece com a distribuiccedilatildeo tridi-
mensional dos conteuacutedos sensiacuteveis por planos mais ou menos proacuteximos do observador
Por um lado isto significa (como vimos quando falaacutemos de ldquoformardquo e ldquofundordquo no
sentido que os termos adquirem na Gestalttheorie) que umas unidades colectivas ldquoaparecem
muito mais do que outrasrdquo
Mas por outro lado significa tambeacutem que o contraste em causa natildeo eacute pura e simples-
mente um contraste entre ldquoformardquo e rdquofundordquo mas qualquer coisa como uma escala de contras-
tes entre ldquoformardquo e ldquofundordquo (correspondente agrave complexidade dos iacutendices de importacircncia na-
quilo que os torna anaacutelogos a uma multiplicidade ldquotridimensionalrdquo de planos)
Ou seja dentro da clareira de importacircncia as diferenccedilas de peso organizam a totalida-
de do que nos aparece no quadro de uma muito complexa distribuiccedilatildeo em perspectiva ndash numa
projecccedilatildeo como que ldquotri-dimensionalrdquo que faz que as diferentes ldquocoisasrdquo ou unidades colec-
tivas de determinaccedilotildees estejam muito longe de se situarem todas no mesmo plano ndash e na ver-
dade se situem numa muito numerosa multiplicidade de planos
Vejamos um outro ponto
Este ponto tem que ver com o facto de a nossa capacidade de diferenciaccedilatildeo intuitiva
da posiccedilatildeo dos objectos no espaccedilo (a nossa capacidade de os distinguir por diversos planos
192
mais e menos proacuteximos e distantes) ser finita ndash e cessar mesmo muito aqueacutem das distacircncias a
que se situam muitos dos objectos que nos aparecem
Ou seja ateacute um dado intervalo somos capazes de diferenciar e os objectos vistos satildeo
distribuiacutedos por diversos planos A partir de uma determinada distacircncia deixamos de secirc-lo ndash
de tal modo que independentemente da distacircncia a que se situem (e independentemente de es-
sa distacircncia poder ser na verdade incomensuravelmente maior do que o intervalo global den-
tro do qual diferenciamos a posiccedilatildeo) os objectos vatildeo todos para o mesmo plano ndash tal como se
passa na chamada aboacutebada celeste
Ora no que diz respeito aos iacutendices de importacircncia passa-se algo muito semelhante
dentro da ldquoclareira de importacircnciardquo a capacidade de discriminaccedilatildeo eacute elevada ndash e ateacute mesmo
muito elevada
No entanto haacute uma fronteira ndash e a partir da fronteira vai tudo indiscriminadamente
ldquovarridordquo com o mesmo iacutendice de falta de importacircncia De sorte que fora da clareira de im-
portacircncia natildeo haacute contrastes de iacutendice entre as diferentes coisas estaacute tudo no mesmo plano
Aos pontos que jaacute vimos vem agora juntar-se um outro ponto
Uma propriedade decisiva deste complexo de fenoacutemenos eacute a sua estabilidade
Como se acentuou habitualmente nem sequer haacute qualquer ponderaccedilatildeo da importacircncia
(ou falta dela) destas ou daquelas unidades colectivas de determinaccedilotildees o complexo estaacute
montado e tudo corre por aquilo a que Pascal chamava ldquolrsquoautomaterdquo Quando haacute ponderaccedilotildees
elas tendem a dizer respeito a coisas circunscritas ndash quer dizer a pequenos ajustamentos den-
tro de uma morfologia fundamentalmente estaacutevel
Isso natildeo significa que a organizaccedilatildeo dos iacutendices de importacircncia natildeo possa sofrer trans-
formaccedilotildees mais amplas Significa que natildeo tende para transformaccedilotildees mais amplas e que na
ausecircncia de ocorrecircncias extraordinaacuterias este sistema de fixaccedilatildeo dos iacutendices de importacircncia
tem propensatildeo para natildeo contar com a possibilidade da sua revisatildeo e nesse sentido tem pro-
pensatildeo para valer como definitivo
Em suma o nuacutecleo do que eacute para noacutes importante parece impermeaacutevel agrave possibilidade
de vir a ser modificado por algo que natildeo conhece (que ainda natildeo se considerou que estaacute para
laacute da travessia perceptiva que jaacute se fez etc) O que resta (o que natildeo se conhece o que falta
conhecer etc) eacute tido como algo incapaz de introduzir qualquer alteraccedilatildeo significativa no nuacute-
cleo fixado
193
Ora a estabilidade aqui em causa eacute uma propriedade estrutural formal que natildeo estaacute li-
gada a nenhum conteuacutedo especiacutefico (a nenhuma compreensatildeo especiacutefica) e que tende a tornar
mais soacutelida a compreensatildeo que de cada vez estaacute em vigor
Quer dizer mesmo que a dado passo se modifique ndash e ateacute se modifique radicalmente
ndash e ainda que o mapa que resulte dessa modificaccedilatildeo seja um ldquomapardquo novo (ainda que a tota-
lidade das ldquocoisasrdquo passe a estar dominada por uma nova avaliaccedilatildeo do que importa etc) a es-
trutura de estabilizaccedilatildeo que aqui estamos a descrever manteacutem-se intacta Ou seja tambeacutem o
novo ldquomapardquo seraacute marcado pelo caraacutecter de parecer insusceptiacutevel de revisatildeo etc
Mas vejamos ainda um seacutetimo ponto
Atentemos um pouco melhor no que se passa dentro daquilo a que chamaacutemos a ldquocla-
reira de importacircnciardquo Se virmos bem verificamos que a complexidade de que se reveste eacute
ainda maior do que descrevemos
Em primeiro lugar natildeo se trata apenas de uma gradaccedilatildeo muito complexa com muitos
planos Vendo bem haacute um complexo sistema de mediaccedilotildees constituiacutedo de tal modo que umas
coisas satildeo importantes por causa de outras ou por mor de outras
Com efeito a assunccedilatildeo de importacircncia pode produzir-se directamente (porque algo
interfere imediatamente naquilo que para noacutes estaacute fundamentalmente em causa) mas tambeacutem
se pode produzir mediatamente (porque algo eacute relevante em relaccedilatildeo a algo que por sua vez
interfere de forma imediata naquilo que estaacute fundamentalmente em causa)
Isso significa que haacute qualquer coisa como cadeias de relevacircncia constituiacutedas se assim
se pode dizer por irradiaccedilatildeo a partir de um centro como na cadeia de magnetizaccedilatildeo descrita
por Platatildeo no Iacuteon (535e)
Assim o que acontece eacute que de cada vez estaacute identificado o nuacutecleo daquilo que impor-
ta (do que estaacute em causa na proacutepria vida) Essa identificaccedilatildeo de um ldquoem causardquo daacute lugar a) agrave
identificaccedilatildeo daquilo que parece interferir significativamente nesse ldquoem causardquo b) agrave identifi-
caccedilatildeo daquilo que interfere na identificaccedilatildeo daquilo que parece interferir significativamente
nesse ldquoem causardquo e tambeacutem c) agrave identificaccedilatildeo daquilo que interfere significativamente na
identificaccedilatildeo daquilo que interfere na identificaccedilatildeo daquilo que parece interferir significati-
vamente nesse ldquoem causardquo etc
Tambeacutem o poderiacuteamos dizer do seguinte modo em mateacuteria de importacircncia aquilo que
nos aparece acha-se organizado em qualquer coisa como um complexo sistema de orbitaccedilatildeo
194
umas coisas orbitam em torno de outras (satildeo por assim dizer seus ldquosateacutelitesrdquo) o que natildeo im-
pede estes ldquosateacutelitesrdquo de constituiacuterem por sua vez o centro de sistemas de orbitaccedilatildeo menos
centrais (mais perifeacutericos) cujos ldquosateacutelitesrdquo (ou cujas periferias) podem por sua vez consti-
tuir o centro de complexos de orbitaccedilatildeo de terceira quarta quinta potecircncia e assim sucessiva-
mente E isto de tal modo que este tracircnsito daquilo que aqui designaacutemos como o centro para a
periferia corresponde a uma perda de intensidade
Mas esta descriccedilatildeo ainda eacute demasiado simples natildeo daacute conta da extraordinaacuteria comple-
xidade do que efectivamente se passa na forma como vemos as coisas
Se considerarmos a totalidade do que nos aparece verificamos que toda ela participa
deste sistema de ldquoorbitaccedilatildeordquo
Por um lado haacute de cada vez qualquer coisa como um centro um nuacutecleo de importacircn-
cia superlativa que eacute aquilo de que fundamentalmente se trata no acontecimento de acesso
(de manifestaccedilatildeo etc) que cada um de noacutes eacute
Podemos dizer que eacute o ldquoargumentordquo da nossa vida aquilo que nos importa que estaacute
em causa nela Tudo se passa como veremos melhor na continuaccedilatildeo como se se tratasse de
uma ldquopeccedilardquo E tal como numa peccedila haacute algo que estaacute fundamentalmente em causa ndash para usar
a categoria de Aristoacuteteles um nuacutecleo de δέσις60
(em peticcedilatildeo de λύσις) ndash um foco fundamental
de tensatildeo em torno do qual tudo gira
Ora esse nuacutecleo natildeo eacute necessariamente simples mas sim complexo ndash e tambeacutem natildeo
estaacute constituiacutedo de tal modo que os diferentes feixes de tensatildeo que o compotildeem tenham neces-
sariamente a mesma importacircncia ou o mesmo peso (o que em si mesmo jaacute significa uma certa
componente de nexus de subordinaccedilatildeo)
Dito de outro modo os proacuteprios elementos do nuacutecleo (da δέσις nuclear) estatildeo organi-
zados num sistema de orbitaccedilatildeo marcado por diferentes graus de candecircncia Daiacute resulta que
uns satildeo como dissemos ainda mais importantes do que outros
Isso faz que as diferentes ramificaccedilotildees (as diferentes cadeias) anteriormente referidas
fiquem tambeacutem elas globalmente afectadas pelas diferenccedilas de peso que haacute entre os diversos
elementos do nuacutecleo que constituem as suas bases os seus ldquoradicaisrdquo ou os seus pontos de
ldquoinserccedilatildeordquo
60
Cf em especial Poeacutetica 1455b24 e ss
195
O que assim se configura eacute um campo de aparecimento globalmente estruturado por
nexos de subordinaccedilatildeo com uma grande multiplicidade de diferenccedilas de relevo ndash um campo
marcado por variados acidentes ldquocorograacuteficosrdquo contrastes de mais e menos etc
Em suma se tudo o que nos aparece estaacute organizado em unidades colectivas de deter-
minaccedilotildees de modo nenhum sucede que se trate de uma multiplicidade ldquodemocraacuteticardquo ndash de
uma multiplicidade em que cada unidade colectiva de determinaccedilotildees valha tanto quanto
qualquer outra
A ldquosociedaderdquo das unidades colectivas de determinaccedilotildees que nos aparecem tem o ca-
raacutecter de uma multiplicidade centrada em que todos os elementos estatildeo dispostos em posiccedilatildeo
de maior ou menor proximidade em relaccedilatildeo ao centro Mas isto de tal modo que como procu-
raacutemos fazer ver o proacuteprio centro estaacute tambeacutem ele organizado da mesma forma ndash com con-
trastes de mais e de menos com nexos de subordinaccedilatildeo De onde resulta que a distacircncia em
relaccedilatildeo ao que corresponderia a uma ldquosociedaderdquo de unidades colectivas de determinaccedilotildees ar-
ticulada por nexos de coordenaccedilatildeo dificilmente poderia ser maior
Isto ainda estaacute muito longe de ser tudo
Com efeito a afectaccedilatildeo do que aparece por diferentes iacutendices de importacircncia e a distri-
buiccedilatildeo do que aparece por diferentes planos de importacircncia ndash que confere agravequilo que aparece
um relevo tornando-o semelhante a uma multiplicidade bidimensional ndash natildeo se regista apenas
em relaccedilatildeo agraves unidades colectivas de determinaccedilotildees
Na verdade tem tambeacutem lugar dentro de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees e
em relaccedilatildeo agraves diversas determinaccedilotildees que a integram
Este eacute um outro aspecto complementar em relaccedilatildeo agravequele que acabamos de ver ndash e na
verdade natildeo menos complexo Natildeo podemos trataacute-lo detidamente e na verdade temos de fi-
car por uma anaacutelise muito breve que se cinge a uns quantos pontos essenciais
Pode-se falar de qualquer coisa como uma anisotropia de importacircncia dentro de cada
unidade colectiva de determinaccedilotildees desde logo por causa daquilo que vimos em relaccedilatildeo ao as-
cendente que a determinaccedilatildeo nuclear de identidade tem sobre todas as outras determinaccedilotildees
ndash aquele ascendente em virtude do qual eacute a cor e eacute o tamanho que pertence agrave cadeira e natildeo a
cadeira que pertence agrave cor e ao tamanho (ou cada uma destas determinaccedilotildees pertence tanto agraves
outras quanto o inverso)
196
Nesse sentido mesmo que natildeo estejamos habitualmente cientes disso haacute como que
uma hierarquia de subordinaccedilatildeo (e com ela uma hierarquia de importacircncia) entre o nuacutecleo de
fixaccedilatildeo de identidade e as demais determinaccedilotildees de uma unidade colectiva de determinaccedilotildees
Qualquer unidade colectiva de determinaccedilotildees se assemelha a um sistema de gravitaccedilatildeo com
as diferentes determinaccedilotildees (as determinaccedilotildees que pertencem agrave trama baacutesica de identidades e
diferenccedilas) a orbitarem em torno do nuacutecleo da identidade colectiva
Mas por outro lado tambeacutem isto natildeo eacute tudo
Com efeito poderia ser assim mas de tal modo que todas as determinaccedilotildees que assim
assumem uma posiccedilatildeo subordinada dentro de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees esti-
vessem em rigoroso peacute de igualdade umas com as outras Todavia estaacute muito longe de ser as-
sim umas determinaccedilotildees satildeo muito mais marcantes tecircm muito mais peso do que outras
O peso exacto da cadeira em que nos sentamos aquilo que a distingue de outra inteira-
mente igual a composiccedilatildeo da liga de que eacute feita etc satildeo determinaccedilotildees que facilmente reco-
nhecemos como suas ndash tatildeo suas como quaisquer outras que lhe pertencem Mas esse reconhe-
cimento natildeo impede que umas determinaccedilotildees apareccedilam como mais marcantes e relevantes do
que outras
Tocamos aqui uma peculiar estrutura que permite haver aquilo a que chamamos ldquopor-
menoresrdquo
ldquoPormenoresrdquo satildeo justamente determinaccedilotildees integrantes das unidades colectivas de
determinaccedilotildees propriedades delas etc que valem como irrelevantes ndash de tal modo que po-
dem ser desconsideradas natildeo eacute preciso conhececirc-las etc Quer dizer tudo se passa como se
umas propriedades fossem mais propriedades do que outras
Se todas as determinaccedilotildees que entram numa unidade colectiva de determinaccedilotildees tives-
sem o mesmo peso (se natildeo houvesse diferenccedilas na importacircncia atribuiacuteda) natildeo haveria nada de
correspondente ao conceito de ldquopormenorrdquo A existecircncia deste conceito e a sua permanente
aplicaccedilatildeo (mesmo que uma aplicaccedilatildeo taacutecita) na forma como lidamos com toda a espeacutecie de
unidades colectivas de determinaccedilotildees e com muitas das determinaccedilotildees que delas fazem parte
documenta o fenoacutemeno referido
Mais vendo bem isto nem sequer se aplica meramente a determinaccedilotildees avulsas ndash na
verdade vale tambeacutem para partes inteiras das unidades colectivas de determinaccedilotildees Eacute o que
na maior parte das vezes acontece por exemplo com o interior dos corpos opacos
197
Vimos atraacutes que uma das componentes da anisotropia de acuidade passa pela perda de
niacutevel de definiccedilatildeo (e por uma correspondente baixa do niacutevel de exigecircncia de definiccedilatildeo) em re-
laccedilatildeo ao interior dos corpos opacos Mas isso natildeo sucede soacute por si de forma absolutamente
isolada
Isso estaacute intrinsecamente ligado ao facto de a) os interiores dos corpos opacos serem
inexplicitamente co-apresentados mas de tal modo que b) toda esta componente co-apresenta-
da estaacute afectada por um factor de diminuiccedilatildeo do peso ou da relevacircncia e a captaccedilatildeo dos corpos
opacos estaacute marcada por um condicionamento de ascendente das superfiacutecies expostas sobre os
interiores ou por um nexo de subordinaccedilatildeo destas uacuteltimos agraves superfiacutecies que se veecircm (as quais
satildeo utilizdas como chaves para a captaccedilatildeo dos corpos opacos)
Assim haacute como que uma combinaccedilatildeo entre diversos nexos de subordinaccedilatildeo e de hie-
rarquizaccedilatildeo da importacircncia dentro de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees (ou seja
dentro daquilo a que comummente chamamos ldquocoisasrdquo) Tambeacutem neste acircmbito mais restrito
aquilo que nos aparece tem o caraacutecter de qualquer coisa como constelaccedilotildees de determinaccedilotildees
que orbitam em torno de nuacutecleos
Mais ainda tambeacutem neste acircmbito restrito os nexos de subordinaccedilatildeo (a distribuiccedilatildeo
das determinaccedilotildees por posiccedilotildees toacutenicas e por posiccedilotildees aacutetonas) natildeo eacute ldquosimplesrdquo natildeo corres-
ponde apenas a um contraste de dois valores opostos mas a uma multiplicidade mais numero-
sa Pois por um lado os matizes de acentuaccedilatildeo e de natildeo-acentuaccedilatildeo satildeo mais complexos
correspondem a uma paleta diversificada e por outro lado os nexos de ldquoorbitaccedilatildeordquo tambeacutem
satildeo complexos ndash e nada impede que uma determinaccedilatildeo ou complexo de determinaccedilotildees que or-
bita em torno de um nuacutecleo desempenhe por sua vez funccedilotildees de nuacutecleo relativamente outras
(e assim sucessivamente)
Desenha-se assim uma propriedade fundamental da forma como estaacute constituiacutedo o
aparecimento em que nos temos
Em vez de acontecer que a captaccedilatildeo do que aparece esteja feita elemento por elemento
(como teria de acontecer se o nexo entre os diferentes elementos da multiplicidade que apare-
ce fosse de mera coordenaccedilatildeo) sucede pelo contraacuterio que essa captaccedilatildeo se daacute pela conquista
de nuacutecleos e pelo efeito de arrastamento que dada a prevalecircncia ou o ascendente desses nuacute-
cleos sobre aquilo que lhes estaacute subordinado a captaccedilatildeo dos nuacutecleos tem sobre as respecti-
vas periferias
198
Quer dizer a captaccedilatildeo natildeo se faz por um acompanhamento ldquoigualitaacuteriordquo de tudo o que
aparece ndash estaacute concentrada no centro dos ldquosistemas de orbitaccedilatildeordquo a que acima fizemos refe-
recircncia e capta os sateacutelites a partir do domiacutenio que exerce (ou julga exercer) sobre os nuacutecleos
em torno dos quais orbitam E isto de tal modo que podemos falar de qualquer coisa como
uma hierarquia fundamental marcada pelo poder daquilo que eacute hierarquicamente superior so-
bre aquilo que se acha posto na sua dependecircncia
Como vimos isto eacute assim na organizaccedilatildeo global das unidades colectivas de determina-
ccedilotildees que nos aparecem ndash na ldquosociedaderdquo que haacute entre elas Pois tudo estaacute organizado numa
verdadeira rede de centros e periferias um nuacutecleo que tem agrave sua volta uma periferia imediata
ndash que por sua vez faz de centro em relaccedilatildeo a uma periferia mediata que faz de centro em
relaccedilatildeo a uma periferia etc
Mas eacute tambeacutem assim no que diz respeito agrave proacutepria organizaccedilatildeo interna de cada unida-
de colectiva de determinaccedilotildees que tambeacutem tem o caraacutecter de uma constelaccedilatildeo marcada por
nexos de orbitaccedilatildeo na forma que procuraacutemos pocircr em evidecircncia
Pode-se em resumo dizer que a forma da articulaccedilatildeo do diverso na multiplicidade da-
quilo que nos aparece estaacute dominada pela presenccedila de uma verdadeira miriacuteade de nexos de
subordinaccedilatildeo ndash que tudo o que nos aparece estaacute saturado por nexos de subordinaccedilatildeo que o
potildeem como que ldquonos antiacutepodasrdquo de formar uma multiplicidade pura e simplesmente coorde-
nada
Mas tambeacutem isto ainda natildeo eacute tudo
Haacute ainda um outro aspecto sem cuja consideraccedilatildeo a anaacutelise do papel dos nexos de su-
bordinaccedilatildeo ndash a consciecircncia de que aquilo que temos eacute muito diferente de uma multiplicidade
puramente coordenada ndash natildeo apenas fica incompleta mas deixa escapar algo fulcral
Esse outro aspecto que falta considerar tem que ver com um ponto que aqui jaacute referi-
mos mas que agora importa considerar a partir de outro acircngulo o facto de haver natildeo somente
a) determinaccedilotildees comuns mas tambeacutem b) determinaccedilotildees comuns a determinaccedilotildees comuns e
c) determinaccedilotildees comuns a determinaccedilotildees comuns a determinaccedilotildees comuns etc
Quer dizer o outro aspecto que agora importa considerar tem que ver com a scala
praeligdicamentalis Mais propriamente tem que ver com a possibilidade de a scala praeligdica-
mentalis estar sempre jaacute envolvida na proacutepria constituiccedilatildeo daquilo que imediatamente nos
aparece
199
Vejamos um pouco melhor o que isto quer dizer
A verificaccedilatildeo de que o complexo das determinaccedilotildees com que lidamos se presta a ser
articulado em qualquer coisa como uma scala praeligdicamentalis eacute muito menos paciacutefica do
que a determinaccedilatildeo do estatuto e funccedilotildees dessa escala
Pode reconhecer-se que as determinaccedilotildees que entram na composiccedilatildeo do que nos apa-
rece satildeo articulaacuteveis numa scala praeligdicamentalis mas de tal modo que se compreende essa
escala como o resultado de um complexo de operaccedilotildees de natureza abstractiva Essas opera-
ccedilotildees exercem-se sobre a base do que imediatamente nos aparece transformando essa base e
por assim dizer ldquodestilando-ardquo Tudo isto de tal modo que se produzem conteuacutedos que pura e
simplesmente natildeo figuram nem exercem qualquer funccedilatildeo relevante na constituiccedilatildeo da proacutepria
apresentaccedilatildeo imediata Segundo este entendimento tudo o que pertence agrave scala praeligdicamen-
talis resulta de desenvolvimentos supervenientes e facultativos em relaccedilatildeo agrave apariccedilatildeo imediata
(e tanto quer dizer ao terreno em que habitualmente se produz ndash e sobre que incide ndash a expe-
riecircncia)
Mas na verdade tambeacutem pode suceder que a scala praeligdicamentalis tenha uma outra li-
gaccedilatildeo com aquilo que imediatamente nos aparece ou desempenhe um outro papel na sua cons-
tituiccedilatildeo
Com efeito tambeacutem pode acontecer que a scala praeligdicamentalis traduza a proacutepria
forma como estaacute internamente organizada a fixaccedilatildeo do que imediatamente nos aparece Ou
para sermos mais precisos tambeacutem pode acontecer que aquilo que imediatamente nos aparece
se ache formado por qualquer coisa como um desenvolvimento ldquodescendenterdquo da scala praelig-
dicamentalis
Isto eacute tambeacutem pode acontecer que aquilo que imediatamente nos aparece se ache for-
mado por uma multiplicidade de niacuteveis de fixaccedilatildeo que tem a sua raiz nos nuacutecleos com maior
extensatildeo e menor compreensatildeo (que formam por assim dizer o aacutepice da escala) e passa des-
tes niacuteveis universais para niacuteveis de menor extensatildeo e maior compreensatildeo num desenvolvi-
mento que acaba por depor nos estratos mais especiacuteficos (com superlativo grau de compreen-
satildeo e iacutenfimo grau de extensatildeo) que habitualmente preenchem a apresentaccedilatildeo imediata
Eacute isso que se quer dizer com o conceito de desenvolvimento ldquodescendenterdquo da scala
praeligdicamentalis uma disposiccedilatildeo oposta agravequela que corresponde ao entendimento da scala
praeligdicamentalis como um processo ldquoabstractivordquo
200
Neste entendimento dela como um processo abstractivo a escala constitui-se a partir
dos estratos mais especiacuteficos soacute a pouco e pouco vai ascendendo na estrutura arborizada que
a tradiccedilatildeo ilustrou com a figura das chamadas ldquoaacutervores de Porfiacuteriordquo os niacuteveis mais geneacutericos
satildeo os uacuteltimos a serem constituiacutedos
Na possibilidade que aqui estamos a considerar pelo contraacuterio na proacutepria ldquoprofundi-
dade da experiecircnciardquo ndash na ldquoprofundidaderdquo do que sustenta a ldquosuperfiacutecierdquo do que imediata-
mente nos aparece ndash os niacuteveis mais especiacuteficos supotildeem sempre jaacute niacuteveis mais geneacutericos estes
uacuteltimos supotildeem sempre jaacute niacuteveis ainda mais geneacutericos e estes por sua vez em vez de serem
anteriores aos niacuteveis universais supotildeem-nos sempre jaacute como sua base
O que tudo isto quer dizer eacute que pode muito bem acontecer que o proacuteprio complexo de
determinaccedilotildees com que nos aparece aquilo com que nos achamos imediatamente postos em
contacto esteja constituiacutedo pela sobreposiccedilatildeo ndash ou melhor pela sucessiva contracccedilatildeo ndash de ca-
madas de determinaccedilatildeo que partem de fixaccedilotildees mais abrangentes (e na verdade de fixaccedilotildees
com um alcance universa que diz respeito a tudo ou de todo o modo a regiotildees inteiras de
realidade) e sobre essa base produzem sucessivas contracccedilotildees especificantes de que resulta
o niacutevel de determinaccedilatildeo relativamente elevado com que nos aparecem as ldquocoisasrdquo
Vendo bem esse niacutevel natildeo eacute idecircntico em todos os casos
Se por exemplo considerarmos uma rua com que temos grande familiaridade e puser-
mos a presentificaccedilatildeo dessa rua (quando ldquoquase a vemosrdquo ao pensar nela) sobre maior pres-
satildeo de acuidade verificamos que o conteuacutedo das casas natildeo tem um cardinal definido as casas
natildeo tecircm um nuacutemero de andares definido natildeo tecircm precisatildeo quanto agrave sua cor quanto ao nuacuteme-
ro e forma das janelas ou das varandas etc De sorte que na verdade a respectiva presentifi-
caccedilatildeo estaacute retida em fixaccedilotildees geneacutericas de tipos
Isto quer dizer que o niacutevel atinge o seu maacuteximo no campo perceptivo (na esfera das
percepccedilotildees que de cada vez temos) e eacute muito menos preciso e definido no seu exterior
Ora o ponto decisivo eacute que isso parece reflectir justamente que a respectiva composi-
ccedilatildeo se faz por meio de um processo com as caracteriacutesticas indicadas esse processo a) potildee na
base de tudo determinaccedilotildees mais comuns (que estatildeo pressupostas na constituiccedilatildeo de um
maior nuacutemero de determinaccedilotildees derivadas) e b) contrai essas determinaccedilotildees mais comuns
por sucessivas camadas de determinaccedilotildees menos comuns ateacute chegar a um resultado que fica
muito longe das determinaccedilotildees mais comuns mas que de todo o modo c) radica sempre ne-
201
las e d) pode justamente ter avanccedilado mais ou menos nesse processo de contracccedilatildeo ou espe-
cificaccedilatildeo
O que assim acabamos de desenhar num esboccedilo muito grosseiro eacute a possibilidade de
organizaccedilatildeo daquilo que nos aparece que corresponde ao chamado ldquomodelo transcenden-
talrdquo
Natildeo cabe aqui discutir este modelo em grande detalhe ndash nem no que diz respeito agrave sua
pretensatildeo de validade global (e agraves relaccedilotildees que sustenta com o proacuteprio fenoacutemeno da experiecircn-
cia) nem no que diz respeito agraves diferentes formas que pode assumir a sua concepccedilatildeo
O que aqui importa destacar satildeo fundamentalmente dois aspectos
Por um lado este modelo chama a atenccedilatildeo para a possibilidade de aquilo a que Kant
chama ldquoprofundidade da experiecircnciardquo ndash os muacuteltiplos ldquojuiacutezos ocultos da razatildeo comumrdquo que
sustentam a superfiacutecie do que nos aparece ndash estar constituiacutedo numa multiplicidade de estratos
montados se assim se pode dizer uns sobre os outros de tal modo que aquilo que eacute fixado
em alguns deles corresponde agrave contracccedilatildeo do que fica assente nos outros
Tudo isto de tal modo que este nexo de suposiccedilatildeo e contracccedilatildeo (o nexo em virtude do
qual alguns dos juiacutezos repousam sobre a base dos outros e contraem ou especificam o que estaacute
dado por assente neles) eacute um nexo que se repete compondo assim uma multiplicidade de niacute-
veis com cardinal relativamente elevado
Daqui resulta algo que eacute na verdade bastante diferente de uma ldquosociedaderdquo de dife-
rentes juiacutezos coordenados uns aos outros (como parece ser o caso quando verificamos por
exemplo que um qualquer ponto da palma da matildeo depende do sistema de forccedilas correspon-
dente agrave coordenaccedilatildeo entre cor resistecircncia posiccedilatildeo no espaccedilo posiccedilatildeo no tempo tese sobre a
sua existecircncia passada antecipaccedilatildeo de uma continuaccedilatildeo futura tese de identidade diacroacutenica
atribuiccedilatildeo de existecircncia independente atribuiccedilatildeo de existecircncia puacuteblica ndash comummente teste-
munhaacutevel por uma multiplicidade de consciecircncias etc)
Digamos assim o ldquomodelo transcendentalrdquo chama a atenccedilatildeo para a possibilidade de
haver qualquer coisa como nexos de sustentaccedilatildeo entre pelo menos alguns dos elementos que
compotildeem o ldquosistema de forccedilasrdquo de que aquilo que nos aparece (como Kant diz na Anthropo-
logie Friedlaumlnder o ldquoclarordquo)61
eacute resultante
61
Cf AA XXV 479
202
Quer dizer o que estaacute fundamentalmente em causa no modelo transcendental eacute o pro-
tagonismo das determinaccedilotildees mais enraizadas na profundidade da experiecircncia ndash enquanto
estas determinaccedilotildees satildeo ao mesmo tempo aquelas que se caracterizam por um maacuteximo de ex-
tensatildeo e por um miacutenimo de compreensatildeo (mas de tal modo que este miacutenimo de compreensatildeo
eacute aquele que estaacute na base do acreacutescimo de compreensatildeo que caracteriza todas as outras deter-
minaccedilotildees)
Em suma o protagonismo (este ascendente) das determinaccedilotildees mais profundas eacute um
protagonismo exercido ldquona sombrardquo ndash natildeo chama a atenccedilatildeo natildeo se daacute por ele etc mas nem
por isso deixa de ser efectivo
O que assim ganha contornos corresponde a qualquer coisa como uma hierarquia de
niacuteveis cujo nexo eacute justamente um nexo de subordinaccedilatildeo em virtude do qual alguns dos ldquojuiacute-
zos ocultosrdquo funcionam como ldquoalicercesrdquo ou ldquotraves mestrasrdquo em relaccedilatildeo aos outros
A estrutura deste peculiar ldquoedifiacuteciordquo de assentamentos eacute justamente aquela que se acha
desenhada nas ldquoaacutervores de Porfiacuteriordquo haacute fixaccedilotildees fundamentais de que dependem regiotildees
inteiras (ou ateacute a totalidade das outras) haacute fixaccedilotildees derivadas mas que por outro lado satildeo
fundamentais e formam a base de um grande nuacutemero de outras que por sua vez a despeito
do seu caraacutecter duplamente derivado exercem funccedilotildees de sustentaccedilatildeo em relaccedilatildeo a uma
multiplicidade de outras ndash e assim sucessivamente
A partir daqui percebe-se o nexo entre o modelo transcendental e a ideia de profundi-
dade da experiecircncia ndash e muito em especial percebe-se como o modelo transcendental (o re-
conhecimento da estrutura do aparecimento que estaacute em causa neste modelo) confere profun-
didade agrave profundidade da experiecircncia faz desta uacuteltima algo com significativas dimensotildees
No proacuteprio terreno dos ldquojuiacutezos ocultos da razatildeo comumrdquo uma determinaccedilatildeo especiacutefica
(uma tese ou um juiacutezo especiacutefico) natildeo estaacute posta a vigorar soacute por si assenta ela mesma sobre
a vigecircncia de uma determinaccedilatildeo (ou de determinaccedilotildees) mais geneacuterica mais abrangente que
forma uma camada mais profunda E essa determinaccedilatildeo ou tese mais geneacuterica eacute por sua vez
uma determinaccedilatildeo especiacutefica fundada sobre (ou que tem por pressuposto) uma outra determi-
naccedilatildeo geneacuterica que ocupa uma outra camada inferior ndash e assim sucessivamente ateacute se che-
gar agraves determinaccedilotildees de caraacutecter universal (aquelas que dizem respeito a tudo ou de todo o
203
modo a regiotildees inteiras da realidade e constituem o alicerce de todo o edifiacutecio do que apa-
rece)62
62
O que assim se desenha eacute que a ldquoprofundidade da experiecircnciardquo de que acima se falou natildeo eacute rasa
(natildeo constitui um uacutenico plano etc) Isto muda muito significativamente o aspecto da dupla composi-
ccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia que atraacutes se considerou O que antes se disse foi que o apareci-
mento e a experiecircncia se movem em dois planos distintos (a superfiacutecie e a profundidade) Mas essa di-
visatildeo em dois planos era completamente neutra quanto agraves dimensotildees (a extensatildeo a grandeza a ampli-
tude etc) dos dois planos De facto poderia muito bem acontecer que os dois planos fossem similares
quanto agrave grandeza Isto eacute poderia acontecer que a ldquoprofundidade da experiecircnciardquo correspondesse tam-
beacutem como a superfiacutecie a um uacutenico plano (a um uacutenico estrato a um uacutenico niacutevel a uma uacutenica camada
etc) e que fosse nesse uacutenico plano que se situassem todas as determinaccedilotildees ocultas (e que eles es-
tivessem portanto todas niveladas entre si) Contudo aquilo que se desenha agora permite mostrar
que a profundidade da experiecircncia estaacute constituiacuteda em diversos planos (diversos estratos niacuteveis ca-
madas etc) Em suma a profundidade conteacutem profundidades O que tudo isto sugere eacute que pode mui-
to bem suceder que a profundidade seja muito mais extensa que a superfiacutecie Quer dizer pode muito
bem dar-se o caso de a ldquoprofundidade da experiecircnciardquo ser constituiacuteda por um grande nuacutemero de ca-
madas ndash e de sendo assim natildeo se estar na posse da larga maioria dos componentes do aparecimento
e da experiecircncia (e assim tambeacutem da larga maioria dos componentes de cada ldquoobjectordquo de cada ldquocoi-
sardquo que se constitui no campo da experiecircncia etc) componentes que a profundidade manteacutem oculta
O projecto de tornar consciente algo que tende a permanecer inconsciente (de descobrir de pocircr a
descoberto esclarecer ou iluminar o que estaacute obscuro ndash ie os fundamentos da experiecircncia) constitui
vendo bem o cerne do empreendimento analiacutetico kantiano Se natildeo estamos a ver mal o que de facto
Kant leva a cabo natildeo eacute tanto uma tentativa de enriquecimento ou de alargamento do patrimoacutenio que jaacute
temos mas em vez disso eacute uma tentativa de levantamento ou de elucidaccedilatildeo (atraveacutes de meios ou de
meacutetodos arqueoloacutegicos por assim dizer) do patrimoacutenio de que jaacute somos no fundamental constituiacutedos
Mas note-se bem a magnitude do empreendimento kantiano Por um lado as determinaccedilotildees a que se
acede agrave superfiacutecie podem muito bem corresponder apenas a uma iacutenfima parte de um mapa de determi-
naccedilotildees ndash obscuro e muito vasto ndash que permanece oculto Natildeo se trata apenas de em primeiro lugar
identificar focos de obscuridade (constituiacutedos em ldquoacircngulo cegordquo sob uma ilusatildeo de captaccedilatildeo eficaz
etc) e de em segundo lugar os esclarecer ou iluminar (ie de superar os limites do ponto de vista a
cegueira constitutiva etc) para ver de que eacute que satildeo constituiacutedos Na verdade trata-se de fazecirc-lo num
horizonte de que cuja amplitude ndash precisamente na medida em que estaacute por desvendar ndash natildeo temos
qualquer noccedilatildeo Neste caminho de descoberta que Kant nos propotildee poderia muito bem suceder que o
horizonte do que falta desvendar tivesse uma amplitude tal que reduzisse a pouco mais que nada o pla-
no que jaacute estaacute desvendado ndash coisa que alteraria significativamente a relaccedilatildeo de forccedilas entre os dois pla-
nos (de tal modo que o que jaacute estaacute desvendado apareceria a uma outra luz) etc Mais ainda pode mui-
to bem acontecer que aquilo com que aiacute nos deparemos natildeo seja da mesma ordem daquilo que jaacute
conhecemos ndash e isto de tal modo que possa produzir-se uma muito radical transfiguraccedilatildeo (uma muito
radical mudanccedila de estatuto ndash e inclusive uma transfiguraccedilatildeo ou mudanccedila de estatuto que nos ponha
numa rota imprevista ou inesperada e que modifique ndash global e inesperadamente ndash o aspecto de tudo
aquilo que jaacute temos descoberto de tudo o que aparece de tudo o que haacute etc
204
Ora no seguimento disto a pergunta que importa colocar eacute a que passa por saber se o
ldquomodelo transcendentalrdquo natildeo se trata justamente apenas de um modelo (e de facto de um mo-
delo que estaacute longe de ser ldquoliacutequidordquo de ter a sua validade garantida etc) E sendo assim se
natildeo significa isso que tudo o que acabamos de dizer ldquocai por terrardquo tornando-se completa-
mente irrelevante se o ldquomodelo transcendentalrdquo for infirmado ndash e se verificarmos por exem-
plo que toda a composiccedilatildeo daquilo que nos aparece resulta de projecccedilotildees empiacutericas e eacute a pou-
co e pouco produzida por obra de um entretecimento (por uma espeacutecie de ldquotearrdquo empiacuterico)
que a partir de αισθήσεις e de μνῆμαι vai fabricando o seu ldquotecidordquo de fixaccedilotildees
Para responder a estas objecccedilotildees haacute que estar atento a trecircs aspectos
Natildeo cabe aqui analisar e desenvolver o problema em toda a sua extensatildeo mas antes de
mais importa fazer notar que a possibilidade de todo o aparecimento com que lidamos ter
uma constituiccedilatildeo transcendental com a estrutura de que tentaacutemos dar um esboccedilo eacute uma pos-
sibilidade real ndash pode muito bem ser efectivamente assim e haacute indiacutecios que apontam para que
seja efectivamente assim
Isso significa que o complexo de nexos de subordinaccedilatildeo que estrutura internamente o
ldquotecidordquo do que temos apresentado pode incluir precisamente esta ldquotramardquo ou este ldquotraveja-
mentordquo transcendental em resultado do qual sem estarmos cientes disso a organizaccedilatildeo inter-
na do proacuteprio alfabeto das nossas determinaccedilotildees inclui fios de descendecircncia ou derivaccedilatildeo e
no seu ldquoBathosrdquo ou na sua profundidade tem um conjunto de determinaccedilotildees nucleares a exer-
cerem funccedilotildees tais que tudoo mais decorre delas (e recorre a elas na constituiccedilatildeo de outras de-
terminaccedilotildees)
Dito de outro modo haacute uma possibilidade real de aleacutem a) da trama de nexos de su-
bordinaccedilatildeo que liga a multiplicidade das unidades colectivas de determinaccedilotildees (aleacutem dessa
trama a que podemos chamar a trama dos nexos de subordinaccedilatildeo agrave superfiacutecie do que nos apa-
rece) e tambeacutem aleacutem b) da trama de nexos de subordinaccedilatildeo que organiza a multiplicidade
das determinaccedilotildees envolvidas na constituiccedilatildeo de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees
haver ainda c) qualquer coisa como uma trama de subordinaccedilatildeo a um niacutevel mais profundo de
que dependem ao mesmo tempo aquilo que referimos em a) e em b) ndash de tal modo que todo o
horizonte do que nos aparece estaacute inscrito no horizonte aberto por este processo de descen-
decircncia de todas as determinaccedilotildees a partir de um nuacutecleo e natildeo satildeo possiacuteveis senatildeo com con-
tracccedilotildees ou especificaccedilotildees desse nuacutecleo
205
O que estamos a procurar sublinhar eacute que natildeo haacute hierarquia apenas na organizaccedilatildeo das
diferentes determinaccedilotildees ndash haacute hierarquia na sua proacutepria constituiccedilatildeo interna (de tal modo
que umas determinaccedilotildees vecircm intrinsecamente de outras e na verdade todas descendem de
um nuacutecleo de proto-fixaccedilatildeo ou de proto-fixaccedilotildees de que todas as outras satildeo desenvolvimen-
tos)
Mas por outro lado importa estar ciente de que esta peculiar forma de nexo de subor-
dinaccedilatildeo que estamos a considerar natildeo eacute relevante apenas se o modelo transcendental for efec-
tivamente aquele que corresponde agrave forma como estatildeo formadas as determinaccedilotildees com que li-
damos e todo o aparecer em que estamos constituiacutedos O ponto decisivo eacute tambeacutem que aquilo
que se desenha no modelo transcendental natildeo tem aplicaccedilatildeo apenas se o modelo transcenden-
tal for ldquoadequadordquo ndash tambeacutem tem relevo se natildeo for
Este eacute o ponto em que agora nos devemos deter
Importa ter presente o seguinte mesmo que como vimos as projecccedilotildees empiacutericas de-
pendam de acumulaccedilotildees de dados o que as constitui eacute o ldquodisparordquo de fixaccedilotildees antecipadas
com caraacutecter de lei que atraacutes descrevemos Nesse sentido as fixaccedilotildees empiacutericas tecircm sempre a
forma de antecipaccedilotildees relativas a horizontes de totalidade (os horizontes de totalidade rasga-
dos e antecipados nas referidas ldquoleisrdquo)
Acontece que como tambeacutem jaacute vimos nada disto impede que os horizontes de totali-
dade que assim vatildeo sendo formados no ldquotearrdquo da ἐμπειρία tenham diferentes amplitudes
Quer dizer nada impede que as diferentes fixaccedilotildees empiacutericas que a pouco e pouco se
formaram produzindo o complexo de antecipaccedilotildees (ou o complexo de ldquoleisrdquo) que de cada vez
se acha em vigor na oacuteptica empiacuterica se distingam como na scala praeligdicamentalis pela refe-
rida variaccedilatildeo de niacuteveis de extensatildeo e compreensatildeo ndash ou seja pelo facto a) de umas fixaccedilotildees
terem muito mais extensatildeo e muito menos compreensatildeo b) por outras terem menor extensatildeo e
maior compreensatildeo e c) pelo facto de este nexo se iterar um determinado nuacutemero de vezes
dando lugar a uma hierarquia de fixaccedilotildees empiacutericas com uma estrutura anaacuteloga agrave da scala
praeligdicamentalis
Eacute aqui que se toca o ponto decisivo
Vendo bem tambeacutem neste caso as fixaccedilotildees com maior amplitude (as projecccedilotildees empiacute-
ricas mais abrangentes ou mais comuns se assim se pode dizer) dizem respeito a projecccedilotildees
empiacutericas mais fundamentais ou mais decisivas
206
As fixaccedilotildees que estamos a descrever satildeo aquelas projecccedilotildees que se se virem infirma-
das arrastam consigo um complexo muito vasto de outras projecccedilotildees danificando assim de
forma muito significativa o ldquoedifiacuteciordquo do reconhecimento empiacuterico do quadro de realidade
em que nos achamos situados
Ao inveacutes as projecccedilotildees empiacutericas de amplitude mais restrita (de maior compreensatildeo e
portanto com um caraacutecter mais especiacutefico) exercem funccedilotildees de sustentaccedilatildeo com menor al-
cance (de onde resulta que pelo menos no que diz respeito ao efeito de propagaccedilatildeo da sua in-
firmaccedilatildeo o ldquoestragordquo que produzem no ldquoedifiacuteciordquo global do nosso reconhecimento empiacuterico
da realidade eacute muito mais contido ou ldquolocalizadordquo e nesse sentido de menor peso)
Com tudo isto jaacute fica desenhado o fundamental do que se pretendia pocircr em evidecircncia
relativamente a esta outra componente da anisotropia da subordinaccedilatildeo que caracteriza as di-
ferentes componentes do campo de aparecimento em que damos connosco ndash ie aquele onde
tem lugar o acontecimento da experiecircncia
Em uacuteltima anaacutelise o que se procurou focar foi que independentemente da alternativa
entre haver uma constituiccedilatildeo transcendental que fixa a matriz para o proacuteprio desenrolar da ἐμ-
πειρία ou haver uma constituiccedilatildeo fundamentalmente empiacuterica de todo o nosso reconhecimen-
to da realidade que nos aparece a estrutura reconhecida no conceito de scala praeligdicamentalis
(algo grosso modo correspondente aos traccedilos essenciais dessa estrutura) cunha a proacutepria
conformaccedilatildeo do que habitualmente nos aparece
Mesmo que toda a carga de fixaccedilatildeo transgressora relativa ao dado efectivamente dis-
poniacutevel seja de origem exclusivamente empiacuterica nada impede que a estrutura da antecipaccedilatildeo
empiacuterica (a estrutura da constelaccedilatildeo de ldquoleisrdquo empiacutericas) que de cada vez jaacute se acha posta em
vigor (e a enformar a doaccedilatildeo que de cada vez se vai produzindo) seja exactamente a mesma
que a da constituiccedilatildeo transcendental
Isto eacute nada impede que as fixaccedilotildees mais geneacutericas ou universais tenham sido se for
esse o caso geneticamente posteriores sem que isso no entanto seja obstaacuteculo a que na or-
dem das funccedilotildees de sustentaccedilatildeo uma vez constituiacutedas passem a ter primazia e possuam rela-
ccedilotildees tais com as fixaccedilotildees mais especiacuteficas que se forem postas em causa as arrastam na sua
queda
Tambeacutem neste aspecto se todas as determinaccedilotildees tecircm o seu peso e produzem com a
sua presenccedila contracccedilotildees no que nos aparece pode-se no entanto dizer que umas determina-
ccedilotildees satildeo mais determinantes do que outras
207
E tambeacutem a este respeito resulta claro que uma coisa seraacute a experiecircncia constituiacuteda
num quadro de aparecimento constituiacutedo de tal modo que natildeo inclua qualquer hierarquiza-
ccedilatildeo do tipo que acabamos de considerar outra coisa muito diferente seraacute a experiecircncia for-
mada num meio completamente marcado por este tipo de hierarquizaccedilatildeo e ainda outras se-
ratildeo as modalidades de experiecircncia que se produzirem num meio cunhado por outro tipo de
hierarquizaccedilatildeo Dito de outro modo bastaria uma significativa alteraccedilatildeo desta variaacutevel para
produzir caeteris paribus uma significativa variaccedilatildeo do cariz da experiecircncia
Assim por pouco que habitualmente nos demos conta disso tambeacutem esta componente
desempenha um papel decisivo a marcar aquilo que para noacutes costuma ser a experiecircncia E a
compreensatildeo da constituiccedilatildeo da experiecircncia tal como tem lugar em noacutes que natildeo leve em
comta esta componente deixa escapar um ingrediente ou um factor fundamental sem o qual a
experiecircncia se tornaria algo muito diferente daquilo a que estamos habituados
sect26
Uma certa margem de heterogeneidade que tem que ver com a diversidade do ldquoquecircrdquo da
experiecircncia experiecircncia de factos experiecircncia de significados e experiecircncia de factos e de
significados
Tudo o que jaacute se desenha nas secccedilotildees anteriores continua a ser insuficiente para captar
aquilo que de facto estaacute em causa E isto eacute assim por duas razotildees
Por um lado porque o raacutepido bosquejo que traccedilaacutemos fica muito longe de dar conta de
todos os nexos de subordinaccedilatildeo (sc de tudo aquilo que torna assimeacutetricas as relaccedilotildees entre as
diferentes componentes do que nos aparece) Neste sentido as paacuteginas precedentes natildeo pre-
tendem fornecer mais do que uma ldquoamostrardquo
Por outro lado o que desenhaacutemos eacute ainda insuficiente em resultado do proacuteprio cami-
nho que foi preciso seguir para pocircr em evidecircncia as diferentes formas de nexo de subordina-
ccedilatildeo que sucessivamente passaacutemos em revista
De facto foi preciso isolar cada uma dessas modalidades e focaacute-la isoladamente ndash pro-
duzindo-se de cada vez a imagem abstracta de um campo de aparecimento estruturado apenas
por aquela forma de anisotropia (sc de rede de nexos de subordinaccedilatildeo que de cada vez estava
208
especialmente em causa) Ora o ponto decisivo (o que especialmente molda a modalidade de
experiecircncia a que estamos habituados) natildeo eacute cada uma destas formas de anisotropia ligada a
nexos de subordinaccedilatildeo mas sim a respectiva conjugaccedilatildeo e integraccedilatildeo num todo simultanea-
mente marcado por todas elas
Aqui de novo podemos recorrer agrave comparaccedilatildeo com um sistema de forccedilas
Os diferentes aspectos que focaacutemos constituem como que diferentes forccedilas aplicadas
simultaneamente agrave totalidade do que nos aparece De tal maneira que os diversos momentos
desta totalidade estatildeo sujeitos ao efeito conjugado destas diferentes forccedilas ndash na peculiar for-
ma de relaccedilatildeo que sustentam entre si
Ou melhor a) a totalidade do que nos aparece estaacute desviada em relaccedilatildeo agravequilo que se-
ria ndash e ao aspecto que teria ndash se soacute comportasse nexos de coordenaccedilatildeo b) esse desvio eacute o que
decorre da resultante de uma multiplicidade de factores de subordinaccedilatildeo ndash uma resultante
que precisamente como num sistema de forccedilas estaacute simultaneamente condicionada pelas for-
ccedilas que integram o sistema (pelas diferentes direcccedilotildees e sentidos em que cada uma ldquopuxardquo) e
pela ldquorelaccedilatildeo de forccedilasrdquo que haacute entre elas
Eacute este aspecto (ie satildeo algumas caracteriacutesticas fundamentais desta ldquoresultanterdquo) que
de seguida procuraremos focar um pouco mais detidamente
O aspecto a que nos estamos a referir eacute aquele que tem que ver com o proacuteprio ldquoquecircrdquo
do aparecimento e da experiecircncia (o objecto do aparecimento e da experiecircncia o que o apare-
cimento e a experiecircncia determina etc)
Ora tambeacutem a respeito do ldquoquecircrdquo do aparecimento e da experiecircncia haacute possibilidade de
variaccedilatildeo ndash variaccedilatildeo que se estende para laacute dos aspectos anteriormente referidos
Essa possibilidade de variaccedilatildeo adveacutem de uma certa margem de heterogeneidade que
tem que ver com a diversidade dos ldquoquecircsrdquo em causa no que nos aparece e na experiecircncia
Quer dizer tambeacutem pode haver vaacuterios quadros de aparecimento e vaacuterias experiecircncias distin-
tas entre si na medida em que aquilo que aparece e a experiecircncia pode resultar de uma multi-
plicidade de ldquoquecircsrdquo possiacuteveis de cada vez em causa nela
Para sermos mais precisos pode haver vaacuterias formas de aparecimento e de experiecircncia
distintas entre si consoante o aparecimento e a experiecircncia for tal que a) a experiecircncia eacute pura e
simplesmente uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo b) a experiecircncia eacute pura e simplesmente uma ldquoex-
periecircncia de significadosrdquo (ou uma ldquoexperiecircncia de sentidordquo como tambeacutem podemos dizer)
209
ou por fim c) a experiecircncia tem o caraacutecter de uma ldquoexperiecircncia mistardquo (ie que conjuga ou
que eacute composta de factos e de significados)
Comecemos por considerar a primeira hipoacutetese naquilo que diz respeito aos contras-
tes pertinentes para o que aqui temos em vista com as restantes
Uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo corresponde a um puro registo de tudo o que estaacute mate-
rial e efectivamente dado (ie de tudo o que estaacute dado de todas as ldquocoisasrdquo de tudo o que
aparece etc)
Isto eacute uma experiecircncia de factos corresponde a algo como um inventaacuterio faacutectico ndash um
inventaacuterio das ldquocoisasrdquo que aparecem e das determinaccedilotildees com que as ldquocoisasrdquo se apresen-
tam Neste sentido o registo em que a experiecircncia de factos estaacute constituiacutedo resulta num ma-
pa que toma a sua conformaccedilatildeo da conformaccedilatildeo da ldquoloacutegicardquo proacutepria dos factos
O que isto quer dizer eacute que o mapa que resulta de uma experiecircncia dos factos toma a
forma da relaccedilatildeo das diversas ldquocoisasrdquo (das diversas unidades colectivas de determinaccedilotildees) e
das diversas determinaccedilotildees entre si (ie do modo como cada ldquocoisardquo e cada determinaccedilatildeo se
relaciona com as restantes estaacute desposta perante as restantes etc)
Assim um objecto da experiecircncia de factos corresponderia a um qualquer x definido
exclusivamente pelas suas propriedades ndash ie corresponderia a um qualquer x posto numa re-
laccedilatildeo de pura transparecircncia relativamente a si de tal modo que o que determinaria x natildeo se-
ria mais do que o que estivesse incluiacutedo no proacuteprio x (os seus atributos caracteriacutesticas pro-
priedades etc)
Poreacutem o mapa que daiacute resulta eacute um mapa da complexidade dos factos natildeo apenas nes-
te primeiro sentido
Vendo bem a ldquoloacutegicardquo dos factos (o modo como os diversos factos ndash as diversas ldquocoi-
sasrdquo e as diversas ldquodeterminaccedilotildeesrdquo ndash estatildeo associadas entre si) constitui tambeacutem em si mes-
ma um facto proacuteprio
Isto eacute o mapa que resulta da experiecircncia dos factos eacute um mapa que natildeo apenas regista
a) os factos avulsos mas que regista igualmente b) os diversos estratos de factos (as relaccedilotildees
dos diversos ldquoobjectosrdquo e das determinaccedilotildees deles entre si que se assim podemos dizer de-
potildeem os factos em diversas ldquocamadasrdquo)
Ora tendemos a ver o que aparece no pressuposto de que a ordem de determinaccedilotildees
em causa nos expotildee perante uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo
210
Quer dizer o ponto de vista habitual tende a compreender a experiecircncia do que quer
que seja como uma mera experiecircncia de factos O aparecimento de uma ldquocoisardquo parece neste
sentido corresponder apenas agrave presenccedila da ldquocoisardquo que aparece ndash de tal modo eacute assim que a
ldquocoisardquo eacute tomada como sendo tal qual como aparece no acesso
Por outras palavras a forccedila da evidecircncia de que estamos perante uma experiecircncia de
factos impotildee-se de tal modo que a apresentaccedilatildeo do que aparece (a apresentaccedilatildeo dele e soacute dele
ou a apresentaccedilatildeo do facto em causa na sua relaccedilatildeo com outros factos) parece esgotar as pos-
sibilidades de apresentaccedilatildeo do que aparece (de tal modo que a conformaccedilatildeo do aparecimento
e da experiecircncia como aparecimento e experiecircncia de factos ganha forccedila de evidecircncia que o
que aparece natildeo poderia ser senatildeo tal qual como nos aparece natildeo poderia ter outra configu-
raccedilatildeo para laacute desta que tem natildeo poderia ldquoserrdquo ou aparecer de outro modo etc)
Mais ainda o proacuteprio conceito de ldquofactordquo estaacute marcado pelo pressuposto de que o
acesso em que nos temos eacute um acesso que regista dados a partir de uma posiccedilatildeo que eacute com-
pletamente neutra relativamente aos dados que capta
A experiecircncia como ldquoexperiecircncia de factosrdquo ldquoembarcardquo se assim se pode dizer na tese
de uma dupla quietude agrave quietude do ldquoobjectordquo ndash que meramente ldquoeacuterdquo estaacute ldquoaiacuterdquo aparece etc
ndash estaacute contraposta a quietude do ldquosujeitordquo ndash que meramente observa e acolhe o ldquoserrdquo do ldquoob-
jectordquo como que agrave distacircncia (ie sem desempenhar qualquer papel no modo como aparece o
que aparece sem estar envolvido com ele de algum modo para laacute da mera captaccedilatildeo etc)
Em suma o proacuteprio conceito de ldquofactordquo pressupotildee que o que aparece natildeo estaacute sujeito
a qualquer outra pressatildeo para laacute da pressatildeo da pergunta ldquoo que eacuterdquo O facto estaacute medido
apenas por si proacuteprio
Dito por outras palavras o conceito de ldquofactordquo pressupotildee o cumprimento eficaz da pe-
ticcedilatildeo de verdade ndash na forma de um esclarecimento (de uma resposta agrave pergunta pelo ldquoserrdquo da
ldquocoisardquo pelo que a ldquocoisardquo ldquoeacuterdquo etc) que teria origem na proacutepria realidade a que o apareci-
mento ou a experiecircncia dizem respeito
Neste sentido uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo corresponderia ao mero conjunto de res-
postas agrave pergunta ldquoo que eacuterdquo E mesmo que a experiecircncia como vimos envolva projecccedilotildees
as projecccedilotildees empiacutericas de uma experiecircncia de factos tecircm que ver apenas com a fixaccedilatildeo do
que se passa no plano absoluto dos proacuteprios factos que as projecccedilotildees se destinam a reconsti-
tuir ou antecipar
211
Algo bem diferente eacute aquilo que estaacute em causa se a experiecircncia tem o caraacutecter de ldquoex-
periecircncia de significadosrdquo
Vendo bem a pergunta a que a ldquoexperiecircncia do significadordquo pretende dar resposta natildeo
eacute diferente da pergunta a que o ldquofactordquo procura dar resposta ndash em ambos os casos o que estaacute
em causa eacute a pergunta ldquoo que eacuterdquo Acontece poreacutem que a pergunta ldquoo que eacuterdquo se converte na
pergunta ldquoo que significardquo
Interessa compreender o que se quer dizer com isto
O primeiro ponto a ter em atenccedilatildeo eacute que o significado tem sempre que ver com rela-
ccedilatildeo Trata-se sempre daquilo que Platatildeo exprime no Feacutedon quando fala do μὴ μόνον ἐκεῖνο63
Mas esta caracteriacutestica que eacute fundamental natildeo basta para circunscrever aquilo que eacute
proacuteprio do significado (do aparecimento do significado e da experiecircncia do significado) en-
quanto tal
Com efeito o aparecimento de factos e a experiecircncia de factos tambeacutem pode incluir a
fixaccedilatildeo de relaccedilotildees Mais ndash qualquer deles pode ateacute estar especialmente focado na fixaccedilatildeo de
relaccedilotildees Contudo por mais que seja assim e mesmo que haja uma multidatildeo de relaccedilotildees (mes-
mo que o teor daquilo que aparece esteja saturado com a indicaccedilatildeo de relaccedilotildees) haacute um zero
de apresentaccedilatildeo de significados no sentido que aqui temos em vista
Ora interessa precisar o que eacute que constitui o significado enquanto tal
Antes de mais importa referir que haacute uma multiplicidade de acepccedilotildees do termo ldquosigni-
ficadordquo (quer no uso comum quer como terminus technicus) e que natildeo curamos aqui de fazer
uma anaacutelise dessas vaacuterias acepccedilotildees ou da histoacuteria do conceito de ldquosignificadordquo enquanto con-
ceito filosoacutefico
Na verdade limitamo-nos a procurar determinar aquilo que temos em vista ao recorrer
a este conceito
O que temos em vista ao recorrer ao conceito de ldquosignificadordquo eacute que a relaccedilatildeo consti-
tutiva do significado diz respeito a um acircngulo ou filtro de compreensatildeo introduzido pelo proacute-
prio modo de ver de tal modo que a) o terminus ad quem da relaccedilatildeo em causa natildeo eacute este ou
aquele objecto este ou aquele apresentado mas algo decorrente da proacutepria forma de capta-
ccedilatildeo que b) tudo o que aparece aparece jaacute na oacuteptica da relaccedilatildeo em causa (que eacute neste senti-
63
Cf 73c6-8 ldquoἐάν τίς τι ἕτερον ἢ ἰδὼν ἢ ἀκούσας ἤ τινα ἄλλην αἴσθησιν λαβὼν μὴ μόνον ἐκεῖνο γνῷ
ἀλλὰ καὶ ἕτερον ἐννοήσῃ οὗ μὴ ἡ αὐτὴ ἐπιστήμη ἀλλrsquo ἄλλη (hellip)rdquo
212
do universal) e que c) o terminus ad quem da relaccedilatildeo em causa (o acircngulo que faz o μὴ μόνον
ἐκεῖνο) eacute igual para tudo aquilo que aparece (ie tudo o que aparece eacute reportado ao mesmo e
eacute esse reportar ao mesmo que daacute lugar agrave diferenccedila dos significados ndash que satildeo significados di-
ferentes em relaccedilatildeo ao mesmo)
Expliquemo-nos melhor ndash e vejamos antes do mais cada um destes aspectos
Em primeiro lugar o terminus ad quem da relaccedilatildeo em causa natildeo eacute este ou aquele ob-
jecto este ou aquele apresentado mas algo decorrente da proacutepria forma de captaccedilatildeo
O que constitui o significado natildeo eacute se assim se pode dizer uma relaccedilatildeo horizontal
dentro do proacuteprio plano do apresentado (uma relaccedilatildeo entre apresentados) mas uma relaccedilatildeo
entre o apresentado e o proacuteprio estar a tecirc-lo (o acontecimento de estar a ter apresentaccedilatildeo de-
le) O μὴ μόνον ἐκεῖνο (o acrescentado que constitui a relaccedilatildeo) vem do proacuteprio acontecimento
de ldquoposserdquo daquilo que aparece radica num ldquofiltrordquo integrado na sua proacutepria oacuteptica ndash e de
um ldquofiltrordquo que eacute totalmente insusceptiacutevel de ser retirado (de tal modo que natildeo haacute um grau
zero preacutevio ao estabelecimento da relaccedilatildeo que constitui o significado)
Em segundo lugar isso significa que tudo o que aparece aparece jaacute na oacuteptica da rela-
ccedilatildeo em causa ndash que eacute neste sentido universal
Natildeo se trata desta ou daquela relaccedilatildeo determinada que haja entre estes e aqueles apre-
sentados Trata-se de um ldquofiltrordquo que em todos os casos potildee o que aparece em relaccedilatildeo com
um acircngulo constante na oacuteptica de quem vecirc de tal modo que dessa relaccedilatildeo a algo de constante
(dessa forma geral e invariaacutevel do significado ndash disso a que podemos chamar o acircngulo ou o
criteacuterio do significado) nasce um conjunto de significados todos relativos ao acircngulo ou criteacute-
rio em causa
Nesse sentido o significado natildeo eacute um acontecimento avulso que ocorre ldquoaquirdquo mas
natildeo ldquoalirdquo natildeo tem a forma de um agregado ndash de tal modo que tudo tivesse o seu significado
mas a forma como estaacute constituiacutedo o significado de A fosse completamente diversa e indepen-
dente da forma como estaacute constituiacutedo o significado de B etc A haver aparecimento de signi-
ficados e experiecircncia de significados no sentido que aqui se tem em vista o significado eacute to-
tal ndash um acontecimento global que tinge globalmente todo o horizonte do que aparece e todo
o horizonte da experiecircncia
Podemos exprimir melhor o que estaacute aqui em causa dizendo o seguinte
213
Se eacute verdade que o significado na acepccedilatildeo aqui em causa tem que ver com uma rela-
ccedilatildeo isso natildeo quer dizer que a relaccedilatildeo de que estamos a falar seja algo de acrescentado a um
conteuacutedo de algum modo disponiacutevel independentemente dela ndash de tal modo que haacute A e de-
pois o significado de A ou B e depois o significado de B etc
Quando aqui falamos de ldquosignificadordquo queremos justamente dizer que onde haacute apare-
cimento de significados independentemente de o aparecimento de significados poder ter de
ser mediado pelo aparecimento de factos o que quer que seja que aparece jaacute aparece na oacutep-
tica do significado como significado e natildeo como outra coisa De sorte que a proacutepria determi-
naccedilatildeo com que se apresenta jaacute envolve a relaccedilatildeo de que estamos a falar (jaacute envolve o μὴ μό-
νον ἐκεῖνο jaacute eacute feita desse μὴ μόνον ἐκεῖνο relativo ao proacuteprio acontecimento do estar lanccedilado
na presenccedila do que se apresenta)
Consideremos por exemplo essa modalidade de significado que eacute aquela que corres-
ponde a um aparecimento ndash e uma experiecircncia ndash marcados por um ter-de-se-lidar-com-aqui-
lo-que-aparece
Se o aparecimento tem a forma de uma lida no sentido que acabamos de dizer isso
faz que o que quer que seja que se apresente seja de algueacutem (de quem tem de lidar com o que
se apresenta) ao mesmo tempo que eacute de si proacuteprio
Quer dizer qualquer A natildeo tem apenas a determinaccedilatildeo de A mas a determinaccedilatildeo relati-
va ao ter de lidar com ele ndash a determinaccedilatildeo acrescentada o μὴ μόνον ἐκεῖνο disso Natildeo haacute um
x que aparece e que ainda natildeo tem nada que ver com o ter-de-se-lidar com isso O que quer
que seja que apareccedila possui uma determinaccedilatildeo proacutepria mas essa determinaccedilatildeo eacute sempre jaacute re-
lativa agrave lida nunca anterior a esse nexo com a lida
Ora se por um lado pode ter ndash e tem ndash relaccedilotildees com outros apresentados por outro
essas relaccedilotildees ldquohorizontaisrdquo (dentro do plano do que se apresenta) tecircm tambeacutem elas a forma
desta relaccedilatildeo agrave lida que perpassa globalmente o campo do que aparece e toda a experiecircncia
que se forma nele
Podemos dizer que neste caso o significado eacute o teor de interferecircncia com a lida (a
forma como o que quer que seja interveacutem na lida e define condiccedilotildees de lida) Em suma se o
aparecimento ou a experiecircncia eacute um aparecimento ou experiecircncia de significados de lida isso
quer dizer que se estaacute posto perante aquilo que aparece sob uma tensatildeo de uso ou de lida
A ldquoexperiecircncia dos significadosrdquo destaca o quesito funcional como o quesito funda-
mental da determinaccedilatildeo do ldquoserrdquo da ldquocoisardquo ndash de tal modo que tudo o que aparece estaacute pos-
214
to em referecircncia agrave tensatildeo de uso ou de lida em que se estaacute Podemos dizer assim tal como
aqui estaacute em causa a noccedilatildeo de ldquosignificadordquo designa o teor de um regime de aparecimento e
de experiecircncia para o qual a determinaccedilatildeo funcional relativamente agrave lida eacute a determinaccedilatildeo
fundamental para compreender o ldquoo quecircrdquo do que aparece
Sendo assim o que estaacute em causa eacute uma determinaccedilatildeo do comportamento E eacute uma
determinaccedilatildeo de comportamento do que aparece num duplo sentido
Por um lado estaacute em causa a determinaccedilatildeo do modo como podemos ou devemos agir
sobre o que aparece ndash ie estatildeo em causa as acccedilotildees de que aquilo que aparece poderaacute ser ob-
jecto Mas por outro estaacute tambeacutem em causa a determinaccedilatildeo do modo como o que aparece
pode agir sobre noacutes ndash estaacute em causa o modo como estamos sujeitos aos ldquoobjectosrdquo por assim
dizer
Ou seja quando estamos postos sob a pressatildeo de ter de lidar com ele quando procura-
mos determinar o comportamento do que aparece estaacute em causa igualmente o que devemos
esperar de um dado ldquoobjectordquo (que expectativas devemos ter em relaccedilatildeo a ele como pode
afectar o nosso desempenho como influenciaraacute ele o curso disso a que procuramos dar se-
guimento etc)
Assim um segundo aspecto fundamental que se destaca quando falamos de ldquosignifica-
dordquo (ou de ldquosentidordquo) e que contrasta com uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo eacute o facto de haver
qualquer coisa como uma dependecircncia do proacuteprio acontecimento de acesso
Ao contraacuterio do que se passa na ordem dos factos onde tudo vai no sentido de aquilo
que aparece ser independente do acesso (ie ser isso mesmo que eacute haja ou natildeo acesso a
isso) na ordem do significado o acesso (o acesso de algueacutem) eacute condiccedilatildeo de possibilidade das
determinaccedilotildees funcionais Quer dizer as determinaccedilotildees funcionais natildeo teriam lugar sem esse
acesso estar constituiacutedo
Dito de outro modo o que esta ordem supotildee eacute que eacute o proacuteprio acesso que cria as con-
diccedilotildees para haver quesitos e determinaccedilotildees funcionais
Por outras palavras a natureza peculiar do ldquosignificadordquo no sentido aqui em causa
tem que ver com aquilo a que se pode chamar a densidade do proacuteprio acesso (o contraacuterio da
transparecircncia do papel que ela desempenha no aparecimento de puros factos e da forma como
a transparecircncia do acesso a proacutepria perfeiccedilatildeo do acesso que eacute a sua transparecircncia pretende
pocircr em contacto com aquilo que se passa independentemente do acesso de tal modo que o
proacuteprio acesso se converte numa ldquoquantidade negligenciaacutevelrdquo irrelevante etc)
215
Em resumo soacute haacute significado no sentido aqui em causa se o proacuteprio acesso (o estar
no acesso quem estaacute a ter acesso etc) se torna de algum modo protagonista do proacuteprio apa-
recimento ndash e do aparecimento todo
A especificidade do significado estaacute em que o proacuteprio acontecimento do acesso en-
quanto tal se torna fonte da determinaccedilatildeo daquilo que aparece enquanto essa determinaccedilatildeo eacute
a) relativa e b) relativa a quem tem acesso agravequilo que aparece
Nesse sentido as determinaccedilotildees de significado (o teor daquilo que aparece revestido
de significado na forma do significado etc) satildeo ao mesmo tempo determinaccedilotildees suas (que
lhe pertencem que estatildeo ldquolaacuterdquo que fazem parte dele etc) e determinaccedilotildees que soacute podem ter
lugar em relaccedilatildeo a ldquoalgueacutemrdquo
Eacute assim no caso da tensatildeo de lida e de todas as determinaccedilotildees que lhe satildeo relativas
mas eacute tambeacutem assim onde haja determinaccedilotildees de significado ndash e o aparecimento e experiecircn-
cia tomem a forma de aparecimento e experiecircncia de significados ndash seja qual for a modalida-
de especiacutefica de significado que esteja em causa
Isto potildee-nos na pista de um outro aspecto decisivo do aparecimento e da experiecircncia
de significados pelo menos como ocorre em noacutes
Embora o significado no sentido aqui em causa soacute seja possiacutevel em relaccedilatildeo a uma
tensatildeo de que eacute portador aquilo a que comummente se chama o ldquosujeitordquo do aparecimento o
ldquoembarquerdquo no mundo dos significados (o estar completamente conformado moldado por ele
etc) faz que os significados natildeo apareccedilam nesse seu caraacutecter hiacutebrido (de determinaccedilotildees ldquoem
cruzamentordquo que resultam da relaccedilatildeo entre a tensatildeo de que o ldquosujeitordquo eacute portador e aquilo que
lhe aparece etc) mas apareccedilam como determinaccedilotildees absolutamente pertencentes agravequilo que
aparece (ie relativamente agraves quais se perde o rasto da respectiva filiaccedilatildeo na tensatildeo de que o
sujeito eacute portador e agrave consciecircncia de que tais determinaccedilotildees pura e simplesmente natildeo teriam
lugar na ausecircncia do ldquosujeitordquo)
Pelo menos no nosso caso o aparecimento e a experiecircncia dos significados eacute vivida
como aparecimento e experiecircncia de factos e toma aos seus proacuteprios olhos o aspecto de um
aparecimento e experiecircncia de factos
Isso natildeo significa que se perca por completo a noccedilatildeo de ldquosignificadordquo Significa que se
perde a noccedilatildeo aguda de significado e que se passa a reconhecer o caraacutecter de significado soacute a
alguns aspectos mais manifestamente volaacuteteis ou mais manifestamente subjectivos (no sentido
de terem uma avaliaccedilatildeo menos consensual variaacutevel de indiviacuteduo para indiviacuteduo etc)
216
Este eacute um ponto decisivo
Haacute todo um conjunto de equiacutevocos que tecircm que ver com este peculiar fenoacutemeno a cir-
cunstacircncia de a proacutepria adesatildeo agrave oacuteptica do significado (a perfeita integraccedilatildeo nela como algo
de oacutebvio por cuja presenccedila nem sequer se daacute) fazer perceber a maior parte dos significados
como puros factos ndash de sorte que soacute reconhecemos como significados uma pequena parte do
reino dos significados em que estamos imersos e tomamos como factos o que na verdade satildeo
formas de significados
Este equiacutevoco fundamental estaacute tambeacutem associado a um outro que vem de tendermos
a perder de vista a extraordinaacuteria complexidade do mundo de significados em que estamos
constituiacutedos
Se considerarmos por exemplo uma unidade colectiva de determinaccedilotildees ela tem
muacuteltiplas camadas de significados Consideremos por exemplo uma caneta
Uma caneta eacute relativa a) a uma determinada possibilidade de uso b) a uma determina-
da relaccedilatildeo de poder entre cada um de noacutes e ela ndash que tambeacutem tem que ver c) com o significa-
do do seu tamanho do seu peso etc ndash aleacutem disso ainda d) com o significado de a caneta ser
uma realidade subsistente com cuja continuaccedilatildeo podemos contar e) com o significado de ela
natildeo envolver qualquer espeacutecie de perigo f) com o significado de ela estar privada da possibi-
lidade de nos ver de natildeo nos poder julgar etc g) com o significado de ser nossa ou de outra
pessoa h) com o significado de nos ter sido dada por algueacutem que se preza ou o contraacuterio i) de
ter sido usada para escrever isto ou aquilo de que guardamos boa ou maacute memoacuteria etc64
64
Misturamos aqui significados da mais diversa ordem Um dos pontos decisivos a que importa estar-
mos atentos eacute precisamente a multiplicidade das funccedilotildees que aquilo que aparece (sc as determinaccedilotildees
daquilo que aparece) pode assumir no quadro da forma global ldquointerferecircncia na pressatildeo de lida de que
o sujeito eacute portadorrdquo Quer dizer por um lado pode-se falar de qualquer coisa como uma enorme mul-
tiplicidade de funccedilotildees de determinaccedilotildees funcionais (de que aquelas que citaacutemos representam soacute uma
pequena amostra) por outro lado toda essa multiplicidade exuberante de funccedilotildees diferenciadas eacute rela-
tiva a um uacutenico acircngulo (justamente a interferecircncia na pressatildeo de lida que eacute o ldquofiltrordquo o significado
fundamental de que todos o significados no fundamental resultam) E se considerarmos uma qual-
quer unidade colectiva de determinaccedilotildees verificamos que o todo confuso das determinaccedilotildees que estatildeo
envolvidas na sua constituiccedilatildeo tem que ver com a definiccedilatildeo de condiccedilotildees de lida ou com a definiccedilatildeo
da forma de interferecircncia no quadro do ter-se-de-lidar-com-isso Quer dizer independentemente da
questatildeo de saber se haacute ou natildeo determinaccedilotildees que natildeo tecircm esta natureza (ou mais precisamente se na
fixaccedilatildeo das unidades colectivas de determinaccedilotildees que nos aparecem haacute ou natildeo determinaccedilotildees que natildeo
tecircm esta natureza) uma grande parte das determinaccedilotildees que intervecircm na fixaccedilatildeo das unidades colecti-
vas de determinaccedilotildees que nos aparecem tecircm justamente esta natureza
217
Este complexo de significados (que aqui se esboccedilou apenas de forma grosseira) eacute difiacute-
cil de ver em toda a sua extensatildeo porque tem ndash como tudo no acontecimento do aparecer em
que damos connosco ndash um caraacutecter confuso Mas isso natildeo impede que possamos ganhar cons-
ciecircncia de alguns dos seus elementos e de que esses elementos se caracterizam pelo seu caraacutec-
ter como que ldquoemprestadordquo (emprestado pelo ldquosujeitordquo agrave ldquocoisardquo) dispensaacutevel revogaacutevel etc
Eacute esse fenoacutemeno de consciencializaccedilatildeo de uma parte do ldquomundordquo dos significados que
costuma estar na base do conceito de significado
Passa-se a este respeito algo semelhante agravequilo que se verificou na Filosofia Moderna
em relaccedilatildeo ao conceito de ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo e agrave oposiccedilatildeo entre qualidades secundaacute-
rias e qualidades primaacuterias uma multiplicidade de reconhecimentos desencontrados traccedila-
dos natildeo coincidentes das fronteiras com uns a tomarem por qualidades primaacuterias aquilo que
outros potildeem em evidecircncia como qualidades secundaacuterias etc Pois tambeacutem aqui satildeo possiacuteveis
diversos contrastes diversos traccedilados de fronteiras diversas reparticcedilotildees do que pertence agrave es-
fera dos significados e do que pertence agrave esfera dos factos propriamente ditos
Contudo o ponto decisivo estaacute em que se analisarmos um pouco mais detidamente o
que todos aqueles que sustentam a possibilidade de isolar um nuacutecleo de determinaccedilotildees pura-
mente de facto identificaram como factos ldquolimpos de significadosrdquo acabamos por verificar
que na verdade tambeacutem essas determinaccedilotildees pertencem ao campo dos significados
O que acontece eacute que a identificaccedilatildeo como significado (a percepccedilatildeo da dependecircncia
relativamente agrave tensatildeo de que o sujeito eacute portador) resulta mais difiacutecil jaacute porque pertencem a
um nuacutecleo de determinaccedilotildees mais ou menos inerente e invariaacutevel porque o nexo com a tensatildeo
de que o sujeito eacute portador estaacute produzido por um ldquojuiacutezo ocultordquo no sentido de Kant ndash e na
verdade por um juiacutezo oculto bastante profundo e por isso difiacutecil de detectar
Isto natildeo quer dizer necessariamente que um campo de aparecimento integralmente
preenchido por significados eacute um campo completamente vazio de quaisquer factos Esta con-
clusatildeo precipitada deve-se a uma compreensatildeo deficiente do que quer dizer esse domiacutenio
completo dos significados
Como dissemos isso significa que tudo estaacute apresentado na oacuteptica dos significados ndash
quer dizer que os proacuteprios factos que haacute estatildeo percebidos na oacuteptica dos significados que
uma vez instalada percebe tudo incluindo o que haja de factos do seu proacuteprio ponto de vista
Assim ao contraacuterio do que pode parecer quando aqui se fala da possibilidade de um
campo de aparecimento misto (composto de factos e de significados) o que estaacute em causa natildeo
218
eacute um campo de aparecimento que nalguns dos seus sectores apresenta factos noutros pelo
contraacuterio apresenta significados nem estaacute em causa um campo de aparecimento constituiacutedo
de tal modo que uma parte dos seus objectos tem o caraacutecter de factos outra o caraacutecter de sig-
nificados nem estaacute em causa um campo de aparecimento constituiacutedo de tal modo que umas
propriedades dos objectos que aparecem nele satildeo factos e outras satildeo significados
Um campo de aparecimento misto quer dizer um campo de aparecimento constituiacutedo
de tal modo que por um lado tem envolvida na sua constituiccedilatildeo um estrato ou nuacutecleo de fi-
xaccedilatildeo de factos mas por outro lado tem essa fixaccedilatildeo de factos transformada ndash e na verdade
irreversivelmente transformada ndash pela interposiccedilatildeo de uma oacuteptica de significado que chama a
si e absorve em si o que quer que haja de fixaccedilatildeo e factos
O ponto decisivo que importa ter presente eacute que por muito que possa parecer o contraacute-
rio noacutes natildeo temos acesso directo a nada que seja uma mera apresentaccedilatildeo de factos ndash e na
verdade natildeo fazemos a mais pequena ideia do que isso seja
Dizer isto natildeo significa negar que possa haver qualquer coisa como um campo de apa-
recimento exclusivamente constituiacutedo pela fixaccedilatildeo de factos
Estamos a sustentar justamente o contraacuterio poderaacute muito bem haver um campo de
aparecimento e um campo de experiecircncia com essas caracteriacutesticas (e que um campo de apa-
recimento ou de experiecircncia que o seja apenas de factos eacute algo completamente diferente do
que conhecemos uma forma de aparecimento e de experiecircncia totalmente heterogeacutenea em re-
laccedilatildeo a tudo o que conhecemos) Eacute precisamente sobre a possibilidade de haver um campo de
aparecimento e um campo de experiecircncia que se reduzisse agrave fixaccedilatildeo de factos que podemos
dizer que essa ldquosimplesrdquo diferenccedila bastaria para que caeteris paribus tudo fosse diferente65
65
Por outra parte no que diz respeito agrave forma do aparecimento e da experiecircncia que tem lugar em noacutes
natildeo procuramos aqui estabelecer ateacute que ponto corresponde a um puro aparecimento (e experiecircncia) de
significados na acepccedilatildeo que aqui temos em vista ou a uma forma de aparecimento mista (que reuacutene
componentes das duas ordens) A discussatildeo desta alternativa eacute complexa ndash e uma decisatildeo absoluta-
mente fundamentada requeriria um acompanhamento transparente da forma como estaacute constituiacuteda a
nossa proacutepria perspectiva ndash que eacute coisa que estamos muito longe de ter ou de poder alcanccedilar Pelo me-
nos no nosso caso a interposiccedilatildeo da oacuteptica do significado tem um caraacutecter irreversiacutevel ndash natildeo haacute condi-
ccedilotildees para compreender efectivamente o que seria ver as coisas na sua ausecircncia Quer dizer se formos
rigorosos verificamos que tanto o conceito que temos de um aparecimento e de uma experiecircncia de
factos quanto aquele que temos do que poderaacute haver de um nuacutecleo ou estrato constituiacutedo soacute pelo apa-
recimento de factos a funcionar algures na profundidade do nosso proacuteprio ponto de vista eacute um con-
ceito puramente apofaacutetico De sorte que em uacuteltima anaacutelise natildeo sabemos se o nosso proacuteprio ponto de
219
A tudo isto acresce finalmente um uacuteltimo aspecto igualmente decisivo
Natildeo acontece apenas que o aparecimento e a experiecircncia se tornem coisas completa-
mente diferentes consoante sejam aparecimento e experiecircncia de factos aparecimento e expe-
riecircncia de significados ou aparecimento e experiecircncia mistos Sucede tambeacutem que podem di-
ferir muito em funccedilatildeo da natureza especiacutefica do significado que molda tudo que no caso do
aparecimento e da experiecircncia de significados quer no caso do aparecimento e da experiecircncia
mistos
Com efeito aquilo que estaacute em causa no conceito de ldquosignificadordquo tal como o usamos
eacute uma modalidade global de conformaccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia que contrasta
com o aparecimento e a experiecircncia dos factos
Para ilustrar esse contraste recorremos agravequele regime de apresentaccedilatildeo e experiecircncia
do significado com que estamos familiarizados o regime do significado de lida Fizemo-lo
atraacutes numa descriccedilatildeo muito breve e grosseira que soacute foi ateacute onde era estritamente indispensaacute-
vel para se perceber o mais essencial Mas importa ter presente que vendo bem mesmo que
possa acontecer que essa eacute a uacutenica forma de significado com que temos contacto e de que so-
mos capazes de ter noccedilatildeo natildeo estamos em condiccedilotildees de afirmar que eacute a uacutenica possiacutevel
Pode acontecer que natildeo soacute haja outras modalidades de significado mas na verdade ateacute
haja muitas modalidades diferentes de significado que poderiam conformar o aparecimento e
a experiecircncia em alternativa agravequela modalidade de significado que preside agrave forma como as
coisas nos aparecem e se constitui para noacutes a experiecircncia
Ou para o dizer assim para determinar o aparecimento e a experiecircncia que se datildeo em
noacutes natildeo basta referir que natildeo tecircm o caraacutecter de um aparecimento e experiecircncia de factos que
estatildeo marcados pela presenccedila de significados por uma oacuteptica de significaccedilatildeo etc ndash de tal
modo que se haacute factos eles estatildeo revestidos de significado e transformados por ele Para
aleacutem disso eacute indispensaacutevel precisar a modalidade concreta de significado que no nosso caso
domina o aparecimento e a experiecircncia
Por outro lado haacute tambeacutem que ter presente que a perspectiva que noacutes temos nesta ma-
teacuteria eacute uma perspectiva fechada muito longe de um olhar soberano que veja a sua proacutepria oacutep-
vista eacute integralmente constituiacutedo por significados ou tem um caraacutecter misto Mas insistimos o propoacute-
sito que seguimos ao dizer tudo isto eacute vincar bem que o aparecimento e a experiecircncia podem ser coisas
muito diferentes consoante forem aparecimento e experiecircncia soacute de factos soacute de significados ou mis-
tos
220
tica no meio de todas as outras alternativas possiacuteveis (de qualquer coisa como um perfeito
ldquomapardquo de todas as outras alternativas possiacuteveis) Estamos justamente ldquocoladosrdquo agrave forma que
nos molda e temos grande dificuldade em conceber eficazmente qualquer alternativa
Poreacutem isso natildeo significa que natildeo possa haver alternativas nem impede que a diferenccedila
entre campos de aparecimento e de experiecircncia constituiacutedos por diferentes regimes de signifi-
cado seja tatildeo grande quanto a diferenccedila entre o aparecimento e a experiecircncia de factos por
um lado e o aparecimento e a experiecircncia de significados por outro
sect27
A variaccedilatildeo da experiecircncia consoante esteja ou natildeo sob algum tipo de pressatildeo (consoante
tenha ou natildeo algum tipo de ldquoem causardquo) ndash A pressatildeo de natildeo-indiferenccedila de natureza praacuteti-
ca o cuidado consigo mesmo
Para que a anaacutelise preliminar que levaacutemos a cabo ao longo desta primeira parte fique
concluiacuteda e para se compreender que factores satildeo decisivos para apurar o modo como o apare-
cimento e a experiecircncia se determinam (as diversas formas que podem assumir etc) falta
ainda considerar um outro factor
Trata-se de algo intimamente ligado a factores jaacute anteriormente considerados E pode-
se dizer que de certo modo jaacute nos cruzaacutemos com ele Acontece que mesmo assim a sua pre-
senccedila se manteve ateacute aqui meramente impliacutecita e o que jaacute vimos natildeo soacute pode fazer com que
tenha passado despercebido como natildeo dispensa uma consideraccedilatildeo focada nele
O factor a que nos referimos eacute o seguinte para determinar o modo como o apareci-
mento e a experiecircncia acontecem interessa tambeacutem aquilo que estaacute ndash ou natildeo estaacute ndash ldquoem cau-
sardquo no aparecimento e na experiecircncia
Quando falamos de algo como o ldquoem causardquo da experiecircncia aquilo a que nos referi-
mos tem um alcance duplo
Por um lado referimo-nos agravequilo que estaacute em questatildeo agravequilo de que se trata ndash ao ne-
goacutecio ao assunto etc Na verdade natildeo eacute apenas isso mas eacute ainda mais eacute o que estaacute principal-
mente em questatildeo o nuacutecleo da tensatildeo que haacute aquilo de que efectivamente se trata o ldquonego-
ciordquo ou o assunto central etc
221
Por outro lado ao falar de algo como um ldquoem causardquo do aparecimento e da experiecircn-
cia falamos tambeacutem do que estaacute em perigo do que se arrisca do que estaacute em jogo do que
estaacute dependente do que venha a passar-se etc E natildeo apenas isso na verdade falamos de
aquilo de que se deve cuidar (de que se deve tratar de que se deve ocupar etc) ser o mais
elevado
Para compreender o que isto quer dizer importa ter presente desde jaacute o seguinte
O aparecimento e a experiecircncia varia muito significativamente ndash daacute lugar a apareci-
mentos e ldquoexperiecircnciasrdquo completamente diferentes ndash consoante esteja ou natildeo sob algum tipo
de pressatildeo (consoante tenha ou natildeo algum tipo de ldquoem causardquo)
Consideremos em primeiro lugar a possibilidade de o aparecimento e a experiecircncia
corresponder a algo livre de qualquer tipo de pressatildeo
Por efeito de uma peculiar distracccedilatildeo muitas (e ateacute mesmo a maior parte das) vezes o
campo de aparecimento e de experiecircncia em que damos connosco eacute descrito como se se tratas-
se de um meio totalmente neutro onde haacute estes e aqueles dados esta e aquela forma de elabo-
raccedilatildeo deles etc
Por outras palavras fala-se como se o aparecimento (a experiecircncia) estivesse constituiacute-
do de tal modo que natildeo estatildeo sujeito a qualquer espeacutecie de pressatildeo ocorresse num contexto
marcado por total ausecircncia de tensatildeo por total natildeo-indiferenccedila onde tudo eacute igual a tudo etc
Num contexto desse tipo se haacute aparecimento haacute aparecimento se o aparecimento cessar ces-
sa se o que aparece eacute isto eacute isto se o que aparece eacute o oposto eacute o oposto
Em princiacutepio nada impede que o aparecimento e a experiecircncia possam ter lugar num
meio marcado por total ausecircncia de pressatildeo ndash onde haver aparecimento ou natildeo haver o apare-
cimento ter este teor ou aquele teor natildeo faz qualquer diferenccedila Pois pura e simplesmente natildeo
haacute nenhum fluxo de natildeo-indiferenccedila nenhum requisito nenhum ldquoprogramardquo ndash e o proacuteprio
aparecer ou natildeo aparecer (sc o teor do aparecimento que haacute) natildeo estaacute sujeito a nenhuma peti-
ccedilatildeo ou exigecircncia de tal modo que natildeo satisfaz nem deixa de satisfazer nada
Um quadro completamente diferente e oposto a este eacute aquele em que pelo contraacuterio
natildeo haacute apenas aparecimento (isto e aquilo que se daacute a ver com este e aquele teor etc) mas su-
cede em vez disso que o proacuteprio acontecimento de aparecer aquilo que aparece estaacute perpassa-
do por um fluxo de natildeo-indiferenccedila e sujeito agrave pressatildeo desse fluxo
222
Num quadro deste geacutenero o proacuteprio curso do aparecimento (quer dizer ele ter lugar
ou natildeo ter lugar continuar a ter lugar ou natildeo e vir com este teor ou com aquele etc) cumpre
ou natildeo (satisfaz ou natildeo satisfaz ndash e satisfaz deste e daquele modo plenamente bastante algu-
ma coisa o que seja) o programa de natildeo-indiferenccedila que sobre ele ldquoimpenderdquo
Ora mesmo que muitas descriccedilotildees do acontecimento de aparecimento em que damos
connosco procedam como se o que se passa em noacutes tivesse as caracteriacutesticas de um apareci-
mento neutro sem qualquer tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a verdade eacute que natildeo estamos constituiacute-
dos deste modo e vendo bem natildeo fazemos mesmo a mais pequena ideia do que possa ser
algo assim
Por uma questatildeo de economia designamos a conformaccedilatildeo do aparecimento e da expe-
riecircncia caracterizada pela total ausecircncia de qualquer pressatildeo (de qualquer natildeo-indiferenccedila de
qualquer peticcedilatildeo ou quesito) a partir da figura do ldquopuro espectadorrdquo
O puro espectador estaacute natildeo soacute completamente privado de ldquoprogramardquo como estaacute tam-
beacutem privado tanto da possibilidade de conflito entre um ldquoprogramardquo e o curso efectivamente
seguido pelo aparecimento que haacute quanto da possibilidade de este uacuteltimo satisfazer o ldquopro-
gramardquo De facto como vimos nada impede que haja casos de aparecimento e de experiecircncia
correndo neste meio de total sossego ndash correspondentes agravequilo a que chamamos o apareci-
mento e a experiecircncia do puro espectador
Acontece poreacutem que noacutes natildeo somos puros espectadores Na verdade estamos mesmo
muito longe de o ser
A primeira coisa a que importa estar atento eacute que um aparecimento e um campo de ex-
periecircncia constituiacutedos na oacuteptica de um puro espectador e um aparecimento ou campo de expe-
riecircncia atravessados ou percorridos por tensatildeo de natildeo-indiferenccedila satildeo coisas muito diferentes
ndash tanto assim que caeteris paribus bastaria esta diferenccedila para pocircr os respectivos aconteci-
mentos de aparecimento (os respectivos campos de experiecircncia) a uma incriacutevel distacircncia um
do outro
Em segundo lugar haacute tambeacutem que ter presente que um campo de aparecimento e de
experiecircncia tambeacutem pode estar constituiacutedo de tal modo que comporta um quantum de natildeo-in-
diferenccedila mas apenas em surtos ocasionais e circunscritos ndash de tal maneira que o campo de
aparecimento e de experiecircncia em causa natildeo estaacute radicalmente subtraiacutedo agrave neutralidade
223
Aleacutem disso pode igualmente acontecer que ainda que a presenccedila de quesitos ou facto-
res de pressatildeo esteja muito disseminada esses quesitos ou essa pressatildeo tenha um caraacutecter de
algum modo acessoacuterio ou superveniente
O que acontece no nosso caso natildeo eacute um campo de aparecimento e de experiecircncia cons-
tituiacutedo desse modo
A pressatildeo de natildeo-indiferenccedila que atravessa o campo de aparecimento e de experiecircn-
cia eacute inerente constante e central ndash de tal modo que absolutamente nada do que aparece estaacute
subtraiacutedo ao efeito desta espeacutecie de tensatildeo ou ldquopressatildeo atmosfeacutericardquo do aparecer e a tensatildeo ou
ldquopressatildeo atmosfeacutericardquo desempenha em relaccedilatildeo a tudo um papel decisivo
Aqui entra em cena um outro aspecto que tem que ver com a natureza da pressatildeo ou
da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que pode percorrer um campo de aparecimento ou de experiecircn-
cia e que constitui como dissemos a sua ldquopressatildeo atmosfeacutericardquo
Faccedilamos notar que tambeacutem neste caso nada do que podemos dizer vem de uma pers-
pectiva soberana perfeitamente conhecedora de todas as possibilidades O que estamos em
condiccedilotildees de dizer radica num ponto de vista finito sempre sujeito agrave possibilidade de haver
muitas mais possibilidades do que aquelas que se consegue identificar
Seja como for desenham-se no fundamental duas possibilidades ndash ambas correspon-
dentes a algo muito diferente do que designaacutemos como o campo de aparecimento e de expe-
riecircncia de um puro espectador e tambeacutem ambas radicalmente diferentes uma da outra
A primeira dessas possibilidades eacute aquela que tem que ver com uma pressatildeo de natildeo-
indiferenccedila com um caraacutecter cognitivo
Pode acontecer que um acontecimento de aparecimento (e nele um campo de expe-
riecircncia) esteja constituiacutedo de tal modo que eacute portador de quesitos cognitivos ndash de qualquer
coisa como um programa cognitivo (um conjunto de exigecircncias de esclarecimento ou de ob-
tenccedilatildeo de saber etc) Se for assim a pressatildeo ou a natildeo-indiferenccedila que percorre o aparecer e o
campo de experiecircncia estaacute voltada sobre ele de tal modo que potildee tudo o que aparece sob a
exigecircncia de consecuccedilatildeo de metas cognitivas
Mesmo que natildeo possamos analisar nada disto de forma circunstanciada importa ter
presente que esta pressatildeo cognitiva (esta natildeo-indiferenccedila de ordem cognitiva ndash este em-causa
cognitivo) pode assumir diversas formas
224
Por um lado pode tratar-se de um programa cognitivo com um conjunto de metas
ldquomateriaisrdquo (por exemplo saber x y ou z acompanhar tudo o que se passa num determinado
raio de alcance etc) Por outro lado tambeacutem pode acontecer que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila
cognitiva tenha um caraacutecter puramente formal (por exemplo o cumprimento integral do ideal
cognitivo ndash saber tudo o que haja a saber)
Mesmo que correspondam a duas espeacutecies do mesmo tipo de tensatildeo de natildeo-indiferen-
ccedila estas duas modalidades de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila satildeo suficientes soacute por si para consti-
tuirem campos de aparecimento e de experiecircncia com caracteriacutesticas muito diferentes
Acresce entretanto que haacute uma segunda forma de natildeo-indiferenccedila completamente di-
ferente da tensatildeo cognitiva
A segunda dessas possibilidades eacute aquela que tem que ver com uma pressatildeo de natildeo-in-
diferenccedila que seguindo a tradiccedilatildeo podemos designar como natildeo-indiferenccedila com caraacutecter
praacutetico (como uma pressatildeo praacutetica a que correspondem quesitos de natureza praacutetica etc)
Neste caso a pressatildeo de natildeo-indiferenccedila tem que ver com um cuidado consigo mesmo
ndash um cuidado com quem estaacute lanccedilado no proacuteprio aparecimento e eacute moldado determinado
afectado por aquilo que aparece nele
Quer dizer trata-se de uma natildeo-indiferenccedila relativa agrave situaccedilatildeo em que se estaacute ou esta-
raacute Ou para usar a expressatildeo do Teeteto de Platatildeo trata-se de uma natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo
a ἀμείνων ἕξις (cf 167a3-4)
Tambeacutem neste caso a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila pode ter que ver com um programa
ldquomaterialrdquo de metas praacuteticas (estes e aqueles desideratos concretos odernados desta e daquela
forma etc) ou com um programa formal (como sucede no nosso caso o programa do super-
lativo ndash do que for melhor)66
66
De tal modo que o compromisso ou a vinculaccedilatildeo fundamental da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila praacutetica ndash
e temos aqui especialmente em vista a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva aquilo a que se aspira ndash natildeo
eacute um conjunto fixo de objectivos praacuteticos mas propriamente o maacuteximo que pode ser Isso natildeo signifi-
ca que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila natildeo precisa de desideratos concretos definidos etc significa na
verdade que todos os desideratos concretos definidos etc estatildeo postos sob a pressatildeo formal do maacute-
ximo De sorte que se desideratos concretos natildeo conseguem valer como o superlativo ou o maacuteximo
possiacutevel (se se descobre que o maacuteximo eacute outra coisa que natildeo eles) entatildeo a tendecircncia que se tem eacute para
uma outra coisa enquanto essa outra coisa que parece corresponder ao maacuteximo
225
Mais tarde procuraremos ver melhor em que radica este tipo de tensatildeo de natildeo-indi-
ferenccedila mas haacute um ponto que cumpre considerar jaacute aqui para desfazer equiacutevocos que podem
perturbar a compreensatildeo da sua natureza
O facto de se tratar de uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila fundamentalmente praacutetica (e
portanto natildeo-cognitiva natildeo dirigida ao cumprimento de um programa cognitivo etc) natildeo
significa que seja forccedilosamente desprovida de ldquoprograma cognitivordquo Com efeito a proacutepria
pressatildeo do interesse ou da natildeo-indiferenccedila de ordem praacutetica pode gerar vinculaccedilatildeo a metas
cognitivas
Damos dois exemplos para se perceber o que temos em vista
Por um lado se o interesse praacutetico estiver votado agrave obtenccedilatildeo de determinadas metas
praacuteticas torna relevante o conhecimento que eacute necessaacuterio para a ndash ou de todo o modo pode
ajudar agrave ndash obtenccedilatildeo das metas em causa
Por outro lado se a tensatildeo de interesse eacute primariamente uma tensatildeo formal (dirigida a
qualquer coisa como um superlativo) entatildeo potildee tudo na dependecircncia de um diagnoacutestico ade-
quado do que eacute afinal o melhor (das metas concretas que correspondem ao superlativo) e ge-
ra tensatildeo de interesse em relaccedilatildeo a esse desiderato cognitivo
O ponto importante eacute que neste caso a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a metas
cognitivas natildeo eacute a tensatildeo de interesse original tem um caraacutecter derivado Eacute isso que distin-
gue a tensatildeo de interesse propriamente cognitiva e a tensatildeo de ordem praacutetica (sc a pressatildeo de
natildeo-indiferenccedila a metas cognitivas que pode fazer parte da pressatildeo de natildeo-indiferenccedila de or-
dem propriamente praacutetica)
Um acontecimento de aparecimento (e um campo de experiecircncia) que estejam marca-
dos por pressatildeo de interesse cognitivo tecircm essa pressatildeo a dominaacute-los soacute por si ndash quer dizer a
natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a metas cognitivas vale por si estaacute fundada apenas em si mesma
etc
Pelo contraacuterio na tensatildeo de natildeo-indiferenccedila com caraacutecter originalmente praacutetico o inte-
resse por metas cognitivas soacute entra em cena de forma derivada se ndash e na medida em que ndash o
interesse praacutetico gerar a partir de si (quer dizer a partir de uma preocupaccedilatildeo natildeo original-
mente cognitiva) natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a metas cognitivas
Nada disto significa que a relaccedilatildeo entre estas duas formas de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila
(ou de ldquoem causardquo) tenha de corresponder a uma alternativa ndash de tal modo que todo o campo
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de aparecimento ou de experiecircncia dominado por uma tensatildeo de interesse ou natildeo-indiferenccedila
tenha de ter obrigatoriamente ou uma ou a outra destas duas modalidades
De facto por uma parte e em resultado da finitude que atraacutes referimos nada garante
que natildeo haja ainda outras formas de natildeo-indiferenccedila para laacute destas duas possibilidades que es-
tamos em condiccedilotildees de identificar
Por outra parte nada impede que estas duas modalidades de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila
possam coexistir no mesmo acontecimento de aparecer (sc no mesmo campo de experiecircncia)
Acontece eacute que se houver tal coexistecircncia tudo dependeraacute da relaccedilatildeo de forccedilas entre as duas
componentes dessa tensatildeo de natildeo-indiferenccedila mista67
Algo de equivalente vale em relaccedilatildeo a um outro aspecto que aqui cabe referir e que
tem que ver com o seguinte
Resulta do que dissemos que o facto de um acontecimento de aparecimento ou de um
campo de experiecircncia estar dominado por uma determinada modalidade de tensatildeo de natildeo-in-
diferenccedila natildeo significa necessariamente que essa tensatildeo de natildeo-indiferenccedila seja simples Mes-
mo que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que se faz sentir seja apenas de um tipo (soacute uma pressatildeo
originalmente cognitiva ou soacute uma pressatildeo originalmente praacutetica) pode muito bem acontecer
que natildeo tenha um ldquoprogramardquo simples ndash que natildeo corresponda a uma uacutenica linha de pressatildeo
dirigida a uma uacutenica coisa
Ou seja pode muito bem acontecer que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila corresponda a
qualquer coisa como um feixe com muacuteltiplos fluxos dirigidos a metas natildeo-idecircnticas
Ora sendo assim tambeacutem neste caso tudo depende da relaccedilatildeo de forccedilas entre os di-
versos fluxos que compotildeem o feixe da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que percorre o campo de
aparecimento e de experiecircncia68
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Note-se a diferenccedila entre a possibilidade de que estamos a falar e aquilo que dissemos anteriormen-
te Antes referimos que a proacutepria tensatildeo de interesse praacutetico pode gerar a partir de si mesma e no seu
proacuteprio quadro uma tensatildeo derivada de interesse cognitivo Agora estamos a referir algo muito dife-
rente a possibilidade de haver no mesmo acontecimento de acesso e no mesmo campo de experiecircncia
duas tensotildees originais em coexistecircncia uma com a outra ao lado uma da outra e em combinaccedilatildeo uma
com a outra (quer dizer em combinaccedilatildeo desses dois fluxos de tensatildeo independentes um do outro ne-
nhum dos quais decorre do outro)
68 O que estamos a ver eacute que o nosso ponto de vista eacute composto de ldquoem causardquo subordinantes e de ldquoem
causardquo subordinados E sendo assim podemos nesta nota explicar a conformaccedilatildeo do complexo de
ldquoem causardquo fazendo apelo ao fenoacutemeno da ldquosubordinaccedilatildeordquo a que jaacute definimos atraacutes os contornos for-
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mais Por um lado cada ldquoem causardquo singular representa um momento a caminho de um ldquoem causardquo
mais vasto ndash e por sua vez cada ldquoem causardquo mais vasto representa tambeacutem ele um momento a cami-
nho de um ldquoem causardquo mais vasto etc Estamos a procurar sublinhar o aspecto que mostra que a rela-
ccedilatildeo entre pressotildees eacute uma relaccedilatildeo temporalmente extensa ndash e tanto quer dizer por um lado a) que eacute
uma relaccedilatildeo que se espraia que permanentemente antecipa a sua continuaccedilatildeo etc quanto quer di-
zer por outro lado b) que o que estaacute em jogo eacute uma apresentaccedilatildeo que natildeo eacute neutra quanto agrave amplitu-
de da extensatildeo temporal Assim a importacircncia de cada ldquoem causardquo singular equivale agrave importacircncia
que adquire no encaminhamento para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causardquo mais vasto que o compreende
e equivale agrave posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem
ou convergem para o ldquoem causardquo mais vasto que os compreende ndash mas equivale tambeacutem agrave importacircn-
cia que adquire no encaminhamento para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causa regionalrdquo e equivale agrave po-
siccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem cau-
sa regionalrdquo A mesma estrutura de encadeamento vale ainda para os ldquoem causardquo locais Ou seja a
importacircncia de cada ldquoem causardquo singular equivale agrave importacircncia que adquire no encaminhamento
para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causardquo mais vasto e equivale agrave posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo
a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem causa geralrdquo equivale tambeacutem agrave impor-
tacircncia que adquire no encaminhamento para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causa regionalrdquo e equivale agrave
posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem
causa regionalrdquo ndash mas equivale tambeacutem por fim agrave importacircncia que adquire no encaminhamento
para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causa localrdquo e equivale agrave posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a to-
dos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem causa localrdquo etc Na verdade natildeo parece
haver limite para o cardinal de niacuteveis hieraacuterquicos de ldquoem causardquo de cada vez a operar Assim o va-
lor que cada ldquoem causardquo singular adquire corresponde a uma posiccedilatildeo num ldquolequerdquo com uma enorme
amplitude de variaccedilatildeo O valor de cada ldquoem causardquo singular eacute resultado de uma peculiar relaccedilatildeo de
forccedilas eacute resultado por um lado da complexidade da hierarquia (da quantidade de ldquoniacuteveisrdquo que ela
comporta) e por outro da complexidade de ldquoem causardquo implicados ou contra os quais concorre em
cada um dos muacuteltiplos niacuteveis etc O que de qualquer modo deve ficar claro eacute que natildeo soacute cada ldquoem
causardquo natildeo estaacute isolado de um ldquoem causardquo mais vasto (e no limite de um ldquoem causardquo omni-englo-
bante) como natildeo estaacute igualmente isolado de todos os restantes ldquoem causardquo Na verdade cada ldquoem
causardquo ganha ou perde relevo tanto a) na medida em que cumpre (ou natildeo) ldquoem causardquo mais vastos (e
em que grau com que influecircncia com que peso etc) quanto b) no confronto com os restantes ldquoem
causardquo (consoante a posiccedilatildeo ndash a forccedila o peso o relevo etc ndash que adquire no complexo de ldquoem causardquo
que estatildeo em tensatildeo de cumprimento de ldquoem causardquo mais vastos) Tudo isto deixa ver o seguinte Ca-
da ldquoem causardquo singular que compotildee um determinado complexo de ldquoem causardquo que por sua vez com-
potildee um determinado ponto de vista refere-se na verdade ao cumprimento do ldquoem causardquo omni-en-
globante Dito por outras palavras o que estaacute efectivamente em jogo no concurso dos muacuteltiplos ldquoem
causardquo de que eacute composto um determinado complexo de ldquoem causardquo eacute saber qual (ou quais) dos ldquoem
causardquo concorrentes preenche (ou preenchem) os requisitos do ldquoem causardquo omni-englobante que posi-
ccedilatildeo ocupa perante o ldquoem causardquo omni-englobante como o satisfaz etc
Ora tudo isto pode acontecer sem se ter qualquer notiacutecia disso Quer dizer pode entender-se o caso
de tal modo que o que se desenha eacute um mero tracircnsito entre ldquoem causardquo (agora este depois aquele por
fim o outro etc) de tal modo que o tracircnsito parece corresponder a uma sucessatildeo de saltos (de momen-
tos sem outra conexatildeo entre si para laacute da contiguidade ndash ie para laacute do facto de se sucederam ou ante-
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Com isto fica desenhado o fundamental
Um dos mais decisivos factores de conformaccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia eacute a)
estar ou natildeo estar algo em causa no aparecimento e na experiecircncia (haver ou natildeo haver uma
tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a percorrer o aparecimento) e por outro lado tambeacutem b) a natureza
ou se assim se pode dizer a orientaccedilatildeo da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que percorre o apareci-
mento Tudo isto de tal modo que a estes dois pontos corresponde uma multiplicidade de pos-
sibilidades jaacute no que diz respeito ao contraste entre campos de aparecimento totalmente neu-
tros (marcados por completa ausecircncia de qualquer tensatildeo) ndash jaacute no que diz respeito ao contraste
entre campos de aparecimento marcados apenas por interesse cognitivo (totalmente livres de
qualquer interesse de ordem praacutetica) campos de aparecimento marcados apenas por interesse
praacutetico (totalmente livres de interesse originalmente cognitivo que soacute incluem interesses cog-
nitivos derivados do interesse praacutetico) e campos de aparecimento dominados pela presenccedila
destas duas formas de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (postas numa determinada relaccedilatildeo de forccedilas
que pode justamente ser diferente consoante os casos) A tudo isto acresce finalmente o con-
traste entre a possibilidade de cada uma destas modalidades de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila rei-
nar em fluxos simples (ou relativamente simples) ou pelo contraacuterio na forma de feixes de
tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (programas de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila) com diversos graus de
complexidade
Isto configura se assim se pode dizer como que um sistema de ldquoagulhasrdquo ndash no sentido
ferrovaacuterio do termo ndash que podem fazer seguir o aparecimento e a proacutepria experiecircncia para
ldquodestinosrdquo (quer dizer para conformaccedilotildees do que aparece e especificamente para conforma-
ccedilotildees da proacutepria experiecircncia) muito diferentes De sorte que ainda que por inadvertecircncia pos-
samos (e ateacute tendamos a) natildeo contar este factor entre os ldquoingredientesrdquo que decidem a compo-
siccedilatildeo da experiecircncia trata-se na verdade de um ingrediente marcante e ateacute decisivo
A pista que aqui fica lanccedilada deve ser perseguida mais adiante
E a pista eacute a seguinte no tracircnsito de ldquoem causardquo em que nos encontramos aquilo que
estaacute fundamentalmente ldquoem causardquo e que tem um caraacutecter decisivo no modo como aparece o
cederam uns aos outros) Na verdade tudo isto aponta para a possibilidade de no modo como habi-
tualmente nos aparece o que aparece a) natildeo se estar ciente de que haacute algo como um ldquoem causardquo
omni-englobante b) do caraacutecter decisivo que o ldquoem causardquo omni-englobante tem sobre o que aparece
(na determinaccedilatildeo do modo como aparece o que aparece)