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i Lisboa, 2015 Tese de Doutoramento em Filosofia (Especialidade em Antropologia Filosófica) Aspectos fundamentais da experiência da vida Bruno Pedro Peixoto Venâncio

Aspectos fundamentais da experiência da vida...RESUMO PALAVRAS-CHAVE: experiência, vida, não-indiferença, ipseidade, superlativo, possibili-dade, significado A tese que de seguida

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Page 1: Aspectos fundamentais da experiência da vida...RESUMO PALAVRAS-CHAVE: experiência, vida, não-indiferença, ipseidade, superlativo, possibili-dade, significado A tese que de seguida

i

Lisboa 2015

Tese de Doutoramento em Filosofia

(Especialidade em Antropologia Filosoacutefica)

Aspectos fundamentais da

experiecircncia da vida

Bruno Pedro Peixoto Venacircncio

Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessaacuterios agrave obtenccedilatildeo do grau

de Doutor em Filosofia (Especialidade em Antropologia Filosoacutefica) realizada sob a

orientaccedilatildeo cientiacutefica do Professor Doutor Maacuterio Jorge Pereira de Almeida Carvalho

AGRADECIMENTOS

Devo uma primeira menccedilatildeo aos Professores Doutores Antoacutenio de Castro Caeiro Carlos Joatildeo

Correia Luiacutes Umbelino Mafalda Eiroacute Gomes Maria Joatildeo Silveira Nuno Ferro Paulo Lima Pau-

lo Lourenccedilo e Siacutelvia Rosado por numa ou noutra fase da realizaccedilatildeo desta tarefa nela terem to-

mado parte ou a terem incentivado

Tenho uma diacutevida para com a Unidade de Investigaccedilatildeo e Desenvolvimento LIF ndash Linguagem In-

terpretaccedilatildeo e Filosofia sediada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e em es-

pecial para com o seu director o Professor Doutor Antoacutenio Martins por se ter associado a este

projecto

Tive a sorte de vir a ter como colegas no Departamento de Filosofia da Universidade Nova de

Lisboa um grupo de jovens investigadores excepcionalmente talentosos e empenhados que

acompanharam e contribuiacuteram significativamente para esta tarefa Lembro-me nesta hora de

Baacuterbara Silva Bernardo Enes Dias e Tomaz Fidalgo lembro-me de Nuno Marques da Silva e da

sua tese de Doutoramento intitulada ldquoIdentidade e Vida em Virginia Woolf ndash Uma anaacutelise da

expressatildeo literaacuteria de um problema filosoacuteficordquo ndash tese de que a minha eacute em muitos aspectos

herdeira e lembro-me em especial de Heacutelder Telo Samuel Oliveira e Vasco de Jesus cuja ami-

zade e generosidade excedeu em muito a que eu mereci

Esta tese deve-se ao Professor Doutor Maacuterio Jorge Carvalho Deve-se a ele antes de mais a

sua existecircncia material ndash por nunca se ter deixado vencer pela minha desorientaccedilatildeo e pela te-

nacidade que lhe foi necessaacuteria para levar a tese a bom porto E deve-se a ele principalmente

o conteuacutedo ndash que resulta de uma tentativa de fixar uma pequena parte das investigaccedilotildees a que

dedicou a vida

Natildeo posso esquecer todos aqueles que possam ter sido pessoalmente negligenciados ao longo

dos anos que esta tarefa durou Espero ainda ir a tempo de os alcanccedilar e de partilhar com eles

o que reste de caminho

Devo tambeacutem mencionar aqueles que natildeo estatildeo porque me abasteccedilo daquilo que deixaram

A uacuteltima palavra eacute para a famiacutelia Para a D Eduarda que me aceitou como um dos seus para a

minha avoacute e a minha matildee que satildeo as verdadeiras responsaacuteveis por tudo de bom que eu vier a

alcanccedilar para a Duda e a Mia que satildeo a minha casa Porque eacute precisamente isso que quero di-

zer tomo como minhas essas palavras amaldiccediloadas Obrigado por tudo

ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA EXPERIEcircNCIA DA VIDA

Bruno Pedro Peixoto Venacircncio

RESUMO

PALAVRAS-CHAVE experiecircncia vida natildeo-indiferenccedila ipseidade superlativo possibili-

dade significado

A tese que de seguida se esboccedila assenta sobre uma inquietaccedilatildeo fundamental o facto de cada um dar por si atirado na vida de quando cada um daacute por si dar por si a ser vida etc Acontece que logo que se tenta focar mais precisamente de que eacute de que se trata quando se trata da ldquovidardquo nota-se que esse fenoacutemeno tem habitualmente a forma de um acontecimento anoacutenimo natildeo se sabe bem a que eacute que corresponde que conteuacutedos tem que estruturas fundamentais a suportam etc Isto eacute somos levados pela vida (passamos pela vida atravessamo-la estamos expostos a ela etc) sem saber exactamente a que eacute que estamos expostos o que eacute que nos leva sobre que pilares assenta a nossa vivecircncia e a nossa compreensatildeo dela etc A tese que se segue natildeo tem a pretensatildeo de deixar definitivamente respondidas estas perguntas tudo o que faz na verdade eacute meramente proceder a um breve levantamento ou a um registo de algumas das estruturas fundamentais da vida a partir do acircngulo da experiecircncia da vida E como se espera deixar claro procurar a resposta a partir do acircngulo da experiecircncia (do acircngulo da experiecircncia da vida) natildeo eacute algo acidental ou fortuito O que se procuraraacute apurar eacute se natildeo haveraacute tais laccedilos de afinidade entre ldquovidardquo e ldquoexperiecircnciardquo que todas as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia tecircm lugar numa vinculaccedilatildeo e estatildeo subordinadas agraves estruturas fundamentais da vida (estruturas que ultrapassam o acircmbito da ldquoexperiecircnciardquo) e que assim tambeacutem a vida tenha de raiz no modo como nela somos levados e conduzidos a estrutura ou a forma da ldquoexperiecircnciardquo

THE ldquoEXPERIENCE OF LIFErdquo KEY ASPECTS

Bruno Pedro Peixoto Venacircncio

ABSTRACT

KEYWORDS experience life non-neutrality ipseity superlative possibility meaning

The thesis we will try to outline rests upon the fact that each of us finds himself thrown into life upon the fact that when one happens to find oneself one finds one-self already in life or being life But as it turns out when one tries to focus exactly what one means by ldquoliferdquo it becomes clear that such phenomenon presents itself broadly speaking as an anonymous event when under pressure we realize it is un-certain what we mean by ldquoliferdquo and we find ourselves hesitating to come forward with a strict and precise definition ndash and that for no other reason than the fact that by ldquoliferdquo we mean many different and sometimes conflicting things And that being so we are led by life (we go through life we cross life we are exposed to life and so on) without any clear insight as to what are we exposed to as to what guides us as to upon which foundations is set our understanding of it The purpose of this thesis is not to set any conclusive answers to these questions in fact all it does is merely to carry out a brief survey or a brief record of some of the fundamental structures of life having as a start-ing point the experience of life We hope to show that to search for the answer having as the starting point the ldquoexperience of liferdquo is no random search We will try to ad-dress the possibility of a connection between ldquoliferdquo and ldquoexperiencerdquo such as that all the operations of ldquoexperiencerdquo are linked to the fundamental structures of ldquoliferdquo and such as that ldquoliferdquo presents itself as we cross it as ldquoexperiencerdquo

Aspectos fundamentais da

experiecircncia da vida

Versatildeo corrigida e melhorada apoacutes a defesa puacuteblica

Tese de Doutoramento em Filosofia

(Especialidade em Antropologia Filosoacutefica)

Lisboa 2015

Para a Mia

a quem tenho a deixar pouco mais

do que aquilo que aprendi

IacuteNDICE

PREAcircMBULO

sect0 O fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo enquanto problema filosoacutefico ndash Determinaccedilatildeo do acircn-

gulo deste estudo um levantamento ou um registo de algumas das estruturas fundamentais

da vida a partir do acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash A estrateacutegia ldquoimpressionistardquo de investi-

gaccedilatildeo que se seguiraacute

LIVRO I EXPERIEcircNCIA

INTRODUCcedilAtildeO

sect1 A dispersatildeo dos usos quotidianos do termo experiecircncia e a necessidade de remissatildeo agrave no-

ccedilatildeo de ἐμπειρία em Aristoacuteteles (Metafiacutesica I I e Analiacuteticos Posteriores II XIX) paacuteg 2

sect2 O desdobramento da noccedilatildeo de ἐμπειρία na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica os aspectos da doa-

ccedilatildeo da duraccedilatildeo e da impossibilidade de antecipaccedilatildeo paacuteg 7

sect3 A ἐμπειρία integrada no quadro geral de identificaccedilatildeo da σοφία a ἐμπειρία como uma

modalidade de saber possiacutevel do intervalo global entre o miacutenimo e o maacuteximo de saber ndash A

desformalizaccedilatildeo da σοφία apresentada no modo de uma escala de possibilidades de acesso

e a pergunta que posiccedilatildeo ocupa na escala o acontecimento de acesso em que nos temos paacuteg 11

I EXPERIEcircNCIA

sect4 A forma de aparecimento que mais deixa escondido isso que de algum modo potildee jaacute agrave

mostra paacuteg 26

sect5 A noccedilatildeo histoacuterica de αἴσθησις na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica e a pergunta de que eacute feito o

aparecimento paacuteg 29

sect6 A fulcral inflexatildeo aristoteacutelica a αἴσθησις como modalidade de acesso com uma perspec-

tiva confinada no que diz respeito ao tempo ndash A ininteligibilidade entre o modo de acesso

meramente esteacutesico e o modo de acesso que nos constitui paacuteg 33

sect7 A μνήμη como persistecircncia do jaacute percebido o factor da supressatildeo da vertigem perceptiva

e o factor do desdobramento temporal ndash A co-apresentaccedilatildeo do tempo e a sucessatildeo paacuteg 44

sect8 O confinamento em que incorre a μνήμη a μνήμη natildeo potildee nada que abra perspectiva so-

bre o futuro paacuteg 52

sect9 Abordagem agrave ἐμπειρία a partir da chave ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος

μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν ἀποτελοῦσινrdquo (Metafiacutesica 980b28) ndash O contraste entre a pluralida-

de mneacutesica e a unidade empiacuterica paacuteg 58

sect10 A transgressatildeo do dado e a produccedilatildeo de fixaccedilotildees de estados-de-coisas permanentes paacuteg 64

sect11 O caraacutecter de evidecircncia o encobrimento da projecccedilatildeo empiacuterica atraveacutes da fixaccedilatildeo de

uma lei paacuteg 69

sect12 A mudanccedila da matriz do reconhecimento da realidade produzida pela ἐμπειρία a fixa-

ccedilatildeo da ldquonaturezardquo do que aparece e a operaccedilatildeo de desconfinamento da perspectiva para to-

talidades muito para laacute do que de cada vez se tem dado paacuteg 72

sect13 A trama de confirmaccedilotildees e corroboraccedilotildees implicada na ἐμπειρία e os riscos em que con-

tinuamente incorre a projecccedilatildeo empiacuterica paacuteg 81

CONCLUSAtildeO

sect14 A ἐμπειρία enquanto algo que incide sobre o καθόλου ndash Um elo de conexatildeo entre ἐμπει-

ρία e γνωμολογία paacuteg 91

sect15 A ilusatildeo de acompanhar e perceber o ldquoporquecircrdquo das coisas paacuteg 104

sect16 A ἐμπειρία enquanto algo que ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo que natildeo cumpre o

que promete e que natildeo procura aquilo que jaacute julga ter paacuteg 111

LIVRO II EXPERIEcircNCIA DA VIDA

INTRODUCcedilAtildeO

sect17 Os sentidos muito diversos da noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo a ldquoexperiecircncia da vidardquo co-

mo mero ramo da experiecircncia ou toda a experiecircncia tal como acontece em noacutes sempre jaacute

de raiz ldquoexperiecircncia da vidardquo paacuteg 117

sect18 O caraacutecter oacutebvio vago desfocado e equiacutevoco da noccedilatildeo habitual de ldquovidardquo ndash Abordagem

preliminar agrave noccedilatildeo de ldquovidardquo a unidade maacutexima do aparecimento na primeira pessoa paacuteg 121

II EXPERIEcircNCIA DA VIDA

PRIMEIRA PARTE

sect19 A experiecircncia tal como tem lugar em noacutes estaacute vinculada a um quadro determinado

quanto ao teor e agrave amplitude ndash O acircmbito das totalidades a que a experiecircncia e a organizaccedilatildeo

da experiecircncia dizem respeito ndash O desfazamento entre a magnitude do empreendimento da

ἐμπειρία e as caracteriacutesticas das determinaccedilotildees disponiacuteveis o modelo ldquoalfabeacuteticordquo paacuteg 128

sect20 A variabilidade da ἐμπειρία quanto agrave amplitude da ascensatildeo em direcccedilatildeo a determina-

ccedilotildees mais geneacutericas e quanto agrave forma de cristalizaccedilatildeo na captaccedilatildeo da afinidade a scala praelig-

dicamentalis paacuteg 138

sect21 A complexidade da experiecircncia e os modos de cruzamento das determinaccedilotildees entre si ndash

A experiecircncia sintonizada por unidades colectivas de determinaccedilotildees paacuteg 143

sect22 A variaccedilatildeo no niacutevel de acuidade a relaccedilatildeo entre o grau de determinaccedilatildeo com que as

ldquocoisasrdquo nos aparecem e a exigecircncia de determinaccedilatildeo que enfrentam ndash A inadvertecircncia em

relaccedilatildeo agrave multiplicidade de determinaccedilotildees que conformam o teor do que nos aparece paacuteg 150

sect23 O desdobramento da experiecircncia em dois planos a superfiacutecie e a profundidade da expe-

riecircncia (Kant) ndash Pascal e ldquolrsquoautomaterdquo paacuteg 167

sect24 Diversos modelos possiacuteveis de organizaccedilatildeo da multiplicidade das determinaccedilotildees nexos

de coordenaccedilatildeo nexos de subordinaccedilatildeo regimes mistos e suas implicaccedilotildees paacuteg 177

sect25 A distribuiccedilatildeo das diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees por diferentes pla-

nos de relevacircncia ao longo do campo do que nos aparece ndash O nuacutecleo de importacircncia superla-

tiva como aquilo de que fundamentalmente trata o acontecimento de acesso ndash A possibilida-

de de a scala praeligdicamentalis traduzir a forma como estaacute internamente organizada a fixa-

ccedilatildeo do que nos aparece paacuteg 186

sect26 Uma certa margem de heterogeneidade que tem que ver com a diversidade do ldquoquecircrdquo da

experiecircncia experiecircncia de factos experiecircncia de significados e experiecircncia de factos e de

significados paacuteg 207

sect27 A variaccedilatildeo da experiecircncia consoante esteja ou natildeo sob algum tipo de pressatildeo (consoan-

te tenha ou natildeo algum tipo de ldquoem causardquo) ndash A pressatildeo de natildeo-indiferenccedila de natureza praacuteti-

ca o cuidado consigo mesmo paacuteg 220

sect28 As variaacuteveis sensus proprius e sensus communis paacuteg 229

sect29 A nossa como uma modalidade de experiecircncia entre muitas outras modalidades de ex-

periecircncia possiacuteveis ndash Como a experiecircncia que temos eacute sempre jaacute uma experiecircncia do campo

perceptivo uma experiecircncia do campo de familiaridade e uma experiecircncia do exterior do

campo de familiaridade paacuteg 239

SEGUNDA PARTE

sect30 A tentativa de remontar agrave origem da morfologia e da sintaxe da experiecircncia como tenta-

tiva condenada ndash A morfologia de toda a experiecircncia daacute lugar a uma sintaxe de toda a expe-

riecircncia paacuteg 263

sect31 Aquilo que aparece sob a pressatildeo de satisfazer a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que o per-

passa ndash A estrutura de complexidade do aparecer algo-a-aparecer-a-algo ndash A focagem da

componente testemunhal paacuteg 267

sect32 A impossibilidade de indiferenccedila a si ndash O aparecimento como acontecimento centrado na

ldquotestemunha globalrdquo o ldquoquemrdquo a quem aparece o que aparece como o factor que impossibi-

lita a neutralidade do aparecimento ndash A relaccedilatildeo de si a si sob a pressatildeo de um programa de

caraacutecter praacutetico paacuteg 275

sect33 A estrutura da auto-consciecircncia na sua relaccedilatildeo com o objecto em Hegel (Fenomenologia

do Espiacuterito IV B) paacuteg 287

sect34 O caraacutecter natildeo-punctiforme ou natildeo-estigmaacutetico do ponto de vista a natildeo-indiferenccedila ao

que seraacute e a flexatildeo do si-mesmo na forma de uma prescriccedilatildeo indefinida de si paacuteg 302

sect35 A ipseidade tende natildeo soacute para o superlativo quantitativo mas tambeacutem para um superla-

tivo qualitativo ndash O superlativo de superlativos a foacutermula ldquosuperlativo quantitativo x super-

lativo qualitativordquo paacuteg 311

sect36 O territoacuterio da possibilidade do si a dedicaccedilatildeo ao que seraacute-de-si e a pressatildeo gerundiva ndash

O caraacutecter labiriacutentico do quadro de possibilidades do vir-a-ser-de-si paacuteg 318

sect37 O duplo ldquobig bangrdquo do si-mesmo a propagaccedilatildeo sobre a totalidade de si e a propagaccedilatildeo

sobre a totalidade do que aparece ndash A ldquopeccedilardquo de si paacuteg 332

sect38 A organizaccedilatildeo global do que aparece considerada a partir da estrutura de ciacuterculos con-

cecircntricos de Hieacuterocles a presidecircncia centrada do αὐτός e o ldquolugarrdquo das ldquocoisas paacuteg 337

sect39 A vida como ldquoordquo objecto da auto-consciecircncia o modo como a auto-consciecircncia experi-

menta a independecircncia da vida e o que aparece como manifestaccedilatildeo da vida em Hegel (Feno-

menologia do Espiacuterito IV B) paacuteg 354

CONCLUSAtildeO

sect40 O facto de o aparecimento e a experiecircncia terem em noacutes o caraacutecter de aparecimento e

experiecircncia de significados ndash O facto de o ldquosignificadordquo ter um caraacutecter funcional sempre re-

lativo a um criteacuterio global de que eacute portador quem assiste ao aparecimento paacuteg 369

sect41 A noccedilatildeo de significado em V Woolf tudo o que aparece percebido como manifestaccedilatildeo

da forma da vida ndash A vida como objecto de si proacutepria ndash Tudo o que se passa como dado com-

portamental ou traccedilo de caraacutecter da proacutepria vida ndash A relaccedilatildeo com a vida assente sempre jaacute

na antecipaccedilatildeo de um resultado global ndash Como a avaliaccedilatildeo da vida eacute sempre a avaliaccedilatildeo do

ldquocaraacutecterrdquo ldquodisto tudordquo paacuteg 377

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS paacuteg 405

ldquoDesocupado lector sin juramento me podraacutes creer que quisiera que

este libro como hijo del entendimiento fuera el maacutes hermoso el

maacutes gallardo y maacutes discreto que pudiera imaginarse Pero no he

podido yo contravenir al orden de naturaleza que en ella cada cosa

engendra su semejanterdquo

(Do Proacutelogo de Don Quijote de la Mancha de Miguel de Cervantes)

PREAcircMBULO

sect0

O fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo enquanto problema filosoacutefico ndash Determinaccedilatildeo do

acircngulo deste estudo um levantamento ou um registo de algumas das estruturas funda-

mentais da vida a partir do acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash A estrateacutegia ldquoimpressionis-

tardquo de investigaccedilatildeo que se seguiraacute

O que se segue eacute um estudo filosoacutefico sobre o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo

Por si soacute a afirmaccedilatildeo ndash breve e sucinta ndash com que abrimos este breve preacircmbulo pare-

ce natildeo gerar problemas de maior No entanto ela introduz explicitamente um conjunto de pis-

tas que expotildeem desde jaacute uma estrateacutegia ndash pistas que eacute importante e uacutetil natildeo perder de vista

de modo a acompanhar eficazmente o desenvolvimento deste trabalho

Assim conveacutem ter presente antes de mais que este estudo eacute um estudo filosoacutefico e

que o que se visa eacute o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo enquanto problema filosoacutefico

Isto quer dizer antes de mais que a investigaccedilatildeo que se levaraacute a cabo natildeo trataraacute de

pocircr a questatildeo da ldquoexperiecircncia da vidardquo a partir de uma compreensatildeo habitual que tenhamos

desse fenoacutemeno

Aquilo que se pode dizer desde jaacute eacute que noacutes estamos agrave partida na posse de uma noccedilatildeo

quotidiana (ie natildeo-filosoacutefica por assim dizer) do que eacute a ldquoexperiecircncia da vidardquo Isto eacute ao fa-

larmos de ldquoexperiecircncia da vidardquo no sentido mais habitual e comum do termo aquilo de que

se fala natildeo nos eacute de tal modo alheio ou estranho que natildeo sabemos em absoluto de que eacute que se

estaacute a falar Pelo contraacuterio haacute um grau de familiaridade com o tema de tal modo que temos

uma noccedilatildeo ndash mesmo que baccedila desfocada imperfeita etc ndash do que eacute que isso quer dizer do

que eacute que corresponde a tal coisa etc

Neste sentido natildeo parece ser necessaacuterio adoptar um ponto de vista filosoacutefico para que

o tema da ldquoexperiecircncia da vidardquo se produza O tema da ldquoexperiecircncia da vidardquo faz parte (de

forma mais ou menos distante mais ou menos determinado etc) das nossas ocupaccedilotildees quoti-

dianas de tal modo que mesmo num qualquer acircmbito natildeo-filosoacutefico estariacuteamos em condi-

ccedilotildees de dizer algo sobre o assunto

No entanto quando visamos o problema a partir de um meacutetodo filosoacutefico no sentido

do termo ldquofilosofiardquo que aqui estaacute em jogo sentido que natildeo vai ser discutido no curso deste

trabalho aquilo que desde logo nos move eacute uma tensatildeo para averiguar se a noccedilatildeo de ldquoexperi-

ecircncia da vidardquo a que natildeo somos completamente alheios no quotidiano seraacute adequada para dar

efectivamente conta do que se passa quando se fala de ldquoexperiecircncia da vidardquo

Isto eacute na medida em que o ponto de vista filosoacutefico tal como aqui o consideramos

estaacute constituiacutedo sob a pressatildeo de um ideal cognoscitivo (tese que se assume aqui de forma

dogmaacutetica e que natildeo estaraacute no curso deste trabalho exposta a debate) o ponto de vista filosoacute-

fico como que ldquodesconfiardquo da noccedilatildeo quotidiana de ldquoexperiecircncia da vidardquo e potildee-na directa ou

indirectamente a exame E do exame a que o ponto de vista filosoacutefico potildee a noccedilatildeo quotidiana

de ldquoexperiecircncia da vidardquo pode muito bem resultar que se descubra que a noccedilatildeo de ldquoexperiecircn-

cia da vidardquo que sempre jaacute temos em operaccedilatildeo tem defeitos insuficiecircncias falecircncias etc de

tal modo que se encontra exposta agrave possibilidade de natildeo soacute ser questionada mas se encontra

ateacute exposta agrave possibilidade de ser corrigida ou no limite posta em causa invalidada etc

Ora na verdade a anaacutelise que se segue natildeo iraacute pocircr expressamente a exame no sentido

referido do termo a noccedilatildeo mais comum e quotidiana de ldquoexperiecircncia da vidardquo Ou seja natildeo

iremos no curso deste trabalho confrontar abertamente o conceito de ldquoexperiecircncia da vidardquo

que sempre jaacute temos as suas modalidades formas conteuacutedos etc Se em certo sentido fazecirc-

lo poderia ser uacutetil para se conseguir ldquodescolarrdquo em direcccedilatildeo a um ponto de vista filosoacutefico

(ie se fazecirc-lo poderia ser uacutetil como ponto de partida base de trabalho etc) o que de facto

estaraacute aqui em causa natildeo eacute senatildeo o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo a partir do acircngulo da

filosofia Aquilo que podemos desde jaacute admitir no entanto eacute que o estudo que se segue pode

natildeo deixar incoacutelume a noccedilatildeo habitual

Se por um lado o que caracteriza a nossa atitude habitual relativamente ao fenoacutemeno

da ldquoexperiecircncia da vidardquo pode muito bem ser o facto de julgarmos que jaacute sabemos muito bem

o que isso eacute ndash de tal forma que nos dispensamos logo agrave partida de qualquer exame (de acircmbi-

to filosoacutefico ou de qualquer outro acircmbito) sobre aquilo que constitui o fenoacutemeno ndash por outro

lado poreacutem o esforccedilo de focagem que se procuraraacute aplicar de seguida pode muito bem per-

verter o entendimento do fenoacutemeno que espontaneamente temos e que opera em noacutes

Isto eacute no curso deste trabalho a ter-se alguma perspectiva sobre a compreensatildeo habi-

tual que temos deste fenoacutemeno ela natildeo seraacute obtida senatildeo por um impliacutecito contraste com as

acepccedilotildees do fenoacutemeno a que daremos atenccedilatildeo poreacutem pode muito bem resultar do que se se-

gue que se entenda que haacute uma outra noccedilatildeo de ldquoexperiecircncia da vidardquo diferente da noccedilatildeo que

habitualmente jaacute temos tributaacuteria do acircmbito filosoacutefico que se revele mais apropriada para dar

conta daquilo que estaacute em jogo no fenoacutemeno ndash de tal modo que esse entendimento que se ob-

tenha produza no interior da noccedilatildeo que de cada vez temos adoptada uma modificaccedilatildeo que

natildeo a deixa incoacutelume mas que pelo contraacuterio a potildee em causa ou no limite a invalida

O que desde jaacute deve ficar claro eacute que por um lado iremos partir inicialmente de uma

compreensatildeo filosoacutefica ndash temos o nosso ponto de partida por assim dizer no interior do proacute-

prio ldquodiscurso filosoacuteficordquo ndash do fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo e que por outro o ponto

de vista filosoacutefico tem uma relaccedilatildeo com uma noccedilatildeo de ldquoexperiecircncia da vidardquo que agrave partida

pode natildeo corresponder agrave noccedilatildeo que usamos quotidianamente

Adicionalmente no entanto haacute um outro complexo de problemas que estas uacuteltimas

consideraccedilotildees deixam ver agora de forma mais clara

Eacute que por uma parte natildeo haacute algo como um empreendimento ou um meacutetodo filosoacutefico

(ie natildeo haacute algo como um uacutenico modo de considerar ou de conceber a ldquoexperiecircncia da vidardquo a

partir de um ponto de vista filosoacutefico) Pelo contraacuterio aquilo com que nos deparamos ao con-

siderar a histoacuteria da filosofia ou apenas um determinado momento dessa longa histoacuteria eacute uma

larga variedade de empreendimentos ou de meacutetodos contraacuterios ou ateacute contraditoacuterios entre si

que visam este e outros fenoacutemenos a partir de acircngulos muito diferentes entre si que procuram

evidenciar diferentes elementos de um mesmo fenoacutemeno etc

Assim e por outra parte o que resulta daqui eacute que natildeo haacute exactamente algo como um

conceito de ldquoexperiecircncia da vidardquo no acircmbito do debate filosoacutefico Na verdade pode ateacute acon-

tecer que natildeo haja entre as diferentes ldquoexperiecircncias da vidardquo visadas a partir desses diferentes

empreendimentos ou meacutetodos nada de propriamente comum de tal modo que as diferentes

ldquoexperiecircncias da vidardquo visadas a partir de diferentes empreendimentos ou meacutetodos resulta-

riam de facto em ldquofenoacutemenosrdquo muito distintos

Ora o estudo que de seguida apresentamos natildeo pretende passar por ser um estudo

exaustivo ndash nem por um estudo exaustivo dos empreendimentos ou meacutetodos filosoacuteficos que

visando ou natildeo directamente o problema da ldquoexperiecircncia da vidardquo tecircm algo a dizer sobre ele

nem um estudo exaustivo das diversas definiccedilotildees ou dos diversos conceitos de ldquoexperiecircncia

da vidardquo que os diferentes empreendimentos ou meacutetodos filosoacuteficos que efectivamente se de-

bruccedilaram sobre ele produziram

Um estudo exaustivo ou integral do fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo implicaria

menos do que uma discussatildeo integral ndash uma discussatildeo que incluiacutesse uma tentativa de consi-

derar o fenoacutemeno da experiecircncia da vida de todos os pontos de vista possiacuteveis a partir dos

quais o fenoacutemeno pudesse ser visado (ie a partir de todos os empreendimentos ou meacutetodos

filosoacuteficos que efectivamente se debruccedilaram sobre ele a partir de todos os empreendimentos

filosoacuteficos que natildeo se debruccedilando sobre ele tecircm algo a dizer sobre ele a partir de todos os

empreendimentos filosoacuteficos que o negligenciaram e natildeo tecircm nada a dizer sobre ele etc)

Mais implicaria um efectivo confronto criacutetico com cada uma dessas perspectivas (com as que

tecircm algo a dizer sobre ele mas tambeacutem do mesmo modo com as que natildeo tecircm nada a dizer

sobre ele com aquelas para quem o fenoacutemeno eacute negligenciaacutevel ou irrelevante etc) de modo

a explorar as suas possibilidades as suas vantagens ou desvantagens no modo como cada uma

considera o fenoacutemeno as suas forccedilas e fraquezas etc

Acontece que o que se segue natildeo tem ndash nem de perto nem de longe ndash uma tal magni-

tude Aquilo que se propotildee no seguimento natildeo eacute uma anaacutelise exaustiva de todas as perspec-

tivas e pontos de vista do que se entende por ldquoexperiecircncia da vidardquo

Ora o facto de o estudo que se segue natildeo ser uma anaacutelise exaustiva do que a filosofia

entende por ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo impede que mesmo que este estudo ponha em praacutetica a

discussatildeo de apenas um uacutenico ponto de vista ndash parcial fraacutegil limitado passiacutevel de revisatildeo

passiacutevel de poder vir a ser infirmado por perspectivas natildeo consideradas etc ndash sobre o fenoacute-

meno natildeo impede diziacuteamos que este estudo natildeo possa entrar ainda assim em contacto com

aspectos fundamentais da constituiccedilatildeo do fenoacutemeno justamente esses aspectos fundamentais

que o nosso estudo procuraraacute expor na continuaccedilatildeo e a que o tiacutetulo alude

Quer dizer a pretensatildeo do estudo que se segue eacute a de procurar despistar aspectos fun-

damentais do fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash ie eacute a de procurar inventariar factores

que fundam ou que estatildeo em causa no fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo e que qualquer ou-

tro estudo sobre o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo deve de algum modo no limite levar

em linha de conta sem os quais qualquer outro estudo sobre o assunto estaraacute de certo modo

incompleto etc

Sendo assim importa ter presente que ponto de vista orienta o nosso estudo filosoacutefico

sobre o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo E esse ponto de vista eacute o seguinte

O estudo que de seguida se esboccedila assenta sobre uma inquietaccedilatildeo fundamental o facto

de cada um de noacutes dar por si atirado na vida de quando cada um de noacutes daacute por si dar por si a

ser vida etc Acontece que se se tenta focar mais precisamente de que eacute de que se trata quan-

do se trata da ldquovidardquo aquilo que se nota eacute que esse fenoacutemeno tem habitualmente a forma de

um acontecimento fugidio que natildeo se sabe bem a que eacute que corresponde que natildeo se sabe

bem que conteuacutedos tem que estruturas fundamentais o suportam etc Isto eacute somos levados

pela vida (passamos pela vida atravessamo-la estamos expostos agrave vida etc) e no entanto

pode muito bem dar-se o caso de natildeo sabermos exactamente a que eacute que estamos expostos o

que eacute que nos leva sobre que pilares assenta a nossa vivecircncia e a nossa compreensatildeo dela

etc

O estudo que se segue natildeo tem obviamente a pretensatildeo de deixar definitivamente res-

pondidas estas e outras perguntas de iacutendole similar o que faz eacute meramente proceder a um bre-

ve levantamento ou a um registo de algumas das estruturas fundamentais da vida a partir do

acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo

Como se espera que fique claro na continuaccedilatildeo procurar a resposta sobre o que eacute que

se trata quando se trata da vida a partir do acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo eacute algo aciden-

tal ou fortuito

O que a dada altura se procuraraacute apurar eacute se natildeo haveraacute tais laccedilos de afinidade entre

ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo que todas as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia tecircm lugar numa vincu-

laccedilatildeo a e estatildeo subordinadas agraves estruturas fundamentais da vida (estruturas que ultrapassam o

acircmbito da ldquoexperiecircnciardquo) e que assim tambeacutem a vida tenha de raiz no modo como nela so-

mos levados e conduzidos a estrutura ou a forma da ldquoexperiecircnciardquo

Quer dizer pode muito bem suceder que natildeo soacute aquilo que estaacute em causa na ldquoexpe-

riecircnciardquo conforme e torne possiacutevel o que estaacute em causa na ldquovidardquo como tambeacutem que aquilo

que estaacute em causa na ldquovidardquo conforme e torne possiacutevel o que estaacute em causa na ldquoexperiecircnciardquo

Assim o fenoacutemeno que aqui pretendemos estudar (a ldquoexperiecircncia da vidardquo) soacute pode

ser entendido se procurarmos examinar com precisatildeo qual o papel que ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo

representam na relaccedilatildeo um com o outro (nessa relaccedilatildeo complexa que conforma a ldquoexperiecircncia

da vidardquo)

Isto eacute o que veremos de seguida no curso do trabalho que se segue eacute de que modo in-

flui a experiecircncia na nossa forma de compreender a vida e de que modo influi a vida na nossa

forma de compreender a experiecircncia que aspectos conteacutem a experiecircncia que sejam funda-

mentais para compreender a vida e que aspectos conteacutem a vida que sejam fundamentais para

compreender a experiecircncia se podem ser uma sem a outra e se se tratam de acontecimentos

isolados ou se pelo contraacuterio satildeo interdependentes e haacute laccedilos de continuidade entre elas

como se organizam e se relacionam entre si experiecircncia e vida que relaccedilotildees de influecircncia es-

tatildeo em operaccedilatildeo qual eacute a forccedila a relevacircncia ou o peso que exercem uma sobre a outra (ie

que forccedila relevacircncia ou peso tem a experiecircncia na compreensatildeo da vida e que forccedila relevacircn-

cia ou peso tem a vida na compreensatildeo da experiecircncia) etc e por fim que complexo resulta

da sua conjugaccedilatildeo (ie o que eacute que se entende no sentido desta conjugaccedilatildeo de factores agrave par-

tida diacutespares entre si por ldquoexperiecircncia da vidardquo)

Ora tambeacutem isso seria possiacutevel a partir de um conjunto muito vasto de alternativas de

procedimentos metodoloacutegicos E sobre o procedimento metodoloacutegico que este trabalho iraacute

adoptar interessa dizer muito brevemente o seguinte

Esta eacute uma tese por assim dizer impressionista ndash eacute uma tese que responde a estiacutemulos

daqui e dali que capta momentos avulsos de obras que natildeo se deteacutem em mais do que mo-

mentos ou fragmentos de obras etc

Aquilo que estamos a procurar dizer eacute que natildeo se faraacute uma incidecircncia sobre a noccedilatildeo de

ldquoexperiecircncia da vidardquo a partir de um qualquer movimento filosoacutefico ou a partir de um qual-

quer autor Aquilo que de seguida estaraacute em causa natildeo estaacute por assim dizer vinculado a um

acircngulo especiacutefico que em virtude das suas caracteriacutesticas imponha preacute-condiccedilotildees ou impli-

que jaacute um conjunto de preceitos que regulem o acesso ao fenoacutemeno Pelo contraacuterio esta tese

ndash mais do que uma anaacutelise de um movimento ou de um autor ndash procura fazer uma anaacutelise te-

maacutetica assim o que se poderaacute encontrar eacute uma anaacutelise que natildeo estaacute centrada em nenhum au-

tor ou movimento particular mas que procura em vez disso recorrer ao auxiacutelio de vaacuterios au-

tores consoante se entenda que esses autores respondem melhor ou mais detidamente agraves pis-

tas que se vatildeo abrindo e que interessa perseguir

Quer dizer se por um lado num determinado momento os passos que dermos corres-

pondem ao que se encontra nas teses de um determinado autor (ie tecircm com as teses de um

determinado autor uma certa continuidade correspondem a um recurso ao complexo dos

enunciados do autor que tecircm relevacircncia para a mateacuteria etc se seguem as questotildees suscitadas

por um determinado autor em virtude de esse acompanhamento permitir tomar essas questotildees

como mapa de orientaccedilatildeo de permitir avanccedilar na clarificaccedilatildeo ou na especificaccedilatildeo do quadro

de perguntas que satildeo relevantes etc) por outro lado no entanto nunca se pode perder de vis-

ta que natildeo se seguiratildeo as teses de um determinado autor ateacute ao fim que natildeo se teraacute em vista o

quadro de teses mais vasto em que um determinado autor labora e no qual inclui aqueles frag-

mentos a que recorreremos que natildeo se questionaraacute os restantes fenoacutemenos a que o fragmento

de cada vez em causa surge associado quanto ao significado de que se revestem quanto agrave co-

nexatildeo ou agrave relaccedilatildeo que tecircm com a fragmento em causa quanto agrave forma como o esclarecimen-

to deles poderia contribuir para o esclarecimento e a anaacutelise do fragmento em causa etc

Na verdade vendo bem a ldquonarrativardquo do estudo que se segue natildeo eacute muito diferente da

narrativa de uma investigaccedilatildeo policial ndash em que cada fragmento que se encontra e que esteja

relacionado com aquilo que se pretende investigar ganha o estatuto de ldquopistardquo (de uma ldquopistardquo

mais ou menos relevante mais ou menos central no ldquopuzzlerdquo da investigaccedilatildeo etc) de tal mo-

do que aquilo de que se trata na investigaccedilatildeo eacute de perseguir essa ldquopistardquo e que a perseguiccedilatildeo

dessa ldquopistardquo abre a novas ldquopistasrdquo ldquopistasrdquo que por sua vez tambeacutem seratildeo perseguidas e que

abrem ainda a novas ldquopistasrdquo que por sua vez tambeacutem seratildeo perseguidas etc ndash gerando-se

de tudo isto algo como uma linha de investigaccedilatildeo (uma ldquolinhardquo cuja conformaccedilatildeo eacute a do elo

ou da conexatildeo das proacuteprias ldquopistasrdquo com que a investigaccedilatildeo se deparou e eacute a conformaccedilatildeo das

decisotildees do caminho a tomar por entre o conjunto total das ldquopistasrdquo com que se deparou e que

se entendeu perseguir)

Ora por uma questatildeo de estrateacutegia metodoloacutegica a primeira ldquopistardquo que entendemos

seguir foi a ldquopistardquo da ldquoexperiecircnciardquo E eacute justamente tendo a experiecircncia por referecircncia e guia

que de seguida se iniciaraacute a pesquisa pelos aspectos fundamentais do fenoacutemeno da ldquoexperi-

ecircncia da vidardquo

LIVRO I

EXPERIEcircNCIA

2

INTRODUCcedilAtildeO

sect1

A dispersatildeo dos usos quotidianos do termo experiecircncia e a necessidade de remissatildeo agrave no-

ccedilatildeo de ἐμπειρία em Aristoacuteteles (Metafiacutesica I I e Analiacuteticos Posteriores II XIX)

Seja devido agrave diversidade de abordagens e de tratamentos filosoacuteficos seja devido ao

desgaste que adveacutem do uso quotidiano do termo e das suas diversas aplicaccedilotildees o facto eacute que a

noccedilatildeo de ldquoexperiecircnciardquo parece equiacutevoca Esta afirmaccedilatildeo eacute testemunhada pelos diversos usos

que se daacute agrave noccedilatildeo e pelos diversos campos a que a ela se aplica

Por um lado experiecircncia indica o ser afectado ou passar por uma situaccedilatildeo ou cir-

cunstacircncia ndash no sentido de vivecircncia Por outro indica natildeo apenas o acto metoacutedico de observa-

ccedilatildeo que passa por pocircr ou ter posto agrave prova como tambeacutem a aquisiccedilatildeo de conhecimentos que

descende do acto de observaccedilatildeo que potildee agrave prova e ateacute mesmo a aplicaccedilatildeo de conhecimento

adquirido (adquirido por este ou por outro meacutetodo)

Esta dispersatildeo registada de modo muito geral e a cujos estilhaccedilos se voltaraacute na conti-

nuaccedilatildeo natildeo resulta de uma mera confusatildeo lexical

Na verdade a dispersatildeo tem que ver com o complexo ldquonovelordquo da proacutepria constela-

ccedilatildeo de fenoacutemenos em que o campo semacircntico de experiecircncia radica O que isto quer dizer eacute

que o que caracteriza a constelaccedilatildeo de fenoacutemenos em que o campo semacircntico de experiecircncia

radica eacute natildeo apenas a complexidade ndash ie a circunstacircncia de envolver diversos elementos com

profundas diferenccedilas estruturais entre si ndash mas tambeacutem o facto de essa constelaccedilatildeo de fenoacute-

menos se encontrar marcada por confusatildeo e falta de transparecircncia

Assim no modo como habitualmente compreendemos a noccedilatildeo de experiecircncia (e assim

tambeacutem no modo como habitualmente acompanhamos o complexo de fenoacutemenos a que essa

noccedilatildeo reporta) haacute importantes componentes que se eclipsam ao ponto de lhes perdermos o

rasto haacute fenoacutemenos diferentes que parecem ser iguais ou equivalentes e haacute ainda alguns ou-

tros que mesmo que soacute sejam possiacuteveis mediante uma determinada forma de constituiccedilatildeo

3

habitualmente aparecem tatildeo ldquomascaradosrdquo que podem produzir a impressatildeo de terem as pro-

priedades opostas agraves daquilo que efectivamente os edifica etc

Sendo assim o que eacute necessaacuterio para desfazer as ambiguidades ou os equiacutevocos a que

a noccedilatildeo de experiecircncia se acha vulgarmente associada eacute muito mais do que um esforccedilo de es-

clarecimento terminoloacutegico Na verdade eacute necessaacuterio focar a proacutepria constelaccedilatildeo de fenoacuteme-

nos em causa e para tal seguir pelo menos alguns dos aspectos fundamentais do seu intrinca-

do ldquonoacuterdquo Soacute deste modo o fenoacutemeno a que a noccedilatildeo de experiecircncia reporta nos poderaacute aparecer

mais claro

A abordagem que aqui se seguiraacute para cumprir este propoacutesito (ie para recuperar os

componentes essenciais do fenoacutemeno da experiecircncia) passa pelo regresso agrave noccedilatildeo original a

que o termo ldquoexperiecircnciardquo se refere ndash a noccedilatildeo de ἐμπειρία

Poreacutem o que estaraacute de seguida em causa natildeo seraacute um levantamento histoacuterico da noccedilatildeo

de ἐμπειρία tratar-se-aacute mais propriamente de procurar captar (nesse que eacute o ponto de parti-

da dos desenvolvimentos que a noccedilatildeo de experiecircncia veio a ter) algumas determinaccedilotildees fun-

damentais que a noccedilatildeo reunia em si e que poderatildeo fornecer pistas que nos orientem na com-

preensatildeo do ldquonoacuterdquo em que a noccedilatildeo de experiecircncia habitualmente parece ldquoenredadardquo

Ora a dificuldade que imediatamente se apresenta passa por compreender que o termo

ἐμπειρία tem uma longa tradiccedilatildeo

O termo ἐμπειρία pode ser encontrado por exemplo tanto jaacute nos tratados hipocraacuteticos1

como tambeacutem em Platatildeo2 E qualquer um desses casos contribui muito significativamente

1 Para recuperar o termo em Hipoacutecrates tomemos por exemplo Cambiano G La preistoria del con-

cetto di empeiria tra medicina e filosofia Humanamente 9 Firenze 2009 (em especial as paacutegs 87-

91) e ainda Bourgey L Observation et expeacuterience chex les meacutedecins de la collection hippocratique

Paris Vrin 1953 O que estaacute em causa nestes autores natildeo eacute tanto natildeo uma definiccedilatildeo do que se deve

entender por ἐμπειρία mas eacute mais uma tentativa de circunscrever e descrever o complexo de fenoacuteme-

nos que a noccedilatildeo compreende ou determinar quais os campos em que o termo aparece incide ou se

aplica ndash em resumo eacute uma tentativa de compreender de que modo a actividade do meacutedico pode ser en-

tendida como exerciacutecio de ἐμπειρία e o que daiacute se pode extrair sobre o que determina ou caracteriza a

ἐμπειρία

2 No caso concreto de Platatildeo o exerciacutecio de resgatar os instantes em que o termo surge e as suas diver-

sas instacircncias natildeo poderia deixar de ser um exerciacutecio precaacuterio haacute uma enorme dispersatildeo do termo ao

longo da obra platoacutenica e em cada apariccedilatildeo o termo parece adquirir a coloraccedilatildeo dos termos que o ro-

deiam ou dos assuntos que estatildeo efectivamente a ser focados Isto natildeo eacute no entanto dizer que a noccedilatildeo

de ἐμπειρία eacute em Platatildeo uma noccedilatildeo vaga ou dispersa que se aplica de modo indiferenciado sem cri-

4

quer para a reflexatildeo sobre o tema quer para a histoacuteria posterior do conceito ndash em todos os

seus desenvolvimentos e encruzilhadas

Sendo assim e na medida em que iremos concentrar o nosso esforccedilo na anaacutelise da no-

ccedilatildeo de ἐμπειρία que encontramos desenvolvida nos escritos de Aristoacuteteles importa natildeo deixar

de justificar a adopccedilatildeo deste ponto de partida

O que faz com que a anaacutelise da noccedilatildeo de ἐμπειρία nos escritos de Aristoacuteteles mereccedila

especial protagonismo natildeo seraacute tanto como jaacute fomos adiantando o facto de Aristoacuteteles ter

introduzido um conceito inteiramente novo Se haacute como procuraremos ver na continuaccedilatildeo

elementos novos na focagem aristoteacutelica do problema natildeo devemos apesar de tudo desvalori-

zar o facto de que um dos aspectos que tornam essa focagem determinante eacute precisamente o

caso de ela envolver uma recapitulaccedilatildeo dos desenvolvimentos precedentes ndash e especialmen-

te uma recapitulaccedilatildeo dos desenvolvimentos de Platatildeo

O que eacute decisivo ndash e que justifica este nosso ponto de partida ndash eacute que ao focar o fenoacute-

meno da experiecircncia Aristoacuteteles natildeo analisa soacute de forma detida as condiccedilotildees e a estrutura do

fenoacutemeno De facto o que faz eacute salientar o papel central que a experiecircncia desempenha en-

quanto constituinte da apresentaccedilatildeo que temos das coisas Mais ainda Aristoacuteteles procede a

essa anaacutelise de tal forma que nos coloca justamente na pista do ldquonoacuterdquo em que a noccedilatildeo de expe-

riecircncia habitualmente parece ldquoenredadardquo ndash ldquonoacuterdquo que por isso eacute passiacutevel de ser posto a

teacuterio ou de modo acriacutetico a nossa intenccedilatildeo quer somente notar que o que estaacute em causa na experiecircncia

nunca eacute focado per se mas pelo contraacuterio eacute sempre posto em saliecircncia enquanto momento de uma

discussatildeo que natildeo tem por centro a determinaccedilatildeo do que experiecircncia eacute ou do que corresponde a isso

mas em que apesar de tudo a experiecircncia natildeo deixa de ter um papel relevante e central Assim a ex-

periecircncia mostra quer a sua importacircncia quer a sua abrangecircncia nos diversos assuntos em que se intro-

mete em que a sua presenccedila eacute decisiva e naquilo que eacute da experiecircncia e que assim eacute intrometido Uma

anaacutelise compreensiva da noccedilatildeo de ἐμπειρία no corpus platonicum natildeo poderia deixar de ter em conta

para reunir um breve inventaacuterio e para citar apenas estas passagens as suas ocorrecircncias em textos

como Gorg (461b-466a) Rep (em especial IX 582a-e) Fil (55e) ou inclusive Feacuted (96a-b) texto em

que Platatildeo natildeo menciona mas deixa subentendido o termo ἐμπειρία e de certo modo toca sem no

entanto os desenvolver alguns dos fundamentos em que vai assentar Aristoacuteteles em especial a extrac-

ccedilatildeo de έπιστήμη a partir de αἴσθησις μνήμη e δόξα e a pesquisa pela αἱτία de todas as coisas ndash pontos

que estaratildeo de seguida (expliacutecita ou implicitamente) em anaacutelise

Considerem-se por exemplo as anaacutelises a esse propoacutesito de Constacircncio J Notas sobre a noccedilatildeo de

experiecircncia na Repuacuteblica de Platatildeo In Quid ndash Revista de Filosofia nordm 1 Lisboa 2000 paacutegs 9-72

ou Trindade Santos J A noccedilatildeo de experiecircncia nos diaacutelogos platoacutenicos In Joaquim Cerqueira Gon-

ccedilalves (org) A dinacircmica do pensar Lisboa Dept de Filosofia da UL 1991 paacutegs 243-253

5

descoberto e em certo sentido desfeito Eacute a demonstraccedilatildeo disto mesmo que nos iraacute deter nas

proacuteximas secccedilotildees3

Acontece poreacutem que ao analisar-se os escritos de Aristoacuteteles (e mais propriamente ao

analisar-se os escritos de Aristoacuteteles procurando focar a questatildeo da ἐμπειρία) o que eacute antes de

mais claro para o leitor eacute que Aristoacuteteles natildeo chega a apresentar propriamente uma definiccedilatildeo

do que entende por ἐμπειρία O uso que Aristoacuteteles faz do termo ἐμπειρία eacute se assim se pode

dizer um uso operativo isto poderaacute ter algo a ver com o facto de o termo estar jaacute de certo

modo ldquoenraizadordquo no discurso filosoacutefico como haacute pouco se frisou e haver entatildeo jaacute uma defi-

niccedilatildeo (expressa ou natildeo) em curso em relaccedilatildeo agrave qual Aristoacuteteles reage

Ora o facto de natildeo apresentar uma definiccedilatildeo natildeo impede que em alguns textos funda-

mentais ndash designadamente Metafiacutesica I I (980a22 e ss) e Analiacuteticos Posteriores II XIX

(99b15 e ss) passagens que aqui estaratildeo em especial destaque ndash Aristoacuteteles forneccedila os ele-

mentos necessaacuterios para se perceber de que eacute que se trata (ie para perceber o que eacute proacuteprio

da experiecircncia enquanto tal) e para se ganhar a pista do intrincado complexo de fenoacutemenos

que corresponde agrave noccedilatildeo de ἐμπειρία

Eacute tendo isto em vista que importa desde jaacute fazer notar que o fundamental das anaacutelises

de Aristoacuteteles a respeito da ἐμπειρία natildeo tem que ver com o acompanhamento deste ou daque-

le aspecto circunscrito natildeo se deteacutem neste ou naquele domiacutenio da experiecircncia nem se con-

centra sobre este ou aquele objecto

Natildeo soacute a anaacutelise de Aristoacuteteles eacute abrangente como o que eacute determinante na abordagem

aristoteacutelica eacute a anaacutelise da experiecircncia como peculiar forma de acesso ndash uma forma de acesso

susceptiacutevel de ter lugar nos mais diversos acircmbitos ou sobre os mais diversos objectos E isto

de tal modo que em todos os diversos acircmbitos em que tem ou pode ter lugar a experiecircncia se

caracteriza por um mesmo conjunto de propriedades fundamentais ndash precisamente o que jus-

tifica falar-se de uma e a mesma forma de acesso

Ora a identificaccedilatildeo desta peculiar forma de acesso eacute nas anaacutelises aristoteacutelicas feita

por marcaccedilatildeo de contrastes entre formas de acesso ndash mais exactamente entre essa forma de

3 Natildeo esqueccedilamos a advertecircncia de Heidegger ldquoZwar hat Aristoteles erstmals begriffen was έμπειρία

(experientia) heiszligt das Beobachten der Dinge selbst ihrer Eigenschaften und Veraumlnderungen unter

wechselnden Bedingungen und somit die Kenntnis der Weise wie sich die Dinge in der Regel verhal-

tenldquo (Heidegger Die Zeit des Weltbildes GA vol 5 paacutegs 80-81)

6

acesso que corresponde agrave experiecircncia e outras formas de acesso possiacuteveis (de que a forma de

acesso da experiecircncia se acha separada por saltos ou descontinuidades)

O que isto sugere eacute que os ldquomesmosrdquo ldquoobjectosrdquo ou as ldquomesmasrdquo ldquorealidadesrdquo ndash todos

os diversos acircmbitos ou os diversos objectos sobre os quais eacute susceptiacutevel de ter lugar ndash podem

ser apresentados de diferentes modos ou sob diferentes formas de acesso e que de entre esses

diferentes modos ou formas de acesso alternativas existe o modo ou a forma de acesso da ex-

periecircncia

Mais o modo da experiecircncia eacute vincadamente diferente do modo de outras formas de

acesso Isto eacute o facto de serem apresentados no modo da experiecircncia ou no modo de outras

formas de acesso alternativas corresponde a ldquoreconhecimentosrdquo das ldquomesmasrdquo ldquorealidadesrdquo

ou dos ldquomesmosrdquo ldquoobjectosrdquo completamente diferentes uns dos outros (em que o que apare-

ce eacute muito diferente)

Dito por outras palavras a anaacutelise aristoteacutelica sobre a experiecircncia distingue-se pela

forma como foca ao mesmo tempo a composiccedilatildeo do acesso de que dispomos (sc daquilo que

se acede nele) a multiplicidade dos elementos envolvidos nesse acesso as propriedades que

caracterizam cada um dos diferentes modos de acesso os saltos e descontinuidades que os

separam uns dos outros bem como as implicaccedilotildees de que tudo isto se reveste no que diz res-

peito ao modo como as coisas aparecem ou agravequilo que se chega a descobrir delas

Ora como no seguimento pretendemos deixar ficar claro a experiecircncia natildeo eacute pura e

simplesmente uma de entre muacuteltiplas modalidades de acesso possiacutevel agraves ldquocoisasrdquo ndash na verda-

de a experiecircncia eacute o modo de acesso agraves ldquocoisasrdquo em que habitualmente nos achamos

O que isto quer dizer eacute que tudo o que de ordinaacuterio nos aparece tem uma constituiccedilatildeo

empiacuterica ndash ie estaacute dominado pela forma de acesso tem o modo do aparecimento (sc a for-

ma de reconhecimento) proacuteprio da experiecircncia eacute o que a experiecircncia deixa ver do que haacute

etc

Isto eacute tanto assim que uma das razotildees por que temos dificuldades em perceber a cons-

tituiccedilatildeo da experiecircncia eacute o facto de na verdade natildeo conhecermos outra coisa e de precisa-

mente por estarmos ldquoembrenhadosrdquo nesse modo de acesso nos faltarem meios de contraste

para perceber de que eacute que a experiecircncia eacute feita os meandros disso em que estamos ldquoembar-

cadosrdquo etc

Tudo isto a que aqui nos referimos de forma muito sucinta estaraacute em anaacutelise quando

analisarmos a noccedilatildeo de ἐμπειρία nos passos do corpus aristotelicum que de seguida analisare-

7

mos Poreacutem e para compreender melhor o caraacutecter inovador da tese de Aristoacuteteles importa

considerar mais detidamente a tradiccedilatildeo a que Aristoacuteteles se reporta e a que atraacutes fizemos refe-

recircncia

sect2

O desdobramento da noccedilatildeo de ἐμπειρία na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica os aspectos da doa-

ccedilatildeo da duraccedilatildeo e da impossibilidade de antecipaccedilatildeo

A tradiccedilatildeo a que Aristoacuteteles se reporta estaacute naquilo que aqui nos importa considerar

no acircmbito da identificaccedilatildeo da ἐμπειρία marcada por trecircs aspectos

O primeiro aspecto eacute esse que faz associar a noccedilatildeo de ἐμπειρία agrave ideia da doaccedilatildeo

A noccedilatildeo de ἐμπειρία implica algo como um contacto directo um encontro em primei-

ra matildeo ou na ldquoprimeira pessoardquo Um exame mais rigoroso mostra que esta ideia central en-

volve na verdade dois componentes

Em primeiro lugar a ἐμπειρία estaacute ligada agrave ideia do testemunho directo ndash do ver por si

proacuteprio desse que constitui o ldquoprivileacutegio gnosioloacutegicordquo da αὐτοψία4

Este ldquoprivileacutegio gnosioloacutegicordquo tem que ver por um lado com o caraacutecter imediato do

testemunho e por outro com o facto de o testemunho natildeo estar dependente de mediadores ndash a

respeito de cuja fiabilidade em uacuteltima anaacutelise natildeo haacute garantias O que com tudo isto se expri-

me eacute que o acesso directo ndash o acesso na ldquoprimeira pessoardquo ndash eacute uma modalidade de acesso in-

substituiacutevel Mais tudo isto exprime o caso de haver determinaccedilotildees ou conteuacutedos de saber a

que natildeo se pode aceder senatildeo no modo de um acesso directo

Isto eacute pelo menos em certos casos (pelo menos em relaccedilatildeo a determinaccedilotildees ou a ldquocon-

teuacutedosrdquo de certo tipo) nenhuma outra modalidade de acesso poderia eficazmente passar por

ou fazer as vezes dum contacto directo qualquer outra modalidade de acesso ficaria muito

4 Para a noccedilatildeo de αὐτοψία ver por exemplo Galeno Tres tractats sobre lrsquoart de la medicina Tarra-

gona Publicacions URV 2013 paacuteg 102 ou Fausti La presenza del linguaggio medico nel De signis

di Filodemo Comunicare la Cultura Antica ndash I Quaderni del Ramo drsquoOro Online nordm 5 2012 em es-

pecial as paacuteginas 71 e 72 em que a autora potildee em contraste a αὐτοψία (a experiecircncia directa) com a

ἱστορία (a experiecircncia mediada) e a μετάβασις κατὰ τὸ ὅμοιον (a similitude)

8

aqueacutem do contacto directo e natildeo conseguiria sequer dar ideia daquilo a que soacute o contacto di-

recto permite aceder etc5

Em segundo lugar a ἐμπειρία daacute a conhecer algo pela proacutepria presenccedila imediata disso

e neste sentido depende da presenccedila disso (da viabilizaccedilatildeo do encontro ou do contacto direc-

to com isso que aparece)

A ideia de encontro directo estaacute associada agrave ideia de que se trata de algo que vem (ou

seja agrave ideia de um advento) ndash ie estaacute associada agrave ideia de algo vir ao encontro e estaacute na de-

pendecircncia dessa vinda dessa disponibilizaccedilatildeo do objecto Estar na dependecircncia de uma doa-

ccedilatildeo significa que o encontro poderia natildeo ocorrer ca-so nada viesse ao encontro E tanto eacute as-

sim que o experimentar o que se daacute a experimentar no contacto directo (o conhecer disso a

que soacute se pode aceder por um contacto directo) depende de haver doaccedilatildeo depende da ldquovindardquo

do que vem ao encontro ndash e ficaria irremediavelmente prejudicado e inviabilizado caso a vin-

da disso que vem ao encontro ou o encontro com isso que vem ao encontro natildeo ocorresse

Consideremos de seguida um segundo aspecto que diz respeito ao acircmbito de identifi-

caccedilatildeo da ἐμπειρία

Este segundo aspecto prende-se com o facto de a noccedilatildeo preacute-aristoteacutelica de ἐμπειρία

tambeacutem estar associada agrave ideia de natildeo se revelar natildeo se descobrir natildeo se ter acesso a tudo de

uma vez soacute natildeo haver algo como uma doaccedilatildeo total de uma assentada etc

Este segundo aspecto adiciona ao que vimos a ideia de qualquer coisa como um pro-

cesso de algo que se desenrola a pouco e pouco ndash de uma sucessatildeo de fases ndash que requer tem-

po duraccedilatildeo faseamento Em resumo algo que vem vindo que se abre ou que vai sucedendo

uma operaccedilatildeo em curso etc

Tambeacutem em relaccedilatildeo a este aspecto haacute uma multiplicidade de aspectos associados e

que importa salientar

Por um lado estaacute aqui em causa o facto de o contacto directo ter se assim se pode di-

zer lotaccedilatildeo limitada Isto eacute estaacute em causa o facto de que natildeo se pode produzir ao mesmo

5 Na verdade e neste sentido o que estaacute em causa eacute algo como o nosso experimentar ndash quando se fala

por exemplo de experimentar um sabor O que estaacute a ser focado quando falamos de experimentar o

sabor de por exemplo uma laranja eacute o caso de a descriccedilatildeo do sabor de uma laranja natildeo fazer as vezes

do saborear efectivo da laranja e de a uacutenica forma de se aceder ao sabor de uma laranja ser o contacto

directo com o sabor (ou como tambeacutem dizemos a experiecircncia do sabor) a que a mera descriccedilatildeo do

sabor estaacute impedida de que natildeo faz as vezes etc

9

tempo senatildeo uma pequena parte da totalidade de doaccedilotildees (do contacto directo do saber tira-

do do contacto directo etc) que para noacutes seria possiacutevel que haacute algo como uma dilaccedilatildeo do

contacto com os diferentes ldquoconteuacutedosrdquo que podemos descobrir por doaccedilatildeo na medida em

que os ldquoconteuacutedosrdquo natildeo satildeo todos possiacuteveis ao mesmo tempo que o contacto que estaacute em cau-

sa no modo de acesso da experiecircncia obriga a algo como um itineraacuterio de descoberta uma

manifestaccedilatildeo a prestaccedilotildees etc

Mas por outro lado este segundo aspecto tambeacutem tem que ver com o facto de haver

ldquoconteuacutedosrdquo mais complexos ndash ldquoconteuacutedosrdquo que apenas satildeo passiacuteveis de contacto directo na

sequecircncia de qualquer coisa como uma travessia de doaccedilotildees (de um processo de uma suces-

satildeo de fases etc) e que soacute no curso dessa travessia acabam por se revelar

Neste segundo aspecto o que estaacute em causa natildeo eacute soacute a impossibilidade de manifesta-

ccedilatildeo directa de tudo ao mesmo tempo o que estaacute em causa satildeo determinaccedilotildees (objectos de sa-

ber formas de saber etc) que nunca se poderiam manifestar numa doaccedilatildeo imediata porque

pela sua proacutepria natureza como que natildeo ldquocabemrdquo no acircmbito de uma apresentaccedilatildeo instantacirc-

nea Em suma trata-se de ldquoconteuacutedosrdquo ou de determinaccedilotildees que estatildeo ligados agrave proacutepria mu-

danccedila agrave passagem do tempo agravequilo que soacute se pode manifestar por meio da mudanccedila e da

passagem do tempo etc

O que estaacute em causa eacute portanto algo que pode ser descrito como um viacutenculo de condi-

cionamento para se alcanccedilar o produto da ἐμπειρία eacute indispensaacutevel uma travessia de acesso

Sem a travessia de acesso (quer dizer sem esse acesso em forma de travessia) haacute determina-

ccedilotildees ldquoconteuacutedosrdquo ou objectos de saber que natildeo chegam a aparecer natildeo tecircm condiccedilotildees para

se revelar para serem sabidos etc

Em uacuteltima anaacutelise a travessia a que se alude eacute uma travessia de doaccedilotildees Poreacutem im-

porta ter presente que aleacutem da ideia de doaccedilatildeo a ἐμπειρία pode ser compreendida de tal modo

que o que se acentua eacute justamente a proacutepria ideia de travessia enquanto tal Sendo assim a

ἐμπειρία estaacute ligada agrave ideia de uma forma complexa de acesso constituiacuteda por uma multiplici-

dade de passos e que requer o preenchimento de todo um conjunto de requisitos etc

Tal como a respeito da doaccedilatildeo tambeacutem neste uacuteltimo caso o que estaacute no centro da no-

ccedilatildeo de ἐμπειρία eacute a dependecircncia de uma vinda de um advento ndash que tambeacutem pode natildeo acon-

tecer de tal modo que caso natildeo ocorra fica prejudicada a possibilidade de saber que para se

constituir requer experiecircncia Mas o que neste uacuteltimo caso se destaca eacute a doaccedilatildeo como doaccedilatildeo

alargada extensa como sequecircncia de doaccedilotildees ndash natildeo com uma doaccedilatildeo meramente pontual

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mas como algo que se prolonga e cujo prolongamento corresponde na verdade a um intervalo

com uma certa (ou ateacute muito significativa) ordem de grandeza

O que acabamos de dizer permite enfim perceber um terceiro aspecto que desempe-

nhava um papel central na noccedilatildeo de ἐμπειρία tal como esta se desenhava antes de Aristoacuteteles

globalmente a noccedilatildeo estaacute associada agrave negaccedilatildeo da antecipaccedilatildeo ou agrave impossibilidade da ante-

cipaccedilatildeo

Enquanto estaacute ligada agrave ideia de doaccedilatildeo (de dependecircncia da doaccedilatildeo etc) a ἐμπειρία

exprime o absoluto impedimento de saber aquilo a que a doaccedilatildeo diz respeito antes de ndash e in-

dependentemente de ndash isso mesmo vir a doaccedilatildeo Em suma a noccedilatildeo estaacute associada ao caso de

natildeo se saber agrave partida soacute se saber mediante doaccedilatildeo Este aspecto eacute reforccedilado na segunda

componente ndash que acrescenta por assim dizer a ideia de um intervalo (de um percurso ou de

uma travessia que tem de se fazer e sem o qual natildeo se chega a alcanccedilar uma determinada

forma de saber) Por outras palavras a segunda componente alarga ainda mais a distacircncia

relativamente a esse oposto da ἐμπειρία que eacute a antecipaccedilatildeo ndash o oposto que a afirmaccedilatildeo da

dependecircncia relativamente agrave ἐμπειρία nega em noacutes De tal modo que se pode dizer que en-

quanto estaacute ligada agrave ideia de doacccedilatildeo e de uma travessia de doacccedilotildees a ἐμπειρία exprime o

absoluto impedimento de saber aquilo a que a travessia de doacccedilotildees diz respeito antes de ndash e

independentemente de ndash essa mesma travessia se vir a realizar

Em suma poderia dar-se o caso de que a doaccedilatildeo fosse obtida num uacutenico acontecimen-

to de testemunho directo ndash de tal modo que uma uacutenica ocorrecircncia bastasse para obter o saber

que soacute se pode alcanccedilar por doaccedilatildeo Poreacutem natildeo eacute isso que sucede ndash e eacute a ausecircncia disso que

se acha expressa na noccedilatildeo de ἐμπειρία haacute como que uma dupla impossibilidade de antecipa-

ccedilatildeo Por um lado a dependecircncia da doaccedilatildeo impossibilita a posse antecipada disso que soacute po-

de ser obtido por doaccedilatildeo Por outro a dependecircncia de uma travessia impossibilita a posse

antecipada daquilo que soacute se pode aceder por travessia

Ao salientarmos brevemente estes trecircs aspectos que marcavam a tradiccedilatildeo preacute-aristoteacute-

lica o que estamos a fazer natildeo eacute mais do que inventariar alguns elementos essenciais que a

posiccedilatildeo de Aristoacuteteles leva em linha de conta e em relaccedilatildeo aos quais a posiccedilatildeo de Aristoacuteteles

faz contraste Ao mesmo tempo fazecirc-lo deixa-nos agora em melhores condiccedilotildees de conside-

rar o que se encontra nos passos referidos do corpus aristotelicum e de compreender como eacute

que o que se descobre nesses passos potildee na pista do intrincado complexo de fenoacutemenos que

corresponde agrave noccedilatildeo aristoteacutelica de ἐμπειρία

11

sect3

A ἐμπειρία integrada no quadro geral de identificaccedilatildeo da σοφία a ἐμπειρία como uma mo-

dalidade de saber possiacutevel do intervalo global entre o miacutenimo e o maacuteximo de saber ndash A des-

formalizaccedilatildeo da σοφία apresentada no modo de uma escala de possibilidades de acesso e a

pergunta que posiccedilatildeo ocupa na escala o acontecimento de acesso em que nos temos

Se considerarmos os paraacutegrafos iniciais de Metafiacutesica I o que desde logo se nota eacute que

a noccedilatildeo de ἐμπειρία ocorre integrada numa escala A escala a que aludimos ndash e que se dese-

nha em 980a27 e seguintes ndash tem como pri-meira instacircncia a αἴσθησις passa pela μνήμη tem

por terceiro momento a ἐμπειρία e culmina no par τέχνηἐπιστήμη6

Para se perceber bem em que sentido e com que alcance Aristoacuteteles fala de ἐμπειρία eacute

preciso portanto determinar o que eacute que estaacute em causa nesta escala Importa portanto res-

ponder a algumas questotildees qual eacute a natureza e o propoacutesito desta escala A que pergunta ou

a que perguntas a escala responde Como estaacute constituiacuteda Que criteacuterios determinam a sua

composiccedilatildeo Que funccedilotildees satildeo chamados a desempenhar os elementos que entram na sua

composiccedilatildeo

Eacute essencial ter presente que a escala apresentada por Aristoacuteteles em Metafiacutesica I estaacute

definida por duas ordens de determinaccedilotildees igualmente importantes

Em primeiro lugar o sentido da escala (e assim tambeacutem o sentido de cada um dos

componentes da escala ndash o sentido em que Aristoacuteteles fala de αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία τέχνη

e ἐπιστήμη) depende de elementos de natureza formal cuja compreensatildeo eacute decisiva para se

ganhar a pista daquilo para que Aristoacuteteles aponta Agrave primeira ordem de determinaccedilatildeo ndash que

diz respeito ao sentido e ao enquadramento da escala ndash vem juntar-se uma segunda que tem

que ver com cada um dos componentes que Aristoacuteteles faz entrar na sua composiccedilatildeo

O sentido de cada um desses diversos elementos eacute obtido perguntando o que estaacute em

causa neles que carga de determinaccedilotildees eacute proacutepria de cada um como eacute que as cargas proacute-

prias de cada elemento se relacionam umas com as outras como eacute que cada um destes com-

ponentes eacute chamado a desempenhar funccedilotildees numa escala como aquela que se define na pri-

6 φύσει μὲν οὖν αἴσθησιν ἔχοντα γίγνεται τὰ ζῷα ἐκ δὲ ταύτης τοῖς μὲν αὐτῶν οὐκ ἐγγίγνεται μνήμη τοῖς

δ᾽ ἐγγίγνεται (980a28 e seguintes) E logo depois τὰ μὲν οὖν ἄλλα ταῖς φαντασίαις ζῇ καὶ ταῖς μνήμαις

ἐμπειρίας δὲ μετέχει μικρόν τὸ δὲ τῶν ἀνθρώπων γένος καὶ τέχνῃ καὶ λογισμοῖς (980b26 e seguintes)

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meira ordem de factores de determinaccedilatildeo que funccedilotildees ocupam na escala a αἴσθησις a μνή-

μη a ἐμπειρία e a τέχνηἐπιστήμη e como eacute que a conjugaccedilatildeo a) da carga de determinaccedilotildees

proacutepria de cada uma e b) do que estaacute em causa na escala determina a posiccedilatildeo que αἴσθησις

μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη ocupam nela etc

Ora a resposta agrave pergunta pelo que estaacute em causa na escala comeccedila a ser obtida se se

tiver em conta que os capiacutetulos iniciais da Metafiacutesica de Aristoacuteteles se debatem com o proble-

ma da identificaccedilatildeo da σοφία

Se natildeo eacute este o lugar para o levantamento da questatildeo da identificaccedilatildeo da σοφία como

se acha expressa nestes e noutros passos do corpus aristotelicum importa apesar de tudo con-

siderar aqui os aspectos fundamentais que permitam perceber de que eacute que se trata quando se

fala da σοφία e em especial os aspectos fundamentais que permitam perceber o que eacute que is-

so pode ter que ver com a escala apresentada por Aristoacuteteles7

O que antes de mais Aristoacuteteles parece procurar evidenciar eacute que temos facticamente

um conceito de σοφία (ou de sabedoria)

Poderia dar-se o caso de natildeo ser assim Poderia dar-se o caso de se ter um quadro de

determinaccedilotildees composto de tal modo que natildeo incluiacutesse qualquer conceito de σοφία (ou nada

de equivalente) Natildeo eacute esse no entanto o nosso caso

Ora do facto de se ter um quadro de determinaccedilotildees que inclui um conceito de σοφία

decorre o problema de saber a que eacute que um conceito de σοφία corresponde Eacute com esse pro-

blema que Aristoacuteteles se bate nos primeiros capiacutetulos da Metafiacutesica

Aristoacuteteles no entanto natildeo se limita ao confronto em geral com a questatildeo de com-

preender a que eacute que corresponde o conceito de σοφία que facticamente temos O que estaacute em

curso eacute algo distinto Desde o princiacutepio de Metafiacutesica I Aristoacuteteles estaacute a reagir a uma tese

que natildeo chega a referir ou a citar explicitamente mas que procura desmontar e se seguirmos

a sequecircncia dos passos que daacute (daquilo que procura pocircr em evidecircncia) percebemos que na

verdade natildeo apenas estaacute a referir essa tese mas estaacute a procurar mais exactamente infirmaacute-la

ndash abrindo assim o caminho para a adopccedilatildeo da perspectiva oposta

7 Para as muacuteltiplas referecircncias no corpus aristotelicum agrave noccedilatildeo de σοφία ver por exemplo Ret (em

especial I 9 5 I 11 27 II 11 5) Et Nic (em especial 1098b 1103a 1139b 1141a-b 1143b 1144a

1145a 1177a) e Met (em especial Livro A 981a-b 982a 992a Livro Γ 995b 996b Livro Δ 1004b

1005b Livro Λ 1059a 1060a-b Livro Μ 1075b) [sublinhado nosso]

13

A tese que Aristoacuteteles natildeo chega a referir ou a citar explicitamente eacute a seguinte na

medida em que o que estaacute em causa para os seres humanos eacute a proacutepria vida (sc a conduccedilatildeo

da vida) entatildeo o conceito de σοφία (de sabedoria saber etc) que os seres humanos tecircm ou

que eacute relevante para os seres humanos diz meramente respeito ao saber de orientaccedilatildeo ndash ao sa-

ber conduzir a vida

Analisemos um pouco melhor esta tese Isto eacute analisemos a possibilidade de identi-

ficar a σοφία com a forma de saber relativo agrave conduccedilatildeo da vida e suficiente para esse efeito ndash

e mais precisamente com o tipo de saber a que Aristoacuteteles chama φρόνησις8

Uma identificaccedilatildeo da σοφία com a forma de saber a que Aristoacuteteles chama φρόνησις

restringiria a σοφία a uma modalidade de conhecimento orientada para o horizonte vital Nes-

se caso a σοφία soacute teria que ver com a conduccedilatildeo da vida (tratar-se-ia fundamentalmente de

saber viver saber pilotar a vida saber conduzir a vida etc) Ora o que Aristoacuteteles procura

pocircr em evidecircncia nos primeiros capiacutetulos de Metafiacutesica I eacute precisamente que a referida tese

carece de fundamento

Assim a) os seres humanos para aleacutem de um conceito de saber ou sabedoria relativo

agrave conduccedilatildeo da vida tecircm um outro conceito de saber inteiramente irredutiacutevel agravequele b) eacute tan-

to assim que em vez de dois conceitos de σοφία (diferentes e em regime de paridade) sucede

que haacute um uacutenico conceito de σοφία c) o conceito de σοφία (ou sabedoria) que os seres huma-

8 O uso que Aristoacuteteles daacute ao termo φρόνησις eacute extenso e natildeo cabe aqui um inventaacuterio das suas muacutelti-

plas ocorrecircncias ou das suas muacuteltiplas determinaccedilotildees na totalidade da sua obra Eacute possiacutevel no entanto

ganhar uma pista do que se entende por φρόνησις considerando o estudo aprofundado que Aristoacuteteles

dedica ao fenoacutemeno no livro VI V da Eacutetica a Nicoacutemaco Mas tambeacutem uma anaacutelise integral de toda a

complexidade e de todas as possibilidades de compreensatildeo do fenoacutemeno e do seu campo de incidecircncia

que essa secccedilatildeo abre excede em muito o inqueacuterito que aqui se leva a cabo o que nos interessa eacute apenas

reter dois pontos essenciais Por φρόνησις (ou sensatez) entende-se antes de mais uma capacidade de

caacutelculo avaliaccedilatildeo e deliberaccedilatildeo que orienta ou potildee a caminho de um determinado objectivo final

Estaacute em causa portanto uma avaliaccedilatildeo ou deliberaccedilatildeo que eacute tanto circunspecta e prudente quanto

tem por resultado uma correcta orientaccedilatildeo ndash ie a φρόνησις natildeo desorienta nem faz perder o rumo

mas potildee efectivamente a caminho do objectivo final para que se estaacute em tensatildeo A este estaacute associado

um segundo ponto E esse eacute o caso da φρόνησις ter que ver com a avaliaccedilatildeo e deliberaccedilatildeo correcta do

que eacute bom para si proacuteprio na relaccedilatildeo que o indiviacuteduo estabelece com a conduccedilatildeo da vida em geral

Assim o objectivo final para que a φρόνησις orienta natildeo eacute senatildeo por assim dizer a vida boa ndash a quali-

dade de vida o viver bem em geral etc ndash o que faz igualmente notar que o que estaacute em causa na φρό-

νησις natildeo eacute um objectivo parcial ou restrito a uma parcela particular da vida mas um objectivo geral

abrangente que abarca a totalidade da vida ou que visa a vida em geral

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nos tecircm estaacute mais ligado agravequele conceito que eacute irredutiacutevel ao saber de orientaccedilatildeo ou de con-

duccedilatildeo da vida do que a este uacuteltimo

A tentativa aristoteacutelica de fundamentaccedilatildeo destas teses passa por diferentes passos que

eacute preciso recuperar

Em primeiro lugar Aristoacuteteles chama a atenccedilatildeo para o facto de que por maior que se-

ja a nossa vinculaccedilatildeo agrave vida e agrave questatildeo da orientaccedilatildeo dela noacutes temos de todo o modo uma

noccedilatildeo de saber enquanto tal ndash de saber independentemente da sua vinculaccedilatildeo agrave vida Dito de

outro modo haacute em noacutes alguma noccedilatildeo de um saber ordenado pura e simplesmente a si mes-

mo medido para e simplesmente por si mesmo e sem outra preocupaccedilatildeo que natildeo o cumpri-

mento do programa do saber enquanto tal

Aleacutem disso Aristoacuteteles chama a atenccedilatildeo para um segundo aspecto igualmente decisi-

vo O aspecto a que nos referimos eacute um dos aspectos mais insistentemente focados nos capiacutetu-

los iniciais de Metafiacutesica I a saber natildeo soacute temos uma noccedilatildeo do saber (sc do conhecer inde-

pendentemente da sua aplicaccedilatildeo na conduccedilatildeo da vida) como a nossa sensibilidade ao concei-

to de saber ou de conhecer enquanto tal eacute tambeacutem uma sensibilidade agrave diferenccedila entre saber

mais e saber menos ou entre conhecer mais e conhecer menos

Seria exaustivo inventariar aqui todos os passos de Metafiacutesica I em que Aristoacuteteles

foca este aspecto O que deve ficar claro eacute que Aristoacuteteles considera justamente casos em que

uma dada forma de saber eacute percebida como equivalente a um saber mais (na ordem do saber

enquanto tal) mas se reveste de menos relevacircncia para efeitos de conduccedilatildeo da vida E chama

a atenccedilatildeo para o facto de sendo assim ndash porque esse saber menos relevante para a conduccedilatildeo

da vida eacute compreendido como equivalente a algo superior na ordem do saber enquanto tal

(ie no que diz respeito agrave diferenccedila entre saber menos e saber mais enquanto essa diferenccedila

nada tem que ver com a relevacircncia para a vida) ndash tendermos a compreender esse saber como

mais proacuteximo do que estaacute em causa no conceito de σοφία

O que se desenha agrave medida que Aristoacuteteles vai percorrendo as diversas instacircncias de

saber mais e saber menos eacute que o conceito de σοφία corresponde como que ao terminus ad

quem (ou ao ponto de fuga) da diferenccedila entre saber menos e saber mais a que os seres huma-

nos satildeo sensiacuteveis Por outras palavras o conceito de σοφία corresponde a um conceito formal

relativo agrave maximizaccedilatildeo do saber enquanto tal (do conhecimento enquanto tal) ndash ie corres-

ponde a uma forma superlativa de saber enquanto tal

15

Acontece no entanto que a desformalizaccedilatildeo disto que ainda seria um conceito formal

de σοφία poderia fazer-se de formas muito distintas

Na verdade o conceito formal de σοφία pode assumir contornos muito diferentes con-

soante a noccedilatildeo que se tenha de como o conhecimento pode aperfeiccediloar-se e portanto do que

corresponderaacute agravequela forma de saber que eacute superlativa (ou que jaacute natildeo admite qualquer aper-

feiccediloamento) Na medida em que o que estaacute em causa na σοφία eacute um superlativo formal entatildeo

agrave σοφία corresponderaacute sempre ao grau maacuteximo de qualquer progressatildeo de saber possiacutevel A

desformalizaccedilatildeo da σοφία (ie a resposta agrave pergunta qual eacute o grau maacuteximo de saber possiacute-

vel) depende em suma da finitude do acircngulo de acesso da concepccedilatildeo que se tem de quanto

ou ateacute onde o saber pode progredir

Assim num quadro de diferenciaccedilatildeo do saber menos e do saber mais que se caracteri-

za por ter notiacutecia de A B C e D e por essa notiacutecia estar constituiacuteda de tal modo que D aparece

como superior a A B e C seraacute D que aparece como correspondendo ao conceito de σοφία

Mas por outro lado se se vier a perceber que aleacutem de D tambeacutem haacute a possibilidade de E e F

(e isto de tal modo que F parece ser superior tanto a E quanto a D) entatildeo a identificaccedilatildeo da

σοφία mudaraacute pois nesse caso F eacute que corresponderaacute ao conceito de σοφία ndash e assim sucessi-

vamente Poreacutem se o acircngulo for finito e deixar de fora possibilidades de saber que estatildeo para

laacute do campo de incidecircncia do acircngulo (se se caracterizar apenas por ter notiacutecia de A B C e D e

deixar de fora E e F) entatildeo daraacute azo a que se compreenda o superlativo regional (que soacute eacute su-

perlativo em resultado da finitude do acircngulo) como o superlativo absoluto (que eacute o que estaacute

efectivamente em causa na σοφία) Em suma a identificaccedilatildeo do superlativo eacute sempre relativa

ao intervalo total da progressatildeo de saber possiacutevel que cada acircngulo de consideraccedilatildeo permite

identificar

Com estas consideraccedilotildees fica desde jaacute claro o que a escala desenhada por Aristoacuteteles

procura determinar no quadro de identificaccedilatildeo da σοφία o problema que se potildee eacute o de perce-

ber qual o intervalo total de progressatildeo do saber

Isto deixa imediatamente agrave consideraccedilatildeo dois aspectos

O primeiro eacute que eacute decisivo que o intervalo seja total ndash ie eacute essencial que natildeo sub-

sistam acircngulos cegos

Quer dizer o que isto significa eacute que em uacuteltima anaacutelise para se saber em que eacute que

consiste a σοφία (o que eacute que equivale agrave σοφία etc) eacute necessaacuterio ter uma efectiva sinopse (um

olhar totalmente desimpedido totalmente natildeo confinado sobre o intervalo total da progressatildeo

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do saber desde o saber miacutenimo ao saber maacuteximo que jaacute natildeo seja passiacutevel de ser amplificado

para um saber ainda mais etc) Sem esta sinopse a possibilidade de identificaccedilatildeo da σοφία

ficaria ldquoenviesadardquo O que nesse caso sucederia seria tomar-se o comparativo por superlativo

ndash e de facto tomar-se por superlativo absoluto algo que estaacute muito longe de o ser

Por outro lado o que a escala apresenta eacute tanto um levantamento do intervalo global

entre o miacutenimo de saber e o maacuteximo de saber quanto a identificaccedilatildeo de quais e quantas satildeo

as etapas de progressatildeo relevantes no quadro desse intervalo global Ou seja eacute igualmente

decisiva a identificaccedilatildeo das diferenccedilas ou dos passos de significativo desconfinamento no ca-

minho do miacutenimo para o maacuteximo de saber

Acontece que quando se olha para a escala apresentada por Aristoacuteteles o que resulta

desde logo evidente eacute que parece haver um muito marcado contraste entre a magnitude do

empreendimento proposto (entre a pretensatildeo de conhecer o intervalo total de progressatildeo do

saber possiacutevel ndash ie mapear todas as possibilidades de saber relevantes entre saber miacutenimo e

saber maacuteximo) e o cardinal das etapas da progressatildeo que satildeo apresentadas por Aristoacuteteles De

facto o inventaacuterio de etapas de desenvolvimento do saber (ie o itineraacuterio global entre o miacute-

nimo e o maacuteximo de saber) que Aristoacuteteles apresenta natildeo inclui mais do que quatro momen-

tos fundamentais αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη

Esta magnitude do cardinal das etapas referidas por Aristoacuteteles estaacute associada a um as-

pecto que tambeacutem chama a atenccedilatildeo e aumenta ainda mais a perplexidade ndash sobretudo se tiver-

mos em conta que eacute de uma tentativa de identificaccedilatildeo da progressatildeo total (do levantamento

do intervalo total correspondente agrave progressatildeo do saber miacutenimo para o saber maacuteximo) que se

trata Esse outro aspecto tem que ver com o facto de Aristoacuteteles natildeo fazer a mais pequena re-

ferecircncia a questotildees de amplitude (ou a diferenccedilas de amplitude) do saber

Percebe-se imediatamente que se se considerasse o problema da amplitude do acesso

isso bastaria para provocar uma multiplicaccedilatildeo dos passos de progressatildeo (sc das diferenccedilas

relevantes no intervalo entre saber menos e saber mais) Poreacutem o facto eacute que Aristoacuteteles natildeo

parece atribuir nenhum papel relevante agraves questotildees de amplitude

Ora isto tem implicaccedilotildees e potildee problemas

Se natildeo estamos a ver mal o que parece implicado na escala aristoteacutelica tal como se

apresenta em Metafiacutesica I e Anal Post XI 19 eacute que a perspectiva que apenas tenha αἴσθησις

de um dado ldquoobjectordquo sabe menos do que a perspectiva que inclua μνήμη dele e esta por sua

vez sabe menos do que uma perspectiva que jaacute se eleve ao plano da ἐμπειρία ndash e que tambeacutem

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esta sabe menos do que uma perspectiva correspondente a τέχνη ou ἐπιστήμη O simples facto

de um acesso envolver μνήμη eacute suficiente soacute por si para que esse acesso corresponda a um

ldquosaber maisrdquo do que aquele que eacute alcanccedilado por um acesso soacute provido de αἴσθησις o sim-

ples facto de um acesso envolver ἐμπειρία eacute suficiente soacute por si para que esse acesso corres-

ponda a um ldquosaber maisrdquo do que aquele que eacute alcanccedilado por um acesso soacute provido de μνή-

μη o simples facto de um acesso envolver τέχνη ou ἐπιστήμη eacute suficiente soacute por si para que

esse acesso corresponda a um ldquosaber maisrdquo do que aquele que eacute alcanccedilado por um acesso soacute

provido de ἐμπειρία

A irrelevacircncia das questotildees de amplitude pode ter portanto que ver com o facto de se

estar a considerar a possibilidade de progressatildeo do saber em relaccedilatildeo a cada cognosciacutevel

Mas por outro lado o ldquosilecircnciordquo relativamente a questotildees de amplitude tambeacutem pode

significar que ndash mesmo que suceda que um acesso que jaacute envolva μνήμη se caracterize por

uma amplitude de αἴσθησις (e portanto de μνήμη) muito restrita enquanto o acesso soacute pro-

vido de αἴσθησις tivesse pelo contraacuterio uma amplitude extraordinaacuteria (no limite ateacute a ampli-

tude correspondente a qualquer coisa como uma αἴσθησις total) ndash o ponto de vista mneacutesico sa-

be mais do que o ponto de vista meramente esteacutesico (pelo simples facto de um ser jaacute mneacutesico

e o outro natildeo) E o mesmo fenoacutemeno se verificaria nas relaccedilotildees entre μνήμη e ἐμπειρία e entre

ἐμπειρία e τέχνη ou ἐπιστήμη

As questotildees que no seguimento disto se devem pocircr satildeo justamente as de saber a) se

faz sentido que o levantamento de um intervalo total da progressatildeo de saber menos para sa-

ber mais faccedila ldquotaacutebua rasardquo das questotildees de amplitude b) qual eacute o sentido do ldquosilecircnciordquo de

Aristoacuteteles relativamente agraves diferenccedilas de amplitude (ie a de saber se o que estaacute em causa eacute

a primeira ou a segunda das possibilidade referidas) e c) em qualquer dos casos qual o fun-

damento da perspectiva assim adoptada na construccedilatildeo da escala

Comeccedilamos a compreender o fundamento que preside agrave construccedilatildeo da escala (ou seja

o fundamento que deixa perceber o sentido da escala e o que estaacute em causa em cada uma das

suas etapas) se considerarmos alguns aspectos estruturais da escala aristoteacutelica

O primeiro aspecto que interessa considerar tem que ver com a importacircncia das fron-

teiras entre os diversos momentos da escala Aristoacuteteles regista o conjunto relevante dos estaacute-

dios correspondentes a diversos graus de eficaacutecia cognoscitiva

O proacuteprio facto de a escala ignorar questotildees de amplitude faz que ela seja uma escala

de diferenccedilas qualitativas se assim se pode dizer uma escala de modos de acesso ou de con-

18

trastes quanto ao modo de acesso Em suma eacute uma escala de saltos qualitativos O que as

fronteiras destacam (aquilo que datildeo a ver sobre a relaccedilatildeo entre as etapas) satildeo por assim dizer

os momentos de descontinuidade qualitativa

Ora esta formulaccedilatildeo pode suscitar equiacutevocos se se entender que se trata entatildeo pura e

simplesmente de uma escala de modos de acesso ndash porque sendo assim (tratando-se de uma

mera escala de modos de acesso) entatildeo todas diferenccedilas se situariam ldquodesserdquo lado e portanto

natildeo teriam que ver com diferenccedilas quanto agravequilo que aparece Na verdade aos contrastes

quanto ao modo do acesso (ou quanto agrave ldquoqualidaderdquo do acesso) que estatildeo em causa na escala

de Aristoacuteteles correspondem tambeacutem diferenccedilas no que diz respeito agravequilo que aparece o

que aparece eacute diferente conforme o patamar da escala em que se esteja

O que isto quer dizer eacute que a escala de Aristoacuteteles eacute tambeacutem uma escala de desconti-

nuidades qualitativas em relaccedilatildeo ao teor daquilo que aparece Ou seja o que aparece agrave αἴσ-

θησις difere do que aparece agrave μνήμη que por sua vez difere do que aparece agrave ἐμπειρία que

por sua vez difere do que aparece a τέχνη ou a ἐπιστήμη

Sendo assim a descontinuidade entre as etapas apresentadas por Aristoacuteteles pode ser

descrita do seguinte modo cada momento da escala estaacute numa relaccedilatildeo com o momento que

lhe antecede e com o momento que lhe sucede Cada etapa da escala corresponde a qualquer

coisa como um intervalo ndash mais propriamente agravequele intervalo que vai da sua fronteira infe-

rior agrave sua fronteira superior

Por outras palavras cada momento da escala aristoteacutelica define-se por vencer a des-

continuidade relativa agrave etapa inferior e por ficar aqueacutem da descontinuidade que tem de ser

vencida para se alcanccedilar a etapa superior A ser assim cada etapa eacute portanto um intervalo

num intervalo ndash ie cada etapa eacute uma secccedilatildeo do intervalo global que corresponde agrave progres-

satildeo total do saber

Mas aqui importa ter em atenccedilatildeo algo que pode passar despercebido e que eacute igualmen-

te significativo

A escala apresentada por Aristoacuteteles eacute tanto uma escala de possibilidades relevantes

de avanccedilo quanto eacute uma escala de possibilidades relevantes de finitude

Isto eacute a escala a que aludimos eacute tambeacutem uma escala de possibilidades de retenccedilatildeo ndash

de formas de ficar aqueacutem de uma plena realizaccedilatildeo do saber Na verdade eacute uma escala da de-

fectividade do saber

19

Importa natildeo perder de vista esta ldquoduplicidaderdquo Por um lado cada etapa superior mar-

ca em relaccedilatildeo agrave inferior qualquer coisa como um avanccedilo ou um desconfinamento de perspec-

tiva ndash um desenvolvimento relevante na progressatildeo do miacutenimo ao maacuteximo de saber Por ou-

tro lado cada etapa inferior marca tambeacutem em relaccedilatildeo agrave superior uma forma de confinamen-

to de perspectiva como que de fechamento de acircngulo

Ou seja haacute algo como um duplo significado de cada fronteira Na escala de Aristoacute-

teles enquanto significa a fronteira inferior de uma etapa da escala cada fronteira marca o

desconfinamento de perspectiva que daacute origem a essa etapa mas enquanto significa a fron-

teira superior da etapa precedente essa mesma fronteira marca o confinamento de perspecti-

va proacutepria da etapa precedente (a saber o desconfinamento que essa etapa ainda natildeo conse-

gue alcanccedilar e cuja falta a define)

Devemos notar que isto implica natildeo apenas que a determinaccedilatildeo exacta do confina-

mento ou da finitude de uma etapa intermeacutedia estaacute marcada pela relaccedilatildeo agrave etapa imediata-

mente superior a essa mas implica mais exactamente que o confinamento ou a finitude de

uma etapa intermeacutedia estaacute tambeacutem marcada pela relaccedilatildeo a todas as etapas superiores ndash e no

limite estaacute marcada pela relaccedilatildeo agrave uacuteltima etapa Na verdade o confinamento a que uma dada

etapa estaacute sujeita soacute pode ser plenamente determinado a partir do desconfinamento maacuteximo

(da σοφία) ndash ie soacute pode ser determina-do a partir da etapa que natildeo admite mais nenhum des-

confinamento

Isto que acabou de se descrever eacute igualmente vaacutelido para os dois extremos da escala ndash

embora com uma particularidade

A primeira etapa (a αἴσθησις) tem como limite inferior a total ausecircncia de saber O

que eacute superado no seu limite inferior eacute a total ausecircncia de saber ndash total ausecircncia de saber que

jaacute se situa fora da escala

Analogamente a τέχνη ou ἐπιστήμη tecircm como limite superior justamente nada a τέχνη

ou ἐπιστήμη define-se pela sua insuperabilidade por natildeo ser passiacutevel de nenhum incremento

ou aperfeiccediloamento De sorte que tambeacutem neste caso aquilo que se situa para laacute do limite jaacute

natildeo pertence agrave escala (quer dizer jaacute natildeo pertence ao intervalo ou ao horizonte de saber por-

que pura e simplesmente natildeo pode haver nada de superior a τέχνη ou ἐπιστήμη)

Mas haacute ainda dois aspectos adicionais dignos de nota

Poderia acontecer que uma escala com as caracteriacutesticas que descrevemos ateacute agora

estivesse constituiacuteda de tal modo que o seu segundo niacutevel correspondesse a uma forma de sa-

20

ber totalmente diferente da forma de saber em causa no primeiro niacutevel (completamente hete-

rogeacuteneo em relaccedilatildeo a ele) ndash e assim tambeacutem no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre terceiro e se-

gundo niacutevel ou entre o quarto e o terceiro A ser assim o segundo niacutevel natildeo teria nada do pri-

meiro o terceiro nada do segundo e o quarto nada do terceiro

No entanto natildeo parece ser isto que Aristoacuteteles tem em vista

A escala desenhada no livro I da Metafiacutesica e na secccedilatildeo XI XIX dos Analiacuteticos Poste-

riores tem um caraacutecter tal que cada etapa posterior inclui no seu acontecimento as anteriores

ndash mais precisamente cada etapa inclui a etapa imediatamente anterior e por via dela tam-

beacutem a que a procede Isto eacute cada etapa equivale agraves etapas inferiores transformadas por um

desconfinamento que as integra no seu terminus ad quem ndash mas justamente transformadas ou

transfiguradas por um desconfinamento

Assim o segundo niacutevel equivale a qualquer coisa como o primeiro niacutevel transformado

por um desconfinamento que integra o primeiro niacutevel no seu terminus ad quem o terceiro niacute-

vel equivale a qualquer coisa como o segundo niacutevel transformado por um desconfinamento

que integra o segundo niacutevel no seu terminus ad quem e o quarto niacutevel equivale a qualquer

coisa como o terceiro niacutevel transformado por um desconfinamento que integra o terceiro niacutevel

no seu terminus ad quem

Ora e em segundo lugar isto significa que a escala de Aristoacuteteles tem o caraacutecter de

uma escala geneacutetica

Vendo bem as diferentes etapas formam a base de desenvolvimento umas das outras e

estatildeo constituiacutedas na forma do desenvolvimento das etapas precedentes O que estaacute efectiva-

mente em causa nas diversas etapas eacute algo como um tracircnsito de anterioridade e posterio-

ridade sequecircncia e sucessatildeo Haacute qualquer coisa como um condicionamento em virtude do

qual cada etapa superior natildeo eacute possiacutevel directamente por si soacute ndash cada etapa superior soacute eacute pos-

siacutevel sobre o fundo ou sobre a condiccedilatildeo de possibilidade que constituem para ela as etapas an-

teriores

Tudo isto configura uma relaccedilatildeo entre as etapas da escala marcada por dois aspectos

que se vistos em certo sentido parecem incompatiacuteveis

Se por um lado cada nova etapa eacute caracterizada por incluir em si a precedente (de tal

modo que se poderia falar de um ldquofiordquo de continuidade) por outro lado haacute uma vincada des-

continuidade entre os diferentes niacuteveis

21

Quer dizer por mais que a segunda etapa inclua em si a primeira (e que por sua vez a

terceira etapa inclua em si a segunda e portanto mediatamente inclua tambeacutem em si a pri-

meira e que por sua vez a quarta etapa inclua em si a terceira e portanto mediatamente in-

clua tambeacutem em si a primeira e a segunda) a verdade eacute que na primeira ainda natildeo haacute absolu-

tamente nada do que eacute proacuteprio da segunda (ainda natildeo haacute absolutamente nada disso que eleva

a segunda acima da primeira disso que a segunda potildee de proacuteprio etc) ndash da mesma forma

que na segunda natildeo haacute absolutamente nada do que eacute proacuteprio da terceira e na terceira natildeo haacute

absolutamente nada do que eacute proacuteprio da quarta

O esclarecimento desta aparente incompatibilidade passa por notar que o que estaacute em

jogo na escala aristoteacutelica eacute algo como uma sucessatildeo de passos de desconfinamento que mo-

dificam muito significativamente natildeo a amplitude mas a forma do acesso que se tem agraves coisas

(e portanto tambeacutem o teor daquilo que aparece)

O facto de haver um nexo de integraccedilatildeo (o fio de continuidade que poderia ser expres-

so recorrendo agraves foacutermulas 2=1+1 passo de desconfinamento 3=2+1 passo de desconfinamen-

to ie 3=[2(=1+1 passo de desconfinamento)+1 passo de desconfinamento] 4=3+1 passo de

desconfinamento ie 4=[3=[2(=1+1 passo de desconfinamento)+1 passo de desconfinamen-

to] + um passo de desconfinamento]) natildeo impede nem diminui o hiato (o salto ndash e como se

veraacute o extraordinaacuterio salto) entre os diferentes niacuteveis que compotildeem a escala

Se as caracteriacutesticas e o aspecto de uma etapa inferior eacute retroperspectivado a partir da

etapa em que se estaacute e do que uma tal etapa potildee de seu entatildeo isto implica a impossibilidade

de antecipaccedilatildeo do que se seguiraacute ie dos passos possiacuteveis da escala Ainda que uma dada

etapa tenha a sua identidade sempre jaacute marcada pelo facto de ficar aqueacutem do desconfina-

mento imposto por uma etapa seguinte (e no limite por todas as etapas seguintes e por fim

pela uacuteltima etapa) o facto eacute que o patamar em que se estaacute eacute sempre totalmente cego sobre as

possibilidades do seu desconfinamento do desenvolvimento que dele possa advir

Eacute precisamente isto que encontramos desenhado por Aristoacuteteles num conceito que

constitui um dos componentes essenciais da histoacuteria da noccedilatildeo de escala o conceito de ἐφεξῆς

Aristoacuteteles define o termo na Metafiacutesica (1068b30 e ss) e encontram-se diversas ocor-

recircncias tanto na Retoacuterica quanto na Poeacutetica9 Poreacutem os elementos essenciais que conveacutem ter

9 Ver por exemplo Met V XXIV (1023b9) XI XII (1068b33-1069a11) XII I (1069a21) XIII V

(1080a20-30) XIII VII (1081b6) XIII VIII (1083a32) XIII IX (1085a3-7) Ret I VII (1363b) III

XVI (1416b) III XVII (1418a) Poet VI 1450a29 VII 1451a13 X 1451b38 XXIII 1459a27

22

em conta com o fim de se entender o conceito de ἐφεξῆς e a sua relaccedilatildeo com o que foi dito ateacute

aqui podem encontrar-se num passo do De Anima

Aristoacuteteles comeccedila por dizer que haacute diversos niacuteveis de ψυχή (θρεπτικόν ὀρεκτικόν

αἰσθητικόν κινητικὸν κατὰ τόπον διανοητικόν) antes de estabelecer que as relaccedilotildees entre as

diversas ψυχαὶ equivalem agraves relaccedilotildees que haacute entre quadrilaacuteteros e triacircngulos (414b28 e ss)

Ora se se considerar um quadrilaacutetero verifica-se que inclui sempre em si algo como

um triacircngulo de facto um quadrilaacutetero equivale a um triacircngulo mais algo para laacute do triacircngu-

lo Por outras palavras se considerarmos a composiccedilatildeo de qualquer quadrilaacutetero (aquilo que

tem de ser posto para a partir de ldquozerordquo se constituir um quadrilaacutetero) verificamos que passa

sempre por um triacircngulo mas justamente natildeo se fica por aiacute implica a ldquoultrapassagemrdquo do

triacircngulo (um ir para aleacutem dele) Em suma haacute sempre um triacircngulo inscrito num quadrilaacutetero

e inversamente a constituiccedilatildeo de um quadrilaacutetero implica um triacircngulo mais um acreacutescimo

No entanto o acreacutescimo sobre o triacircngulo ndash acreacutescimo sem o qual na verdade natildeo

haveria qualquer quadrilaacutetero ndash como que ldquoapagardquo o triacircngulo substituindo a forma do triacircn-

gulo por uma outra resultante do acreacutescimo de que o triacircngulo enquanto tal ainda natildeo con-

teacutem nada Eacute isso que Aristoacuteteles quer dizer quando diz que o quadrilaacutetero estaacute (em potecircncia

entenda-se) no triacircngulo10

Eacute justamente algo desta ordem que estaacute em causa na escala de Metafiacutesica I ndash mas se

assim se pode dizer com iteraccedilatildeo a segunda etapa faz de ldquoquadrilaacuteterordquo em relaccedilatildeo ao ldquotriacircn-

gulordquo da primeira por sua vez a terceira etapa assume o papel de ldquoquadrilaacuteterordquo e potildee a se-

gunda a equivaler a um ldquotriacircngulordquo e por fim a quarta etapa faz o mesmo em relaccedilatildeo agrave ter-

ceira

Assim mesmo que Aristoacuteteles natildeo o diga explicitamente a noccedilatildeo de ἐφεξῆς ndash a forma

de sequecircncia que a noccedilatildeo de ἐφεξῆς designa ndash expressa exactamente o peculiar nexo de conti-

nuidade e de descontinuidade que apontaacutemos como sendo proacutepria quer da escala quer das

10

(Παραπλησίως δ ἔχει τῷ περὶ τῶν σχημάτων καὶ τὰ κατὰ ψυχήν ἀεὶ γὰρ ἐν τῷ ἐφεξῆς ὑπάρχει δυνά-

μει τὸ πρότερον ἐπί τε τῶν σχημάτων καὶ ἐπὶ τῶν ἐμψύχων οἷον ἐν τετραγώνῳ μὲν τρίγωνον ἐν αἰσθη-

τικῷ δὲ τὸ θρεπτι- κόν) Ὥστε καθ ἕκαστον ζητητέον τίς ἑκάστου ψυχή οἷον τίς φυτοῦ καὶ τίς ἀνθρώ-

που ἢ θηρίου (414b28 e ss)

23

etapas de desconfinamento significativo do tracircnsito do miacutenimo para o maacuteximo de saber tal

como as desenha Aristoacuteteles11

Isto conduz-nos a uma uacuteltima consideraccedilatildeo que tem que ver com isso a que podemos

chamar o complexo jogo de perspectivas silenciosamente implicado numa escala como aquela

que eacute desenhada por Aristoacuteteles

Se o problema a que procura dar resposta eacute o da identificaccedilatildeo da σοφία (enquanto a

σοφία equivale a um conceito formal de saber superlativo) entatildeo a escala de Aristoacuteteles tem a

pretensatildeo de natildeo ser apenas uma escala parcial de natildeo retratar somente uma parte do inter-

valo entre o miacutenimo de saber e o saber superlativo A escala de Aristoacuteteles procura apresen-

tar de facto o intervalo total ndash e apresentar todas as diferenccedilas relevantes que o pontuam Em

suma o que estaacute em jogo eacute no sentido eacutetimoloacutegico do termo um ldquopanoramardquo das possibili-

dades de saber ndash ldquopanoramardquo que eacute (e tem de ser) totalmente desconfinado

O que isto significa eacute que se perguntarmos qual eacute o ponto de vista ao qual se oferece

a escala ou qual eacute o ponto de vista a partir do qual se tem a perspectiva sinoacuteptica que a es-

cala pretende oferecer resulta claro que se trata de qualquer coisa como um ponto de vista si-

lenciosamente concebido como testemunha de todo o itineraacuterio de progressatildeo do saber e que

se caracteriza pela sua capacidade irrestrita ie por ter justamente uma visatildeo sinoacuteptica ca-

paz de alcanccedilar todos os momentos da escala (quer dizer toda a progressatildeo desde o miacutenimo

ao maacuteximo de saber) sem que nada permaneccedila fora da sua perspectiva

11

O termo ἐφεξῆς indica portanto sequecircncia ou sucessatildeo ndash com isso querendo por um lado apontar a

uma ordenaccedilatildeo o caso de haver uma precedecircncia do triacircngulo em relaccedilatildeo ao quadrilaacutetero e do quadri-

laacutetero sobrevir ao triacircngulo de tal modo que haacute entre as duas figuras continuidade No entanto por

outro lado a continuidade natildeo resulta de uma mera distribuiccedilatildeo temporal (que ponha o quadrilaacutetero a

vir depois do triacircngulo) mas de uma relaccedilatildeo que potildee o acontecimento do quadrilaacutetero tanto dependente

de quanto caracterizado a partir do acontecimento do triacircngulo O ἐφεξῆς natildeo reporta a uma mera ad-

jacecircncia ou a um mero alinhamento contiacuteguo mas ao caso de y ser extraiacutedo a partir de x do aconteci-

mento de y ser atravessado pelo acontecimento de x etc O ἐφεξῆς tem portanto a acepccedilatildeo de seacuterie ndash

de uma seacuterie em que o segundo procede do primeiro e o terceiro do segundo etc E tanto assim que o

que resulta da seacuterie eacute o segundo elemento da seacuterie ter caraacutecter de segundo ndash ie de natildeo ser primeiro

mas algo que procede de ou sucede ao primeiro que eacute extraiacutedo dele Assim o primeiro elemento da

seacuterie natildeo tem o que eacute necessaacuterio para constituir o segundo elemento da seacuterie inversamente o segundo

elemento da seacuterie aniquila no seu acontecimento o elemento de que precede O primeiro de qualquer

seacuterie pode ser o princiacutepio de uma continuidade infinita que sempre pressupotildee o primeiro mas em

qualquer caso o primeiro estaacute aniquilado no segundo no terceiro etc ndash dito de outro modo o segun-

do conteacutem o primeiro e aniquila-o o terceiro conteacutem o primeiro e o segundo e aniquila-os etc

24

Acontece no entanto que se perguntarmos qual eacute esse ponto de vista (quem o ocupa

ou possui) a resposta eacute que se trata justamente do nosso ponto de vista que o ponto de vista

que de certo modo natildeo estaacute dentro dela mas eacute o ponto de vista testemunha da escala eacute o

nosso Quer dizer quem compreende a escala e acompanha o itineraacuterio que nela se desenha

somos noacutes ndash somos noacutes quem tem o panorama (o itineraacuterio total) em causa

A escala de Aristoacuteteles eacute por assim dizer uma escala antropoloacutegica

Poreacutem o caraacutecter ldquoantropoloacutegicordquo da escala (quer dizer o facto de a ldquoloacutegicardquo interna

da escala ter o seu foco sobre o ser humano ser de certo modo antropocentrada etc) pode-

ria corresponder a vaacuterios desdobramentos

Por um lado poderia ter expressatildeo no facto de a escala ser uma escala que correspon-

desse exclusivamente ao ser humano ndash ie ser uma escala em que cada um dos seus momen-

tos fosse um momento possiacutevel do ser humano na sua relaccedilatildeo com o saber (como diferentes

ldquoerasrdquo ou ldquoidadesrdquo do ser humano uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo esteacutesica uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo mneacute-

sica uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo empiacuterica e uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo teacutecnica ou episteacutemica)

Por outro lado poderia dar-se o caso de ao ser humano corresponder apenas um mo-

mento da escala ndash caso no qual consoante a posiccedilatildeo na escala que coubesse ao ser humano

todos os outros momentos possiacuteveis seriam desenvolvimentos aqueacutem eou aleacutem do ser huma-

no Neste sentido o que a escala procuraria fazer seria apurar qual a posiccedilatildeo do humano pe-

rante a amplitude do saber que lhe eacute possiacutevel ndash ie apurar a posiccedilatildeo do ser humano perante

a amplitude do saber possiacutevel (ou mais exactamente a posiccedilatildeo do ser humano perante a am-

plitude do saber que eacute possiacutevel ao ser humano conceber)

Ora o proacuteprio sentido da escala ndash enquanto esta escala procura retratar o intervalo de

toda a progressatildeo possiacutevel do saber desde o miacutenimo ao maacuteximo de saber etc ndash implica que

natildeo pode haver nenhum ponto de vista exterior ao que nela se acha retratado Seja como for

o ponto de vista que testemunha a escala tem de ter uma posiccedilatildeo definida no quadro da esca-

la Digamos assim se o que estaacute em causa eacute justamente a escala total das possibilidades de

confinamento e desconfinamento do acesso entatildeo o acesso de que qualquer ente dispotildee (en-

tenda-se qualquer ente ou ser vivo que esteja constituiacutedo na posse de um acesso agraves ldquocoisasrdquo)

deveraacute ser situaacutevel na escala

Assim a escala de Aristoacuteteles tem uma natureza tal que constitui como que uma ldquoreacute-

guardquo para medir ndash ou um ldquoquadrordquo para localizar ndash qualquer acontecimento de acesso Se

pelo seu sentido ainda que tenha o seu foco sobre o ser humano a escala natildeo eacute especialmente

25

relativa a noacutes ao mesmo tempo vale naturalmente tambeacutem a nosso respeito e suscita a per-

gunta onde se situa nela o nosso ldquoolharrdquo o acesso em que nos achamos de que dispomos

A resposta agrave pergunta ldquoonde se situa o nosso ldquoolharrdquo na escala aristoteacutelicardquo eacute com-

plexa ndash e eacute-o desde logo no plano formal

Poderia acontecer que a resposta passasse pela mera identificaccedilatildeo de uma etapa da es-

cala que correspondesse agrave forma de acesso que nos eacute proacutepria Mas vendo bem natildeo eacute forccedilosa-

mente assim

Na medida em que a escala aristoteacutelica tem a natureza de uma escala de possibilida-

des de acesso nada implica que o acontecimento de acesso ou a forma de saber proacutepria de um

determinado ente (sc de um dado ser vivo) ndash e designadamente o acontecimento de acesso

em que damos connosco ndash tenha forccedilosamente de corresponder a apenas uma etapa da esca-

la Com efeito pode suceder que o acesso de um dado ente ndash e designadamente o acesso que

eacute o nosso ndash tenha um caraacutecter tal que possa mudar de localizaccedilatildeo na escala ou seja tenha a

possibilidade de transitar de uma etapa para outra (e na verdade natildeo apenas de uma etapa

para outra mas de uma etapa para outras) Eacute isto que se desenha no plano meramente formal

Mas resulta claro que a resposta agrave referida pergunta soacute pode ser dada a partir de uma

anaacutelise que natildeo se limite somente aos aspectos formais que tentaacutemos passar brevemente em

revista A resposta passa por uma anaacutelise detida das proacuteprias determinaccedilotildees ou formas con-

cretas de acesso que Aristoacuteteles faz corresponder agraves diferentes etapas da sua escala Dito por

outras palavras a resposta agrave pergunta pela localizaccedilatildeo do acontecimento de acesso em que

nos temos na escala de Aristoacuteteles depende de uma averiguaccedilatildeo disso a que Aristoacuteteles chama

αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη

Eacute que como dissemos a escala desenhada por Aristoacuteteles define-se pela combinaccedilatildeo

de duas ordens de factores temos por um lado os factores formais e temos ainda por outro

as determinaccedilotildees concretas ou ldquomateriaisrdquo que satildeo postas em conexatildeo com elas Uma vez

vistos sumariamente os primeiros trata-se agora de pocircr as diferentes articulaccedilotildees formais fo-

cadas em ligaccedilatildeo com aquilo que as desformaliza

Assim o que procuraremos fazer de seguida seraacute determinar a que eacute que corresponde

cada um dos conceitos que definem as etapas da escala aristoteacutelica ndash a que eacute que correspon-

dem αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη

26

I EXPERIEcircNCIA

sect4

A forma de aparecimento que mais deixa escondido isso que de algum modo potildee jaacute agrave mostra

A compreensatildeo do sentido em que a primeira etapa da escala aristoteacutelica corresponde

agrave αἴσθησις depende naturalmente da proacutepria carga especiacutefica do conceito de αἴσθησις

Agrave partida a compreensatildeo do que corresponde agrave αἴσθησις parece satisfeita quando se

faz passar a αἴσθησις por algo como sensaccedilatildeo percepccedilatildeo ou o que quer que seja desta ordem

Aliaacutes num certo sentido seria possiacutevel fazer essa leitura a partir da proacutepria obra de

Aristoacuteteles Bastaria considerar por exemplo os passos do corpus aristotelicum em que se

desenvolvem mais detidamente os fundamentos da αἴσθησις12

O que se encontra em Anal

Post 99b35 eacute a compreensatildeo da αϊσθησις num quadro de inclusatildeo e de exclusatildeo de conteuacute-

dos (consoante incida ou natildeo sobre eles) A αϊσθησις corres-ponderia agrave incidecircncia (e o seu

contraacuterio a ἀναισθησία a natildeo-incidecircncia) Quer dizer a αϊσθησις corresponderia a essa acccedilatildeo

de incidir em ou de incidir sobre de estar caiacutedo ou lanccedilado sobre algo precipitado em algo

deposto perante algo etc en-quanto esse acto eacute condiccedilatildeo sine qua non do contacto directo

(em primeira matildeo na ldquoprimeira pessoardquo) que se analisou na secccedilatildeo anterior

12

Natildeo podemos deixar aqui de reforccedilar o facto de que o que estaacute em causa nesta secccedilatildeo natildeo eacute de mo-

do nenhum uma identificaccedilatildeo global da noccedilatildeo de αἴσθησις ou dos seus diversos usos na obra de Aris-

toacuteteles Uma identificaccedilatildeo desse geacutenero teria de considerar uma quantidade de passos do corpus aris-

totelicum ou uma quantidade de caracteriacutesticas do que estaacute implicado na noccedilatildeo a que esta secccedilatildeo natildeo

pode dar atenccedilatildeo Ter-se-ia por exemplo que considerar todo o complexo de fenoacutemenos a que a αἴσ-

θησις se abre em vaacuterios momentos da Metafiacutesica (livro III 997b 999b livro IV 1009b-1011b livro

V 1016a 1018b 1020b livro VII 1035b-1036a livro IX 1047a-b livro X 1053a-1054a livro XI

1062b-1064a livro XII 1072b-1074b livro XIII 1077a livro XIV 1088a etc) da Eacutetica a Nicoacutemaco

(1098b 1103a 1109b 1113a 1118a-b 1126b 1139a 1142a 1143b 1149a 1161b 1170a-1171b

1173b-1175b etc) do De Anima II (4 e 5 414a15-418a6) da Eacutetica a Eudemo (1226a 1230b-1231a

1235b-1236a 1245a etc) da Retoacuterica (em especial I 11) etc Mais ainda esta advertecircncia eacute espe-

cialmente importante na medida em que Aristoacuteteles dedica especial atenccedilatildeo ao tema ndash neste caso par-

ticular na forma de um tratado (o De sensu et sensibilibus) em que o assunto eacute exposto em toda a sua

amplitude

27

Poreacutem quando fala de αἴσθησις no contexto da escala (na moldura formal que vimos

na secccedilatildeo anterior) Aristoacuteteles introduz uma determinaccedilatildeo radical de αἴσθησις que natildeo estaacute

necessariamente presente na compreensatildeo mais comum do termo o facto de ser a forma miacuteni-

ma de acesso ndash ou seja aquele acesso que por assim dizer dista um soacute grau da total ausecircncia

do aparecimento ou do saber

Neste sentido o problema que eacute decisivo suscitar para se perceber de que eacute que Aris-

toacuteteles estaacute a falar quando fala da αἴσθησις na moldura formal da escala adveacutem da posiccedilatildeo em

que Aristoacuteteles potildee a αἴσθησις na escala que desenha E ao colocar a αἴσθησις na primeira

posiccedilatildeo da escala Aristoacuteteles estaacute de facto a destacar algo que poderia ser descrito em trecircs

aspectos

Em primeiro lugar estaacute a procurar destacar que a primeira posiccedilatildeo da escala equivale

ao primeiro momento de algo jaacute distinto de uma ignoracircncia total

O primeiro patamar da escala corresponde ao lance de subtracccedilatildeo original ao natildeo-sa-

ber absoluto a uma forma miacutenima de acesso (a um rasgo ou desconfinamento) que introduz a

diferenccedila entre o natildeo acesso e o acesso (ie entre natildeo saber e saber entre natildeo conhecer e

conhecer etc) O que estaacute em jogo eacute em suma a αἴσθησις enquanto lance de abertura en-

quanto eacute jaacute um primeiro estaacutedio de eficaacutecia cognoscitiva

Dito doutro modo a primeira etapa da escala marca a fronteira limiacutetrofe entre o que

cai dentro e o que cai fora do domiacutenio da escala ndash mais precisamente neste caso o que cons-

titui o limite miacutenimo da escala Fica-se com isto a saber que a total ausecircncia de saber estaacute ex-

cluiacuteda da escala (estaacute do lado de fora da escala) e que o primeiro momento que a escala inclui

eacute jaacute um momento do saber

Isto leva a um segundo aspecto

Esse segundo aspecto eacute o que faz notar que a diferenccedila entre o natildeo-saber e o saber

natildeo eacute uma diferenccedila quantitativa mas qualitativa

O rasgo ou desconfinamento em causa na primeira etapa da escala opera uma trans-

formaccedilatildeo de natureza a primeira etapa da escala eacute sempre jaacute algo qualitativamente diferente

da total ausecircncia do nada do escondimento etc O limite miacutenimo da escala assinala a radical

heterogeneidade entre o dentro e o fora da escala ndash mas isto de tal maneira que o limite miacute-

nimo da escala (isso que marca o que jaacute cai dentro da escala) assinala uma linha de separa-

ccedilatildeo entre dois domiacutenios irreconciliaacuteveis entre si

28

Acontece que estes dois aspectos satildeo ainda aspectos meramente formais ndash e tanto quer

dizer que o rasgo ou o desconfinamento que anunciam poderia assumir formas concretas mui-

to variadas E na verdade o rasgo ou o desconfinamento que anunciam poderia assumir uma

forma distinta da forma da αἴσθησις

Assim o terceiro aspecto que se deve ter em conta eacute esse que faz notar que o rasgo ou

o desconfinamento em causa tem a forma de αἴσθησις

De entre vaacuterias modalidades alternativas de rasgo ou desconfinamento possiacuteveis a

modalidade concreta que opera a transformaccedilatildeo entre o estaacutedio de total ausecircncia de saber e

o estaacutedio de saber eacute a αἴσθησις Eacute a αἴσθησις a modalidade de desconfinamento ou acesso que

supera de forma miacutenima o natildeo-saber absoluto essa modalidade cujo desvio em relaccedilatildeo ao

natildeo-saber resulta iacutenfimo Ou seja a αἴσθησις eacute a modalidade de desconfinamento ou acesso

mais proacutexima do natildeo-acesso ou a modalidade de saber que imediatamente se segue ao natildeo-

saber absoluto

O lance da αἴσθησις eacute em suma o lance pelo qual eacute dado a ver (ie dado a saber da-

do a conhecer etc) algo que natildeo era visto (que natildeo era sabido conhecido etc) ndash eacute portanto o

lance radical que rompe irreversivelmente a barreira do escondimento Poderiacuteamos dizecirc-lo

assim o lance da αἴσθησις eacute o lance a partir do qual o escondimento natildeo eacute senatildeo sempre jaacute

visado como mero negativo do aparecimento ndash aparecimento em que em virtude do rasgo ou

desconfinamento que a αἴσθησις produz sempre jaacute se estaacute lanccedilado quando se estaacute posto na si-

tuaccedilatildeo de ver de saber ou de conhecer

No sentido em que aqui a estamos a analisar a αἴσθησις corresponde ao acesso primaacute-

rio e primeiro ao que aparece (na verdade a tudo o que aparece) ndash ie agrave condiccedilatildeo de possibi-

lidade do proacuteprio aparecimento do que quer que seja do proacuteprio aparecimento de tudo o que

aparece Poreacutem e em simultacircneo a αἴσθησις eacute a forma de acesso marcada por uma maacutexima

subsistecircncia de escondimento ndash por aquela maacutexima subsistecircncia de escondimento que eacute com-

patiacutevel com haver jaacute algum aparecimento ou saber de algo Em suma a αἴσθησις eacute a forma de

aparecimento de algo que mais deixa escondido esse algo que potildee de algum modo jaacute agrave

mostra

Ora o que interessa analisar na continuaccedilatildeo eacute precisamente o que eacute que corresponde

exactamente agrave αἴσθησις ou como eacute que a αἴσθησις ldquoencarnardquo o saber miacutenimo (esse saber que

menos sabe que sendo jaacute saber mais ignora etc)

29

sect5

A noccedilatildeo histoacuterica de αἴσθησις na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica e a pergunta de que eacute feito o

aparecimento

Compreender a tese de Aristoacuteteles a este respeito assim como compreender a carga

que a noccedilatildeo de αἴσθησις tem no quadro da escala que vimos implica de novo pocirc-la em con-

traste com a tradiccedilatildeo a que Aristoacuteteles se reporta

Se por um lado devemos natildeo perder de vista que esta tradiccedilatildeo eacute lateral agrave escala aris-

toteacutelica e natildeo estaacute expressamente focada na concepccedilatildeo que Aristoacuteteles apresenta a seu respei-

to por outro uma batida pela carga histoacuterica e semacircntica da noccedilatildeo de αἴσθησις iraacute ajudar-nos

a compreender melhor tanto o ponto de partida quanto a especificidade e originalidade da no-

ccedilatildeo tal como a usa Aristoacuteteles

Tal como vimos na secccedilatildeo anterior no caso da ἐμπειρία tambeacutem a noccedilatildeo de αἴσθησις

estaacute marcada pelo facto de ter jaacute uma tradiccedilatildeo ou uma carga proacutepria anterior aos desenvolvi-

mentos que Aristoacuteteles lhe iraacute imprimir Platatildeo por exemplo dedica-lhe extensas passagens

da sua obra13

A pergunta a que a noccedilatildeo tradicional ou histoacuterica de αἴσθησις procura antes de mais

dar resposta eacute de que eacute feito o aparecimento

O que em primeiro lugar se tende a sugerir em resposta a esta pergunta eacute que o apare-

cimento eacute constituiacutedo por qualquer coisa como qualidades sensiacuteveis E natildeo apenas constituiacutedo

por qualidades sensiacuteveis ndash na verdade o que se tende a sugerir eacute que o aparecimento eacute inte-

gralmente composto de qualidades sensiacuteveis O que estaacute implicado nesta resposta eacute que o apa-

recimento (ie tudo o que aparece) eacute feito de determinaccedilotildees sensiacuteveis (como cores sons

cheiros etc) ndash e tanto assim que se se fi-zesse o exerciacutecio de retirar ao que aparece as deter-

minaccedilotildees sensiacuteveis natildeo restaria nada

Esta concepccedilatildeo parece assente no facto de que o que estaacute em jogo na αἴσθησις eacute uma

modalidade de acesso maciccedilo ndash ou seja a αἴσθησις eacute um acesso a um todo

13

Considerar por exemplo a especial incidecircncia dada agrave noccedilatildeo em Teet 151e-168b Fil 33c-35a e

38b-41d Fed 73c-76d 79a-c Leis (livros II X XI XII) Rep (livros VI e VII) etc

30

A αἴσθησις natildeo eacute um acontecimento regional um acontecimento com lacunas que

deixe de cobrir uma qualquer secccedilatildeo do campo de aparecimento (do campo de incidecircncia

perceptiva etc) Pelo contraacuterio a αἴσθησις cobre integralmente a totalidade do campo de

aparecimento ndash e tanto quer dizer que todo o campo de aparecimento (ie todo o campo de

incidecircncia perceptiva) estaacute sem excepccedilatildeo preenchido de qualidades sensiacuteveis

A este primeiro aspecto vem juntar-se um segundo o preenchimento do campo de

aparecimento natildeo resulta de um processo de completaccedilatildeo gradual ou progressivo

Vendo bem o acontecimento de aparecimento que a αἴσθησις propicia eacute produzido de

uma vez soacute Isto quer dizer que as qualidades sensiacuteveis satildeo contemporacircneas entre si e de uma

soacute vez ocupam a totalidade do campo de aparecimento disponiacutevel em todas as suas dimen-

sotildees Na verdade todo o campo de incidecircncia perceptiva aparece de cada vez totalmente

preenchido

Tudo isto tem que ver com o facto de as determinaccedilotildees sensiacuteveis serem o que avulta

na apresentaccedilatildeo que temos das coisas ndash ao ponto de natildeo se dar pela presenccedila imediata de

mais nada para aleacutem delas Em resumo as determinaccedilotildees sensiacuteveis satildeo se assim se pode di-

zer o conteuacutedo expresso do aparecimento

Assim por um lado a αἴσθησις eacute uma modalidade de acesso (de descobrimento de

desocultaccedilatildeo etc) associada agrave noccedilatildeo de doaccedilatildeo que analisaacutemos na secccedilatildeo anterior ndash no caso

eacute uma modalidade de acesso associada agrave doaccedilatildeo de qualidades sensiacuteveis Por outro lado a

presenccedila imediata de qualidades sensiacuteveis como algo que se impotildee num testemunho directo eacute

compreendida como efeito de uma afecccedilatildeo pelas qualidades que de algum modo pertencem

agraves proacuteprias coisas ndash eou que se manifestam como uma ldquotranscri-ccedilatildeordquo das proacuteprias coisas

Assim o conceito de αἴσθησις no sentido tradicional estaacute tambeacutem associado agrave ideia

de afecccedilatildeo (sc agrave ideia de algo como uma transcriccedilatildeo em presenccedila directa das proacuteprias

qualidades que inerem agraves coisas as qualidades sensiacuteveis directamente testemunhadas)

Este sentido da noccedilatildeo αἴσθησις estaacute ainda hoje presente na compreensatildeo mais comum

do que se entende por percepccedilatildeo ou por sensaccedilatildeo

O modo habitual de conceber a percepccedilatildeo ou a sensaccedilatildeo faz da percepccedilatildeo ou da sensa-

ccedilatildeo um acto instantacircneo de captaccedilatildeo ou recolha disso sobre que incide ndash um acto que conju-

ga o funcionamento do aparelho sensorial agrave presenccedila imediata do que aparece e que gera sem

intervenccedilatildeo de qualquer outro factor uma noccedilatildeo correcta e distinta do que aparece (do que

vem ao encontro do que por esse meio afecta ou impressiona etc)

31

Neste sentido a αἴσθησις eacute um modo de aparecimento atravessado por um modelo de

auto-interpretaccedilatildeo espontacircnea do proacuteprio aparecimento (de auto-compreensatildeo espontacircnea do

acesso etc) Isto eacute natildeo diz soacute respeito ao modo de presenccedila de algo mas diz respeito agrave com-

preensatildeo daquilo que se apresenta imediatamente como correspondendo a uma transferecircn-

cia agrave transferecircncia do que estaacute num territoacuterio para laacute da αἴσθησις ateacute agrave posse disso na αἴσθη-

σις (ie ateacute ao aparecimento disso na forma de impressotildees ou de qualidades sensiacuteveis) ndash tudo

isto em correspondecircncia ao modelo de um acesso transparente (transparecircncia em relaccedilatildeo

agravequilo que aparece nele)14

Quer dizer a transferecircncia que estaria em causa na percepccedilatildeo ou na sensaccedilatildeo seria

uma transferecircncia que para o dizer assim teria o que aparece transposto nas qualidades sen-

siacuteveis ndash qualidades sensiacuteveis que acederiam a algo que efectivamente corresponde ao que

aparece

A tudo isto acresce ainda um outro aspecto natildeo menos significativo

As qualidades sensiacuteveis tecircm grosso modo o caraacutecter de uma ldquomanchardquo (uma ldquoman-

chardquo de cor uma ldquomanchardquo de som uma ldquomanchardquo de qualidades aacutepticas uma ldquomanchardquo de

quente e frio etc) Sendo assim sucede que este facto tende a sugerir uma outra componente

da ideia de αἴσθησις que tambeacutem envolve um elemento de auto-interpretaccedilatildeo da ldquomanchardquo

sensiacutevel a sa-ber que a ldquomanchardquo corresponde a uma multiplicidade que enquanto multipli-

cidade eacute decomponiacutevel e sugere a sua proacutepria composiccedilatildeo a partir de unidades baacutesicas

Este eacute um aspecto decisivo da noccedilatildeo de αἴσθησις ndash seja ela usada no singular ou no

plural

O que esta concepccedilatildeo sugere eacute que haacute qualquer coisa como elementos ndash momentos

simples de qualidade sensiacutevel (sc momentos simples de afecccedilatildeo) ndash cuja agregaccedilatildeo produz as

14

A ambiguidade que aqui se refere estaacute tambeacutem ela ainda hoje presente no entendimento que se faz

do verbo perceber que tem raiz no latino percipere O verbo perceber sintetiza um duplo sentido por

um lado perceber designa o acto de receber afecccedilotildees ou impressotildees pelos sentidos Nesta acepccedilatildeo

perceber eacute antes de mais o acto fiacutesico e mecacircnico de encontro com o que eacute doado (de estar disponiacutevel a

ou de acolher isso que eacute doado) Por outro lado no entanto o verbo perceber designa algo de muito

diferente de um mero acto fiacutesico ou mecacircnico designa a capacidade de entender discernir distinguir

ou saber apreciar ndash e tambeacutem estar na posse do sentido do que eacute recebido etc ldquoPerceberrdquo designa

uma intervenccedilatildeo cognitiva que anula aquilo que poderia ser entendido na primeira acepccedilatildeo como

uma mera passividade ldquomecacircnicardquo

32

ldquomanchas sensiacuteveisrdquo Em resumo a noccedilatildeo de αἴσθησις aponta para uma estrutura de ldquomosai-

cordquo

Falar de αἰσθήσεις (no plural) tanto pode significar sensaccedilotildees de diferentes sentidos

como a multiplicidade de sensaccedilotildees do mesmo sentido iguais ou diferentes Poreacutem em uacutelti-

ma anaacutelise todas elas estatildeo dependentes de unidades elementares ou baacutesicas (unidades baacutesi-

cas de qualidades sensiacuteveis que satildeo ao mesmo tempo unidades baacutesicas de afecccedilotildees)

Falar de αἴσθησις (no singular) sugere uma unidade baacutesica uma ldquopeccedilardquo do ldquomosaicordquo

sensiacutevel ndash uma peccedila simples cuja agregaccedilatildeo a outras produz ldquomanchas sensiacuteveisrdquo (as qualida-

des sensiacuteveis na forma como habitualmente as experimentamos)15

Ora se a αἴσθησις eacute um acesso constituiacutedo por uma ldquomanchardquo de sensaccedilotildees entatildeo haacute

aqui uma ambiguidade que importa natildeo perder de vista Vendo bem a mancha sensiacutevel eacute de-

componiacutevel natildeo de uma mas sim de duas maneiras

Poderiacuteamos tender a pensar que a decomposiccedilatildeo da mancha resultaria exclusivamente

numa decomposiccedilatildeo espacial por assim dizer Poreacutem isso seria perder de vista que a αἴσθη-

σις eacute decomponiacutevel em unidades simples tambeacutem no plano temporal O que aparece na αἴσθη-

σις ndash a presenccedila de qualidades sensiacuteveis o estado de afecccedilatildeo ndash tem uma duraccedilatildeo ocupa uma

extensatildeo de tempo etc

De facto a ambiguidade assinalada estaacute presente na noccedilatildeo de αἴσθησις enquanto a no-

ccedilatildeo de αἴσθησις envolve a ideia de unidade baacutesica jaacute que em uacuteltima anaacutelise αἴσθησις signi-

fica a unidade simples de sensaccedilotildees (um conjunto de unidades simples de sensaccedilotildees) tanto

num sentido quanto no outro

Vistos estes aspectos introdutoacuterios da noccedilatildeo de αἴσθησις estamos agora em condiccedilotildees

de focarmos os dados que resultam da anaacutelise de Aristoacuteteles e em especial da estrutura da es-

cala

15

O que estaacute aqui em causa eacute isso a que Kant chama o modelo da composiccedilatildeo real Para uma defini-

ccedilatildeo de ldquocompositum realerdquo por exemplo Metafiacutesica Mrongovius 29 826-828 ou Criacutetica da Razatildeo

Pura A 214-15B 261 Para uma anaacutelise mais detida ver Paton Kantrsquos Metaphysic of Experience

Vol II p 323

33

sect6

A fulcral inflexatildeo aristoteacutelica a αἴσθησις como modalidade de acesso com uma perspecti-

va confinada no que diz respeito ao tempo ndash A ininteligibilidade entre o modo de acesso

meramente esteacutesico e o modo de acesso que nos constitui

Para comeccedilar a delinear a radical inflexatildeo que Aristoacuteteles introduz em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo

de αἴσθησις devemos natildeo perder de vista que potildee a μνήμη como limiar superior da αἴσθησις

Ou seja a αἴσθησις corresponde agrave total ausecircncia de μνήμη a um patamar totalmente aqueacutem

da constituiccedilatildeo de memoacuteria

Isso parece significar que tal como a αἴσθησις se apresenta na escala o que estaacute em

causa ndash ie o que constitui o contraste entre a primeira e a segunda etapa da escala ndash eacute a uni-

dade baacutesica da duraccedilatildeo na sua simplicidade antes de se constituir qualquer retenccedilatildeo ou re-

cuperaccedilatildeo dela a partir de um outro tempo (o qual jaacute pertence agrave esfera da memoacuteria) Se natildeo

estamos a ver mal o que Aristoacuteteles nos mostra eacute que para efeitos do que estaacute em causa nesta

escala o aspecto da composiccedilatildeo da mancha eacute irrelevante e o ponto decisivo eacute aquele que tem

que ver com a unidade e a divisatildeo temporal

Eacute na posse desta chave que procuraremos determinar as caracteriacutesticas da αἴσθησις e

procuraremos entender de seguida a que poderia corresponder um ponto de vista meramente

esteacutesico de acordo com o que eacute possiacutevel apurar na escala desenhada por Aristoacuteteles

Eacute que o facto de a αἴσθησις ser uma modalidade de acesso com perspectiva confinada

no que diz respeito agrave questatildeo do tempo diz-nos algo sobre a αἴσθησις ndash diz-nos que a αἴσθησις

seraacute algo de instantacircneo que tem um grau zero de perspectiva sobre o exterior do instante

que ocorre

Para compreender bem o que isto quer dizer eacute importante antes de mais dizer o se-

guinte quando associada agrave αἴσθησις a nota da instantaneidade pode ser equiacutevoca

A natureza do equiacutevoco estaacute no facto de se tender a introduzir inadvertidamente um

ldquoponto de vista testemunhardquo que assiste agrave αἴσθησις como algo instantacircneo no meio da suces-

satildeo Ou seja tendemos a compreender a instantaneidade da αἴσθησις como um recorte fino de

tempo ndash como um momento intermeacutedio transitivo ndash no meio de um antes e de um depois Este

ldquoponto de vista testemunhardquo caracteriza-se pelo facto de ver cada instante como um mo-mento

que herda o tempo do momento anterior e conduz ao momento seguinte

34

Em suma esse ponto de vista vecirc o instante como que de fora numa oacuteptica excessiva

relativamente a ele Esse ldquoponto de vista testemunhardquo caracteriza-se precisamente por natildeo ter

em conta exclusivamente o proacuteprio instante (por natildeo corresponder portanto agraves condiccedilotildees que

satildeo proacuteprias de um ponto de vista puramente esteacutesico)

Note-se bem a perplexidade em que se cai quando se fala de um instante para descre-

ver um acesso exclusivamente perceptivo logo se faz a advertecircncia de que a isso que se des-

creve se deve tirar qualquer noccedilatildeo de sucessatildeo ou continuidade (ie se deve tirar qualquer

noccedilatildeo de tempo) Acontece que tal como o entendemos (tal como o ldquoponto de vista testemu-

nhardquo assiste a ele) o instante eacute precisamente uma instacircncia temporal ndash e daqui decorre que a

acepccedilatildeo de um instante no qual o tempo natildeo intervenha parece aludir a um ldquoconceito inanerdquo

no qual o tempo teria e natildeo teria parte em simultacircneo

Tendo isto em vista a diferenccedila aqui em causa eacute tal que por um lado como jaacute vimos

um ponto de vista completamente fechado num instante natildeo faz a mais pequena ideia da proacute-

pria sucessatildeo em que se inscreve (precisamente porque natildeo faz a mais pe-quena ideia do que

quer que seja que se situe para laacute do instante em causa) Mas por outro lado inversamente

um ponto de vista com notiacutecia da sucessatildeo (ie qualquer ponto de vista com notiacutecia do tempo

ndash como o eacute jaacute por exemplo o ponto de vista mneacutesico) natildeo consegue restituir eficazmente um

ponto de vista fechado num instante

Ora se tal como se desenha na escala um acesso constituiacutedo meramente de αἴσθησις

seraacute algo de absolutamente confinado no que diz respeito agrave questatildeo do tempo entatildeo a instan-

taneidade associada agrave αἴσθησις corresponde a algo como um presente absoluto ndash um instante

completamente fechado no presente e sem gerar qualquer perspectiva tanto sobre o passado

(sobre a retenccedilatildeo de percepccedilotildees jaacute ocorridas que eacute o que estaacute em causa na μνήμη) quanto so-

bre o futuro

Afirmar que a αἴσθησις seria algo como um presente absoluto (algo de exclusivamente

presente) natildeo eacute de modo nenhum dizer que a αἴσθησις natildeo participe numa ordem de suces-

satildeo As unidades de sensaccedilotildees natildeo soacute tecircm uma duraccedilatildeo como se sucedem ndash se entendermos

por sucessatildeo a contiguidade entre as unidades de sensaccedilatildeo distribuiacutedas num quadro de dis-

tribuiccedilatildeo temporal No entanto o que de facto resulta da escala aristoteacutelica eacute que uma unida-

de exclusiva-mente esteacutesica ainda que fazendo parte duma ordem de sucessatildeo natildeo teria

qualquer notiacutecia dessa sucessatildeo Isto porque a noccedilatildeo de sucessatildeo implica sempre um miacutenimo

35

de excesso sobre o presente ndash implica sempre antes e depois a delimitaccedilatildeo de uma baliza

temporal e de territoacuterios temporais delimitados etc

Por outras palavras um acesso meramente esteacutesico seria se assim se pode dizer um

presente sem qualquer nota de passado ou futuro (sem qualquer nota de retenccedilatildeo ou de pro-

tensatildeo para usar a linguagem de Husserl) Seria em resumo um acontecimento fulgurante de

presente A ser algo deste geacutenero entatildeo estamos a falar de algo como um presente constituiacutedo

em vertigem um presente que de cada vez irrompe jaacute a desvanecer ndash sempre jaacute em fuga (sem

cessar efeacutemero fugaz) ndash e que ao constituir-se estaraacute sempre jaacute a desfazer-se em absoluto

esvaimento16

Na verdade segundo esta leitura se um ponto de vista esteacutesico natildeo envolve qualquer

μνήμη eacute entatildeo o presente absoluto que carece completamente de passado que carece comple-

tamente de duraccedilatildeo ndash mas na verdade eacute tambeacutem o presente absoluto que carece completa-

mente de futuro

Vendo bem a noccedilatildeo de ldquopresente absolutordquo ndash que eacute a que exprime o que aqui estaacute em

causa ndash tem o caraacutecter de um oximoro Pois o presente eacute algo que soacute podemos conceber na

forma do ldquoponto de vista testemunhardquo acima referido (como momento da passagem entre pas-

sado e futuro) e o que caracteriza o ldquopresente absolutordquo aqui em causa eacute o facto de ser com-

pletamente cego em relaccedilatildeo a pas-sado e futuro ndash e tanto quer entatildeo dizer o ser presente num

sentido absolutizado que natildeo es-tamos em condiccedilotildees de conceber

A αἴσθησις eacute de facto tanto uma modalidade de aparecimento quanto eacute uma modali-

dade de fuga ou de obliteraccedilatildeo natildeo gera conteuacutedos fixos e estaacuteveis ie natildeo gera conteuacutedos

que se estendam no tempo

Mas na verdade a radical alteridade de um ponto de vista encerrado no presente em

relaccedilatildeo a um ponto de vista constituiacutedo temporalmente natildeo se cinge a uma alteridade formal

A alteridade repercute-se tambeacutem no conteuacutedo ndash sc no proacuteprio ter daquilo que aparece (e po-

de aparecer) a um ponto de vista com este recorte temporal

Em primeiro lugar eacute preciso ter presente que se trata de um ponto de vista a) fechado

num instante absoluto (sem qualquer notiacutecia do que quer que seja para laacute do instante em que

16

Para exprimir o que estaacute aqui em causa poderiacuteamos recorrer ao exemplo da sucessatildeo de fotogra-

mas Mas o caso natildeo poderia ser o de um ponto de vista que acompanhasse o movi-mento entre foto-

gramas e sim o de um ponto de vista encerrado de cada vez no interior de um uacutenico fotograma sem

qualquer noccedilatildeo de mais do que ele

36

de cada vez estaacute) e b) constituiacutedo exclusivamente por percepccedilotildees (pela presenccedila de determi-

naccedilotildees sensiacuteveis de uma determinada ldquomanchardquo de qualidades sensiacuteveis)

Ora isso significa que um acesso a um ponto de vista assim constituiacutedo (ie comple-

tamente desprovido de qualquer apresentaccedilatildeo de outra ordem) teria a perspectiva inteiramen-

te fechada nessa ldquomanchardquo sem quaisquer condiccedilotildees para ter notiacutecia de nada para laacute dela

A ldquomanchardquo perceptiva poderia ser maior ou menor consoante as circunstacircncias (como eacute

maior ou menor para noacutes) Contudo o que eacute decisivo eacute que independentemente da variaccedilatildeo

da dimensatildeo a ldquomanchardquo perceptiva esgotaria de cada vez todo o apresentado ndash seria de

cada vez a uacutenica coisa de que se teria notiacutecia E natildeo haveria condiccedilotildees para fazer ideia do

que quer que seja que fosse para laacute dela

Em suma cada ldquomanchardquo perceptiva (por maior ou menor que fosse) passaria por ser

a totalidade do ldquomundordquo Na incapacidade de gerar recogniccedilatildeo o ldquomundordquo esgotar-se-ia ex-

clusivamente no conteuacutedo sensiacutevel de que a cada instante se dispusesse Um ponto de vista

constituiacutedo deste modo nunca poderia pocircr mais do que isso que a cada instante estivesse per-

ceptivamente dado

A este aspecto relativo ao proacuteprio teor daquilo que aparece (de cada vez a ldquomanchardquo

perceptiva como algo que esgota a realidade e constitui todo o ldquomundordquo ndash e natildeo apenas uma

parte dele) acresce um outro de natildeo menos importacircncia Referimo-nos agravequele que tem que

ver com a novidade absoluta que a cada instante caracterizaria tudo aquilo que aparecesse

Nada impede que as percepccedilotildees que de cada vez aparecessem a um ponto de vista pu-

ramente esteacutesico fossem em tudo iguais a outras jaacute anteriormente tidas Mas um ponto de vista

puramente esteacutesico seria completamente desprovido de memoacuteria e teria por isso de cada vez

zero de perspectiva sobre o que jaacute houve

Ora isso significa que por mais que as determinaccedilotildees que de cada vez aparecessem

viessem na sequecircncia de outras anteriormente havidas um ponto de vista esteacutesico estaria

sempre num comeccedilo absoluto ndash sem quaisquer antecedentes ou sem qualquer histoacuteria para si

mesmo

Nesse sentido a um ponto de vista puramente esteacutesico o que aparece eacute sempre novo

absolutamente novo Mas natildeo se trata de uma novidade em contraste com um antigo por natildeo

haver nada a que se pudesse comparar A novidade seria portanto a novidade de uma primei-

ra vez fulgurante que a cada instante se inauguraria e no mesmo instante se extinguiria Ca-

da percepccedilatildeo de algo seria o primeiro contacto com esse algo a cada percepccedilatildeo tudo o que

37

aparecesse teria aparecido pela primeira vez numa primeira vez absoluta ndash e seria imediata-

mente perdido no fim da percepccedilatildeo

Em suma cada ldquorecantordquo perceptivo por mais ou menos angulado seria a cada ins-

tante a totalidade do ldquomundordquo E todo o ldquomundordquo seria a cada instante sempre novo

Acontece que isto que acabamos de descrever estaacute muito distante do modo de acesso

que noacutes temos ao que nos aparece

O que todas estas consideraccedilotildees nos permitem perceber satildeo as relaccedilotildees de alteridade

que separam um ponto de vista esteacutesico (completamente anterior ao advento de μνήμη) e as

caracteriacutesticas de um ponto de vista mneacutesico resultante desse advento e incapaz de se desfa-

zer dele (ou seja incapaz de se desfazer do desconfinamento em relaccedilatildeo agrave mera αἴσθησις que

a μνήμη traz consigo)

Por um lado o acesso em que nos encontramos estaacute sempre jaacute em excesso sobre o

ldquoinstante absolutordquo da αἴσθησις ndash tem sempre jaacute notiacutecia da proacutepria sucessatildeo enquanto tal (vecirc

cada instante no meio de mais do que ele) Por outro lado isso faz que a ldquomanchardquo perceptiva

que haacute a cada instante natildeo apareccedila como esgotando a realidade nem apareccedila como equivalen-

te ao ldquomundordquo

Aleacutem disso tatildeo pouco estamos em condiccedilotildees de ter de cada vez o que aparece como

sendo completamente novo ndash toda a novidade que se consegue perceber eacute tal justamente em

contraste com algo que se contrapotildee e eacute anterior a isso

Com efeito o regime de determinaccedilatildeo em que laboramos tem como elemento perma-

nente a siacutentese de recogniccedilatildeo (que se produz ou na forma do reconhecimento da identidade

ou na forma do reconhecimento da natildeo-identidade) ndash de tal modo que natildeo nos conseguimos

desprender deste regime e retomar a um modo de apreensatildeo do que aparece marcado pela to-

tal ausecircncia dele A nossa tentativa de conceber algo como um ldquoinstante absolutordquo natildeo resulta

senatildeo na constituiccedilatildeo de uma ldquoideia negativardquo

Em suma dizer que os dois pontos de vista ndash um ponto de vista esteacutesico e um ponto de

vista mneacutesico ndash vecircm coisas completamente diferentes natildeo quer dizer apenas que um ponto de

vista esteacutesico natildeo faz a mais pequena ideia daquilo que aparece a um ponto de vista trans-

formado pela μνήμη Na verdade quer dizer que um ponto de vista marcado pela μνήμη tam-

beacutem natildeo faz a mais pequena ideia do que seja um ponto de vista esteacutesico ndash ie um ponto de

vista correspondente agrave ausecircncia de μνήμη que soacute poderia recuperar por via daquela subtrac-

ccedilatildeo de μνήμη que natildeo estaacute em condiccedilotildees de executar

38

Eacute claro que pode acontecer que a partir de um ponto de vista mneacutesico se conceba o

ponto de vista esteacutesico como aquele que resulta do proacuteprio ponto de vista mneacutesico se lhe for

subtraiacuteda a μνήμη Sucede poreacutem que a acccedilatildeo de subtracccedilatildeo natildeo eacute susceptiacutevel de ser realiza-

da inteiramente E isso sugere que ou se tem uma aguda consciecircncia do que a noccedilatildeo do ponto

de vista esteacutesico eacute uma noccedilatildeo puramente apofaacutetica e que natildeo faz ideia daquilo para que apon-

ta ndash ou entatildeo se cai num equiacutevoco o equiacutevoco de ao se conceber o ponto de vista esteacutesico

(sc as αἰσθήσεις as percepccedilotildees sensaccedilotildees etc) na verdade estar a conceber-se algo com as

caracteriacutesticas daquilo que jaacute pertence a um plano que excede o que proacuteprias αἰσθήσεις e

que potildee mais do que elas

Eacute que vendo bem a tese que Aristoacuteteles desenha na escala eacute a de que ainda que dois

pontos de vista estivessem equipados com o mesmo ldquoaparelho sensiacutevelrdquo e o mesmo grau de

acuidade se um deles eacute um ponto de vista meramente esteacutesico e o outro estaacute jaacute a jusante do

advento da μνήμη o que aparece a um e a outro satildeo coisas muito diferentes ndash e na verdade

com muito pouco em comum

Mas na verdade o ponto a que agora fazemos referecircncia natildeo eacute um ponto que se esgote

na relaccedilatildeo entre um acesso meramente esteacutesico e qualquer outro modo de acesso na verdade

como se veraacute este mesmo fenoacutemeno atravessa a totalidade da escala e as vaacuterias relaccedilotildees entre

as diversas etapas

Para compreender o que estaacute aqui em jogo devemos antes de mais retomar a anaacutelise

sobre o ἐφεξῆς e fixar um aspecto fundamental do que se seguiraacute

Analisando o ἐφεξῆς descreveu-se um processo de acumulaccedilatildeo ndash uma sequecircncia em

que um segundo procede de um primeiro um terceiro de um segundo (e assim sucessivamen-

te) mas de tal modo que o terceiro implica o primeiro e o segundo e em que o terceiro tem um

excesso em relaccedilatildeo ao segundo e ao primeiro (ou inversamente que um segundo e um pri-

meiro estatildeo em deacutefice em relaccedilatildeo a um terceiro) etc Ora isto nada diz sobre a mobilidade

entre os patamares

Poderia muito bem acontecer que uma vez estabelecida a escala e os diversos patama-

res o tracircnsito entre os diversos patamares estivesse desimpedido ndash de tal modo que estando

por exemplo no terceiro patamar nada obstasse a que se pudesse transitar sem perda para o

primeiro ou para o segundo Acontece que isto eacute o contraacuterio do que eacute sugerido o caraacutecter ge-

neacutetico do ἐφεξῆς natildeo parece ser reversiacutevel

Consideremos o experimentum de saltar livremente de patamar em patamar

39

Saltar livremente de patamar em patamar resultaria em que se saltasse por exemplo

para o patamar da αἴσθησις natildeo pudesse ter perspectiva quer sobre a μνήμη quer sobre a con-

tinuidade da escala o que resultaria em estar preso agrave αἴσθησις e resultaria do mesmo modo

na ausecircncia de uma nota de a αἴσθησις ser um deacutefice em relaccedilatildeo aos patamares que se se-

guem De facto resultaria na impossibilidade de saltar de patamar em patamar ou ateacute na im-

possibilidade de regressar a um patamar que tivesse visitado anteriormente pela absoluta fal-

ta de noccedilatildeo da sua existecircncia (ie pelo total encerramento numa perspectiva que natildeo abre

qualquer perspectiva sobre uma outra perspectiva alternativa a essa)

Assim o experimentum soacute eacute admissiacutevel na sua modalidade retrospectiva se um pata-

mar superior inclui o inferior pode de certo modo abrir perspectiva sobre ele e colocar-se na

situaccedilatildeo de tentar compreender a que conteuacutedos corresponde um patamar inferior Mas como

vemos o caso eacute que um experimentum desse tipo soacute poderaacute ter alguma eficaacutecia enquanto ex-

perimentum

Adicionalmente estes desenvolvimentos fazem-nos recuperar a noccedilatildeo de que a deter-

minaccedilatildeo do que corresponde a um qualquer momento da escala natildeo obedece apenas agrave diferen-

ccedila em relaccedilatildeo a um patamar imediatamente superior mas de facto depende da diferenccedila em

relaccedilatildeo a todo o complexo de fronteiras superiores E na verdade a determinaccedilatildeo do que cor-

responde a qualquer momento da escala depende da posiccedilatildeo da escala em que se esteja

De tudo isto resulta que uma tentativa de determinar os caracteres da αἴσθησις a partir

de uma posiccedilatildeo em que a eficaacutecia cognoscitiva natildeo exceda o plano da μνήμη obteacutem algo mui-

to diferente de uma outra tentativa de determinar os caracteres da αἴσθησις a partir de uma po-

siccedilatildeo com a eficaacutecia cognoscitiva da ἐμπειρία ou ainda com a eficaacutecia cognoscitiva da τέχνη e

da ἐπιστήμη

Ora se por um lado nos eacute dito que um patamar superior eacute obtido a partir de um pata-

mar inferior por outro lado natildeo nos eacute dito que um patamar inferior tenha perspectiva sobre a

continuidade da escala ndash ie natildeo eacute dito que qualquer patamar tenha perspectiva sobre o mais

a adquirir (sobre as possibilidades de desenvolvimento futuro sobre os patamares seguintes

etc)

Daqui poder-se-ia tirar a ilaccedilatildeo de que a impossibilidade de tracircnsito se limitava ex-

clusivamente ao tracircnsito desde a etapa que constituiacutesse um ldquomenosrdquo ateacute agrave etapa ou agraves etapas

que pusessem ldquomaisrdquo do que essa potildee ndash jaacute que a etapa que constitua um ldquomenosrdquo em relaccedilatildeo

a uma outra natildeo teria qualquer perspectiva sobre o excesso que o patamar ou os patamares su-

40

periores ponham a mais Mas o que na verdade a escala de Aristoacuteteles desenha eacute uma inco-

municabilidade nos dois sentidos tanto do ldquomenosrdquo para o ldquomaisrdquo quanto do ldquomaisrdquo para

o ldquomenosrdquo

Se eacute verdade que a escala estaacute constituiacuteda por transiccedilotildees de ldquomenosrdquo para ldquomaisrdquo eacute

tambeacutem verdade que estaacute constituiacuteda por transiccedilotildees de ldquomaisrdquo para ldquomenosrdquo Ou seja ainda

que o ldquomaisrdquo que uma etapa superior ponha inclua o ldquomenosrdquo de uma etapa ou de etapas in-

feriores uma etapa superior natildeo consegue subtrair o excesso que potildee a mais

Em suma um ponto de vista jaacute marcado pelo advento da μνήμη estaacute separado de um

ponto de vista esteacutesico por ldquoclaacuteusulasrdquo ou condiccedilotildees que potildeem os dois se assim se pode dizer

num ldquopeacuterdquo completamente diferente Uma vez que se acha jaacute provido de μνήμη e da forma de

saber que lhe corresponde um ponto de vista natildeo consegue anular esse saber mais nem com-

preender a partir do ldquomaisrdquo o ldquomenosrdquo que este que este abrange (mas que abrange com ex-

cesso sobre ele)

Sendo assim seraacute possiacutevel a partir de um qualquer ponto de vista ganhar perspectiva

sobre a complexidade dos passos de que esse mesmo ponto de vista eacute cumulativamente consti-

tuiacutedo Quer dizer μνήμη ἐμπειρία τέχνη e ἐπιστήμη satildeo modos de acesso que tecircm na sua

composiccedilatildeo algo de esteacutesico ἐμπειρία τέχνη e ἐπιστήμη satildeo modos de acesso que tecircm na sua

composiccedilatildeo algo de esteacutesico e de mneacutesico e τέχνη e ἐπιστήμη satildeo modos de acesso que tecircm na

sua composiccedilatildeo algo de esteacutesico de mneacutesico e de empiacuterico

Mas se os diversos patamares resultam em diferenccedilas irreconciliaacuteveis de estaacutedio para

estaacutedio (se em suma resultam em modos exclusivos de saber e de conhecer) entatildeo uma ten-

tativa de subtracccedilatildeo estaacute marcada por uma impossibilidade de se cumprir ndash ie estaacute marcada

pela impossibilidade de vencer as diferenccedilas irreconciliaacuteveis entre os estaacutedios De facto uma

tentativa de subtracccedilatildeo natildeo pode senatildeo produzir uma concepccedilatildeo defeituosa do patamar infe-

rior visado sempre jaacute extraiacutedo de ou obtido a partir de um modo de conhecer que eacute qualitati-

vamente distinto dele mas que eacute a matriz a partir da qual se vem a ter sobre ele uma perspec-

tiva

Com estes desenvolvimentos estamos em condiccedilotildees de analisar um uacuteltimo ponto

E o ponto eacute o seguinte vendo bem eacute por meio deste contraste entre os diversos pata-

mares que se adquire a noccedilatildeo do ponto de vista em que qualquer ente constituiacutedo na posse de

um acesso agraves coisas estaacute

41

Mais ainda se como vimos na secccedilatildeo anterior o ldquoponto de vista testemunhardquo ndash o pon-

to de vista que sub-repticiamente assiste a todas as etapas a partir do interior da proacutepria es-

cala que diferencia as etapas e as distribui em planos distintos a partir da proacutepria localiza-

ccedilatildeo que ocupa ndash eacute o nosso entatildeo eacute tambeacutem por este contraste que se adquire noccedilatildeo do ponto

de vista em que damos connosco

A noccedilatildeo do ponto de vista que nos corresponde eacute ganha na medida em que por um la-

do tem uma posiccedilatildeo na escala de ldquomaisrdquo e de ldquomenosrdquo que se desenhou e por outro a sua

posiccedilatildeo se apresenta ou como ldquomaisrdquo ou como ldquomenosrdquo na relaccedilatildeo com os outros pontos de

vista possiacuteveis

Vejamos melhor como pode ser assim

Se numa escala em modo de ἐφεξῆς as etapas superiores satildeo formadas por epigeacutenese

entatildeo cada patamar resulta em metamorfose e em alargamento do acircngulo em relaccedilatildeo ao que o

patamar anterior propunha daiacute resulta que as etapas estatildeo umas em relaccedilatildeo com as outras ou

numa loacutegica de acircngulo alargado (excesso) ou numa loacutegica de acircngulo confinado (deacutefice) con-

soante a ldquorelaccedilatildeo loacutegicardquo entre elas seja respectivamente de sucessatildeo ou de antecedecircncia

De facto o alargamento de acircngulo ou o excesso que um qualquer patamar superior

acrescenta a um qualquer patamar inferior natildeo pode senatildeo ter os modos de acesso dos patama-

res inferiores como acircngulos confinados e como deacutefice a αἴσθησις ainda natildeo tem o que eacute proacute-

prio da μνήμη e portanto uma perspectiva mneacutesica da αἴσθησις resultaria na nota de uma fal-

ta ndash e assim tambeacutem no caso de uma perspectiva empiacuterica sobre αἴσθησις e μνήμη ou no caso

de uma perspectiva teacutecnica ou episteacutemica sobre a totalidade dos outros modos de acesso

Mas o que importa reter eacute que a relaccedilatildeo entre excesso e deacutefice se fixa ie que todo o

deacutefice o eacute de um excesso E detectar um deacutefice eacute detectar a presenccedila do excesso que jaacute o

compotildee de tal modo que se pode delimitar a natureza do deacutefice em causa e determinar a que

excesso corresponde um tal deacutefice ndash ie de tal modo que se pode analisar o que eacute que estaacute

posto a mais quando analiso uma dada etapa da escala e a que patamar pertence isso que estaacute

posto a mais e que eacute impossiacutevel de ser retirado No limite o excesso da μνήμη na sua relaccedilatildeo

com a αἴσθησις eacute distinto do excesso da ἐμπειρία na sua relaccedilatildeo com a αἴσθησις ou do excesso

da τέχνη ou da ἐπιστήμη na sua relaccedilatildeo com a αἴσθησις

Com isto estamos jaacute em condiccedilotildees de saber que o tempo eacute radical do ponto de vista

que nos corresponde porque na verdade o entendimento que nos eacute possiacutevel do presente estaacute

atravessado de mais do que ele (estaacute atravessado de continuidade ou de sucessatildeo) e portanto

42

eacute diferente desse acontecimento fulgurante de presente que corresponderia um ponto de vista

meramente esteacutesico

Assim o factor que daqui em diante interessa considerar eacute esse factor que cria as con-

diccedilotildees para o caso da αϊσθησις ser recuperaccedilatildeo ou reconhecimento e natildeo um acesso de cada

vez original

Podemos compreender a percepccedilatildeo tal como eacute possiacutevel ao ponto de vista em que nos

achamos recorrendo ao siacutemile de um fluxo no qual haacute uma contiacutenua renovaccedilatildeo do que a ca-

da momento constitui o horizonte perceptivo

Assim o horizonte perceptivo muda agrave mais sensiacutevel mudanccedila de posiccedilatildeo a mais ligei-

ra mudanccedila de posiccedilatildeo muda o aspecto dos ldquoobjectosrdquo que temos na percepccedilatildeo Isto parece

aludir agrave mediaccedilatildeo de um movimento numa dupla acepccedilatildeo da palavra

Por um lado pode indicar a mudanccedila de posiccedilatildeo que ocorre no espaccedilo a percepccedilatildeo er-

ra sobre o que aparece vagueia sobre o que aiacute encontra transita de um ldquoobjectordquo para outro

varre o conteuacutedo do campo perceptivo Esse movimento eacute uno mas ainda assim identifica di-

ferenccedilas (este ldquoobjectordquo aquele ldquoobjectordquo) mais do que isso a cada instante do fluxo estaacute

num ponto espacial distinto do anterior e nessas ligeiras cambiantes se modifica o quadro

geral apresentado em cada ponto espacial particular

Por outro lado pode indicar um sentido temporal haacute percepccedilotildees que satildeo anteriores a

outras a percepccedilatildeo actual eacute precedida de outra etc Esta acepccedilatildeo jaacute natildeo implica necessaria-

mente um movimento em sentido espacial podemos estar quietos contemplando um mesmo

ldquoobjectordquo ndash e no entanto a percepccedilatildeo que tivemos dele haacute um minuto atraacutes estaacute perdida e deu

lugar a outra percepccedilatildeo que substitui quer a percepccedilatildeo anterior quer toda a seacuterie de percep-

ccedilotildees anteriores

Assim quaisquer percepccedilotildees anteriores se perderam irremediavelmente no fluxo das

percepccedilotildees tidas ndash e esse eacute precisamente o seu novo estatuto satildeo percepccedilotildees que natildeo se tecircm

actualmente natildeo satildeo percepccedilotildees no sentido de um acesso presente a isso a que acedem Satildeo

percepccedilotildees completamente perdidas e irrecuperaacuteveis enquanto algo que se tem e que adqui-

rem o estatuto de algo a que tendo sido percepccedilatildeo se soma o caraacutecter de passado de algo

que tendo sido neste preciso instante natildeo eacute

Acontece no entanto que a validade da percepccedilatildeo tida natildeo parece comprometida por

esta radical mudanccedila de estatuto O facto de num dado momento ter havido percepccedilatildeo de

algo parece fixar qualquer coisa que natildeo desaparece na efectiva perda perceptiva Dito de

43

outro modo algo de uma percepccedilatildeo tida parece continuar ndash de tal modo que natildeo se pode di-

zer que uma percepccedilatildeo actual de um qualquer ldquoobjectordquo seja uma percepccedilatildeo original do ob-

jecto

A ser assim a percepccedilatildeo tida parece associar em si simultaneamente uma perda e um

ganho A perda corresponde agrave aniquilaccedilatildeo da percepccedilatildeo que foi percepccedilatildeo actual mas jaacute natildeo

se tem como percepccedilatildeo actual o ganho corresponde a uma continuaccedilatildeo ou uma preservaccedilatildeo

de algo dessa percepccedilatildeo que se transfere para a percepccedilatildeo actual

A percepccedilatildeo anterior estaacute aniquilada enquanto percepccedilatildeo actual e no entanto trans-

mite algo agrave percepccedilatildeo actual que lhe sucede Haacute uma constante persistecircncia ou uma reinci-

decircncia do passado perceptivo De facto parece ser claro que a percepccedilatildeo que temos neste

preciso instante natildeo parece estar desligada da percepccedilatildeo que tivemos ainda agora Haacute uma

relaccedilatildeo de continuidade ndash mas uma continuidade constituiacuteda de diferenccedila

De facto haacute uma irredutiacutevel diferenccedila entre quaisquer duas percepccedilotildees a mais radi-

cal diferenccedila eacute a natildeo actualidade da percepccedilatildeo tida Esse eacute o grau miacutenimo do desvio ndash que

sendo um acontecimento passiacutevel de distensatildeo temporal da interposiccedilatildeo de novas percepccedilotildees

entre quaisquer duas percepccedilotildees no limite se pode tornar em perda total de notiacutecia percepti-

va

O que se pretende com isto vincar eacute que na diferenccedila entre duas percepccedilotildees haacute sem-

pre algo que acresce por meio da relaccedilatildeo de continuidade Por um lado a percepccedilatildeo tida eacute

preservada transmite-se exime-se agrave total aniquilaccedilatildeo por outro a percepccedilatildeo actual adquire

um nexo de encadeamento

Assim se a percepccedilatildeo tida reitera a sua validade isso tem como resultado que o per-

cepcionado e o passado de certo modo se presentificam ndash isso colabora na preservaccedilatildeo e na

solidificaccedilatildeo da sua validade natildeo soacute se lhe atribui como proacuteprio dessa percepccedilatildeo o ter sido

presente algures no passado como de algum modo a sua presenccedila natildeo se ateacutem ao passado

mas alarga-se ateacute ao presente

Assim tambeacutem a percepccedilatildeo actual adquire uma proveniecircncia ndash e a conjugaccedilatildeo destes

factores gera um curso perceptivo uma organizaccedilatildeo das percepccedilotildees que tem a actual como

seu culminar

Ora tal como a temos estado a ver a percepccedilatildeo tida natildeo eacute nunca um momento irrecu-

peraacutevel da percepccedilatildeo como seria se estivesse fechada num presente que jaacute foi e que natildeo vol-

ta na medida em que natildeo seria possiacutevel retomar esse presente tal como foi a recuperaccedilatildeo dis-

44

so que tinha entatildeo sido percebido seria tambeacutem impossiacutevel O que parece estar em causa eacute

mais propriamente algo como um desdobramento temporal

O tempo constitui-se em plano de base as diferentes percepccedilotildees assentam no plano

temporal As percepccedilotildees ganham encadeamento no encadeamento reportam ou referem-se

umas agraves outras

Eacute esta cadeia de percepccedilotildees o que permite gerar sucessatildeo ou sequecircncia o que permite

recuar ateacute uma percepccedilatildeo passada essa reporta agrave percepccedilatildeo presente ndash natildeo estaacute dissociada

dela haacute entre elas um viacutenculo de conexatildeo ou solidariedade Isso permite que a partir do pre-

sente haja possibilidade de reconhecimento ou de reconstituiccedilatildeo de uma qualquer percepccedilatildeo

passada

Eacute tendo isto em vista que iremos analisar a segunda etapa da escala de possibilidades

de acesso (a μνήμη) A μνήμη tem na sua composiccedilatildeo algo de esteacutesico mas corresponde sem-

pre jaacute a uma modalidade de alargamento dos conteuacutedos da percepccedilatildeo

A preservaccedilatildeo duma percepccedilatildeo anterior ao mudar de posiccedilatildeo ou a constituiccedilatildeo duma

sucessatildeo de percepccedilotildees (que por um lado repetem os percebidos e por outro lado se ocu-

pam de percebidos diferentes) exige natildeo uma mera acumulaccedilatildeo mas sim uma transformaccedilatildeo

dos conteuacutedos da percepccedilatildeo Daacute-se o caso de que aos conteuacutedos da percepccedilatildeo se somam quer

o plano temporal quer um estatuto de caraacutecter natildeo-perceptivo assim gerando algo diferente

da percepccedilatildeo

Em suma na secccedilatildeo seguinte visaremos a μνήμη a partir do acircngulo de que eacute a μνήμη

que cria as condiccedilotildees para que haja a siacutentese de recogniccedilatildeo que sempre jaacute atravessa o regi-

me de determinaccedilatildeo em que laboramos

sect7

A μνήμη como persistecircncia do jaacute percebido o factor da supressatildeo da vertigem perceptiva e

o factor do desdobramento temporal ndash A co-apresentaccedilatildeo do tempo e a sucessatildeo

A compreensatildeo do sentido em que cada etapa da escala aristoteacutelica corresponde a um

certo conceito depende naturalmente antes de mais da proacutepria carga especiacutefica do conceito

No entanto o que vimos foi que no contexto da escala as determinaccedilotildees radicais dos con-

45

ceitos aiacute em causa parecem mudar e esses mesmos conceitos parecem ganhar determinaccedilotildees

que natildeo estatildeo presentes na compreensatildeo mais comum que deles se faz

Assim a introduccedilatildeo de um dado conceito na escala do mesmo modo que a posiccedilatildeo

que esse conceito ocupa na escala acentua determinadas caracteriacutesticas em detrimento de

outras destaca ou pelo contraacuterio relega determinados conteuacutedos para papeacuteis principais ou

secundaacuterios etc

Isto que vimos na secccedilatildeo anterior ser o que se passa com a αἴσθησις tambeacutem eacute o que

se passa no caso da μνήμη

Tambeacutem a μνήμη tal como acontecia com a αἴσθησις tem uma carga proacutepria especiacutefi-

ca ou uma tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica Seria possiacutevel uma vez mais usar as muacuteltiplas ocorrecircn-

cias do termo no corpus platonicum como fundamento suficiente para sustentar uma afirma-

ccedilatildeo deste geacutenero17

No caso especiacutefico da μνήμη a compreensatildeo do que corresponde a esse conceito pa-

rece plenamente satisfeita quando o termo eacute habitualmente nos seus vaacuterios usos vertido por

memoacuteria Poreacutem uma compreensatildeo desse geacutenero por mais vaacutelida pouco adianta sobre as de-

terminaccedilotildees que identificam a μνήμη enquanto estaacutedio da escala aristoteacutelica18

Enquanto estaacutedio da escala o quadro geral a partir ou no interior do qual procurare-

mos descrever a μνήμη eacute o seguinte agrave μνήμη cabe superar o seu limiar inferior (cabe ultra-

17

Considerar por exemplo a especial incidecircncia dada agrave noccedilatildeo em Fedro 249c-254b Fil 19d-21d

33c-35d ou 38b-39a Rep (livros VI X) Teet 163d-e Feacutedon 96b etc

18 Natildeo podemos deixar aqui de reforccedilar como jaacute fizeacuteramos numa secccedilatildeo anterior em relaccedilatildeo agrave αἴσθη-

σις o facto de que o que estaacute em causa nesta secccedilatildeo natildeo eacute de modo nenhum uma identificaccedilatildeo abran-

gente da noccedilatildeo de μνήμη ou dos seus diversos usos na obra de Aristoacuteteles Uma identificaccedilatildeo desse geacute-

nero teria de considerar uma quantidade de passos do corpus aristotelicum ou uma quantidade de ca-

racteriacutesticas do que estaacute implicado na noccedilatildeo a que esta secccedilatildeo natildeo pode de modo nenhum dar aten-

ccedilatildeo Tambeacutem no caso da μνήμη esta advertecircncia eacute especialmente importante na medida em que Aris-

toacuteteles dedica especial atenccedilatildeo ao tema ndash neste caso particular na forma de um tratado (o De memoria

et reministentia) em que procura focar as caracteriacutesticas da μνήμη estabelecendo pontos de encontro e

pontos de contraste com o fenoacutemeno da ἀνάμνησις No caso sublinhando a diferenccedila que distingue a

μυήμη entendida como mera conservaccedilatildeo de percepccedilotildees que readquire sem esforccedilo da άνάμησις que

alude agrave recuperaccedilatildeo de lembranccedilas vagas que resistem e cuja recuperaccedilatildeo exige mobilizaccedilatildeo Para

mais esclarecimentos ver por exemplo Bowin J De anima II 5 on the Activation of the Senses in

Ancient Philosophy 32 nordm 1 Pittsburgh 2012 87-104 ou Caston V The Spirit and the Letter Aris-

totle on Perception in R Salles (ed) Metaphysics Soul and Ethics Themes from the work of Ri-

chard Sorabji 245ndash320 Oxford Oxford University Press 2005

46

passar a αἴσθησις) enquanto por outro lado lhe cabe ficar aqueacutem e ser condiccedilatildeo de possibi-

lidade da ἐμπειρία ndash que se situa acima do limiar superior da μνήμη Isto quer dizer em su-

ma que a μνήμη introduz um acreacutescimo em relaccedilatildeo agrave αἴσθησις mas estaacute ainda em situaccedilatildeo de

deacutefice em relaccedilatildeo agrave ἐμπειρία (e assim tambeacutem em relaccedilatildeo a τέχνη e agrave ἐπιστήμη)

Para tentar ganhar a pista ao que eacute que a μνήμη acrescenta agrave αἴσθησις consideremos

por exemplo Anal Post 99b38 Nesse passo a μνήμη eacute descrita como persistecircncia da αἴσθη-

σις ndash ie como persistecircncia do jaacute percebido O que Aristoacuteteles procura salientar neste passo eacute

o facto de a μνήμη natildeo se deter nem se ater exclusivamente agrave αἴσθησις No factor do persistir

ou do perdurar da percepccedilatildeo estaacute desde logo o sinal de uma distinccedilatildeo entre os planos da

αἴσθησις e da μνήμη

O que essa distinccedilatildeo mostra eacute que por um lado o acontecimento perceptivo natildeo estaacute

esgotado no instante do seu acontecer (no presente absoluto que vimos corresponder a um

ponto de vista meramente esteacutesico) mas pelo contraacuterio algo da percepccedilatildeo eacute passiacutevel de ser

conservado Mas por outro o que eacute decisivo eacute que isso da percepccedilatildeo que eacute passiacutevel de ser

conservado acontece num plano distinto do plano da αἴσθησις Interessa considerar mais deti-

damente este ponto ndash agora a partir de um ponto de vista mneacutesico

Importa fazer notar antes de tudo o mais que a μνήμη eacute diferente de uma mera acu-

mulaccedilatildeo de conteuacutedos esteacutesicos

Para compreender como pode ser assim consideremos dois aspectos

Por um lado a nota de αἰσθήσεις (a nota de um plural de percepccedilotildees) eacute completamente

excecircntrica agrave αἴσθησις tal como se viu na secccedilatildeo anterior Por outro a precedecircncia da αἴσθη-

σις em relaccedilatildeo agrave μνήμη faz com que de facto o percebido seja o objecto da memoacuteria

Poreacutem sobre o fundo do percebido a μνήμη opera uma transformaccedilatildeo De tal modo

que o que se estaacute a desenhar pode ser expresso na seguinte foacutermula a memoacuteria do sensiacutevel jaacute

natildeo eacute sensiacutevel

Foquemos melhor este ponto

Poderiacuteamos tender a supor que a percepccedilatildeo resulta naturalmente em memoacuteria ndash que a

memoacuteria seria por assim dizer o ldquodestino naturalrdquo da percepccedilatildeo Esta asserccedilatildeo natildeo parece no

entanto estar de acordo com o que temos visto Na verdade como vimos a percepccedilatildeo pode-

ria estar encerrada no seu acontecimento sem intervenccedilatildeo de qualquer outro factor Mais

47

ainda a sofrer a intervenccedilatildeo de qualquer factor externo natildeo haacute nada que aponte para que esse

factor tivesse de ser necessariamente a memoacuteria

Propor a memoacuteria como o ldquodestino naturalrdquo da percepccedilatildeo parece sugerir a) que a μνή-

μη estaacute analiticamente compreendida no acontecimento da αἴσθησις ou b) que o que cabe agrave

memoacuteria eacute ser algo como o mero depoacutesito de percepccedilotildees Quer num caso quer no outro a

memoacuteria natildeo seria mais do que um processo posterior agrave colecccedilatildeo de percepccedilotildees ndash processo

que resultaria num arquivo morto de percepccedilotildees

Ora o que Aristoacuteteles desenha da μνήμη na escala tem uma configuraccedilatildeo muito dife-

rente de um arquivo morto

Vendo bem a μνήμη natildeo poderia ser um acontecimento posterior agrave αἴσθησις ndash pelo

simples facto de que no sentido que vimos corresponder agrave αἴσθησις no curso da sucessatildeo a

percepccedilatildeo estaria jaacute perdida ou ultrapassada

Assim a μνήμη eacute algo que acompanha a αἴσθησις ndash ie que faz com que em simultacirc-

neo com o acontecimento da αἴσθησις haja outra instacircncia que suprime a vertigem perceptiva

que corresponderia a um acesso meramente esteacutesico De facto a μνήμη surge como o registo

ou a retenccedilatildeo do percebido no proacuteprio instante da ocorrecircncia da percepccedilatildeo

A este factor do registo ou retenccedilatildeo deve adicionar-se um segundo factor o factor da

transmissatildeo O que a μνήμη introduz eacute algo que poderia ser descrito como uma cadeia de

transmissatildeo

Por via do acompanhamento mneacutesico da αἴσθησις o percebido natildeo fica totalmente en-

cerrado no instante do seu acontecimento mas eacute transferido para o instante seguinte De facto

o que a μνήμη faz eacute introduzir um desdobramento de tal modo que no instante subsequente ao

da ocorrecircncia de uma qualquer αἴσθησις haacute em simultacircneo tanto a percepccedilatildeo actual quanto

a memoacuteria do instante anterior

Mas isto ainda eacute insuficiente

Se a μνήμη fosse a mera subsistecircncia do percepcionado isso significaria que o instante

absoluto ndash que vimos corresponder ao acontecimento da αἴσθησις ndash apenas acumularia mais

conteuacutedo Ou seja a μνήμη corresponderia a um mero amontoado de todos os conteuacutedos per-

ceptivos tidos acumulados no conteuacutedo perceptivo actual A ser assim a μνήμη corresponde-

ria agrave mera retenccedilatildeo de presentes absolutos (ou seja presentes absolutos completamente fe-

chados em si sem perspectiva de uns sobre os outros e todos apresentados em simultacircneo

48

etc) Por outras palavras a mera subsistecircncia do anteriormente percepcionado corresponderia

a algo como um ldquoacorderdquo no instante absoluto

Na verdade o desdobramento que a μνήμη introduz expressa-se no encadeamento ou

no alinhamento das percepccedilotildees ndash mas de tal modo que o resultado do encadeamento ou do ali-

nhamento eacute uma fluidez ou continuidade no tracircnsito entre as percepccedilotildees

Ou seja o acompanhamento mneacutesico faz com que natildeo haja entre uma percepccedilatildeo e a

percepccedilatildeo seguinte uma quebra ou uma radical heterogeneidade ndash a radical heterogeneidade

que corresponderia agrave mera retenccedilatildeo de presentes absolutos radicalmente heterogeacuteneos entre

si

Aquilo que se desenha na μνήμη para o condensar numa expressatildeo eacute algo como uma

ldquomelodiardquo de percepccedilotildees

O caso eacute o seguinte haacute uma heterogeneidade radical entre qualquer percepccedilatildeo tida e

a percepccedilatildeo actual E no entanto parece haver uma convergecircncia entre a percepccedilatildeo tida e a

percepccedilatildeo actual (de tal modo que qualquer percepccedilatildeo actual herda de uma percepccedilatildeo tida) o

que resulta no caso peculiar de uma percepccedilatildeo actual ser natildeo apenas a heranccedila recebida mas

a continuaccedilatildeo do ldquolegadordquo do que foi herdado

De facto a convergecircncia entre as duas percepccedilotildees (ie o encontrarem-se e coincidi-

rem na percepccedilatildeo actual) eacute condiccedilatildeo de possibilidade da nota de ldquoactualidaderdquo que acompa-

nha a percepccedilatildeo actual ndash assim como eacute condiccedilatildeo de possibilidade por exemplo de uma melo-

dia cuja identidade depende natildeo da mera contiguidade de dois sons mas mais propriamente

da transiccedilatildeo do primeiro para o segundo (de tal modo que quando o segundo for escutado o

primeiro estaacute ainda presente) e do produto de uma tal transiccedilatildeo (isso que corresponde a um

aumento ou uma diminuiccedilatildeo de tom de intensidade de ritmo etc e que soacute eacute posto quando haacute

transiccedilatildeo ie quando haacute coincidecircncia de duas percepccedilotildees e dessa coincidecircncia se extrai a

relaccedilatildeo entre elas)

Assim parece haver algo como um nexo de causalidade

A percepccedilatildeo passada alarga-se sobre o presente (presentifica-se) como se de certo

modo antecipasse jaacute a sua continuidade no futuro ainda a haver ao mesmo tempo a percep-

ccedilatildeo actual adquire uma proveniecircncia De tudo isto resulta algo como um curso perceptivo ndash

uma organizaccedilatildeo encadeada (tida por natural) das percepccedilotildees que tem a actual como seu cul-

minar e que de certo modo jaacute antecipa a seguinte

49

A tentativa de determinaccedilatildeo do que corresponde agrave μνήμη na escala aristoteacutelica deve ter

agora em conta uma ldquoclaacuteusulardquo adicional Eacute que a μνήμη apresenta um conteuacutedo na ausecircncia

perceptiva dele

Natildeo apenas conseguimos recuperar por via da μνήμη isso que foi (mas jaacute natildeo eacute) os

locais onde estivemos (mas jaacute natildeo estamos) os tempos que vivemos no passado (mas que jaacute

natildeo vivemos no presente) como o que estaacute na μνήμη (ie o que estaacute para aleacutem da percepccedilatildeo)

estende-se ao longo do curso da percepccedilatildeo e conforma o que aparece perceptivamente

Ora isto aproxima a μνήμη de um outro fenoacutemeno de apresentaccedilatildeo dos conteuacutedos na

ausecircncia perceptiva deles a saber o fenoacutemeno da φαντασία

Natildeo eacute este o local nem para uma apresentaccedilatildeo exaustiva e integral da φαντασία nem

para o levantamento dos diversos aspectos que uma apresentaccedilatildeo minuciosa do que estaacute em

jogo na φαντασία traria agrave tona na obra aristoteacutelica Para mais devemos natildeo perder de vista

que nem o conceito de φαντασία nem a rela-ccedilatildeo entre φαντασία e μνήμη estatildeo expressamente

focadas nos passos do corpus aristotelicum que aqui temos em vista

A menccedilatildeo da φαντασία tem portanto tanto um intuito quanto um acircmbito muito redu-

zidos De facto daremos atenccedilatildeo a um uacutenico aspecto do fenoacutemeno da φαντασία que posto em

relaccedilatildeo e em contraste com o que vimos nos pode ajudar a determinar o que propriamente

corresponde agrave μνήμη19

O problema pode ser expresso do seguinte modo a percepccedilatildeo fornece os conteuacutedos

perceptivos mas natildeo parece ter sobre os conteuacutedos perceptivos exclusividade ndash haacute pelo que

se depreende conteuacutedos perceptivos fora da percepccedilatildeo e mais ainda a conformar a percep-

ccedilatildeo Eacute esse o caso da μνήμη a μνήμη assenta sobre conteuacutedos perceptivos mas o que adiciona

atravessa os conteuacutedos da αἴσθησις e natildeo os deixa incoacutelumes eacute tambeacutem esse o caso da φαντα-

σία

19

Para uma consideraccedilatildeo da noccedilatildeo de φαντασία na obra de Aristoacuteteles ver por exemplo Ret (I 11 II

5) Eacutetica a Nicoacutemaco (1114a-b 1147b etc) Met (livro I 980b livro IV 1110b livro V 1024b-

1025a etc) Para um estudo mais aprofundado do conceito ver por exemplo Bredlow L Aristotle

on pre-Platonic theories of sense-perception and knowledge in Filosofia Unisinos Satildeo Leopoldo 11

(3) 2010 paacutegs 204-224 Heidegger M GA vol 18 Basic concepts of aristotelian philosophy Indi-

ana Univ Press 2009 pp 93-97 133-136 e 168-170 Long C Aristotle on the nature of truth Cam-

bridge Univ Press 2011 pp 81-93 109-115 131-151 166-171 211-123 etc Scheiter K Images

appearances and phantasia in Aristotle in Phronesis 57 Boston 2012 paacutegs 251-278 ou Watson G

Φαντασία in Aristotle De Anima 33 in The Classical Quarterly 32 No 1 Cambridge 1982 paacutegs

100-113

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O que Aristoacuteteles diz sobre a φαντασία e que neste passo nos interessa destacar pode

ser sintetizado em dois pontos a) a φαντασία eacute de certo modo causada pela αἴσθησις (ou se-

ja estaacute dependente da ocorrecircncia de αἴσθησις) e b) a φαντασία eacute similar agrave αἴσθησις (De Ani-

ma 428b10 ss) Algo muito semelhante poderia ser dito sobre a μνήμη

Em relaccedilatildeo ao primeiro ponto o que estaacute em causa eacute o facto de tanto μνήμη quanto

φαντασία terem a αἴσθησις por seu objecto Isto eacute tanto μνήμη quanto φαντασία procedem

sobre o ldquofundordquo do percebido

Em relaccedilatildeo ao segundo ponto o que deve ser frisado eacute que o desdobramento que ca-

racteriza a μνήμη natildeo potildee perante dois conteuacutedos esteacutesicos (um primeiro meramente esteacutesico

e um segundo atravessado por μνήμη) Pelo contraacuterio no ponto de vista em que nos temos haacute

apenas um uacutenico conteuacutedo ndash conteuacutedo que a um olhar desatento pode parecer isento de qual-

quer outro factor e pode portanto passar por um conteuacutedo meramente esteacutesico

Haacute ainda um outro problema que vem reforccedilar as ligaccedilotildees entre μνήμη e φαντασία

A φαντασία parece estar a jusante do fenoacutemeno da αἴσθησις ndash como se fosse um pro-

duto possiacutevel do tratamento do que a αἴσθησις colhe e que deixaria incoacutelume o fundo ou os re-

cursos disponiacuteveis em que assenta

Se Aristoacuteteles nos diz que a φαντασία eacute uma modalidade enfraquecida de αἴσθησις

(ponto que natildeo estamos nestes passos em condiccedilatildeo de considerar) logo acrescenta que tanto o

homem que relembra (o homem que revecirc o passado) quanto o homem que espera (o homem

que prevecirc o futuro) tecircm de permeio a φαντασία do que relembram ou do que esperam (Ret I

XI 6 1370a)

Ora deixando de lado as consideraccedilotildees sobre o futuro que natildeo cabem na anaacutelise da

μνήμη o aspecto que Aristoacuteteles nos apresenta eacute o aspecto da φαντασία ser de algum manei-

ra um operador que interveacutem na constituiccedilatildeo de μνήμη Ou seja o aspecto que Aristoacuteteles

nos apresenta eacute o aspecto de a constituiccedilatildeo de μνήμη estar perpassada de φαντασία

O que com isto Aristoacuteteles parece sugerir eacute que a μνήμη eacute uma modalidade especiacutefica

de φαντασία E o que eacute especiacutefico da modalidade de φαντασία que eacute a μνήμη eacute co-apresentar

o tempo Dito por outras palavras o que caracteriza a ldquofantasia mneacutesicardquo eacute o facto de fazer

entrar em cena o factor da sucessatildeo

Na verdade eacute o factor da sucessatildeo o que possibilita a ldquomelodiardquo ndash ou seja eacute a co-apre-

sentaccedilatildeo do tempo (ie da sucessatildeo) o que abre o acircngulo para laacute do presente absoluto esteacutesi-

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co O que vimos eacute que um ponto de vista meramente esteacutesico seria atemporal Acontece que

embora a μνήμη implique a posse da αἴσθησις a μνήμη natildeo eacute uma instacircncia atemporal A in-

troduccedilatildeo do factor ldquotempordquo colabora na modificaccedilatildeo qualitativa do acesso que se tem ao per-

cebido

Aristoacuteteles reforccedila amiuacutede a condiccedilatildeo temporal da memoacuteria em De memoria e remi-

nistencia diz-nos que a memoacuteria soacute eacute possiacutevel quando haacute lapso de tempo (449b24) e que a

memoacuteria acontece quando a um impulso relativo ao facto se junta um outro relativo ao pre-

sente do seu acontecimento (452b24) ndash embora faccedila notar que esse segundo dado pode ser de-

terminado (quando haacute uma recuperaccedilatildeo da cronologia) ou natildeo (nas situaccedilotildees em que se natildeo

estaacute seguro do quando ou em que o quando eacute indeterminado) (452b30)

Natildeo estamos aqui em condiccedilotildees de perseguir estas formulaccedilotildees em toda a sua exten-

satildeo Aquilo que nos cabe eacute ver melhor o modo como a μνήμη enquanto instacircncia temporal

muda o enquadramento do que aparece

Se se considerar a possibilidade de uma mera acumulaccedilatildeo de αἰσθήσεις o que daiacute se

obteria seria o facto de os conteuacutedos percebidos tidos terem sido mas jaacute natildeo serem Na verda-

de a mera acumulaccedilatildeo de percepccedilotildees tidas seria uma acumulaccedilatildeo de percepccedilotildees passadas

totalmente encerradas no presente do seu acontecimento Seriam de facto percepccedilotildees sem a

nota de terem sido

Ora a transformaccedilatildeo operada pela μνήμη eacute entatildeo uma transformaccedilatildeo de alargamen-

to a μνήμη tanto conserva a percepccedilatildeo tida (como presente no passado) como a transporta

ateacute ao presente (como passado do presente) A sucessatildeo eacute o factor que faz com que cada per-

cepccedilatildeo esteja de algum modo ampliada no sentido em que estaacute preenchida de todas as per-

cepccedilotildees tidas percepccedilotildees com que eacute posta numa relaccedilatildeo de continuidade

Se notarmos que a percepccedilatildeo estaacute obrigada a um menor grau de exigecircncia quanto

maior o patrimoacutenio perceptivo retido isso indica-nos que o que estaacute em jogo natildeo eacute apenas

uma acumulaccedilatildeo (se por isso se entender um amontoar que varie no volume mas que natildeo leve

em linha de conta isso que acumula) Vendo bem a reincidecircncia provoca uma mudanccedila de

natureza nos dados ndash a tal ponto que isso tem efeito nas incidecircncias futuras precisamente a

diminuiccedilatildeo de exigecircncia de acuidade da percepccedilatildeo Em suma natildeo haacute apenas acumulaccedilatildeo de

percepccedilotildees haacute uma transformaccedilatildeo das percepccedilotildees ndash e uma transformaccedilatildeo que deixa seque-

las que tem consequecircncias etc

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A ser assim o que Aristoacuteteles sugere eacute que a co-apresentaccedilatildeo do tempo faz que os

conteuacutedos perceptivos sejam modificados na μνήμη por estarem postos em ordenaccedilatildeo tempo-

ral por estarem em relaccedilatildeo com o percebido que antecede a percepccedilatildeo actual etc

Mas mais ainda na verdade eacute a μνήμη que cria as condiccedilotildees para haver algo como

uma siacutentese de recogniccedilatildeo

Se uma qualquer percepccedilatildeo estaacute posta em relaccedilatildeo com todas as percepccedilotildees passadas

entatildeo dessa relaccedilatildeo ou eacute gerado um reconhecimento de identidade ou eacute gerado um reconheci-

mento de natildeo-identidade ndash reconhecimento do qual adveacutem o caraacutecter de novidade ou de rein-

cidecircncia da percepccedilatildeo actual Quer dizer soacute haveraacute ausecircncia de novidade nos conteuacutedos da

percepccedilatildeo actual porque haacute influecircncia da memoacuteria sobre os conteuacutedos da percepccedilatildeo A falta

de novidade assinala que o que eacute actualmente percebido natildeo adiciona nada ao jaacute anteriormen-

te percebido

Se por um lado isso confirma e reforccedila os dados da memoacuteria por outro lado isso pa-

rece exigir menos da percepccedilatildeo actual parece exigir apenas confirmaccedilatildeo reforccedilo ratificaccedilatildeo

etc Digamos assim quanto maior o patrimoacutenio da memoacuteria menor o grau de exigecircncia a que

a percepccedilatildeo estaacute obrigada Este eacute aliaacutes um factor decisivo na consideraccedilatildeo do fenoacutemeno da

percepccedilatildeo desatenta ndash da percepccedilatildeo que no acesso que gera deixa escapar parcelas maiores

ou menores disso a que acede

Na verdade o que nesta anaacutelise estamos desde jaacute a despistar satildeo as condiccedilotildees para

uma matriz de acesso radicalmente distinta da possibilidade de acesso que corresponde agrave

αἴσθησις

Acontece que todos estes desenvolvimentos satildeo ainda insuficientes para determinar in-

tegralmente as caracteriacutesticas da μνήμη tal como se apresentam na escala aristoteacutelica

sect8

O confinamento em que incorre a μνήμη a μνήμη natildeo potildee nada que abra perspectiva

sobre o futuro

De facto para perceber o terminus ad quem da transformaccedilatildeo que a μνήμη introduz

importa natildeo apenas considerar o limite inferior do ponto de vista mneacutesico (em que estaacute em

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causa o excesso sobre a αἴσθησις) mas importa tambeacutem considerar o limite superior (em que

estaacute em causa a limitaccedilatildeo ou o confinamento em que incorre a μνήμη ndash no caso em relaccedilatildeo agrave

terceira etapa agrave ἐμπειρία)

O que desde logo fica claro na anaacutelise que temos em curso eacute que a sucessatildeo mneacutesica eacute

aquela que diz respeito agrave multiplicidade de momentos compreendida entre o passado mais re-

moto (ie a primeira αἴσθησις tida) e o presente (ie a αἴσθησις mais recente) A μνήμη limi-

ta-se a ser um ponto de vista que para aleacutem de estar a percepcionar o que actualmente per-

cepciona soacute tem o ter havido percepccedilatildeo do que percepcionou

Isto quer dizer que um ponto de vista constituiacutedo por αἰσθήσεις presentes acrescidas

da memoacuteria de αἰσθήσεις passadas ndash e que natildeo tem nenhuma outra forma de notiacutecia senatildeo es-

sa ndash a) por um lado acrescenta realidade agravequela de que de cada vez tem percepccedilatildeo mas b) por

outro resulta em que a realidade que acrescenta eacute toda ela passada

O acreacutescimo da μνήμη natildeo eacute senatildeo retrospectivo Dito de outro modo a μνήμη natildeo

potildee nada que abra perspectiva sobre o futuro

O ponto que interessa sublinhar nesta secccedilatildeo eacute justamente este

Eacute claro que a isso de que tem percepccedilatildeo no presente se acrescenta toda a realidade de

que teve percepccedilatildeo no passado ndash mas a percepccedilatildeo que foi tida no passado junta-se agrave percep-

ccedilatildeo presente justamente como realidade passada Dito de outro modo a percepccedilatildeo tida no

passado apresenta-se como realidade distinta da realidade presente Daqui resulta que a cada

presente a uacutenica realidade que haacute para um ponto de vista assim constituiacutedo eacute aquela de que

tem percepccedilatildeo Isto eacute no presente aquilo que de cada vez tem percepccedilatildeo esgota o ldquomundordquo

Tomemos por exemplo a sala de trabalho ndash sala em que jaacute estivemos e de que tive-

mos percepccedilatildeo anteriormente percepccedilatildeo passada agrave qual se acrescenta a realidade de que nes-

te instante temos percepccedilatildeo

Na verdade por via da μνήμη a sala natildeo se limita a ser (como seria no caso de um

ponto de vista meramente esteacutesico) um recanto perceptivo mas eacute sempre jaacute composta da acu-

mulaccedilatildeo de todas as percepccedilotildees tidas percepccedilotildees agraves quais se junta (e que tecircm como culminar)

a percepccedilatildeo actual Neste sentido a sala ndash tal como eacute vista por um ponto de vista meramente

mneacutesico ndash adicionaria agrave percepccedilatildeo actual toda a colecccedilatildeo de percepccedilotildees passadas (com um

cardinal de multiplicaccedilatildeo maior ou menor consoante tenha tido mais ou menos percepccedilotildees)

distribuiacutedas ao longo do tempo

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Poreacutem um ponto de vista meramente mneacutesico limitar-se-ia a ter as percepccedilotildees passa-

das da sala estritamente como passado como ter estado laacute Por outras palavras um ponto de

vista mneacutesico estaacute fechado naquilo a que se poderia chamar a histoacuteria perceptiva ndash e natildeo tem

condiccedilotildees para dar um soacute passo que vaacute para laacute dela

Ora o que na verdade caracteriza a histoacuteria perceptiva eacute um fluxo de aparecimento e

de desaparecimento O que um ponto de vista mneacutesico teria seria a mera acumulaccedilatildeo de todas

as fulguraccedilotildees perceptivas alinhadas em sucessatildeo teria um aspecto da sala que desaparece

dando o lugar a um outro aspecto da sala que por sua vez desaparece dando o lugar a um cor-

redor que por sua vez desaparece dando lugar a um quarto ndash e assim sucessivamente

A histoacuteria perceptiva tem a forma de qualquer coisa como um tuacutenel de travessia per-

ceptiva onde se vatildeo sucedendo diversos aparecimentos

A capacidade da μνήμη esgota-se na capacidade de reactivar a sucessatildeo ou seja na

capacidade de fazer reaparecer A que eacute diferente de B que eacute diferente de C que eacute diferente de

D etc numa sucessatildeo dos seus acontecimentos Eacute que a realidade que pode ser reconhecida

por um ponto de vista mneacutesico tem justamente esta estrutura a da mera transiccedilatildeo de ter havi-

do A para ter havido B (e desapareceu A) para ter havido C (e tambeacutem desapareceu B) ndash e as-

sim sucessivamente Em suma para um ponto de vista mneacutesico haacute um ldquomundordquo de morfolo-

gia variaacutevel construiacutedo de tal modo que a uacutenica forma de articulaccedilatildeo entre os campos de re-

alidade sucessivamente percepcionados eacute precisamente a proacutepria sucessatildeo

Ora isto permite perceber um ponto decisivo que a partir do que foi visto ainda natildeo

fica a descoberto em todo o seu alcance Este ponto ficaraacute mais claramente desenhado quando

se tiver fixado aquilo que eacute proacuteprio da ἐμπειρία mas de todo o modo jaacute se pode esboccedilar em

especial em relaccedilatildeo ao que foi sendo dito nas secccedilotildees anteriores O ponto eacute o seguinte muta-

tis mutandis vale a respeito do ponto de vista mneacutesico o que antes se disse a respeito do aces-

so a um ponto de vista esteacutesico

Na secccedilatildeo anterior vimos que a diferenciaccedilatildeo entre um ponto de vista puramente esteacute-

sico e um ponto de vista mneacutesico eacute tal que ainda que com capacidades sensoriais absoluta-

mente idecircnticas o que aparece num e no outro satildeo coisas completamente diferentes Como

entatildeo foi dito se tivessemos um ponto de vista puramente esteacutesico da sala em que nos encon-

tramos na verdade natildeo veriacuteamos nada do que vecirc um ponto de vista assistido por μνήμη E in-

versamente um ponto de vista assistido por μνήμη natildeo consegue fazer nenhuma ideia adequa-

da do que se passa (ie do que aparece) onde natildeo haacute mais do que αἴσθησις

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Ora algo de equivalente se verifica no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre um ponto de

vista mneacutesico e um ponto de vista empiacuterico

Aplica-se agrave tentativa de reconstituiccedilatildeo de um ponto de vista puramente mneacutesico a par-

tir do ponto de vista empiacuterico a impossibilidade de vencer as diferenccedilas irreconciliaacuteveis entre

estaacutedios natildeo se consegue acompanhar adequadamente um ponto de vista meramente mneacutesico

a partir de um ponto de vista empiacuterico

Ora isso diz algo sobre o ldquolugarrdquo da escala em que nos encontramos Eacute que se natildeo es-

tamos a ver mal tambeacutem se daacute o caso de a partir do nosso ponto de vista ser impossiacutevel

acompanhar um ponto de vista meramente mneacutesico

Em primeiro lugar verifica-se que a perspectiva em que estamos quando falamos de

um ponto de vista mneacutesico excede ndash excede muito significativamente ndash o que eacute proacuteprio de um

ponto de vista mneacutesico Assim e nos termos que vimos o ponto de vista em que estamos tem

sobre um ponto de vista puramente mneacutesico um excesso que eacute impossiacutevel de anular e que nos

separa inexoravelmente de um ponto de vista mneacutesico E isto eacute claro se tivermos em conta

antes do mais que quando falamos de um ponto de vista puramente mneacutesico fazemo-lo a

partir de uma perspectiva que estaacute muito longe de natildeo ter qualquer ideia do futuro

De facto o nosso ponto de vista soacute consegue representar como um experimentum algo

como um ponto de vista totalmente encerrado em relaccedilatildeo ao futuro Um ponto de vista como

o nosso natildeo consegue reduzir-se ou reconstituir efectivamente um ponto de vista que ldquovejardquo

assim

Devemos notar que o facto de a μνήμη se resumir a conteuacutedos perceptivos tidos (que

tecircm o seu limite maacuteximo na percepccedilatildeo actual) impede qualquer prospectiva sobre o que viraacute

a ser deles no momento seguinte

Nesta medida a uacuteltima percepccedilatildeo de um qualquer conteuacutedo seria tambeacutem a uacuteltima no-

tiacutecia dele O presente seria a extremidade da seacuterie do tempo e a cada instante se diluiria em

passado abrindo um nexo de continuidade com o que foi mas natildeo com o que viraacute a ser Natildeo

seria possiacutevel portanto antever o que quer que fosse que tivesse a ver com o acontecimento

futuro de um dado conteuacutedo natildeo seria possiacutevel antecipar por exemplo se a sala que temos

perante noacutes persistiria no futuro o que viria a ser dela no momento imediatamente a seguir

ao instante actual etc

Em suma o ponto de vista mneacutesico nunca poderia constituir uma expectativa de futu-

ro

56

Ora o facto eacute que noacutes natildeo vivemos na incerteza de saber se a sala que temos perante

noacutes iraacute ou natildeo desaparecer no momento seguinte pelo contraacuterio o suacutebito desaparecimento da

sala provocaria estupefacccedilatildeo

Isto parece indicar que a partir do ponto de vista a que acedemos a ela a histoacuteria

perceptiva eacute permeada por outros factores de natureza distinta dos factores meramente per-

ceptivos ndash ie parece indicar que operam no ponto de vista em que nos achamos factores de

projecccedilatildeo

Na verdade estes factores estavam jaacute muito subtilmente a operar se considerarmos de

perto a noccedilatildeo de siacutentese de recogniccedilatildeo que se aplicou atraacutes

O que estaacute em jogo na siacutentese de recogniccedilatildeo eacute uma modalidade de reincidecircncia ndash o

que nos potildee na pista de que o que estaacute em causa seraacute ou uma intermitente ou uma contiacutenua

incidecircncia do ldquomesmordquo que de cada vez de novo eacute captado

A nota do ldquomesmordquo (o factor de identidade ou de semelhanccedila) que a cada vez de novo

incide natildeo eacute alheia agrave μνήμη tal como nos eacute possiacutevel conceber a μνήμη no ponto de vista em

que nos termos Na verdade sem a fixaccedilatildeo de identidades diacroacutenicas (factor que excede em

absoluto o acircmbito da μνήμη e assim tambeacutem o acircmbito da αἴσθησις) aquilo que de cada vez

apareceu agrave percepccedilatildeo e que eacute retido pela μνήμη consistiria de cada vez em diferenccedilas irre-

conciliaacuteveis de umas percepccedilotildees em relaccedilatildeo a outras

Ou seja o caso de serem diferentes percepccedilotildees do ldquomesmordquo natildeo se deduz das percep-

ccedilotildees nem da memoacuteria natildeo seria possiacutevel dizer que foi o ldquomesmordquo que apareceu de cada vez

jaacute que natildeo haveria uma identificaccedilatildeo que atravessasse todas as percepccedilotildees

Nesse caso as percepccedilotildees ndash e mesmo duas percepccedilotildees iguais ndash seriam incomparaacuteveis

umas em relaccedilatildeo agraves outras por falta da fixaccedilatildeo de algo que servisse a aproximaccedilatildeo ou a com-

paraccedilatildeo entre elas

Tambeacutem no que diz respeito agrave conformaccedilatildeo global do que aparece se verifica algo

correspondente

Se considerarmos a forma como lhe acedemos o campo perceptivo em que de cada

vez nos encontramos aparece-nos como parte de um complexo de realidades muito mais vas-

to de realidades que lhe satildeo simultacircneas Ora o acreacutescimo da retenccedilatildeo eacute insuficiente para

nos dar a ver o ldquomundordquo tal como o temos habitualmente

57

O ldquomundordquo tal como o temos natildeo estaacute limitado agraves percepccedilotildees que tivemos e temos

dele temos notiacutecia de um ldquomundordquo ndash temporal e espacialmente ndash muito mais vasto que as

percepccedilotildees que tivemos e que temos dele A nossa notiacutecia do mundo estaacute atravessada por um

excesso em relaccedilatildeo quer agrave nossa percepccedilatildeo quer agrave nossa histoacuteria perceptiva dele a ldquogeogra-

fiardquo do ldquomundordquo natildeo se limita agrave quantidade de ruas por onde passaacutemos nem a populaccedilatildeo do

ldquomundordquo estaacute limitada ao nuacutemero de pessoas com que me deparaacutemos no curso desta travessia

Em suma o ldquomundordquo correspondente a um ponto de vista mneacutesico eacute muito diferente

do ldquomundordquo que nos aparece

E tambeacutem aqui devemos recuperar uma estrutura que jaacute vimos anteriormente natildeo eacute

soacute o ponto de vista puramente mneacutesico que natildeo faz a mais remota ideia daquele em que nos

encontramos O inverso eacute tambeacutem verdade Quer dizer a ldquocegueirardquo natildeo ocorre apenas do

ldquomenosrdquo para o ldquomaisrdquo

Sucede igualmente que o ponto de vista em que estamos natildeo consegue desfazer o ex-

cesso sobre o ponto de vista puramente mneacutesico natildeo tem condiccedilotildees para reconstituir ade-

quadamente o que possa ser a oacuteptica desse ldquomenosrdquo

Dito de outro modo ainda que o ponto de vista mneacutesico represente um extraordinaacuterio

desconfinamento em relaccedilatildeo ao ponto de vista esteacutesico ainda que se aproxime muito mais do

que o ponto de vista esteacutesico do ponto de vista em que nos encontramos ndash de todo o modo

essa aproximaccedilatildeo eacute apenas relativa e estaacute ainda muito aqueacutem da perspectiva que nos corres-

ponde

Eacute no sentido de ganhar a pista a essa forma de desconfinamento que corresponde ao

tracircnsito da μνήμη para a ἐμπειρία ndash e em simultacircneo responder agrave pergunta onde se situa nela

o nosso ldquoolharrdquo o acesso em que nos achamos ou de que dispomos ndash que interessa analisar

de seguida a terceira etapa da escala de possibilidade de acesso desenhada por Aristoacuteteles

Eacute portanto a ἐμπειρία e os diversos elementos que a constituem que estamos pela pri-

meira vez e tendo por auxiliares as ldquochavesrdquo que no curso desta anaacutelise fomos adquirido em

condiccedilotildees de focar detidamente

58

sect9

Abordagem agrave ἐμπειρία a partir da chave ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος

μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν ἀποτελοῦσινrdquo (Metafiacutesica 980b28) ndash O contraste entre a pluralida-

de mneacutesica e a unidade empiacuterica

Perceber o que estaacute em causa naquilo a que Aristoacuteteles chama ἐμπειρία passa por to-

mar como ponto de partida e por foco da anaacutelise o enunciado de Metafiacutesica I (980b28 e ss)

ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν ἀποτελοῦσινrdquo Este enun-

ciado ndash que poderia ser vertido para a foacutermula ldquona medida em que eacute de vaacuterias memoacuterias da

mesma coisa que uma experiecircncia eacute produzidardquo ndash concentra os aspectos decisivos

Poreacutem e em simultacircneo este enunciado pode induzir em erro e criar pistas falsas em

especial se natildeo se atender com suficiente cuidado agrave especificidade daquilo para que aponta

Esta passagem sublinha antes de mais que a multiplicidade de memoacuterias constitui

uma condiccedilatildeo da passagem agrave ἐμπειρία Ora isto significa algo que tem sido visto ao longo

das secccedilotildees anteriores a saber que cada etapa superior soacute eacute possiacutevel sobre o fundo ou sobre

a condiccedilatildeo de possibilidade que constituem para ela as etapas anteriores

No caso quer dizer que a ἐμπειρία supotildee algo como uma travessia perceptiva que re-

sulta numa acumulaccedilatildeo de memoacuterias (ie que a ἐμπειρία natildeo eacute possiacutevel sem a travessia per-

ceptiva e sem a acumulaccedilatildeo mneacutesica que haacute algo como um miacutenimo de travessia perceptiva e

de acumulaccedilatildeo mneacutesica sem o qual a ἐμπειρία simplesmente natildeo tem condiccedilotildees para ocorrer

etc)

Poreacutem em segundo lugar Aristoacuteteles sublinha que a multiplicidade de μνῆμαι eacute uma

multiplicidade de memoacuterias τοῦ αὐτοῦ πράγματος Por outras palavras a ἐμπειρία tem como

condiccedilatildeo sine qua non qualquer coisa como uma repeticcedilatildeo20

20

Aquilo a que se deve dar atenccedilatildeo na nota da repeticcedilatildeo (na noccedilatildeo de que a multiplicidade de memoacute-

rias eacute da ldquomesmardquo ldquocoisardquo) estaacute jaacute de certo modo posto no prefixo re- Este prefixo expressa algo que

acontece outra vez uma vez mais que acontece novamente que torna a acontecer etc Isto eacute indica

que o que acontece (o que acontece outra vez uma vez mais novamente etc) estaacute posto em relaccedilatildeo

com algo cuja existecircncia antecede ou eacute preacutevia ao acontecimento actual com algo que estaacute para traacutes

Na verdade eacute isso que estaacute para traacutes que acontece outra vez uma vez mais novamente etc ndash de tal

modo que esta outra vez estaacute em referecircncia a uma primeira eacute mais uma que se adiciona agrave primeira

renova a primeira etc

59

Isto quer dizer o seguinte se cada αἴσθησις tivesse um teor diferente ndash de tal modo

que nada tivesse que ver com o teor das outras ndash e se natildeo houvesse qualquer afinidade entre

as μνῆμαι (ie se as memoacuterias fossem todas desencontradas se natildeo houvesse reincidecircncia

do ldquomesmordquo) entatildeo ficaria prejudicada a possibilidade de se produzir ἐμπειρία

A isto acresce um outro terceiro aspecto o contraste entre a pluralidade das μνῆμαι e

a unidade da ἐμπειρία Agrave pluralidade das μνῆμαι corresponde na ἐμπειρία algo de uno eacute pa-

ra isso que Aristoacuteteles aponta quando fala de μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν Parece evidente que o

que estaacute em causa eacute algo como uma condensaccedilatildeo ou contracccedilatildeo numa uacutenica perspectiva em-

piacuterica que cobre uma multiplicidade de ocorrecircncias ou instacircncias mneacutesicas

Poreacutem esta descriccedilatildeo eacute demasiado vaga e apaga a peculiaridade da modificaccedilatildeo em

causa Ou seja natildeo permite perceber bem que eacute que eacute proacuteprio da μνήμη e o que eacute que eacute proacute-

prio da ἐμπειρία Uma batida pelo corpus aristotelicum mostraraacute mais claramente de que mo-

do isto natildeo deixa perceber o que eacute proacuteprio da μνήμη e o que eacute que eacute proacuteprio da ἐμπειρία

Em Anal Post 99b38 Aristoacuteteles faz passar a μυήμη por uma persistecircncia da αϊσθη-

σις Isto indica que quando o acto da percepccedilatildeo finda algo ainda eacute retido dele Assim a μυή-

μη natildeo se deteacutem ou natildeo se ateacutem exclusivamente agrave αϊσθησις Neste ldquofazer perdurarrdquo ou na re-

tenccedilatildeo estaacute como vimos na secccedilatildeo anterior a marca da distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave mera αϊσθησις

Acontece que em 100a1 e eacute isso que nos interessa no seguimento considerar Aristoacute-

teles nota que a eventual repeticcedilatildeo da retenccedilatildeo gera notiacutecias de coerecircncia na persistecircncia

Ora poderia pensar-se a partir daqui que as percepccedilotildees gerariam por si ou a partir

de si mesmas solidariedades e que na reiteraccedilatildeo perceptiva por reincidecircncia ou repeticcedilatildeo

(ie na μνήμη) estaria a base do isolamento dos ldquomesmosrdquo conteuacutedos

Um ldquoobjectordquo seria entatildeo nesta perspectiva algo como um miacutenimo denominador co-

mum entre percepccedilotildees que acumulando-se e sobrepondo-se deixariam ver coincidecircncias nos

conteuacutedos percebidos e iniciariam um processo de isolamento de caracteres que por verifi-

caccedilatildeo ou confirmaccedilatildeo viriam a ser de cada vez caracteres do ldquomesmordquo

Acontece que uma tal operaccedilatildeo parece exceder em muito a natureza das percepccedilotildees

Se se compreender como vimos atraacutes a percepccedilatildeo como um fluxo ndash um fluxo no qual

haveraacute uma constante renovaccedilatildeo do que a cada momento constitui o quadro perceptivo ndash en-

tatildeo tudo apareceria a cada momento sob aspectos irreconciliaacuteveis entre si (ie cada ldquocoisardquo

apareceria de cada vez em diferentes pontos espaciais do quadro perceptivo seria vista a par-

60

tir de acircngulos que revelariam facetas originais dela seria posta em relaccedilatildeo com a totalidade de

um quadro que teria tambeacutem a cada vez uma composiccedilatildeo inteiramente nova e poria os conteuacute-

dos em relaccedilotildees novas entre si etc)

A retenccedilatildeo natildeo poderia servir de muito a retenccedilatildeo ou acumulaccedilatildeo natildeo adicionaria agrave

αϊσθησις senatildeo uma variaccedilatildeo de quantidade natildeo modificaria a forma apenas abrangeria mais

distribuindo essa diferenciaccedilatildeo numeacuterica por assim dizer ao longo do tempo ndash ie assente jaacute

numa noccedilatildeo miacutenima de sucessatildeo Em suma seria a retenccedilatildeo apenas a acumulaccedilatildeo de percep-

ccedilotildees radicalmente diferentes entre si de percepccedilotildees de cada vez originais singulares e novas

Isto leva-nos ainda a um segundo ponto que pode ser visto com toda a nitidez lem-

brando o seguinte num mundo ldquonominalistardquo pura e simplesmente natildeo haveria qualquer ἐμ-

πειρία

A ἐμπειρία tem que ver com comunidade entre percepccedilotildees ndash com comunidade entre as

diferentes instacircncias de μονὴ τοῦ αἰσθήματος A experiecircncia parece corresponder a uma opera-

ccedilatildeo de identificaccedilatildeo de homogeneidade entre os diversos conteuacutedos perceptivos A ἐμπειρία

passa em suma por uma multiplicidade de instacircncias do ldquomesmordquo nas memoacuterias que se tecircm

nela estaacute em causa o acto de pocircr identidade onde havia diversidade perceptiva etc

Com efeito vendo bem jaacute pode haver uma ldquocondensaccedilatildeordquo (contracccedilatildeo de uma multi-

plicidade de memoacuterias em algo de uno) no proacuteprio plano da memoacuteria

Na verdade eacute justamente isso que tende a acontecer ndash eacute essa a forma ldquonaturalrdquo de me-

moacuteria em noacutes Se considerarmos as memoacuterias que temos desta sala ou na nossa infacircncia por

exemplo damo-nos conta que natildeo tecircm a forma correspondente agrave sua sucessatildeo real (o primei-

ro momento de memoacuteria da sala o segundo momento de memoacuteria da sala o terceiro momen-

to de memoacuteria da sala etc) Acontece pelo contraacuterio que a nossa relaccedilatildeo com essa multipli-

cidade de memoacuterias se faz a partir de um nuacutecleo uacutenico (de uma unidade) que se caracteriza

pela propriedade de se multiplicar ou se resolver a partir de si mesma numa multiplicidade

de instacircncias que partem dela ndash e que se caracterizam precisamente pelo facto de a unidade

remeter para mais do que aquilo que de cada vez jaacute consigo seguir

O que estamos a tentar sublinhar eacute o facto de a identidade do ldquomesmordquo parecer ga-

rantida agrave revelia da retenccedilatildeo da diversidade perceptiva que constituiria a μυήμη estamos a

chamar atenccedilatildeo para o facto de a retenccedilatildeo da diversidade perceptiva natildeo resultar em diversi-

dade absoluta

61

Se fosse uma operaccedilatildeo meramente mneacutesica entatildeo agrave retenccedilatildeo da variaccedilatildeo do quadro

perceptivo sucederia a variedade absoluta do percebido A memoacuteria corresponderia entatildeo agrave

retenccedilatildeo da diversidade Mas natildeo eacute isso que se passa

O que se passa eacute que em simultacircneo com a diversidade perceptiva (e com a conse-

quente retenccedilatildeo da diversidade perceptiva) estaacute constituiacutedo algo que inibe a diversidade ab-

soluta e que pelo contraacuterio fixa identidade

A diversidade perceptiva eacute na verdade tal como estamos constituiacutedos diversidade do

ldquomesmordquo (ie deixa ver algo de diferente de cada vez mas de cada vez eacute sempre jaacute do

ldquomesmordquo) Ou seja a fixaccedilatildeo da memoacuteria do ldquomesmordquo (a memoacuteria da sala por exemplo) jaacute

implica um ldquomesmordquo constituiacutedo enquanto tal (ou seja enquanto identidade)

O que isto quer dizer eacute que memoacuteria e experiecircncia colaboram o ldquomesmordquo e a diversi-

dade das ocorrecircncias do ldquomesmordquo concorrem constituindo-se simultaneamente e em depen-

decircncia muacutetua as diversas ocorrecircncias satildeo do ldquomesmordquo e eacute o fundamento de um ldquomesmordquo

que propicia ou resulta na diversidade de ocorrecircncias (na constituiccedilatildeo de diversos instantes

de uma identidade)21

21

Esta eacute uma chave possiacutevel para compreender o ponto do corpus aristotelicum em que eacute dito que um

percebido individual logo que eacute tido eacute um primeiro instante da presenccedila de um universal (Anal Post

100a15) Natildeo interessa entrar aqui muito a fundo nesta questatildeo mas interessa apenas salientar o se-

guinte Como vimos se encerrada no seu proacuteprio territoacuterio toda a αἴσθησις seria radicalmente original

individual etc No entanto como vimos tambeacutem natildeo eacute assim que a vemos Quer dizer por um lado

ela eacute em si mesma radicalmente individual Poreacutem por outro lado o nosso ponto de vista natildeo a vecirc na

sua radical individualidade Na verdade tal como o temos a partir do nosso ponto de vista toda a per-

cepccedilatildeo e todo o campo perceptivo satildeo integralmente compostos de um conjunto de ldquomesmosrdquo em rein-

cidecircncia ndash isso que neste passo tem o caraacutecter de universal (de identidade abstraiacuteda de cada uma das

suas ocorrecircncias) Ora o que isto quer dizer eacute que haacute uma imediata contemporaneidade de αἴσθησις e

ἐμπειρία A tese de Aristoacuteteles poderia admitir uma leitura temporal de tal modo que a αἴσθησις teria

precedecircncia ou seria um acontecimento anterior do qual a ἐμπειρία seria um desenvolvimento poste-

rior e sofisticado Mas natildeo eacute isso que se passa num ponto de vista constituiacutedo no plano empiacuterico Um

ponto de vista constituiacutedo no plano empiacuterico natildeo acede a uma qualquer αἴσθησις sem instantaneamente

introduzir um universal Assim se fizermos uma sondagem pela sala de trabalho encontramos vaacuterios

tipos de identidade formados deste modo (livros estantes canetas etc) ndash tanto eacute assim que natildeo nos eacute

possiacutevel abstrair o campo visual das identidades que laacute encontramos e que constituem o conteuacutedo do

aparecimento Isto eacute natildeo se tem notiacutecia da percepccedilatildeo enquanto mero exerciacutecio mas sempre jaacute como

exerciacutecio transitivo de trazer algo ndash e trazer algo com caraacutecter de universal ndash agrave percepccedilatildeo Eacute isso que

quer dizer no sentido em que aqui compreendemos o fenoacutemeno o acto da αϊσθησις envolver o univer-

sal fazemos uma sondagem pelo campo visual e para retomar o exemplo de Aristoacuteteles vemos Cal-

lias Mas se em qualquer caso natildeo se reconhecer esse homem ainda assim vemos uma outra identida-

62

Neste passo eacute importante vincar vaacuterios aspectos

A unidade que acabamos de referir constitui-se a partir de uma travessia perceptiva ndash

como depoacutesito e resultado dela Mas formou-se justamente algo que jaacute natildeo eacute a travessia per-

ceptiva (ou a simples transcriccedilatildeo mneacutesica da travessia perceptiva) formou-se uma perspecti-

va condensada ndash uma unidade

Essa unidade tomou o lugar por assim dizer da sucessatildeo mneacutesica de que resultou ndash de

tal modo que a relaccedilotildees se invertem na sua origem esteve a proacutepria sucessatildeo perceptiva (sc a

acumulaccedilatildeo mneacutesica) que deu lugar agrave unidade em causa mas uma vez formada a unidade eacute

a unidade que toma precedecircncia (no caso eacute a unidade que leva agraves diferentes instacircncias de

memoacuteria que potildee em contacto com elas que tem um caraacutecter como que ldquomultiplicativordquo e

potildee a partir de si as muacuteltiplas memoacuterias)

Em suma parece haver uma uacutenica ldquomemoacuteriardquo (geral ou agregadora) da sala que even-

tualmente se desdobra em muacuteltiplas ocorrecircncias perceptivas (e eventualmente em muacuteltiplas

ocorrecircncias mneacutesicas) a sala quando anoitece a sala no dia x agraves tantas horas a sala no dia em

que laacute se deu o acontecimento tal etc

Assim a recuperaccedilatildeo de cada uma das incidecircncias perceptivas particulares da sala de

uma dada travessia perceptiva natildeo seria o mero resultado de se ldquoreverrdquo a incidecircncia percepti-

va em causa sem mais mas estaria jaacute atravessada por uma ldquoexperiecircnciardquo da sala (por uma

memoacuteria geral da sala se assim se pode dizer uma memoacuteria contraiacuteda ou constituiacuteda a partir

de todas as memoacuterias) constituiacuteda a partir da reincidecircncia perceptiva e da qual a incidecircncia

perceptiva recuperada constitui um desdobramento especiacutefico

Isto eacute aliaacutes extensiacutevel agrave percepccedilatildeo

Ainda que todas as percepccedilotildees natildeo actuais estejam jaacute perdidas (sejam precisamente ti-

das como percepccedilotildees natildeo-actuais) eou estejam a caminho da perda total a perda perceptiva

natildeo eacute vivida como perda Parece ser possiacutevel recuperar (ou presentificar) uma dada percep-

ccedilatildeo Acontece que essa recuperaccedilatildeo (essa presentificaccedilatildeo da percepccedilatildeo tida) parece ter como

condiccedilatildeo um quadro ou um nuacutecleo geral do qual a percepccedilatildeo eacute secundaacuteria ou derivada

A recuperaccedilatildeo de uma percepccedilatildeo particular implicaria em primeiro lugar a memoacuteria

unificada disso e soacute a partir da base dessa memoacuteria unificada eacute que a percepccedilatildeo particular

de universal (um homem) ou se estiver tatildeo longe que natildeo se consiga identificar sequer uma forma hu-

mana ainda assim vemos identidades universais uma linha uma mancha etc

63

poderia ter lugar ndash precisamente como particularidade ou especificidade da memoacuteria unifica-

da que a possibilita que por sua vez eacute jaacute especificaccedilatildeo de uma ἐμπειρία (de uma ldquomemoacuteria

geralrdquo)

Assim a percepccedilatildeo particular que num dado momento apareceu na sua integridade

maacutexima natildeo eacute se se tentar reaver a sua integridade (se se tentar rever a percepccedilatildeo ela mes-

ma sem mais) recuperada senatildeo como aquilo que transporta os detalhes (as particularida-

des as especificidades etc) de uma memoacuteria geral (ie de algo constitutivamente natildeo per-

ceptivo)

Com tudo isto fica claro que transformaccedilatildeo estaacute em causa na transposiccedilatildeo entre o pa-

tamar da memoacuteria e o patamar da experiecircncia a origem de uma experiecircncia parece estabele-

cer-se na correspondecircncia entre a pluralidade de retenccedilotildees e uma siacutentese do ldquomesmordquo

Ora neste ponto natildeo devemos perder de vista o seguinte

Na medida em que a experiecircncia natildeo eacute um acontecimento singular algo que esteja

possibilitado por uma uacutenica ocorrecircncia (mas eacute pelo contraacuterio algo que tem como condiccedilatildeo

muacuteltiplas ocorrecircncias e na medida em que dessas ocorrecircncias que satildeo entre si diacutespares ou

ateacute eventualmente contraditoacuterias se forma um conteuacutedo agregador) entatildeo natildeo podemos dei-

xar de notar que o conteuacutedo agregador que assim se obteacutem eacute produzido por abstracccedilatildeo das di-

ferenccedilas Quer dizer a sala eacute abstraiacuteda do anoitecer disso que era no dia x agraves tantas horas do

que era quando se deu o acontecimento tal etc

Podemos dizecirc-lo assim a memoacuteria geral da sala que de cada vez tenho assenta prin-

cipalmente em traccedilos gerais

Isto parece contrariar o modo como tendemos a compreender habitualmente a expe-

riecircncia a experiecircncia natildeo parece ser na acepccedilatildeo que temos aqui em jogo a progressiva espe-

cificaccedilatildeo de ldquoobjectordquo tido mas o processo da progressiva generalizaccedilatildeo dele ndash generaliza-

ccedilatildeo que tem por resultado a contracccedilatildeo do ldquoobjectordquo em caracteres nucleares

Assim o que interessa desde jaacute estabelecer eacute que a experiecircncia parece atirar os casos

particulares para uma posiccedilatildeo perifeacuterica assim reforccedilando os caracteres constantes ou estaacute-

veis

Isto eacute claro se tentar recuperar cada uma das percepccedilotildees e das memoacuterias da sala ape-

sar de termos uma ldquomemoacuteria geralrdquo da sala eacute-nos impossiacutevel reconstituir cada um dos aces-

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sos perceptivos ou mneacutesicos das muacuteltiplas incidecircncias dela A custo conseguimos recuperar

algumas determinaccedilotildees particulares

Mais a especificidade de cada ocorrecircncia no acesso agrave sala empobrece a cada ocorrecircn-

cia acrescentada ndash ie as percepccedilotildees ou memoacuterias de cada acesso singular agrave sala perdem-se

ou diluem-se na memoacuteria geral (ie na experiecircncia) da sala

Pocircr tudo isto em evidecircncia eacute fazer ao mesmo tempo duas coisas

Por um lado eacute chamar a atenccedilatildeo para o facto de que a mera contraposiccedilatildeo entre a

multiplicidade (de memoacuterias) e uma unidade (que as condensa) natildeo eacute ainda suficiente para

identificar o que eacute proacuteprio da ἐμπειρία ndash tanto assim que jaacute haacute operaccedilotildees de unificaccedilatildeo na

proacutepria esfera da memoacuteria

Por outro lado eacute chamar atenccedilatildeo para facto de que o que eacute decisivo para identificar o

que eacute proacuteprio da ἐμπειρία natildeo eacute o caso de a muacuteltiplas memoacuterias do mesmo corresponder algo

de uno mas sim uma forma especiacutefica de constituiccedilatildeo dessa unidade ou uma forma especiacutefica

de condensaccedilatildeo A questatildeo estaacute portanto em saber que forma especiacutefica eacute essa

sect10

A transgressatildeo do dado e a produccedilatildeo de fixaccedilotildees de estados-de-coisas permanentes

Comecemos por notar o seguinte seria possiacutevel que todo o processo que se estaacute a des-

crever resultasse de uma variaccedilatildeo de quantidade Quer dizer poderia dar-se o caso de que a

partir de um nuacutemero x de ocorrecircncias de αϊσθησις se obtivesse μυήμη e a partir de um nuacutemero

de ocorrecircncias x de μυήμη se obtivesse έμπειρία Nesse caso a transiccedilatildeo entre etapas estaria

condicionada pelo cumprimento de factores numeacutericos e logo que se congregasse uma quan-

tidade determinada o salto entre etapas seria automaacutetico

Poreacutem o que parece ser decisivo nesta transposiccedilatildeo natildeo eacute o nuacutemero de ocorrecircncias

mas a identificaccedilatildeo formal das ocorrecircncias numa unidade ndash de um nuacutemero indeterminado de

ocorrecircncias de αϊσθησις (natildeo parecendo decisivo que sejam duas ou mil) obteacutem-se uma μυήμη

e de um nuacutemero indeterminado de ocorrecircncias de μυήμη uma έμπειρία

65

A ser assim o foco da experiecircncia natildeo estaacute na acumulaccedilatildeo na quantidade no haver

mais ou menos etc a experiecircncia parece ser uma questatildeo de qualidade Eacute a forma ndash que re-

sume a multiplicidade numa unidade ndash o que parece garantir que haacute uma mudanccedila de estado

Ora a pista para encontrar a resposta agrave pergunta pela forma especiacutefica de constituiccedilatildeo

de unidade que eacute proacutepria da ἐμπειρία situa-se na proacutepria indicaccedilatildeo dada por Aristoacuteteles

quando fala de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος enquanto condiccedilatildeo de possibilidade da

ἐμπειρία

Vendo bem se considerarmos o que caracteriza as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος

de que em regra dispomos verificamos que estas tecircm um caraacutecter entrecortado22

Se considerarmos as ldquocoisasrdquo mais banais e mais proacuteximas (a casa o local de trabalho

os parentes as pessoas conhecidas a sala etc) verifica-se que tecircm uma presenccedila descontiacute-

nua interrompida por periacuteodos mais curtos ou mais longos em que pura e simplesmente natildeo

figuram (em que natildeo haacute qualquer αἴσθησις delas ndash e portanto tambeacutem natildeo haacute qualquer me-

moacuteria)

Isto eacute se analisarmos a histoacuteria perceptiva apuramos que de quase tudo soacute tivemos

percepccedilotildees descontiacutenuas intervaladas pela presenccedila de outras coisas a que datildeo lugar As di-

ferentes ocorrecircncias disso a que Aristoacuteteles chama τοῦ αὐτοῦ πράγμα vatildeo e vecircm ndash um pouco

como personagens que entram e saem de um palco onde muitas vezes (sc muito ndash ou ateacute a

maior parte ndash do tempo) natildeo aparecem

Poreacutem ao considerar o modo como as compreendemos chama desde logo a atenccedilatildeo o

facto de que natildeo as tomamos por realidades que se constituem quando me aparecem (por

realidades que se constituiacuteram de cada vez que me apareceram) ou por realidades que se

desvanecem quando desaparecem (por realidades que se desfizeram de cada vez que deixaacute-

mos de ter percepccedilatildeo delas) ndash de sorte que pura e simplesmente natildeo satildeo enquanto natildeo temos

qualquer percepccedilatildeo delas (ou que natildeo ldquoforamrdquo nos periacuteodos em que natildeo figuram na nossa

memoacuteria)

Em vez disso compreendecircmo-las como realidades ininterruptas realidades que conti-

nuaram a ldquoestar laacuterdquo mesmo que natildeo me tenham aparecido mais ainda temos a decidida e

22

Natildeo se discute aqui se porventura haacute algum elemento das memoacuterias que temos que seja contiacutenuo (se

haacute alguma sensaccedilatildeo ou ateacute sensaccedilotildees que se distingam pelo seu caraacutecter incessante contiacutenuo etc) O

que de qualquer modo podemos compreender eacute que a haver constituem uma excepccedilatildeo

66

firme convicccedilatildeo ndash mais propriamente temos o que se pode descrever como a plena evidecircncia

ndash de que serem realidades ininterruptas natildeo sofre duacutevidas que eacute absolutamente assim etc

A perspectiva em que assim nos encontramos distingue-se por uma peculiar relaccedilatildeo

com a μνήμη

Por um lado vem dela tem nela a sua fonte etc A evidecircncia de que as realidades em

causa ldquoestatildeo laacuterdquo mesmo nos periacuteodos natildeo cobertos pelas minhas πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ

πράγματος resulta das sensaccedilotildees e das memoacuterias que tivemos daquilo que se desenha entre

elas do nexo de concordacircncia que sustentam entre si etc Poderiacuteamos dizecirc-lo de outro modo

a perspectiva que temos sobre a forma como as realidades em causa ldquoestatildeo laacuterdquo mesmo quando

natildeo haacute percepccedilatildeo delas e ldquoestiveram laacuterdquo no tempo que natildeo se acha coberto pelas minhas me-

moacuterias procede da referida condensaccedilatildeo das muacuteltiplas memoacuterias numa perspectiva uacutenica de

sinopse a seu respeito

Poreacutem sendo assim a verdade eacute que essa perspectiva que temos sobre as realidades

que ldquoestatildeo laacuterdquo mesmo quando se acham ndash ou que ldquoestavam laacuterdquo na altura em que se achavam ndash

ldquofora de cenardquo excede muito significativamente aquilo de que efectivamente tivemos percep-

ccedilatildeo (e portanto aquilo de que temos memoacuteria)

Por outras palavras a perspectiva que surge como evidente para noacutes de modo nenhum

se ateacutem agravequilo de que tivemos percepccedilatildeo e temos memoacuteria distingue-se por transgredir todos

os dados disponiacuteveis e produzir fixaccedilotildees a respeito daquilo que se situa para laacute da percepccedilatildeo

ou da memoacuteria

Vendo bem esta transgressatildeo do dado comporta vaacuterios momentos

Em primeiro lugar a transgressatildeo do dado preenche o intervalo entre as πολλαὶ μνῆμαι

τοῦ αὐτοῦ πράγματος de que dispomos e completa a respectiva seacuterie tornando-a assim numa

seacuterie contiacutenua ou sem lacunas Nesse sentido potildee laacute algo muito diferente do entrecortado das

memoacuterias qualquer coisa como um estado-de-coisas permanente Ou seja o que a experiecircn-

cia promove eacute um brutal alargamento

Os conteuacutedos tidos projectam-se sobre os muacuteltiplos intervalos de falta de acesso co-

mo se os abarcassem privilegiando os componentes constantes dos vaacuterios instantes de acesso

a um objecto Haacute uma associaccedilatildeo discreta que prolonga a uacuteltima percepccedilatildeo ateacute agrave percepccedilatildeo

actual e que gera um viacutenculo de continuidade Por um lado o acesso daacute-se de forma entrecor-

tada ou intermitente por outro lado no entanto temos uma noccedilatildeo de um acompanhamento

integral

67

Isto eacute assim porque eacute acrescentado agraves percepccedilotildees tidas um operador de propagaccedilatildeo ndash

as caracteriacutesticas que se recolhem passam a abranger toda a seacuterie de percepccedilotildees possiacuteveis co-

mo se o tempo da ausecircncia (o tempo em que natildeo ouve percepccedilatildeo) correspondesse a um con-

junto de percepccedilotildees em potecircncia que cada um de noacutes por via da falta episoacutedica de acesso a

isso natildeo actualizou mas que sabe muito bem a que eacute que corresponderia se laacute tivesse estado

Em suma adicionam-se claacuteusulas de estabilidade ou de consistecircncia

Isto natildeo eacute apenas formal ndash tem tambeacutem consequecircncias ao niacutevel do conteuacutedo

Que haacute algo como uma antecipaccedilatildeo da continuidade tambeacutem a niacutevel do conteuacutedo eacute

claro se se considerar por exemplo o ldquochoquerdquo que se sente no regresso agrave sala depois de vin-

te anos de ausecircncia por exemplo O ldquochoquerdquo corresponde agrave diferenccedila ou agrave falta de coinci-

decircncia entre o conteuacutedo da projecccedilatildeo (que se estendia indefinidamente) e o conteuacutedo da per-

cepccedilatildeo actual

O que o ldquochoquerdquo mostra eacute que mesmo que a esse conteuacutedo tiveacutessemos adicionado o

factor da modificaccedilatildeo (a modificaccedilatildeo que a passagem de vinte anos provoca em algueacutem ou

em alguma coisa) isso natildeo nos iliba do ldquochoquerdquo porque apesar de tudo entre um e outro

instante de acesso valiam como permanentes as caracteriacutesticas verificadas na uacuteltima ocor-

recircncia ou o produto da sinopse das vaacuterias ocorrecircncias (a memoacuteria geral)

Mas e em segundo lugar a perspectiva que temos adoptada prolonga esse estado-de-

coisas permanente mesmo para laacute da primeira percepccedilatildeo que tivemos dele (ou seja para laacute

do primeiro momento da sequecircncia de memoacuterias)

Na verdade natildeo se vecirc a realidade em causa como algo que se constituiu no momento

em que dela se teve o primeiro testemunho perceptivo mas como algo que jaacute era antes de nos

aparecer

Daacute-se este fenoacutemeno peculiar antes da percepccedilatildeo de um dado ldquoobjectordquo poderiacuteamos

natildeo ter qualquer notiacutecia da existecircncia dele mas acontece que logo que se acede a ele se o faz

natildeo como a algo que a percepccedilatildeo pusesse pela primeira vez a ser mas como a algo que tem

existecircncia para laacute da primeira percepccedilatildeo dele (como a algo que tem uma existecircncia preacutevia)

Assim tambeacutem a uacuteltima percepccedilatildeo de um dado ldquoobjectordquo natildeo o relega para a inexis-

tecircncia Acede-se a ele natildeo como a algo que a uacuteltima percepccedilatildeo pusesse pela uacuteltima vez a ser

mas como algo que tem uma existecircncia posterior agrave uacuteltima percepccedilatildeo que se tiver dele

68

Com efeito a perspectiva de evidecircncia que em noacutes domina natildeo se caracteriza apenas

por preencher os intervalos das πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος ou por prolongar a respec-

tiva evidecircncia para laacute do comeccedilo da seacuterie de memoacuterias Distingue-se tambeacutem pelo facto de

antecipar a continuaccedilatildeo da realidade em causa para laacute da uacuteltima apresentaccedilatildeo que dela se

teve ndash e mesmo para laacute do presente em direcccedilatildeo a um futuro ainda a haver

Assim se ao olhar para o que quer que seja (cuja doaccedilatildeo perceptiva nunca vai e natildeo

pode ir para laacute do presente) isso se desvanecer diante dos nossos olhos ficamos perplexos

E ficamos perplexos justamente na medida em que a perspectiva em que estamos em-

barcados avanccedila de cada vez para laacute do presente em que estaacute ndash em antecipaccedilotildees daquele que

lhe sucede (mais precisamente em antecipaccedilotildees que prescrevem a subsistecircncia do mesmo es-

tado-de-coisas permanente daquele que foi ldquopostordquo nos intervalos entre as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ

αὐτοῦ πράγματος e eacute prolongado para traacutes do comeccedilo da sequecircncia de memoacuterias) ndash no tempo a

vir

Ora esta primeira pista em relaccedilatildeo agravequilo que constituiraacute a ἐμπειρία ndash enquanto a ἐμ-

πειρία eacute mais do que a mera acumulaccedilatildeo de memoacuterias ndash permite perceber que tambeacutem na ἐμ-

πειρία haacute uma unidade proveniente da acumulaccedilatildeo de memoacuterias ndash uma unidade que se substi-

tui agrave sucessatildeo de memoacuterias que lhe deu origem de tal modo que o contacto com essa suces-

satildeo das memoacuterias passa a estar mediado por essa unidade

Mas acontece que diferentemente do que sucede com a unidade mneacutesica a unidade

empiacuterica (a μία δύναμις da ἐμπειρία) natildeo se limita a pocircr a partir de si a multiplicidade das

memoacuterias de um dado estado-de-coisas Na verdade a unidade empiacuterica tem um caraacutecter tal

que a multiplicidade que potildee a partir de si excede multiplamente aquela que constitui a sua

base E isto de tal modo que o que eacute especificamente empiacuterico eacute precisamente o excesso ou a

ultrapassagem da base percep-tiva ou da base mneacutesica

Tocamos um ponto essencial em virtude do qual o que de facto constitui a ἐμπειρία eacute

muito diferente do que espontaneamente associamos ao conceito

A ἐμπειρία tende a ser associada agraves noccedilotildees de doaccedilatildeo de travessia perceptiva de apu-

ramento por via de uma travessia perceptiva (de uma multiplicidade de doaccedilotildees que mos-

tram) etc E como vimos atraacutes esta associaccedilatildeo natildeo eacute completamente desprovida de funda-

mento a ἐμπειρία natildeo eacute possiacutevel sem doaccedilatildeo sem travessia perceptiva sem a preservaccedilatildeo

mneacutesica da travessia perceptiva etc

69

Poreacutem ndash e este eacute o ponto que agora deve merecer atenccedilatildeo ndash contrariamente ao que po-

de parecer a ἐμπειρία tambeacutem natildeo eacute possiacutevel se soacute houver doaccedilatildeo travessia perceptiva e

preservaccedilatildeo mneacutesica da travessia perceptiva

Quer dizer a ἐμπειρία natildeo eacute possiacutevel num ponto de vista que se atenha estritamente agrave

travessia perceptiva (sc agrave doaccedilatildeo de que dispotildee) Para o dizer de forma incisiva um ponto

de vista que se atenha estritamente agrave doaccedilatildeo de que efectivamente dispotildee eacute ndash e soacute pode ser ndash

um ponto de vista mneacutesico

Isto eacute a ἐμπειρία propriamente dita comeccedila onde se excede a esfera do dado ndash onde se

produzem fixaccedilotildees sobre aquilo de que natildeo se teve αἴσθησις e de que natildeo haacute μνήμη Em su-

ma o terreno disso de que natildeo houve percepccedilatildeo nem haacute memoacuteria eacute propriamente o terreno

da ἐμπειρία (sc das fixaccedilotildees empiacutericas) A experiecircncia comeccedila com a transgressatildeo do dado

ndash pura e simplesmente natildeo haveria sem tal transgressatildeo

Trata-se de uma transgressatildeo que parte de doaccedilotildees (que as invoca que se sente fun-

dada nelas que as encara como suficientes para justificar a transgressatildeo em que a ἐμπειρία

propriamente consiste etc) Mas isso em nada altera o facto de se tratar de transgressotildees ndash

que fixam ou estatuem sobre algo de que natildeo houve percepccedilatildeo nem haacute memoacuteria

Ora tudo isto potildee vaacuterios problemas que importa focar numa anaacutelise um pouco mais

detida

sect11

O caraacutecter de evidecircncia o encobrimento da projecccedilatildeo empiacuterica atraveacutes da fixaccedilatildeo de uma

lei

Um primeiro aspecto a ter em conta eacute o da natureza peculiar da μία δύναμις empiacuterica

que se potildee no lugar das muacuteltiplas μνῆμαι do ponto de vista mneacutesico ndash e acrescentamos tam-

beacutem daquilo a que se pode chamar ldquoverdade mneacutesicardquo

O que caracteriza a ἐμπειρία eacute que a unidade empiacuterica (a peculiar forma de condensa-

ccedilatildeo na posse de algo de uacutenico que potildee em si e a partir de si uma multiplicidade de momentos)

natildeo se resolve somente na multiplicidade de percepccedilotildees do que haacute memoacuteria mas em vez dis-

so resolve-se numa seacuterie contiacutenua que abrange essas percepccedilotildees (sc memoacuterias) e muito mais

do que elas

70

Quer dizer a fixaccedilatildeo empiacuterica potildee algo que se traduz tanto a) nas percepccedilotildees ou nas

memoacuterias correspondentes aos momentos de tempo em que algo apareceu no curso da histoacute-

ria perceptiva (nos momentos de tempo t1 t2 t3 t34 t35 t37 t57 t283 t284 t286 t287

t390 t2526 t2527 t2528 t2529 t253 t2730 etc) quanto se traduz b) em pocircr essa realidade

em causa numa sequecircncia contiacutenua (que vai para laacute do primeiro contacto com essa realidade

que natildeo se interrompe quando se suspender o contacto com ela e que deveraacute continuar tam-

beacutem no tempo a vir)

Nesse sentido pode-se falar de qualquer coisa como um estado-de-coisas-permanente

ndash que por ter a determinaccedilatildeo da permanecircncia implica em si tanto as instacircncias de si que fo-

ram testemunhadas no curso da histoacuteria perceptiva quanto aquelas que natildeo o foram

Ora o que de facto acontece eacute que tanto aquelas que foram testemunhadas no curso da

histoacuteria perceptiva quanto aquelas que natildeo o foram ficam equiparadas ndash ie a partir do mo-

mento em que se acha produzida a fixaccedilatildeo do estado-de-coisas permanente (disso que eacute mui-

to mais do que as doaccedilotildees que dele dispomos ou do que aqueles momentos de si que corres-

pondem agraves doaccedilotildees) os momentos testemunhados estatildeo tatildeo implicados nas determinaccedilotildees de

permanecircncia e satildeo vistos como estando tatildeo ldquolaacuterdquo (como sendo tatildeo reais e devendo ser tatildeo re-

conhecidos) como aqueles de que houve testemunho perceptivo e haacute testemunho mneacutesico

Ou seja a diferenccedila entre uns e os outros torna-se secundaacuteria ndash e o facto de ter ou natildeo

havido testemunho perceptivo passa a ser visto como algo por assim dizer adjectivo em rela-

ccedilatildeo agrave proacutepria permanecircncia ou ao estado-de-coisas permanente que se acha reconhecido

Haacute em suma algo como um testemunho natildeo-presencial Isso fica claro se nos pergun-

tarem num momento em que natildeo estejamos laacute se a nossa casa existe a resposta surgiraacute pe-

remptoacuteria e sem hesitaccedilatildeo

Isto potildee-nos na pista de um aspecto nuclear que apesar de natildeo ser posto em destaque

por Aristoacuteteles estaacute na verdade no centro deste excesso da ἐμπειρία sobre a μνήμη e eacute o fac-

tor de diferenccedila entre a forma de unidade-que-potildee-a-multiplicidade que tambeacutem haacute na esfera

da μνήμη e a unidade-que-potildee-a-multiplicidade proacutepria da ἐμπει-ρία O factor a que agora se

alude jaacute foi assinalado en passant mas neste passo interessa consideraacute-lo melhor

O factor eacute o seguinte vendo bem o que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία ndash o que leva a

pocircr aquilo de que natildeo se tem nenhum testemunho perceptivo ndash eacute qualquer coisa como uma

evidecircncia

71

Ainda que esteja fundada nas ocorrecircncias perceptivas (nas πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ

πράγματος) eacute somente porque se apresenta como evidecircncia que consegue impor o alarga-

mento (que consegue operar a passagem para laacute das ocorrecircncias perceptivas) tambeacutem eacute so-

mente porque se trata de uma evidecircncia que esse arredondamento tem a amplitude de que se

falou a forccedila da evidecircncia a respeito do estado-de-coisas-permanente eacute suficiente para pocircr a

proacutepria permanecircncia (que se instala justamente como evidente etc)

Eacute tambeacutem porque se trata de uma evidecircncia que o que eacute posto apenas por projecccedilatildeo (o

que natildeo pertence ao patrimoacutenio das πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος antes o excede) fica

equiparado agraves μνῆμαι ndash isto de tal modo que a diferenccedila entre os momentos efectivamente tes-

temunhados e aqueles que natildeo foram efectivamente testemunhados perde peso ndash e a equipara-

ccedilatildeo a que aqui se alude tem o seu rasto apagado resultando no ldquomaciccedilordquo do estado-de-coisas

permanente (maciccedilo entenda-se em que natildeo estaacute claramente marcado o que pertence ao cam-

po do efectivamente dado e o que pertence ao campo do projectado ndash campo que eacute convertido

em quase-dado em como-que-dado pe-la forccedila desta mesma evidecircncia)

Ora se procurarmos compreender qual eacute a forma desta evidecircncia e o que lhe permite

exercer as funccedilotildees a que eacute chamada na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία o que verificamos eacute que a

evidecircncia em causa tem a forma de um ldquoter-de-serrdquo

Este ldquoter-de-serrdquo eacute o que encontramos se pusermos em causa a projecccedilatildeo empiacuterica (se

tocarmos o facto de natildeo se ter senatildeo uma base de doaccedilatildeo entrecortada e de na verdade ser

possiacutevel que a ldquocoisardquo natildeo esteja laacute nos momentos em que natildeo foi perceptivamente testemu-

nhada ou em que natildeo beneficiou de qualquer doaccedilatildeo) Com efeito se suscitarmos este proble-

ma ou se aventarmos esta possibilidade impotildee-se-nos a evidecircncia de que as nossas πολλαὶ

μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος satildeo suficientes para mostrar o estado-de-coisas-permanente em

questatildeo

Que ldquotem de ser assimrdquo quer dizer se haacute uma sequecircncia de repetidos testemunhos

perceptivos (sc mneacutesicos) de algo essa sequecircncia significa ndash e soacute pode significar ie signi-

fica necessariamente ndash que haacute um estado-de-coisas permanente O motor da ἐμπειρία eacute esta

evidecircncia de um ter-de-ser a evidecircncia de que aquilo que estaacute testemunhado por πολλαὶ μνῆ-

μαι tem de ser um estado-de-coisas-permanente

Percebe-se a partir daqui um ponto que tambeacutem natildeo estaacute expressamente sublinhado

por Aristoacuteteles mas que de facto estaacute no centro dos fenoacutemenos para que aponta a noccedilatildeo de

ἐμπειρία De facto este eacute um factor fundamental da passagem a um ponto de vista empiacuterico e

72

da completaccedilatildeo do dado (que eacute igualmente como vimos uma antecipaccedilatildeo) ndash um factor sem o

qual natildeo haacute ἐμπειρία

Esse ponto pode ser expresso dizendo que a projecccedilatildeo empiacuterica tem no seu fulcro esta

evidecircncia de necessidade (esta evidecircncia de natildeo-poder-ser-de-outro-modo) e possui assim a

forma de uma lei

Dizer isto natildeo significa de maneira nenhuma dizer que a ἐμπειρία tem um conceito ex-

pliacutecito de ldquoleirdquo que reconhece o papel desta lei na sua proacutepria constituiccedilatildeo etc Eacute tatildeo pouco

assim que a ἐμπειρία tende a compreender-se como mero registo como verificaccedilatildeo ou como

constataccedilatildeo de dados

Mas o que acontece eacute que o que assim se apresenta como registo verificaccedilatildeo ou cons-

tataccedilatildeo do dado (constituiacutedo por pura travessia perceptiva etc) natildeo seria nada do que eacute se natildeo

houvesse transgressatildeo do dado se essa transgressatildeo natildeo tivesse como motor a evidecircncia

transgressora que se referiu e se essa evidecircncia natildeo assumisse a forma de uma evidecircncia de

natildeo-poder-ser-de-outro-modo ndash se natildeo possuiacutesse portanto neste sentido a forma de uma lei

sect12

A mudanccedila da matriz do reconhecimento da realidade produzida pela ἐμπειρία a fixaccedilatildeo

da ldquonaturezardquo do que aparece e a operaccedilatildeo de desconfinamento da perspectiva para tota-

lidades muito para laacute do que de cada vez se tem dado

Este ponto eacute decisivo porque ele mostra se assim se pode dizer a radical mudanccedila de

ldquoparadigmardquo ou a mudanccedila de matriz que separa a μνήμη da ἐμπειρία

O que agrave primeira vista mais chama a atenccedilatildeo eacute a diferenccedila de amplitude a ἐμπειρία

salta das ldquopartesrdquo ndash e ateacute de umas poucas partes ndash correspondentes agraves πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐ-

τοῦ πράγματος para uma totalidade (sc para totalidades) que as excedem em muito Pode

mesmo dizer-se que o correlato da ἐμπειρία ndash que aquilo que a ἐμπειρία potildee ndash satildeo sempre

totalidades

Por outro lado importa perceber que natildeo se trata pura e simplesmente de totalidades

com um modo de ser no fundamental idecircntico agravequele que jaacute tinham as partes (ainda natildeo tidas

como partes das totalidades empiacutericas) da μνήμη Na verdade haacute uma mudanccedila de modo-de-

ser Esta mudanccedila tem com que ver com a entrada em cena do modo-de-ser do regulado (ie

73

daquilo que estaacute sujeito a uma regra mais a uma regra que eacute vista como natildeo podendo natildeo

ser ndash ie a qualquer coisa como uma lei)

Reavaliemos a partir deste acircngulo o que se viu

Se considerarmos o que caracteriza a μνήμη enquanto tal e o modo-de-ser daquilo que

lhe aparece (o modo-de-ser daquilo que tem de aparecer enquanto a μνήμη for apenas μνή-

μη) o que verificamos eacute que tem um caraacutecter totalmente aberto Que num momento apareccedila A

eacute algo que absolutamente nada diz sobre o que apareceraacute na sequecircncia do momento em

questatildeo

A realidade puramente mneacutesica eacute intrinsecamente proteiforme pode inflectir agrave vonta-

de eacute inteiramente variaacutevel natildeo haacute na μνήμη nada que contenha ou contrarie a possibilidade

de variaccedilatildeo Quer dizer no caso da μνήμη se haacute variaccedilatildeo haacute variaccedilatildeo se natildeo haacute variaccedilatildeo

natildeo haacute variaccedilatildeo

O fundamental eacute que cada instacircncia de variaccedilatildeo ou natildeo variaccedilatildeo soacute diz respeito a si

mesma nada potildee para laacute de si ndash e o que quer que seja para laacute de si manteacutem-se inteiramente

livre em relaccedilatildeo ao que vai sendo posto ou registado na travessia perceptiva (sc na travessia

mneacutesica) Poderiacuteamos dizer em suma que a pura μνήμη eacute inteiramente faacutectica

Ora o que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία eacute precisamente a entrada em cena da regulaccedilatildeo

(sc da prescriccedilatildeo)

O caso de em dado momento ser assim e de num outro momento voltar a ser assim e

de num terceiro momento voltar a ser assim ndash e assim sucessivamente ndash assume um significa-

do para laacute do momento em questatildeo ndash regula fixa prescreve para laacute deles E regula fixa

prescreve para laacute deles de tal modo que essa regulaccedilatildeo fixaccedilatildeo prescriccedilatildeo tem a forccedila de soacute-

poder-ser-assim (sc natildeo-poder-ser-de-outro-modo) ndash tudo isto de tal forma que eacute essa forma

(a forma do ter-de-ser-assim ou do natildeo-poder-ser-de-outro-modo ie a forma da lei) que

sustenta a extraordinaacuteria amplitude da projecccedilatildeo empiacuterica

O que isto significa eacute como dissemos uma mudanccedila do modo-de-ser uma mudanccedila

da matriz do proacuteprio reconhecimento da realidade ndash ou como tambeacutem podemos dizer uma

mudanccedila do ldquoquecircrdquo

Tal como a diferenccedila entre a αἴσθησις e a μνήμη tambeacutem a diferenccedila entre a μνήμη e a

ἐμπειρία eacute uma diferenccedila da proacutepria forma da proacutepria determinaccedilatildeo fundamental do que apa-

rece

74

O que estaacute em causa na transiccedilatildeo de um ponto de vista puramente esteacutesico para um

ponto de vista mneacutesico eacute natildeo apenas uma mudanccedila de modo de acesso mas eacute mais exacta-

mente uma mudanccedila de modo de acesso que envolve tambeacutem uma mudanccedila no proacuteprio teor

do ldquoquecircrdquo (do ldquoquecircrdquo de cada ponto de vista correlativo agrave proacutepria finitude do acircngulo desse pon-

to de vista)

Algo de semelhante se passa na transiccedilatildeo do ponto de vista mneacutesico para o ponto de

vista empiacuterico

Se eacute certo que a μνήμη envolve uma significativa aproximaccedilatildeo agrave forma como vemos

ou ao teor daquilo que vemos (se deixa de se estar fechado no oximoro ou instante absoluto

se haacute reconhecimento etc) por outro lado natildeo deixa de corresponder a um ldquoquecircrdquo fechado

no presente e no passado (e sem qualquer abertura para um tempo a haver) fechado na histoacute-

ria perceptiva (sem qualquer abertura para o que quer que seja para laacute dela) e para aleacutem dis-

so fechado na total ausecircncia de qualquer regra que obrigue aquilo que se passa

A ἐμπειρία traz consigo algo completamente desconhecido na oacuteptica da μνήμη traz a

realidade na forma de realidade regulada

Ou seja traz o estado-de-coisas permanente cuja permanecircncia se acha constituiacuteda

justamente natildeo apenas por uma verificaccedilatildeo faacutectica de que eacute (aquela que haveria se αἴσθησις e

μνήμη fossem ininterruptas contiacutenuas etc) mas por algo muito diferente a saber a regra en-

quanto tal a lei

E o que caracteriza a ἐμπειρία eacute precisamente a adopccedilatildeo deste modelo justamente co-

mo regra fundamental da realidade (algo que soacute aparece e soacute pode aparecer no modo do

acesso excessivo relativamente ao proacuteprio dado que eacute o modo da ἐμπειρία) aquilo que apare-

ce estaacute globalmente sujeito agrave condiccedilatildeo de ser regulado (regulado deste ou daquele modo

com estes e aqueles conteuacutedos de regulaccedilatildeo etc)

Agrave primeira vista isto pode parecer estranho ndash e pode parecer estranho em virtude de

uma insuficiente captaccedilatildeo do que estaacute em causa quando se fala em estados-de-coisas-perma-

nentes e dos estados-de-coisas-permanentes como sendo o correlato da ἐμπειρία

Com efeito a noccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes presta-se ndash e na verdade tende

ndash a ser entendida como se dissesse respeito a realidades subsistentes (que natildeo se vatildeo que fi-

cam pelo menos algum tempo etc) como se isso fosse o que estaacute em causa quando se fala

de permanecircncia (e portanto fosse isso que estaacute em causa na ἐμπειρία)

75

Ora a ser assim a ἐμπειρία natildeo se aplicaria ao tipo de realidades que tecircm o caraacutecter

de acontecimentos que natildeo subsistem e que ao caso de terem lugar mais ou menos imediata-

mente se segue o deixarem de ser

Vejamos este problema considerando justamente as realidades que se caracterizam

pela sua impermanecircncia um som que se faz ouvir um espirro etc

Analisemos como reagiriacuteamos se porventura sucedesse que um som se tornasse per-

manente e ficasse como ficam as mesas e as cadeiras ou se algo semelhante sucedesse com

um espirro e este se convertesse em qualquer coisa de contiacutenuo ndash que natildeo deixa a breve tre-

cho de ser

Um aspecto importante do que sucederia nessas circunstacircncias eacute a surpresa ndash o espan-

to ndash que isso natildeo deixaria de suscitar Esse espanto documenta uma perspectiva levada aleacutem

do que eacute proacuteprio da μνήμη

Um ponto de vista puramente mneacutesico natildeo teria condiccedilotildees para se espantar se as

mesas ou as cadeiras subitamente desaparecessem ndash da mesma forma que natildeo teria condiccedilotildees

para se espantar se os sons ou se os espirros se tornassem permanentes Isto porque um ponto

de vista mneacutesico se cinge a uma verificaccedilatildeo do que lhe ocorre e eacute completamente desprovido

de qualquer componente de projecccedilatildeo daquilo que jaacute estaacute dado na histoacuteria perceptiva para

aquilo que ainda vem

Semelhante projecccedilatildeo eacute como temos visto ao longo desta secccedilatildeo caracteriacutestica da ἐμ-

πειρία

Um ponto de vista puramente mneacutesico natildeo faz mais do que registar o que lhe aparece

sem qualquer perspectiva da relaccedilatildeo ao que quer que seja para laacute do dado No momento em

que se produz uma doaccedilatildeo ela natildeo se vem inscrever em qualquer expectativa resultante de

doaccedilotildees jaacute havidas (as diferentes instacircncias ou os diferentes momentos de doaccedilatildeo nada ldquodi-

zemrdquo para laacute de si mesmos satildeo completamente mudos em relaccedilatildeo a esse para-laacute-de-si etc)

Por isso num ponto de vista puramente mneacutesico natildeo haacute lugar para qualquer surpresa ou pa-

ra qualquer espanto

Assim o facto de nos espantarmos se um som ou se um espirro se tornassem perma-

nentes radica numa projecccedilatildeo para laacute do dado ndash uma projecccedilatildeo que ocorre tanto no caso de

coisas subsistentes (cuja natildeo subsistecircncia espanta) quanto no caso de coisas natildeo-subsisten-

tes (cuja subsistecircncia espanta igualmente)

76

Nos dois casos o que permite o espanto eacute o mesmo fenoacutemeno a percepccedilatildeo que gera

espanto natildeo se daacute sozinha Sucede em vez disso que a percepccedilatildeo se vem inscrever numa ope-

raccedilatildeo em que ao mesmo tempo actua uma projecccedilatildeo decorrente das percepccedilotildees de que haacute

memoacuteria (que natildeo se perderam nessa forma que corresponde ao ponto de vista esteacutesico) e que

fixa jaacute antecipadamente como a nova percepccedilatildeo deve ser (o curso que a continuaccedilatildeo da histoacute-

ria perceptiva deve seguir)

Por outras palavras tanto num caso como no outro haacute espanto porque a) haacute projecccedilatildeo

e porque b) o conteuacutedo da percepccedilatildeo (sc das percepccedilotildees) que tem (ou tecircm) lugar natildeo satisfa-

zem a projecccedilatildeo (ie natildeo concorda com ela) Caso contraacuterio natildeo nos poderiacuteamos surpreender

se aquilo que outrora tive natildeo se viesse a confirmar no futuro se por exemplo a sala natildeo ti-

vesse continuidade na casa mas se abrisse a uma praia ou a um deserto logo que saiacutessemos a

porta

Mais ainda vendo bem nos dois casos natildeo haacute apenas alguma projecccedilatildeo (como se no

entanto a projecccedilatildeo em causa em cada um dos casos fosse diferente quanto agrave natureza) De

facto nos dois casos haacute uma projecccedilatildeo do mesmo tipo

Por um lado estaacute em causa a homogeneidade em relaccedilatildeo agraves instacircncias perceptivas jaacute

decorridas (quer dizer em relaccedilatildeo ao que se registou na histoacuteria perceptiva e na histoacuteria mneacute-

sica) Por outro a forma da projecccedilatildeo eacute exactamente a mesma tem que ver com uma evidecircn-

cia de natildeo-poder-ser-de-outro-modo (ou seja tem a forma da lei)

O espanto que se produziria por igual nos dois casos decorre justamente de a pro-

jecccedilatildeo em causa ter este caraacutecter e retira a sua intensidade do facto de tanto o suacutebito desapare-

cimento de uma realidade que se presume ser persistente quanto a permanecircncia de uma reali-

dade que se presume evanescente contrariarem uma fixaccedilatildeo com forma de lei (uma projecccedilatildeo

ndash que eacute uma mera projecccedilatildeo mas parece ser muito mais do que isso)

Este eacute um ponto decisivo em que natildeo eacute demais insistir ainda que o que esteja em cau-

sa nos dois casos sejam dados opostos (permanecircncia e impermanecircncia) do ponto de vista for-

mal o que os caracteriza eacute exactamente o mesmo natildeo-congruecircncia com uma antecipaccedilatildeo que

se revestia da pretensatildeo de corresponder a um natildeo-poder-ser-de-outro-modo (e nesse senti-

do a uma lei)

Tudo isto faz compreender melhor o que estaacute efectivamente em causa quando se fala

de estados-de-coisas-permanentes como correlatos da ἐμπειρία O objecto da ἐμπειρία tem

sempre o caraacutecter de um estado-de-coisas-permanente tal como a realidade posta pela ἐμπει-

77

ρία eacute uma realidade feita de estados-de-coisas-permanentes E se virmos bem natildeo acontece

de maneira nenhuma que haja um estado-de-coisas permanente no caso das mesas das cadei-

ras ou de outras realidades de tipo subsistente e no caso dos sons ou dos espirros suceda o

contraacuterio Haacute um estado-de-coisas-permanente nos dois casos o estado-de-coisas permanente

segundo o qual as cadeiras as mesas etc devem subsistir e o estado-de-coisas permanente

segundo o qual os sons os espirros etc devem dei-xar-de-ser a breve trecho

Por outras palavras o estado-de-coisas permanente em causa na ἐμπειρία natildeo eacute o da

subsistecircncia das realidades (porque como vimos tambeacutem pode ser a insubsistecircncia) o esta-

do-de-coisas-permanente em causa na ἐμπειρία eacute a proacutepria instacircncia reguladora (a instacircncia

correspondente agrave projecccedilatildeo empiacuterica com forma de lei) que determina que as realidades de

um tipo devam ter sempre determinadas caracteriacutesticas (caracteriacutesticas que podem ser tanto

de subsistecircncia quanto de insubsistecircncia)

Com tudo isto desenha-se com maior nitidez o que se disse sobre a diferenccedila entre a

matriz de reconhecimento (reconhecimento daquilo que aparece) que eacute proacutepria da μνήμη e a

matriz de reconhecimento que eacute proacutepria da ἐμπειρία

Ora independentemente das questotildees que teriam de ser levantadas e consideradas para

fundar e precisar a afirmaccedilatildeo que se segue (questotildees que natildeo cabe aqui considerar) pode-se

dizer que o correlato da ἐμπειρία eacute justamente isso que estaacute em causa quando numa palavra

se fala de ldquonaturezardquo

O ponto de vista mneacutesico tem se assim se pode dizer um grau nulo de natureza Por

contraste o que caracteriza o ponto de vista empiacuterico eacute natildeo apenas introduzir o quadro de de-

terminaccedilatildeo que se traduz no conceito mas tambeacutem o facto de produzir globalmente a molda-

gem de tudo aquilo que aparece com a forma do complexo de estado-de-coisas-permanentes

que estaacute em causa quando se fala de natureza

Percebe-se a partir daqui como a ἐμπειρία constitui o que podemos descrever como

uma extraordinaacuteria operaccedilatildeo de desconfinamento (ou de ldquodomesticaccedilatildeordquo) de campos de rea-

lidade

Considerando a esfera de apresentaccedilatildeo coberta pela memoacuteria verificamos que tem o

caraacutecter dum ldquotuacutenelrdquo A histoacuteria perceptiva cobre campos perceptivos de amplitude que eacute

sempre relativamente restrita e que se somam uns aos outros ndash na forma da sucessatildeo

Poreacutem a ἐμπειρία natildeo apenas junta esses campos perceptivos uns aos outros no mesmo

tempo (mais em todos e cada um dos instantes da sucessatildeo temporal) como cobre os hiatos

78

ou as lacunas e continua a projecccedilatildeo para laacute da mera estabilizaccedilatildeo (como estados-de-coisas

permanentes) dos campos efectivamente percepcionados

Pois a projecccedilatildeo de ldquomais homogeacuteneordquo (isso que a tiacutetulo de exemplo Galeno nomeou

τοῦ ὁμοίου μετάβασις)23

estende-se para laacute do proacuteprio territoacuterio do que alguma vez foi objec-

to de percepccedilatildeo na ante-cipaccedilatildeo de que nestes ou naqueles aspectos (nota bene nestes ou

naqueles aspectos fundamentais) seraacute semelhante agravequilo de que jaacute se teve percepccedilatildeo Essa

projecccedilatildeo faz mesmo que a consciecircncia de limitaccedilatildeo perceptiva natildeo se veja como uma ldquocla-

reirardquo rodeada de um ldquomarrdquo de incoacutegnita

Numa palavra a ἐμπειρία consiste numa extraordinaacuteria operaccedilatildeo de ldquoamostragemrdquo ndash

de transformaccedilatildeo por via da projecccedilatildeo empiacuterica do territoacuterio perceptivo desbravado com di-

mensotildees de facto bastante reduzidas num terreno incomparavelmente mais vasto de realidade

desbravada (domesticada dominada etc)

Na verdade natildeo eacute exagero falar de um ldquosaltordquo de uma multiplicidade bi-dimensional

para uma multiplicidade tridimensional No plano cognitivo (da dimensatildeo da realidade rdquodes-

bravadardquo) a ἐμπειρία junta algo de equivalente ao acrescento da ldquoterceira dimensatildeordquo ndash e isto

de tal modo que por outro lado este salto justamente aparece como tal

Pois como vimos o que caracteriza a constituiccedilatildeo da ἐμπειρία eacute o facto de a projec-

ccedilatildeo natildeo se dar a conhecer como tal ser tatildeo eficaz ou tatildeo evidente (ter tanto daquilo que estaacute

em causa quando se fala de ldquoleirdquo) que equipara os momentos efectivamente perceptivos e os

momentos projectados (o dado e o natildeo-dado) apaga o rasto da proacutepria projecccedilatildeo (da opera-

ccedilatildeo de amostragem etc) e constitui um terreno aparentemente homogeacuteneo em que a diferen-

ccedila entre o propriamente dado e aquilo que eacute posto por projecccedilatildeo empiacuterica estaacute completamen-

te apagada

Eacute a este terreno alargado que constantemente nos reportamos

E o facto de natildeo nos vermos fechados no ldquotuacutenelrdquo mneacutesico e estarmos antes num cam-

po de realidade com uma amplitude muito mais forccedilada radica justamente nas caracteriacutesticas

desta operaccedilatildeo de extraordinaacuteria transgressatildeo do propriamente dado que eacute a ἐμπειρία

Estas breves consideraccedilotildees potildeem-nos na pista de outro aspecto igualmente essencial

23

Deichgraumlber K Die griechische Empirikerschule Sammlung der Fragmente und Darstellung der

Lehre Berlin Weidmannsche Buchhandlung 1930 paacuteg 91

79

Vendo bem a projecccedilatildeo empiacuterica tem sempre que ver com uma espeacutecie de completa-

ccedilatildeo do dado

O que isso significa eacute que o terminus ad quem da projecccedilatildeo empiacuterica ndash aquilo que apa-

rece na ἐμπειρία (o que eacute caracteriacutestico que apareccedila na ἐμπειρία) ndash corresponde sempre a tota-

lidades mais precisamente a totalidades muito para laacute do efectivamente dado (a totalidades

de que o dado constitui somente uma pequena parte)

Estamos em condiccedilotildees de analisar melhor este ponto a partir daquilo que jaacute vimos so-

bre os estados-de-coisas-permanentes

Estamos sempre em tensatildeo para o exterior do percebido Apesar de a percepccedilatildeo ser

por natureza limitada (no acircngulo de incidecircncia na amplitude etc) e apesar de a nossa per-

cepccedilatildeo se cingir a um recanto espaacutecio-temporal do ldquomundordquo (e a um recanto muitiacutessimo limi-

tado) a nossa relaccedilatildeo com o ldquomundordquo nunca se circunscreve ao que a percepccedilatildeo apresenta ndash

temos uma notiacutecia mesmo que vaga de uma indefinida continuaccedilatildeo do ldquomundordquo (espacial e

temporal) para laacute do territoacuterio coberto pela nossa percepccedilatildeo

Esse exterior impliacutecito contamina e co-determina o que cai no quadro da percepccedilatildeo na

medida em que o campo coberto pela percepccedilatildeo eacute apenas parte de uma extensatildeo maior natildeo

eacute senatildeo um momento de uma extensatildeo maior

Isto indica-nos que temos uma noccedilatildeo impliacutecita de totalidade quando representamos a

parte (ie o campo efectivamente coberto pela percepccedilatildeo) A referecircncia a uma tal totalidade eacute

o que possibilita que veja a parte como parte A representaccedilatildeo da parte eacute sempre jaacute a do todo

em que se funda em que a parte se constitui etc

Isto indica-nos tambeacutem que aquilo que funda a nossa representaccedilatildeo da parte em que

nos concentramos se projecta homogeneamente sobre a totalidade Tanto quanto se percebe

aquilo que se recolhe na parte ou no segmento que nos cabe tem efeitos sobre a totalidade de

espaccedilo e tempo

Jaacute viramos atraacutes um caso em que a reincidecircncia provoca uma mudanccedila de natureza nos

dados entatildeo estava em causa a exigecircncia de acuidade da percepccedilatildeo Estaacute agora a ser visada

outra consequecircncia intrinsecamente relativa a essa na percepccedilatildeo haacute aquisiccedilatildeo e projecccedilatildeo

ad infinitum de um quantum de continuidade e homogeneidade

Ora as totalidades em que consiste o correlato da ἐμπειρία natildeo satildeo as totalidades dos

estados-de-coisas-permanentes no sentido que primeiramente se sugere

80

Se fosse assim natildeo haveria totalidade no caso das realidades reconhecidas como natildeo-

subsistentes De facto o que eacute decisivo eacute a constituiccedilatildeo de totalidades de modo-de-ser (justa-

mente o que confusamente estaacute em causa quando falamos de ldquonaturezardquo)

O decisivo eacute a constituiccedilatildeo da totalidade da instacircncia reguladora que de cada vez eacute o

motor da projecccedilatildeo empiacuterica e aquilo que a projecccedilatildeo empiacuterica vecirc naquilo que lhe aparece

um horizonte de realidade aberto e presidido por uma regra ou por um modo-de-ser (modo-

de-ser que se multiplica numa pluralidade de instacircncias todas igualmente reguladas por ele

expressatildeo dele etc) No caso das realidades subsistentes a totalidade derivada constituiacuteda

por esta totalidade originaacuteria (de modo-de-ser) e a totalidade correspondente a realidades sub-

sistentes no caso das realidades evanescentes a totalidade deriva da constituiccedilatildeo por esta to-

talidade originaacuteria (a totalidade de modo-de-ser) e a totalidade corresponde a realidades eva-

nescentes etc

Eacute a constituiccedilatildeo destas totalidades que faz a diferenccedila Se ela natildeo se constituiacutesse natildeo

haveria experiecircncia

Se nos ativeacutessemos exclusivamente ao dado (e se o dado soacute a si mesmo dissesse res-

peito) tudo aquilo de que disporia como dado (um dado que se limitaria ao passado e a um

domiacutenio relativamente circunscrito) seria inteiramente mudo a respeito do que se situa fora

da sua esfera Em suma a acumulaccedilatildeo de memoacuterias de nada valeria (de pouco ou nada nos

serviria) para efeitos de orientaccedilatildeo

Tocamos aqui um ponto a que voltaremos na continuaccedilatildeo e que eacute decisivo

O acontecimento de aparecer natildeo eacute um acontecimento sem quaisquer requisitos adi-

cionais ndash constituiacutedo de tal modo que aquilo que aparece natildeo enfrenta qualquer exigecircncia ou

pressatildeo que estaacute ou natildeo em condiccedilotildees de satisfazer Sucede precisamente o contraacuterio

Aquilo que aparece eacute confrontado com o que podemos designar como um conjunto de

quesitos cognitivos (um programa de esclarecimento se assim se pode dizer uma pressatildeo de

interesse) que o que aparece estaacute ou natildeo em condiccedilotildees de satisfazer

Ora esse programa ou esse interesse incide tambeacutem ndash e em certo sentido incide ateacute ndash

sobre o que de cada vez natildeo estaacute a ser dado ou tudo o que ainda natildeo foi dado (como eacute o caso

de tudo quanto se situa no quadrante do futuro) Acontece que αἴσθησις e μνήμη justamente

natildeo bastam para satisfazer esse programa ou esse interesse na medida em que natildeo providenci-

ariam a ldquoinformaccedilatildeordquo de que precisamos

81

A experiecircncia ao abrir a perspectiva para totalidades muito para laacute do que de cada

vez se tem dado natildeo se limita a constituir totalidades com um caraacutecter ldquofacultativordquo

A completaccedilatildeo empiacuterica do dado vem dar satisfaccedilatildeo a uma pressatildeo de esclarecimento

ou a quesitos de orientaccedilatildeo que de outro modo ficariam completamente por satisfazer (de tal

modo que a nossa situaccedilatildeo seria desde logo no plano praacutetico de completa desorientaccedilatildeo)

Eacute este o quadro de fenoacutemenos que permite falar aqui de qualquer coisa como uma do-

mesticaccedilatildeo da experiecircncia (da transgressatildeo do dado que tem no seu centro e sem a qual pura

e simplesmente natildeo tem lugar) como domesticaccedilatildeo do natildeo-dado

Faz sentido falar de domesticaccedilatildeo porque o essencial da operaccedilatildeo em que consiste a

ἐμπειρία eacute uma transferecircncia do que ficou adquirido na travessia perceptiva (e tanto quer di-

zer na ldquoacumulaccedilatildeordquo mneacutesica) ndash e que forma assim o jaacute domeacutestico (a ldquocasardquo da captaccedilatildeo da

realidade de cada vez construiacuteda por via perceptiva) ndash para o campo do que ficou fora ou

ainda estaacute fora da travessia perceptiva

Assim a experiecircncia ldquodomesticardquo o que se manteacutem alheio (alheio ao territoacuterio da per-

cepccedilatildeo) porque potildee nesse exterior aquilo que eacute da ldquocasardquo perceptiva Por essa via converte o

exterior da travessia perceptiva em algo que tambeacutem eacute da ldquocasardquo (que estaacute dominado etc)

ainda antes de haver percepccedilatildeo disso e ateacute mesmo que natildeo chegue a haver qualquer percep-

ccedilatildeo disso

O que isto significa eacute que o acontecimento da ἐμπειρία eacute sempre um acontecimento de

estabelecimento de domiacutenio de soberania de controlo etc ndash um acontecimento de domiacutenio

que se estende ateacute onde natildeo haacute nem houve nada de natureza perceptiva que efectivamente

conquista

sect13

A trama de confirmaccedilotildees e corroboraccedilotildees implicada na ἐμπειρία e os riscos em que con-

tinuamente incorre a projecccedilatildeo empiacuterica

Tudo isto permite finalmente compreender um pouco melhor um ponto decisivo dos

fenoacutemenos em questatildeo ndash ie permite compreender melhor a noccedilatildeo comum de experiecircncia e o

nexo que tem com aquilo que jaacute a anaacutelise de Aristoacuteteles pocircs em evidecircncia como proacuteprio da

82

ἐμπειρία) Este ponto presta-se a equiacutevocos e sempre de novo baralha a noccedilatildeo daquilo de que

se estaacute a falar quando se fala de experiecircncia

Como vimos nas secccedilotildees iniciais a noccedilatildeo de experiecircncia parece ter uma ligaccedilatildeo intriacuten-

seca agrave ideia de doaccedilatildeo (de dado etc) ndash uma ligaccedilatildeo tal que resulta surpreendente que se fale

da experiecircncia como algo que soacute comeccedila com a transgressatildeo do dado (e que aquilo que cons-

titui a experiecircncia tenha de facto uma natureza tal que soacute comeccedila com a transgressatildeo do da-

do) Vimos igualmente que a surpresa resulta em grande parte da proacutepria natureza da projec-

ccedilatildeo empiacuterica ndash da forccedila de evidecircncia de que se reveste (da evidecircncia e da forccedila que equipara o

resultado da projecccedilatildeo a algo dado que faz viver o resultado da projecccedilatildeo como algo dado

etc)

Vendo bem se a ἐμπειρία soacute comeccedila com transgressatildeo do dado (com projecccedilatildeo etc)

essa transgressatildeo ou projecccedilatildeo natildeo pode ocorrer senatildeo sobre a base de uma doaccedilatildeo ndash de uma

doaccedilatildeo com determinadas caracteriacutesticas (uma travessia perceptiva retida em μνήμη com as

caracteriacutesticas daquilo que Aristoacuteteles aponta quando fala de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγμα-

τος etc) Por outras palavras a ἐμπειρία eacute sempre a transformaccedilatildeo de uma travessia percep-

tiva (quer dizer de uma travessia de doaccedilotildees ndash exprime a travessia vive dela etc)

A noccedilatildeo comum de experiecircncia traduz esta compreensatildeo digamos unilateral do que eacute

a ἐμπειρία ndash unilateral porque atende exclusivamente agrave base de doaccedilatildeo e perde de vista a com-

ponente de arredondamento de projecccedilatildeo especiacutefica da ἐμπειρία sem a qual soacute teriacuteamos αἴσ-

θησις e μνήμη

Poreacutem o caso de a experiecircncia juntar conteuacutedos perceptivos como que para suprir

uma lacuna natildeo pode ser tomado como uma medida benigna e natildeo deve levar a pensar que

se limita a fazer isso Na medida em que o faz a experiecircncia modifica os conteuacutedos ndash gera um

conteuacutedo novo completamente autoacutenomo dos dados da percepccedilatildeo e que age sobre a percep-

ccedilatildeo

Isto eacute a experiecircncia estaacute intrinsecamente ligada aos dados da percepccedilatildeo ndash eacute a esses

que reporta e reconduz Mas na medida em que natildeo se ateacutem aos dados da percepccedilatildeo estes

satildeo mera mateacuteria de uma transformaccedilatildeo a experiecircncia gera um processo de abstracccedilatildeo ndash e de

tal modo que na experiecircncia os dados da percepccedilatildeo natildeo estatildeo presentes

Mas haacute ainda um outro aspecto igualmente decisivo

Quando falamos de transgressatildeo do dado falamos de algo que poderia ser bastante di-

ferente disso que se exprime pelo conceito de projecccedilatildeo

83

A transgressatildeo do dado poderia pocircr no campo exterior agrave esfera de doaccedilotildees efectiva-

mente disponiacuteveis algo de completamente exterior a essa esfera que nada tivesse que ver com

o seu teor etc Acontece que natildeo eacute assim

A ἐμπειρία eacute essencialmente ἐμπειρία do dado Eacute-o desde logo porque parte do dado

mas tambeacutem o eacute porque aquilo a que leva na transgressatildeo dele natildeo eacute outra coisa senatildeo o

proacuteprio ldquoconteuacutedordquo do dado A operaccedilatildeo da ἐμπειρία eacute uma operaccedilatildeo de expansatildeo (de multi-

plicaccedilatildeo se assim se pode dizer) do dado muito para laacute do restrito acircmbito em que houve tes-

temunho dele

Eacute justamente nesta medida que se pode dizer que ainda que o acontecimento da ἐμπει-

ρία seja sempre um acontecimento de estabelecimento de domiacutenio de soberania de controlo

etc na verdade se trata de uma conquista ldquovirtualrdquo ndash uma conquista que a forccedila da evidecircncia

proacutepria da ἐμπειρία equipara como vimos agrave conquista perceptiva (e ao ponto de como tam-

beacutem vimos fazer desaparecer o rasto dessa equiparaccedilatildeo e da diferenccedila entre o que for con-

quista ldquorealrdquo e o que se manteacutem puramente virtual nessa conquista) mas que natildeo conquista

efectivamente isso que pretende ter conquistado

A todos estes aspectos ndash que decorrem ao mesmo tempo das indicaccedilotildees dadas por

Aristoacuteteles e de uma tentativa de anaacutelise dos fenoacutemenos para que apontam ndash vem juntar-se um

outro que natildeo se acha expressamente referido por Aristoacuteteles mas que faz parte integrante dos

fenoacutemenos em causa Esse aspecto tem que ver com aquilo a que se pode chamar a trama de

conexotildees ndash e de confirmaccedilotildees ou corroboraccedilotildees ndash que estaacute implicada na ἐμπειρία

Vejamos um pouco melhor do que se trata

Como vimos se soacute houvesse acumulaccedilatildeo mneacutesica cada momento da doaccedilatildeo soacute a si

mesmo diria respeito ndash ou de todo o modo natildeo diria respeito a quaisquer outros momentos da

histoacuteria perceptiva na forma de antecipaccedilatildeo ou de prescriccedilatildeo do que neles deve ocorrer

Ora o que caracteriza a ἐμπειρία eacute justamente o facto de constituir um complexo de

prescriccedilotildees ndash de tal modo que cada percepccedilatildeo vem tomar lugar num quadro onde jaacute se acha

prescrito por projecccedilatildeo empiacuterica pelo menos uma parte do que se deve ou natildeo deve encon-

trar nela

Isso significa como oportunamente se indicou que natildeo haacute apenas percepccedilotildees (num

contexto soacute preenchido por elas mesmas) as percepccedilotildees que vatildeo ocorrendo encontram-se

com antecipaccedilotildees empiacutericas que vecircm confirmar ou infirmar (e tanto quer dizer que podem

em parte confirmar em parte infirmar etc)

84

Se a percepccedilatildeo infirma a antecipaccedilatildeo empiacuterica potildee-se um problema de validade das

assunccedilotildees empiacutericas ndash que acaba por ser decidido em funccedilatildeo da continuaccedilatildeo da travessia per-

ceptiva e da forma como esta confirma ou a antecipaccedilatildeo empiacuterica ou a que decorre do novo

ldquomaterial perceptivordquo A aquisiccedilatildeo de um ponto de vista empiacuterico em que uma vez constituiacute-

do esse ponto de vista nada seja desprovido de significado empiacuterico ndash de tal modo que cada

percepccedilatildeo natildeo se limita a ser confrontada com um quadro de percepccedilotildees empiacutericas jaacute consti-

tuiacutedas ndash tem ela mesma um caraacutecter tal que se natildeo concorda com essas projecccedilotildees traz a su-

gestatildeo de uma nova projecccedilatildeo empiacuterica (conforme com o seu conteuacutedo e oposta agraves projec-

ccedilotildees empiacutericas anteriormente em vigor)

Se pelo contraacuterio uma nova percepccedilatildeo congrui com a projecccedilatildeo empiacuterica a que se

vem juntar entatildeo confirma-a ndash quer dizer confirma a forccedila da proacutepria ἐμπειρία confirma o

bom fundamento da projecccedilatildeo empiacuterica a evidecircncia de que se reveste etc

Ora isto daacute uma nova dimensatildeo agravequilo que vimos sobre esta mateacuteria ndash e que agora se

apresenta como insuficiente ou unilateral

Em mateacuteria de evidecircncia a projecccedilatildeo empiacuterica natildeo se apoia apenas numa evidecircncia

original do ter-de-ser (natildeo-poder-ser-de-outro-modo etc) a que anteriormente foi feita refe-

recircncia Sucede em vez disso que a evidecircncia da projecccedilatildeo empiacuterica se vecirc reforccedilada pela con-

firmaccedilatildeo por parte dos domiacutenios de percepccedilotildees sobre que recai

Do que vimos resulta que as projecccedilotildees empiacutericas na verdade excedem sempre o

presente em que de cada vez nos encontramos e onde de cada vez acaba o material perceptivo

efectivamente disponiacutevel Por outras palavras haacute sempre mais ndash e muito mais ndash projecccedilotildees

empiacutericas do que percepccedilatildeo

Poreacutem isso natildeo impede que a percepccedilatildeo que de cada vez vem entre em cena como al-

go antecedido por uma prescriccedilatildeo empiacuterica e ao congruir com ela natildeo apenas reforce a pro-

jecccedilatildeo empiacuterica especificamente em causa mas para aleacutem dela reforce a proacutepria forccedila da

projecccedilatildeo empiacuterica enquanto tal (e tanto quer dizer justamente aquilo que faz com que nem

sequer apareccedila como projecccedilatildeo mas como muito mais do que isso como algo absolutamente

adquirido como algo de certo modo dado etc)

Assim em vez de formar um mero aglomerado de percepccedilotildees retidas em memoacuteria a

apresentaccedilatildeo de que a ἐμπειρία dispotildee tem o caraacutecter de uma ldquomalhardquo ou de um ldquoprocessordquo

com os diferentes momentos da travessia perceptiva atados uns aos outros e envolvidos numa

espeacutecie de silenciosa transacccedilatildeo entre os vaacuterios momentos

85

Isto eacute as diversas αἰσθήσεις ldquodizemrdquo umas sobre as outras actuam umas sobre as ou-

tras de tal modo que haacute como que uma acccedilatildeo reciacuteproca (satildeo ao mesmo tempo condicionantes

e condicionados de tal modo que nenhum se aguenta por si mesmo e em vez disso sucede

que cada um estaacute de peacute em virtude do que lhe vem dos outros etc)

Isto traduz-se num outro fenoacutemeno que eacute discreto mas tem um papel importante na

constituiccedilatildeo das fixaccedilotildees empiacutericas

Mesmo que natildeo chame a atenccedilatildeo o processo habitual de montagem da ἐμπειρία envol-

ve qualquer coisa como um crescendo contiacutenuo de corroboraccedilatildeo de tal modo que a proacutepria

continuaccedilatildeo do ldquoprocessordquo (a continuaccedilatildeo do funcionamento da ldquotramardquo empiacuterica) traz con-

sigo qualquer coisa como uma cada vez maior confianccedila na ndash ou uma cada vez maior forccedila

da ndash projecccedilatildeo empiacuterica24

24

Estas consideraccedilotildees permitem-nos enfrentar uma dificuldade que se poderia antever Eacute que tal

como a temos visto poderia entender-se da tese de Aristoacuteteles que tanto a crianccedila como o velho satildeo

experientes Na verdade a experiecircncia de que fala Aristoacuteteles natildeo eacute algo que parece adquirir-se no fim

de um processo extenso (se com isso se supuser uma extensatildeo longa) tal como a vimos a έμπειρία po-

de ser produzida em qualquer quantidade de amplitude ou de extensatildeo Se de facto a έμπειρία se pro-

duz com as cambiantes que temos visto entatildeo o lance da έμπειρία natildeo eacute um lance que se atrase ou se

adie para o mais tarde possiacutevel (assim se ganhando em consistecircncia) mas eacute sempre um lance precoce

(que acontece mais cedo do que tarde por assim dizer) Quer dizer a crianccedila tambeacutem tem έμπειρία ndash

tem έμπειρία logo que esteja produzida esta contracccedilatildeo Poreacutem a consideraccedilatildeo de que uma crianccedila jaacute eacute

portadora de έμπειρία parece estar em contradiccedilatildeo com uma tese que Aristoacuteteles defende por exemplo

na Eacutetica a Nicoacutemaco Num passo afirma que um jovem natildeo eacute experiente e que eacute preciso muito tempo

para ter experiecircncia (1142a12ss) Enfrentemos esta dificuldade fazendo notar que a noccedilatildeo de έμπειρία

que Aristoacuteteles aplica neste passo parece sofrer um desdobramento o desdobramento por que passa na

abertura dum nexo com a φρόνησις A φρόνησις concerne como fica claro no passo citado agraves situa-

ccedilotildees praacuteticas particulares em que cada um de cada vez se encontra situaccedilotildees que implicam um conhe-

cimento praacutetico assente em sageza ou em prudecircncia Assim agrave luz do que vimos ainda agora a declara-

ccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser lida do seguinte modo natildeo eacute que os jovens tenham experiecircncia zero ndash pelo

que se viu natildeo haacute qualquer razatildeo para que um jovem natildeo tenha έμπειρία O que os jovens natildeo tecircm eacute

por um lado o tipo de experiecircncia especiacutefica que implica φρόνησις O que Aristoacuteteles faz ao fazer co-

incidir os termos έμπειρία e φρόνησις eacute uma qualificaccedilatildeo ou um desdobramento do que indica por έμ-

πειρία dando a entender que na vida praacutetica a έμπειρία equivale a φρόνησις e natildeo havendo φρόνησις

a έμπειρία natildeo tem utilidade praacutetica ou natildeo produz resultados sensatos e sagazes A inexperiecircncia

juvenil a que Aristoacuteteles alude corresponde agrave insensatez ou agrave imprudecircncia juvenil (Ret 1395a2) ndash

em qualquer caso ao ainda natildeo ter cumprido todos os requisitos necessaacuterios quaisquer que sejam agrave

aquisiccedilatildeo de φρόνησις (Acerca das diferenccedilas entre os jovens e os anciotildees ver Ret 1389a5 e

1389b15) Isto por um lado Por outro o que Aristoacuteteles mostra ao trazer agrave liccedila o factor ldquotempordquo eacute

acentuar muito claramente que o velho eacute mais experiente que o jovem E tanto quer dizer que com a

passagem do tempo (ie com a variaccedilatildeo da quantidade de tempo de contacto) haacute uma variaccedilatildeo da

86

Agrave primeira vista poderia talvez parecer que natildeo eacute assim ndash isto se se tiver em conta que

natildeo se verifica soacute confirmaccedilatildeo das projecccedilotildees empiacutericas mas tambeacutem pelo menos uma certa

margem de infirmaccedilatildeo delas Ou seja pode parecer que a corroboraccedilatildeo de que se falou eacute

compensada por uma significativa margem de infirmaccedilatildeo em virtude da qual a descriccedilatildeo que

acabaacutemos de fazer eacute unilateral

Importa por isso focar um pouco mais atentamente os fenoacutemenos aqui em causa

Por um lado haacute que ter em conta que as projecccedilotildees empiacutericas que resultam das αισθή-

σεις passadas resultam de uma multiplicidade muito complexa de elementos de afinidade

entre as coisas percepcionadas (e nesse sentido de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος)

Isso tem que ver com o facto que aqui natildeo podemos considerar senatildeo muito breve-

mente de as proacuteprias percepccedilotildees estarem constituiacutedas na forma de totalidades confusas de

determinaccedilotildees formadas de tal modo que se acompanha essas totalidades sem que esse acom-

panhamento signifique uma consciecircncia minimamente diferenciada das determinaccedilotildees que as

compotildeem25

qualidade da experiecircncia ndash e no caso da experiecircncia que diz respeito agraves situaccedilotildees praacuteticas particulares

em que cada um de cada vez se encontra situaccedilotildees que implicam um conhecimento praacutetico etc Quer

dizer com o acumular de tempo de contacto daacute-se um efeito de amplificaccedilatildeo providenciado pelo vo-

lume da corroboraccedilatildeo (ou pelo contraacuterio pelo volume da infirmaccedilatildeo) A noccedilatildeo quotidiana de expe-

riecircncia parece privilegiar precisamente este factor a quantidade da experiecircncia (ter ldquomuitordquo disso ter

passado por muito etc)

25 Eacute isto que estaacute muito precisamente desenhado por Aristoacuteteles nos passos iniciais da Fiacutesica Nesse

passo pode ler-se πέφυκε δὲ ἐκ τῶν γνωριμωτέρων ἡμῖν ἡ ὁδὸς καὶ σαφεστέρων ἐπὶ τὰ σαφέστερα τῇ

φύσει καὶ γνωριμώτερα οὐ γὰρ ταὐτὰ ἡμῖν τε γνώριμα καὶ ἁπλῶς διόπερ ἀνάγκη τὸν τρόπον τοῦτον

προάγειν ἐκ τῶν ἀσαφεστέρων μὲν τῇ φύσει ἡμῖν δὲ σαφεστέρων ἐπὶ τὰ σαφέστερα τῇ φύσει καὶ γνω-

ριμώτερα ἔστι δ ἡμῖν τὸ πρῶτον δῆλα καὶ σαφῆ τὰ συγκεχυμένα μᾶλλον ὕστερον δ ἐκ τούτων γίγνε-

ται γνώριμα τὰ στοιχεῖα καὶ αἱ ἀρχαὶ διαιροῦσι ταῦτα (I I 184a16 e seguintes) Aristoacuteteles estaacute a sa-

lientar dois aspectos O primeiro eacute que haacute algo como uma falta de paridade entre as coisas que satildeo

mais manifestas e claras para noacutes e as coisas que satildeo mais claras e conhecidas por natureza O que

Aristoacuteteles nos mostra eacute que estes dois fenoacutemenos satildeo por um lado momentos distintos na verdade

satildeo momentos opostos (os momentos mais distantes um do outro os pontos que mais radicalmente di-

ferem na perspectiva que tecircm sobre o que haacute para fazer etc) Por outro lado satildeo momentos distintos

de um mesmo caminho ndash isto na medida em que um corresponde ao terminus a quo (ao ponto de parti-

da ao caminho totalmente por percorrer etc) e o outro ao terminus ad quem (ao ponto de chegada

ao caminho totalmente percorrido etc) O caminho em causa eacute como se percebe o caminho da cons-

tituiccedilatildeo do saber Aristoacuteteles procede neste passo agrave identificaccedilatildeo (ou agrave desformalizaccedilatildeo) do grau maacute-

ximo de saber ndash no caso fazendo o grau maacuteximo de saber corresponder a conhecer a natureza das

ldquocoisasrdquo (ie a estar na posse do αἴτιον da αἰτία etc) O segundo aspecto a reter eacute o aspecto da pro-

87

De tudo isto resulta que se considerarmos uma qualquer percepccedilatildeo nova as determi-

naccedilotildees em jogo nela satildeo muacuteltiplas

Sucede que a presenccedila confusa de uma determinaccedilatildeo resulta na projecccedilatildeo confusa

dela ndash e isto de tal modo que quanto mais constante for a determinaccedilatildeo em causa mais natu-

ral seraacute que natildeo chame a atenccedilatildeo (ou seja natildeo haja qualquer consciecircncia distinta dela)

Assim a composiccedilatildeo confusa das αἰσθήσεις (e portanto das μνῆμαι que as retecircm) natildeo

impede que a projecccedilatildeo empiacuterica tambeacutem tenha uma composiccedilatildeo confusa (quer dizer seja a

projecccedilatildeo das afinidades confusamente registadas na travessia empiacuterica)

Por outro lado acontece tambeacutem que satildeo igualmente muacuteltiplas as projecccedilotildees (as ante-

cipaccedilotildees de determinaccedilotildees os feixes de prescriccedilatildeo que sobre ela recaem etc)

Assim em vez de acontecer que a corroboraccedilatildeo ou a infirmaccedilatildeo seja simples sucede

pelo contraacuterio que eacute complexa ndash e mesmo muito complexa (ou seja a ldquomalhardquo ou a transac-

ccedilatildeo entre os diferentes momentos da travessia perceptiva estaacute de cada vez desdobrada em

muitiacutessimos elementos muito numerosos fios muito numerosos fluxos de transacccedilatildeo etc)

Eacute isto que nos permite ver o essencial que eacute preciso ter em vista para se perceber as

caracteriacutesticas da ἐμπειρία comum no funcionamento normal da ἐμπειρία eacute muito maior o vo-

lume de corroboraccedilotildees do que de infirmaccedilotildees ndash haacute algo como uma incriacutevel desproporccedilatildeo ldquoes-

tatiacutesticardquo Mas aleacutem disso mesmo nos casos em que haacute infirmaccedilatildeo a infirmaccedilatildeo diz respeito

a algumas determinaccedilotildees no meio de um maciccedilo de prescriccedilotildees ou de antecipaccedilotildees empiacutericas

amplamente corroboradas

Quer dizer mesmo nos casos em que aparece algo que choca com as projecccedilotildees empiacute-

ricas o choque natildeo diz respeito a todas as determinaccedilotildees mas apenas a algumas ndash e mesmo

neste caso (ou seja mesmo em relaccedilatildeo agraves percepccedilotildees que vecircm ao arrepio da ἐμπειρία) eacute mui-

porcionalidade inversa as coisas mais manifestas e claras para noacutes satildeo as menos manifestas e claras

por natureza (ou como tambeacutem podiacuteamos dizer na sequecircncia do que foi dito atraacutes as coisas mais

transparentes para noacutes satildeo aquelas cuja natureza se revela mais opaca) Na verdade a transformaccedilatildeo

que se daacute pelo caminho (a modificaccedilatildeo no modo-de-ver as coisas) eacute uma transformaccedilatildeo na qualidade

do acesso Implica na verdade uma modificaccedilatildeo de perspectiva tal que o foco deixe de estar nas ldquocoi-

sasrdquo tal como nos aparecem e passe a estar colocado na natureza das coisas Assim ao percorrer o ca-

minho abandona-se a posiccedilatildeo inicial (a posiccedilatildeo em que a natureza das ldquocoisasrdquo eacute menos clara para

noacutes) e passa-se progressivamente a ver melhor o que as ldquocoisasrdquo satildeo por natureza (adquire-se uma

perspectiva em que a natureza das ldquocoisasrdquo eacute mais clara para noacutes em que conhecemos o que as ldquocoi-

sasrdquo efectivamente satildeo o que satildeo em si mesmas qual eacute a causa delas etc) de tal modo que no final

do caminho haacute uma radical inversatildeo de qualidade do acesso agrave natureza das ldquocoisasrdquo

88

to mais o que tecircm de determinaccedilotildees conformes com as projecccedilotildees empiacutericas sobre que se vem

inscrever do que o que tecircm de determinaccedilotildees em conflito com elas

Eacute claro que tem de se ter em conta que a questatildeo natildeo eacute puramente quantitativa antes

depende em larga medida do peso (da relevacircncia ou da importacircncia) das determinaccedilotildees em

causa Mas tambeacutem aiacute se verifica algo de equivalente ao que acabaacutemos de dizer no que diz

respeito agraves determinaccedilotildees mais marcantes eacute muito mais o que costuma haver de continuida-

de e corroboraccedilatildeo do que o contraacuterio

A infirmaccedilatildeo das projecccedilotildees costuma afectar uma porccedilatildeo menor e menos relevante do

ldquoedifiacuteciordquo empiacuterico ndash de tal modo que o conflito tem em regra a forma de algo episoacutedico no

meio de um maciccedilo (um maciccedilo quantitativo entenda-se) e de um patrimoacutenio de fixaccedilotildees fun-

damentais marcado por um bem sucedido funcionamento da ἐμπειρία

Assim se considerarmos as caracteriacutesticas e a estrutura da ἐμπειρία tal como a ela es-

tamos habituados percebemos que estaacute muito longe de corresponder a qualquer coisa como

troccedilos de ἐμπειρία que funcionam de um determinado modo mas de tal forma que a certa al-

tura satildeo interrompidos por infirmaccedilotildees globais que suspendem tudo ndash e datildeo lugar a outros

troccedilos de ἐμπειρία caracterizados por neles vigorarem determinaccedilotildees em contraste com

aquelas que antes dominavam26

26

Pense-se por exemplo em ldquoAlice in Wonderlandrdquo Poderiacuteamos salientar muacuteltiplos aspectos desta

obra mas interessa neste passo destacar apenas os seguintes Em primeiro lugar haacute entre o ldquomundordquo

em que Alice daacute consigo e o ldquomundordquo anterior a esse pontos de continuidade de tal modo que o

ldquomundordquo da ldquoWonderlandrdquo natildeo eacute radicalmente novo Poreacutem aquilo que eacute decisivo e que mais marca

Alice ao entrar nesse ldquomundordquo satildeo os pontos de contraste os animais falantes as caracteriacutesticas pecu-

liares da gravidade enquanto cai na toca do coelho o estranho efeito das poccedilotildees etc Ora por um lado

tudo isso soacute espanta Alice precisamente na medida em que gera contraste e por outro tudo isso soacute ge-

ra contraste na medida em que estaacute contraposto a uma experiecircncia distinta (a um ldquomundordquo distinto)

em curso justamente um ldquomundordquo em que natildeo haacute experiecircncia de animais falantes em que a gravidade

se comporta de uma determinada maneira em que as poccedilotildees natildeo geram modificaccedilotildees radicais de ta-

manho etc ie um ldquomundordquo que eacute em relaccedilatildeo ao anterior um ldquomundordquo novo Em segundo lugar

aquilo que eacute decisivo eacute que a experiecircncia anterior eacute substituiacuteda pela do ldquomundordquo da ldquoWonderlandrdquo to-

mando a experiecircncia da ldquoWonderlandrdquo o lugar de experiecircncia que no curso do momento actual em

que Alice se encontra estaacute a valer Na verdade a experiecircncia da ldquoWonderlandrdquo toma o lugar de expe-

riecircncia-presidente E isto eacute tanto assim que Alice daria por si espantada se as leis da proacutepria ldquoWonder-

landrdquo natildeo se cumprissem (se desse com um animal que natildeo falasse se a poccedilatildeo natildeo gerasse qualquer

modificaccedilatildeo no seu tamanho etc) assim como precisa de se readaptar (de recuperar as leis antigas se

assim se pode dizer) quando por fim desperta do sonho e volta ao regime de experiecircncia anterior

89

No curso normal da ἐμπειρία que costuma ter lugar em noacutes natildeo haacute cortes desse tipo

precisamente por isso faz sentido falar de um ldquocurso normalrdquo Isso mostra a que ponto a his-

toacuteria da ἐμπειρία (a histoacuteria da ἐμπειρία a que cada um de noacutes estaacute habituado) eacute muito mais a

histoacuteria da corroboraccedilatildeo (e portanto da continuidade) com a natildeo-corroboraccedilatildeo ou a des-

continuidade a ter um caraacutecter mais ou menos episoacutedico esparso etc do que o contraacuterio

Mas sendo assim nada disto impede um outro aspecto que tambeacutem resulta da forma

como a ἐμπειρία tem o caraacutecter de um ldquoprocessordquo ndash de algo sempre em curso etc

Se eacute verdade que no seu funcionamento ldquonormalrdquo a ἐμπειρία ldquobate certordquo beneficia

de um reforccedilo constante em crescendo etc natildeo eacute menos verdade que a cada instante sem-

pre de novo eacute posta em causa precisamente porque a cada instante estatildeo de novo em jogo as

suas fixaccedilotildees Ou seja porque envolve projecccedilatildeo (porque prevecirc e porque a cada instante a

previsatildeo estaacute a ser posta agrave prova) a ἐμπειρία estaacute continuamente em causa ou estaacute continua-

mente a arriscar a sua validade

Por contraste com a percepccedilatildeo ndash que se caracteriza por aquele caraacutecter de absoluta e

definitiva aquisiccedilatildeo de que falam os antigos quando dizem que nem os deuses podem dizer

que aquilo que foi natildeo tenha sido ndash a ἐμπειρία eacute algo sempre de novo exposto agrave violabilidade

agrave possibilidade de vir a ser desfeito por mudanccedilas no material perceptivo ndash e na verdade

sempre de novo passa (mesmo que numa margem circunscrita) por mudanccedilas dessa ordem

A fragilidade vem do caso de por exemplo o futuro natildeo confirmar a expectativa tida

sobre ele Recorrendo a um exemplo anterior a fragilidade vem do caso de saindo a porta do

sala natildeo encontrar o que esperava encontrar mas a sala se abrir a uma praia ou a um deserto

Isso marca a possibilidade de um conflito entre o dado que a experiecircncia natildeo tem mas

que apesar de tudo fixa e o dado percebido efectivo com que nos deparamos

A breve sinopse que se levou a cabo nesta secccedilatildeo e que permitiu inventariar algumas

caracteriacutesticas fundamentais da ἐμπειρία natildeo esgota ainda o que haacute para dizer sobre ela

Na verdade o que esteve em jogo nesta secccedilatildeo foi meramente a descontinuidade entre

a ἐμπειρία (enquanto terceiro estaacutedio da escala de possibilidades de acesso desenhada por

Aristoacuteteles) e os estaacutedios que a antecedem Poreacutem segundo o esquema de relaccedilotildees entre os

diversos estaacutedios haacute tambeacutem uma descontinuidade entre a ἐμπειρία e o uacuteltimo estaacutedio da es-

cala (estaacutedio que correspondem τέχνη e ἐπιστήμη)

90

Resta saber como ndash e o esclarecimento deste aspecto constitui tambeacutem como se veraacute

uma componente decisiva natildeo soacute para a compreensatildeo daquilo a que Aristoacuteteles chama ἐμπει-

ρία mas tambeacutem para a compreensatildeo do complexo de fenoacutemenos para que remete este concei-

to e aqui se trata de tentar pocircr a claro

91

CONCLUSAtildeO

sect14

A ἐμπειρία enquanto algo que incide sobre o καθόλου ndash Um elo de conexatildeo entre ἐμπειρία

e γνωμολογία

Com tudo o que tem de esquemaacutetico e fugidio a descriccedilatildeo que tentaacutemos traccedilar nas

secccedilotildees anteriores pretende fixar no fundamental o que a ἐμπειρία tem de proacuteprio ndash ou me-

lhor pretende fixar a forma como a ἐμπειρία avanccedila sobre a μνήμη (e portanto mediatamen-

te sobre a αἴσθησις) e como constitui um ponto de vista empiacuterico (um ponto de vista comple-

tamente diferente dos anteriores)

Ora tudo o que vimos ateacute este ponto sobre a ἐμπειρία corresponde no essencial agrave evi-

denciaccedilatildeo da ἐμπειρία como salto como mais etc ndash ie agrave marcaccedilatildeo da fronteira inferior

Trata-se agora de focar a fronteira superior da ἐμπειρία ndash a sua fronteira com a τέχνηἐπιστήμη

Resulta da anaacutelise que fizemos sobre a estrutura da escala aristoteacutelica que tambeacutem no

caso da ἐμπειρία vale o que eacute caracteriacutestico de cada uma das etapas da escala que se trata de

algo fixado como um intervalo de tal modo que o que a define eacute ao mesmo tempo a) a forma

como se eleva sobre a etapa anterior (quer dizer a fronteira que eacute ao mesmo tempo a fronteira

superior da etapa antecedente e a fronteira inferior da etapa em causa) e b) a forma como fica

aqueacutem da etapa seguinte ou eacute ultrapassada por ela justamente porque deixa espaccedilo para ela

(ou seja a fronteira que eacute ao mesmo tempo a fronteira superior da etapa em causa e a fronteira

inferior da que se segue)

Acontece que uma compreensatildeo da etapa seguinte ndash enquanto a etapa seguinte (ie da

quarta e uacuteltima etapa da escala) diz algo sobre a ἐμπειρία ndash natildeo pode passar por uma anaacutelise

integral da proacutepria τέχνηἐπιστήμη Natildeo soacute isso nos levaria muito longe como ndash e principal-

mente ndash nos obrigaria a desviarmo-nos do propoacutesito de analisar a experiecircncia enquanto tal

Eacute indispensaacutevel contudo seguir detidamente pelo menos alguns aspectos essenciais

daquilo que separa a ἐμπειρία de τέχνηἐπιστήμη E isto na medida em que eacute necessaacuterio com-

preender que aspectos definem a finitude da proacutepria ἐμπειρία (a sua fragilidade) Quer dizer

92

os aspectos que interessa destacar na continuaccedilatildeo satildeo os que fazem que a ἐμπειρία natildeo seja a

uacuteltima etapa da escala (e tanto quer dizer os que fazem que a ἐμπειρία constitua uma forma

de apresentaccedilatildeo das coisas que esconde ao mesmo tempo que mostra ndash e que na verdade es-

conde justamente isso que jaacute mostra produzindo como que um desvio relativamente a isso

mesmo)

Vistas estas advertecircncias preliminares sobre a tarefa que se trata agora de levar a cabo

consideremos entatildeo a fronteira entre a terceira e a quarta secccedilatildeo da escala de Aristoacuteteles

O primeiro aspecto que importa ter em atenccedilatildeo eacute uma falsa pista

Referimo-nos ao alegado estado-de-coisas em virtude do qual a ἐμπειρία diz respeito a

factos singulares (καθ᾽ ἕκαστόν etc) e soacute a τέχνηἐπιστήμη constitui fixaccedilotildees universais (κα-

θόλου)

Vejamos entatildeo o fundamental do que haacute a dizer sobre esta mateacuteria

Agrave partida aquilo que estaacute em causa quando Aristoacuteteles aponta que a ἐμπειρία diz res-

peito a factos singulares (καθ᾽ ἕκαστόν etc) e soacute a τέχνηἐπιστήμη constitui fixaccedilotildees univer-

sais (καθόλου) parece ser uma forma de diferenciaccedilatildeo clara e suficiente entre os dois planos

Na verdade essa forma de diferenciaccedilatildeo tende a absorver e a dominar a compreensatildeo da dife-

renccedila entre ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη e parece natildeo deixar espaccedilo a mais27

Esta passagem no entanto merece uma anaacutelise cuidada para natildeo se prestar a equiacutevo-

cos

Para o fazer comeccedilaremos por considerar aquilo que se desenha nos fenoacutemenos em

causa ndash aqueles que vimos corresponderem ao conceito de ἐμπειρία Depois de os termos ana-

lisado passaremos entatildeo ao exame dos enunciados de Aristoacuteteles mais precisamente a) ao

exame da forma como uma parte deles parece exprimir justamente o que acabamos de descre-

ver como ldquofalsa pistardquo b) ao exame da forma como uma outra parte desses enunciados con-

grui perfeitamente com o que encontramos nos fenoacutemenos e finalmente c) ao exame da for-

ma como eacute possiacutevel entender os enunciados focados em a) de tal modo que natildeo implicam

27

A passagem a que nos expressamente referimos eacute a famosa passagem da Metafiacutesica (981a12 e ss)

em que se pode ler πρὸς μὲν οὖν τὸ πράττειν ἐμπειρία τέχνης οὐδὲν δοκεῖ διαφέρειν ἀλλὰ καὶ μᾶλλον

ἐπιτυγχάνουσιν οἱ ἔμπειροι τῶν ἄνευ τῆς ἐμπειρίας λόγον ἐχόντων αἴτιον δ᾽ ὅτι ἡ μὲν ἐμπειρία τῶν

καθ᾽ ἕκαστόν ἐστι γνῶσις ἡ δὲ τέχνη τῶν καθόλου αἱ δὲ πράξεις καὶ αἱ γενέσεις πᾶσαι περὶ τὸ καθ᾽

ἕκαστόν εἰσιν

93

qualquer conflito nem com aquilo que encontramos nos fenoacutemenos em causa nem com os

enunciados de Aristoacuteteles

O primeiro aspecto a considerar tem que ver com o facto de a ἐμπειρία ter que ver

sempre com semelhanccedila ndash com uma semelhanccedila na diversidade Quer dizer com uma se-

melhanccedila entre aquilo que natildeo eacute idecircntico no sentido pleno e estrito

Eacute isso mesmo que se acha expresso por Aristoacuteteles no passo de Met I (980b28ss) a

que sempre de novo voltamos (ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματοςrdquo) e eacute o que se deve

focar quando se fala do nexo entre ἐμπειρία e τοῦ ὁμοίου μετάβασις A saber a ἐμπειρία passa

sempre por um estabelecimento de nexos entre instacircncias natildeo absolutamente idecircnticas O seu

ponto de partida eacute a multiplicidade de μνῆμαι relativas a momentos de tempo diferentes (quer

dizer a ocorrecircncias perceptivas que natildeo satildeo rigorosamente idecircnticas)

Naturalmente que a base da ἐμπειρία tem que ver com aquilo que une ndash e natildeo com

aquilo que separa ndash essas vaacuterias ocorrecircncias Mas importa natildeo perder de vista que haacute justa-

mente um momento fundamental de natildeo-identidade absoluta e que o terreno em que se move

a ἐμπειρία eacute de raiz o terreno dessa natildeo-identidade

O que caracteriza a ἐμπειρία como vimos eacute que natildeo se limita a verificar a identidade

de conteuacutedos entre diferentes ocorrecircncias perceptivas (as ocorrecircncias perceptivas interrompi-

das dispersas que satildeo proacuteprias da μνήμη) antes potildee justamente ainda mais patrimoacutenio de di-

versidade ndash tudo aquilo que corresponde ao acreacutescimo do volume de realidade posta pela ἐμ-

πειρία (enquanto eacute proacuteprio dela preencher os intervalos em que natildeo houve percepccedilatildeo de nada

correspondente agraves πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος prolongar a seacuterie para aleacutem do seu

comeccedilo prolongaacute-la tambeacutem no futuro etc)

Ora isso significa um ponto muito importante que a proacutepria aparente eficaacutecia da ἐμπει-

ρία pode fazer esquecer se considerarmos aquilo que espontaneamente nos aparece como rea-

lidades singulares (esta mesa os oacuteculos a parede uma pessoa etc) natildeo se trata de algo que

jaacute laacute esteja antes da ἐμπειρία Vendo bem trata-se de um produto da ἐμπειρία (de algo que soacute

se constitui mediante a ἐμπειρία como resultado dela etc)

Quer dizer ao contraacuterio do que pode parecer agrave primeira vista o que espontaneamente

nos aparece como ldquorealidade singularrdquo ndash aquilo que constitui por assim dizer o limite da ἐμ-

πειρία ndash natildeo tem o caraacutecter de um dado a que a ἐμπειρία se ativesse ou tivesse de se ater por

se tratar de algo absoluto (por se tratar de algo preacute-existente agrave ἐμπειρία e que esta natildeo tivesse

condiccedilotildees de ultrapassar)

94

Acontece que eacute a proacutepria ἐμπειρία a constituir essa forma de singularidade ndash e isto de

tal modo que essa singularidade tem ela proacutepria um caraacutecter tal que resulta de uma siacutentese do

natildeo-idecircntico (ou para o dizer de modo a que fique mais claramente vincado o que pretende-

mos sublinhar de uma siacutentese do natildeo-singular)

Mas sendo assim poderia em todo o caso acontecer que a ἐμπειρία natildeo tivesse recur-

sos para avanccedilar para laacute das realidades singulares que ela proacutepria contribui para constituir Ou

seja poderia acontecer que a projecccedilatildeo empiacuterica (a τοῦ ὁμοίου μετάβασις empiacuterica) se esgo-

tasse em realidades singulares e nunca fosse mais aleacutem da constituiccedilatildeo de estados-de-coisas

permanentes como esta e aquela mesa esta e aquela parede esta e aquela pessoa etc Ou

como tambeacutem poderiacuteamos dizer poderia acontecer que a natureza fixada pela ἐμπειρία fosse

sempre soacute a natureza de realidades singulares e o complexo das fixaccedilotildees empiacutericas correspon-

desse no seu todo a qualquer coisa como uma multiplicidade de fixaccedilotildees todas elas apenas

dessa ordem (rigorosamente cingidas ao estabelecimento de estados-de-coisas singulares)

Acontece que natildeo eacute assim A projecccedilatildeo empiacuterica de modo nenhum se ateacutem a realida-

des singulares do tipo referido28

Satildeo vaacuterios os fenoacutemenos que ilustram esse facto ndash e natildeo cabe aqui consideraacute-los no

seu todo Focamos apenas alguns que bastam para pocircr na pista daquilo que se trata de focar

Quando por exemplo vemos pela primeira vez algueacutem ou alguma coisa estamos co-

mo que num momento inaugural da histoacuteria perceptiva relativa agrave realidade singular em causa

ndash natildeo haacute para traacutes quaisquer αἰσθήσεις ou quaisquer μνῆμαι disso Se a ἐμπειρία se ativesse a

realidades singulares e nunca ultrapassasse a sua fronteira entatildeo ao aparecer pela primeira

vez qualquer realidade singular careceria absolutamente de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγμα-

τος que pudessem constituir a base de qualquer ἐμπειρία a seu respeito ndash e teria de ocorrer

uma travessia perceptiva (e tanto quer dizer uma travessia mneacutesica) ateacute que se pudesse che-

gar a qualquer perspectiva empiacuterica a respeito disso

Acontece que natildeo eacute assim

Tal como as coisas se passam no preciso momento em que pela primeira vez vemos

uma parede num siacutetio onde nunca estivemos antes ou em que entra no nosso horizonte uma

pessoa que nunca tiacutenhamos visto antes isso que nos aparece natildeo nos aparece como uma reali-

28

Natildeo se discute aqui se natildeo comeccedila por esse tipo de fixaccedilotildees ndash de tal modo que soacute pas-sa para aleacutem

delas uma vez jaacute constituiacutedo esse tipo de projecccedilatildeo do dado O ponto decisivo a ter em conta eacute que de

todo o modo mesmo que assim seja natildeo se fica por aiacute

95

dade que acabou de se constituir agrave nossa frente nem tatildeo pouco nos aparece como algo tal que

se de repente desaparecer natildeo provoca espanto

Quer dizer no preciso momento em que vemos tais realidades pela primeira vez elas

aparecem-nos como realidades que vecircm de uma existecircncia passada (que eacute posta laacute por projec-

ccedilatildeo empiacuterica) e que vatildeo a caminho de uma continuaccedilatildeo de si (que eacute posta laacute por projecccedilatildeo

empiacuterica) De sorte que o espanto que se experimentaria se logo de seguida desaparecessem

sem deixar rasto tem que ver com o facto de nesse preciso momento em que aparecem pela

primeira vez jaacute estarem sob o efeito de uma projecccedilatildeo empiacuterica

Ou seja jaacute haacute ἐμπειρία a respeito de algo de que ainda natildeo haacute qualquer histoacuteria percep-

tiva (de que ainda natildeo haacute qualquer travessia de doaccedilatildeo no qua toca a essas realidades em cau-

sa) E nesse sentido deve perguntar-se de onde vem ela em que eacute que se funda

A resposta passa justamente pelo facto de a ἐμπειρία natildeo se ater de modo nenhum a

instacircncias singulares Sucede pelo contraacuterio que a ἐμπειρία tende naturalmente para fixa-

ccedilotildees que transgridem as fronteiras entre realidades singulares

A resposta passa pelo facto de os estados-de-coisas permanentes que a ἐμπειρία tem

propriamente como objecto (as leis ou instacircncias reguladoras que como vimos a ἐμπειρία

tem propriamente por objecto) de modo nenhum se cingirem a casos singulares avulsos O

que caracteriza a ἐμπειρία propriamente dita eacute o salto para a fixaccedilatildeo de leis ou instacircncias re-

guladoras que fazem que uma multiplicidade dada pareccedila ter de ser completada por mais do

que aquilo que foi dado (e pareccedila ter de ser completado em virtude de qualquer coisa como

um ter-de-ser-assim natildeo-poder-ser-de-outro-modo etc)

A ἐμπειρία transforma a semelhanccedila verificada numa multiplicidade de ocorrecircncias

percepcionadas na necessidade de ter-de-ser-assim fora dessa multiplicidade O facto de ser

assim constituiacuteda inclina-a a natildeo se ficar pelo domiacutenio desta ou daquela realidade singular e a

prosseguir a sua peculiar operaccedilatildeo de homogeneizaccedilatildeo para laacute das fronteiras das proacuteprias rea-

lidades singulares que como vimos ela mesma constitui

Por outras palavras a ἐμπειρία natildeo se limita a prescrever o comportamento que as per-

cepccedilotildees teriam de ter tido ndash se tiveacutessemos estado laacute quando natildeo estivemos ndash e que as percep-

ccedilotildees teratildeo de ter no futuro ndash se ou quanto viermos a estar laacute junto da realidade singular em

causa Aplica-se tambeacutem agraves πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος registaacuteveis entre diversas rea-

lidades ndash de tal modo que quando haacute o τὸ αὐτὸ πρᾶγμα correspondente agrave semelhanccedila (seme-

lhanccedila de determinaccedilotildees semelhanccedila de comportamento etc) entre realidades singulares a

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ἐμπειρία faz exactamente o mesmo que levou agrave constituiccedilatildeo dessas realidades singulares

projecta semelhanccedila com base na semelhanccedila registada (neste caso a semelhanccedila transsingu-

lar) Isto eacute projecta estados-de-coisas permanentes (ie como vimos instacircncias reguladoras

de semelhanccedila trans-singular) ndash de tal modo que vecirc a semelhanccedila trans-singular perceptiva

efectivamente registada (ie a semelhanccedila trans-singular efectivamente registada) como ma-

nifestaccedilatildeo de uma regra de semelhanccedila trans-singular que vai aleacutem do campo perceptivo efec-

tivamente percorrido)

Eacute por isso que no primeiro momento em que vemos uma determinada realidade singu-

lar natildeo acontece que estejamos a seu respeito numa perspectiva preacute-empiacuterica Acontece em

vez disso que assim como a nova percepccedilatildeo de uma realidade singular de que jaacute haacute πολλαὶ

μνῆμαι natildeo ocorre sozinha (antes coincide com e se vem inscrever no quadro de uma anteci-

paccedilatildeo do que deve ocorrer) assim tambeacutem a primeira percepccedilatildeo de uma realidade singular

natildeo estaacute absolutamente sozinha coincide com a antecipaccedilatildeo que prescreve semelhanccedila a par-

tir de uma fixaccedilatildeo empiacuterica trans-singular ndash e que nesse sentido prescreve o que deve ser

(ou melhor aquilo que na oacuteptica empiacuterica tem de ocorrer)

O que assim se configura eacute apenas um indicio de um estado-de-coisas muito mais am-

plo e de que importa dar aqui uma ideia sucinta

Se considerarmos as funccedilotildees que a ἐμπειρία exerce na ldquodomesticaccedilatildeordquo do que nos ro-

deia verificamos que um dos seus efeitos mais essenciais eacute o de situar de cada vez o campo

perceptivo (aquela mancha de percepccedilotildees que de cada vez se tem) num campo de familiari-

dade correspondente aos estados-de-coisas permanentes resultantes das memoacuterias acumula-

das na travessia perceptiva dos campos de realidades circundantes

Nessa medida se nos reportarmos a cada momento de tempo (T1) onde soacute haacute um

campo perceptivo (P) verificamos que a realidade reconhecida como tendo lugar em T1 exce-

de a realidade percebida em P ndash e isto antes do mais pela conversatildeo em estados-de-coisas

permanentes das realidades percepcionadas (e retidas em μνήμη) antes de T1 Daiacute resulta que

na oacuteptica empiacuterica todos os campos perceptivos estejam sempre jaacute situados no meio de um

quadro de realidade (nota bene um quadro de realidade a ter lugar no proacuteprio instante de tem-

po de cada vez em causa) muito maior do que P

Mas por outro lado de maneira nenhuma acontece que a totalidade desse campo de

realidade correspondente ao conjunto das realidades singulares jaacute percepcionadas convertidas

em estados-de-coisas permanentes apareccedila por sua vez como uma clareira de realidade do-

97

mesticada no meio de um horizonte de perfeita incoacutegnita Seria assim que as coisas nos deve-

riam aparecer se o acircmbito da projecccedilatildeo empiacuterica se esgotasse na esfera das realidades singula-

res jaacute percepcionadas e de que jaacute haacute πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος

Com efeito se fosse assim tudo o que se situasse para laacute das realidades singulares jaacute

exploradas devia estar completamente em aberto (e corresponder nesse sentido agraves caracteriacutes-

ticas que vimos serem as de um ponto de vista inteiramente preacute-empiacuterico) Poreacutem natildeo eacute

assim

Quando olhamos para o exterior do campo de familiaridade no sentido referido temos

clara noccedilatildeo de que nunca laacute estivemos ndash mas isso natildeo faz que o encaremos como uma pura

incoacutegnita e para perceber que natildeo o encaramos como uma ldquopura incoacutegnitardquo basta ver como

reagimos agrave possibilidade de por exemplo esse exterior ser exactamente uma repeticcedilatildeo do

campo de familiaridade (quer dizer corresponder tal qual corresponder a uma repeticcedilatildeo ou a

uma seacuterie de repeticcedilotildees dele etc) Se o exterior do campo de familiaridade fosse uma absolu-

ta incoacutegnita essa absoluta incoacutegnita tambeacutem incluiria necessariamente esta possibilidade ndash

assim como incluiria neces-sariamente a possibilidade de se tratar de algo em tudo radical-

mente diferente (tal que por exemplo fosse inteiramente vazio ou ateacute natildeo tivesse nenhuma

estabilidade e variasse freneticamente o seu conteuacutedo ou se achasse preenchido por determi-

naccedilotildees completamente dissemelhantes etc)

Ora vendo bem na forma como vemos o exterior do campo de familiaridade natildeo estaacute

contemplada nem a possibilidade daquela repeticcedilatildeo integral nem a possibilidade desta dispari-

dade draacutestica

O que na verdade domina a nossa perspectiva sobre esse exterior eacute a) algo diferente de

uma perspectiva completamente aberta que corresponderia ao efectivo reconhecimento de

uma pura incoacutegnita (de sorte que na verdade mesmo quando reconhecemos a nossa ignoracircn-

cia a seu respeito natildeo julgamos saber alguma coisa sobre esse exterior) e b) algo que se ca-

racteriza por excluir ao mesmo tempo a possibilidade de algo absolutamente igual e de algo

absolutamente diferente

Para o expressar na linguagem de Leibniz a nossa perspectiva sobre o exterior estaacute

marcada pelo domiacutenio de qualquer coisa como um princiacutepio de semelhanccedila (a que Leibniz

98

chamou princiacutepio de Arlequim) e um princiacutepio de dissemelhanccedila (a que chama princiacutepio de

Tasso)29

Mas por outro lado vendo bem a nossa perspectiva sobre o exterior do campo de fa-

miliaridade natildeo estaacute dominada apenas por estes dois princiacutepios

Sucede em vez disso que jaacute estaacute decidida uma relaccedilatildeo de forccedilas entre eles ndash justamen-

te aquela que antecipa que a variaccedilatildeo se daraacute na observacircncia de semelhanccedila no que diz respei-

to agraves estruturas fundamentais da realidade (ou como Leibniz diz o princiacutepio de Arlequim diz

respeito ao ldquofonds des chosesrdquo e o princiacutepio de Tasso diz respeito a ldquodes manieres et apparen-

cesrdquo) Por outras palavras a perspectiva que temos sobre o exterior do campo de familiaridade

estaacute marcada por uma subordinaccedilatildeo de princiacutepio de Tasso ao princiacutepio de Arlequim Eacute aliaacutes

tanto assim que em uacuteltima anaacutelise natildeo se trata propriamente de dois princiacutepios mas apenas

de um traduzindo-se ao mesmo tempo numa antecipaccedilatildeo de semelhanccedila e de variaccedilatildeo

Em uacuteltima anaacutelise a variaccedilatildeo que se antecipa a respeito do exterior do campo de fami-

liaridade eacute uma variaccedilatildeo do tipo daquela que foi registada no seu acircmbito (sc na travessia per-

ceptiva que constitui a base da projecccedilatildeo empiacuterica responsaacutevel pelo campo de familiaridade)

Ou como tambeacutem podemos dizer o exterior do campo de familiaridade eacute visto como devem-

do ter de dissemelhante em relaccedilatildeo ao campo de familiaridade um prolongamento (uma pro-

jecccedilatildeo de prolongamento convertida em evidecircncia empiacuterica) do mesmo tipo de variaccedilatildeo (e

tanto quer dizer da relaccedilatildeo de forccedila entre a variaccedilatildeo e a semelhanccedila) que se registou na tra-

vessia perceptiva

Tudo isto corresponde apenas a uma anaacutelise sucinta de um fenoacutemeno bastante comple-

xo que natildeo cabe analisar aqui Mas o ponto fundamental que se pretende pocircr em evidecircncia

desenha-se com suficiente nitidez a partir do que se expocircs a projecccedilatildeo empiacuterica natildeo apenas

29

Podemos encontrar estes princiacutepios delineados em geral em dois passos da obra de Leibniz

Encontramos o princiacutepio de Arlequim em Nouveaux essais sur lrsquoentendement humain (cap XVII sect16

p 422) passo em que Leibniz escreve ldquoEntretiens pleins desprit et de savoir sur la pluraliteacute des

mondes a dit de jolies choses lagrave-dessus et a trouveacute lart deacutegayer une matiegravere fort difficile on dirait

quasi que cest dans lempire de la lune dArlequin tout comme icirdquo Quanto ao princiacutepio de Tasso po-

demos encontraacute-lo na Carta a Lady Masham datada de 8 de Maio de 1704 (GP 3 paacuteg 348) ldquoVoilagrave en

peu de mots toute ma philosophie bien populaire sans doute puisque elle ne reccediloit rien qui ne reacuteponde

agrave ce que nous experimenton et qursquoelle est fondeacutee sur deux dictions aussi vulgaires que celuy du thea-

tre italien que crsquoest ailleurs tout comme icy et cet autre du Tasse che per variar natura egrave bella qui

paroissent se contrarier mais qursquoil faut concilier en entendant lrsquoun du fond des choses lrsquoautre des ma-

nieres et apparencesrdquo

99

continua para laacute do limite das realidades singulares com que houve contacto na travessia

perceptiva mas de facto continua mesmo muito para laacute

A ἐμπειρία estaacute constituiacuteda de tal modo que tende justamente a produzir o registo da

semelhanccedila e a converter a semelhanccedila registada em qualquer coisa como um ter-de-ser soacute li-

mitado pelas restriccedilotildees que a proacutepria travessia perceptiva documenta

Assim por um lado se houver momentos de semelhanccedila natildeo-desmentida na totalidade

da travessia perceptiva estes momentos tendem a ser convertidos num ter-de-ser irrestrito Se

por outro lado houver elementos de semelhanccedila restringida (ie que eacute percebida como ape-

nas parcial ou regional) dentro do proacuteprio acircmbito da travessia perceptiva essa semelhanccedila

natildeo seraacute projectada como irrestrita

O que de qualquer modo eacute claro eacute que a proacutepria regra de variaccedilatildeo (o proacuteprio jogo de

semelhanccediladissemelhanccedila) que for registada como total ndash como natildeo desmentido no curso da

travessia perceptiva ndash eacute empiricamente projectada como algo com validade tambeacutem para o ex-

terior do campo de familiaridade

Ora como vimos antes a discussatildeo sobre as teses de Aristoacuteteles que visam estes as-

suntos tende a passar ao largo do facto de a ἐμπειρία natildeo se quedar na fixaccedilatildeo de realidades

singulares (por mais que tudo isto que agora vimos admita esta leitura) e costuma centrar-se

numa pretensa diferenciaccedilatildeo clara entre os planos da ἐμπειρία (enquanto a ἐμπειρία diz respei-

to a factos singulares καθ᾽ ἕκαστόν etc) e da τέχνηἐπιστήμη (enquanto τέχνηἐπιστήμη cons-

tituem fixaccedilotildees universais καθόλου etc)

Sendo assim poderia suceder com efeito que o caminho seguido na nossa anaacutelise dos

fenoacutemenos em causa e o caminho seguido por Aristoacuteteles fossem divergentes Mas vendo

bem natildeo eacute assim E importa recuperar alguns elementos do corpus aristotelicum que permi-

tem perceber com nitidez que natildeo eacute assim

Natildeo se trata aqui de seguir pari passu todos os enunciados de Aristoacuteteles que haveria

que considerar numa anaacutelise exaustiva desta questatildeo Atemo-nos a um que parece ser muito

significativo e que nos potildee na pista do fundamental

100

Num passo da Retoacuterica (II 21 1394a e ss) Aristoacuteteles fala da conexatildeo entre ἐμπειρία

e γνωμολογία O que vinca nesse passo eacute um nexo de correlaccedilatildeo ie aponta os adaacutegios como

expressatildeo tiacutepica daquilo que estaacute em causa na ἐμπειρία30

A descriccedilatildeo de Aristoacuteteles passa por mostrar que o que caracteriza os adaacutegios eacute preci-

samente a circunstacircncia de a sua extensatildeo ser supra-singular ie de natildeo se aterem a ldquoindiviacute-

duosrdquo Esta descriccedilatildeo de Aristoacuteteles traduz exactamente algo caracteriacutestico dos adaacutegios dize-

rem respeito a uma determinada classe ou a um determinado tipo de realidades

Considerem-se por exemplo os adaacutegios ldquoMarccedilo Marccedilagatildeo manhatilde de Inverno tarde

de Veratildeordquo ldquoDe pequenino eacute que se torce o pepinordquo etc

As classes em causa podem ser de maior ou de menor amplitude e essa variaccedilatildeo pode

ateacute ser muito significativa Poreacutem o que caracteriza os adaacutegios eacute o facto de mesmo quando a

amplitude da classe ou tipo em causa eacute menor (e portanto a extensatildeo do juiacutezo em causa o eacute

tambeacutem) o miacutenimo de amplitude ou extensatildeo caracteriacutestico de um adaacutegio ser sempre algo

que agrupa uma multiplicidade de instacircncias singulares e corresponde agrave fixaccedilatildeo de um esta-

do-de-coisas trans-singular

Por outro lado percebe-se tambeacutem em que sentido Aristoacuteteles pode falar de um nexo

entre os adaacutegios e a ἐμπειρία

Natildeo parece dar-se o caso de que todas as fixaccedilotildees empiacutericas se exprimam em adaacutegios

ndash e tambeacutem natildeo eacute este o lugar para averiguar que eacute que determina que umas se exprimam des-

se modo e outras natildeo O uacutenico ponto que interessa fazer notar e que resulta do jaacute exposto eacute

que fixaccedilotildees empiacutericas na esfera de realidades singulares natildeo se traduzem em adaacutegios O que

importa aqui eacute o facto de os adaacutegios darem expressatildeo a fixaccedilotildees de natureza empiacuterica e serem

justamente exemplos acabados do tipo de fixaccedilatildeo que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία

Por outras palavras se natildeo houvesse ἐμπειρία (se a perspectiva em que nos encontra-

mos fosse uma perspectiva puramente esteacutesica ou mneacutesica) natildeo haveria qualquer lugar para

adaacutegios ndash os quais tecircm de proacuteprio justamente uma decisiva componente de antecipaccedilatildeo ou de

30

Cf com os Prolegomena (A1112) de Kant ldquoWenn Einsicht und Wissenschaft auf die Neige gehen

alsdann und nicht eher sich auf den gemeinen Menschenverstand zu berufen das ist eine von den sub-

tilen Erfindungen neuerer Zeiten dabei es der schalste Schwaumltzer mit dem gruumlndlichsten Kopfe getrost

aufnehmen und es mit ihm aushalten kann Solange aber noch ein kleiner Rest von Einsicht da ist

wird man sich wohl huumlten diese Nothuumllfe zu ergreifen Und beim Lichte besehen ist diese Appella-

tion nichts anderes als eine Berufung auf das Urteil der Menge ein Zuklatschen uumlber das der Philo-

soph erroumltet der populaumlre Witzling aber triumphiert und trotzig tutrdquo

101

μετάβασις τοῦ ὁμοίου ndash e isto de tal modo que o horizonte (o terminus ad quem da transgres-

satildeo constitutiva do adaacutegio) corresponde sempre agrave totalidade das instacircncias singulares de um

determinado modo-de-ser

Assim no caso do adaacutegio ldquoMarccedilo Marccedilagatildeo helliprdquo o que estaacute em causa natildeo eacute um de-

terminado Marccedilo nem uns poucos Marccedilos (natildeo se trata da expressatildeo de μνῆμαι) mas sim a

classe dos ldquoMarccedilosrdquo ndash quer dizer de todos os Marccedilos De tal modo que mesmo que o adaacutegio

natildeo recorra ao ldquoquantificadorrdquo universal o que estaacute em causa nele eacute justamente isso uma re-

gra universal ou uma lei ndash quer dizer um estado-de-coisas no sentido que vimos ser o dos es-

tados-de-coisas que constituem o correlato da ἐμπειρία

E algo de equivalente vale tambeacutem para ldquoDe pequenino eacute que se torce o pepinordquo Na

sua forma metafoacuterica o adaacutegio torna expressa a μετάβασις τοῦ ὁμοίου e enuncia uma regra ndash

uma lei que pretende ser vaacutelida para um conjunto muito vasto de coisas a respeito das quais se

diz que se se pretende moldaacute-las haacute que comeccedilar a intervir cedo etc

Em suma a diferenccedila entre ἐμπειρία e aquilo que se situa acima dela na escala eacute tatildeo

pouco uma diferenccedila de extensatildeo (ou de ldquoquantificadoresrdquo) que em uacuteltima anaacutelise pode mui-

to bem acontecer que o complexo das projecccedilotildees empiacutericas que estatildeo postas de peacute num dado

campo de aparecimento (por exemplo aquele em que damos connosco) tenha exactamente a

mesma extensatildeo (a mesma amplitude de pretensatildeo de validade) que aquilo que Aristoacuteteles si-

tua na quarta etapa da escala

Sendo assim Aristoacuteteles declara que a ἐμπειρία diz respeito ao καθ᾽ ἕκαστόν e soacute aqui-

lo que se situa para laacute da ἐμπειρία (a τέχνη ou ἐπιστήμη) capta o universal por duas razotildees fun-

damentais31

Em primeiro lugar mesmo que a ἐμπειρία possa muito bem recorrer a generalizaccedilotildees

(a operadores universais etc) o recurso a essas generalizaccedilotildees (ou a esses operadores univer-

sais) tem na ἐμπειρία um caraacutecter casuiacutestico preocupado sobretudo com uma aplicaccedilatildeo con-

creta em casos singulares

Isso eacute justamente algo que se exprime no uso dos adaacutegios quando se diz que ldquoMarccedilo

Marccedilagatildeo manhatilde de Inverno tarde de Veratildeordquo ou ldquoDe pequenino eacute que se torce o pepinordquo o

que estaacute em causa eacute aquilo com que se deve contar num determinado Marccedilo ou o tempo em

31

Atemo-nos aqui ao fundamental Para uma discussatildeo mais detida ver Carvalho MJ Erfahrung

und Endlichkeit Grundzuge und Zweideutigkeit des Erfahrungsbegriffs im Ausgang von Aristoteles

in Quid ndash Revista de Filosofia nordm 1 ed Cotovia (Lisboa 2000) pp 180 e seguintes

102

que se deve intervir se efectivamente se pretende moldar a forma de uma determinada coisa

Quer dizer a projecccedilatildeo empiacuterica recorre a functores ou a fixaccedilotildees universais de tal modo que

os usa para fixar estados-de-coisas singulares ndash e estaacute sobretudo focada nestes uacuteltimos

Nesse sentido o contacto da ἐμπειρία com os operadores universais a que recorre eacute co-

mo que centriacutefugo Trabalha com eles mas natildeo os considera detidamente eacute moldado por eles

mas natildeo os tem como objecto

Daqui decorre que se por um lado a ἐμπειρία eacute relativa ao καθ᾽ ἕκαστόν por outro la-

do o modo como eacute relativa ao καθ᾽ ἕκαστόν deve ser posto em contraste com o se passa no ca-

so das ἐπιστήμαι e com o modo como as ἐπιστήμαι satildeo relativas ao καθ᾽ ἕκαστόν Uma das ca-

racteriacutesticas das ἐπιστήμαι eacute precisamente o estarem focadas nos proacuteprios operadores univer-

sais enquanto tais ndash o facto de terem os proacuteprios operadores universais expressamente como

objecto

Tambeacutem podemos exprimir este contraste dizendo que a ἐμπειρία recorre inexpliacutecita-

mente a leis (ou pretensas leis fixaccedilotildees com forma de lei) mas estaacute voltada sobretudo para o

que resulta da sua aplicaccedilatildeo ao passo que aquilo que se situa acima da ἐμπειρία estaacute voltada

para a identificaccedilatildeo e compreensatildeo das proacuteprias leis enquanto tais

Isto leva-nos a um segundo aspecto que permite compreender que eacute que Aristoacuteteles

pode ter em vista quando escreve que a ἐμπειρία incide sobre o καθ᾽ ἕκαστόν e soacute aquilo que

jaacute eacute superior agrave ἐμπειρία incide sobre o καθόλου Esse segundo aspecto tem que ver com a pe-

culiaridade da terminologia aristoteacutelica ndash ou com uma diferenccedila entre a semacircntica do seu uso

de καθόλου e aquilo que tendemos a associar ao conceito de ldquouniversalrdquo

Tal como o entendemos o termo ldquouniversalrdquo designa sobretudo uma propriedade de

extensatildeo Poreacutem haacute alguns passos do corpus aristotelicum (veja-se por exemplo Met

982a20) que tomam outra direcccedilatildeo Quando dizemos que tomam outra direcccedilatildeo isso natildeo sig-

nifica que o καθόλου tal como Aristoacuteteles usa o termo natildeo tenha nada que ver com extensatildeo

significa que natildeo tem que ver apenas com extensatildeo

Com efeito Aristoacuteteles estabelece um nexo sobre o καθόλου e aquilo que eacute responsaacute-

vel por as coisas (as coisas abrangidas pelo καθόλου em causa) serem como satildeo Quer dizer a

posse do καθόλου natildeo eacute apenas a posse de uma determinaccedilatildeo com determinadas caracteriacutesti-

103

cas de extensatildeo ndash eacute a posse da determinaccedilatildeo que permite compreender o ldquoporquecircrdquo de um de-

terminado estado-de-coisas32

32

O termo usado por Aristoacuteteles eacute o termo αἱτία O termo αἱτία eacute frequentemente traduzido por causa

mas a noccedilatildeo de ldquocausardquo dada a sua forte carga histoacuterica e semacircntica pode ser uma noccedilatildeo equiacutevoca e

talvez o seu sentido fique mais claro levando em conta que o que Aristoacuteteles diz eacute que o que tem ex-

periecircncia acompanha o que se passa mas natildeo o de onde ou o por que do que se passa Um breve peacute-

riplo pelo corpus aristotelicum poderaacute mostrar-nos o que estaacute efectivamente em jogo nesta noccedilatildeo

O exemplo a que Aristoacuteteles recorre eacute o exemplo do acompanhamento de uma doenccedila A ἐμπειρία pa-

rece capaz de acompanhar o estado de sauacutede e o estado de doenccedila e de contrapor um ao outro ndash mas

isso parece corresponder a uma mera sinalizaccedilatildeo dos efeitos ou das consequecircncias desses estados

Assiste aos estados em bruto catalogando dados e caracteriacutesticas de um e outro estado e isolando o

estado da doenccedila tendo desse estado experiecircncia ou tendo com ele familiaridade ateacute eacute capaz de regis-

tar o que se passa e prescrever o medicamento y para a doenccedila x Isto eacute por via da experiecircncia conse-

gue-se seguir casos particulares e registar uma relaccedilatildeo entre a doenccedila x e o medicamento y que nos ca-

sos particulares seguidos a curou Mas tudo isto sem dispor de uma compreensatildeo eficaz do por que da

doenccedila ou do por que da cura ndash e isto porque a ἐμπειρία natildeo estaacute em condiccedilotildees de garantir a universa-

lidade da cura a todos os casos possiacuteveis da doenccedila para que estaria capacitada se tivesse a αἱτία dela

Dito de outro modo a ἐμπειρία faz um acompanhamento da doenccedila mas de tal modo que deixa escapar

algo de fundamental acerca da doenccedila a αἱτία dela isso que a faz Regista o que se passa mas natildeo ace-

de ao por que se passa assim Haacute jaacute um acesso ndash e com ele a pretensatildeo de captaccedilatildeo mas nesse acesso

escapa a αἱτία ndash e por isso fica aqueacutem de τέχνη e έπιστήμη Eacute a isso que Aristoacuteteles se refere quanto

em Anal Post 87a31 afirma que o conhecimento simultacircneo do que se passa e da causa do que se

passa por contraste ao conhecimento de um sem a outra eacute mais preciso e tem precedecircncia E sintetiza

em 981a27 soacute aquele que tem τέχνη estaacute na posse da αἱτία

Jaacute estamos portanto em melhores condiccedilotildees para dizer algo acerca da αἱτία Por αἱτία devemos enten-

der o agente activo que marca a diferenccedila entre algo ser e natildeo ser o agente que faz com que algo ve-

nha a ser Eacute algo que tem portanto um ascendente sobre um seu correlato que vem a ser na forma de

uma responsabilidade sobre o vir a ser do seu correlato ndash eacute isso o que faz com que o seu correlato ve-

nha a ser e sem o qual esse natildeo viria a ser Nesse sentido a αἱτία gera algo antes natildeo existia (no caso

por exemplo a doenccedila onde antes havia sauacutede) seraacute portanto um limiar de origem sine qua non a

transposiccedilatildeo do natildeo ser ao ser do correlato natildeo se daria e que responde pelo que vier a ser do correlato

que tem sobre ele influecircncia ou predomiacutenio decisivo Assim o que viraacute a ser do correlato estaacute preacute-de-

terminado pela αἱτία o correlato viraacute a ser em funccedilatildeo da αἱτία que o potildee condicionado por ela Essa

condiccedilatildeo tem expressatildeo nos efeitos ie no modo como o correlato se manifesta no que o correlato

efectivamente eacute Veja-se o caso da doenccedila as expressotildees da doenccedila satildeo sintomas iacutendices os modos

da sua manifestaccedilatildeo e por isso a pergunta pela αἱτία da doenccedila eacute de facto a pergunta pelo ser da doen-

ccedila no sentido de que a αἱτία da doenccedila eacute isso por que a doenccedila veio a ser doenccedila e que tem por conse-

quecircncias as manifestaccedilotildees da doenccedila que a ἐμπειρία acompanha Essas manifestaccedilotildees esses efeitos

satildeo portanto derivados recebidos de algo precedente em relaccedilatildeo ao qual estatildeo e seraacute a partir destas

consideraccedilotildees que comeccedilamos a compreender as diferenccedilas entre a perspectiva sobre a doenccedila que

tem a ἐμπειρία e a perspectiva sobre a doenccedila que tecircm τέχνη ou έπιστήμη

104

Em suma no conceito aristoteacutelico de καθόλου cruzam-se duas determinaccedilotildees a) uma

determinaccedilatildeo relativa agrave extensatildeo a respeito da qual se acrescenta que isso que se caracteriza

pela extensatildeo em causa tambeacutem tem um caraacutecter tal que eacute um princiacutepio responsaacutevel por as

coisas serem como satildeo e b) uma determinaccedilatildeo relativa ao exerciacutecio da funccedilatildeo (ser o ldquopor-

quecircrdquo) a respeito do qual se acrescenta que o ldquoporquecircrdquo natildeo tem um caraacutecter singular mas sim

o caraacutecter de qualquer coisa como uma ldquoleirdquo que se aplica a todo um domiacutenio de modalida-

des

Ora este segundo aspecto potildee-nos na pista daquilo que eacute efectivamente decisivo para

se compreender a finitude da experiecircncia (ie para se compreender o modo como fica aqueacutem

da etapa seguinte da escala)

sect15

A ilusatildeo de acompanhar e perceber o ldquoporquecircrdquo das coisas

O que se comeccedilou a desenhar no fim da secccedilatildeo anterior eacute que Aristoacuteteles parece cha-

mar a atenccedilatildeo para o facto de a experiecircncia natildeo saber que eacute que ldquofazrdquo aquilo com que lida

Ora se considerarmos as secccedilotildees anteriores estamos em condiccedilotildees de avanccedilar que is-

so tem que ver antes de mais com a ligaccedilatildeo entre a ἐμπειρία e as αἰσθήσεις

Como vimos o conteuacutedo das αἰσθήσεις (retido em μνῆμαι) eacute modificado por uma ex-

traordinaacuteria inovaccedilatildeo formal ndash a extraordinaacuteria inovaccedilatildeo correspondente agrave figura do ldquoestado-

de-coisas permanenterdquo que os conteuacutedos das αἰσθήσεις passam a revestir E se a relaccedilatildeo entre

as μνῆμαι e as αἰσθήσεις tem qualquer coisa de um idem sed aliter o mesmo se pode dizer

tambeacutem em relaccedilatildeo agrave ἐμπειρία

Note-se adicionalmente que a introduccedilatildeo do factor da αἱτία elimina em definitivo a possibilidade de a

diferenccedila entre ἐμπειρία e τέχνη e έπιστήμη ser uma diferenccedila numeacuterica ou de quantidade Poder-se-ia

objectar o que natildeo eacute suficiente para obter dados fiaacuteveis eacute a amostra de uns poucos casos ndash mas a tese

de Aristoacuteteles natildeo eacute essa a ἐμπειρία falha porque natildeo tem a αἱτία da doenccedila Natildeo tem o que a consti-

tui o que a faz ou o que a potildee a ser Quer dizer mesmo o acompanhamento de todos os casos seria

ainda insuficiente caso faltasse a αἱτία A ἐμπειρία tem os efeitos apartados da αἱτία que os faz ndash natildeo

haacute τέχνη ou έπιστήμη sem a reposiccedilatildeo deste nexo sem que os efeitos sejam efeitos da αἱτία que os faz

A ἐμπειρία limita o seu acompanhamento aos efeitos e deixa escapar o ser proacuteprio das coisas Enfim a

diferenccedila entre a terceira e a quarta etapa da escala eacute uma diferenccedila qualitativa

105

Em certo sentido a ἐμπειρία natildeo faz senatildeo multiplicar exponencialmente os conteuacutedos

das αἰσθήσεις Essa multiplicaccedilatildeo exponencial natildeo poderia fazer-se sem a extraordinaacuteria ino-

vaccedilatildeo que ela proacutepria introduz

Contudo a inovaccedilatildeo em causa opera justamente com os conteuacutedos das αἰσθήσεις ndash eacute

inovadora enquanto projecccedilatildeo mas o que projecta satildeo αἰσθήσεις (determinaccedilotildees de ἀισθή-

σεις) E eacute esse aspecto que estaacute na base do conceito mais comum de experiecircncia ndash que tende a

esquecer a transgressatildeo do dado e acentua unilateralmente a dependecircncia da experiecircncia em

relaccedilatildeo agrave travessia perceptiva e a sua fidelidade agravequilo que eacute encontrado no curso dessa tra-

vessia

Acontece que se eacute assim haacute que ter presente por outro lado que os conteuacutedos das

αἰσθήσεις testemunham a presenccedila de algo mas natildeo mostram que eacute o que ldquofazrdquo (o que eacute que

transporta a diferenccedila entre isso e a sua ausecircncia) Quer dizer a doaccedilatildeo que eacute proacutepria das ἀισ-

θήσεις testemunha a presenccedila desta ou daquela determinaccedilatildeo mas natildeo identifica aquilo que eacute

responsaacutevel por ela (natildeo faz ideia como estaacute ldquomontadordquo aquilo a que assiste sobre ldquoquecircrdquo eacute

que estaacute ldquomontadordquo aquilo a que assiste etc)

Ora na medida em que projecta e multiplica os conteuacutedos das αἰσθήσεις e natildeo acede a

outros tambeacutem a ἐμπειρία partilha dessa falta de perspectiva e natildeo faz a mais pequena ideia

do que efectivamente ldquopotildeerdquo ou ldquofazrdquo as determinaccedilotildees com que lida33

33

Em Anal Post 88a5 Aristoacuteteles afirma que o valor do universal estaacute em expor a αἱτία Mas imedia-

tamente antes diz algo que poderia pocircr agrave tese que temos vindo a defender alguns problemas que a ob-

servaccedilatildeo de instacircncias repetidas de um dado acontecimento poderia fazer-nos alcanccedilar o universal e

acrescenta ainda que eacute a partir da repeticcedilatildeo de experiecircncias particulares que se ganha perspectiva sobre

o universal Isto parece dar a indicaccedilatildeo de que afinal a αἱτία eacute passiacutevel de ser captada por via estatiacutesti-

ca e de que a posse da αἱτία eacute passiacutevel de ser provada a cada nova instacircncia que o que se sabe

Vejamos qual eacute o assunto sobre o qual se debruccedila Aristoacuteteles para compreender melhor o que estaacute em

causa Desde 87a28 o problema que ocupa Aristoacuteteles eacute o de tentar provar que a έπιστήμη natildeo pode

ser adquirida por meio da αἴσθησις A αἴσθησις como jaacute vimos providencia um complexo de qualida-

des a contracccedilatildeo dessas num ldquoobjectordquo implica que a αἴσθησις estaacute jaacute permeada de ἐμπειρία Levanta-

se entatildeo um problema mesmo assumindo que a αἴσθησις captasse um ldquoobjectordquo em qualquer caso a

αἴσθησις captaria um ldquoobjectordquo particular (num dado espaccedilo e tempo com uma conformaccedilatildeo particu-

lar etc) e natildeo um objecto tipificado ou universal a partir do qual se pudesse deduzir uma demonstra-

ccedilatildeo

Acontece que aquilo que eacute universal natildeo pode ser captado pela αἴσθησις precisamente porque natildeo eacute

dado por um espaccedilo por um tempo ou por uma conformaccedilatildeo particular mas aplica-se a todos os es-

paccedilos a todos os tempos e a todas as conformaccedilotildees

106

Na verdade o caso eacute ainda mais complexo

O caso eacute mais complexo porque a inovaccedilatildeo formal que eacute caracteriacutestica da ἐμπειρία (en-

quanto a ἐμπειρία tem que ver com a assunccedilatildeo da forma de lei) cria justamente a ilusatildeo de

aceder agravequilo que ldquofazrdquo que as determinaccedilotildees perceptivamente testemunhadas sejam ndash ou te-

nham de ser ndash como satildeo Ou seja porque tem a forma de lei a ἐμπειρία cria a ilusatildeo de

acompanhar e perceber o ldquoporquecircrdquo das coisas

Para perceber como eacute assim haacute que ter presentes sobretudo dois aspectos

Em primeiro lugar a projecccedilatildeo empiacuterica quando se produz natildeo tem nenhum outro da-

do para laacute daquele que transgride ndash eacute uma fixaccedilatildeo em uacuteltima anaacutelise sempre abusiva e que

natildeo tem nada que a sustente

Se por uma parte como vimos esse facto eacute compensado pela peculiar evidecircncia de

um ter-de-ser-assim (de um natildeo-poder-ser-de-outro-modo pela extraordinaacuteria forccedila dessa evi-

decircncia que faz que a experiecircncia assuma a forma de uma lei) por outra parte a experiecircncia

natildeo produz mais do que a mera aparecircncia de uma lei

A ldquoleirdquo empiacuterica natildeo eacute outra coisa senatildeo a proacutepria regularidade empiacuterica arvorada em

mais do que isso A ldquoevidecircnciardquo do ter-de-ser-assim (do natildeo-poder-ser-de-outro-modo todo o

caraacutecter necessitante da projecccedilatildeo empiacuterica etc) estaacute montada em falso natildeo tem nada que

Poderia ainda assim dar-se o caso de que por um qualquer acidente aquilo que a αἴσθησις captasse de

um objecto particular dissesse igualmente respeito a todos os objectos do mesmo tipo desse mas isso

em qualquer caso natildeo poderia ser garantido por meio da αἴσθησις jaacute que a αἴσθησις continuaria apli-

cada apenas em cada caso particular e natildeo ganharia perspectiva para laacute desse Apesar de tudo a ser

possiacutevel essa coincidecircncia ela estaria sob oacutenus de prova Daqui decorre que a prova se obteria pela

observaccedilatildeo de instacircncias repetidas de um dado acontecimento e a partir da repeticcedilatildeo de experiecircncias

particulares ganhar-se-ia perspectiva sobre o universal

Ora segundo a nossa leitura o resultado dessa prova seria empiacuterico e natildeo como diz Aristoacuteteles epis-

teacutemico aquilo que se obteria seria a confirmaccedilatildeo de que o que quer que fosse que se tivesse captado

tivera de novo ocorrecircncia em cada uma das instacircncias particulares em que tinha estado a teste natildeo se

podendo extrair daiacute validade universal ndash seria por outras palavras um reconhecimento de que foi

assim ou de que tem sido assim mas natildeo a antecipaccedilatildeo de que sempre seraacute assim

Acontece que a repeticcedilatildeo permite ter em vista a αἱτία jaacute que a repeticcedilatildeo nos abre a uma constacircncia

nessa constacircncia haacute um vislumbre da αἱτία jaacute que a αἱτία eacute o que potildee a constacircncia O que dissemos

atraacutes manteacutem-se vaacutelido porque da repeticcedilatildeo podemos ser ou natildeo ser bem sucedidos na captaccedilatildeo da

αἱτία haacute um salto o salto que vimos atraacutes corresponder agrave mudanccedila do terceiro para o quarto patamar

da escala entre detectar ou registar uma repeticcedilatildeo e compreender a αἱτία que potildee a ser ou que obriga a

ser assim Se se tiver sucesso em obter da mateacuteria que essa repeticcedilatildeo constitui αἱτία entatildeo haacute έπιστήμη

107

efectivamente a sustente Eacute justamente por isso que natildeo estaacute ao abrigo da possibilidade de vir

a ser infirmada

Em segundo lugar embora a experiecircncia tenha como correlato esse excesso sobre a re-

gularidade perceptivamente registada (as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος) embora a ex-

periecircncia tenha propriamente como correlato o estado-de-coisas permanente a ldquoquase-leirdquo

empiacuterica ndash aquilo que a caracteriza enquanto experiecircncia eacute natildeo fazer ideia do que constitui

esse estado-de-coisas permanente (ie o que a caracteriza eacute a ldquoquase-leirdquo que tem por correla-

to)

Tomemos por exemplo a projecccedilatildeo empiacuterica de que a mesa agrave nossa frente a caneta

com que escrevemos a matildeo etc vatildeo continuar a ser nos momentos que se seguem e daqui a

dois minutos e daqui a uma hora etc Esperamos o tempo devido e a projecccedilatildeo empiacuterica em

causa vecirc-se confirmada Poreacutem o registo de que eacute assim natildeo implica que tenhamos ideia do

que faz que assim seja ndash natildeo implica que tenhamos ideia de como a realidade da mesa e da ca-

neta e da matildeo etc se transmite de um momento ao momento seguinte e desse a outro e desse

a outro e assim sucessivamente

Vendo bem a projecccedilatildeo empiacuterica tem um caraacutecter formal ndash ela eacute precisamente isso

uma forma (a forma ldquoestado-de-coisas permanenterdquo a forma da quase-lei empiacuterica etc) E

pode-se falar de ldquoformardquo precisamente porque ela eacute exactamente a mesma para todos os muito

diversos conteuacutedos perceptivos a que eacute aplicada

Em terceiro lugar sendo assim a ἐμπειρία tambeacutem natildeo faz ideia do que ldquofazrdquo esta

quase-lei que tem sempre no seu centro

Quer dizer se a ἐμπειρία tem uma constituiccedilatildeo formal tambeacutem natildeo faz ideia do que

faz a sua proacutepria forma ndash de qual eacute a determinaccedilatildeo que lhe corresponde Na verdade como vi-

mos nem sequer se apercebe da sua proacutepria composiccedilatildeo (de que tem uma composiccedilatildeo formal

etc)

Este eacute um ponto de particular importacircncia quer em relaccedilatildeo agravequilo que ldquoimportardquo da

αἴσθησις (sc da μνήμη) quer em relaccedilatildeo agravequilo que ela mesma acrescenta e com que trans-

forma os conteuacutedos da αἴσθησις e da μνήμη a ἐμπειρία soacute lida com determinaccedilotildees a respeito

das quais pura e simplesmente natildeo sabe em que eacute que consistem ndash que eacute que as ldquofazrdquo Em uacutelti-

ma anaacutelise a ἐμπειρία eacute formal pelas determinaccedilotildees da αἴσθησις e da μνήμη arvoradas em

muito mais do que isso ndash mas arvoradas em muito mais do que isso por forccedila de um operador

que na verdade eacute cego

108

Tocamos aqui a particular combinaccedilatildeo de propriedades que faz que por um lado a ex-

periecircncia represente como vimos um extraordinaacuterio ldquosaltordquo (uma explosatildeo de perspectiva)

em relaccedilatildeo agrave αἴσθησις e agrave μνήμη mas por outro lado fica muito aqueacutem de realizar efectiva-

mente aquilo que parece Eacute esse se assim se pode dizer o paradoxo da ἐμπειρία

Por um lado a ἐμπειρία distingue-se pela extraordinaacuteria forccedila de que se reveste Essa

ldquoforccedilardquo tem que ver com a extraordinaacuteria amplitude da ἐμπειρία ndash com a forma como produz

por atacado fixaccedilotildees que cobrem domiacutenios de extraordinaacuteria dimensatildeo E tem que ver sobre-

tudo com aquilo que permite esta extraordinaacuteria amplitude e que eacute por assim dizer o ldquoponto

arquimeacutedicordquo da ἐμπειρία a forma de lei (aquilo a que acabamos de chamar a ldquoquase-lei em-

piacutericardquo) Por outro lado no entanto a ἐμπειρία ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo estaacute

montada completamente ldquoem falsordquo

Isto eacute assim por diversas razotildees

A primeira razatildeo tem que ver com a falta de base ndash com a desproporccedilatildeo entre aquilo

que serve de base da ldquoamostragemrdquo e o territoacuterio a respeito do qual a ἐμπειρία legisla Diz-se

que a experiecircncia ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo porque na verdade a experiecircncia natildeo

tem fundamento suficiente para a legislaccedilatildeo (para a quase-lei para o ter-de-ser-assim etc)

que produz

A segunda razatildeo tem que ver com o facto de a ἐμπειρία natildeo dominar as proacuteprias deter-

minaccedilotildees com que lida

A terceira razatildeo tem que ver com o facto de que quando se acentua unilateralmente o

problema do abuso que a ἐμπειρία comete quando produz a μετάβασις τοῦ ὁμοίου e legisla so-

bre aquilo que natildeo se vecirc sobre a base do que se vecirc a focagem unilateral do primeiro ponto faz

esquecer o segundo E o resultado eacute que inadvertidamente se labora na pressuposiccedilatildeo inex-

pliacutecita de que a experiecircncia domina perfeitamente as determinaccedilotildees com que lida percebem

muito bem os conteuacutedos em causa etc

Assim a acentuaccedilatildeo unilateral de um dos aspectos ldquobeneficiardquo a ἐμπειρία ndash porque faz

esquecer que a ἐμπειρία tambeacutem ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo no que diz respeito agraves

determinaccedilotildees com que labora pois produz a impressatildeo de saber muito bem o que as faz

quando na verdade aquilo que toma como fonte desse saber eacute algo que se for posto em foco

acaba por se revelar com um caraacutecter de punctum caeligcum

Por outras palavras ao contraacuterio do que parece no centro das suas fixaccedilotildees a ἐμπειρία

tem nem se sabe bem o quecirc

109

Isso natildeo quer dizer que a ἐμπειρία natildeo funciona Acontece que no centro da sua ex-

traordinaacuteria forccedila estaacute uma extraordinaacuteria fraqueza ndash que vai mesmo ao ponto de no fulcro

das operaccedilotildees que constituem a ἐμπειρία estarem nem mais nem menos do que puncta coeca ndash

qualquer coisa como um vazio de conteuacutedo

De tudo isto resulta algo muito peculiar a ἐμπειρία funciona enquanto estiver distraiacuteda

relativamente agrave forma como estaacute composta ndash quer dizer numa atmosfera de falta de acuidade

Eacute esse o seu meio natural onde preserva toda a sua forccedila e manteacutem escondida a sua fraqueza

Se pelo contraacuterio for submetida a exame (e esse exame se processar com efectivo

acreacutescimo de acuidade) acaba por revelar ateacute que ponto vai a sua fragilidade cognitiva a sua

falta de fundamento e o que tem de cego acabam por se revelar como algo que a acompanha e

a mina de uma ponta agrave outra

Mas por outro lado a sua forccedila eacute tal que tende a resistir a este exerciacutecio de desmasca-

ramento ndash e a continuar a afirmar-se como se nada fosse Na verdade mesmo quanto temos

plena consciecircncia das fraquezas da ἐμπειρία (mesmo quanto expomos como temos tentado fa-

zer nesta secccedilatildeo as suas falecircncias) ela continua a operar em noacutes intacta e soacute quando cada

um de noacutes se torna ciente desse facto se tem pela primeira vez plena consciecircncia da forccedila da

ἐμπειρία e do modo como apesar de tudo se impotildee

Isto permite-nos perceber a relaccedilatildeo entre os fenoacutemenos aqui em causa (os fenoacutemenos

que constituem a experiecircncia) e aquilo que encontramos numa das mais antigas descriccedilotildees de-

les ndash aquilo que encontramos no livro VII da Repuacuteblica de Platatildeo (516c5 e ss)

Ao descrever o tipo de acesso que haacute no fundo da caverna Soacutecrates realccedila que os pri-

sioneiros natildeo compreendem nada do que se estaacute a passar na situaccedilatildeo em que se encontram

(natildeo fazem a menor ideia do que eacute aquilo que vecircem natildeo sabem o que faz aquilo que vecircem

etc) mas desenvolvem uma grande periacutecia na detecccedilatildeo de padrotildees de regularidade naquilo

que lhes aparece

Na verdade natildeo se trata apenas de padrotildees de regularidade em regime puramente nu-

meacuterico Trata-se da constituiccedilatildeo de complexos de antecipaccedilotildees que lhes permitem aventurar-

se em relaccedilatildeo ao que haacute-de aparecer

Ora ainda que o texto natildeo fale explicitamente de ldquoexperiecircnciardquo ou natildeo aborde o as-

sunto senatildeo num sentido operativo estamos em condiccedilotildees de compreender tendo em conta o

que vimos atraacutes que esses padrotildees de regularidade convertidos em antecipaccedilotildees tomam pa-

110

ra os prisioneiros a forma de leis (sc de quase-leis no sentido oportunamente referido) De

sorte que aquilo de que se estaacute a falar eacute de facto o fenoacutemeno da experiecircncia

Importa-nos este passo da Repuacuteblica porque ele potildee em contraste por um lado o que

seria uma captaccedilatildeo aguda do que aparece (no caso a compreensatildeo das sombras como som-

bras a compreensatildeo da situaccedilatildeo em que ocorrem daquilo que lhes daacute origem etc) e por ou-

tro aquele tipo de captaccedilatildeo que os prisioneiros tecircm em relaccedilatildeo agrave qual ateacute podem desenvolver

grande periacutecia a detecccedilatildeo de padrotildees de regularidade e a sua conversatildeo num sistema de do-

miacutenio do que aparece por via de antecipaccedilotildees

O ponto que nos interessa sublinhar eacute o caraacutecter natildeo-agudo natildeo-penetrante da capta-

ccedilatildeo empiacuterica tal como Platatildeo a descreve neste passo E se mais adiante veremos um pouco

melhor de que eacute que se estaacute a falar quando se fala de acuidade (veremos que o proacuteprio campo

da experiecircncia estaacute marcado por diferenccedilas quanto ao niacutevel de acuidade etc) por agora inte-

ressa focar que a experiecircncia se caracteriza globalmente por um deacutefice de acuidade ndash por

aquilo que podemos descrever como o caraacutecter ldquorombordquo da experiecircncia

Platatildeo parece sublinhar que a experiecircncia tem de proacuteprio precisamente o contraacuterio de

uma perspiciecircncia na captaccedilatildeo de um ldquoobjectordquo

Se por um lado a experiecircncia corresponde a uma forma de perspicaacutecia por outro la-

do a perspicaacutecia empiacuterica tem que ver exclusivamente com a detecccedilatildeo de padrotildees de regulari-

dade

Quer dizer a perspicaacutecia empiacuterica eacute uma perspicaacutecia dirigida agrave construccedilatildeo de anteci-

paccedilotildees ndash ie natildeo eacute uma perspicaacutecia nem que diga respeito a) agrave compreensatildeo do ldquoquecircrdquo daquilo

com que lida (as diferentes determinaccedilotildees que lhe vecircm da αἴσθησις e da μνήμη) nem que diga

respeito b) agrave compreensatildeo dos proacuteprios operadores com que lida (as determinaccedilotildees que utiliza

na montagem de estados-de-coisas permanentes ou das pretensas leis que potildee de peacute)

A experiecircncia regula-se sobretudo pelos contrastes imediatos ndash pelas determinaccedilotildees

em regime de ldquopronto-a-usarrdquo que lhe vecircm da αἴσθησις e da μνήμη e deixa-se absorver na re-

gularizaccedilatildeo do ldquotracircnsitordquo desses contrastes mais precisamente na fixaccedilatildeo de padrotildees e na ge-

raccedilatildeo de antecipaccedilotildees que permitem orientaccedilatildeo no meio desses contrastes e do seu tracircnsito

Para usar um termo muito em voga como palavra de ordem em algumas correntes filo-

soacuteficas do seacuteculo XX a experiecircncia natildeo tem uma vocaccedilatildeo ldquoessencialistardquo Caracteriza-se uma

perspectiva cronicamente distraiacuteda em relaccedilatildeo ao ldquoquecircrdquo

111

Mas sendo assim por outro lado tambeacutem a acentuaccedilatildeo deste aspecto tem o seu quecirc de

unilateral Com efeito se a experiecircncia tem como acabamos de dizer uma vocaccedilatildeo ldquonatildeo-es-

sencialistardquo e padece de qualquer coisa como uma croacutenica distracccedilatildeo relativamente ao ldquoquecircrdquo

nada disso impede que esteja montada como se fosse ldquoessencialistardquo e como se expusesse agrave

evidecircncia o que de relevante haacute para pocircr em evidecircncia em relaccedilatildeo ao ldquoquecircrdquo

Na verdade por mais natildeo-essencialista que a experiecircncia seja eacute justamente a expe-

riecircncia que originalmente suscita o quesito do ldquoquecircrdquo ndash resolvendo-o com a montagem de es-

tados-de-coisas permanentes (ie de ldquoleisrdquo com a pretensatildeo cognitiva que lhes inere)

Quer dizer por mais que se diagnostique agrave experiecircncia o seu caraacutecter ldquonatildeo-essencialis-

tardquo que se procure reduzi-la agrave sua real dimensatildeo de administradora de regularidades e gestora

de antecipaccedilotildees a experiecircncia tem montada uma pretensatildeo de saber que ndash na ldquomeia luzrdquo de

acuidade em que se move e que lhe eacute proacutepria ndash vale como pretensatildeo de saber o ldquoquecircrdquo (uma

pretensatildeo que como vimos nem sequer estaacute ciente de como ela proacutepria estaacute constituiacuteda)

Em suma o que caracteriza a experiecircncia eacute natildeo apenas o fenoacutemeno da quase-lei (da

pretensa lei ou da pretensa posse de leis) caracteriza-a tambeacutem uma pretensa posse do ldquoquecircrdquo

ou uma pretensatildeo de saber o que ldquofazrdquo as coisas

sect16

A ἐμπειρία enquanto algo que ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo que natildeo cumpre o que

promete e que natildeo procura aquilo que jaacute julga ter

Tocamos aqui um outro aspecto da ambiguidade que jaacute pusemos em foco quando falaacute-

mos da forccedila e da fraqueza da experiecircncia Referimo-nos agrave ambiguidade que a caracteriza em

relaccedilatildeo agravequilo que poderaacute haver acima dela (no que diz respeito agrave escala de Aristoacuteteles a am-

biguidade da ἐμπειρία em relaccedilatildeo agrave quarta secccedilatildeo ndash agravequilo a que Aristoacuteteles chama τέχνη ou

ἐπιστήμη)

Dado o que dissemos sobre a forma como a experiecircncia eacute cronicamente distraiacuteda em

relaccedilatildeo a todas as determinaccedilotildees com que labora (e em uacuteltima anaacutelise pura e simplesmente

natildeo faz ideia das determinaccedilotildees com que potildee em contacto) pode-se dizer que quando jaacute se

tem experiecircncia ainda estaacute por saber o essencial

112

Por outras palavras a fragilidade cognitiva da experiecircncia faz que quer no que toca agrave

possibilidade de se ver infirmada (possibilidade a que estaacute exposta por carecer de qualquer

fundamento suficiente para as suas projecccedilotildees) quer no que diz respeito ao conhecimento do

ldquoquecircrdquo (do que constitui as ldquocoisasrdquo do que faz o que quer que seja etc) a experiecircncia ainda

deixe por saber o que eacute decisivo

Isto eacute a) mesmo uma vez jaacute constituiacutedo um campo de experiecircncia pela natureza das

projecccedilotildees empiacutericas ainda continua por estabelecer o que a experiecircncia jaacute ldquoestabelecerdquo b)

mesmo admitindo que as projecccedilotildees empiacutericas satildeo todas elas certas continua ainda assim a

acontecer que tudo aquilo a que a experiecircncia diz respeito continua integralmente por desco-

brir no seu ldquoquecircrdquo (naquilo em que consiste etc)

Por outro lado sendo assim no entanto isto de modo nenhum impede que no plano

de distracccedilatildeo e deacutefice acuidade e distracccedilatildeo em que reina a experiecircncia natildeo apenas pretenda

alcanccedilar tudo isto que na realidade natildeo alcanccedila mas de facto faccedila valer essa pretensatildeo de tal

modo que parece alcanccedilar tudo isso Eacute este o ponto que agora interessa pocircr em destaque

Digamos antes de mais o seguinte a experiecircncia pretende ser jaacute mais do que sufici-

ente pretende ter feito tudo o que haacute a fazer em mateacuteria cognitiva De sorte que por mais in-

completa que possa ser natildeo admite nada acima de si

Em condiccedilotildees normais natildeo haacute qualquer nota de falta a experiecircncia passa por ser uma

apresentaccedilatildeo cabal e adequada do que haacute E isso potildee-nos (para usar a figura de estilo platoacuteni-

ca) de ldquocostas voltadasrdquo para o que quer que seja mais ndash e tanto quer dizer tambeacutem de ldquocostas

voltadasrdquo para as iniciativas de investigaccedilatildeo cientiacutefica

Podemos exprimir este estado-de-coisas dizendo o seguinte se a ἐμπειρία tal como

habitualmente reina em noacutes tivesse de traccedilar uma escala como aquela que eacute desenhada por

Aristoacuteteles essa escala soacute teria trecircs secccedilotildees e acabaria na ἐμπειρία

Melhor a proacutepria ἐμπειρία tal como habitualmente reina em noacutes nem sequer traccedilaria

uma escala com trecircs secccedilotildees Com efeito em virtude da sua distracccedilatildeo a si mesma (agravequilo que

a compotildee etc) tenderia a natildeo diferenciar com suficiente nitidez a αἴσθησις a μνήμη e a proacute-

pria ἐμπειρία ndash e a pocircr tudo mais ou menos ldquono mesmo sacordquo De sorte que a escala da ἐμπει-

ρία (quer dizer a nossa tal como habitualmente vemos as coisas) soacute teria uma secccedilatildeo ndash e

portanto natildeo seria uma escala

Este ldquoestar de costas voltadasrdquo para as ciecircncias tem que ver com algo que encontramos

formalizado no corpus platonicum natildeo se procura aquilo que jaacute se julga ter

113

Quando dizemos que a ἐμπειρία ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo tocaacutemos o prin-

ciacutepio que permite a geacutenese das ciecircncias As ciecircncias arrancam sempre da percepccedilatildeo de que a

ἐμπειρία natildeo cumpre o que promete ndash quer dizer as ciecircncias arrancam de uma cisatildeo mediante

a qual se reforccedila o que eacute que a ἐμπειρία permite efectivamente alcanccedilar e o programa gnosio-

loacutegico de que eacute portadora sob a forma de o dar por adquirido

Nesse sentido o programa cognitivo da ἐμπειρία jaacute prefigura aquilo que eacute procurado

nas ciecircncias E em certa medida toda a travessia de investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma travessia a

caminho disso que a ἐμπειρία distraidamente jaacute pretende ter alcanccedilado Ora eacute isso ndash natildeo a

indiferenccedila em relaccedilatildeo ao conhecimento mas a pretensatildeo de jaacute o ter aquilo a que no corpus

platonicum se chama οἴεσθαι εἰδέναι mais precisamente o οἴεσθαι εἰδέναι referente agrave ἐμπει-

ρία ndash que potildee a ἐμπειρία de ldquocostas voltadasrdquo para o empreendimento da procura do saber em

falta (ie para as ciecircncias)

Todas estas consideraccedilotildees sobre o limite superior da ἐμπειρία (quer dizer sobre a

falha cognitiva de que ela padece) podem ndash e na verdade tendem a ndash ser despedidas como

se no fundo soacute resultassem da aplicaccedilatildeo de uma bitola demasiado exigente e desajustada (li-

gada a qualquer coisa como um desiderium inane de perfeiccedilatildeo cognitiva) E natildeo eacute difiacutecil de

compreender que o que em noacutes estaacute por traacutes desta reacccedilatildeo de menosprezo eacute a proacutepria ἐμπει-

ρία (com a sua forccedila aparente a pretensatildeo de suficiecircncia de que se reveste etc) que resiste a

ser posta em causa

Contudo importa ter presente que a fragilidade cognitiva da ἐμπειρία natildeo eacute uma fragi-

lidade apenas relativa a criteacuterios desmedidos ou uma exigecircncia de perfeiccedilatildeo exagerada Trata-

se de uma imperfeiccedilatildeo real ndash uma imperfeiccedilatildeo que a atinge no seu proacuteprio fulcro e que faz

que em uacuteltima anaacutelise a ἐμπειρία natildeo cumpra rigorosamente nada do que parece E isto eacute

assim mesmo no que diz respeito agraves funccedilotildees de orientaccedilatildeo que efectivamente exerce (quer di-

zer agrave forma como permite ldquoandar no tracircnsitordquo do que nos aparece) a ἐμπειρία ldquofuncionardquo na

maioria dos casos ndash mas natildeo constitui nada do saber que pretende ter adquirido

Ora quando se avanccedila com a foacutermula ldquoa experiecircncia funciona na maioria dos casosrdquo

jaacute se estaacute a abrir campo agrave intromissatildeo a uma minoria de casos em que natildeo funciona ndash em que

as quase-leis empiacutericas revelam na verdade o seu caraacutecter de ψευδεῖς

Eacute esse o caso quando haacute espanto naquilo que diz respeito agrave ἐμπειρία o espanto revela

a fragilidade da ἐμπειρία no cumprimento do projecto de saber

114

Jaacute atraacutes consideraacutemos o fenoacutemeno do espanto Dissemos entatildeo que o espanto resulta

de uma falta de coincidecircncia entre o conteuacutedo da projecccedilatildeo empiacuterica e o conteuacutedo das percep-

ccedilotildees que efectivamente tecircm lugar Neste sentido o espanto poderia corresponder a um factor

de arranque a partir do erro detectado na lei empiacuterica Isto eacute o espanto coloca-nos a a vislum-

brar a fronteira entre a terceira para a quarta etapa da escala

Poreacutem natildeo apenas o advento do espanto natildeo eacute suficiente para fazer arrancar o projecto

cientiacutefico (em virtude do facto de na verdade uma lei empiacuterica poder muito bem ser substi-

tuiacuteda por outra lei empiacuterica sujeita aos mesmos constrangimentos da primeira e que pode de-

por na situaccedilatildeo de apaziguar o espanto) como como vimos o espanto tende a confinar-se a

umas poucas projecccedilotildees empiacutericas (no meio de um maciccedilo de projecccedilotildees aparentemente imu-

nes)

Quer dizer em primeiro lugar ao contraacuterio da transiccedilatildeo entre os outros patamares da

escala a transiccedilatildeo entre a etapa da ἐμπειρία e a etapa de τέχνη e ἐπιστήμη natildeo eacute instantacircnea

mas exige mobilizaccedilatildeo ndash exige que se gere uma tensatildeo para o passo ulterior da escala para

superar o que parece ser um acesso interdito agrave τέχνη ou έπιστήμη (em virtude de a ἐμπειρία ter

a aparecircncia de τέχνη ou έπιστήμη e em virtude de parecer que o que τέχνη e έπιστήμη poderiam

propiciar estaacute alcanccedilado)

Em segundo lugar a geraccedilatildeo de τέχνη e έπιστήμη natildeo parece implicar a totalidade do

saber mas apenas a secccedilatildeo maior ou menor em que o espanto se deu A crise por que a ἐμπει-

ρία passa natildeo seria portanto geral mas regional diria respeito meramente ao acircmbito da falha

ndash de tal modo que tudo o mais pareceria ilibado pareceria natildeo suscitar duacutevidas nem gerar pro-

blemas Assim o fundo geral constituiacutedo por ἐμπειρία pareceria manter-se ileso

Daqui decorre que a ἐμπειρία nunca perde no geral na sua grande maioria o caraacutecter

de evidecircncia que atraacutes se viu corresponder-lhe Neste sentido τέχνη e έπιστήμη aparecem co-

mo especificaccedilotildees da ἐμπειρία agrave partida τέχνη ou έπιστήμη natildeo aparecem como revoluccedilotildees de

perspectiva mas aparecem como mera focagem (que daacute lugar a uma captaccedilatildeo mais rica ou

mais precisa)

Isto eacute neste sentido τέχνη e έπιστήμη tomariam parte numa perspectiva que se mante-

ria na sua grande maioria perspectiva empiacuterica Logo τέχνη e έπιστήμη surgiriam como pro-

longamento de uma perspectiva natildeo-teacutecnica ou natildeo-episteacutemica

Ora o que Aristoacuteteles descreve quando fala do espanto como momento de arranque

das ciecircncias eacute algo muito diferente disto

115

Aristoacuteteles descreve a transiccedilatildeo entre a terceira e a quarta etapa da escala como uma

explosatildeo de espanto como um movimento de expansatildeo de perplexidades ndash uma expansatildeo que

se alargaria agraves causas primeiras

Na verdade em uacuteltima anaacutelise o projecto cientiacutefico ou episteacutemico teria sempre de cor-

responder a um projecto total ndash a um projecto que natildeo deixasse nenhuma lei ou projecccedilatildeo em-

piacuterica por verificar A transiccedilatildeo do patamar da ἐμπειρία para o de τέχνη ou έπιστήμη implicaria

uma remodelaccedilatildeo total da perspectiva

Esta sugestatildeo eacute dada em Met 983a11 a aquisiccedilatildeo de τέχνη ou έπιστήμη deve revelar

uma perspectiva diferente da perspectiva empiacuterica e natildeo apenas uma perspectiva diferente

mas uma perspectiva contraacuteria jaacute que se passa de natildeo estar para estar na posse da identidade

do ldquoquecircrdquo das coisas Em suma τέχνη ou έπιστήμη propiciariam uma mudanccedila global de pers-

pectiva

Ora o caso eacute que embora natildeo constitua nada do saber que pretende ter adquirido a

ἐμπειρία parece ldquofuncionarrdquo na maioria dos casos E isto eacute tanto assim que se considerarmos

aquilo que estaacute especialmente em causa nesta investigaccedilatildeo ndash a vida ndash e perguntarmos que eacute

que a experiecircncia da vida pode alcanccedilar em relaccedilatildeo agrave vida entatildeo a resposta eacute a seguinte se a

experiecircncia da vida eacute ἐμπειρία no sentido que aqui tentaacutemos desenhar pode muito bem ter-se

experiecircncia da vida (e ateacute experiecircncia da vida resultante de uma larga travessia perceptiva)

sem saber absolutamente nada do que constitui o que quer que seja pode muito bem ter-se ex-

periecircncia da vida sem saber nada do que constitui a vida (o ldquoquecircrdquo da vida) e pode muito bem

ter-se experiecircncia da vida ateacute mesmo sem perceber que natildeo se percebe nada disto julgando

pelo contraacuterio ter percebido tudo muito bem

Se a experiecircncia tem as caracteriacutesticas que enunciaacutemos o que a caracteriza eacute o facto

de as suas aquisiccedilotildees terem que ver com a orientaccedilatildeo no ldquotracircnsitordquo do que aparece ndash num regi-

me de relativa distracccedilatildeo relativamente ao ldquoquecircrdquo do que quer que seja

116

LIVRO II

EXPERIEcircNCIA DA VIDA

117

INTRODUCcedilAtildeO

sect17

Os sentidos muito diversos da noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo a ldquoexperiecircncia da vidardquo como

mero ramo da experiecircncia ou toda a experiecircncia tal como acontece em noacutes sempre jaacute de

raiz ldquoexperiecircncia da vidardquo

Um componente essencial que as secccedilotildees anteriores deixaram por desenhar diz respei-

to ao quadro em que se produz o tipo de captaccedilatildeo do proprium da experiecircncia que nelas en-

saiaacutemos Vendo bem no quadro que as secccedilotildees anteriores esboccedilaram concebe-se a experiecircn-

cia como uma operaccedilatildeo numa espeacutecie de ldquoeacuteterrdquo

Se o fenoacutemeno da experiecircncia correspondesse meramente ao resultado da anaacutelise leva-

da a cabo nas secccedilotildees anteriores o que teriacuteamos seria a experiecircncia entendida como uma for-

ma ldquosoltardquo de constituiccedilatildeo de um aparecimento mais complexo e essa forma ldquosoltardquo seria

compreendida independentemente daquilo a que concretamente se aplica (e isto tanto no que

diz respeito ao teor quanto no que diz respeito agrave amplitude daquilo a que se aplica)

Poderiacuteamos dizecirc-lo assim segundo o modelo que vimos ateacute agora a estrutura da expe-

riecircncia constituiria algo de invariaacutevel e constituiria por outro lado em simultacircneo uma forma

abrangente de aplicaccedilatildeo geral Na medida em que a experiecircncia constituiria uma uacutenica for-

ma (na medida em que tem o mesmo conjunto de propriedades fundamentais em qualquer ca-

so) entatildeo a forma da expe-riecircncia seria susceptiacutevel de ter lugar nos mais diversos acircmbitos ou

de se aplicar sobre os mais diversos objectos

Quer dizer vista como a vimos ateacute este ponto a experiecircncia poderia ser do que quer

que fosse ndash na medida em que a todos os objectos de que se tem ou se pode ter experiecircncia se

aplica a forma da experiecircncia Poderia dizer-se em suma segundo o modelo que vimos ateacute

este momento que a forma da experiecircncia se aplicaria de modo indiferenciado

Ora essa consideraccedilatildeo ldquoabstractardquo da experiecircncia pode fazer perder de vista a possibi-

lidade de justamente natildeo ser assim

118

Isto eacute ela pode fazer perder de vista a possibilidade de o quadro em que estamos cons-

tituiacutedos em relaccedilatildeo agrave experiecircncia ser muito diferente deste registo aberto a toda a espeacutecie de

possibilidades de aplicaccedilatildeo

A perspectiva em que laboraacutemos nas secccedilotildees precedentes esquece a possibilidade de

as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia terem sempre lugar no quadro de uma vinculaccedilatildeo por

estarem sempre jaacute voltadas para um dado complexo de teores ou de ldquoobjectosrdquo com uma de-

terminada amplitude

Na verdade pode muito bem acontecer que a experiecircncia nunca seja alheia a um qua-

dro dessa ordem Isto eacute pode acontecer que a experiecircncia se caracterize sempre jaacute por uma

grelha de determinaccedilotildees e por uma amplitude fixa natildeo sendo de raiz indiferente nem a uma

nem agrave outra E isto de tal modo que ateacute pode acontecer que esse quadro seja justamente tal

que se preste a ser fixado na forma ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash e que toda a experiecircncia tal como

acontece em noacutes seja sempre de raiz uma experiecircncia da vida (e nunca menos do que isso)

Para seguirmos na pista desta possibilidade consideremos o seguinte

Eacute notaacutevel que ndash mesmo quando se faz valer que a nossa forma de acesso eacute uma forma

de acesso empiacuterica como as secccedilotildees anteriores procuraram demonstrar ndash o modelo que conti-

nua sub-repticiamente a subsistir eacute o modelo da experiecircncia como algo avulso

Isto eacute agrave revelia do que vimos atraacutes o modelo que continua a subsistir eacute um modelo em

que uma mesma forma abrange ou abarca muitos ldquoobjectosrdquo se dirige a x ou a y (mas natildeo

por exemplo a z) ndash como uma ldquoviagemrdquo com vaacuterios ldquodestinosrdquo O modelo que subsiste eacute em

suma um modelo que assenta no caraacutecter distributivo da forma da experiecircncia

Neste sentido a experiecircncia incidiria sobre alguns ldquoconteuacutedosrdquo (ao mesmo tempo que

deixaria de fora todos os ldquoconteuacutedosrdquo em que natildeo incidisse) constituiria ramos consistiria em

pequenos focos isolados etc

Na verdade eacute assim ndash ie seguindo subtilmente o modelo de experiecircncia avulsa ndash que

habitualmente se tende a conceber a experiecircncia Quando falamos de ldquouma experiecircnciardquo ou de

ldquoexperiecircnciasrdquo o modelo que inconscientemente aplicamos faz sobressair o caraacutecter pontual

ou circunscrito do que aparece ou do que ocorre O termo ldquoexperiecircnciardquo isola habitualmente

uma ocorrecircncia singular ndash uma ocorrecircncia que eacute apartada do resto das ocorrecircncias O que

com isso se salienta eacute um certo caraacutecter excepcional excecircntrico por ldquoexperiecircnciardquo toma-se

por assim dizer algo de perfeitamente localizado destacado diacutespar etc Tem-se experiecircncia

de x mas natildeo de y ou z etc

119

O que isto quer dizer eacute que no sentido habitual do termo ldquouma experiecircnciardquo eacute algo

que aparece como uma ldquoilhardquo no meio de um ldquomarrdquo de ocorrecircncias que natildeo tecircm a forma da

experiecircncia

Eacute isto que daqui em diante importa reconsiderar E eacute no acircmbito desta reconsideraccedilatildeo

que entra em cena o conceito de ldquoexperiecircncia da vidardquo

Vendo bem a noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo pode acolher sentidos muito diversos

eventualmente contraditoacuterios entre si Isto tem que ver com o facto de poder ser abordada de

vaacuterios acircngulos que modificam muito significativamente a nossa perspectiva a seu respeito

Natildeo cabe considerar aqui todas essas perspectivas Mas haacute alguns aspectos que deve-

mos pocircr em destaque

Ao considerarmos habitualmente a ldquoexperiecircncia da vidardquo tendemos a supor que es-

tamos a falar de um campo de aplicaccedilatildeo particular de algo como um ramo da experiecircncia

geral se assim se pode dizer

Essa perspectiva natildeo se acha desmentida nas secccedilotildees precedentes De facto o modelo

que vimos ateacute agora sugere justamente que a) a experiecircncia pode ter diversos ldquoobjectosrdquo (po-

de ser de diversas ldquocoisasrdquo e ter diversas amplitudes de aplicaccedilatildeo) e que b) entre os ldquoobjec-

tosrdquo possiacuteveis da experiecircncia se encontra tambeacutem o ldquoobjectordquo ldquovidardquo

Nesta oacuteptica a noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo compreenderia a contracccedilatildeo de dois ter-

mos (ldquoexperiecircnciardquo e ldquovida) sem qualquer nexo essencial entre si

A ldquovidardquo natildeo seria mais do que um mero tema ou um domiacutenio possiacutevel da experiecircn-

cia Dito de outro modo a ldquovidardquo seria algo como um ldquoobjectordquo entre outros que se limitaria

a ser entendido sob a matriz da experiecircncia como uma variaccedilatildeo dessa matriz etc

Mais ainda natildeo apenas a experiecircncia da ldquovidardquo seria uma mera variedade de experiecircn-

cia (de entre uma variedade de outras experiecircncias possiacuteveis) como seria um ramo facultativo

ndash um ramo que se poderia constituir em ldquoobjectordquo ou natildeo

Ao mesmo tempo isto quereria dizer que natildeo haveria qualquer relaccedilatildeo de interacccedilatildeo

ou coordenaccedilatildeo entre os diferentes ldquoramosrdquo Ou seja a constituiccedilatildeo de experiecircncia de qual-

quer ldquoobjectordquo natildeo estaria dependente de uma eventual constituiccedilatildeo de experiecircncia da ldquovidardquo

ndash e o contraacuterio seria igualmente verdadeiro No limite a experiecircncia de qualquer ldquoobjectordquo (e

assim tambeacutem a experiecircncia da ldquovidardquo) seria uma experiecircncia avulsa completamente isolada

120

da experiecircncia de qualquer outro ldquoobjectordquo (ie sem interferir de modo algum com a experi-

ecircncia de qualquer outro ldquoobjectordquo)

Eacute claro que este modelo de constituiccedilatildeo separada da experiecircncia e da vida (que os

concebe como dois domiacutenios separados ndash ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo ndash susceptiacuteveis de se junta-

rem cruzarem etc) chama a atenccedilatildeo para o facto de termos habitualmente noccedilatildeo de qual-

quer coisa como uma experiecircncia da vida Isto quer dizer que estamos constituiacutedos de tal mo-

do que a vida eacute algo de que se tem experiecircncia e faz sentido falar de algo como ter-se ldquoexpe-

riecircnciardquo da ldquovidardquo

Isto eacute mesmo que fosse assim (mesmo que se aplicasse o modelo que vimos ateacute ago-

ra) a ldquovidardquo traria algo agrave equaccedilatildeo jaacute que a ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo se distinguiria de todas

as outras variaccedilotildees de experiecircncia possiacuteveis Na medida em que natildeo seria idecircntica a nenhu-

ma das outras variaccedilotildees de experiecircncia possiacuteveis entatildeo caberia agrave ldquoexperiecircncia da vidardquo ser

uma experiecircncia particular especiacutefica etc Poreacutem seja como for a variaccedilatildeo natildeo seria mais

do que uma mera variaccedilatildeo quanto ao ldquoobjectordquo (quanto ao teor e agrave amplitude) A matriz fun-

damental da experiecircncia seria univer-salmente vaacutelida (e aplicaacutevel a todos os ldquoobjectosrdquo) E o

que a ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo traria de particular e especiacutefico seria algo secundaacuterio um caso

particular dessa matriz fundamental etc

Acontece que ao considerar mais detidamente este modelo (e o facto de estarmos fa-

miliarizados com algo como a ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo) resulta que toda a compreensatildeo que

se tem disso manteacutem aberta ou indeterminada a relaccedilatildeo que a ldquovidardquo tem com a ldquoexperiecircn-

ciardquo

Na evidecircncia de que temos uma noccedilatildeo de ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo estaacute totalmente por

compreender como eacute que a vida tem que ver com a experiecircncia como eacute que a experiecircncia da

vida se distingue de todas as outras modalidades de experiecircncia a que ldquoobjectordquo se refere

etc Fica igualmente por esclarecer se a vida desempenharaacute algum papel na constituiccedilatildeo da

experiecircncia e no caso de uma resposta positiva que papel desempenha a vida na constituiccedilatildeo

da experiecircncia

121

sect18

O caraacutecter oacutebvio vago desfocado e equiacutevoco da noccedilatildeo habitual de ldquovidardquo ndash Abordagem

preliminar agrave noccedilatildeo de ldquovidardquo a unidade maacutexima do aparecimento na primeira pessoa

Se natildeo estamos a ver mal a perspectiva que habitualmente se tem quando se com-

preende a ldquovidardquo como um mero campo de aplicaccedilatildeo entre outros (como um mero ldquoobjectordquo

possiacutevel da experiecircncia) corresponde a uma forma muito peculiar de relaccedilatildeo com aquilo que

estaacute em causa na noccedilatildeo de ldquovidardquo

Todo este modelo de constituiccedilatildeo separada da experiecircncia e da vida parece assentar na

pressuposiccedilatildeo de que se sabe muito bem de que eacute que se trata quando se fala da ldquovidardquo ndash ie

de que a ldquovidardquo tem um caraacutecter oacutebvio

Ora se tentarmos identificar um pouco mais precisamente o que estaacute em causa quando

se fala na ldquovidardquo surgem problemas

Eacute que o conceito de ldquovidardquo tambeacutem admite diversos usos e tambeacutem se aplica a diver-

sos campos eacute que tambeacutem ele se dispersa por uma constelaccedilatildeo de fenoacutemenos eventualmente

distintos ou contraditoacuterios entre si

Na verdade a forma como habitualmente usamos o conceito de ldquovidardquo ndash e percebe-

mos como entre outros tambeacutem a vida pode ser um objecto da experiecircncia de tal modo que

haacute qualquer coisa como uma experiecircncia da vida etc ndash ressente-se deste caraacutecter vago des-

focado equiacutevoco etc

Este ponto eacute particularmente importante para o complexo de questotildees que aqui preten-

demos analisar em relaccedilatildeo agrave ldquoexperiecircncia da vidardquo

Com efeito eacute justamente esse caraacutecter vago (desfocado equiacutevoco etc) do que estaacute

em causa na ldquovidardquo (os contornos pouco definidos essa relaccedilatildeo frouxa com o que constitui a

vida etc) que faz que seja igualmente frouxo o nexo entre ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo no concei-

to mais comum de ldquoexperiecircncia da vidardquo

Como ficaraacute mais claro na continuaccedilatildeo uma anaacutelise de como estaacute constituiacutedo o fenoacute-

meno da ldquovidardquo acabaraacute por apurar que o nexo com a experiecircncia natildeo eacute de modo nenhum

frouxo nem facultativo O que se apura eacute de facto o contraacuterio que toda a ldquoexperiecircnciardquo eacute

sempre jaacute ldquoexperiecircncia da vidardquo e assim tambeacutem que a vida tem de raiz a estrutura ou a

forma da ldquoexperiecircnciardquo

122

Se tivermos em conta o modelo de constituiccedilatildeo separada da experiecircncia e da vida o

que se desenha eacute que os ldquoobjectosrdquo da experiecircncia natildeo afectam de modo nenhum a ldquoformardquo da

experiecircncia (precisamente na medida em que a mesma ldquoformardquo se aplica a uma variedade de

ldquoobjectosrdquo que a ldquoformardquo eacute independente dos ldquoobjectosrdquo a que se aplique etc) O que isto

parece querer dizer eacute que o que ldquoobjectordquo ndash qualquer que ele seja ndash natildeo desempenha nenhum

papel na constituiccedilatildeo da experiecircncia

Poreacutem o que nos interessaraacute considerar mais detidamente nas secccedilotildees que se seguem eacute

que a vida natildeo eacute apenas um campo secundaacuterio ou perifeacuterico onde se ganhem meramente de-

terminaccedilotildees acessoacuterias ou suplementares a uma matriz fundamental

Na verdade o horizonte que de seguida se abriraacute altera radicalmente o modo como o

fenoacutemeno da ldquoexperiecircnciardquo nos aparece e isto de tal modo que se deixaacutessemos esta possibi-

lidade por considerar natildeo soacute a) o fenoacutemeno da ldquoexperiecircnciardquo nos apareceria incompleto e

mutilado de uma parte do que o compotildee como b) poderiacuteamos deixar simplesmente escapar

os factores que modificam o modo como a experiecircncia nos aparece e que ndash e este eacute o ponto

decisivo ndash a potildeem a ser de certo modo o contraacuterio de algo abstracto e independente daquilo

que tem por ldquoobjectordquo

Eacute que se natildeo estamos a ver mal como numa secccedilatildeo anterior jaacute tiacutenhamos mencionado

de passagem as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia tecircm lugar no quadro de uma vinculaccedilatildeo

A experiecircncia estaacute desde a raiz sob a pressatildeo de quesitos e a sua constituiccedilatildeo responde a

exigecircncias

O que isto indica eacute que a experiecircncia natildeo eacute por assim dizer de ldquogeraccedilatildeo espontacircneardquo

Muito pelo contraacuterio a experiecircncia estaacute fundada sobre (ou eacute dependente de) uma estrutura

fundamental que ultrapassa o seu acircmbito

Ora como veremos mais detalhadamente na continuaccedilatildeo a ldquovidardquo eacute precisamente

isso que define ao mesmo tempo a circunscriccedilatildeo do teor e da amplitude dos ldquoobjectosrdquo para

que a experiecircncia estaacute sempre jaacute voltada

Daqui decorre que a ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo eacute algo de facultativo (algo que se po-

deria constituir em objecto ou natildeo) tal como natildeo eacute algo sem qualquer intervenccedilatildeo sobre os

restantes ramos da experiecircncia Qualquer ldquoramordquo da experiecircncia estaacute vendo bem depen-

dente da ldquoexperiecircncia da vidardquo subordinado a ela a constituiccedilatildeo da experiecircncia do que

quer que seja natildeo estaacute agrave revelia da experiecircncia da vida etc

123

Para percebermos isto eacute indispensaacutevel dar lugar mesmo que de forma muito geneacuterica

a vaacuterios aspectos da equivocidade do conceito de ldquovidardquo

A vida pode ser entendida no quadro da scala naturaelig (ie no quadro da sequecircncia

esse ndash vivere ndash perciperesentire ndash intelligere)34

ldquoVidardquo significa no quadro da scala naturaelig um determinado modo-de-ser que faz

parte de um complexo de modos-de-ser que tende a aparecer-nos a) como esgotando todas as

possibilidades de modos-de-ser e b) como tendo caraacutecter tal que os modos mais complexos soacute

satildeo possiacuteveis em relaccedilatildeo aos menos complexos que vecircm transformar na superveniecircncia que

os excede

Natildeo estamos neste passo em condiccedilotildees de considerar em toda a extensatildeo a que questatildeo

ou complexo de questotildees responde esta escala de que modo estaacute esta escala formada ou em

especial que ldquolugarrdquo ocupa a vida na escala Interessa mostrar apenas muito brevemente dois

aspectos que a escala expotildee

Por um lado que o que estaacute em causa na scala naturaelig eacute uma precedecircncia de uns niacute-

veis da escala sobre outros A scala naturaelig apresenta uma etapa como sendo uma deduccedilatildeo da

anterior Assim essere tem precedecircncia sobre vivere que por sua vez tem precedecircncia sobre

sentire que tem enfim precedecircncia sobre intelligere

O que a scala naturaelig parece apontar eacute que essere eacute condiccedilatildeo de possibilidade de vive-

re sentire e intelligere que vivere eacute condiccedilatildeo de possibilidade de sentire e intelligere e que

sentire eacute ainda condiccedilatildeo de possibilidade de intelligere ndash de tal modo que invertendo a esca-

34

Natildeo interessa fazer aqui uma historiografia nem da noccedilatildeo formal ldquoscala naturaeligrdquo nem das muacuteltiplas

desformalizaccedilotildees que mereceu ao longo da histoacuteria Uma historiografia exaustiva mostraria antes de

mais um questionamento quanto agrave origem (quer agrave proacutepria origem da noccedilatildeo quer agrave origem do uso ope-

rativo de algo como uma scala naturaelig) se alguns autores referem o Timeu de Platatildeo outros citam o

De Generatione Animalium de Aristoacuteteles por exemplo Ao mesmo tempo uma historiografia exaus-

tiva como a de Lovejoy (The great Chain of being A Study of the History of an idea 1969 Cambrid-

ge Harvard University Press) mostra tambeacutem uma incriacutevel variedade de escalas muito distintas entre

si ndash quer em relaccedilatildeo ao cardinal de niacuteveis de que eacute composta quer em relaccedilatildeo aos conteuacutedos que ocu-

pam os diversos niacuteveis ndash tudo isto consoante os diversos autores e as diversas eacutepocas que se debruccedila-

ram sobre o tema Ora o que nos interessa neste passo eacute apenas fazer notar que o formato que estamos

aqui a adoptar (esse ndash vivere ndash perciperesentire ndash intelligire) corresponde agrave fixaccedilatildeo produzida em tex-

tos como os de Mezger (Quatuor gradus naturae esse vivere sentire et intelligere Salisburgum

Mayr 1664) ou de Tomaacutes de Aquilo (Summa Theologiae Textum Leoninum Romae 1889 q 76 a 4

ad 3) e que aquilo a que estamos em geral a apelar ao fazer uso desta noccedilatildeo eacute a uma estrutura funda-

mental que espontacircnea e anonimamente domina o modo como estamos constituiacutedos

124

la intelligere natildeo eacute possiacutevel sem sentire vivere e essere que por sua vez sentire natildeo eacute possiacute-

vel sem vivere e essere e que por fim vivere natildeo eacute possiacutevel sem essere Dito por outras pa-

lavras tudo o que eacute vivo teria a propriedade de ser tudo o que sente teria a propriedade de

ser e de ser vivo e tudo o que tem intelecto teria a propriedade de ser de ser vivo e de sentir

Por outro lado no entanto os diversos patamares natildeo se influenciam unidireccional-

mente ndash do essere (que compreende todas as outras camadas) ao intelligere (que eacute compreen-

dido por todas as outras) O caso parece aliaacutes ser o contraacuterio

Ainda que ldquoo que eacuterdquo natildeo dependa de ser ldquovivordquo para ldquoserrdquo depende de ser ldquovivordquo pa-

ra ter perspectiva sobre o facto de ldquoserrdquo

Isto eacute a escala sugere que haacute algo como uma estrutura retrospectiva de acesso agrave etapa

precedente ndash isto de tal modo que um ser ldquonatildeo vivordquo natildeo tem qualquer perspectiva sobre o

facto de ser que um ser ldquonatildeo sensiacutevelrdquo natildeo tem qualquer perspectiva sobre o facto de ldquoestar

vivordquo e que um ser sem intelecccedilatildeo natildeo tem qualquer perspectiva sobre o facto de ser um ldquoser

vivo sensiacutevelrdquo

Ora entendida neste sentido meramente formal (no sentido de constituir um modo-de-

ser e de constituir um modo-de-ser que abre perspectiva sobre ldquoo que eacuterdquo) a vida deixa aberto

o horizonte para uma miriacuteade de formas de abordagem (e tanto quer dizer tambeacutem para uma

miriacuteade de concepccedilotildees de acircngulos etc) consoante as disciplinas que sobre ela se debruccedilam

consoante os seus pressupostos teoacutericos e morfologias etc

Na verdade haacute uma incriacutevel variedade de disciplinas que se dedicam agrave vida Poreacutem

aquilo que notamos ao considerar individualmente cada uma dessas disciplinas eacute que elas in-

troduzem um movimento de restriccedilatildeo de acircmbito ndash o movimento de restriccedilatildeo de acircmbito que

diz respeito ao proacuteprio conceito operativo de ldquovidardquo que cada uma aplica

O que daqui resulta eacute que nenhuma disciplina esgota de modo nenhum a ldquovidardquo en-

quanto objecto de estudo Na verdade cada disciplina deixa em aberto o horizonte para uma

miriacuteade de outros acircngulos e outros meacutetodos de abordagem ndash expresso na miriacuteade de outras

disciplinas que versam precisamente o ldquomesmordquo assunto a partir de outros acircngulos e de ou-

tras abordagens ndash assim como deixa de fora tudo o resto que constitui a vida (tudo o resto

que compotildee isso a que habitualmente nos referimos quando falamos de ldquovidardquo)35

35

Considere-se por exemplo a biologia Por mais que a biologia tenha por objecto a vida a verdade eacute

que o objecto ldquovidardquo considerado a partir da oacuteptica da biologia deixa de fora todo um conjunto de as-

125

Eacute neste sentido que o conceito de ldquovidardquo pode ser equiacutevoco ndash e pode ser equiacutevoco pre-

cisamente porque se presta a usos ou a acircngulos de abordagem que satildeo por vezes totalmente

incompatiacuteveis entre si

Ora o sentido da noccedilatildeo de ldquovidardquo que aqui se teraacute em mente eacute muito diferente do que

vimos ateacute agora O sentido que aqui se tem em mente eacute o fenoacutemeno da ldquovidardquo como de cada

vez eacute tido na primeira pessoa e que tem um caraacutecter de totalidade

Vejamos um pouco melhor o que queremos dizer com isto

A ldquovidardquo no sentido do termo que aqui temos em jogo corresponde agrave unidade maacutexima

do proacuteprio aparecimento ndash na medida em que natildeo se encontra dispersa como uma ldquoilhardquo to-

talmente perdida em si mesma e privada de qualquer relaccedilatildeo com o que se situa para laacute de si

E como veremos melhor na continuaccedilatildeo esta unidade maacutexima na primeira pessoa (a vida)

produz uma unificaccedilatildeo global de tudo o que aparece constituindo um uacutenico horizonte

Eacute verdade que por outro lado essa unidade maacutexima na primeira pessoa se distingue

por ser apenas isso a unidade maacutexima na primeira pessoa ndash e tanto quer dizer uma iacutenfima

parte no meio de um maciccedilo de realidade com dimensotildees absolutamente esmagadoras em re-

laccedilatildeo agraves suas

Ao falar de vida neste sentido o que estaacute sempre jaacute em causa eacute a forma de aconteci-

mento em que cada um daacute por si em que cada um estaacute atirado em que se estaacute sempre jaacute pos-

to etc

Mas natildeo apenas isso Trata-se na verdade de algo de exclusivo (de algo de particular

de privado de pessoal etc) ndash de algo que de certo modo se atravessa pelo proacuteprio peacute que eacute

meramente desse a quem pertence ou que nela estaacute atirado etc

Mais trata-se precisamente de algo que estaacute encerrado nesse a quem pertence que

nela estaacute atirado ou em que daacute por si Isto eacute trata-se de algo que impassiacutevel de ser passado a

outro (de algo que eacute incomunicaacutevel insusceptiacutevel de ser transmitido ou partilhado etc)

Mas mesmo sendo assim isso natildeo impede que tudo quanto a exceda ndash e em relaccedilatildeo

ao qual tem as dimensotildees de um iacutenfimo recanto ndash tambeacutem faccedila parte dela e esteja incluiacutedo na

pectos que compotildeem a vida tal como a entendemos habitualmente ndash e com isso pode muito bem

acontecer que os aspectos que deixa de fora sejam aspectos essenciais para compreender isso a que ha-

bitualmente nos referimos quando falamos de ldquovidardquo

126

unidade maacutexima na primeira pessoa que aqui pretendemos pocircr em destaque Isto eacute trata-se

de algo que tem caraacutecter de totalidade

Por um lado a vida natildeo eacute algo que esteja de tal modo fechado em si que natildeo tenha

qualquer relaccedilatildeo com o exterior A vida ndash mesmo no sentido de ldquoisso que corresponde a cada

umrdquo ndash eacute algo que estaacute englobado num campo de realidade muito mais vasto

Mas natildeo estaacute englobado nesse campo mais vasto como se tivesse posto numa relaccedilatildeo

de radical heterogeneidade em relaccedilatildeo a ele Pelo contraacuterio como veremos mais precisamen-

te na continuaccedilatildeo a vida estaacute constituiacuteda de tal modo que tudo lhe eacute interior tudo faz parte

dela etc ndash isto na medida em que tudo o que aparece assume de certo modo um papel ne-

la36

Natildeo se trata neste passo de discutir este aspecto com qualquer preocupaccedilatildeo de tentar

compreender os seus meandros ndash esta peculiar instacircncia de propriedade a que cada um chama

a sua vida e ao mesmo tambeacutem ldquoardquo vida O que interessa assinalar eacute que com tudo o que

tem de paradoxal de difiacutecil de determinar e de entender constitui um fenoacutemeno central no

acontecimento em que nos achamos constituiacutedos ndash neste εἶναι τοῖς ποῖ δεῖ βαδίζειν ἀγνοοῦσι

que (como se diz em Met 995a) eacute o que noacutes somos

O que se trata eacute precisamente de tentar focar este peculiar fenoacutemeno de perceber

melhor os seus traccedilos na medida em que eacute em relaccedilatildeo a ele que se pretende averiguar o nexo

de ligaccedilatildeo agrave experiecircncia ndash e tanto quer dizer tambeacutem o nexo de ligaccedilatildeo da experiecircncia a esta

peculiar forma de totalidade

Em suma o que estaacute em causa quando se aborda a ldquoexperiecircncia da vidardquo (ie quando

se foca o nexo entre ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo) natildeo eacute como se veraacute claramente na continuaccedilatildeo

apenas uma regiatildeo de contacto entre duas instacircncias nucleares alheias uma agrave outra Eacute na

verdade algo muito diferente a saber que vidardquo e ldquoexperiecircnciardquo natildeo podem ser plenamente

compreendidas isoladamente

36

Toca-se aqui uma paradoxal propriedade da unidade maacutexima na primeira pessoa a que chamamos

ldquovidardquo o facto de corresponder a qualquer coisa semelhante a uma fita de Moumlbius ie o facto de se

caracterizar pela estranha possibilidade de o envolvente ser envolvido e vice-versa de o interior se

revelar exterior e o exterior interior etc A este propoacutesito ver Silva N Identidade e vida em Virginia

Woolf uma anaacutelise da expressatildeo literaacuteria de um problema filosoacutefico Tese de Doutoramento UNL

Lisboa 2011 p 73-85

127

A experiecircncia soacute se manifesta tal como efectivamente tem lugar quando eacute percebida

na sua relaccedilatildeo com a vida e inversamente a vida soacute se manifesta como efectivamente tem lu-

gar na sua relaccedilatildeo com a experiecircncia

Haacute e seraacute isso que as secccedilotildees seguintes tentaratildeo pocircr a claro um entretecimento uma

muacutetua implicaccedilatildeo a compreensatildeo do que estaacute em causa na ldquovidardquo estaacute incompleta e desfo-

cada sem a compreensatildeo simultacircnea do que estaacute em causa na ldquoexperiecircnciardquo e a compreen-

satildeo do que estaacute em causa na ldquoexperiecircnciardquo estaacute incompleta e desfocada sem a compreensatildeo

simultacircnea do que estaacute em causa na ldquovidardquo

O que se deixaraacute ver eacute que se levarmos este modelo ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircn-

cias a experiecircncia do que quer que seja eacute no limite sempre experiecircncia da vida ndash e tanto

quer dizer estaacute na dependecircncia da vida estaacute assente sobre as fundaccedilotildees da vida tem a vida

por base e por objecto etc E assim tambeacutem a vida estaacute constituiacuteda no modo de uma experi-

ecircncia da vida ndash e tanto quer dizer estaacute na dependecircncia da experiecircncia estaacute assente sobre as

fundaccedilotildees da experiecircncia tem a experiecircncia por base tem por inerecircncia ou de raiz a forma

da experiecircncia etc

O que se trataraacute de saber nas secccedilotildees posteriores eacute como eacute que isto se daacute

A resposta agrave pergunta ldquocomo eacute que laquoexperiecircnciaraquo e laquovidaraquo soacute se manifestam tal como

efectivamente tecircm lugar na sua relaccedilatildeo uma com a outrardquo eacute a que guiaraacute todos os passos

que daremos daqui em diante E a resposta a essa pergunta passaraacute por uma anaacutelise atenta de

alguns aspectos fundamentais da ldquomorfologiardquo e da ldquofisiologiardquo da ldquoexperiecircnciardquo ndash e tanto

quer dizer de alguns aspectos fundamentais da ldquomorfologiardquo e da ldquofisiologiardquo da ldquoexperiecircncia

da vidardquo

128

II EXPERIEcircNCIA DA VIDA

PRIMEIRA PARTE

sect19

A experiecircncia tal como tem lugar em noacutes estaacute vinculada a um quadro determinado

quanto ao teor e agrave amplitude ndash O acircmbito das totalidades a que a experiecircncia e a organiza-

ccedilatildeo da experiecircncia dizem respeito ndash O desfazamento entre a magnitude do empreendimen-

to da ἐμπειρία e as caracteriacutesticas das determinaccedilotildees disponiacuteveis o modelo ldquoalfabeacuteticordquo

Podemos resumir a inflexatildeo que se comeccedilou a desenhar na introduccedilatildeo deste segundo

livro do seguinte modo a experiecircncia ndash entendida como uma forma solta ndash pode correspon-

der a muito diversos quadros de aparecimento consoante as variaccedilotildees do teor e da amplitude

que determinam o seu modo e o seu campo de aplicaccedilatildeo Neste sentido a experiecircncia ndash a for-

ma da experiecircncia tal como procuraacutemos defini-la ndash eacute insuficiente para determinar o quadro

de aparecimento em que se estaacute

Ao contraacuterio do que fica sugerido a partir da noccedilatildeo de experiecircncia como ldquoforma soltardquo

(ou de um entendimento distraiacutedo do que significa o facto de estarmos sempre num ponto de

vista empiacuterico) a experiecircncia tal como tem lugar em noacutes estaacute vinculada a um quadro deter-

minado (tanto no que diz respeito ao seu teor quanto no que diz respeito agrave sua amplitude) de

tal modo que tem sempre lugar nesse quadro

Sucede entretanto que esta inflexatildeo tem ainda um caraacutecter puramente formal e muito

vago

Para compreender de modo mais agudo o que estaacute em causa falta ver em concreto a)

de que variaccedilotildees quanto ao teor e agrave amplitude estamos a falar (ie que variaccedilotildees satildeo rele-

vantes como eacute que mudanccedila do ldquolequerdquo do teor e da amplitude da experiecircncia pode dar lugar

a resultados ndash ou a ldquoexperiecircnciasrdquo ndash muito diferentes entre si etc) e b) que multiplicidade de

factores de fixaccedilatildeo (tanto do teor quanto da amplitude) satildeo determinantes na definiccedilatildeo do

quadro a que a experiecircncia tal como sempre tem lugar em noacutes estaacute vinculada

129

Assim num primeiro momento trata-se de focar mais detidamente as variaccedilotildees de

que podem resultar ldquomundosrdquo muito diferentes entre si e muito diferentes daqueles com que

estamos familiarizados Num segundo momento trata-se de focar a peculiar figura de con-

tracccedilatildeo ndash contracccedilatildeo relativamente ao universo de realidades em causa no primeiro momento

ndash que estaacute consagrada na forma como em noacutes tem lugar o fenoacutemeno da experiecircncia

Comecemos por considerar a questatildeo da amplitude

Por um lado o domiacutenio a que a experiecircncia se estende (o domiacutenio que a experiecircncia

ldquocobrerdquo o territoacuterio sobre o qual se exerce etc) pode ser muito diverso E pode ser muito di-

verso em relaccedilatildeo a duas variaacuteveis fundamentais uma determinada ldquomanchardquo (ou amplitude)

no espaccedilo e uma determinada ldquomanchardquo (ou amplitude) no tempo

Vendo bem o acircmbito das totalidades a que a experiecircncia eacute relativa ndash o tamanho espaacute-

cio-temporal do territoacuterio da ἐμπειρία o facto de a sua amplitude global ser mais limitada ou

mais extensa ser riacutegida ou pelo contraacuterio flexiacutevel etc ndash interfere com a organizaccedilatildeo da ex-

periecircncia

Quer dizer por um lado estaacute em causa uma pergunta pelo acircmbito ou pela amplitude

da experiecircncia ndash uma pergunta pelo seu limite maacuteximo ateacute onde se estende quais satildeo as

suas dimensotildees etc Por outro lado a proacutepria organizaccedilatildeo da experiecircncia depende da am-

plitude global a que se refere de tal modo que consoante a amplitude global a que se refere

haacute vaacuterias possibilidades de organizaccedilatildeo da experiecircncia

O facto de a experiecircncia envolver sempre uma ldquoexplosatildeordquo das dimensotildees do que fica

dado por assente (e implicar sempre a assunccedilatildeo de naturezas permanentes correspondentes agrave

forma da ldquoleirdquo empiacuterica) natildeo impede que quer a) o terminus ad quem da ldquoexplosatildeordquo (ou o

ldquoterritoacuteriordquo domesticado pela captaccedilatildeo empiacuterica) quer b) o ldquoprazo de validaderdquo dos estados-

de-coisas-permanentes (ou o ldquohorizonte temporalrdquo a que a projecccedilatildeo empiacuterica diz respeito)

possam ainda corresponder a amplitudes muito diversas Mais estas diferentes possibilidades

configuram tambeacutem muito diversas possibilidades de conformaccedilatildeo do ponto de vista empiacuterico

ndash ou seja configuram ldquoexperiecircnciasrdquo com caracteriacutesticas muito diversas

Ou seja por uma parte a experiecircncia eacute sempre relativa a uma ldquototalidaderdquo mas por

outra parte a totalidade a que a experiecircncia eacute relativa pode ter diversas dimensotildees E consoan-

te o acircmbito ou a amplitude a que a totalidade em causa se reporte a experiecircncia pode resultar

em coisas muito diferentes

130

Isto eacute assim quanto agrave amplitude da experiecircncia (fixada por este ou aquele acircngulo de

abertura mais ou menos abrangente etc) mas eacute tambeacutem assim no que diz respeito ao con-

traste entre experiecircncias com um acircngulo fixo (seja ele maior ou menor) e experiecircncias que

natildeo estejam vinculadas em mateacuteria de acircngulo e tenham possibilidade de modificar a sua proacute-

pria abertura ou amplitude37

Mas este eacute somente um primeiro aspecto

Soacute por si o ldquoterritoacuteriordquo (a amplitude espaacutecio-temporal) da ἐμπειρία natildeo basta para de-

terminar que formaccedilotildees empiacutericas (que rede de projecccedilotildees etc) se produzem no seu quadro

Com efeito a mesma delimitaccedilatildeo da amplitude (no sentido do termo que agora mesmo

vimos ndash ie no sentido da delimitaccedilatildeo espaacutecio-temporal) pode corresponder a muito diversas

configuraccedilotildees consoante o cardinal de determinaccedilotildees que estatildeo em jogo e que entram na

composiccedilatildeo da ἐμπειρία Tudo depende da densidade e da variedade de determinaccedilotildees que

ldquopovoamrdquo o territoacuterio e satildeo convertidas em projecccedilotildees empiacutericas

Ora esta variedade quanto agrave multiplicidade das determinaccedilotildees envolvidas (e agrave trama

de projecccedilotildees empiacutericas que dela resultam) depende de diversos factores Foquemo-las num

raacutepido esboccedilo ndash e com a precisatildeo que eacute possiacutevel num esboccedilo desta ordem

Em primeiro lugar o tecido da ἐμπειρία depende do proacuteprio conteuacutedo da αἴσθησις

Mesmo sem entrarmos numa anaacutelise detida resulta claro que a mesma forma empiacuterica

pode aplicar-se a quadros de αἰσθήσεις muito diferentes entre si e com resultados (termini ad

quos das percepccedilotildees empiacutericas quer dizer um tecido de estados-de-coisas-permanentes) mui-

to diversos

37

Para se perceber bem o que estaacute aqui em causa tenha-se presente o seguinte nada impede que um

campo de ἐμπειρία esteja constituiacutedo em posiccedilatildeo fixa e com um raio de alcance de por exemplo dez

metros quadrados Isso natildeo prejudica a possibilidade de constituiccedilatildeo de uma ἐμπειρία que em relaccedilatildeo

ao raio de alcance temporal seja muito semelhante agravequela com que estamos familiarizados Inversa-

mente tambeacutem nada impede por exemplo que um campo de ἐμπειρία com um raio de alcance espacial

muito semelhante ao nosso constitua estados-de-coisas permanentes com um prazo de validade muito

mais reduzido ndash porque o proacuteprio acircngulo de abertura temporal soacute vai ateacute um certo limite (natildeo tem a

forma de prolongamento indefinido que nos eacute proacuteprio) Se for assim haveraacute excesso sobre a μνήμη

transgressatildeo do dado e ἐμπειρία (mesmo que uma ἐμπειρία com uma constituiccedilatildeo algo diferente) Mas

o resultado dessa ἐμπειρία (aquilo em que se fica deposto por forccedila da trangressatildeo empiacuterica) distin-

guir-se-aacute por ter um recorte muito diverso daquele que espontaneamente tendemos a tomar por ine-

rente agrave ἐμπειρία

131

A variaccedilatildeo passa desde logo pelas diferentes conformaccedilotildees dos limiares perceptivos

pelos diversos tipos de ldquomalhardquo que pode ter a ldquorederdquo do αἰσθάνεσθαι etc

Mas passa tambeacutem pela possibilidade de haver diversas conformaccedilotildees no que diz res-

peito aos sentidos que intervecircm na constituiccedilatildeo da αἴσθησις Na verdade nada impede que es-

tes sentidos possam ser em maior ou menor nuacutemero do que aqueles a que estamos habituados

ndash e com determinaccedilotildees de que natildeo fazemos a mais pequena ideia

Em segundo lugar aquilo que resulta da ἐμπειρία tambeacutem depende da forma como se

produz a conversatildeo de αἰσθήσεις em μνήμη (ie tambeacutem depende da forma como a μνήμη

cobre o patrimoacutenio da αἴσθησις e envolve ou natildeo um certo afunilamento ou simplificaccedilatildeo da

multiplicidade da αἴσθησις)

Em terceiro lugar o tecido da ἐμπειρία tambeacutem depende da amplitude das ldquomalhasrdquo

de captaccedilatildeo e registo das πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος que constituem propriamente

a base da ἐμπειρία

Quer dizer o tecido da ἐμπειρία depende igualmente do grau de acuidade na leitura

de semelhanccedilas no curso da histoacuteria perceptiva ndash que pode variar muito significativamente e

dessa forma dar lugar a resultados empiacutericos (a complexos de projecccedilatildeo empiacuterica) muito di-

ferentes

Ora este processo de leitura das sequecircncias perceptivas (ou melhor da sequecircncia

mneacutesica) depende em larga medida dos complexos de determinaccedilotildees e acircngulos em que se or-

ganiza ndash ie da variedade e complexidade das determinaccedilotildees em funccedilatildeo das quais se produz

ndash a comparaccedilatildeo dos dados perceptivos

A comparaccedilatildeo dos dados perceptivos natildeo decorre pura e simplesmente das proacuteprias

determinaccedilotildees esteacutesicas ou mneacutesicas que estatildeo na sua base De facto depende em grande par-

te do complexo de determinaccedilotildees categoriais que interveacutem na colaccedilatildeo dos dados empiacutericos ndash

e isto tanto no que diz respeito a) agravequilo a que podemos chamar as ldquogrelhas de comparaccedilatildeordquo

quanto no que diz respeito b) agrave forma da comparaccedilatildeo ser mais ou menos apertada (e se apro-

ximar ou se manter mais afastada de pocircr em agudo confronto ldquotudo com tudordquo)

De tudo isto resulta que uma ldquomesmardquo ldquomanchardquo (um ldquomesmordquo ldquoterritoacuteriordquo espaacutecio-

temporal de ἐμπειρία) pode corresponder a ldquomalhasrdquo de projecccedilatildeo empiacuterica muito diversas ndash

mais simples e pobres ou mais complexas e ricas ndash consoante a conjugaccedilatildeo destes factores

132

Mais natildeo se trata apenas da possibilidade de ndash dentro do ldquomesmordquo ldquoterritoacuteriordquo espaacute-

cio-temporal ndash a variaccedilatildeo destes factores dar lugar a redes de projecccedilatildeo empiacuterica bastante di-

ferentes Na verdade o que estaacute aqui em causa eacute que ateacute mesmo as experiecircncias com idecircntica

esfera de aplicaccedilatildeo espaacutecio-temporal podem ser tatildeo contrastantes entre si que os respectivos

ldquomundosrdquo (quer dizer os quadros de realidade que lhes correspondem) tecircm muito pouco a

ver uns com os outros

Mas isto eacute ainda soacute uma muito pequena parte do que importa ter em vista

Com efeito aquilo a que nos referimos quando falamos dos diferentes ldquolequesrdquo de de-

terminaccedilatildeo que ldquopovoamrdquo a esfera da αἴσθησις e da μνήμη e que entram na conformaccedilatildeo da

ἐμπειρία tem que ver natildeo apenas com questotildees de cardinal (ou como dissemos com a malha

da ldquorederdquo da αἴσθησις ou da proacutepria μνήμη) mas tambeacutem com diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave forma

como se acha constituiacuteda a multiplicidade das determinaccedilotildees que compotildee a base da projec-

ccedilatildeo empiacuterica

Poderia acontecer que a multiplicidade do que aparece (que como vimos estaacute sempre

na base da projecccedilatildeo empiacuterica) tivesse tal natureza que fosse composta por determinaccedilotildees ab-

solutamente singulares e irrepetiacuteveis

Quer dizer poderia acontecer que cada αἴσθησις tivesse um conteuacutedo proacuteprio e intei-

ramente original

Contudo e para que esse conteuacutedo pudesse dar lugar a qualquer coisa como πολλαὶ

μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος (sem as quais como vimos natildeo haacute ἐμπειρία) seria indispensaacutevel

que o conteuacutedo uacutenico e original de cada αἴσθησις tivesse alguma afinidade ou semelhanccedila

com outras (algo de comum que pudesse ser identificado etc) e desse modo pudesse consti-

tuir a base para a τοῦ ὁμοίου μετάβασις que sempre estaacute no fulcro da ἐμπειρία Neste caso o

problema estaria justamente em saber como eacute que diferentes determinaccedilotildees absolutamente

originais poderiam ter algo de semelhante entre si e como poderiam dar lugar a πολλαὶ μνῆ-

μαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος

Para se perceber o que estaacute em causa nesta primeira possibilidade digamos que este

seria um regime de determinaccedilatildeo correspondente a um puro nominalismo

Num tal regime natildeo haveria qualquer espeacutecie de repeticcedilatildeo de determinaccedilotildees Cada

αἴσθησις teria o seu apresentado proacuteprio completamente novo relativamente a qualquer outro

Ora natildeo eacute assim que estamos constituiacutedos

133

Note-se que isto natildeo quer dizer que natildeo possa dar-se o caso de o nominalismo ter ra-

zatildeo e de o ldquomundordquo se renovar a cada instante de tal modo que tudo o que nos aparece eacute de

cada vez outro absolutamente outro sem nada de comum com o que quer que seja O que di-

zemos eacute que mesmo que seja assim (ie mesmo que tudo seja sempre novo a cada instante)

natildeo estamos em condiccedilotildees de aceder a ele de tal modo que acompanhemos a permanente

inauguraccedilatildeo de tudo (a absoluta singularidade de cada instante e de cada ldquocoisardquo ndash ou melhor

de cada componente da realidade)

Com efeito as αἰσθήσεις e as μνῆμαι acham-se constituiacutedas de tal modo que em vez

de terem de cada vez um apresentado ou um conteuacutedo absolutamente original recorrem repe-

tidamente agraves mesmas determinaccedilotildees ou aos mesmos ldquoconteuacutedosrdquo

O que estamos a procurar sublinhar eacute o facto de o cardinal das determinaccedilotildees que pre-

enchem a multiplicidade de αισθήσεις e de μνῆμαι que temos ser consideravelmente menor

do que o cardinal da multiplicidade do que aparece Por outras palavras haacute repeticcedilatildeo das

mesmas determinaccedilotildees numa multiplicidade de instanciaccedilotildees delas ndash e a diferenccedila entre estas

uacuteltimas natildeo passa por terem cada uma um conteuacutedo absolutamente singular ou original mas

sim por terem uma determinaccedilatildeo complexa correspondente a qualquer coisa como uma com-

binatoacuteria38

38

Αο contraacuterio do que pode parecer uma determinaccedilatildeo sensiacutevel que se achasse absolutamente isolada

ndash por exemplo a impressatildeo de uma dada matiz de uma cor ndash natildeo teria nada de ldquoindividualrdquo no sentido

que habitualmente damos a este termo O que a torna indivisiacutevel nesse sentido eacute a sua ligaccedilatildeo ou o seu

cruzamento com toda uma seacuterie de outras determinaccedilotildees Ou como tambeacutem podemos dizer o que a

torna ldquoindivisiacutevelrdquo eacute todo um complexo de relaccedilotildees entre a determinaccedilatildeo em causa e muitas outras

Quer dizer de maneira nenhuma sucede o que corresponderia a termos impressotildees sensiacuteveis propria-

mente ldquosingularesrdquo ou individuais (soacute por si independentes de tudo o mais estritamente uacutenicas um

ldquoesterdquo absoluto e inconfundiacutevel etc) Ora natildeo se discute aqui se haacute ou natildeo determinaccedilotildees singulares

ndash ie se haacute ou natildeo determinaccedilotildees que correspondam a ou identifiquem uma ndash e natildeo mais do que uma

ndash ocorrecircncia de algo Tampouco curamos de discutir aqui se entre as representaccedilotildees que noacutes mesmos

temos ndash entre as determinaccedilotildees a que acedemos ndash haacute ou natildeo haacute algo dessa ordem E na verdade tam-

beacutem natildeo estamos a tentar negar que tenhamos a ideia de individualidade ou de singularidade absoluta

O que dizemos eacute que a haver em noacutes (naquilo a que acedemos) determinaccedilotildees propriamente singula-

res a) tais determinaccedilotildees constituem uma excepccedilatildeo b) elas estatildeo inseridas num quadro geral muito

mais abrangente de determinaccedilotildees repetidas que constituem a maioria do que nos aparece e c) eacute ape-

nas no acircmbito de um quadro de determinaccedilotildees repetidas (e por referecircncia a ele em contraste com ele

em contraponto com ele etc) que estaacute constituiacuteda para noacutes a esmagadora maioria do que nos apare-

ce como ldquorealidades singularesrdquo ndash e isto de tal modo que d) na maior parte dos casos a singularidade

natildeo eacute simples mas o contraacuterio resulta do cruzamento de determinaccedilotildees O que faz de um dado azul

134

Para caracterizar melhor a possibilidade que aqui levantaacutemos consideremos a seme-

lhanccedila entre o que estamos a procurar desenhar e aquilo que se passa com a liacutengua ndash uma se-

melhanccedila que nos permite designar a possibilidade a que aqui fazemos referecircncia como mode-

lo ldquoalfabeacuteticordquo

Poderia acontecer que a multiplicidade da liacutengua fosse feita de determinaccedilotildees sempre

novas (sempre novos sons ndash de tal modo que a ldquoflorestardquo a perder de vista das palavras e das

liacutenguas correspondesse a um conjunto de diferentes sons com cardinal natildeo inferior ao de tudo

o que eacute diferenciaacutevel nesta mateacuteria o cardinal de todos os diferentes elementos de todas as

palavras de todas as liacutenguas)

Acontece poreacutem que a multiplicidade da liacutengua recorre a algo como um ldquoalfabetordquo de

determinaccedilotildees

Vejamos um pouco melhor o que isto quer dizer

Em primeiro lugar o que parece que caracterizar a linguagem (na sua pujanccedila ndash no

ldquofestival de multiplicidaderdquo que imediatamente chama a atenccedilatildeo em cada liacutengua e que por

maioria de razatildeo parece caracterizar as diferentes liacutenguas e a fortiori a totalidade delas ndash a

totalidade das liacutenguas vivas mortas e por constituir toda a multiplicidade de Babel) eacute uma di-

versidade a perder de vista De tal modo que na experiecircncia mais habitual da liacutengua a uacuteltima

coisa que nos ocorre eacute a possibilidade de toda a multiplicidade de Babel corresponder agrave va-

riaccedilatildeo de um conjunto de elementos com cardinal de pouco mais de vinte

Quando aqui falamos de alfabeto o que estaacute em causa natildeo eacute um sistema de notaccedilatildeo de

sons (que eacute muito variaacutevel ateacute mesmo porque ainda que jaacute se esteja na pista de qualquer coi-

sa como uma notaccedilatildeo propriamente foneacutetica a tendecircncia eacute muitas vezes para ficar por nota-

ccedilotildees silaacutebicas ndash ie para natildeo chegar agrave identificaccedilatildeo dos elementos uacuteltimos) O que temos em

mente eacute o proacuteprio conjunto dos ldquofonemasrdquo ou dos componentes elementares que se repetem

na composiccedilatildeo de todas as siacutelabas de todas as palavras de todas as liacutenguas Ou seja o que te-

mos em mente eacute o extraordinaacuterio facto de toda a multiplicidade de Babel poder estar compos-

ta por simples combinaccedilatildeo de um conjunto de elementos com cardinal tatildeo reduzido

Ora sendo assim resulta tambeacutem claro para que eacute que aponta o conceito de ldquoalfabeto

de determinaccedilotildeesrdquo ndash do alfabeto de determinaccedilotildees que forma a apresentaccedilatildeo de que dispomos

este azul bem diferenciado natildeo eacute o proacuteprio azul mas sim o ser a cor disto e daquilo com estas e

aquelas caracteriacutesticas nesta e naquela posiccedilatildeo espaacutecio-temporal etc

135

o alfabeto que domina a composiccedilatildeo da αἴσθησις domina a composiccedilatildeo da μνήμη e tambeacutem

domina a composiccedilatildeo da ἐμπειρία (de sorte que podemos dizer que no nosso caso a αἴσθησις

a μνήμη e a ἐμπειρία tecircm algo a que se pode chamar uma composiccedilatildeo alfabeacutetica)

A multiplicidade do que nos aparece tem uma composiccedilatildeo alfabeacutetica se como no caso

da liacutengua se verifica que em vez de constar de um conjunto de determinaccedilotildees com um car-

dinal equivalente ao da proacutepria multiplicidade em causa se verifica que o cardinal das deter-

minaccedilotildees que a preenchem eacute incomparavelmente mais baixo do que o cardinal da proacutepria

multiplicidade ndash de sorte que a extraordinaacuteria multiplicidade do que nos aparece estaacute preen-

chida por repeticcedilatildeo de determinaccedilotildees (por uma extraordinaacuteria margem de repeticcedilatildeo de deter-

minaccedilotildees) e a incriacutevel variedade do que nos aparece natildeo resulta como pode parecer de contiacute-

nua inovaccedilatildeo das proacuteprias determinaccedilotildees mas em vez disso apenas da novidade do cruza-

mento de determinaccedilotildees (ie de uma novidade na combinaccedilatildeo de um conjunto fixo de ele-

mentos)

Em suma o conceito de ldquomodelo alfabeacuteticordquo exprime a possibilidade de uma multipli-

cidade de cardinal muito elevado e com um extraordinaacuterio grau de variaccedilatildeo natildeo resultar de

uma correspondente variaccedilatildeo das determinaccedilotildees originais que a compotildeem mas de facto da

combinatoacuteria de um conjunto de determinaccedilotildees originais com cardinal pequeno e ateacute mesmo

muito pequeno E o que estamos a considerar eacute a possibilidade de mutatis mutandis toda a

multiplicidade de determinaccedilotildees que entram na composiccedilatildeo da ἐμπειρία (tanto as determina-

ccedilotildees da αἴσθησις e da μνήμη quanto as da sua colaccedilatildeo) radicar em qualquer coisa como aqui-

lo a que Leibniz chama um ldquoalphabetum cogitationum humanarumrdquo39

um conjunto de deter-

minaccedilotildees repetiacuteveis muito menos numeroso do que o que corresponde agrave sua repeticcedilatildeo (agrave sua

combinaccedilatildeo etc)

39

Haacute mais do que uma referecircncia a um ldquoAlphabetum cogitationum humanarumrdquo na obra de Leibniz

Poderia considerar-se por exemplo aquela que se encontra em Couturat L (ed) Opuscules et frag-

ments ineacutedits de Leibniz Extraits des manuscrits de la Bibliothegraveque Royale de Hanovre Paris Alcan

1903 480 ldquoAlphabetum cogitationum humanarum est catalogus earum quae per se concipiuntur et

quorum combinatione ceterae ideae nostrae exurguntrdquo Veja-se tambeacutem De alphabeto cogitationum

humanarum Berlin-Brandenburgischen Akademie der Wissenschaften (VI iv 270) ldquoAlphabetum co-

gitationum humanarum est catalogus notionum primitivarum seu earum quas nullis definitionibus cla-

riores reddere possumusrdquo Para mais ver Saumlmtliche Schriften und Briefe hrsg von der Berlin-Bran-

denburgischen Akademie der Wissenschaften und der Akademie der Wissenschaften zu Goumlttingen

Berlin Akademie-Verlag 1999 Philosophische Schriften IV 4 ou ainda Die philosophische Schrif-

ten hrsg von Gerhardt VII Berlin 1890 reed HildesheimNY Olms 1978 paacuteg 185

136

Ora o que aqui importa ter presente eacute o seguinte natildeo soacute a αἴσθησις e a μνήμη podem

ter regimes diferentes consoante possuam ou natildeo uma composiccedilatildeo de tipo alfabeacutetico mas

para aleacutem disso pode haver diferentes alfabetos de determinaccedilotildees (o regime alfabeacutetico pode

ter conformaccedilotildees muito diversas)

Esta possibilidade tende a escapar-nos em virtude de embora habitualmente natildeo nos

apercebamos de que o acesso em que nos achamos constituiacutedos tem uma composiccedilatildeo alfabeacute-

tica reinar globalmente em noacutes a evidecircncia impliacutecita mas absolutamente assente de que o re-

gime de determinaccedilotildees a que recorre a apresentaccedilatildeo de que dispomos corresponde no funda-

mental ao regime de determinaccedilatildeo segundo o qual estatildeo montadas ldquoas proacuteprias coisasrdquo ndash de

tal modo que pura e simplesmente natildeo haacute alternativa vaacutelida Poreacutem a verdade eacute que em uacutelti-

ma anaacutelise nada haacute que possa garantir que eacute assim (que o alfabeto de determinaccedilotildees em vigor

na forma como vemos eacute mesmo o uacutenico possiacutevel ou de todo o modo o uacutenico que tem corres-

pondecircncia nas ldquoproacuteprias coisasrdquo tal como satildeo etc)

Foquemos um pouco melhor o que resulta de tudo isto

Em primeiro lugar desenha-se qualquer coisa como uma correlaccedilatildeo entre a proacutepria

ἐμπειρία e aquilo a que chamaacutemos ldquocomposiccedilatildeo alfabeacuteticardquo do acesso (composiccedilatildeo alfabeacutetica

da αἴσθησις e da μνήμη como antecedentes da ἐμπειρία e composiccedilatildeo alfabeacutetica da proacutepria ἐμ-

πειρία)

Acontece no entanto que estamos tatildeo dominados pela composiccedilatildeo alfabeacutetica do aces-

so em que nos achamos constituiacutedos (quer dizer tatildeo familiarizados com ela vemos de tal ma-

neira sempre jaacute segundo um alfabeto de determinaccedilotildees e estamos tatildeo afeitos a ele etc) que

natildeo costumamos ter qualquer ideia do proacuteprio alphabetum cogitationum humanarum (para di-

zer como Leibniz) nem da sua composiccedilatildeo

Neste aspecto passa-se portanto algo muito parecido com aquilo que se regista na

esfera da liacutengua Pois como vimos tambeacutem no caso da liacutengua a experiecircncia habitual dela eacute

analfabeta (em relaccedilatildeo ao proacuteprio ldquoalfabeto foneacuteticordquo) ndash tanto no sentido de natildeo identificar os

fonemas a que recorre (e com que estaacute em relaccedilatildeo pois se natildeo estivesse em relaccedilatildeo com eles

natildeo poderia falar nem compreender o que se diz) quanto no sentido de natildeo fazer mesmo a

mais pequena ideia de haver qualquer coisa como um pequeno conjunto de elementos foneacute-

ticos e nesse sentido um alfabeto

137

Em segundo lugar importa fazer notar que haver uma tal correlaccedilatildeo entre a experiecircn-

cia e a constituiccedilatildeo alfabeacutetica do que nos aparece natildeo significa de modo nenhum que haja e soacute

possa haver um uacutenico alfabeto

Para poder ocorrer o fenoacutemeno da experiecircncia tem de ter lugar num acontecimento de

acesso com composiccedilatildeo alfabeacutetica (ou de que pelo menos uma parte tem composiccedilatildeo alfabeacuteti-

ca) Ora essa correlaccedilatildeo diz respeito a um tipo ou forma de composiccedilatildeo do acesso a compo-

siccedilatildeo alfabeacutetica enquanto tal Natildeo diz respeito agrave conformaccedilatildeo concreta do alfabeto Essa pode

variar ndash e de facto ateacute pode variar muito A razatildeo por que temos dificuldade em conceber tal

variaccedilatildeo eacute o facto de estarmos ldquopresosrdquo a um determinado alfabeto de tal modo que natildeo con-

seguimos sair dele Mas isso natildeo impede o ponto decisivo esse alfabeto natildeo eacute o uacutenico possiacute-

vel (natildeo haacute nada que legitime efectivamente a assunccedilatildeo de um tal estatuto ndash a situaccedilatildeo em que

nos encontramos a este respeito natildeo consente como perspectiva legiacutetima senatildeo uma perspec-

tiva aberta)

Isto significa que o que caracteriza o acesso em que nos achamos natildeo eacute apenas ter um

caraacutecter empiacuterico e portanto possuir uma composiccedilatildeo alfabeacutetica Dizer que um ponto de vis-

ta tem um caraacutecter empiacuterico ou uma composiccedilatildeo alfabeacutetica natildeo eacute suficiente para determinar o

seu teor

Se um ponto de vista tem uma composiccedilatildeo alfabeacutetica que possibilita a constituiccedilatildeo da

ἐμπειρία tudo depende de qual eacute esse alfabeto (de como estaacute formado de quais satildeo os seus

elementos) Isto eacute o que o caracteriza eacute estar montado sobre um dado alfabeto que constitui

o ldquomaterialrdquo a partir do qual se forma todo o ldquotecidordquo da ἐμπειρία

Nesse sentido dois pontos de vista podem ser empiacutericos podem ter uma composiccedilatildeo

alfabeacutetica e ainda assim caeteris paribus serem completamente diferentes em resultado de

diferenccedilas quanto agrave composiccedilatildeo concreta e agraves caracteriacutesticas do alfabeto que lhes serve de

base

Em suma tudo o que nos aparece no quadro da constituiccedilatildeo da ἐμπειρία (em sede da

αἴσθησις μνήμη e ἐμπειρία) radica num ldquoalfabetordquo com estas caracteriacutesticas ndash de que habitual-

mente natildeo temos consciecircncia e que tal como no caso da liacutengua temos dificuldade em apurar

ndash mas que nem por isso deixa de constituir sempre jaacute por mais ldquoanalfabetardquo que se mantenha

a forma como olhamos para a multiplicidade do que aparece a base da sua composiccedilatildeo aqui-

lo de que eacute feito tudo com que temos contacto e de que temos experiecircncia

138

sect20

A variabilidade da ἐμπειρία quanto agrave amplitude da ascensatildeo em direcccedilatildeo a determina-

ccedilotildees mais geneacutericas e quanto agrave forma de ldquocristalizaccedilatildeordquo na captaccedilatildeo da afinidade a scala

praeligdicamentalis

Haacute outro aspecto igualmente decisivo que tambeacutem interfere como factor de diferencia-

ccedilatildeo do cunho que a experiecircncia toma Esse aspecto tem que ver com algo ao mesmo tempo

parecido com aquilo que eacute proacuteprio do ldquomodelo alfabeacuteticordquo e diferente dele

Como vimos o que caracteriza o ldquomodelo alfabeacuteticordquo eacute haver uma multiplicidade de

determinaccedilotildees repetiacuteveis ndash cada uma das quais eacute comum ao conjunto das suas diversas instan-

ciaccedilotildees

No entanto no ldquomodelo alfabeacuteticordquo propriamente dito natildeo haacute nada comum agraves proacute-

prias determinaccedilotildees comuns ndash natildeo haacute letras comuns a letras natildeo haacute se assim se pode dizer

afinidades de segundo grau Tudo o que haacute satildeo as afinidades correspondentes aos proacuteprios

ldquoelementosrdquo Natildeo haacute fonemas comuns aos proacuteprios fonemas ndash isso seria incompatiacutevel com o

estatuto elementar dos fonemas enquanto tais

Mas se eacute isso que se passa no ldquomodelo alfabeacuteticordquo natildeo eacute necessariamente isso que se

passa no quadro de determinaccedilotildees em que nos movemos ndash quer dizer no quadro de determi-

naccedilotildees em que se pode mover a constituiccedilatildeo da ἐμπειρία no quadro de determinaccedilotildees de que

se compotildee a αἴσθησις e portanto a μνήμη etc

Vendo bem pode muito bem acontecer o que tradicionalmente se exprime na organi-

zaccedilatildeo da chamada scala praeligdicamentalis (tal como se acha traduzida nas figuras da ldquoaacutervore

de Porfiacuteriordquo) Isto eacute pode suceder que a multiplicidade de determinaccedilotildees repetiacuteveis a que re-

corre o que aparece comporte determinaccedilotildees comuns de primeira ordem de segunda ordem

de terceira ordem etc40

Vejamos um pouco melhor o que estaacute em causa neste ponto

40

Aquilo a que se estaacute a fazer referecircncia ao falar de uma ldquoaacutervore de Porfiacuteriordquo natildeo eacute como a tradiccedilatildeo

jaacute estabeleceu algo que corresponda a algo proposto pelo proacuteprio mas eacute mais exactamente uma tenta-

tiva de representaccedilatildeo visual da interpretaccedilatildeo de Porfiacuterio do tratado sobre as Categorias de Aristoacuteteles

(Porfiacuterio Introduction to the logical Categories of Aristotle in The Organon or Logical Treatises of

Aristotle with the Introduction of Porphyry volume 2 London 1853 paacutegs 609-633)

139

Antes do mais trata-se da possibilidade de aquilo que agrave primeira vista parece ser jaacute

simples (ter um caraacutecter elementar indecomponiacutevel que justifica falar-se de componentes de

um alfabeto) acabar por se revelar suceptiacutevel de decomposiccedilatildeo

A escala predicamental significa que se considerarmos mais atentamente determina-

ccedilotildees especiacuteficas (que satildeo aquelas que mais semelhanccedilas tecircm com os elementos de um alfabe-

to entendido no sentido exposto acima) apuramos que se prestam a serem descobertas como

contracccedilotildees de determinaccedilotildees mais geneacutericas que por sua vez tambeacutem se prestam a serem

descobertas como contracccedilotildees de determinaccedilotildees mais geneacutericas e assim sucessivamente

Eacute tambeacutem isso que se acha retratado na forma das ldquoaacutervores de Porfiacuteriordquo As ldquoaacutervoresrdquo

apontam para qualquer coisa como uma escala de ramos

Assim as determinaccedilotildees mais gerais ramificam-se em determinaccedilotildees menos gerais

que por sua vez ainda se ramificam em determinaccedilotildees menos gerais etc Ou inversamente as

determinaccedilotildees mais especiacuteficas apresentam-se como ramificaccedilotildees de geacuteneros que por sua

vez se apresentam como ramificaccedilotildees (ou espeacutecies) de geacuteneros mais amplos que ainda se

apresentam como ramificaccedilotildees (ou espeacutecies) de geacuteneros mais amplos ndash ateacute chegar a geacuteneros

no sentido mais estrito do termo (que natildeo satildeo especificaccedilotildees de nada superior)

Esta peculiar estrutura corresponde por um lado a qualquer coisa que podemos des-

crever como um dado de facto eacute efectivamente possiacutevel identificarmos entre as determina-

ccedilotildees repetiacuteveis que povoam o acontecimento de acesso em que nos achamos qualquer coisa

como afinidades de segunda terceira e quarta ordem etc ou uma estrutura como aquela que

se traduz nos conceitos de a) espeacutecies que natildeo satildeo geacutenero de nada b) determinaccedilotildees que ser-

vem de geacutenero em relaccedilatildeo a outras mas por outro lado tecircm o caraacutecter de espeacutecies de determi-

naccedilotildees superiores c) vaacuterios graus de iteraccedilatildeo desse nexo ateacute chegar a d) geacuteneros que jaacute natildeo

satildeo espeacutecies de nada com uma extensatildeo maior que a deles

Mas por outro lado se eacute assim (se a scala praeligdicamentalis eacute um fenoacutemeno natildeo muito

difiacutecil de verificar) tal verificaccedilatildeo natildeo impede a subsistecircncia de duas ordens de problemas

Em primeiro lugar perceber que haacute qualquer coisa como uma scala praeligdicamentalis

(e que entre todas as determinaccedilotildees com que lidamos haacute uma complexa rede de nexos de afi-

nidade) natildeo leva de modo nenhum a identificar sem mais qual eacute essa rede de estruturas ldquoarbo-

riformesrdquo de afinidade entre todas as suas determinaccedilotildees

140

Por outras palavras perceber que haacute uma estrutura ldquoarboriformerdquo natildeo eacute o mesmo que

perceber que determinaccedilotildees satildeo ramificaccedilotildees de que outras qual o desenho concreto da(s) aacuter-

vore(s) em causa qual o seu radical (ou os seus radicais) uacuteltimo(s) etc

A esta primeira dificuldade vem juntar-se uma segunda ndash que diz respeito ao estatuto

da proacutepria scala praeligdicamentalis

Com efeito o reconhecimento de que haacute afinidade de segundo grau de terceiro grau

etc no sentido referido natildeo permite decidir sem mais se a scala praeligdicamentalis resulta pura

e simplesmente de processos abstractivos ou tem alguma intervenccedilatildeo na proacutepria constituiccedilatildeo

daquilo que espontaneamente nos aparece sem nenhuma iniciativa de anaacutelise da nossa parte

Expliquemo-nos melhor

Pode acontecer que os geacuteneros os geacuteneros de geacuteneros os geacuteneros de geacuteneros de geacutene-

ros etc soacute entrem em cena mediante operaccedilotildees de abstracccedilatildeo que tecircm um caraacutecter superve-

niente e facultativo em relaccedilatildeo agravequilo que temos apresentado no curso habitual das nossas ldquore-

presentaccedilotildeesrdquo Se for assim as coisas que de ordinaacuterio vemos natildeo estatildeo ldquomontadasrdquo sobre de-

terminaccedilotildees dessa ordem e estas uacuteltimas soacute tecircm em noacutes uma presenccedila por assim dizer inter-

mitente (quando realizamos operaccedilotildees de abstracccedilatildeo)

Mas tambeacutem pode acontecer que na verdade natildeo seja assim ndash que suceda justamente o

oposto

Ou seja pode acontecer que as determinaccedilotildees mais especiacuteficas estejam constituiacutedas de

tal modo que resultam sempre da contracccedilatildeo de determinaccedilotildees mais geneacutericas e soacute sejam pos-

siacuteveis a partir delas Dito de outro modo pode acontecer que por exemplo de cada vez que se

vecirc um coelho esta determinaccedilatildeo recorra sempre jaacute agrave determinaccedilatildeo mais geral ldquoanimalrdquo que

esta por sua vez recorre sempre jaacute agrave determinaccedilatildeo mais geral ldquocorpordquo e que esta recorra

sempre jaacute agrave determinaccedilatildeo ainda mais geral ldquounidade colectiva e determinaccedilotildeesrdquo etc41

41

Constituiacuteda de tal modo que comporta ao mesmo tempo uma multiplicidade (A ne B ne C ne D) e a in-

tegraccedilatildeo de toda ela em algo que salva identitate atravessa a respectiva diferenccedila e a integra na mes-

midade de si De cada vez que representamos um corpo representamos jaacute algo com estas caracteriacutes-

ticas ndash mas de tal modo que este nuacutecleo de determinaccedilatildeo que eacute o paradigma da unidade colectiva de

determinaccedilotildees tem uma extensatildeo mais ampla que o conceito de ldquocorpordquo A tudo isto acresce ainda que

o troccedilo da scala praeligdicamentalis que assim se desenha natildeo acaba necessariamente no que assim aca-

baacutemos de identificar como radical ou nuacutecleo Com efeito se considerarmos a proacutepria determinaccedilatildeo

ldquounidade colectiva de determinaccedilotildeesrdquo verificamos que tambeacutem ela recorre sempre jaacute a um nuacutecleo de

determinaccedilatildeo ainda mais radical e extenso o proacuteprio conceito de ldquosiacutenteserdquo que consagra a possibilida-

141

Em suma pode acontecer que a scala praeligdicamentalis tenha se assim se pode dizer

uma constituiccedilatildeo descendente ndash a partir das determinaccedilotildees mais universais como condiccedilotildees

de possibilidade das determinaccedilotildees mais especiacuteficas

Ora se assim for isso significa que o alfabeto das nossas determinaccedilotildees ndash o ldquoalphabe-

tum cogitationum humanarumrdquo ndash tem uma composiccedilatildeo bastante diferente daquela que antes

se sugeriu Tratar-se-aacute de um alphabetum constituiacutedo na forma da scala praeligdicamentalis com

radicaccedilatildeo dos elementos mais especiacuteficos nos elementos mais geneacutericos ndash de tal modo que

seratildeo estes uacuteltimos a desempenhar verdadeiramente o papel de elementos

Natildeo pertence aqui analisar a fundo este problema O que pretendemos indicar eacute apenas

que a questatildeo da composiccedilatildeo do alphabetum cogitationum humanarum eacute ainda mais comple-

xa do que parecia a partir do que antes se viu

Quando mencionaacutemos a possibilidade de haver vaacuterios alfabetos ou vaacuterias composiccedilotildees

do alfabeto de determinaccedilotildees sobre cuja base se constitui a experiecircncia isso parecia significar

que o lote das determinaccedilotildees poderia variar mas justamente natildeo previa a ldquocomplicaccedilatildeo adicio-

nalrdquo que tem que ver com a possibilidade de o alfabeto de determinaccedilotildees ndash e na verdade jus-

tamente o nosso alfabeto de determinaccedilotildees ndash ter a forma de uma scala praeligdicamentalis des-

cendente

Por outras palavras onde viacuteamos a) a possibilidade de vaacuterias conformaccedilotildees de um al-

phabetum cogitationum mais parecido com o alfabeto da proacutepria liacutengua aparece agora b) a

alternativa entre um alphabetum cogitationum desse tipo e um alphabetum cogitationum com

a forma de uma scala praeligdicamentalis descendente e ainda c) a alternativa entre vaacuterias poss-

ibilidades de conformaccedilatildeo concreta do alfabeto com a forma da scala praeligdicamentalis des-

cendente

Podemos exprimir tudo isto dizendo que o que estaacute em causa eacute o diferente significado

que na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία pode ter aquilo que Aristoacuteteles designa como πολλαὶ μνῆμαι

τοῦ αὐτοῦ πράγματος (do mesmo estado-de-coisas)

Com efeito este τοῦ αὐτοῦ πράγματος pode significar coisas muito diferentes consoan-

te a margem de afinidade entre diferentes αἰσθήσεις e diferentes μνῆμαι for se assim se pode

dizer ldquounidimensionalrdquo (cingindo-se ao registo de uma afinidade de primeiro grau a afinida-

de de aquilo que eacute diferente (e corresponde portanto agrave forma A ne B) possa ainda assim coincidir ndash

de tal modo que os diferentes estatildeo um no outro se determinam um ao outro

142

de entre espeacutecies) ou pelo contraacuterio compreender tambeacutem afinidades de segundo terceiro

quarto grau (afinidades de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros

etc)

E por outro lado neste segundo caso tudo depende ainda de dois factores de variaccedilatildeo

Por um lado tudo depende justamente da amplitude desta margem de alargamento da

afinidade a nuacutecleos de determinaccedilatildeo mais extensos (quer dizer tudo depende de haver apenas

afinidade e projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes de segundo grau ou tambeacutem de ter-

ceiro grau ou de quarto grau etc ndash ie tudo depende de ateacute onde vai a possibilidade de as-

censatildeo em qualquer coisa como uma scala praeligdicamentalis)

Por outro lado tudo depende tambeacutem de como estiver organizada a scala praeligdica-

mentalis Ela pode estar organizada de diferentes maneiras e essas diferentes linhas de crista-

lizaccedilatildeo se assim se pode dizer da scala praeligdicamentalis tambeacutem fazem que caeteris pari-

bus a experiecircncia possa ganhar contornos muito diferentes

Atentemos um pouco mais no uacuteltimo aspecto

Este uacuteltimo aspecto significa que aquilo a que chamaacutemos afinidade de segundo tercei-

ro grau etc pode acontecer com muito diversas configuraccedilotildees (com muito diversas organiza-

ccedilotildees das linhas de afinidade) ndash tanto no que diz respeito agraves ramificaccedilotildees mais proacuteximas dos

conceitos repetiacuteveis com maior extensatildeo e menor compreensatildeo (ou seja a geacuteneros) quanto

no que diz respeito agrave fusatildeo de diferentes ramos em determinaccedilotildees de menor extensatildeo e maior

compreensatildeo (ou seja a espeacutecies)

O que isto quer dizer eacute que a multiplicidade das determinaccedilotildees repetiacuteveis pode estar

constituiacuteda de tal modo que a) consente ou natildeo consente afinidades de segundo grau terceiro

grau etc (ie qualquer coisa de correspondente agrave scala praeligdicamentalis) b) pode dar lugar

a muito diferentes quadros de afinidade de segundo grau terceiro grau etc e tambeacutem c) po-

de corresponder a diferentes graus de facilidade ou dificuldade de detecccedilatildeo da afinidade e de

correspondente ascensatildeo na scala praeligdicamentalis ndash quer dizer a diferentes graus de facili-

dade ou dificuldade na captaccedilatildeo das determinaccedilotildees mais afastadas das espeacutecies

Ora tudo isto se reflecte na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία

Vendo bem a projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes pode produzir-se apenas

em ldquonavegaccedilatildeo costeirardquo (que se ateacutem a determinaccedilotildees mais especiacuteficas) ou pelo contraacuterio

143

pode produzir-se em ldquonavegaccedilatildeo de mar altordquo ndash subindo na scala praeligdicamentalis detectan-

do afinidades de segundo terceiro grau etc e produzindo projecccedilotildees empiacutericas dessa ordem

Em suma a ἐμπειρία eacute variaacutevel quer no que diz respeito agrave amplitude da ascensatildeo em

direcccedilatildeo a determinaccedilotildees mais geneacutericas quer no que diz respeito agrave proacutepria forma de ldquocristali-

zaccedilatildeordquo na captaccedilatildeo da afinidade e essa variaccedilatildeo depende da organizaccedilatildeo da scala praeligdica-

mentalis que entrar em funccedilotildees na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία E o ponto decisivo eacute que tambeacutem

desta forma a organizaccedilatildeo da experiecircncia (o quadro concreto de projecccedilotildees de estados-de-

coisas-permanentes) natildeo apenas pode variar mas pode variar muito significativamente e dar

lugar a ldquoreconhecimentos de realidaderdquo muito diversos mesmo que o ldquoterritoacuteriordquo (a delimi-

taccedilatildeo espaacutecio-temporal) e todos os outros factores determinantes da ἐμπειρία sejam exacta-

mente os mesmos

sect21

A complexidade da experiecircncia e os modos de cruzamento das determinaccedilotildees entre si ndash A

experiecircncia sintonizada por unidades colectivas de determinaccedilotildees

Tudo isto nos leva a um outro aspecto implicado no que estamos a ver e que importa

pocircr em relevo

Quando se fala das determinaccedilotildees que entram na composiccedilatildeo da ἐμπειρία pode pen-

sar-se que se trata de uma multiplicidade constituiacuteda por mera justaposiccedilatildeo dos seus diversos

elementos De facto poderia ser assim

Poreacutem uma anaacutelise do nosso ponto de vista mostra algo que jaacute estava de certo modo

impliacutecito atraacutes e que agora importa acentuar a saber que parece haver algo como um cruza-

mento das diversas determinaccedilotildees entre si

Ora o cruzamento das diversas determinaccedilotildees entre si tem efeitos na complexidade da

experiecircncia quanto mais complexo e intrincado for este cruzamento de determinaccedilotildees tanto

mais complexa poderaacute ser tambeacutem a experiecircncia que se faz do que aparece Haacute por assim di-

zer uma relaccedilatildeo directa entre o cardinal de determinaccedilotildees (conteuacutedos de saber formas de

saber ldquoconteuacutedosrdquo objectos de saber etc) de um ldquoalfabetordquo e a complexidade da experiecircn-

cia que dele se extrai

144

Consideremos por exemplo a janela que temos perante noacutes na sala de trabalho Ou

mais precisamente consideremos um momento o mais simples possiacutevel do caixilho da jane-

la

Ao analisar este momento da janela notamos que ele eacute composto de uma multiplicida-

de de determinaccedilotildees eacute branco ldquoerdquo resistente ldquoerdquo liso ldquoerdquo tem uma determinada posiccedilatildeo no es-

paccedilo e no tempo ldquoerdquo tem continuidade tanto em relaccedilatildeo ao que havia quanto em relaccedilatildeo ao

que haveraacute ldquoerdquo tem identidade diacroacutenica ldquoerdquo tem um determinado grau de resistecircncia ldquoerdquo tem

uma existecircncia puacuteblica de tal modo que o suponho como podendo ser testemunhado por uma

multiplicidade ldquoerdquo ao mesmo tempo eacute-lhe negada a capacidade de qualquer movimento

autoacutenomo etc Haacute por assim dizer coincidecircncia de determinaccedilotildees em cada momento do que

temos apresentado42

O fenoacutemeno que estaacute aqui em causa eacute expresso por Aristoacuteteles na foacutermula τι κατά τι-

νος43

Esta noccedilatildeo aponta para o facto de as muacuteltiplas determinaccedilotildees de que o nosso acesso eacute

composto estarem reciprocamente entretecidas umas nas outras (ldquometidas umas nas outrasrdquo

entrelaccediladas etc) numa relaccedilatildeo de co-implicaccedilatildeo

Assim por um lado o branco o resistente o liso etc a) satildeo determinaccedilotildees natildeo idecircn-

ticas entre si e b) satildeo determinaccedilotildees de algo que natildeo eacute inteiramente idecircntico a nenhuma delas

(estaacute em causa para usar uma expressatildeo do De Anima 430b3 uma siacutentese do natildeo-idecircntico)

Mas se olharmos para a forma como estatildeo presentes num qualquer ldquopontordquo do cai-

xilho da janela apuramos que elas aparecem como determinaccedilotildees umas das outras (afectam-

se umas agraves outras estatildeo implicadas umas nas outras etc)

O que estamos a procurar salientar eacute o facto de os diversos momentos da ldquomanchardquo do

que se acha apresentado terem uma ligaccedilatildeo com isso que as associa ou que as integra

Quer dizer aleacutem de haver a) uma multiplicidade de momentos do caixilho da janela (a

multiplicidade que faz o proacuteprio caixilho e sem a qual natildeo se apresentaria caixilho nenhum)

haacute tambeacutem b) uma multiplicidade de determinaccedilotildees implicadas em cada momento do caixilho

da janela (e de tal forma que tambeacutem sem ela natildeo se apresentaria caixilho nenhum ou de todo

42

Sobre este fenoacutemeno da conjunccedilatildeo vejam-se as anaacutelises de Hegel sobre a consciecircncia (Phaumlnomeno-

logie des Geistes A II paacuteg 65 e seguintes)

43 Ver por exemplo Anal Ant I 24a30 40b30 De Interpretatione 17a25 ou De Anima 430b20

145

o modo natildeo se apresentaria um caixilho com estas caracteriacutesticas) mas para aleacutem disso ainda

haacute c) uma determinaccedilatildeo que junta as multiplicidades referidas como a) e b) fazendo que todas

elas pertenccedilam a algo comum a elas o caixilho (de sorte que tambeacutem sem este terceiro ele-

mento natildeo se apresentaria nada do que vemos como ldquocaixilho da janelardquo)

De facto todas as determinaccedilotildees com que lidamos ao termos perante noacutes o que quer

que seja fazem parte de unidades colectivas de determinaccedilotildees ndash unidades que resultam de

uma modalidade peculiar de cruzamento de determinaccedilotildees (de algo marcado por ser mais do

que uma mera justaposiccedilatildeo de determinaccedilotildees) O que decorre deste cruzamento de determina-

ccedilotildees eacute a organizaccedilatildeo dos diversos momentos (marcados por determinaccedilotildees ou propriedades

muacuteltiplas) em muacuteltiplos casos disso a que chamamos ldquocoisasrdquo

Consideremos um pouco mais detidamente este aspecto

Em primeiro lugar estamos a falar de duas formas possiacuteveis de constituiccedilatildeo da expe-

riecircncia (mais precisamente de duas formas possiacuteveis de constituiccedilatildeo da sua base ndash da αἴσθη-

σις e da μνήμη ndash e por via disso tambeacutem da ἐμπειρία)

Se tendemos a deixar escapar a diferenccedila entre estas duas possibilidades eacute porque pa-

ra noacutes a experiecircncia estaacute sempre jaacute ldquosintonizadardquo por unidades colectivas de determinaccedilotildees

Acontece poreacutem que essa natildeo eacute a uacutenica forma possiacutevel da sua ocorrecircncia antes consente al-

ternativas ndash por exemplo um quadro de experiecircncia de tipo ldquopontilhistardquo se assim se pode di-

zer

Expliquemos melhor o que se quer dizer com isto

Se considerarmos aquilo que habitualmente se nos apresenta na ldquoinvasatildeordquo do acesso

(na presenccedila de algo que continuamente ocorre em noacutes) verificamos que tem na sua base

qualquer coisa como um contiacutenuo de identidades e diferenccedilas na forma A ne B ne C ne D ne E e

assim sucessivamente

Essa eacute por assim dizer a proacutepria forma da multiplicidade que estaacute suposta na proacutepria

constituiccedilatildeo da multiplicidade enquanto tal Nas paredes que nos rodeiam no chatildeo no tecto

etc o proacuteprio aparecimento da multiplicidade remete continuamente para uma sucessatildeo de

unidades simples cada em identidade consigo mesma e a diferir das outras

O que estaacute em jogo eacute a proacutepria compreensatildeo de qualquer composto como compositum

reale para usar a noccedilatildeo de Kant (ou aquilo que foi expresso por Leibniz quando fala da com-

146

preensatildeo da multiplicidade como rebanho e da necessaacuteria filiaccedilatildeo da realidade do rebanho na

realidade de cada um dos ldquobrebisrdquo que entram na sua composiccedilatildeo)

Por razotildees que jaacute veremos melhor em relaccedilatildeo a realidades como parede chatildeo as nos-

sas proacuteprias matildeos etc o nosso olhar estaacute habitualmente retido num registo confuso de tal

modo que natildeo se acha preparado para identificar propriamente as unidades em questatildeo

Se nos concentramos no que confusamente aparece como um ponto da parede acaba-

mos por apurar que afinal corresponde a uma superfiacutecie ndash e isto de tal modo que natildeo estaacute em

condiccedilotildees de identificar nem qual o cardinal das unidades que entram na sua composiccedilatildeo nem

qual a conformaccedilatildeo de cada uma dessas unidades (o que corresponde entatildeo propriamente a

um ponto)

Poreacutem mesmo sendo assim isso natildeo impede que a composiccedilatildeo daquilo que aparece

pareccedila remeter justamente para ndash e radicar em ndash qualquer coisa como um complexo de unida-

des simples cuja multiplicaccedilatildeo forma as manchas com que estou em contacto ndash de tal modo

que se natildeo houvesse esta trama baacutesica de identidades e diferenccedilas (A ne B ne C ne D ne E ne F)

tambeacutem natildeo haveria a proacutepria multiplicidade

Ora sendo assim a proacutepria descriccedilatildeo que acabamos de fazer da composiccedilatildeo do que

nos aparece potildee em evidecircncia que na forma como as coisas nos aparecem haacute como que um

desvio ou uma distacircncia em relaccedilatildeo agrave mera presenccedila de um complexo de unidades simples de

aparecimento postas em nexo de justaposiccedilatildeo umas agraves outras

Quer dizer por um lado tudo remete para uma trama contiacutenua de identidades e dife-

renccedilas que constituti de raiz a proacutepria multiplicidade do que nos aparece Mas por outro la-

do tambeacutem haacute algo diferente dela (algo mais do que ela) ndash e isto de tal modo que esse algo

mais (esse algo de diferente dela) afasta da trama baacutesica potildee de certo modo fora dela e faz

que o proacuteprio contacto com ela soacute ocorra a partir do filtro (desse algo diferente da proacutepria tra-

ma baacutesica) Resulta daiacute que natildeo temos acesso agrave trama baacutesica de identidade e diferenccedila a partir

do seu proacuteprio ponto de vista mas antes soacute a partir do ponto de vista disso que difere dela e

lhe estaacute como que aposto

Se perguntarmos a noacutes mesmos o que eacute que nos aparece percebemos que a resposta

que tendemos a dar tem a forma uma parede uma mesa uma estante uma cadeira uma jane-

la etc ndash e natildeo a forma um primeiro momento de branco um segundo momento de branco

um terceiro momento de branco um quarto momento de branco ndash e assim sucessivamente

147

Isto torna clara a distacircncia em relaccedilatildeo agrave trama baacutesica de identidades e diferenccedilas a que fize-

mos referecircncia

A questatildeo estaacute entatildeo em perceber que eacute isso que estaacute aposto agrave trama baacutesica de identi-

dades e diferenccedilas ndash qual a sua natureza qual a sua estrutura etc

A primeira coisa que chama a atenccedilatildeo eacute que ao identificarmos aquilo que nos aparece

o nosso olhar como que salta da diferenccedila entre a parede e a mesa para a diferenccedila entre a me-

sa e a estante e desta para a diferenccedila entre a estante e a parede etc Quer dizer haacute diferenccedilas

que estatildeo como que acentuadas em posiccedilatildeo toacutenica enquanto outras (aquelas que correspon-

dem agrave conformaccedilatildeo da multiplicidade dentro da mesa dentro da estante dentro da parede

etc) estatildeo como que desacentuadas postas em posiccedilatildeo aacutetona de relativo apagamento etc

Por outro lado sendo assim natildeo eacute difiacutecil ver que este contraste entre diferenccedilas toacuteni-

cas e diferenccedilas aacutetonas natildeo tem que ver com algo que se passe apenas com as primeiras mas

com uma propriedade que afecta todos os momentos da trama baacutesica

Isto eacute a razatildeo por que as diferenccedilas referidas tecircm uma posiccedilatildeo toacutenica eacute o facto de to-

dos os diferentes momentos compreendidos no intervalo entre os limites da mesa os limites

da estante os limites da parede etc estarem unidos entre si por algo que soacute os liga a eles

(ie que soacute liga os diferentes momentos da mesa os diferentes momentos da estante os dife-

rentes momentos da parede etc e que estaacute ausente na relaccedilatildeo entre o que pertence agrave mesa e o

que pertence agrave estante ou entre o que pertence a esta uacuteltima e o que pertence agrave parede etc)

Por outras palavras a razatildeo por que as diferenccedilas entre a mesa a estante a parede

etc satildeo toacutenicas e as demais diferenccedilas satildeo aacutetonas tem que ver com o facto de os diferentes

momentos da trama baacutesica que pertencem agrave mesa (agrave estante agrave parede etc) natildeo estarem ape-

nas justapostos (como numa multiplicidade pontilhista) mas fundidos entre si

Isto potildee-nos na pista de um outro fenoacutemeno essencial esta fusatildeo natildeo passa apenas

pela ligaccedilatildeo entre diferentes momentos da proacutepria trama baacutesica ndash ela envolve essencialmente

a intervenccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo de outra ordem (diferente das determinaccedilotildees da trama

baacutesica de identidades e diferenccedilas) Trata-se justamente da peculiar modalidade de determina-

ccedilatildeo que estaacute em causa quando se fala de ldquomesardquo de ldquoestanterdquo de ldquocadeirardquo de ldquoparederdquo etc

Determinaccedilotildees desta natureza distinguem-se pela propriedade de pura e simplesmente

natildeo serem possiacuteveis como determinaccedilotildees simples determinaccedilotildees desta ordem soacute satildeo possiacute-

veis como determinaccedilotildees intrinsecamente colectivas ou intrinsecamente sinteacuteticas que jun-

tam uma multiplicidade

148

Ora apesar de algo como uma mesa simples uma cadeira simples uma parede sim-

ples etc ser pura contradictio in adjecto isso natildeo impede que estas determinaccedilotildees apareccedilam

como determinaccedilotildees com um teor proacuteprio idecircntico a si mesmo e completamente irredutiacutevel

natildeo apenas a cada um dos elementos da multiplicidade sem a qual natildeo podem ocorrer mas

tambeacutem a essa multiplicidade enquanto ela constitui uma mera justaposiccedilatildeo dos seus elemen-

tos

Este eacute o ponto decisivo as determinaccedilotildees colectivas desta ordem (mesa estante pare-

de etc) satildeo natildeo soacute diferentes umas das outras mas tambeacutem diferentes dos elementos que in-

tegram ndash e na verdade tatildeo diferentes deles quanto eles satildeo diferentes uns dos outros mas sen-

do assim estas determinaccedilotildees diferentes natildeo vecircm juntar-se agrave multiplicidade daquilo que inte-

gram como mais um elemento justaposto nela (como mais um elemento da mera justaposi-

ccedilatildeo)

Sucede o contraacuterio

As determinaccedilotildees colectivas do tipo que estamos a considerar disinguem-se pelo facto

de a sua identidade parecer constituiacuteda de tal modo que integra em si salva identitate a mul-

tiplicidade dos elementos que ldquofazem parterdquo da mesa da cadeira da estante da parede etc

Ou seja apesar de a mesa (a cadeira a estante etc) ser diferente dos seus elementos e

de estes serem diferentes entre si a identidade deste tipo apresenta-se como capaz de integrar

em si o diferente e de o converter em momento seu ou em momento de si

Esta estrutura estaacute tatildeo profundamente implantada na forma como vemos que habitual-

mente natildeo damos por ela natildeo nos apercebemos da sua morfologia dos problemas que levan-

ta etc Eacute ela que faz que tudo o que nos aparece tenha como vimos a estrutura de um apare-

cimento de ldquocoisasrdquo

O que aqui apresentamos natildeo eacute mais do que uma anaacutelise muito breve que fica muito

longe de dar conta de todos os aspectos e de focar o complexo de problemas que tudo isto le-

vanta Limitamo-nos a considerar trecircs pontos que podem ajudar a perceber melhor a questatildeo

dos diversos factores que podem moldar a constituiccedilatildeo da experiecircncia

Em primeiro lugar o que acabamos de dizer significa que em uacuteltima anaacutelise na forma

de aparecimento em que damos connosco natildeo haacute apenas um alfabeto de determinaccedilotildees mas

dois a) um alfabeto de determinaccedilotildees disso a que chamaacutemos a trama baacutesica de identidades e

diferenccedilas e b) um alfabeto de determinaccedilotildees intrinsecamente colectivas ou sinteacuteticas (ie um

alfabeto daquilo que constitui as unidades colectivas de determinaccedilotildees) E isto de tal modo

149

que os problemas anteriormente referidos (designadamente a questatildeo da scala praeligdicamenta-

lis e das determinaccedilotildees de afinidade de primeira segunda terceira ordem etc) se potildeem em

duplicado (a respeito dos dois alfabetos)

Em segundo lugar a integraccedilatildeo dos elementos da ldquotrama baacutesicardquo em unidades colec-

tivas de determinaccedilotildees (quer dizer a sua integraccedilatildeo nas peculiares modalidades de identidade

que satildeo as determinaccedilotildees intrinsecamente sinteacuteticas acima referidas) estaacute marcada por um fe-

noacutemeno de assimetria

Se considerarmos um momento do caixilho da janela verificamos que ele eacute diferente

do proacuteprio caixilho mas que tal como me aparece perdeu completamente a sua proacutepria iden-

tidade independente do caixilho O que caracteriza um momento do caixilho da janela eacute que

embora seja diferente do caixilho da janela tem a sua proacutepria identidade sempre jaacute definida

pela identidade colectiva ndash estaacute reduzido a um momento dela posto sob o seu ascendente etc

De tal modo que por mais que o caixilho precise dos momentos de que eacute constituiacutedo para po-

der ser isso mesmo que eacute para o exprimir na formulaccedilatildeo loacutegica tradicional natildeo eacute o caixilho

que eacute dos seus momentos mas sim os momentos do caixilho que satildeo dele

Por outras palavras o nexo entre os dois alfabetos estaacute marcado pelo claro ascendente

de um sobre o outro pela preponderacircncia de um sobre o outro (pela reduccedilatildeo de um a funccedilotildees

de composiccedilatildeo interna em relaccedilatildeo ao outro) E eacute isso que se exprime no facto de se pergun-

tarmos o que nos aparece dizermos ldquoparederdquo ldquoestanterdquo ldquocadeirardquo ldquojanelardquo etc e natildeo dar-

mos uma resposta ldquopontilhistardquo

Em terceiro lugar como dissemos tudo o que nos aparece tem esta forma (eacute um apare-

cimento de ldquocoisasrdquo) mas com um peculiar arranjo ndash de tal modo que corresponde a uma de-

terminada modalidade dentro das vaacuterias que pode ter um aparecer (uma apresentaccedilatildeo) com es-

tas caracteriacutesticas

Com efeito se virmos como estatildeo constituiacutedas as unidades colectivas de determi-

naccedilotildees que nos aparecem verificamos que haacute uma variaccedilatildeo na sua constituiccedilatildeo no centro do

que nos aparece quer dizer na esfera mais proacutexima as unidades colectivas de determinaccedilotildees

tecircm uma determinada ldquobitolardquo (recorrendo agrave terminologia loacutegica tecircm uma determinada com-

preensatildeo e uma determinada extensatildeo) Se passarmos do centro para a periferia (para o mais

distante) verificamos que a forma global (a organizaccedilatildeo de tudo em unidades colectivas de

determinaccedilotildees) se manteacutem mas a ldquobitolardquo muda ndash passa a haver outra compreensatildeo e outra ex-

tensatildeo Ou mais precisamente no centro (na esfera de proximidade) as unidades colectivas

150

de determinaccedilotildees tecircm maior compreensatildeo e menor extensatildeo ao transitar do centro para a

periferia passa a suceder o contraacuterio aumenta a extensatildeo e diminui a compreensatildeo

Acontece que estamos tatildeo ldquocoladosrdquo agrave forma que o aparecimento e a experiecircncia cos-

tumam ter para noacutes que natildeo eacute faacutecil percebermos o cabimento de formas alternativas Mas na

verdade nada impede que houvesse experiecircncia regulada por essas formas alternativas Neste

sentido o que caracteriza a nossa perspectiva natildeo eacute apenas o ser empiacuterica mas ainda o facto

de tambeacutem neste ponto seguir uma de entre vaacuterias conformaccedilotildees possiacuteveis ou se ser apenas

uma de entre diversas conformaccedilotildees possiacuteveis da ἐμπειρία

Ora o que vimos nesta secccedilatildeo permite-nos perceber uma outra ldquoencruzilhadardquo ou uma

outra possibilidade de variaccedilatildeo da experiecircncia A saber

A experiecircncia pode produzir-se no quadro de um aparecimento pontilhista e ser uma

experiecircncia pontilhista ndash ou em alternativa pode estar sintonizada por unidades colectivas

de determinaccedilotildees aleacutem disso uma experiecircncia sintonizada pelo modelo das unidades colecti-

vas de determinaccedilotildees pode ter ou pelo contraacuterio natildeo ter o regime de variaccedilatildeo do centro pa-

ra a periferia que acabamos de descrever

sect22

A variaccedilatildeo no niacutevel de acuidade a relaccedilatildeo entre o grau de determinaccedilatildeo com que as ldquocoi-

sasrdquo nos aparecem e a exigecircncia de determinaccedilatildeo que enfrentam ndash A inadvertecircncia em re-

laccedilatildeo agrave multiplicidade de determinaccedilotildees que conformam o teor do que nos aparece

Mesmo que o que vamos vendo nas sucessivas secccedilotildees jaacute corresponda a um quadro

bastante mais complexo do que aquele que se desenhou no iniacutecio padece ainda de uma muito

significativa margem de simplificaccedilatildeo

Eacute assim entre outras razotildees porque aquilo que dissemos sobre a constituiccedilatildeo da expe-

riecircncia ainda natildeo leva em conta o papel que cabe ao niacutevel de acuidade e agrave variaccedilatildeo do niacutevel

de acuidade

Comecemos por explicar que eacute que temos em vista quando falamos de acuidade e va-

riaccedilatildeo de acuidade

151

Por um lado o quadro do que aparece natildeo se caracteriza por uma acuidade constan-

te Por outro lado consoante varia o grau de acuidade varia tambeacutem ndash e varia muito signifi-

cativamente ndash o quadro do que aparece

Isto eacute claro se considerarmos por exemplo a apresentaccedilatildeo visual agrave distacircncia Agrave medi-

da que se transita do proacuteximo para a distacircncia haacute uma muito clara diminuiccedilatildeo da acuidade

Isto eacute com a distacircncia haacute uma diminuiccedilatildeo proporcional da definiccedilatildeo com que se

apresenta aquilo que aparece ndash fenoacutemeno que se poderia verter na foacutermula quanto maior a

distacircncia maior a imprecisatildeo

Isto tem um efeito directo sobre as determinaccedilotildees do que aparece Vendo bem signifi-

ca que o que aparece estaacute ou pode estar marcado por um defeito de definiccedilatildeo (estaacute ou pode

estar marcado por uma diminuiccedilatildeo das determinaccedilotildees por um aumento da indefiniccedilatildeo quanto

agraves suas determinaccedilotildees etc)

Por outro lado vendo bem este fenoacutemeno de diminuiccedilatildeo da acuidade natildeo se verifica

apenas na visatildeo agrave distacircncia De facto tem lugar ateacute mesmo na proximidade em relaccedilatildeo ao in-

terior dos corpos opacos Dos corpos opacos o que temos propriamente dito satildeo superfiacutecies

exteriores (de cada vez uma parte das suas superfiacutecies exteriores)

Ora acontece que essas superfiacutecies natildeo satildeo vistas apenas como superfiacutecies exteriores

(ie em neutralidade relativamente a haver o que quer que seja aleacutem delas) Na verdade as

superfiacutecies satildeo acompanhadas por uma co-apresentaccedilatildeo do interior dos corpos (se assim se

pode dizer por um ldquoconteuacutedordquo que ldquopotildee laacuterdquo o interior dos corpos ndash de tal modo que eacute precisa-

mente isto que os constitui como corpos maciccedilos ndash e natildeo apenas como superfiacutecies ou corpos

opacos)

No entanto se procurar fixar que determinaccedilatildeo tecircm estes ldquoconteuacutedosrdquo responsaacuteveis

pelo preenchimento do interior dos corpos verifico que o seu regime de determinaccedilatildeo eacute muito

mais pobre do que o das superfiacutecies que os rodeiam

Se por exemplo considerarmos o nosso proacuteprio corpo a matildeo com que escrevemos ou

o braccedilo verificamos que logo a seguir agrave superfiacutecie exterior comeccedila o territoacuterio desta co-apre-

sentaccedilatildeo impliacutecita do interior que por uma parte eacute diferente da percepccedilatildeo das superfiacutecies

mas por outra parte estaacute integrada nela (molda-a de sorte que a percepccedilatildeo das superfiacutecies se-

ria muito diferente se natildeo incluiacutesse este elemento) Mas o que estaacute posto logo debaixo da pele

a preencher o interior da matildeo ou do braccedilo natildeo tem cor propriamente definida eacute muito impre-

ciso quanto agrave sua morfologia etc

152

Assim a perspectiva que temos sobre aquilo que natildeo vemos do nosso proacuteprio corpo

natildeo eacute inteiramente vazia inclui um certo conjunto de determinaccedilotildees (que natildeo eacute oco que eacute soacute-

lido que eacute algo que de certo modo sentimos que tem estas e aquelas propriedades em relaccedilatildeo

ao movimento que existe independentemente da apresentaccedilatildeo que disso temos etc) mas de

tal modo que b) essas determinaccedilotildees satildeo incomparavelmente mais pobres do que as determi-

naccedilotildees que preenchem as superfiacutecies ldquoexpostasrdquo (as superfiacutecies cobertas pela percepccedilatildeo direc-

ta)

Algo semelhante acontece em relaccedilatildeo a tudo o que temos apresentado fora do campo

perceptivo no sentido estrito do termo

Temos de cada vez um campo perceptivo ndash que pode variar quanto agrave sua dimensatildeo Se

estamos numa sala e natildeo estamos em posiccedilatildeo de olhar pelas janelas o campo perceptivo em

sentido estrito reduz-se agrave sala Se conseguimos olhar pelas janelas o campo perceptivo inclui

tambeacutem ldquonesgasrdquo do exterior variaacuteveis quanto agrave sua amplitude Se vamos numa avenida o

campo perceptivo passa a ter dimensotildees ainda maiores E assim por maioria de razatildeo se su-

birmos ao miradouro de um castelo etc

Sendo assim sucede que nunca se tem um campo perceptivo absoluto natildeo vemos as

coisas como se o campo perceptivo esgotasse a realidade Acontece o contraacuterio o campo per-

ceptivo em sentido estrito aparece sempre como uma pequena parte do que haacute

Isso significa que a nossa relaccedilatildeo com qualquer campo perceptivo que de cada vez te-

mos estaacute marcado por uma co-apresentaccedilatildeo inexpliacutecita desse para-laacute ndash sempre presente e

sempre a afectar com a sua presenccedila a forma como nos aparece o campo perceptivo que de

cada vez temos Daiacute resulta que ao contraacuterio do que pode parecer agrave partida a maior parte do

que de cada vez temos apresentado excede o campo perceptivo que de cada vez se acha cons-

tituiacutedo natildeo eacute percepccedilatildeo mas algo muito diferente da percepccedilatildeo com um caraacutecter inexpliacutecito

natildeo declarado (quer dizer que natildeo se encontra expresso e natildeo eacute passiacutevel de ser encontrado no

ldquoeacutecranrdquo do que nos aparece da mesma forma que aiacute podemos encontrar aquilo que pertence ao

campo perceptivo)

Ora este exterior do campo perceptivo pode estar presente de duas formas

153

A primeira que acabamos de referir corresponde agravequilo que Husserl muitas vezes

descreve como co-presenccedila em regime de horizonte (ou co-presenccedila horizontal)44

A segunda tem que ver com o fenoacutemeno da presentificaccedilatildeo (aquilo a que Husserl

chama Vergegenwaumlrtigung)45

Natildeo podemos analisar aqui detidamente as caracteriacutesticas destas duas formas de pre-

senccedila e o modo como se articulam entre si Interessa sobretudo um aspecto a presentificaccedilatildeo

eacute sempre muito mais definida (tem conteuacutedos muito mais determinados) do que a co-presenccedila

horizontal

Consideremos por exemplo o caso em que estamos de costas voltadas para o resto da

sala

Ao considerarmos o caso de estarmos de costas voltadas para o resto da sala aquilo

que compreendemos eacute que nunca estamos num quadro de realidade reduzido agrave parte da sala

para que estamos voltados e a que temos acesso directo ou perceptivo A sala em que estamos

eacute sempre a sala no seu todo Poreacutem a mera co-presenccedila horizontal eacute sempre muito menos de-

finida do que aquela que os objectos da sala passam a ter se os presentificamos na parede ao

fundo haacute uma estante uma secretaacuteria etc

Por outro lado se eacute assim sucede tambeacutem que a forma como estaacute presente por exem-

plo a estante se a presentificamos eacute muito diferente daquilo que passa a haver se nos volta-

mos e temos acesso agrave estante de forma perceptiva

44

Husserl desenvolve o termo com especial incidecircncia nas suas Cartesianische Meditationen em par-

ticular nas secccedilotildees sect19-sect22 da Segunda Meditaccedilatildeo A bibliografia sobre o ldquohorizonterdquo eacute muito extensa

e natildeo interessa dar aqui ser especialmente exaustivo Podem encontrar-se explicaccedilotildees detidas do fenoacute-

meno em obras como as de Geniusas S The Origins of the Horizon in Husserlrsquos Phenomenology

Dordrecht Springer 2012 Klein T The world as horizon Husserlrsquos constitutional theory of the ob-

jective world Rice University Tese de Doutoramento 1967 Tengelyi L Erfahrung und Ausdruck

Phaumlnomenologie im Umbruch bei Husserl und seinen Nachfolgern Dordrecht Springer 2007

45 Husserl desenvolve muito profundamente o termo Vergegenwaumlrtigung em vaacuterios momentos da sua

obra e natildeo cabe aqui uma anaacutelise do que estaacute implicado na noccedilatildeo Basta fazer notar que um levanta-

mento do termo por mais breve teria necessariamente de o resgatar em textos tatildeo diversos como

Phantasie Bildbewuszligtsein Erinnerung Vorlesungen zur Phaumlnomenologie des inneren Zeitbewuszligt-

seins Erfahrung und Urteil etc Encontra-se um debate dos temas que aqui temos em vista por exem-

plo em Oliveira I Perceptum fictum e imaginatum ndash a imaginaccedilatildeo fiacutesica em Husserl Revista Filosoacute-

fica de Coimbra nordm 36 2009 paacutegs 315-364 ou Saraiva M Lrsquoimagination chez Husserl Haia Marti-

nus Nijhoff 1970

154

Vendo bem a estante presentificada natildeo tem um nuacutemero definido de prateleiras (ie

natildeo estaacute incluiacuteda na presentificaccedilatildeo a clara determinaccedilatildeo de quantas satildeo as prateleiras que

ldquovatildeordquo do chatildeo ao tecto) E o mesmo acontece por exemplo em relaccedilatildeo aos livros haacute uma in-

dicaccedilatildeo de multiplicidade e de que os livros tecircm lombadas multicolores mas a presentificaccedilatildeo

natildeo inclui nenhuma sequecircncia definida de cores e tamanhos das lombadas O que a caracteriza

a presentificaccedilatildeo eacute ter um preenchimento muito impreciso com determinaccedilotildees puramente ge-

neacutericas (coorrespondentes agrave definiccedilatildeo de um tipo de realidade)46

Acontece entretanto que a descriccedilatildeo que acabamos de fazer eacute muito incompleta ndash e

na verdade tatildeo incompleta que envolve uma significativa margem de distorccedilatildeo do fenoacutemeno

em causa

Com efeito o que constitui a acuidade ndash e a variaccedilatildeo de acuidade ndash natildeo eacute apenas o

grau de definiccedilatildeo (a riqueza das determinaccedilotildees com que aquilo que aparece se apresenta sc a

variaccedilatildeo desse grau de definiccedilatildeo) Haacute uma outra componente essencial da acuidade tatildeo im-

portante quanto esta que acabamos de tentar pocircr em foco ndash e isto de tal modo que aquilo que

nos aparece nunca depende apenas da acuidade no sentido do grau de determinaccedilatildeo com que

as coisas nos aparecem mas sempre da relaccedilatildeo entre as duas componentes em questatildeo

Vejamos um pouco melhor como eacute assim comeccedilando por considerar o caso da visatildeo agrave

distacircncia

Como vimos agrave medida que os objectos se distanciam perdem definiccedilatildeo mas se se

perguntar se habitualmente temos noccedilatildeo de que eacute assim (e a que ponto eacute assim) a resposta

que temos de dar eacute negativa

46

Para usarmos a linguagem do empirismo claacutessico quando contrasta a representaccedilatildeo das diversas es-

peacutecies de triacircngulo e a representaccedilatildeo geneacuterica de triacircngulo e insiste em que nunca tempos propriamen-

te esta uacuteltima mas sempre uma representaccedilatildeo especiacutefica de triacircngulo ou equilaacutetero ou isoacutesceles ou es-

caleno etc podemos dizer o seguinte o que caracteriza a presentificaccedilatildeo eacute que pelo menos uma gran-

de parte daquilo que representamos desta forma tem precisamente as caracteriacutesticas que os argumentos

empiristas negam Quer dizer a tese empirista poderia ser vaacutelida no plano da percepccedilatildeo propriamente

dita (natildeo cabe aqui discutir se o eacute ou natildeo) Mas natildeo eacute vaacutelida na esfera da presentificaccedilatildeo ndash e a fortiori

natildeo eacute vaacutelida em relaccedilatildeo agrave esfera da co-presenccedila horizontal Nestas esferas a maior parte do que temos

apresentado estaacute apresentado no regime cujo cabimento as teses empiristas negam E isso significa pe-

las razotildees que vimos que as referidas teses empiristas natildeo satildeo vaacutelidas para aquilo que de cada vez

constitui a maior parte do que temos apresentado (o ldquomaciccedilordquo em que o campo perceptivo de cada vez

se acha integrado de tal modo que constiui apenas um pequeno enclave no meio dele)

155

Quer dizer temos uma noccedilatildeo global de que as coisas agrave distacircncia satildeo menos definidas

Mas isso natildeo significa de modo nenhum que as vejamos com uma consciecircncia definida do seu

grau de indefiniccedilatildeo

Se por hipoacutetese como no exemplo do Filebo vemos algo ao longe a respeito do qual

natildeo temos condiccedilotildees para determinar se eacute uma pessoa ou uma imagem (se eacute ou natildeo uma pes-

soa determinada ou se ao caminhar nos aparece algueacutem ao longe que nos parece estar a an-

dar mas de tal modo que temos condiccedilotildees para determinar se vem no sentido contraacuterio ao nos-

so aproximando-se ou se se desloca no mesmo sentido que noacutes etc) percebemos com gran-

de nitidez a indeterminaccedilatildeo do que me aparece Mas quando isso acontece todas as realidades

que nos aparecem agrave mesma distacircncia (e por maioria de razatildeo aquelas se situam ainda mais

longe) ou padecem do mesmo deficit de determinaccedilatildeo ou padecem de um deficit ainda maior

Ora acontece que em condiccedilotildees normais pura e simplesmente natildeo nos apercebemos

disso

A questatildeo estaacute em saber por que eacute assim E a resposta eacute no fundamental a seguinte

Aquilo que decide a forma como as coisas nos aparecem natildeo eacute apenas o grau de deter-

minaccedilatildeo com que se apresentam mas tambeacutem a exigecircncia de determinaccedilatildeo que enfrentam

que tecircm de satisfazer etc

Quer dizer haacute como diziacuteamos uma segunda componente de acuidade (e uma segunda

componente de variaccedilatildeo de acuidade) a precisatildeo de definiccedilatildeo que eacute aplicada agravequilo que apa-

rece e a que aquilo que aparece deve corresponder

Se considerarmos o que se passa na visatildeo agrave distacircncia damo-nos conta de que aquilo

que varia agrave medida que os objectos aparecem mais ao longe natildeo eacute apenas o grau de definiccedilatildeo

com que se apresentam ndash eacute tambeacutem a exigecircncia de definiccedilatildeo a que satildeo sujeitos consoante es-

tejam mais ao perto ou mais ao longe

Isto eacute natildeo haacute apenas um continuum de variaccedilatildeo mas dois ndash e isto de tal modo que os

dois continua em questatildeo correm paralelos um ao outro em perfeita correspondecircncia um ao

outro

Em uacuteltima anaacutelise a forma como nos aparece aquilo que nos aparece na visatildeo agrave distacircn-

cia natildeo depende de nenhum destes dois factores considerados soacute por si em isolamento de-

pende da relaccedilatildeo que de cada vez haacute entre eles (ie da correspondecircncia ou falta dela entre o

156

grau de determinaccedilatildeo com que isto ou aquilo se apresenta e o grau de exigecircncia de definiccedilatildeo

que recai sobre os objectos em causa e que eles satildeo chamados a satisfazer)

Precisamente por isso (porque a nitidez aparente do que nos aparece depende do en-

contro ou desencontro entre as duas componentes de acuidade que aqui procuramos pocircr em

contraste uma com a outra) o que habitualmente caracteriza a visatildeo agrave distacircncia eacute uma peculiar

impressatildeo de nitidez constante (ou de todo o modo um recohecimento da variaccedilatildeo da nitidez

que fica muito aqueacutem da variaccedilatildeo que efectivamente ocorre)47

Se isto eacute assim no que diz respeito agrave visatildeo agrave distacircncia algo muito semelhante se passa

tambeacutem no caso do interior dos corpos opacos

Embora haja uma diferenccedila suacutebita e abrupta entre o grau de definiccedilatildeo com que se

apresentam as superfiacutecies percepcionadas dos corpos opacos e o interior que subjaz a essas

superfiacutecies habitualmente natildeo nos apercebemos dessa diferenccedila E natildeo nos apercebemos dela

justamente porque tambeacutem neste caso haacute uma consideraacutevel variaccedilatildeo do niacutevel de exigecircncia e o

olhar que volvemos (mais exactamente o olhar que natildeo chegamos propriamente a volver)

para o interior dos corpos opacos eacute um olhar muito menos exigente do que aquele com que

acompanhamos as superfiacutecies expostas

Para percebermos a que ponto eacute assim basta um exerciacutecio muito simples

Como vimos o interior de um corpo opaco que nunca abrimos natildeo tem sequer uma cor

determinada natildeo tem uma morfologia determinada etc Eacute assim por exemplo em relaccedilatildeo ao

47

Isto eacute a uma dada distacircncia 3 o grau de perda de definiccedilatildeo eacute -3 e o grau de afrouxamento da exi-

gecircncia de definiccedilatildeo tambeacutem eacute -3 a uma dada distacircncia 8 o grau de perda de definiccedilatildeo eacute -8 e o grau de

afrouxamento da exigecircncia de definiccedilatildeo tambeacutem eacute -8 ndash e assim sucessivamente em perfeita correspon-

decircncia Podemos exprimir isto tudo nos termos a que aqui recorremos

distacircncia 3 distacircncia 6 distacircncia 9

grau de

definiccedilatildeo 3 6 9 e assim

mdashmdashmdash mdash = 1 mdash = 1 mdash = 1 sucessivamente

exigecircncia 3 6 9

de definiccedilatildeo

A estrutura das duas variantes correndo paralelas uma agrave outra resulta na impressatildeo global de nitidez

constante

157

interior do corpo de algueacutem com quem falo Mas a percepccedilatildeo ldquoprotestariardquo espontaneamente

se uma superfiacutecie expressa vista ao perto (por exemplo o rosto da pessoa com quem falamos)

nos aparecesse com esse tipo de indeterminaccedilatildeo Isso significa que haacute na percepccedilatildeo das su-

perfiacutecies e dos interiores dos corpos como que dois pesos e duas medidas

Eacute isso que permite perceber o que acontece no caso do Filebo e em casos semelhantes

relativos agrave visatildeo agrave distacircncia daacute-se uma alteraccedilatildeo em virtude da qual um objecto que se apre-

senta a uma certa distacircncia em vez de enfrentar o niacutevel de exigecircncia correspondente agrave distacircn-

cia a que se encontra passa a enfrentar um niacutevel de exigecircncia (a segunda componente de acui-

dade) diferente Ou seja tanto no caso de superfiacutecies exteriores que se apresentassem com o

deficit de determinaccedilatildeo que eacute caracteriacutestico dos interiores quanto nos casos do tipo referido

por Platatildeo no Filebo haacute um desencontro entre as duas componentes de acuidade e eacute esse de-

sencontro que daacute lugar agraves experiecircncias de deficit de nitidez

O mesmo se pode tambeacutem dizer a respeito da presentificaccedilatildeo

Quando presentificamos a estante atraacutes das costas sem nos voltarmos (ie sem termos

qualquer acesso perceptivo a ela) experimentamos aquilo que costumamos exprimir em rela-

ccedilatildeo aos fenoacutemenos de presentificaccedilatildeo quando dizemos ldquoparece que estou a verrdquo

De facto a presentificaccedilatildeo tem um caraacutecter quasi-perceptivo ndash vive-se como se fosse

percepccedilatildeo com uma impressatildeo de equivalecircncia que eacute decisiva para a forma como estaacute consti-

tuiacuteda Ou seja a presentificaccedilatildeo tem a estrutura de um oxiacutemoro eacute uma quase-percepccedilatildeo (uma

como-que-percepccedilatildeo) em aberto quanto ao seu proacuteprio conteuacutedo

O ponto decisivo eacute que sendo assim a experiecircncia normal da presentificaccedilatildeo natildeo se

daacute conta de nada disto natildeo vecirc a indeterminaccedilatildeo vecirc como se estivesse a percepcionar Isso soacute

eacute possiacutevel porque a presentificaccedilatildeo vecirc como que atraveacutes de um veacuteu que dissolve a proacutepria

acuidade do olhar e faz que aceite a falta de acuidade daquilo que se lhe apresenta

Eacute indispensaacutevel focar ainda um aspecto sem cuja consideraccedilatildeo a perspectiva que aca-

bamos de desenhar sobre o papel da acuidade e a sua influecircncia na conformaccedilatildeo do que nos

aparece ndash e portanto tambeacutem na conformaccedilatildeo da experiecircncia ndash deixa de fora uma componen-

te decisiva

Se atentarmos na forma como ateacute aqui consideraacutemos a questatildeo da acuidade verifica-

mos que sem disso estarmos cientes tomaacutemos como padratildeo o registo de acuidade ndash quer di-

zer tanto do niacutevel de determinaccedilatildeo quanto de exigecircncia de determinaccedilatildeo ndash que eacute proacuteprio da

percepccedilatildeo proacutexima de superfiacutecies expostas

158

Assim concebemos a variaccedilatildeo de acuidade sempre por defeito em relaccedilatildeo a esse pa-

dratildeo pondo em evidecircncia (como nos casos da visatildeo agrave distacircncia da co-apresentaccedilatildeo dos inte-

riores dos corpos opacos e da presentificaccedilatildeo) que tanto o niacutevel de determinaccedilatildeo com que os

ldquoconteuacutedosrdquo se apresentam quanto o niacutevel de exigecircncia de determinaccedilatildeo que tecircm de satisfazer

satildeo bastante mais baixos do que na percepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas

Ao proceder assim aceitaacutemos ndash sem sequer dar conta disso ndash que o niacutevel de acuidade

proacuteprio da percepccedilatildeo de superfiacutecies proacuteximas constitui de algum modo um nec plus ultra de

acuidade ndash um maacuteximo de acuidade insusceptiacutevel de ser ultrapassado (ou de todo o modo de

ser ultrapassado significativamente)

Vendo bem essa pressuposiccedilatildeo eacute desprovida de fundamento

Natildeo acontece de maneira nenhuma que o niacutevel de acuidade proacuteprio da percepccedilatildeo de

superfiacutecies expostas proacuteximas corresponda a um maacuteximo ou a um superlativo insusceptiacutevel de

ser significativamente ultrapassado Na verdade sucede algo muito diferente o niacutevel de acui-

dade proacuteprio da percepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas situa-se algures no meio do inter-

valo ou da escala de acuidade (e tanto quer dizer numa posiccedilatildeo tal que haacute niacuteveis inferiores ndash

um numeroso conjunto de niacuteveis inferiores ndash mas tambeacutem niacuteveis superiores ndash um numeroso

conjunto de niacuteveis superiores)

A razatildeo por que esse niacutevel pode parecer superlativo e inultrapassaacutevel eacute o facto de ha-

bitualmente o nosso ponto de vista estar se assim se pode dizer estabilizado ldquoa meiordquo da es-

cala e natildeo costumar ter acesso a nada que ultrapasse o niacutevel de acuidade proacuteprio da percepccedilatildeo

de superfiacutecies expostas proacuteximas

Em suma para usar a expressatildeo da tradiccedilatildeo esse superlativo eacute apenas quoad nos e a

concepccedilatildeo da escala da acuidade que situa toda a variaccedilatildeo abaixo desse niacutevel (compreenden-

do-o como topo da escala) eacute uma concepccedilatildeo ldquoprovincianardquo que confunde os limites da nossa

percepccedilatildeo habitual com os limites daquilo que eacute possiacutevel simpliciter (confundindo o que eacute ha-

bitualmente o maacuteximo ἡμῖν ou πρὸς ἡμᾶς com aquilo que eacute possiacutevel τῇ φύσει)

Natildeo cabe aqui analisar em todas as suas aplicaccedilotildees o que permite afirmar que a per-

cepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas natildeo tem de modo nenhum o caraacutecter de um nec plus

ultra antes estaacute situada algures ldquoa meio da escalardquo da variaccedilatildeo de acuidade que eacute possiacutevel

Atemo-nos a um aspecto que permite perceber o essencial e potildee na pista do mais que haveria

que ter em conta

159

O aspecto que pretendemos focar e que permite perceber o caraacutecter ldquomedianordquo da

acuidade proacutepria da percepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas tem que ver com o fenoacutemeno

das representaccedilotildees confusas no sentido que jaacute se desenha no primeiro capiacutetulo do livro Α da

Physica de Aristoacuteteles e cuja concepccedilatildeo foi depois objecto de importantes desenvolvimen-

tos designadamente no pensamento de Leibniz

Se se considerar por exemplo qualquer ponto de uma superfiacutecie exposta proacutexima eacute

claro que nos aparece justamente como um quase ponto ndash como se correspondesse a qualquer

coisa de individual Mas por outro lado se olharmos mais detidamente para a sua constitui-

ccedilatildeo percebemos que na verdade tem o caraacutecter de uma pequeniacutessima ldquomanchardquo ndash quer dizer

de uma multiplicidade de uma superfiacutecie etc

Em relaccedilatildeo a essa superfiacutecie haacute fundamentalmente duas coisas que vendo bem natildeo

sabemos a) qual o cardinal dos elementos que a compotildeem e b) qual a determinaccedilatildeo ou natu-

reza proacutepria desses elementos (na medida em que o que habitualmente temos como ldquopontordquo

satildeo justamente ainda superfiacutecies e nos falta por inteiro o conhecimento da determinaccedilatildeo dessa

natildeo-superfiacutecie que estaacute em causa)

O que nos importa aqui natildeo eacute naturalmente discutir este problema mas sim focar o

seguinte quando habitualmente vemos superfiacutecies expostas proacuteximas natildeo estamos cientes

deste fenoacutemeno

Isto significa por um lado que haacute um defeito de determinaccedilatildeo na forma como se apre-

sentam essas superfiacutecies elas satildeo feitas se assim se pode dizer de pseudo-pontos de multi-

plicidades indeterminadas ou insuficientemente definidas quanto agrave sua composiccedilatildeo mas por

outro lado tambeacutem significa que a nossa perspectiva quando vemos assim e aceitamos o que

assim aparece sem nos apercebermos do defeito de definiccedilatildeo aiacute implicado estaacute como que tol-

dada por um deficit de acuidade no segundo sentido que procuraacutemos pocircr em evidecircncia um

defeito quanto ao niacutevel de exigecircncia de definiccedilatildeo

Isto natildeo eacute tudo

Vendo bem a multiplicidade que estaacute implicada no aparecimento do que nos aparece

como um quase-ponto natildeo eacute apenas a multiplicidade da ldquomanchardquo ndash a multiplicidade da su-

perfiacutecie que de facto faz esse quase-ponto (e em virtude da qual justamente natildeo se trata pro-

priamente de um ponto mas apenas de um quase-ponto) Haacute ainda um outro aspecto natildeo me-

nos decisivo

160

Esse outro aspecto tem que ver com o facto de as determinaccedilotildees que preenchem esse

quase-ponto e que estatildeo envolvidas na fixaccedilatildeo do seu teor tambeacutem serem multiplicidade ndash e

de facto uma multiplicidade bastante numerosa

Natildeo importa discutir aqui a multiplicidade das determinaccedilotildees ou das teses envolvidas

na fixaccedilatildeo do teor do que quer que seja E tambeacutem natildeo cabe aqui tentar levar mais a fundo o

recenseamento do verdadeiro ldquoenxamerdquo de determinaccedilotildees e teses que assim comeccedilam a dese-

nhar-se como ldquoingredientesrdquo do quase-ponto do caixilho da janela48

48

Ao ter apresentado o quase-ponto em causa o nosso olhar estaacute afectado pela presenccedila dessas deter-

minaccedilotildees (vecirc o quase-ponto em causa segundo essas determinaccedilotildees ndash com essas determinaccedilotildees ndash e

natildeo sem elas ou numa posiccedilatildeo de neutralidade relativamente agrave sua presenccedila ou ausecircncia) um quase-

ponto do caixilho da janela tem uma dada cor que lhe atribuiacutemos o estado soacutelido a resistecircncia sem a

qual teria o caraacutecter de um fantasma e se deixaria atravessar pelos nossos dedos a coesatildeo em virtude

da qual se relaciona de uma determinada maneira com os outros momentos do caixilho etc Acresce

tambeacutem que por exemplo natildeo aparece apenas como o quase-ponto de uma superfiacutecie mas tambeacutem

posto em relaccedilatildeo com aquilo que estaacute debaixo da superfiacutecie de tal modo que faz parte de um corpo

opaco estaacute integrado numa unidade colectiva de determinaccedilotildees (o caixilho da janela) posto sob o as-

cendente dessa unidade colectiva etc Aleacutem disso o seu aparecimento inclui a atribuiccedilatildeo de um deter-

minado lugar no espaccedilo (e tanto quer dizer uma taacutecita representaccedilatildeo da proacutepria multiplicidade do

espaccedilo) e ainda de uma posiccedilatildeo no tempo (o que por sua vez tambeacutem natildeo eacute possiacutevel sem alguma re-

presentaccedilatildeo da proacutepria multiplicidade do tempo) No que diz respeito ao espaccedilo a representaccedilatildeo do

quase-ponto em causa tambeacutem inclui a) a atribuiccedilatildeo agrave realidade em causa da propriedade de poder

ocupar diversos lugares no espaccedilo (o quase-ponto do caixilho natildeo tem nenhuma ligaccedilatildeo necessaacuteria ao

lugar que neste momento ocupa pode sair dele) mas tambeacutem b) um determinado regime de movimen-

to (pode-se mover sim mas estaacute-lhe negada a propriedade da auto-cinese soacute se pode mover por in-

fluecircncia de outra coisa etc) No que diz respeito ao tempo o quase-ponto do caixilho da janela estaacute

marcado pela co-representaccedilatildeo da duraccedilatildeo (natildeo tem apenas uma posiccedilatildeo no tempo dura) e pela taacutecita

co-apresentaccedilatildeo de que tambeacutem jaacute foi antes (de tal modo que o quase-ponto agora vem na continuaccedilatildeo

do quase-ponto imediatamente antes ndash e imediatamente antes de imediatamente antes e assim sucessi-

vamente) e de que haveraacute algo semelhante imediatamente a seguir ndash e imediatamente a seguir de ime-

diatamente a seguir e assim sucessivamente (a surpresa que teria se de repente o caixilho e o quase-

ponto aqui em causa desaparecessem) Por outro lado no que diz respeito agrave duraccedilatildeo a forma como o

quase-ponto do caixilho me aparece natildeo inclui apenas a ideia de duraccedilatildeo de facto inclui tambeacutem a de

identidade diacroacutenica Quer dizer natildeo vejo o quase-ponto em causa apenas como antecedido no tempo

por algo semelhante (e vindo de algo semelhante) um outro quase-ponto do caixilho em tudo seme-

lhante a este mas natildeo idecircntico a ele Sucede o contraacuterio vejo o quase-ponto que era (antes antes de

antes antes de antes de antes etc) como sendo exactamente o mesmo que era antes e o mesmo que

haacute-de ser ainda a seguir (e a seguir de a seguir etc etc) Soacute para dar mais alguns exemplos da conste-

laccedilatildeo de determinaccedilotildees envolvidas na fixaccedilatildeo de um quase-ponto como aquele de que aqui se trata

tambeacutem eacute decisiva na sua fixaccedilatildeo a atribuiccedilatildeo do estatuto de realidade puacuteblica directamente testemu-

nhada por um nuacutemero indefinido de sujeitos e natildeo apenas por mim ndash e isto de tal modo que estaacute na in-

161

O que importa eacute ter presente como essa multiplicidade de determinaccedilotildees e teses estatildeo

de facto implicadas no quase-ponto do caixilho da janela e satildeo na formulaccedilatildeo a que acaba-

mos de recorrer ldquoingredientesrdquo disso E isto de tal modo que se suprimir ou negar qualquer

uma destas determinaccedilotildees ou se passarmos a nossa perspectiva para uma posiccedilatildeo neutra a seu

respeito (se tirarmos ao quase-ponto do caixilho da janela uma uacutenica determinaccedilatildeo ndash a cor

branca a coesatildeo a resistecircncia a posiccedilatildeo no espaccedilo a posiccedilatildeo no tempo as suas caracteriacutesti-

cas de mobilidade a sua pertenccedila agrave unidade colectiva de determinaccedilotildees que eacute o caixilho a du-

raccedilatildeo a identidade diacroacutenica o caraacutecter puacuteblico a existecircncia independente etc ndash ou se natildeo

negar nenhuma destas determinaccedilotildees e teses mas se passar a ter uma perspectiva aberta sobre

a sua presenccedila ou ausecircncia) o quase-ponto do caixilho da janela passa a aparecer com uma

conformaccedilatildeo significativamente diferente

Ora se eacute assim por outro lado o que caracteriza o nosso contacto habitual (o nosso

contacto imediato etc) com o quase-ponto do caixilho da janela eacute o facto de natildeo se ter qual-

quer consciecircncia de cada um destes factores de determinaccedilatildeo (ie de ver segundo eles com

eles de ter um olhar moldado por eles etc mas sem os ver a eles mesmos antes soacute o resulta-

do da sua intervenccedilatildeo)

tersecccedilatildeo dessa multidatildeo de olhares que podem comungar sem qualquer dificuldade no acesso a ele e

o tecircm todos apesar da sua diferenccedila entre si como algo de perfeitamente idecircntico Quando escrevo a

respeito do quase-ponto eacute precisamente isto que pressuponho Mas esta pressuposiccedilatildeo natildeo se constitui

apenas porque ao escrever entro em contacto mais directo com a presenccedila de outrem Sucede antes

que este caraacutecter puacuteblico jaacute costuma estar atribuiacutedo sem mais agraves realidades do tipo do caixilho da ja-

nela Soacute para mencionar ainda mais um elemento igualmente decisivo e que estaacute relacionado com este

que acabamos de ver a forma como aparece o quase-ponto do caixilho da janela encerra tambeacutem em si

a vigecircncia de uma tese sobre o caraacutecter independente dessa realidade ndash sobre o facto de ela estar aiacute a

ocorrer mesmo que ningueacutem a testemunhe e natildeo haja qualquer apresentaccedilatildeo dela Por outras palavras

o quase-ponto do caixilho da janela aparece espontaneamente como uma realidade independente ndash e

esta tese eacute uma tese profundamente enraizada que resiste se a tentarmos pocircr em causa Vendo bem a

proacutepria tese assim constituiacuteda tem um caraacutecter complexo envolve uma multiplicidade de elementos

Por uma parte ela supotildee alguma compreensatildeo de que o quase-ponto do caixilho e o seu aparecimento

natildeo satildeo bem a mesma coisa que aquilo que tenho quando tenho o quase-ponto da superfiacutecie do caixi-

lho envolve ao mesmo tempo o proacuteprio quase-ponto em causa mas tambeacutem algo que natildeo estaacute implica-

do nele que se lhe acha acrescentado ou lhe eacute sobreveniente o acontecimento de isso aparecer (um

aparecer a mim ou a quem quer que seja) Por outra parte a tese em causa envolve a ideia da total irre-

dutibilidade do quase-ponto do caixilho ao seu aparecimento a decidida recusa do esse = percipi a

evidecircncia de que ldquoestaacute laacuterdquo (tem por forccedila de estar laacute natildeo eacute possiacutevel que natildeo esteja laacute) mesmo que

ningueacutem saiba dele (e que eacute esse estar laacute sc o conteuacutedo ou o teor desse estar laacute independentemente de

ser sabido ou natildeo que eacute sabido em qualquer saber dele)

162

Tocamos aqui uma segunda componente fundamental do fenoacutemeno da confusatildeo e do

deficit de acuidade que estaacute no seu centro

A confusatildeo natildeo consiste apenas no deficit quantitativo a que primeiramente fizemos

referecircncia Passa tambeacutem ndash e passa essencialmente ndash por esta segunda modalidade pela inad-

vertecircncia em relaccedilatildeo agrave multiplicidade de determinaccedilotildees e teses que conformam o proacuteprio

teor daquilo que nos aparece

Tambeacutem aqui o fenoacutemeno da confusatildeo estaacute ligado agrave dupla composiccedilatildeo da acuidade

(sc do deficit de acuidade) que acima procuraacutemos pocircr em evidecircncia

Com efeito natildeo se trata soacute de as determinaccedilotildees e teses que intervecircm na fixaccedilatildeo do teor

daquilo que nos aparece natildeo estarem discriminadas no seu aparecimento ndash mas antes fundi-

das sumidas como que apagadas no seu resultado conjunto

Na verdade tudo passa tambeacutem pelo facto de a nossa relaccedilatildeo com o teor daquilo que

nos aparece ldquoembarcarrdquo nessa fusatildeo (nessa ldquoperda de vistardquo nesse ldquoapagamentordquo etc) Ou

dito de outro modo tudo passa por termos em relaccedilatildeo ao teor do que nos aparece uma rela-

ccedilatildeo distraiacuteda que natildeo cura de discriminar que determinaccedilotildees e teses estatildeo implicadas na sua

fixaccedilatildeo

Mesmo que isso possa passar despercebido a perspectiva que assim se introduz tem

qualquer coisa de anaacutelogo agrave abertura de uma caixa de Pandora

Pois o que assim se desenha natildeo eacute apenas que aquilo que habitualmente de forma

inexpliacutecita e distraiacuteda ndash mas nem por isso menos decidida ndash vale como sendo o nec plus ultra

da acuidade (um nec plus ultra com que nos relacionamos de cada vez que para apurar me-

lhor as caracteriacutesticas do que quer que seja procuramos passar a ter a seu respeito o tipo de

percepccedilatildeo que corresponde agraves superfiacutecies expostas proacuteximas) de facto natildeo eacute o nec plus ultra

de acuidade que parecia ser mas para aleacutem disso tambeacutem nem sequer sabemos a que distacircn-

cia eacute que esse nec plus ultra ldquodestronadordquo fica do que efectivamente corresponderaacute a um nec

plus ultra

Vejamos um pouco melhor o que isso significa

Por um lado significa que todo o aparecer do que quer que seja que aparece agrave nossa

volta eacute relativo a um regime de acuidade (a uma determinada ldquoafinaccedilatildeordquo ou ldquosintonizaccedilatildeordquo de

acuidade) que consente alternativa

163

Mas por outro lado porque natildeo se sabe a distacircncia a que o nec plus ultra ldquodestro-

nadordquo fica de um efectivo nec pluc ultra tambeacutem natildeo se sabe que transformaccedilotildees eacute que po-

dem ocorrer no caminho que vai do nec pluc ultra destronado agravequilo que corresponde a um

efectivo nec pluc ultra

Por outras palavras o regime de acuidade que estaacute instalado no nosso modo de ver e

que condiciona toda a nossa experiecircncia natildeo eacute apenas um regime que consente alternativa de

facto eacute um regime que consente alternativas (no plural) ndash sem que se tenha noccedilatildeo de quantas

satildeo as alternativas a que margem de transformaccedilatildeo correspondem etc

Tendemos a achar que a) se haacute aparecimento e b) se o aparecimento tem a forma da

ἐμπειρία ou da experiecircncia forccedilosamente corresponderaacute mais ou menos agravequilo com que esta-

mos familiarizados O que procuraacutemos pocircr em evidecircncia indica que natildeo eacute de modo nenhum

assim

A forma da experiecircncia (o excesso sobre a mera αἴσθησις e a mera μνήμη constituiacutedo

nos moldes que focaacutemos na primeira parte desta investigaccedilatildeo) pode dar lugar a aparecimen-

tos muito diferentes ndash a quadros de experiecircncia muito diversos uns dos outros e que abrem se

assim se pode dizer para ldquomundosrdquo que tecircm muito pouco que ver uns com os outros (de tal

modo que aqueles que estatildeo familiarizados com um desses ldquomundosrdquo se sentiriam completa-

mente perdidos e ficariam inteiramente estupefactos nos outros)

Para ganharmos plena consciecircncia da medida em que eacute assim tomemos como ponto

de partida a perspectiva desenhada por Pascal no sect199 dos Penseacutees

Interessa-nos em particular o passo em que Pascal fala da possibilidade de haver den-

tro do espaccedilo daquilo que nos parece ser um ldquoaacutetomordquo nada menos que algo correspondente

ao que estaacute em causa no conceito de ldquomundordquo ndash e de por outro lado haver ainda dentro da-

quilo que em relaccedilatildeo a esse ldquomundordquo tem o caraacutecter de um ldquoaacutetomordquo nada menos do que algo

correspondente agravequilo para que aponta o conceito de ldquomundordquo (e assim sucessivamente)49

49

ldquoJe veux lui faire voir lagrave-dedans un abicircme nouveau Je lui veux peindre non seulement lunivers visi-

ble mais limmensiteacute quon peut concevoir de la nature dans lenceinte de ce raccourci datome quil y

voie une infiniteacute dunivers dont chacun a son firmament ses planegravetes sa terre en la mecircme proportion

que le monde visible dans cette terre des animaux et enfin des cirons dans lesquels il retrouvera ce

que les premiers ont donneacute et trouvant encore dans les autres la mecircme chose sans fin et sans repos

quil se perdra dans ces merveilles aussi eacutetonnantes dans leur petitesse que les autres par leur eacutetendue

car qui nadmirera que notre corps qui tantocirct neacutetait pas perceptible dans lunivers imperceptible lui-

164

A primeira coisa que importa ter presente a este respeito eacute que Pascal estaacute a pocircr em fo-

co que o nosso regime de fixaccedilatildeo das dimensotildees das coisas no espaccedilo tem uma pretensatildeo de

validade absoluta que eacute claramente abusiva

Se o aumento das dimensotildees aparentes de um objecto tem que ver com uma diminui-

ccedilatildeo da distacircncia que nos separa dele isso eacute visto como uma aproximaccedilatildeo agrave dimensatildeo real do

objecto Pelo contraacuterio se esse aumento de dimensatildeo natildeo estaacute acompanhado por diminuiccedilatildeo

de distacircncia ao objecto isso jaacute eacute percebido como uma ampliaccedilatildeo (como o empreacutestimo de uma

dimensatildeo que natildeo estaacute laacute que eacute criada artificialmente ndash como numa lupa num microscoacutepio

etc)

Nessa medida a dimensatildeo com que as coisas se apresentam em posiccedilatildeo de proximida-

de eacute percebida como sendo a sua dimensatildeo absoluta ndash e todo o aumento em relaccedilatildeo a ela eacute

compreendido como um aumento irreal

Sucede que este regime converte indevidamente uma limitaccedilatildeo contingente (uma limi-

taccedilatildeo nossa) ndash a incapacidade de alterar naturalmente o regime de resoluccedilatildeo oacuteptica por outro

meio que natildeo seja a variaccedilatildeo da distacircncia e a impossibilidade de prolongar o aumento da di-

mensatildeo aparente dos objectos para laacute do limite da proximidade maacutexima ndash em algo de absolu-

to

Vendo bem aquilo que fazem os instrumentos oacutepticos (lupas microscoacutepios etc) eacute

exactamente o mesmo que habitualmente tem lugar em noacutes por via da alteraccedilatildeo da distacircncia

uma modificaccedilatildeo do regime de resoluccedilatildeo oacuteptica E um objecto ampliado natildeo eacute um objecto su-

jeito a um outro processo que natildeo aquele mesmo que ocorre quando dele nos aproximamos e

ele como que se expande e passa a ter uma dimensatildeo aparente maior

A este primeiro aspecto vem juntar-se um segundo tambeacutem posto em evidecircncia por

Pascal e que eacute o seguinte natildeo acontece apenas que o que haacute onde nos aparece um quase-pon-

to possa ter grandes dimensotildees e na verdade ateacute as dimensotildees de qualquer coisa como um

ldquomundordquo (de tal modo que nesse sentido a visatildeo proacutexima eacute uma ldquovisatildeo agrave distacircnciardquo com

uma extraordinaacuteria margem de ldquocondensaccedilatildeordquo e ldquoabreviaturardquo) para aleacutem disso acontece

tambeacutem que natildeo se sabe qual a amplitude desta condensaccedilatildeo ou desta abreviatura (ie a que

distacircncia se estaacute de um regime de apresentaccedilatildeo que deixe de envolver perda sumariaccedilatildeo re-

duccedilatildeo etc) no acompanhamento que se faz dos domiacutenios de realidade sobre que incide

mecircme dans le sein du tout soit agrave preacutesent un colosse un monde ou plutocirct un tout agrave leacutegard du neacuteant ougrave

lon ne peut arriverrdquo (Pascal Penseacutees sect199)

165

Eacute isso que Pascal exprime quando fala de ldquoaacutetomosrdquo que encerram ldquomundosrdquo cujos

ldquoaacutetomosrdquo por sua vez tambeacutem encerram ldquomundosrdquo e chama a atenccedilatildeo para a sucessiva alte-

raccedilatildeo deste nexo ou desta conversatildeo do ldquoaacutetomordquo em ldquomundordquo50

A este segundo aspecto vem juntar-se por outro lado um terceiro de que Pascal natildeo

fala no sect199 dos Penseacutees mas que corresponde a algo jaacute anteriormente referido

Como vimos a captaccedilatildeo perceptiva pode variar quanto aos seus limiares e tambeacutem

quanto agraves determinaccedilotildees a que eacute sensiacutevel Quer dizer a percepccedilatildeo pode ter ldquoredesrdquo com uma

malha mais larga ou mais apertada

Tendemos a conceber esta possibilidade de variaccedilatildeo por defeito em relaccedilatildeo a quadros

de determinaccedilotildees com que estamos familiarizados Mas observou-se que a variaccedilatildeo tambeacutem eacute

possiacutevel na direcccedilatildeo inversa porque as determinaccedilotildees a que somos sensiacuteveis natildeo esgotam o

horizonte da percepccedilatildeo possiacutevel porque haacute mais possibilidades de percepccedilatildeo do que aquelas

que estatildeo exploradas no nosso caso porque haacute determinaccedilotildees muito diferentes daquelas que

se acham contempladas no alfabeto de determinaccedilotildees em que estaacute escrito o αἰσθάνεσθαι ndash e

portanto tambeacutem a μνήμη e a ἐμπειρία ndash que forma o nosso ponto de vista

Ora quando concebemos esta possibilidade toda a nossa inclinaccedilatildeo espontacircnea eacute para

a conceber como correspondendo a uma margem como que residual

Ou seja tendemos a conceber qualquer coisa de pequena amplitude completando aqui

e ali o espectro do que se acha coberto pelo aparecimento que costuma ter lugar em noacutes Mas

a verdade eacute que semelhante limitaccedilatildeo da amplitude do que assim poderaacute estar a ser deixado de

fora na apresentaccedilatildeo que temos natildeo possui nenhuma base real

De facto pode acontecer que tambeacutem no plano qualitativo se assim se pode dizer as

relaccedilotildees de forccedilas entre o que entra e o que eacute deixado de fora no acesso de que costumamos

dispor sejam justamente as inversas Ou seja tambeacutem se pode dar algo de equivalente agravequilo

que o sect199 foca no plano qualitativo mundos de determinaccedilotildees onde nos aparece algo relati-

vamente simples

50

Para totalmente sermos fieacuteis ao texto teriacuteamos de fazer notar que Pascal fala de uma ldquoprossecuccedilatildeo

infinitardquo e de procurar determinar o que eacute que isso implicaria o que quereria dizer etc No entanto pa-

ra o que aqui estaacute em causa basta sublinhar o caraacutecter indeterminado e indefinido dessa abertura de

ldquoabismosrdquo de dimensatildeo no que pareceria jaacute pelo menos proacuteximo de ser simples e portanto desprovido

de dimensatildeo

166

E isto de tal modo que tambeacutem nesta ldquoreacuteplica qualitativardquo do que se acha focado no

sect199 dos Penseacutees de Pascal haacute uma indeterminaccedilatildeo anaacuteloga agravequilo para que Pascal chama a

atenccedilatildeo naquele fragmento em uacuteltima anaacutelise natildeo se sabe qual eacute a margem de perda (a que

distacircncia se estaacute do que corresponderaacute agrave total supressatildeo de qualquer perda a que distacircncia

se estaacute ter um regime de apresentaccedilatildeo efectivamente proporcionado agravequilo que haacute etc)

Este raacutepido bosquejo cria condiccedilotildees para se perceber ainda um outro aspecto ndashaquele

aspecto que mais propriamente corresponde agrave questatildeo da acuidade tal como a procuraacutemos pocircr

em evidecircncia

Tanto no sect199 (quer dizer no que diz respeito aos aspectos quantitativos) quanto na-

quilo a que chamaacutemos a ldquoreacuteplica qualitativardquo do sect199 o que estaacute em causa eacute a relaccedilatildeo entre o

que temos apresentado e o que se acha deixado de fora naquilo que noacutes temos apresentado

As duas versotildees ndash quantitativa e qualitativa ndash da possibilidade de explosatildeo para que Pascal

aponta datildeo uma medida da extraordinaacuteria margem de variaccedilatildeo que pode haver no campo da

experiecircncia mesmo que a experiecircncia incida exactamente sobre o ldquomesmordquo campo de realida-

de

Poreacutem o que estaacute em causa no fenoacutemeno da acuidade ndash e o que estaacute em causa no fenoacute-

meno da confusatildeo ndash natildeo eacute bem isto

Na versatildeo ndash tanto quantitativa quanto qualitativa ndash do Gedankenexperiment de Pascal

o modelo eacute um modelo de incompletude marcado por qualquer coisa como uma alternativa

simples entre inclusatildeo e exclusatildeo umas coisas entram no aparecimento ou na ldquorepresentaccedilatildeordquo

que temos outras natildeo Mas o fenoacutemeno da variaccedilatildeo da acuidade e o fenoacutemeno da confusatildeo

apontam para outra coisa bastante diferente o que temos pode estar constituiacutedo de tal modo

que a) ele proacuteprio remete para algo mas b) natildeo chega a seguir isso mesmo para que remete

de sorte que c) isso para que jaacute remete lhe escapa

Trata-se de uma forma muito peculiar de cegueira a cegueira em relaccedilatildeo a algo de

que jaacute se tem alguma apresentaccedilatildeo ndash uma cegueira que vem da frouxidatildeo na relaccedilatildeo que jaacute se

tem com algo

O que assim se desenha eacute diferente tanto do que estaacute em causa no sect199 quanto do que

estaacute em causa na sua reacuteplica qualitativa Pois trata-se de qualquer coisa como um abismo in-

terior ao proacuteprio acontecimento da apresentaccedilatildeo que por natildeo se acompanhar bem a si mes-

167

mo (por opacidade na sua relaccedilatildeo consigo mesmo e com aquilo que dele faz parte) deixa de

fora isso mesmo que o constitui (sc a sua proacutepria composiccedilatildeo)51

sect23

O desdobramento da experiecircncia em dois planos a superfiacutecie e a profundidade da expe-

riecircncia (Kant) ndash Pascal e ldquolrsquoautomaterdquo

O que acabamos de ver potildee-nos na pista de um outro factor de configuraccedilatildeo da expe-

riecircncia ndash e portanto tambeacutem da variaccedilatildeo do que aparece em resultado das projecccedilotildees empiacuteri-

cas

Este outro factor tem que ver com aquilo a que Kant chama ldquoBathos der Erfahrungrdquo

(ldquoprofundidade da experiecircnciardquo) e tem que ver em especial a) com a diferenccedila entre expe-

riecircncia com ldquoprofundidaderdquo e experiecircncia sem ldquoprofundidaderdquo e b) com a diferenccedila entre as

vaacuterias formas como pode haver algo de correspondente ao conceito de ldquoprofundidade da expe-

riecircnciardquo52

51

Em diversos textos Kant exprime este estado de coisas e fala dele em termos que potildeem em destaque

a sua semelhanccedila com aquilo que encontramos desenhado no sect 199 Diz por exemplo na Anthropolo-

gie Mrongovius AA XXV 1221 bdquoDie MenschenSeele ist am meisten mit dunklen Vorstellungen be-

schaftigt (sic) und diese sind auch der Grund zu den klaren Vorstellungen () Sie spielen eine so gro-

szlige Rolle in den Handlungen der MenschenSeele daszlig wenn sich ein Mensch all dieser Vorstellungen

auf einmal bewuszligt werden koumlnte er uumlber den Vorrath derselben erstaunen moumlchte() Cf tambeacutem

por exemplo Menschenkunde AA XXV 868 bdquoDie dunklen Vorstellungen machen den groumlszligten Theil

der menschlichen Vorstellungen aus und wenn sich ein Mensch aller Vorstellungen bewuszligt werden

koumlnnte die wirklich in seinem Gemuumlthe liegen die aber nur bei Gelegenheit hervortreten so wuumlrde er

sich fuumlr eine Art von Gottheit halten und uumlber seinen eigenen Geist erstaunen denn er hat keinen Be-

griff von einem Wesen von so ungeheurer Erkentniszlig als er selbst hatldquo Veja-se ainda Refl 176 AA

XV 65 Refl 1482 AA XV 665 Anthropologie Busolt AA XXV 1440 Metaphysik Mrongovius

AA XXIX 879 Anthropologie in pragmatischer Hinsicht AA VII 135f Metaphysik L1 AA XXVIII

52 ldquoHohe Thuumlrme und die ihnen aumlhnliche metaphysisch groszlige Maumlnner um welche beide gemeiniglich

viel Wind ist sind nicht fuumlr mich Mein Platz ist das fruchtbare Bathos der Erfahrung und das Wort

transcendental dessen so vielfaumlltig von mir angezeigte Bedeutung vom Recensenten nicht einmal ge-

faszligt worden (so fluumlchtig hat er alles angesehen) bedeutet nicht etwas das uumlber alle Erfahrung hinaus-

geht sondern was vor ihr (a priori) zwar vorhergeht aber doch zu nichts mehrerem bestimmt ist als

lediglich Erfahrungserkenntniszlig moumlglich zu machenrdquo (in Prolegomena Ediccedilatildeo da Academia vol IV

168

Vejamos mesmo que soacute num breve esboccedilo o complexo de fenoacutemenos para que tudo

isto aponta

A tendecircncia que costuma dominar a nossa compreensatildeo de como se acha constituiacutedo o

aparecimento em que damos connosco (e tanto quer dizer tambeacutem de como se acha constituiacute-

da toda a experiecircncia) passa por entender tudo como se o aparecimento fosse uacutenica e exclusi-

vamente constituiacutedo por componentes declarados e natildeo houvesse nele nada que natildeo esteja agrave

mostra

Natildeo se pode excluir o cabimento de algo constituiacutedo deste modo (e isso quer dizer

tambeacutem de uma experiecircncia constituiacuteda desse modo) Mas importa ter presente que por um

lado o aparecimento e o fenoacutemeno da experiecircncia em que nos achamos constituiacutedos natildeo tem

nada que ver com um aparecimento inteiramente transparente para si mesmo e a que natildeo es-

capa nada da sua proacutepria composiccedilatildeo e por outro lado que se efectivamente haacute a possibili-

dade de acontecimentos de acesso constituiacutedos desse modo noacutes na verdade natildeo fazemos a

menor ideia do que isso seja pois o acesso natildeo estaacute constituiacutedo em noacutes desse modo

Agrave primeira vista natildeo parece ser assim

Estamos tomados por uma forte impressatildeo de contacto imediato e franco com a proacute-

pria composiccedilatildeo do aparecimento em que nos temos E isto ao ponto de parecer difiacutecil admitir

que possa haver qualquer significativa margem de opacidade neste domiacutenio

Ora que importa perceber que essa impressatildeo de acesso imediato e irrestrito eacute ilusoacute-

ria

O que nos aparece estaacute cunhado e moldado por uma multiplicidade muito ampla de

momentos de fixaccedilatildeo (quer dizer por uma multiplicidade muito ampla de diferentes mo-

mentos de representaccedilatildeo) de que natildeo temos consciecircncia A impressatildeo de acesso irrestrito a

tudo o que estaacute implicado no ndash ou compotildee o ndash aparecimento que temos vem justamente do ca-

raacutecter inconspiacutecuo dos elementos de profundidade (ie vem de estarmos de tal modo ldquopresosrdquo

agrave superfiacutecie fechados numa visatildeo da superfiacutecie etc) que natildeo temos sequer noccedilatildeo de que haja

qualquer profundidade (de que a superfiacutecie seja apenas isso a superfiacutecie do aparecimento e

de que haja o que quer que seja para laacute dela)

p 373) Aquilo a que se procederaacute de seguida seraacute uma anaacutelise abreviada Para mais ver Carvalho

MJ Profundidade da experiecircncia (Kant) In Razatildeo e Liberdade Homenagem a Manuel Joseacute do

Carmo Ferreira Lisboa 2010 vol II paacutegs 1113-1151

169

Acontece que como vimos por exemplo na anaacutelise da multiplicidade de determinaccedilotildees

que afectam cada momento mesmo o mais simples do que temos apresentado eacute como que a

resultante de um sistema de forccedilas (quer dizer neste caso de um sistema de diversas re-

presentaccedilotildees) que determinam essa resultante e o que acontece eacute que em regra soacute nos aparece

a proacutepria resultante (como se fosse tudo) e natildeo a multiplicidade das forccedilas que a constituem

de que ela eacute a experiecircncia Nesse sentido o proacuteprio aparecimento enquanto tal tem o caraacutecter

de qualquer coisa como um icebergue de que habitualmente aparece soacute a ponta

A isto tudo acresce um outro aspecto que foi claramente posto em evidecircncia nas anaacuteli-

ses do fenoacutemeno da confusatildeo por aqueles que mais detidamente se bateram com ele (por

exemplo aquelas que foram levadas a cabo por Leibniz ou Kant)

Quando falamos de superfiacutecie e profundidade este modo de falar pode sugerir que se

trata de qualquer coisa como uma simples alternativa um autaut constituiacutedo de tal modo que

soacute haacute por assim dizer dois planos ou dois niacuteveis ndash e nada mais

Vendo bem natildeo eacute necessariamente assim ndash e de facto natildeo eacute assim no aparecimento em

que nos achamos constituiacutedos e no processo de formaccedilatildeo da experiecircncia que ocorre em noacutes

De facto tambeacutem pode acontecer ndash e acontece connosco ndash que o proacuteprio domiacutenio da

profundidade esteja organizado numa multiplicidade de niacuteveis cada vez mais profundos A

diferenccedila de niacutevel de profundidade aqui em causa passa por aquilo que foi posto em evidecircncia

na referida tradiccedilatildeo ndash e que eacute o seguinte

Pode muito bem acontecer que a resultante com que lidamos agrave superfiacutecie do que nos

aparece radique num complexo de representaccedilotildees (chamemos-lhe A B C D E e F) mas de

tal modo que cada uma destas representaccedilotildees tenha por sua vez um caraacutecter tal que tambeacutem

equivale agrave resultante de outro complexo de representaccedilotildees (chamemos-lhe α β γ δ em rela-

ccedilatildeo a A e κ λ μ ν ο em relaccedilatildeo a B etc)

O ponto decisivo eacute que natildeo haacute apenas um uacutenico nexo entre ldquosistema de forccedilasrdquo e resul-

tante mas qualquer coisa como a iteraccedilatildeo deste nexo ndash porque algumas das forccedilas do sistema

natildeo satildeo simples tecircm um caraacutecter intrinsecamente complexo e podem tambeacutem elas sair do

seu ldquoanonimatordquo lograr algum reconhecimento etc sem que isso implique tambeacutem a ldquodesa-

nonimizaccedilatildeordquo das forccedilas (ie do complexo de representaccedilotildees impliacutecitas) que as compotildeem

Eacute por isso que aqui falamos de niacuteveis de profundidade (no plural)

Mas por outro lado isto natildeo eacute tudo

170

O que estaacute em causa natildeo eacute apenas a iteraccedilatildeo mas tambeacutem a reiteraccedilatildeo deste nexo ndash de

tal modo que algo semelhante se pode passar de novo com o segundo niacutevel de maior profundi-

dade (e com um terceiro um quarto etc)

Sendo assim a questatildeo eacute a de saber em cada campo de aparecimento constituiacutedo deste

modo com elementos submersos ateacute onde se estende a profundidade ndash onde se encontra o

fundo (quer dizer a que distacircncia a superfiacutecie fica desse fundo submerso e que margem de

transformaccedilatildeo teria de ocorrer para que o submerso deixasse de se manter submerso e a

apresentaccedilatildeo passasse a ser totalmente transparente para si mesma)

Isto significa globalmente uma extraordinaacuteria alteraccedilatildeo das dimensotildees que pode ter

um acontecimento de acesso (de aparecimento de representaccedilatildeo etc)

Tendemos espontaneamente a achar que a dimensatildeo de um acontecimento de apresen-

taccedilatildeo ou acesso (e tanto quer dizer tambeacutem a dimensatildeo de um campo de experiecircncia) depen-

de da sua extensatildeo declarada ndash da amplitude do que se acha escancarado nele Contudo o que

aqui se comeccedila a desenhar eacute que natildeo eacute propriamente assim

Na verdade a dimensatildeo de um acontecimento de acesso ou de aparecer tambeacutem passa

pela inclusatildeo ou natildeo inclusatildeo de uma profundidade de uma componente submersa etc e

passa pela amplitude (ie pelo niacutevel de profundidade) desta componente submersa

Em certo sentido o campo do que se tem de forma declarada eacute equivalente a qualquer

coisa como uma multiplicidade bidimensional enquanto os elementos submersos correspon-

dem a qualquer coisa como uma ldquoterceira dimensatildeordquo ndash ao salto geomeacutetrico ou agrave explosatildeo geo-

meacutetrica da terceira dimensatildeo E ao contraacuterio do que pode parecer uma mancha de apareci-

mento declarado com dimensotildees relativamente modestas pode ser a resultante de uma profun-

didade da experiecircncia muito difiacutecil de sondar e na verdade com extraordinaacuterias dimensotildees

Tambeacutem aqui podemos de novo recorrer agrave figura da abertura de uma caixa de Pandora

Com efeito esta possibilidade significa natildeo apenas que pode haver puncta caeca no

proacuteprio terreno do que nos aparece no proacuteprio curso do aparecer enquanto tal mas que o ter-

reno do que aparece pode estar integralmente dobrado natildeo apenas por puncta caeca e ateacute por

uma multiplicidade de puncta caeca para cada ldquopontordquo declarado mas tambeacutem por uma

multiplicidade de niacuteveis de puncta caeca que fazem corresponder a cada ponto declarado

uma multiplicidade como que tridimensional de pressupostos inexpliacutecitos (submersos cada

vez mais profundos de que cada ponto declarado eacute a resultante etc)

171

A questatildeo eacute entatildeo a de saber o que eacute que este contraste entre duas possibilidades de

constituiccedilatildeo do aparecimento tem que ver com contrastes na forma de organizaccedilatildeo da expe-

riecircncia

Aparentemente mesmo que aconteccedila que um campo de aparecimento esteja constituiacute-

do com profundidade (sobre a base de componentes submersas etc) isso natildeo se parece re-

flectir nos processos de projecccedilatildeo empiacuterica que nele tecircm lugar

Isto eacute a um primeiro olhar (a um olhar desatento) a experiecircncia tem lugar justamente

agrave superfiacutecie e natildeo eacute senatildeo um fenoacutemeno de superfiacutecie Neste sentido a experiecircncia tem como

base αἰσθήσεις declaradas (e tem como base αἰσθήσεις declaradas mesmo que estas uacuteltimas ra-

diquem em qualquer coisa como um βάθος no sentido que Kant daacute a este termo)

Ora acontece que de facto as coisas natildeo se passam necessariamente assim

Com efeito ainda que a base das projecccedilotildees empiacutericas sejam αἰσθήσεις que se produ-

zem de forma declarada ndash ou melhor μνῆμαι que se produzem de forma declarada ndash esse ca-

raacutecter declarado da base da projecccedilatildeo empiacuterica natildeo significa necessariamente que a projecccedilatildeo

empiacuterica tambeacutem tenha de decorrer com um caraacutecter declarado no terreno daquilo a que cha-

maacutemos o terreno da resultante ndash agrave superfiacutecie do que nos aparece

De facto nem sequer acontece que a proacutepria μνήμη (ou melhor as proacuteprias μνῆμαι τοῦ

αὐτοῦ πράγματος que constituem a base da ἐμπειρία) tenha enquanto constitui o terminus a

quo da ἐμπειρία de ter um caraacutecter declarado expliacutecito etc

Por um lado pode muito bem acontecer que mesmo enquanto αἰσθήσεις estejam nu-

ma posiccedilatildeo apagada tal que natildeo se chega a dar por elas sem que isso impeccedila a sua traduccedilatildeo

em μνήμη Por outro lado mesmo que as αἰσθήσεις que datildeo origem agraves μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγ-

ματος tenham tido lugar de forma expressa declarada etc isso natildeo significa que as corres-

pondentes μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος tambeacutem tenham de ter o mesmo tipo de presenccedila ex-

pressa

Finalmente ndash e este eacute talvez o ponto decisivo ndash tatildeo-pouco acontece que a proacutepria cons-

tituiccedilatildeo da ἐμπειρία soacute possa ocorrer em ldquoterreno descobertordquo

Isto quer dizer ao mesmo tempo duas coisas

Em primeiro lugar a operaccedilatildeo de transgressatildeo do dado de projecccedilatildeo de um estado-de-

coisas-permanente etc ndash a proacutepria τοῦ ὁμοίου μετάβασις que estaacute no fulcro da ἐμπειρία ndash natildeo

172

precisa de se processar de forma consciente declarada tambeacutem pode acontecer de modo taacuteci-

to sem que se decirc por isso

O mesmo vale tambeacutem para o resultado dessa projecccedilatildeo ndash para os proacuteprios estados-de-

coisas-permanentes (quer dizer para as leis ou pseudo-leis empiacutericas e para as realidades que

elas ldquopotildeem aiacuterdquo) Tambeacutem isso pode muito bem ter um caraacutecter taacutecito inexpliacutecito ndash ldquoestar aiacuterdquo

sem que a sua presenccedila tenha o que quer que seja de declarado e possa ser directamente en-

contrado no ldquoconteuacutedo expressordquo do que nos aparece

Na verdade este eacute o ponto decisivo os estados de coisas permanentes que constituem

o terminus ad quem da ἐμπειρία (o que a ἐμπειρία constitui aquilo em que depotildee o seu resul-

tado etc) natildeo precisam de estar constituiacutedos e presentes de forma expressa Para ldquoestarem aiacuterdquo

ndash e para estarem a afectar a nossa perspectiva ndash basta que estejam presentes em co-apresenta-

ccedilatildeo inexpliacutecita53

53

Em relaccedilatildeo ao modelo que desenhaacutemos quando falaacutemos de niacuteveis de profundidade mais e menos

profundos a proacutepria composiccedilatildeo da ἐμπειρία ilustra a diferenccedila Por um lado as operaccedilotildees de μετάβα-

σις τοῦ ὁμοίου de projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes etc tecircm o caraacutecter como que de um

sistema de forccedilas em relaccedilatildeo ao qual os estados-de-coisas-permanentes que a ἐμπειρία potildee e que cons-

tituem como vimos o seu correlato desempenham o papel de qualquer coisa como uma resultante

Mas por outro lado o facto de ser assim natildeo significa de maneira nenhuma como acabamos de ver

que o proacuteprio estado-de-coisas-permanentes postos pela projecccedilatildeo empiacuterica tenha de ter uma presenccedila

declarada expressa Tambeacutem eles podem muito bem estar ndash e na sua esmagadora maioria estatildeo ndash

numa posiccedilatildeo de presenccedila inexpliacutecita que afecta a nossa perspectiva sem se dar a conhecer expressa-

mente sem se declarar etc Quer dizer tambeacutem eles estatildeo numa posiccedilatildeo submersa e tambeacutem eles de-

sempenham funccedilotildees de forccedilas integrando um sistema de forccedilas de que aquilo que aparece expressa-

mente no foco temaacutetico constitui a resultante Por outras palavras ao mesmo tempo que satildeo um termi-

nus ad quem ndash resultante de um sistema de forccedilas mais profundas (as operaccedilotildees implicadas na sua

proacutepria constituiccedilatildeo) ndash os estados-de-coisas postos pela ἐμπειρία tambeacutem desempenham as funccedilotildees de

terminus a quo como ponto de partida de uma segunda resultante ndash que eacute aquilo que aparece expres-

samente posto como apresentaccedilatildeo declarada (o que como vimos se caracteriza precisamente por estar

ao mesmo tempo moldado por uma complexiacutessima multiplicidade de estados de coisas permanentes de

raiz empiacuterica) Nesse sentido poderiacuteamos dizer que aquilo que aparece expressamente estaacute moldado a)

por vaacuterias camadas ou estratos de profundidade empiacuterica (vaacuterias camadas ou estratos de excesso so-

bre a μνήμη e trangressatildeo do dado) e tambeacutem b) por uma multiplicidade de factores de determinaccedilatildeo

cada um deles assim constituiacutedo por mais do que uma camada de profundidade Este eacute um ponto par-

ticularmente importante em cada instante o que molda a nossa perspectiva eacute uma multiplicidade com-

vergente de factores de determinaccedilatildeo ndash grande parte dos quais com origem empiacuterica E o patrimoacutenio

de fixaccedilotildees empiacutericas que de cada vez interfere eacute ao mesmo tempo muacuteltiplo e em cada caso constituiacute-

do por diversas camadas (vaacuterios graus de profundidade) Observe-se finalmente que estas camadas

na verdade podem ser mais do que duas Pusemos em evidecircncia que satildeo pelo menos duas porque haacute

173

Assim a cada instante estamos a regular-nos por uma ldquomultidatildeordquo de projecccedilotildees empiacute-

ricas por forccedila das quais temos domesticada a realidade futura a que nos dirigimos e julga-

mos saber que essa realidade futura corresponderaacute no essencial agravequilo que aiacute se encontra no

presente Se natildeo fosse assim (se houvesse um efectivo em-aberto nesta mateacuteria) estariacuteamos

completamente desorientados

Mas sendo assim nada desta ldquomultidatildeordquo de estados-de-coisas-permanentes figura co-

mo conteuacutedo expresso no que me aparece E quando ao chegar convertido em presente uma

parte do futuro a que as projecccedilotildees de estados-de-coisas-permanentes dizem respeito tanto as

projecccedilotildees empiacutericas quanto os estados-de-coisas em causa continuam a encontrar-se em posi-

ccedilatildeo inexpliacutecita ndash e as proacuteprias relaccedilotildees (o ldquocommerciumrdquo as transacccedilotildees etc) entre o conteuacute-

do expresso e as projecccedilotildees empiacutericas satildeo vividas sem que tanto as projecccedilotildees empiacutericas

quanto os estados de coisas permanentes em questatildeo alguma vez cheguem a sair dessa posi-

ccedilatildeo inexpliacutecita em que se encontram

O que estaacute aqui em causa eacute aquilo que Pascal tatildeo bem pocircs em evidecircncia quando vin-

cou que a constituiccedilatildeo de convicccedilatildeo em noacutes (se assim se pode dizer a contracccedilatildeo da nossa

perspectiva na adopccedilatildeo de uma determinada tese) natildeo se produz soacute na forma da inspecccedilatildeo (da

consideraccedilatildeo expressa) mas tambeacutem na forma daquilo a que chamou ldquolrsquoautomaterdquo ndash forma

que se caracteriza precisamente por corresponder a uma fixaccedilatildeo que para se produzir natildeo

carece de qualquer consideraccedilatildeo expressa e pode produzir-se sem qualquer componente de

apresentaccedilatildeo expressa54

pelo menos os dois niacuteveis correspondentes agraves operaccedilotildees constituintes da ἐμπειρία e aos estados-de-coi-

sas-permanentes que formam o respectivo resultado Mas na verdade nada impede que os niacuteveis sejam

em nuacutemero superior pois pode haver projecccedilotildees empiacutericas de segundo terceiro quarto grau etc

montadas sobre a ligaccedilatildeo entre estados-de-coisas-permanentes jaacute de origem empiacuterica (quer dizer em

que as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος jaacute dizem respeito a siacutenteses de diferentes estados-de-coisas-

permanentes ou agrave detecccedilatildeo de afinidade entre estados-de-coisas-permanentes)

54 Natildeo pertence aqui analisar os textos de Pascal e os diversos conceitos que desempenham um papel

na sua descriccedilatildeo do complexo de fenoacutemenos aqui em causa Assinale-se que em alguns fragmentos o

contraste que aqui estaacute em causa (o contraste entre a convicccedilatildeo que se tem de forma considerativa e

aquela que natildeo passa por nenhuma consideraccedilatildeo ou incidecircncia sobre as mateacuterias judicativas de que se

trata) tambeacutem eacute posto em relaccedilatildeo com a oposiccedilatildeo entre instinct e coeur (em que radicam os primeiros

princiacutepios) ou coeur e ldquola raisonrdquo Eacute claro que os conceitos cunhados por Pascal natildeo tecircm exactamente

os mesmos contornos que a diferenccedila entre convicccedilotildees ou teses de natureza inexpliacutecita e convicccedilotildees

ou teses de natureza expliacutecita ndash que eacute aquele que para noacutes aqui tem importacircncia Mas por outro lado eacute

174

Pascal tambeacutem focou o ponto decisivo ao apontar para o facto de as fixaccedilotildees (as con-

tracccedilotildees de convicccedilatildeo) constituiacutedas na esfera de ldquolrsquoautomaterdquo natildeo serem em nada mais fracas

do que aquelas que tecircm lugar na esfera da consideraccedilatildeo ou da apresentaccedilatildeo expressa A haver

alguma diferenccedila de forccedila essa diferenccedila eacute a favor das convicccedilotildees constituiacutedas a tergo ou de

forma inexpliacutecita ndash e natildeo o contraacuterio

Finalmente Pascal tambeacutem potildee no caminho certo quando vinca que o foco de incidecircn-

cia tem em noacutes um calibre ou uma lotaccedilatildeo bastante restrita e soacute pode atentar de cada vez a

um pequeno conjunto de coisas ndash de sorte que o nuacutemero de teses ou de determinaccedilotildees para

que olhamos em consideraccedilatildeo e reconhecimento expliacutecitos eacute sempre muito pouco numeroso

corresponde a um minuacutesculo foco no meio de um maciccedilo de teses e determinaccedilotildees inexpliacuteci-

tas que constitui de cada vez a esmagadora maioria das nossas teses e das determinaccedilotildees

que temos adoptadas ndash uma imensa maioria de teses e determinaccedilotildees sem a qual tambeacutem de-

sapareceria a imensa maioria da realidade que de cada vez temos apresentada55

Por outras palavras se de repente se desvanecesse esse maciccedilo de co-apresentaccedilatildeo in-

expliacutecita e a nossa perspectiva sobre as coisas ficasse reduzida agravequilo que de cada vez figura

expressamente apresentado mudariam fundamentalmente duas coisas 1) o apresentado fica-

tambeacutem claro que o reconhecimento desta uacuteltima e do complexo de fenoacutemenos que aqui resumida-

mente procuraacutemos pocircr em evidecircncia aparece claramente desenhado no texto de Pascal

55 Em uacuteltima anaacutelise eacute isto que estaacute em causa quando Pascal em sect821 contrasta a lentidatildeo da razatildeo e

a rapidez do ldquosentimentrdquo Diz a certo passo ldquoLa raison agit avec lenteur et avec tant de vues sur tant

de principes lesquels il faut quils soient toujours preacutesents quagrave toute heure elle sassoupit ou seacutegare

manque davoir tous ses principes preacutesents Le sentiment nagit pas ainsi il agit en un instant et tou-

jours est precirct agrave agir Il faut donc mettre notre foi dans le sentiment autrement elle sera toujours vacil-

lanterdquo Vendo bem o que estaacute em causa natildeo eacute propriamente uma diferenccedila de velocidades mas a proacute-

pria diferenccedila na forma como se constitui a convicccedilatildeo nos dois casos e o entrave que resulta da exigui-

dade do foco considerativo As operaccedilotildees da ldquoraisonrdquo processam-se por exame ndash requerem a presenccedila

das mateacuterias judicativas no foco temaacutetico Mas porque o foco tem um calibre limitado (ou como tam-

beacutem podemos dizer porque natildeo podemos prestar atenccedilatildeo ao mesmo tempo a mais do que um pequeno

conjunto de coisas) a consideraccedilatildeo ou a inspecccedilatildeo do que quer que seja que pela sua complexidade

exceda o calibre do foco temaacutetico soacute pode ter lugar em sucessatildeo ndash se assim se pode dizer por deslo-

caccedilatildeo do foco como se fosse um cursor que deixa de cobrir A B C e D para passar a cobrir F G H e

I Eacute isso que faz a lentidatildeo da razatildeo O autoacutemato (o sentimento o instinto etc) ndash quer dizer constitui-

ccedilatildeo de convicccedilatildeo atemaacutetica ndash natildeo tem este problema porque natildeo passa pelo foco e natildeo tem o calibre

limitado dele Soacute podemos prestar atenccedilatildeo de cada vez a um pequeniacutessimo nuacutemero de coisas ndash mas a

presenccedila atemaacutetica (o nuacutemero de teses por que a cada vez podemos estar afectados sem lhes prestar-

mos qualquer atenccedilatildeo ou termos qualquer consciecircncia delas) natildeo parece estar limitada por qualquer

restriccedilatildeo

175

ria automaticamente reduzido ou ao campo perceptivo de cada vez presente ou agravequilo que de

cada vez estivesse a ser presentificado ndash e isso converter-se-ia de cada vez em algo absoluto

pois natildeo se teria nada que nos pusesse em contacto com o que quer que fosse para aleacutem disso

2) o proacuteprio campo perceptivo (ou aquilo que de cada vez estivesse a ser presentificado) fica-

ria completamente ldquodespovoadordquo da maior parte das determinaccedilotildees que habitualmente o po-

voam e que soacute satildeo ldquolaacuterdquo postas por co-apresentaccedilotildees inexpliacutecitas Quer dizer nem sequer se

teria o campo perceptivo (ou aquilo que eacute presentificado) na forma a que estamos habituados

ndash desapareceria a maior parte das determinaccedilotildees que os estruturam e estatildeo implicados no re-

conhecimento do seu teor

Para encurtar de razotildees o que importa reter eacute sobretudo que no nosso caso a esmaga-

dora maioria do processo de constituiccedilatildeo da ἐμπειρία e a esmagadora maioria dos seus corre-

latos (do que fica ldquoposto de peacuterdquo por forccedila da ἐμπειρία) se situa justamente no territoacuterio da

presenccedila inexpliacutecita e cairia completamente por terra se a nossa perspectiva ficasse reduzida

agravequilo que de cada vez temos apresentado de forma expressa

Se virmos bem quase tudo aquilo que descrevemos na primeira parte deste estudo

quando analisaacutemos o que eacute a experiecircncia (a forma como ultrapassa a μνήμη transgride o dado

tem que ver com a constituiccedilatildeo de estados de coisas permanentes etc) tem um caraacutecter exclu-

sivamente inexpliacutecito ou atemaacutetico passa-se sem que nos demos conta da sua presenccedila e do

seu teor

Ora mesmo que possa acontecer que ocasionalmente uma parte das projecccedilotildees empiacute-

ricas ou da evidecircncia resultante delas entre no foco e ganhe uma presenccedila de ordem conside-

rativa mesmo aiacute isso soacute se passa de maneira avulsa em relaccedilatildeo a esta ou agravequela tese ndash en-

quanto a maioria das teses empiacutericas continua presente e a actuar de forma perfeitamente im-

pliacutecita ou submersa E se por outro lado se procura contrariar esta tendecircncia e produzir qual-

quer coisa como um ldquorastreiordquo das nossas teses empiacutericas o caraacutecter limitado do foco faz que

ateacute aquelas teses que jaacute passaram pelo foco de incidecircncia e que com isso ganharam uma pre-

senccedila expliacutecita agrave medida que se vai passando agrave consideraccedilatildeo de outras teses voltem a cair na

mesma forma de presenccedila inexpliacutecita a tergo que habitualmente eacute proacutepria da ἐμπειρία

Em suma nem sequer acontece que a presenccedila inexpliacutecita seja para noacutes a forma na-

tural da experiecircncia mas que ainda assim possamos ndash se quisermos ndash mudar isso e converter

o patrimoacutenio da experiecircncia que de cada vez temos constituiacutedo num patrimoacutenio expresso

176

Sucede exactamente o contraacuterio em noacutes haacute um nexo indissoluacutevel entre a experiecircncia

e a presenccedila inexpliacutecita Nunca conseguimos alterar este estado de coisas ndash estamos se assim

se pode dizer ldquoprisioneirosrdquo dele Nesse sentido a experiecircncia que tem lugar no nosso ponto

de vista eacute essencialmente confusa no sentido teacutecnico do termo

Importa contudo ter presente que se eacute assim connosco isso de modo nenhum signifi-

ca que toda a experiecircncia tenha obrigatoriamente de ser constituiacuteda deste modo

De facto natildeo eacute necessariamente assim Acontece eacute que um campo de experiecircncia

constiuiacutedo de forma inteiramente declarada (expressa com integral consciecircncia de todos os

seus passos e de todos os estados de coisas permanentes ndash de todas as leis ndash que tecircm lugar ne-

le etc) eacute algo muito diferente de um campo de experiecircncia maciccedilamente constituiacutedo de ma-

neira inexpliacutecita

De resto para que a diferenccedila seja muito grande nem sequer eacute preciso que o patrimoacute-

nio empiacuterico seja inteiramente expresso ou declarado basta que o ldquocalibrerdquo ou a ldquolotaccedilatildeordquo do

foco de incidecircncia sejam significativamente maiores do que sucede no nosso caso permitindo

que pelo menos uma significativa parte da experiecircncia ou das projecccedilotildees empiacutericas se desen-

volva de forma declarada e que o seu resultado esteja presente tambeacutem de forma declarada

Para se ter alguma ideia da amplitude da diferenccedila natildeo eacute preciso mais do que ter pre-

sente que uma grande parte da forccedila da ἐμπειρία tal como tem lugar em noacutes proveacutem de natildeo

se ter nenhuma consciecircncia de como se acha constituiacuteda de qual a sua base real da transgres-

satildeo em que consiste etc

Quer dizer a aparente solidez das fixaccedilotildees empiacutericas radica em grande parte no facto

de se estar deposto no seu resultado (na ldquoresultanterdquo) e de natildeo se ter qualquer consciecircncia do

sistema de forccedilas que a desencadeia O simples facto de um ponto de vista empiacuterico ter plena

consciecircncia de que o eacute (ter plena consciecircncia dos seus proacuteprios passos etc) torna-o muito

menos soacutelido (muito menos firmemente implantado e ldquoindiscutiacutevelrdquo) Neste caso a falta de

transparecircncia (o aparecer apenas a ldquosuperfiacutecierdquo do aparecimento em que estamos constituiacutedos

ndash e natildeo a sua ldquoprofundidaderdquo) eacute uma condiccedilatildeo importante da proacutepria estabilidade da ἐμπειρία

pois contribui decisivamente para que o ponto de vista empiacuterico natildeo se decirc conta de que de

facto ldquovive muito acima das suas possibilidadesrdquo

Em suma tambeacutem neste aspecto a experiecircncia tal como tem lugar em noacutes correspon-

de apenas a uma das modalidades de experiecircncia possiacutevel Tanto quanto se consegue determi-

nar natildeo teria forccedilosamente de ser assim como se passa connosco Ou seja tambeacutem neste as-

177

pecto o que conhecemos natildeo eacute a expriecircncia tout court mas antes qualquer coisa como uma

contracccedilatildeo

sect24

Diversos modelos possiacuteveis de organizaccedilatildeo da multiplicidade das determinaccedilotildees nexos de

coordenaccedilatildeo nexos de subordinaccedilatildeo regimes mistos e suas implicaccedilotildees

A experiecircncia que tem lugar em noacutes tambeacutem estaacute determinada pela conformaccedilatildeo de

um outro aspecto que a molda de tal modo que sem a conformaccedilatildeo deste outro aspecto (sc

com outra conformaccedilatildeo dele) seria bastante diferente

Este outro aspecto que interessa agora considerar tem que ver com o facto de haver di-

versos modelos possiacuteveis de organizaccedilatildeo da multiplicidade das determinaccedilotildees

Natildeo cabe aqui fazer um inventaacuterio exaustivo dos diversos modelos possiacuteveis mas inte-

ressa que fiquem claros alguns aspectos formais desta relaccedilatildeo

Em primeiro lugar aquilo a que se alude quando se fala de organizaccedilatildeo da multiplici-

dade das determinaccedilotildees eacute um certo sentido da noccedilatildeo de ldquocomposiccedilatildeordquo que estaacute implicado na

proacutepria etimologia do termo mas de que se pode ndash e tende a ndash perder o rasto

A noccedilatildeo de ldquocomposiccedilatildeordquo remete originalmente para a co-posiccedilatildeo dos componentes

(dos que constituem integram ou tomam lugar no composto dos associados dos elementos

que concorrem que se potildeem ou satildeo postos em conjunto etc) Isto eacute a ldquoco-posiccedilatildeordquo alude agrave

sincronia das determinaccedilotildees ndash ao facto de as determinaccedilotildees coincidirem no mesmo conjunto

(fazerem parte dele ao mesmo tempo etc)

Em segundo lugar o que isto quer dizer eacute que a relaccedilatildeo entre as determinaccedilotildees natildeo eacute

uma relaccedilatildeo de mera contiguidade (de mera vizinhanccedila adjacecircncia etc) Poderia dar-se o ca-

so de a ligaccedilatildeo entre as determinaccedilotildees corresponder meramente a uma justaposiccedilatildeo ndash de tal

modo que se mantivessem perfeitamente alheias umas agraves outras Mas de facto natildeo eacute isso que

se passa

Na verdade a relaccedilatildeo entre as diversas determinaccedilotildees eacute uma relaccedilatildeo de conjunccedilatildeo ndash

ie as determinaccedilotildees afectam-se (intrometem-se umas nas outras estatildeo em relaccedilatildeo umas com

178

as outras etc) Vendo bem esse entretecimento das determinaccedilotildees eacute universal a todas as de-

terminaccedilotildees que compotildeem aquilo que nos aparece as determinaccedilotildees afectam-se mutuamente

(sustentam como dizia a tradiccedilatildeo qualquer coisa como um commercium ndash ou como tambeacutem

podemos dizer determinam-se umas agraves outras interferem umas com as outras etc)

Visto isto interessa que fiquem claros dois pontos quanto agrave natureza da relaccedilatildeo das

determinaccedilotildees

Em primeiro lugar haacute vaacuterias possibilidades de conformaccedilatildeo da experiecircncia porque

haacute vaacuterias possibilidades de organizaccedilatildeo da multiplicidade que aparece

Vaacuterios aspectos disso jaacute foram tocados nas anaacutelises que precedem Tratar-se-aacute agora

de considerar em especial um aspecto que tem que ver com qualquer coisa como relaccedilotildees de

poder na forma como as diferentes componentes da multiplicidade se ligam umas agraves outras e

interferem umas com as outras

Ora essas diferentes relaccedilotildees de forccedila tecircm lugar no entretecimento submerso de que

resulta aquilo que aparece declaradamente Quer dizer produzem-se na esfera da profundida-

de mas tecircm reflexos no plano da superfiacutecie

Assim dois acontecimentos de aparecimento organizados de modo diferente no que

diz respeito a este aspecto que agora procuramos focar natildeo satildeo diferentes apenas quanto agrave tes-

situra que como vimos natildeo aparece exposta satildeo tambeacutem diferentes no que diz respeito agravequi-

lo que tecircm imediatamente apresentado

Em segundo lugar interessa igualmente assinalar que entre si as diversas formas de

organizaccedilatildeo da multiplicidade que aqui estatildeo em causa tanto podem ser alternativas (exclusi-

vas etc) quanto complementares Quer dizer as relaccedilotildees entre as determinaccedilotildees tanto podem

corresponder a um uacutenico modelo de relaccedilatildeo como podem estar associadas pela conjunccedilatildeo

de dois ou mais modelos de organizaccedilatildeo

Por outras palavras pode acontecer a) que um dado acontecimento de acesso esteja to-

do ele organizado por uma uacutenica forma de relaccedilatildeo entre os seus vaacuterios elementos b) que um

outro acontecimento de acesso esteja todo ele organizado por uma outra forma de relaccedilatildeo en-

tre os seus vaacuterios elementos e c) que um terceiro acontecimento de acesso esteja organizado

de forma mista conjugando em si as duas formas de relaccedilatildeo que nos outros dois casos soacute tecircm

lugar como que ldquoem estado purordquo

179

A nossa relaccedilatildeo com as diferentes possibilidades de organizaccedilatildeo dos diferentes mo-

mentos da multiplicidade apresentada eacute bastante limitada pois estamos prisioneiros daquelas

com que temos contacto e temos dificuldade em ldquolibertarrdquo a nossa perspectiva

Isto eacute este eacute um ponto em que estamos como que fechados num ldquocachotrdquo qualitativo

(para usar a formulaccedilatildeo de Pascal no sect199) e natildeo sabemos bem o que se pode passar fora da

nossa cela ndash e ateacute que ponto pode ir o contraste entre esse exterior e aquilo com que estamos

familiarizados

Concentramo-nos por isso em duas formas de organizaccedilatildeo da multiplicidade a que te-

mos acesso directo ndash porque neste aspecto o campo de aparecimento em que damos connos-

co tem um caraacutecter misto Estamos a falar do nexo de coordenaccedilatildeo e do nexo de subordina-

ccedilatildeo

Para o fazer podemos partir daquilo que Kant diz logo na secccedilatildeo I sect2 II da disserta-

ccedilatildeo ldquoDe mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiisrdquo haacute nexos de coordenaccedilatildeo

quando a relaccedilatildeo entre os termos relatos eacute como diz Kant reciacuteproca e homoacutenima56

O caraacutecter reciacuteproco da relaccedilatildeo traduz o facto fundamental de natildeo ser possiacutevel uma re-

laccedilatildeo entre A e B que natildeo seja eo ipso tambeacutem uma relaccedilatildeo entre B e A

Acontece que o facto de a relaccedilatildeo ser reciacuteproca natildeo significa forccedilosamente que tam-

beacutem seja homoacutenima

Quer dizer o facto de a relaccedilatildeo ser reciacuteproca natildeo indica forccedilosamente que A exerccedila

sobre B exactamente o mesmo tipo de condicionamento que B exerce sobre A (ie em simul-

tacircneo o mesmo grau de condicionamento e um condicionamento do mesmo teor)

Ora um nexo de coordenaccedilatildeo distingue-se precisamente pelo facto de como Kant diz

natildeo ser apenas reciacuteproco mas tambeacutem homoacutenimo

No nexo de coordenaccedilatildeo os elementos postos em conexatildeo estatildeo em perfeita paridade

quanto agrave forma como os termos se afectam reciprocamente Em cada direcccedilatildeo de coordena-

ccedilatildeo se assim se pode dizer o nexo eacute exactamente o mesmo nos dois sentidos

Este eacute um ponto decisivo para compreender esta forma de nexo entre os elementos da

multiplicidade

56

In AA Vol II Vorkritische Schriften II 1757-1777 paacutegs 385-420

180

A coordenaccedilatildeo implica que todas as determinaccedilotildees directamente envolvidas tecircm o

mesmo peso na constituiccedilatildeo do complexo que compotildeem As determinaccedilotildees estatildeo por assim

dizer horizontalmente niveladas umas em relaccedilatildeo agraves outras (nenhuma supera as outras tem

precedecircncia sobre as outras etc) e constituem um sistema de forccedilas absolutamente propor-

cionais entre si

Sendo assim tambeacutem os teor das relaccedilotildees entre as diversas determinaccedilotildees natildeo eacute di-

ferenciado Isto eacute as relaccedilotildees entre determinaccedilotildees satildeo neste modelo da mesma iacutendole Haacute

se assim se pode dizer uma completa simetria Em suma as diferenccedilas entre as determina-

ccedilotildees natildeo comportam qualquer variaccedilatildeo da natureza e do grau de influecircncia ou interferecircncia

de umas sobre as outras

Natildeo eacute assim no caso dos nexos de subordinaccedilatildeo No caso da subordinaccedilatildeo a relaccedilatildeo eacute

reciacuteproca mas natildeo eacute homoacutenima

Quer dizer haacute uma assimetria no modo como um dos termos da relaccedilatildeo condiciona o

outro ndash de tal modo que consoante o sentido da relaccedilatildeo (se eacute uma relaccedilatildeo de A para B ou de

B para A) muda o grau e tambeacutem o teor do condicionamento em causa Por outras palavras

na relaccedilatildeo de subordinaccedilatildeo um dos elementos prevalece sobre o outro (actua sobre ele de

forma diferente daquilo que se passa no sentido inverso ndash e de tal modo que por exemplo A eacute

mais marcante de B do que o contraacuterio)

A partir daqui percebe-se melhor o quadro de possibilidade de variaccedilatildeo que assim se

desenha a partir das formas de organizaccedilatildeo da multiplicidade com que noacutes mesmos estamos

familiarizados

Em primeiro lugar pode haver acontecimentos de acesso ou aparecimento com uma

multiplicidade exclusivamente organizada em regime de coordenaccedilatildeo e tambeacutem poderaacute ha-

ver acontecimentos de acesso ou aparecimento com uma multiplicidade exclusivamente orga-

nizada em regime de subordinaccedilatildeo aleacutem disso haacute tambeacutem acontecimentos de acesso ou apa-

recimento constituiacutedos de forma mista conjugando a coordenaccedilatildeo e a subordinaccedilatildeo57

57

Para percebermos melhor o que isto quer dizer consideremos por exemplo o que caracteriza o ne-

xo entre os diferentes elementos daquilo a que chamaacutemos a trama baacutesica de identidade e diferenccedila Os

elementos constitutivos desta trama baacutesica estatildeo sempre acompanhados de forma confusa ndash de tal mo-

do que a estrutura A ne B ne C ne D etc eacute muito mais uma estrutura representada em regime de repre-

sentaccedilatildeo simboacutelica do que algo a que se tenha acesso propriamente intuitivo Mas sendo assim isso

natildeo impede que o nexo entre os elementos desta multiplicidade seja justamente um nexo de coordena-

ccedilatildeo ndash e natildeo um nexo de subordinaccedilatildeo A trama baacutesica de identidades e diferenccedilas natildeo corresponde a

181

Em segundo lugar dentro destes uacuteltimos pode haver variaccedilatildeo determinada por dife-

renccedilas na quota-parte que cabe ao nexo de coordenaccedilatildeo e ao nexo de subordinaccedilatildeo Essa va-

riaccedilatildeo eacute soacute por si caeteris paribus susceptiacutevel de dar lugar a diferenccedilas muito significativas

ndash quer dizer eacute susceptiacutevel de dar lugar a quadros de aparecimento com enormes contrastes en-

tre si

Em terceiro lugar a variaccedilatildeo tambeacutem pode provir de diferenccedilas quanto aos operadores

de subordinaccedilatildeo que entram em funccedilotildees Haacute diversos tipos de nexos de subordinaccedilatildeo e dife-

rentes regimes de aparecimento ndash diferentes conformaccedilotildees do que aparece consoante a) o al-

fabeto de nexos de subordinaccedilatildeo que eacute utilizado (alfabeto que pode ser mais rico ou mais po-

uma pura justaposiccedilatildeo de momentos que natildeo se chegassem a determinar uns aos outros (que estives-

sem soacute determinados por si mesmos ndash cada um por si num regime de exclusiva auto-determinaccedilatildeo

tautoloacutegica) Em uacuteltima anaacutelise natildeo sabemos a que eacute que isso corresponderia ndash temos uma noccedilatildeo me-

ramente apofaacutetica disso Natildeo tal como tem lugar em noacutes a trama baacutesica de identidades e diferenccedilas jaacute

envolve qualquer coisa como um commercium de determinaccedilatildeo reciacuteproca entre as suas componentes

ateacute mesmo porque ndash aleacutem do mais ndash a proacutepria constituiccedilatildeo de cada componente natildeo se faz no absoluto

isolamento de si mas em relaccedilatildeo a outras a que eacute contraposta De tal modo que para o exprimir na lin-

guagem de Platatildeo nenhuma dessas componentes eacute monoeideacutetica e preacute-sinteacutetica sucede antes que to-

das satildeo intrinsecamente sinteacuteticas e intrinsecamente constituiacutedas pela proacutepria relaccedilatildeo de umas com as

outras (a relaccedilatildeo de contraposiccedilatildeo de umas agraves outras) Mas sendo assim o que caracteriza esta consti-

tutiva relaccedilatildeo entre os diferentes momentos da trama baacutesica de identidades e diferenccedilas eacute o caraacutecter

inteiramente reciacuteproco e homoacutenimo da relaccedilatildeo Podemos expressaacute-lo aliaacutes natildeo apenas em relaccedilatildeo ao

nexo entre os diferentes momentos (A B C D E F etc) mas tambeacutem em relaccedilatildeo agraves proacuteprias com-

ponentes formais da trama baacutesica a identidade e a diferenccedila Vendo bem nenhuma delas tem uma po-

siccedilatildeo de ascendente sobre a outra Tal como as representamos supotildeem-se sempre jaacute uma agrave outra a

identidade supotildee a contraposiccedilatildeo ao natildeo-idecircntico e eacute constitutivamente mediada pela representaccedilatildeo da

diferenccedila e o mesmo vale tambeacutem no sentido inverso Em suma cabe aqui algo semelhante agravequilo

que eacute posto em evidecircncia no Sofista de Platatildeo no passo sobre a chamada comunicaccedilatildeo dos geacuteneros

Este mesmo fenoacutemeno permite-nos ao mesmo tempo compreender melhor o que dissemos sobre o ca-

raacutecter misto (simultaneamente marcado por coordenaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo) do que nos aparece Com

efeito a circunstacircncia de ter uma constituiccedilatildeo de natureza coordenativa natildeo impede que a trama baacutesica

de identidades e diferenccedilas seja incorporada (nb constantemente incorporada incorporada absoluta-

mente sem excepccedilatildeo) em nexos de natureza subordinativa Eacute o que sucede por exemplo em relaccedilatildeo agraves

unidades colectivas de determinaccedilotildees que jaacute voltaremos a considerar para melhor percebermos este

ponto Vendo bem a conjugaccedilatildeo entre os dois operadores de conexatildeo eacute mesmo de tal ordem que cada

momento do que temos apresentado (cada momento discerniacutevel da trama baacutesica de identidades e dife-

renccedilas) estaacute ao mesmo tempo envolvido em nexos de coordenaccedilatildeo (numa muito complexa rede de ne-

xos de coordenaccedilatildeo) e em nexos de subordinaccedilatildeo (numa muito complexa rede de nexos de subordina-

ccedilatildeo)

182

bre) e b) a quota-parte que cabe a cada um destes nexos (sc o papel relativo que desempe-

nham na organizaccedilatildeo da multiplicidade do que aparece)

Ora se mantivermos inalterados todos os demais aspectos referidos o quadro de cons-

tituiccedilatildeo da experiecircncia muda radicalmente consoante envolva soacute nexos de coordenaccedilatildeo ou

pelo contraacuterio tambeacutem envolva nexos de subordinaccedilatildeo Mais o quadro de constituiccedilatildeo da

experiecircncia tambeacutem muda muito significativamente em funccedilatildeo da composiccedilatildeo concreta do re-

gime de subordinaccedilatildeo que estiver em vigor

No que vimos anteriormente jaacute haacute indiacutecios de nexos de subordinaccedilatildeo vimos por

exemplo que as muacuteltiplas determinaccedilotildees cruzadas no preenchimento de cada momento do

que nos aparece (as muacuteltiplas determinaccedilotildees cruzadas na fixaccedilatildeo de cada momento da janela)

satildeo como forccedilas de um sistema de forccedilas e tecircm ascendente sobre a resultante

Tudo isto eacute de grande importacircncia para a constituiccedilatildeo da ἐμπειρία porque potildee na pista

da possibilidade de tambeacutem as projecccedilotildees empiacutericas estarem organizadas destas duas formas

(coordenaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo) ndash e na verdade com diferentes regimes de subordinaccedilatildeo entre

elas

Isto eacute por um lado pode acontecer que todas as projecccedilotildees empiacutericas estejam ligadas

por nexos de coordenaccedilatildeo ndash e apenas por coordenaccedilatildeo pode acontecer que uma parte delas

esteja associada por nexos de coordenaccedilatildeo mas que outra parte dos nexos entre projecccedilotildees

empiacutericas envolva subordinaccedilatildeo finalmente tambeacutem natildeo estaacute excluiacutedo que possa haver mul-

tiplicidades de projecccedilotildees empiacutericas constituiacutedas de tal modo que entre elas soacute haja nexos de

subordinaccedilatildeo

Natildeo cabe aqui analisar todas estas possibilidades e determinar a que eacute que poderaacute cor-

responder cada uma delas Mas importa ter presente que em princiacutepio a ἐμπειρία pode estar

organizada destes diversos modos ndash e tambeacutem que os quadros de subordinaccedilatildeo susceptiacuteveis

de determinarem a ligaccedilatildeo entre as diversas projecccedilotildees empiacutericas podem variar muito signi-

ficativamente (dando assim lugar a resultados ndash isto eacute a ldquoexperiecircnciasrdquo ndash muito significati-

vamente diferentes)

Para se perceber o que estaacute aqui em jogo importa exemplificar ndash importa considerar

concretamente que nexos de subordinaccedilatildeo pode haver e como a sua interferecircncia muda efecti-

vamente o panorama daquilo que se nos apresenta

183

Um primeiro exemplo tem que ver com a proacutepria organizaccedilatildeo do que nos aparece em

unidades colectivas de determinaccedilotildees postas sob o ascendente de nuacutecleos de determinaccedilatildeo de

identidade

Como vimos se perguntarmos o que nos rodeia natildeo comeccedilamos por uma ponta qual-

quer e identificamos por exemplo um primeiro momento de branco um segundo momento

de branco um terceiro momento de branco e assim sucessivamente (como numa travessia

ldquopontilhistardquo) Estamos sempre jaacute rodeados por unidades colectivas de determinaccedilotildees pare-

des estantes cadeiras (ou num percurso mais atento este livro aquele livro etc)

Mas sendo assim se considerarmos cada uma destas unidades verificamos que cada

uma eacute ao mesmo tempo constituiacuteda por uma trama baacutesica de multiplicidade (este momento

aquele momento mais aquele etc) e por um nuacutecleo de determinaccedilatildeo intrinsecamente sinteacuteti-

ca que natildeo se limita a juntar-se agraves outras no mesmo regime de justaposiccedilatildeo em que se acham

umas em relaccedilatildeo agraves outras antes tem a capacidade de as integrar na sua proacutepria identidade ndash

de tal modo que ficam justamente convertidas em momentos dela Tudo isto jaacute foi visto ndash o

que agora se trata de pocircr em relevo eacute como isto envolve a entrada em cena de nexos de subor-

dinaccedilatildeo

Em uacuteltima anaacutelise cada um dos momentos integrados difere tanto da identidade co-

lectiva em que fica integrado quantos dos outros momentos que tambeacutem se integram nela E

por outro lado havendo uma integraccedilatildeo dos diversos momentos na identidade colectiva da

ldquocoisardquo isso significa um nexo que afecta tanto cada momento (pondo-o em relaccedilatildeo com a

identidade colectiva) quanto a proacutepria identidade colectiva (pondo-a em relaccedilatildeo com cada

um dos momentos) Nesse sentido a teia de relaccedilotildees envolvida na constituiccedilatildeo de uma ldquocoi-

sardquo (de uma unidade colectiva de determinaccedilotildees) eacute uma teia de nexos reciacuteprocos

Mas por outro lado vendo bem os nexos em causa natildeo satildeo homoacutenimos Haacute algo que

quebra essa ldquosimetriardquo e faz que tal como nos aparece por exemplo numa caneta vermelha o

nexo entre a caneta e o vermelho tenha um caraacutecter tal que ndash como muitas vezes se formulou

nos tratados de loacutegica ndash seja o vermelho que eacute da caneta e natildeo a caneta que eacute do vermelho

Quer dizer haacute qualquer coisa sempre jaacute ldquodecididamenterdquo posta na forma como as uni-

dades colectivas de determinaccedilatildeo (as ldquocoisasrdquo) nos aparecem e em virtude da qual os nexos

que perpassam a multiplicidade das respectivas determinaccedilotildees na sua relaccedilatildeo com a unidade

em que se acham organizadas envolvem prevalecircncia ou ascendente do nuacutecleo de identidade

colectiva sobre as determinaccedilotildees nela integradas

184

Assim se considerarmos por exemplo uma matildeo cada um dos momentos da sua su-

perfiacutecie tem uma identidade proacutepria cuja diferenccedila em relaccedilatildeo aos outros faz a proacutepria multi-

plicidade sem a qual a proacutepria superfiacutecie em causa se desfaria por completo

Contudo vendo bem cada um desses momentos perdeu a sua identidade absoluta (ou

melhor natildeo estaacute definido nem apenas nem fundamentalmente por ela) A instacircncia identitaacuteria

fundamental (aquilo que fundamentalmente define a identidade de cada momento da palma da

matildeo) estaacute transferida para a proacutepria determinaccedilatildeo colectiva matildeo (M) De sorte que a identi-

dade ou cada momento da palma da matildeo tem se assim se pode dizer a forma M1 M2 M3

M4 etc E o fundamental desta forma de fixaccedilatildeo da identidade eacute justamente a prevalecircncia de

M sobre 1 ou 2 ndash ie a forma como 1 ou 2 aparece como contracccedilatildeo ou determinaccedilatildeo de M

fundamentalmente definida por M (e natildeo por si proacutepria pela sua identidade absoluta 1 ou 2)

Tudo isto jaacute nos potildee na pista de um estado-de-coisas de que eacute indispensaacutevel ter clara

consciecircncia a presenccedila destes nexos de subordinaccedilatildeo (e natildeo apenas de coordenaccedilatildeo) natildeo

ocorre apenas em ldquobolsasrdquo ou domiacutenios circunscritos Na verdade tem lugar por toda a parte

do ldquotecidordquo daquilo que temos apresentado

Sem que disso tenhamos aguda consciecircncia todas as unidades colectivas que nos apa-

recem (todas as ldquocoisasrdquo tudo o que aparece etc) estatildeo montadas sobre nexos de subordina-

ccedilatildeo desta ordem De tal modo que se natildeo houvesse nexos de subordinaccedilatildeo (ou se os nexos de

subordinaccedilatildeo natildeo fossem deste tipo) o campo do que nos aparece teria uma conformaccedilatildeo

muito diferente (e a experiecircncia que nele teria lugar seria tambeacutem uma experiecircncia muito di-

ferente)

Quer dizer nesse caso natildeo sucederia aquilo que eacute essencial na experiecircncia com que es-

tamos familiarizados ela envolver sempre a projecccedilatildeo desta estrutura fundamental ndash que por

assim dizer a acompanha sempre de tal modo que todas as determinaccedilotildees projectadas satildeo

projectadas com esta estrutura e no quadro dela Ou dito de outro modo o que caracteriza

essa experiecircncia eacute o facto de tanto no seu terminus a quo quanto no seu terminus ad quem do-

minar justamente esta peculiar ldquomatrizrdquo de nexos de subordinaccedilatildeo

Ora apesar de tudo este nexo de subordinaccedilatildeo entre a determinaccedilatildeo unificante e as

restantes determinaccedilotildees poderia ser o uacutenico nexo de subordinaccedilatildeo entre as muacuteltiplas determi-

naccedilotildees que compotildeem uma unidade colectiva

Ou seja poderia muito bem dar-se o caso de a relaccedilatildeo entre as determinaccedilotildees subordi-

nadas (ie entre todas as outras determinaccedilotildees excluindo a determinaccedilatildeo unificante) ser uma

185

relaccedilatildeo de pura coordenaccedilatildeo Nesse sentido as restantes determinaccedilotildees seriam entre si igual-

mente subordinadas agrave determinaccedilatildeo unificante ndash de tal modo que entre si estariam horizon-

talmente niveladas (teriam o mesmo peso constituiriam o mesmo tipo de relaccedilotildees etc)

Acontece que natildeo eacute assim

As muacuteltiplas determinaccedilotildees de que eacute composta uma unidade colectiva natildeo tecircm todas o

mesmo peso nem estatildeo associadas por relaccedilotildees do mesmo tipo Quer dizer pode acontecer (e

acontece) que uma dada determinaccedilatildeo da coisa ndash chamemos-lhe A ndash natildeo estaacute em relaccedilatildeo com

B com C D E etc da mesma forma que B C D E etc estatildeo em relaccedilatildeo com A Haacute uma

enorme variaccedilatildeo quanto ao peso das determinaccedilotildees e quanto agrave relaccedilatildeo que sustentam entre

si

Dito por outras palavras natildeo haacute apenas subordinaccedilatildeo do conjunto de determinaccedilotildees

em relaccedilatildeo agrave determinaccedilatildeo unificante Vendo bem as determinaccedilotildees subordinadas ao nuacutecleo

da identidade da coisa estatildeo associadas por nexos que fazem que tambeacutem elas natildeo estejam ho-

rizontalmente niveladas mas sim verticalmente niveladas Quer dizer as diferentes determi-

naccedilotildees subordinadas estatildeo tambeacutem elas associadas numa hierarquia

Notou-se atraacutes que ndash de entre a totalidade de determinaccedilotildees de que eacute constituiacuteda uma

unidade colectiva ndash havia uma determinaccedilatildeo que tal como estaacute constituiacuteda supera todas as

restantes determinaccedilotildees de que a unidade eacute composta A essa determinaccedilatildeo ndash no seguimento

da terminologia da tradiccedilatildeo claacutessica ndash poderia chamar-se ldquoformardquo (a determinaccedilatildeo intriacutenseca-

mente colectiva)

O que entatildeo se viu foi que a ldquoformardquo se impotildee (se sobrepotildee toma precedecircncia etc)

de tal modo que a) todas as outras determinaccedilotildees estatildeo por um lado na sombra da ldquoformardquo

(tecircm uma presenccedila vaga opaca discreta indistinta constituem o fundo etc) e b) satildeo por ou-

tro lado meras determinaccedilotildees predicativas dela (estatildeo ldquosubsumidasrdquo nela satildeo derivadas dela

subordinadas dela etc)

Ora agora estaacute em causa especificamente uma outra possibilidade a saber a possibili-

dade de entre as diferentes determinaccedilotildees cruzadas dessa forma haver natildeo apenas nexos de

coordenaccedilatildeo mas tambeacutem nexos de subordinaccedilatildeo com uma complexa hierarquia de ascen-

dentes

Isto pode acontecer entre outras razotildees porque entre a determinaccedilatildeo colectiva que fi-

xa a identidade de uma coisa e as determinaccedilotildees ldquosimplesrdquo que formam isso a que chamaacutemos

a ldquotrama baacutesicardquo haacute uma multiplicidade de niacuteveis intermeacutedios

186

Esses niacuteveis intermeacutedios caracterizam-se por um lado pela sua subordinaccedilatildeo agrave iden-

tidade da proacutepria coisa ndash por estarem integrados nela postos sob o seu ascendente Mas por

outro lado tambeacutem se caracterizam por exercerem funccedilotildees anaacutelogas em relaccedilatildeo agraves determi-

naccedilotildees mais simples que entram na sua composiccedilatildeo

Quer dizer as instacircncias intermeacutedias de siacutentese que estatildeo envolvidas na constituiccedilatildeo

interna de uma unidade colectiva de determinaccedilotildees tecircm um primado anaacutelogo ao da proacutepria

identidade global da coisa ndash de tal modo que tambeacutem em relaccedilatildeo a elas vale que os seus mo-

mentos perdem a respectiva identidade absoluta e assumem uma identidade subordinada agrave das

instacircncias intermeacutedias Acontece eacute que ao mesmo tempo as instacircncias intermeacutedias tambeacutem

perdem a sua identidade absoluta a favor da identidade da proacutepria unidade colectiva de de-

terminaccedilotildees

O que em suma constitui uma unidade colectiva de determinaccedilotildees (uma ldquocoisardquo) eacute

como que uma cadeia de ldquoabdicaccedilotildeesrdquo da identidade proacutepria uma cadeia de subordinaccedilotildees a

instacircncias sinteacuteticas cada vez mais amplas ndash cadeia de abdicaccedilatildeo ou de subordinaccedilatildeo que tem

o seu termo na identidade da proacutepria ldquocoisardquo Mas isso significa justamente que no proacuteprio

quadro das determinaccedilotildees subordinadas natildeo soacute haacute nexos de subordinaccedilatildeo mas haacute de facto

toda uma cadeia de nexos de subordinaccedilatildeo anaacutelogos agravequeles que se registam entre a identida-

de colectiva da ldquocoisardquo e tudo o mais nela

sect25

A distribuiccedilatildeo das diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees por diferentes planos

de relevacircncia ao longo do campo do que nos aparece ndash O nuacutecleo de importacircncia superlati-

va como aquilo de que fundamentalmente trata o acontecimento de acesso ndash A possibili-

dade de a scala praeligdicamentalis traduzir a forma como estaacute internamente organizada a fi-

xaccedilatildeo do que nos aparece

Para ganharmos alguma perspectiva sobre como pode ser assim podemos comeccedilar por

considerar as relaccedilotildees entre as proacuteprias unidades colectivas de determinaccedilotildees constituiacutedas da

forma que grosseiramente tentaacutemos descrever

187

Poderia acontecer que todas as unidades colectivas de determinaccedilotildees aparecessem me-

ramente coordenadas umas em relaccedilatildeo agraves outras de tal modo que houvesse perfeita ldquoparida-

derdquo entre si (e de tal modo que a ldquosociedaderdquo de unidades colectivas de determinaccedilotildees fosse

inteiramente ldquoigualitaacuteriardquo) Mas isto natildeo eacute assim na forma como as ldquocoisasrdquo nos aparecem

Sucede pelo contraacuterio que haacute unidades colectivas de determinaccedilotildees com funccedilotildees pro-

tagonistas outras com funccedilotildees deuteragonistas outras ainda mais distantes de terem prota-

gonismo ndash isto num ldquocontinuumrdquo muito complexo de gradaccedilotildees de que podemos natildeo estar

cientes mas que nem por isso deixa de ser marcante e mesmo decisivo

De facto o campo do aparecimento (e da experiecircncia) com que estamos em contacto

caracteriza-se pela propriedade de nele estar qualquer coisa em causa (ou seja por se achar

perpassado por tensotildees de natildeo-indiferenccedila) Isso eacute assim em toda a extensatildeo do campo do

aparecimento Na verdade o que varia eacute a intensidade e a relevacircncia do nexo que cada ldquocoi-

sardquo tem com aquilo que estaacute em causa

Quer dizer o que varia eacute precisamente a intensidade e a relevacircncia do nexo que cada

ldquocoisardquo tem com as diversas tensotildees de natildeo-indiferenccedila que dominam o campo de apareci-

mento ndash de tal modo que a maior ou menor importacircncia de cada ldquocoisardquo depende ao mesmo

tempo do tipo de nexo que tem com este ou aquele fluxo das tensotildees de natildeo-indiferenccedila a que

estaacute ligada e da proacutepria relaccedilatildeo de forccedilas entre os diferentes fluxos de natildeo-indiferenccedila

Podemos exprimir tudo isto dizendo que as unidades colectivas de determinaccedilotildees que

nos aparecem a) estatildeo sempre percebidas com atribuiccedilatildeo de posiccedilotildees funcionais em relaccedilatildeo

aquilo que nos importa de tal modo que b) se acham sempre revestidas de um determinado

iacutendice de importacircncia

Em muitos casos esse iacutendice de importacircncia pode corresponder justamente agrave natildeo-atri-

buiccedilatildeo de qualquer relevacircncia (de ser tal que a ldquocoisardquo ou unidade colectiva de determinaccedilotildees

em causa nos aparece como completamente indiferente) Poreacutem isso natildeo significa que natildeo

tem qualquer iacutendice de importacircncia Equivale antes a algo que soacute eacute possiacutevel no quadro de uma

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila orientada de uma determinada forma e que porque estaacute orientada

de uma determinada forma atira para um ldquofundordquo de irrelevacircncia tudo o que natildeo exerce (ou

parece natildeo exercer) quaisquer funccedilotildees significativas a seu respeito

De facto vendo bem o iacutendice de importacircncia natildeo eacute uma determinaccedilatildeo secundaacuteria

com pouco peso Acontece precisamente o contraacuterio o iacutendice de importacircncia eacute um dos princi-

pais e mais decisivos elementos na fixaccedilatildeo da identidade de cada ldquocoisardquo

188

O que estamos a descrever eacute qualquer coisa como um ascendente ndash um nexo de subor-

dinaccedilatildeo ndash desta determinaccedilatildeo o iacutendice de importacircncia sobre pelo menos muitas das outras

Por mais taacutecita que seja a sua presenccedila o iacutendice de importacircncia estaacute sempre ldquolaacuterdquo em cada

ldquocoisardquo (afecta imediatamente o seu aspecto eacute um dos elementos fundamentais por que nos

regulamos etc)

Para percebermos o complexo de fenoacutemenos que aqui estaacute em causa importa pocircr em

relevo alguns aspectos essenciais

O primeiro ponto para que importa chamar a atenccedilatildeo eacute o facto de o iacutendice de impor-

tacircncia natildeo se constituir de forma inteiramente avulsa numa relaccedilatildeo ldquoa soacutesrdquo com cada unida-

de colectiva de determinaccedilotildees A importacircncia tem um caraacutecter intrinsecamente relativo

Por um lado tem que ver com a relaccedilatildeo entre as diferentes coisas que aparecem e as

tensotildees de natildeo-indiferenccedila que percorrem o campo do aparecimento em relaccedilatildeo agraves quais as

diferentes coisas que aparecem tecircm maior ou menor peso Por outro lado este maior ou me-

nor peso que as diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees tecircm potildee-nas numa determi-

nada articulaccedilatildeo umas em relaccedilatildeo agraves outras ndash ou como tambeacutem podemos dizer produz co-

mo que uma distribuiccedilatildeo do que aparece58

Sendo assim tambeacutem importa ter presente um segundo ponto

A distribuiccedilatildeo dos iacutendices de importacircncia natildeo se faz por uma avaliaccedilatildeo de cada uma

das unidades colectivas de determinaccedilatildeo passadas em revista e sopesadas uma por uma Na

verdade se considerarmos o modo como estamos constituiacutedos natildeo haacute habitualmente nenhu-

ma espeacutecie de processo de avaliaccedilatildeo que tenha lugar de forma consciente

Por um lado se virmos bem verificamos que a maior parte das vezes jaacute estaacute estabele-

cido e em vigor um determinado regime de atribuiccedilatildeo de niacuteveis de importacircncia ndash algo a que

podemos chamar uma ldquoordem estabelecidardquo

Se esporadicamente acontece que nos interrogamos sobre a importacircncia de que se re-

veste x ou y isso natildeo soacute acontece esporadicamente como quando acontece natildeo significa de

58

Tambeacutem podemos exprimir isto dizendo que a importacircncia (a variaccedilatildeo dos niacuteveis de importacircncia) daacute

lugar a um fenoacutemeno anaacutelogo agravequele que a Gestalttheorie designou como forma ou fundo O que eacute

mais importante ndash as unidades colectivas de determinaccedilotildees mais importantes ndash ldquochega-se agrave frenterdquo e

tende a exercer funccedilotildees de forma O que eacute menos importante tende a exercer funccedilotildees de fundo E isso

traduz-se portanto numa organizaccedilatildeo do proacuteprio apareci-mento da multiplicidade das coisas natildeo

apenas no modo ou nas propriedades com que aparece cada uma

189

modo nenhum que se esteja a procurar construir de raiz uma ordem de importacircncia A posiccedilatildeo

em que habitualmente damos connosco fica a jusante do estabelecimento de um quadro de im-

portacircncias eacute uma posiccedilatildeo sempre jaacute integrada numa ordem estabelecida na verdade se espo-

radicamente acontece que nos interrogamos sobre a importacircncia de que se reveste x ou y estaacute-

se apenas a procurar determinar a posiccedilatildeo de x ou y dentro de uma ordem jaacute estabelecida

Acresce a este um segundo aspecto que eacute o fundamental

Poderia pensar-se que de todo o modo o estabelecimento dessa ordem de importacircncia

teraacute a forma de qualquer coisa como uma ldquoalfacircndega geral da importacircnciardquo por que tudo o que

nos aparece haacute-de ter passado mesmo que de forma inconsciente no regime daquilo que Pas-

cal chama ldquolrsquoautomaterdquo etc

De facto natildeo eacute assim

A fixaccedilatildeo do valor de importacircncia do que nos aparece tem a forma de identificaccedilatildeo de

um nuacutecleo de coisas que importam porque satildeo objecto da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva

(porque tendemos para elas) ou porque satildeo objecto de uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila negativa

(porque procuramos evitaacute-las) Constitui-se assim o que podemos descrever como uma ldquocla-

reirardquo de importacircncia dentro da qual as diversas unidades colectivas de determinaccedilotildees estatildeo

afectadas por iacutendices de relevacircncia relativamente fortes

Dito de outro modo tudo se passa como se no silecircncio do aparecimento do que nos

aparece estivesse constantemente feita uma pergunta ldquoque eacute que importardquo e a essa pergunta

estivesse tacitamente dada a resposta ldquoimporta x e yrdquo ndash ou melhor ldquoimporta x e mais ainda y e

acima de tudo zrdquo

O facto de onde noacutes estamos estar sempre jaacute em vigor uma resposta com estas caracte-

riacutesticas eacute que constitui aquilo a que chamaacutemos a ldquoclareira de importacircnciardquo A clareira de im-

portacircncia eacute povoada por tudo aquilo que de algum modo figura nessa resposta que temos dada

agrave pergunta ldquoque importardquo ndash e tudo aquilo que natildeo figura nessa resposta fica fora da clareira

de importacircncia

Consideremos um terceiro ponto

Uma clareira de importacircncia pode sugerir que os iacutendices de importacircncia satildeo de facto

um fenoacutemeno de alcance puramente regional que afecta apenas uma parte do que nos apare-

ce Na verdade natildeo eacute assim

190

A constituiccedilatildeo desta clareira estaacute associada a qualquer coisa como um ldquodecretordquo glo-

bal de relegaccedilatildeo de importacircncia que afecta tudo o mais sem qualquer excepccedilatildeo

Quer dizer tudo aquilo que fica fora da ldquoclareira de importacircnciardquo estaacute automatica-

mente marcado por um iacutendice de falta de importacircncia que lhe cabe em sorte por exclusatildeo ndash

ie natildeo faz parte da clareira de importacircncia (conta como ldquofiguranterdquo como uma espeacutecie de

ldquopaisagemrdquo ou de ldquocenaacuteriordquo em relaccedilatildeo agravequilo que efectivamente importa etc)

O caraacutecter global deste ldquodecretordquo ndash que tem a forma de um juiacutezo indefinido ndash faz que

absolutamente tudo (mesmo que seja totalmente desconhecido) esteja marcado por esta pecu-

liar forma de determinaccedilatildeo que se propaga como uma espeacutecie de explosatildeo total a que nada

escapa59

O quarto ponto que interessa reter diz respeito ao facto de a ldquoclareira de importacircnciardquo

ter dimensotildees reduzidas

O facto de a ldquoclareira de importacircnciardquo ter dimensotildees reduzidas natildeo deve ser interpreta-

do como se significasse que as dimensotildees da clareira de importacircncia satildeo pequenas em termos

absolutos ou que a sua composiccedilatildeo eacute relativamente simples

Na verdade a clareira de importacircncia soacute eacute pequena comparativamente pode muito

bem ter uma amplitude bastante grande acontece eacute que essa amplitude grande se apequena

em comparaccedilatildeo com a extensatildeo indefinida daquilo que deixa de fora

E vendo bem a organizaccedilatildeo interna da clareira de importacircncia (a organizaccedilatildeo interna

do complexo dos iacutendices de importacircncia do primeiro tipo) pode ser bastante complexa

59

E assim sucede exactamente o contraacuterio do que agrave primeira vista pode parecer ndash haacute um iacutendice de im-

portacircncia afectando absolutamente todas as unidades colectivas de determinaccedilotildees que nos aparecem

Acontece eacute que na esmagadora maioria dos casos esse iacutendice de importacircncia eacute um iacutendice de falta de

importacircncia ndash um iacutendice de irrelevacircncia que retira peso agravequilo a que eacute aposto Ou dito de outra ma-

neira no modo como estamos constituiacutedos (como estaacute constituiacutedo o aparecimento em que nos temos)

haacute dois tipos muito diferentes de iacutendices de importacircncia aquele que faz pertencer agrave ldquoclareirardquo e aquele

que corresponde agrave exclusatildeo dela A esfera de aplicaccedilatildeo destes dois tipos de iacutendices eacute muito diferente

aquele que tem que ver com a pertenccedila agrave clareira de importacircncia soacute se aplica num nuacutemero comparati-

vamente diminuto de coisas aquele que tem que ver com a falta de importacircncia eacute claramente maioritaacute-

rio e aplica-se a um esmagador maciccedilo (como que a uma periferia indefinidamente extensa) Mas o

facto eacute que apesar desta diferenccedila ndash ou melhor por forccedila dela ndash o fenoacutemeno do iacutendice de importacircncia

eacute absolutamente universal e como dissemos o iacutendice de importacircncia (o iacutendice de atribuiccedilatildeo de algu-

ma importacircncia positiva ou negativa e o iacutendice de relegaccedilatildeo de negaccedilatildeo da importacircncia) desempe-

nham um papel decisivo na definiccedilatildeo do que quer que seja que nos aparece

191

Com efeito tal como se acha constituiacuteda em noacutes a clareira de importacircncia estaacute mar-

cada por uma propriedade fundamental dos iacutendices de importacircncia (tal como funcionam no

nosso caso) ndash uma propriedade que sofre alternativa (e na verdade uma multiplicidade de al-

ternativas de sorte que a sua variaccedilatildeo pode dar lugar a quadros de aparecimento muito dife-

rentes daquele com que estamos familiarizados) a saber a grande complexidade da ldquopaletardquo

de iacutendices de importacircncia que podem afectar aquilo que nos aparece

Poderia acontecer que houvesse por exemplo apenas dois cambiantes ou matizes

(ldquoimportanterdquo e ldquonatildeo importanterdquo) ndash ou a haver mais que fosse uma escala relativamente

simples com poucos intervalos Todavia o que se encontra no nosso caso eacute algo muito dife-

rente disso o que encontramos eacute uma escala muito diferenciada com um elevado cardinal de

niacuteveis (tanto no que diz respeito a cada fluxo de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila quanto no que diz

respeito agrave resultante se assim se pode dizer que decorre de todas elas e da relaccedilotildees de forccedilas

que elas proacuteprias sustentam entre si)

Daqui decorre algo que podemos descrever do seguinte modo o campo do que nos

aparece tem as diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees distribuiacutedas por diferentes

planos de maior ou menor relevacircncia ndash anaacutelogos agravequilo que acontece com a distribuiccedilatildeo tridi-

mensional dos conteuacutedos sensiacuteveis por planos mais ou menos proacuteximos do observador

Por um lado isto significa (como vimos quando falaacutemos de ldquoformardquo e ldquofundordquo no

sentido que os termos adquirem na Gestalttheorie) que umas unidades colectivas ldquoaparecem

muito mais do que outrasrdquo

Mas por outro lado significa tambeacutem que o contraste em causa natildeo eacute pura e simples-

mente um contraste entre ldquoformardquo e rdquofundordquo mas qualquer coisa como uma escala de contras-

tes entre ldquoformardquo e ldquofundordquo (correspondente agrave complexidade dos iacutendices de importacircncia na-

quilo que os torna anaacutelogos a uma multiplicidade ldquotridimensionalrdquo de planos)

Ou seja dentro da clareira de importacircncia as diferenccedilas de peso organizam a totalida-

de do que nos aparece no quadro de uma muito complexa distribuiccedilatildeo em perspectiva ndash numa

projecccedilatildeo como que ldquotri-dimensionalrdquo que faz que as diferentes ldquocoisasrdquo ou unidades colec-

tivas de determinaccedilotildees estejam muito longe de se situarem todas no mesmo plano ndash e na ver-

dade se situem numa muito numerosa multiplicidade de planos

Vejamos um outro ponto

Este ponto tem que ver com o facto de a nossa capacidade de diferenciaccedilatildeo intuitiva

da posiccedilatildeo dos objectos no espaccedilo (a nossa capacidade de os distinguir por diversos planos

192

mais e menos proacuteximos e distantes) ser finita ndash e cessar mesmo muito aqueacutem das distacircncias a

que se situam muitos dos objectos que nos aparecem

Ou seja ateacute um dado intervalo somos capazes de diferenciar e os objectos vistos satildeo

distribuiacutedos por diversos planos A partir de uma determinada distacircncia deixamos de secirc-lo ndash

de tal modo que independentemente da distacircncia a que se situem (e independentemente de es-

sa distacircncia poder ser na verdade incomensuravelmente maior do que o intervalo global den-

tro do qual diferenciamos a posiccedilatildeo) os objectos vatildeo todos para o mesmo plano ndash tal como se

passa na chamada aboacutebada celeste

Ora no que diz respeito aos iacutendices de importacircncia passa-se algo muito semelhante

dentro da ldquoclareira de importacircnciardquo a capacidade de discriminaccedilatildeo eacute elevada ndash e ateacute mesmo

muito elevada

No entanto haacute uma fronteira ndash e a partir da fronteira vai tudo indiscriminadamente

ldquovarridordquo com o mesmo iacutendice de falta de importacircncia De sorte que fora da clareira de im-

portacircncia natildeo haacute contrastes de iacutendice entre as diferentes coisas estaacute tudo no mesmo plano

Aos pontos que jaacute vimos vem agora juntar-se um outro ponto

Uma propriedade decisiva deste complexo de fenoacutemenos eacute a sua estabilidade

Como se acentuou habitualmente nem sequer haacute qualquer ponderaccedilatildeo da importacircncia

(ou falta dela) destas ou daquelas unidades colectivas de determinaccedilotildees o complexo estaacute

montado e tudo corre por aquilo a que Pascal chamava ldquolrsquoautomaterdquo Quando haacute ponderaccedilotildees

elas tendem a dizer respeito a coisas circunscritas ndash quer dizer a pequenos ajustamentos den-

tro de uma morfologia fundamentalmente estaacutevel

Isso natildeo significa que a organizaccedilatildeo dos iacutendices de importacircncia natildeo possa sofrer trans-

formaccedilotildees mais amplas Significa que natildeo tende para transformaccedilotildees mais amplas e que na

ausecircncia de ocorrecircncias extraordinaacuterias este sistema de fixaccedilatildeo dos iacutendices de importacircncia

tem propensatildeo para natildeo contar com a possibilidade da sua revisatildeo e nesse sentido tem pro-

pensatildeo para valer como definitivo

Em suma o nuacutecleo do que eacute para noacutes importante parece impermeaacutevel agrave possibilidade

de vir a ser modificado por algo que natildeo conhece (que ainda natildeo se considerou que estaacute para

laacute da travessia perceptiva que jaacute se fez etc) O que resta (o que natildeo se conhece o que falta

conhecer etc) eacute tido como algo incapaz de introduzir qualquer alteraccedilatildeo significativa no nuacute-

cleo fixado

193

Ora a estabilidade aqui em causa eacute uma propriedade estrutural formal que natildeo estaacute li-

gada a nenhum conteuacutedo especiacutefico (a nenhuma compreensatildeo especiacutefica) e que tende a tornar

mais soacutelida a compreensatildeo que de cada vez estaacute em vigor

Quer dizer mesmo que a dado passo se modifique ndash e ateacute se modifique radicalmente

ndash e ainda que o mapa que resulte dessa modificaccedilatildeo seja um ldquomapardquo novo (ainda que a tota-

lidade das ldquocoisasrdquo passe a estar dominada por uma nova avaliaccedilatildeo do que importa etc) a es-

trutura de estabilizaccedilatildeo que aqui estamos a descrever manteacutem-se intacta Ou seja tambeacutem o

novo ldquomapardquo seraacute marcado pelo caraacutecter de parecer insusceptiacutevel de revisatildeo etc

Mas vejamos ainda um seacutetimo ponto

Atentemos um pouco melhor no que se passa dentro daquilo a que chamaacutemos a ldquocla-

reira de importacircnciardquo Se virmos bem verificamos que a complexidade de que se reveste eacute

ainda maior do que descrevemos

Em primeiro lugar natildeo se trata apenas de uma gradaccedilatildeo muito complexa com muitos

planos Vendo bem haacute um complexo sistema de mediaccedilotildees constituiacutedo de tal modo que umas

coisas satildeo importantes por causa de outras ou por mor de outras

Com efeito a assunccedilatildeo de importacircncia pode produzir-se directamente (porque algo

interfere imediatamente naquilo que para noacutes estaacute fundamentalmente em causa) mas tambeacutem

se pode produzir mediatamente (porque algo eacute relevante em relaccedilatildeo a algo que por sua vez

interfere de forma imediata naquilo que estaacute fundamentalmente em causa)

Isso significa que haacute qualquer coisa como cadeias de relevacircncia constituiacutedas se assim

se pode dizer por irradiaccedilatildeo a partir de um centro como na cadeia de magnetizaccedilatildeo descrita

por Platatildeo no Iacuteon (535e)

Assim o que acontece eacute que de cada vez estaacute identificado o nuacutecleo daquilo que impor-

ta (do que estaacute em causa na proacutepria vida) Essa identificaccedilatildeo de um ldquoem causardquo daacute lugar a) agrave

identificaccedilatildeo daquilo que parece interferir significativamente nesse ldquoem causardquo b) agrave identifi-

caccedilatildeo daquilo que interfere na identificaccedilatildeo daquilo que parece interferir significativamente

nesse ldquoem causardquo e tambeacutem c) agrave identificaccedilatildeo daquilo que interfere significativamente na

identificaccedilatildeo daquilo que interfere na identificaccedilatildeo daquilo que parece interferir significati-

vamente nesse ldquoem causardquo etc

Tambeacutem o poderiacuteamos dizer do seguinte modo em mateacuteria de importacircncia aquilo que

nos aparece acha-se organizado em qualquer coisa como um complexo sistema de orbitaccedilatildeo

194

umas coisas orbitam em torno de outras (satildeo por assim dizer seus ldquosateacutelitesrdquo) o que natildeo im-

pede estes ldquosateacutelitesrdquo de constituiacuterem por sua vez o centro de sistemas de orbitaccedilatildeo menos

centrais (mais perifeacutericos) cujos ldquosateacutelitesrdquo (ou cujas periferias) podem por sua vez consti-

tuir o centro de complexos de orbitaccedilatildeo de terceira quarta quinta potecircncia e assim sucessiva-

mente E isto de tal modo que este tracircnsito daquilo que aqui designaacutemos como o centro para a

periferia corresponde a uma perda de intensidade

Mas esta descriccedilatildeo ainda eacute demasiado simples natildeo daacute conta da extraordinaacuteria comple-

xidade do que efectivamente se passa na forma como vemos as coisas

Se considerarmos a totalidade do que nos aparece verificamos que toda ela participa

deste sistema de ldquoorbitaccedilatildeordquo

Por um lado haacute de cada vez qualquer coisa como um centro um nuacutecleo de importacircn-

cia superlativa que eacute aquilo de que fundamentalmente se trata no acontecimento de acesso

(de manifestaccedilatildeo etc) que cada um de noacutes eacute

Podemos dizer que eacute o ldquoargumentordquo da nossa vida aquilo que nos importa que estaacute

em causa nela Tudo se passa como veremos melhor na continuaccedilatildeo como se se tratasse de

uma ldquopeccedilardquo E tal como numa peccedila haacute algo que estaacute fundamentalmente em causa ndash para usar

a categoria de Aristoacuteteles um nuacutecleo de δέσις60

(em peticcedilatildeo de λύσις) ndash um foco fundamental

de tensatildeo em torno do qual tudo gira

Ora esse nuacutecleo natildeo eacute necessariamente simples mas sim complexo ndash e tambeacutem natildeo

estaacute constituiacutedo de tal modo que os diferentes feixes de tensatildeo que o compotildeem tenham neces-

sariamente a mesma importacircncia ou o mesmo peso (o que em si mesmo jaacute significa uma certa

componente de nexus de subordinaccedilatildeo)

Dito de outro modo os proacuteprios elementos do nuacutecleo (da δέσις nuclear) estatildeo organi-

zados num sistema de orbitaccedilatildeo marcado por diferentes graus de candecircncia Daiacute resulta que

uns satildeo como dissemos ainda mais importantes do que outros

Isso faz que as diferentes ramificaccedilotildees (as diferentes cadeias) anteriormente referidas

fiquem tambeacutem elas globalmente afectadas pelas diferenccedilas de peso que haacute entre os diversos

elementos do nuacutecleo que constituem as suas bases os seus ldquoradicaisrdquo ou os seus pontos de

ldquoinserccedilatildeordquo

60

Cf em especial Poeacutetica 1455b24 e ss

195

O que assim se configura eacute um campo de aparecimento globalmente estruturado por

nexos de subordinaccedilatildeo com uma grande multiplicidade de diferenccedilas de relevo ndash um campo

marcado por variados acidentes ldquocorograacuteficosrdquo contrastes de mais e menos etc

Em suma se tudo o que nos aparece estaacute organizado em unidades colectivas de deter-

minaccedilotildees de modo nenhum sucede que se trate de uma multiplicidade ldquodemocraacuteticardquo ndash de

uma multiplicidade em que cada unidade colectiva de determinaccedilotildees valha tanto quanto

qualquer outra

A ldquosociedaderdquo das unidades colectivas de determinaccedilotildees que nos aparecem tem o ca-

raacutecter de uma multiplicidade centrada em que todos os elementos estatildeo dispostos em posiccedilatildeo

de maior ou menor proximidade em relaccedilatildeo ao centro Mas isto de tal modo que como procu-

raacutemos fazer ver o proacuteprio centro estaacute tambeacutem ele organizado da mesma forma ndash com con-

trastes de mais e de menos com nexos de subordinaccedilatildeo De onde resulta que a distacircncia em

relaccedilatildeo ao que corresponderia a uma ldquosociedaderdquo de unidades colectivas de determinaccedilotildees ar-

ticulada por nexos de coordenaccedilatildeo dificilmente poderia ser maior

Isto ainda estaacute muito longe de ser tudo

Com efeito a afectaccedilatildeo do que aparece por diferentes iacutendices de importacircncia e a distri-

buiccedilatildeo do que aparece por diferentes planos de importacircncia ndash que confere agravequilo que aparece

um relevo tornando-o semelhante a uma multiplicidade bidimensional ndash natildeo se regista apenas

em relaccedilatildeo agraves unidades colectivas de determinaccedilotildees

Na verdade tem tambeacutem lugar dentro de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees e

em relaccedilatildeo agraves diversas determinaccedilotildees que a integram

Este eacute um outro aspecto complementar em relaccedilatildeo agravequele que acabamos de ver ndash e na

verdade natildeo menos complexo Natildeo podemos trataacute-lo detidamente e na verdade temos de fi-

car por uma anaacutelise muito breve que se cinge a uns quantos pontos essenciais

Pode-se falar de qualquer coisa como uma anisotropia de importacircncia dentro de cada

unidade colectiva de determinaccedilotildees desde logo por causa daquilo que vimos em relaccedilatildeo ao as-

cendente que a determinaccedilatildeo nuclear de identidade tem sobre todas as outras determinaccedilotildees

ndash aquele ascendente em virtude do qual eacute a cor e eacute o tamanho que pertence agrave cadeira e natildeo a

cadeira que pertence agrave cor e ao tamanho (ou cada uma destas determinaccedilotildees pertence tanto agraves

outras quanto o inverso)

196

Nesse sentido mesmo que natildeo estejamos habitualmente cientes disso haacute como que

uma hierarquia de subordinaccedilatildeo (e com ela uma hierarquia de importacircncia) entre o nuacutecleo de

fixaccedilatildeo de identidade e as demais determinaccedilotildees de uma unidade colectiva de determinaccedilotildees

Qualquer unidade colectiva de determinaccedilotildees se assemelha a um sistema de gravitaccedilatildeo com

as diferentes determinaccedilotildees (as determinaccedilotildees que pertencem agrave trama baacutesica de identidades e

diferenccedilas) a orbitarem em torno do nuacutecleo da identidade colectiva

Mas por outro lado tambeacutem isto natildeo eacute tudo

Com efeito poderia ser assim mas de tal modo que todas as determinaccedilotildees que assim

assumem uma posiccedilatildeo subordinada dentro de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees esti-

vessem em rigoroso peacute de igualdade umas com as outras Todavia estaacute muito longe de ser as-

sim umas determinaccedilotildees satildeo muito mais marcantes tecircm muito mais peso do que outras

O peso exacto da cadeira em que nos sentamos aquilo que a distingue de outra inteira-

mente igual a composiccedilatildeo da liga de que eacute feita etc satildeo determinaccedilotildees que facilmente reco-

nhecemos como suas ndash tatildeo suas como quaisquer outras que lhe pertencem Mas esse reconhe-

cimento natildeo impede que umas determinaccedilotildees apareccedilam como mais marcantes e relevantes do

que outras

Tocamos aqui uma peculiar estrutura que permite haver aquilo a que chamamos ldquopor-

menoresrdquo

ldquoPormenoresrdquo satildeo justamente determinaccedilotildees integrantes das unidades colectivas de

determinaccedilotildees propriedades delas etc que valem como irrelevantes ndash de tal modo que po-

dem ser desconsideradas natildeo eacute preciso conhececirc-las etc Quer dizer tudo se passa como se

umas propriedades fossem mais propriedades do que outras

Se todas as determinaccedilotildees que entram numa unidade colectiva de determinaccedilotildees tives-

sem o mesmo peso (se natildeo houvesse diferenccedilas na importacircncia atribuiacuteda) natildeo haveria nada de

correspondente ao conceito de ldquopormenorrdquo A existecircncia deste conceito e a sua permanente

aplicaccedilatildeo (mesmo que uma aplicaccedilatildeo taacutecita) na forma como lidamos com toda a espeacutecie de

unidades colectivas de determinaccedilotildees e com muitas das determinaccedilotildees que delas fazem parte

documenta o fenoacutemeno referido

Mais vendo bem isto nem sequer se aplica meramente a determinaccedilotildees avulsas ndash na

verdade vale tambeacutem para partes inteiras das unidades colectivas de determinaccedilotildees Eacute o que

na maior parte das vezes acontece por exemplo com o interior dos corpos opacos

197

Vimos atraacutes que uma das componentes da anisotropia de acuidade passa pela perda de

niacutevel de definiccedilatildeo (e por uma correspondente baixa do niacutevel de exigecircncia de definiccedilatildeo) em re-

laccedilatildeo ao interior dos corpos opacos Mas isso natildeo sucede soacute por si de forma absolutamente

isolada

Isso estaacute intrinsecamente ligado ao facto de a) os interiores dos corpos opacos serem

inexplicitamente co-apresentados mas de tal modo que b) toda esta componente co-apresenta-

da estaacute afectada por um factor de diminuiccedilatildeo do peso ou da relevacircncia e a captaccedilatildeo dos corpos

opacos estaacute marcada por um condicionamento de ascendente das superfiacutecies expostas sobre os

interiores ou por um nexo de subordinaccedilatildeo destas uacuteltimos agraves superfiacutecies que se veecircm (as quais

satildeo utilizdas como chaves para a captaccedilatildeo dos corpos opacos)

Assim haacute como que uma combinaccedilatildeo entre diversos nexos de subordinaccedilatildeo e de hie-

rarquizaccedilatildeo da importacircncia dentro de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees (ou seja

dentro daquilo a que comummente chamamos ldquocoisasrdquo) Tambeacutem neste acircmbito mais restrito

aquilo que nos aparece tem o caraacutecter de qualquer coisa como constelaccedilotildees de determinaccedilotildees

que orbitam em torno de nuacutecleos

Mais ainda tambeacutem neste acircmbito restrito os nexos de subordinaccedilatildeo (a distribuiccedilatildeo

das determinaccedilotildees por posiccedilotildees toacutenicas e por posiccedilotildees aacutetonas) natildeo eacute ldquosimplesrdquo natildeo corres-

ponde apenas a um contraste de dois valores opostos mas a uma multiplicidade mais numero-

sa Pois por um lado os matizes de acentuaccedilatildeo e de natildeo-acentuaccedilatildeo satildeo mais complexos

correspondem a uma paleta diversificada e por outro lado os nexos de ldquoorbitaccedilatildeordquo tambeacutem

satildeo complexos ndash e nada impede que uma determinaccedilatildeo ou complexo de determinaccedilotildees que or-

bita em torno de um nuacutecleo desempenhe por sua vez funccedilotildees de nuacutecleo relativamente outras

(e assim sucessivamente)

Desenha-se assim uma propriedade fundamental da forma como estaacute constituiacutedo o

aparecimento em que nos temos

Em vez de acontecer que a captaccedilatildeo do que aparece esteja feita elemento por elemento

(como teria de acontecer se o nexo entre os diferentes elementos da multiplicidade que apare-

ce fosse de mera coordenaccedilatildeo) sucede pelo contraacuterio que essa captaccedilatildeo se daacute pela conquista

de nuacutecleos e pelo efeito de arrastamento que dada a prevalecircncia ou o ascendente desses nuacute-

cleos sobre aquilo que lhes estaacute subordinado a captaccedilatildeo dos nuacutecleos tem sobre as respecti-

vas periferias

198

Quer dizer a captaccedilatildeo natildeo se faz por um acompanhamento ldquoigualitaacuteriordquo de tudo o que

aparece ndash estaacute concentrada no centro dos ldquosistemas de orbitaccedilatildeordquo a que acima fizemos refe-

recircncia e capta os sateacutelites a partir do domiacutenio que exerce (ou julga exercer) sobre os nuacutecleos

em torno dos quais orbitam E isto de tal modo que podemos falar de qualquer coisa como

uma hierarquia fundamental marcada pelo poder daquilo que eacute hierarquicamente superior so-

bre aquilo que se acha posto na sua dependecircncia

Como vimos isto eacute assim na organizaccedilatildeo global das unidades colectivas de determina-

ccedilotildees que nos aparecem ndash na ldquosociedaderdquo que haacute entre elas Pois tudo estaacute organizado numa

verdadeira rede de centros e periferias um nuacutecleo que tem agrave sua volta uma periferia imediata

ndash que por sua vez faz de centro em relaccedilatildeo a uma periferia mediata que faz de centro em

relaccedilatildeo a uma periferia etc

Mas eacute tambeacutem assim no que diz respeito agrave proacutepria organizaccedilatildeo interna de cada unida-

de colectiva de determinaccedilotildees que tambeacutem tem o caraacutecter de uma constelaccedilatildeo marcada por

nexos de orbitaccedilatildeo na forma que procuraacutemos pocircr em evidecircncia

Pode-se em resumo dizer que a forma da articulaccedilatildeo do diverso na multiplicidade da-

quilo que nos aparece estaacute dominada pela presenccedila de uma verdadeira miriacuteade de nexos de

subordinaccedilatildeo ndash que tudo o que nos aparece estaacute saturado por nexos de subordinaccedilatildeo que o

potildeem como que ldquonos antiacutepodasrdquo de formar uma multiplicidade pura e simplesmente coorde-

nada

Mas tambeacutem isto ainda natildeo eacute tudo

Haacute ainda um outro aspecto sem cuja consideraccedilatildeo a anaacutelise do papel dos nexos de su-

bordinaccedilatildeo ndash a consciecircncia de que aquilo que temos eacute muito diferente de uma multiplicidade

puramente coordenada ndash natildeo apenas fica incompleta mas deixa escapar algo fulcral

Esse outro aspecto que falta considerar tem que ver com um ponto que aqui jaacute referi-

mos mas que agora importa considerar a partir de outro acircngulo o facto de haver natildeo somente

a) determinaccedilotildees comuns mas tambeacutem b) determinaccedilotildees comuns a determinaccedilotildees comuns e

c) determinaccedilotildees comuns a determinaccedilotildees comuns a determinaccedilotildees comuns etc

Quer dizer o outro aspecto que agora importa considerar tem que ver com a scala

praeligdicamentalis Mais propriamente tem que ver com a possibilidade de a scala praeligdica-

mentalis estar sempre jaacute envolvida na proacutepria constituiccedilatildeo daquilo que imediatamente nos

aparece

199

Vejamos um pouco melhor o que isto quer dizer

A verificaccedilatildeo de que o complexo das determinaccedilotildees com que lidamos se presta a ser

articulado em qualquer coisa como uma scala praeligdicamentalis eacute muito menos paciacutefica do

que a determinaccedilatildeo do estatuto e funccedilotildees dessa escala

Pode reconhecer-se que as determinaccedilotildees que entram na composiccedilatildeo do que nos apa-

rece satildeo articulaacuteveis numa scala praeligdicamentalis mas de tal modo que se compreende essa

escala como o resultado de um complexo de operaccedilotildees de natureza abstractiva Essas opera-

ccedilotildees exercem-se sobre a base do que imediatamente nos aparece transformando essa base e

por assim dizer ldquodestilando-ardquo Tudo isto de tal modo que se produzem conteuacutedos que pura e

simplesmente natildeo figuram nem exercem qualquer funccedilatildeo relevante na constituiccedilatildeo da proacutepria

apresentaccedilatildeo imediata Segundo este entendimento tudo o que pertence agrave scala praeligdicamen-

talis resulta de desenvolvimentos supervenientes e facultativos em relaccedilatildeo agrave apariccedilatildeo imediata

(e tanto quer dizer ao terreno em que habitualmente se produz ndash e sobre que incide ndash a expe-

riecircncia)

Mas na verdade tambeacutem pode suceder que a scala praeligdicamentalis tenha uma outra li-

gaccedilatildeo com aquilo que imediatamente nos aparece ou desempenhe um outro papel na sua cons-

tituiccedilatildeo

Com efeito tambeacutem pode acontecer que a scala praeligdicamentalis traduza a proacutepria

forma como estaacute internamente organizada a fixaccedilatildeo do que imediatamente nos aparece Ou

para sermos mais precisos tambeacutem pode acontecer que aquilo que imediatamente nos aparece

se ache formado por qualquer coisa como um desenvolvimento ldquodescendenterdquo da scala praelig-

dicamentalis

Isto eacute tambeacutem pode acontecer que aquilo que imediatamente nos aparece se ache for-

mado por uma multiplicidade de niacuteveis de fixaccedilatildeo que tem a sua raiz nos nuacutecleos com maior

extensatildeo e menor compreensatildeo (que formam por assim dizer o aacutepice da escala) e passa des-

tes niacuteveis universais para niacuteveis de menor extensatildeo e maior compreensatildeo num desenvolvi-

mento que acaba por depor nos estratos mais especiacuteficos (com superlativo grau de compreen-

satildeo e iacutenfimo grau de extensatildeo) que habitualmente preenchem a apresentaccedilatildeo imediata

Eacute isso que se quer dizer com o conceito de desenvolvimento ldquodescendenterdquo da scala

praeligdicamentalis uma disposiccedilatildeo oposta agravequela que corresponde ao entendimento da scala

praeligdicamentalis como um processo ldquoabstractivordquo

200

Neste entendimento dela como um processo abstractivo a escala constitui-se a partir

dos estratos mais especiacuteficos soacute a pouco e pouco vai ascendendo na estrutura arborizada que

a tradiccedilatildeo ilustrou com a figura das chamadas ldquoaacutervores de Porfiacuteriordquo os niacuteveis mais geneacutericos

satildeo os uacuteltimos a serem constituiacutedos

Na possibilidade que aqui estamos a considerar pelo contraacuterio na proacutepria ldquoprofundi-

dade da experiecircnciardquo ndash na ldquoprofundidaderdquo do que sustenta a ldquosuperfiacutecierdquo do que imediata-

mente nos aparece ndash os niacuteveis mais especiacuteficos supotildeem sempre jaacute niacuteveis mais geneacutericos estes

uacuteltimos supotildeem sempre jaacute niacuteveis ainda mais geneacutericos e estes por sua vez em vez de serem

anteriores aos niacuteveis universais supotildeem-nos sempre jaacute como sua base

O que tudo isto quer dizer eacute que pode muito bem acontecer que o proacuteprio complexo de

determinaccedilotildees com que nos aparece aquilo com que nos achamos imediatamente postos em

contacto esteja constituiacutedo pela sobreposiccedilatildeo ndash ou melhor pela sucessiva contracccedilatildeo ndash de ca-

madas de determinaccedilatildeo que partem de fixaccedilotildees mais abrangentes (e na verdade de fixaccedilotildees

com um alcance universa que diz respeito a tudo ou de todo o modo a regiotildees inteiras de

realidade) e sobre essa base produzem sucessivas contracccedilotildees especificantes de que resulta

o niacutevel de determinaccedilatildeo relativamente elevado com que nos aparecem as ldquocoisasrdquo

Vendo bem esse niacutevel natildeo eacute idecircntico em todos os casos

Se por exemplo considerarmos uma rua com que temos grande familiaridade e puser-

mos a presentificaccedilatildeo dessa rua (quando ldquoquase a vemosrdquo ao pensar nela) sobre maior pres-

satildeo de acuidade verificamos que o conteuacutedo das casas natildeo tem um cardinal definido as casas

natildeo tecircm um nuacutemero de andares definido natildeo tecircm precisatildeo quanto agrave sua cor quanto ao nuacuteme-

ro e forma das janelas ou das varandas etc De sorte que na verdade a respectiva presentifi-

caccedilatildeo estaacute retida em fixaccedilotildees geneacutericas de tipos

Isto quer dizer que o niacutevel atinge o seu maacuteximo no campo perceptivo (na esfera das

percepccedilotildees que de cada vez temos) e eacute muito menos preciso e definido no seu exterior

Ora o ponto decisivo eacute que isso parece reflectir justamente que a respectiva composi-

ccedilatildeo se faz por meio de um processo com as caracteriacutesticas indicadas esse processo a) potildee na

base de tudo determinaccedilotildees mais comuns (que estatildeo pressupostas na constituiccedilatildeo de um

maior nuacutemero de determinaccedilotildees derivadas) e b) contrai essas determinaccedilotildees mais comuns

por sucessivas camadas de determinaccedilotildees menos comuns ateacute chegar a um resultado que fica

muito longe das determinaccedilotildees mais comuns mas que de todo o modo c) radica sempre ne-

201

las e d) pode justamente ter avanccedilado mais ou menos nesse processo de contracccedilatildeo ou espe-

cificaccedilatildeo

O que assim acabamos de desenhar num esboccedilo muito grosseiro eacute a possibilidade de

organizaccedilatildeo daquilo que nos aparece que corresponde ao chamado ldquomodelo transcenden-

talrdquo

Natildeo cabe aqui discutir este modelo em grande detalhe ndash nem no que diz respeito agrave sua

pretensatildeo de validade global (e agraves relaccedilotildees que sustenta com o proacuteprio fenoacutemeno da experiecircn-

cia) nem no que diz respeito agraves diferentes formas que pode assumir a sua concepccedilatildeo

O que aqui importa destacar satildeo fundamentalmente dois aspectos

Por um lado este modelo chama a atenccedilatildeo para a possibilidade de aquilo a que Kant

chama ldquoprofundidade da experiecircnciardquo ndash os muacuteltiplos ldquojuiacutezos ocultos da razatildeo comumrdquo que

sustentam a superfiacutecie do que nos aparece ndash estar constituiacutedo numa multiplicidade de estratos

montados se assim se pode dizer uns sobre os outros de tal modo que aquilo que eacute fixado

em alguns deles corresponde agrave contracccedilatildeo do que fica assente nos outros

Tudo isto de tal modo que este nexo de suposiccedilatildeo e contracccedilatildeo (o nexo em virtude do

qual alguns dos juiacutezos repousam sobre a base dos outros e contraem ou especificam o que estaacute

dado por assente neles) eacute um nexo que se repete compondo assim uma multiplicidade de niacute-

veis com cardinal relativamente elevado

Daqui resulta algo que eacute na verdade bastante diferente de uma ldquosociedaderdquo de dife-

rentes juiacutezos coordenados uns aos outros (como parece ser o caso quando verificamos por

exemplo que um qualquer ponto da palma da matildeo depende do sistema de forccedilas correspon-

dente agrave coordenaccedilatildeo entre cor resistecircncia posiccedilatildeo no espaccedilo posiccedilatildeo no tempo tese sobre a

sua existecircncia passada antecipaccedilatildeo de uma continuaccedilatildeo futura tese de identidade diacroacutenica

atribuiccedilatildeo de existecircncia independente atribuiccedilatildeo de existecircncia puacuteblica ndash comummente teste-

munhaacutevel por uma multiplicidade de consciecircncias etc)

Digamos assim o ldquomodelo transcendentalrdquo chama a atenccedilatildeo para a possibilidade de

haver qualquer coisa como nexos de sustentaccedilatildeo entre pelo menos alguns dos elementos que

compotildeem o ldquosistema de forccedilasrdquo de que aquilo que nos aparece (como Kant diz na Anthropo-

logie Friedlaumlnder o ldquoclarordquo)61

eacute resultante

61

Cf AA XXV 479

202

Quer dizer o que estaacute fundamentalmente em causa no modelo transcendental eacute o pro-

tagonismo das determinaccedilotildees mais enraizadas na profundidade da experiecircncia ndash enquanto

estas determinaccedilotildees satildeo ao mesmo tempo aquelas que se caracterizam por um maacuteximo de ex-

tensatildeo e por um miacutenimo de compreensatildeo (mas de tal modo que este miacutenimo de compreensatildeo

eacute aquele que estaacute na base do acreacutescimo de compreensatildeo que caracteriza todas as outras deter-

minaccedilotildees)

Em suma o protagonismo (este ascendente) das determinaccedilotildees mais profundas eacute um

protagonismo exercido ldquona sombrardquo ndash natildeo chama a atenccedilatildeo natildeo se daacute por ele etc mas nem

por isso deixa de ser efectivo

O que assim ganha contornos corresponde a qualquer coisa como uma hierarquia de

niacuteveis cujo nexo eacute justamente um nexo de subordinaccedilatildeo em virtude do qual alguns dos ldquojuiacute-

zos ocultosrdquo funcionam como ldquoalicercesrdquo ou ldquotraves mestrasrdquo em relaccedilatildeo aos outros

A estrutura deste peculiar ldquoedifiacuteciordquo de assentamentos eacute justamente aquela que se acha

desenhada nas ldquoaacutervores de Porfiacuteriordquo haacute fixaccedilotildees fundamentais de que dependem regiotildees

inteiras (ou ateacute a totalidade das outras) haacute fixaccedilotildees derivadas mas que por outro lado satildeo

fundamentais e formam a base de um grande nuacutemero de outras que por sua vez a despeito

do seu caraacutecter duplamente derivado exercem funccedilotildees de sustentaccedilatildeo em relaccedilatildeo a uma

multiplicidade de outras ndash e assim sucessivamente

A partir daqui percebe-se o nexo entre o modelo transcendental e a ideia de profundi-

dade da experiecircncia ndash e muito em especial percebe-se como o modelo transcendental (o re-

conhecimento da estrutura do aparecimento que estaacute em causa neste modelo) confere profun-

didade agrave profundidade da experiecircncia faz desta uacuteltima algo com significativas dimensotildees

No proacuteprio terreno dos ldquojuiacutezos ocultos da razatildeo comumrdquo uma determinaccedilatildeo especiacutefica

(uma tese ou um juiacutezo especiacutefico) natildeo estaacute posta a vigorar soacute por si assenta ela mesma sobre

a vigecircncia de uma determinaccedilatildeo (ou de determinaccedilotildees) mais geneacuterica mais abrangente que

forma uma camada mais profunda E essa determinaccedilatildeo ou tese mais geneacuterica eacute por sua vez

uma determinaccedilatildeo especiacutefica fundada sobre (ou que tem por pressuposto) uma outra determi-

naccedilatildeo geneacuterica que ocupa uma outra camada inferior ndash e assim sucessivamente ateacute se che-

gar agraves determinaccedilotildees de caraacutecter universal (aquelas que dizem respeito a tudo ou de todo o

203

modo a regiotildees inteiras da realidade e constituem o alicerce de todo o edifiacutecio do que apa-

rece)62

62

O que assim se desenha eacute que a ldquoprofundidade da experiecircnciardquo de que acima se falou natildeo eacute rasa

(natildeo constitui um uacutenico plano etc) Isto muda muito significativamente o aspecto da dupla composi-

ccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia que atraacutes se considerou O que antes se disse foi que o apareci-

mento e a experiecircncia se movem em dois planos distintos (a superfiacutecie e a profundidade) Mas essa di-

visatildeo em dois planos era completamente neutra quanto agraves dimensotildees (a extensatildeo a grandeza a ampli-

tude etc) dos dois planos De facto poderia muito bem acontecer que os dois planos fossem similares

quanto agrave grandeza Isto eacute poderia acontecer que a ldquoprofundidade da experiecircnciardquo correspondesse tam-

beacutem como a superfiacutecie a um uacutenico plano (a um uacutenico estrato a um uacutenico niacutevel a uma uacutenica camada

etc) e que fosse nesse uacutenico plano que se situassem todas as determinaccedilotildees ocultas (e que eles es-

tivessem portanto todas niveladas entre si) Contudo aquilo que se desenha agora permite mostrar

que a profundidade da experiecircncia estaacute constituiacuteda em diversos planos (diversos estratos niacuteveis ca-

madas etc) Em suma a profundidade conteacutem profundidades O que tudo isto sugere eacute que pode mui-

to bem suceder que a profundidade seja muito mais extensa que a superfiacutecie Quer dizer pode muito

bem dar-se o caso de a ldquoprofundidade da experiecircnciardquo ser constituiacuteda por um grande nuacutemero de ca-

madas ndash e de sendo assim natildeo se estar na posse da larga maioria dos componentes do aparecimento

e da experiecircncia (e assim tambeacutem da larga maioria dos componentes de cada ldquoobjectordquo de cada ldquocoi-

sardquo que se constitui no campo da experiecircncia etc) componentes que a profundidade manteacutem oculta

O projecto de tornar consciente algo que tende a permanecer inconsciente (de descobrir de pocircr a

descoberto esclarecer ou iluminar o que estaacute obscuro ndash ie os fundamentos da experiecircncia) constitui

vendo bem o cerne do empreendimento analiacutetico kantiano Se natildeo estamos a ver mal o que de facto

Kant leva a cabo natildeo eacute tanto uma tentativa de enriquecimento ou de alargamento do patrimoacutenio que jaacute

temos mas em vez disso eacute uma tentativa de levantamento ou de elucidaccedilatildeo (atraveacutes de meios ou de

meacutetodos arqueoloacutegicos por assim dizer) do patrimoacutenio de que jaacute somos no fundamental constituiacutedos

Mas note-se bem a magnitude do empreendimento kantiano Por um lado as determinaccedilotildees a que se

acede agrave superfiacutecie podem muito bem corresponder apenas a uma iacutenfima parte de um mapa de determi-

naccedilotildees ndash obscuro e muito vasto ndash que permanece oculto Natildeo se trata apenas de em primeiro lugar

identificar focos de obscuridade (constituiacutedos em ldquoacircngulo cegordquo sob uma ilusatildeo de captaccedilatildeo eficaz

etc) e de em segundo lugar os esclarecer ou iluminar (ie de superar os limites do ponto de vista a

cegueira constitutiva etc) para ver de que eacute que satildeo constituiacutedos Na verdade trata-se de fazecirc-lo num

horizonte de que cuja amplitude ndash precisamente na medida em que estaacute por desvendar ndash natildeo temos

qualquer noccedilatildeo Neste caminho de descoberta que Kant nos propotildee poderia muito bem suceder que o

horizonte do que falta desvendar tivesse uma amplitude tal que reduzisse a pouco mais que nada o pla-

no que jaacute estaacute desvendado ndash coisa que alteraria significativamente a relaccedilatildeo de forccedilas entre os dois pla-

nos (de tal modo que o que jaacute estaacute desvendado apareceria a uma outra luz) etc Mais ainda pode mui-

to bem acontecer que aquilo com que aiacute nos deparemos natildeo seja da mesma ordem daquilo que jaacute

conhecemos ndash e isto de tal modo que possa produzir-se uma muito radical transfiguraccedilatildeo (uma muito

radical mudanccedila de estatuto ndash e inclusive uma transfiguraccedilatildeo ou mudanccedila de estatuto que nos ponha

numa rota imprevista ou inesperada e que modifique ndash global e inesperadamente ndash o aspecto de tudo

aquilo que jaacute temos descoberto de tudo o que aparece de tudo o que haacute etc

204

Ora no seguimento disto a pergunta que importa colocar eacute a que passa por saber se o

ldquomodelo transcendentalrdquo natildeo se trata justamente apenas de um modelo (e de facto de um mo-

delo que estaacute longe de ser ldquoliacutequidordquo de ter a sua validade garantida etc) E sendo assim se

natildeo significa isso que tudo o que acabamos de dizer ldquocai por terrardquo tornando-se completa-

mente irrelevante se o ldquomodelo transcendentalrdquo for infirmado ndash e se verificarmos por exem-

plo que toda a composiccedilatildeo daquilo que nos aparece resulta de projecccedilotildees empiacutericas e eacute a pou-

co e pouco produzida por obra de um entretecimento (por uma espeacutecie de ldquotearrdquo empiacuterico)

que a partir de αισθήσεις e de μνῆμαι vai fabricando o seu ldquotecidordquo de fixaccedilotildees

Para responder a estas objecccedilotildees haacute que estar atento a trecircs aspectos

Natildeo cabe aqui analisar e desenvolver o problema em toda a sua extensatildeo mas antes de

mais importa fazer notar que a possibilidade de todo o aparecimento com que lidamos ter

uma constituiccedilatildeo transcendental com a estrutura de que tentaacutemos dar um esboccedilo eacute uma pos-

sibilidade real ndash pode muito bem ser efectivamente assim e haacute indiacutecios que apontam para que

seja efectivamente assim

Isso significa que o complexo de nexos de subordinaccedilatildeo que estrutura internamente o

ldquotecidordquo do que temos apresentado pode incluir precisamente esta ldquotramardquo ou este ldquotraveja-

mentordquo transcendental em resultado do qual sem estarmos cientes disso a organizaccedilatildeo inter-

na do proacuteprio alfabeto das nossas determinaccedilotildees inclui fios de descendecircncia ou derivaccedilatildeo e

no seu ldquoBathosrdquo ou na sua profundidade tem um conjunto de determinaccedilotildees nucleares a exer-

cerem funccedilotildees tais que tudoo mais decorre delas (e recorre a elas na constituiccedilatildeo de outras de-

terminaccedilotildees)

Dito de outro modo haacute uma possibilidade real de aleacutem a) da trama de nexos de su-

bordinaccedilatildeo que liga a multiplicidade das unidades colectivas de determinaccedilotildees (aleacutem dessa

trama a que podemos chamar a trama dos nexos de subordinaccedilatildeo agrave superfiacutecie do que nos apa-

rece) e tambeacutem aleacutem b) da trama de nexos de subordinaccedilatildeo que organiza a multiplicidade

das determinaccedilotildees envolvidas na constituiccedilatildeo de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees

haver ainda c) qualquer coisa como uma trama de subordinaccedilatildeo a um niacutevel mais profundo de

que dependem ao mesmo tempo aquilo que referimos em a) e em b) ndash de tal modo que todo o

horizonte do que nos aparece estaacute inscrito no horizonte aberto por este processo de descen-

decircncia de todas as determinaccedilotildees a partir de um nuacutecleo e natildeo satildeo possiacuteveis senatildeo com con-

tracccedilotildees ou especificaccedilotildees desse nuacutecleo

205

O que estamos a procurar sublinhar eacute que natildeo haacute hierarquia apenas na organizaccedilatildeo das

diferentes determinaccedilotildees ndash haacute hierarquia na sua proacutepria constituiccedilatildeo interna (de tal modo

que umas determinaccedilotildees vecircm intrinsecamente de outras e na verdade todas descendem de

um nuacutecleo de proto-fixaccedilatildeo ou de proto-fixaccedilotildees de que todas as outras satildeo desenvolvimen-

tos)

Mas por outro lado importa estar ciente de que esta peculiar forma de nexo de subor-

dinaccedilatildeo que estamos a considerar natildeo eacute relevante apenas se o modelo transcendental for efec-

tivamente aquele que corresponde agrave forma como estatildeo formadas as determinaccedilotildees com que li-

damos e todo o aparecer em que estamos constituiacutedos O ponto decisivo eacute tambeacutem que aquilo

que se desenha no modelo transcendental natildeo tem aplicaccedilatildeo apenas se o modelo transcenden-

tal for ldquoadequadordquo ndash tambeacutem tem relevo se natildeo for

Este eacute o ponto em que agora nos devemos deter

Importa ter presente o seguinte mesmo que como vimos as projecccedilotildees empiacutericas de-

pendam de acumulaccedilotildees de dados o que as constitui eacute o ldquodisparordquo de fixaccedilotildees antecipadas

com caraacutecter de lei que atraacutes descrevemos Nesse sentido as fixaccedilotildees empiacutericas tecircm sempre a

forma de antecipaccedilotildees relativas a horizontes de totalidade (os horizontes de totalidade rasga-

dos e antecipados nas referidas ldquoleisrdquo)

Acontece que como tambeacutem jaacute vimos nada disto impede que os horizontes de totali-

dade que assim vatildeo sendo formados no ldquotearrdquo da ἐμπειρία tenham diferentes amplitudes

Quer dizer nada impede que as diferentes fixaccedilotildees empiacutericas que a pouco e pouco se

formaram produzindo o complexo de antecipaccedilotildees (ou o complexo de ldquoleisrdquo) que de cada vez

se acha em vigor na oacuteptica empiacuterica se distingam como na scala praeligdicamentalis pela refe-

rida variaccedilatildeo de niacuteveis de extensatildeo e compreensatildeo ndash ou seja pelo facto a) de umas fixaccedilotildees

terem muito mais extensatildeo e muito menos compreensatildeo b) por outras terem menor extensatildeo e

maior compreensatildeo e c) pelo facto de este nexo se iterar um determinado nuacutemero de vezes

dando lugar a uma hierarquia de fixaccedilotildees empiacutericas com uma estrutura anaacuteloga agrave da scala

praeligdicamentalis

Eacute aqui que se toca o ponto decisivo

Vendo bem tambeacutem neste caso as fixaccedilotildees com maior amplitude (as projecccedilotildees empiacute-

ricas mais abrangentes ou mais comuns se assim se pode dizer) dizem respeito a projecccedilotildees

empiacutericas mais fundamentais ou mais decisivas

206

As fixaccedilotildees que estamos a descrever satildeo aquelas projecccedilotildees que se se virem infirma-

das arrastam consigo um complexo muito vasto de outras projecccedilotildees danificando assim de

forma muito significativa o ldquoedifiacuteciordquo do reconhecimento empiacuterico do quadro de realidade

em que nos achamos situados

Ao inveacutes as projecccedilotildees empiacutericas de amplitude mais restrita (de maior compreensatildeo e

portanto com um caraacutecter mais especiacutefico) exercem funccedilotildees de sustentaccedilatildeo com menor al-

cance (de onde resulta que pelo menos no que diz respeito ao efeito de propagaccedilatildeo da sua in-

firmaccedilatildeo o ldquoestragordquo que produzem no ldquoedifiacuteciordquo global do nosso reconhecimento empiacuterico

da realidade eacute muito mais contido ou ldquolocalizadordquo e nesse sentido de menor peso)

Com tudo isto jaacute fica desenhado o fundamental do que se pretendia pocircr em evidecircncia

relativamente a esta outra componente da anisotropia da subordinaccedilatildeo que caracteriza as di-

ferentes componentes do campo de aparecimento em que damos connosco ndash ie aquele onde

tem lugar o acontecimento da experiecircncia

Em uacuteltima anaacutelise o que se procurou focar foi que independentemente da alternativa

entre haver uma constituiccedilatildeo transcendental que fixa a matriz para o proacuteprio desenrolar da ἐμ-

πειρία ou haver uma constituiccedilatildeo fundamentalmente empiacuterica de todo o nosso reconhecimen-

to da realidade que nos aparece a estrutura reconhecida no conceito de scala praeligdicamentalis

(algo grosso modo correspondente aos traccedilos essenciais dessa estrutura) cunha a proacutepria

conformaccedilatildeo do que habitualmente nos aparece

Mesmo que toda a carga de fixaccedilatildeo transgressora relativa ao dado efectivamente dis-

poniacutevel seja de origem exclusivamente empiacuterica nada impede que a estrutura da antecipaccedilatildeo

empiacuterica (a estrutura da constelaccedilatildeo de ldquoleisrdquo empiacutericas) que de cada vez jaacute se acha posta em

vigor (e a enformar a doaccedilatildeo que de cada vez se vai produzindo) seja exactamente a mesma

que a da constituiccedilatildeo transcendental

Isto eacute nada impede que as fixaccedilotildees mais geneacutericas ou universais tenham sido se for

esse o caso geneticamente posteriores sem que isso no entanto seja obstaacuteculo a que na or-

dem das funccedilotildees de sustentaccedilatildeo uma vez constituiacutedas passem a ter primazia e possuam rela-

ccedilotildees tais com as fixaccedilotildees mais especiacuteficas que se forem postas em causa as arrastam na sua

queda

Tambeacutem neste aspecto se todas as determinaccedilotildees tecircm o seu peso e produzem com a

sua presenccedila contracccedilotildees no que nos aparece pode-se no entanto dizer que umas determina-

ccedilotildees satildeo mais determinantes do que outras

207

E tambeacutem a este respeito resulta claro que uma coisa seraacute a experiecircncia constituiacuteda

num quadro de aparecimento constituiacutedo de tal modo que natildeo inclua qualquer hierarquiza-

ccedilatildeo do tipo que acabamos de considerar outra coisa muito diferente seraacute a experiecircncia for-

mada num meio completamente marcado por este tipo de hierarquizaccedilatildeo e ainda outras se-

ratildeo as modalidades de experiecircncia que se produzirem num meio cunhado por outro tipo de

hierarquizaccedilatildeo Dito de outro modo bastaria uma significativa alteraccedilatildeo desta variaacutevel para

produzir caeteris paribus uma significativa variaccedilatildeo do cariz da experiecircncia

Assim por pouco que habitualmente nos demos conta disso tambeacutem esta componente

desempenha um papel decisivo a marcar aquilo que para noacutes costuma ser a experiecircncia E a

compreensatildeo da constituiccedilatildeo da experiecircncia tal como tem lugar em noacutes que natildeo leve em

comta esta componente deixa escapar um ingrediente ou um factor fundamental sem o qual a

experiecircncia se tornaria algo muito diferente daquilo a que estamos habituados

sect26

Uma certa margem de heterogeneidade que tem que ver com a diversidade do ldquoquecircrdquo da

experiecircncia experiecircncia de factos experiecircncia de significados e experiecircncia de factos e de

significados

Tudo o que jaacute se desenha nas secccedilotildees anteriores continua a ser insuficiente para captar

aquilo que de facto estaacute em causa E isto eacute assim por duas razotildees

Por um lado porque o raacutepido bosquejo que traccedilaacutemos fica muito longe de dar conta de

todos os nexos de subordinaccedilatildeo (sc de tudo aquilo que torna assimeacutetricas as relaccedilotildees entre as

diferentes componentes do que nos aparece) Neste sentido as paacuteginas precedentes natildeo pre-

tendem fornecer mais do que uma ldquoamostrardquo

Por outro lado o que desenhaacutemos eacute ainda insuficiente em resultado do proacuteprio cami-

nho que foi preciso seguir para pocircr em evidecircncia as diferentes formas de nexo de subordina-

ccedilatildeo que sucessivamente passaacutemos em revista

De facto foi preciso isolar cada uma dessas modalidades e focaacute-la isoladamente ndash pro-

duzindo-se de cada vez a imagem abstracta de um campo de aparecimento estruturado apenas

por aquela forma de anisotropia (sc de rede de nexos de subordinaccedilatildeo que de cada vez estava

208

especialmente em causa) Ora o ponto decisivo (o que especialmente molda a modalidade de

experiecircncia a que estamos habituados) natildeo eacute cada uma destas formas de anisotropia ligada a

nexos de subordinaccedilatildeo mas sim a respectiva conjugaccedilatildeo e integraccedilatildeo num todo simultanea-

mente marcado por todas elas

Aqui de novo podemos recorrer agrave comparaccedilatildeo com um sistema de forccedilas

Os diferentes aspectos que focaacutemos constituem como que diferentes forccedilas aplicadas

simultaneamente agrave totalidade do que nos aparece De tal maneira que os diversos momentos

desta totalidade estatildeo sujeitos ao efeito conjugado destas diferentes forccedilas ndash na peculiar for-

ma de relaccedilatildeo que sustentam entre si

Ou melhor a) a totalidade do que nos aparece estaacute desviada em relaccedilatildeo agravequilo que se-

ria ndash e ao aspecto que teria ndash se soacute comportasse nexos de coordenaccedilatildeo b) esse desvio eacute o que

decorre da resultante de uma multiplicidade de factores de subordinaccedilatildeo ndash uma resultante

que precisamente como num sistema de forccedilas estaacute simultaneamente condicionada pelas for-

ccedilas que integram o sistema (pelas diferentes direcccedilotildees e sentidos em que cada uma ldquopuxardquo) e

pela ldquorelaccedilatildeo de forccedilasrdquo que haacute entre elas

Eacute este aspecto (ie satildeo algumas caracteriacutesticas fundamentais desta ldquoresultanterdquo) que

de seguida procuraremos focar um pouco mais detidamente

O aspecto a que nos estamos a referir eacute aquele que tem que ver com o proacuteprio ldquoquecircrdquo

do aparecimento e da experiecircncia (o objecto do aparecimento e da experiecircncia o que o apare-

cimento e a experiecircncia determina etc)

Ora tambeacutem a respeito do ldquoquecircrdquo do aparecimento e da experiecircncia haacute possibilidade de

variaccedilatildeo ndash variaccedilatildeo que se estende para laacute dos aspectos anteriormente referidos

Essa possibilidade de variaccedilatildeo adveacutem de uma certa margem de heterogeneidade que

tem que ver com a diversidade dos ldquoquecircsrdquo em causa no que nos aparece e na experiecircncia

Quer dizer tambeacutem pode haver vaacuterios quadros de aparecimento e vaacuterias experiecircncias distin-

tas entre si na medida em que aquilo que aparece e a experiecircncia pode resultar de uma multi-

plicidade de ldquoquecircsrdquo possiacuteveis de cada vez em causa nela

Para sermos mais precisos pode haver vaacuterias formas de aparecimento e de experiecircncia

distintas entre si consoante o aparecimento e a experiecircncia for tal que a) a experiecircncia eacute pura e

simplesmente uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo b) a experiecircncia eacute pura e simplesmente uma ldquoex-

periecircncia de significadosrdquo (ou uma ldquoexperiecircncia de sentidordquo como tambeacutem podemos dizer)

209

ou por fim c) a experiecircncia tem o caraacutecter de uma ldquoexperiecircncia mistardquo (ie que conjuga ou

que eacute composta de factos e de significados)

Comecemos por considerar a primeira hipoacutetese naquilo que diz respeito aos contras-

tes pertinentes para o que aqui temos em vista com as restantes

Uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo corresponde a um puro registo de tudo o que estaacute mate-

rial e efectivamente dado (ie de tudo o que estaacute dado de todas as ldquocoisasrdquo de tudo o que

aparece etc)

Isto eacute uma experiecircncia de factos corresponde a algo como um inventaacuterio faacutectico ndash um

inventaacuterio das ldquocoisasrdquo que aparecem e das determinaccedilotildees com que as ldquocoisasrdquo se apresen-

tam Neste sentido o registo em que a experiecircncia de factos estaacute constituiacutedo resulta num ma-

pa que toma a sua conformaccedilatildeo da conformaccedilatildeo da ldquoloacutegicardquo proacutepria dos factos

O que isto quer dizer eacute que o mapa que resulta de uma experiecircncia dos factos toma a

forma da relaccedilatildeo das diversas ldquocoisasrdquo (das diversas unidades colectivas de determinaccedilotildees) e

das diversas determinaccedilotildees entre si (ie do modo como cada ldquocoisardquo e cada determinaccedilatildeo se

relaciona com as restantes estaacute desposta perante as restantes etc)

Assim um objecto da experiecircncia de factos corresponderia a um qualquer x definido

exclusivamente pelas suas propriedades ndash ie corresponderia a um qualquer x posto numa re-

laccedilatildeo de pura transparecircncia relativamente a si de tal modo que o que determinaria x natildeo se-

ria mais do que o que estivesse incluiacutedo no proacuteprio x (os seus atributos caracteriacutesticas pro-

priedades etc)

Poreacutem o mapa que daiacute resulta eacute um mapa da complexidade dos factos natildeo apenas nes-

te primeiro sentido

Vendo bem a ldquoloacutegicardquo dos factos (o modo como os diversos factos ndash as diversas ldquocoi-

sasrdquo e as diversas ldquodeterminaccedilotildeesrdquo ndash estatildeo associadas entre si) constitui tambeacutem em si mes-

ma um facto proacuteprio

Isto eacute o mapa que resulta da experiecircncia dos factos eacute um mapa que natildeo apenas regista

a) os factos avulsos mas que regista igualmente b) os diversos estratos de factos (as relaccedilotildees

dos diversos ldquoobjectosrdquo e das determinaccedilotildees deles entre si que se assim podemos dizer de-

potildeem os factos em diversas ldquocamadasrdquo)

Ora tendemos a ver o que aparece no pressuposto de que a ordem de determinaccedilotildees

em causa nos expotildee perante uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo

210

Quer dizer o ponto de vista habitual tende a compreender a experiecircncia do que quer

que seja como uma mera experiecircncia de factos O aparecimento de uma ldquocoisardquo parece neste

sentido corresponder apenas agrave presenccedila da ldquocoisardquo que aparece ndash de tal modo eacute assim que a

ldquocoisardquo eacute tomada como sendo tal qual como aparece no acesso

Por outras palavras a forccedila da evidecircncia de que estamos perante uma experiecircncia de

factos impotildee-se de tal modo que a apresentaccedilatildeo do que aparece (a apresentaccedilatildeo dele e soacute dele

ou a apresentaccedilatildeo do facto em causa na sua relaccedilatildeo com outros factos) parece esgotar as pos-

sibilidades de apresentaccedilatildeo do que aparece (de tal modo que a conformaccedilatildeo do aparecimento

e da experiecircncia como aparecimento e experiecircncia de factos ganha forccedila de evidecircncia que o

que aparece natildeo poderia ser senatildeo tal qual como nos aparece natildeo poderia ter outra configu-

raccedilatildeo para laacute desta que tem natildeo poderia ldquoserrdquo ou aparecer de outro modo etc)

Mais ainda o proacuteprio conceito de ldquofactordquo estaacute marcado pelo pressuposto de que o

acesso em que nos temos eacute um acesso que regista dados a partir de uma posiccedilatildeo que eacute com-

pletamente neutra relativamente aos dados que capta

A experiecircncia como ldquoexperiecircncia de factosrdquo ldquoembarcardquo se assim se pode dizer na tese

de uma dupla quietude agrave quietude do ldquoobjectordquo ndash que meramente ldquoeacuterdquo estaacute ldquoaiacuterdquo aparece etc

ndash estaacute contraposta a quietude do ldquosujeitordquo ndash que meramente observa e acolhe o ldquoserrdquo do ldquoob-

jectordquo como que agrave distacircncia (ie sem desempenhar qualquer papel no modo como aparece o

que aparece sem estar envolvido com ele de algum modo para laacute da mera captaccedilatildeo etc)

Em suma o proacuteprio conceito de ldquofactordquo pressupotildee que o que aparece natildeo estaacute sujeito

a qualquer outra pressatildeo para laacute da pressatildeo da pergunta ldquoo que eacuterdquo O facto estaacute medido

apenas por si proacuteprio

Dito por outras palavras o conceito de ldquofactordquo pressupotildee o cumprimento eficaz da pe-

ticcedilatildeo de verdade ndash na forma de um esclarecimento (de uma resposta agrave pergunta pelo ldquoserrdquo da

ldquocoisardquo pelo que a ldquocoisardquo ldquoeacuterdquo etc) que teria origem na proacutepria realidade a que o apareci-

mento ou a experiecircncia dizem respeito

Neste sentido uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo corresponderia ao mero conjunto de res-

postas agrave pergunta ldquoo que eacuterdquo E mesmo que a experiecircncia como vimos envolva projecccedilotildees

as projecccedilotildees empiacutericas de uma experiecircncia de factos tecircm que ver apenas com a fixaccedilatildeo do

que se passa no plano absoluto dos proacuteprios factos que as projecccedilotildees se destinam a reconsti-

tuir ou antecipar

211

Algo bem diferente eacute aquilo que estaacute em causa se a experiecircncia tem o caraacutecter de ldquoex-

periecircncia de significadosrdquo

Vendo bem a pergunta a que a ldquoexperiecircncia do significadordquo pretende dar resposta natildeo

eacute diferente da pergunta a que o ldquofactordquo procura dar resposta ndash em ambos os casos o que estaacute

em causa eacute a pergunta ldquoo que eacuterdquo Acontece poreacutem que a pergunta ldquoo que eacuterdquo se converte na

pergunta ldquoo que significardquo

Interessa compreender o que se quer dizer com isto

O primeiro ponto a ter em atenccedilatildeo eacute que o significado tem sempre que ver com rela-

ccedilatildeo Trata-se sempre daquilo que Platatildeo exprime no Feacutedon quando fala do μὴ μόνον ἐκεῖνο63

Mas esta caracteriacutestica que eacute fundamental natildeo basta para circunscrever aquilo que eacute

proacuteprio do significado (do aparecimento do significado e da experiecircncia do significado) en-

quanto tal

Com efeito o aparecimento de factos e a experiecircncia de factos tambeacutem pode incluir a

fixaccedilatildeo de relaccedilotildees Mais ndash qualquer deles pode ateacute estar especialmente focado na fixaccedilatildeo de

relaccedilotildees Contudo por mais que seja assim e mesmo que haja uma multidatildeo de relaccedilotildees (mes-

mo que o teor daquilo que aparece esteja saturado com a indicaccedilatildeo de relaccedilotildees) haacute um zero

de apresentaccedilatildeo de significados no sentido que aqui temos em vista

Ora interessa precisar o que eacute que constitui o significado enquanto tal

Antes de mais importa referir que haacute uma multiplicidade de acepccedilotildees do termo ldquosigni-

ficadordquo (quer no uso comum quer como terminus technicus) e que natildeo curamos aqui de fazer

uma anaacutelise dessas vaacuterias acepccedilotildees ou da histoacuteria do conceito de ldquosignificadordquo enquanto con-

ceito filosoacutefico

Na verdade limitamo-nos a procurar determinar aquilo que temos em vista ao recorrer

a este conceito

O que temos em vista ao recorrer ao conceito de ldquosignificadordquo eacute que a relaccedilatildeo consti-

tutiva do significado diz respeito a um acircngulo ou filtro de compreensatildeo introduzido pelo proacute-

prio modo de ver de tal modo que a) o terminus ad quem da relaccedilatildeo em causa natildeo eacute este ou

aquele objecto este ou aquele apresentado mas algo decorrente da proacutepria forma de capta-

ccedilatildeo que b) tudo o que aparece aparece jaacute na oacuteptica da relaccedilatildeo em causa (que eacute neste senti-

63

Cf 73c6-8 ldquoἐάν τίς τι ἕτερον ἢ ἰδὼν ἢ ἀκούσας ἤ τινα ἄλλην αἴσθησιν λαβὼν μὴ μόνον ἐκεῖνο γνῷ

ἀλλὰ καὶ ἕτερον ἐννοήσῃ οὗ μὴ ἡ αὐτὴ ἐπιστήμη ἀλλrsquo ἄλλη (hellip)rdquo

212

do universal) e que c) o terminus ad quem da relaccedilatildeo em causa (o acircngulo que faz o μὴ μόνον

ἐκεῖνο) eacute igual para tudo aquilo que aparece (ie tudo o que aparece eacute reportado ao mesmo e

eacute esse reportar ao mesmo que daacute lugar agrave diferenccedila dos significados ndash que satildeo significados di-

ferentes em relaccedilatildeo ao mesmo)

Expliquemo-nos melhor ndash e vejamos antes do mais cada um destes aspectos

Em primeiro lugar o terminus ad quem da relaccedilatildeo em causa natildeo eacute este ou aquele ob-

jecto este ou aquele apresentado mas algo decorrente da proacutepria forma de captaccedilatildeo

O que constitui o significado natildeo eacute se assim se pode dizer uma relaccedilatildeo horizontal

dentro do proacuteprio plano do apresentado (uma relaccedilatildeo entre apresentados) mas uma relaccedilatildeo

entre o apresentado e o proacuteprio estar a tecirc-lo (o acontecimento de estar a ter apresentaccedilatildeo de-

le) O μὴ μόνον ἐκεῖνο (o acrescentado que constitui a relaccedilatildeo) vem do proacuteprio acontecimento

de ldquoposserdquo daquilo que aparece radica num ldquofiltrordquo integrado na sua proacutepria oacuteptica ndash e de

um ldquofiltrordquo que eacute totalmente insusceptiacutevel de ser retirado (de tal modo que natildeo haacute um grau

zero preacutevio ao estabelecimento da relaccedilatildeo que constitui o significado)

Em segundo lugar isso significa que tudo o que aparece aparece jaacute na oacuteptica da rela-

ccedilatildeo em causa ndash que eacute neste sentido universal

Natildeo se trata desta ou daquela relaccedilatildeo determinada que haja entre estes e aqueles apre-

sentados Trata-se de um ldquofiltrordquo que em todos os casos potildee o que aparece em relaccedilatildeo com

um acircngulo constante na oacuteptica de quem vecirc de tal modo que dessa relaccedilatildeo a algo de constante

(dessa forma geral e invariaacutevel do significado ndash disso a que podemos chamar o acircngulo ou o

criteacuterio do significado) nasce um conjunto de significados todos relativos ao acircngulo ou criteacute-

rio em causa

Nesse sentido o significado natildeo eacute um acontecimento avulso que ocorre ldquoaquirdquo mas

natildeo ldquoalirdquo natildeo tem a forma de um agregado ndash de tal modo que tudo tivesse o seu significado

mas a forma como estaacute constituiacutedo o significado de A fosse completamente diversa e indepen-

dente da forma como estaacute constituiacutedo o significado de B etc A haver aparecimento de signi-

ficados e experiecircncia de significados no sentido que aqui se tem em vista o significado eacute to-

tal ndash um acontecimento global que tinge globalmente todo o horizonte do que aparece e todo

o horizonte da experiecircncia

Podemos exprimir melhor o que estaacute aqui em causa dizendo o seguinte

213

Se eacute verdade que o significado na acepccedilatildeo aqui em causa tem que ver com uma rela-

ccedilatildeo isso natildeo quer dizer que a relaccedilatildeo de que estamos a falar seja algo de acrescentado a um

conteuacutedo de algum modo disponiacutevel independentemente dela ndash de tal modo que haacute A e de-

pois o significado de A ou B e depois o significado de B etc

Quando aqui falamos de ldquosignificadordquo queremos justamente dizer que onde haacute apare-

cimento de significados independentemente de o aparecimento de significados poder ter de

ser mediado pelo aparecimento de factos o que quer que seja que aparece jaacute aparece na oacutep-

tica do significado como significado e natildeo como outra coisa De sorte que a proacutepria determi-

naccedilatildeo com que se apresenta jaacute envolve a relaccedilatildeo de que estamos a falar (jaacute envolve o μὴ μό-

νον ἐκεῖνο jaacute eacute feita desse μὴ μόνον ἐκεῖνο relativo ao proacuteprio acontecimento do estar lanccedilado

na presenccedila do que se apresenta)

Consideremos por exemplo essa modalidade de significado que eacute aquela que corres-

ponde a um aparecimento ndash e uma experiecircncia ndash marcados por um ter-de-se-lidar-com-aqui-

lo-que-aparece

Se o aparecimento tem a forma de uma lida no sentido que acabamos de dizer isso

faz que o que quer que seja que se apresente seja de algueacutem (de quem tem de lidar com o que

se apresenta) ao mesmo tempo que eacute de si proacuteprio

Quer dizer qualquer A natildeo tem apenas a determinaccedilatildeo de A mas a determinaccedilatildeo relati-

va ao ter de lidar com ele ndash a determinaccedilatildeo acrescentada o μὴ μόνον ἐκεῖνο disso Natildeo haacute um

x que aparece e que ainda natildeo tem nada que ver com o ter-de-se-lidar com isso O que quer

que seja que apareccedila possui uma determinaccedilatildeo proacutepria mas essa determinaccedilatildeo eacute sempre jaacute re-

lativa agrave lida nunca anterior a esse nexo com a lida

Ora se por um lado pode ter ndash e tem ndash relaccedilotildees com outros apresentados por outro

essas relaccedilotildees ldquohorizontaisrdquo (dentro do plano do que se apresenta) tecircm tambeacutem elas a forma

desta relaccedilatildeo agrave lida que perpassa globalmente o campo do que aparece e toda a experiecircncia

que se forma nele

Podemos dizer que neste caso o significado eacute o teor de interferecircncia com a lida (a

forma como o que quer que seja interveacutem na lida e define condiccedilotildees de lida) Em suma se o

aparecimento ou a experiecircncia eacute um aparecimento ou experiecircncia de significados de lida isso

quer dizer que se estaacute posto perante aquilo que aparece sob uma tensatildeo de uso ou de lida

A ldquoexperiecircncia dos significadosrdquo destaca o quesito funcional como o quesito funda-

mental da determinaccedilatildeo do ldquoserrdquo da ldquocoisardquo ndash de tal modo que tudo o que aparece estaacute pos-

214

to em referecircncia agrave tensatildeo de uso ou de lida em que se estaacute Podemos dizer assim tal como

aqui estaacute em causa a noccedilatildeo de ldquosignificadordquo designa o teor de um regime de aparecimento e

de experiecircncia para o qual a determinaccedilatildeo funcional relativamente agrave lida eacute a determinaccedilatildeo

fundamental para compreender o ldquoo quecircrdquo do que aparece

Sendo assim o que estaacute em causa eacute uma determinaccedilatildeo do comportamento E eacute uma

determinaccedilatildeo de comportamento do que aparece num duplo sentido

Por um lado estaacute em causa a determinaccedilatildeo do modo como podemos ou devemos agir

sobre o que aparece ndash ie estatildeo em causa as acccedilotildees de que aquilo que aparece poderaacute ser ob-

jecto Mas por outro estaacute tambeacutem em causa a determinaccedilatildeo do modo como o que aparece

pode agir sobre noacutes ndash estaacute em causa o modo como estamos sujeitos aos ldquoobjectosrdquo por assim

dizer

Ou seja quando estamos postos sob a pressatildeo de ter de lidar com ele quando procura-

mos determinar o comportamento do que aparece estaacute em causa igualmente o que devemos

esperar de um dado ldquoobjectordquo (que expectativas devemos ter em relaccedilatildeo a ele como pode

afectar o nosso desempenho como influenciaraacute ele o curso disso a que procuramos dar se-

guimento etc)

Assim um segundo aspecto fundamental que se destaca quando falamos de ldquosignifica-

dordquo (ou de ldquosentidordquo) e que contrasta com uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo eacute o facto de haver

qualquer coisa como uma dependecircncia do proacuteprio acontecimento de acesso

Ao contraacuterio do que se passa na ordem dos factos onde tudo vai no sentido de aquilo

que aparece ser independente do acesso (ie ser isso mesmo que eacute haja ou natildeo acesso a

isso) na ordem do significado o acesso (o acesso de algueacutem) eacute condiccedilatildeo de possibilidade das

determinaccedilotildees funcionais Quer dizer as determinaccedilotildees funcionais natildeo teriam lugar sem esse

acesso estar constituiacutedo

Dito de outro modo o que esta ordem supotildee eacute que eacute o proacuteprio acesso que cria as con-

diccedilotildees para haver quesitos e determinaccedilotildees funcionais

Por outras palavras a natureza peculiar do ldquosignificadordquo no sentido aqui em causa

tem que ver com aquilo a que se pode chamar a densidade do proacuteprio acesso (o contraacuterio da

transparecircncia do papel que ela desempenha no aparecimento de puros factos e da forma como

a transparecircncia do acesso a proacutepria perfeiccedilatildeo do acesso que eacute a sua transparecircncia pretende

pocircr em contacto com aquilo que se passa independentemente do acesso de tal modo que o

proacuteprio acesso se converte numa ldquoquantidade negligenciaacutevelrdquo irrelevante etc)

215

Em resumo soacute haacute significado no sentido aqui em causa se o proacuteprio acesso (o estar

no acesso quem estaacute a ter acesso etc) se torna de algum modo protagonista do proacuteprio apa-

recimento ndash e do aparecimento todo

A especificidade do significado estaacute em que o proacuteprio acontecimento do acesso en-

quanto tal se torna fonte da determinaccedilatildeo daquilo que aparece enquanto essa determinaccedilatildeo eacute

a) relativa e b) relativa a quem tem acesso agravequilo que aparece

Nesse sentido as determinaccedilotildees de significado (o teor daquilo que aparece revestido

de significado na forma do significado etc) satildeo ao mesmo tempo determinaccedilotildees suas (que

lhe pertencem que estatildeo ldquolaacuterdquo que fazem parte dele etc) e determinaccedilotildees que soacute podem ter

lugar em relaccedilatildeo a ldquoalgueacutemrdquo

Eacute assim no caso da tensatildeo de lida e de todas as determinaccedilotildees que lhe satildeo relativas

mas eacute tambeacutem assim onde haja determinaccedilotildees de significado ndash e o aparecimento e experiecircn-

cia tomem a forma de aparecimento e experiecircncia de significados ndash seja qual for a modalida-

de especiacutefica de significado que esteja em causa

Isto potildee-nos na pista de um outro aspecto decisivo do aparecimento e da experiecircncia

de significados pelo menos como ocorre em noacutes

Embora o significado no sentido aqui em causa soacute seja possiacutevel em relaccedilatildeo a uma

tensatildeo de que eacute portador aquilo a que comummente se chama o ldquosujeitordquo do aparecimento o

ldquoembarquerdquo no mundo dos significados (o estar completamente conformado moldado por ele

etc) faz que os significados natildeo apareccedilam nesse seu caraacutecter hiacutebrido (de determinaccedilotildees ldquoem

cruzamentordquo que resultam da relaccedilatildeo entre a tensatildeo de que o ldquosujeitordquo eacute portador e aquilo que

lhe aparece etc) mas apareccedilam como determinaccedilotildees absolutamente pertencentes agravequilo que

aparece (ie relativamente agraves quais se perde o rasto da respectiva filiaccedilatildeo na tensatildeo de que o

sujeito eacute portador e agrave consciecircncia de que tais determinaccedilotildees pura e simplesmente natildeo teriam

lugar na ausecircncia do ldquosujeitordquo)

Pelo menos no nosso caso o aparecimento e a experiecircncia dos significados eacute vivida

como aparecimento e experiecircncia de factos e toma aos seus proacuteprios olhos o aspecto de um

aparecimento e experiecircncia de factos

Isso natildeo significa que se perca por completo a noccedilatildeo de ldquosignificadordquo Significa que se

perde a noccedilatildeo aguda de significado e que se passa a reconhecer o caraacutecter de significado soacute a

alguns aspectos mais manifestamente volaacuteteis ou mais manifestamente subjectivos (no sentido

de terem uma avaliaccedilatildeo menos consensual variaacutevel de indiviacuteduo para indiviacuteduo etc)

216

Este eacute um ponto decisivo

Haacute todo um conjunto de equiacutevocos que tecircm que ver com este peculiar fenoacutemeno a cir-

cunstacircncia de a proacutepria adesatildeo agrave oacuteptica do significado (a perfeita integraccedilatildeo nela como algo

de oacutebvio por cuja presenccedila nem sequer se daacute) fazer perceber a maior parte dos significados

como puros factos ndash de sorte que soacute reconhecemos como significados uma pequena parte do

reino dos significados em que estamos imersos e tomamos como factos o que na verdade satildeo

formas de significados

Este equiacutevoco fundamental estaacute tambeacutem associado a um outro que vem de tendermos

a perder de vista a extraordinaacuteria complexidade do mundo de significados em que estamos

constituiacutedos

Se considerarmos por exemplo uma unidade colectiva de determinaccedilotildees ela tem

muacuteltiplas camadas de significados Consideremos por exemplo uma caneta

Uma caneta eacute relativa a) a uma determinada possibilidade de uso b) a uma determina-

da relaccedilatildeo de poder entre cada um de noacutes e ela ndash que tambeacutem tem que ver c) com o significa-

do do seu tamanho do seu peso etc ndash aleacutem disso ainda d) com o significado de a caneta ser

uma realidade subsistente com cuja continuaccedilatildeo podemos contar e) com o significado de ela

natildeo envolver qualquer espeacutecie de perigo f) com o significado de ela estar privada da possibi-

lidade de nos ver de natildeo nos poder julgar etc g) com o significado de ser nossa ou de outra

pessoa h) com o significado de nos ter sido dada por algueacutem que se preza ou o contraacuterio i) de

ter sido usada para escrever isto ou aquilo de que guardamos boa ou maacute memoacuteria etc64

64

Misturamos aqui significados da mais diversa ordem Um dos pontos decisivos a que importa estar-

mos atentos eacute precisamente a multiplicidade das funccedilotildees que aquilo que aparece (sc as determinaccedilotildees

daquilo que aparece) pode assumir no quadro da forma global ldquointerferecircncia na pressatildeo de lida de que

o sujeito eacute portadorrdquo Quer dizer por um lado pode-se falar de qualquer coisa como uma enorme mul-

tiplicidade de funccedilotildees de determinaccedilotildees funcionais (de que aquelas que citaacutemos representam soacute uma

pequena amostra) por outro lado toda essa multiplicidade exuberante de funccedilotildees diferenciadas eacute rela-

tiva a um uacutenico acircngulo (justamente a interferecircncia na pressatildeo de lida que eacute o ldquofiltrordquo o significado

fundamental de que todos o significados no fundamental resultam) E se considerarmos uma qual-

quer unidade colectiva de determinaccedilotildees verificamos que o todo confuso das determinaccedilotildees que estatildeo

envolvidas na sua constituiccedilatildeo tem que ver com a definiccedilatildeo de condiccedilotildees de lida ou com a definiccedilatildeo

da forma de interferecircncia no quadro do ter-se-de-lidar-com-isso Quer dizer independentemente da

questatildeo de saber se haacute ou natildeo determinaccedilotildees que natildeo tecircm esta natureza (ou mais precisamente se na

fixaccedilatildeo das unidades colectivas de determinaccedilotildees que nos aparecem haacute ou natildeo determinaccedilotildees que natildeo

tecircm esta natureza) uma grande parte das determinaccedilotildees que intervecircm na fixaccedilatildeo das unidades colecti-

vas de determinaccedilotildees que nos aparecem tecircm justamente esta natureza

217

Este complexo de significados (que aqui se esboccedilou apenas de forma grosseira) eacute difiacute-

cil de ver em toda a sua extensatildeo porque tem ndash como tudo no acontecimento do aparecer em

que damos connosco ndash um caraacutecter confuso Mas isso natildeo impede que possamos ganhar cons-

ciecircncia de alguns dos seus elementos e de que esses elementos se caracterizam pelo seu caraacutec-

ter como que ldquoemprestadordquo (emprestado pelo ldquosujeitordquo agrave ldquocoisardquo) dispensaacutevel revogaacutevel etc

Eacute esse fenoacutemeno de consciencializaccedilatildeo de uma parte do ldquomundordquo dos significados que

costuma estar na base do conceito de significado

Passa-se a este respeito algo semelhante agravequilo que se verificou na Filosofia Moderna

em relaccedilatildeo ao conceito de ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo e agrave oposiccedilatildeo entre qualidades secundaacute-

rias e qualidades primaacuterias uma multiplicidade de reconhecimentos desencontrados traccedila-

dos natildeo coincidentes das fronteiras com uns a tomarem por qualidades primaacuterias aquilo que

outros potildeem em evidecircncia como qualidades secundaacuterias etc Pois tambeacutem aqui satildeo possiacuteveis

diversos contrastes diversos traccedilados de fronteiras diversas reparticcedilotildees do que pertence agrave es-

fera dos significados e do que pertence agrave esfera dos factos propriamente ditos

Contudo o ponto decisivo estaacute em que se analisarmos um pouco mais detidamente o

que todos aqueles que sustentam a possibilidade de isolar um nuacutecleo de determinaccedilotildees pura-

mente de facto identificaram como factos ldquolimpos de significadosrdquo acabamos por verificar

que na verdade tambeacutem essas determinaccedilotildees pertencem ao campo dos significados

O que acontece eacute que a identificaccedilatildeo como significado (a percepccedilatildeo da dependecircncia

relativamente agrave tensatildeo de que o sujeito eacute portador) resulta mais difiacutecil jaacute porque pertencem a

um nuacutecleo de determinaccedilotildees mais ou menos inerente e invariaacutevel porque o nexo com a tensatildeo

de que o sujeito eacute portador estaacute produzido por um ldquojuiacutezo ocultordquo no sentido de Kant ndash e na

verdade por um juiacutezo oculto bastante profundo e por isso difiacutecil de detectar

Isto natildeo quer dizer necessariamente que um campo de aparecimento integralmente

preenchido por significados eacute um campo completamente vazio de quaisquer factos Esta con-

clusatildeo precipitada deve-se a uma compreensatildeo deficiente do que quer dizer esse domiacutenio

completo dos significados

Como dissemos isso significa que tudo estaacute apresentado na oacuteptica dos significados ndash

quer dizer que os proacuteprios factos que haacute estatildeo percebidos na oacuteptica dos significados que

uma vez instalada percebe tudo incluindo o que haja de factos do seu proacuteprio ponto de vista

Assim ao contraacuterio do que pode parecer quando aqui se fala da possibilidade de um

campo de aparecimento misto (composto de factos e de significados) o que estaacute em causa natildeo

218

eacute um campo de aparecimento que nalguns dos seus sectores apresenta factos noutros pelo

contraacuterio apresenta significados nem estaacute em causa um campo de aparecimento constituiacutedo

de tal modo que uma parte dos seus objectos tem o caraacutecter de factos outra o caraacutecter de sig-

nificados nem estaacute em causa um campo de aparecimento constituiacutedo de tal modo que umas

propriedades dos objectos que aparecem nele satildeo factos e outras satildeo significados

Um campo de aparecimento misto quer dizer um campo de aparecimento constituiacutedo

de tal modo que por um lado tem envolvida na sua constituiccedilatildeo um estrato ou nuacutecleo de fi-

xaccedilatildeo de factos mas por outro lado tem essa fixaccedilatildeo de factos transformada ndash e na verdade

irreversivelmente transformada ndash pela interposiccedilatildeo de uma oacuteptica de significado que chama a

si e absorve em si o que quer que haja de fixaccedilatildeo e factos

O ponto decisivo que importa ter presente eacute que por muito que possa parecer o contraacute-

rio noacutes natildeo temos acesso directo a nada que seja uma mera apresentaccedilatildeo de factos ndash e na

verdade natildeo fazemos a mais pequena ideia do que isso seja

Dizer isto natildeo significa negar que possa haver qualquer coisa como um campo de apa-

recimento exclusivamente constituiacutedo pela fixaccedilatildeo de factos

Estamos a sustentar justamente o contraacuterio poderaacute muito bem haver um campo de

aparecimento e um campo de experiecircncia com essas caracteriacutesticas (e que um campo de apa-

recimento ou de experiecircncia que o seja apenas de factos eacute algo completamente diferente do

que conhecemos uma forma de aparecimento e de experiecircncia totalmente heterogeacutenea em re-

laccedilatildeo a tudo o que conhecemos) Eacute precisamente sobre a possibilidade de haver um campo de

aparecimento e um campo de experiecircncia que se reduzisse agrave fixaccedilatildeo de factos que podemos

dizer que essa ldquosimplesrdquo diferenccedila bastaria para que caeteris paribus tudo fosse diferente65

65

Por outra parte no que diz respeito agrave forma do aparecimento e da experiecircncia que tem lugar em noacutes

natildeo procuramos aqui estabelecer ateacute que ponto corresponde a um puro aparecimento (e experiecircncia) de

significados na acepccedilatildeo que aqui temos em vista ou a uma forma de aparecimento mista (que reuacutene

componentes das duas ordens) A discussatildeo desta alternativa eacute complexa ndash e uma decisatildeo absoluta-

mente fundamentada requeriria um acompanhamento transparente da forma como estaacute constituiacuteda a

nossa proacutepria perspectiva ndash que eacute coisa que estamos muito longe de ter ou de poder alcanccedilar Pelo me-

nos no nosso caso a interposiccedilatildeo da oacuteptica do significado tem um caraacutecter irreversiacutevel ndash natildeo haacute condi-

ccedilotildees para compreender efectivamente o que seria ver as coisas na sua ausecircncia Quer dizer se formos

rigorosos verificamos que tanto o conceito que temos de um aparecimento e de uma experiecircncia de

factos quanto aquele que temos do que poderaacute haver de um nuacutecleo ou estrato constituiacutedo soacute pelo apa-

recimento de factos a funcionar algures na profundidade do nosso proacuteprio ponto de vista eacute um con-

ceito puramente apofaacutetico De sorte que em uacuteltima anaacutelise natildeo sabemos se o nosso proacuteprio ponto de

219

A tudo isto acresce finalmente um uacuteltimo aspecto igualmente decisivo

Natildeo acontece apenas que o aparecimento e a experiecircncia se tornem coisas completa-

mente diferentes consoante sejam aparecimento e experiecircncia de factos aparecimento e expe-

riecircncia de significados ou aparecimento e experiecircncia mistos Sucede tambeacutem que podem di-

ferir muito em funccedilatildeo da natureza especiacutefica do significado que molda tudo que no caso do

aparecimento e da experiecircncia de significados quer no caso do aparecimento e da experiecircncia

mistos

Com efeito aquilo que estaacute em causa no conceito de ldquosignificadordquo tal como o usamos

eacute uma modalidade global de conformaccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia que contrasta

com o aparecimento e a experiecircncia dos factos

Para ilustrar esse contraste recorremos agravequele regime de apresentaccedilatildeo e experiecircncia

do significado com que estamos familiarizados o regime do significado de lida Fizemo-lo

atraacutes numa descriccedilatildeo muito breve e grosseira que soacute foi ateacute onde era estritamente indispensaacute-

vel para se perceber o mais essencial Mas importa ter presente que vendo bem mesmo que

possa acontecer que essa eacute a uacutenica forma de significado com que temos contacto e de que so-

mos capazes de ter noccedilatildeo natildeo estamos em condiccedilotildees de afirmar que eacute a uacutenica possiacutevel

Pode acontecer que natildeo soacute haja outras modalidades de significado mas na verdade ateacute

haja muitas modalidades diferentes de significado que poderiam conformar o aparecimento e

a experiecircncia em alternativa agravequela modalidade de significado que preside agrave forma como as

coisas nos aparecem e se constitui para noacutes a experiecircncia

Ou para o dizer assim para determinar o aparecimento e a experiecircncia que se datildeo em

noacutes natildeo basta referir que natildeo tecircm o caraacutecter de um aparecimento e experiecircncia de factos que

estatildeo marcados pela presenccedila de significados por uma oacuteptica de significaccedilatildeo etc ndash de tal

modo que se haacute factos eles estatildeo revestidos de significado e transformados por ele Para

aleacutem disso eacute indispensaacutevel precisar a modalidade concreta de significado que no nosso caso

domina o aparecimento e a experiecircncia

Por outro lado haacute tambeacutem que ter presente que a perspectiva que noacutes temos nesta ma-

teacuteria eacute uma perspectiva fechada muito longe de um olhar soberano que veja a sua proacutepria oacutep-

vista eacute integralmente constituiacutedo por significados ou tem um caraacutecter misto Mas insistimos o propoacute-

sito que seguimos ao dizer tudo isto eacute vincar bem que o aparecimento e a experiecircncia podem ser coisas

muito diferentes consoante forem aparecimento e experiecircncia soacute de factos soacute de significados ou mis-

tos

220

tica no meio de todas as outras alternativas possiacuteveis (de qualquer coisa como um perfeito

ldquomapardquo de todas as outras alternativas possiacuteveis) Estamos justamente ldquocoladosrdquo agrave forma que

nos molda e temos grande dificuldade em conceber eficazmente qualquer alternativa

Poreacutem isso natildeo significa que natildeo possa haver alternativas nem impede que a diferenccedila

entre campos de aparecimento e de experiecircncia constituiacutedos por diferentes regimes de signifi-

cado seja tatildeo grande quanto a diferenccedila entre o aparecimento e a experiecircncia de factos por

um lado e o aparecimento e a experiecircncia de significados por outro

sect27

A variaccedilatildeo da experiecircncia consoante esteja ou natildeo sob algum tipo de pressatildeo (consoante

tenha ou natildeo algum tipo de ldquoem causardquo) ndash A pressatildeo de natildeo-indiferenccedila de natureza praacuteti-

ca o cuidado consigo mesmo

Para que a anaacutelise preliminar que levaacutemos a cabo ao longo desta primeira parte fique

concluiacuteda e para se compreender que factores satildeo decisivos para apurar o modo como o apare-

cimento e a experiecircncia se determinam (as diversas formas que podem assumir etc) falta

ainda considerar um outro factor

Trata-se de algo intimamente ligado a factores jaacute anteriormente considerados E pode-

se dizer que de certo modo jaacute nos cruzaacutemos com ele Acontece que mesmo assim a sua pre-

senccedila se manteve ateacute aqui meramente impliacutecita e o que jaacute vimos natildeo soacute pode fazer com que

tenha passado despercebido como natildeo dispensa uma consideraccedilatildeo focada nele

O factor a que nos referimos eacute o seguinte para determinar o modo como o apareci-

mento e a experiecircncia acontecem interessa tambeacutem aquilo que estaacute ndash ou natildeo estaacute ndash ldquoem cau-

sardquo no aparecimento e na experiecircncia

Quando falamos de algo como o ldquoem causardquo da experiecircncia aquilo a que nos referi-

mos tem um alcance duplo

Por um lado referimo-nos agravequilo que estaacute em questatildeo agravequilo de que se trata ndash ao ne-

goacutecio ao assunto etc Na verdade natildeo eacute apenas isso mas eacute ainda mais eacute o que estaacute principal-

mente em questatildeo o nuacutecleo da tensatildeo que haacute aquilo de que efectivamente se trata o ldquonego-

ciordquo ou o assunto central etc

221

Por outro lado ao falar de algo como um ldquoem causardquo do aparecimento e da experiecircn-

cia falamos tambeacutem do que estaacute em perigo do que se arrisca do que estaacute em jogo do que

estaacute dependente do que venha a passar-se etc E natildeo apenas isso na verdade falamos de

aquilo de que se deve cuidar (de que se deve tratar de que se deve ocupar etc) ser o mais

elevado

Para compreender o que isto quer dizer importa ter presente desde jaacute o seguinte

O aparecimento e a experiecircncia varia muito significativamente ndash daacute lugar a apareci-

mentos e ldquoexperiecircnciasrdquo completamente diferentes ndash consoante esteja ou natildeo sob algum tipo

de pressatildeo (consoante tenha ou natildeo algum tipo de ldquoem causardquo)

Consideremos em primeiro lugar a possibilidade de o aparecimento e a experiecircncia

corresponder a algo livre de qualquer tipo de pressatildeo

Por efeito de uma peculiar distracccedilatildeo muitas (e ateacute mesmo a maior parte das) vezes o

campo de aparecimento e de experiecircncia em que damos connosco eacute descrito como se se tratas-

se de um meio totalmente neutro onde haacute estes e aqueles dados esta e aquela forma de elabo-

raccedilatildeo deles etc

Por outras palavras fala-se como se o aparecimento (a experiecircncia) estivesse constituiacute-

do de tal modo que natildeo estatildeo sujeito a qualquer espeacutecie de pressatildeo ocorresse num contexto

marcado por total ausecircncia de tensatildeo por total natildeo-indiferenccedila onde tudo eacute igual a tudo etc

Num contexto desse tipo se haacute aparecimento haacute aparecimento se o aparecimento cessar ces-

sa se o que aparece eacute isto eacute isto se o que aparece eacute o oposto eacute o oposto

Em princiacutepio nada impede que o aparecimento e a experiecircncia possam ter lugar num

meio marcado por total ausecircncia de pressatildeo ndash onde haver aparecimento ou natildeo haver o apare-

cimento ter este teor ou aquele teor natildeo faz qualquer diferenccedila Pois pura e simplesmente natildeo

haacute nenhum fluxo de natildeo-indiferenccedila nenhum requisito nenhum ldquoprogramardquo ndash e o proacuteprio

aparecer ou natildeo aparecer (sc o teor do aparecimento que haacute) natildeo estaacute sujeito a nenhuma peti-

ccedilatildeo ou exigecircncia de tal modo que natildeo satisfaz nem deixa de satisfazer nada

Um quadro completamente diferente e oposto a este eacute aquele em que pelo contraacuterio

natildeo haacute apenas aparecimento (isto e aquilo que se daacute a ver com este e aquele teor etc) mas su-

cede em vez disso que o proacuteprio acontecimento de aparecer aquilo que aparece estaacute perpassa-

do por um fluxo de natildeo-indiferenccedila e sujeito agrave pressatildeo desse fluxo

222

Num quadro deste geacutenero o proacuteprio curso do aparecimento (quer dizer ele ter lugar

ou natildeo ter lugar continuar a ter lugar ou natildeo e vir com este teor ou com aquele etc) cumpre

ou natildeo (satisfaz ou natildeo satisfaz ndash e satisfaz deste e daquele modo plenamente bastante algu-

ma coisa o que seja) o programa de natildeo-indiferenccedila que sobre ele ldquoimpenderdquo

Ora mesmo que muitas descriccedilotildees do acontecimento de aparecimento em que damos

connosco procedam como se o que se passa em noacutes tivesse as caracteriacutesticas de um apareci-

mento neutro sem qualquer tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a verdade eacute que natildeo estamos constituiacute-

dos deste modo e vendo bem natildeo fazemos mesmo a mais pequena ideia do que possa ser

algo assim

Por uma questatildeo de economia designamos a conformaccedilatildeo do aparecimento e da expe-

riecircncia caracterizada pela total ausecircncia de qualquer pressatildeo (de qualquer natildeo-indiferenccedila de

qualquer peticcedilatildeo ou quesito) a partir da figura do ldquopuro espectadorrdquo

O puro espectador estaacute natildeo soacute completamente privado de ldquoprogramardquo como estaacute tam-

beacutem privado tanto da possibilidade de conflito entre um ldquoprogramardquo e o curso efectivamente

seguido pelo aparecimento que haacute quanto da possibilidade de este uacuteltimo satisfazer o ldquopro-

gramardquo De facto como vimos nada impede que haja casos de aparecimento e de experiecircncia

correndo neste meio de total sossego ndash correspondentes agravequilo a que chamamos o apareci-

mento e a experiecircncia do puro espectador

Acontece poreacutem que noacutes natildeo somos puros espectadores Na verdade estamos mesmo

muito longe de o ser

A primeira coisa a que importa estar atento eacute que um aparecimento e um campo de ex-

periecircncia constituiacutedos na oacuteptica de um puro espectador e um aparecimento ou campo de expe-

riecircncia atravessados ou percorridos por tensatildeo de natildeo-indiferenccedila satildeo coisas muito diferentes

ndash tanto assim que caeteris paribus bastaria esta diferenccedila para pocircr os respectivos aconteci-

mentos de aparecimento (os respectivos campos de experiecircncia) a uma incriacutevel distacircncia um

do outro

Em segundo lugar haacute tambeacutem que ter presente que um campo de aparecimento e de

experiecircncia tambeacutem pode estar constituiacutedo de tal modo que comporta um quantum de natildeo-in-

diferenccedila mas apenas em surtos ocasionais e circunscritos ndash de tal maneira que o campo de

aparecimento e de experiecircncia em causa natildeo estaacute radicalmente subtraiacutedo agrave neutralidade

223

Aleacutem disso pode igualmente acontecer que ainda que a presenccedila de quesitos ou facto-

res de pressatildeo esteja muito disseminada esses quesitos ou essa pressatildeo tenha um caraacutecter de

algum modo acessoacuterio ou superveniente

O que acontece no nosso caso natildeo eacute um campo de aparecimento e de experiecircncia cons-

tituiacutedo desse modo

A pressatildeo de natildeo-indiferenccedila que atravessa o campo de aparecimento e de experiecircn-

cia eacute inerente constante e central ndash de tal modo que absolutamente nada do que aparece estaacute

subtraiacutedo ao efeito desta espeacutecie de tensatildeo ou ldquopressatildeo atmosfeacutericardquo do aparecer e a tensatildeo ou

ldquopressatildeo atmosfeacutericardquo desempenha em relaccedilatildeo a tudo um papel decisivo

Aqui entra em cena um outro aspecto que tem que ver com a natureza da pressatildeo ou

da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que pode percorrer um campo de aparecimento ou de experiecircn-

cia e que constitui como dissemos a sua ldquopressatildeo atmosfeacutericardquo

Faccedilamos notar que tambeacutem neste caso nada do que podemos dizer vem de uma pers-

pectiva soberana perfeitamente conhecedora de todas as possibilidades O que estamos em

condiccedilotildees de dizer radica num ponto de vista finito sempre sujeito agrave possibilidade de haver

muitas mais possibilidades do que aquelas que se consegue identificar

Seja como for desenham-se no fundamental duas possibilidades ndash ambas correspon-

dentes a algo muito diferente do que designaacutemos como o campo de aparecimento e de expe-

riecircncia de um puro espectador e tambeacutem ambas radicalmente diferentes uma da outra

A primeira dessas possibilidades eacute aquela que tem que ver com uma pressatildeo de natildeo-

indiferenccedila com um caraacutecter cognitivo

Pode acontecer que um acontecimento de aparecimento (e nele um campo de expe-

riecircncia) esteja constituiacutedo de tal modo que eacute portador de quesitos cognitivos ndash de qualquer

coisa como um programa cognitivo (um conjunto de exigecircncias de esclarecimento ou de ob-

tenccedilatildeo de saber etc) Se for assim a pressatildeo ou a natildeo-indiferenccedila que percorre o aparecer e o

campo de experiecircncia estaacute voltada sobre ele de tal modo que potildee tudo o que aparece sob a

exigecircncia de consecuccedilatildeo de metas cognitivas

Mesmo que natildeo possamos analisar nada disto de forma circunstanciada importa ter

presente que esta pressatildeo cognitiva (esta natildeo-indiferenccedila de ordem cognitiva ndash este em-causa

cognitivo) pode assumir diversas formas

224

Por um lado pode tratar-se de um programa cognitivo com um conjunto de metas

ldquomateriaisrdquo (por exemplo saber x y ou z acompanhar tudo o que se passa num determinado

raio de alcance etc) Por outro lado tambeacutem pode acontecer que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila

cognitiva tenha um caraacutecter puramente formal (por exemplo o cumprimento integral do ideal

cognitivo ndash saber tudo o que haja a saber)

Mesmo que correspondam a duas espeacutecies do mesmo tipo de tensatildeo de natildeo-indiferen-

ccedila estas duas modalidades de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila satildeo suficientes soacute por si para consti-

tuirem campos de aparecimento e de experiecircncia com caracteriacutesticas muito diferentes

Acresce entretanto que haacute uma segunda forma de natildeo-indiferenccedila completamente di-

ferente da tensatildeo cognitiva

A segunda dessas possibilidades eacute aquela que tem que ver com uma pressatildeo de natildeo-in-

diferenccedila que seguindo a tradiccedilatildeo podemos designar como natildeo-indiferenccedila com caraacutecter

praacutetico (como uma pressatildeo praacutetica a que correspondem quesitos de natureza praacutetica etc)

Neste caso a pressatildeo de natildeo-indiferenccedila tem que ver com um cuidado consigo mesmo

ndash um cuidado com quem estaacute lanccedilado no proacuteprio aparecimento e eacute moldado determinado

afectado por aquilo que aparece nele

Quer dizer trata-se de uma natildeo-indiferenccedila relativa agrave situaccedilatildeo em que se estaacute ou esta-

raacute Ou para usar a expressatildeo do Teeteto de Platatildeo trata-se de uma natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo

a ἀμείνων ἕξις (cf 167a3-4)

Tambeacutem neste caso a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila pode ter que ver com um programa

ldquomaterialrdquo de metas praacuteticas (estes e aqueles desideratos concretos odernados desta e daquela

forma etc) ou com um programa formal (como sucede no nosso caso o programa do super-

lativo ndash do que for melhor)66

66

De tal modo que o compromisso ou a vinculaccedilatildeo fundamental da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila praacutetica ndash

e temos aqui especialmente em vista a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva aquilo a que se aspira ndash natildeo

eacute um conjunto fixo de objectivos praacuteticos mas propriamente o maacuteximo que pode ser Isso natildeo signifi-

ca que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila natildeo precisa de desideratos concretos definidos etc significa na

verdade que todos os desideratos concretos definidos etc estatildeo postos sob a pressatildeo formal do maacute-

ximo De sorte que se desideratos concretos natildeo conseguem valer como o superlativo ou o maacuteximo

possiacutevel (se se descobre que o maacuteximo eacute outra coisa que natildeo eles) entatildeo a tendecircncia que se tem eacute para

uma outra coisa enquanto essa outra coisa que parece corresponder ao maacuteximo

225

Mais tarde procuraremos ver melhor em que radica este tipo de tensatildeo de natildeo-indi-

ferenccedila mas haacute um ponto que cumpre considerar jaacute aqui para desfazer equiacutevocos que podem

perturbar a compreensatildeo da sua natureza

O facto de se tratar de uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila fundamentalmente praacutetica (e

portanto natildeo-cognitiva natildeo dirigida ao cumprimento de um programa cognitivo etc) natildeo

significa que seja forccedilosamente desprovida de ldquoprograma cognitivordquo Com efeito a proacutepria

pressatildeo do interesse ou da natildeo-indiferenccedila de ordem praacutetica pode gerar vinculaccedilatildeo a metas

cognitivas

Damos dois exemplos para se perceber o que temos em vista

Por um lado se o interesse praacutetico estiver votado agrave obtenccedilatildeo de determinadas metas

praacuteticas torna relevante o conhecimento que eacute necessaacuterio para a ndash ou de todo o modo pode

ajudar agrave ndash obtenccedilatildeo das metas em causa

Por outro lado se a tensatildeo de interesse eacute primariamente uma tensatildeo formal (dirigida a

qualquer coisa como um superlativo) entatildeo potildee tudo na dependecircncia de um diagnoacutestico ade-

quado do que eacute afinal o melhor (das metas concretas que correspondem ao superlativo) e ge-

ra tensatildeo de interesse em relaccedilatildeo a esse desiderato cognitivo

O ponto importante eacute que neste caso a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a metas

cognitivas natildeo eacute a tensatildeo de interesse original tem um caraacutecter derivado Eacute isso que distin-

gue a tensatildeo de interesse propriamente cognitiva e a tensatildeo de ordem praacutetica (sc a pressatildeo de

natildeo-indiferenccedila a metas cognitivas que pode fazer parte da pressatildeo de natildeo-indiferenccedila de or-

dem propriamente praacutetica)

Um acontecimento de aparecimento (e um campo de experiecircncia) que estejam marca-

dos por pressatildeo de interesse cognitivo tecircm essa pressatildeo a dominaacute-los soacute por si ndash quer dizer a

natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a metas cognitivas vale por si estaacute fundada apenas em si mesma

etc

Pelo contraacuterio na tensatildeo de natildeo-indiferenccedila com caraacutecter originalmente praacutetico o inte-

resse por metas cognitivas soacute entra em cena de forma derivada se ndash e na medida em que ndash o

interesse praacutetico gerar a partir de si (quer dizer a partir de uma preocupaccedilatildeo natildeo original-

mente cognitiva) natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a metas cognitivas

Nada disto significa que a relaccedilatildeo entre estas duas formas de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila

(ou de ldquoem causardquo) tenha de corresponder a uma alternativa ndash de tal modo que todo o campo

226

de aparecimento ou de experiecircncia dominado por uma tensatildeo de interesse ou natildeo-indiferenccedila

tenha de ter obrigatoriamente ou uma ou a outra destas duas modalidades

De facto por uma parte e em resultado da finitude que atraacutes referimos nada garante

que natildeo haja ainda outras formas de natildeo-indiferenccedila para laacute destas duas possibilidades que es-

tamos em condiccedilotildees de identificar

Por outra parte nada impede que estas duas modalidades de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila

possam coexistir no mesmo acontecimento de aparecer (sc no mesmo campo de experiecircncia)

Acontece eacute que se houver tal coexistecircncia tudo dependeraacute da relaccedilatildeo de forccedilas entre as duas

componentes dessa tensatildeo de natildeo-indiferenccedila mista67

Algo de equivalente vale em relaccedilatildeo a um outro aspecto que aqui cabe referir e que

tem que ver com o seguinte

Resulta do que dissemos que o facto de um acontecimento de aparecimento ou de um

campo de experiecircncia estar dominado por uma determinada modalidade de tensatildeo de natildeo-in-

diferenccedila natildeo significa necessariamente que essa tensatildeo de natildeo-indiferenccedila seja simples Mes-

mo que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que se faz sentir seja apenas de um tipo (soacute uma pressatildeo

originalmente cognitiva ou soacute uma pressatildeo originalmente praacutetica) pode muito bem acontecer

que natildeo tenha um ldquoprogramardquo simples ndash que natildeo corresponda a uma uacutenica linha de pressatildeo

dirigida a uma uacutenica coisa

Ou seja pode muito bem acontecer que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila corresponda a

qualquer coisa como um feixe com muacuteltiplos fluxos dirigidos a metas natildeo-idecircnticas

Ora sendo assim tambeacutem neste caso tudo depende da relaccedilatildeo de forccedilas entre os di-

versos fluxos que compotildeem o feixe da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que percorre o campo de

aparecimento e de experiecircncia68

67

Note-se a diferenccedila entre a possibilidade de que estamos a falar e aquilo que dissemos anteriormen-

te Antes referimos que a proacutepria tensatildeo de interesse praacutetico pode gerar a partir de si mesma e no seu

proacuteprio quadro uma tensatildeo derivada de interesse cognitivo Agora estamos a referir algo muito dife-

rente a possibilidade de haver no mesmo acontecimento de acesso e no mesmo campo de experiecircncia

duas tensotildees originais em coexistecircncia uma com a outra ao lado uma da outra e em combinaccedilatildeo uma

com a outra (quer dizer em combinaccedilatildeo desses dois fluxos de tensatildeo independentes um do outro ne-

nhum dos quais decorre do outro)

68 O que estamos a ver eacute que o nosso ponto de vista eacute composto de ldquoem causardquo subordinantes e de ldquoem

causardquo subordinados E sendo assim podemos nesta nota explicar a conformaccedilatildeo do complexo de

ldquoem causardquo fazendo apelo ao fenoacutemeno da ldquosubordinaccedilatildeordquo a que jaacute definimos atraacutes os contornos for-

227

mais Por um lado cada ldquoem causardquo singular representa um momento a caminho de um ldquoem causardquo

mais vasto ndash e por sua vez cada ldquoem causardquo mais vasto representa tambeacutem ele um momento a cami-

nho de um ldquoem causardquo mais vasto etc Estamos a procurar sublinhar o aspecto que mostra que a rela-

ccedilatildeo entre pressotildees eacute uma relaccedilatildeo temporalmente extensa ndash e tanto quer dizer por um lado a) que eacute

uma relaccedilatildeo que se espraia que permanentemente antecipa a sua continuaccedilatildeo etc quanto quer di-

zer por outro lado b) que o que estaacute em jogo eacute uma apresentaccedilatildeo que natildeo eacute neutra quanto agrave amplitu-

de da extensatildeo temporal Assim a importacircncia de cada ldquoem causardquo singular equivale agrave importacircncia

que adquire no encaminhamento para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causardquo mais vasto que o compreende

e equivale agrave posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem

ou convergem para o ldquoem causardquo mais vasto que os compreende ndash mas equivale tambeacutem agrave importacircn-

cia que adquire no encaminhamento para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causa regionalrdquo e equivale agrave po-

siccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem cau-

sa regionalrdquo A mesma estrutura de encadeamento vale ainda para os ldquoem causardquo locais Ou seja a

importacircncia de cada ldquoem causardquo singular equivale agrave importacircncia que adquire no encaminhamento

para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causardquo mais vasto e equivale agrave posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo

a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem causa geralrdquo equivale tambeacutem agrave impor-

tacircncia que adquire no encaminhamento para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causa regionalrdquo e equivale agrave

posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem

causa regionalrdquo ndash mas equivale tambeacutem por fim agrave importacircncia que adquire no encaminhamento

para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causa localrdquo e equivale agrave posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a to-

dos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem causa localrdquo etc Na verdade natildeo parece

haver limite para o cardinal de niacuteveis hieraacuterquicos de ldquoem causardquo de cada vez a operar Assim o va-

lor que cada ldquoem causardquo singular adquire corresponde a uma posiccedilatildeo num ldquolequerdquo com uma enorme

amplitude de variaccedilatildeo O valor de cada ldquoem causardquo singular eacute resultado de uma peculiar relaccedilatildeo de

forccedilas eacute resultado por um lado da complexidade da hierarquia (da quantidade de ldquoniacuteveisrdquo que ela

comporta) e por outro da complexidade de ldquoem causardquo implicados ou contra os quais concorre em

cada um dos muacuteltiplos niacuteveis etc O que de qualquer modo deve ficar claro eacute que natildeo soacute cada ldquoem

causardquo natildeo estaacute isolado de um ldquoem causardquo mais vasto (e no limite de um ldquoem causardquo omni-englo-

bante) como natildeo estaacute igualmente isolado de todos os restantes ldquoem causardquo Na verdade cada ldquoem

causardquo ganha ou perde relevo tanto a) na medida em que cumpre (ou natildeo) ldquoem causardquo mais vastos (e

em que grau com que influecircncia com que peso etc) quanto b) no confronto com os restantes ldquoem

causardquo (consoante a posiccedilatildeo ndash a forccedila o peso o relevo etc ndash que adquire no complexo de ldquoem causardquo

que estatildeo em tensatildeo de cumprimento de ldquoem causardquo mais vastos) Tudo isto deixa ver o seguinte Ca-

da ldquoem causardquo singular que compotildee um determinado complexo de ldquoem causardquo que por sua vez com-

potildee um determinado ponto de vista refere-se na verdade ao cumprimento do ldquoem causardquo omni-en-

globante Dito por outras palavras o que estaacute efectivamente em jogo no concurso dos muacuteltiplos ldquoem

causardquo de que eacute composto um determinado complexo de ldquoem causardquo eacute saber qual (ou quais) dos ldquoem

causardquo concorrentes preenche (ou preenchem) os requisitos do ldquoem causardquo omni-englobante que posi-

ccedilatildeo ocupa perante o ldquoem causardquo omni-englobante como o satisfaz etc

Ora tudo isto pode acontecer sem se ter qualquer notiacutecia disso Quer dizer pode entender-se o caso

de tal modo que o que se desenha eacute um mero tracircnsito entre ldquoem causardquo (agora este depois aquele por

fim o outro etc) de tal modo que o tracircnsito parece corresponder a uma sucessatildeo de saltos (de momen-

tos sem outra conexatildeo entre si para laacute da contiguidade ndash ie para laacute do facto de se sucederam ou ante-

228

Com isto fica desenhado o fundamental

Um dos mais decisivos factores de conformaccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia eacute a)

estar ou natildeo estar algo em causa no aparecimento e na experiecircncia (haver ou natildeo haver uma

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a percorrer o aparecimento) e por outro lado tambeacutem b) a natureza

ou se assim se pode dizer a orientaccedilatildeo da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que percorre o apareci-

mento Tudo isto de tal modo que a estes dois pontos corresponde uma multiplicidade de pos-

sibilidades jaacute no que diz respeito ao contraste entre campos de aparecimento totalmente neu-

tros (marcados por completa ausecircncia de qualquer tensatildeo) ndash jaacute no que diz respeito ao contraste

entre campos de aparecimento marcados apenas por interesse cognitivo (totalmente livres de

qualquer interesse de ordem praacutetica) campos de aparecimento marcados apenas por interesse

praacutetico (totalmente livres de interesse originalmente cognitivo que soacute incluem interesses cog-

nitivos derivados do interesse praacutetico) e campos de aparecimento dominados pela presenccedila

destas duas formas de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (postas numa determinada relaccedilatildeo de forccedilas

que pode justamente ser diferente consoante os casos) A tudo isto acresce finalmente o con-

traste entre a possibilidade de cada uma destas modalidades de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila rei-

nar em fluxos simples (ou relativamente simples) ou pelo contraacuterio na forma de feixes de

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (programas de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila) com diversos graus de

complexidade

Isto configura se assim se pode dizer como que um sistema de ldquoagulhasrdquo ndash no sentido

ferrovaacuterio do termo ndash que podem fazer seguir o aparecimento e a proacutepria experiecircncia para

ldquodestinosrdquo (quer dizer para conformaccedilotildees do que aparece e especificamente para conforma-

ccedilotildees da proacutepria experiecircncia) muito diferentes De sorte que ainda que por inadvertecircncia pos-

samos (e ateacute tendamos a) natildeo contar este factor entre os ldquoingredientesrdquo que decidem a compo-

siccedilatildeo da experiecircncia trata-se na verdade de um ingrediente marcante e ateacute decisivo

A pista que aqui fica lanccedilada deve ser perseguida mais adiante

E a pista eacute a seguinte no tracircnsito de ldquoem causardquo em que nos encontramos aquilo que

estaacute fundamentalmente ldquoem causardquo e que tem um caraacutecter decisivo no modo como aparece o

cederam uns aos outros) Na verdade tudo isto aponta para a possibilidade de no modo como habi-

tualmente nos aparece o que aparece a) natildeo se estar ciente de que haacute algo como um ldquoem causardquo

omni-englobante b) do caraacutecter decisivo que o ldquoem causardquo omni-englobante tem sobre o que aparece

(na determinaccedilatildeo do modo como aparece o que aparece)

229

que aparece (na experiecircncia que resulta do que aparece) eacute mantido na profundidade estaacute ocul-

to omisso etc

sect28

As variaacuteveis sensus proprius e sensus communis

Posto isto passemos a um outro aspecto que levaremos em consideraccedilatildeo neste levan-

tamento que como frisaacutemos natildeo tem nada de completo

Esse outro aspecto diz respeito ao contraste entre a experiecircncia constituiacuteda soacute na esfe-

ra da apresentaccedilatildeo proacutepria (se assim se pode dizer num uacutenico ponto de vista) e a experiecircn-

cia constituiacuteda de tal modo que se multiplica por uma pluralidade (e de facto por uma plu-

ralidade indefinidamente aberta) de outros sujeitos

Esta formulaccedilatildeo eacute ainda bastante imprecisa e requer alguma explicaccedilatildeo

Consideremos o seguinte

Em uacuteltima anaacutelise toda a experiecircncia tem a sua sede num uacutenico sujeito e natildeo haacute nada

capaz de ldquofundirrdquo (no sentido proacuteprio do termo) os pontos de vista de diversos sujeitos A

multiplicidade dos sujeitos eacute sempre algo que aparece ema cada um deles ndash como algo cons-

tituiacutedo na sua esfera de aparecimento entre as vaacuterias outras realidades que nela aparecem

etc

Mais vendo bem os outros sujeitos constituem sempre o correlato de projecccedilotildees em-

piacutericas O que isto quer dizer eacute que todos eles estatildeo constituiacutedos por projecccedilatildeo ndash ie consti-

tuem um caso particular do complexo processo de projecccedilatildeo de realidades reguladas por leis

que eacute a ἐμπειρία

Tudo isto eacute algo que jaacute vimos e que soacute interessa recapitular para servir de base ao que

se seguiraacute E o que interessa ter presente eacute em suma o seguinte a proacutepria multiplicidade dos

outros sujeitos eacute de certo modo ldquointeriorrdquo a um uacutenico ponto de vista

230

Mas sendo assim nada disto impede a oposiccedilatildeo que podemos exprimir eficazmente a

partir do que encontramos expresso em Kant quando contrasta aquilo a que chama sensus pro-

prius e sensus communis69

Tanto quanto se estaacute em condiccedilotildees de determinar a ἐμπειρία pode muito bem consti-

tuir-se num contexto ldquorobinsonianordquo ndash num contexto que natildeo conta com qualquer outro ponto

de vista aleacutem daquele mesmo em que se produz

Por outras palavras todo o jogo de prescriccedilatildeo e regulamentaccedilatildeo que eacute proacuteprio da expe-

riecircncia pode ter como terminus a quo e como terminus ad quem (ou como termini a quibus e

termini ad quos) campos de realidade testemunhados por uma uacutenica testemunha a saber o

proacuteprio

Isso eacute perfeitamente compatiacutevel com a possibilidade de uma ἐμπειρία bastante comple-

xa cobrindo extraordinaacuterias extensotildees no espaccedilo e no tempo Pois a ldquoforccedila motrizrdquo da ἐμπει-

ρία ndash a capacidade de ldquoexplosatildeordquo da amplitude da perspectiva (do domiacutenio de pretensatildeo de

validade) que lhe eacute proacutepria (a capacidade que radica no facto de a ἐμπειρία como vimos to-

mar a forma de pretensas leis) ndash eacute perfeitamente suficiente para produzir esse efeito

69

Na medida em que os proacuteximos passos jaacute daratildeo conta das caracteriacutesticas de ldquosensus propriusrdquo e

ldquosensus communisrdquo e dos contrastes relevantes para o problema da experiecircncia que aqui temos em

matildeos o que interessa natildeo eacute tanto apresentar uma definiccedilatildeo quanto fazer um levantamento breve das

duas noccedilotildees no pensamento de Kant Ora o que desde logo devemos notar eacute que como eacute tiacutepico de

Kant embora tenha em vista um e o mesmo fenoacutemeno as formulaccedilotildees segundo as quais o apresenta

satildeo distintas Assim a foacutermula ldquosensus propriusrdquo pode ser encontrada ao longo da sua obra sob a de-

signaccedilatildeo ldquoEigensinnrdquo ou ldquosensus privatusrdquo assim como a foacutermula ldquosensus communisrdquo pode ser encon-

trada sob a designaccedilatildeo ldquoGemeinsinnrdquo Dito isto os passos da obra kantiana que merecem atenccedilatildeo es-

pecial para uma consideraccedilatildeo detida dos fenoacutemenos de ldquosensus propriusrdquo e ldquosensus communisrdquo satildeo

designadamente Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (sect 53 AA VII 219) Anthropologie Busolt

(1488) Logik Bloomberg (paacutegs 189 e 193) Logik Dohna-Wundlacken (paacutegs 696 709 724 e 739)

Logik Jaumlsche (paacutegs 17 e 56-7) Criacutetica da Faculdade de Julgar (sect20 e sect40) Para mais ver por exem-

plo Atalay M Kantrsquos Aesthetic Theory Subjectivity vs Universal Validity in Percipi 1 Budapeste

2007 paacutegs 44ndash52 Gueorguieva V La connaissance de lindeacutetermineacute Le sens commun dans la

theacuteorie de laction Tese de Doutoramento Universiteacute Laval 2004 Lafer C Experiecircncia accedilatildeo e nar-

rativa reflexotildees sobre um curso de Hannah Arendt in Estudos Avanccedilados vol 21 nordm 60 Satildeo Paulo

Instituto de Estudos Avanccedilados da Universidade de Satildeo Paulo pp 289-304 Savi M Il concetto di

senso comune in Kant Milano Franco Angeli 1998 em especial paacutegs 42 e seguintes e paacutegs 102 e se-

guintes ou Suzuki A The role of sensus communis in Aristotle Thomas Aquinas Locke and Kant

Tese de Mestrado Boston University 1952

231

Contudo por outro lado nada disto obsta a que se porventura se constituir o reco-

nhecimento de outros pontos de vista para aleacutem do proacuteprio esse passo abra caminho a uma

extraordinaacuteria multiplicaccedilatildeo da rede empiacuterica Com efeito como Kant vinca na sua anaacutelise do

sensus communis por contraste com o sensus proprius ao projectar uma multiplicidade de

outros sujeitos a ἐμπειρία atribui-lhes uma multiplicidade de αἰσθήσεις (e de correspondentes

μνῆμαι) e de captaccedilatildeo empiacuterica correspondente agravequela que se daacute na esfera do proacuteprio

Por outras palavras a ἐμπειρία como que se ldquodesdobrardquo ndash duplicando (triplicando

quadruplicando etc) a sua fonte e assim reforccedilando a sua base

Ora satildeo vaacuterios os aspectos que haacute a vincar a este respeito

Em primeiro lugar como se apontou os outros sujeitos aqui em causa satildeo postos a

partir do ponto de vista proacuteprio Quer dizer as outras ocorrecircncias de ἐμπειρία (a ἐμπειρία no

plural enquanto esse plural tem um sentido trans-subjectivo) satildeo extensotildees e ldquoconstructosrdquo

da ἐμπειρία proacutepria

Mas por outro lado a forccedila (a pretensatildeo de eficaacutecia ou validade da ἐμπειρία) apaga o

rasto do seu proacuteprio trabalho constitutivo e confere aos outros sujeitos um valor autoacutenomo

autoridade proacutepria

Ora sendo assim (e porque aleacutem disso as condiccedilotildees habituais de constituiccedilatildeo da rede

ldquointersubjectivardquo tambeacutem envolvem a confirmaccedilatildeo do grosso das fixaccedilotildees empiacutericas por parte

dos outros sujeitos) em vez de o sujeito se ver na posse de um reconhecimento das ldquocoisasrdquo

produzido soacute por si vecirc-se pelo contraacuterio na posse de um reconhecimento da realidade teste-

munhado e corroborado por um significativo nuacutemero de sujeitos para laacute de si

O segundo aspecto a ter presente para se perceber a importacircncia deste ponto tem que

ver com a forma como as diferentes peccedilas perceptivas que se vatildeo acumulando na ἐμπειρία es-

tatildeo envolvidas num jogo de interferecircncia e de apoio reciacuteprocos

Como vimos se houvesse apenas αἴσθησις e μνήμη cada ocorrecircncia da αἴσθησις (e ca-

da momento da μνήμη) soacute teria relevo a respeito de si mesma Nada diria ou poderia dizer a

respeito dos demais Mas o mesmo natildeo sucede na estrutura da projecccedilatildeo empiacuterica em que haacute

projecccedilotildees com forma de lei E isso significa que se haacute ἐμπειρία cada αἴσθησις que tem lugar

vem inscrever-se num quadro de antecipaccedilotildees a seu respeito ndash antecipaccedilotildees (prescriccedilotildees) que

preenche (confirma) ou natildeo Assim ao mesmo tempo que constitui o terminus ad quem de

uma projecccedilatildeo cada αἴσθησις constitui tambeacutem juntamente com as outras o terminus a quo

de projecccedilotildees sobre outras αισθήσεις a haver

232

Por um lado isso expotildee ao risco de infirmaccedilatildeo mas se sucede o oposto (se haacute confir-

maccedilatildeo) entatildeo por outro lado isso constitui a base de um contiacutenuo reforccedilo da ἐμπειρία cuja

sempre renovada confirmaccedilatildeo equivale a um processo de sempre crescente aumento da base

ndash e da forccedila de convicccedilatildeo ndash da validade aparente da ἐμπειρία

Ora se isto eacute assim no acircmbito da experiecircncia proacutepria esse processo ganha novas di-

mensotildees com a transiccedilatildeo do sensus proprius para o sensus communis

A convicccedilatildeo de que a travessia perceptiva proacutepria eacute confirmada pela travessia per-

ceptiva alheia multiplica as testemunhas que partilham os assentamentos ou as fixaccedilotildees pro-

duzidas na primeira pessoa

Quer dizer natildeo se trata apenas de haver a concordacircncia de dados (as πολλαὶ μνῆμαι

τοῦ αὐτοῦ πράγματος) na primeira pessoa e a ldquotorrenterdquo de evidecircncia empiacuterica na primeira

pessoa Trata-se de essa ldquotorrenterdquo aparecer replicada por uma multiplicidade de outras ldquotor-

rentesrdquo semelhantes que juntam a sua ldquoforccedilardquo agrave da experiecircncia proacutepria

O conceito de sensus communis exprime justamente a forma como o sistema de afe-

riccedilatildeo que continuamente tece o aparecimento em que nos temos natildeo se esgota na teia relativa

aos dados (agrave travessia perceptiva) ndash em vez disso inclui sempre jaacute o fenoacutemeno de replicaccedilatildeo

ou multiplicaccedilatildeo dos pontos de vista que confirmam os nossos assentamentos

Dito por outras palavras fixaccedilotildees no campo do sensus proprius seriam aquelas que se

produzissem exclusivamente na oacuteptica da primeira pessoa fixaccedilotildees no campo do sensus com-

munis satildeo aquelas que sempre se acham referidas a esse silencioso apelo agrave confirmaccedilatildeo

intersubjectiva e agrave transformaccedilatildeo dessa confirmaccedilatildeo numa complexiacutessima teia de corrobora-

ccedilatildeo ou de co-validaccedilatildeo

Ora se o papel desse complexo sistema eacute desempenhado quase sempre de forma taacutecita

e tende a passar despercebido isso natildeo o torna menos efectivo

Se referindo-nos por exemplo agrave presenccedila de algo que nos parece estar tambeacutem no siacute-

tio onde nos encontramos de repente todas as outras pessoas de forma consistente testemu-

nharem que natildeo vecircem laacute nada tal natildeo soacute resultaraacute em perplexidade como abalaraacute o estatuto

habitual do acesso em que nos temos e a nossa compreensatildeo habitual da sua eficaacutecia

Isso eacute assim justamente porque natildeo vemos em regime de sensus proprius (caso no qual

seria completamente irrelevante o conflito com o testemunho alheio) mas em regime de sen-

233

sus communis ndash ie sempre jaacute num quadro marcado pelo desdobramento ou multiplicaccedilatildeo de

sujeitos cujo testemunho conta para a constituiccedilatildeo da experiecircncia

O que acontece eacute que semelhante multiplicaccedilatildeo torna a rede da experiecircncia muito mais

ldquocerradardquo ldquoprende-ardquo (se assim se pode dizer ldquoancora-ardquo) num muito maior nuacutemero de pon-

tos de apoio ou de esteios Ou seja a atmosfera em que radica a experiecircncia de cariz inter-

subjectivo eacute muito mais complexa do que a que corresponde agrave experiecircncia constituiacuteda soacute em

regime de sensus proprius

Mas isto ainda natildeo eacute tudo Com efeito para se perceber bem a peculiaridade da expe-

riecircncia no regime do sensus communis eacute preciso ter em atenccedilatildeo mais duas propriedades que a

marcam decisivamente

Em primeiro lugar a proacutepria multiplicidade dos sujeitos estaacute constituiacuteda em projec-

ccedilatildeo empiacuterica ou em alargamento empiacuterico

Quer isto dizer que os outros sujeitos cujo testemunho eacute constituiacutedo em instacircncias de

confirmaccedilatildeo da perspectiva proacutepria natildeo satildeo em regra soacute estes ou aqueles (os sujeitos direc-

tamente testemunhados de que houve αἰσθήσεις e de que haacute μνῆμαι) A proacutepria confirmaccedilatildeo

ou corroboraccedilatildeo estaacute transformada por um alargamento ou arredondamento empiacuterico ndash e to-

ma a forma de qualquer coisa como uma lei

Por outras palavras os outros sujeitos cujo testemunho corroborante da perspectiva

proacutepria eacute efectivamente percepcionado (as πολλαὶ μνῆμαι dessa concordacircncia) estatildeo constituiacute-

dos em pontos de partida de projecccedilotildees que antecipam uma validaccedilatildeo anaacuteloga por parte de

um nuacutemero indefinidamente aberto de outros sujeitos

Nessa medida a ldquoteiardquo correspondente ao sensus communis tem uma dimensatildeo muito

maior do que a do complexo de sujeitos efectivamente ldquoconsultadosrdquo A concordacircncia tem

um caraacutecter meramente performativo ndash ie resulta de algo como um consentimento silencioso

ou mais propriamente de natildeo haver abertamente uma contestaccedilatildeo

Em uacuteltima anaacutelise todas as assunccedilotildees que se adoptam estatildeo imbuiacutedas de qualquer coi-

sa como uma pretensatildeo de canonicidade ndash enquanto o conceito de ldquopretensatildeo de canonicida-

derdquo significa a multiplicaccedilatildeo das testemunhas cognitivas a respeito das quais se presume que

corroborariam as nossas teses (a totalidade daqueles que estatildeo em condiccedilotildees de ldquover as coi-

sas como elas satildeordquo etc) De sorte que nuns casos (e eacute assim com a grande maioria das teses

que fixam a compreensatildeo global da estrutura da realidade as suas propriedades fundamentais

etc) o que estaacute presumido eacute algo como um consensus universalis (dos sujeitos que haacute dos

234

sujeitos que houve e poderaacute haver e ateacute dos que poderia haver etc) e nos casos em que haja

consciecircncia de alguma discrepacircncia o consensus que eacute tacitamente reclamado abrange a tota-

lidade daqueles que vecircem as coisas como deve ser ou seja a totalidade daqueles que natildeo es-

tatildeo afectados por condicionamentos que tornam a sua perspectiva defeituosa etc

Melhor esta peculiar estrutura tem uma tal flexibilidade e uma tal pretensatildeo de valida-

de das antecipaccedilotildees relativas ao testemunho alheio que ateacute eacute capaz de se estender aonde se

presume a total ausecircncia de sujeitos

Se por exemplo nos reportarmos ao Preacute-Cacircmbrico ou ao que se passaraacute no centro do

sol ndash domiacutenios de realidade a que por diversas razotildees estaacute vedado qualquer acesso cognitivo

directo ndash a perspectiva sobre o que laacute se passa ou teraacute passado invoca tacitamente a corrobo-

raccedilatildeo por testemunhas cognitivas cujo testemunho das realidades em questatildeo se situa integral-

mente no irrealis Mas isso em nada impede ndash ou sequer enfraquece ndash o efectivo exerciacutecio das

funccedilotildees referidas E daiacute resulta uma forma de funcionamento de perspectiva que em tudo se

presume corroborada por qualquer coisa como um testemunho total (maciccedilo sem fissuras

etc)

A tudo isto vem juntar-se em segundo lugar um outro aspecto natildeo menos relevante

Nem a) o caraacutecter presumidamente ldquonatildeo-soacuterdquo do ponto de vista proacuteprio tem um grande

impacto para a validaccedilatildeo da perspectiva nem b) a natureza derivada dos pontos de vista

alheios ndash que tecircm sempre de ser reconhecidos ou homologados na nossa proacutepria perspectiva ndash

impedem o funcionamento dos pontos de vista alheios como fontes autoacutenomas de validaccedilatildeo

de perspectiva ndash ou como ldquoautoridadesrdquo

Acontece que isto natildeo eacute tudo

De facto acontece ateacute aquilo que tatildeo incisivamente encontramos descrito por Swift

nas Viagens de Gulliver ou por Ionesco no Rinoceronte a multiplicaccedilatildeo dos testemunhos de

validaccedilatildeo de uma determinada perspectiva ndash por mais aberrante ou mais bizarra que ela seja

ndash eacute suficiente para lhe conferir caraacutecter de evidecircncia e tem se assim se pode dizer um enor-

me ldquopoder de sugestatildeordquo sobre a perspectiva que se tem na primeira pessoa

Este breve esboccedilo permite vislumbrar a extraordinaacuteria diferenccedila que separa um campo

de experiecircncia constituiacutedo soacute em regime (ou na forma) de sensus proprius e um campo de ex-

periecircncia constituiacutedo em regime de sensus communis A este respeito importa de resto obser-

var o seguinte ao contraacuterio do que pode parecer essa diferenccedila natildeo passa necessariamente

pela existecircncia real de uma multiplicidade de sujeitos

235

Vendo bem em uacuteltima anaacutelise poderia muito bem ter lugar mesmo que soacute houvesse ndash

ou pode muito bem ter lugar mesmo que soacute haja ndash um uacutenico acontecimento de acesso Com

efeito por mais que seja absolutamente privado um sonho pode muito bem estar constituiacutedo

na forma de sensus communis

Quer dizer independentemente da questatildeo de saber quais satildeo efectivamente as condi-

ccedilotildees reais da situaccedilatildeo em que se constitui o aparecimento a diferenccedila entre uma perspectiva

constituiacuteda em regime de sensus proprius e uma perspectiva constituiacuteda em regime de sensus

communis eacute uma diferenccedila interna (uma diferenccedila imanente) ao aparecimento de que se dis-

potildee

Neste sentido a alternativa entre uma perspectiva constituiacuteda em regime de sensus

proprius e uma perspectiva constituiacuteda em regime de sensus communis eacute uma alternativa rela-

tiva agrave forma como o aparecimento se acha organizado (agrave forma como aparece o que aparece

nele) Podemos exprimir essa diferenccedila dizendo que ela eacute no que diz respeito agrave amplitude da

radicaccedilatildeo das teses que se adoptam comparaacutevel agrave diferenccedila entre uma multiplicidade pura-

mente bi-dimensional e a ldquoexplosatildeordquo da terceira dimensatildeo

Toca-se aqui um ponto que natildeo podemos desenvolver mas que tatildeo-pouco podemos

deixar de referir mesmo que soacute muito sucintamente

Esse ponto tem que ver com o regime de pretensatildeo de que se reveste um campo de

aparecimento e com ele a experiecircncia que nele tem lugar

O que acabamos de ver em relaccedilatildeo agrave diferenccedila entre aparecimento e experiecircncia no re-

gime de sensus proprius e no regime de sensus communis tem que ver com isto ndash ou melhor

com um aspecto disto

Em uacuteltima anaacutelise natildeo eacute obrigatoacuterio que um acontecimento de aparecimento esteja

acompanhado de qualquer tese a respeito do seu proacuteprio estatuto (sc da pretensatildeo de verdade

de que se reveste) E haacute desde logo uma diferenccedila (e na verdade uma diferenccedila abismal) en-

tre um aparecimento que natildeo envolve qualquer definiccedilatildeo do seu estatuto (sc qualquer preten-

satildeo de verdade) e um aparecimento que pelo contraacuterio envolve definiccedilatildeo do seu estatuto (e

sustenta uma pretensatildeo de verdade a respeito daquilo que apresenta)

Mas por outro lado sendo assim haacute diferentes possibilidades de definiccedilatildeo do estatuto

do que eacute apresentado ndash diferentes regiotildees de pretensatildeo possiacuteveis E ainda que suceda que por

sua proacutepria natureza o ponto de vista empiacuterico envolva sempre uma certa pretensatildeo de verda-

de isso natildeo impede que essa pretensatildeo possa estar fixada de diversos modos e que essa diver-

236

sa fixaccedilatildeo do regime de pretensatildeo leve caeteris paribus a acontecimentos de aparecimento e

a formas de experiecircncia na verdade muito diferentes

Vejamos entatildeo num raacutepido apontamento o que importa ter presente nesta mateacuteria

Antes do mais o regime de pretensatildeo que eacute compatiacutevel com o miacutenimo de pretensatildeo

que eacute proacuteprio da ἐμπειρία pode ser mais restrito ou mais amplo

Eacute mais restrito se o aparecimento soacute tem a pretensatildeo de se mostrar a si proacuteprio e se as

leis correspondentes agrave projecccedilatildeo empiacuterica soacute pretendem ter validade para a esfera do proacuteprio

acontecimento de aparecimento em que se estaacute soacute antecipa o que se passaraacute nesse mesmo

aparecimento (ie soacute antecipa o que apareceraacute) e natildeo levanta qualquer pretensatildeo de validade

em relaccedilatildeo a o que quer que seja para laacute do proacuteprio aparecimento enquanto tal

Como vimos a ἐμπειρία tem sempre como correlato leis (sc pretensas leis) ndash quer di-

zer uma natureza Mas nada impede que essa natureza possa ser soacute a natureza do proacuteprio

aparecimento

Em suma poderia ndash e pode ndash haver experiecircncia constituiacuteda de tal modo que o seu

campo de aplicaccedilatildeo estaacute definido soacute desta forma

Mas aquilo que acabamos de ver em relaccedilatildeo ao sensus proprius e ao sensus communis

chama jaacute a atenccedilatildeo para o facto de tal como tem lugar em noacutes a experiecircncia estar constituiacuteda

com um regime de pretensatildeo muito mais amplo ndash e de tal modo que isto basta soacute por si para

que duas ldquoexperiecircnciasrdquo em tudo o mais iguais que difiram apenas por este contraste no seu

regime de pretensatildeo acabem por ser duas experiecircncias na verdade completamente diferentes

A pretensatildeo mais ampla ndash a que estaacute ligado mas a que natildeo eacute idecircntico aquilo que vi-

mos sobre o sensus communis ndash tem que ver com a tese de que o aparecimento eacute no funda-

mental transparente em relaccedilatildeo agravequilo que haacute independentemente dele Estamos a falar da te-

se de adequaccedilatildeo e da estrutura correspondente agrave ideia de adequaccedilatildeo

Natildeo se trata aqui de analisar a raiz desta ideia a forma como estaacute constituiacuteda os pro-

blemas que suscita etc O que importa eacute o efeito que tem uma vez adoptada como chave para

a estrutura do proacuteprio aparecimento em que damos connosco

Por uma parte a ideia de adequaccedilatildeo (o estatuto que lhe corresponde o facto de o apa-

recimento se revestir deste estatuto a pretensatildeo de verdade que lhe corresponde etc) atribui

ao acesso um caraacutecter de acesso adequado ndash que acesso de certo modo cumpre plenamente a

pura e completa mostraccedilatildeo do aparecimento daquilo a que diz respeito

237

Mas por outro lado sendo assim essa perfeiccedilatildeo do aparecimento ou do acesso torna-o

irrelevante precisamente porque eacute transparente a sua interposiccedilatildeo natildeo produz qualquer espeacute-

cie de mudanccedila e o que se tem no aparecimento eacute exactamente o mesmo que haacute independente-

mente dele (quer dizer tambeacutem na sua ausecircncia) Eacute essa a tese que estaacute em causa no referido

estatuto

Ou seja como vimos a ideia de adequaccedilatildeo retira densidade ao aparecimento (ao aces-

so) a que confere transparecircncia (enquanto acesso) A falta de densidade proacutepria do acesso eacute

correlativa da ideia de transparecircncia e directamente proporcional a ela

Mas o ponto que aqui nos interessa especialmente pocircr em foco tem que ver com o re-

verso desta perda de densidade proacutepria do acesso ndash que eacute tambeacutem o resultado de o acesso ser

compreendido como perfeitamente transparente em relaccedilatildeo agravequilo que eacute independentemente

dele Eacute que isso faz que ao estar no acontecimento do acesso ou do aparecimento se estaacute

sempre jaacute para laacute dele em contacto directo com isso em relaccedilatildeo ao qual eacute transparente (ie

com aquilo que haacute independentemente do acesso com aquilo que haacute fora dele na sua ausecircn-

cia)

Este ponto eacute decisivo porque faz do acontecimento do acesso ou do aparecimento (que

eacute segundo a proacutepria tese em causa um entre muitos outros uma pequena parte da realidade

etc) ao mesmo tempo algo completamente diferente de uma pequena parte da realidade Eacute na

verdade tatildeo diferente de ser apenas uma pequena parte da realidade que abrange justamente

tudo aquilo a que eacute contraposto de sorte que vendo bem eacute a partir da forma como ele proacute-

prio na verdade abrange tudo isso a que eacute contraposto que tem condiccedilotildees para se compreen-

der como sendo apenas uma pequena parte da realidade70

Falaacutemos anteriormente da extraordinaacuteria explosatildeo que decorre da assunccedilatildeo por parte

do aparecimento e da experiecircncia do regime de pretensatildeo correspondente ao sensus commu-

nis Percebe-se agora que essa explosatildeo estaacute ligada a esta outra que tem que ver com a assun-

ccedilatildeo global do regime de pretensatildeo correspondente agrave ideia de adequaccedilatildeo e agrave compreensatildeo do

aparecimento como algo transparente em relaccedilatildeo agravequilo que se passa fora e independente-

mente dele71

70

Em suma tudo isto produz aquilo que Aristoacuteteles expressa quando escreve no De anima III 8

(431b21) ldquoἡ ψυχὴ τὰ ὄντα πώς ἐστι πάνταrdquo

71 Como dissemos os dois elementos de definiccedilatildeo do estatuto ou da pretensatildeo de verdade a que aqui

nos referimos natildeo satildeo inteiramente coincidentes A tese de transparecircncia natildeo tem necessariamente de

238

Esta outra ldquoexplosatildeordquo eacute em certo sentido a mais decisiva de todas e constitui um fac-

tor essencial da forma que o aparecimento e a experiecircncia tomam para noacutes

Porque haacute esta explosatildeo o aparecimento (e com ele a experiecircncia) percebe-se ao

mesmo tempo como acompanhando-se a si mesmo a partir do exterior percebendo as condi-

ccedilotildees da sua proacutepria geacutenese ndash como algo que estaacute perfeitamente a par do que havia antes de si

do que haacute fora de si do que haveraacute depois de si etc

Vendo bem eacute esta peculiar conformaccedilatildeo do estatuto do aparecimento e da experiecircncia

que faz que tanto um quanto a outra tenham o caraacutecter de qualquer coisa equivalente agrave fita de

Moumlbius Tambeacutem aqui o envolvente acaba por se revelar envolvido e vice-versa o interior

acaba por se revelar exterior ndash e o exterior interior Sem esta peculiar propriedade de estatuto

o aparecimento estaria se assim se pode dizer fechado no proacuteprio curso de si Com a proprie-

dade em causa como que dispara para laacute de si e adquire a extraordinaacuteria dimensatildeo que lhe

vem de embarcarmos na sua pretensatildeo de validade

De resto eacute tambeacutem este aspecto da pretensatildeo de validade que determina a semelhanccedila

que antes assinalaacutemos entre a proacutepria vida e aquilo que caracteriza a fita de Moumlbius

Como vincaacutemos atraacutes a proacutepria vida tem o caraacutecter de uma fita de Moumlbius ndash eacute ao mes-

mo tempo a) algo soacute de cada um uacutenico um pequeniacutessimo recanto do que haacute e b) algo que en-

volve e conteacutem em si tudo aquilo que se lhe pode contrapor (esse todo com que eacute posto em

contraste como pequeniacutessima parte)

Mas vendo bem essa peculiar semelhanccedila entre a vida e a fita de Moumlbius radica pro-

priamente nesta componente nuclear da pretensatildeo de validade de que habitualmente se reveste

o aparecimento e a experiecircncia em que estamos constituiacutedos Sem ela a semelhanccedila com a fi-

ta de Moumlbius (e a extraordinaacuteria ldquoexplosatildeordquo o extraordinaacuterio disparo de dimensotildees que como

vimos lhe estatildeo associados) desapareceria

passar pela presenccedila de outros sujeitos e por outro lado tambeacutem eacute possiacutevel que o reconhecimento de

outros pontos de vista e a constituiccedilatildeo de algo correspondente ao que estaacute em jogo no conceito de sen-

sus communis natildeo passe necessariamente pela tese de que haacute algo completamente independente do

acesso ou do aparecimento que se tem e que se acha acha adequadamente captado nesse acesso ou

aparecimento Acontece eacute que na forma como habitualmente estaacute constituiacutedo o campo de aparecimen-

to em que nos temos e a experiecircncia que se faz em noacutes domina um estatuto (sc uma pretensatildeo de vali-

dade) marcado pela convergecircncia desses dois aspectos

239

sect29

A nossa como uma modalidade de experiecircncia entre muitas outras modalidades de expe-

riecircncia possiacuteveis ndash Como a experiecircncia que temos eacute sempre jaacute uma experiecircncia do campo

perceptivo uma experiecircncia do campo de familiaridade e uma experiecircncia do exterior do

campo de familiaridade

Vistos estes aspectos de variaccedilatildeo da experiecircncia devemos sublinhar uma vez mais que

uma consideraccedilatildeo isolada de cada um deles tal como a que fizemos pode fazer perder de vis-

ta o seu caraacutecter como que ldquointeractivordquo

Quer dizer por um lado cada um dos aspectos que vimos tem a configuraccedilatildeo que se

procurou desenhar mas por outro lado a interacccedilatildeo dos aspectos entre si faz que eles se

ldquomoldemrdquo por assim dizer uns aos outros

Assim uma anaacutelise mais circunstanciada deveria seguir detidamente a) como eacute que os

diferentes aspectos referido se cruzam entre si (como eacute que um determinado alfabeto de det-

erminaccedilotildees com um determinado teor com um cardinal x ou y etc se relaciona com o des-

dobramento da experiecircncia em planos como eacute que a organizaccedilatildeo da multiplicidade das deter-

minaccedilotildees com uma determinada forma se relaciona com as pressotildees que estatildeo de cada vez

em causa e quais satildeo elas como eacute que a circunstacircncia de a experiecircncia ser experiecircncia de fac-

tos de significados ou ser mista se relaciona com ela ter o caraacutecter de ser uma experiecircncia do

sensus proprius ou do sensus communis etc) b) como eacute que os diferentes aspectos se cruzam

numa totalidade (ie como eacute que se relacionam entre todos e que forma complexa adquire a

interacccedilatildeo e a influecircncia de todos os aspectos qual a relaccedilatildeo de forccedilas entre todos eles etc)

Tudo isto abre a perspectiva para perceber melhor dois aspectos fundamentais

O primeiro tem que ver com aquilo que podemos descrever como o efeito complexo

destas diversas variaacuteveis

Aquilo que acabamos de descrever equivale a um complexo sistema de dependecircncia

em relaccedilatildeo a muacuteltiplos factores O tipo de aparecimento e a experiecircncia com que estamos fa-

miliarizados dependem simultaneamente de todos os factores referidos ndash quer dizer de uma

determinada conformaccedilatildeo de todos os factores referidos

240

Assim tambeacutem o aparecimento com que estamos familiarizados e a experiecircncia de

que costumamos ter noccedilatildeo soacute tecircm lugar se cada um (quer dizer se todos) os factores que re-

ferimos estiverem ldquosintonizadosrdquo de um determinado modo

Para que o aparecimento ndash e a experiecircncia ndash passem a ter uma conformaccedilatildeo significati-

vamente diferente basta haver alteraccedilotildees significativas em relaccedilatildeo a cada uma das variaacuteveis

De sorte que mesmo soacute em relaccedilatildeo a uma delas (quer dizer mesmo soacute por via da variaccedilatildeo de

uma delas) satildeo possiacuteveis muito diversas conformaccedilotildees do que aparece e da experiecircncia que se

tem

Isso significa enfim que o modo de aparecimento e a modalidade de experiecircncia com

que estamos familiarizados natildeo satildeo os uacutenicos possiacuteveis mas satildeo apenas uma modalidade de

aparecimento e uma modalidade de experiecircncia entre muitas outras possiacuteveis Tambeacutem pode-

mos exprimir isto dizendo que o tipo de aparecimento e o tipo de experiecircncia com que esta-

mos familiarizados correspondem como que a um ponto de vista entre muitos outros pontos

de vista possiacuteveis ndash e ao dizermos isto estamos a utilizar o conceito de ldquoponto de vistardquo de tal

modo que em vez de exprimir cada uma das diversas ldquocolocaccedilotildeesrdquo por que o nosso olhar po-

de passar designa pelo contraacuterio a totalidade dessas colocaccedilotildees ndash como se todas fossem jus-

tamente um ponto de vista que consente alternativa outro modo muito diferente de ver as

coisas

Um outro conceito que se presta a expressar bem este estado de coisas eacute o conceito de

anamorfose

Entendemo-lo aqui no sentido em que designa uma imagem ou uma figura que soacute eacute re-

conheciacutevel a partir de um dado ponto de vista no sentido mais comum do termo (ie a partir

de uma dada colocaccedilatildeo do observador) Com efeito aquilo que aqui descrevemos equivale a

qualquer coisa desta ordem

Todo o aparecimento e toda a experiecircncia com que temos familiaridade soacute podem ter

lugar a partir de uma determinada conformaccedilatildeo do olhar (a partir de uma determinada ldquosinto-

nizaccedilatildeordquo dos vaacuterios factores ou das diversas variaccedilotildees a que fizemos referecircncia) E isto de tal

modo que o que neste caso faz a ldquocolocaccedilatildeo do observadorrdquo eacute toda a multiplicidade das variaacute-

veis referidas

Visto este primeiro ponto podemos transitar para a consideraccedilatildeo do segundo

Poderia acontecer que todo o campo daquilo que nos aparece e da experiecircncia a que

temos acesso correspondesse apenas a um ponto de vista entre muitos outros mas de tal modo

241

que a combinaccedilatildeo das variaacuteveis fosse exactamente a mesma para todo o campo do que nos

aparece (sc para todo o campo da experiecircncia que tem lugar em noacutes)

Mas como acabamos de ver eacute justamente isso que natildeo sucede

O que marca o campo de aparecimento e de experiecircncia em que damos connosco eacute um

vincado fenoacutemeno de anisotropia diferentes componentes desse campo (diferentes regiotildees

dele) tecircm caracteriacutesticas diferentes a modificaccedilatildeo da posiccedilatildeo dentro do campo traz consigo

uma modificaccedilatildeo das caracteriacutesticas do que aparece da experiecircncia que se tem etc E isto de

tal modo que a variaccedilatildeo aqui em causa tem que ver com as variaacuteveis referidas

Por outras palavras quando aqui falamos do facto de o aparecimento ou da experiecircn-

cia com que estamos familiarizados ter algo de correspondente a uma ldquoanamorfoserdquo e resultar

de uma certa ldquosintonizaccedilatildeordquo de cada uma das variaacuteveis que passaacutemos em revista eacute preciso ter

em conta que pelo menos no caso de algumas dessas variaacuteveis tal sintonizaccedilatildeo natildeo eacute sim-

ples antes corresponde a uma certa ldquodistribuiccedilatildeordquo dentro da variaacutevel em causa

Eacute disso que se trata quando se fala de anisotropia de acuidade de anisotropia de su-

bordinaccedilatildeo de anisotropia de importacircncia da diferenccedila na composiccedilatildeo das unidades colec-

tivas de determinaccedilotildees agrave medida que se passa do ldquocentrordquo para a periferia do campo de

apresentaccedilatildeo etc

Dito de outro modo pelo menos em larga medida a combinaccedilatildeo de que faz sentido fa-

lar eacute uma combinaccedilatildeo de combinaccedilotildees

Natildeo cabe aqui analisar nada disto em pormenor mas importa ver ao menos alguns as-

pectos mais essenciais

Em primeiro lugar o campo de aparecimento estaacute sempre constituiacutedo de tal modo que

tem no seu centro um foco de incidecircncia

Podemos falar de ldquofoco de incidecircnciardquo em sentido mais estrito e em sentido mais lato

Em sentido mais estrito o foco de incidecircncia cai sobre uma parte de um quadro per-

ceptivo (de tal modo que a mancha perceptiva de que se dispotildee excede o proacuteprio foco ndash e este

move-se dentro da proacutepria ldquomancha perceptivardquo)

Em sentido mais lato podemos dizer que o foco do campo de aparecimento e o seu

centro eacute em regra um campo perceptivo ndash uma determinada ldquomancha perceptivardquo ou me-

lhor aquele campo de realidade a aparecer que de cada vez se acha coberto pelos constantes

movimentos do foco perceptivo (que de cada vez explora uma determinada aacuterea da realidade)

242

Eacute verdade que esta descriccedilatildeo tem o seu quecirc de inexacto pois tambeacutem pode acontecer

que o foco se desloque para fora da esfera perceptiva Podemos fazer presentificaccedilotildees viajar

no espaccedilo e no tempo deixar-nos absorver nas presentificaccedilotildees que fazemos de tal modo que

quase esquecemos onde estamos etc Mas por outro lado sendo assim nunca desaparece a

situaccedilatildeo perceptiva ndash ie natildeo deixa de acontecer que a proacutepria presentificaccedilatildeo estaacute situada

num meio perceptivo que nesse sentido continua a constituir o centro de todo o campo de

aparecimento

Eacute este fenoacutemeno que temos em vista quando falamos do campo perceptivo como cen-

tro do aparecimento e dizemos que em noacutes o aparecimento estaacute sempre centrado num campo

perceptivo

Este campo perceptivo pode ser de maiores ou menores dimensotildees se estamos fecha-

dos numa sala longe da janela reduz-se agrave dimensatildeo da sala se subimos ao alto de um monte

ou a uma torre toma proporccedilotildees muito maiores (mesmo que esse ganho de dimensotildees seja

compensado por um conjunto de perdas na forma como acompanhamos as coisas de tal modo

que a maior abrangecircncia se paga com um correspondente aumento do grau de abreviatura)

Poreacutem o ponto que aqui importa vincar eacute que de todo o modo (independentemente dessa va-

riaccedilatildeo) haacute sempre qualquer coisa como um campo perceptivo e o campo perceptivo estaacute sem-

pre de algum modo no centro daquilo que se tem apresentado

Essa posiccedilatildeo central traduz-se precisamente em privileacutegio no que diz respeito agrave acui-

dade no que diz respeito agrave importacircncia (mesmo que efemeramente o campo perceptivo em

que de cada vez se estaacute presida de certo modo a tudo o mais) no que diz respeito a nexos de

subordinaccedilatildeo etc

Dito de outro modo havendo vaacuterias componentes de acentuaccedilatildeo e perda de acentua-

ccedilatildeo (componentes que potildeem aquilo que aparece numa posiccedilatildeo toacutenica ou pelo contraacuterio numa

posiccedilatildeo mais ou menos aacutetona) o campo perceptivo estaacute ao mesmo tempo marcado por vaacuterios

factores de tonicidade (pelo efeito conjugado de vaacuterios factores de tonicidade) ndash de tal modo

que eacute se assim se pode dizer multiplamente acentuado ou multiplamente toacutenico

Ora sendo assim um dos aspectos decisivos da constituiccedilatildeo do campo perceptivo eacute o

facto de ter sempre jaacute um caraacutecter empiacuterico

Natildeo se trata de algo tido na perspectiva da mera αἴσθησις ou da mera μνήμη Trata-se

sempre de estados-de-coisas-permanentes compreendidos numa oacuteptica de antecipaccedilatildeo (e

numa oacuteptica de antecipaccedilatildeo possibilitada pela projecccedilatildeo do caraacutecter regulado do que aparece

243

ndash quer dizer possibilitada pela projecccedilatildeo de leis pela constituiccedilatildeo de qualquer coisa como

uma natureza etc) Mesmo que se trate de um campo perceptivo inteiramente novo logo o

primeiro contacto com ele jaacute estaacute marcado por antecipaccedilotildees empiacutericas que ldquovecircm de traacutesrdquo e

que o conteuacutedo perceptivo confirma ou infirma

Por outro lado toda a travessia de campos perceptivos estaacute silenciosamente marcada

por uma constante actividade de registo votada agrave identificaccedilatildeo de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ

πράγματος e agrave sua conversatildeo em projecccedilotildees empiacutericas

Por uma parte isso traduz-se na constante colaccedilatildeo entre os nossos dados e as projec-

ccedilotildees que jaacute vinham de traacutes (todo o patrimoacutenio empiacuterico jaacute montado em resultado da travessia

perceptiva precedente) Mas por outra parte traduz-se tambeacutem na actividade de transferecircncia

a) desse patrimoacutenio empiacuterico filtrado pelas novas doaccedilotildees (modificado pela forma como elas

o confirmam ou infirmam) e b) dos novos dados recolhidos ndash falamos aqui da transferecircncia

mediante a qual tudo isso interfere na continuaccedilatildeo e forma o patrimoacutenio tido em conta nas

αἰσθήσεις subsequentes72

Visto isto importa agora ter presente que este ldquocentrordquo do campo de aparecimento

nunca o esgota

Em condiccedilotildees normais todos os campos perceptivos com que temos contacto estatildeo si-

tuados no meio de algo constituiacutedo de outra forma um campo de familiaridade

Se porventura acontece que um campo perceptivo assume funccedilotildees sem estar situado

no meio de um campo de familiaridade jaacute constituiacutedo entatildeo sente-se imediatamente a falta do

campo de familiaridade (o que mostra que a nossa perspectiva excede sempre o campo per-

ceptivo e estaacute sempre jaacute voltada para ndash e como que sintonizada por ndash um para-laacute do campo

perceptivo que eacute o campo de familiaridade)

Este excesso sobre o campo perceptivo tem que ver com dois complexos de fenoacuteme-

nos intimamente ligados um ao outro mas natildeo idecircnticos

72

Tocamos aqui um facto importante que natildeo cabe desenvolver mas que eacute de assinalar ao contraacuterio

do que pode parecer no nosso caso a retenccedilatildeo nunca eacute apenas uma retenccedilatildeo de αἰσθήματα mas antes

sempre jaacute uma retenccedilatildeo de ἐμπειρία e de αἰσθήματα em ordem agrave ἐμπειρία Quer dizer o que eacute transfe-

rido do momento do tempo T1 para T2 e de T2 para T3 etc natildeo eacute soacute o conteuacutedo perceptivo ou um con-

junto de μνῆμαι mas um patrimoacutenio de ἐμπειρία

244

Por um lado quaisquer que sejam as suas dimensotildees nunca um campo perceptivo

aparece como toda a realidade como esgotando aquilo que haacute Ou dito de outro modo nunca

um campo perceptivo aparece como o ldquomundordquo

Mais tambeacutem natildeo acontece que algum campo perceptivo apareccedila em regime de total

neutralidade relativamente a ser igual ao ldquomundordquo ou natildeo Sucede antes que todos os campos

perceptivos costumam aparecer como fontes de uma realidade mais vasta (e na verdade muito

mais vasta) tanto no espaccedilo quanto no tempo

Por outro lado nunca o nosso interesse se esgota num campo perceptivo sem ldquoligarrdquo a

nada mais Sucede antes que a nossa relaccedilatildeo com qualquer campo perceptivo estaacute sempre do-

minada pela preocupaccedilatildeo de o situar num quadro mais vasto

Isso tem que ver com o facto de a nossa vida natildeo caber num uacutenico campo perceptivo

ser como que sobredeterminada em relaccedilatildeo a qualquer campo perceptivo ter um quadro de

interesses ndash uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila ndash que ultrapassa cada campo perceptivo faz de ca-

da campo perceptivo um momento de algo muito mais vasto etc

Ora a pergunta que resulta do que vimos eacute como estaacute constituiacutedo o campo de familia-

ridade (de que eacute que eacute feito etc) se natildeo corresponde agraves percepccedilotildees que se vatildeo tendo (se se si-

tua fora do campo perceptivo que de cada vez se tem)

Em primeiro lugar importa ter presente que o campo de familiaridade eacute como que o

resiacuteduo da travessia perceptiva que foi feita

Os percursos perceptivos realizados no passado (percursos que em geral se distin-

guem por terem explorado mais intensamente certas zonas da realidade) natildeo desaparecem sem

deixar rasto deixam um resiacuteduo

Esse ldquoresiacuteduordquo tem a forma de estados-de-coisas-permanentes ndash resulta de projecccedilotildees

empiacutericas feitas a partir de percepccedilotildees passadas e que convertem a realidade testemunhada

nas percepccedilotildees passadas em algo constante ndash que natildeo se limita a ter ldquoestado laacuterdquo quando foi

percepcionado antes eacute visto como ldquoestando laacuterdquo agora que natildeo se tem testemunho perceptivo

dele e havendo de ldquoestar laacuterdquo depois mesmo que natildeo seja testemunhado perceptivamente

Nesse sentido ao contraacuterio do que sucede com o campo perceptivo (que eacute moldado

pela forma empiacuterica mas natildeo resulta exclusivamente da experiecircncia) o campo de familiari-

dade tem uma constituiccedilatildeo exclusivamente empiacuterica O campo de familiaridade ldquoestaacute laacuterdquo por

forccedila da ἐμπειρία ndash pura e simplesmente natildeo figura num ponto de vista esteacutesico ou mesmo

245

mneacutesico natildeo teria lugar se natildeo fosse a ἐμπειρία e deixaria de ldquoestar laacuterdquo se a ἐμπειρία ldquofosse

abaixordquo

Em virtude do fenoacutemeno de inserccedilatildeo do campo perceptivo em meios de realidade jaacute

perceptivamente explorados a forma habitual da presenccedila dos campos perceptivos estaacute deci-

sivamente marcada pelo facto de eles se acharem rodeados pela projecccedilatildeo de estados-de-coi-

sas-permanentes correspondentes ao resiacuteduo das percepccedilotildees passadas

Estamos numa sala mas sabemos que a porta daacute para um corredor que o corredor daacute

para um aacutetrio que o aacutetrio daacute para uma escada e assim sucessivamente

Vendo bem o campo de familiaridade pode estar presente fundamentalmente de duas

formas

Por um lado pode estar presente em regime de presentificaccedilatildeo

Focamos quase-perceptivamente o corredor o aacutetrio a escada etc Quase que os esta-

mos a ver ndash que eacute como se os estiveacutessemos a ver

Esta forma de presenccedila tem as caracteriacutesticas habituais da presentificaccedilatildeo enquanto

modalidade de presenccedila temaacutetica de um objecto o foco de incidecircncia tem uma lotaccedilatildeo limita-

da e as diferentes componentes do campo de familiaridade satildeo passadas em revista sucessiva-

mente

Por outro lado o campo de familiaridade natildeo estaacute presente apenas quando eacute focado

quando se o presentifica expressamente

Mesmo que natildeo presentifiquemos expressamente nada do campo de familiaridade ele

estaacute presente em co-apresentaccedilatildeo inexpliacutecita ndash ou para dizer como Husserl em co-apresenta-

ccedilatildeo horizontal

Eacute precisamente por causa desta co-apresentaccedilatildeo horizontal inexpliacutecita que o campo

perceptivo nunca esgota o mundo

Dito de outro modo eacute por causa desta co-apresentaccedilatildeo horizontal inexpliacutecita do campo

de familiaridade que nunca um campo de apresentaccedilatildeo nos aparece como uma clareira de al-

go conhecido no meio de uma total incoacutegnita O campo perceptivo estaacute sempre situado (eacute in-

dispensaacutevel por mais que ele esteja situado num quadro de familiaridade mais vasto do que

ele mesmo ndash num quadro de familiaridade relativo ao que rodeia agravequilo que encontramos

quando saiacutemos de onde estamos agravequilo a que podemos recorrer etc)

246

Natildeo haacute duacutevida de que muitas vezes parecemos completamente absortos no campo per-

ceptivo em que nos encontramos sem qualquer relaccedilatildeo com o seu exterior Mas essa absorccedilatildeo

ndash aparentemente total ndash no campo perceptivo natildeo resulta de uma total ausecircncia de contacto

com aquilo que se situa para laacute dele

Na verdade resulta exactamente do contraacuterio do facto de o exterior do campo percep-

tivo ndash o campo de familiaridade ndash estar tatildeo dominado e tatildeo adquirido que nem precisa de se

prestar qualquer atenccedilatildeo a ele

Quer dizer uma coisa eacute um campo perceptivo completamente fechado em si outra coi-

sa eacute um campo perceptivo privado de campo de familiaridade (o que experimentamos quando

vamos para um siacutetio completamente novo o campo de familiaridade ainda natildeo se acha orga-

nizado e estamos mobilizados para o montar) outra coisa ainda eacute um campo perceptivo inse-

rido num meio completamente domesticado (ou que de todo o modo produz a impressatildeo de

estar completamente domesticado) pela pertenccedila a um campo de familiaridade

A presenccedila horizontal do campo de familiaridade reflecte-se no proacuteprio aspecto imedi-

ato do campo perceptivo ndash para dizer com Kant eacute um dos ldquojuiacutezos ocultosrdquo que determinam o

teor do proacuteprio campo perceptivo

E vendo bem acontece tambeacutem nos proacuteprios processos quase perceptivos quando

pensamos no corredor no aacutetrio etc a estrutura da apresentaccedilatildeo temaacutetica que eacute a presentifica-

ccedilatildeo faz que de cada vez apareccedila soacute o corredor o aacutetrio etc Mas o corredor o aacutetrio etc natildeo

aparecem como conteuacutedos absolutos desligados nem como clareiras jaacute determinadas no meio

de um campo totalmente incoacutegnito Sucede antes que aparecem inexplicitamente situados na

co-apresentaccedilatildeo puramente horizontal do campo de familiaridade em que se inserem

Esta presenccedila permanente do campo de familiaridade eacute decisiva para a conformaccedilatildeo

de todo o campo de aparecimento em que damos connosco

Com efeito embora o campo perceptivo goze do protagonismo que antes pusemos em

relevo (e que faz dele como dissemos o centro do que nos aparece) a verdade eacute que esse

protagonismo eacute efeacutemero

Ora o seu caraacutecter efeacutemero natildeo significa apenas que agora o protagonista eacute x depois

y depois z (como se no momento em que eacute protagonista natildeo houvesse nenhum factor de res-

triccedilatildeo do seu protagonismo) O ponto decisivo estaacute em que o protagonismo do campo percep-

tivo estaacute sempre jaacute em relaccedilatildeo a algo que o excede agrave organizaccedilatildeo global num campo de fa-

247

miliaridade ndash que eacute se assim se pode dizer o verdadeiro protagonista ou o centro natildeo efeacuteme-

ro do campo de aparecimento em que de cada vez damos connosco

Por outras palavras o protagonismo do campo perceptivo que de cada vez se nos im-

potildee eacute um protagonismo sempre jaacute em tracircnsito para algo mais ndash e o terminus ad quem desse

tracircnsito eacute qualquer coisa como uma organizaccedilatildeo permanente (uma organizaccedilatildeo estaacutevel) a que

corresponde um territoacuterio de realidade com as dimensotildees e a complexidade necessaacuterias a essa

organizaccedilatildeo permanente

Tudo isto significa um complexo quadro de relaccedilotildees entre o campo perceptivo o cam-

po de familiaridade e o resto do campo de aparecimento em que damos connosco

Por um lado o campo perceptivo tem uma presenccedila muito mais niacutetida e um teor muito

mais definido do que o campo de familiaridade E como vimos isto natildeo eacute soacute vaacutelido para a

presenccedila horizontal ou para a co-apresentaccedilatildeo inexpliacutecita do campo de familiaridade tambeacutem

eacute vaacutelido para a sua presenccedila expliacutecita ou temaacutetica no fenoacutemeno da presentificaccedilatildeo

Por outro lado o campo de familiaridade tem uma presenccedila mais niacutetida e um teor

mais definido do que tudo aquilo que se situa para laacute dele

Acontece que no que diz respeito a nexos de subordinaccedilatildeo e agrave anisotropia de impor-

tacircncia as relaccedilotildees satildeo mais complexas

Com efeito se eacute verdade que o campo de familiaridade aparece como uma espeacutecie de

periferia do campo perceptivo esse protagonismo do campo perceptivo eacute como vimos tran-

sitoacuterio e natildeo impede que em uacuteltima anaacutelise o ldquonegoacuteciordquo do proacuteprio campo perceptivo seja

sempre jaacute o campo de familiaridade ndash ie algo muito mais amplo do que o proacuteprio campo per-

ceptivo enquanto tal

Quer dizer em certo sentido podemos dizer que o campo de familiaridade tem uma

posiccedilatildeo adjectiva relativamente ao campo perceptivo ndash mas num outro sentido podemos dizer

exactamente o contraacuterio

Este quadro de complexidade tem que ver com o caraacutecter dinacircmico daquilo que presi-

de agrave organizaccedilatildeo destas estruturas enquanto o que preside agrave organizaccedilatildeo destas estruturas eacute

absolutamente irredutiacutevel a uma sucessatildeo de campos perceptivos pura e simplesmente justa-

postos uns aos outros

Contudo sendo assim eacute bastante claro que o resto do campo de apresentaccedilatildeo aparece

numa posiccedilatildeo subalternizada relativamente a este nuacutecleo complexo (o nuacutecleo simultaneamen-

248

te formado pelo campo perceptivo e pelo campo de familiaridade) Tudo o mais tem o caraacutec-

ter de qualquer coisa como um fundo relativamente ao qual este nuacutecleo desempenha funccedilotildees

de forma Da forma complexa que tentaacutemos descrever a toacutenica estaacute posta efemeramente no

campo perceptivo e de forma mais permanente no campo de familiaridade

Algo muito semelhante se verifica tambeacutem no que diz respeito agrave anisotropia de impor-

tacircncia

Por um lado haacute um protagonismo provisoacuterio do campo perceptivo (ou de todo o mo-

do no foco em sentido mais estrito) Eacute isso que de cada vez faz que se revista ndash transitoria-

mente ndash de uma importacircncia nuclear

Poreacutem essa importacircncia nuclear de caraacutecter provisoacuterio natildeo coincide necessariamente

com o protagonismo ndash com o maior grau de importacircncia ndash na ordem permanente A estrutura

do aparecimento em que nos temos eacute precisamente tal que a tensatildeo de importacircncia ou a ten-

satildeo de natildeo-indiferenccedila natildeo estaacute fechada no quadro de ldquounidades atoacutemicasrdquo de aparecimento

ndash eacute uma tensatildeo de maior focirclego ou de maior envergadura que abrange um grande nuacutemero de

unidades

Eacute verdade que o que estamos a descrever natildeo envolve uma total coincidecircncia ndash por

exemplo natildeo eacute verdade que todo o campo de familiaridade esteja revestido do mesmo niacutevel

de importacircncia Sucede justamente o contraacuterio e os contornos da gradaccedilatildeo de importacircncia (do

que eacute centro e do que eacute periferia em mateacuteria de importacircncia) natildeo coincidem necessariamente

com o contraste entre familiaridade e natildeo-familiaridade (ou com os contrastes entre vaacuterios niacute-

veis de familiaridade)

No entanto isso natildeo impede que grosso modo se possa dizer que o nuacutecleo de impor-

tacircncia costuma situar-se no territoacuterio do campo de familiaridade (dentro das suas fronteiras

com as complexas relaccedilotildees entre o campo perceptivo e o seu exterior com variaccedilotildees do grau

de importacircncia entre os diversos sectores do proacuteprio campo de familiaridade etc) De tal

modo que a posiccedilatildeo perifeacuterica do exterior do campo de familiaridade em relaccedilatildeo ao campo

de familiaridade estaacute tambeacutem associada a uma global posiccedilatildeo perifeacuterica do exterior do cam-

po de familiaridade no que diz respeito agrave tensatildeo de natildeo-indiferenccedila ou ao grau de importacircn-

cia

Desenha-se assim o que podemos descrever como o territoacuterio principal do apareci-

mento ndash e tambeacutem o territoacuterio principal da experiecircncia

249

A caracteriacutestica fundamental desse territoacuterio eacute a sua irredutibilidiade aos campos per-

ceptivos que se vatildeo sucedendo como protagonistas imediatos

Nesse sentido haacute como que uma ilusatildeo de oacuteptica no reconhecimento da dimensatildeo do

aparecimento na verdade ela eacute muito maior do que tende a parecer Com efeito tende a pa-

recer que o territoacuterio do aparecimento se reduz aos campos perceptivos actuais

O que estamos a tentar pocircr em evidecircncia eacute que natildeo eacute assim o quadro do aparecimento

tem sempre jaacute uma amplitude muito maior ndash e o que estaacute sempre em causa eacute a unidade muito

mais ampla do campo de familiaridade enquanto o campo de familiaridade tem a dimensatildeo

proporcionada ao negoacutecio mais abrangente da vida

Numa palavra o aparecimento eacute sempre um aparecimento relativo agrave vida (ao em-cau-

sa da vida)

Ora isso reflecte-se justamente na estrutura da experiecircncia

Vimos anteriormente que o contacto com o campo perceptivo tem um caraacutecter tal que

estaacute sempre jaacute a recolher elementos para a projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes no

quadro do campo perceptivo (quer dizer para a conformaccedilatildeo do campo perceptivo como um

campo de estados-de-coisas-permanentes) Mas importa ter presente que isso natildeo eacute tudo

Na verdade a travessia perceptiva funciona permanentemente como fonte de consti-

tuiccedilatildeo de resiacuteduos na forma de um campo de familiaridade ndash do campo a que eacute confiada a

funccedilatildeo de situar os proacuteprios campos perceptivos

Quer dizer a travessia perceptiva natildeo tem como terminus a quo αἰσθήσεις ou μνῆμαι

soltas nem tem como terminus ad quem αἰσθήσεις soltas Caracteriza-se em vez disso por ter

como terminus a quo um campo de familiaridade jaacute constituiacutedo e por ter sempre como termi-

nus ad quem a confirmaccedilatildeo e o enriquecimento do campo de familiaridade que tem a situar

os campos perceptivos por que se vai passando

Tambeacutem se pode dizer o seguinte aquilo a que chamaacutemos a transferecircncia empiacuterica (o

que eacute transmitido de um momento de tempo T a um momento de tempo T1 e de T1 a T2 etc) eacute

fundamentalmente uma transferecircncia do campo de familiaridade ndash uma transferecircncia de todo

o territoacuterio principal do aparecimento

Em suma esteja-se ou natildeo ciente disso a experiecircncia que tem lugar em noacutes eacute funda-

mentalmente a experiecircncia da constituiccedilatildeo de um campo de familiaridade (de uma espeacutecie de

clareira para habitaccedilatildeo)

250

Mas isto natildeo eacute tudo ndash e em certo sentido pode ateacute induzir em erro

Com efeito isto pode sugerir erradamente que o campo de aparecimento em que da-

mos connosco se reduz ao campo de familiaridade ndash ao resiacuteduo global da travessia perceptiva

de cada vez jaacute feita convertido num complexo de estados de coisas permanentes

Ora essa sugestatildeo eacute erroacutenea porque o campo de aparecimento natildeo se reduz ao campo

de familiaridade vai sempre jaacute para laacute dele excede-o ndash e na verdade excede-o a perder de vis-

ta

Para perceber bem como eacute assim basta considerar o seguinte complexo de factos

Por um lado nunca o proacuteprio campo de familiaridade nos aparece como a totalidade

do que haacute (como o ldquomundordquo) ndash nem sucede que o campo de familiaridade nos apareccedila em re-

gime de total neutralidade relativamente a ser a totalidade do que haacute ou natildeo

Sucede antes que o proacuteprio campo de familiaridade aparece sempre como parte de um

quadro de realidade mais amplo ndash e na verdade muito mais amplo

Por outro lado sendo assim de modo nenhum acontece que o proacuteprio campo de fami-

liaridade nos apareccedila como uma clareira desbravada domesticada no meio de uma completa

incoacutegnita (de algo completamente em aberto a respeito do qual absolutamente nada se sabe ndash

de tal modo que pode ser o que quer que seja e ter caracteriacutesticas de que natildeo se faz a mais pe-

quena ideia)

A questatildeo que se potildee eacute a de saber como pode ser assim

Os limites do campo de familiaridade parecem ser os limites de tudo aquilo por que al-

guma vez passou a travessia perceptiva Mas se eacute assim fica por saber como eacute que pode

acontecer que o campo de familiaridade natildeo apareccedila como um clareira inscrita maciccedilo de to-

tal incoacutegnita

A resposta passa uma vez mais pelo fenoacutemeno com que nos confrontamos neste es-

tudo o fenoacutemeno da experiecircncia

Com efeito a projecccedilatildeo de estados de coisas permanentes por via da τοῦ ὁμοίου με-

τάβασις natildeo se ateacutem aos limites do campo de familiaridade (natildeo se ateacutem aos limites do terri-

toacuterio principal do aparecimento dentro dos quais a projecccedilatildeo empiacuterica mesmo que natildeo tenha

dados para nada do que projecta tem ainda assim algum contacto perceptivo com aquilo a

que diz respeito)

251

O facto fundamental com que aqui estamos a lidar tem que ver com este caraacutecter ousa-

do se assim se pode dizer da projecccedilatildeo empiacuterica em virtude do qual natildeo soacute a) comporta al-

guma margem de fixaccedilotildees fora do terreno em que houve alguma doaccedilatildeo mas na verdade b) se

aventura afoitamente pelo exterior do campo de familiaridade ndash de tal modo que se virmos

bem verificamos que a esmagadora maioria das nossas projecccedilotildees empiacutericas se situa justa-

mente no terreno inteiramente desprovido de qualquer doaccedilatildeo

Quer dizer a esmagadora maioria do campo de aparecimento a que temos acesso eacute

constituiacutedo precisamente por este tipo de projecccedilotildees empiacutericas que domesticamos por pura

projecccedilatildeo domiacutenios de realidade que com dimensotildees extraordinaacuterias e que em mateacuteria de

doaccedilatildeo satildeo absolutamente terra incoacutegnita

Se a perspectiva que noacutes temos sobre o exterior do campo de familiaridade fosse com-

pletamente aberta e correspondesse efectivamente a uma admissatildeo de total incoacutegnita (de total

em aberto) teriacuteamos de aceitar a possibilidade de jaacute ao virar da esquina aonde nunca fomos

haver jaacute algo em tudo radicalmente diferente do que quer que seja que conhecemos ndash da mes-

ma forma que teriacuteamos de aceitar a possibilidade a) de que o resto da realidade fosse pura e

simplesmente a repeticcedilatildeo do que conhecemos e tambeacutem a possibilidade b) de poder muito

bem natildeo haver laacute nada Isto eacute uma perspectiva efectivamente aberta cruzaria em si num pe-

culiar oxiacutemoro (num olhar dilacerado pelo conflito destas trecircs possibilidades) a possibilidade

de ser tudo radicalmente diferente a possibilidade de ser tudo rigorosamente igual e a possi-

bilidade de pura e simplesmente natildeo haver nada

Mas se virmos o que efectivamente se passa connosco na nossa relaccedilatildeo com o exterior

do campo de familiaridade verificamos que natildeo eacute nada disto

Por um lado haacute uma firme convicccedilatildeo de haver laacute algo

Por outro lado esta firme convicccedilatildeo de haver laacute algo estaacute acompanhada por uma firme

convicccedilatildeo sobre o teor do que laacute haacute ndash mais precisamente pela convicccedilatildeo que choca com as

duas possibilidades que acabaacutemos de citar a possibilidade de ser tudo radicalmente diferente

do que conhecemos a partir do campo de familiaridade e a possibilidade de ser tudo exacta-

mente igual

Ou seja a perspectiva que temos sobre o teor daquilo que haacute no exterior do campo de

familiaridade estaacute marcada ao mesmo tempo pelo domiacutenio de duas teses ou determinaccedilotildees

fundamentais a) uma tese que nega a possibilidade de ser tudo radicalmente diferente (quer

252

dizer uma decidida tese de homogeneidade) e b) uma tese que nega a possibilidade de ser tu-

do completamente igual (quer dizer uma decidida tese de variaccedilatildeo)

Esta formulaccedilatildeo pode parecer abstracta e contraditoacuteria Mas vendo bem corresponde

ao modelo de uma combinaccedilatildeo dos dois aspectos (a homogeneidade e a variaccedilatildeo) numa deter-

minada relaccedilatildeo de forccedilas entre eles que se traduz em qualquer coisa deste geacutenero no exterior

do campo de familiaridade haveraacute coisas no espaccedilo e no tempo com identidade diacroacutenica ndash

e de facto haveraacute povoaccedilotildees bosques campos montes vales rios lagos etc Isso corres-

ponde agrave tese de homogeneidade Mas natildeo se sabe precisamente que coisas no espaccedilo e no

tempo providas de identidade diacroacutenica etc ndash natildeo se sabe definidamente que povoaccedilotildees

que bosques que campos que montes que vales que rios que lagos ndash com que caracteriacutesti-

cas e em que distribuiccedilatildeo concreta etc Isso corresponde agrave tese de variaccedilatildeo

A partir daqui percebe-se melhor que eacute que estaacute em causa quando se fala de uma deter-

minada relaccedilatildeo de forccedilas entre as duas teses a combinaccedilatildeo entre homogeneidade e variaccedilatildeo

que preenche o exterior do campo de familiaridade estaacute marcada por uma prevalecircncia da ho-

mogeneidade sobre a variaccedilatildeo por uma subordinaccedilatildeo desta agravequela

O que caracteriza a relaccedilatildeo entre a homogeneidade e a variaccedilatildeo eacute que esta uacuteltima se

produz no quadro da homogeneidade ndash como variaccedilatildeo dentro da homogeneidade (como va-

riaccedilatildeo da homogeneidade)

Dito de outro modo a variaccedilatildeo que estaacute prevista na forma como olhamos para o exte-

rior do campo de familiaridade diz respeito agrave especificaccedilatildeo de geacuteneros fixados em regime de

projecccedilatildeo de homogeneidade ndash de tal modo que haacute homogeneidade quanto agrave forma fundamen-

tal de constituiccedilatildeo da realidade em causa e variaccedilatildeo a respeito das suas caracteriacutesticas espe-

ciacuteficas e natildeo o inverso

Mais vendo bem na verdade nem sequer faz sentido falar de duas teses ligadas por

um nexo de relaccedilatildeo de forccedilas entre elas De facto trata-se de uma uacutenica tese ndash a tese de homo-

geneidade

Com efeito a margem de variaccedilatildeo que eacute projectada para o exterior do campo de fami-

liaridade eacute precisamente aquela que se regista no campo de familiaridade (ou para ser mais

preciso aquela que se regista na travessia perceptiva)

A travessia perceptiva regista traccedilos comuns que satildeo a base da projecccedilatildeo de homoge-

neidade (da τοῦ ὁμοίου μετάβασις) ndash as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος de que fala Aristoacute-

teles Mas natildeo satildeo soacute os traccedilos comuns no sentido mais estrito que constituem ponto de par-

253

tida da projecccedilatildeo de homogeneidade Com efeito o proacuteprio padratildeo de variaccedilatildeo registado na

travessia perceptiva reflecte uma instacircncia de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος que forma

a base de uma projecccedilatildeo

Em suma ao mesmo tempo que servem de base a projecccedilotildees mais especiacuteficas (a leis

de antecipaccedilatildeo relativas a estes e agravequeles tipos de realidades a indiviacuteduos a classes a geacutene-

ros a geacuteneros mais amplos etc) as πολλαὶ μνῆμαι que estatildeo na origem da ἐμπειρία consti-

tuem um fundo de afinidade global entre todas as αἰσθήσεις ndash fundo esse de que faz parte o

proacuteprio padratildeo de variaccedilatildeo (enquanto este constitui justamente um dos traccedilos de afinidade

global entre todas as αἰσθήσεις)

Tambeacutem podemos exprimir isto dizendo que haacute um conjunto de determinaccedilotildees que

satildeo registadas como constantes ou como invariaacuteveis em toda a travessia perceptiva ndash e entre

estas constantes ou entre estes elementos invariaacuteveis conta-se tambeacutem um padratildeo de varia-

ccedilatildeo

Assim tudo aquilo que de algum modo eacute registado como traccedilo de afinidade global ndash

ou seja como constante invariaacutevel na travessia perceptiva ndash entra numa projecccedilatildeo de homoge-

neidade em relaccedilatildeo ao exterior do campo de familiaridade de sorte que se forma numa lei em-

piacuterica de homogeneidade entre o campo de familiaridade e o seu exterior Esta projecccedilatildeo em-

piacuterica de homogeneidade faz do exterior do campo de familiaridade um campo de homogenei-

dade com caracteriacutesticas tais que mesmo sem nos apercebermos disso tambeacutem este exterior

estaacute domesticado e vemos as coisas como se tiveacutessemos a seu respeito uma perspectiva sobe-

rana73

Mais ainda poderia acontecer que fosse assim mas de tal modo que a projecccedilatildeo em-

piacuterica de homogeneidade sobre o exterior do campo de familiaridade fosse soacute ateacute certo ponto

tivesse limites ou estivesse sujeita a uma qualquer claacuteusula de ldquotravagemrdquo

De facto natildeo eacute assim

73

Eacute claro que o proacuteprio contraste com o campo de familiaridade faz que aquilo que mais chama a aten-

ccedilatildeo no seu exterior seja o que natildeo sabemos a seu respeito ndash o desconhecido Os traccedilos mais comuns

como que se apagam natildeo chamam agrave atenccedilatildeo tecircm o caraacutecter inconspiacutecuo de tudo aquilo que eacute ineren-

te que eacute constante e faz de meio Mas isso natildeo impede que estejam laacute na forma como olhamos para o

exterior do campo de familiaridade ndash e que na verdade tenham uma posiccedilatildeo subordinante em relaccedilatildeo

ao desconhecido e faccedilam deste desconhecido algo muito diferente (muito mais domesticado) do que

uma absoluta incoacutegnita

254

O que caracteriza a projecccedilatildeo de homogeneidade eacute pelo contraacuterio o facto de natildeo ter

absolutamente nada que a trave e que na ausecircncia do que quer que seja que a trave a des-

ligue ou a limite vale em regime de propagaccedilatildeo indefinida estendendo-se de forma perfeita-

mente infrene pelo exterior do campo de familiaridade

Como qualquer outra projecccedilatildeo empiacuterica tambeacutem esta tem o seu regime proacuteprio de

confirmaccedilatildeo ou infirmaccedilatildeo Neste caso a confirmaccedilatildeo ou infirmaccedilatildeo passa pelo facto de uma

parte significativa do desenvolvimento da nossa proacutepria travessia perceptiva dizer respeito agrave

aquisiccedilatildeo de αἰσθήσεις relativas a domiacutenios de realidade com que antes natildeo se tinha qualquer

contacto

Por outras palavras uma parte significativa das αἰσθήσεις que se vatildeo adquirindo cor-

responde como que a incursotildees no exterior do campo de familiaridade

Ora estas incursotildees em que se ldquoprovardquo do exterior do campo de familiaridade caracte-

rizam-se precisamente pela forma como em regra confirmam a antecipaccedilatildeo de homogeneidade

ndash tanto no que diz respeito agrave antecipaccedilatildeo de semelhanccedila no sentido mais estrito do termo

quanto no que diz respeito agrave antecipaccedilatildeo de um padratildeo de variaccedilatildeo

Isto produz um extraordinaacuterio reforccedilo da evidecircncia de validade da projecccedilatildeo de homo-

geneidade e faz que tendamos a esquecer a extraordinaacuteria desproporccedilatildeo entre a exiacutegua mar-

gem do exterior do campo de familiaridade que vem a ser adquirida em toda a nossa traves-

sia perceptiva e a amplitude indefinidamente extensa da esfera de aplicaccedilatildeo da projecccedilatildeo de

homogeneidade

Ora de facto haacute essa extraordinaacuteria desproporccedilatildeo e vendo bem uma radical diferenccedila

entre a) o dado que vem confirmar que a projecccedilatildeo de homogeneidade feita em relaccedilatildeo agravequilo

a que diz respeito era uma projecccedilatildeo ldquocertardquo e b) a projecccedilatildeo relativa a todo o resto do exte-

rior do campo de familiaridade ndash que continua a natildeo ter dado nenhum que a apoie e por isso

estaacute continuamente exposta agrave possibilidade de ser falsa

De tudo isto resulta claro que a esmagadora maioria do que temos apresentado a) se

situa fora do campo de familiaridade (e tanto quer dizer como vimos fora do territoacuterio prin-

cipal do aparecimento e da experiecircncia) e b) tem um grau de determinaccedilatildeo muito inferior

agravequele que caracteriza esse territoacuterio (ou para sermos mais precisos tem um niacutevel de acuida-

de muito inferior tanto no que diz respeito ao niacutevel de determinaccedilatildeo com que se apresenta

quanto no que diz respeito agrave exigecircncia de determinaccedilatildeo a que eacute sujeito)

255

Estamos agora em condiccedilotildees de perceber melhor a afirmaccedilatildeo de que o niacutevel de deter-

minaccedilatildeo do campo de familiaridade eacute muito inferior ao niacutevel de determinaccedilatildeo do campo per-

ceptivo mas por outra parte eacute muito superior ao do exterior do campo de familiaridade

Eacute claro que nos dois casos ndash tanto no do campo de familiaridade quanto no do seu ex-

terior ndash o que eacute apresentado satildeo apenas determinaccedilotildees geneacutericas muito menos diferenciadas

do que aquilo que aparece no campo perceptivo Mas isso natildeo impede que as determinaccedilotildees

que preenchem o exterior do campo de familiaridade sejam muito menos diferenciadas do que

as determinaccedilotildees que preenchem o proacuteprio campo de famliaridade

Sendo assim nada disto impede que por outro lado o complexo de determinaccedilotildees im-

plicado na projecccedilatildeo de homogeneidade que preenche o exterior do campo de familiaridade

seja ainda assim bastante rico ndash quer dizer envolva um grande nuacutemero de determinaccedilotildees

Vale o que dissemos tudo aquilo que a travessia perceptiva regista como invariaacutevel e

constante eacute ldquoarrastadordquo na projecccedilatildeo de homogeneidade entre o campo de familiaridade e o

seu exterior e posto a valer como determinaccedilatildeo deste exterior

Ora para isto acontecer natildeo eacute necessaacuteria nenhuma consciecircncia expliacutecita das determi-

naccedilotildees em causa da operaccedilatildeo de projecccedilatildeo que estaacute a ter lugar a seu respeito de que vemos o

exterior do campo de familiaridade preenchido com essas determinaccedilotildees etc trata-se de uma

operaccedilatildeo inteiramente realizada de forma confusa na ausecircncia de qualquer consciecircncia distin-

ta das determinaccedilotildees em questatildeo E apesar de tudo isso de modo nenhum diminui ou enfra-

quece o caraacutecter absolutamente decidido e a eficaacutecia desta projecccedilatildeo (o facto de vermos se-

gundo ela e de o seu resultado estar sempre jaacute a preencher ndash e assim a domesticar o exterior

do campo de familiaridade)

Em suma tenhamos ou natildeo consciecircncia disso o campo de aparecimento em que esta-

mos constituiacutedos tem a forma de um colossal arredondamento ou de uma colossal operaccedilatildeo

de amostragem que toma como base os dados recolhidos na travessia perceptiva (que consti-

tuem na verdade uma muito exiacutegua base de amostragem) e os converte em princiacutepios de um

reconhecimento global da realidade com uma amplitude absolutamente desproporcionada re-

lativamente agrave base de que parte e em que se sustenta Nos termos e pelo motivos que procu-

raacutemos pocircr em evidecircncia eacute a experiecircncia (o fenoacutemeno da projecccedilatildeo empiacuterica) que potildee tudo is-

to de peacute

Neste momento haacute que tocar um ponto que natildeo cabe discutir demoradamente mas que

eacute indispensaacutevel abordar

256

Vimos numa secccedilatildeo anterior que haacute a possibilidade de o aparecimento em que damos

connosco ter uma constituiccedilatildeo transcendental de tal modo que todas as suas fixaccedilotildees (todas

as suas determinaccedilotildees todas as suas teses) descendem de um nuacutecleo de fixaccedilatildeo universal

Se assim for isso significa que a proacutepria experiecircncia tem lugar no quadro de qualquer

coisa como uma antecipaccedilatildeo transcendental em cujo quadro e sob cujo efeito ela proacutepria se

move ndash de tal modo que diz respeito apenas agrave aquisiccedilatildeo de perspectivas especiacuteficas sempre jaacute

genericamente moldadas por este nuacutecleo de fixaccedilatildeo transcendental

Por outro lado se for assim isso parece significar que o preenchimento do exterior do

campo de familiaridade natildeo resulta de projecccedilotildees empiacutericas ndash na verdade jaacute estaacute assegurado

pelo caraacutecter universal da projecccedilatildeo transcendental74

Isso significa se natildeo estamos em erro o seguinte

Mesmo que naturalmente haja uma significativa diferenccedila entre o exterior do campo

de familiaridade estar exclusivamente preenchido por projecccedilotildees empiacutericas ou ter um fundo

74

Natildeo vamos discutir aqui este problema natildeo soacute porque natildeo caberia fazecirc-lo mas tambeacutem porque na

verdade natildeo eacute indispensaacutevel para se estabelecer o fundamental do que aqui estaacute em causa Com efeito

mesmo que se verifique que o modelo transcendental eacute que capta bem a forma como estaacute constituiacutedo o

aparecimento em que damos connosco isso significa que independentemente de qualquer experiecircncia

jaacute haacute um nuacutecleo de determinaccedilotildees a preencher o exterior do campo de familiaridade mas natildeo impede

que ao mesmo tempo o exterior do campo de familiaridade tambeacutem esteja preenchido por uma pro-

jecccedilatildeo de homogeneidade como aquela que aqui descrevemos E eacute relativamente faacutecil verificar que de

facto mesmo que o aparecimento tenha uma constituiccedilatildeo transcendental o preenchimento do exterior

do campo de familiaridade natildeo estaacute feito apenas por determinaccedilotildees transcendentais mas tambeacutem por

determinaccedilotildees empiacutericas resultantes da travessia perceptiva e de uma projecccedilatildeo empiacuterica de homoge-

neidade com as caracteriacutesticas que tentaacutemos pocircr em evidecircncia Assim se considerarmos por exemplo

as situaccedilotildees postas em cena po Swift nas Viagens de Gulliver mais propriamente na primeira e na se-

gunda viagens verificamos que o que estaacute em causa nessas situaccedilotildees eacute uma variaccedilatildeo do padratildeo dimen-

sional das realidades no espaccedilo (ou mais precisamente uma variaccedilatildeo do padratildeo dimensional de unida-

des colectivas de determinaccedilotildees) Este padratildeo dimensional natildeo tem nada de transcendental ndash depende

de doaccedilotildees (do facto de os objectos as unidades colectivas de determinaccedilotildees estarem constituiacutedas

com um determinado recorte ndash que consente alternativas como justamemente sucede em Lilliput e

Brobdingnag) Mas por outro lado o que eacute claramente mostrado quando Gulliver chega a Lilliput ou

Brobdingnag eacute que o padratildeo dimensional registado como invariaacutevel ou constante na travessia percepti-

va eacute integrado na projecccedilatildeo de homogeneidade De sorte que mesmo que natildeo tenhamos qualquer

consciecircncia disso no momento em que entramos em contacto com Lilliput ou Brobdingnag haacute a sur-

presa resultante do choque entre a atnecipaccedilatildeo do padratildeo dimensional que estaacute inexplicitamente posto

a valer para tudo e o nosso padratildeo dimensional que reina respectivamente em Lilliput e Brobdingnag

E o mesmo se pode verificar a respeito de outras determinaccedilotildees empiacutericas

257

de preenchimento transcendental o resultado que em uacuteltima anaacutelise adveacutem em qualquer

destes casos eacute em grande parte idecircntico porque de todo o modo a haver um preenchimento

transcendental ele estaacute acompanhado por uma espessa camada de determinaccedilotildees resultantes

de projecccedilatildeo empiacuterica De sorte que mesmo nessas condiccedilotildees vale exactamente o que disse-

mos o que quer que seja que a travessia perceptiva registe como constante ou invariaacutevel eacute au-

tomaticamente integrado no patrimoacutenio de determinaccedilotildees e teses que a projecccedilatildeo de homoge-

neidade potildee a valer para o exterior do campo de familiaridade

Visto isto estamos agora em condiccedilotildees de perceber melhor como agrave diferenccedila relativa

ao niacutevel de determinaccedilatildeo do que aparece se vecircm juntar outras diferenccedilas relevantes o exterior

do campo de familiaridade natildeo eacute soacute incomparavelmente menos definido ou incomparavel-

mente mais confuso do que o campo de familiaridade ndash na verdade estaacute numa posiccedilatildeo global-

mente subordinada a ele

Em certo sentido o exterior do campo de famliaridade tem o caraacutecter de um fundo

(como que de um cenaacuterio ou de um uacuteltimo plano) que ajuda a determinar a forma relativa-

mente agrave qual serve de fundo mas de tal modo que se esgota nessa funccedilatildeo de apoio Trata-se de

uma periferia (de uma periferia esmagadoramente mais ampla do que o territoacuterio principal do

aparecimento relativamente ao qual ocupa essa posiccedilatildeo perifeacuterica mas que o caraacutecter centra-

do da oacuteptica que nos domina potildee longe e numa relaccedilatildeo de forccedilas com o centro do aparecimen-

to que eacute a inversa das respectivas dimensotildees)

Por outro lado tudo isto mostra tambeacutem que a subalternizaccedilatildeo do exterior do campo

de familiaridade natildeo passa apenas pelo nexo de subordinaccedilatildeo em virtude do qual tudo o que o

rodeia tem um caraacutecter como que adjectivo em relaccedilatildeo ao campo de familiaridade

De facto este nexo de subalternizaccedilatildeo estaacute associado a um nexo de diminuiccedilatildeo da im-

portacircncia

Como vimos nada impede que o proacuteprio campo de familiaridade esteja organizado

numa multiplicidade de planos de maior e menor importacircncia

Mas sendo assim o contraste entre o campo de familiaridade e o exterior (sc o campo

de homogeneidade que o rodeia) eacute tambeacutem um contraste quanto ao niacutevel de importacircncia o

exterior do campo de familiaridade tem em regra iacutendices de importacircncia mais fracos do que

aqueles que afectam mesmo os sectores menos relevantes do campo de familiaridade

Naturalmente que haacute aqui qualquer coisa como um decrescendo com fronteiras cada

vez menos vincadas e com progressivo esbatimento dos contrastes agrave medida que a tensatildeo de

258

relevacircncia se vai aproximando dos niacuteveis iacutenfimos Mas isso natildeo impede que mesmo assim a

falta de relevacircncia e o apagamento seja mais acentuado e mais maciccedilo no exterior do campo

de familiaridade do que dentro das suas fronteiras

Em certo sentido pode-se inclusivamente dizer que uma das principais fontes da rele-

vacircncia do exterior do campo de familiaridade eacute o caraacutecter ldquodinacircmicordquo da relaccedilatildeo com ele ndash a

instabilidade das fronteiras entre os dois domiacutenios

Expliquemo-nos melhor sobre este ponto

Vimos que a relaccedilatildeo com o campo perceptivo tem um caraacutecter dinacircmico ndash trata-se de

uma travessia (o que antes era centro deixa de o ser o foco perceptivo passa a estar ocupado

por um outro campo de realidade etc)

A constituiccedilatildeo do proacuteprio campo de familiaridade passa por este fenoacutemeno ndash quer di-

zer a) o campo de familiaridade resulta dele (natildeo haveria diferenccedila entre o campo perceptivo

e o campo de familiaridade se natildeo estivessemos sujeitos a esta peculiar mobilidade) e b) o

campo de familiaridade estaacute organizado em funccedilatildeo desta mobilidade ndash em permanente anteci-

paccedilatildeo dela e da travessia que lhe corresponde

Mas por outro lado mesmo que o campo de familiaridade tenha que ver com um fe-

noacutemeno de relativa sedentariedade do olhar que se fixa num territoacuterio natildeo estaacute excluiacuteda

(mas de facto sempre prevista por antecipaccedilatildeo empiacuterica) a possibilidade de sair do campo de

familiaridade e de entrar em contacto com o seu exterior

Isso pode acontecer por diversas razotildees entre as quais se encontram aquelas que tecircm

que ver com o interesse (com a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila) e com a possibilidade de aquilo de

que se precisa ficar justamente no exterior do campo de familiaridade (de tal modo que estaacute

constituiacutedo em campo de familiaridade possiacutevel)

Ora eacute esta potencialidade do exterior do campo de familiaridade ndash o facto de aquilo

que se situa nele poder vir a entrar no territoacuterio principal do aparecimento ou a converter-se

em parte do territoacuterio principal do aparecimento que lhe confere ainda assim um potencial de

importacircncia O exterior do campo de familiaridade teria ainda menos relevo se natildeo houvesse

este jogo de possibilidades ndash esta tensatildeo da permuta possiacutevel no que diz respeito agraves funccedilotildees

que pode vir a desempenhar na vida

Tudo isto leva-nos enfim a um ponto que ainda falta considerar e que diz respeito agrave

constituiccedilatildeo da experiecircncia e ao nexo entre a experiecircncia (a experiecircncia que constantemente

259

se estaacute a fazer a experiecircncia que constantemente se estaacute a urdir) e estes diversos factores do

horizonte de aparecimento em que damos connosco

Observaacutemos anteriormente que tal como tem lugar em noacutes a travessia perceptiva to-

ma a forma da experiecircncia e desenvolve uma permanente actividade de colaccedilatildeo empiacuterica (ie

de colaccedilatildeo relativa agrave constituiccedilatildeo da ἐμπειρία de colaccedilatildeo relativa agrave tessitura empiacuterica)

Num primeiro passo referimos que essa colaccedilatildeo tem que ver com uma permanente re-

colha de dados relativos ao campo perceptivo ao confronto entre esses dados e as antecipa-

ccedilotildees empiacutericas que jaacute os precediam (as antecipaccedilotildees empiacutericas a montante) agrave sua confirma-

ccedilatildeo ou infirmaccedilatildeo e agrave obtenccedilatildeo daquilo que se pode descrever como as projecccedilotildees empiacutericas a

jusante das percepccedilotildees em causa ndash tudo isto no que diz respeito ao campo perceptivo de que

de cada vez se trata

Num segundo passo procuraacutemos pocircr evidecircncia que esta contiacutenua actividade de reco-

lha e preparaccedilatildeo de projecccedilotildees empiacutericas natildeo se cinge ao campo perceptivo sucede em vez

disso que a travessia perceptiva estaacute continuamente envolvida no trabalho de entretecimento

das projecccedilotildees empiacutericas relativas ao campo de familiaridade de tal modo que funciona ao

mesmo tempo como terminus ad quem e terminus a quo dessa urdidura

Mas o que agora ganha contornos relativamente niacutetidos eacute que algo de equivalente se

passa tambeacutem em relaccedilatildeo ao proacuteprio exterior do campo de familiaridade e agrave projecccedilatildeo de

homogeneidade

Sem que tenhamos consciecircncia disso a ἐμπειρία estaacute permanentemente a processar o

registo do que eacute absolutamente constante ou invariaacutevel na travessia perceptiva e a produzir a

sua obra de corroboraccedilatildeo ou transfiguraccedilatildeo da projecccedilatildeo de homogeneidade que tem por ba-

se esse registo

O conceito mais comum de ldquoexperiecircnciardquo e a miopia de que padece em relaccedilatildeo agravequilo

que efectivamente constitui a experiecircncia fazem que associemos o fenoacutemeno da experiecircncia

a) a algo de mais ou menos imediato proacuteximo e b) a algo mais ou menos avulso Mas o que

aqui se desenha eacute justamente que natildeo eacute assim

Por um lado a experiecircncia que tem lugar em noacutes natildeo eacute apenas relativa ao mais ime-

diato como acabamos de ver a sua aacuterea estende-se ao mais longiacutenquo

260

Por outro lado a experiecircncia que tem lugar em noacutes tambeacutem natildeo eacute apenas relativa a as-

pectos avulsos na forma que acabamos de tentar pocircr em foco tem pelo contraacuterio ndash e tem per-

manentemente ndash um caraacutecter total

Eacute por isso que a referecircncia aos trecircs registos em que se articula o campo do apareci-

mento (o campo perceptivo o campo de familiaridade e o exterior do campo de familiarida-

de) natildeo desenha apenas o enquadramento da experiecircncia tal como tem lugar em noacutes (natildeo de-

senha apenas a morfologia do meio em que tem lugar etc)

De facto eacute muito mais do que isso a experiecircncia que temos eacute sempre simultaneamen-

te uma experiecircncia do campo perceptivo uma experiecircncia do campo de familiaridade e uma

experiecircncia do exterior do campo de familiaridade ndash e nunca eacute experiecircncia de menos do que

isso

Isto tem que ver aliaacutes com o fenoacutemeno fundamental que estaacute no centro da nossa in-

vestigaccedilatildeo a experiecircncia tem em noacutes um caraacutecter tal que eacute sempre experiecircncia da vida

Eacute isso que estaacute aqui em causa

Por um lado a experiecircncia eacute sempre experiecircncia da totalidade assim constituiacuteda (do

campo perceptivo do campo de familiaridade e do exterior do campo de familiaridade sus-

tentando entre si os nexos ou a articulaccedilatildeo que procuraacutemos pocircr em evidecircncia)

Por outro lado a totalidade assim constituiacuteda (do campo perceptivo do campo de fa-

miliaridade e do exterior do campo de familiaridade sustentando entre si os nexos ou a articu-

laccedilatildeo que procuraacutemos pocircr em evidecircncia) eacute a forma daquilo a que chamamos vida ndash ou como

veremos no seguimento um dos aspectos fundamentais que caracteriza a forma daquilo a que

chamamos vida

Por distracccedilatildeo podemos ndash e na verdade ateacute tendemos a ndash deixar despercebido este as-

pecto e a compreender o horizonte do aparecimento e o campo da experiecircncia com que esta-

mos em contacto a) como se natildeo tivesse dimensotildees tatildeo amplas como aquilo que procuraacutemos

mostrar e b) como se fosse homogeacuteneo

Mas vendo bem o campo de aparecimento com que lidamos tem sempre a extraordi-

naacuteria amplitude que procuraacutemos vincar ndash e a proacutepria experiecircncia tem sempre ndash tem em cada

momento ndash a amplitude total que dissemos

A proacutepria vida tem essa amplitude

261

Por outro lado o que caracteriza esta imensa multiplicidade eacute o estar articulada da for-

ma que tentaacutemos descrever ndash e tanto quer dizer ao mesmo tempo o facto de estar constituiacuteda

como uma multiplicidade centrada O campo de aparecimento tem em noacutes a forma de uma

multiplicidade centrada a experiecircncia tem a forma de uma multiplicidade centrada

A proacutepria vida tem a forma de uma multiplicidade centrada

Ou para sermos mais precisos o aparecimento a experiecircncia e a vida tecircm a forma do

complexo centramento que passa ao mesmo tempo a) pelo centramento transitoacuterio no campo

perceptivo e b) pelo centramento permanente no campo de familiaridade que constitui como

dissemos o territoacuterio principal (do aparecimento da experiecircncia e da vida) Tudo isto de tal

modo que o nuacutecleo assim constituiacutedo (o nuacutecleo do campo perceptivo e do campo de familiari-

dade) eacute o nuacutecleo de uma periferia indefinidamente extensa preenchida por determinaccedilotildees cor-

respondentes a uma global projecccedilatildeo de homogeneidade

Com isto fica mais nitidamente desenhado aquilo que tiacutenhamos em vista quando se di-

zia a) que o aparecimento e a experiecircncia com que estamos familiarizados correspondem a um

ponto de vista (a uma conformaccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia entre muitas outras pos-

siacuteveis a qualquer coisa como uma anamorfose) e b) que esse ponto de vista (essa conforma-

ccedilatildeo particular essa anamorfose) tambeacutem passa por uma determinada articulaccedilatildeo entre os vaacute-

rios sectores do campo de aparecimento ou do campo de experiecircncia para que estamos aber-

tos

Ao referir este uacuteltimo ponto dissemos que a combinaccedilatildeo especiacutefica a que corresponde

o aparecimento e a experiecircncia que noacutes temos natildeo passa apenas por uma determinada sintoni-

zaccedilatildeo dos diversos factores que passaacutemos em revista mas tambeacutem pelo facto de a sintoniza-

ccedilatildeo dos diferentes factores (acuidade grau de confusatildeo nexos de subordinaccedilatildeo importacircncia

etc) mudar consoante os sectores do campo de aparecimento e de experiecircncia com que esta-

mos em contacto ndash o qual estaacute marcado por uma multiplicidade de anisotropias sobrepostas

que tambeacutem fazem a sua especificidade (quer dizer tambeacutem correspondem a uma forma pe-

culiar de combinaccedilatildeo ndash como dissemos a uma combinaccedilatildeo de combinaccedilotildees)

Assim a organizaccedilatildeo do campo de aparecimento num campo perceptivo num campo

de familiaridade e num exterior do campo de familiaridade com estas caracteriacutesticas ndash esta

peculiar forma a) de articulaccedilatildeo ou segmentaccedilatildeo do campo global do aparecimento e da expe-

riecircncia e b) de nexo entre os segmentos assim constituiacutedos ndash representa uma combinaccedilatildeo entre

262

outras possiacuteveis (a que corresponderiam quadros de aparecimento e de experiecircncia muito sig-

nificativamente diferentes daquele com que estamos familiarizados)

Acontece que estamos tatildeo profundamente habituados a esta peculiar forma de organi-

zaccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia (tatildeo dominados por ela e pelo que nos parece ter de

oacutebvia) e estamos ao mesmo tempo tatildeo distraiacutedos em relaccedilatildeo agravequilo que a constitui (tatildeo inad-

vertidos relativamente aos diversos factores que a compotildeem) que natildeo nos apercebemos do

que tem de contingente e de passiacutevel de alternativa Ora de facto como procuraacutemos pocircr em

evidecircncia trata-se de uma forma muito particular de aparecimento e de experiecircncia que em

muitos aspectos consente muitas alternativas

263

SEGUNDA PARTE

sect30

A tentativa de remontar agrave origem da morfologia e da sintaxe da experiecircncia como tenta-

tiva condenada ndash A morfologia de toda a experiecircncia daacute lugar a uma sintaxe de toda a ex-

periecircncia

O nosso proacuteximo passo deve procurar aprofundar o complexo de elementos fixos que

intervecircm de forma decisiva na conformaccedilatildeo da experiecircncia da vida Mas antes de avanccedilar-

mos haacute que fazer algumas precisotildees sobre a natureza daquilo que procuraacutemos pocircr em evidecircn-

cia

Para um olhar menos atento as tentativas de descriccedilatildeo ou anaacutelise que levaacutemos a cabo

nas secccedilotildees anteriores podem prestar-se a ser confundidas com um levantamento da origem

da experiecircncia Ora devemos sublinhar que natildeo se trata aqui de realizar nenhum levantamen-

to dessa ordem ndash que a perspectiva que procuramos desenvolver nada tem de geneacutetica

Eacute certo que o que estaacute em curso eacute a identificaccedilatildeo dos elementos que desempenham um

papel significativo na constituiccedilatildeo da experiecircncia da vida (se assim se pode dizer a sua mor-

fologia e a sua sintaxe) Poreacutem isso natildeo significa de modo nenhum que nos debrucemos so-

bre a questatildeo da respectiva origem desses elementos

Se por um lado o que aqui estaacute em curso eacute a identificaccedilatildeo de um conjunto de estrutu-

ras que marcam a experiecircncia da vida (cuja consideraccedilatildeo eacute por isso indispensaacutevel se se pro-

curar compreender como eacute que ela estaacute constituiacuteda) por outro lado natildeo procuramos de modo

nenhum determinar de onde vecircm estas estruturas (como emergem a partir da sua ausecircncia o

que as edifica se se constituem todas ao mesmo tempo ou se haacute precedecircncia de umas em rela-

ccedilatildeo agraves outras etc)

O que pretendemos vincar eacute justamente que onde damos connosco estamos sempre jaacute

para caacute dessas estruturas ndash a jusante delas sob o seu efeito etc

264

Por outras palavras o que caracteriza a posiccedilatildeo em que nos encontramos ou a perspec-

tiva que noacutes temos eacute o facto de natildeo se tratar de uma perspectiva neutra de um puro espectador

cognitivo em posiccedilatildeo de assistir (na oacuteptica soberana de um puro espectador cognitivo) agrave sua

proacutepria geacutenese ndash de tal modo que acompanha adequadamente sem qualquer impedimento ou

distracccedilatildeo as etapas do desenvolvimento que acabou por levar agrave perspectiva em que se acha

O que se passa eacute algo muito diferente

O proacuteprio olhar que realiza o inqueacuterito aqui em causa estaacute irreversivelmente cunhado

pelas estruturas que tentamos pocircr em relevo ndash tem-nas sempre jaacute instaladas em si e vecirc sempre

jaacute segundo elas De onde resulta que qualquer tentativa de remontar agrave respectiva ausecircncia e de

reconstituir o que havia antes do seu advento estaacute irremediavelmente condenada

Por um lado o olhar que realiza o inqueacuterito estaacute condenado a ilusotildees de oacuteptica se natildeo

se der conta disso (ie se natildeo der conta de como projecta tacitamente na reconstituiccedilatildeo das

etapas mais elementares da escala de desenvolvimento de perspectivas os modos de olhar re-

sultantes daquilo que nessa escala oculta posiccedilotildees mais cimeiras) De sorte que na reconsti-

tuiccedilatildeo do ldquomenosrdquo jaacute potildee inadvertidamente o ldquomaisrdquo

Vimos este ponto ao analisar em que medida temos ou natildeo temos acesso a um ponto

de vista puramente esteacutesico ou puramente mneacutesico E o que importa vincar aqui eacute que exacta-

mente o mesmo se aplica mutatis mutandis agraves estruturas que agora estamos a considerar e ao

que poderaacute ter estado na sua origem

Por outro lado se se apercebe destas dificuldades o olhar que realiza o inqueacuterito estaacute

condenado a natildeo tentar montar nenhuma reconstituiccedilatildeo geneacutetica a perceber que o plano em

que se encontra pode muito bem ter um ldquoantesrdquo e um ldquopara laacute de sirdquo mas que o proacuteprio olhar

em causa estaacute privado de qualquer efectivo acesso a esse ldquoantes de sirdquo ou ldquopara laacute de sirdquo que

teria de estar em causa numa perspectiva geneacutetica

Assim pode dizer-se que natildeo procuramos aqui averiguar que ldquoexperiecircnciardquo ndash que tra-

vessia de perspectiva ndash leva na sua origem ao quadro de ldquoexperiecircncia da vidardquo que aqui ten-

tamos descrever natildeo procuramos aqui determinar que saltos ou descontinuidades satildeo galga-

dos nesse processo ndash que caminho leva do ldquozerordquo ateacute agravequilo que aqui procuramos pocircr em fo-

co

Tocamos o que se pode descrever como um quadro ndash um quadro de morfologia e sin-

taxe da experiecircncia da vida ndash que se caracteriza por estar ldquosempre jaacute caacuterdquo

265

Ateacute onde remonta o nosso contacto com aquilo que pertence agrave esfera em que damos

connosco todo o horizonte jaacute estaacute marcado pela presenccedila desses elementos (estruturados des-

te modo determinados por esta composiccedilatildeo etc) Nesse sentido pode-se falar de qualquer

coisa como um ldquosempre jaacuterdquo faacutectico ndash e nesse sentido de um ldquoa priorirdquo faacutectico

Quer dizer desde o seu comeccedilo que o curso da experiecircncia da vida (ie todo o curso

da vida enquanto tem sempre a forma de uma experiecircncia da vida) se move neste quadro ndash no

quadro resultante da conjugaccedilatildeo dos elementos que aqui procuramos pocircr em foco Eacute nesse

sentido que falamos de um ldquoa priorirdquo

Mas por outro lado falamos desse a priori apenas no sentido de todas as nossas pers-

pectivas se situarem sempre jaacute a jusante da interposiccedilatildeo destes elementos estruturais num ter-

ritoacuterio jaacute cunhado por eles

Natildeo podemos excluir a) que o quadro que assim procuramos identificar e descrever te-

nha a sua origem num processo de aquisiccedilatildeo de perspectiva b) que esse processo tambeacutem

possua o caraacutecter de uma travessia e que por isso c) numa acepccedilatildeo muito lata tambeacutem possa

ser qualificado como ldquoexperiecircnciardquo

Pelas razotildees que dissemos natildeo estamos em condiccedilotildees de reconstituir nada disso de

forma adequada Nesse sentido mesmo que expressatildeo possa parecer contraditoacuteria falamos de

um ldquoa priori faacutecticordquo (de uma forma peculiar de a priori que tem esse caraacutecter precisamente

por causa da finitude da nossa perspectiva)

Feita esta advertecircncia estamos agora em condiccedilotildees de avanccedilar para a consideraccedilatildeo

dos outros aspectos que eacute indispensaacutevel ter em atenccedilatildeo se se quer compreender minimamente

como se acha constituiacuteda a experiecircncia da vida

O que acabamos de ver nas secccedilotildees anteriores tem um caraacutecter meramente preliminar

e natildeo faz mais do que ldquolevantar uma ponta do veacuteurdquo Contudo ndash se o propoacutesito eacute tentar perce-

ber um pouco melhor como estaacute constituiacutedo em noacutes o fenoacutemeno da experiecircncia ou como toda

a experiecircncia que temos eacute sempre jaacute de facto experiecircncia da vida ndash apesar de tudo o que

tem de sumaacuterio e incompleto o que acabamos de ver aponta jaacute a direcccedilatildeo a seguir

Um dos aspectos que ficam claramente desenhados a partir do que se viu eacute precisa-

mente o facto de a experiecircncia se definir sempre por um complexo de elementos (como os di-

versos aspectos que sucessivamente consideraacutemos no capiacutetulo anterior) que conjuntamente fi-

xam o modo como a experiecircncia se produz e aquilo que dela resulta ndash aquilo de que a expe-

riecircncia eacute experiecircncia ou o que aparece na experiecircncia

266

Foi esse antes do mais o sentido das anaacutelises a que procedemos nas secccedilotildees anterio-

res mesmo que toda a experiecircncia tenha sempre enquanto experiecircncia as caracteriacutesticas que

procuraacutemos pocircr em evidecircncia na primeira parte ela pode ser coisas muito diferentes consoan-

te aquilo que se passa com os diferentes aspectos que passaacutemos em revista

Assim as muacuteltiplas diferentes experiecircncias possiacuteveis diferem quanto agrave sua amplitude

mas definem-se sempre por uma determinada amplitude contrastam quanto ao alfabeto de

determinaccedilotildees a que recorrem mas definem-se sempre por envolver um determinado alfabeto

de determinaccedilotildees podem envolver soacute coordenaccedilatildeo ou tambeacutem subordinaccedilatildeo ndash e diferentes

formas de subordinaccedilatildeo ndash mas definem-se sempre tambeacutem por ter uma determinada confor-

maccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo eou de subordinaccedilatildeo das suas determinaccedilotildees etc

Quer dizer tudo o que dissemos mesmo que esteja focado na chamada de atenccedilatildeo pa-

ra a variabilidade ndash ie mesmo que a sua principal preocupaccedilatildeo tenha sido chamar a atenccedilatildeo

para o facto de a) haver muito diversas experiecircncias possiacuteveis de b) o contraste entre elas

passar por diversas frentes de diferenccedilas e de c) em cada frente dessas (ie para cada variaacute-

vel) haver uma multiplicidade de conformaccedilotildees ndash aponta ao mesmo tempo para qualquer coi-

sa como uma constacircncia de elementos em referecircncia agrave qual se situa a variaccedilatildeo

Na verdade os passos que demos ateacute agora admitem que se fale de algo como uma

morfologia de toda a experiecircncia

Por ldquomorfologia de toda a experiecircnciardquo entende-se a multiplicidade destes factores

que conjuntamente moldam toda a experiecircncia ndash que moldam cada experiecircncia ndash e que satildeo

por assim dizer inerentes agrave sua constituiccedilatildeo Isto de tal modo que eacute justamente o diferente

preenchimento ou a diferente modulaccedilatildeo ndash a diferente contracccedilatildeo ndash de cada um destes facto-

res fixos e inerentes que produz as variaccedilotildees de que se falou (e nessa medida produz as vaacute-

rias conformaccedilotildees que a experiecircncia pode assumir)

Ora eacute este quadro morfoloacutegico de factores constantes e de variaccedilatildeo na determinaccedilatildeo

deles ndash enquanto cada um tem de estar presente (e tem de estar presente com um determinado

valor com uma determinada fixaccedilatildeo de si etc) mas pode precisamente variar quanto agrave fixa-

ccedilatildeo (quanto ao ldquovalorrdquo) que concretamente assume ndash que se trata de tentar perceber um pouco

melhor na continuaccedilatildeo

Tratar-se-aacute em suma de aperfeiccediloar o levantamento desta morfologia tanto no que

diz respeito a) a uma identificaccedilatildeo tatildeo completa quanto possiacutevel dos factores constantes que

tecircm relevo na conformaccedilatildeo da experiecircncia quanto no que diz respeito b) a uma identificaccedilatildeo

267

tatildeo completa quanto possiacutevel dos ldquovaloresrdquo (ou das diferentes conformaccedilotildees) que cada uma

delas pode assumir quanto por fim c) no que diz respeito a uma determinaccedilatildeo das caracte-

riacutesticas proacuteprias da forma da experiecircncia em que habitualmente nos achamos ldquoembarcadosrdquo

Ora aquilo que se veraacute melhor na continuaccedilatildeo eacute que esta morfologia de constantes e

variaacuteveis da constituiccedilatildeo da experiecircncia daacute lugar a qualquer coisa como uma ldquosintaxerdquo ndash uma

sintaxe que diz respeito ao modo como estas diferentes componentes morfoloacutegicas se articu-

lam entre si (ie ao modo como estas diferentes componentes convergem na composiccedilatildeo da

experiecircncia)

E isto de tal maneira que para compreender de maneira mais eficaz o fenoacutemeno da

experiecircncia ou como a experiecircncia que temos eacute sempre jaacute de facto experiecircncia da vida natildeo

interessa apenas um levantamento tanto do que eacute constante quanto do que eacute variaacutevel De fac-

to para se atingir esse propoacutesito eacute necessaacuterio tambeacutem um exame cuidadoso da forma de arti-

culaccedilatildeo entre os diferentes elementos morfoloacutegicos que caracterizam a forma de experiecircncia

que nos eacute proacutepria

Como dissemos o levantamento preliminar feito nas secccedilotildees anteriores jaacute potildee na pista

de alguns aspectos fundamentais Trata-se agora de os aprofundar e ao mesmo tempo de os

completar para obter um ldquoretratordquo tatildeo fiel quanto possiacutevel do que faz a experiecircncia ndash tanto

em geral quanto no nosso caso ndash e do que estaacute em causa nela

sect31

Aquilo que aparece sob a pressatildeo de satisfazer a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que o perpas-

sa ndash A estrutura de complexidade do aparecer algo-a-aparecer-a-algo ndash A focagem da compo-

nente testemunhal

Viu-se anteriormente que o acontecimento do aparecimento natildeo eacute um acontecimento

isento de pressatildeo Um aparecimento isento de pressatildeo estaria marcado por uma total indife-

renccedila em relaccedilatildeo ao que quer que fosse que se passasse no proacuteprio aparecimento Poreacutem o

que acontece connosco estaacute nos antiacutepodas disso

Por um lado haacute pressatildeo ndash ie haacute algo muito diverso de total indiferenccedila em relaccedilatildeo

ao proacuteprio aparecimento E haacute pressatildeo a) quanto a haver aparecimento (quanto agrave continuaccedilatildeo

268

do proacuteprio aparecimento) e b) quanto ao teor do aparecimento (quanto a haver ou natildeo apareci-

mento disto e daquilo para que tenha este e aquele teor e natildeo um outro etc)

O terreno em que nos movemos eacute para o dizer muito sumariamente um terreno de

aparecimento com programa

O que vemos eacute que o aparecimento estaacute perpassado por esse programa por uma ten-

satildeo de natildeo-indiferenccedila (pela tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que corresponde a esse programa)

Neste sentido tudo o que aparece vem tomar lugar no terreno dessa pressatildeo de natildeo-indife-

renccedila (vem responder a ela eacute visto agrave luz dela etc)

Isso significa que o teor do que aparece estaacute posto sob essa pressatildeo chamado a dar-lhe

cumprimento Quer dizer aquilo que aparece estaacute sob a pressatildeo de satisfazer a tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila que o perpassa de tal modo que como aparecer (e como aparecer com este e

aquele teor etc) a satisfaz ou natildeo ndash e a satisfaz deste ou daquele modo neste ou naquele

grau etc)

Por outras palavras no nosso caso em vez de ser apenas aparecimento o aparecimen-

to eacute como que o ldquolugarrdquo de encontro entre por um lado a peticcedilatildeo de que a tensatildeo de natildeo-

indiferenccedila eacute portadora e por outro aquilo que se oferece a ela (o que aparece enquanto o

que aparece eacute isso com que a peticcedilatildeo se defronta etc)

Daqui decorre que a determinaccedilatildeo do que aparece natildeo eacute pura e simplesmente a do seu

proacuteprio teor mas antes aquela que decorre do modo como o teor do que aparece correspon-

de ou natildeo agrave pressatildeo de natildeo-indiferenccedila que sobre ele recai (agrave pressatildeo em cujo contexto ndash em

cujo ldquodomiacuteniordquo sobre cujo ldquoimpeacuteriordquo etc ndash aparece)

Podemos exprimir tudo isto dizendo que o campo de aparecimento em que nos acha-

mos tem a forma de um encaminhamento (de um a-caminho etc)

Natildeo se trata de um ldquoaparecerrdquo que se esgota em si mesmo Sucede em vez disso que

o proacuteprio ldquoaparecerrdquo tem em si mesmo a forma de uma demanda ou de um empreendimento

no qual estaacute em causa alcanccedilar algo Eacute isso que quer dizer a noccedilatildeo de ldquonatildeo-indiferenccedilardquo que

aqui trazemos

O que isto quer dizer eacute que estamos constituiacutedos no modo de uma pressatildeo de indaga-

ccedilatildeo de uma tensatildeo de requerimento de procura ndash ou como tambeacutem podemos dizer estamos

constituiacutedos perante o que aparece na forma de uma peticcedilatildeo E na verdade justamente na for-

269

ma de uma peticcedilatildeo que sempre ainda o eacute e estaacute aqueacutem de ser plenamente satisfeita (estaacute sem-

pre em tensatildeo para a obtenccedilatildeo de ldquorespostardquo etc)

Neste sentido interessa determinar no que aparece se ou de que forma o que aparece

providencia a resposta para a peticcedilatildeo (ou o complexo de peticcedilotildees) em que estamos constituiacute-

dos ndash mas precisamente de tal modo que o que aparece se daacute sempre num territoacuterio conforma-

do por essa peticcedilatildeo e tem como determinaccedilatildeo fundamental o papel que desempenha em rela-

ccedilatildeo a essa peticcedilatildeo (ou a esse complexo de peticcedilotildees) que nos domina

Eacute isso que faz que o terreno da experiecircncia seja tudo menos um terreno de mero regis-

to de ocorrecircncias (sc de projecccedilotildees feitas a partir de um registo de ocorrecircncias) Em vez dis-

so no nosso caso o registo de dados e a projecccedilatildeo de estados-de-coisas ndash que como vimos

constituem a experiecircncia ndash tecircm lugar no meio de qualquer coisa como um encaminhamento

(um empreendimento uma demanda uma peticcedilatildeo etc)

Mais acontece que o registo de dados e a projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes

tem lugar como momentos desse encaminhamento ou dessa demanda ndash ie tem lugar como

algo em que o que estaacute efectivamente em causa eacute um encaminhamento ou uma demanda (ie

o cumprimento do programa de natildeo-neutralidade ou natildeo-indiferenccedila em que se estaacute embarca-

do)

Sendo assim o problema que se potildee eacute o problema de saber que tensatildeo de natildeo-indife-

renccedila ou de natildeo-neutralidade (que modalidade de pressatildeo que encaminhamento ou empreen-

dimento) domina o campo de aparecimento em que damos connosco

Ora o que vimos ateacute agora ainda natildeo eacute suficiente para resolver este problema ndash nem

no que diz respeito ao modo como estaacute constituiacuteda a tensatildeo quesitiva (cuja forccedila se faz sen-

tir) nem no que diz respeito ao seu teor (agrave orientaccedilatildeo que tem ou agrave direcccedilatildeo que leva) O que

vimos na secccedilatildeo anterior eacute que a tensatildeo pode adquirir vaacuterias formas pode ser meramente

cognitiva pode ter um caraacutecter praacutetico etc Por outro lado o que vimos corresponde apenas a

uma exploraccedilatildeo preliminar ndash que permite detectar o problema mas ainda fica muito longe de

esclarecer qual a conformaccedilatildeo concreta da proacutepria tensatildeo de natildeo-neutralidade ou natildeo-indi-

ferenccedila que haacute em noacutes enquanto a proacutepria tensatildeo de natildeo-neutralidade ou natildeo-indiferenccedila

assume um papel decisivo no apare-cimento em que nos temos

Para tornar um pouco mais claro o quadro de problemas que aqui se esboccedila haacute que

focar algumas particularidades estruturais do aparecimento em que damos connosco Trata-se

de propriedades que agrave primeira vista pouco ou nada parecem ter que ver com a questatildeo da

270

natildeo-indiferenccedila Mas uma anaacutelise mais detida revelaraacute que natildeo eacute esse o caso ndash e que de facto

estas propriedades constituem a chave para se compreender a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila em

que estamos embarcados e a forma do aparecimento em que nos temos

As particularidades estruturais que importa focar tecircm que ver com um dos aspectos em

virtude dos quais o aparecer ndash tal como tem lugar em noacutes e tal como o conseguimos conce-

ber ndash eacute intrinsecamente complexo

Com efeito vendo bem por mais simples que seja (por mais reduzida que seja a sua

amplitude) todo o aparecer requer dois momentos internos implicados um no outro por um

lado algo que aparece e por outro algo a que aparece o que aparece Isto eacute o momento

ldquoalgo que aparecerdquo e o momento ldquoalgo a que aparece o que aparecerdquo satildeo factores indispensaacute-

veis componentes internos de um miacutenimo de complexidade sem a qual natildeo pode haver o proacute-

prio aparecer enquanto tal

O ldquoalgo que aparecerdquo e o ldquoalgo a que aparece o que aparecerdquo satildeo portanto momentos

irredutiacuteveis ndash momentos com um caraacutecter tal que nenhum deles basta para constituir apareci-

mento Todo o aparecer jaacute requer esta complexidade elementar dois componentes ou dois

momentos estruturais totalmente incapazes de serem um sem o outro e de se substituiacuterem um

ao outro

Assim o que aparece natildeo se pode constituir como ldquoalgo que aparecerdquo sem esse dife-

rente de si que eacute o ldquoalgo a que aparecerdquo Mas inversamente tambeacutem o ldquoalgo a que aparecerdquo

natildeo pode ter lugar sem esse diferente de si que eacute aquilo que aparece Isto eacute o momento ldquoalgo

a que aparecerdquo natildeo eacute independente do proacuteprio aparecer (natildeo eacute preacutevio a ele etc)

Trata-se na verdade de uma componente interna da complexidade intriacutenseca do apa-

recimento ndash de algo que natildeo pode ser a) sem que haja aparecimento e b) sem esse diferente de

si que se acha posto na posiccedilatildeo de lhe aparecer

Em suma aquilo para que estamos a chamar a atenccedilatildeo eacute o facto de o aparecer tal co-

mo o ldquoconhecemosrdquo ter sempre esta estrutura de complexidade irredutiacutevel que podemos ex-

primir recorrendo agrave foacutermula ldquoalgo-a-aparecer-a-algordquo ndash uma estrutura que eacute marcada pela di-

ferenccedila que separa os dois ldquoalgosrdquo em questatildeo a) o algo a aparecer e b) o algo a que aparece

A estrutura em causa eacute de tal modo marcada que vendo bem natildeo parece afectar ape-

nas o aparecimento com que estamos familiarizados Na verdade tende a parecer que se trata

de uma estrutura tatildeo inerente agrave proacutepria natureza do aparecimento enquanto tal que teraacute de

ser inerente a todo e qualquer aparecimento para poder ser aparecimento

271

Ora aquilo que aqui importa focar com particular atenccedilatildeo eacute uma destas duas compo-

nentes estruturais do proacuteprio aparecimento ndash justamente aquela componente que tem que ver

com o ldquoalgo-a-que-aparecerdquo a que podemos chamar a componente testemunhal

Podemos dar-lhe o tiacutetulo de ldquocomponente testemunhalrdquo porque o momento estrutural

aqui em causa tem que ver com o facto de o aparecimento constituir em si ndash como momento e

condiccedilatildeo de si ndash qualquer coisa como uma ldquotestemunhardquo A ldquotestemunhardquo a que aqui faze-

mos referecircncia eacute precisamente esse ldquoalgordquo que por assim dizer daacute consigo ldquoinvadidordquo pelo

proacuteprio aparecer (que tem de arrostar com ele etc) Por razotildees que resultam claras a partir do

que acabaacutemos de dizer tambeacutem podemos chamar a este momento estrutural do aparecimento

o ldquoponto de vistardquo a que aparece o que aparece

Mas haacute um aspecto essencial para se compreender o que estaacute em causa quando aqui fa-

lamos de ldquoponto de vistardquo ndash ou de momento testemunhal sempre implicado na constituiccedilatildeo do

proacuteprio aparecer enquanto tal ndash e que eacute o seguinte

Poderia suceder que cada aparecer fosse intrinsecamente complexo e fizesse sempre

parte de tal complexidade qualquer coisa como um momento testemunhal no sentido referido

mas de tal modo que cada foco de aparecer tivesse o seu proacuteprio momento testemunhal dife-

rente dos momentos testemunhais em funccedilotildees no aparecimento de outras ldquocoisasrdquo que tam-

beacutem aparecem Ora o ponto decisivo estaacute em que se fosse assim haveria ndash para evocar a ter-

minologia de Kant ndash uma multiplicidade de aparecimento mas nenhum aparecimento da mul-

tiplicidade

Quer dizer se cada foco de aparecer tivesse o seu proacuteprio momento testemunhal entatildeo

os diversos momentos de aparecimento estariam completamente fechados uns para os outros

separados uns dos outros ndash isto eacute cada um isolado na sua proacutepria esfera e sem contacto com

nada para laacute dela

A ser assim o aparecimento estaria disseminado ou disperso numa multiplicidade de

ldquomoacutenadasrdquo ndash isoladas umas das outras ndash de tal forma que cada uma teria a sua proacutepria teste-

munha que absolutamente nada teria a ver com o ldquomomento testemunhalrdquo proacuteprio de cada

uma das outras etc Ou seja cada ldquomomento testemunhalrdquo soacute teria acesso agrave sua proacutepria esfera

de aparecimento e natildeo teria absolutamente nada da esfera de aparecimento alheia ndash nem faria

a mais pequena ideia dela e inversamente a cada ldquoconteuacutedo de aparecimentordquo corresponderia

um ldquomomento testemunhalrdquo proacuteprio exclusivamente seu

272

A descriccedilatildeo deste estado-de-coisas permite perceber por contraste a que ponto aquilo

que nos caracteriza eacute de facto algo muito diferente ndash e que o terreno do aparecimento em que

se produz a experiecircncia que tem lugar em noacutes eacute um terreno com uma constituiccedilatildeo muito di-

versa

Em vez de acontecer que cada foco de aparecer tenha o seu proacuteprio ldquomomento teste-

munhalrdquo sem qualquer ligaccedilatildeo com o ldquomomento testemunhalrdquo dos outros focos sucede pelo

contraacuterio que uma vasta multiplicidade de focos de aparecimento diferentes uns dos outros

aparece a um e o mesmo momento testemunhal que desempenha as suas funccedilotildees conjunta-

mente em relaccedilatildeo a todos eles (que os testemunha a todos que estaacute em confronto com todos

que arrosta ao mesmo tempo com todos etc)

Quer dizer no nosso caso o que aparece tem a forma de uma multiplicidade e esse

aparecer conjunto de muacuteltiplos apareceres passa por um uacutenico ldquomomento testemunhalrdquo Em

suma haacute um aparecer de toda uma multiplicidade (ie haacute um horizonte de aparecimento e agrave

unidade desse horizonte ndash ao proacuteprio facto de haver um horizonte ndash corresponde essa uacutenica

ldquotestemunha globalrdquo sem a qual o proacuteprio horizonte se desfaria como que em ldquoaacutetomosrdquo de

aparecimento completamente desligados uns dos outros)

O que assim se configura tem uma conformaccedilatildeo muito peculiar com que estamos fa-

miliarizados ndash mas pode acontecer que seja justamente tatildeo familiar que natildeo salte agrave vista a sa-

ber o aparecimento tem a forma de qualquer coisa como um uacutenico horizonte total a que tudo

pertence

Por mais vincada que seja a diversidade do que aparece por mais desencontrados que

sejam os teores do que aparece por mais que possa haver fenoacutemenos de fechamento (de dis-

tacircncia ou falta de contacto entre as diferentes ldquocoisasrdquo que nos aparecem) tudo o que nos apa-

rece produz-se num quadro irredutiacutevel de conjugaccedilatildeo ou coexistecircncia ndash num quadro marcado

por um miacutenimo de co-presenccedila de tudo o que aparece a tudo o que aparece

Ou como tambeacutem podemos dizer ndash recorrendo agrave foacutermula de Kant na Dissertaccedilatildeo de

1770 ndash o aparecimento com que nos havemos estaacute tatildeo longe de corresponder a uma multipli-

cidade de aacutetomos completamente soltos desgarrados que na verdade tem sempre a forma de

uma compraeligsentia omnium75

75

Kant De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis secccedilatildeo IV Scholium

A este respeito observe-se o seguinte O conceito de compraeligsentia omnium (e de omnipraeligsentia phaelig-

nomena) eacute usado por Kant para descrever as caracteriacutesticas particulares da representaccedilatildeo do espaccedilo e

273

Isto ainda natildeo eacute tudo

Poderia haver uma compraeligsentia com um recorte limitado (um certo nuacutemero de ldquocoi-

sasrdquo que aparecem a um mesmo ldquomomento estruturalrdquo) Mas o que caracteriza o horizonte ou

a compraeligsentia omnium que estamos a tentar focar eacute o facto de corresponder a) a um horizon-

te indefinidamente aberto do aparecer e b) a um horizonte indefinidamente aberto do aparecer

em crescimento contiacutenuo

Isto eacute o aparecimento que tem lugar em noacutes estaacute constituiacutedo de tal modo que haacute sem-

pre mais e mais ldquocoisasrdquo a aparecer ndash na verdade mais e mais ldquocoisasrdquo a aparecer a cada ins-

tante E o que caracteriza esse permanente ldquomais e mais a aparecer a cada instanterdquo eacute precisa-

mente que os novos focos de aparecer se vecircm integrar no mesmo uacutenico horizonte na mesma

esfera de compraeligsentia omnium (na mesma totalidade indefinidamente aberta de diverso a

aparecer)

Acontece que se este horizonte indefinidamente aberto eacute um horizonte justamente por-

que se verifica aquilo que apontaacutemos haacute pouco (a saber porque tudo isso aparece a um uacutenico

ldquomomento testemunhalrdquo comum a tudo ndash a uma testemunha global que desempenha as fun-

ccedilotildees de ldquomomento testemunhalrdquo em relaccedilatildeo a tudo o que aparece) entatildeo o ldquomomento teste-

munhalrdquo que exerce essas funccedilotildees no nosso caso tem caracteriacutesticas muito peculiares que o

habilitam a) a abranger como um horizonte indefinidamente extenso e b) a integrar em si no

horizonte aberto para si sempre mais ldquocoisasrdquo que aparecem

da representaccedilatildeo do tempo ndash mais precisamente aquelas caracteriacutesticas que lhes atribui em resultado

da sua doutrina sobre a impossibilidade de qualquer representaccedilatildeo parcial do espaccedilo e do tempo (ou

seja de qualquer representaccedilatildeo de uma parte do espaccedilo e de uma parte do tempo que seja soacute represen-

taccedilatildeo dessa parte do espaccedilo e do tempo e natildeo inclua uma co-representaccedilatildeo por confusa que seja do

resto do espaccedilo e do resto do tempo) Por outras palavras o conceito de compraeligsentia omnium expri-

me a tese de que a representaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo tem o caraacutecter de um compositum ideale ou de

um totum analyticum cuja natureza eacute tal que a representaccedilatildeo de qualquer das suas partes implica a co-

re-presentaccedilatildeo de todas as outras

Mas sendo assim isso natildeo significa de modo nenhum que o conceito soacute possa ter esse uso relativo agraves

representaccedilotildees do espaccedilo e do tempo Na realidade a razatildeo por que Kant atribui agraves representaccedilotildees do

espaccedilo e do tempo o papel de formas da representaccedilatildeo (da representaccedilatildeo sensiacutevel) tem que ver precisa-

mente com a tese de que satildeo estas representaccedilotildees que ndash porque a) tecircm capacidade de integrar em si ou-

tras representaccedilotildees (como aquilo que ocupa o espaccedilo e o tempo) e porque b) tecircm elas mesmas a forma

de uma compraeligsentia omnium ndash constituem a compraeligsentia omnium de todas as representaccedilotildees sensiacute-

veis (uma compraeligsentia omnium justamente com as caracteriacutesticas que referimos atraacutes com uma ex-

tensatildeo indefinida e indefinidamente alargaacutevel)

274

Em resumo no nosso caso o terreno em que se produz a experiecircncia tem uma confor-

maccedilatildeo muito particular caracterizada a) pela extraordinaacuteria abertura (natildeo apenas uma multi-

plicidade de aparecimento mas uma multiplicidade muito extensa ldquoa perder de vistardquo em

crescimento contiacutenuo etc) e b) pelo facto de toda essa multiplicidade estar abrangida por um

uacutenico momento testemunhal ou um uacutenico ponto de vista ndash que na sua unidade (ou melhor na

sua unicidade) eacute co-extensivo a toda a multiplicidade indefinidamente extensa e mutaacutevel do

que aparece e tem a forma de um olhar totalmente englobante ou totalmente abrangente

Tambeacutem isto ainda natildeo eacute tudo o que interessa destacar

Eacute que poderia ser assim mas de tal modo que este ldquomomento estruturalrdquo de testemu-

nho global se achasse inteiramente absorto no exerciacutecio das suas funccedilotildees Nesse sentido po-

deria acontecer que esse momento natildeo aparecesse tambeacutem a si mesmo natildeo figurasse tambeacutem

entre o que aparece

Sucede no nosso caso precisamente o contraacuterio esse ldquomomento estruturalrdquo de teste-

munho global aparece figura entre o que aparece ndash mesmo que com uma natureza e uma po-

siccedilatildeo peculiar De tal modo que esse ldquomomento estrututalrdquo natildeo apenas aparece mas tem na

verdade de certo modo uma posiccedilatildeo protagonista

Este eacute o ponto que a partir daqui importaraacute ter presente com tanta clareza e nitidez

quanto possiacutevel

O campo de aparecimento em que nos achamos ndash o terreno em que se constitui para

noacutes a experiecircncia ndash natildeo tem apenas a forma de um campo de aparecimento (ou como disse-

mos de um horizonte) Tem tambeacutem a forma de um campo de aparecimento (de um horizon-

te) com protagonista ndash mais precisamente estaacute constituiacutedo de tal modo que tem a proacutepria tes-

temunha global (o ldquomomento estruturalrdquo do testemunho global) como protagonista

O que isto quer dizer eacute que a presenccedila desta testemunha global no meio do apareci-

mento e a arrostar com ele natildeo constitui apenas um pormenor um elemento adicional de con-

formaccedilatildeo em vez disso constitui um elemento fundamental que de facto acaba por ser reflec-

tir em ndash e por moldar ndash tudo o que aparece

Para compreender todo o complexo de fenoacutemenos de que aqui temos tentado dar con-

ta importa ter presentes trecircs aspectos

O primeiro aspecto tem que ver com a forma como o ponto de vista (ou a testemunha

global) estaacute marcado por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a si mesmo de tal modo

275

que essa relaccedilatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente a si (esse estar-em-causa da testemunha

para si mesma) molda decisivamente a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que percorre todo o apare-

cimento em que nos achamos

O segundo aspecto tem que ver com a forma como tudo isto afecta o proacuteprio teor do

que aparece e faz que ao contraacuterio do que pode parecer esse teor nunca seja aquele que lhe

pertenceria soacute por si e em vez disso esteja sempre jaacute marcado por uma relaccedilatildeo com a teste-

munha global (e o facto de justamente natildeo se tratar apenas de uma testemunha mas de algo

que estaacute radicalmente em causa e que eacute aquele ldquoem causardquo de que primariamente se trata em

tudo o que aparece)

O terceiro aspecto tem que ver com a amplitude ou a dimensatildeo da testemunha ndash com o

facto de a testemunha (sc aquilo a que tambeacutem podemos chamar a ipseidade) natildeo se esgotar

num poacutelo mais ou menos punctiforme mas em vez disso ter uma natureza tal que envolve a

projecccedilatildeo de um horizonte indefinidamente aberto de ldquoprescriccedilatildeo de si mesmordquo

Desenhado o campo dos aspectos a considerar ndash e que dizem respeito todos eles a

uma exploraccedilatildeo das caracteriacutesticas da testemunha global que acabaacutemos de pocircr em evidecircncia

ndash passemos entatildeo agrave focagem destes trecircs pontos

sect32

A impossibilidade de indiferenccedila a si ndash O aparecimento como acontecimento centrado na

ldquotestemunha globalrdquo o ldquoquemrdquo a quem aparece o que aparece como o factor que impos-

sibilita a neutralidade do aparecimento ndash A relaccedilatildeo de si a si sob a pressatildeo de um progra-

ma de caraacutecter praacutetico

Consideremos o primeiro ponto que tem que ver com a densidade proacutepria da testemu-

nha

Como dissemos a ldquotestemunha globalrdquo natildeo se esgota no exerciacutecio da sua funccedilatildeo cons-

titutiva apagando-se nela

Poderia ser assim poderia dar-se o caso de isso a que aparece o que aparece estar nu-

ma mera execuccedilatildeo automaacutetica de funccedilotildees de tal modo que natildeo tivesse qualquer notiacutecia de si

(passasse despercebido natildeo estivesse ciente de si etc)

276

Ou poderia dar-se o caso de na medida em que se constitui em registo de tudo o que

aparece e em virtude de tambeacutem ser ldquoalgordquo que aparece (de tambeacutem ser ldquoalgordquo que estaacute entre

a totalidade de ldquocoisasrdquo que aparecem) a relaccedilatildeo do ponto de vista consigo mesmo resultasse

num mero registo do seu aparecimento (num mero registo do ldquoa quemrdquo aparece o que aparece

do aparecer do proacuteprio aparecimento numa mera nota de si etc)

Quer dizer poderia dar-se o caso de a testemunha se reconhecer a si mesma como

algo (como mais uma ldquocoisardquo que aparece como um momento do aparecimento etc) mas de

tal modo que esse ldquoalgordquo que a testemunha reconheceria seria um mero ecratilde (uma mera ldquopla-

taformardquo de aparecimento uma mera superfiacutecie de projecccedilatildeo do aparecimento um mero su-

porte uma mera tela etc) onde aparece o que aparece76

Ora poderia ainda acontecer que a testemunha estivesse posta numa relaccedilatildeo consigo

mesma (estivesse em contacto consigo etc) enquanto algo que marca a sua presenccedila no

campo do que aparece mas de tal modo que a proacutepria identidade disso (ie a determinaccedilatildeo

que tem) fosse para si mesma problemaacutetica ou misteriosa Dito por outras palavras poderia

dar-se o caso de a testemunha estar posta numa relaccedilatildeo consigo mesma mas de tal modo que

se mantivesse indeterminado a que eacute que corresponderia isso com que estaria posto em rela-

ccedilatildeo ou em contacto

Acontece que tambeacutem natildeo eacute assim que se passa connosco

Na verdade eacute ou pode ser difiacutecil apontar em que eacute que a nossa identidade propriamen-

te consiste ou que determinaccedilatildeo tem ndash em especial porque a nossa identidade natildeo consiste em

nenhuma das determinaccedilotildees a que estaacute associada e com que se presta a ser confundida

76

Na verdade eacute com algo semelhante a um ldquoecratilderdquo que deparamos se considerarmos por exemplo

Locke (An Essay Concerning Human Understanding Livro II XI 17) ldquoThe understanding strikes me

as being like a closet that is wholly sealed against light with only some little openings left to let in ex-

ternal visible resemblances or ideas of things outside If the pictures coming into such a dark room

stayed there and lay in order so that they could be found again when needed it would very much re-

semble the understanding of a man as far as objects of sight and the ideas of them are concernedrdquo

Vemdo bem aquilo que Locke descreve eacute algo muito parecido ao mecanismo cinematograacutefico ndash no

caso o ldquomundordquo exterior entra por uma abertura semelhante a algo como um foco de luz e o discerni-

mento seria neste sentido pelo menos numa primeira fase o ldquoecratilderdquo plano onde o ldquomundordquo exterior se

projecta Esta eacute aliaacutes uma noccedilatildeo que perpassa o empirismo em muacuteltiplas variaccedilotildees (Cf Locke An

Essayhellip Livro II I 2 e sua a noccedilatildeo da ldquomenterdquo como ldquopapel em brancordquo ou com a mais famosa alu-

satildeo de Aristoacuteteles ndash De Anima livro 3 4 ndash ao γραμματεῖον ainda por preencher)

277

Assim a nossa identidade natildeo consiste em ser filho de A ou B ter os olhos de um de-

terminado modo o cabelo de outro ter nascido numa determinada data num determinado lo-

cal etc A identidade eacute algo diferente de ou eacute algo irredutiacutevel a todas essas determinaccedilotildees ndash

de tal modo que se situa ldquopara caacuterdquo de tudo isso mais no centro de tudo

Se por um lado ser filho de A ou B ter os olhos de um determinado modo o cabelo

de outro ter nascido numa determinada data num determinado local etc satildeo determinaccedilotildees

que marcam a identidade (que por assim dizer a preenchem) por outro lado essas determina-

ccedilotildees satildeo variaccedilotildees ou aditamentos em relaccedilatildeo a um caraacutecter fundamental que em absoluto as

excede

Vendo bem a identidade eacute aquilo a que se atribui todas essas determinaccedilotildees e eacute aqui-

lo que como veremos confere a todas essas determinaccedilotildees um caraacutecter muito peculiar A

identidade corresponde para o dizer numa expressatildeo a um ldquosi mesmordquo ndash a algo que natildeo se

define apenas por exercer as referidas funccedilotildees mas por ter a sua proacutepria identidade

A identidade corresponde em suma a um ldquoquemrdquo Quer dizer a identidade eacute a ipsei-

dade da proacutepria ldquotestemunha globalrdquo na sua relaccedilatildeo consigo mesma77

77

Ora quando falamos de ldquoidentidaderdquo o termo eacute usado num sentido preciso ndash que natildeo tem que ver

pura e simplesmente com o nexo de identidade de cada determinaccedilatildeo consigo mesma e com o nexo de

natildeo-identidade de cada determinaccedilatildeo a cada outra sem o qual como Aristoacuteteles faz notar no livro IV

da Metafiacutesica (1007b26) haveria o ὁμοῦ πάντα χρήματα de Anaxaacutegoras

Por um lado quando falamos de ldquoidentidaderdquo o que estaacute em jogo eacute a lei formal da identidade que eacute

igualmente vaacutelida para todas as determinaccedilotildees O que estaacute em jogo eacute a determinaccedilatildeo concreta que em

cada caso fixa se assim se pode dizer o seu proacuteprio territoacuterio (com aquilo que lhe eacute proacuteprio) e contra-

potildee a sua proacutepria presenccedila a tudo quanto poderia estar em vez disso Nesse sentido o que estaacute em

causa eacute de certo modo o oposto do princiacutepio ou da regra geral abstracta etc ndash eacute a instacircncia identifi-

cante que permite em cada caso saber de que eacute que se trata ndash qual eacute a determinaccedilatildeo que marca o seu

proacuteprio territoacuterio e contrapotildee a sua presenccedila a tudo quanto poderia estar em vez dela

Estamos portanto a dizer que a testemunha global tambeacutem tem algo assim tambeacutem tem o seu teor e

que a sua presenccedila no campo de aparecimento estaacute marcada pelo facto de ela mesma estar dominada

por uma evidecircncia ndash natildeo cabe aqui discutir se fundada ou infundada ndash a respeito do seu proacuteprio teor

A tudo isto acresce finalmente um outro aspecto que a noccedilatildeo de identidade tambeacutem pode exprimir

Se em uacuteltima anaacutelise tudo aquilo que aparece parece ter identidade consigo mesmo essa identidade eacute

testemunhada por um terceiro (eacute uma identidade sua da ldquocoisardquo que aparece) com que se estaacute em

contacto atravessando uma distacircncia de alteridade que separa dela Por outras palavras se tudo o que

aparece tem identidade consigo mesmo natildeo eacute menos verdade que essa identidade aparece mediada por

uma alteridade porque tudo eacute visto do ponto de vista da testemunha universal que natildeo eacute idecircntica a nada

disso cuja identidade consigo mesmo testemunha

278

E esse ldquoquemrdquo (essa ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo) natildeo tem como conteuacutedo proacute-

prio o ser filho de A ou B ter um determinado corte de cabelo uma determinada altura uma

determinada data de nascimento um determinado local de nascimento etc ndash trata-se vendo

bem de uma determinaccedilatildeo na primeira pessoa (mais trata-se de uma determinaccedilatildeo constitu-

tiva da primeira pessoa) E para aleacutem disso trata-se de uma determinaccedilatildeo que o proacuteprio sa-

be muito bem qual eacute

Com efeito passa-se com esta determinaccedilatildeo algo de peculiar Se formos agrave procura de-

la e a tentarmos identificar no quadro de uma focagem temaacutetica tende a furtar-se (a natildeo se

deixar encontrar a manter-se fora da perspectiva etc) Mas essa dificuldade ou impossibili-

dade de a encontrar numa apresentaccedilatildeo directa (que a ponha agrave mostra no ldquoclarordquo daquilo a que

Pascal chama ldquolrsquoespritrdquo por oposiccedilatildeo ao ldquolrsquoautomaterdquo) eacute um fenoacutemeno que soacute tem lugar justa-

mente na esfera do ldquoclarordquo ou do ldquoespritrdquo no sentido de Pascal78

Quer dizer natildeo tem lugar na esfera daquilo a que Pascal chama ldquolrsquoautomaterdquo ndash natildeo

tem lugar a esfera do contacto inexpliacutecito dos ldquojuiacutezos secretos da razatildeo comumrdquo para recupe-

rar as palavras de Kant Aiacute passa-se justamente o oposto a ldquotestemunha globalrdquo sabe muito

bem quem eacute

Isto eacute por mais difiacutecil que seja precisar em que consiste a identidade aquele que a

tem estaacute dominado pela respectiva evidecircncia ndash estaacute por assim dizer constituiacutedo nela ou sobre

ela tem a sua identidade declinada para si mesmo como algo plenamente concreto e defini-

do com caraacutecter oacutebvio tem uma identidade que percebe muito bem etc

Pelo contraacuterio no caso aqui em causa trata-se justamente da identidade da testemunha consigo mes-

ma Essa identidade eacute protagonista por diversas razotildees mas na verdade tambeacutem por ser uma uacutenica

identidade plena ndash a identidade na primeira pessoa (que se caracteriza por o proacuteprio ser isto sc ser

isso que o proacuteprio eacute)

Nesse sentido a identidade na primeira pessoa natildeo eacute de modo algum uma mera aplicaccedilatildeo da forma

geral da identidade Consiste em algo absolutamente original completamente distinto de todas as

outras ldquocoisasrdquo e com uma posiccedilatildeo uacutenica no meio delas

E o que aqui estaacute em jogo eacute justamente uma conjugaccedilatildeo destes vaacuterios aspectos no meio do

acontecimento do aparecer haacute algo na primeira pessoa que eacute identidade num sentido uacutenico e que tem

um teor proacuteprio que lhe permite perceber a sua proacutepria identidade (no caso lhe permite perceber

ldquoquem eacuterdquo)

78 Cf com a entrada 821 (ed Lafuma) dos Penseacutees de Pascal onde se que comeccedila precisamente por

ler ldquoCar il ne faut pas se meacuteconnaicirctre nous sommes automate autant quespritrdquo

279

Assim mesmo que a partir da incidecircncia temaacutetica (do que encontramos ao tentar cap-

tar expressamente que determinaccedilatildeo tem esse nuacutecleo de ipseidade que se situa para caacute de to-

das essas determinaccedilotildees que parecem definir cada um de noacutes como indiviacuteduo e que determi-

naccedilatildeo eacute propriamente a identidade da proacutepria ldquotestemunha globalrdquo enquanto tal) se possa su-

gerir que essa determinaccedilatildeo de identidade da ldquotestemunha globalrdquo afinal eacute vazia

Ora que a identidade natildeo se trata de algo vazio percebe-se sobretudo a partir de dois

fenoacutemenos

Qualquer das determinaccedilotildees citadas (ser filho de A ou B ter nascido aqui ou ali nesta

ou naquela data ter este ou aquele aspecto fiacutesico etc) eacute uma determinaccedilatildeo incapaz de consti-

tuir a ldquoprimeira pessoardquo (a peculiar forma de identidade da ldquoprimeira pessoardquo) Ora podemos

juntar todas as determinaccedilotildees detes tipo que o resultado eacute precisamente um ldquozerordquo de ldquoprimei-

ra pessoardquo

Para se constituir uma ldquoprimeira pessoardquo eacute indispensaacutevel juntar a determinaccedilatildeo proacute-

pria da ldquotestemunha globalrdquo enquanto eacute algueacutem para si mesma um algueacutem de que estaacute perfei-

tamente a par (quer dizer enquanto tem a sua proacutepria identidade claramente definida para si

mesma) E isto de tal modo que esta determinaccedilatildeo proacutepria da ldquotestemunha globalrdquo (a determi-

naccedilatildeo do ldquosirdquo a determinaccedilatildeo da proacute-pria ipseidade etc) natildeo se define apenas ndash nem se defi-

ne primariamente ndash por esses outros aspectos (ser filho de A ou B nascer aqui ou ali etc)

A determinaccedilatildeo proacutepria da ldquotestemunha globalrdquo (a determinaccedilatildeo proacutepria da ipseidade

o ldquoquemrdquo que define o si) eacute tatildeo pouco uma determinaccedilatildeo vazia (algo soacute susceptiacutevel de ser de-

finido por preenchimento com certas determinaccedilotildees) que na verdade se comunica a outras de-

terminaccedilotildees provocando nelas a transformaccedilatildeo decisiva em virtude da qual estatildeo marcadas

pelo cunho da ipseidade e postas sob o seu ascendente

Assim a razatildeo por que este nuacutecleo da identidade de si se presta a ser confundido com

outras determinaccedilotildees (ser filho de A ou B ter os olhos de um determinado modo o cabelo de

outro ter nascido numa determinada data num determinado local etc) vem de ele ser fonte

de qualquer coisa como uma propagaccedilatildeo de si constituiacuteda na forma de uma esfera

Se por um lado a identidade que nos corresponde natildeo tem a determinaccedilatildeo da nossa fi-

liaccedilatildeo da cor dos olhos da cor e do jeito do cabelo da data ou local de nascimento por outro

lado estaacute investida neles conferindo-lhes uma determinaccedilatildeo que nunca teriam soacute por si ndash a

determinaccedilatildeo de serem nossos (de nos corresponderem de serem caracteres de noacutes etc)

280

O que caracteriza a identidade eacute a propriedade de poder ser identificada com outras de-

terminaccedilotildees Eacute justamente neste sentido uma determinaccedilatildeo formal ndash passiacutevel de contracccedilotildees

com determinaccedilotildees completamente diferentes entre si

O que isto quer dizer eacute que a identidade evidente do si mesmo comunica-se gerando

integraccedilatildeo ou apropriaccedilatildeo

Trata-se de algo que se constitui em fonte atraveacutes de qualquer coisa como uma equa-

ccedilatildeo fundamental mediante a qual faz corresponder a si (identifica consigo torna seu faz que

a caracterize etc) isto e aquilo dentro do campo do que aparece79

De sorte que deixa de fora

ndash quer dizer fora dessa equaccedilatildeo de identificaccedilatildeo fora de si etc ndash uma grande (e ateacute a maior)

parte daquilo que aparece

Encontramos um desenho dessa estrutura por exemplo no Alcibiacuteades Major ndash em es-

pecial num passo (131a e seguintes) em que Soacutecrates descreve que haacute a) algo que eacute proacuteprio

(αὐτός) b) algo que eacute ldquodordquo proacuteprio que pertence ao proacuteprio mas natildeo eacute ldquoordquo proacuteprio (τἀ αὐ-

τοῦ) c) algo que eacute do que eacute do proacuteprio que pertence ao que pertence ao proacuteprio (τἀ τῶν αὑ-

τού) etc80

79

Para o conceito de ldquoequaccedilatildeo de sirdquo ver Fidalgo T The multidimensional and centered structure of

our interested perception in Hierocles Universidade Nova de Lisboa Tese de Mestrado 2015 em es-

pecial as paacuteginas 42-44

80 Aquilo a que estamos a apelar eacute a uma estrutura fundamental que suscitou interesse em diversos au-

tores e que teve ao longo da histoacuteria do pensamento diversas configuraccedilotildees expressa na distribuiccedilatildeo

dos ldquobensrdquo que correspondem ou pertencem a algueacutem Uma estrutura de certo modo semelhante ainda

que com conteuacutedos diacutespares pode ser encontrada numa anaacutelise de Aristoacuteteles levada a cabo por Scho-

penhauer ldquoAristoteles hat (Eth Nicom I 8) die Guumlter des menschlichen Lebens in drei Klassen ge-

theilt ndash die aumluszligeren die der Seele und die des Leibes Hievon nun nichts als die Dreizahl beibehal-

tend sage ich daszlig was den Unterschied im Loose der Sterblichen begruumlndet sich auf drei Grundbes-

timmungen zuruumlckfuumlhren laumlszligt Sie sind 1) Was Einer ist also die Persoumlnlichkeit im weitesten Sinne

Sonach ist hierunter Gesundheit Kraft Schoumlnheit Temperament moralischer Charakter Intelligenz

und Ausbildung derselben begriffen 2) Was Einer hat also Eigenthum und Besitz in jeglichem Sinne

3) Was Einer vorstellt unter diesem Ausdruck wird bekanntlich verstanden was er in der Vorstellung

Anderer ist also eigentlich wie er von ihnen vorgestellt wird Es besteht demnach in ihrer Meinung

von ihm und zerfaumlllt in Ehre Rang und Ruhmrdquo (Schopenhauer A Aphorismen zur Lebensweisheit

Insel Leipzig 1923 paacuteg 16)

Este eacute apenas um exemplo dos muito diversos desenvolvimentos que vieram a ter as perspectivas so-

bre esta mateacuteria que encontramos expostos no corpus platonicum mas em uacuteltima anaacutelise ateacute teratildeo ori-

gens mais remotas Mas o que nos importa natildeo eacute senatildeo a forma de ldquopropagaccedilatildeordquo ou de ldquocontaacutegiordquo de

que a ipseidade eacute capaz Nesse medida interessam menos a) as determinaccedilotildees concretas que satildeo pos-

tas em posiccedilatildeo de maior ou menor proximidade ao centro (determinaccedilotildees essas que podem variar mui-

281

Isto quer dizer que a identidade fundamental da testemunha natildeo eacute pura e simplesmen-

te preenchida por nenhuma das determinaccedilotildees que somos capazes de identificar Em vez dis-

so tem um caraacutecter tal que a) antes do mais se fixa a si mesma e eacute a fonte da agregaccedilatildeo a si

dessas outras determinaccedilotildees conferindo-lhes o estatuto e a importacircncia de que se revestem e

b) define por si mesma essas outras determinaccedilotildees de tal modo que elas ficam fundamental-

mente situadas e compreendidas pela pertenccedila a ela ndash tudo isso sem prejuiacutezo de c) em virtude

da equaccedilatildeo fundamental a ipseidade se define secundariamente tambeacutem por aquilo que lhe

pertence

Mas haacute um outro fenoacutemeno que documenta o caraacutecter natildeo-vazio da fixaccedilatildeo de identi-

dade por que estaacute marcada a testemunha global de que falaacutemos E eacute esse outro fenoacutemeno que

aqui mais nos interessa

Vendo bem o que caracteriza a identidade (o fenoacutemeno de fixaccedilatildeo da identidade da

testemunha global) eacute o facto de se achar declinada de tal modo (e de a testemunha ter uma tal

relaccedilatildeo com ela) que ela gera natildeo-indiferenccedila ndash e na verdade gera o principal caudal de

tensatildeo de natildeo-neutralidade ou natildeo-indiferenccedila que percorre o acontecimento do aparecer em

que nos achamos

Podemos dizecirc-lo assim o si natildeo eacute neutro relativamente a si ndash a testemunha estaacute com-

prometida consigo mesma faz caso de si mesma estaacute marcada por uma avassaladora dedica-

ccedilatildeo a si (por um cuidado de si por uma entrega a si por um apego a si etc)

Importa focar ao mesmo tempo estes dois aspectos complementares

Por um lado a identidade fundamental da testemunha (a tal que natildeo passa por nenhu-

ma das determinaccedilotildees que somos capazes de identificar explicitamente) estaacute indissociavel-

to significativamente) e tambeacutem b) o cardinal dos elos que satildeo descritos como fazendo parte deste sis-

tema de ldquopropagaccedilatildeordquo ou de ldquocontaacutegiordquo Aleacutem disso tambeacutem natildeo importa aqui um outro aspecto a que

a descriccedilatildeo do Alcibiacuteades Major (e outros textos afins) estaacute associada a tese de uma ordem normativa

segundo a qual uns ldquobensrdquo devem vir antes dos outros por terem uma ligaccedilatildeo mais imediata (sc maior

proximidade ao centro) O ponto decisivo eacute aquilo que a descriccedilatildeo do Alcibiacuteades Major tem de pareci-

do com a ldquocadeia de magnetizaccedilatildeordquo referida no Iacuteon a ipseidade tem o condatildeo de ldquomagnetizarrdquo outras

determinaccedilotildees pelo estabelecimento de uma ligaccedilatildeo consigo essa ldquomagnetizaccedilatildeordquo eacute iteraacutevel de tal

modo que aquilo que eacute ldquomagnetizadordquo pela ligaccedilatildeo consigo pode por sua vez ldquomagnetizarrdquo outras

ldquocoisasrdquo ndash e assim sucessivamente numa propagaccedilatildeo que de modo nenhum estaacute impedida de conti-

nuar para laacute das duas formas de ldquocontaminaccedilatildeordquo expressas no Alcibiacuteades Major Mas isso de tal modo

que neste caso o aumento da distacircncia (a multiplicaccedilatildeo dos elos moderadores) diminui a ldquoforccedilardquo da

ligaccedilatildeo agrave ipseidade (sc a forccedila da equaccedilatildeo)

282

mente ligada a natildeo-indiferenccedila aquilo a que chamaacutemos a testemunha global tem uma tal

identidade para si mesma que gera natildeo-indiferenccedila a si ndash que gera a impossibilidade de indi-

ferenccedila a si

Por outro lado a natildeo-indiferenccedila que assim gera natildeo eacute uma natildeo-indiferenccedila modesta ndash

natildeo eacute um quantum de natildeo-indiferenccedila discreto ou de todo o modo com pouco peso numa

ldquosociedaderdquo de fluxos de natildeo-indiferenccedila

Acontece o contraacuterio Trata-se de qualquer coisa como uma torrente de natildeo-indiferen-

ccedila a si mesmo um caudal que ldquojorrardquo e que se impotildee que ldquoinundardquo ndash como algo com uma

forccedila irresistiacutevel

De facto em vez de se tratar de um aparecimento onde o que conta eacute aquilo que de

cada vez aparece trata-se pelo contraacuterio de um aparecimento centrado na proacutepria testemu-

nha global ndash precisamente por a testemunha global natildeo ter a forma de uma mera testemunha

Poderia acontecer que a testemunha fosse apenas isso mesmo e se limitasse a assistir

agravequilo a que assiste ndash caso em que como vimos seria um puro espectador de um campo de

aparecimento completamente livre da presenccedila de qualquer espeacutecie de tensatildeo de natildeo-indife-

renccedila

Tambeacutem poderia acontecer que a testemunha testemunhasse um campo de apareci-

mento tomado por tensatildeo mas de tal modo que se limitasse justamente a assistir a essa tensatildeo

sem que ela proacutepria (a testemunha) fosse minimamente tocada ou movida por ela

Finalmente tambeacutem seria possiacutevel que a testemunha natildeo se limitasse a assistir agrave ten-

satildeo de natildeo-indiferenccedila presente no que lhe aparece e tomasse partido em relaccedilatildeo a ela Nesse

caso deixaria de ser uma mera testemunha (jaacute natildeo seria um puro espectador etc) e passaria a

ser ela mesma parte interessada movida por tensatildeo de natildeo-indiferenccedila

Ora natildeo eacute isto que se passa connosco

O que se passa connosco eacute que a) a ldquotestemunha globalrdquo natildeo eacute uma mera testemunha

porque estaacute (decidida e profundamente) tocada por tensatildeo de natildeo-indiferenccedila mas isso de tal

modo que b) a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila por que a ldquotestemunha globalrdquo estaacute profundamente

mobilizada eacute uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a si mesma (de natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha

globalrdquo agrave ldquotestemunha globalrdquo) ndash que a potildee absolutamente nos antiacutepodas de ser uma mera tes-

temunha

283

A identidade da proacutepria ldquotestemunha globalrdquo (a determinaccedilatildeo da ipseidade o teor proacute-

prio do si enquanto tal etc) eacute tatildeo pouco vazia que gera este caudal de natildeo-indiferenccedila ndash eacute tatildeo

pouco vazia que justamente natildeo eacute originalmente uma natildeo-indiferenccedila agrave criatura com a altura

x os olhos da cor y nascida no local z etc mas eacute uma natildeo-indiferenccedila a si mesmo A natildeo-in-

diferenccedila agrave criatura com a altura x os olhos da cor y nascida no local z etc soacute se constitui

por causa da equaccedilatildeo ndash ie porque a ldquotestemunha globalrdquo a identifica consigo (tem o seu proacute-

prio teor se assim se pode dizer ldquovazadordquo nela)

Tudo isto eacute decisivo pois faz de todo o aparecimento que temos algo de natureza mui-

to especial um aparecimento que natildeo eacute um acontecimento anoacutenimo

Haacute um ldquoquemrdquo a quem o aparecimento aparece ndash e mais ainda o ldquoquemrdquo a quem

aparece o que aparece eacute precisamente o factor decisivo que impossibilita a neutralidade ndash e

isto na medida em que o ldquoquemrdquo a quem aparece o que aparece eacute precisamente isso a que o

aparecimento se reporta (eacute precisamente isso que tem a apresentaccedilatildeo que ldquoeacuterdquo a apresentaccedilatildeo

etc)

Tocamos aqui um factor adicional da determinaccedilatildeo ou da contracccedilatildeo do aparecimento

ou do campo da experiecircncia que no capiacutetulo precedente se referiu de passagem

Mencionaacutemos entatildeo a diferenccedila entre campos de aparecimento e de experiecircncia natildeo

marcados por tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e campos de aparecimento e de experiecircncia marcados

por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e tambeacutem focaacutemos anteriormente a diferenccedila entre tensatildeo

de natildeo-indiferenccedila cognitiva e tensatildeo de natildeo-indiferenccedila praacutetica

Poreacutem vendo bem a descriccedilatildeo anteriormente feita da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila de or-

dem praacutetica (e do que eacute um campo de aparecimento de experiecircncia perpassado por tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila de ordem praacutetica) deixa escapar o nexo entre a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila de

ordem praacutetica e a ipseidade (a identidade da ldquotestemunha globalrdquo a sua radical indiferenccedila a

si mesma etc)

Ora poderia apesar de tudo acontecer que o reconhecimento de si mesmo ocorresse

sob a tensatildeo de um programa de caraacutecter meramente cognitivo ndash caso no qual o reconheci-

mento de si estaria sobre a pressatildeo de um quesito de identificaccedilatildeo (uma pressatildeo que incidiria

exclusivamente sobre o teor do ldquosirdquo ou do que lhe aparece) e de tal modo que o terminus ad

quem da tensatildeo seria meramente cognitivo

Acontece que natildeo estamos constituiacutedos deste modo

284

Dizer que natildeo estamos constituiacutedos deste modo natildeo eacute de modo nenhum dizer que essa

possibilidade de constituiccedilatildeo nos eacute totalmente alheia ndash embora natildeo caiba aqui dizer a que eacute

que corresponderia um tal programa ou que modificaccedilotildees teriam de ser introduzidas no nosso

ponto de vista para que ele se pudesse cumprir O que eacute importante reter eacute que estamos origi-

nariamente constituiacutedos em algo diferente de uma pressatildeo meramente cognitiva

Quer dizer por um lado eacute a relaccedilatildeo de si a si que gera essa impossibilidade de neutra-

lidade que atravessa tudo o que aparece Isso significa que esse ldquoquemrdquo enquanto tambeacutem

constitui algo que aparece eacute aquilo sobre o qual recai o peso maior da tensatildeo de natildeo-indife-

renccedila

Poreacutem por outro lado essa tensatildeo natildeo eacute meramente cognitiva ndash na verdade a relaccedilatildeo

de si a si estaacute sob pressatildeo de um programa de caraacutecter praacutetico

ldquoPraacuteticordquo significa aqui algo de que podemos ganhar a pista a partir do proacuteprio campo

semacircntico de πράττειν na medida em que este verbo tambeacutem exprime aquilo que se dizia no

fi-nal das cartas (εύ πράττειν ldquopassar bemrdquo etc) Trata-se precisamente desse ldquopassarrdquo (com

a alternativa bem mal mais ou menos etc)

Trata-se de a ipseidade estar constituiacuteda de tal modo que se acha vinculada a esse

ldquopassarrdquo e agrave diferenccedila entre as diversas possibilidades que lhe correspondem ndash e que tecircm que

ver com diferenccedilas relativamente ao teor daquilo que aparece e nesse sentido vem agrave ldquoteste-

munha globalrdquo

Se eacute verdade que a tradiccedilatildeo liga o adjectivo ldquopraacuteticordquo agrave ideia da intervenccedilatildeo que a ldquotes-

temunha globalrdquo pode ter enquanto esta mesma aparece a si como fonte ou ponto de partida

de acccedilotildees (como fonte de intervenccedilatildeo ndash e de facto como algo que quer faccedila ou natildeo natildeo po-

de deixar de intervir estaacute condenado a intervir etc) importa perceber que a relevacircncia deste

aspecto embora decisiva tem um caraacutecter derivado

A natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha globalrdquo a si mesma natildeo estaacute constituiacuteda de raiz co-

mo uma natildeo-indiferenccedila agravequilo que se faz enquanto tal (como uma natildeo-indiferenccedila agrave acccedilatildeo agrave

intervenccedilatildeo que se tem etc) mas como uma natildeo-indiferenccedila ao que designaacutemos a partir do

campo semacircntico de πράττειν (ie uma natildeo-indiferenccedila ao que acontece agrave ldquotestemunha glo-

balrdquo ao que se passa com ela etc) De tal modo que a ldquotestemunha globalrdquo tambeacutem eacute radical-

mente natildeo-indiferente agravequilo que faz porque aquilo que faz (a intervenccedilatildeo que tem etc) eacute

percebida como repercutindo-se em e condicionando aquilo que se passa consigo

285

O que isto significa em suma eacute que natildeo estamos em relaccedilatildeo agrave ldquotestemunha globalrdquo

que sempre jaacute somos numa posiccedilatildeo de mero espectador que simplesmente testemunha e re-

gista o que se passa (o que haacute o que ldquoeacuterdquo etc) e o que se passa consigo Na verdade o apare-

cimento tem se assim se pode dizer a natureza de um empreendimento de si (de um projecto

de si de um cuidado de si etc) Podemos dizecirc-lo assim eacute um aparecimento conformado

como empreendimento de si (na forma de um empreendimento de si etc)

E o que queremos dizer quando afirmamos que o aparecimento em que damos connos-

co tem o caraacutecter de um empreendimento de si natildeo eacute apenas que no meio desse aparecimento

entre muitas outras ldquocoisasrdquo haacute tambeacutem um empreendimento de si o que pretendemos dizer eacute

que todo o aparecimento estaacute tatildeo marcado pela presenccedila da ldquotestemunha globalrdquo e pela sua

radical natildeo-indiferenccedila a si mesma que eacute globalmente um empreendimento de si

O que estamos a procurar dizer eacute que esta relaccedilatildeo (especial peculiar) da ldquotestemunha

globalrdquo consigo mesma eacute uma relaccedilatildeo intrinsecamente complexa

Por um lado o aparecimento estaacute constituiacutedo de tal modo que o que aparece eacute consigo

(afecta o centro diz respeito a si etc)

Mas por outro lado tambeacutem estaacute constituiacutedo de tal modo que o aparecimento ndash e

assim tambeacutem tudo o que aparece ndash eacute consigo somente em virtude de haver uma relaccedilatildeo de si

a si (ie somente em virtude de o centro estar afectado por essa relaccedilatildeo de si a si de a relaccedilatildeo

de si a si ser tambeacutem algo que diz respeito a si etc) Dito por outras palavras a relaccedilatildeo de si

a si eacute o motivo em virtude da qual tudo o resto que aparece afecta o centro diz respeito ao

centro etc

Ou seja todo o aparecimento eacute fundamentalmente perpassado por uma tensatildeo do inte-

resse por si (por uma radical natildeo-neutralidade a si por uma radical natildeo-indiferenccedila a si

etc) ndash de tal modo que tudo o que aparece estaacute de algum modo marcado por esta tensatildeo de

grau maacuteximo (ie de tal modo que esta tensatildeo modifica em maacuteximo grau o que aparece)

E de tudo isto resulta por fim no seguinte tal como estaacute constituiacuteda em noacutes toda a

experiecircncia eacute experiecircncia de si ndash que diz respeito ao si em que se trata do si (sc da ldquoteste-

munha globalrdquo na sua ipseidade e radical natildeo-indiferenccedila a si) O ldquosirdquo (o si-mesmo) eacute o que

em siacutentese estaacute efectivamente em causa na experiecircncia81

81

Quer dizer o que comeccedila a ficar claro eacute que a experiecircncia eacute sempre ldquoem causa proacutepriardquo Natildeo haacute por

assim dizer nada que a ldquocausa proacutepriardquo natildeo cubra (natildeo haacute nenhum territoacuterio exterior ao territoacuterio da

286

Contudo quando dizemos que o ldquosirdquo eacute o que estaacute fundamentalmente ldquoem causardquo na

experiecircncia isso natildeo quer dizer que nada mais esteja ldquoem causardquo na experiecircncia ndash ie que o

ldquosirdquo seja o uacutenico ou o exclusivo ldquoem causardquo da experiecircncia De facto lidamos quotidianamen-

te com ldquoem causardquo muacuteltiplos e muito diversos entre si

O que queremos dizer quando dizemos que o ldquosirdquo eacute o que estaacute ldquoem causardquo na experiecircn-

cia eacute que todos os ldquoem causardquo com que contactamos no curso da experiecircncia reportam ao ldquosi

mesmordquo ldquoem causardquo Cada ldquoem causardquo estaacute posto em referecircncia ao ldquosi em causardquo

Natildeo eacute assim que tendemos a ver o caso Na verdade tendemos a vecirc-lo do avesso

Tendemos a considerar que haacute ldquocoisasrdquo (situaccedilotildees circunstacircncias casos pessoas o

que seja) a que dedicamos a nossa atenccedilatildeo e que natildeo nos dizem respeito ndash que acontece com

frequecircncia que somos por assim dizer desviados do que estaacute em causa Nesse sentido pode-

riacuteamos tender a assumir que esses satildeo casos que ultrapassam a fronteira do que estaacute ldquoem cau-

sardquo para si (para a testemunha global enquanto ela estaacute radicalmente em causa para si mes-

ma)

Todavia se analisarmos o modo como o nosso ponto de vista estaacute constituiacutedo (o mo-

do como a experiecircncia se daacute em noacutes) o que notamos eacute o contraacuterio apuramos que que o ldquoem

causardquo omni-englobante eacute o proacuteprio ldquosi-mesmordquo ndash e que tudo o mais que tambeacutem estaacute em

causa tem relevo (estaacute em causa) por concessatildeo da radical natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha

globalrdquo a si mesma

Assim a relaccedilatildeo de si a si torna-se uma relaccedilatildeo que submete todas as outras e as con-

sente como momento (como componente derivado etc) dessa mesma relaccedilatildeo Quer dizer tu-

do o que aparece (cada ldquocoisardquo que aparece) estaacute integrado na relaccedilatildeo de si a si (ie corres-

ponde agrave relaccedilatildeo de si a si como que a ldquopassarrdquo por tudo o que aparece desdobrada pelo facto

de integrar em si a relaccedilatildeo com a ldquocoisardquo x com a ldquocoisardquo y com a ldquocoisardquo z etc)

ldquocausa proacutepriardquo natildeo haacute nenhum territoacuterio em que a ldquocausa proacutepriardquo natildeo ldquoreinerdquo etc) Em suma natildeo

haacute nada ndash por mais distante ndash que natildeo seja comigo que natildeo nos diga respeito etc E note-se que a

ldquodistacircnciardquo a que aqui se alude natildeo eacute uma distacircncia espacial ou sequer temporal ndash a distacircncia a que

aqui se alude (essa que se expressa nas foacutermulas ldquonatildeo ser consigordquo ldquonatildeo ter que ver connoscordquo ldquonatildeo

nos dizer respeitordquo etc) natildeo corresponde senatildeo a uma mera relegaccedilatildeo de importacircncia (a estar para laacute

do nuacutecleo do que mais imediatamente nos importa etc) De sorte que a proacutepria distacircncia eacute uma ex-

pressatildeo da presidecircncia de tudo de tudo pela relaccedilatildeo que a ldquotestemunha globalrdquo tem consigo mesma e

pela radical natildeo-indiferenccedila que a liga a si

287

Desenha-se assim qualquer coisa como uma dupla presidecircncia de todo o horizonte do

aparecimento pelo mesmo ndash pela ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo

Por um lado a ldquotestemunha globalrdquo eacute precisamente ldquoardquo testemunha de tudo o ponto de

vista que comummente estaacute em relaccedilatildeo com tudo o que aparece aquilo a que aparece tudo

Mas por outro lado a esta presidecircncia que tem que ver com a proacutepria estrutura do

aparecimento enquanto tem o caraacutecter de uma multiplicidade e requer portanto como vimos

uma uacutenica testemunha vem juntar-se uma segunda modalidade de presidecircncia ndash a presidecircncia

na ordem da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (o facto de tudo o que aparece estar sob a alccedilada do

mea res agitur de tudo aparecer dirigido agrave ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo e trazendo jaacute ta-

citamente inscrito em si um tua res agitur

Mas ao mesmo tempo tambeacutem se desenha um outro aspecto igualmente relevante a

saber esta dupla presidecircncia eacute uma presidecircncia na primeira pessoa Todo o aparecimento estaacute

decisivamente marcado pela primeira pessoa orbita em torno da primeira pessoa etc ndash eacute

neste sentido um aparecimento na primeira pessoa radicalmente diferente do que quer que

pudesse haver sem ser assim

Ora tudo isso nos leva a um segundo aspecto

sect33

A estrutura da auto-consciecircncia na sua relaccedilatildeo com o objecto em Hegel (Fenomenologia

do Espiacuterito IV B)

Podemos exprimir o segundo aspecto a partir do que tatildeo agudamente se acha expresso

por Hegel na Fenomenologia do Espiacuterito mais propriamente no capiacutetulo sobre a auto-cons-

ciecircncia (IV B) ndash num conjunto de passos em que Hegel caracteriza a estrutura da auto-cons-

ciecircncia na sua relaccedilatildeo com o seu objecto82

82

Abstraiacutemos aqui do facto de aquilo que estaacute em causa na Fenomenologia do Espiacuterito de Hegel natildeo

ser propriamente a constituiccedilatildeo da consciecircncia (o que estaacute implicado nela o que sempre jaacute a conforma

etc) mas modelos ou formas de reconhecimento daquilo que temos ao termos consciecircncia ndash modelos

ou formas que a consciecircncia pode adoptar para se dar conta daquilo que encontra ao ser consciecircncia

(ou seja para se dar conta da sua proacutepria determinaccedilatildeo) Isso significa que na descriccedilatildeo que aqui leva-

mos a cabo fazemos nossa a tese de reconhecimento do teor da consciecircncia que eacute proacuteprio daquilo a

288

Natildeo interessa aqui seguir pari passu tudo o que estaacute implicado nesta concepccedilatildeo de He-

gel ou na relaccedilatildeo entre auto-consciecircncia e o seu objecto Interessa apenas seguir aqueles as-

pectos que nos potildeem na pista daquilo que estamos a procurar salientar

Quando fala de ldquoauto-consciecircnciardquo Hegel aponta para um modelo de reconhecimento

de realidade ndash justamente um modelo de reconhecimento da realidade em que a unidade de

realidade propriamente dita eacute a auto-consciecircncia

O primeiro aspecto a ter em conta eacute que tal como aparece desenhado neste passo da

Fenomenologia o conceito de ldquoauto-consciecircnciardquo designa como que um primado da auto-

que Hegel chama ldquoauto-consciecircnciardquo (Selbstbewuszligtsein) por contraste com aquilo a que chama cons-

ciecircncia (Bewuszligtsein) Nesse sentido natildeo seguimos Hegel na distacircncia que a sua Fenomenologia guar-

da em relaccedilatildeo agrave tese da auto-consciecircncia (que Hegel observa na sua geacutenese desenvolvimento etc)

Poreacutem para natildeo incorrermos em equiacutevocos eacute necessaacuterio ter presente que neste contexto se pode falar

de ldquoauto-consciecircnciardquo em dois sentidos muito distintos

Por um lado ldquoauto-consciecircnciardquo designa um modelo de reconhecimento passiacutevel de ser contrastado

com a razatildeo o ldquoespiacuteritordquo por outro lado o termo tambeacutem designa aquilo que esse modelo reconhece

como tendo um primado em relaccedilatildeo a tudo o mais ndash de tal modo que o modelo de reconhecimento a

que Hegel chama ldquoauto-consciecircnciardquo tem esse nome porque a sua tese eacute o reconhecimento de tudo o

mais como determinaccedilatildeo da auto-consciecircncia

Abreviando de razotildees (ie abreviando todas as anaacutelises que Hegel leva a cabo a respeito de a auto-

consciecircncia ser um produto de reflexatildeo ser um momento que tem um antecedente mais elementar

etc) o que temos de sublinhar eacute que o modelo de Hegel passa pela nota de que onde nos encontra-

mos haacute sempre jaacute algo correspondente agrave auto-consciecircncia Pode acontecer que a apercepccedilatildeo de que eacute

assim nunca seja imediata antes suponha sempre uma viragem reflexiva Mas com tudo o que isto

tem de problemaacutetico estamos a falar do ponto de vista de um reconhecimento reflexivo do que jaacute haacute

antes da reflexatildeo

A tudo isto acresce ainda um outro facto de distacircncia entre a perspectiva que aqui desenhamos e a de

Hegel (ou melhor a que se acha expressa na Fenomenologia) Na Fenomenologia a auto-consciecircncia

eacute um reconhecimento unilateral cuja tensatildeo interna acaba necessariamente por levar agrave sua ldquoimplosatildeordquo

e resoluccedilatildeo em algo mais complexo Natildeo se contesta que a tese da auto-consciecircncia (a tese que grosso

modo aqui seguimos) possa ser completada por outras perspectivas mas natildeo seguimos aqui a concep-

ccedilatildeo de Hegel a respeito do caraacutecter inevitaacutevel do itineraacuterio de desenvolvimento descrito na Fenomeno-

logia

Finalmente importa observar que em vez de Hegel poderiacuteamos ter considerado outros autores ndash a

proacutepria anaacutelise que Hegel faz na secccedilatildeo aqui em causa chama a atenccedilatildeo para essa possibilidade Pode-

riacuteamos por exemplo ter considerado Fichte (Grundlage Wissenschaftslehre Nova Methodo Sittenleh-

re de 1798 Thatsachen des Bewuszligtseyns de 181213 etc) como tambeacutem poderiacuteamos ter considerado

empreendimentos filosoacuteficos posteriores ndash por exemplo a analiacutetica existencial-temporal do Dasein de

Heidegger Poderaacute parecer estranha a referecircncia a perspectivas filosoacuteficas tatildeo marcadamente contras-

tantes em tantos aspectos ndash mas na verdade o que interessa eacute justamente um denominador comum

289

consciecircncia enquanto tal ndash o facto de ela desempenhar em certo sentido o papel da determi-

naccedilatildeo fundamental (de que nenhuma outra determinaccedilatildeo eacute independente) Esse eacute o ponto

decisivo ndash esta ldquoanteposiccedilatildeordquo da proacutepria consciecircncia que Hegel expressa no conceito de

ldquoconsciecircncia de sirdquo (quer dizer da consciecircncia da proacutepria consciecircncia enquanto tal)

Essa anteposiccedilatildeo da proacutepria consciecircncia faz que nenhuma determinaccedilatildeo esteja aiacute sozi-

nha ndash e na verdade nenhum complexo de determinaccedilotildees por mais amplo que seja figure so-

zinho (num contacto directo soacute consigo apenas com a determinaccedilatildeo ou com as determinaccedilotildees

em questatildeo etc) Sucede em vez disso que qualquer determinaccedilatildeo ou complexo de determi-

naccedilotildees que apareccedila estaacute como que marcado por este ldquoiacutendicerdquo decisivo que faz dele um mo-

mento da proacutepria consciecircncia (ou mais precisamente um momento da proacutepria auto-consciecircn-

cia)83

Ora o problema focado por Hegel eacute o seguinte por mais que a realidade passe pela

consciecircncia e tenha nela a sua determinaccedilatildeo fundamental (por mais que a unidade da realida-

de seja a auto-consciecircncia) ainda assim subsiste alteridade

Na verdade parece haver um conflito ndash mais ou menos latente ndash entre um modelo de

reconhecimento do que haacute que apenas confere realidade agrave auto-consciecircncia e o facto de ape-

sar disso haver algo absolutamente irredutiacutevel e indissoluacutevel na identidade da proacutepria auto-

consciecircncia (ie no proacuteprio ldquointeriorrdquo dela) Ou seja se natildeo estamos a ver mal aquilo que

Hegel estaacute a dizer eacute que por um lado a) a auto-consciecircncia eacute uma entidade complexa ou com-

posta (conteacutem algo na sua identidade e algo que natildeo se dissolve na sua identidade) e por ou-

tro lado b) eacute uma entidade complexa ou composta por algo constituiacutedo em radical diferenccedila

em relaccedilatildeo agrave identidade da auto-consciecircncia84

83

Tudo se passa como se se repetisse em relaccedilatildeo agrave determinaccedilatildeo ldquoconsciecircnciardquo a jaacute referida ldquodeacutemar-

cherdquo do Sofista de Platatildeo na qual o Forasteiro potildee em evidecircncia que natildeo se encontram determinaccedilotildees

monoeideacuteticas pois quando se vai agrave procura de determinaccedilotildees monoeideacuteticas o que aparece satildeo deter-

minaccedilotildees jaacute constitutivamente envolvidas em siacutentese com outras determinaccedilotildees No caso o que estaacute

em causa eacute que independentemente de outras consideraccedilotildees nenhuma determinaccedilatildeo estaacute livre de um

constitutivo envolvimento com a determinaccedilatildeo ldquoconsciecircnciardquo e com a forma como a consciecircncia im-

plica uma consciecircncia de si proacuteprio

84 ldquoIn den bisherigen Weisen der Gewiszligheit ist dem Bewuszligtsein das Wahre etwas Anderes als es

selbst Der Begriff dieses Wahren verschwindet aber in der Erfahrung von ihm wie der Gegenstand

unmittelbar an sich war das Seiende der sinnlichen Gewiszligheit das konkrete Ding der Wahrnehmung

die Kraft des Verstandes so erweist er sich vielmehr nicht in Wahrheit zu sein sondern dies Ansich

ergibt sich als eine Weise wie er nur fuumlr ein Anderes ist der Begriff von ihm hebt sich an dem wirk-

290

Ora sendo assim e na medida em que a auto-consciecircncia conteacutem algo na sua identida-

de que natildeo se dissolve nela a anaacutelise a que Hegel procede eacute precisamente uma tentativa de

determinaccedilatildeo ou de identificaccedilatildeo do que eacute isso que estaacute contido na identidade da auto-cons-

ciecircncia (que estaacute por assim dizer no ldquointeriorrdquo da auto-consciecircncia) mas que natildeo se dissolve

nela85

O que desde jaacute fica claro eacute que isso que estaacute contido na identidade de auto-consciecircncia

e natildeo se dissolve nela ndash isso a que Hegel chama o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia ndash estaacute marca-

do por radical heterogeneidade com a identidade da auto-consciecircncia Poreacutem esta radical he-

terogeneidade tem um caraacutecter peculiar na medida em que o horizonte de acontecimento da

heterogeneidade entre a auto-consciecircncia e o objecto eacute o proacuteprio horizonte da auto-consciecircn-

cia

Quer dizer a relaccedilatildeo entre a identidade da auto-consciecircncia e o ldquoobjectordquo natildeo tem um

caraacutecter tal que seja uma relaccedilatildeo entre realidades totalmente autoacutenomas irredutiacuteveis e inde-

pendentes entre si Poderiacuteamos dizer que o encontro entre a auto-consciecircncia e o seu objecto

natildeo se daacute em ldquocampo neutrordquo o encontro em causa acontece no ldquoterritoacuteriordquo da auto-consciecircn-

cia O que Hegel estaacute com isto a pocircr em evidecircncia eacute que a auto-consciecircncia eacute condiccedilatildeo de

possibilidade do objecto da auto-consciecircncia86

lichen Gegenstande auf oder die erste unmittelbare Vorstellung in der Erfahrung und die Gewiszligheit

ging in der Wahrheit verlorenrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV paacuteg 115)

85 ldquoEs ist darin zwar auch ein Anderssein das Bewuszligtsein unterscheidet naumlmlich aber ein solches das

fuumlr es zugleich ein nicht Unterschiedenes istrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV paacuteg 115) Mais agrave

frente no desenvolvimento da anaacutelise Hegel precisa ldquoEs ist als Selbstbewuszligtsein Bewegung aber

indem es nur sich selbst als sich selbst von sich unterscheidet so ist ihm der Unterschied unmittelbar

als ein Anderssein aufgehoben der Unterschied ist nicht und es nur die bewegungslose Tautologie

des Ich bin Ich indem ihm der Unterschied nicht auch die Gestalt des Seins hat ist es nicht Selbstbe-

wuszligtsein Es ist hiermit fuumlr es das Anderssein als ein Sein oder als unterschiedenes Moment aber es

ist fuumlr es auch die Einheit seiner selbst mit diesem Unterschiede als zweites unterschiedenes Momentrdquo

(Phaumlnomenologie des Geistes B IV paacuteg 116)

86 ldquoOder auf die andere Weise den Begriff das genannt was der Gegenstand an sich ist den Gegen-

stand aber das was er als Gegenstand oder fuumlr ein Anderes ist so erhellt daszlig das Ansichsein und das

fuumlr-ein-Anderes-Sein dasselbe ist den das Ansich ist das Bewuszligtsein es ist aber ebenso dasjenige fuumlr

welches ein Anderes (das Ansich) ist und es ist iuumlr es ndaszlig das Ansich des Gegenstandes und das

Sein desselben fuumlr ein Anderes dasselbe ist Ich ist der Inhalt der Beziehungrdquo (Phaumlnomenologie des

Geistes B IV paacuteg 115-6)

291

Ou seja o objecto da auto-consciecircncia natildeo pode ter lugar independentemente da auto-

consciecircncia ndash pelo contraacuterio ocorre sempre jaacute no ldquointeriorrdquo da auto-consciecircncia (como algo

que pertence agrave esfera ou ao domiacutenio da auto-consciecircncia que adquire realidade no seu ldquoterri-

toacuteriordquo etc) O objecto da auto-consciecircncia eacute um mero correlato da auto-consciecircncia (eacute ldquodardquo

auto-consciecircncia)

Mas isso natildeo impede que apesar de a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

implicar a radical anulaccedilatildeo do objecto na sua independecircncia a relaccedilatildeo que estaacute em causa

quando Hegel apresenta o nexo entre auto-consciecircncia e o objecto da auto-consciecircncia seja

uma relaccedilatildeo de negaccedilatildeo Na terminologia hegeliana o objecto eacute o ldquonegativordquo da auto-cons-

ciecircncia87

Isto significa que por mais que a auto-consciecircncia seja a condiccedilatildeo de possibilidade da

presenccedila do ldquoobjectordquo natildeo deixa de acontecer que a auto-consciecircncia tem no ldquoobjectordquo o limi-

te da sua identidade Ou seja o objecto constitui-se de algum modo como momento ou mo-

mentos de natildeo-identidade no cerne de identidade da auto-consciecircncia E tanto quer dizer que a

identidade da auto-consciecircncia estaacute maculada ndash maculada pelo facto de ter o objecto a invadi-

la (por acusar uma invasatildeo de alteridade por estar constituiacuteda no seu cerne uma relaccedilatildeo com

um ldquoobjectordquo)

Vendo bem nada disto seria um problema se aquilo que estivesse subtilmente a operar

natildeo fosse a plenitude da auto-consciecircncia88

De facto aquilo que antes de mais estaacute em causa quando se fala de ldquoobjecto da auto-

consciecircnciardquo eacute precisamente a detecccedilatildeo de algo de alheio que resiste ou potildee em causa a iden-

tidade plena da auto-consciecircncia Ou visto pelo acircngulo oposto se nada obstasse (se natildeo hou-

vesse a detecccedilatildeo de nada de alheio a resistir ou a pocircr em causa a identidade da auto-consciecircn-

cia) entatildeo a auto-consciecircncia seria uma realidade completamente unificada iacutentegra absoluta

reinando sobre todos os seus momentos ndash se eacute que se poderia ainda falar de ldquomomentosrdquo

87

ldquoDas Bewuszligtsein hat als Selbstbewuszligtsein nunmehr einen gedoppelten Gegenstand den einen den

unmittelbaren den Gegenstand der sinnlichen Gewiszligheit und des Wahrnehmens der aber fuumlr es mit

dem Charakter des Negativen bezeichnet ist und den zweiten naumlmlich sich selbst welcher das wahre

Wesen und zunaumlchst nur erst im Gegensatze des ersten vorhanden ist Das Selbstbewuszligtsein stellt sich

hierin als die Bewegung dar worin dieser Gegensatz aufgehoben und ihm die Gleichheit feiner selbst

mit sich wirdrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV paacuteg 117)

88 ldquoDas Selbstbewuszligtsein stellt sich hierin als die Bewegung dar worin dieser Gegensatz aufgehoben

und ihm die Gleichheit feiner selbst mit sich wirdrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV paacuteg 117)

292

Uma anaacutelise mais atenta deixa aliaacutes perceber que eacute o facto de natildeo ser assim (o facto de

se detectar algo de alheio que resiste ou potildee em causa a identidade plena da auto-consciecircn-

cia) que chama a atenccedilatildeo para a proacutepria auto-consciecircncia ndash que a natildeo ser assim poderia mui-

to bem acontecer que a auto-consciecircncia ateacute estivesse em operaccedilatildeo e ateacute estivesse a ldquoprodu-

zirrdquo ldquoconteuacutedosrdquo mas sem que tivesse qualquer noccedilatildeo disso (ie se poderia muito bem dar-se

o caso de a auto-consciecircncia estar a operar silenciosamente)

Quer dizer a detecccedilatildeo de um ldquoobjectordquo enquanto algo que potildee em causa a identidade

plena da auto-consciecircncia eacute o factor decisivo que faz virar a atenccedilatildeo para a auto-consciecircncia

Isto eacute ao inveacutes do que poderia ser uma operaccedilatildeo completamente silenciosa se natildeo se detectas-

se nada de alheio a resistir-lhe a detecccedilatildeo de um ldquoobjectordquo eacute o factor decisivo que depotildee a au-

to-consciecircncia numa relaccedilatildeo consigo proacutepria (que potildee a auto-consciecircncia a considerar-se a si

proacutepria atenta agraves suas operaccedilotildees etc)89

Em suma se natildeo estamos a ver mal a auto-consciecircncia tem uma relaccedilatildeo consigo mes-

ma marcada por uma invasatildeo de alteridade

Por outras palavras enquanto eacute ao mesmo tempo consciecircncia do seu objecto a auto-

consciecircncia tem uma natureza tal que estaacute prejudicada a possibilidade da sua plena identidade

consigo mesma Quer dizer pela sua proacutepria natureza a auto-consciecircncia estaacute como que ldquoex-

pulsardquo dessa forma de identidade ldquocaiacutedardquo numa alteridade que natildeo estaacute em condiccedilotildees de eli-

minar (que tem como que ldquoatravessadardquo em si etc)

Presa como estaacute a essa irreversiacutevel intromissatildeo da alteridade (como algo estranho que

se lhe impotildee e a determina) a auto-consciecircncia tende por si mesma para uma plenitude de si

que corresponda agrave plena integraccedilatildeo em si daquilo que eacute estranho (ou seja a qualquer coisa

que natildeo eacute a plenitude de que estaacute expulsa agrave partida mas uma plenitude de si com o objecto)

Chamemos agrave primeira plenitude a plenitude anterior (a plenitude do ponto de partida ndash

que na verdade nunca o eacute porque a auto-consciecircncia estaacute sempre jaacute expulsa dela) e chame-

89

Parece ser isto que Hegel quer dizer quando diz a dado passo ldquoEs ist zu sehen wie die Gestalt des

Selbstbewuszligtseins zunaumlchst auftrittrdquo Em contraste com o que disse na secccedilatildeo anterior dedicada agrave

consciecircncia contraste que aqui natildeo nos interessa mais do que assinalar a auto-consciecircncia natildeo apare-

ce a si proacutepria como ldquoeinfache selbstaumlndigerdquo mas aparece (daacute-se a ver etc) com uma forma ldquoAber in

der Tat ist das Selbstbewuszligtsein die Reflexion aus dem Sein der sinnlichen und wahrgenommenen

Welt und wesentlich die Ruumlckkehr aus dem Anderssein (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 1 paacuteg

116) Quer dizer surge na forma da reflexatildeo (no sentido do termo ldquoreflexatildeordquo que reforccedila o aspecto es-

pecular) do ser do mundo sensiacutevel e perceptivo

293

mos agrave segunda plenitude a plenitude do ponto de chegada (para que a auto-consciecircncia tende

enquanto tem o objecto como ldquoatravessadordquo em si)

E se tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada da relaccedilatildeo da auto-consciecircn-

cia consigo mesma correspondem a algo como a plenitude de si (a totalidade de si a plena

identidade consigo a uma identidade que precisamente natildeo deixe nada de fora etc) aquilo

que a detecccedilatildeo de algo de alheio que resiste agrave identidade plena da auto-consciecircncia deixa ver eacute

que a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma daacute consigo aqueacutem do ponto de partida e do

ponto de chegada

Quer isto dizer o seguinte a) soacute o incumprimento da plenitude do ponto de partida faz

com que a auto-consciecircncia se aperceba da sua proacutepria realidade e das suas operaccedilotildees b) logo

que se apercebe de si e das suas operaccedilotildees a auto-consciecircncia daacute consigo a natildeo corresponder

a nada que se pareccedila com uma plenitude de si no ponto de partida (com uma totalidade de si

com uma plena identidade consigo com uma identidade que natildeo deixe nada de fora etc)

Ora poderia ser assim sem que se gerasse deste entendimento da situaccedilatildeo qualquer

problema Isto eacute poderia dar-se o caso de a auto-consciecircncia dar consigo a incumprir a tese da

plenitude que tem inscrita em si mas de tal que o que daiacute resultasse fosse um mero registo

desse incumprimento

Poreacutem o que acontece eacute o contraacuterio

O ponto decisivo eacute que a auto-consciecircncia tende para a sua plenitude

A auto-consciecircncia estaacute por assim dizer sobre uma pressatildeo de plenitude ndash uma pres-

satildeo para ldquoretomarrdquo a plenitude que de facto nunca esteve dada desde o primeiro instante em

que a auto-consciecircncia estabeleceu uma relaccedilatildeo consigo proacutepria (desde que deu consigo etc)

De sorte que natildeo se trata de nenhum ldquoretomarrdquo mas na verdade de alcanccedilar algo que nunca

houve E eacute somente no curso dessa tensatildeo para a plenitude que o objecto sobressai ndash enquanto

o objecto estaacute constituiacutedo em impedimento do cumprimento da tensatildeo para a plenitude que

compotildee a auto-consciecircncia

Ora a esta tensatildeo para a plenitude da auto-consciecircncia Hegel chama ldquodesejordquo90

90

ldquoDieser Gegensatz seiner Erscheinung und seiner Wahrheit hat aber nur die Wahrheit naumlmlich die

Einheit des Selbstbewuszligtseins mit sich selbst zu seinem Wesen diese muszlig ihm wesentlich werden

dh es ist Begierde uumlberhauptrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 1 paacuteg 116-7)

294

Quando Hegel fala de ldquodesejordquo aquilo de que estaacute a procurar dar conta eacute algo muito

diferente do que espontaneamente associamos ao conceito

Em primeiro lugar quando se fala de ldquodesejordquo (de a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consi-

go mesma estar marcada por desejo) desde logo se potildee de parte a possibilidade de a auto-

consciecircncia ser se assim se pode dizer uma forma vaga e transparente ndash uma forma por

preencher sem conteuacutedo etc O que Hegel nos diz eacute que a auto-consciecircncia eacute uma forma com

caraacutecter de densidade ndash e tanto quer dizer eacute uma forma marcada por ter uma identidade de-

terminada a saber por ter a identidade ldquodesejordquo

Tal como o conceito hegeliano de ldquodesejordquo se nos apresenta nos passos aqui em causa

ele marca o modo como estaacute constituiacuteda a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma e as-

sim tambeacutem o conteuacutedo dessa relaccedilatildeo Isto eacute toda a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo

mesma enquanto tende para a plenitude de si estaacute assente sobre a determinaccedilatildeo do desejo

(como tensatildeo para a plenitude de si)

Neste sentido o desejo em causa na concepccedilatildeo de Hegel corresponde a uma tensatildeo de

identidade consigo ndash e na verdade a uma tensatildeo de identidade consigo que natildeo deixe de fora

nada de si (uma tensatildeo de identidade que soacute se cumpre na aquisiccedilatildeo ou na posse de tudo o

que corresponde a essa identidade) Em suma o ldquodesejordquo a que Hegel se refere eacute o ldquodesejo de

sirdquo

Assim e no acircmbito do desejo que marca ou determina a auto-consciecircncia (na sua per-

manente relaccedilatildeo consigo) surge uma segunda entidade (isso precisamente a que Hegel chama

o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia) que desempenha um papel decisivo no desejo Poderiacuteamos

dizer que o objecto da auto-consciecircncia se constitui em objecto do desejo

A este respeito satildeo de assinalar em especial trecircs pontos que parecem particularmente

importantes

Em primeiro lugar tal como vimos a relaccedilatildeo da consciecircncia consigo mesma estaacute mar-

cada por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a si mesma ndash aquilo a que o Hegel da Fe-

nomenologia chama ldquodesejordquo

Em segundo lugar o desejo de que se fala na Fenomenologia natildeo eacute pura e simples-

mente uma classe de formas de comportamento sobre a qual eacute subsumiacutevel uma vasta e hete-

rogeacutenea multiplicidade de tensotildees desiderativas cada uma com a sua origem (a sua direcccedilatildeo e

o seu objecto proacuteprios etc)

295

Este eacute um dos pontos em que o conceito de desejo que encontramos desenhado na Fe-

nomenologia difere substancialmente da concepccedilatildeo mais comum Hegel propotildee um entendi-

mento do desejo na sua relaccedilatildeo com a auto-consciecircncia cujos antecedentes remontam pelo

menos ateacute ao corpus platonicum

Segundo este entendimento em vez de haver multiplicidade de desejos muito variaacute-

veis (que vatildeo e vecircm etc) haacute qualquer coisa como um uacutenico desejo ndash fixo inerente invariaacute-

vel ndash que se funda na proacutepria estrutura da consciecircncia Essa tensatildeo fundamental expressa-se

numa multiplicidade de fluxos desiderativos que estatildeo todos ligados a essa tensatildeo fundamen-

tal de tal modo que todos se propotildeem ndash e soacute fazem sentido ndash como ponto de passagem dela

Quer dizer em uacuteltima anaacutelise deseja-se sempre o mesmo ndash todos os desejos indepen-

dentemente da sua diversidade e das direcccedilotildees que tomam procuram aproximar do mesmo

(vatildeo a caminho do mesmo etc)

Ou como tambeacutem podemos dizer a multiplicidade aparentemente desencontrada e va-

riaacutevel dos desejos corresponde a uma ldquorefracccedilatildeordquo de algo uacutenico resultando em qualquer coisa

como um espectro (excepto que neste caso o efeito da refracccedilatildeo natildeo resulta de haver vaacuterios

elementos a compor aquilo que se decompotildee num espectro antes sucede que eacute uma unidade

original que desencadeia a partir de si mesma como que uma multiplicidade interna de diver-

sos momentos)

Em terceiro lugar como vimos haacute um nexo total entre aquilo que aparece e o desejo

de que a auto-consciecircncia eacute portadora

Na concepccedilatildeo mais comum haacute desejos mais ou menos avulsos Daiacute resulta que satildeo

objectos mais ou menos avulsos que ocasionalmente se tornam objectos de desejo

Aquilo que se descobre na tese de Hegel eacute algo muito diferente a consciecircncia eacute per-

manentemente portadora de desejo e aquilo que encontra interpotildee-se sempre no caminho entre

ela e aquilo para que tende fixando se assim se pode dizer em si aquilo que vai sendo do de-

sejo dela

Neste sentido tudo estaacute no lugar do objecto do desejo e corresponde a qualquer coisa

como a retenccedilatildeo numa determinada posiccedilatildeo relativamente a ele

Ora eacute aiacute que reside o ponto decisivo para se entender de que eacute que Hegel estaacute a falar

quando fala de ldquodesejordquo (ou ldquodesejo de sirdquo) E o ponto eacute o seguinte agrave entidade que Hegel de-

signa como ldquoobjectordquo cabe um papel no cumprimento do desejo

296

Para compreendermos um pouco melhor o que isto quer dizer interessa considerar os

aspectos que se seguem Em especial importa considerar o paradoxo que isso a Hegel chama

ldquoobjectordquo provoca na relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

Eacute que se por um lado o ldquoobjectordquo eacute condiccedilatildeo de possibilidade da constituiccedilatildeo de

ldquodesejordquo por outro no entanto o ldquoobjectordquo eacute condiccedilatildeo de possibilidade de supressatildeo do de-

sejo em cuja constituiccedilatildeo ele proacuteprio colabora

Vejamos um pouco melhor como pode ser assim

A relaccedilatildeo da ldquoauto-consciecircnciardquo com o seu ldquoobjectordquo eacute uma relaccedilatildeo de interlocuccedilatildeo

Mais precisamente a ldquoauto-consciecircnciardquo relaciona-se com o seu ldquoobjectordquo enquanto o ob-

jecto constitui um interlocutor interno ndash na medida em que ele eacute parte (e parte fundamental)

da proacutepria relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

Sendo assim o primeiro aspecto que interessa destacar eacute que como vimos o objecto

da auto-consciecircncia eacute sempre de certo modo uma instacircncia de obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircn-

cia que inibe a plenitude da auto-consciecircncia Isto quer dizer que o objecto se apresenta na

condiccedilatildeo de agente de interferecircncia na relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma enquanto

a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma tende para a plenitude de si mesma

Poreacutem o que Hegel sustenta natildeo eacute apenas que haacute no interior da auto-consciecircncia um

factor de natildeo-plenitude da auto-consciecircncia ndash a natildeo-plenitude que diz precisamente respeito agrave

intromissatildeo do objecto na relaccedilatildeo de si a si na relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

etc Nem estaacute a dizer meramente ndash o que jaacute natildeo seria pouco ndash que a auto-consciecircncia estaacute pos-

ta agrave distacircncia de si (leia-se agrave distacircncia de si enquanto plenitude) pela interferecircncia do objecto

Na verdade o que Hegel afirma eacute que a interferecircncia do objecto mostra justamente

uma intriacutenseca e inexoraacutevel incompletude da auto-consciecircncia na medida em que a auto-

consciecircncia natildeo se vale a si proacutepria (natildeo tem condiccedilotildees no seu proacuteprio acircmbito para se cum-

prir)

Vendo bem o caso de a auto-consciecircncia natildeo se valer a si proacutepria ou natildeo ter condi-

ccedilotildees no seu proacuteprio acircmbito para se cumprir eacute a condiccedilatildeo fundamental de constituiccedilatildeo do de-

sejo

De facto o fenoacutemeno do ldquodesejordquo ndash mesmo no sentido mais comum e quotidiano do

termo ndash tem no seu nuacutecleo este mesmo aspecto Quando nos referimos a algo como um ldquodese-

jordquo aquilo que procuramos assinalar eacute de um uacutenico golpe uma modalidade de incompletude

297

e uma tensatildeo para a superaccedilatildeo da incompletude Poreacutem soacute haacute desejo enquanto a tensatildeo para

a superaccedilatildeo da incompletude natildeo estiver resolvida ndash caso contraacuterio haacute satisfaccedilatildeo posse pre-

enchimento etc

Neste sentido a interferecircncia do objecto ndash que eacute condiccedilatildeo de possibilidade da consti-

tuiccedilatildeo do desejo ndash mostra que a auto-consciecircncia natildeo pode ter o caraacutecter de algo irredutiacutevel ou

encerrado em si mas pelo contraacuterio tem intrinsecamente o caraacutecter de algo aberto

Isto leva-nos ao segundo aspecto Na verdade eacute justamente por via disto que agora

acabamos de expor que o ldquoobjectordquo se constitui em condiccedilatildeo de possibilidade de supressatildeo do

desejo

Tendo em conta o aspecto que vimos exige-se agrave relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo

mesma ndash enquanto estaacute a caminho de cumprir o quesito da plenitude ndash que passe necessaria-

mente pelo objecto O que tudo isto significa eacute que cada momento do desejo ocorre sempre

num plano alheio ou estranho ao plano restrito da auto-consciecircncia Por outras palavras a

relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma natildeo se cumpre no domiacutenio exclusivo da auto-

consciecircncia ndash cumpre-se de facto no domiacutenio do ldquoobjectordquo

Ora a relaccedilatildeo de plenitude para que a auto-consciecircncia originalmente tende exige o

recurso a meios e instrumentos de realizaccedilatildeo que ela mesma natildeo possui ndash recorre a ldquoconteuacute-

dosrdquo que lhe escapam que lhe satildeo alheios depende do que estiver disponiacutevel do que aparece

obriga a recorrer a conteuacutedos que fazendo parte da auto-consciecircncia (no sentido de que estatildeo

no seu domiacutenio na sua esfera etc) lhe resistem satildeo heterogeacuteneos em relaccedilatildeo a ela etc

Comeccedila assim a ficar mais clara a natureza da relaccedilatildeo ou do nexo entre auto-consciecircn-

cia e objecto

E o que se comeccedila a compreender eacute que o domiacutenio da auto-consciecircncia abarca ou

abrange o domiacutenio do ldquoobjectordquo na medida em que eacute no domiacutenio do objecto ndash que note-se

bem se encontra no ldquointeriorrdquo da auto-consciecircncia que a invade no seu proacuteprio cerne etc ndash

que a auto-consciecircncia tem possibilidades de efectivamente se cumprir (tem possibilidades de

obter a sua plenitude)

Ora sendo assim a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma (a relaccedilatildeo de si a si o

lidar consigo mesmo a caminho da plenitude de si etc) implica uma transitividade (um factor

de cruzamento ou de intercepccedilatildeo ndash esse factor que faz da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo

mesma uma relaccedilatildeo centriacutefuga) que depotildee num plano distinto (implica lidar com as ldquocoisasrdquo

298

ie com aquilo que eacute radicalmente diferente de si) E implica lidar com elas enquanto mo-

mento do lidar consigo

Tudo isto significa que a tarefa da auto-consciecircncia passa por ldquodescobrirrdquo a situaccedilatildeo

concreta em que daacute consigo (o ldquoobjectordquo com que se confronta) e passa por incorporar a situa-

ccedilatildeo concreta em que se estaacute ndash ie passa por tornaacute-la possibilidade de soluccedilatildeo da relaccedilatildeo de si

a si Este eacute um ponto a que daremos atenccedilatildeo mais tarde

Por agora o que interessa reforccedilar eacute o seguinte o que estaacute expresso no conceito hege-

liano de ldquoobjectordquo eacute que o objecto eacute isso que eacute chamado a preencher a relaccedilatildeo da auto-cons-

ciecircncia consigo mesma A auto-consciecircncia tem a sua proacutepria identidade formada a partir do

objecto (tem a sua identidade preenchida pelo objecto ie pelo que aparece pelo que estaacute

disponiacutevel etc)

Poderia dizer-se a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma passa por outro ndash por

algo radicalmente diferente de si Ou como tambeacutem poderiacuteamos dizer a identidade da auto-

consciecircncia cumpre-se em ldquoterritoacuterio hostilrdquo

Acontece que o objecto da auto-consciecircncia natildeo corresponde nem por um lado a uma

uacutenica forma de obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircncia (pelo contraacuterio assume uma imensa varieda-

de de formas de obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircncia) nem por outro a uma uacutenica forma de pre-

enchimento de identidade da auto-consciecircncia (pelo contraacuterio assume uma imensa variedade

de formas de preenchimento de identidade da auto-consciecircncia)

A relaccedilatildeo ao objecto ndash enquanto o objecto corresponde a um momento da relaccedilatildeo da

auto-consciecircncia consigo mesma posta sob uma tensatildeo de plenitude ndash assenta sobre uma ex-

pectativa de preenchimento dessa relaccedilatildeo Isto eacute o objecto estaacute fundamentalmente definido

pelo facto de se inscrever num ldquoterritoacuteriordquo pressionado pelo desejo

Este eacute o aspecto que agora teremos de considerar

O objecto (o que aparece o que estaacute disponiacutevel etc) tem ou natildeo capacidade para

cumprir a expectativa de preenchimento da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma (eacute ou

natildeo capaz de satisfazer e portanto suprimir o desejo etc) Mas seja como for as funccedilotildees

atribuiacutedas ao ldquoobjectordquo satildeo as funccedilotildees de horizonte de satisfaccedilatildeo do desejo de ldquosirdquo

Haacute se assim o podemos dizer um factor de expropriaccedilatildeo ndash factor que faz que o objec-

to esteja privado da sua mera identidade consigo mesmo e esteja marcado por uma relaccedilatildeo

centriacutefuga agrave auto-consciecircncia em relaccedilatildeo agrave qual estaacute

299

Quer dizer a auto-consciecircncia eacute um factor determinante do objecto na medida em

que para se cumprir o desejo de plenitude que estaacute no nuacutecleo da auto-consciecircncia recorre a

ldquoconteuacutedosrdquo que escapam ao acircmbito restrito de si (ao que aparece ao que estaacute disponiacutevel

etc) mas isso de tal modo que o objecto adquire as suas determinaccedilotildees sempre jaacute no meio do

tracircnsito do desejo de plenitude da auto-consciecircncia (e de facto como momento desse transi-

to)

Em qualquer caso aquilo que estamos a procurar sublinhar a partir desta breve anaacutelise

de Hegel eacute o seguinte a relaccedilatildeo ao ldquoobjectordquo (a relaccedilatildeo agraves ldquocoisasrdquo ao que aparece etc) natildeo

se esgota no proacuteprio ldquoobjectordquo (no quadro das proacuteprias ldquocoisasrdquo no quadro do que mera-

mente aparece etc) como algo desligado de qualquer outro elemento ou factor A relaccedilatildeo ao

ldquoobjectordquo (agraves ldquocoisasrdquo a tudo o que aparece etc) estaacute integrada na relaccedilatildeo da auto-cons-

ciecircncia consigo mesma Estaacute aliaacutes de tal modo integrada na relaccedilatildeo da auto-consciecircncia con-

sigo mesma que a forma que o ldquoobjectordquo (as ldquocoisasrdquo tudo o que aparece etc) adquire eacute jus-

tamente a forma de um momento dessa relaccedilatildeo de si a si

Dito de outro modo poderiacuteamos supor que tudo isto seria tal como vimos mas sem

que isso afectasse significativamente o que aparece Poderiacuteamos supor aquilo algo como uma

ldquoquietude do objectordquo (posto na pura posiccedilatildeo de si) Isto eacute poderiacuteamos supor que o que apare-

ce estaacute meramente ldquoaiacuterdquo e que uma qualquer relaccedilatildeo com a auto-consciecircncia eacute meramente su-

perveniente (algo adicional mas que se retirado deixaria as ldquocoisasrdquo tal como elas ldquosatildeordquo)

Ou seja poderia acontecer que a determinaccedilatildeo do desejo fosse apenas algo como um

invoacutelucro de que as ldquocoisasrdquo se revestem Nesse caso a determinaccedilatildeo relativa ao desejo da

consciecircncia seria um mero excesso (um acrescento algo mais etc) aposto a determinaccedilotildees

ldquocoisaisrdquo que manteriam o seu caraacutecter absoluto

O que estamos a ver no entanto eacute o oposto

Em primeiro lugar a relaccedilatildeo que temos ao ldquoobjectordquo (agraves ldquocoisasrdquo a tudo o que apare-

ce etc) natildeo estaacute constituiacuteda de tal modo que nos deponha sem mais perante elas A determi-

naccedilatildeo do que aparece (de tudo o que aparece no plano do ldquoobjectordquo) natildeo corresponde apenas a

uma mera determinaccedilatildeo ldquoobjectivardquo ou ldquocoisalrdquo Isto eacute algo que jaacute vimos mas a que agrave luz dos

novos desenvolvimentos interessa rever

Podemos dizer o seguinte para aleacutem da relaccedilatildeo meramente ldquocoisalrdquo (para aleacutem da re-

laccedilatildeo com o ldquoobjectordquo isolado de qualquer outro factor ou determinaccedilatildeo) a relaccedilatildeo com o que

ldquoobjectordquo estaacute imersa num momento fundamental de desejo de si De facto cada uma das

300

ldquocoisasrdquo (tudo o que aparece) enquanto aparece no plano do objecto aparece englobada ou

tida no desejo em causa ndash eacute por assim dizer parte desse desejo

Para o dizer de uma forma ainda mais inequiacutevoca o ldquoobjectordquo soacute se constitui em ldquoob-

jectordquo enquanto momento ou parte do desejo ndash e natildeo se constituiria em ldquoobjectordquo tal como haacute

para noacutes se natildeo houvesse desejo

Em segundo lugar essa relaccedilatildeo eacute impossiacutevel de anular Natildeo estamos em condiccedilotildees de

estabelecer qualquer modalidade de acesso ao que aparece que natildeo esteja marcada por uma

relaccedilatildeo deste geacutenero

De tudo isto resulta que a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma implica a radi-

cal anulaccedilatildeo do objecto na sua independecircncia Cada ldquocoisardquo que aparece caracteriza-se preci-

samente pela transitividade natildeo vale por si soacute natildeo tem sentido como algo absoluto encerra-

do em si etc Cada ldquocoisardquo ocorre sempre jaacute referido a um para-laacute-de-si (no caso a um de-

sejo-para-laacute-de-si que eacute posto pela auto-consciecircncia) Em suma cada ldquocoisardquo (tudo o que

aparece) tem sempre jaacute forma de desejo

E se quisermos considerar que efeito isso gera sobre o que aparece consideremos o se-

guinte

Tendemos habitualmente a supor que o modo como acedemos agraves ldquocoisasrdquo correspon-

de em geral ao modo como as ldquocoisasrdquo realmente ldquosatildeordquo

Nesse sentido tendemos a presumir que o acesso em que estamos constituiacutedos eacute um

acesso que meramente acompanha as ldquocoisasrdquo que as medidas das ldquocoisasrdquo como que se im-

potildeem ao nosso ponto de vista ndash que em suma o acesso em que estamos constituiacutedos eacute um

acesso que acompanha de forma transparente a medida das proacuteprias ldquocoisasrdquo Em suma o

contraste entre as ldquocoisasrdquo resultaria das caracteriacutesticas proacuteprias das ldquocoisasrdquo

Acontece que natildeo eacute assim Acontece que o desejo impotildee a sua proacutepria medida

O contraste das ldquocoisasrdquo umas com as outras resulta das caracteriacutesticas proacuteprias das

ldquocoisasrdquo enquanto as ldquocoisasrdquo e as suas caracteriacutesticas proacuteprias estatildeo em referecircncia ao de-

sejo em que de cada vez estatildeo (enquanto estatildeo em referecircncia agravequilo que determina a sua

identidade funcional)

Na verdade as ldquocoisasrdquo que aparecem satildeo ldquounidadesrdquo complexas ndash envolvem uma

multiplicidade de momentos formam um todo de diferenccedilas etc E o que se passa eacute o que as

ldquocoisasrdquo tecircm de raiz a forma do desejo ligado agrave relaccedilatildeo de si a si e portanto estatildeo intrinse-

301

camente associadas ao curso desse desejo (satildeo partes ou ldquoepisoacutediosrdquo singulares desse dese-

jo)

Isto quer dizer o seguinte as ldquocoisasrdquo aparecem sempre jaacute tendo no nuacutecleo do seu apa-

recimento a resposta agrave pergunta que papel desempenha x em relaccedilatildeo ao desejo

O que estamos a procurar salientar eacute que na determinaccedilatildeo do que aparece a medida

ou o padratildeo do desejo eacute um factor determinante O desejo funciona de certo modo como

uma grelha ou um factor de correcccedilatildeo

Neste sentido a apresentaccedilatildeo das ldquocoisasrdquo eacute correlato de uma rede de relaccedilotildees que as

diferentes ldquocoisasrdquo estabelecem com o desejo a que todas se referem

O que isto mostra eacute que as relaccedilotildees entre as diferentes ldquocoisasrdquo eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo

atravessada por esta referecircncia a um desejo que as excede Em suma o modo do desejo (o

modo como acedemos agraves ldquocoisasrdquo) modifica-as no seu interior afecta as proacuteprias determina-

ccedilotildees ldquocoisaisrdquo De sorte que as determinaccedilotildees tidas por ldquocoisaisrdquo ndash o que tomamos por proacute-

prio dos ldquoobjectosrdquo ndash satildeo na verdade o resultado da projecccedilatildeo e estatildeo na dependecircncia do

ldquopapelrdquo que desempenham na ldquopeccedilardquo do desejo de si

Quer dizer o objecto define-se como componente da auto-consciecircncia na sua relaccedilatildeo

consigo mesma ndash ou mais precisamente assume um papel na demanda de si (ie na deman-

da da plenitude de si) de que a auto-consciecircncia eacute portadora

Em uacuteltima anaacutelise eacute isso que quer dizer ser o ldquonegativordquo da auto-consciecircncia ao mes-

mo tempo quer dizer a) ser o limite em que se manifesta a distacircncia a que a auto-consciecircncia

estaacute da plenitude de si e b) ser o ldquolugarrdquo onde estaacute em jogo a alternativa entre a retenccedilatildeo nesse

limite (continuar a ficar aqueacutem da plenitude de si) e a supressatildeo do limite (a transformaccedilatildeo do

objecto da consciecircncia em algo correspondente agrave plenitude dela)

Percebemos assim que tal como eacute descrito neste passo o objecto significa ao mesmo

tempo o lugar funcional deste drama de si (onde se joga a alternativa com todas as suas peri-

peacutecias) e os diferentes preenchimentos concretos deste lugar funcional (que fazem que o ldquodra-

ma de sirdquo esteja de cada vez neste e naquele peacute neste ou naquele ponto de desenvolvimento

da demanda da plenitude de si)

Visto isto devemos fazer notar que esta batida por Hegel natildeo significa de modo ne-

nhum que as perspectivas em jogo ndash a de Hegel (sc a da auto-consciecircncia descrita por Hegel)

e aquela que aqui procuramos desenhar sejam coincidentes

302

Basta comparar a caracterizaccedilatildeo do papel protagonista atribuiacutedo num caso agrave consci-

ecircncia (ie agrave auto-consciecircncia) e no outro caso agrave ldquotestemunha globalrdquo do aparecimento para

se perceber que jaacute importantes diferenccedilas de matriz O mesmo se pode tambeacutem dizer por

exemplo em relaccedilatildeo agrave categoria do desejo tal como eacute apresentada por Hegel e aquilo que

procuraacutemos pocircr em evidecircncia sobre o fenoacutemeno da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e as suas carac-

teriacutesticas

Mas o que importa eacute que nada disto impede que aquilo que se encontra formulado por

Hegel nos passos que focaacutemos ajude a desenhar com mais nitidez a forma que como procuraacute-

mos mostrar o aparecimento e a experiecircncia tecircm em noacutes

Tudo se passa como se ao pormos o nosso esboccedilo de descriccedilatildeo contra o fundo das

anaacutelises de Hegel isso produzisse ao mesmo tempo o efeito de vincar mais o que haacute de co-

mum e de fazer aparecer o que haacute de diferente contribuindo assim para o apuramento dos tra-

ccedilos

Munidos destes elementos podemos agora passar a uma exploraccedilatildeo do terceiro aspec-

to

sect34

O caraacutecter natildeo-punctiforme ou natildeo-estigmaacutetico do ponto de vista a natildeo-indiferenccedila ao

que seraacute e a flexatildeo do si-mesmo na forma de uma prescriccedilatildeo indefinida de si

Antes de mais importa-nos considerar uma componente implicada em tudo isto que

ainda precisa de ser explicitada e posta sob foco ndash ateacute mesmo porque natildeo soacute eacute indispensaacutevel

tecirc-la presente se se quiser compreender a natureza e as implicaccedilotildees da tensatildeo de natildeo-indife-

renccedila que perpassa todo o aparecimento em que damos connosco como para aleacutem disso ela

eacute tambeacutem essencial para se perceber a constituiccedilatildeo do fenoacutemeno da vida (daquilo que estaacute em

causa quando se fala de ldquoexperiecircncia da vidardquo)

Essa componente que ainda falta considerar tem que ver com aquilo que podemos

descrever como o caraacutecter natildeo-punctiforme ou natildeo-estigmaacutetico do ponto de vista (sc da ldquotes-

temunha globalrdquo) cuja natildeo-indiferenccedila a si mesmo gera tudo aquilo que se tentou descrever

303

Vejamos em primeiro lugar o que eacute que se quer dizer quando se fala do caraacutecter natildeo-

punctiforme ou natildeo-estigmaacutetico da ipseidade (sc da testemunha enquanto justamente natildeo eacute

apenas uma testemunha mas algo que estaacute em causa ndash e estaacute em causa no que aparece em tu-

do o que aparece etc)

Observaacutemos que a unidade da ldquotestemunha globalrdquo tem um caraacutecter tal que lhe permi-

te constituir-se em ponto de convergecircncia ndash no foco de qualquer coisa como uma compraeligsen-

tia omnium O desempenho dessas funccedilotildees significa jaacute por si soacute que natildeo se trata de algo

simples ndash que se assim se pode dizer tem uma ldquocapacidaderdquo a perder de vista etc

Poreacutem essa perspectiva natildeo permite perceber (e se natildeo der lugar a mais nada faz per-

der de vista) a dimensatildeo ndash a tensatildeo interna ndash em virtude da qual a testemunha global de que

estamos a falar tem o caraacutecter de um horizonte (e na verdade ateacute de um horizonte indefini-

damente extenso)

Comecemos por analisar este peculiar fenoacutemeno a partir da sua ligaccedilatildeo com a proacutepria

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que prende a testemunha global a si mesma

A dedicaccedilatildeo (a natildeo-neutralidade o fazer caso de si etc) natildeo estaacute fechada numa

ocorrecircncia uacutenica punctiforme de si Sucede em vez disso que estaacute ligada a uma peculiar

modalidade de flexatildeo de si ndash e tanto quer dizer de multiplicaccedilatildeo de si

Por um lado natildeo sucede que o si-mesmo a que a testemunha natildeo eacute indiferente (o si-

mesmo a que estaacute dedicada de que faz caso etc) seja apenas aquele que eacute num dado momen-

to numa ocorrecircncia absolutamente fechada e desligada do que quer que seja para laacute do mo-

mento dado Sucede o contraacuterio a natildeo-indiferenccedila da ldquoprimeira pessoardquo a si mesma eacute tal que

inclui jaacute tambeacutem natildeo-indiferenccedila agravequilo que se passaraacute consigo

Poderia dar-se o caso de a relaccedilatildeo de si a si ndash e uma relaccedilatildeo de si a si constituiacuteda no

modo do interesse por si da natildeo-neutralidade a si da natildeo-indiferenccedila a si etc ndash se esgotar

na ocorrecircncia de si num dado momento de tal modo que essa ocorrecircncia de si estivesse com-

pletamente isolada de (ou natildeo abrisse qualquer horizonte sobre) outras eventuais ocorrecircncias

de si

Nesse caso a relaccedilatildeo de si a si teria uma constituiccedilatildeo avulsa (ie estaria constituiacuteda

de tal modo que seria completamente alheia independente ou autoacutenoma de qualquer outra

eventual ocorrecircncia de si) Em suma poderia dar-se o caso de natildeo haver entre diversas ocor-

recircncias de si qualquer nexo de continuidade

304

Contudo natildeo eacute isso que se desenha

Vendo bem se cada ocorrecircncia de si fosse algo totalmente solto (isolado separado

etc) de qualquer outra eventual ocorrecircncia de si isso corresponderia a uma anulaccedilatildeo da possi-

bilidade da diversidade de ocorrecircncias de si

Quer dizer por um lado as ocorrecircncias de si seriam necessariamente diferentes entre

si ndash quanto mais natildeo fosse pelo facto de ocuparem posiccedilotildees diferentes no continuum espaacutecio-

temporal No entanto e uma vez que cada uma delas natildeo teria qualquer perspectiva para laacute de

si natildeo soacute natildeo teriam qualquer noccedilatildeo de outras ocorrecircncias de si como natildeo teriam qualquer

noccedilatildeo das diferenccedilas entre as diversas ocorrecircncias

Adicionalmente isso corresponderia tambeacutem a uma anulaccedilatildeo da possibilidade de su-

cessatildeo de ocorrecircncias entre si

Quer dizer por um lado as ocorrecircncias suceder-se-iam (ie estariam dispostas num

quadro de disposiccedilatildeo temporal de tal modo que uma viria antes ou depois de outra etc) Po-

reacutem por outro lado e na medida em que estariam totalmente encerradas em si mesmas as di-

versas ocorrecircncias de si natildeo estariam articuladas por qualquer nexo de sucessatildeo entre si ndash de

tal modo que o que resultaria seria algo muito diferente de uma ldquosucessatildeordquo ou de ldquocontinuida-

derdquo

O que se desenha entatildeo eacute que cada ocorrecircncia de si estaacute em tensatildeo para laacute de si mes-

ma ndash no caso cada ocorrecircncia singular de si estaacute numa tensatildeo em relaccedilatildeo a uma outra ocor-

recircncia singular de si que lhe suceda (ie que herde a ocorrecircncia de si anterior e se constitua

como continuaccedilatildeo do ldquosirdquo) Dito de outro modo cada ocorrecircncia de si natildeo eacute senatildeo uma

ocorrecircncia de si intermediaacuteria ou transitiva ndash uma ocorrecircncia no meio de ocorrecircncias de si

que herdam da ocorrecircncia de si anterior e que estatildeo em tensatildeo para a ocorrecircncia de si subse-

quente

Ora visto a partir deste acircngulo o interesse por si (a natildeo-neutralidade a si da natildeo-in-

diferenccedila a si etc) corresponde na verdade a um interesse (natildeo-neutralidade natildeo-indiferen-

ccedila etc) pela continuaccedilatildeo de si (pela recorrecircncia de si pela prossecuccedilatildeo de si etc) Assim a

natildeo-indiferenccedila da ldquoprimeira pessoardquo (da ldquotestemunha globalrdquo) a si mesma inclui uma natildeo-in-

diferenccedila ao que seraacute

Pois a) a sua identidade eacute tal que projecta (prescreve encomenda etc) mais de si

(qualquer coisa como ldquosi mesmo a haverrdquo um ldquosi mesmo que deve serrdquo etc) e b) essa articu-

laccedilatildeo de si mesma na projecccedilatildeo de si (nesse espraiar de si nessa duplicaccedilatildeo de si no si-mes-

305

mo-a-haver etc) estaacute dominada pela absoluta mesmidade entre o si-que-jaacute-eacute e o si-a-haver

e por isso estende a dedicaccedilatildeo de si e faz dela uma dedicaccedilatildeo de si a esse si-a-haver (como

fazendo jaacute caso disso) a dedicaccedilatildeo a si-mesmo-jaacute eacute uma dedicaccedilatildeo a si-mesmo-a-haver de

sorte que c) a flexatildeo do si aqui em causa a projecccedilatildeo de si-a-haver tem de raiz a forma da

natildeo-indiferenccedila (da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila) que assim assume a dimensatildeo alargada que a

ldquoflexatildeo de sirdquo confere agrave ldquotestemunha globalrdquo

Ora vendo bem natildeo haacute pura e simplesmente a flexatildeo do si noutras instacircncias de si (a

projecccedilatildeo) que confere agrave testemunha global sempre jaacute o caraacutecter de antecipaccedilatildeo de si mesma

de antecipaccedilatildeo de uma testemunha-global-a-haver ndash ou mais precisamente da mesma-teste-

munha-global-a-haver O ponto decisivo eacute que a flexatildeo da ldquotestemunha globalrdquo (a multiplica-

ccedilatildeo em mais si-a-haver mais si-a-haver e assim sucessivamente) tem sempre jaacute um caraacutecter

gerundivo ou deocircntico

Isto eacute natildeo se trata pura e simplesmente de algo que pode ser (mas tambeacutem pode natildeo

ser) de tal modo que se eacute totalmente indiferente a esta alternativa

Trata-se de uma projecccedilatildeo que de raiz tem uma forccedila deocircntica e prescreve o si-mes-

mo-a-haver dedica a esse si-mesmo-a-haver e faz dele o principal ponto de aplicaccedilatildeo em que

se depotildee (ou em que ldquodesaguardquo) a natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha globalrdquo a si mesma

Por outras palavras a relaccedilatildeo de si a si estaacute constituiacuteda de tal modo que antecipa o

seu ldquoporvirrdquo ndash de tal modo que o que viraacute a ser jaacute estaacute por assim dizer em causa no que eacute (e

nesse sentido jaacute estaacute a ldquoserrdquo ainda natildeo sendo jaacute estaacute a ldquoserrdquo estando ainda por vir a ser jaacute

estaacute ldquode veacutesperardquo a desempenhar um papel etc)

Em suma o ldquosirdquo natildeo eacute de modo nenhum imune agrave sua proacutepria possibilidade

Muito pelo contraacuterio o ldquosirdquo que jaacute haacute nunca eacute radicalmente alheio ao si-a-haver

(nunca tem o caraacutecter de um ldquosirdquo esgotado no que ldquoeacuterdquo que natildeo tenha qualquer perspectiva so-

bre a sua possibilidade e que seja indiferente a ela etc)

Para percebermos melhor tudo isto conveacutem considerar separadamente os diferentes

momentos envolvidos nesta constelaccedilatildeo de fenoacutemenos ndash mesmo que aquilo que os caracterize

seja o facto de ocorrerem como momentos inseparaacuteveis de um todo constituiacutedo de tal modo

que todos eles estatildeo intrinsecamente envolvidos uns nos outros

Um dos momentos do complexo eacute aquilo a que chamaacutemos a flexatildeo de si

306

Poderia haver algo como uma testemunha global formada de tal modo que carecesse

de dimensatildeo

Como vemos uma ldquotestemunha globalrdquo que carecesse de dimensatildeo seria algo muito

diferente da testemunha global que se acha constituiacuteda no nosso caso ndash pois a testemunha glo-

bal que se acha constituiacuteda no nosso caso desempenha essas funccedilotildees precisamente porque en-

volve sempre jaacute a ldquoexplosatildeordquo numa multiplicidade muito numerosa de instacircncias de si

O que eacute decisivo eacute que tanto a proacutepria ldquomultiplicaccedilatildeordquo ndash a abertura da pluralidade de

instacircncias de si ndash quanto o facto de toda essa multiplicidade estar dominada pelo viacutenculo faz

de todas elas instacircncias ldquode sirdquo (do ldquomesmordquo si)

Por outro lado natildeo eacute menos decisivo que esta ldquoexplosatildeordquo mediante a qual a testemu-

nha forma um horizonte de flexatildeo de si tenha um caraacutecter gerundivo a multiplicidade de ins-

tacircncias de si eacute prescrita ou surge agrave proacutepria testemunha como algo que importa ndash que decidida-

mente e sumamente importa ndash que se cumpra

Por outras palavras a antecipaccedilatildeo de si estaacute empenhada no cumprimento daquilo de

que eacute antecipaccedilatildeo ndash estaacute votada a isso dedicada a isso etc De tal modo que a dedicaccedilatildeo a si

mesma da ldquotestemunha globalrdquo (sc da ipseidade) eacute sempre jaacute uma dedicaccedilatildeo justamente a

isso ou como tambeacutem podemos dizer o ldquofazer caso de sirdquo eacute sempre jaacute um fazer caso da con-

tinuaccedilatildeo de si (ou do si-mesmo-a-haver)

O que assim se descreve eacute um fenoacutemeno de natureza muito peculiar ndash e eacute este fenoacuteme-

no de natureza muito peculiar com esta dimensatildeo e estas caracteriacutesticas que eacute posto a rever-

berar na totalidade daquilo que aparece de tal modo que essa totalidade eacute sempre protagoni-

zada por algo com estas dimensotildees e com estas caracteriacutesticas

Mas tambeacutem isto ainda natildeo eacute tudo

Com efeito poderia ser assim mas de tal modo que a extensatildeo daquilo que confere di-

mensatildeo agrave ldquotestemunha globalrdquo e faz que seja ela proacutepria um horizonte fosse apesar de tudo

uma extensatildeo limitada

Isto eacute poderia acontecer que a ldquotestemunha globalrdquo estivesse constituiacuteda como anteci-

paccedilatildeo de si (com a forma de uma flexatildeo de si ndash de um si gerundivo que deve ser que importa

que seja que estaacute em causa que seja etc) soacute dentro de um certo intervalo que acabasse por

se esvair por deixar de ser algures (esgotando-se a flexatildeo e a pressatildeo gerundiva que a acom-

panha e a alimenta etc)

307

Acontece que natildeo eacute assim

A particularidade da relaccedilatildeo que a testemunha global tem consigo eacute justamente tal que

a flexatildeo que estaacute em causa quando se fala de ldquoantecipaccedilatildeordquo de si continua indefinidamente

Eacute se o podemos dizer assim uma tensatildeo croacutenica perpeacutetua E eacute uma tensatildeo constituiacuteda deste

modo (ie com esta extraordinaacuteria amplitude) precisamente por forccedila da tensatildeo de natildeo-indi-

ferenccedila (da forccedila ou violecircncia do caraacutecter como que inesgotaacutevel da pressatildeo de interesse que

liga o si a si mesmo)

Agrave primeira vista tal afirmaccedilatildeo pode parecer estranha pois por razotildees que natildeo cabe

aqui averiguar parece evidente a) que o ldquosirdquo natildeo pode continuar indefinidamente e b) que de

todo o modo a amplitude da continuaccedilatildeo de si com que de cada vez estaacute em efectivo contacto

ndash a que de facto se reporta em cada momento da travessia que faz ndash eacute limitada (soacute vai ateacute cer-

to ponto soacute abrange um certo intervalo ou uma certa ldquoclareirardquo de si-mesmo-a-haver etc)

Mas vendo bem esta impressatildeo acaba por se revelar enganadora

A forccedila da projecccedilatildeo gerundiva de si-a-haver que estaacute implicada na peculiar consti-

tuiccedilatildeo da testemunha global eacute tanta (ou eacute tal) que natildeo se esgota em nenhum termo limitado ndash

prossegue sempre indefinidamente

Quer dizer na sua relaccedilatildeo consigo o si-mesmo projecta uma flexatildeo que tem a forma

de um ldquosempre-maisrdquo

O si natildeo se limita a ldquomandar virrdquo mais si (mais ldquosi mesmo a haverrdquo) ou a ldquoprescreverrdquo

mais si ndash um quantum disso Na verdade o que o caracteriza eacute projectar sempre mais si ndash

mandar vir (prescrever encomendar etc) sempre mais si de tal modo que a constituiccedilatildeo ge-

rundiva de um si-mesmo-a-haver corresponde por assim dizer a uma explosatildeo de algo pura e

simplesmente sem limite ndash pura e simplesmente sem de-fora (sem ldquopara laacute de sirdquo)

Embora seja muito difiacutecil apurar que determinaccedilatildeo estaacute posta por cada um a definir a

sua proacutepria ipseidade essa determinaccedilatildeo eacute tudo menos vazia e daacute lugar agrave dedicaccedilatildeo a si mes-

mo agrave forccedila torrencial do interesse por si (de fazer caso de si mesmo etc) ndash e isto de tal modo

que essa forccedila torrencial de interesse por si desencadeia a ldquoexplosatildeordquo do extraordinaacuterio gerun-

divo dimensional que tatildeo incisivamente se acha expresso na formulaccedilatildeo ldquoI am too ME to

die91

91

Schulz C The complete peanuts Vol 5 1959-1960 New York 2006

308

A peculiar forccedila que vem de se tratar de si (ie de tratar-se de mim na primeira pes-

soa do mea res agitur etc) empresta agrave projecccedilatildeo de si um caraacutecter gerundivo e faz que a

inesgotabilidade que acabamos de referir seja justamente uma inesgotabilidade gerundiva ndash e

que venha desta uacuteltima a ligaccedilatildeo com nada menos do que a ldquototalidade totalrdquo do si mesmo (a

totalidade sem resto que nada deixa de fora etc)92

92

Assim a ipseidade natildeo tem a forma de uma siacutentese sucessiva que vai formando instacircncias de si ndash

que constitui como instacircncias precisamente por via de uma siacutentese de identificaccedilatildeo (de tal modo que a

siacutentese eacute de certo modo superveniente a essas instacircncias) A ipseidade tem a forma de uma explosatildeo

com as caracteriacutesticas e a amplitude que procuraacutemos descrever tem a forma de uma totalidade indefi-

nida

Eacute claro que essa totalidade indefinida tem de ser ldquoreactivadardquo a cada instante ndash a explosatildeo de totalida-

de tem de ser relanccedilada em cada momento da travessia perceptiva da doaccedilatildeo de si Caso contraacuterio dei-

xaria de ter lugar a cada novo instante Mas eacute preciso ter em atenccedilatildeo a) que se trata de uma reactiva-

ccedilatildeo da explosatildeo da totalidade (natildeo pura e simplesmente da agregaccedilatildeo de mais um elo de pequenas di-

mensotildees na cadeia do si) b) que essa totalidade que de cada vez eacute relanccedilada tem a forma de um cum-

primento da totalidade que jaacute era que estava projectada ndash de sorte que a travessia natildeo eacute vivida de su-

cessivas formas de ocorrecircncia de si mas como travessia da totalidade que (desde sempre) estava e con-

tinuaraacute a estar em causa ateacute ao fim

Tambeacutem podemos exprimir isto a partir de um conceito de Kant dizendo que a ipseidade eacute uma uni-

dade originariamente sisteacutemica Quer dizer o que eacute original nela eacute uma determinaccedilatildeo Acontece que

essa determinaccedilatildeo tem um conteuacutedo tal que natildeo se esgota em algo simples Essa determinaccedilatildeo impli-

ca pelo contraacuterio uma multiplicidade de instacircncias (de tal modo que a multiplicidade vem da determi-

naccedilatildeo ndash da peculiar unidade em causa ndash ie a multiplicidade vem do caraacutecter intrinsecamente multi-

plicativo da determinaccedilatildeo em causa) A multiplicaccedilatildeo vem de a unidade ser se assim se pode dizer

algo intrinsecamente diffusivum sui Isto eacute no caso da ipseidade ndash e natildeo tratamos aqui de averiguar o

que se passa noutros casos ndash a multiplicidade originariamente sinteacutetica em causa potildee a partir de si

uma explosatildeo com as caracteriacutesticas que se procurou descrever

Tambeacutem importa natildeo esquecer um outro aspecto decisivo

A siacutentese da ipseidade caracteriza-se por envolver de raiz uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila ndash e na ver-

dade uma explosatildeo de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila Quer dizer natildeo ocorre apenas facticamente uma

multiplicaccedilatildeo ndash essa multiplicaccedilatildeo estaacute associada a uma ldquoforccedila gerundivardquo a uma pressatildeo gerundiva

etc Ou seja a proacutepria unidade originariamente sinteacutetica posta na ldquoSetzungrdquo da ipseidade natildeo eacute ape-

nas fonte de multiplicaccedilatildeo das suas instacircncias ndash eacute ao mesmo tempo fonte da pressatildeo gerundiva que

as perpassa (a qual por outro lado como vimos eacute uma pressatildeo de superlativaccedilatildeo nos vaacuterios sentidos

que tentaacutemos por em evidecircncia) Ora este eacute um ponto essencial Poderia haver instanciaccedilatildeo da ipsei-

dade (uma unidade originariamente sinteacutetica do tipo referido) sem qualquer componente de natildeo-indife-

renccedila ou pressatildeo gerundiva Se por um lado natildeo fazemos a mais remota ideia do que lhe corresponde-

ria por outro no entanto natildeo se estaacute em condiccedilotildees de negar essa possibilidade No nosso caso a pres-

satildeo gerundiva ou a natildeo-indiferenccedila eacute introduzida por isso mesmo que tambeacutem introduz a siacutentese Ou

melhor a proacutepria siacutentese eacute intrinsecamente habitada pela pressatildeo gerundiva e por uma tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila dirigida a nada menos que o superlativo Ora daiacute resulta um aspecto que nunca eacute de

309

Percebemos ateacute que ponto eacute assim se olharmos atentamente para o que se passa quan-

do algueacutem reconhece a dimensatildeo limitada da sua ldquoesperanccedila de vidardquo

Com efeito qualquer delimitaccedilatildeo do curso expectaacutevel da vida proacutepria tem uma forma

tal que potildee o termo do intervalo correspondente a essa delimitaccedilatildeo no quadro de uma projec-

ccedilatildeo de si que na verdade vai mais aleacutem ndash muito mais aleacutem ndash desse termo

Por outras palavras a delimitaccedilatildeo do intervalo correspondente agrave vida proacutepria faz-se

como travagem da projecccedilatildeo de si ndash de tal modo que a projecccedilatildeo vai muito mais aleacutem do que

o termo fixado

Isto eacute assim porque a forma proacutepria da projecccedilatildeo de si-mesmo-a-haver conjuga duas

determinaccedilotildees que agrave primeira vista podem parecer contraditoacuterias Ou como tambeacutem pode-

mos dizer isto eacute assim porque a forma proacutepria da projecccedilatildeo implica qualquer coisa como uma

ldquocolisatildeordquo de totalidades

Por um lado tem um caraacutecter tal que a ldquoprescriccedilatildeo de sirdquo (a amplitude da projecccedilatildeo

de si-mesmo-a-haver ndash a amplitude daquilo a que chamaacutemos a flexatildeo de si mesmo ou a ampli-

tude de si de que o si eacute constitutivamente antecipaccedilatildeo o mandar vir mais si etc) natildeo paacutera

(parece inesgotaacutevel prossegue indefinidamente etc)

Por outras palavras tem como determinaccedilatildeo fundamental qualquer coisa com o caraacutec-

ter de uma totalidade ndash de uma totalidade de si definida precisamente por natildeo se deixar con-

ter em nenhum intervalo (ie por natildeo caber em nenhum limite por os exceder a todos etc)

Ou seja o que estaacute em causa nesta inesgotaacutevel continuaccedilatildeo indefinida eacute precisamente a totali-

dade Haacute algo como uma ldquorebeldiardquo daquilo que estaacute em causa no si-mesmo (no si-mesmo da

mais acentuar porque eacute assim a proacutepria siacutentese sucessiva (a travessia do si a desdobrar-se como estaacute

previsto e requerido na explosatildeo da ipseidade) tem lugar num terreno marcado por pressatildeo gerundiva

ndash que a proacutepria travessia ldquocumprerdquo ou pelo contraacuterio ldquodeixa de cumprirrdquo E eacute isso que caracteriza to-

do o territoacuterio da ipseidade eacute um territoacuterio onde sempre estaacute em causa a satisfaccedilatildeo ou a insatisfaccedilatildeo

da pressatildeo gerundiva Na esfera da ipseidade natildeo haacute nada que pura e simplesmente ocorre (ou natildeo

ocorre) tudo vem inscrever-se no quadro de uma pressatildeo gerundiva de tal modo que a sua determina-

ccedilatildeo nunca eacute apenas a do seu proacuteprio teor antes passa sempre decisivamente pelo nexo entre esse teor e

a pressatildeo gerundiva em cujo quadro sempre se inscreve Ou dito de outro modo a esfera da ipseidade

eacute de raiz a esfera de um programa constituiacutedo em tensatildeo para o seu cumprimento Onde se passa o

que quer que seja isso que se passa vem inscrever-se onde jaacute estaacute de certo modo prescrito o que deve

passar-se ndash o que importa que se passe De sorte que eacute decisiva a correspondecircncia ou natildeo correspon-

decircncia ndash e por outro lado tambeacutem a ldquoamplituderdquo ou a ldquoqualidaderdquo da natildeo-correspondecircncia ndash entre o

programa de que a ipseidade eacute portadora e a curso faacutectico do cumprimento ou incumprimento desse

programa

310

ldquotestemunha globalrdquo) relativamente a qualquer aprisionamento de si em algo diferente do

ldquotodo totalrdquo (do todo que se assim se pode dizer nada deixa de fora pleno etc)

Contudo esta primeira modalidade de totalidade que estaacute implicada na proacutepria tensatildeo

de interesse que vincula a ldquotestemunha globalrdquo a si mesma confronta-se com uma segunda

modalidade de totalidade ndash a modalidade de ldquototalidaderdquo que corresponde agrave ldquototalidade da tra-

vessiardquo E tambeacutem esta segunda modalidade de totalidade tem que ver com a tensatildeo de inte-

resse

Na ordem gerundiva a ldquotestemunha globalrdquo prescreve sempre mais si indefinidamen-

te ndash e nada paacutera (ou pode parar) esta prescriccedilatildeo indefinida que vem do interesse por si Mas

por outro lado o mesmo interesse por si gera interesse na determinaccedilatildeo de qual o horizonte de

travessia com que se pode contar (que eacute que eacute de esperar nessa mateacuteria)

Trata-se se assim se pode dizer de uma totalidade de facto que se vem inscrever no

quadro da totalidade gerundiva (e de tal modo que pode viver em conflito com ela)

De facto a travessia (a totalidade da travessia a totalidade de facto) pode muito bem

corresponder a uma amplitude ou a um acircmbito limitado

Vendo bem o empreendimento de si molda-se a uma determinada expectativa de acircm-

bito ou de amplitude do horizonte ndash e isto de tal modo que adquiriraacute uma conformaccedilatildeo se pos-

to perante uma expectativa de acircmbito ou de amplitude do horizonte e adquiriraacute outra perante

uma expectativa alternativa O empreendimento de si estaacute atravessado pela pergunta pelo acircm-

bito ou pela amplitude do horizonte (pela pergunta pelo seu limite maacuteximo) ateacute onde se esten-

de quais satildeo as suas dimensotildees etc

Ora o acircmbito da travessia pode corresponder a intervalos muito diacutespares entre si uma

semana de um ano dois dez cem mil anos etc Pode porventura corresponder a intervalos

ainda mais dilatados e considerar a possibilidade de extensotildees muito maiores

Mas o ponto decisivo eacute o seguinte se a ldquototalidade da travessiardquo por mais extensa que

seja tiver a forma de um intervalo (ie possuir um limite) entatildeo a totalidade gerundiva da

projecccedilatildeo de si-mesmo-a-haver eacute mais extensa vai muito mais aleacutem que a amplitude da tra-

vessia De sorte que qualquer que seja o intervalo da totalidade da travessia em que damos

comnosco dado que se trata de um intervalo ela acaba sempre por se situar a meio caminho

com um grande troccedilo da totalidade gerundiva da flexatildeo de si a ficar fora do intervalo fixado

aleacutem ndash e muito aleacutem ndash do seu tempo Ou seja seja qual for a sua amplitude e em referecircncia agrave

311

totalidade do si a haver a totalidade da travessia do si aparece sempre como totalidade co-

arctada ou contraiacuteda

Ora quando falamos da totalidade da travessia como contracccedilatildeo o que estamos a des-

crever eacute antes de mais o caso de a totalidade da travessia do si e a totalidade gerundiva da

flexatildeo de si natildeo serem co-extensivas Na verdade ao falar de contracccedilatildeo aquilo para que se

procura chamar a atenccedilatildeo eacute precisamente para a incriacutevel desproporccedilatildeo de amplitude das duas

extensotildees

Vendo bem a totalidade da travessia do si eacute algo de residual em relaccedilatildeo agrave amplitude

da totalidade gerundiva da flexatildeo de si

Isto eacute tendo em conta a grandeza ou a magnitude a que se refere (tendo em conta o

caraacutecter da totalidade gerundiva da flexatildeo de si) a contracccedilatildeo da totalidade da travessia do si

nunca corresponde a nada menos do que um esmagamento Por outras palavras a totalidade

da travessia eacute em referecircncia agrave totalidade gerundiva da flexatildeo de si uma totalidade infinitesi-

mal

sect35

A ipseidade tende natildeo soacute para o superlativo quantitativo mas tambeacutem para um superlati-

vo qualitativo ndash O superlativo de superlativos a foacutermula ldquosuperlativo quantitativo x superlativo

qualitativordquo

Tudo isto que acabamos de ver na secccedilatildeo anterior eacute ainda muito incompleto e insufi-

ciente para dar conta da natureza da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que liga a ldquotestemunha globalrdquo

a si mesma e a uma prescriccedilatildeo de si

O que vimos na secccedilatildeo anterior potildee-nos jaacute na pista de um superlativo de si Quer di-

zer o viacutenculo de natildeo-indiferenccedila que liga a ldquotestemunha globalrdquo (a ipseidade) a si mesma eacute

tal que leva agrave projecccedilatildeo de um acontecimento superlativo de si (isso que estaacute em jogo quando

Hegel fala de ldquoplenitude de sirdquo ie uma demanda da plenitude de si)

Ora o superlativo que consideraacutemos nas paacuteginas precedentes tem um caraacutecter por as-

sim dizer meramente quantitativo diz respeito agrave dimensatildeo da projecccedilatildeo de si-mesmo-a-haver

(agrave dimensatildeo daquilo a que chamaacutemos a ldquoflexatildeo do sirdquo)

312

Acontece todavia que o superlativo para que a ipseidade tende ndash o superlativo que o

empreendimento de si tem como meta e que constitui o objecto da demanda de si ndash natildeo eacute um

superlativo meramente quantitativo mas tambeacutem um superlativo qualitativo E eacute esse aspecto

que interessa focar nesta secccedilatildeo

Tomemos Hegel como ponto de partida

Eacute decisivo para compreendermos aquilo a que Hegel chama ldquoobjectordquo entender que as

funccedilotildees do ldquoobjectordquo podem ser preenchidas por objectos com determinaccedilotildees diferentes Quer

dizer haacute alternativas de preenchimento ndash e na verdade um grande nuacutemero de alternativas de

preenchimento ndash do objecto

Sendo assim os diferentes conteuacutedos (as diferentes determinaccedilotildees) que podem ser

postas no lugar do objecto natildeo satildeo de modo nenhum indiferentes Sucede precisamente o

contraacuterio

Em primeiro lugar haacute conteuacutedos determinaccedilotildees que satildeo objecto de natildeo-indiferenccedila

positiva e outros que satildeo objecto de natildeo-indiferenccedila negativa

Em segundo lugar a intensidade da natildeo-indiferenccedila positiva ou negativa que nos liga

agraves diferentes possibilidades de preenchimento do ldquolugarrdquo do objecto eacute tambeacutem ela variaacutevel

Haacute ldquocoisasrdquo a que nos liga uma forte natildeo-indiferenccedila positiva outras a que nos liga uma fraca

natildeo-indiferenccedila positiva outras a que nos liga uma natildeo-indiferenccedila positiva ainda mais fraca

etc ndash numa imensa variedade de escalas de intensidade

Algo de equivalente se passa tambeacutem com a natildeo-indiferenccedila negativa haacute ldquocoisasrdquo a

que nos liga uma forte natildeo-indiferenccedila negativa outras a que nos liga uma fraca natildeo-indife-

renccedila negativa outras a que nos liga uma natildeo-indiferenccedila negativa ainda mais fraca etc ndash

numa imensa variedade de escalas de intensidade

A este primeiro aspecto acresce entretanto um segundo

Poderia ser assim mas de tal modo que toda esta diversa qualificaccedilatildeo daquilo que de-

sempenha as funccedilotildees de objecto tivesse que ver com algo como um ldquoprograma materialrdquo de

natildeo-indiferenccedila ndash um conjunto de ldquometasrdquo consistindo definitivamente nisto e naquilo (uma

lista de desideratos etc) Mas de facto natildeo eacute assim

Isso natildeo quer dizer de modo nenhum que natildeo haja ldquometas materiaisrdquo ndash que natildeo haja

um conjunto de desideratos que de algum modo tem de (ou deve) ser satisfeita por causa da

natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha globalrdquo a si mesma e ao que seraacute de si Acontece eacute que a ten-

313

satildeo de natildeo-indiferenccedila de que estamos a falar (ou para dizer como Hegel o desejo da auto-

consciecircncia) natildeo se fica soacute pela satisfaccedilatildeo de um conjunto de desideratos com estas caracteriacutes-

ticas

O caudal de natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a si eacute tanto ndash ou eacute tal ndash que vendo bem re-

quer sempre mais

E ldquorequer sempre maisrdquo porque aquilo a que estaacute vinculado na sua dedicaccedilatildeo a si (no

seu tomar partido por si mesmo etc) nunca eacute menos do que um superlativo qualitativo (aqui-

lo que for ldquoordquo mais que jaacute natildeo puder ser mais que natildeo possa ser ultrapassado por nada de ou-

tro etc)

Este eacute um ponto decisivo

A mesma pressatildeo de natildeo-indiferenccedila que gera uma pulsatildeo dirigida ao superlativo

quantitativo (isso mesmo que se expressa na foacutermula ldquotoo Me to dierdquo) desencadeia tambeacutem

qualquer coisa como um ldquoser demasiado ME para se contentar me contentar com menos do

que o superlativo absolutordquo E eacute justamente disso que se trata a ldquotestemunha globalrdquo na sua

ipseidade vecirc as coisas de tal modo que em uacuteltima anaacutelise o que lhe eacute devido eacute o superlativo

(eacute o superlativo a que tem direito etc) por nenhuma outra razatildeo que natildeo seja o mea res agi-

tur (estar em causa eu tratar-se de mim etc)

Isso eacute claro se se notar que qualquer restriccedilatildeo ou moderaccedilatildeo das exigecircncias da expec-

tativa tem em uacuteltima anaacutelise um caraacutecter resignativo

Mais em uacuteltima anaacutelise esta pressatildeo dirigida ao superlativo qualitativo eacute de tal ordem

que vendo bem ela natildeo vale apenas para a continuaccedilatildeo ndash na verdade isso para que a tensatildeo

estaacute dirigida passa por ser algo que devia estar alcanccedilado jaacute desde o iniacutecio E isto eacute assim por

mais que se ganhe uma visatildeo desencantada limpa de ilusotildees etc ou seja nunca esta compo-

nente fundamental de vinculaccedilatildeo da natildeo-indiferenccedila deixa de actuar como algo implicado na

proacutepria estrutura da ipseidade e da sua indefectiacutevel dedicaccedilatildeo a si mesma

Para percebermos melhor este ponto importa ver com mais atenccedilatildeo o nexo entre esta

ligaccedilatildeo essencial ao superlativo qualitativo e aquilo a que chamaacutemos ldquometas materiaisrdquo

Esse nexo passa fundamentalmente por dois aspectos

Em primeiro lugar precisamente porque tem um caraacutecter formal a vinculaccedilatildeo ao su-

perlativo qualitativo requer desformalizaccedilatildeo

314

Ser ldquoformalrdquo natildeo significa ser ldquovaziordquo Na verdade significa precisamente o contraacuterio

como pudemos ver no caso do superlativo material

Quando aqui se fala de ser ldquoformalrdquo estaacute-se a apelar a uma determinaccedilatildeo cuja peculia-

ridade eacute de tal ordem que a) remete sempre para laacute disto ou daquilo que se apresente como

candidato agrave desformalizaccedilatildeo b) tem muacuteltiplos candidatos agrave desformalizaccedilatildeo e c) suscita em

cada caso a possibilidade de qualquer determinaccedilatildeo concreta (qualquer ldquometardquo ou conjunto de

ldquometasrdquo qualquer um dos muacuteltiplos candidatos agrave desformalizaccedilatildeo) natildeo se identificar com o

superlativo e pelo contraacuterio poder ficar aqueacutem ndash e ateacute muito aqueacutem ndash daquilo para que apon-

ta a proacutepria determinaccedilatildeo superlativa

Mas de qualquer modo o que a caracteriza enquanto determinaccedilatildeo formal eacute o facto de

requerer para si mesma uma identificaccedilatildeo do que lhe corresponde eacute o facto de requerer para

si mesma uma identificaccedilatildeo daquilo que afinal preenche o requisito de ser superlativo

Em suma o ponto decisivo eacute a) que natildeo temos uma relaccedilatildeo de natildeo-indiferenccedila com

metas concretas (natildeo estamos na tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que inere agrave ipseidade a soacutes com

metas concretas) de facto temos todas as metas concretas postas sob a pressatildeo da superlativi-

dade mas o ponto decisivo eacute tambeacutem b) que natildeo temos uma relaccedilatildeo com o superlativo quali-

tativo que dispense a desformalizaccedilatildeo (a identificaccedilatildeo concreta do que lhe corresponderaacute) E

tudo isto de tal modo que uma desformalizaccedilatildeo concreta estaacute sempre exposta agrave possibilidade

de ser erroacutenea e perceber mal que eacute que corresponde ao superlativo qualitativo

Em segundo lugar o nexo entre o superlativo qualitativo e aquilo a que chamaacutemos

ldquometas materiaisrdquo tambeacutem passa por algo anaacutelogo a algo que vimos a respeito do superlativo

quantitativo

Observaacutemos que o interesse da ipseidade por si mesma natildeo gera apenas superlativaccedilatildeo

do projecto de si (da dimensatildeo gerundiva de si) na verdade requer tambeacutem a determinaccedilatildeo

concreta da dimensatildeo da travessia com que haacute efectivamente que contar ndash a qual delimitaccedilatildeo

pode entrar em conflito com a projecccedilatildeo gerundiva de si etc)

Ora passa-se aqui algo muito semelhante

A ipseidade natildeo tem apenas interesse em alcanccedilar o superlativo qualitativo (e portan-

to em desformalizaacute-lo identificar a que eacute que corresponde etc) Na verdade tambeacutem tem in-

teresse em procurar cumpri-lo ndash ie identificar o que eacute que eacute exequiacutevel (que metas concretas

podem ser procuradas como susceptiacuteveis de serem atingidas que metas concretas deixam o

mais proacuteximo possiacutevel do superlativo etc)

315

O ponto decisivo eacute que tal como no caso do superlativo quantitativo a determinaccedilatildeo

daquilo com que se pode contar de facto tem lugar no quadro de pressatildeo dirigido ao superlati-

vo qualitativo ndash e estaacute se assim se pode dizer em tensatildeo com ele

Percebe-se a partir daqui aquilo que dissemos anteriormente sobre as diversas possi-

bilidades de conformaccedilatildeo da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e sobre a possibilidade de os progra-

mas de natildeo-indiferenccedila serem programas formais Eacute justamente isso que se passa no nosso ca-

so

Mas importa agora considerar um outro ponto sem cuja consideraccedilatildeo a anaacutelise do

complexo de natildeo-indiferenccedila a si mesmo que inere agrave ipseidade ficaria incompleto

Esse ponto tem que ver com a articulaccedilatildeo entre os dois superlativos de que falaacutemos (o

superlativo quantitativo e o superlativo qualitativo)

O primeiro aspecto que haacute que ter presente a este respeito tem que ver com o seguinte

de raiz a ipseidade estaacute vinculada a uma combinaccedilatildeo dos dois superlativos ndash resulta na foacuter-

mula ldquosuperlativo quantitativo x superlativo qualitativordquo

Isto eacute nenhum dos superlativos basta por si soacute E o superlativo para que a ipseidade

tende (a plenitude de que fala Hegel o terminus ad quem da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que no

nosso caso inere agrave ipseidade etc) requer ao mesmo tempo as duas componentes

O que isto quer dizer eacute que o ldquosirdquo soacute eacute um ldquosirdquo pleno (iacutentegro etc) se ou quando natildeo

estiver aqueacutem de nada do que eacute proacuteprio de si (se ou quando nada do que eacute de si estiver em fal-

ta etc) Por outras palavras um ldquosirdquo que apenas tenha ou seja parcialmente o que eacute de ldquosirdquo (o

que corresponde ao si o que eacute proacuteprio do si etc) eacute um ldquosirdquo incompleto ndash eacute um ldquosirdquo que ainda

natildeo resolveu a sua tensatildeo de completude que ainda estaacute em tensatildeo de supressatildeo do ldquoem falta

de sirdquo etc

Ou seja natildeo interessa um superlativo quantitativo de si que natildeo esteja preenchido de

forma qualitativa mas tambeacutem natildeo interessa apenas o superlativo qualitativo desligado da su-

perlativaccedilatildeo quantitativa que requer a sua propagaccedilatildeo quantitativa

Ganha assim contornos um elemento central da ldquopeccedila de sirdquo ou do ldquodrama de sirdquo a que

atraacutes nos referimos o superlativo

Falamos de ldquosuperlativordquo neste sentido para referirmos a combinaccedilatildeo dos dois super-

lativos (quantitativa e qualitativo) ndash quer dizer para referirmos o superlativo de superlativos

316

Eacute claro que quando aqui falamos de ldquosuperlativordquo como elemento central esta caracte-

rizaccedilatildeo natildeo dispensa uma ressalva sem a qual podemos cair em erro

Resulta claro de tudo o que dissemos ateacute este ponto que o elemento central ndash o prota-

gonista ndash do acontecimento de aparecer em que nos temos eacute a ipseidade (a ldquotestemunha glo-

balrdquo) na sua radical indiferenccedila a si E falar tambeacutem do superlativo como elemento central

poderaacute sugerir erradamente que haacute sendo assim uma multiplicidade de elementos centrais

contiacuteguos uns aos outros numa espeacutecie de ldquosociedaderdquo

Para ver que natildeo eacute assim haacute que ter presente algo que podemos formular concisamen-

te na terminologia de Hegel o superlativo de que estamos a falar eacute como Hegel diz a pleni-

tude da auto-consciecircncia

Quer dizer o superlativo de que estamos a falar eacute uma conformaccedilatildeo de si (um estado

de si) para que o si mesmo tende por inerecircncia

Natildeo se trata portanto de algo lateral ao si (algo justaposto agrave ipseidade) trata-se de

um elemento central da proacutepria ipseidade (ldquointeriorrdquo agrave proacutepria ipseidade) ndash a qual na sua natildeo-

indiferenccedila a si mesma natildeo eacute simples mas complexa e estaacute constituiacuteda a ter de raiz como

elemento central de si mesma o superlativo que projecta para si

Onde o superlativo (a multiplicaccedilatildeo do superlativo qualitativa pelo superlativo quanti-

tativo) estaacute ndash ou de todo o modo onde o superlativo parece estar ndash a articulaccedilatildeo entre a com-

ponente quantitativa e a componente qualitativa da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila de que a ipsei-

dade eacute portadora pode assumir diversas formas

Essas diversas formas tecircm sempre que ver com um diagnoacutestico da maacutexima aproxima-

ccedilatildeo ao superlativo

Ora independentemente das variaccedilotildees que esse diagnoacutestico assuma aquilo que impor-

ta reter eacute que todas as diversas ldquofoacutermulas de articulaccedilatildeordquo entre a componente quantitativa e a

componente qualitativa da pressatildeo para a majoraccedilatildeo de si que eacute inerente agrave proacutepria ipseidade

correspondem sempre a tentativas de encontrar um miacutenimo de distacircncia (ie um maacuteximo de

aproximaccedilatildeo) ao superlativo de superlativos para que a ipseidade sempre tende

317

Ou seja qualquer que seja a foacutermula de articulaccedilatildeo ela estaacute sempre em vez do super-

lativo de superlativos e soacute tem relevacircncia na ausecircncia dele (na impossibilidade ndash ou de todo o

modo por haver a convicccedilatildeo de impossibilidade ndash dele)93

Em suma o que caracteriza o horizonte de si como que ldquodetonadordquo pela natildeo-indiferen-

ccedila da ipseidade a si mesma eacute esta explosatildeo de ldquomaacuteximordquo ndash este fenoacutemeno de superlativaccedilatildeo

irrestrita

Na verdade o que fica claro eacute que o ldquosirdquo visa de forma velada a conjugaccedilatildeo dos dois

factores que vimos (a uma conjugaccedilatildeo entre aquilo a que aqui chamamos o superlativo quali-

tativo e o superlativo quantitativo) ndash o que se poderia resumir na foacutermula tudo o que equiva-

ler agrave superlativa majoraccedilatildeo de mim ao longo de todo o tempo94

93

Algumas anaacutelises filosoacuteficas ndash como por exemplo a dos Epicuristas e as dos Estoacuteicos ndash apresen-

tam-se natildeo soacute como tentativas de diminuir o peso da componente quantitativa mas como tentativas de

a tornar irrelevante A este respeito veja-se por exemplo o que escreve Seacuteneca no De brevitate vitaelig

Natildeo interessa aqui entrar a fundo nas teses de Seacuteneca o que interessa eacute apenas estabelecer um aspecto

essencial em que a tese estoacuteica confronta a tese que estamos a ver Por um lado a tese de Seacuteneca inclui

uma noccedilatildeo de tempo (precisamente na medida em que o centro da discussatildeo eacute a adequaccedilatildeo ou inade-

quaccedilatildeo do tempo da vida agrave proacutepria vida que se leva) por outro lado a tese de Seacuteneca implica uma re-

laccedilatildeo natildeo-horizontal entre os aspectos da totalidade de si qualitativa e da totalidade de si quantitativa

A tese de Seacuteneca implica uma supremacia da totalidade de si qualitativa sobre a totalidade de si quan-

titativa O que isto quer dizer eacute que agrave consecuccedilatildeo da totalidade de si qualitativa sucederia de facto um

estado de completude (justamente na forma de estar obtido tudo o que eacute proacuteprio de si etc) E isto em

virtude de a posse integral de si a que Seacuteneca se refere ser um estaacutedio faacutectico e derradeiro impassiacutevel

de desenvolvimento (de aumento de qualidade e de quantidade) Isto eacute a vida eacute breve se se considerar

ou a) a grandeza do empreendimento (a posse de si) ou b) a totalidade da extensatildeo possiacutevel (em rela-

ccedilatildeo agrave qual ela eacute uma iacutenfima totalidade de uma totalidade infinitamente maior) Todavia ela tem o tem-

po adequado (ela natildeo eacute breve) em relaccedilatildeo a uma posse de si faacutectica e a proacutepria noccedilatildeo de posse de si

faacutectica implica a renuacutencia a instacircncias natildeo-faacutecticas ndash isso a que se chamou a componente de ldquomaisrdquo

Por outras palavras num estaacutedio de plena posse de si natildeo se teria em conta senatildeo o tempo faacutectico ndash

qualquer tempo a mais (a tensatildeo para mais tempo em relaccedilatildeo agrave morte por exemplo) seria um tempo

improacuteprio de si (que jaacute natildeo corresponderia ao si seria nada para si etc e portanto um tempo sobre o

qual natildeo se poderia gerar qualquer posse com sentido)

94 Note-se que mesmo que nada impedisse uma eventual consecuccedilatildeo do superlativo qualitativo ainda

assim natildeo haveria um estado de plenitude E isto devido ao facto de a totalidade da travessia do si e a

totalidade gerundiva da flexatildeo de si natildeo serem co-extensivas Se natildeo estamos a ver mal por mais que

se conseguisse obter o superlativo qualitativo natildeo se o poderia obter em conjugaccedilatildeo com o superlativo

quantitativo na medida em que a totalidade da travessia do si fica sempre aqueacutem da totalidade gerun-

diva da flexatildeo de si (resta sempre uma componente de mais) Em suma pode muito bem dar-se o caso

de a plenitude que eventualmente adviria da consecuccedilatildeo do superlativo qualitativo ser uma plenitude

318

Natildeo discutimos aqui em que medida algo semelhante se passa ou natildeo em relaccedilatildeo a ou-

tros aspectos em que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila natildeo desempenha o papel decisivo O que

procuramos vincar eacute que neste caso ndash onde a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila da ipseidade a si mes-

ma desempenha o papel de ldquoponto arquimeacutedicordquo ndash o que se encontra eacute muito diferente de um

domiacutenio que se constitui por sucessivas formas de alargamento A forccedila expansiva do interes-

se por si potildee em cena de raiz nada menos do que o superlativo ndash e um horizonte de si com a

amplitude do superlativo (ao mesmo tempo o superlativo quantitativo e o superlativo qualita-

tivo)

E assim o que quer que seja que fique aqueacutem dessa extraordinaacuteria dimensatildeo tem o

caraacutecter de uma contracccedilatildeo desse horizonte mais vasto em que se inscreve

Quer dizer o que quer que seja que fique aqueacutem dessa extraordinaacuteria dimensatildeo que eacute

a do superlativo natildeo tem uma determinaccedilatildeo simples (natildeo tem apenas a sua proacutepria determina-

ccedilatildeo a determinaccedilatildeo de ateacute onde vai do que alcanccedila etc) Pelo contraacuterio tem uma determina-

ccedilatildeo complexa

Sobre o fundo do superlativo posto pela tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a determinaccedilatildeo

proacutepria desse ldquoaqueacutemrdquo eacute medida contra o superlativo Ou para usar a terminologia da Feno-

menologia do Espiacuterito o que quer que seja que fique aqueacutem do superlativo surge sob a pres-

satildeo dele e como negativo dele

sect36

O territoacuterio da possibilidade do si a dedicaccedilatildeo ao que seraacute-de-si e a pressatildeo gerundiva ndash O

caraacutecter labiriacutentico do quadro de possibilidades do vir-a-ser-de-si

Todas estas consideraccedilotildees nos levam a outro componente fundamental de que tudo

isto eacute indissociaacutevel

Um factor decisivo para desencadear esta peculiar incompatibilidade entre a projecccedilatildeo

do si-mesmo-a-haver e qualquer retenccedilatildeo de si mesmo em algo que seja soacute uma parte eacute aquilo

aparente em virtude de o ldquosirdquo pleno (a realizaccedilatildeo total de si que adviria da multiplicaccedilatildeo dos superlati-

vos) ser sempre jaacute agrave partida um projecto falhado

319

a que chamamos a natureza gerundiva da projecccedilatildeo-de-si-mesmo-a-haver que estaacute implicada

na constituiccedilatildeo da testemunha global

O factor a que aqui fazemos referecircncia eacute fundamental quer para a compreensatildeo da es-

trutura da ldquotestemunha globalrdquo (que como vimos natildeo eacute apenas uma testemunha) quer para a

compreensatildeo da estrutura da proacutepria vida enquanto tal ndash e esse factor eacute o que tem que ver com

o papel da possibilidade

Por um lado tudo passa pela ligaccedilatildeo mediante a qual para usar a formulaccedilatildeo de Hei-

degger a testemunha eacute jaacute a sua possibilidade ou o seu poder-ser95

O que com isto se quer dizer eacute que a testemunha estaacute sempre jaacute em tensatildeo de natildeo-in-

diferenccedila em relaccedilatildeo agrave sua possibilidade (fazendo caso dela estando em relaccedilatildeo com ela

visando-a etc) E a testemunha ser sempre jaacute a sua possibilidade significa que o si-mesmo-a-

haver (a totalidade do si-mesmo-a-haver o superlativo etc) jaacute estaacute incluiacutedo na dedicaccedilatildeo da

ldquotestemunha globalrdquo a si mesma

Veja-se entatildeo o que se desenha em especial ao estabelecer um contraste entre a possi-

bilidade e o facto

Como resulta do que vimos a relaccedilatildeo ldquotestemunha globalrdquo (sc a relaccedilatildeo da ipseidade)

consigo mesma natildeo se resume nem se esgota naquilo que a testemunha factualmente ldquoeacuterdquo ndash

natildeo se resume a uma relaccedilatildeo de si a si faacutectica (a uma relaccedilatildeo de si-facto a si-facto por assim

dizer)

95

Haacute vaacuterios passos em que Heidegger faz referecircncia a este factor da possibilidade Consideremos por

exemplo e sem qualquer intenccedilatildeo de sermos exaustivos mas apenas de forma ilustrativa o que nos diz

em alguns passos de Sein und Zeit ldquoAuf dem Grunde der Seinsart die durch das Existenzial des Ent-

wurfs konstituiert wird ist das Dasein staumlndig laquomehrraquo als es tatsaumlchlich ist wollte man es und koumlnnte

man es als Vorhandenes in seinem Seinsbestand registrierenrdquo (sect31 paacuteg 145) ldquoDie Angst bringt das

Dasein vor sein Freisein fuumlr (propensio in) die Eigentlichkeit seines Seins als Moumlglichkeit die es

immer schon istrdquo (sect40 paacuteg 188) ldquoFormal existenzial gefaszligt ohne jetzt staumlndig den vollen Struktur-

gehalt zu nen-nen ist die vorlaufende Entschlossenheit das Sein zum eigensten ausgezeichneten Sein-

koumlnnen Dergleichen ist nur so moumlglich daszlig das Dasein uumlberhaupt in seiner eigensten Moumlglichkeit auf

sich zukommen kann und die Moumlglichkeit in diesem Sich-auf-sich-zukommenlassen als Moumlglichkeit

aushaumllt das heiszligt existiert Das die ausgezeichnete Moumlglichkeit aushaltende in ihr sich auf sich Zu-

kommen-lassen ist das urspruumlngliche Phaumlnomen der Zukunftrdquo (sect65 paacuteg 325) ldquoDas im Grunde zu-

kuumlnftige Entwerfen erfaszligt primaumlr nicht die entwor-fene Moumlglichkeit thematisch in einem Meinen son-

dern wirft sich in sie als Moumlglichkeitrdquo (sect68 paacuteg 336)

320

Poderia natildeo ser assim ie poderia dar-se o caso de a relaccedilatildeo da ldquotestemunha globalrdquo

(sc a relaccedilatildeo da ipseidade) consigo mesma se esgotar no testemunho efectivo ndash de tal modo

que natildeo houvesse qualquer relaccedilatildeo com o que natildeo se achasse testemunhado facticamente

O que nesse caso se desenharia seriam dois campos (o campo do que ldquofacticamente

apareceu ou aparecerdquo e o campo do que ldquofacticamente natildeo aparecerdquo) irredutiacuteveis entre si ndash a

tal ponto que aquilo que ldquoapareceurdquo ou ldquoaparecerdquo natildeo teria aberta qualquer perspectiva sobre

o ldquonatildeo apareceurdquo ou ldquonatildeo aparecerdquo

Isso natildeo quereria dizer naturalmente que o que num dado momento ldquonatildeo aparecerdquo

natildeo pudesse vir a aparecer noutro momento Quereria simplesmente dizer que um campo natildeo

teria qualquer perspectiva sobre o outro ndash que o campo do efectivamente testemunhado natildeo

teria qualquer perspectiva para laacute de si (que o que num dado momento ldquonatildeo aparecerdquo natildeo te-

ria qualquer perspectiva sobre a eventualidade de aparecer noutro momento)

Isto eacute se se resumisse ou se esgotasse naquilo que facticamente ldquoeacuterdquo a relaccedilatildeo da teste-

munha consigo mesma corresponderia a uma relaccedilatildeo completamente fechada no testemunho

actual presente de cada vez em curso etc E isto de tal modo que para o proacuteprio natildeo haveria

dois campos haveria apenas a esfera do facto

Em certo sentido eacute precisamente isso o que sucede

Na verdade o ldquotestemunharrdquo da testemunha esgota-se na ocorrecircncia actual ndash ie no

momento em que o testemunho estaacute efectivamente em curso no momento efectivo do teste-

munhar etc E tanto assim que aquilo que de cada vez testemunha ou tem testemunhado cons-

titui em cada momento a totalidade do efectivamente testemunhado96

96

Como vimos soacute natildeo eacute assim porque mesmo no plano estritamente cognitivo a ldquotestemunha globalrdquo

natildeo eacute uma testemunha estritamente esteacutesica ou mneacutesica mas sim uma testemunha empiacuterica Tocamos

aqui um ponto que natildeo vamos desenvolver e que eacute o seguinte Se considerarmos o que vimos dese-

nham-se duas origens do excesso sobre o faacutectico a proacutepria ἐμπειρία e o excesso sobre sobre o faacutectico

que vem da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que liga a ldquotestemunha globalrdquo a si mesma E potildee-se o problema

de saber o nexo entre estas duas fontes do excesso sobre o faacutectico Pode acontecer que se trate de duas

fontes completamente independentes uma da outra mas que de algum modo se conjugam e completam

assim como pode acontecer que uma delas jaacute desempenhe um papel relevante na constituiccedilatildeo da outra

Este eacute um mero assinalar da questatildeo que natildeo cuidaremos aqui de tratar esclarecer

321

Poreacutem o ponto decisivo eacute que a relaccedilatildeo da ldquotestemunha globalrdquo consigo mesma natildeo se

esgota no plano do faacutectico A relaccedilatildeo da testemunha a si mesma estaacute aberta a algo que ainda

natildeo se eacute facticamente mas que passa por estar a caminho de se ser facticamente97

Isso faz que no sentido em que a estamos a ver a relaccedilatildeo de natildeo-indiferenccedila da teste-

munha a si mesma assente sobre uma cisatildeo fundamental a saber a cisatildeo entre o aparecimen-

to faacutectico (o aparecimento efectivamente testemunhado que estaacute consumado etc) e o apare-

cimento por vir (o aparecimento que ainda natildeo eacute facticamente que natildeo estaacute efectivamente da-

do etc) Assim haacute algo como uma tensatildeo da testemunha em direcccedilatildeo ao ldquoexteriorrdquo do efec-

tivamente testemunhado (em direcccedilatildeo ao para laacute do aparecimento faacutectico)

Isto eacute natildeo apenas o viacutenculo testemunhal da testemunha natildeo se esgota no aparecimento

tido (pelo contraacuterio a testemunha tem uma noccedilatildeo de um aparecimento a haver a ter etc)

como estaacute fundamentalmente voltado para o aparecimento a haver

Vejamos um pouco melhor o que tudo isto nos mostra

Em primeiro lugar haacute que ter presente que a raiz de todo este terreno da possibilidade

eacute a natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha globalrdquo em relaccedilatildeo a si mesma ndash agrave totalidade de si-mes-

ma-a-haver e agrave pressatildeo do superlativo envolvido nela

97

Quer dizer o aparecimento faacutectico natildeo esgota as ocorrecircncias do aparecimento a que a testemunha se

reporta Assim a relaccedilatildeo de natildeo-indiferenccedila da testemunha a si mesma estaacute aberta (e vinculada) a

ocorrecircncias de aparecimento natildeo-faacutecticas (ie que natildeo estatildeo efectivamente dadas que natildeo estatildeo ldquoaiacuterdquo

que ldquoexistemrdquo que natildeo estatildeo consumadas que ainda natildeo ldquosatildeordquo etc) Acontece que este aparecimento

a haver (a ter por vir etc) na medida em que eacute um aparecimento natildeo-faacutectico revela que a relaccedilatildeo da

testemunha consigo mesma estaacute constituiacuteda na forma de uma falta faacutectica (uma carecircncia faacutectica uma

privaccedilatildeo faacutectica etc) do aparecimento a haver Ora daacute-se o caso de no entanto a falta faacutectica do

aparecimento a haver natildeo ser sentida como falta Isto eacute por um lado ela eacute uma falta faacutectica (corres-

ponde a algo que natildeo estaacute efectivamente dado que natildeo estatildeo consumado que natildeo foi testemunhado

etc) Poreacutem essa falta efectiva eacute suprimida como falta ndash em virtude de haver uma abertura tal que o

aparecimento em falta estaacute a caminho de ser facticamente Dito por outras palavras o aparecimento a

haver estaacute sempre jaacute projectado como aparecimento faacutectico a haver Tem a forma de um aparecimen-

to que natildeo o sendo se projecta jaacute facticamente (que estaacute a caminho de ser facticamente) O que esta-

mos a procurar mostrar eacute que a relaccedilatildeo da testemunha consigo mesma estaacute constituiacuteda de tal modo que

antecipa o aparecimento por vir como se fosse de tal modo evidente que facticamente viraacute a aparecer

que o aparecimento faacutectico futuro (que o ser que efectivamente ainda natildeo ldquoeacuterdquo) estaacute por assim dizer

ldquopresentificadordquo (estaacute jaacute a ldquoserrdquo ainda natildeo sendo estando ainda por vir a ser etc) Por outras pala-

vras a falta faacutetica sobre a qual a relaccedilatildeo da testemunha consigo mesma estaacute constituiacuteda natildeo eacute tida

como uma falta insuperaacutevel E isto porque estar em direcccedilatildeo ao para laacute do ldquosirdquo faacutectico quer dizer pre-

cisamente estar em direcccedilatildeo agrave possibilidade

322

Ora sobre essa base poderia haver uma abertura agrave possibilidade constituiacuteda de outro

modo ndash por exemplo constituiacuteda no quadro estritamente cognitivo onde a tensatildeo de natildeo-indi-

ferenccedila natildeo desempenhasse qualquer papel significativo

Em segundo lugar como procuraacutemos mostrar esse territoacuterio de possibilidade natildeo eacute

um territoacuterio qualquer ndash natildeo se define apenas por ser um territoacuterio de possibilidade define-se

por ser um territoacuterio de possibilidade de um determinado modo Define-se antes de mais por

ser um territoacuterio da possibilidade do si (da ipseidade da proacutepria ldquotestemunha globalrdquo etc)

Mas por outro lado apesar de ter esse caraacutecter aparentemente mais restrito trata-se de

um territoacuterio de possibilidade com uma extraordinaacuteria amplitude ndash e posto sobre a pressatildeo do

superlativo Eacute o superlativo que na verdade fixa a dimensatildeo do territoacuterio de possibilidade e

o estende da forma que procuraacutemos pocircr em evidecircncia

Em terceiro lugar este territoacuterio de possibilidade estaacute lanccedilado sobre o territoacuterio do faacutec-

tico Daiacute resulta que o territoacuterio do faacutectico fica posto sob a pressatildeo do territoacuterio de possibili-

dade

Quer dizer natildeo se trata de dois territoacuterios meramente justapostos O territoacuterio da pos-

sibilidade constituiacutedo a partir da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila da ipseidade a si mesma paira so-

bre o territoacuterio do faacutectico pressionando-o transfigurando-o ndash e transfigurando-o de tal modo

que o faacutectico aparece como fundamentalmente relativo ao campo da possibilidade (como al-

go relativo agrave possibilidade transfigurado pela possibilidade etc)

De sorte que para recorrer mais uma vez agraves categorias que usaacutemos anteriormente a) o

faacutectico tem uma determinaccedilatildeo de significado e b) esse significado eacute ao mesmo tempo um sig-

nificado relativo agrave ipseidade e um significado relativo agrave possibilidade (enquanto a possibili-

dade eacute a possibilidade da ipseidade na tensatildeo para si mesma) Assim estes dois aspectos natildeo

satildeo na verdade dois aspectos mas um soacute

Mas natildeo basta vincar a ideia da inclusatildeo da possibilidade e a ideia do primado da pos-

sibilidade

Tatildeo importante quanto o primado da possibilidade sobre o facto eacute tambeacutem o caso de a

possibilidade a que nos referimos se tratar de uma possibilidade de natureza muito particular e

de um territoacuterio de possibilidade com determinadas caracteriacutesticas ndash um territoacuterio que difere

tanto de um territoacuterio de possibilidade constituiacutedo de outro modo quanto difere de um campo

de aparecimento totalmente fechado no faacutectico (sem qualquer perspectiva sobre o possiacutevel)

323

Para ver como eacute assim consideremos brevemente algumas alternativas ndash algumas mo-

dalidades de presenccedila da possibilidade ndash que contrastam com aquilo que efectivamente se ve-

rifica

A natildeo-indiferenccedila diz respeito sobretudo agrave possibilidade Eacute uma natildeo-indiferenccedila em

relaccedilatildeo ao que seraacute-de-si ndash uma decidida dedicaccedilatildeo ao que seraacute-de-si (e na verdade como

vimos uma natildeo-indiferenccedila que jaacute estaacute dirigida com pressatildeo de superlativizaccedilatildeo agrave totalida-

de do que seraacute-de-si)

Quer dizer a possibilidade aqui em causa natildeo eacute uma possibilidade no sentido ldquoneutrordquo

do termo Poderiacuteamos tender a entender a possibilidade como um mero experimentum inoacutecuo

ndash ie no sentido do termo ldquopossibilidaderdquo que destaca o aspecto meramente luacutedico

Nesse sentido a possibilidade seria algo como um jogo inconsequente em que se aven-

tariam variaccedilotildees alternativas abstractas ndash mas de tal modo que essas variaccedilotildees alternativas

abstractas aventadas estariam completamente encerradas no seu proacuteprio acontecimento de

mera possibilidade Isto eacute teriam um valor meramente ldquoexperimentalrdquo ndash no sentido em que

natildeo afectariam de modo decisivo ou que natildeo teriam qualquer influecircncia significativa sobre

aquilo que efectivamente se passa

Ora a possibilidade tal como aqui a visamos natildeo corresponde a este sentido ldquoneutrordquo

Pelo contraacuterio estamos a falar de uma possibilidade gerundiva (requerida prescrita etc)

O que isto significa em suma eacute que a ldquotestemunha globalrdquo natildeo eacute de modo nenhum

indiferente agrave sua proacutepria possibilidade ndash estaacute constitutivamente votada e dedicada a ela E eacute

precisamente por essa razatildeo que a possibilidade natildeo se limita a figurar ldquoao ladordquo do faacutectico

Isto eacute a possibilidade partilha o plano com aquilo que se passa ndash intercepta o plano

do que aparece interfere nele ou sobre ele impede que a consideraccedilatildeo dele esteja totalmente

encerrada nele etc

Em especial exige-se agraves possibilidades direcccedilotildees ndash ie exige-se-lhes que sejam um

complexo de possibilidades de resposta agraves perguntas que sentido tomar em que direcccedilatildeo en-

caminhar o si que ldquodestinordquo dar a si etc ndash assim como se confronta as possibilidades com

o questatildeo de saber se conduzem ou natildeo a ldquobom portordquo (ie se conduzem ou natildeo agrave plenitude

de si-a-haver)

Sendo assim por outro lado a possibilidade-de-si que desta maneira eacute protagonista

na relaccedilatildeo que o si-mesmo tem consigo ndash a possibilidade de si que estaacute em causa no si mesmo

324

ndash eacute ldquopossibilidaderdquo tambeacutem no sentido de ainda estar aberta de corresponder a um em-aber-

to

Ou seja embora a possibilidade interfira no plano do que aparece ela estaacute sempre se

assim se pode dizer ldquoa meio caminhordquo Eacute que apesar de tudo ela natildeo perde nunca o estatuto

de ldquopossibilidaderdquo num segundo sentido

Por um lado quando se fala de ldquopossibilidaderdquo fala-se de algo que tem a realizaccedilatildeo

em aberto Por outro quando se fala de ldquopossibilidaderdquo fala-se de algo que natildeo eacute passiacutevel de

ser imediatamente verificado (que natildeo estaacute ldquoaiacuterdquo para ser verificado etc)

Quer dizer se eacute verdade que jaacute haacute inclusatildeo da possibilidade (ie se eacute verdade que

aquilo que se enuncia quando se diz ldquoa ipseidade eacute uma possibilidaderdquo) nada disto anula o

facto de a possibilidade manter ainda o seu estatuto de ldquopossibilidaderdquo ndash ie nada disto anu-

la o caso de natildeo se ter tornado ainda em algo faacutectico de o aparecimento a testemunhar natildeo

estar jaacute constituiacutedo enquanto aparecimento testemunhado etc98

Neste sentido aquilo de que se trata quando se fala de ldquopossibilidaderdquo eacute algo como

uma metamorfose radical ndash uma transformaccedilatildeo de tal ordem e de tal natureza que aquilo que

natildeo eacute faacutectico (que natildeo eacute passiacutevel de ser imediatamente verificado que natildeo estaacute aiacute que natildeo eacute

efectivo etc) possa passar a ser (ie seja passiacutevel de vir a ser imediatamente verificado

possa passar a estar ldquoaiacuterdquo para ser verificado possa vir ao aparecimento etc)

Ou seja poderia acontecer que a testemunha tivesse a sua perspectiva aberta para as

possibilidades como possibilidades a que natildeo se fosse alheia mas que em todo o caso corres-

pondessem a algo natildeo-actualizaacutevel Isto eacute poderia dar-se o caso de o interesse (a natildeo-indife-

renccedila a natildeo-neutralidade o natildeo-alheamento etc) em relaccedilatildeo ao leque de possibilidades ser

um interesse limitado ao mero inventaacuterio das alternativas possiacuteveis

98

Poderia conceber-se que o caso de o testemunho que facticamente natildeo ldquoeacuterdquo passar jaacute de certo modo

por facticamente jaacute ldquoserrdquo na forma de possibilidade resultasse num aliacutevio de pressatildeo ndash de tal que se-

ria indiferente que viesse a ser ou natildeo ser facticamente na medida em que de certo modo jaacute ldquoseriardquo

na forma de possibilidade Eacute assim aliaacutes que se pode entender que a falta passa por falta superada ndash

ela eacute projectada como falta superada no futuro (ie no a haver de aparecimento no que seraacute etc)

Acontece no entanto que natildeo haacute aliacutevio de pressatildeo ndash e natildeo haacute aliacutevio de pressatildeo porque o caso de a fal-

ta estar a caminho de ser superada (de tal modo que jaacute se antevecirc o momento da sua superaccedilatildeo que ela

ldquojaacuterdquo estaacute superada etc) natildeo anula o caso de ela natildeo estar facticamente superada

325

A essas possibilidades natildeo caberia qualquer outro papel senatildeo o de possibilidades natildeo-

faacutecticas ndash ie o papel de algo que de qualquer modo efectivamente natildeo estaacute em jogo na con-

formaccedilatildeo efectiva de si etc

Acontece poreacutem que quando aqui se fala de possibilidades natildeo estaacute em causa um

mero inventaacuterio de possibilidades O que estaacute em causa eacute a potencial actualizaccedilatildeo ou conver-

satildeo das possibilidades em algo com uma natureza muito diferente da mera possibilidade

Mas tambeacutem isto natildeo eacute tudo

Com efeito poderia dar-se o caso de o campo da possibilidade estar conformado pelos

vaacuterios aspectos que passaacutemos em revista mas num quadro completamente livre de qualquer

espeacutecie de pressatildeo gerundiva

O ponto decisivo eacute que natildeo eacute assim

Tal como estaacute constituiacutedo em noacutes o aparecimento estaacute ligado a um campo de possibi-

lidade contiacutenua e decisivamente marcado por ndash inteiramente perpassado por ndash pressatildeo gerun-

diva

Isto eacute uma coisa eacute a possibilidade ndash e ateacute mesmo a possibilidade actualizaacutevel Outra

coisa completamente diferente eacute a possibilidade percorrida por pressatildeo gerundiva

A diferenccedila eacute na verdade tatildeo radical que vendo bem natildeo fazemos ideia do que seja a

possibilidade enquanto instacircncia natildeo-gerundiva Estamos de tal modo sob a alccedilada da pressatildeo

gerundiva que soacute ilusoriamente conseguimos conceber o que seja a sua ausecircncia e qualquer

esforccedilo retrospectivo de retirar a pressatildeo gerundiva a uma qualquer possibilidade natildeo gera se-

natildeo resultados negativos

Sendo assim o ponto decisivo que tem de ser considerado para perceber a determina-

ccedilatildeo que para noacutes tem o campo de possibilidade eacute a direcccedilatildeo ou a orientaccedilatildeo da pressatildeo ge-

rundiva que perpassa a esfera da possibilidade

Ora o primeiro aspecto que haacute que ter em atenccedilatildeo nesta mateacuteria eacute que a pressatildeo ge-

rundiva que ocorre em noacutes e que domina inteiramente o campo da possibilidade tem que ver

com a subsistecircncia (com a continuaccedilatildeo etc) do aparecimento ndash enquanto a subsistecircncia do

aparecimento eacute uma condiccedilatildeo da subsistecircncia da ldquotestemunha globalrdquo (sc da ipseidade)

Mas isto tambeacutem natildeo eacute tudo

326

Eacute que de facto poderia haver pressatildeo gerundiva da subsistecircncia do aparecimento mas

uma pressatildeo que estivesse orientada para uma subsistecircncia do aparecimento soacute ateacute certo pon-

to (dentro de um intervalo definido)

Ora esta eacute uma modalidade de pressatildeo gerundiva que desconhecemos por completo

Para noacutes a pressatildeo gerundiva em direcccedilatildeo agrave subsistecircncia ou agrave continuaccedilatildeo do apareci-

mento tem como vimos um caraacutecter formal ndash e estaacute constituiacuteda de tal modo que o seu termi-

nus ad quem eacute nada menos do que o superlativo com as caracteriacutesticas que vimos atraacutes

Mas tambeacutem isto por sua vez natildeo eacute tudo

O ldquoem-abertordquo ndash que constitui o nuacutecleo da possibilidade ndash natildeo diz respeito apenas agrave al-

ternativa entre a) a possibilidade gerundiva de si se converter num cumprimento de si (de tal

modo que o empreendimento de si ndash a ldquonavegaccedilatildeo de sirdquo etc ndash natildeo acaba mas continua) e b)

a possibilidade gerundiva de si dar lugar agrave cessaccedilatildeo de si Ou seja a pressatildeo gerundiva natildeo

se cinge agrave preservaccedilatildeo de si

Poderia dar-se o caso de a possibilidade restringir o seu alcance agrave mera tensatildeo pela

preservaccedilatildeo de si ndash de tal modo que o que estaria em causa seria a possibilidade de haver ou

natildeo aparecimento no momento seguinte (na medida em que como vimos haacute algo como uma

tensatildeo de completude de ldquosirdquo que fica aqueacutem de se cumprir se corresponder a menos do que

agrave travessia da extensatildeo total do empreendimento de si)

Acontece que a possibilidade inclui tambeacutem ndash e inclui de modo natildeo menos decisivo ndash

uma multiplicidade de alternativas de preenchimento da continuaccedilatildeo de si

Foquemos um pouco melhor este aspecto

Em primeiro lugar haacute todo um conjunto muito diversificado de possibilidades do vir-

a-ser-de-si que se situam todas elas se assim se pode dizer do lado da continuaccedilatildeo (e natildeo do

lado contraacuterio)

Quer dizer o que se verifica estaacute muito longe de corresponder pura e simplesmente a

fazermos caso da continuaccedilatildeo sendo-nos completamente indiferente o seu teor aquilo que a

preenche etc Sucede justamente o contraacuterio As diferentes possibilidades de preenchimento

(as diferentes determinaccedilotildees possiacuteveis do vir-a-ser-de-si) contrastam fortemente umas com as

outras quanto ao teor da continuaccedilatildeo

Em segundo lugar essas diversas possibilidades natildeo satildeo iguais ndash natildeo estatildeo todas no

mesmo peacute no que diz respeito agrave tensatildeo de natildeo-indiferenccedila

327

Em relaccedilatildeo a umas possibilidades a ldquotestemunha globalrdquo do aparecimento estaacute liga-

da por pressatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva em relaccedilatildeo a outras ao inveacutes a tensatildeo de natildeo-in-

diferenccedila eacute negativa Mais precisamente a ldquotestemunha globalrdquo do aparecimento estaacute vincu-

lada agraves diversas possibilidades atraveacutes de um nuacutemero indeterminado de graus de natildeo-indife-

renccedila positiva e de um nuacutemero indeterminado de graus de natildeo-indiferenccedila negativa

O que daqui decorre eacute que cada determinaccedilatildeo de preenchimento de si-mesmo-a-haver

tem uma determinada posiccedilatildeo relativa numa hierarquia de possibilidades

Finalmente tambeacutem a este respeito a pressatildeo gerundiva a que estaacute sujeita a ipseidade

tem um caraacutecter formal e estaacute dirigida a nada menos do que o superlativo

Quer dizer as diferentes possibilidades qualitativas natildeo estatildeo apenas postas em rela-

ccedilatildeo umas com as outras de tal modo que compotildeem uma ldquohierarquiardquo Acontece em vez disso

que estatildeo postas sob a pressatildeo de um superlativo qualitativo ndash de tal modo que a sua diversa

posiccedilatildeo hieraacuterquica eacute uma posiccedilatildeo de distacircncia relativa a esse superlativo qualitativo99

99

Como vimos o programa de natildeo-indiferenccedila em questatildeo estaacute vinculado a um superlativo que eacute ao

mesmo tempo quantitativo e qualitativo ndash de tal modo que quer no que diz respeito agrave alternativa

sernatildeo-ser (e agraves diferentes possibilidades de conformaccedilatildeo concreta da duraccedilatildeo de si) quer no que diz

respeito agraves diferentes modalidades do vir-a-ser-de-si) o quadro de possibilidade aqui em causa estaacute

posto sob a pressatildeo do superlativo e eacute sempre de algum modo visto na oacuteptica dessa pressatildeo (agrave luz de-

la etc) Assim o aparecimento (isso a que chamaacutemos o caso ldquosingularrdquo do aparecimento) estaacute pres-

sionado a) por algo como um superlativo e b) por cada uma das possibilidades de aparecimento alter-

nativas (que por sua vez estatildeo sobre o mesmo complexo de pressotildees) Tudo isto quer dizer que o apa-

recimento tem em relaccedilatildeo agraves diversas possibilidades em relaccedilatildeo agraves quais estaacute em contraste um ldquova-

lorrdquo particular eacute qualitativamente superior a algumas possibilidades de aparecimento e qualitativa-

mente inferior a outras Eacute neste sentido que falamos aqui de algo como uma hierarquia de possibilida-

des O que se esboccedila eacute o facto de as muacuteltiplas possibilidades alternativas serem atravessadas por uma

avaliaccedilatildeo de valor Quer dizer as alternativas natildeo aparecem como neutras o seu valor estaacute determi-

nado pelo seu lugar nessa hierarquia ndash hierarquia que tem como criteacuterio de distribuiccedilatildeo das muacuteltiplas

alternativas o superlativo que de cada vez estiver em causa e o seu teor Vendo bem em qualquer ca-

so o aparecimento aparece sempre como uma possibilidade diminuiacuteda (esbatida subalternizada etc)

em relaccedilatildeo ao superlativo a que responde

Acresce a isto finalmente que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva e negativa natildeo eacute constante quanto

agrave sua intensidade Haacute ateacute uma muito grande margem de variaccedilatildeo dessa intensidade ndash de onde resulta

que as diferentes possibilidades do vir-a-ser-de-si natildeo apenas estatildeo em concurso umas com as outras

mas estatildeo adicionalmente numa relaccedilatildeo muito diversa com o programa de natildeo-indiferenccedila de que o

si-mesmo eacute portador Antes de mais essa variaccedilatildeo da intensidade diz respeito ao teor do superlativo

Um superlativo ldquomodestordquo se assim podemos dizer depotildee as diferentes possibilidades numa relaccedilatildeo

menos ldquotensardquo na medida em que diminui o leque da amplitude possiacutevel em relaccedilatildeo ao superlativo

Adicionalmente essa variaccedilatildeo de intensidade diz respeito ao teor da travessia do aparecimento Isto

328

Tudo isto desenha como vimos algo muito particular (que eacute aquilo que sem estarmos

cientes disso estaacute em jogo em toda a relaccedilatildeo com a possibilidade) todo o terreno da possibili-

dade estaacute posto sob a pressatildeo do superlativo (o nuacutecleo de pressatildeo formal sustentado pela natildeo-

indiferenccedila da ipseidade a si mesma que envolve ao mesmo tempo a exigecircncia de um super-

lativo quantitativo e a exigecircncia de um superaltivo qualitativo)

Em suma estejamos ou natildeo cientes disso a possibilidade eacute o terreno desta extraordi-

naacuteria peticcedilatildeo de majoraccedilatildeo de si que eacute a peticcedilatildeo do superlativo

Mas haacute ainda um outro aspecto a considerar

Poderia ser assim mas com um quadro de possibilidades relativamente restrito um

cardinal pequeno de diferentes teores de aparecimento (sc de diferentes possibilidades de

conformaccedilatildeo do si-mesmo-a-haver)

Todavia o que se passa connosco eacute justamente o oposto E eacute o oposto em dois senti-

dos

Em primeiro lugar eacute o oposto porque os teores do aparecimento satildeo muito diversos O

que estamos a procurar salientar eacute que natildeo conhecemos limite agraves possibilidades Isto eacute as pos-

sibilidades natildeo se restringem a um cardinal determinado mas vendo bem as possibilidades

pela sua proacutepria natureza satildeo passiacuteveis de uma contiacutenua multiplicaccedilatildeo

Essa incriacutevel variedade eacute por um lado uma variedade documentada pela proacutepria tra-

vessia perceptiva ndash mas por outro lado cresce exponencialmente por projecccedilatildeo empiacuterica

Para sermos mais precisos haacute aqui dois aspectos a distinguir

Por um lado haacute a questatildeo de saber de onde nos vem a ideia da incriacutevel diversidade de

que procuraacutemos descrever grosseiramente as fontes

Mas por outro lado mesmo que a travessia perceptiva natildeo documentasse nada desse

geacutenero (e que portanto natildeo houvesse qualquer base para uma projecccedilatildeo empiacuterica da ordem

da que se mencionou) continuaria a subsistir a possibilidade de algo com essas caracteriacutesti-

cas

eacute diz respeito ao facto de no curso do aparecimento a distacircncia ao superlativo ser consoante o que a

cada momento aparece maior ou menor Por fim essa variaccedilatildeo de intensidade diz respeito agrave amplitu-

de da travessia

329

Isso tem que ver com o caraacutecter apesar de tudo comparativamente exiacuteguo da travessia

perceptiva e com a fragilidade de todas as projecccedilotildees empiacutericas100

Em segundo lugar haacute algo muito diferente de um cardinal pequeno de possibilidades

alternativas porque estes diversos teores aparecem como correlatos de tensotildees de natildeo-indife-

renccedila fortemente contrastantes entre si tanto a) no que diz respeito ao seu valor positivo ou

negativo (ou seja no que diz respeito agrave alternativa entre natildeo-indiferenccedila positiva e natildeo-indife-

renccedila negativa) quanto b) no que diz respeito agrave intensidade do fluxo de natildeo-indiferenccedila que

anima a nossa relaccedilatildeo com eles

Por outras palavras seria possiacutevel haver um sem-nuacutemero de teores de aparecimento

(um sem-nuacutemero de preenchimentos possiacuteveis do si-mesmo-a-haver) e esses diferentes teores

de aparecimento natildeo terem significativos contrastes de distacircncia em relaccedilatildeo ao superlativo

qualitativo para que se tende Mas o que acontece com o quadro de possibilidades com que li-

damos eacute precisamente o oposto

Em suma o quadro de possibilidades que no nosso caso compotildee o ldquoreinordquo da possi-

bilidade eacute um quadro absolutamente exuberante que ilustra o princiacutepio de toda a espeacutecie de

determinaccedilotildees e combinaccedilotildees possiacuteveis classicamente expresso na foacutermula ldquonatura varie lu-

densrdquo101

Mas isto por sua vez ainda natildeo eacute tudo ndash e de facto deixa de fora um aspecto sem cu-

ja focagem se perde de vista algo essencial tanto para a fixaccedilatildeo da estrutura da ipseidade na

sua natildeo-indiferenccedila a si mesma quanto para a compreensatildeo da estrutura da experiecircncia da vi-

da enquanto tal O aspecto que falta considerar tem que ver com o seguinte

100

Vendo bem natildeo soacute as possibilidades ocupam uma incriacutevel amplitude como haacute uma incriacutevel despro-

porccedilatildeo entre o que efectivamente aparece (o caso ldquosingularrdquo do aparecimento se assim podemos di-

zer) e os muacuteltiplos casos possiacuteveis de aparecimento Mais eacute precisamente com essa multiplicaccedilatildeo de

possibilidades ndash com uma grandeza incriacutevel ndash que a cada momento o que aparece estaacute confrontado Ou

seja eacute essa multiplicidade de possibilidades que a cada momento coloca em tensatildeo o que aparece

(partilha o plano com interfere ou influencia o que aparece etc) ndash de tal modo que na verdade modi-

fica o que aparece a partir do seu ldquointeriorrdquo Em suma por uma parte a determinaccedilatildeo de preenchi-

mento de si-mesmo-a-haver corresponde a natildeo mais do que uma de entre as muacuteltiplas possibilidades

de determinaccedilatildeo de preenchimento de si-mesmo-a-haver Por outra parte a determinaccedilatildeo de preenchi-

mento de si-mesmo-a-haver estaacute de cada vez pressionado por um nuacutemero ilimitado de variaccedilotildees alter-

nativas de determinaccedilatildeo de preenchimento de si-mesmo-a-haver e o confronto com todas essas possi-

bilidades conforma o modo como aparece o que aparece

101 Deichgraumlber K Natura varie ludens Ein Nachtrag zum grieschischen Naturbegriff Wiesbaden

Steiner 1954 Abhandlungen der Geistes- und Sozialwissenschaftlichen Klasse 1954 nuacutemero 3

330

Poderia ser assim como acabamos de descrever mas de tal modo que o quadro de

possibilidades em causa fosse passiacutevel de sinopse

Quer dizer poderia ser assim mas de tal modo que fosse possiacutevel ter uma perspectiva

que verdadeiramente cobrisse e acompanhasse cada uma das possibilidades de aparecimento

em causa e percebesse em regime de perfeita perspicaacutecia a posiccedilatildeo que todas elas ocupam

umas em relaccedilatildeo agraves outras no que diz respeito aos seus diversos encadeamentos possiacuteveis ao

seu ldquovalorrdquo ou ao significado de que se reveste em relaccedilatildeo agrave tensatildeo de natildeo-indiferenccedila ao seu

programa superlativo etc

Contudo natildeo eacute nada disso que sucede Natildeo haacute nenhuma sinopse constituiacuteda desse mo-

do ndash na verdade o que haacute eacute muito diferente dela

Por um lado haacute uma tendecircncia para a sinopse ndash uma tendecircncia que radica na proacutepria

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesmo e na necessidade de orientaccedilatildeo que dela

decorre Por outro lado tudo o que de cada vez se acha alcanccedilado em mateacuteria de sinopse tem

natildeo soacute a) um caraacutecter bastante confuso mas para aleacutem disso b) deixa escapar um cardinal

muito elevado ndash e ateacute mesmo a esmagadora maioria ndash das linhas de desenvolvimento possiacute-

vel do vir-a-ser-de-si

Ou seja ainda que se trate de um horizonte sobre o qual recai uma forte pressatildeo de

clarividecircncia de facto esse horizonte caracteriza-se pelo oposto daquilo que se acha requerido

por essa pressatildeo Em suma trata-se de qualquer coisa como um campo cerrado encoberto

com todas as caracteriacutesticas de um ldquolabirintordquo102

Vejamos um pouco melhor o que se quer dizer com isto

Quando falamos aqui de ldquolabirintordquo natildeo nos referimos ao fenoacutemeno do ldquolabirintordquo no

sentido que o termo tem quando estaacute em causa algo de que se tem uma perspectiva a partir de

cima (de relance com acesso agrave sua planta etc) Quando falamos aqui de ldquolabirintordquo estamos

a referir-nos agravequilo que se passa quando se estaacute fechado num labirinto e sujeito ao tipo de

constriccedilatildeo de perspectiva que corresponde a algueacutem fechado num labirinto

Nesse sentido um labirinto eacute um campo de acesso marcado por fortes restriccedilotildees ndash res-

triccedilotildees essas que reduzem aquilo que se consegue ver de cada vez a muito pequenos troccedilos

102

Sobre o tema do ldquolabirintordquo (ie da vida como labirinto do curso da vida como curso labiriacutentico

etc) ver por exemplo Doob P The idea of the Labyrinth from Classical Antiquity through the Mid-

dle Ages London Cornell University Press 1990

331

de tal modo que a) natildeo se sabe o que estaacute para laacute deles (natildeo tem acesso ao que estaacute para laacute

das barreiras que os limitam etc) b) natildeo se sabe bem qual a posiccedilatildeo que cada um destes tro-

ccedilos ocupa na totalidade do labirinto e na verdade c) natildeo se faz ideia da proacutepria extensatildeo ou

amplitude global do labirinto em que se estaacute

Isto eacute ainda mais assim se ndash como sucede no caso aqui em causa como sucede no nos-

so caso ndash se trata de um labirinto em que se estaacute desde sempre de tal modo que nunca se fez

qualquer deslocaccedilatildeo a natildeo ser dentro dele

Tambeacutem a desproporccedilatildeo que assim se desenha ndash ou seja a desproporccedilatildeo entre a) a

pressatildeo de superlativaccedilatildeo e a pressatildeo de sinopse em relaccedilatildeo ao quadro das possibilidades de

si e b) o facto de o quadro de possibilidades estar cerrado e disposto de tal modo que todo o

ganho de perspectiva a seu respeito tem a forma de deslocaccedilotildees num labirinto constitui uma

componente decisiva da estrutura da testemunha global e do aparecimento em que nos temos

enquanto este estaacute constituiacutedo como empreendimento de si

Eacute isso que naturalmente se reflecte numa propriedade fundamental da proacutepria travessia

do aparecimento (da travessia da vida e da experiecircncia da vida) a travessia do aparecimento

tem justamente a forma de exploraccedilatildeo de um labirinto

Assim se por um lado a proacutepria travessia do labirinto permite ter dele alguma pers-

pectiva (de tal modo que eacute possiacutevel desenhar um ldquomapardquo da travessia do labirinto) por outro

lado natildeo eacute possiacutevel saber a partir dessa perspectiva restrita que de cada vez se tem no meio

dele que possibilidades inexploradas o labirinto abre ndash o que eacute que se vai encontrar no hori-

zonte por explorar quais as suas dimensotildees etc103

Ou para sermos mais precisos a travessia do aparecimento tem a forma do labirinto

das possibilidades do vir-a-ser-de-si e eacute feita natildeo tanto como descoberta das possibilidades

103

A respeito das origens gnoseoloacutegicas deste reconhecimento do ldquoreinordquo da possibilidade como ldquolabi-

rintordquo renovam-se as observaccedilotildees feitas atraacutes Em aditamento observe-se que o papel da ἐμπειρία em

relaccedilatildeo a este estado de coisa eacute ambiacuteguo Por um lado a ἐμπειρία antecipa a surpresa Com efeito a

travessia perceptiva caracteriza-se precisamente por pocircr em contacto com uma multiplicidade de πεϱι-

πέτειαι ndash como se situasse em caminho em cujo percurso surgem surpresas E a ἐμπειρία antecipa mais

ocorrecircncias disso projecta a quase-lei de que surgem supresas etc Por outro lado uma das preocupa-

ccedilotildees e tendecircncias mais vincadas da ἐμπειρία em virtude de estar dominada pelo interesse por si eacute pre-

cisamente traccedilar quando possiacutevel o ldquomapardquo do labirinto (obter a perspectiva de sinopse que na ver-

dade nunca alcanccedila)

332

como possibilidades mas como descoberta das possibilidades a partir do facto (ie a partir

do que acontece do que aparece do que se descobre que vai sendo de si etc)

Quer dizer embora haja alguma margem de identificaccedilatildeo prospectiva das possibilida-

des como possibilidades (enquanto ainda satildeo possibilidades antes de se actualizarem) a es-

treiteza de acircngulo na nossa captaccedilatildeo do campo de possibilidades (aquilo que tentaacutemos focar

quando falaacutemos da falta de sinopse e de quando falaacutemos de um condicionamento anaacutelogo ao

de um labirinto) faz que muitas possibilidades de preenchimento de si (muitas modalidades de

conformaccedilatildeo de si) natildeo sejam antecipadas e em vez disso se manifestem sob a forma de possi-

bilidades jaacute actualizadas

Enfim tudo se passa como se a ldquocriatividaderdquo do campo de possibilidades em que te-

mos efectivamente de nos haver fosse muito mais feacutertil do que a nossa ldquocriatividaderdquo no que

diz respeito agrave concepccedilatildeo de possibilidades de preenchimento de si

sect37

O duplo ldquobig bangrdquo do si-mesmo a propagaccedilatildeo sobre a totalidade de si e a propagaccedilatildeo

sobre a totalidade do que aparece ndash A ldquopeccedilardquo de si

Um dos aspectos mais decisivos para a compreensatildeo de tudo isto eacute aquele que tem que

ver com a capacitaccedilatildeo de que a presenccedila deste elemento de ipseidade em tensatildeo relativamen-

te a si mesma (a presenccedila do superlativo a presenccedila da possibilidade de si que tentaacutemos apre-

sentar na secccedilatildeo anterior) natildeo tem um caraacutecter puramente regional

Pode parecer que eacute assim ndash que a presenccedila do si deixa tudo o resto mais ou menos na

mesma Mas enquanto persistir um tal modelo estaacute-se a) a deixar escapar aquilo que efecti-

vamente se passa b) a perder de vista o peso real da ipseidade (sc da relaccedilatildeo que ela tem con-

sigo) e c) continua-se a natildeo perceber bem que eacute que quer dizer o aparecimento estar constituiacute-

do como (ou ter a forma de um) empreendimento de si

Vejamos um pouco melhor este aspecto

O que estaacute em jogo natildeo eacute apenas o facto de o nuacutecleo da ipseidade ter a extraordinaacuteria

dimensatildeo de que tentaacutemos dar uma ideia

333

O ponto decisivo estaacute no facto de a sua presenccedila se propagar por toda a extensatildeo da-

quilo que aparece fazendo que aquilo que aparece ndash o que quer que seja que aparece ndash natildeo

tenha apenas a sua proacutepria determinaccedilatildeo mas tenha a determinaccedilatildeo que lhe vem de se ins-

crever no territoacuterio do si na tensatildeo de si como momento dessa tensatildeo (como um functor des-

sa tensatildeo como tambeacutem poderiacuteamos dizer)

Isto pode parecer estranho porque um dos traccedilos fundamentais de uma grande parte

das ldquocoisasrdquo que aparecem eacute precisamente o parecerem neutras distantes irrelevantes em re-

laccedilatildeo a si e agrave tensatildeo que domina o si

Mas como observaacutemos anteriormente eacute justamente isto mesmo que parece infirmar o

que dizemos que na verdade o confirma ser distante irrelevante insignificante etc natildeo eacute

menos uma forma de se definir em relaccedilatildeo ao si do que o contraacuterio (do que ter importacircncia

ser proacuteximo etc)

O ponto decisivo estaacute em que tanto num caso como no outro a determinaccedilatildeo eacute intrin-

secamente relativa ao si ndash tem o si (tem o si-mesmo-a-haver tem o superlativo tem o campo

das possibilidades de si etc) por assim dizer como ponto de referecircncia fundamental

Dito de outro modo em vez de acontecer que o si (e todo o horizonte do si) seja pura

e simplesmente mais um elemento algures a um canto da multiplicidade que aparece em vez

de acontecer que a ldquotestemunha globalrdquo registe a sua proacutepria presenccedila tal como regista o que

quer que seja mais ndash sucede pelo contraacuterio que a ipseidade eacute o centro em torno do qual gra-

vita tudo o mais e eacute ao mesmo tempo tambeacutem o medium em que tudo o mais se vem inscre-

ver

Na verdade pode falar-se de qualquer coisa como um duplo ldquobig bangrdquo do si-mesmo

Por um lado haacute um ldquobig bangrdquo porque a determinaccedilatildeo do si natildeo eacute simples punctifor-

me antes implica toda a extensatildeo da flexatildeo de si e da totalidade de si (sc da totalidade ge-

rundiva do si-mesmo a haver) com as caracteriacutesticas que esboccedilaacutemos na secccedilatildeo anterior

Por outro lado no entanto esta explosatildeo do si-mesmo a haver natildeo se manteacutem contida

na sua proacutepria esfera como se se tratasse de uma explosatildeo regional propaga-se por toda a

extensatildeo daquilo que aparece ndash chamando por assim dizer tudo o que aparece ao seu proacute-

prio domiacutenio ldquopuxando-o a sirdquo e integrando-o no seu proacuteprio territoacuterio como algo que se de-

fine em funccedilatildeo dele etc

334

Neste sentido o mais distante e o mais desligado da ipseidade e da tensatildeo de si estaacute

absolutamente nos ldquoantiacutepodasrdquo de ter uma determinaccedilatildeo natildeo-relativa ao si-mesmo

Na verdade o mais distante e o mais desligado da ipseidade e da tensatildeo de si tem um

cunho essencialmente perifeacuterico que soacute eacute possiacutevel a) no quadro de uma multiplicidade cen-

trada e b) numa multiplicidade centrada com centro no si mesmo e c) na ligaccedilatildeo de natildeo-indi-

ferenccedila a si de absoluta dedicaccedilatildeo a si etc Ou como tambeacutem podemos dizer tudo se passa

como se o nuacutecleo de si lanccedilasse como que o sinal de ldquosonarrdquo de si mesmo por toda a ampli-

tude daquilo que aparece atravessando tudo e retornando com a determinaccedilatildeo das posiccedilotildees

funcionais de tudo em relaccedilatildeo ao centro emissor desse sinal em torno do qual tudo gira e que

constitui a fonte da identificaccedilatildeo fundamental de tudo

Nos Beitraumlge zur Loumlsung der Frage vom Ursprung unseres Glaubens an die Realitaumlt

der Auszligenwelt und seinem Recht Dilthey exprime este estado-de-coisas dizendo que inde-

pendentemente do que se possa dizer em sede metafiacutesica no plano da constituiccedilatildeo do apare-

cimento o ens realissimum eacute o proacuteprio104

Isso significa que de raiz o proacuteprio tem a carga maacutexima de realidade de que proveacutem

a realidade de tudo o mais no campo da sua proacutepria experiecircncia

Natildeo se considera aqui especificamente a questatildeo da realidade (da atribuiccedilatildeo de reali-

dade etc) e a tese que o enunciado de Dilthey traduz em relaccedilatildeo a ela Mas importa-nos focar

como essa forma de ens realissimum imanente eacute justamente aquela que caracteriza o aconteci-

mento de aparecer de tudo que continuamente estaacute a ter lugar em cada um de noacutes

O facto de o ens realissimum ser o proacuteprio produz centramento e faz ao mesmo tempo

que a determinaccedilatildeo do centro (a presenccedila do centro) se propague a tudo como matriz em que

tudo se vem inscrever de sorte que o proacuteprio afastamento eacute precisamente isso relativo ao

centro determinado por ele (algo a que o centro chega que estaacute no alcance do centro mas que

estaacute relegado para uma posiccedilatildeo de ldquofundordquo etc)

O segundo ldquobig bangrdquo tem portanto um caraacutecter total maciccedilo e produz como que a

integraccedilatildeo de tudo o que aparece sem excepccedilatildeo na esfera do primeiro ldquobig bangrdquo que assim

imprime em tudo o seu cunho

104

ldquoHierin liegt nun die energischste Verdichtung der Realitaumlt dieser Lebenseinheit da ich mir selber

das ens realissimum bin was auch die Metaphysiker von einem solchen uumlber den Sternen sagen mouml-

genrdquo (Beitraumlge paacuteg 111)

335

Para se perceber bem como eacute assim importa acentuar dois aspectos

Por um lado a interposiccedilatildeo da tensatildeo do si afecta a determinaccedilatildeo de tudo o que apare-

ce de tal modo que tudo se define por uma certa identidade funcional em relaccedilatildeo a si ndash se as-

sim se pode dizer como ldquopersonagemrdquo (personagem principal secundaacuteria figurante etc) da

ldquopeccedilardquo de si

Por outro lado faz parte integrante disso a disposiccedilatildeo de tudo o que aparece numa

multiplicidade de planos mais ou menos proacuteximos do centro ndash de sorte que como numa peccedila

faz parte da identidade funcional como que uma disposiccedilatildeo em muacuteltiplas ordens de grandeza

das personagens consoante o seu grau de intervenccedilatildeo naquilo que estaacute em causa na ldquopeccedilardquo

De facto e como jaacute sugerimos em passos anteriores podemos formular este aspecto

fundamental dizendo que o aparecimento tem em noacutes a forma como de uma ldquopeccedilardquo ndash a ldquopeccedilardquo

de cada um a ldquopeccedilardquo de si mesmo etc

Usamos aqui a noccedilatildeo de ldquopeccedilardquo no sentido ldquoteatralrdquo do termo

Por uma parte isto quer dizer que globalmente haacute uma ldquopeccedilardquo ldquoem cenardquo uma ldquope-

ccedilardquo com protagonista ndash sendo o protagonista quem estaacute em causa na ldquopeccedilardquo

Por outra parte quer dizer que tal como numa peccedila (no ldquouniversordquo de uma ldquopeccedilardquo) tu-

do o que aparece entra em cena como interveniente dessa ldquopeccedilardquo ndash a interferir deste ou da-

quele modo com o que se passa com o protagonista a intervir deste e daquele modo com o

aquilo ou aqueles que interferem com o protagonista a intervir deste e daquele modo com

aquilo ou aqueles que interferem com o que ou os que interferem com o protagonista e assim

sucessivamente Como eacute claro referimo-nos aqui agrave estrutura desenhada no Alcibiacuteades Major

Quer dizer tudo o que aparece estaacute como que centrado ndash gira em torno do protagonis-

ta define-se em relaccedilatildeo a ele (se assim se pode dizer como factor dele com posiccedilatildeo adjectiva

em relaccedilatildeo a ele ndash mais proacutexima do centro ou mais perifeacuterica mas no fundamental sempre

adjectiva)

Note-se entre parecircnteses que este empreacutestimo categorial ndash falamos em categorias re-

lativas ao teatro como tambeacutem poderiacuteamos recorrer a categorias relativas a outros geacuteneros li-

teraacuterios ndash natildeo tem nada de posticcedilo Na verdade as estruturas fundamentais destes geacuteneros in-

dependentemente do que tambeacutem elas possam comportar de filtrado de convencional etc

espelham estruturas constitutivas da proacutepria vida

336

Natildeo estamos aqui em condiccedilotildees de ir mais longe em relaccedilatildeo a esta afirmaccedilatildeo Aquilo

que nos parece importante eacute mostrar que esta comparaccedilatildeo tem como parece inevitaacutevel (omne

simile claudicat) uma componente que pode induzir em erro

Por um lado o facto de se falar numa ldquopeccedilardquo pode sugerir a ideia de algo puramente

ldquorepresentadordquo ndash que eacute justamente o oposto do que estaacute em causa Trata-se de algo com um

grau de realidade maacuteximo

A ldquopeccedilardquo em curso (a ldquopeccedilardquo de cada um) trata de todos os assuntos que estatildeo sob a

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a si mesmo (de dedicaccedilatildeo a si do fazer caso de si etc) que atraacutes re-

ferimos Nesse aspecto o ldquotemardquo da ldquopeccedilardquo eacute a proacutepria ldquocoisardquo a jogar-se de uma vez soacute

(sem ensaios em completo em-aberto relativamente ao enredo de improviso etc)

Por outro lado o facto de se falar de uma ldquopeccedilardquo pode induzir em erro porque no caso

de uma ldquopeccedilardquo assistimos agravequilo que se passa como espectadores Quer dizer podemos sim-

patizar ou identificar-nos com o protagonista mas em uacuteltima anaacutelise natildeo somos o protagonis-

ta

Ora no caso do aparecimento constituiacutedo como empreendimento de si sucede precisa-

mente o contraacuterio pode ateacute haver momentos em que se consegue ver a proacutepria vida em certa

medida como um espectador mas a possibilidade de ver a proacutepria vida como espectador re-

presenta uma relativa evasatildeo relativamente ao viacutenculo absoluto do mea res agitur Por outras

palavras neste caso natildeo se trata de uma ldquopeccedilardquo a que se assiste mas da peccedila que se ldquoeacuterdquo da

ldquopeccedilardquo do proacuteprio etc105

Ateacute pode haver outras vidas agrave volta (que de certo modo reconhece como outras ldquope-

ccedilasrdquo diferentes da sua ndash com uma amplitude centralidade etc para os proacuteprios equivalente agrave

105

Vendo bem quando se assiste a uma ldquopeccedilardquo no sentido ldquoteatralrdquo do termo esta tem o caraacutecter de

um interluacutedio dentro da ldquopeccedilardquo de cada um ndash da verdadeira ldquopeccedilardquo cujos protagonistas centrais so-

mos cada um de noacutes (da grande ldquopeccedilardquo em que o momento de ir ao teatro e toda a peccedila representada

em palco eacute uma cena) O que nos leva a um outro aspecto cuja consideraccedilatildeo nos permite perceber me-

lhor em que sentido se pode falar da ldquopeccedilardquo de cada um e de todo o aparecimento do que aparece co-

mo algo que tem a forma da ldquopeccedilardquo de cada um Uma ldquopeccedilardquo no sentido em que se fala de uma peccedila

de teatro eacute uma parte (e na verdade uma iacutenfima parte) do que aparece Nesse sentido tem um exte-

rior (haacute muito mais para aleacutem dela deixa de fora etc) Na verdade natildeo soacute haacute muito que ela deixa de

fora como para aleacutem disso e abstraindo aqui do facto de as peccedilas poderem revestir-se de caraacutecter

simboacutelico e pretenderem pocircr em cena muito mais do que efectivamente potildeem haacute muito mais fora dela

do que dentro Mas com a ldquopeccedilardquo de cada um natildeo sucede o mesmo

337

sua) mas em uacuteltima anaacutelise acaba por reduzir essas outras ldquopeccedilasrdquo a momentos da ldquopeccedilardquo

proacutepria (da ldquopeccedilardquo central ndash e na verdade a uacutenica)

Nesse sentido a ldquopeccedilardquo de cada um (o aparecimento constituiacutedo como peccedila de si mes-

mo como empreendimento de si etc) tem o caraacutecter de qualquer coisa como uma peccedila abso-

luta

sect38

A organizaccedilatildeo global do que aparece considerada a partir da estrutura de ciacuterculos con-

cecircntricos de Hieacuterocles a presidecircncia centrada do αὐτός e o ldquolugarrdquo das ldquocoisas

O que acabamos de ver permite-nos perceber como o facto de o aparecimento em que

estamos constituiacutedos ter a forma de um empreendimento de si (sc de ldquopeccedila de sirdquo) que tentaacute-

mos descrever nos seus traccedilos fundamentais molda aquilo que aparece conferindo-lhe um es-

tatuto ou um teor muito peculiar Exprimimos esse estatuto ou esse teor falando de ldquopersona-

gensrdquo da ldquopeccedilardquo de si ndash e tanto quer dizer da natildeo-indiferenccedila a si de um si vinculado ao su-

perlativo lanccedilado no campo de possibilidades etc

Eacute que quando como no nosso caso o aparecimento tem essa natureza tudo ndash sem ex-

cepccedilatildeo ndash aparece agrave luz do empreendimento ou da ldquopeccedilardquo de si assume funccedilotildees relativamente

ao empreendimento ou agrave ldquopeccedilardquo de si e eacute nessa medida interveniente nessa ldquopeccedilardquo ou nesse

empreendimento

Eacute isso que quer dizer neste contexto a noccedilatildeo de ldquopersonagemrdquo ndash que eacute portanto uma

noccedilatildeo abrangente destinada a caracterizar esta peculiar forma de determinaccedilatildeo do objecto

que eacute proacutepria de um aparecimento que tem a natureza de um empreendimento de si (sc de

uma peccedila de si)

Ao falarmos de ldquopersonagensrdquo natildeo nos estamos portanto a referir soacute agravequilo que mais

comummente eacute designado por este nome ndash outras pessoas Referimo-nos a tudo o que aparece

sem distinccedilatildeo independentemente de pertencer agrave esfera das ldquopessoasrdquo ou das ldquocoisasrdquo ou a

qualquer outra classe dentro deste geacutenero de distinccedilotildees

Assim o aparecimento tem o caraacutecter de qualquer coisa como uma ldquopeccedila de sirdquo e isso

faz que o que quer que seja que aparece (tudo o que aparece) surja na posiccedilatildeo de algo que in-

338

terfere deste ou daquele modo na ldquopeccedila de sirdquo (faz com que o que quer que seja que aparece

surja como interveniente na ldquopeccedilardquo)

Ora o estatuto ou o teor de ldquopersonagemrdquo natildeo eacute uma camada adicional adjectiva cor-

respondente a determinadas funccedilotildees na ldquopeccedilardquo de si O que estamos a dizer eacute algo muito dife-

rente

O que estamos a dizer eacute que no quadro de um aparecimento que estaacute constituiacutedo como

empreendimento de si e que tem a forma da ldquopeccedilardquo de si estar definido como ldquopersonagemrdquo

que interveacutem nessa ldquopeccedilardquo deste ou daquele modo eacute o que constitui a identidade fundamental

do que aparece

Isso reflecte-se em diversos fenoacutemenos ndash entre os quais a relaccedilatildeo entre tudo o que apa-

rece e o campo das possibilidades relativas ao si-mesmo-a-haver que eacute como vimos o prota-

gonista de um aparecimento constituiacutedo desta forma

Mas um ponto que nos interessa em especial considerar tem que ver com a proacutepria or-

ganizaccedilatildeo global do que aparece

Essa organizaccedilatildeo global tem justamente que ver com a orbitaccedilatildeo de tudo em torno da

ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo na sua natildeo-indiferenccedila a si mesma ndash quer dizer na tensatildeo

para o superlativo (para uma conformaccedilatildeo superlativa de si) O que vimos significa que a tra-

vessia perceptiva eacute uma travessia no quadro da ldquopeccedilardquo de si (da navegaccedilatildeo do si da tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila a si da demanda do superlativo etc) ndash que regista precisamente ldquopersona-

gensrdquo de si

Ou seja cada campo perceptivo estaacute constituiacutedo ou organizado como campo de ldquoper-

sonagensrdquo do si E o mesmo vale para o campo de familiaridade e para o exterior do campo

de familiaridade pertencentes a uma ipseidade natildeo-indiferente a si mesma e dominada por

uma radical natildeo-indiferenccedila ao superlativo de si

Acontece que tatildeo importante como marcar bem este denominador comum eacute perceber

a natureza das articulaccedilotildees fundamentais que organizam a multiplicidade das ldquopersonagensrdquo

da ldquopeccedilardquo de si

Quer dizer eacute importante perceber como as personagens da ldquopeccedilardquo de si se dispotildeem

como se organizam entre si qual a natureza da articulaccedilatildeo entre o campo perceptivo o cam-

po de familiaridade e o exterior do campo de familiaridade o que eacute que estas divisotildees do hori-

339

zonte daquilo que aparece tecircm que ver com o proacuteprio facto de se tratar de personagens da ldquope-

ccedilardquo de si etc

Para abordar estas questotildees socorremo-nos daquilo que encontramos apresentado nos

fragmentos de Hieacuterocles ndash o fragmento que aponta a uma estrutura de ciacuterculos concecircntricos

incluiacutedo por Estobeu na Antologia106

Natildeo eacute este o local para considerar a estrutura de ciacuterculos concecircntricos em toda a sua

extensatildeo nem eacute este o local para fazer o levantamento integral de todos os aspectos que a es-

trutura desenha ou que aiacute estatildeo em jogo107

Na verdade interessa-nos destacar apenas trecircs aspectos

Aquilo a que em primeiro lugar importa dar atenccedilatildeo eacute o facto de estar em causa uma

estrutura complexa com diferentes niacuteveis de proximidade ou distacircncia Aquilo que se desenha

eacute uma forma de relaccedilatildeo entre os diversos ciacuterculos ndash mas de tal modo que a relaccedilatildeo entre os

diversos ciacuterculos natildeo eacute igual nem constante

Poderiacuteamos tender a considerar que os ciacuterculos na medida em que albergam mais ele-

mentos vatildeo alargando de tamanho Ora se isso eacute de certo modo assim isso natildeo parece ser

decisivo

106

Τοῖς εἰρημένοις περὶ γονέων χρήσεως καὶ ἀδελφῶν γυναικός τε καὶ τέκνων ἀκόλουθόν ἐστι προσ-

θεῖναι καὶ τὸν περὶ συγγενῶν λόγον συμπεπονθότα μέν πως ἐκείνοις διrsquo αὐτὸ δὲ τοῦτο συντόμως

ἀποδοθῆναι δυνάμενον ὅλως γὰρ ἕκαστος ἡμῶν οἷον κύκλοις πολλοῖς περιγέγραπται τοῖς μὲν σμι-

κροτέροις τοῖς δὲ μείζοσι καὶ τοῖς μὲν περιέχουσι τοῖς δὲ περιεχομένοις κατὰ τὰς διαφόρους καὶ

ἀνίσους πρὸς ἀλλήλους σχέσεις πρῶτος μὲν γάρ ἐστι κύκλος καὶ προσεχέστατος ὃν αὐτός τις καθά-

περ περὶ κέντρον τὴν ἑαυτοῦ γέγραπται διάνοιανmiddot ἐν ᾧ κύκλῳ τό τε σῶμα περιέχεται καὶ τὰ τοῦ σώμα-

τος ἕνεκα παρειλημμένα σχεδὸν γὰρ ὁ βραχύτατος καὶ μικροῦ δεῖν αὐτοῦ προσαπτόμενος τοῦ κέν-

τρου κύκλος οὗτος δεύτερος δὲ ἀπὸ τούτου καὶ πλέον μὲν ἀφεστὼς τοῦ κέντρου περιέχων δὲ τὸν

πρῶτον ἐν ᾧ τετάχαται γονεῖς ἀδελφοὶ γυνὴ παῖδες ὁ δrsquo ἀπὸ τούτων τρίτος ἐν ᾧ θεῖοι καὶ τηθίδες

πάπποι τε καὶ τῆθαι καὶ ἀδελφῶν παῖδες ἔτι δὲ ἀνεψιοί μεθrsquo ὃν ὁ τοὺς ἄλλους περιέχων συγγενεῖς

τούτῳ δrsquo ἐφεξῆς ὁ τῶν δημοτῶν καὶ μετrsquo αὐτὸν ὁ τῶν φυλετῶν εἶθrsquo ὁ πολιτῶν καὶ λοιπὸν οὕτως ὁ

μὲν ἀστυγειτόνων ὁ δὲ ὁμοεθνῶν ὁ δrsquo ἐξωτάτω καὶ μέγιστος περιέχων τε πάντας τοὺς κύκλους ὁ τοῦ

παντὸς ἀνθρώπων γένους τούτων οὖν τεθεωρημένων κατὰ τὸν ἐντεταμένον ἐστὶ περὶ τὴν δέουσαν

ἑκάστων χρῆσιν τὸ ἐπισυνάγειν πως τοὺς κύκλους ὡς ἐπὶ τὸ κέντρον καὶ τῇ σπουδῇ μεταφέρειν ἀεὶ

τοὺς ἐκ τῶν περιεχόντων εἰς τοὺς περιεχομένους

Este fragmento do tratado Ἱεροκλέους ἐκ τοῦ πῶς συγγενέσι χρηστέον foi conservado na Antologia de

Estobeu (48423) seguimos a ediccedilatildeo de Ramelli I Hierocles the Stoic Elements of Ethics Frag-

ments and Excerpts Society of Biblical Literature Atlanta 2009 paacuteg 90)

107 Para uma anaacutelise mais detida ver Fidalgo T The multidimensional and centered structure of our

interested perception in Hierocles Tese de Mestrado UNL Lisboa 2015

340

Por um lado Hieacuterocles diz-nos que uns ciacuterculos satildeo maiores e outros mais pequenos ndash

com isso sinalizando precisamente o facto de abrangerem mais ou menos componentes (uma

maior ou menor ldquopopulaccedilatildeordquo por assim dizer)

Poreacutem por outro lado o que parece ser decisivo para a configuraccedilatildeo da estrutura natildeo eacute

o cardinal de elementos que compotildeem um ciacuterculo Do mesmo modo natildeo eacute decisivo o facto de

a estrutura comportar um determinado nuacutemero de niacuteveis ou de ciacuterculos

Na verdade e apesar de a estrutura desenhada por Hieacuterocles comportar sete niacuteveis

tambeacutem eacute relativamente indiferente o cardinal de niacuteveis de que a estrutura eacute composta ndash justa-

mente na medida em que no fundamental a estrutura manteria a sua validade independente-

mente do cardinal de niacuteveis descriminados

Isto eacute assim porque o que estaacute propriamente em causa na estrutura de ciacuterculos concecircn-

tricos eacute a natureza do viacutenculo que eles exprimem ndash ie o grau de afectaccedilatildeo ou o modo como

os ciacuterculos estatildeo afectivamente dispostos a partir do centro

A relaccedilatildeo eacute mais intensa com os niacuteveis mais proacuteximos do centro e mais distante com

os niacuteveis mais distantes do centro Na verdade o que estaacute em causa eacute algo como um progres-

sivo afrouxamento do viacutenculo ao centro um afrouxamento que aumenta agrave medida que diver-

sos ciacuterculos ganham distacircncia relativamente ao centro

Assim o facto de os ciacuterculos mais proacuteximos serem mais pequenos depende do facto de

haver em noacutes tal como estamos constituiacutedos uma equaccedilatildeo fundamental que se traduz em

pouco ou poucos nos afectar ou nos afectarem muito e de muito ou muitos nos afectar ou nos

afectarem pouco

Eacute tendo tudo isto em vista que podemos dizer que a estrutura que Hieacuterocles nos apre-

senta eacute uma estrutura formal E podemos compreender que eacute uma estrutura formal se conside-

rarmos dois factores

Por um lado a estrutura de Hieacuterocles pode acolher qualquer distribuiccedilatildeo

Quer dizer uma escala com esta mesma estrutura constituiacuteda precisamente do mesmo

modo (com niacuteveis de proximidade e distacircncia) consente outra titularidade ndash ie poderia cor-

responder a uma multiplicidade de outros preenchimentos possiacuteveis Isso fica mais claro an-

tes de mais se se conceber que um mesmo ldquouniversordquo de ldquoconteuacutedosrdquo (as ldquomesmasrdquo ldquocoisasrdquo

as ldquomesmasrdquo pessoas etc) poderia corresponder a uma multiplicidade de distribuiccedilotildees muito

distintas entre si

341

Mais poderia agrave primeira vista parecer que os componentes dos diferentes ciacuterculos es-

tatildeo encerrados nesses ciacuterculos de tal modo que natildeo haacute qualquer possibilidade de transiccedilatildeo

entre ciacuterculos ndash que natildeo haacute qualquer possibilidade de aproximaccedilatildeo ou de distanciaccedilatildeo em re-

laccedilatildeo ao centro Afinal as relaccedilotildees que Hieacuterocles descreve parecem ter essa natureza os pais

natildeo deixaratildeo de ser pais os filhos natildeo deixaratildeo de ser filhos os parentes natildeo deixaratildeo de ser

parentes etc

Poreacutem Hieacuterocles natildeo parece definir uma estrutura riacutegida ndash ou pelo menos natildeo parece

definir uma estrutura tatildeo riacutegida que natildeo admita variaccedilatildeo

Para compreender que eacute assim basta considerar que um membro feminino da tribo de

que se seja parte (ie um indiviacuteduo componente desse que passa por ser na estrutura de Hieacute-

rocles o sexto niacutevel) pode muito bem tornar-se esposa (caso no qual por via de a relaccedilatildeo ao

centro ser completamente modificada transita para o segundo ciacuterculo) Do mesmo modo um

vizinho ou um concidadatildeo pode perfeitamente mudar de cidade e com isso ser remetido para

niacuteveis mais afastados da estrutura (por exemplo partir de um niacutevel mais proacuteximo do centro e

ser remetido para o uacuteltimo niacutevel que diz respeito ao grupo mais abrangente de todos o de to-

da a espeacutecie humana) Isto jaacute para natildeo falar de mudanccedilas de outras ordens como as que ocor-

rem do desgaste proacuteprio das relaccedilotildees sociais por exemplo ao longo do tempo etc

Por outro lado e apesar de a escala que Hieacuterocles nos apresenta estar preenchida por

relaccedilotildees sociais e humanas (ie seja uma escala relativa do domiacutenio de ldquooutremrdquo) nada im-

pede que esta mesma estrutura se aplique a qualquer outro objecto (e seja tambeacutem a estrutura

de outros domiacutenios de ldquoobjectosrdquo)

Isto eacute tanto se pode aplicar esta estrutura quando o que estaacute em causa eacute a nossa rela-

ccedilatildeo aos parentes aos vizinhos aos concidadatildeos etc (as relaccedilotildees sociais em suma) quanto se

pode aplicar esta mesma estrutura quando o que estaacute em causa eacute a nossa relaccedilatildeo por exemplo

a objectos materiais ou do mesmo modo a nossa relaccedilatildeo a valores princiacutepios objectos de sa-

ber etc

O que muito sucintamente se estaacute a propor com estas consideraccedilotildees eacute que a estrutura

dos ciacuterculos concecircntricos de Hieacuterocles desenha a estrutura fundamental da relaccedilatildeo afectiva

(da relaccedilatildeo afectiva em geral da relaccedilatildeo afectiva aplicada ao que quer que seja a qualquer

ldquoobjectordquo etc)

Vendo bem o que estaacute em causa na estrutura de Hieacuterocles eacute algo como a circunscri-

ccedilatildeo do ldquoproacutepriordquo (do que eacute proacuteprio do que eacute do proacuteprio do que eacute ldquoordquo proacuteprio etc)

342

O que de raiz a escala de Hieacuterocles desenha eacute se assim se pode dizer a demarcaccedilatildeo

de um domiacutenio de propriedade (um domiacutenio exclusivo singular particular etc) ndash um domiacute-

nio que compreende exclusivamente o que pertence ao proacuteprio (o que diz respeito ao proacuteprio

o que o proacuteprio compreende como seu o que eacute com ele o que lhe cabe o que lhe pertence o

que eacute proacuteprio do proacuteprio etc)

Poreacutem a constituiccedilatildeo do domiacutenio do proacuteprio implica a constituiccedilatildeo simultacircnea de um

domiacutenio oposto (de um domiacutenio alheio ao proacuteprio que o excede que o transcende que estaacute

para laacute dele etc) E o que a escala faz notar eacute que a circunscriccedilatildeo do domiacutenio do proacuteprio im-

plica algo como uma contraposiccedilatildeo de domiacutenios (de domiacutenios opostos postos numa relaccedilatildeo

de heterogeneidade etc)

Sendo assim o domiacutenio do proacuteprio soacute eacute exclusivo na medida em que exclui ou deixa

de fora tudo o que natildeo cai num tal domiacutenio ndash ie eacute irredutiacutevel a exclui ou deixa de fora tudo

o que cai no exterior do domiacutenio do proacuteprio (tudo o que eacute se assim se pode dizer improacuteprio

natildeo-proacuteprio etc)

Mas o ponto decisivo na escala de Hieacuterocles eacute que ela natildeo se esgota na contraposiccedilatildeo

entre o proacuteprio e o alheio108

108

Poderia dar-se o caso de a estrutura formal que estaacute aqui em causa ser uma estrutura que se

aplicasse exclusivamente a outrem Quer dizer poderia dar-se o caso de a estrutura formal aqui em

causa cor-responder agrave configuraccedilatildeo da mera abertura de A em relaccedilatildeo a B (ie do proacuteprio em relaccedilatildeo

ao que lhe eacute fundamentalmente alheio a isso em relaccedilatildeo ao qual estaacute posto em contraste em relaccedilatildeo

ao que lhe eacute exterior etc) Acontece que natildeo eacute assim E o aspecto que nos interessa reter eacute o seguinte

o que eacute decisivo para compreender a escala de Hieacuterocles eacute natildeo perder de vista a relaccedilatildeo fundamental

ao αὐ-τός (ao ldquosi mesmordquo ao proacuteprio etc) Se considerarmos as relaccedilotildees desenhadas na estrutura de

Hieacutero-cles aquilo que vemos eacute que elas se referem ao proacuteprio o ldquopairdquo ou a ldquomatildeerdquo soacute se constituem

em ldquopairdquo ou ldquomatildeerdquo em referecircncia a um ldquofilhordquo uma ldquoesposardquo soacute se constitui em ldquoesposardquo em

referecircncia a um ldquoesposordquo um ldquotiordquo em referecircncia a um ldquosobrinhordquo um ldquovizinhordquo a um ldquovizinhordquo etc

Toda a estrutura assenta por assim dizer num pilar nuclear de referecircncia Natildeo interessa aqui ser

muito exaustivo mas o que estaacute em causa na estrutura de Hieacuterocles eacute sucintamente o seguinte

Por uma parte parece estar em jogo o terminus ad quem de um estado de absoluta natildeo-neutralidade

ou de absoluta natildeo-indiferenccedila que tem em A (no αὐτός no proacuteprio no si-mesmo etc) o ponto de

partida Por outra parte parece estar em jogo o modo da afectaccedilatildeo do terminus ad quem do estado de

absoluta natildeo-neutralidade ou de absoluta natildeo-indiferenccedila sobre A (modo de afectaccedilatildeo que se mani-

festa precisamente no ldquopapelrdquo assumido pai matildee filho mulher vizinho etc) Por uacuteltimo parece es-

tar em jogo um laccedilo que une A e B na medida em que a relaccedilatildeo entre A e B eacute uma relaccedilatildeo determi-

nante de A (do αὐτός do proacuteprio) Isto eacute na medida em que determina o modo como A eacute afectado pe-

la ou eacute sujeito da relaccedilatildeo a B justamente na medida em que A eacute filho dos pais pai de filhos esposo

de uma esposa vizinho de um vizinho etc

343

Foi precisamente algo assim que vimos atraacutes quando vimos que a identidade natildeo eacute vazia O que neste

passo estamos a ver eacute como o conteuacutedo da identidade corresponde a contracccedilotildees de interacccedilatildeo ou de

apropriaccedilatildeo ndash corresponde a essa equaccedilatildeo mediante a qual se faz corresponder B a A (se faz corres-

ponder algo a si se identifica algo consigo algo se torna seu etc) e a identidade de A (o que A pro-

priamente ldquoeacuterdquo o que potildee A a ser o que eacute etc) se determina a partir da relaccedilatildeo a B Por ldquoapropriaccedilatildeordquo

entende-se aqui lato sensu o ldquolaccedilordquo que torna proacuteprio (que torna algo de si proacuteprio de si que vincu-

la a si etc) Na verdade a noccedilatildeo de ldquoapropriaccedilatildeordquo corresponde ao preenchimento do vazio de identi-

dade em que se incorreria caso o fenoacutemeno da apropriaccedilatildeo natildeo ocorresse Eacute isso que de certo modo

estaacute em causa quando dizemos de algo que eacute apropriado ldquoApropriadordquo quer precisamente dizer que se

adequa a que se ajusta a que eacute conveniente a que eacute caracteriacutestico ou tiacutepico de etc Em Elements of

Ethics (I 29) Hieacuterocles fala precisamente neste sentido das proporccedilotildees apropriadas dos animais ndash

ie do facto de a cada espeacutecie animal corresponder um conjunto de proporccedilotildees que se adequa agrave es-

peacutecie que eacute caracteriacutestico dela de se viver de acordo com a constituiccedilatildeo que eacute proacutepria de si etc Ven-

do bem a noccedilatildeo de οἰκεῖον (apropriar no sentido que vimos) eacute precisamente o nuacutecleo da anaacutelise que

Hieacuterocles leva a cabo Isso mesmo fica claro desde logo no ponto de partida da discussatildeo (Τῆς ἠθικῆς

στοιχειώσεως ἀρχὴν ἀρίστην ἡγοῦμαι τὸν περὶ τοῦ πρώτου οἰκείου τῷ ζῴῳ λόγον ἀλλὰ θῶ οὐ χεῖρον

ἐνθυμηθῆναι μᾶλλον ἄνωθεν ἀρξάμενος ὁποία τις ἡ γένεσις τῶν ἐμψύχων καὶ τίνα τὰ πρῶτα

συμβαίνοντα τῷ ζῴῳ ndash I 1) e fica claro se se tiver em conta a reincidecircncia do termo ndash ou de uma das

suas variantes ndash ao longo de todo o tratado em vaacuterias das suas acepccedilotildees e sublinhando vaacuterios dos seus

aspectos II 8 II 27 VII 16 VII 45 IX 1 etc Ora o que eacute decisivo e interessa natildeo perder de vista

eacute que o αὐτός eacute tambeacutem um ldquoobjectordquo da estrutura desenhada por Hieacuterocles

Por uma parte isto quer dizer que tambeacutem haacute em relaccedilatildeo ao αὐτός algo como um prendimento um

laccedilo uma tensatildeo etc O proacuteprio A eacute terminus ad quem de um estado de absoluta natildeo-neutralidade ou

de absoluta natildeo-indiferenccedila que tem em A (no αὐτός no proacuteprio) o ponto de partida Em suma A (o

proacuteprio o αὐτός) estaacute votado a si mesmo Por outra parte no entanto esta relaccedilatildeo de A a si mesmo es-

taacute constituiacuteda de tal modo que a relaccedilatildeo ao αὐτός natildeo eacute apenas mais uma relaccedilatildeo distribuiacuteda pela es-

cala Vendo bem a relaccedilatildeo a si mesmo eacute o que constitui o centro da escala O αὐτός estaacute fundamen-

talmente vinculado a si mesmo (estaacute fundamentalmente votado a si dedicado a si etc) O que esta

precedecircncia do αὐτός em relaccedilatildeo a todos os outros ldquoobjectosrdquo nos mostra eacute que a dedicaccedilatildeo a si natildeo eacute

apenas mais uma dedicaccedilatildeo entre dedicaccedilotildees variadas mas corresponde na verdade agrave dedicaccedilatildeo su-

perlativa (agrave dedicaccedilatildeo no seu exponente maacuteximo agrave dedicaccedilatildeo que natildeo eacute passiacutevel de incremento etc)

Ora poderia ainda assim ser de tal modo que a relaccedilatildeo do αὐτός consigo mesmo fosse meramente a re-

laccedilatildeo com maior grau de proximidade de entre todas as relaccedilotildees que estatildeo constituiacutedas Nesse caso a

relaccedilatildeo ao αὐτός ainda que ocupando a posiccedilatildeo central nos ciacuterculos concecircntricos de Hieacuterocles seria

apenas mais uma relaccedilatildeo distribuiacuteda pela escala Acontece que natildeo eacute assim E este eacute o terceiro aspec-

to que nos interessa considerar

Vendo bem o que estaacute constituiacutedo eacute algo como uma presidecircncia do αὐτός em relaccedilatildeo aos restantes

ldquoobjectosrdquo da estrutura Isso resulta em que o conteuacutedo da sua identidade corresponde a contracccedilotildees

de interacccedilatildeo ou de apropriaccedilatildeo daquilo que lhe aparece na situaccedilatildeo que lhe corresponde Ou seja

aquilo que aparece estaacute fundamentalmente marcado por estar sobre a tensatildeo de um quesito identifica-

tivo ndash na foacutermula x (enquanto x eacute algo que aparece) identifica-me ou natildeo identifica-me de que mo-

do etc

344

Hieacuterocles estaacute a falar de οἰκείωσις (quer dizer da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva) e

da sua variaccedilatildeo de intensidade ndash qualquer coisa como um decrescendo do centro para a perife-

ria

Poreacutem vendo bem os ciacuterculos de Hieacuterocles natildeo exprimem apenas um descrescendo

mas dois

Por um lado expressam um decrescendo de proximidade ao proacuteprio ndash proximidade

que eacute maacutexima no centro e diminui na transiccedilatildeo para a periferia Por outro lado exprimem

tambeacutem o decrescendo de intensidade da οἰκείωσις E o decisivo eacute precisamente que os dois

correm em paralelo ndash melhor o que eacute decisivo eacute que um decrescendo procede do outro

Ou seja o que estaacute em jogo eacute o facto de o proacuteprio constituir o epicentro de uma explo-

satildeo de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que se propaga segundo o grau de proximidade (nota bene

de proximidade funcional) de tudo o mais ao αὐτός

Assim a presidecircncia do αὐτός eacute tal que ele ocupa uma posiccedilatildeo central na constitui-

ccedilatildeo de todos os restantes momentos da escala A relaccedilatildeo ao αὐτός eacute por um lado a) a condi-

ccedilatildeo de possibilidade de constituiccedilatildeo da proacutepria estrutura e por outro b) aquilo que determi-

na a posiccedilatildeo relativa de cada um dos componentes (de tudo o que aparece)

Por outras palavras a orientaccedilatildeo para o αὐτός eacute a forma primaacuteria que subjaz a qual-

quer momento da escala (constitui por assim dizer a ldquofonterdquo a partir da qual a escala ad-

quire a sua configuraccedilatildeo) De sorte que a dedicaccedilatildeo ao que quer que seja eacute um desdobramen-

to da dedicaccedilatildeo a si Isto eacute a relaccedilatildeo ao αὐτός submete todas as outras a um momento (um

componente um derivado etc) dessa mesma relaccedilatildeo

Quer dizer cada ldquocoisardquo que aparece corresponde a uma variaccedilatildeo da relaccedilatildeo ao αὐτός

(ie corresponde agrave relaccedilatildeo ao αὐτός desdobrada em relaccedilatildeo com a ldquocoisardquo x relaccedilatildeo com a

ldquocoisardquo y relaccedilatildeo com a ldquocoisardquo z etc) A distribuiccedilatildeo dos diversos ldquoobjectosrdquo ao longo da

estrutura corresponde a uma distribuiccedilatildeo que tem por referecircncia o centro E isto de tal modo

que o centro eacute um centro organizador de todos os ldquoobjectosrdquo (do ldquolocalrdquo que lhes cabe na es-

trutura etc)

Por outras palavras a distribuiccedilatildeo montada a partir do αὐτός natildeo eacute uma distribuiccedilatildeo do

alheio mas eacute efectivamente uma distribuiccedilatildeo de si De tal modo que o que se encontra na

distribuiccedilatildeo e em cada um dos momentos dela eacute precisamente essa presenccedila do centro ou essa

presenccedila de uma ligaccedilatildeo ao centro (ie agrave ipseidade) Assim tudo o que aparece ndash tudo o que

345

eacute connosco ou para noacutes ndash depende da relaccedilatildeo a si eacute moldado pela forma dessa relaccedilatildeo e

ocupa uma funccedilatildeo correspondente a ela

Em suma o modo do aparecimento de tudo o que aparece estaacute marcado por estar fun-

dado nesta relaccedilatildeo O αὐτός molda a relaccedilatildeo entre si mesmo e qualquer ldquoobjectordquo de tal mo-

do que cada ldquoobjectordquo depende dessa relaccedilatildeo e estaacute marcado por ela

Mais tambeacutem as conexotildees que organizam os diferentes ldquoobjectosrdquo entre si dependem

justamente desta relaccedilatildeo ao αὐτός A relaccedilatildeo dos diferentes ldquoobjectosrdquo entre si estaacute marcada

pelo modo como cada um deles ldquoresponderdquo ao αὐτός (como se relaciona com ele como o

afecta etc) de tal modo que essa relaccedilatildeo ao αὐτός eacute um factor determinante da forma como

aparecem e da relaccedilatildeo dos ldquoobjectosrdquo entre si

E tudo isto de tal modo que a variaccedilatildeo da intensidade da οἰκείωσις ndash que resulta na

distribuiccedilatildeo pelos diversos patamares ndash depende da variaccedilatildeo de intensidade da ligaccedilatildeo ao

centro (ao αὐτός)

De tudo isto resulta a impossibilidade de aceder aos diferentes ldquoobjectosrdquo como se es-

ses estivessem horizontalmente nivelados (como se tivessem todos o mesmo peso como se

aparecessem todos com a mesma forccedila como se se encontrassem todos ao mesmo niacutevel etc)

Por outro lado poderia ser assim mas sem que isso afectasse de nenhum modo signifi-

cativo aquilo que aparece

Quer dizer uns ldquoobjectosrdquo estariam mais proacuteximos do centro de distribuiccedilatildeo (do αὐ-

τός do proacuteprio do si-mesmo etc) e ganhariam destaque por esse facto e outros estariam mais

afastados desse centro de distribuiccedilatildeo e perderiam destaque ou relevacircncia ndash mas de tudo isso

tal modo que essa distribuiccedilatildeo dos ldquoobjectosrdquo por diversos planos (mais ou menos proacuteximos

do centro mais ou menos relevantes etc) natildeo impediria que fossem considerados se assim se

pode dizer ldquotodos por igualrdquo (que de cada um deles se recolhesse a mesma quantidade de ldquoin-

formaccedilatildeordquo que fossem igualmente definidos igualmente niacutetidos etc)

Acontece que natildeo eacute assim

Tenha-se presente o que observaacutemos a respeito da anisotropia da acuidade

O iacutendice de importacircncia e o iacutendice de acuidade em causa na variaccedilatildeo de intensidade da

οἰκείωσις tecircm influecircncia sobre o outro De sorte que por um lado a distribuiccedilatildeo dos apresen-

tados (do que aparece) corresponde a uma diversidade de patamares de interesse ou de rele-

346

vacircncia e por outro essa distribuiccedilatildeo pelos diversos patamares tem efeitos quanto agrave variaccedilatildeo

de acuidade

Assim o que aparece (as ldquocoisasrdquo) varia quanto ao grau da sua definiccedilatildeo consoante a

sua posiccedilatildeo relativamente ao centro Ou seja algo que esteja mais proacuteximo do centro aparece

mais definido (mais niacutetido mais preciso etc) do que algo que esteja relegado para a periferia

da importacircncia

E de facto a variaccedilatildeo eacute tanto quantitativa quanto qualitativa

Em primeiro lugar pode dizer-se que a variaccedilatildeo eacute quantitativa em virtude de ela dizer

respeito ao cardinal das determinaccedilotildees que uma sondagem do ldquoobjectordquo pode identificar

Assim com o aumento da distacircncia os traccedilos definitoacuterios diminuem (ie haacute um deacutefi-

ce de definiccedilatildeo uma proporcional diminuiccedilatildeo das determinaccedilotildees etc) e inversamente com o

aumento da proximidade os traccedilos definitoacuterios aumentam (ie haacute um incremento de defini-

ccedilatildeo um proporcional aumento das determinaccedilotildees etc)

Em segundo lugar pode dizer-se que a variaccedilatildeo eacute qualitativa em virtude de ela dizer

respeito agrave eficaacutecia do acesso (na medida em que essa variaccedilatildeo tem influecircncia sobre a identifi-

caccedilatildeo que se produz)

Ora encurtando de razotildees o ponto que nos interessa considerar eacute o seguinte

A presidecircncia do αὐτός faz que a estrutura descrita por Hieacutercoles tenha a forma de

uma multiplicidade centrada na qual os diversos momentos (os diversos ldquoobjectosrdquo) surgem

como cercania do centro

Aliaacutes a complexidade da multiplicidade centrada aqui em causa eacute consideravelmente

maior do que se pode pensar a partir da imagem dos ciacuterculos concecircntricos tal como se acha

desenhada por Hieacuterocles Natildeo interessa analisar aqui este aspecto em todos os seus meandros

mas haacute um ponto a que importa estar particularmente atento

Mesmo que natildeo inclua qualquer claacuteusula expliacutecita sobre esta mateacuteria o modelo de

Hieacuterocles supotildee qualquer coisa como a simplicidade do seu centro Haacute uma multiplicidade de

ciacuterculos mas eles estatildeo todos montados em volta de um centro simples

Ou como podemos dizer traduzindo os ciacuterculos concecircntricos naquilo que se destinam

a exprimir haacute uma multiplicidade de posiccedilotildees funcionais (de coisas que aparecem definidas

pela sua posiccedilatildeo funcional em relaccedilatildeo agrave tensatildeo de natildeo-indiferenccedila por que se acha tomada a

ldquotestemunha globalrdquo do aparecimento ndash o nuacutecleo da ipseidade) Mas esta multiplicidade dos

347

functores que rodeiam e que interferem na tensatildeo de natildeo-indiferenccedila natildeo significa a comple-

xidade do proacuteprio nuacutecleo ou centro

Insistimos nessa complexidade e fomos mesmo ao ponto de falar da esfera da ipseida-

de como algo que em si mesmo corresponde a qualquer coisa como uma explosatildeo (um ldquobig

bangrdquo) que potildee de peacute todo o horizonte do si com a extraordinaacuteria dimensatildeo que eacute a sua Mas

aqui haacute que vincar uma propriedade desse fulcro do aparecimento que natildeo ficou suficiente-

mente desenhada e muito menos posta em relevo a partir do que vimos anteriormente

Essa propriedade eacute a que tem que ver com o facto de a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que

marca a ipseidade natildeo ser simples tambeacutem no sentido de corresponder a um feixe de muacutelti-

plas tensotildees de natildeo-indiferenccedila dirigidas a diferentes alvos Dito por outras palavras o pro-

grama gerundivo do si mesmo eacute um programa complexo que comporta muacuteltiplos fluxos de

natildeo-indiferenccedila

Natildeo se trata de seguir aqui esta complexidade ndash e tambeacutem natildeo se trata de averiguar ateacute

que ponto os diferentes fluxos de natildeo-indiferenccedila que compotildeem esse feixe satildeo completamente

independentes uns dos outros resultam da mesma fonte ou o contraacuterio

O que nos importa aqui sublinhar eacute que os fluxos de natildeo-indiferenccedila satildeo vaacuterios ndash e na

verdade bastante numerosos Adicionalmente importa que esses diversos fluxos que entram

na composiccedilatildeo do programa de si natildeo estatildeo de modo nenhum todos no mesmo peacute

Sucede em vez disso que tambeacutem eles compotildeem uma multiplicidade em tudo seme-

lhante agravequilo que se encontra desenhado no modelo dos ciacuterculos concecircntricos de Hieacuterocles

Ora tudo isto significa antes de mais qualquer coisa como uma composiccedilatildeo em re-

gime de fractal

Aquilo que na estrutura anteriormente descrita desempenha as funccedilotildees de centro tem

na verdade ele proacuteprio a composiccedilatildeo de um complexo de ciacuterculos concecircntricos

Os diferentes fluxos que compotildeem o feixe de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila estatildeo consti-

tuiacutedos de tal modo que uns satildeo muito mais centrais do que outros muito mais fortes e impor-

tantes do que os outros etc ndash de tal modo que a amplitude dessa variaccedilatildeo tambeacutem corres-

ponde a um complexo de ciacuterculos com um elevado cardinal de elementos

Mas por outro lado sendo assim isso significa que tambeacutem a proacutepria multiplicidade

de ciacuterculos anteriormente considerada ndash a multiplicidade dos functores (das ldquocoisasrdquo defini-

348

das pela forma como interferem no cumprimento ou incumprimento do ldquoprograma de sirdquo) ndash

natildeo tem a relativa simplicidade que marcava a descriccedilatildeo inicialmente feita

Com efeito se o centro (o centro do ldquoprograma de sirdquo) fosse simples haveria lugar pa-

ra um uacutenico complexo de ciacuterculos concecircntricos Mas como acabamos de vincar o programa eacute

complexo (e na verdade bastante complexo)

De sorte que as suas diferentes componentes do programa ndash os diferentes fluxos de

natildeo-indiferenccedila que dominam a ipseidade ndash datildeo lugar ao seu proacuteprio sistema de ciacuterculos con-

cecircntricos Assim onde antes figurava o complexo de ciacuterculos descrito por Hieacuterocles deve-se

desenhar uma multiplicidade de sistemas de ciacuterculos

O que isto significa entatildeo eacute que cada ldquocoisardquo (cada interveniente na ldquopeccedilardquo de si) se

define por uma determinada posiccedilatildeo funcional natildeo apenas em relaccedilatildeo a uma uacutenica tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila mas em relaccedilatildeo agraves muito diversas tensotildees de natildeo-indiferenccedila que fazem par-

te do programa de natildeo-indiferenccedila de que a ipseidade eacute portadora

Sendo assim aquilo que aparece corresponde na verdade a algo insusceptiacutevel de ser

adequadamente expresso no plano graacutefico corresponde a muacuteltiplos complexos de ciacuterculos

concecircntricos sobrepostos como se se tratasse de um sistema de forccedilas ndash com cada um desses

complexos de ciacuterculos a desempenhar o papel de uma forccedila desse sistema de forccedilas e cada

ldquocoisardquo que aparece a aparecer definida pelo efeito conjugado da posiccedilatildeo que ocupa nestes di-

ferentes complexos sobrepostos de ciacuterculos concecircntricos

Mas isto ainda natildeo eacute tudo

Com efeito o que caracteriza as diferentes componentes do ldquoprograma de sirdquo eacute o facto

de como vimos natildeo estarem em peacute de igualdade umas com as outras Eacute isso mesmo que estaacute

em causa quando se diz que o proacuteprio centro estaacute constituiacutedo como um complexo de ciacuterculos

concecircntricos

Mas isso natildeo significa apenas que cada um dos elementos do programa de si tem um

peso uma relevacircncia uma forccedila diferente etc Na verdade tambeacutem significa que o complexo

de ciacuterculos concecircntricos correspondentes agraves diversas posiccedilotildees funcionais relativas a cada um

dos elementos do ldquoprograma de sirdquo tem o peso a forccedila a relevacircncia etc de que se reveste o

proacuteprio elemento do ldquoprograma de sirdquo que constitui o seu centro

Por isso eacute com toda a propriedade que se pode falar aqui de algo semelhante agrave estrutu-

ra proacutepria de sistemas de forccedilas

349

Com efeito o ldquolugarrdquo de cada ldquocoisardquo na economia do que aparece natildeo depende ape-

nas das diferentes funccedilotildees que exerce em relaccedilatildeo aos diversos fluxos de natildeo-indiferenccedila do

ldquoprograma de sirdquo Depende tambeacutem da relaccedilatildeo de forccedilas entre os diversos fluxos em relaccedilatildeo

aos quais ocupa uma posiccedilatildeo relevante

Para o exprimir na linguagem de Hieacuterocles se o ldquolugarrdquo de uma ldquocoisardquo na economia

do que aparece a situa por exemplo no quarto ciacuterculo em relaccedilatildeo a um fluxo de natildeo-indife-

renccedila de peso decisivo essa coisa tem muito mais relevo do que uma outra que esteja no se-

gundo ciacuterculo em relaccedilatildeo a uma componente do programa de si com menos peso (e que estaacute

portanto em posiccedilatildeo secundaacuteria no complexo de ciacuterculos em que se articula o proacuteprio progra-

ma) etc

Isto tambeacutem ainda natildeo eacute tudo

Com efeito como vimos a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila por que se acha tomado o nuacutecleo

de si (a dedicaccedilatildeo a si mesmo) natildeo eacute apenas uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva (οἰκεί-

ωσις) mas tambeacutem ndash e com natildeo menor importacircncia ndash uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila negativa

(ἀλλοτρίωσις)

Os dois aspectos satildeo complementares ndash e satildeo indissociaacuteveis um do outro

Por um lado o programa do ldquosirdquo eacute sobretudo um programa de ldquorealizaccedilatildeordquo de majora-

ccedilatildeo de si ndash e nesse sentido em forte tensatildeo para a natildeo-indiferenccedila positiva

No entanto por outro lado isso natildeo impede que seja igualmente enraizada a tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila negativa a relaccedilatildeo com aquilo que se faz questatildeo de evitar aquilo a que se

tem relutacircncia a que se tem aversatildeo horror etc

Neste sentido em vez de haver apenas ciacuterculos concecircntricos de οἰκείωσις que eacute aquilo

que se acha propriamente considerado e descrito no pensamento de Hieacuterocles haacute tambeacutem so-

brepostos a eles (ou em coincidecircncia com eles) ciacuterculos de ἀλλοτρίωσις (ou de natildeo-indiferen-

ccedila negativa)

Quer dizer as ldquocoisasrdquo que aparecem natildeo surgem apenas a ocupar posiccedilotildees funcio-

nais relativamente a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva Algo de equivalente se passa tambeacutem

no que toca agrave natildeo-indiferenccedila negativa

Mais tal como no caso da natildeo-indiferenccedila positiva tambeacutem o seu oposto ndash ἀλλοτρί-

ωσις ndash eacute tudo menos simples (corresponde a tudo menos um uacutenico fluxo de tensatildeo) Tambeacutem

neste caso haacute qualquer coisa como um feixe uma multiplicidade de direcccedilotildees etc Ou para

350

usarmos a foacutermula a que recorremos atraacutes tambeacutem aqui acaba por se descobrir que o proacuteprio

centro encerra em si um complexo de ciacuterculos concecircntricos ndash pois natildeo soacute haacute diversos fluxos

de tensatildeo como entre eles uns satildeo mais centrais de maior peso do que os outros etc

De onde resulta finalmente que a mesma coisa pode ocupar diversas posiccedilotildees funcio-

nais em relaccedilatildeo a diversos componentes do programa de ἀλλοτρίωσις e acaba por ter uma

ldquoidentidade funcionalrdquo correspondente ao efeito conjugado ndash ao ldquosistema de forccedilasrdquo ndash desses

vaacuterios aspectos de acordo com a forma que atraacutes descrevemos

Assim se se quisesse exprimir graficamente o que estaacute aqui em causa agrave multiplicida-

de ldquofractalrdquo dos ciacuterculos concecircntricos da οἰκείωσις teria de se juntar a multiplicidade ldquofrac-

talrdquo dos ciacuterculos concecircntricos da ἀλλοτρίωσις A estrutura que daiacute resultaria (com um eleva-

do grau de complexidade) corresponde agravequilo que daacute forma ao que aparece no modo de aces-

so que nos corresponde

A raacutepida consideraccedilatildeo deste aspecto permite-nos completar o que dissemos sobre o

campo de possibilidades de si mesmo com que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a si e a estrutura

complexa do si enquanto ldquoantecipaccedilatildeordquo de si e projecto da totalidade de si a haver nos potildee

continuamente em ligaccedilatildeo

Quando descrevemos o campo das possibilidades de si insistimos no facto de estar po-

voado por uma multidatildeo de possibilidades muito diversas com tal amplitude que todos os

nossos percursos reais ou imaginaacuterios satildeo como movimentos dentro de um labirinto de ex-

traordinaacuterias dimensotildees de que soacute se conhecem ldquocorredoresrdquo soltos Essa descriccedilatildeo por mais

exacta que possa ser peca por incompleta

Com efeito esse campo de possibilidades estaacute de cada vez organizado como um cam-

po de οἰκείωσις (de possibilidades a que se estaacute ligado por tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva)

e um campo de ἀλλοτρίωσις Ou mais precisamente esse campo tem a estrutura complexa

que resulta da conjugaccedilatildeo de todos os elementos que passaacutemos em revista nesta secccedilatildeo

Por um lado o campo das possibilidades ldquopositivasrdquo estaacute por inerecircncia organizado

com estratificaccedilatildeo ou hierarquizaccedilatildeo de possibilidades ndash desde aquelas para que maxima-

mente se tende ateacute agravequelas que satildeo por assim dizer escassamente positivas Por outro lado

algo de equivalente se passa tambeacutem no campo das possibilidades negativas

Dito de outro modo o campo das possibilidades que a estrutura da ipseidade potildee de peacute

tem a estrutura complexa que ndash discretamente mas de forma niacutetida ndash encontramos descrita

num passo do Goacutergias de Platatildeo

351

O passo a que nos estamos a referir eacute esse extenso monoacutelogo (464b-466a) em que Soacute-

crates nos diz que a) temos sempre uma noccedilatildeo do que eacute melhor (que disciplinas trazem maior

vantagem) para o corpo e para a alma b) algumas disciplinas cumprem melhor do que outras

esse papel Inversamente poderiacuteamos dizer que a) temos sempre uma noccedilatildeo do que eacute pior pa-

ra o corpo e para a alma b) algumas disciplinas cumprem melhor do que outras esse papel

Ora vendo bem no passo em questatildeo chama-se a atenccedilatildeo para o facto de nos mover-

mos continuamente num terreno ao mesmo tempo marcado natildeo apenas por qualquer coisa de

equivalente agrave estrutura claacutessica da chamada ldquoPriamelrdquo (uma hierarquizaccedilatildeo daquilo para que

tendemos desde o superlativo absoluto o que fica imediatamente abaixo dele o que fica ime-

diatamente abaixo do que fica imediatamente abaixo dele e assim sucessivamente) mas tam-

beacutem pelo seu correspondente negativo (uma hierarquizaccedilatildeo daquilo que procuramos evitar

um superlativo absoluto negativo o que fica imediatamente abaixo dele o que fica imediata-

mente abaixo do que fica imediatamente abaixo dele e assim sucessivamente)109

E isto de tal modo que os dois domiacutenios (as duas hierarquias) natildeo constituem peccedilas se-

paradas (cada uma delas constituiacuteda independentemente da outra) mas satildeo expressotildees de uma

mesma compreensatildeo global do que importa ndash que pode variar quanto ao seu teor mas eacute cons-

tantemente relativa a esta estrutura formal da dupla ldquoPriamelrdquo positiva e negativa

Este ponto eacute importante para se perceber melhor a proacutepria estrutura do campo de pos-

sibilidade que descrevemos como um ldquolabirintordquo

O campo desta dupla ldquoPriamelrdquo natildeo estaacute constituiacutedo de tal modo que todos os degraus

da escala estejam preenchidos com titulares claramente conhecidos tatildeo-pouco sucede que se-

109

Sobre a noccedilatildeo de ldquoPriamelrdquo veja-se designadamente Dornseiff F Pindars Stil Berlim Weid-

mann 1921 paacuteg 57 e ss Kroumlhling W Die Priamel (Beispielreihung) als Stilmittel in der griech-

isch-roumlmischen Dichtung Greifsvald H Dalmeyer 1935 e Race W The classical priamel from Ho-

mer to Boethius Leiden EJ Brill 1982

Observe-se que o passo do Goacutergias a que fazemos referecircncia natildeo eacute um passo em que a questatildeo da

Priamel seja referida apenas de passagem sem qualquer ligaccedilatildeo com o resto do diaacutelogo Na verdade a

quecircstatildeo da Priamel positiva (a que corresponde qualquer coisa como uma Priamel positiva das τέχ-

νηαι) estaacute no centro do Goacutergias praticamente desde o iniacutecio A importacircncia do passo mencionado de-

ve-se agrave circunstacircncia de nele aparecer desenhada com nitidez a figura das duas Priameln (positiva e

negativa) na sua articulaccedilatildeo na complementariedade de que se revestem e na forma como a determi-

naccedilatildeo de uma e a determinaccedilatildeo da outra satildeo correlativas As duas Priameln (ou melhor o complexo

composto da Priamel positiva e da Priamel negativa) formam o sistema de orientaccedilatildeo e a ldquobuacutessolardquo da

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila de que a ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo eacute portadora

352

ja inteiramente niacutetida que posiccedilatildeo esta ou aquela possibilidade ocupa nessa dupla escala ou

qual o nexo de posiccedilatildeo comparativa entre estas ou aquelas possibilidades concretas

Isso eacute assim no que diz respeito ao ldquomeiordquo das duas escalas Mas eacute tambeacutem assim em

relaccedilatildeo aos seus extremos (quer dizer pode muito bem natildeo ser claro que eacute que corresponderia

mesmo ao ldquomelhor possiacutevelrdquo ou ao ldquopior possiacutevelrdquo)

Contudo nada disto (ie nada do que faz a nossa relaccedilatildeo com o campo de possibilida-

de de noacutes mesmos algo comparaacutevel agrave estrutura de constriccedilatildeo de um labirinto e agrave movimenta-

ccedilatildeo de quem estaacute preso num labirinto) impede que o campo de possibilidades do si-mesmo-a-

haver tenha sempre jaacute muito antes de se vir a conhecer a escala toda (e mesmo que nunca se

venha a conhecer a escala toda e que tudo o que se chegue a conhecer equivalha apenas a

fragmentos soltos etc) a forma da dupla ldquoPriamelrdquo para que Platatildeo chama a atenccedilatildeo no Goacuter-

gias

Para darmos conta da dupla estrutura correspondente agrave οἰκείωσις e agrave ἀλλοτρίωσις pre-

cisariacuteamos portanto de uma figura muito complexa Os ciacuterculos de Hieacuterocles como disse-

mos natildeo bastam para exprimir a complexidade dessa estrutura mas potildeem na pista daquilo que

ela teria de conseguir traduzir

Mas por outro lado importa ter presente que a estrutura da composiccedilatildeo dos diferentes

intervenientes da ldquopeccedilardquo de si natildeo eacute meramente uma estrutura de οἰκείωσις e ἀλλοτρίωσις so-

bretudo se entendermos essas noccedilotildees num sentido estrito e pensarmos em qualquer coisa co-

mo ldquolaccedilos afectivosrdquo etc

Vendo bem aqui haacute que pocircr a toacutenica no caraacutecter formal da descriccedilatildeo de Hieacuterocles

Os ciacuterculos descritos por Hieacuterocles natildeo formam apenas a estrutura de ldquolaccedilos afectivosrdquo

ndash como se se tratasse de uma propriedade especial dete tipo de fenoacutemenos

Na verdade formam o campo de tudo o que aparece enquanto tudo o que aparece tem

como dissemos o caraacutecter de ldquopersonagemrdquo da ldquopeccedilardquo de si com uma determinada forma de

interferecircncia na ldquopeccedilardquo

A categoria fundamental natildeo eacute portanto soacute a categoria de οἰκείωσιςἀλλοτρίωσις (com

tudo o que estaacute dupla tem de decisivo pois exprime a ideia de natildeo-indiferenccedila positiva e ne-

gativa) A categoria fundamental eacute tambeacutem uma categoria mais lata ndash a categoria da ldquointerfe-

recircnciardquo que cobre todas as formas de interferecircncia (em posiccedilatildeo adjuvante em posiccedilatildeo opo-

nente em forccedila neutra etc)

353

Quer dizer aquilo que Hieacuterocles desenha para a esfera de outrem e em relaccedilatildeo ao

campo de οἰκείωσις tem de ser transposto e alargado natildeo apenas para a esfera da ἀλλοτρίωσις

mas para o domiacutenio mais amplo (e na verdade total) de todas as formas de interferecircncia na

ldquopeccedilardquo de si mesmo (na tensatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente ao duplo superlativo de si

etc) Precisamente porque tecircm o caraacutecter de ldquopersonagensrdquo da ldquopeccedilardquo de si as ldquocoisasrdquo que

aparecem estatildeo todas dispostas em ciacuterculos como os de Hieacuterocles ndash ou como tambeacutem po-

demos dizer em complexos de orbitaccedilatildeo em torno do centro onde se ldquojogardquo a ldquopeccedilardquo

Haacute portanto intervenientes mais centrais e outros mais perifeacutericos haacute na verdade in-

tervenientes de primeira ordem de segunda ordem de terceira ordem de quarta ordem e as-

sim sucessivamente Os intervenientes mais importantes podem constituir centros de orbita-

ccedilatildeo proacuteprios E nada impede tambeacutem que aquilo que jaacute tem um caraacutecter perifeacuterico por ser

por exemplo uma personagem de segunda ordem desempenhe ainda assim o papel de cen-

tro relativamente a personagens ainda mais secundaacuterias

Mas sobretudo importa reter que ao falarmos aqui de ldquopersonagensrdquo estamos a usar

o termo ao mesmo tempo num sentido muito lato e num sentido muito estreito

Estamos a usar o termo num sentido lato porque natildeo nos referimos apenas agrave esfera de

outrem (a pessoas etc) mas a toda a espeacutecie de ldquoobjectosrdquo ndash na medida em que todos os ldquoob-

jectosrdquo (tudo o que aparece) intervecircm na ldquopeccedilardquo de si e ateacute pode acontecer que numa ldquopeccedilardquo

haja ldquocoisasrdquo com papeacuteis mais relevantes do que pessoas

Estamos a usar o termo num sentido estrito porque a noccedilatildeo de ldquopersonagemrdquo pode ser

ndash e em muitos casos eacute ndash usada sem qualquer circunscriccedilatildeo do acircmbito em que desempenham o

seu papel etc

Ora aqui esse acircmbito estaacute muito estritamente definido trata-se de ldquopersonagensrdquo da

ldquopeccedilardquo absoluta (da ldquopeccedilardquo de si da ldquopeccedilardquo da radical tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a si mesma

que marca a ldquotestemunha globalrdquo na sua relaccedilatildeo consigo) Ou seja trata-se de personagens do

interesse absoluto por si mesmo da demanda do superlativo no quadro de um campo de pos-

sibilidades com as caracteriacutesticas que se descreveram nas secccedilotildees anteriores

354

sect39

A vida como ldquoordquo objecto da auto-consciecircncia o modo como a auto-consciecircncia experimen-

ta a independecircncia da vida e o que aparece como manifestaccedilatildeo da vida em Hegel (Fenomenologia

do Espiacuterito IV B)

Os elementos entretanto reunidos jaacute permitem ir avanccedilando na resposta agrave pergunta em

que sentido e com que legitimidade se afirma que a experiecircncia eacute sempre experiecircncia da vi-

da Poreacutem o esforccedilo estaacute ainda incompleto Trata-se de seguida de reunir os elementos para

completar a resposta

Como veremos esta parte ainda em falta tem que ver a) com um outro sentido do ter-

mo ldquoexperiecircnciardquo e tambeacutem b) com um outro sentido do termo ldquovidardquo

Ora aqui como nos passos precedentes natildeo se trata apenas de explorar a polissemia

das palavras e de ldquoconstruirrdquo a partir delas ou sobre elas Ou seja natildeo se trata de glosas possiacute-

veis ao mote ldquoexperiecircncia da vidardquo Trata-se de fenoacutemenos articulados uns com os outros mas

diferentes uns dos outros que conjuntamente formam o complexo da experiecircncia o complexo

da vida e o complexo da ligaccedilatildeo que haacute entre ambas De tal modo que aquilo que agora pas-

saremos a tentar focar natildeo eacute de maneira nenhuma algo de alheio ao que acabamos de ver mas

um aspecto complementar dentro do quadro cuja composiccedilatildeo tentaacutemos delimitar e analisar

Para ganharmos a pista do que importa tentar focar no seguimento voltemos a Hegel e

ao capiacutetulo da Fenomenologia do Espiacuterito sobre a auto-consciecircncia ndash ou melhor a um aspecto

do que se desenha nesse capiacutetulo

O aspecto essencial que entatildeo foi deixado por considerar eacute o seguinte

Por um lado a auto-consciecircncia confronta-se com muitos ldquoobjectosrdquo distintos (com

muitas ldquocoisasrdquo distintas com a multiplicidade variada de tudo o que haacute etc)

Agrave partida a relaccedilatildeo com essa multiplicidade de ldquoobjectosrdquo parece natildeo ter quaisquer

outros intervenientes para laacute da auto-consciecircncia e de cada um dos objectos com que a auto-

consciecircncia se defronta Quer dizer parece natildeo haver qualquer factor de ldquomediaccedilatildeordquo entre au-

to-consciecircncia e qualquer um dos ldquoobjectosrdquo que aparecem

Neste sentido o contraste dos diversos ldquoobjectosrdquo entre si parece agrave partida resultar

sem mais a) do contraste dos diversos ldquoobjectosrdquo entre si e b) do contraste quanto agrave relaccedilatildeo

355

entre a auto-consciecircncia e cada um deles (do modo como cada um estaacute presente na auto-cons-

ciecircncia) Em suma parece haver uma relaccedilatildeo avulsa da auto-consciecircncia com cada ldquoobjectordquo

Por outro lado ainda assim Hegel fala de algo como ldquoordquo ldquoobjectordquo da auto-consciecircn-

cia

Ora esta possiacutevel contradiccedilatildeo entre os muacuteltiplos objectos com que a auto-consciecircncia

se confronta e o reconhecimento de que a auto-consciecircncia tem um uacutenico ldquoobjectordquo explica-se

se se tiver em atenccedilatildeo que Hegel estaacute a procurar mostrar que haacute uma identidade radical entre

a multiplicidade de ldquoobjectosrdquo (entre tudo o que aparece entre todas as ldquocoisasrdquo etc) Isto eacute

Hegel estaacute a procurar mostrar que todos os ldquoobjectosrdquo reportam no limite a um uacutenico ldquoob-

jectordquo e que eacute com esse ldquoobjectordquo ndash omni-englobante de toda a multiplicidade de ldquoobjectosrdquo ndash

que a auto-consciecircncia efectivamente se confronta

O que isto significa eacute que na tese de Hegel esses diversos ldquoobjectosrdquo com que a auto-

consciecircncia se defronta (a multiplicidade das ldquocoisasrdquo que haacute) satildeo na verdade derivados de

um uacutenico ldquoobjectordquo ndash e que portanto esse uacutenico ldquoobjectordquo serve de mediador entre a auto-

consciecircncia e cada um dos diversos ldquoobjectosrdquo

Hegel identifica esse ldquoobjectordquo diz a dado passo que a vida eacute o objecto da auto-

consciecircncia110

Note-se que Hegel natildeo estaacute a dizer que a ldquovidardquo eacute mais um ldquoobjectordquo com que a auto-

consciecircncia lida (mais uma ldquocoisardquo em relaccedilatildeo ao qual estaacute etc) Poderia ser assim Poderia

acontecer que entre a miriacuteade de ldquoobjectosrdquo com que a auto-consciecircncia lida se encontrasse o

objecto ldquovidardquo ndash caso no qual a ldquovidardquo seria a) um objecto distinto de todos os outros mas b)

que de certo modo estaria num plano de igualdade com todos os outros em relaccedilatildeo agrave auto-

consciecircncia

Ora na verdade quando Hegel diz que a vida eacute ldquoordquo ldquoobjectordquo com que a auto-cons-

ciecircncia lida isso quer dizer que o ldquoobjectordquo ldquovidardquo tem de certo modo prevalecircncia sobre os

restantes objectos Quer dizer em suma que o ldquoobjectordquo ldquovidardquo eacute um objecto que se destaca

110

ldquoDer Gegenstand welcher fuumlr das Selbstbewuszligtsein das Negative ist ist aber seinerseits fuumlr uns

oder an sich ebenso in sich zuruumlckgegangen als das Bewuszligtsein anderseits Er ist durch diese Reflex-

ion in sich Leben geworden Was das Selbstbewuszligtsein als seined von sich unterscheidet hat auch in-

sofern als es seined gesetzt ist nicht bloszlig die Weise der sinnlichen Gewiszligheit und der Wahrnehmung

an ihm sondern es ist in sich reflektiertes Sein und der Gegenstand der unmittelbaren Begierde ist ein

Lebendigesrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 2 paacuteg 117)

356

dos outros (preponderante em relaccedilatildeo aos outros do qual os outros dependem na sombra do

qual os outros estatildeo etc) justamente na medida em que a relaccedilatildeo da ldquovidardquo com os restantes

ldquoobjectosrdquo eacute uma relaccedilatildeo de subordinaccedilatildeo

Assim a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia com a vida prevalece sobre a relaccedilatildeo da auto-

consciecircncia com os diversos objectos ndash e isto na medida em que a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia

com os diversos objectos eacute mediada pela relaccedilatildeo da auto-consciecircncia com a vida

Isto eacute na medida em que ldquoordquo ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia eacute a vida a vida torna-se

como que o ldquofiltrordquo a partir do qual se acede a cada um dos restantes ldquoobjectosrdquo Ou como

tambeacutem poderiacuteamos dizer a vida tem ascendente sobre os restantes ldquoobjectosrdquo de tal modo

que os restantes ldquoobjectosrdquo satildeo ldquotingidosrdquo pela relaccedilatildeo primordial da auto-consciecircncia com o

seu ndash de certo modo uacutenico ndash ldquoobjectordquo

Para considerar tudo isto um pouco mais detidamente interessa reconsiderar a partir

destes desenvolvimentos alguns aspectos do que se viu numa secccedilatildeo anterior como forma de

lanccedilar o que se seguiraacute

Em primeiro lugar o que vimos foi que o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia (a vida) estaacute

marcado por radical heterogeneidade em relaccedilatildeo agrave auto-consciecircncia

Por um lado haacute de algum modo continuidade entre a auto-consciecircncia e a vida Se a

unidade de realidade eacute a auto-consciecircncia entatildeo a auto-consciecircncia abarca tudo o que aparece

(eacute o horizonte de aparecimento de tudo o que aparece etc de tal modo que o que aparece se

constitui em momento da unidade da realidade que eacute a auto-consciecircncia) De onde resulta que

a auto-consciecircncia tambeacutem abarca a vida

Por outro lado na identidade da auto-consciecircncia subsiste alteridade Assim o ldquoobjec-

tordquo da auto-consciecircncia (a vida) estaacute para a auto-consciecircncia como algo que natildeo se dissolve

nela como algo de alheio que resiste ou potildee em causa a identidade plena da auto-consciecircncia

(como algo que eacute nos termos que vimos o ldquonegativordquo da auto-consciecircncia)111

Isto quer dizer desde logo no seguimento daquilo que vimos duas coisas

111

ldquoDiese Einheit aber ist ebensosehr wie wir gesehen ihr Abstoszligen von sich selbst und dieser Be-

griff entzweit sich in den Gegensatz des Selbstbewuszligtseins und des Lebens jenes die Einheit fuumlr wel-

che die unendliche Einheit der Unterschiede ist dieses aber ist nur diese Einheit selbst so daszlig sie

nicht zugleich fuumlr sich selbst istrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 2 paacuteg 117)

357

Quer dizer em primeiro lugar que o papel da vida eacute antes de mais o de factor que

possibilita que a auto-consciecircncia se torne ciente de si (o factor decisivo que depotildee a auto-

consciecircncia numa relaccedilatildeo consigo proacutepria que potildee a auto-consciecircncia a considerar-se a si

proacutepria atenta agraves suas operaccedilotildees etc) A vida entendida como entidade que coage ou que co-

determina a auto-consciecircncia eacute condiccedilatildeo de possibilidade da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia con-

sigo mesma

Assim o entendimento da proacutepria vida como o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia (ie co-

mo isso de que a auto-consciecircncia radicalmente difere) produz entendimento sobre a auto-

consciecircncia ndash justamente enquanto a auto-consciecircncia se constitui em ldquoobjectordquo da sua proacute-

pria consideraccedilatildeo

Em segundo lugar e em simultacircneo o papel da vida eacute tambeacutem o de obstaacuteculo (aquilo

que impede que a auto-consciecircncia seja uma realidade completamente unificada iacutentegra ab-

soluta reinando sobre todos os seus momentos) Eacute isso que Hegel quer dizer quando faz refe-

recircncia ao facto de ldquoa vidardquo resistir

Quer dizer a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma estaacute perturbada por uma dis-

tacircncia relativamente a si (por uma natildeo-identidade consigo) induzida pela resistecircncia que a vi-

da lhe apotildee Ou dito inversamente a resistecircncia da vida introduz um factor de natildeo-plenitude

da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

Ou seja haacute algo como um atravessamento ou de intrusatildeo da vida na relaccedilatildeo entre a

auto-consciecircncia e si mesma E isto de tal modo que no acircmbito da auto-consciecircncia tanto a)

o ldquoobjectordquo ldquovidardquo estaacute originariamente constituiacutedo como algo que atravessa a auto-cons-

ciecircncia quanto b) o ldquoobjectordquo auto-consciecircncia estaacute originariamente constituiacutedo de si para

si como algo atravessado pela vida

Em suma e para recuperar os termos de Hegel a auto-consciecircncia experimenta a in-

dependecircncia da vida ndash ie experimenta a vida como algo que natildeo estaacute inteiramente submeti-

do agrave auto-consciecircncia sobre o qual a auto-consciecircncia natildeo reina etc

Pelo contraacuterio a irredutiacutevel independecircncia da vida manifesta-se no facto de cada um

de noacutes ndash enquanto cada um de noacutes eacute uma auto-consciecircncia ndash ter a vida atravessada (e tanto

358

quer dizer estar sujeito agraves suas determinaccedilotildees ser intrinsecamente dependente do que aparece

no curso do seu acontecimento etc)112

Ora isto natildeo eacute tudo

Como vimos o que estaacute expresso no conceito de ldquovidardquo ndash tal como Hegel o apresenta

e enquanto a vida eacute o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia ndash eacute que a vida eacute isso que eacute chamado a

preencher a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

Foi justamente este paradoxo que vimos atraacutes corresponder ao ldquoobjectordquo da auto-cons-

ciecircncia

Por um lado a vida (o objecto da auto-consciecircncia) eacute isso que natildeo deixa cada um de

noacutes ndash enquanto cada um de noacutes eacute uma auto-consciecircncia ndash cumpra o desejo de si (o desejo de

plenitude para que a auto-consciecircncia originalmente tende)

Neste primeiro sentido a vida eacute como tambeacutem vimos condiccedilatildeo de possibilidade da

constituiccedilatildeo de ldquodesejordquo (uma instacircncia de obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircncia que inibe a pleni-

tude da auto-consciecircncia um agente de interferecircncia na relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo

mesma enquanto a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma tende para a plenitude de si

mesma etc)

Contudo por outro lado a vida (o objecto da auto-consciecircncia) eacute condiccedilatildeo de possibi-

lidade de supressatildeo do desejo em cuja constituiccedilatildeo ela proacutepria colabora Na medida em que

se exige agrave relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma ndash enquanto estaacute a caminho de cumprir

o seu quesito de plenitude ndash que passe necessariamente pelo seu ldquoobjectordquo (pela vida) entatildeo o

ldquoobjectordquo constitui-se em condiccedilatildeo de possibilidade de supressatildeo do desejo113

Em suma a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma cumpre-se de facto no do-

miacutenio da vida

O que vimos foi que a auto-consciecircncia eacute preenchida pelo ldquoobjectordquo que possui (eacute

contraiacuteda por esse ldquoobjectordquo) e tem justamente a sua identidade formada a partir do seu objec-

to Sendo assim a tarefa da auto-consciecircncia passa por ldquodescobrirrdquo a situaccedilatildeo concreta em

112

ldquoDas Selbstbewuszligtsein welches schlechthin fuumlr sich ist und seinen Gegenstand unmittelbar mit

dem Charakter des Negativen bezeichnet oder zunaumlchst Begierde ist wird daher vielmehr die

Erfahrung der Selbstaumlndigkeit desselben machenrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 2 paacuteg 117)

113 ldquoDie Begierde und die in ihrer Befriedigung erreichte Gewiszligheit seiner selbst ist bedingt durch ihn

denn sie ist durch Aufheben dieses Anderen daszlig dies Aufheben sei muszlig dies Andere seinrdquo (Phaumlno-

menologie des Geistes B IV 3 paacuteg 121)

359

que daacute consigo (a vida com que se confronta as suas determinaccedilotildees o que aparece no curso

do seu acontecimento etc) e passa por tornar a vida com que se confronta em possibilidade

de soluccedilatildeo ou enriquecimento da relaccedilatildeo consigo mesma114

A tarefa da auto-consciecircncia passa por ldquodescobrirrdquo a situaccedilatildeo concreta em que daacute con-

sigo porque a) a vida (o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia) natildeo corresponde a uma uacutenica forma de

obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircncia (pelo contraacuterio assume uma imensa variedade de formas de

obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircncia) e tambeacutem porque b) a vida (o ldquoobjectordquo da auto-consciecircn-

cia) natildeo corresponde a uma uacutenica forma de preenchimento de identidade da auto-consciecircncia

(pelo contraacuterio assume uma imensa variedade de formas de preenchimento de identidade da

auto-consciecircncia)

Tudo isto aponta em suma para o seguinte

Se nos termos que vimos a plenitude da auto-consciecircncia (a totalidade de si a plena

identidade consigo a uma identidade que precisamente natildeo deixe nada de fora etc) corres-

ponde tanto ao ponto de partida quanto ao ponto de chegada da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia

consigo mesma entatildeo haver a vida enquanto resiste agrave identidade plena da auto-consciecircncia

(enquanto se atravessa na auto-consciecircncia) significa que a auto-consciecircncia daacute consigo mes-

ma desde sempre aqueacutem do ponto de partida e do ponto de chegada ndash e tanto assim que eacute jus-

tamente esse facto o que torna a auto-consciecircncia ciente de si mesma (o que faz a auto-cons-

ciecircncia virar-se sobre si mesma estabelecer uma relaccedilatildeo consigo mesma constituir-se em

ldquoobjectordquo de consideraccedilatildeo etc)

Ora no seguimento de tudo isto que vimos ateacute agora Hegel abre um caminho para

chegar agrave plenitude (agrave imediaticidade do puro indiferenciado ldquoeurdquo que eacute o primeiro objecto

para o dizer como ele) O caminho que Hegel propotildee eacute o caminho da cessaccedilatildeo da diferenccedila

distintiva

Vejamos um pouco melhor o que isto quer dizer

Haacute uma diferenccedila fundamental entre a auto-consciecircncia considerada a partir do angu-

lo do ponto de partida e a auto-consciecircncia considerada a partir do acircngulo do ponto de che-

114

ldquoDies andere Leben aber fuumlr welches die Gattung als solche und welches fuumlr sich selbst Gattung

ist das Selbstbewuszligtsein ist sich zunaumlchst nur als dieses einfache Wesen und hat sich als reines Ich

zum Gegenstande in seiner Erfahrung die nun zu betrachten ist wird sich ihm dieser abstrakte

Gegenstand bereichern und die Entfaltung erhalten welche wir an dem Leben gesehen habenrdquo

(Phaumlnomenologie des Geistes B IV 3 paacuteg 120)

360

gada A primeira corresponderia a isso a que se chamou uma ldquoimediaticidade pura indiferen-

ciadardquo ndash enquanto a segunda surge sempre jaacute atravessada pelo seu ldquoobjectordquo e como tal im-

plica um processo de recuperaccedilatildeo do estado de imediaticidade pura indiferenciada (um pro-

cesso de supressatildeo ou superaccedilatildeo do ldquoobjectordquo a caminho da plenitude) para que originaria-

mente tende115

Eacute a auto-consciecircncia considerada a partir do acircngulo do ponto de chegada que estaacute em

causa quando Hegel fala da auto-consciecircncia como ldquodesejordquo O que nos diz eacute que a certeza de

si da auto-consciecircncia adviria da superaccedilatildeo do outro que se apresenta agrave auto-consciecircncia co-

mo vida independente Quer dizer por ldquodesejordquo quer Hegel fazer entender a anulaccedilatildeo do ou-

tro enquanto outro (a sua anulaccedilatildeo a sua reduccedilatildeo a nada etc) A essa anulaccedilatildeo do outro en-

quanto outro (ie agrave satisfaccedilatildeo do desejo) corresponderia a recuperaccedilatildeo da plenitude (ie a

certeza de si)116

Acontece no entanto que natildeo eacute possiacutevel suprimir a negatividade (ou a independecircncia)

do ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia (da vida)

Isto eacute a proacutepria satisfaccedilatildeo do desejo gera a experiecircncia da independecircncia do objecto

Natildeo eacute soacute o desejo que tem o ldquoobjectordquo como condiccedilatildeo de possibilidade esse tambeacutem eacute o caso

da certeza de si A recuperaccedilatildeo da plenitude (ie a certeza de si) estaacute condicionada pela pre-

senccedila do ldquoobjectordquo e passa precisamente pela superaccedilatildeo dele

Mas se eacute assim entatildeo natildeo estaacute anulada a relaccedilatildeo ldquonegativardquo entre a auto-consciecircncia e

o ldquoobjectordquo e a auto-consciecircncia natildeo o consegue superar O que faz que tanto ldquoobjectordquo como

ldquodesejordquo sejam insusceptiacuteveis de anulaccedilatildeo117

115

ldquoIndem von der ersten unmittelbaren Einheit ausgegangen und durch die Momente der Gestaltung

und des Prozesses hindurch zur Einheit dieser beiden Momente und damit wieder zur ersten einfachen

Substanz zuruumlckgekehrt wird so ist diese reflektierte Einheit eine andere als die ersterdquo (Phaumlnomeno-

logie des Geistes B IV 3 paacuteg 120)

116 ldquoDer Nichtigkeit dieses Anderen gewiszlig setzt es fuumlr sich dieselbe als seine Wahrheit vernichtet den

selbstaumlndigen Gegenstand und gibt sich dadurch die Gewiszligheit seiner selbst als wahre Gewiszligheit als

solche welche ihm selbst auf gegenstaumlndliche Weise geworden istrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B

IV 3 paacuteg 120)

117 ldquoDie Begierde und die in ihrer Befriedigung erreichte Gewiszligheit seiner selbst ist bedingt durch ihn

denn sie ist durch Aufheben dieses Anderen daszlig dies Aufheben sei muszlig dies Andere sein Das

Selbstbewuszligtsein vermag also durch seine negative Beziehung ihn nicht aufzuheben es erzeugt ihn

darum vielmehr wieder sowie die Begierderdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 3 paacuteg 121)

361

Isto poderia colocar a auto-consciecircncia numa posiccedilatildeo insustentaacutevel ndash numa posiccedilatildeo de

absoluta incapacidade de recuperar a plenitude (a certeza de si) Acontece que segundo He-

gel natildeo eacute assim E natildeo eacute assim pelo seguinte o que Hegel nos diz eacute que a a auto-consciecircncia

pode sobrevir sobre a independecircncia do seu ldquoobjectordquo (da vida) pela cessaccedilatildeo da diferenccedila

distintiva

Aquilo que temos visto eacute uma dupla irredutibilidade a irredutibilidade da auto-cons-

ciecircncia tem correlato na irredutibilidade do seu objecto Assim a satisfaccedilatildeo do desejo corres-

ponde agrave reflexatildeo da auto-consciecircncia sobre si mesma na medida em que anula ou suprime o

seu ldquoobjectordquo mas ao mesmo tempo o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia conserva justamente

enquanto eacute condiccedilatildeo de possibilidade da sua proacutepria superaccedilatildeo a sua independecircncia

Ora o que daqui resulta eacute que a certeza de si eacute na verdade como Hegel diz um des-

dobramento da auto-consciecircncia

Isto significa que o que resulta do processo de tentativa de consecuccedilatildeo da plenitude de

si em que a auto-consciecircncia sempre daacute consigo jaacute natildeo corresponde a uma plenitude no senti-

do do ponto de partida mas a uma plenitude no sentido do ponto de chegada ndash mas de tal mo-

do que o ponto de chegada natildeo corresponde exactamente ao ponto de partida e de facto cor-

responde a um desdobramento do ponto de partida

Em suma o que Hegel estaacute a propor eacute a possibilidade de uma auto-consciecircncia viva

Melhor o que estaacute a propor eacute a consecuccedilatildeo da plenitude da auto-consciecircncia atraveacutes do seu

ldquoobjectordquo

Neste sentido a plenitude da auto-consciecircncia seria adquirida por recurso agrave vida cor-

responderia agrave vida estaria com ela em uniacutessono ndash de tal modo que a alteridade ou a diferenccedila

(o ldquonegativordquo isso mesmo que suscita o desejo e que constitui o ldquoobjectordquo em ldquoobjectordquo) esta-

ria reduzida a ldquonadardquo

Por outras palavras o que estaacute em causa eacute uma fusatildeo ndash uma fusatildeo de tal natureza que

a identidade da auto-consciecircncia eacute a vida e a identidade da vida eacute a auto-consciecircncia118

118

ldquoAber die Wahrheit derselben ist vielmehr die gedoppelte Reflexion die Verdoppelung des Selbst-

bewuszligtseins Es ist ein Gegenstand fuumlr das Bewuszligtsein welcher an sich selbst sein Anderssein oder

den Unterschied als einen nichtigen setzt und darin selbstaumlndig ist Die unterschiedene nur lebendige

Gestalt hebt wohl im Prozesse des Lebens selbst auch ihre Selbstaumlndigkeit auf aber sie houmlrt mit ihrem

Unterschiede auf zu sein was sie ist der Gegenstand des Selbstbewuszligtseins ist aber ebenso selbstaumln-

dig in dieser Negativitaumlt seiner selbst und damit ist er fuumlr sich selbst Gattung allgemeine Fluumlssigkeit

362

Visto este primeiro aspecto interessa considerar um outro que eacute decisivo para se com-

preender o modo como aparece o que aparece e a relaccedilatildeo entre a auto-consciecircncia aquilo que

aparece e a vida

Na terminologia de Hegel a ldquovidardquo eacute entendida como allgemeine Fluumlssigkeit ndash como

fluxo ou o fluido universal A estrutura fundamental da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia com a ldquovi-

dardquo tem fundamentalmente o caraacutecter de uma relaccedilatildeo com a allgemeine Fluumlssigkeit que a ldquovi-

dardquo propriamente ldquoeacuterdquo119

Este fluxo ou fluido universal caracteriza-se antes de tudo o mais pela circunstacircncia

de corresponder precisamente a uma infinitude de instacircncias ou determinaccedilotildees Ou seja o que

Hegel diz eacute que a auto-consciecircncia que noacutes sempre jaacute somos eacute uma espeacutecie de ldquopraia totalrdquo

Vendo bem tal como Hegel a define a vida corresponde a um acontecimento de aber-

tura com tal dimensatildeo que abre de facto a todas as ldquocoisasrdquo (que nada parece ficar de fora

que inclui tudo o que apareceu aparece e apareceraacute que agrega todos os ldquoobjectosrdquo etc) Eacute

isto que Hegel pretende sublinhar quando diz que a vida eacute ldquoordquo ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia

De facto a vida inclui ou agrega no seu acircmbito a totalidade dos ldquoobjectosrdquo (das ldquocoisasrdquo do

que aparece do que ldquohaacuterdquo etc)

Neste sentido o que estaacute em causa neste passo da Fenomenologia eacute a compreensatildeo da

ldquovidardquo como um ldquoobjectordquo com uma totalidade ilimitada Essa ilimitaccedilatildeo do horizonte de

abertura tem que ver com o caraacutecter indiferenciado do ldquoobjectordquo ldquovidardquo ndash enquanto o ldquoobjec-

tordquo ldquovidardquo corresponde a uma fonte infinita da possibilidade de instacircncias ou de determina-

ccedilotildees (corresponde a uma fonte infinita de ldquoobjectosrdquo de ldquocoisasrdquo etc)

Poderiacuteamos resumir o que estamos a ver dizendo o seguinte tudo o que aparece eacute per-

cebido como manifestaccedilatildeo ou como momento de uma espeacutecie de forccedila uacutenica

in der Eigenheit seiner Absonderung er ist lebendiges Selbstbewuszligtseinrdquo (Phaumlnomenologie des Geis-

tes B IV 3 paacuteg 121-2)

119 ldquoDas Leben in dem allgemeinen fluumlssigen Medium ein ruhiges Auseinanderlegen des Gestaltens

wird eben dadurch zur Bewegung derselben oder zum Leben als Prozeszligrdquo (Phaumlnomenologie des Geis-

tes B IV 2 paacuteg 119)

ldquoDieser ganze Kreislauf macht das Leben aus weder das was zuerst ausgesprochen wird die un-

mittelbare Kontinuitaumlt und Gediegenheit seines Wesens noch die bestehende Gestalt und das fuumlr sich

seiende Diskrete noch der reine Prozeszlig derselben noch auch das einfache Zusammenfassen dieser

Momente sondern das sich entwickelnde und seine Entwicklung aufloumlsende und in dieser Bewegung

sich einfach erhaltende Ganzerdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 2 paacuteg 120)

363

O que isto quer dizer eacute que tudo aquilo que aparece tem por determinaccedilatildeo fundamental

o facto de ser ldquovidardquo (de fazer parte da vida de ser um aspecto ou um momento da vida etc)

Neste sentido podemos dizer que ldquovidardquo corresponde a uma determinaccedilatildeo fundamental do

que aparece

Note-se que isto natildeo quer dizer que se esteja ciente disso que isso nos apareccedila expres-

samente como distinto etc

Vendo bem a relaccedilatildeo com a vida (enquanto determinaccedilatildeo fundamental do que apare-

ce) estaacute como que ldquodesaparecidardquo por traacutes do proacuteprio lidar com os ldquoobjectosrdquo individuais Ou

seja o lidar com cada um deles ateacute pode fazer perder de vista que soacute se lida com eles enquan-

to eles satildeo parte da vida e na medida em que satildeo parte da vida

Ou seja se na verdade a auto-consciecircncia ldquovecircrdquo de cada vez aquilo com que lida como

uma manifestaccedilatildeo da vida isso natildeo significa poreacutem que tenha produzida uma clara identifi-

caccedilatildeo de qual eacute a identidade da ldquovidardquo

Na verdade aquilo que podemos dizer neste ponto seguindo os passos de Hegel so-

bre a identidade da vida eacute que ela corresponde a um momento da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia

consigo mesma posta sob uma tensatildeo de plenitude (adquire as suas determinaccedilotildees sempre jaacute

no meio do tracircnsito do desejo de plenitude da auto-consciecircncia) ndash assenta sobre uma expecta-

tiva de preenchimento dessa relaccedilatildeo

Isto eacute o que podemos dizer eacute que a identidade da vida estaacute fundamentalmente marcada

pelo facto de se inscrever num ldquoterritoacuteriordquo pressionado pelo desejo

Assim o que determina a identidade da vida eacute o facto de ela poder ou natildeo cumprir a

expectativa de preenchimento da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma (ie resultar ou

natildeo na supressatildeo do desejo de que modo etc)

Mais se na verdade a auto-consciecircncia ldquovecircrdquo de cada vez aquilo com que lida como

uma manifestaccedilatildeo da vida isso natildeo significa que perceba efectivamente cada uma das ldquocoi-

sasrdquo que aparece como manifestaccedilatildeo dessa identidade (que perceba efectivamente de que mo-

do cada ldquocoisardquo eacute da vida)

Pelo contraacuterio como vimos cada uma das ldquocoisasrdquo que tem lugar na ldquovidardquo pode mui-

to bem ser compreendida como totalmente autoacutenoma em relaccedilatildeo a todas as outras (escapan-

do totalmente ndash ou ficando como que numa posiccedilatildeo de fundo ndash o facto de que haacute uma identi-

dade comum que as engloba)

364

Contudo o que Hegel nos diz eacute que seja como for tudo o que aparece (cada ldquocoisardquo

cada ldquoobjectordquo etc) transporta consigo como sua determinaccedilatildeo (como sua qualidade pro-

priedade etc) o facto de fazer parte da vida (de ser parte da identidade vida)

Por outras palavras a determinaccedilatildeo da relaccedilatildeo com o ldquoobjectordquo (com a vida) eacute uma

outra determinaccedilatildeo de que os ldquoobjectosrdquo (o que aparece as ldquocoisasrdquo etc) satildeo compostos A

relaccedilatildeo com as ldquocoisasrdquo tem um caraacutecter tal que eacute uma relaccedilatildeo com uma entidade protagonis-

ta unificadora das ldquocoisasrdquo e de que as ldquocoisasrdquo satildeo percebidas como instacircncias ou como de-

terminaccedilotildees

O que daqui resulta eacute algo que sempre de novo a Fenomenologia do Espiacuterito potildee em

evidecircncia a saber a relaccedilatildeo entre a unidade e a multiplicidade

O que vemos ao analisar o que nos aparece eacute algo como um conjunto avulso de ldquocoi-

sasrdquo (um livro uma caneta uma janela etc) E o que Hegel estaacute a procurar vincar eacute o seguin-

te ainda que a auto-consciecircncia se relacione natildeo com um conjunto avulso de ldquocoisasrdquo mas

com a ldquovidardquo (e perceba os objectos como manifestaccedilotildees de a vida) isso natildeo significa que a

auto-consciecircncia natildeo veja as ldquocoisasrdquo como independentes

Ou seja Hegel estaacute precisamente a fazer notar que haacute uma dualidade na marcaccedilatildeo do

ldquoconteuacutedordquo da ldquovidardquo ndash que a vida eacute ao mesmo tempo uma uacutenica ldquopersonagemrdquo (a forccedila de

que tudo no objecto da auto-consciecircncia eacute expressatildeo) e uma multiplicidade delas (mas isto de

tal modo que ao mesmo tempo a multiplicidade das expressotildees da vida eacute percebida como a

multiplicidade de entidades independentes ndash ie que satildeo plenamente de si mesmas)120

Assim sendo a relaccedilatildeo com as ldquocoisasrdquo natildeo tem um caraacutecter avulso (ie natildeo eacute uma

relaccedilatildeo desgarrada com o objecto A com o objecto B com o objecto C e assim sucessivamen-

te) na medida em que os objectos satildeo parte da vida A relaccedilatildeo com os objectos eacute portanto

uma relaccedilatildeo marcada por um viacutenculo agrave unidade total ndash em virtude do qual cada objecto que

aparece eacute percebido como manifestaccedilatildeo de ldquoa vidardquo121

120

ldquoDie Unterschiede sind aber an diesem einfachen allgemeinen Medium ebensosehr als Unterschie-

de denn diese allgemeine Fluumlssigkeit hat ihre negative Natur nur indem sie ein Aufheben derselben

ist aber sie kann die Unterschiedenen nicht aufheben wenn sie nicht ein Bestehen haben Eben diese

Fluumlssigkeit ist als die sichselbstgleiche Selbstaumlndigkeit selbst das Bestehen oder die Substanz der-

selben worin sie also als unterschiedene Glieder und fuumlrsichseiende Teile sindrdquo (Phaumlnomenologie des

Geistes B IV 2 paacuteg 118)

121 ldquoDie selbstaumlndigen Glieder sind fuumlr sich dieses Fuumlrsichsein ist aber vielmehr ebenso unmittelbar

ihre Reflexion in die Einheit als diese Einheit die Entzweiung in die selbstaumlndigen Gestalten ist Die

365

Isto permite-nos rever o que vimos atraacutes

O que vimos foi que a auto-consciecircncia se confronta com muitos ldquoobjectosrdquo distintos

(com muitas ldquocoisasrdquo distintas com a multiplicidade variada de tudo o que haacute etc) e agrave parti-

da a relaccedilatildeo com essa multiplicidade de ldquoobjectosrdquo parece natildeo ter quaisquer outros interve-

nientes para laacute da auto-consciecircncia e de cada um dos objectos com que a auto-consciecircncia se

defronta

O que estamos a ver agora eacute justamente o oposto

Se a estrutura do acontecimento da auto-consciecircncia eacute uma estrutura de ldquointerlocu-

ccedilatildeordquo ela natildeo eacute uma estrutura que comporte uma multiplicidade de interlocutores porque todos

os diversos interlocutores satildeo percebidos como manifestaccedilotildees ou como momentos da forccedila

uacutenica que eacute a vida Isto eacute a vida aparece como factor de mediaccedilatildeo entre a auto-consciecircncia e

qualquer um dos ldquoobjectosrdquo que aparecem122

Neste sentido o contraste dos diversos ldquoobjectosrdquo (as diversas ldquocoisasrdquo) entre si resul-

ta a) do contraste dos diversos ldquoobjectosrdquo entre si b) do contraste entre a vida e cada um deles

(do modo como cada um estaacute presente na vida) c) do contraste entre a auto-consciecircncia e a

vida (do modo como a vida se atravessa na auto-consciecircncia)

Por outras palavras tudo o que aparece estaacute imerso num momento fundamental do

modo como a vida se atravessa na auto-consciecircncia (ie do modo como a vida obsta ndash se

opotildee ou pelo contraacuterio colabora com ndash o desejo) De sorte que tudo o que aparece se consti-

tui em ldquoobjectordquo (em ldquocoisardquo etc) apenas enquanto momento da vida (ou seja enquanto mo-

mento de um uacutenico e global contraponto do desejo)

Assim cada uma das ldquocoisasrdquo tanto estaacute em referecircncia e adquire as suas propriedades

como vimos atraacutes em referecircncia ao desejo em que de cada vez estatildeo (enquanto satildeo partes

Einheit ist entzweit weil sie absolut negative oder unendliche Einheit ist und weil sie das Bestehen

ist so hat auch der Unterschied Selbstaumlndigkeit nur an ihr Diese Selbstaumlndigkeit der Gestalt erscheint

als ein Bestimmtes fuumlr Anderes denn sie ist ein Entzweites und das Aufheben der Entzweiung ge-

schieht insofern durch ein Anderes Aber es ist ebensosehr an ihr selbst denn eben jene Fluumlssigkeit ist

die Substanz der selbstaumlndigen Gestalten diese Substanz aber ist unendlich die Gestalt ist darum in

ihrem Bestehen selbst die Entzweiung oder das Aufheben ihres Fuumlrsichseinsrdquo (Phaumlnomenologie des

Geistes B IV 2 paacuteg 118)

122 ldquoDie einfache Substanz des Lebens also ist die Entzweiung ihrer selbst in Gestalten und zugleich

die Aufloumlsung dieser bestehenden Unterschiede und die Aufloumlsung der Entzweiung ist ebensosehr

Ent-zweien oder ein Gliedernrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 2 paacuteg 119)

366

ldquoepisoacutediosrdquo singulares peripeacutecias desse desejo etc) como estaacute em referecircncia e adquire as

suas propriedades em referecircncia agrave vida (ao contraponto do desejo) de que de cada vez faz par-

te (enquanto satildeo parte ldquoepisoacutediosrdquo peripeacutecias etc desse contraponto uacutenico e global do dese-

jo)

Podemos dizer que as ldquocoisasrdquo aparecem no curso do nosso lidar com elas consoante

intervecircm deste ou daquele modo no curso do desejo (consoante se contrapotildeem ao desejo deste

ou daquele modo) consoante o significado ou a relevacircncia de que se revestem enquanto con-

trapontos do desejo etc mas tambeacutem consoante a unidade global do contraponto do desejo

em que sempre se integram

Daqui decorre que o ldquomapardquo das ldquocoisasrdquo muda consoante a vida em que se estaacute ndash con-

soante a vida em que se estaacute cumpra ou natildeo a expectativa de preenchimento da relaccedilatildeo da au-

to-consciecircncia consigo mesma consoante resulte ou natildeo na supressatildeo do desejo consoante o

modo como interfere etc

Vendo bem pode entender-se este ldquojogordquo entre a multiplicidade e a unidade ndash do lado

daquilo que aparece (sc do objecto) ndash de duas maneiras

Por um lado podem entender-se as palavras de Hegel como se estivessem apenas a

chamar a atenccedilatildeo para o facto de haver a) qualquer coisa como o ldquolugar funcionalrdquo do objecto

(do negativo da consciecircncia como algo de constante e invariaacutevel a que a auto-consciecircncia

estaacute presa ou que a auto-consciecircncia tem por inerecircncia como correlato) b) uma multiplicidade

de determinaccedilotildees que vecircm ocupar esse lugar funcional ndash determinaccedilotildees essas que satildeo intermi-

tentes como se o referido lugar funcional tivesse o caraacutecter de um ldquopalcordquo e as diferentes de-

terminaccedilotildees (quer dizer o objecto na sua multiplicidade e variabilidade) entrassem e saiacutessem

no ldquopalcordquo (entrassem e saiacutessem de ldquocenardquo etc)

Por outro lado parece claro que Hegel estaacute a apontar para mais do que isso ndash e que haacute

qualquer coisa que para o dizer de forma econoacutemica tem que ver com ldquoespinosismordquo

Usamos aqui o termo ldquoespinosismordquo numa acepccedilatildeo muito geneacuterica para designar a

concepccedilatildeo de tudo o que aparece (sc de tudo quanto haacute) como ldquoatributosrdquo e ldquomodosrdquo de uma

367

uacutenica realidade fundamental (uma uacutenica ldquosubstacircnciardquo) que subjaz a tudo e se manifesta em tu-

do123

A circunstacircncia de deixarmos em aberto na sua caracterizaccedilatildeo se se trata de uma uacuteni-

ca ldquosubstacircnciardquo subjacente a tudo quanto haacute ou a tudo quanto aparece tem que a possibilidade

de o ldquoespinosismordquo tomar a forma de uma uacutenica realidade ou de uma uacutenica consciecircncia subs-

tante

Mas o ponto decisivo na descriccedilatildeo de Hegel que aqui estamos a seguir estaacute em que natildeo

se trata apenas de tudo ser uma realidade da auto-consciecircncia (que nessa medida desempenha

as funccedilotildees de ἔν substante) Isso eacute o que jaacute estaacute em jogo desde o princiacutepio do capiacutetulo sobre a

auto-consciecircncia Nos passos que estamos a considerar estaacute em jogo o facto de para aleacutem

disso haver tambeacutem algo correspondente ao ldquoespinosismordquo na conformaccedilatildeo ou na organiza-

ccedilatildeo do proacuteprio objecto da consciecircncia enquanto objecto da consciecircncia (reduzido agrave condiccedilatildeo

de objecto da consciecircncia ndash ie como Hegel tambeacutem diz agrave condiccedilatildeo de Leben)

123

Sobre o conceito de ldquoespinosismordquo ver Kierkegaard S Diapsalmata Lisboa Assiacuterio amp Alvim

2011 paacuteg106 e seguintes ou Silva N Identidade e vida em Virginia Woolf uma anaacutelise da expres-

satildeo literaacuteria de um problema filosoacutefico paacutegs 78 271-2 298-9 354-6 416 e 503

A este respeito importa-nos acentuar em especial dois aspectos Em primeiro lugar como eacute observado

tanto por Carvalho quanto por Silva trata-se de um fenoacutemeno que molda a estrutura do aparecimento

em que estamos constituiacutedos e que tem lugar a) independentemente de se ter qualquer notiacutecia de Espi-

nosa e das suas concepccedilotildees e do que possa corresponder agrave noccedilatildeo de ldquoespinosismordquo b) tambeacutem eacute inde-

pendente de se ter qualquer noccedilatildeo de ldquosubstacircnciardquo e c) ateacute independentemente de se ter qualquer cons-

ciecircncia niacutetida ou distintiva de que o aparecimento eacute constantemente referido a este foco e tem a forma

correspondente agravequilo a que chamamos ldquoespinosismordquo O ponto decisivo eacute que muito antes de qual-

quer relaccedilatildeo com Espinosa (ou ateacute mesmo muito antes de Espinosa) o proacuteprio aparecer do que apare-

ce agrave ldquotestemunha globalrdquo jaacute tem a forma desse ldquoespinosismo vitalrdquo ou desse ldquoespinosismo afectivordquo

Em segundo lugar o fenoacutemeno do ldquoespinosismo vitalrdquo tem de ser visto agrave luz da nossa relaccedilatildeo com o

caraacutecter gerundivo do aparecimento ndash e em especial com a pressatildeo gerundiva dirigida ao superlativo

(no duplo sentido do termo) Como vimos tudo o que aparece estaacute decisivamente afectado e moldado

por esta pressatildeo gerundiva ndash e isso aplica-se tambeacutem agrave peculiar organizaccedilatildeo da multiplicidade do que

aparece (sc agrave peculiar ldquosubstacircnciardquo do que aparece) que estaacute em causa quando se fala de ldquoespinosismo

vitalrdquo Considerar o fenoacutemeno fora da sua relaccedilatildeo com o caraacutecter gerundivo (e tanto quer dizer votado

ao superlativo) do meio em que se produz eacute o mesmo que observar um peixe fora de aacutegua E um dos

grandes meacuteritos da anaacutelise de Hegel (a supor que a anaacutelise de Hegel tem efectivamente que ver com is-

to que aqui estamos a tentar focar) eacute precisamente o facto de estabelecer com nitidez este nexo entre

por um lado a pressatildeo do desejo que inere agrave auto-consciecircncia e que estaacute votado agrave plenitude de si e por

outro lado a unidade da allgemeine Fluumlssigkeit a que eacute atribuiacuteda a responsabilidade de tudo o objecto

da auto-consciecircncia)

368

Por outras palavras natildeo se trata do ἓν καὶ πᾶν da consciecircncia na sua relaccedilatildeo com tudo

mas de um ἓν καὶ πᾶν adicional que tem lugar na proacutepria conformaccedilatildeo do objecto da cons-

ciecircncia

Ou seja aparentemente o que Hegel desenha satildeo duas unificaccedilotildees globais duas ins-

tacircncias de ἓν καὶ πᾶν em posiccedilatildeo simeacutetrica uma relativamente agrave outra (sem prejuiacutezo do pri-

mado da proacutepria consciecircncia que constitui o pressuposto fundamental do modelo de reconhe-

cimento das coisas que estaacute em causa em todo este capiacutetulo da Fenomenologia do Espiacuterito

que aqui estamos a analisar)

Por um lado haacute a unificaccedilatildeo global de tudo o que aparece que corresponda ao facto

de tudo o mais ser como Hegel diz determinaccedilatildeo da consciecircncia (que constitui assim o subs-

tante)

Mas por outro lado haacute tambeacutem a unificaccedilatildeo global de tudo o que aparece se assim

se pode dizer a parte rei uma unificaccedilatildeo global na constituiccedilatildeo do proacuteprio objecto De sorte

que em vez de haver uma multidatildeo de objectos uma multidatildeo de negativos da consciecircncia

pelo contraacuterio todos esses objectos satildeo sempre pela sua proacutepria natureza manifestaccedilotildees do

mesmo ndash e aparecem agrave consciecircncia como manifestaccedilotildees do mesmo

A questatildeo estaacute agora em saber a que eacute que tudo isto corresponde ndash em especial se se

pretende compreender a estrutura do aparecimento ou da experiecircncia que tem lugar em noacutes Eacute

a isso que por fim devemos estar atentos

369

CONCLUSAtildeO

sect40

O facto de o aparecimento e a experiecircncia terem em noacutes o caraacutecter de aparecimento e ex-

periecircncia de significados ndash O facto de o ldquosignificadordquo ter um caraacutecter funcional sempre re-

lativo a um criteacuterio global de que eacute portador quem assiste ao aparecimento

Devemos agora iniciar um uacuteltimo andamento e a abrir este uacuteltimo andamento deve-

mos comeccedilar por fazer notar que tudo o que acabamos de ver sobre aquilo que aparece en-

quanto o aparecimento tem o caraacutecter de um empreendimento de si (de uma ldquopeccedilardquo de si

etc) permite perceber melhor algo a que numa secccedilatildeo anterior jaacute tiacutenhamos dado atenccedilatildeo a

saber que o aparecimento e a experiecircncia tecircm em noacutes o caraacutecter de aparecimento e de expe-

riecircncia de significados

Ora a noccedilatildeo de ldquosignificadordquo eacute uma noccedilatildeo ambiacutegua que se presta a uma certa confu-

satildeo porque pode ser visada a partir de acircngulos muito diferentes entre si porque pode acolher

uma enorme diversidade de definiccedilotildees etc Eacute para o dizer numa palavra um conceito ldquofor-

malrdquo

Assim se consideraacutessemos as diversas definiccedilotildees dos diversos autores que abordaram

o tema ndash inventaacuterio exaustivo que natildeo tem cabimento no curso desta anaacutelise ndash ou se compa-

raacutessemos essas diversas definiccedilotildees dos diversos autores entre si aquilo que verificariacuteamos eacute

que haacute um denominador comum (um elemento formal que justifica em que em cada caso se

possa falar de ldquosignificadordquo) mas que isso de modo nenhum impede que a identificaccedilatildeo do

terminus ad quem (do centro de referecircncia em funccedilatildeo do qual se estaacute a falar quando se fala de

ldquosignificadordquo) seja na verdade muito diferente

Ora ao descrever genericamente a que corresponderia uma experiecircncia de significa-

dos a linha que temos vindo implicitamente a privilegiar eacute a linha que mostra que o significa-

do sublinha o aspecto funcional do que aparece Poreacutem natildeo eacute esse aspecto da noccedilatildeo de ldquosig-

nificadordquo que aqui pretendemos salientar

370

O aspecto que pretendemos salientar eacute o facto de um ldquosignificadordquo ter um caraacutecter fun-

cional sempre relativo a um criteacuterio global de que eacute portador quem assiste ao aparecimento

Haacute significado quando a determinaccedilatildeo do que aparece natildeo lhe vem por assim dizer

apenas de si mesmo mas daquilo que exprimimos pela foacutermula do Feacutedon μὴ μόνον ἐκεῖνο - o

ser reportado a algo de outro que preside ao aparecimento (de tal modo que tudo se define

pelo modo como estaacute em relaccedilatildeo com isso pelo como como se comporta em relaccedilatildeo a isso

pelas funccedilotildees que exerce a respeito disso etc) Quer dizer o significado depende desse algo

de outro que preside ao aparecimento

Por outras palavras o que estaacute em causa no conceito de ldquosignificadordquo tem uma natu-

reza tal que tudo acaba por depender do nuacutecleo que eacute identificado como factor do significado

ou fonte do significado ndash o nuacutecleo a que todo o significado eacute relativo Assim natildeo basta falar

de significados ndash a chave estaacute sempre naquilo a que dizem respeito

Natildeo basta dizer que tudo aquilo que aparece tem determinaccedilotildees ldquocomportamentaisrdquo

(determinaccedilotildees sobre o modo-como-se-comporta) Um ponto decisivo eacute sempre como se com-

porta em relaccedilatildeo a quecirc E isto de tal modo que a variaccedilatildeo relativa a este uacuteltimo ponto cria sig-

nificados (campos de significados) completamente diferentes

Ora sendo assim o que procuraacutemos mostrar habilita-nos a responder a esta pergunta

Vendo bem no nosso caso tudo o que aparece tem como dissemos o caraacutecter de intervenien-

te na ldquopeccedilardquo de si

Quer dizer se natildeo estamos equivocados tudo o que aparece tem o caraacutecter de poacutelo de

execuccedilatildeo relativo agrave ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo do aparecimento enquanto a ldquoteste-

munha globalrdquo do aparecimento estaacute radicalmente tomada por um encaminhamento ou uma

tensatildeo vital de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesma e essa tensatildeo de natildeo-indiferenccedila es-

taacute vinculada ao superlativo

Neste sentido podemos dizer que ldquosignificadordquo eacute a definiccedilatildeo que um x tem em relaccedilatildeo

a uma tensatildeo vital de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesmo vinculado ao superlativo

Poderia dizer-se simplesmente que o significado eacute a definiccedilatildeo que um x tem em rela-

ccedilatildeo agrave ipseidade (a uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a um em-causa etc) Mas o problema estaacute

na possibilidade de a ipseidade ser reconhecida de forma abstracta ie deixando fora de foco

os diferentes aspectos que satildeo elementos fundamentais da sua constituiccedilatildeo

371

Ou seja o fundamental estaacute nas claacuteusulas adicionais que focaacutemos no facto de esse al-

go de outro que preside ao aparecimento ser uma ldquotestemunha globalrdquo no facto de esse algo

de outro que preside ao aparecimento ser uma ldquotestemunha globalrdquo tomada por radical tensatildeo

de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesma no facto de esse algo de outro que preside ao

aparecimento ser uma ldquotestemunha globalrdquo tomada por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que re-

quer um superlativo no facto de tudo isto corresponder a uma determinada configuraccedilatildeo do

campo das possibilidades (e de um campo de possibilidades com as caracteriacutesticas descritas

ie com um caraacutecter exuberante com um caraacutecter labiriacutentico ou em condicionamento de pri-

satildeo labiriacutentica) etc

O importante eacute que cada um destes aspectos seja visto na sua conexatildeo com todos os

outros e que a conexatildeo natildeo seja truncada (ie que natildeo se deixe de fora todos ou alguns destes

factores ou destas claacuteusulas de determinaccedilatildeo) Pois a ldquopeccedilardquo de si eacute sempre conformada por

uma constelaccedilatildeo de factores ou claacuteusulas de determinaccedilatildeo e todos esses factores ou claacutesulas

satildeo decisivos ndash e diferiria significativamente daquilo que efectivamente eacute se alguma destas

claacuteusulas fosse modificada

Esta constelaccedilatildeo tem caracteriacutesticas tais ndash as suas componentes estatildeo de tal modo uni-

ficadas ou enredadas umas nas outras ndash que podemos igualmente dizer que tudo o que aparece

nos aparece como interveniente da ldquopeccedilardquo do superlativo formal (sc como significado do su-

perlativo formal) ndash quer dizer a) tudo o que aparece surge como interveniente na peccedila do su-

perlativo b) tudo o que aparece surge como relativo a um campo de possibilidades que eacute ao

mesmo tempo exuberante e labiriacutentico etc

Assim tudo o que aparece tem a forma de um significado relativo a isto tudo ndash a esta

complexa constelaccedilatildeo de elementos que define propriamente o em-causa e com ele a

identidade dos ldquoobjectosrdquo

Algo de equivalente vale tambeacutem para o significado que faz a identidade e a posiccedilatildeo

de cada ldquocoisardquo que aparece E isto quer dizer que perdemos de vista a natureza do significado

que faz o teor e a funccedilatildeo de cada ldquocoisardquo se porventura nos esquecemos que eacute de raiz um sig-

nificado relativo a algo com esta configuraccedilatildeo

Isto eacute a natureza do significado que faz o teor e a funccedilatildeo de cada ldquocoisardquo eacute de raiz

um significado relativo ao facto de haver uma ldquotestemunha globalrdquo que preside ao apareci-

mento ao facto de a ldquotestemunha globalrdquo que preside ao aparecimento estar tomada por radi-

cal tensatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesma ao facto de a ldquotestemunha globalrdquo

372

que preside ao aparecimento estar tomada por radical tensatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente

a si mesma que requer um superlativo ao facto de tudo isto corresponder a uma determinada

comfiguraccedilatildeo do campo das possibilidades (e de um campo de possibilidades com as carac-

teriacutesticas descritas ie com um caraacutecter exuberante com um caraacutecter labiriacutentico ou em con-

dicionamento de prisatildeo labiriacutentica) etc E por fim a natureza do significado que faz o teor e

a funccedilatildeo de cada ldquocoisardquo eacute relativa ao facto de cada um destes aspectos ser visto na sua

conexatildeo com todos os outros (ie de ser relativo a uma constelaccedilatildeo de factores ou claacuteusulas

de determinaccedilatildeo e todos esses factores ou claacuteusulas se-rem decisivos de tal modo que a cons-

telaccedilatildeo diferiria significativamente daquilo que efectivamente eacute se alguma destas claacuteusulas

fosse modificada)

De tudo isto resulta que quando se fala do ldquosignificadordquo do que aparece aquilo a que

se estaacute a fazer referecircncia eacute a uma natildeo-neutralidade ou a uma natildeo-indiferenccedila intriacutenseca quanto

ao valor do que aparece no acircmbito de um quadro configurado deste modo

Poderia dar-se o caso de a multiplicidade do que aparece natildeo sendo neutra ou indife-

renciada quanto ao significado tomar lugar apenas numa relaccedilatildeo binaacuteria (ter significado ou

natildeo ter significado) Poreacutem aquilo que se nota eacute que ldquoter significadordquo e ldquonatildeo ter significadordquo

satildeo poacutelos de uma escala graduada com um cardinal ilimitado de niacuteveis

Assim o que aparece (ie tudo o que aparece) estaacute marcado por tomar lugar em dife-

rentes niacuteveis de significado Ou como tambeacutem poderiacuteamos dizer a variaccedilatildeo do grau do signi-

ficado do que aparece reflecte-se no facto de o que quer que seja que aparece estar disposto

numa hierarquia de sentido

Vendo bem dizer quer as ldquocoisasrdquo natildeo tecircm todas o mesmo significado (satildeo mais ou

menos significativas no sentido do termo que vimos atraacutes) quer dizer que ocupam lugares dis-

tintos numa hierarquia de sentido

Dizer que as ldquocoisasrdquo natildeo tecircm todas o mesmo significado eacute dizer que as diferentes

ldquocoisasrdquo que aparecem ocupam lugares distintos na hierarquia de sentido quanto agrave funccedilatildeo que

desempenham

Jaacute tiacutenhamos visto isto ndash mas isto na verdade ainda natildeo eacute tudo

Eacute que a isto devemos adicionar o facto de o que estaacute em causa no que aparece natildeo eacute

apenas um uacutenico significado mas na verdade um complexo de significados

373

Se por um lado pode acontecer que um significado se destaca (instituindo-se em sig-

nificado geral fazendo submergir todos os outros significados possiacuteveis etc) por outro lado

o que estaacute em jogo eacute que o que aparece estaacute sempre sob a forccedila do complexo de significados

(concordantes ou pelo contraacuterio em conflito entre si) de cada vez em causa

Na verdade tambeacutem entre os significados se aplica aquilo que vimos atraacutes a saber

tambeacutem os significados compotildeem uma escala graduada tambeacutem eles satildeo dispostos num car-

dinal ilimitado de niacuteveis ou numa hierarquia de sentido etc De tal modo que poderiacuteamos di-

zer que haacute significados mais ldquosignificativosrdquo do que outros

O que estamos a procurar mostrar eacute que os significados natildeo tecircm todos a mesma forccedila ndash

haacute alguns que tomam primazia em relaccedilatildeo a outros que se impotildeem etc Haacute por assim dizer

significados que se arrogam o papel de significado ldquogeralrdquo e outros que tomam meramente pa-

peacuteis secundaacuterios etc

E isto eacute assim em virtude do que vimos ainda agora a saber em virtude de o comple-

xo de significados compor uma escala graduada relativa ndash de os diversos significados exerce-

rem funccedilotildees distintas com valores distintos em relaccedilatildeo a ndash uma ldquotestemunha globalrdquo que pre-

side ao aparecimento a uma ldquotestemunha globalrdquo que preside ao aparecimento tomada por ra-

dical tensatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesma a uma ldquotestemunha globalrdquo que pre-

side ao aparecimento tomada por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que requer um superlativo

ao facto de tudo isto corresponder a uma determinada configuraccedilatildeo do campo das possibili-

dades (e de um campo de possibilidades com as caracteriacutesticas descritas ie com um caraacutecter

exuberante com um caraacutecter labiriacutentico ou em condicionamento de prisatildeo labiriacutentica) etc

Ora se considerarmos a multiplicidade de mapas de significados que daqui resulta

aquilo que verificamos eacute que satildeo mapas com conformaccedilotildees muito variaacuteveis ndash especialmente

se tivermos em conta a) o complexo de forccedilas que estaacute de cada vez em causa e b) a flutuaccedilatildeo

possiacutevel dentro desse complexo

De facto a miacutenima variaccedilatildeo num uacutenico factor ou claacuteusula de determinaccedilatildeo (por exem-

plo a miacutenima variaccedilatildeo de teor do superlativo a miacutenima variaccedilatildeo da configuraccedilatildeo do campo

de possibilidades etc) natildeo apenas implica uma correlativa variaccedilatildeo em todos os outros facto-

res ou claacuteusulas a que esse estaacute associado como implica uma correlativa variaccedilatildeo na organi-

zaccedilatildeo global do complexo de significados que de cada vez estaacute a actuar

Ora visto isto importa natildeo esquecer um outro aspecto

374

O aspecto a que nos referimos eacute a dupla afectaccedilatildeo que haacute entre a ipseidade e os seus

intervenientes e como esta dupla afectaccedilatildeo faz a unidade da ldquopeccedilardquo de si mesmo

Por um lado como jaacute foi bem vincado nada daquilo que aparece tem uma determina-

ccedilatildeo soacute sua satildeo tudo determinaccedilotildees intrinsecamente relativas agrave ipseidade e que definem fun-

ccedilotildees em relaccedilatildeo ao ldquotracircnsito de sirdquo (sc agrave navegaccedilatildeo do si)

Mas natildeo se pode acentuar unilateralmente esta relaccedilatildeo de dependecircncia Eacute que se eacute as-

sim isso deve-se precisamente ao facto de aquilo que aparece (no caso de Hegel o objecto)

definir justamente a situaccedilatildeo de si (a situaccedilatildeo da ldquotestemunha globalrdquo a posiccedilatildeo em que se

encontra relativamente ao projecto de natildeo-indiferenccedila de que eacute portadora a posiccedilatildeo em que se

encontra a caminho do superlativo para que tende a distacircncia a que se acha dele etc)

Quer dizer a ldquotestemunha globalrdquo e aquilo que ela testemunha (ou para usar a liacutengua-

gem de Hegel a auto-consciecircncia e o seu objecto) natildeo se acham apenas lado a lado Sucede

justamente o contraacuterio aquilo que aparece afecta o si determina o si qualifica o si impotildee-lhe

a sua proacutepria determinaccedilatildeo marca-o com ela etc De sorte que na sua navegaccedilatildeo em direcccedilatildeo

agravequilo para que tende a ldquotestemunha globalrdquo acaba por estar onde estiver aquilo que lhe apa-

rece e eacute de facto determinada por aquilo que lhe aparece

Mais precisamente sucede que a ldquotestemunha globalrdquo depende do si-mesmo-a-haver

(sc do que for feito de si ou do que se for fazendo de si) ndash o que de cada vez eacute feito de si estaacute

decisivamente marcado por aquilo que lhe aparece E eacute precisamente neste cruzamento (e com

estes ingredientes) que consiste a ldquopeccedilardquo de si

Haacute em certo sentido como que uma unidade fundamental de todo o aparecimento que

cada um de noacutes eacute ndash e essa unidade vem de todo o aparecimento (e tudo nele) ter um papel de-

cisivo na histoacuteria de si (a histoacuteria do cumprimento ou incumprimento com esta ou aquela

margem esta ou aquela forma por este ou aquele modo de o si ser afectado por aquilo que

aparece etc) do programa de natildeo-indiferenccedila (quer dizer do programa de superlativaccedilatildeo) de

que o si-mesmo eacute portador

Chegados a este ponto estamos tambeacutem em condiccedilotildees de dar pelo menos um primeira

parte da resposta agrave pergunta em que sentido e por que motivo dizemos que a experiecircncia tal

como tem lugar em noacutes eacute sempre experiecircncia da vida Para responder a esta pergunta haacute que

ter presente aquilo que se passa na ldquopeccedilardquo

Vale para o proacuteprio aparecimento e para toda a experiecircncia que tem lugar nele algo de

equivalente ao que se passa numa navegaccedilatildeo em qualquer momento da navegaccedilatildeo se por um

375

lado o que estaacute em causa eacute com certeza aquele ponto dela em que se vai por outro nunca estaacute

em causa soacute ele antes estaacute em causa a navegaccedilatildeo toda (o seu programa toda a execuccedilatildeo dela

o seu ldquodestinordquo etc)

Assim tambeacutem nunca se trata soacute do aparecimento disto ou daquilo nem nunca se trata

soacute da experiecircncia disto ou daquilo Trata-se sempre de um acontecimento global com as di-

mensotildees que procuraacutemos evidenciar estaacute em causa natildeo apenas uma parte mas a ldquopeccedilardquo toda

Numa secccedilatildeo anterior tentaacutemos mostrar que a experiecircncia que continuamente se vai

tecendo na travessia perceptiva eacute sempre ao mesmo tempo uma experiecircncia relativa a) ao

proacuteprio campo perceptivo b) ao campo de familiaridade e c) ao exterior do campo de famiacutelia-

ridade Mas essa caracterizaccedilatildeo eacute incompleta e em certo sentido deixa escapar o essencial

Isso poderia ser assim num quadro de aparecimento muito diferente daquele em que

de facto nos achamos ndash num quadro de aparecimento em que a ldquotestemunha globalrdquo natildeo esti-

vesse marcada por um programa de natildeo-indiferenccedila com as caracteriacutesticas que vimos Poreacutem

como temos procurado estabelecer o quadro de aparecimento em que nos temos eacute marcado

por esse programa

Ora o que isso quer dizer eacute que todo o aparecimento e toda a experiecircncia satildeo apareci-

mento e experiecircncia de significados de uma ldquopeccedilardquo de si ndash significados a) da natildeo-indiferenccedila

da ipseidade a si mesma b) dessa natildeo-indiferenccedila como natildeo-indiferenccedila a um superlativo for-

mal c) tudo isto num quadro de possibilidades marcado ao mesmo tempo pelo seu caraacutecter

exuberante e labiriacutentico de tal modo que d) tudo o que aparece e eacute estabelecido por projecccedilatildeo

empiacuterica potildee os seus traccedilos numa situaccedilatildeo de ipseidade (ou para falar como Hegel num ne-

gativo do superlativo para que se tende) que e) tem uma estrutura semelhante agrave dos ciacuterculos

de Hieacuterocles e f) prende a ipseidade a uma determinada distacircncia do superlativo para que ten-

de etc

Ora tudo isto que aqui procuramos explicitar eacute precisamente o que ndash metidos como

estamos nela e identificados como estamos com a sua unidade (com a peculiar combinaccedilatildeo

de determinaccedilotildees que a formam) ndash habitualmente chamados ldquovidardquo

O que pretendemos vincar eacute que por um lado a experiecircncia tem sempre uma determi-

naccedilatildeo extraordinariamente complexa que num sentido ocorre sempre o quadro de um ldquoolhar

totalrdquo Mais pretendemos vincar que por outro lado tambeacutem dizer isto natildeo basta porque pa-

ra se ter pelo menos um ldquoretrato-robotrdquo do que estaacute em causa na constituiccedilatildeo da experiecircncia

376

que haacute em noacutes eacute preciso ter atenccedilatildeo ao menos agrave complexa trama de claacuteusulas e determinaccedilotildees

que aqui tentaacutemos tecer

Sendo assim o que nesta secccedilatildeo tentaacutemos pocircr em evidecircncia eacute que para aleacutem das foacuter-

mulas variaacuteveis que correspondem agrave especificidade ou ao teor proacuteprio de cada objecto que

aparece haacute qualquer coisa como um nuacutecleo comum ndash justamente isso que designaacutemos por

ldquovidardquo

Quer dizer os passos que demos ateacute este momento acentuam unilateralmente o as-

pecto que vendo bem encerra as ldquocoisasrdquo que aparecem e os seus significados na sua indivi-

dualidade funcional e ldquoatoacutemicardquo

No sentido em que o vimos ateacute este ponto o resultado seria uma multiplicidade com-

plexa de significados funcionais totalmente encerrados em si gerando um mapa de significa-

dos funcionais ldquoatoacutemicosrdquo cuja relaccedilatildeo entre si se esgotaria na ldquoloacutegicardquo dos seus significados

individuais isolados entre si ndash no modo como um significado individual contrastaria com ou-

tro e no limite todos os significados individuais contrastariam entre si (estabeleceriam liga-

ccedilotildees uma rede de associaccedilotildees entre si etc) no exerciacutecio das funccedilotildees de cada vez desempe-

nhadas no complexo de tensotildees que vimos que nos corresponde

Acontece que natildeo eacute assim ndash e natildeo eacute assim em virtude de algo que vimos atraacutes e que de

seguida interessa reconsiderar agrave luz dos uacuteltimos desenvolvimentos Eacute que entre a multiplici-

dade de ldquoobjectosrdquo que nos aparecem estaacute segundo o que vimos ao considerar Hegel o ldquoob-

jectordquo ldquovidardquo com as caracteriacutesticas que vimos que lhe correspondem

Ora esse nuacutecleo comum natildeo constitui de maneira nenhuma algo que tambeacutem estaacute ao

lado do resto (uma foacutermula justaposta agraves demais e que constitui qualquer coisa como a articu-

laccedilatildeo global que de algum modo junta tudo) Sucede em vez disso que esta foacutermula estaacute in-

cluiacuteda como componente de base em todas as outras ndash eacute no sentido etimoloacutegico a foacutermula

fundamental de que todas as outras constituem contracccedilotildees

Assim por um lado qualquer foacutermula de uma coisa que deixe de fora esta compo-

nente fundamental salta o decisivo ndash deixa-o pressuposto na confusatildeo que habitualmente fun-

ciona E por outro lado uma ldquocharacteristica que se contente com a identificaccedilatildeo das foacutermu-

las avulsas ou identifique radicais comuns mas sem atender a este nuacutecleo falha o seu progra-

ma

Isto tambeacutem vale para a experiecircncia cujos objectos satildeo sempre casos disto e que aleacutem

do mais desempenha uma funccedilatildeo essencial neste contexto pois eacute a ela ndash com tudo o que tem

377

de fraacutegil ndash que cabe no fundamental criar formas fixas padrotildees de referecircncia ldquomapasrdquo para

a navegaccedilatildeo da vida etc

Quer dizer a experiecircncia eacute o principal recurso que a ldquotestemunha globalrdquo (a ipseida-

de) tem para domesticar o que a rodeia e nesse sentido criar territoacuterio para tentar navegar

em aacuteguas cartografadas e contrariar o caraacutecter labiriacutentico do campo de possibilidades Em

suma a experiecircncia eacute o principal recurso que a ldquotestemunha globalrdquo ou a ipseidade tem para

abrir algo que se pareccedila com a sinopse que a estrutura do campo de possibilidades na verdade

natildeo consente como sinopse autecircntica e legiacutetima

E daiacute decorre justamente a ambiguidade do papel que a experiecircncia desempenha neste

con-texto O tipo de reconhecimento que a experiecircncia possibilita tem as caracteriacutesticas que

vimos a buacutessola da experiecircncia ou os ldquomapasrdquo da experiecircncia (as ldquosinopsesrdquo produzidas pela

experiecircncia) estatildeo sujeitas agrave possibilidade de natildeo corresponderem a nenhuma compreensatildeo

adequada das condiccedilotildees em que se joga a ldquopeccedilardquo de si da identidade dos seus intervenientes

do jogo de possibilidades que a moldam etc

Toca-se aqui um ponto essencial que conveacutem ter presente

Natildeo se trata soacute de ter noccedilatildeo de que a experiecircncia eacute sempre experiecircncia da vida Eacute ne-

cessaacuterio igualmente ter noccedilatildeo de que a vida estaacute por assim dizer ldquonas matildeosrdquo da experiecircncia e

eacute nessa medida uma ldquopeccedilardquo que se desenrola nas condiccedilotildees de instabilidade que satildeo proacuteprias

da experiecircncia

sect41

A noccedilatildeo de significado em V Woolf tudo o que aparece percebido como manifestaccedilatildeo da

forma da vida ndash A vida como objecto de si proacutepria ndash Tudo o que se passa como dado com-

portamental ou traccedilo de caraacutecter da proacutepria vida ndash A relaccedilatildeo com a vida assente sempre

jaacute na antecipaccedilatildeo de um resultado global ndash Como a avaliaccedilatildeo da vida eacute sempre a avalia-

ccedilatildeo do ldquocaraacutecterrdquo ldquodisto tudordquo

Encontramos na obra de Virginia Woolf elementos que nos permitem compreender o

caraacutecter intrinsecamente ldquoespinosistardquo ndash a organizaccedilatildeo intrinsecamente ldquoespinosistardquo ndash daqui-

lo que aparece a interferir na ldquopeccedilardquo de si (ou seja daquilo que aparece como ldquosituaccedilatildeo de sirdquo

378

daquilo que para usar a terminologia da Fenomenologia do Espiacuterito constitui o objecto da

auto-consciecircncia etc)

Observe-se antes de se entrar no exame das indicaccedilotildees que podemos colher na obra de

V Woolf que natildeo se trata aqui de mais do que indicaccedilotildees que reunimos e tentamos seguir

num breve esboccedilo Natildeo eacute este o lugar para tentar empreender qualquer anaacutelise da obra de V

Woolf o que procuramos eacute apenas ver alguns aspectos fundamentais das perspectivas desen-

volvidas nela que podem ajudar a compreender melhor a questatildeo da experiecircncia da vida que

aqui temos em anaacutelise124

Ora para ganhar pista a estas indicaccedilotildees haacute que partir da contraposiccedilatildeo que V Woolf

faz entre aquilo a que chama ldquofactsrdquo e aquilo a que chama ldquomeaningrdquo

Antes de mais importa ter presente que V Woolf natildeo chama ldquofactosrdquo agravequilo a que ateacute

aqui nos referimos por este conceito e tem um conceito de ldquosignificadordquo muito diferente da-

quele que usaacutemos em todas as secccedilotildees precedentes como se veraacute melhor na continuaccedilatildeo

Tal como o usaacutemos ateacute aqui o conceito de ldquosignificadordquo designa em geral determina-

ccedilotildees funcionais (determinaccedilotildees de ldquocomportamentordquo se assim se pode dizer) daquilo que

aparece ndash determinaccedilotildees da funccedilatildeo ou do comportamento do que aparece em relaccedilatildeo a algo de

que o observador eacute portador (enquanto justamente natildeo se trata de um mero observador mas de

um ponto de vista com agenda proacutepria etc)

Nesse sentido as determinaccedilotildees de significado podem muito bem ser relativas agrave proacute-

pria agenda de expediente e administraccedilatildeo corrente do curso da vida Vimos que no nosso

caso a ldquoadministraccedilatildeo corrente do expedienterdquo estaacute sempre inscrita no horizonte globalmente

mais exigente e mais amplo da tensatildeo gerundiva do si

Acontece que V Woolf chama justamente ldquofactosrdquo a todos os significados que satildeo re-

lativos ao expediente da vida

Isso significa que na sua terminologia a fronteira entre ldquofactosrdquo e ldquosignificadosrdquo tem

um traccedilado muito diferente daquele que verificaacutemos em secccedilotildees anteriores

124

Para um exame mais detido dos pontos que aqui consideramos apenas de relance veja-se Silva N

Identidade e vida em Virginia Woolf uma anaacutelise da expressatildeo literaacuteria de um problema filosoacutefico

Universidade Nova de Lisboa Tese de Doutoramento 2011 em especial as paacuteginas 56-62 129-131

270-285 etc

379

Neste sentido a questatildeo que se suscita ndash e aquela que para noacutes eacute decisiva ndash eacute entatildeo a

de saber o que eacute que na concepccedilatildeo de V Woolf satildeo e a que eacute que dizem respeito os ldquosignifi-

cadosrdquo Ou seja se os significados na acepccedilatildeo de V Woolf natildeo satildeo relativos a determinaccedilotildees

de comportamento funcional relativo ao ldquoexpedienterdquo da vida tal como vimos antes importa

determinar a que eacute que satildeo relativos

Para comeccedilar a abordar esta questatildeo consideremos por exemplo um jogo

No sentido natildeo-woolfiano do termo se considerarmos um jogo encontramos todo um

conjunto de significados que tecircm que ver com as regras do jogo em questatildeo com os apetre-

chos com aquilo que por exemplo estorva o jogo com as pessoas que a ele assistem etc E

tudo isso eacute presidido por uma instacircncia organizativa e global o proacuteprio jogo em causa

Poreacutem poderia acontecer que toda a constituiccedilatildeo de significado se esgotasse naquilo

que interfere no expediente do jogo em causa e que a) isso natildeo tivesse qualquer relaccedilatildeo com o

proacuteprio jogo enquanto tal que b) essa relaccedilatildeo fosse totalmente neutra em relaccedilatildeo ao proacuteprio

jogo enquanto tal ou que c) o significado do proacuteprio jogo nunca fosse senatildeo a sua posiccedilatildeo

funcional em relaccedilatildeo a outras ocupaccedilotildees com as quais se articula de forma semelhante agravequela

que liga os componentes funcionais do jogo em questatildeo ndash e isto porque um jogo faz parte do

horizonte mais abrangente de ocupaccedilatildeo da vida com as regras proacuteprias da vida etc

Mas vendo bem natildeo eacute assim

Por um lado 1) temos uma relaccedilatildeo com o proacuteprio jogo enquanto tal 2) essa relaccedilatildeo

com o proacuteprio jogo natildeo eacute neutra mas estaacute marcada por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (e estaacute

marcada por uma determinada qualificaccedilatildeo do jogo em causa no que diz respeito agrave tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila que domina a ipseidade) e 3) o significado do jogo em causa natildeo se esgota na

sua posiccedilatildeo funcional em relaccedilatildeo a outras ocupaccedilotildees funcionais dentro do horizonte global da

travessia da vida

Isto tem que ver por um lado com o facto de o jogo natildeo ter lugar num meio neutro

mas num meio marcado por pressatildeo gerundiva ndash e na verdade marcado por pressatildeo gerundi-

va orientada para o superlativo

Por outras palavras mesmo que haja variaccedilotildees quanto ao grau em que isso se faz sen-

tir o jogo em causa ndash como qualquer outro preenchimento ou ocupaccedilatildeo do tempo ndash aparece

contra o fundo da exigecircncia do superlativo e eacute medido pela bitola do superlativo

Mas isto natildeo eacute tudo

380

Aleacutem disso acontece tambeacutem que o jogo natildeo eacute posto em relaccedilatildeo com o superlativo co-

mo se fosse um acontecimento absoluto ndash como se fosse a uacutenica coisa que eacute posta em relaccedilatildeo

com o absoluto como se fosse chamado a desempenhar funccedilotildees de superlativo ndash ou de todo o

modo como se fosse algo posto em relaccedilatildeo com o superlativo independentemente do que

quer que seja que tambeacutem se ache sujeito a essa pressatildeo A relaccedilatildeo do jogo com o superlativo

estaacute em relaccedilatildeo com as relaccedilotildees entre tudo o mais e o superlativo

Quer dizer a relaccedilatildeo entre o que quer que seja e o superlativo natildeo tem lugar em com-

partimentos estanques Haacute como vimos um uacutenico horizonte a que tudo pertence e que esta-

belece relaccedilotildees entre todos os diferentes momentos da situaccedilatildeo da si e do cumprimento ou in-

cumprimento do programa superlativo

Assim o que estaacute em causa na ldquomediccedilatildeordquo do jogo pela pressatildeo gerundiva do superla-

tivo nunca eacute apenas o jogo (nunca eacute apenas a relaccedilatildeo do jogo com o superlativo como se fosse

um acontecimento absoluto como se fosse chamado a desempenhar funccedilotildees de superlativo

como coisa se fosse posto em relaccedilatildeo com o superlativo independentemente do que quer que

seja mais que tambeacutem se ache sujeito a essa pressatildeo etc) mas na verdade de algum modo

tudo o mais

Isto eacute o que estaacute em causa na ldquomediccedilatildeordquo do jogo pela pressatildeo gerundiva eacute tambeacutem a

relaccedilatildeo de tudo o mais com a pressatildeo gerundiva e a relaccedilatildeo estabelecida entre o jogo e tudo

o mais no acircmbito da pressatildeo gerundiva a que o que quer que seja que seja chamado a desem-

penhar funccedilotildees de superlativo estaacute sujeito

Em suma natildeo soacute o jogo tem uma determinada posiccedilatildeo relativa ao programa superla-

tivo como tem uma determinada posiccedilatildeo relativa a todos os diferentes momentos da situaccedilatildeo

de si ndash diferentes momentos da situaccedilatildeo de si que por sua vez tecircm tambeacutem uma determinada

relaccedilatildeo ao programa superlativo e tecircm tambeacutem uma relaccedilatildeo a todos os diferentes momentos

da situaccedilatildeo de si (entre os quais uma determinada relaccedilatildeo relativa em relaccedilatildeo ao jogo) mar-

cada pelas suas posiccedilotildees relativas em relaccedilatildeo ao superlativo

Mais o ldquolugarrdquo que o jogo ocupa nessa complexa rede de relaccedilotildees afecta o modo

como aparece determina o seu significado assim como determina os significados de tudo

aquilo que tem interfere no expediente do jogo (as regras os apetrechos aquilo que o estorva

quem a ele assiste etc)

Mas tambeacutem isto por sua vez natildeo eacute tudo

381

Os diferentes momentos de preenchimento da travessia global (ie os diferentes mo-

mentos da travessia de si) satildeo compreendidos como manifestaccedilotildees de qualquer coisa como

uma instacircncia um princiacutepio global de constituiccedilatildeo das situaccedilotildees de si ndash um princiacutepio global

de produccedilatildeo de variaccedilotildees do negativo da auto-consciecircncia ndash de que todas as diferentes conste-

laccedilotildees da situaccedilatildeo de si satildeo vistas como manifestaccedilotildees

Quer dizer por um lado os diferentes momentos de preenchimento da travessia global

(as diferentes situaccedilotildees de si os diferentes momentos da travessia de si etc) estatildeo marcados

por terem estabelecidas entre si relaccedilotildees de coordenaccedilatildeo e de subordinaccedilatildeo Quer dizer estatildeo

marcados por terem um determinado encadeamento entre si e por ocuparem um determinado

ldquolugarrdquo na hierarquia relativa ao superlativo

Por outro os diferentes momentos de preenchimento da travessia global (as diferentes

situaccedilotildees de si os diferentes momentos da travessia de si etc) estatildeo igualmente marcados por

estar estabelecido um nexo de subordinaccedilatildeo de todas as situaccedilotildees de si em relaccedilatildeo a um prin-

ciacutepio comum a todos eles (a um princiacutepio que os subordina a todos)

Assim a unidade entre as diversas situaccedilotildees de si (as diversas configuraccedilotildees do objec-

to ou os diversos preenchimentos concretos do lugar funcional ldquoobjectordquo na sua coordenaccedilatildeo

ou encadeamento) natildeo eacute constituiacuteda apenas pela comum referecircncia agrave ldquotestemunha globalrdquo e

pela comum referecircncia ao programa gerundivo do superlativo de si mas tambeacutem eacute constituiacuteda

pela referecircncia a esta ldquofrenterdquo global de preenchimento de si a este princiacutepio unificador de

tudo o que aparece (que tatildeo bem se deixa descrever quando Hegel fala da allgemeine Fluumlssig-

keit ou da forccedila uacutenica)

O que estamos a procurar salientar eacute que o contacto com aquilo que aparece estaacute cu-

nhado por uma silenciosa e discreta (mas nem por isso menos efectiva) referecircncia a esta ldquofren-

terdquo global de preenchimento de si a este princiacutepio unificador a esta forccedila uacutenica etc ndash isso

que se expressa quando se fala de ldquovidardquo De onde resulta que tudo o que aparece eacute percebido

como manifestaccedilatildeo da forma da ldquovidardquo (desta peculiar substacircncia do proacuteprio aparecimento

enquanto tal)

Isto eacute algo que Hegel muito agudamente potildee em evidecircncia nos passos mencionados E

se natildeo temos propriamente intenccedilatildeo de discutir se o que Hegel em vista eacute ou natildeo o que procu-

ramos pocircr em foco o que sustentamos eacute que seja como for a sua descriccedilatildeo eacute compatiacutevel com

os fenoacutemenos para que se chama a atenccedilatildeo nesta breve consideraccedilatildeo

382

Ora poderia suceder que a instacircncia unificadora ou o princiacutepio de que tudo o que

aparece eacute visto como manifestaccedilatildeo tivesse um caraacutecter tal que de cada vez fosse compreen-

dido como fonte das manifestaccedilotildees jaacute ocorridas (das situaccedilotildees de si entretanto percorridas) ndash

e soacute das manifestaccedilotildees jaacute ocorridas

No entanto o que acontece eacute precisamente o contraacuterio

Quer dizer o princiacutepio ldquotudo o que aparece eacute visto como um fluxo de manifestaccedilotildees

da vidardquo eacute compreendido como princiacutepio de mais e mais manifestaccedilotildees ndash eacute compreendido co-

mo uma espeacutecie de princiacutepio inesgotaacutevel a que se atribui a continuaccedilatildeo do fluxo de manifesta-

ccedilotildees (ou para sermos mais precisos a que se atribui a continuaccedilatildeo de um fluxo de ldquorespostasrdquo

ao requerimento do superlativo de que a ipseidade eacute portadora)

Tudo isto de tal modo que vendo bem mesmo que a representaccedilatildeo deste princiacutepio te-

nha um caraacutecter confuso ou pouco preciso (princiacutepio confuso ou pouco preciso que natildeo com-

promete a natureza intrinsecamente decidida e marcante da sua presenccedila e que natildeo compro-

mete que seja ele de todo o modo a dar forma agravequilo que aparece) a sua ldquodimensatildeordquo eacute sem-

pre proporcional agrave dimensatildeo do horizonte gerundivo da ipseidade de que este princiacutepio eacute

visto como sendo o interlocutor

Para o dizer muito sinteticamente a ldquosubstacircnciardquo uacutenica do aparecimento tem uma di-

mensatildeo correspondente ao extraordinaacuterio requerimento que lhe eacute dirigido

Isso natildeo significa que a vida (no sentido da travessia perceptiva que de facto haveraacute)

tenha de ter por exemplo as dimensotildees do superlativo quantitativo de que atraacutes se falou O

que acontece eacute que se negar satisfaccedilatildeo ao requerimento da pressatildeo gerundiva entatildeo eacute perce-

bida como o poder que para todo o sempre (nesse ldquopara todo o semprerdquo introduzido pela pres-

satildeo gerundiva) manteacutem o indeferimento em causa Toca-se aqui o fenoacutemeno a que se chamou

ldquoespinosismo vitalrdquo ou ldquoespinosismo afectivordquo

O que acabamos de dizer permite compreender ao mesmo tempo aquilo para que V

Woolf aponta quando fala de ldquosignificadosrdquo (por oposiccedilatildeo a ldquofactosrdquo) e aquilo a que chama

life itself

Se como dissemos todas as diferentes ldquocoisasrdquo que aparecem tecircm o caraacutecter de inter-

veniente na ldquopeccedilardquo de si (tecircm um determinado ldquopapelrdquo na ldquopeccedilardquo de si etc) a verdade eacute que

por outro lado a proacutepria totalidade do que aparece estaacute tambeacutem ela constituiacuteda em objecto

da ldquopeccedilardquo de si mesma (da ldquopeccedilardquo absoluta da ldquopeccedilardquo do superlativo ndash sc da demanda do su-

perlativo) constitui se assim se pode dizer o ldquotemardquo da ldquopeccedilardquo

383

Por outras palavras paradoxalmente a vida eacute objecto de si proacutepria ndash ou se quisermos

a ldquopeccedilardquo de si estaacute em relaccedilatildeo consigo mesma e nesse sentido tem tambeacutem um papel no seu

proacuteprio quadro

Por outro lado V Woolf chama agraves determinaccedilotildees que aquilo que aparece (a sucessatildeo

das situaccedilotildees de si) assume manifestaccedilotildees do comportamento da ldquolife itselfrdquo

Agrave luz da terminologia que adoptaacutemos faz todo o sentido falar aqui em significado

porque tambeacutem neste caso estaacute em causa o comportamento de algo Trata-se do comporta-

mento da ldquovidardquo

Mas natildeo se trata pura e simplesmente do comportamento da ldquovidardquo considerado em

abstracto Vendo bem natildeo estamos em condiccedilotildees de compreender a que eacute que tal coisa cor-

responderia Trata-se do comportamento da ldquovidardquo numa oacuteptica interessada perpassada de

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila ndash e mais precisamente da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila da ldquotestemu-

nha glo-balrdquo (no duplo sentido equivalente ao gerundivo) Em suma trata-se do comporta-

mento da vida que tem que ver com a ipseidade trata-se do comportamento da vida em rela-

ccedilatildeo agrave ldquotes-temunha globalrdquo e agrave radical tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a si mesma que lhe ine-

re125

125

Eacute tambeacutem algo assim que encontramos se se levar a cabo uma extrapolaccedilatildeo daquilo que se viu ao

considerar Hegel Quando mencionaacutemos a tese de Hegel e fizemos notar que a vida eacute ldquoordquo objecto da

auto-consciecircncia desde logo ficou claro que o ldquoobjectordquo ldquovidardquo natildeo eacute apenas mais um objecto com

que se lida de entre a multiplicidade de ldquoobjectosrdquo que aparecem Pelo contraacuterio quando Hegel diz

que a vida eacute ldquoordquo ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia quer dizer que estaacute estabelecida ao ldquoobjectordquo ldquovidardquo

uma relaccedilatildeo com uma natureza peculiar De facto o ldquoobjectordquo ldquovidardquo prevalece sobre os restantes ob-

jectos agrupa-os no seu acircmbito etc Ora quando reforccedilamos este aspecto a noccedilatildeo de ldquosignificadordquo ndash

no caso na foacutermula ldquosignificado da vidardquo ndash toma uma direcccedilatildeo completamente nova embora esse des-

vio possa natildeo ser imediatamente claro e natildeo esteja claramente desenhado por Hegel nos passos consi-

derados

Ora agrave partida algo como um ldquosignificado da vidardquo poderia parecer uma mera variaccedilatildeo do conceito de

ldquosignificadordquo que ateacute aqui jaacute era vigente Vendo bem aplica-se em geral ao conceito de ldquosignificado

da vidardquo o que se viu atraacutes quando se analisou o conceito de ldquoexperiecircncia da vidardquo No modelo que vi-

mos ateacute este ponto o conceito de ldquosignificadordquo constitui uma estrutura abrangente de aplicaccedilatildeo geral

completamente descomprometida com aquilo a que concretamente se aplica (precisamente na medida

em que eacute susceptiacutevel de ter lugar nos mais diversos acircmbitos em que se aplica ou pode aplicar sobre os

mais diversos objectos etc) Quer dizer quando consideramos o que estaacute em causa no significado

aquilo que tendemos a aplicar eacute um modelo em que o significado eacute algo avulso (algo que se aplica in-

diferenciadamente que estaacute distribuiacutedo pelos vaacuterios objectos etc) ndash mas de tal modo que cada ldquocoisardquo

tem o seu significado que os significados das ldquocoisasrdquo satildeo exclusivos que os diversos significados

das diversas ldquocoisasrdquo estatildeo completamente encerrados em e respondem apenas agrave proacutepria ldquocoisardquo etc

384

Esperamos que com isto tenha ficado desenhado pelo menos com alguma nitidez o

fenoacutemeno que estaacute em causa quando V Woolf fala de ldquosignificadordquo por oposiccedilatildeo ao ldquofactordquo

Interessam aqui pouco questotildees de natureza puramente terminoloacutegica e o ponto decisi-

vo eacute que se mantivermos o conceito de significado que ateacute aqui se tinha adoptado a esfera do

significado ainda eacute mais complexa e inclui tambeacutem aquilo que V Woolf potildee em relevo aque-

la peculiar modalidade de determinaccedilatildeo que aquilo que aparece possui enquanto vale como

manifestaccedilatildeo do comportamento da vida (entenda-se do comportamento da vida em relaccedilatildeo agrave

ipseidade que estaacute no centro da ldquopeccedilardquo absoluta)

O importante portanto natildeo eacute discutir se a esfera do significado tem esta ou aquela de-

terminaccedilatildeo mas reter que eacute composta de uma multiplicidade de componentes e o facto de en-

tre eles se contar tambeacutem esta modalidade o valor indiciaacuterio de cada coisa que aparece em re-

laccedilatildeo ao comportamento da proacutepria vida ndash ou seja o que cada objecto mostra de como a vida

eacute para a ipseidade que estaacute primariamente em causa126

A ser assim o ldquosignificadordquo da ldquovidardquo seria apenas mais um significado de entre o extenso conjunto de

significados possiacuteveis ndash seria o significado correspondente a um ldquoobjectordquo particular (o objecto ldquovi-

dardquo) mas de tal modo que o objecto ldquovidardquo seria apenas mais um ldquoobjectordquo entre outros (um objecto

que teria um significado especiacutefico ndash o significado particular que corresponde agrave vida ndash mas que em

todo o caso se limitaria a ser entendido como apenas mais um significado no quadro dos significados

de cada vez fixado)

O que vemos eacute justamente o contraacuterio o significado da vida natildeo se resume a ser mais um significado

no quadro de significados de cada vez fixado assim como o ldquoobjectordquo ldquovidardquo natildeo se resume a ser

mais um ldquoobjectordquo entre o que aparece Eacute que quando se fala de um ldquosignificado da vidardquo aquilo que

estaacute em causa natildeo eacute algo meramente relativo ao exerciacutecio de funccedilotildees particulares ndash como vimos ateacute es-

te ponto ndash mas eacute algo relativo agrave identificaccedilatildeo da vida (das suas propriedades das suas caracteriacutesticas

da sua ldquoformardquo etc) enquanto a vida eacute ldquoordquo objecto da auto-consciecircncia (ie enquanto a vida tem um

estatuto especial entre o que aparece) e enquanto a vida prevalece sobre os restantes objectos os

agrupa no seu acircmbito etc E isto de tal modo que o modelo de significado como algo absolutamente

ldquoavulsordquo jaacute natildeo se aplicaria na medida em que a relaccedilatildeo entre os diversos ldquoobjectosrdquo seria marcada

por uma assimetria em que haveria uma relaccedilatildeo assimeacutetrica de todos os ldquoobjectosrdquo em relaccedilatildeo agrave vida

enquanto a vida eacute esse ldquoobjectordquo que agrupa os diversos ldquoobjectosrdquo no seu acircmbito que tem uma rela-

ccedilatildeo privilegiada com a auto-consciecircncia etc

126 Importa natildeo deixar escapar aqui este aspecto que uma leitura abreviada poderia fazer perder

Quan-do se procura determinar o significado da vida aquilo que inadvertidamente se faz eacute produzir

uma pa-ridade taacutecita entre aquilo que diz respeito agrave nossa vida (agrave vida de cada um agrave vida no sentido

mais pes-soal e intransmissiacutevel do termo) e aquilo que diz respeito agrave vida (no sentido substantivo e

mais lato do termo) Por um lado ao falar de ldquovidardquo fala-se de algo na primeira pessoa Isto eacute o que

estaacute sempre jaacute em causa como vimos atraacutes eacute a) a forma de acontecimento em que cada um daacute por si

em que cada um estaacute atirado em que se estaacute sempre jaacute posto etc e b) uma forma de acontecimento

385

exclusiva (par-ticular de privado de pessoal etc) que de certo modo se atravessa pelo proacuteprio peacute

que eacute meramen-te desse a quem pertence ou que nela estaacute atirado etc Em suma aquilo de que se estaacute

a falar quando se fala de vida (a nossa vida a vida de cada um etc) corresponde agrave ipseidade que estaacute

primariamente em causa (uma ipseidade com as caracteriacutesticas x ou y constituiacuteda deste ou daquele

modo etc) Ten-do isso em vista poderia dar-se o caso de quando se lhe procura determinar o

significado as referecircn-cias a algo como ldquoa vidardquo virem sempre acompanhadas de uma advertecircncia em

relaccedilatildeo a esta duplici-dade ndash de tal modo que qualquer fixaccedilatildeo de identidade de ldquoa vidardquo estaria

limitada agrave vida de cada um e soacute a ele diria respeito De certo modo eacute precisamente isso que se passa

A vida a que de cada vez nos referimos quando falamos de ldquoa vidardquo eacute a nossa (a vida de cada um

corresponde agrave ipseidade que estaacute primariamente em causa etc) Quer dizer qualquer fixaccedilatildeo da

identidade de ldquoa vidardquo (qualquer fixa-ccedilatildeo do seu significado) refere-se ndash ainda que tacitamente ndash a

uma travessia pessoal (singular uacutenica etc) agravequilo que aparecer no curso dessa travessia etc de tal

modo que expressa essa travessia diz algo sobre ela etc O que isto quer dizer antes de mais eacute que

qualquer que seja a identidade que a vi-da adquira essa identidade tem algo a ver connosco (com cada

um com esse que passa por ela que a atravessa etc) haacute por assim dizer um traccedilo de continuidade

entre a identificaccedilatildeo da vida e esse que a procura identificar ndash de tal modo que a identificaccedilatildeo da vida

que cada um produz reflecte esse que a produz Acontece que sendo assim dizer por exemplo que a

vida eacute x ou y (tem o significado x ou y) corresponde a) a uma identidade ou a um significado que a

vida adquire mas b) a uma identidade que a vida adquire que de certo modo transporta a vida

particular desse que a tem (justamente na medida em que a vida tenha sido matildee ou madrasta tenha

posto mais ou menos resistecircncia agrave ipseidade com que se confronta ao cumprimento do ldquosuperlativordquo

para que cada um tende consoante tenha levado numa direcccedilatildeo e natildeo na outra etc) Mas por outro

lado isso natildeo impede a que ldquoa vidardquo a que em uacuteltima anaacutelise nos referimos seja natildeo a vida no sentido

circunscrito mas a vida no sentido lato (a totalidade da vida por assim dizer a vida em sentido

abstracto etc)

A identificaccedilatildeo que de cada vez se procura gerar natildeo eacute a identificaccedilatildeo da vida que corresponde a cada

um ndash se com isso se quisesse dizer que a partir de outros pontos de vista se poderiam gerar outras

identificaccedilotildees igualmente vaacutelidas da vida Melhor estamos perfeitamente cientes do facto de que ou-

tros pontos de vista geram ou podem gerar outras identificaccedilotildees da vida estamos perfeitamente cientes

da possibilidade de haver identificaccedilotildees contrastantes da vida ndash para o facto de a vida que nos aparece

como ldquomelancoliardquo ou ldquosofrimentordquo poder aparecer a outro ponto de vista como ldquoalegriardquo ou ldquograccedilardquo

Poreacutem o nosso ponto de vista estaacute constituiacutedo de tal modo que eacute composto por uma pretensatildeo de ver-

dade quanto ao significado da vida que ele proacuteprio propotildee Isto eacute o nosso ponto de vista eacute composto

da pretensatildeo de que a efectiva ldquonaturezardquo da vida se revela ao nosso ponto de vista ndash como se o nosso

ponto de vista tivesse ou tivesse tido um acesso privilegiado agrave ldquonaturezardquo ou ao ldquocaraacutecterrdquo da vida

Deste modo se o nosso ponto de vista identifica a vida como x identifica simultacircnea e tacitamente os

pontos de vista que a identificam como y como pontos de vista tomados por ilusotildees de oacuteptica Quer di-

zer 1) estamos muito longe de uma sinopse da totalidade de significaccedilotildees possiacuteveis da vida (ie con-

cebemos diferentes alternativas mas natildeo temos uma perspectiva que cubra ou acompanhe cada uma

das diferentes possibilidades de significaccedilatildeo da vida de tal modo que natildeo estamos sequer em condi-

ccedilotildees de compreender a proporccedilatildeo entre as possibilidades de significaccedilatildeo que temos cobertas e as pos-

sibilidades de significaccedilatildeo que ficam de fora) 2) no acircmbito do conjunto muito restrito de possibilida-

des de significaccedilatildeo da vida que efectivamente concebemos natildeo tomamos a multiplicidade as diversas

386

A natureza particular desta modalidade de significado passa por aquilo que tatildeo incisi-

vamente se encontra formalizado por Hegel em vez de acontecer apenas que cada ldquoconteuacutedordquo

ou cada ldquoobjectordquo esteja numa relaccedilatildeo com a ldquotestemunha globalrdquo e o seu programa de natildeo-

indiferenccedila acontece tambeacutem que ao mesmo tempo cada coisa que aparece tem um caraacutecter

revelador daquilo que ndash parafraseando Hegel ndash chamaacutemos a ldquosubstacircncia universalrdquo do que

aparece ldquolife itselfrdquo

Quer dizer cada coisa que aparece tem ao mesmo tempo a) uma relaccedilatildeo com a ipsei-

dade e b) uma relaccedilatildeo de manifestaccedilatildeo com a vida

Trata-se portanto de uma relaccedilatildeo dupla com a ipseidade

Por um lado trata-se de uma relaccedilatildeo imediata com a ipseidade Por outro lado trata-

se de uma relaccedilatildeo mediata com a ipseidade por via daquilo que revela sobre a relaccedilatildeo entre a

sua ldquofonterdquo ndash aquilo que a ldquopotildeerdquo a vida ndash e a ipseidade (cujo programa de natildeo-indiferenccedila a

vida defere ou indefere) De sorte que esta modalidade de significado natildeo tem um foco mas

dois (como uma elipse)

Dizer isto pode entretanto induzir em erro se natildeo for acompanhado por uma precisatildeo

Com efeito tudo isto parece indicar que esta modalidade de significado que V Woolf

potildee particularmente em relevo tem sempre que ver com isso que tentaacutemos ilustrar pela com-

paraccedilatildeo com o segundo foco da elipse (ldquolife itselfrdquo) ndash e que todo o significado deste tipo tem

sempre esse segundo foco e consiste no valor ldquosintomaacuteticordquo daquilo que aparece (na forma

como aquilo que aparece mostra como eacute a vida) Isto eacute como ela eacute para a ipseidade em rela-

ccedilatildeo ao programa de natildeo-indiferenccedila (agrave ldquoagendardquo) de que esta eacute portadora

Ora a questatildeo que se potildee no seguimento disto eacute a de saber se todo o significado deste

tipo tem quer ver soacute com a vida e soacute pode ter como segundo foco a vida

A resposta que se tem de dar a esta pergunta eacute complexa E seguir a complexidade que

se tem de pocircr nesta resposta pode ajudar a compreender melhor o que estaacute aqui em causa

Comecemos pelo que a resposta em causa tem de ldquonegativordquo

Entre os significados deste tipo tambeacutem haacute significados cujo ldquosegundo focordquo tecircm que

ver com outros ldquoconteuacutedosrdquo aqueacutem da vida por exemplo a infacircncia o Veratildeo o mundo aca-

identificaccedilotildees que contrastam com a nossa como sendo todas igualmente vaacutelidas (pelo contraacuterio haacute

como que uma gradaccedilatildeo das possibilidades consoante estejam mais ou menos proacuteximas de consoante

de certo modo ratifiquem ou ao inveacutes contrariem a identificaccedilatildeo que corresponde a cada um de noacutes)

387

deacutemico etc ldquoInfacircnciardquo ldquoVeratildeordquo ou ldquomundo acadeacutemicordquo satildeo exemplos desgarrados para ilus-

trar a possibilidade de em acircmbitos mais restritos do que aquele que corresponde agrave vida se

produzir uma organizaccedilatildeo da multiplicidade do que aparece em tudo anaacuteloga agravequela que re-

ferimos a respeito da vida

Quer dizer nada impede que a multiplicidade do que aparece esteja agregada em nuacute-

cleos identidades unidades etc a que se atribui o papel de centros ou de ldquofontesrdquo de um da-

do tipo de objectos ou de formas de preenchimento concreto da situaccedilatildeo de si Nesse sentido

dentro do acircmbito da vida pode muito bem haver identidades de amplitudes muito diversas

(mais restritas ou menos restritas)

Acontece entretanto que a esta parte negativa que se tem de dar agrave referida pergunta eacute

insuficiente porque eacute unilateral Tudo isto que acabamos de expor eacute apenas uma parte do que

efectivamente se passa

Ora a outra parte tem que ver com o facto de nenhum destes nuacutecleos identidades ou

unidades parciais ser absoluto Trata-se justamente de nuacutecleos identidades ou unidades par-

ciais ndash e o que os caracteriza eacute se assim se pode dizer uma constante transitividade em re-

laccedilatildeo agrave vida de que fazem parte em relaccedilatildeo agrave qual satildeo contracccedilotildees

Isto eacute a multiplicidade dos ldquoobjectosrdquo ou formas de preenchimento em questatildeo eacute vista

como manifestaccedilatildeo da identidade do poder etc de algo ldquosubstanterdquo que lhe daacute origem (e de

sorte que tudo aquilo que ocorresse teria um valor indiciaacuterio ou revelador relativamente ao

comportamento disso que eacute ldquosubstanterdquo ou lhe daacute origem da vida)

Quer dizer o que caracteriza essas substacircncias parciais do que aparece como objecto

(essas substacircncias parciais da vida) eacute o facto de se lhes aplicar tambeacutem a elas o que se aplica agrave

multiplicidade a que presidem se por um lado elas satildeo vistas como fontes de multiplicidade

e se essa multiplicidade eacute vista como manifestaccedilatildeo delas por outro lado satildeo elas proacuteprias

por sua vez vistas como provindo de algo ou como manifestaccedilotildees de algo

Isto eacute as substacircncias parciais podem ser vistas como manifestaccedilatildeo de outras substacircn-

cias parciais de maior envergadura e essas por sua vez vistas como manifestaccedilatildeo de outras

substacircncias parciais de ainda maior envergadura e essas por sua vez vistas como manifesta-

ccedilatildeo de outras substacircncias parciais de ainda maior envergadura ndash mas de tal modo que em uacutel-

tima anaacutelise todas estas sustacircncias parciais (que seja qual for a sua envergadura satildeo ainda

assim sempre ldquoparciaisrdquo) aparecem em radical dependecircncia relativamente a ldquolife itselfrdquo (ou agrave

allgemeine Fluumlssigkeit de que fala Hegel)

388

Ora isso reflecte-se justamente na estrutura da modalidade do significado que aqui es-

tamos a considerar aquela que eacute especialmente focada por V Woolf

Eacute verdade que pode haver significados deste tipo relativos a outras subtacircncias diferen-

tes daquela a que V Woolf chama ldquolife itselfrdquo (e a que noacutes parafraseando Hegel chamaacutemos a

substacircncia universal de todo o aparecimento) Mas esses significados parciais natildeo satildeo fecha-

dos em si (natildeo se quedam na unidade parcial de que de cada vez se trata com que de cada vez

se lida etc) e de facto natildeo satildeo significados na acepccedilatildeo da palavra que aqui estaacute em causa

senatildeo porque aquilo relativamente ao qual tecircm um valor indiciaacuterio (as substacircncias parciais)

tem por sua vez valor indiciaacuterio ou revelador relativamente agrave vida

Em suma podemos exprimir tudo isto do seguinte modo o que estaacute em causa no fenoacute-

meno do significado que V Woolf potildee especialemente em foco eacute sempre a determinaccedilatildeo do

comportamento da proacutepria vida ndash e nesse sentido a determinaccedilatildeo da identidade (da vida que

nos tem em seu poder)127

Mas nada disso impede que a identidade global da vida se manifeste mediante uma

multiplicidade de substacircncias parciais (a infacircncia o Veratildeo o mundo acadeacutemico etc) ndash que

satildeo justamente percebidos todos eles como manifestaccedilotildees da vida (ie da substacircncia univer-

sal de todo o aparecimento)

Os diversos aspectos que consideraacutemos habilitam-nos agora a desenhar com mais ni-

tidez o ponto a que queriacuteamos chegar e em relaccedilatildeo ao qual aquilo que encontramos em V

Woolf eacute particularmente elucidativo aleacutem da experiecircncia de todas as outras modalidades de

significado haacute tambeacutem em noacutes uma contiacutenua experiecircncia do significado do que encontramos

no sentido privilegiado por V Woolf

A travessia perceptiva constitui ao mesmo tempo o ponto de partida de todo o tipo de

sequecircncia que antes analisaacutemos e o ponto de partida desta experiecircncia do significado no sen-

127

O que estaacute efectivamente em causa eacute algo como uma contiacutenua negociaccedilatildeo um ldquobraccedilo de ferrordquo

pelo ldquodomiacuteniordquo da situaccedilatildeo Assim a tentativa de determinar o significado da vida natildeo eacute senatildeo uma

tentativa de domesticar a vida ndash ie de saber o que a vida propriamente ldquoeacuterdquo e de em consonacircncia com

essa identificaccedilatildeo traccedilar um rumo que ldquoleve a bom portordquo (que leve agrave consecuccedilatildeo do desejo de si nos

ter-mos de Hegel) com um miacutenimo de interferecircncia da vida ou tornando a vida numa ldquoforccedila uacutenicardquo

colaborante Poreacutem essa tentativa natildeo inibe a vida de a cada momento se impor como senhora de

noacutes Isto eacute essa tentativa de domesticaccedilatildeo da vida natildeo inibe a vida a) de mostrar o seu caraacutecter

fugidio de mostrar que tem muitos aspectos inexplorados etc e b) de se mostrar como uma entidade

que natildeo se deixa confinar e que a qualquer momento pode escapar das ldquogrilhetasrdquo que um determi-

nado significado lhe procura impor

389

tido especialmente fixado por V Woolf Ora para o exprimir na terminologia de V Woolf

aleacutem da experiecircncia dos factos haacute tambeacutem experiecircncia do significado

Em suma haacute dois tipos de experiecircncia continuamente a serem urdidos E o que carac-

teriza a forma da experiecircncia eacute que ela liga de raiz uma experiecircncia da vida a experiecircncia da

ldquolife itselfrdquo que tem por objecto a proacutepria vida (enquanto a vida eacute objecto de si mesma)

Vejamos um pouco mais detidamente este aspecto

O primeiro ponto a considerar eacute o seguinte

Na perspectiva proposta por V Woolf todas as coisas que se passam todos os objec-

tos ndash numa palavra todos os dados da travessia perceptiva (e toda a transformaccedilatildeo empiacuterica

da travessia perceptiva) satildeo automaticamente percebidos e resgistados como dados compor-

tamentais da vida enquanto tal128

Deixando de fora preocupaccedilotildees terminoloacutegicas podemos dizer que se trata de qual-

quer coisa como uma permanente avaliaccedilatildeo comportamental (uma avaliaccedilatildeo de caraacutecter uma

avaliaccedilatildeo de valor etc) da proacutepria vida

A avaliaccedilatildeo continuamente levada a cabo eacute extraordinariamente sensiacutevel V Woolf

fala de uma ldquoplaca sensiacutevelrdquo que eacute impressionaacutevel pelo significado da miriacuteade de impressotildees

que chega e nos ldquoinvaderdquo a cada momento da travessia perceptiva (combinando-se entre si e

combinando-se com as impressotildees antecedentes e aquelas que se seguem) Esta ldquoinvasatildeordquo de

impressotildees estaacute de algum modo registada e produz constelaccedilotildees vividas como traccedilos de ca-

raacutecter da proacutepria vida ndash um ldquoretratordquo de como ela eacute

A estrutura da experiecircncia do significado eacute aliaacutes um pouco mais complexa do que a

descriccedilatildeo ateacute aqui apresentada deixa entrever

128

Passa-se portanto em relaccedilatildeo agrave vida algo semelhante ao que se passa na percepccedilatildeo de outrem Si-

lenciosamente mas num cuidado registo todos os gestos todas as ocorrecircncias todos os silecircncios to-

das as palavras todas as atitudes todos os momentos de forccedila e de fragilidade todas as hesitaccedilotildees e

todas as intervenccedilotildees eneacutergicas todas as acccedilotildees e todas as omissotildees etc satildeo integrados numa pecu-

liar siacutentese que eacute ao mesmo tempo avaliadora Por outras palavras tudo se passa como se ndash de forma

discreta mas eficaz ndash os outros estivessem sempre a ser examinados por um examinador atento que a

pouco e pouco vai reunindo todos os elementos relevantes e produzindo qualquer coisa como um apu-

ramento No caso das pessoas (no exame de outrem) esse exame natildeo eacute soacute contiacutenuo (acompanhando

ininterruptamente a proacutepria travessia perceptiva do contacto com eles) na verdade nunca acaba E

tambeacutem eacute assim no caso da vida (e no caso das outras ldquosubstacircnciasrdquo de que se fala)

390

Com efeito verifica-se aqui aquilo que corresponde ao que dissemos quando focaacutemos

que o significado no sentido que o termo toma em V Woolf tambeacutem pode ter lugar em rela-

ccedilatildeo a poderes substanciais parciais mas que esses significados relativos a poderes substanciais

parciais satildeo por assim dizer transitivos em relaccedilatildeo agrave vida de que os poderes substanciais

parciais aparecem como manifestaccedilotildees (tambeacutem se pode dizer como traccedilos de caraacutecter da

proacutepria vida)

Assim neste sentido a travessia perceptiva natildeo constitui apenas ldquosignificados glo-

baisrdquo

De facto produz algo mais complexo que inclui tambeacutem ldquolinhasrdquo de significado par-

ciais que a) tambeacutem podem ser relativas natildeo apenas a poderes substanciais parciais de acircmbito

mais restrito mas ter um valor indiciaacuterio relativamente a poderes substanciais parciais mais

amplos e assim sucessivamente mas tudo de tal modo que b) todas estas linhas de significa-

dos parciais tecircm sempre como verdadeiro terminus ad quem da remissatildeo (do valor indiciaacuterio

revelador etc) a proacutepria vida (a substacircncia primordial de todo o aparecimento a substacircncia

do espinosismo vital etc)129

129

Vendo bem o que estamos a desenhar eacute o facto de o complexo de significados funcionais natildeo ser o

uacutenico factor decisivo para determinar o que uma ldquocoisardquo eacute Na verdade haacute um outro factor que tinge

de raiz o que aparece O significado da vida apesar de ser excessivo em relaccedilatildeo agraves determinaccedilotildees

ldquocoisaisrdquo e agraves determinaccedilotildees funcionais estaacute de tal modo entranhado no modo como nos aparece cada

uma das ldquocoisasrdquo que aparecem que torna tanto as determinaccedilotildees ldquocoisaisrdquo como as determinaccedilotildees

funcionais como subsidiaacuterias ou dependentes do significado da vida Em suma o significado da vida

de cada vez vigente estaacute ldquoentranhadordquo no que aparece e ldquocolorardquo o que aparece de tal modo que o que

aparece ocorre ldquotingidordquo com essa determinaccedilatildeo Esta perspectiva chama precisamente a nossa aten-

ccedilatildeo para o facto de o campo da presenccedila para que estamos abertos e o campo da experiecircncia que tem

lugar em noacutes natildeo se esgotar num campo de presenccedila nem de puros significados natildeo-funcionais nem

de significados funcionais (relativos ao expediente da vida etc) ndash da mesma forma chama a atenccedilatildeo

para a circunstacircncia de que a experiecircncia que ocorre em noacutes natildeo se esgotar nem numa experiecircncia de

puros significados natildeo-funcionais nem numa experiecircncia de significados funcionais pois tambeacutem

passa decisivamente por uma experiecircncia de significados no sentido que agora vimos uma experiecircncia

da vida correspondente ao fenoacutemeno do ldquoespinosismo afectivordquo

Ora eacute certo que a experiecircncia do significado da vida tem um caraacutecter em certo sentido mais subtil

mais difiacutecil de seguir satildeo mais evidentes os significados funcionais singulares de cada ldquocoisardquo (o mo-

do como cada ldquocoisardquo aparece etc) do que a determinaccedilatildeo do significado de cada ldquocoisardquo no quadro

do significado da vida (como momento revelador da identidade da vida etc) De facto agrave partida o

significado de cada ldquocoisardquo e o significado da vida parecem radicalmente independentes jaacute que vence

a pressuposiccedilatildeo do que o que a ldquocoisardquo ldquoeacuterdquo (o que significa a funccedilatildeo que cumpre etc) se abstrai da

identidade da vida ndash cada ldquocoisardquo ldquoeacute o que eacuterdquo se assim se pode dizer seja a identidade da vida qual

391

for Poreacutem o que estamos a ver eacute exactamente o contraacuterio Consoante a identidade ou o significado da

vida a ldquomesmardquo ldquocoisardquo aparece de um modo completamente distinto (mostra propriedades distintas

umda de posiccedilatildeo relativa na economia vital do que aparece etc) Pode dizer-se que um dado ldquoobjec-

tordquo eacute factualmente o ldquomesmordquo seja a identidade da vida qual for ndash mas na verdade as transformaccedilotildees

por que esse ldquomesmordquo ldquoobjectordquo passa consoante a identidade da vida seja x ou y fazem com que natildeo

haja ldquomesmidaderdquo entre o ldquoobjectordquo visto sob a identidade da vida x ou sob a identidade da vida y

Isto leva-nos a um segundo ponto Eacute que sendo assim natildeo estamos numa situaccedilatildeo de neutralidade

quanto ao significado concreto que a vida assuma Quer dizer passa-se com o ldquoobjectordquo ldquovidardquo o

mesmo que vale para qualquer outro ldquoobjectordquo (para qualquer outra ldquocoisardquo) interessa determinar que

ldquoobjectordquo eacute a vida E interessa determinar que ldquoobjectordquo eacute a vida (com que aspecto aparece a vida co-

mo deve ser entendida como deve ser tomada como deve ser concebida como deve ser interpretada

etc) na medida em que o que a vida ldquoeacuterdquo (o que eacute proacuteprio da vida o seu significado etc) eacute algo que

nos afecta eacute algo que eacute connosco etc e na medida em que o significado da vida tinge a totalidade das

ldquocoisasrdquo com que lidamos Estamos constituiacutedos numa tensatildeo em relaccedilatildeo ao significado da vida por-

que o significado que a vida assuma tem consequecircncias com o modo de lidar com ela ndash e tanto quer

dizer o significado que a vida assuma tem consequecircncias com o modo de lidar com tudo o que apare-

ce enquanto tudo o que aparece eacute manifestaccedilatildeo da vida

O que vimos em secccedilotildees anteriores e em especial ao considerar Hegel foi que a definiccedilatildeo do ldquoobjec-

tordquo estaacute em relaccedilatildeo a um desejo de si ao que estaacute fundamentalmente em causa etc O que estaacute em jo-

go na determinaccedilatildeo do significado do ldquoobjectordquo eacute o modo como se atravessa neste desejo de si Quer

dizer o que se pretende determinar quando se pretende determinar o significado da vida eacute tanto o mo-

do como a vida nos possibilita quanto o modo como a vida nos resiste (e tanto quer dizer o modo co-

mo os ldquoobjectosrdquo com que deparamos nos possibilitam ou nos resistem no acircmbito de um determinado

significado da vida) Quer dizer a vida adquire um determinado significado consoante o complexo de

intervenccedilotildees ou de interferecircncias com que participa no curso do desejo de si Isto quer dizer vaacuterias

coisas Quer dizer antes de mais que o significado da vida pode adquirir um leque muitiacutessimo variado

de opccedilotildees de significaccedilatildeo (pode adquirir muacuteltiplos significados pode ser matildee ou madrasta pode ser

uma viagem ou um tormento pode ser um sonho etc) ndash o significado da vida mudaraacute radicalmente

(pode constituir-se em contraacuterios em adversaacuterio ou em aliado por exemplo) se for em geral colabo-

rante ou pelo contraacuterio hostil O que estamos a procurar mostrar eacute que o significado da vida eacute muito

variaacutevel na medida em que haacute muacuteltiplos significados possiacuteveis (ie a vida eacute infinitamente desdobraacutevel

quanto ao seu significado pode assumir muitos e muito diversos significados etc) Mas quer dizer

tambeacutem que a flutuaccedilatildeo diz respeito natildeo apenas agrave vida mas ao que aparece e agrave arrumaccedilatildeo que o que

aparece viraacute a tomar consoante o significado da vida adoptado

Considere-se a tiacutetulo de exemplo a unidade parcial ldquodiardquo Considere-se por um lado a quantidade de

unidades parciais em que a totalidade ldquodiardquo pode ser decomposta ndash unidades parciais derivadas que de

todo o modo reportam sempre agrave unidade parcial ldquodiardquo E considere-se por outro lado a quantidade de

unidades parciais a que a totalidade ldquodiardquo pode ela mesma reportar Mais ainda considere-se como a

unidade parcial ldquodiardquo ndash por exemplo este dia presente ndash pode resultar em significados totalmente dife-

rentes (e ateacute eventualmente contraditoacuterios) se for vista no acircmbito da unidade parcial ldquofamiacuteliardquo no acircm-

bito da unidade parcial ldquomundo acadeacutemicordquo no acircmbito da unidade parcial ldquohobbyrdquo etc O que eacute deci-

sivo eacute que tudo isto pode adquirir configuraccedilotildees muito diversas consoante o significado da vida crista-

lizado Assim a paisagem das diferentes unidades parciais muda consoante o significado dominante

392

Ora tudo isto potildee a questatildeo de saber o que eacute que em uacuteltima anaacutelise quer dizer ldquoexpe-

riecircncia de significadosrdquo no sentido que o termo tem para V Woolf Potildee a questatildeo de saber em

que sentido tambeacutem aqui se fala de ldquoexperiecircnciardquo

No princiacutepio da presente investigaccedilatildeo procuraacutemos fixar o que constitui a experiecircncia

enquanto tal Mas o quadro em que o fizemos eacute claramente o da experiecircncia dos factos no

sentido que V Woolf daacute a este termo ndash e a questatildeo estaacute em saber ateacute que ponto o conceito eacute

transponiacutevel para a esfera dos significados (ateacute que ponto haacute tambeacutem aqui algo de equivalente

agravequilo que entatildeo vimos ser proacuteprio da experiecircncia)

Se como vimos um dos pontos decisivos na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία eacute a transgressatildeo

do dado (o excesso em relaccedilatildeo a ele o arredondamento das doaccedilotildees e a sua conversatildeo em es-

tados-de-coisas permanentes em instacircncias de totalidade com uma amplitude incomensura-

velmente maior do que a da base sobre a qual se funda a respectiva projecccedilatildeo etc) a questatildeo

eacute entatildeo a de saber o que eacute que corresponde a isto na esfera dos significados no sentido espe-

cialmente focado por V Woolf ndash se tambeacutem haacute transgressatildeo excesso arredondamento etc

(e nesse caso de que forma) ndash ou se a experiecircncia dos significados no sentido especialmente

focado por V Woolf tem uma estrutura ou uma forma diferente

Vendo bem a esfera do significado no sentido de V Woolf estaacute de raiz marcada por

qualquer coisa como transgressatildeo um excesso ou um arredondamento desta ordem

que as unifica E daqui decorre que mesmo que o complexo de ldquounidades parciaisrdquo fosse o ldquomesmordquo

se fosse visto no acircmbito de um ou de outro significado global mudaria radicalmente a ldquopaisagem das

unidades globaisrdquo ndash na medida em que o significado da vida modela a proacutepria multiplicidade do que

aparece (ie os momentos circunscritos da sua proacutepria travessia) O que isto quer dizer eacute que as ldquomes-

masrdquo funccedilotildees e as ldquomesmasrdquo totalidades correspondem como que a espeacutecies da instacircncia fundamental

de determinaccedilatildeo que eacute o significado global da vida Assim a unidade parcial ldquodiardquo pode resultar em

significados totalmente diferentes se for vista no acircmbito da unidade parcial ldquofamiacuteliardquo no acircmbito da

unidade parcial ldquomundo acadeacutemicordquo no acircmbito da unidade parcial ldquohobbyrdquo etc mas o que eacute decisivo

eacute que a unidade parcial ldquodiardquo pode resultar em significados totalmente diferentes (e ateacute eventualmente

contraditoacuterios) se for vista no acircmbito da unidade parcial ldquofamiacuteliardquo no acircmbito da unidade parcial

ldquomundo acadeacutemicordquo no acircmbito da unidade parcial ldquohobbyrdquo etc consoante o significado determinado

e vigente da vida em cujo acircmbito as unidades parciais ldquofamiacuteliardquo ldquomundo acadeacutemicordquo ou ldquohobbyrdquo satildeo

isoladas e adquirem o seu proacuteprio significado Mais as ldquomesmasrdquo funccedilotildees e as ldquomesmasrdquo unidades

parciais ganham ou perdem protagonismo consoante o significado global de que cada vez fazem parte

e consoante o complexo de relaccedilotildees que estabelecem com todas as outras funccedilotildees e totalidades no acircm-

bito desse significado

393

Com efeito tudo nesta esfera tem de raiz que ver com as doaccedilotildees (com aquilo que

ocorre) natildeo ficarem fechadas no seu proacuteprio acircmbito (natildeo ficarem a ser pura e simplesmente

aquilo que satildeo com o teor que eacute o seu etc) antes serem convertidas em fixaccedilotildees de algo

para-laacute-de-si em fixaccedilotildees de totalidade

Quer dizer a) haacute algo como uma travessia (e o significado refere-se tanto ao curso da

travessia quanto ao momento da travessia em que se estaacute) b) haacute algo como uma travessia de

arredondamento (por via da qual a travessia dos dados estaacute indissociavelmente ligada a uma

projecccedilatildeo do dado para laacute da proacutepria esfera da doaccedilatildeo)

Mais natildeo apenas as doacccedilotildees satildeo convertidas em fixaccedilotildees de algo para-laacute-de-si (em

fixaccedilotildees de totalidade etc) como na verdade satildeo convertidas em fixaccedilotildees com uma espeacutecie

de totalidade global omni-englobante ndash que eacute aquilo que estaacute sempre em jogo na esfera do

significado tal como eacute concebida por V Woolf

Quer dizer desde o princiacutepio que o campo dos significados nesta acepccedilatildeo eacute um cam-

po de fenoacutemenos decorrente de uma extraordinaacuteria projecccedilatildeo da projecccedilatildeo em virtude da qual

se empresta agrave determinaccedilatildeo registada um estatuto completamente estranho agrave sua amplitude

proacutepria ndash o estatuto de ser algo que ldquodizrdquo ou que define a proacutepria vida

Ou seja tal como aquilo a que V Woolf chama experiecircncia dos factos tambeacutem aquilo

a que chama ldquoexperiecircncia dos significadosrdquo estaacute votado agrave constituiccedilatildeo de totalidades e a resul-

tados da travessia perceptiva E acontece adicionalmente que a amplitude da abertura do acircn-

gulo proacuteprio da experiecircncia do significado eacute ainda maior do que aquilo que tem lugar na expe-

riecircncia a que V Woolf chama experiecircncia dos factos (e a que noacutes chamamos ldquoexperiecircncia do

significadordquo)

Assim a proacutepria existecircncia de significado na acepccedilatildeo que aqui estaacute em causa jaacute im-

plica que o acircngulo de abertura se expandiu muito para laacute do acircngulo da αἴσθησις e da μνήμη

(de tal modo que assumiu na verdade o caraacutecter de nada menos do que um acircngulo total) Isto

eacute o troccedilo de doaccedilatildeo jaacute percorrido assume de cada vez um papel tal que eacute ele (eacute a travessia

dele e eacute aquilo que se deu manifestou no curso dessa travessia etc) que fica a definir o teor

da vida (como ela ldquoeacuterdquo a determinaccedilatildeo que eacute a sua etc)

Mas isto natildeo eacute tudo e ainda natildeo permite perceber em toda a sua amplitude o nexo entre

a estrutura da ἐμπειρία (tambeacutem poderiacuteamos dizer a experiecircncia dos factos) e a experiecircncia

do significado (no sentido que V Woolf daacute a estes termos)

394

Com efeito a este primeiro elemento de similitude ndash a sintonizaccedilatildeo por algo muito

para laacute da esfera desgarrada das αἰσθήσεις e das μνῆμαι ndash vem juntar-se um segundo a que

podemos chamar a componente da antecipaccedilatildeo

Com efeito o que tambeacutem estaacute em causa no fenoacutemeno do significado eacute que o troccedilo de

doaccedilatildeo de cada vez jaacute percorrido assume de cada vez um papel tal que eacute ele (eacute a travessia de-

le aquilo que se deu ou manifestou no curso dessa travessia etc) que tendo em conta o arre-

dondamento em que a experiecircncia sempre de novo recai fica a definir a vida (o seu teor

como ela eacute a determinaccedilatildeo que eacute a sua etc)

Quer dizer tambeacutem na experiecircncia do significado na acepccedilatildeo de V Woolf a travessia

dos dados estaacute indissociavelmente ligada a uma projecccedilatildeo do dado para laacute da proacutepria esfera da

doaccedilatildeo ndash e isto de tal modo que neste caso a projecccedilatildeo pode passar por unidades parciais

mas vai sempre ter como acabamos de observar a um terminus ad quem global (a vida) Isto

eacute o significado fixado natildeo se limita a cobrir as parcelas jaacute tidas mas de facto estende-se so-

bre a totalidade da vida

Isto quer dizer por um lado que estamos originariamente vocacionados para a conti-

nuaccedilatildeo da travessia perceptiva ndash que eacute o lugar da manifestaccedilatildeo Por outras palavras a obser-

vaccedilatildeo da vida e do nosso comportamento tem as suas ldquoantenasrdquo sempre jaacute dirigidas a uma

captaccedilatildeo de ldquomaisrdquo

E o que isto nos indica eacute que apesar de a base da projecccedilatildeo serem totalidades parciais

a projecccedilatildeo vai sempre ter como acabamos de observar a um terminus ad quem global (a to-

talidade da vida) Por outras palavras a nossa relaccedilatildeo com a vida assenta sempre jaacute na fixaccedilatildeo

de um resultado global

Vejamos um pouco melhor o que queremos dizer com isto

Como encontramos descrito em V Woolf o ldquobombardeamentordquo daquilo a que ela cha-

ma a ldquoplaca sensiacutevelrdquo (a ldquochapa fotograacuteficardquo da nossa relaccedilatildeo com a vida) daacute de cada vez um

resultado global (como se se tratasse de um imenso sistema de forccedilas feito das mil coisas

com cuja presenccedila somos ldquobombardeadosrdquo na travessia dos instantes)

Quer dizer de cada vez o retrato que se estaacute a ter da proacutepria vida corresponde a uma

determinada avaliaccedilatildeo do ldquocaraacutecterrdquo da vida (sc da sua atitude ou do seu comportamento para

com a ipseidade) E aqui o processo eacute de cada vez um processo em aberto

395

O que caracteriza este processo eacute precisamente o facto de estar vocacionado para a

continuaccedilatildeo da travessia perceptiva (que eacute o lugar da manifestaccedilatildeo dos traccedilos de caraacutecter da

vida e estaacute sempre exposto agrave possibilidade de surpresa) Por outras palavras a observaccedilatildeo da

vida e do seu comportamento tem as suas ldquoantenasrdquo sempre jaacute dirigidas a uma captaccedilatildeo de

mais

Mas sendo assim isto natildeo impede um outro traccedilo fundamental que vai num sentido

oposto e que eacute justamente caracteriacutestico da ἐμπειρία

Se tiveacutessemos apenas uma perspectiva mneacutesica a expectativa em relaccedilatildeo agrave continua-

ccedilatildeo da travessia perceptiva (a supor que uma perspectiva mneacutesica teria alguma antecipaccedilatildeo da

continuaccedilatildeo da doaccedilatildeo) nada prescreveria em relaccedilatildeo ao seu teor ndash seria aberta quanto ao

teor E o que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία (e tambeacutem da experiecircncia dos significados na acep-

ccedilatildeo de V Woolf) eacute natildeo ser assim

Mais precisamente o que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία (e tambeacutem da experiecircncia dos

significados na acepccedilatildeo de V Woolf) eacute a τοῦ ομοίου μετάβασις ndash a projecccedilatildeo de homogenei-

dade feita a partir da travessia perceptiva jaacute havida e daquilo que nela se apurar

O negoacutecio da experiecircncia eacute sempre fixaccedilatildeo domesticaccedilatildeo eliminaccedilatildeo da incoacutegnita ndash

tatildeo amplamente e tatildeo totalmente quanto possiacutevel Podemos resumir isto dizendo que a expe-

riecircncia do significado tem a forma de um ἀνάλογον da experiecircncia do caraacutecter ndash como se se

tratasse de uma fixaccedilatildeo do caraacutecter da vida

Assim sendo o teor do significado que de cada vez resulta da travessia perceptiva eacute

convertido numa projecccedilatildeo que trata de antecipar (ie domesticar) o resto da travessia E isto

vale para a experiecircncia do significado natildeo menos do que para a experiecircncia dos factos ndash com

a diferenccedila de que o que estaacute em causa na experiecircncia do significado eacute qualquer coisa como

uma determinaccedilatildeo de balanccedilo total de definiccedilatildeo ou caracterizaccedilatildeo global da vida

Dito de outro modo a resultante que de cada vez estaacute determinada pela travessia do

significado da vida natildeo diz apenas a vida como ela foi Estaacute silenciosamente constituiacuteda como

reconhecimento dela no seu teor ndash e tanto quer dizer que avanccedila desde jaacute o que haacute a esperar

do seu comportamento no resto do tempo (no tempo a vir no que viraacute a ser etc) em suma

avanccedila desde jaacute como a vida seraacute

Acontece que como vimos em secccedilotildees anteriores e agora natildeo interessa considerar se-

natildeo para lanccedilar o que se segue isto pode gerar conflito em virtude de uma peculiar duplicida-

396

de que marca tanto a experiecircncia dos factos quanto a experiecircncia dos significados porque cor-

responde a um traccedilo distintivo da proacutepria experiecircncia

Por um lado a experiecircncia estaacute sempre dependente da continuaccedilatildeo do dado (ie estaacute

sujeita a revisatildeo ou infirmaccedilatildeo estaacute aberta ao que vier etc) E isso significa justamente uma

inanulaacutevel (maior ou menor) quantidade de revisotildees ndash uma multiplicidade a perder de vista de

acontecimentos de περιπέτεια e ἀναγνώρισις no sentido que Aristoacuteteles daacute aos termos na

Poeacutetica

Mas por outro lado esta componente de limitaccedilatildeo em virtude da qual sempre lhe es-

capa a travessia que ainda natildeo fez de modo algum impede que o essencial da experiecircncia seja

sempre uma tentativa de produzir jaacute fixaccedilatildeo para laacute do dado (e ateacute mesmo como vimos uma

antecipaccedilatildeo de todo o dado)130

Ora como dissemos o essencial da experiecircncia eacute uma tentativa natildeo apenas da domes-

ticaccedilatildeo do natildeo-dado mas a par disso da domesticaccedilatildeo total do natildeo-dado E isto de tal modo

que por mais que lhe escape a travessia qua ainda natildeo fez a experiecircncia tende a embarcar na

fixaccedilatildeo ou no reconhecimento que ela mesma potildee e a natildeo alimentar qualquer expectativa de

que venha a verificar-se uma significativa reviravolta

130

Se por um lado o proacuteprio significado global de cada vez fixado natildeo tem caraacutecter absoluto ou defi-

nitivo por outro o significado de cada vez fixado confronta os dados a cada momento recolhidos

Quer dizer o significado da vida antecipa os dados tambeacutem num outro sentido os dados que viratildeo na

continuaccedilatildeo da travessia nunca seratildeo neutros mas estaratildeo originalmente confrontados com o signifi-

cado projectado ou antecipado (com o facto de confirmarem ou infirmarem o significado projectado

ou antecipado) Em suma se o acircngulo do significado na acepccedilatildeo aqui em causa nunca eacute menor do que

aquela que corresponde agrave vida entatildeo a afericcedilatildeo dos dados diz da vida (de como eacute) tambeacutem em con-

fronto com os dados anteriores (diz como eacute em confronto com o como foi) E isto de tal modo que se

as unidades parciais nunca satildeo relativos a isto e agravequilo num quadro de fechamento nessas mesmas uni-

dades entatildeo estatildeo sempre em ligaccedilatildeo agrave vida no seu todo enquanto o como a vida eacute estaacute em confronto

com o como a vida foi Isto eacute tudo aquilo que aparece tem por determinaccedilatildeo adicional corresponder a

um momento revelador do que a vida eacute em confronto com o que a vida foi na forma de reconhecimen-

to do que a vida foi e ainda eacute ou na forma de revisatildeo do que a vida eacute em contraste com o que a vida

foi E faccedilamos notar adicionalmente que isto mostra que o movimento de determinaccedilatildeo do significa-

do da vida natildeo eacute apenas ldquodescendenterdquo (da vida para a multiplicidade dos seus momentos) mas eacute tam-

beacutem ldquoascendenterdquo (da multiplicidade dos seus momentos para a vida) Quer dizer se na acepccedilatildeo aqui

em causa o que constitui o significado eacute que cada um dos seus momentos determina a vida (mostra

como ela eacute revela-a etc) isso tambeacutem quer dizer que um dado momento futuro poderaacute a partir de si

exercer uma tal pressatildeo sobre o significado vigente da vida no momento dessa ocorrecircncia que o signi-

ficado da vida natildeo resiste e a sua determinaccedilatildeo tem como factor essencial o teor desse momento

397

Em suma por mais provisoacuteria que seja ou que se saiba (por mais que o processo da

experiecircncia seja de cada vez um processo em aberto) a experiecircncia tem sempre a forma de

uma fixaccedilatildeo provisoacuteria do definitivo ndash fixaccedilatildeo essa que ao embarcar naquilo que estabelece

diminui o peso do que tem de provisoacuterio e aumenta o peso do que tem de definitivo

No que diz respeito agrave experiecircncia do significado na concepccedilatildeo de V Woolf isto tra-

duz-se no facto de a visatildeo do ldquocaraacutecterrdquo da vida que de cada vez estaacute apurado pela ldquoplaca sen-

siacutevelrdquo tender a valer como algo adquirido tambeacutem para o futuro ndash de tal modo que se se vier a

registar algo de natildeo conforme com esse resultado fixado (ie quando haacute projecccedilatildeo antecipa-

toacuteria que se ver infirmada por doaccedilatildeo) se gera espanto Ou mais precisamente aquela forma

de θαυμάζειν inverso ndash de espanto com as coisas natildeo serem como valia por aquilo que tinham

de ser ndash que constitui uma das modalidades do espanto a que Aristoacuteteles faz referecircncia131

Isto mostra-nos que por um lado estamos originariamente vocacionados para a conti-

nuaccedilatildeo da travessia perceptiva (que eacute o lugar da manifestaccedilatildeo) Por outro lado no entanto o

lugar da manifestaccedilatildeo eacute tambeacutem um lugar sempre exposto agrave possibilidade de espanto

Mas aqui importa tambeacutem levar em conta um outro aspecto Estas unidades a que diz

respeito a experiecircncia dos significados podem corresponder como vimos a ldquopoderes substan-

ciaisrdquo meramente parciais de amplitude variaacutevel E isso pode levar a pensar ou a) que este ti-

po de significado natildeo tem necessariamente que ver com a uni-dade ldquototalrdquo ou b) que de todo

o modo jaacute haacute unidades parciais no processo que leva agrave construccedilatildeo da unidade total (a proacutepria

vida)

Acontece poreacutem como tambeacutem vimos que este facto acaba por fazer perder de vista o

fundamental

Na verdade a peculiar modalidade de significado para que V Woolf chama a atenccedilatildeo

caracteriza-se justamente pela propriedade de nunca se quedar na ldquounidade parcialrdquo que de ca-

da vez parece constituir o seu foco

Se os significados podem ser relativos a unidades de amplitude variaacutevel (a infacircncia o

Veratildeo o mundo acadeacutemico etc) nunca satildeo relativos a essas unidades num quadro de fecha-

mento nelas o que constitui o significado como significado no sentido de V Woolf eacute a liga-

ccedilatildeo que sempre jaacute tem agrave ldquolife itselfrdquo (agrave vida no seu todo) e o facto de corresponder agrave compre-

131

Cf Carvalho Experience cause and wonder In Martins AM (ed) Cause knowledge and

responsibility LIT Verlag 2015

398

ensatildeo das unidades em causa como ldquotraccedilos de caraacutecterrdquo reveladores da vida ndash ou como tam-

beacutem podemos dizer como atributos ou modos da proacutepria vida

Este eacute o ponto decisivo as unidades parciais que entram na experiecircncia dos significa-

dos a que V Woolf presta especial atenccedilatildeo referem-se agrave totalidade e o que constitui o signifi-

cado na acepccedilatildeo aqui em causa eacute que a vida tambeacutem daacute isso (a infacircncia o Veratildeo o mundo

acadeacutemico etc) ndash de tal modo que isso determina a vida (mostra como ela eacute etc) Eacute algo des-

ta natureza que queremos pocircr em evidecircncia quando falamos da vida e de unidades de amplitu-

de mais ou menos restrita) como seus traccedilos de caraacutecter

E isto quer dizer que como apontaacutemos o acircngulo da experiecircncia do significado na

acepccedilatildeo de V Woolf nunca eacute menor do que aquele que corresponde agrave unidade total a aferi-

ccedilatildeo de qualquer significado diz da vida (de como ela eacute de como se comporta para com a ip-

seidade na tensatildeo inerente da ipseidade para o superlativo) o que se passa no trabalho diz da

vida (que tambeacutem inclui isso se manifesta nisso ndash quer dizer tem noccedilatildeo de uma indicaccedilatildeo de

como eacute) a infacircncia (haver a infacircncia) diz da vida o Veratildeo (haver o Veratildeo) diz da vida ndash e isto

eacute igualmente assim para todas as unidades parciais que se possam vir a constituir no acircmbito

da unidade total

O excesso sobre cada domiacutenio restrito estaacute sempre jaacute instalado Ou como tambeacutem po-

demos dizer seguindo Hegel na Fenomenologia qualquer relaccedilatildeo da auto-consciecircncia com

qualquer ldquoobjectordquo ndash qualquer ldquocoisardquo ndash eacute sempre jaacute uma relaccedilatildeo com a substacircncia universal

do que aparece

Precisamente por ser tal a vida natildeo se diz totalmente na infacircncia no Veratildeo no mundo

acadeacutemico natildeo se diz em cada uma dessas modalidades ou componentes de si tambeacutem natildeo

se diz soacute na conjugaccedilatildeo delas ndash quer dizer natildeo se esgota nelas na relaccedilatildeo singular entre elas

ou na relaccedilatildeo colectiva de todas com todas Tal como mutatis mutandis o olhar o sorriso os

gestos a maneira de falar a testa o modo de andar os tiques etc dizem de uma pessoa sem

a esgotarem (sem que cada uma destes aspectos esgote o que estaacute em causa no permanente

escrutiacutenio a que sujeita-mos os outros) e de tal modo que a relaccedilatildeo com cada um estaacute sempre

jaacute a ultrapassaacute-los em direcccedilatildeo agrave instacircncia total que todos revelam

Tudo isto permite perceber melhor o complexo de fenoacutemenos para que apontaacutevamos

ao dizer que para usarmos a terminologia de V Woolf a experiecircncia que continuamente tem

lugar em noacutes eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia dos factos e uma experiecircncia do significa-

do (quer dizer uma experiecircncia da proacutepria vida)

399

A experiecircncia da vida (a experiecircncia do significado na acepccedilatildeo proposta por V

Woolf) tem em certo sentido um caraacutecter mais subtil mais difiacutecil de seguir temos uma rela-

ccedilatildeo muito mais imediata com a fixaccedilatildeo de que estamos a trabalhar numa sala de que o traba-

lho tem que ver com esta tese que o dia estaacute quente ou frio etc e temos uma relaccedilatildeo menos

imediata com o significado que tudo isto tem na acepccedilatildeo proposta por V Woolf

Isto eacute pode natildeo ser imediatamente claro como eacute que este trabalho esta tarde etc se

inscreve como traccedilo de caraacutecter da proacutepria vida (como ldquogestordquo dela como momento revelador

da sua identidade do seu comportamento para connosco e para com o programa de natildeo-indi-

ferenccedila de que cada um de noacutes eacute portador etc)

Acontece poreacutem que nada disto impede que haja um contiacutenuo carregar de tudo o que

ocorre para o registo da experiecircncia do significado referida por V Woolf ndash para aquilo a que

ela chama a ldquoplaca sensiacutevelrdquo (quer dizer a chapa fotograacutefica de sensibilidade sismograacutefica

da experiecircncia dos significados ndash dos ldquotraccedilosrdquo daquilo a que V Woolf chama ldquoa proacutepria vi-

dardquo)

Assim o ponto decisivo a reter neste aspecto eacute a ideia de que as duas experiecircncias da

doaccedilatildeo ndash a experiecircncia daquilo a que V Woolf chama factos (e que inclui os significados

funcionais do expediente da vida) e a experiecircncia dos significados relativos agrave vida ndash correm

continuamente lado a lado sem parar (ou melhor misturadas entrelaccediladas uma na outra) E o

mesmo sucede no que diz respeito agrave experiecircncia dos factos (incluindo a experiecircncia dos signi-

ficados funcionais relativos ao expediente da vida) e agrave experiecircncia dos significados na acep-

ccedilatildeo de V Woolf as duas correm continuamente sem parar lado a lado (ou melhor mistura-

das uma com a outra)132

132

Abstraiacutemos aqui de tudo quanto tem quer ver com a descriccedilatildeo a que V Woolf tambeacutem procede de

como a experiecircncia do significado (e o processo de acumulaccedilatildeo de significados e da constituiccedilatildeo de

totalidades de significado que lhe corresponde) daacute lugar a episoacutedios de manifestaccedilatildeo ndash descargas de

significado em que o proacuteprio entra em contacto directo com as configuraccedilotildees do significado que de

forma latente se vatildeo constituindo naquilo a que aqui temos chamado ldquotravessia perceptivardquo A descri-

ccedilatildeo deste fenoacutemeno ndash dos ldquomoments of beingrdquo ou ldquomoments of visionrdquo ndash faz parte integrante da anaacuteli-

se da experiecircncia do significado que encontramos exposta nos ensaios (em cartas e no Diaacuterio) e estaacute

profusamente ilustrada na obra literaacuteria de V Woolf Mas natildeo cabe aqui considerar este aspecto ndash e

julga-se que a) embora a sua omissatildeo produza uma versatildeo bastante truncada daquilo que V Woolf tem

a dizer sobre esta mateacuteria e b) o facto de haver esses episoacutedios de epifania do significado molda deci-

sivamente a nossa experiecircncia do significado a nossa relaccedilatildeo com o significado (e tal quer dizer tam-

beacutem a nossa relaccedilatildeo com a vida) dado que natildeo podemos apresentar mais do que um esboccedilo os ele-

mentos que apresentaacutemos teratildeo de bastar O tema estaacute desenvolvido por Silva N Identidade e vida

400

Ora mesmo um breviacutessimo esboccedilo como este que aqui apresentamos natildeo pode dei-

xar de referir um ponto sem cuja menccedilatildeo o proacuteprio esboccedilo fica distorcido

Esse ponto eacute o seguinte a especificidade da experiecircncia do significado no sentido es-

pecialmente posto em foco por V Woolf tambeacutem passa pelo facto de ter um sistema de nexos

ou ligaccedilotildees (sc uma organizaccedilatildeo da multiplicidade do que aparece) muito diferentes daqueles

que satildeo proacuteprios da experiecircncia dos factos no sentido que V Woolf daacute a este conceito Quer

dizer aquilo a que V Woolf chama ldquoexperiecircncia dos significadosrdquo e aquilo a que chama ldquoex-

periecircncia dos factosrdquo satildeo regidos por nexos de afinidade muito diferentes

Assim a experiecircncia dos significados estabelece ligaccedilotildees que cruzam a experiecircncia

dos factos e tornam proacuteximo aquilo que na experiecircncia dos factos eacute distante e ateacute mesmo mui-

to distante ndash e vice-versa Em suma as duas experiecircncias seguem como que sistemas de ldquocris-

talizaccedilatildeordquo do dado completamente diversos

Eacute decisivo perceber que aleacutem do complexo de estados-de-coisas permanentes que

emerge da experiecircncia dos factos haacute tambeacutem o complexo de estados-de-coisas permanentes

que emerge da experiecircncia dos significados A experiecircncia que se faz em noacutes eacute ao mesmo

tempo o campo dos dois complexos (tem uma dupla ordem de determinaccedilotildees tem duas mor-

fologias sobrepostas etc)

Haacute entretanto um ponto que ainda natildeo fica suficientemente posto em relevo a partir

do que dissemos ndash e a respeito do qual pode suceder que aquilo que dissemos induza em erro

A experiecircncia do significado no sentido posto em relevo por V Woolf eacute uma expe-

riecircncia da vida como identidade global ndash em cujas matildeos estamos e de que em larga medida

depende o deferimento ou indeferimento do requerimento contido no programa de natildeo-indife-

renccedila que a ldquotestemunha globalrdquo que cada um de noacutes eacute traz consigo Ora uma tal caracteriza-

ccedilatildeo pode induzir um entendimento demasiado estrito daquilo a que V Woolf chama ldquolife it-

selfrdquo

Com efeito esta caracterizaccedilatildeo pode sugerir que se deixa de fora o proacuteprio programa

de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (o superlativo para que se tende) ndash como se a ldquolife itselfrdquo tivesse

que ver soacute com o ldquopalcordquo onde se cumpre ou natildeo cumpre esse programa com o ldquopoder subs-

em Virginia Woolf uma anaacutelise da expressatildeo literaacuteria de um problema filosoacutefico Universi-dade Nova

de Lisboa Tese de Doutoramento 2011 em especial nas paacuteginas 286-317

401

tancialrdquo que potildee o que aparece nesse ldquopalcordquo (e assim defere ou indefere o requerimento) e

nada mais

O que por fim se trata de vincar natildeo pretende negar que haacute algo assim como um ldquopal-

cordquo qualquer coisa de correspondente a uma unificaccedilatildeo desse ldquopalcordquo (do que ldquoentra em ce-

nardquo nele) num ldquopoder substancialrdquo (mesmo que se trate de um puro ldquofoco imaginaacuteriordquo em cu-

jas matildeos se vecirc posta a decisatildeo (o deferimento ou indeferimento) do programa superlativo ine-

rente ao si (agrave testemunha global no sentido referido) Acontece que no entanto a vida (ldquolife

itselfrdquo aquilo de que a experiecircncia do significado no sentido de V Woolf eacute experiecircncia) natildeo

se deixar conter nesses limites

Na verdade a vida (a instacircncia unificadora total correspondente agravequilo a que se cha-

mou ldquoespinosismo vitalrdquo) estaacute constituiacuteda de tal modo que inclui de facto tudo aquilo em que

a ldquotestemunha globalrdquo se vecirc embarcada

Isso inclui a proacutepria tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e o seu programa (o objecto ou o ter-

minus ad quem da pressatildeo o proacuteprio superlativo) E vendo bem tambeacutem inclui a proacutepria

ldquotestemunha globalrdquo que daacute consigo sempre jaacute ldquoembarcada em sirdquo ndash de sorte que isso mesmo

tende a ser percebido como manifestaccedilatildeo do mesmo ldquopoder substancialrdquo de que o aparecimen-

to eacute visto como expressatildeo

O que tal significa eacute que aquilo que estaacute continuamente a impressionar a ldquochapa sensiacute-

velrdquo de que fala V Woolf ndash aquilo que de forma silenciosa mas ininterruptamente estaacute conti-

nuamente a ser sujeito a um exame ou a uma leitura do seu comportamento a uma fixaccedilatildeo do

seu ldquocaraacutecterrdquo uma avaliaccedilatildeo do seu valor (relativamente agrave ipseidade numa tensatildeo de natildeo-in-

diferenccedila a si mesma) etc natildeo eacute soacute isso a que chamaacutemos o ldquopalcordquo (o aparecimento o ldquoob-

jectordquo no sentido de Hegel) e o ldquopoder substancialrdquo que o unifica ou de que o ldquopalcordquo eacute per-

cebido como manifestaccedilatildeo Na verdade aquilo que estaacute continuamente a impressionar a ldquocha-

pa sensiacutevelrdquo eacute na verdade tudo (no mais pleno e literal sentido do termo) ndash incluindo a proacute-

pria tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e o seu programa (o superlativo a cuja demanda se estaacute preso) e

a proacutepria ipseidade enquanto tambeacutem ela aparece a si mesma ou acontece a si mesma

Ou seja a vida em que nos temos corresponde justamente a um acontecimento de

abertura com tal dimensatildeo que abre a todas as ldquocoisasrdquo e nesse sentido a todos os momentos

da totalidade do que somos

Dito por outras palavras a nossa vida ndash a vida de cada um contida na sua proacutepria es-

fera ndash abre-se agrave totalidade do que laacute se encontra (abre-se agrave ldquovidardquo no sentido substantivo do

402

termo) na medida em que tem (ou crecirc ter) perspectiva aberta sobre a totalidade dela (na medi-

da em que tem ou crecirc ter um acesso desimpedido agrave totalidade dela em que a totalidade dela

estaacute ou passa por estar mapeada em que natildeo resta ou passa por natildeo restar nenhum acircngulo ce-

go em que pretensamente nada eacute deixado de fora etc)

Percebe-se neste passo a diferenccedila em relaccedilatildeo agravequilo que anteriormente se designava

como ldquovidardquo e a articulaccedilatildeo entre os dois sentidos do termo que assim se desenham

No curso anterior da nossa anaacutelise ldquovidardquo designava a totalidade do horizonte da ip-

seidade que estaacute em jogo em cada coisa que aparece etc Tratava-se da proacutepria vida enquan-

to condiccedilatildeo permanente de todos os intervenientes Mas o exerciacutecio natildeo focava ainda um as-

pecto a que estaacute sempre associada e que exprimimos quando falaacutemos da proacutepria vida como

objecto de si mesma

O que eacute decisivo eacute que a experiecircncia de mediccedilatildeo e avaliaccedilatildeo da vida inclui uno tenore

absolutamente todos os ingredientes da proacutepria vida (tudo aquilo que a faz a potildee de peacute etc)

De sorte que se trata de qualquer coisa como um auto-exame global (uma auto-avaliaccedilatildeo total

uma avaliaccedilatildeo do que estaacute ou natildeo estaacute a ser alcanccedilado uma avaliaccedilatildeo do ldquocaraacutecterrdquo ldquodisto tu-

dordquo etc)

Aquilo que encontramos eacute enfim a questatildeo da fita de Moumlbius mesmo que de um ou-

tro acircngulo

Em certo sentido o que acabamos de ver sobre a vida como objecto de si mesma e a

experiecircncia do significado (sc a experiecircncia da vida na acepccedilatildeo especialmente posta em rele-

vo por V Woolf) corresponde agrave multiplicidade dos intervenientes em torno dos quais orbita

tudo

Tudo orbita em torno da ipseidade (da ldquotestemunha globalrdquo na tensatildeo de natildeo-indifere-

nccedila que a liga a si mesma) a proacutepria ipseidade orbita em torno do superlativo (que assim

constitui tambeacutem como se procurou mostrar um ldquoprotagonistardquo de tudo) mas acresce ainda

que tanto a ipseidade quanto o programa de natildeo-indiferenccedila (a tensatildeo para o superlativo) de-

pendem do que aparece ndash e tanto quer dizer do poder substancial do aparecimento ndash que em

uacuteltima anaacutelise inclui tudo o mais (natildeo apenas o que entra em cena a cumprir ou incumprir o

programa do superlativo) o superlativo ainda por alcanccedilar jaacute estaacute em projecto na proacutepria

constituiccedilatildeo da ipseidade e o aparecimento (a vida) eacute sempre jaacute aquilo a que o requerimento

do superlativo se acha dirigido (e na verdade aquilo que parece pocircr a proacutepria ipseidade e a

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que lhe inere) inversamente a ipseidade natildeo soacute daacute consigo embar-

403

cada nisto tudo (desde logo em si mesma na tensatildeo de natildeo-indiferenccedila no projecto do super-

lativo na dependecircncia da vida e do seu curso etc) mas ao mesmo tempo eacute tambeacutem a condi-

ccedilatildeo que ldquoacenderdquo tudo isto (e nesse sentido o ldquopoderrdquo sem o qual nada disto tem partes ndash o

poder que confere poder a tudo isto)133

Esta estranha e irredutiacutevel unidade de cisatildeo da proacutepria vida eacute de certo modo a fita de

Moumlbius nuclear

Esta peculiar forma de complexidade que inclui a presenccedila dos termos em questatildeo uns

nos outros como componentes uns dos outros (de tal modo que cada um jaacute estaacute no centro com

que pode ser posto em contraste) significa que o que eacute exterior vai ateacute ao iacutentimo daquilo a que

eacute exterior

O que caracteriza uma fita de Moumlbius como vimos eacute a peculiaridade de por um lado

a fita ser composta de duas faces mas por outro lado natildeo ser de modo nenhum claro onde ter-

mina uma face e comeccedila a outra

Isto eacute se a nossa posiccedilatildeo corresponder a um momento da fita estamos perfeitamente

cientes de que estamos numa face e de que haacute uma segunda face em que natildeo estamos (que eacute

contraposta a essa etc) Poreacutem ao percorrer a fita damos inadvertidamente por noacutes jaacute na ou-

tra face ndash de tal modo que se pode dizer que a) haacute continuidade entre as duas faces e que b)

natildeo satildeo de modo nenhum claros os momentos de fronteira (o que assinala uma e a outra face)

Assim ainda que na verdade nunca abandonemos a face em que seguimos a cada momento

damos connosco ndash alternada inadvertidamente ndash numa e na outra face

Em suma a vida que acede agrave totalidade da vida eacute um momento da totalidade da vida

E tanto quer dizer eacute um dos muitos momentos da vida Ora apesar de a vida de cada um ser

apenas um momento eacute precisamente o acompanhamento integral de todos os momentos nesse

momento dela que de cada vez somos que permite que se gere uma identificaccedilatildeo positiva do

que a vida ldquoeacuterdquo ndash e isto porque em simultacircneo cada um de noacutes eacute tambeacutem algo dentro da tota-

133

Natildeo haacute portanto um soacute ldquoprotagonistardquo simples ndash o que se detecta eacute que haacute qualquer coisa como

uma multiplicidade uma complexidade irredutiacutevel de ldquoprotagonistasrdquo (uma figura se assim se pode

dizer com diversos focos constituiacuteda em funccedilatildeo de todos eles ndash com o centro ao mesmo tempo em to-

dos eles etc) Quer dizer ganha contornos algo de equivalente agravequilo que se encontra na anaacutelise da

ldquocomunicaccedilatildeo dos geacutenerosrdquo no Sofista de Platatildeo onde a procura de determinaccedilotildees monoeideacuteticas daacute

lugar ao encontro de inclusatildeo de uns nos outros com o ldquoingredienterdquo indispensaacutevel da constituiccedilatildeo da-

quilo que se suporia ldquosimplesrdquo

404

lidade que natildeo eacute apenas uma parte (uma parte iacutenfima) dela mas eacute em vez disso uma perspec-

tiva que a acompanha na iacutentegra

E tanto quer dizer a vida de cada um eacute um momento que se percebe a si mesmo como

intercepccedilatildeo de todos os restantes momentos como compreendendo ou envolvendo todos os

momentos ndash e como compreendendo e envolvendo todos os momentos no modo que vimos

em torno da ipseidade de tal modo que a proacutepria ipseidade orbita em torno do superlativo de

tal modo que a ipseidade e o programa de natildeo-indiferenccedila dependem do que aparece de tal

modo que o superlativo ainda por alcanccedilar jaacute estaacute em projecto na proacutepria constituiccedilatildeo da ip-

seidade e o aparecimento eacute sempre jaacute aquilo a que o requerimento do superlativo se acha diri-

gido de tal modo que a ipseidade natildeo soacute daacute consigo embarcada nisto tudo mas eacute tambeacutem a

condiccedilatildeo que acende tudo isto etc E eacute precisamente o acompanhamento integral de todos os

momentos nesse momento dela que de cada vez somos com as caracteriacutesticas que vimos o

que permite que se gere uma identificaccedilatildeo positiva do que a vida ldquoeacuterdquo ndash o que permite enfim

que se gere a identificaccedilatildeo do ldquocaraacutecterrdquo ldquodisto tudordquo que se gere um entendimento do que tu-

do isto quer dizer etc

405

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Page 2: Aspectos fundamentais da experiência da vida...RESUMO PALAVRAS-CHAVE: experiência, vida, não-indiferença, ipseidade, superlativo, possibili-dade, significado A tese que de seguida

Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessaacuterios agrave obtenccedilatildeo do grau

de Doutor em Filosofia (Especialidade em Antropologia Filosoacutefica) realizada sob a

orientaccedilatildeo cientiacutefica do Professor Doutor Maacuterio Jorge Pereira de Almeida Carvalho

AGRADECIMENTOS

Devo uma primeira menccedilatildeo aos Professores Doutores Antoacutenio de Castro Caeiro Carlos Joatildeo

Correia Luiacutes Umbelino Mafalda Eiroacute Gomes Maria Joatildeo Silveira Nuno Ferro Paulo Lima Pau-

lo Lourenccedilo e Siacutelvia Rosado por numa ou noutra fase da realizaccedilatildeo desta tarefa nela terem to-

mado parte ou a terem incentivado

Tenho uma diacutevida para com a Unidade de Investigaccedilatildeo e Desenvolvimento LIF ndash Linguagem In-

terpretaccedilatildeo e Filosofia sediada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e em es-

pecial para com o seu director o Professor Doutor Antoacutenio Martins por se ter associado a este

projecto

Tive a sorte de vir a ter como colegas no Departamento de Filosofia da Universidade Nova de

Lisboa um grupo de jovens investigadores excepcionalmente talentosos e empenhados que

acompanharam e contribuiacuteram significativamente para esta tarefa Lembro-me nesta hora de

Baacuterbara Silva Bernardo Enes Dias e Tomaz Fidalgo lembro-me de Nuno Marques da Silva e da

sua tese de Doutoramento intitulada ldquoIdentidade e Vida em Virginia Woolf ndash Uma anaacutelise da

expressatildeo literaacuteria de um problema filosoacuteficordquo ndash tese de que a minha eacute em muitos aspectos

herdeira e lembro-me em especial de Heacutelder Telo Samuel Oliveira e Vasco de Jesus cuja ami-

zade e generosidade excedeu em muito a que eu mereci

Esta tese deve-se ao Professor Doutor Maacuterio Jorge Carvalho Deve-se a ele antes de mais a

sua existecircncia material ndash por nunca se ter deixado vencer pela minha desorientaccedilatildeo e pela te-

nacidade que lhe foi necessaacuteria para levar a tese a bom porto E deve-se a ele principalmente

o conteuacutedo ndash que resulta de uma tentativa de fixar uma pequena parte das investigaccedilotildees a que

dedicou a vida

Natildeo posso esquecer todos aqueles que possam ter sido pessoalmente negligenciados ao longo

dos anos que esta tarefa durou Espero ainda ir a tempo de os alcanccedilar e de partilhar com eles

o que reste de caminho

Devo tambeacutem mencionar aqueles que natildeo estatildeo porque me abasteccedilo daquilo que deixaram

A uacuteltima palavra eacute para a famiacutelia Para a D Eduarda que me aceitou como um dos seus para a

minha avoacute e a minha matildee que satildeo as verdadeiras responsaacuteveis por tudo de bom que eu vier a

alcanccedilar para a Duda e a Mia que satildeo a minha casa Porque eacute precisamente isso que quero di-

zer tomo como minhas essas palavras amaldiccediloadas Obrigado por tudo

ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA EXPERIEcircNCIA DA VIDA

Bruno Pedro Peixoto Venacircncio

RESUMO

PALAVRAS-CHAVE experiecircncia vida natildeo-indiferenccedila ipseidade superlativo possibili-

dade significado

A tese que de seguida se esboccedila assenta sobre uma inquietaccedilatildeo fundamental o facto de cada um dar por si atirado na vida de quando cada um daacute por si dar por si a ser vida etc Acontece que logo que se tenta focar mais precisamente de que eacute de que se trata quando se trata da ldquovidardquo nota-se que esse fenoacutemeno tem habitualmente a forma de um acontecimento anoacutenimo natildeo se sabe bem a que eacute que corresponde que conteuacutedos tem que estruturas fundamentais a suportam etc Isto eacute somos levados pela vida (passamos pela vida atravessamo-la estamos expostos a ela etc) sem saber exactamente a que eacute que estamos expostos o que eacute que nos leva sobre que pilares assenta a nossa vivecircncia e a nossa compreensatildeo dela etc A tese que se segue natildeo tem a pretensatildeo de deixar definitivamente respondidas estas perguntas tudo o que faz na verdade eacute meramente proceder a um breve levantamento ou a um registo de algumas das estruturas fundamentais da vida a partir do acircngulo da experiecircncia da vida E como se espera deixar claro procurar a resposta a partir do acircngulo da experiecircncia (do acircngulo da experiecircncia da vida) natildeo eacute algo acidental ou fortuito O que se procuraraacute apurar eacute se natildeo haveraacute tais laccedilos de afinidade entre ldquovidardquo e ldquoexperiecircnciardquo que todas as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia tecircm lugar numa vinculaccedilatildeo e estatildeo subordinadas agraves estruturas fundamentais da vida (estruturas que ultrapassam o acircmbito da ldquoexperiecircnciardquo) e que assim tambeacutem a vida tenha de raiz no modo como nela somos levados e conduzidos a estrutura ou a forma da ldquoexperiecircnciardquo

THE ldquoEXPERIENCE OF LIFErdquo KEY ASPECTS

Bruno Pedro Peixoto Venacircncio

ABSTRACT

KEYWORDS experience life non-neutrality ipseity superlative possibility meaning

The thesis we will try to outline rests upon the fact that each of us finds himself thrown into life upon the fact that when one happens to find oneself one finds one-self already in life or being life But as it turns out when one tries to focus exactly what one means by ldquoliferdquo it becomes clear that such phenomenon presents itself broadly speaking as an anonymous event when under pressure we realize it is un-certain what we mean by ldquoliferdquo and we find ourselves hesitating to come forward with a strict and precise definition ndash and that for no other reason than the fact that by ldquoliferdquo we mean many different and sometimes conflicting things And that being so we are led by life (we go through life we cross life we are exposed to life and so on) without any clear insight as to what are we exposed to as to what guides us as to upon which foundations is set our understanding of it The purpose of this thesis is not to set any conclusive answers to these questions in fact all it does is merely to carry out a brief survey or a brief record of some of the fundamental structures of life having as a start-ing point the experience of life We hope to show that to search for the answer having as the starting point the ldquoexperience of liferdquo is no random search We will try to ad-dress the possibility of a connection between ldquoliferdquo and ldquoexperiencerdquo such as that all the operations of ldquoexperiencerdquo are linked to the fundamental structures of ldquoliferdquo and such as that ldquoliferdquo presents itself as we cross it as ldquoexperiencerdquo

Aspectos fundamentais da

experiecircncia da vida

Versatildeo corrigida e melhorada apoacutes a defesa puacuteblica

Tese de Doutoramento em Filosofia

(Especialidade em Antropologia Filosoacutefica)

Lisboa 2015

Para a Mia

a quem tenho a deixar pouco mais

do que aquilo que aprendi

IacuteNDICE

PREAcircMBULO

sect0 O fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo enquanto problema filosoacutefico ndash Determinaccedilatildeo do acircn-

gulo deste estudo um levantamento ou um registo de algumas das estruturas fundamentais

da vida a partir do acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash A estrateacutegia ldquoimpressionistardquo de investi-

gaccedilatildeo que se seguiraacute

LIVRO I EXPERIEcircNCIA

INTRODUCcedilAtildeO

sect1 A dispersatildeo dos usos quotidianos do termo experiecircncia e a necessidade de remissatildeo agrave no-

ccedilatildeo de ἐμπειρία em Aristoacuteteles (Metafiacutesica I I e Analiacuteticos Posteriores II XIX) paacuteg 2

sect2 O desdobramento da noccedilatildeo de ἐμπειρία na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica os aspectos da doa-

ccedilatildeo da duraccedilatildeo e da impossibilidade de antecipaccedilatildeo paacuteg 7

sect3 A ἐμπειρία integrada no quadro geral de identificaccedilatildeo da σοφία a ἐμπειρία como uma

modalidade de saber possiacutevel do intervalo global entre o miacutenimo e o maacuteximo de saber ndash A

desformalizaccedilatildeo da σοφία apresentada no modo de uma escala de possibilidades de acesso

e a pergunta que posiccedilatildeo ocupa na escala o acontecimento de acesso em que nos temos paacuteg 11

I EXPERIEcircNCIA

sect4 A forma de aparecimento que mais deixa escondido isso que de algum modo potildee jaacute agrave

mostra paacuteg 26

sect5 A noccedilatildeo histoacuterica de αἴσθησις na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica e a pergunta de que eacute feito o

aparecimento paacuteg 29

sect6 A fulcral inflexatildeo aristoteacutelica a αἴσθησις como modalidade de acesso com uma perspec-

tiva confinada no que diz respeito ao tempo ndash A ininteligibilidade entre o modo de acesso

meramente esteacutesico e o modo de acesso que nos constitui paacuteg 33

sect7 A μνήμη como persistecircncia do jaacute percebido o factor da supressatildeo da vertigem perceptiva

e o factor do desdobramento temporal ndash A co-apresentaccedilatildeo do tempo e a sucessatildeo paacuteg 44

sect8 O confinamento em que incorre a μνήμη a μνήμη natildeo potildee nada que abra perspectiva so-

bre o futuro paacuteg 52

sect9 Abordagem agrave ἐμπειρία a partir da chave ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος

μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν ἀποτελοῦσινrdquo (Metafiacutesica 980b28) ndash O contraste entre a pluralida-

de mneacutesica e a unidade empiacuterica paacuteg 58

sect10 A transgressatildeo do dado e a produccedilatildeo de fixaccedilotildees de estados-de-coisas permanentes paacuteg 64

sect11 O caraacutecter de evidecircncia o encobrimento da projecccedilatildeo empiacuterica atraveacutes da fixaccedilatildeo de

uma lei paacuteg 69

sect12 A mudanccedila da matriz do reconhecimento da realidade produzida pela ἐμπειρία a fixa-

ccedilatildeo da ldquonaturezardquo do que aparece e a operaccedilatildeo de desconfinamento da perspectiva para to-

talidades muito para laacute do que de cada vez se tem dado paacuteg 72

sect13 A trama de confirmaccedilotildees e corroboraccedilotildees implicada na ἐμπειρία e os riscos em que con-

tinuamente incorre a projecccedilatildeo empiacuterica paacuteg 81

CONCLUSAtildeO

sect14 A ἐμπειρία enquanto algo que incide sobre o καθόλου ndash Um elo de conexatildeo entre ἐμπει-

ρία e γνωμολογία paacuteg 91

sect15 A ilusatildeo de acompanhar e perceber o ldquoporquecircrdquo das coisas paacuteg 104

sect16 A ἐμπειρία enquanto algo que ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo que natildeo cumpre o

que promete e que natildeo procura aquilo que jaacute julga ter paacuteg 111

LIVRO II EXPERIEcircNCIA DA VIDA

INTRODUCcedilAtildeO

sect17 Os sentidos muito diversos da noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo a ldquoexperiecircncia da vidardquo co-

mo mero ramo da experiecircncia ou toda a experiecircncia tal como acontece em noacutes sempre jaacute

de raiz ldquoexperiecircncia da vidardquo paacuteg 117

sect18 O caraacutecter oacutebvio vago desfocado e equiacutevoco da noccedilatildeo habitual de ldquovidardquo ndash Abordagem

preliminar agrave noccedilatildeo de ldquovidardquo a unidade maacutexima do aparecimento na primeira pessoa paacuteg 121

II EXPERIEcircNCIA DA VIDA

PRIMEIRA PARTE

sect19 A experiecircncia tal como tem lugar em noacutes estaacute vinculada a um quadro determinado

quanto ao teor e agrave amplitude ndash O acircmbito das totalidades a que a experiecircncia e a organizaccedilatildeo

da experiecircncia dizem respeito ndash O desfazamento entre a magnitude do empreendimento da

ἐμπειρία e as caracteriacutesticas das determinaccedilotildees disponiacuteveis o modelo ldquoalfabeacuteticordquo paacuteg 128

sect20 A variabilidade da ἐμπειρία quanto agrave amplitude da ascensatildeo em direcccedilatildeo a determina-

ccedilotildees mais geneacutericas e quanto agrave forma de cristalizaccedilatildeo na captaccedilatildeo da afinidade a scala praelig-

dicamentalis paacuteg 138

sect21 A complexidade da experiecircncia e os modos de cruzamento das determinaccedilotildees entre si ndash

A experiecircncia sintonizada por unidades colectivas de determinaccedilotildees paacuteg 143

sect22 A variaccedilatildeo no niacutevel de acuidade a relaccedilatildeo entre o grau de determinaccedilatildeo com que as

ldquocoisasrdquo nos aparecem e a exigecircncia de determinaccedilatildeo que enfrentam ndash A inadvertecircncia em

relaccedilatildeo agrave multiplicidade de determinaccedilotildees que conformam o teor do que nos aparece paacuteg 150

sect23 O desdobramento da experiecircncia em dois planos a superfiacutecie e a profundidade da expe-

riecircncia (Kant) ndash Pascal e ldquolrsquoautomaterdquo paacuteg 167

sect24 Diversos modelos possiacuteveis de organizaccedilatildeo da multiplicidade das determinaccedilotildees nexos

de coordenaccedilatildeo nexos de subordinaccedilatildeo regimes mistos e suas implicaccedilotildees paacuteg 177

sect25 A distribuiccedilatildeo das diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees por diferentes pla-

nos de relevacircncia ao longo do campo do que nos aparece ndash O nuacutecleo de importacircncia superla-

tiva como aquilo de que fundamentalmente trata o acontecimento de acesso ndash A possibilida-

de de a scala praeligdicamentalis traduzir a forma como estaacute internamente organizada a fixa-

ccedilatildeo do que nos aparece paacuteg 186

sect26 Uma certa margem de heterogeneidade que tem que ver com a diversidade do ldquoquecircrdquo da

experiecircncia experiecircncia de factos experiecircncia de significados e experiecircncia de factos e de

significados paacuteg 207

sect27 A variaccedilatildeo da experiecircncia consoante esteja ou natildeo sob algum tipo de pressatildeo (consoan-

te tenha ou natildeo algum tipo de ldquoem causardquo) ndash A pressatildeo de natildeo-indiferenccedila de natureza praacuteti-

ca o cuidado consigo mesmo paacuteg 220

sect28 As variaacuteveis sensus proprius e sensus communis paacuteg 229

sect29 A nossa como uma modalidade de experiecircncia entre muitas outras modalidades de ex-

periecircncia possiacuteveis ndash Como a experiecircncia que temos eacute sempre jaacute uma experiecircncia do campo

perceptivo uma experiecircncia do campo de familiaridade e uma experiecircncia do exterior do

campo de familiaridade paacuteg 239

SEGUNDA PARTE

sect30 A tentativa de remontar agrave origem da morfologia e da sintaxe da experiecircncia como tenta-

tiva condenada ndash A morfologia de toda a experiecircncia daacute lugar a uma sintaxe de toda a expe-

riecircncia paacuteg 263

sect31 Aquilo que aparece sob a pressatildeo de satisfazer a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que o per-

passa ndash A estrutura de complexidade do aparecer algo-a-aparecer-a-algo ndash A focagem da

componente testemunhal paacuteg 267

sect32 A impossibilidade de indiferenccedila a si ndash O aparecimento como acontecimento centrado na

ldquotestemunha globalrdquo o ldquoquemrdquo a quem aparece o que aparece como o factor que impossibi-

lita a neutralidade do aparecimento ndash A relaccedilatildeo de si a si sob a pressatildeo de um programa de

caraacutecter praacutetico paacuteg 275

sect33 A estrutura da auto-consciecircncia na sua relaccedilatildeo com o objecto em Hegel (Fenomenologia

do Espiacuterito IV B) paacuteg 287

sect34 O caraacutecter natildeo-punctiforme ou natildeo-estigmaacutetico do ponto de vista a natildeo-indiferenccedila ao

que seraacute e a flexatildeo do si-mesmo na forma de uma prescriccedilatildeo indefinida de si paacuteg 302

sect35 A ipseidade tende natildeo soacute para o superlativo quantitativo mas tambeacutem para um superla-

tivo qualitativo ndash O superlativo de superlativos a foacutermula ldquosuperlativo quantitativo x super-

lativo qualitativordquo paacuteg 311

sect36 O territoacuterio da possibilidade do si a dedicaccedilatildeo ao que seraacute-de-si e a pressatildeo gerundiva ndash

O caraacutecter labiriacutentico do quadro de possibilidades do vir-a-ser-de-si paacuteg 318

sect37 O duplo ldquobig bangrdquo do si-mesmo a propagaccedilatildeo sobre a totalidade de si e a propagaccedilatildeo

sobre a totalidade do que aparece ndash A ldquopeccedilardquo de si paacuteg 332

sect38 A organizaccedilatildeo global do que aparece considerada a partir da estrutura de ciacuterculos con-

cecircntricos de Hieacuterocles a presidecircncia centrada do αὐτός e o ldquolugarrdquo das ldquocoisas paacuteg 337

sect39 A vida como ldquoordquo objecto da auto-consciecircncia o modo como a auto-consciecircncia experi-

menta a independecircncia da vida e o que aparece como manifestaccedilatildeo da vida em Hegel (Feno-

menologia do Espiacuterito IV B) paacuteg 354

CONCLUSAtildeO

sect40 O facto de o aparecimento e a experiecircncia terem em noacutes o caraacutecter de aparecimento e

experiecircncia de significados ndash O facto de o ldquosignificadordquo ter um caraacutecter funcional sempre re-

lativo a um criteacuterio global de que eacute portador quem assiste ao aparecimento paacuteg 369

sect41 A noccedilatildeo de significado em V Woolf tudo o que aparece percebido como manifestaccedilatildeo

da forma da vida ndash A vida como objecto de si proacutepria ndash Tudo o que se passa como dado com-

portamental ou traccedilo de caraacutecter da proacutepria vida ndash A relaccedilatildeo com a vida assente sempre jaacute

na antecipaccedilatildeo de um resultado global ndash Como a avaliaccedilatildeo da vida eacute sempre a avaliaccedilatildeo do

ldquocaraacutecterrdquo ldquodisto tudordquo paacuteg 377

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS paacuteg 405

ldquoDesocupado lector sin juramento me podraacutes creer que quisiera que

este libro como hijo del entendimiento fuera el maacutes hermoso el

maacutes gallardo y maacutes discreto que pudiera imaginarse Pero no he

podido yo contravenir al orden de naturaleza que en ella cada cosa

engendra su semejanterdquo

(Do Proacutelogo de Don Quijote de la Mancha de Miguel de Cervantes)

PREAcircMBULO

sect0

O fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo enquanto problema filosoacutefico ndash Determinaccedilatildeo do

acircngulo deste estudo um levantamento ou um registo de algumas das estruturas funda-

mentais da vida a partir do acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash A estrateacutegia ldquoimpressionis-

tardquo de investigaccedilatildeo que se seguiraacute

O que se segue eacute um estudo filosoacutefico sobre o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo

Por si soacute a afirmaccedilatildeo ndash breve e sucinta ndash com que abrimos este breve preacircmbulo pare-

ce natildeo gerar problemas de maior No entanto ela introduz explicitamente um conjunto de pis-

tas que expotildeem desde jaacute uma estrateacutegia ndash pistas que eacute importante e uacutetil natildeo perder de vista

de modo a acompanhar eficazmente o desenvolvimento deste trabalho

Assim conveacutem ter presente antes de mais que este estudo eacute um estudo filosoacutefico e

que o que se visa eacute o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo enquanto problema filosoacutefico

Isto quer dizer antes de mais que a investigaccedilatildeo que se levaraacute a cabo natildeo trataraacute de

pocircr a questatildeo da ldquoexperiecircncia da vidardquo a partir de uma compreensatildeo habitual que tenhamos

desse fenoacutemeno

Aquilo que se pode dizer desde jaacute eacute que noacutes estamos agrave partida na posse de uma noccedilatildeo

quotidiana (ie natildeo-filosoacutefica por assim dizer) do que eacute a ldquoexperiecircncia da vidardquo Isto eacute ao fa-

larmos de ldquoexperiecircncia da vidardquo no sentido mais habitual e comum do termo aquilo de que

se fala natildeo nos eacute de tal modo alheio ou estranho que natildeo sabemos em absoluto de que eacute que se

estaacute a falar Pelo contraacuterio haacute um grau de familiaridade com o tema de tal modo que temos

uma noccedilatildeo ndash mesmo que baccedila desfocada imperfeita etc ndash do que eacute que isso quer dizer do

que eacute que corresponde a tal coisa etc

Neste sentido natildeo parece ser necessaacuterio adoptar um ponto de vista filosoacutefico para que

o tema da ldquoexperiecircncia da vidardquo se produza O tema da ldquoexperiecircncia da vidardquo faz parte (de

forma mais ou menos distante mais ou menos determinado etc) das nossas ocupaccedilotildees quoti-

dianas de tal modo que mesmo num qualquer acircmbito natildeo-filosoacutefico estariacuteamos em condi-

ccedilotildees de dizer algo sobre o assunto

No entanto quando visamos o problema a partir de um meacutetodo filosoacutefico no sentido

do termo ldquofilosofiardquo que aqui estaacute em jogo sentido que natildeo vai ser discutido no curso deste

trabalho aquilo que desde logo nos move eacute uma tensatildeo para averiguar se a noccedilatildeo de ldquoexperi-

ecircncia da vidardquo a que natildeo somos completamente alheios no quotidiano seraacute adequada para dar

efectivamente conta do que se passa quando se fala de ldquoexperiecircncia da vidardquo

Isto eacute na medida em que o ponto de vista filosoacutefico tal como aqui o consideramos

estaacute constituiacutedo sob a pressatildeo de um ideal cognoscitivo (tese que se assume aqui de forma

dogmaacutetica e que natildeo estaraacute no curso deste trabalho exposta a debate) o ponto de vista filosoacute-

fico como que ldquodesconfiardquo da noccedilatildeo quotidiana de ldquoexperiecircncia da vidardquo e potildee-na directa ou

indirectamente a exame E do exame a que o ponto de vista filosoacutefico potildee a noccedilatildeo quotidiana

de ldquoexperiecircncia da vidardquo pode muito bem resultar que se descubra que a noccedilatildeo de ldquoexperiecircn-

cia da vidardquo que sempre jaacute temos em operaccedilatildeo tem defeitos insuficiecircncias falecircncias etc de

tal modo que se encontra exposta agrave possibilidade de natildeo soacute ser questionada mas se encontra

ateacute exposta agrave possibilidade de ser corrigida ou no limite posta em causa invalidada etc

Ora na verdade a anaacutelise que se segue natildeo iraacute pocircr expressamente a exame no sentido

referido do termo a noccedilatildeo mais comum e quotidiana de ldquoexperiecircncia da vidardquo Ou seja natildeo

iremos no curso deste trabalho confrontar abertamente o conceito de ldquoexperiecircncia da vidardquo

que sempre jaacute temos as suas modalidades formas conteuacutedos etc Se em certo sentido fazecirc-

lo poderia ser uacutetil para se conseguir ldquodescolarrdquo em direcccedilatildeo a um ponto de vista filosoacutefico

(ie se fazecirc-lo poderia ser uacutetil como ponto de partida base de trabalho etc) o que de facto

estaraacute aqui em causa natildeo eacute senatildeo o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo a partir do acircngulo da

filosofia Aquilo que podemos desde jaacute admitir no entanto eacute que o estudo que se segue pode

natildeo deixar incoacutelume a noccedilatildeo habitual

Se por um lado o que caracteriza a nossa atitude habitual relativamente ao fenoacutemeno

da ldquoexperiecircncia da vidardquo pode muito bem ser o facto de julgarmos que jaacute sabemos muito bem

o que isso eacute ndash de tal forma que nos dispensamos logo agrave partida de qualquer exame (de acircmbi-

to filosoacutefico ou de qualquer outro acircmbito) sobre aquilo que constitui o fenoacutemeno ndash por outro

lado poreacutem o esforccedilo de focagem que se procuraraacute aplicar de seguida pode muito bem per-

verter o entendimento do fenoacutemeno que espontaneamente temos e que opera em noacutes

Isto eacute no curso deste trabalho a ter-se alguma perspectiva sobre a compreensatildeo habi-

tual que temos deste fenoacutemeno ela natildeo seraacute obtida senatildeo por um impliacutecito contraste com as

acepccedilotildees do fenoacutemeno a que daremos atenccedilatildeo poreacutem pode muito bem resultar do que se se-

gue que se entenda que haacute uma outra noccedilatildeo de ldquoexperiecircncia da vidardquo diferente da noccedilatildeo que

habitualmente jaacute temos tributaacuteria do acircmbito filosoacutefico que se revele mais apropriada para dar

conta daquilo que estaacute em jogo no fenoacutemeno ndash de tal modo que esse entendimento que se ob-

tenha produza no interior da noccedilatildeo que de cada vez temos adoptada uma modificaccedilatildeo que

natildeo a deixa incoacutelume mas que pelo contraacuterio a potildee em causa ou no limite a invalida

O que desde jaacute deve ficar claro eacute que por um lado iremos partir inicialmente de uma

compreensatildeo filosoacutefica ndash temos o nosso ponto de partida por assim dizer no interior do proacute-

prio ldquodiscurso filosoacuteficordquo ndash do fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo e que por outro o ponto

de vista filosoacutefico tem uma relaccedilatildeo com uma noccedilatildeo de ldquoexperiecircncia da vidardquo que agrave partida

pode natildeo corresponder agrave noccedilatildeo que usamos quotidianamente

Adicionalmente no entanto haacute um outro complexo de problemas que estas uacuteltimas

consideraccedilotildees deixam ver agora de forma mais clara

Eacute que por uma parte natildeo haacute algo como um empreendimento ou um meacutetodo filosoacutefico

(ie natildeo haacute algo como um uacutenico modo de considerar ou de conceber a ldquoexperiecircncia da vidardquo a

partir de um ponto de vista filosoacutefico) Pelo contraacuterio aquilo com que nos deparamos ao con-

siderar a histoacuteria da filosofia ou apenas um determinado momento dessa longa histoacuteria eacute uma

larga variedade de empreendimentos ou de meacutetodos contraacuterios ou ateacute contraditoacuterios entre si

que visam este e outros fenoacutemenos a partir de acircngulos muito diferentes entre si que procuram

evidenciar diferentes elementos de um mesmo fenoacutemeno etc

Assim e por outra parte o que resulta daqui eacute que natildeo haacute exactamente algo como um

conceito de ldquoexperiecircncia da vidardquo no acircmbito do debate filosoacutefico Na verdade pode ateacute acon-

tecer que natildeo haja entre as diferentes ldquoexperiecircncias da vidardquo visadas a partir desses diferentes

empreendimentos ou meacutetodos nada de propriamente comum de tal modo que as diferentes

ldquoexperiecircncias da vidardquo visadas a partir de diferentes empreendimentos ou meacutetodos resulta-

riam de facto em ldquofenoacutemenosrdquo muito distintos

Ora o estudo que de seguida apresentamos natildeo pretende passar por ser um estudo

exaustivo ndash nem por um estudo exaustivo dos empreendimentos ou meacutetodos filosoacuteficos que

visando ou natildeo directamente o problema da ldquoexperiecircncia da vidardquo tecircm algo a dizer sobre ele

nem um estudo exaustivo das diversas definiccedilotildees ou dos diversos conceitos de ldquoexperiecircncia

da vidardquo que os diferentes empreendimentos ou meacutetodos filosoacuteficos que efectivamente se de-

bruccedilaram sobre ele produziram

Um estudo exaustivo ou integral do fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo implicaria

menos do que uma discussatildeo integral ndash uma discussatildeo que incluiacutesse uma tentativa de consi-

derar o fenoacutemeno da experiecircncia da vida de todos os pontos de vista possiacuteveis a partir dos

quais o fenoacutemeno pudesse ser visado (ie a partir de todos os empreendimentos ou meacutetodos

filosoacuteficos que efectivamente se debruccedilaram sobre ele a partir de todos os empreendimentos

filosoacuteficos que natildeo se debruccedilando sobre ele tecircm algo a dizer sobre ele a partir de todos os

empreendimentos filosoacuteficos que o negligenciaram e natildeo tecircm nada a dizer sobre ele etc)

Mais implicaria um efectivo confronto criacutetico com cada uma dessas perspectivas (com as que

tecircm algo a dizer sobre ele mas tambeacutem do mesmo modo com as que natildeo tecircm nada a dizer

sobre ele com aquelas para quem o fenoacutemeno eacute negligenciaacutevel ou irrelevante etc) de modo

a explorar as suas possibilidades as suas vantagens ou desvantagens no modo como cada uma

considera o fenoacutemeno as suas forccedilas e fraquezas etc

Acontece que o que se segue natildeo tem ndash nem de perto nem de longe ndash uma tal magni-

tude Aquilo que se propotildee no seguimento natildeo eacute uma anaacutelise exaustiva de todas as perspec-

tivas e pontos de vista do que se entende por ldquoexperiecircncia da vidardquo

Ora o facto de o estudo que se segue natildeo ser uma anaacutelise exaustiva do que a filosofia

entende por ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo impede que mesmo que este estudo ponha em praacutetica a

discussatildeo de apenas um uacutenico ponto de vista ndash parcial fraacutegil limitado passiacutevel de revisatildeo

passiacutevel de poder vir a ser infirmado por perspectivas natildeo consideradas etc ndash sobre o fenoacute-

meno natildeo impede diziacuteamos que este estudo natildeo possa entrar ainda assim em contacto com

aspectos fundamentais da constituiccedilatildeo do fenoacutemeno justamente esses aspectos fundamentais

que o nosso estudo procuraraacute expor na continuaccedilatildeo e a que o tiacutetulo alude

Quer dizer a pretensatildeo do estudo que se segue eacute a de procurar despistar aspectos fun-

damentais do fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash ie eacute a de procurar inventariar factores

que fundam ou que estatildeo em causa no fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo e que qualquer ou-

tro estudo sobre o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo deve de algum modo no limite levar

em linha de conta sem os quais qualquer outro estudo sobre o assunto estaraacute de certo modo

incompleto etc

Sendo assim importa ter presente que ponto de vista orienta o nosso estudo filosoacutefico

sobre o fenoacutemeno da ldquoexperiecircncia da vidardquo E esse ponto de vista eacute o seguinte

O estudo que de seguida se esboccedila assenta sobre uma inquietaccedilatildeo fundamental o facto

de cada um de noacutes dar por si atirado na vida de quando cada um de noacutes daacute por si dar por si a

ser vida etc Acontece que se se tenta focar mais precisamente de que eacute de que se trata quan-

do se trata da ldquovidardquo aquilo que se nota eacute que esse fenoacutemeno tem habitualmente a forma de

um acontecimento fugidio que natildeo se sabe bem a que eacute que corresponde que natildeo se sabe

bem que conteuacutedos tem que estruturas fundamentais o suportam etc Isto eacute somos levados

pela vida (passamos pela vida atravessamo-la estamos expostos agrave vida etc) e no entanto

pode muito bem dar-se o caso de natildeo sabermos exactamente a que eacute que estamos expostos o

que eacute que nos leva sobre que pilares assenta a nossa vivecircncia e a nossa compreensatildeo dela

etc

O estudo que se segue natildeo tem obviamente a pretensatildeo de deixar definitivamente res-

pondidas estas e outras perguntas de iacutendole similar o que faz eacute meramente proceder a um bre-

ve levantamento ou a um registo de algumas das estruturas fundamentais da vida a partir do

acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo

Como se espera que fique claro na continuaccedilatildeo procurar a resposta sobre o que eacute que

se trata quando se trata da vida a partir do acircngulo da ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo eacute algo aciden-

tal ou fortuito

O que a dada altura se procuraraacute apurar eacute se natildeo haveraacute tais laccedilos de afinidade entre

ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo que todas as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia tecircm lugar numa vincu-

laccedilatildeo a e estatildeo subordinadas agraves estruturas fundamentais da vida (estruturas que ultrapassam o

acircmbito da ldquoexperiecircnciardquo) e que assim tambeacutem a vida tenha de raiz no modo como nela so-

mos levados e conduzidos a estrutura ou a forma da ldquoexperiecircnciardquo

Quer dizer pode muito bem suceder que natildeo soacute aquilo que estaacute em causa na ldquoexpe-

riecircnciardquo conforme e torne possiacutevel o que estaacute em causa na ldquovidardquo como tambeacutem que aquilo

que estaacute em causa na ldquovidardquo conforme e torne possiacutevel o que estaacute em causa na ldquoexperiecircnciardquo

Assim o fenoacutemeno que aqui pretendemos estudar (a ldquoexperiecircncia da vidardquo) soacute pode

ser entendido se procurarmos examinar com precisatildeo qual o papel que ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo

representam na relaccedilatildeo um com o outro (nessa relaccedilatildeo complexa que conforma a ldquoexperiecircncia

da vidardquo)

Isto eacute o que veremos de seguida no curso do trabalho que se segue eacute de que modo in-

flui a experiecircncia na nossa forma de compreender a vida e de que modo influi a vida na nossa

forma de compreender a experiecircncia que aspectos conteacutem a experiecircncia que sejam funda-

mentais para compreender a vida e que aspectos conteacutem a vida que sejam fundamentais para

compreender a experiecircncia se podem ser uma sem a outra e se se tratam de acontecimentos

isolados ou se pelo contraacuterio satildeo interdependentes e haacute laccedilos de continuidade entre elas

como se organizam e se relacionam entre si experiecircncia e vida que relaccedilotildees de influecircncia es-

tatildeo em operaccedilatildeo qual eacute a forccedila a relevacircncia ou o peso que exercem uma sobre a outra (ie

que forccedila relevacircncia ou peso tem a experiecircncia na compreensatildeo da vida e que forccedila relevacircn-

cia ou peso tem a vida na compreensatildeo da experiecircncia) etc e por fim que complexo resulta

da sua conjugaccedilatildeo (ie o que eacute que se entende no sentido desta conjugaccedilatildeo de factores agrave par-

tida diacutespares entre si por ldquoexperiecircncia da vidardquo)

Ora tambeacutem isso seria possiacutevel a partir de um conjunto muito vasto de alternativas de

procedimentos metodoloacutegicos E sobre o procedimento metodoloacutegico que este trabalho iraacute

adoptar interessa dizer muito brevemente o seguinte

Esta eacute uma tese por assim dizer impressionista ndash eacute uma tese que responde a estiacutemulos

daqui e dali que capta momentos avulsos de obras que natildeo se deteacutem em mais do que mo-

mentos ou fragmentos de obras etc

Aquilo que estamos a procurar dizer eacute que natildeo se faraacute uma incidecircncia sobre a noccedilatildeo de

ldquoexperiecircncia da vidardquo a partir de um qualquer movimento filosoacutefico ou a partir de um qual-

quer autor Aquilo que de seguida estaraacute em causa natildeo estaacute por assim dizer vinculado a um

acircngulo especiacutefico que em virtude das suas caracteriacutesticas imponha preacute-condiccedilotildees ou impli-

que jaacute um conjunto de preceitos que regulem o acesso ao fenoacutemeno Pelo contraacuterio esta tese

ndash mais do que uma anaacutelise de um movimento ou de um autor ndash procura fazer uma anaacutelise te-

maacutetica assim o que se poderaacute encontrar eacute uma anaacutelise que natildeo estaacute centrada em nenhum au-

tor ou movimento particular mas que procura em vez disso recorrer ao auxiacutelio de vaacuterios au-

tores consoante se entenda que esses autores respondem melhor ou mais detidamente agraves pis-

tas que se vatildeo abrindo e que interessa perseguir

Quer dizer se por um lado num determinado momento os passos que dermos corres-

pondem ao que se encontra nas teses de um determinado autor (ie tecircm com as teses de um

determinado autor uma certa continuidade correspondem a um recurso ao complexo dos

enunciados do autor que tecircm relevacircncia para a mateacuteria etc se seguem as questotildees suscitadas

por um determinado autor em virtude de esse acompanhamento permitir tomar essas questotildees

como mapa de orientaccedilatildeo de permitir avanccedilar na clarificaccedilatildeo ou na especificaccedilatildeo do quadro

de perguntas que satildeo relevantes etc) por outro lado no entanto nunca se pode perder de vis-

ta que natildeo se seguiratildeo as teses de um determinado autor ateacute ao fim que natildeo se teraacute em vista o

quadro de teses mais vasto em que um determinado autor labora e no qual inclui aqueles frag-

mentos a que recorreremos que natildeo se questionaraacute os restantes fenoacutemenos a que o fragmento

de cada vez em causa surge associado quanto ao significado de que se revestem quanto agrave co-

nexatildeo ou agrave relaccedilatildeo que tecircm com a fragmento em causa quanto agrave forma como o esclarecimen-

to deles poderia contribuir para o esclarecimento e a anaacutelise do fragmento em causa etc

Na verdade vendo bem a ldquonarrativardquo do estudo que se segue natildeo eacute muito diferente da

narrativa de uma investigaccedilatildeo policial ndash em que cada fragmento que se encontra e que esteja

relacionado com aquilo que se pretende investigar ganha o estatuto de ldquopistardquo (de uma ldquopistardquo

mais ou menos relevante mais ou menos central no ldquopuzzlerdquo da investigaccedilatildeo etc) de tal mo-

do que aquilo de que se trata na investigaccedilatildeo eacute de perseguir essa ldquopistardquo e que a perseguiccedilatildeo

dessa ldquopistardquo abre a novas ldquopistasrdquo ldquopistasrdquo que por sua vez tambeacutem seratildeo perseguidas e que

abrem ainda a novas ldquopistasrdquo que por sua vez tambeacutem seratildeo perseguidas etc ndash gerando-se

de tudo isto algo como uma linha de investigaccedilatildeo (uma ldquolinhardquo cuja conformaccedilatildeo eacute a do elo

ou da conexatildeo das proacuteprias ldquopistasrdquo com que a investigaccedilatildeo se deparou e eacute a conformaccedilatildeo das

decisotildees do caminho a tomar por entre o conjunto total das ldquopistasrdquo com que se deparou e que

se entendeu perseguir)

Ora por uma questatildeo de estrateacutegia metodoloacutegica a primeira ldquopistardquo que entendemos

seguir foi a ldquopistardquo da ldquoexperiecircnciardquo E eacute justamente tendo a experiecircncia por referecircncia e guia

que de seguida se iniciaraacute a pesquisa pelos aspectos fundamentais do fenoacutemeno da ldquoexperi-

ecircncia da vidardquo

LIVRO I

EXPERIEcircNCIA

2

INTRODUCcedilAtildeO

sect1

A dispersatildeo dos usos quotidianos do termo experiecircncia e a necessidade de remissatildeo agrave no-

ccedilatildeo de ἐμπειρία em Aristoacuteteles (Metafiacutesica I I e Analiacuteticos Posteriores II XIX)

Seja devido agrave diversidade de abordagens e de tratamentos filosoacuteficos seja devido ao

desgaste que adveacutem do uso quotidiano do termo e das suas diversas aplicaccedilotildees o facto eacute que a

noccedilatildeo de ldquoexperiecircnciardquo parece equiacutevoca Esta afirmaccedilatildeo eacute testemunhada pelos diversos usos

que se daacute agrave noccedilatildeo e pelos diversos campos a que a ela se aplica

Por um lado experiecircncia indica o ser afectado ou passar por uma situaccedilatildeo ou cir-

cunstacircncia ndash no sentido de vivecircncia Por outro indica natildeo apenas o acto metoacutedico de observa-

ccedilatildeo que passa por pocircr ou ter posto agrave prova como tambeacutem a aquisiccedilatildeo de conhecimentos que

descende do acto de observaccedilatildeo que potildee agrave prova e ateacute mesmo a aplicaccedilatildeo de conhecimento

adquirido (adquirido por este ou por outro meacutetodo)

Esta dispersatildeo registada de modo muito geral e a cujos estilhaccedilos se voltaraacute na conti-

nuaccedilatildeo natildeo resulta de uma mera confusatildeo lexical

Na verdade a dispersatildeo tem que ver com o complexo ldquonovelordquo da proacutepria constela-

ccedilatildeo de fenoacutemenos em que o campo semacircntico de experiecircncia radica O que isto quer dizer eacute

que o que caracteriza a constelaccedilatildeo de fenoacutemenos em que o campo semacircntico de experiecircncia

radica eacute natildeo apenas a complexidade ndash ie a circunstacircncia de envolver diversos elementos com

profundas diferenccedilas estruturais entre si ndash mas tambeacutem o facto de essa constelaccedilatildeo de fenoacute-

menos se encontrar marcada por confusatildeo e falta de transparecircncia

Assim no modo como habitualmente compreendemos a noccedilatildeo de experiecircncia (e assim

tambeacutem no modo como habitualmente acompanhamos o complexo de fenoacutemenos a que essa

noccedilatildeo reporta) haacute importantes componentes que se eclipsam ao ponto de lhes perdermos o

rasto haacute fenoacutemenos diferentes que parecem ser iguais ou equivalentes e haacute ainda alguns ou-

tros que mesmo que soacute sejam possiacuteveis mediante uma determinada forma de constituiccedilatildeo

3

habitualmente aparecem tatildeo ldquomascaradosrdquo que podem produzir a impressatildeo de terem as pro-

priedades opostas agraves daquilo que efectivamente os edifica etc

Sendo assim o que eacute necessaacuterio para desfazer as ambiguidades ou os equiacutevocos a que

a noccedilatildeo de experiecircncia se acha vulgarmente associada eacute muito mais do que um esforccedilo de es-

clarecimento terminoloacutegico Na verdade eacute necessaacuterio focar a proacutepria constelaccedilatildeo de fenoacuteme-

nos em causa e para tal seguir pelo menos alguns dos aspectos fundamentais do seu intrinca-

do ldquonoacuterdquo Soacute deste modo o fenoacutemeno a que a noccedilatildeo de experiecircncia reporta nos poderaacute aparecer

mais claro

A abordagem que aqui se seguiraacute para cumprir este propoacutesito (ie para recuperar os

componentes essenciais do fenoacutemeno da experiecircncia) passa pelo regresso agrave noccedilatildeo original a

que o termo ldquoexperiecircnciardquo se refere ndash a noccedilatildeo de ἐμπειρία

Poreacutem o que estaraacute de seguida em causa natildeo seraacute um levantamento histoacuterico da noccedilatildeo

de ἐμπειρία tratar-se-aacute mais propriamente de procurar captar (nesse que eacute o ponto de parti-

da dos desenvolvimentos que a noccedilatildeo de experiecircncia veio a ter) algumas determinaccedilotildees fun-

damentais que a noccedilatildeo reunia em si e que poderatildeo fornecer pistas que nos orientem na com-

preensatildeo do ldquonoacuterdquo em que a noccedilatildeo de experiecircncia habitualmente parece ldquoenredadardquo

Ora a dificuldade que imediatamente se apresenta passa por compreender que o termo

ἐμπειρία tem uma longa tradiccedilatildeo

O termo ἐμπειρία pode ser encontrado por exemplo tanto jaacute nos tratados hipocraacuteticos1

como tambeacutem em Platatildeo2 E qualquer um desses casos contribui muito significativamente

1 Para recuperar o termo em Hipoacutecrates tomemos por exemplo Cambiano G La preistoria del con-

cetto di empeiria tra medicina e filosofia Humanamente 9 Firenze 2009 (em especial as paacutegs 87-

91) e ainda Bourgey L Observation et expeacuterience chex les meacutedecins de la collection hippocratique

Paris Vrin 1953 O que estaacute em causa nestes autores natildeo eacute tanto natildeo uma definiccedilatildeo do que se deve

entender por ἐμπειρία mas eacute mais uma tentativa de circunscrever e descrever o complexo de fenoacuteme-

nos que a noccedilatildeo compreende ou determinar quais os campos em que o termo aparece incide ou se

aplica ndash em resumo eacute uma tentativa de compreender de que modo a actividade do meacutedico pode ser en-

tendida como exerciacutecio de ἐμπειρία e o que daiacute se pode extrair sobre o que determina ou caracteriza a

ἐμπειρία

2 No caso concreto de Platatildeo o exerciacutecio de resgatar os instantes em que o termo surge e as suas diver-

sas instacircncias natildeo poderia deixar de ser um exerciacutecio precaacuterio haacute uma enorme dispersatildeo do termo ao

longo da obra platoacutenica e em cada apariccedilatildeo o termo parece adquirir a coloraccedilatildeo dos termos que o ro-

deiam ou dos assuntos que estatildeo efectivamente a ser focados Isto natildeo eacute no entanto dizer que a noccedilatildeo

de ἐμπειρία eacute em Platatildeo uma noccedilatildeo vaga ou dispersa que se aplica de modo indiferenciado sem cri-

4

quer para a reflexatildeo sobre o tema quer para a histoacuteria posterior do conceito ndash em todos os

seus desenvolvimentos e encruzilhadas

Sendo assim e na medida em que iremos concentrar o nosso esforccedilo na anaacutelise da no-

ccedilatildeo de ἐμπειρία que encontramos desenvolvida nos escritos de Aristoacuteteles importa natildeo deixar

de justificar a adopccedilatildeo deste ponto de partida

O que faz com que a anaacutelise da noccedilatildeo de ἐμπειρία nos escritos de Aristoacuteteles mereccedila

especial protagonismo natildeo seraacute tanto como jaacute fomos adiantando o facto de Aristoacuteteles ter

introduzido um conceito inteiramente novo Se haacute como procuraremos ver na continuaccedilatildeo

elementos novos na focagem aristoteacutelica do problema natildeo devemos apesar de tudo desvalori-

zar o facto de que um dos aspectos que tornam essa focagem determinante eacute precisamente o

caso de ela envolver uma recapitulaccedilatildeo dos desenvolvimentos precedentes ndash e especialmen-

te uma recapitulaccedilatildeo dos desenvolvimentos de Platatildeo

O que eacute decisivo ndash e que justifica este nosso ponto de partida ndash eacute que ao focar o fenoacute-

meno da experiecircncia Aristoacuteteles natildeo analisa soacute de forma detida as condiccedilotildees e a estrutura do

fenoacutemeno De facto o que faz eacute salientar o papel central que a experiecircncia desempenha en-

quanto constituinte da apresentaccedilatildeo que temos das coisas Mais ainda Aristoacuteteles procede a

essa anaacutelise de tal forma que nos coloca justamente na pista do ldquonoacuterdquo em que a noccedilatildeo de expe-

riecircncia habitualmente parece ldquoenredadardquo ndash ldquonoacuterdquo que por isso eacute passiacutevel de ser posto a

teacuterio ou de modo acriacutetico a nossa intenccedilatildeo quer somente notar que o que estaacute em causa na experiecircncia

nunca eacute focado per se mas pelo contraacuterio eacute sempre posto em saliecircncia enquanto momento de uma

discussatildeo que natildeo tem por centro a determinaccedilatildeo do que experiecircncia eacute ou do que corresponde a isso

mas em que apesar de tudo a experiecircncia natildeo deixa de ter um papel relevante e central Assim a ex-

periecircncia mostra quer a sua importacircncia quer a sua abrangecircncia nos diversos assuntos em que se intro-

mete em que a sua presenccedila eacute decisiva e naquilo que eacute da experiecircncia e que assim eacute intrometido Uma

anaacutelise compreensiva da noccedilatildeo de ἐμπειρία no corpus platonicum natildeo poderia deixar de ter em conta

para reunir um breve inventaacuterio e para citar apenas estas passagens as suas ocorrecircncias em textos

como Gorg (461b-466a) Rep (em especial IX 582a-e) Fil (55e) ou inclusive Feacuted (96a-b) texto em

que Platatildeo natildeo menciona mas deixa subentendido o termo ἐμπειρία e de certo modo toca sem no

entanto os desenvolver alguns dos fundamentos em que vai assentar Aristoacuteteles em especial a extrac-

ccedilatildeo de έπιστήμη a partir de αἴσθησις μνήμη e δόξα e a pesquisa pela αἱτία de todas as coisas ndash pontos

que estaratildeo de seguida (expliacutecita ou implicitamente) em anaacutelise

Considerem-se por exemplo as anaacutelises a esse propoacutesito de Constacircncio J Notas sobre a noccedilatildeo de

experiecircncia na Repuacuteblica de Platatildeo In Quid ndash Revista de Filosofia nordm 1 Lisboa 2000 paacutegs 9-72

ou Trindade Santos J A noccedilatildeo de experiecircncia nos diaacutelogos platoacutenicos In Joaquim Cerqueira Gon-

ccedilalves (org) A dinacircmica do pensar Lisboa Dept de Filosofia da UL 1991 paacutegs 243-253

5

descoberto e em certo sentido desfeito Eacute a demonstraccedilatildeo disto mesmo que nos iraacute deter nas

proacuteximas secccedilotildees3

Acontece poreacutem que ao analisar-se os escritos de Aristoacuteteles (e mais propriamente ao

analisar-se os escritos de Aristoacuteteles procurando focar a questatildeo da ἐμπειρία) o que eacute antes de

mais claro para o leitor eacute que Aristoacuteteles natildeo chega a apresentar propriamente uma definiccedilatildeo

do que entende por ἐμπειρία O uso que Aristoacuteteles faz do termo ἐμπειρία eacute se assim se pode

dizer um uso operativo isto poderaacute ter algo a ver com o facto de o termo estar jaacute de certo

modo ldquoenraizadordquo no discurso filosoacutefico como haacute pouco se frisou e haver entatildeo jaacute uma defi-

niccedilatildeo (expressa ou natildeo) em curso em relaccedilatildeo agrave qual Aristoacuteteles reage

Ora o facto de natildeo apresentar uma definiccedilatildeo natildeo impede que em alguns textos funda-

mentais ndash designadamente Metafiacutesica I I (980a22 e ss) e Analiacuteticos Posteriores II XIX

(99b15 e ss) passagens que aqui estaratildeo em especial destaque ndash Aristoacuteteles forneccedila os ele-

mentos necessaacuterios para se perceber de que eacute que se trata (ie para perceber o que eacute proacuteprio

da experiecircncia enquanto tal) e para se ganhar a pista do intrincado complexo de fenoacutemenos

que corresponde agrave noccedilatildeo de ἐμπειρία

Eacute tendo isto em vista que importa desde jaacute fazer notar que o fundamental das anaacutelises

de Aristoacuteteles a respeito da ἐμπειρία natildeo tem que ver com o acompanhamento deste ou daque-

le aspecto circunscrito natildeo se deteacutem neste ou naquele domiacutenio da experiecircncia nem se con-

centra sobre este ou aquele objecto

Natildeo soacute a anaacutelise de Aristoacuteteles eacute abrangente como o que eacute determinante na abordagem

aristoteacutelica eacute a anaacutelise da experiecircncia como peculiar forma de acesso ndash uma forma de acesso

susceptiacutevel de ter lugar nos mais diversos acircmbitos ou sobre os mais diversos objectos E isto

de tal modo que em todos os diversos acircmbitos em que tem ou pode ter lugar a experiecircncia se

caracteriza por um mesmo conjunto de propriedades fundamentais ndash precisamente o que jus-

tifica falar-se de uma e a mesma forma de acesso

Ora a identificaccedilatildeo desta peculiar forma de acesso eacute nas anaacutelises aristoteacutelicas feita

por marcaccedilatildeo de contrastes entre formas de acesso ndash mais exactamente entre essa forma de

3 Natildeo esqueccedilamos a advertecircncia de Heidegger ldquoZwar hat Aristoteles erstmals begriffen was έμπειρία

(experientia) heiszligt das Beobachten der Dinge selbst ihrer Eigenschaften und Veraumlnderungen unter

wechselnden Bedingungen und somit die Kenntnis der Weise wie sich die Dinge in der Regel verhal-

tenldquo (Heidegger Die Zeit des Weltbildes GA vol 5 paacutegs 80-81)

6

acesso que corresponde agrave experiecircncia e outras formas de acesso possiacuteveis (de que a forma de

acesso da experiecircncia se acha separada por saltos ou descontinuidades)

O que isto sugere eacute que os ldquomesmosrdquo ldquoobjectosrdquo ou as ldquomesmasrdquo ldquorealidadesrdquo ndash todos

os diversos acircmbitos ou os diversos objectos sobre os quais eacute susceptiacutevel de ter lugar ndash podem

ser apresentados de diferentes modos ou sob diferentes formas de acesso e que de entre esses

diferentes modos ou formas de acesso alternativas existe o modo ou a forma de acesso da ex-

periecircncia

Mais o modo da experiecircncia eacute vincadamente diferente do modo de outras formas de

acesso Isto eacute o facto de serem apresentados no modo da experiecircncia ou no modo de outras

formas de acesso alternativas corresponde a ldquoreconhecimentosrdquo das ldquomesmasrdquo ldquorealidadesrdquo

ou dos ldquomesmosrdquo ldquoobjectosrdquo completamente diferentes uns dos outros (em que o que apare-

ce eacute muito diferente)

Dito por outras palavras a anaacutelise aristoteacutelica sobre a experiecircncia distingue-se pela

forma como foca ao mesmo tempo a composiccedilatildeo do acesso de que dispomos (sc daquilo que

se acede nele) a multiplicidade dos elementos envolvidos nesse acesso as propriedades que

caracterizam cada um dos diferentes modos de acesso os saltos e descontinuidades que os

separam uns dos outros bem como as implicaccedilotildees de que tudo isto se reveste no que diz res-

peito ao modo como as coisas aparecem ou agravequilo que se chega a descobrir delas

Ora como no seguimento pretendemos deixar ficar claro a experiecircncia natildeo eacute pura e

simplesmente uma de entre muacuteltiplas modalidades de acesso possiacutevel agraves ldquocoisasrdquo ndash na verda-

de a experiecircncia eacute o modo de acesso agraves ldquocoisasrdquo em que habitualmente nos achamos

O que isto quer dizer eacute que tudo o que de ordinaacuterio nos aparece tem uma constituiccedilatildeo

empiacuterica ndash ie estaacute dominado pela forma de acesso tem o modo do aparecimento (sc a for-

ma de reconhecimento) proacuteprio da experiecircncia eacute o que a experiecircncia deixa ver do que haacute

etc

Isto eacute tanto assim que uma das razotildees por que temos dificuldades em perceber a cons-

tituiccedilatildeo da experiecircncia eacute o facto de na verdade natildeo conhecermos outra coisa e de precisa-

mente por estarmos ldquoembrenhadosrdquo nesse modo de acesso nos faltarem meios de contraste

para perceber de que eacute que a experiecircncia eacute feita os meandros disso em que estamos ldquoembar-

cadosrdquo etc

Tudo isto a que aqui nos referimos de forma muito sucinta estaraacute em anaacutelise quando

analisarmos a noccedilatildeo de ἐμπειρία nos passos do corpus aristotelicum que de seguida analisare-

7

mos Poreacutem e para compreender melhor o caraacutecter inovador da tese de Aristoacuteteles importa

considerar mais detidamente a tradiccedilatildeo a que Aristoacuteteles se reporta e a que atraacutes fizemos refe-

recircncia

sect2

O desdobramento da noccedilatildeo de ἐμπειρία na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica os aspectos da doa-

ccedilatildeo da duraccedilatildeo e da impossibilidade de antecipaccedilatildeo

A tradiccedilatildeo a que Aristoacuteteles se reporta estaacute naquilo que aqui nos importa considerar

no acircmbito da identificaccedilatildeo da ἐμπειρία marcada por trecircs aspectos

O primeiro aspecto eacute esse que faz associar a noccedilatildeo de ἐμπειρία agrave ideia da doaccedilatildeo

A noccedilatildeo de ἐμπειρία implica algo como um contacto directo um encontro em primei-

ra matildeo ou na ldquoprimeira pessoardquo Um exame mais rigoroso mostra que esta ideia central en-

volve na verdade dois componentes

Em primeiro lugar a ἐμπειρία estaacute ligada agrave ideia do testemunho directo ndash do ver por si

proacuteprio desse que constitui o ldquoprivileacutegio gnosioloacutegicordquo da αὐτοψία4

Este ldquoprivileacutegio gnosioloacutegicordquo tem que ver por um lado com o caraacutecter imediato do

testemunho e por outro com o facto de o testemunho natildeo estar dependente de mediadores ndash a

respeito de cuja fiabilidade em uacuteltima anaacutelise natildeo haacute garantias O que com tudo isto se expri-

me eacute que o acesso directo ndash o acesso na ldquoprimeira pessoardquo ndash eacute uma modalidade de acesso in-

substituiacutevel Mais tudo isto exprime o caso de haver determinaccedilotildees ou conteuacutedos de saber a

que natildeo se pode aceder senatildeo no modo de um acesso directo

Isto eacute pelo menos em certos casos (pelo menos em relaccedilatildeo a determinaccedilotildees ou a ldquocon-

teuacutedosrdquo de certo tipo) nenhuma outra modalidade de acesso poderia eficazmente passar por

ou fazer as vezes dum contacto directo qualquer outra modalidade de acesso ficaria muito

4 Para a noccedilatildeo de αὐτοψία ver por exemplo Galeno Tres tractats sobre lrsquoart de la medicina Tarra-

gona Publicacions URV 2013 paacuteg 102 ou Fausti La presenza del linguaggio medico nel De signis

di Filodemo Comunicare la Cultura Antica ndash I Quaderni del Ramo drsquoOro Online nordm 5 2012 em es-

pecial as paacuteginas 71 e 72 em que a autora potildee em contraste a αὐτοψία (a experiecircncia directa) com a

ἱστορία (a experiecircncia mediada) e a μετάβασις κατὰ τὸ ὅμοιον (a similitude)

8

aqueacutem do contacto directo e natildeo conseguiria sequer dar ideia daquilo a que soacute o contacto di-

recto permite aceder etc5

Em segundo lugar a ἐμπειρία daacute a conhecer algo pela proacutepria presenccedila imediata disso

e neste sentido depende da presenccedila disso (da viabilizaccedilatildeo do encontro ou do contacto direc-

to com isso que aparece)

A ideia de encontro directo estaacute associada agrave ideia de que se trata de algo que vem (ou

seja agrave ideia de um advento) ndash ie estaacute associada agrave ideia de algo vir ao encontro e estaacute na de-

pendecircncia dessa vinda dessa disponibilizaccedilatildeo do objecto Estar na dependecircncia de uma doa-

ccedilatildeo significa que o encontro poderia natildeo ocorrer ca-so nada viesse ao encontro E tanto eacute as-

sim que o experimentar o que se daacute a experimentar no contacto directo (o conhecer disso a

que soacute se pode aceder por um contacto directo) depende de haver doaccedilatildeo depende da ldquovindardquo

do que vem ao encontro ndash e ficaria irremediavelmente prejudicado e inviabilizado caso a vin-

da disso que vem ao encontro ou o encontro com isso que vem ao encontro natildeo ocorresse

Consideremos de seguida um segundo aspecto que diz respeito ao acircmbito de identifi-

caccedilatildeo da ἐμπειρία

Este segundo aspecto prende-se com o facto de a noccedilatildeo preacute-aristoteacutelica de ἐμπειρία

tambeacutem estar associada agrave ideia de natildeo se revelar natildeo se descobrir natildeo se ter acesso a tudo de

uma vez soacute natildeo haver algo como uma doaccedilatildeo total de uma assentada etc

Este segundo aspecto adiciona ao que vimos a ideia de qualquer coisa como um pro-

cesso de algo que se desenrola a pouco e pouco ndash de uma sucessatildeo de fases ndash que requer tem-

po duraccedilatildeo faseamento Em resumo algo que vem vindo que se abre ou que vai sucedendo

uma operaccedilatildeo em curso etc

Tambeacutem em relaccedilatildeo a este aspecto haacute uma multiplicidade de aspectos associados e

que importa salientar

Por um lado estaacute aqui em causa o facto de o contacto directo ter se assim se pode di-

zer lotaccedilatildeo limitada Isto eacute estaacute em causa o facto de que natildeo se pode produzir ao mesmo

5 Na verdade e neste sentido o que estaacute em causa eacute algo como o nosso experimentar ndash quando se fala

por exemplo de experimentar um sabor O que estaacute a ser focado quando falamos de experimentar o

sabor de por exemplo uma laranja eacute o caso de a descriccedilatildeo do sabor de uma laranja natildeo fazer as vezes

do saborear efectivo da laranja e de a uacutenica forma de se aceder ao sabor de uma laranja ser o contacto

directo com o sabor (ou como tambeacutem dizemos a experiecircncia do sabor) a que a mera descriccedilatildeo do

sabor estaacute impedida de que natildeo faz as vezes etc

9

tempo senatildeo uma pequena parte da totalidade de doaccedilotildees (do contacto directo do saber tira-

do do contacto directo etc) que para noacutes seria possiacutevel que haacute algo como uma dilaccedilatildeo do

contacto com os diferentes ldquoconteuacutedosrdquo que podemos descobrir por doaccedilatildeo na medida em

que os ldquoconteuacutedosrdquo natildeo satildeo todos possiacuteveis ao mesmo tempo que o contacto que estaacute em cau-

sa no modo de acesso da experiecircncia obriga a algo como um itineraacuterio de descoberta uma

manifestaccedilatildeo a prestaccedilotildees etc

Mas por outro lado este segundo aspecto tambeacutem tem que ver com o facto de haver

ldquoconteuacutedosrdquo mais complexos ndash ldquoconteuacutedosrdquo que apenas satildeo passiacuteveis de contacto directo na

sequecircncia de qualquer coisa como uma travessia de doaccedilotildees (de um processo de uma suces-

satildeo de fases etc) e que soacute no curso dessa travessia acabam por se revelar

Neste segundo aspecto o que estaacute em causa natildeo eacute soacute a impossibilidade de manifesta-

ccedilatildeo directa de tudo ao mesmo tempo o que estaacute em causa satildeo determinaccedilotildees (objectos de sa-

ber formas de saber etc) que nunca se poderiam manifestar numa doaccedilatildeo imediata porque

pela sua proacutepria natureza como que natildeo ldquocabemrdquo no acircmbito de uma apresentaccedilatildeo instantacirc-

nea Em suma trata-se de ldquoconteuacutedosrdquo ou de determinaccedilotildees que estatildeo ligados agrave proacutepria mu-

danccedila agrave passagem do tempo agravequilo que soacute se pode manifestar por meio da mudanccedila e da

passagem do tempo etc

O que estaacute em causa eacute portanto algo que pode ser descrito como um viacutenculo de condi-

cionamento para se alcanccedilar o produto da ἐμπειρία eacute indispensaacutevel uma travessia de acesso

Sem a travessia de acesso (quer dizer sem esse acesso em forma de travessia) haacute determina-

ccedilotildees ldquoconteuacutedosrdquo ou objectos de saber que natildeo chegam a aparecer natildeo tecircm condiccedilotildees para

se revelar para serem sabidos etc

Em uacuteltima anaacutelise a travessia a que se alude eacute uma travessia de doaccedilotildees Poreacutem im-

porta ter presente que aleacutem da ideia de doaccedilatildeo a ἐμπειρία pode ser compreendida de tal modo

que o que se acentua eacute justamente a proacutepria ideia de travessia enquanto tal Sendo assim a

ἐμπειρία estaacute ligada agrave ideia de uma forma complexa de acesso constituiacuteda por uma multiplici-

dade de passos e que requer o preenchimento de todo um conjunto de requisitos etc

Tal como a respeito da doaccedilatildeo tambeacutem neste uacuteltimo caso o que estaacute no centro da no-

ccedilatildeo de ἐμπειρία eacute a dependecircncia de uma vinda de um advento ndash que tambeacutem pode natildeo acon-

tecer de tal modo que caso natildeo ocorra fica prejudicada a possibilidade de saber que para se

constituir requer experiecircncia Mas o que neste uacuteltimo caso se destaca eacute a doaccedilatildeo como doaccedilatildeo

alargada extensa como sequecircncia de doaccedilotildees ndash natildeo com uma doaccedilatildeo meramente pontual

10

mas como algo que se prolonga e cujo prolongamento corresponde na verdade a um intervalo

com uma certa (ou ateacute muito significativa) ordem de grandeza

O que acabamos de dizer permite enfim perceber um terceiro aspecto que desempe-

nhava um papel central na noccedilatildeo de ἐμπειρία tal como esta se desenhava antes de Aristoacuteteles

globalmente a noccedilatildeo estaacute associada agrave negaccedilatildeo da antecipaccedilatildeo ou agrave impossibilidade da ante-

cipaccedilatildeo

Enquanto estaacute ligada agrave ideia de doaccedilatildeo (de dependecircncia da doaccedilatildeo etc) a ἐμπειρία

exprime o absoluto impedimento de saber aquilo a que a doaccedilatildeo diz respeito antes de ndash e in-

dependentemente de ndash isso mesmo vir a doaccedilatildeo Em suma a noccedilatildeo estaacute associada ao caso de

natildeo se saber agrave partida soacute se saber mediante doaccedilatildeo Este aspecto eacute reforccedilado na segunda

componente ndash que acrescenta por assim dizer a ideia de um intervalo (de um percurso ou de

uma travessia que tem de se fazer e sem o qual natildeo se chega a alcanccedilar uma determinada

forma de saber) Por outras palavras a segunda componente alarga ainda mais a distacircncia

relativamente a esse oposto da ἐμπειρία que eacute a antecipaccedilatildeo ndash o oposto que a afirmaccedilatildeo da

dependecircncia relativamente agrave ἐμπειρία nega em noacutes De tal modo que se pode dizer que en-

quanto estaacute ligada agrave ideia de doacccedilatildeo e de uma travessia de doacccedilotildees a ἐμπειρία exprime o

absoluto impedimento de saber aquilo a que a travessia de doacccedilotildees diz respeito antes de ndash e

independentemente de ndash essa mesma travessia se vir a realizar

Em suma poderia dar-se o caso de que a doaccedilatildeo fosse obtida num uacutenico acontecimen-

to de testemunho directo ndash de tal modo que uma uacutenica ocorrecircncia bastasse para obter o saber

que soacute se pode alcanccedilar por doaccedilatildeo Poreacutem natildeo eacute isso que sucede ndash e eacute a ausecircncia disso que

se acha expressa na noccedilatildeo de ἐμπειρία haacute como que uma dupla impossibilidade de antecipa-

ccedilatildeo Por um lado a dependecircncia da doaccedilatildeo impossibilita a posse antecipada disso que soacute po-

de ser obtido por doaccedilatildeo Por outro a dependecircncia de uma travessia impossibilita a posse

antecipada daquilo que soacute se pode aceder por travessia

Ao salientarmos brevemente estes trecircs aspectos que marcavam a tradiccedilatildeo preacute-aristoteacute-

lica o que estamos a fazer natildeo eacute mais do que inventariar alguns elementos essenciais que a

posiccedilatildeo de Aristoacuteteles leva em linha de conta e em relaccedilatildeo aos quais a posiccedilatildeo de Aristoacuteteles

faz contraste Ao mesmo tempo fazecirc-lo deixa-nos agora em melhores condiccedilotildees de conside-

rar o que se encontra nos passos referidos do corpus aristotelicum e de compreender como eacute

que o que se descobre nesses passos potildee na pista do intrincado complexo de fenoacutemenos que

corresponde agrave noccedilatildeo aristoteacutelica de ἐμπειρία

11

sect3

A ἐμπειρία integrada no quadro geral de identificaccedilatildeo da σοφία a ἐμπειρία como uma mo-

dalidade de saber possiacutevel do intervalo global entre o miacutenimo e o maacuteximo de saber ndash A des-

formalizaccedilatildeo da σοφία apresentada no modo de uma escala de possibilidades de acesso e a

pergunta que posiccedilatildeo ocupa na escala o acontecimento de acesso em que nos temos

Se considerarmos os paraacutegrafos iniciais de Metafiacutesica I o que desde logo se nota eacute que

a noccedilatildeo de ἐμπειρία ocorre integrada numa escala A escala a que aludimos ndash e que se dese-

nha em 980a27 e seguintes ndash tem como pri-meira instacircncia a αἴσθησις passa pela μνήμη tem

por terceiro momento a ἐμπειρία e culmina no par τέχνηἐπιστήμη6

Para se perceber bem em que sentido e com que alcance Aristoacuteteles fala de ἐμπειρία eacute

preciso portanto determinar o que eacute que estaacute em causa nesta escala Importa portanto res-

ponder a algumas questotildees qual eacute a natureza e o propoacutesito desta escala A que pergunta ou

a que perguntas a escala responde Como estaacute constituiacuteda Que criteacuterios determinam a sua

composiccedilatildeo Que funccedilotildees satildeo chamados a desempenhar os elementos que entram na sua

composiccedilatildeo

Eacute essencial ter presente que a escala apresentada por Aristoacuteteles em Metafiacutesica I estaacute

definida por duas ordens de determinaccedilotildees igualmente importantes

Em primeiro lugar o sentido da escala (e assim tambeacutem o sentido de cada um dos

componentes da escala ndash o sentido em que Aristoacuteteles fala de αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία τέχνη

e ἐπιστήμη) depende de elementos de natureza formal cuja compreensatildeo eacute decisiva para se

ganhar a pista daquilo para que Aristoacuteteles aponta Agrave primeira ordem de determinaccedilatildeo ndash que

diz respeito ao sentido e ao enquadramento da escala ndash vem juntar-se uma segunda que tem

que ver com cada um dos componentes que Aristoacuteteles faz entrar na sua composiccedilatildeo

O sentido de cada um desses diversos elementos eacute obtido perguntando o que estaacute em

causa neles que carga de determinaccedilotildees eacute proacutepria de cada um como eacute que as cargas proacute-

prias de cada elemento se relacionam umas com as outras como eacute que cada um destes com-

ponentes eacute chamado a desempenhar funccedilotildees numa escala como aquela que se define na pri-

6 φύσει μὲν οὖν αἴσθησιν ἔχοντα γίγνεται τὰ ζῷα ἐκ δὲ ταύτης τοῖς μὲν αὐτῶν οὐκ ἐγγίγνεται μνήμη τοῖς

δ᾽ ἐγγίγνεται (980a28 e seguintes) E logo depois τὰ μὲν οὖν ἄλλα ταῖς φαντασίαις ζῇ καὶ ταῖς μνήμαις

ἐμπειρίας δὲ μετέχει μικρόν τὸ δὲ τῶν ἀνθρώπων γένος καὶ τέχνῃ καὶ λογισμοῖς (980b26 e seguintes)

12

meira ordem de factores de determinaccedilatildeo que funccedilotildees ocupam na escala a αἴσθησις a μνή-

μη a ἐμπειρία e a τέχνηἐπιστήμη e como eacute que a conjugaccedilatildeo a) da carga de determinaccedilotildees

proacutepria de cada uma e b) do que estaacute em causa na escala determina a posiccedilatildeo que αἴσθησις

μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη ocupam nela etc

Ora a resposta agrave pergunta pelo que estaacute em causa na escala comeccedila a ser obtida se se

tiver em conta que os capiacutetulos iniciais da Metafiacutesica de Aristoacuteteles se debatem com o proble-

ma da identificaccedilatildeo da σοφία

Se natildeo eacute este o lugar para o levantamento da questatildeo da identificaccedilatildeo da σοφία como

se acha expressa nestes e noutros passos do corpus aristotelicum importa apesar de tudo con-

siderar aqui os aspectos fundamentais que permitam perceber de que eacute que se trata quando se

fala da σοφία e em especial os aspectos fundamentais que permitam perceber o que eacute que is-

so pode ter que ver com a escala apresentada por Aristoacuteteles7

O que antes de mais Aristoacuteteles parece procurar evidenciar eacute que temos facticamente

um conceito de σοφία (ou de sabedoria)

Poderia dar-se o caso de natildeo ser assim Poderia dar-se o caso de se ter um quadro de

determinaccedilotildees composto de tal modo que natildeo incluiacutesse qualquer conceito de σοφία (ou nada

de equivalente) Natildeo eacute esse no entanto o nosso caso

Ora do facto de se ter um quadro de determinaccedilotildees que inclui um conceito de σοφία

decorre o problema de saber a que eacute que um conceito de σοφία corresponde Eacute com esse pro-

blema que Aristoacuteteles se bate nos primeiros capiacutetulos da Metafiacutesica

Aristoacuteteles no entanto natildeo se limita ao confronto em geral com a questatildeo de com-

preender a que eacute que corresponde o conceito de σοφία que facticamente temos O que estaacute em

curso eacute algo distinto Desde o princiacutepio de Metafiacutesica I Aristoacuteteles estaacute a reagir a uma tese

que natildeo chega a referir ou a citar explicitamente mas que procura desmontar e se seguirmos

a sequecircncia dos passos que daacute (daquilo que procura pocircr em evidecircncia) percebemos que na

verdade natildeo apenas estaacute a referir essa tese mas estaacute a procurar mais exactamente infirmaacute-la

ndash abrindo assim o caminho para a adopccedilatildeo da perspectiva oposta

7 Para as muacuteltiplas referecircncias no corpus aristotelicum agrave noccedilatildeo de σοφία ver por exemplo Ret (em

especial I 9 5 I 11 27 II 11 5) Et Nic (em especial 1098b 1103a 1139b 1141a-b 1143b 1144a

1145a 1177a) e Met (em especial Livro A 981a-b 982a 992a Livro Γ 995b 996b Livro Δ 1004b

1005b Livro Λ 1059a 1060a-b Livro Μ 1075b) [sublinhado nosso]

13

A tese que Aristoacuteteles natildeo chega a referir ou a citar explicitamente eacute a seguinte na

medida em que o que estaacute em causa para os seres humanos eacute a proacutepria vida (sc a conduccedilatildeo

da vida) entatildeo o conceito de σοφία (de sabedoria saber etc) que os seres humanos tecircm ou

que eacute relevante para os seres humanos diz meramente respeito ao saber de orientaccedilatildeo ndash ao sa-

ber conduzir a vida

Analisemos um pouco melhor esta tese Isto eacute analisemos a possibilidade de identi-

ficar a σοφία com a forma de saber relativo agrave conduccedilatildeo da vida e suficiente para esse efeito ndash

e mais precisamente com o tipo de saber a que Aristoacuteteles chama φρόνησις8

Uma identificaccedilatildeo da σοφία com a forma de saber a que Aristoacuteteles chama φρόνησις

restringiria a σοφία a uma modalidade de conhecimento orientada para o horizonte vital Nes-

se caso a σοφία soacute teria que ver com a conduccedilatildeo da vida (tratar-se-ia fundamentalmente de

saber viver saber pilotar a vida saber conduzir a vida etc) Ora o que Aristoacuteteles procura

pocircr em evidecircncia nos primeiros capiacutetulos de Metafiacutesica I eacute precisamente que a referida tese

carece de fundamento

Assim a) os seres humanos para aleacutem de um conceito de saber ou sabedoria relativo

agrave conduccedilatildeo da vida tecircm um outro conceito de saber inteiramente irredutiacutevel agravequele b) eacute tan-

to assim que em vez de dois conceitos de σοφία (diferentes e em regime de paridade) sucede

que haacute um uacutenico conceito de σοφία c) o conceito de σοφία (ou sabedoria) que os seres huma-

8 O uso que Aristoacuteteles daacute ao termo φρόνησις eacute extenso e natildeo cabe aqui um inventaacuterio das suas muacutelti-

plas ocorrecircncias ou das suas muacuteltiplas determinaccedilotildees na totalidade da sua obra Eacute possiacutevel no entanto

ganhar uma pista do que se entende por φρόνησις considerando o estudo aprofundado que Aristoacuteteles

dedica ao fenoacutemeno no livro VI V da Eacutetica a Nicoacutemaco Mas tambeacutem uma anaacutelise integral de toda a

complexidade e de todas as possibilidades de compreensatildeo do fenoacutemeno e do seu campo de incidecircncia

que essa secccedilatildeo abre excede em muito o inqueacuterito que aqui se leva a cabo o que nos interessa eacute apenas

reter dois pontos essenciais Por φρόνησις (ou sensatez) entende-se antes de mais uma capacidade de

caacutelculo avaliaccedilatildeo e deliberaccedilatildeo que orienta ou potildee a caminho de um determinado objectivo final

Estaacute em causa portanto uma avaliaccedilatildeo ou deliberaccedilatildeo que eacute tanto circunspecta e prudente quanto

tem por resultado uma correcta orientaccedilatildeo ndash ie a φρόνησις natildeo desorienta nem faz perder o rumo

mas potildee efectivamente a caminho do objectivo final para que se estaacute em tensatildeo A este estaacute associado

um segundo ponto E esse eacute o caso da φρόνησις ter que ver com a avaliaccedilatildeo e deliberaccedilatildeo correcta do

que eacute bom para si proacuteprio na relaccedilatildeo que o indiviacuteduo estabelece com a conduccedilatildeo da vida em geral

Assim o objectivo final para que a φρόνησις orienta natildeo eacute senatildeo por assim dizer a vida boa ndash a quali-

dade de vida o viver bem em geral etc ndash o que faz igualmente notar que o que estaacute em causa na φρό-

νησις natildeo eacute um objectivo parcial ou restrito a uma parcela particular da vida mas um objectivo geral

abrangente que abarca a totalidade da vida ou que visa a vida em geral

14

nos tecircm estaacute mais ligado agravequele conceito que eacute irredutiacutevel ao saber de orientaccedilatildeo ou de con-

duccedilatildeo da vida do que a este uacuteltimo

A tentativa aristoteacutelica de fundamentaccedilatildeo destas teses passa por diferentes passos que

eacute preciso recuperar

Em primeiro lugar Aristoacuteteles chama a atenccedilatildeo para o facto de que por maior que se-

ja a nossa vinculaccedilatildeo agrave vida e agrave questatildeo da orientaccedilatildeo dela noacutes temos de todo o modo uma

noccedilatildeo de saber enquanto tal ndash de saber independentemente da sua vinculaccedilatildeo agrave vida Dito de

outro modo haacute em noacutes alguma noccedilatildeo de um saber ordenado pura e simplesmente a si mes-

mo medido para e simplesmente por si mesmo e sem outra preocupaccedilatildeo que natildeo o cumpri-

mento do programa do saber enquanto tal

Aleacutem disso Aristoacuteteles chama a atenccedilatildeo para um segundo aspecto igualmente decisi-

vo O aspecto a que nos referimos eacute um dos aspectos mais insistentemente focados nos capiacutetu-

los iniciais de Metafiacutesica I a saber natildeo soacute temos uma noccedilatildeo do saber (sc do conhecer inde-

pendentemente da sua aplicaccedilatildeo na conduccedilatildeo da vida) como a nossa sensibilidade ao concei-

to de saber ou de conhecer enquanto tal eacute tambeacutem uma sensibilidade agrave diferenccedila entre saber

mais e saber menos ou entre conhecer mais e conhecer menos

Seria exaustivo inventariar aqui todos os passos de Metafiacutesica I em que Aristoacuteteles

foca este aspecto O que deve ficar claro eacute que Aristoacuteteles considera justamente casos em que

uma dada forma de saber eacute percebida como equivalente a um saber mais (na ordem do saber

enquanto tal) mas se reveste de menos relevacircncia para efeitos de conduccedilatildeo da vida E chama

a atenccedilatildeo para o facto de sendo assim ndash porque esse saber menos relevante para a conduccedilatildeo

da vida eacute compreendido como equivalente a algo superior na ordem do saber enquanto tal

(ie no que diz respeito agrave diferenccedila entre saber menos e saber mais enquanto essa diferenccedila

nada tem que ver com a relevacircncia para a vida) ndash tendermos a compreender esse saber como

mais proacuteximo do que estaacute em causa no conceito de σοφία

O que se desenha agrave medida que Aristoacuteteles vai percorrendo as diversas instacircncias de

saber mais e saber menos eacute que o conceito de σοφία corresponde como que ao terminus ad

quem (ou ao ponto de fuga) da diferenccedila entre saber menos e saber mais a que os seres huma-

nos satildeo sensiacuteveis Por outras palavras o conceito de σοφία corresponde a um conceito formal

relativo agrave maximizaccedilatildeo do saber enquanto tal (do conhecimento enquanto tal) ndash ie corres-

ponde a uma forma superlativa de saber enquanto tal

15

Acontece no entanto que a desformalizaccedilatildeo disto que ainda seria um conceito formal

de σοφία poderia fazer-se de formas muito distintas

Na verdade o conceito formal de σοφία pode assumir contornos muito diferentes con-

soante a noccedilatildeo que se tenha de como o conhecimento pode aperfeiccediloar-se e portanto do que

corresponderaacute agravequela forma de saber que eacute superlativa (ou que jaacute natildeo admite qualquer aper-

feiccediloamento) Na medida em que o que estaacute em causa na σοφία eacute um superlativo formal entatildeo

agrave σοφία corresponderaacute sempre ao grau maacuteximo de qualquer progressatildeo de saber possiacutevel A

desformalizaccedilatildeo da σοφία (ie a resposta agrave pergunta qual eacute o grau maacuteximo de saber possiacute-

vel) depende em suma da finitude do acircngulo de acesso da concepccedilatildeo que se tem de quanto

ou ateacute onde o saber pode progredir

Assim num quadro de diferenciaccedilatildeo do saber menos e do saber mais que se caracteri-

za por ter notiacutecia de A B C e D e por essa notiacutecia estar constituiacuteda de tal modo que D aparece

como superior a A B e C seraacute D que aparece como correspondendo ao conceito de σοφία

Mas por outro lado se se vier a perceber que aleacutem de D tambeacutem haacute a possibilidade de E e F

(e isto de tal modo que F parece ser superior tanto a E quanto a D) entatildeo a identificaccedilatildeo da

σοφία mudaraacute pois nesse caso F eacute que corresponderaacute ao conceito de σοφία ndash e assim sucessi-

vamente Poreacutem se o acircngulo for finito e deixar de fora possibilidades de saber que estatildeo para

laacute do campo de incidecircncia do acircngulo (se se caracterizar apenas por ter notiacutecia de A B C e D e

deixar de fora E e F) entatildeo daraacute azo a que se compreenda o superlativo regional (que soacute eacute su-

perlativo em resultado da finitude do acircngulo) como o superlativo absoluto (que eacute o que estaacute

efectivamente em causa na σοφία) Em suma a identificaccedilatildeo do superlativo eacute sempre relativa

ao intervalo total da progressatildeo de saber possiacutevel que cada acircngulo de consideraccedilatildeo permite

identificar

Com estas consideraccedilotildees fica desde jaacute claro o que a escala desenhada por Aristoacuteteles

procura determinar no quadro de identificaccedilatildeo da σοφία o problema que se potildee eacute o de perce-

ber qual o intervalo total de progressatildeo do saber

Isto deixa imediatamente agrave consideraccedilatildeo dois aspectos

O primeiro eacute que eacute decisivo que o intervalo seja total ndash ie eacute essencial que natildeo sub-

sistam acircngulos cegos

Quer dizer o que isto significa eacute que em uacuteltima anaacutelise para se saber em que eacute que

consiste a σοφία (o que eacute que equivale agrave σοφία etc) eacute necessaacuterio ter uma efectiva sinopse (um

olhar totalmente desimpedido totalmente natildeo confinado sobre o intervalo total da progressatildeo

16

do saber desde o saber miacutenimo ao saber maacuteximo que jaacute natildeo seja passiacutevel de ser amplificado

para um saber ainda mais etc) Sem esta sinopse a possibilidade de identificaccedilatildeo da σοφία

ficaria ldquoenviesadardquo O que nesse caso sucederia seria tomar-se o comparativo por superlativo

ndash e de facto tomar-se por superlativo absoluto algo que estaacute muito longe de o ser

Por outro lado o que a escala apresenta eacute tanto um levantamento do intervalo global

entre o miacutenimo de saber e o maacuteximo de saber quanto a identificaccedilatildeo de quais e quantas satildeo

as etapas de progressatildeo relevantes no quadro desse intervalo global Ou seja eacute igualmente

decisiva a identificaccedilatildeo das diferenccedilas ou dos passos de significativo desconfinamento no ca-

minho do miacutenimo para o maacuteximo de saber

Acontece que quando se olha para a escala apresentada por Aristoacuteteles o que resulta

desde logo evidente eacute que parece haver um muito marcado contraste entre a magnitude do

empreendimento proposto (entre a pretensatildeo de conhecer o intervalo total de progressatildeo do

saber possiacutevel ndash ie mapear todas as possibilidades de saber relevantes entre saber miacutenimo e

saber maacuteximo) e o cardinal das etapas da progressatildeo que satildeo apresentadas por Aristoacuteteles De

facto o inventaacuterio de etapas de desenvolvimento do saber (ie o itineraacuterio global entre o miacute-

nimo e o maacuteximo de saber) que Aristoacuteteles apresenta natildeo inclui mais do que quatro momen-

tos fundamentais αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη

Esta magnitude do cardinal das etapas referidas por Aristoacuteteles estaacute associada a um as-

pecto que tambeacutem chama a atenccedilatildeo e aumenta ainda mais a perplexidade ndash sobretudo se tiver-

mos em conta que eacute de uma tentativa de identificaccedilatildeo da progressatildeo total (do levantamento

do intervalo total correspondente agrave progressatildeo do saber miacutenimo para o saber maacuteximo) que se

trata Esse outro aspecto tem que ver com o facto de Aristoacuteteles natildeo fazer a mais pequena re-

ferecircncia a questotildees de amplitude (ou a diferenccedilas de amplitude) do saber

Percebe-se imediatamente que se se considerasse o problema da amplitude do acesso

isso bastaria para provocar uma multiplicaccedilatildeo dos passos de progressatildeo (sc das diferenccedilas

relevantes no intervalo entre saber menos e saber mais) Poreacutem o facto eacute que Aristoacuteteles natildeo

parece atribuir nenhum papel relevante agraves questotildees de amplitude

Ora isto tem implicaccedilotildees e potildee problemas

Se natildeo estamos a ver mal o que parece implicado na escala aristoteacutelica tal como se

apresenta em Metafiacutesica I e Anal Post XI 19 eacute que a perspectiva que apenas tenha αἴσθησις

de um dado ldquoobjectordquo sabe menos do que a perspectiva que inclua μνήμη dele e esta por sua

vez sabe menos do que uma perspectiva que jaacute se eleve ao plano da ἐμπειρία ndash e que tambeacutem

17

esta sabe menos do que uma perspectiva correspondente a τέχνη ou ἐπιστήμη O simples facto

de um acesso envolver μνήμη eacute suficiente soacute por si para que esse acesso corresponda a um

ldquosaber maisrdquo do que aquele que eacute alcanccedilado por um acesso soacute provido de αἴσθησις o sim-

ples facto de um acesso envolver ἐμπειρία eacute suficiente soacute por si para que esse acesso corres-

ponda a um ldquosaber maisrdquo do que aquele que eacute alcanccedilado por um acesso soacute provido de μνή-

μη o simples facto de um acesso envolver τέχνη ou ἐπιστήμη eacute suficiente soacute por si para que

esse acesso corresponda a um ldquosaber maisrdquo do que aquele que eacute alcanccedilado por um acesso soacute

provido de ἐμπειρία

A irrelevacircncia das questotildees de amplitude pode ter portanto que ver com o facto de se

estar a considerar a possibilidade de progressatildeo do saber em relaccedilatildeo a cada cognosciacutevel

Mas por outro lado o ldquosilecircnciordquo relativamente a questotildees de amplitude tambeacutem pode

significar que ndash mesmo que suceda que um acesso que jaacute envolva μνήμη se caracterize por

uma amplitude de αἴσθησις (e portanto de μνήμη) muito restrita enquanto o acesso soacute pro-

vido de αἴσθησις tivesse pelo contraacuterio uma amplitude extraordinaacuteria (no limite ateacute a ampli-

tude correspondente a qualquer coisa como uma αἴσθησις total) ndash o ponto de vista mneacutesico sa-

be mais do que o ponto de vista meramente esteacutesico (pelo simples facto de um ser jaacute mneacutesico

e o outro natildeo) E o mesmo fenoacutemeno se verificaria nas relaccedilotildees entre μνήμη e ἐμπειρία e entre

ἐμπειρία e τέχνη ou ἐπιστήμη

As questotildees que no seguimento disto se devem pocircr satildeo justamente as de saber a) se

faz sentido que o levantamento de um intervalo total da progressatildeo de saber menos para sa-

ber mais faccedila ldquotaacutebua rasardquo das questotildees de amplitude b) qual eacute o sentido do ldquosilecircnciordquo de

Aristoacuteteles relativamente agraves diferenccedilas de amplitude (ie a de saber se o que estaacute em causa eacute

a primeira ou a segunda das possibilidade referidas) e c) em qualquer dos casos qual o fun-

damento da perspectiva assim adoptada na construccedilatildeo da escala

Comeccedilamos a compreender o fundamento que preside agrave construccedilatildeo da escala (ou seja

o fundamento que deixa perceber o sentido da escala e o que estaacute em causa em cada uma das

suas etapas) se considerarmos alguns aspectos estruturais da escala aristoteacutelica

O primeiro aspecto que interessa considerar tem que ver com a importacircncia das fron-

teiras entre os diversos momentos da escala Aristoacuteteles regista o conjunto relevante dos estaacute-

dios correspondentes a diversos graus de eficaacutecia cognoscitiva

O proacuteprio facto de a escala ignorar questotildees de amplitude faz que ela seja uma escala

de diferenccedilas qualitativas se assim se pode dizer uma escala de modos de acesso ou de con-

18

trastes quanto ao modo de acesso Em suma eacute uma escala de saltos qualitativos O que as

fronteiras destacam (aquilo que datildeo a ver sobre a relaccedilatildeo entre as etapas) satildeo por assim dizer

os momentos de descontinuidade qualitativa

Ora esta formulaccedilatildeo pode suscitar equiacutevocos se se entender que se trata entatildeo pura e

simplesmente de uma escala de modos de acesso ndash porque sendo assim (tratando-se de uma

mera escala de modos de acesso) entatildeo todas diferenccedilas se situariam ldquodesserdquo lado e portanto

natildeo teriam que ver com diferenccedilas quanto agravequilo que aparece Na verdade aos contrastes

quanto ao modo do acesso (ou quanto agrave ldquoqualidaderdquo do acesso) que estatildeo em causa na escala

de Aristoacuteteles correspondem tambeacutem diferenccedilas no que diz respeito agravequilo que aparece o

que aparece eacute diferente conforme o patamar da escala em que se esteja

O que isto quer dizer eacute que a escala de Aristoacuteteles eacute tambeacutem uma escala de desconti-

nuidades qualitativas em relaccedilatildeo ao teor daquilo que aparece Ou seja o que aparece agrave αἴσ-

θησις difere do que aparece agrave μνήμη que por sua vez difere do que aparece agrave ἐμπειρία que

por sua vez difere do que aparece a τέχνη ou a ἐπιστήμη

Sendo assim a descontinuidade entre as etapas apresentadas por Aristoacuteteles pode ser

descrita do seguinte modo cada momento da escala estaacute numa relaccedilatildeo com o momento que

lhe antecede e com o momento que lhe sucede Cada etapa da escala corresponde a qualquer

coisa como um intervalo ndash mais propriamente agravequele intervalo que vai da sua fronteira infe-

rior agrave sua fronteira superior

Por outras palavras cada momento da escala aristoteacutelica define-se por vencer a des-

continuidade relativa agrave etapa inferior e por ficar aqueacutem da descontinuidade que tem de ser

vencida para se alcanccedilar a etapa superior A ser assim cada etapa eacute portanto um intervalo

num intervalo ndash ie cada etapa eacute uma secccedilatildeo do intervalo global que corresponde agrave progres-

satildeo total do saber

Mas aqui importa ter em atenccedilatildeo algo que pode passar despercebido e que eacute igualmen-

te significativo

A escala apresentada por Aristoacuteteles eacute tanto uma escala de possibilidades relevantes

de avanccedilo quanto eacute uma escala de possibilidades relevantes de finitude

Isto eacute a escala a que aludimos eacute tambeacutem uma escala de possibilidades de retenccedilatildeo ndash

de formas de ficar aqueacutem de uma plena realizaccedilatildeo do saber Na verdade eacute uma escala da de-

fectividade do saber

19

Importa natildeo perder de vista esta ldquoduplicidaderdquo Por um lado cada etapa superior mar-

ca em relaccedilatildeo agrave inferior qualquer coisa como um avanccedilo ou um desconfinamento de perspec-

tiva ndash um desenvolvimento relevante na progressatildeo do miacutenimo ao maacuteximo de saber Por ou-

tro lado cada etapa inferior marca tambeacutem em relaccedilatildeo agrave superior uma forma de confinamen-

to de perspectiva como que de fechamento de acircngulo

Ou seja haacute algo como um duplo significado de cada fronteira Na escala de Aristoacute-

teles enquanto significa a fronteira inferior de uma etapa da escala cada fronteira marca o

desconfinamento de perspectiva que daacute origem a essa etapa mas enquanto significa a fron-

teira superior da etapa precedente essa mesma fronteira marca o confinamento de perspecti-

va proacutepria da etapa precedente (a saber o desconfinamento que essa etapa ainda natildeo conse-

gue alcanccedilar e cuja falta a define)

Devemos notar que isto implica natildeo apenas que a determinaccedilatildeo exacta do confina-

mento ou da finitude de uma etapa intermeacutedia estaacute marcada pela relaccedilatildeo agrave etapa imediata-

mente superior a essa mas implica mais exactamente que o confinamento ou a finitude de

uma etapa intermeacutedia estaacute tambeacutem marcada pela relaccedilatildeo a todas as etapas superiores ndash e no

limite estaacute marcada pela relaccedilatildeo agrave uacuteltima etapa Na verdade o confinamento a que uma dada

etapa estaacute sujeita soacute pode ser plenamente determinado a partir do desconfinamento maacuteximo

(da σοφία) ndash ie soacute pode ser determina-do a partir da etapa que natildeo admite mais nenhum des-

confinamento

Isto que acabou de se descrever eacute igualmente vaacutelido para os dois extremos da escala ndash

embora com uma particularidade

A primeira etapa (a αἴσθησις) tem como limite inferior a total ausecircncia de saber O

que eacute superado no seu limite inferior eacute a total ausecircncia de saber ndash total ausecircncia de saber que

jaacute se situa fora da escala

Analogamente a τέχνη ou ἐπιστήμη tecircm como limite superior justamente nada a τέχνη

ou ἐπιστήμη define-se pela sua insuperabilidade por natildeo ser passiacutevel de nenhum incremento

ou aperfeiccediloamento De sorte que tambeacutem neste caso aquilo que se situa para laacute do limite jaacute

natildeo pertence agrave escala (quer dizer jaacute natildeo pertence ao intervalo ou ao horizonte de saber por-

que pura e simplesmente natildeo pode haver nada de superior a τέχνη ou ἐπιστήμη)

Mas haacute ainda dois aspectos adicionais dignos de nota

Poderia acontecer que uma escala com as caracteriacutesticas que descrevemos ateacute agora

estivesse constituiacuteda de tal modo que o seu segundo niacutevel correspondesse a uma forma de sa-

20

ber totalmente diferente da forma de saber em causa no primeiro niacutevel (completamente hete-

rogeacuteneo em relaccedilatildeo a ele) ndash e assim tambeacutem no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre terceiro e se-

gundo niacutevel ou entre o quarto e o terceiro A ser assim o segundo niacutevel natildeo teria nada do pri-

meiro o terceiro nada do segundo e o quarto nada do terceiro

No entanto natildeo parece ser isto que Aristoacuteteles tem em vista

A escala desenhada no livro I da Metafiacutesica e na secccedilatildeo XI XIX dos Analiacuteticos Poste-

riores tem um caraacutecter tal que cada etapa posterior inclui no seu acontecimento as anteriores

ndash mais precisamente cada etapa inclui a etapa imediatamente anterior e por via dela tam-

beacutem a que a procede Isto eacute cada etapa equivale agraves etapas inferiores transformadas por um

desconfinamento que as integra no seu terminus ad quem ndash mas justamente transformadas ou

transfiguradas por um desconfinamento

Assim o segundo niacutevel equivale a qualquer coisa como o primeiro niacutevel transformado

por um desconfinamento que integra o primeiro niacutevel no seu terminus ad quem o terceiro niacute-

vel equivale a qualquer coisa como o segundo niacutevel transformado por um desconfinamento

que integra o segundo niacutevel no seu terminus ad quem e o quarto niacutevel equivale a qualquer

coisa como o terceiro niacutevel transformado por um desconfinamento que integra o terceiro niacutevel

no seu terminus ad quem

Ora e em segundo lugar isto significa que a escala de Aristoacuteteles tem o caraacutecter de

uma escala geneacutetica

Vendo bem as diferentes etapas formam a base de desenvolvimento umas das outras e

estatildeo constituiacutedas na forma do desenvolvimento das etapas precedentes O que estaacute efectiva-

mente em causa nas diversas etapas eacute algo como um tracircnsito de anterioridade e posterio-

ridade sequecircncia e sucessatildeo Haacute qualquer coisa como um condicionamento em virtude do

qual cada etapa superior natildeo eacute possiacutevel directamente por si soacute ndash cada etapa superior soacute eacute pos-

siacutevel sobre o fundo ou sobre a condiccedilatildeo de possibilidade que constituem para ela as etapas an-

teriores

Tudo isto configura uma relaccedilatildeo entre as etapas da escala marcada por dois aspectos

que se vistos em certo sentido parecem incompatiacuteveis

Se por um lado cada nova etapa eacute caracterizada por incluir em si a precedente (de tal

modo que se poderia falar de um ldquofiordquo de continuidade) por outro lado haacute uma vincada des-

continuidade entre os diferentes niacuteveis

21

Quer dizer por mais que a segunda etapa inclua em si a primeira (e que por sua vez a

terceira etapa inclua em si a segunda e portanto mediatamente inclua tambeacutem em si a pri-

meira e que por sua vez a quarta etapa inclua em si a terceira e portanto mediatamente in-

clua tambeacutem em si a primeira e a segunda) a verdade eacute que na primeira ainda natildeo haacute absolu-

tamente nada do que eacute proacuteprio da segunda (ainda natildeo haacute absolutamente nada disso que eleva

a segunda acima da primeira disso que a segunda potildee de proacuteprio etc) ndash da mesma forma

que na segunda natildeo haacute absolutamente nada do que eacute proacuteprio da terceira e na terceira natildeo haacute

absolutamente nada do que eacute proacuteprio da quarta

O esclarecimento desta aparente incompatibilidade passa por notar que o que estaacute em

jogo na escala aristoteacutelica eacute algo como uma sucessatildeo de passos de desconfinamento que mo-

dificam muito significativamente natildeo a amplitude mas a forma do acesso que se tem agraves coisas

(e portanto tambeacutem o teor daquilo que aparece)

O facto de haver um nexo de integraccedilatildeo (o fio de continuidade que poderia ser expres-

so recorrendo agraves foacutermulas 2=1+1 passo de desconfinamento 3=2+1 passo de desconfinamen-

to ie 3=[2(=1+1 passo de desconfinamento)+1 passo de desconfinamento] 4=3+1 passo de

desconfinamento ie 4=[3=[2(=1+1 passo de desconfinamento)+1 passo de desconfinamen-

to] + um passo de desconfinamento]) natildeo impede nem diminui o hiato (o salto ndash e como se

veraacute o extraordinaacuterio salto) entre os diferentes niacuteveis que compotildeem a escala

Se as caracteriacutesticas e o aspecto de uma etapa inferior eacute retroperspectivado a partir da

etapa em que se estaacute e do que uma tal etapa potildee de seu entatildeo isto implica a impossibilidade

de antecipaccedilatildeo do que se seguiraacute ie dos passos possiacuteveis da escala Ainda que uma dada

etapa tenha a sua identidade sempre jaacute marcada pelo facto de ficar aqueacutem do desconfina-

mento imposto por uma etapa seguinte (e no limite por todas as etapas seguintes e por fim

pela uacuteltima etapa) o facto eacute que o patamar em que se estaacute eacute sempre totalmente cego sobre as

possibilidades do seu desconfinamento do desenvolvimento que dele possa advir

Eacute precisamente isto que encontramos desenhado por Aristoacuteteles num conceito que

constitui um dos componentes essenciais da histoacuteria da noccedilatildeo de escala o conceito de ἐφεξῆς

Aristoacuteteles define o termo na Metafiacutesica (1068b30 e ss) e encontram-se diversas ocor-

recircncias tanto na Retoacuterica quanto na Poeacutetica9 Poreacutem os elementos essenciais que conveacutem ter

9 Ver por exemplo Met V XXIV (1023b9) XI XII (1068b33-1069a11) XII I (1069a21) XIII V

(1080a20-30) XIII VII (1081b6) XIII VIII (1083a32) XIII IX (1085a3-7) Ret I VII (1363b) III

XVI (1416b) III XVII (1418a) Poet VI 1450a29 VII 1451a13 X 1451b38 XXIII 1459a27

22

em conta com o fim de se entender o conceito de ἐφεξῆς e a sua relaccedilatildeo com o que foi dito ateacute

aqui podem encontrar-se num passo do De Anima

Aristoacuteteles comeccedila por dizer que haacute diversos niacuteveis de ψυχή (θρεπτικόν ὀρεκτικόν

αἰσθητικόν κινητικὸν κατὰ τόπον διανοητικόν) antes de estabelecer que as relaccedilotildees entre as

diversas ψυχαὶ equivalem agraves relaccedilotildees que haacute entre quadrilaacuteteros e triacircngulos (414b28 e ss)

Ora se se considerar um quadrilaacutetero verifica-se que inclui sempre em si algo como

um triacircngulo de facto um quadrilaacutetero equivale a um triacircngulo mais algo para laacute do triacircngu-

lo Por outras palavras se considerarmos a composiccedilatildeo de qualquer quadrilaacutetero (aquilo que

tem de ser posto para a partir de ldquozerordquo se constituir um quadrilaacutetero) verificamos que passa

sempre por um triacircngulo mas justamente natildeo se fica por aiacute implica a ldquoultrapassagemrdquo do

triacircngulo (um ir para aleacutem dele) Em suma haacute sempre um triacircngulo inscrito num quadrilaacutetero

e inversamente a constituiccedilatildeo de um quadrilaacutetero implica um triacircngulo mais um acreacutescimo

No entanto o acreacutescimo sobre o triacircngulo ndash acreacutescimo sem o qual na verdade natildeo

haveria qualquer quadrilaacutetero ndash como que ldquoapagardquo o triacircngulo substituindo a forma do triacircn-

gulo por uma outra resultante do acreacutescimo de que o triacircngulo enquanto tal ainda natildeo con-

teacutem nada Eacute isso que Aristoacuteteles quer dizer quando diz que o quadrilaacutetero estaacute (em potecircncia

entenda-se) no triacircngulo10

Eacute justamente algo desta ordem que estaacute em causa na escala de Metafiacutesica I ndash mas se

assim se pode dizer com iteraccedilatildeo a segunda etapa faz de ldquoquadrilaacuteterordquo em relaccedilatildeo ao ldquotriacircn-

gulordquo da primeira por sua vez a terceira etapa assume o papel de ldquoquadrilaacuteterordquo e potildee a se-

gunda a equivaler a um ldquotriacircngulordquo e por fim a quarta etapa faz o mesmo em relaccedilatildeo agrave ter-

ceira

Assim mesmo que Aristoacuteteles natildeo o diga explicitamente a noccedilatildeo de ἐφεξῆς ndash a forma

de sequecircncia que a noccedilatildeo de ἐφεξῆς designa ndash expressa exactamente o peculiar nexo de conti-

nuidade e de descontinuidade que apontaacutemos como sendo proacutepria quer da escala quer das

10

(Παραπλησίως δ ἔχει τῷ περὶ τῶν σχημάτων καὶ τὰ κατὰ ψυχήν ἀεὶ γὰρ ἐν τῷ ἐφεξῆς ὑπάρχει δυνά-

μει τὸ πρότερον ἐπί τε τῶν σχημάτων καὶ ἐπὶ τῶν ἐμψύχων οἷον ἐν τετραγώνῳ μὲν τρίγωνον ἐν αἰσθη-

τικῷ δὲ τὸ θρεπτι- κόν) Ὥστε καθ ἕκαστον ζητητέον τίς ἑκάστου ψυχή οἷον τίς φυτοῦ καὶ τίς ἀνθρώ-

που ἢ θηρίου (414b28 e ss)

23

etapas de desconfinamento significativo do tracircnsito do miacutenimo para o maacuteximo de saber tal

como as desenha Aristoacuteteles11

Isto conduz-nos a uma uacuteltima consideraccedilatildeo que tem que ver com isso a que podemos

chamar o complexo jogo de perspectivas silenciosamente implicado numa escala como aquela

que eacute desenhada por Aristoacuteteles

Se o problema a que procura dar resposta eacute o da identificaccedilatildeo da σοφία (enquanto a

σοφία equivale a um conceito formal de saber superlativo) entatildeo a escala de Aristoacuteteles tem a

pretensatildeo de natildeo ser apenas uma escala parcial de natildeo retratar somente uma parte do inter-

valo entre o miacutenimo de saber e o saber superlativo A escala de Aristoacuteteles procura apresen-

tar de facto o intervalo total ndash e apresentar todas as diferenccedilas relevantes que o pontuam Em

suma o que estaacute em jogo eacute no sentido eacutetimoloacutegico do termo um ldquopanoramardquo das possibili-

dades de saber ndash ldquopanoramardquo que eacute (e tem de ser) totalmente desconfinado

O que isto significa eacute que se perguntarmos qual eacute o ponto de vista ao qual se oferece

a escala ou qual eacute o ponto de vista a partir do qual se tem a perspectiva sinoacuteptica que a es-

cala pretende oferecer resulta claro que se trata de qualquer coisa como um ponto de vista si-

lenciosamente concebido como testemunha de todo o itineraacuterio de progressatildeo do saber e que

se caracteriza pela sua capacidade irrestrita ie por ter justamente uma visatildeo sinoacuteptica ca-

paz de alcanccedilar todos os momentos da escala (quer dizer toda a progressatildeo desde o miacutenimo

ao maacuteximo de saber) sem que nada permaneccedila fora da sua perspectiva

11

O termo ἐφεξῆς indica portanto sequecircncia ou sucessatildeo ndash com isso querendo por um lado apontar a

uma ordenaccedilatildeo o caso de haver uma precedecircncia do triacircngulo em relaccedilatildeo ao quadrilaacutetero e do quadri-

laacutetero sobrevir ao triacircngulo de tal modo que haacute entre as duas figuras continuidade No entanto por

outro lado a continuidade natildeo resulta de uma mera distribuiccedilatildeo temporal (que ponha o quadrilaacutetero a

vir depois do triacircngulo) mas de uma relaccedilatildeo que potildee o acontecimento do quadrilaacutetero tanto dependente

de quanto caracterizado a partir do acontecimento do triacircngulo O ἐφεξῆς natildeo reporta a uma mera ad-

jacecircncia ou a um mero alinhamento contiacuteguo mas ao caso de y ser extraiacutedo a partir de x do aconteci-

mento de y ser atravessado pelo acontecimento de x etc O ἐφεξῆς tem portanto a acepccedilatildeo de seacuterie ndash

de uma seacuterie em que o segundo procede do primeiro e o terceiro do segundo etc E tanto assim que o

que resulta da seacuterie eacute o segundo elemento da seacuterie ter caraacutecter de segundo ndash ie de natildeo ser primeiro

mas algo que procede de ou sucede ao primeiro que eacute extraiacutedo dele Assim o primeiro elemento da

seacuterie natildeo tem o que eacute necessaacuterio para constituir o segundo elemento da seacuterie inversamente o segundo

elemento da seacuterie aniquila no seu acontecimento o elemento de que precede O primeiro de qualquer

seacuterie pode ser o princiacutepio de uma continuidade infinita que sempre pressupotildee o primeiro mas em

qualquer caso o primeiro estaacute aniquilado no segundo no terceiro etc ndash dito de outro modo o segun-

do conteacutem o primeiro e aniquila-o o terceiro conteacutem o primeiro e o segundo e aniquila-os etc

24

Acontece no entanto que se perguntarmos qual eacute esse ponto de vista (quem o ocupa

ou possui) a resposta eacute que se trata justamente do nosso ponto de vista que o ponto de vista

que de certo modo natildeo estaacute dentro dela mas eacute o ponto de vista testemunha da escala eacute o

nosso Quer dizer quem compreende a escala e acompanha o itineraacuterio que nela se desenha

somos noacutes ndash somos noacutes quem tem o panorama (o itineraacuterio total) em causa

A escala de Aristoacuteteles eacute por assim dizer uma escala antropoloacutegica

Poreacutem o caraacutecter ldquoantropoloacutegicordquo da escala (quer dizer o facto de a ldquoloacutegicardquo interna

da escala ter o seu foco sobre o ser humano ser de certo modo antropocentrada etc) pode-

ria corresponder a vaacuterios desdobramentos

Por um lado poderia ter expressatildeo no facto de a escala ser uma escala que correspon-

desse exclusivamente ao ser humano ndash ie ser uma escala em que cada um dos seus momen-

tos fosse um momento possiacutevel do ser humano na sua relaccedilatildeo com o saber (como diferentes

ldquoerasrdquo ou ldquoidadesrdquo do ser humano uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo esteacutesica uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo mneacute-

sica uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo empiacuterica e uma ldquoerardquo ou ldquoidaderdquo teacutecnica ou episteacutemica)

Por outro lado poderia dar-se o caso de ao ser humano corresponder apenas um mo-

mento da escala ndash caso no qual consoante a posiccedilatildeo na escala que coubesse ao ser humano

todos os outros momentos possiacuteveis seriam desenvolvimentos aqueacutem eou aleacutem do ser huma-

no Neste sentido o que a escala procuraria fazer seria apurar qual a posiccedilatildeo do humano pe-

rante a amplitude do saber que lhe eacute possiacutevel ndash ie apurar a posiccedilatildeo do ser humano perante

a amplitude do saber possiacutevel (ou mais exactamente a posiccedilatildeo do ser humano perante a am-

plitude do saber que eacute possiacutevel ao ser humano conceber)

Ora o proacuteprio sentido da escala ndash enquanto esta escala procura retratar o intervalo de

toda a progressatildeo possiacutevel do saber desde o miacutenimo ao maacuteximo de saber etc ndash implica que

natildeo pode haver nenhum ponto de vista exterior ao que nela se acha retratado Seja como for

o ponto de vista que testemunha a escala tem de ter uma posiccedilatildeo definida no quadro da esca-

la Digamos assim se o que estaacute em causa eacute justamente a escala total das possibilidades de

confinamento e desconfinamento do acesso entatildeo o acesso de que qualquer ente dispotildee (en-

tenda-se qualquer ente ou ser vivo que esteja constituiacutedo na posse de um acesso agraves ldquocoisasrdquo)

deveraacute ser situaacutevel na escala

Assim a escala de Aristoacuteteles tem uma natureza tal que constitui como que uma ldquoreacute-

guardquo para medir ndash ou um ldquoquadrordquo para localizar ndash qualquer acontecimento de acesso Se

pelo seu sentido ainda que tenha o seu foco sobre o ser humano a escala natildeo eacute especialmente

25

relativa a noacutes ao mesmo tempo vale naturalmente tambeacutem a nosso respeito e suscita a per-

gunta onde se situa nela o nosso ldquoolharrdquo o acesso em que nos achamos de que dispomos

A resposta agrave pergunta ldquoonde se situa o nosso ldquoolharrdquo na escala aristoteacutelicardquo eacute com-

plexa ndash e eacute-o desde logo no plano formal

Poderia acontecer que a resposta passasse pela mera identificaccedilatildeo de uma etapa da es-

cala que correspondesse agrave forma de acesso que nos eacute proacutepria Mas vendo bem natildeo eacute forccedilosa-

mente assim

Na medida em que a escala aristoteacutelica tem a natureza de uma escala de possibilida-

des de acesso nada implica que o acontecimento de acesso ou a forma de saber proacutepria de um

determinado ente (sc de um dado ser vivo) ndash e designadamente o acontecimento de acesso

em que damos connosco ndash tenha forccedilosamente de corresponder a apenas uma etapa da esca-

la Com efeito pode suceder que o acesso de um dado ente ndash e designadamente o acesso que

eacute o nosso ndash tenha um caraacutecter tal que possa mudar de localizaccedilatildeo na escala ou seja tenha a

possibilidade de transitar de uma etapa para outra (e na verdade natildeo apenas de uma etapa

para outra mas de uma etapa para outras) Eacute isto que se desenha no plano meramente formal

Mas resulta claro que a resposta agrave referida pergunta soacute pode ser dada a partir de uma

anaacutelise que natildeo se limite somente aos aspectos formais que tentaacutemos passar brevemente em

revista A resposta passa por uma anaacutelise detida das proacuteprias determinaccedilotildees ou formas con-

cretas de acesso que Aristoacuteteles faz corresponder agraves diferentes etapas da sua escala Dito por

outras palavras a resposta agrave pergunta pela localizaccedilatildeo do acontecimento de acesso em que

nos temos na escala de Aristoacuteteles depende de uma averiguaccedilatildeo disso a que Aristoacuteteles chama

αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη

Eacute que como dissemos a escala desenhada por Aristoacuteteles define-se pela combinaccedilatildeo

de duas ordens de factores temos por um lado os factores formais e temos ainda por outro

as determinaccedilotildees concretas ou ldquomateriaisrdquo que satildeo postas em conexatildeo com elas Uma vez

vistos sumariamente os primeiros trata-se agora de pocircr as diferentes articulaccedilotildees formais fo-

cadas em ligaccedilatildeo com aquilo que as desformaliza

Assim o que procuraremos fazer de seguida seraacute determinar a que eacute que corresponde

cada um dos conceitos que definem as etapas da escala aristoteacutelica ndash a que eacute que correspon-

dem αἴσθησις μνήμη ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη

26

I EXPERIEcircNCIA

sect4

A forma de aparecimento que mais deixa escondido isso que de algum modo potildee jaacute agrave mostra

A compreensatildeo do sentido em que a primeira etapa da escala aristoteacutelica corresponde

agrave αἴσθησις depende naturalmente da proacutepria carga especiacutefica do conceito de αἴσθησις

Agrave partida a compreensatildeo do que corresponde agrave αἴσθησις parece satisfeita quando se

faz passar a αἴσθησις por algo como sensaccedilatildeo percepccedilatildeo ou o que quer que seja desta ordem

Aliaacutes num certo sentido seria possiacutevel fazer essa leitura a partir da proacutepria obra de

Aristoacuteteles Bastaria considerar por exemplo os passos do corpus aristotelicum em que se

desenvolvem mais detidamente os fundamentos da αἴσθησις12

O que se encontra em Anal

Post 99b35 eacute a compreensatildeo da αϊσθησις num quadro de inclusatildeo e de exclusatildeo de conteuacute-

dos (consoante incida ou natildeo sobre eles) A αϊσθησις corres-ponderia agrave incidecircncia (e o seu

contraacuterio a ἀναισθησία a natildeo-incidecircncia) Quer dizer a αϊσθησις corresponderia a essa acccedilatildeo

de incidir em ou de incidir sobre de estar caiacutedo ou lanccedilado sobre algo precipitado em algo

deposto perante algo etc en-quanto esse acto eacute condiccedilatildeo sine qua non do contacto directo

(em primeira matildeo na ldquoprimeira pessoardquo) que se analisou na secccedilatildeo anterior

12

Natildeo podemos deixar aqui de reforccedilar o facto de que o que estaacute em causa nesta secccedilatildeo natildeo eacute de mo-

do nenhum uma identificaccedilatildeo global da noccedilatildeo de αἴσθησις ou dos seus diversos usos na obra de Aris-

toacuteteles Uma identificaccedilatildeo desse geacutenero teria de considerar uma quantidade de passos do corpus aris-

totelicum ou uma quantidade de caracteriacutesticas do que estaacute implicado na noccedilatildeo a que esta secccedilatildeo natildeo

pode dar atenccedilatildeo Ter-se-ia por exemplo que considerar todo o complexo de fenoacutemenos a que a αἴσ-

θησις se abre em vaacuterios momentos da Metafiacutesica (livro III 997b 999b livro IV 1009b-1011b livro

V 1016a 1018b 1020b livro VII 1035b-1036a livro IX 1047a-b livro X 1053a-1054a livro XI

1062b-1064a livro XII 1072b-1074b livro XIII 1077a livro XIV 1088a etc) da Eacutetica a Nicoacutemaco

(1098b 1103a 1109b 1113a 1118a-b 1126b 1139a 1142a 1143b 1149a 1161b 1170a-1171b

1173b-1175b etc) do De Anima II (4 e 5 414a15-418a6) da Eacutetica a Eudemo (1226a 1230b-1231a

1235b-1236a 1245a etc) da Retoacuterica (em especial I 11) etc Mais ainda esta advertecircncia eacute espe-

cialmente importante na medida em que Aristoacuteteles dedica especial atenccedilatildeo ao tema ndash neste caso par-

ticular na forma de um tratado (o De sensu et sensibilibus) em que o assunto eacute exposto em toda a sua

amplitude

27

Poreacutem quando fala de αἴσθησις no contexto da escala (na moldura formal que vimos

na secccedilatildeo anterior) Aristoacuteteles introduz uma determinaccedilatildeo radical de αἴσθησις que natildeo estaacute

necessariamente presente na compreensatildeo mais comum do termo o facto de ser a forma miacuteni-

ma de acesso ndash ou seja aquele acesso que por assim dizer dista um soacute grau da total ausecircncia

do aparecimento ou do saber

Neste sentido o problema que eacute decisivo suscitar para se perceber de que eacute que Aris-

toacuteteles estaacute a falar quando fala da αἴσθησις na moldura formal da escala adveacutem da posiccedilatildeo em

que Aristoacuteteles potildee a αἴσθησις na escala que desenha E ao colocar a αἴσθησις na primeira

posiccedilatildeo da escala Aristoacuteteles estaacute de facto a destacar algo que poderia ser descrito em trecircs

aspectos

Em primeiro lugar estaacute a procurar destacar que a primeira posiccedilatildeo da escala equivale

ao primeiro momento de algo jaacute distinto de uma ignoracircncia total

O primeiro patamar da escala corresponde ao lance de subtracccedilatildeo original ao natildeo-sa-

ber absoluto a uma forma miacutenima de acesso (a um rasgo ou desconfinamento) que introduz a

diferenccedila entre o natildeo acesso e o acesso (ie entre natildeo saber e saber entre natildeo conhecer e

conhecer etc) O que estaacute em jogo eacute em suma a αἴσθησις enquanto lance de abertura en-

quanto eacute jaacute um primeiro estaacutedio de eficaacutecia cognoscitiva

Dito doutro modo a primeira etapa da escala marca a fronteira limiacutetrofe entre o que

cai dentro e o que cai fora do domiacutenio da escala ndash mais precisamente neste caso o que cons-

titui o limite miacutenimo da escala Fica-se com isto a saber que a total ausecircncia de saber estaacute ex-

cluiacuteda da escala (estaacute do lado de fora da escala) e que o primeiro momento que a escala inclui

eacute jaacute um momento do saber

Isto leva a um segundo aspecto

Esse segundo aspecto eacute o que faz notar que a diferenccedila entre o natildeo-saber e o saber

natildeo eacute uma diferenccedila quantitativa mas qualitativa

O rasgo ou desconfinamento em causa na primeira etapa da escala opera uma trans-

formaccedilatildeo de natureza a primeira etapa da escala eacute sempre jaacute algo qualitativamente diferente

da total ausecircncia do nada do escondimento etc O limite miacutenimo da escala assinala a radical

heterogeneidade entre o dentro e o fora da escala ndash mas isto de tal maneira que o limite miacute-

nimo da escala (isso que marca o que jaacute cai dentro da escala) assinala uma linha de separa-

ccedilatildeo entre dois domiacutenios irreconciliaacuteveis entre si

28

Acontece que estes dois aspectos satildeo ainda aspectos meramente formais ndash e tanto quer

dizer que o rasgo ou o desconfinamento que anunciam poderia assumir formas concretas mui-

to variadas E na verdade o rasgo ou o desconfinamento que anunciam poderia assumir uma

forma distinta da forma da αἴσθησις

Assim o terceiro aspecto que se deve ter em conta eacute esse que faz notar que o rasgo ou

o desconfinamento em causa tem a forma de αἴσθησις

De entre vaacuterias modalidades alternativas de rasgo ou desconfinamento possiacuteveis a

modalidade concreta que opera a transformaccedilatildeo entre o estaacutedio de total ausecircncia de saber e

o estaacutedio de saber eacute a αἴσθησις Eacute a αἴσθησις a modalidade de desconfinamento ou acesso que

supera de forma miacutenima o natildeo-saber absoluto essa modalidade cujo desvio em relaccedilatildeo ao

natildeo-saber resulta iacutenfimo Ou seja a αἴσθησις eacute a modalidade de desconfinamento ou acesso

mais proacutexima do natildeo-acesso ou a modalidade de saber que imediatamente se segue ao natildeo-

saber absoluto

O lance da αἴσθησις eacute em suma o lance pelo qual eacute dado a ver (ie dado a saber da-

do a conhecer etc) algo que natildeo era visto (que natildeo era sabido conhecido etc) ndash eacute portanto o

lance radical que rompe irreversivelmente a barreira do escondimento Poderiacuteamos dizecirc-lo

assim o lance da αἴσθησις eacute o lance a partir do qual o escondimento natildeo eacute senatildeo sempre jaacute

visado como mero negativo do aparecimento ndash aparecimento em que em virtude do rasgo ou

desconfinamento que a αἴσθησις produz sempre jaacute se estaacute lanccedilado quando se estaacute posto na si-

tuaccedilatildeo de ver de saber ou de conhecer

No sentido em que aqui a estamos a analisar a αἴσθησις corresponde ao acesso primaacute-

rio e primeiro ao que aparece (na verdade a tudo o que aparece) ndash ie agrave condiccedilatildeo de possibi-

lidade do proacuteprio aparecimento do que quer que seja do proacuteprio aparecimento de tudo o que

aparece Poreacutem e em simultacircneo a αἴσθησις eacute a forma de acesso marcada por uma maacutexima

subsistecircncia de escondimento ndash por aquela maacutexima subsistecircncia de escondimento que eacute com-

patiacutevel com haver jaacute algum aparecimento ou saber de algo Em suma a αἴσθησις eacute a forma de

aparecimento de algo que mais deixa escondido esse algo que potildee de algum modo jaacute agrave

mostra

Ora o que interessa analisar na continuaccedilatildeo eacute precisamente o que eacute que corresponde

exactamente agrave αἴσθησις ou como eacute que a αἴσθησις ldquoencarnardquo o saber miacutenimo (esse saber que

menos sabe que sendo jaacute saber mais ignora etc)

29

sect5

A noccedilatildeo histoacuterica de αἴσθησις na tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica e a pergunta de que eacute feito o

aparecimento

Compreender a tese de Aristoacuteteles a este respeito assim como compreender a carga

que a noccedilatildeo de αἴσθησις tem no quadro da escala que vimos implica de novo pocirc-la em con-

traste com a tradiccedilatildeo a que Aristoacuteteles se reporta

Se por um lado devemos natildeo perder de vista que esta tradiccedilatildeo eacute lateral agrave escala aris-

toteacutelica e natildeo estaacute expressamente focada na concepccedilatildeo que Aristoacuteteles apresenta a seu respei-

to por outro uma batida pela carga histoacuterica e semacircntica da noccedilatildeo de αἴσθησις iraacute ajudar-nos

a compreender melhor tanto o ponto de partida quanto a especificidade e originalidade da no-

ccedilatildeo tal como a usa Aristoacuteteles

Tal como vimos na secccedilatildeo anterior no caso da ἐμπειρία tambeacutem a noccedilatildeo de αἴσθησις

estaacute marcada pelo facto de ter jaacute uma tradiccedilatildeo ou uma carga proacutepria anterior aos desenvolvi-

mentos que Aristoacuteteles lhe iraacute imprimir Platatildeo por exemplo dedica-lhe extensas passagens

da sua obra13

A pergunta a que a noccedilatildeo tradicional ou histoacuterica de αἴσθησις procura antes de mais

dar resposta eacute de que eacute feito o aparecimento

O que em primeiro lugar se tende a sugerir em resposta a esta pergunta eacute que o apare-

cimento eacute constituiacutedo por qualquer coisa como qualidades sensiacuteveis E natildeo apenas constituiacutedo

por qualidades sensiacuteveis ndash na verdade o que se tende a sugerir eacute que o aparecimento eacute inte-

gralmente composto de qualidades sensiacuteveis O que estaacute implicado nesta resposta eacute que o apa-

recimento (ie tudo o que aparece) eacute feito de determinaccedilotildees sensiacuteveis (como cores sons

cheiros etc) ndash e tanto assim que se se fi-zesse o exerciacutecio de retirar ao que aparece as deter-

minaccedilotildees sensiacuteveis natildeo restaria nada

Esta concepccedilatildeo parece assente no facto de que o que estaacute em jogo na αἴσθησις eacute uma

modalidade de acesso maciccedilo ndash ou seja a αἴσθησις eacute um acesso a um todo

13

Considerar por exemplo a especial incidecircncia dada agrave noccedilatildeo em Teet 151e-168b Fil 33c-35a e

38b-41d Fed 73c-76d 79a-c Leis (livros II X XI XII) Rep (livros VI e VII) etc

30

A αἴσθησις natildeo eacute um acontecimento regional um acontecimento com lacunas que

deixe de cobrir uma qualquer secccedilatildeo do campo de aparecimento (do campo de incidecircncia

perceptiva etc) Pelo contraacuterio a αἴσθησις cobre integralmente a totalidade do campo de

aparecimento ndash e tanto quer dizer que todo o campo de aparecimento (ie todo o campo de

incidecircncia perceptiva) estaacute sem excepccedilatildeo preenchido de qualidades sensiacuteveis

A este primeiro aspecto vem juntar-se um segundo o preenchimento do campo de

aparecimento natildeo resulta de um processo de completaccedilatildeo gradual ou progressivo

Vendo bem o acontecimento de aparecimento que a αἴσθησις propicia eacute produzido de

uma vez soacute Isto quer dizer que as qualidades sensiacuteveis satildeo contemporacircneas entre si e de uma

soacute vez ocupam a totalidade do campo de aparecimento disponiacutevel em todas as suas dimen-

sotildees Na verdade todo o campo de incidecircncia perceptiva aparece de cada vez totalmente

preenchido

Tudo isto tem que ver com o facto de as determinaccedilotildees sensiacuteveis serem o que avulta

na apresentaccedilatildeo que temos das coisas ndash ao ponto de natildeo se dar pela presenccedila imediata de

mais nada para aleacutem delas Em resumo as determinaccedilotildees sensiacuteveis satildeo se assim se pode di-

zer o conteuacutedo expresso do aparecimento

Assim por um lado a αἴσθησις eacute uma modalidade de acesso (de descobrimento de

desocultaccedilatildeo etc) associada agrave noccedilatildeo de doaccedilatildeo que analisaacutemos na secccedilatildeo anterior ndash no caso

eacute uma modalidade de acesso associada agrave doaccedilatildeo de qualidades sensiacuteveis Por outro lado a

presenccedila imediata de qualidades sensiacuteveis como algo que se impotildee num testemunho directo eacute

compreendida como efeito de uma afecccedilatildeo pelas qualidades que de algum modo pertencem

agraves proacuteprias coisas ndash eou que se manifestam como uma ldquotranscri-ccedilatildeordquo das proacuteprias coisas

Assim o conceito de αἴσθησις no sentido tradicional estaacute tambeacutem associado agrave ideia

de afecccedilatildeo (sc agrave ideia de algo como uma transcriccedilatildeo em presenccedila directa das proacuteprias

qualidades que inerem agraves coisas as qualidades sensiacuteveis directamente testemunhadas)

Este sentido da noccedilatildeo αἴσθησις estaacute ainda hoje presente na compreensatildeo mais comum

do que se entende por percepccedilatildeo ou por sensaccedilatildeo

O modo habitual de conceber a percepccedilatildeo ou a sensaccedilatildeo faz da percepccedilatildeo ou da sensa-

ccedilatildeo um acto instantacircneo de captaccedilatildeo ou recolha disso sobre que incide ndash um acto que conju-

ga o funcionamento do aparelho sensorial agrave presenccedila imediata do que aparece e que gera sem

intervenccedilatildeo de qualquer outro factor uma noccedilatildeo correcta e distinta do que aparece (do que

vem ao encontro do que por esse meio afecta ou impressiona etc)

31

Neste sentido a αἴσθησις eacute um modo de aparecimento atravessado por um modelo de

auto-interpretaccedilatildeo espontacircnea do proacuteprio aparecimento (de auto-compreensatildeo espontacircnea do

acesso etc) Isto eacute natildeo diz soacute respeito ao modo de presenccedila de algo mas diz respeito agrave com-

preensatildeo daquilo que se apresenta imediatamente como correspondendo a uma transferecircn-

cia agrave transferecircncia do que estaacute num territoacuterio para laacute da αἴσθησις ateacute agrave posse disso na αἴσθη-

σις (ie ateacute ao aparecimento disso na forma de impressotildees ou de qualidades sensiacuteveis) ndash tudo

isto em correspondecircncia ao modelo de um acesso transparente (transparecircncia em relaccedilatildeo

agravequilo que aparece nele)14

Quer dizer a transferecircncia que estaria em causa na percepccedilatildeo ou na sensaccedilatildeo seria

uma transferecircncia que para o dizer assim teria o que aparece transposto nas qualidades sen-

siacuteveis ndash qualidades sensiacuteveis que acederiam a algo que efectivamente corresponde ao que

aparece

A tudo isto acresce ainda um outro aspecto natildeo menos significativo

As qualidades sensiacuteveis tecircm grosso modo o caraacutecter de uma ldquomanchardquo (uma ldquoman-

chardquo de cor uma ldquomanchardquo de som uma ldquomanchardquo de qualidades aacutepticas uma ldquomanchardquo de

quente e frio etc) Sendo assim sucede que este facto tende a sugerir uma outra componente

da ideia de αἴσθησις que tambeacutem envolve um elemento de auto-interpretaccedilatildeo da ldquomanchardquo

sensiacutevel a sa-ber que a ldquomanchardquo corresponde a uma multiplicidade que enquanto multipli-

cidade eacute decomponiacutevel e sugere a sua proacutepria composiccedilatildeo a partir de unidades baacutesicas

Este eacute um aspecto decisivo da noccedilatildeo de αἴσθησις ndash seja ela usada no singular ou no

plural

O que esta concepccedilatildeo sugere eacute que haacute qualquer coisa como elementos ndash momentos

simples de qualidade sensiacutevel (sc momentos simples de afecccedilatildeo) ndash cuja agregaccedilatildeo produz as

14

A ambiguidade que aqui se refere estaacute tambeacutem ela ainda hoje presente no entendimento que se faz

do verbo perceber que tem raiz no latino percipere O verbo perceber sintetiza um duplo sentido por

um lado perceber designa o acto de receber afecccedilotildees ou impressotildees pelos sentidos Nesta acepccedilatildeo

perceber eacute antes de mais o acto fiacutesico e mecacircnico de encontro com o que eacute doado (de estar disponiacutevel a

ou de acolher isso que eacute doado) Por outro lado no entanto o verbo perceber designa algo de muito

diferente de um mero acto fiacutesico ou mecacircnico designa a capacidade de entender discernir distinguir

ou saber apreciar ndash e tambeacutem estar na posse do sentido do que eacute recebido etc ldquoPerceberrdquo designa

uma intervenccedilatildeo cognitiva que anula aquilo que poderia ser entendido na primeira acepccedilatildeo como

uma mera passividade ldquomecacircnicardquo

32

ldquomanchas sensiacuteveisrdquo Em resumo a noccedilatildeo de αἴσθησις aponta para uma estrutura de ldquomosai-

cordquo

Falar de αἰσθήσεις (no plural) tanto pode significar sensaccedilotildees de diferentes sentidos

como a multiplicidade de sensaccedilotildees do mesmo sentido iguais ou diferentes Poreacutem em uacutelti-

ma anaacutelise todas elas estatildeo dependentes de unidades elementares ou baacutesicas (unidades baacutesi-

cas de qualidades sensiacuteveis que satildeo ao mesmo tempo unidades baacutesicas de afecccedilotildees)

Falar de αἴσθησις (no singular) sugere uma unidade baacutesica uma ldquopeccedilardquo do ldquomosaicordquo

sensiacutevel ndash uma peccedila simples cuja agregaccedilatildeo a outras produz ldquomanchas sensiacuteveisrdquo (as qualida-

des sensiacuteveis na forma como habitualmente as experimentamos)15

Ora se a αἴσθησις eacute um acesso constituiacutedo por uma ldquomanchardquo de sensaccedilotildees entatildeo haacute

aqui uma ambiguidade que importa natildeo perder de vista Vendo bem a mancha sensiacutevel eacute de-

componiacutevel natildeo de uma mas sim de duas maneiras

Poderiacuteamos tender a pensar que a decomposiccedilatildeo da mancha resultaria exclusivamente

numa decomposiccedilatildeo espacial por assim dizer Poreacutem isso seria perder de vista que a αἴσθη-

σις eacute decomponiacutevel em unidades simples tambeacutem no plano temporal O que aparece na αἴσθη-

σις ndash a presenccedila de qualidades sensiacuteveis o estado de afecccedilatildeo ndash tem uma duraccedilatildeo ocupa uma

extensatildeo de tempo etc

De facto a ambiguidade assinalada estaacute presente na noccedilatildeo de αἴσθησις enquanto a no-

ccedilatildeo de αἴσθησις envolve a ideia de unidade baacutesica jaacute que em uacuteltima anaacutelise αἴσθησις signi-

fica a unidade simples de sensaccedilotildees (um conjunto de unidades simples de sensaccedilotildees) tanto

num sentido quanto no outro

Vistos estes aspectos introdutoacuterios da noccedilatildeo de αἴσθησις estamos agora em condiccedilotildees

de focarmos os dados que resultam da anaacutelise de Aristoacuteteles e em especial da estrutura da es-

cala

15

O que estaacute aqui em causa eacute isso a que Kant chama o modelo da composiccedilatildeo real Para uma defini-

ccedilatildeo de ldquocompositum realerdquo por exemplo Metafiacutesica Mrongovius 29 826-828 ou Criacutetica da Razatildeo

Pura A 214-15B 261 Para uma anaacutelise mais detida ver Paton Kantrsquos Metaphysic of Experience

Vol II p 323

33

sect6

A fulcral inflexatildeo aristoteacutelica a αἴσθησις como modalidade de acesso com uma perspecti-

va confinada no que diz respeito ao tempo ndash A ininteligibilidade entre o modo de acesso

meramente esteacutesico e o modo de acesso que nos constitui

Para comeccedilar a delinear a radical inflexatildeo que Aristoacuteteles introduz em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo

de αἴσθησις devemos natildeo perder de vista que potildee a μνήμη como limiar superior da αἴσθησις

Ou seja a αἴσθησις corresponde agrave total ausecircncia de μνήμη a um patamar totalmente aqueacutem

da constituiccedilatildeo de memoacuteria

Isso parece significar que tal como a αἴσθησις se apresenta na escala o que estaacute em

causa ndash ie o que constitui o contraste entre a primeira e a segunda etapa da escala ndash eacute a uni-

dade baacutesica da duraccedilatildeo na sua simplicidade antes de se constituir qualquer retenccedilatildeo ou re-

cuperaccedilatildeo dela a partir de um outro tempo (o qual jaacute pertence agrave esfera da memoacuteria) Se natildeo

estamos a ver mal o que Aristoacuteteles nos mostra eacute que para efeitos do que estaacute em causa nesta

escala o aspecto da composiccedilatildeo da mancha eacute irrelevante e o ponto decisivo eacute aquele que tem

que ver com a unidade e a divisatildeo temporal

Eacute na posse desta chave que procuraremos determinar as caracteriacutesticas da αἴσθησις e

procuraremos entender de seguida a que poderia corresponder um ponto de vista meramente

esteacutesico de acordo com o que eacute possiacutevel apurar na escala desenhada por Aristoacuteteles

Eacute que o facto de a αἴσθησις ser uma modalidade de acesso com perspectiva confinada

no que diz respeito agrave questatildeo do tempo diz-nos algo sobre a αἴσθησις ndash diz-nos que a αἴσθησις

seraacute algo de instantacircneo que tem um grau zero de perspectiva sobre o exterior do instante

que ocorre

Para compreender bem o que isto quer dizer eacute importante antes de mais dizer o se-

guinte quando associada agrave αἴσθησις a nota da instantaneidade pode ser equiacutevoca

A natureza do equiacutevoco estaacute no facto de se tender a introduzir inadvertidamente um

ldquoponto de vista testemunhardquo que assiste agrave αἴσθησις como algo instantacircneo no meio da suces-

satildeo Ou seja tendemos a compreender a instantaneidade da αἴσθησις como um recorte fino de

tempo ndash como um momento intermeacutedio transitivo ndash no meio de um antes e de um depois Este

ldquoponto de vista testemunhardquo caracteriza-se pelo facto de ver cada instante como um mo-mento

que herda o tempo do momento anterior e conduz ao momento seguinte

34

Em suma esse ponto de vista vecirc o instante como que de fora numa oacuteptica excessiva

relativamente a ele Esse ldquoponto de vista testemunhardquo caracteriza-se precisamente por natildeo ter

em conta exclusivamente o proacuteprio instante (por natildeo corresponder portanto agraves condiccedilotildees que

satildeo proacuteprias de um ponto de vista puramente esteacutesico)

Note-se bem a perplexidade em que se cai quando se fala de um instante para descre-

ver um acesso exclusivamente perceptivo logo se faz a advertecircncia de que a isso que se des-

creve se deve tirar qualquer noccedilatildeo de sucessatildeo ou continuidade (ie se deve tirar qualquer

noccedilatildeo de tempo) Acontece que tal como o entendemos (tal como o ldquoponto de vista testemu-

nhardquo assiste a ele) o instante eacute precisamente uma instacircncia temporal ndash e daqui decorre que a

acepccedilatildeo de um instante no qual o tempo natildeo intervenha parece aludir a um ldquoconceito inanerdquo

no qual o tempo teria e natildeo teria parte em simultacircneo

Tendo isto em vista a diferenccedila aqui em causa eacute tal que por um lado como jaacute vimos

um ponto de vista completamente fechado num instante natildeo faz a mais pequena ideia da proacute-

pria sucessatildeo em que se inscreve (precisamente porque natildeo faz a mais pe-quena ideia do que

quer que seja que se situe para laacute do instante em causa) Mas por outro lado inversamente

um ponto de vista com notiacutecia da sucessatildeo (ie qualquer ponto de vista com notiacutecia do tempo

ndash como o eacute jaacute por exemplo o ponto de vista mneacutesico) natildeo consegue restituir eficazmente um

ponto de vista fechado num instante

Ora se tal como se desenha na escala um acesso constituiacutedo meramente de αἴσθησις

seraacute algo de absolutamente confinado no que diz respeito agrave questatildeo do tempo entatildeo a instan-

taneidade associada agrave αἴσθησις corresponde a algo como um presente absoluto ndash um instante

completamente fechado no presente e sem gerar qualquer perspectiva tanto sobre o passado

(sobre a retenccedilatildeo de percepccedilotildees jaacute ocorridas que eacute o que estaacute em causa na μνήμη) quanto so-

bre o futuro

Afirmar que a αἴσθησις seria algo como um presente absoluto (algo de exclusivamente

presente) natildeo eacute de modo nenhum dizer que a αἴσθησις natildeo participe numa ordem de suces-

satildeo As unidades de sensaccedilotildees natildeo soacute tecircm uma duraccedilatildeo como se sucedem ndash se entendermos

por sucessatildeo a contiguidade entre as unidades de sensaccedilatildeo distribuiacutedas num quadro de dis-

tribuiccedilatildeo temporal No entanto o que de facto resulta da escala aristoteacutelica eacute que uma unida-

de exclusiva-mente esteacutesica ainda que fazendo parte duma ordem de sucessatildeo natildeo teria

qualquer notiacutecia dessa sucessatildeo Isto porque a noccedilatildeo de sucessatildeo implica sempre um miacutenimo

35

de excesso sobre o presente ndash implica sempre antes e depois a delimitaccedilatildeo de uma baliza

temporal e de territoacuterios temporais delimitados etc

Por outras palavras um acesso meramente esteacutesico seria se assim se pode dizer um

presente sem qualquer nota de passado ou futuro (sem qualquer nota de retenccedilatildeo ou de pro-

tensatildeo para usar a linguagem de Husserl) Seria em resumo um acontecimento fulgurante de

presente A ser algo deste geacutenero entatildeo estamos a falar de algo como um presente constituiacutedo

em vertigem um presente que de cada vez irrompe jaacute a desvanecer ndash sempre jaacute em fuga (sem

cessar efeacutemero fugaz) ndash e que ao constituir-se estaraacute sempre jaacute a desfazer-se em absoluto

esvaimento16

Na verdade segundo esta leitura se um ponto de vista esteacutesico natildeo envolve qualquer

μνήμη eacute entatildeo o presente absoluto que carece completamente de passado que carece comple-

tamente de duraccedilatildeo ndash mas na verdade eacute tambeacutem o presente absoluto que carece completa-

mente de futuro

Vendo bem a noccedilatildeo de ldquopresente absolutordquo ndash que eacute a que exprime o que aqui estaacute em

causa ndash tem o caraacutecter de um oximoro Pois o presente eacute algo que soacute podemos conceber na

forma do ldquoponto de vista testemunhardquo acima referido (como momento da passagem entre pas-

sado e futuro) e o que caracteriza o ldquopresente absolutordquo aqui em causa eacute o facto de ser com-

pletamente cego em relaccedilatildeo a pas-sado e futuro ndash e tanto quer entatildeo dizer o ser presente num

sentido absolutizado que natildeo es-tamos em condiccedilotildees de conceber

A αἴσθησις eacute de facto tanto uma modalidade de aparecimento quanto eacute uma modali-

dade de fuga ou de obliteraccedilatildeo natildeo gera conteuacutedos fixos e estaacuteveis ie natildeo gera conteuacutedos

que se estendam no tempo

Mas na verdade a radical alteridade de um ponto de vista encerrado no presente em

relaccedilatildeo a um ponto de vista constituiacutedo temporalmente natildeo se cinge a uma alteridade formal

A alteridade repercute-se tambeacutem no conteuacutedo ndash sc no proacuteprio ter daquilo que aparece (e po-

de aparecer) a um ponto de vista com este recorte temporal

Em primeiro lugar eacute preciso ter presente que se trata de um ponto de vista a) fechado

num instante absoluto (sem qualquer notiacutecia do que quer que seja para laacute do instante em que

16

Para exprimir o que estaacute aqui em causa poderiacuteamos recorrer ao exemplo da sucessatildeo de fotogra-

mas Mas o caso natildeo poderia ser o de um ponto de vista que acompanhasse o movi-mento entre foto-

gramas e sim o de um ponto de vista encerrado de cada vez no interior de um uacutenico fotograma sem

qualquer noccedilatildeo de mais do que ele

36

de cada vez estaacute) e b) constituiacutedo exclusivamente por percepccedilotildees (pela presenccedila de determi-

naccedilotildees sensiacuteveis de uma determinada ldquomanchardquo de qualidades sensiacuteveis)

Ora isso significa que um acesso a um ponto de vista assim constituiacutedo (ie comple-

tamente desprovido de qualquer apresentaccedilatildeo de outra ordem) teria a perspectiva inteiramen-

te fechada nessa ldquomanchardquo sem quaisquer condiccedilotildees para ter notiacutecia de nada para laacute dela

A ldquomanchardquo perceptiva poderia ser maior ou menor consoante as circunstacircncias (como eacute

maior ou menor para noacutes) Contudo o que eacute decisivo eacute que independentemente da variaccedilatildeo

da dimensatildeo a ldquomanchardquo perceptiva esgotaria de cada vez todo o apresentado ndash seria de

cada vez a uacutenica coisa de que se teria notiacutecia E natildeo haveria condiccedilotildees para fazer ideia do

que quer que seja que fosse para laacute dela

Em suma cada ldquomanchardquo perceptiva (por maior ou menor que fosse) passaria por ser

a totalidade do ldquomundordquo Na incapacidade de gerar recogniccedilatildeo o ldquomundordquo esgotar-se-ia ex-

clusivamente no conteuacutedo sensiacutevel de que a cada instante se dispusesse Um ponto de vista

constituiacutedo deste modo nunca poderia pocircr mais do que isso que a cada instante estivesse per-

ceptivamente dado

A este aspecto relativo ao proacuteprio teor daquilo que aparece (de cada vez a ldquomanchardquo

perceptiva como algo que esgota a realidade e constitui todo o ldquomundordquo ndash e natildeo apenas uma

parte dele) acresce um outro de natildeo menos importacircncia Referimo-nos agravequele que tem que

ver com a novidade absoluta que a cada instante caracterizaria tudo aquilo que aparecesse

Nada impede que as percepccedilotildees que de cada vez aparecessem a um ponto de vista pu-

ramente esteacutesico fossem em tudo iguais a outras jaacute anteriormente tidas Mas um ponto de vista

puramente esteacutesico seria completamente desprovido de memoacuteria e teria por isso de cada vez

zero de perspectiva sobre o que jaacute houve

Ora isso significa que por mais que as determinaccedilotildees que de cada vez aparecessem

viessem na sequecircncia de outras anteriormente havidas um ponto de vista esteacutesico estaria

sempre num comeccedilo absoluto ndash sem quaisquer antecedentes ou sem qualquer histoacuteria para si

mesmo

Nesse sentido a um ponto de vista puramente esteacutesico o que aparece eacute sempre novo

absolutamente novo Mas natildeo se trata de uma novidade em contraste com um antigo por natildeo

haver nada a que se pudesse comparar A novidade seria portanto a novidade de uma primei-

ra vez fulgurante que a cada instante se inauguraria e no mesmo instante se extinguiria Ca-

da percepccedilatildeo de algo seria o primeiro contacto com esse algo a cada percepccedilatildeo tudo o que

37

aparecesse teria aparecido pela primeira vez numa primeira vez absoluta ndash e seria imediata-

mente perdido no fim da percepccedilatildeo

Em suma cada ldquorecantordquo perceptivo por mais ou menos angulado seria a cada ins-

tante a totalidade do ldquomundordquo E todo o ldquomundordquo seria a cada instante sempre novo

Acontece que isto que acabamos de descrever estaacute muito distante do modo de acesso

que noacutes temos ao que nos aparece

O que todas estas consideraccedilotildees nos permitem perceber satildeo as relaccedilotildees de alteridade

que separam um ponto de vista esteacutesico (completamente anterior ao advento de μνήμη) e as

caracteriacutesticas de um ponto de vista mneacutesico resultante desse advento e incapaz de se desfa-

zer dele (ou seja incapaz de se desfazer do desconfinamento em relaccedilatildeo agrave mera αἴσθησις que

a μνήμη traz consigo)

Por um lado o acesso em que nos encontramos estaacute sempre jaacute em excesso sobre o

ldquoinstante absolutordquo da αἴσθησις ndash tem sempre jaacute notiacutecia da proacutepria sucessatildeo enquanto tal (vecirc

cada instante no meio de mais do que ele) Por outro lado isso faz que a ldquomanchardquo perceptiva

que haacute a cada instante natildeo apareccedila como esgotando a realidade nem apareccedila como equivalen-

te ao ldquomundordquo

Aleacutem disso tatildeo pouco estamos em condiccedilotildees de ter de cada vez o que aparece como

sendo completamente novo ndash toda a novidade que se consegue perceber eacute tal justamente em

contraste com algo que se contrapotildee e eacute anterior a isso

Com efeito o regime de determinaccedilatildeo em que laboramos tem como elemento perma-

nente a siacutentese de recogniccedilatildeo (que se produz ou na forma do reconhecimento da identidade

ou na forma do reconhecimento da natildeo-identidade) ndash de tal modo que natildeo nos conseguimos

desprender deste regime e retomar a um modo de apreensatildeo do que aparece marcado pela to-

tal ausecircncia dele A nossa tentativa de conceber algo como um ldquoinstante absolutordquo natildeo resulta

senatildeo na constituiccedilatildeo de uma ldquoideia negativardquo

Em suma dizer que os dois pontos de vista ndash um ponto de vista esteacutesico e um ponto de

vista mneacutesico ndash vecircm coisas completamente diferentes natildeo quer dizer apenas que um ponto de

vista esteacutesico natildeo faz a mais pequena ideia daquilo que aparece a um ponto de vista trans-

formado pela μνήμη Na verdade quer dizer que um ponto de vista marcado pela μνήμη tam-

beacutem natildeo faz a mais pequena ideia do que seja um ponto de vista esteacutesico ndash ie um ponto de

vista correspondente agrave ausecircncia de μνήμη que soacute poderia recuperar por via daquela subtrac-

ccedilatildeo de μνήμη que natildeo estaacute em condiccedilotildees de executar

38

Eacute claro que pode acontecer que a partir de um ponto de vista mneacutesico se conceba o

ponto de vista esteacutesico como aquele que resulta do proacuteprio ponto de vista mneacutesico se lhe for

subtraiacuteda a μνήμη Sucede poreacutem que a acccedilatildeo de subtracccedilatildeo natildeo eacute susceptiacutevel de ser realiza-

da inteiramente E isso sugere que ou se tem uma aguda consciecircncia do que a noccedilatildeo do ponto

de vista esteacutesico eacute uma noccedilatildeo puramente apofaacutetica e que natildeo faz ideia daquilo para que apon-

ta ndash ou entatildeo se cai num equiacutevoco o equiacutevoco de ao se conceber o ponto de vista esteacutesico

(sc as αἰσθήσεις as percepccedilotildees sensaccedilotildees etc) na verdade estar a conceber-se algo com as

caracteriacutesticas daquilo que jaacute pertence a um plano que excede o que proacuteprias αἰσθήσεις e

que potildee mais do que elas

Eacute que vendo bem a tese que Aristoacuteteles desenha na escala eacute a de que ainda que dois

pontos de vista estivessem equipados com o mesmo ldquoaparelho sensiacutevelrdquo e o mesmo grau de

acuidade se um deles eacute um ponto de vista meramente esteacutesico e o outro estaacute jaacute a jusante do

advento da μνήμη o que aparece a um e a outro satildeo coisas muito diferentes ndash e na verdade

com muito pouco em comum

Mas na verdade o ponto a que agora fazemos referecircncia natildeo eacute um ponto que se esgote

na relaccedilatildeo entre um acesso meramente esteacutesico e qualquer outro modo de acesso na verdade

como se veraacute este mesmo fenoacutemeno atravessa a totalidade da escala e as vaacuterias relaccedilotildees entre

as diversas etapas

Para compreender o que estaacute aqui em jogo devemos antes de mais retomar a anaacutelise

sobre o ἐφεξῆς e fixar um aspecto fundamental do que se seguiraacute

Analisando o ἐφεξῆς descreveu-se um processo de acumulaccedilatildeo ndash uma sequecircncia em

que um segundo procede de um primeiro um terceiro de um segundo (e assim sucessivamen-

te) mas de tal modo que o terceiro implica o primeiro e o segundo e em que o terceiro tem um

excesso em relaccedilatildeo ao segundo e ao primeiro (ou inversamente que um segundo e um pri-

meiro estatildeo em deacutefice em relaccedilatildeo a um terceiro) etc Ora isto nada diz sobre a mobilidade

entre os patamares

Poderia muito bem acontecer que uma vez estabelecida a escala e os diversos patama-

res o tracircnsito entre os diversos patamares estivesse desimpedido ndash de tal modo que estando

por exemplo no terceiro patamar nada obstasse a que se pudesse transitar sem perda para o

primeiro ou para o segundo Acontece que isto eacute o contraacuterio do que eacute sugerido o caraacutecter ge-

neacutetico do ἐφεξῆς natildeo parece ser reversiacutevel

Consideremos o experimentum de saltar livremente de patamar em patamar

39

Saltar livremente de patamar em patamar resultaria em que se saltasse por exemplo

para o patamar da αἴσθησις natildeo pudesse ter perspectiva quer sobre a μνήμη quer sobre a con-

tinuidade da escala o que resultaria em estar preso agrave αἴσθησις e resultaria do mesmo modo

na ausecircncia de uma nota de a αἴσθησις ser um deacutefice em relaccedilatildeo aos patamares que se se-

guem De facto resultaria na impossibilidade de saltar de patamar em patamar ou ateacute na im-

possibilidade de regressar a um patamar que tivesse visitado anteriormente pela absoluta fal-

ta de noccedilatildeo da sua existecircncia (ie pelo total encerramento numa perspectiva que natildeo abre

qualquer perspectiva sobre uma outra perspectiva alternativa a essa)

Assim o experimentum soacute eacute admissiacutevel na sua modalidade retrospectiva se um pata-

mar superior inclui o inferior pode de certo modo abrir perspectiva sobre ele e colocar-se na

situaccedilatildeo de tentar compreender a que conteuacutedos corresponde um patamar inferior Mas como

vemos o caso eacute que um experimentum desse tipo soacute poderaacute ter alguma eficaacutecia enquanto ex-

perimentum

Adicionalmente estes desenvolvimentos fazem-nos recuperar a noccedilatildeo de que a deter-

minaccedilatildeo do que corresponde a um qualquer momento da escala natildeo obedece apenas agrave diferen-

ccedila em relaccedilatildeo a um patamar imediatamente superior mas de facto depende da diferenccedila em

relaccedilatildeo a todo o complexo de fronteiras superiores E na verdade a determinaccedilatildeo do que cor-

responde a qualquer momento da escala depende da posiccedilatildeo da escala em que se esteja

De tudo isto resulta que uma tentativa de determinar os caracteres da αἴσθησις a partir

de uma posiccedilatildeo em que a eficaacutecia cognoscitiva natildeo exceda o plano da μνήμη obteacutem algo mui-

to diferente de uma outra tentativa de determinar os caracteres da αἴσθησις a partir de uma po-

siccedilatildeo com a eficaacutecia cognoscitiva da ἐμπειρία ou ainda com a eficaacutecia cognoscitiva da τέχνη e

da ἐπιστήμη

Ora se por um lado nos eacute dito que um patamar superior eacute obtido a partir de um pata-

mar inferior por outro lado natildeo nos eacute dito que um patamar inferior tenha perspectiva sobre a

continuidade da escala ndash ie natildeo eacute dito que qualquer patamar tenha perspectiva sobre o mais

a adquirir (sobre as possibilidades de desenvolvimento futuro sobre os patamares seguintes

etc)

Daqui poder-se-ia tirar a ilaccedilatildeo de que a impossibilidade de tracircnsito se limitava ex-

clusivamente ao tracircnsito desde a etapa que constituiacutesse um ldquomenosrdquo ateacute agrave etapa ou agraves etapas

que pusessem ldquomaisrdquo do que essa potildee ndash jaacute que a etapa que constitua um ldquomenosrdquo em relaccedilatildeo

a uma outra natildeo teria qualquer perspectiva sobre o excesso que o patamar ou os patamares su-

40

periores ponham a mais Mas o que na verdade a escala de Aristoacuteteles desenha eacute uma inco-

municabilidade nos dois sentidos tanto do ldquomenosrdquo para o ldquomaisrdquo quanto do ldquomaisrdquo para

o ldquomenosrdquo

Se eacute verdade que a escala estaacute constituiacuteda por transiccedilotildees de ldquomenosrdquo para ldquomaisrdquo eacute

tambeacutem verdade que estaacute constituiacuteda por transiccedilotildees de ldquomaisrdquo para ldquomenosrdquo Ou seja ainda

que o ldquomaisrdquo que uma etapa superior ponha inclua o ldquomenosrdquo de uma etapa ou de etapas in-

feriores uma etapa superior natildeo consegue subtrair o excesso que potildee a mais

Em suma um ponto de vista jaacute marcado pelo advento da μνήμη estaacute separado de um

ponto de vista esteacutesico por ldquoclaacuteusulasrdquo ou condiccedilotildees que potildeem os dois se assim se pode dizer

num ldquopeacuterdquo completamente diferente Uma vez que se acha jaacute provido de μνήμη e da forma de

saber que lhe corresponde um ponto de vista natildeo consegue anular esse saber mais nem com-

preender a partir do ldquomaisrdquo o ldquomenosrdquo que este que este abrange (mas que abrange com ex-

cesso sobre ele)

Sendo assim seraacute possiacutevel a partir de um qualquer ponto de vista ganhar perspectiva

sobre a complexidade dos passos de que esse mesmo ponto de vista eacute cumulativamente consti-

tuiacutedo Quer dizer μνήμη ἐμπειρία τέχνη e ἐπιστήμη satildeo modos de acesso que tecircm na sua

composiccedilatildeo algo de esteacutesico ἐμπειρία τέχνη e ἐπιστήμη satildeo modos de acesso que tecircm na sua

composiccedilatildeo algo de esteacutesico e de mneacutesico e τέχνη e ἐπιστήμη satildeo modos de acesso que tecircm na

sua composiccedilatildeo algo de esteacutesico de mneacutesico e de empiacuterico

Mas se os diversos patamares resultam em diferenccedilas irreconciliaacuteveis de estaacutedio para

estaacutedio (se em suma resultam em modos exclusivos de saber e de conhecer) entatildeo uma ten-

tativa de subtracccedilatildeo estaacute marcada por uma impossibilidade de se cumprir ndash ie estaacute marcada

pela impossibilidade de vencer as diferenccedilas irreconciliaacuteveis entre os estaacutedios De facto uma

tentativa de subtracccedilatildeo natildeo pode senatildeo produzir uma concepccedilatildeo defeituosa do patamar infe-

rior visado sempre jaacute extraiacutedo de ou obtido a partir de um modo de conhecer que eacute qualitati-

vamente distinto dele mas que eacute a matriz a partir da qual se vem a ter sobre ele uma perspec-

tiva

Com estes desenvolvimentos estamos em condiccedilotildees de analisar um uacuteltimo ponto

E o ponto eacute o seguinte vendo bem eacute por meio deste contraste entre os diversos pata-

mares que se adquire a noccedilatildeo do ponto de vista em que qualquer ente constituiacutedo na posse de

um acesso agraves coisas estaacute

41

Mais ainda se como vimos na secccedilatildeo anterior o ldquoponto de vista testemunhardquo ndash o pon-

to de vista que sub-repticiamente assiste a todas as etapas a partir do interior da proacutepria es-

cala que diferencia as etapas e as distribui em planos distintos a partir da proacutepria localiza-

ccedilatildeo que ocupa ndash eacute o nosso entatildeo eacute tambeacutem por este contraste que se adquire noccedilatildeo do ponto

de vista em que damos connosco

A noccedilatildeo do ponto de vista que nos corresponde eacute ganha na medida em que por um la-

do tem uma posiccedilatildeo na escala de ldquomaisrdquo e de ldquomenosrdquo que se desenhou e por outro a sua

posiccedilatildeo se apresenta ou como ldquomaisrdquo ou como ldquomenosrdquo na relaccedilatildeo com os outros pontos de

vista possiacuteveis

Vejamos melhor como pode ser assim

Se numa escala em modo de ἐφεξῆς as etapas superiores satildeo formadas por epigeacutenese

entatildeo cada patamar resulta em metamorfose e em alargamento do acircngulo em relaccedilatildeo ao que o

patamar anterior propunha daiacute resulta que as etapas estatildeo umas em relaccedilatildeo com as outras ou

numa loacutegica de acircngulo alargado (excesso) ou numa loacutegica de acircngulo confinado (deacutefice) con-

soante a ldquorelaccedilatildeo loacutegicardquo entre elas seja respectivamente de sucessatildeo ou de antecedecircncia

De facto o alargamento de acircngulo ou o excesso que um qualquer patamar superior

acrescenta a um qualquer patamar inferior natildeo pode senatildeo ter os modos de acesso dos patama-

res inferiores como acircngulos confinados e como deacutefice a αἴσθησις ainda natildeo tem o que eacute proacute-

prio da μνήμη e portanto uma perspectiva mneacutesica da αἴσθησις resultaria na nota de uma fal-

ta ndash e assim tambeacutem no caso de uma perspectiva empiacuterica sobre αἴσθησις e μνήμη ou no caso

de uma perspectiva teacutecnica ou episteacutemica sobre a totalidade dos outros modos de acesso

Mas o que importa reter eacute que a relaccedilatildeo entre excesso e deacutefice se fixa ie que todo o

deacutefice o eacute de um excesso E detectar um deacutefice eacute detectar a presenccedila do excesso que jaacute o

compotildee de tal modo que se pode delimitar a natureza do deacutefice em causa e determinar a que

excesso corresponde um tal deacutefice ndash ie de tal modo que se pode analisar o que eacute que estaacute

posto a mais quando analiso uma dada etapa da escala e a que patamar pertence isso que estaacute

posto a mais e que eacute impossiacutevel de ser retirado No limite o excesso da μνήμη na sua relaccedilatildeo

com a αἴσθησις eacute distinto do excesso da ἐμπειρία na sua relaccedilatildeo com a αἴσθησις ou do excesso

da τέχνη ou da ἐπιστήμη na sua relaccedilatildeo com a αἴσθησις

Com isto estamos jaacute em condiccedilotildees de saber que o tempo eacute radical do ponto de vista

que nos corresponde porque na verdade o entendimento que nos eacute possiacutevel do presente estaacute

atravessado de mais do que ele (estaacute atravessado de continuidade ou de sucessatildeo) e portanto

42

eacute diferente desse acontecimento fulgurante de presente que corresponderia um ponto de vista

meramente esteacutesico

Assim o factor que daqui em diante interessa considerar eacute esse factor que cria as con-

diccedilotildees para o caso da αϊσθησις ser recuperaccedilatildeo ou reconhecimento e natildeo um acesso de cada

vez original

Podemos compreender a percepccedilatildeo tal como eacute possiacutevel ao ponto de vista em que nos

achamos recorrendo ao siacutemile de um fluxo no qual haacute uma contiacutenua renovaccedilatildeo do que a ca-

da momento constitui o horizonte perceptivo

Assim o horizonte perceptivo muda agrave mais sensiacutevel mudanccedila de posiccedilatildeo a mais ligei-

ra mudanccedila de posiccedilatildeo muda o aspecto dos ldquoobjectosrdquo que temos na percepccedilatildeo Isto parece

aludir agrave mediaccedilatildeo de um movimento numa dupla acepccedilatildeo da palavra

Por um lado pode indicar a mudanccedila de posiccedilatildeo que ocorre no espaccedilo a percepccedilatildeo er-

ra sobre o que aparece vagueia sobre o que aiacute encontra transita de um ldquoobjectordquo para outro

varre o conteuacutedo do campo perceptivo Esse movimento eacute uno mas ainda assim identifica di-

ferenccedilas (este ldquoobjectordquo aquele ldquoobjectordquo) mais do que isso a cada instante do fluxo estaacute

num ponto espacial distinto do anterior e nessas ligeiras cambiantes se modifica o quadro

geral apresentado em cada ponto espacial particular

Por outro lado pode indicar um sentido temporal haacute percepccedilotildees que satildeo anteriores a

outras a percepccedilatildeo actual eacute precedida de outra etc Esta acepccedilatildeo jaacute natildeo implica necessaria-

mente um movimento em sentido espacial podemos estar quietos contemplando um mesmo

ldquoobjectordquo ndash e no entanto a percepccedilatildeo que tivemos dele haacute um minuto atraacutes estaacute perdida e deu

lugar a outra percepccedilatildeo que substitui quer a percepccedilatildeo anterior quer toda a seacuterie de percep-

ccedilotildees anteriores

Assim quaisquer percepccedilotildees anteriores se perderam irremediavelmente no fluxo das

percepccedilotildees tidas ndash e esse eacute precisamente o seu novo estatuto satildeo percepccedilotildees que natildeo se tecircm

actualmente natildeo satildeo percepccedilotildees no sentido de um acesso presente a isso a que acedem Satildeo

percepccedilotildees completamente perdidas e irrecuperaacuteveis enquanto algo que se tem e que adqui-

rem o estatuto de algo a que tendo sido percepccedilatildeo se soma o caraacutecter de passado de algo

que tendo sido neste preciso instante natildeo eacute

Acontece no entanto que a validade da percepccedilatildeo tida natildeo parece comprometida por

esta radical mudanccedila de estatuto O facto de num dado momento ter havido percepccedilatildeo de

algo parece fixar qualquer coisa que natildeo desaparece na efectiva perda perceptiva Dito de

43

outro modo algo de uma percepccedilatildeo tida parece continuar ndash de tal modo que natildeo se pode di-

zer que uma percepccedilatildeo actual de um qualquer ldquoobjectordquo seja uma percepccedilatildeo original do ob-

jecto

A ser assim a percepccedilatildeo tida parece associar em si simultaneamente uma perda e um

ganho A perda corresponde agrave aniquilaccedilatildeo da percepccedilatildeo que foi percepccedilatildeo actual mas jaacute natildeo

se tem como percepccedilatildeo actual o ganho corresponde a uma continuaccedilatildeo ou uma preservaccedilatildeo

de algo dessa percepccedilatildeo que se transfere para a percepccedilatildeo actual

A percepccedilatildeo anterior estaacute aniquilada enquanto percepccedilatildeo actual e no entanto trans-

mite algo agrave percepccedilatildeo actual que lhe sucede Haacute uma constante persistecircncia ou uma reinci-

decircncia do passado perceptivo De facto parece ser claro que a percepccedilatildeo que temos neste

preciso instante natildeo parece estar desligada da percepccedilatildeo que tivemos ainda agora Haacute uma

relaccedilatildeo de continuidade ndash mas uma continuidade constituiacuteda de diferenccedila

De facto haacute uma irredutiacutevel diferenccedila entre quaisquer duas percepccedilotildees a mais radi-

cal diferenccedila eacute a natildeo actualidade da percepccedilatildeo tida Esse eacute o grau miacutenimo do desvio ndash que

sendo um acontecimento passiacutevel de distensatildeo temporal da interposiccedilatildeo de novas percepccedilotildees

entre quaisquer duas percepccedilotildees no limite se pode tornar em perda total de notiacutecia percepti-

va

O que se pretende com isto vincar eacute que na diferenccedila entre duas percepccedilotildees haacute sem-

pre algo que acresce por meio da relaccedilatildeo de continuidade Por um lado a percepccedilatildeo tida eacute

preservada transmite-se exime-se agrave total aniquilaccedilatildeo por outro a percepccedilatildeo actual adquire

um nexo de encadeamento

Assim se a percepccedilatildeo tida reitera a sua validade isso tem como resultado que o per-

cepcionado e o passado de certo modo se presentificam ndash isso colabora na preservaccedilatildeo e na

solidificaccedilatildeo da sua validade natildeo soacute se lhe atribui como proacuteprio dessa percepccedilatildeo o ter sido

presente algures no passado como de algum modo a sua presenccedila natildeo se ateacutem ao passado

mas alarga-se ateacute ao presente

Assim tambeacutem a percepccedilatildeo actual adquire uma proveniecircncia ndash e a conjugaccedilatildeo destes

factores gera um curso perceptivo uma organizaccedilatildeo das percepccedilotildees que tem a actual como

seu culminar

Ora tal como a temos estado a ver a percepccedilatildeo tida natildeo eacute nunca um momento irrecu-

peraacutevel da percepccedilatildeo como seria se estivesse fechada num presente que jaacute foi e que natildeo vol-

ta na medida em que natildeo seria possiacutevel retomar esse presente tal como foi a recuperaccedilatildeo dis-

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so que tinha entatildeo sido percebido seria tambeacutem impossiacutevel O que parece estar em causa eacute

mais propriamente algo como um desdobramento temporal

O tempo constitui-se em plano de base as diferentes percepccedilotildees assentam no plano

temporal As percepccedilotildees ganham encadeamento no encadeamento reportam ou referem-se

umas agraves outras

Eacute esta cadeia de percepccedilotildees o que permite gerar sucessatildeo ou sequecircncia o que permite

recuar ateacute uma percepccedilatildeo passada essa reporta agrave percepccedilatildeo presente ndash natildeo estaacute dissociada

dela haacute entre elas um viacutenculo de conexatildeo ou solidariedade Isso permite que a partir do pre-

sente haja possibilidade de reconhecimento ou de reconstituiccedilatildeo de uma qualquer percepccedilatildeo

passada

Eacute tendo isto em vista que iremos analisar a segunda etapa da escala de possibilidades

de acesso (a μνήμη) A μνήμη tem na sua composiccedilatildeo algo de esteacutesico mas corresponde sem-

pre jaacute a uma modalidade de alargamento dos conteuacutedos da percepccedilatildeo

A preservaccedilatildeo duma percepccedilatildeo anterior ao mudar de posiccedilatildeo ou a constituiccedilatildeo duma

sucessatildeo de percepccedilotildees (que por um lado repetem os percebidos e por outro lado se ocu-

pam de percebidos diferentes) exige natildeo uma mera acumulaccedilatildeo mas sim uma transformaccedilatildeo

dos conteuacutedos da percepccedilatildeo Daacute-se o caso de que aos conteuacutedos da percepccedilatildeo se somam quer

o plano temporal quer um estatuto de caraacutecter natildeo-perceptivo assim gerando algo diferente

da percepccedilatildeo

Em suma na secccedilatildeo seguinte visaremos a μνήμη a partir do acircngulo de que eacute a μνήμη

que cria as condiccedilotildees para que haja a siacutentese de recogniccedilatildeo que sempre jaacute atravessa o regi-

me de determinaccedilatildeo em que laboramos

sect7

A μνήμη como persistecircncia do jaacute percebido o factor da supressatildeo da vertigem perceptiva e

o factor do desdobramento temporal ndash A co-apresentaccedilatildeo do tempo e a sucessatildeo

A compreensatildeo do sentido em que cada etapa da escala aristoteacutelica corresponde a um

certo conceito depende naturalmente antes de mais da proacutepria carga especiacutefica do conceito

No entanto o que vimos foi que no contexto da escala as determinaccedilotildees radicais dos con-

45

ceitos aiacute em causa parecem mudar e esses mesmos conceitos parecem ganhar determinaccedilotildees

que natildeo estatildeo presentes na compreensatildeo mais comum que deles se faz

Assim a introduccedilatildeo de um dado conceito na escala do mesmo modo que a posiccedilatildeo

que esse conceito ocupa na escala acentua determinadas caracteriacutesticas em detrimento de

outras destaca ou pelo contraacuterio relega determinados conteuacutedos para papeacuteis principais ou

secundaacuterios etc

Isto que vimos na secccedilatildeo anterior ser o que se passa com a αἴσθησις tambeacutem eacute o que

se passa no caso da μνήμη

Tambeacutem a μνήμη tal como acontecia com a αἴσθησις tem uma carga proacutepria especiacutefi-

ca ou uma tradiccedilatildeo preacute-aristoteacutelica Seria possiacutevel uma vez mais usar as muacuteltiplas ocorrecircn-

cias do termo no corpus platonicum como fundamento suficiente para sustentar uma afirma-

ccedilatildeo deste geacutenero17

No caso especiacutefico da μνήμη a compreensatildeo do que corresponde a esse conceito pa-

rece plenamente satisfeita quando o termo eacute habitualmente nos seus vaacuterios usos vertido por

memoacuteria Poreacutem uma compreensatildeo desse geacutenero por mais vaacutelida pouco adianta sobre as de-

terminaccedilotildees que identificam a μνήμη enquanto estaacutedio da escala aristoteacutelica18

Enquanto estaacutedio da escala o quadro geral a partir ou no interior do qual procurare-

mos descrever a μνήμη eacute o seguinte agrave μνήμη cabe superar o seu limiar inferior (cabe ultra-

17

Considerar por exemplo a especial incidecircncia dada agrave noccedilatildeo em Fedro 249c-254b Fil 19d-21d

33c-35d ou 38b-39a Rep (livros VI X) Teet 163d-e Feacutedon 96b etc

18 Natildeo podemos deixar aqui de reforccedilar como jaacute fizeacuteramos numa secccedilatildeo anterior em relaccedilatildeo agrave αἴσθη-

σις o facto de que o que estaacute em causa nesta secccedilatildeo natildeo eacute de modo nenhum uma identificaccedilatildeo abran-

gente da noccedilatildeo de μνήμη ou dos seus diversos usos na obra de Aristoacuteteles Uma identificaccedilatildeo desse geacute-

nero teria de considerar uma quantidade de passos do corpus aristotelicum ou uma quantidade de ca-

racteriacutesticas do que estaacute implicado na noccedilatildeo a que esta secccedilatildeo natildeo pode de modo nenhum dar aten-

ccedilatildeo Tambeacutem no caso da μνήμη esta advertecircncia eacute especialmente importante na medida em que Aris-

toacuteteles dedica especial atenccedilatildeo ao tema ndash neste caso particular na forma de um tratado (o De memoria

et reministentia) em que procura focar as caracteriacutesticas da μνήμη estabelecendo pontos de encontro e

pontos de contraste com o fenoacutemeno da ἀνάμνησις No caso sublinhando a diferenccedila que distingue a

μυήμη entendida como mera conservaccedilatildeo de percepccedilotildees que readquire sem esforccedilo da άνάμησις que

alude agrave recuperaccedilatildeo de lembranccedilas vagas que resistem e cuja recuperaccedilatildeo exige mobilizaccedilatildeo Para

mais esclarecimentos ver por exemplo Bowin J De anima II 5 on the Activation of the Senses in

Ancient Philosophy 32 nordm 1 Pittsburgh 2012 87-104 ou Caston V The Spirit and the Letter Aris-

totle on Perception in R Salles (ed) Metaphysics Soul and Ethics Themes from the work of Ri-

chard Sorabji 245ndash320 Oxford Oxford University Press 2005

46

passar a αἴσθησις) enquanto por outro lado lhe cabe ficar aqueacutem e ser condiccedilatildeo de possibi-

lidade da ἐμπειρία ndash que se situa acima do limiar superior da μνήμη Isto quer dizer em su-

ma que a μνήμη introduz um acreacutescimo em relaccedilatildeo agrave αἴσθησις mas estaacute ainda em situaccedilatildeo de

deacutefice em relaccedilatildeo agrave ἐμπειρία (e assim tambeacutem em relaccedilatildeo a τέχνη e agrave ἐπιστήμη)

Para tentar ganhar a pista ao que eacute que a μνήμη acrescenta agrave αἴσθησις consideremos

por exemplo Anal Post 99b38 Nesse passo a μνήμη eacute descrita como persistecircncia da αἴσθη-

σις ndash ie como persistecircncia do jaacute percebido O que Aristoacuteteles procura salientar neste passo eacute

o facto de a μνήμη natildeo se deter nem se ater exclusivamente agrave αἴσθησις No factor do persistir

ou do perdurar da percepccedilatildeo estaacute desde logo o sinal de uma distinccedilatildeo entre os planos da

αἴσθησις e da μνήμη

O que essa distinccedilatildeo mostra eacute que por um lado o acontecimento perceptivo natildeo estaacute

esgotado no instante do seu acontecer (no presente absoluto que vimos corresponder a um

ponto de vista meramente esteacutesico) mas pelo contraacuterio algo da percepccedilatildeo eacute passiacutevel de ser

conservado Mas por outro o que eacute decisivo eacute que isso da percepccedilatildeo que eacute passiacutevel de ser

conservado acontece num plano distinto do plano da αἴσθησις Interessa considerar mais deti-

damente este ponto ndash agora a partir de um ponto de vista mneacutesico

Importa fazer notar antes de tudo o mais que a μνήμη eacute diferente de uma mera acu-

mulaccedilatildeo de conteuacutedos esteacutesicos

Para compreender como pode ser assim consideremos dois aspectos

Por um lado a nota de αἰσθήσεις (a nota de um plural de percepccedilotildees) eacute completamente

excecircntrica agrave αἴσθησις tal como se viu na secccedilatildeo anterior Por outro a precedecircncia da αἴσθη-

σις em relaccedilatildeo agrave μνήμη faz com que de facto o percebido seja o objecto da memoacuteria

Poreacutem sobre o fundo do percebido a μνήμη opera uma transformaccedilatildeo De tal modo

que o que se estaacute a desenhar pode ser expresso na seguinte foacutermula a memoacuteria do sensiacutevel jaacute

natildeo eacute sensiacutevel

Foquemos melhor este ponto

Poderiacuteamos tender a supor que a percepccedilatildeo resulta naturalmente em memoacuteria ndash que a

memoacuteria seria por assim dizer o ldquodestino naturalrdquo da percepccedilatildeo Esta asserccedilatildeo natildeo parece no

entanto estar de acordo com o que temos visto Na verdade como vimos a percepccedilatildeo pode-

ria estar encerrada no seu acontecimento sem intervenccedilatildeo de qualquer outro factor Mais

47

ainda a sofrer a intervenccedilatildeo de qualquer factor externo natildeo haacute nada que aponte para que esse

factor tivesse de ser necessariamente a memoacuteria

Propor a memoacuteria como o ldquodestino naturalrdquo da percepccedilatildeo parece sugerir a) que a μνή-

μη estaacute analiticamente compreendida no acontecimento da αἴσθησις ou b) que o que cabe agrave

memoacuteria eacute ser algo como o mero depoacutesito de percepccedilotildees Quer num caso quer no outro a

memoacuteria natildeo seria mais do que um processo posterior agrave colecccedilatildeo de percepccedilotildees ndash processo

que resultaria num arquivo morto de percepccedilotildees

Ora o que Aristoacuteteles desenha da μνήμη na escala tem uma configuraccedilatildeo muito dife-

rente de um arquivo morto

Vendo bem a μνήμη natildeo poderia ser um acontecimento posterior agrave αἴσθησις ndash pelo

simples facto de que no sentido que vimos corresponder agrave αἴσθησις no curso da sucessatildeo a

percepccedilatildeo estaria jaacute perdida ou ultrapassada

Assim a μνήμη eacute algo que acompanha a αἴσθησις ndash ie que faz com que em simultacirc-

neo com o acontecimento da αἴσθησις haja outra instacircncia que suprime a vertigem perceptiva

que corresponderia a um acesso meramente esteacutesico De facto a μνήμη surge como o registo

ou a retenccedilatildeo do percebido no proacuteprio instante da ocorrecircncia da percepccedilatildeo

A este factor do registo ou retenccedilatildeo deve adicionar-se um segundo factor o factor da

transmissatildeo O que a μνήμη introduz eacute algo que poderia ser descrito como uma cadeia de

transmissatildeo

Por via do acompanhamento mneacutesico da αἴσθησις o percebido natildeo fica totalmente en-

cerrado no instante do seu acontecimento mas eacute transferido para o instante seguinte De facto

o que a μνήμη faz eacute introduzir um desdobramento de tal modo que no instante subsequente ao

da ocorrecircncia de uma qualquer αἴσθησις haacute em simultacircneo tanto a percepccedilatildeo actual quanto

a memoacuteria do instante anterior

Mas isto ainda eacute insuficiente

Se a μνήμη fosse a mera subsistecircncia do percepcionado isso significaria que o instante

absoluto ndash que vimos corresponder ao acontecimento da αἴσθησις ndash apenas acumularia mais

conteuacutedo Ou seja a μνήμη corresponderia a um mero amontoado de todos os conteuacutedos per-

ceptivos tidos acumulados no conteuacutedo perceptivo actual A ser assim a μνήμη corresponde-

ria agrave mera retenccedilatildeo de presentes absolutos (ou seja presentes absolutos completamente fe-

chados em si sem perspectiva de uns sobre os outros e todos apresentados em simultacircneo

48

etc) Por outras palavras a mera subsistecircncia do anteriormente percepcionado corresponderia

a algo como um ldquoacorderdquo no instante absoluto

Na verdade o desdobramento que a μνήμη introduz expressa-se no encadeamento ou

no alinhamento das percepccedilotildees ndash mas de tal modo que o resultado do encadeamento ou do ali-

nhamento eacute uma fluidez ou continuidade no tracircnsito entre as percepccedilotildees

Ou seja o acompanhamento mneacutesico faz com que natildeo haja entre uma percepccedilatildeo e a

percepccedilatildeo seguinte uma quebra ou uma radical heterogeneidade ndash a radical heterogeneidade

que corresponderia agrave mera retenccedilatildeo de presentes absolutos radicalmente heterogeacuteneos entre

si

Aquilo que se desenha na μνήμη para o condensar numa expressatildeo eacute algo como uma

ldquomelodiardquo de percepccedilotildees

O caso eacute o seguinte haacute uma heterogeneidade radical entre qualquer percepccedilatildeo tida e

a percepccedilatildeo actual E no entanto parece haver uma convergecircncia entre a percepccedilatildeo tida e a

percepccedilatildeo actual (de tal modo que qualquer percepccedilatildeo actual herda de uma percepccedilatildeo tida) o

que resulta no caso peculiar de uma percepccedilatildeo actual ser natildeo apenas a heranccedila recebida mas

a continuaccedilatildeo do ldquolegadordquo do que foi herdado

De facto a convergecircncia entre as duas percepccedilotildees (ie o encontrarem-se e coincidi-

rem na percepccedilatildeo actual) eacute condiccedilatildeo de possibilidade da nota de ldquoactualidaderdquo que acompa-

nha a percepccedilatildeo actual ndash assim como eacute condiccedilatildeo de possibilidade por exemplo de uma melo-

dia cuja identidade depende natildeo da mera contiguidade de dois sons mas mais propriamente

da transiccedilatildeo do primeiro para o segundo (de tal modo que quando o segundo for escutado o

primeiro estaacute ainda presente) e do produto de uma tal transiccedilatildeo (isso que corresponde a um

aumento ou uma diminuiccedilatildeo de tom de intensidade de ritmo etc e que soacute eacute posto quando haacute

transiccedilatildeo ie quando haacute coincidecircncia de duas percepccedilotildees e dessa coincidecircncia se extrai a

relaccedilatildeo entre elas)

Assim parece haver algo como um nexo de causalidade

A percepccedilatildeo passada alarga-se sobre o presente (presentifica-se) como se de certo

modo antecipasse jaacute a sua continuidade no futuro ainda a haver ao mesmo tempo a percep-

ccedilatildeo actual adquire uma proveniecircncia De tudo isto resulta algo como um curso perceptivo ndash

uma organizaccedilatildeo encadeada (tida por natural) das percepccedilotildees que tem a actual como seu cul-

minar e que de certo modo jaacute antecipa a seguinte

49

A tentativa de determinaccedilatildeo do que corresponde agrave μνήμη na escala aristoteacutelica deve ter

agora em conta uma ldquoclaacuteusulardquo adicional Eacute que a μνήμη apresenta um conteuacutedo na ausecircncia

perceptiva dele

Natildeo apenas conseguimos recuperar por via da μνήμη isso que foi (mas jaacute natildeo eacute) os

locais onde estivemos (mas jaacute natildeo estamos) os tempos que vivemos no passado (mas que jaacute

natildeo vivemos no presente) como o que estaacute na μνήμη (ie o que estaacute para aleacutem da percepccedilatildeo)

estende-se ao longo do curso da percepccedilatildeo e conforma o que aparece perceptivamente

Ora isto aproxima a μνήμη de um outro fenoacutemeno de apresentaccedilatildeo dos conteuacutedos na

ausecircncia perceptiva deles a saber o fenoacutemeno da φαντασία

Natildeo eacute este o local nem para uma apresentaccedilatildeo exaustiva e integral da φαντασία nem

para o levantamento dos diversos aspectos que uma apresentaccedilatildeo minuciosa do que estaacute em

jogo na φαντασία traria agrave tona na obra aristoteacutelica Para mais devemos natildeo perder de vista

que nem o conceito de φαντασία nem a rela-ccedilatildeo entre φαντασία e μνήμη estatildeo expressamente

focadas nos passos do corpus aristotelicum que aqui temos em vista

A menccedilatildeo da φαντασία tem portanto tanto um intuito quanto um acircmbito muito redu-

zidos De facto daremos atenccedilatildeo a um uacutenico aspecto do fenoacutemeno da φαντασία que posto em

relaccedilatildeo e em contraste com o que vimos nos pode ajudar a determinar o que propriamente

corresponde agrave μνήμη19

O problema pode ser expresso do seguinte modo a percepccedilatildeo fornece os conteuacutedos

perceptivos mas natildeo parece ter sobre os conteuacutedos perceptivos exclusividade ndash haacute pelo que

se depreende conteuacutedos perceptivos fora da percepccedilatildeo e mais ainda a conformar a percep-

ccedilatildeo Eacute esse o caso da μνήμη a μνήμη assenta sobre conteuacutedos perceptivos mas o que adiciona

atravessa os conteuacutedos da αἴσθησις e natildeo os deixa incoacutelumes eacute tambeacutem esse o caso da φαντα-

σία

19

Para uma consideraccedilatildeo da noccedilatildeo de φαντασία na obra de Aristoacuteteles ver por exemplo Ret (I 11 II

5) Eacutetica a Nicoacutemaco (1114a-b 1147b etc) Met (livro I 980b livro IV 1110b livro V 1024b-

1025a etc) Para um estudo mais aprofundado do conceito ver por exemplo Bredlow L Aristotle

on pre-Platonic theories of sense-perception and knowledge in Filosofia Unisinos Satildeo Leopoldo 11

(3) 2010 paacutegs 204-224 Heidegger M GA vol 18 Basic concepts of aristotelian philosophy Indi-

ana Univ Press 2009 pp 93-97 133-136 e 168-170 Long C Aristotle on the nature of truth Cam-

bridge Univ Press 2011 pp 81-93 109-115 131-151 166-171 211-123 etc Scheiter K Images

appearances and phantasia in Aristotle in Phronesis 57 Boston 2012 paacutegs 251-278 ou Watson G

Φαντασία in Aristotle De Anima 33 in The Classical Quarterly 32 No 1 Cambridge 1982 paacutegs

100-113

50

O que Aristoacuteteles diz sobre a φαντασία e que neste passo nos interessa destacar pode

ser sintetizado em dois pontos a) a φαντασία eacute de certo modo causada pela αἴσθησις (ou se-

ja estaacute dependente da ocorrecircncia de αἴσθησις) e b) a φαντασία eacute similar agrave αἴσθησις (De Ani-

ma 428b10 ss) Algo muito semelhante poderia ser dito sobre a μνήμη

Em relaccedilatildeo ao primeiro ponto o que estaacute em causa eacute o facto de tanto μνήμη quanto

φαντασία terem a αἴσθησις por seu objecto Isto eacute tanto μνήμη quanto φαντασία procedem

sobre o ldquofundordquo do percebido

Em relaccedilatildeo ao segundo ponto o que deve ser frisado eacute que o desdobramento que ca-

racteriza a μνήμη natildeo potildee perante dois conteuacutedos esteacutesicos (um primeiro meramente esteacutesico

e um segundo atravessado por μνήμη) Pelo contraacuterio no ponto de vista em que nos temos haacute

apenas um uacutenico conteuacutedo ndash conteuacutedo que a um olhar desatento pode parecer isento de qual-

quer outro factor e pode portanto passar por um conteuacutedo meramente esteacutesico

Haacute ainda um outro problema que vem reforccedilar as ligaccedilotildees entre μνήμη e φαντασία

A φαντασία parece estar a jusante do fenoacutemeno da αἴσθησις ndash como se fosse um pro-

duto possiacutevel do tratamento do que a αἴσθησις colhe e que deixaria incoacutelume o fundo ou os re-

cursos disponiacuteveis em que assenta

Se Aristoacuteteles nos diz que a φαντασία eacute uma modalidade enfraquecida de αἴσθησις

(ponto que natildeo estamos nestes passos em condiccedilatildeo de considerar) logo acrescenta que tanto o

homem que relembra (o homem que revecirc o passado) quanto o homem que espera (o homem

que prevecirc o futuro) tecircm de permeio a φαντασία do que relembram ou do que esperam (Ret I

XI 6 1370a)

Ora deixando de lado as consideraccedilotildees sobre o futuro que natildeo cabem na anaacutelise da

μνήμη o aspecto que Aristoacuteteles nos apresenta eacute o aspecto da φαντασία ser de algum manei-

ra um operador que interveacutem na constituiccedilatildeo de μνήμη Ou seja o aspecto que Aristoacuteteles

nos apresenta eacute o aspecto de a constituiccedilatildeo de μνήμη estar perpassada de φαντασία

O que com isto Aristoacuteteles parece sugerir eacute que a μνήμη eacute uma modalidade especiacutefica

de φαντασία E o que eacute especiacutefico da modalidade de φαντασία que eacute a μνήμη eacute co-apresentar

o tempo Dito por outras palavras o que caracteriza a ldquofantasia mneacutesicardquo eacute o facto de fazer

entrar em cena o factor da sucessatildeo

Na verdade eacute o factor da sucessatildeo o que possibilita a ldquomelodiardquo ndash ou seja eacute a co-apre-

sentaccedilatildeo do tempo (ie da sucessatildeo) o que abre o acircngulo para laacute do presente absoluto esteacutesi-

51

co O que vimos eacute que um ponto de vista meramente esteacutesico seria atemporal Acontece que

embora a μνήμη implique a posse da αἴσθησις a μνήμη natildeo eacute uma instacircncia atemporal A in-

troduccedilatildeo do factor ldquotempordquo colabora na modificaccedilatildeo qualitativa do acesso que se tem ao per-

cebido

Aristoacuteteles reforccedila amiuacutede a condiccedilatildeo temporal da memoacuteria em De memoria e remi-

nistencia diz-nos que a memoacuteria soacute eacute possiacutevel quando haacute lapso de tempo (449b24) e que a

memoacuteria acontece quando a um impulso relativo ao facto se junta um outro relativo ao pre-

sente do seu acontecimento (452b24) ndash embora faccedila notar que esse segundo dado pode ser de-

terminado (quando haacute uma recuperaccedilatildeo da cronologia) ou natildeo (nas situaccedilotildees em que se natildeo

estaacute seguro do quando ou em que o quando eacute indeterminado) (452b30)

Natildeo estamos aqui em condiccedilotildees de perseguir estas formulaccedilotildees em toda a sua exten-

satildeo Aquilo que nos cabe eacute ver melhor o modo como a μνήμη enquanto instacircncia temporal

muda o enquadramento do que aparece

Se se considerar a possibilidade de uma mera acumulaccedilatildeo de αἰσθήσεις o que daiacute se

obteria seria o facto de os conteuacutedos percebidos tidos terem sido mas jaacute natildeo serem Na verda-

de a mera acumulaccedilatildeo de percepccedilotildees tidas seria uma acumulaccedilatildeo de percepccedilotildees passadas

totalmente encerradas no presente do seu acontecimento Seriam de facto percepccedilotildees sem a

nota de terem sido

Ora a transformaccedilatildeo operada pela μνήμη eacute entatildeo uma transformaccedilatildeo de alargamen-

to a μνήμη tanto conserva a percepccedilatildeo tida (como presente no passado) como a transporta

ateacute ao presente (como passado do presente) A sucessatildeo eacute o factor que faz com que cada per-

cepccedilatildeo esteja de algum modo ampliada no sentido em que estaacute preenchida de todas as per-

cepccedilotildees tidas percepccedilotildees com que eacute posta numa relaccedilatildeo de continuidade

Se notarmos que a percepccedilatildeo estaacute obrigada a um menor grau de exigecircncia quanto

maior o patrimoacutenio perceptivo retido isso indica-nos que o que estaacute em jogo natildeo eacute apenas

uma acumulaccedilatildeo (se por isso se entender um amontoar que varie no volume mas que natildeo leve

em linha de conta isso que acumula) Vendo bem a reincidecircncia provoca uma mudanccedila de

natureza nos dados ndash a tal ponto que isso tem efeito nas incidecircncias futuras precisamente a

diminuiccedilatildeo de exigecircncia de acuidade da percepccedilatildeo Em suma natildeo haacute apenas acumulaccedilatildeo de

percepccedilotildees haacute uma transformaccedilatildeo das percepccedilotildees ndash e uma transformaccedilatildeo que deixa seque-

las que tem consequecircncias etc

52

A ser assim o que Aristoacuteteles sugere eacute que a co-apresentaccedilatildeo do tempo faz que os

conteuacutedos perceptivos sejam modificados na μνήμη por estarem postos em ordenaccedilatildeo tempo-

ral por estarem em relaccedilatildeo com o percebido que antecede a percepccedilatildeo actual etc

Mas mais ainda na verdade eacute a μνήμη que cria as condiccedilotildees para haver algo como

uma siacutentese de recogniccedilatildeo

Se uma qualquer percepccedilatildeo estaacute posta em relaccedilatildeo com todas as percepccedilotildees passadas

entatildeo dessa relaccedilatildeo ou eacute gerado um reconhecimento de identidade ou eacute gerado um reconheci-

mento de natildeo-identidade ndash reconhecimento do qual adveacutem o caraacutecter de novidade ou de rein-

cidecircncia da percepccedilatildeo actual Quer dizer soacute haveraacute ausecircncia de novidade nos conteuacutedos da

percepccedilatildeo actual porque haacute influecircncia da memoacuteria sobre os conteuacutedos da percepccedilatildeo A falta

de novidade assinala que o que eacute actualmente percebido natildeo adiciona nada ao jaacute anteriormen-

te percebido

Se por um lado isso confirma e reforccedila os dados da memoacuteria por outro lado isso pa-

rece exigir menos da percepccedilatildeo actual parece exigir apenas confirmaccedilatildeo reforccedilo ratificaccedilatildeo

etc Digamos assim quanto maior o patrimoacutenio da memoacuteria menor o grau de exigecircncia a que

a percepccedilatildeo estaacute obrigada Este eacute aliaacutes um factor decisivo na consideraccedilatildeo do fenoacutemeno da

percepccedilatildeo desatenta ndash da percepccedilatildeo que no acesso que gera deixa escapar parcelas maiores

ou menores disso a que acede

Na verdade o que nesta anaacutelise estamos desde jaacute a despistar satildeo as condiccedilotildees para

uma matriz de acesso radicalmente distinta da possibilidade de acesso que corresponde agrave

αἴσθησις

Acontece que todos estes desenvolvimentos satildeo ainda insuficientes para determinar in-

tegralmente as caracteriacutesticas da μνήμη tal como se apresentam na escala aristoteacutelica

sect8

O confinamento em que incorre a μνήμη a μνήμη natildeo potildee nada que abra perspectiva

sobre o futuro

De facto para perceber o terminus ad quem da transformaccedilatildeo que a μνήμη introduz

importa natildeo apenas considerar o limite inferior do ponto de vista mneacutesico (em que estaacute em

53

causa o excesso sobre a αἴσθησις) mas importa tambeacutem considerar o limite superior (em que

estaacute em causa a limitaccedilatildeo ou o confinamento em que incorre a μνήμη ndash no caso em relaccedilatildeo agrave

terceira etapa agrave ἐμπειρία)

O que desde logo fica claro na anaacutelise que temos em curso eacute que a sucessatildeo mneacutesica eacute

aquela que diz respeito agrave multiplicidade de momentos compreendida entre o passado mais re-

moto (ie a primeira αἴσθησις tida) e o presente (ie a αἴσθησις mais recente) A μνήμη limi-

ta-se a ser um ponto de vista que para aleacutem de estar a percepcionar o que actualmente per-

cepciona soacute tem o ter havido percepccedilatildeo do que percepcionou

Isto quer dizer que um ponto de vista constituiacutedo por αἰσθήσεις presentes acrescidas

da memoacuteria de αἰσθήσεις passadas ndash e que natildeo tem nenhuma outra forma de notiacutecia senatildeo es-

sa ndash a) por um lado acrescenta realidade agravequela de que de cada vez tem percepccedilatildeo mas b) por

outro resulta em que a realidade que acrescenta eacute toda ela passada

O acreacutescimo da μνήμη natildeo eacute senatildeo retrospectivo Dito de outro modo a μνήμη natildeo

potildee nada que abra perspectiva sobre o futuro

O ponto que interessa sublinhar nesta secccedilatildeo eacute justamente este

Eacute claro que a isso de que tem percepccedilatildeo no presente se acrescenta toda a realidade de

que teve percepccedilatildeo no passado ndash mas a percepccedilatildeo que foi tida no passado junta-se agrave percep-

ccedilatildeo presente justamente como realidade passada Dito de outro modo a percepccedilatildeo tida no

passado apresenta-se como realidade distinta da realidade presente Daqui resulta que a cada

presente a uacutenica realidade que haacute para um ponto de vista assim constituiacutedo eacute aquela de que

tem percepccedilatildeo Isto eacute no presente aquilo que de cada vez tem percepccedilatildeo esgota o ldquomundordquo

Tomemos por exemplo a sala de trabalho ndash sala em que jaacute estivemos e de que tive-

mos percepccedilatildeo anteriormente percepccedilatildeo passada agrave qual se acrescenta a realidade de que nes-

te instante temos percepccedilatildeo

Na verdade por via da μνήμη a sala natildeo se limita a ser (como seria no caso de um

ponto de vista meramente esteacutesico) um recanto perceptivo mas eacute sempre jaacute composta da acu-

mulaccedilatildeo de todas as percepccedilotildees tidas percepccedilotildees agraves quais se junta (e que tecircm como culminar)

a percepccedilatildeo actual Neste sentido a sala ndash tal como eacute vista por um ponto de vista meramente

mneacutesico ndash adicionaria agrave percepccedilatildeo actual toda a colecccedilatildeo de percepccedilotildees passadas (com um

cardinal de multiplicaccedilatildeo maior ou menor consoante tenha tido mais ou menos percepccedilotildees)

distribuiacutedas ao longo do tempo

54

Poreacutem um ponto de vista meramente mneacutesico limitar-se-ia a ter as percepccedilotildees passa-

das da sala estritamente como passado como ter estado laacute Por outras palavras um ponto de

vista mneacutesico estaacute fechado naquilo a que se poderia chamar a histoacuteria perceptiva ndash e natildeo tem

condiccedilotildees para dar um soacute passo que vaacute para laacute dela

Ora o que na verdade caracteriza a histoacuteria perceptiva eacute um fluxo de aparecimento e

de desaparecimento O que um ponto de vista mneacutesico teria seria a mera acumulaccedilatildeo de todas

as fulguraccedilotildees perceptivas alinhadas em sucessatildeo teria um aspecto da sala que desaparece

dando o lugar a um outro aspecto da sala que por sua vez desaparece dando o lugar a um cor-

redor que por sua vez desaparece dando lugar a um quarto ndash e assim sucessivamente

A histoacuteria perceptiva tem a forma de qualquer coisa como um tuacutenel de travessia per-

ceptiva onde se vatildeo sucedendo diversos aparecimentos

A capacidade da μνήμη esgota-se na capacidade de reactivar a sucessatildeo ou seja na

capacidade de fazer reaparecer A que eacute diferente de B que eacute diferente de C que eacute diferente de

D etc numa sucessatildeo dos seus acontecimentos Eacute que a realidade que pode ser reconhecida

por um ponto de vista mneacutesico tem justamente esta estrutura a da mera transiccedilatildeo de ter havi-

do A para ter havido B (e desapareceu A) para ter havido C (e tambeacutem desapareceu B) ndash e as-

sim sucessivamente Em suma para um ponto de vista mneacutesico haacute um ldquomundordquo de morfolo-

gia variaacutevel construiacutedo de tal modo que a uacutenica forma de articulaccedilatildeo entre os campos de re-

alidade sucessivamente percepcionados eacute precisamente a proacutepria sucessatildeo

Ora isto permite perceber um ponto decisivo que a partir do que foi visto ainda natildeo

fica a descoberto em todo o seu alcance Este ponto ficaraacute mais claramente desenhado quando

se tiver fixado aquilo que eacute proacuteprio da ἐμπειρία mas de todo o modo jaacute se pode esboccedilar em

especial em relaccedilatildeo ao que foi sendo dito nas secccedilotildees anteriores O ponto eacute o seguinte muta-

tis mutandis vale a respeito do ponto de vista mneacutesico o que antes se disse a respeito do aces-

so a um ponto de vista esteacutesico

Na secccedilatildeo anterior vimos que a diferenciaccedilatildeo entre um ponto de vista puramente esteacute-

sico e um ponto de vista mneacutesico eacute tal que ainda que com capacidades sensoriais absoluta-

mente idecircnticas o que aparece num e no outro satildeo coisas completamente diferentes Como

entatildeo foi dito se tivessemos um ponto de vista puramente esteacutesico da sala em que nos encon-

tramos na verdade natildeo veriacuteamos nada do que vecirc um ponto de vista assistido por μνήμη E in-

versamente um ponto de vista assistido por μνήμη natildeo consegue fazer nenhuma ideia adequa-

da do que se passa (ie do que aparece) onde natildeo haacute mais do que αἴσθησις

55

Ora algo de equivalente se verifica no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre um ponto de

vista mneacutesico e um ponto de vista empiacuterico

Aplica-se agrave tentativa de reconstituiccedilatildeo de um ponto de vista puramente mneacutesico a par-

tir do ponto de vista empiacuterico a impossibilidade de vencer as diferenccedilas irreconciliaacuteveis entre

estaacutedios natildeo se consegue acompanhar adequadamente um ponto de vista meramente mneacutesico

a partir de um ponto de vista empiacuterico

Ora isso diz algo sobre o ldquolugarrdquo da escala em que nos encontramos Eacute que se natildeo es-

tamos a ver mal tambeacutem se daacute o caso de a partir do nosso ponto de vista ser impossiacutevel

acompanhar um ponto de vista meramente mneacutesico

Em primeiro lugar verifica-se que a perspectiva em que estamos quando falamos de

um ponto de vista mneacutesico excede ndash excede muito significativamente ndash o que eacute proacuteprio de um

ponto de vista mneacutesico Assim e nos termos que vimos o ponto de vista em que estamos tem

sobre um ponto de vista puramente mneacutesico um excesso que eacute impossiacutevel de anular e que nos

separa inexoravelmente de um ponto de vista mneacutesico E isto eacute claro se tivermos em conta

antes do mais que quando falamos de um ponto de vista puramente mneacutesico fazemo-lo a

partir de uma perspectiva que estaacute muito longe de natildeo ter qualquer ideia do futuro

De facto o nosso ponto de vista soacute consegue representar como um experimentum algo

como um ponto de vista totalmente encerrado em relaccedilatildeo ao futuro Um ponto de vista como

o nosso natildeo consegue reduzir-se ou reconstituir efectivamente um ponto de vista que ldquovejardquo

assim

Devemos notar que o facto de a μνήμη se resumir a conteuacutedos perceptivos tidos (que

tecircm o seu limite maacuteximo na percepccedilatildeo actual) impede qualquer prospectiva sobre o que viraacute

a ser deles no momento seguinte

Nesta medida a uacuteltima percepccedilatildeo de um qualquer conteuacutedo seria tambeacutem a uacuteltima no-

tiacutecia dele O presente seria a extremidade da seacuterie do tempo e a cada instante se diluiria em

passado abrindo um nexo de continuidade com o que foi mas natildeo com o que viraacute a ser Natildeo

seria possiacutevel portanto antever o que quer que fosse que tivesse a ver com o acontecimento

futuro de um dado conteuacutedo natildeo seria possiacutevel antecipar por exemplo se a sala que temos

perante noacutes persistiria no futuro o que viria a ser dela no momento imediatamente a seguir

ao instante actual etc

Em suma o ponto de vista mneacutesico nunca poderia constituir uma expectativa de futu-

ro

56

Ora o facto eacute que noacutes natildeo vivemos na incerteza de saber se a sala que temos perante

noacutes iraacute ou natildeo desaparecer no momento seguinte pelo contraacuterio o suacutebito desaparecimento da

sala provocaria estupefacccedilatildeo

Isto parece indicar que a partir do ponto de vista a que acedemos a ela a histoacuteria

perceptiva eacute permeada por outros factores de natureza distinta dos factores meramente per-

ceptivos ndash ie parece indicar que operam no ponto de vista em que nos achamos factores de

projecccedilatildeo

Na verdade estes factores estavam jaacute muito subtilmente a operar se considerarmos de

perto a noccedilatildeo de siacutentese de recogniccedilatildeo que se aplicou atraacutes

O que estaacute em jogo na siacutentese de recogniccedilatildeo eacute uma modalidade de reincidecircncia ndash o

que nos potildee na pista de que o que estaacute em causa seraacute ou uma intermitente ou uma contiacutenua

incidecircncia do ldquomesmordquo que de cada vez de novo eacute captado

A nota do ldquomesmordquo (o factor de identidade ou de semelhanccedila) que a cada vez de novo

incide natildeo eacute alheia agrave μνήμη tal como nos eacute possiacutevel conceber a μνήμη no ponto de vista em

que nos termos Na verdade sem a fixaccedilatildeo de identidades diacroacutenicas (factor que excede em

absoluto o acircmbito da μνήμη e assim tambeacutem o acircmbito da αἴσθησις) aquilo que de cada vez

apareceu agrave percepccedilatildeo e que eacute retido pela μνήμη consistiria de cada vez em diferenccedilas irre-

conciliaacuteveis de umas percepccedilotildees em relaccedilatildeo a outras

Ou seja o caso de serem diferentes percepccedilotildees do ldquomesmordquo natildeo se deduz das percep-

ccedilotildees nem da memoacuteria natildeo seria possiacutevel dizer que foi o ldquomesmordquo que apareceu de cada vez

jaacute que natildeo haveria uma identificaccedilatildeo que atravessasse todas as percepccedilotildees

Nesse caso as percepccedilotildees ndash e mesmo duas percepccedilotildees iguais ndash seriam incomparaacuteveis

umas em relaccedilatildeo agraves outras por falta da fixaccedilatildeo de algo que servisse a aproximaccedilatildeo ou a com-

paraccedilatildeo entre elas

Tambeacutem no que diz respeito agrave conformaccedilatildeo global do que aparece se verifica algo

correspondente

Se considerarmos a forma como lhe acedemos o campo perceptivo em que de cada

vez nos encontramos aparece-nos como parte de um complexo de realidades muito mais vas-

to de realidades que lhe satildeo simultacircneas Ora o acreacutescimo da retenccedilatildeo eacute insuficiente para

nos dar a ver o ldquomundordquo tal como o temos habitualmente

57

O ldquomundordquo tal como o temos natildeo estaacute limitado agraves percepccedilotildees que tivemos e temos

dele temos notiacutecia de um ldquomundordquo ndash temporal e espacialmente ndash muito mais vasto que as

percepccedilotildees que tivemos e que temos dele A nossa notiacutecia do mundo estaacute atravessada por um

excesso em relaccedilatildeo quer agrave nossa percepccedilatildeo quer agrave nossa histoacuteria perceptiva dele a ldquogeogra-

fiardquo do ldquomundordquo natildeo se limita agrave quantidade de ruas por onde passaacutemos nem a populaccedilatildeo do

ldquomundordquo estaacute limitada ao nuacutemero de pessoas com que me deparaacutemos no curso desta travessia

Em suma o ldquomundordquo correspondente a um ponto de vista mneacutesico eacute muito diferente

do ldquomundordquo que nos aparece

E tambeacutem aqui devemos recuperar uma estrutura que jaacute vimos anteriormente natildeo eacute

soacute o ponto de vista puramente mneacutesico que natildeo faz a mais remota ideia daquele em que nos

encontramos O inverso eacute tambeacutem verdade Quer dizer a ldquocegueirardquo natildeo ocorre apenas do

ldquomenosrdquo para o ldquomaisrdquo

Sucede igualmente que o ponto de vista em que estamos natildeo consegue desfazer o ex-

cesso sobre o ponto de vista puramente mneacutesico natildeo tem condiccedilotildees para reconstituir ade-

quadamente o que possa ser a oacuteptica desse ldquomenosrdquo

Dito de outro modo ainda que o ponto de vista mneacutesico represente um extraordinaacuterio

desconfinamento em relaccedilatildeo ao ponto de vista esteacutesico ainda que se aproxime muito mais do

que o ponto de vista esteacutesico do ponto de vista em que nos encontramos ndash de todo o modo

essa aproximaccedilatildeo eacute apenas relativa e estaacute ainda muito aqueacutem da perspectiva que nos corres-

ponde

Eacute no sentido de ganhar a pista a essa forma de desconfinamento que corresponde ao

tracircnsito da μνήμη para a ἐμπειρία ndash e em simultacircneo responder agrave pergunta onde se situa nela

o nosso ldquoolharrdquo o acesso em que nos achamos ou de que dispomos ndash que interessa analisar

de seguida a terceira etapa da escala de possibilidade de acesso desenhada por Aristoacuteteles

Eacute portanto a ἐμπειρία e os diversos elementos que a constituem que estamos pela pri-

meira vez e tendo por auxiliares as ldquochavesrdquo que no curso desta anaacutelise fomos adquirido em

condiccedilotildees de focar detidamente

58

sect9

Abordagem agrave ἐμπειρία a partir da chave ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος

μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν ἀποτελοῦσινrdquo (Metafiacutesica 980b28) ndash O contraste entre a pluralida-

de mneacutesica e a unidade empiacuterica

Perceber o que estaacute em causa naquilo a que Aristoacuteteles chama ἐμπειρία passa por to-

mar como ponto de partida e por foco da anaacutelise o enunciado de Metafiacutesica I (980b28 e ss)

ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν ἀποτελοῦσινrdquo Este enun-

ciado ndash que poderia ser vertido para a foacutermula ldquona medida em que eacute de vaacuterias memoacuterias da

mesma coisa que uma experiecircncia eacute produzidardquo ndash concentra os aspectos decisivos

Poreacutem e em simultacircneo este enunciado pode induzir em erro e criar pistas falsas em

especial se natildeo se atender com suficiente cuidado agrave especificidade daquilo para que aponta

Esta passagem sublinha antes de mais que a multiplicidade de memoacuterias constitui

uma condiccedilatildeo da passagem agrave ἐμπειρία Ora isto significa algo que tem sido visto ao longo

das secccedilotildees anteriores a saber que cada etapa superior soacute eacute possiacutevel sobre o fundo ou sobre

a condiccedilatildeo de possibilidade que constituem para ela as etapas anteriores

No caso quer dizer que a ἐμπειρία supotildee algo como uma travessia perceptiva que re-

sulta numa acumulaccedilatildeo de memoacuterias (ie que a ἐμπειρία natildeo eacute possiacutevel sem a travessia per-

ceptiva e sem a acumulaccedilatildeo mneacutesica que haacute algo como um miacutenimo de travessia perceptiva e

de acumulaccedilatildeo mneacutesica sem o qual a ἐμπειρία simplesmente natildeo tem condiccedilotildees para ocorrer

etc)

Poreacutem em segundo lugar Aristoacuteteles sublinha que a multiplicidade de μνῆμαι eacute uma

multiplicidade de memoacuterias τοῦ αὐτοῦ πράγματος Por outras palavras a ἐμπειρία tem como

condiccedilatildeo sine qua non qualquer coisa como uma repeticcedilatildeo20

20

Aquilo a que se deve dar atenccedilatildeo na nota da repeticcedilatildeo (na noccedilatildeo de que a multiplicidade de memoacute-

rias eacute da ldquomesmardquo ldquocoisardquo) estaacute jaacute de certo modo posto no prefixo re- Este prefixo expressa algo que

acontece outra vez uma vez mais que acontece novamente que torna a acontecer etc Isto eacute indica

que o que acontece (o que acontece outra vez uma vez mais novamente etc) estaacute posto em relaccedilatildeo

com algo cuja existecircncia antecede ou eacute preacutevia ao acontecimento actual com algo que estaacute para traacutes

Na verdade eacute isso que estaacute para traacutes que acontece outra vez uma vez mais novamente etc ndash de tal

modo que esta outra vez estaacute em referecircncia a uma primeira eacute mais uma que se adiciona agrave primeira

renova a primeira etc

59

Isto quer dizer o seguinte se cada αἴσθησις tivesse um teor diferente ndash de tal modo

que nada tivesse que ver com o teor das outras ndash e se natildeo houvesse qualquer afinidade entre

as μνῆμαι (ie se as memoacuterias fossem todas desencontradas se natildeo houvesse reincidecircncia

do ldquomesmordquo) entatildeo ficaria prejudicada a possibilidade de se produzir ἐμπειρία

A isto acresce um outro terceiro aspecto o contraste entre a pluralidade das μνῆμαι e

a unidade da ἐμπειρία Agrave pluralidade das μνῆμαι corresponde na ἐμπειρία algo de uno eacute pa-

ra isso que Aristoacuteteles aponta quando fala de μιᾶς ἐμπειρίας δύναμιν Parece evidente que o

que estaacute em causa eacute algo como uma condensaccedilatildeo ou contracccedilatildeo numa uacutenica perspectiva em-

piacuterica que cobre uma multiplicidade de ocorrecircncias ou instacircncias mneacutesicas

Poreacutem esta descriccedilatildeo eacute demasiado vaga e apaga a peculiaridade da modificaccedilatildeo em

causa Ou seja natildeo permite perceber bem que eacute que eacute proacuteprio da μνήμη e o que eacute que eacute proacute-

prio da ἐμπειρία Uma batida pelo corpus aristotelicum mostraraacute mais claramente de que mo-

do isto natildeo deixa perceber o que eacute proacuteprio da μνήμη e o que eacute que eacute proacuteprio da ἐμπειρία

Em Anal Post 99b38 Aristoacuteteles faz passar a μυήμη por uma persistecircncia da αϊσθη-

σις Isto indica que quando o acto da percepccedilatildeo finda algo ainda eacute retido dele Assim a μυή-

μη natildeo se deteacutem ou natildeo se ateacutem exclusivamente agrave αϊσθησις Neste ldquofazer perdurarrdquo ou na re-

tenccedilatildeo estaacute como vimos na secccedilatildeo anterior a marca da distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave mera αϊσθησις

Acontece que em 100a1 e eacute isso que nos interessa no seguimento considerar Aristoacute-

teles nota que a eventual repeticcedilatildeo da retenccedilatildeo gera notiacutecias de coerecircncia na persistecircncia

Ora poderia pensar-se a partir daqui que as percepccedilotildees gerariam por si ou a partir

de si mesmas solidariedades e que na reiteraccedilatildeo perceptiva por reincidecircncia ou repeticcedilatildeo

(ie na μνήμη) estaria a base do isolamento dos ldquomesmosrdquo conteuacutedos

Um ldquoobjectordquo seria entatildeo nesta perspectiva algo como um miacutenimo denominador co-

mum entre percepccedilotildees que acumulando-se e sobrepondo-se deixariam ver coincidecircncias nos

conteuacutedos percebidos e iniciariam um processo de isolamento de caracteres que por verifi-

caccedilatildeo ou confirmaccedilatildeo viriam a ser de cada vez caracteres do ldquomesmordquo

Acontece que uma tal operaccedilatildeo parece exceder em muito a natureza das percepccedilotildees

Se se compreender como vimos atraacutes a percepccedilatildeo como um fluxo ndash um fluxo no qual

haveraacute uma constante renovaccedilatildeo do que a cada momento constitui o quadro perceptivo ndash en-

tatildeo tudo apareceria a cada momento sob aspectos irreconciliaacuteveis entre si (ie cada ldquocoisardquo

apareceria de cada vez em diferentes pontos espaciais do quadro perceptivo seria vista a par-

60

tir de acircngulos que revelariam facetas originais dela seria posta em relaccedilatildeo com a totalidade de

um quadro que teria tambeacutem a cada vez uma composiccedilatildeo inteiramente nova e poria os conteuacute-

dos em relaccedilotildees novas entre si etc)

A retenccedilatildeo natildeo poderia servir de muito a retenccedilatildeo ou acumulaccedilatildeo natildeo adicionaria agrave

αϊσθησις senatildeo uma variaccedilatildeo de quantidade natildeo modificaria a forma apenas abrangeria mais

distribuindo essa diferenciaccedilatildeo numeacuterica por assim dizer ao longo do tempo ndash ie assente jaacute

numa noccedilatildeo miacutenima de sucessatildeo Em suma seria a retenccedilatildeo apenas a acumulaccedilatildeo de percep-

ccedilotildees radicalmente diferentes entre si de percepccedilotildees de cada vez originais singulares e novas

Isto leva-nos ainda a um segundo ponto que pode ser visto com toda a nitidez lem-

brando o seguinte num mundo ldquonominalistardquo pura e simplesmente natildeo haveria qualquer ἐμ-

πειρία

A ἐμπειρία tem que ver com comunidade entre percepccedilotildees ndash com comunidade entre as

diferentes instacircncias de μονὴ τοῦ αἰσθήματος A experiecircncia parece corresponder a uma opera-

ccedilatildeo de identificaccedilatildeo de homogeneidade entre os diversos conteuacutedos perceptivos A ἐμπειρία

passa em suma por uma multiplicidade de instacircncias do ldquomesmordquo nas memoacuterias que se tecircm

nela estaacute em causa o acto de pocircr identidade onde havia diversidade perceptiva etc

Com efeito vendo bem jaacute pode haver uma ldquocondensaccedilatildeordquo (contracccedilatildeo de uma multi-

plicidade de memoacuterias em algo de uno) no proacuteprio plano da memoacuteria

Na verdade eacute justamente isso que tende a acontecer ndash eacute essa a forma ldquonaturalrdquo de me-

moacuteria em noacutes Se considerarmos as memoacuterias que temos desta sala ou na nossa infacircncia por

exemplo damo-nos conta que natildeo tecircm a forma correspondente agrave sua sucessatildeo real (o primei-

ro momento de memoacuteria da sala o segundo momento de memoacuteria da sala o terceiro momen-

to de memoacuteria da sala etc) Acontece pelo contraacuterio que a nossa relaccedilatildeo com essa multipli-

cidade de memoacuterias se faz a partir de um nuacutecleo uacutenico (de uma unidade) que se caracteriza

pela propriedade de se multiplicar ou se resolver a partir de si mesma numa multiplicidade

de instacircncias que partem dela ndash e que se caracterizam precisamente pelo facto de a unidade

remeter para mais do que aquilo que de cada vez jaacute consigo seguir

O que estamos a tentar sublinhar eacute o facto de a identidade do ldquomesmordquo parecer ga-

rantida agrave revelia da retenccedilatildeo da diversidade perceptiva que constituiria a μυήμη estamos a

chamar atenccedilatildeo para o facto de a retenccedilatildeo da diversidade perceptiva natildeo resultar em diversi-

dade absoluta

61

Se fosse uma operaccedilatildeo meramente mneacutesica entatildeo agrave retenccedilatildeo da variaccedilatildeo do quadro

perceptivo sucederia a variedade absoluta do percebido A memoacuteria corresponderia entatildeo agrave

retenccedilatildeo da diversidade Mas natildeo eacute isso que se passa

O que se passa eacute que em simultacircneo com a diversidade perceptiva (e com a conse-

quente retenccedilatildeo da diversidade perceptiva) estaacute constituiacutedo algo que inibe a diversidade ab-

soluta e que pelo contraacuterio fixa identidade

A diversidade perceptiva eacute na verdade tal como estamos constituiacutedos diversidade do

ldquomesmordquo (ie deixa ver algo de diferente de cada vez mas de cada vez eacute sempre jaacute do

ldquomesmordquo) Ou seja a fixaccedilatildeo da memoacuteria do ldquomesmordquo (a memoacuteria da sala por exemplo) jaacute

implica um ldquomesmordquo constituiacutedo enquanto tal (ou seja enquanto identidade)

O que isto quer dizer eacute que memoacuteria e experiecircncia colaboram o ldquomesmordquo e a diversi-

dade das ocorrecircncias do ldquomesmordquo concorrem constituindo-se simultaneamente e em depen-

decircncia muacutetua as diversas ocorrecircncias satildeo do ldquomesmordquo e eacute o fundamento de um ldquomesmordquo

que propicia ou resulta na diversidade de ocorrecircncias (na constituiccedilatildeo de diversos instantes

de uma identidade)21

21

Esta eacute uma chave possiacutevel para compreender o ponto do corpus aristotelicum em que eacute dito que um

percebido individual logo que eacute tido eacute um primeiro instante da presenccedila de um universal (Anal Post

100a15) Natildeo interessa entrar aqui muito a fundo nesta questatildeo mas interessa apenas salientar o se-

guinte Como vimos se encerrada no seu proacuteprio territoacuterio toda a αἴσθησις seria radicalmente original

individual etc No entanto como vimos tambeacutem natildeo eacute assim que a vemos Quer dizer por um lado

ela eacute em si mesma radicalmente individual Poreacutem por outro lado o nosso ponto de vista natildeo a vecirc na

sua radical individualidade Na verdade tal como o temos a partir do nosso ponto de vista toda a per-

cepccedilatildeo e todo o campo perceptivo satildeo integralmente compostos de um conjunto de ldquomesmosrdquo em rein-

cidecircncia ndash isso que neste passo tem o caraacutecter de universal (de identidade abstraiacuteda de cada uma das

suas ocorrecircncias) Ora o que isto quer dizer eacute que haacute uma imediata contemporaneidade de αἴσθησις e

ἐμπειρία A tese de Aristoacuteteles poderia admitir uma leitura temporal de tal modo que a αἴσθησις teria

precedecircncia ou seria um acontecimento anterior do qual a ἐμπειρία seria um desenvolvimento poste-

rior e sofisticado Mas natildeo eacute isso que se passa num ponto de vista constituiacutedo no plano empiacuterico Um

ponto de vista constituiacutedo no plano empiacuterico natildeo acede a uma qualquer αἴσθησις sem instantaneamente

introduzir um universal Assim se fizermos uma sondagem pela sala de trabalho encontramos vaacuterios

tipos de identidade formados deste modo (livros estantes canetas etc) ndash tanto eacute assim que natildeo nos eacute

possiacutevel abstrair o campo visual das identidades que laacute encontramos e que constituem o conteuacutedo do

aparecimento Isto eacute natildeo se tem notiacutecia da percepccedilatildeo enquanto mero exerciacutecio mas sempre jaacute como

exerciacutecio transitivo de trazer algo ndash e trazer algo com caraacutecter de universal ndash agrave percepccedilatildeo Eacute isso que

quer dizer no sentido em que aqui compreendemos o fenoacutemeno o acto da αϊσθησις envolver o univer-

sal fazemos uma sondagem pelo campo visual e para retomar o exemplo de Aristoacuteteles vemos Cal-

lias Mas se em qualquer caso natildeo se reconhecer esse homem ainda assim vemos uma outra identida-

62

Neste passo eacute importante vincar vaacuterios aspectos

A unidade que acabamos de referir constitui-se a partir de uma travessia perceptiva ndash

como depoacutesito e resultado dela Mas formou-se justamente algo que jaacute natildeo eacute a travessia per-

ceptiva (ou a simples transcriccedilatildeo mneacutesica da travessia perceptiva) formou-se uma perspecti-

va condensada ndash uma unidade

Essa unidade tomou o lugar por assim dizer da sucessatildeo mneacutesica de que resultou ndash de

tal modo que a relaccedilotildees se invertem na sua origem esteve a proacutepria sucessatildeo perceptiva (sc a

acumulaccedilatildeo mneacutesica) que deu lugar agrave unidade em causa mas uma vez formada a unidade eacute

a unidade que toma precedecircncia (no caso eacute a unidade que leva agraves diferentes instacircncias de

memoacuteria que potildee em contacto com elas que tem um caraacutecter como que ldquomultiplicativordquo e

potildee a partir de si as muacuteltiplas memoacuterias)

Em suma parece haver uma uacutenica ldquomemoacuteriardquo (geral ou agregadora) da sala que even-

tualmente se desdobra em muacuteltiplas ocorrecircncias perceptivas (e eventualmente em muacuteltiplas

ocorrecircncias mneacutesicas) a sala quando anoitece a sala no dia x agraves tantas horas a sala no dia em

que laacute se deu o acontecimento tal etc

Assim a recuperaccedilatildeo de cada uma das incidecircncias perceptivas particulares da sala de

uma dada travessia perceptiva natildeo seria o mero resultado de se ldquoreverrdquo a incidecircncia percepti-

va em causa sem mais mas estaria jaacute atravessada por uma ldquoexperiecircnciardquo da sala (por uma

memoacuteria geral da sala se assim se pode dizer uma memoacuteria contraiacuteda ou constituiacuteda a partir

de todas as memoacuterias) constituiacuteda a partir da reincidecircncia perceptiva e da qual a incidecircncia

perceptiva recuperada constitui um desdobramento especiacutefico

Isto eacute aliaacutes extensiacutevel agrave percepccedilatildeo

Ainda que todas as percepccedilotildees natildeo actuais estejam jaacute perdidas (sejam precisamente ti-

das como percepccedilotildees natildeo-actuais) eou estejam a caminho da perda total a perda perceptiva

natildeo eacute vivida como perda Parece ser possiacutevel recuperar (ou presentificar) uma dada percep-

ccedilatildeo Acontece que essa recuperaccedilatildeo (essa presentificaccedilatildeo da percepccedilatildeo tida) parece ter como

condiccedilatildeo um quadro ou um nuacutecleo geral do qual a percepccedilatildeo eacute secundaacuteria ou derivada

A recuperaccedilatildeo de uma percepccedilatildeo particular implicaria em primeiro lugar a memoacuteria

unificada disso e soacute a partir da base dessa memoacuteria unificada eacute que a percepccedilatildeo particular

de universal (um homem) ou se estiver tatildeo longe que natildeo se consiga identificar sequer uma forma hu-

mana ainda assim vemos identidades universais uma linha uma mancha etc

63

poderia ter lugar ndash precisamente como particularidade ou especificidade da memoacuteria unifica-

da que a possibilita que por sua vez eacute jaacute especificaccedilatildeo de uma ἐμπειρία (de uma ldquomemoacuteria

geralrdquo)

Assim a percepccedilatildeo particular que num dado momento apareceu na sua integridade

maacutexima natildeo eacute se se tentar reaver a sua integridade (se se tentar rever a percepccedilatildeo ela mes-

ma sem mais) recuperada senatildeo como aquilo que transporta os detalhes (as particularida-

des as especificidades etc) de uma memoacuteria geral (ie de algo constitutivamente natildeo per-

ceptivo)

Com tudo isto fica claro que transformaccedilatildeo estaacute em causa na transposiccedilatildeo entre o pa-

tamar da memoacuteria e o patamar da experiecircncia a origem de uma experiecircncia parece estabele-

cer-se na correspondecircncia entre a pluralidade de retenccedilotildees e uma siacutentese do ldquomesmordquo

Ora neste ponto natildeo devemos perder de vista o seguinte

Na medida em que a experiecircncia natildeo eacute um acontecimento singular algo que esteja

possibilitado por uma uacutenica ocorrecircncia (mas eacute pelo contraacuterio algo que tem como condiccedilatildeo

muacuteltiplas ocorrecircncias e na medida em que dessas ocorrecircncias que satildeo entre si diacutespares ou

ateacute eventualmente contraditoacuterias se forma um conteuacutedo agregador) entatildeo natildeo podemos dei-

xar de notar que o conteuacutedo agregador que assim se obteacutem eacute produzido por abstracccedilatildeo das di-

ferenccedilas Quer dizer a sala eacute abstraiacuteda do anoitecer disso que era no dia x agraves tantas horas do

que era quando se deu o acontecimento tal etc

Podemos dizecirc-lo assim a memoacuteria geral da sala que de cada vez tenho assenta prin-

cipalmente em traccedilos gerais

Isto parece contrariar o modo como tendemos a compreender habitualmente a expe-

riecircncia a experiecircncia natildeo parece ser na acepccedilatildeo que temos aqui em jogo a progressiva espe-

cificaccedilatildeo de ldquoobjectordquo tido mas o processo da progressiva generalizaccedilatildeo dele ndash generaliza-

ccedilatildeo que tem por resultado a contracccedilatildeo do ldquoobjectordquo em caracteres nucleares

Assim o que interessa desde jaacute estabelecer eacute que a experiecircncia parece atirar os casos

particulares para uma posiccedilatildeo perifeacuterica assim reforccedilando os caracteres constantes ou estaacute-

veis

Isto eacute claro se tentar recuperar cada uma das percepccedilotildees e das memoacuterias da sala ape-

sar de termos uma ldquomemoacuteria geralrdquo da sala eacute-nos impossiacutevel reconstituir cada um dos aces-

64

sos perceptivos ou mneacutesicos das muacuteltiplas incidecircncias dela A custo conseguimos recuperar

algumas determinaccedilotildees particulares

Mais a especificidade de cada ocorrecircncia no acesso agrave sala empobrece a cada ocorrecircn-

cia acrescentada ndash ie as percepccedilotildees ou memoacuterias de cada acesso singular agrave sala perdem-se

ou diluem-se na memoacuteria geral (ie na experiecircncia) da sala

Pocircr tudo isto em evidecircncia eacute fazer ao mesmo tempo duas coisas

Por um lado eacute chamar a atenccedilatildeo para o facto de que a mera contraposiccedilatildeo entre a

multiplicidade (de memoacuterias) e uma unidade (que as condensa) natildeo eacute ainda suficiente para

identificar o que eacute proacuteprio da ἐμπειρία ndash tanto assim que jaacute haacute operaccedilotildees de unificaccedilatildeo na

proacutepria esfera da memoacuteria

Por outro lado eacute chamar atenccedilatildeo para facto de que o que eacute decisivo para identificar o

que eacute proacuteprio da ἐμπειρία natildeo eacute o caso de a muacuteltiplas memoacuterias do mesmo corresponder algo

de uno mas sim uma forma especiacutefica de constituiccedilatildeo dessa unidade ou uma forma especiacutefica

de condensaccedilatildeo A questatildeo estaacute portanto em saber que forma especiacutefica eacute essa

sect10

A transgressatildeo do dado e a produccedilatildeo de fixaccedilotildees de estados-de-coisas permanentes

Comecemos por notar o seguinte seria possiacutevel que todo o processo que se estaacute a des-

crever resultasse de uma variaccedilatildeo de quantidade Quer dizer poderia dar-se o caso de que a

partir de um nuacutemero x de ocorrecircncias de αϊσθησις se obtivesse μυήμη e a partir de um nuacutemero

de ocorrecircncias x de μυήμη se obtivesse έμπειρία Nesse caso a transiccedilatildeo entre etapas estaria

condicionada pelo cumprimento de factores numeacutericos e logo que se congregasse uma quan-

tidade determinada o salto entre etapas seria automaacutetico

Poreacutem o que parece ser decisivo nesta transposiccedilatildeo natildeo eacute o nuacutemero de ocorrecircncias

mas a identificaccedilatildeo formal das ocorrecircncias numa unidade ndash de um nuacutemero indeterminado de

ocorrecircncias de αϊσθησις (natildeo parecendo decisivo que sejam duas ou mil) obteacutem-se uma μυήμη

e de um nuacutemero indeterminado de ocorrecircncias de μυήμη uma έμπειρία

65

A ser assim o foco da experiecircncia natildeo estaacute na acumulaccedilatildeo na quantidade no haver

mais ou menos etc a experiecircncia parece ser uma questatildeo de qualidade Eacute a forma ndash que re-

sume a multiplicidade numa unidade ndash o que parece garantir que haacute uma mudanccedila de estado

Ora a pista para encontrar a resposta agrave pergunta pela forma especiacutefica de constituiccedilatildeo

de unidade que eacute proacutepria da ἐμπειρία situa-se na proacutepria indicaccedilatildeo dada por Aristoacuteteles

quando fala de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος enquanto condiccedilatildeo de possibilidade da

ἐμπειρία

Vendo bem se considerarmos o que caracteriza as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος

de que em regra dispomos verificamos que estas tecircm um caraacutecter entrecortado22

Se considerarmos as ldquocoisasrdquo mais banais e mais proacuteximas (a casa o local de trabalho

os parentes as pessoas conhecidas a sala etc) verifica-se que tecircm uma presenccedila descontiacute-

nua interrompida por periacuteodos mais curtos ou mais longos em que pura e simplesmente natildeo

figuram (em que natildeo haacute qualquer αἴσθησις delas ndash e portanto tambeacutem natildeo haacute qualquer me-

moacuteria)

Isto eacute se analisarmos a histoacuteria perceptiva apuramos que de quase tudo soacute tivemos

percepccedilotildees descontiacutenuas intervaladas pela presenccedila de outras coisas a que datildeo lugar As di-

ferentes ocorrecircncias disso a que Aristoacuteteles chama τοῦ αὐτοῦ πράγμα vatildeo e vecircm ndash um pouco

como personagens que entram e saem de um palco onde muitas vezes (sc muito ndash ou ateacute a

maior parte ndash do tempo) natildeo aparecem

Poreacutem ao considerar o modo como as compreendemos chama desde logo a atenccedilatildeo o

facto de que natildeo as tomamos por realidades que se constituem quando me aparecem (por

realidades que se constituiacuteram de cada vez que me apareceram) ou por realidades que se

desvanecem quando desaparecem (por realidades que se desfizeram de cada vez que deixaacute-

mos de ter percepccedilatildeo delas) ndash de sorte que pura e simplesmente natildeo satildeo enquanto natildeo temos

qualquer percepccedilatildeo delas (ou que natildeo ldquoforamrdquo nos periacuteodos em que natildeo figuram na nossa

memoacuteria)

Em vez disso compreendecircmo-las como realidades ininterruptas realidades que conti-

nuaram a ldquoestar laacuterdquo mesmo que natildeo me tenham aparecido mais ainda temos a decidida e

22

Natildeo se discute aqui se porventura haacute algum elemento das memoacuterias que temos que seja contiacutenuo (se

haacute alguma sensaccedilatildeo ou ateacute sensaccedilotildees que se distingam pelo seu caraacutecter incessante contiacutenuo etc) O

que de qualquer modo podemos compreender eacute que a haver constituem uma excepccedilatildeo

66

firme convicccedilatildeo ndash mais propriamente temos o que se pode descrever como a plena evidecircncia

ndash de que serem realidades ininterruptas natildeo sofre duacutevidas que eacute absolutamente assim etc

A perspectiva em que assim nos encontramos distingue-se por uma peculiar relaccedilatildeo

com a μνήμη

Por um lado vem dela tem nela a sua fonte etc A evidecircncia de que as realidades em

causa ldquoestatildeo laacuterdquo mesmo nos periacuteodos natildeo cobertos pelas minhas πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ

πράγματος resulta das sensaccedilotildees e das memoacuterias que tivemos daquilo que se desenha entre

elas do nexo de concordacircncia que sustentam entre si etc Poderiacuteamos dizecirc-lo de outro modo

a perspectiva que temos sobre a forma como as realidades em causa ldquoestatildeo laacuterdquo mesmo quando

natildeo haacute percepccedilatildeo delas e ldquoestiveram laacuterdquo no tempo que natildeo se acha coberto pelas minhas me-

moacuterias procede da referida condensaccedilatildeo das muacuteltiplas memoacuterias numa perspectiva uacutenica de

sinopse a seu respeito

Poreacutem sendo assim a verdade eacute que essa perspectiva que temos sobre as realidades

que ldquoestatildeo laacuterdquo mesmo quando se acham ndash ou que ldquoestavam laacuterdquo na altura em que se achavam ndash

ldquofora de cenardquo excede muito significativamente aquilo de que efectivamente tivemos percep-

ccedilatildeo (e portanto aquilo de que temos memoacuteria)

Por outras palavras a perspectiva que surge como evidente para noacutes de modo nenhum

se ateacutem agravequilo de que tivemos percepccedilatildeo e temos memoacuteria distingue-se por transgredir todos

os dados disponiacuteveis e produzir fixaccedilotildees a respeito daquilo que se situa para laacute da percepccedilatildeo

ou da memoacuteria

Vendo bem esta transgressatildeo do dado comporta vaacuterios momentos

Em primeiro lugar a transgressatildeo do dado preenche o intervalo entre as πολλαὶ μνῆμαι

τοῦ αὐτοῦ πράγματος de que dispomos e completa a respectiva seacuterie tornando-a assim numa

seacuterie contiacutenua ou sem lacunas Nesse sentido potildee laacute algo muito diferente do entrecortado das

memoacuterias qualquer coisa como um estado-de-coisas permanente Ou seja o que a experiecircn-

cia promove eacute um brutal alargamento

Os conteuacutedos tidos projectam-se sobre os muacuteltiplos intervalos de falta de acesso co-

mo se os abarcassem privilegiando os componentes constantes dos vaacuterios instantes de acesso

a um objecto Haacute uma associaccedilatildeo discreta que prolonga a uacuteltima percepccedilatildeo ateacute agrave percepccedilatildeo

actual e que gera um viacutenculo de continuidade Por um lado o acesso daacute-se de forma entrecor-

tada ou intermitente por outro lado no entanto temos uma noccedilatildeo de um acompanhamento

integral

67

Isto eacute assim porque eacute acrescentado agraves percepccedilotildees tidas um operador de propagaccedilatildeo ndash

as caracteriacutesticas que se recolhem passam a abranger toda a seacuterie de percepccedilotildees possiacuteveis co-

mo se o tempo da ausecircncia (o tempo em que natildeo ouve percepccedilatildeo) correspondesse a um con-

junto de percepccedilotildees em potecircncia que cada um de noacutes por via da falta episoacutedica de acesso a

isso natildeo actualizou mas que sabe muito bem a que eacute que corresponderia se laacute tivesse estado

Em suma adicionam-se claacuteusulas de estabilidade ou de consistecircncia

Isto natildeo eacute apenas formal ndash tem tambeacutem consequecircncias ao niacutevel do conteuacutedo

Que haacute algo como uma antecipaccedilatildeo da continuidade tambeacutem a niacutevel do conteuacutedo eacute

claro se se considerar por exemplo o ldquochoquerdquo que se sente no regresso agrave sala depois de vin-

te anos de ausecircncia por exemplo O ldquochoquerdquo corresponde agrave diferenccedila ou agrave falta de coinci-

decircncia entre o conteuacutedo da projecccedilatildeo (que se estendia indefinidamente) e o conteuacutedo da per-

cepccedilatildeo actual

O que o ldquochoquerdquo mostra eacute que mesmo que a esse conteuacutedo tiveacutessemos adicionado o

factor da modificaccedilatildeo (a modificaccedilatildeo que a passagem de vinte anos provoca em algueacutem ou

em alguma coisa) isso natildeo nos iliba do ldquochoquerdquo porque apesar de tudo entre um e outro

instante de acesso valiam como permanentes as caracteriacutesticas verificadas na uacuteltima ocor-

recircncia ou o produto da sinopse das vaacuterias ocorrecircncias (a memoacuteria geral)

Mas e em segundo lugar a perspectiva que temos adoptada prolonga esse estado-de-

coisas permanente mesmo para laacute da primeira percepccedilatildeo que tivemos dele (ou seja para laacute

do primeiro momento da sequecircncia de memoacuterias)

Na verdade natildeo se vecirc a realidade em causa como algo que se constituiu no momento

em que dela se teve o primeiro testemunho perceptivo mas como algo que jaacute era antes de nos

aparecer

Daacute-se este fenoacutemeno peculiar antes da percepccedilatildeo de um dado ldquoobjectordquo poderiacuteamos

natildeo ter qualquer notiacutecia da existecircncia dele mas acontece que logo que se acede a ele se o faz

natildeo como a algo que a percepccedilatildeo pusesse pela primeira vez a ser mas como a algo que tem

existecircncia para laacute da primeira percepccedilatildeo dele (como a algo que tem uma existecircncia preacutevia)

Assim tambeacutem a uacuteltima percepccedilatildeo de um dado ldquoobjectordquo natildeo o relega para a inexis-

tecircncia Acede-se a ele natildeo como a algo que a uacuteltima percepccedilatildeo pusesse pela uacuteltima vez a ser

mas como algo que tem uma existecircncia posterior agrave uacuteltima percepccedilatildeo que se tiver dele

68

Com efeito a perspectiva de evidecircncia que em noacutes domina natildeo se caracteriza apenas

por preencher os intervalos das πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος ou por prolongar a respec-

tiva evidecircncia para laacute do comeccedilo da seacuterie de memoacuterias Distingue-se tambeacutem pelo facto de

antecipar a continuaccedilatildeo da realidade em causa para laacute da uacuteltima apresentaccedilatildeo que dela se

teve ndash e mesmo para laacute do presente em direcccedilatildeo a um futuro ainda a haver

Assim se ao olhar para o que quer que seja (cuja doaccedilatildeo perceptiva nunca vai e natildeo

pode ir para laacute do presente) isso se desvanecer diante dos nossos olhos ficamos perplexos

E ficamos perplexos justamente na medida em que a perspectiva em que estamos em-

barcados avanccedila de cada vez para laacute do presente em que estaacute ndash em antecipaccedilotildees daquele que

lhe sucede (mais precisamente em antecipaccedilotildees que prescrevem a subsistecircncia do mesmo es-

tado-de-coisas permanente daquele que foi ldquopostordquo nos intervalos entre as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ

αὐτοῦ πράγματος e eacute prolongado para traacutes do comeccedilo da sequecircncia de memoacuterias) ndash no tempo a

vir

Ora esta primeira pista em relaccedilatildeo agravequilo que constituiraacute a ἐμπειρία ndash enquanto a ἐμ-

πειρία eacute mais do que a mera acumulaccedilatildeo de memoacuterias ndash permite perceber que tambeacutem na ἐμ-

πειρία haacute uma unidade proveniente da acumulaccedilatildeo de memoacuterias ndash uma unidade que se substi-

tui agrave sucessatildeo de memoacuterias que lhe deu origem de tal modo que o contacto com essa suces-

satildeo das memoacuterias passa a estar mediado por essa unidade

Mas acontece que diferentemente do que sucede com a unidade mneacutesica a unidade

empiacuterica (a μία δύναμις da ἐμπειρία) natildeo se limita a pocircr a partir de si a multiplicidade das

memoacuterias de um dado estado-de-coisas Na verdade a unidade empiacuterica tem um caraacutecter tal

que a multiplicidade que potildee a partir de si excede multiplamente aquela que constitui a sua

base E isto de tal modo que o que eacute especificamente empiacuterico eacute precisamente o excesso ou a

ultrapassagem da base percep-tiva ou da base mneacutesica

Tocamos um ponto essencial em virtude do qual o que de facto constitui a ἐμπειρία eacute

muito diferente do que espontaneamente associamos ao conceito

A ἐμπειρία tende a ser associada agraves noccedilotildees de doaccedilatildeo de travessia perceptiva de apu-

ramento por via de uma travessia perceptiva (de uma multiplicidade de doaccedilotildees que mos-

tram) etc E como vimos atraacutes esta associaccedilatildeo natildeo eacute completamente desprovida de funda-

mento a ἐμπειρία natildeo eacute possiacutevel sem doaccedilatildeo sem travessia perceptiva sem a preservaccedilatildeo

mneacutesica da travessia perceptiva etc

69

Poreacutem ndash e este eacute o ponto que agora deve merecer atenccedilatildeo ndash contrariamente ao que po-

de parecer a ἐμπειρία tambeacutem natildeo eacute possiacutevel se soacute houver doaccedilatildeo travessia perceptiva e

preservaccedilatildeo mneacutesica da travessia perceptiva

Quer dizer a ἐμπειρία natildeo eacute possiacutevel num ponto de vista que se atenha estritamente agrave

travessia perceptiva (sc agrave doaccedilatildeo de que dispotildee) Para o dizer de forma incisiva um ponto

de vista que se atenha estritamente agrave doaccedilatildeo de que efectivamente dispotildee eacute ndash e soacute pode ser ndash

um ponto de vista mneacutesico

Isto eacute a ἐμπειρία propriamente dita comeccedila onde se excede a esfera do dado ndash onde se

produzem fixaccedilotildees sobre aquilo de que natildeo se teve αἴσθησις e de que natildeo haacute μνήμη Em su-

ma o terreno disso de que natildeo houve percepccedilatildeo nem haacute memoacuteria eacute propriamente o terreno

da ἐμπειρία (sc das fixaccedilotildees empiacutericas) A experiecircncia comeccedila com a transgressatildeo do dado

ndash pura e simplesmente natildeo haveria sem tal transgressatildeo

Trata-se de uma transgressatildeo que parte de doaccedilotildees (que as invoca que se sente fun-

dada nelas que as encara como suficientes para justificar a transgressatildeo em que a ἐμπειρία

propriamente consiste etc) Mas isso em nada altera o facto de se tratar de transgressotildees ndash

que fixam ou estatuem sobre algo de que natildeo houve percepccedilatildeo nem haacute memoacuteria

Ora tudo isto potildee vaacuterios problemas que importa focar numa anaacutelise um pouco mais

detida

sect11

O caraacutecter de evidecircncia o encobrimento da projecccedilatildeo empiacuterica atraveacutes da fixaccedilatildeo de uma

lei

Um primeiro aspecto a ter em conta eacute o da natureza peculiar da μία δύναμις empiacuterica

que se potildee no lugar das muacuteltiplas μνῆμαι do ponto de vista mneacutesico ndash e acrescentamos tam-

beacutem daquilo a que se pode chamar ldquoverdade mneacutesicardquo

O que caracteriza a ἐμπειρία eacute que a unidade empiacuterica (a peculiar forma de condensa-

ccedilatildeo na posse de algo de uacutenico que potildee em si e a partir de si uma multiplicidade de momentos)

natildeo se resolve somente na multiplicidade de percepccedilotildees do que haacute memoacuteria mas em vez dis-

so resolve-se numa seacuterie contiacutenua que abrange essas percepccedilotildees (sc memoacuterias) e muito mais

do que elas

70

Quer dizer a fixaccedilatildeo empiacuterica potildee algo que se traduz tanto a) nas percepccedilotildees ou nas

memoacuterias correspondentes aos momentos de tempo em que algo apareceu no curso da histoacute-

ria perceptiva (nos momentos de tempo t1 t2 t3 t34 t35 t37 t57 t283 t284 t286 t287

t390 t2526 t2527 t2528 t2529 t253 t2730 etc) quanto se traduz b) em pocircr essa realidade

em causa numa sequecircncia contiacutenua (que vai para laacute do primeiro contacto com essa realidade

que natildeo se interrompe quando se suspender o contacto com ela e que deveraacute continuar tam-

beacutem no tempo a vir)

Nesse sentido pode-se falar de qualquer coisa como um estado-de-coisas-permanente

ndash que por ter a determinaccedilatildeo da permanecircncia implica em si tanto as instacircncias de si que fo-

ram testemunhadas no curso da histoacuteria perceptiva quanto aquelas que natildeo o foram

Ora o que de facto acontece eacute que tanto aquelas que foram testemunhadas no curso da

histoacuteria perceptiva quanto aquelas que natildeo o foram ficam equiparadas ndash ie a partir do mo-

mento em que se acha produzida a fixaccedilatildeo do estado-de-coisas permanente (disso que eacute mui-

to mais do que as doaccedilotildees que dele dispomos ou do que aqueles momentos de si que corres-

pondem agraves doaccedilotildees) os momentos testemunhados estatildeo tatildeo implicados nas determinaccedilotildees de

permanecircncia e satildeo vistos como estando tatildeo ldquolaacuterdquo (como sendo tatildeo reais e devendo ser tatildeo re-

conhecidos) como aqueles de que houve testemunho perceptivo e haacute testemunho mneacutesico

Ou seja a diferenccedila entre uns e os outros torna-se secundaacuteria ndash e o facto de ter ou natildeo

havido testemunho perceptivo passa a ser visto como algo por assim dizer adjectivo em rela-

ccedilatildeo agrave proacutepria permanecircncia ou ao estado-de-coisas permanente que se acha reconhecido

Haacute em suma algo como um testemunho natildeo-presencial Isso fica claro se nos pergun-

tarem num momento em que natildeo estejamos laacute se a nossa casa existe a resposta surgiraacute pe-

remptoacuteria e sem hesitaccedilatildeo

Isto potildee-nos na pista de um aspecto nuclear que apesar de natildeo ser posto em destaque

por Aristoacuteteles estaacute na verdade no centro deste excesso da ἐμπειρία sobre a μνήμη e eacute o fac-

tor de diferenccedila entre a forma de unidade-que-potildee-a-multiplicidade que tambeacutem haacute na esfera

da μνήμη e a unidade-que-potildee-a-multiplicidade proacutepria da ἐμπει-ρία O factor a que agora se

alude jaacute foi assinalado en passant mas neste passo interessa consideraacute-lo melhor

O factor eacute o seguinte vendo bem o que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία ndash o que leva a

pocircr aquilo de que natildeo se tem nenhum testemunho perceptivo ndash eacute qualquer coisa como uma

evidecircncia

71

Ainda que esteja fundada nas ocorrecircncias perceptivas (nas πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ

πράγματος) eacute somente porque se apresenta como evidecircncia que consegue impor o alarga-

mento (que consegue operar a passagem para laacute das ocorrecircncias perceptivas) tambeacutem eacute so-

mente porque se trata de uma evidecircncia que esse arredondamento tem a amplitude de que se

falou a forccedila da evidecircncia a respeito do estado-de-coisas-permanente eacute suficiente para pocircr a

proacutepria permanecircncia (que se instala justamente como evidente etc)

Eacute tambeacutem porque se trata de uma evidecircncia que o que eacute posto apenas por projecccedilatildeo (o

que natildeo pertence ao patrimoacutenio das πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος antes o excede) fica

equiparado agraves μνῆμαι ndash isto de tal modo que a diferenccedila entre os momentos efectivamente tes-

temunhados e aqueles que natildeo foram efectivamente testemunhados perde peso ndash e a equipara-

ccedilatildeo a que aqui se alude tem o seu rasto apagado resultando no ldquomaciccedilordquo do estado-de-coisas

permanente (maciccedilo entenda-se em que natildeo estaacute claramente marcado o que pertence ao cam-

po do efectivamente dado e o que pertence ao campo do projectado ndash campo que eacute convertido

em quase-dado em como-que-dado pe-la forccedila desta mesma evidecircncia)

Ora se procurarmos compreender qual eacute a forma desta evidecircncia e o que lhe permite

exercer as funccedilotildees a que eacute chamada na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία o que verificamos eacute que a

evidecircncia em causa tem a forma de um ldquoter-de-serrdquo

Este ldquoter-de-serrdquo eacute o que encontramos se pusermos em causa a projecccedilatildeo empiacuterica (se

tocarmos o facto de natildeo se ter senatildeo uma base de doaccedilatildeo entrecortada e de na verdade ser

possiacutevel que a ldquocoisardquo natildeo esteja laacute nos momentos em que natildeo foi perceptivamente testemu-

nhada ou em que natildeo beneficiou de qualquer doaccedilatildeo) Com efeito se suscitarmos este proble-

ma ou se aventarmos esta possibilidade impotildee-se-nos a evidecircncia de que as nossas πολλαὶ

μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος satildeo suficientes para mostrar o estado-de-coisas-permanente em

questatildeo

Que ldquotem de ser assimrdquo quer dizer se haacute uma sequecircncia de repetidos testemunhos

perceptivos (sc mneacutesicos) de algo essa sequecircncia significa ndash e soacute pode significar ie signi-

fica necessariamente ndash que haacute um estado-de-coisas permanente O motor da ἐμπειρία eacute esta

evidecircncia de um ter-de-ser a evidecircncia de que aquilo que estaacute testemunhado por πολλαὶ μνῆ-

μαι tem de ser um estado-de-coisas-permanente

Percebe-se a partir daqui um ponto que tambeacutem natildeo estaacute expressamente sublinhado

por Aristoacuteteles mas que de facto estaacute no centro dos fenoacutemenos para que aponta a noccedilatildeo de

ἐμπειρία De facto este eacute um factor fundamental da passagem a um ponto de vista empiacuterico e

72

da completaccedilatildeo do dado (que eacute igualmente como vimos uma antecipaccedilatildeo) ndash um factor sem o

qual natildeo haacute ἐμπειρία

Esse ponto pode ser expresso dizendo que a projecccedilatildeo empiacuterica tem no seu fulcro esta

evidecircncia de necessidade (esta evidecircncia de natildeo-poder-ser-de-outro-modo) e possui assim a

forma de uma lei

Dizer isto natildeo significa de maneira nenhuma dizer que a ἐμπειρία tem um conceito ex-

pliacutecito de ldquoleirdquo que reconhece o papel desta lei na sua proacutepria constituiccedilatildeo etc Eacute tatildeo pouco

assim que a ἐμπειρία tende a compreender-se como mero registo como verificaccedilatildeo ou como

constataccedilatildeo de dados

Mas o que acontece eacute que o que assim se apresenta como registo verificaccedilatildeo ou cons-

tataccedilatildeo do dado (constituiacutedo por pura travessia perceptiva etc) natildeo seria nada do que eacute se natildeo

houvesse transgressatildeo do dado se essa transgressatildeo natildeo tivesse como motor a evidecircncia

transgressora que se referiu e se essa evidecircncia natildeo assumisse a forma de uma evidecircncia de

natildeo-poder-ser-de-outro-modo ndash se natildeo possuiacutesse portanto neste sentido a forma de uma lei

sect12

A mudanccedila da matriz do reconhecimento da realidade produzida pela ἐμπειρία a fixaccedilatildeo

da ldquonaturezardquo do que aparece e a operaccedilatildeo de desconfinamento da perspectiva para tota-

lidades muito para laacute do que de cada vez se tem dado

Este ponto eacute decisivo porque ele mostra se assim se pode dizer a radical mudanccedila de

ldquoparadigmardquo ou a mudanccedila de matriz que separa a μνήμη da ἐμπειρία

O que agrave primeira vista mais chama a atenccedilatildeo eacute a diferenccedila de amplitude a ἐμπειρία

salta das ldquopartesrdquo ndash e ateacute de umas poucas partes ndash correspondentes agraves πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐ-

τοῦ πράγματος para uma totalidade (sc para totalidades) que as excedem em muito Pode

mesmo dizer-se que o correlato da ἐμπειρία ndash que aquilo que a ἐμπειρία potildee ndash satildeo sempre

totalidades

Por outro lado importa perceber que natildeo se trata pura e simplesmente de totalidades

com um modo de ser no fundamental idecircntico agravequele que jaacute tinham as partes (ainda natildeo tidas

como partes das totalidades empiacutericas) da μνήμη Na verdade haacute uma mudanccedila de modo-de-

ser Esta mudanccedila tem com que ver com a entrada em cena do modo-de-ser do regulado (ie

73

daquilo que estaacute sujeito a uma regra mais a uma regra que eacute vista como natildeo podendo natildeo

ser ndash ie a qualquer coisa como uma lei)

Reavaliemos a partir deste acircngulo o que se viu

Se considerarmos o que caracteriza a μνήμη enquanto tal e o modo-de-ser daquilo que

lhe aparece (o modo-de-ser daquilo que tem de aparecer enquanto a μνήμη for apenas μνή-

μη) o que verificamos eacute que tem um caraacutecter totalmente aberto Que num momento apareccedila A

eacute algo que absolutamente nada diz sobre o que apareceraacute na sequecircncia do momento em

questatildeo

A realidade puramente mneacutesica eacute intrinsecamente proteiforme pode inflectir agrave vonta-

de eacute inteiramente variaacutevel natildeo haacute na μνήμη nada que contenha ou contrarie a possibilidade

de variaccedilatildeo Quer dizer no caso da μνήμη se haacute variaccedilatildeo haacute variaccedilatildeo se natildeo haacute variaccedilatildeo

natildeo haacute variaccedilatildeo

O fundamental eacute que cada instacircncia de variaccedilatildeo ou natildeo variaccedilatildeo soacute diz respeito a si

mesma nada potildee para laacute de si ndash e o que quer que seja para laacute de si manteacutem-se inteiramente

livre em relaccedilatildeo ao que vai sendo posto ou registado na travessia perceptiva (sc na travessia

mneacutesica) Poderiacuteamos dizer em suma que a pura μνήμη eacute inteiramente faacutectica

Ora o que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία eacute precisamente a entrada em cena da regulaccedilatildeo

(sc da prescriccedilatildeo)

O caso de em dado momento ser assim e de num outro momento voltar a ser assim e

de num terceiro momento voltar a ser assim ndash e assim sucessivamente ndash assume um significa-

do para laacute do momento em questatildeo ndash regula fixa prescreve para laacute deles E regula fixa

prescreve para laacute deles de tal modo que essa regulaccedilatildeo fixaccedilatildeo prescriccedilatildeo tem a forccedila de soacute-

poder-ser-assim (sc natildeo-poder-ser-de-outro-modo) ndash tudo isto de tal forma que eacute essa forma

(a forma do ter-de-ser-assim ou do natildeo-poder-ser-de-outro-modo ie a forma da lei) que

sustenta a extraordinaacuteria amplitude da projecccedilatildeo empiacuterica

O que isto significa eacute como dissemos uma mudanccedila do modo-de-ser uma mudanccedila

da matriz do proacuteprio reconhecimento da realidade ndash ou como tambeacutem podemos dizer uma

mudanccedila do ldquoquecircrdquo

Tal como a diferenccedila entre a αἴσθησις e a μνήμη tambeacutem a diferenccedila entre a μνήμη e a

ἐμπειρία eacute uma diferenccedila da proacutepria forma da proacutepria determinaccedilatildeo fundamental do que apa-

rece

74

O que estaacute em causa na transiccedilatildeo de um ponto de vista puramente esteacutesico para um

ponto de vista mneacutesico eacute natildeo apenas uma mudanccedila de modo de acesso mas eacute mais exacta-

mente uma mudanccedila de modo de acesso que envolve tambeacutem uma mudanccedila no proacuteprio teor

do ldquoquecircrdquo (do ldquoquecircrdquo de cada ponto de vista correlativo agrave proacutepria finitude do acircngulo desse pon-

to de vista)

Algo de semelhante se passa na transiccedilatildeo do ponto de vista mneacutesico para o ponto de

vista empiacuterico

Se eacute certo que a μνήμη envolve uma significativa aproximaccedilatildeo agrave forma como vemos

ou ao teor daquilo que vemos (se deixa de se estar fechado no oximoro ou instante absoluto

se haacute reconhecimento etc) por outro lado natildeo deixa de corresponder a um ldquoquecircrdquo fechado

no presente e no passado (e sem qualquer abertura para um tempo a haver) fechado na histoacute-

ria perceptiva (sem qualquer abertura para o que quer que seja para laacute dela) e para aleacutem dis-

so fechado na total ausecircncia de qualquer regra que obrigue aquilo que se passa

A ἐμπειρία traz consigo algo completamente desconhecido na oacuteptica da μνήμη traz a

realidade na forma de realidade regulada

Ou seja traz o estado-de-coisas permanente cuja permanecircncia se acha constituiacuteda

justamente natildeo apenas por uma verificaccedilatildeo faacutectica de que eacute (aquela que haveria se αἴσθησις e

μνήμη fossem ininterruptas contiacutenuas etc) mas por algo muito diferente a saber a regra en-

quanto tal a lei

E o que caracteriza a ἐμπειρία eacute precisamente a adopccedilatildeo deste modelo justamente co-

mo regra fundamental da realidade (algo que soacute aparece e soacute pode aparecer no modo do

acesso excessivo relativamente ao proacuteprio dado que eacute o modo da ἐμπειρία) aquilo que apare-

ce estaacute globalmente sujeito agrave condiccedilatildeo de ser regulado (regulado deste ou daquele modo

com estes e aqueles conteuacutedos de regulaccedilatildeo etc)

Agrave primeira vista isto pode parecer estranho ndash e pode parecer estranho em virtude de

uma insuficiente captaccedilatildeo do que estaacute em causa quando se fala em estados-de-coisas-perma-

nentes e dos estados-de-coisas-permanentes como sendo o correlato da ἐμπειρία

Com efeito a noccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes presta-se ndash e na verdade tende

ndash a ser entendida como se dissesse respeito a realidades subsistentes (que natildeo se vatildeo que fi-

cam pelo menos algum tempo etc) como se isso fosse o que estaacute em causa quando se fala

de permanecircncia (e portanto fosse isso que estaacute em causa na ἐμπειρία)

75

Ora a ser assim a ἐμπειρία natildeo se aplicaria ao tipo de realidades que tecircm o caraacutecter

de acontecimentos que natildeo subsistem e que ao caso de terem lugar mais ou menos imediata-

mente se segue o deixarem de ser

Vejamos este problema considerando justamente as realidades que se caracterizam

pela sua impermanecircncia um som que se faz ouvir um espirro etc

Analisemos como reagiriacuteamos se porventura sucedesse que um som se tornasse per-

manente e ficasse como ficam as mesas e as cadeiras ou se algo semelhante sucedesse com

um espirro e este se convertesse em qualquer coisa de contiacutenuo ndash que natildeo deixa a breve tre-

cho de ser

Um aspecto importante do que sucederia nessas circunstacircncias eacute a surpresa ndash o espan-

to ndash que isso natildeo deixaria de suscitar Esse espanto documenta uma perspectiva levada aleacutem

do que eacute proacuteprio da μνήμη

Um ponto de vista puramente mneacutesico natildeo teria condiccedilotildees para se espantar se as

mesas ou as cadeiras subitamente desaparecessem ndash da mesma forma que natildeo teria condiccedilotildees

para se espantar se os sons ou se os espirros se tornassem permanentes Isto porque um ponto

de vista mneacutesico se cinge a uma verificaccedilatildeo do que lhe ocorre e eacute completamente desprovido

de qualquer componente de projecccedilatildeo daquilo que jaacute estaacute dado na histoacuteria perceptiva para

aquilo que ainda vem

Semelhante projecccedilatildeo eacute como temos visto ao longo desta secccedilatildeo caracteriacutestica da ἐμ-

πειρία

Um ponto de vista puramente mneacutesico natildeo faz mais do que registar o que lhe aparece

sem qualquer perspectiva da relaccedilatildeo ao que quer que seja para laacute do dado No momento em

que se produz uma doaccedilatildeo ela natildeo se vem inscrever em qualquer expectativa resultante de

doaccedilotildees jaacute havidas (as diferentes instacircncias ou os diferentes momentos de doaccedilatildeo nada ldquodi-

zemrdquo para laacute de si mesmos satildeo completamente mudos em relaccedilatildeo a esse para-laacute-de-si etc)

Por isso num ponto de vista puramente mneacutesico natildeo haacute lugar para qualquer surpresa ou pa-

ra qualquer espanto

Assim o facto de nos espantarmos se um som ou se um espirro se tornassem perma-

nentes radica numa projecccedilatildeo para laacute do dado ndash uma projecccedilatildeo que ocorre tanto no caso de

coisas subsistentes (cuja natildeo subsistecircncia espanta) quanto no caso de coisas natildeo-subsisten-

tes (cuja subsistecircncia espanta igualmente)

76

Nos dois casos o que permite o espanto eacute o mesmo fenoacutemeno a percepccedilatildeo que gera

espanto natildeo se daacute sozinha Sucede em vez disso que a percepccedilatildeo se vem inscrever numa ope-

raccedilatildeo em que ao mesmo tempo actua uma projecccedilatildeo decorrente das percepccedilotildees de que haacute

memoacuteria (que natildeo se perderam nessa forma que corresponde ao ponto de vista esteacutesico) e que

fixa jaacute antecipadamente como a nova percepccedilatildeo deve ser (o curso que a continuaccedilatildeo da histoacute-

ria perceptiva deve seguir)

Por outras palavras tanto num caso como no outro haacute espanto porque a) haacute projecccedilatildeo

e porque b) o conteuacutedo da percepccedilatildeo (sc das percepccedilotildees) que tem (ou tecircm) lugar natildeo satisfa-

zem a projecccedilatildeo (ie natildeo concorda com ela) Caso contraacuterio natildeo nos poderiacuteamos surpreender

se aquilo que outrora tive natildeo se viesse a confirmar no futuro se por exemplo a sala natildeo ti-

vesse continuidade na casa mas se abrisse a uma praia ou a um deserto logo que saiacutessemos a

porta

Mais ainda vendo bem nos dois casos natildeo haacute apenas alguma projecccedilatildeo (como se no

entanto a projecccedilatildeo em causa em cada um dos casos fosse diferente quanto agrave natureza) De

facto nos dois casos haacute uma projecccedilatildeo do mesmo tipo

Por um lado estaacute em causa a homogeneidade em relaccedilatildeo agraves instacircncias perceptivas jaacute

decorridas (quer dizer em relaccedilatildeo ao que se registou na histoacuteria perceptiva e na histoacuteria mneacute-

sica) Por outro a forma da projecccedilatildeo eacute exactamente a mesma tem que ver com uma evidecircn-

cia de natildeo-poder-ser-de-outro-modo (ou seja tem a forma da lei)

O espanto que se produziria por igual nos dois casos decorre justamente de a pro-

jecccedilatildeo em causa ter este caraacutecter e retira a sua intensidade do facto de tanto o suacutebito desapare-

cimento de uma realidade que se presume ser persistente quanto a permanecircncia de uma reali-

dade que se presume evanescente contrariarem uma fixaccedilatildeo com forma de lei (uma projecccedilatildeo

ndash que eacute uma mera projecccedilatildeo mas parece ser muito mais do que isso)

Este eacute um ponto decisivo em que natildeo eacute demais insistir ainda que o que esteja em cau-

sa nos dois casos sejam dados opostos (permanecircncia e impermanecircncia) do ponto de vista for-

mal o que os caracteriza eacute exactamente o mesmo natildeo-congruecircncia com uma antecipaccedilatildeo que

se revestia da pretensatildeo de corresponder a um natildeo-poder-ser-de-outro-modo (e nesse senti-

do a uma lei)

Tudo isto faz compreender melhor o que estaacute efectivamente em causa quando se fala

de estados-de-coisas-permanentes como correlatos da ἐμπειρία O objecto da ἐμπειρία tem

sempre o caraacutecter de um estado-de-coisas-permanente tal como a realidade posta pela ἐμπει-

77

ρία eacute uma realidade feita de estados-de-coisas-permanentes E se virmos bem natildeo acontece

de maneira nenhuma que haja um estado-de-coisas permanente no caso das mesas das cadei-

ras ou de outras realidades de tipo subsistente e no caso dos sons ou dos espirros suceda o

contraacuterio Haacute um estado-de-coisas-permanente nos dois casos o estado-de-coisas permanente

segundo o qual as cadeiras as mesas etc devem subsistir e o estado-de-coisas permanente

segundo o qual os sons os espirros etc devem dei-xar-de-ser a breve trecho

Por outras palavras o estado-de-coisas permanente em causa na ἐμπειρία natildeo eacute o da

subsistecircncia das realidades (porque como vimos tambeacutem pode ser a insubsistecircncia) o esta-

do-de-coisas-permanente em causa na ἐμπειρία eacute a proacutepria instacircncia reguladora (a instacircncia

correspondente agrave projecccedilatildeo empiacuterica com forma de lei) que determina que as realidades de

um tipo devam ter sempre determinadas caracteriacutesticas (caracteriacutesticas que podem ser tanto

de subsistecircncia quanto de insubsistecircncia)

Com tudo isto desenha-se com maior nitidez o que se disse sobre a diferenccedila entre a

matriz de reconhecimento (reconhecimento daquilo que aparece) que eacute proacutepria da μνήμη e a

matriz de reconhecimento que eacute proacutepria da ἐμπειρία

Ora independentemente das questotildees que teriam de ser levantadas e consideradas para

fundar e precisar a afirmaccedilatildeo que se segue (questotildees que natildeo cabe aqui considerar) pode-se

dizer que o correlato da ἐμπειρία eacute justamente isso que estaacute em causa quando numa palavra

se fala de ldquonaturezardquo

O ponto de vista mneacutesico tem se assim se pode dizer um grau nulo de natureza Por

contraste o que caracteriza o ponto de vista empiacuterico eacute natildeo apenas introduzir o quadro de de-

terminaccedilatildeo que se traduz no conceito mas tambeacutem o facto de produzir globalmente a molda-

gem de tudo aquilo que aparece com a forma do complexo de estado-de-coisas-permanentes

que estaacute em causa quando se fala de natureza

Percebe-se a partir daqui como a ἐμπειρία constitui o que podemos descrever como

uma extraordinaacuteria operaccedilatildeo de desconfinamento (ou de ldquodomesticaccedilatildeordquo) de campos de rea-

lidade

Considerando a esfera de apresentaccedilatildeo coberta pela memoacuteria verificamos que tem o

caraacutecter dum ldquotuacutenelrdquo A histoacuteria perceptiva cobre campos perceptivos de amplitude que eacute

sempre relativamente restrita e que se somam uns aos outros ndash na forma da sucessatildeo

Poreacutem a ἐμπειρία natildeo apenas junta esses campos perceptivos uns aos outros no mesmo

tempo (mais em todos e cada um dos instantes da sucessatildeo temporal) como cobre os hiatos

78

ou as lacunas e continua a projecccedilatildeo para laacute da mera estabilizaccedilatildeo (como estados-de-coisas

permanentes) dos campos efectivamente percepcionados

Pois a projecccedilatildeo de ldquomais homogeacuteneordquo (isso que a tiacutetulo de exemplo Galeno nomeou

τοῦ ὁμοίου μετάβασις)23

estende-se para laacute do proacuteprio territoacuterio do que alguma vez foi objec-

to de percepccedilatildeo na ante-cipaccedilatildeo de que nestes ou naqueles aspectos (nota bene nestes ou

naqueles aspectos fundamentais) seraacute semelhante agravequilo de que jaacute se teve percepccedilatildeo Essa

projecccedilatildeo faz mesmo que a consciecircncia de limitaccedilatildeo perceptiva natildeo se veja como uma ldquocla-

reirardquo rodeada de um ldquomarrdquo de incoacutegnita

Numa palavra a ἐμπειρία consiste numa extraordinaacuteria operaccedilatildeo de ldquoamostragemrdquo ndash

de transformaccedilatildeo por via da projecccedilatildeo empiacuterica do territoacuterio perceptivo desbravado com di-

mensotildees de facto bastante reduzidas num terreno incomparavelmente mais vasto de realidade

desbravada (domesticada dominada etc)

Na verdade natildeo eacute exagero falar de um ldquosaltordquo de uma multiplicidade bi-dimensional

para uma multiplicidade tridimensional No plano cognitivo (da dimensatildeo da realidade rdquodes-

bravadardquo) a ἐμπειρία junta algo de equivalente ao acrescento da ldquoterceira dimensatildeordquo ndash e isto

de tal modo que por outro lado este salto justamente aparece como tal

Pois como vimos o que caracteriza a constituiccedilatildeo da ἐμπειρία eacute o facto de a projec-

ccedilatildeo natildeo se dar a conhecer como tal ser tatildeo eficaz ou tatildeo evidente (ter tanto daquilo que estaacute

em causa quando se fala de ldquoleirdquo) que equipara os momentos efectivamente perceptivos e os

momentos projectados (o dado e o natildeo-dado) apaga o rasto da proacutepria projecccedilatildeo (da opera-

ccedilatildeo de amostragem etc) e constitui um terreno aparentemente homogeacuteneo em que a diferen-

ccedila entre o propriamente dado e aquilo que eacute posto por projecccedilatildeo empiacuterica estaacute completamen-

te apagada

Eacute a este terreno alargado que constantemente nos reportamos

E o facto de natildeo nos vermos fechados no ldquotuacutenelrdquo mneacutesico e estarmos antes num cam-

po de realidade com uma amplitude muito mais forccedilada radica justamente nas caracteriacutesticas

desta operaccedilatildeo de extraordinaacuteria transgressatildeo do propriamente dado que eacute a ἐμπειρία

Estas breves consideraccedilotildees potildeem-nos na pista de outro aspecto igualmente essencial

23

Deichgraumlber K Die griechische Empirikerschule Sammlung der Fragmente und Darstellung der

Lehre Berlin Weidmannsche Buchhandlung 1930 paacuteg 91

79

Vendo bem a projecccedilatildeo empiacuterica tem sempre que ver com uma espeacutecie de completa-

ccedilatildeo do dado

O que isso significa eacute que o terminus ad quem da projecccedilatildeo empiacuterica ndash aquilo que apa-

rece na ἐμπειρία (o que eacute caracteriacutestico que apareccedila na ἐμπειρία) ndash corresponde sempre a tota-

lidades mais precisamente a totalidades muito para laacute do efectivamente dado (a totalidades

de que o dado constitui somente uma pequena parte)

Estamos em condiccedilotildees de analisar melhor este ponto a partir daquilo que jaacute vimos so-

bre os estados-de-coisas-permanentes

Estamos sempre em tensatildeo para o exterior do percebido Apesar de a percepccedilatildeo ser

por natureza limitada (no acircngulo de incidecircncia na amplitude etc) e apesar de a nossa per-

cepccedilatildeo se cingir a um recanto espaacutecio-temporal do ldquomundordquo (e a um recanto muitiacutessimo limi-

tado) a nossa relaccedilatildeo com o ldquomundordquo nunca se circunscreve ao que a percepccedilatildeo apresenta ndash

temos uma notiacutecia mesmo que vaga de uma indefinida continuaccedilatildeo do ldquomundordquo (espacial e

temporal) para laacute do territoacuterio coberto pela nossa percepccedilatildeo

Esse exterior impliacutecito contamina e co-determina o que cai no quadro da percepccedilatildeo na

medida em que o campo coberto pela percepccedilatildeo eacute apenas parte de uma extensatildeo maior natildeo

eacute senatildeo um momento de uma extensatildeo maior

Isto indica-nos que temos uma noccedilatildeo impliacutecita de totalidade quando representamos a

parte (ie o campo efectivamente coberto pela percepccedilatildeo) A referecircncia a uma tal totalidade eacute

o que possibilita que veja a parte como parte A representaccedilatildeo da parte eacute sempre jaacute a do todo

em que se funda em que a parte se constitui etc

Isto indica-nos tambeacutem que aquilo que funda a nossa representaccedilatildeo da parte em que

nos concentramos se projecta homogeneamente sobre a totalidade Tanto quanto se percebe

aquilo que se recolhe na parte ou no segmento que nos cabe tem efeitos sobre a totalidade de

espaccedilo e tempo

Jaacute viramos atraacutes um caso em que a reincidecircncia provoca uma mudanccedila de natureza nos

dados entatildeo estava em causa a exigecircncia de acuidade da percepccedilatildeo Estaacute agora a ser visada

outra consequecircncia intrinsecamente relativa a essa na percepccedilatildeo haacute aquisiccedilatildeo e projecccedilatildeo

ad infinitum de um quantum de continuidade e homogeneidade

Ora as totalidades em que consiste o correlato da ἐμπειρία natildeo satildeo as totalidades dos

estados-de-coisas-permanentes no sentido que primeiramente se sugere

80

Se fosse assim natildeo haveria totalidade no caso das realidades reconhecidas como natildeo-

subsistentes De facto o que eacute decisivo eacute a constituiccedilatildeo de totalidades de modo-de-ser (justa-

mente o que confusamente estaacute em causa quando falamos de ldquonaturezardquo)

O decisivo eacute a constituiccedilatildeo da totalidade da instacircncia reguladora que de cada vez eacute o

motor da projecccedilatildeo empiacuterica e aquilo que a projecccedilatildeo empiacuterica vecirc naquilo que lhe aparece

um horizonte de realidade aberto e presidido por uma regra ou por um modo-de-ser (modo-

de-ser que se multiplica numa pluralidade de instacircncias todas igualmente reguladas por ele

expressatildeo dele etc) No caso das realidades subsistentes a totalidade derivada constituiacuteda

por esta totalidade originaacuteria (de modo-de-ser) e a totalidade correspondente a realidades sub-

sistentes no caso das realidades evanescentes a totalidade deriva da constituiccedilatildeo por esta to-

talidade originaacuteria (a totalidade de modo-de-ser) e a totalidade corresponde a realidades eva-

nescentes etc

Eacute a constituiccedilatildeo destas totalidades que faz a diferenccedila Se ela natildeo se constituiacutesse natildeo

haveria experiecircncia

Se nos ativeacutessemos exclusivamente ao dado (e se o dado soacute a si mesmo dissesse res-

peito) tudo aquilo de que disporia como dado (um dado que se limitaria ao passado e a um

domiacutenio relativamente circunscrito) seria inteiramente mudo a respeito do que se situa fora

da sua esfera Em suma a acumulaccedilatildeo de memoacuterias de nada valeria (de pouco ou nada nos

serviria) para efeitos de orientaccedilatildeo

Tocamos aqui um ponto a que voltaremos na continuaccedilatildeo e que eacute decisivo

O acontecimento de aparecer natildeo eacute um acontecimento sem quaisquer requisitos adi-

cionais ndash constituiacutedo de tal modo que aquilo que aparece natildeo enfrenta qualquer exigecircncia ou

pressatildeo que estaacute ou natildeo em condiccedilotildees de satisfazer Sucede precisamente o contraacuterio

Aquilo que aparece eacute confrontado com o que podemos designar como um conjunto de

quesitos cognitivos (um programa de esclarecimento se assim se pode dizer uma pressatildeo de

interesse) que o que aparece estaacute ou natildeo em condiccedilotildees de satisfazer

Ora esse programa ou esse interesse incide tambeacutem ndash e em certo sentido incide ateacute ndash

sobre o que de cada vez natildeo estaacute a ser dado ou tudo o que ainda natildeo foi dado (como eacute o caso

de tudo quanto se situa no quadrante do futuro) Acontece que αἴσθησις e μνήμη justamente

natildeo bastam para satisfazer esse programa ou esse interesse na medida em que natildeo providenci-

ariam a ldquoinformaccedilatildeordquo de que precisamos

81

A experiecircncia ao abrir a perspectiva para totalidades muito para laacute do que de cada

vez se tem dado natildeo se limita a constituir totalidades com um caraacutecter ldquofacultativordquo

A completaccedilatildeo empiacuterica do dado vem dar satisfaccedilatildeo a uma pressatildeo de esclarecimento

ou a quesitos de orientaccedilatildeo que de outro modo ficariam completamente por satisfazer (de tal

modo que a nossa situaccedilatildeo seria desde logo no plano praacutetico de completa desorientaccedilatildeo)

Eacute este o quadro de fenoacutemenos que permite falar aqui de qualquer coisa como uma do-

mesticaccedilatildeo da experiecircncia (da transgressatildeo do dado que tem no seu centro e sem a qual pura

e simplesmente natildeo tem lugar) como domesticaccedilatildeo do natildeo-dado

Faz sentido falar de domesticaccedilatildeo porque o essencial da operaccedilatildeo em que consiste a

ἐμπειρία eacute uma transferecircncia do que ficou adquirido na travessia perceptiva (e tanto quer di-

zer na ldquoacumulaccedilatildeordquo mneacutesica) ndash e que forma assim o jaacute domeacutestico (a ldquocasardquo da captaccedilatildeo da

realidade de cada vez construiacuteda por via perceptiva) ndash para o campo do que ficou fora ou

ainda estaacute fora da travessia perceptiva

Assim a experiecircncia ldquodomesticardquo o que se manteacutem alheio (alheio ao territoacuterio da per-

cepccedilatildeo) porque potildee nesse exterior aquilo que eacute da ldquocasardquo perceptiva Por essa via converte o

exterior da travessia perceptiva em algo que tambeacutem eacute da ldquocasardquo (que estaacute dominado etc)

ainda antes de haver percepccedilatildeo disso e ateacute mesmo que natildeo chegue a haver qualquer percep-

ccedilatildeo disso

O que isto significa eacute que o acontecimento da ἐμπειρία eacute sempre um acontecimento de

estabelecimento de domiacutenio de soberania de controlo etc ndash um acontecimento de domiacutenio

que se estende ateacute onde natildeo haacute nem houve nada de natureza perceptiva que efectivamente

conquista

sect13

A trama de confirmaccedilotildees e corroboraccedilotildees implicada na ἐμπειρία e os riscos em que con-

tinuamente incorre a projecccedilatildeo empiacuterica

Tudo isto permite finalmente compreender um pouco melhor um ponto decisivo dos

fenoacutemenos em questatildeo ndash ie permite compreender melhor a noccedilatildeo comum de experiecircncia e o

nexo que tem com aquilo que jaacute a anaacutelise de Aristoacuteteles pocircs em evidecircncia como proacuteprio da

82

ἐμπειρία) Este ponto presta-se a equiacutevocos e sempre de novo baralha a noccedilatildeo daquilo de que

se estaacute a falar quando se fala de experiecircncia

Como vimos nas secccedilotildees iniciais a noccedilatildeo de experiecircncia parece ter uma ligaccedilatildeo intriacuten-

seca agrave ideia de doaccedilatildeo (de dado etc) ndash uma ligaccedilatildeo tal que resulta surpreendente que se fale

da experiecircncia como algo que soacute comeccedila com a transgressatildeo do dado (e que aquilo que cons-

titui a experiecircncia tenha de facto uma natureza tal que soacute comeccedila com a transgressatildeo do da-

do) Vimos igualmente que a surpresa resulta em grande parte da proacutepria natureza da projec-

ccedilatildeo empiacuterica ndash da forccedila de evidecircncia de que se reveste (da evidecircncia e da forccedila que equipara o

resultado da projecccedilatildeo a algo dado que faz viver o resultado da projecccedilatildeo como algo dado

etc)

Vendo bem se a ἐμπειρία soacute comeccedila com transgressatildeo do dado (com projecccedilatildeo etc)

essa transgressatildeo ou projecccedilatildeo natildeo pode ocorrer senatildeo sobre a base de uma doaccedilatildeo ndash de uma

doaccedilatildeo com determinadas caracteriacutesticas (uma travessia perceptiva retida em μνήμη com as

caracteriacutesticas daquilo que Aristoacuteteles aponta quando fala de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγμα-

τος etc) Por outras palavras a ἐμπειρία eacute sempre a transformaccedilatildeo de uma travessia percep-

tiva (quer dizer de uma travessia de doaccedilotildees ndash exprime a travessia vive dela etc)

A noccedilatildeo comum de experiecircncia traduz esta compreensatildeo digamos unilateral do que eacute

a ἐμπειρία ndash unilateral porque atende exclusivamente agrave base de doaccedilatildeo e perde de vista a com-

ponente de arredondamento de projecccedilatildeo especiacutefica da ἐμπειρία sem a qual soacute teriacuteamos αἴσ-

θησις e μνήμη

Poreacutem o caso de a experiecircncia juntar conteuacutedos perceptivos como que para suprir

uma lacuna natildeo pode ser tomado como uma medida benigna e natildeo deve levar a pensar que

se limita a fazer isso Na medida em que o faz a experiecircncia modifica os conteuacutedos ndash gera um

conteuacutedo novo completamente autoacutenomo dos dados da percepccedilatildeo e que age sobre a percep-

ccedilatildeo

Isto eacute a experiecircncia estaacute intrinsecamente ligada aos dados da percepccedilatildeo ndash eacute a esses

que reporta e reconduz Mas na medida em que natildeo se ateacutem aos dados da percepccedilatildeo estes

satildeo mera mateacuteria de uma transformaccedilatildeo a experiecircncia gera um processo de abstracccedilatildeo ndash e de

tal modo que na experiecircncia os dados da percepccedilatildeo natildeo estatildeo presentes

Mas haacute ainda um outro aspecto igualmente decisivo

Quando falamos de transgressatildeo do dado falamos de algo que poderia ser bastante di-

ferente disso que se exprime pelo conceito de projecccedilatildeo

83

A transgressatildeo do dado poderia pocircr no campo exterior agrave esfera de doaccedilotildees efectiva-

mente disponiacuteveis algo de completamente exterior a essa esfera que nada tivesse que ver com

o seu teor etc Acontece que natildeo eacute assim

A ἐμπειρία eacute essencialmente ἐμπειρία do dado Eacute-o desde logo porque parte do dado

mas tambeacutem o eacute porque aquilo a que leva na transgressatildeo dele natildeo eacute outra coisa senatildeo o

proacuteprio ldquoconteuacutedordquo do dado A operaccedilatildeo da ἐμπειρία eacute uma operaccedilatildeo de expansatildeo (de multi-

plicaccedilatildeo se assim se pode dizer) do dado muito para laacute do restrito acircmbito em que houve tes-

temunho dele

Eacute justamente nesta medida que se pode dizer que ainda que o acontecimento da ἐμπει-

ρία seja sempre um acontecimento de estabelecimento de domiacutenio de soberania de controlo

etc na verdade se trata de uma conquista ldquovirtualrdquo ndash uma conquista que a forccedila da evidecircncia

proacutepria da ἐμπειρία equipara como vimos agrave conquista perceptiva (e ao ponto de como tam-

beacutem vimos fazer desaparecer o rasto dessa equiparaccedilatildeo e da diferenccedila entre o que for con-

quista ldquorealrdquo e o que se manteacutem puramente virtual nessa conquista) mas que natildeo conquista

efectivamente isso que pretende ter conquistado

A todos estes aspectos ndash que decorrem ao mesmo tempo das indicaccedilotildees dadas por

Aristoacuteteles e de uma tentativa de anaacutelise dos fenoacutemenos para que apontam ndash vem juntar-se um

outro que natildeo se acha expressamente referido por Aristoacuteteles mas que faz parte integrante dos

fenoacutemenos em causa Esse aspecto tem que ver com aquilo a que se pode chamar a trama de

conexotildees ndash e de confirmaccedilotildees ou corroboraccedilotildees ndash que estaacute implicada na ἐμπειρία

Vejamos um pouco melhor do que se trata

Como vimos se soacute houvesse acumulaccedilatildeo mneacutesica cada momento da doaccedilatildeo soacute a si

mesmo diria respeito ndash ou de todo o modo natildeo diria respeito a quaisquer outros momentos da

histoacuteria perceptiva na forma de antecipaccedilatildeo ou de prescriccedilatildeo do que neles deve ocorrer

Ora o que caracteriza a ἐμπειρία eacute justamente o facto de constituir um complexo de

prescriccedilotildees ndash de tal modo que cada percepccedilatildeo vem tomar lugar num quadro onde jaacute se acha

prescrito por projecccedilatildeo empiacuterica pelo menos uma parte do que se deve ou natildeo deve encon-

trar nela

Isso significa como oportunamente se indicou que natildeo haacute apenas percepccedilotildees (num

contexto soacute preenchido por elas mesmas) as percepccedilotildees que vatildeo ocorrendo encontram-se

com antecipaccedilotildees empiacutericas que vecircm confirmar ou infirmar (e tanto quer dizer que podem

em parte confirmar em parte infirmar etc)

84

Se a percepccedilatildeo infirma a antecipaccedilatildeo empiacuterica potildee-se um problema de validade das

assunccedilotildees empiacutericas ndash que acaba por ser decidido em funccedilatildeo da continuaccedilatildeo da travessia per-

ceptiva e da forma como esta confirma ou a antecipaccedilatildeo empiacuterica ou a que decorre do novo

ldquomaterial perceptivordquo A aquisiccedilatildeo de um ponto de vista empiacuterico em que uma vez constituiacute-

do esse ponto de vista nada seja desprovido de significado empiacuterico ndash de tal modo que cada

percepccedilatildeo natildeo se limita a ser confrontada com um quadro de percepccedilotildees empiacutericas jaacute consti-

tuiacutedas ndash tem ela mesma um caraacutecter tal que se natildeo concorda com essas projecccedilotildees traz a su-

gestatildeo de uma nova projecccedilatildeo empiacuterica (conforme com o seu conteuacutedo e oposta agraves projec-

ccedilotildees empiacutericas anteriormente em vigor)

Se pelo contraacuterio uma nova percepccedilatildeo congrui com a projecccedilatildeo empiacuterica a que se

vem juntar entatildeo confirma-a ndash quer dizer confirma a forccedila da proacutepria ἐμπειρία confirma o

bom fundamento da projecccedilatildeo empiacuterica a evidecircncia de que se reveste etc

Ora isto daacute uma nova dimensatildeo agravequilo que vimos sobre esta mateacuteria ndash e que agora se

apresenta como insuficiente ou unilateral

Em mateacuteria de evidecircncia a projecccedilatildeo empiacuterica natildeo se apoia apenas numa evidecircncia

original do ter-de-ser (natildeo-poder-ser-de-outro-modo etc) a que anteriormente foi feita refe-

recircncia Sucede em vez disso que a evidecircncia da projecccedilatildeo empiacuterica se vecirc reforccedilada pela con-

firmaccedilatildeo por parte dos domiacutenios de percepccedilotildees sobre que recai

Do que vimos resulta que as projecccedilotildees empiacutericas na verdade excedem sempre o

presente em que de cada vez nos encontramos e onde de cada vez acaba o material perceptivo

efectivamente disponiacutevel Por outras palavras haacute sempre mais ndash e muito mais ndash projecccedilotildees

empiacutericas do que percepccedilatildeo

Poreacutem isso natildeo impede que a percepccedilatildeo que de cada vez vem entre em cena como al-

go antecedido por uma prescriccedilatildeo empiacuterica e ao congruir com ela natildeo apenas reforce a pro-

jecccedilatildeo empiacuterica especificamente em causa mas para aleacutem dela reforce a proacutepria forccedila da

projecccedilatildeo empiacuterica enquanto tal (e tanto quer dizer justamente aquilo que faz com que nem

sequer apareccedila como projecccedilatildeo mas como muito mais do que isso como algo absolutamente

adquirido como algo de certo modo dado etc)

Assim em vez de formar um mero aglomerado de percepccedilotildees retidas em memoacuteria a

apresentaccedilatildeo de que a ἐμπειρία dispotildee tem o caraacutecter de uma ldquomalhardquo ou de um ldquoprocessordquo

com os diferentes momentos da travessia perceptiva atados uns aos outros e envolvidos numa

espeacutecie de silenciosa transacccedilatildeo entre os vaacuterios momentos

85

Isto eacute as diversas αἰσθήσεις ldquodizemrdquo umas sobre as outras actuam umas sobre as ou-

tras de tal modo que haacute como que uma acccedilatildeo reciacuteproca (satildeo ao mesmo tempo condicionantes

e condicionados de tal modo que nenhum se aguenta por si mesmo e em vez disso sucede

que cada um estaacute de peacute em virtude do que lhe vem dos outros etc)

Isto traduz-se num outro fenoacutemeno que eacute discreto mas tem um papel importante na

constituiccedilatildeo das fixaccedilotildees empiacutericas

Mesmo que natildeo chame a atenccedilatildeo o processo habitual de montagem da ἐμπειρία envol-

ve qualquer coisa como um crescendo contiacutenuo de corroboraccedilatildeo de tal modo que a proacutepria

continuaccedilatildeo do ldquoprocessordquo (a continuaccedilatildeo do funcionamento da ldquotramardquo empiacuterica) traz con-

sigo qualquer coisa como uma cada vez maior confianccedila na ndash ou uma cada vez maior forccedila

da ndash projecccedilatildeo empiacuterica24

24

Estas consideraccedilotildees permitem-nos enfrentar uma dificuldade que se poderia antever Eacute que tal

como a temos visto poderia entender-se da tese de Aristoacuteteles que tanto a crianccedila como o velho satildeo

experientes Na verdade a experiecircncia de que fala Aristoacuteteles natildeo eacute algo que parece adquirir-se no fim

de um processo extenso (se com isso se supuser uma extensatildeo longa) tal como a vimos a έμπειρία po-

de ser produzida em qualquer quantidade de amplitude ou de extensatildeo Se de facto a έμπειρία se pro-

duz com as cambiantes que temos visto entatildeo o lance da έμπειρία natildeo eacute um lance que se atrase ou se

adie para o mais tarde possiacutevel (assim se ganhando em consistecircncia) mas eacute sempre um lance precoce

(que acontece mais cedo do que tarde por assim dizer) Quer dizer a crianccedila tambeacutem tem έμπειρία ndash

tem έμπειρία logo que esteja produzida esta contracccedilatildeo Poreacutem a consideraccedilatildeo de que uma crianccedila jaacute eacute

portadora de έμπειρία parece estar em contradiccedilatildeo com uma tese que Aristoacuteteles defende por exemplo

na Eacutetica a Nicoacutemaco Num passo afirma que um jovem natildeo eacute experiente e que eacute preciso muito tempo

para ter experiecircncia (1142a12ss) Enfrentemos esta dificuldade fazendo notar que a noccedilatildeo de έμπειρία

que Aristoacuteteles aplica neste passo parece sofrer um desdobramento o desdobramento por que passa na

abertura dum nexo com a φρόνησις A φρόνησις concerne como fica claro no passo citado agraves situa-

ccedilotildees praacuteticas particulares em que cada um de cada vez se encontra situaccedilotildees que implicam um conhe-

cimento praacutetico assente em sageza ou em prudecircncia Assim agrave luz do que vimos ainda agora a declara-

ccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser lida do seguinte modo natildeo eacute que os jovens tenham experiecircncia zero ndash pelo

que se viu natildeo haacute qualquer razatildeo para que um jovem natildeo tenha έμπειρία O que os jovens natildeo tecircm eacute

por um lado o tipo de experiecircncia especiacutefica que implica φρόνησις O que Aristoacuteteles faz ao fazer co-

incidir os termos έμπειρία e φρόνησις eacute uma qualificaccedilatildeo ou um desdobramento do que indica por έμ-

πειρία dando a entender que na vida praacutetica a έμπειρία equivale a φρόνησις e natildeo havendo φρόνησις

a έμπειρία natildeo tem utilidade praacutetica ou natildeo produz resultados sensatos e sagazes A inexperiecircncia

juvenil a que Aristoacuteteles alude corresponde agrave insensatez ou agrave imprudecircncia juvenil (Ret 1395a2) ndash

em qualquer caso ao ainda natildeo ter cumprido todos os requisitos necessaacuterios quaisquer que sejam agrave

aquisiccedilatildeo de φρόνησις (Acerca das diferenccedilas entre os jovens e os anciotildees ver Ret 1389a5 e

1389b15) Isto por um lado Por outro o que Aristoacuteteles mostra ao trazer agrave liccedila o factor ldquotempordquo eacute

acentuar muito claramente que o velho eacute mais experiente que o jovem E tanto quer dizer que com a

passagem do tempo (ie com a variaccedilatildeo da quantidade de tempo de contacto) haacute uma variaccedilatildeo da

86

Agrave primeira vista poderia talvez parecer que natildeo eacute assim ndash isto se se tiver em conta que

natildeo se verifica soacute confirmaccedilatildeo das projecccedilotildees empiacutericas mas tambeacutem pelo menos uma certa

margem de infirmaccedilatildeo delas Ou seja pode parecer que a corroboraccedilatildeo de que se falou eacute

compensada por uma significativa margem de infirmaccedilatildeo em virtude da qual a descriccedilatildeo que

acabaacutemos de fazer eacute unilateral

Importa por isso focar um pouco mais atentamente os fenoacutemenos aqui em causa

Por um lado haacute que ter em conta que as projecccedilotildees empiacutericas que resultam das αισθή-

σεις passadas resultam de uma multiplicidade muito complexa de elementos de afinidade

entre as coisas percepcionadas (e nesse sentido de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος)

Isso tem que ver com o facto que aqui natildeo podemos considerar senatildeo muito breve-

mente de as proacuteprias percepccedilotildees estarem constituiacutedas na forma de totalidades confusas de

determinaccedilotildees formadas de tal modo que se acompanha essas totalidades sem que esse acom-

panhamento signifique uma consciecircncia minimamente diferenciada das determinaccedilotildees que as

compotildeem25

qualidade da experiecircncia ndash e no caso da experiecircncia que diz respeito agraves situaccedilotildees praacuteticas particulares

em que cada um de cada vez se encontra situaccedilotildees que implicam um conhecimento praacutetico etc Quer

dizer com o acumular de tempo de contacto daacute-se um efeito de amplificaccedilatildeo providenciado pelo vo-

lume da corroboraccedilatildeo (ou pelo contraacuterio pelo volume da infirmaccedilatildeo) A noccedilatildeo quotidiana de expe-

riecircncia parece privilegiar precisamente este factor a quantidade da experiecircncia (ter ldquomuitordquo disso ter

passado por muito etc)

25 Eacute isto que estaacute muito precisamente desenhado por Aristoacuteteles nos passos iniciais da Fiacutesica Nesse

passo pode ler-se πέφυκε δὲ ἐκ τῶν γνωριμωτέρων ἡμῖν ἡ ὁδὸς καὶ σαφεστέρων ἐπὶ τὰ σαφέστερα τῇ

φύσει καὶ γνωριμώτερα οὐ γὰρ ταὐτὰ ἡμῖν τε γνώριμα καὶ ἁπλῶς διόπερ ἀνάγκη τὸν τρόπον τοῦτον

προάγειν ἐκ τῶν ἀσαφεστέρων μὲν τῇ φύσει ἡμῖν δὲ σαφεστέρων ἐπὶ τὰ σαφέστερα τῇ φύσει καὶ γνω-

ριμώτερα ἔστι δ ἡμῖν τὸ πρῶτον δῆλα καὶ σαφῆ τὰ συγκεχυμένα μᾶλλον ὕστερον δ ἐκ τούτων γίγνε-

ται γνώριμα τὰ στοιχεῖα καὶ αἱ ἀρχαὶ διαιροῦσι ταῦτα (I I 184a16 e seguintes) Aristoacuteteles estaacute a sa-

lientar dois aspectos O primeiro eacute que haacute algo como uma falta de paridade entre as coisas que satildeo

mais manifestas e claras para noacutes e as coisas que satildeo mais claras e conhecidas por natureza O que

Aristoacuteteles nos mostra eacute que estes dois fenoacutemenos satildeo por um lado momentos distintos na verdade

satildeo momentos opostos (os momentos mais distantes um do outro os pontos que mais radicalmente di-

ferem na perspectiva que tecircm sobre o que haacute para fazer etc) Por outro lado satildeo momentos distintos

de um mesmo caminho ndash isto na medida em que um corresponde ao terminus a quo (ao ponto de parti-

da ao caminho totalmente por percorrer etc) e o outro ao terminus ad quem (ao ponto de chegada

ao caminho totalmente percorrido etc) O caminho em causa eacute como se percebe o caminho da cons-

tituiccedilatildeo do saber Aristoacuteteles procede neste passo agrave identificaccedilatildeo (ou agrave desformalizaccedilatildeo) do grau maacute-

ximo de saber ndash no caso fazendo o grau maacuteximo de saber corresponder a conhecer a natureza das

ldquocoisasrdquo (ie a estar na posse do αἴτιον da αἰτία etc) O segundo aspecto a reter eacute o aspecto da pro-

87

De tudo isto resulta que se considerarmos uma qualquer percepccedilatildeo nova as determi-

naccedilotildees em jogo nela satildeo muacuteltiplas

Sucede que a presenccedila confusa de uma determinaccedilatildeo resulta na projecccedilatildeo confusa

dela ndash e isto de tal modo que quanto mais constante for a determinaccedilatildeo em causa mais natu-

ral seraacute que natildeo chame a atenccedilatildeo (ou seja natildeo haja qualquer consciecircncia distinta dela)

Assim a composiccedilatildeo confusa das αἰσθήσεις (e portanto das μνῆμαι que as retecircm) natildeo

impede que a projecccedilatildeo empiacuterica tambeacutem tenha uma composiccedilatildeo confusa (quer dizer seja a

projecccedilatildeo das afinidades confusamente registadas na travessia empiacuterica)

Por outro lado acontece tambeacutem que satildeo igualmente muacuteltiplas as projecccedilotildees (as ante-

cipaccedilotildees de determinaccedilotildees os feixes de prescriccedilatildeo que sobre ela recaem etc)

Assim em vez de acontecer que a corroboraccedilatildeo ou a infirmaccedilatildeo seja simples sucede

pelo contraacuterio que eacute complexa ndash e mesmo muito complexa (ou seja a ldquomalhardquo ou a transac-

ccedilatildeo entre os diferentes momentos da travessia perceptiva estaacute de cada vez desdobrada em

muitiacutessimos elementos muito numerosos fios muito numerosos fluxos de transacccedilatildeo etc)

Eacute isto que nos permite ver o essencial que eacute preciso ter em vista para se perceber as

caracteriacutesticas da ἐμπειρία comum no funcionamento normal da ἐμπειρία eacute muito maior o vo-

lume de corroboraccedilotildees do que de infirmaccedilotildees ndash haacute algo como uma incriacutevel desproporccedilatildeo ldquoes-

tatiacutesticardquo Mas aleacutem disso mesmo nos casos em que haacute infirmaccedilatildeo a infirmaccedilatildeo diz respeito

a algumas determinaccedilotildees no meio de um maciccedilo de prescriccedilotildees ou de antecipaccedilotildees empiacutericas

amplamente corroboradas

Quer dizer mesmo nos casos em que aparece algo que choca com as projecccedilotildees empiacute-

ricas o choque natildeo diz respeito a todas as determinaccedilotildees mas apenas a algumas ndash e mesmo

neste caso (ou seja mesmo em relaccedilatildeo agraves percepccedilotildees que vecircm ao arrepio da ἐμπειρία) eacute mui-

porcionalidade inversa as coisas mais manifestas e claras para noacutes satildeo as menos manifestas e claras

por natureza (ou como tambeacutem podiacuteamos dizer na sequecircncia do que foi dito atraacutes as coisas mais

transparentes para noacutes satildeo aquelas cuja natureza se revela mais opaca) Na verdade a transformaccedilatildeo

que se daacute pelo caminho (a modificaccedilatildeo no modo-de-ver as coisas) eacute uma transformaccedilatildeo na qualidade

do acesso Implica na verdade uma modificaccedilatildeo de perspectiva tal que o foco deixe de estar nas ldquocoi-

sasrdquo tal como nos aparecem e passe a estar colocado na natureza das coisas Assim ao percorrer o ca-

minho abandona-se a posiccedilatildeo inicial (a posiccedilatildeo em que a natureza das ldquocoisasrdquo eacute menos clara para

noacutes) e passa-se progressivamente a ver melhor o que as ldquocoisasrdquo satildeo por natureza (adquire-se uma

perspectiva em que a natureza das ldquocoisasrdquo eacute mais clara para noacutes em que conhecemos o que as ldquocoi-

sasrdquo efectivamente satildeo o que satildeo em si mesmas qual eacute a causa delas etc) de tal modo que no final

do caminho haacute uma radical inversatildeo de qualidade do acesso agrave natureza das ldquocoisasrdquo

88

to mais o que tecircm de determinaccedilotildees conformes com as projecccedilotildees empiacutericas sobre que se vem

inscrever do que o que tecircm de determinaccedilotildees em conflito com elas

Eacute claro que tem de se ter em conta que a questatildeo natildeo eacute puramente quantitativa antes

depende em larga medida do peso (da relevacircncia ou da importacircncia) das determinaccedilotildees em

causa Mas tambeacutem aiacute se verifica algo de equivalente ao que acabaacutemos de dizer no que diz

respeito agraves determinaccedilotildees mais marcantes eacute muito mais o que costuma haver de continuida-

de e corroboraccedilatildeo do que o contraacuterio

A infirmaccedilatildeo das projecccedilotildees costuma afectar uma porccedilatildeo menor e menos relevante do

ldquoedifiacuteciordquo empiacuterico ndash de tal modo que o conflito tem em regra a forma de algo episoacutedico no

meio de um maciccedilo (um maciccedilo quantitativo entenda-se) e de um patrimoacutenio de fixaccedilotildees fun-

damentais marcado por um bem sucedido funcionamento da ἐμπειρία

Assim se considerarmos as caracteriacutesticas e a estrutura da ἐμπειρία tal como a ela es-

tamos habituados percebemos que estaacute muito longe de corresponder a qualquer coisa como

troccedilos de ἐμπειρία que funcionam de um determinado modo mas de tal forma que a certa al-

tura satildeo interrompidos por infirmaccedilotildees globais que suspendem tudo ndash e datildeo lugar a outros

troccedilos de ἐμπειρία caracterizados por neles vigorarem determinaccedilotildees em contraste com

aquelas que antes dominavam26

26

Pense-se por exemplo em ldquoAlice in Wonderlandrdquo Poderiacuteamos salientar muacuteltiplos aspectos desta

obra mas interessa neste passo destacar apenas os seguintes Em primeiro lugar haacute entre o ldquomundordquo

em que Alice daacute consigo e o ldquomundordquo anterior a esse pontos de continuidade de tal modo que o

ldquomundordquo da ldquoWonderlandrdquo natildeo eacute radicalmente novo Poreacutem aquilo que eacute decisivo e que mais marca

Alice ao entrar nesse ldquomundordquo satildeo os pontos de contraste os animais falantes as caracteriacutesticas pecu-

liares da gravidade enquanto cai na toca do coelho o estranho efeito das poccedilotildees etc Ora por um lado

tudo isso soacute espanta Alice precisamente na medida em que gera contraste e por outro tudo isso soacute ge-

ra contraste na medida em que estaacute contraposto a uma experiecircncia distinta (a um ldquomundordquo distinto)

em curso justamente um ldquomundordquo em que natildeo haacute experiecircncia de animais falantes em que a gravidade

se comporta de uma determinada maneira em que as poccedilotildees natildeo geram modificaccedilotildees radicais de ta-

manho etc ie um ldquomundordquo que eacute em relaccedilatildeo ao anterior um ldquomundordquo novo Em segundo lugar

aquilo que eacute decisivo eacute que a experiecircncia anterior eacute substituiacuteda pela do ldquomundordquo da ldquoWonderlandrdquo to-

mando a experiecircncia da ldquoWonderlandrdquo o lugar de experiecircncia que no curso do momento actual em

que Alice se encontra estaacute a valer Na verdade a experiecircncia da ldquoWonderlandrdquo toma o lugar de expe-

riecircncia-presidente E isto eacute tanto assim que Alice daria por si espantada se as leis da proacutepria ldquoWonder-

landrdquo natildeo se cumprissem (se desse com um animal que natildeo falasse se a poccedilatildeo natildeo gerasse qualquer

modificaccedilatildeo no seu tamanho etc) assim como precisa de se readaptar (de recuperar as leis antigas se

assim se pode dizer) quando por fim desperta do sonho e volta ao regime de experiecircncia anterior

89

No curso normal da ἐμπειρία que costuma ter lugar em noacutes natildeo haacute cortes desse tipo

precisamente por isso faz sentido falar de um ldquocurso normalrdquo Isso mostra a que ponto a his-

toacuteria da ἐμπειρία (a histoacuteria da ἐμπειρία a que cada um de noacutes estaacute habituado) eacute muito mais a

histoacuteria da corroboraccedilatildeo (e portanto da continuidade) com a natildeo-corroboraccedilatildeo ou a des-

continuidade a ter um caraacutecter mais ou menos episoacutedico esparso etc do que o contraacuterio

Mas sendo assim nada disto impede um outro aspecto que tambeacutem resulta da forma

como a ἐμπειρία tem o caraacutecter de um ldquoprocessordquo ndash de algo sempre em curso etc

Se eacute verdade que no seu funcionamento ldquonormalrdquo a ἐμπειρία ldquobate certordquo beneficia

de um reforccedilo constante em crescendo etc natildeo eacute menos verdade que a cada instante sem-

pre de novo eacute posta em causa precisamente porque a cada instante estatildeo de novo em jogo as

suas fixaccedilotildees Ou seja porque envolve projecccedilatildeo (porque prevecirc e porque a cada instante a

previsatildeo estaacute a ser posta agrave prova) a ἐμπειρία estaacute continuamente em causa ou estaacute continua-

mente a arriscar a sua validade

Por contraste com a percepccedilatildeo ndash que se caracteriza por aquele caraacutecter de absoluta e

definitiva aquisiccedilatildeo de que falam os antigos quando dizem que nem os deuses podem dizer

que aquilo que foi natildeo tenha sido ndash a ἐμπειρία eacute algo sempre de novo exposto agrave violabilidade

agrave possibilidade de vir a ser desfeito por mudanccedilas no material perceptivo ndash e na verdade

sempre de novo passa (mesmo que numa margem circunscrita) por mudanccedilas dessa ordem

A fragilidade vem do caso de por exemplo o futuro natildeo confirmar a expectativa tida

sobre ele Recorrendo a um exemplo anterior a fragilidade vem do caso de saindo a porta do

sala natildeo encontrar o que esperava encontrar mas a sala se abrir a uma praia ou a um deserto

Isso marca a possibilidade de um conflito entre o dado que a experiecircncia natildeo tem mas

que apesar de tudo fixa e o dado percebido efectivo com que nos deparamos

A breve sinopse que se levou a cabo nesta secccedilatildeo e que permitiu inventariar algumas

caracteriacutesticas fundamentais da ἐμπειρία natildeo esgota ainda o que haacute para dizer sobre ela

Na verdade o que esteve em jogo nesta secccedilatildeo foi meramente a descontinuidade entre

a ἐμπειρία (enquanto terceiro estaacutedio da escala de possibilidades de acesso desenhada por

Aristoacuteteles) e os estaacutedios que a antecedem Poreacutem segundo o esquema de relaccedilotildees entre os

diversos estaacutedios haacute tambeacutem uma descontinuidade entre a ἐμπειρία e o uacuteltimo estaacutedio da es-

cala (estaacutedio que correspondem τέχνη e ἐπιστήμη)

90

Resta saber como ndash e o esclarecimento deste aspecto constitui tambeacutem como se veraacute

uma componente decisiva natildeo soacute para a compreensatildeo daquilo a que Aristoacuteteles chama ἐμπει-

ρία mas tambeacutem para a compreensatildeo do complexo de fenoacutemenos para que remete este concei-

to e aqui se trata de tentar pocircr a claro

91

CONCLUSAtildeO

sect14

A ἐμπειρία enquanto algo que incide sobre o καθόλου ndash Um elo de conexatildeo entre ἐμπειρία

e γνωμολογία

Com tudo o que tem de esquemaacutetico e fugidio a descriccedilatildeo que tentaacutemos traccedilar nas

secccedilotildees anteriores pretende fixar no fundamental o que a ἐμπειρία tem de proacuteprio ndash ou me-

lhor pretende fixar a forma como a ἐμπειρία avanccedila sobre a μνήμη (e portanto mediatamen-

te sobre a αἴσθησις) e como constitui um ponto de vista empiacuterico (um ponto de vista comple-

tamente diferente dos anteriores)

Ora tudo o que vimos ateacute este ponto sobre a ἐμπειρία corresponde no essencial agrave evi-

denciaccedilatildeo da ἐμπειρία como salto como mais etc ndash ie agrave marcaccedilatildeo da fronteira inferior

Trata-se agora de focar a fronteira superior da ἐμπειρία ndash a sua fronteira com a τέχνηἐπιστήμη

Resulta da anaacutelise que fizemos sobre a estrutura da escala aristoteacutelica que tambeacutem no

caso da ἐμπειρία vale o que eacute caracteriacutestico de cada uma das etapas da escala que se trata de

algo fixado como um intervalo de tal modo que o que a define eacute ao mesmo tempo a) a forma

como se eleva sobre a etapa anterior (quer dizer a fronteira que eacute ao mesmo tempo a fronteira

superior da etapa antecedente e a fronteira inferior da etapa em causa) e b) a forma como fica

aqueacutem da etapa seguinte ou eacute ultrapassada por ela justamente porque deixa espaccedilo para ela

(ou seja a fronteira que eacute ao mesmo tempo a fronteira superior da etapa em causa e a fronteira

inferior da que se segue)

Acontece que uma compreensatildeo da etapa seguinte ndash enquanto a etapa seguinte (ie da

quarta e uacuteltima etapa da escala) diz algo sobre a ἐμπειρία ndash natildeo pode passar por uma anaacutelise

integral da proacutepria τέχνηἐπιστήμη Natildeo soacute isso nos levaria muito longe como ndash e principal-

mente ndash nos obrigaria a desviarmo-nos do propoacutesito de analisar a experiecircncia enquanto tal

Eacute indispensaacutevel contudo seguir detidamente pelo menos alguns aspectos essenciais

daquilo que separa a ἐμπειρία de τέχνηἐπιστήμη E isto na medida em que eacute necessaacuterio com-

preender que aspectos definem a finitude da proacutepria ἐμπειρία (a sua fragilidade) Quer dizer

92

os aspectos que interessa destacar na continuaccedilatildeo satildeo os que fazem que a ἐμπειρία natildeo seja a

uacuteltima etapa da escala (e tanto quer dizer os que fazem que a ἐμπειρία constitua uma forma

de apresentaccedilatildeo das coisas que esconde ao mesmo tempo que mostra ndash e que na verdade es-

conde justamente isso que jaacute mostra produzindo como que um desvio relativamente a isso

mesmo)

Vistas estas advertecircncias preliminares sobre a tarefa que se trata agora de levar a cabo

consideremos entatildeo a fronteira entre a terceira e a quarta secccedilatildeo da escala de Aristoacuteteles

O primeiro aspecto que importa ter em atenccedilatildeo eacute uma falsa pista

Referimo-nos ao alegado estado-de-coisas em virtude do qual a ἐμπειρία diz respeito a

factos singulares (καθ᾽ ἕκαστόν etc) e soacute a τέχνηἐπιστήμη constitui fixaccedilotildees universais (κα-

θόλου)

Vejamos entatildeo o fundamental do que haacute a dizer sobre esta mateacuteria

Agrave partida aquilo que estaacute em causa quando Aristoacuteteles aponta que a ἐμπειρία diz res-

peito a factos singulares (καθ᾽ ἕκαστόν etc) e soacute a τέχνηἐπιστήμη constitui fixaccedilotildees univer-

sais (καθόλου) parece ser uma forma de diferenciaccedilatildeo clara e suficiente entre os dois planos

Na verdade essa forma de diferenciaccedilatildeo tende a absorver e a dominar a compreensatildeo da dife-

renccedila entre ἐμπειρία e τέχνηἐπιστήμη e parece natildeo deixar espaccedilo a mais27

Esta passagem no entanto merece uma anaacutelise cuidada para natildeo se prestar a equiacutevo-

cos

Para o fazer comeccedilaremos por considerar aquilo que se desenha nos fenoacutemenos em

causa ndash aqueles que vimos corresponderem ao conceito de ἐμπειρία Depois de os termos ana-

lisado passaremos entatildeo ao exame dos enunciados de Aristoacuteteles mais precisamente a) ao

exame da forma como uma parte deles parece exprimir justamente o que acabamos de descre-

ver como ldquofalsa pistardquo b) ao exame da forma como uma outra parte desses enunciados con-

grui perfeitamente com o que encontramos nos fenoacutemenos e finalmente c) ao exame da for-

ma como eacute possiacutevel entender os enunciados focados em a) de tal modo que natildeo implicam

27

A passagem a que nos expressamente referimos eacute a famosa passagem da Metafiacutesica (981a12 e ss)

em que se pode ler πρὸς μὲν οὖν τὸ πράττειν ἐμπειρία τέχνης οὐδὲν δοκεῖ διαφέρειν ἀλλὰ καὶ μᾶλλον

ἐπιτυγχάνουσιν οἱ ἔμπειροι τῶν ἄνευ τῆς ἐμπειρίας λόγον ἐχόντων αἴτιον δ᾽ ὅτι ἡ μὲν ἐμπειρία τῶν

καθ᾽ ἕκαστόν ἐστι γνῶσις ἡ δὲ τέχνη τῶν καθόλου αἱ δὲ πράξεις καὶ αἱ γενέσεις πᾶσαι περὶ τὸ καθ᾽

ἕκαστόν εἰσιν

93

qualquer conflito nem com aquilo que encontramos nos fenoacutemenos em causa nem com os

enunciados de Aristoacuteteles

O primeiro aspecto a considerar tem que ver com o facto de a ἐμπειρία ter que ver

sempre com semelhanccedila ndash com uma semelhanccedila na diversidade Quer dizer com uma se-

melhanccedila entre aquilo que natildeo eacute idecircntico no sentido pleno e estrito

Eacute isso mesmo que se acha expresso por Aristoacuteteles no passo de Met I (980b28ss) a

que sempre de novo voltamos (ldquoαἱ γὰρ πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματοςrdquo) e eacute o que se deve

focar quando se fala do nexo entre ἐμπειρία e τοῦ ὁμοίου μετάβασις A saber a ἐμπειρία passa

sempre por um estabelecimento de nexos entre instacircncias natildeo absolutamente idecircnticas O seu

ponto de partida eacute a multiplicidade de μνῆμαι relativas a momentos de tempo diferentes (quer

dizer a ocorrecircncias perceptivas que natildeo satildeo rigorosamente idecircnticas)

Naturalmente que a base da ἐμπειρία tem que ver com aquilo que une ndash e natildeo com

aquilo que separa ndash essas vaacuterias ocorrecircncias Mas importa natildeo perder de vista que haacute justa-

mente um momento fundamental de natildeo-identidade absoluta e que o terreno em que se move

a ἐμπειρία eacute de raiz o terreno dessa natildeo-identidade

O que caracteriza a ἐμπειρία como vimos eacute que natildeo se limita a verificar a identidade

de conteuacutedos entre diferentes ocorrecircncias perceptivas (as ocorrecircncias perceptivas interrompi-

das dispersas que satildeo proacuteprias da μνήμη) antes potildee justamente ainda mais patrimoacutenio de di-

versidade ndash tudo aquilo que corresponde ao acreacutescimo do volume de realidade posta pela ἐμ-

πειρία (enquanto eacute proacuteprio dela preencher os intervalos em que natildeo houve percepccedilatildeo de nada

correspondente agraves πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος prolongar a seacuterie para aleacutem do seu

comeccedilo prolongaacute-la tambeacutem no futuro etc)

Ora isso significa um ponto muito importante que a proacutepria aparente eficaacutecia da ἐμπει-

ρία pode fazer esquecer se considerarmos aquilo que espontaneamente nos aparece como rea-

lidades singulares (esta mesa os oacuteculos a parede uma pessoa etc) natildeo se trata de algo que

jaacute laacute esteja antes da ἐμπειρία Vendo bem trata-se de um produto da ἐμπειρία (de algo que soacute

se constitui mediante a ἐμπειρία como resultado dela etc)

Quer dizer ao contraacuterio do que pode parecer agrave primeira vista o que espontaneamente

nos aparece como ldquorealidade singularrdquo ndash aquilo que constitui por assim dizer o limite da ἐμ-

πειρία ndash natildeo tem o caraacutecter de um dado a que a ἐμπειρία se ativesse ou tivesse de se ater por

se tratar de algo absoluto (por se tratar de algo preacute-existente agrave ἐμπειρία e que esta natildeo tivesse

condiccedilotildees de ultrapassar)

94

Acontece que eacute a proacutepria ἐμπειρία a constituir essa forma de singularidade ndash e isto de

tal modo que essa singularidade tem ela proacutepria um caraacutecter tal que resulta de uma siacutentese do

natildeo-idecircntico (ou para o dizer de modo a que fique mais claramente vincado o que pretende-

mos sublinhar de uma siacutentese do natildeo-singular)

Mas sendo assim poderia em todo o caso acontecer que a ἐμπειρία natildeo tivesse recur-

sos para avanccedilar para laacute das realidades singulares que ela proacutepria contribui para constituir Ou

seja poderia acontecer que a projecccedilatildeo empiacuterica (a τοῦ ὁμοίου μετάβασις empiacuterica) se esgo-

tasse em realidades singulares e nunca fosse mais aleacutem da constituiccedilatildeo de estados-de-coisas

permanentes como esta e aquela mesa esta e aquela parede esta e aquela pessoa etc Ou

como tambeacutem poderiacuteamos dizer poderia acontecer que a natureza fixada pela ἐμπειρία fosse

sempre soacute a natureza de realidades singulares e o complexo das fixaccedilotildees empiacutericas correspon-

desse no seu todo a qualquer coisa como uma multiplicidade de fixaccedilotildees todas elas apenas

dessa ordem (rigorosamente cingidas ao estabelecimento de estados-de-coisas singulares)

Acontece que natildeo eacute assim A projecccedilatildeo empiacuterica de modo nenhum se ateacutem a realida-

des singulares do tipo referido28

Satildeo vaacuterios os fenoacutemenos que ilustram esse facto ndash e natildeo cabe aqui consideraacute-los no

seu todo Focamos apenas alguns que bastam para pocircr na pista daquilo que se trata de focar

Quando por exemplo vemos pela primeira vez algueacutem ou alguma coisa estamos co-

mo que num momento inaugural da histoacuteria perceptiva relativa agrave realidade singular em causa

ndash natildeo haacute para traacutes quaisquer αἰσθήσεις ou quaisquer μνῆμαι disso Se a ἐμπειρία se ativesse a

realidades singulares e nunca ultrapassasse a sua fronteira entatildeo ao aparecer pela primeira

vez qualquer realidade singular careceria absolutamente de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγμα-

τος que pudessem constituir a base de qualquer ἐμπειρία a seu respeito ndash e teria de ocorrer

uma travessia perceptiva (e tanto quer dizer uma travessia mneacutesica) ateacute que se pudesse che-

gar a qualquer perspectiva empiacuterica a respeito disso

Acontece que natildeo eacute assim

Tal como as coisas se passam no preciso momento em que pela primeira vez vemos

uma parede num siacutetio onde nunca estivemos antes ou em que entra no nosso horizonte uma

pessoa que nunca tiacutenhamos visto antes isso que nos aparece natildeo nos aparece como uma reali-

28

Natildeo se discute aqui se natildeo comeccedila por esse tipo de fixaccedilotildees ndash de tal modo que soacute pas-sa para aleacutem

delas uma vez jaacute constituiacutedo esse tipo de projecccedilatildeo do dado O ponto decisivo a ter em conta eacute que de

todo o modo mesmo que assim seja natildeo se fica por aiacute

95

dade que acabou de se constituir agrave nossa frente nem tatildeo pouco nos aparece como algo tal que

se de repente desaparecer natildeo provoca espanto

Quer dizer no preciso momento em que vemos tais realidades pela primeira vez elas

aparecem-nos como realidades que vecircm de uma existecircncia passada (que eacute posta laacute por projec-

ccedilatildeo empiacuterica) e que vatildeo a caminho de uma continuaccedilatildeo de si (que eacute posta laacute por projecccedilatildeo

empiacuterica) De sorte que o espanto que se experimentaria se logo de seguida desaparecessem

sem deixar rasto tem que ver com o facto de nesse preciso momento em que aparecem pela

primeira vez jaacute estarem sob o efeito de uma projecccedilatildeo empiacuterica

Ou seja jaacute haacute ἐμπειρία a respeito de algo de que ainda natildeo haacute qualquer histoacuteria percep-

tiva (de que ainda natildeo haacute qualquer travessia de doaccedilatildeo no qua toca a essas realidades em cau-

sa) E nesse sentido deve perguntar-se de onde vem ela em que eacute que se funda

A resposta passa justamente pelo facto de a ἐμπειρία natildeo se ater de modo nenhum a

instacircncias singulares Sucede pelo contraacuterio que a ἐμπειρία tende naturalmente para fixa-

ccedilotildees que transgridem as fronteiras entre realidades singulares

A resposta passa pelo facto de os estados-de-coisas permanentes que a ἐμπειρία tem

propriamente como objecto (as leis ou instacircncias reguladoras que como vimos a ἐμπειρία

tem propriamente por objecto) de modo nenhum se cingirem a casos singulares avulsos O

que caracteriza a ἐμπειρία propriamente dita eacute o salto para a fixaccedilatildeo de leis ou instacircncias re-

guladoras que fazem que uma multiplicidade dada pareccedila ter de ser completada por mais do

que aquilo que foi dado (e pareccedila ter de ser completado em virtude de qualquer coisa como

um ter-de-ser-assim natildeo-poder-ser-de-outro-modo etc)

A ἐμπειρία transforma a semelhanccedila verificada numa multiplicidade de ocorrecircncias

percepcionadas na necessidade de ter-de-ser-assim fora dessa multiplicidade O facto de ser

assim constituiacuteda inclina-a a natildeo se ficar pelo domiacutenio desta ou daquela realidade singular e a

prosseguir a sua peculiar operaccedilatildeo de homogeneizaccedilatildeo para laacute das fronteiras das proacuteprias rea-

lidades singulares que como vimos ela mesma constitui

Por outras palavras a ἐμπειρία natildeo se limita a prescrever o comportamento que as per-

cepccedilotildees teriam de ter tido ndash se tiveacutessemos estado laacute quando natildeo estivemos ndash e que as percep-

ccedilotildees teratildeo de ter no futuro ndash se ou quanto viermos a estar laacute junto da realidade singular em

causa Aplica-se tambeacutem agraves πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος registaacuteveis entre diversas rea-

lidades ndash de tal modo que quando haacute o τὸ αὐτὸ πρᾶγμα correspondente agrave semelhanccedila (seme-

lhanccedila de determinaccedilotildees semelhanccedila de comportamento etc) entre realidades singulares a

96

ἐμπειρία faz exactamente o mesmo que levou agrave constituiccedilatildeo dessas realidades singulares

projecta semelhanccedila com base na semelhanccedila registada (neste caso a semelhanccedila transsingu-

lar) Isto eacute projecta estados-de-coisas permanentes (ie como vimos instacircncias reguladoras

de semelhanccedila trans-singular) ndash de tal modo que vecirc a semelhanccedila trans-singular perceptiva

efectivamente registada (ie a semelhanccedila trans-singular efectivamente registada) como ma-

nifestaccedilatildeo de uma regra de semelhanccedila trans-singular que vai aleacutem do campo perceptivo efec-

tivamente percorrido)

Eacute por isso que no primeiro momento em que vemos uma determinada realidade singu-

lar natildeo acontece que estejamos a seu respeito numa perspectiva preacute-empiacuterica Acontece em

vez disso que assim como a nova percepccedilatildeo de uma realidade singular de que jaacute haacute πολλαὶ

μνῆμαι natildeo ocorre sozinha (antes coincide com e se vem inscrever no quadro de uma anteci-

paccedilatildeo do que deve ocorrer) assim tambeacutem a primeira percepccedilatildeo de uma realidade singular

natildeo estaacute absolutamente sozinha coincide com a antecipaccedilatildeo que prescreve semelhanccedila a par-

tir de uma fixaccedilatildeo empiacuterica trans-singular ndash e que nesse sentido prescreve o que deve ser

(ou melhor aquilo que na oacuteptica empiacuterica tem de ocorrer)

O que assim se configura eacute apenas um indicio de um estado-de-coisas muito mais am-

plo e de que importa dar aqui uma ideia sucinta

Se considerarmos as funccedilotildees que a ἐμπειρία exerce na ldquodomesticaccedilatildeordquo do que nos ro-

deia verificamos que um dos seus efeitos mais essenciais eacute o de situar de cada vez o campo

perceptivo (aquela mancha de percepccedilotildees que de cada vez se tem) num campo de familiari-

dade correspondente aos estados-de-coisas permanentes resultantes das memoacuterias acumula-

das na travessia perceptiva dos campos de realidades circundantes

Nessa medida se nos reportarmos a cada momento de tempo (T1) onde soacute haacute um

campo perceptivo (P) verificamos que a realidade reconhecida como tendo lugar em T1 exce-

de a realidade percebida em P ndash e isto antes do mais pela conversatildeo em estados-de-coisas

permanentes das realidades percepcionadas (e retidas em μνήμη) antes de T1 Daiacute resulta que

na oacuteptica empiacuterica todos os campos perceptivos estejam sempre jaacute situados no meio de um

quadro de realidade (nota bene um quadro de realidade a ter lugar no proacuteprio instante de tem-

po de cada vez em causa) muito maior do que P

Mas por outro lado de maneira nenhuma acontece que a totalidade desse campo de

realidade correspondente ao conjunto das realidades singulares jaacute percepcionadas convertidas

em estados-de-coisas permanentes apareccedila por sua vez como uma clareira de realidade do-

97

mesticada no meio de um horizonte de perfeita incoacutegnita Seria assim que as coisas nos deve-

riam aparecer se o acircmbito da projecccedilatildeo empiacuterica se esgotasse na esfera das realidades singula-

res jaacute percepcionadas e de que jaacute haacute πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος

Com efeito se fosse assim tudo o que se situasse para laacute das realidades singulares jaacute

exploradas devia estar completamente em aberto (e corresponder nesse sentido agraves caracteriacutes-

ticas que vimos serem as de um ponto de vista inteiramente preacute-empiacuterico) Poreacutem natildeo eacute

assim

Quando olhamos para o exterior do campo de familiaridade no sentido referido temos

clara noccedilatildeo de que nunca laacute estivemos ndash mas isso natildeo faz que o encaremos como uma pura

incoacutegnita e para perceber que natildeo o encaramos como uma ldquopura incoacutegnitardquo basta ver como

reagimos agrave possibilidade de por exemplo esse exterior ser exactamente uma repeticcedilatildeo do

campo de familiaridade (quer dizer corresponder tal qual corresponder a uma repeticcedilatildeo ou a

uma seacuterie de repeticcedilotildees dele etc) Se o exterior do campo de familiaridade fosse uma absolu-

ta incoacutegnita essa absoluta incoacutegnita tambeacutem incluiria necessariamente esta possibilidade ndash

assim como incluiria neces-sariamente a possibilidade de se tratar de algo em tudo radical-

mente diferente (tal que por exemplo fosse inteiramente vazio ou ateacute natildeo tivesse nenhuma

estabilidade e variasse freneticamente o seu conteuacutedo ou se achasse preenchido por determi-

naccedilotildees completamente dissemelhantes etc)

Ora vendo bem na forma como vemos o exterior do campo de familiaridade natildeo estaacute

contemplada nem a possibilidade daquela repeticcedilatildeo integral nem a possibilidade desta dispari-

dade draacutestica

O que na verdade domina a nossa perspectiva sobre esse exterior eacute a) algo diferente de

uma perspectiva completamente aberta que corresponderia ao efectivo reconhecimento de

uma pura incoacutegnita (de sorte que na verdade mesmo quando reconhecemos a nossa ignoracircn-

cia a seu respeito natildeo julgamos saber alguma coisa sobre esse exterior) e b) algo que se ca-

racteriza por excluir ao mesmo tempo a possibilidade de algo absolutamente igual e de algo

absolutamente diferente

Para o expressar na linguagem de Leibniz a nossa perspectiva sobre o exterior estaacute

marcada pelo domiacutenio de qualquer coisa como um princiacutepio de semelhanccedila (a que Leibniz

98

chamou princiacutepio de Arlequim) e um princiacutepio de dissemelhanccedila (a que chama princiacutepio de

Tasso)29

Mas por outro lado vendo bem a nossa perspectiva sobre o exterior do campo de fa-

miliaridade natildeo estaacute dominada apenas por estes dois princiacutepios

Sucede em vez disso que jaacute estaacute decidida uma relaccedilatildeo de forccedilas entre eles ndash justamen-

te aquela que antecipa que a variaccedilatildeo se daraacute na observacircncia de semelhanccedila no que diz respei-

to agraves estruturas fundamentais da realidade (ou como Leibniz diz o princiacutepio de Arlequim diz

respeito ao ldquofonds des chosesrdquo e o princiacutepio de Tasso diz respeito a ldquodes manieres et apparen-

cesrdquo) Por outras palavras a perspectiva que temos sobre o exterior do campo de familiaridade

estaacute marcada por uma subordinaccedilatildeo de princiacutepio de Tasso ao princiacutepio de Arlequim Eacute aliaacutes

tanto assim que em uacuteltima anaacutelise natildeo se trata propriamente de dois princiacutepios mas apenas

de um traduzindo-se ao mesmo tempo numa antecipaccedilatildeo de semelhanccedila e de variaccedilatildeo

Em uacuteltima anaacutelise a variaccedilatildeo que se antecipa a respeito do exterior do campo de fami-

liaridade eacute uma variaccedilatildeo do tipo daquela que foi registada no seu acircmbito (sc na travessia per-

ceptiva que constitui a base da projecccedilatildeo empiacuterica responsaacutevel pelo campo de familiaridade)

Ou como tambeacutem podemos dizer o exterior do campo de familiaridade eacute visto como devem-

do ter de dissemelhante em relaccedilatildeo ao campo de familiaridade um prolongamento (uma pro-

jecccedilatildeo de prolongamento convertida em evidecircncia empiacuterica) do mesmo tipo de variaccedilatildeo (e

tanto quer dizer da relaccedilatildeo de forccedila entre a variaccedilatildeo e a semelhanccedila) que se registou na tra-

vessia perceptiva

Tudo isto corresponde apenas a uma anaacutelise sucinta de um fenoacutemeno bastante comple-

xo que natildeo cabe analisar aqui Mas o ponto fundamental que se pretende pocircr em evidecircncia

desenha-se com suficiente nitidez a partir do que se expocircs a projecccedilatildeo empiacuterica natildeo apenas

29

Podemos encontrar estes princiacutepios delineados em geral em dois passos da obra de Leibniz

Encontramos o princiacutepio de Arlequim em Nouveaux essais sur lrsquoentendement humain (cap XVII sect16

p 422) passo em que Leibniz escreve ldquoEntretiens pleins desprit et de savoir sur la pluraliteacute des

mondes a dit de jolies choses lagrave-dessus et a trouveacute lart deacutegayer une matiegravere fort difficile on dirait

quasi que cest dans lempire de la lune dArlequin tout comme icirdquo Quanto ao princiacutepio de Tasso po-

demos encontraacute-lo na Carta a Lady Masham datada de 8 de Maio de 1704 (GP 3 paacuteg 348) ldquoVoilagrave en

peu de mots toute ma philosophie bien populaire sans doute puisque elle ne reccediloit rien qui ne reacuteponde

agrave ce que nous experimenton et qursquoelle est fondeacutee sur deux dictions aussi vulgaires que celuy du thea-

tre italien que crsquoest ailleurs tout comme icy et cet autre du Tasse che per variar natura egrave bella qui

paroissent se contrarier mais qursquoil faut concilier en entendant lrsquoun du fond des choses lrsquoautre des ma-

nieres et apparencesrdquo

99

continua para laacute do limite das realidades singulares com que houve contacto na travessia

perceptiva mas de facto continua mesmo muito para laacute

A ἐμπειρία estaacute constituiacuteda de tal modo que tende justamente a produzir o registo da

semelhanccedila e a converter a semelhanccedila registada em qualquer coisa como um ter-de-ser soacute li-

mitado pelas restriccedilotildees que a proacutepria travessia perceptiva documenta

Assim por um lado se houver momentos de semelhanccedila natildeo-desmentida na totalidade

da travessia perceptiva estes momentos tendem a ser convertidos num ter-de-ser irrestrito Se

por outro lado houver elementos de semelhanccedila restringida (ie que eacute percebida como ape-

nas parcial ou regional) dentro do proacuteprio acircmbito da travessia perceptiva essa semelhanccedila

natildeo seraacute projectada como irrestrita

O que de qualquer modo eacute claro eacute que a proacutepria regra de variaccedilatildeo (o proacuteprio jogo de

semelhanccediladissemelhanccedila) que for registada como total ndash como natildeo desmentido no curso da

travessia perceptiva ndash eacute empiricamente projectada como algo com validade tambeacutem para o ex-

terior do campo de familiaridade

Ora como vimos antes a discussatildeo sobre as teses de Aristoacuteteles que visam estes as-

suntos tende a passar ao largo do facto de a ἐμπειρία natildeo se quedar na fixaccedilatildeo de realidades

singulares (por mais que tudo isto que agora vimos admita esta leitura) e costuma centrar-se

numa pretensa diferenciaccedilatildeo clara entre os planos da ἐμπειρία (enquanto a ἐμπειρία diz respei-

to a factos singulares καθ᾽ ἕκαστόν etc) e da τέχνηἐπιστήμη (enquanto τέχνηἐπιστήμη cons-

tituem fixaccedilotildees universais καθόλου etc)

Sendo assim poderia suceder com efeito que o caminho seguido na nossa anaacutelise dos

fenoacutemenos em causa e o caminho seguido por Aristoacuteteles fossem divergentes Mas vendo

bem natildeo eacute assim E importa recuperar alguns elementos do corpus aristotelicum que permi-

tem perceber com nitidez que natildeo eacute assim

Natildeo se trata aqui de seguir pari passu todos os enunciados de Aristoacuteteles que haveria

que considerar numa anaacutelise exaustiva desta questatildeo Atemo-nos a um que parece ser muito

significativo e que nos potildee na pista do fundamental

100

Num passo da Retoacuterica (II 21 1394a e ss) Aristoacuteteles fala da conexatildeo entre ἐμπειρία

e γνωμολογία O que vinca nesse passo eacute um nexo de correlaccedilatildeo ie aponta os adaacutegios como

expressatildeo tiacutepica daquilo que estaacute em causa na ἐμπειρία30

A descriccedilatildeo de Aristoacuteteles passa por mostrar que o que caracteriza os adaacutegios eacute preci-

samente a circunstacircncia de a sua extensatildeo ser supra-singular ie de natildeo se aterem a ldquoindiviacute-

duosrdquo Esta descriccedilatildeo de Aristoacuteteles traduz exactamente algo caracteriacutestico dos adaacutegios dize-

rem respeito a uma determinada classe ou a um determinado tipo de realidades

Considerem-se por exemplo os adaacutegios ldquoMarccedilo Marccedilagatildeo manhatilde de Inverno tarde

de Veratildeordquo ldquoDe pequenino eacute que se torce o pepinordquo etc

As classes em causa podem ser de maior ou de menor amplitude e essa variaccedilatildeo pode

ateacute ser muito significativa Poreacutem o que caracteriza os adaacutegios eacute o facto de mesmo quando a

amplitude da classe ou tipo em causa eacute menor (e portanto a extensatildeo do juiacutezo em causa o eacute

tambeacutem) o miacutenimo de amplitude ou extensatildeo caracteriacutestico de um adaacutegio ser sempre algo

que agrupa uma multiplicidade de instacircncias singulares e corresponde agrave fixaccedilatildeo de um esta-

do-de-coisas trans-singular

Por outro lado percebe-se tambeacutem em que sentido Aristoacuteteles pode falar de um nexo

entre os adaacutegios e a ἐμπειρία

Natildeo parece dar-se o caso de que todas as fixaccedilotildees empiacutericas se exprimam em adaacutegios

ndash e tambeacutem natildeo eacute este o lugar para averiguar que eacute que determina que umas se exprimam des-

se modo e outras natildeo O uacutenico ponto que interessa fazer notar e que resulta do jaacute exposto eacute

que fixaccedilotildees empiacutericas na esfera de realidades singulares natildeo se traduzem em adaacutegios O que

importa aqui eacute o facto de os adaacutegios darem expressatildeo a fixaccedilotildees de natureza empiacuterica e serem

justamente exemplos acabados do tipo de fixaccedilatildeo que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία

Por outras palavras se natildeo houvesse ἐμπειρία (se a perspectiva em que nos encontra-

mos fosse uma perspectiva puramente esteacutesica ou mneacutesica) natildeo haveria qualquer lugar para

adaacutegios ndash os quais tecircm de proacuteprio justamente uma decisiva componente de antecipaccedilatildeo ou de

30

Cf com os Prolegomena (A1112) de Kant ldquoWenn Einsicht und Wissenschaft auf die Neige gehen

alsdann und nicht eher sich auf den gemeinen Menschenverstand zu berufen das ist eine von den sub-

tilen Erfindungen neuerer Zeiten dabei es der schalste Schwaumltzer mit dem gruumlndlichsten Kopfe getrost

aufnehmen und es mit ihm aushalten kann Solange aber noch ein kleiner Rest von Einsicht da ist

wird man sich wohl huumlten diese Nothuumllfe zu ergreifen Und beim Lichte besehen ist diese Appella-

tion nichts anderes als eine Berufung auf das Urteil der Menge ein Zuklatschen uumlber das der Philo-

soph erroumltet der populaumlre Witzling aber triumphiert und trotzig tutrdquo

101

μετάβασις τοῦ ὁμοίου ndash e isto de tal modo que o horizonte (o terminus ad quem da transgres-

satildeo constitutiva do adaacutegio) corresponde sempre agrave totalidade das instacircncias singulares de um

determinado modo-de-ser

Assim no caso do adaacutegio ldquoMarccedilo Marccedilagatildeo helliprdquo o que estaacute em causa natildeo eacute um de-

terminado Marccedilo nem uns poucos Marccedilos (natildeo se trata da expressatildeo de μνῆμαι) mas sim a

classe dos ldquoMarccedilosrdquo ndash quer dizer de todos os Marccedilos De tal modo que mesmo que o adaacutegio

natildeo recorra ao ldquoquantificadorrdquo universal o que estaacute em causa nele eacute justamente isso uma re-

gra universal ou uma lei ndash quer dizer um estado-de-coisas no sentido que vimos ser o dos es-

tados-de-coisas que constituem o correlato da ἐμπειρία

E algo de equivalente vale tambeacutem para ldquoDe pequenino eacute que se torce o pepinordquo Na

sua forma metafoacuterica o adaacutegio torna expressa a μετάβασις τοῦ ὁμοίου e enuncia uma regra ndash

uma lei que pretende ser vaacutelida para um conjunto muito vasto de coisas a respeito das quais se

diz que se se pretende moldaacute-las haacute que comeccedilar a intervir cedo etc

Em suma a diferenccedila entre ἐμπειρία e aquilo que se situa acima dela na escala eacute tatildeo

pouco uma diferenccedila de extensatildeo (ou de ldquoquantificadoresrdquo) que em uacuteltima anaacutelise pode mui-

to bem acontecer que o complexo das projecccedilotildees empiacutericas que estatildeo postas de peacute num dado

campo de aparecimento (por exemplo aquele em que damos connosco) tenha exactamente a

mesma extensatildeo (a mesma amplitude de pretensatildeo de validade) que aquilo que Aristoacuteteles si-

tua na quarta etapa da escala

Sendo assim Aristoacuteteles declara que a ἐμπειρία diz respeito ao καθ᾽ ἕκαστόν e soacute aqui-

lo que se situa para laacute da ἐμπειρία (a τέχνη ou ἐπιστήμη) capta o universal por duas razotildees fun-

damentais31

Em primeiro lugar mesmo que a ἐμπειρία possa muito bem recorrer a generalizaccedilotildees

(a operadores universais etc) o recurso a essas generalizaccedilotildees (ou a esses operadores univer-

sais) tem na ἐμπειρία um caraacutecter casuiacutestico preocupado sobretudo com uma aplicaccedilatildeo con-

creta em casos singulares

Isso eacute justamente algo que se exprime no uso dos adaacutegios quando se diz que ldquoMarccedilo

Marccedilagatildeo manhatilde de Inverno tarde de Veratildeordquo ou ldquoDe pequenino eacute que se torce o pepinordquo o

que estaacute em causa eacute aquilo com que se deve contar num determinado Marccedilo ou o tempo em

31

Atemo-nos aqui ao fundamental Para uma discussatildeo mais detida ver Carvalho MJ Erfahrung

und Endlichkeit Grundzuge und Zweideutigkeit des Erfahrungsbegriffs im Ausgang von Aristoteles

in Quid ndash Revista de Filosofia nordm 1 ed Cotovia (Lisboa 2000) pp 180 e seguintes

102

que se deve intervir se efectivamente se pretende moldar a forma de uma determinada coisa

Quer dizer a projecccedilatildeo empiacuterica recorre a functores ou a fixaccedilotildees universais de tal modo que

os usa para fixar estados-de-coisas singulares ndash e estaacute sobretudo focada nestes uacuteltimos

Nesse sentido o contacto da ἐμπειρία com os operadores universais a que recorre eacute co-

mo que centriacutefugo Trabalha com eles mas natildeo os considera detidamente eacute moldado por eles

mas natildeo os tem como objecto

Daqui decorre que se por um lado a ἐμπειρία eacute relativa ao καθ᾽ ἕκαστόν por outro la-

do o modo como eacute relativa ao καθ᾽ ἕκαστόν deve ser posto em contraste com o se passa no ca-

so das ἐπιστήμαι e com o modo como as ἐπιστήμαι satildeo relativas ao καθ᾽ ἕκαστόν Uma das ca-

racteriacutesticas das ἐπιστήμαι eacute precisamente o estarem focadas nos proacuteprios operadores univer-

sais enquanto tais ndash o facto de terem os proacuteprios operadores universais expressamente como

objecto

Tambeacutem podemos exprimir este contraste dizendo que a ἐμπειρία recorre inexpliacutecita-

mente a leis (ou pretensas leis fixaccedilotildees com forma de lei) mas estaacute voltada sobretudo para o

que resulta da sua aplicaccedilatildeo ao passo que aquilo que se situa acima da ἐμπειρία estaacute voltada

para a identificaccedilatildeo e compreensatildeo das proacuteprias leis enquanto tais

Isto leva-nos a um segundo aspecto que permite compreender que eacute que Aristoacuteteles

pode ter em vista quando escreve que a ἐμπειρία incide sobre o καθ᾽ ἕκαστόν e soacute aquilo que

jaacute eacute superior agrave ἐμπειρία incide sobre o καθόλου Esse segundo aspecto tem que ver com a pe-

culiaridade da terminologia aristoteacutelica ndash ou com uma diferenccedila entre a semacircntica do seu uso

de καθόλου e aquilo que tendemos a associar ao conceito de ldquouniversalrdquo

Tal como o entendemos o termo ldquouniversalrdquo designa sobretudo uma propriedade de

extensatildeo Poreacutem haacute alguns passos do corpus aristotelicum (veja-se por exemplo Met

982a20) que tomam outra direcccedilatildeo Quando dizemos que tomam outra direcccedilatildeo isso natildeo sig-

nifica que o καθόλου tal como Aristoacuteteles usa o termo natildeo tenha nada que ver com extensatildeo

significa que natildeo tem que ver apenas com extensatildeo

Com efeito Aristoacuteteles estabelece um nexo sobre o καθόλου e aquilo que eacute responsaacute-

vel por as coisas (as coisas abrangidas pelo καθόλου em causa) serem como satildeo Quer dizer a

posse do καθόλου natildeo eacute apenas a posse de uma determinaccedilatildeo com determinadas caracteriacutesti-

103

cas de extensatildeo ndash eacute a posse da determinaccedilatildeo que permite compreender o ldquoporquecircrdquo de um de-

terminado estado-de-coisas32

32

O termo usado por Aristoacuteteles eacute o termo αἱτία O termo αἱτία eacute frequentemente traduzido por causa

mas a noccedilatildeo de ldquocausardquo dada a sua forte carga histoacuterica e semacircntica pode ser uma noccedilatildeo equiacutevoca e

talvez o seu sentido fique mais claro levando em conta que o que Aristoacuteteles diz eacute que o que tem ex-

periecircncia acompanha o que se passa mas natildeo o de onde ou o por que do que se passa Um breve peacute-

riplo pelo corpus aristotelicum poderaacute mostrar-nos o que estaacute efectivamente em jogo nesta noccedilatildeo

O exemplo a que Aristoacuteteles recorre eacute o exemplo do acompanhamento de uma doenccedila A ἐμπειρία pa-

rece capaz de acompanhar o estado de sauacutede e o estado de doenccedila e de contrapor um ao outro ndash mas

isso parece corresponder a uma mera sinalizaccedilatildeo dos efeitos ou das consequecircncias desses estados

Assiste aos estados em bruto catalogando dados e caracteriacutesticas de um e outro estado e isolando o

estado da doenccedila tendo desse estado experiecircncia ou tendo com ele familiaridade ateacute eacute capaz de regis-

tar o que se passa e prescrever o medicamento y para a doenccedila x Isto eacute por via da experiecircncia conse-

gue-se seguir casos particulares e registar uma relaccedilatildeo entre a doenccedila x e o medicamento y que nos ca-

sos particulares seguidos a curou Mas tudo isto sem dispor de uma compreensatildeo eficaz do por que da

doenccedila ou do por que da cura ndash e isto porque a ἐμπειρία natildeo estaacute em condiccedilotildees de garantir a universa-

lidade da cura a todos os casos possiacuteveis da doenccedila para que estaria capacitada se tivesse a αἱτία dela

Dito de outro modo a ἐμπειρία faz um acompanhamento da doenccedila mas de tal modo que deixa escapar

algo de fundamental acerca da doenccedila a αἱτία dela isso que a faz Regista o que se passa mas natildeo ace-

de ao por que se passa assim Haacute jaacute um acesso ndash e com ele a pretensatildeo de captaccedilatildeo mas nesse acesso

escapa a αἱτία ndash e por isso fica aqueacutem de τέχνη e έπιστήμη Eacute a isso que Aristoacuteteles se refere quanto

em Anal Post 87a31 afirma que o conhecimento simultacircneo do que se passa e da causa do que se

passa por contraste ao conhecimento de um sem a outra eacute mais preciso e tem precedecircncia E sintetiza

em 981a27 soacute aquele que tem τέχνη estaacute na posse da αἱτία

Jaacute estamos portanto em melhores condiccedilotildees para dizer algo acerca da αἱτία Por αἱτία devemos enten-

der o agente activo que marca a diferenccedila entre algo ser e natildeo ser o agente que faz com que algo ve-

nha a ser Eacute algo que tem portanto um ascendente sobre um seu correlato que vem a ser na forma de

uma responsabilidade sobre o vir a ser do seu correlato ndash eacute isso o que faz com que o seu correlato ve-

nha a ser e sem o qual esse natildeo viria a ser Nesse sentido a αἱτία gera algo antes natildeo existia (no caso

por exemplo a doenccedila onde antes havia sauacutede) seraacute portanto um limiar de origem sine qua non a

transposiccedilatildeo do natildeo ser ao ser do correlato natildeo se daria e que responde pelo que vier a ser do correlato

que tem sobre ele influecircncia ou predomiacutenio decisivo Assim o que viraacute a ser do correlato estaacute preacute-de-

terminado pela αἱτία o correlato viraacute a ser em funccedilatildeo da αἱτία que o potildee condicionado por ela Essa

condiccedilatildeo tem expressatildeo nos efeitos ie no modo como o correlato se manifesta no que o correlato

efectivamente eacute Veja-se o caso da doenccedila as expressotildees da doenccedila satildeo sintomas iacutendices os modos

da sua manifestaccedilatildeo e por isso a pergunta pela αἱτία da doenccedila eacute de facto a pergunta pelo ser da doen-

ccedila no sentido de que a αἱτία da doenccedila eacute isso por que a doenccedila veio a ser doenccedila e que tem por conse-

quecircncias as manifestaccedilotildees da doenccedila que a ἐμπειρία acompanha Essas manifestaccedilotildees esses efeitos

satildeo portanto derivados recebidos de algo precedente em relaccedilatildeo ao qual estatildeo e seraacute a partir destas

consideraccedilotildees que comeccedilamos a compreender as diferenccedilas entre a perspectiva sobre a doenccedila que

tem a ἐμπειρία e a perspectiva sobre a doenccedila que tecircm τέχνη ou έπιστήμη

104

Em suma no conceito aristoteacutelico de καθόλου cruzam-se duas determinaccedilotildees a) uma

determinaccedilatildeo relativa agrave extensatildeo a respeito da qual se acrescenta que isso que se caracteriza

pela extensatildeo em causa tambeacutem tem um caraacutecter tal que eacute um princiacutepio responsaacutevel por as

coisas serem como satildeo e b) uma determinaccedilatildeo relativa ao exerciacutecio da funccedilatildeo (ser o ldquopor-

quecircrdquo) a respeito do qual se acrescenta que o ldquoporquecircrdquo natildeo tem um caraacutecter singular mas sim

o caraacutecter de qualquer coisa como uma ldquoleirdquo que se aplica a todo um domiacutenio de modalida-

des

Ora este segundo aspecto potildee-nos na pista daquilo que eacute efectivamente decisivo para

se compreender a finitude da experiecircncia (ie para se compreender o modo como fica aqueacutem

da etapa seguinte da escala)

sect15

A ilusatildeo de acompanhar e perceber o ldquoporquecircrdquo das coisas

O que se comeccedilou a desenhar no fim da secccedilatildeo anterior eacute que Aristoacuteteles parece cha-

mar a atenccedilatildeo para o facto de a experiecircncia natildeo saber que eacute que ldquofazrdquo aquilo com que lida

Ora se considerarmos as secccedilotildees anteriores estamos em condiccedilotildees de avanccedilar que is-

so tem que ver antes de mais com a ligaccedilatildeo entre a ἐμπειρία e as αἰσθήσεις

Como vimos o conteuacutedo das αἰσθήσεις (retido em μνῆμαι) eacute modificado por uma ex-

traordinaacuteria inovaccedilatildeo formal ndash a extraordinaacuteria inovaccedilatildeo correspondente agrave figura do ldquoestado-

de-coisas permanenterdquo que os conteuacutedos das αἰσθήσεις passam a revestir E se a relaccedilatildeo entre

as μνῆμαι e as αἰσθήσεις tem qualquer coisa de um idem sed aliter o mesmo se pode dizer

tambeacutem em relaccedilatildeo agrave ἐμπειρία

Note-se adicionalmente que a introduccedilatildeo do factor da αἱτία elimina em definitivo a possibilidade de a

diferenccedila entre ἐμπειρία e τέχνη e έπιστήμη ser uma diferenccedila numeacuterica ou de quantidade Poder-se-ia

objectar o que natildeo eacute suficiente para obter dados fiaacuteveis eacute a amostra de uns poucos casos ndash mas a tese

de Aristoacuteteles natildeo eacute essa a ἐμπειρία falha porque natildeo tem a αἱτία da doenccedila Natildeo tem o que a consti-

tui o que a faz ou o que a potildee a ser Quer dizer mesmo o acompanhamento de todos os casos seria

ainda insuficiente caso faltasse a αἱτία A ἐμπειρία tem os efeitos apartados da αἱτία que os faz ndash natildeo

haacute τέχνη ou έπιστήμη sem a reposiccedilatildeo deste nexo sem que os efeitos sejam efeitos da αἱτία que os faz

A ἐμπειρία limita o seu acompanhamento aos efeitos e deixa escapar o ser proacuteprio das coisas Enfim a

diferenccedila entre a terceira e a quarta etapa da escala eacute uma diferenccedila qualitativa

105

Em certo sentido a ἐμπειρία natildeo faz senatildeo multiplicar exponencialmente os conteuacutedos

das αἰσθήσεις Essa multiplicaccedilatildeo exponencial natildeo poderia fazer-se sem a extraordinaacuteria ino-

vaccedilatildeo que ela proacutepria introduz

Contudo a inovaccedilatildeo em causa opera justamente com os conteuacutedos das αἰσθήσεις ndash eacute

inovadora enquanto projecccedilatildeo mas o que projecta satildeo αἰσθήσεις (determinaccedilotildees de ἀισθή-

σεις) E eacute esse aspecto que estaacute na base do conceito mais comum de experiecircncia ndash que tende a

esquecer a transgressatildeo do dado e acentua unilateralmente a dependecircncia da experiecircncia em

relaccedilatildeo agrave travessia perceptiva e a sua fidelidade agravequilo que eacute encontrado no curso dessa tra-

vessia

Acontece que se eacute assim haacute que ter presente por outro lado que os conteuacutedos das

αἰσθήσεις testemunham a presenccedila de algo mas natildeo mostram que eacute o que ldquofazrdquo (o que eacute que

transporta a diferenccedila entre isso e a sua ausecircncia) Quer dizer a doaccedilatildeo que eacute proacutepria das ἀισ-

θήσεις testemunha a presenccedila desta ou daquela determinaccedilatildeo mas natildeo identifica aquilo que eacute

responsaacutevel por ela (natildeo faz ideia como estaacute ldquomontadordquo aquilo a que assiste sobre ldquoquecircrdquo eacute

que estaacute ldquomontadordquo aquilo a que assiste etc)

Ora na medida em que projecta e multiplica os conteuacutedos das αἰσθήσεις e natildeo acede a

outros tambeacutem a ἐμπειρία partilha dessa falta de perspectiva e natildeo faz a mais pequena ideia

do que efectivamente ldquopotildeerdquo ou ldquofazrdquo as determinaccedilotildees com que lida33

33

Em Anal Post 88a5 Aristoacuteteles afirma que o valor do universal estaacute em expor a αἱτία Mas imedia-

tamente antes diz algo que poderia pocircr agrave tese que temos vindo a defender alguns problemas que a ob-

servaccedilatildeo de instacircncias repetidas de um dado acontecimento poderia fazer-nos alcanccedilar o universal e

acrescenta ainda que eacute a partir da repeticcedilatildeo de experiecircncias particulares que se ganha perspectiva sobre

o universal Isto parece dar a indicaccedilatildeo de que afinal a αἱτία eacute passiacutevel de ser captada por via estatiacutesti-

ca e de que a posse da αἱτία eacute passiacutevel de ser provada a cada nova instacircncia que o que se sabe

Vejamos qual eacute o assunto sobre o qual se debruccedila Aristoacuteteles para compreender melhor o que estaacute em

causa Desde 87a28 o problema que ocupa Aristoacuteteles eacute o de tentar provar que a έπιστήμη natildeo pode

ser adquirida por meio da αἴσθησις A αἴσθησις como jaacute vimos providencia um complexo de qualida-

des a contracccedilatildeo dessas num ldquoobjectordquo implica que a αἴσθησις estaacute jaacute permeada de ἐμπειρία Levanta-

se entatildeo um problema mesmo assumindo que a αἴσθησις captasse um ldquoobjectordquo em qualquer caso a

αἴσθησις captaria um ldquoobjectordquo particular (num dado espaccedilo e tempo com uma conformaccedilatildeo particu-

lar etc) e natildeo um objecto tipificado ou universal a partir do qual se pudesse deduzir uma demonstra-

ccedilatildeo

Acontece que aquilo que eacute universal natildeo pode ser captado pela αἴσθησις precisamente porque natildeo eacute

dado por um espaccedilo por um tempo ou por uma conformaccedilatildeo particular mas aplica-se a todos os es-

paccedilos a todos os tempos e a todas as conformaccedilotildees

106

Na verdade o caso eacute ainda mais complexo

O caso eacute mais complexo porque a inovaccedilatildeo formal que eacute caracteriacutestica da ἐμπειρία (en-

quanto a ἐμπειρία tem que ver com a assunccedilatildeo da forma de lei) cria justamente a ilusatildeo de

aceder agravequilo que ldquofazrdquo que as determinaccedilotildees perceptivamente testemunhadas sejam ndash ou te-

nham de ser ndash como satildeo Ou seja porque tem a forma de lei a ἐμπειρία cria a ilusatildeo de

acompanhar e perceber o ldquoporquecircrdquo das coisas

Para perceber como eacute assim haacute que ter presentes sobretudo dois aspectos

Em primeiro lugar a projecccedilatildeo empiacuterica quando se produz natildeo tem nenhum outro da-

do para laacute daquele que transgride ndash eacute uma fixaccedilatildeo em uacuteltima anaacutelise sempre abusiva e que

natildeo tem nada que a sustente

Se por uma parte como vimos esse facto eacute compensado pela peculiar evidecircncia de

um ter-de-ser-assim (de um natildeo-poder-ser-de-outro-modo pela extraordinaacuteria forccedila dessa evi-

decircncia que faz que a experiecircncia assuma a forma de uma lei) por outra parte a experiecircncia

natildeo produz mais do que a mera aparecircncia de uma lei

A ldquoleirdquo empiacuterica natildeo eacute outra coisa senatildeo a proacutepria regularidade empiacuterica arvorada em

mais do que isso A ldquoevidecircnciardquo do ter-de-ser-assim (do natildeo-poder-ser-de-outro-modo todo o

caraacutecter necessitante da projecccedilatildeo empiacuterica etc) estaacute montada em falso natildeo tem nada que

Poderia ainda assim dar-se o caso de que por um qualquer acidente aquilo que a αἴσθησις captasse de

um objecto particular dissesse igualmente respeito a todos os objectos do mesmo tipo desse mas isso

em qualquer caso natildeo poderia ser garantido por meio da αἴσθησις jaacute que a αἴσθησις continuaria apli-

cada apenas em cada caso particular e natildeo ganharia perspectiva para laacute desse Apesar de tudo a ser

possiacutevel essa coincidecircncia ela estaria sob oacutenus de prova Daqui decorre que a prova se obteria pela

observaccedilatildeo de instacircncias repetidas de um dado acontecimento e a partir da repeticcedilatildeo de experiecircncias

particulares ganhar-se-ia perspectiva sobre o universal

Ora segundo a nossa leitura o resultado dessa prova seria empiacuterico e natildeo como diz Aristoacuteteles epis-

teacutemico aquilo que se obteria seria a confirmaccedilatildeo de que o que quer que fosse que se tivesse captado

tivera de novo ocorrecircncia em cada uma das instacircncias particulares em que tinha estado a teste natildeo se

podendo extrair daiacute validade universal ndash seria por outras palavras um reconhecimento de que foi

assim ou de que tem sido assim mas natildeo a antecipaccedilatildeo de que sempre seraacute assim

Acontece que a repeticcedilatildeo permite ter em vista a αἱτία jaacute que a repeticcedilatildeo nos abre a uma constacircncia

nessa constacircncia haacute um vislumbre da αἱτία jaacute que a αἱτία eacute o que potildee a constacircncia O que dissemos

atraacutes manteacutem-se vaacutelido porque da repeticcedilatildeo podemos ser ou natildeo ser bem sucedidos na captaccedilatildeo da

αἱτία haacute um salto o salto que vimos atraacutes corresponder agrave mudanccedila do terceiro para o quarto patamar

da escala entre detectar ou registar uma repeticcedilatildeo e compreender a αἱτία que potildee a ser ou que obriga a

ser assim Se se tiver sucesso em obter da mateacuteria que essa repeticcedilatildeo constitui αἱτία entatildeo haacute έπιστήμη

107

efectivamente a sustente Eacute justamente por isso que natildeo estaacute ao abrigo da possibilidade de vir

a ser infirmada

Em segundo lugar embora a experiecircncia tenha como correlato esse excesso sobre a re-

gularidade perceptivamente registada (as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος) embora a ex-

periecircncia tenha propriamente como correlato o estado-de-coisas permanente a ldquoquase-leirdquo

empiacuterica ndash aquilo que a caracteriza enquanto experiecircncia eacute natildeo fazer ideia do que constitui

esse estado-de-coisas permanente (ie o que a caracteriza eacute a ldquoquase-leirdquo que tem por correla-

to)

Tomemos por exemplo a projecccedilatildeo empiacuterica de que a mesa agrave nossa frente a caneta

com que escrevemos a matildeo etc vatildeo continuar a ser nos momentos que se seguem e daqui a

dois minutos e daqui a uma hora etc Esperamos o tempo devido e a projecccedilatildeo empiacuterica em

causa vecirc-se confirmada Poreacutem o registo de que eacute assim natildeo implica que tenhamos ideia do

que faz que assim seja ndash natildeo implica que tenhamos ideia de como a realidade da mesa e da ca-

neta e da matildeo etc se transmite de um momento ao momento seguinte e desse a outro e desse

a outro e assim sucessivamente

Vendo bem a projecccedilatildeo empiacuterica tem um caraacutecter formal ndash ela eacute precisamente isso

uma forma (a forma ldquoestado-de-coisas permanenterdquo a forma da quase-lei empiacuterica etc) E

pode-se falar de ldquoformardquo precisamente porque ela eacute exactamente a mesma para todos os muito

diversos conteuacutedos perceptivos a que eacute aplicada

Em terceiro lugar sendo assim a ἐμπειρία tambeacutem natildeo faz ideia do que ldquofazrdquo esta

quase-lei que tem sempre no seu centro

Quer dizer se a ἐμπειρία tem uma constituiccedilatildeo formal tambeacutem natildeo faz ideia do que

faz a sua proacutepria forma ndash de qual eacute a determinaccedilatildeo que lhe corresponde Na verdade como vi-

mos nem sequer se apercebe da sua proacutepria composiccedilatildeo (de que tem uma composiccedilatildeo formal

etc)

Este eacute um ponto de particular importacircncia quer em relaccedilatildeo agravequilo que ldquoimportardquo da

αἴσθησις (sc da μνήμη) quer em relaccedilatildeo agravequilo que ela mesma acrescenta e com que trans-

forma os conteuacutedos da αἴσθησις e da μνήμη a ἐμπειρία soacute lida com determinaccedilotildees a respeito

das quais pura e simplesmente natildeo sabe em que eacute que consistem ndash que eacute que as ldquofazrdquo Em uacutelti-

ma anaacutelise a ἐμπειρία eacute formal pelas determinaccedilotildees da αἴσθησις e da μνήμη arvoradas em

muito mais do que isso ndash mas arvoradas em muito mais do que isso por forccedila de um operador

que na verdade eacute cego

108

Tocamos aqui a particular combinaccedilatildeo de propriedades que faz que por um lado a ex-

periecircncia represente como vimos um extraordinaacuterio ldquosaltordquo (uma explosatildeo de perspectiva)

em relaccedilatildeo agrave αἴσθησις e agrave μνήμη mas por outro lado fica muito aqueacutem de realizar efectiva-

mente aquilo que parece Eacute esse se assim se pode dizer o paradoxo da ἐμπειρία

Por um lado a ἐμπειρία distingue-se pela extraordinaacuteria forccedila de que se reveste Essa

ldquoforccedilardquo tem que ver com a extraordinaacuteria amplitude da ἐμπειρία ndash com a forma como produz

por atacado fixaccedilotildees que cobrem domiacutenios de extraordinaacuteria dimensatildeo E tem que ver sobre-

tudo com aquilo que permite esta extraordinaacuteria amplitude e que eacute por assim dizer o ldquoponto

arquimeacutedicordquo da ἐμπειρία a forma de lei (aquilo a que acabamos de chamar a ldquoquase-lei em-

piacutericardquo) Por outro lado no entanto a ἐμπειρία ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo estaacute

montada completamente ldquoem falsordquo

Isto eacute assim por diversas razotildees

A primeira razatildeo tem que ver com a falta de base ndash com a desproporccedilatildeo entre aquilo

que serve de base da ldquoamostragemrdquo e o territoacuterio a respeito do qual a ἐμπειρία legisla Diz-se

que a experiecircncia ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo porque na verdade a experiecircncia natildeo

tem fundamento suficiente para a legislaccedilatildeo (para a quase-lei para o ter-de-ser-assim etc)

que produz

A segunda razatildeo tem que ver com o facto de a ἐμπειρία natildeo dominar as proacuteprias deter-

minaccedilotildees com que lida

A terceira razatildeo tem que ver com o facto de que quando se acentua unilateralmente o

problema do abuso que a ἐμπειρία comete quando produz a μετάβασις τοῦ ὁμοίου e legisla so-

bre aquilo que natildeo se vecirc sobre a base do que se vecirc a focagem unilateral do primeiro ponto faz

esquecer o segundo E o resultado eacute que inadvertidamente se labora na pressuposiccedilatildeo inex-

pliacutecita de que a experiecircncia domina perfeitamente as determinaccedilotildees com que lida percebem

muito bem os conteuacutedos em causa etc

Assim a acentuaccedilatildeo unilateral de um dos aspectos ldquobeneficiardquo a ἐμπειρία ndash porque faz

esquecer que a ἐμπειρία tambeacutem ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo no que diz respeito agraves

determinaccedilotildees com que labora pois produz a impressatildeo de saber muito bem o que as faz

quando na verdade aquilo que toma como fonte desse saber eacute algo que se for posto em foco

acaba por se revelar com um caraacutecter de punctum caeligcum

Por outras palavras ao contraacuterio do que parece no centro das suas fixaccedilotildees a ἐμπειρία

tem nem se sabe bem o quecirc

109

Isso natildeo quer dizer que a ἐμπειρία natildeo funciona Acontece que no centro da sua ex-

traordinaacuteria forccedila estaacute uma extraordinaacuteria fraqueza ndash que vai mesmo ao ponto de no fulcro

das operaccedilotildees que constituem a ἐμπειρία estarem nem mais nem menos do que puncta coeca ndash

qualquer coisa como um vazio de conteuacutedo

De tudo isto resulta algo muito peculiar a ἐμπειρία funciona enquanto estiver distraiacuteda

relativamente agrave forma como estaacute composta ndash quer dizer numa atmosfera de falta de acuidade

Eacute esse o seu meio natural onde preserva toda a sua forccedila e manteacutem escondida a sua fraqueza

Se pelo contraacuterio for submetida a exame (e esse exame se processar com efectivo

acreacutescimo de acuidade) acaba por revelar ateacute que ponto vai a sua fragilidade cognitiva a sua

falta de fundamento e o que tem de cego acabam por se revelar como algo que a acompanha e

a mina de uma ponta agrave outra

Mas por outro lado a sua forccedila eacute tal que tende a resistir a este exerciacutecio de desmasca-

ramento ndash e a continuar a afirmar-se como se nada fosse Na verdade mesmo quanto temos

plena consciecircncia das fraquezas da ἐμπειρία (mesmo quanto expomos como temos tentado fa-

zer nesta secccedilatildeo as suas falecircncias) ela continua a operar em noacutes intacta e soacute quando cada

um de noacutes se torna ciente desse facto se tem pela primeira vez plena consciecircncia da forccedila da

ἐμπειρία e do modo como apesar de tudo se impotildee

Isto permite-nos perceber a relaccedilatildeo entre os fenoacutemenos aqui em causa (os fenoacutemenos

que constituem a experiecircncia) e aquilo que encontramos numa das mais antigas descriccedilotildees de-

les ndash aquilo que encontramos no livro VII da Repuacuteblica de Platatildeo (516c5 e ss)

Ao descrever o tipo de acesso que haacute no fundo da caverna Soacutecrates realccedila que os pri-

sioneiros natildeo compreendem nada do que se estaacute a passar na situaccedilatildeo em que se encontram

(natildeo fazem a menor ideia do que eacute aquilo que vecircem natildeo sabem o que faz aquilo que vecircem

etc) mas desenvolvem uma grande periacutecia na detecccedilatildeo de padrotildees de regularidade naquilo

que lhes aparece

Na verdade natildeo se trata apenas de padrotildees de regularidade em regime puramente nu-

meacuterico Trata-se da constituiccedilatildeo de complexos de antecipaccedilotildees que lhes permitem aventurar-

se em relaccedilatildeo ao que haacute-de aparecer

Ora ainda que o texto natildeo fale explicitamente de ldquoexperiecircnciardquo ou natildeo aborde o as-

sunto senatildeo num sentido operativo estamos em condiccedilotildees de compreender tendo em conta o

que vimos atraacutes que esses padrotildees de regularidade convertidos em antecipaccedilotildees tomam pa-

110

ra os prisioneiros a forma de leis (sc de quase-leis no sentido oportunamente referido) De

sorte que aquilo de que se estaacute a falar eacute de facto o fenoacutemeno da experiecircncia

Importa-nos este passo da Repuacuteblica porque ele potildee em contraste por um lado o que

seria uma captaccedilatildeo aguda do que aparece (no caso a compreensatildeo das sombras como som-

bras a compreensatildeo da situaccedilatildeo em que ocorrem daquilo que lhes daacute origem etc) e por ou-

tro aquele tipo de captaccedilatildeo que os prisioneiros tecircm em relaccedilatildeo agrave qual ateacute podem desenvolver

grande periacutecia a detecccedilatildeo de padrotildees de regularidade e a sua conversatildeo num sistema de do-

miacutenio do que aparece por via de antecipaccedilotildees

O ponto que nos interessa sublinhar eacute o caraacutecter natildeo-agudo natildeo-penetrante da capta-

ccedilatildeo empiacuterica tal como Platatildeo a descreve neste passo E se mais adiante veremos um pouco

melhor de que eacute que se estaacute a falar quando se fala de acuidade (veremos que o proacuteprio campo

da experiecircncia estaacute marcado por diferenccedilas quanto ao niacutevel de acuidade etc) por agora inte-

ressa focar que a experiecircncia se caracteriza globalmente por um deacutefice de acuidade ndash por

aquilo que podemos descrever como o caraacutecter ldquorombordquo da experiecircncia

Platatildeo parece sublinhar que a experiecircncia tem de proacuteprio precisamente o contraacuterio de

uma perspiciecircncia na captaccedilatildeo de um ldquoobjectordquo

Se por um lado a experiecircncia corresponde a uma forma de perspicaacutecia por outro la-

do a perspicaacutecia empiacuterica tem que ver exclusivamente com a detecccedilatildeo de padrotildees de regulari-

dade

Quer dizer a perspicaacutecia empiacuterica eacute uma perspicaacutecia dirigida agrave construccedilatildeo de anteci-

paccedilotildees ndash ie natildeo eacute uma perspicaacutecia nem que diga respeito a) agrave compreensatildeo do ldquoquecircrdquo daquilo

com que lida (as diferentes determinaccedilotildees que lhe vecircm da αἴσθησις e da μνήμη) nem que diga

respeito b) agrave compreensatildeo dos proacuteprios operadores com que lida (as determinaccedilotildees que utiliza

na montagem de estados-de-coisas permanentes ou das pretensas leis que potildee de peacute)

A experiecircncia regula-se sobretudo pelos contrastes imediatos ndash pelas determinaccedilotildees

em regime de ldquopronto-a-usarrdquo que lhe vecircm da αἴσθησις e da μνήμη e deixa-se absorver na re-

gularizaccedilatildeo do ldquotracircnsitordquo desses contrastes mais precisamente na fixaccedilatildeo de padrotildees e na ge-

raccedilatildeo de antecipaccedilotildees que permitem orientaccedilatildeo no meio desses contrastes e do seu tracircnsito

Para usar um termo muito em voga como palavra de ordem em algumas correntes filo-

soacuteficas do seacuteculo XX a experiecircncia natildeo tem uma vocaccedilatildeo ldquoessencialistardquo Caracteriza-se uma

perspectiva cronicamente distraiacuteda em relaccedilatildeo ao ldquoquecircrdquo

111

Mas sendo assim por outro lado tambeacutem a acentuaccedilatildeo deste aspecto tem o seu quecirc de

unilateral Com efeito se a experiecircncia tem como acabamos de dizer uma vocaccedilatildeo ldquonatildeo-es-

sencialistardquo e padece de qualquer coisa como uma croacutenica distracccedilatildeo relativamente ao ldquoquecircrdquo

nada disso impede que esteja montada como se fosse ldquoessencialistardquo e como se expusesse agrave

evidecircncia o que de relevante haacute para pocircr em evidecircncia em relaccedilatildeo ao ldquoquecircrdquo

Na verdade por mais natildeo-essencialista que a experiecircncia seja eacute justamente a expe-

riecircncia que originalmente suscita o quesito do ldquoquecircrdquo ndash resolvendo-o com a montagem de es-

tados-de-coisas permanentes (ie de ldquoleisrdquo com a pretensatildeo cognitiva que lhes inere)

Quer dizer por mais que se diagnostique agrave experiecircncia o seu caraacutecter ldquonatildeo-essencialis-

tardquo que se procure reduzi-la agrave sua real dimensatildeo de administradora de regularidades e gestora

de antecipaccedilotildees a experiecircncia tem montada uma pretensatildeo de saber que ndash na ldquomeia luzrdquo de

acuidade em que se move e que lhe eacute proacutepria ndash vale como pretensatildeo de saber o ldquoquecircrdquo (uma

pretensatildeo que como vimos nem sequer estaacute ciente de como ela proacutepria estaacute constituiacuteda)

Em suma o que caracteriza a experiecircncia eacute natildeo apenas o fenoacutemeno da quase-lei (da

pretensa lei ou da pretensa posse de leis) caracteriza-a tambeacutem uma pretensa posse do ldquoquecircrdquo

ou uma pretensatildeo de saber o que ldquofazrdquo as coisas

sect16

A ἐμπειρία enquanto algo que ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo que natildeo cumpre o que

promete e que natildeo procura aquilo que jaacute julga ter

Tocamos aqui um outro aspecto da ambiguidade que jaacute pusemos em foco quando falaacute-

mos da forccedila e da fraqueza da experiecircncia Referimo-nos agrave ambiguidade que a caracteriza em

relaccedilatildeo agravequilo que poderaacute haver acima dela (no que diz respeito agrave escala de Aristoacuteteles a am-

biguidade da ἐμπειρία em relaccedilatildeo agrave quarta secccedilatildeo ndash agravequilo a que Aristoacuteteles chama τέχνη ou

ἐπιστήμη)

Dado o que dissemos sobre a forma como a experiecircncia eacute cronicamente distraiacuteda em

relaccedilatildeo a todas as determinaccedilotildees com que labora (e em uacuteltima anaacutelise pura e simplesmente

natildeo faz ideia das determinaccedilotildees com que potildee em contacto) pode-se dizer que quando jaacute se

tem experiecircncia ainda estaacute por saber o essencial

112

Por outras palavras a fragilidade cognitiva da experiecircncia faz que quer no que toca agrave

possibilidade de se ver infirmada (possibilidade a que estaacute exposta por carecer de qualquer

fundamento suficiente para as suas projecccedilotildees) quer no que diz respeito ao conhecimento do

ldquoquecircrdquo (do que constitui as ldquocoisasrdquo do que faz o que quer que seja etc) a experiecircncia ainda

deixe por saber o que eacute decisivo

Isto eacute a) mesmo uma vez jaacute constituiacutedo um campo de experiecircncia pela natureza das

projecccedilotildees empiacutericas ainda continua por estabelecer o que a experiecircncia jaacute ldquoestabelecerdquo b)

mesmo admitindo que as projecccedilotildees empiacutericas satildeo todas elas certas continua ainda assim a

acontecer que tudo aquilo a que a experiecircncia diz respeito continua integralmente por desco-

brir no seu ldquoquecircrdquo (naquilo em que consiste etc)

Por outro lado sendo assim no entanto isto de modo nenhum impede que no plano

de distracccedilatildeo e deacutefice acuidade e distracccedilatildeo em que reina a experiecircncia natildeo apenas pretenda

alcanccedilar tudo isto que na realidade natildeo alcanccedila mas de facto faccedila valer essa pretensatildeo de tal

modo que parece alcanccedilar tudo isso Eacute este o ponto que agora interessa pocircr em destaque

Digamos antes de mais o seguinte a experiecircncia pretende ser jaacute mais do que sufici-

ente pretende ter feito tudo o que haacute a fazer em mateacuteria cognitiva De sorte que por mais in-

completa que possa ser natildeo admite nada acima de si

Em condiccedilotildees normais natildeo haacute qualquer nota de falta a experiecircncia passa por ser uma

apresentaccedilatildeo cabal e adequada do que haacute E isso potildee-nos (para usar a figura de estilo platoacuteni-

ca) de ldquocostas voltadasrdquo para o que quer que seja mais ndash e tanto quer dizer tambeacutem de ldquocostas

voltadasrdquo para as iniciativas de investigaccedilatildeo cientiacutefica

Podemos exprimir este estado-de-coisas dizendo o seguinte se a ἐμπειρία tal como

habitualmente reina em noacutes tivesse de traccedilar uma escala como aquela que eacute desenhada por

Aristoacuteteles essa escala soacute teria trecircs secccedilotildees e acabaria na ἐμπειρία

Melhor a proacutepria ἐμπειρία tal como habitualmente reina em noacutes nem sequer traccedilaria

uma escala com trecircs secccedilotildees Com efeito em virtude da sua distracccedilatildeo a si mesma (agravequilo que

a compotildee etc) tenderia a natildeo diferenciar com suficiente nitidez a αἴσθησις a μνήμη e a proacute-

pria ἐμπειρία ndash e a pocircr tudo mais ou menos ldquono mesmo sacordquo De sorte que a escala da ἐμπει-

ρία (quer dizer a nossa tal como habitualmente vemos as coisas) soacute teria uma secccedilatildeo ndash e

portanto natildeo seria uma escala

Este ldquoestar de costas voltadasrdquo para as ciecircncias tem que ver com algo que encontramos

formalizado no corpus platonicum natildeo se procura aquilo que jaacute se julga ter

113

Quando dizemos que a ἐμπειρία ldquovive acima das suas possibilidadesrdquo tocaacutemos o prin-

ciacutepio que permite a geacutenese das ciecircncias As ciecircncias arrancam sempre da percepccedilatildeo de que a

ἐμπειρία natildeo cumpre o que promete ndash quer dizer as ciecircncias arrancam de uma cisatildeo mediante

a qual se reforccedila o que eacute que a ἐμπειρία permite efectivamente alcanccedilar e o programa gnosio-

loacutegico de que eacute portadora sob a forma de o dar por adquirido

Nesse sentido o programa cognitivo da ἐμπειρία jaacute prefigura aquilo que eacute procurado

nas ciecircncias E em certa medida toda a travessia de investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma travessia a

caminho disso que a ἐμπειρία distraidamente jaacute pretende ter alcanccedilado Ora eacute isso ndash natildeo a

indiferenccedila em relaccedilatildeo ao conhecimento mas a pretensatildeo de jaacute o ter aquilo a que no corpus

platonicum se chama οἴεσθαι εἰδέναι mais precisamente o οἴεσθαι εἰδέναι referente agrave ἐμπει-

ρία ndash que potildee a ἐμπειρία de ldquocostas voltadasrdquo para o empreendimento da procura do saber em

falta (ie para as ciecircncias)

Todas estas consideraccedilotildees sobre o limite superior da ἐμπειρία (quer dizer sobre a

falha cognitiva de que ela padece) podem ndash e na verdade tendem a ndash ser despedidas como

se no fundo soacute resultassem da aplicaccedilatildeo de uma bitola demasiado exigente e desajustada (li-

gada a qualquer coisa como um desiderium inane de perfeiccedilatildeo cognitiva) E natildeo eacute difiacutecil de

compreender que o que em noacutes estaacute por traacutes desta reacccedilatildeo de menosprezo eacute a proacutepria ἐμπει-

ρία (com a sua forccedila aparente a pretensatildeo de suficiecircncia de que se reveste etc) que resiste a

ser posta em causa

Contudo importa ter presente que a fragilidade cognitiva da ἐμπειρία natildeo eacute uma fragi-

lidade apenas relativa a criteacuterios desmedidos ou uma exigecircncia de perfeiccedilatildeo exagerada Trata-

se de uma imperfeiccedilatildeo real ndash uma imperfeiccedilatildeo que a atinge no seu proacuteprio fulcro e que faz

que em uacuteltima anaacutelise a ἐμπειρία natildeo cumpra rigorosamente nada do que parece E isto eacute

assim mesmo no que diz respeito agraves funccedilotildees de orientaccedilatildeo que efectivamente exerce (quer di-

zer agrave forma como permite ldquoandar no tracircnsitordquo do que nos aparece) a ἐμπειρία ldquofuncionardquo na

maioria dos casos ndash mas natildeo constitui nada do saber que pretende ter adquirido

Ora quando se avanccedila com a foacutermula ldquoa experiecircncia funciona na maioria dos casosrdquo

jaacute se estaacute a abrir campo agrave intromissatildeo a uma minoria de casos em que natildeo funciona ndash em que

as quase-leis empiacutericas revelam na verdade o seu caraacutecter de ψευδεῖς

Eacute esse o caso quando haacute espanto naquilo que diz respeito agrave ἐμπειρία o espanto revela

a fragilidade da ἐμπειρία no cumprimento do projecto de saber

114

Jaacute atraacutes consideraacutemos o fenoacutemeno do espanto Dissemos entatildeo que o espanto resulta

de uma falta de coincidecircncia entre o conteuacutedo da projecccedilatildeo empiacuterica e o conteuacutedo das percep-

ccedilotildees que efectivamente tecircm lugar Neste sentido o espanto poderia corresponder a um factor

de arranque a partir do erro detectado na lei empiacuterica Isto eacute o espanto coloca-nos a a vislum-

brar a fronteira entre a terceira para a quarta etapa da escala

Poreacutem natildeo apenas o advento do espanto natildeo eacute suficiente para fazer arrancar o projecto

cientiacutefico (em virtude do facto de na verdade uma lei empiacuterica poder muito bem ser substi-

tuiacuteda por outra lei empiacuterica sujeita aos mesmos constrangimentos da primeira e que pode de-

por na situaccedilatildeo de apaziguar o espanto) como como vimos o espanto tende a confinar-se a

umas poucas projecccedilotildees empiacutericas (no meio de um maciccedilo de projecccedilotildees aparentemente imu-

nes)

Quer dizer em primeiro lugar ao contraacuterio da transiccedilatildeo entre os outros patamares da

escala a transiccedilatildeo entre a etapa da ἐμπειρία e a etapa de τέχνη e ἐπιστήμη natildeo eacute instantacircnea

mas exige mobilizaccedilatildeo ndash exige que se gere uma tensatildeo para o passo ulterior da escala para

superar o que parece ser um acesso interdito agrave τέχνη ou έπιστήμη (em virtude de a ἐμπειρία ter

a aparecircncia de τέχνη ou έπιστήμη e em virtude de parecer que o que τέχνη e έπιστήμη poderiam

propiciar estaacute alcanccedilado)

Em segundo lugar a geraccedilatildeo de τέχνη e έπιστήμη natildeo parece implicar a totalidade do

saber mas apenas a secccedilatildeo maior ou menor em que o espanto se deu A crise por que a ἐμπει-

ρία passa natildeo seria portanto geral mas regional diria respeito meramente ao acircmbito da falha

ndash de tal modo que tudo o mais pareceria ilibado pareceria natildeo suscitar duacutevidas nem gerar pro-

blemas Assim o fundo geral constituiacutedo por ἐμπειρία pareceria manter-se ileso

Daqui decorre que a ἐμπειρία nunca perde no geral na sua grande maioria o caraacutecter

de evidecircncia que atraacutes se viu corresponder-lhe Neste sentido τέχνη e έπιστήμη aparecem co-

mo especificaccedilotildees da ἐμπειρία agrave partida τέχνη ou έπιστήμη natildeo aparecem como revoluccedilotildees de

perspectiva mas aparecem como mera focagem (que daacute lugar a uma captaccedilatildeo mais rica ou

mais precisa)

Isto eacute neste sentido τέχνη e έπιστήμη tomariam parte numa perspectiva que se mante-

ria na sua grande maioria perspectiva empiacuterica Logo τέχνη e έπιστήμη surgiriam como pro-

longamento de uma perspectiva natildeo-teacutecnica ou natildeo-episteacutemica

Ora o que Aristoacuteteles descreve quando fala do espanto como momento de arranque

das ciecircncias eacute algo muito diferente disto

115

Aristoacuteteles descreve a transiccedilatildeo entre a terceira e a quarta etapa da escala como uma

explosatildeo de espanto como um movimento de expansatildeo de perplexidades ndash uma expansatildeo que

se alargaria agraves causas primeiras

Na verdade em uacuteltima anaacutelise o projecto cientiacutefico ou episteacutemico teria sempre de cor-

responder a um projecto total ndash a um projecto que natildeo deixasse nenhuma lei ou projecccedilatildeo em-

piacuterica por verificar A transiccedilatildeo do patamar da ἐμπειρία para o de τέχνη ou έπιστήμη implicaria

uma remodelaccedilatildeo total da perspectiva

Esta sugestatildeo eacute dada em Met 983a11 a aquisiccedilatildeo de τέχνη ou έπιστήμη deve revelar

uma perspectiva diferente da perspectiva empiacuterica e natildeo apenas uma perspectiva diferente

mas uma perspectiva contraacuteria jaacute que se passa de natildeo estar para estar na posse da identidade

do ldquoquecircrdquo das coisas Em suma τέχνη ou έπιστήμη propiciariam uma mudanccedila global de pers-

pectiva

Ora o caso eacute que embora natildeo constitua nada do saber que pretende ter adquirido a

ἐμπειρία parece ldquofuncionarrdquo na maioria dos casos E isto eacute tanto assim que se considerarmos

aquilo que estaacute especialmente em causa nesta investigaccedilatildeo ndash a vida ndash e perguntarmos que eacute

que a experiecircncia da vida pode alcanccedilar em relaccedilatildeo agrave vida entatildeo a resposta eacute a seguinte se a

experiecircncia da vida eacute ἐμπειρία no sentido que aqui tentaacutemos desenhar pode muito bem ter-se

experiecircncia da vida (e ateacute experiecircncia da vida resultante de uma larga travessia perceptiva)

sem saber absolutamente nada do que constitui o que quer que seja pode muito bem ter-se ex-

periecircncia da vida sem saber nada do que constitui a vida (o ldquoquecircrdquo da vida) e pode muito bem

ter-se experiecircncia da vida ateacute mesmo sem perceber que natildeo se percebe nada disto julgando

pelo contraacuterio ter percebido tudo muito bem

Se a experiecircncia tem as caracteriacutesticas que enunciaacutemos o que a caracteriza eacute o facto

de as suas aquisiccedilotildees terem que ver com a orientaccedilatildeo no ldquotracircnsitordquo do que aparece ndash num regi-

me de relativa distracccedilatildeo relativamente ao ldquoquecircrdquo do que quer que seja

116

LIVRO II

EXPERIEcircNCIA DA VIDA

117

INTRODUCcedilAtildeO

sect17

Os sentidos muito diversos da noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo a ldquoexperiecircncia da vidardquo como

mero ramo da experiecircncia ou toda a experiecircncia tal como acontece em noacutes sempre jaacute de

raiz ldquoexperiecircncia da vidardquo

Um componente essencial que as secccedilotildees anteriores deixaram por desenhar diz respei-

to ao quadro em que se produz o tipo de captaccedilatildeo do proprium da experiecircncia que nelas en-

saiaacutemos Vendo bem no quadro que as secccedilotildees anteriores esboccedilaram concebe-se a experiecircn-

cia como uma operaccedilatildeo numa espeacutecie de ldquoeacuteterrdquo

Se o fenoacutemeno da experiecircncia correspondesse meramente ao resultado da anaacutelise leva-

da a cabo nas secccedilotildees anteriores o que teriacuteamos seria a experiecircncia entendida como uma for-

ma ldquosoltardquo de constituiccedilatildeo de um aparecimento mais complexo e essa forma ldquosoltardquo seria

compreendida independentemente daquilo a que concretamente se aplica (e isto tanto no que

diz respeito ao teor quanto no que diz respeito agrave amplitude daquilo a que se aplica)

Poderiacuteamos dizecirc-lo assim segundo o modelo que vimos ateacute agora a estrutura da expe-

riecircncia constituiria algo de invariaacutevel e constituiria por outro lado em simultacircneo uma forma

abrangente de aplicaccedilatildeo geral Na medida em que a experiecircncia constituiria uma uacutenica for-

ma (na medida em que tem o mesmo conjunto de propriedades fundamentais em qualquer ca-

so) entatildeo a forma da expe-riecircncia seria susceptiacutevel de ter lugar nos mais diversos acircmbitos ou

de se aplicar sobre os mais diversos objectos

Quer dizer vista como a vimos ateacute este ponto a experiecircncia poderia ser do que quer

que fosse ndash na medida em que a todos os objectos de que se tem ou se pode ter experiecircncia se

aplica a forma da experiecircncia Poderia dizer-se em suma segundo o modelo que vimos ateacute

este momento que a forma da experiecircncia se aplicaria de modo indiferenciado

Ora essa consideraccedilatildeo ldquoabstractardquo da experiecircncia pode fazer perder de vista a possibi-

lidade de justamente natildeo ser assim

118

Isto eacute ela pode fazer perder de vista a possibilidade de o quadro em que estamos cons-

tituiacutedos em relaccedilatildeo agrave experiecircncia ser muito diferente deste registo aberto a toda a espeacutecie de

possibilidades de aplicaccedilatildeo

A perspectiva em que laboraacutemos nas secccedilotildees precedentes esquece a possibilidade de

as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia terem sempre lugar no quadro de uma vinculaccedilatildeo por

estarem sempre jaacute voltadas para um dado complexo de teores ou de ldquoobjectosrdquo com uma de-

terminada amplitude

Na verdade pode muito bem acontecer que a experiecircncia nunca seja alheia a um qua-

dro dessa ordem Isto eacute pode acontecer que a experiecircncia se caracterize sempre jaacute por uma

grelha de determinaccedilotildees e por uma amplitude fixa natildeo sendo de raiz indiferente nem a uma

nem agrave outra E isto de tal modo que ateacute pode acontecer que esse quadro seja justamente tal

que se preste a ser fixado na forma ldquoexperiecircncia da vidardquo ndash e que toda a experiecircncia tal como

acontece em noacutes seja sempre de raiz uma experiecircncia da vida (e nunca menos do que isso)

Para seguirmos na pista desta possibilidade consideremos o seguinte

Eacute notaacutevel que ndash mesmo quando se faz valer que a nossa forma de acesso eacute uma forma

de acesso empiacuterica como as secccedilotildees anteriores procuraram demonstrar ndash o modelo que conti-

nua sub-repticiamente a subsistir eacute o modelo da experiecircncia como algo avulso

Isto eacute agrave revelia do que vimos atraacutes o modelo que continua a subsistir eacute um modelo em

que uma mesma forma abrange ou abarca muitos ldquoobjectosrdquo se dirige a x ou a y (mas natildeo

por exemplo a z) ndash como uma ldquoviagemrdquo com vaacuterios ldquodestinosrdquo O modelo que subsiste eacute em

suma um modelo que assenta no caraacutecter distributivo da forma da experiecircncia

Neste sentido a experiecircncia incidiria sobre alguns ldquoconteuacutedosrdquo (ao mesmo tempo que

deixaria de fora todos os ldquoconteuacutedosrdquo em que natildeo incidisse) constituiria ramos consistiria em

pequenos focos isolados etc

Na verdade eacute assim ndash ie seguindo subtilmente o modelo de experiecircncia avulsa ndash que

habitualmente se tende a conceber a experiecircncia Quando falamos de ldquouma experiecircnciardquo ou de

ldquoexperiecircnciasrdquo o modelo que inconscientemente aplicamos faz sobressair o caraacutecter pontual

ou circunscrito do que aparece ou do que ocorre O termo ldquoexperiecircnciardquo isola habitualmente

uma ocorrecircncia singular ndash uma ocorrecircncia que eacute apartada do resto das ocorrecircncias O que

com isso se salienta eacute um certo caraacutecter excepcional excecircntrico por ldquoexperiecircnciardquo toma-se

por assim dizer algo de perfeitamente localizado destacado diacutespar etc Tem-se experiecircncia

de x mas natildeo de y ou z etc

119

O que isto quer dizer eacute que no sentido habitual do termo ldquouma experiecircnciardquo eacute algo

que aparece como uma ldquoilhardquo no meio de um ldquomarrdquo de ocorrecircncias que natildeo tecircm a forma da

experiecircncia

Eacute isto que daqui em diante importa reconsiderar E eacute no acircmbito desta reconsideraccedilatildeo

que entra em cena o conceito de ldquoexperiecircncia da vidardquo

Vendo bem a noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo pode acolher sentidos muito diversos

eventualmente contraditoacuterios entre si Isto tem que ver com o facto de poder ser abordada de

vaacuterios acircngulos que modificam muito significativamente a nossa perspectiva a seu respeito

Natildeo cabe considerar aqui todas essas perspectivas Mas haacute alguns aspectos que deve-

mos pocircr em destaque

Ao considerarmos habitualmente a ldquoexperiecircncia da vidardquo tendemos a supor que es-

tamos a falar de um campo de aplicaccedilatildeo particular de algo como um ramo da experiecircncia

geral se assim se pode dizer

Essa perspectiva natildeo se acha desmentida nas secccedilotildees precedentes De facto o modelo

que vimos ateacute agora sugere justamente que a) a experiecircncia pode ter diversos ldquoobjectosrdquo (po-

de ser de diversas ldquocoisasrdquo e ter diversas amplitudes de aplicaccedilatildeo) e que b) entre os ldquoobjec-

tosrdquo possiacuteveis da experiecircncia se encontra tambeacutem o ldquoobjectordquo ldquovidardquo

Nesta oacuteptica a noccedilatildeo ldquoexperiecircncia da vidardquo compreenderia a contracccedilatildeo de dois ter-

mos (ldquoexperiecircnciardquo e ldquovida) sem qualquer nexo essencial entre si

A ldquovidardquo natildeo seria mais do que um mero tema ou um domiacutenio possiacutevel da experiecircn-

cia Dito de outro modo a ldquovidardquo seria algo como um ldquoobjectordquo entre outros que se limitaria

a ser entendido sob a matriz da experiecircncia como uma variaccedilatildeo dessa matriz etc

Mais ainda natildeo apenas a experiecircncia da ldquovidardquo seria uma mera variedade de experiecircn-

cia (de entre uma variedade de outras experiecircncias possiacuteveis) como seria um ramo facultativo

ndash um ramo que se poderia constituir em ldquoobjectordquo ou natildeo

Ao mesmo tempo isto quereria dizer que natildeo haveria qualquer relaccedilatildeo de interacccedilatildeo

ou coordenaccedilatildeo entre os diferentes ldquoramosrdquo Ou seja a constituiccedilatildeo de experiecircncia de qual-

quer ldquoobjectordquo natildeo estaria dependente de uma eventual constituiccedilatildeo de experiecircncia da ldquovidardquo

ndash e o contraacuterio seria igualmente verdadeiro No limite a experiecircncia de qualquer ldquoobjectordquo (e

assim tambeacutem a experiecircncia da ldquovidardquo) seria uma experiecircncia avulsa completamente isolada

120

da experiecircncia de qualquer outro ldquoobjectordquo (ie sem interferir de modo algum com a experi-

ecircncia de qualquer outro ldquoobjectordquo)

Eacute claro que este modelo de constituiccedilatildeo separada da experiecircncia e da vida (que os

concebe como dois domiacutenios separados ndash ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo ndash susceptiacuteveis de se junta-

rem cruzarem etc) chama a atenccedilatildeo para o facto de termos habitualmente noccedilatildeo de qual-

quer coisa como uma experiecircncia da vida Isto quer dizer que estamos constituiacutedos de tal mo-

do que a vida eacute algo de que se tem experiecircncia e faz sentido falar de algo como ter-se ldquoexpe-

riecircnciardquo da ldquovidardquo

Isto eacute mesmo que fosse assim (mesmo que se aplicasse o modelo que vimos ateacute ago-

ra) a ldquovidardquo traria algo agrave equaccedilatildeo jaacute que a ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo se distinguiria de todas

as outras variaccedilotildees de experiecircncia possiacuteveis Na medida em que natildeo seria idecircntica a nenhu-

ma das outras variaccedilotildees de experiecircncia possiacuteveis entatildeo caberia agrave ldquoexperiecircncia da vidardquo ser

uma experiecircncia particular especiacutefica etc Poreacutem seja como for a variaccedilatildeo natildeo seria mais

do que uma mera variaccedilatildeo quanto ao ldquoobjectordquo (quanto ao teor e agrave amplitude) A matriz fun-

damental da experiecircncia seria univer-salmente vaacutelida (e aplicaacutevel a todos os ldquoobjectosrdquo) E o

que a ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo traria de particular e especiacutefico seria algo secundaacuterio um caso

particular dessa matriz fundamental etc

Acontece que ao considerar mais detidamente este modelo (e o facto de estarmos fa-

miliarizados com algo como a ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo) resulta que toda a compreensatildeo que

se tem disso manteacutem aberta ou indeterminada a relaccedilatildeo que a ldquovidardquo tem com a ldquoexperiecircn-

ciardquo

Na evidecircncia de que temos uma noccedilatildeo de ldquoexperiecircnciardquo da ldquovidardquo estaacute totalmente por

compreender como eacute que a vida tem que ver com a experiecircncia como eacute que a experiecircncia da

vida se distingue de todas as outras modalidades de experiecircncia a que ldquoobjectordquo se refere

etc Fica igualmente por esclarecer se a vida desempenharaacute algum papel na constituiccedilatildeo da

experiecircncia e no caso de uma resposta positiva que papel desempenha a vida na constituiccedilatildeo

da experiecircncia

121

sect18

O caraacutecter oacutebvio vago desfocado e equiacutevoco da noccedilatildeo habitual de ldquovidardquo ndash Abordagem

preliminar agrave noccedilatildeo de ldquovidardquo a unidade maacutexima do aparecimento na primeira pessoa

Se natildeo estamos a ver mal a perspectiva que habitualmente se tem quando se com-

preende a ldquovidardquo como um mero campo de aplicaccedilatildeo entre outros (como um mero ldquoobjectordquo

possiacutevel da experiecircncia) corresponde a uma forma muito peculiar de relaccedilatildeo com aquilo que

estaacute em causa na noccedilatildeo de ldquovidardquo

Todo este modelo de constituiccedilatildeo separada da experiecircncia e da vida parece assentar na

pressuposiccedilatildeo de que se sabe muito bem de que eacute que se trata quando se fala da ldquovidardquo ndash ie

de que a ldquovidardquo tem um caraacutecter oacutebvio

Ora se tentarmos identificar um pouco mais precisamente o que estaacute em causa quando

se fala na ldquovidardquo surgem problemas

Eacute que o conceito de ldquovidardquo tambeacutem admite diversos usos e tambeacutem se aplica a diver-

sos campos eacute que tambeacutem ele se dispersa por uma constelaccedilatildeo de fenoacutemenos eventualmente

distintos ou contraditoacuterios entre si

Na verdade a forma como habitualmente usamos o conceito de ldquovidardquo ndash e percebe-

mos como entre outros tambeacutem a vida pode ser um objecto da experiecircncia de tal modo que

haacute qualquer coisa como uma experiecircncia da vida etc ndash ressente-se deste caraacutecter vago des-

focado equiacutevoco etc

Este ponto eacute particularmente importante para o complexo de questotildees que aqui preten-

demos analisar em relaccedilatildeo agrave ldquoexperiecircncia da vidardquo

Com efeito eacute justamente esse caraacutecter vago (desfocado equiacutevoco etc) do que estaacute

em causa na ldquovidardquo (os contornos pouco definidos essa relaccedilatildeo frouxa com o que constitui a

vida etc) que faz que seja igualmente frouxo o nexo entre ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo no concei-

to mais comum de ldquoexperiecircncia da vidardquo

Como ficaraacute mais claro na continuaccedilatildeo uma anaacutelise de como estaacute constituiacutedo o fenoacute-

meno da ldquovidardquo acabaraacute por apurar que o nexo com a experiecircncia natildeo eacute de modo nenhum

frouxo nem facultativo O que se apura eacute de facto o contraacuterio que toda a ldquoexperiecircnciardquo eacute

sempre jaacute ldquoexperiecircncia da vidardquo e assim tambeacutem que a vida tem de raiz a estrutura ou a

forma da ldquoexperiecircnciardquo

122

Se tivermos em conta o modelo de constituiccedilatildeo separada da experiecircncia e da vida o

que se desenha eacute que os ldquoobjectosrdquo da experiecircncia natildeo afectam de modo nenhum a ldquoformardquo da

experiecircncia (precisamente na medida em que a mesma ldquoformardquo se aplica a uma variedade de

ldquoobjectosrdquo que a ldquoformardquo eacute independente dos ldquoobjectosrdquo a que se aplique etc) O que isto

parece querer dizer eacute que o que ldquoobjectordquo ndash qualquer que ele seja ndash natildeo desempenha nenhum

papel na constituiccedilatildeo da experiecircncia

Poreacutem o que nos interessaraacute considerar mais detidamente nas secccedilotildees que se seguem eacute

que a vida natildeo eacute apenas um campo secundaacuterio ou perifeacuterico onde se ganhem meramente de-

terminaccedilotildees acessoacuterias ou suplementares a uma matriz fundamental

Na verdade o horizonte que de seguida se abriraacute altera radicalmente o modo como o

fenoacutemeno da ldquoexperiecircnciardquo nos aparece e isto de tal modo que se deixaacutessemos esta possibi-

lidade por considerar natildeo soacute a) o fenoacutemeno da ldquoexperiecircnciardquo nos apareceria incompleto e

mutilado de uma parte do que o compotildee como b) poderiacuteamos deixar simplesmente escapar

os factores que modificam o modo como a experiecircncia nos aparece e que ndash e este eacute o ponto

decisivo ndash a potildeem a ser de certo modo o contraacuterio de algo abstracto e independente daquilo

que tem por ldquoobjectordquo

Eacute que se natildeo estamos a ver mal como numa secccedilatildeo anterior jaacute tiacutenhamos mencionado

de passagem as operaccedilotildees proacuteprias da experiecircncia tecircm lugar no quadro de uma vinculaccedilatildeo

A experiecircncia estaacute desde a raiz sob a pressatildeo de quesitos e a sua constituiccedilatildeo responde a

exigecircncias

O que isto indica eacute que a experiecircncia natildeo eacute por assim dizer de ldquogeraccedilatildeo espontacircneardquo

Muito pelo contraacuterio a experiecircncia estaacute fundada sobre (ou eacute dependente de) uma estrutura

fundamental que ultrapassa o seu acircmbito

Ora como veremos mais detalhadamente na continuaccedilatildeo a ldquovidardquo eacute precisamente

isso que define ao mesmo tempo a circunscriccedilatildeo do teor e da amplitude dos ldquoobjectosrdquo para

que a experiecircncia estaacute sempre jaacute voltada

Daqui decorre que a ldquoexperiecircncia da vidardquo natildeo eacute algo de facultativo (algo que se po-

deria constituir em objecto ou natildeo) tal como natildeo eacute algo sem qualquer intervenccedilatildeo sobre os

restantes ramos da experiecircncia Qualquer ldquoramordquo da experiecircncia estaacute vendo bem depen-

dente da ldquoexperiecircncia da vidardquo subordinado a ela a constituiccedilatildeo da experiecircncia do que

quer que seja natildeo estaacute agrave revelia da experiecircncia da vida etc

123

Para percebermos isto eacute indispensaacutevel dar lugar mesmo que de forma muito geneacuterica

a vaacuterios aspectos da equivocidade do conceito de ldquovidardquo

A vida pode ser entendida no quadro da scala naturaelig (ie no quadro da sequecircncia

esse ndash vivere ndash perciperesentire ndash intelligere)34

ldquoVidardquo significa no quadro da scala naturaelig um determinado modo-de-ser que faz

parte de um complexo de modos-de-ser que tende a aparecer-nos a) como esgotando todas as

possibilidades de modos-de-ser e b) como tendo caraacutecter tal que os modos mais complexos soacute

satildeo possiacuteveis em relaccedilatildeo aos menos complexos que vecircm transformar na superveniecircncia que

os excede

Natildeo estamos neste passo em condiccedilotildees de considerar em toda a extensatildeo a que questatildeo

ou complexo de questotildees responde esta escala de que modo estaacute esta escala formada ou em

especial que ldquolugarrdquo ocupa a vida na escala Interessa mostrar apenas muito brevemente dois

aspectos que a escala expotildee

Por um lado que o que estaacute em causa na scala naturaelig eacute uma precedecircncia de uns niacute-

veis da escala sobre outros A scala naturaelig apresenta uma etapa como sendo uma deduccedilatildeo da

anterior Assim essere tem precedecircncia sobre vivere que por sua vez tem precedecircncia sobre

sentire que tem enfim precedecircncia sobre intelligere

O que a scala naturaelig parece apontar eacute que essere eacute condiccedilatildeo de possibilidade de vive-

re sentire e intelligere que vivere eacute condiccedilatildeo de possibilidade de sentire e intelligere e que

sentire eacute ainda condiccedilatildeo de possibilidade de intelligere ndash de tal modo que invertendo a esca-

34

Natildeo interessa fazer aqui uma historiografia nem da noccedilatildeo formal ldquoscala naturaeligrdquo nem das muacuteltiplas

desformalizaccedilotildees que mereceu ao longo da histoacuteria Uma historiografia exaustiva mostraria antes de

mais um questionamento quanto agrave origem (quer agrave proacutepria origem da noccedilatildeo quer agrave origem do uso ope-

rativo de algo como uma scala naturaelig) se alguns autores referem o Timeu de Platatildeo outros citam o

De Generatione Animalium de Aristoacuteteles por exemplo Ao mesmo tempo uma historiografia exaus-

tiva como a de Lovejoy (The great Chain of being A Study of the History of an idea 1969 Cambrid-

ge Harvard University Press) mostra tambeacutem uma incriacutevel variedade de escalas muito distintas entre

si ndash quer em relaccedilatildeo ao cardinal de niacuteveis de que eacute composta quer em relaccedilatildeo aos conteuacutedos que ocu-

pam os diversos niacuteveis ndash tudo isto consoante os diversos autores e as diversas eacutepocas que se debruccedila-

ram sobre o tema Ora o que nos interessa neste passo eacute apenas fazer notar que o formato que estamos

aqui a adoptar (esse ndash vivere ndash perciperesentire ndash intelligire) corresponde agrave fixaccedilatildeo produzida em tex-

tos como os de Mezger (Quatuor gradus naturae esse vivere sentire et intelligere Salisburgum

Mayr 1664) ou de Tomaacutes de Aquilo (Summa Theologiae Textum Leoninum Romae 1889 q 76 a 4

ad 3) e que aquilo a que estamos em geral a apelar ao fazer uso desta noccedilatildeo eacute a uma estrutura funda-

mental que espontacircnea e anonimamente domina o modo como estamos constituiacutedos

124

la intelligere natildeo eacute possiacutevel sem sentire vivere e essere que por sua vez sentire natildeo eacute possiacute-

vel sem vivere e essere e que por fim vivere natildeo eacute possiacutevel sem essere Dito por outras pa-

lavras tudo o que eacute vivo teria a propriedade de ser tudo o que sente teria a propriedade de

ser e de ser vivo e tudo o que tem intelecto teria a propriedade de ser de ser vivo e de sentir

Por outro lado no entanto os diversos patamares natildeo se influenciam unidireccional-

mente ndash do essere (que compreende todas as outras camadas) ao intelligere (que eacute compreen-

dido por todas as outras) O caso parece aliaacutes ser o contraacuterio

Ainda que ldquoo que eacuterdquo natildeo dependa de ser ldquovivordquo para ldquoserrdquo depende de ser ldquovivordquo pa-

ra ter perspectiva sobre o facto de ldquoserrdquo

Isto eacute a escala sugere que haacute algo como uma estrutura retrospectiva de acesso agrave etapa

precedente ndash isto de tal modo que um ser ldquonatildeo vivordquo natildeo tem qualquer perspectiva sobre o

facto de ser que um ser ldquonatildeo sensiacutevelrdquo natildeo tem qualquer perspectiva sobre o facto de ldquoestar

vivordquo e que um ser sem intelecccedilatildeo natildeo tem qualquer perspectiva sobre o facto de ser um ldquoser

vivo sensiacutevelrdquo

Ora entendida neste sentido meramente formal (no sentido de constituir um modo-de-

ser e de constituir um modo-de-ser que abre perspectiva sobre ldquoo que eacuterdquo) a vida deixa aberto

o horizonte para uma miriacuteade de formas de abordagem (e tanto quer dizer tambeacutem para uma

miriacuteade de concepccedilotildees de acircngulos etc) consoante as disciplinas que sobre ela se debruccedilam

consoante os seus pressupostos teoacutericos e morfologias etc

Na verdade haacute uma incriacutevel variedade de disciplinas que se dedicam agrave vida Poreacutem

aquilo que notamos ao considerar individualmente cada uma dessas disciplinas eacute que elas in-

troduzem um movimento de restriccedilatildeo de acircmbito ndash o movimento de restriccedilatildeo de acircmbito que

diz respeito ao proacuteprio conceito operativo de ldquovidardquo que cada uma aplica

O que daqui resulta eacute que nenhuma disciplina esgota de modo nenhum a ldquovidardquo en-

quanto objecto de estudo Na verdade cada disciplina deixa em aberto o horizonte para uma

miriacuteade de outros acircngulos e outros meacutetodos de abordagem ndash expresso na miriacuteade de outras

disciplinas que versam precisamente o ldquomesmordquo assunto a partir de outros acircngulos e de ou-

tras abordagens ndash assim como deixa de fora tudo o resto que constitui a vida (tudo o resto

que compotildee isso a que habitualmente nos referimos quando falamos de ldquovidardquo)35

35

Considere-se por exemplo a biologia Por mais que a biologia tenha por objecto a vida a verdade eacute

que o objecto ldquovidardquo considerado a partir da oacuteptica da biologia deixa de fora todo um conjunto de as-

125

Eacute neste sentido que o conceito de ldquovidardquo pode ser equiacutevoco ndash e pode ser equiacutevoco pre-

cisamente porque se presta a usos ou a acircngulos de abordagem que satildeo por vezes totalmente

incompatiacuteveis entre si

Ora o sentido da noccedilatildeo de ldquovidardquo que aqui se teraacute em mente eacute muito diferente do que

vimos ateacute agora O sentido que aqui se tem em mente eacute o fenoacutemeno da ldquovidardquo como de cada

vez eacute tido na primeira pessoa e que tem um caraacutecter de totalidade

Vejamos um pouco melhor o que queremos dizer com isto

A ldquovidardquo no sentido do termo que aqui temos em jogo corresponde agrave unidade maacutexima

do proacuteprio aparecimento ndash na medida em que natildeo se encontra dispersa como uma ldquoilhardquo to-

talmente perdida em si mesma e privada de qualquer relaccedilatildeo com o que se situa para laacute de si

E como veremos melhor na continuaccedilatildeo esta unidade maacutexima na primeira pessoa (a vida)

produz uma unificaccedilatildeo global de tudo o que aparece constituindo um uacutenico horizonte

Eacute verdade que por outro lado essa unidade maacutexima na primeira pessoa se distingue

por ser apenas isso a unidade maacutexima na primeira pessoa ndash e tanto quer dizer uma iacutenfima

parte no meio de um maciccedilo de realidade com dimensotildees absolutamente esmagadoras em re-

laccedilatildeo agraves suas

Ao falar de vida neste sentido o que estaacute sempre jaacute em causa eacute a forma de aconteci-

mento em que cada um daacute por si em que cada um estaacute atirado em que se estaacute sempre jaacute pos-

to etc

Mas natildeo apenas isso Trata-se na verdade de algo de exclusivo (de algo de particular

de privado de pessoal etc) ndash de algo que de certo modo se atravessa pelo proacuteprio peacute que eacute

meramente desse a quem pertence ou que nela estaacute atirado etc

Mais trata-se precisamente de algo que estaacute encerrado nesse a quem pertence que

nela estaacute atirado ou em que daacute por si Isto eacute trata-se de algo que impassiacutevel de ser passado a

outro (de algo que eacute incomunicaacutevel insusceptiacutevel de ser transmitido ou partilhado etc)

Mas mesmo sendo assim isso natildeo impede que tudo quanto a exceda ndash e em relaccedilatildeo

ao qual tem as dimensotildees de um iacutenfimo recanto ndash tambeacutem faccedila parte dela e esteja incluiacutedo na

pectos que compotildeem a vida tal como a entendemos habitualmente ndash e com isso pode muito bem

acontecer que os aspectos que deixa de fora sejam aspectos essenciais para compreender isso a que ha-

bitualmente nos referimos quando falamos de ldquovidardquo

126

unidade maacutexima na primeira pessoa que aqui pretendemos pocircr em destaque Isto eacute trata-se

de algo que tem caraacutecter de totalidade

Por um lado a vida natildeo eacute algo que esteja de tal modo fechado em si que natildeo tenha

qualquer relaccedilatildeo com o exterior A vida ndash mesmo no sentido de ldquoisso que corresponde a cada

umrdquo ndash eacute algo que estaacute englobado num campo de realidade muito mais vasto

Mas natildeo estaacute englobado nesse campo mais vasto como se tivesse posto numa relaccedilatildeo

de radical heterogeneidade em relaccedilatildeo a ele Pelo contraacuterio como veremos mais precisamen-

te na continuaccedilatildeo a vida estaacute constituiacuteda de tal modo que tudo lhe eacute interior tudo faz parte

dela etc ndash isto na medida em que tudo o que aparece assume de certo modo um papel ne-

la36

Natildeo se trata neste passo de discutir este aspecto com qualquer preocupaccedilatildeo de tentar

compreender os seus meandros ndash esta peculiar instacircncia de propriedade a que cada um chama

a sua vida e ao mesmo tambeacutem ldquoardquo vida O que interessa assinalar eacute que com tudo o que

tem de paradoxal de difiacutecil de determinar e de entender constitui um fenoacutemeno central no

acontecimento em que nos achamos constituiacutedos ndash neste εἶναι τοῖς ποῖ δεῖ βαδίζειν ἀγνοοῦσι

que (como se diz em Met 995a) eacute o que noacutes somos

O que se trata eacute precisamente de tentar focar este peculiar fenoacutemeno de perceber

melhor os seus traccedilos na medida em que eacute em relaccedilatildeo a ele que se pretende averiguar o nexo

de ligaccedilatildeo agrave experiecircncia ndash e tanto quer dizer tambeacutem o nexo de ligaccedilatildeo da experiecircncia a esta

peculiar forma de totalidade

Em suma o que estaacute em causa quando se aborda a ldquoexperiecircncia da vidardquo (ie quando

se foca o nexo entre ldquoexperiecircnciardquo e ldquovidardquo) natildeo eacute como se veraacute claramente na continuaccedilatildeo

apenas uma regiatildeo de contacto entre duas instacircncias nucleares alheias uma agrave outra Eacute na

verdade algo muito diferente a saber que vidardquo e ldquoexperiecircnciardquo natildeo podem ser plenamente

compreendidas isoladamente

36

Toca-se aqui uma paradoxal propriedade da unidade maacutexima na primeira pessoa a que chamamos

ldquovidardquo o facto de corresponder a qualquer coisa semelhante a uma fita de Moumlbius ie o facto de se

caracterizar pela estranha possibilidade de o envolvente ser envolvido e vice-versa de o interior se

revelar exterior e o exterior interior etc A este propoacutesito ver Silva N Identidade e vida em Virginia

Woolf uma anaacutelise da expressatildeo literaacuteria de um problema filosoacutefico Tese de Doutoramento UNL

Lisboa 2011 p 73-85

127

A experiecircncia soacute se manifesta tal como efectivamente tem lugar quando eacute percebida

na sua relaccedilatildeo com a vida e inversamente a vida soacute se manifesta como efectivamente tem lu-

gar na sua relaccedilatildeo com a experiecircncia

Haacute e seraacute isso que as secccedilotildees seguintes tentaratildeo pocircr a claro um entretecimento uma

muacutetua implicaccedilatildeo a compreensatildeo do que estaacute em causa na ldquovidardquo estaacute incompleta e desfo-

cada sem a compreensatildeo simultacircnea do que estaacute em causa na ldquoexperiecircnciardquo e a compreen-

satildeo do que estaacute em causa na ldquoexperiecircnciardquo estaacute incompleta e desfocada sem a compreensatildeo

simultacircnea do que estaacute em causa na ldquovidardquo

O que se deixaraacute ver eacute que se levarmos este modelo ateacute agraves suas uacuteltimas consequecircn-

cias a experiecircncia do que quer que seja eacute no limite sempre experiecircncia da vida ndash e tanto

quer dizer estaacute na dependecircncia da vida estaacute assente sobre as fundaccedilotildees da vida tem a vida

por base e por objecto etc E assim tambeacutem a vida estaacute constituiacuteda no modo de uma experi-

ecircncia da vida ndash e tanto quer dizer estaacute na dependecircncia da experiecircncia estaacute assente sobre as

fundaccedilotildees da experiecircncia tem a experiecircncia por base tem por inerecircncia ou de raiz a forma

da experiecircncia etc

O que se trataraacute de saber nas secccedilotildees posteriores eacute como eacute que isto se daacute

A resposta agrave pergunta ldquocomo eacute que laquoexperiecircnciaraquo e laquovidaraquo soacute se manifestam tal como

efectivamente tecircm lugar na sua relaccedilatildeo uma com a outrardquo eacute a que guiaraacute todos os passos

que daremos daqui em diante E a resposta a essa pergunta passaraacute por uma anaacutelise atenta de

alguns aspectos fundamentais da ldquomorfologiardquo e da ldquofisiologiardquo da ldquoexperiecircnciardquo ndash e tanto

quer dizer de alguns aspectos fundamentais da ldquomorfologiardquo e da ldquofisiologiardquo da ldquoexperiecircncia

da vidardquo

128

II EXPERIEcircNCIA DA VIDA

PRIMEIRA PARTE

sect19

A experiecircncia tal como tem lugar em noacutes estaacute vinculada a um quadro determinado

quanto ao teor e agrave amplitude ndash O acircmbito das totalidades a que a experiecircncia e a organiza-

ccedilatildeo da experiecircncia dizem respeito ndash O desfazamento entre a magnitude do empreendimen-

to da ἐμπειρία e as caracteriacutesticas das determinaccedilotildees disponiacuteveis o modelo ldquoalfabeacuteticordquo

Podemos resumir a inflexatildeo que se comeccedilou a desenhar na introduccedilatildeo deste segundo

livro do seguinte modo a experiecircncia ndash entendida como uma forma solta ndash pode correspon-

der a muito diversos quadros de aparecimento consoante as variaccedilotildees do teor e da amplitude

que determinam o seu modo e o seu campo de aplicaccedilatildeo Neste sentido a experiecircncia ndash a for-

ma da experiecircncia tal como procuraacutemos defini-la ndash eacute insuficiente para determinar o quadro

de aparecimento em que se estaacute

Ao contraacuterio do que fica sugerido a partir da noccedilatildeo de experiecircncia como ldquoforma soltardquo

(ou de um entendimento distraiacutedo do que significa o facto de estarmos sempre num ponto de

vista empiacuterico) a experiecircncia tal como tem lugar em noacutes estaacute vinculada a um quadro deter-

minado (tanto no que diz respeito ao seu teor quanto no que diz respeito agrave sua amplitude) de

tal modo que tem sempre lugar nesse quadro

Sucede entretanto que esta inflexatildeo tem ainda um caraacutecter puramente formal e muito

vago

Para compreender de modo mais agudo o que estaacute em causa falta ver em concreto a)

de que variaccedilotildees quanto ao teor e agrave amplitude estamos a falar (ie que variaccedilotildees satildeo rele-

vantes como eacute que mudanccedila do ldquolequerdquo do teor e da amplitude da experiecircncia pode dar lugar

a resultados ndash ou a ldquoexperiecircnciasrdquo ndash muito diferentes entre si etc) e b) que multiplicidade de

factores de fixaccedilatildeo (tanto do teor quanto da amplitude) satildeo determinantes na definiccedilatildeo do

quadro a que a experiecircncia tal como sempre tem lugar em noacutes estaacute vinculada

129

Assim num primeiro momento trata-se de focar mais detidamente as variaccedilotildees de

que podem resultar ldquomundosrdquo muito diferentes entre si e muito diferentes daqueles com que

estamos familiarizados Num segundo momento trata-se de focar a peculiar figura de con-

tracccedilatildeo ndash contracccedilatildeo relativamente ao universo de realidades em causa no primeiro momento

ndash que estaacute consagrada na forma como em noacutes tem lugar o fenoacutemeno da experiecircncia

Comecemos por considerar a questatildeo da amplitude

Por um lado o domiacutenio a que a experiecircncia se estende (o domiacutenio que a experiecircncia

ldquocobrerdquo o territoacuterio sobre o qual se exerce etc) pode ser muito diverso E pode ser muito di-

verso em relaccedilatildeo a duas variaacuteveis fundamentais uma determinada ldquomanchardquo (ou amplitude)

no espaccedilo e uma determinada ldquomanchardquo (ou amplitude) no tempo

Vendo bem o acircmbito das totalidades a que a experiecircncia eacute relativa ndash o tamanho espaacute-

cio-temporal do territoacuterio da ἐμπειρία o facto de a sua amplitude global ser mais limitada ou

mais extensa ser riacutegida ou pelo contraacuterio flexiacutevel etc ndash interfere com a organizaccedilatildeo da ex-

periecircncia

Quer dizer por um lado estaacute em causa uma pergunta pelo acircmbito ou pela amplitude

da experiecircncia ndash uma pergunta pelo seu limite maacuteximo ateacute onde se estende quais satildeo as

suas dimensotildees etc Por outro lado a proacutepria organizaccedilatildeo da experiecircncia depende da am-

plitude global a que se refere de tal modo que consoante a amplitude global a que se refere

haacute vaacuterias possibilidades de organizaccedilatildeo da experiecircncia

O facto de a experiecircncia envolver sempre uma ldquoexplosatildeordquo das dimensotildees do que fica

dado por assente (e implicar sempre a assunccedilatildeo de naturezas permanentes correspondentes agrave

forma da ldquoleirdquo empiacuterica) natildeo impede que quer a) o terminus ad quem da ldquoexplosatildeordquo (ou o

ldquoterritoacuteriordquo domesticado pela captaccedilatildeo empiacuterica) quer b) o ldquoprazo de validaderdquo dos estados-

de-coisas-permanentes (ou o ldquohorizonte temporalrdquo a que a projecccedilatildeo empiacuterica diz respeito)

possam ainda corresponder a amplitudes muito diversas Mais estas diferentes possibilidades

configuram tambeacutem muito diversas possibilidades de conformaccedilatildeo do ponto de vista empiacuterico

ndash ou seja configuram ldquoexperiecircnciasrdquo com caracteriacutesticas muito diversas

Ou seja por uma parte a experiecircncia eacute sempre relativa a uma ldquototalidaderdquo mas por

outra parte a totalidade a que a experiecircncia eacute relativa pode ter diversas dimensotildees E consoan-

te o acircmbito ou a amplitude a que a totalidade em causa se reporte a experiecircncia pode resultar

em coisas muito diferentes

130

Isto eacute assim quanto agrave amplitude da experiecircncia (fixada por este ou aquele acircngulo de

abertura mais ou menos abrangente etc) mas eacute tambeacutem assim no que diz respeito ao con-

traste entre experiecircncias com um acircngulo fixo (seja ele maior ou menor) e experiecircncias que

natildeo estejam vinculadas em mateacuteria de acircngulo e tenham possibilidade de modificar a sua proacute-

pria abertura ou amplitude37

Mas este eacute somente um primeiro aspecto

Soacute por si o ldquoterritoacuteriordquo (a amplitude espaacutecio-temporal) da ἐμπειρία natildeo basta para de-

terminar que formaccedilotildees empiacutericas (que rede de projecccedilotildees etc) se produzem no seu quadro

Com efeito a mesma delimitaccedilatildeo da amplitude (no sentido do termo que agora mesmo

vimos ndash ie no sentido da delimitaccedilatildeo espaacutecio-temporal) pode corresponder a muito diversas

configuraccedilotildees consoante o cardinal de determinaccedilotildees que estatildeo em jogo e que entram na

composiccedilatildeo da ἐμπειρία Tudo depende da densidade e da variedade de determinaccedilotildees que

ldquopovoamrdquo o territoacuterio e satildeo convertidas em projecccedilotildees empiacutericas

Ora esta variedade quanto agrave multiplicidade das determinaccedilotildees envolvidas (e agrave trama

de projecccedilotildees empiacutericas que dela resultam) depende de diversos factores Foquemo-las num

raacutepido esboccedilo ndash e com a precisatildeo que eacute possiacutevel num esboccedilo desta ordem

Em primeiro lugar o tecido da ἐμπειρία depende do proacuteprio conteuacutedo da αἴσθησις

Mesmo sem entrarmos numa anaacutelise detida resulta claro que a mesma forma empiacuterica

pode aplicar-se a quadros de αἰσθήσεις muito diferentes entre si e com resultados (termini ad

quos das percepccedilotildees empiacutericas quer dizer um tecido de estados-de-coisas-permanentes) mui-

to diversos

37

Para se perceber bem o que estaacute aqui em causa tenha-se presente o seguinte nada impede que um

campo de ἐμπειρία esteja constituiacutedo em posiccedilatildeo fixa e com um raio de alcance de por exemplo dez

metros quadrados Isso natildeo prejudica a possibilidade de constituiccedilatildeo de uma ἐμπειρία que em relaccedilatildeo

ao raio de alcance temporal seja muito semelhante agravequela com que estamos familiarizados Inversa-

mente tambeacutem nada impede por exemplo que um campo de ἐμπειρία com um raio de alcance espacial

muito semelhante ao nosso constitua estados-de-coisas permanentes com um prazo de validade muito

mais reduzido ndash porque o proacuteprio acircngulo de abertura temporal soacute vai ateacute um certo limite (natildeo tem a

forma de prolongamento indefinido que nos eacute proacuteprio) Se for assim haveraacute excesso sobre a μνήμη

transgressatildeo do dado e ἐμπειρία (mesmo que uma ἐμπειρία com uma constituiccedilatildeo algo diferente) Mas

o resultado dessa ἐμπειρία (aquilo em que se fica deposto por forccedila da trangressatildeo empiacuterica) distin-

guir-se-aacute por ter um recorte muito diverso daquele que espontaneamente tendemos a tomar por ine-

rente agrave ἐμπειρία

131

A variaccedilatildeo passa desde logo pelas diferentes conformaccedilotildees dos limiares perceptivos

pelos diversos tipos de ldquomalhardquo que pode ter a ldquorederdquo do αἰσθάνεσθαι etc

Mas passa tambeacutem pela possibilidade de haver diversas conformaccedilotildees no que diz res-

peito aos sentidos que intervecircm na constituiccedilatildeo da αἴσθησις Na verdade nada impede que es-

tes sentidos possam ser em maior ou menor nuacutemero do que aqueles a que estamos habituados

ndash e com determinaccedilotildees de que natildeo fazemos a mais pequena ideia

Em segundo lugar aquilo que resulta da ἐμπειρία tambeacutem depende da forma como se

produz a conversatildeo de αἰσθήσεις em μνήμη (ie tambeacutem depende da forma como a μνήμη

cobre o patrimoacutenio da αἴσθησις e envolve ou natildeo um certo afunilamento ou simplificaccedilatildeo da

multiplicidade da αἴσθησις)

Em terceiro lugar o tecido da ἐμπειρία tambeacutem depende da amplitude das ldquomalhasrdquo

de captaccedilatildeo e registo das πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος que constituem propriamente

a base da ἐμπειρία

Quer dizer o tecido da ἐμπειρία depende igualmente do grau de acuidade na leitura

de semelhanccedilas no curso da histoacuteria perceptiva ndash que pode variar muito significativamente e

dessa forma dar lugar a resultados empiacutericos (a complexos de projecccedilatildeo empiacuterica) muito di-

ferentes

Ora este processo de leitura das sequecircncias perceptivas (ou melhor da sequecircncia

mneacutesica) depende em larga medida dos complexos de determinaccedilotildees e acircngulos em que se or-

ganiza ndash ie da variedade e complexidade das determinaccedilotildees em funccedilatildeo das quais se produz

ndash a comparaccedilatildeo dos dados perceptivos

A comparaccedilatildeo dos dados perceptivos natildeo decorre pura e simplesmente das proacuteprias

determinaccedilotildees esteacutesicas ou mneacutesicas que estatildeo na sua base De facto depende em grande par-

te do complexo de determinaccedilotildees categoriais que interveacutem na colaccedilatildeo dos dados empiacutericos ndash

e isto tanto no que diz respeito a) agravequilo a que podemos chamar as ldquogrelhas de comparaccedilatildeordquo

quanto no que diz respeito b) agrave forma da comparaccedilatildeo ser mais ou menos apertada (e se apro-

ximar ou se manter mais afastada de pocircr em agudo confronto ldquotudo com tudordquo)

De tudo isto resulta que uma ldquomesmardquo ldquomanchardquo (um ldquomesmordquo ldquoterritoacuteriordquo espaacutecio-

temporal de ἐμπειρία) pode corresponder a ldquomalhasrdquo de projecccedilatildeo empiacuterica muito diversas ndash

mais simples e pobres ou mais complexas e ricas ndash consoante a conjugaccedilatildeo destes factores

132

Mais natildeo se trata apenas da possibilidade de ndash dentro do ldquomesmordquo ldquoterritoacuteriordquo espaacute-

cio-temporal ndash a variaccedilatildeo destes factores dar lugar a redes de projecccedilatildeo empiacuterica bastante di-

ferentes Na verdade o que estaacute aqui em causa eacute que ateacute mesmo as experiecircncias com idecircntica

esfera de aplicaccedilatildeo espaacutecio-temporal podem ser tatildeo contrastantes entre si que os respectivos

ldquomundosrdquo (quer dizer os quadros de realidade que lhes correspondem) tecircm muito pouco a

ver uns com os outros

Mas isto eacute ainda soacute uma muito pequena parte do que importa ter em vista

Com efeito aquilo a que nos referimos quando falamos dos diferentes ldquolequesrdquo de de-

terminaccedilatildeo que ldquopovoamrdquo a esfera da αἴσθησις e da μνήμη e que entram na conformaccedilatildeo da

ἐμπειρία tem que ver natildeo apenas com questotildees de cardinal (ou como dissemos com a malha

da ldquorederdquo da αἴσθησις ou da proacutepria μνήμη) mas tambeacutem com diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave forma

como se acha constituiacuteda a multiplicidade das determinaccedilotildees que compotildee a base da projec-

ccedilatildeo empiacuterica

Poderia acontecer que a multiplicidade do que aparece (que como vimos estaacute sempre

na base da projecccedilatildeo empiacuterica) tivesse tal natureza que fosse composta por determinaccedilotildees ab-

solutamente singulares e irrepetiacuteveis

Quer dizer poderia acontecer que cada αἴσθησις tivesse um conteuacutedo proacuteprio e intei-

ramente original

Contudo e para que esse conteuacutedo pudesse dar lugar a qualquer coisa como πολλαὶ

μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος (sem as quais como vimos natildeo haacute ἐμπειρία) seria indispensaacutevel

que o conteuacutedo uacutenico e original de cada αἴσθησις tivesse alguma afinidade ou semelhanccedila

com outras (algo de comum que pudesse ser identificado etc) e desse modo pudesse consti-

tuir a base para a τοῦ ὁμοίου μετάβασις que sempre estaacute no fulcro da ἐμπειρία Neste caso o

problema estaria justamente em saber como eacute que diferentes determinaccedilotildees absolutamente

originais poderiam ter algo de semelhante entre si e como poderiam dar lugar a πολλαὶ μνῆ-

μαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος

Para se perceber o que estaacute em causa nesta primeira possibilidade digamos que este

seria um regime de determinaccedilatildeo correspondente a um puro nominalismo

Num tal regime natildeo haveria qualquer espeacutecie de repeticcedilatildeo de determinaccedilotildees Cada

αἴσθησις teria o seu apresentado proacuteprio completamente novo relativamente a qualquer outro

Ora natildeo eacute assim que estamos constituiacutedos

133

Note-se que isto natildeo quer dizer que natildeo possa dar-se o caso de o nominalismo ter ra-

zatildeo e de o ldquomundordquo se renovar a cada instante de tal modo que tudo o que nos aparece eacute de

cada vez outro absolutamente outro sem nada de comum com o que quer que seja O que di-

zemos eacute que mesmo que seja assim (ie mesmo que tudo seja sempre novo a cada instante)

natildeo estamos em condiccedilotildees de aceder a ele de tal modo que acompanhemos a permanente

inauguraccedilatildeo de tudo (a absoluta singularidade de cada instante e de cada ldquocoisardquo ndash ou melhor

de cada componente da realidade)

Com efeito as αἰσθήσεις e as μνῆμαι acham-se constituiacutedas de tal modo que em vez

de terem de cada vez um apresentado ou um conteuacutedo absolutamente original recorrem repe-

tidamente agraves mesmas determinaccedilotildees ou aos mesmos ldquoconteuacutedosrdquo

O que estamos a procurar sublinhar eacute o facto de o cardinal das determinaccedilotildees que pre-

enchem a multiplicidade de αισθήσεις e de μνῆμαι que temos ser consideravelmente menor

do que o cardinal da multiplicidade do que aparece Por outras palavras haacute repeticcedilatildeo das

mesmas determinaccedilotildees numa multiplicidade de instanciaccedilotildees delas ndash e a diferenccedila entre estas

uacuteltimas natildeo passa por terem cada uma um conteuacutedo absolutamente singular ou original mas

sim por terem uma determinaccedilatildeo complexa correspondente a qualquer coisa como uma com-

binatoacuteria38

38

Αο contraacuterio do que pode parecer uma determinaccedilatildeo sensiacutevel que se achasse absolutamente isolada

ndash por exemplo a impressatildeo de uma dada matiz de uma cor ndash natildeo teria nada de ldquoindividualrdquo no sentido

que habitualmente damos a este termo O que a torna indivisiacutevel nesse sentido eacute a sua ligaccedilatildeo ou o seu

cruzamento com toda uma seacuterie de outras determinaccedilotildees Ou como tambeacutem podemos dizer o que a

torna ldquoindivisiacutevelrdquo eacute todo um complexo de relaccedilotildees entre a determinaccedilatildeo em causa e muitas outras

Quer dizer de maneira nenhuma sucede o que corresponderia a termos impressotildees sensiacuteveis propria-

mente ldquosingularesrdquo ou individuais (soacute por si independentes de tudo o mais estritamente uacutenicas um

ldquoesterdquo absoluto e inconfundiacutevel etc) Ora natildeo se discute aqui se haacute ou natildeo determinaccedilotildees singulares

ndash ie se haacute ou natildeo determinaccedilotildees que correspondam a ou identifiquem uma ndash e natildeo mais do que uma

ndash ocorrecircncia de algo Tampouco curamos de discutir aqui se entre as representaccedilotildees que noacutes mesmos

temos ndash entre as determinaccedilotildees a que acedemos ndash haacute ou natildeo haacute algo dessa ordem E na verdade tam-

beacutem natildeo estamos a tentar negar que tenhamos a ideia de individualidade ou de singularidade absoluta

O que dizemos eacute que a haver em noacutes (naquilo a que acedemos) determinaccedilotildees propriamente singula-

res a) tais determinaccedilotildees constituem uma excepccedilatildeo b) elas estatildeo inseridas num quadro geral muito

mais abrangente de determinaccedilotildees repetidas que constituem a maioria do que nos aparece e c) eacute ape-

nas no acircmbito de um quadro de determinaccedilotildees repetidas (e por referecircncia a ele em contraste com ele

em contraponto com ele etc) que estaacute constituiacuteda para noacutes a esmagadora maioria do que nos apare-

ce como ldquorealidades singularesrdquo ndash e isto de tal modo que d) na maior parte dos casos a singularidade

natildeo eacute simples mas o contraacuterio resulta do cruzamento de determinaccedilotildees O que faz de um dado azul

134

Para caracterizar melhor a possibilidade que aqui levantaacutemos consideremos a seme-

lhanccedila entre o que estamos a procurar desenhar e aquilo que se passa com a liacutengua ndash uma se-

melhanccedila que nos permite designar a possibilidade a que aqui fazemos referecircncia como mode-

lo ldquoalfabeacuteticordquo

Poderia acontecer que a multiplicidade da liacutengua fosse feita de determinaccedilotildees sempre

novas (sempre novos sons ndash de tal modo que a ldquoflorestardquo a perder de vista das palavras e das

liacutenguas correspondesse a um conjunto de diferentes sons com cardinal natildeo inferior ao de tudo

o que eacute diferenciaacutevel nesta mateacuteria o cardinal de todos os diferentes elementos de todas as

palavras de todas as liacutenguas)

Acontece poreacutem que a multiplicidade da liacutengua recorre a algo como um ldquoalfabetordquo de

determinaccedilotildees

Vejamos um pouco melhor o que isto quer dizer

Em primeiro lugar o que parece que caracterizar a linguagem (na sua pujanccedila ndash no

ldquofestival de multiplicidaderdquo que imediatamente chama a atenccedilatildeo em cada liacutengua e que por

maioria de razatildeo parece caracterizar as diferentes liacutenguas e a fortiori a totalidade delas ndash a

totalidade das liacutenguas vivas mortas e por constituir toda a multiplicidade de Babel) eacute uma di-

versidade a perder de vista De tal modo que na experiecircncia mais habitual da liacutengua a uacuteltima

coisa que nos ocorre eacute a possibilidade de toda a multiplicidade de Babel corresponder agrave va-

riaccedilatildeo de um conjunto de elementos com cardinal de pouco mais de vinte

Quando aqui falamos de alfabeto o que estaacute em causa natildeo eacute um sistema de notaccedilatildeo de

sons (que eacute muito variaacutevel ateacute mesmo porque ainda que jaacute se esteja na pista de qualquer coi-

sa como uma notaccedilatildeo propriamente foneacutetica a tendecircncia eacute muitas vezes para ficar por nota-

ccedilotildees silaacutebicas ndash ie para natildeo chegar agrave identificaccedilatildeo dos elementos uacuteltimos) O que temos em

mente eacute o proacuteprio conjunto dos ldquofonemasrdquo ou dos componentes elementares que se repetem

na composiccedilatildeo de todas as siacutelabas de todas as palavras de todas as liacutenguas Ou seja o que te-

mos em mente eacute o extraordinaacuterio facto de toda a multiplicidade de Babel poder estar compos-

ta por simples combinaccedilatildeo de um conjunto de elementos com cardinal tatildeo reduzido

Ora sendo assim resulta tambeacutem claro para que eacute que aponta o conceito de ldquoalfabeto

de determinaccedilotildeesrdquo ndash do alfabeto de determinaccedilotildees que forma a apresentaccedilatildeo de que dispomos

este azul bem diferenciado natildeo eacute o proacuteprio azul mas sim o ser a cor disto e daquilo com estas e

aquelas caracteriacutesticas nesta e naquela posiccedilatildeo espaacutecio-temporal etc

135

o alfabeto que domina a composiccedilatildeo da αἴσθησις domina a composiccedilatildeo da μνήμη e tambeacutem

domina a composiccedilatildeo da ἐμπειρία (de sorte que podemos dizer que no nosso caso a αἴσθησις

a μνήμη e a ἐμπειρία tecircm algo a que se pode chamar uma composiccedilatildeo alfabeacutetica)

A multiplicidade do que nos aparece tem uma composiccedilatildeo alfabeacutetica se como no caso

da liacutengua se verifica que em vez de constar de um conjunto de determinaccedilotildees com um car-

dinal equivalente ao da proacutepria multiplicidade em causa se verifica que o cardinal das deter-

minaccedilotildees que a preenchem eacute incomparavelmente mais baixo do que o cardinal da proacutepria

multiplicidade ndash de sorte que a extraordinaacuteria multiplicidade do que nos aparece estaacute preen-

chida por repeticcedilatildeo de determinaccedilotildees (por uma extraordinaacuteria margem de repeticcedilatildeo de deter-

minaccedilotildees) e a incriacutevel variedade do que nos aparece natildeo resulta como pode parecer de contiacute-

nua inovaccedilatildeo das proacuteprias determinaccedilotildees mas em vez disso apenas da novidade do cruza-

mento de determinaccedilotildees (ie de uma novidade na combinaccedilatildeo de um conjunto fixo de ele-

mentos)

Em suma o conceito de ldquomodelo alfabeacuteticordquo exprime a possibilidade de uma multipli-

cidade de cardinal muito elevado e com um extraordinaacuterio grau de variaccedilatildeo natildeo resultar de

uma correspondente variaccedilatildeo das determinaccedilotildees originais que a compotildeem mas de facto da

combinatoacuteria de um conjunto de determinaccedilotildees originais com cardinal pequeno e ateacute mesmo

muito pequeno E o que estamos a considerar eacute a possibilidade de mutatis mutandis toda a

multiplicidade de determinaccedilotildees que entram na composiccedilatildeo da ἐμπειρία (tanto as determina-

ccedilotildees da αἴσθησις e da μνήμη quanto as da sua colaccedilatildeo) radicar em qualquer coisa como aqui-

lo a que Leibniz chama um ldquoalphabetum cogitationum humanarumrdquo39

um conjunto de deter-

minaccedilotildees repetiacuteveis muito menos numeroso do que o que corresponde agrave sua repeticcedilatildeo (agrave sua

combinaccedilatildeo etc)

39

Haacute mais do que uma referecircncia a um ldquoAlphabetum cogitationum humanarumrdquo na obra de Leibniz

Poderia considerar-se por exemplo aquela que se encontra em Couturat L (ed) Opuscules et frag-

ments ineacutedits de Leibniz Extraits des manuscrits de la Bibliothegraveque Royale de Hanovre Paris Alcan

1903 480 ldquoAlphabetum cogitationum humanarum est catalogus earum quae per se concipiuntur et

quorum combinatione ceterae ideae nostrae exurguntrdquo Veja-se tambeacutem De alphabeto cogitationum

humanarum Berlin-Brandenburgischen Akademie der Wissenschaften (VI iv 270) ldquoAlphabetum co-

gitationum humanarum est catalogus notionum primitivarum seu earum quas nullis definitionibus cla-

riores reddere possumusrdquo Para mais ver Saumlmtliche Schriften und Briefe hrsg von der Berlin-Bran-

denburgischen Akademie der Wissenschaften und der Akademie der Wissenschaften zu Goumlttingen

Berlin Akademie-Verlag 1999 Philosophische Schriften IV 4 ou ainda Die philosophische Schrif-

ten hrsg von Gerhardt VII Berlin 1890 reed HildesheimNY Olms 1978 paacuteg 185

136

Ora o que aqui importa ter presente eacute o seguinte natildeo soacute a αἴσθησις e a μνήμη podem

ter regimes diferentes consoante possuam ou natildeo uma composiccedilatildeo de tipo alfabeacutetico mas

para aleacutem disso pode haver diferentes alfabetos de determinaccedilotildees (o regime alfabeacutetico pode

ter conformaccedilotildees muito diversas)

Esta possibilidade tende a escapar-nos em virtude de embora habitualmente natildeo nos

apercebamos de que o acesso em que nos achamos constituiacutedos tem uma composiccedilatildeo alfabeacute-

tica reinar globalmente em noacutes a evidecircncia impliacutecita mas absolutamente assente de que o re-

gime de determinaccedilotildees a que recorre a apresentaccedilatildeo de que dispomos corresponde no funda-

mental ao regime de determinaccedilatildeo segundo o qual estatildeo montadas ldquoas proacuteprias coisasrdquo ndash de

tal modo que pura e simplesmente natildeo haacute alternativa vaacutelida Poreacutem a verdade eacute que em uacutelti-

ma anaacutelise nada haacute que possa garantir que eacute assim (que o alfabeto de determinaccedilotildees em vigor

na forma como vemos eacute mesmo o uacutenico possiacutevel ou de todo o modo o uacutenico que tem corres-

pondecircncia nas ldquoproacuteprias coisasrdquo tal como satildeo etc)

Foquemos um pouco melhor o que resulta de tudo isto

Em primeiro lugar desenha-se qualquer coisa como uma correlaccedilatildeo entre a proacutepria

ἐμπειρία e aquilo a que chamaacutemos ldquocomposiccedilatildeo alfabeacuteticardquo do acesso (composiccedilatildeo alfabeacutetica

da αἴσθησις e da μνήμη como antecedentes da ἐμπειρία e composiccedilatildeo alfabeacutetica da proacutepria ἐμ-

πειρία)

Acontece no entanto que estamos tatildeo dominados pela composiccedilatildeo alfabeacutetica do aces-

so em que nos achamos constituiacutedos (quer dizer tatildeo familiarizados com ela vemos de tal ma-

neira sempre jaacute segundo um alfabeto de determinaccedilotildees e estamos tatildeo afeitos a ele etc) que

natildeo costumamos ter qualquer ideia do proacuteprio alphabetum cogitationum humanarum (para di-

zer como Leibniz) nem da sua composiccedilatildeo

Neste aspecto passa-se portanto algo muito parecido com aquilo que se regista na

esfera da liacutengua Pois como vimos tambeacutem no caso da liacutengua a experiecircncia habitual dela eacute

analfabeta (em relaccedilatildeo ao proacuteprio ldquoalfabeto foneacuteticordquo) ndash tanto no sentido de natildeo identificar os

fonemas a que recorre (e com que estaacute em relaccedilatildeo pois se natildeo estivesse em relaccedilatildeo com eles

natildeo poderia falar nem compreender o que se diz) quanto no sentido de natildeo fazer mesmo a

mais pequena ideia de haver qualquer coisa como um pequeno conjunto de elementos foneacute-

ticos e nesse sentido um alfabeto

137

Em segundo lugar importa fazer notar que haver uma tal correlaccedilatildeo entre a experiecircn-

cia e a constituiccedilatildeo alfabeacutetica do que nos aparece natildeo significa de modo nenhum que haja e soacute

possa haver um uacutenico alfabeto

Para poder ocorrer o fenoacutemeno da experiecircncia tem de ter lugar num acontecimento de

acesso com composiccedilatildeo alfabeacutetica (ou de que pelo menos uma parte tem composiccedilatildeo alfabeacuteti-

ca) Ora essa correlaccedilatildeo diz respeito a um tipo ou forma de composiccedilatildeo do acesso a compo-

siccedilatildeo alfabeacutetica enquanto tal Natildeo diz respeito agrave conformaccedilatildeo concreta do alfabeto Essa pode

variar ndash e de facto ateacute pode variar muito A razatildeo por que temos dificuldade em conceber tal

variaccedilatildeo eacute o facto de estarmos ldquopresosrdquo a um determinado alfabeto de tal modo que natildeo con-

seguimos sair dele Mas isso natildeo impede o ponto decisivo esse alfabeto natildeo eacute o uacutenico possiacute-

vel (natildeo haacute nada que legitime efectivamente a assunccedilatildeo de um tal estatuto ndash a situaccedilatildeo em que

nos encontramos a este respeito natildeo consente como perspectiva legiacutetima senatildeo uma perspec-

tiva aberta)

Isto significa que o que caracteriza o acesso em que nos achamos natildeo eacute apenas ter um

caraacutecter empiacuterico e portanto possuir uma composiccedilatildeo alfabeacutetica Dizer que um ponto de vis-

ta tem um caraacutecter empiacuterico ou uma composiccedilatildeo alfabeacutetica natildeo eacute suficiente para determinar o

seu teor

Se um ponto de vista tem uma composiccedilatildeo alfabeacutetica que possibilita a constituiccedilatildeo da

ἐμπειρία tudo depende de qual eacute esse alfabeto (de como estaacute formado de quais satildeo os seus

elementos) Isto eacute o que o caracteriza eacute estar montado sobre um dado alfabeto que constitui

o ldquomaterialrdquo a partir do qual se forma todo o ldquotecidordquo da ἐμπειρία

Nesse sentido dois pontos de vista podem ser empiacutericos podem ter uma composiccedilatildeo

alfabeacutetica e ainda assim caeteris paribus serem completamente diferentes em resultado de

diferenccedilas quanto agrave composiccedilatildeo concreta e agraves caracteriacutesticas do alfabeto que lhes serve de

base

Em suma tudo o que nos aparece no quadro da constituiccedilatildeo da ἐμπειρία (em sede da

αἴσθησις μνήμη e ἐμπειρία) radica num ldquoalfabetordquo com estas caracteriacutesticas ndash de que habitual-

mente natildeo temos consciecircncia e que tal como no caso da liacutengua temos dificuldade em apurar

ndash mas que nem por isso deixa de constituir sempre jaacute por mais ldquoanalfabetardquo que se mantenha

a forma como olhamos para a multiplicidade do que aparece a base da sua composiccedilatildeo aqui-

lo de que eacute feito tudo com que temos contacto e de que temos experiecircncia

138

sect20

A variabilidade da ἐμπειρία quanto agrave amplitude da ascensatildeo em direcccedilatildeo a determina-

ccedilotildees mais geneacutericas e quanto agrave forma de ldquocristalizaccedilatildeordquo na captaccedilatildeo da afinidade a scala

praeligdicamentalis

Haacute outro aspecto igualmente decisivo que tambeacutem interfere como factor de diferencia-

ccedilatildeo do cunho que a experiecircncia toma Esse aspecto tem que ver com algo ao mesmo tempo

parecido com aquilo que eacute proacuteprio do ldquomodelo alfabeacuteticordquo e diferente dele

Como vimos o que caracteriza o ldquomodelo alfabeacuteticordquo eacute haver uma multiplicidade de

determinaccedilotildees repetiacuteveis ndash cada uma das quais eacute comum ao conjunto das suas diversas instan-

ciaccedilotildees

No entanto no ldquomodelo alfabeacuteticordquo propriamente dito natildeo haacute nada comum agraves proacute-

prias determinaccedilotildees comuns ndash natildeo haacute letras comuns a letras natildeo haacute se assim se pode dizer

afinidades de segundo grau Tudo o que haacute satildeo as afinidades correspondentes aos proacuteprios

ldquoelementosrdquo Natildeo haacute fonemas comuns aos proacuteprios fonemas ndash isso seria incompatiacutevel com o

estatuto elementar dos fonemas enquanto tais

Mas se eacute isso que se passa no ldquomodelo alfabeacuteticordquo natildeo eacute necessariamente isso que se

passa no quadro de determinaccedilotildees em que nos movemos ndash quer dizer no quadro de determi-

naccedilotildees em que se pode mover a constituiccedilatildeo da ἐμπειρία no quadro de determinaccedilotildees de que

se compotildee a αἴσθησις e portanto a μνήμη etc

Vendo bem pode muito bem acontecer o que tradicionalmente se exprime na organi-

zaccedilatildeo da chamada scala praeligdicamentalis (tal como se acha traduzida nas figuras da ldquoaacutervore

de Porfiacuteriordquo) Isto eacute pode suceder que a multiplicidade de determinaccedilotildees repetiacuteveis a que re-

corre o que aparece comporte determinaccedilotildees comuns de primeira ordem de segunda ordem

de terceira ordem etc40

Vejamos um pouco melhor o que estaacute em causa neste ponto

40

Aquilo a que se estaacute a fazer referecircncia ao falar de uma ldquoaacutervore de Porfiacuteriordquo natildeo eacute como a tradiccedilatildeo

jaacute estabeleceu algo que corresponda a algo proposto pelo proacuteprio mas eacute mais exactamente uma tenta-

tiva de representaccedilatildeo visual da interpretaccedilatildeo de Porfiacuterio do tratado sobre as Categorias de Aristoacuteteles

(Porfiacuterio Introduction to the logical Categories of Aristotle in The Organon or Logical Treatises of

Aristotle with the Introduction of Porphyry volume 2 London 1853 paacutegs 609-633)

139

Antes do mais trata-se da possibilidade de aquilo que agrave primeira vista parece ser jaacute

simples (ter um caraacutecter elementar indecomponiacutevel que justifica falar-se de componentes de

um alfabeto) acabar por se revelar suceptiacutevel de decomposiccedilatildeo

A escala predicamental significa que se considerarmos mais atentamente determina-

ccedilotildees especiacuteficas (que satildeo aquelas que mais semelhanccedilas tecircm com os elementos de um alfabe-

to entendido no sentido exposto acima) apuramos que se prestam a serem descobertas como

contracccedilotildees de determinaccedilotildees mais geneacutericas que por sua vez tambeacutem se prestam a serem

descobertas como contracccedilotildees de determinaccedilotildees mais geneacutericas e assim sucessivamente

Eacute tambeacutem isso que se acha retratado na forma das ldquoaacutervores de Porfiacuteriordquo As ldquoaacutervoresrdquo

apontam para qualquer coisa como uma escala de ramos

Assim as determinaccedilotildees mais gerais ramificam-se em determinaccedilotildees menos gerais

que por sua vez ainda se ramificam em determinaccedilotildees menos gerais etc Ou inversamente as

determinaccedilotildees mais especiacuteficas apresentam-se como ramificaccedilotildees de geacuteneros que por sua

vez se apresentam como ramificaccedilotildees (ou espeacutecies) de geacuteneros mais amplos que ainda se

apresentam como ramificaccedilotildees (ou espeacutecies) de geacuteneros mais amplos ndash ateacute chegar a geacuteneros

no sentido mais estrito do termo (que natildeo satildeo especificaccedilotildees de nada superior)

Esta peculiar estrutura corresponde por um lado a qualquer coisa que podemos des-

crever como um dado de facto eacute efectivamente possiacutevel identificarmos entre as determina-

ccedilotildees repetiacuteveis que povoam o acontecimento de acesso em que nos achamos qualquer coisa

como afinidades de segunda terceira e quarta ordem etc ou uma estrutura como aquela que

se traduz nos conceitos de a) espeacutecies que natildeo satildeo geacutenero de nada b) determinaccedilotildees que ser-

vem de geacutenero em relaccedilatildeo a outras mas por outro lado tecircm o caraacutecter de espeacutecies de determi-

naccedilotildees superiores c) vaacuterios graus de iteraccedilatildeo desse nexo ateacute chegar a d) geacuteneros que jaacute natildeo

satildeo espeacutecies de nada com uma extensatildeo maior que a deles

Mas por outro lado se eacute assim (se a scala praeligdicamentalis eacute um fenoacutemeno natildeo muito

difiacutecil de verificar) tal verificaccedilatildeo natildeo impede a subsistecircncia de duas ordens de problemas

Em primeiro lugar perceber que haacute qualquer coisa como uma scala praeligdicamentalis

(e que entre todas as determinaccedilotildees com que lidamos haacute uma complexa rede de nexos de afi-

nidade) natildeo leva de modo nenhum a identificar sem mais qual eacute essa rede de estruturas ldquoarbo-

riformesrdquo de afinidade entre todas as suas determinaccedilotildees

140

Por outras palavras perceber que haacute uma estrutura ldquoarboriformerdquo natildeo eacute o mesmo que

perceber que determinaccedilotildees satildeo ramificaccedilotildees de que outras qual o desenho concreto da(s) aacuter-

vore(s) em causa qual o seu radical (ou os seus radicais) uacuteltimo(s) etc

A esta primeira dificuldade vem juntar-se uma segunda ndash que diz respeito ao estatuto

da proacutepria scala praeligdicamentalis

Com efeito o reconhecimento de que haacute afinidade de segundo grau de terceiro grau

etc no sentido referido natildeo permite decidir sem mais se a scala praeligdicamentalis resulta pura

e simplesmente de processos abstractivos ou tem alguma intervenccedilatildeo na proacutepria constituiccedilatildeo

daquilo que espontaneamente nos aparece sem nenhuma iniciativa de anaacutelise da nossa parte

Expliquemo-nos melhor

Pode acontecer que os geacuteneros os geacuteneros de geacuteneros os geacuteneros de geacuteneros de geacutene-

ros etc soacute entrem em cena mediante operaccedilotildees de abstracccedilatildeo que tecircm um caraacutecter superve-

niente e facultativo em relaccedilatildeo agravequilo que temos apresentado no curso habitual das nossas ldquore-

presentaccedilotildeesrdquo Se for assim as coisas que de ordinaacuterio vemos natildeo estatildeo ldquomontadasrdquo sobre de-

terminaccedilotildees dessa ordem e estas uacuteltimas soacute tecircm em noacutes uma presenccedila por assim dizer inter-

mitente (quando realizamos operaccedilotildees de abstracccedilatildeo)

Mas tambeacutem pode acontecer que na verdade natildeo seja assim ndash que suceda justamente o

oposto

Ou seja pode acontecer que as determinaccedilotildees mais especiacuteficas estejam constituiacutedas de

tal modo que resultam sempre da contracccedilatildeo de determinaccedilotildees mais geneacutericas e soacute sejam pos-

siacuteveis a partir delas Dito de outro modo pode acontecer que por exemplo de cada vez que se

vecirc um coelho esta determinaccedilatildeo recorra sempre jaacute agrave determinaccedilatildeo mais geral ldquoanimalrdquo que

esta por sua vez recorre sempre jaacute agrave determinaccedilatildeo mais geral ldquocorpordquo e que esta recorra

sempre jaacute agrave determinaccedilatildeo ainda mais geral ldquounidade colectiva e determinaccedilotildeesrdquo etc41

41

Constituiacuteda de tal modo que comporta ao mesmo tempo uma multiplicidade (A ne B ne C ne D) e a in-

tegraccedilatildeo de toda ela em algo que salva identitate atravessa a respectiva diferenccedila e a integra na mes-

midade de si De cada vez que representamos um corpo representamos jaacute algo com estas caracteriacutes-

ticas ndash mas de tal modo que este nuacutecleo de determinaccedilatildeo que eacute o paradigma da unidade colectiva de

determinaccedilotildees tem uma extensatildeo mais ampla que o conceito de ldquocorpordquo A tudo isto acresce ainda que

o troccedilo da scala praeligdicamentalis que assim se desenha natildeo acaba necessariamente no que assim aca-

baacutemos de identificar como radical ou nuacutecleo Com efeito se considerarmos a proacutepria determinaccedilatildeo

ldquounidade colectiva de determinaccedilotildeesrdquo verificamos que tambeacutem ela recorre sempre jaacute a um nuacutecleo de

determinaccedilatildeo ainda mais radical e extenso o proacuteprio conceito de ldquosiacutenteserdquo que consagra a possibilida-

141

Em suma pode acontecer que a scala praeligdicamentalis tenha se assim se pode dizer

uma constituiccedilatildeo descendente ndash a partir das determinaccedilotildees mais universais como condiccedilotildees

de possibilidade das determinaccedilotildees mais especiacuteficas

Ora se assim for isso significa que o alfabeto das nossas determinaccedilotildees ndash o ldquoalphabe-

tum cogitationum humanarumrdquo ndash tem uma composiccedilatildeo bastante diferente daquela que antes

se sugeriu Tratar-se-aacute de um alphabetum constituiacutedo na forma da scala praeligdicamentalis com

radicaccedilatildeo dos elementos mais especiacuteficos nos elementos mais geneacutericos ndash de tal modo que

seratildeo estes uacuteltimos a desempenhar verdadeiramente o papel de elementos

Natildeo pertence aqui analisar a fundo este problema O que pretendemos indicar eacute apenas

que a questatildeo da composiccedilatildeo do alphabetum cogitationum humanarum eacute ainda mais comple-

xa do que parecia a partir do que antes se viu

Quando mencionaacutemos a possibilidade de haver vaacuterios alfabetos ou vaacuterias composiccedilotildees

do alfabeto de determinaccedilotildees sobre cuja base se constitui a experiecircncia isso parecia significar

que o lote das determinaccedilotildees poderia variar mas justamente natildeo previa a ldquocomplicaccedilatildeo adicio-

nalrdquo que tem que ver com a possibilidade de o alfabeto de determinaccedilotildees ndash e na verdade jus-

tamente o nosso alfabeto de determinaccedilotildees ndash ter a forma de uma scala praeligdicamentalis des-

cendente

Por outras palavras onde viacuteamos a) a possibilidade de vaacuterias conformaccedilotildees de um al-

phabetum cogitationum mais parecido com o alfabeto da proacutepria liacutengua aparece agora b) a

alternativa entre um alphabetum cogitationum desse tipo e um alphabetum cogitationum com

a forma de uma scala praeligdicamentalis descendente e ainda c) a alternativa entre vaacuterias poss-

ibilidades de conformaccedilatildeo concreta do alfabeto com a forma da scala praeligdicamentalis des-

cendente

Podemos exprimir tudo isto dizendo que o que estaacute em causa eacute o diferente significado

que na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία pode ter aquilo que Aristoacuteteles designa como πολλαὶ μνῆμαι

τοῦ αὐτοῦ πράγματος (do mesmo estado-de-coisas)

Com efeito este τοῦ αὐτοῦ πράγματος pode significar coisas muito diferentes consoan-

te a margem de afinidade entre diferentes αἰσθήσεις e diferentes μνῆμαι for se assim se pode

dizer ldquounidimensionalrdquo (cingindo-se ao registo de uma afinidade de primeiro grau a afinida-

de de aquilo que eacute diferente (e corresponde portanto agrave forma A ne B) possa ainda assim coincidir ndash

de tal modo que os diferentes estatildeo um no outro se determinam um ao outro

142

de entre espeacutecies) ou pelo contraacuterio compreender tambeacutem afinidades de segundo terceiro

quarto grau (afinidades de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros de geacuteneros

etc)

E por outro lado neste segundo caso tudo depende ainda de dois factores de variaccedilatildeo

Por um lado tudo depende justamente da amplitude desta margem de alargamento da

afinidade a nuacutecleos de determinaccedilatildeo mais extensos (quer dizer tudo depende de haver apenas

afinidade e projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes de segundo grau ou tambeacutem de ter-

ceiro grau ou de quarto grau etc ndash ie tudo depende de ateacute onde vai a possibilidade de as-

censatildeo em qualquer coisa como uma scala praeligdicamentalis)

Por outro lado tudo depende tambeacutem de como estiver organizada a scala praeligdica-

mentalis Ela pode estar organizada de diferentes maneiras e essas diferentes linhas de crista-

lizaccedilatildeo se assim se pode dizer da scala praeligdicamentalis tambeacutem fazem que caeteris pari-

bus a experiecircncia possa ganhar contornos muito diferentes

Atentemos um pouco mais no uacuteltimo aspecto

Este uacuteltimo aspecto significa que aquilo a que chamaacutemos afinidade de segundo tercei-

ro grau etc pode acontecer com muito diversas configuraccedilotildees (com muito diversas organiza-

ccedilotildees das linhas de afinidade) ndash tanto no que diz respeito agraves ramificaccedilotildees mais proacuteximas dos

conceitos repetiacuteveis com maior extensatildeo e menor compreensatildeo (ou seja a geacuteneros) quanto

no que diz respeito agrave fusatildeo de diferentes ramos em determinaccedilotildees de menor extensatildeo e maior

compreensatildeo (ou seja a espeacutecies)

O que isto quer dizer eacute que a multiplicidade das determinaccedilotildees repetiacuteveis pode estar

constituiacuteda de tal modo que a) consente ou natildeo consente afinidades de segundo grau terceiro

grau etc (ie qualquer coisa de correspondente agrave scala praeligdicamentalis) b) pode dar lugar

a muito diferentes quadros de afinidade de segundo grau terceiro grau etc e tambeacutem c) po-

de corresponder a diferentes graus de facilidade ou dificuldade de detecccedilatildeo da afinidade e de

correspondente ascensatildeo na scala praeligdicamentalis ndash quer dizer a diferentes graus de facili-

dade ou dificuldade na captaccedilatildeo das determinaccedilotildees mais afastadas das espeacutecies

Ora tudo isto se reflecte na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία

Vendo bem a projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes pode produzir-se apenas

em ldquonavegaccedilatildeo costeirardquo (que se ateacutem a determinaccedilotildees mais especiacuteficas) ou pelo contraacuterio

143

pode produzir-se em ldquonavegaccedilatildeo de mar altordquo ndash subindo na scala praeligdicamentalis detectan-

do afinidades de segundo terceiro grau etc e produzindo projecccedilotildees empiacutericas dessa ordem

Em suma a ἐμπειρία eacute variaacutevel quer no que diz respeito agrave amplitude da ascensatildeo em

direcccedilatildeo a determinaccedilotildees mais geneacutericas quer no que diz respeito agrave proacutepria forma de ldquocristali-

zaccedilatildeordquo na captaccedilatildeo da afinidade e essa variaccedilatildeo depende da organizaccedilatildeo da scala praeligdica-

mentalis que entrar em funccedilotildees na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία E o ponto decisivo eacute que tambeacutem

desta forma a organizaccedilatildeo da experiecircncia (o quadro concreto de projecccedilotildees de estados-de-

coisas-permanentes) natildeo apenas pode variar mas pode variar muito significativamente e dar

lugar a ldquoreconhecimentos de realidaderdquo muito diversos mesmo que o ldquoterritoacuteriordquo (a delimi-

taccedilatildeo espaacutecio-temporal) e todos os outros factores determinantes da ἐμπειρία sejam exacta-

mente os mesmos

sect21

A complexidade da experiecircncia e os modos de cruzamento das determinaccedilotildees entre si ndash A

experiecircncia sintonizada por unidades colectivas de determinaccedilotildees

Tudo isto nos leva a um outro aspecto implicado no que estamos a ver e que importa

pocircr em relevo

Quando se fala das determinaccedilotildees que entram na composiccedilatildeo da ἐμπειρία pode pen-

sar-se que se trata de uma multiplicidade constituiacuteda por mera justaposiccedilatildeo dos seus diversos

elementos De facto poderia ser assim

Poreacutem uma anaacutelise do nosso ponto de vista mostra algo que jaacute estava de certo modo

impliacutecito atraacutes e que agora importa acentuar a saber que parece haver algo como um cruza-

mento das diversas determinaccedilotildees entre si

Ora o cruzamento das diversas determinaccedilotildees entre si tem efeitos na complexidade da

experiecircncia quanto mais complexo e intrincado for este cruzamento de determinaccedilotildees tanto

mais complexa poderaacute ser tambeacutem a experiecircncia que se faz do que aparece Haacute por assim di-

zer uma relaccedilatildeo directa entre o cardinal de determinaccedilotildees (conteuacutedos de saber formas de

saber ldquoconteuacutedosrdquo objectos de saber etc) de um ldquoalfabetordquo e a complexidade da experiecircn-

cia que dele se extrai

144

Consideremos por exemplo a janela que temos perante noacutes na sala de trabalho Ou

mais precisamente consideremos um momento o mais simples possiacutevel do caixilho da jane-

la

Ao analisar este momento da janela notamos que ele eacute composto de uma multiplicida-

de de determinaccedilotildees eacute branco ldquoerdquo resistente ldquoerdquo liso ldquoerdquo tem uma determinada posiccedilatildeo no es-

paccedilo e no tempo ldquoerdquo tem continuidade tanto em relaccedilatildeo ao que havia quanto em relaccedilatildeo ao

que haveraacute ldquoerdquo tem identidade diacroacutenica ldquoerdquo tem um determinado grau de resistecircncia ldquoerdquo tem

uma existecircncia puacuteblica de tal modo que o suponho como podendo ser testemunhado por uma

multiplicidade ldquoerdquo ao mesmo tempo eacute-lhe negada a capacidade de qualquer movimento

autoacutenomo etc Haacute por assim dizer coincidecircncia de determinaccedilotildees em cada momento do que

temos apresentado42

O fenoacutemeno que estaacute aqui em causa eacute expresso por Aristoacuteteles na foacutermula τι κατά τι-

νος43

Esta noccedilatildeo aponta para o facto de as muacuteltiplas determinaccedilotildees de que o nosso acesso eacute

composto estarem reciprocamente entretecidas umas nas outras (ldquometidas umas nas outrasrdquo

entrelaccediladas etc) numa relaccedilatildeo de co-implicaccedilatildeo

Assim por um lado o branco o resistente o liso etc a) satildeo determinaccedilotildees natildeo idecircn-

ticas entre si e b) satildeo determinaccedilotildees de algo que natildeo eacute inteiramente idecircntico a nenhuma delas

(estaacute em causa para usar uma expressatildeo do De Anima 430b3 uma siacutentese do natildeo-idecircntico)

Mas se olharmos para a forma como estatildeo presentes num qualquer ldquopontordquo do cai-

xilho da janela apuramos que elas aparecem como determinaccedilotildees umas das outras (afectam-

se umas agraves outras estatildeo implicadas umas nas outras etc)

O que estamos a procurar salientar eacute o facto de os diversos momentos da ldquomanchardquo do

que se acha apresentado terem uma ligaccedilatildeo com isso que as associa ou que as integra

Quer dizer aleacutem de haver a) uma multiplicidade de momentos do caixilho da janela (a

multiplicidade que faz o proacuteprio caixilho e sem a qual natildeo se apresentaria caixilho nenhum)

haacute tambeacutem b) uma multiplicidade de determinaccedilotildees implicadas em cada momento do caixilho

da janela (e de tal forma que tambeacutem sem ela natildeo se apresentaria caixilho nenhum ou de todo

42

Sobre este fenoacutemeno da conjunccedilatildeo vejam-se as anaacutelises de Hegel sobre a consciecircncia (Phaumlnomeno-

logie des Geistes A II paacuteg 65 e seguintes)

43 Ver por exemplo Anal Ant I 24a30 40b30 De Interpretatione 17a25 ou De Anima 430b20

145

o modo natildeo se apresentaria um caixilho com estas caracteriacutesticas) mas para aleacutem disso ainda

haacute c) uma determinaccedilatildeo que junta as multiplicidades referidas como a) e b) fazendo que todas

elas pertenccedilam a algo comum a elas o caixilho (de sorte que tambeacutem sem este terceiro ele-

mento natildeo se apresentaria nada do que vemos como ldquocaixilho da janelardquo)

De facto todas as determinaccedilotildees com que lidamos ao termos perante noacutes o que quer

que seja fazem parte de unidades colectivas de determinaccedilotildees ndash unidades que resultam de

uma modalidade peculiar de cruzamento de determinaccedilotildees (de algo marcado por ser mais do

que uma mera justaposiccedilatildeo de determinaccedilotildees) O que decorre deste cruzamento de determina-

ccedilotildees eacute a organizaccedilatildeo dos diversos momentos (marcados por determinaccedilotildees ou propriedades

muacuteltiplas) em muacuteltiplos casos disso a que chamamos ldquocoisasrdquo

Consideremos um pouco mais detidamente este aspecto

Em primeiro lugar estamos a falar de duas formas possiacuteveis de constituiccedilatildeo da expe-

riecircncia (mais precisamente de duas formas possiacuteveis de constituiccedilatildeo da sua base ndash da αἴσθη-

σις e da μνήμη ndash e por via disso tambeacutem da ἐμπειρία)

Se tendemos a deixar escapar a diferenccedila entre estas duas possibilidades eacute porque pa-

ra noacutes a experiecircncia estaacute sempre jaacute ldquosintonizadardquo por unidades colectivas de determinaccedilotildees

Acontece poreacutem que essa natildeo eacute a uacutenica forma possiacutevel da sua ocorrecircncia antes consente al-

ternativas ndash por exemplo um quadro de experiecircncia de tipo ldquopontilhistardquo se assim se pode di-

zer

Expliquemos melhor o que se quer dizer com isto

Se considerarmos aquilo que habitualmente se nos apresenta na ldquoinvasatildeordquo do acesso

(na presenccedila de algo que continuamente ocorre em noacutes) verificamos que tem na sua base

qualquer coisa como um contiacutenuo de identidades e diferenccedilas na forma A ne B ne C ne D ne E e

assim sucessivamente

Essa eacute por assim dizer a proacutepria forma da multiplicidade que estaacute suposta na proacutepria

constituiccedilatildeo da multiplicidade enquanto tal Nas paredes que nos rodeiam no chatildeo no tecto

etc o proacuteprio aparecimento da multiplicidade remete continuamente para uma sucessatildeo de

unidades simples cada em identidade consigo mesma e a diferir das outras

O que estaacute em jogo eacute a proacutepria compreensatildeo de qualquer composto como compositum

reale para usar a noccedilatildeo de Kant (ou aquilo que foi expresso por Leibniz quando fala da com-

146

preensatildeo da multiplicidade como rebanho e da necessaacuteria filiaccedilatildeo da realidade do rebanho na

realidade de cada um dos ldquobrebisrdquo que entram na sua composiccedilatildeo)

Por razotildees que jaacute veremos melhor em relaccedilatildeo a realidades como parede chatildeo as nos-

sas proacuteprias matildeos etc o nosso olhar estaacute habitualmente retido num registo confuso de tal

modo que natildeo se acha preparado para identificar propriamente as unidades em questatildeo

Se nos concentramos no que confusamente aparece como um ponto da parede acaba-

mos por apurar que afinal corresponde a uma superfiacutecie ndash e isto de tal modo que natildeo estaacute em

condiccedilotildees de identificar nem qual o cardinal das unidades que entram na sua composiccedilatildeo nem

qual a conformaccedilatildeo de cada uma dessas unidades (o que corresponde entatildeo propriamente a

um ponto)

Poreacutem mesmo sendo assim isso natildeo impede que a composiccedilatildeo daquilo que aparece

pareccedila remeter justamente para ndash e radicar em ndash qualquer coisa como um complexo de unida-

des simples cuja multiplicaccedilatildeo forma as manchas com que estou em contacto ndash de tal modo

que se natildeo houvesse esta trama baacutesica de identidades e diferenccedilas (A ne B ne C ne D ne E ne F)

tambeacutem natildeo haveria a proacutepria multiplicidade

Ora sendo assim a proacutepria descriccedilatildeo que acabamos de fazer da composiccedilatildeo do que

nos aparece potildee em evidecircncia que na forma como as coisas nos aparecem haacute como que um

desvio ou uma distacircncia em relaccedilatildeo agrave mera presenccedila de um complexo de unidades simples de

aparecimento postas em nexo de justaposiccedilatildeo umas agraves outras

Quer dizer por um lado tudo remete para uma trama contiacutenua de identidades e dife-

renccedilas que constituti de raiz a proacutepria multiplicidade do que nos aparece Mas por outro la-

do tambeacutem haacute algo diferente dela (algo mais do que ela) ndash e isto de tal modo que esse algo

mais (esse algo de diferente dela) afasta da trama baacutesica potildee de certo modo fora dela e faz

que o proacuteprio contacto com ela soacute ocorra a partir do filtro (desse algo diferente da proacutepria tra-

ma baacutesica) Resulta daiacute que natildeo temos acesso agrave trama baacutesica de identidade e diferenccedila a partir

do seu proacuteprio ponto de vista mas antes soacute a partir do ponto de vista disso que difere dela e

lhe estaacute como que aposto

Se perguntarmos a noacutes mesmos o que eacute que nos aparece percebemos que a resposta

que tendemos a dar tem a forma uma parede uma mesa uma estante uma cadeira uma jane-

la etc ndash e natildeo a forma um primeiro momento de branco um segundo momento de branco

um terceiro momento de branco um quarto momento de branco ndash e assim sucessivamente

147

Isto torna clara a distacircncia em relaccedilatildeo agrave trama baacutesica de identidades e diferenccedilas a que fize-

mos referecircncia

A questatildeo estaacute entatildeo em perceber que eacute isso que estaacute aposto agrave trama baacutesica de identi-

dades e diferenccedilas ndash qual a sua natureza qual a sua estrutura etc

A primeira coisa que chama a atenccedilatildeo eacute que ao identificarmos aquilo que nos aparece

o nosso olhar como que salta da diferenccedila entre a parede e a mesa para a diferenccedila entre a me-

sa e a estante e desta para a diferenccedila entre a estante e a parede etc Quer dizer haacute diferenccedilas

que estatildeo como que acentuadas em posiccedilatildeo toacutenica enquanto outras (aquelas que correspon-

dem agrave conformaccedilatildeo da multiplicidade dentro da mesa dentro da estante dentro da parede

etc) estatildeo como que desacentuadas postas em posiccedilatildeo aacutetona de relativo apagamento etc

Por outro lado sendo assim natildeo eacute difiacutecil ver que este contraste entre diferenccedilas toacuteni-

cas e diferenccedilas aacutetonas natildeo tem que ver com algo que se passe apenas com as primeiras mas

com uma propriedade que afecta todos os momentos da trama baacutesica

Isto eacute a razatildeo por que as diferenccedilas referidas tecircm uma posiccedilatildeo toacutenica eacute o facto de to-

dos os diferentes momentos compreendidos no intervalo entre os limites da mesa os limites

da estante os limites da parede etc estarem unidos entre si por algo que soacute os liga a eles

(ie que soacute liga os diferentes momentos da mesa os diferentes momentos da estante os dife-

rentes momentos da parede etc e que estaacute ausente na relaccedilatildeo entre o que pertence agrave mesa e o

que pertence agrave estante ou entre o que pertence a esta uacuteltima e o que pertence agrave parede etc)

Por outras palavras a razatildeo por que as diferenccedilas entre a mesa a estante a parede

etc satildeo toacutenicas e as demais diferenccedilas satildeo aacutetonas tem que ver com o facto de os diferentes

momentos da trama baacutesica que pertencem agrave mesa (agrave estante agrave parede etc) natildeo estarem ape-

nas justapostos (como numa multiplicidade pontilhista) mas fundidos entre si

Isto potildee-nos na pista de um outro fenoacutemeno essencial esta fusatildeo natildeo passa apenas

pela ligaccedilatildeo entre diferentes momentos da proacutepria trama baacutesica ndash ela envolve essencialmente

a intervenccedilatildeo de uma determinaccedilatildeo de outra ordem (diferente das determinaccedilotildees da trama

baacutesica de identidades e diferenccedilas) Trata-se justamente da peculiar modalidade de determina-

ccedilatildeo que estaacute em causa quando se fala de ldquomesardquo de ldquoestanterdquo de ldquocadeirardquo de ldquoparederdquo etc

Determinaccedilotildees desta natureza distinguem-se pela propriedade de pura e simplesmente

natildeo serem possiacuteveis como determinaccedilotildees simples determinaccedilotildees desta ordem soacute satildeo possiacute-

veis como determinaccedilotildees intrinsecamente colectivas ou intrinsecamente sinteacuteticas que jun-

tam uma multiplicidade

148

Ora apesar de algo como uma mesa simples uma cadeira simples uma parede sim-

ples etc ser pura contradictio in adjecto isso natildeo impede que estas determinaccedilotildees apareccedilam

como determinaccedilotildees com um teor proacuteprio idecircntico a si mesmo e completamente irredutiacutevel

natildeo apenas a cada um dos elementos da multiplicidade sem a qual natildeo podem ocorrer mas

tambeacutem a essa multiplicidade enquanto ela constitui uma mera justaposiccedilatildeo dos seus elemen-

tos

Este eacute o ponto decisivo as determinaccedilotildees colectivas desta ordem (mesa estante pare-

de etc) satildeo natildeo soacute diferentes umas das outras mas tambeacutem diferentes dos elementos que in-

tegram ndash e na verdade tatildeo diferentes deles quanto eles satildeo diferentes uns dos outros mas sen-

do assim estas determinaccedilotildees diferentes natildeo vecircm juntar-se agrave multiplicidade daquilo que inte-

gram como mais um elemento justaposto nela (como mais um elemento da mera justaposi-

ccedilatildeo)

Sucede o contraacuterio

As determinaccedilotildees colectivas do tipo que estamos a considerar disinguem-se pelo facto

de a sua identidade parecer constituiacuteda de tal modo que integra em si salva identitate a mul-

tiplicidade dos elementos que ldquofazem parterdquo da mesa da cadeira da estante da parede etc

Ou seja apesar de a mesa (a cadeira a estante etc) ser diferente dos seus elementos e

de estes serem diferentes entre si a identidade deste tipo apresenta-se como capaz de integrar

em si o diferente e de o converter em momento seu ou em momento de si

Esta estrutura estaacute tatildeo profundamente implantada na forma como vemos que habitual-

mente natildeo damos por ela natildeo nos apercebemos da sua morfologia dos problemas que levan-

ta etc Eacute ela que faz que tudo o que nos aparece tenha como vimos a estrutura de um apare-

cimento de ldquocoisasrdquo

O que aqui apresentamos natildeo eacute mais do que uma anaacutelise muito breve que fica muito

longe de dar conta de todos os aspectos e de focar o complexo de problemas que tudo isto le-

vanta Limitamo-nos a considerar trecircs pontos que podem ajudar a perceber melhor a questatildeo

dos diversos factores que podem moldar a constituiccedilatildeo da experiecircncia

Em primeiro lugar o que acabamos de dizer significa que em uacuteltima anaacutelise na forma

de aparecimento em que damos connosco natildeo haacute apenas um alfabeto de determinaccedilotildees mas

dois a) um alfabeto de determinaccedilotildees disso a que chamaacutemos a trama baacutesica de identidades e

diferenccedilas e b) um alfabeto de determinaccedilotildees intrinsecamente colectivas ou sinteacuteticas (ie um

alfabeto daquilo que constitui as unidades colectivas de determinaccedilotildees) E isto de tal modo

149

que os problemas anteriormente referidos (designadamente a questatildeo da scala praeligdicamenta-

lis e das determinaccedilotildees de afinidade de primeira segunda terceira ordem etc) se potildeem em

duplicado (a respeito dos dois alfabetos)

Em segundo lugar a integraccedilatildeo dos elementos da ldquotrama baacutesicardquo em unidades colec-

tivas de determinaccedilotildees (quer dizer a sua integraccedilatildeo nas peculiares modalidades de identidade

que satildeo as determinaccedilotildees intrinsecamente sinteacuteticas acima referidas) estaacute marcada por um fe-

noacutemeno de assimetria

Se considerarmos um momento do caixilho da janela verificamos que ele eacute diferente

do proacuteprio caixilho mas que tal como me aparece perdeu completamente a sua proacutepria iden-

tidade independente do caixilho O que caracteriza um momento do caixilho da janela eacute que

embora seja diferente do caixilho da janela tem a sua proacutepria identidade sempre jaacute definida

pela identidade colectiva ndash estaacute reduzido a um momento dela posto sob o seu ascendente etc

De tal modo que por mais que o caixilho precise dos momentos de que eacute constituiacutedo para po-

der ser isso mesmo que eacute para o exprimir na formulaccedilatildeo loacutegica tradicional natildeo eacute o caixilho

que eacute dos seus momentos mas sim os momentos do caixilho que satildeo dele

Por outras palavras o nexo entre os dois alfabetos estaacute marcado pelo claro ascendente

de um sobre o outro pela preponderacircncia de um sobre o outro (pela reduccedilatildeo de um a funccedilotildees

de composiccedilatildeo interna em relaccedilatildeo ao outro) E eacute isso que se exprime no facto de se pergun-

tarmos o que nos aparece dizermos ldquoparederdquo ldquoestanterdquo ldquocadeirardquo ldquojanelardquo etc e natildeo dar-

mos uma resposta ldquopontilhistardquo

Em terceiro lugar como dissemos tudo o que nos aparece tem esta forma (eacute um apare-

cimento de ldquocoisasrdquo) mas com um peculiar arranjo ndash de tal modo que corresponde a uma de-

terminada modalidade dentro das vaacuterias que pode ter um aparecer (uma apresentaccedilatildeo) com es-

tas caracteriacutesticas

Com efeito se virmos como estatildeo constituiacutedas as unidades colectivas de determi-

naccedilotildees que nos aparecem verificamos que haacute uma variaccedilatildeo na sua constituiccedilatildeo no centro do

que nos aparece quer dizer na esfera mais proacutexima as unidades colectivas de determinaccedilotildees

tecircm uma determinada ldquobitolardquo (recorrendo agrave terminologia loacutegica tecircm uma determinada com-

preensatildeo e uma determinada extensatildeo) Se passarmos do centro para a periferia (para o mais

distante) verificamos que a forma global (a organizaccedilatildeo de tudo em unidades colectivas de

determinaccedilotildees) se manteacutem mas a ldquobitolardquo muda ndash passa a haver outra compreensatildeo e outra ex-

tensatildeo Ou mais precisamente no centro (na esfera de proximidade) as unidades colectivas

150

de determinaccedilotildees tecircm maior compreensatildeo e menor extensatildeo ao transitar do centro para a

periferia passa a suceder o contraacuterio aumenta a extensatildeo e diminui a compreensatildeo

Acontece que estamos tatildeo ldquocoladosrdquo agrave forma que o aparecimento e a experiecircncia cos-

tumam ter para noacutes que natildeo eacute faacutecil percebermos o cabimento de formas alternativas Mas na

verdade nada impede que houvesse experiecircncia regulada por essas formas alternativas Neste

sentido o que caracteriza a nossa perspectiva natildeo eacute apenas o ser empiacuterica mas ainda o facto

de tambeacutem neste ponto seguir uma de entre vaacuterias conformaccedilotildees possiacuteveis ou se ser apenas

uma de entre diversas conformaccedilotildees possiacuteveis da ἐμπειρία

Ora o que vimos nesta secccedilatildeo permite-nos perceber uma outra ldquoencruzilhadardquo ou uma

outra possibilidade de variaccedilatildeo da experiecircncia A saber

A experiecircncia pode produzir-se no quadro de um aparecimento pontilhista e ser uma

experiecircncia pontilhista ndash ou em alternativa pode estar sintonizada por unidades colectivas

de determinaccedilotildees aleacutem disso uma experiecircncia sintonizada pelo modelo das unidades colecti-

vas de determinaccedilotildees pode ter ou pelo contraacuterio natildeo ter o regime de variaccedilatildeo do centro pa-

ra a periferia que acabamos de descrever

sect22

A variaccedilatildeo no niacutevel de acuidade a relaccedilatildeo entre o grau de determinaccedilatildeo com que as ldquocoi-

sasrdquo nos aparecem e a exigecircncia de determinaccedilatildeo que enfrentam ndash A inadvertecircncia em re-

laccedilatildeo agrave multiplicidade de determinaccedilotildees que conformam o teor do que nos aparece

Mesmo que o que vamos vendo nas sucessivas secccedilotildees jaacute corresponda a um quadro

bastante mais complexo do que aquele que se desenhou no iniacutecio padece ainda de uma muito

significativa margem de simplificaccedilatildeo

Eacute assim entre outras razotildees porque aquilo que dissemos sobre a constituiccedilatildeo da expe-

riecircncia ainda natildeo leva em conta o papel que cabe ao niacutevel de acuidade e agrave variaccedilatildeo do niacutevel

de acuidade

Comecemos por explicar que eacute que temos em vista quando falamos de acuidade e va-

riaccedilatildeo de acuidade

151

Por um lado o quadro do que aparece natildeo se caracteriza por uma acuidade constan-

te Por outro lado consoante varia o grau de acuidade varia tambeacutem ndash e varia muito signifi-

cativamente ndash o quadro do que aparece

Isto eacute claro se considerarmos por exemplo a apresentaccedilatildeo visual agrave distacircncia Agrave medi-

da que se transita do proacuteximo para a distacircncia haacute uma muito clara diminuiccedilatildeo da acuidade

Isto eacute com a distacircncia haacute uma diminuiccedilatildeo proporcional da definiccedilatildeo com que se

apresenta aquilo que aparece ndash fenoacutemeno que se poderia verter na foacutermula quanto maior a

distacircncia maior a imprecisatildeo

Isto tem um efeito directo sobre as determinaccedilotildees do que aparece Vendo bem signifi-

ca que o que aparece estaacute ou pode estar marcado por um defeito de definiccedilatildeo (estaacute ou pode

estar marcado por uma diminuiccedilatildeo das determinaccedilotildees por um aumento da indefiniccedilatildeo quanto

agraves suas determinaccedilotildees etc)

Por outro lado vendo bem este fenoacutemeno de diminuiccedilatildeo da acuidade natildeo se verifica

apenas na visatildeo agrave distacircncia De facto tem lugar ateacute mesmo na proximidade em relaccedilatildeo ao in-

terior dos corpos opacos Dos corpos opacos o que temos propriamente dito satildeo superfiacutecies

exteriores (de cada vez uma parte das suas superfiacutecies exteriores)

Ora acontece que essas superfiacutecies natildeo satildeo vistas apenas como superfiacutecies exteriores

(ie em neutralidade relativamente a haver o que quer que seja aleacutem delas) Na verdade as

superfiacutecies satildeo acompanhadas por uma co-apresentaccedilatildeo do interior dos corpos (se assim se

pode dizer por um ldquoconteuacutedordquo que ldquopotildee laacuterdquo o interior dos corpos ndash de tal modo que eacute precisa-

mente isto que os constitui como corpos maciccedilos ndash e natildeo apenas como superfiacutecies ou corpos

opacos)

No entanto se procurar fixar que determinaccedilatildeo tecircm estes ldquoconteuacutedosrdquo responsaacuteveis

pelo preenchimento do interior dos corpos verifico que o seu regime de determinaccedilatildeo eacute muito

mais pobre do que o das superfiacutecies que os rodeiam

Se por exemplo considerarmos o nosso proacuteprio corpo a matildeo com que escrevemos ou

o braccedilo verificamos que logo a seguir agrave superfiacutecie exterior comeccedila o territoacuterio desta co-apre-

sentaccedilatildeo impliacutecita do interior que por uma parte eacute diferente da percepccedilatildeo das superfiacutecies

mas por outra parte estaacute integrada nela (molda-a de sorte que a percepccedilatildeo das superfiacutecies se-

ria muito diferente se natildeo incluiacutesse este elemento) Mas o que estaacute posto logo debaixo da pele

a preencher o interior da matildeo ou do braccedilo natildeo tem cor propriamente definida eacute muito impre-

ciso quanto agrave sua morfologia etc

152

Assim a perspectiva que temos sobre aquilo que natildeo vemos do nosso proacuteprio corpo

natildeo eacute inteiramente vazia inclui um certo conjunto de determinaccedilotildees (que natildeo eacute oco que eacute soacute-

lido que eacute algo que de certo modo sentimos que tem estas e aquelas propriedades em relaccedilatildeo

ao movimento que existe independentemente da apresentaccedilatildeo que disso temos etc) mas de

tal modo que b) essas determinaccedilotildees satildeo incomparavelmente mais pobres do que as determi-

naccedilotildees que preenchem as superfiacutecies ldquoexpostasrdquo (as superfiacutecies cobertas pela percepccedilatildeo direc-

ta)

Algo semelhante acontece em relaccedilatildeo a tudo o que temos apresentado fora do campo

perceptivo no sentido estrito do termo

Temos de cada vez um campo perceptivo ndash que pode variar quanto agrave sua dimensatildeo Se

estamos numa sala e natildeo estamos em posiccedilatildeo de olhar pelas janelas o campo perceptivo em

sentido estrito reduz-se agrave sala Se conseguimos olhar pelas janelas o campo perceptivo inclui

tambeacutem ldquonesgasrdquo do exterior variaacuteveis quanto agrave sua amplitude Se vamos numa avenida o

campo perceptivo passa a ter dimensotildees ainda maiores E assim por maioria de razatildeo se su-

birmos ao miradouro de um castelo etc

Sendo assim sucede que nunca se tem um campo perceptivo absoluto natildeo vemos as

coisas como se o campo perceptivo esgotasse a realidade Acontece o contraacuterio o campo per-

ceptivo em sentido estrito aparece sempre como uma pequena parte do que haacute

Isso significa que a nossa relaccedilatildeo com qualquer campo perceptivo que de cada vez te-

mos estaacute marcado por uma co-apresentaccedilatildeo inexpliacutecita desse para-laacute ndash sempre presente e

sempre a afectar com a sua presenccedila a forma como nos aparece o campo perceptivo que de

cada vez temos Daiacute resulta que ao contraacuterio do que pode parecer agrave partida a maior parte do

que de cada vez temos apresentado excede o campo perceptivo que de cada vez se acha cons-

tituiacutedo natildeo eacute percepccedilatildeo mas algo muito diferente da percepccedilatildeo com um caraacutecter inexpliacutecito

natildeo declarado (quer dizer que natildeo se encontra expresso e natildeo eacute passiacutevel de ser encontrado no

ldquoeacutecranrdquo do que nos aparece da mesma forma que aiacute podemos encontrar aquilo que pertence ao

campo perceptivo)

Ora este exterior do campo perceptivo pode estar presente de duas formas

153

A primeira que acabamos de referir corresponde agravequilo que Husserl muitas vezes

descreve como co-presenccedila em regime de horizonte (ou co-presenccedila horizontal)44

A segunda tem que ver com o fenoacutemeno da presentificaccedilatildeo (aquilo a que Husserl

chama Vergegenwaumlrtigung)45

Natildeo podemos analisar aqui detidamente as caracteriacutesticas destas duas formas de pre-

senccedila e o modo como se articulam entre si Interessa sobretudo um aspecto a presentificaccedilatildeo

eacute sempre muito mais definida (tem conteuacutedos muito mais determinados) do que a co-presenccedila

horizontal

Consideremos por exemplo o caso em que estamos de costas voltadas para o resto da

sala

Ao considerarmos o caso de estarmos de costas voltadas para o resto da sala aquilo

que compreendemos eacute que nunca estamos num quadro de realidade reduzido agrave parte da sala

para que estamos voltados e a que temos acesso directo ou perceptivo A sala em que estamos

eacute sempre a sala no seu todo Poreacutem a mera co-presenccedila horizontal eacute sempre muito menos de-

finida do que aquela que os objectos da sala passam a ter se os presentificamos na parede ao

fundo haacute uma estante uma secretaacuteria etc

Por outro lado se eacute assim sucede tambeacutem que a forma como estaacute presente por exem-

plo a estante se a presentificamos eacute muito diferente daquilo que passa a haver se nos volta-

mos e temos acesso agrave estante de forma perceptiva

44

Husserl desenvolve o termo com especial incidecircncia nas suas Cartesianische Meditationen em par-

ticular nas secccedilotildees sect19-sect22 da Segunda Meditaccedilatildeo A bibliografia sobre o ldquohorizonterdquo eacute muito extensa

e natildeo interessa dar aqui ser especialmente exaustivo Podem encontrar-se explicaccedilotildees detidas do fenoacute-

meno em obras como as de Geniusas S The Origins of the Horizon in Husserlrsquos Phenomenology

Dordrecht Springer 2012 Klein T The world as horizon Husserlrsquos constitutional theory of the ob-

jective world Rice University Tese de Doutoramento 1967 Tengelyi L Erfahrung und Ausdruck

Phaumlnomenologie im Umbruch bei Husserl und seinen Nachfolgern Dordrecht Springer 2007

45 Husserl desenvolve muito profundamente o termo Vergegenwaumlrtigung em vaacuterios momentos da sua

obra e natildeo cabe aqui uma anaacutelise do que estaacute implicado na noccedilatildeo Basta fazer notar que um levanta-

mento do termo por mais breve teria necessariamente de o resgatar em textos tatildeo diversos como

Phantasie Bildbewuszligtsein Erinnerung Vorlesungen zur Phaumlnomenologie des inneren Zeitbewuszligt-

seins Erfahrung und Urteil etc Encontra-se um debate dos temas que aqui temos em vista por exem-

plo em Oliveira I Perceptum fictum e imaginatum ndash a imaginaccedilatildeo fiacutesica em Husserl Revista Filosoacute-

fica de Coimbra nordm 36 2009 paacutegs 315-364 ou Saraiva M Lrsquoimagination chez Husserl Haia Marti-

nus Nijhoff 1970

154

Vendo bem a estante presentificada natildeo tem um nuacutemero definido de prateleiras (ie

natildeo estaacute incluiacuteda na presentificaccedilatildeo a clara determinaccedilatildeo de quantas satildeo as prateleiras que

ldquovatildeordquo do chatildeo ao tecto) E o mesmo acontece por exemplo em relaccedilatildeo aos livros haacute uma in-

dicaccedilatildeo de multiplicidade e de que os livros tecircm lombadas multicolores mas a presentificaccedilatildeo

natildeo inclui nenhuma sequecircncia definida de cores e tamanhos das lombadas O que a caracteriza

a presentificaccedilatildeo eacute ter um preenchimento muito impreciso com determinaccedilotildees puramente ge-

neacutericas (coorrespondentes agrave definiccedilatildeo de um tipo de realidade)46

Acontece entretanto que a descriccedilatildeo que acabamos de fazer eacute muito incompleta ndash e

na verdade tatildeo incompleta que envolve uma significativa margem de distorccedilatildeo do fenoacutemeno

em causa

Com efeito o que constitui a acuidade ndash e a variaccedilatildeo de acuidade ndash natildeo eacute apenas o

grau de definiccedilatildeo (a riqueza das determinaccedilotildees com que aquilo que aparece se apresenta sc a

variaccedilatildeo desse grau de definiccedilatildeo) Haacute uma outra componente essencial da acuidade tatildeo im-

portante quanto esta que acabamos de tentar pocircr em foco ndash e isto de tal modo que aquilo que

nos aparece nunca depende apenas da acuidade no sentido do grau de determinaccedilatildeo com que

as coisas nos aparecem mas sempre da relaccedilatildeo entre as duas componentes em questatildeo

Vejamos um pouco melhor como eacute assim comeccedilando por considerar o caso da visatildeo agrave

distacircncia

Como vimos agrave medida que os objectos se distanciam perdem definiccedilatildeo mas se se

perguntar se habitualmente temos noccedilatildeo de que eacute assim (e a que ponto eacute assim) a resposta

que temos de dar eacute negativa

46

Para usarmos a linguagem do empirismo claacutessico quando contrasta a representaccedilatildeo das diversas es-

peacutecies de triacircngulo e a representaccedilatildeo geneacuterica de triacircngulo e insiste em que nunca tempos propriamen-

te esta uacuteltima mas sempre uma representaccedilatildeo especiacutefica de triacircngulo ou equilaacutetero ou isoacutesceles ou es-

caleno etc podemos dizer o seguinte o que caracteriza a presentificaccedilatildeo eacute que pelo menos uma gran-

de parte daquilo que representamos desta forma tem precisamente as caracteriacutesticas que os argumentos

empiristas negam Quer dizer a tese empirista poderia ser vaacutelida no plano da percepccedilatildeo propriamente

dita (natildeo cabe aqui discutir se o eacute ou natildeo) Mas natildeo eacute vaacutelida na esfera da presentificaccedilatildeo ndash e a fortiori

natildeo eacute vaacutelida em relaccedilatildeo agrave esfera da co-presenccedila horizontal Nestas esferas a maior parte do que temos

apresentado estaacute apresentado no regime cujo cabimento as teses empiristas negam E isso significa pe-

las razotildees que vimos que as referidas teses empiristas natildeo satildeo vaacutelidas para aquilo que de cada vez

constitui a maior parte do que temos apresentado (o ldquomaciccedilordquo em que o campo perceptivo de cada vez

se acha integrado de tal modo que constiui apenas um pequeno enclave no meio dele)

155

Quer dizer temos uma noccedilatildeo global de que as coisas agrave distacircncia satildeo menos definidas

Mas isso natildeo significa de modo nenhum que as vejamos com uma consciecircncia definida do seu

grau de indefiniccedilatildeo

Se por hipoacutetese como no exemplo do Filebo vemos algo ao longe a respeito do qual

natildeo temos condiccedilotildees para determinar se eacute uma pessoa ou uma imagem (se eacute ou natildeo uma pes-

soa determinada ou se ao caminhar nos aparece algueacutem ao longe que nos parece estar a an-

dar mas de tal modo que temos condiccedilotildees para determinar se vem no sentido contraacuterio ao nos-

so aproximando-se ou se se desloca no mesmo sentido que noacutes etc) percebemos com gran-

de nitidez a indeterminaccedilatildeo do que me aparece Mas quando isso acontece todas as realidades

que nos aparecem agrave mesma distacircncia (e por maioria de razatildeo aquelas se situam ainda mais

longe) ou padecem do mesmo deficit de determinaccedilatildeo ou padecem de um deficit ainda maior

Ora acontece que em condiccedilotildees normais pura e simplesmente natildeo nos apercebemos

disso

A questatildeo estaacute em saber por que eacute assim E a resposta eacute no fundamental a seguinte

Aquilo que decide a forma como as coisas nos aparecem natildeo eacute apenas o grau de deter-

minaccedilatildeo com que se apresentam mas tambeacutem a exigecircncia de determinaccedilatildeo que enfrentam

que tecircm de satisfazer etc

Quer dizer haacute como diziacuteamos uma segunda componente de acuidade (e uma segunda

componente de variaccedilatildeo de acuidade) a precisatildeo de definiccedilatildeo que eacute aplicada agravequilo que apa-

rece e a que aquilo que aparece deve corresponder

Se considerarmos o que se passa na visatildeo agrave distacircncia damo-nos conta de que aquilo

que varia agrave medida que os objectos aparecem mais ao longe natildeo eacute apenas o grau de definiccedilatildeo

com que se apresentam ndash eacute tambeacutem a exigecircncia de definiccedilatildeo a que satildeo sujeitos consoante es-

tejam mais ao perto ou mais ao longe

Isto eacute natildeo haacute apenas um continuum de variaccedilatildeo mas dois ndash e isto de tal modo que os

dois continua em questatildeo correm paralelos um ao outro em perfeita correspondecircncia um ao

outro

Em uacuteltima anaacutelise a forma como nos aparece aquilo que nos aparece na visatildeo agrave distacircn-

cia natildeo depende de nenhum destes dois factores considerados soacute por si em isolamento de-

pende da relaccedilatildeo que de cada vez haacute entre eles (ie da correspondecircncia ou falta dela entre o

156

grau de determinaccedilatildeo com que isto ou aquilo se apresenta e o grau de exigecircncia de definiccedilatildeo

que recai sobre os objectos em causa e que eles satildeo chamados a satisfazer)

Precisamente por isso (porque a nitidez aparente do que nos aparece depende do en-

contro ou desencontro entre as duas componentes de acuidade que aqui procuramos pocircr em

contraste uma com a outra) o que habitualmente caracteriza a visatildeo agrave distacircncia eacute uma peculiar

impressatildeo de nitidez constante (ou de todo o modo um recohecimento da variaccedilatildeo da nitidez

que fica muito aqueacutem da variaccedilatildeo que efectivamente ocorre)47

Se isto eacute assim no que diz respeito agrave visatildeo agrave distacircncia algo muito semelhante se passa

tambeacutem no caso do interior dos corpos opacos

Embora haja uma diferenccedila suacutebita e abrupta entre o grau de definiccedilatildeo com que se

apresentam as superfiacutecies percepcionadas dos corpos opacos e o interior que subjaz a essas

superfiacutecies habitualmente natildeo nos apercebemos dessa diferenccedila E natildeo nos apercebemos dela

justamente porque tambeacutem neste caso haacute uma consideraacutevel variaccedilatildeo do niacutevel de exigecircncia e o

olhar que volvemos (mais exactamente o olhar que natildeo chegamos propriamente a volver)

para o interior dos corpos opacos eacute um olhar muito menos exigente do que aquele com que

acompanhamos as superfiacutecies expostas

Para percebermos a que ponto eacute assim basta um exerciacutecio muito simples

Como vimos o interior de um corpo opaco que nunca abrimos natildeo tem sequer uma cor

determinada natildeo tem uma morfologia determinada etc Eacute assim por exemplo em relaccedilatildeo ao

47

Isto eacute a uma dada distacircncia 3 o grau de perda de definiccedilatildeo eacute -3 e o grau de afrouxamento da exi-

gecircncia de definiccedilatildeo tambeacutem eacute -3 a uma dada distacircncia 8 o grau de perda de definiccedilatildeo eacute -8 e o grau de

afrouxamento da exigecircncia de definiccedilatildeo tambeacutem eacute -8 ndash e assim sucessivamente em perfeita correspon-

decircncia Podemos exprimir isto tudo nos termos a que aqui recorremos

distacircncia 3 distacircncia 6 distacircncia 9

grau de

definiccedilatildeo 3 6 9 e assim

mdashmdashmdash mdash = 1 mdash = 1 mdash = 1 sucessivamente

exigecircncia 3 6 9

de definiccedilatildeo

A estrutura das duas variantes correndo paralelas uma agrave outra resulta na impressatildeo global de nitidez

constante

157

interior do corpo de algueacutem com quem falo Mas a percepccedilatildeo ldquoprotestariardquo espontaneamente

se uma superfiacutecie expressa vista ao perto (por exemplo o rosto da pessoa com quem falamos)

nos aparecesse com esse tipo de indeterminaccedilatildeo Isso significa que haacute na percepccedilatildeo das su-

perfiacutecies e dos interiores dos corpos como que dois pesos e duas medidas

Eacute isso que permite perceber o que acontece no caso do Filebo e em casos semelhantes

relativos agrave visatildeo agrave distacircncia daacute-se uma alteraccedilatildeo em virtude da qual um objecto que se apre-

senta a uma certa distacircncia em vez de enfrentar o niacutevel de exigecircncia correspondente agrave distacircn-

cia a que se encontra passa a enfrentar um niacutevel de exigecircncia (a segunda componente de acui-

dade) diferente Ou seja tanto no caso de superfiacutecies exteriores que se apresentassem com o

deficit de determinaccedilatildeo que eacute caracteriacutestico dos interiores quanto nos casos do tipo referido

por Platatildeo no Filebo haacute um desencontro entre as duas componentes de acuidade e eacute esse de-

sencontro que daacute lugar agraves experiecircncias de deficit de nitidez

O mesmo se pode tambeacutem dizer a respeito da presentificaccedilatildeo

Quando presentificamos a estante atraacutes das costas sem nos voltarmos (ie sem termos

qualquer acesso perceptivo a ela) experimentamos aquilo que costumamos exprimir em rela-

ccedilatildeo aos fenoacutemenos de presentificaccedilatildeo quando dizemos ldquoparece que estou a verrdquo

De facto a presentificaccedilatildeo tem um caraacutecter quasi-perceptivo ndash vive-se como se fosse

percepccedilatildeo com uma impressatildeo de equivalecircncia que eacute decisiva para a forma como estaacute consti-

tuiacuteda Ou seja a presentificaccedilatildeo tem a estrutura de um oxiacutemoro eacute uma quase-percepccedilatildeo (uma

como-que-percepccedilatildeo) em aberto quanto ao seu proacuteprio conteuacutedo

O ponto decisivo eacute que sendo assim a experiecircncia normal da presentificaccedilatildeo natildeo se

daacute conta de nada disto natildeo vecirc a indeterminaccedilatildeo vecirc como se estivesse a percepcionar Isso soacute

eacute possiacutevel porque a presentificaccedilatildeo vecirc como que atraveacutes de um veacuteu que dissolve a proacutepria

acuidade do olhar e faz que aceite a falta de acuidade daquilo que se lhe apresenta

Eacute indispensaacutevel focar ainda um aspecto sem cuja consideraccedilatildeo a perspectiva que aca-

bamos de desenhar sobre o papel da acuidade e a sua influecircncia na conformaccedilatildeo do que nos

aparece ndash e portanto tambeacutem na conformaccedilatildeo da experiecircncia ndash deixa de fora uma componen-

te decisiva

Se atentarmos na forma como ateacute aqui consideraacutemos a questatildeo da acuidade verifica-

mos que sem disso estarmos cientes tomaacutemos como padratildeo o registo de acuidade ndash quer di-

zer tanto do niacutevel de determinaccedilatildeo quanto de exigecircncia de determinaccedilatildeo ndash que eacute proacuteprio da

percepccedilatildeo proacutexima de superfiacutecies expostas

158

Assim concebemos a variaccedilatildeo de acuidade sempre por defeito em relaccedilatildeo a esse pa-

dratildeo pondo em evidecircncia (como nos casos da visatildeo agrave distacircncia da co-apresentaccedilatildeo dos inte-

riores dos corpos opacos e da presentificaccedilatildeo) que tanto o niacutevel de determinaccedilatildeo com que os

ldquoconteuacutedosrdquo se apresentam quanto o niacutevel de exigecircncia de determinaccedilatildeo que tecircm de satisfazer

satildeo bastante mais baixos do que na percepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas

Ao proceder assim aceitaacutemos ndash sem sequer dar conta disso ndash que o niacutevel de acuidade

proacuteprio da percepccedilatildeo de superfiacutecies proacuteximas constitui de algum modo um nec plus ultra de

acuidade ndash um maacuteximo de acuidade insusceptiacutevel de ser ultrapassado (ou de todo o modo de

ser ultrapassado significativamente)

Vendo bem essa pressuposiccedilatildeo eacute desprovida de fundamento

Natildeo acontece de maneira nenhuma que o niacutevel de acuidade proacuteprio da percepccedilatildeo de

superfiacutecies expostas proacuteximas corresponda a um maacuteximo ou a um superlativo insusceptiacutevel de

ser significativamente ultrapassado Na verdade sucede algo muito diferente o niacutevel de acui-

dade proacuteprio da percepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas situa-se algures no meio do inter-

valo ou da escala de acuidade (e tanto quer dizer numa posiccedilatildeo tal que haacute niacuteveis inferiores ndash

um numeroso conjunto de niacuteveis inferiores ndash mas tambeacutem niacuteveis superiores ndash um numeroso

conjunto de niacuteveis superiores)

A razatildeo por que esse niacutevel pode parecer superlativo e inultrapassaacutevel eacute o facto de ha-

bitualmente o nosso ponto de vista estar se assim se pode dizer estabilizado ldquoa meiordquo da es-

cala e natildeo costumar ter acesso a nada que ultrapasse o niacutevel de acuidade proacuteprio da percepccedilatildeo

de superfiacutecies expostas proacuteximas

Em suma para usar a expressatildeo da tradiccedilatildeo esse superlativo eacute apenas quoad nos e a

concepccedilatildeo da escala da acuidade que situa toda a variaccedilatildeo abaixo desse niacutevel (compreenden-

do-o como topo da escala) eacute uma concepccedilatildeo ldquoprovincianardquo que confunde os limites da nossa

percepccedilatildeo habitual com os limites daquilo que eacute possiacutevel simpliciter (confundindo o que eacute ha-

bitualmente o maacuteximo ἡμῖν ou πρὸς ἡμᾶς com aquilo que eacute possiacutevel τῇ φύσει)

Natildeo cabe aqui analisar em todas as suas aplicaccedilotildees o que permite afirmar que a per-

cepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas natildeo tem de modo nenhum o caraacutecter de um nec plus

ultra antes estaacute situada algures ldquoa meio da escalardquo da variaccedilatildeo de acuidade que eacute possiacutevel

Atemo-nos a um aspecto que permite perceber o essencial e potildee na pista do mais que haveria

que ter em conta

159

O aspecto que pretendemos focar e que permite perceber o caraacutecter ldquomedianordquo da

acuidade proacutepria da percepccedilatildeo de superfiacutecies expostas proacuteximas tem que ver com o fenoacutemeno

das representaccedilotildees confusas no sentido que jaacute se desenha no primeiro capiacutetulo do livro Α da

Physica de Aristoacuteteles e cuja concepccedilatildeo foi depois objecto de importantes desenvolvimen-

tos designadamente no pensamento de Leibniz

Se se considerar por exemplo qualquer ponto de uma superfiacutecie exposta proacutexima eacute

claro que nos aparece justamente como um quase ponto ndash como se correspondesse a qualquer

coisa de individual Mas por outro lado se olharmos mais detidamente para a sua constitui-

ccedilatildeo percebemos que na verdade tem o caraacutecter de uma pequeniacutessima ldquomanchardquo ndash quer dizer

de uma multiplicidade de uma superfiacutecie etc

Em relaccedilatildeo a essa superfiacutecie haacute fundamentalmente duas coisas que vendo bem natildeo

sabemos a) qual o cardinal dos elementos que a compotildeem e b) qual a determinaccedilatildeo ou natu-

reza proacutepria desses elementos (na medida em que o que habitualmente temos como ldquopontordquo

satildeo justamente ainda superfiacutecies e nos falta por inteiro o conhecimento da determinaccedilatildeo dessa

natildeo-superfiacutecie que estaacute em causa)

O que nos importa aqui natildeo eacute naturalmente discutir este problema mas sim focar o

seguinte quando habitualmente vemos superfiacutecies expostas proacuteximas natildeo estamos cientes

deste fenoacutemeno

Isto significa por um lado que haacute um defeito de determinaccedilatildeo na forma como se apre-

sentam essas superfiacutecies elas satildeo feitas se assim se pode dizer de pseudo-pontos de multi-

plicidades indeterminadas ou insuficientemente definidas quanto agrave sua composiccedilatildeo mas por

outro lado tambeacutem significa que a nossa perspectiva quando vemos assim e aceitamos o que

assim aparece sem nos apercebermos do defeito de definiccedilatildeo aiacute implicado estaacute como que tol-

dada por um deficit de acuidade no segundo sentido que procuraacutemos pocircr em evidecircncia um

defeito quanto ao niacutevel de exigecircncia de definiccedilatildeo

Isto natildeo eacute tudo

Vendo bem a multiplicidade que estaacute implicada no aparecimento do que nos aparece

como um quase-ponto natildeo eacute apenas a multiplicidade da ldquomanchardquo ndash a multiplicidade da su-

perfiacutecie que de facto faz esse quase-ponto (e em virtude da qual justamente natildeo se trata pro-

priamente de um ponto mas apenas de um quase-ponto) Haacute ainda um outro aspecto natildeo me-

nos decisivo

160

Esse outro aspecto tem que ver com o facto de as determinaccedilotildees que preenchem esse

quase-ponto e que estatildeo envolvidas na fixaccedilatildeo do seu teor tambeacutem serem multiplicidade ndash e

de facto uma multiplicidade bastante numerosa

Natildeo importa discutir aqui a multiplicidade das determinaccedilotildees ou das teses envolvidas

na fixaccedilatildeo do teor do que quer que seja E tambeacutem natildeo cabe aqui tentar levar mais a fundo o

recenseamento do verdadeiro ldquoenxamerdquo de determinaccedilotildees e teses que assim comeccedilam a dese-

nhar-se como ldquoingredientesrdquo do quase-ponto do caixilho da janela48

48

Ao ter apresentado o quase-ponto em causa o nosso olhar estaacute afectado pela presenccedila dessas deter-

minaccedilotildees (vecirc o quase-ponto em causa segundo essas determinaccedilotildees ndash com essas determinaccedilotildees ndash e

natildeo sem elas ou numa posiccedilatildeo de neutralidade relativamente agrave sua presenccedila ou ausecircncia) um quase-

ponto do caixilho da janela tem uma dada cor que lhe atribuiacutemos o estado soacutelido a resistecircncia sem a

qual teria o caraacutecter de um fantasma e se deixaria atravessar pelos nossos dedos a coesatildeo em virtude

da qual se relaciona de uma determinada maneira com os outros momentos do caixilho etc Acresce

tambeacutem que por exemplo natildeo aparece apenas como o quase-ponto de uma superfiacutecie mas tambeacutem

posto em relaccedilatildeo com aquilo que estaacute debaixo da superfiacutecie de tal modo que faz parte de um corpo

opaco estaacute integrado numa unidade colectiva de determinaccedilotildees (o caixilho da janela) posto sob o as-

cendente dessa unidade colectiva etc Aleacutem disso o seu aparecimento inclui a atribuiccedilatildeo de um deter-

minado lugar no espaccedilo (e tanto quer dizer uma taacutecita representaccedilatildeo da proacutepria multiplicidade do

espaccedilo) e ainda de uma posiccedilatildeo no tempo (o que por sua vez tambeacutem natildeo eacute possiacutevel sem alguma re-

presentaccedilatildeo da proacutepria multiplicidade do tempo) No que diz respeito ao espaccedilo a representaccedilatildeo do

quase-ponto em causa tambeacutem inclui a) a atribuiccedilatildeo agrave realidade em causa da propriedade de poder

ocupar diversos lugares no espaccedilo (o quase-ponto do caixilho natildeo tem nenhuma ligaccedilatildeo necessaacuteria ao

lugar que neste momento ocupa pode sair dele) mas tambeacutem b) um determinado regime de movimen-

to (pode-se mover sim mas estaacute-lhe negada a propriedade da auto-cinese soacute se pode mover por in-

fluecircncia de outra coisa etc) No que diz respeito ao tempo o quase-ponto do caixilho da janela estaacute

marcado pela co-representaccedilatildeo da duraccedilatildeo (natildeo tem apenas uma posiccedilatildeo no tempo dura) e pela taacutecita

co-apresentaccedilatildeo de que tambeacutem jaacute foi antes (de tal modo que o quase-ponto agora vem na continuaccedilatildeo

do quase-ponto imediatamente antes ndash e imediatamente antes de imediatamente antes e assim sucessi-

vamente) e de que haveraacute algo semelhante imediatamente a seguir ndash e imediatamente a seguir de ime-

diatamente a seguir e assim sucessivamente (a surpresa que teria se de repente o caixilho e o quase-

ponto aqui em causa desaparecessem) Por outro lado no que diz respeito agrave duraccedilatildeo a forma como o

quase-ponto do caixilho me aparece natildeo inclui apenas a ideia de duraccedilatildeo de facto inclui tambeacutem a de

identidade diacroacutenica Quer dizer natildeo vejo o quase-ponto em causa apenas como antecedido no tempo

por algo semelhante (e vindo de algo semelhante) um outro quase-ponto do caixilho em tudo seme-

lhante a este mas natildeo idecircntico a ele Sucede o contraacuterio vejo o quase-ponto que era (antes antes de

antes antes de antes de antes etc) como sendo exactamente o mesmo que era antes e o mesmo que

haacute-de ser ainda a seguir (e a seguir de a seguir etc etc) Soacute para dar mais alguns exemplos da conste-

laccedilatildeo de determinaccedilotildees envolvidas na fixaccedilatildeo de um quase-ponto como aquele de que aqui se trata

tambeacutem eacute decisiva na sua fixaccedilatildeo a atribuiccedilatildeo do estatuto de realidade puacuteblica directamente testemu-

nhada por um nuacutemero indefinido de sujeitos e natildeo apenas por mim ndash e isto de tal modo que estaacute na in-

161

O que importa eacute ter presente como essa multiplicidade de determinaccedilotildees e teses estatildeo

de facto implicadas no quase-ponto do caixilho da janela e satildeo na formulaccedilatildeo a que acaba-

mos de recorrer ldquoingredientesrdquo disso E isto de tal modo que se suprimir ou negar qualquer

uma destas determinaccedilotildees ou se passarmos a nossa perspectiva para uma posiccedilatildeo neutra a seu

respeito (se tirarmos ao quase-ponto do caixilho da janela uma uacutenica determinaccedilatildeo ndash a cor

branca a coesatildeo a resistecircncia a posiccedilatildeo no espaccedilo a posiccedilatildeo no tempo as suas caracteriacutesti-

cas de mobilidade a sua pertenccedila agrave unidade colectiva de determinaccedilotildees que eacute o caixilho a du-

raccedilatildeo a identidade diacroacutenica o caraacutecter puacuteblico a existecircncia independente etc ndash ou se natildeo

negar nenhuma destas determinaccedilotildees e teses mas se passar a ter uma perspectiva aberta sobre

a sua presenccedila ou ausecircncia) o quase-ponto do caixilho da janela passa a aparecer com uma

conformaccedilatildeo significativamente diferente

Ora se eacute assim por outro lado o que caracteriza o nosso contacto habitual (o nosso

contacto imediato etc) com o quase-ponto do caixilho da janela eacute o facto de natildeo se ter qual-

quer consciecircncia de cada um destes factores de determinaccedilatildeo (ie de ver segundo eles com

eles de ter um olhar moldado por eles etc mas sem os ver a eles mesmos antes soacute o resulta-

do da sua intervenccedilatildeo)

tersecccedilatildeo dessa multidatildeo de olhares que podem comungar sem qualquer dificuldade no acesso a ele e

o tecircm todos apesar da sua diferenccedila entre si como algo de perfeitamente idecircntico Quando escrevo a

respeito do quase-ponto eacute precisamente isto que pressuponho Mas esta pressuposiccedilatildeo natildeo se constitui

apenas porque ao escrever entro em contacto mais directo com a presenccedila de outrem Sucede antes

que este caraacutecter puacuteblico jaacute costuma estar atribuiacutedo sem mais agraves realidades do tipo do caixilho da ja-

nela Soacute para mencionar ainda mais um elemento igualmente decisivo e que estaacute relacionado com este

que acabamos de ver a forma como aparece o quase-ponto do caixilho da janela encerra tambeacutem em si

a vigecircncia de uma tese sobre o caraacutecter independente dessa realidade ndash sobre o facto de ela estar aiacute a

ocorrer mesmo que ningueacutem a testemunhe e natildeo haja qualquer apresentaccedilatildeo dela Por outras palavras

o quase-ponto do caixilho da janela aparece espontaneamente como uma realidade independente ndash e

esta tese eacute uma tese profundamente enraizada que resiste se a tentarmos pocircr em causa Vendo bem a

proacutepria tese assim constituiacuteda tem um caraacutecter complexo envolve uma multiplicidade de elementos

Por uma parte ela supotildee alguma compreensatildeo de que o quase-ponto do caixilho e o seu aparecimento

natildeo satildeo bem a mesma coisa que aquilo que tenho quando tenho o quase-ponto da superfiacutecie do caixi-

lho envolve ao mesmo tempo o proacuteprio quase-ponto em causa mas tambeacutem algo que natildeo estaacute implica-

do nele que se lhe acha acrescentado ou lhe eacute sobreveniente o acontecimento de isso aparecer (um

aparecer a mim ou a quem quer que seja) Por outra parte a tese em causa envolve a ideia da total irre-

dutibilidade do quase-ponto do caixilho ao seu aparecimento a decidida recusa do esse = percipi a

evidecircncia de que ldquoestaacute laacuterdquo (tem por forccedila de estar laacute natildeo eacute possiacutevel que natildeo esteja laacute) mesmo que

ningueacutem saiba dele (e que eacute esse estar laacute sc o conteuacutedo ou o teor desse estar laacute independentemente de

ser sabido ou natildeo que eacute sabido em qualquer saber dele)

162

Tocamos aqui uma segunda componente fundamental do fenoacutemeno da confusatildeo e do

deficit de acuidade que estaacute no seu centro

A confusatildeo natildeo consiste apenas no deficit quantitativo a que primeiramente fizemos

referecircncia Passa tambeacutem ndash e passa essencialmente ndash por esta segunda modalidade pela inad-

vertecircncia em relaccedilatildeo agrave multiplicidade de determinaccedilotildees e teses que conformam o proacuteprio

teor daquilo que nos aparece

Tambeacutem aqui o fenoacutemeno da confusatildeo estaacute ligado agrave dupla composiccedilatildeo da acuidade

(sc do deficit de acuidade) que acima procuraacutemos pocircr em evidecircncia

Com efeito natildeo se trata soacute de as determinaccedilotildees e teses que intervecircm na fixaccedilatildeo do teor

daquilo que nos aparece natildeo estarem discriminadas no seu aparecimento ndash mas antes fundi-

das sumidas como que apagadas no seu resultado conjunto

Na verdade tudo passa tambeacutem pelo facto de a nossa relaccedilatildeo com o teor daquilo que

nos aparece ldquoembarcarrdquo nessa fusatildeo (nessa ldquoperda de vistardquo nesse ldquoapagamentordquo etc) Ou

dito de outro modo tudo passa por termos em relaccedilatildeo ao teor do que nos aparece uma rela-

ccedilatildeo distraiacuteda que natildeo cura de discriminar que determinaccedilotildees e teses estatildeo implicadas na sua

fixaccedilatildeo

Mesmo que isso possa passar despercebido a perspectiva que assim se introduz tem

qualquer coisa de anaacutelogo agrave abertura de uma caixa de Pandora

Pois o que assim se desenha natildeo eacute apenas que aquilo que habitualmente de forma

inexpliacutecita e distraiacuteda ndash mas nem por isso menos decidida ndash vale como sendo o nec plus ultra

da acuidade (um nec plus ultra com que nos relacionamos de cada vez que para apurar me-

lhor as caracteriacutesticas do que quer que seja procuramos passar a ter a seu respeito o tipo de

percepccedilatildeo que corresponde agraves superfiacutecies expostas proacuteximas) de facto natildeo eacute o nec plus ultra

de acuidade que parecia ser mas para aleacutem disso tambeacutem nem sequer sabemos a que distacircn-

cia eacute que esse nec plus ultra ldquodestronadordquo fica do que efectivamente corresponderaacute a um nec

plus ultra

Vejamos um pouco melhor o que isso significa

Por um lado significa que todo o aparecer do que quer que seja que aparece agrave nossa

volta eacute relativo a um regime de acuidade (a uma determinada ldquoafinaccedilatildeordquo ou ldquosintonizaccedilatildeordquo de

acuidade) que consente alternativa

163

Mas por outro lado porque natildeo se sabe a distacircncia a que o nec plus ultra ldquodestro-

nadordquo fica de um efectivo nec pluc ultra tambeacutem natildeo se sabe que transformaccedilotildees eacute que po-

dem ocorrer no caminho que vai do nec pluc ultra destronado agravequilo que corresponde a um

efectivo nec pluc ultra

Por outras palavras o regime de acuidade que estaacute instalado no nosso modo de ver e

que condiciona toda a nossa experiecircncia natildeo eacute apenas um regime que consente alternativa de

facto eacute um regime que consente alternativas (no plural) ndash sem que se tenha noccedilatildeo de quantas

satildeo as alternativas a que margem de transformaccedilatildeo correspondem etc

Tendemos a achar que a) se haacute aparecimento e b) se o aparecimento tem a forma da

ἐμπειρία ou da experiecircncia forccedilosamente corresponderaacute mais ou menos agravequilo com que esta-

mos familiarizados O que procuraacutemos pocircr em evidecircncia indica que natildeo eacute de modo nenhum

assim

A forma da experiecircncia (o excesso sobre a mera αἴσθησις e a mera μνήμη constituiacutedo

nos moldes que focaacutemos na primeira parte desta investigaccedilatildeo) pode dar lugar a aparecimen-

tos muito diferentes ndash a quadros de experiecircncia muito diversos uns dos outros e que abrem se

assim se pode dizer para ldquomundosrdquo que tecircm muito pouco que ver uns com os outros (de tal

modo que aqueles que estatildeo familiarizados com um desses ldquomundosrdquo se sentiriam completa-

mente perdidos e ficariam inteiramente estupefactos nos outros)

Para ganharmos plena consciecircncia da medida em que eacute assim tomemos como ponto

de partida a perspectiva desenhada por Pascal no sect199 dos Penseacutees

Interessa-nos em particular o passo em que Pascal fala da possibilidade de haver den-

tro do espaccedilo daquilo que nos parece ser um ldquoaacutetomordquo nada menos que algo correspondente

ao que estaacute em causa no conceito de ldquomundordquo ndash e de por outro lado haver ainda dentro da-

quilo que em relaccedilatildeo a esse ldquomundordquo tem o caraacutecter de um ldquoaacutetomordquo nada menos do que algo

correspondente agravequilo para que aponta o conceito de ldquomundordquo (e assim sucessivamente)49

49

ldquoJe veux lui faire voir lagrave-dedans un abicircme nouveau Je lui veux peindre non seulement lunivers visi-

ble mais limmensiteacute quon peut concevoir de la nature dans lenceinte de ce raccourci datome quil y

voie une infiniteacute dunivers dont chacun a son firmament ses planegravetes sa terre en la mecircme proportion

que le monde visible dans cette terre des animaux et enfin des cirons dans lesquels il retrouvera ce

que les premiers ont donneacute et trouvant encore dans les autres la mecircme chose sans fin et sans repos

quil se perdra dans ces merveilles aussi eacutetonnantes dans leur petitesse que les autres par leur eacutetendue

car qui nadmirera que notre corps qui tantocirct neacutetait pas perceptible dans lunivers imperceptible lui-

164

A primeira coisa que importa ter presente a este respeito eacute que Pascal estaacute a pocircr em fo-

co que o nosso regime de fixaccedilatildeo das dimensotildees das coisas no espaccedilo tem uma pretensatildeo de

validade absoluta que eacute claramente abusiva

Se o aumento das dimensotildees aparentes de um objecto tem que ver com uma diminui-

ccedilatildeo da distacircncia que nos separa dele isso eacute visto como uma aproximaccedilatildeo agrave dimensatildeo real do

objecto Pelo contraacuterio se esse aumento de dimensatildeo natildeo estaacute acompanhado por diminuiccedilatildeo

de distacircncia ao objecto isso jaacute eacute percebido como uma ampliaccedilatildeo (como o empreacutestimo de uma

dimensatildeo que natildeo estaacute laacute que eacute criada artificialmente ndash como numa lupa num microscoacutepio

etc)

Nessa medida a dimensatildeo com que as coisas se apresentam em posiccedilatildeo de proximida-

de eacute percebida como sendo a sua dimensatildeo absoluta ndash e todo o aumento em relaccedilatildeo a ela eacute

compreendido como um aumento irreal

Sucede que este regime converte indevidamente uma limitaccedilatildeo contingente (uma limi-

taccedilatildeo nossa) ndash a incapacidade de alterar naturalmente o regime de resoluccedilatildeo oacuteptica por outro

meio que natildeo seja a variaccedilatildeo da distacircncia e a impossibilidade de prolongar o aumento da di-

mensatildeo aparente dos objectos para laacute do limite da proximidade maacutexima ndash em algo de absolu-

to

Vendo bem aquilo que fazem os instrumentos oacutepticos (lupas microscoacutepios etc) eacute

exactamente o mesmo que habitualmente tem lugar em noacutes por via da alteraccedilatildeo da distacircncia

uma modificaccedilatildeo do regime de resoluccedilatildeo oacuteptica E um objecto ampliado natildeo eacute um objecto su-

jeito a um outro processo que natildeo aquele mesmo que ocorre quando dele nos aproximamos e

ele como que se expande e passa a ter uma dimensatildeo aparente maior

A este primeiro aspecto vem juntar-se um segundo tambeacutem posto em evidecircncia por

Pascal e que eacute o seguinte natildeo acontece apenas que o que haacute onde nos aparece um quase-pon-

to possa ter grandes dimensotildees e na verdade ateacute as dimensotildees de qualquer coisa como um

ldquomundordquo (de tal modo que nesse sentido a visatildeo proacutexima eacute uma ldquovisatildeo agrave distacircnciardquo com

uma extraordinaacuteria margem de ldquocondensaccedilatildeordquo e ldquoabreviaturardquo) para aleacutem disso acontece

tambeacutem que natildeo se sabe qual a amplitude desta condensaccedilatildeo ou desta abreviatura (ie a que

distacircncia se estaacute de um regime de apresentaccedilatildeo que deixe de envolver perda sumariaccedilatildeo re-

duccedilatildeo etc) no acompanhamento que se faz dos domiacutenios de realidade sobre que incide

mecircme dans le sein du tout soit agrave preacutesent un colosse un monde ou plutocirct un tout agrave leacutegard du neacuteant ougrave

lon ne peut arriverrdquo (Pascal Penseacutees sect199)

165

Eacute isso que Pascal exprime quando fala de ldquoaacutetomosrdquo que encerram ldquomundosrdquo cujos

ldquoaacutetomosrdquo por sua vez tambeacutem encerram ldquomundosrdquo e chama a atenccedilatildeo para a sucessiva alte-

raccedilatildeo deste nexo ou desta conversatildeo do ldquoaacutetomordquo em ldquomundordquo50

A este segundo aspecto vem juntar-se por outro lado um terceiro de que Pascal natildeo

fala no sect199 dos Penseacutees mas que corresponde a algo jaacute anteriormente referido

Como vimos a captaccedilatildeo perceptiva pode variar quanto aos seus limiares e tambeacutem

quanto agraves determinaccedilotildees a que eacute sensiacutevel Quer dizer a percepccedilatildeo pode ter ldquoredesrdquo com uma

malha mais larga ou mais apertada

Tendemos a conceber esta possibilidade de variaccedilatildeo por defeito em relaccedilatildeo a quadros

de determinaccedilotildees com que estamos familiarizados Mas observou-se que a variaccedilatildeo tambeacutem eacute

possiacutevel na direcccedilatildeo inversa porque as determinaccedilotildees a que somos sensiacuteveis natildeo esgotam o

horizonte da percepccedilatildeo possiacutevel porque haacute mais possibilidades de percepccedilatildeo do que aquelas

que estatildeo exploradas no nosso caso porque haacute determinaccedilotildees muito diferentes daquelas que

se acham contempladas no alfabeto de determinaccedilotildees em que estaacute escrito o αἰσθάνεσθαι ndash e

portanto tambeacutem a μνήμη e a ἐμπειρία ndash que forma o nosso ponto de vista

Ora quando concebemos esta possibilidade toda a nossa inclinaccedilatildeo espontacircnea eacute para

a conceber como correspondendo a uma margem como que residual

Ou seja tendemos a conceber qualquer coisa de pequena amplitude completando aqui

e ali o espectro do que se acha coberto pelo aparecimento que costuma ter lugar em noacutes Mas

a verdade eacute que semelhante limitaccedilatildeo da amplitude do que assim poderaacute estar a ser deixado de

fora na apresentaccedilatildeo que temos natildeo possui nenhuma base real

De facto pode acontecer que tambeacutem no plano qualitativo se assim se pode dizer as

relaccedilotildees de forccedilas entre o que entra e o que eacute deixado de fora no acesso de que costumamos

dispor sejam justamente as inversas Ou seja tambeacutem se pode dar algo de equivalente agravequilo

que o sect199 foca no plano qualitativo mundos de determinaccedilotildees onde nos aparece algo relati-

vamente simples

50

Para totalmente sermos fieacuteis ao texto teriacuteamos de fazer notar que Pascal fala de uma ldquoprossecuccedilatildeo

infinitardquo e de procurar determinar o que eacute que isso implicaria o que quereria dizer etc No entanto pa-

ra o que aqui estaacute em causa basta sublinhar o caraacutecter indeterminado e indefinido dessa abertura de

ldquoabismosrdquo de dimensatildeo no que pareceria jaacute pelo menos proacuteximo de ser simples e portanto desprovido

de dimensatildeo

166

E isto de tal modo que tambeacutem nesta ldquoreacuteplica qualitativardquo do que se acha focado no

sect199 dos Penseacutees de Pascal haacute uma indeterminaccedilatildeo anaacuteloga agravequilo para que Pascal chama a

atenccedilatildeo naquele fragmento em uacuteltima anaacutelise natildeo se sabe qual eacute a margem de perda (a que

distacircncia se estaacute do que corresponderaacute agrave total supressatildeo de qualquer perda a que distacircncia

se estaacute ter um regime de apresentaccedilatildeo efectivamente proporcionado agravequilo que haacute etc)

Este raacutepido bosquejo cria condiccedilotildees para se perceber ainda um outro aspecto ndashaquele

aspecto que mais propriamente corresponde agrave questatildeo da acuidade tal como a procuraacutemos pocircr

em evidecircncia

Tanto no sect199 (quer dizer no que diz respeito aos aspectos quantitativos) quanto na-

quilo a que chamaacutemos a ldquoreacuteplica qualitativardquo do sect199 o que estaacute em causa eacute a relaccedilatildeo entre o

que temos apresentado e o que se acha deixado de fora naquilo que noacutes temos apresentado

As duas versotildees ndash quantitativa e qualitativa ndash da possibilidade de explosatildeo para que Pascal

aponta datildeo uma medida da extraordinaacuteria margem de variaccedilatildeo que pode haver no campo da

experiecircncia mesmo que a experiecircncia incida exactamente sobre o ldquomesmordquo campo de realida-

de

Poreacutem o que estaacute em causa no fenoacutemeno da acuidade ndash e o que estaacute em causa no fenoacute-

meno da confusatildeo ndash natildeo eacute bem isto

Na versatildeo ndash tanto quantitativa quanto qualitativa ndash do Gedankenexperiment de Pascal

o modelo eacute um modelo de incompletude marcado por qualquer coisa como uma alternativa

simples entre inclusatildeo e exclusatildeo umas coisas entram no aparecimento ou na ldquorepresentaccedilatildeordquo

que temos outras natildeo Mas o fenoacutemeno da variaccedilatildeo da acuidade e o fenoacutemeno da confusatildeo

apontam para outra coisa bastante diferente o que temos pode estar constituiacutedo de tal modo

que a) ele proacuteprio remete para algo mas b) natildeo chega a seguir isso mesmo para que remete

de sorte que c) isso para que jaacute remete lhe escapa

Trata-se de uma forma muito peculiar de cegueira a cegueira em relaccedilatildeo a algo de

que jaacute se tem alguma apresentaccedilatildeo ndash uma cegueira que vem da frouxidatildeo na relaccedilatildeo que jaacute se

tem com algo

O que assim se desenha eacute diferente tanto do que estaacute em causa no sect199 quanto do que

estaacute em causa na sua reacuteplica qualitativa Pois trata-se de qualquer coisa como um abismo in-

terior ao proacuteprio acontecimento da apresentaccedilatildeo que por natildeo se acompanhar bem a si mes-

167

mo (por opacidade na sua relaccedilatildeo consigo mesmo e com aquilo que dele faz parte) deixa de

fora isso mesmo que o constitui (sc a sua proacutepria composiccedilatildeo)51

sect23

O desdobramento da experiecircncia em dois planos a superfiacutecie e a profundidade da expe-

riecircncia (Kant) ndash Pascal e ldquolrsquoautomaterdquo

O que acabamos de ver potildee-nos na pista de um outro factor de configuraccedilatildeo da expe-

riecircncia ndash e portanto tambeacutem da variaccedilatildeo do que aparece em resultado das projecccedilotildees empiacuteri-

cas

Este outro factor tem que ver com aquilo a que Kant chama ldquoBathos der Erfahrungrdquo

(ldquoprofundidade da experiecircnciardquo) e tem que ver em especial a) com a diferenccedila entre expe-

riecircncia com ldquoprofundidaderdquo e experiecircncia sem ldquoprofundidaderdquo e b) com a diferenccedila entre as

vaacuterias formas como pode haver algo de correspondente ao conceito de ldquoprofundidade da expe-

riecircnciardquo52

51

Em diversos textos Kant exprime este estado de coisas e fala dele em termos que potildeem em destaque

a sua semelhanccedila com aquilo que encontramos desenhado no sect 199 Diz por exemplo na Anthropolo-

gie Mrongovius AA XXV 1221 bdquoDie MenschenSeele ist am meisten mit dunklen Vorstellungen be-

schaftigt (sic) und diese sind auch der Grund zu den klaren Vorstellungen () Sie spielen eine so gro-

szlige Rolle in den Handlungen der MenschenSeele daszlig wenn sich ein Mensch all dieser Vorstellungen

auf einmal bewuszligt werden koumlnte er uumlber den Vorrath derselben erstaunen moumlchte() Cf tambeacutem

por exemplo Menschenkunde AA XXV 868 bdquoDie dunklen Vorstellungen machen den groumlszligten Theil

der menschlichen Vorstellungen aus und wenn sich ein Mensch aller Vorstellungen bewuszligt werden

koumlnnte die wirklich in seinem Gemuumlthe liegen die aber nur bei Gelegenheit hervortreten so wuumlrde er

sich fuumlr eine Art von Gottheit halten und uumlber seinen eigenen Geist erstaunen denn er hat keinen Be-

griff von einem Wesen von so ungeheurer Erkentniszlig als er selbst hatldquo Veja-se ainda Refl 176 AA

XV 65 Refl 1482 AA XV 665 Anthropologie Busolt AA XXV 1440 Metaphysik Mrongovius

AA XXIX 879 Anthropologie in pragmatischer Hinsicht AA VII 135f Metaphysik L1 AA XXVIII

52 ldquoHohe Thuumlrme und die ihnen aumlhnliche metaphysisch groszlige Maumlnner um welche beide gemeiniglich

viel Wind ist sind nicht fuumlr mich Mein Platz ist das fruchtbare Bathos der Erfahrung und das Wort

transcendental dessen so vielfaumlltig von mir angezeigte Bedeutung vom Recensenten nicht einmal ge-

faszligt worden (so fluumlchtig hat er alles angesehen) bedeutet nicht etwas das uumlber alle Erfahrung hinaus-

geht sondern was vor ihr (a priori) zwar vorhergeht aber doch zu nichts mehrerem bestimmt ist als

lediglich Erfahrungserkenntniszlig moumlglich zu machenrdquo (in Prolegomena Ediccedilatildeo da Academia vol IV

168

Vejamos mesmo que soacute num breve esboccedilo o complexo de fenoacutemenos para que tudo

isto aponta

A tendecircncia que costuma dominar a nossa compreensatildeo de como se acha constituiacutedo o

aparecimento em que damos connosco (e tanto quer dizer tambeacutem de como se acha constituiacute-

da toda a experiecircncia) passa por entender tudo como se o aparecimento fosse uacutenica e exclusi-

vamente constituiacutedo por componentes declarados e natildeo houvesse nele nada que natildeo esteja agrave

mostra

Natildeo se pode excluir o cabimento de algo constituiacutedo deste modo (e isso quer dizer

tambeacutem de uma experiecircncia constituiacuteda desse modo) Mas importa ter presente que por um

lado o aparecimento e o fenoacutemeno da experiecircncia em que nos achamos constituiacutedos natildeo tem

nada que ver com um aparecimento inteiramente transparente para si mesmo e a que natildeo es-

capa nada da sua proacutepria composiccedilatildeo e por outro lado que se efectivamente haacute a possibili-

dade de acontecimentos de acesso constituiacutedos desse modo noacutes na verdade natildeo fazemos a

menor ideia do que isso seja pois o acesso natildeo estaacute constituiacutedo em noacutes desse modo

Agrave primeira vista natildeo parece ser assim

Estamos tomados por uma forte impressatildeo de contacto imediato e franco com a proacute-

pria composiccedilatildeo do aparecimento em que nos temos E isto ao ponto de parecer difiacutecil admitir

que possa haver qualquer significativa margem de opacidade neste domiacutenio

Ora que importa perceber que essa impressatildeo de acesso imediato e irrestrito eacute ilusoacute-

ria

O que nos aparece estaacute cunhado e moldado por uma multiplicidade muito ampla de

momentos de fixaccedilatildeo (quer dizer por uma multiplicidade muito ampla de diferentes mo-

mentos de representaccedilatildeo) de que natildeo temos consciecircncia A impressatildeo de acesso irrestrito a

tudo o que estaacute implicado no ndash ou compotildee o ndash aparecimento que temos vem justamente do ca-

raacutecter inconspiacutecuo dos elementos de profundidade (ie vem de estarmos de tal modo ldquopresosrdquo

agrave superfiacutecie fechados numa visatildeo da superfiacutecie etc) que natildeo temos sequer noccedilatildeo de que haja

qualquer profundidade (de que a superfiacutecie seja apenas isso a superfiacutecie do aparecimento e

de que haja o que quer que seja para laacute dela)

p 373) Aquilo a que se procederaacute de seguida seraacute uma anaacutelise abreviada Para mais ver Carvalho

MJ Profundidade da experiecircncia (Kant) In Razatildeo e Liberdade Homenagem a Manuel Joseacute do

Carmo Ferreira Lisboa 2010 vol II paacutegs 1113-1151

169

Acontece que como vimos por exemplo na anaacutelise da multiplicidade de determinaccedilotildees

que afectam cada momento mesmo o mais simples do que temos apresentado eacute como que a

resultante de um sistema de forccedilas (quer dizer neste caso de um sistema de diversas re-

presentaccedilotildees) que determinam essa resultante e o que acontece eacute que em regra soacute nos aparece

a proacutepria resultante (como se fosse tudo) e natildeo a multiplicidade das forccedilas que a constituem

de que ela eacute a experiecircncia Nesse sentido o proacuteprio aparecimento enquanto tal tem o caraacutecter

de qualquer coisa como um icebergue de que habitualmente aparece soacute a ponta

A isto tudo acresce um outro aspecto que foi claramente posto em evidecircncia nas anaacuteli-

ses do fenoacutemeno da confusatildeo por aqueles que mais detidamente se bateram com ele (por

exemplo aquelas que foram levadas a cabo por Leibniz ou Kant)

Quando falamos de superfiacutecie e profundidade este modo de falar pode sugerir que se

trata de qualquer coisa como uma simples alternativa um autaut constituiacutedo de tal modo que

soacute haacute por assim dizer dois planos ou dois niacuteveis ndash e nada mais

Vendo bem natildeo eacute necessariamente assim ndash e de facto natildeo eacute assim no aparecimento em

que nos achamos constituiacutedos e no processo de formaccedilatildeo da experiecircncia que ocorre em noacutes

De facto tambeacutem pode acontecer ndash e acontece connosco ndash que o proacuteprio domiacutenio da

profundidade esteja organizado numa multiplicidade de niacuteveis cada vez mais profundos A

diferenccedila de niacutevel de profundidade aqui em causa passa por aquilo que foi posto em evidecircncia

na referida tradiccedilatildeo ndash e que eacute o seguinte

Pode muito bem acontecer que a resultante com que lidamos agrave superfiacutecie do que nos

aparece radique num complexo de representaccedilotildees (chamemos-lhe A B C D E e F) mas de

tal modo que cada uma destas representaccedilotildees tenha por sua vez um caraacutecter tal que tambeacutem

equivale agrave resultante de outro complexo de representaccedilotildees (chamemos-lhe α β γ δ em rela-

ccedilatildeo a A e κ λ μ ν ο em relaccedilatildeo a B etc)

O ponto decisivo eacute que natildeo haacute apenas um uacutenico nexo entre ldquosistema de forccedilasrdquo e resul-

tante mas qualquer coisa como a iteraccedilatildeo deste nexo ndash porque algumas das forccedilas do sistema

natildeo satildeo simples tecircm um caraacutecter intrinsecamente complexo e podem tambeacutem elas sair do

seu ldquoanonimatordquo lograr algum reconhecimento etc sem que isso implique tambeacutem a ldquodesa-

nonimizaccedilatildeordquo das forccedilas (ie do complexo de representaccedilotildees impliacutecitas) que as compotildeem

Eacute por isso que aqui falamos de niacuteveis de profundidade (no plural)

Mas por outro lado isto natildeo eacute tudo

170

O que estaacute em causa natildeo eacute apenas a iteraccedilatildeo mas tambeacutem a reiteraccedilatildeo deste nexo ndash de

tal modo que algo semelhante se pode passar de novo com o segundo niacutevel de maior profundi-

dade (e com um terceiro um quarto etc)

Sendo assim a questatildeo eacute a de saber em cada campo de aparecimento constituiacutedo deste

modo com elementos submersos ateacute onde se estende a profundidade ndash onde se encontra o

fundo (quer dizer a que distacircncia a superfiacutecie fica desse fundo submerso e que margem de

transformaccedilatildeo teria de ocorrer para que o submerso deixasse de se manter submerso e a

apresentaccedilatildeo passasse a ser totalmente transparente para si mesma)

Isto significa globalmente uma extraordinaacuteria alteraccedilatildeo das dimensotildees que pode ter

um acontecimento de acesso (de aparecimento de representaccedilatildeo etc)

Tendemos espontaneamente a achar que a dimensatildeo de um acontecimento de apresen-

taccedilatildeo ou acesso (e tanto quer dizer tambeacutem a dimensatildeo de um campo de experiecircncia) depen-

de da sua extensatildeo declarada ndash da amplitude do que se acha escancarado nele Contudo o que

aqui se comeccedila a desenhar eacute que natildeo eacute propriamente assim

Na verdade a dimensatildeo de um acontecimento de acesso ou de aparecer tambeacutem passa

pela inclusatildeo ou natildeo inclusatildeo de uma profundidade de uma componente submersa etc e

passa pela amplitude (ie pelo niacutevel de profundidade) desta componente submersa

Em certo sentido o campo do que se tem de forma declarada eacute equivalente a qualquer

coisa como uma multiplicidade bidimensional enquanto os elementos submersos correspon-

dem a qualquer coisa como uma ldquoterceira dimensatildeordquo ndash ao salto geomeacutetrico ou agrave explosatildeo geo-

meacutetrica da terceira dimensatildeo E ao contraacuterio do que pode parecer uma mancha de apareci-

mento declarado com dimensotildees relativamente modestas pode ser a resultante de uma profun-

didade da experiecircncia muito difiacutecil de sondar e na verdade com extraordinaacuterias dimensotildees

Tambeacutem aqui podemos de novo recorrer agrave figura da abertura de uma caixa de Pandora

Com efeito esta possibilidade significa natildeo apenas que pode haver puncta caeca no

proacuteprio terreno do que nos aparece no proacuteprio curso do aparecer enquanto tal mas que o ter-

reno do que aparece pode estar integralmente dobrado natildeo apenas por puncta caeca e ateacute por

uma multiplicidade de puncta caeca para cada ldquopontordquo declarado mas tambeacutem por uma

multiplicidade de niacuteveis de puncta caeca que fazem corresponder a cada ponto declarado

uma multiplicidade como que tridimensional de pressupostos inexpliacutecitos (submersos cada

vez mais profundos de que cada ponto declarado eacute a resultante etc)

171

A questatildeo eacute entatildeo a de saber o que eacute que este contraste entre duas possibilidades de

constituiccedilatildeo do aparecimento tem que ver com contrastes na forma de organizaccedilatildeo da expe-

riecircncia

Aparentemente mesmo que aconteccedila que um campo de aparecimento esteja constituiacute-

do com profundidade (sobre a base de componentes submersas etc) isso natildeo se parece re-

flectir nos processos de projecccedilatildeo empiacuterica que nele tecircm lugar

Isto eacute a um primeiro olhar (a um olhar desatento) a experiecircncia tem lugar justamente

agrave superfiacutecie e natildeo eacute senatildeo um fenoacutemeno de superfiacutecie Neste sentido a experiecircncia tem como

base αἰσθήσεις declaradas (e tem como base αἰσθήσεις declaradas mesmo que estas uacuteltimas ra-

diquem em qualquer coisa como um βάθος no sentido que Kant daacute a este termo)

Ora acontece que de facto as coisas natildeo se passam necessariamente assim

Com efeito ainda que a base das projecccedilotildees empiacutericas sejam αἰσθήσεις que se produ-

zem de forma declarada ndash ou melhor μνῆμαι que se produzem de forma declarada ndash esse ca-

raacutecter declarado da base da projecccedilatildeo empiacuterica natildeo significa necessariamente que a projecccedilatildeo

empiacuterica tambeacutem tenha de decorrer com um caraacutecter declarado no terreno daquilo a que cha-

maacutemos o terreno da resultante ndash agrave superfiacutecie do que nos aparece

De facto nem sequer acontece que a proacutepria μνήμη (ou melhor as proacuteprias μνῆμαι τοῦ

αὐτοῦ πράγματος que constituem a base da ἐμπειρία) tenha enquanto constitui o terminus a

quo da ἐμπειρία de ter um caraacutecter declarado expliacutecito etc

Por um lado pode muito bem acontecer que mesmo enquanto αἰσθήσεις estejam nu-

ma posiccedilatildeo apagada tal que natildeo se chega a dar por elas sem que isso impeccedila a sua traduccedilatildeo

em μνήμη Por outro lado mesmo que as αἰσθήσεις que datildeo origem agraves μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγ-

ματος tenham tido lugar de forma expressa declarada etc isso natildeo significa que as corres-

pondentes μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος tambeacutem tenham de ter o mesmo tipo de presenccedila ex-

pressa

Finalmente ndash e este eacute talvez o ponto decisivo ndash tatildeo-pouco acontece que a proacutepria cons-

tituiccedilatildeo da ἐμπειρία soacute possa ocorrer em ldquoterreno descobertordquo

Isto quer dizer ao mesmo tempo duas coisas

Em primeiro lugar a operaccedilatildeo de transgressatildeo do dado de projecccedilatildeo de um estado-de-

coisas-permanente etc ndash a proacutepria τοῦ ὁμοίου μετάβασις que estaacute no fulcro da ἐμπειρία ndash natildeo

172

precisa de se processar de forma consciente declarada tambeacutem pode acontecer de modo taacuteci-

to sem que se decirc por isso

O mesmo vale tambeacutem para o resultado dessa projecccedilatildeo ndash para os proacuteprios estados-de-

coisas-permanentes (quer dizer para as leis ou pseudo-leis empiacutericas e para as realidades que

elas ldquopotildeem aiacuterdquo) Tambeacutem isso pode muito bem ter um caraacutecter taacutecito inexpliacutecito ndash ldquoestar aiacuterdquo

sem que a sua presenccedila tenha o que quer que seja de declarado e possa ser directamente en-

contrado no ldquoconteuacutedo expressordquo do que nos aparece

Na verdade este eacute o ponto decisivo os estados de coisas permanentes que constituem

o terminus ad quem da ἐμπειρία (o que a ἐμπειρία constitui aquilo em que depotildee o seu resul-

tado etc) natildeo precisam de estar constituiacutedos e presentes de forma expressa Para ldquoestarem aiacuterdquo

ndash e para estarem a afectar a nossa perspectiva ndash basta que estejam presentes em co-apresenta-

ccedilatildeo inexpliacutecita53

53

Em relaccedilatildeo ao modelo que desenhaacutemos quando falaacutemos de niacuteveis de profundidade mais e menos

profundos a proacutepria composiccedilatildeo da ἐμπειρία ilustra a diferenccedila Por um lado as operaccedilotildees de μετάβα-

σις τοῦ ὁμοίου de projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes etc tecircm o caraacutecter como que de um

sistema de forccedilas em relaccedilatildeo ao qual os estados-de-coisas-permanentes que a ἐμπειρία potildee e que cons-

tituem como vimos o seu correlato desempenham o papel de qualquer coisa como uma resultante

Mas por outro lado o facto de ser assim natildeo significa de maneira nenhuma como acabamos de ver

que o proacuteprio estado-de-coisas-permanentes postos pela projecccedilatildeo empiacuterica tenha de ter uma presenccedila

declarada expressa Tambeacutem eles podem muito bem estar ndash e na sua esmagadora maioria estatildeo ndash

numa posiccedilatildeo de presenccedila inexpliacutecita que afecta a nossa perspectiva sem se dar a conhecer expressa-

mente sem se declarar etc Quer dizer tambeacutem eles estatildeo numa posiccedilatildeo submersa e tambeacutem eles de-

sempenham funccedilotildees de forccedilas integrando um sistema de forccedilas de que aquilo que aparece expressa-

mente no foco temaacutetico constitui a resultante Por outras palavras ao mesmo tempo que satildeo um termi-

nus ad quem ndash resultante de um sistema de forccedilas mais profundas (as operaccedilotildees implicadas na sua

proacutepria constituiccedilatildeo) ndash os estados-de-coisas postos pela ἐμπειρία tambeacutem desempenham as funccedilotildees de

terminus a quo como ponto de partida de uma segunda resultante ndash que eacute aquilo que aparece expres-

samente posto como apresentaccedilatildeo declarada (o que como vimos se caracteriza precisamente por estar

ao mesmo tempo moldado por uma complexiacutessima multiplicidade de estados de coisas permanentes de

raiz empiacuterica) Nesse sentido poderiacuteamos dizer que aquilo que aparece expressamente estaacute moldado a)

por vaacuterias camadas ou estratos de profundidade empiacuterica (vaacuterias camadas ou estratos de excesso so-

bre a μνήμη e trangressatildeo do dado) e tambeacutem b) por uma multiplicidade de factores de determinaccedilatildeo

cada um deles assim constituiacutedo por mais do que uma camada de profundidade Este eacute um ponto par-

ticularmente importante em cada instante o que molda a nossa perspectiva eacute uma multiplicidade com-

vergente de factores de determinaccedilatildeo ndash grande parte dos quais com origem empiacuterica E o patrimoacutenio

de fixaccedilotildees empiacutericas que de cada vez interfere eacute ao mesmo tempo muacuteltiplo e em cada caso constituiacute-

do por diversas camadas (vaacuterios graus de profundidade) Observe-se finalmente que estas camadas

na verdade podem ser mais do que duas Pusemos em evidecircncia que satildeo pelo menos duas porque haacute

173

Assim a cada instante estamos a regular-nos por uma ldquomultidatildeordquo de projecccedilotildees empiacute-

ricas por forccedila das quais temos domesticada a realidade futura a que nos dirigimos e julga-

mos saber que essa realidade futura corresponderaacute no essencial agravequilo que aiacute se encontra no

presente Se natildeo fosse assim (se houvesse um efectivo em-aberto nesta mateacuteria) estariacuteamos

completamente desorientados

Mas sendo assim nada desta ldquomultidatildeordquo de estados-de-coisas-permanentes figura co-

mo conteuacutedo expresso no que me aparece E quando ao chegar convertido em presente uma

parte do futuro a que as projecccedilotildees de estados-de-coisas-permanentes dizem respeito tanto as

projecccedilotildees empiacutericas quanto os estados-de-coisas em causa continuam a encontrar-se em posi-

ccedilatildeo inexpliacutecita ndash e as proacuteprias relaccedilotildees (o ldquocommerciumrdquo as transacccedilotildees etc) entre o conteuacute-

do expresso e as projecccedilotildees empiacutericas satildeo vividas sem que tanto as projecccedilotildees empiacutericas

quanto os estados de coisas permanentes em questatildeo alguma vez cheguem a sair dessa posi-

ccedilatildeo inexpliacutecita em que se encontram

O que estaacute aqui em causa eacute aquilo que Pascal tatildeo bem pocircs em evidecircncia quando vin-

cou que a constituiccedilatildeo de convicccedilatildeo em noacutes (se assim se pode dizer a contracccedilatildeo da nossa

perspectiva na adopccedilatildeo de uma determinada tese) natildeo se produz soacute na forma da inspecccedilatildeo (da

consideraccedilatildeo expressa) mas tambeacutem na forma daquilo a que chamou ldquolrsquoautomaterdquo ndash forma

que se caracteriza precisamente por corresponder a uma fixaccedilatildeo que para se produzir natildeo

carece de qualquer consideraccedilatildeo expressa e pode produzir-se sem qualquer componente de

apresentaccedilatildeo expressa54

pelo menos os dois niacuteveis correspondentes agraves operaccedilotildees constituintes da ἐμπειρία e aos estados-de-coi-

sas-permanentes que formam o respectivo resultado Mas na verdade nada impede que os niacuteveis sejam

em nuacutemero superior pois pode haver projecccedilotildees empiacutericas de segundo terceiro quarto grau etc

montadas sobre a ligaccedilatildeo entre estados-de-coisas-permanentes jaacute de origem empiacuterica (quer dizer em

que as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος jaacute dizem respeito a siacutenteses de diferentes estados-de-coisas-

permanentes ou agrave detecccedilatildeo de afinidade entre estados-de-coisas-permanentes)

54 Natildeo pertence aqui analisar os textos de Pascal e os diversos conceitos que desempenham um papel

na sua descriccedilatildeo do complexo de fenoacutemenos aqui em causa Assinale-se que em alguns fragmentos o

contraste que aqui estaacute em causa (o contraste entre a convicccedilatildeo que se tem de forma considerativa e

aquela que natildeo passa por nenhuma consideraccedilatildeo ou incidecircncia sobre as mateacuterias judicativas de que se

trata) tambeacutem eacute posto em relaccedilatildeo com a oposiccedilatildeo entre instinct e coeur (em que radicam os primeiros

princiacutepios) ou coeur e ldquola raisonrdquo Eacute claro que os conceitos cunhados por Pascal natildeo tecircm exactamente

os mesmos contornos que a diferenccedila entre convicccedilotildees ou teses de natureza inexpliacutecita e convicccedilotildees

ou teses de natureza expliacutecita ndash que eacute aquele que para noacutes aqui tem importacircncia Mas por outro lado eacute

174

Pascal tambeacutem focou o ponto decisivo ao apontar para o facto de as fixaccedilotildees (as con-

tracccedilotildees de convicccedilatildeo) constituiacutedas na esfera de ldquolrsquoautomaterdquo natildeo serem em nada mais fracas

do que aquelas que tecircm lugar na esfera da consideraccedilatildeo ou da apresentaccedilatildeo expressa A haver

alguma diferenccedila de forccedila essa diferenccedila eacute a favor das convicccedilotildees constituiacutedas a tergo ou de

forma inexpliacutecita ndash e natildeo o contraacuterio

Finalmente Pascal tambeacutem potildee no caminho certo quando vinca que o foco de incidecircn-

cia tem em noacutes um calibre ou uma lotaccedilatildeo bastante restrita e soacute pode atentar de cada vez a

um pequeno conjunto de coisas ndash de sorte que o nuacutemero de teses ou de determinaccedilotildees para

que olhamos em consideraccedilatildeo e reconhecimento expliacutecitos eacute sempre muito pouco numeroso

corresponde a um minuacutesculo foco no meio de um maciccedilo de teses e determinaccedilotildees inexpliacuteci-

tas que constitui de cada vez a esmagadora maioria das nossas teses e das determinaccedilotildees

que temos adoptadas ndash uma imensa maioria de teses e determinaccedilotildees sem a qual tambeacutem de-

sapareceria a imensa maioria da realidade que de cada vez temos apresentada55

Por outras palavras se de repente se desvanecesse esse maciccedilo de co-apresentaccedilatildeo in-

expliacutecita e a nossa perspectiva sobre as coisas ficasse reduzida agravequilo que de cada vez figura

expressamente apresentado mudariam fundamentalmente duas coisas 1) o apresentado fica-

tambeacutem claro que o reconhecimento desta uacuteltima e do complexo de fenoacutemenos que aqui resumida-

mente procuraacutemos pocircr em evidecircncia aparece claramente desenhado no texto de Pascal

55 Em uacuteltima anaacutelise eacute isto que estaacute em causa quando Pascal em sect821 contrasta a lentidatildeo da razatildeo e

a rapidez do ldquosentimentrdquo Diz a certo passo ldquoLa raison agit avec lenteur et avec tant de vues sur tant

de principes lesquels il faut quils soient toujours preacutesents quagrave toute heure elle sassoupit ou seacutegare

manque davoir tous ses principes preacutesents Le sentiment nagit pas ainsi il agit en un instant et tou-

jours est precirct agrave agir Il faut donc mettre notre foi dans le sentiment autrement elle sera toujours vacil-

lanterdquo Vendo bem o que estaacute em causa natildeo eacute propriamente uma diferenccedila de velocidades mas a proacute-

pria diferenccedila na forma como se constitui a convicccedilatildeo nos dois casos e o entrave que resulta da exigui-

dade do foco considerativo As operaccedilotildees da ldquoraisonrdquo processam-se por exame ndash requerem a presenccedila

das mateacuterias judicativas no foco temaacutetico Mas porque o foco tem um calibre limitado (ou como tam-

beacutem podemos dizer porque natildeo podemos prestar atenccedilatildeo ao mesmo tempo a mais do que um pequeno

conjunto de coisas) a consideraccedilatildeo ou a inspecccedilatildeo do que quer que seja que pela sua complexidade

exceda o calibre do foco temaacutetico soacute pode ter lugar em sucessatildeo ndash se assim se pode dizer por deslo-

caccedilatildeo do foco como se fosse um cursor que deixa de cobrir A B C e D para passar a cobrir F G H e

I Eacute isso que faz a lentidatildeo da razatildeo O autoacutemato (o sentimento o instinto etc) ndash quer dizer constitui-

ccedilatildeo de convicccedilatildeo atemaacutetica ndash natildeo tem este problema porque natildeo passa pelo foco e natildeo tem o calibre

limitado dele Soacute podemos prestar atenccedilatildeo de cada vez a um pequeniacutessimo nuacutemero de coisas ndash mas a

presenccedila atemaacutetica (o nuacutemero de teses por que a cada vez podemos estar afectados sem lhes prestar-

mos qualquer atenccedilatildeo ou termos qualquer consciecircncia delas) natildeo parece estar limitada por qualquer

restriccedilatildeo

175

ria automaticamente reduzido ou ao campo perceptivo de cada vez presente ou agravequilo que de

cada vez estivesse a ser presentificado ndash e isso converter-se-ia de cada vez em algo absoluto

pois natildeo se teria nada que nos pusesse em contacto com o que quer que fosse para aleacutem disso

2) o proacuteprio campo perceptivo (ou aquilo que de cada vez estivesse a ser presentificado) fica-

ria completamente ldquodespovoadordquo da maior parte das determinaccedilotildees que habitualmente o po-

voam e que soacute satildeo ldquolaacuterdquo postas por co-apresentaccedilotildees inexpliacutecitas Quer dizer nem sequer se

teria o campo perceptivo (ou aquilo que eacute presentificado) na forma a que estamos habituados

ndash desapareceria a maior parte das determinaccedilotildees que os estruturam e estatildeo implicados no re-

conhecimento do seu teor

Para encurtar de razotildees o que importa reter eacute sobretudo que no nosso caso a esmaga-

dora maioria do processo de constituiccedilatildeo da ἐμπειρία e a esmagadora maioria dos seus corre-

latos (do que fica ldquoposto de peacuterdquo por forccedila da ἐμπειρία) se situa justamente no territoacuterio da

presenccedila inexpliacutecita e cairia completamente por terra se a nossa perspectiva ficasse reduzida

agravequilo que de cada vez temos apresentado de forma expressa

Se virmos bem quase tudo aquilo que descrevemos na primeira parte deste estudo

quando analisaacutemos o que eacute a experiecircncia (a forma como ultrapassa a μνήμη transgride o dado

tem que ver com a constituiccedilatildeo de estados de coisas permanentes etc) tem um caraacutecter exclu-

sivamente inexpliacutecito ou atemaacutetico passa-se sem que nos demos conta da sua presenccedila e do

seu teor

Ora mesmo que possa acontecer que ocasionalmente uma parte das projecccedilotildees empiacute-

ricas ou da evidecircncia resultante delas entre no foco e ganhe uma presenccedila de ordem conside-

rativa mesmo aiacute isso soacute se passa de maneira avulsa em relaccedilatildeo a esta ou agravequela tese ndash en-

quanto a maioria das teses empiacutericas continua presente e a actuar de forma perfeitamente im-

pliacutecita ou submersa E se por outro lado se procura contrariar esta tendecircncia e produzir qual-

quer coisa como um ldquorastreiordquo das nossas teses empiacutericas o caraacutecter limitado do foco faz que

ateacute aquelas teses que jaacute passaram pelo foco de incidecircncia e que com isso ganharam uma pre-

senccedila expliacutecita agrave medida que se vai passando agrave consideraccedilatildeo de outras teses voltem a cair na

mesma forma de presenccedila inexpliacutecita a tergo que habitualmente eacute proacutepria da ἐμπειρία

Em suma nem sequer acontece que a presenccedila inexpliacutecita seja para noacutes a forma na-

tural da experiecircncia mas que ainda assim possamos ndash se quisermos ndash mudar isso e converter

o patrimoacutenio da experiecircncia que de cada vez temos constituiacutedo num patrimoacutenio expresso

176

Sucede exactamente o contraacuterio em noacutes haacute um nexo indissoluacutevel entre a experiecircncia

e a presenccedila inexpliacutecita Nunca conseguimos alterar este estado de coisas ndash estamos se assim

se pode dizer ldquoprisioneirosrdquo dele Nesse sentido a experiecircncia que tem lugar no nosso ponto

de vista eacute essencialmente confusa no sentido teacutecnico do termo

Importa contudo ter presente que se eacute assim connosco isso de modo nenhum signifi-

ca que toda a experiecircncia tenha obrigatoriamente de ser constituiacuteda deste modo

De facto natildeo eacute necessariamente assim Acontece eacute que um campo de experiecircncia

constiuiacutedo de forma inteiramente declarada (expressa com integral consciecircncia de todos os

seus passos e de todos os estados de coisas permanentes ndash de todas as leis ndash que tecircm lugar ne-

le etc) eacute algo muito diferente de um campo de experiecircncia maciccedilamente constituiacutedo de ma-

neira inexpliacutecita

De resto para que a diferenccedila seja muito grande nem sequer eacute preciso que o patrimoacute-

nio empiacuterico seja inteiramente expresso ou declarado basta que o ldquocalibrerdquo ou a ldquolotaccedilatildeordquo do

foco de incidecircncia sejam significativamente maiores do que sucede no nosso caso permitindo

que pelo menos uma significativa parte da experiecircncia ou das projecccedilotildees empiacutericas se desen-

volva de forma declarada e que o seu resultado esteja presente tambeacutem de forma declarada

Para se ter alguma ideia da amplitude da diferenccedila natildeo eacute preciso mais do que ter pre-

sente que uma grande parte da forccedila da ἐμπειρία tal como tem lugar em noacutes proveacutem de natildeo

se ter nenhuma consciecircncia de como se acha constituiacuteda de qual a sua base real da transgres-

satildeo em que consiste etc

Quer dizer a aparente solidez das fixaccedilotildees empiacutericas radica em grande parte no facto

de se estar deposto no seu resultado (na ldquoresultanterdquo) e de natildeo se ter qualquer consciecircncia do

sistema de forccedilas que a desencadeia O simples facto de um ponto de vista empiacuterico ter plena

consciecircncia de que o eacute (ter plena consciecircncia dos seus proacuteprios passos etc) torna-o muito

menos soacutelido (muito menos firmemente implantado e ldquoindiscutiacutevelrdquo) Neste caso a falta de

transparecircncia (o aparecer apenas a ldquosuperfiacutecierdquo do aparecimento em que estamos constituiacutedos

ndash e natildeo a sua ldquoprofundidaderdquo) eacute uma condiccedilatildeo importante da proacutepria estabilidade da ἐμπειρία

pois contribui decisivamente para que o ponto de vista empiacuterico natildeo se decirc conta de que de

facto ldquovive muito acima das suas possibilidadesrdquo

Em suma tambeacutem neste aspecto a experiecircncia tal como tem lugar em noacutes correspon-

de apenas a uma das modalidades de experiecircncia possiacutevel Tanto quanto se consegue determi-

nar natildeo teria forccedilosamente de ser assim como se passa connosco Ou seja tambeacutem neste as-

177

pecto o que conhecemos natildeo eacute a expriecircncia tout court mas antes qualquer coisa como uma

contracccedilatildeo

sect24

Diversos modelos possiacuteveis de organizaccedilatildeo da multiplicidade das determinaccedilotildees nexos de

coordenaccedilatildeo nexos de subordinaccedilatildeo regimes mistos e suas implicaccedilotildees

A experiecircncia que tem lugar em noacutes tambeacutem estaacute determinada pela conformaccedilatildeo de

um outro aspecto que a molda de tal modo que sem a conformaccedilatildeo deste outro aspecto (sc

com outra conformaccedilatildeo dele) seria bastante diferente

Este outro aspecto que interessa agora considerar tem que ver com o facto de haver di-

versos modelos possiacuteveis de organizaccedilatildeo da multiplicidade das determinaccedilotildees

Natildeo cabe aqui fazer um inventaacuterio exaustivo dos diversos modelos possiacuteveis mas inte-

ressa que fiquem claros alguns aspectos formais desta relaccedilatildeo

Em primeiro lugar aquilo a que se alude quando se fala de organizaccedilatildeo da multiplici-

dade das determinaccedilotildees eacute um certo sentido da noccedilatildeo de ldquocomposiccedilatildeordquo que estaacute implicado na

proacutepria etimologia do termo mas de que se pode ndash e tende a ndash perder o rasto

A noccedilatildeo de ldquocomposiccedilatildeordquo remete originalmente para a co-posiccedilatildeo dos componentes

(dos que constituem integram ou tomam lugar no composto dos associados dos elementos

que concorrem que se potildeem ou satildeo postos em conjunto etc) Isto eacute a ldquoco-posiccedilatildeordquo alude agrave

sincronia das determinaccedilotildees ndash ao facto de as determinaccedilotildees coincidirem no mesmo conjunto

(fazerem parte dele ao mesmo tempo etc)

Em segundo lugar o que isto quer dizer eacute que a relaccedilatildeo entre as determinaccedilotildees natildeo eacute

uma relaccedilatildeo de mera contiguidade (de mera vizinhanccedila adjacecircncia etc) Poderia dar-se o ca-

so de a ligaccedilatildeo entre as determinaccedilotildees corresponder meramente a uma justaposiccedilatildeo ndash de tal

modo que se mantivessem perfeitamente alheias umas agraves outras Mas de facto natildeo eacute isso que

se passa

Na verdade a relaccedilatildeo entre as diversas determinaccedilotildees eacute uma relaccedilatildeo de conjunccedilatildeo ndash

ie as determinaccedilotildees afectam-se (intrometem-se umas nas outras estatildeo em relaccedilatildeo umas com

178

as outras etc) Vendo bem esse entretecimento das determinaccedilotildees eacute universal a todas as de-

terminaccedilotildees que compotildeem aquilo que nos aparece as determinaccedilotildees afectam-se mutuamente

(sustentam como dizia a tradiccedilatildeo qualquer coisa como um commercium ndash ou como tambeacutem

podemos dizer determinam-se umas agraves outras interferem umas com as outras etc)

Visto isto interessa que fiquem claros dois pontos quanto agrave natureza da relaccedilatildeo das

determinaccedilotildees

Em primeiro lugar haacute vaacuterias possibilidades de conformaccedilatildeo da experiecircncia porque

haacute vaacuterias possibilidades de organizaccedilatildeo da multiplicidade que aparece

Vaacuterios aspectos disso jaacute foram tocados nas anaacutelises que precedem Tratar-se-aacute agora

de considerar em especial um aspecto que tem que ver com qualquer coisa como relaccedilotildees de

poder na forma como as diferentes componentes da multiplicidade se ligam umas agraves outras e

interferem umas com as outras

Ora essas diferentes relaccedilotildees de forccedila tecircm lugar no entretecimento submerso de que

resulta aquilo que aparece declaradamente Quer dizer produzem-se na esfera da profundida-

de mas tecircm reflexos no plano da superfiacutecie

Assim dois acontecimentos de aparecimento organizados de modo diferente no que

diz respeito a este aspecto que agora procuramos focar natildeo satildeo diferentes apenas quanto agrave tes-

situra que como vimos natildeo aparece exposta satildeo tambeacutem diferentes no que diz respeito agravequi-

lo que tecircm imediatamente apresentado

Em segundo lugar interessa igualmente assinalar que entre si as diversas formas de

organizaccedilatildeo da multiplicidade que aqui estatildeo em causa tanto podem ser alternativas (exclusi-

vas etc) quanto complementares Quer dizer as relaccedilotildees entre as determinaccedilotildees tanto podem

corresponder a um uacutenico modelo de relaccedilatildeo como podem estar associadas pela conjunccedilatildeo

de dois ou mais modelos de organizaccedilatildeo

Por outras palavras pode acontecer a) que um dado acontecimento de acesso esteja to-

do ele organizado por uma uacutenica forma de relaccedilatildeo entre os seus vaacuterios elementos b) que um

outro acontecimento de acesso esteja todo ele organizado por uma outra forma de relaccedilatildeo en-

tre os seus vaacuterios elementos e c) que um terceiro acontecimento de acesso esteja organizado

de forma mista conjugando em si as duas formas de relaccedilatildeo que nos outros dois casos soacute tecircm

lugar como que ldquoem estado purordquo

179

A nossa relaccedilatildeo com as diferentes possibilidades de organizaccedilatildeo dos diferentes mo-

mentos da multiplicidade apresentada eacute bastante limitada pois estamos prisioneiros daquelas

com que temos contacto e temos dificuldade em ldquolibertarrdquo a nossa perspectiva

Isto eacute este eacute um ponto em que estamos como que fechados num ldquocachotrdquo qualitativo

(para usar a formulaccedilatildeo de Pascal no sect199) e natildeo sabemos bem o que se pode passar fora da

nossa cela ndash e ateacute que ponto pode ir o contraste entre esse exterior e aquilo com que estamos

familiarizados

Concentramo-nos por isso em duas formas de organizaccedilatildeo da multiplicidade a que te-

mos acesso directo ndash porque neste aspecto o campo de aparecimento em que damos connos-

co tem um caraacutecter misto Estamos a falar do nexo de coordenaccedilatildeo e do nexo de subordina-

ccedilatildeo

Para o fazer podemos partir daquilo que Kant diz logo na secccedilatildeo I sect2 II da disserta-

ccedilatildeo ldquoDe mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiisrdquo haacute nexos de coordenaccedilatildeo

quando a relaccedilatildeo entre os termos relatos eacute como diz Kant reciacuteproca e homoacutenima56

O caraacutecter reciacuteproco da relaccedilatildeo traduz o facto fundamental de natildeo ser possiacutevel uma re-

laccedilatildeo entre A e B que natildeo seja eo ipso tambeacutem uma relaccedilatildeo entre B e A

Acontece que o facto de a relaccedilatildeo ser reciacuteproca natildeo significa forccedilosamente que tam-

beacutem seja homoacutenima

Quer dizer o facto de a relaccedilatildeo ser reciacuteproca natildeo indica forccedilosamente que A exerccedila

sobre B exactamente o mesmo tipo de condicionamento que B exerce sobre A (ie em simul-

tacircneo o mesmo grau de condicionamento e um condicionamento do mesmo teor)

Ora um nexo de coordenaccedilatildeo distingue-se precisamente pelo facto de como Kant diz

natildeo ser apenas reciacuteproco mas tambeacutem homoacutenimo

No nexo de coordenaccedilatildeo os elementos postos em conexatildeo estatildeo em perfeita paridade

quanto agrave forma como os termos se afectam reciprocamente Em cada direcccedilatildeo de coordena-

ccedilatildeo se assim se pode dizer o nexo eacute exactamente o mesmo nos dois sentidos

Este eacute um ponto decisivo para compreender esta forma de nexo entre os elementos da

multiplicidade

56

In AA Vol II Vorkritische Schriften II 1757-1777 paacutegs 385-420

180

A coordenaccedilatildeo implica que todas as determinaccedilotildees directamente envolvidas tecircm o

mesmo peso na constituiccedilatildeo do complexo que compotildeem As determinaccedilotildees estatildeo por assim

dizer horizontalmente niveladas umas em relaccedilatildeo agraves outras (nenhuma supera as outras tem

precedecircncia sobre as outras etc) e constituem um sistema de forccedilas absolutamente propor-

cionais entre si

Sendo assim tambeacutem os teor das relaccedilotildees entre as diversas determinaccedilotildees natildeo eacute di-

ferenciado Isto eacute as relaccedilotildees entre determinaccedilotildees satildeo neste modelo da mesma iacutendole Haacute

se assim se pode dizer uma completa simetria Em suma as diferenccedilas entre as determina-

ccedilotildees natildeo comportam qualquer variaccedilatildeo da natureza e do grau de influecircncia ou interferecircncia

de umas sobre as outras

Natildeo eacute assim no caso dos nexos de subordinaccedilatildeo No caso da subordinaccedilatildeo a relaccedilatildeo eacute

reciacuteproca mas natildeo eacute homoacutenima

Quer dizer haacute uma assimetria no modo como um dos termos da relaccedilatildeo condiciona o

outro ndash de tal modo que consoante o sentido da relaccedilatildeo (se eacute uma relaccedilatildeo de A para B ou de

B para A) muda o grau e tambeacutem o teor do condicionamento em causa Por outras palavras

na relaccedilatildeo de subordinaccedilatildeo um dos elementos prevalece sobre o outro (actua sobre ele de

forma diferente daquilo que se passa no sentido inverso ndash e de tal modo que por exemplo A eacute

mais marcante de B do que o contraacuterio)

A partir daqui percebe-se melhor o quadro de possibilidade de variaccedilatildeo que assim se

desenha a partir das formas de organizaccedilatildeo da multiplicidade com que noacutes mesmos estamos

familiarizados

Em primeiro lugar pode haver acontecimentos de acesso ou aparecimento com uma

multiplicidade exclusivamente organizada em regime de coordenaccedilatildeo e tambeacutem poderaacute ha-

ver acontecimentos de acesso ou aparecimento com uma multiplicidade exclusivamente orga-

nizada em regime de subordinaccedilatildeo aleacutem disso haacute tambeacutem acontecimentos de acesso ou apa-

recimento constituiacutedos de forma mista conjugando a coordenaccedilatildeo e a subordinaccedilatildeo57

57

Para percebermos melhor o que isto quer dizer consideremos por exemplo o que caracteriza o ne-

xo entre os diferentes elementos daquilo a que chamaacutemos a trama baacutesica de identidade e diferenccedila Os

elementos constitutivos desta trama baacutesica estatildeo sempre acompanhados de forma confusa ndash de tal mo-

do que a estrutura A ne B ne C ne D etc eacute muito mais uma estrutura representada em regime de repre-

sentaccedilatildeo simboacutelica do que algo a que se tenha acesso propriamente intuitivo Mas sendo assim isso

natildeo impede que o nexo entre os elementos desta multiplicidade seja justamente um nexo de coordena-

ccedilatildeo ndash e natildeo um nexo de subordinaccedilatildeo A trama baacutesica de identidades e diferenccedilas natildeo corresponde a

181

Em segundo lugar dentro destes uacuteltimos pode haver variaccedilatildeo determinada por dife-

renccedilas na quota-parte que cabe ao nexo de coordenaccedilatildeo e ao nexo de subordinaccedilatildeo Essa va-

riaccedilatildeo eacute soacute por si caeteris paribus susceptiacutevel de dar lugar a diferenccedilas muito significativas

ndash quer dizer eacute susceptiacutevel de dar lugar a quadros de aparecimento com enormes contrastes en-

tre si

Em terceiro lugar a variaccedilatildeo tambeacutem pode provir de diferenccedilas quanto aos operadores

de subordinaccedilatildeo que entram em funccedilotildees Haacute diversos tipos de nexos de subordinaccedilatildeo e dife-

rentes regimes de aparecimento ndash diferentes conformaccedilotildees do que aparece consoante a) o al-

fabeto de nexos de subordinaccedilatildeo que eacute utilizado (alfabeto que pode ser mais rico ou mais po-

uma pura justaposiccedilatildeo de momentos que natildeo se chegassem a determinar uns aos outros (que estives-

sem soacute determinados por si mesmos ndash cada um por si num regime de exclusiva auto-determinaccedilatildeo

tautoloacutegica) Em uacuteltima anaacutelise natildeo sabemos a que eacute que isso corresponderia ndash temos uma noccedilatildeo me-

ramente apofaacutetica disso Natildeo tal como tem lugar em noacutes a trama baacutesica de identidades e diferenccedilas jaacute

envolve qualquer coisa como um commercium de determinaccedilatildeo reciacuteproca entre as suas componentes

ateacute mesmo porque ndash aleacutem do mais ndash a proacutepria constituiccedilatildeo de cada componente natildeo se faz no absoluto

isolamento de si mas em relaccedilatildeo a outras a que eacute contraposta De tal modo que para o exprimir na lin-

guagem de Platatildeo nenhuma dessas componentes eacute monoeideacutetica e preacute-sinteacutetica sucede antes que to-

das satildeo intrinsecamente sinteacuteticas e intrinsecamente constituiacutedas pela proacutepria relaccedilatildeo de umas com as

outras (a relaccedilatildeo de contraposiccedilatildeo de umas agraves outras) Mas sendo assim o que caracteriza esta consti-

tutiva relaccedilatildeo entre os diferentes momentos da trama baacutesica de identidades e diferenccedilas eacute o caraacutecter

inteiramente reciacuteproco e homoacutenimo da relaccedilatildeo Podemos expressaacute-lo aliaacutes natildeo apenas em relaccedilatildeo ao

nexo entre os diferentes momentos (A B C D E F etc) mas tambeacutem em relaccedilatildeo agraves proacuteprias com-

ponentes formais da trama baacutesica a identidade e a diferenccedila Vendo bem nenhuma delas tem uma po-

siccedilatildeo de ascendente sobre a outra Tal como as representamos supotildeem-se sempre jaacute uma agrave outra a

identidade supotildee a contraposiccedilatildeo ao natildeo-idecircntico e eacute constitutivamente mediada pela representaccedilatildeo da

diferenccedila e o mesmo vale tambeacutem no sentido inverso Em suma cabe aqui algo semelhante agravequilo

que eacute posto em evidecircncia no Sofista de Platatildeo no passo sobre a chamada comunicaccedilatildeo dos geacuteneros

Este mesmo fenoacutemeno permite-nos ao mesmo tempo compreender melhor o que dissemos sobre o ca-

raacutecter misto (simultaneamente marcado por coordenaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo) do que nos aparece Com

efeito a circunstacircncia de ter uma constituiccedilatildeo de natureza coordenativa natildeo impede que a trama baacutesica

de identidades e diferenccedilas seja incorporada (nb constantemente incorporada incorporada absoluta-

mente sem excepccedilatildeo) em nexos de natureza subordinativa Eacute o que sucede por exemplo em relaccedilatildeo agraves

unidades colectivas de determinaccedilotildees que jaacute voltaremos a considerar para melhor percebermos este

ponto Vendo bem a conjugaccedilatildeo entre os dois operadores de conexatildeo eacute mesmo de tal ordem que cada

momento do que temos apresentado (cada momento discerniacutevel da trama baacutesica de identidades e dife-

renccedilas) estaacute ao mesmo tempo envolvido em nexos de coordenaccedilatildeo (numa muito complexa rede de ne-

xos de coordenaccedilatildeo) e em nexos de subordinaccedilatildeo (numa muito complexa rede de nexos de subordina-

ccedilatildeo)

182

bre) e b) a quota-parte que cabe a cada um destes nexos (sc o papel relativo que desempe-

nham na organizaccedilatildeo da multiplicidade do que aparece)

Ora se mantivermos inalterados todos os demais aspectos referidos o quadro de cons-

tituiccedilatildeo da experiecircncia muda radicalmente consoante envolva soacute nexos de coordenaccedilatildeo ou

pelo contraacuterio tambeacutem envolva nexos de subordinaccedilatildeo Mais o quadro de constituiccedilatildeo da

experiecircncia tambeacutem muda muito significativamente em funccedilatildeo da composiccedilatildeo concreta do re-

gime de subordinaccedilatildeo que estiver em vigor

No que vimos anteriormente jaacute haacute indiacutecios de nexos de subordinaccedilatildeo vimos por

exemplo que as muacuteltiplas determinaccedilotildees cruzadas no preenchimento de cada momento do

que nos aparece (as muacuteltiplas determinaccedilotildees cruzadas na fixaccedilatildeo de cada momento da janela)

satildeo como forccedilas de um sistema de forccedilas e tecircm ascendente sobre a resultante

Tudo isto eacute de grande importacircncia para a constituiccedilatildeo da ἐμπειρία porque potildee na pista

da possibilidade de tambeacutem as projecccedilotildees empiacutericas estarem organizadas destas duas formas

(coordenaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo) ndash e na verdade com diferentes regimes de subordinaccedilatildeo entre

elas

Isto eacute por um lado pode acontecer que todas as projecccedilotildees empiacutericas estejam ligadas

por nexos de coordenaccedilatildeo ndash e apenas por coordenaccedilatildeo pode acontecer que uma parte delas

esteja associada por nexos de coordenaccedilatildeo mas que outra parte dos nexos entre projecccedilotildees

empiacutericas envolva subordinaccedilatildeo finalmente tambeacutem natildeo estaacute excluiacutedo que possa haver mul-

tiplicidades de projecccedilotildees empiacutericas constituiacutedas de tal modo que entre elas soacute haja nexos de

subordinaccedilatildeo

Natildeo cabe aqui analisar todas estas possibilidades e determinar a que eacute que poderaacute cor-

responder cada uma delas Mas importa ter presente que em princiacutepio a ἐμπειρία pode estar

organizada destes diversos modos ndash e tambeacutem que os quadros de subordinaccedilatildeo susceptiacuteveis

de determinarem a ligaccedilatildeo entre as diversas projecccedilotildees empiacutericas podem variar muito signi-

ficativamente (dando assim lugar a resultados ndash isto eacute a ldquoexperiecircnciasrdquo ndash muito significati-

vamente diferentes)

Para se perceber o que estaacute aqui em jogo importa exemplificar ndash importa considerar

concretamente que nexos de subordinaccedilatildeo pode haver e como a sua interferecircncia muda efecti-

vamente o panorama daquilo que se nos apresenta

183

Um primeiro exemplo tem que ver com a proacutepria organizaccedilatildeo do que nos aparece em

unidades colectivas de determinaccedilotildees postas sob o ascendente de nuacutecleos de determinaccedilatildeo de

identidade

Como vimos se perguntarmos o que nos rodeia natildeo comeccedilamos por uma ponta qual-

quer e identificamos por exemplo um primeiro momento de branco um segundo momento

de branco um terceiro momento de branco e assim sucessivamente (como numa travessia

ldquopontilhistardquo) Estamos sempre jaacute rodeados por unidades colectivas de determinaccedilotildees pare-

des estantes cadeiras (ou num percurso mais atento este livro aquele livro etc)

Mas sendo assim se considerarmos cada uma destas unidades verificamos que cada

uma eacute ao mesmo tempo constituiacuteda por uma trama baacutesica de multiplicidade (este momento

aquele momento mais aquele etc) e por um nuacutecleo de determinaccedilatildeo intrinsecamente sinteacuteti-

ca que natildeo se limita a juntar-se agraves outras no mesmo regime de justaposiccedilatildeo em que se acham

umas em relaccedilatildeo agraves outras antes tem a capacidade de as integrar na sua proacutepria identidade ndash

de tal modo que ficam justamente convertidas em momentos dela Tudo isto jaacute foi visto ndash o

que agora se trata de pocircr em relevo eacute como isto envolve a entrada em cena de nexos de subor-

dinaccedilatildeo

Em uacuteltima anaacutelise cada um dos momentos integrados difere tanto da identidade co-

lectiva em que fica integrado quantos dos outros momentos que tambeacutem se integram nela E

por outro lado havendo uma integraccedilatildeo dos diversos momentos na identidade colectiva da

ldquocoisardquo isso significa um nexo que afecta tanto cada momento (pondo-o em relaccedilatildeo com a

identidade colectiva) quanto a proacutepria identidade colectiva (pondo-a em relaccedilatildeo com cada

um dos momentos) Nesse sentido a teia de relaccedilotildees envolvida na constituiccedilatildeo de uma ldquocoi-

sardquo (de uma unidade colectiva de determinaccedilotildees) eacute uma teia de nexos reciacuteprocos

Mas por outro lado vendo bem os nexos em causa natildeo satildeo homoacutenimos Haacute algo que

quebra essa ldquosimetriardquo e faz que tal como nos aparece por exemplo numa caneta vermelha o

nexo entre a caneta e o vermelho tenha um caraacutecter tal que ndash como muitas vezes se formulou

nos tratados de loacutegica ndash seja o vermelho que eacute da caneta e natildeo a caneta que eacute do vermelho

Quer dizer haacute qualquer coisa sempre jaacute ldquodecididamenterdquo posta na forma como as uni-

dades colectivas de determinaccedilatildeo (as ldquocoisasrdquo) nos aparecem e em virtude da qual os nexos

que perpassam a multiplicidade das respectivas determinaccedilotildees na sua relaccedilatildeo com a unidade

em que se acham organizadas envolvem prevalecircncia ou ascendente do nuacutecleo de identidade

colectiva sobre as determinaccedilotildees nela integradas

184

Assim se considerarmos por exemplo uma matildeo cada um dos momentos da sua su-

perfiacutecie tem uma identidade proacutepria cuja diferenccedila em relaccedilatildeo aos outros faz a proacutepria multi-

plicidade sem a qual a proacutepria superfiacutecie em causa se desfaria por completo

Contudo vendo bem cada um desses momentos perdeu a sua identidade absoluta (ou

melhor natildeo estaacute definido nem apenas nem fundamentalmente por ela) A instacircncia identitaacuteria

fundamental (aquilo que fundamentalmente define a identidade de cada momento da palma da

matildeo) estaacute transferida para a proacutepria determinaccedilatildeo colectiva matildeo (M) De sorte que a identi-

dade ou cada momento da palma da matildeo tem se assim se pode dizer a forma M1 M2 M3

M4 etc E o fundamental desta forma de fixaccedilatildeo da identidade eacute justamente a prevalecircncia de

M sobre 1 ou 2 ndash ie a forma como 1 ou 2 aparece como contracccedilatildeo ou determinaccedilatildeo de M

fundamentalmente definida por M (e natildeo por si proacutepria pela sua identidade absoluta 1 ou 2)

Tudo isto jaacute nos potildee na pista de um estado-de-coisas de que eacute indispensaacutevel ter clara

consciecircncia a presenccedila destes nexos de subordinaccedilatildeo (e natildeo apenas de coordenaccedilatildeo) natildeo

ocorre apenas em ldquobolsasrdquo ou domiacutenios circunscritos Na verdade tem lugar por toda a parte

do ldquotecidordquo daquilo que temos apresentado

Sem que disso tenhamos aguda consciecircncia todas as unidades colectivas que nos apa-

recem (todas as ldquocoisasrdquo tudo o que aparece etc) estatildeo montadas sobre nexos de subordina-

ccedilatildeo desta ordem De tal modo que se natildeo houvesse nexos de subordinaccedilatildeo (ou se os nexos de

subordinaccedilatildeo natildeo fossem deste tipo) o campo do que nos aparece teria uma conformaccedilatildeo

muito diferente (e a experiecircncia que nele teria lugar seria tambeacutem uma experiecircncia muito di-

ferente)

Quer dizer nesse caso natildeo sucederia aquilo que eacute essencial na experiecircncia com que es-

tamos familiarizados ela envolver sempre a projecccedilatildeo desta estrutura fundamental ndash que por

assim dizer a acompanha sempre de tal modo que todas as determinaccedilotildees projectadas satildeo

projectadas com esta estrutura e no quadro dela Ou dito de outro modo o que caracteriza

essa experiecircncia eacute o facto de tanto no seu terminus a quo quanto no seu terminus ad quem do-

minar justamente esta peculiar ldquomatrizrdquo de nexos de subordinaccedilatildeo

Ora apesar de tudo este nexo de subordinaccedilatildeo entre a determinaccedilatildeo unificante e as

restantes determinaccedilotildees poderia ser o uacutenico nexo de subordinaccedilatildeo entre as muacuteltiplas determi-

naccedilotildees que compotildeem uma unidade colectiva

Ou seja poderia muito bem dar-se o caso de a relaccedilatildeo entre as determinaccedilotildees subordi-

nadas (ie entre todas as outras determinaccedilotildees excluindo a determinaccedilatildeo unificante) ser uma

185

relaccedilatildeo de pura coordenaccedilatildeo Nesse sentido as restantes determinaccedilotildees seriam entre si igual-

mente subordinadas agrave determinaccedilatildeo unificante ndash de tal modo que entre si estariam horizon-

talmente niveladas (teriam o mesmo peso constituiriam o mesmo tipo de relaccedilotildees etc)

Acontece que natildeo eacute assim

As muacuteltiplas determinaccedilotildees de que eacute composta uma unidade colectiva natildeo tecircm todas o

mesmo peso nem estatildeo associadas por relaccedilotildees do mesmo tipo Quer dizer pode acontecer (e

acontece) que uma dada determinaccedilatildeo da coisa ndash chamemos-lhe A ndash natildeo estaacute em relaccedilatildeo com

B com C D E etc da mesma forma que B C D E etc estatildeo em relaccedilatildeo com A Haacute uma

enorme variaccedilatildeo quanto ao peso das determinaccedilotildees e quanto agrave relaccedilatildeo que sustentam entre

si

Dito por outras palavras natildeo haacute apenas subordinaccedilatildeo do conjunto de determinaccedilotildees

em relaccedilatildeo agrave determinaccedilatildeo unificante Vendo bem as determinaccedilotildees subordinadas ao nuacutecleo

da identidade da coisa estatildeo associadas por nexos que fazem que tambeacutem elas natildeo estejam ho-

rizontalmente niveladas mas sim verticalmente niveladas Quer dizer as diferentes determi-

naccedilotildees subordinadas estatildeo tambeacutem elas associadas numa hierarquia

Notou-se atraacutes que ndash de entre a totalidade de determinaccedilotildees de que eacute constituiacuteda uma

unidade colectiva ndash havia uma determinaccedilatildeo que tal como estaacute constituiacuteda supera todas as

restantes determinaccedilotildees de que a unidade eacute composta A essa determinaccedilatildeo ndash no seguimento

da terminologia da tradiccedilatildeo claacutessica ndash poderia chamar-se ldquoformardquo (a determinaccedilatildeo intriacutenseca-

mente colectiva)

O que entatildeo se viu foi que a ldquoformardquo se impotildee (se sobrepotildee toma precedecircncia etc)

de tal modo que a) todas as outras determinaccedilotildees estatildeo por um lado na sombra da ldquoformardquo

(tecircm uma presenccedila vaga opaca discreta indistinta constituem o fundo etc) e b) satildeo por ou-

tro lado meras determinaccedilotildees predicativas dela (estatildeo ldquosubsumidasrdquo nela satildeo derivadas dela

subordinadas dela etc)

Ora agora estaacute em causa especificamente uma outra possibilidade a saber a possibili-

dade de entre as diferentes determinaccedilotildees cruzadas dessa forma haver natildeo apenas nexos de

coordenaccedilatildeo mas tambeacutem nexos de subordinaccedilatildeo com uma complexa hierarquia de ascen-

dentes

Isto pode acontecer entre outras razotildees porque entre a determinaccedilatildeo colectiva que fi-

xa a identidade de uma coisa e as determinaccedilotildees ldquosimplesrdquo que formam isso a que chamaacutemos

a ldquotrama baacutesicardquo haacute uma multiplicidade de niacuteveis intermeacutedios

186

Esses niacuteveis intermeacutedios caracterizam-se por um lado pela sua subordinaccedilatildeo agrave iden-

tidade da proacutepria coisa ndash por estarem integrados nela postos sob o seu ascendente Mas por

outro lado tambeacutem se caracterizam por exercerem funccedilotildees anaacutelogas em relaccedilatildeo agraves determi-

naccedilotildees mais simples que entram na sua composiccedilatildeo

Quer dizer as instacircncias intermeacutedias de siacutentese que estatildeo envolvidas na constituiccedilatildeo

interna de uma unidade colectiva de determinaccedilotildees tecircm um primado anaacutelogo ao da proacutepria

identidade global da coisa ndash de tal modo que tambeacutem em relaccedilatildeo a elas vale que os seus mo-

mentos perdem a respectiva identidade absoluta e assumem uma identidade subordinada agrave das

instacircncias intermeacutedias Acontece eacute que ao mesmo tempo as instacircncias intermeacutedias tambeacutem

perdem a sua identidade absoluta a favor da identidade da proacutepria unidade colectiva de de-

terminaccedilotildees

O que em suma constitui uma unidade colectiva de determinaccedilotildees (uma ldquocoisardquo) eacute

como que uma cadeia de ldquoabdicaccedilotildeesrdquo da identidade proacutepria uma cadeia de subordinaccedilotildees a

instacircncias sinteacuteticas cada vez mais amplas ndash cadeia de abdicaccedilatildeo ou de subordinaccedilatildeo que tem

o seu termo na identidade da proacutepria ldquocoisardquo Mas isso significa justamente que no proacuteprio

quadro das determinaccedilotildees subordinadas natildeo soacute haacute nexos de subordinaccedilatildeo mas haacute de facto

toda uma cadeia de nexos de subordinaccedilatildeo anaacutelogos agravequeles que se registam entre a identida-

de colectiva da ldquocoisardquo e tudo o mais nela

sect25

A distribuiccedilatildeo das diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees por diferentes planos

de relevacircncia ao longo do campo do que nos aparece ndash O nuacutecleo de importacircncia superlati-

va como aquilo de que fundamentalmente trata o acontecimento de acesso ndash A possibili-

dade de a scala praeligdicamentalis traduzir a forma como estaacute internamente organizada a fi-

xaccedilatildeo do que nos aparece

Para ganharmos alguma perspectiva sobre como pode ser assim podemos comeccedilar por

considerar as relaccedilotildees entre as proacuteprias unidades colectivas de determinaccedilotildees constituiacutedas da

forma que grosseiramente tentaacutemos descrever

187

Poderia acontecer que todas as unidades colectivas de determinaccedilotildees aparecessem me-

ramente coordenadas umas em relaccedilatildeo agraves outras de tal modo que houvesse perfeita ldquoparida-

derdquo entre si (e de tal modo que a ldquosociedaderdquo de unidades colectivas de determinaccedilotildees fosse

inteiramente ldquoigualitaacuteriardquo) Mas isto natildeo eacute assim na forma como as ldquocoisasrdquo nos aparecem

Sucede pelo contraacuterio que haacute unidades colectivas de determinaccedilotildees com funccedilotildees pro-

tagonistas outras com funccedilotildees deuteragonistas outras ainda mais distantes de terem prota-

gonismo ndash isto num ldquocontinuumrdquo muito complexo de gradaccedilotildees de que podemos natildeo estar

cientes mas que nem por isso deixa de ser marcante e mesmo decisivo

De facto o campo do aparecimento (e da experiecircncia) com que estamos em contacto

caracteriza-se pela propriedade de nele estar qualquer coisa em causa (ou seja por se achar

perpassado por tensotildees de natildeo-indiferenccedila) Isso eacute assim em toda a extensatildeo do campo do

aparecimento Na verdade o que varia eacute a intensidade e a relevacircncia do nexo que cada ldquocoi-

sardquo tem com aquilo que estaacute em causa

Quer dizer o que varia eacute precisamente a intensidade e a relevacircncia do nexo que cada

ldquocoisardquo tem com as diversas tensotildees de natildeo-indiferenccedila que dominam o campo de apareci-

mento ndash de tal modo que a maior ou menor importacircncia de cada ldquocoisardquo depende ao mesmo

tempo do tipo de nexo que tem com este ou aquele fluxo das tensotildees de natildeo-indiferenccedila a que

estaacute ligada e da proacutepria relaccedilatildeo de forccedilas entre os diferentes fluxos de natildeo-indiferenccedila

Podemos exprimir tudo isto dizendo que as unidades colectivas de determinaccedilotildees que

nos aparecem a) estatildeo sempre percebidas com atribuiccedilatildeo de posiccedilotildees funcionais em relaccedilatildeo

aquilo que nos importa de tal modo que b) se acham sempre revestidas de um determinado

iacutendice de importacircncia

Em muitos casos esse iacutendice de importacircncia pode corresponder justamente agrave natildeo-atri-

buiccedilatildeo de qualquer relevacircncia (de ser tal que a ldquocoisardquo ou unidade colectiva de determinaccedilotildees

em causa nos aparece como completamente indiferente) Poreacutem isso natildeo significa que natildeo

tem qualquer iacutendice de importacircncia Equivale antes a algo que soacute eacute possiacutevel no quadro de uma

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila orientada de uma determinada forma e que porque estaacute orientada

de uma determinada forma atira para um ldquofundordquo de irrelevacircncia tudo o que natildeo exerce (ou

parece natildeo exercer) quaisquer funccedilotildees significativas a seu respeito

De facto vendo bem o iacutendice de importacircncia natildeo eacute uma determinaccedilatildeo secundaacuteria

com pouco peso Acontece precisamente o contraacuterio o iacutendice de importacircncia eacute um dos princi-

pais e mais decisivos elementos na fixaccedilatildeo da identidade de cada ldquocoisardquo

188

O que estamos a descrever eacute qualquer coisa como um ascendente ndash um nexo de subor-

dinaccedilatildeo ndash desta determinaccedilatildeo o iacutendice de importacircncia sobre pelo menos muitas das outras

Por mais taacutecita que seja a sua presenccedila o iacutendice de importacircncia estaacute sempre ldquolaacuterdquo em cada

ldquocoisardquo (afecta imediatamente o seu aspecto eacute um dos elementos fundamentais por que nos

regulamos etc)

Para percebermos o complexo de fenoacutemenos que aqui estaacute em causa importa pocircr em

relevo alguns aspectos essenciais

O primeiro ponto para que importa chamar a atenccedilatildeo eacute o facto de o iacutendice de impor-

tacircncia natildeo se constituir de forma inteiramente avulsa numa relaccedilatildeo ldquoa soacutesrdquo com cada unida-

de colectiva de determinaccedilotildees A importacircncia tem um caraacutecter intrinsecamente relativo

Por um lado tem que ver com a relaccedilatildeo entre as diferentes coisas que aparecem e as

tensotildees de natildeo-indiferenccedila que percorrem o campo do aparecimento em relaccedilatildeo agraves quais as

diferentes coisas que aparecem tecircm maior ou menor peso Por outro lado este maior ou me-

nor peso que as diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees tecircm potildee-nas numa determi-

nada articulaccedilatildeo umas em relaccedilatildeo agraves outras ndash ou como tambeacutem podemos dizer produz co-

mo que uma distribuiccedilatildeo do que aparece58

Sendo assim tambeacutem importa ter presente um segundo ponto

A distribuiccedilatildeo dos iacutendices de importacircncia natildeo se faz por uma avaliaccedilatildeo de cada uma

das unidades colectivas de determinaccedilatildeo passadas em revista e sopesadas uma por uma Na

verdade se considerarmos o modo como estamos constituiacutedos natildeo haacute habitualmente nenhu-

ma espeacutecie de processo de avaliaccedilatildeo que tenha lugar de forma consciente

Por um lado se virmos bem verificamos que a maior parte das vezes jaacute estaacute estabele-

cido e em vigor um determinado regime de atribuiccedilatildeo de niacuteveis de importacircncia ndash algo a que

podemos chamar uma ldquoordem estabelecidardquo

Se esporadicamente acontece que nos interrogamos sobre a importacircncia de que se re-

veste x ou y isso natildeo soacute acontece esporadicamente como quando acontece natildeo significa de

58

Tambeacutem podemos exprimir isto dizendo que a importacircncia (a variaccedilatildeo dos niacuteveis de importacircncia) daacute

lugar a um fenoacutemeno anaacutelogo agravequele que a Gestalttheorie designou como forma ou fundo O que eacute

mais importante ndash as unidades colectivas de determinaccedilotildees mais importantes ndash ldquochega-se agrave frenterdquo e

tende a exercer funccedilotildees de forma O que eacute menos importante tende a exercer funccedilotildees de fundo E isso

traduz-se portanto numa organizaccedilatildeo do proacuteprio apareci-mento da multiplicidade das coisas natildeo

apenas no modo ou nas propriedades com que aparece cada uma

189

modo nenhum que se esteja a procurar construir de raiz uma ordem de importacircncia A posiccedilatildeo

em que habitualmente damos connosco fica a jusante do estabelecimento de um quadro de im-

portacircncias eacute uma posiccedilatildeo sempre jaacute integrada numa ordem estabelecida na verdade se espo-

radicamente acontece que nos interrogamos sobre a importacircncia de que se reveste x ou y estaacute-

se apenas a procurar determinar a posiccedilatildeo de x ou y dentro de uma ordem jaacute estabelecida

Acresce a este um segundo aspecto que eacute o fundamental

Poderia pensar-se que de todo o modo o estabelecimento dessa ordem de importacircncia

teraacute a forma de qualquer coisa como uma ldquoalfacircndega geral da importacircnciardquo por que tudo o que

nos aparece haacute-de ter passado mesmo que de forma inconsciente no regime daquilo que Pas-

cal chama ldquolrsquoautomaterdquo etc

De facto natildeo eacute assim

A fixaccedilatildeo do valor de importacircncia do que nos aparece tem a forma de identificaccedilatildeo de

um nuacutecleo de coisas que importam porque satildeo objecto da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva

(porque tendemos para elas) ou porque satildeo objecto de uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila negativa

(porque procuramos evitaacute-las) Constitui-se assim o que podemos descrever como uma ldquocla-

reirardquo de importacircncia dentro da qual as diversas unidades colectivas de determinaccedilotildees estatildeo

afectadas por iacutendices de relevacircncia relativamente fortes

Dito de outro modo tudo se passa como se no silecircncio do aparecimento do que nos

aparece estivesse constantemente feita uma pergunta ldquoque eacute que importardquo e a essa pergunta

estivesse tacitamente dada a resposta ldquoimporta x e yrdquo ndash ou melhor ldquoimporta x e mais ainda y e

acima de tudo zrdquo

O facto de onde noacutes estamos estar sempre jaacute em vigor uma resposta com estas caracte-

riacutesticas eacute que constitui aquilo a que chamaacutemos a ldquoclareira de importacircnciardquo A clareira de im-

portacircncia eacute povoada por tudo aquilo que de algum modo figura nessa resposta que temos dada

agrave pergunta ldquoque importardquo ndash e tudo aquilo que natildeo figura nessa resposta fica fora da clareira

de importacircncia

Consideremos um terceiro ponto

Uma clareira de importacircncia pode sugerir que os iacutendices de importacircncia satildeo de facto

um fenoacutemeno de alcance puramente regional que afecta apenas uma parte do que nos apare-

ce Na verdade natildeo eacute assim

190

A constituiccedilatildeo desta clareira estaacute associada a qualquer coisa como um ldquodecretordquo glo-

bal de relegaccedilatildeo de importacircncia que afecta tudo o mais sem qualquer excepccedilatildeo

Quer dizer tudo aquilo que fica fora da ldquoclareira de importacircnciardquo estaacute automatica-

mente marcado por um iacutendice de falta de importacircncia que lhe cabe em sorte por exclusatildeo ndash

ie natildeo faz parte da clareira de importacircncia (conta como ldquofiguranterdquo como uma espeacutecie de

ldquopaisagemrdquo ou de ldquocenaacuteriordquo em relaccedilatildeo agravequilo que efectivamente importa etc)

O caraacutecter global deste ldquodecretordquo ndash que tem a forma de um juiacutezo indefinido ndash faz que

absolutamente tudo (mesmo que seja totalmente desconhecido) esteja marcado por esta pecu-

liar forma de determinaccedilatildeo que se propaga como uma espeacutecie de explosatildeo total a que nada

escapa59

O quarto ponto que interessa reter diz respeito ao facto de a ldquoclareira de importacircnciardquo

ter dimensotildees reduzidas

O facto de a ldquoclareira de importacircnciardquo ter dimensotildees reduzidas natildeo deve ser interpreta-

do como se significasse que as dimensotildees da clareira de importacircncia satildeo pequenas em termos

absolutos ou que a sua composiccedilatildeo eacute relativamente simples

Na verdade a clareira de importacircncia soacute eacute pequena comparativamente pode muito

bem ter uma amplitude bastante grande acontece eacute que essa amplitude grande se apequena

em comparaccedilatildeo com a extensatildeo indefinida daquilo que deixa de fora

E vendo bem a organizaccedilatildeo interna da clareira de importacircncia (a organizaccedilatildeo interna

do complexo dos iacutendices de importacircncia do primeiro tipo) pode ser bastante complexa

59

E assim sucede exactamente o contraacuterio do que agrave primeira vista pode parecer ndash haacute um iacutendice de im-

portacircncia afectando absolutamente todas as unidades colectivas de determinaccedilotildees que nos aparecem

Acontece eacute que na esmagadora maioria dos casos esse iacutendice de importacircncia eacute um iacutendice de falta de

importacircncia ndash um iacutendice de irrelevacircncia que retira peso agravequilo a que eacute aposto Ou dito de outra ma-

neira no modo como estamos constituiacutedos (como estaacute constituiacutedo o aparecimento em que nos temos)

haacute dois tipos muito diferentes de iacutendices de importacircncia aquele que faz pertencer agrave ldquoclareirardquo e aquele

que corresponde agrave exclusatildeo dela A esfera de aplicaccedilatildeo destes dois tipos de iacutendices eacute muito diferente

aquele que tem que ver com a pertenccedila agrave clareira de importacircncia soacute se aplica num nuacutemero comparati-

vamente diminuto de coisas aquele que tem que ver com a falta de importacircncia eacute claramente maioritaacute-

rio e aplica-se a um esmagador maciccedilo (como que a uma periferia indefinidamente extensa) Mas o

facto eacute que apesar desta diferenccedila ndash ou melhor por forccedila dela ndash o fenoacutemeno do iacutendice de importacircncia

eacute absolutamente universal e como dissemos o iacutendice de importacircncia (o iacutendice de atribuiccedilatildeo de algu-

ma importacircncia positiva ou negativa e o iacutendice de relegaccedilatildeo de negaccedilatildeo da importacircncia) desempe-

nham um papel decisivo na definiccedilatildeo do que quer que seja que nos aparece

191

Com efeito tal como se acha constituiacuteda em noacutes a clareira de importacircncia estaacute mar-

cada por uma propriedade fundamental dos iacutendices de importacircncia (tal como funcionam no

nosso caso) ndash uma propriedade que sofre alternativa (e na verdade uma multiplicidade de al-

ternativas de sorte que a sua variaccedilatildeo pode dar lugar a quadros de aparecimento muito dife-

rentes daquele com que estamos familiarizados) a saber a grande complexidade da ldquopaletardquo

de iacutendices de importacircncia que podem afectar aquilo que nos aparece

Poderia acontecer que houvesse por exemplo apenas dois cambiantes ou matizes

(ldquoimportanterdquo e ldquonatildeo importanterdquo) ndash ou a haver mais que fosse uma escala relativamente

simples com poucos intervalos Todavia o que se encontra no nosso caso eacute algo muito dife-

rente disso o que encontramos eacute uma escala muito diferenciada com um elevado cardinal de

niacuteveis (tanto no que diz respeito a cada fluxo de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila quanto no que diz

respeito agrave resultante se assim se pode dizer que decorre de todas elas e da relaccedilotildees de forccedilas

que elas proacuteprias sustentam entre si)

Daqui decorre algo que podemos descrever do seguinte modo o campo do que nos

aparece tem as diferentes unidades colectivas de determinaccedilotildees distribuiacutedas por diferentes

planos de maior ou menor relevacircncia ndash anaacutelogos agravequilo que acontece com a distribuiccedilatildeo tridi-

mensional dos conteuacutedos sensiacuteveis por planos mais ou menos proacuteximos do observador

Por um lado isto significa (como vimos quando falaacutemos de ldquoformardquo e ldquofundordquo no

sentido que os termos adquirem na Gestalttheorie) que umas unidades colectivas ldquoaparecem

muito mais do que outrasrdquo

Mas por outro lado significa tambeacutem que o contraste em causa natildeo eacute pura e simples-

mente um contraste entre ldquoformardquo e rdquofundordquo mas qualquer coisa como uma escala de contras-

tes entre ldquoformardquo e ldquofundordquo (correspondente agrave complexidade dos iacutendices de importacircncia na-

quilo que os torna anaacutelogos a uma multiplicidade ldquotridimensionalrdquo de planos)

Ou seja dentro da clareira de importacircncia as diferenccedilas de peso organizam a totalida-

de do que nos aparece no quadro de uma muito complexa distribuiccedilatildeo em perspectiva ndash numa

projecccedilatildeo como que ldquotri-dimensionalrdquo que faz que as diferentes ldquocoisasrdquo ou unidades colec-

tivas de determinaccedilotildees estejam muito longe de se situarem todas no mesmo plano ndash e na ver-

dade se situem numa muito numerosa multiplicidade de planos

Vejamos um outro ponto

Este ponto tem que ver com o facto de a nossa capacidade de diferenciaccedilatildeo intuitiva

da posiccedilatildeo dos objectos no espaccedilo (a nossa capacidade de os distinguir por diversos planos

192

mais e menos proacuteximos e distantes) ser finita ndash e cessar mesmo muito aqueacutem das distacircncias a

que se situam muitos dos objectos que nos aparecem

Ou seja ateacute um dado intervalo somos capazes de diferenciar e os objectos vistos satildeo

distribuiacutedos por diversos planos A partir de uma determinada distacircncia deixamos de secirc-lo ndash

de tal modo que independentemente da distacircncia a que se situem (e independentemente de es-

sa distacircncia poder ser na verdade incomensuravelmente maior do que o intervalo global den-

tro do qual diferenciamos a posiccedilatildeo) os objectos vatildeo todos para o mesmo plano ndash tal como se

passa na chamada aboacutebada celeste

Ora no que diz respeito aos iacutendices de importacircncia passa-se algo muito semelhante

dentro da ldquoclareira de importacircnciardquo a capacidade de discriminaccedilatildeo eacute elevada ndash e ateacute mesmo

muito elevada

No entanto haacute uma fronteira ndash e a partir da fronteira vai tudo indiscriminadamente

ldquovarridordquo com o mesmo iacutendice de falta de importacircncia De sorte que fora da clareira de im-

portacircncia natildeo haacute contrastes de iacutendice entre as diferentes coisas estaacute tudo no mesmo plano

Aos pontos que jaacute vimos vem agora juntar-se um outro ponto

Uma propriedade decisiva deste complexo de fenoacutemenos eacute a sua estabilidade

Como se acentuou habitualmente nem sequer haacute qualquer ponderaccedilatildeo da importacircncia

(ou falta dela) destas ou daquelas unidades colectivas de determinaccedilotildees o complexo estaacute

montado e tudo corre por aquilo a que Pascal chamava ldquolrsquoautomaterdquo Quando haacute ponderaccedilotildees

elas tendem a dizer respeito a coisas circunscritas ndash quer dizer a pequenos ajustamentos den-

tro de uma morfologia fundamentalmente estaacutevel

Isso natildeo significa que a organizaccedilatildeo dos iacutendices de importacircncia natildeo possa sofrer trans-

formaccedilotildees mais amplas Significa que natildeo tende para transformaccedilotildees mais amplas e que na

ausecircncia de ocorrecircncias extraordinaacuterias este sistema de fixaccedilatildeo dos iacutendices de importacircncia

tem propensatildeo para natildeo contar com a possibilidade da sua revisatildeo e nesse sentido tem pro-

pensatildeo para valer como definitivo

Em suma o nuacutecleo do que eacute para noacutes importante parece impermeaacutevel agrave possibilidade

de vir a ser modificado por algo que natildeo conhece (que ainda natildeo se considerou que estaacute para

laacute da travessia perceptiva que jaacute se fez etc) O que resta (o que natildeo se conhece o que falta

conhecer etc) eacute tido como algo incapaz de introduzir qualquer alteraccedilatildeo significativa no nuacute-

cleo fixado

193

Ora a estabilidade aqui em causa eacute uma propriedade estrutural formal que natildeo estaacute li-

gada a nenhum conteuacutedo especiacutefico (a nenhuma compreensatildeo especiacutefica) e que tende a tornar

mais soacutelida a compreensatildeo que de cada vez estaacute em vigor

Quer dizer mesmo que a dado passo se modifique ndash e ateacute se modifique radicalmente

ndash e ainda que o mapa que resulte dessa modificaccedilatildeo seja um ldquomapardquo novo (ainda que a tota-

lidade das ldquocoisasrdquo passe a estar dominada por uma nova avaliaccedilatildeo do que importa etc) a es-

trutura de estabilizaccedilatildeo que aqui estamos a descrever manteacutem-se intacta Ou seja tambeacutem o

novo ldquomapardquo seraacute marcado pelo caraacutecter de parecer insusceptiacutevel de revisatildeo etc

Mas vejamos ainda um seacutetimo ponto

Atentemos um pouco melhor no que se passa dentro daquilo a que chamaacutemos a ldquocla-

reira de importacircnciardquo Se virmos bem verificamos que a complexidade de que se reveste eacute

ainda maior do que descrevemos

Em primeiro lugar natildeo se trata apenas de uma gradaccedilatildeo muito complexa com muitos

planos Vendo bem haacute um complexo sistema de mediaccedilotildees constituiacutedo de tal modo que umas

coisas satildeo importantes por causa de outras ou por mor de outras

Com efeito a assunccedilatildeo de importacircncia pode produzir-se directamente (porque algo

interfere imediatamente naquilo que para noacutes estaacute fundamentalmente em causa) mas tambeacutem

se pode produzir mediatamente (porque algo eacute relevante em relaccedilatildeo a algo que por sua vez

interfere de forma imediata naquilo que estaacute fundamentalmente em causa)

Isso significa que haacute qualquer coisa como cadeias de relevacircncia constituiacutedas se assim

se pode dizer por irradiaccedilatildeo a partir de um centro como na cadeia de magnetizaccedilatildeo descrita

por Platatildeo no Iacuteon (535e)

Assim o que acontece eacute que de cada vez estaacute identificado o nuacutecleo daquilo que impor-

ta (do que estaacute em causa na proacutepria vida) Essa identificaccedilatildeo de um ldquoem causardquo daacute lugar a) agrave

identificaccedilatildeo daquilo que parece interferir significativamente nesse ldquoem causardquo b) agrave identifi-

caccedilatildeo daquilo que interfere na identificaccedilatildeo daquilo que parece interferir significativamente

nesse ldquoem causardquo e tambeacutem c) agrave identificaccedilatildeo daquilo que interfere significativamente na

identificaccedilatildeo daquilo que interfere na identificaccedilatildeo daquilo que parece interferir significati-

vamente nesse ldquoem causardquo etc

Tambeacutem o poderiacuteamos dizer do seguinte modo em mateacuteria de importacircncia aquilo que

nos aparece acha-se organizado em qualquer coisa como um complexo sistema de orbitaccedilatildeo

194

umas coisas orbitam em torno de outras (satildeo por assim dizer seus ldquosateacutelitesrdquo) o que natildeo im-

pede estes ldquosateacutelitesrdquo de constituiacuterem por sua vez o centro de sistemas de orbitaccedilatildeo menos

centrais (mais perifeacutericos) cujos ldquosateacutelitesrdquo (ou cujas periferias) podem por sua vez consti-

tuir o centro de complexos de orbitaccedilatildeo de terceira quarta quinta potecircncia e assim sucessiva-

mente E isto de tal modo que este tracircnsito daquilo que aqui designaacutemos como o centro para a

periferia corresponde a uma perda de intensidade

Mas esta descriccedilatildeo ainda eacute demasiado simples natildeo daacute conta da extraordinaacuteria comple-

xidade do que efectivamente se passa na forma como vemos as coisas

Se considerarmos a totalidade do que nos aparece verificamos que toda ela participa

deste sistema de ldquoorbitaccedilatildeordquo

Por um lado haacute de cada vez qualquer coisa como um centro um nuacutecleo de importacircn-

cia superlativa que eacute aquilo de que fundamentalmente se trata no acontecimento de acesso

(de manifestaccedilatildeo etc) que cada um de noacutes eacute

Podemos dizer que eacute o ldquoargumentordquo da nossa vida aquilo que nos importa que estaacute

em causa nela Tudo se passa como veremos melhor na continuaccedilatildeo como se se tratasse de

uma ldquopeccedilardquo E tal como numa peccedila haacute algo que estaacute fundamentalmente em causa ndash para usar

a categoria de Aristoacuteteles um nuacutecleo de δέσις60

(em peticcedilatildeo de λύσις) ndash um foco fundamental

de tensatildeo em torno do qual tudo gira

Ora esse nuacutecleo natildeo eacute necessariamente simples mas sim complexo ndash e tambeacutem natildeo

estaacute constituiacutedo de tal modo que os diferentes feixes de tensatildeo que o compotildeem tenham neces-

sariamente a mesma importacircncia ou o mesmo peso (o que em si mesmo jaacute significa uma certa

componente de nexus de subordinaccedilatildeo)

Dito de outro modo os proacuteprios elementos do nuacutecleo (da δέσις nuclear) estatildeo organi-

zados num sistema de orbitaccedilatildeo marcado por diferentes graus de candecircncia Daiacute resulta que

uns satildeo como dissemos ainda mais importantes do que outros

Isso faz que as diferentes ramificaccedilotildees (as diferentes cadeias) anteriormente referidas

fiquem tambeacutem elas globalmente afectadas pelas diferenccedilas de peso que haacute entre os diversos

elementos do nuacutecleo que constituem as suas bases os seus ldquoradicaisrdquo ou os seus pontos de

ldquoinserccedilatildeordquo

60

Cf em especial Poeacutetica 1455b24 e ss

195

O que assim se configura eacute um campo de aparecimento globalmente estruturado por

nexos de subordinaccedilatildeo com uma grande multiplicidade de diferenccedilas de relevo ndash um campo

marcado por variados acidentes ldquocorograacuteficosrdquo contrastes de mais e menos etc

Em suma se tudo o que nos aparece estaacute organizado em unidades colectivas de deter-

minaccedilotildees de modo nenhum sucede que se trate de uma multiplicidade ldquodemocraacuteticardquo ndash de

uma multiplicidade em que cada unidade colectiva de determinaccedilotildees valha tanto quanto

qualquer outra

A ldquosociedaderdquo das unidades colectivas de determinaccedilotildees que nos aparecem tem o ca-

raacutecter de uma multiplicidade centrada em que todos os elementos estatildeo dispostos em posiccedilatildeo

de maior ou menor proximidade em relaccedilatildeo ao centro Mas isto de tal modo que como procu-

raacutemos fazer ver o proacuteprio centro estaacute tambeacutem ele organizado da mesma forma ndash com con-

trastes de mais e de menos com nexos de subordinaccedilatildeo De onde resulta que a distacircncia em

relaccedilatildeo ao que corresponderia a uma ldquosociedaderdquo de unidades colectivas de determinaccedilotildees ar-

ticulada por nexos de coordenaccedilatildeo dificilmente poderia ser maior

Isto ainda estaacute muito longe de ser tudo

Com efeito a afectaccedilatildeo do que aparece por diferentes iacutendices de importacircncia e a distri-

buiccedilatildeo do que aparece por diferentes planos de importacircncia ndash que confere agravequilo que aparece

um relevo tornando-o semelhante a uma multiplicidade bidimensional ndash natildeo se regista apenas

em relaccedilatildeo agraves unidades colectivas de determinaccedilotildees

Na verdade tem tambeacutem lugar dentro de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees e

em relaccedilatildeo agraves diversas determinaccedilotildees que a integram

Este eacute um outro aspecto complementar em relaccedilatildeo agravequele que acabamos de ver ndash e na

verdade natildeo menos complexo Natildeo podemos trataacute-lo detidamente e na verdade temos de fi-

car por uma anaacutelise muito breve que se cinge a uns quantos pontos essenciais

Pode-se falar de qualquer coisa como uma anisotropia de importacircncia dentro de cada

unidade colectiva de determinaccedilotildees desde logo por causa daquilo que vimos em relaccedilatildeo ao as-

cendente que a determinaccedilatildeo nuclear de identidade tem sobre todas as outras determinaccedilotildees

ndash aquele ascendente em virtude do qual eacute a cor e eacute o tamanho que pertence agrave cadeira e natildeo a

cadeira que pertence agrave cor e ao tamanho (ou cada uma destas determinaccedilotildees pertence tanto agraves

outras quanto o inverso)

196

Nesse sentido mesmo que natildeo estejamos habitualmente cientes disso haacute como que

uma hierarquia de subordinaccedilatildeo (e com ela uma hierarquia de importacircncia) entre o nuacutecleo de

fixaccedilatildeo de identidade e as demais determinaccedilotildees de uma unidade colectiva de determinaccedilotildees

Qualquer unidade colectiva de determinaccedilotildees se assemelha a um sistema de gravitaccedilatildeo com

as diferentes determinaccedilotildees (as determinaccedilotildees que pertencem agrave trama baacutesica de identidades e

diferenccedilas) a orbitarem em torno do nuacutecleo da identidade colectiva

Mas por outro lado tambeacutem isto natildeo eacute tudo

Com efeito poderia ser assim mas de tal modo que todas as determinaccedilotildees que assim

assumem uma posiccedilatildeo subordinada dentro de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees esti-

vessem em rigoroso peacute de igualdade umas com as outras Todavia estaacute muito longe de ser as-

sim umas determinaccedilotildees satildeo muito mais marcantes tecircm muito mais peso do que outras

O peso exacto da cadeira em que nos sentamos aquilo que a distingue de outra inteira-

mente igual a composiccedilatildeo da liga de que eacute feita etc satildeo determinaccedilotildees que facilmente reco-

nhecemos como suas ndash tatildeo suas como quaisquer outras que lhe pertencem Mas esse reconhe-

cimento natildeo impede que umas determinaccedilotildees apareccedilam como mais marcantes e relevantes do

que outras

Tocamos aqui uma peculiar estrutura que permite haver aquilo a que chamamos ldquopor-

menoresrdquo

ldquoPormenoresrdquo satildeo justamente determinaccedilotildees integrantes das unidades colectivas de

determinaccedilotildees propriedades delas etc que valem como irrelevantes ndash de tal modo que po-

dem ser desconsideradas natildeo eacute preciso conhececirc-las etc Quer dizer tudo se passa como se

umas propriedades fossem mais propriedades do que outras

Se todas as determinaccedilotildees que entram numa unidade colectiva de determinaccedilotildees tives-

sem o mesmo peso (se natildeo houvesse diferenccedilas na importacircncia atribuiacuteda) natildeo haveria nada de

correspondente ao conceito de ldquopormenorrdquo A existecircncia deste conceito e a sua permanente

aplicaccedilatildeo (mesmo que uma aplicaccedilatildeo taacutecita) na forma como lidamos com toda a espeacutecie de

unidades colectivas de determinaccedilotildees e com muitas das determinaccedilotildees que delas fazem parte

documenta o fenoacutemeno referido

Mais vendo bem isto nem sequer se aplica meramente a determinaccedilotildees avulsas ndash na

verdade vale tambeacutem para partes inteiras das unidades colectivas de determinaccedilotildees Eacute o que

na maior parte das vezes acontece por exemplo com o interior dos corpos opacos

197

Vimos atraacutes que uma das componentes da anisotropia de acuidade passa pela perda de

niacutevel de definiccedilatildeo (e por uma correspondente baixa do niacutevel de exigecircncia de definiccedilatildeo) em re-

laccedilatildeo ao interior dos corpos opacos Mas isso natildeo sucede soacute por si de forma absolutamente

isolada

Isso estaacute intrinsecamente ligado ao facto de a) os interiores dos corpos opacos serem

inexplicitamente co-apresentados mas de tal modo que b) toda esta componente co-apresenta-

da estaacute afectada por um factor de diminuiccedilatildeo do peso ou da relevacircncia e a captaccedilatildeo dos corpos

opacos estaacute marcada por um condicionamento de ascendente das superfiacutecies expostas sobre os

interiores ou por um nexo de subordinaccedilatildeo destas uacuteltimos agraves superfiacutecies que se veecircm (as quais

satildeo utilizdas como chaves para a captaccedilatildeo dos corpos opacos)

Assim haacute como que uma combinaccedilatildeo entre diversos nexos de subordinaccedilatildeo e de hie-

rarquizaccedilatildeo da importacircncia dentro de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees (ou seja

dentro daquilo a que comummente chamamos ldquocoisasrdquo) Tambeacutem neste acircmbito mais restrito

aquilo que nos aparece tem o caraacutecter de qualquer coisa como constelaccedilotildees de determinaccedilotildees

que orbitam em torno de nuacutecleos

Mais ainda tambeacutem neste acircmbito restrito os nexos de subordinaccedilatildeo (a distribuiccedilatildeo

das determinaccedilotildees por posiccedilotildees toacutenicas e por posiccedilotildees aacutetonas) natildeo eacute ldquosimplesrdquo natildeo corres-

ponde apenas a um contraste de dois valores opostos mas a uma multiplicidade mais numero-

sa Pois por um lado os matizes de acentuaccedilatildeo e de natildeo-acentuaccedilatildeo satildeo mais complexos

correspondem a uma paleta diversificada e por outro lado os nexos de ldquoorbitaccedilatildeordquo tambeacutem

satildeo complexos ndash e nada impede que uma determinaccedilatildeo ou complexo de determinaccedilotildees que or-

bita em torno de um nuacutecleo desempenhe por sua vez funccedilotildees de nuacutecleo relativamente outras

(e assim sucessivamente)

Desenha-se assim uma propriedade fundamental da forma como estaacute constituiacutedo o

aparecimento em que nos temos

Em vez de acontecer que a captaccedilatildeo do que aparece esteja feita elemento por elemento

(como teria de acontecer se o nexo entre os diferentes elementos da multiplicidade que apare-

ce fosse de mera coordenaccedilatildeo) sucede pelo contraacuterio que essa captaccedilatildeo se daacute pela conquista

de nuacutecleos e pelo efeito de arrastamento que dada a prevalecircncia ou o ascendente desses nuacute-

cleos sobre aquilo que lhes estaacute subordinado a captaccedilatildeo dos nuacutecleos tem sobre as respecti-

vas periferias

198

Quer dizer a captaccedilatildeo natildeo se faz por um acompanhamento ldquoigualitaacuteriordquo de tudo o que

aparece ndash estaacute concentrada no centro dos ldquosistemas de orbitaccedilatildeordquo a que acima fizemos refe-

recircncia e capta os sateacutelites a partir do domiacutenio que exerce (ou julga exercer) sobre os nuacutecleos

em torno dos quais orbitam E isto de tal modo que podemos falar de qualquer coisa como

uma hierarquia fundamental marcada pelo poder daquilo que eacute hierarquicamente superior so-

bre aquilo que se acha posto na sua dependecircncia

Como vimos isto eacute assim na organizaccedilatildeo global das unidades colectivas de determina-

ccedilotildees que nos aparecem ndash na ldquosociedaderdquo que haacute entre elas Pois tudo estaacute organizado numa

verdadeira rede de centros e periferias um nuacutecleo que tem agrave sua volta uma periferia imediata

ndash que por sua vez faz de centro em relaccedilatildeo a uma periferia mediata que faz de centro em

relaccedilatildeo a uma periferia etc

Mas eacute tambeacutem assim no que diz respeito agrave proacutepria organizaccedilatildeo interna de cada unida-

de colectiva de determinaccedilotildees que tambeacutem tem o caraacutecter de uma constelaccedilatildeo marcada por

nexos de orbitaccedilatildeo na forma que procuraacutemos pocircr em evidecircncia

Pode-se em resumo dizer que a forma da articulaccedilatildeo do diverso na multiplicidade da-

quilo que nos aparece estaacute dominada pela presenccedila de uma verdadeira miriacuteade de nexos de

subordinaccedilatildeo ndash que tudo o que nos aparece estaacute saturado por nexos de subordinaccedilatildeo que o

potildeem como que ldquonos antiacutepodasrdquo de formar uma multiplicidade pura e simplesmente coorde-

nada

Mas tambeacutem isto ainda natildeo eacute tudo

Haacute ainda um outro aspecto sem cuja consideraccedilatildeo a anaacutelise do papel dos nexos de su-

bordinaccedilatildeo ndash a consciecircncia de que aquilo que temos eacute muito diferente de uma multiplicidade

puramente coordenada ndash natildeo apenas fica incompleta mas deixa escapar algo fulcral

Esse outro aspecto que falta considerar tem que ver com um ponto que aqui jaacute referi-

mos mas que agora importa considerar a partir de outro acircngulo o facto de haver natildeo somente

a) determinaccedilotildees comuns mas tambeacutem b) determinaccedilotildees comuns a determinaccedilotildees comuns e

c) determinaccedilotildees comuns a determinaccedilotildees comuns a determinaccedilotildees comuns etc

Quer dizer o outro aspecto que agora importa considerar tem que ver com a scala

praeligdicamentalis Mais propriamente tem que ver com a possibilidade de a scala praeligdica-

mentalis estar sempre jaacute envolvida na proacutepria constituiccedilatildeo daquilo que imediatamente nos

aparece

199

Vejamos um pouco melhor o que isto quer dizer

A verificaccedilatildeo de que o complexo das determinaccedilotildees com que lidamos se presta a ser

articulado em qualquer coisa como uma scala praeligdicamentalis eacute muito menos paciacutefica do

que a determinaccedilatildeo do estatuto e funccedilotildees dessa escala

Pode reconhecer-se que as determinaccedilotildees que entram na composiccedilatildeo do que nos apa-

rece satildeo articulaacuteveis numa scala praeligdicamentalis mas de tal modo que se compreende essa

escala como o resultado de um complexo de operaccedilotildees de natureza abstractiva Essas opera-

ccedilotildees exercem-se sobre a base do que imediatamente nos aparece transformando essa base e

por assim dizer ldquodestilando-ardquo Tudo isto de tal modo que se produzem conteuacutedos que pura e

simplesmente natildeo figuram nem exercem qualquer funccedilatildeo relevante na constituiccedilatildeo da proacutepria

apresentaccedilatildeo imediata Segundo este entendimento tudo o que pertence agrave scala praeligdicamen-

talis resulta de desenvolvimentos supervenientes e facultativos em relaccedilatildeo agrave apariccedilatildeo imediata

(e tanto quer dizer ao terreno em que habitualmente se produz ndash e sobre que incide ndash a expe-

riecircncia)

Mas na verdade tambeacutem pode suceder que a scala praeligdicamentalis tenha uma outra li-

gaccedilatildeo com aquilo que imediatamente nos aparece ou desempenhe um outro papel na sua cons-

tituiccedilatildeo

Com efeito tambeacutem pode acontecer que a scala praeligdicamentalis traduza a proacutepria

forma como estaacute internamente organizada a fixaccedilatildeo do que imediatamente nos aparece Ou

para sermos mais precisos tambeacutem pode acontecer que aquilo que imediatamente nos aparece

se ache formado por qualquer coisa como um desenvolvimento ldquodescendenterdquo da scala praelig-

dicamentalis

Isto eacute tambeacutem pode acontecer que aquilo que imediatamente nos aparece se ache for-

mado por uma multiplicidade de niacuteveis de fixaccedilatildeo que tem a sua raiz nos nuacutecleos com maior

extensatildeo e menor compreensatildeo (que formam por assim dizer o aacutepice da escala) e passa des-

tes niacuteveis universais para niacuteveis de menor extensatildeo e maior compreensatildeo num desenvolvi-

mento que acaba por depor nos estratos mais especiacuteficos (com superlativo grau de compreen-

satildeo e iacutenfimo grau de extensatildeo) que habitualmente preenchem a apresentaccedilatildeo imediata

Eacute isso que se quer dizer com o conceito de desenvolvimento ldquodescendenterdquo da scala

praeligdicamentalis uma disposiccedilatildeo oposta agravequela que corresponde ao entendimento da scala

praeligdicamentalis como um processo ldquoabstractivordquo

200

Neste entendimento dela como um processo abstractivo a escala constitui-se a partir

dos estratos mais especiacuteficos soacute a pouco e pouco vai ascendendo na estrutura arborizada que

a tradiccedilatildeo ilustrou com a figura das chamadas ldquoaacutervores de Porfiacuteriordquo os niacuteveis mais geneacutericos

satildeo os uacuteltimos a serem constituiacutedos

Na possibilidade que aqui estamos a considerar pelo contraacuterio na proacutepria ldquoprofundi-

dade da experiecircnciardquo ndash na ldquoprofundidaderdquo do que sustenta a ldquosuperfiacutecierdquo do que imediata-

mente nos aparece ndash os niacuteveis mais especiacuteficos supotildeem sempre jaacute niacuteveis mais geneacutericos estes

uacuteltimos supotildeem sempre jaacute niacuteveis ainda mais geneacutericos e estes por sua vez em vez de serem

anteriores aos niacuteveis universais supotildeem-nos sempre jaacute como sua base

O que tudo isto quer dizer eacute que pode muito bem acontecer que o proacuteprio complexo de

determinaccedilotildees com que nos aparece aquilo com que nos achamos imediatamente postos em

contacto esteja constituiacutedo pela sobreposiccedilatildeo ndash ou melhor pela sucessiva contracccedilatildeo ndash de ca-

madas de determinaccedilatildeo que partem de fixaccedilotildees mais abrangentes (e na verdade de fixaccedilotildees

com um alcance universa que diz respeito a tudo ou de todo o modo a regiotildees inteiras de

realidade) e sobre essa base produzem sucessivas contracccedilotildees especificantes de que resulta

o niacutevel de determinaccedilatildeo relativamente elevado com que nos aparecem as ldquocoisasrdquo

Vendo bem esse niacutevel natildeo eacute idecircntico em todos os casos

Se por exemplo considerarmos uma rua com que temos grande familiaridade e puser-

mos a presentificaccedilatildeo dessa rua (quando ldquoquase a vemosrdquo ao pensar nela) sobre maior pres-

satildeo de acuidade verificamos que o conteuacutedo das casas natildeo tem um cardinal definido as casas

natildeo tecircm um nuacutemero de andares definido natildeo tecircm precisatildeo quanto agrave sua cor quanto ao nuacuteme-

ro e forma das janelas ou das varandas etc De sorte que na verdade a respectiva presentifi-

caccedilatildeo estaacute retida em fixaccedilotildees geneacutericas de tipos

Isto quer dizer que o niacutevel atinge o seu maacuteximo no campo perceptivo (na esfera das

percepccedilotildees que de cada vez temos) e eacute muito menos preciso e definido no seu exterior

Ora o ponto decisivo eacute que isso parece reflectir justamente que a respectiva composi-

ccedilatildeo se faz por meio de um processo com as caracteriacutesticas indicadas esse processo a) potildee na

base de tudo determinaccedilotildees mais comuns (que estatildeo pressupostas na constituiccedilatildeo de um

maior nuacutemero de determinaccedilotildees derivadas) e b) contrai essas determinaccedilotildees mais comuns

por sucessivas camadas de determinaccedilotildees menos comuns ateacute chegar a um resultado que fica

muito longe das determinaccedilotildees mais comuns mas que de todo o modo c) radica sempre ne-

201

las e d) pode justamente ter avanccedilado mais ou menos nesse processo de contracccedilatildeo ou espe-

cificaccedilatildeo

O que assim acabamos de desenhar num esboccedilo muito grosseiro eacute a possibilidade de

organizaccedilatildeo daquilo que nos aparece que corresponde ao chamado ldquomodelo transcenden-

talrdquo

Natildeo cabe aqui discutir este modelo em grande detalhe ndash nem no que diz respeito agrave sua

pretensatildeo de validade global (e agraves relaccedilotildees que sustenta com o proacuteprio fenoacutemeno da experiecircn-

cia) nem no que diz respeito agraves diferentes formas que pode assumir a sua concepccedilatildeo

O que aqui importa destacar satildeo fundamentalmente dois aspectos

Por um lado este modelo chama a atenccedilatildeo para a possibilidade de aquilo a que Kant

chama ldquoprofundidade da experiecircnciardquo ndash os muacuteltiplos ldquojuiacutezos ocultos da razatildeo comumrdquo que

sustentam a superfiacutecie do que nos aparece ndash estar constituiacutedo numa multiplicidade de estratos

montados se assim se pode dizer uns sobre os outros de tal modo que aquilo que eacute fixado

em alguns deles corresponde agrave contracccedilatildeo do que fica assente nos outros

Tudo isto de tal modo que este nexo de suposiccedilatildeo e contracccedilatildeo (o nexo em virtude do

qual alguns dos juiacutezos repousam sobre a base dos outros e contraem ou especificam o que estaacute

dado por assente neles) eacute um nexo que se repete compondo assim uma multiplicidade de niacute-

veis com cardinal relativamente elevado

Daqui resulta algo que eacute na verdade bastante diferente de uma ldquosociedaderdquo de dife-

rentes juiacutezos coordenados uns aos outros (como parece ser o caso quando verificamos por

exemplo que um qualquer ponto da palma da matildeo depende do sistema de forccedilas correspon-

dente agrave coordenaccedilatildeo entre cor resistecircncia posiccedilatildeo no espaccedilo posiccedilatildeo no tempo tese sobre a

sua existecircncia passada antecipaccedilatildeo de uma continuaccedilatildeo futura tese de identidade diacroacutenica

atribuiccedilatildeo de existecircncia independente atribuiccedilatildeo de existecircncia puacuteblica ndash comummente teste-

munhaacutevel por uma multiplicidade de consciecircncias etc)

Digamos assim o ldquomodelo transcendentalrdquo chama a atenccedilatildeo para a possibilidade de

haver qualquer coisa como nexos de sustentaccedilatildeo entre pelo menos alguns dos elementos que

compotildeem o ldquosistema de forccedilasrdquo de que aquilo que nos aparece (como Kant diz na Anthropo-

logie Friedlaumlnder o ldquoclarordquo)61

eacute resultante

61

Cf AA XXV 479

202

Quer dizer o que estaacute fundamentalmente em causa no modelo transcendental eacute o pro-

tagonismo das determinaccedilotildees mais enraizadas na profundidade da experiecircncia ndash enquanto

estas determinaccedilotildees satildeo ao mesmo tempo aquelas que se caracterizam por um maacuteximo de ex-

tensatildeo e por um miacutenimo de compreensatildeo (mas de tal modo que este miacutenimo de compreensatildeo

eacute aquele que estaacute na base do acreacutescimo de compreensatildeo que caracteriza todas as outras deter-

minaccedilotildees)

Em suma o protagonismo (este ascendente) das determinaccedilotildees mais profundas eacute um

protagonismo exercido ldquona sombrardquo ndash natildeo chama a atenccedilatildeo natildeo se daacute por ele etc mas nem

por isso deixa de ser efectivo

O que assim ganha contornos corresponde a qualquer coisa como uma hierarquia de

niacuteveis cujo nexo eacute justamente um nexo de subordinaccedilatildeo em virtude do qual alguns dos ldquojuiacute-

zos ocultosrdquo funcionam como ldquoalicercesrdquo ou ldquotraves mestrasrdquo em relaccedilatildeo aos outros

A estrutura deste peculiar ldquoedifiacuteciordquo de assentamentos eacute justamente aquela que se acha

desenhada nas ldquoaacutervores de Porfiacuteriordquo haacute fixaccedilotildees fundamentais de que dependem regiotildees

inteiras (ou ateacute a totalidade das outras) haacute fixaccedilotildees derivadas mas que por outro lado satildeo

fundamentais e formam a base de um grande nuacutemero de outras que por sua vez a despeito

do seu caraacutecter duplamente derivado exercem funccedilotildees de sustentaccedilatildeo em relaccedilatildeo a uma

multiplicidade de outras ndash e assim sucessivamente

A partir daqui percebe-se o nexo entre o modelo transcendental e a ideia de profundi-

dade da experiecircncia ndash e muito em especial percebe-se como o modelo transcendental (o re-

conhecimento da estrutura do aparecimento que estaacute em causa neste modelo) confere profun-

didade agrave profundidade da experiecircncia faz desta uacuteltima algo com significativas dimensotildees

No proacuteprio terreno dos ldquojuiacutezos ocultos da razatildeo comumrdquo uma determinaccedilatildeo especiacutefica

(uma tese ou um juiacutezo especiacutefico) natildeo estaacute posta a vigorar soacute por si assenta ela mesma sobre

a vigecircncia de uma determinaccedilatildeo (ou de determinaccedilotildees) mais geneacuterica mais abrangente que

forma uma camada mais profunda E essa determinaccedilatildeo ou tese mais geneacuterica eacute por sua vez

uma determinaccedilatildeo especiacutefica fundada sobre (ou que tem por pressuposto) uma outra determi-

naccedilatildeo geneacuterica que ocupa uma outra camada inferior ndash e assim sucessivamente ateacute se che-

gar agraves determinaccedilotildees de caraacutecter universal (aquelas que dizem respeito a tudo ou de todo o

203

modo a regiotildees inteiras da realidade e constituem o alicerce de todo o edifiacutecio do que apa-

rece)62

62

O que assim se desenha eacute que a ldquoprofundidade da experiecircnciardquo de que acima se falou natildeo eacute rasa

(natildeo constitui um uacutenico plano etc) Isto muda muito significativamente o aspecto da dupla composi-

ccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia que atraacutes se considerou O que antes se disse foi que o apareci-

mento e a experiecircncia se movem em dois planos distintos (a superfiacutecie e a profundidade) Mas essa di-

visatildeo em dois planos era completamente neutra quanto agraves dimensotildees (a extensatildeo a grandeza a ampli-

tude etc) dos dois planos De facto poderia muito bem acontecer que os dois planos fossem similares

quanto agrave grandeza Isto eacute poderia acontecer que a ldquoprofundidade da experiecircnciardquo correspondesse tam-

beacutem como a superfiacutecie a um uacutenico plano (a um uacutenico estrato a um uacutenico niacutevel a uma uacutenica camada

etc) e que fosse nesse uacutenico plano que se situassem todas as determinaccedilotildees ocultas (e que eles es-

tivessem portanto todas niveladas entre si) Contudo aquilo que se desenha agora permite mostrar

que a profundidade da experiecircncia estaacute constituiacuteda em diversos planos (diversos estratos niacuteveis ca-

madas etc) Em suma a profundidade conteacutem profundidades O que tudo isto sugere eacute que pode mui-

to bem suceder que a profundidade seja muito mais extensa que a superfiacutecie Quer dizer pode muito

bem dar-se o caso de a ldquoprofundidade da experiecircnciardquo ser constituiacuteda por um grande nuacutemero de ca-

madas ndash e de sendo assim natildeo se estar na posse da larga maioria dos componentes do aparecimento

e da experiecircncia (e assim tambeacutem da larga maioria dos componentes de cada ldquoobjectordquo de cada ldquocoi-

sardquo que se constitui no campo da experiecircncia etc) componentes que a profundidade manteacutem oculta

O projecto de tornar consciente algo que tende a permanecer inconsciente (de descobrir de pocircr a

descoberto esclarecer ou iluminar o que estaacute obscuro ndash ie os fundamentos da experiecircncia) constitui

vendo bem o cerne do empreendimento analiacutetico kantiano Se natildeo estamos a ver mal o que de facto

Kant leva a cabo natildeo eacute tanto uma tentativa de enriquecimento ou de alargamento do patrimoacutenio que jaacute

temos mas em vez disso eacute uma tentativa de levantamento ou de elucidaccedilatildeo (atraveacutes de meios ou de

meacutetodos arqueoloacutegicos por assim dizer) do patrimoacutenio de que jaacute somos no fundamental constituiacutedos

Mas note-se bem a magnitude do empreendimento kantiano Por um lado as determinaccedilotildees a que se

acede agrave superfiacutecie podem muito bem corresponder apenas a uma iacutenfima parte de um mapa de determi-

naccedilotildees ndash obscuro e muito vasto ndash que permanece oculto Natildeo se trata apenas de em primeiro lugar

identificar focos de obscuridade (constituiacutedos em ldquoacircngulo cegordquo sob uma ilusatildeo de captaccedilatildeo eficaz

etc) e de em segundo lugar os esclarecer ou iluminar (ie de superar os limites do ponto de vista a

cegueira constitutiva etc) para ver de que eacute que satildeo constituiacutedos Na verdade trata-se de fazecirc-lo num

horizonte de que cuja amplitude ndash precisamente na medida em que estaacute por desvendar ndash natildeo temos

qualquer noccedilatildeo Neste caminho de descoberta que Kant nos propotildee poderia muito bem suceder que o

horizonte do que falta desvendar tivesse uma amplitude tal que reduzisse a pouco mais que nada o pla-

no que jaacute estaacute desvendado ndash coisa que alteraria significativamente a relaccedilatildeo de forccedilas entre os dois pla-

nos (de tal modo que o que jaacute estaacute desvendado apareceria a uma outra luz) etc Mais ainda pode mui-

to bem acontecer que aquilo com que aiacute nos deparemos natildeo seja da mesma ordem daquilo que jaacute

conhecemos ndash e isto de tal modo que possa produzir-se uma muito radical transfiguraccedilatildeo (uma muito

radical mudanccedila de estatuto ndash e inclusive uma transfiguraccedilatildeo ou mudanccedila de estatuto que nos ponha

numa rota imprevista ou inesperada e que modifique ndash global e inesperadamente ndash o aspecto de tudo

aquilo que jaacute temos descoberto de tudo o que aparece de tudo o que haacute etc

204

Ora no seguimento disto a pergunta que importa colocar eacute a que passa por saber se o

ldquomodelo transcendentalrdquo natildeo se trata justamente apenas de um modelo (e de facto de um mo-

delo que estaacute longe de ser ldquoliacutequidordquo de ter a sua validade garantida etc) E sendo assim se

natildeo significa isso que tudo o que acabamos de dizer ldquocai por terrardquo tornando-se completa-

mente irrelevante se o ldquomodelo transcendentalrdquo for infirmado ndash e se verificarmos por exem-

plo que toda a composiccedilatildeo daquilo que nos aparece resulta de projecccedilotildees empiacutericas e eacute a pou-

co e pouco produzida por obra de um entretecimento (por uma espeacutecie de ldquotearrdquo empiacuterico)

que a partir de αισθήσεις e de μνῆμαι vai fabricando o seu ldquotecidordquo de fixaccedilotildees

Para responder a estas objecccedilotildees haacute que estar atento a trecircs aspectos

Natildeo cabe aqui analisar e desenvolver o problema em toda a sua extensatildeo mas antes de

mais importa fazer notar que a possibilidade de todo o aparecimento com que lidamos ter

uma constituiccedilatildeo transcendental com a estrutura de que tentaacutemos dar um esboccedilo eacute uma pos-

sibilidade real ndash pode muito bem ser efectivamente assim e haacute indiacutecios que apontam para que

seja efectivamente assim

Isso significa que o complexo de nexos de subordinaccedilatildeo que estrutura internamente o

ldquotecidordquo do que temos apresentado pode incluir precisamente esta ldquotramardquo ou este ldquotraveja-

mentordquo transcendental em resultado do qual sem estarmos cientes disso a organizaccedilatildeo inter-

na do proacuteprio alfabeto das nossas determinaccedilotildees inclui fios de descendecircncia ou derivaccedilatildeo e

no seu ldquoBathosrdquo ou na sua profundidade tem um conjunto de determinaccedilotildees nucleares a exer-

cerem funccedilotildees tais que tudoo mais decorre delas (e recorre a elas na constituiccedilatildeo de outras de-

terminaccedilotildees)

Dito de outro modo haacute uma possibilidade real de aleacutem a) da trama de nexos de su-

bordinaccedilatildeo que liga a multiplicidade das unidades colectivas de determinaccedilotildees (aleacutem dessa

trama a que podemos chamar a trama dos nexos de subordinaccedilatildeo agrave superfiacutecie do que nos apa-

rece) e tambeacutem aleacutem b) da trama de nexos de subordinaccedilatildeo que organiza a multiplicidade

das determinaccedilotildees envolvidas na constituiccedilatildeo de cada unidade colectiva de determinaccedilotildees

haver ainda c) qualquer coisa como uma trama de subordinaccedilatildeo a um niacutevel mais profundo de

que dependem ao mesmo tempo aquilo que referimos em a) e em b) ndash de tal modo que todo o

horizonte do que nos aparece estaacute inscrito no horizonte aberto por este processo de descen-

decircncia de todas as determinaccedilotildees a partir de um nuacutecleo e natildeo satildeo possiacuteveis senatildeo com con-

tracccedilotildees ou especificaccedilotildees desse nuacutecleo

205

O que estamos a procurar sublinhar eacute que natildeo haacute hierarquia apenas na organizaccedilatildeo das

diferentes determinaccedilotildees ndash haacute hierarquia na sua proacutepria constituiccedilatildeo interna (de tal modo

que umas determinaccedilotildees vecircm intrinsecamente de outras e na verdade todas descendem de

um nuacutecleo de proto-fixaccedilatildeo ou de proto-fixaccedilotildees de que todas as outras satildeo desenvolvimen-

tos)

Mas por outro lado importa estar ciente de que esta peculiar forma de nexo de subor-

dinaccedilatildeo que estamos a considerar natildeo eacute relevante apenas se o modelo transcendental for efec-

tivamente aquele que corresponde agrave forma como estatildeo formadas as determinaccedilotildees com que li-

damos e todo o aparecer em que estamos constituiacutedos O ponto decisivo eacute tambeacutem que aquilo

que se desenha no modelo transcendental natildeo tem aplicaccedilatildeo apenas se o modelo transcenden-

tal for ldquoadequadordquo ndash tambeacutem tem relevo se natildeo for

Este eacute o ponto em que agora nos devemos deter

Importa ter presente o seguinte mesmo que como vimos as projecccedilotildees empiacutericas de-

pendam de acumulaccedilotildees de dados o que as constitui eacute o ldquodisparordquo de fixaccedilotildees antecipadas

com caraacutecter de lei que atraacutes descrevemos Nesse sentido as fixaccedilotildees empiacutericas tecircm sempre a

forma de antecipaccedilotildees relativas a horizontes de totalidade (os horizontes de totalidade rasga-

dos e antecipados nas referidas ldquoleisrdquo)

Acontece que como tambeacutem jaacute vimos nada disto impede que os horizontes de totali-

dade que assim vatildeo sendo formados no ldquotearrdquo da ἐμπειρία tenham diferentes amplitudes

Quer dizer nada impede que as diferentes fixaccedilotildees empiacutericas que a pouco e pouco se

formaram produzindo o complexo de antecipaccedilotildees (ou o complexo de ldquoleisrdquo) que de cada vez

se acha em vigor na oacuteptica empiacuterica se distingam como na scala praeligdicamentalis pela refe-

rida variaccedilatildeo de niacuteveis de extensatildeo e compreensatildeo ndash ou seja pelo facto a) de umas fixaccedilotildees

terem muito mais extensatildeo e muito menos compreensatildeo b) por outras terem menor extensatildeo e

maior compreensatildeo e c) pelo facto de este nexo se iterar um determinado nuacutemero de vezes

dando lugar a uma hierarquia de fixaccedilotildees empiacutericas com uma estrutura anaacuteloga agrave da scala

praeligdicamentalis

Eacute aqui que se toca o ponto decisivo

Vendo bem tambeacutem neste caso as fixaccedilotildees com maior amplitude (as projecccedilotildees empiacute-

ricas mais abrangentes ou mais comuns se assim se pode dizer) dizem respeito a projecccedilotildees

empiacutericas mais fundamentais ou mais decisivas

206

As fixaccedilotildees que estamos a descrever satildeo aquelas projecccedilotildees que se se virem infirma-

das arrastam consigo um complexo muito vasto de outras projecccedilotildees danificando assim de

forma muito significativa o ldquoedifiacuteciordquo do reconhecimento empiacuterico do quadro de realidade

em que nos achamos situados

Ao inveacutes as projecccedilotildees empiacutericas de amplitude mais restrita (de maior compreensatildeo e

portanto com um caraacutecter mais especiacutefico) exercem funccedilotildees de sustentaccedilatildeo com menor al-

cance (de onde resulta que pelo menos no que diz respeito ao efeito de propagaccedilatildeo da sua in-

firmaccedilatildeo o ldquoestragordquo que produzem no ldquoedifiacuteciordquo global do nosso reconhecimento empiacuterico

da realidade eacute muito mais contido ou ldquolocalizadordquo e nesse sentido de menor peso)

Com tudo isto jaacute fica desenhado o fundamental do que se pretendia pocircr em evidecircncia

relativamente a esta outra componente da anisotropia da subordinaccedilatildeo que caracteriza as di-

ferentes componentes do campo de aparecimento em que damos connosco ndash ie aquele onde

tem lugar o acontecimento da experiecircncia

Em uacuteltima anaacutelise o que se procurou focar foi que independentemente da alternativa

entre haver uma constituiccedilatildeo transcendental que fixa a matriz para o proacuteprio desenrolar da ἐμ-

πειρία ou haver uma constituiccedilatildeo fundamentalmente empiacuterica de todo o nosso reconhecimen-

to da realidade que nos aparece a estrutura reconhecida no conceito de scala praeligdicamentalis

(algo grosso modo correspondente aos traccedilos essenciais dessa estrutura) cunha a proacutepria

conformaccedilatildeo do que habitualmente nos aparece

Mesmo que toda a carga de fixaccedilatildeo transgressora relativa ao dado efectivamente dis-

poniacutevel seja de origem exclusivamente empiacuterica nada impede que a estrutura da antecipaccedilatildeo

empiacuterica (a estrutura da constelaccedilatildeo de ldquoleisrdquo empiacutericas) que de cada vez jaacute se acha posta em

vigor (e a enformar a doaccedilatildeo que de cada vez se vai produzindo) seja exactamente a mesma

que a da constituiccedilatildeo transcendental

Isto eacute nada impede que as fixaccedilotildees mais geneacutericas ou universais tenham sido se for

esse o caso geneticamente posteriores sem que isso no entanto seja obstaacuteculo a que na or-

dem das funccedilotildees de sustentaccedilatildeo uma vez constituiacutedas passem a ter primazia e possuam rela-

ccedilotildees tais com as fixaccedilotildees mais especiacuteficas que se forem postas em causa as arrastam na sua

queda

Tambeacutem neste aspecto se todas as determinaccedilotildees tecircm o seu peso e produzem com a

sua presenccedila contracccedilotildees no que nos aparece pode-se no entanto dizer que umas determina-

ccedilotildees satildeo mais determinantes do que outras

207

E tambeacutem a este respeito resulta claro que uma coisa seraacute a experiecircncia constituiacuteda

num quadro de aparecimento constituiacutedo de tal modo que natildeo inclua qualquer hierarquiza-

ccedilatildeo do tipo que acabamos de considerar outra coisa muito diferente seraacute a experiecircncia for-

mada num meio completamente marcado por este tipo de hierarquizaccedilatildeo e ainda outras se-

ratildeo as modalidades de experiecircncia que se produzirem num meio cunhado por outro tipo de

hierarquizaccedilatildeo Dito de outro modo bastaria uma significativa alteraccedilatildeo desta variaacutevel para

produzir caeteris paribus uma significativa variaccedilatildeo do cariz da experiecircncia

Assim por pouco que habitualmente nos demos conta disso tambeacutem esta componente

desempenha um papel decisivo a marcar aquilo que para noacutes costuma ser a experiecircncia E a

compreensatildeo da constituiccedilatildeo da experiecircncia tal como tem lugar em noacutes que natildeo leve em

comta esta componente deixa escapar um ingrediente ou um factor fundamental sem o qual a

experiecircncia se tornaria algo muito diferente daquilo a que estamos habituados

sect26

Uma certa margem de heterogeneidade que tem que ver com a diversidade do ldquoquecircrdquo da

experiecircncia experiecircncia de factos experiecircncia de significados e experiecircncia de factos e de

significados

Tudo o que jaacute se desenha nas secccedilotildees anteriores continua a ser insuficiente para captar

aquilo que de facto estaacute em causa E isto eacute assim por duas razotildees

Por um lado porque o raacutepido bosquejo que traccedilaacutemos fica muito longe de dar conta de

todos os nexos de subordinaccedilatildeo (sc de tudo aquilo que torna assimeacutetricas as relaccedilotildees entre as

diferentes componentes do que nos aparece) Neste sentido as paacuteginas precedentes natildeo pre-

tendem fornecer mais do que uma ldquoamostrardquo

Por outro lado o que desenhaacutemos eacute ainda insuficiente em resultado do proacuteprio cami-

nho que foi preciso seguir para pocircr em evidecircncia as diferentes formas de nexo de subordina-

ccedilatildeo que sucessivamente passaacutemos em revista

De facto foi preciso isolar cada uma dessas modalidades e focaacute-la isoladamente ndash pro-

duzindo-se de cada vez a imagem abstracta de um campo de aparecimento estruturado apenas

por aquela forma de anisotropia (sc de rede de nexos de subordinaccedilatildeo que de cada vez estava

208

especialmente em causa) Ora o ponto decisivo (o que especialmente molda a modalidade de

experiecircncia a que estamos habituados) natildeo eacute cada uma destas formas de anisotropia ligada a

nexos de subordinaccedilatildeo mas sim a respectiva conjugaccedilatildeo e integraccedilatildeo num todo simultanea-

mente marcado por todas elas

Aqui de novo podemos recorrer agrave comparaccedilatildeo com um sistema de forccedilas

Os diferentes aspectos que focaacutemos constituem como que diferentes forccedilas aplicadas

simultaneamente agrave totalidade do que nos aparece De tal maneira que os diversos momentos

desta totalidade estatildeo sujeitos ao efeito conjugado destas diferentes forccedilas ndash na peculiar for-

ma de relaccedilatildeo que sustentam entre si

Ou melhor a) a totalidade do que nos aparece estaacute desviada em relaccedilatildeo agravequilo que se-

ria ndash e ao aspecto que teria ndash se soacute comportasse nexos de coordenaccedilatildeo b) esse desvio eacute o que

decorre da resultante de uma multiplicidade de factores de subordinaccedilatildeo ndash uma resultante

que precisamente como num sistema de forccedilas estaacute simultaneamente condicionada pelas for-

ccedilas que integram o sistema (pelas diferentes direcccedilotildees e sentidos em que cada uma ldquopuxardquo) e

pela ldquorelaccedilatildeo de forccedilasrdquo que haacute entre elas

Eacute este aspecto (ie satildeo algumas caracteriacutesticas fundamentais desta ldquoresultanterdquo) que

de seguida procuraremos focar um pouco mais detidamente

O aspecto a que nos estamos a referir eacute aquele que tem que ver com o proacuteprio ldquoquecircrdquo

do aparecimento e da experiecircncia (o objecto do aparecimento e da experiecircncia o que o apare-

cimento e a experiecircncia determina etc)

Ora tambeacutem a respeito do ldquoquecircrdquo do aparecimento e da experiecircncia haacute possibilidade de

variaccedilatildeo ndash variaccedilatildeo que se estende para laacute dos aspectos anteriormente referidos

Essa possibilidade de variaccedilatildeo adveacutem de uma certa margem de heterogeneidade que

tem que ver com a diversidade dos ldquoquecircsrdquo em causa no que nos aparece e na experiecircncia

Quer dizer tambeacutem pode haver vaacuterios quadros de aparecimento e vaacuterias experiecircncias distin-

tas entre si na medida em que aquilo que aparece e a experiecircncia pode resultar de uma multi-

plicidade de ldquoquecircsrdquo possiacuteveis de cada vez em causa nela

Para sermos mais precisos pode haver vaacuterias formas de aparecimento e de experiecircncia

distintas entre si consoante o aparecimento e a experiecircncia for tal que a) a experiecircncia eacute pura e

simplesmente uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo b) a experiecircncia eacute pura e simplesmente uma ldquoex-

periecircncia de significadosrdquo (ou uma ldquoexperiecircncia de sentidordquo como tambeacutem podemos dizer)

209

ou por fim c) a experiecircncia tem o caraacutecter de uma ldquoexperiecircncia mistardquo (ie que conjuga ou

que eacute composta de factos e de significados)

Comecemos por considerar a primeira hipoacutetese naquilo que diz respeito aos contras-

tes pertinentes para o que aqui temos em vista com as restantes

Uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo corresponde a um puro registo de tudo o que estaacute mate-

rial e efectivamente dado (ie de tudo o que estaacute dado de todas as ldquocoisasrdquo de tudo o que

aparece etc)

Isto eacute uma experiecircncia de factos corresponde a algo como um inventaacuterio faacutectico ndash um

inventaacuterio das ldquocoisasrdquo que aparecem e das determinaccedilotildees com que as ldquocoisasrdquo se apresen-

tam Neste sentido o registo em que a experiecircncia de factos estaacute constituiacutedo resulta num ma-

pa que toma a sua conformaccedilatildeo da conformaccedilatildeo da ldquoloacutegicardquo proacutepria dos factos

O que isto quer dizer eacute que o mapa que resulta de uma experiecircncia dos factos toma a

forma da relaccedilatildeo das diversas ldquocoisasrdquo (das diversas unidades colectivas de determinaccedilotildees) e

das diversas determinaccedilotildees entre si (ie do modo como cada ldquocoisardquo e cada determinaccedilatildeo se

relaciona com as restantes estaacute desposta perante as restantes etc)

Assim um objecto da experiecircncia de factos corresponderia a um qualquer x definido

exclusivamente pelas suas propriedades ndash ie corresponderia a um qualquer x posto numa re-

laccedilatildeo de pura transparecircncia relativamente a si de tal modo que o que determinaria x natildeo se-

ria mais do que o que estivesse incluiacutedo no proacuteprio x (os seus atributos caracteriacutesticas pro-

priedades etc)

Poreacutem o mapa que daiacute resulta eacute um mapa da complexidade dos factos natildeo apenas nes-

te primeiro sentido

Vendo bem a ldquoloacutegicardquo dos factos (o modo como os diversos factos ndash as diversas ldquocoi-

sasrdquo e as diversas ldquodeterminaccedilotildeesrdquo ndash estatildeo associadas entre si) constitui tambeacutem em si mes-

ma um facto proacuteprio

Isto eacute o mapa que resulta da experiecircncia dos factos eacute um mapa que natildeo apenas regista

a) os factos avulsos mas que regista igualmente b) os diversos estratos de factos (as relaccedilotildees

dos diversos ldquoobjectosrdquo e das determinaccedilotildees deles entre si que se assim podemos dizer de-

potildeem os factos em diversas ldquocamadasrdquo)

Ora tendemos a ver o que aparece no pressuposto de que a ordem de determinaccedilotildees

em causa nos expotildee perante uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo

210

Quer dizer o ponto de vista habitual tende a compreender a experiecircncia do que quer

que seja como uma mera experiecircncia de factos O aparecimento de uma ldquocoisardquo parece neste

sentido corresponder apenas agrave presenccedila da ldquocoisardquo que aparece ndash de tal modo eacute assim que a

ldquocoisardquo eacute tomada como sendo tal qual como aparece no acesso

Por outras palavras a forccedila da evidecircncia de que estamos perante uma experiecircncia de

factos impotildee-se de tal modo que a apresentaccedilatildeo do que aparece (a apresentaccedilatildeo dele e soacute dele

ou a apresentaccedilatildeo do facto em causa na sua relaccedilatildeo com outros factos) parece esgotar as pos-

sibilidades de apresentaccedilatildeo do que aparece (de tal modo que a conformaccedilatildeo do aparecimento

e da experiecircncia como aparecimento e experiecircncia de factos ganha forccedila de evidecircncia que o

que aparece natildeo poderia ser senatildeo tal qual como nos aparece natildeo poderia ter outra configu-

raccedilatildeo para laacute desta que tem natildeo poderia ldquoserrdquo ou aparecer de outro modo etc)

Mais ainda o proacuteprio conceito de ldquofactordquo estaacute marcado pelo pressuposto de que o

acesso em que nos temos eacute um acesso que regista dados a partir de uma posiccedilatildeo que eacute com-

pletamente neutra relativamente aos dados que capta

A experiecircncia como ldquoexperiecircncia de factosrdquo ldquoembarcardquo se assim se pode dizer na tese

de uma dupla quietude agrave quietude do ldquoobjectordquo ndash que meramente ldquoeacuterdquo estaacute ldquoaiacuterdquo aparece etc

ndash estaacute contraposta a quietude do ldquosujeitordquo ndash que meramente observa e acolhe o ldquoserrdquo do ldquoob-

jectordquo como que agrave distacircncia (ie sem desempenhar qualquer papel no modo como aparece o

que aparece sem estar envolvido com ele de algum modo para laacute da mera captaccedilatildeo etc)

Em suma o proacuteprio conceito de ldquofactordquo pressupotildee que o que aparece natildeo estaacute sujeito

a qualquer outra pressatildeo para laacute da pressatildeo da pergunta ldquoo que eacuterdquo O facto estaacute medido

apenas por si proacuteprio

Dito por outras palavras o conceito de ldquofactordquo pressupotildee o cumprimento eficaz da pe-

ticcedilatildeo de verdade ndash na forma de um esclarecimento (de uma resposta agrave pergunta pelo ldquoserrdquo da

ldquocoisardquo pelo que a ldquocoisardquo ldquoeacuterdquo etc) que teria origem na proacutepria realidade a que o apareci-

mento ou a experiecircncia dizem respeito

Neste sentido uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo corresponderia ao mero conjunto de res-

postas agrave pergunta ldquoo que eacuterdquo E mesmo que a experiecircncia como vimos envolva projecccedilotildees

as projecccedilotildees empiacutericas de uma experiecircncia de factos tecircm que ver apenas com a fixaccedilatildeo do

que se passa no plano absoluto dos proacuteprios factos que as projecccedilotildees se destinam a reconsti-

tuir ou antecipar

211

Algo bem diferente eacute aquilo que estaacute em causa se a experiecircncia tem o caraacutecter de ldquoex-

periecircncia de significadosrdquo

Vendo bem a pergunta a que a ldquoexperiecircncia do significadordquo pretende dar resposta natildeo

eacute diferente da pergunta a que o ldquofactordquo procura dar resposta ndash em ambos os casos o que estaacute

em causa eacute a pergunta ldquoo que eacuterdquo Acontece poreacutem que a pergunta ldquoo que eacuterdquo se converte na

pergunta ldquoo que significardquo

Interessa compreender o que se quer dizer com isto

O primeiro ponto a ter em atenccedilatildeo eacute que o significado tem sempre que ver com rela-

ccedilatildeo Trata-se sempre daquilo que Platatildeo exprime no Feacutedon quando fala do μὴ μόνον ἐκεῖνο63

Mas esta caracteriacutestica que eacute fundamental natildeo basta para circunscrever aquilo que eacute

proacuteprio do significado (do aparecimento do significado e da experiecircncia do significado) en-

quanto tal

Com efeito o aparecimento de factos e a experiecircncia de factos tambeacutem pode incluir a

fixaccedilatildeo de relaccedilotildees Mais ndash qualquer deles pode ateacute estar especialmente focado na fixaccedilatildeo de

relaccedilotildees Contudo por mais que seja assim e mesmo que haja uma multidatildeo de relaccedilotildees (mes-

mo que o teor daquilo que aparece esteja saturado com a indicaccedilatildeo de relaccedilotildees) haacute um zero

de apresentaccedilatildeo de significados no sentido que aqui temos em vista

Ora interessa precisar o que eacute que constitui o significado enquanto tal

Antes de mais importa referir que haacute uma multiplicidade de acepccedilotildees do termo ldquosigni-

ficadordquo (quer no uso comum quer como terminus technicus) e que natildeo curamos aqui de fazer

uma anaacutelise dessas vaacuterias acepccedilotildees ou da histoacuteria do conceito de ldquosignificadordquo enquanto con-

ceito filosoacutefico

Na verdade limitamo-nos a procurar determinar aquilo que temos em vista ao recorrer

a este conceito

O que temos em vista ao recorrer ao conceito de ldquosignificadordquo eacute que a relaccedilatildeo consti-

tutiva do significado diz respeito a um acircngulo ou filtro de compreensatildeo introduzido pelo proacute-

prio modo de ver de tal modo que a) o terminus ad quem da relaccedilatildeo em causa natildeo eacute este ou

aquele objecto este ou aquele apresentado mas algo decorrente da proacutepria forma de capta-

ccedilatildeo que b) tudo o que aparece aparece jaacute na oacuteptica da relaccedilatildeo em causa (que eacute neste senti-

63

Cf 73c6-8 ldquoἐάν τίς τι ἕτερον ἢ ἰδὼν ἢ ἀκούσας ἤ τινα ἄλλην αἴσθησιν λαβὼν μὴ μόνον ἐκεῖνο γνῷ

ἀλλὰ καὶ ἕτερον ἐννοήσῃ οὗ μὴ ἡ αὐτὴ ἐπιστήμη ἀλλrsquo ἄλλη (hellip)rdquo

212

do universal) e que c) o terminus ad quem da relaccedilatildeo em causa (o acircngulo que faz o μὴ μόνον

ἐκεῖνο) eacute igual para tudo aquilo que aparece (ie tudo o que aparece eacute reportado ao mesmo e

eacute esse reportar ao mesmo que daacute lugar agrave diferenccedila dos significados ndash que satildeo significados di-

ferentes em relaccedilatildeo ao mesmo)

Expliquemo-nos melhor ndash e vejamos antes do mais cada um destes aspectos

Em primeiro lugar o terminus ad quem da relaccedilatildeo em causa natildeo eacute este ou aquele ob-

jecto este ou aquele apresentado mas algo decorrente da proacutepria forma de captaccedilatildeo

O que constitui o significado natildeo eacute se assim se pode dizer uma relaccedilatildeo horizontal

dentro do proacuteprio plano do apresentado (uma relaccedilatildeo entre apresentados) mas uma relaccedilatildeo

entre o apresentado e o proacuteprio estar a tecirc-lo (o acontecimento de estar a ter apresentaccedilatildeo de-

le) O μὴ μόνον ἐκεῖνο (o acrescentado que constitui a relaccedilatildeo) vem do proacuteprio acontecimento

de ldquoposserdquo daquilo que aparece radica num ldquofiltrordquo integrado na sua proacutepria oacuteptica ndash e de

um ldquofiltrordquo que eacute totalmente insusceptiacutevel de ser retirado (de tal modo que natildeo haacute um grau

zero preacutevio ao estabelecimento da relaccedilatildeo que constitui o significado)

Em segundo lugar isso significa que tudo o que aparece aparece jaacute na oacuteptica da rela-

ccedilatildeo em causa ndash que eacute neste sentido universal

Natildeo se trata desta ou daquela relaccedilatildeo determinada que haja entre estes e aqueles apre-

sentados Trata-se de um ldquofiltrordquo que em todos os casos potildee o que aparece em relaccedilatildeo com

um acircngulo constante na oacuteptica de quem vecirc de tal modo que dessa relaccedilatildeo a algo de constante

(dessa forma geral e invariaacutevel do significado ndash disso a que podemos chamar o acircngulo ou o

criteacuterio do significado) nasce um conjunto de significados todos relativos ao acircngulo ou criteacute-

rio em causa

Nesse sentido o significado natildeo eacute um acontecimento avulso que ocorre ldquoaquirdquo mas

natildeo ldquoalirdquo natildeo tem a forma de um agregado ndash de tal modo que tudo tivesse o seu significado

mas a forma como estaacute constituiacutedo o significado de A fosse completamente diversa e indepen-

dente da forma como estaacute constituiacutedo o significado de B etc A haver aparecimento de signi-

ficados e experiecircncia de significados no sentido que aqui se tem em vista o significado eacute to-

tal ndash um acontecimento global que tinge globalmente todo o horizonte do que aparece e todo

o horizonte da experiecircncia

Podemos exprimir melhor o que estaacute aqui em causa dizendo o seguinte

213

Se eacute verdade que o significado na acepccedilatildeo aqui em causa tem que ver com uma rela-

ccedilatildeo isso natildeo quer dizer que a relaccedilatildeo de que estamos a falar seja algo de acrescentado a um

conteuacutedo de algum modo disponiacutevel independentemente dela ndash de tal modo que haacute A e de-

pois o significado de A ou B e depois o significado de B etc

Quando aqui falamos de ldquosignificadordquo queremos justamente dizer que onde haacute apare-

cimento de significados independentemente de o aparecimento de significados poder ter de

ser mediado pelo aparecimento de factos o que quer que seja que aparece jaacute aparece na oacutep-

tica do significado como significado e natildeo como outra coisa De sorte que a proacutepria determi-

naccedilatildeo com que se apresenta jaacute envolve a relaccedilatildeo de que estamos a falar (jaacute envolve o μὴ μό-

νον ἐκεῖνο jaacute eacute feita desse μὴ μόνον ἐκεῖνο relativo ao proacuteprio acontecimento do estar lanccedilado

na presenccedila do que se apresenta)

Consideremos por exemplo essa modalidade de significado que eacute aquela que corres-

ponde a um aparecimento ndash e uma experiecircncia ndash marcados por um ter-de-se-lidar-com-aqui-

lo-que-aparece

Se o aparecimento tem a forma de uma lida no sentido que acabamos de dizer isso

faz que o que quer que seja que se apresente seja de algueacutem (de quem tem de lidar com o que

se apresenta) ao mesmo tempo que eacute de si proacuteprio

Quer dizer qualquer A natildeo tem apenas a determinaccedilatildeo de A mas a determinaccedilatildeo relati-

va ao ter de lidar com ele ndash a determinaccedilatildeo acrescentada o μὴ μόνον ἐκεῖνο disso Natildeo haacute um

x que aparece e que ainda natildeo tem nada que ver com o ter-de-se-lidar com isso O que quer

que seja que apareccedila possui uma determinaccedilatildeo proacutepria mas essa determinaccedilatildeo eacute sempre jaacute re-

lativa agrave lida nunca anterior a esse nexo com a lida

Ora se por um lado pode ter ndash e tem ndash relaccedilotildees com outros apresentados por outro

essas relaccedilotildees ldquohorizontaisrdquo (dentro do plano do que se apresenta) tecircm tambeacutem elas a forma

desta relaccedilatildeo agrave lida que perpassa globalmente o campo do que aparece e toda a experiecircncia

que se forma nele

Podemos dizer que neste caso o significado eacute o teor de interferecircncia com a lida (a

forma como o que quer que seja interveacutem na lida e define condiccedilotildees de lida) Em suma se o

aparecimento ou a experiecircncia eacute um aparecimento ou experiecircncia de significados de lida isso

quer dizer que se estaacute posto perante aquilo que aparece sob uma tensatildeo de uso ou de lida

A ldquoexperiecircncia dos significadosrdquo destaca o quesito funcional como o quesito funda-

mental da determinaccedilatildeo do ldquoserrdquo da ldquocoisardquo ndash de tal modo que tudo o que aparece estaacute pos-

214

to em referecircncia agrave tensatildeo de uso ou de lida em que se estaacute Podemos dizer assim tal como

aqui estaacute em causa a noccedilatildeo de ldquosignificadordquo designa o teor de um regime de aparecimento e

de experiecircncia para o qual a determinaccedilatildeo funcional relativamente agrave lida eacute a determinaccedilatildeo

fundamental para compreender o ldquoo quecircrdquo do que aparece

Sendo assim o que estaacute em causa eacute uma determinaccedilatildeo do comportamento E eacute uma

determinaccedilatildeo de comportamento do que aparece num duplo sentido

Por um lado estaacute em causa a determinaccedilatildeo do modo como podemos ou devemos agir

sobre o que aparece ndash ie estatildeo em causa as acccedilotildees de que aquilo que aparece poderaacute ser ob-

jecto Mas por outro estaacute tambeacutem em causa a determinaccedilatildeo do modo como o que aparece

pode agir sobre noacutes ndash estaacute em causa o modo como estamos sujeitos aos ldquoobjectosrdquo por assim

dizer

Ou seja quando estamos postos sob a pressatildeo de ter de lidar com ele quando procura-

mos determinar o comportamento do que aparece estaacute em causa igualmente o que devemos

esperar de um dado ldquoobjectordquo (que expectativas devemos ter em relaccedilatildeo a ele como pode

afectar o nosso desempenho como influenciaraacute ele o curso disso a que procuramos dar se-

guimento etc)

Assim um segundo aspecto fundamental que se destaca quando falamos de ldquosignifica-

dordquo (ou de ldquosentidordquo) e que contrasta com uma ldquoexperiecircncia de factosrdquo eacute o facto de haver

qualquer coisa como uma dependecircncia do proacuteprio acontecimento de acesso

Ao contraacuterio do que se passa na ordem dos factos onde tudo vai no sentido de aquilo

que aparece ser independente do acesso (ie ser isso mesmo que eacute haja ou natildeo acesso a

isso) na ordem do significado o acesso (o acesso de algueacutem) eacute condiccedilatildeo de possibilidade das

determinaccedilotildees funcionais Quer dizer as determinaccedilotildees funcionais natildeo teriam lugar sem esse

acesso estar constituiacutedo

Dito de outro modo o que esta ordem supotildee eacute que eacute o proacuteprio acesso que cria as con-

diccedilotildees para haver quesitos e determinaccedilotildees funcionais

Por outras palavras a natureza peculiar do ldquosignificadordquo no sentido aqui em causa

tem que ver com aquilo a que se pode chamar a densidade do proacuteprio acesso (o contraacuterio da

transparecircncia do papel que ela desempenha no aparecimento de puros factos e da forma como

a transparecircncia do acesso a proacutepria perfeiccedilatildeo do acesso que eacute a sua transparecircncia pretende

pocircr em contacto com aquilo que se passa independentemente do acesso de tal modo que o

proacuteprio acesso se converte numa ldquoquantidade negligenciaacutevelrdquo irrelevante etc)

215

Em resumo soacute haacute significado no sentido aqui em causa se o proacuteprio acesso (o estar

no acesso quem estaacute a ter acesso etc) se torna de algum modo protagonista do proacuteprio apa-

recimento ndash e do aparecimento todo

A especificidade do significado estaacute em que o proacuteprio acontecimento do acesso en-

quanto tal se torna fonte da determinaccedilatildeo daquilo que aparece enquanto essa determinaccedilatildeo eacute

a) relativa e b) relativa a quem tem acesso agravequilo que aparece

Nesse sentido as determinaccedilotildees de significado (o teor daquilo que aparece revestido

de significado na forma do significado etc) satildeo ao mesmo tempo determinaccedilotildees suas (que

lhe pertencem que estatildeo ldquolaacuterdquo que fazem parte dele etc) e determinaccedilotildees que soacute podem ter

lugar em relaccedilatildeo a ldquoalgueacutemrdquo

Eacute assim no caso da tensatildeo de lida e de todas as determinaccedilotildees que lhe satildeo relativas

mas eacute tambeacutem assim onde haja determinaccedilotildees de significado ndash e o aparecimento e experiecircn-

cia tomem a forma de aparecimento e experiecircncia de significados ndash seja qual for a modalida-

de especiacutefica de significado que esteja em causa

Isto potildee-nos na pista de um outro aspecto decisivo do aparecimento e da experiecircncia

de significados pelo menos como ocorre em noacutes

Embora o significado no sentido aqui em causa soacute seja possiacutevel em relaccedilatildeo a uma

tensatildeo de que eacute portador aquilo a que comummente se chama o ldquosujeitordquo do aparecimento o

ldquoembarquerdquo no mundo dos significados (o estar completamente conformado moldado por ele

etc) faz que os significados natildeo apareccedilam nesse seu caraacutecter hiacutebrido (de determinaccedilotildees ldquoem

cruzamentordquo que resultam da relaccedilatildeo entre a tensatildeo de que o ldquosujeitordquo eacute portador e aquilo que

lhe aparece etc) mas apareccedilam como determinaccedilotildees absolutamente pertencentes agravequilo que

aparece (ie relativamente agraves quais se perde o rasto da respectiva filiaccedilatildeo na tensatildeo de que o

sujeito eacute portador e agrave consciecircncia de que tais determinaccedilotildees pura e simplesmente natildeo teriam

lugar na ausecircncia do ldquosujeitordquo)

Pelo menos no nosso caso o aparecimento e a experiecircncia dos significados eacute vivida

como aparecimento e experiecircncia de factos e toma aos seus proacuteprios olhos o aspecto de um

aparecimento e experiecircncia de factos

Isso natildeo significa que se perca por completo a noccedilatildeo de ldquosignificadordquo Significa que se

perde a noccedilatildeo aguda de significado e que se passa a reconhecer o caraacutecter de significado soacute a

alguns aspectos mais manifestamente volaacuteteis ou mais manifestamente subjectivos (no sentido

de terem uma avaliaccedilatildeo menos consensual variaacutevel de indiviacuteduo para indiviacuteduo etc)

216

Este eacute um ponto decisivo

Haacute todo um conjunto de equiacutevocos que tecircm que ver com este peculiar fenoacutemeno a cir-

cunstacircncia de a proacutepria adesatildeo agrave oacuteptica do significado (a perfeita integraccedilatildeo nela como algo

de oacutebvio por cuja presenccedila nem sequer se daacute) fazer perceber a maior parte dos significados

como puros factos ndash de sorte que soacute reconhecemos como significados uma pequena parte do

reino dos significados em que estamos imersos e tomamos como factos o que na verdade satildeo

formas de significados

Este equiacutevoco fundamental estaacute tambeacutem associado a um outro que vem de tendermos

a perder de vista a extraordinaacuteria complexidade do mundo de significados em que estamos

constituiacutedos

Se considerarmos por exemplo uma unidade colectiva de determinaccedilotildees ela tem

muacuteltiplas camadas de significados Consideremos por exemplo uma caneta

Uma caneta eacute relativa a) a uma determinada possibilidade de uso b) a uma determina-

da relaccedilatildeo de poder entre cada um de noacutes e ela ndash que tambeacutem tem que ver c) com o significa-

do do seu tamanho do seu peso etc ndash aleacutem disso ainda d) com o significado de a caneta ser

uma realidade subsistente com cuja continuaccedilatildeo podemos contar e) com o significado de ela

natildeo envolver qualquer espeacutecie de perigo f) com o significado de ela estar privada da possibi-

lidade de nos ver de natildeo nos poder julgar etc g) com o significado de ser nossa ou de outra

pessoa h) com o significado de nos ter sido dada por algueacutem que se preza ou o contraacuterio i) de

ter sido usada para escrever isto ou aquilo de que guardamos boa ou maacute memoacuteria etc64

64

Misturamos aqui significados da mais diversa ordem Um dos pontos decisivos a que importa estar-

mos atentos eacute precisamente a multiplicidade das funccedilotildees que aquilo que aparece (sc as determinaccedilotildees

daquilo que aparece) pode assumir no quadro da forma global ldquointerferecircncia na pressatildeo de lida de que

o sujeito eacute portadorrdquo Quer dizer por um lado pode-se falar de qualquer coisa como uma enorme mul-

tiplicidade de funccedilotildees de determinaccedilotildees funcionais (de que aquelas que citaacutemos representam soacute uma

pequena amostra) por outro lado toda essa multiplicidade exuberante de funccedilotildees diferenciadas eacute rela-

tiva a um uacutenico acircngulo (justamente a interferecircncia na pressatildeo de lida que eacute o ldquofiltrordquo o significado

fundamental de que todos o significados no fundamental resultam) E se considerarmos uma qual-

quer unidade colectiva de determinaccedilotildees verificamos que o todo confuso das determinaccedilotildees que estatildeo

envolvidas na sua constituiccedilatildeo tem que ver com a definiccedilatildeo de condiccedilotildees de lida ou com a definiccedilatildeo

da forma de interferecircncia no quadro do ter-se-de-lidar-com-isso Quer dizer independentemente da

questatildeo de saber se haacute ou natildeo determinaccedilotildees que natildeo tecircm esta natureza (ou mais precisamente se na

fixaccedilatildeo das unidades colectivas de determinaccedilotildees que nos aparecem haacute ou natildeo determinaccedilotildees que natildeo

tecircm esta natureza) uma grande parte das determinaccedilotildees que intervecircm na fixaccedilatildeo das unidades colecti-

vas de determinaccedilotildees que nos aparecem tecircm justamente esta natureza

217

Este complexo de significados (que aqui se esboccedilou apenas de forma grosseira) eacute difiacute-

cil de ver em toda a sua extensatildeo porque tem ndash como tudo no acontecimento do aparecer em

que damos connosco ndash um caraacutecter confuso Mas isso natildeo impede que possamos ganhar cons-

ciecircncia de alguns dos seus elementos e de que esses elementos se caracterizam pelo seu caraacutec-

ter como que ldquoemprestadordquo (emprestado pelo ldquosujeitordquo agrave ldquocoisardquo) dispensaacutevel revogaacutevel etc

Eacute esse fenoacutemeno de consciencializaccedilatildeo de uma parte do ldquomundordquo dos significados que

costuma estar na base do conceito de significado

Passa-se a este respeito algo semelhante agravequilo que se verificou na Filosofia Moderna

em relaccedilatildeo ao conceito de ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo e agrave oposiccedilatildeo entre qualidades secundaacute-

rias e qualidades primaacuterias uma multiplicidade de reconhecimentos desencontrados traccedila-

dos natildeo coincidentes das fronteiras com uns a tomarem por qualidades primaacuterias aquilo que

outros potildeem em evidecircncia como qualidades secundaacuterias etc Pois tambeacutem aqui satildeo possiacuteveis

diversos contrastes diversos traccedilados de fronteiras diversas reparticcedilotildees do que pertence agrave es-

fera dos significados e do que pertence agrave esfera dos factos propriamente ditos

Contudo o ponto decisivo estaacute em que se analisarmos um pouco mais detidamente o

que todos aqueles que sustentam a possibilidade de isolar um nuacutecleo de determinaccedilotildees pura-

mente de facto identificaram como factos ldquolimpos de significadosrdquo acabamos por verificar

que na verdade tambeacutem essas determinaccedilotildees pertencem ao campo dos significados

O que acontece eacute que a identificaccedilatildeo como significado (a percepccedilatildeo da dependecircncia

relativamente agrave tensatildeo de que o sujeito eacute portador) resulta mais difiacutecil jaacute porque pertencem a

um nuacutecleo de determinaccedilotildees mais ou menos inerente e invariaacutevel porque o nexo com a tensatildeo

de que o sujeito eacute portador estaacute produzido por um ldquojuiacutezo ocultordquo no sentido de Kant ndash e na

verdade por um juiacutezo oculto bastante profundo e por isso difiacutecil de detectar

Isto natildeo quer dizer necessariamente que um campo de aparecimento integralmente

preenchido por significados eacute um campo completamente vazio de quaisquer factos Esta con-

clusatildeo precipitada deve-se a uma compreensatildeo deficiente do que quer dizer esse domiacutenio

completo dos significados

Como dissemos isso significa que tudo estaacute apresentado na oacuteptica dos significados ndash

quer dizer que os proacuteprios factos que haacute estatildeo percebidos na oacuteptica dos significados que

uma vez instalada percebe tudo incluindo o que haja de factos do seu proacuteprio ponto de vista

Assim ao contraacuterio do que pode parecer quando aqui se fala da possibilidade de um

campo de aparecimento misto (composto de factos e de significados) o que estaacute em causa natildeo

218

eacute um campo de aparecimento que nalguns dos seus sectores apresenta factos noutros pelo

contraacuterio apresenta significados nem estaacute em causa um campo de aparecimento constituiacutedo

de tal modo que uma parte dos seus objectos tem o caraacutecter de factos outra o caraacutecter de sig-

nificados nem estaacute em causa um campo de aparecimento constituiacutedo de tal modo que umas

propriedades dos objectos que aparecem nele satildeo factos e outras satildeo significados

Um campo de aparecimento misto quer dizer um campo de aparecimento constituiacutedo

de tal modo que por um lado tem envolvida na sua constituiccedilatildeo um estrato ou nuacutecleo de fi-

xaccedilatildeo de factos mas por outro lado tem essa fixaccedilatildeo de factos transformada ndash e na verdade

irreversivelmente transformada ndash pela interposiccedilatildeo de uma oacuteptica de significado que chama a

si e absorve em si o que quer que haja de fixaccedilatildeo e factos

O ponto decisivo que importa ter presente eacute que por muito que possa parecer o contraacute-

rio noacutes natildeo temos acesso directo a nada que seja uma mera apresentaccedilatildeo de factos ndash e na

verdade natildeo fazemos a mais pequena ideia do que isso seja

Dizer isto natildeo significa negar que possa haver qualquer coisa como um campo de apa-

recimento exclusivamente constituiacutedo pela fixaccedilatildeo de factos

Estamos a sustentar justamente o contraacuterio poderaacute muito bem haver um campo de

aparecimento e um campo de experiecircncia com essas caracteriacutesticas (e que um campo de apa-

recimento ou de experiecircncia que o seja apenas de factos eacute algo completamente diferente do

que conhecemos uma forma de aparecimento e de experiecircncia totalmente heterogeacutenea em re-

laccedilatildeo a tudo o que conhecemos) Eacute precisamente sobre a possibilidade de haver um campo de

aparecimento e um campo de experiecircncia que se reduzisse agrave fixaccedilatildeo de factos que podemos

dizer que essa ldquosimplesrdquo diferenccedila bastaria para que caeteris paribus tudo fosse diferente65

65

Por outra parte no que diz respeito agrave forma do aparecimento e da experiecircncia que tem lugar em noacutes

natildeo procuramos aqui estabelecer ateacute que ponto corresponde a um puro aparecimento (e experiecircncia) de

significados na acepccedilatildeo que aqui temos em vista ou a uma forma de aparecimento mista (que reuacutene

componentes das duas ordens) A discussatildeo desta alternativa eacute complexa ndash e uma decisatildeo absoluta-

mente fundamentada requeriria um acompanhamento transparente da forma como estaacute constituiacuteda a

nossa proacutepria perspectiva ndash que eacute coisa que estamos muito longe de ter ou de poder alcanccedilar Pelo me-

nos no nosso caso a interposiccedilatildeo da oacuteptica do significado tem um caraacutecter irreversiacutevel ndash natildeo haacute condi-

ccedilotildees para compreender efectivamente o que seria ver as coisas na sua ausecircncia Quer dizer se formos

rigorosos verificamos que tanto o conceito que temos de um aparecimento e de uma experiecircncia de

factos quanto aquele que temos do que poderaacute haver de um nuacutecleo ou estrato constituiacutedo soacute pelo apa-

recimento de factos a funcionar algures na profundidade do nosso proacuteprio ponto de vista eacute um con-

ceito puramente apofaacutetico De sorte que em uacuteltima anaacutelise natildeo sabemos se o nosso proacuteprio ponto de

219

A tudo isto acresce finalmente um uacuteltimo aspecto igualmente decisivo

Natildeo acontece apenas que o aparecimento e a experiecircncia se tornem coisas completa-

mente diferentes consoante sejam aparecimento e experiecircncia de factos aparecimento e expe-

riecircncia de significados ou aparecimento e experiecircncia mistos Sucede tambeacutem que podem di-

ferir muito em funccedilatildeo da natureza especiacutefica do significado que molda tudo que no caso do

aparecimento e da experiecircncia de significados quer no caso do aparecimento e da experiecircncia

mistos

Com efeito aquilo que estaacute em causa no conceito de ldquosignificadordquo tal como o usamos

eacute uma modalidade global de conformaccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia que contrasta

com o aparecimento e a experiecircncia dos factos

Para ilustrar esse contraste recorremos agravequele regime de apresentaccedilatildeo e experiecircncia

do significado com que estamos familiarizados o regime do significado de lida Fizemo-lo

atraacutes numa descriccedilatildeo muito breve e grosseira que soacute foi ateacute onde era estritamente indispensaacute-

vel para se perceber o mais essencial Mas importa ter presente que vendo bem mesmo que

possa acontecer que essa eacute a uacutenica forma de significado com que temos contacto e de que so-

mos capazes de ter noccedilatildeo natildeo estamos em condiccedilotildees de afirmar que eacute a uacutenica possiacutevel

Pode acontecer que natildeo soacute haja outras modalidades de significado mas na verdade ateacute

haja muitas modalidades diferentes de significado que poderiam conformar o aparecimento e

a experiecircncia em alternativa agravequela modalidade de significado que preside agrave forma como as

coisas nos aparecem e se constitui para noacutes a experiecircncia

Ou para o dizer assim para determinar o aparecimento e a experiecircncia que se datildeo em

noacutes natildeo basta referir que natildeo tecircm o caraacutecter de um aparecimento e experiecircncia de factos que

estatildeo marcados pela presenccedila de significados por uma oacuteptica de significaccedilatildeo etc ndash de tal

modo que se haacute factos eles estatildeo revestidos de significado e transformados por ele Para

aleacutem disso eacute indispensaacutevel precisar a modalidade concreta de significado que no nosso caso

domina o aparecimento e a experiecircncia

Por outro lado haacute tambeacutem que ter presente que a perspectiva que noacutes temos nesta ma-

teacuteria eacute uma perspectiva fechada muito longe de um olhar soberano que veja a sua proacutepria oacutep-

vista eacute integralmente constituiacutedo por significados ou tem um caraacutecter misto Mas insistimos o propoacute-

sito que seguimos ao dizer tudo isto eacute vincar bem que o aparecimento e a experiecircncia podem ser coisas

muito diferentes consoante forem aparecimento e experiecircncia soacute de factos soacute de significados ou mis-

tos

220

tica no meio de todas as outras alternativas possiacuteveis (de qualquer coisa como um perfeito

ldquomapardquo de todas as outras alternativas possiacuteveis) Estamos justamente ldquocoladosrdquo agrave forma que

nos molda e temos grande dificuldade em conceber eficazmente qualquer alternativa

Poreacutem isso natildeo significa que natildeo possa haver alternativas nem impede que a diferenccedila

entre campos de aparecimento e de experiecircncia constituiacutedos por diferentes regimes de signifi-

cado seja tatildeo grande quanto a diferenccedila entre o aparecimento e a experiecircncia de factos por

um lado e o aparecimento e a experiecircncia de significados por outro

sect27

A variaccedilatildeo da experiecircncia consoante esteja ou natildeo sob algum tipo de pressatildeo (consoante

tenha ou natildeo algum tipo de ldquoem causardquo) ndash A pressatildeo de natildeo-indiferenccedila de natureza praacuteti-

ca o cuidado consigo mesmo

Para que a anaacutelise preliminar que levaacutemos a cabo ao longo desta primeira parte fique

concluiacuteda e para se compreender que factores satildeo decisivos para apurar o modo como o apare-

cimento e a experiecircncia se determinam (as diversas formas que podem assumir etc) falta

ainda considerar um outro factor

Trata-se de algo intimamente ligado a factores jaacute anteriormente considerados E pode-

se dizer que de certo modo jaacute nos cruzaacutemos com ele Acontece que mesmo assim a sua pre-

senccedila se manteve ateacute aqui meramente impliacutecita e o que jaacute vimos natildeo soacute pode fazer com que

tenha passado despercebido como natildeo dispensa uma consideraccedilatildeo focada nele

O factor a que nos referimos eacute o seguinte para determinar o modo como o apareci-

mento e a experiecircncia acontecem interessa tambeacutem aquilo que estaacute ndash ou natildeo estaacute ndash ldquoem cau-

sardquo no aparecimento e na experiecircncia

Quando falamos de algo como o ldquoem causardquo da experiecircncia aquilo a que nos referi-

mos tem um alcance duplo

Por um lado referimo-nos agravequilo que estaacute em questatildeo agravequilo de que se trata ndash ao ne-

goacutecio ao assunto etc Na verdade natildeo eacute apenas isso mas eacute ainda mais eacute o que estaacute principal-

mente em questatildeo o nuacutecleo da tensatildeo que haacute aquilo de que efectivamente se trata o ldquonego-

ciordquo ou o assunto central etc

221

Por outro lado ao falar de algo como um ldquoem causardquo do aparecimento e da experiecircn-

cia falamos tambeacutem do que estaacute em perigo do que se arrisca do que estaacute em jogo do que

estaacute dependente do que venha a passar-se etc E natildeo apenas isso na verdade falamos de

aquilo de que se deve cuidar (de que se deve tratar de que se deve ocupar etc) ser o mais

elevado

Para compreender o que isto quer dizer importa ter presente desde jaacute o seguinte

O aparecimento e a experiecircncia varia muito significativamente ndash daacute lugar a apareci-

mentos e ldquoexperiecircnciasrdquo completamente diferentes ndash consoante esteja ou natildeo sob algum tipo

de pressatildeo (consoante tenha ou natildeo algum tipo de ldquoem causardquo)

Consideremos em primeiro lugar a possibilidade de o aparecimento e a experiecircncia

corresponder a algo livre de qualquer tipo de pressatildeo

Por efeito de uma peculiar distracccedilatildeo muitas (e ateacute mesmo a maior parte das) vezes o

campo de aparecimento e de experiecircncia em que damos connosco eacute descrito como se se tratas-

se de um meio totalmente neutro onde haacute estes e aqueles dados esta e aquela forma de elabo-

raccedilatildeo deles etc

Por outras palavras fala-se como se o aparecimento (a experiecircncia) estivesse constituiacute-

do de tal modo que natildeo estatildeo sujeito a qualquer espeacutecie de pressatildeo ocorresse num contexto

marcado por total ausecircncia de tensatildeo por total natildeo-indiferenccedila onde tudo eacute igual a tudo etc

Num contexto desse tipo se haacute aparecimento haacute aparecimento se o aparecimento cessar ces-

sa se o que aparece eacute isto eacute isto se o que aparece eacute o oposto eacute o oposto

Em princiacutepio nada impede que o aparecimento e a experiecircncia possam ter lugar num

meio marcado por total ausecircncia de pressatildeo ndash onde haver aparecimento ou natildeo haver o apare-

cimento ter este teor ou aquele teor natildeo faz qualquer diferenccedila Pois pura e simplesmente natildeo

haacute nenhum fluxo de natildeo-indiferenccedila nenhum requisito nenhum ldquoprogramardquo ndash e o proacuteprio

aparecer ou natildeo aparecer (sc o teor do aparecimento que haacute) natildeo estaacute sujeito a nenhuma peti-

ccedilatildeo ou exigecircncia de tal modo que natildeo satisfaz nem deixa de satisfazer nada

Um quadro completamente diferente e oposto a este eacute aquele em que pelo contraacuterio

natildeo haacute apenas aparecimento (isto e aquilo que se daacute a ver com este e aquele teor etc) mas su-

cede em vez disso que o proacuteprio acontecimento de aparecer aquilo que aparece estaacute perpassa-

do por um fluxo de natildeo-indiferenccedila e sujeito agrave pressatildeo desse fluxo

222

Num quadro deste geacutenero o proacuteprio curso do aparecimento (quer dizer ele ter lugar

ou natildeo ter lugar continuar a ter lugar ou natildeo e vir com este teor ou com aquele etc) cumpre

ou natildeo (satisfaz ou natildeo satisfaz ndash e satisfaz deste e daquele modo plenamente bastante algu-

ma coisa o que seja) o programa de natildeo-indiferenccedila que sobre ele ldquoimpenderdquo

Ora mesmo que muitas descriccedilotildees do acontecimento de aparecimento em que damos

connosco procedam como se o que se passa em noacutes tivesse as caracteriacutesticas de um apareci-

mento neutro sem qualquer tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a verdade eacute que natildeo estamos constituiacute-

dos deste modo e vendo bem natildeo fazemos mesmo a mais pequena ideia do que possa ser

algo assim

Por uma questatildeo de economia designamos a conformaccedilatildeo do aparecimento e da expe-

riecircncia caracterizada pela total ausecircncia de qualquer pressatildeo (de qualquer natildeo-indiferenccedila de

qualquer peticcedilatildeo ou quesito) a partir da figura do ldquopuro espectadorrdquo

O puro espectador estaacute natildeo soacute completamente privado de ldquoprogramardquo como estaacute tam-

beacutem privado tanto da possibilidade de conflito entre um ldquoprogramardquo e o curso efectivamente

seguido pelo aparecimento que haacute quanto da possibilidade de este uacuteltimo satisfazer o ldquopro-

gramardquo De facto como vimos nada impede que haja casos de aparecimento e de experiecircncia

correndo neste meio de total sossego ndash correspondentes agravequilo a que chamamos o apareci-

mento e a experiecircncia do puro espectador

Acontece poreacutem que noacutes natildeo somos puros espectadores Na verdade estamos mesmo

muito longe de o ser

A primeira coisa a que importa estar atento eacute que um aparecimento e um campo de ex-

periecircncia constituiacutedos na oacuteptica de um puro espectador e um aparecimento ou campo de expe-

riecircncia atravessados ou percorridos por tensatildeo de natildeo-indiferenccedila satildeo coisas muito diferentes

ndash tanto assim que caeteris paribus bastaria esta diferenccedila para pocircr os respectivos aconteci-

mentos de aparecimento (os respectivos campos de experiecircncia) a uma incriacutevel distacircncia um

do outro

Em segundo lugar haacute tambeacutem que ter presente que um campo de aparecimento e de

experiecircncia tambeacutem pode estar constituiacutedo de tal modo que comporta um quantum de natildeo-in-

diferenccedila mas apenas em surtos ocasionais e circunscritos ndash de tal maneira que o campo de

aparecimento e de experiecircncia em causa natildeo estaacute radicalmente subtraiacutedo agrave neutralidade

223

Aleacutem disso pode igualmente acontecer que ainda que a presenccedila de quesitos ou facto-

res de pressatildeo esteja muito disseminada esses quesitos ou essa pressatildeo tenha um caraacutecter de

algum modo acessoacuterio ou superveniente

O que acontece no nosso caso natildeo eacute um campo de aparecimento e de experiecircncia cons-

tituiacutedo desse modo

A pressatildeo de natildeo-indiferenccedila que atravessa o campo de aparecimento e de experiecircn-

cia eacute inerente constante e central ndash de tal modo que absolutamente nada do que aparece estaacute

subtraiacutedo ao efeito desta espeacutecie de tensatildeo ou ldquopressatildeo atmosfeacutericardquo do aparecer e a tensatildeo ou

ldquopressatildeo atmosfeacutericardquo desempenha em relaccedilatildeo a tudo um papel decisivo

Aqui entra em cena um outro aspecto que tem que ver com a natureza da pressatildeo ou

da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que pode percorrer um campo de aparecimento ou de experiecircn-

cia e que constitui como dissemos a sua ldquopressatildeo atmosfeacutericardquo

Faccedilamos notar que tambeacutem neste caso nada do que podemos dizer vem de uma pers-

pectiva soberana perfeitamente conhecedora de todas as possibilidades O que estamos em

condiccedilotildees de dizer radica num ponto de vista finito sempre sujeito agrave possibilidade de haver

muitas mais possibilidades do que aquelas que se consegue identificar

Seja como for desenham-se no fundamental duas possibilidades ndash ambas correspon-

dentes a algo muito diferente do que designaacutemos como o campo de aparecimento e de expe-

riecircncia de um puro espectador e tambeacutem ambas radicalmente diferentes uma da outra

A primeira dessas possibilidades eacute aquela que tem que ver com uma pressatildeo de natildeo-

indiferenccedila com um caraacutecter cognitivo

Pode acontecer que um acontecimento de aparecimento (e nele um campo de expe-

riecircncia) esteja constituiacutedo de tal modo que eacute portador de quesitos cognitivos ndash de qualquer

coisa como um programa cognitivo (um conjunto de exigecircncias de esclarecimento ou de ob-

tenccedilatildeo de saber etc) Se for assim a pressatildeo ou a natildeo-indiferenccedila que percorre o aparecer e o

campo de experiecircncia estaacute voltada sobre ele de tal modo que potildee tudo o que aparece sob a

exigecircncia de consecuccedilatildeo de metas cognitivas

Mesmo que natildeo possamos analisar nada disto de forma circunstanciada importa ter

presente que esta pressatildeo cognitiva (esta natildeo-indiferenccedila de ordem cognitiva ndash este em-causa

cognitivo) pode assumir diversas formas

224

Por um lado pode tratar-se de um programa cognitivo com um conjunto de metas

ldquomateriaisrdquo (por exemplo saber x y ou z acompanhar tudo o que se passa num determinado

raio de alcance etc) Por outro lado tambeacutem pode acontecer que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila

cognitiva tenha um caraacutecter puramente formal (por exemplo o cumprimento integral do ideal

cognitivo ndash saber tudo o que haja a saber)

Mesmo que correspondam a duas espeacutecies do mesmo tipo de tensatildeo de natildeo-indiferen-

ccedila estas duas modalidades de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila satildeo suficientes soacute por si para consti-

tuirem campos de aparecimento e de experiecircncia com caracteriacutesticas muito diferentes

Acresce entretanto que haacute uma segunda forma de natildeo-indiferenccedila completamente di-

ferente da tensatildeo cognitiva

A segunda dessas possibilidades eacute aquela que tem que ver com uma pressatildeo de natildeo-in-

diferenccedila que seguindo a tradiccedilatildeo podemos designar como natildeo-indiferenccedila com caraacutecter

praacutetico (como uma pressatildeo praacutetica a que correspondem quesitos de natureza praacutetica etc)

Neste caso a pressatildeo de natildeo-indiferenccedila tem que ver com um cuidado consigo mesmo

ndash um cuidado com quem estaacute lanccedilado no proacuteprio aparecimento e eacute moldado determinado

afectado por aquilo que aparece nele

Quer dizer trata-se de uma natildeo-indiferenccedila relativa agrave situaccedilatildeo em que se estaacute ou esta-

raacute Ou para usar a expressatildeo do Teeteto de Platatildeo trata-se de uma natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo

a ἀμείνων ἕξις (cf 167a3-4)

Tambeacutem neste caso a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila pode ter que ver com um programa

ldquomaterialrdquo de metas praacuteticas (estes e aqueles desideratos concretos odernados desta e daquela

forma etc) ou com um programa formal (como sucede no nosso caso o programa do super-

lativo ndash do que for melhor)66

66

De tal modo que o compromisso ou a vinculaccedilatildeo fundamental da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila praacutetica ndash

e temos aqui especialmente em vista a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva aquilo a que se aspira ndash natildeo

eacute um conjunto fixo de objectivos praacuteticos mas propriamente o maacuteximo que pode ser Isso natildeo signifi-

ca que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila natildeo precisa de desideratos concretos definidos etc significa na

verdade que todos os desideratos concretos definidos etc estatildeo postos sob a pressatildeo formal do maacute-

ximo De sorte que se desideratos concretos natildeo conseguem valer como o superlativo ou o maacuteximo

possiacutevel (se se descobre que o maacuteximo eacute outra coisa que natildeo eles) entatildeo a tendecircncia que se tem eacute para

uma outra coisa enquanto essa outra coisa que parece corresponder ao maacuteximo

225

Mais tarde procuraremos ver melhor em que radica este tipo de tensatildeo de natildeo-indi-

ferenccedila mas haacute um ponto que cumpre considerar jaacute aqui para desfazer equiacutevocos que podem

perturbar a compreensatildeo da sua natureza

O facto de se tratar de uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila fundamentalmente praacutetica (e

portanto natildeo-cognitiva natildeo dirigida ao cumprimento de um programa cognitivo etc) natildeo

significa que seja forccedilosamente desprovida de ldquoprograma cognitivordquo Com efeito a proacutepria

pressatildeo do interesse ou da natildeo-indiferenccedila de ordem praacutetica pode gerar vinculaccedilatildeo a metas

cognitivas

Damos dois exemplos para se perceber o que temos em vista

Por um lado se o interesse praacutetico estiver votado agrave obtenccedilatildeo de determinadas metas

praacuteticas torna relevante o conhecimento que eacute necessaacuterio para a ndash ou de todo o modo pode

ajudar agrave ndash obtenccedilatildeo das metas em causa

Por outro lado se a tensatildeo de interesse eacute primariamente uma tensatildeo formal (dirigida a

qualquer coisa como um superlativo) entatildeo potildee tudo na dependecircncia de um diagnoacutestico ade-

quado do que eacute afinal o melhor (das metas concretas que correspondem ao superlativo) e ge-

ra tensatildeo de interesse em relaccedilatildeo a esse desiderato cognitivo

O ponto importante eacute que neste caso a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a metas

cognitivas natildeo eacute a tensatildeo de interesse original tem um caraacutecter derivado Eacute isso que distin-

gue a tensatildeo de interesse propriamente cognitiva e a tensatildeo de ordem praacutetica (sc a pressatildeo de

natildeo-indiferenccedila a metas cognitivas que pode fazer parte da pressatildeo de natildeo-indiferenccedila de or-

dem propriamente praacutetica)

Um acontecimento de aparecimento (e um campo de experiecircncia) que estejam marca-

dos por pressatildeo de interesse cognitivo tecircm essa pressatildeo a dominaacute-los soacute por si ndash quer dizer a

natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a metas cognitivas vale por si estaacute fundada apenas em si mesma

etc

Pelo contraacuterio na tensatildeo de natildeo-indiferenccedila com caraacutecter originalmente praacutetico o inte-

resse por metas cognitivas soacute entra em cena de forma derivada se ndash e na medida em que ndash o

interesse praacutetico gerar a partir de si (quer dizer a partir de uma preocupaccedilatildeo natildeo original-

mente cognitiva) natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a metas cognitivas

Nada disto significa que a relaccedilatildeo entre estas duas formas de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila

(ou de ldquoem causardquo) tenha de corresponder a uma alternativa ndash de tal modo que todo o campo

226

de aparecimento ou de experiecircncia dominado por uma tensatildeo de interesse ou natildeo-indiferenccedila

tenha de ter obrigatoriamente ou uma ou a outra destas duas modalidades

De facto por uma parte e em resultado da finitude que atraacutes referimos nada garante

que natildeo haja ainda outras formas de natildeo-indiferenccedila para laacute destas duas possibilidades que es-

tamos em condiccedilotildees de identificar

Por outra parte nada impede que estas duas modalidades de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila

possam coexistir no mesmo acontecimento de aparecer (sc no mesmo campo de experiecircncia)

Acontece eacute que se houver tal coexistecircncia tudo dependeraacute da relaccedilatildeo de forccedilas entre as duas

componentes dessa tensatildeo de natildeo-indiferenccedila mista67

Algo de equivalente vale em relaccedilatildeo a um outro aspecto que aqui cabe referir e que

tem que ver com o seguinte

Resulta do que dissemos que o facto de um acontecimento de aparecimento ou de um

campo de experiecircncia estar dominado por uma determinada modalidade de tensatildeo de natildeo-in-

diferenccedila natildeo significa necessariamente que essa tensatildeo de natildeo-indiferenccedila seja simples Mes-

mo que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que se faz sentir seja apenas de um tipo (soacute uma pressatildeo

originalmente cognitiva ou soacute uma pressatildeo originalmente praacutetica) pode muito bem acontecer

que natildeo tenha um ldquoprogramardquo simples ndash que natildeo corresponda a uma uacutenica linha de pressatildeo

dirigida a uma uacutenica coisa

Ou seja pode muito bem acontecer que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila corresponda a

qualquer coisa como um feixe com muacuteltiplos fluxos dirigidos a metas natildeo-idecircnticas

Ora sendo assim tambeacutem neste caso tudo depende da relaccedilatildeo de forccedilas entre os di-

versos fluxos que compotildeem o feixe da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que percorre o campo de

aparecimento e de experiecircncia68

67

Note-se a diferenccedila entre a possibilidade de que estamos a falar e aquilo que dissemos anteriormen-

te Antes referimos que a proacutepria tensatildeo de interesse praacutetico pode gerar a partir de si mesma e no seu

proacuteprio quadro uma tensatildeo derivada de interesse cognitivo Agora estamos a referir algo muito dife-

rente a possibilidade de haver no mesmo acontecimento de acesso e no mesmo campo de experiecircncia

duas tensotildees originais em coexistecircncia uma com a outra ao lado uma da outra e em combinaccedilatildeo uma

com a outra (quer dizer em combinaccedilatildeo desses dois fluxos de tensatildeo independentes um do outro ne-

nhum dos quais decorre do outro)

68 O que estamos a ver eacute que o nosso ponto de vista eacute composto de ldquoem causardquo subordinantes e de ldquoem

causardquo subordinados E sendo assim podemos nesta nota explicar a conformaccedilatildeo do complexo de

ldquoem causardquo fazendo apelo ao fenoacutemeno da ldquosubordinaccedilatildeordquo a que jaacute definimos atraacutes os contornos for-

227

mais Por um lado cada ldquoem causardquo singular representa um momento a caminho de um ldquoem causardquo

mais vasto ndash e por sua vez cada ldquoem causardquo mais vasto representa tambeacutem ele um momento a cami-

nho de um ldquoem causardquo mais vasto etc Estamos a procurar sublinhar o aspecto que mostra que a rela-

ccedilatildeo entre pressotildees eacute uma relaccedilatildeo temporalmente extensa ndash e tanto quer dizer por um lado a) que eacute

uma relaccedilatildeo que se espraia que permanentemente antecipa a sua continuaccedilatildeo etc quanto quer di-

zer por outro lado b) que o que estaacute em jogo eacute uma apresentaccedilatildeo que natildeo eacute neutra quanto agrave amplitu-

de da extensatildeo temporal Assim a importacircncia de cada ldquoem causardquo singular equivale agrave importacircncia

que adquire no encaminhamento para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causardquo mais vasto que o compreende

e equivale agrave posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem

ou convergem para o ldquoem causardquo mais vasto que os compreende ndash mas equivale tambeacutem agrave importacircn-

cia que adquire no encaminhamento para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causa regionalrdquo e equivale agrave po-

siccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem cau-

sa regionalrdquo A mesma estrutura de encadeamento vale ainda para os ldquoem causardquo locais Ou seja a

importacircncia de cada ldquoem causardquo singular equivale agrave importacircncia que adquire no encaminhamento

para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causardquo mais vasto e equivale agrave posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo

a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem causa geralrdquo equivale tambeacutem agrave impor-

tacircncia que adquire no encaminhamento para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causa regionalrdquo e equivale agrave

posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a todos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem

causa regionalrdquo ndash mas equivale tambeacutem por fim agrave importacircncia que adquire no encaminhamento

para ou na consecuccedilatildeo do ldquoem causa localrdquo e equivale agrave posiccedilatildeo relativa que ocupa em relaccedilatildeo a to-

dos os restantes ldquoem causardquo que concorrem para o ldquoem causa localrdquo etc Na verdade natildeo parece

haver limite para o cardinal de niacuteveis hieraacuterquicos de ldquoem causardquo de cada vez a operar Assim o va-

lor que cada ldquoem causardquo singular adquire corresponde a uma posiccedilatildeo num ldquolequerdquo com uma enorme

amplitude de variaccedilatildeo O valor de cada ldquoem causardquo singular eacute resultado de uma peculiar relaccedilatildeo de

forccedilas eacute resultado por um lado da complexidade da hierarquia (da quantidade de ldquoniacuteveisrdquo que ela

comporta) e por outro da complexidade de ldquoem causardquo implicados ou contra os quais concorre em

cada um dos muacuteltiplos niacuteveis etc O que de qualquer modo deve ficar claro eacute que natildeo soacute cada ldquoem

causardquo natildeo estaacute isolado de um ldquoem causardquo mais vasto (e no limite de um ldquoem causardquo omni-englo-

bante) como natildeo estaacute igualmente isolado de todos os restantes ldquoem causardquo Na verdade cada ldquoem

causardquo ganha ou perde relevo tanto a) na medida em que cumpre (ou natildeo) ldquoem causardquo mais vastos (e

em que grau com que influecircncia com que peso etc) quanto b) no confronto com os restantes ldquoem

causardquo (consoante a posiccedilatildeo ndash a forccedila o peso o relevo etc ndash que adquire no complexo de ldquoem causardquo

que estatildeo em tensatildeo de cumprimento de ldquoem causardquo mais vastos) Tudo isto deixa ver o seguinte Ca-

da ldquoem causardquo singular que compotildee um determinado complexo de ldquoem causardquo que por sua vez com-

potildee um determinado ponto de vista refere-se na verdade ao cumprimento do ldquoem causardquo omni-en-

globante Dito por outras palavras o que estaacute efectivamente em jogo no concurso dos muacuteltiplos ldquoem

causardquo de que eacute composto um determinado complexo de ldquoem causardquo eacute saber qual (ou quais) dos ldquoem

causardquo concorrentes preenche (ou preenchem) os requisitos do ldquoem causardquo omni-englobante que posi-

ccedilatildeo ocupa perante o ldquoem causardquo omni-englobante como o satisfaz etc

Ora tudo isto pode acontecer sem se ter qualquer notiacutecia disso Quer dizer pode entender-se o caso

de tal modo que o que se desenha eacute um mero tracircnsito entre ldquoem causardquo (agora este depois aquele por

fim o outro etc) de tal modo que o tracircnsito parece corresponder a uma sucessatildeo de saltos (de momen-

tos sem outra conexatildeo entre si para laacute da contiguidade ndash ie para laacute do facto de se sucederam ou ante-

228

Com isto fica desenhado o fundamental

Um dos mais decisivos factores de conformaccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia eacute a)

estar ou natildeo estar algo em causa no aparecimento e na experiecircncia (haver ou natildeo haver uma

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a percorrer o aparecimento) e por outro lado tambeacutem b) a natureza

ou se assim se pode dizer a orientaccedilatildeo da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que percorre o apareci-

mento Tudo isto de tal modo que a estes dois pontos corresponde uma multiplicidade de pos-

sibilidades jaacute no que diz respeito ao contraste entre campos de aparecimento totalmente neu-

tros (marcados por completa ausecircncia de qualquer tensatildeo) ndash jaacute no que diz respeito ao contraste

entre campos de aparecimento marcados apenas por interesse cognitivo (totalmente livres de

qualquer interesse de ordem praacutetica) campos de aparecimento marcados apenas por interesse

praacutetico (totalmente livres de interesse originalmente cognitivo que soacute incluem interesses cog-

nitivos derivados do interesse praacutetico) e campos de aparecimento dominados pela presenccedila

destas duas formas de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (postas numa determinada relaccedilatildeo de forccedilas

que pode justamente ser diferente consoante os casos) A tudo isto acresce finalmente o con-

traste entre a possibilidade de cada uma destas modalidades de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila rei-

nar em fluxos simples (ou relativamente simples) ou pelo contraacuterio na forma de feixes de

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (programas de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila) com diversos graus de

complexidade

Isto configura se assim se pode dizer como que um sistema de ldquoagulhasrdquo ndash no sentido

ferrovaacuterio do termo ndash que podem fazer seguir o aparecimento e a proacutepria experiecircncia para

ldquodestinosrdquo (quer dizer para conformaccedilotildees do que aparece e especificamente para conforma-

ccedilotildees da proacutepria experiecircncia) muito diferentes De sorte que ainda que por inadvertecircncia pos-

samos (e ateacute tendamos a) natildeo contar este factor entre os ldquoingredientesrdquo que decidem a compo-

siccedilatildeo da experiecircncia trata-se na verdade de um ingrediente marcante e ateacute decisivo

A pista que aqui fica lanccedilada deve ser perseguida mais adiante

E a pista eacute a seguinte no tracircnsito de ldquoem causardquo em que nos encontramos aquilo que

estaacute fundamentalmente ldquoem causardquo e que tem um caraacutecter decisivo no modo como aparece o

cederam uns aos outros) Na verdade tudo isto aponta para a possibilidade de no modo como habi-

tualmente nos aparece o que aparece a) natildeo se estar ciente de que haacute algo como um ldquoem causardquo

omni-englobante b) do caraacutecter decisivo que o ldquoem causardquo omni-englobante tem sobre o que aparece

(na determinaccedilatildeo do modo como aparece o que aparece)

229

que aparece (na experiecircncia que resulta do que aparece) eacute mantido na profundidade estaacute ocul-

to omisso etc

sect28

As variaacuteveis sensus proprius e sensus communis

Posto isto passemos a um outro aspecto que levaremos em consideraccedilatildeo neste levan-

tamento que como frisaacutemos natildeo tem nada de completo

Esse outro aspecto diz respeito ao contraste entre a experiecircncia constituiacuteda soacute na esfe-

ra da apresentaccedilatildeo proacutepria (se assim se pode dizer num uacutenico ponto de vista) e a experiecircn-

cia constituiacuteda de tal modo que se multiplica por uma pluralidade (e de facto por uma plu-

ralidade indefinidamente aberta) de outros sujeitos

Esta formulaccedilatildeo eacute ainda bastante imprecisa e requer alguma explicaccedilatildeo

Consideremos o seguinte

Em uacuteltima anaacutelise toda a experiecircncia tem a sua sede num uacutenico sujeito e natildeo haacute nada

capaz de ldquofundirrdquo (no sentido proacuteprio do termo) os pontos de vista de diversos sujeitos A

multiplicidade dos sujeitos eacute sempre algo que aparece ema cada um deles ndash como algo cons-

tituiacutedo na sua esfera de aparecimento entre as vaacuterias outras realidades que nela aparecem

etc

Mais vendo bem os outros sujeitos constituem sempre o correlato de projecccedilotildees em-

piacutericas O que isto quer dizer eacute que todos eles estatildeo constituiacutedos por projecccedilatildeo ndash ie consti-

tuem um caso particular do complexo processo de projecccedilatildeo de realidades reguladas por leis

que eacute a ἐμπειρία

Tudo isto eacute algo que jaacute vimos e que soacute interessa recapitular para servir de base ao que

se seguiraacute E o que interessa ter presente eacute em suma o seguinte a proacutepria multiplicidade dos

outros sujeitos eacute de certo modo ldquointeriorrdquo a um uacutenico ponto de vista

230

Mas sendo assim nada disto impede a oposiccedilatildeo que podemos exprimir eficazmente a

partir do que encontramos expresso em Kant quando contrasta aquilo a que chama sensus pro-

prius e sensus communis69

Tanto quanto se estaacute em condiccedilotildees de determinar a ἐμπειρία pode muito bem consti-

tuir-se num contexto ldquorobinsonianordquo ndash num contexto que natildeo conta com qualquer outro ponto

de vista aleacutem daquele mesmo em que se produz

Por outras palavras todo o jogo de prescriccedilatildeo e regulamentaccedilatildeo que eacute proacuteprio da expe-

riecircncia pode ter como terminus a quo e como terminus ad quem (ou como termini a quibus e

termini ad quos) campos de realidade testemunhados por uma uacutenica testemunha a saber o

proacuteprio

Isso eacute perfeitamente compatiacutevel com a possibilidade de uma ἐμπειρία bastante comple-

xa cobrindo extraordinaacuterias extensotildees no espaccedilo e no tempo Pois a ldquoforccedila motrizrdquo da ἐμπει-

ρία ndash a capacidade de ldquoexplosatildeordquo da amplitude da perspectiva (do domiacutenio de pretensatildeo de

validade) que lhe eacute proacutepria (a capacidade que radica no facto de a ἐμπειρία como vimos to-

mar a forma de pretensas leis) ndash eacute perfeitamente suficiente para produzir esse efeito

69

Na medida em que os proacuteximos passos jaacute daratildeo conta das caracteriacutesticas de ldquosensus propriusrdquo e

ldquosensus communisrdquo e dos contrastes relevantes para o problema da experiecircncia que aqui temos em

matildeos o que interessa natildeo eacute tanto apresentar uma definiccedilatildeo quanto fazer um levantamento breve das

duas noccedilotildees no pensamento de Kant Ora o que desde logo devemos notar eacute que como eacute tiacutepico de

Kant embora tenha em vista um e o mesmo fenoacutemeno as formulaccedilotildees segundo as quais o apresenta

satildeo distintas Assim a foacutermula ldquosensus propriusrdquo pode ser encontrada ao longo da sua obra sob a de-

signaccedilatildeo ldquoEigensinnrdquo ou ldquosensus privatusrdquo assim como a foacutermula ldquosensus communisrdquo pode ser encon-

trada sob a designaccedilatildeo ldquoGemeinsinnrdquo Dito isto os passos da obra kantiana que merecem atenccedilatildeo es-

pecial para uma consideraccedilatildeo detida dos fenoacutemenos de ldquosensus propriusrdquo e ldquosensus communisrdquo satildeo

designadamente Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (sect 53 AA VII 219) Anthropologie Busolt

(1488) Logik Bloomberg (paacutegs 189 e 193) Logik Dohna-Wundlacken (paacutegs 696 709 724 e 739)

Logik Jaumlsche (paacutegs 17 e 56-7) Criacutetica da Faculdade de Julgar (sect20 e sect40) Para mais ver por exem-

plo Atalay M Kantrsquos Aesthetic Theory Subjectivity vs Universal Validity in Percipi 1 Budapeste

2007 paacutegs 44ndash52 Gueorguieva V La connaissance de lindeacutetermineacute Le sens commun dans la

theacuteorie de laction Tese de Doutoramento Universiteacute Laval 2004 Lafer C Experiecircncia accedilatildeo e nar-

rativa reflexotildees sobre um curso de Hannah Arendt in Estudos Avanccedilados vol 21 nordm 60 Satildeo Paulo

Instituto de Estudos Avanccedilados da Universidade de Satildeo Paulo pp 289-304 Savi M Il concetto di

senso comune in Kant Milano Franco Angeli 1998 em especial paacutegs 42 e seguintes e paacutegs 102 e se-

guintes ou Suzuki A The role of sensus communis in Aristotle Thomas Aquinas Locke and Kant

Tese de Mestrado Boston University 1952

231

Contudo por outro lado nada disto obsta a que se porventura se constituir o reco-

nhecimento de outros pontos de vista para aleacutem do proacuteprio esse passo abra caminho a uma

extraordinaacuteria multiplicaccedilatildeo da rede empiacuterica Com efeito como Kant vinca na sua anaacutelise do

sensus communis por contraste com o sensus proprius ao projectar uma multiplicidade de

outros sujeitos a ἐμπειρία atribui-lhes uma multiplicidade de αἰσθήσεις (e de correspondentes

μνῆμαι) e de captaccedilatildeo empiacuterica correspondente agravequela que se daacute na esfera do proacuteprio

Por outras palavras a ἐμπειρία como que se ldquodesdobrardquo ndash duplicando (triplicando

quadruplicando etc) a sua fonte e assim reforccedilando a sua base

Ora satildeo vaacuterios os aspectos que haacute a vincar a este respeito

Em primeiro lugar como se apontou os outros sujeitos aqui em causa satildeo postos a

partir do ponto de vista proacuteprio Quer dizer as outras ocorrecircncias de ἐμπειρία (a ἐμπειρία no

plural enquanto esse plural tem um sentido trans-subjectivo) satildeo extensotildees e ldquoconstructosrdquo

da ἐμπειρία proacutepria

Mas por outro lado a forccedila (a pretensatildeo de eficaacutecia ou validade da ἐμπειρία) apaga o

rasto do seu proacuteprio trabalho constitutivo e confere aos outros sujeitos um valor autoacutenomo

autoridade proacutepria

Ora sendo assim (e porque aleacutem disso as condiccedilotildees habituais de constituiccedilatildeo da rede

ldquointersubjectivardquo tambeacutem envolvem a confirmaccedilatildeo do grosso das fixaccedilotildees empiacutericas por parte

dos outros sujeitos) em vez de o sujeito se ver na posse de um reconhecimento das ldquocoisasrdquo

produzido soacute por si vecirc-se pelo contraacuterio na posse de um reconhecimento da realidade teste-

munhado e corroborado por um significativo nuacutemero de sujeitos para laacute de si

O segundo aspecto a ter presente para se perceber a importacircncia deste ponto tem que

ver com a forma como as diferentes peccedilas perceptivas que se vatildeo acumulando na ἐμπειρία es-

tatildeo envolvidas num jogo de interferecircncia e de apoio reciacuteprocos

Como vimos se houvesse apenas αἴσθησις e μνήμη cada ocorrecircncia da αἴσθησις (e ca-

da momento da μνήμη) soacute teria relevo a respeito de si mesma Nada diria ou poderia dizer a

respeito dos demais Mas o mesmo natildeo sucede na estrutura da projecccedilatildeo empiacuterica em que haacute

projecccedilotildees com forma de lei E isso significa que se haacute ἐμπειρία cada αἴσθησις que tem lugar

vem inscrever-se num quadro de antecipaccedilotildees a seu respeito ndash antecipaccedilotildees (prescriccedilotildees) que

preenche (confirma) ou natildeo Assim ao mesmo tempo que constitui o terminus ad quem de

uma projecccedilatildeo cada αἴσθησις constitui tambeacutem juntamente com as outras o terminus a quo

de projecccedilotildees sobre outras αισθήσεις a haver

232

Por um lado isso expotildee ao risco de infirmaccedilatildeo mas se sucede o oposto (se haacute confir-

maccedilatildeo) entatildeo por outro lado isso constitui a base de um contiacutenuo reforccedilo da ἐμπειρία cuja

sempre renovada confirmaccedilatildeo equivale a um processo de sempre crescente aumento da base

ndash e da forccedila de convicccedilatildeo ndash da validade aparente da ἐμπειρία

Ora se isto eacute assim no acircmbito da experiecircncia proacutepria esse processo ganha novas di-

mensotildees com a transiccedilatildeo do sensus proprius para o sensus communis

A convicccedilatildeo de que a travessia perceptiva proacutepria eacute confirmada pela travessia per-

ceptiva alheia multiplica as testemunhas que partilham os assentamentos ou as fixaccedilotildees pro-

duzidas na primeira pessoa

Quer dizer natildeo se trata apenas de haver a concordacircncia de dados (as πολλαὶ μνῆμαι

τοῦ αὐτοῦ πράγματος) na primeira pessoa e a ldquotorrenterdquo de evidecircncia empiacuterica na primeira

pessoa Trata-se de essa ldquotorrenterdquo aparecer replicada por uma multiplicidade de outras ldquotor-

rentesrdquo semelhantes que juntam a sua ldquoforccedilardquo agrave da experiecircncia proacutepria

O conceito de sensus communis exprime justamente a forma como o sistema de afe-

riccedilatildeo que continuamente tece o aparecimento em que nos temos natildeo se esgota na teia relativa

aos dados (agrave travessia perceptiva) ndash em vez disso inclui sempre jaacute o fenoacutemeno de replicaccedilatildeo

ou multiplicaccedilatildeo dos pontos de vista que confirmam os nossos assentamentos

Dito por outras palavras fixaccedilotildees no campo do sensus proprius seriam aquelas que se

produzissem exclusivamente na oacuteptica da primeira pessoa fixaccedilotildees no campo do sensus com-

munis satildeo aquelas que sempre se acham referidas a esse silencioso apelo agrave confirmaccedilatildeo

intersubjectiva e agrave transformaccedilatildeo dessa confirmaccedilatildeo numa complexiacutessima teia de corrobora-

ccedilatildeo ou de co-validaccedilatildeo

Ora se o papel desse complexo sistema eacute desempenhado quase sempre de forma taacutecita

e tende a passar despercebido isso natildeo o torna menos efectivo

Se referindo-nos por exemplo agrave presenccedila de algo que nos parece estar tambeacutem no siacute-

tio onde nos encontramos de repente todas as outras pessoas de forma consistente testemu-

nharem que natildeo vecircem laacute nada tal natildeo soacute resultaraacute em perplexidade como abalaraacute o estatuto

habitual do acesso em que nos temos e a nossa compreensatildeo habitual da sua eficaacutecia

Isso eacute assim justamente porque natildeo vemos em regime de sensus proprius (caso no qual

seria completamente irrelevante o conflito com o testemunho alheio) mas em regime de sen-

233

sus communis ndash ie sempre jaacute num quadro marcado pelo desdobramento ou multiplicaccedilatildeo de

sujeitos cujo testemunho conta para a constituiccedilatildeo da experiecircncia

O que acontece eacute que semelhante multiplicaccedilatildeo torna a rede da experiecircncia muito mais

ldquocerradardquo ldquoprende-ardquo (se assim se pode dizer ldquoancora-ardquo) num muito maior nuacutemero de pon-

tos de apoio ou de esteios Ou seja a atmosfera em que radica a experiecircncia de cariz inter-

subjectivo eacute muito mais complexa do que a que corresponde agrave experiecircncia constituiacuteda soacute em

regime de sensus proprius

Mas isto ainda natildeo eacute tudo Com efeito para se perceber bem a peculiaridade da expe-

riecircncia no regime do sensus communis eacute preciso ter em atenccedilatildeo mais duas propriedades que a

marcam decisivamente

Em primeiro lugar a proacutepria multiplicidade dos sujeitos estaacute constituiacuteda em projec-

ccedilatildeo empiacuterica ou em alargamento empiacuterico

Quer isto dizer que os outros sujeitos cujo testemunho eacute constituiacutedo em instacircncias de

confirmaccedilatildeo da perspectiva proacutepria natildeo satildeo em regra soacute estes ou aqueles (os sujeitos direc-

tamente testemunhados de que houve αἰσθήσεις e de que haacute μνῆμαι) A proacutepria confirmaccedilatildeo

ou corroboraccedilatildeo estaacute transformada por um alargamento ou arredondamento empiacuterico ndash e to-

ma a forma de qualquer coisa como uma lei

Por outras palavras os outros sujeitos cujo testemunho corroborante da perspectiva

proacutepria eacute efectivamente percepcionado (as πολλαὶ μνῆμαι dessa concordacircncia) estatildeo constituiacute-

dos em pontos de partida de projecccedilotildees que antecipam uma validaccedilatildeo anaacuteloga por parte de

um nuacutemero indefinidamente aberto de outros sujeitos

Nessa medida a ldquoteiardquo correspondente ao sensus communis tem uma dimensatildeo muito

maior do que a do complexo de sujeitos efectivamente ldquoconsultadosrdquo A concordacircncia tem

um caraacutecter meramente performativo ndash ie resulta de algo como um consentimento silencioso

ou mais propriamente de natildeo haver abertamente uma contestaccedilatildeo

Em uacuteltima anaacutelise todas as assunccedilotildees que se adoptam estatildeo imbuiacutedas de qualquer coi-

sa como uma pretensatildeo de canonicidade ndash enquanto o conceito de ldquopretensatildeo de canonicida-

derdquo significa a multiplicaccedilatildeo das testemunhas cognitivas a respeito das quais se presume que

corroborariam as nossas teses (a totalidade daqueles que estatildeo em condiccedilotildees de ldquover as coi-

sas como elas satildeordquo etc) De sorte que nuns casos (e eacute assim com a grande maioria das teses

que fixam a compreensatildeo global da estrutura da realidade as suas propriedades fundamentais

etc) o que estaacute presumido eacute algo como um consensus universalis (dos sujeitos que haacute dos

234

sujeitos que houve e poderaacute haver e ateacute dos que poderia haver etc) e nos casos em que haja

consciecircncia de alguma discrepacircncia o consensus que eacute tacitamente reclamado abrange a tota-

lidade daqueles que vecircem as coisas como deve ser ou seja a totalidade daqueles que natildeo es-

tatildeo afectados por condicionamentos que tornam a sua perspectiva defeituosa etc

Melhor esta peculiar estrutura tem uma tal flexibilidade e uma tal pretensatildeo de valida-

de das antecipaccedilotildees relativas ao testemunho alheio que ateacute eacute capaz de se estender aonde se

presume a total ausecircncia de sujeitos

Se por exemplo nos reportarmos ao Preacute-Cacircmbrico ou ao que se passaraacute no centro do

sol ndash domiacutenios de realidade a que por diversas razotildees estaacute vedado qualquer acesso cognitivo

directo ndash a perspectiva sobre o que laacute se passa ou teraacute passado invoca tacitamente a corrobo-

raccedilatildeo por testemunhas cognitivas cujo testemunho das realidades em questatildeo se situa integral-

mente no irrealis Mas isso em nada impede ndash ou sequer enfraquece ndash o efectivo exerciacutecio das

funccedilotildees referidas E daiacute resulta uma forma de funcionamento de perspectiva que em tudo se

presume corroborada por qualquer coisa como um testemunho total (maciccedilo sem fissuras

etc)

A tudo isto vem juntar-se em segundo lugar um outro aspecto natildeo menos relevante

Nem a) o caraacutecter presumidamente ldquonatildeo-soacuterdquo do ponto de vista proacuteprio tem um grande

impacto para a validaccedilatildeo da perspectiva nem b) a natureza derivada dos pontos de vista

alheios ndash que tecircm sempre de ser reconhecidos ou homologados na nossa proacutepria perspectiva ndash

impedem o funcionamento dos pontos de vista alheios como fontes autoacutenomas de validaccedilatildeo

de perspectiva ndash ou como ldquoautoridadesrdquo

Acontece que isto natildeo eacute tudo

De facto acontece ateacute aquilo que tatildeo incisivamente encontramos descrito por Swift

nas Viagens de Gulliver ou por Ionesco no Rinoceronte a multiplicaccedilatildeo dos testemunhos de

validaccedilatildeo de uma determinada perspectiva ndash por mais aberrante ou mais bizarra que ela seja

ndash eacute suficiente para lhe conferir caraacutecter de evidecircncia e tem se assim se pode dizer um enor-

me ldquopoder de sugestatildeordquo sobre a perspectiva que se tem na primeira pessoa

Este breve esboccedilo permite vislumbrar a extraordinaacuteria diferenccedila que separa um campo

de experiecircncia constituiacutedo soacute em regime (ou na forma) de sensus proprius e um campo de ex-

periecircncia constituiacutedo em regime de sensus communis A este respeito importa de resto obser-

var o seguinte ao contraacuterio do que pode parecer essa diferenccedila natildeo passa necessariamente

pela existecircncia real de uma multiplicidade de sujeitos

235

Vendo bem em uacuteltima anaacutelise poderia muito bem ter lugar mesmo que soacute houvesse ndash

ou pode muito bem ter lugar mesmo que soacute haja ndash um uacutenico acontecimento de acesso Com

efeito por mais que seja absolutamente privado um sonho pode muito bem estar constituiacutedo

na forma de sensus communis

Quer dizer independentemente da questatildeo de saber quais satildeo efectivamente as condi-

ccedilotildees reais da situaccedilatildeo em que se constitui o aparecimento a diferenccedila entre uma perspectiva

constituiacuteda em regime de sensus proprius e uma perspectiva constituiacuteda em regime de sensus

communis eacute uma diferenccedila interna (uma diferenccedila imanente) ao aparecimento de que se dis-

potildee

Neste sentido a alternativa entre uma perspectiva constituiacuteda em regime de sensus

proprius e uma perspectiva constituiacuteda em regime de sensus communis eacute uma alternativa rela-

tiva agrave forma como o aparecimento se acha organizado (agrave forma como aparece o que aparece

nele) Podemos exprimir essa diferenccedila dizendo que ela eacute no que diz respeito agrave amplitude da

radicaccedilatildeo das teses que se adoptam comparaacutevel agrave diferenccedila entre uma multiplicidade pura-

mente bi-dimensional e a ldquoexplosatildeordquo da terceira dimensatildeo

Toca-se aqui um ponto que natildeo podemos desenvolver mas que tatildeo-pouco podemos

deixar de referir mesmo que soacute muito sucintamente

Esse ponto tem que ver com o regime de pretensatildeo de que se reveste um campo de

aparecimento e com ele a experiecircncia que nele tem lugar

O que acabamos de ver em relaccedilatildeo agrave diferenccedila entre aparecimento e experiecircncia no re-

gime de sensus proprius e no regime de sensus communis tem que ver com isto ndash ou melhor

com um aspecto disto

Em uacuteltima anaacutelise natildeo eacute obrigatoacuterio que um acontecimento de aparecimento esteja

acompanhado de qualquer tese a respeito do seu proacuteprio estatuto (sc da pretensatildeo de verdade

de que se reveste) E haacute desde logo uma diferenccedila (e na verdade uma diferenccedila abismal) en-

tre um aparecimento que natildeo envolve qualquer definiccedilatildeo do seu estatuto (sc qualquer preten-

satildeo de verdade) e um aparecimento que pelo contraacuterio envolve definiccedilatildeo do seu estatuto (e

sustenta uma pretensatildeo de verdade a respeito daquilo que apresenta)

Mas por outro lado sendo assim haacute diferentes possibilidades de definiccedilatildeo do estatuto

do que eacute apresentado ndash diferentes regiotildees de pretensatildeo possiacuteveis E ainda que suceda que por

sua proacutepria natureza o ponto de vista empiacuterico envolva sempre uma certa pretensatildeo de verda-

de isso natildeo impede que essa pretensatildeo possa estar fixada de diversos modos e que essa diver-

236

sa fixaccedilatildeo do regime de pretensatildeo leve caeteris paribus a acontecimentos de aparecimento e

a formas de experiecircncia na verdade muito diferentes

Vejamos entatildeo num raacutepido apontamento o que importa ter presente nesta mateacuteria

Antes do mais o regime de pretensatildeo que eacute compatiacutevel com o miacutenimo de pretensatildeo

que eacute proacuteprio da ἐμπειρία pode ser mais restrito ou mais amplo

Eacute mais restrito se o aparecimento soacute tem a pretensatildeo de se mostrar a si proacuteprio e se as

leis correspondentes agrave projecccedilatildeo empiacuterica soacute pretendem ter validade para a esfera do proacuteprio

acontecimento de aparecimento em que se estaacute soacute antecipa o que se passaraacute nesse mesmo

aparecimento (ie soacute antecipa o que apareceraacute) e natildeo levanta qualquer pretensatildeo de validade

em relaccedilatildeo a o que quer que seja para laacute do proacuteprio aparecimento enquanto tal

Como vimos a ἐμπειρία tem sempre como correlato leis (sc pretensas leis) ndash quer di-

zer uma natureza Mas nada impede que essa natureza possa ser soacute a natureza do proacuteprio

aparecimento

Em suma poderia ndash e pode ndash haver experiecircncia constituiacuteda de tal modo que o seu

campo de aplicaccedilatildeo estaacute definido soacute desta forma

Mas aquilo que acabamos de ver em relaccedilatildeo ao sensus proprius e ao sensus communis

chama jaacute a atenccedilatildeo para o facto de tal como tem lugar em noacutes a experiecircncia estar constituiacuteda

com um regime de pretensatildeo muito mais amplo ndash e de tal modo que isto basta soacute por si para

que duas ldquoexperiecircnciasrdquo em tudo o mais iguais que difiram apenas por este contraste no seu

regime de pretensatildeo acabem por ser duas experiecircncias na verdade completamente diferentes

A pretensatildeo mais ampla ndash a que estaacute ligado mas a que natildeo eacute idecircntico aquilo que vi-

mos sobre o sensus communis ndash tem que ver com a tese de que o aparecimento eacute no funda-

mental transparente em relaccedilatildeo agravequilo que haacute independentemente dele Estamos a falar da te-

se de adequaccedilatildeo e da estrutura correspondente agrave ideia de adequaccedilatildeo

Natildeo se trata aqui de analisar a raiz desta ideia a forma como estaacute constituiacuteda os pro-

blemas que suscita etc O que importa eacute o efeito que tem uma vez adoptada como chave para

a estrutura do proacuteprio aparecimento em que damos connosco

Por uma parte a ideia de adequaccedilatildeo (o estatuto que lhe corresponde o facto de o apa-

recimento se revestir deste estatuto a pretensatildeo de verdade que lhe corresponde etc) atribui

ao acesso um caraacutecter de acesso adequado ndash que acesso de certo modo cumpre plenamente a

pura e completa mostraccedilatildeo do aparecimento daquilo a que diz respeito

237

Mas por outro lado sendo assim essa perfeiccedilatildeo do aparecimento ou do acesso torna-o

irrelevante precisamente porque eacute transparente a sua interposiccedilatildeo natildeo produz qualquer espeacute-

cie de mudanccedila e o que se tem no aparecimento eacute exactamente o mesmo que haacute independente-

mente dele (quer dizer tambeacutem na sua ausecircncia) Eacute essa a tese que estaacute em causa no referido

estatuto

Ou seja como vimos a ideia de adequaccedilatildeo retira densidade ao aparecimento (ao aces-

so) a que confere transparecircncia (enquanto acesso) A falta de densidade proacutepria do acesso eacute

correlativa da ideia de transparecircncia e directamente proporcional a ela

Mas o ponto que aqui nos interessa especialmente pocircr em foco tem que ver com o re-

verso desta perda de densidade proacutepria do acesso ndash que eacute tambeacutem o resultado de o acesso ser

compreendido como perfeitamente transparente em relaccedilatildeo agravequilo que eacute independentemente

dele Eacute que isso faz que ao estar no acontecimento do acesso ou do aparecimento se estaacute

sempre jaacute para laacute dele em contacto directo com isso em relaccedilatildeo ao qual eacute transparente (ie

com aquilo que haacute independentemente do acesso com aquilo que haacute fora dele na sua ausecircn-

cia)

Este ponto eacute decisivo porque faz do acontecimento do acesso ou do aparecimento (que

eacute segundo a proacutepria tese em causa um entre muitos outros uma pequena parte da realidade

etc) ao mesmo tempo algo completamente diferente de uma pequena parte da realidade Eacute na

verdade tatildeo diferente de ser apenas uma pequena parte da realidade que abrange justamente

tudo aquilo a que eacute contraposto de sorte que vendo bem eacute a partir da forma como ele proacute-

prio na verdade abrange tudo isso a que eacute contraposto que tem condiccedilotildees para se compreen-

der como sendo apenas uma pequena parte da realidade70

Falaacutemos anteriormente da extraordinaacuteria explosatildeo que decorre da assunccedilatildeo por parte

do aparecimento e da experiecircncia do regime de pretensatildeo correspondente ao sensus commu-

nis Percebe-se agora que essa explosatildeo estaacute ligada a esta outra que tem que ver com a assun-

ccedilatildeo global do regime de pretensatildeo correspondente agrave ideia de adequaccedilatildeo e agrave compreensatildeo do

aparecimento como algo transparente em relaccedilatildeo agravequilo que se passa fora e independente-

mente dele71

70

Em suma tudo isto produz aquilo que Aristoacuteteles expressa quando escreve no De anima III 8

(431b21) ldquoἡ ψυχὴ τὰ ὄντα πώς ἐστι πάνταrdquo

71 Como dissemos os dois elementos de definiccedilatildeo do estatuto ou da pretensatildeo de verdade a que aqui

nos referimos natildeo satildeo inteiramente coincidentes A tese de transparecircncia natildeo tem necessariamente de

238

Esta outra ldquoexplosatildeordquo eacute em certo sentido a mais decisiva de todas e constitui um fac-

tor essencial da forma que o aparecimento e a experiecircncia tomam para noacutes

Porque haacute esta explosatildeo o aparecimento (e com ele a experiecircncia) percebe-se ao

mesmo tempo como acompanhando-se a si mesmo a partir do exterior percebendo as condi-

ccedilotildees da sua proacutepria geacutenese ndash como algo que estaacute perfeitamente a par do que havia antes de si

do que haacute fora de si do que haveraacute depois de si etc

Vendo bem eacute esta peculiar conformaccedilatildeo do estatuto do aparecimento e da experiecircncia

que faz que tanto um quanto a outra tenham o caraacutecter de qualquer coisa equivalente agrave fita de

Moumlbius Tambeacutem aqui o envolvente acaba por se revelar envolvido e vice-versa o interior

acaba por se revelar exterior ndash e o exterior interior Sem esta peculiar propriedade de estatuto

o aparecimento estaria se assim se pode dizer fechado no proacuteprio curso de si Com a proprie-

dade em causa como que dispara para laacute de si e adquire a extraordinaacuteria dimensatildeo que lhe

vem de embarcarmos na sua pretensatildeo de validade

De resto eacute tambeacutem este aspecto da pretensatildeo de validade que determina a semelhanccedila

que antes assinalaacutemos entre a proacutepria vida e aquilo que caracteriza a fita de Moumlbius

Como vincaacutemos atraacutes a proacutepria vida tem o caraacutecter de uma fita de Moumlbius ndash eacute ao mes-

mo tempo a) algo soacute de cada um uacutenico um pequeniacutessimo recanto do que haacute e b) algo que en-

volve e conteacutem em si tudo aquilo que se lhe pode contrapor (esse todo com que eacute posto em

contraste como pequeniacutessima parte)

Mas vendo bem essa peculiar semelhanccedila entre a vida e a fita de Moumlbius radica pro-

priamente nesta componente nuclear da pretensatildeo de validade de que habitualmente se reveste

o aparecimento e a experiecircncia em que estamos constituiacutedos Sem ela a semelhanccedila com a fi-

ta de Moumlbius (e a extraordinaacuteria ldquoexplosatildeordquo o extraordinaacuterio disparo de dimensotildees que como

vimos lhe estatildeo associados) desapareceria

passar pela presenccedila de outros sujeitos e por outro lado tambeacutem eacute possiacutevel que o reconhecimento de

outros pontos de vista e a constituiccedilatildeo de algo correspondente ao que estaacute em jogo no conceito de sen-

sus communis natildeo passe necessariamente pela tese de que haacute algo completamente independente do

acesso ou do aparecimento que se tem e que se acha acha adequadamente captado nesse acesso ou

aparecimento Acontece eacute que na forma como habitualmente estaacute constituiacutedo o campo de aparecimen-

to em que nos temos e a experiecircncia que se faz em noacutes domina um estatuto (sc uma pretensatildeo de vali-

dade) marcado pela convergecircncia desses dois aspectos

239

sect29

A nossa como uma modalidade de experiecircncia entre muitas outras modalidades de expe-

riecircncia possiacuteveis ndash Como a experiecircncia que temos eacute sempre jaacute uma experiecircncia do campo

perceptivo uma experiecircncia do campo de familiaridade e uma experiecircncia do exterior do

campo de familiaridade

Vistos estes aspectos de variaccedilatildeo da experiecircncia devemos sublinhar uma vez mais que

uma consideraccedilatildeo isolada de cada um deles tal como a que fizemos pode fazer perder de vis-

ta o seu caraacutecter como que ldquointeractivordquo

Quer dizer por um lado cada um dos aspectos que vimos tem a configuraccedilatildeo que se

procurou desenhar mas por outro lado a interacccedilatildeo dos aspectos entre si faz que eles se

ldquomoldemrdquo por assim dizer uns aos outros

Assim uma anaacutelise mais circunstanciada deveria seguir detidamente a) como eacute que os

diferentes aspectos referido se cruzam entre si (como eacute que um determinado alfabeto de det-

erminaccedilotildees com um determinado teor com um cardinal x ou y etc se relaciona com o des-

dobramento da experiecircncia em planos como eacute que a organizaccedilatildeo da multiplicidade das deter-

minaccedilotildees com uma determinada forma se relaciona com as pressotildees que estatildeo de cada vez

em causa e quais satildeo elas como eacute que a circunstacircncia de a experiecircncia ser experiecircncia de fac-

tos de significados ou ser mista se relaciona com ela ter o caraacutecter de ser uma experiecircncia do

sensus proprius ou do sensus communis etc) b) como eacute que os diferentes aspectos se cruzam

numa totalidade (ie como eacute que se relacionam entre todos e que forma complexa adquire a

interacccedilatildeo e a influecircncia de todos os aspectos qual a relaccedilatildeo de forccedilas entre todos eles etc)

Tudo isto abre a perspectiva para perceber melhor dois aspectos fundamentais

O primeiro tem que ver com aquilo que podemos descrever como o efeito complexo

destas diversas variaacuteveis

Aquilo que acabamos de descrever equivale a um complexo sistema de dependecircncia

em relaccedilatildeo a muacuteltiplos factores O tipo de aparecimento e a experiecircncia com que estamos fa-

miliarizados dependem simultaneamente de todos os factores referidos ndash quer dizer de uma

determinada conformaccedilatildeo de todos os factores referidos

240

Assim tambeacutem o aparecimento com que estamos familiarizados e a experiecircncia de

que costumamos ter noccedilatildeo soacute tecircm lugar se cada um (quer dizer se todos) os factores que re-

ferimos estiverem ldquosintonizadosrdquo de um determinado modo

Para que o aparecimento ndash e a experiecircncia ndash passem a ter uma conformaccedilatildeo significati-

vamente diferente basta haver alteraccedilotildees significativas em relaccedilatildeo a cada uma das variaacuteveis

De sorte que mesmo soacute em relaccedilatildeo a uma delas (quer dizer mesmo soacute por via da variaccedilatildeo de

uma delas) satildeo possiacuteveis muito diversas conformaccedilotildees do que aparece e da experiecircncia que se

tem

Isso significa enfim que o modo de aparecimento e a modalidade de experiecircncia com

que estamos familiarizados natildeo satildeo os uacutenicos possiacuteveis mas satildeo apenas uma modalidade de

aparecimento e uma modalidade de experiecircncia entre muitas outras possiacuteveis Tambeacutem pode-

mos exprimir isto dizendo que o tipo de aparecimento e o tipo de experiecircncia com que esta-

mos familiarizados correspondem como que a um ponto de vista entre muitos outros pontos

de vista possiacuteveis ndash e ao dizermos isto estamos a utilizar o conceito de ldquoponto de vistardquo de tal

modo que em vez de exprimir cada uma das diversas ldquocolocaccedilotildeesrdquo por que o nosso olhar po-

de passar designa pelo contraacuterio a totalidade dessas colocaccedilotildees ndash como se todas fossem jus-

tamente um ponto de vista que consente alternativa outro modo muito diferente de ver as

coisas

Um outro conceito que se presta a expressar bem este estado de coisas eacute o conceito de

anamorfose

Entendemo-lo aqui no sentido em que designa uma imagem ou uma figura que soacute eacute re-

conheciacutevel a partir de um dado ponto de vista no sentido mais comum do termo (ie a partir

de uma dada colocaccedilatildeo do observador) Com efeito aquilo que aqui descrevemos equivale a

qualquer coisa desta ordem

Todo o aparecimento e toda a experiecircncia com que temos familiaridade soacute podem ter

lugar a partir de uma determinada conformaccedilatildeo do olhar (a partir de uma determinada ldquosinto-

nizaccedilatildeordquo dos vaacuterios factores ou das diversas variaccedilotildees a que fizemos referecircncia) E isto de tal

modo que o que neste caso faz a ldquocolocaccedilatildeo do observadorrdquo eacute toda a multiplicidade das variaacute-

veis referidas

Visto este primeiro ponto podemos transitar para a consideraccedilatildeo do segundo

Poderia acontecer que todo o campo daquilo que nos aparece e da experiecircncia a que

temos acesso correspondesse apenas a um ponto de vista entre muitos outros mas de tal modo

241

que a combinaccedilatildeo das variaacuteveis fosse exactamente a mesma para todo o campo do que nos

aparece (sc para todo o campo da experiecircncia que tem lugar em noacutes)

Mas como acabamos de ver eacute justamente isso que natildeo sucede

O que marca o campo de aparecimento e de experiecircncia em que damos connosco eacute um

vincado fenoacutemeno de anisotropia diferentes componentes desse campo (diferentes regiotildees

dele) tecircm caracteriacutesticas diferentes a modificaccedilatildeo da posiccedilatildeo dentro do campo traz consigo

uma modificaccedilatildeo das caracteriacutesticas do que aparece da experiecircncia que se tem etc E isto de

tal modo que a variaccedilatildeo aqui em causa tem que ver com as variaacuteveis referidas

Por outras palavras quando aqui falamos do facto de o aparecimento ou da experiecircn-

cia com que estamos familiarizados ter algo de correspondente a uma ldquoanamorfoserdquo e resultar

de uma certa ldquosintonizaccedilatildeordquo de cada uma das variaacuteveis que passaacutemos em revista eacute preciso ter

em conta que pelo menos no caso de algumas dessas variaacuteveis tal sintonizaccedilatildeo natildeo eacute sim-

ples antes corresponde a uma certa ldquodistribuiccedilatildeordquo dentro da variaacutevel em causa

Eacute disso que se trata quando se fala de anisotropia de acuidade de anisotropia de su-

bordinaccedilatildeo de anisotropia de importacircncia da diferenccedila na composiccedilatildeo das unidades colec-

tivas de determinaccedilotildees agrave medida que se passa do ldquocentrordquo para a periferia do campo de

apresentaccedilatildeo etc

Dito de outro modo pelo menos em larga medida a combinaccedilatildeo de que faz sentido fa-

lar eacute uma combinaccedilatildeo de combinaccedilotildees

Natildeo cabe aqui analisar nada disto em pormenor mas importa ver ao menos alguns as-

pectos mais essenciais

Em primeiro lugar o campo de aparecimento estaacute sempre constituiacutedo de tal modo que

tem no seu centro um foco de incidecircncia

Podemos falar de ldquofoco de incidecircnciardquo em sentido mais estrito e em sentido mais lato

Em sentido mais estrito o foco de incidecircncia cai sobre uma parte de um quadro per-

ceptivo (de tal modo que a mancha perceptiva de que se dispotildee excede o proacuteprio foco ndash e este

move-se dentro da proacutepria ldquomancha perceptivardquo)

Em sentido mais lato podemos dizer que o foco do campo de aparecimento e o seu

centro eacute em regra um campo perceptivo ndash uma determinada ldquomancha perceptivardquo ou me-

lhor aquele campo de realidade a aparecer que de cada vez se acha coberto pelos constantes

movimentos do foco perceptivo (que de cada vez explora uma determinada aacuterea da realidade)

242

Eacute verdade que esta descriccedilatildeo tem o seu quecirc de inexacto pois tambeacutem pode acontecer

que o foco se desloque para fora da esfera perceptiva Podemos fazer presentificaccedilotildees viajar

no espaccedilo e no tempo deixar-nos absorver nas presentificaccedilotildees que fazemos de tal modo que

quase esquecemos onde estamos etc Mas por outro lado sendo assim nunca desaparece a

situaccedilatildeo perceptiva ndash ie natildeo deixa de acontecer que a proacutepria presentificaccedilatildeo estaacute situada

num meio perceptivo que nesse sentido continua a constituir o centro de todo o campo de

aparecimento

Eacute este fenoacutemeno que temos em vista quando falamos do campo perceptivo como cen-

tro do aparecimento e dizemos que em noacutes o aparecimento estaacute sempre centrado num campo

perceptivo

Este campo perceptivo pode ser de maiores ou menores dimensotildees se estamos fecha-

dos numa sala longe da janela reduz-se agrave dimensatildeo da sala se subimos ao alto de um monte

ou a uma torre toma proporccedilotildees muito maiores (mesmo que esse ganho de dimensotildees seja

compensado por um conjunto de perdas na forma como acompanhamos as coisas de tal modo

que a maior abrangecircncia se paga com um correspondente aumento do grau de abreviatura)

Poreacutem o ponto que aqui importa vincar eacute que de todo o modo (independentemente dessa va-

riaccedilatildeo) haacute sempre qualquer coisa como um campo perceptivo e o campo perceptivo estaacute sem-

pre de algum modo no centro daquilo que se tem apresentado

Essa posiccedilatildeo central traduz-se precisamente em privileacutegio no que diz respeito agrave acui-

dade no que diz respeito agrave importacircncia (mesmo que efemeramente o campo perceptivo em

que de cada vez se estaacute presida de certo modo a tudo o mais) no que diz respeito a nexos de

subordinaccedilatildeo etc

Dito de outro modo havendo vaacuterias componentes de acentuaccedilatildeo e perda de acentua-

ccedilatildeo (componentes que potildeem aquilo que aparece numa posiccedilatildeo toacutenica ou pelo contraacuterio numa

posiccedilatildeo mais ou menos aacutetona) o campo perceptivo estaacute ao mesmo tempo marcado por vaacuterios

factores de tonicidade (pelo efeito conjugado de vaacuterios factores de tonicidade) ndash de tal modo

que eacute se assim se pode dizer multiplamente acentuado ou multiplamente toacutenico

Ora sendo assim um dos aspectos decisivos da constituiccedilatildeo do campo perceptivo eacute o

facto de ter sempre jaacute um caraacutecter empiacuterico

Natildeo se trata de algo tido na perspectiva da mera αἴσθησις ou da mera μνήμη Trata-se

sempre de estados-de-coisas-permanentes compreendidos numa oacuteptica de antecipaccedilatildeo (e

numa oacuteptica de antecipaccedilatildeo possibilitada pela projecccedilatildeo do caraacutecter regulado do que aparece

243

ndash quer dizer possibilitada pela projecccedilatildeo de leis pela constituiccedilatildeo de qualquer coisa como

uma natureza etc) Mesmo que se trate de um campo perceptivo inteiramente novo logo o

primeiro contacto com ele jaacute estaacute marcado por antecipaccedilotildees empiacutericas que ldquovecircm de traacutesrdquo e

que o conteuacutedo perceptivo confirma ou infirma

Por outro lado toda a travessia de campos perceptivos estaacute silenciosamente marcada

por uma constante actividade de registo votada agrave identificaccedilatildeo de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ

πράγματος e agrave sua conversatildeo em projecccedilotildees empiacutericas

Por uma parte isso traduz-se na constante colaccedilatildeo entre os nossos dados e as projec-

ccedilotildees que jaacute vinham de traacutes (todo o patrimoacutenio empiacuterico jaacute montado em resultado da travessia

perceptiva precedente) Mas por outra parte traduz-se tambeacutem na actividade de transferecircncia

a) desse patrimoacutenio empiacuterico filtrado pelas novas doaccedilotildees (modificado pela forma como elas

o confirmam ou infirmam) e b) dos novos dados recolhidos ndash falamos aqui da transferecircncia

mediante a qual tudo isso interfere na continuaccedilatildeo e forma o patrimoacutenio tido em conta nas

αἰσθήσεις subsequentes72

Visto isto importa agora ter presente que este ldquocentrordquo do campo de aparecimento

nunca o esgota

Em condiccedilotildees normais todos os campos perceptivos com que temos contacto estatildeo si-

tuados no meio de algo constituiacutedo de outra forma um campo de familiaridade

Se porventura acontece que um campo perceptivo assume funccedilotildees sem estar situado

no meio de um campo de familiaridade jaacute constituiacutedo entatildeo sente-se imediatamente a falta do

campo de familiaridade (o que mostra que a nossa perspectiva excede sempre o campo per-

ceptivo e estaacute sempre jaacute voltada para ndash e como que sintonizada por ndash um para-laacute do campo

perceptivo que eacute o campo de familiaridade)

Este excesso sobre o campo perceptivo tem que ver com dois complexos de fenoacuteme-

nos intimamente ligados um ao outro mas natildeo idecircnticos

72

Tocamos aqui um facto importante que natildeo cabe desenvolver mas que eacute de assinalar ao contraacuterio

do que pode parecer no nosso caso a retenccedilatildeo nunca eacute apenas uma retenccedilatildeo de αἰσθήματα mas antes

sempre jaacute uma retenccedilatildeo de ἐμπειρία e de αἰσθήματα em ordem agrave ἐμπειρία Quer dizer o que eacute transfe-

rido do momento do tempo T1 para T2 e de T2 para T3 etc natildeo eacute soacute o conteuacutedo perceptivo ou um con-

junto de μνῆμαι mas um patrimoacutenio de ἐμπειρία

244

Por um lado quaisquer que sejam as suas dimensotildees nunca um campo perceptivo

aparece como toda a realidade como esgotando aquilo que haacute Ou dito de outro modo nunca

um campo perceptivo aparece como o ldquomundordquo

Mais tambeacutem natildeo acontece que algum campo perceptivo apareccedila em regime de total

neutralidade relativamente a ser igual ao ldquomundordquo ou natildeo Sucede antes que todos os campos

perceptivos costumam aparecer como fontes de uma realidade mais vasta (e na verdade muito

mais vasta) tanto no espaccedilo quanto no tempo

Por outro lado nunca o nosso interesse se esgota num campo perceptivo sem ldquoligarrdquo a

nada mais Sucede antes que a nossa relaccedilatildeo com qualquer campo perceptivo estaacute sempre do-

minada pela preocupaccedilatildeo de o situar num quadro mais vasto

Isso tem que ver com o facto de a nossa vida natildeo caber num uacutenico campo perceptivo

ser como que sobredeterminada em relaccedilatildeo a qualquer campo perceptivo ter um quadro de

interesses ndash uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila ndash que ultrapassa cada campo perceptivo faz de ca-

da campo perceptivo um momento de algo muito mais vasto etc

Ora a pergunta que resulta do que vimos eacute como estaacute constituiacutedo o campo de familia-

ridade (de que eacute que eacute feito etc) se natildeo corresponde agraves percepccedilotildees que se vatildeo tendo (se se si-

tua fora do campo perceptivo que de cada vez se tem)

Em primeiro lugar importa ter presente que o campo de familiaridade eacute como que o

resiacuteduo da travessia perceptiva que foi feita

Os percursos perceptivos realizados no passado (percursos que em geral se distin-

guem por terem explorado mais intensamente certas zonas da realidade) natildeo desaparecem sem

deixar rasto deixam um resiacuteduo

Esse ldquoresiacuteduordquo tem a forma de estados-de-coisas-permanentes ndash resulta de projecccedilotildees

empiacutericas feitas a partir de percepccedilotildees passadas e que convertem a realidade testemunhada

nas percepccedilotildees passadas em algo constante ndash que natildeo se limita a ter ldquoestado laacuterdquo quando foi

percepcionado antes eacute visto como ldquoestando laacuterdquo agora que natildeo se tem testemunho perceptivo

dele e havendo de ldquoestar laacuterdquo depois mesmo que natildeo seja testemunhado perceptivamente

Nesse sentido ao contraacuterio do que sucede com o campo perceptivo (que eacute moldado

pela forma empiacuterica mas natildeo resulta exclusivamente da experiecircncia) o campo de familiari-

dade tem uma constituiccedilatildeo exclusivamente empiacuterica O campo de familiaridade ldquoestaacute laacuterdquo por

forccedila da ἐμπειρία ndash pura e simplesmente natildeo figura num ponto de vista esteacutesico ou mesmo

245

mneacutesico natildeo teria lugar se natildeo fosse a ἐμπειρία e deixaria de ldquoestar laacuterdquo se a ἐμπειρία ldquofosse

abaixordquo

Em virtude do fenoacutemeno de inserccedilatildeo do campo perceptivo em meios de realidade jaacute

perceptivamente explorados a forma habitual da presenccedila dos campos perceptivos estaacute deci-

sivamente marcada pelo facto de eles se acharem rodeados pela projecccedilatildeo de estados-de-coi-

sas-permanentes correspondentes ao resiacuteduo das percepccedilotildees passadas

Estamos numa sala mas sabemos que a porta daacute para um corredor que o corredor daacute

para um aacutetrio que o aacutetrio daacute para uma escada e assim sucessivamente

Vendo bem o campo de familiaridade pode estar presente fundamentalmente de duas

formas

Por um lado pode estar presente em regime de presentificaccedilatildeo

Focamos quase-perceptivamente o corredor o aacutetrio a escada etc Quase que os esta-

mos a ver ndash que eacute como se os estiveacutessemos a ver

Esta forma de presenccedila tem as caracteriacutesticas habituais da presentificaccedilatildeo enquanto

modalidade de presenccedila temaacutetica de um objecto o foco de incidecircncia tem uma lotaccedilatildeo limita-

da e as diferentes componentes do campo de familiaridade satildeo passadas em revista sucessiva-

mente

Por outro lado o campo de familiaridade natildeo estaacute presente apenas quando eacute focado

quando se o presentifica expressamente

Mesmo que natildeo presentifiquemos expressamente nada do campo de familiaridade ele

estaacute presente em co-apresentaccedilatildeo inexpliacutecita ndash ou para dizer como Husserl em co-apresenta-

ccedilatildeo horizontal

Eacute precisamente por causa desta co-apresentaccedilatildeo horizontal inexpliacutecita que o campo

perceptivo nunca esgota o mundo

Dito de outro modo eacute por causa desta co-apresentaccedilatildeo horizontal inexpliacutecita do campo

de familiaridade que nunca um campo de apresentaccedilatildeo nos aparece como uma clareira de al-

go conhecido no meio de uma total incoacutegnita O campo perceptivo estaacute sempre situado (eacute in-

dispensaacutevel por mais que ele esteja situado num quadro de familiaridade mais vasto do que

ele mesmo ndash num quadro de familiaridade relativo ao que rodeia agravequilo que encontramos

quando saiacutemos de onde estamos agravequilo a que podemos recorrer etc)

246

Natildeo haacute duacutevida de que muitas vezes parecemos completamente absortos no campo per-

ceptivo em que nos encontramos sem qualquer relaccedilatildeo com o seu exterior Mas essa absorccedilatildeo

ndash aparentemente total ndash no campo perceptivo natildeo resulta de uma total ausecircncia de contacto

com aquilo que se situa para laacute dele

Na verdade resulta exactamente do contraacuterio do facto de o exterior do campo percep-

tivo ndash o campo de familiaridade ndash estar tatildeo dominado e tatildeo adquirido que nem precisa de se

prestar qualquer atenccedilatildeo a ele

Quer dizer uma coisa eacute um campo perceptivo completamente fechado em si outra coi-

sa eacute um campo perceptivo privado de campo de familiaridade (o que experimentamos quando

vamos para um siacutetio completamente novo o campo de familiaridade ainda natildeo se acha orga-

nizado e estamos mobilizados para o montar) outra coisa ainda eacute um campo perceptivo inse-

rido num meio completamente domesticado (ou que de todo o modo produz a impressatildeo de

estar completamente domesticado) pela pertenccedila a um campo de familiaridade

A presenccedila horizontal do campo de familiaridade reflecte-se no proacuteprio aspecto imedi-

ato do campo perceptivo ndash para dizer com Kant eacute um dos ldquojuiacutezos ocultosrdquo que determinam o

teor do proacuteprio campo perceptivo

E vendo bem acontece tambeacutem nos proacuteprios processos quase perceptivos quando

pensamos no corredor no aacutetrio etc a estrutura da apresentaccedilatildeo temaacutetica que eacute a presentifica-

ccedilatildeo faz que de cada vez apareccedila soacute o corredor o aacutetrio etc Mas o corredor o aacutetrio etc natildeo

aparecem como conteuacutedos absolutos desligados nem como clareiras jaacute determinadas no meio

de um campo totalmente incoacutegnito Sucede antes que aparecem inexplicitamente situados na

co-apresentaccedilatildeo puramente horizontal do campo de familiaridade em que se inserem

Esta presenccedila permanente do campo de familiaridade eacute decisiva para a conformaccedilatildeo

de todo o campo de aparecimento em que damos connosco

Com efeito embora o campo perceptivo goze do protagonismo que antes pusemos em

relevo (e que faz dele como dissemos o centro do que nos aparece) a verdade eacute que esse

protagonismo eacute efeacutemero

Ora o seu caraacutecter efeacutemero natildeo significa apenas que agora o protagonista eacute x depois

y depois z (como se no momento em que eacute protagonista natildeo houvesse nenhum factor de res-

triccedilatildeo do seu protagonismo) O ponto decisivo estaacute em que o protagonismo do campo percep-

tivo estaacute sempre jaacute em relaccedilatildeo a algo que o excede agrave organizaccedilatildeo global num campo de fa-

247

miliaridade ndash que eacute se assim se pode dizer o verdadeiro protagonista ou o centro natildeo efeacuteme-

ro do campo de aparecimento em que de cada vez damos connosco

Por outras palavras o protagonismo do campo perceptivo que de cada vez se nos im-

potildee eacute um protagonismo sempre jaacute em tracircnsito para algo mais ndash e o terminus ad quem desse

tracircnsito eacute qualquer coisa como uma organizaccedilatildeo permanente (uma organizaccedilatildeo estaacutevel) a que

corresponde um territoacuterio de realidade com as dimensotildees e a complexidade necessaacuterias a essa

organizaccedilatildeo permanente

Tudo isto significa um complexo quadro de relaccedilotildees entre o campo perceptivo o cam-

po de familiaridade e o resto do campo de aparecimento em que damos connosco

Por um lado o campo perceptivo tem uma presenccedila muito mais niacutetida e um teor muito

mais definido do que o campo de familiaridade E como vimos isto natildeo eacute soacute vaacutelido para a

presenccedila horizontal ou para a co-apresentaccedilatildeo inexpliacutecita do campo de familiaridade tambeacutem

eacute vaacutelido para a sua presenccedila expliacutecita ou temaacutetica no fenoacutemeno da presentificaccedilatildeo

Por outro lado o campo de familiaridade tem uma presenccedila mais niacutetida e um teor

mais definido do que tudo aquilo que se situa para laacute dele

Acontece que no que diz respeito a nexos de subordinaccedilatildeo e agrave anisotropia de impor-

tacircncia as relaccedilotildees satildeo mais complexas

Com efeito se eacute verdade que o campo de familiaridade aparece como uma espeacutecie de

periferia do campo perceptivo esse protagonismo do campo perceptivo eacute como vimos tran-

sitoacuterio e natildeo impede que em uacuteltima anaacutelise o ldquonegoacuteciordquo do proacuteprio campo perceptivo seja

sempre jaacute o campo de familiaridade ndash ie algo muito mais amplo do que o proacuteprio campo per-

ceptivo enquanto tal

Quer dizer em certo sentido podemos dizer que o campo de familiaridade tem uma

posiccedilatildeo adjectiva relativamente ao campo perceptivo ndash mas num outro sentido podemos dizer

exactamente o contraacuterio

Este quadro de complexidade tem que ver com o caraacutecter dinacircmico daquilo que presi-

de agrave organizaccedilatildeo destas estruturas enquanto o que preside agrave organizaccedilatildeo destas estruturas eacute

absolutamente irredutiacutevel a uma sucessatildeo de campos perceptivos pura e simplesmente justa-

postos uns aos outros

Contudo sendo assim eacute bastante claro que o resto do campo de apresentaccedilatildeo aparece

numa posiccedilatildeo subalternizada relativamente a este nuacutecleo complexo (o nuacutecleo simultaneamen-

248

te formado pelo campo perceptivo e pelo campo de familiaridade) Tudo o mais tem o caraacutec-

ter de qualquer coisa como um fundo relativamente ao qual este nuacutecleo desempenha funccedilotildees

de forma Da forma complexa que tentaacutemos descrever a toacutenica estaacute posta efemeramente no

campo perceptivo e de forma mais permanente no campo de familiaridade

Algo muito semelhante se verifica tambeacutem no que diz respeito agrave anisotropia de impor-

tacircncia

Por um lado haacute um protagonismo provisoacuterio do campo perceptivo (ou de todo o mo-

do no foco em sentido mais estrito) Eacute isso que de cada vez faz que se revista ndash transitoria-

mente ndash de uma importacircncia nuclear

Poreacutem essa importacircncia nuclear de caraacutecter provisoacuterio natildeo coincide necessariamente

com o protagonismo ndash com o maior grau de importacircncia ndash na ordem permanente A estrutura

do aparecimento em que nos temos eacute precisamente tal que a tensatildeo de importacircncia ou a ten-

satildeo de natildeo-indiferenccedila natildeo estaacute fechada no quadro de ldquounidades atoacutemicasrdquo de aparecimento

ndash eacute uma tensatildeo de maior focirclego ou de maior envergadura que abrange um grande nuacutemero de

unidades

Eacute verdade que o que estamos a descrever natildeo envolve uma total coincidecircncia ndash por

exemplo natildeo eacute verdade que todo o campo de familiaridade esteja revestido do mesmo niacutevel

de importacircncia Sucede justamente o contraacuterio e os contornos da gradaccedilatildeo de importacircncia (do

que eacute centro e do que eacute periferia em mateacuteria de importacircncia) natildeo coincidem necessariamente

com o contraste entre familiaridade e natildeo-familiaridade (ou com os contrastes entre vaacuterios niacute-

veis de familiaridade)

No entanto isso natildeo impede que grosso modo se possa dizer que o nuacutecleo de impor-

tacircncia costuma situar-se no territoacuterio do campo de familiaridade (dentro das suas fronteiras

com as complexas relaccedilotildees entre o campo perceptivo e o seu exterior com variaccedilotildees do grau

de importacircncia entre os diversos sectores do proacuteprio campo de familiaridade etc) De tal

modo que a posiccedilatildeo perifeacuterica do exterior do campo de familiaridade em relaccedilatildeo ao campo

de familiaridade estaacute tambeacutem associada a uma global posiccedilatildeo perifeacuterica do exterior do cam-

po de familiaridade no que diz respeito agrave tensatildeo de natildeo-indiferenccedila ou ao grau de importacircn-

cia

Desenha-se assim o que podemos descrever como o territoacuterio principal do apareci-

mento ndash e tambeacutem o territoacuterio principal da experiecircncia

249

A caracteriacutestica fundamental desse territoacuterio eacute a sua irredutibilidiade aos campos per-

ceptivos que se vatildeo sucedendo como protagonistas imediatos

Nesse sentido haacute como que uma ilusatildeo de oacuteptica no reconhecimento da dimensatildeo do

aparecimento na verdade ela eacute muito maior do que tende a parecer Com efeito tende a pa-

recer que o territoacuterio do aparecimento se reduz aos campos perceptivos actuais

O que estamos a tentar pocircr em evidecircncia eacute que natildeo eacute assim o quadro do aparecimento

tem sempre jaacute uma amplitude muito maior ndash e o que estaacute sempre em causa eacute a unidade muito

mais ampla do campo de familiaridade enquanto o campo de familiaridade tem a dimensatildeo

proporcionada ao negoacutecio mais abrangente da vida

Numa palavra o aparecimento eacute sempre um aparecimento relativo agrave vida (ao em-cau-

sa da vida)

Ora isso reflecte-se justamente na estrutura da experiecircncia

Vimos anteriormente que o contacto com o campo perceptivo tem um caraacutecter tal que

estaacute sempre jaacute a recolher elementos para a projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes no

quadro do campo perceptivo (quer dizer para a conformaccedilatildeo do campo perceptivo como um

campo de estados-de-coisas-permanentes) Mas importa ter presente que isso natildeo eacute tudo

Na verdade a travessia perceptiva funciona permanentemente como fonte de consti-

tuiccedilatildeo de resiacuteduos na forma de um campo de familiaridade ndash do campo a que eacute confiada a

funccedilatildeo de situar os proacuteprios campos perceptivos

Quer dizer a travessia perceptiva natildeo tem como terminus a quo αἰσθήσεις ou μνῆμαι

soltas nem tem como terminus ad quem αἰσθήσεις soltas Caracteriza-se em vez disso por ter

como terminus a quo um campo de familiaridade jaacute constituiacutedo e por ter sempre como termi-

nus ad quem a confirmaccedilatildeo e o enriquecimento do campo de familiaridade que tem a situar

os campos perceptivos por que se vai passando

Tambeacutem se pode dizer o seguinte aquilo a que chamaacutemos a transferecircncia empiacuterica (o

que eacute transmitido de um momento de tempo T a um momento de tempo T1 e de T1 a T2 etc) eacute

fundamentalmente uma transferecircncia do campo de familiaridade ndash uma transferecircncia de todo

o territoacuterio principal do aparecimento

Em suma esteja-se ou natildeo ciente disso a experiecircncia que tem lugar em noacutes eacute funda-

mentalmente a experiecircncia da constituiccedilatildeo de um campo de familiaridade (de uma espeacutecie de

clareira para habitaccedilatildeo)

250

Mas isto natildeo eacute tudo ndash e em certo sentido pode ateacute induzir em erro

Com efeito isto pode sugerir erradamente que o campo de aparecimento em que da-

mos connosco se reduz ao campo de familiaridade ndash ao resiacuteduo global da travessia perceptiva

de cada vez jaacute feita convertido num complexo de estados de coisas permanentes

Ora essa sugestatildeo eacute erroacutenea porque o campo de aparecimento natildeo se reduz ao campo

de familiaridade vai sempre jaacute para laacute dele excede-o ndash e na verdade excede-o a perder de vis-

ta

Para perceber bem como eacute assim basta considerar o seguinte complexo de factos

Por um lado nunca o proacuteprio campo de familiaridade nos aparece como a totalidade

do que haacute (como o ldquomundordquo) ndash nem sucede que o campo de familiaridade nos apareccedila em re-

gime de total neutralidade relativamente a ser a totalidade do que haacute ou natildeo

Sucede antes que o proacuteprio campo de familiaridade aparece sempre como parte de um

quadro de realidade mais amplo ndash e na verdade muito mais amplo

Por outro lado sendo assim de modo nenhum acontece que o proacuteprio campo de fami-

liaridade nos apareccedila como uma clareira desbravada domesticada no meio de uma completa

incoacutegnita (de algo completamente em aberto a respeito do qual absolutamente nada se sabe ndash

de tal modo que pode ser o que quer que seja e ter caracteriacutesticas de que natildeo se faz a mais pe-

quena ideia)

A questatildeo que se potildee eacute a de saber como pode ser assim

Os limites do campo de familiaridade parecem ser os limites de tudo aquilo por que al-

guma vez passou a travessia perceptiva Mas se eacute assim fica por saber como eacute que pode

acontecer que o campo de familiaridade natildeo apareccedila como um clareira inscrita maciccedilo de to-

tal incoacutegnita

A resposta passa uma vez mais pelo fenoacutemeno com que nos confrontamos neste es-

tudo o fenoacutemeno da experiecircncia

Com efeito a projecccedilatildeo de estados de coisas permanentes por via da τοῦ ὁμοίου με-

τάβασις natildeo se ateacutem aos limites do campo de familiaridade (natildeo se ateacutem aos limites do terri-

toacuterio principal do aparecimento dentro dos quais a projecccedilatildeo empiacuterica mesmo que natildeo tenha

dados para nada do que projecta tem ainda assim algum contacto perceptivo com aquilo a

que diz respeito)

251

O facto fundamental com que aqui estamos a lidar tem que ver com este caraacutecter ousa-

do se assim se pode dizer da projecccedilatildeo empiacuterica em virtude do qual natildeo soacute a) comporta al-

guma margem de fixaccedilotildees fora do terreno em que houve alguma doaccedilatildeo mas na verdade b) se

aventura afoitamente pelo exterior do campo de familiaridade ndash de tal modo que se virmos

bem verificamos que a esmagadora maioria das nossas projecccedilotildees empiacutericas se situa justa-

mente no terreno inteiramente desprovido de qualquer doaccedilatildeo

Quer dizer a esmagadora maioria do campo de aparecimento a que temos acesso eacute

constituiacutedo precisamente por este tipo de projecccedilotildees empiacutericas que domesticamos por pura

projecccedilatildeo domiacutenios de realidade que com dimensotildees extraordinaacuterias e que em mateacuteria de

doaccedilatildeo satildeo absolutamente terra incoacutegnita

Se a perspectiva que noacutes temos sobre o exterior do campo de familiaridade fosse com-

pletamente aberta e correspondesse efectivamente a uma admissatildeo de total incoacutegnita (de total

em aberto) teriacuteamos de aceitar a possibilidade de jaacute ao virar da esquina aonde nunca fomos

haver jaacute algo em tudo radicalmente diferente do que quer que seja que conhecemos ndash da mes-

ma forma que teriacuteamos de aceitar a possibilidade a) de que o resto da realidade fosse pura e

simplesmente a repeticcedilatildeo do que conhecemos e tambeacutem a possibilidade b) de poder muito

bem natildeo haver laacute nada Isto eacute uma perspectiva efectivamente aberta cruzaria em si num pe-

culiar oxiacutemoro (num olhar dilacerado pelo conflito destas trecircs possibilidades) a possibilidade

de ser tudo radicalmente diferente a possibilidade de ser tudo rigorosamente igual e a possi-

bilidade de pura e simplesmente natildeo haver nada

Mas se virmos o que efectivamente se passa connosco na nossa relaccedilatildeo com o exterior

do campo de familiaridade verificamos que natildeo eacute nada disto

Por um lado haacute uma firme convicccedilatildeo de haver laacute algo

Por outro lado esta firme convicccedilatildeo de haver laacute algo estaacute acompanhada por uma firme

convicccedilatildeo sobre o teor do que laacute haacute ndash mais precisamente pela convicccedilatildeo que choca com as

duas possibilidades que acabaacutemos de citar a possibilidade de ser tudo radicalmente diferente

do que conhecemos a partir do campo de familiaridade e a possibilidade de ser tudo exacta-

mente igual

Ou seja a perspectiva que temos sobre o teor daquilo que haacute no exterior do campo de

familiaridade estaacute marcada ao mesmo tempo pelo domiacutenio de duas teses ou determinaccedilotildees

fundamentais a) uma tese que nega a possibilidade de ser tudo radicalmente diferente (quer

252

dizer uma decidida tese de homogeneidade) e b) uma tese que nega a possibilidade de ser tu-

do completamente igual (quer dizer uma decidida tese de variaccedilatildeo)

Esta formulaccedilatildeo pode parecer abstracta e contraditoacuteria Mas vendo bem corresponde

ao modelo de uma combinaccedilatildeo dos dois aspectos (a homogeneidade e a variaccedilatildeo) numa deter-

minada relaccedilatildeo de forccedilas entre eles que se traduz em qualquer coisa deste geacutenero no exterior

do campo de familiaridade haveraacute coisas no espaccedilo e no tempo com identidade diacroacutenica ndash

e de facto haveraacute povoaccedilotildees bosques campos montes vales rios lagos etc Isso corres-

ponde agrave tese de homogeneidade Mas natildeo se sabe precisamente que coisas no espaccedilo e no

tempo providas de identidade diacroacutenica etc ndash natildeo se sabe definidamente que povoaccedilotildees

que bosques que campos que montes que vales que rios que lagos ndash com que caracteriacutesti-

cas e em que distribuiccedilatildeo concreta etc Isso corresponde agrave tese de variaccedilatildeo

A partir daqui percebe-se melhor que eacute que estaacute em causa quando se fala de uma deter-

minada relaccedilatildeo de forccedilas entre as duas teses a combinaccedilatildeo entre homogeneidade e variaccedilatildeo

que preenche o exterior do campo de familiaridade estaacute marcada por uma prevalecircncia da ho-

mogeneidade sobre a variaccedilatildeo por uma subordinaccedilatildeo desta agravequela

O que caracteriza a relaccedilatildeo entre a homogeneidade e a variaccedilatildeo eacute que esta uacuteltima se

produz no quadro da homogeneidade ndash como variaccedilatildeo dentro da homogeneidade (como va-

riaccedilatildeo da homogeneidade)

Dito de outro modo a variaccedilatildeo que estaacute prevista na forma como olhamos para o exte-

rior do campo de familiaridade diz respeito agrave especificaccedilatildeo de geacuteneros fixados em regime de

projecccedilatildeo de homogeneidade ndash de tal modo que haacute homogeneidade quanto agrave forma fundamen-

tal de constituiccedilatildeo da realidade em causa e variaccedilatildeo a respeito das suas caracteriacutesticas espe-

ciacuteficas e natildeo o inverso

Mais vendo bem na verdade nem sequer faz sentido falar de duas teses ligadas por

um nexo de relaccedilatildeo de forccedilas entre elas De facto trata-se de uma uacutenica tese ndash a tese de homo-

geneidade

Com efeito a margem de variaccedilatildeo que eacute projectada para o exterior do campo de fami-

liaridade eacute precisamente aquela que se regista no campo de familiaridade (ou para ser mais

preciso aquela que se regista na travessia perceptiva)

A travessia perceptiva regista traccedilos comuns que satildeo a base da projecccedilatildeo de homoge-

neidade (da τοῦ ὁμοίου μετάβασις) ndash as πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος de que fala Aristoacute-

teles Mas natildeo satildeo soacute os traccedilos comuns no sentido mais estrito que constituem ponto de par-

253

tida da projecccedilatildeo de homogeneidade Com efeito o proacuteprio padratildeo de variaccedilatildeo registado na

travessia perceptiva reflecte uma instacircncia de πολλαὶ μνῆμαι τοῦ αὐτοῦ πράγματος que forma

a base de uma projecccedilatildeo

Em suma ao mesmo tempo que servem de base a projecccedilotildees mais especiacuteficas (a leis

de antecipaccedilatildeo relativas a estes e agravequeles tipos de realidades a indiviacuteduos a classes a geacutene-

ros a geacuteneros mais amplos etc) as πολλαὶ μνῆμαι que estatildeo na origem da ἐμπειρία consti-

tuem um fundo de afinidade global entre todas as αἰσθήσεις ndash fundo esse de que faz parte o

proacuteprio padratildeo de variaccedilatildeo (enquanto este constitui justamente um dos traccedilos de afinidade

global entre todas as αἰσθήσεις)

Tambeacutem podemos exprimir isto dizendo que haacute um conjunto de determinaccedilotildees que

satildeo registadas como constantes ou como invariaacuteveis em toda a travessia perceptiva ndash e entre

estas constantes ou entre estes elementos invariaacuteveis conta-se tambeacutem um padratildeo de varia-

ccedilatildeo

Assim tudo aquilo que de algum modo eacute registado como traccedilo de afinidade global ndash

ou seja como constante invariaacutevel na travessia perceptiva ndash entra numa projecccedilatildeo de homoge-

neidade em relaccedilatildeo ao exterior do campo de familiaridade de sorte que se forma numa lei em-

piacuterica de homogeneidade entre o campo de familiaridade e o seu exterior Esta projecccedilatildeo em-

piacuterica de homogeneidade faz do exterior do campo de familiaridade um campo de homogenei-

dade com caracteriacutesticas tais que mesmo sem nos apercebermos disso tambeacutem este exterior

estaacute domesticado e vemos as coisas como se tiveacutessemos a seu respeito uma perspectiva sobe-

rana73

Mais ainda poderia acontecer que fosse assim mas de tal modo que a projecccedilatildeo em-

piacuterica de homogeneidade sobre o exterior do campo de familiaridade fosse soacute ateacute certo ponto

tivesse limites ou estivesse sujeita a uma qualquer claacuteusula de ldquotravagemrdquo

De facto natildeo eacute assim

73

Eacute claro que o proacuteprio contraste com o campo de familiaridade faz que aquilo que mais chama a aten-

ccedilatildeo no seu exterior seja o que natildeo sabemos a seu respeito ndash o desconhecido Os traccedilos mais comuns

como que se apagam natildeo chamam agrave atenccedilatildeo tecircm o caraacutecter inconspiacutecuo de tudo aquilo que eacute ineren-

te que eacute constante e faz de meio Mas isso natildeo impede que estejam laacute na forma como olhamos para o

exterior do campo de familiaridade ndash e que na verdade tenham uma posiccedilatildeo subordinante em relaccedilatildeo

ao desconhecido e faccedilam deste desconhecido algo muito diferente (muito mais domesticado) do que

uma absoluta incoacutegnita

254

O que caracteriza a projecccedilatildeo de homogeneidade eacute pelo contraacuterio o facto de natildeo ter

absolutamente nada que a trave e que na ausecircncia do que quer que seja que a trave a des-

ligue ou a limite vale em regime de propagaccedilatildeo indefinida estendendo-se de forma perfeita-

mente infrene pelo exterior do campo de familiaridade

Como qualquer outra projecccedilatildeo empiacuterica tambeacutem esta tem o seu regime proacuteprio de

confirmaccedilatildeo ou infirmaccedilatildeo Neste caso a confirmaccedilatildeo ou infirmaccedilatildeo passa pelo facto de uma

parte significativa do desenvolvimento da nossa proacutepria travessia perceptiva dizer respeito agrave

aquisiccedilatildeo de αἰσθήσεις relativas a domiacutenios de realidade com que antes natildeo se tinha qualquer

contacto

Por outras palavras uma parte significativa das αἰσθήσεις que se vatildeo adquirindo cor-

responde como que a incursotildees no exterior do campo de familiaridade

Ora estas incursotildees em que se ldquoprovardquo do exterior do campo de familiaridade caracte-

rizam-se precisamente pela forma como em regra confirmam a antecipaccedilatildeo de homogeneidade

ndash tanto no que diz respeito agrave antecipaccedilatildeo de semelhanccedila no sentido mais estrito do termo

quanto no que diz respeito agrave antecipaccedilatildeo de um padratildeo de variaccedilatildeo

Isto produz um extraordinaacuterio reforccedilo da evidecircncia de validade da projecccedilatildeo de homo-

geneidade e faz que tendamos a esquecer a extraordinaacuteria desproporccedilatildeo entre a exiacutegua mar-

gem do exterior do campo de familiaridade que vem a ser adquirida em toda a nossa traves-

sia perceptiva e a amplitude indefinidamente extensa da esfera de aplicaccedilatildeo da projecccedilatildeo de

homogeneidade

Ora de facto haacute essa extraordinaacuteria desproporccedilatildeo e vendo bem uma radical diferenccedila

entre a) o dado que vem confirmar que a projecccedilatildeo de homogeneidade feita em relaccedilatildeo agravequilo

a que diz respeito era uma projecccedilatildeo ldquocertardquo e b) a projecccedilatildeo relativa a todo o resto do exte-

rior do campo de familiaridade ndash que continua a natildeo ter dado nenhum que a apoie e por isso

estaacute continuamente exposta agrave possibilidade de ser falsa

De tudo isto resulta claro que a esmagadora maioria do que temos apresentado a) se

situa fora do campo de familiaridade (e tanto quer dizer como vimos fora do territoacuterio prin-

cipal do aparecimento e da experiecircncia) e b) tem um grau de determinaccedilatildeo muito inferior

agravequele que caracteriza esse territoacuterio (ou para sermos mais precisos tem um niacutevel de acuida-

de muito inferior tanto no que diz respeito ao niacutevel de determinaccedilatildeo com que se apresenta

quanto no que diz respeito agrave exigecircncia de determinaccedilatildeo a que eacute sujeito)

255

Estamos agora em condiccedilotildees de perceber melhor a afirmaccedilatildeo de que o niacutevel de deter-

minaccedilatildeo do campo de familiaridade eacute muito inferior ao niacutevel de determinaccedilatildeo do campo per-

ceptivo mas por outra parte eacute muito superior ao do exterior do campo de familiaridade

Eacute claro que nos dois casos ndash tanto no do campo de familiaridade quanto no do seu ex-

terior ndash o que eacute apresentado satildeo apenas determinaccedilotildees geneacutericas muito menos diferenciadas

do que aquilo que aparece no campo perceptivo Mas isso natildeo impede que as determinaccedilotildees

que preenchem o exterior do campo de familiaridade sejam muito menos diferenciadas do que

as determinaccedilotildees que preenchem o proacuteprio campo de famliaridade

Sendo assim nada disto impede que por outro lado o complexo de determinaccedilotildees im-

plicado na projecccedilatildeo de homogeneidade que preenche o exterior do campo de familiaridade

seja ainda assim bastante rico ndash quer dizer envolva um grande nuacutemero de determinaccedilotildees

Vale o que dissemos tudo aquilo que a travessia perceptiva regista como invariaacutevel e

constante eacute ldquoarrastadordquo na projecccedilatildeo de homogeneidade entre o campo de familiaridade e o

seu exterior e posto a valer como determinaccedilatildeo deste exterior

Ora para isto acontecer natildeo eacute necessaacuteria nenhuma consciecircncia expliacutecita das determi-

naccedilotildees em causa da operaccedilatildeo de projecccedilatildeo que estaacute a ter lugar a seu respeito de que vemos o

exterior do campo de familiaridade preenchido com essas determinaccedilotildees etc trata-se de uma

operaccedilatildeo inteiramente realizada de forma confusa na ausecircncia de qualquer consciecircncia distin-

ta das determinaccedilotildees em questatildeo E apesar de tudo isso de modo nenhum diminui ou enfra-

quece o caraacutecter absolutamente decidido e a eficaacutecia desta projecccedilatildeo (o facto de vermos se-

gundo ela e de o seu resultado estar sempre jaacute a preencher ndash e assim a domesticar o exterior

do campo de familiaridade)

Em suma tenhamos ou natildeo consciecircncia disso o campo de aparecimento em que esta-

mos constituiacutedos tem a forma de um colossal arredondamento ou de uma colossal operaccedilatildeo

de amostragem que toma como base os dados recolhidos na travessia perceptiva (que consti-

tuem na verdade uma muito exiacutegua base de amostragem) e os converte em princiacutepios de um

reconhecimento global da realidade com uma amplitude absolutamente desproporcionada re-

lativamente agrave base de que parte e em que se sustenta Nos termos e pelo motivos que procu-

raacutemos pocircr em evidecircncia eacute a experiecircncia (o fenoacutemeno da projecccedilatildeo empiacuterica) que potildee tudo is-

to de peacute

Neste momento haacute que tocar um ponto que natildeo cabe discutir demoradamente mas que

eacute indispensaacutevel abordar

256

Vimos numa secccedilatildeo anterior que haacute a possibilidade de o aparecimento em que damos

connosco ter uma constituiccedilatildeo transcendental de tal modo que todas as suas fixaccedilotildees (todas

as suas determinaccedilotildees todas as suas teses) descendem de um nuacutecleo de fixaccedilatildeo universal

Se assim for isso significa que a proacutepria experiecircncia tem lugar no quadro de qualquer

coisa como uma antecipaccedilatildeo transcendental em cujo quadro e sob cujo efeito ela proacutepria se

move ndash de tal modo que diz respeito apenas agrave aquisiccedilatildeo de perspectivas especiacuteficas sempre jaacute

genericamente moldadas por este nuacutecleo de fixaccedilatildeo transcendental

Por outro lado se for assim isso parece significar que o preenchimento do exterior do

campo de familiaridade natildeo resulta de projecccedilotildees empiacutericas ndash na verdade jaacute estaacute assegurado

pelo caraacutecter universal da projecccedilatildeo transcendental74

Isso significa se natildeo estamos em erro o seguinte

Mesmo que naturalmente haja uma significativa diferenccedila entre o exterior do campo

de familiaridade estar exclusivamente preenchido por projecccedilotildees empiacutericas ou ter um fundo

74

Natildeo vamos discutir aqui este problema natildeo soacute porque natildeo caberia fazecirc-lo mas tambeacutem porque na

verdade natildeo eacute indispensaacutevel para se estabelecer o fundamental do que aqui estaacute em causa Com efeito

mesmo que se verifique que o modelo transcendental eacute que capta bem a forma como estaacute constituiacutedo o

aparecimento em que damos connosco isso significa que independentemente de qualquer experiecircncia

jaacute haacute um nuacutecleo de determinaccedilotildees a preencher o exterior do campo de familiaridade mas natildeo impede

que ao mesmo tempo o exterior do campo de familiaridade tambeacutem esteja preenchido por uma pro-

jecccedilatildeo de homogeneidade como aquela que aqui descrevemos E eacute relativamente faacutecil verificar que de

facto mesmo que o aparecimento tenha uma constituiccedilatildeo transcendental o preenchimento do exterior

do campo de familiaridade natildeo estaacute feito apenas por determinaccedilotildees transcendentais mas tambeacutem por

determinaccedilotildees empiacutericas resultantes da travessia perceptiva e de uma projecccedilatildeo empiacuterica de homoge-

neidade com as caracteriacutesticas que tentaacutemos pocircr em evidecircncia Assim se considerarmos por exemplo

as situaccedilotildees postas em cena po Swift nas Viagens de Gulliver mais propriamente na primeira e na se-

gunda viagens verificamos que o que estaacute em causa nessas situaccedilotildees eacute uma variaccedilatildeo do padratildeo dimen-

sional das realidades no espaccedilo (ou mais precisamente uma variaccedilatildeo do padratildeo dimensional de unida-

des colectivas de determinaccedilotildees) Este padratildeo dimensional natildeo tem nada de transcendental ndash depende

de doaccedilotildees (do facto de os objectos as unidades colectivas de determinaccedilotildees estarem constituiacutedas

com um determinado recorte ndash que consente alternativas como justamemente sucede em Lilliput e

Brobdingnag) Mas por outro lado o que eacute claramente mostrado quando Gulliver chega a Lilliput ou

Brobdingnag eacute que o padratildeo dimensional registado como invariaacutevel ou constante na travessia percepti-

va eacute integrado na projecccedilatildeo de homogeneidade De sorte que mesmo que natildeo tenhamos qualquer

consciecircncia disso no momento em que entramos em contacto com Lilliput ou Brobdingnag haacute a sur-

presa resultante do choque entre a atnecipaccedilatildeo do padratildeo dimensional que estaacute inexplicitamente posto

a valer para tudo e o nosso padratildeo dimensional que reina respectivamente em Lilliput e Brobdingnag

E o mesmo se pode verificar a respeito de outras determinaccedilotildees empiacutericas

257

de preenchimento transcendental o resultado que em uacuteltima anaacutelise adveacutem em qualquer

destes casos eacute em grande parte idecircntico porque de todo o modo a haver um preenchimento

transcendental ele estaacute acompanhado por uma espessa camada de determinaccedilotildees resultantes

de projecccedilatildeo empiacuterica De sorte que mesmo nessas condiccedilotildees vale exactamente o que disse-

mos o que quer que seja que a travessia perceptiva registe como constante ou invariaacutevel eacute au-

tomaticamente integrado no patrimoacutenio de determinaccedilotildees e teses que a projecccedilatildeo de homoge-

neidade potildee a valer para o exterior do campo de familiaridade

Visto isto estamos agora em condiccedilotildees de perceber melhor como agrave diferenccedila relativa

ao niacutevel de determinaccedilatildeo do que aparece se vecircm juntar outras diferenccedilas relevantes o exterior

do campo de familiaridade natildeo eacute soacute incomparavelmente menos definido ou incomparavel-

mente mais confuso do que o campo de familiaridade ndash na verdade estaacute numa posiccedilatildeo global-

mente subordinada a ele

Em certo sentido o exterior do campo de famliaridade tem o caraacutecter de um fundo

(como que de um cenaacuterio ou de um uacuteltimo plano) que ajuda a determinar a forma relativa-

mente agrave qual serve de fundo mas de tal modo que se esgota nessa funccedilatildeo de apoio Trata-se de

uma periferia (de uma periferia esmagadoramente mais ampla do que o territoacuterio principal do

aparecimento relativamente ao qual ocupa essa posiccedilatildeo perifeacuterica mas que o caraacutecter centra-

do da oacuteptica que nos domina potildee longe e numa relaccedilatildeo de forccedilas com o centro do aparecimen-

to que eacute a inversa das respectivas dimensotildees)

Por outro lado tudo isto mostra tambeacutem que a subalternizaccedilatildeo do exterior do campo

de familiaridade natildeo passa apenas pelo nexo de subordinaccedilatildeo em virtude do qual tudo o que o

rodeia tem um caraacutecter como que adjectivo em relaccedilatildeo ao campo de familiaridade

De facto este nexo de subalternizaccedilatildeo estaacute associado a um nexo de diminuiccedilatildeo da im-

portacircncia

Como vimos nada impede que o proacuteprio campo de familiaridade esteja organizado

numa multiplicidade de planos de maior e menor importacircncia

Mas sendo assim o contraste entre o campo de familiaridade e o exterior (sc o campo

de homogeneidade que o rodeia) eacute tambeacutem um contraste quanto ao niacutevel de importacircncia o

exterior do campo de familiaridade tem em regra iacutendices de importacircncia mais fracos do que

aqueles que afectam mesmo os sectores menos relevantes do campo de familiaridade

Naturalmente que haacute aqui qualquer coisa como um decrescendo com fronteiras cada

vez menos vincadas e com progressivo esbatimento dos contrastes agrave medida que a tensatildeo de

258

relevacircncia se vai aproximando dos niacuteveis iacutenfimos Mas isso natildeo impede que mesmo assim a

falta de relevacircncia e o apagamento seja mais acentuado e mais maciccedilo no exterior do campo

de familiaridade do que dentro das suas fronteiras

Em certo sentido pode-se inclusivamente dizer que uma das principais fontes da rele-

vacircncia do exterior do campo de familiaridade eacute o caraacutecter ldquodinacircmicordquo da relaccedilatildeo com ele ndash a

instabilidade das fronteiras entre os dois domiacutenios

Expliquemo-nos melhor sobre este ponto

Vimos que a relaccedilatildeo com o campo perceptivo tem um caraacutecter dinacircmico ndash trata-se de

uma travessia (o que antes era centro deixa de o ser o foco perceptivo passa a estar ocupado

por um outro campo de realidade etc)

A constituiccedilatildeo do proacuteprio campo de familiaridade passa por este fenoacutemeno ndash quer di-

zer a) o campo de familiaridade resulta dele (natildeo haveria diferenccedila entre o campo perceptivo

e o campo de familiaridade se natildeo estivessemos sujeitos a esta peculiar mobilidade) e b) o

campo de familiaridade estaacute organizado em funccedilatildeo desta mobilidade ndash em permanente anteci-

paccedilatildeo dela e da travessia que lhe corresponde

Mas por outro lado mesmo que o campo de familiaridade tenha que ver com um fe-

noacutemeno de relativa sedentariedade do olhar que se fixa num territoacuterio natildeo estaacute excluiacuteda

(mas de facto sempre prevista por antecipaccedilatildeo empiacuterica) a possibilidade de sair do campo de

familiaridade e de entrar em contacto com o seu exterior

Isso pode acontecer por diversas razotildees entre as quais se encontram aquelas que tecircm

que ver com o interesse (com a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila) e com a possibilidade de aquilo de

que se precisa ficar justamente no exterior do campo de familiaridade (de tal modo que estaacute

constituiacutedo em campo de familiaridade possiacutevel)

Ora eacute esta potencialidade do exterior do campo de familiaridade ndash o facto de aquilo

que se situa nele poder vir a entrar no territoacuterio principal do aparecimento ou a converter-se

em parte do territoacuterio principal do aparecimento que lhe confere ainda assim um potencial de

importacircncia O exterior do campo de familiaridade teria ainda menos relevo se natildeo houvesse

este jogo de possibilidades ndash esta tensatildeo da permuta possiacutevel no que diz respeito agraves funccedilotildees

que pode vir a desempenhar na vida

Tudo isto leva-nos enfim a um ponto que ainda falta considerar e que diz respeito agrave

constituiccedilatildeo da experiecircncia e ao nexo entre a experiecircncia (a experiecircncia que constantemente

259

se estaacute a fazer a experiecircncia que constantemente se estaacute a urdir) e estes diversos factores do

horizonte de aparecimento em que damos connosco

Observaacutemos anteriormente que tal como tem lugar em noacutes a travessia perceptiva to-

ma a forma da experiecircncia e desenvolve uma permanente actividade de colaccedilatildeo empiacuterica (ie

de colaccedilatildeo relativa agrave constituiccedilatildeo da ἐμπειρία de colaccedilatildeo relativa agrave tessitura empiacuterica)

Num primeiro passo referimos que essa colaccedilatildeo tem que ver com uma permanente re-

colha de dados relativos ao campo perceptivo ao confronto entre esses dados e as antecipa-

ccedilotildees empiacutericas que jaacute os precediam (as antecipaccedilotildees empiacutericas a montante) agrave sua confirma-

ccedilatildeo ou infirmaccedilatildeo e agrave obtenccedilatildeo daquilo que se pode descrever como as projecccedilotildees empiacutericas a

jusante das percepccedilotildees em causa ndash tudo isto no que diz respeito ao campo perceptivo de que

de cada vez se trata

Num segundo passo procuraacutemos pocircr evidecircncia que esta contiacutenua actividade de reco-

lha e preparaccedilatildeo de projecccedilotildees empiacutericas natildeo se cinge ao campo perceptivo sucede em vez

disso que a travessia perceptiva estaacute continuamente envolvida no trabalho de entretecimento

das projecccedilotildees empiacutericas relativas ao campo de familiaridade de tal modo que funciona ao

mesmo tempo como terminus ad quem e terminus a quo dessa urdidura

Mas o que agora ganha contornos relativamente niacutetidos eacute que algo de equivalente se

passa tambeacutem em relaccedilatildeo ao proacuteprio exterior do campo de familiaridade e agrave projecccedilatildeo de

homogeneidade

Sem que tenhamos consciecircncia disso a ἐμπειρία estaacute permanentemente a processar o

registo do que eacute absolutamente constante ou invariaacutevel na travessia perceptiva e a produzir a

sua obra de corroboraccedilatildeo ou transfiguraccedilatildeo da projecccedilatildeo de homogeneidade que tem por ba-

se esse registo

O conceito mais comum de ldquoexperiecircnciardquo e a miopia de que padece em relaccedilatildeo agravequilo

que efectivamente constitui a experiecircncia fazem que associemos o fenoacutemeno da experiecircncia

a) a algo de mais ou menos imediato proacuteximo e b) a algo mais ou menos avulso Mas o que

aqui se desenha eacute justamente que natildeo eacute assim

Por um lado a experiecircncia que tem lugar em noacutes natildeo eacute apenas relativa ao mais ime-

diato como acabamos de ver a sua aacuterea estende-se ao mais longiacutenquo

260

Por outro lado a experiecircncia que tem lugar em noacutes tambeacutem natildeo eacute apenas relativa a as-

pectos avulsos na forma que acabamos de tentar pocircr em foco tem pelo contraacuterio ndash e tem per-

manentemente ndash um caraacutecter total

Eacute por isso que a referecircncia aos trecircs registos em que se articula o campo do apareci-

mento (o campo perceptivo o campo de familiaridade e o exterior do campo de familiarida-

de) natildeo desenha apenas o enquadramento da experiecircncia tal como tem lugar em noacutes (natildeo de-

senha apenas a morfologia do meio em que tem lugar etc)

De facto eacute muito mais do que isso a experiecircncia que temos eacute sempre simultaneamen-

te uma experiecircncia do campo perceptivo uma experiecircncia do campo de familiaridade e uma

experiecircncia do exterior do campo de familiaridade ndash e nunca eacute experiecircncia de menos do que

isso

Isto tem que ver aliaacutes com o fenoacutemeno fundamental que estaacute no centro da nossa in-

vestigaccedilatildeo a experiecircncia tem em noacutes um caraacutecter tal que eacute sempre experiecircncia da vida

Eacute isso que estaacute aqui em causa

Por um lado a experiecircncia eacute sempre experiecircncia da totalidade assim constituiacuteda (do

campo perceptivo do campo de familiaridade e do exterior do campo de familiaridade sus-

tentando entre si os nexos ou a articulaccedilatildeo que procuraacutemos pocircr em evidecircncia)

Por outro lado a totalidade assim constituiacuteda (do campo perceptivo do campo de fa-

miliaridade e do exterior do campo de familiaridade sustentando entre si os nexos ou a articu-

laccedilatildeo que procuraacutemos pocircr em evidecircncia) eacute a forma daquilo a que chamamos vida ndash ou como

veremos no seguimento um dos aspectos fundamentais que caracteriza a forma daquilo a que

chamamos vida

Por distracccedilatildeo podemos ndash e na verdade ateacute tendemos a ndash deixar despercebido este as-

pecto e a compreender o horizonte do aparecimento e o campo da experiecircncia com que esta-

mos em contacto a) como se natildeo tivesse dimensotildees tatildeo amplas como aquilo que procuraacutemos

mostrar e b) como se fosse homogeacuteneo

Mas vendo bem o campo de aparecimento com que lidamos tem sempre a extraordi-

naacuteria amplitude que procuraacutemos vincar ndash e a proacutepria experiecircncia tem sempre ndash tem em cada

momento ndash a amplitude total que dissemos

A proacutepria vida tem essa amplitude

261

Por outro lado o que caracteriza esta imensa multiplicidade eacute o estar articulada da for-

ma que tentaacutemos descrever ndash e tanto quer dizer ao mesmo tempo o facto de estar constituiacuteda

como uma multiplicidade centrada O campo de aparecimento tem em noacutes a forma de uma

multiplicidade centrada a experiecircncia tem a forma de uma multiplicidade centrada

A proacutepria vida tem a forma de uma multiplicidade centrada

Ou para sermos mais precisos o aparecimento a experiecircncia e a vida tecircm a forma do

complexo centramento que passa ao mesmo tempo a) pelo centramento transitoacuterio no campo

perceptivo e b) pelo centramento permanente no campo de familiaridade que constitui como

dissemos o territoacuterio principal (do aparecimento da experiecircncia e da vida) Tudo isto de tal

modo que o nuacutecleo assim constituiacutedo (o nuacutecleo do campo perceptivo e do campo de familiari-

dade) eacute o nuacutecleo de uma periferia indefinidamente extensa preenchida por determinaccedilotildees cor-

respondentes a uma global projecccedilatildeo de homogeneidade

Com isto fica mais nitidamente desenhado aquilo que tiacutenhamos em vista quando se di-

zia a) que o aparecimento e a experiecircncia com que estamos familiarizados correspondem a um

ponto de vista (a uma conformaccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia entre muitas outras pos-

siacuteveis a qualquer coisa como uma anamorfose) e b) que esse ponto de vista (essa conforma-

ccedilatildeo particular essa anamorfose) tambeacutem passa por uma determinada articulaccedilatildeo entre os vaacute-

rios sectores do campo de aparecimento ou do campo de experiecircncia para que estamos aber-

tos

Ao referir este uacuteltimo ponto dissemos que a combinaccedilatildeo especiacutefica a que corresponde

o aparecimento e a experiecircncia que noacutes temos natildeo passa apenas por uma determinada sintoni-

zaccedilatildeo dos diversos factores que passaacutemos em revista mas tambeacutem pelo facto de a sintoniza-

ccedilatildeo dos diferentes factores (acuidade grau de confusatildeo nexos de subordinaccedilatildeo importacircncia

etc) mudar consoante os sectores do campo de aparecimento e de experiecircncia com que esta-

mos em contacto ndash o qual estaacute marcado por uma multiplicidade de anisotropias sobrepostas

que tambeacutem fazem a sua especificidade (quer dizer tambeacutem correspondem a uma forma pe-

culiar de combinaccedilatildeo ndash como dissemos a uma combinaccedilatildeo de combinaccedilotildees)

Assim a organizaccedilatildeo do campo de aparecimento num campo perceptivo num campo

de familiaridade e num exterior do campo de familiaridade com estas caracteriacutesticas ndash esta

peculiar forma a) de articulaccedilatildeo ou segmentaccedilatildeo do campo global do aparecimento e da expe-

riecircncia e b) de nexo entre os segmentos assim constituiacutedos ndash representa uma combinaccedilatildeo entre

262

outras possiacuteveis (a que corresponderiam quadros de aparecimento e de experiecircncia muito sig-

nificativamente diferentes daquele com que estamos familiarizados)

Acontece que estamos tatildeo profundamente habituados a esta peculiar forma de organi-

zaccedilatildeo do aparecimento e da experiecircncia (tatildeo dominados por ela e pelo que nos parece ter de

oacutebvia) e estamos ao mesmo tempo tatildeo distraiacutedos em relaccedilatildeo agravequilo que a constitui (tatildeo inad-

vertidos relativamente aos diversos factores que a compotildeem) que natildeo nos apercebemos do

que tem de contingente e de passiacutevel de alternativa Ora de facto como procuraacutemos pocircr em

evidecircncia trata-se de uma forma muito particular de aparecimento e de experiecircncia que em

muitos aspectos consente muitas alternativas

263

SEGUNDA PARTE

sect30

A tentativa de remontar agrave origem da morfologia e da sintaxe da experiecircncia como tenta-

tiva condenada ndash A morfologia de toda a experiecircncia daacute lugar a uma sintaxe de toda a ex-

periecircncia

O nosso proacuteximo passo deve procurar aprofundar o complexo de elementos fixos que

intervecircm de forma decisiva na conformaccedilatildeo da experiecircncia da vida Mas antes de avanccedilar-

mos haacute que fazer algumas precisotildees sobre a natureza daquilo que procuraacutemos pocircr em evidecircn-

cia

Para um olhar menos atento as tentativas de descriccedilatildeo ou anaacutelise que levaacutemos a cabo

nas secccedilotildees anteriores podem prestar-se a ser confundidas com um levantamento da origem

da experiecircncia Ora devemos sublinhar que natildeo se trata aqui de realizar nenhum levantamen-

to dessa ordem ndash que a perspectiva que procuramos desenvolver nada tem de geneacutetica

Eacute certo que o que estaacute em curso eacute a identificaccedilatildeo dos elementos que desempenham um

papel significativo na constituiccedilatildeo da experiecircncia da vida (se assim se pode dizer a sua mor-

fologia e a sua sintaxe) Poreacutem isso natildeo significa de modo nenhum que nos debrucemos so-

bre a questatildeo da respectiva origem desses elementos

Se por um lado o que aqui estaacute em curso eacute a identificaccedilatildeo de um conjunto de estrutu-

ras que marcam a experiecircncia da vida (cuja consideraccedilatildeo eacute por isso indispensaacutevel se se pro-

curar compreender como eacute que ela estaacute constituiacuteda) por outro lado natildeo procuramos de modo

nenhum determinar de onde vecircm estas estruturas (como emergem a partir da sua ausecircncia o

que as edifica se se constituem todas ao mesmo tempo ou se haacute precedecircncia de umas em rela-

ccedilatildeo agraves outras etc)

O que pretendemos vincar eacute justamente que onde damos connosco estamos sempre jaacute

para caacute dessas estruturas ndash a jusante delas sob o seu efeito etc

264

Por outras palavras o que caracteriza a posiccedilatildeo em que nos encontramos ou a perspec-

tiva que noacutes temos eacute o facto de natildeo se tratar de uma perspectiva neutra de um puro espectador

cognitivo em posiccedilatildeo de assistir (na oacuteptica soberana de um puro espectador cognitivo) agrave sua

proacutepria geacutenese ndash de tal modo que acompanha adequadamente sem qualquer impedimento ou

distracccedilatildeo as etapas do desenvolvimento que acabou por levar agrave perspectiva em que se acha

O que se passa eacute algo muito diferente

O proacuteprio olhar que realiza o inqueacuterito aqui em causa estaacute irreversivelmente cunhado

pelas estruturas que tentamos pocircr em relevo ndash tem-nas sempre jaacute instaladas em si e vecirc sempre

jaacute segundo elas De onde resulta que qualquer tentativa de remontar agrave respectiva ausecircncia e de

reconstituir o que havia antes do seu advento estaacute irremediavelmente condenada

Por um lado o olhar que realiza o inqueacuterito estaacute condenado a ilusotildees de oacuteptica se natildeo

se der conta disso (ie se natildeo der conta de como projecta tacitamente na reconstituiccedilatildeo das

etapas mais elementares da escala de desenvolvimento de perspectivas os modos de olhar re-

sultantes daquilo que nessa escala oculta posiccedilotildees mais cimeiras) De sorte que na reconsti-

tuiccedilatildeo do ldquomenosrdquo jaacute potildee inadvertidamente o ldquomaisrdquo

Vimos este ponto ao analisar em que medida temos ou natildeo temos acesso a um ponto

de vista puramente esteacutesico ou puramente mneacutesico E o que importa vincar aqui eacute que exacta-

mente o mesmo se aplica mutatis mutandis agraves estruturas que agora estamos a considerar e ao

que poderaacute ter estado na sua origem

Por outro lado se se apercebe destas dificuldades o olhar que realiza o inqueacuterito estaacute

condenado a natildeo tentar montar nenhuma reconstituiccedilatildeo geneacutetica a perceber que o plano em

que se encontra pode muito bem ter um ldquoantesrdquo e um ldquopara laacute de sirdquo mas que o proacuteprio olhar

em causa estaacute privado de qualquer efectivo acesso a esse ldquoantes de sirdquo ou ldquopara laacute de sirdquo que

teria de estar em causa numa perspectiva geneacutetica

Assim pode dizer-se que natildeo procuramos aqui averiguar que ldquoexperiecircnciardquo ndash que tra-

vessia de perspectiva ndash leva na sua origem ao quadro de ldquoexperiecircncia da vidardquo que aqui ten-

tamos descrever natildeo procuramos aqui determinar que saltos ou descontinuidades satildeo galga-

dos nesse processo ndash que caminho leva do ldquozerordquo ateacute agravequilo que aqui procuramos pocircr em fo-

co

Tocamos o que se pode descrever como um quadro ndash um quadro de morfologia e sin-

taxe da experiecircncia da vida ndash que se caracteriza por estar ldquosempre jaacute caacuterdquo

265

Ateacute onde remonta o nosso contacto com aquilo que pertence agrave esfera em que damos

connosco todo o horizonte jaacute estaacute marcado pela presenccedila desses elementos (estruturados des-

te modo determinados por esta composiccedilatildeo etc) Nesse sentido pode-se falar de qualquer

coisa como um ldquosempre jaacuterdquo faacutectico ndash e nesse sentido de um ldquoa priorirdquo faacutectico

Quer dizer desde o seu comeccedilo que o curso da experiecircncia da vida (ie todo o curso

da vida enquanto tem sempre a forma de uma experiecircncia da vida) se move neste quadro ndash no

quadro resultante da conjugaccedilatildeo dos elementos que aqui procuramos pocircr em foco Eacute nesse

sentido que falamos de um ldquoa priorirdquo

Mas por outro lado falamos desse a priori apenas no sentido de todas as nossas pers-

pectivas se situarem sempre jaacute a jusante da interposiccedilatildeo destes elementos estruturais num ter-

ritoacuterio jaacute cunhado por eles

Natildeo podemos excluir a) que o quadro que assim procuramos identificar e descrever te-

nha a sua origem num processo de aquisiccedilatildeo de perspectiva b) que esse processo tambeacutem

possua o caraacutecter de uma travessia e que por isso c) numa acepccedilatildeo muito lata tambeacutem possa

ser qualificado como ldquoexperiecircnciardquo

Pelas razotildees que dissemos natildeo estamos em condiccedilotildees de reconstituir nada disso de

forma adequada Nesse sentido mesmo que expressatildeo possa parecer contraditoacuteria falamos de

um ldquoa priori faacutecticordquo (de uma forma peculiar de a priori que tem esse caraacutecter precisamente

por causa da finitude da nossa perspectiva)

Feita esta advertecircncia estamos agora em condiccedilotildees de avanccedilar para a consideraccedilatildeo

dos outros aspectos que eacute indispensaacutevel ter em atenccedilatildeo se se quer compreender minimamente

como se acha constituiacuteda a experiecircncia da vida

O que acabamos de ver nas secccedilotildees anteriores tem um caraacutecter meramente preliminar

e natildeo faz mais do que ldquolevantar uma ponta do veacuteurdquo Contudo ndash se o propoacutesito eacute tentar perce-

ber um pouco melhor como estaacute constituiacutedo em noacutes o fenoacutemeno da experiecircncia ou como toda

a experiecircncia que temos eacute sempre jaacute de facto experiecircncia da vida ndash apesar de tudo o que

tem de sumaacuterio e incompleto o que acabamos de ver aponta jaacute a direcccedilatildeo a seguir

Um dos aspectos que ficam claramente desenhados a partir do que se viu eacute precisa-

mente o facto de a experiecircncia se definir sempre por um complexo de elementos (como os di-

versos aspectos que sucessivamente consideraacutemos no capiacutetulo anterior) que conjuntamente fi-

xam o modo como a experiecircncia se produz e aquilo que dela resulta ndash aquilo de que a expe-

riecircncia eacute experiecircncia ou o que aparece na experiecircncia

266

Foi esse antes do mais o sentido das anaacutelises a que procedemos nas secccedilotildees anterio-

res mesmo que toda a experiecircncia tenha sempre enquanto experiecircncia as caracteriacutesticas que

procuraacutemos pocircr em evidecircncia na primeira parte ela pode ser coisas muito diferentes consoan-

te aquilo que se passa com os diferentes aspectos que passaacutemos em revista

Assim as muacuteltiplas diferentes experiecircncias possiacuteveis diferem quanto agrave sua amplitude

mas definem-se sempre por uma determinada amplitude contrastam quanto ao alfabeto de

determinaccedilotildees a que recorrem mas definem-se sempre por envolver um determinado alfabeto

de determinaccedilotildees podem envolver soacute coordenaccedilatildeo ou tambeacutem subordinaccedilatildeo ndash e diferentes

formas de subordinaccedilatildeo ndash mas definem-se sempre tambeacutem por ter uma determinada confor-

maccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo eou de subordinaccedilatildeo das suas determinaccedilotildees etc

Quer dizer tudo o que dissemos mesmo que esteja focado na chamada de atenccedilatildeo pa-

ra a variabilidade ndash ie mesmo que a sua principal preocupaccedilatildeo tenha sido chamar a atenccedilatildeo

para o facto de a) haver muito diversas experiecircncias possiacuteveis de b) o contraste entre elas

passar por diversas frentes de diferenccedilas e de c) em cada frente dessas (ie para cada variaacute-

vel) haver uma multiplicidade de conformaccedilotildees ndash aponta ao mesmo tempo para qualquer coi-

sa como uma constacircncia de elementos em referecircncia agrave qual se situa a variaccedilatildeo

Na verdade os passos que demos ateacute agora admitem que se fale de algo como uma

morfologia de toda a experiecircncia

Por ldquomorfologia de toda a experiecircnciardquo entende-se a multiplicidade destes factores

que conjuntamente moldam toda a experiecircncia ndash que moldam cada experiecircncia ndash e que satildeo

por assim dizer inerentes agrave sua constituiccedilatildeo Isto de tal modo que eacute justamente o diferente

preenchimento ou a diferente modulaccedilatildeo ndash a diferente contracccedilatildeo ndash de cada um destes facto-

res fixos e inerentes que produz as variaccedilotildees de que se falou (e nessa medida produz as vaacute-

rias conformaccedilotildees que a experiecircncia pode assumir)

Ora eacute este quadro morfoloacutegico de factores constantes e de variaccedilatildeo na determinaccedilatildeo

deles ndash enquanto cada um tem de estar presente (e tem de estar presente com um determinado

valor com uma determinada fixaccedilatildeo de si etc) mas pode precisamente variar quanto agrave fixa-

ccedilatildeo (quanto ao ldquovalorrdquo) que concretamente assume ndash que se trata de tentar perceber um pouco

melhor na continuaccedilatildeo

Tratar-se-aacute em suma de aperfeiccediloar o levantamento desta morfologia tanto no que

diz respeito a) a uma identificaccedilatildeo tatildeo completa quanto possiacutevel dos factores constantes que

tecircm relevo na conformaccedilatildeo da experiecircncia quanto no que diz respeito b) a uma identificaccedilatildeo

267

tatildeo completa quanto possiacutevel dos ldquovaloresrdquo (ou das diferentes conformaccedilotildees) que cada uma

delas pode assumir quanto por fim c) no que diz respeito a uma determinaccedilatildeo das caracte-

riacutesticas proacuteprias da forma da experiecircncia em que habitualmente nos achamos ldquoembarcadosrdquo

Ora aquilo que se veraacute melhor na continuaccedilatildeo eacute que esta morfologia de constantes e

variaacuteveis da constituiccedilatildeo da experiecircncia daacute lugar a qualquer coisa como uma ldquosintaxerdquo ndash uma

sintaxe que diz respeito ao modo como estas diferentes componentes morfoloacutegicas se articu-

lam entre si (ie ao modo como estas diferentes componentes convergem na composiccedilatildeo da

experiecircncia)

E isto de tal maneira que para compreender de maneira mais eficaz o fenoacutemeno da

experiecircncia ou como a experiecircncia que temos eacute sempre jaacute de facto experiecircncia da vida natildeo

interessa apenas um levantamento tanto do que eacute constante quanto do que eacute variaacutevel De fac-

to para se atingir esse propoacutesito eacute necessaacuterio tambeacutem um exame cuidadoso da forma de arti-

culaccedilatildeo entre os diferentes elementos morfoloacutegicos que caracterizam a forma de experiecircncia

que nos eacute proacutepria

Como dissemos o levantamento preliminar feito nas secccedilotildees anteriores jaacute potildee na pista

de alguns aspectos fundamentais Trata-se agora de os aprofundar e ao mesmo tempo de os

completar para obter um ldquoretratordquo tatildeo fiel quanto possiacutevel do que faz a experiecircncia ndash tanto

em geral quanto no nosso caso ndash e do que estaacute em causa nela

sect31

Aquilo que aparece sob a pressatildeo de satisfazer a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que o perpas-

sa ndash A estrutura de complexidade do aparecer algo-a-aparecer-a-algo ndash A focagem da compo-

nente testemunhal

Viu-se anteriormente que o acontecimento do aparecimento natildeo eacute um acontecimento

isento de pressatildeo Um aparecimento isento de pressatildeo estaria marcado por uma total indife-

renccedila em relaccedilatildeo ao que quer que fosse que se passasse no proacuteprio aparecimento Poreacutem o

que acontece connosco estaacute nos antiacutepodas disso

Por um lado haacute pressatildeo ndash ie haacute algo muito diverso de total indiferenccedila em relaccedilatildeo

ao proacuteprio aparecimento E haacute pressatildeo a) quanto a haver aparecimento (quanto agrave continuaccedilatildeo

268

do proacuteprio aparecimento) e b) quanto ao teor do aparecimento (quanto a haver ou natildeo apareci-

mento disto e daquilo para que tenha este e aquele teor e natildeo um outro etc)

O terreno em que nos movemos eacute para o dizer muito sumariamente um terreno de

aparecimento com programa

O que vemos eacute que o aparecimento estaacute perpassado por esse programa por uma ten-

satildeo de natildeo-indiferenccedila (pela tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que corresponde a esse programa)

Neste sentido tudo o que aparece vem tomar lugar no terreno dessa pressatildeo de natildeo-indife-

renccedila (vem responder a ela eacute visto agrave luz dela etc)

Isso significa que o teor do que aparece estaacute posto sob essa pressatildeo chamado a dar-lhe

cumprimento Quer dizer aquilo que aparece estaacute sob a pressatildeo de satisfazer a tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila que o perpassa de tal modo que como aparecer (e como aparecer com este e

aquele teor etc) a satisfaz ou natildeo ndash e a satisfaz deste ou daquele modo neste ou naquele

grau etc)

Por outras palavras no nosso caso em vez de ser apenas aparecimento o aparecimen-

to eacute como que o ldquolugarrdquo de encontro entre por um lado a peticcedilatildeo de que a tensatildeo de natildeo-

indiferenccedila eacute portadora e por outro aquilo que se oferece a ela (o que aparece enquanto o

que aparece eacute isso com que a peticcedilatildeo se defronta etc)

Daqui decorre que a determinaccedilatildeo do que aparece natildeo eacute pura e simplesmente a do seu

proacuteprio teor mas antes aquela que decorre do modo como o teor do que aparece correspon-

de ou natildeo agrave pressatildeo de natildeo-indiferenccedila que sobre ele recai (agrave pressatildeo em cujo contexto ndash em

cujo ldquodomiacuteniordquo sobre cujo ldquoimpeacuteriordquo etc ndash aparece)

Podemos exprimir tudo isto dizendo que o campo de aparecimento em que nos acha-

mos tem a forma de um encaminhamento (de um a-caminho etc)

Natildeo se trata de um ldquoaparecerrdquo que se esgota em si mesmo Sucede em vez disso que

o proacuteprio ldquoaparecerrdquo tem em si mesmo a forma de uma demanda ou de um empreendimento

no qual estaacute em causa alcanccedilar algo Eacute isso que quer dizer a noccedilatildeo de ldquonatildeo-indiferenccedilardquo que

aqui trazemos

O que isto quer dizer eacute que estamos constituiacutedos no modo de uma pressatildeo de indaga-

ccedilatildeo de uma tensatildeo de requerimento de procura ndash ou como tambeacutem podemos dizer estamos

constituiacutedos perante o que aparece na forma de uma peticcedilatildeo E na verdade justamente na for-

269

ma de uma peticcedilatildeo que sempre ainda o eacute e estaacute aqueacutem de ser plenamente satisfeita (estaacute sem-

pre em tensatildeo para a obtenccedilatildeo de ldquorespostardquo etc)

Neste sentido interessa determinar no que aparece se ou de que forma o que aparece

providencia a resposta para a peticcedilatildeo (ou o complexo de peticcedilotildees) em que estamos constituiacute-

dos ndash mas precisamente de tal modo que o que aparece se daacute sempre num territoacuterio conforma-

do por essa peticcedilatildeo e tem como determinaccedilatildeo fundamental o papel que desempenha em rela-

ccedilatildeo a essa peticcedilatildeo (ou a esse complexo de peticcedilotildees) que nos domina

Eacute isso que faz que o terreno da experiecircncia seja tudo menos um terreno de mero regis-

to de ocorrecircncias (sc de projecccedilotildees feitas a partir de um registo de ocorrecircncias) Em vez dis-

so no nosso caso o registo de dados e a projecccedilatildeo de estados-de-coisas ndash que como vimos

constituem a experiecircncia ndash tecircm lugar no meio de qualquer coisa como um encaminhamento

(um empreendimento uma demanda uma peticcedilatildeo etc)

Mais acontece que o registo de dados e a projecccedilatildeo de estados-de-coisas-permanentes

tem lugar como momentos desse encaminhamento ou dessa demanda ndash ie tem lugar como

algo em que o que estaacute efectivamente em causa eacute um encaminhamento ou uma demanda (ie

o cumprimento do programa de natildeo-neutralidade ou natildeo-indiferenccedila em que se estaacute embarca-

do)

Sendo assim o problema que se potildee eacute o problema de saber que tensatildeo de natildeo-indife-

renccedila ou de natildeo-neutralidade (que modalidade de pressatildeo que encaminhamento ou empreen-

dimento) domina o campo de aparecimento em que damos connosco

Ora o que vimos ateacute agora ainda natildeo eacute suficiente para resolver este problema ndash nem

no que diz respeito ao modo como estaacute constituiacuteda a tensatildeo quesitiva (cuja forccedila se faz sen-

tir) nem no que diz respeito ao seu teor (agrave orientaccedilatildeo que tem ou agrave direcccedilatildeo que leva) O que

vimos na secccedilatildeo anterior eacute que a tensatildeo pode adquirir vaacuterias formas pode ser meramente

cognitiva pode ter um caraacutecter praacutetico etc Por outro lado o que vimos corresponde apenas a

uma exploraccedilatildeo preliminar ndash que permite detectar o problema mas ainda fica muito longe de

esclarecer qual a conformaccedilatildeo concreta da proacutepria tensatildeo de natildeo-neutralidade ou natildeo-indi-

ferenccedila que haacute em noacutes enquanto a proacutepria tensatildeo de natildeo-neutralidade ou natildeo-indiferenccedila

assume um papel decisivo no apare-cimento em que nos temos

Para tornar um pouco mais claro o quadro de problemas que aqui se esboccedila haacute que

focar algumas particularidades estruturais do aparecimento em que damos connosco Trata-se

de propriedades que agrave primeira vista pouco ou nada parecem ter que ver com a questatildeo da

270

natildeo-indiferenccedila Mas uma anaacutelise mais detida revelaraacute que natildeo eacute esse o caso ndash e que de facto

estas propriedades constituem a chave para se compreender a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila em

que estamos embarcados e a forma do aparecimento em que nos temos

As particularidades estruturais que importa focar tecircm que ver com um dos aspectos em

virtude dos quais o aparecer ndash tal como tem lugar em noacutes e tal como o conseguimos conce-

ber ndash eacute intrinsecamente complexo

Com efeito vendo bem por mais simples que seja (por mais reduzida que seja a sua

amplitude) todo o aparecer requer dois momentos internos implicados um no outro por um

lado algo que aparece e por outro algo a que aparece o que aparece Isto eacute o momento

ldquoalgo que aparecerdquo e o momento ldquoalgo a que aparece o que aparecerdquo satildeo factores indispensaacute-

veis componentes internos de um miacutenimo de complexidade sem a qual natildeo pode haver o proacute-

prio aparecer enquanto tal

O ldquoalgo que aparecerdquo e o ldquoalgo a que aparece o que aparecerdquo satildeo portanto momentos

irredutiacuteveis ndash momentos com um caraacutecter tal que nenhum deles basta para constituir apareci-

mento Todo o aparecer jaacute requer esta complexidade elementar dois componentes ou dois

momentos estruturais totalmente incapazes de serem um sem o outro e de se substituiacuterem um

ao outro

Assim o que aparece natildeo se pode constituir como ldquoalgo que aparecerdquo sem esse dife-

rente de si que eacute o ldquoalgo a que aparecerdquo Mas inversamente tambeacutem o ldquoalgo a que aparecerdquo

natildeo pode ter lugar sem esse diferente de si que eacute aquilo que aparece Isto eacute o momento ldquoalgo

a que aparecerdquo natildeo eacute independente do proacuteprio aparecer (natildeo eacute preacutevio a ele etc)

Trata-se na verdade de uma componente interna da complexidade intriacutenseca do apa-

recimento ndash de algo que natildeo pode ser a) sem que haja aparecimento e b) sem esse diferente de

si que se acha posto na posiccedilatildeo de lhe aparecer

Em suma aquilo para que estamos a chamar a atenccedilatildeo eacute o facto de o aparecer tal co-

mo o ldquoconhecemosrdquo ter sempre esta estrutura de complexidade irredutiacutevel que podemos ex-

primir recorrendo agrave foacutermula ldquoalgo-a-aparecer-a-algordquo ndash uma estrutura que eacute marcada pela di-

ferenccedila que separa os dois ldquoalgosrdquo em questatildeo a) o algo a aparecer e b) o algo a que aparece

A estrutura em causa eacute de tal modo marcada que vendo bem natildeo parece afectar ape-

nas o aparecimento com que estamos familiarizados Na verdade tende a parecer que se trata

de uma estrutura tatildeo inerente agrave proacutepria natureza do aparecimento enquanto tal que teraacute de

ser inerente a todo e qualquer aparecimento para poder ser aparecimento

271

Ora aquilo que aqui importa focar com particular atenccedilatildeo eacute uma destas duas compo-

nentes estruturais do proacuteprio aparecimento ndash justamente aquela componente que tem que ver

com o ldquoalgo-a-que-aparecerdquo a que podemos chamar a componente testemunhal

Podemos dar-lhe o tiacutetulo de ldquocomponente testemunhalrdquo porque o momento estrutural

aqui em causa tem que ver com o facto de o aparecimento constituir em si ndash como momento e

condiccedilatildeo de si ndash qualquer coisa como uma ldquotestemunhardquo A ldquotestemunhardquo a que aqui faze-

mos referecircncia eacute precisamente esse ldquoalgordquo que por assim dizer daacute consigo ldquoinvadidordquo pelo

proacuteprio aparecer (que tem de arrostar com ele etc) Por razotildees que resultam claras a partir do

que acabaacutemos de dizer tambeacutem podemos chamar a este momento estrutural do aparecimento

o ldquoponto de vistardquo a que aparece o que aparece

Mas haacute um aspecto essencial para se compreender o que estaacute em causa quando aqui fa-

lamos de ldquoponto de vistardquo ndash ou de momento testemunhal sempre implicado na constituiccedilatildeo do

proacuteprio aparecer enquanto tal ndash e que eacute o seguinte

Poderia suceder que cada aparecer fosse intrinsecamente complexo e fizesse sempre

parte de tal complexidade qualquer coisa como um momento testemunhal no sentido referido

mas de tal modo que cada foco de aparecer tivesse o seu proacuteprio momento testemunhal dife-

rente dos momentos testemunhais em funccedilotildees no aparecimento de outras ldquocoisasrdquo que tam-

beacutem aparecem Ora o ponto decisivo estaacute em que se fosse assim haveria ndash para evocar a ter-

minologia de Kant ndash uma multiplicidade de aparecimento mas nenhum aparecimento da mul-

tiplicidade

Quer dizer se cada foco de aparecer tivesse o seu proacuteprio momento testemunhal entatildeo

os diversos momentos de aparecimento estariam completamente fechados uns para os outros

separados uns dos outros ndash isto eacute cada um isolado na sua proacutepria esfera e sem contacto com

nada para laacute dela

A ser assim o aparecimento estaria disseminado ou disperso numa multiplicidade de

ldquomoacutenadasrdquo ndash isoladas umas das outras ndash de tal forma que cada uma teria a sua proacutepria teste-

munha que absolutamente nada teria a ver com o ldquomomento testemunhalrdquo proacuteprio de cada

uma das outras etc Ou seja cada ldquomomento testemunhalrdquo soacute teria acesso agrave sua proacutepria esfera

de aparecimento e natildeo teria absolutamente nada da esfera de aparecimento alheia ndash nem faria

a mais pequena ideia dela e inversamente a cada ldquoconteuacutedo de aparecimentordquo corresponderia

um ldquomomento testemunhalrdquo proacuteprio exclusivamente seu

272

A descriccedilatildeo deste estado-de-coisas permite perceber por contraste a que ponto aquilo

que nos caracteriza eacute de facto algo muito diferente ndash e que o terreno do aparecimento em que

se produz a experiecircncia que tem lugar em noacutes eacute um terreno com uma constituiccedilatildeo muito di-

versa

Em vez de acontecer que cada foco de aparecer tenha o seu proacuteprio ldquomomento teste-

munhalrdquo sem qualquer ligaccedilatildeo com o ldquomomento testemunhalrdquo dos outros focos sucede pelo

contraacuterio que uma vasta multiplicidade de focos de aparecimento diferentes uns dos outros

aparece a um e o mesmo momento testemunhal que desempenha as suas funccedilotildees conjunta-

mente em relaccedilatildeo a todos eles (que os testemunha a todos que estaacute em confronto com todos

que arrosta ao mesmo tempo com todos etc)

Quer dizer no nosso caso o que aparece tem a forma de uma multiplicidade e esse

aparecer conjunto de muacuteltiplos apareceres passa por um uacutenico ldquomomento testemunhalrdquo Em

suma haacute um aparecer de toda uma multiplicidade (ie haacute um horizonte de aparecimento e agrave

unidade desse horizonte ndash ao proacuteprio facto de haver um horizonte ndash corresponde essa uacutenica

ldquotestemunha globalrdquo sem a qual o proacuteprio horizonte se desfaria como que em ldquoaacutetomosrdquo de

aparecimento completamente desligados uns dos outros)

O que assim se configura tem uma conformaccedilatildeo muito peculiar com que estamos fa-

miliarizados ndash mas pode acontecer que seja justamente tatildeo familiar que natildeo salte agrave vista a sa-

ber o aparecimento tem a forma de qualquer coisa como um uacutenico horizonte total a que tudo

pertence

Por mais vincada que seja a diversidade do que aparece por mais desencontrados que

sejam os teores do que aparece por mais que possa haver fenoacutemenos de fechamento (de dis-

tacircncia ou falta de contacto entre as diferentes ldquocoisasrdquo que nos aparecem) tudo o que nos apa-

rece produz-se num quadro irredutiacutevel de conjugaccedilatildeo ou coexistecircncia ndash num quadro marcado

por um miacutenimo de co-presenccedila de tudo o que aparece a tudo o que aparece

Ou como tambeacutem podemos dizer ndash recorrendo agrave foacutermula de Kant na Dissertaccedilatildeo de

1770 ndash o aparecimento com que nos havemos estaacute tatildeo longe de corresponder a uma multipli-

cidade de aacutetomos completamente soltos desgarrados que na verdade tem sempre a forma de

uma compraeligsentia omnium75

75

Kant De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis secccedilatildeo IV Scholium

A este respeito observe-se o seguinte O conceito de compraeligsentia omnium (e de omnipraeligsentia phaelig-

nomena) eacute usado por Kant para descrever as caracteriacutesticas particulares da representaccedilatildeo do espaccedilo e

273

Isto ainda natildeo eacute tudo

Poderia haver uma compraeligsentia com um recorte limitado (um certo nuacutemero de ldquocoi-

sasrdquo que aparecem a um mesmo ldquomomento estruturalrdquo) Mas o que caracteriza o horizonte ou

a compraeligsentia omnium que estamos a tentar focar eacute o facto de corresponder a) a um horizon-

te indefinidamente aberto do aparecer e b) a um horizonte indefinidamente aberto do aparecer

em crescimento contiacutenuo

Isto eacute o aparecimento que tem lugar em noacutes estaacute constituiacutedo de tal modo que haacute sem-

pre mais e mais ldquocoisasrdquo a aparecer ndash na verdade mais e mais ldquocoisasrdquo a aparecer a cada ins-

tante E o que caracteriza esse permanente ldquomais e mais a aparecer a cada instanterdquo eacute precisa-

mente que os novos focos de aparecer se vecircm integrar no mesmo uacutenico horizonte na mesma

esfera de compraeligsentia omnium (na mesma totalidade indefinidamente aberta de diverso a

aparecer)

Acontece que se este horizonte indefinidamente aberto eacute um horizonte justamente por-

que se verifica aquilo que apontaacutemos haacute pouco (a saber porque tudo isso aparece a um uacutenico

ldquomomento testemunhalrdquo comum a tudo ndash a uma testemunha global que desempenha as fun-

ccedilotildees de ldquomomento testemunhalrdquo em relaccedilatildeo a tudo o que aparece) entatildeo o ldquomomento teste-

munhalrdquo que exerce essas funccedilotildees no nosso caso tem caracteriacutesticas muito peculiares que o

habilitam a) a abranger como um horizonte indefinidamente extenso e b) a integrar em si no

horizonte aberto para si sempre mais ldquocoisasrdquo que aparecem

da representaccedilatildeo do tempo ndash mais precisamente aquelas caracteriacutesticas que lhes atribui em resultado

da sua doutrina sobre a impossibilidade de qualquer representaccedilatildeo parcial do espaccedilo e do tempo (ou

seja de qualquer representaccedilatildeo de uma parte do espaccedilo e de uma parte do tempo que seja soacute represen-

taccedilatildeo dessa parte do espaccedilo e do tempo e natildeo inclua uma co-representaccedilatildeo por confusa que seja do

resto do espaccedilo e do resto do tempo) Por outras palavras o conceito de compraeligsentia omnium expri-

me a tese de que a representaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo tem o caraacutecter de um compositum ideale ou de

um totum analyticum cuja natureza eacute tal que a representaccedilatildeo de qualquer das suas partes implica a co-

re-presentaccedilatildeo de todas as outras

Mas sendo assim isso natildeo significa de modo nenhum que o conceito soacute possa ter esse uso relativo agraves

representaccedilotildees do espaccedilo e do tempo Na realidade a razatildeo por que Kant atribui agraves representaccedilotildees do

espaccedilo e do tempo o papel de formas da representaccedilatildeo (da representaccedilatildeo sensiacutevel) tem que ver precisa-

mente com a tese de que satildeo estas representaccedilotildees que ndash porque a) tecircm capacidade de integrar em si ou-

tras representaccedilotildees (como aquilo que ocupa o espaccedilo e o tempo) e porque b) tecircm elas mesmas a forma

de uma compraeligsentia omnium ndash constituem a compraeligsentia omnium de todas as representaccedilotildees sensiacute-

veis (uma compraeligsentia omnium justamente com as caracteriacutesticas que referimos atraacutes com uma ex-

tensatildeo indefinida e indefinidamente alargaacutevel)

274

Em resumo no nosso caso o terreno em que se produz a experiecircncia tem uma confor-

maccedilatildeo muito particular caracterizada a) pela extraordinaacuteria abertura (natildeo apenas uma multi-

plicidade de aparecimento mas uma multiplicidade muito extensa ldquoa perder de vistardquo em

crescimento contiacutenuo etc) e b) pelo facto de toda essa multiplicidade estar abrangida por um

uacutenico momento testemunhal ou um uacutenico ponto de vista ndash que na sua unidade (ou melhor na

sua unicidade) eacute co-extensivo a toda a multiplicidade indefinidamente extensa e mutaacutevel do

que aparece e tem a forma de um olhar totalmente englobante ou totalmente abrangente

Tambeacutem isto ainda natildeo eacute tudo o que interessa destacar

Eacute que poderia ser assim mas de tal modo que este ldquomomento estruturalrdquo de testemu-

nho global se achasse inteiramente absorto no exerciacutecio das suas funccedilotildees Nesse sentido po-

deria acontecer que esse momento natildeo aparecesse tambeacutem a si mesmo natildeo figurasse tambeacutem

entre o que aparece

Sucede no nosso caso precisamente o contraacuterio esse ldquomomento estruturalrdquo de teste-

munho global aparece figura entre o que aparece ndash mesmo que com uma natureza e uma po-

siccedilatildeo peculiar De tal modo que esse ldquomomento estrututalrdquo natildeo apenas aparece mas tem na

verdade de certo modo uma posiccedilatildeo protagonista

Este eacute o ponto que a partir daqui importaraacute ter presente com tanta clareza e nitidez

quanto possiacutevel

O campo de aparecimento em que nos achamos ndash o terreno em que se constitui para

noacutes a experiecircncia ndash natildeo tem apenas a forma de um campo de aparecimento (ou como disse-

mos de um horizonte) Tem tambeacutem a forma de um campo de aparecimento (de um horizon-

te) com protagonista ndash mais precisamente estaacute constituiacutedo de tal modo que tem a proacutepria tes-

temunha global (o ldquomomento estruturalrdquo do testemunho global) como protagonista

O que isto quer dizer eacute que a presenccedila desta testemunha global no meio do apareci-

mento e a arrostar com ele natildeo constitui apenas um pormenor um elemento adicional de con-

formaccedilatildeo em vez disso constitui um elemento fundamental que de facto acaba por ser reflec-

tir em ndash e por moldar ndash tudo o que aparece

Para compreender todo o complexo de fenoacutemenos de que aqui temos tentado dar con-

ta importa ter presentes trecircs aspectos

O primeiro aspecto tem que ver com a forma como o ponto de vista (ou a testemunha

global) estaacute marcado por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a si mesmo de tal modo

275

que essa relaccedilatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente a si (esse estar-em-causa da testemunha

para si mesma) molda decisivamente a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que percorre todo o apare-

cimento em que nos achamos

O segundo aspecto tem que ver com a forma como tudo isto afecta o proacuteprio teor do

que aparece e faz que ao contraacuterio do que pode parecer esse teor nunca seja aquele que lhe

pertenceria soacute por si e em vez disso esteja sempre jaacute marcado por uma relaccedilatildeo com a teste-

munha global (e o facto de justamente natildeo se tratar apenas de uma testemunha mas de algo

que estaacute radicalmente em causa e que eacute aquele ldquoem causardquo de que primariamente se trata em

tudo o que aparece)

O terceiro aspecto tem que ver com a amplitude ou a dimensatildeo da testemunha ndash com o

facto de a testemunha (sc aquilo a que tambeacutem podemos chamar a ipseidade) natildeo se esgotar

num poacutelo mais ou menos punctiforme mas em vez disso ter uma natureza tal que envolve a

projecccedilatildeo de um horizonte indefinidamente aberto de ldquoprescriccedilatildeo de si mesmordquo

Desenhado o campo dos aspectos a considerar ndash e que dizem respeito todos eles a

uma exploraccedilatildeo das caracteriacutesticas da testemunha global que acabaacutemos de pocircr em evidecircncia

ndash passemos entatildeo agrave focagem destes trecircs pontos

sect32

A impossibilidade de indiferenccedila a si ndash O aparecimento como acontecimento centrado na

ldquotestemunha globalrdquo o ldquoquemrdquo a quem aparece o que aparece como o factor que impos-

sibilita a neutralidade do aparecimento ndash A relaccedilatildeo de si a si sob a pressatildeo de um progra-

ma de caraacutecter praacutetico

Consideremos o primeiro ponto que tem que ver com a densidade proacutepria da testemu-

nha

Como dissemos a ldquotestemunha globalrdquo natildeo se esgota no exerciacutecio da sua funccedilatildeo cons-

titutiva apagando-se nela

Poderia ser assim poderia dar-se o caso de isso a que aparece o que aparece estar nu-

ma mera execuccedilatildeo automaacutetica de funccedilotildees de tal modo que natildeo tivesse qualquer notiacutecia de si

(passasse despercebido natildeo estivesse ciente de si etc)

276

Ou poderia dar-se o caso de na medida em que se constitui em registo de tudo o que

aparece e em virtude de tambeacutem ser ldquoalgordquo que aparece (de tambeacutem ser ldquoalgordquo que estaacute entre

a totalidade de ldquocoisasrdquo que aparecem) a relaccedilatildeo do ponto de vista consigo mesmo resultasse

num mero registo do seu aparecimento (num mero registo do ldquoa quemrdquo aparece o que aparece

do aparecer do proacuteprio aparecimento numa mera nota de si etc)

Quer dizer poderia dar-se o caso de a testemunha se reconhecer a si mesma como

algo (como mais uma ldquocoisardquo que aparece como um momento do aparecimento etc) mas de

tal modo que esse ldquoalgordquo que a testemunha reconheceria seria um mero ecratilde (uma mera ldquopla-

taformardquo de aparecimento uma mera superfiacutecie de projecccedilatildeo do aparecimento um mero su-

porte uma mera tela etc) onde aparece o que aparece76

Ora poderia ainda acontecer que a testemunha estivesse posta numa relaccedilatildeo consigo

mesma (estivesse em contacto consigo etc) enquanto algo que marca a sua presenccedila no

campo do que aparece mas de tal modo que a proacutepria identidade disso (ie a determinaccedilatildeo

que tem) fosse para si mesma problemaacutetica ou misteriosa Dito por outras palavras poderia

dar-se o caso de a testemunha estar posta numa relaccedilatildeo consigo mesma mas de tal modo que

se mantivesse indeterminado a que eacute que corresponderia isso com que estaria posto em rela-

ccedilatildeo ou em contacto

Acontece que tambeacutem natildeo eacute assim que se passa connosco

Na verdade eacute ou pode ser difiacutecil apontar em que eacute que a nossa identidade propriamen-

te consiste ou que determinaccedilatildeo tem ndash em especial porque a nossa identidade natildeo consiste em

nenhuma das determinaccedilotildees a que estaacute associada e com que se presta a ser confundida

76

Na verdade eacute com algo semelhante a um ldquoecratilderdquo que deparamos se considerarmos por exemplo

Locke (An Essay Concerning Human Understanding Livro II XI 17) ldquoThe understanding strikes me

as being like a closet that is wholly sealed against light with only some little openings left to let in ex-

ternal visible resemblances or ideas of things outside If the pictures coming into such a dark room

stayed there and lay in order so that they could be found again when needed it would very much re-

semble the understanding of a man as far as objects of sight and the ideas of them are concernedrdquo

Vemdo bem aquilo que Locke descreve eacute algo muito parecido ao mecanismo cinematograacutefico ndash no

caso o ldquomundordquo exterior entra por uma abertura semelhante a algo como um foco de luz e o discerni-

mento seria neste sentido pelo menos numa primeira fase o ldquoecratilderdquo plano onde o ldquomundordquo exterior se

projecta Esta eacute aliaacutes uma noccedilatildeo que perpassa o empirismo em muacuteltiplas variaccedilotildees (Cf Locke An

Essayhellip Livro II I 2 e sua a noccedilatildeo da ldquomenterdquo como ldquopapel em brancordquo ou com a mais famosa alu-

satildeo de Aristoacuteteles ndash De Anima livro 3 4 ndash ao γραμματεῖον ainda por preencher)

277

Assim a nossa identidade natildeo consiste em ser filho de A ou B ter os olhos de um de-

terminado modo o cabelo de outro ter nascido numa determinada data num determinado lo-

cal etc A identidade eacute algo diferente de ou eacute algo irredutiacutevel a todas essas determinaccedilotildees ndash

de tal modo que se situa ldquopara caacuterdquo de tudo isso mais no centro de tudo

Se por um lado ser filho de A ou B ter os olhos de um determinado modo o cabelo

de outro ter nascido numa determinada data num determinado local etc satildeo determinaccedilotildees

que marcam a identidade (que por assim dizer a preenchem) por outro lado essas determina-

ccedilotildees satildeo variaccedilotildees ou aditamentos em relaccedilatildeo a um caraacutecter fundamental que em absoluto as

excede

Vendo bem a identidade eacute aquilo a que se atribui todas essas determinaccedilotildees e eacute aqui-

lo que como veremos confere a todas essas determinaccedilotildees um caraacutecter muito peculiar A

identidade corresponde para o dizer numa expressatildeo a um ldquosi mesmordquo ndash a algo que natildeo se

define apenas por exercer as referidas funccedilotildees mas por ter a sua proacutepria identidade

A identidade corresponde em suma a um ldquoquemrdquo Quer dizer a identidade eacute a ipsei-

dade da proacutepria ldquotestemunha globalrdquo na sua relaccedilatildeo consigo mesma77

77

Ora quando falamos de ldquoidentidaderdquo o termo eacute usado num sentido preciso ndash que natildeo tem que ver

pura e simplesmente com o nexo de identidade de cada determinaccedilatildeo consigo mesma e com o nexo de

natildeo-identidade de cada determinaccedilatildeo a cada outra sem o qual como Aristoacuteteles faz notar no livro IV

da Metafiacutesica (1007b26) haveria o ὁμοῦ πάντα χρήματα de Anaxaacutegoras

Por um lado quando falamos de ldquoidentidaderdquo o que estaacute em jogo eacute a lei formal da identidade que eacute

igualmente vaacutelida para todas as determinaccedilotildees O que estaacute em jogo eacute a determinaccedilatildeo concreta que em

cada caso fixa se assim se pode dizer o seu proacuteprio territoacuterio (com aquilo que lhe eacute proacuteprio) e contra-

potildee a sua proacutepria presenccedila a tudo quanto poderia estar em vez disso Nesse sentido o que estaacute em

causa eacute de certo modo o oposto do princiacutepio ou da regra geral abstracta etc ndash eacute a instacircncia identifi-

cante que permite em cada caso saber de que eacute que se trata ndash qual eacute a determinaccedilatildeo que marca o seu

proacuteprio territoacuterio e contrapotildee a sua presenccedila a tudo quanto poderia estar em vez dela

Estamos portanto a dizer que a testemunha global tambeacutem tem algo assim tambeacutem tem o seu teor e

que a sua presenccedila no campo de aparecimento estaacute marcada pelo facto de ela mesma estar dominada

por uma evidecircncia ndash natildeo cabe aqui discutir se fundada ou infundada ndash a respeito do seu proacuteprio teor

A tudo isto acresce finalmente um outro aspecto que a noccedilatildeo de identidade tambeacutem pode exprimir

Se em uacuteltima anaacutelise tudo aquilo que aparece parece ter identidade consigo mesmo essa identidade eacute

testemunhada por um terceiro (eacute uma identidade sua da ldquocoisardquo que aparece) com que se estaacute em

contacto atravessando uma distacircncia de alteridade que separa dela Por outras palavras se tudo o que

aparece tem identidade consigo mesmo natildeo eacute menos verdade que essa identidade aparece mediada por

uma alteridade porque tudo eacute visto do ponto de vista da testemunha universal que natildeo eacute idecircntica a nada

disso cuja identidade consigo mesmo testemunha

278

E esse ldquoquemrdquo (essa ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo) natildeo tem como conteuacutedo proacute-

prio o ser filho de A ou B ter um determinado corte de cabelo uma determinada altura uma

determinada data de nascimento um determinado local de nascimento etc ndash trata-se vendo

bem de uma determinaccedilatildeo na primeira pessoa (mais trata-se de uma determinaccedilatildeo constitu-

tiva da primeira pessoa) E para aleacutem disso trata-se de uma determinaccedilatildeo que o proacuteprio sa-

be muito bem qual eacute

Com efeito passa-se com esta determinaccedilatildeo algo de peculiar Se formos agrave procura de-

la e a tentarmos identificar no quadro de uma focagem temaacutetica tende a furtar-se (a natildeo se

deixar encontrar a manter-se fora da perspectiva etc) Mas essa dificuldade ou impossibili-

dade de a encontrar numa apresentaccedilatildeo directa (que a ponha agrave mostra no ldquoclarordquo daquilo a que

Pascal chama ldquolrsquoespritrdquo por oposiccedilatildeo ao ldquolrsquoautomaterdquo) eacute um fenoacutemeno que soacute tem lugar justa-

mente na esfera do ldquoclarordquo ou do ldquoespritrdquo no sentido de Pascal78

Quer dizer natildeo tem lugar na esfera daquilo a que Pascal chama ldquolrsquoautomaterdquo ndash natildeo

tem lugar a esfera do contacto inexpliacutecito dos ldquojuiacutezos secretos da razatildeo comumrdquo para recupe-

rar as palavras de Kant Aiacute passa-se justamente o oposto a ldquotestemunha globalrdquo sabe muito

bem quem eacute

Isto eacute por mais difiacutecil que seja precisar em que consiste a identidade aquele que a

tem estaacute dominado pela respectiva evidecircncia ndash estaacute por assim dizer constituiacutedo nela ou sobre

ela tem a sua identidade declinada para si mesmo como algo plenamente concreto e defini-

do com caraacutecter oacutebvio tem uma identidade que percebe muito bem etc

Pelo contraacuterio no caso aqui em causa trata-se justamente da identidade da testemunha consigo mes-

ma Essa identidade eacute protagonista por diversas razotildees mas na verdade tambeacutem por ser uma uacutenica

identidade plena ndash a identidade na primeira pessoa (que se caracteriza por o proacuteprio ser isto sc ser

isso que o proacuteprio eacute)

Nesse sentido a identidade na primeira pessoa natildeo eacute de modo algum uma mera aplicaccedilatildeo da forma

geral da identidade Consiste em algo absolutamente original completamente distinto de todas as

outras ldquocoisasrdquo e com uma posiccedilatildeo uacutenica no meio delas

E o que aqui estaacute em jogo eacute justamente uma conjugaccedilatildeo destes vaacuterios aspectos no meio do

acontecimento do aparecer haacute algo na primeira pessoa que eacute identidade num sentido uacutenico e que tem

um teor proacuteprio que lhe permite perceber a sua proacutepria identidade (no caso lhe permite perceber

ldquoquem eacuterdquo)

78 Cf com a entrada 821 (ed Lafuma) dos Penseacutees de Pascal onde se que comeccedila precisamente por

ler ldquoCar il ne faut pas se meacuteconnaicirctre nous sommes automate autant quespritrdquo

279

Assim mesmo que a partir da incidecircncia temaacutetica (do que encontramos ao tentar cap-

tar expressamente que determinaccedilatildeo tem esse nuacutecleo de ipseidade que se situa para caacute de to-

das essas determinaccedilotildees que parecem definir cada um de noacutes como indiviacuteduo e que determi-

naccedilatildeo eacute propriamente a identidade da proacutepria ldquotestemunha globalrdquo enquanto tal) se possa su-

gerir que essa determinaccedilatildeo de identidade da ldquotestemunha globalrdquo afinal eacute vazia

Ora que a identidade natildeo se trata de algo vazio percebe-se sobretudo a partir de dois

fenoacutemenos

Qualquer das determinaccedilotildees citadas (ser filho de A ou B ter nascido aqui ou ali nesta

ou naquela data ter este ou aquele aspecto fiacutesico etc) eacute uma determinaccedilatildeo incapaz de consti-

tuir a ldquoprimeira pessoardquo (a peculiar forma de identidade da ldquoprimeira pessoardquo) Ora podemos

juntar todas as determinaccedilotildees detes tipo que o resultado eacute precisamente um ldquozerordquo de ldquoprimei-

ra pessoardquo

Para se constituir uma ldquoprimeira pessoardquo eacute indispensaacutevel juntar a determinaccedilatildeo proacute-

pria da ldquotestemunha globalrdquo enquanto eacute algueacutem para si mesma um algueacutem de que estaacute perfei-

tamente a par (quer dizer enquanto tem a sua proacutepria identidade claramente definida para si

mesma) E isto de tal modo que esta determinaccedilatildeo proacutepria da ldquotestemunha globalrdquo (a determi-

naccedilatildeo do ldquosirdquo a determinaccedilatildeo da proacute-pria ipseidade etc) natildeo se define apenas ndash nem se defi-

ne primariamente ndash por esses outros aspectos (ser filho de A ou B nascer aqui ou ali etc)

A determinaccedilatildeo proacutepria da ldquotestemunha globalrdquo (a determinaccedilatildeo proacutepria da ipseidade

o ldquoquemrdquo que define o si) eacute tatildeo pouco uma determinaccedilatildeo vazia (algo soacute susceptiacutevel de ser de-

finido por preenchimento com certas determinaccedilotildees) que na verdade se comunica a outras de-

terminaccedilotildees provocando nelas a transformaccedilatildeo decisiva em virtude da qual estatildeo marcadas

pelo cunho da ipseidade e postas sob o seu ascendente

Assim a razatildeo por que este nuacutecleo da identidade de si se presta a ser confundido com

outras determinaccedilotildees (ser filho de A ou B ter os olhos de um determinado modo o cabelo de

outro ter nascido numa determinada data num determinado local etc) vem de ele ser fonte

de qualquer coisa como uma propagaccedilatildeo de si constituiacuteda na forma de uma esfera

Se por um lado a identidade que nos corresponde natildeo tem a determinaccedilatildeo da nossa fi-

liaccedilatildeo da cor dos olhos da cor e do jeito do cabelo da data ou local de nascimento por outro

lado estaacute investida neles conferindo-lhes uma determinaccedilatildeo que nunca teriam soacute por si ndash a

determinaccedilatildeo de serem nossos (de nos corresponderem de serem caracteres de noacutes etc)

280

O que caracteriza a identidade eacute a propriedade de poder ser identificada com outras de-

terminaccedilotildees Eacute justamente neste sentido uma determinaccedilatildeo formal ndash passiacutevel de contracccedilotildees

com determinaccedilotildees completamente diferentes entre si

O que isto quer dizer eacute que a identidade evidente do si mesmo comunica-se gerando

integraccedilatildeo ou apropriaccedilatildeo

Trata-se de algo que se constitui em fonte atraveacutes de qualquer coisa como uma equa-

ccedilatildeo fundamental mediante a qual faz corresponder a si (identifica consigo torna seu faz que

a caracterize etc) isto e aquilo dentro do campo do que aparece79

De sorte que deixa de fora

ndash quer dizer fora dessa equaccedilatildeo de identificaccedilatildeo fora de si etc ndash uma grande (e ateacute a maior)

parte daquilo que aparece

Encontramos um desenho dessa estrutura por exemplo no Alcibiacuteades Major ndash em es-

pecial num passo (131a e seguintes) em que Soacutecrates descreve que haacute a) algo que eacute proacuteprio

(αὐτός) b) algo que eacute ldquodordquo proacuteprio que pertence ao proacuteprio mas natildeo eacute ldquoordquo proacuteprio (τἀ αὐ-

τοῦ) c) algo que eacute do que eacute do proacuteprio que pertence ao que pertence ao proacuteprio (τἀ τῶν αὑ-

τού) etc80

79

Para o conceito de ldquoequaccedilatildeo de sirdquo ver Fidalgo T The multidimensional and centered structure of

our interested perception in Hierocles Universidade Nova de Lisboa Tese de Mestrado 2015 em es-

pecial as paacuteginas 42-44

80 Aquilo a que estamos a apelar eacute a uma estrutura fundamental que suscitou interesse em diversos au-

tores e que teve ao longo da histoacuteria do pensamento diversas configuraccedilotildees expressa na distribuiccedilatildeo

dos ldquobensrdquo que correspondem ou pertencem a algueacutem Uma estrutura de certo modo semelhante ainda

que com conteuacutedos diacutespares pode ser encontrada numa anaacutelise de Aristoacuteteles levada a cabo por Scho-

penhauer ldquoAristoteles hat (Eth Nicom I 8) die Guumlter des menschlichen Lebens in drei Klassen ge-

theilt ndash die aumluszligeren die der Seele und die des Leibes Hievon nun nichts als die Dreizahl beibehal-

tend sage ich daszlig was den Unterschied im Loose der Sterblichen begruumlndet sich auf drei Grundbes-

timmungen zuruumlckfuumlhren laumlszligt Sie sind 1) Was Einer ist also die Persoumlnlichkeit im weitesten Sinne

Sonach ist hierunter Gesundheit Kraft Schoumlnheit Temperament moralischer Charakter Intelligenz

und Ausbildung derselben begriffen 2) Was Einer hat also Eigenthum und Besitz in jeglichem Sinne

3) Was Einer vorstellt unter diesem Ausdruck wird bekanntlich verstanden was er in der Vorstellung

Anderer ist also eigentlich wie er von ihnen vorgestellt wird Es besteht demnach in ihrer Meinung

von ihm und zerfaumlllt in Ehre Rang und Ruhmrdquo (Schopenhauer A Aphorismen zur Lebensweisheit

Insel Leipzig 1923 paacuteg 16)

Este eacute apenas um exemplo dos muito diversos desenvolvimentos que vieram a ter as perspectivas so-

bre esta mateacuteria que encontramos expostos no corpus platonicum mas em uacuteltima anaacutelise ateacute teratildeo ori-

gens mais remotas Mas o que nos importa natildeo eacute senatildeo a forma de ldquopropagaccedilatildeordquo ou de ldquocontaacutegiordquo de

que a ipseidade eacute capaz Nesse medida interessam menos a) as determinaccedilotildees concretas que satildeo pos-

tas em posiccedilatildeo de maior ou menor proximidade ao centro (determinaccedilotildees essas que podem variar mui-

281

Isto quer dizer que a identidade fundamental da testemunha natildeo eacute pura e simplesmen-

te preenchida por nenhuma das determinaccedilotildees que somos capazes de identificar Em vez dis-

so tem um caraacutecter tal que a) antes do mais se fixa a si mesma e eacute a fonte da agregaccedilatildeo a si

dessas outras determinaccedilotildees conferindo-lhes o estatuto e a importacircncia de que se revestem e

b) define por si mesma essas outras determinaccedilotildees de tal modo que elas ficam fundamental-

mente situadas e compreendidas pela pertenccedila a ela ndash tudo isso sem prejuiacutezo de c) em virtude

da equaccedilatildeo fundamental a ipseidade se define secundariamente tambeacutem por aquilo que lhe

pertence

Mas haacute um outro fenoacutemeno que documenta o caraacutecter natildeo-vazio da fixaccedilatildeo de identi-

dade por que estaacute marcada a testemunha global de que falaacutemos E eacute esse outro fenoacutemeno que

aqui mais nos interessa

Vendo bem o que caracteriza a identidade (o fenoacutemeno de fixaccedilatildeo da identidade da

testemunha global) eacute o facto de se achar declinada de tal modo (e de a testemunha ter uma tal

relaccedilatildeo com ela) que ela gera natildeo-indiferenccedila ndash e na verdade gera o principal caudal de

tensatildeo de natildeo-neutralidade ou natildeo-indiferenccedila que percorre o acontecimento do aparecer em

que nos achamos

Podemos dizecirc-lo assim o si natildeo eacute neutro relativamente a si ndash a testemunha estaacute com-

prometida consigo mesma faz caso de si mesma estaacute marcada por uma avassaladora dedica-

ccedilatildeo a si (por um cuidado de si por uma entrega a si por um apego a si etc)

Importa focar ao mesmo tempo estes dois aspectos complementares

Por um lado a identidade fundamental da testemunha (a tal que natildeo passa por nenhu-

ma das determinaccedilotildees que somos capazes de identificar explicitamente) estaacute indissociavel-

to significativamente) e tambeacutem b) o cardinal dos elos que satildeo descritos como fazendo parte deste sis-

tema de ldquopropagaccedilatildeordquo ou de ldquocontaacutegiordquo Aleacutem disso tambeacutem natildeo importa aqui um outro aspecto a que

a descriccedilatildeo do Alcibiacuteades Major (e outros textos afins) estaacute associada a tese de uma ordem normativa

segundo a qual uns ldquobensrdquo devem vir antes dos outros por terem uma ligaccedilatildeo mais imediata (sc maior

proximidade ao centro) O ponto decisivo eacute aquilo que a descriccedilatildeo do Alcibiacuteades Major tem de pareci-

do com a ldquocadeia de magnetizaccedilatildeordquo referida no Iacuteon a ipseidade tem o condatildeo de ldquomagnetizarrdquo outras

determinaccedilotildees pelo estabelecimento de uma ligaccedilatildeo consigo essa ldquomagnetizaccedilatildeordquo eacute iteraacutevel de tal

modo que aquilo que eacute ldquomagnetizadordquo pela ligaccedilatildeo consigo pode por sua vez ldquomagnetizarrdquo outras

ldquocoisasrdquo ndash e assim sucessivamente numa propagaccedilatildeo que de modo nenhum estaacute impedida de conti-

nuar para laacute das duas formas de ldquocontaminaccedilatildeordquo expressas no Alcibiacuteades Major Mas isso de tal modo

que neste caso o aumento da distacircncia (a multiplicaccedilatildeo dos elos moderadores) diminui a ldquoforccedilardquo da

ligaccedilatildeo agrave ipseidade (sc a forccedila da equaccedilatildeo)

282

mente ligada a natildeo-indiferenccedila aquilo a que chamaacutemos a testemunha global tem uma tal

identidade para si mesma que gera natildeo-indiferenccedila a si ndash que gera a impossibilidade de indi-

ferenccedila a si

Por outro lado a natildeo-indiferenccedila que assim gera natildeo eacute uma natildeo-indiferenccedila modesta ndash

natildeo eacute um quantum de natildeo-indiferenccedila discreto ou de todo o modo com pouco peso numa

ldquosociedaderdquo de fluxos de natildeo-indiferenccedila

Acontece o contraacuterio Trata-se de qualquer coisa como uma torrente de natildeo-indiferen-

ccedila a si mesmo um caudal que ldquojorrardquo e que se impotildee que ldquoinundardquo ndash como algo com uma

forccedila irresistiacutevel

De facto em vez de se tratar de um aparecimento onde o que conta eacute aquilo que de

cada vez aparece trata-se pelo contraacuterio de um aparecimento centrado na proacutepria testemu-

nha global ndash precisamente por a testemunha global natildeo ter a forma de uma mera testemunha

Poderia acontecer que a testemunha fosse apenas isso mesmo e se limitasse a assistir

agravequilo a que assiste ndash caso em que como vimos seria um puro espectador de um campo de

aparecimento completamente livre da presenccedila de qualquer espeacutecie de tensatildeo de natildeo-indife-

renccedila

Tambeacutem poderia acontecer que a testemunha testemunhasse um campo de apareci-

mento tomado por tensatildeo mas de tal modo que se limitasse justamente a assistir a essa tensatildeo

sem que ela proacutepria (a testemunha) fosse minimamente tocada ou movida por ela

Finalmente tambeacutem seria possiacutevel que a testemunha natildeo se limitasse a assistir agrave ten-

satildeo de natildeo-indiferenccedila presente no que lhe aparece e tomasse partido em relaccedilatildeo a ela Nesse

caso deixaria de ser uma mera testemunha (jaacute natildeo seria um puro espectador etc) e passaria a

ser ela mesma parte interessada movida por tensatildeo de natildeo-indiferenccedila

Ora natildeo eacute isto que se passa connosco

O que se passa connosco eacute que a) a ldquotestemunha globalrdquo natildeo eacute uma mera testemunha

porque estaacute (decidida e profundamente) tocada por tensatildeo de natildeo-indiferenccedila mas isso de tal

modo que b) a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila por que a ldquotestemunha globalrdquo estaacute profundamente

mobilizada eacute uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a si mesma (de natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha

globalrdquo agrave ldquotestemunha globalrdquo) ndash que a potildee absolutamente nos antiacutepodas de ser uma mera tes-

temunha

283

A identidade da proacutepria ldquotestemunha globalrdquo (a determinaccedilatildeo da ipseidade o teor proacute-

prio do si enquanto tal etc) eacute tatildeo pouco vazia que gera este caudal de natildeo-indiferenccedila ndash eacute tatildeo

pouco vazia que justamente natildeo eacute originalmente uma natildeo-indiferenccedila agrave criatura com a altura

x os olhos da cor y nascida no local z etc mas eacute uma natildeo-indiferenccedila a si mesmo A natildeo-in-

diferenccedila agrave criatura com a altura x os olhos da cor y nascida no local z etc soacute se constitui

por causa da equaccedilatildeo ndash ie porque a ldquotestemunha globalrdquo a identifica consigo (tem o seu proacute-

prio teor se assim se pode dizer ldquovazadordquo nela)

Tudo isto eacute decisivo pois faz de todo o aparecimento que temos algo de natureza mui-

to especial um aparecimento que natildeo eacute um acontecimento anoacutenimo

Haacute um ldquoquemrdquo a quem o aparecimento aparece ndash e mais ainda o ldquoquemrdquo a quem

aparece o que aparece eacute precisamente o factor decisivo que impossibilita a neutralidade ndash e

isto na medida em que o ldquoquemrdquo a quem aparece o que aparece eacute precisamente isso a que o

aparecimento se reporta (eacute precisamente isso que tem a apresentaccedilatildeo que ldquoeacuterdquo a apresentaccedilatildeo

etc)

Tocamos aqui um factor adicional da determinaccedilatildeo ou da contracccedilatildeo do aparecimento

ou do campo da experiecircncia que no capiacutetulo precedente se referiu de passagem

Mencionaacutemos entatildeo a diferenccedila entre campos de aparecimento e de experiecircncia natildeo

marcados por tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e campos de aparecimento e de experiecircncia marcados

por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e tambeacutem focaacutemos anteriormente a diferenccedila entre tensatildeo

de natildeo-indiferenccedila cognitiva e tensatildeo de natildeo-indiferenccedila praacutetica

Poreacutem vendo bem a descriccedilatildeo anteriormente feita da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila de or-

dem praacutetica (e do que eacute um campo de aparecimento de experiecircncia perpassado por tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila de ordem praacutetica) deixa escapar o nexo entre a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila de

ordem praacutetica e a ipseidade (a identidade da ldquotestemunha globalrdquo a sua radical indiferenccedila a

si mesma etc)

Ora poderia apesar de tudo acontecer que o reconhecimento de si mesmo ocorresse

sob a tensatildeo de um programa de caraacutecter meramente cognitivo ndash caso no qual o reconheci-

mento de si estaria sobre a pressatildeo de um quesito de identificaccedilatildeo (uma pressatildeo que incidiria

exclusivamente sobre o teor do ldquosirdquo ou do que lhe aparece) e de tal modo que o terminus ad

quem da tensatildeo seria meramente cognitivo

Acontece que natildeo estamos constituiacutedos deste modo

284

Dizer que natildeo estamos constituiacutedos deste modo natildeo eacute de modo nenhum dizer que essa

possibilidade de constituiccedilatildeo nos eacute totalmente alheia ndash embora natildeo caiba aqui dizer a que eacute

que corresponderia um tal programa ou que modificaccedilotildees teriam de ser introduzidas no nosso

ponto de vista para que ele se pudesse cumprir O que eacute importante reter eacute que estamos origi-

nariamente constituiacutedos em algo diferente de uma pressatildeo meramente cognitiva

Quer dizer por um lado eacute a relaccedilatildeo de si a si que gera essa impossibilidade de neutra-

lidade que atravessa tudo o que aparece Isso significa que esse ldquoquemrdquo enquanto tambeacutem

constitui algo que aparece eacute aquilo sobre o qual recai o peso maior da tensatildeo de natildeo-indife-

renccedila

Poreacutem por outro lado essa tensatildeo natildeo eacute meramente cognitiva ndash na verdade a relaccedilatildeo

de si a si estaacute sob pressatildeo de um programa de caraacutecter praacutetico

ldquoPraacuteticordquo significa aqui algo de que podemos ganhar a pista a partir do proacuteprio campo

semacircntico de πράττειν na medida em que este verbo tambeacutem exprime aquilo que se dizia no

fi-nal das cartas (εύ πράττειν ldquopassar bemrdquo etc) Trata-se precisamente desse ldquopassarrdquo (com

a alternativa bem mal mais ou menos etc)

Trata-se de a ipseidade estar constituiacuteda de tal modo que se acha vinculada a esse

ldquopassarrdquo e agrave diferenccedila entre as diversas possibilidades que lhe correspondem ndash e que tecircm que

ver com diferenccedilas relativamente ao teor daquilo que aparece e nesse sentido vem agrave ldquoteste-

munha globalrdquo

Se eacute verdade que a tradiccedilatildeo liga o adjectivo ldquopraacuteticordquo agrave ideia da intervenccedilatildeo que a ldquotes-

temunha globalrdquo pode ter enquanto esta mesma aparece a si como fonte ou ponto de partida

de acccedilotildees (como fonte de intervenccedilatildeo ndash e de facto como algo que quer faccedila ou natildeo natildeo po-

de deixar de intervir estaacute condenado a intervir etc) importa perceber que a relevacircncia deste

aspecto embora decisiva tem um caraacutecter derivado

A natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha globalrdquo a si mesma natildeo estaacute constituiacuteda de raiz co-

mo uma natildeo-indiferenccedila agravequilo que se faz enquanto tal (como uma natildeo-indiferenccedila agrave acccedilatildeo agrave

intervenccedilatildeo que se tem etc) mas como uma natildeo-indiferenccedila ao que designaacutemos a partir do

campo semacircntico de πράττειν (ie uma natildeo-indiferenccedila ao que acontece agrave ldquotestemunha glo-

balrdquo ao que se passa com ela etc) De tal modo que a ldquotestemunha globalrdquo tambeacutem eacute radical-

mente natildeo-indiferente agravequilo que faz porque aquilo que faz (a intervenccedilatildeo que tem etc) eacute

percebida como repercutindo-se em e condicionando aquilo que se passa consigo

285

O que isto significa em suma eacute que natildeo estamos em relaccedilatildeo agrave ldquotestemunha globalrdquo

que sempre jaacute somos numa posiccedilatildeo de mero espectador que simplesmente testemunha e re-

gista o que se passa (o que haacute o que ldquoeacuterdquo etc) e o que se passa consigo Na verdade o apare-

cimento tem se assim se pode dizer a natureza de um empreendimento de si (de um projecto

de si de um cuidado de si etc) Podemos dizecirc-lo assim eacute um aparecimento conformado

como empreendimento de si (na forma de um empreendimento de si etc)

E o que queremos dizer quando afirmamos que o aparecimento em que damos connos-

co tem o caraacutecter de um empreendimento de si natildeo eacute apenas que no meio desse aparecimento

entre muitas outras ldquocoisasrdquo haacute tambeacutem um empreendimento de si o que pretendemos dizer eacute

que todo o aparecimento estaacute tatildeo marcado pela presenccedila da ldquotestemunha globalrdquo e pela sua

radical natildeo-indiferenccedila a si mesma que eacute globalmente um empreendimento de si

O que estamos a procurar dizer eacute que esta relaccedilatildeo (especial peculiar) da ldquotestemunha

globalrdquo consigo mesma eacute uma relaccedilatildeo intrinsecamente complexa

Por um lado o aparecimento estaacute constituiacutedo de tal modo que o que aparece eacute consigo

(afecta o centro diz respeito a si etc)

Mas por outro lado tambeacutem estaacute constituiacutedo de tal modo que o aparecimento ndash e

assim tambeacutem tudo o que aparece ndash eacute consigo somente em virtude de haver uma relaccedilatildeo de si

a si (ie somente em virtude de o centro estar afectado por essa relaccedilatildeo de si a si de a relaccedilatildeo

de si a si ser tambeacutem algo que diz respeito a si etc) Dito por outras palavras a relaccedilatildeo de si

a si eacute o motivo em virtude da qual tudo o resto que aparece afecta o centro diz respeito ao

centro etc

Ou seja todo o aparecimento eacute fundamentalmente perpassado por uma tensatildeo do inte-

resse por si (por uma radical natildeo-neutralidade a si por uma radical natildeo-indiferenccedila a si

etc) ndash de tal modo que tudo o que aparece estaacute de algum modo marcado por esta tensatildeo de

grau maacuteximo (ie de tal modo que esta tensatildeo modifica em maacuteximo grau o que aparece)

E de tudo isto resulta por fim no seguinte tal como estaacute constituiacuteda em noacutes toda a

experiecircncia eacute experiecircncia de si ndash que diz respeito ao si em que se trata do si (sc da ldquoteste-

munha globalrdquo na sua ipseidade e radical natildeo-indiferenccedila a si) O ldquosirdquo (o si-mesmo) eacute o que

em siacutentese estaacute efectivamente em causa na experiecircncia81

81

Quer dizer o que comeccedila a ficar claro eacute que a experiecircncia eacute sempre ldquoem causa proacutepriardquo Natildeo haacute por

assim dizer nada que a ldquocausa proacutepriardquo natildeo cubra (natildeo haacute nenhum territoacuterio exterior ao territoacuterio da

286

Contudo quando dizemos que o ldquosirdquo eacute o que estaacute fundamentalmente ldquoem causardquo na

experiecircncia isso natildeo quer dizer que nada mais esteja ldquoem causardquo na experiecircncia ndash ie que o

ldquosirdquo seja o uacutenico ou o exclusivo ldquoem causardquo da experiecircncia De facto lidamos quotidianamen-

te com ldquoem causardquo muacuteltiplos e muito diversos entre si

O que queremos dizer quando dizemos que o ldquosirdquo eacute o que estaacute ldquoem causardquo na experiecircn-

cia eacute que todos os ldquoem causardquo com que contactamos no curso da experiecircncia reportam ao ldquosi

mesmordquo ldquoem causardquo Cada ldquoem causardquo estaacute posto em referecircncia ao ldquosi em causardquo

Natildeo eacute assim que tendemos a ver o caso Na verdade tendemos a vecirc-lo do avesso

Tendemos a considerar que haacute ldquocoisasrdquo (situaccedilotildees circunstacircncias casos pessoas o

que seja) a que dedicamos a nossa atenccedilatildeo e que natildeo nos dizem respeito ndash que acontece com

frequecircncia que somos por assim dizer desviados do que estaacute em causa Nesse sentido pode-

riacuteamos tender a assumir que esses satildeo casos que ultrapassam a fronteira do que estaacute ldquoem cau-

sardquo para si (para a testemunha global enquanto ela estaacute radicalmente em causa para si mes-

ma)

Todavia se analisarmos o modo como o nosso ponto de vista estaacute constituiacutedo (o mo-

do como a experiecircncia se daacute em noacutes) o que notamos eacute o contraacuterio apuramos que que o ldquoem

causardquo omni-englobante eacute o proacuteprio ldquosi-mesmordquo ndash e que tudo o mais que tambeacutem estaacute em

causa tem relevo (estaacute em causa) por concessatildeo da radical natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha

globalrdquo a si mesma

Assim a relaccedilatildeo de si a si torna-se uma relaccedilatildeo que submete todas as outras e as con-

sente como momento (como componente derivado etc) dessa mesma relaccedilatildeo Quer dizer tu-

do o que aparece (cada ldquocoisardquo que aparece) estaacute integrado na relaccedilatildeo de si a si (ie corres-

ponde agrave relaccedilatildeo de si a si como que a ldquopassarrdquo por tudo o que aparece desdobrada pelo facto

de integrar em si a relaccedilatildeo com a ldquocoisardquo x com a ldquocoisardquo y com a ldquocoisardquo z etc)

ldquocausa proacutepriardquo natildeo haacute nenhum territoacuterio em que a ldquocausa proacutepriardquo natildeo ldquoreinerdquo etc) Em suma natildeo

haacute nada ndash por mais distante ndash que natildeo seja comigo que natildeo nos diga respeito etc E note-se que a

ldquodistacircnciardquo a que aqui se alude natildeo eacute uma distacircncia espacial ou sequer temporal ndash a distacircncia a que

aqui se alude (essa que se expressa nas foacutermulas ldquonatildeo ser consigordquo ldquonatildeo ter que ver connoscordquo ldquonatildeo

nos dizer respeitordquo etc) natildeo corresponde senatildeo a uma mera relegaccedilatildeo de importacircncia (a estar para laacute

do nuacutecleo do que mais imediatamente nos importa etc) De sorte que a proacutepria distacircncia eacute uma ex-

pressatildeo da presidecircncia de tudo de tudo pela relaccedilatildeo que a ldquotestemunha globalrdquo tem consigo mesma e

pela radical natildeo-indiferenccedila que a liga a si

287

Desenha-se assim qualquer coisa como uma dupla presidecircncia de todo o horizonte do

aparecimento pelo mesmo ndash pela ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo

Por um lado a ldquotestemunha globalrdquo eacute precisamente ldquoardquo testemunha de tudo o ponto de

vista que comummente estaacute em relaccedilatildeo com tudo o que aparece aquilo a que aparece tudo

Mas por outro lado a esta presidecircncia que tem que ver com a proacutepria estrutura do

aparecimento enquanto tem o caraacutecter de uma multiplicidade e requer portanto como vimos

uma uacutenica testemunha vem juntar-se uma segunda modalidade de presidecircncia ndash a presidecircncia

na ordem da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (o facto de tudo o que aparece estar sob a alccedilada do

mea res agitur de tudo aparecer dirigido agrave ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo e trazendo jaacute ta-

citamente inscrito em si um tua res agitur

Mas ao mesmo tempo tambeacutem se desenha um outro aspecto igualmente relevante a

saber esta dupla presidecircncia eacute uma presidecircncia na primeira pessoa Todo o aparecimento estaacute

decisivamente marcado pela primeira pessoa orbita em torno da primeira pessoa etc ndash eacute

neste sentido um aparecimento na primeira pessoa radicalmente diferente do que quer que

pudesse haver sem ser assim

Ora tudo isso nos leva a um segundo aspecto

sect33

A estrutura da auto-consciecircncia na sua relaccedilatildeo com o objecto em Hegel (Fenomenologia

do Espiacuterito IV B)

Podemos exprimir o segundo aspecto a partir do que tatildeo agudamente se acha expresso

por Hegel na Fenomenologia do Espiacuterito mais propriamente no capiacutetulo sobre a auto-cons-

ciecircncia (IV B) ndash num conjunto de passos em que Hegel caracteriza a estrutura da auto-cons-

ciecircncia na sua relaccedilatildeo com o seu objecto82

82

Abstraiacutemos aqui do facto de aquilo que estaacute em causa na Fenomenologia do Espiacuterito de Hegel natildeo

ser propriamente a constituiccedilatildeo da consciecircncia (o que estaacute implicado nela o que sempre jaacute a conforma

etc) mas modelos ou formas de reconhecimento daquilo que temos ao termos consciecircncia ndash modelos

ou formas que a consciecircncia pode adoptar para se dar conta daquilo que encontra ao ser consciecircncia

(ou seja para se dar conta da sua proacutepria determinaccedilatildeo) Isso significa que na descriccedilatildeo que aqui leva-

mos a cabo fazemos nossa a tese de reconhecimento do teor da consciecircncia que eacute proacuteprio daquilo a

288

Natildeo interessa aqui seguir pari passu tudo o que estaacute implicado nesta concepccedilatildeo de He-

gel ou na relaccedilatildeo entre auto-consciecircncia e o seu objecto Interessa apenas seguir aqueles as-

pectos que nos potildeem na pista daquilo que estamos a procurar salientar

Quando fala de ldquoauto-consciecircnciardquo Hegel aponta para um modelo de reconhecimento

de realidade ndash justamente um modelo de reconhecimento da realidade em que a unidade de

realidade propriamente dita eacute a auto-consciecircncia

O primeiro aspecto a ter em conta eacute que tal como aparece desenhado neste passo da

Fenomenologia o conceito de ldquoauto-consciecircnciardquo designa como que um primado da auto-

que Hegel chama ldquoauto-consciecircnciardquo (Selbstbewuszligtsein) por contraste com aquilo a que chama cons-

ciecircncia (Bewuszligtsein) Nesse sentido natildeo seguimos Hegel na distacircncia que a sua Fenomenologia guar-

da em relaccedilatildeo agrave tese da auto-consciecircncia (que Hegel observa na sua geacutenese desenvolvimento etc)

Poreacutem para natildeo incorrermos em equiacutevocos eacute necessaacuterio ter presente que neste contexto se pode falar

de ldquoauto-consciecircnciardquo em dois sentidos muito distintos

Por um lado ldquoauto-consciecircnciardquo designa um modelo de reconhecimento passiacutevel de ser contrastado

com a razatildeo o ldquoespiacuteritordquo por outro lado o termo tambeacutem designa aquilo que esse modelo reconhece

como tendo um primado em relaccedilatildeo a tudo o mais ndash de tal modo que o modelo de reconhecimento a

que Hegel chama ldquoauto-consciecircnciardquo tem esse nome porque a sua tese eacute o reconhecimento de tudo o

mais como determinaccedilatildeo da auto-consciecircncia

Abreviando de razotildees (ie abreviando todas as anaacutelises que Hegel leva a cabo a respeito de a auto-

consciecircncia ser um produto de reflexatildeo ser um momento que tem um antecedente mais elementar

etc) o que temos de sublinhar eacute que o modelo de Hegel passa pela nota de que onde nos encontra-

mos haacute sempre jaacute algo correspondente agrave auto-consciecircncia Pode acontecer que a apercepccedilatildeo de que eacute

assim nunca seja imediata antes suponha sempre uma viragem reflexiva Mas com tudo o que isto

tem de problemaacutetico estamos a falar do ponto de vista de um reconhecimento reflexivo do que jaacute haacute

antes da reflexatildeo

A tudo isto acresce ainda um outro facto de distacircncia entre a perspectiva que aqui desenhamos e a de

Hegel (ou melhor a que se acha expressa na Fenomenologia) Na Fenomenologia a auto-consciecircncia

eacute um reconhecimento unilateral cuja tensatildeo interna acaba necessariamente por levar agrave sua ldquoimplosatildeordquo

e resoluccedilatildeo em algo mais complexo Natildeo se contesta que a tese da auto-consciecircncia (a tese que grosso

modo aqui seguimos) possa ser completada por outras perspectivas mas natildeo seguimos aqui a concep-

ccedilatildeo de Hegel a respeito do caraacutecter inevitaacutevel do itineraacuterio de desenvolvimento descrito na Fenomeno-

logia

Finalmente importa observar que em vez de Hegel poderiacuteamos ter considerado outros autores ndash a

proacutepria anaacutelise que Hegel faz na secccedilatildeo aqui em causa chama a atenccedilatildeo para essa possibilidade Pode-

riacuteamos por exemplo ter considerado Fichte (Grundlage Wissenschaftslehre Nova Methodo Sittenleh-

re de 1798 Thatsachen des Bewuszligtseyns de 181213 etc) como tambeacutem poderiacuteamos ter considerado

empreendimentos filosoacuteficos posteriores ndash por exemplo a analiacutetica existencial-temporal do Dasein de

Heidegger Poderaacute parecer estranha a referecircncia a perspectivas filosoacuteficas tatildeo marcadamente contras-

tantes em tantos aspectos ndash mas na verdade o que interessa eacute justamente um denominador comum

289

consciecircncia enquanto tal ndash o facto de ela desempenhar em certo sentido o papel da determi-

naccedilatildeo fundamental (de que nenhuma outra determinaccedilatildeo eacute independente) Esse eacute o ponto

decisivo ndash esta ldquoanteposiccedilatildeordquo da proacutepria consciecircncia que Hegel expressa no conceito de

ldquoconsciecircncia de sirdquo (quer dizer da consciecircncia da proacutepria consciecircncia enquanto tal)

Essa anteposiccedilatildeo da proacutepria consciecircncia faz que nenhuma determinaccedilatildeo esteja aiacute sozi-

nha ndash e na verdade nenhum complexo de determinaccedilotildees por mais amplo que seja figure so-

zinho (num contacto directo soacute consigo apenas com a determinaccedilatildeo ou com as determinaccedilotildees

em questatildeo etc) Sucede em vez disso que qualquer determinaccedilatildeo ou complexo de determi-

naccedilotildees que apareccedila estaacute como que marcado por este ldquoiacutendicerdquo decisivo que faz dele um mo-

mento da proacutepria consciecircncia (ou mais precisamente um momento da proacutepria auto-consciecircn-

cia)83

Ora o problema focado por Hegel eacute o seguinte por mais que a realidade passe pela

consciecircncia e tenha nela a sua determinaccedilatildeo fundamental (por mais que a unidade da realida-

de seja a auto-consciecircncia) ainda assim subsiste alteridade

Na verdade parece haver um conflito ndash mais ou menos latente ndash entre um modelo de

reconhecimento do que haacute que apenas confere realidade agrave auto-consciecircncia e o facto de ape-

sar disso haver algo absolutamente irredutiacutevel e indissoluacutevel na identidade da proacutepria auto-

consciecircncia (ie no proacuteprio ldquointeriorrdquo dela) Ou seja se natildeo estamos a ver mal aquilo que

Hegel estaacute a dizer eacute que por um lado a) a auto-consciecircncia eacute uma entidade complexa ou com-

posta (conteacutem algo na sua identidade e algo que natildeo se dissolve na sua identidade) e por ou-

tro lado b) eacute uma entidade complexa ou composta por algo constituiacutedo em radical diferenccedila

em relaccedilatildeo agrave identidade da auto-consciecircncia84

83

Tudo se passa como se se repetisse em relaccedilatildeo agrave determinaccedilatildeo ldquoconsciecircnciardquo a jaacute referida ldquodeacutemar-

cherdquo do Sofista de Platatildeo na qual o Forasteiro potildee em evidecircncia que natildeo se encontram determinaccedilotildees

monoeideacuteticas pois quando se vai agrave procura de determinaccedilotildees monoeideacuteticas o que aparece satildeo deter-

minaccedilotildees jaacute constitutivamente envolvidas em siacutentese com outras determinaccedilotildees No caso o que estaacute

em causa eacute que independentemente de outras consideraccedilotildees nenhuma determinaccedilatildeo estaacute livre de um

constitutivo envolvimento com a determinaccedilatildeo ldquoconsciecircnciardquo e com a forma como a consciecircncia im-

plica uma consciecircncia de si proacuteprio

84 ldquoIn den bisherigen Weisen der Gewiszligheit ist dem Bewuszligtsein das Wahre etwas Anderes als es

selbst Der Begriff dieses Wahren verschwindet aber in der Erfahrung von ihm wie der Gegenstand

unmittelbar an sich war das Seiende der sinnlichen Gewiszligheit das konkrete Ding der Wahrnehmung

die Kraft des Verstandes so erweist er sich vielmehr nicht in Wahrheit zu sein sondern dies Ansich

ergibt sich als eine Weise wie er nur fuumlr ein Anderes ist der Begriff von ihm hebt sich an dem wirk-

290

Ora sendo assim e na medida em que a auto-consciecircncia conteacutem algo na sua identida-

de que natildeo se dissolve nela a anaacutelise a que Hegel procede eacute precisamente uma tentativa de

determinaccedilatildeo ou de identificaccedilatildeo do que eacute isso que estaacute contido na identidade da auto-cons-

ciecircncia (que estaacute por assim dizer no ldquointeriorrdquo da auto-consciecircncia) mas que natildeo se dissolve

nela85

O que desde jaacute fica claro eacute que isso que estaacute contido na identidade de auto-consciecircncia

e natildeo se dissolve nela ndash isso a que Hegel chama o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia ndash estaacute marca-

do por radical heterogeneidade com a identidade da auto-consciecircncia Poreacutem esta radical he-

terogeneidade tem um caraacutecter peculiar na medida em que o horizonte de acontecimento da

heterogeneidade entre a auto-consciecircncia e o objecto eacute o proacuteprio horizonte da auto-consciecircn-

cia

Quer dizer a relaccedilatildeo entre a identidade da auto-consciecircncia e o ldquoobjectordquo natildeo tem um

caraacutecter tal que seja uma relaccedilatildeo entre realidades totalmente autoacutenomas irredutiacuteveis e inde-

pendentes entre si Poderiacuteamos dizer que o encontro entre a auto-consciecircncia e o seu objecto

natildeo se daacute em ldquocampo neutrordquo o encontro em causa acontece no ldquoterritoacuteriordquo da auto-consciecircn-

cia O que Hegel estaacute com isto a pocircr em evidecircncia eacute que a auto-consciecircncia eacute condiccedilatildeo de

possibilidade do objecto da auto-consciecircncia86

lichen Gegenstande auf oder die erste unmittelbare Vorstellung in der Erfahrung und die Gewiszligheit

ging in der Wahrheit verlorenrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV paacuteg 115)

85 ldquoEs ist darin zwar auch ein Anderssein das Bewuszligtsein unterscheidet naumlmlich aber ein solches das

fuumlr es zugleich ein nicht Unterschiedenes istrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV paacuteg 115) Mais agrave

frente no desenvolvimento da anaacutelise Hegel precisa ldquoEs ist als Selbstbewuszligtsein Bewegung aber

indem es nur sich selbst als sich selbst von sich unterscheidet so ist ihm der Unterschied unmittelbar

als ein Anderssein aufgehoben der Unterschied ist nicht und es nur die bewegungslose Tautologie

des Ich bin Ich indem ihm der Unterschied nicht auch die Gestalt des Seins hat ist es nicht Selbstbe-

wuszligtsein Es ist hiermit fuumlr es das Anderssein als ein Sein oder als unterschiedenes Moment aber es

ist fuumlr es auch die Einheit seiner selbst mit diesem Unterschiede als zweites unterschiedenes Momentrdquo

(Phaumlnomenologie des Geistes B IV paacuteg 116)

86 ldquoOder auf die andere Weise den Begriff das genannt was der Gegenstand an sich ist den Gegen-

stand aber das was er als Gegenstand oder fuumlr ein Anderes ist so erhellt daszlig das Ansichsein und das

fuumlr-ein-Anderes-Sein dasselbe ist den das Ansich ist das Bewuszligtsein es ist aber ebenso dasjenige fuumlr

welches ein Anderes (das Ansich) ist und es ist iuumlr es ndaszlig das Ansich des Gegenstandes und das

Sein desselben fuumlr ein Anderes dasselbe ist Ich ist der Inhalt der Beziehungrdquo (Phaumlnomenologie des

Geistes B IV paacuteg 115-6)

291

Ou seja o objecto da auto-consciecircncia natildeo pode ter lugar independentemente da auto-

consciecircncia ndash pelo contraacuterio ocorre sempre jaacute no ldquointeriorrdquo da auto-consciecircncia (como algo

que pertence agrave esfera ou ao domiacutenio da auto-consciecircncia que adquire realidade no seu ldquoterri-

toacuteriordquo etc) O objecto da auto-consciecircncia eacute um mero correlato da auto-consciecircncia (eacute ldquodardquo

auto-consciecircncia)

Mas isso natildeo impede que apesar de a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

implicar a radical anulaccedilatildeo do objecto na sua independecircncia a relaccedilatildeo que estaacute em causa

quando Hegel apresenta o nexo entre auto-consciecircncia e o objecto da auto-consciecircncia seja

uma relaccedilatildeo de negaccedilatildeo Na terminologia hegeliana o objecto eacute o ldquonegativordquo da auto-cons-

ciecircncia87

Isto significa que por mais que a auto-consciecircncia seja a condiccedilatildeo de possibilidade da

presenccedila do ldquoobjectordquo natildeo deixa de acontecer que a auto-consciecircncia tem no ldquoobjectordquo o limi-

te da sua identidade Ou seja o objecto constitui-se de algum modo como momento ou mo-

mentos de natildeo-identidade no cerne de identidade da auto-consciecircncia E tanto quer dizer que a

identidade da auto-consciecircncia estaacute maculada ndash maculada pelo facto de ter o objecto a invadi-

la (por acusar uma invasatildeo de alteridade por estar constituiacuteda no seu cerne uma relaccedilatildeo com

um ldquoobjectordquo)

Vendo bem nada disto seria um problema se aquilo que estivesse subtilmente a operar

natildeo fosse a plenitude da auto-consciecircncia88

De facto aquilo que antes de mais estaacute em causa quando se fala de ldquoobjecto da auto-

consciecircnciardquo eacute precisamente a detecccedilatildeo de algo de alheio que resiste ou potildee em causa a iden-

tidade plena da auto-consciecircncia Ou visto pelo acircngulo oposto se nada obstasse (se natildeo hou-

vesse a detecccedilatildeo de nada de alheio a resistir ou a pocircr em causa a identidade da auto-consciecircn-

cia) entatildeo a auto-consciecircncia seria uma realidade completamente unificada iacutentegra absoluta

reinando sobre todos os seus momentos ndash se eacute que se poderia ainda falar de ldquomomentosrdquo

87

ldquoDas Bewuszligtsein hat als Selbstbewuszligtsein nunmehr einen gedoppelten Gegenstand den einen den

unmittelbaren den Gegenstand der sinnlichen Gewiszligheit und des Wahrnehmens der aber fuumlr es mit

dem Charakter des Negativen bezeichnet ist und den zweiten naumlmlich sich selbst welcher das wahre

Wesen und zunaumlchst nur erst im Gegensatze des ersten vorhanden ist Das Selbstbewuszligtsein stellt sich

hierin als die Bewegung dar worin dieser Gegensatz aufgehoben und ihm die Gleichheit feiner selbst

mit sich wirdrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV paacuteg 117)

88 ldquoDas Selbstbewuszligtsein stellt sich hierin als die Bewegung dar worin dieser Gegensatz aufgehoben

und ihm die Gleichheit feiner selbst mit sich wirdrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV paacuteg 117)

292

Uma anaacutelise mais atenta deixa aliaacutes perceber que eacute o facto de natildeo ser assim (o facto de

se detectar algo de alheio que resiste ou potildee em causa a identidade plena da auto-consciecircn-

cia) que chama a atenccedilatildeo para a proacutepria auto-consciecircncia ndash que a natildeo ser assim poderia mui-

to bem acontecer que a auto-consciecircncia ateacute estivesse em operaccedilatildeo e ateacute estivesse a ldquoprodu-

zirrdquo ldquoconteuacutedosrdquo mas sem que tivesse qualquer noccedilatildeo disso (ie se poderia muito bem dar-se

o caso de a auto-consciecircncia estar a operar silenciosamente)

Quer dizer a detecccedilatildeo de um ldquoobjectordquo enquanto algo que potildee em causa a identidade

plena da auto-consciecircncia eacute o factor decisivo que faz virar a atenccedilatildeo para a auto-consciecircncia

Isto eacute ao inveacutes do que poderia ser uma operaccedilatildeo completamente silenciosa se natildeo se detectas-

se nada de alheio a resistir-lhe a detecccedilatildeo de um ldquoobjectordquo eacute o factor decisivo que depotildee a au-

to-consciecircncia numa relaccedilatildeo consigo proacutepria (que potildee a auto-consciecircncia a considerar-se a si

proacutepria atenta agraves suas operaccedilotildees etc)89

Em suma se natildeo estamos a ver mal a auto-consciecircncia tem uma relaccedilatildeo consigo mes-

ma marcada por uma invasatildeo de alteridade

Por outras palavras enquanto eacute ao mesmo tempo consciecircncia do seu objecto a auto-

consciecircncia tem uma natureza tal que estaacute prejudicada a possibilidade da sua plena identidade

consigo mesma Quer dizer pela sua proacutepria natureza a auto-consciecircncia estaacute como que ldquoex-

pulsardquo dessa forma de identidade ldquocaiacutedardquo numa alteridade que natildeo estaacute em condiccedilotildees de eli-

minar (que tem como que ldquoatravessadardquo em si etc)

Presa como estaacute a essa irreversiacutevel intromissatildeo da alteridade (como algo estranho que

se lhe impotildee e a determina) a auto-consciecircncia tende por si mesma para uma plenitude de si

que corresponda agrave plena integraccedilatildeo em si daquilo que eacute estranho (ou seja a qualquer coisa

que natildeo eacute a plenitude de que estaacute expulsa agrave partida mas uma plenitude de si com o objecto)

Chamemos agrave primeira plenitude a plenitude anterior (a plenitude do ponto de partida ndash

que na verdade nunca o eacute porque a auto-consciecircncia estaacute sempre jaacute expulsa dela) e chame-

89

Parece ser isto que Hegel quer dizer quando diz a dado passo ldquoEs ist zu sehen wie die Gestalt des

Selbstbewuszligtseins zunaumlchst auftrittrdquo Em contraste com o que disse na secccedilatildeo anterior dedicada agrave

consciecircncia contraste que aqui natildeo nos interessa mais do que assinalar a auto-consciecircncia natildeo apare-

ce a si proacutepria como ldquoeinfache selbstaumlndigerdquo mas aparece (daacute-se a ver etc) com uma forma ldquoAber in

der Tat ist das Selbstbewuszligtsein die Reflexion aus dem Sein der sinnlichen und wahrgenommenen

Welt und wesentlich die Ruumlckkehr aus dem Anderssein (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 1 paacuteg

116) Quer dizer surge na forma da reflexatildeo (no sentido do termo ldquoreflexatildeordquo que reforccedila o aspecto es-

pecular) do ser do mundo sensiacutevel e perceptivo

293

mos agrave segunda plenitude a plenitude do ponto de chegada (para que a auto-consciecircncia tende

enquanto tem o objecto como ldquoatravessadordquo em si)

E se tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada da relaccedilatildeo da auto-consciecircn-

cia consigo mesma correspondem a algo como a plenitude de si (a totalidade de si a plena

identidade consigo a uma identidade que precisamente natildeo deixe nada de fora etc) aquilo

que a detecccedilatildeo de algo de alheio que resiste agrave identidade plena da auto-consciecircncia deixa ver eacute

que a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma daacute consigo aqueacutem do ponto de partida e do

ponto de chegada

Quer isto dizer o seguinte a) soacute o incumprimento da plenitude do ponto de partida faz

com que a auto-consciecircncia se aperceba da sua proacutepria realidade e das suas operaccedilotildees b) logo

que se apercebe de si e das suas operaccedilotildees a auto-consciecircncia daacute consigo a natildeo corresponder

a nada que se pareccedila com uma plenitude de si no ponto de partida (com uma totalidade de si

com uma plena identidade consigo com uma identidade que natildeo deixe nada de fora etc)

Ora poderia ser assim sem que se gerasse deste entendimento da situaccedilatildeo qualquer

problema Isto eacute poderia dar-se o caso de a auto-consciecircncia dar consigo a incumprir a tese da

plenitude que tem inscrita em si mas de tal que o que daiacute resultasse fosse um mero registo

desse incumprimento

Poreacutem o que acontece eacute o contraacuterio

O ponto decisivo eacute que a auto-consciecircncia tende para a sua plenitude

A auto-consciecircncia estaacute por assim dizer sobre uma pressatildeo de plenitude ndash uma pres-

satildeo para ldquoretomarrdquo a plenitude que de facto nunca esteve dada desde o primeiro instante em

que a auto-consciecircncia estabeleceu uma relaccedilatildeo consigo proacutepria (desde que deu consigo etc)

De sorte que natildeo se trata de nenhum ldquoretomarrdquo mas na verdade de alcanccedilar algo que nunca

houve E eacute somente no curso dessa tensatildeo para a plenitude que o objecto sobressai ndash enquanto

o objecto estaacute constituiacutedo em impedimento do cumprimento da tensatildeo para a plenitude que

compotildee a auto-consciecircncia

Ora a esta tensatildeo para a plenitude da auto-consciecircncia Hegel chama ldquodesejordquo90

90

ldquoDieser Gegensatz seiner Erscheinung und seiner Wahrheit hat aber nur die Wahrheit naumlmlich die

Einheit des Selbstbewuszligtseins mit sich selbst zu seinem Wesen diese muszlig ihm wesentlich werden

dh es ist Begierde uumlberhauptrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 1 paacuteg 116-7)

294

Quando Hegel fala de ldquodesejordquo aquilo de que estaacute a procurar dar conta eacute algo muito

diferente do que espontaneamente associamos ao conceito

Em primeiro lugar quando se fala de ldquodesejordquo (de a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consi-

go mesma estar marcada por desejo) desde logo se potildee de parte a possibilidade de a auto-

consciecircncia ser se assim se pode dizer uma forma vaga e transparente ndash uma forma por

preencher sem conteuacutedo etc O que Hegel nos diz eacute que a auto-consciecircncia eacute uma forma com

caraacutecter de densidade ndash e tanto quer dizer eacute uma forma marcada por ter uma identidade de-

terminada a saber por ter a identidade ldquodesejordquo

Tal como o conceito hegeliano de ldquodesejordquo se nos apresenta nos passos aqui em causa

ele marca o modo como estaacute constituiacuteda a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma e as-

sim tambeacutem o conteuacutedo dessa relaccedilatildeo Isto eacute toda a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo

mesma enquanto tende para a plenitude de si estaacute assente sobre a determinaccedilatildeo do desejo

(como tensatildeo para a plenitude de si)

Neste sentido o desejo em causa na concepccedilatildeo de Hegel corresponde a uma tensatildeo de

identidade consigo ndash e na verdade a uma tensatildeo de identidade consigo que natildeo deixe de fora

nada de si (uma tensatildeo de identidade que soacute se cumpre na aquisiccedilatildeo ou na posse de tudo o

que corresponde a essa identidade) Em suma o ldquodesejordquo a que Hegel se refere eacute o ldquodesejo de

sirdquo

Assim e no acircmbito do desejo que marca ou determina a auto-consciecircncia (na sua per-

manente relaccedilatildeo consigo) surge uma segunda entidade (isso precisamente a que Hegel chama

o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia) que desempenha um papel decisivo no desejo Poderiacuteamos

dizer que o objecto da auto-consciecircncia se constitui em objecto do desejo

A este respeito satildeo de assinalar em especial trecircs pontos que parecem particularmente

importantes

Em primeiro lugar tal como vimos a relaccedilatildeo da consciecircncia consigo mesma estaacute mar-

cada por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a si mesma ndash aquilo a que o Hegel da Fe-

nomenologia chama ldquodesejordquo

Em segundo lugar o desejo de que se fala na Fenomenologia natildeo eacute pura e simples-

mente uma classe de formas de comportamento sobre a qual eacute subsumiacutevel uma vasta e hete-

rogeacutenea multiplicidade de tensotildees desiderativas cada uma com a sua origem (a sua direcccedilatildeo e

o seu objecto proacuteprios etc)

295

Este eacute um dos pontos em que o conceito de desejo que encontramos desenhado na Fe-

nomenologia difere substancialmente da concepccedilatildeo mais comum Hegel propotildee um entendi-

mento do desejo na sua relaccedilatildeo com a auto-consciecircncia cujos antecedentes remontam pelo

menos ateacute ao corpus platonicum

Segundo este entendimento em vez de haver multiplicidade de desejos muito variaacute-

veis (que vatildeo e vecircm etc) haacute qualquer coisa como um uacutenico desejo ndash fixo inerente invariaacute-

vel ndash que se funda na proacutepria estrutura da consciecircncia Essa tensatildeo fundamental expressa-se

numa multiplicidade de fluxos desiderativos que estatildeo todos ligados a essa tensatildeo fundamen-

tal de tal modo que todos se propotildeem ndash e soacute fazem sentido ndash como ponto de passagem dela

Quer dizer em uacuteltima anaacutelise deseja-se sempre o mesmo ndash todos os desejos indepen-

dentemente da sua diversidade e das direcccedilotildees que tomam procuram aproximar do mesmo

(vatildeo a caminho do mesmo etc)

Ou como tambeacutem podemos dizer a multiplicidade aparentemente desencontrada e va-

riaacutevel dos desejos corresponde a uma ldquorefracccedilatildeordquo de algo uacutenico resultando em qualquer coisa

como um espectro (excepto que neste caso o efeito da refracccedilatildeo natildeo resulta de haver vaacuterios

elementos a compor aquilo que se decompotildee num espectro antes sucede que eacute uma unidade

original que desencadeia a partir de si mesma como que uma multiplicidade interna de diver-

sos momentos)

Em terceiro lugar como vimos haacute um nexo total entre aquilo que aparece e o desejo

de que a auto-consciecircncia eacute portadora

Na concepccedilatildeo mais comum haacute desejos mais ou menos avulsos Daiacute resulta que satildeo

objectos mais ou menos avulsos que ocasionalmente se tornam objectos de desejo

Aquilo que se descobre na tese de Hegel eacute algo muito diferente a consciecircncia eacute per-

manentemente portadora de desejo e aquilo que encontra interpotildee-se sempre no caminho entre

ela e aquilo para que tende fixando se assim se pode dizer em si aquilo que vai sendo do de-

sejo dela

Neste sentido tudo estaacute no lugar do objecto do desejo e corresponde a qualquer coisa

como a retenccedilatildeo numa determinada posiccedilatildeo relativamente a ele

Ora eacute aiacute que reside o ponto decisivo para se entender de que eacute que Hegel estaacute a falar

quando fala de ldquodesejordquo (ou ldquodesejo de sirdquo) E o ponto eacute o seguinte agrave entidade que Hegel de-

signa como ldquoobjectordquo cabe um papel no cumprimento do desejo

296

Para compreendermos um pouco melhor o que isto quer dizer interessa considerar os

aspectos que se seguem Em especial importa considerar o paradoxo que isso a Hegel chama

ldquoobjectordquo provoca na relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

Eacute que se por um lado o ldquoobjectordquo eacute condiccedilatildeo de possibilidade da constituiccedilatildeo de

ldquodesejordquo por outro no entanto o ldquoobjectordquo eacute condiccedilatildeo de possibilidade de supressatildeo do de-

sejo em cuja constituiccedilatildeo ele proacuteprio colabora

Vejamos um pouco melhor como pode ser assim

A relaccedilatildeo da ldquoauto-consciecircnciardquo com o seu ldquoobjectordquo eacute uma relaccedilatildeo de interlocuccedilatildeo

Mais precisamente a ldquoauto-consciecircnciardquo relaciona-se com o seu ldquoobjectordquo enquanto o ob-

jecto constitui um interlocutor interno ndash na medida em que ele eacute parte (e parte fundamental)

da proacutepria relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

Sendo assim o primeiro aspecto que interessa destacar eacute que como vimos o objecto

da auto-consciecircncia eacute sempre de certo modo uma instacircncia de obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircn-

cia que inibe a plenitude da auto-consciecircncia Isto quer dizer que o objecto se apresenta na

condiccedilatildeo de agente de interferecircncia na relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma enquanto

a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma tende para a plenitude de si mesma

Poreacutem o que Hegel sustenta natildeo eacute apenas que haacute no interior da auto-consciecircncia um

factor de natildeo-plenitude da auto-consciecircncia ndash a natildeo-plenitude que diz precisamente respeito agrave

intromissatildeo do objecto na relaccedilatildeo de si a si na relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

etc Nem estaacute a dizer meramente ndash o que jaacute natildeo seria pouco ndash que a auto-consciecircncia estaacute pos-

ta agrave distacircncia de si (leia-se agrave distacircncia de si enquanto plenitude) pela interferecircncia do objecto

Na verdade o que Hegel afirma eacute que a interferecircncia do objecto mostra justamente

uma intriacutenseca e inexoraacutevel incompletude da auto-consciecircncia na medida em que a auto-

consciecircncia natildeo se vale a si proacutepria (natildeo tem condiccedilotildees no seu proacuteprio acircmbito para se cum-

prir)

Vendo bem o caso de a auto-consciecircncia natildeo se valer a si proacutepria ou natildeo ter condi-

ccedilotildees no seu proacuteprio acircmbito para se cumprir eacute a condiccedilatildeo fundamental de constituiccedilatildeo do de-

sejo

De facto o fenoacutemeno do ldquodesejordquo ndash mesmo no sentido mais comum e quotidiano do

termo ndash tem no seu nuacutecleo este mesmo aspecto Quando nos referimos a algo como um ldquodese-

jordquo aquilo que procuramos assinalar eacute de um uacutenico golpe uma modalidade de incompletude

297

e uma tensatildeo para a superaccedilatildeo da incompletude Poreacutem soacute haacute desejo enquanto a tensatildeo para

a superaccedilatildeo da incompletude natildeo estiver resolvida ndash caso contraacuterio haacute satisfaccedilatildeo posse pre-

enchimento etc

Neste sentido a interferecircncia do objecto ndash que eacute condiccedilatildeo de possibilidade da consti-

tuiccedilatildeo do desejo ndash mostra que a auto-consciecircncia natildeo pode ter o caraacutecter de algo irredutiacutevel ou

encerrado em si mas pelo contraacuterio tem intrinsecamente o caraacutecter de algo aberto

Isto leva-nos ao segundo aspecto Na verdade eacute justamente por via disto que agora

acabamos de expor que o ldquoobjectordquo se constitui em condiccedilatildeo de possibilidade de supressatildeo do

desejo

Tendo em conta o aspecto que vimos exige-se agrave relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo

mesma ndash enquanto estaacute a caminho de cumprir o quesito da plenitude ndash que passe necessaria-

mente pelo objecto O que tudo isto significa eacute que cada momento do desejo ocorre sempre

num plano alheio ou estranho ao plano restrito da auto-consciecircncia Por outras palavras a

relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma natildeo se cumpre no domiacutenio exclusivo da auto-

consciecircncia ndash cumpre-se de facto no domiacutenio do ldquoobjectordquo

Ora a relaccedilatildeo de plenitude para que a auto-consciecircncia originalmente tende exige o

recurso a meios e instrumentos de realizaccedilatildeo que ela mesma natildeo possui ndash recorre a ldquoconteuacute-

dosrdquo que lhe escapam que lhe satildeo alheios depende do que estiver disponiacutevel do que aparece

obriga a recorrer a conteuacutedos que fazendo parte da auto-consciecircncia (no sentido de que estatildeo

no seu domiacutenio na sua esfera etc) lhe resistem satildeo heterogeacuteneos em relaccedilatildeo a ela etc

Comeccedila assim a ficar mais clara a natureza da relaccedilatildeo ou do nexo entre auto-consciecircn-

cia e objecto

E o que se comeccedila a compreender eacute que o domiacutenio da auto-consciecircncia abarca ou

abrange o domiacutenio do ldquoobjectordquo na medida em que eacute no domiacutenio do objecto ndash que note-se

bem se encontra no ldquointeriorrdquo da auto-consciecircncia que a invade no seu proacuteprio cerne etc ndash

que a auto-consciecircncia tem possibilidades de efectivamente se cumprir (tem possibilidades de

obter a sua plenitude)

Ora sendo assim a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma (a relaccedilatildeo de si a si o

lidar consigo mesmo a caminho da plenitude de si etc) implica uma transitividade (um factor

de cruzamento ou de intercepccedilatildeo ndash esse factor que faz da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo

mesma uma relaccedilatildeo centriacutefuga) que depotildee num plano distinto (implica lidar com as ldquocoisasrdquo

298

ie com aquilo que eacute radicalmente diferente de si) E implica lidar com elas enquanto mo-

mento do lidar consigo

Tudo isto significa que a tarefa da auto-consciecircncia passa por ldquodescobrirrdquo a situaccedilatildeo

concreta em que daacute consigo (o ldquoobjectordquo com que se confronta) e passa por incorporar a situa-

ccedilatildeo concreta em que se estaacute ndash ie passa por tornaacute-la possibilidade de soluccedilatildeo da relaccedilatildeo de si

a si Este eacute um ponto a que daremos atenccedilatildeo mais tarde

Por agora o que interessa reforccedilar eacute o seguinte o que estaacute expresso no conceito hege-

liano de ldquoobjectordquo eacute que o objecto eacute isso que eacute chamado a preencher a relaccedilatildeo da auto-cons-

ciecircncia consigo mesma A auto-consciecircncia tem a sua proacutepria identidade formada a partir do

objecto (tem a sua identidade preenchida pelo objecto ie pelo que aparece pelo que estaacute

disponiacutevel etc)

Poderia dizer-se a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma passa por outro ndash por

algo radicalmente diferente de si Ou como tambeacutem poderiacuteamos dizer a identidade da auto-

consciecircncia cumpre-se em ldquoterritoacuterio hostilrdquo

Acontece que o objecto da auto-consciecircncia natildeo corresponde nem por um lado a uma

uacutenica forma de obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircncia (pelo contraacuterio assume uma imensa varieda-

de de formas de obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircncia) nem por outro a uma uacutenica forma de pre-

enchimento de identidade da auto-consciecircncia (pelo contraacuterio assume uma imensa variedade

de formas de preenchimento de identidade da auto-consciecircncia)

A relaccedilatildeo ao objecto ndash enquanto o objecto corresponde a um momento da relaccedilatildeo da

auto-consciecircncia consigo mesma posta sob uma tensatildeo de plenitude ndash assenta sobre uma ex-

pectativa de preenchimento dessa relaccedilatildeo Isto eacute o objecto estaacute fundamentalmente definido

pelo facto de se inscrever num ldquoterritoacuteriordquo pressionado pelo desejo

Este eacute o aspecto que agora teremos de considerar

O objecto (o que aparece o que estaacute disponiacutevel etc) tem ou natildeo capacidade para

cumprir a expectativa de preenchimento da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma (eacute ou

natildeo capaz de satisfazer e portanto suprimir o desejo etc) Mas seja como for as funccedilotildees

atribuiacutedas ao ldquoobjectordquo satildeo as funccedilotildees de horizonte de satisfaccedilatildeo do desejo de ldquosirdquo

Haacute se assim o podemos dizer um factor de expropriaccedilatildeo ndash factor que faz que o objec-

to esteja privado da sua mera identidade consigo mesmo e esteja marcado por uma relaccedilatildeo

centriacutefuga agrave auto-consciecircncia em relaccedilatildeo agrave qual estaacute

299

Quer dizer a auto-consciecircncia eacute um factor determinante do objecto na medida em

que para se cumprir o desejo de plenitude que estaacute no nuacutecleo da auto-consciecircncia recorre a

ldquoconteuacutedosrdquo que escapam ao acircmbito restrito de si (ao que aparece ao que estaacute disponiacutevel

etc) mas isso de tal modo que o objecto adquire as suas determinaccedilotildees sempre jaacute no meio do

tracircnsito do desejo de plenitude da auto-consciecircncia (e de facto como momento desse transi-

to)

Em qualquer caso aquilo que estamos a procurar sublinhar a partir desta breve anaacutelise

de Hegel eacute o seguinte a relaccedilatildeo ao ldquoobjectordquo (a relaccedilatildeo agraves ldquocoisasrdquo ao que aparece etc) natildeo

se esgota no proacuteprio ldquoobjectordquo (no quadro das proacuteprias ldquocoisasrdquo no quadro do que mera-

mente aparece etc) como algo desligado de qualquer outro elemento ou factor A relaccedilatildeo ao

ldquoobjectordquo (agraves ldquocoisasrdquo a tudo o que aparece etc) estaacute integrada na relaccedilatildeo da auto-cons-

ciecircncia consigo mesma Estaacute aliaacutes de tal modo integrada na relaccedilatildeo da auto-consciecircncia con-

sigo mesma que a forma que o ldquoobjectordquo (as ldquocoisasrdquo tudo o que aparece etc) adquire eacute jus-

tamente a forma de um momento dessa relaccedilatildeo de si a si

Dito de outro modo poderiacuteamos supor que tudo isto seria tal como vimos mas sem

que isso afectasse significativamente o que aparece Poderiacuteamos supor aquilo algo como uma

ldquoquietude do objectordquo (posto na pura posiccedilatildeo de si) Isto eacute poderiacuteamos supor que o que apare-

ce estaacute meramente ldquoaiacuterdquo e que uma qualquer relaccedilatildeo com a auto-consciecircncia eacute meramente su-

perveniente (algo adicional mas que se retirado deixaria as ldquocoisasrdquo tal como elas ldquosatildeordquo)

Ou seja poderia acontecer que a determinaccedilatildeo do desejo fosse apenas algo como um

invoacutelucro de que as ldquocoisasrdquo se revestem Nesse caso a determinaccedilatildeo relativa ao desejo da

consciecircncia seria um mero excesso (um acrescento algo mais etc) aposto a determinaccedilotildees

ldquocoisaisrdquo que manteriam o seu caraacutecter absoluto

O que estamos a ver no entanto eacute o oposto

Em primeiro lugar a relaccedilatildeo que temos ao ldquoobjectordquo (agraves ldquocoisasrdquo a tudo o que apare-

ce etc) natildeo estaacute constituiacuteda de tal modo que nos deponha sem mais perante elas A determi-

naccedilatildeo do que aparece (de tudo o que aparece no plano do ldquoobjectordquo) natildeo corresponde apenas a

uma mera determinaccedilatildeo ldquoobjectivardquo ou ldquocoisalrdquo Isto eacute algo que jaacute vimos mas a que agrave luz dos

novos desenvolvimentos interessa rever

Podemos dizer o seguinte para aleacutem da relaccedilatildeo meramente ldquocoisalrdquo (para aleacutem da re-

laccedilatildeo com o ldquoobjectordquo isolado de qualquer outro factor ou determinaccedilatildeo) a relaccedilatildeo com o que

ldquoobjectordquo estaacute imersa num momento fundamental de desejo de si De facto cada uma das

300

ldquocoisasrdquo (tudo o que aparece) enquanto aparece no plano do objecto aparece englobada ou

tida no desejo em causa ndash eacute por assim dizer parte desse desejo

Para o dizer de uma forma ainda mais inequiacutevoca o ldquoobjectordquo soacute se constitui em ldquoob-

jectordquo enquanto momento ou parte do desejo ndash e natildeo se constituiria em ldquoobjectordquo tal como haacute

para noacutes se natildeo houvesse desejo

Em segundo lugar essa relaccedilatildeo eacute impossiacutevel de anular Natildeo estamos em condiccedilotildees de

estabelecer qualquer modalidade de acesso ao que aparece que natildeo esteja marcada por uma

relaccedilatildeo deste geacutenero

De tudo isto resulta que a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma implica a radi-

cal anulaccedilatildeo do objecto na sua independecircncia Cada ldquocoisardquo que aparece caracteriza-se preci-

samente pela transitividade natildeo vale por si soacute natildeo tem sentido como algo absoluto encerra-

do em si etc Cada ldquocoisardquo ocorre sempre jaacute referido a um para-laacute-de-si (no caso a um de-

sejo-para-laacute-de-si que eacute posto pela auto-consciecircncia) Em suma cada ldquocoisardquo (tudo o que

aparece) tem sempre jaacute forma de desejo

E se quisermos considerar que efeito isso gera sobre o que aparece consideremos o se-

guinte

Tendemos habitualmente a supor que o modo como acedemos agraves ldquocoisasrdquo correspon-

de em geral ao modo como as ldquocoisasrdquo realmente ldquosatildeordquo

Nesse sentido tendemos a presumir que o acesso em que estamos constituiacutedos eacute um

acesso que meramente acompanha as ldquocoisasrdquo que as medidas das ldquocoisasrdquo como que se im-

potildeem ao nosso ponto de vista ndash que em suma o acesso em que estamos constituiacutedos eacute um

acesso que acompanha de forma transparente a medida das proacuteprias ldquocoisasrdquo Em suma o

contraste entre as ldquocoisasrdquo resultaria das caracteriacutesticas proacuteprias das ldquocoisasrdquo

Acontece que natildeo eacute assim Acontece que o desejo impotildee a sua proacutepria medida

O contraste das ldquocoisasrdquo umas com as outras resulta das caracteriacutesticas proacuteprias das

ldquocoisasrdquo enquanto as ldquocoisasrdquo e as suas caracteriacutesticas proacuteprias estatildeo em referecircncia ao de-

sejo em que de cada vez estatildeo (enquanto estatildeo em referecircncia agravequilo que determina a sua

identidade funcional)

Na verdade as ldquocoisasrdquo que aparecem satildeo ldquounidadesrdquo complexas ndash envolvem uma

multiplicidade de momentos formam um todo de diferenccedilas etc E o que se passa eacute o que as

ldquocoisasrdquo tecircm de raiz a forma do desejo ligado agrave relaccedilatildeo de si a si e portanto estatildeo intrinse-

301

camente associadas ao curso desse desejo (satildeo partes ou ldquoepisoacutediosrdquo singulares desse dese-

jo)

Isto quer dizer o seguinte as ldquocoisasrdquo aparecem sempre jaacute tendo no nuacutecleo do seu apa-

recimento a resposta agrave pergunta que papel desempenha x em relaccedilatildeo ao desejo

O que estamos a procurar salientar eacute que na determinaccedilatildeo do que aparece a medida

ou o padratildeo do desejo eacute um factor determinante O desejo funciona de certo modo como

uma grelha ou um factor de correcccedilatildeo

Neste sentido a apresentaccedilatildeo das ldquocoisasrdquo eacute correlato de uma rede de relaccedilotildees que as

diferentes ldquocoisasrdquo estabelecem com o desejo a que todas se referem

O que isto mostra eacute que as relaccedilotildees entre as diferentes ldquocoisasrdquo eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo

atravessada por esta referecircncia a um desejo que as excede Em suma o modo do desejo (o

modo como acedemos agraves ldquocoisasrdquo) modifica-as no seu interior afecta as proacuteprias determina-

ccedilotildees ldquocoisaisrdquo De sorte que as determinaccedilotildees tidas por ldquocoisaisrdquo ndash o que tomamos por proacute-

prio dos ldquoobjectosrdquo ndash satildeo na verdade o resultado da projecccedilatildeo e estatildeo na dependecircncia do

ldquopapelrdquo que desempenham na ldquopeccedilardquo do desejo de si

Quer dizer o objecto define-se como componente da auto-consciecircncia na sua relaccedilatildeo

consigo mesma ndash ou mais precisamente assume um papel na demanda de si (ie na deman-

da da plenitude de si) de que a auto-consciecircncia eacute portadora

Em uacuteltima anaacutelise eacute isso que quer dizer ser o ldquonegativordquo da auto-consciecircncia ao mes-

mo tempo quer dizer a) ser o limite em que se manifesta a distacircncia a que a auto-consciecircncia

estaacute da plenitude de si e b) ser o ldquolugarrdquo onde estaacute em jogo a alternativa entre a retenccedilatildeo nesse

limite (continuar a ficar aqueacutem da plenitude de si) e a supressatildeo do limite (a transformaccedilatildeo do

objecto da consciecircncia em algo correspondente agrave plenitude dela)

Percebemos assim que tal como eacute descrito neste passo o objecto significa ao mesmo

tempo o lugar funcional deste drama de si (onde se joga a alternativa com todas as suas peri-

peacutecias) e os diferentes preenchimentos concretos deste lugar funcional (que fazem que o ldquodra-

ma de sirdquo esteja de cada vez neste e naquele peacute neste ou naquele ponto de desenvolvimento

da demanda da plenitude de si)

Visto isto devemos fazer notar que esta batida por Hegel natildeo significa de modo ne-

nhum que as perspectivas em jogo ndash a de Hegel (sc a da auto-consciecircncia descrita por Hegel)

e aquela que aqui procuramos desenhar sejam coincidentes

302

Basta comparar a caracterizaccedilatildeo do papel protagonista atribuiacutedo num caso agrave consci-

ecircncia (ie agrave auto-consciecircncia) e no outro caso agrave ldquotestemunha globalrdquo do aparecimento para

se perceber que jaacute importantes diferenccedilas de matriz O mesmo se pode tambeacutem dizer por

exemplo em relaccedilatildeo agrave categoria do desejo tal como eacute apresentada por Hegel e aquilo que

procuraacutemos pocircr em evidecircncia sobre o fenoacutemeno da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e as suas carac-

teriacutesticas

Mas o que importa eacute que nada disto impede que aquilo que se encontra formulado por

Hegel nos passos que focaacutemos ajude a desenhar com mais nitidez a forma que como procuraacute-

mos mostrar o aparecimento e a experiecircncia tecircm em noacutes

Tudo se passa como se ao pormos o nosso esboccedilo de descriccedilatildeo contra o fundo das

anaacutelises de Hegel isso produzisse ao mesmo tempo o efeito de vincar mais o que haacute de co-

mum e de fazer aparecer o que haacute de diferente contribuindo assim para o apuramento dos tra-

ccedilos

Munidos destes elementos podemos agora passar a uma exploraccedilatildeo do terceiro aspec-

to

sect34

O caraacutecter natildeo-punctiforme ou natildeo-estigmaacutetico do ponto de vista a natildeo-indiferenccedila ao

que seraacute e a flexatildeo do si-mesmo na forma de uma prescriccedilatildeo indefinida de si

Antes de mais importa-nos considerar uma componente implicada em tudo isto que

ainda precisa de ser explicitada e posta sob foco ndash ateacute mesmo porque natildeo soacute eacute indispensaacutevel

tecirc-la presente se se quiser compreender a natureza e as implicaccedilotildees da tensatildeo de natildeo-indife-

renccedila que perpassa todo o aparecimento em que damos connosco como para aleacutem disso ela

eacute tambeacutem essencial para se perceber a constituiccedilatildeo do fenoacutemeno da vida (daquilo que estaacute em

causa quando se fala de ldquoexperiecircncia da vidardquo)

Essa componente que ainda falta considerar tem que ver com aquilo que podemos

descrever como o caraacutecter natildeo-punctiforme ou natildeo-estigmaacutetico do ponto de vista (sc da ldquotes-

temunha globalrdquo) cuja natildeo-indiferenccedila a si mesmo gera tudo aquilo que se tentou descrever

303

Vejamos em primeiro lugar o que eacute que se quer dizer quando se fala do caraacutecter natildeo-

punctiforme ou natildeo-estigmaacutetico da ipseidade (sc da testemunha enquanto justamente natildeo eacute

apenas uma testemunha mas algo que estaacute em causa ndash e estaacute em causa no que aparece em tu-

do o que aparece etc)

Observaacutemos que a unidade da ldquotestemunha globalrdquo tem um caraacutecter tal que lhe permi-

te constituir-se em ponto de convergecircncia ndash no foco de qualquer coisa como uma compraeligsen-

tia omnium O desempenho dessas funccedilotildees significa jaacute por si soacute que natildeo se trata de algo

simples ndash que se assim se pode dizer tem uma ldquocapacidaderdquo a perder de vista etc

Poreacutem essa perspectiva natildeo permite perceber (e se natildeo der lugar a mais nada faz per-

der de vista) a dimensatildeo ndash a tensatildeo interna ndash em virtude da qual a testemunha global de que

estamos a falar tem o caraacutecter de um horizonte (e na verdade ateacute de um horizonte indefini-

damente extenso)

Comecemos por analisar este peculiar fenoacutemeno a partir da sua ligaccedilatildeo com a proacutepria

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que prende a testemunha global a si mesma

A dedicaccedilatildeo (a natildeo-neutralidade o fazer caso de si etc) natildeo estaacute fechada numa

ocorrecircncia uacutenica punctiforme de si Sucede em vez disso que estaacute ligada a uma peculiar

modalidade de flexatildeo de si ndash e tanto quer dizer de multiplicaccedilatildeo de si

Por um lado natildeo sucede que o si-mesmo a que a testemunha natildeo eacute indiferente (o si-

mesmo a que estaacute dedicada de que faz caso etc) seja apenas aquele que eacute num dado momen-

to numa ocorrecircncia absolutamente fechada e desligada do que quer que seja para laacute do mo-

mento dado Sucede o contraacuterio a natildeo-indiferenccedila da ldquoprimeira pessoardquo a si mesma eacute tal que

inclui jaacute tambeacutem natildeo-indiferenccedila agravequilo que se passaraacute consigo

Poderia dar-se o caso de a relaccedilatildeo de si a si ndash e uma relaccedilatildeo de si a si constituiacuteda no

modo do interesse por si da natildeo-neutralidade a si da natildeo-indiferenccedila a si etc ndash se esgotar

na ocorrecircncia de si num dado momento de tal modo que essa ocorrecircncia de si estivesse com-

pletamente isolada de (ou natildeo abrisse qualquer horizonte sobre) outras eventuais ocorrecircncias

de si

Nesse caso a relaccedilatildeo de si a si teria uma constituiccedilatildeo avulsa (ie estaria constituiacuteda

de tal modo que seria completamente alheia independente ou autoacutenoma de qualquer outra

eventual ocorrecircncia de si) Em suma poderia dar-se o caso de natildeo haver entre diversas ocor-

recircncias de si qualquer nexo de continuidade

304

Contudo natildeo eacute isso que se desenha

Vendo bem se cada ocorrecircncia de si fosse algo totalmente solto (isolado separado

etc) de qualquer outra eventual ocorrecircncia de si isso corresponderia a uma anulaccedilatildeo da possi-

bilidade da diversidade de ocorrecircncias de si

Quer dizer por um lado as ocorrecircncias de si seriam necessariamente diferentes entre

si ndash quanto mais natildeo fosse pelo facto de ocuparem posiccedilotildees diferentes no continuum espaacutecio-

temporal No entanto e uma vez que cada uma delas natildeo teria qualquer perspectiva para laacute de

si natildeo soacute natildeo teriam qualquer noccedilatildeo de outras ocorrecircncias de si como natildeo teriam qualquer

noccedilatildeo das diferenccedilas entre as diversas ocorrecircncias

Adicionalmente isso corresponderia tambeacutem a uma anulaccedilatildeo da possibilidade de su-

cessatildeo de ocorrecircncias entre si

Quer dizer por um lado as ocorrecircncias suceder-se-iam (ie estariam dispostas num

quadro de disposiccedilatildeo temporal de tal modo que uma viria antes ou depois de outra etc) Po-

reacutem por outro lado e na medida em que estariam totalmente encerradas em si mesmas as di-

versas ocorrecircncias de si natildeo estariam articuladas por qualquer nexo de sucessatildeo entre si ndash de

tal modo que o que resultaria seria algo muito diferente de uma ldquosucessatildeordquo ou de ldquocontinuida-

derdquo

O que se desenha entatildeo eacute que cada ocorrecircncia de si estaacute em tensatildeo para laacute de si mes-

ma ndash no caso cada ocorrecircncia singular de si estaacute numa tensatildeo em relaccedilatildeo a uma outra ocor-

recircncia singular de si que lhe suceda (ie que herde a ocorrecircncia de si anterior e se constitua

como continuaccedilatildeo do ldquosirdquo) Dito de outro modo cada ocorrecircncia de si natildeo eacute senatildeo uma

ocorrecircncia de si intermediaacuteria ou transitiva ndash uma ocorrecircncia no meio de ocorrecircncias de si

que herdam da ocorrecircncia de si anterior e que estatildeo em tensatildeo para a ocorrecircncia de si subse-

quente

Ora visto a partir deste acircngulo o interesse por si (a natildeo-neutralidade a si da natildeo-in-

diferenccedila a si etc) corresponde na verdade a um interesse (natildeo-neutralidade natildeo-indiferen-

ccedila etc) pela continuaccedilatildeo de si (pela recorrecircncia de si pela prossecuccedilatildeo de si etc) Assim a

natildeo-indiferenccedila da ldquoprimeira pessoardquo (da ldquotestemunha globalrdquo) a si mesma inclui uma natildeo-in-

diferenccedila ao que seraacute

Pois a) a sua identidade eacute tal que projecta (prescreve encomenda etc) mais de si

(qualquer coisa como ldquosi mesmo a haverrdquo um ldquosi mesmo que deve serrdquo etc) e b) essa articu-

laccedilatildeo de si mesma na projecccedilatildeo de si (nesse espraiar de si nessa duplicaccedilatildeo de si no si-mes-

305

mo-a-haver etc) estaacute dominada pela absoluta mesmidade entre o si-que-jaacute-eacute e o si-a-haver

e por isso estende a dedicaccedilatildeo de si e faz dela uma dedicaccedilatildeo de si a esse si-a-haver (como

fazendo jaacute caso disso) a dedicaccedilatildeo a si-mesmo-jaacute eacute uma dedicaccedilatildeo a si-mesmo-a-haver de

sorte que c) a flexatildeo do si aqui em causa a projecccedilatildeo de si-a-haver tem de raiz a forma da

natildeo-indiferenccedila (da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila) que assim assume a dimensatildeo alargada que a

ldquoflexatildeo de sirdquo confere agrave ldquotestemunha globalrdquo

Ora vendo bem natildeo haacute pura e simplesmente a flexatildeo do si noutras instacircncias de si (a

projecccedilatildeo) que confere agrave testemunha global sempre jaacute o caraacutecter de antecipaccedilatildeo de si mesma

de antecipaccedilatildeo de uma testemunha-global-a-haver ndash ou mais precisamente da mesma-teste-

munha-global-a-haver O ponto decisivo eacute que a flexatildeo da ldquotestemunha globalrdquo (a multiplica-

ccedilatildeo em mais si-a-haver mais si-a-haver e assim sucessivamente) tem sempre jaacute um caraacutecter

gerundivo ou deocircntico

Isto eacute natildeo se trata pura e simplesmente de algo que pode ser (mas tambeacutem pode natildeo

ser) de tal modo que se eacute totalmente indiferente a esta alternativa

Trata-se de uma projecccedilatildeo que de raiz tem uma forccedila deocircntica e prescreve o si-mes-

mo-a-haver dedica a esse si-mesmo-a-haver e faz dele o principal ponto de aplicaccedilatildeo em que

se depotildee (ou em que ldquodesaguardquo) a natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha globalrdquo a si mesma

Por outras palavras a relaccedilatildeo de si a si estaacute constituiacuteda de tal modo que antecipa o

seu ldquoporvirrdquo ndash de tal modo que o que viraacute a ser jaacute estaacute por assim dizer em causa no que eacute (e

nesse sentido jaacute estaacute a ldquoserrdquo ainda natildeo sendo jaacute estaacute a ldquoserrdquo estando ainda por vir a ser jaacute

estaacute ldquode veacutesperardquo a desempenhar um papel etc)

Em suma o ldquosirdquo natildeo eacute de modo nenhum imune agrave sua proacutepria possibilidade

Muito pelo contraacuterio o ldquosirdquo que jaacute haacute nunca eacute radicalmente alheio ao si-a-haver

(nunca tem o caraacutecter de um ldquosirdquo esgotado no que ldquoeacuterdquo que natildeo tenha qualquer perspectiva so-

bre a sua possibilidade e que seja indiferente a ela etc)

Para percebermos melhor tudo isto conveacutem considerar separadamente os diferentes

momentos envolvidos nesta constelaccedilatildeo de fenoacutemenos ndash mesmo que aquilo que os caracterize

seja o facto de ocorrerem como momentos inseparaacuteveis de um todo constituiacutedo de tal modo

que todos eles estatildeo intrinsecamente envolvidos uns nos outros

Um dos momentos do complexo eacute aquilo a que chamaacutemos a flexatildeo de si

306

Poderia haver algo como uma testemunha global formada de tal modo que carecesse

de dimensatildeo

Como vemos uma ldquotestemunha globalrdquo que carecesse de dimensatildeo seria algo muito

diferente da testemunha global que se acha constituiacuteda no nosso caso ndash pois a testemunha glo-

bal que se acha constituiacuteda no nosso caso desempenha essas funccedilotildees precisamente porque en-

volve sempre jaacute a ldquoexplosatildeordquo numa multiplicidade muito numerosa de instacircncias de si

O que eacute decisivo eacute que tanto a proacutepria ldquomultiplicaccedilatildeordquo ndash a abertura da pluralidade de

instacircncias de si ndash quanto o facto de toda essa multiplicidade estar dominada pelo viacutenculo faz

de todas elas instacircncias ldquode sirdquo (do ldquomesmordquo si)

Por outro lado natildeo eacute menos decisivo que esta ldquoexplosatildeordquo mediante a qual a testemu-

nha forma um horizonte de flexatildeo de si tenha um caraacutecter gerundivo a multiplicidade de ins-

tacircncias de si eacute prescrita ou surge agrave proacutepria testemunha como algo que importa ndash que decidida-

mente e sumamente importa ndash que se cumpra

Por outras palavras a antecipaccedilatildeo de si estaacute empenhada no cumprimento daquilo de

que eacute antecipaccedilatildeo ndash estaacute votada a isso dedicada a isso etc De tal modo que a dedicaccedilatildeo a si

mesma da ldquotestemunha globalrdquo (sc da ipseidade) eacute sempre jaacute uma dedicaccedilatildeo justamente a

isso ou como tambeacutem podemos dizer o ldquofazer caso de sirdquo eacute sempre jaacute um fazer caso da con-

tinuaccedilatildeo de si (ou do si-mesmo-a-haver)

O que assim se descreve eacute um fenoacutemeno de natureza muito peculiar ndash e eacute este fenoacuteme-

no de natureza muito peculiar com esta dimensatildeo e estas caracteriacutesticas que eacute posto a rever-

berar na totalidade daquilo que aparece de tal modo que essa totalidade eacute sempre protagoni-

zada por algo com estas dimensotildees e com estas caracteriacutesticas

Mas tambeacutem isto ainda natildeo eacute tudo

Com efeito poderia ser assim mas de tal modo que a extensatildeo daquilo que confere di-

mensatildeo agrave ldquotestemunha globalrdquo e faz que seja ela proacutepria um horizonte fosse apesar de tudo

uma extensatildeo limitada

Isto eacute poderia acontecer que a ldquotestemunha globalrdquo estivesse constituiacuteda como anteci-

paccedilatildeo de si (com a forma de uma flexatildeo de si ndash de um si gerundivo que deve ser que importa

que seja que estaacute em causa que seja etc) soacute dentro de um certo intervalo que acabasse por

se esvair por deixar de ser algures (esgotando-se a flexatildeo e a pressatildeo gerundiva que a acom-

panha e a alimenta etc)

307

Acontece que natildeo eacute assim

A particularidade da relaccedilatildeo que a testemunha global tem consigo eacute justamente tal que

a flexatildeo que estaacute em causa quando se fala de ldquoantecipaccedilatildeordquo de si continua indefinidamente

Eacute se o podemos dizer assim uma tensatildeo croacutenica perpeacutetua E eacute uma tensatildeo constituiacuteda deste

modo (ie com esta extraordinaacuteria amplitude) precisamente por forccedila da tensatildeo de natildeo-indi-

ferenccedila (da forccedila ou violecircncia do caraacutecter como que inesgotaacutevel da pressatildeo de interesse que

liga o si a si mesmo)

Agrave primeira vista tal afirmaccedilatildeo pode parecer estranha pois por razotildees que natildeo cabe

aqui averiguar parece evidente a) que o ldquosirdquo natildeo pode continuar indefinidamente e b) que de

todo o modo a amplitude da continuaccedilatildeo de si com que de cada vez estaacute em efectivo contacto

ndash a que de facto se reporta em cada momento da travessia que faz ndash eacute limitada (soacute vai ateacute cer-

to ponto soacute abrange um certo intervalo ou uma certa ldquoclareirardquo de si-mesmo-a-haver etc)

Mas vendo bem esta impressatildeo acaba por se revelar enganadora

A forccedila da projecccedilatildeo gerundiva de si-a-haver que estaacute implicada na peculiar consti-

tuiccedilatildeo da testemunha global eacute tanta (ou eacute tal) que natildeo se esgota em nenhum termo limitado ndash

prossegue sempre indefinidamente

Quer dizer na sua relaccedilatildeo consigo o si-mesmo projecta uma flexatildeo que tem a forma

de um ldquosempre-maisrdquo

O si natildeo se limita a ldquomandar virrdquo mais si (mais ldquosi mesmo a haverrdquo) ou a ldquoprescreverrdquo

mais si ndash um quantum disso Na verdade o que o caracteriza eacute projectar sempre mais si ndash

mandar vir (prescrever encomendar etc) sempre mais si de tal modo que a constituiccedilatildeo ge-

rundiva de um si-mesmo-a-haver corresponde por assim dizer a uma explosatildeo de algo pura e

simplesmente sem limite ndash pura e simplesmente sem de-fora (sem ldquopara laacute de sirdquo)

Embora seja muito difiacutecil apurar que determinaccedilatildeo estaacute posta por cada um a definir a

sua proacutepria ipseidade essa determinaccedilatildeo eacute tudo menos vazia e daacute lugar agrave dedicaccedilatildeo a si mes-

mo agrave forccedila torrencial do interesse por si (de fazer caso de si mesmo etc) ndash e isto de tal modo

que essa forccedila torrencial de interesse por si desencadeia a ldquoexplosatildeordquo do extraordinaacuterio gerun-

divo dimensional que tatildeo incisivamente se acha expresso na formulaccedilatildeo ldquoI am too ME to

die91

91

Schulz C The complete peanuts Vol 5 1959-1960 New York 2006

308

A peculiar forccedila que vem de se tratar de si (ie de tratar-se de mim na primeira pes-

soa do mea res agitur etc) empresta agrave projecccedilatildeo de si um caraacutecter gerundivo e faz que a

inesgotabilidade que acabamos de referir seja justamente uma inesgotabilidade gerundiva ndash e

que venha desta uacuteltima a ligaccedilatildeo com nada menos do que a ldquototalidade totalrdquo do si mesmo (a

totalidade sem resto que nada deixa de fora etc)92

92

Assim a ipseidade natildeo tem a forma de uma siacutentese sucessiva que vai formando instacircncias de si ndash

que constitui como instacircncias precisamente por via de uma siacutentese de identificaccedilatildeo (de tal modo que a

siacutentese eacute de certo modo superveniente a essas instacircncias) A ipseidade tem a forma de uma explosatildeo

com as caracteriacutesticas e a amplitude que procuraacutemos descrever tem a forma de uma totalidade indefi-

nida

Eacute claro que essa totalidade indefinida tem de ser ldquoreactivadardquo a cada instante ndash a explosatildeo de totalida-

de tem de ser relanccedilada em cada momento da travessia perceptiva da doaccedilatildeo de si Caso contraacuterio dei-

xaria de ter lugar a cada novo instante Mas eacute preciso ter em atenccedilatildeo a) que se trata de uma reactiva-

ccedilatildeo da explosatildeo da totalidade (natildeo pura e simplesmente da agregaccedilatildeo de mais um elo de pequenas di-

mensotildees na cadeia do si) b) que essa totalidade que de cada vez eacute relanccedilada tem a forma de um cum-

primento da totalidade que jaacute era que estava projectada ndash de sorte que a travessia natildeo eacute vivida de su-

cessivas formas de ocorrecircncia de si mas como travessia da totalidade que (desde sempre) estava e con-

tinuaraacute a estar em causa ateacute ao fim

Tambeacutem podemos exprimir isto a partir de um conceito de Kant dizendo que a ipseidade eacute uma uni-

dade originariamente sisteacutemica Quer dizer o que eacute original nela eacute uma determinaccedilatildeo Acontece que

essa determinaccedilatildeo tem um conteuacutedo tal que natildeo se esgota em algo simples Essa determinaccedilatildeo impli-

ca pelo contraacuterio uma multiplicidade de instacircncias (de tal modo que a multiplicidade vem da determi-

naccedilatildeo ndash da peculiar unidade em causa ndash ie a multiplicidade vem do caraacutecter intrinsecamente multi-

plicativo da determinaccedilatildeo em causa) A multiplicaccedilatildeo vem de a unidade ser se assim se pode dizer

algo intrinsecamente diffusivum sui Isto eacute no caso da ipseidade ndash e natildeo tratamos aqui de averiguar o

que se passa noutros casos ndash a multiplicidade originariamente sinteacutetica em causa potildee a partir de si

uma explosatildeo com as caracteriacutesticas que se procurou descrever

Tambeacutem importa natildeo esquecer um outro aspecto decisivo

A siacutentese da ipseidade caracteriza-se por envolver de raiz uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila ndash e na ver-

dade uma explosatildeo de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila Quer dizer natildeo ocorre apenas facticamente uma

multiplicaccedilatildeo ndash essa multiplicaccedilatildeo estaacute associada a uma ldquoforccedila gerundivardquo a uma pressatildeo gerundiva

etc Ou seja a proacutepria unidade originariamente sinteacutetica posta na ldquoSetzungrdquo da ipseidade natildeo eacute ape-

nas fonte de multiplicaccedilatildeo das suas instacircncias ndash eacute ao mesmo tempo fonte da pressatildeo gerundiva que

as perpassa (a qual por outro lado como vimos eacute uma pressatildeo de superlativaccedilatildeo nos vaacuterios sentidos

que tentaacutemos por em evidecircncia) Ora este eacute um ponto essencial Poderia haver instanciaccedilatildeo da ipsei-

dade (uma unidade originariamente sinteacutetica do tipo referido) sem qualquer componente de natildeo-indife-

renccedila ou pressatildeo gerundiva Se por um lado natildeo fazemos a mais remota ideia do que lhe corresponde-

ria por outro no entanto natildeo se estaacute em condiccedilotildees de negar essa possibilidade No nosso caso a pres-

satildeo gerundiva ou a natildeo-indiferenccedila eacute introduzida por isso mesmo que tambeacutem introduz a siacutentese Ou

melhor a proacutepria siacutentese eacute intrinsecamente habitada pela pressatildeo gerundiva e por uma tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila dirigida a nada menos que o superlativo Ora daiacute resulta um aspecto que nunca eacute de

309

Percebemos ateacute que ponto eacute assim se olharmos atentamente para o que se passa quan-

do algueacutem reconhece a dimensatildeo limitada da sua ldquoesperanccedila de vidardquo

Com efeito qualquer delimitaccedilatildeo do curso expectaacutevel da vida proacutepria tem uma forma

tal que potildee o termo do intervalo correspondente a essa delimitaccedilatildeo no quadro de uma projec-

ccedilatildeo de si que na verdade vai mais aleacutem ndash muito mais aleacutem ndash desse termo

Por outras palavras a delimitaccedilatildeo do intervalo correspondente agrave vida proacutepria faz-se

como travagem da projecccedilatildeo de si ndash de tal modo que a projecccedilatildeo vai muito mais aleacutem do que

o termo fixado

Isto eacute assim porque a forma proacutepria da projecccedilatildeo de si-mesmo-a-haver conjuga duas

determinaccedilotildees que agrave primeira vista podem parecer contraditoacuterias Ou como tambeacutem pode-

mos dizer isto eacute assim porque a forma proacutepria da projecccedilatildeo implica qualquer coisa como uma

ldquocolisatildeordquo de totalidades

Por um lado tem um caraacutecter tal que a ldquoprescriccedilatildeo de sirdquo (a amplitude da projecccedilatildeo

de si-mesmo-a-haver ndash a amplitude daquilo a que chamaacutemos a flexatildeo de si mesmo ou a ampli-

tude de si de que o si eacute constitutivamente antecipaccedilatildeo o mandar vir mais si etc) natildeo paacutera

(parece inesgotaacutevel prossegue indefinidamente etc)

Por outras palavras tem como determinaccedilatildeo fundamental qualquer coisa com o caraacutec-

ter de uma totalidade ndash de uma totalidade de si definida precisamente por natildeo se deixar con-

ter em nenhum intervalo (ie por natildeo caber em nenhum limite por os exceder a todos etc)

Ou seja o que estaacute em causa nesta inesgotaacutevel continuaccedilatildeo indefinida eacute precisamente a totali-

dade Haacute algo como uma ldquorebeldiardquo daquilo que estaacute em causa no si-mesmo (no si-mesmo da

mais acentuar porque eacute assim a proacutepria siacutentese sucessiva (a travessia do si a desdobrar-se como estaacute

previsto e requerido na explosatildeo da ipseidade) tem lugar num terreno marcado por pressatildeo gerundiva

ndash que a proacutepria travessia ldquocumprerdquo ou pelo contraacuterio ldquodeixa de cumprirrdquo E eacute isso que caracteriza to-

do o territoacuterio da ipseidade eacute um territoacuterio onde sempre estaacute em causa a satisfaccedilatildeo ou a insatisfaccedilatildeo

da pressatildeo gerundiva Na esfera da ipseidade natildeo haacute nada que pura e simplesmente ocorre (ou natildeo

ocorre) tudo vem inscrever-se no quadro de uma pressatildeo gerundiva de tal modo que a sua determina-

ccedilatildeo nunca eacute apenas a do seu proacuteprio teor antes passa sempre decisivamente pelo nexo entre esse teor e

a pressatildeo gerundiva em cujo quadro sempre se inscreve Ou dito de outro modo a esfera da ipseidade

eacute de raiz a esfera de um programa constituiacutedo em tensatildeo para o seu cumprimento Onde se passa o

que quer que seja isso que se passa vem inscrever-se onde jaacute estaacute de certo modo prescrito o que deve

passar-se ndash o que importa que se passe De sorte que eacute decisiva a correspondecircncia ou natildeo correspon-

decircncia ndash e por outro lado tambeacutem a ldquoamplituderdquo ou a ldquoqualidaderdquo da natildeo-correspondecircncia ndash entre o

programa de que a ipseidade eacute portadora e a curso faacutectico do cumprimento ou incumprimento desse

programa

310

ldquotestemunha globalrdquo) relativamente a qualquer aprisionamento de si em algo diferente do

ldquotodo totalrdquo (do todo que se assim se pode dizer nada deixa de fora pleno etc)

Contudo esta primeira modalidade de totalidade que estaacute implicada na proacutepria tensatildeo

de interesse que vincula a ldquotestemunha globalrdquo a si mesma confronta-se com uma segunda

modalidade de totalidade ndash a modalidade de ldquototalidaderdquo que corresponde agrave ldquototalidade da tra-

vessiardquo E tambeacutem esta segunda modalidade de totalidade tem que ver com a tensatildeo de inte-

resse

Na ordem gerundiva a ldquotestemunha globalrdquo prescreve sempre mais si indefinidamen-

te ndash e nada paacutera (ou pode parar) esta prescriccedilatildeo indefinida que vem do interesse por si Mas

por outro lado o mesmo interesse por si gera interesse na determinaccedilatildeo de qual o horizonte de

travessia com que se pode contar (que eacute que eacute de esperar nessa mateacuteria)

Trata-se se assim se pode dizer de uma totalidade de facto que se vem inscrever no

quadro da totalidade gerundiva (e de tal modo que pode viver em conflito com ela)

De facto a travessia (a totalidade da travessia a totalidade de facto) pode muito bem

corresponder a uma amplitude ou a um acircmbito limitado

Vendo bem o empreendimento de si molda-se a uma determinada expectativa de acircm-

bito ou de amplitude do horizonte ndash e isto de tal modo que adquiriraacute uma conformaccedilatildeo se pos-

to perante uma expectativa de acircmbito ou de amplitude do horizonte e adquiriraacute outra perante

uma expectativa alternativa O empreendimento de si estaacute atravessado pela pergunta pelo acircm-

bito ou pela amplitude do horizonte (pela pergunta pelo seu limite maacuteximo) ateacute onde se esten-

de quais satildeo as suas dimensotildees etc

Ora o acircmbito da travessia pode corresponder a intervalos muito diacutespares entre si uma

semana de um ano dois dez cem mil anos etc Pode porventura corresponder a intervalos

ainda mais dilatados e considerar a possibilidade de extensotildees muito maiores

Mas o ponto decisivo eacute o seguinte se a ldquototalidade da travessiardquo por mais extensa que

seja tiver a forma de um intervalo (ie possuir um limite) entatildeo a totalidade gerundiva da

projecccedilatildeo de si-mesmo-a-haver eacute mais extensa vai muito mais aleacutem que a amplitude da tra-

vessia De sorte que qualquer que seja o intervalo da totalidade da travessia em que damos

comnosco dado que se trata de um intervalo ela acaba sempre por se situar a meio caminho

com um grande troccedilo da totalidade gerundiva da flexatildeo de si a ficar fora do intervalo fixado

aleacutem ndash e muito aleacutem ndash do seu tempo Ou seja seja qual for a sua amplitude e em referecircncia agrave

311

totalidade do si a haver a totalidade da travessia do si aparece sempre como totalidade co-

arctada ou contraiacuteda

Ora quando falamos da totalidade da travessia como contracccedilatildeo o que estamos a des-

crever eacute antes de mais o caso de a totalidade da travessia do si e a totalidade gerundiva da

flexatildeo de si natildeo serem co-extensivas Na verdade ao falar de contracccedilatildeo aquilo para que se

procura chamar a atenccedilatildeo eacute precisamente para a incriacutevel desproporccedilatildeo de amplitude das duas

extensotildees

Vendo bem a totalidade da travessia do si eacute algo de residual em relaccedilatildeo agrave amplitude

da totalidade gerundiva da flexatildeo de si

Isto eacute tendo em conta a grandeza ou a magnitude a que se refere (tendo em conta o

caraacutecter da totalidade gerundiva da flexatildeo de si) a contracccedilatildeo da totalidade da travessia do si

nunca corresponde a nada menos do que um esmagamento Por outras palavras a totalidade

da travessia eacute em referecircncia agrave totalidade gerundiva da flexatildeo de si uma totalidade infinitesi-

mal

sect35

A ipseidade tende natildeo soacute para o superlativo quantitativo mas tambeacutem para um superlati-

vo qualitativo ndash O superlativo de superlativos a foacutermula ldquosuperlativo quantitativo x superlativo

qualitativordquo

Tudo isto que acabamos de ver na secccedilatildeo anterior eacute ainda muito incompleto e insufi-

ciente para dar conta da natureza da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que liga a ldquotestemunha globalrdquo

a si mesma e a uma prescriccedilatildeo de si

O que vimos na secccedilatildeo anterior potildee-nos jaacute na pista de um superlativo de si Quer di-

zer o viacutenculo de natildeo-indiferenccedila que liga a ldquotestemunha globalrdquo (a ipseidade) a si mesma eacute

tal que leva agrave projecccedilatildeo de um acontecimento superlativo de si (isso que estaacute em jogo quando

Hegel fala de ldquoplenitude de sirdquo ie uma demanda da plenitude de si)

Ora o superlativo que consideraacutemos nas paacuteginas precedentes tem um caraacutecter por as-

sim dizer meramente quantitativo diz respeito agrave dimensatildeo da projecccedilatildeo de si-mesmo-a-haver

(agrave dimensatildeo daquilo a que chamaacutemos a ldquoflexatildeo do sirdquo)

312

Acontece todavia que o superlativo para que a ipseidade tende ndash o superlativo que o

empreendimento de si tem como meta e que constitui o objecto da demanda de si ndash natildeo eacute um

superlativo meramente quantitativo mas tambeacutem um superlativo qualitativo E eacute esse aspecto

que interessa focar nesta secccedilatildeo

Tomemos Hegel como ponto de partida

Eacute decisivo para compreendermos aquilo a que Hegel chama ldquoobjectordquo entender que as

funccedilotildees do ldquoobjectordquo podem ser preenchidas por objectos com determinaccedilotildees diferentes Quer

dizer haacute alternativas de preenchimento ndash e na verdade um grande nuacutemero de alternativas de

preenchimento ndash do objecto

Sendo assim os diferentes conteuacutedos (as diferentes determinaccedilotildees) que podem ser

postas no lugar do objecto natildeo satildeo de modo nenhum indiferentes Sucede precisamente o

contraacuterio

Em primeiro lugar haacute conteuacutedos determinaccedilotildees que satildeo objecto de natildeo-indiferenccedila

positiva e outros que satildeo objecto de natildeo-indiferenccedila negativa

Em segundo lugar a intensidade da natildeo-indiferenccedila positiva ou negativa que nos liga

agraves diferentes possibilidades de preenchimento do ldquolugarrdquo do objecto eacute tambeacutem ela variaacutevel

Haacute ldquocoisasrdquo a que nos liga uma forte natildeo-indiferenccedila positiva outras a que nos liga uma fraca

natildeo-indiferenccedila positiva outras a que nos liga uma natildeo-indiferenccedila positiva ainda mais fraca

etc ndash numa imensa variedade de escalas de intensidade

Algo de equivalente se passa tambeacutem com a natildeo-indiferenccedila negativa haacute ldquocoisasrdquo a

que nos liga uma forte natildeo-indiferenccedila negativa outras a que nos liga uma fraca natildeo-indife-

renccedila negativa outras a que nos liga uma natildeo-indiferenccedila negativa ainda mais fraca etc ndash

numa imensa variedade de escalas de intensidade

A este primeiro aspecto acresce entretanto um segundo

Poderia ser assim mas de tal modo que toda esta diversa qualificaccedilatildeo daquilo que de-

sempenha as funccedilotildees de objecto tivesse que ver com algo como um ldquoprograma materialrdquo de

natildeo-indiferenccedila ndash um conjunto de ldquometasrdquo consistindo definitivamente nisto e naquilo (uma

lista de desideratos etc) Mas de facto natildeo eacute assim

Isso natildeo quer dizer de modo nenhum que natildeo haja ldquometas materiaisrdquo ndash que natildeo haja

um conjunto de desideratos que de algum modo tem de (ou deve) ser satisfeita por causa da

natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha globalrdquo a si mesma e ao que seraacute de si Acontece eacute que a ten-

313

satildeo de natildeo-indiferenccedila de que estamos a falar (ou para dizer como Hegel o desejo da auto-

consciecircncia) natildeo se fica soacute pela satisfaccedilatildeo de um conjunto de desideratos com estas caracteriacutes-

ticas

O caudal de natildeo-indiferenccedila em relaccedilatildeo a si eacute tanto ndash ou eacute tal ndash que vendo bem re-

quer sempre mais

E ldquorequer sempre maisrdquo porque aquilo a que estaacute vinculado na sua dedicaccedilatildeo a si (no

seu tomar partido por si mesmo etc) nunca eacute menos do que um superlativo qualitativo (aqui-

lo que for ldquoordquo mais que jaacute natildeo puder ser mais que natildeo possa ser ultrapassado por nada de ou-

tro etc)

Este eacute um ponto decisivo

A mesma pressatildeo de natildeo-indiferenccedila que gera uma pulsatildeo dirigida ao superlativo

quantitativo (isso mesmo que se expressa na foacutermula ldquotoo Me to dierdquo) desencadeia tambeacutem

qualquer coisa como um ldquoser demasiado ME para se contentar me contentar com menos do

que o superlativo absolutordquo E eacute justamente disso que se trata a ldquotestemunha globalrdquo na sua

ipseidade vecirc as coisas de tal modo que em uacuteltima anaacutelise o que lhe eacute devido eacute o superlativo

(eacute o superlativo a que tem direito etc) por nenhuma outra razatildeo que natildeo seja o mea res agi-

tur (estar em causa eu tratar-se de mim etc)

Isso eacute claro se se notar que qualquer restriccedilatildeo ou moderaccedilatildeo das exigecircncias da expec-

tativa tem em uacuteltima anaacutelise um caraacutecter resignativo

Mais em uacuteltima anaacutelise esta pressatildeo dirigida ao superlativo qualitativo eacute de tal ordem

que vendo bem ela natildeo vale apenas para a continuaccedilatildeo ndash na verdade isso para que a tensatildeo

estaacute dirigida passa por ser algo que devia estar alcanccedilado jaacute desde o iniacutecio E isto eacute assim por

mais que se ganhe uma visatildeo desencantada limpa de ilusotildees etc ou seja nunca esta compo-

nente fundamental de vinculaccedilatildeo da natildeo-indiferenccedila deixa de actuar como algo implicado na

proacutepria estrutura da ipseidade e da sua indefectiacutevel dedicaccedilatildeo a si mesma

Para percebermos melhor este ponto importa ver com mais atenccedilatildeo o nexo entre esta

ligaccedilatildeo essencial ao superlativo qualitativo e aquilo a que chamaacutemos ldquometas materiaisrdquo

Esse nexo passa fundamentalmente por dois aspectos

Em primeiro lugar precisamente porque tem um caraacutecter formal a vinculaccedilatildeo ao su-

perlativo qualitativo requer desformalizaccedilatildeo

314

Ser ldquoformalrdquo natildeo significa ser ldquovaziordquo Na verdade significa precisamente o contraacuterio

como pudemos ver no caso do superlativo material

Quando aqui se fala de ser ldquoformalrdquo estaacute-se a apelar a uma determinaccedilatildeo cuja peculia-

ridade eacute de tal ordem que a) remete sempre para laacute disto ou daquilo que se apresente como

candidato agrave desformalizaccedilatildeo b) tem muacuteltiplos candidatos agrave desformalizaccedilatildeo e c) suscita em

cada caso a possibilidade de qualquer determinaccedilatildeo concreta (qualquer ldquometardquo ou conjunto de

ldquometasrdquo qualquer um dos muacuteltiplos candidatos agrave desformalizaccedilatildeo) natildeo se identificar com o

superlativo e pelo contraacuterio poder ficar aqueacutem ndash e ateacute muito aqueacutem ndash daquilo para que apon-

ta a proacutepria determinaccedilatildeo superlativa

Mas de qualquer modo o que a caracteriza enquanto determinaccedilatildeo formal eacute o facto de

requerer para si mesma uma identificaccedilatildeo do que lhe corresponde eacute o facto de requerer para

si mesma uma identificaccedilatildeo daquilo que afinal preenche o requisito de ser superlativo

Em suma o ponto decisivo eacute a) que natildeo temos uma relaccedilatildeo de natildeo-indiferenccedila com

metas concretas (natildeo estamos na tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que inere agrave ipseidade a soacutes com

metas concretas) de facto temos todas as metas concretas postas sob a pressatildeo da superlativi-

dade mas o ponto decisivo eacute tambeacutem b) que natildeo temos uma relaccedilatildeo com o superlativo quali-

tativo que dispense a desformalizaccedilatildeo (a identificaccedilatildeo concreta do que lhe corresponderaacute) E

tudo isto de tal modo que uma desformalizaccedilatildeo concreta estaacute sempre exposta agrave possibilidade

de ser erroacutenea e perceber mal que eacute que corresponde ao superlativo qualitativo

Em segundo lugar o nexo entre o superlativo qualitativo e aquilo a que chamaacutemos

ldquometas materiaisrdquo tambeacutem passa por algo anaacutelogo a algo que vimos a respeito do superlativo

quantitativo

Observaacutemos que o interesse da ipseidade por si mesma natildeo gera apenas superlativaccedilatildeo

do projecto de si (da dimensatildeo gerundiva de si) na verdade requer tambeacutem a determinaccedilatildeo

concreta da dimensatildeo da travessia com que haacute efectivamente que contar ndash a qual delimitaccedilatildeo

pode entrar em conflito com a projecccedilatildeo gerundiva de si etc)

Ora passa-se aqui algo muito semelhante

A ipseidade natildeo tem apenas interesse em alcanccedilar o superlativo qualitativo (e portan-

to em desformalizaacute-lo identificar a que eacute que corresponde etc) Na verdade tambeacutem tem in-

teresse em procurar cumpri-lo ndash ie identificar o que eacute que eacute exequiacutevel (que metas concretas

podem ser procuradas como susceptiacuteveis de serem atingidas que metas concretas deixam o

mais proacuteximo possiacutevel do superlativo etc)

315

O ponto decisivo eacute que tal como no caso do superlativo quantitativo a determinaccedilatildeo

daquilo com que se pode contar de facto tem lugar no quadro de pressatildeo dirigido ao superlati-

vo qualitativo ndash e estaacute se assim se pode dizer em tensatildeo com ele

Percebe-se a partir daqui aquilo que dissemos anteriormente sobre as diversas possi-

bilidades de conformaccedilatildeo da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e sobre a possibilidade de os progra-

mas de natildeo-indiferenccedila serem programas formais Eacute justamente isso que se passa no nosso ca-

so

Mas importa agora considerar um outro ponto sem cuja consideraccedilatildeo a anaacutelise do

complexo de natildeo-indiferenccedila a si mesmo que inere agrave ipseidade ficaria incompleto

Esse ponto tem que ver com a articulaccedilatildeo entre os dois superlativos de que falaacutemos (o

superlativo quantitativo e o superlativo qualitativo)

O primeiro aspecto que haacute que ter presente a este respeito tem que ver com o seguinte

de raiz a ipseidade estaacute vinculada a uma combinaccedilatildeo dos dois superlativos ndash resulta na foacuter-

mula ldquosuperlativo quantitativo x superlativo qualitativordquo

Isto eacute nenhum dos superlativos basta por si soacute E o superlativo para que a ipseidade

tende (a plenitude de que fala Hegel o terminus ad quem da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que no

nosso caso inere agrave ipseidade etc) requer ao mesmo tempo as duas componentes

O que isto quer dizer eacute que o ldquosirdquo soacute eacute um ldquosirdquo pleno (iacutentegro etc) se ou quando natildeo

estiver aqueacutem de nada do que eacute proacuteprio de si (se ou quando nada do que eacute de si estiver em fal-

ta etc) Por outras palavras um ldquosirdquo que apenas tenha ou seja parcialmente o que eacute de ldquosirdquo (o

que corresponde ao si o que eacute proacuteprio do si etc) eacute um ldquosirdquo incompleto ndash eacute um ldquosirdquo que ainda

natildeo resolveu a sua tensatildeo de completude que ainda estaacute em tensatildeo de supressatildeo do ldquoem falta

de sirdquo etc

Ou seja natildeo interessa um superlativo quantitativo de si que natildeo esteja preenchido de

forma qualitativa mas tambeacutem natildeo interessa apenas o superlativo qualitativo desligado da su-

perlativaccedilatildeo quantitativa que requer a sua propagaccedilatildeo quantitativa

Ganha assim contornos um elemento central da ldquopeccedila de sirdquo ou do ldquodrama de sirdquo a que

atraacutes nos referimos o superlativo

Falamos de ldquosuperlativordquo neste sentido para referirmos a combinaccedilatildeo dos dois super-

lativos (quantitativa e qualitativo) ndash quer dizer para referirmos o superlativo de superlativos

316

Eacute claro que quando aqui falamos de ldquosuperlativordquo como elemento central esta caracte-

rizaccedilatildeo natildeo dispensa uma ressalva sem a qual podemos cair em erro

Resulta claro de tudo o que dissemos ateacute este ponto que o elemento central ndash o prota-

gonista ndash do acontecimento de aparecer em que nos temos eacute a ipseidade (a ldquotestemunha glo-

balrdquo) na sua radical indiferenccedila a si E falar tambeacutem do superlativo como elemento central

poderaacute sugerir erradamente que haacute sendo assim uma multiplicidade de elementos centrais

contiacuteguos uns aos outros numa espeacutecie de ldquosociedaderdquo

Para ver que natildeo eacute assim haacute que ter presente algo que podemos formular concisamen-

te na terminologia de Hegel o superlativo de que estamos a falar eacute como Hegel diz a pleni-

tude da auto-consciecircncia

Quer dizer o superlativo de que estamos a falar eacute uma conformaccedilatildeo de si (um estado

de si) para que o si mesmo tende por inerecircncia

Natildeo se trata portanto de algo lateral ao si (algo justaposto agrave ipseidade) trata-se de

um elemento central da proacutepria ipseidade (ldquointeriorrdquo agrave proacutepria ipseidade) ndash a qual na sua natildeo-

indiferenccedila a si mesma natildeo eacute simples mas complexa e estaacute constituiacuteda a ter de raiz como

elemento central de si mesma o superlativo que projecta para si

Onde o superlativo (a multiplicaccedilatildeo do superlativo qualitativa pelo superlativo quanti-

tativo) estaacute ndash ou de todo o modo onde o superlativo parece estar ndash a articulaccedilatildeo entre a com-

ponente quantitativa e a componente qualitativa da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila de que a ipsei-

dade eacute portadora pode assumir diversas formas

Essas diversas formas tecircm sempre que ver com um diagnoacutestico da maacutexima aproxima-

ccedilatildeo ao superlativo

Ora independentemente das variaccedilotildees que esse diagnoacutestico assuma aquilo que impor-

ta reter eacute que todas as diversas ldquofoacutermulas de articulaccedilatildeordquo entre a componente quantitativa e a

componente qualitativa da pressatildeo para a majoraccedilatildeo de si que eacute inerente agrave proacutepria ipseidade

correspondem sempre a tentativas de encontrar um miacutenimo de distacircncia (ie um maacuteximo de

aproximaccedilatildeo) ao superlativo de superlativos para que a ipseidade sempre tende

317

Ou seja qualquer que seja a foacutermula de articulaccedilatildeo ela estaacute sempre em vez do super-

lativo de superlativos e soacute tem relevacircncia na ausecircncia dele (na impossibilidade ndash ou de todo o

modo por haver a convicccedilatildeo de impossibilidade ndash dele)93

Em suma o que caracteriza o horizonte de si como que ldquodetonadordquo pela natildeo-indiferen-

ccedila da ipseidade a si mesma eacute esta explosatildeo de ldquomaacuteximordquo ndash este fenoacutemeno de superlativaccedilatildeo

irrestrita

Na verdade o que fica claro eacute que o ldquosirdquo visa de forma velada a conjugaccedilatildeo dos dois

factores que vimos (a uma conjugaccedilatildeo entre aquilo a que aqui chamamos o superlativo quali-

tativo e o superlativo quantitativo) ndash o que se poderia resumir na foacutermula tudo o que equiva-

ler agrave superlativa majoraccedilatildeo de mim ao longo de todo o tempo94

93

Algumas anaacutelises filosoacuteficas ndash como por exemplo a dos Epicuristas e as dos Estoacuteicos ndash apresen-

tam-se natildeo soacute como tentativas de diminuir o peso da componente quantitativa mas como tentativas de

a tornar irrelevante A este respeito veja-se por exemplo o que escreve Seacuteneca no De brevitate vitaelig

Natildeo interessa aqui entrar a fundo nas teses de Seacuteneca o que interessa eacute apenas estabelecer um aspecto

essencial em que a tese estoacuteica confronta a tese que estamos a ver Por um lado a tese de Seacuteneca inclui

uma noccedilatildeo de tempo (precisamente na medida em que o centro da discussatildeo eacute a adequaccedilatildeo ou inade-

quaccedilatildeo do tempo da vida agrave proacutepria vida que se leva) por outro lado a tese de Seacuteneca implica uma re-

laccedilatildeo natildeo-horizontal entre os aspectos da totalidade de si qualitativa e da totalidade de si quantitativa

A tese de Seacuteneca implica uma supremacia da totalidade de si qualitativa sobre a totalidade de si quan-

titativa O que isto quer dizer eacute que agrave consecuccedilatildeo da totalidade de si qualitativa sucederia de facto um

estado de completude (justamente na forma de estar obtido tudo o que eacute proacuteprio de si etc) E isto em

virtude de a posse integral de si a que Seacuteneca se refere ser um estaacutedio faacutectico e derradeiro impassiacutevel

de desenvolvimento (de aumento de qualidade e de quantidade) Isto eacute a vida eacute breve se se considerar

ou a) a grandeza do empreendimento (a posse de si) ou b) a totalidade da extensatildeo possiacutevel (em rela-

ccedilatildeo agrave qual ela eacute uma iacutenfima totalidade de uma totalidade infinitamente maior) Todavia ela tem o tem-

po adequado (ela natildeo eacute breve) em relaccedilatildeo a uma posse de si faacutectica e a proacutepria noccedilatildeo de posse de si

faacutectica implica a renuacutencia a instacircncias natildeo-faacutecticas ndash isso a que se chamou a componente de ldquomaisrdquo

Por outras palavras num estaacutedio de plena posse de si natildeo se teria em conta senatildeo o tempo faacutectico ndash

qualquer tempo a mais (a tensatildeo para mais tempo em relaccedilatildeo agrave morte por exemplo) seria um tempo

improacuteprio de si (que jaacute natildeo corresponderia ao si seria nada para si etc e portanto um tempo sobre o

qual natildeo se poderia gerar qualquer posse com sentido)

94 Note-se que mesmo que nada impedisse uma eventual consecuccedilatildeo do superlativo qualitativo ainda

assim natildeo haveria um estado de plenitude E isto devido ao facto de a totalidade da travessia do si e a

totalidade gerundiva da flexatildeo de si natildeo serem co-extensivas Se natildeo estamos a ver mal por mais que

se conseguisse obter o superlativo qualitativo natildeo se o poderia obter em conjugaccedilatildeo com o superlativo

quantitativo na medida em que a totalidade da travessia do si fica sempre aqueacutem da totalidade gerun-

diva da flexatildeo de si (resta sempre uma componente de mais) Em suma pode muito bem dar-se o caso

de a plenitude que eventualmente adviria da consecuccedilatildeo do superlativo qualitativo ser uma plenitude

318

Natildeo discutimos aqui em que medida algo semelhante se passa ou natildeo em relaccedilatildeo a ou-

tros aspectos em que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila natildeo desempenha o papel decisivo O que

procuramos vincar eacute que neste caso ndash onde a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila da ipseidade a si mes-

ma desempenha o papel de ldquoponto arquimeacutedicordquo ndash o que se encontra eacute muito diferente de um

domiacutenio que se constitui por sucessivas formas de alargamento A forccedila expansiva do interes-

se por si potildee em cena de raiz nada menos do que o superlativo ndash e um horizonte de si com a

amplitude do superlativo (ao mesmo tempo o superlativo quantitativo e o superlativo qualita-

tivo)

E assim o que quer que seja que fique aqueacutem dessa extraordinaacuteria dimensatildeo tem o

caraacutecter de uma contracccedilatildeo desse horizonte mais vasto em que se inscreve

Quer dizer o que quer que seja que fique aqueacutem dessa extraordinaacuteria dimensatildeo que eacute

a do superlativo natildeo tem uma determinaccedilatildeo simples (natildeo tem apenas a sua proacutepria determina-

ccedilatildeo a determinaccedilatildeo de ateacute onde vai do que alcanccedila etc) Pelo contraacuterio tem uma determina-

ccedilatildeo complexa

Sobre o fundo do superlativo posto pela tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a determinaccedilatildeo

proacutepria desse ldquoaqueacutemrdquo eacute medida contra o superlativo Ou para usar a terminologia da Feno-

menologia do Espiacuterito o que quer que seja que fique aqueacutem do superlativo surge sob a pres-

satildeo dele e como negativo dele

sect36

O territoacuterio da possibilidade do si a dedicaccedilatildeo ao que seraacute-de-si e a pressatildeo gerundiva ndash O

caraacutecter labiriacutentico do quadro de possibilidades do vir-a-ser-de-si

Todas estas consideraccedilotildees nos levam a outro componente fundamental de que tudo

isto eacute indissociaacutevel

Um factor decisivo para desencadear esta peculiar incompatibilidade entre a projecccedilatildeo

do si-mesmo-a-haver e qualquer retenccedilatildeo de si mesmo em algo que seja soacute uma parte eacute aquilo

aparente em virtude de o ldquosirdquo pleno (a realizaccedilatildeo total de si que adviria da multiplicaccedilatildeo dos superlati-

vos) ser sempre jaacute agrave partida um projecto falhado

319

a que chamamos a natureza gerundiva da projecccedilatildeo-de-si-mesmo-a-haver que estaacute implicada

na constituiccedilatildeo da testemunha global

O factor a que aqui fazemos referecircncia eacute fundamental quer para a compreensatildeo da es-

trutura da ldquotestemunha globalrdquo (que como vimos natildeo eacute apenas uma testemunha) quer para a

compreensatildeo da estrutura da proacutepria vida enquanto tal ndash e esse factor eacute o que tem que ver com

o papel da possibilidade

Por um lado tudo passa pela ligaccedilatildeo mediante a qual para usar a formulaccedilatildeo de Hei-

degger a testemunha eacute jaacute a sua possibilidade ou o seu poder-ser95

O que com isto se quer dizer eacute que a testemunha estaacute sempre jaacute em tensatildeo de natildeo-in-

diferenccedila em relaccedilatildeo agrave sua possibilidade (fazendo caso dela estando em relaccedilatildeo com ela

visando-a etc) E a testemunha ser sempre jaacute a sua possibilidade significa que o si-mesmo-a-

haver (a totalidade do si-mesmo-a-haver o superlativo etc) jaacute estaacute incluiacutedo na dedicaccedilatildeo da

ldquotestemunha globalrdquo a si mesma

Veja-se entatildeo o que se desenha em especial ao estabelecer um contraste entre a possi-

bilidade e o facto

Como resulta do que vimos a relaccedilatildeo ldquotestemunha globalrdquo (sc a relaccedilatildeo da ipseidade)

consigo mesma natildeo se resume nem se esgota naquilo que a testemunha factualmente ldquoeacuterdquo ndash

natildeo se resume a uma relaccedilatildeo de si a si faacutectica (a uma relaccedilatildeo de si-facto a si-facto por assim

dizer)

95

Haacute vaacuterios passos em que Heidegger faz referecircncia a este factor da possibilidade Consideremos por

exemplo e sem qualquer intenccedilatildeo de sermos exaustivos mas apenas de forma ilustrativa o que nos diz

em alguns passos de Sein und Zeit ldquoAuf dem Grunde der Seinsart die durch das Existenzial des Ent-

wurfs konstituiert wird ist das Dasein staumlndig laquomehrraquo als es tatsaumlchlich ist wollte man es und koumlnnte

man es als Vorhandenes in seinem Seinsbestand registrierenrdquo (sect31 paacuteg 145) ldquoDie Angst bringt das

Dasein vor sein Freisein fuumlr (propensio in) die Eigentlichkeit seines Seins als Moumlglichkeit die es

immer schon istrdquo (sect40 paacuteg 188) ldquoFormal existenzial gefaszligt ohne jetzt staumlndig den vollen Struktur-

gehalt zu nen-nen ist die vorlaufende Entschlossenheit das Sein zum eigensten ausgezeichneten Sein-

koumlnnen Dergleichen ist nur so moumlglich daszlig das Dasein uumlberhaupt in seiner eigensten Moumlglichkeit auf

sich zukommen kann und die Moumlglichkeit in diesem Sich-auf-sich-zukommenlassen als Moumlglichkeit

aushaumllt das heiszligt existiert Das die ausgezeichnete Moumlglichkeit aushaltende in ihr sich auf sich Zu-

kommen-lassen ist das urspruumlngliche Phaumlnomen der Zukunftrdquo (sect65 paacuteg 325) ldquoDas im Grunde zu-

kuumlnftige Entwerfen erfaszligt primaumlr nicht die entwor-fene Moumlglichkeit thematisch in einem Meinen son-

dern wirft sich in sie als Moumlglichkeitrdquo (sect68 paacuteg 336)

320

Poderia natildeo ser assim ie poderia dar-se o caso de a relaccedilatildeo da ldquotestemunha globalrdquo

(sc a relaccedilatildeo da ipseidade) consigo mesma se esgotar no testemunho efectivo ndash de tal modo

que natildeo houvesse qualquer relaccedilatildeo com o que natildeo se achasse testemunhado facticamente

O que nesse caso se desenharia seriam dois campos (o campo do que ldquofacticamente

apareceu ou aparecerdquo e o campo do que ldquofacticamente natildeo aparecerdquo) irredutiacuteveis entre si ndash a

tal ponto que aquilo que ldquoapareceurdquo ou ldquoaparecerdquo natildeo teria aberta qualquer perspectiva sobre

o ldquonatildeo apareceurdquo ou ldquonatildeo aparecerdquo

Isso natildeo quereria dizer naturalmente que o que num dado momento ldquonatildeo aparecerdquo

natildeo pudesse vir a aparecer noutro momento Quereria simplesmente dizer que um campo natildeo

teria qualquer perspectiva sobre o outro ndash que o campo do efectivamente testemunhado natildeo

teria qualquer perspectiva para laacute de si (que o que num dado momento ldquonatildeo aparecerdquo natildeo te-

ria qualquer perspectiva sobre a eventualidade de aparecer noutro momento)

Isto eacute se se resumisse ou se esgotasse naquilo que facticamente ldquoeacuterdquo a relaccedilatildeo da teste-

munha consigo mesma corresponderia a uma relaccedilatildeo completamente fechada no testemunho

actual presente de cada vez em curso etc E isto de tal modo que para o proacuteprio natildeo haveria

dois campos haveria apenas a esfera do facto

Em certo sentido eacute precisamente isso o que sucede

Na verdade o ldquotestemunharrdquo da testemunha esgota-se na ocorrecircncia actual ndash ie no

momento em que o testemunho estaacute efectivamente em curso no momento efectivo do teste-

munhar etc E tanto assim que aquilo que de cada vez testemunha ou tem testemunhado cons-

titui em cada momento a totalidade do efectivamente testemunhado96

96

Como vimos soacute natildeo eacute assim porque mesmo no plano estritamente cognitivo a ldquotestemunha globalrdquo

natildeo eacute uma testemunha estritamente esteacutesica ou mneacutesica mas sim uma testemunha empiacuterica Tocamos

aqui um ponto que natildeo vamos desenvolver e que eacute o seguinte Se considerarmos o que vimos dese-

nham-se duas origens do excesso sobre o faacutectico a proacutepria ἐμπειρία e o excesso sobre sobre o faacutectico

que vem da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que liga a ldquotestemunha globalrdquo a si mesma E potildee-se o problema

de saber o nexo entre estas duas fontes do excesso sobre o faacutectico Pode acontecer que se trate de duas

fontes completamente independentes uma da outra mas que de algum modo se conjugam e completam

assim como pode acontecer que uma delas jaacute desempenhe um papel relevante na constituiccedilatildeo da outra

Este eacute um mero assinalar da questatildeo que natildeo cuidaremos aqui de tratar esclarecer

321

Poreacutem o ponto decisivo eacute que a relaccedilatildeo da ldquotestemunha globalrdquo consigo mesma natildeo se

esgota no plano do faacutectico A relaccedilatildeo da testemunha a si mesma estaacute aberta a algo que ainda

natildeo se eacute facticamente mas que passa por estar a caminho de se ser facticamente97

Isso faz que no sentido em que a estamos a ver a relaccedilatildeo de natildeo-indiferenccedila da teste-

munha a si mesma assente sobre uma cisatildeo fundamental a saber a cisatildeo entre o aparecimen-

to faacutectico (o aparecimento efectivamente testemunhado que estaacute consumado etc) e o apare-

cimento por vir (o aparecimento que ainda natildeo eacute facticamente que natildeo estaacute efectivamente da-

do etc) Assim haacute algo como uma tensatildeo da testemunha em direcccedilatildeo ao ldquoexteriorrdquo do efec-

tivamente testemunhado (em direcccedilatildeo ao para laacute do aparecimento faacutectico)

Isto eacute natildeo apenas o viacutenculo testemunhal da testemunha natildeo se esgota no aparecimento

tido (pelo contraacuterio a testemunha tem uma noccedilatildeo de um aparecimento a haver a ter etc)

como estaacute fundamentalmente voltado para o aparecimento a haver

Vejamos um pouco melhor o que tudo isto nos mostra

Em primeiro lugar haacute que ter presente que a raiz de todo este terreno da possibilidade

eacute a natildeo-indiferenccedila da ldquotestemunha globalrdquo em relaccedilatildeo a si mesma ndash agrave totalidade de si-mes-

ma-a-haver e agrave pressatildeo do superlativo envolvido nela

97

Quer dizer o aparecimento faacutectico natildeo esgota as ocorrecircncias do aparecimento a que a testemunha se

reporta Assim a relaccedilatildeo de natildeo-indiferenccedila da testemunha a si mesma estaacute aberta (e vinculada) a

ocorrecircncias de aparecimento natildeo-faacutecticas (ie que natildeo estatildeo efectivamente dadas que natildeo estatildeo ldquoaiacuterdquo

que ldquoexistemrdquo que natildeo estatildeo consumadas que ainda natildeo ldquosatildeordquo etc) Acontece que este aparecimento

a haver (a ter por vir etc) na medida em que eacute um aparecimento natildeo-faacutectico revela que a relaccedilatildeo da

testemunha consigo mesma estaacute constituiacuteda na forma de uma falta faacutectica (uma carecircncia faacutectica uma

privaccedilatildeo faacutectica etc) do aparecimento a haver Ora daacute-se o caso de no entanto a falta faacutectica do

aparecimento a haver natildeo ser sentida como falta Isto eacute por um lado ela eacute uma falta faacutectica (corres-

ponde a algo que natildeo estaacute efectivamente dado que natildeo estatildeo consumado que natildeo foi testemunhado

etc) Poreacutem essa falta efectiva eacute suprimida como falta ndash em virtude de haver uma abertura tal que o

aparecimento em falta estaacute a caminho de ser facticamente Dito por outras palavras o aparecimento a

haver estaacute sempre jaacute projectado como aparecimento faacutectico a haver Tem a forma de um aparecimen-

to que natildeo o sendo se projecta jaacute facticamente (que estaacute a caminho de ser facticamente) O que esta-

mos a procurar mostrar eacute que a relaccedilatildeo da testemunha consigo mesma estaacute constituiacuteda de tal modo que

antecipa o aparecimento por vir como se fosse de tal modo evidente que facticamente viraacute a aparecer

que o aparecimento faacutectico futuro (que o ser que efectivamente ainda natildeo ldquoeacuterdquo) estaacute por assim dizer

ldquopresentificadordquo (estaacute jaacute a ldquoserrdquo ainda natildeo sendo estando ainda por vir a ser etc) Por outras pala-

vras a falta faacutetica sobre a qual a relaccedilatildeo da testemunha consigo mesma estaacute constituiacuteda natildeo eacute tida

como uma falta insuperaacutevel E isto porque estar em direcccedilatildeo ao para laacute do ldquosirdquo faacutectico quer dizer pre-

cisamente estar em direcccedilatildeo agrave possibilidade

322

Ora sobre essa base poderia haver uma abertura agrave possibilidade constituiacuteda de outro

modo ndash por exemplo constituiacuteda no quadro estritamente cognitivo onde a tensatildeo de natildeo-indi-

ferenccedila natildeo desempenhasse qualquer papel significativo

Em segundo lugar como procuraacutemos mostrar esse territoacuterio de possibilidade natildeo eacute

um territoacuterio qualquer ndash natildeo se define apenas por ser um territoacuterio de possibilidade define-se

por ser um territoacuterio de possibilidade de um determinado modo Define-se antes de mais por

ser um territoacuterio da possibilidade do si (da ipseidade da proacutepria ldquotestemunha globalrdquo etc)

Mas por outro lado apesar de ter esse caraacutecter aparentemente mais restrito trata-se de

um territoacuterio de possibilidade com uma extraordinaacuteria amplitude ndash e posto sobre a pressatildeo do

superlativo Eacute o superlativo que na verdade fixa a dimensatildeo do territoacuterio de possibilidade e

o estende da forma que procuraacutemos pocircr em evidecircncia

Em terceiro lugar este territoacuterio de possibilidade estaacute lanccedilado sobre o territoacuterio do faacutec-

tico Daiacute resulta que o territoacuterio do faacutectico fica posto sob a pressatildeo do territoacuterio de possibili-

dade

Quer dizer natildeo se trata de dois territoacuterios meramente justapostos O territoacuterio da pos-

sibilidade constituiacutedo a partir da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila da ipseidade a si mesma paira so-

bre o territoacuterio do faacutectico pressionando-o transfigurando-o ndash e transfigurando-o de tal modo

que o faacutectico aparece como fundamentalmente relativo ao campo da possibilidade (como al-

go relativo agrave possibilidade transfigurado pela possibilidade etc)

De sorte que para recorrer mais uma vez agraves categorias que usaacutemos anteriormente a) o

faacutectico tem uma determinaccedilatildeo de significado e b) esse significado eacute ao mesmo tempo um sig-

nificado relativo agrave ipseidade e um significado relativo agrave possibilidade (enquanto a possibili-

dade eacute a possibilidade da ipseidade na tensatildeo para si mesma) Assim estes dois aspectos natildeo

satildeo na verdade dois aspectos mas um soacute

Mas natildeo basta vincar a ideia da inclusatildeo da possibilidade e a ideia do primado da pos-

sibilidade

Tatildeo importante quanto o primado da possibilidade sobre o facto eacute tambeacutem o caso de a

possibilidade a que nos referimos se tratar de uma possibilidade de natureza muito particular e

de um territoacuterio de possibilidade com determinadas caracteriacutesticas ndash um territoacuterio que difere

tanto de um territoacuterio de possibilidade constituiacutedo de outro modo quanto difere de um campo

de aparecimento totalmente fechado no faacutectico (sem qualquer perspectiva sobre o possiacutevel)

323

Para ver como eacute assim consideremos brevemente algumas alternativas ndash algumas mo-

dalidades de presenccedila da possibilidade ndash que contrastam com aquilo que efectivamente se ve-

rifica

A natildeo-indiferenccedila diz respeito sobretudo agrave possibilidade Eacute uma natildeo-indiferenccedila em

relaccedilatildeo ao que seraacute-de-si ndash uma decidida dedicaccedilatildeo ao que seraacute-de-si (e na verdade como

vimos uma natildeo-indiferenccedila que jaacute estaacute dirigida com pressatildeo de superlativizaccedilatildeo agrave totalida-

de do que seraacute-de-si)

Quer dizer a possibilidade aqui em causa natildeo eacute uma possibilidade no sentido ldquoneutrordquo

do termo Poderiacuteamos tender a entender a possibilidade como um mero experimentum inoacutecuo

ndash ie no sentido do termo ldquopossibilidaderdquo que destaca o aspecto meramente luacutedico

Nesse sentido a possibilidade seria algo como um jogo inconsequente em que se aven-

tariam variaccedilotildees alternativas abstractas ndash mas de tal modo que essas variaccedilotildees alternativas

abstractas aventadas estariam completamente encerradas no seu proacuteprio acontecimento de

mera possibilidade Isto eacute teriam um valor meramente ldquoexperimentalrdquo ndash no sentido em que

natildeo afectariam de modo decisivo ou que natildeo teriam qualquer influecircncia significativa sobre

aquilo que efectivamente se passa

Ora a possibilidade tal como aqui a visamos natildeo corresponde a este sentido ldquoneutrordquo

Pelo contraacuterio estamos a falar de uma possibilidade gerundiva (requerida prescrita etc)

O que isto significa em suma eacute que a ldquotestemunha globalrdquo natildeo eacute de modo nenhum

indiferente agrave sua proacutepria possibilidade ndash estaacute constitutivamente votada e dedicada a ela E eacute

precisamente por essa razatildeo que a possibilidade natildeo se limita a figurar ldquoao ladordquo do faacutectico

Isto eacute a possibilidade partilha o plano com aquilo que se passa ndash intercepta o plano

do que aparece interfere nele ou sobre ele impede que a consideraccedilatildeo dele esteja totalmente

encerrada nele etc

Em especial exige-se agraves possibilidades direcccedilotildees ndash ie exige-se-lhes que sejam um

complexo de possibilidades de resposta agraves perguntas que sentido tomar em que direcccedilatildeo en-

caminhar o si que ldquodestinordquo dar a si etc ndash assim como se confronta as possibilidades com

o questatildeo de saber se conduzem ou natildeo a ldquobom portordquo (ie se conduzem ou natildeo agrave plenitude

de si-a-haver)

Sendo assim por outro lado a possibilidade-de-si que desta maneira eacute protagonista

na relaccedilatildeo que o si-mesmo tem consigo ndash a possibilidade de si que estaacute em causa no si mesmo

324

ndash eacute ldquopossibilidaderdquo tambeacutem no sentido de ainda estar aberta de corresponder a um em-aber-

to

Ou seja embora a possibilidade interfira no plano do que aparece ela estaacute sempre se

assim se pode dizer ldquoa meio caminhordquo Eacute que apesar de tudo ela natildeo perde nunca o estatuto

de ldquopossibilidaderdquo num segundo sentido

Por um lado quando se fala de ldquopossibilidaderdquo fala-se de algo que tem a realizaccedilatildeo

em aberto Por outro quando se fala de ldquopossibilidaderdquo fala-se de algo que natildeo eacute passiacutevel de

ser imediatamente verificado (que natildeo estaacute ldquoaiacuterdquo para ser verificado etc)

Quer dizer se eacute verdade que jaacute haacute inclusatildeo da possibilidade (ie se eacute verdade que

aquilo que se enuncia quando se diz ldquoa ipseidade eacute uma possibilidaderdquo) nada disto anula o

facto de a possibilidade manter ainda o seu estatuto de ldquopossibilidaderdquo ndash ie nada disto anu-

la o caso de natildeo se ter tornado ainda em algo faacutectico de o aparecimento a testemunhar natildeo

estar jaacute constituiacutedo enquanto aparecimento testemunhado etc98

Neste sentido aquilo de que se trata quando se fala de ldquopossibilidaderdquo eacute algo como

uma metamorfose radical ndash uma transformaccedilatildeo de tal ordem e de tal natureza que aquilo que

natildeo eacute faacutectico (que natildeo eacute passiacutevel de ser imediatamente verificado que natildeo estaacute aiacute que natildeo eacute

efectivo etc) possa passar a ser (ie seja passiacutevel de vir a ser imediatamente verificado

possa passar a estar ldquoaiacuterdquo para ser verificado possa vir ao aparecimento etc)

Ou seja poderia acontecer que a testemunha tivesse a sua perspectiva aberta para as

possibilidades como possibilidades a que natildeo se fosse alheia mas que em todo o caso corres-

pondessem a algo natildeo-actualizaacutevel Isto eacute poderia dar-se o caso de o interesse (a natildeo-indife-

renccedila a natildeo-neutralidade o natildeo-alheamento etc) em relaccedilatildeo ao leque de possibilidades ser

um interesse limitado ao mero inventaacuterio das alternativas possiacuteveis

98

Poderia conceber-se que o caso de o testemunho que facticamente natildeo ldquoeacuterdquo passar jaacute de certo modo

por facticamente jaacute ldquoserrdquo na forma de possibilidade resultasse num aliacutevio de pressatildeo ndash de tal que se-

ria indiferente que viesse a ser ou natildeo ser facticamente na medida em que de certo modo jaacute ldquoseriardquo

na forma de possibilidade Eacute assim aliaacutes que se pode entender que a falta passa por falta superada ndash

ela eacute projectada como falta superada no futuro (ie no a haver de aparecimento no que seraacute etc)

Acontece no entanto que natildeo haacute aliacutevio de pressatildeo ndash e natildeo haacute aliacutevio de pressatildeo porque o caso de a fal-

ta estar a caminho de ser superada (de tal modo que jaacute se antevecirc o momento da sua superaccedilatildeo que ela

ldquojaacuterdquo estaacute superada etc) natildeo anula o caso de ela natildeo estar facticamente superada

325

A essas possibilidades natildeo caberia qualquer outro papel senatildeo o de possibilidades natildeo-

faacutecticas ndash ie o papel de algo que de qualquer modo efectivamente natildeo estaacute em jogo na con-

formaccedilatildeo efectiva de si etc

Acontece poreacutem que quando aqui se fala de possibilidades natildeo estaacute em causa um

mero inventaacuterio de possibilidades O que estaacute em causa eacute a potencial actualizaccedilatildeo ou conver-

satildeo das possibilidades em algo com uma natureza muito diferente da mera possibilidade

Mas tambeacutem isto natildeo eacute tudo

Com efeito poderia dar-se o caso de o campo da possibilidade estar conformado pelos

vaacuterios aspectos que passaacutemos em revista mas num quadro completamente livre de qualquer

espeacutecie de pressatildeo gerundiva

O ponto decisivo eacute que natildeo eacute assim

Tal como estaacute constituiacutedo em noacutes o aparecimento estaacute ligado a um campo de possibi-

lidade contiacutenua e decisivamente marcado por ndash inteiramente perpassado por ndash pressatildeo gerun-

diva

Isto eacute uma coisa eacute a possibilidade ndash e ateacute mesmo a possibilidade actualizaacutevel Outra

coisa completamente diferente eacute a possibilidade percorrida por pressatildeo gerundiva

A diferenccedila eacute na verdade tatildeo radical que vendo bem natildeo fazemos ideia do que seja a

possibilidade enquanto instacircncia natildeo-gerundiva Estamos de tal modo sob a alccedilada da pressatildeo

gerundiva que soacute ilusoriamente conseguimos conceber o que seja a sua ausecircncia e qualquer

esforccedilo retrospectivo de retirar a pressatildeo gerundiva a uma qualquer possibilidade natildeo gera se-

natildeo resultados negativos

Sendo assim o ponto decisivo que tem de ser considerado para perceber a determina-

ccedilatildeo que para noacutes tem o campo de possibilidade eacute a direcccedilatildeo ou a orientaccedilatildeo da pressatildeo ge-

rundiva que perpassa a esfera da possibilidade

Ora o primeiro aspecto que haacute que ter em atenccedilatildeo nesta mateacuteria eacute que a pressatildeo ge-

rundiva que ocorre em noacutes e que domina inteiramente o campo da possibilidade tem que ver

com a subsistecircncia (com a continuaccedilatildeo etc) do aparecimento ndash enquanto a subsistecircncia do

aparecimento eacute uma condiccedilatildeo da subsistecircncia da ldquotestemunha globalrdquo (sc da ipseidade)

Mas isto tambeacutem natildeo eacute tudo

326

Eacute que de facto poderia haver pressatildeo gerundiva da subsistecircncia do aparecimento mas

uma pressatildeo que estivesse orientada para uma subsistecircncia do aparecimento soacute ateacute certo pon-

to (dentro de um intervalo definido)

Ora esta eacute uma modalidade de pressatildeo gerundiva que desconhecemos por completo

Para noacutes a pressatildeo gerundiva em direcccedilatildeo agrave subsistecircncia ou agrave continuaccedilatildeo do apareci-

mento tem como vimos um caraacutecter formal ndash e estaacute constituiacuteda de tal modo que o seu termi-

nus ad quem eacute nada menos do que o superlativo com as caracteriacutesticas que vimos atraacutes

Mas tambeacutem isto por sua vez natildeo eacute tudo

O ldquoem-abertordquo ndash que constitui o nuacutecleo da possibilidade ndash natildeo diz respeito apenas agrave al-

ternativa entre a) a possibilidade gerundiva de si se converter num cumprimento de si (de tal

modo que o empreendimento de si ndash a ldquonavegaccedilatildeo de sirdquo etc ndash natildeo acaba mas continua) e b)

a possibilidade gerundiva de si dar lugar agrave cessaccedilatildeo de si Ou seja a pressatildeo gerundiva natildeo

se cinge agrave preservaccedilatildeo de si

Poderia dar-se o caso de a possibilidade restringir o seu alcance agrave mera tensatildeo pela

preservaccedilatildeo de si ndash de tal modo que o que estaria em causa seria a possibilidade de haver ou

natildeo aparecimento no momento seguinte (na medida em que como vimos haacute algo como uma

tensatildeo de completude de ldquosirdquo que fica aqueacutem de se cumprir se corresponder a menos do que

agrave travessia da extensatildeo total do empreendimento de si)

Acontece que a possibilidade inclui tambeacutem ndash e inclui de modo natildeo menos decisivo ndash

uma multiplicidade de alternativas de preenchimento da continuaccedilatildeo de si

Foquemos um pouco melhor este aspecto

Em primeiro lugar haacute todo um conjunto muito diversificado de possibilidades do vir-

a-ser-de-si que se situam todas elas se assim se pode dizer do lado da continuaccedilatildeo (e natildeo do

lado contraacuterio)

Quer dizer o que se verifica estaacute muito longe de corresponder pura e simplesmente a

fazermos caso da continuaccedilatildeo sendo-nos completamente indiferente o seu teor aquilo que a

preenche etc Sucede justamente o contraacuterio As diferentes possibilidades de preenchimento

(as diferentes determinaccedilotildees possiacuteveis do vir-a-ser-de-si) contrastam fortemente umas com as

outras quanto ao teor da continuaccedilatildeo

Em segundo lugar essas diversas possibilidades natildeo satildeo iguais ndash natildeo estatildeo todas no

mesmo peacute no que diz respeito agrave tensatildeo de natildeo-indiferenccedila

327

Em relaccedilatildeo a umas possibilidades a ldquotestemunha globalrdquo do aparecimento estaacute liga-

da por pressatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva em relaccedilatildeo a outras ao inveacutes a tensatildeo de natildeo-in-

diferenccedila eacute negativa Mais precisamente a ldquotestemunha globalrdquo do aparecimento estaacute vincu-

lada agraves diversas possibilidades atraveacutes de um nuacutemero indeterminado de graus de natildeo-indife-

renccedila positiva e de um nuacutemero indeterminado de graus de natildeo-indiferenccedila negativa

O que daqui decorre eacute que cada determinaccedilatildeo de preenchimento de si-mesmo-a-haver

tem uma determinada posiccedilatildeo relativa numa hierarquia de possibilidades

Finalmente tambeacutem a este respeito a pressatildeo gerundiva a que estaacute sujeita a ipseidade

tem um caraacutecter formal e estaacute dirigida a nada menos do que o superlativo

Quer dizer as diferentes possibilidades qualitativas natildeo estatildeo apenas postas em rela-

ccedilatildeo umas com as outras de tal modo que compotildeem uma ldquohierarquiardquo Acontece em vez disso

que estatildeo postas sob a pressatildeo de um superlativo qualitativo ndash de tal modo que a sua diversa

posiccedilatildeo hieraacuterquica eacute uma posiccedilatildeo de distacircncia relativa a esse superlativo qualitativo99

99

Como vimos o programa de natildeo-indiferenccedila em questatildeo estaacute vinculado a um superlativo que eacute ao

mesmo tempo quantitativo e qualitativo ndash de tal modo que quer no que diz respeito agrave alternativa

sernatildeo-ser (e agraves diferentes possibilidades de conformaccedilatildeo concreta da duraccedilatildeo de si) quer no que diz

respeito agraves diferentes modalidades do vir-a-ser-de-si) o quadro de possibilidade aqui em causa estaacute

posto sob a pressatildeo do superlativo e eacute sempre de algum modo visto na oacuteptica dessa pressatildeo (agrave luz de-

la etc) Assim o aparecimento (isso a que chamaacutemos o caso ldquosingularrdquo do aparecimento) estaacute pres-

sionado a) por algo como um superlativo e b) por cada uma das possibilidades de aparecimento alter-

nativas (que por sua vez estatildeo sobre o mesmo complexo de pressotildees) Tudo isto quer dizer que o apa-

recimento tem em relaccedilatildeo agraves diversas possibilidades em relaccedilatildeo agraves quais estaacute em contraste um ldquova-

lorrdquo particular eacute qualitativamente superior a algumas possibilidades de aparecimento e qualitativa-

mente inferior a outras Eacute neste sentido que falamos aqui de algo como uma hierarquia de possibilida-

des O que se esboccedila eacute o facto de as muacuteltiplas possibilidades alternativas serem atravessadas por uma

avaliaccedilatildeo de valor Quer dizer as alternativas natildeo aparecem como neutras o seu valor estaacute determi-

nado pelo seu lugar nessa hierarquia ndash hierarquia que tem como criteacuterio de distribuiccedilatildeo das muacuteltiplas

alternativas o superlativo que de cada vez estiver em causa e o seu teor Vendo bem em qualquer ca-

so o aparecimento aparece sempre como uma possibilidade diminuiacuteda (esbatida subalternizada etc)

em relaccedilatildeo ao superlativo a que responde

Acresce a isto finalmente que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva e negativa natildeo eacute constante quanto

agrave sua intensidade Haacute ateacute uma muito grande margem de variaccedilatildeo dessa intensidade ndash de onde resulta

que as diferentes possibilidades do vir-a-ser-de-si natildeo apenas estatildeo em concurso umas com as outras

mas estatildeo adicionalmente numa relaccedilatildeo muito diversa com o programa de natildeo-indiferenccedila de que o

si-mesmo eacute portador Antes de mais essa variaccedilatildeo da intensidade diz respeito ao teor do superlativo

Um superlativo ldquomodestordquo se assim podemos dizer depotildee as diferentes possibilidades numa relaccedilatildeo

menos ldquotensardquo na medida em que diminui o leque da amplitude possiacutevel em relaccedilatildeo ao superlativo

Adicionalmente essa variaccedilatildeo de intensidade diz respeito ao teor da travessia do aparecimento Isto

328

Tudo isto desenha como vimos algo muito particular (que eacute aquilo que sem estarmos

cientes disso estaacute em jogo em toda a relaccedilatildeo com a possibilidade) todo o terreno da possibili-

dade estaacute posto sob a pressatildeo do superlativo (o nuacutecleo de pressatildeo formal sustentado pela natildeo-

indiferenccedila da ipseidade a si mesma que envolve ao mesmo tempo a exigecircncia de um super-

lativo quantitativo e a exigecircncia de um superaltivo qualitativo)

Em suma estejamos ou natildeo cientes disso a possibilidade eacute o terreno desta extraordi-

naacuteria peticcedilatildeo de majoraccedilatildeo de si que eacute a peticcedilatildeo do superlativo

Mas haacute ainda um outro aspecto a considerar

Poderia ser assim mas com um quadro de possibilidades relativamente restrito um

cardinal pequeno de diferentes teores de aparecimento (sc de diferentes possibilidades de

conformaccedilatildeo do si-mesmo-a-haver)

Todavia o que se passa connosco eacute justamente o oposto E eacute o oposto em dois senti-

dos

Em primeiro lugar eacute o oposto porque os teores do aparecimento satildeo muito diversos O

que estamos a procurar salientar eacute que natildeo conhecemos limite agraves possibilidades Isto eacute as pos-

sibilidades natildeo se restringem a um cardinal determinado mas vendo bem as possibilidades

pela sua proacutepria natureza satildeo passiacuteveis de uma contiacutenua multiplicaccedilatildeo

Essa incriacutevel variedade eacute por um lado uma variedade documentada pela proacutepria tra-

vessia perceptiva ndash mas por outro lado cresce exponencialmente por projecccedilatildeo empiacuterica

Para sermos mais precisos haacute aqui dois aspectos a distinguir

Por um lado haacute a questatildeo de saber de onde nos vem a ideia da incriacutevel diversidade de

que procuraacutemos descrever grosseiramente as fontes

Mas por outro lado mesmo que a travessia perceptiva natildeo documentasse nada desse

geacutenero (e que portanto natildeo houvesse qualquer base para uma projecccedilatildeo empiacuterica da ordem

da que se mencionou) continuaria a subsistir a possibilidade de algo com essas caracteriacutesti-

cas

eacute diz respeito ao facto de no curso do aparecimento a distacircncia ao superlativo ser consoante o que a

cada momento aparece maior ou menor Por fim essa variaccedilatildeo de intensidade diz respeito agrave amplitu-

de da travessia

329

Isso tem que ver com o caraacutecter apesar de tudo comparativamente exiacuteguo da travessia

perceptiva e com a fragilidade de todas as projecccedilotildees empiacutericas100

Em segundo lugar haacute algo muito diferente de um cardinal pequeno de possibilidades

alternativas porque estes diversos teores aparecem como correlatos de tensotildees de natildeo-indife-

renccedila fortemente contrastantes entre si tanto a) no que diz respeito ao seu valor positivo ou

negativo (ou seja no que diz respeito agrave alternativa entre natildeo-indiferenccedila positiva e natildeo-indife-

renccedila negativa) quanto b) no que diz respeito agrave intensidade do fluxo de natildeo-indiferenccedila que

anima a nossa relaccedilatildeo com eles

Por outras palavras seria possiacutevel haver um sem-nuacutemero de teores de aparecimento

(um sem-nuacutemero de preenchimentos possiacuteveis do si-mesmo-a-haver) e esses diferentes teores

de aparecimento natildeo terem significativos contrastes de distacircncia em relaccedilatildeo ao superlativo

qualitativo para que se tende Mas o que acontece com o quadro de possibilidades com que li-

damos eacute precisamente o oposto

Em suma o quadro de possibilidades que no nosso caso compotildee o ldquoreinordquo da possi-

bilidade eacute um quadro absolutamente exuberante que ilustra o princiacutepio de toda a espeacutecie de

determinaccedilotildees e combinaccedilotildees possiacuteveis classicamente expresso na foacutermula ldquonatura varie lu-

densrdquo101

Mas isto por sua vez ainda natildeo eacute tudo ndash e de facto deixa de fora um aspecto sem cu-

ja focagem se perde de vista algo essencial tanto para a fixaccedilatildeo da estrutura da ipseidade na

sua natildeo-indiferenccedila a si mesma quanto para a compreensatildeo da estrutura da experiecircncia da vi-

da enquanto tal O aspecto que falta considerar tem que ver com o seguinte

100

Vendo bem natildeo soacute as possibilidades ocupam uma incriacutevel amplitude como haacute uma incriacutevel despro-

porccedilatildeo entre o que efectivamente aparece (o caso ldquosingularrdquo do aparecimento se assim podemos di-

zer) e os muacuteltiplos casos possiacuteveis de aparecimento Mais eacute precisamente com essa multiplicaccedilatildeo de

possibilidades ndash com uma grandeza incriacutevel ndash que a cada momento o que aparece estaacute confrontado Ou

seja eacute essa multiplicidade de possibilidades que a cada momento coloca em tensatildeo o que aparece

(partilha o plano com interfere ou influencia o que aparece etc) ndash de tal modo que na verdade modi-

fica o que aparece a partir do seu ldquointeriorrdquo Em suma por uma parte a determinaccedilatildeo de preenchi-

mento de si-mesmo-a-haver corresponde a natildeo mais do que uma de entre as muacuteltiplas possibilidades

de determinaccedilatildeo de preenchimento de si-mesmo-a-haver Por outra parte a determinaccedilatildeo de preenchi-

mento de si-mesmo-a-haver estaacute de cada vez pressionado por um nuacutemero ilimitado de variaccedilotildees alter-

nativas de determinaccedilatildeo de preenchimento de si-mesmo-a-haver e o confronto com todas essas possi-

bilidades conforma o modo como aparece o que aparece

101 Deichgraumlber K Natura varie ludens Ein Nachtrag zum grieschischen Naturbegriff Wiesbaden

Steiner 1954 Abhandlungen der Geistes- und Sozialwissenschaftlichen Klasse 1954 nuacutemero 3

330

Poderia ser assim como acabamos de descrever mas de tal modo que o quadro de

possibilidades em causa fosse passiacutevel de sinopse

Quer dizer poderia ser assim mas de tal modo que fosse possiacutevel ter uma perspectiva

que verdadeiramente cobrisse e acompanhasse cada uma das possibilidades de aparecimento

em causa e percebesse em regime de perfeita perspicaacutecia a posiccedilatildeo que todas elas ocupam

umas em relaccedilatildeo agraves outras no que diz respeito aos seus diversos encadeamentos possiacuteveis ao

seu ldquovalorrdquo ou ao significado de que se reveste em relaccedilatildeo agrave tensatildeo de natildeo-indiferenccedila ao seu

programa superlativo etc

Contudo natildeo eacute nada disso que sucede Natildeo haacute nenhuma sinopse constituiacuteda desse mo-

do ndash na verdade o que haacute eacute muito diferente dela

Por um lado haacute uma tendecircncia para a sinopse ndash uma tendecircncia que radica na proacutepria

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesmo e na necessidade de orientaccedilatildeo que dela

decorre Por outro lado tudo o que de cada vez se acha alcanccedilado em mateacuteria de sinopse tem

natildeo soacute a) um caraacutecter bastante confuso mas para aleacutem disso b) deixa escapar um cardinal

muito elevado ndash e ateacute mesmo a esmagadora maioria ndash das linhas de desenvolvimento possiacute-

vel do vir-a-ser-de-si

Ou seja ainda que se trate de um horizonte sobre o qual recai uma forte pressatildeo de

clarividecircncia de facto esse horizonte caracteriza-se pelo oposto daquilo que se acha requerido

por essa pressatildeo Em suma trata-se de qualquer coisa como um campo cerrado encoberto

com todas as caracteriacutesticas de um ldquolabirintordquo102

Vejamos um pouco melhor o que se quer dizer com isto

Quando falamos aqui de ldquolabirintordquo natildeo nos referimos ao fenoacutemeno do ldquolabirintordquo no

sentido que o termo tem quando estaacute em causa algo de que se tem uma perspectiva a partir de

cima (de relance com acesso agrave sua planta etc) Quando falamos aqui de ldquolabirintordquo estamos

a referir-nos agravequilo que se passa quando se estaacute fechado num labirinto e sujeito ao tipo de

constriccedilatildeo de perspectiva que corresponde a algueacutem fechado num labirinto

Nesse sentido um labirinto eacute um campo de acesso marcado por fortes restriccedilotildees ndash res-

triccedilotildees essas que reduzem aquilo que se consegue ver de cada vez a muito pequenos troccedilos

102

Sobre o tema do ldquolabirintordquo (ie da vida como labirinto do curso da vida como curso labiriacutentico

etc) ver por exemplo Doob P The idea of the Labyrinth from Classical Antiquity through the Mid-

dle Ages London Cornell University Press 1990

331

de tal modo que a) natildeo se sabe o que estaacute para laacute deles (natildeo tem acesso ao que estaacute para laacute

das barreiras que os limitam etc) b) natildeo se sabe bem qual a posiccedilatildeo que cada um destes tro-

ccedilos ocupa na totalidade do labirinto e na verdade c) natildeo se faz ideia da proacutepria extensatildeo ou

amplitude global do labirinto em que se estaacute

Isto eacute ainda mais assim se ndash como sucede no caso aqui em causa como sucede no nos-

so caso ndash se trata de um labirinto em que se estaacute desde sempre de tal modo que nunca se fez

qualquer deslocaccedilatildeo a natildeo ser dentro dele

Tambeacutem a desproporccedilatildeo que assim se desenha ndash ou seja a desproporccedilatildeo entre a) a

pressatildeo de superlativaccedilatildeo e a pressatildeo de sinopse em relaccedilatildeo ao quadro das possibilidades de

si e b) o facto de o quadro de possibilidades estar cerrado e disposto de tal modo que todo o

ganho de perspectiva a seu respeito tem a forma de deslocaccedilotildees num labirinto constitui uma

componente decisiva da estrutura da testemunha global e do aparecimento em que nos temos

enquanto este estaacute constituiacutedo como empreendimento de si

Eacute isso que naturalmente se reflecte numa propriedade fundamental da proacutepria travessia

do aparecimento (da travessia da vida e da experiecircncia da vida) a travessia do aparecimento

tem justamente a forma de exploraccedilatildeo de um labirinto

Assim se por um lado a proacutepria travessia do labirinto permite ter dele alguma pers-

pectiva (de tal modo que eacute possiacutevel desenhar um ldquomapardquo da travessia do labirinto) por outro

lado natildeo eacute possiacutevel saber a partir dessa perspectiva restrita que de cada vez se tem no meio

dele que possibilidades inexploradas o labirinto abre ndash o que eacute que se vai encontrar no hori-

zonte por explorar quais as suas dimensotildees etc103

Ou para sermos mais precisos a travessia do aparecimento tem a forma do labirinto

das possibilidades do vir-a-ser-de-si e eacute feita natildeo tanto como descoberta das possibilidades

103

A respeito das origens gnoseoloacutegicas deste reconhecimento do ldquoreinordquo da possibilidade como ldquolabi-

rintordquo renovam-se as observaccedilotildees feitas atraacutes Em aditamento observe-se que o papel da ἐμπειρία em

relaccedilatildeo a este estado de coisa eacute ambiacuteguo Por um lado a ἐμπειρία antecipa a surpresa Com efeito a

travessia perceptiva caracteriza-se precisamente por pocircr em contacto com uma multiplicidade de πεϱι-

πέτειαι ndash como se situasse em caminho em cujo percurso surgem surpresas E a ἐμπειρία antecipa mais

ocorrecircncias disso projecta a quase-lei de que surgem supresas etc Por outro lado uma das preocupa-

ccedilotildees e tendecircncias mais vincadas da ἐμπειρία em virtude de estar dominada pelo interesse por si eacute pre-

cisamente traccedilar quando possiacutevel o ldquomapardquo do labirinto (obter a perspectiva de sinopse que na ver-

dade nunca alcanccedila)

332

como possibilidades mas como descoberta das possibilidades a partir do facto (ie a partir

do que acontece do que aparece do que se descobre que vai sendo de si etc)

Quer dizer embora haja alguma margem de identificaccedilatildeo prospectiva das possibilida-

des como possibilidades (enquanto ainda satildeo possibilidades antes de se actualizarem) a es-

treiteza de acircngulo na nossa captaccedilatildeo do campo de possibilidades (aquilo que tentaacutemos focar

quando falaacutemos da falta de sinopse e de quando falaacutemos de um condicionamento anaacutelogo ao

de um labirinto) faz que muitas possibilidades de preenchimento de si (muitas modalidades de

conformaccedilatildeo de si) natildeo sejam antecipadas e em vez disso se manifestem sob a forma de possi-

bilidades jaacute actualizadas

Enfim tudo se passa como se a ldquocriatividaderdquo do campo de possibilidades em que te-

mos efectivamente de nos haver fosse muito mais feacutertil do que a nossa ldquocriatividaderdquo no que

diz respeito agrave concepccedilatildeo de possibilidades de preenchimento de si

sect37

O duplo ldquobig bangrdquo do si-mesmo a propagaccedilatildeo sobre a totalidade de si e a propagaccedilatildeo

sobre a totalidade do que aparece ndash A ldquopeccedilardquo de si

Um dos aspectos mais decisivos para a compreensatildeo de tudo isto eacute aquele que tem que

ver com a capacitaccedilatildeo de que a presenccedila deste elemento de ipseidade em tensatildeo relativamen-

te a si mesma (a presenccedila do superlativo a presenccedila da possibilidade de si que tentaacutemos apre-

sentar na secccedilatildeo anterior) natildeo tem um caraacutecter puramente regional

Pode parecer que eacute assim ndash que a presenccedila do si deixa tudo o resto mais ou menos na

mesma Mas enquanto persistir um tal modelo estaacute-se a) a deixar escapar aquilo que efecti-

vamente se passa b) a perder de vista o peso real da ipseidade (sc da relaccedilatildeo que ela tem con-

sigo) e c) continua-se a natildeo perceber bem que eacute que quer dizer o aparecimento estar constituiacute-

do como (ou ter a forma de um) empreendimento de si

Vejamos um pouco melhor este aspecto

O que estaacute em jogo natildeo eacute apenas o facto de o nuacutecleo da ipseidade ter a extraordinaacuteria

dimensatildeo de que tentaacutemos dar uma ideia

333

O ponto decisivo estaacute no facto de a sua presenccedila se propagar por toda a extensatildeo da-

quilo que aparece fazendo que aquilo que aparece ndash o que quer que seja que aparece ndash natildeo

tenha apenas a sua proacutepria determinaccedilatildeo mas tenha a determinaccedilatildeo que lhe vem de se ins-

crever no territoacuterio do si na tensatildeo de si como momento dessa tensatildeo (como um functor des-

sa tensatildeo como tambeacutem poderiacuteamos dizer)

Isto pode parecer estranho porque um dos traccedilos fundamentais de uma grande parte

das ldquocoisasrdquo que aparecem eacute precisamente o parecerem neutras distantes irrelevantes em re-

laccedilatildeo a si e agrave tensatildeo que domina o si

Mas como observaacutemos anteriormente eacute justamente isto mesmo que parece infirmar o

que dizemos que na verdade o confirma ser distante irrelevante insignificante etc natildeo eacute

menos uma forma de se definir em relaccedilatildeo ao si do que o contraacuterio (do que ter importacircncia

ser proacuteximo etc)

O ponto decisivo estaacute em que tanto num caso como no outro a determinaccedilatildeo eacute intrin-

secamente relativa ao si ndash tem o si (tem o si-mesmo-a-haver tem o superlativo tem o campo

das possibilidades de si etc) por assim dizer como ponto de referecircncia fundamental

Dito de outro modo em vez de acontecer que o si (e todo o horizonte do si) seja pura

e simplesmente mais um elemento algures a um canto da multiplicidade que aparece em vez

de acontecer que a ldquotestemunha globalrdquo registe a sua proacutepria presenccedila tal como regista o que

quer que seja mais ndash sucede pelo contraacuterio que a ipseidade eacute o centro em torno do qual gra-

vita tudo o mais e eacute ao mesmo tempo tambeacutem o medium em que tudo o mais se vem inscre-

ver

Na verdade pode falar-se de qualquer coisa como um duplo ldquobig bangrdquo do si-mesmo

Por um lado haacute um ldquobig bangrdquo porque a determinaccedilatildeo do si natildeo eacute simples punctifor-

me antes implica toda a extensatildeo da flexatildeo de si e da totalidade de si (sc da totalidade ge-

rundiva do si-mesmo a haver) com as caracteriacutesticas que esboccedilaacutemos na secccedilatildeo anterior

Por outro lado no entanto esta explosatildeo do si-mesmo a haver natildeo se manteacutem contida

na sua proacutepria esfera como se se tratasse de uma explosatildeo regional propaga-se por toda a

extensatildeo daquilo que aparece ndash chamando por assim dizer tudo o que aparece ao seu proacute-

prio domiacutenio ldquopuxando-o a sirdquo e integrando-o no seu proacuteprio territoacuterio como algo que se de-

fine em funccedilatildeo dele etc

334

Neste sentido o mais distante e o mais desligado da ipseidade e da tensatildeo de si estaacute

absolutamente nos ldquoantiacutepodasrdquo de ter uma determinaccedilatildeo natildeo-relativa ao si-mesmo

Na verdade o mais distante e o mais desligado da ipseidade e da tensatildeo de si tem um

cunho essencialmente perifeacuterico que soacute eacute possiacutevel a) no quadro de uma multiplicidade cen-

trada e b) numa multiplicidade centrada com centro no si mesmo e c) na ligaccedilatildeo de natildeo-indi-

ferenccedila a si de absoluta dedicaccedilatildeo a si etc Ou como tambeacutem podemos dizer tudo se passa

como se o nuacutecleo de si lanccedilasse como que o sinal de ldquosonarrdquo de si mesmo por toda a ampli-

tude daquilo que aparece atravessando tudo e retornando com a determinaccedilatildeo das posiccedilotildees

funcionais de tudo em relaccedilatildeo ao centro emissor desse sinal em torno do qual tudo gira e que

constitui a fonte da identificaccedilatildeo fundamental de tudo

Nos Beitraumlge zur Loumlsung der Frage vom Ursprung unseres Glaubens an die Realitaumlt

der Auszligenwelt und seinem Recht Dilthey exprime este estado-de-coisas dizendo que inde-

pendentemente do que se possa dizer em sede metafiacutesica no plano da constituiccedilatildeo do apare-

cimento o ens realissimum eacute o proacuteprio104

Isso significa que de raiz o proacuteprio tem a carga maacutexima de realidade de que proveacutem

a realidade de tudo o mais no campo da sua proacutepria experiecircncia

Natildeo se considera aqui especificamente a questatildeo da realidade (da atribuiccedilatildeo de reali-

dade etc) e a tese que o enunciado de Dilthey traduz em relaccedilatildeo a ela Mas importa-nos focar

como essa forma de ens realissimum imanente eacute justamente aquela que caracteriza o aconteci-

mento de aparecer de tudo que continuamente estaacute a ter lugar em cada um de noacutes

O facto de o ens realissimum ser o proacuteprio produz centramento e faz ao mesmo tempo

que a determinaccedilatildeo do centro (a presenccedila do centro) se propague a tudo como matriz em que

tudo se vem inscrever de sorte que o proacuteprio afastamento eacute precisamente isso relativo ao

centro determinado por ele (algo a que o centro chega que estaacute no alcance do centro mas que

estaacute relegado para uma posiccedilatildeo de ldquofundordquo etc)

O segundo ldquobig bangrdquo tem portanto um caraacutecter total maciccedilo e produz como que a

integraccedilatildeo de tudo o que aparece sem excepccedilatildeo na esfera do primeiro ldquobig bangrdquo que assim

imprime em tudo o seu cunho

104

ldquoHierin liegt nun die energischste Verdichtung der Realitaumlt dieser Lebenseinheit da ich mir selber

das ens realissimum bin was auch die Metaphysiker von einem solchen uumlber den Sternen sagen mouml-

genrdquo (Beitraumlge paacuteg 111)

335

Para se perceber bem como eacute assim importa acentuar dois aspectos

Por um lado a interposiccedilatildeo da tensatildeo do si afecta a determinaccedilatildeo de tudo o que apare-

ce de tal modo que tudo se define por uma certa identidade funcional em relaccedilatildeo a si ndash se as-

sim se pode dizer como ldquopersonagemrdquo (personagem principal secundaacuteria figurante etc) da

ldquopeccedilardquo de si

Por outro lado faz parte integrante disso a disposiccedilatildeo de tudo o que aparece numa

multiplicidade de planos mais ou menos proacuteximos do centro ndash de sorte que como numa peccedila

faz parte da identidade funcional como que uma disposiccedilatildeo em muacuteltiplas ordens de grandeza

das personagens consoante o seu grau de intervenccedilatildeo naquilo que estaacute em causa na ldquopeccedilardquo

De facto e como jaacute sugerimos em passos anteriores podemos formular este aspecto

fundamental dizendo que o aparecimento tem em noacutes a forma como de uma ldquopeccedilardquo ndash a ldquopeccedilardquo

de cada um a ldquopeccedilardquo de si mesmo etc

Usamos aqui a noccedilatildeo de ldquopeccedilardquo no sentido ldquoteatralrdquo do termo

Por uma parte isto quer dizer que globalmente haacute uma ldquopeccedilardquo ldquoem cenardquo uma ldquope-

ccedilardquo com protagonista ndash sendo o protagonista quem estaacute em causa na ldquopeccedilardquo

Por outra parte quer dizer que tal como numa peccedila (no ldquouniversordquo de uma ldquopeccedilardquo) tu-

do o que aparece entra em cena como interveniente dessa ldquopeccedilardquo ndash a interferir deste ou da-

quele modo com o que se passa com o protagonista a intervir deste e daquele modo com o

aquilo ou aqueles que interferem com o protagonista a intervir deste e daquele modo com

aquilo ou aqueles que interferem com o que ou os que interferem com o protagonista e assim

sucessivamente Como eacute claro referimo-nos aqui agrave estrutura desenhada no Alcibiacuteades Major

Quer dizer tudo o que aparece estaacute como que centrado ndash gira em torno do protagonis-

ta define-se em relaccedilatildeo a ele (se assim se pode dizer como factor dele com posiccedilatildeo adjectiva

em relaccedilatildeo a ele ndash mais proacutexima do centro ou mais perifeacuterica mas no fundamental sempre

adjectiva)

Note-se entre parecircnteses que este empreacutestimo categorial ndash falamos em categorias re-

lativas ao teatro como tambeacutem poderiacuteamos recorrer a categorias relativas a outros geacuteneros li-

teraacuterios ndash natildeo tem nada de posticcedilo Na verdade as estruturas fundamentais destes geacuteneros in-

dependentemente do que tambeacutem elas possam comportar de filtrado de convencional etc

espelham estruturas constitutivas da proacutepria vida

336

Natildeo estamos aqui em condiccedilotildees de ir mais longe em relaccedilatildeo a esta afirmaccedilatildeo Aquilo

que nos parece importante eacute mostrar que esta comparaccedilatildeo tem como parece inevitaacutevel (omne

simile claudicat) uma componente que pode induzir em erro

Por um lado o facto de se falar numa ldquopeccedilardquo pode sugerir a ideia de algo puramente

ldquorepresentadordquo ndash que eacute justamente o oposto do que estaacute em causa Trata-se de algo com um

grau de realidade maacuteximo

A ldquopeccedilardquo em curso (a ldquopeccedilardquo de cada um) trata de todos os assuntos que estatildeo sob a

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a si mesmo (de dedicaccedilatildeo a si do fazer caso de si etc) que atraacutes re-

ferimos Nesse aspecto o ldquotemardquo da ldquopeccedilardquo eacute a proacutepria ldquocoisardquo a jogar-se de uma vez soacute

(sem ensaios em completo em-aberto relativamente ao enredo de improviso etc)

Por outro lado o facto de se falar de uma ldquopeccedilardquo pode induzir em erro porque no caso

de uma ldquopeccedilardquo assistimos agravequilo que se passa como espectadores Quer dizer podemos sim-

patizar ou identificar-nos com o protagonista mas em uacuteltima anaacutelise natildeo somos o protagonis-

ta

Ora no caso do aparecimento constituiacutedo como empreendimento de si sucede precisa-

mente o contraacuterio pode ateacute haver momentos em que se consegue ver a proacutepria vida em certa

medida como um espectador mas a possibilidade de ver a proacutepria vida como espectador re-

presenta uma relativa evasatildeo relativamente ao viacutenculo absoluto do mea res agitur Por outras

palavras neste caso natildeo se trata de uma ldquopeccedilardquo a que se assiste mas da peccedila que se ldquoeacuterdquo da

ldquopeccedilardquo do proacuteprio etc105

Ateacute pode haver outras vidas agrave volta (que de certo modo reconhece como outras ldquope-

ccedilasrdquo diferentes da sua ndash com uma amplitude centralidade etc para os proacuteprios equivalente agrave

105

Vendo bem quando se assiste a uma ldquopeccedilardquo no sentido ldquoteatralrdquo do termo esta tem o caraacutecter de

um interluacutedio dentro da ldquopeccedilardquo de cada um ndash da verdadeira ldquopeccedilardquo cujos protagonistas centrais so-

mos cada um de noacutes (da grande ldquopeccedilardquo em que o momento de ir ao teatro e toda a peccedila representada

em palco eacute uma cena) O que nos leva a um outro aspecto cuja consideraccedilatildeo nos permite perceber me-

lhor em que sentido se pode falar da ldquopeccedilardquo de cada um e de todo o aparecimento do que aparece co-

mo algo que tem a forma da ldquopeccedilardquo de cada um Uma ldquopeccedilardquo no sentido em que se fala de uma peccedila

de teatro eacute uma parte (e na verdade uma iacutenfima parte) do que aparece Nesse sentido tem um exte-

rior (haacute muito mais para aleacutem dela deixa de fora etc) Na verdade natildeo soacute haacute muito que ela deixa de

fora como para aleacutem disso e abstraindo aqui do facto de as peccedilas poderem revestir-se de caraacutecter

simboacutelico e pretenderem pocircr em cena muito mais do que efectivamente potildeem haacute muito mais fora dela

do que dentro Mas com a ldquopeccedilardquo de cada um natildeo sucede o mesmo

337

sua) mas em uacuteltima anaacutelise acaba por reduzir essas outras ldquopeccedilasrdquo a momentos da ldquopeccedilardquo

proacutepria (da ldquopeccedilardquo central ndash e na verdade a uacutenica)

Nesse sentido a ldquopeccedilardquo de cada um (o aparecimento constituiacutedo como peccedila de si mes-

mo como empreendimento de si etc) tem o caraacutecter de qualquer coisa como uma peccedila abso-

luta

sect38

A organizaccedilatildeo global do que aparece considerada a partir da estrutura de ciacuterculos con-

cecircntricos de Hieacuterocles a presidecircncia centrada do αὐτός e o ldquolugarrdquo das ldquocoisas

O que acabamos de ver permite-nos perceber como o facto de o aparecimento em que

estamos constituiacutedos ter a forma de um empreendimento de si (sc de ldquopeccedila de sirdquo) que tentaacute-

mos descrever nos seus traccedilos fundamentais molda aquilo que aparece conferindo-lhe um es-

tatuto ou um teor muito peculiar Exprimimos esse estatuto ou esse teor falando de ldquopersona-

gensrdquo da ldquopeccedilardquo de si ndash e tanto quer dizer da natildeo-indiferenccedila a si de um si vinculado ao su-

perlativo lanccedilado no campo de possibilidades etc

Eacute que quando como no nosso caso o aparecimento tem essa natureza tudo ndash sem ex-

cepccedilatildeo ndash aparece agrave luz do empreendimento ou da ldquopeccedilardquo de si assume funccedilotildees relativamente

ao empreendimento ou agrave ldquopeccedilardquo de si e eacute nessa medida interveniente nessa ldquopeccedilardquo ou nesse

empreendimento

Eacute isso que quer dizer neste contexto a noccedilatildeo de ldquopersonagemrdquo ndash que eacute portanto uma

noccedilatildeo abrangente destinada a caracterizar esta peculiar forma de determinaccedilatildeo do objecto

que eacute proacutepria de um aparecimento que tem a natureza de um empreendimento de si (sc de

uma peccedila de si)

Ao falarmos de ldquopersonagensrdquo natildeo nos estamos portanto a referir soacute agravequilo que mais

comummente eacute designado por este nome ndash outras pessoas Referimo-nos a tudo o que aparece

sem distinccedilatildeo independentemente de pertencer agrave esfera das ldquopessoasrdquo ou das ldquocoisasrdquo ou a

qualquer outra classe dentro deste geacutenero de distinccedilotildees

Assim o aparecimento tem o caraacutecter de qualquer coisa como uma ldquopeccedila de sirdquo e isso

faz que o que quer que seja que aparece (tudo o que aparece) surja na posiccedilatildeo de algo que in-

338

terfere deste ou daquele modo na ldquopeccedila de sirdquo (faz com que o que quer que seja que aparece

surja como interveniente na ldquopeccedilardquo)

Ora o estatuto ou o teor de ldquopersonagemrdquo natildeo eacute uma camada adicional adjectiva cor-

respondente a determinadas funccedilotildees na ldquopeccedilardquo de si O que estamos a dizer eacute algo muito dife-

rente

O que estamos a dizer eacute que no quadro de um aparecimento que estaacute constituiacutedo como

empreendimento de si e que tem a forma da ldquopeccedilardquo de si estar definido como ldquopersonagemrdquo

que interveacutem nessa ldquopeccedilardquo deste ou daquele modo eacute o que constitui a identidade fundamental

do que aparece

Isso reflecte-se em diversos fenoacutemenos ndash entre os quais a relaccedilatildeo entre tudo o que apa-

rece e o campo das possibilidades relativas ao si-mesmo-a-haver que eacute como vimos o prota-

gonista de um aparecimento constituiacutedo desta forma

Mas um ponto que nos interessa em especial considerar tem que ver com a proacutepria or-

ganizaccedilatildeo global do que aparece

Essa organizaccedilatildeo global tem justamente que ver com a orbitaccedilatildeo de tudo em torno da

ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo na sua natildeo-indiferenccedila a si mesma ndash quer dizer na tensatildeo

para o superlativo (para uma conformaccedilatildeo superlativa de si) O que vimos significa que a tra-

vessia perceptiva eacute uma travessia no quadro da ldquopeccedilardquo de si (da navegaccedilatildeo do si da tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila a si da demanda do superlativo etc) ndash que regista precisamente ldquopersona-

gensrdquo de si

Ou seja cada campo perceptivo estaacute constituiacutedo ou organizado como campo de ldquoper-

sonagensrdquo do si E o mesmo vale para o campo de familiaridade e para o exterior do campo

de familiaridade pertencentes a uma ipseidade natildeo-indiferente a si mesma e dominada por

uma radical natildeo-indiferenccedila ao superlativo de si

Acontece que tatildeo importante como marcar bem este denominador comum eacute perceber

a natureza das articulaccedilotildees fundamentais que organizam a multiplicidade das ldquopersonagensrdquo

da ldquopeccedilardquo de si

Quer dizer eacute importante perceber como as personagens da ldquopeccedilardquo de si se dispotildeem

como se organizam entre si qual a natureza da articulaccedilatildeo entre o campo perceptivo o cam-

po de familiaridade e o exterior do campo de familiaridade o que eacute que estas divisotildees do hori-

339

zonte daquilo que aparece tecircm que ver com o proacuteprio facto de se tratar de personagens da ldquope-

ccedilardquo de si etc

Para abordar estas questotildees socorremo-nos daquilo que encontramos apresentado nos

fragmentos de Hieacuterocles ndash o fragmento que aponta a uma estrutura de ciacuterculos concecircntricos

incluiacutedo por Estobeu na Antologia106

Natildeo eacute este o local para considerar a estrutura de ciacuterculos concecircntricos em toda a sua

extensatildeo nem eacute este o local para fazer o levantamento integral de todos os aspectos que a es-

trutura desenha ou que aiacute estatildeo em jogo107

Na verdade interessa-nos destacar apenas trecircs aspectos

Aquilo a que em primeiro lugar importa dar atenccedilatildeo eacute o facto de estar em causa uma

estrutura complexa com diferentes niacuteveis de proximidade ou distacircncia Aquilo que se desenha

eacute uma forma de relaccedilatildeo entre os diversos ciacuterculos ndash mas de tal modo que a relaccedilatildeo entre os

diversos ciacuterculos natildeo eacute igual nem constante

Poderiacuteamos tender a considerar que os ciacuterculos na medida em que albergam mais ele-

mentos vatildeo alargando de tamanho Ora se isso eacute de certo modo assim isso natildeo parece ser

decisivo

106

Τοῖς εἰρημένοις περὶ γονέων χρήσεως καὶ ἀδελφῶν γυναικός τε καὶ τέκνων ἀκόλουθόν ἐστι προσ-

θεῖναι καὶ τὸν περὶ συγγενῶν λόγον συμπεπονθότα μέν πως ἐκείνοις διrsquo αὐτὸ δὲ τοῦτο συντόμως

ἀποδοθῆναι δυνάμενον ὅλως γὰρ ἕκαστος ἡμῶν οἷον κύκλοις πολλοῖς περιγέγραπται τοῖς μὲν σμι-

κροτέροις τοῖς δὲ μείζοσι καὶ τοῖς μὲν περιέχουσι τοῖς δὲ περιεχομένοις κατὰ τὰς διαφόρους καὶ

ἀνίσους πρὸς ἀλλήλους σχέσεις πρῶτος μὲν γάρ ἐστι κύκλος καὶ προσεχέστατος ὃν αὐτός τις καθά-

περ περὶ κέντρον τὴν ἑαυτοῦ γέγραπται διάνοιανmiddot ἐν ᾧ κύκλῳ τό τε σῶμα περιέχεται καὶ τὰ τοῦ σώμα-

τος ἕνεκα παρειλημμένα σχεδὸν γὰρ ὁ βραχύτατος καὶ μικροῦ δεῖν αὐτοῦ προσαπτόμενος τοῦ κέν-

τρου κύκλος οὗτος δεύτερος δὲ ἀπὸ τούτου καὶ πλέον μὲν ἀφεστὼς τοῦ κέντρου περιέχων δὲ τὸν

πρῶτον ἐν ᾧ τετάχαται γονεῖς ἀδελφοὶ γυνὴ παῖδες ὁ δrsquo ἀπὸ τούτων τρίτος ἐν ᾧ θεῖοι καὶ τηθίδες

πάπποι τε καὶ τῆθαι καὶ ἀδελφῶν παῖδες ἔτι δὲ ἀνεψιοί μεθrsquo ὃν ὁ τοὺς ἄλλους περιέχων συγγενεῖς

τούτῳ δrsquo ἐφεξῆς ὁ τῶν δημοτῶν καὶ μετrsquo αὐτὸν ὁ τῶν φυλετῶν εἶθrsquo ὁ πολιτῶν καὶ λοιπὸν οὕτως ὁ

μὲν ἀστυγειτόνων ὁ δὲ ὁμοεθνῶν ὁ δrsquo ἐξωτάτω καὶ μέγιστος περιέχων τε πάντας τοὺς κύκλους ὁ τοῦ

παντὸς ἀνθρώπων γένους τούτων οὖν τεθεωρημένων κατὰ τὸν ἐντεταμένον ἐστὶ περὶ τὴν δέουσαν

ἑκάστων χρῆσιν τὸ ἐπισυνάγειν πως τοὺς κύκλους ὡς ἐπὶ τὸ κέντρον καὶ τῇ σπουδῇ μεταφέρειν ἀεὶ

τοὺς ἐκ τῶν περιεχόντων εἰς τοὺς περιεχομένους

Este fragmento do tratado Ἱεροκλέους ἐκ τοῦ πῶς συγγενέσι χρηστέον foi conservado na Antologia de

Estobeu (48423) seguimos a ediccedilatildeo de Ramelli I Hierocles the Stoic Elements of Ethics Frag-

ments and Excerpts Society of Biblical Literature Atlanta 2009 paacuteg 90)

107 Para uma anaacutelise mais detida ver Fidalgo T The multidimensional and centered structure of our

interested perception in Hierocles Tese de Mestrado UNL Lisboa 2015

340

Por um lado Hieacuterocles diz-nos que uns ciacuterculos satildeo maiores e outros mais pequenos ndash

com isso sinalizando precisamente o facto de abrangerem mais ou menos componentes (uma

maior ou menor ldquopopulaccedilatildeordquo por assim dizer)

Poreacutem por outro lado o que parece ser decisivo para a configuraccedilatildeo da estrutura natildeo eacute

o cardinal de elementos que compotildeem um ciacuterculo Do mesmo modo natildeo eacute decisivo o facto de

a estrutura comportar um determinado nuacutemero de niacuteveis ou de ciacuterculos

Na verdade e apesar de a estrutura desenhada por Hieacuterocles comportar sete niacuteveis

tambeacutem eacute relativamente indiferente o cardinal de niacuteveis de que a estrutura eacute composta ndash justa-

mente na medida em que no fundamental a estrutura manteria a sua validade independente-

mente do cardinal de niacuteveis descriminados

Isto eacute assim porque o que estaacute propriamente em causa na estrutura de ciacuterculos concecircn-

tricos eacute a natureza do viacutenculo que eles exprimem ndash ie o grau de afectaccedilatildeo ou o modo como

os ciacuterculos estatildeo afectivamente dispostos a partir do centro

A relaccedilatildeo eacute mais intensa com os niacuteveis mais proacuteximos do centro e mais distante com

os niacuteveis mais distantes do centro Na verdade o que estaacute em causa eacute algo como um progres-

sivo afrouxamento do viacutenculo ao centro um afrouxamento que aumenta agrave medida que diver-

sos ciacuterculos ganham distacircncia relativamente ao centro

Assim o facto de os ciacuterculos mais proacuteximos serem mais pequenos depende do facto de

haver em noacutes tal como estamos constituiacutedos uma equaccedilatildeo fundamental que se traduz em

pouco ou poucos nos afectar ou nos afectarem muito e de muito ou muitos nos afectar ou nos

afectarem pouco

Eacute tendo tudo isto em vista que podemos dizer que a estrutura que Hieacuterocles nos apre-

senta eacute uma estrutura formal E podemos compreender que eacute uma estrutura formal se conside-

rarmos dois factores

Por um lado a estrutura de Hieacuterocles pode acolher qualquer distribuiccedilatildeo

Quer dizer uma escala com esta mesma estrutura constituiacuteda precisamente do mesmo

modo (com niacuteveis de proximidade e distacircncia) consente outra titularidade ndash ie poderia cor-

responder a uma multiplicidade de outros preenchimentos possiacuteveis Isso fica mais claro an-

tes de mais se se conceber que um mesmo ldquouniversordquo de ldquoconteuacutedosrdquo (as ldquomesmasrdquo ldquocoisasrdquo

as ldquomesmasrdquo pessoas etc) poderia corresponder a uma multiplicidade de distribuiccedilotildees muito

distintas entre si

341

Mais poderia agrave primeira vista parecer que os componentes dos diferentes ciacuterculos es-

tatildeo encerrados nesses ciacuterculos de tal modo que natildeo haacute qualquer possibilidade de transiccedilatildeo

entre ciacuterculos ndash que natildeo haacute qualquer possibilidade de aproximaccedilatildeo ou de distanciaccedilatildeo em re-

laccedilatildeo ao centro Afinal as relaccedilotildees que Hieacuterocles descreve parecem ter essa natureza os pais

natildeo deixaratildeo de ser pais os filhos natildeo deixaratildeo de ser filhos os parentes natildeo deixaratildeo de ser

parentes etc

Poreacutem Hieacuterocles natildeo parece definir uma estrutura riacutegida ndash ou pelo menos natildeo parece

definir uma estrutura tatildeo riacutegida que natildeo admita variaccedilatildeo

Para compreender que eacute assim basta considerar que um membro feminino da tribo de

que se seja parte (ie um indiviacuteduo componente desse que passa por ser na estrutura de Hieacute-

rocles o sexto niacutevel) pode muito bem tornar-se esposa (caso no qual por via de a relaccedilatildeo ao

centro ser completamente modificada transita para o segundo ciacuterculo) Do mesmo modo um

vizinho ou um concidadatildeo pode perfeitamente mudar de cidade e com isso ser remetido para

niacuteveis mais afastados da estrutura (por exemplo partir de um niacutevel mais proacuteximo do centro e

ser remetido para o uacuteltimo niacutevel que diz respeito ao grupo mais abrangente de todos o de to-

da a espeacutecie humana) Isto jaacute para natildeo falar de mudanccedilas de outras ordens como as que ocor-

rem do desgaste proacuteprio das relaccedilotildees sociais por exemplo ao longo do tempo etc

Por outro lado e apesar de a escala que Hieacuterocles nos apresenta estar preenchida por

relaccedilotildees sociais e humanas (ie seja uma escala relativa do domiacutenio de ldquooutremrdquo) nada im-

pede que esta mesma estrutura se aplique a qualquer outro objecto (e seja tambeacutem a estrutura

de outros domiacutenios de ldquoobjectosrdquo)

Isto eacute tanto se pode aplicar esta estrutura quando o que estaacute em causa eacute a nossa rela-

ccedilatildeo aos parentes aos vizinhos aos concidadatildeos etc (as relaccedilotildees sociais em suma) quanto se

pode aplicar esta mesma estrutura quando o que estaacute em causa eacute a nossa relaccedilatildeo por exemplo

a objectos materiais ou do mesmo modo a nossa relaccedilatildeo a valores princiacutepios objectos de sa-

ber etc

O que muito sucintamente se estaacute a propor com estas consideraccedilotildees eacute que a estrutura

dos ciacuterculos concecircntricos de Hieacuterocles desenha a estrutura fundamental da relaccedilatildeo afectiva

(da relaccedilatildeo afectiva em geral da relaccedilatildeo afectiva aplicada ao que quer que seja a qualquer

ldquoobjectordquo etc)

Vendo bem o que estaacute em causa na estrutura de Hieacuterocles eacute algo como a circunscri-

ccedilatildeo do ldquoproacutepriordquo (do que eacute proacuteprio do que eacute do proacuteprio do que eacute ldquoordquo proacuteprio etc)

342

O que de raiz a escala de Hieacuterocles desenha eacute se assim se pode dizer a demarcaccedilatildeo

de um domiacutenio de propriedade (um domiacutenio exclusivo singular particular etc) ndash um domiacute-

nio que compreende exclusivamente o que pertence ao proacuteprio (o que diz respeito ao proacuteprio

o que o proacuteprio compreende como seu o que eacute com ele o que lhe cabe o que lhe pertence o

que eacute proacuteprio do proacuteprio etc)

Poreacutem a constituiccedilatildeo do domiacutenio do proacuteprio implica a constituiccedilatildeo simultacircnea de um

domiacutenio oposto (de um domiacutenio alheio ao proacuteprio que o excede que o transcende que estaacute

para laacute dele etc) E o que a escala faz notar eacute que a circunscriccedilatildeo do domiacutenio do proacuteprio im-

plica algo como uma contraposiccedilatildeo de domiacutenios (de domiacutenios opostos postos numa relaccedilatildeo

de heterogeneidade etc)

Sendo assim o domiacutenio do proacuteprio soacute eacute exclusivo na medida em que exclui ou deixa

de fora tudo o que natildeo cai num tal domiacutenio ndash ie eacute irredutiacutevel a exclui ou deixa de fora tudo

o que cai no exterior do domiacutenio do proacuteprio (tudo o que eacute se assim se pode dizer improacuteprio

natildeo-proacuteprio etc)

Mas o ponto decisivo na escala de Hieacuterocles eacute que ela natildeo se esgota na contraposiccedilatildeo

entre o proacuteprio e o alheio108

108

Poderia dar-se o caso de a estrutura formal que estaacute aqui em causa ser uma estrutura que se

aplicasse exclusivamente a outrem Quer dizer poderia dar-se o caso de a estrutura formal aqui em

causa cor-responder agrave configuraccedilatildeo da mera abertura de A em relaccedilatildeo a B (ie do proacuteprio em relaccedilatildeo

ao que lhe eacute fundamentalmente alheio a isso em relaccedilatildeo ao qual estaacute posto em contraste em relaccedilatildeo

ao que lhe eacute exterior etc) Acontece que natildeo eacute assim E o aspecto que nos interessa reter eacute o seguinte

o que eacute decisivo para compreender a escala de Hieacuterocles eacute natildeo perder de vista a relaccedilatildeo fundamental

ao αὐ-τός (ao ldquosi mesmordquo ao proacuteprio etc) Se considerarmos as relaccedilotildees desenhadas na estrutura de

Hieacutero-cles aquilo que vemos eacute que elas se referem ao proacuteprio o ldquopairdquo ou a ldquomatildeerdquo soacute se constituem

em ldquopairdquo ou ldquomatildeerdquo em referecircncia a um ldquofilhordquo uma ldquoesposardquo soacute se constitui em ldquoesposardquo em

referecircncia a um ldquoesposordquo um ldquotiordquo em referecircncia a um ldquosobrinhordquo um ldquovizinhordquo a um ldquovizinhordquo etc

Toda a estrutura assenta por assim dizer num pilar nuclear de referecircncia Natildeo interessa aqui ser

muito exaustivo mas o que estaacute em causa na estrutura de Hieacuterocles eacute sucintamente o seguinte

Por uma parte parece estar em jogo o terminus ad quem de um estado de absoluta natildeo-neutralidade

ou de absoluta natildeo-indiferenccedila que tem em A (no αὐτός no proacuteprio no si-mesmo etc) o ponto de

partida Por outra parte parece estar em jogo o modo da afectaccedilatildeo do terminus ad quem do estado de

absoluta natildeo-neutralidade ou de absoluta natildeo-indiferenccedila sobre A (modo de afectaccedilatildeo que se mani-

festa precisamente no ldquopapelrdquo assumido pai matildee filho mulher vizinho etc) Por uacuteltimo parece es-

tar em jogo um laccedilo que une A e B na medida em que a relaccedilatildeo entre A e B eacute uma relaccedilatildeo determi-

nante de A (do αὐτός do proacuteprio) Isto eacute na medida em que determina o modo como A eacute afectado pe-

la ou eacute sujeito da relaccedilatildeo a B justamente na medida em que A eacute filho dos pais pai de filhos esposo

de uma esposa vizinho de um vizinho etc

343

Foi precisamente algo assim que vimos atraacutes quando vimos que a identidade natildeo eacute vazia O que neste

passo estamos a ver eacute como o conteuacutedo da identidade corresponde a contracccedilotildees de interacccedilatildeo ou de

apropriaccedilatildeo ndash corresponde a essa equaccedilatildeo mediante a qual se faz corresponder B a A (se faz corres-

ponder algo a si se identifica algo consigo algo se torna seu etc) e a identidade de A (o que A pro-

priamente ldquoeacuterdquo o que potildee A a ser o que eacute etc) se determina a partir da relaccedilatildeo a B Por ldquoapropriaccedilatildeordquo

entende-se aqui lato sensu o ldquolaccedilordquo que torna proacuteprio (que torna algo de si proacuteprio de si que vincu-

la a si etc) Na verdade a noccedilatildeo de ldquoapropriaccedilatildeordquo corresponde ao preenchimento do vazio de identi-

dade em que se incorreria caso o fenoacutemeno da apropriaccedilatildeo natildeo ocorresse Eacute isso que de certo modo

estaacute em causa quando dizemos de algo que eacute apropriado ldquoApropriadordquo quer precisamente dizer que se

adequa a que se ajusta a que eacute conveniente a que eacute caracteriacutestico ou tiacutepico de etc Em Elements of

Ethics (I 29) Hieacuterocles fala precisamente neste sentido das proporccedilotildees apropriadas dos animais ndash

ie do facto de a cada espeacutecie animal corresponder um conjunto de proporccedilotildees que se adequa agrave es-

peacutecie que eacute caracteriacutestico dela de se viver de acordo com a constituiccedilatildeo que eacute proacutepria de si etc Ven-

do bem a noccedilatildeo de οἰκεῖον (apropriar no sentido que vimos) eacute precisamente o nuacutecleo da anaacutelise que

Hieacuterocles leva a cabo Isso mesmo fica claro desde logo no ponto de partida da discussatildeo (Τῆς ἠθικῆς

στοιχειώσεως ἀρχὴν ἀρίστην ἡγοῦμαι τὸν περὶ τοῦ πρώτου οἰκείου τῷ ζῴῳ λόγον ἀλλὰ θῶ οὐ χεῖρον

ἐνθυμηθῆναι μᾶλλον ἄνωθεν ἀρξάμενος ὁποία τις ἡ γένεσις τῶν ἐμψύχων καὶ τίνα τὰ πρῶτα

συμβαίνοντα τῷ ζῴῳ ndash I 1) e fica claro se se tiver em conta a reincidecircncia do termo ndash ou de uma das

suas variantes ndash ao longo de todo o tratado em vaacuterias das suas acepccedilotildees e sublinhando vaacuterios dos seus

aspectos II 8 II 27 VII 16 VII 45 IX 1 etc Ora o que eacute decisivo e interessa natildeo perder de vista

eacute que o αὐτός eacute tambeacutem um ldquoobjectordquo da estrutura desenhada por Hieacuterocles

Por uma parte isto quer dizer que tambeacutem haacute em relaccedilatildeo ao αὐτός algo como um prendimento um

laccedilo uma tensatildeo etc O proacuteprio A eacute terminus ad quem de um estado de absoluta natildeo-neutralidade ou

de absoluta natildeo-indiferenccedila que tem em A (no αὐτός no proacuteprio) o ponto de partida Em suma A (o

proacuteprio o αὐτός) estaacute votado a si mesmo Por outra parte no entanto esta relaccedilatildeo de A a si mesmo es-

taacute constituiacuteda de tal modo que a relaccedilatildeo ao αὐτός natildeo eacute apenas mais uma relaccedilatildeo distribuiacuteda pela es-

cala Vendo bem a relaccedilatildeo a si mesmo eacute o que constitui o centro da escala O αὐτός estaacute fundamen-

talmente vinculado a si mesmo (estaacute fundamentalmente votado a si dedicado a si etc) O que esta

precedecircncia do αὐτός em relaccedilatildeo a todos os outros ldquoobjectosrdquo nos mostra eacute que a dedicaccedilatildeo a si natildeo eacute

apenas mais uma dedicaccedilatildeo entre dedicaccedilotildees variadas mas corresponde na verdade agrave dedicaccedilatildeo su-

perlativa (agrave dedicaccedilatildeo no seu exponente maacuteximo agrave dedicaccedilatildeo que natildeo eacute passiacutevel de incremento etc)

Ora poderia ainda assim ser de tal modo que a relaccedilatildeo do αὐτός consigo mesmo fosse meramente a re-

laccedilatildeo com maior grau de proximidade de entre todas as relaccedilotildees que estatildeo constituiacutedas Nesse caso a

relaccedilatildeo ao αὐτός ainda que ocupando a posiccedilatildeo central nos ciacuterculos concecircntricos de Hieacuterocles seria

apenas mais uma relaccedilatildeo distribuiacuteda pela escala Acontece que natildeo eacute assim E este eacute o terceiro aspec-

to que nos interessa considerar

Vendo bem o que estaacute constituiacutedo eacute algo como uma presidecircncia do αὐτός em relaccedilatildeo aos restantes

ldquoobjectosrdquo da estrutura Isso resulta em que o conteuacutedo da sua identidade corresponde a contracccedilotildees

de interacccedilatildeo ou de apropriaccedilatildeo daquilo que lhe aparece na situaccedilatildeo que lhe corresponde Ou seja

aquilo que aparece estaacute fundamentalmente marcado por estar sobre a tensatildeo de um quesito identifica-

tivo ndash na foacutermula x (enquanto x eacute algo que aparece) identifica-me ou natildeo identifica-me de que mo-

do etc

344

Hieacuterocles estaacute a falar de οἰκείωσις (quer dizer da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva) e

da sua variaccedilatildeo de intensidade ndash qualquer coisa como um decrescendo do centro para a perife-

ria

Poreacutem vendo bem os ciacuterculos de Hieacuterocles natildeo exprimem apenas um descrescendo

mas dois

Por um lado expressam um decrescendo de proximidade ao proacuteprio ndash proximidade

que eacute maacutexima no centro e diminui na transiccedilatildeo para a periferia Por outro lado exprimem

tambeacutem o decrescendo de intensidade da οἰκείωσις E o decisivo eacute precisamente que os dois

correm em paralelo ndash melhor o que eacute decisivo eacute que um decrescendo procede do outro

Ou seja o que estaacute em jogo eacute o facto de o proacuteprio constituir o epicentro de uma explo-

satildeo de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que se propaga segundo o grau de proximidade (nota bene

de proximidade funcional) de tudo o mais ao αὐτός

Assim a presidecircncia do αὐτός eacute tal que ele ocupa uma posiccedilatildeo central na constitui-

ccedilatildeo de todos os restantes momentos da escala A relaccedilatildeo ao αὐτός eacute por um lado a) a condi-

ccedilatildeo de possibilidade de constituiccedilatildeo da proacutepria estrutura e por outro b) aquilo que determi-

na a posiccedilatildeo relativa de cada um dos componentes (de tudo o que aparece)

Por outras palavras a orientaccedilatildeo para o αὐτός eacute a forma primaacuteria que subjaz a qual-

quer momento da escala (constitui por assim dizer a ldquofonterdquo a partir da qual a escala ad-

quire a sua configuraccedilatildeo) De sorte que a dedicaccedilatildeo ao que quer que seja eacute um desdobramen-

to da dedicaccedilatildeo a si Isto eacute a relaccedilatildeo ao αὐτός submete todas as outras a um momento (um

componente um derivado etc) dessa mesma relaccedilatildeo

Quer dizer cada ldquocoisardquo que aparece corresponde a uma variaccedilatildeo da relaccedilatildeo ao αὐτός

(ie corresponde agrave relaccedilatildeo ao αὐτός desdobrada em relaccedilatildeo com a ldquocoisardquo x relaccedilatildeo com a

ldquocoisardquo y relaccedilatildeo com a ldquocoisardquo z etc) A distribuiccedilatildeo dos diversos ldquoobjectosrdquo ao longo da

estrutura corresponde a uma distribuiccedilatildeo que tem por referecircncia o centro E isto de tal modo

que o centro eacute um centro organizador de todos os ldquoobjectosrdquo (do ldquolocalrdquo que lhes cabe na es-

trutura etc)

Por outras palavras a distribuiccedilatildeo montada a partir do αὐτός natildeo eacute uma distribuiccedilatildeo do

alheio mas eacute efectivamente uma distribuiccedilatildeo de si De tal modo que o que se encontra na

distribuiccedilatildeo e em cada um dos momentos dela eacute precisamente essa presenccedila do centro ou essa

presenccedila de uma ligaccedilatildeo ao centro (ie agrave ipseidade) Assim tudo o que aparece ndash tudo o que

345

eacute connosco ou para noacutes ndash depende da relaccedilatildeo a si eacute moldado pela forma dessa relaccedilatildeo e

ocupa uma funccedilatildeo correspondente a ela

Em suma o modo do aparecimento de tudo o que aparece estaacute marcado por estar fun-

dado nesta relaccedilatildeo O αὐτός molda a relaccedilatildeo entre si mesmo e qualquer ldquoobjectordquo de tal mo-

do que cada ldquoobjectordquo depende dessa relaccedilatildeo e estaacute marcado por ela

Mais tambeacutem as conexotildees que organizam os diferentes ldquoobjectosrdquo entre si dependem

justamente desta relaccedilatildeo ao αὐτός A relaccedilatildeo dos diferentes ldquoobjectosrdquo entre si estaacute marcada

pelo modo como cada um deles ldquoresponderdquo ao αὐτός (como se relaciona com ele como o

afecta etc) de tal modo que essa relaccedilatildeo ao αὐτός eacute um factor determinante da forma como

aparecem e da relaccedilatildeo dos ldquoobjectosrdquo entre si

E tudo isto de tal modo que a variaccedilatildeo da intensidade da οἰκείωσις ndash que resulta na

distribuiccedilatildeo pelos diversos patamares ndash depende da variaccedilatildeo de intensidade da ligaccedilatildeo ao

centro (ao αὐτός)

De tudo isto resulta a impossibilidade de aceder aos diferentes ldquoobjectosrdquo como se es-

ses estivessem horizontalmente nivelados (como se tivessem todos o mesmo peso como se

aparecessem todos com a mesma forccedila como se se encontrassem todos ao mesmo niacutevel etc)

Por outro lado poderia ser assim mas sem que isso afectasse de nenhum modo signifi-

cativo aquilo que aparece

Quer dizer uns ldquoobjectosrdquo estariam mais proacuteximos do centro de distribuiccedilatildeo (do αὐ-

τός do proacuteprio do si-mesmo etc) e ganhariam destaque por esse facto e outros estariam mais

afastados desse centro de distribuiccedilatildeo e perderiam destaque ou relevacircncia ndash mas de tudo isso

tal modo que essa distribuiccedilatildeo dos ldquoobjectosrdquo por diversos planos (mais ou menos proacuteximos

do centro mais ou menos relevantes etc) natildeo impediria que fossem considerados se assim se

pode dizer ldquotodos por igualrdquo (que de cada um deles se recolhesse a mesma quantidade de ldquoin-

formaccedilatildeordquo que fossem igualmente definidos igualmente niacutetidos etc)

Acontece que natildeo eacute assim

Tenha-se presente o que observaacutemos a respeito da anisotropia da acuidade

O iacutendice de importacircncia e o iacutendice de acuidade em causa na variaccedilatildeo de intensidade da

οἰκείωσις tecircm influecircncia sobre o outro De sorte que por um lado a distribuiccedilatildeo dos apresen-

tados (do que aparece) corresponde a uma diversidade de patamares de interesse ou de rele-

346

vacircncia e por outro essa distribuiccedilatildeo pelos diversos patamares tem efeitos quanto agrave variaccedilatildeo

de acuidade

Assim o que aparece (as ldquocoisasrdquo) varia quanto ao grau da sua definiccedilatildeo consoante a

sua posiccedilatildeo relativamente ao centro Ou seja algo que esteja mais proacuteximo do centro aparece

mais definido (mais niacutetido mais preciso etc) do que algo que esteja relegado para a periferia

da importacircncia

E de facto a variaccedilatildeo eacute tanto quantitativa quanto qualitativa

Em primeiro lugar pode dizer-se que a variaccedilatildeo eacute quantitativa em virtude de ela dizer

respeito ao cardinal das determinaccedilotildees que uma sondagem do ldquoobjectordquo pode identificar

Assim com o aumento da distacircncia os traccedilos definitoacuterios diminuem (ie haacute um deacutefi-

ce de definiccedilatildeo uma proporcional diminuiccedilatildeo das determinaccedilotildees etc) e inversamente com o

aumento da proximidade os traccedilos definitoacuterios aumentam (ie haacute um incremento de defini-

ccedilatildeo um proporcional aumento das determinaccedilotildees etc)

Em segundo lugar pode dizer-se que a variaccedilatildeo eacute qualitativa em virtude de ela dizer

respeito agrave eficaacutecia do acesso (na medida em que essa variaccedilatildeo tem influecircncia sobre a identifi-

caccedilatildeo que se produz)

Ora encurtando de razotildees o ponto que nos interessa considerar eacute o seguinte

A presidecircncia do αὐτός faz que a estrutura descrita por Hieacutercoles tenha a forma de

uma multiplicidade centrada na qual os diversos momentos (os diversos ldquoobjectosrdquo) surgem

como cercania do centro

Aliaacutes a complexidade da multiplicidade centrada aqui em causa eacute consideravelmente

maior do que se pode pensar a partir da imagem dos ciacuterculos concecircntricos tal como se acha

desenhada por Hieacuterocles Natildeo interessa analisar aqui este aspecto em todos os seus meandros

mas haacute um ponto a que importa estar particularmente atento

Mesmo que natildeo inclua qualquer claacuteusula expliacutecita sobre esta mateacuteria o modelo de

Hieacuterocles supotildee qualquer coisa como a simplicidade do seu centro Haacute uma multiplicidade de

ciacuterculos mas eles estatildeo todos montados em volta de um centro simples

Ou como podemos dizer traduzindo os ciacuterculos concecircntricos naquilo que se destinam

a exprimir haacute uma multiplicidade de posiccedilotildees funcionais (de coisas que aparecem definidas

pela sua posiccedilatildeo funcional em relaccedilatildeo agrave tensatildeo de natildeo-indiferenccedila por que se acha tomada a

ldquotestemunha globalrdquo do aparecimento ndash o nuacutecleo da ipseidade) Mas esta multiplicidade dos

347

functores que rodeiam e que interferem na tensatildeo de natildeo-indiferenccedila natildeo significa a comple-

xidade do proacuteprio nuacutecleo ou centro

Insistimos nessa complexidade e fomos mesmo ao ponto de falar da esfera da ipseida-

de como algo que em si mesmo corresponde a qualquer coisa como uma explosatildeo (um ldquobig

bangrdquo) que potildee de peacute todo o horizonte do si com a extraordinaacuteria dimensatildeo que eacute a sua Mas

aqui haacute que vincar uma propriedade desse fulcro do aparecimento que natildeo ficou suficiente-

mente desenhada e muito menos posta em relevo a partir do que vimos anteriormente

Essa propriedade eacute a que tem que ver com o facto de a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que

marca a ipseidade natildeo ser simples tambeacutem no sentido de corresponder a um feixe de muacutelti-

plas tensotildees de natildeo-indiferenccedila dirigidas a diferentes alvos Dito por outras palavras o pro-

grama gerundivo do si mesmo eacute um programa complexo que comporta muacuteltiplos fluxos de

natildeo-indiferenccedila

Natildeo se trata de seguir aqui esta complexidade ndash e tambeacutem natildeo se trata de averiguar ateacute

que ponto os diferentes fluxos de natildeo-indiferenccedila que compotildeem esse feixe satildeo completamente

independentes uns dos outros resultam da mesma fonte ou o contraacuterio

O que nos importa aqui sublinhar eacute que os fluxos de natildeo-indiferenccedila satildeo vaacuterios ndash e na

verdade bastante numerosos Adicionalmente importa que esses diversos fluxos que entram

na composiccedilatildeo do programa de si natildeo estatildeo de modo nenhum todos no mesmo peacute

Sucede em vez disso que tambeacutem eles compotildeem uma multiplicidade em tudo seme-

lhante agravequilo que se encontra desenhado no modelo dos ciacuterculos concecircntricos de Hieacuterocles

Ora tudo isto significa antes de mais qualquer coisa como uma composiccedilatildeo em re-

gime de fractal

Aquilo que na estrutura anteriormente descrita desempenha as funccedilotildees de centro tem

na verdade ele proacuteprio a composiccedilatildeo de um complexo de ciacuterculos concecircntricos

Os diferentes fluxos que compotildeem o feixe de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila estatildeo consti-

tuiacutedos de tal modo que uns satildeo muito mais centrais do que outros muito mais fortes e impor-

tantes do que os outros etc ndash de tal modo que a amplitude dessa variaccedilatildeo tambeacutem corres-

ponde a um complexo de ciacuterculos com um elevado cardinal de elementos

Mas por outro lado sendo assim isso significa que tambeacutem a proacutepria multiplicidade

de ciacuterculos anteriormente considerada ndash a multiplicidade dos functores (das ldquocoisasrdquo defini-

348

das pela forma como interferem no cumprimento ou incumprimento do ldquoprograma de sirdquo) ndash

natildeo tem a relativa simplicidade que marcava a descriccedilatildeo inicialmente feita

Com efeito se o centro (o centro do ldquoprograma de sirdquo) fosse simples haveria lugar pa-

ra um uacutenico complexo de ciacuterculos concecircntricos Mas como acabamos de vincar o programa eacute

complexo (e na verdade bastante complexo)

De sorte que as suas diferentes componentes do programa ndash os diferentes fluxos de

natildeo-indiferenccedila que dominam a ipseidade ndash datildeo lugar ao seu proacuteprio sistema de ciacuterculos con-

cecircntricos Assim onde antes figurava o complexo de ciacuterculos descrito por Hieacuterocles deve-se

desenhar uma multiplicidade de sistemas de ciacuterculos

O que isto significa entatildeo eacute que cada ldquocoisardquo (cada interveniente na ldquopeccedilardquo de si) se

define por uma determinada posiccedilatildeo funcional natildeo apenas em relaccedilatildeo a uma uacutenica tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila mas em relaccedilatildeo agraves muito diversas tensotildees de natildeo-indiferenccedila que fazem par-

te do programa de natildeo-indiferenccedila de que a ipseidade eacute portadora

Sendo assim aquilo que aparece corresponde na verdade a algo insusceptiacutevel de ser

adequadamente expresso no plano graacutefico corresponde a muacuteltiplos complexos de ciacuterculos

concecircntricos sobrepostos como se se tratasse de um sistema de forccedilas ndash com cada um desses

complexos de ciacuterculos a desempenhar o papel de uma forccedila desse sistema de forccedilas e cada

ldquocoisardquo que aparece a aparecer definida pelo efeito conjugado da posiccedilatildeo que ocupa nestes di-

ferentes complexos sobrepostos de ciacuterculos concecircntricos

Mas isto ainda natildeo eacute tudo

Com efeito o que caracteriza as diferentes componentes do ldquoprograma de sirdquo eacute o facto

de como vimos natildeo estarem em peacute de igualdade umas com as outras Eacute isso mesmo que estaacute

em causa quando se diz que o proacuteprio centro estaacute constituiacutedo como um complexo de ciacuterculos

concecircntricos

Mas isso natildeo significa apenas que cada um dos elementos do programa de si tem um

peso uma relevacircncia uma forccedila diferente etc Na verdade tambeacutem significa que o complexo

de ciacuterculos concecircntricos correspondentes agraves diversas posiccedilotildees funcionais relativas a cada um

dos elementos do ldquoprograma de sirdquo tem o peso a forccedila a relevacircncia etc de que se reveste o

proacuteprio elemento do ldquoprograma de sirdquo que constitui o seu centro

Por isso eacute com toda a propriedade que se pode falar aqui de algo semelhante agrave estrutu-

ra proacutepria de sistemas de forccedilas

349

Com efeito o ldquolugarrdquo de cada ldquocoisardquo na economia do que aparece natildeo depende ape-

nas das diferentes funccedilotildees que exerce em relaccedilatildeo aos diversos fluxos de natildeo-indiferenccedila do

ldquoprograma de sirdquo Depende tambeacutem da relaccedilatildeo de forccedilas entre os diversos fluxos em relaccedilatildeo

aos quais ocupa uma posiccedilatildeo relevante

Para o exprimir na linguagem de Hieacuterocles se o ldquolugarrdquo de uma ldquocoisardquo na economia

do que aparece a situa por exemplo no quarto ciacuterculo em relaccedilatildeo a um fluxo de natildeo-indife-

renccedila de peso decisivo essa coisa tem muito mais relevo do que uma outra que esteja no se-

gundo ciacuterculo em relaccedilatildeo a uma componente do programa de si com menos peso (e que estaacute

portanto em posiccedilatildeo secundaacuteria no complexo de ciacuterculos em que se articula o proacuteprio progra-

ma) etc

Isto tambeacutem ainda natildeo eacute tudo

Com efeito como vimos a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila por que se acha tomado o nuacutecleo

de si (a dedicaccedilatildeo a si mesmo) natildeo eacute apenas uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva (οἰκεί-

ωσις) mas tambeacutem ndash e com natildeo menor importacircncia ndash uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila negativa

(ἀλλοτρίωσις)

Os dois aspectos satildeo complementares ndash e satildeo indissociaacuteveis um do outro

Por um lado o programa do ldquosirdquo eacute sobretudo um programa de ldquorealizaccedilatildeordquo de majora-

ccedilatildeo de si ndash e nesse sentido em forte tensatildeo para a natildeo-indiferenccedila positiva

No entanto por outro lado isso natildeo impede que seja igualmente enraizada a tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila negativa a relaccedilatildeo com aquilo que se faz questatildeo de evitar aquilo a que se

tem relutacircncia a que se tem aversatildeo horror etc

Neste sentido em vez de haver apenas ciacuterculos concecircntricos de οἰκείωσις que eacute aquilo

que se acha propriamente considerado e descrito no pensamento de Hieacuterocles haacute tambeacutem so-

brepostos a eles (ou em coincidecircncia com eles) ciacuterculos de ἀλλοτρίωσις (ou de natildeo-indiferen-

ccedila negativa)

Quer dizer as ldquocoisasrdquo que aparecem natildeo surgem apenas a ocupar posiccedilotildees funcio-

nais relativamente a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva Algo de equivalente se passa tambeacutem

no que toca agrave natildeo-indiferenccedila negativa

Mais tal como no caso da natildeo-indiferenccedila positiva tambeacutem o seu oposto ndash ἀλλοτρί-

ωσις ndash eacute tudo menos simples (corresponde a tudo menos um uacutenico fluxo de tensatildeo) Tambeacutem

neste caso haacute qualquer coisa como um feixe uma multiplicidade de direcccedilotildees etc Ou para

350

usarmos a foacutermula a que recorremos atraacutes tambeacutem aqui acaba por se descobrir que o proacuteprio

centro encerra em si um complexo de ciacuterculos concecircntricos ndash pois natildeo soacute haacute diversos fluxos

de tensatildeo como entre eles uns satildeo mais centrais de maior peso do que os outros etc

De onde resulta finalmente que a mesma coisa pode ocupar diversas posiccedilotildees funcio-

nais em relaccedilatildeo a diversos componentes do programa de ἀλλοτρίωσις e acaba por ter uma

ldquoidentidade funcionalrdquo correspondente ao efeito conjugado ndash ao ldquosistema de forccedilasrdquo ndash desses

vaacuterios aspectos de acordo com a forma que atraacutes descrevemos

Assim se se quisesse exprimir graficamente o que estaacute aqui em causa agrave multiplicida-

de ldquofractalrdquo dos ciacuterculos concecircntricos da οἰκείωσις teria de se juntar a multiplicidade ldquofrac-

talrdquo dos ciacuterculos concecircntricos da ἀλλοτρίωσις A estrutura que daiacute resultaria (com um eleva-

do grau de complexidade) corresponde agravequilo que daacute forma ao que aparece no modo de aces-

so que nos corresponde

A raacutepida consideraccedilatildeo deste aspecto permite-nos completar o que dissemos sobre o

campo de possibilidades de si mesmo com que a tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a si e a estrutura

complexa do si enquanto ldquoantecipaccedilatildeordquo de si e projecto da totalidade de si a haver nos potildee

continuamente em ligaccedilatildeo

Quando descrevemos o campo das possibilidades de si insistimos no facto de estar po-

voado por uma multidatildeo de possibilidades muito diversas com tal amplitude que todos os

nossos percursos reais ou imaginaacuterios satildeo como movimentos dentro de um labirinto de ex-

traordinaacuterias dimensotildees de que soacute se conhecem ldquocorredoresrdquo soltos Essa descriccedilatildeo por mais

exacta que possa ser peca por incompleta

Com efeito esse campo de possibilidades estaacute de cada vez organizado como um cam-

po de οἰκείωσις (de possibilidades a que se estaacute ligado por tensatildeo de natildeo-indiferenccedila positiva)

e um campo de ἀλλοτρίωσις Ou mais precisamente esse campo tem a estrutura complexa

que resulta da conjugaccedilatildeo de todos os elementos que passaacutemos em revista nesta secccedilatildeo

Por um lado o campo das possibilidades ldquopositivasrdquo estaacute por inerecircncia organizado

com estratificaccedilatildeo ou hierarquizaccedilatildeo de possibilidades ndash desde aquelas para que maxima-

mente se tende ateacute agravequelas que satildeo por assim dizer escassamente positivas Por outro lado

algo de equivalente se passa tambeacutem no campo das possibilidades negativas

Dito de outro modo o campo das possibilidades que a estrutura da ipseidade potildee de peacute

tem a estrutura complexa que ndash discretamente mas de forma niacutetida ndash encontramos descrita

num passo do Goacutergias de Platatildeo

351

O passo a que nos estamos a referir eacute esse extenso monoacutelogo (464b-466a) em que Soacute-

crates nos diz que a) temos sempre uma noccedilatildeo do que eacute melhor (que disciplinas trazem maior

vantagem) para o corpo e para a alma b) algumas disciplinas cumprem melhor do que outras

esse papel Inversamente poderiacuteamos dizer que a) temos sempre uma noccedilatildeo do que eacute pior pa-

ra o corpo e para a alma b) algumas disciplinas cumprem melhor do que outras esse papel

Ora vendo bem no passo em questatildeo chama-se a atenccedilatildeo para o facto de nos mover-

mos continuamente num terreno ao mesmo tempo marcado natildeo apenas por qualquer coisa de

equivalente agrave estrutura claacutessica da chamada ldquoPriamelrdquo (uma hierarquizaccedilatildeo daquilo para que

tendemos desde o superlativo absoluto o que fica imediatamente abaixo dele o que fica ime-

diatamente abaixo do que fica imediatamente abaixo dele e assim sucessivamente) mas tam-

beacutem pelo seu correspondente negativo (uma hierarquizaccedilatildeo daquilo que procuramos evitar

um superlativo absoluto negativo o que fica imediatamente abaixo dele o que fica imediata-

mente abaixo do que fica imediatamente abaixo dele e assim sucessivamente)109

E isto de tal modo que os dois domiacutenios (as duas hierarquias) natildeo constituem peccedilas se-

paradas (cada uma delas constituiacuteda independentemente da outra) mas satildeo expressotildees de uma

mesma compreensatildeo global do que importa ndash que pode variar quanto ao seu teor mas eacute cons-

tantemente relativa a esta estrutura formal da dupla ldquoPriamelrdquo positiva e negativa

Este ponto eacute importante para se perceber melhor a proacutepria estrutura do campo de pos-

sibilidade que descrevemos como um ldquolabirintordquo

O campo desta dupla ldquoPriamelrdquo natildeo estaacute constituiacutedo de tal modo que todos os degraus

da escala estejam preenchidos com titulares claramente conhecidos tatildeo-pouco sucede que se-

109

Sobre a noccedilatildeo de ldquoPriamelrdquo veja-se designadamente Dornseiff F Pindars Stil Berlim Weid-

mann 1921 paacuteg 57 e ss Kroumlhling W Die Priamel (Beispielreihung) als Stilmittel in der griech-

isch-roumlmischen Dichtung Greifsvald H Dalmeyer 1935 e Race W The classical priamel from Ho-

mer to Boethius Leiden EJ Brill 1982

Observe-se que o passo do Goacutergias a que fazemos referecircncia natildeo eacute um passo em que a questatildeo da

Priamel seja referida apenas de passagem sem qualquer ligaccedilatildeo com o resto do diaacutelogo Na verdade a

quecircstatildeo da Priamel positiva (a que corresponde qualquer coisa como uma Priamel positiva das τέχ-

νηαι) estaacute no centro do Goacutergias praticamente desde o iniacutecio A importacircncia do passo mencionado de-

ve-se agrave circunstacircncia de nele aparecer desenhada com nitidez a figura das duas Priameln (positiva e

negativa) na sua articulaccedilatildeo na complementariedade de que se revestem e na forma como a determi-

naccedilatildeo de uma e a determinaccedilatildeo da outra satildeo correlativas As duas Priameln (ou melhor o complexo

composto da Priamel positiva e da Priamel negativa) formam o sistema de orientaccedilatildeo e a ldquobuacutessolardquo da

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila de que a ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo eacute portadora

352

ja inteiramente niacutetida que posiccedilatildeo esta ou aquela possibilidade ocupa nessa dupla escala ou

qual o nexo de posiccedilatildeo comparativa entre estas ou aquelas possibilidades concretas

Isso eacute assim no que diz respeito ao ldquomeiordquo das duas escalas Mas eacute tambeacutem assim em

relaccedilatildeo aos seus extremos (quer dizer pode muito bem natildeo ser claro que eacute que corresponderia

mesmo ao ldquomelhor possiacutevelrdquo ou ao ldquopior possiacutevelrdquo)

Contudo nada disto (ie nada do que faz a nossa relaccedilatildeo com o campo de possibilida-

de de noacutes mesmos algo comparaacutevel agrave estrutura de constriccedilatildeo de um labirinto e agrave movimenta-

ccedilatildeo de quem estaacute preso num labirinto) impede que o campo de possibilidades do si-mesmo-a-

haver tenha sempre jaacute muito antes de se vir a conhecer a escala toda (e mesmo que nunca se

venha a conhecer a escala toda e que tudo o que se chegue a conhecer equivalha apenas a

fragmentos soltos etc) a forma da dupla ldquoPriamelrdquo para que Platatildeo chama a atenccedilatildeo no Goacuter-

gias

Para darmos conta da dupla estrutura correspondente agrave οἰκείωσις e agrave ἀλλοτρίωσις pre-

cisariacuteamos portanto de uma figura muito complexa Os ciacuterculos de Hieacuterocles como disse-

mos natildeo bastam para exprimir a complexidade dessa estrutura mas potildeem na pista daquilo que

ela teria de conseguir traduzir

Mas por outro lado importa ter presente que a estrutura da composiccedilatildeo dos diferentes

intervenientes da ldquopeccedilardquo de si natildeo eacute meramente uma estrutura de οἰκείωσις e ἀλλοτρίωσις so-

bretudo se entendermos essas noccedilotildees num sentido estrito e pensarmos em qualquer coisa co-

mo ldquolaccedilos afectivosrdquo etc

Vendo bem aqui haacute que pocircr a toacutenica no caraacutecter formal da descriccedilatildeo de Hieacuterocles

Os ciacuterculos descritos por Hieacuterocles natildeo formam apenas a estrutura de ldquolaccedilos afectivosrdquo

ndash como se se tratasse de uma propriedade especial dete tipo de fenoacutemenos

Na verdade formam o campo de tudo o que aparece enquanto tudo o que aparece tem

como dissemos o caraacutecter de ldquopersonagemrdquo da ldquopeccedilardquo de si com uma determinada forma de

interferecircncia na ldquopeccedilardquo

A categoria fundamental natildeo eacute portanto soacute a categoria de οἰκείωσιςἀλλοτρίωσις (com

tudo o que estaacute dupla tem de decisivo pois exprime a ideia de natildeo-indiferenccedila positiva e ne-

gativa) A categoria fundamental eacute tambeacutem uma categoria mais lata ndash a categoria da ldquointerfe-

recircnciardquo que cobre todas as formas de interferecircncia (em posiccedilatildeo adjuvante em posiccedilatildeo opo-

nente em forccedila neutra etc)

353

Quer dizer aquilo que Hieacuterocles desenha para a esfera de outrem e em relaccedilatildeo ao

campo de οἰκείωσις tem de ser transposto e alargado natildeo apenas para a esfera da ἀλλοτρίωσις

mas para o domiacutenio mais amplo (e na verdade total) de todas as formas de interferecircncia na

ldquopeccedilardquo de si mesmo (na tensatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente ao duplo superlativo de si

etc) Precisamente porque tecircm o caraacutecter de ldquopersonagensrdquo da ldquopeccedilardquo de si as ldquocoisasrdquo que

aparecem estatildeo todas dispostas em ciacuterculos como os de Hieacuterocles ndash ou como tambeacutem po-

demos dizer em complexos de orbitaccedilatildeo em torno do centro onde se ldquojogardquo a ldquopeccedilardquo

Haacute portanto intervenientes mais centrais e outros mais perifeacutericos haacute na verdade in-

tervenientes de primeira ordem de segunda ordem de terceira ordem de quarta ordem e as-

sim sucessivamente Os intervenientes mais importantes podem constituir centros de orbita-

ccedilatildeo proacuteprios E nada impede tambeacutem que aquilo que jaacute tem um caraacutecter perifeacuterico por ser

por exemplo uma personagem de segunda ordem desempenhe ainda assim o papel de cen-

tro relativamente a personagens ainda mais secundaacuterias

Mas sobretudo importa reter que ao falarmos aqui de ldquopersonagensrdquo estamos a usar

o termo ao mesmo tempo num sentido muito lato e num sentido muito estreito

Estamos a usar o termo num sentido lato porque natildeo nos referimos apenas agrave esfera de

outrem (a pessoas etc) mas a toda a espeacutecie de ldquoobjectosrdquo ndash na medida em que todos os ldquoob-

jectosrdquo (tudo o que aparece) intervecircm na ldquopeccedilardquo de si e ateacute pode acontecer que numa ldquopeccedilardquo

haja ldquocoisasrdquo com papeacuteis mais relevantes do que pessoas

Estamos a usar o termo num sentido estrito porque a noccedilatildeo de ldquopersonagemrdquo pode ser

ndash e em muitos casos eacute ndash usada sem qualquer circunscriccedilatildeo do acircmbito em que desempenham o

seu papel etc

Ora aqui esse acircmbito estaacute muito estritamente definido trata-se de ldquopersonagensrdquo da

ldquopeccedilardquo absoluta (da ldquopeccedilardquo de si da ldquopeccedilardquo da radical tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a si mesma

que marca a ldquotestemunha globalrdquo na sua relaccedilatildeo consigo) Ou seja trata-se de personagens do

interesse absoluto por si mesmo da demanda do superlativo no quadro de um campo de pos-

sibilidades com as caracteriacutesticas que se descreveram nas secccedilotildees anteriores

354

sect39

A vida como ldquoordquo objecto da auto-consciecircncia o modo como a auto-consciecircncia experimen-

ta a independecircncia da vida e o que aparece como manifestaccedilatildeo da vida em Hegel (Fenomenologia

do Espiacuterito IV B)

Os elementos entretanto reunidos jaacute permitem ir avanccedilando na resposta agrave pergunta em

que sentido e com que legitimidade se afirma que a experiecircncia eacute sempre experiecircncia da vi-

da Poreacutem o esforccedilo estaacute ainda incompleto Trata-se de seguida de reunir os elementos para

completar a resposta

Como veremos esta parte ainda em falta tem que ver a) com um outro sentido do ter-

mo ldquoexperiecircnciardquo e tambeacutem b) com um outro sentido do termo ldquovidardquo

Ora aqui como nos passos precedentes natildeo se trata apenas de explorar a polissemia

das palavras e de ldquoconstruirrdquo a partir delas ou sobre elas Ou seja natildeo se trata de glosas possiacute-

veis ao mote ldquoexperiecircncia da vidardquo Trata-se de fenoacutemenos articulados uns com os outros mas

diferentes uns dos outros que conjuntamente formam o complexo da experiecircncia o complexo

da vida e o complexo da ligaccedilatildeo que haacute entre ambas De tal modo que aquilo que agora pas-

saremos a tentar focar natildeo eacute de maneira nenhuma algo de alheio ao que acabamos de ver mas

um aspecto complementar dentro do quadro cuja composiccedilatildeo tentaacutemos delimitar e analisar

Para ganharmos a pista do que importa tentar focar no seguimento voltemos a Hegel e

ao capiacutetulo da Fenomenologia do Espiacuterito sobre a auto-consciecircncia ndash ou melhor a um aspecto

do que se desenha nesse capiacutetulo

O aspecto essencial que entatildeo foi deixado por considerar eacute o seguinte

Por um lado a auto-consciecircncia confronta-se com muitos ldquoobjectosrdquo distintos (com

muitas ldquocoisasrdquo distintas com a multiplicidade variada de tudo o que haacute etc)

Agrave partida a relaccedilatildeo com essa multiplicidade de ldquoobjectosrdquo parece natildeo ter quaisquer

outros intervenientes para laacute da auto-consciecircncia e de cada um dos objectos com que a auto-

consciecircncia se defronta Quer dizer parece natildeo haver qualquer factor de ldquomediaccedilatildeordquo entre au-

to-consciecircncia e qualquer um dos ldquoobjectosrdquo que aparecem

Neste sentido o contraste dos diversos ldquoobjectosrdquo entre si parece agrave partida resultar

sem mais a) do contraste dos diversos ldquoobjectosrdquo entre si e b) do contraste quanto agrave relaccedilatildeo

355

entre a auto-consciecircncia e cada um deles (do modo como cada um estaacute presente na auto-cons-

ciecircncia) Em suma parece haver uma relaccedilatildeo avulsa da auto-consciecircncia com cada ldquoobjectordquo

Por outro lado ainda assim Hegel fala de algo como ldquoordquo ldquoobjectordquo da auto-consciecircn-

cia

Ora esta possiacutevel contradiccedilatildeo entre os muacuteltiplos objectos com que a auto-consciecircncia

se confronta e o reconhecimento de que a auto-consciecircncia tem um uacutenico ldquoobjectordquo explica-se

se se tiver em atenccedilatildeo que Hegel estaacute a procurar mostrar que haacute uma identidade radical entre

a multiplicidade de ldquoobjectosrdquo (entre tudo o que aparece entre todas as ldquocoisasrdquo etc) Isto eacute

Hegel estaacute a procurar mostrar que todos os ldquoobjectosrdquo reportam no limite a um uacutenico ldquoob-

jectordquo e que eacute com esse ldquoobjectordquo ndash omni-englobante de toda a multiplicidade de ldquoobjectosrdquo ndash

que a auto-consciecircncia efectivamente se confronta

O que isto significa eacute que na tese de Hegel esses diversos ldquoobjectosrdquo com que a auto-

consciecircncia se defronta (a multiplicidade das ldquocoisasrdquo que haacute) satildeo na verdade derivados de

um uacutenico ldquoobjectordquo ndash e que portanto esse uacutenico ldquoobjectordquo serve de mediador entre a auto-

consciecircncia e cada um dos diversos ldquoobjectosrdquo

Hegel identifica esse ldquoobjectordquo diz a dado passo que a vida eacute o objecto da auto-

consciecircncia110

Note-se que Hegel natildeo estaacute a dizer que a ldquovidardquo eacute mais um ldquoobjectordquo com que a auto-

consciecircncia lida (mais uma ldquocoisardquo em relaccedilatildeo ao qual estaacute etc) Poderia ser assim Poderia

acontecer que entre a miriacuteade de ldquoobjectosrdquo com que a auto-consciecircncia lida se encontrasse o

objecto ldquovidardquo ndash caso no qual a ldquovidardquo seria a) um objecto distinto de todos os outros mas b)

que de certo modo estaria num plano de igualdade com todos os outros em relaccedilatildeo agrave auto-

consciecircncia

Ora na verdade quando Hegel diz que a vida eacute ldquoordquo ldquoobjectordquo com que a auto-cons-

ciecircncia lida isso quer dizer que o ldquoobjectordquo ldquovidardquo tem de certo modo prevalecircncia sobre os

restantes objectos Quer dizer em suma que o ldquoobjectordquo ldquovidardquo eacute um objecto que se destaca

110

ldquoDer Gegenstand welcher fuumlr das Selbstbewuszligtsein das Negative ist ist aber seinerseits fuumlr uns

oder an sich ebenso in sich zuruumlckgegangen als das Bewuszligtsein anderseits Er ist durch diese Reflex-

ion in sich Leben geworden Was das Selbstbewuszligtsein als seined von sich unterscheidet hat auch in-

sofern als es seined gesetzt ist nicht bloszlig die Weise der sinnlichen Gewiszligheit und der Wahrnehmung

an ihm sondern es ist in sich reflektiertes Sein und der Gegenstand der unmittelbaren Begierde ist ein

Lebendigesrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 2 paacuteg 117)

356

dos outros (preponderante em relaccedilatildeo aos outros do qual os outros dependem na sombra do

qual os outros estatildeo etc) justamente na medida em que a relaccedilatildeo da ldquovidardquo com os restantes

ldquoobjectosrdquo eacute uma relaccedilatildeo de subordinaccedilatildeo

Assim a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia com a vida prevalece sobre a relaccedilatildeo da auto-

consciecircncia com os diversos objectos ndash e isto na medida em que a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia

com os diversos objectos eacute mediada pela relaccedilatildeo da auto-consciecircncia com a vida

Isto eacute na medida em que ldquoordquo ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia eacute a vida a vida torna-se

como que o ldquofiltrordquo a partir do qual se acede a cada um dos restantes ldquoobjectosrdquo Ou como

tambeacutem poderiacuteamos dizer a vida tem ascendente sobre os restantes ldquoobjectosrdquo de tal modo

que os restantes ldquoobjectosrdquo satildeo ldquotingidosrdquo pela relaccedilatildeo primordial da auto-consciecircncia com o

seu ndash de certo modo uacutenico ndash ldquoobjectordquo

Para considerar tudo isto um pouco mais detidamente interessa reconsiderar a partir

destes desenvolvimentos alguns aspectos do que se viu numa secccedilatildeo anterior como forma de

lanccedilar o que se seguiraacute

Em primeiro lugar o que vimos foi que o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia (a vida) estaacute

marcado por radical heterogeneidade em relaccedilatildeo agrave auto-consciecircncia

Por um lado haacute de algum modo continuidade entre a auto-consciecircncia e a vida Se a

unidade de realidade eacute a auto-consciecircncia entatildeo a auto-consciecircncia abarca tudo o que aparece

(eacute o horizonte de aparecimento de tudo o que aparece etc de tal modo que o que aparece se

constitui em momento da unidade da realidade que eacute a auto-consciecircncia) De onde resulta que

a auto-consciecircncia tambeacutem abarca a vida

Por outro lado na identidade da auto-consciecircncia subsiste alteridade Assim o ldquoobjec-

tordquo da auto-consciecircncia (a vida) estaacute para a auto-consciecircncia como algo que natildeo se dissolve

nela como algo de alheio que resiste ou potildee em causa a identidade plena da auto-consciecircncia

(como algo que eacute nos termos que vimos o ldquonegativordquo da auto-consciecircncia)111

Isto quer dizer desde logo no seguimento daquilo que vimos duas coisas

111

ldquoDiese Einheit aber ist ebensosehr wie wir gesehen ihr Abstoszligen von sich selbst und dieser Be-

griff entzweit sich in den Gegensatz des Selbstbewuszligtseins und des Lebens jenes die Einheit fuumlr wel-

che die unendliche Einheit der Unterschiede ist dieses aber ist nur diese Einheit selbst so daszlig sie

nicht zugleich fuumlr sich selbst istrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 2 paacuteg 117)

357

Quer dizer em primeiro lugar que o papel da vida eacute antes de mais o de factor que

possibilita que a auto-consciecircncia se torne ciente de si (o factor decisivo que depotildee a auto-

consciecircncia numa relaccedilatildeo consigo proacutepria que potildee a auto-consciecircncia a considerar-se a si

proacutepria atenta agraves suas operaccedilotildees etc) A vida entendida como entidade que coage ou que co-

determina a auto-consciecircncia eacute condiccedilatildeo de possibilidade da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia con-

sigo mesma

Assim o entendimento da proacutepria vida como o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia (ie co-

mo isso de que a auto-consciecircncia radicalmente difere) produz entendimento sobre a auto-

consciecircncia ndash justamente enquanto a auto-consciecircncia se constitui em ldquoobjectordquo da sua proacute-

pria consideraccedilatildeo

Em segundo lugar e em simultacircneo o papel da vida eacute tambeacutem o de obstaacuteculo (aquilo

que impede que a auto-consciecircncia seja uma realidade completamente unificada iacutentegra ab-

soluta reinando sobre todos os seus momentos) Eacute isso que Hegel quer dizer quando faz refe-

recircncia ao facto de ldquoa vidardquo resistir

Quer dizer a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma estaacute perturbada por uma dis-

tacircncia relativamente a si (por uma natildeo-identidade consigo) induzida pela resistecircncia que a vi-

da lhe apotildee Ou dito inversamente a resistecircncia da vida introduz um factor de natildeo-plenitude

da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

Ou seja haacute algo como um atravessamento ou de intrusatildeo da vida na relaccedilatildeo entre a

auto-consciecircncia e si mesma E isto de tal modo que no acircmbito da auto-consciecircncia tanto a)

o ldquoobjectordquo ldquovidardquo estaacute originariamente constituiacutedo como algo que atravessa a auto-cons-

ciecircncia quanto b) o ldquoobjectordquo auto-consciecircncia estaacute originariamente constituiacutedo de si para

si como algo atravessado pela vida

Em suma e para recuperar os termos de Hegel a auto-consciecircncia experimenta a in-

dependecircncia da vida ndash ie experimenta a vida como algo que natildeo estaacute inteiramente submeti-

do agrave auto-consciecircncia sobre o qual a auto-consciecircncia natildeo reina etc

Pelo contraacuterio a irredutiacutevel independecircncia da vida manifesta-se no facto de cada um

de noacutes ndash enquanto cada um de noacutes eacute uma auto-consciecircncia ndash ter a vida atravessada (e tanto

358

quer dizer estar sujeito agraves suas determinaccedilotildees ser intrinsecamente dependente do que aparece

no curso do seu acontecimento etc)112

Ora isto natildeo eacute tudo

Como vimos o que estaacute expresso no conceito de ldquovidardquo ndash tal como Hegel o apresenta

e enquanto a vida eacute o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia ndash eacute que a vida eacute isso que eacute chamado a

preencher a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma

Foi justamente este paradoxo que vimos atraacutes corresponder ao ldquoobjectordquo da auto-cons-

ciecircncia

Por um lado a vida (o objecto da auto-consciecircncia) eacute isso que natildeo deixa cada um de

noacutes ndash enquanto cada um de noacutes eacute uma auto-consciecircncia ndash cumpra o desejo de si (o desejo de

plenitude para que a auto-consciecircncia originalmente tende)

Neste primeiro sentido a vida eacute como tambeacutem vimos condiccedilatildeo de possibilidade da

constituiccedilatildeo de ldquodesejordquo (uma instacircncia de obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircncia que inibe a pleni-

tude da auto-consciecircncia um agente de interferecircncia na relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo

mesma enquanto a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma tende para a plenitude de si

mesma etc)

Contudo por outro lado a vida (o objecto da auto-consciecircncia) eacute condiccedilatildeo de possibi-

lidade de supressatildeo do desejo em cuja constituiccedilatildeo ela proacutepria colabora Na medida em que

se exige agrave relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma ndash enquanto estaacute a caminho de cumprir

o seu quesito de plenitude ndash que passe necessariamente pelo seu ldquoobjectordquo (pela vida) entatildeo o

ldquoobjectordquo constitui-se em condiccedilatildeo de possibilidade de supressatildeo do desejo113

Em suma a relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma cumpre-se de facto no do-

miacutenio da vida

O que vimos foi que a auto-consciecircncia eacute preenchida pelo ldquoobjectordquo que possui (eacute

contraiacuteda por esse ldquoobjectordquo) e tem justamente a sua identidade formada a partir do seu objec-

to Sendo assim a tarefa da auto-consciecircncia passa por ldquodescobrirrdquo a situaccedilatildeo concreta em

112

ldquoDas Selbstbewuszligtsein welches schlechthin fuumlr sich ist und seinen Gegenstand unmittelbar mit

dem Charakter des Negativen bezeichnet oder zunaumlchst Begierde ist wird daher vielmehr die

Erfahrung der Selbstaumlndigkeit desselben machenrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 2 paacuteg 117)

113 ldquoDie Begierde und die in ihrer Befriedigung erreichte Gewiszligheit seiner selbst ist bedingt durch ihn

denn sie ist durch Aufheben dieses Anderen daszlig dies Aufheben sei muszlig dies Andere seinrdquo (Phaumlno-

menologie des Geistes B IV 3 paacuteg 121)

359

que daacute consigo (a vida com que se confronta as suas determinaccedilotildees o que aparece no curso

do seu acontecimento etc) e passa por tornar a vida com que se confronta em possibilidade

de soluccedilatildeo ou enriquecimento da relaccedilatildeo consigo mesma114

A tarefa da auto-consciecircncia passa por ldquodescobrirrdquo a situaccedilatildeo concreta em que daacute con-

sigo porque a) a vida (o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia) natildeo corresponde a uma uacutenica forma de

obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircncia (pelo contraacuterio assume uma imensa variedade de formas de

obstaculizaccedilatildeo ou de resistecircncia) e tambeacutem porque b) a vida (o ldquoobjectordquo da auto-consciecircn-

cia) natildeo corresponde a uma uacutenica forma de preenchimento de identidade da auto-consciecircncia

(pelo contraacuterio assume uma imensa variedade de formas de preenchimento de identidade da

auto-consciecircncia)

Tudo isto aponta em suma para o seguinte

Se nos termos que vimos a plenitude da auto-consciecircncia (a totalidade de si a plena

identidade consigo a uma identidade que precisamente natildeo deixe nada de fora etc) corres-

ponde tanto ao ponto de partida quanto ao ponto de chegada da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia

consigo mesma entatildeo haver a vida enquanto resiste agrave identidade plena da auto-consciecircncia

(enquanto se atravessa na auto-consciecircncia) significa que a auto-consciecircncia daacute consigo mes-

ma desde sempre aqueacutem do ponto de partida e do ponto de chegada ndash e tanto assim que eacute jus-

tamente esse facto o que torna a auto-consciecircncia ciente de si mesma (o que faz a auto-cons-

ciecircncia virar-se sobre si mesma estabelecer uma relaccedilatildeo consigo mesma constituir-se em

ldquoobjectordquo de consideraccedilatildeo etc)

Ora no seguimento de tudo isto que vimos ateacute agora Hegel abre um caminho para

chegar agrave plenitude (agrave imediaticidade do puro indiferenciado ldquoeurdquo que eacute o primeiro objecto

para o dizer como ele) O caminho que Hegel propotildee eacute o caminho da cessaccedilatildeo da diferenccedila

distintiva

Vejamos um pouco melhor o que isto quer dizer

Haacute uma diferenccedila fundamental entre a auto-consciecircncia considerada a partir do angu-

lo do ponto de partida e a auto-consciecircncia considerada a partir do acircngulo do ponto de che-

114

ldquoDies andere Leben aber fuumlr welches die Gattung als solche und welches fuumlr sich selbst Gattung

ist das Selbstbewuszligtsein ist sich zunaumlchst nur als dieses einfache Wesen und hat sich als reines Ich

zum Gegenstande in seiner Erfahrung die nun zu betrachten ist wird sich ihm dieser abstrakte

Gegenstand bereichern und die Entfaltung erhalten welche wir an dem Leben gesehen habenrdquo

(Phaumlnomenologie des Geistes B IV 3 paacuteg 120)

360

gada A primeira corresponderia a isso a que se chamou uma ldquoimediaticidade pura indiferen-

ciadardquo ndash enquanto a segunda surge sempre jaacute atravessada pelo seu ldquoobjectordquo e como tal im-

plica um processo de recuperaccedilatildeo do estado de imediaticidade pura indiferenciada (um pro-

cesso de supressatildeo ou superaccedilatildeo do ldquoobjectordquo a caminho da plenitude) para que originaria-

mente tende115

Eacute a auto-consciecircncia considerada a partir do acircngulo do ponto de chegada que estaacute em

causa quando Hegel fala da auto-consciecircncia como ldquodesejordquo O que nos diz eacute que a certeza de

si da auto-consciecircncia adviria da superaccedilatildeo do outro que se apresenta agrave auto-consciecircncia co-

mo vida independente Quer dizer por ldquodesejordquo quer Hegel fazer entender a anulaccedilatildeo do ou-

tro enquanto outro (a sua anulaccedilatildeo a sua reduccedilatildeo a nada etc) A essa anulaccedilatildeo do outro en-

quanto outro (ie agrave satisfaccedilatildeo do desejo) corresponderia a recuperaccedilatildeo da plenitude (ie a

certeza de si)116

Acontece no entanto que natildeo eacute possiacutevel suprimir a negatividade (ou a independecircncia)

do ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia (da vida)

Isto eacute a proacutepria satisfaccedilatildeo do desejo gera a experiecircncia da independecircncia do objecto

Natildeo eacute soacute o desejo que tem o ldquoobjectordquo como condiccedilatildeo de possibilidade esse tambeacutem eacute o caso

da certeza de si A recuperaccedilatildeo da plenitude (ie a certeza de si) estaacute condicionada pela pre-

senccedila do ldquoobjectordquo e passa precisamente pela superaccedilatildeo dele

Mas se eacute assim entatildeo natildeo estaacute anulada a relaccedilatildeo ldquonegativardquo entre a auto-consciecircncia e

o ldquoobjectordquo e a auto-consciecircncia natildeo o consegue superar O que faz que tanto ldquoobjectordquo como

ldquodesejordquo sejam insusceptiacuteveis de anulaccedilatildeo117

115

ldquoIndem von der ersten unmittelbaren Einheit ausgegangen und durch die Momente der Gestaltung

und des Prozesses hindurch zur Einheit dieser beiden Momente und damit wieder zur ersten einfachen

Substanz zuruumlckgekehrt wird so ist diese reflektierte Einheit eine andere als die ersterdquo (Phaumlnomeno-

logie des Geistes B IV 3 paacuteg 120)

116 ldquoDer Nichtigkeit dieses Anderen gewiszlig setzt es fuumlr sich dieselbe als seine Wahrheit vernichtet den

selbstaumlndigen Gegenstand und gibt sich dadurch die Gewiszligheit seiner selbst als wahre Gewiszligheit als

solche welche ihm selbst auf gegenstaumlndliche Weise geworden istrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B

IV 3 paacuteg 120)

117 ldquoDie Begierde und die in ihrer Befriedigung erreichte Gewiszligheit seiner selbst ist bedingt durch ihn

denn sie ist durch Aufheben dieses Anderen daszlig dies Aufheben sei muszlig dies Andere sein Das

Selbstbewuszligtsein vermag also durch seine negative Beziehung ihn nicht aufzuheben es erzeugt ihn

darum vielmehr wieder sowie die Begierderdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 3 paacuteg 121)

361

Isto poderia colocar a auto-consciecircncia numa posiccedilatildeo insustentaacutevel ndash numa posiccedilatildeo de

absoluta incapacidade de recuperar a plenitude (a certeza de si) Acontece que segundo He-

gel natildeo eacute assim E natildeo eacute assim pelo seguinte o que Hegel nos diz eacute que a a auto-consciecircncia

pode sobrevir sobre a independecircncia do seu ldquoobjectordquo (da vida) pela cessaccedilatildeo da diferenccedila

distintiva

Aquilo que temos visto eacute uma dupla irredutibilidade a irredutibilidade da auto-cons-

ciecircncia tem correlato na irredutibilidade do seu objecto Assim a satisfaccedilatildeo do desejo corres-

ponde agrave reflexatildeo da auto-consciecircncia sobre si mesma na medida em que anula ou suprime o

seu ldquoobjectordquo mas ao mesmo tempo o ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia conserva justamente

enquanto eacute condiccedilatildeo de possibilidade da sua proacutepria superaccedilatildeo a sua independecircncia

Ora o que daqui resulta eacute que a certeza de si eacute na verdade como Hegel diz um des-

dobramento da auto-consciecircncia

Isto significa que o que resulta do processo de tentativa de consecuccedilatildeo da plenitude de

si em que a auto-consciecircncia sempre daacute consigo jaacute natildeo corresponde a uma plenitude no senti-

do do ponto de partida mas a uma plenitude no sentido do ponto de chegada ndash mas de tal mo-

do que o ponto de chegada natildeo corresponde exactamente ao ponto de partida e de facto cor-

responde a um desdobramento do ponto de partida

Em suma o que Hegel estaacute a propor eacute a possibilidade de uma auto-consciecircncia viva

Melhor o que estaacute a propor eacute a consecuccedilatildeo da plenitude da auto-consciecircncia atraveacutes do seu

ldquoobjectordquo

Neste sentido a plenitude da auto-consciecircncia seria adquirida por recurso agrave vida cor-

responderia agrave vida estaria com ela em uniacutessono ndash de tal modo que a alteridade ou a diferenccedila

(o ldquonegativordquo isso mesmo que suscita o desejo e que constitui o ldquoobjectordquo em ldquoobjectordquo) esta-

ria reduzida a ldquonadardquo

Por outras palavras o que estaacute em causa eacute uma fusatildeo ndash uma fusatildeo de tal natureza que

a identidade da auto-consciecircncia eacute a vida e a identidade da vida eacute a auto-consciecircncia118

118

ldquoAber die Wahrheit derselben ist vielmehr die gedoppelte Reflexion die Verdoppelung des Selbst-

bewuszligtseins Es ist ein Gegenstand fuumlr das Bewuszligtsein welcher an sich selbst sein Anderssein oder

den Unterschied als einen nichtigen setzt und darin selbstaumlndig ist Die unterschiedene nur lebendige

Gestalt hebt wohl im Prozesse des Lebens selbst auch ihre Selbstaumlndigkeit auf aber sie houmlrt mit ihrem

Unterschiede auf zu sein was sie ist der Gegenstand des Selbstbewuszligtseins ist aber ebenso selbstaumln-

dig in dieser Negativitaumlt seiner selbst und damit ist er fuumlr sich selbst Gattung allgemeine Fluumlssigkeit

362

Visto este primeiro aspecto interessa considerar um outro que eacute decisivo para se com-

preender o modo como aparece o que aparece e a relaccedilatildeo entre a auto-consciecircncia aquilo que

aparece e a vida

Na terminologia de Hegel a ldquovidardquo eacute entendida como allgemeine Fluumlssigkeit ndash como

fluxo ou o fluido universal A estrutura fundamental da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia com a ldquovi-

dardquo tem fundamentalmente o caraacutecter de uma relaccedilatildeo com a allgemeine Fluumlssigkeit que a ldquovi-

dardquo propriamente ldquoeacuterdquo119

Este fluxo ou fluido universal caracteriza-se antes de tudo o mais pela circunstacircncia

de corresponder precisamente a uma infinitude de instacircncias ou determinaccedilotildees Ou seja o que

Hegel diz eacute que a auto-consciecircncia que noacutes sempre jaacute somos eacute uma espeacutecie de ldquopraia totalrdquo

Vendo bem tal como Hegel a define a vida corresponde a um acontecimento de aber-

tura com tal dimensatildeo que abre de facto a todas as ldquocoisasrdquo (que nada parece ficar de fora

que inclui tudo o que apareceu aparece e apareceraacute que agrega todos os ldquoobjectosrdquo etc) Eacute

isto que Hegel pretende sublinhar quando diz que a vida eacute ldquoordquo ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia

De facto a vida inclui ou agrega no seu acircmbito a totalidade dos ldquoobjectosrdquo (das ldquocoisasrdquo do

que aparece do que ldquohaacuterdquo etc)

Neste sentido o que estaacute em causa neste passo da Fenomenologia eacute a compreensatildeo da

ldquovidardquo como um ldquoobjectordquo com uma totalidade ilimitada Essa ilimitaccedilatildeo do horizonte de

abertura tem que ver com o caraacutecter indiferenciado do ldquoobjectordquo ldquovidardquo ndash enquanto o ldquoobjec-

tordquo ldquovidardquo corresponde a uma fonte infinita da possibilidade de instacircncias ou de determina-

ccedilotildees (corresponde a uma fonte infinita de ldquoobjectosrdquo de ldquocoisasrdquo etc)

Poderiacuteamos resumir o que estamos a ver dizendo o seguinte tudo o que aparece eacute per-

cebido como manifestaccedilatildeo ou como momento de uma espeacutecie de forccedila uacutenica

in der Eigenheit seiner Absonderung er ist lebendiges Selbstbewuszligtseinrdquo (Phaumlnomenologie des Geis-

tes B IV 3 paacuteg 121-2)

119 ldquoDas Leben in dem allgemeinen fluumlssigen Medium ein ruhiges Auseinanderlegen des Gestaltens

wird eben dadurch zur Bewegung derselben oder zum Leben als Prozeszligrdquo (Phaumlnomenologie des Geis-

tes B IV 2 paacuteg 119)

ldquoDieser ganze Kreislauf macht das Leben aus weder das was zuerst ausgesprochen wird die un-

mittelbare Kontinuitaumlt und Gediegenheit seines Wesens noch die bestehende Gestalt und das fuumlr sich

seiende Diskrete noch der reine Prozeszlig derselben noch auch das einfache Zusammenfassen dieser

Momente sondern das sich entwickelnde und seine Entwicklung aufloumlsende und in dieser Bewegung

sich einfach erhaltende Ganzerdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 2 paacuteg 120)

363

O que isto quer dizer eacute que tudo aquilo que aparece tem por determinaccedilatildeo fundamental

o facto de ser ldquovidardquo (de fazer parte da vida de ser um aspecto ou um momento da vida etc)

Neste sentido podemos dizer que ldquovidardquo corresponde a uma determinaccedilatildeo fundamental do

que aparece

Note-se que isto natildeo quer dizer que se esteja ciente disso que isso nos apareccedila expres-

samente como distinto etc

Vendo bem a relaccedilatildeo com a vida (enquanto determinaccedilatildeo fundamental do que apare-

ce) estaacute como que ldquodesaparecidardquo por traacutes do proacuteprio lidar com os ldquoobjectosrdquo individuais Ou

seja o lidar com cada um deles ateacute pode fazer perder de vista que soacute se lida com eles enquan-

to eles satildeo parte da vida e na medida em que satildeo parte da vida

Ou seja se na verdade a auto-consciecircncia ldquovecircrdquo de cada vez aquilo com que lida como

uma manifestaccedilatildeo da vida isso natildeo significa poreacutem que tenha produzida uma clara identifi-

caccedilatildeo de qual eacute a identidade da ldquovidardquo

Na verdade aquilo que podemos dizer neste ponto seguindo os passos de Hegel so-

bre a identidade da vida eacute que ela corresponde a um momento da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia

consigo mesma posta sob uma tensatildeo de plenitude (adquire as suas determinaccedilotildees sempre jaacute

no meio do tracircnsito do desejo de plenitude da auto-consciecircncia) ndash assenta sobre uma expecta-

tiva de preenchimento dessa relaccedilatildeo

Isto eacute o que podemos dizer eacute que a identidade da vida estaacute fundamentalmente marcada

pelo facto de se inscrever num ldquoterritoacuteriordquo pressionado pelo desejo

Assim o que determina a identidade da vida eacute o facto de ela poder ou natildeo cumprir a

expectativa de preenchimento da relaccedilatildeo da auto-consciecircncia consigo mesma (ie resultar ou

natildeo na supressatildeo do desejo de que modo etc)

Mais se na verdade a auto-consciecircncia ldquovecircrdquo de cada vez aquilo com que lida como

uma manifestaccedilatildeo da vida isso natildeo significa que perceba efectivamente cada uma das ldquocoi-

sasrdquo que aparece como manifestaccedilatildeo dessa identidade (que perceba efectivamente de que mo-

do cada ldquocoisardquo eacute da vida)

Pelo contraacuterio como vimos cada uma das ldquocoisasrdquo que tem lugar na ldquovidardquo pode mui-

to bem ser compreendida como totalmente autoacutenoma em relaccedilatildeo a todas as outras (escapan-

do totalmente ndash ou ficando como que numa posiccedilatildeo de fundo ndash o facto de que haacute uma identi-

dade comum que as engloba)

364

Contudo o que Hegel nos diz eacute que seja como for tudo o que aparece (cada ldquocoisardquo

cada ldquoobjectordquo etc) transporta consigo como sua determinaccedilatildeo (como sua qualidade pro-

priedade etc) o facto de fazer parte da vida (de ser parte da identidade vida)

Por outras palavras a determinaccedilatildeo da relaccedilatildeo com o ldquoobjectordquo (com a vida) eacute uma

outra determinaccedilatildeo de que os ldquoobjectosrdquo (o que aparece as ldquocoisasrdquo etc) satildeo compostos A

relaccedilatildeo com as ldquocoisasrdquo tem um caraacutecter tal que eacute uma relaccedilatildeo com uma entidade protagonis-

ta unificadora das ldquocoisasrdquo e de que as ldquocoisasrdquo satildeo percebidas como instacircncias ou como de-

terminaccedilotildees

O que daqui resulta eacute algo que sempre de novo a Fenomenologia do Espiacuterito potildee em

evidecircncia a saber a relaccedilatildeo entre a unidade e a multiplicidade

O que vemos ao analisar o que nos aparece eacute algo como um conjunto avulso de ldquocoi-

sasrdquo (um livro uma caneta uma janela etc) E o que Hegel estaacute a procurar vincar eacute o seguin-

te ainda que a auto-consciecircncia se relacione natildeo com um conjunto avulso de ldquocoisasrdquo mas

com a ldquovidardquo (e perceba os objectos como manifestaccedilotildees de a vida) isso natildeo significa que a

auto-consciecircncia natildeo veja as ldquocoisasrdquo como independentes

Ou seja Hegel estaacute precisamente a fazer notar que haacute uma dualidade na marcaccedilatildeo do

ldquoconteuacutedordquo da ldquovidardquo ndash que a vida eacute ao mesmo tempo uma uacutenica ldquopersonagemrdquo (a forccedila de

que tudo no objecto da auto-consciecircncia eacute expressatildeo) e uma multiplicidade delas (mas isto de

tal modo que ao mesmo tempo a multiplicidade das expressotildees da vida eacute percebida como a

multiplicidade de entidades independentes ndash ie que satildeo plenamente de si mesmas)120

Assim sendo a relaccedilatildeo com as ldquocoisasrdquo natildeo tem um caraacutecter avulso (ie natildeo eacute uma

relaccedilatildeo desgarrada com o objecto A com o objecto B com o objecto C e assim sucessivamen-

te) na medida em que os objectos satildeo parte da vida A relaccedilatildeo com os objectos eacute portanto

uma relaccedilatildeo marcada por um viacutenculo agrave unidade total ndash em virtude do qual cada objecto que

aparece eacute percebido como manifestaccedilatildeo de ldquoa vidardquo121

120

ldquoDie Unterschiede sind aber an diesem einfachen allgemeinen Medium ebensosehr als Unterschie-

de denn diese allgemeine Fluumlssigkeit hat ihre negative Natur nur indem sie ein Aufheben derselben

ist aber sie kann die Unterschiedenen nicht aufheben wenn sie nicht ein Bestehen haben Eben diese

Fluumlssigkeit ist als die sichselbstgleiche Selbstaumlndigkeit selbst das Bestehen oder die Substanz der-

selben worin sie also als unterschiedene Glieder und fuumlrsichseiende Teile sindrdquo (Phaumlnomenologie des

Geistes B IV 2 paacuteg 118)

121 ldquoDie selbstaumlndigen Glieder sind fuumlr sich dieses Fuumlrsichsein ist aber vielmehr ebenso unmittelbar

ihre Reflexion in die Einheit als diese Einheit die Entzweiung in die selbstaumlndigen Gestalten ist Die

365

Isto permite-nos rever o que vimos atraacutes

O que vimos foi que a auto-consciecircncia se confronta com muitos ldquoobjectosrdquo distintos

(com muitas ldquocoisasrdquo distintas com a multiplicidade variada de tudo o que haacute etc) e agrave parti-

da a relaccedilatildeo com essa multiplicidade de ldquoobjectosrdquo parece natildeo ter quaisquer outros interve-

nientes para laacute da auto-consciecircncia e de cada um dos objectos com que a auto-consciecircncia se

defronta

O que estamos a ver agora eacute justamente o oposto

Se a estrutura do acontecimento da auto-consciecircncia eacute uma estrutura de ldquointerlocu-

ccedilatildeordquo ela natildeo eacute uma estrutura que comporte uma multiplicidade de interlocutores porque todos

os diversos interlocutores satildeo percebidos como manifestaccedilotildees ou como momentos da forccedila

uacutenica que eacute a vida Isto eacute a vida aparece como factor de mediaccedilatildeo entre a auto-consciecircncia e

qualquer um dos ldquoobjectosrdquo que aparecem122

Neste sentido o contraste dos diversos ldquoobjectosrdquo (as diversas ldquocoisasrdquo) entre si resul-

ta a) do contraste dos diversos ldquoobjectosrdquo entre si b) do contraste entre a vida e cada um deles

(do modo como cada um estaacute presente na vida) c) do contraste entre a auto-consciecircncia e a

vida (do modo como a vida se atravessa na auto-consciecircncia)

Por outras palavras tudo o que aparece estaacute imerso num momento fundamental do

modo como a vida se atravessa na auto-consciecircncia (ie do modo como a vida obsta ndash se

opotildee ou pelo contraacuterio colabora com ndash o desejo) De sorte que tudo o que aparece se consti-

tui em ldquoobjectordquo (em ldquocoisardquo etc) apenas enquanto momento da vida (ou seja enquanto mo-

mento de um uacutenico e global contraponto do desejo)

Assim cada uma das ldquocoisasrdquo tanto estaacute em referecircncia e adquire as suas propriedades

como vimos atraacutes em referecircncia ao desejo em que de cada vez estatildeo (enquanto satildeo partes

Einheit ist entzweit weil sie absolut negative oder unendliche Einheit ist und weil sie das Bestehen

ist so hat auch der Unterschied Selbstaumlndigkeit nur an ihr Diese Selbstaumlndigkeit der Gestalt erscheint

als ein Bestimmtes fuumlr Anderes denn sie ist ein Entzweites und das Aufheben der Entzweiung ge-

schieht insofern durch ein Anderes Aber es ist ebensosehr an ihr selbst denn eben jene Fluumlssigkeit ist

die Substanz der selbstaumlndigen Gestalten diese Substanz aber ist unendlich die Gestalt ist darum in

ihrem Bestehen selbst die Entzweiung oder das Aufheben ihres Fuumlrsichseinsrdquo (Phaumlnomenologie des

Geistes B IV 2 paacuteg 118)

122 ldquoDie einfache Substanz des Lebens also ist die Entzweiung ihrer selbst in Gestalten und zugleich

die Aufloumlsung dieser bestehenden Unterschiede und die Aufloumlsung der Entzweiung ist ebensosehr

Ent-zweien oder ein Gliedernrdquo (Phaumlnomenologie des Geistes B IV 2 paacuteg 119)

366

ldquoepisoacutediosrdquo singulares peripeacutecias desse desejo etc) como estaacute em referecircncia e adquire as

suas propriedades em referecircncia agrave vida (ao contraponto do desejo) de que de cada vez faz par-

te (enquanto satildeo parte ldquoepisoacutediosrdquo peripeacutecias etc desse contraponto uacutenico e global do dese-

jo)

Podemos dizer que as ldquocoisasrdquo aparecem no curso do nosso lidar com elas consoante

intervecircm deste ou daquele modo no curso do desejo (consoante se contrapotildeem ao desejo deste

ou daquele modo) consoante o significado ou a relevacircncia de que se revestem enquanto con-

trapontos do desejo etc mas tambeacutem consoante a unidade global do contraponto do desejo

em que sempre se integram

Daqui decorre que o ldquomapardquo das ldquocoisasrdquo muda consoante a vida em que se estaacute ndash con-

soante a vida em que se estaacute cumpra ou natildeo a expectativa de preenchimento da relaccedilatildeo da au-

to-consciecircncia consigo mesma consoante resulte ou natildeo na supressatildeo do desejo consoante o

modo como interfere etc

Vendo bem pode entender-se este ldquojogordquo entre a multiplicidade e a unidade ndash do lado

daquilo que aparece (sc do objecto) ndash de duas maneiras

Por um lado podem entender-se as palavras de Hegel como se estivessem apenas a

chamar a atenccedilatildeo para o facto de haver a) qualquer coisa como o ldquolugar funcionalrdquo do objecto

(do negativo da consciecircncia como algo de constante e invariaacutevel a que a auto-consciecircncia

estaacute presa ou que a auto-consciecircncia tem por inerecircncia como correlato) b) uma multiplicidade

de determinaccedilotildees que vecircm ocupar esse lugar funcional ndash determinaccedilotildees essas que satildeo intermi-

tentes como se o referido lugar funcional tivesse o caraacutecter de um ldquopalcordquo e as diferentes de-

terminaccedilotildees (quer dizer o objecto na sua multiplicidade e variabilidade) entrassem e saiacutessem

no ldquopalcordquo (entrassem e saiacutessem de ldquocenardquo etc)

Por outro lado parece claro que Hegel estaacute a apontar para mais do que isso ndash e que haacute

qualquer coisa que para o dizer de forma econoacutemica tem que ver com ldquoespinosismordquo

Usamos aqui o termo ldquoespinosismordquo numa acepccedilatildeo muito geneacuterica para designar a

concepccedilatildeo de tudo o que aparece (sc de tudo quanto haacute) como ldquoatributosrdquo e ldquomodosrdquo de uma

367

uacutenica realidade fundamental (uma uacutenica ldquosubstacircnciardquo) que subjaz a tudo e se manifesta em tu-

do123

A circunstacircncia de deixarmos em aberto na sua caracterizaccedilatildeo se se trata de uma uacuteni-

ca ldquosubstacircnciardquo subjacente a tudo quanto haacute ou a tudo quanto aparece tem que a possibilidade

de o ldquoespinosismordquo tomar a forma de uma uacutenica realidade ou de uma uacutenica consciecircncia subs-

tante

Mas o ponto decisivo na descriccedilatildeo de Hegel que aqui estamos a seguir estaacute em que natildeo

se trata apenas de tudo ser uma realidade da auto-consciecircncia (que nessa medida desempenha

as funccedilotildees de ἔν substante) Isso eacute o que jaacute estaacute em jogo desde o princiacutepio do capiacutetulo sobre a

auto-consciecircncia Nos passos que estamos a considerar estaacute em jogo o facto de para aleacutem

disso haver tambeacutem algo correspondente ao ldquoespinosismordquo na conformaccedilatildeo ou na organiza-

ccedilatildeo do proacuteprio objecto da consciecircncia enquanto objecto da consciecircncia (reduzido agrave condiccedilatildeo

de objecto da consciecircncia ndash ie como Hegel tambeacutem diz agrave condiccedilatildeo de Leben)

123

Sobre o conceito de ldquoespinosismordquo ver Kierkegaard S Diapsalmata Lisboa Assiacuterio amp Alvim

2011 paacuteg106 e seguintes ou Silva N Identidade e vida em Virginia Woolf uma anaacutelise da expres-

satildeo literaacuteria de um problema filosoacutefico paacutegs 78 271-2 298-9 354-6 416 e 503

A este respeito importa-nos acentuar em especial dois aspectos Em primeiro lugar como eacute observado

tanto por Carvalho quanto por Silva trata-se de um fenoacutemeno que molda a estrutura do aparecimento

em que estamos constituiacutedos e que tem lugar a) independentemente de se ter qualquer notiacutecia de Espi-

nosa e das suas concepccedilotildees e do que possa corresponder agrave noccedilatildeo de ldquoespinosismordquo b) tambeacutem eacute inde-

pendente de se ter qualquer noccedilatildeo de ldquosubstacircnciardquo e c) ateacute independentemente de se ter qualquer cons-

ciecircncia niacutetida ou distintiva de que o aparecimento eacute constantemente referido a este foco e tem a forma

correspondente agravequilo a que chamamos ldquoespinosismordquo O ponto decisivo eacute que muito antes de qual-

quer relaccedilatildeo com Espinosa (ou ateacute mesmo muito antes de Espinosa) o proacuteprio aparecer do que apare-

ce agrave ldquotestemunha globalrdquo jaacute tem a forma desse ldquoespinosismo vitalrdquo ou desse ldquoespinosismo afectivordquo

Em segundo lugar o fenoacutemeno do ldquoespinosismo vitalrdquo tem de ser visto agrave luz da nossa relaccedilatildeo com o

caraacutecter gerundivo do aparecimento ndash e em especial com a pressatildeo gerundiva dirigida ao superlativo

(no duplo sentido do termo) Como vimos tudo o que aparece estaacute decisivamente afectado e moldado

por esta pressatildeo gerundiva ndash e isso aplica-se tambeacutem agrave peculiar organizaccedilatildeo da multiplicidade do que

aparece (sc agrave peculiar ldquosubstacircnciardquo do que aparece) que estaacute em causa quando se fala de ldquoespinosismo

vitalrdquo Considerar o fenoacutemeno fora da sua relaccedilatildeo com o caraacutecter gerundivo (e tanto quer dizer votado

ao superlativo) do meio em que se produz eacute o mesmo que observar um peixe fora de aacutegua E um dos

grandes meacuteritos da anaacutelise de Hegel (a supor que a anaacutelise de Hegel tem efectivamente que ver com is-

to que aqui estamos a tentar focar) eacute precisamente o facto de estabelecer com nitidez este nexo entre

por um lado a pressatildeo do desejo que inere agrave auto-consciecircncia e que estaacute votado agrave plenitude de si e por

outro lado a unidade da allgemeine Fluumlssigkeit a que eacute atribuiacuteda a responsabilidade de tudo o objecto

da auto-consciecircncia)

368

Por outras palavras natildeo se trata do ἓν καὶ πᾶν da consciecircncia na sua relaccedilatildeo com tudo

mas de um ἓν καὶ πᾶν adicional que tem lugar na proacutepria conformaccedilatildeo do objecto da cons-

ciecircncia

Ou seja aparentemente o que Hegel desenha satildeo duas unificaccedilotildees globais duas ins-

tacircncias de ἓν καὶ πᾶν em posiccedilatildeo simeacutetrica uma relativamente agrave outra (sem prejuiacutezo do pri-

mado da proacutepria consciecircncia que constitui o pressuposto fundamental do modelo de reconhe-

cimento das coisas que estaacute em causa em todo este capiacutetulo da Fenomenologia do Espiacuterito

que aqui estamos a analisar)

Por um lado haacute a unificaccedilatildeo global de tudo o que aparece que corresponda ao facto

de tudo o mais ser como Hegel diz determinaccedilatildeo da consciecircncia (que constitui assim o subs-

tante)

Mas por outro lado haacute tambeacutem a unificaccedilatildeo global de tudo o que aparece se assim

se pode dizer a parte rei uma unificaccedilatildeo global na constituiccedilatildeo do proacuteprio objecto De sorte

que em vez de haver uma multidatildeo de objectos uma multidatildeo de negativos da consciecircncia

pelo contraacuterio todos esses objectos satildeo sempre pela sua proacutepria natureza manifestaccedilotildees do

mesmo ndash e aparecem agrave consciecircncia como manifestaccedilotildees do mesmo

A questatildeo estaacute agora em saber a que eacute que tudo isto corresponde ndash em especial se se

pretende compreender a estrutura do aparecimento ou da experiecircncia que tem lugar em noacutes Eacute

a isso que por fim devemos estar atentos

369

CONCLUSAtildeO

sect40

O facto de o aparecimento e a experiecircncia terem em noacutes o caraacutecter de aparecimento e ex-

periecircncia de significados ndash O facto de o ldquosignificadordquo ter um caraacutecter funcional sempre re-

lativo a um criteacuterio global de que eacute portador quem assiste ao aparecimento

Devemos agora iniciar um uacuteltimo andamento e a abrir este uacuteltimo andamento deve-

mos comeccedilar por fazer notar que tudo o que acabamos de ver sobre aquilo que aparece en-

quanto o aparecimento tem o caraacutecter de um empreendimento de si (de uma ldquopeccedilardquo de si

etc) permite perceber melhor algo a que numa secccedilatildeo anterior jaacute tiacutenhamos dado atenccedilatildeo a

saber que o aparecimento e a experiecircncia tecircm em noacutes o caraacutecter de aparecimento e de expe-

riecircncia de significados

Ora a noccedilatildeo de ldquosignificadordquo eacute uma noccedilatildeo ambiacutegua que se presta a uma certa confu-

satildeo porque pode ser visada a partir de acircngulos muito diferentes entre si porque pode acolher

uma enorme diversidade de definiccedilotildees etc Eacute para o dizer numa palavra um conceito ldquofor-

malrdquo

Assim se consideraacutessemos as diversas definiccedilotildees dos diversos autores que abordaram

o tema ndash inventaacuterio exaustivo que natildeo tem cabimento no curso desta anaacutelise ndash ou se compa-

raacutessemos essas diversas definiccedilotildees dos diversos autores entre si aquilo que verificariacuteamos eacute

que haacute um denominador comum (um elemento formal que justifica em que em cada caso se

possa falar de ldquosignificadordquo) mas que isso de modo nenhum impede que a identificaccedilatildeo do

terminus ad quem (do centro de referecircncia em funccedilatildeo do qual se estaacute a falar quando se fala de

ldquosignificadordquo) seja na verdade muito diferente

Ora ao descrever genericamente a que corresponderia uma experiecircncia de significa-

dos a linha que temos vindo implicitamente a privilegiar eacute a linha que mostra que o significa-

do sublinha o aspecto funcional do que aparece Poreacutem natildeo eacute esse aspecto da noccedilatildeo de ldquosig-

nificadordquo que aqui pretendemos salientar

370

O aspecto que pretendemos salientar eacute o facto de um ldquosignificadordquo ter um caraacutecter fun-

cional sempre relativo a um criteacuterio global de que eacute portador quem assiste ao aparecimento

Haacute significado quando a determinaccedilatildeo do que aparece natildeo lhe vem por assim dizer

apenas de si mesmo mas daquilo que exprimimos pela foacutermula do Feacutedon μὴ μόνον ἐκεῖνο - o

ser reportado a algo de outro que preside ao aparecimento (de tal modo que tudo se define

pelo modo como estaacute em relaccedilatildeo com isso pelo como como se comporta em relaccedilatildeo a isso

pelas funccedilotildees que exerce a respeito disso etc) Quer dizer o significado depende desse algo

de outro que preside ao aparecimento

Por outras palavras o que estaacute em causa no conceito de ldquosignificadordquo tem uma natu-

reza tal que tudo acaba por depender do nuacutecleo que eacute identificado como factor do significado

ou fonte do significado ndash o nuacutecleo a que todo o significado eacute relativo Assim natildeo basta falar

de significados ndash a chave estaacute sempre naquilo a que dizem respeito

Natildeo basta dizer que tudo aquilo que aparece tem determinaccedilotildees ldquocomportamentaisrdquo

(determinaccedilotildees sobre o modo-como-se-comporta) Um ponto decisivo eacute sempre como se com-

porta em relaccedilatildeo a quecirc E isto de tal modo que a variaccedilatildeo relativa a este uacuteltimo ponto cria sig-

nificados (campos de significados) completamente diferentes

Ora sendo assim o que procuraacutemos mostrar habilita-nos a responder a esta pergunta

Vendo bem no nosso caso tudo o que aparece tem como dissemos o caraacutecter de intervenien-

te na ldquopeccedilardquo de si

Quer dizer se natildeo estamos equivocados tudo o que aparece tem o caraacutecter de poacutelo de

execuccedilatildeo relativo agrave ipseidade da ldquotestemunha globalrdquo do aparecimento enquanto a ldquoteste-

munha globalrdquo do aparecimento estaacute radicalmente tomada por um encaminhamento ou uma

tensatildeo vital de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesma e essa tensatildeo de natildeo-indiferenccedila es-

taacute vinculada ao superlativo

Neste sentido podemos dizer que ldquosignificadordquo eacute a definiccedilatildeo que um x tem em relaccedilatildeo

a uma tensatildeo vital de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesmo vinculado ao superlativo

Poderia dizer-se simplesmente que o significado eacute a definiccedilatildeo que um x tem em rela-

ccedilatildeo agrave ipseidade (a uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a um em-causa etc) Mas o problema estaacute

na possibilidade de a ipseidade ser reconhecida de forma abstracta ie deixando fora de foco

os diferentes aspectos que satildeo elementos fundamentais da sua constituiccedilatildeo

371

Ou seja o fundamental estaacute nas claacuteusulas adicionais que focaacutemos no facto de esse al-

go de outro que preside ao aparecimento ser uma ldquotestemunha globalrdquo no facto de esse algo

de outro que preside ao aparecimento ser uma ldquotestemunha globalrdquo tomada por radical tensatildeo

de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesma no facto de esse algo de outro que preside ao

aparecimento ser uma ldquotestemunha globalrdquo tomada por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que re-

quer um superlativo no facto de tudo isto corresponder a uma determinada configuraccedilatildeo do

campo das possibilidades (e de um campo de possibilidades com as caracteriacutesticas descritas

ie com um caraacutecter exuberante com um caraacutecter labiriacutentico ou em condicionamento de pri-

satildeo labiriacutentica) etc

O importante eacute que cada um destes aspectos seja visto na sua conexatildeo com todos os

outros e que a conexatildeo natildeo seja truncada (ie que natildeo se deixe de fora todos ou alguns destes

factores ou destas claacuteusulas de determinaccedilatildeo) Pois a ldquopeccedilardquo de si eacute sempre conformada por

uma constelaccedilatildeo de factores ou claacuteusulas de determinaccedilatildeo e todos esses factores ou claacutesulas

satildeo decisivos ndash e diferiria significativamente daquilo que efectivamente eacute se alguma destas

claacuteusulas fosse modificada

Esta constelaccedilatildeo tem caracteriacutesticas tais ndash as suas componentes estatildeo de tal modo uni-

ficadas ou enredadas umas nas outras ndash que podemos igualmente dizer que tudo o que aparece

nos aparece como interveniente da ldquopeccedilardquo do superlativo formal (sc como significado do su-

perlativo formal) ndash quer dizer a) tudo o que aparece surge como interveniente na peccedila do su-

perlativo b) tudo o que aparece surge como relativo a um campo de possibilidades que eacute ao

mesmo tempo exuberante e labiriacutentico etc

Assim tudo o que aparece tem a forma de um significado relativo a isto tudo ndash a esta

complexa constelaccedilatildeo de elementos que define propriamente o em-causa e com ele a

identidade dos ldquoobjectosrdquo

Algo de equivalente vale tambeacutem para o significado que faz a identidade e a posiccedilatildeo

de cada ldquocoisardquo que aparece E isto quer dizer que perdemos de vista a natureza do significado

que faz o teor e a funccedilatildeo de cada ldquocoisardquo se porventura nos esquecemos que eacute de raiz um sig-

nificado relativo a algo com esta configuraccedilatildeo

Isto eacute a natureza do significado que faz o teor e a funccedilatildeo de cada ldquocoisardquo eacute de raiz

um significado relativo ao facto de haver uma ldquotestemunha globalrdquo que preside ao apareci-

mento ao facto de a ldquotestemunha globalrdquo que preside ao aparecimento estar tomada por radi-

cal tensatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesma ao facto de a ldquotestemunha globalrdquo

372

que preside ao aparecimento estar tomada por radical tensatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente

a si mesma que requer um superlativo ao facto de tudo isto corresponder a uma determinada

comfiguraccedilatildeo do campo das possibilidades (e de um campo de possibilidades com as carac-

teriacutesticas descritas ie com um caraacutecter exuberante com um caraacutecter labiriacutentico ou em con-

dicionamento de prisatildeo labiriacutentica) etc E por fim a natureza do significado que faz o teor e

a funccedilatildeo de cada ldquocoisardquo eacute relativa ao facto de cada um destes aspectos ser visto na sua

conexatildeo com todos os outros (ie de ser relativo a uma constelaccedilatildeo de factores ou claacuteusulas

de determinaccedilatildeo e todos esses factores ou claacuteusulas se-rem decisivos de tal modo que a cons-

telaccedilatildeo diferiria significativamente daquilo que efectivamente eacute se alguma destas claacuteusulas

fosse modificada)

De tudo isto resulta que quando se fala do ldquosignificadordquo do que aparece aquilo a que

se estaacute a fazer referecircncia eacute a uma natildeo-neutralidade ou a uma natildeo-indiferenccedila intriacutenseca quanto

ao valor do que aparece no acircmbito de um quadro configurado deste modo

Poderia dar-se o caso de a multiplicidade do que aparece natildeo sendo neutra ou indife-

renciada quanto ao significado tomar lugar apenas numa relaccedilatildeo binaacuteria (ter significado ou

natildeo ter significado) Poreacutem aquilo que se nota eacute que ldquoter significadordquo e ldquonatildeo ter significadordquo

satildeo poacutelos de uma escala graduada com um cardinal ilimitado de niacuteveis

Assim o que aparece (ie tudo o que aparece) estaacute marcado por tomar lugar em dife-

rentes niacuteveis de significado Ou como tambeacutem poderiacuteamos dizer a variaccedilatildeo do grau do signi-

ficado do que aparece reflecte-se no facto de o que quer que seja que aparece estar disposto

numa hierarquia de sentido

Vendo bem dizer quer as ldquocoisasrdquo natildeo tecircm todas o mesmo significado (satildeo mais ou

menos significativas no sentido do termo que vimos atraacutes) quer dizer que ocupam lugares dis-

tintos numa hierarquia de sentido

Dizer que as ldquocoisasrdquo natildeo tecircm todas o mesmo significado eacute dizer que as diferentes

ldquocoisasrdquo que aparecem ocupam lugares distintos na hierarquia de sentido quanto agrave funccedilatildeo que

desempenham

Jaacute tiacutenhamos visto isto ndash mas isto na verdade ainda natildeo eacute tudo

Eacute que a isto devemos adicionar o facto de o que estaacute em causa no que aparece natildeo eacute

apenas um uacutenico significado mas na verdade um complexo de significados

373

Se por um lado pode acontecer que um significado se destaca (instituindo-se em sig-

nificado geral fazendo submergir todos os outros significados possiacuteveis etc) por outro lado

o que estaacute em jogo eacute que o que aparece estaacute sempre sob a forccedila do complexo de significados

(concordantes ou pelo contraacuterio em conflito entre si) de cada vez em causa

Na verdade tambeacutem entre os significados se aplica aquilo que vimos atraacutes a saber

tambeacutem os significados compotildeem uma escala graduada tambeacutem eles satildeo dispostos num car-

dinal ilimitado de niacuteveis ou numa hierarquia de sentido etc De tal modo que poderiacuteamos di-

zer que haacute significados mais ldquosignificativosrdquo do que outros

O que estamos a procurar mostrar eacute que os significados natildeo tecircm todos a mesma forccedila ndash

haacute alguns que tomam primazia em relaccedilatildeo a outros que se impotildeem etc Haacute por assim dizer

significados que se arrogam o papel de significado ldquogeralrdquo e outros que tomam meramente pa-

peacuteis secundaacuterios etc

E isto eacute assim em virtude do que vimos ainda agora a saber em virtude de o comple-

xo de significados compor uma escala graduada relativa ndash de os diversos significados exerce-

rem funccedilotildees distintas com valores distintos em relaccedilatildeo a ndash uma ldquotestemunha globalrdquo que pre-

side ao aparecimento a uma ldquotestemunha globalrdquo que preside ao aparecimento tomada por ra-

dical tensatildeo de natildeo-indiferenccedila relativamente a si mesma a uma ldquotestemunha globalrdquo que pre-

side ao aparecimento tomada por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que requer um superlativo

ao facto de tudo isto corresponder a uma determinada configuraccedilatildeo do campo das possibili-

dades (e de um campo de possibilidades com as caracteriacutesticas descritas ie com um caraacutecter

exuberante com um caraacutecter labiriacutentico ou em condicionamento de prisatildeo labiriacutentica) etc

Ora se considerarmos a multiplicidade de mapas de significados que daqui resulta

aquilo que verificamos eacute que satildeo mapas com conformaccedilotildees muito variaacuteveis ndash especialmente

se tivermos em conta a) o complexo de forccedilas que estaacute de cada vez em causa e b) a flutuaccedilatildeo

possiacutevel dentro desse complexo

De facto a miacutenima variaccedilatildeo num uacutenico factor ou claacuteusula de determinaccedilatildeo (por exem-

plo a miacutenima variaccedilatildeo de teor do superlativo a miacutenima variaccedilatildeo da configuraccedilatildeo do campo

de possibilidades etc) natildeo apenas implica uma correlativa variaccedilatildeo em todos os outros facto-

res ou claacuteusulas a que esse estaacute associado como implica uma correlativa variaccedilatildeo na organi-

zaccedilatildeo global do complexo de significados que de cada vez estaacute a actuar

Ora visto isto importa natildeo esquecer um outro aspecto

374

O aspecto a que nos referimos eacute a dupla afectaccedilatildeo que haacute entre a ipseidade e os seus

intervenientes e como esta dupla afectaccedilatildeo faz a unidade da ldquopeccedilardquo de si mesmo

Por um lado como jaacute foi bem vincado nada daquilo que aparece tem uma determina-

ccedilatildeo soacute sua satildeo tudo determinaccedilotildees intrinsecamente relativas agrave ipseidade e que definem fun-

ccedilotildees em relaccedilatildeo ao ldquotracircnsito de sirdquo (sc agrave navegaccedilatildeo do si)

Mas natildeo se pode acentuar unilateralmente esta relaccedilatildeo de dependecircncia Eacute que se eacute as-

sim isso deve-se precisamente ao facto de aquilo que aparece (no caso de Hegel o objecto)

definir justamente a situaccedilatildeo de si (a situaccedilatildeo da ldquotestemunha globalrdquo a posiccedilatildeo em que se

encontra relativamente ao projecto de natildeo-indiferenccedila de que eacute portadora a posiccedilatildeo em que se

encontra a caminho do superlativo para que tende a distacircncia a que se acha dele etc)

Quer dizer a ldquotestemunha globalrdquo e aquilo que ela testemunha (ou para usar a liacutengua-

gem de Hegel a auto-consciecircncia e o seu objecto) natildeo se acham apenas lado a lado Sucede

justamente o contraacuterio aquilo que aparece afecta o si determina o si qualifica o si impotildee-lhe

a sua proacutepria determinaccedilatildeo marca-o com ela etc De sorte que na sua navegaccedilatildeo em direcccedilatildeo

agravequilo para que tende a ldquotestemunha globalrdquo acaba por estar onde estiver aquilo que lhe apa-

rece e eacute de facto determinada por aquilo que lhe aparece

Mais precisamente sucede que a ldquotestemunha globalrdquo depende do si-mesmo-a-haver

(sc do que for feito de si ou do que se for fazendo de si) ndash o que de cada vez eacute feito de si estaacute

decisivamente marcado por aquilo que lhe aparece E eacute precisamente neste cruzamento (e com

estes ingredientes) que consiste a ldquopeccedilardquo de si

Haacute em certo sentido como que uma unidade fundamental de todo o aparecimento que

cada um de noacutes eacute ndash e essa unidade vem de todo o aparecimento (e tudo nele) ter um papel de-

cisivo na histoacuteria de si (a histoacuteria do cumprimento ou incumprimento com esta ou aquela

margem esta ou aquela forma por este ou aquele modo de o si ser afectado por aquilo que

aparece etc) do programa de natildeo-indiferenccedila (quer dizer do programa de superlativaccedilatildeo) de

que o si-mesmo eacute portador

Chegados a este ponto estamos tambeacutem em condiccedilotildees de dar pelo menos um primeira

parte da resposta agrave pergunta em que sentido e por que motivo dizemos que a experiecircncia tal

como tem lugar em noacutes eacute sempre experiecircncia da vida Para responder a esta pergunta haacute que

ter presente aquilo que se passa na ldquopeccedilardquo

Vale para o proacuteprio aparecimento e para toda a experiecircncia que tem lugar nele algo de

equivalente ao que se passa numa navegaccedilatildeo em qualquer momento da navegaccedilatildeo se por um

375

lado o que estaacute em causa eacute com certeza aquele ponto dela em que se vai por outro nunca estaacute

em causa soacute ele antes estaacute em causa a navegaccedilatildeo toda (o seu programa toda a execuccedilatildeo dela

o seu ldquodestinordquo etc)

Assim tambeacutem nunca se trata soacute do aparecimento disto ou daquilo nem nunca se trata

soacute da experiecircncia disto ou daquilo Trata-se sempre de um acontecimento global com as di-

mensotildees que procuraacutemos evidenciar estaacute em causa natildeo apenas uma parte mas a ldquopeccedilardquo toda

Numa secccedilatildeo anterior tentaacutemos mostrar que a experiecircncia que continuamente se vai

tecendo na travessia perceptiva eacute sempre ao mesmo tempo uma experiecircncia relativa a) ao

proacuteprio campo perceptivo b) ao campo de familiaridade e c) ao exterior do campo de famiacutelia-

ridade Mas essa caracterizaccedilatildeo eacute incompleta e em certo sentido deixa escapar o essencial

Isso poderia ser assim num quadro de aparecimento muito diferente daquele em que

de facto nos achamos ndash num quadro de aparecimento em que a ldquotestemunha globalrdquo natildeo esti-

vesse marcada por um programa de natildeo-indiferenccedila com as caracteriacutesticas que vimos Poreacutem

como temos procurado estabelecer o quadro de aparecimento em que nos temos eacute marcado

por esse programa

Ora o que isso quer dizer eacute que todo o aparecimento e toda a experiecircncia satildeo apareci-

mento e experiecircncia de significados de uma ldquopeccedilardquo de si ndash significados a) da natildeo-indiferenccedila

da ipseidade a si mesma b) dessa natildeo-indiferenccedila como natildeo-indiferenccedila a um superlativo for-

mal c) tudo isto num quadro de possibilidades marcado ao mesmo tempo pelo seu caraacutecter

exuberante e labiriacutentico de tal modo que d) tudo o que aparece e eacute estabelecido por projecccedilatildeo

empiacuterica potildee os seus traccedilos numa situaccedilatildeo de ipseidade (ou para falar como Hegel num ne-

gativo do superlativo para que se tende) que e) tem uma estrutura semelhante agrave dos ciacuterculos

de Hieacuterocles e f) prende a ipseidade a uma determinada distacircncia do superlativo para que ten-

de etc

Ora tudo isto que aqui procuramos explicitar eacute precisamente o que ndash metidos como

estamos nela e identificados como estamos com a sua unidade (com a peculiar combinaccedilatildeo

de determinaccedilotildees que a formam) ndash habitualmente chamados ldquovidardquo

O que pretendemos vincar eacute que por um lado a experiecircncia tem sempre uma determi-

naccedilatildeo extraordinariamente complexa que num sentido ocorre sempre o quadro de um ldquoolhar

totalrdquo Mais pretendemos vincar que por outro lado tambeacutem dizer isto natildeo basta porque pa-

ra se ter pelo menos um ldquoretrato-robotrdquo do que estaacute em causa na constituiccedilatildeo da experiecircncia

376

que haacute em noacutes eacute preciso ter atenccedilatildeo ao menos agrave complexa trama de claacuteusulas e determinaccedilotildees

que aqui tentaacutemos tecer

Sendo assim o que nesta secccedilatildeo tentaacutemos pocircr em evidecircncia eacute que para aleacutem das foacuter-

mulas variaacuteveis que correspondem agrave especificidade ou ao teor proacuteprio de cada objecto que

aparece haacute qualquer coisa como um nuacutecleo comum ndash justamente isso que designaacutemos por

ldquovidardquo

Quer dizer os passos que demos ateacute este momento acentuam unilateralmente o as-

pecto que vendo bem encerra as ldquocoisasrdquo que aparecem e os seus significados na sua indivi-

dualidade funcional e ldquoatoacutemicardquo

No sentido em que o vimos ateacute este ponto o resultado seria uma multiplicidade com-

plexa de significados funcionais totalmente encerrados em si gerando um mapa de significa-

dos funcionais ldquoatoacutemicosrdquo cuja relaccedilatildeo entre si se esgotaria na ldquoloacutegicardquo dos seus significados

individuais isolados entre si ndash no modo como um significado individual contrastaria com ou-

tro e no limite todos os significados individuais contrastariam entre si (estabeleceriam liga-

ccedilotildees uma rede de associaccedilotildees entre si etc) no exerciacutecio das funccedilotildees de cada vez desempe-

nhadas no complexo de tensotildees que vimos que nos corresponde

Acontece que natildeo eacute assim ndash e natildeo eacute assim em virtude de algo que vimos atraacutes e que de

seguida interessa reconsiderar agrave luz dos uacuteltimos desenvolvimentos Eacute que entre a multiplici-

dade de ldquoobjectosrdquo que nos aparecem estaacute segundo o que vimos ao considerar Hegel o ldquoob-

jectordquo ldquovidardquo com as caracteriacutesticas que vimos que lhe correspondem

Ora esse nuacutecleo comum natildeo constitui de maneira nenhuma algo que tambeacutem estaacute ao

lado do resto (uma foacutermula justaposta agraves demais e que constitui qualquer coisa como a articu-

laccedilatildeo global que de algum modo junta tudo) Sucede em vez disso que esta foacutermula estaacute in-

cluiacuteda como componente de base em todas as outras ndash eacute no sentido etimoloacutegico a foacutermula

fundamental de que todas as outras constituem contracccedilotildees

Assim por um lado qualquer foacutermula de uma coisa que deixe de fora esta compo-

nente fundamental salta o decisivo ndash deixa-o pressuposto na confusatildeo que habitualmente fun-

ciona E por outro lado uma ldquocharacteristica que se contente com a identificaccedilatildeo das foacutermu-

las avulsas ou identifique radicais comuns mas sem atender a este nuacutecleo falha o seu progra-

ma

Isto tambeacutem vale para a experiecircncia cujos objectos satildeo sempre casos disto e que aleacutem

do mais desempenha uma funccedilatildeo essencial neste contexto pois eacute a ela ndash com tudo o que tem

377

de fraacutegil ndash que cabe no fundamental criar formas fixas padrotildees de referecircncia ldquomapasrdquo para

a navegaccedilatildeo da vida etc

Quer dizer a experiecircncia eacute o principal recurso que a ldquotestemunha globalrdquo (a ipseida-

de) tem para domesticar o que a rodeia e nesse sentido criar territoacuterio para tentar navegar

em aacuteguas cartografadas e contrariar o caraacutecter labiriacutentico do campo de possibilidades Em

suma a experiecircncia eacute o principal recurso que a ldquotestemunha globalrdquo ou a ipseidade tem para

abrir algo que se pareccedila com a sinopse que a estrutura do campo de possibilidades na verdade

natildeo consente como sinopse autecircntica e legiacutetima

E daiacute decorre justamente a ambiguidade do papel que a experiecircncia desempenha neste

con-texto O tipo de reconhecimento que a experiecircncia possibilita tem as caracteriacutesticas que

vimos a buacutessola da experiecircncia ou os ldquomapasrdquo da experiecircncia (as ldquosinopsesrdquo produzidas pela

experiecircncia) estatildeo sujeitas agrave possibilidade de natildeo corresponderem a nenhuma compreensatildeo

adequada das condiccedilotildees em que se joga a ldquopeccedilardquo de si da identidade dos seus intervenientes

do jogo de possibilidades que a moldam etc

Toca-se aqui um ponto essencial que conveacutem ter presente

Natildeo se trata soacute de ter noccedilatildeo de que a experiecircncia eacute sempre experiecircncia da vida Eacute ne-

cessaacuterio igualmente ter noccedilatildeo de que a vida estaacute por assim dizer ldquonas matildeosrdquo da experiecircncia e

eacute nessa medida uma ldquopeccedilardquo que se desenrola nas condiccedilotildees de instabilidade que satildeo proacuteprias

da experiecircncia

sect41

A noccedilatildeo de significado em V Woolf tudo o que aparece percebido como manifestaccedilatildeo da

forma da vida ndash A vida como objecto de si proacutepria ndash Tudo o que se passa como dado com-

portamental ou traccedilo de caraacutecter da proacutepria vida ndash A relaccedilatildeo com a vida assente sempre

jaacute na antecipaccedilatildeo de um resultado global ndash Como a avaliaccedilatildeo da vida eacute sempre a avalia-

ccedilatildeo do ldquocaraacutecterrdquo ldquodisto tudordquo

Encontramos na obra de Virginia Woolf elementos que nos permitem compreender o

caraacutecter intrinsecamente ldquoespinosistardquo ndash a organizaccedilatildeo intrinsecamente ldquoespinosistardquo ndash daqui-

lo que aparece a interferir na ldquopeccedilardquo de si (ou seja daquilo que aparece como ldquosituaccedilatildeo de sirdquo

378

daquilo que para usar a terminologia da Fenomenologia do Espiacuterito constitui o objecto da

auto-consciecircncia etc)

Observe-se antes de se entrar no exame das indicaccedilotildees que podemos colher na obra de

V Woolf que natildeo se trata aqui de mais do que indicaccedilotildees que reunimos e tentamos seguir

num breve esboccedilo Natildeo eacute este o lugar para tentar empreender qualquer anaacutelise da obra de V

Woolf o que procuramos eacute apenas ver alguns aspectos fundamentais das perspectivas desen-

volvidas nela que podem ajudar a compreender melhor a questatildeo da experiecircncia da vida que

aqui temos em anaacutelise124

Ora para ganhar pista a estas indicaccedilotildees haacute que partir da contraposiccedilatildeo que V Woolf

faz entre aquilo a que chama ldquofactsrdquo e aquilo a que chama ldquomeaningrdquo

Antes de mais importa ter presente que V Woolf natildeo chama ldquofactosrdquo agravequilo a que ateacute

aqui nos referimos por este conceito e tem um conceito de ldquosignificadordquo muito diferente da-

quele que usaacutemos em todas as secccedilotildees precedentes como se veraacute melhor na continuaccedilatildeo

Tal como o usaacutemos ateacute aqui o conceito de ldquosignificadordquo designa em geral determina-

ccedilotildees funcionais (determinaccedilotildees de ldquocomportamentordquo se assim se pode dizer) daquilo que

aparece ndash determinaccedilotildees da funccedilatildeo ou do comportamento do que aparece em relaccedilatildeo a algo de

que o observador eacute portador (enquanto justamente natildeo se trata de um mero observador mas de

um ponto de vista com agenda proacutepria etc)

Nesse sentido as determinaccedilotildees de significado podem muito bem ser relativas agrave proacute-

pria agenda de expediente e administraccedilatildeo corrente do curso da vida Vimos que no nosso

caso a ldquoadministraccedilatildeo corrente do expedienterdquo estaacute sempre inscrita no horizonte globalmente

mais exigente e mais amplo da tensatildeo gerundiva do si

Acontece que V Woolf chama justamente ldquofactosrdquo a todos os significados que satildeo re-

lativos ao expediente da vida

Isso significa que na sua terminologia a fronteira entre ldquofactosrdquo e ldquosignificadosrdquo tem

um traccedilado muito diferente daquele que verificaacutemos em secccedilotildees anteriores

124

Para um exame mais detido dos pontos que aqui consideramos apenas de relance veja-se Silva N

Identidade e vida em Virginia Woolf uma anaacutelise da expressatildeo literaacuteria de um problema filosoacutefico

Universidade Nova de Lisboa Tese de Doutoramento 2011 em especial as paacuteginas 56-62 129-131

270-285 etc

379

Neste sentido a questatildeo que se suscita ndash e aquela que para noacutes eacute decisiva ndash eacute entatildeo a

de saber o que eacute que na concepccedilatildeo de V Woolf satildeo e a que eacute que dizem respeito os ldquosignifi-

cadosrdquo Ou seja se os significados na acepccedilatildeo de V Woolf natildeo satildeo relativos a determinaccedilotildees

de comportamento funcional relativo ao ldquoexpedienterdquo da vida tal como vimos antes importa

determinar a que eacute que satildeo relativos

Para comeccedilar a abordar esta questatildeo consideremos por exemplo um jogo

No sentido natildeo-woolfiano do termo se considerarmos um jogo encontramos todo um

conjunto de significados que tecircm que ver com as regras do jogo em questatildeo com os apetre-

chos com aquilo que por exemplo estorva o jogo com as pessoas que a ele assistem etc E

tudo isso eacute presidido por uma instacircncia organizativa e global o proacuteprio jogo em causa

Poreacutem poderia acontecer que toda a constituiccedilatildeo de significado se esgotasse naquilo

que interfere no expediente do jogo em causa e que a) isso natildeo tivesse qualquer relaccedilatildeo com o

proacuteprio jogo enquanto tal que b) essa relaccedilatildeo fosse totalmente neutra em relaccedilatildeo ao proacuteprio

jogo enquanto tal ou que c) o significado do proacuteprio jogo nunca fosse senatildeo a sua posiccedilatildeo

funcional em relaccedilatildeo a outras ocupaccedilotildees com as quais se articula de forma semelhante agravequela

que liga os componentes funcionais do jogo em questatildeo ndash e isto porque um jogo faz parte do

horizonte mais abrangente de ocupaccedilatildeo da vida com as regras proacuteprias da vida etc

Mas vendo bem natildeo eacute assim

Por um lado 1) temos uma relaccedilatildeo com o proacuteprio jogo enquanto tal 2) essa relaccedilatildeo

com o proacuteprio jogo natildeo eacute neutra mas estaacute marcada por uma tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (e estaacute

marcada por uma determinada qualificaccedilatildeo do jogo em causa no que diz respeito agrave tensatildeo de

natildeo-indiferenccedila que domina a ipseidade) e 3) o significado do jogo em causa natildeo se esgota na

sua posiccedilatildeo funcional em relaccedilatildeo a outras ocupaccedilotildees funcionais dentro do horizonte global da

travessia da vida

Isto tem que ver por um lado com o facto de o jogo natildeo ter lugar num meio neutro

mas num meio marcado por pressatildeo gerundiva ndash e na verdade marcado por pressatildeo gerundi-

va orientada para o superlativo

Por outras palavras mesmo que haja variaccedilotildees quanto ao grau em que isso se faz sen-

tir o jogo em causa ndash como qualquer outro preenchimento ou ocupaccedilatildeo do tempo ndash aparece

contra o fundo da exigecircncia do superlativo e eacute medido pela bitola do superlativo

Mas isto natildeo eacute tudo

380

Aleacutem disso acontece tambeacutem que o jogo natildeo eacute posto em relaccedilatildeo com o superlativo co-

mo se fosse um acontecimento absoluto ndash como se fosse a uacutenica coisa que eacute posta em relaccedilatildeo

com o absoluto como se fosse chamado a desempenhar funccedilotildees de superlativo ndash ou de todo o

modo como se fosse algo posto em relaccedilatildeo com o superlativo independentemente do que

quer que seja que tambeacutem se ache sujeito a essa pressatildeo A relaccedilatildeo do jogo com o superlativo

estaacute em relaccedilatildeo com as relaccedilotildees entre tudo o mais e o superlativo

Quer dizer a relaccedilatildeo entre o que quer que seja e o superlativo natildeo tem lugar em com-

partimentos estanques Haacute como vimos um uacutenico horizonte a que tudo pertence e que esta-

belece relaccedilotildees entre todos os diferentes momentos da situaccedilatildeo da si e do cumprimento ou in-

cumprimento do programa superlativo

Assim o que estaacute em causa na ldquomediccedilatildeordquo do jogo pela pressatildeo gerundiva do superla-

tivo nunca eacute apenas o jogo (nunca eacute apenas a relaccedilatildeo do jogo com o superlativo como se fosse

um acontecimento absoluto como se fosse chamado a desempenhar funccedilotildees de superlativo

como coisa se fosse posto em relaccedilatildeo com o superlativo independentemente do que quer que

seja mais que tambeacutem se ache sujeito a essa pressatildeo etc) mas na verdade de algum modo

tudo o mais

Isto eacute o que estaacute em causa na ldquomediccedilatildeordquo do jogo pela pressatildeo gerundiva eacute tambeacutem a

relaccedilatildeo de tudo o mais com a pressatildeo gerundiva e a relaccedilatildeo estabelecida entre o jogo e tudo

o mais no acircmbito da pressatildeo gerundiva a que o que quer que seja que seja chamado a desem-

penhar funccedilotildees de superlativo estaacute sujeito

Em suma natildeo soacute o jogo tem uma determinada posiccedilatildeo relativa ao programa superla-

tivo como tem uma determinada posiccedilatildeo relativa a todos os diferentes momentos da situaccedilatildeo

de si ndash diferentes momentos da situaccedilatildeo de si que por sua vez tecircm tambeacutem uma determinada

relaccedilatildeo ao programa superlativo e tecircm tambeacutem uma relaccedilatildeo a todos os diferentes momentos

da situaccedilatildeo de si (entre os quais uma determinada relaccedilatildeo relativa em relaccedilatildeo ao jogo) mar-

cada pelas suas posiccedilotildees relativas em relaccedilatildeo ao superlativo

Mais o ldquolugarrdquo que o jogo ocupa nessa complexa rede de relaccedilotildees afecta o modo

como aparece determina o seu significado assim como determina os significados de tudo

aquilo que tem interfere no expediente do jogo (as regras os apetrechos aquilo que o estorva

quem a ele assiste etc)

Mas tambeacutem isto por sua vez natildeo eacute tudo

381

Os diferentes momentos de preenchimento da travessia global (ie os diferentes mo-

mentos da travessia de si) satildeo compreendidos como manifestaccedilotildees de qualquer coisa como

uma instacircncia um princiacutepio global de constituiccedilatildeo das situaccedilotildees de si ndash um princiacutepio global

de produccedilatildeo de variaccedilotildees do negativo da auto-consciecircncia ndash de que todas as diferentes conste-

laccedilotildees da situaccedilatildeo de si satildeo vistas como manifestaccedilotildees

Quer dizer por um lado os diferentes momentos de preenchimento da travessia global

(as diferentes situaccedilotildees de si os diferentes momentos da travessia de si etc) estatildeo marcados

por terem estabelecidas entre si relaccedilotildees de coordenaccedilatildeo e de subordinaccedilatildeo Quer dizer estatildeo

marcados por terem um determinado encadeamento entre si e por ocuparem um determinado

ldquolugarrdquo na hierarquia relativa ao superlativo

Por outro os diferentes momentos de preenchimento da travessia global (as diferentes

situaccedilotildees de si os diferentes momentos da travessia de si etc) estatildeo igualmente marcados por

estar estabelecido um nexo de subordinaccedilatildeo de todas as situaccedilotildees de si em relaccedilatildeo a um prin-

ciacutepio comum a todos eles (a um princiacutepio que os subordina a todos)

Assim a unidade entre as diversas situaccedilotildees de si (as diversas configuraccedilotildees do objec-

to ou os diversos preenchimentos concretos do lugar funcional ldquoobjectordquo na sua coordenaccedilatildeo

ou encadeamento) natildeo eacute constituiacuteda apenas pela comum referecircncia agrave ldquotestemunha globalrdquo e

pela comum referecircncia ao programa gerundivo do superlativo de si mas tambeacutem eacute constituiacuteda

pela referecircncia a esta ldquofrenterdquo global de preenchimento de si a este princiacutepio unificador de

tudo o que aparece (que tatildeo bem se deixa descrever quando Hegel fala da allgemeine Fluumlssig-

keit ou da forccedila uacutenica)

O que estamos a procurar salientar eacute que o contacto com aquilo que aparece estaacute cu-

nhado por uma silenciosa e discreta (mas nem por isso menos efectiva) referecircncia a esta ldquofren-

terdquo global de preenchimento de si a este princiacutepio unificador a esta forccedila uacutenica etc ndash isso

que se expressa quando se fala de ldquovidardquo De onde resulta que tudo o que aparece eacute percebido

como manifestaccedilatildeo da forma da ldquovidardquo (desta peculiar substacircncia do proacuteprio aparecimento

enquanto tal)

Isto eacute algo que Hegel muito agudamente potildee em evidecircncia nos passos mencionados E

se natildeo temos propriamente intenccedilatildeo de discutir se o que Hegel em vista eacute ou natildeo o que procu-

ramos pocircr em foco o que sustentamos eacute que seja como for a sua descriccedilatildeo eacute compatiacutevel com

os fenoacutemenos para que se chama a atenccedilatildeo nesta breve consideraccedilatildeo

382

Ora poderia suceder que a instacircncia unificadora ou o princiacutepio de que tudo o que

aparece eacute visto como manifestaccedilatildeo tivesse um caraacutecter tal que de cada vez fosse compreen-

dido como fonte das manifestaccedilotildees jaacute ocorridas (das situaccedilotildees de si entretanto percorridas) ndash

e soacute das manifestaccedilotildees jaacute ocorridas

No entanto o que acontece eacute precisamente o contraacuterio

Quer dizer o princiacutepio ldquotudo o que aparece eacute visto como um fluxo de manifestaccedilotildees

da vidardquo eacute compreendido como princiacutepio de mais e mais manifestaccedilotildees ndash eacute compreendido co-

mo uma espeacutecie de princiacutepio inesgotaacutevel a que se atribui a continuaccedilatildeo do fluxo de manifesta-

ccedilotildees (ou para sermos mais precisos a que se atribui a continuaccedilatildeo de um fluxo de ldquorespostasrdquo

ao requerimento do superlativo de que a ipseidade eacute portadora)

Tudo isto de tal modo que vendo bem mesmo que a representaccedilatildeo deste princiacutepio te-

nha um caraacutecter confuso ou pouco preciso (princiacutepio confuso ou pouco preciso que natildeo com-

promete a natureza intrinsecamente decidida e marcante da sua presenccedila e que natildeo compro-

mete que seja ele de todo o modo a dar forma agravequilo que aparece) a sua ldquodimensatildeordquo eacute sem-

pre proporcional agrave dimensatildeo do horizonte gerundivo da ipseidade de que este princiacutepio eacute

visto como sendo o interlocutor

Para o dizer muito sinteticamente a ldquosubstacircnciardquo uacutenica do aparecimento tem uma di-

mensatildeo correspondente ao extraordinaacuterio requerimento que lhe eacute dirigido

Isso natildeo significa que a vida (no sentido da travessia perceptiva que de facto haveraacute)

tenha de ter por exemplo as dimensotildees do superlativo quantitativo de que atraacutes se falou O

que acontece eacute que se negar satisfaccedilatildeo ao requerimento da pressatildeo gerundiva entatildeo eacute perce-

bida como o poder que para todo o sempre (nesse ldquopara todo o semprerdquo introduzido pela pres-

satildeo gerundiva) manteacutem o indeferimento em causa Toca-se aqui o fenoacutemeno a que se chamou

ldquoespinosismo vitalrdquo ou ldquoespinosismo afectivordquo

O que acabamos de dizer permite compreender ao mesmo tempo aquilo para que V

Woolf aponta quando fala de ldquosignificadosrdquo (por oposiccedilatildeo a ldquofactosrdquo) e aquilo a que chama

life itself

Se como dissemos todas as diferentes ldquocoisasrdquo que aparecem tecircm o caraacutecter de inter-

veniente na ldquopeccedilardquo de si (tecircm um determinado ldquopapelrdquo na ldquopeccedilardquo de si etc) a verdade eacute que

por outro lado a proacutepria totalidade do que aparece estaacute tambeacutem ela constituiacuteda em objecto

da ldquopeccedilardquo de si mesma (da ldquopeccedilardquo absoluta da ldquopeccedilardquo do superlativo ndash sc da demanda do su-

perlativo) constitui se assim se pode dizer o ldquotemardquo da ldquopeccedilardquo

383

Por outras palavras paradoxalmente a vida eacute objecto de si proacutepria ndash ou se quisermos

a ldquopeccedilardquo de si estaacute em relaccedilatildeo consigo mesma e nesse sentido tem tambeacutem um papel no seu

proacuteprio quadro

Por outro lado V Woolf chama agraves determinaccedilotildees que aquilo que aparece (a sucessatildeo

das situaccedilotildees de si) assume manifestaccedilotildees do comportamento da ldquolife itselfrdquo

Agrave luz da terminologia que adoptaacutemos faz todo o sentido falar aqui em significado

porque tambeacutem neste caso estaacute em causa o comportamento de algo Trata-se do comporta-

mento da ldquovidardquo

Mas natildeo se trata pura e simplesmente do comportamento da ldquovidardquo considerado em

abstracto Vendo bem natildeo estamos em condiccedilotildees de compreender a que eacute que tal coisa cor-

responderia Trata-se do comportamento da ldquovidardquo numa oacuteptica interessada perpassada de

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila ndash e mais precisamente da tensatildeo de natildeo-indiferenccedila da ldquotestemu-

nha glo-balrdquo (no duplo sentido equivalente ao gerundivo) Em suma trata-se do comporta-

mento da vida que tem que ver com a ipseidade trata-se do comportamento da vida em rela-

ccedilatildeo agrave ldquotes-temunha globalrdquo e agrave radical tensatildeo de natildeo-indiferenccedila a si mesma que lhe ine-

re125

125

Eacute tambeacutem algo assim que encontramos se se levar a cabo uma extrapolaccedilatildeo daquilo que se viu ao

considerar Hegel Quando mencionaacutemos a tese de Hegel e fizemos notar que a vida eacute ldquoordquo objecto da

auto-consciecircncia desde logo ficou claro que o ldquoobjectordquo ldquovidardquo natildeo eacute apenas mais um objecto com

que se lida de entre a multiplicidade de ldquoobjectosrdquo que aparecem Pelo contraacuterio quando Hegel diz

que a vida eacute ldquoordquo ldquoobjectordquo da auto-consciecircncia quer dizer que estaacute estabelecida ao ldquoobjectordquo ldquovidardquo

uma relaccedilatildeo com uma natureza peculiar De facto o ldquoobjectordquo ldquovidardquo prevalece sobre os restantes ob-

jectos agrupa-os no seu acircmbito etc Ora quando reforccedilamos este aspecto a noccedilatildeo de ldquosignificadordquo ndash

no caso na foacutermula ldquosignificado da vidardquo ndash toma uma direcccedilatildeo completamente nova embora esse des-

vio possa natildeo ser imediatamente claro e natildeo esteja claramente desenhado por Hegel nos passos consi-

derados

Ora agrave partida algo como um ldquosignificado da vidardquo poderia parecer uma mera variaccedilatildeo do conceito de

ldquosignificadordquo que ateacute aqui jaacute era vigente Vendo bem aplica-se em geral ao conceito de ldquosignificado

da vidardquo o que se viu atraacutes quando se analisou o conceito de ldquoexperiecircncia da vidardquo No modelo que vi-

mos ateacute este ponto o conceito de ldquosignificadordquo constitui uma estrutura abrangente de aplicaccedilatildeo geral

completamente descomprometida com aquilo a que concretamente se aplica (precisamente na medida

em que eacute susceptiacutevel de ter lugar nos mais diversos acircmbitos em que se aplica ou pode aplicar sobre os

mais diversos objectos etc) Quer dizer quando consideramos o que estaacute em causa no significado

aquilo que tendemos a aplicar eacute um modelo em que o significado eacute algo avulso (algo que se aplica in-

diferenciadamente que estaacute distribuiacutedo pelos vaacuterios objectos etc) ndash mas de tal modo que cada ldquocoisardquo

tem o seu significado que os significados das ldquocoisasrdquo satildeo exclusivos que os diversos significados

das diversas ldquocoisasrdquo estatildeo completamente encerrados em e respondem apenas agrave proacutepria ldquocoisardquo etc

384

Esperamos que com isto tenha ficado desenhado pelo menos com alguma nitidez o

fenoacutemeno que estaacute em causa quando V Woolf fala de ldquosignificadordquo por oposiccedilatildeo ao ldquofactordquo

Interessam aqui pouco questotildees de natureza puramente terminoloacutegica e o ponto decisi-

vo eacute que se mantivermos o conceito de significado que ateacute aqui se tinha adoptado a esfera do

significado ainda eacute mais complexa e inclui tambeacutem aquilo que V Woolf potildee em relevo aque-

la peculiar modalidade de determinaccedilatildeo que aquilo que aparece possui enquanto vale como

manifestaccedilatildeo do comportamento da vida (entenda-se do comportamento da vida em relaccedilatildeo agrave

ipseidade que estaacute no centro da ldquopeccedilardquo absoluta)

O importante portanto natildeo eacute discutir se a esfera do significado tem esta ou aquela de-

terminaccedilatildeo mas reter que eacute composta de uma multiplicidade de componentes e o facto de en-

tre eles se contar tambeacutem esta modalidade o valor indiciaacuterio de cada coisa que aparece em re-

laccedilatildeo ao comportamento da proacutepria vida ndash ou seja o que cada objecto mostra de como a vida

eacute para a ipseidade que estaacute primariamente em causa126

A ser assim o ldquosignificadordquo da ldquovidardquo seria apenas mais um significado de entre o extenso conjunto de

significados possiacuteveis ndash seria o significado correspondente a um ldquoobjectordquo particular (o objecto ldquovi-

dardquo) mas de tal modo que o objecto ldquovidardquo seria apenas mais um ldquoobjectordquo entre outros (um objecto

que teria um significado especiacutefico ndash o significado particular que corresponde agrave vida ndash mas que em

todo o caso se limitaria a ser entendido como apenas mais um significado no quadro dos significados

de cada vez fixado)

O que vemos eacute justamente o contraacuterio o significado da vida natildeo se resume a ser mais um significado

no quadro de significados de cada vez fixado assim como o ldquoobjectordquo ldquovidardquo natildeo se resume a ser

mais um ldquoobjectordquo entre o que aparece Eacute que quando se fala de um ldquosignificado da vidardquo aquilo que

estaacute em causa natildeo eacute algo meramente relativo ao exerciacutecio de funccedilotildees particulares ndash como vimos ateacute es-

te ponto ndash mas eacute algo relativo agrave identificaccedilatildeo da vida (das suas propriedades das suas caracteriacutesticas

da sua ldquoformardquo etc) enquanto a vida eacute ldquoordquo objecto da auto-consciecircncia (ie enquanto a vida tem um

estatuto especial entre o que aparece) e enquanto a vida prevalece sobre os restantes objectos os

agrupa no seu acircmbito etc E isto de tal modo que o modelo de significado como algo absolutamente

ldquoavulsordquo jaacute natildeo se aplicaria na medida em que a relaccedilatildeo entre os diversos ldquoobjectosrdquo seria marcada

por uma assimetria em que haveria uma relaccedilatildeo assimeacutetrica de todos os ldquoobjectosrdquo em relaccedilatildeo agrave vida

enquanto a vida eacute esse ldquoobjectordquo que agrupa os diversos ldquoobjectosrdquo no seu acircmbito que tem uma rela-

ccedilatildeo privilegiada com a auto-consciecircncia etc

126 Importa natildeo deixar escapar aqui este aspecto que uma leitura abreviada poderia fazer perder

Quan-do se procura determinar o significado da vida aquilo que inadvertidamente se faz eacute produzir

uma pa-ridade taacutecita entre aquilo que diz respeito agrave nossa vida (agrave vida de cada um agrave vida no sentido

mais pes-soal e intransmissiacutevel do termo) e aquilo que diz respeito agrave vida (no sentido substantivo e

mais lato do termo) Por um lado ao falar de ldquovidardquo fala-se de algo na primeira pessoa Isto eacute o que

estaacute sempre jaacute em causa como vimos atraacutes eacute a) a forma de acontecimento em que cada um daacute por si

em que cada um estaacute atirado em que se estaacute sempre jaacute posto etc e b) uma forma de acontecimento

385

exclusiva (par-ticular de privado de pessoal etc) que de certo modo se atravessa pelo proacuteprio peacute

que eacute meramen-te desse a quem pertence ou que nela estaacute atirado etc Em suma aquilo de que se estaacute

a falar quando se fala de vida (a nossa vida a vida de cada um etc) corresponde agrave ipseidade que estaacute

primariamente em causa (uma ipseidade com as caracteriacutesticas x ou y constituiacuteda deste ou daquele

modo etc) Ten-do isso em vista poderia dar-se o caso de quando se lhe procura determinar o

significado as referecircn-cias a algo como ldquoa vidardquo virem sempre acompanhadas de uma advertecircncia em

relaccedilatildeo a esta duplici-dade ndash de tal modo que qualquer fixaccedilatildeo de identidade de ldquoa vidardquo estaria

limitada agrave vida de cada um e soacute a ele diria respeito De certo modo eacute precisamente isso que se passa

A vida a que de cada vez nos referimos quando falamos de ldquoa vidardquo eacute a nossa (a vida de cada um

corresponde agrave ipseidade que estaacute primariamente em causa etc) Quer dizer qualquer fixaccedilatildeo da

identidade de ldquoa vidardquo (qualquer fixa-ccedilatildeo do seu significado) refere-se ndash ainda que tacitamente ndash a

uma travessia pessoal (singular uacutenica etc) agravequilo que aparecer no curso dessa travessia etc de tal

modo que expressa essa travessia diz algo sobre ela etc O que isto quer dizer antes de mais eacute que

qualquer que seja a identidade que a vi-da adquira essa identidade tem algo a ver connosco (com cada

um com esse que passa por ela que a atravessa etc) haacute por assim dizer um traccedilo de continuidade

entre a identificaccedilatildeo da vida e esse que a procura identificar ndash de tal modo que a identificaccedilatildeo da vida

que cada um produz reflecte esse que a produz Acontece que sendo assim dizer por exemplo que a

vida eacute x ou y (tem o significado x ou y) corresponde a) a uma identidade ou a um significado que a

vida adquire mas b) a uma identidade que a vida adquire que de certo modo transporta a vida

particular desse que a tem (justamente na medida em que a vida tenha sido matildee ou madrasta tenha

posto mais ou menos resistecircncia agrave ipseidade com que se confronta ao cumprimento do ldquosuperlativordquo

para que cada um tende consoante tenha levado numa direcccedilatildeo e natildeo na outra etc) Mas por outro

lado isso natildeo impede a que ldquoa vidardquo a que em uacuteltima anaacutelise nos referimos seja natildeo a vida no sentido

circunscrito mas a vida no sentido lato (a totalidade da vida por assim dizer a vida em sentido

abstracto etc)

A identificaccedilatildeo que de cada vez se procura gerar natildeo eacute a identificaccedilatildeo da vida que corresponde a cada

um ndash se com isso se quisesse dizer que a partir de outros pontos de vista se poderiam gerar outras

identificaccedilotildees igualmente vaacutelidas da vida Melhor estamos perfeitamente cientes do facto de que ou-

tros pontos de vista geram ou podem gerar outras identificaccedilotildees da vida estamos perfeitamente cientes

da possibilidade de haver identificaccedilotildees contrastantes da vida ndash para o facto de a vida que nos aparece

como ldquomelancoliardquo ou ldquosofrimentordquo poder aparecer a outro ponto de vista como ldquoalegriardquo ou ldquograccedilardquo

Poreacutem o nosso ponto de vista estaacute constituiacutedo de tal modo que eacute composto por uma pretensatildeo de ver-

dade quanto ao significado da vida que ele proacuteprio propotildee Isto eacute o nosso ponto de vista eacute composto

da pretensatildeo de que a efectiva ldquonaturezardquo da vida se revela ao nosso ponto de vista ndash como se o nosso

ponto de vista tivesse ou tivesse tido um acesso privilegiado agrave ldquonaturezardquo ou ao ldquocaraacutecterrdquo da vida

Deste modo se o nosso ponto de vista identifica a vida como x identifica simultacircnea e tacitamente os

pontos de vista que a identificam como y como pontos de vista tomados por ilusotildees de oacuteptica Quer di-

zer 1) estamos muito longe de uma sinopse da totalidade de significaccedilotildees possiacuteveis da vida (ie con-

cebemos diferentes alternativas mas natildeo temos uma perspectiva que cubra ou acompanhe cada uma

das diferentes possibilidades de significaccedilatildeo da vida de tal modo que natildeo estamos sequer em condi-

ccedilotildees de compreender a proporccedilatildeo entre as possibilidades de significaccedilatildeo que temos cobertas e as pos-

sibilidades de significaccedilatildeo que ficam de fora) 2) no acircmbito do conjunto muito restrito de possibilida-

des de significaccedilatildeo da vida que efectivamente concebemos natildeo tomamos a multiplicidade as diversas

386

A natureza particular desta modalidade de significado passa por aquilo que tatildeo incisi-

vamente se encontra formalizado por Hegel em vez de acontecer apenas que cada ldquoconteuacutedordquo

ou cada ldquoobjectordquo esteja numa relaccedilatildeo com a ldquotestemunha globalrdquo e o seu programa de natildeo-

indiferenccedila acontece tambeacutem que ao mesmo tempo cada coisa que aparece tem um caraacutecter

revelador daquilo que ndash parafraseando Hegel ndash chamaacutemos a ldquosubstacircncia universalrdquo do que

aparece ldquolife itselfrdquo

Quer dizer cada coisa que aparece tem ao mesmo tempo a) uma relaccedilatildeo com a ipsei-

dade e b) uma relaccedilatildeo de manifestaccedilatildeo com a vida

Trata-se portanto de uma relaccedilatildeo dupla com a ipseidade

Por um lado trata-se de uma relaccedilatildeo imediata com a ipseidade Por outro lado trata-

se de uma relaccedilatildeo mediata com a ipseidade por via daquilo que revela sobre a relaccedilatildeo entre a

sua ldquofonterdquo ndash aquilo que a ldquopotildeerdquo a vida ndash e a ipseidade (cujo programa de natildeo-indiferenccedila a

vida defere ou indefere) De sorte que esta modalidade de significado natildeo tem um foco mas

dois (como uma elipse)

Dizer isto pode entretanto induzir em erro se natildeo for acompanhado por uma precisatildeo

Com efeito tudo isto parece indicar que esta modalidade de significado que V Woolf

potildee particularmente em relevo tem sempre que ver com isso que tentaacutemos ilustrar pela com-

paraccedilatildeo com o segundo foco da elipse (ldquolife itselfrdquo) ndash e que todo o significado deste tipo tem

sempre esse segundo foco e consiste no valor ldquosintomaacuteticordquo daquilo que aparece (na forma

como aquilo que aparece mostra como eacute a vida) Isto eacute como ela eacute para a ipseidade em rela-

ccedilatildeo ao programa de natildeo-indiferenccedila (agrave ldquoagendardquo) de que esta eacute portadora

Ora a questatildeo que se potildee no seguimento disto eacute a de saber se todo o significado deste

tipo tem quer ver soacute com a vida e soacute pode ter como segundo foco a vida

A resposta que se tem de dar a esta pergunta eacute complexa E seguir a complexidade que

se tem de pocircr nesta resposta pode ajudar a compreender melhor o que estaacute aqui em causa

Comecemos pelo que a resposta em causa tem de ldquonegativordquo

Entre os significados deste tipo tambeacutem haacute significados cujo ldquosegundo focordquo tecircm que

ver com outros ldquoconteuacutedosrdquo aqueacutem da vida por exemplo a infacircncia o Veratildeo o mundo aca-

identificaccedilotildees que contrastam com a nossa como sendo todas igualmente vaacutelidas (pelo contraacuterio haacute

como que uma gradaccedilatildeo das possibilidades consoante estejam mais ou menos proacuteximas de consoante

de certo modo ratifiquem ou ao inveacutes contrariem a identificaccedilatildeo que corresponde a cada um de noacutes)

387

deacutemico etc ldquoInfacircnciardquo ldquoVeratildeordquo ou ldquomundo acadeacutemicordquo satildeo exemplos desgarrados para ilus-

trar a possibilidade de em acircmbitos mais restritos do que aquele que corresponde agrave vida se

produzir uma organizaccedilatildeo da multiplicidade do que aparece em tudo anaacuteloga agravequela que re-

ferimos a respeito da vida

Quer dizer nada impede que a multiplicidade do que aparece esteja agregada em nuacute-

cleos identidades unidades etc a que se atribui o papel de centros ou de ldquofontesrdquo de um da-

do tipo de objectos ou de formas de preenchimento concreto da situaccedilatildeo de si Nesse sentido

dentro do acircmbito da vida pode muito bem haver identidades de amplitudes muito diversas

(mais restritas ou menos restritas)

Acontece entretanto que a esta parte negativa que se tem de dar agrave referida pergunta eacute

insuficiente porque eacute unilateral Tudo isto que acabamos de expor eacute apenas uma parte do que

efectivamente se passa

Ora a outra parte tem que ver com o facto de nenhum destes nuacutecleos identidades ou

unidades parciais ser absoluto Trata-se justamente de nuacutecleos identidades ou unidades par-

ciais ndash e o que os caracteriza eacute se assim se pode dizer uma constante transitividade em re-

laccedilatildeo agrave vida de que fazem parte em relaccedilatildeo agrave qual satildeo contracccedilotildees

Isto eacute a multiplicidade dos ldquoobjectosrdquo ou formas de preenchimento em questatildeo eacute vista

como manifestaccedilatildeo da identidade do poder etc de algo ldquosubstanterdquo que lhe daacute origem (e de

sorte que tudo aquilo que ocorresse teria um valor indiciaacuterio ou revelador relativamente ao

comportamento disso que eacute ldquosubstanterdquo ou lhe daacute origem da vida)

Quer dizer o que caracteriza essas substacircncias parciais do que aparece como objecto

(essas substacircncias parciais da vida) eacute o facto de se lhes aplicar tambeacutem a elas o que se aplica agrave

multiplicidade a que presidem se por um lado elas satildeo vistas como fontes de multiplicidade

e se essa multiplicidade eacute vista como manifestaccedilatildeo delas por outro lado satildeo elas proacuteprias

por sua vez vistas como provindo de algo ou como manifestaccedilotildees de algo

Isto eacute as substacircncias parciais podem ser vistas como manifestaccedilatildeo de outras substacircn-

cias parciais de maior envergadura e essas por sua vez vistas como manifestaccedilatildeo de outras

substacircncias parciais de ainda maior envergadura e essas por sua vez vistas como manifesta-

ccedilatildeo de outras substacircncias parciais de ainda maior envergadura ndash mas de tal modo que em uacutel-

tima anaacutelise todas estas sustacircncias parciais (que seja qual for a sua envergadura satildeo ainda

assim sempre ldquoparciaisrdquo) aparecem em radical dependecircncia relativamente a ldquolife itselfrdquo (ou agrave

allgemeine Fluumlssigkeit de que fala Hegel)

388

Ora isso reflecte-se justamente na estrutura da modalidade do significado que aqui es-

tamos a considerar aquela que eacute especialmente focada por V Woolf

Eacute verdade que pode haver significados deste tipo relativos a outras subtacircncias diferen-

tes daquela a que V Woolf chama ldquolife itselfrdquo (e a que noacutes parafraseando Hegel chamaacutemos a

substacircncia universal de todo o aparecimento) Mas esses significados parciais natildeo satildeo fecha-

dos em si (natildeo se quedam na unidade parcial de que de cada vez se trata com que de cada vez

se lida etc) e de facto natildeo satildeo significados na acepccedilatildeo da palavra que aqui estaacute em causa

senatildeo porque aquilo relativamente ao qual tecircm um valor indiciaacuterio (as substacircncias parciais)

tem por sua vez valor indiciaacuterio ou revelador relativamente agrave vida

Em suma podemos exprimir tudo isto do seguinte modo o que estaacute em causa no fenoacute-

meno do significado que V Woolf potildee especialemente em foco eacute sempre a determinaccedilatildeo do

comportamento da proacutepria vida ndash e nesse sentido a determinaccedilatildeo da identidade (da vida que

nos tem em seu poder)127

Mas nada disso impede que a identidade global da vida se manifeste mediante uma

multiplicidade de substacircncias parciais (a infacircncia o Veratildeo o mundo acadeacutemico etc) ndash que

satildeo justamente percebidos todos eles como manifestaccedilotildees da vida (ie da substacircncia univer-

sal de todo o aparecimento)

Os diversos aspectos que consideraacutemos habilitam-nos agora a desenhar com mais ni-

tidez o ponto a que queriacuteamos chegar e em relaccedilatildeo ao qual aquilo que encontramos em V

Woolf eacute particularmente elucidativo aleacutem da experiecircncia de todas as outras modalidades de

significado haacute tambeacutem em noacutes uma contiacutenua experiecircncia do significado do que encontramos

no sentido privilegiado por V Woolf

A travessia perceptiva constitui ao mesmo tempo o ponto de partida de todo o tipo de

sequecircncia que antes analisaacutemos e o ponto de partida desta experiecircncia do significado no sen-

127

O que estaacute efectivamente em causa eacute algo como uma contiacutenua negociaccedilatildeo um ldquobraccedilo de ferrordquo

pelo ldquodomiacuteniordquo da situaccedilatildeo Assim a tentativa de determinar o significado da vida natildeo eacute senatildeo uma

tentativa de domesticar a vida ndash ie de saber o que a vida propriamente ldquoeacuterdquo e de em consonacircncia com

essa identificaccedilatildeo traccedilar um rumo que ldquoleve a bom portordquo (que leve agrave consecuccedilatildeo do desejo de si nos

ter-mos de Hegel) com um miacutenimo de interferecircncia da vida ou tornando a vida numa ldquoforccedila uacutenicardquo

colaborante Poreacutem essa tentativa natildeo inibe a vida de a cada momento se impor como senhora de

noacutes Isto eacute essa tentativa de domesticaccedilatildeo da vida natildeo inibe a vida a) de mostrar o seu caraacutecter

fugidio de mostrar que tem muitos aspectos inexplorados etc e b) de se mostrar como uma entidade

que natildeo se deixa confinar e que a qualquer momento pode escapar das ldquogrilhetasrdquo que um determi-

nado significado lhe procura impor

389

tido especialmente fixado por V Woolf Ora para o exprimir na terminologia de V Woolf

aleacutem da experiecircncia dos factos haacute tambeacutem experiecircncia do significado

Em suma haacute dois tipos de experiecircncia continuamente a serem urdidos E o que carac-

teriza a forma da experiecircncia eacute que ela liga de raiz uma experiecircncia da vida a experiecircncia da

ldquolife itselfrdquo que tem por objecto a proacutepria vida (enquanto a vida eacute objecto de si mesma)

Vejamos um pouco mais detidamente este aspecto

O primeiro ponto a considerar eacute o seguinte

Na perspectiva proposta por V Woolf todas as coisas que se passam todos os objec-

tos ndash numa palavra todos os dados da travessia perceptiva (e toda a transformaccedilatildeo empiacuterica

da travessia perceptiva) satildeo automaticamente percebidos e resgistados como dados compor-

tamentais da vida enquanto tal128

Deixando de fora preocupaccedilotildees terminoloacutegicas podemos dizer que se trata de qual-

quer coisa como uma permanente avaliaccedilatildeo comportamental (uma avaliaccedilatildeo de caraacutecter uma

avaliaccedilatildeo de valor etc) da proacutepria vida

A avaliaccedilatildeo continuamente levada a cabo eacute extraordinariamente sensiacutevel V Woolf

fala de uma ldquoplaca sensiacutevelrdquo que eacute impressionaacutevel pelo significado da miriacuteade de impressotildees

que chega e nos ldquoinvaderdquo a cada momento da travessia perceptiva (combinando-se entre si e

combinando-se com as impressotildees antecedentes e aquelas que se seguem) Esta ldquoinvasatildeordquo de

impressotildees estaacute de algum modo registada e produz constelaccedilotildees vividas como traccedilos de ca-

raacutecter da proacutepria vida ndash um ldquoretratordquo de como ela eacute

A estrutura da experiecircncia do significado eacute aliaacutes um pouco mais complexa do que a

descriccedilatildeo ateacute aqui apresentada deixa entrever

128

Passa-se portanto em relaccedilatildeo agrave vida algo semelhante ao que se passa na percepccedilatildeo de outrem Si-

lenciosamente mas num cuidado registo todos os gestos todas as ocorrecircncias todos os silecircncios to-

das as palavras todas as atitudes todos os momentos de forccedila e de fragilidade todas as hesitaccedilotildees e

todas as intervenccedilotildees eneacutergicas todas as acccedilotildees e todas as omissotildees etc satildeo integrados numa pecu-

liar siacutentese que eacute ao mesmo tempo avaliadora Por outras palavras tudo se passa como se ndash de forma

discreta mas eficaz ndash os outros estivessem sempre a ser examinados por um examinador atento que a

pouco e pouco vai reunindo todos os elementos relevantes e produzindo qualquer coisa como um apu-

ramento No caso das pessoas (no exame de outrem) esse exame natildeo eacute soacute contiacutenuo (acompanhando

ininterruptamente a proacutepria travessia perceptiva do contacto com eles) na verdade nunca acaba E

tambeacutem eacute assim no caso da vida (e no caso das outras ldquosubstacircnciasrdquo de que se fala)

390

Com efeito verifica-se aqui aquilo que corresponde ao que dissemos quando focaacutemos

que o significado no sentido que o termo toma em V Woolf tambeacutem pode ter lugar em rela-

ccedilatildeo a poderes substanciais parciais mas que esses significados relativos a poderes substanciais

parciais satildeo por assim dizer transitivos em relaccedilatildeo agrave vida de que os poderes substanciais

parciais aparecem como manifestaccedilotildees (tambeacutem se pode dizer como traccedilos de caraacutecter da

proacutepria vida)

Assim neste sentido a travessia perceptiva natildeo constitui apenas ldquosignificados glo-

baisrdquo

De facto produz algo mais complexo que inclui tambeacutem ldquolinhasrdquo de significado par-

ciais que a) tambeacutem podem ser relativas natildeo apenas a poderes substanciais parciais de acircmbito

mais restrito mas ter um valor indiciaacuterio relativamente a poderes substanciais parciais mais

amplos e assim sucessivamente mas tudo de tal modo que b) todas estas linhas de significa-

dos parciais tecircm sempre como verdadeiro terminus ad quem da remissatildeo (do valor indiciaacuterio

revelador etc) a proacutepria vida (a substacircncia primordial de todo o aparecimento a substacircncia

do espinosismo vital etc)129

129

Vendo bem o que estamos a desenhar eacute o facto de o complexo de significados funcionais natildeo ser o

uacutenico factor decisivo para determinar o que uma ldquocoisardquo eacute Na verdade haacute um outro factor que tinge

de raiz o que aparece O significado da vida apesar de ser excessivo em relaccedilatildeo agraves determinaccedilotildees

ldquocoisaisrdquo e agraves determinaccedilotildees funcionais estaacute de tal modo entranhado no modo como nos aparece cada

uma das ldquocoisasrdquo que aparecem que torna tanto as determinaccedilotildees ldquocoisaisrdquo como as determinaccedilotildees

funcionais como subsidiaacuterias ou dependentes do significado da vida Em suma o significado da vida

de cada vez vigente estaacute ldquoentranhadordquo no que aparece e ldquocolorardquo o que aparece de tal modo que o que

aparece ocorre ldquotingidordquo com essa determinaccedilatildeo Esta perspectiva chama precisamente a nossa aten-

ccedilatildeo para o facto de o campo da presenccedila para que estamos abertos e o campo da experiecircncia que tem

lugar em noacutes natildeo se esgotar num campo de presenccedila nem de puros significados natildeo-funcionais nem

de significados funcionais (relativos ao expediente da vida etc) ndash da mesma forma chama a atenccedilatildeo

para a circunstacircncia de que a experiecircncia que ocorre em noacutes natildeo se esgotar nem numa experiecircncia de

puros significados natildeo-funcionais nem numa experiecircncia de significados funcionais pois tambeacutem

passa decisivamente por uma experiecircncia de significados no sentido que agora vimos uma experiecircncia

da vida correspondente ao fenoacutemeno do ldquoespinosismo afectivordquo

Ora eacute certo que a experiecircncia do significado da vida tem um caraacutecter em certo sentido mais subtil

mais difiacutecil de seguir satildeo mais evidentes os significados funcionais singulares de cada ldquocoisardquo (o mo-

do como cada ldquocoisardquo aparece etc) do que a determinaccedilatildeo do significado de cada ldquocoisardquo no quadro

do significado da vida (como momento revelador da identidade da vida etc) De facto agrave partida o

significado de cada ldquocoisardquo e o significado da vida parecem radicalmente independentes jaacute que vence

a pressuposiccedilatildeo do que o que a ldquocoisardquo ldquoeacuterdquo (o que significa a funccedilatildeo que cumpre etc) se abstrai da

identidade da vida ndash cada ldquocoisardquo ldquoeacute o que eacuterdquo se assim se pode dizer seja a identidade da vida qual

391

for Poreacutem o que estamos a ver eacute exactamente o contraacuterio Consoante a identidade ou o significado da

vida a ldquomesmardquo ldquocoisardquo aparece de um modo completamente distinto (mostra propriedades distintas

umda de posiccedilatildeo relativa na economia vital do que aparece etc) Pode dizer-se que um dado ldquoobjec-

tordquo eacute factualmente o ldquomesmordquo seja a identidade da vida qual for ndash mas na verdade as transformaccedilotildees

por que esse ldquomesmordquo ldquoobjectordquo passa consoante a identidade da vida seja x ou y fazem com que natildeo

haja ldquomesmidaderdquo entre o ldquoobjectordquo visto sob a identidade da vida x ou sob a identidade da vida y

Isto leva-nos a um segundo ponto Eacute que sendo assim natildeo estamos numa situaccedilatildeo de neutralidade

quanto ao significado concreto que a vida assuma Quer dizer passa-se com o ldquoobjectordquo ldquovidardquo o

mesmo que vale para qualquer outro ldquoobjectordquo (para qualquer outra ldquocoisardquo) interessa determinar que

ldquoobjectordquo eacute a vida E interessa determinar que ldquoobjectordquo eacute a vida (com que aspecto aparece a vida co-

mo deve ser entendida como deve ser tomada como deve ser concebida como deve ser interpretada

etc) na medida em que o que a vida ldquoeacuterdquo (o que eacute proacuteprio da vida o seu significado etc) eacute algo que

nos afecta eacute algo que eacute connosco etc e na medida em que o significado da vida tinge a totalidade das

ldquocoisasrdquo com que lidamos Estamos constituiacutedos numa tensatildeo em relaccedilatildeo ao significado da vida por-

que o significado que a vida assuma tem consequecircncias com o modo de lidar com ela ndash e tanto quer

dizer o significado que a vida assuma tem consequecircncias com o modo de lidar com tudo o que apare-

ce enquanto tudo o que aparece eacute manifestaccedilatildeo da vida

O que vimos em secccedilotildees anteriores e em especial ao considerar Hegel foi que a definiccedilatildeo do ldquoobjec-

tordquo estaacute em relaccedilatildeo a um desejo de si ao que estaacute fundamentalmente em causa etc O que estaacute em jo-

go na determinaccedilatildeo do significado do ldquoobjectordquo eacute o modo como se atravessa neste desejo de si Quer

dizer o que se pretende determinar quando se pretende determinar o significado da vida eacute tanto o mo-

do como a vida nos possibilita quanto o modo como a vida nos resiste (e tanto quer dizer o modo co-

mo os ldquoobjectosrdquo com que deparamos nos possibilitam ou nos resistem no acircmbito de um determinado

significado da vida) Quer dizer a vida adquire um determinado significado consoante o complexo de

intervenccedilotildees ou de interferecircncias com que participa no curso do desejo de si Isto quer dizer vaacuterias

coisas Quer dizer antes de mais que o significado da vida pode adquirir um leque muitiacutessimo variado

de opccedilotildees de significaccedilatildeo (pode adquirir muacuteltiplos significados pode ser matildee ou madrasta pode ser

uma viagem ou um tormento pode ser um sonho etc) ndash o significado da vida mudaraacute radicalmente

(pode constituir-se em contraacuterios em adversaacuterio ou em aliado por exemplo) se for em geral colabo-

rante ou pelo contraacuterio hostil O que estamos a procurar mostrar eacute que o significado da vida eacute muito

variaacutevel na medida em que haacute muacuteltiplos significados possiacuteveis (ie a vida eacute infinitamente desdobraacutevel

quanto ao seu significado pode assumir muitos e muito diversos significados etc) Mas quer dizer

tambeacutem que a flutuaccedilatildeo diz respeito natildeo apenas agrave vida mas ao que aparece e agrave arrumaccedilatildeo que o que

aparece viraacute a tomar consoante o significado da vida adoptado

Considere-se a tiacutetulo de exemplo a unidade parcial ldquodiardquo Considere-se por um lado a quantidade de

unidades parciais em que a totalidade ldquodiardquo pode ser decomposta ndash unidades parciais derivadas que de

todo o modo reportam sempre agrave unidade parcial ldquodiardquo E considere-se por outro lado a quantidade de

unidades parciais a que a totalidade ldquodiardquo pode ela mesma reportar Mais ainda considere-se como a

unidade parcial ldquodiardquo ndash por exemplo este dia presente ndash pode resultar em significados totalmente dife-

rentes (e ateacute eventualmente contraditoacuterios) se for vista no acircmbito da unidade parcial ldquofamiacuteliardquo no acircm-

bito da unidade parcial ldquomundo acadeacutemicordquo no acircmbito da unidade parcial ldquohobbyrdquo etc O que eacute deci-

sivo eacute que tudo isto pode adquirir configuraccedilotildees muito diversas consoante o significado da vida crista-

lizado Assim a paisagem das diferentes unidades parciais muda consoante o significado dominante

392

Ora tudo isto potildee a questatildeo de saber o que eacute que em uacuteltima anaacutelise quer dizer ldquoexpe-

riecircncia de significadosrdquo no sentido que o termo tem para V Woolf Potildee a questatildeo de saber em

que sentido tambeacutem aqui se fala de ldquoexperiecircnciardquo

No princiacutepio da presente investigaccedilatildeo procuraacutemos fixar o que constitui a experiecircncia

enquanto tal Mas o quadro em que o fizemos eacute claramente o da experiecircncia dos factos no

sentido que V Woolf daacute a este termo ndash e a questatildeo estaacute em saber ateacute que ponto o conceito eacute

transponiacutevel para a esfera dos significados (ateacute que ponto haacute tambeacutem aqui algo de equivalente

agravequilo que entatildeo vimos ser proacuteprio da experiecircncia)

Se como vimos um dos pontos decisivos na constituiccedilatildeo da ἐμπειρία eacute a transgressatildeo

do dado (o excesso em relaccedilatildeo a ele o arredondamento das doaccedilotildees e a sua conversatildeo em es-

tados-de-coisas permanentes em instacircncias de totalidade com uma amplitude incomensura-

velmente maior do que a da base sobre a qual se funda a respectiva projecccedilatildeo etc) a questatildeo

eacute entatildeo a de saber o que eacute que corresponde a isto na esfera dos significados no sentido espe-

cialmente focado por V Woolf ndash se tambeacutem haacute transgressatildeo excesso arredondamento etc

(e nesse caso de que forma) ndash ou se a experiecircncia dos significados no sentido especialmente

focado por V Woolf tem uma estrutura ou uma forma diferente

Vendo bem a esfera do significado no sentido de V Woolf estaacute de raiz marcada por

qualquer coisa como transgressatildeo um excesso ou um arredondamento desta ordem

que as unifica E daqui decorre que mesmo que o complexo de ldquounidades parciaisrdquo fosse o ldquomesmordquo

se fosse visto no acircmbito de um ou de outro significado global mudaria radicalmente a ldquopaisagem das

unidades globaisrdquo ndash na medida em que o significado da vida modela a proacutepria multiplicidade do que

aparece (ie os momentos circunscritos da sua proacutepria travessia) O que isto quer dizer eacute que as ldquomes-

masrdquo funccedilotildees e as ldquomesmasrdquo totalidades correspondem como que a espeacutecies da instacircncia fundamental

de determinaccedilatildeo que eacute o significado global da vida Assim a unidade parcial ldquodiardquo pode resultar em

significados totalmente diferentes se for vista no acircmbito da unidade parcial ldquofamiacuteliardquo no acircmbito da

unidade parcial ldquomundo acadeacutemicordquo no acircmbito da unidade parcial ldquohobbyrdquo etc mas o que eacute decisivo

eacute que a unidade parcial ldquodiardquo pode resultar em significados totalmente diferentes (e ateacute eventualmente

contraditoacuterios) se for vista no acircmbito da unidade parcial ldquofamiacuteliardquo no acircmbito da unidade parcial

ldquomundo acadeacutemicordquo no acircmbito da unidade parcial ldquohobbyrdquo etc consoante o significado determinado

e vigente da vida em cujo acircmbito as unidades parciais ldquofamiacuteliardquo ldquomundo acadeacutemicordquo ou ldquohobbyrdquo satildeo

isoladas e adquirem o seu proacuteprio significado Mais as ldquomesmasrdquo funccedilotildees e as ldquomesmasrdquo unidades

parciais ganham ou perdem protagonismo consoante o significado global de que cada vez fazem parte

e consoante o complexo de relaccedilotildees que estabelecem com todas as outras funccedilotildees e totalidades no acircm-

bito desse significado

393

Com efeito tudo nesta esfera tem de raiz que ver com as doaccedilotildees (com aquilo que

ocorre) natildeo ficarem fechadas no seu proacuteprio acircmbito (natildeo ficarem a ser pura e simplesmente

aquilo que satildeo com o teor que eacute o seu etc) antes serem convertidas em fixaccedilotildees de algo

para-laacute-de-si em fixaccedilotildees de totalidade

Quer dizer a) haacute algo como uma travessia (e o significado refere-se tanto ao curso da

travessia quanto ao momento da travessia em que se estaacute) b) haacute algo como uma travessia de

arredondamento (por via da qual a travessia dos dados estaacute indissociavelmente ligada a uma

projecccedilatildeo do dado para laacute da proacutepria esfera da doaccedilatildeo)

Mais natildeo apenas as doacccedilotildees satildeo convertidas em fixaccedilotildees de algo para-laacute-de-si (em

fixaccedilotildees de totalidade etc) como na verdade satildeo convertidas em fixaccedilotildees com uma espeacutecie

de totalidade global omni-englobante ndash que eacute aquilo que estaacute sempre em jogo na esfera do

significado tal como eacute concebida por V Woolf

Quer dizer desde o princiacutepio que o campo dos significados nesta acepccedilatildeo eacute um cam-

po de fenoacutemenos decorrente de uma extraordinaacuteria projecccedilatildeo da projecccedilatildeo em virtude da qual

se empresta agrave determinaccedilatildeo registada um estatuto completamente estranho agrave sua amplitude

proacutepria ndash o estatuto de ser algo que ldquodizrdquo ou que define a proacutepria vida

Ou seja tal como aquilo a que V Woolf chama experiecircncia dos factos tambeacutem aquilo

a que chama ldquoexperiecircncia dos significadosrdquo estaacute votado agrave constituiccedilatildeo de totalidades e a resul-

tados da travessia perceptiva E acontece adicionalmente que a amplitude da abertura do acircn-

gulo proacuteprio da experiecircncia do significado eacute ainda maior do que aquilo que tem lugar na expe-

riecircncia a que V Woolf chama experiecircncia dos factos (e a que noacutes chamamos ldquoexperiecircncia do

significadordquo)

Assim a proacutepria existecircncia de significado na acepccedilatildeo que aqui estaacute em causa jaacute im-

plica que o acircngulo de abertura se expandiu muito para laacute do acircngulo da αἴσθησις e da μνήμη

(de tal modo que assumiu na verdade o caraacutecter de nada menos do que um acircngulo total) Isto

eacute o troccedilo de doaccedilatildeo jaacute percorrido assume de cada vez um papel tal que eacute ele (eacute a travessia

dele e eacute aquilo que se deu manifestou no curso dessa travessia etc) que fica a definir o teor

da vida (como ela ldquoeacuterdquo a determinaccedilatildeo que eacute a sua etc)

Mas isto natildeo eacute tudo e ainda natildeo permite perceber em toda a sua amplitude o nexo entre

a estrutura da ἐμπειρία (tambeacutem poderiacuteamos dizer a experiecircncia dos factos) e a experiecircncia

do significado (no sentido que V Woolf daacute a estes termos)

394

Com efeito a este primeiro elemento de similitude ndash a sintonizaccedilatildeo por algo muito

para laacute da esfera desgarrada das αἰσθήσεις e das μνῆμαι ndash vem juntar-se um segundo a que

podemos chamar a componente da antecipaccedilatildeo

Com efeito o que tambeacutem estaacute em causa no fenoacutemeno do significado eacute que o troccedilo de

doaccedilatildeo de cada vez jaacute percorrido assume de cada vez um papel tal que eacute ele (eacute a travessia de-

le aquilo que se deu ou manifestou no curso dessa travessia etc) que tendo em conta o arre-

dondamento em que a experiecircncia sempre de novo recai fica a definir a vida (o seu teor

como ela eacute a determinaccedilatildeo que eacute a sua etc)

Quer dizer tambeacutem na experiecircncia do significado na acepccedilatildeo de V Woolf a travessia

dos dados estaacute indissociavelmente ligada a uma projecccedilatildeo do dado para laacute da proacutepria esfera da

doaccedilatildeo ndash e isto de tal modo que neste caso a projecccedilatildeo pode passar por unidades parciais

mas vai sempre ter como acabamos de observar a um terminus ad quem global (a vida) Isto

eacute o significado fixado natildeo se limita a cobrir as parcelas jaacute tidas mas de facto estende-se so-

bre a totalidade da vida

Isto quer dizer por um lado que estamos originariamente vocacionados para a conti-

nuaccedilatildeo da travessia perceptiva ndash que eacute o lugar da manifestaccedilatildeo Por outras palavras a obser-

vaccedilatildeo da vida e do nosso comportamento tem as suas ldquoantenasrdquo sempre jaacute dirigidas a uma

captaccedilatildeo de ldquomaisrdquo

E o que isto nos indica eacute que apesar de a base da projecccedilatildeo serem totalidades parciais

a projecccedilatildeo vai sempre ter como acabamos de observar a um terminus ad quem global (a to-

talidade da vida) Por outras palavras a nossa relaccedilatildeo com a vida assenta sempre jaacute na fixaccedilatildeo

de um resultado global

Vejamos um pouco melhor o que queremos dizer com isto

Como encontramos descrito em V Woolf o ldquobombardeamentordquo daquilo a que ela cha-

ma a ldquoplaca sensiacutevelrdquo (a ldquochapa fotograacuteficardquo da nossa relaccedilatildeo com a vida) daacute de cada vez um

resultado global (como se se tratasse de um imenso sistema de forccedilas feito das mil coisas

com cuja presenccedila somos ldquobombardeadosrdquo na travessia dos instantes)

Quer dizer de cada vez o retrato que se estaacute a ter da proacutepria vida corresponde a uma

determinada avaliaccedilatildeo do ldquocaraacutecterrdquo da vida (sc da sua atitude ou do seu comportamento para

com a ipseidade) E aqui o processo eacute de cada vez um processo em aberto

395

O que caracteriza este processo eacute precisamente o facto de estar vocacionado para a

continuaccedilatildeo da travessia perceptiva (que eacute o lugar da manifestaccedilatildeo dos traccedilos de caraacutecter da

vida e estaacute sempre exposto agrave possibilidade de surpresa) Por outras palavras a observaccedilatildeo da

vida e do seu comportamento tem as suas ldquoantenasrdquo sempre jaacute dirigidas a uma captaccedilatildeo de

mais

Mas sendo assim isto natildeo impede um outro traccedilo fundamental que vai num sentido

oposto e que eacute justamente caracteriacutestico da ἐμπειρία

Se tiveacutessemos apenas uma perspectiva mneacutesica a expectativa em relaccedilatildeo agrave continua-

ccedilatildeo da travessia perceptiva (a supor que uma perspectiva mneacutesica teria alguma antecipaccedilatildeo da

continuaccedilatildeo da doaccedilatildeo) nada prescreveria em relaccedilatildeo ao seu teor ndash seria aberta quanto ao

teor E o que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία (e tambeacutem da experiecircncia dos significados na acep-

ccedilatildeo de V Woolf) eacute natildeo ser assim

Mais precisamente o que eacute caracteriacutestico da ἐμπειρία (e tambeacutem da experiecircncia dos

significados na acepccedilatildeo de V Woolf) eacute a τοῦ ομοίου μετάβασις ndash a projecccedilatildeo de homogenei-

dade feita a partir da travessia perceptiva jaacute havida e daquilo que nela se apurar

O negoacutecio da experiecircncia eacute sempre fixaccedilatildeo domesticaccedilatildeo eliminaccedilatildeo da incoacutegnita ndash

tatildeo amplamente e tatildeo totalmente quanto possiacutevel Podemos resumir isto dizendo que a expe-

riecircncia do significado tem a forma de um ἀνάλογον da experiecircncia do caraacutecter ndash como se se

tratasse de uma fixaccedilatildeo do caraacutecter da vida

Assim sendo o teor do significado que de cada vez resulta da travessia perceptiva eacute

convertido numa projecccedilatildeo que trata de antecipar (ie domesticar) o resto da travessia E isto

vale para a experiecircncia do significado natildeo menos do que para a experiecircncia dos factos ndash com

a diferenccedila de que o que estaacute em causa na experiecircncia do significado eacute qualquer coisa como

uma determinaccedilatildeo de balanccedilo total de definiccedilatildeo ou caracterizaccedilatildeo global da vida

Dito de outro modo a resultante que de cada vez estaacute determinada pela travessia do

significado da vida natildeo diz apenas a vida como ela foi Estaacute silenciosamente constituiacuteda como

reconhecimento dela no seu teor ndash e tanto quer dizer que avanccedila desde jaacute o que haacute a esperar

do seu comportamento no resto do tempo (no tempo a vir no que viraacute a ser etc) em suma

avanccedila desde jaacute como a vida seraacute

Acontece que como vimos em secccedilotildees anteriores e agora natildeo interessa considerar se-

natildeo para lanccedilar o que se segue isto pode gerar conflito em virtude de uma peculiar duplicida-

396

de que marca tanto a experiecircncia dos factos quanto a experiecircncia dos significados porque cor-

responde a um traccedilo distintivo da proacutepria experiecircncia

Por um lado a experiecircncia estaacute sempre dependente da continuaccedilatildeo do dado (ie estaacute

sujeita a revisatildeo ou infirmaccedilatildeo estaacute aberta ao que vier etc) E isso significa justamente uma

inanulaacutevel (maior ou menor) quantidade de revisotildees ndash uma multiplicidade a perder de vista de

acontecimentos de περιπέτεια e ἀναγνώρισις no sentido que Aristoacuteteles daacute aos termos na

Poeacutetica

Mas por outro lado esta componente de limitaccedilatildeo em virtude da qual sempre lhe es-

capa a travessia que ainda natildeo fez de modo algum impede que o essencial da experiecircncia seja

sempre uma tentativa de produzir jaacute fixaccedilatildeo para laacute do dado (e ateacute mesmo como vimos uma

antecipaccedilatildeo de todo o dado)130

Ora como dissemos o essencial da experiecircncia eacute uma tentativa natildeo apenas da domes-

ticaccedilatildeo do natildeo-dado mas a par disso da domesticaccedilatildeo total do natildeo-dado E isto de tal modo

que por mais que lhe escape a travessia qua ainda natildeo fez a experiecircncia tende a embarcar na

fixaccedilatildeo ou no reconhecimento que ela mesma potildee e a natildeo alimentar qualquer expectativa de

que venha a verificar-se uma significativa reviravolta

130

Se por um lado o proacuteprio significado global de cada vez fixado natildeo tem caraacutecter absoluto ou defi-

nitivo por outro o significado de cada vez fixado confronta os dados a cada momento recolhidos

Quer dizer o significado da vida antecipa os dados tambeacutem num outro sentido os dados que viratildeo na

continuaccedilatildeo da travessia nunca seratildeo neutros mas estaratildeo originalmente confrontados com o signifi-

cado projectado ou antecipado (com o facto de confirmarem ou infirmarem o significado projectado

ou antecipado) Em suma se o acircngulo do significado na acepccedilatildeo aqui em causa nunca eacute menor do que

aquela que corresponde agrave vida entatildeo a afericcedilatildeo dos dados diz da vida (de como eacute) tambeacutem em con-

fronto com os dados anteriores (diz como eacute em confronto com o como foi) E isto de tal modo que se

as unidades parciais nunca satildeo relativos a isto e agravequilo num quadro de fechamento nessas mesmas uni-

dades entatildeo estatildeo sempre em ligaccedilatildeo agrave vida no seu todo enquanto o como a vida eacute estaacute em confronto

com o como a vida foi Isto eacute tudo aquilo que aparece tem por determinaccedilatildeo adicional corresponder a

um momento revelador do que a vida eacute em confronto com o que a vida foi na forma de reconhecimen-

to do que a vida foi e ainda eacute ou na forma de revisatildeo do que a vida eacute em contraste com o que a vida

foi E faccedilamos notar adicionalmente que isto mostra que o movimento de determinaccedilatildeo do significa-

do da vida natildeo eacute apenas ldquodescendenterdquo (da vida para a multiplicidade dos seus momentos) mas eacute tam-

beacutem ldquoascendenterdquo (da multiplicidade dos seus momentos para a vida) Quer dizer se na acepccedilatildeo aqui

em causa o que constitui o significado eacute que cada um dos seus momentos determina a vida (mostra

como ela eacute revela-a etc) isso tambeacutem quer dizer que um dado momento futuro poderaacute a partir de si

exercer uma tal pressatildeo sobre o significado vigente da vida no momento dessa ocorrecircncia que o signi-

ficado da vida natildeo resiste e a sua determinaccedilatildeo tem como factor essencial o teor desse momento

397

Em suma por mais provisoacuteria que seja ou que se saiba (por mais que o processo da

experiecircncia seja de cada vez um processo em aberto) a experiecircncia tem sempre a forma de

uma fixaccedilatildeo provisoacuteria do definitivo ndash fixaccedilatildeo essa que ao embarcar naquilo que estabelece

diminui o peso do que tem de provisoacuterio e aumenta o peso do que tem de definitivo

No que diz respeito agrave experiecircncia do significado na concepccedilatildeo de V Woolf isto tra-

duz-se no facto de a visatildeo do ldquocaraacutecterrdquo da vida que de cada vez estaacute apurado pela ldquoplaca sen-

siacutevelrdquo tender a valer como algo adquirido tambeacutem para o futuro ndash de tal modo que se se vier a

registar algo de natildeo conforme com esse resultado fixado (ie quando haacute projecccedilatildeo antecipa-

toacuteria que se ver infirmada por doaccedilatildeo) se gera espanto Ou mais precisamente aquela forma

de θαυμάζειν inverso ndash de espanto com as coisas natildeo serem como valia por aquilo que tinham

de ser ndash que constitui uma das modalidades do espanto a que Aristoacuteteles faz referecircncia131

Isto mostra-nos que por um lado estamos originariamente vocacionados para a conti-

nuaccedilatildeo da travessia perceptiva (que eacute o lugar da manifestaccedilatildeo) Por outro lado no entanto o

lugar da manifestaccedilatildeo eacute tambeacutem um lugar sempre exposto agrave possibilidade de espanto

Mas aqui importa tambeacutem levar em conta um outro aspecto Estas unidades a que diz

respeito a experiecircncia dos significados podem corresponder como vimos a ldquopoderes substan-

ciaisrdquo meramente parciais de amplitude variaacutevel E isso pode levar a pensar ou a) que este ti-

po de significado natildeo tem necessariamente que ver com a uni-dade ldquototalrdquo ou b) que de todo

o modo jaacute haacute unidades parciais no processo que leva agrave construccedilatildeo da unidade total (a proacutepria

vida)

Acontece poreacutem como tambeacutem vimos que este facto acaba por fazer perder de vista o

fundamental

Na verdade a peculiar modalidade de significado para que V Woolf chama a atenccedilatildeo

caracteriza-se justamente pela propriedade de nunca se quedar na ldquounidade parcialrdquo que de ca-

da vez parece constituir o seu foco

Se os significados podem ser relativos a unidades de amplitude variaacutevel (a infacircncia o

Veratildeo o mundo acadeacutemico etc) nunca satildeo relativos a essas unidades num quadro de fecha-

mento nelas o que constitui o significado como significado no sentido de V Woolf eacute a liga-

ccedilatildeo que sempre jaacute tem agrave ldquolife itselfrdquo (agrave vida no seu todo) e o facto de corresponder agrave compre-

131

Cf Carvalho Experience cause and wonder In Martins AM (ed) Cause knowledge and

responsibility LIT Verlag 2015

398

ensatildeo das unidades em causa como ldquotraccedilos de caraacutecterrdquo reveladores da vida ndash ou como tam-

beacutem podemos dizer como atributos ou modos da proacutepria vida

Este eacute o ponto decisivo as unidades parciais que entram na experiecircncia dos significa-

dos a que V Woolf presta especial atenccedilatildeo referem-se agrave totalidade e o que constitui o signifi-

cado na acepccedilatildeo aqui em causa eacute que a vida tambeacutem daacute isso (a infacircncia o Veratildeo o mundo

acadeacutemico etc) ndash de tal modo que isso determina a vida (mostra como ela eacute etc) Eacute algo des-

ta natureza que queremos pocircr em evidecircncia quando falamos da vida e de unidades de amplitu-

de mais ou menos restrita) como seus traccedilos de caraacutecter

E isto quer dizer que como apontaacutemos o acircngulo da experiecircncia do significado na

acepccedilatildeo de V Woolf nunca eacute menor do que aquele que corresponde agrave unidade total a aferi-

ccedilatildeo de qualquer significado diz da vida (de como ela eacute de como se comporta para com a ip-

seidade na tensatildeo inerente da ipseidade para o superlativo) o que se passa no trabalho diz da

vida (que tambeacutem inclui isso se manifesta nisso ndash quer dizer tem noccedilatildeo de uma indicaccedilatildeo de

como eacute) a infacircncia (haver a infacircncia) diz da vida o Veratildeo (haver o Veratildeo) diz da vida ndash e isto

eacute igualmente assim para todas as unidades parciais que se possam vir a constituir no acircmbito

da unidade total

O excesso sobre cada domiacutenio restrito estaacute sempre jaacute instalado Ou como tambeacutem po-

demos dizer seguindo Hegel na Fenomenologia qualquer relaccedilatildeo da auto-consciecircncia com

qualquer ldquoobjectordquo ndash qualquer ldquocoisardquo ndash eacute sempre jaacute uma relaccedilatildeo com a substacircncia universal

do que aparece

Precisamente por ser tal a vida natildeo se diz totalmente na infacircncia no Veratildeo no mundo

acadeacutemico natildeo se diz em cada uma dessas modalidades ou componentes de si tambeacutem natildeo

se diz soacute na conjugaccedilatildeo delas ndash quer dizer natildeo se esgota nelas na relaccedilatildeo singular entre elas

ou na relaccedilatildeo colectiva de todas com todas Tal como mutatis mutandis o olhar o sorriso os

gestos a maneira de falar a testa o modo de andar os tiques etc dizem de uma pessoa sem

a esgotarem (sem que cada uma destes aspectos esgote o que estaacute em causa no permanente

escrutiacutenio a que sujeita-mos os outros) e de tal modo que a relaccedilatildeo com cada um estaacute sempre

jaacute a ultrapassaacute-los em direcccedilatildeo agrave instacircncia total que todos revelam

Tudo isto permite perceber melhor o complexo de fenoacutemenos para que apontaacutevamos

ao dizer que para usarmos a terminologia de V Woolf a experiecircncia que continuamente tem

lugar em noacutes eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia dos factos e uma experiecircncia do significa-

do (quer dizer uma experiecircncia da proacutepria vida)

399

A experiecircncia da vida (a experiecircncia do significado na acepccedilatildeo proposta por V

Woolf) tem em certo sentido um caraacutecter mais subtil mais difiacutecil de seguir temos uma rela-

ccedilatildeo muito mais imediata com a fixaccedilatildeo de que estamos a trabalhar numa sala de que o traba-

lho tem que ver com esta tese que o dia estaacute quente ou frio etc e temos uma relaccedilatildeo menos

imediata com o significado que tudo isto tem na acepccedilatildeo proposta por V Woolf

Isto eacute pode natildeo ser imediatamente claro como eacute que este trabalho esta tarde etc se

inscreve como traccedilo de caraacutecter da proacutepria vida (como ldquogestordquo dela como momento revelador

da sua identidade do seu comportamento para connosco e para com o programa de natildeo-indi-

ferenccedila de que cada um de noacutes eacute portador etc)

Acontece poreacutem que nada disto impede que haja um contiacutenuo carregar de tudo o que

ocorre para o registo da experiecircncia do significado referida por V Woolf ndash para aquilo a que

ela chama a ldquoplaca sensiacutevelrdquo (quer dizer a chapa fotograacutefica de sensibilidade sismograacutefica

da experiecircncia dos significados ndash dos ldquotraccedilosrdquo daquilo a que V Woolf chama ldquoa proacutepria vi-

dardquo)

Assim o ponto decisivo a reter neste aspecto eacute a ideia de que as duas experiecircncias da

doaccedilatildeo ndash a experiecircncia daquilo a que V Woolf chama factos (e que inclui os significados

funcionais do expediente da vida) e a experiecircncia dos significados relativos agrave vida ndash correm

continuamente lado a lado sem parar (ou melhor misturadas entrelaccediladas uma na outra) E o

mesmo sucede no que diz respeito agrave experiecircncia dos factos (incluindo a experiecircncia dos signi-

ficados funcionais relativos ao expediente da vida) e agrave experiecircncia dos significados na acep-

ccedilatildeo de V Woolf as duas correm continuamente sem parar lado a lado (ou melhor mistura-

das uma com a outra)132

132

Abstraiacutemos aqui de tudo quanto tem quer ver com a descriccedilatildeo a que V Woolf tambeacutem procede de

como a experiecircncia do significado (e o processo de acumulaccedilatildeo de significados e da constituiccedilatildeo de

totalidades de significado que lhe corresponde) daacute lugar a episoacutedios de manifestaccedilatildeo ndash descargas de

significado em que o proacuteprio entra em contacto directo com as configuraccedilotildees do significado que de

forma latente se vatildeo constituindo naquilo a que aqui temos chamado ldquotravessia perceptivardquo A descri-

ccedilatildeo deste fenoacutemeno ndash dos ldquomoments of beingrdquo ou ldquomoments of visionrdquo ndash faz parte integrante da anaacuteli-

se da experiecircncia do significado que encontramos exposta nos ensaios (em cartas e no Diaacuterio) e estaacute

profusamente ilustrada na obra literaacuteria de V Woolf Mas natildeo cabe aqui considerar este aspecto ndash e

julga-se que a) embora a sua omissatildeo produza uma versatildeo bastante truncada daquilo que V Woolf tem

a dizer sobre esta mateacuteria e b) o facto de haver esses episoacutedios de epifania do significado molda deci-

sivamente a nossa experiecircncia do significado a nossa relaccedilatildeo com o significado (e tal quer dizer tam-

beacutem a nossa relaccedilatildeo com a vida) dado que natildeo podemos apresentar mais do que um esboccedilo os ele-

mentos que apresentaacutemos teratildeo de bastar O tema estaacute desenvolvido por Silva N Identidade e vida

400

Ora mesmo um breviacutessimo esboccedilo como este que aqui apresentamos natildeo pode dei-

xar de referir um ponto sem cuja menccedilatildeo o proacuteprio esboccedilo fica distorcido

Esse ponto eacute o seguinte a especificidade da experiecircncia do significado no sentido es-

pecialmente posto em foco por V Woolf tambeacutem passa pelo facto de ter um sistema de nexos

ou ligaccedilotildees (sc uma organizaccedilatildeo da multiplicidade do que aparece) muito diferentes daqueles

que satildeo proacuteprios da experiecircncia dos factos no sentido que V Woolf daacute a este conceito Quer

dizer aquilo a que V Woolf chama ldquoexperiecircncia dos significadosrdquo e aquilo a que chama ldquoex-

periecircncia dos factosrdquo satildeo regidos por nexos de afinidade muito diferentes

Assim a experiecircncia dos significados estabelece ligaccedilotildees que cruzam a experiecircncia

dos factos e tornam proacuteximo aquilo que na experiecircncia dos factos eacute distante e ateacute mesmo mui-

to distante ndash e vice-versa Em suma as duas experiecircncias seguem como que sistemas de ldquocris-

talizaccedilatildeordquo do dado completamente diversos

Eacute decisivo perceber que aleacutem do complexo de estados-de-coisas permanentes que

emerge da experiecircncia dos factos haacute tambeacutem o complexo de estados-de-coisas permanentes

que emerge da experiecircncia dos significados A experiecircncia que se faz em noacutes eacute ao mesmo

tempo o campo dos dois complexos (tem uma dupla ordem de determinaccedilotildees tem duas mor-

fologias sobrepostas etc)

Haacute entretanto um ponto que ainda natildeo fica suficientemente posto em relevo a partir

do que dissemos ndash e a respeito do qual pode suceder que aquilo que dissemos induza em erro

A experiecircncia do significado no sentido posto em relevo por V Woolf eacute uma expe-

riecircncia da vida como identidade global ndash em cujas matildeos estamos e de que em larga medida

depende o deferimento ou indeferimento do requerimento contido no programa de natildeo-indife-

renccedila que a ldquotestemunha globalrdquo que cada um de noacutes eacute traz consigo Ora uma tal caracteriza-

ccedilatildeo pode induzir um entendimento demasiado estrito daquilo a que V Woolf chama ldquolife it-

selfrdquo

Com efeito esta caracterizaccedilatildeo pode sugerir que se deixa de fora o proacuteprio programa

de tensatildeo de natildeo-indiferenccedila (o superlativo para que se tende) ndash como se a ldquolife itselfrdquo tivesse

que ver soacute com o ldquopalcordquo onde se cumpre ou natildeo cumpre esse programa com o ldquopoder subs-

em Virginia Woolf uma anaacutelise da expressatildeo literaacuteria de um problema filosoacutefico Universi-dade Nova

de Lisboa Tese de Doutoramento 2011 em especial nas paacuteginas 286-317

401

tancialrdquo que potildee o que aparece nesse ldquopalcordquo (e assim defere ou indefere o requerimento) e

nada mais

O que por fim se trata de vincar natildeo pretende negar que haacute algo assim como um ldquopal-

cordquo qualquer coisa de correspondente a uma unificaccedilatildeo desse ldquopalcordquo (do que ldquoentra em ce-

nardquo nele) num ldquopoder substancialrdquo (mesmo que se trate de um puro ldquofoco imaginaacuteriordquo em cu-

jas matildeos se vecirc posta a decisatildeo (o deferimento ou indeferimento) do programa superlativo ine-

rente ao si (agrave testemunha global no sentido referido) Acontece que no entanto a vida (ldquolife

itselfrdquo aquilo de que a experiecircncia do significado no sentido de V Woolf eacute experiecircncia) natildeo

se deixar conter nesses limites

Na verdade a vida (a instacircncia unificadora total correspondente agravequilo a que se cha-

mou ldquoespinosismo vitalrdquo) estaacute constituiacuteda de tal modo que inclui de facto tudo aquilo em que

a ldquotestemunha globalrdquo se vecirc embarcada

Isso inclui a proacutepria tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e o seu programa (o objecto ou o ter-

minus ad quem da pressatildeo o proacuteprio superlativo) E vendo bem tambeacutem inclui a proacutepria

ldquotestemunha globalrdquo que daacute consigo sempre jaacute ldquoembarcada em sirdquo ndash de sorte que isso mesmo

tende a ser percebido como manifestaccedilatildeo do mesmo ldquopoder substancialrdquo de que o aparecimen-

to eacute visto como expressatildeo

O que tal significa eacute que aquilo que estaacute continuamente a impressionar a ldquochapa sensiacute-

velrdquo de que fala V Woolf ndash aquilo que de forma silenciosa mas ininterruptamente estaacute conti-

nuamente a ser sujeito a um exame ou a uma leitura do seu comportamento a uma fixaccedilatildeo do

seu ldquocaraacutecterrdquo uma avaliaccedilatildeo do seu valor (relativamente agrave ipseidade numa tensatildeo de natildeo-in-

diferenccedila a si mesma) etc natildeo eacute soacute isso a que chamaacutemos o ldquopalcordquo (o aparecimento o ldquoob-

jectordquo no sentido de Hegel) e o ldquopoder substancialrdquo que o unifica ou de que o ldquopalcordquo eacute per-

cebido como manifestaccedilatildeo Na verdade aquilo que estaacute continuamente a impressionar a ldquocha-

pa sensiacutevelrdquo eacute na verdade tudo (no mais pleno e literal sentido do termo) ndash incluindo a proacute-

pria tensatildeo de natildeo-indiferenccedila e o seu programa (o superlativo a cuja demanda se estaacute preso) e

a proacutepria ipseidade enquanto tambeacutem ela aparece a si mesma ou acontece a si mesma

Ou seja a vida em que nos temos corresponde justamente a um acontecimento de

abertura com tal dimensatildeo que abre a todas as ldquocoisasrdquo e nesse sentido a todos os momentos

da totalidade do que somos

Dito por outras palavras a nossa vida ndash a vida de cada um contida na sua proacutepria es-

fera ndash abre-se agrave totalidade do que laacute se encontra (abre-se agrave ldquovidardquo no sentido substantivo do

402

termo) na medida em que tem (ou crecirc ter) perspectiva aberta sobre a totalidade dela (na medi-

da em que tem ou crecirc ter um acesso desimpedido agrave totalidade dela em que a totalidade dela

estaacute ou passa por estar mapeada em que natildeo resta ou passa por natildeo restar nenhum acircngulo ce-

go em que pretensamente nada eacute deixado de fora etc)

Percebe-se neste passo a diferenccedila em relaccedilatildeo agravequilo que anteriormente se designava

como ldquovidardquo e a articulaccedilatildeo entre os dois sentidos do termo que assim se desenham

No curso anterior da nossa anaacutelise ldquovidardquo designava a totalidade do horizonte da ip-

seidade que estaacute em jogo em cada coisa que aparece etc Tratava-se da proacutepria vida enquan-

to condiccedilatildeo permanente de todos os intervenientes Mas o exerciacutecio natildeo focava ainda um as-

pecto a que estaacute sempre associada e que exprimimos quando falaacutemos da proacutepria vida como

objecto de si mesma

O que eacute decisivo eacute que a experiecircncia de mediccedilatildeo e avaliaccedilatildeo da vida inclui uno tenore

absolutamente todos os ingredientes da proacutepria vida (tudo aquilo que a faz a potildee de peacute etc)

De sorte que se trata de qualquer coisa como um auto-exame global (uma auto-avaliaccedilatildeo total

uma avaliaccedilatildeo do que estaacute ou natildeo estaacute a ser alcanccedilado uma avaliaccedilatildeo do ldquocaraacutecterrdquo ldquodisto tu-

dordquo etc)

Aquilo que encontramos eacute enfim a questatildeo da fita de Moumlbius mesmo que de um ou-

tro acircngulo

Em certo sentido o que acabamos de ver sobre a vida como objecto de si mesma e a

experiecircncia do significado (sc a experiecircncia da vida na acepccedilatildeo especialmente posta em rele-

vo por V Woolf) corresponde agrave multiplicidade dos intervenientes em torno dos quais orbita

tudo

Tudo orbita em torno da ipseidade (da ldquotestemunha globalrdquo na tensatildeo de natildeo-indifere-

nccedila que a liga a si mesma) a proacutepria ipseidade orbita em torno do superlativo (que assim

constitui tambeacutem como se procurou mostrar um ldquoprotagonistardquo de tudo) mas acresce ainda

que tanto a ipseidade quanto o programa de natildeo-indiferenccedila (a tensatildeo para o superlativo) de-

pendem do que aparece ndash e tanto quer dizer do poder substancial do aparecimento ndash que em

uacuteltima anaacutelise inclui tudo o mais (natildeo apenas o que entra em cena a cumprir ou incumprir o

programa do superlativo) o superlativo ainda por alcanccedilar jaacute estaacute em projecto na proacutepria

constituiccedilatildeo da ipseidade e o aparecimento (a vida) eacute sempre jaacute aquilo a que o requerimento

do superlativo se acha dirigido (e na verdade aquilo que parece pocircr a proacutepria ipseidade e a

tensatildeo de natildeo-indiferenccedila que lhe inere) inversamente a ipseidade natildeo soacute daacute consigo embar-

403

cada nisto tudo (desde logo em si mesma na tensatildeo de natildeo-indiferenccedila no projecto do super-

lativo na dependecircncia da vida e do seu curso etc) mas ao mesmo tempo eacute tambeacutem a condi-

ccedilatildeo que ldquoacenderdquo tudo isto (e nesse sentido o ldquopoderrdquo sem o qual nada disto tem partes ndash o

poder que confere poder a tudo isto)133

Esta estranha e irredutiacutevel unidade de cisatildeo da proacutepria vida eacute de certo modo a fita de

Moumlbius nuclear

Esta peculiar forma de complexidade que inclui a presenccedila dos termos em questatildeo uns

nos outros como componentes uns dos outros (de tal modo que cada um jaacute estaacute no centro com

que pode ser posto em contraste) significa que o que eacute exterior vai ateacute ao iacutentimo daquilo a que

eacute exterior

O que caracteriza uma fita de Moumlbius como vimos eacute a peculiaridade de por um lado

a fita ser composta de duas faces mas por outro lado natildeo ser de modo nenhum claro onde ter-

mina uma face e comeccedila a outra

Isto eacute se a nossa posiccedilatildeo corresponder a um momento da fita estamos perfeitamente

cientes de que estamos numa face e de que haacute uma segunda face em que natildeo estamos (que eacute

contraposta a essa etc) Poreacutem ao percorrer a fita damos inadvertidamente por noacutes jaacute na ou-

tra face ndash de tal modo que se pode dizer que a) haacute continuidade entre as duas faces e que b)

natildeo satildeo de modo nenhum claros os momentos de fronteira (o que assinala uma e a outra face)

Assim ainda que na verdade nunca abandonemos a face em que seguimos a cada momento

damos connosco ndash alternada inadvertidamente ndash numa e na outra face

Em suma a vida que acede agrave totalidade da vida eacute um momento da totalidade da vida

E tanto quer dizer eacute um dos muitos momentos da vida Ora apesar de a vida de cada um ser

apenas um momento eacute precisamente o acompanhamento integral de todos os momentos nesse

momento dela que de cada vez somos que permite que se gere uma identificaccedilatildeo positiva do

que a vida ldquoeacuterdquo ndash e isto porque em simultacircneo cada um de noacutes eacute tambeacutem algo dentro da tota-

133

Natildeo haacute portanto um soacute ldquoprotagonistardquo simples ndash o que se detecta eacute que haacute qualquer coisa como

uma multiplicidade uma complexidade irredutiacutevel de ldquoprotagonistasrdquo (uma figura se assim se pode

dizer com diversos focos constituiacuteda em funccedilatildeo de todos eles ndash com o centro ao mesmo tempo em to-

dos eles etc) Quer dizer ganha contornos algo de equivalente agravequilo que se encontra na anaacutelise da

ldquocomunicaccedilatildeo dos geacutenerosrdquo no Sofista de Platatildeo onde a procura de determinaccedilotildees monoeideacuteticas daacute

lugar ao encontro de inclusatildeo de uns nos outros com o ldquoingredienterdquo indispensaacutevel da constituiccedilatildeo da-

quilo que se suporia ldquosimplesrdquo

404

lidade que natildeo eacute apenas uma parte (uma parte iacutenfima) dela mas eacute em vez disso uma perspec-

tiva que a acompanha na iacutentegra

E tanto quer dizer a vida de cada um eacute um momento que se percebe a si mesmo como

intercepccedilatildeo de todos os restantes momentos como compreendendo ou envolvendo todos os

momentos ndash e como compreendendo e envolvendo todos os momentos no modo que vimos

em torno da ipseidade de tal modo que a proacutepria ipseidade orbita em torno do superlativo de

tal modo que a ipseidade e o programa de natildeo-indiferenccedila dependem do que aparece de tal

modo que o superlativo ainda por alcanccedilar jaacute estaacute em projecto na proacutepria constituiccedilatildeo da ip-

seidade e o aparecimento eacute sempre jaacute aquilo a que o requerimento do superlativo se acha diri-

gido de tal modo que a ipseidade natildeo soacute daacute consigo embarcada nisto tudo mas eacute tambeacutem a

condiccedilatildeo que acende tudo isto etc E eacute precisamente o acompanhamento integral de todos os

momentos nesse momento dela que de cada vez somos com as caracteriacutesticas que vimos o

que permite que se gere uma identificaccedilatildeo positiva do que a vida ldquoeacuterdquo ndash o que permite enfim

que se gere a identificaccedilatildeo do ldquocaraacutecterrdquo ldquodisto tudordquo que se gere um entendimento do que tu-

do isto quer dizer etc

405

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