Assessoria Jurídica Popular Experiência Cearense

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Assessoria Jurídica Popular Experiência Cearense

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    ASSESSORIA JURDICA POPULAR: EXPERINCIA CEARENSE

    Ana Maria Dvila Lopes1 Christianny Digenes Maia2

    SUMRIO: Introduo; 1 O Direito Alternativo e a Assessoria Jurdica Popular; 2 Assessoria Jurdica Popular Universitria; 3 Centro de Assessoria Jurdica Popular CAJU/UFC; Consideraes Finais; Referncias

    RESUMO - Em uma sociedade cada vez mais marcada pelas desigualdades sociais econmicas e culturais, bem como pelas constantes violaes dignidade humana, evidencia-se a necessidade de um Direito emancipador. Nesse contexto, este trabalho apresenta a experincia cearense sobre a Assessoria Jurdica Popular (AJP) movimento jurdico recente que se coloca ao servio da luta das classes oprimidas, ao conceber o Direito como um instrumento de transformao social e emancipao humana. A partir dos resultados da pesquisa bibliogrfica e de campo, exporemos, inicialmente, o marco terico da construo da Assessoria Jurdica Popular para, posteriormente, descrever os contornos reais da sua prtica concretizada nos projetos de extenso universitria. Finalmente, relataremos a experincia do Centro de Assessoria Jurdica Universitria (CAJU), da Universidade Federal do Cear, como forma de contribuir na divulgao dessa importante prtica jurdica e social, comprometida com a construo de uma sociedade livre, justa e solidria, conforme os ditames estabelecidos na Constituio Federal de 1988.

    PALAVRAS-CHAVE: Assessoria Jurdica Popular. Direito Emancipador. Direito alternativo.

    ABSTRACT - In a society characterized by strong social, economic and cultural differences, and by constant violations against human dignity, the need for an emancipating Law is evident. In this context, this article describes the experience, in the State of Ceara, of the Popular Legal Consultancy (PJC), a recently created legal movement that assists the oppressed classes, conceptualizing Law as an instrument

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    of social transformation and human emancipation. Based on the results of a bibliographical review and field research, this work shows, firstly, the theoretical framework in which the Popular Legal Consultancy was conceived. Secondly, it describes the practice of the PJC as concretized in university extension projects. Finally, reference is made to the experience of the University Legal Consultancy Centre (UJCC) at the Federal University of Ceara, as a means of contributing to spread the knowledge of this significant legal and social practice that is committed to building a fair, free and supportive society, in accordance with the provisions of the 1988 Federal Constitution.

    KEY-WORDS: Popular Juridical Consultancy. Emancipated Law. Alternative Law.

    Introduo A atuao jurdica tradicional, de cunho positivista e formalista, mostra-se

    incapaz de oferecer solues satisfatrias e eficientes s atuais necessidades decorrentes dos novos tipos de conflitos sociais e dos novos sujeitos coletivos de Direito.

    Diante de tal realidade, surge a Assessoria Jurdica Popular (AJP), movimento jurdico recente que se coloca a servio da luta das classes oprimidas por uma vida digna para todos, compreendendo o Direito como um instrumento de transformao social e emancipao humana.

    A Assessoria Jurdica Popular vem sendo construda, sobretudo, na prtica das entidades que advogam pela defesa e promoo dos direitos humanos e fundamentais dos novos sujeitos coletivos de Direito atravs dos projetos de extenso universitria.

    Por se tratar de um movimento jurdico recente, a bibliografia sobre o tema ainda escassa, tornando-se valiosos os aportes tericos das prprias entidades que desenvolvem a Assessoria Jurdica Popular.

    Nesse sentido, com o objetivo de contribuir para o amadurecimento do tema em questo, apresentaremos a experincia do Centro de Assessoria Jurdica Universitria (CAJU), projeto de extenso da Universidade Federal do Cear (UFC), que desenvolve a prtica da Assessoria Jurdica Popular.

    Antes de focarmos o trabalho do CAJU, faremos consideraes sobre o prprio movimento de Assessoria Jurdica Popular, bem como sobre as

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    especificidades do movimento no mbito das universidades.

    1 O DIREITO ALTERNATIVO E A ASSESSORIA JURDICA POPULAR

    As tradicionais escolas filosficas jusnaturalistas ou juspositivistas no respondem mais aos novos paradigmas que se apresentam ao estudo da Cincia Jurdica. Suplantando o Jusnaturalismo e o Juspostivismo, surge o Ps-positivismo, apresentando novos paradigmas Cincia Jurdica, na qual o Direito Constitucional ocupa um espao privilegiado.

    Nesse sentido, Barroso (2003, p. 325-326) leciona que: O Direito, a partir da segunda metade do sculo XX, j no cabia mais no positivismo jurdico. A aproximao quase absoluta entre Direito e norma e sua rgida separao da tica no correspondiam ao estgio do processo civilizatrio e s ambies dos que patrocinavam a causa da humanidade. Por outro lado, o discurso cientfico impregnara o Direito. Seus operadores no desejavam o retorno puro e simples ao jusnaturalismo, aos fundamentos vagos, abstratos ou metafsicos de uma razo subjetiva. Nesse contexto, o ps-positivismo no surge com o mpeto da desconstruo, mas como uma superao do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetria guardando deferncia relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idias de justia e legitimidade.

    O Jusnaturalismo faleceu com o apogeu do Juspositivismo, pois aquele no foi capaz de fornecer a segurana jurdica desejada. Por outro lado, este ltimo foi incapaz de incorporar valores como justia e dignidade da pessoa humana s normas, que friamente regiam a sociedade, distante da realidade social. Segundo, Noleto (1998, p. 72), o formalismo positivista cumpriu a estranha tarefa de isolar o Direito dos conflitos sociais, arrancando-o da Histria.

    As crticas s referidas correntes de pensamento foram tantas que no faltaram fundadores de escolas, teorias e movimentos contra a hegemonia jusnaturalista e juspositivista, a exemplo das escolas sociolgicas, bem como da Teoria Crtica, do Direito Alternativo e do prprio movimento de Assessoria Jurdica Popular.

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    O positivismo foi incapaz de corresponder aos anseios da coletividade, mostrando-se conservador, elitista e injusto para a maioria da populao. Contra esse pensamento cientfico hegemnico, surge a Teoria Crtica, que se fundamenta em aspectos antidogmticos e emancipatrios. Conforme afirma Luz (2005, p. 128):

    O pensamento crtico se traduz numa postura epistemolgica, tica, poltica e terico-prtica, na qual a questo fundamental est na assuno de uma viso de mundo antidogmtica, que possibilita um agir qualificado pela tomada de conscincia dos sujeitos histricos de sua realidade humana, individual ou coletiva, para alm da alienao (coisificao) de sua existncia, proporcionada principalmente pelo mundo moderno capitalista.

    Por sua vez, Wolkmer (2001, p. 9) ensina que: A inteno da Teoria Crtica consiste em definir um projeto que possibilite a mudana da sociedade em funo de um novo tipo de homem. Trata-se da emancipao do homem de sua condio de alienado, da sua reconciliao com a natureza no-repressora e com o processo histrico por ele moldado.

    A Teoria Crtica do Direito denunciava a funo ideolgica do Direito e o fato de que, em nome de uma pretensa razo cientfica, encobrem-se as relaes de poder (BARROSO, 2003, p. 279). Assim falsa a ideia de neutralidade do Direito, que, na realidade, representa, muitas vezes, os interesses de grupos dominantes. Durante a 2 Guerra Mundial, o Direito posto (estatal, formal) foi um grande aliado dos nazi-fascistas, que justificavam suas aes na letra lei. Isso demonstra o quanto pode ser perigoso identificar o Direito to somente com a lei e o quanto o positivismo jurdico restrito se mostrou incapaz de responder aos conflitos sociais.

    Barroso (2003, p. 281) explica que: A teoria crtica do direito questiona: o carter cientfico do direito, por faltar-lhe a pretendida objetividade que decorreria de uma irreal aplicao mecnica da norma ao fato, com base em princpios e conceitos genericamente vlidos; a alegada neutralidade poltica, ao denunciar sua funo ideolgica de reforador e reprodutor das relaes sociais estabelecidas; a pureza cientfica, ao preconizar a interdisciplinariedade como instrumental indispensvel formao do saber jurdico. Trata-se, no entanto, de uma teoria crtica, e no de uma dogmtica substitutiva ou alternativa.

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    O professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) lembra ainda que, alm de no ser neutro, o Direito no tem a objetividade proclamada pelo raciocnio lgico-formal de subsuno dos fatos norma; portanto no absoluto, exato, ao contrrio, a indeterminao dos contedos normativos uma marca do Direito, que pode dar margem a variadas interpretaes, com diversas finalidades (que muitas vezes no a justia), de acordo com os interesses dos grupos conflitantes (BARROSO, 2003, p. 280).

    A Teoria Crtica do Direito, nascida no seio das universidades, preocupou-se, acima de tudo, em desmistificar o fenmeno jurdico e em introduzir novos elementos valorativos na sua discusso (BARROSO, 2003, p. 282).

    Principal expresso intelectual do pensamento crtico dialtico no Brasil, Lyra Filho, criador da revista Direito e Avesso, fundou a Nova Escola Jurdica Brasileira (NAIR), que, nas palavras de Noleto (1998, p. 68):

    Nasce na perspectiva de romper com os limites dogmticos de um positivismo estreito e burocrtico, assim como procura escapar s armadilhas do idealismo conservador contido nas teses jusnaturalistas, lanando novas luzes dialticas sobre a busca de um fundamento na afirmao de que sua teoria crtica cumpre uma funo de esclarecimento, posto que vem iluminar o debate jurdico revelando suas contradies e deformaes ideolgicas.

    Lyra Filho (1980, p. 42) props uma cincia jurdica sem dogmas, analtica e critica ao mesmo tempo, sob o impulso da prxis libertadora. Em seu ltimo trabalho, o autor apresentou uma proposta terico-prtica de uma filosofia jurdica denominada humanismo dialtico, que tinha como objetivo a refundamentao dos Direitos Humanos, conforme o processo concreto da libertao humana. O humanismo dialtico, segundo Lyra Filho (1986, p. 295-299), estava ligado, antes de tudo, prxis jurdica, na luta de povos, classes, grupos e indivduos espoliados e vtimas da opresso.

    Toda a base terica difundida pelo pensamento crtico do Direito no Brasil se apresenta como alicerce para a prtica da Assessoria Jurdica Popular, que tambm constitui um movimento jurdico crtico, pois, como afirmou Lyra Filho (1986, p. 299): Somos todos uma bela mistura de esprito cientfico, filosfico, artstico, tcnico, ldico e at mstico ainda quando a f no se volta para Deus, mas, para

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    uma libertao exclusivamente humana.

    Percebemos, portanto, a importncia da Teoria Crtica do Direito para o avano de um entendimento menos dogmtico da Cincia Jurdica e para a compreenso da necessidade de se construir um Direito mais humano, mais social e mais justo; que esteja em todo lugar, nas ruas, nas favelas, nos movimentos sociais, nas lutas, e no somente nas leis; que tenha como finalidade a Justia, a justia social, estando a servio da maioria oprimida. Isso o que prope tambm o Direito Alternativo, que, inspirado na Teoria Crtica, avanou na construo de um Direito emancipatrio, deslocando suas propostas do meio acadmico para as ruas. A proposta do Direito Alternativo, embora se servindo da experincia crtica, procurou contribuir para a emergncia de um novo Direito (CLVE, 1993, p. 46).

    A Crtica Jurdica e o Direito Alternativo no so processos dissociados, ao contrrio, so desencadeados de um mesmo processo terico-prtico que vai avanando, superando-se e redefinindo-se permanentemente. Ento, na sequncia histrica da Teoria Crtica, fundado nos mesmos pressupostos ideolgicos, articulou-se, em diversos pases do mundo, entre as dcadas de 1970 e de 1990, inclusive no Brasil, o movimento conhecido como Direito Alternativo.

    O Direito Alternativo, em relao maioria dos movimentos crticos anteriores, inovou, ao fazer uma opo pelos pobres uma opo prtica e no retrica como se via anteriormente. Tal vertente do pensamento jurdico props uma franca ruptura com o modelo jurdico liberal/positivista, que estrutura o Direito burgus.

    Sobre os propsitos do Direito Alternativo, Andrade (1996, p. 18) leciona que: Com seus erros e acertos, o movimento do Direito Alternativo uma possibilidade de exercitar a combatividade pessoal e de classe, em prol de propsitos comuns, como os de erradicar a misria, combater a violncia, a explorao e lutar por democracia.

    O Direito Alternativo, assim como a Teoria Crtica do Direito, identifica a superao do paradigma positivista da Cincia Jurdica, rejeitando o mito da neutralidade no Direito, que, na realidade, ao se colocar distante dos conflitos sociais, reproduz os interesses das classes dominantes, geralmente consolidados na norma jurdica.

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    Para o movimento, o Direito no assume somente a funo de controle social, mantenedor da ordem e do status quo, pois acredita que, a partir de uma relao dialtica entre a norma e a realidade social, o Direito capaz de agir como um instrumento de emancipao humana.

    Um dos pressupostos do Direito Alternativo a concepo pluralista do Direito. A lei apenas uma das expresses do Direito, o qual no se confunde com o Direito Estatal, defendem os alternativistas jurdicos que reconhecem outros espaos de produo de direitos, para alm dos estatais.

    Afirmam os alternativistas brasileiros que o verdadeiro direito alternativo um direito achado na rua, um direito comunitrio, vivo ou mesmo um direito insurgente e rebelde, que resulta do poder popular e exprime valores libertrios.

    Sobre essa concepo pluralista do Direito Alternativo, reivindica-se a legitimidade de novos sujeitos coletivos, que surgem dos movimentos sociais e poderiam atuar na soluo de conflitos, fora e alm do direito do Estado.

    Em sua obra, Carvalho (1993, p. 10-11), um dos principais formuladores do pensamento jurdico alternativo no Brasil, leciona sobre esse movimento, o que passaremos a transcrever:

    Alguns dizem que o Direito Alternativo caracteriza-se pela negativa da lei. E tal no corresponde realidade. A lei escrita conquista da humanidade e no se vislumbra possibilidade de vida em sociedade sem normas (sejam elas escritas ou no). [...] A alternatividade luta para que surjam leis efetivamente justas, comprometidas com os interesses da maioria da populao, ou seja, realmente democrticas. E busca instrumental interpretativo que siga a mesma diretiva. O que a alternatividade no reconhece a identificao do direito to-s com a lei, nem que apenas o Estado produz direito, o que diverso da negativa lei. [...] O que a alternatvidade busca o novo paradigma, com a superao do legalismo estreito, mas tendo como limites (ou contedo racional) os princpios gerais do direito, que so conquistas da humanidade.

    Carvalho (1993, p. 11-15) afirma, ainda, que o movimento do Direito Alternativo, em sentido abrangente, compreende as seguintes frentes de luta ou estratgias de atuao3:

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    1. Uso Alternativo do Direito: trata-se da utilizao, via interpretao diferenciada, das contradies, ambigidades e lacunas do Direito legislado numa tica democratizante.

    2. Positivismo de Combate: uso e reconhecimento do Direito positivo como arma de combate, a luta para a efetivao concreta dos direitos que j esto nos textos jurdicos mas no vm sendo aplicados.

    3. Direito Alternativo em sentido estrito: o direito paralelo, emergente, insurgente, achado na rua, no oficial, que coexiste com aquele emergente do Estado. um direito vivo, atuante, que est em permanente formao/transformao.

    Tais frentes de luta explicam bem a amplitude do movimento aqui no Brasil, que se manifestou atravs das formas anteriormente citadas. Quanto primeira estratgia de atuao, ou seja, o uso alternativo do direito, o Direito Alternativo prope a interpretao e a aplicao das normas que conduza realizao da justia social, privilegiando os direitos e os interesses das classes populares. Trata-se de um processo hermenutico atravs do qual se buscar nas contradies ambiguidades e lacunas das normas utilizar os princpios gerais de Direito para julgar a favor dos grupos socialmente excludos. Essa estratgia foi principalmente utilizada pela magistratura alternativa, especialmente pelo grupo de juzes alternativos do Rio Grande do Sul, onde o movimento brasileiro alcanou maior destaque na construo de uma justia social igualitria e de um Direito novo (WOLKMER, 2001, p. 137).

    Ao lado da Magistratura Alternativa, Wolkmer (2001, p. 139) destaca a experincia de advogados tambm no alinhados com a cultura jurdica dominante, ou seja, a advocacia popular.

    A segunda estratgia de atuao anteriormente apresentada, o positivismo de combate, consiste na luta pela efetivao das normas postas que expressam os interesses das classes populares, as quais, na maioria das vezes, permanecem apenas no plano retrico do ordenamento jurdico. Essa estratgia se reflete principalmente nas aes da Advocacia Popular que, na prtica forense cotidiana, travam essa batalha pela efetivao dos direitos fundamentais dos setores populares que assessoram.

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    J a atuao do Direito Alternativo, em sentido estrito, refere-se ao pluralismo jurdico, ou seja, ao reconhecimento da existncia de manifestaes jurdicas margem do ordenamento jurdico estatal, especialmente no seio de grupos e movimentos sociais, em luta pela incluso e pela transformao de relaes socialmente injustas. Ressaltamos que principalmente nesse mbito de atuao que se constitui a relao da Assessoria Jurdica Popular com os movimentos populares.

    Em suma, os alternativistas jurdicos almejavam uma sociedade mais justa e igual. Sonhavam ser possvel fazer justia social, diminuindo as desigualdades entre as classes atravs do Direito, por meio de uma interpretao e aplicao, que objetivasse a efetivao das normas justas, em benefcio dos interesses das classes exploradas, a partir de um Direito construdo na sociedade, no seio dos movimentos populares.

    Acreditavam os juristas alternativos em um Direito que representasse, verdadeiramente, o interesse do povo, principalmente, dos setores oprimidos, ou seja, um Direito libertrio, emancipatrio. Trata-se de um movimento que valorizava os espaos alternativos de construo de direitos, quais sejam, os espaos sociais e comunitrios. Logo, esses ideais de justia social tambm inspiraram o movimento de Assessoria Jurdica Popular, que caminha lado a lado com o povo.

    Nesse contexto que surge a Assessoria Jurdica Popular, sendo importante esclarecermos que no se trata de uma teoria ou escola, mas de um movimento que h poucos anos vem se consolidando como uma alternativa prtica jurdica tradicional, demonstrando que possvel operar o Direito em uma perspectiva emancipatria e transformadora, longe de qualquer dogmatismo.

    A Assessoria Jurdica Popular (AJP) se desenvolve nas universidades atravs de projetos de extenso e na sociedade atravs da assessoria a movimentos populares, sindicatos ou organizaes no governamentais, sempre ligada temtica dos direitos humanos.

    Destacamos que so necessrias algumas explicaes sobre as terminologias ou tipologias que esto relacionadas ao tema em estudo. Lembramos que comum encontrarmos na literatura jurdica, especialmente na estrangeira, o termo servios legais para designar as prticas de auxlio jurdico gratuito,

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    englobando as entidades pblicas (como os servios prestados pela Defensoria Pblica) ou privadas, originrios de contextos e locais distintos e, no raro, com prticas e objetivos polticos diversos e contraditrios entre si (LUZ, 2008, p. 8).

    O Instituto Latino Americano de Servios Legales Alternativos (ILSA) da Colmbia utiliza-se do termo servios legais alternativos para se referir ao que aqui chamamos de Assessoria Jurdica Popular. Ressaltamos as contribuies do ILSA divulgadas especialmente na Revista El Otro Derecho, na qual encontramos a definio que o Instituto atribui aos servios legais alternativos, como sendo: aqueles grupos de apoio jurdico popular que buscam defender interesses coletivos mediante a organizao comunitria e a capacitao legal orientada at a mobilizao e a auto-organizao (HURTADO apud Wolkmer, 2001, p. 69).

    O professor Celso Campilongo (2001), em texto clssico sobre a Assessoria Jurdica Popular, expe as caractersticas e as diferenas entre os servios legais tradicionais e os servios legais inovadores, que podem ser identificados, respectivamente, com a Assistncia Judiciria Gratuita e a Assessoria Jurdica Popular. O eminente professor, portanto, refere-se Assessoria Jurdica Popular como sendo uma espcie do gnero servios legais. Entretanto, conforme lembra Vladimir Luz (2008, p. 8):

    At mesmo a gratuidade de tais servios, elemento aparentemente unificador das diversas entidades identificadas por essa denominao, no se apresenta, por si s, como fator capaz de definir um modelo paradigmtico, a partir do qual o fenmeno da Assessoria Jurdica Popular possa ser identificado. Outrossim, sendo aderido expresso genrica servio legal o qualitativo popular, cresce ainda mais a indeterminao do fenmeno que, aparentemente, estaria apenas circunscrito numa ampla rea de atuao forense pro bono, voltada para a ajuda altrusta e desinteressada de litigantes necessitados.

    Da a necessidade de consolidarmos na literatura jurdica o termo Assessoria Jurdica Popular, j que a referida expresso possui um significado prprio, ao passo que a terminologia dos servios legais bem genrica e est longe de esgotar todo o contedo da AJP.

    Ademais, a dogmtica jurdica tradicional analisa o tema dos servios legais em uma perspectiva mais processual, ligada a uma discusso do acesso formal Justia, concentrando-se apenas no estudo dos meios jurdicos de

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    postulao, em sentido estrito, operando no campo estrito da exegese do Direito Positivo, na maioria das vezes sob a tica monista (LUZ, 2008, p. 11). Tais estudos se referem, muitas vezes, somente aos servios de assistncia judiciria que prestam seu auxlio populao sem condies de pagar um advogado particular, dessa forma, no adentram no campo da Sociologia Jurdica Crtica, na qual se insere o mbito de atuao da Assessoria Jurdica Popular, tampouco investigam o movimento em outros ramos das cincias, como a Educao Popular, a Cincia Poltica ou a prpria Filosofia do Direito, estudos necessrios para a compreenso da AJP.

    Apesar de incipiente a bibliografia sobre o movimento de Assessoria Jurdica Popular, possvel identificarmos algumas de suas caractersticas, dentre as quais destacamos: a) a opo por atuar em demandas coletivas, ou que possuam uma repercusso social; b) a desmistificao do Direito e a perspectiva emancipatria e participativa com que o litgio trabalhado, envolvendo os sujeitos de Direito no processo; e c) a interdisciplinaridade.

    Podemos tambm estabelecer alguns pressupostos desta prtica jurdica inovadora, tais como: a) a compreenso do Direito como um instrumento de transformao social; b) o amplo acesso justia, encarado no apenas como o acesso ao Judicirio, mas sim abrangendo todos os meios legtimos para se alcanar a Justia; c) o pluralismo jurdico comunitrio-participativo, como projeto emancipatrio dos novos sujeitos coletivos de Direito, baseado nos valores de legitimidade, democracia, descentralizao, participao, justia, satisfao das necessidades, entre outros, como j explicado; e d) a educao jurdica popular em direitos humanos, como abordagem pedaggica para um processo libertador de conscientizao.

    Ressaltamos, ainda, que a essncia da Assessoria Jurdica Popular est na abordagem emancipatria em que baseia suas aes e no fundamento do Direito entendido como instrumento de transformao social, bem como no compromisso do assessor jurdico popular com a luta das classes populares em defesa e promoo dos direitos humanos e fundamentais, por uma sociedade mais justa, mais igual e mais humana.

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    2 ASSESSORIA JURDICA POPULAR UNIVERSITRIA

    As discusses sobre uma Teoria Crtica do Direito disseminadas nas universidades, somadas crtica do ensino jurdico, impulsionaram a formao de grupos que passaram a se organizar em projetos de extenso universitria, buscando desenvolver a prtica da Assessoria Jurdica Popular.

    Tais projetos de assessoria jurdica popular universitria surgiram a partir das seguintes crticas: a) prtica jurdica tradicional, desenvolvida, inclusive, pelos escritrios de assistncia judiciria nas universidades (conhecidos tambm como escritrios modelos), que pouco contribuem para a transformao social4, legitimando as estruturas de poder existentes na sociedade; e b) ao ensino jurdico tradicional, dogmtico e legalista.

    Sobre as assessorias jurdicas universitrias populares, o socilogo portugus Boaventura de Sousa Santos (2007, p. 50) leciona que:

    Trata-se de uma prtica jurdica desenvolvida por estudantes de direito que tem hoje uma capacidade nova de passar da clnica jurdica individual, a la americana, totalmente despolitizada, para uma forma de assistncia e de assessoria jurdica atenta aos conflitos estruturais e de interveno mais solidria e mais politizada. Essa iniciativa em muito se distancia da assistncia jurdica que normalmente oferecida pelos Ncleos de Prtica Jurdica das faculdades de direito brasileiras muito concentrada na preparao tcnico-burocrtica dos estudantes e orientada para aces individuais (despejo; penso alimentcia; separao e divrcio etc.). Em sentido oposto, as assessorias jurdicas populares do importncia ao de defesa de direitos coletivos em associao com movimentos sociais e organizao populares.

    Defendendo a importncia das faculdades de Direito como espaos para profundas discusses sobre cidadania, direitos humanos, democracia, justia social etc., estudantes e professores organizaram grupos com o intuito, inicialmente, de proporcionar aos profissionais de Direito uma formao mais humana e comprometida socialmente com a defesa dos direitos fundamentais e, consequentemente, interagir com as camadas populares na luta pela efetivao de seus direitos.

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    Neste contexto, surgiram, em diversas faculdades, os servios de assessoria jurdica popular, como projetos de extenso que desenvolvem suas atividades tambm no mbito do ensino e da pesquisa universitria.

    Para Boaventura Santos, as assessorias jurdicas populares universitrias representam uma importante transformao na busca por uma revoluo democrtica da justia. Assim, afirma que:

    No difcil concluir que os grupos que exercem esse tipo de assessoria tem como ponto de partida a comunho entre ensino, pesquisa e extenso e, assim, contribuem para uma prxis diferenciada, dialgica e multidisciplinar, actuando em prol da construo de uma viso crtica do direito, da justia e do ensino jurdico hegemnicos. A participao dos estudantes de Direito em tais projetos favorece a aproximao a espaos muitas vezes ignorados e que serviro de gatilhos pedaggicos para uma formao mais sensvel aos problemas sociais, o que nem mesmo a leitura de uma ptimo texto descritivo de tal realidade poderia proporcionar. o Estudante como protagonista de seu processo de ensino e aprendizagem. (SANTOS, 2007, p. 51).

    Atualmente, esses projetos fazem parte da Rede Nacional de Assessoria Jurdica Universitria (RENAJU), que, alm de manter um grupo na Internet, realiza encontros nacionais, a fim de trocar experincias e amadurecer as discusses sobre essa prtica extensionista da Assessoria Jurdica Popular, fortalecendo, assim, o movimento.

    3 CENTRO DE ASSESSORIA JURDICA UNIVERSITRIA CAJU/UFC

    Em 1997, um grupo de estudantes da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Cear (UFC) iniciou uma srie de debates e discusses sobre alguns temas no inclusos no currculo oficial, como direitos humanos, teorias jurdicas crticas e sobre a necessidade de uma aproximao maior entre o Direito dos cdigos e a injusta realidade social.

    Atravs do movimento estudantil e dos Encontros Nacionais de Estudantes de Direito, surgiram contatos do grupo de estudantes da UFC com

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    alguns projetos de extenso de outros estados brasileiros voltados para a Assessoria Jurdica Popular, o que permitiu o aprofundamento sobre as mencionadas discusses e, tambm, sobre o Direito Achado na Rua, o Direito Alternativo, Ps-positivismo e a utilizao do Direito como instrumento de transformao social. Assim, nasceu o Centro de Assessoria Jurdica Universitria (CAJU), da Faculdade de Direito da UFC.

    Durante o primeiro ano, a maior preocupao do grupo foi aprofundar os estudos sobre as teorias crticas do Direito, democracia, cidadania, direitos humanos, pluralismo jurdico, enfim, todos os temas que seriam a base terica para a prtica do projeto, inclusive relacionados a outras reas do conhecimento como o tema da educao popular, denotando um carter interdisciplinar.

    Em 1998, o CAJU foi registrado como Projeto de Extenso da UFC, sob a orientao do professor Jos de Albuquerque Rocha, com o seguinte objetivo geral:

    [...] preparar assessores jurdicos populares na rea de direitos humanos atravs de formao jurdica, poltica, social e humanstica, baseada em atuao nos mbitos de ensino, pesquisa e extenso universitrios, concretizando a integrao recproca Universidade/Comunidade e buscando proporcionar amplo acesso justia, a construo coletiva de cidadania e a efetiva transformao social atravs da prtica jurdica popular. (UFC, 2008).

    Como a ideia do grupo, desde o incio, foi capacitar-se sobre temas alternativos ao currculo oficial para complementar seu aprendizado e fundamentar a prtica do projeto, no mesmo ano o CAJU deu incio sua primeira Capacitao em Direitos Humanos e Assessoria Jurdica Popular, que dura at os dias de hoje, embora com algumas mudanas. So dois os objetivos principais da Capacitao: a) inserir na Faculdade discusses sobre um Direito crtico, menos dogmtico e mais voltado para as classes populares, contribuindo para uma formao mais humanista dos estudantes de Direito; e b) construir a base terica dos futuros cajuanos, j que esse curso pr-requisito para quem vai ingressar nas atividades extensionistas do projeto.

    As atividades da referida capacitao consistem em palestras, debates, oficinas, grupos de estudos e visitas a comunidades. Essas aes acontecem semestralmente na Faculdade de Direito da UFC, com aproximadamente 50

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    pessoas, a maioria estudantes de Direito.

    A capacitao do CAJU, como conhecida, j rendeu bons resultados ao projeto e comunidade jurdica. Nesses anos j ocorreram 16 capacitaes, pelas quais passaram cerca de 800 estudantes, entre os quais alguns ingressaram no CAJU, dando continuidade a uma formao acadmica mais engajada com as lutas sociais; outros tantos no optaram por desenvolver a extenso universitria, mas tiveram a oportunidade de conhecer o Direito sob uma perspectiva mais humanstica e menos dogmtica.

    A preocupao com a formao acadmica constante no CAJU que, alm da Capacitao em Direitos Humanos e Assessoria Jurdica Popular, realiza grupos de estudos internos sobre os temas trabalhados pelo projeto.

    H, ainda, os seminrios e os cursos que o CAJU promove para toda a comunidade acadmica, pelo menos uma vez por ano, dos quais destacamos o Movimento Cultural: 500 anos de resistncia negra, indgena e popular, em 2000, e o ltimo evento: O que Direito? Uma homenagem a Roberto Lyra Filho5.

    Ressaltamos, tambm, a Semana Estadual de Direitos Humanos, que o CAJU realizou em algumas escolas da rede pblica estadual de ensino, em parceria com a direo dessas escolas e em cumprimento Lei Estadual n 12.149/93.

    O CAJU desenvolve, tambm, pesquisas sobre os temas trabalhados pelo projeto, que j renderam algumas publicaes, tais como: o Manual de Proteo e Defesa do Consumidor, publicado em 2003; e o Guia de Orientao de Multiplicadores de Direitos Sociais6, elaborado em parceria com as seguintes entidades: Grupo de Apoio s Comunidades Carentes (GACC), The Leprosy Relief Association (LRA), Movimento de Reintegrao das Pessoas atingidas pela Hansenase (MORHAN) e Department for International Development (DFID), editado por esta ltima e publicado em 2004. Outra importante publicao o jornal do CAJU: O Maturi7 que, alm de divulgar as aes do programa, possibilita que outros estudantes possam publicar artigos, poesias, etc.

    Ressaltadas as atividades de ensino e pesquisa, faremos a seguir um breve histrico das atividades extensionistas que se pautam nos pressupostos e caractersticas da Assessoria Jurdica Popular.

    As atividades de extenso do CAJU compreendem, essencialmente, a

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    educao popular em direitos humanos, que consiste em oficinas, debates, discusses e visitas s comunidades, movimentos sociais ou escolas pblicas. Tais aes so realizadas juntamente com a comunidade assessorada, de forma dialgica, potencializando a organizao comunitria, objetivando a construo de um saber plural e democrtico, fundamentadas, portanto, nos ensinamentos de Paulo Freire.

    Portanto, alm da informao jurdica, pressuposto dessas atividades, a construo da cidadania, a organizao popular, enfim, a emancipao social, constituem os objetivos dessas aes do CAJU.

    Durante esses anos, diversas parcerias foram estabelecidas e vrios grupos foram assessorados pelo CAJU. Um dos mais significantes desses trabalhos foi realizado junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a partir de um convite do setor de direitos humanos do movimento, com o qual se realizaram oficinas sobre direitos fundamentais, direito penal, direito comercial e do consumidor, no ano de 2000, em um acampamento em Fortaleza, em frente ao INCRA e em assentamentos rurais do Cear (nas cidades de Canind, Amontada e Crates).

    Em 2001, a partir de um contato com a pastoral indigenista da Arquidiocese de Fortaleza, realizaram-se algumas visitas s comunidades indgenas Pitaguary, em Maracana, Tapeba, em Caucaia; e Jenipapo-Kanind, em Aquiraz, suscitando o interesse de alguns cajuanos em estudar o direito dos povos indgenas. Desenvolveram-se, ainda, estudos ligados questo penitenciria, gerando algumas reunies com a Comisso Pastoral Carcerria do Cear, com o Sindicato dos Agentes Penitencirios, com a Comisso de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Cear e com a Defensoria Pblica, objetivando um trabalho com as famlias dos presos e uma reviso da situao prisional dos penitencirios do Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), em parceria com estas entidades. No entanto, tal trabalho no foi realizado pelas dificuldades encontradas junto s autoridades do sistema prisional, que inviabilizaram o projeto.

    Alm das atividades citadas, o CAJU realizou, nos anos de 2000 e 2001, algumas oficinas e palestras sobre direitos fundamentais em cooperativas; associaes de bairros e escolas pblicas8.

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    No entanto, a maioria dos trabalhos realizados at o final do ano de 2001 era apenas pontual, no existia uma continuidade, portanto, tais trabalhos no eram aes impactantes. Para corrigir esses equvocos e passar a desenvolver atividades que gerassem resultados mais concretos e positivos nas comunidades assessoradas, o CAJU decidiu acabar com esse trabalho de bombeiro (imediatista, paliativo) e focar as aes transformadoras, de organizao popular, que gerassem mais benefcios sociais.

    A partir desses debates, construiu-se a ousada misso do CAJU, diretriz seguida at hoje pelos atuais membros do programa, que consiste na seguinte:

    A misso do CAJU : trabalhar para a transformao da sociedade visando a emancipao humana, um amplo acesso justia e a construo coletiva da cidadania, atravs da realizao e difuso da assessoria Jurdica Popular; preparar assessores jurdicos populares na rea de direitos humanos, mediante uma formao jurdica, poltica, social e humanstica; atuar interdisciplinarmente nos mbitos de ensino, pesquisa e extenso universitria; defender uma universidade pblica, gratuita, de qualidade e a servio de todos9.

    No final do ano de 2001, o CAJU decidiu trabalhar com movimentos urbanos de luta por moradia e pelo direito cidade10. Iniciaram-se tambm atividades com jovens de escolas pblicas, focando-se no protagonismo juvenil e no Estatuto da Criana e Adolescente, alm da citada Capacitao em Direitos Humanos e Assessoria Jurdica Popular, que consiste em um projeto permanente no CAJU.

    No mesmo ano, o CAJU foi procurado pela Comisso de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Cear para, juntamente com o NAJUC (outro projeto de extenso universitria em assessoria jurdica popular da UFC), fundar o Escritrio de Direitos Humanos e Assessoria Jurdica Popular Frei Tito de Alencar, em parceria com a OAB/CE e o Tribunal de Justia do Cear.

    O CAJU possui os seguintes grupos de trabalho: 1) GT Universidade de Ideias responsvel pela Capacitao em Direitos Humanos e Assessoria Jurdica Popular e as demais atividades relacionadas ao ensino e pesquisa; 2) GT Criana e Adolescente que possui como temas prioritrios as questes ligadas aos direitos da criana e do adolescente, especialmente o direito fundamental educao; 3) GT Comunidades Urbanas cujas temticas principais so Direito Cidade e o Direito

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    Moradia11. E, atualmente, est se estruturando para tambm trabalhar as questes agrria e indgena.

    Alm desses grupos de trabalho, o CAJU integra o Comit Cearense de Educao em Direitos Humanos, articulao composta por entidades da sociedade civil e rgos do poder pblico, com o intuito de promover a socializao do Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos e elaborar o Plano Estadual de Educao em Direitos Humanos. O Comit objetiva a sensibilizao da sociedade cearense para a importncia da educao em direitos humanos como prtica de transformao social, assim como a elaborao participativa de polticas pblicas relacionadas educao em direitos humanos, atravs de um Plano Estadual e outras medidas. Entre agosto de 2006 e fevereiro de 2007, a Universidade Federal do Cear, por meio do CAJU, desenvolveu o Projeto de Fortalecimento do Comit Cearense de Educao em Direitos Humanos com recursos aprovados pelo Ministrio da Educao (MEC) e Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica. No perodo, foram realizadas diversas atividades de formao entre os integrantes do Comit e um seminrio sobre educao bsica e os direitos humanos voltado para gestores, diretores e professores da rede pblica de ensino do Municpio de Fortaleza e do Estado do Cear. Outro resultado positivo do projeto foi a organizao de livro intitulado Educao em Direitos Humanos, composto por artigos de professores que participaram das atividades desenvolvidas pelo CAJU.

    Assim, o CAJU confirma seu compromisso com a luta popular por uma sociedade mais justa, em que os direitos fundamentais estejam no apenas legislativamente previstos, mas protegidos e promovidos, garantindo-se, dessa forma, o respeito dignidade de todo ser humano, fundamento do Estado Democrtico de Direito brasileiro (LOPES, 2001, p. 35).

    Consideraes Finais

    A Assessoria Jurdica Popular (AJP) surge perante a falsa neutralidade do Direito proclamada pelo Positivismo, que, na maioria das vezes, tem assumido um carter conservador, constituindo-se um instrumento de manuteno do status quo da classe dominante, situao denunciada pelas teorias jurdicas crticas.

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    No entanto, o Direito tambm pode desenvolver um papel transformador, j que se trata de um espao de disputa de interesses. Se o Direito, por vezes, opressor, em sua fisionomia natural tambm pode ser libertador, desde que seja operado com este objetivo, conforme o defendido pelo movimento do Direito Alternativo. Para tanto, devem-se desenvolver frentes de atuao que compreendam: a) uma interpretao principiolgica do Direito, democratizante, que priorize os direitos fundamentais (nova hermenutica constitucional) e que conduza realizao da justia social, privilegiando os direitos e interesses das classes populares (uso alternativo do direito ou legalidade relida); b) a luta para a efetivao concreta dos direitos que j esto nos textos jurdicos, mas que no vm sendo aplicados (positivismo de combate ou legalidade sonegada); e c) a afirmao das prticas insurgentes, no-formais (direito alternativo em sentido estrito ou legalidade negada). Verificamos que as frentes de atuao apresentadas pelo movimento do Direito Alternativo identificam-se aos campos de luta da Assessoria Jurdica Popular, que, da mesma forma, compreende o Direito como um instrumento de transformao social.

    O amplo rol de direitos fundamentais e o Estado Democrtico de Direito proclamados pela Constituio Federal de 1988 legitimam a busca dos objetivos propostos pela Assessoria Jurdica Popular. Contudo, muito ainda h que ser feito para que a proposta constitucional se concretize. Nesse sentido, a Assessoria Jurdica Popular assume um papel fundamental na formao da comunidade de intrpretes, na provocao ao Judicirio com as novas demandas sociais, enfim, na luta em defesa e garantia dos valores constitucionais.

    Referncias

    ANDRADE, Ldio Rosa de. Introduo ao direito alternativo brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

    ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de. Direito Moderno e mudana social: ensaios de sociologia jurdica. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1997. BARROSO, Lus Roberto. Interpretao e aplicao da Constituio: fundamentos de uma dogmtica constitucional transformadora. 5. ed. So Paulo: Saraiva, 2003.

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    CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito alternativo na jurisprudncia. So Paulo: Acadmica, 1993.

    CLVE, Clmerson Merlin. A teoria constitucional e o direito alternativo (para uma dogmtica constitucional emancipatria). In: DIREITO ALTERNATIVO - SEMINRIO NACIONAL SOBRE O USO ALTERNATIVO DO DIREITO. Rio de Janeiro, 1993.

    CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistncia jurdica e realidade social: apontamentos para uma tipologia dos servios legais. In: AJUP - Instituto de Apoio Jurdico Popular. Discutindo a assessoria popular. Rio de Janeiro: FASE, 1991. Seminrios, n. 15.

    LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria jurdica popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2008.

    LYRA, Doreod Arajo (Org.). Desordem e processo: estudos sobre o Direito em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986.

    LYRA FILHO, Roberto. O Direito que se ensina errado. Braslia: Centro Acadmico de Direito da UNB, 1980.

    LOPES, Ana Maria Dvila Lopes. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2001.

    MAIA, Christianny Digenes. Assessoria Jurdica Popular: teoria e prtica emancipatria. Universidade Federal do Cear UFC, 2007. Dissertao de Mestrado.

    NOLETO, Almeida Mauro. A titularidade de direitos em perspectiva emancipatria. Porto Alegre: Fabris, 1998.

    SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revoluo democrtica da justia. So Paulo: Cortez, 2007.

    UFC. Projeto Centro de Assessoria Jurdica Universitria CAJU. Fortaleza: UFC, Pr-Reitoria de Extenso, 1998.

    WOLKMER, Antnio Carlos. Introduo ao pensamento jurdico crtico. So Paulo: Saraiva, 2001.

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    Notas

    1 Doutora e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro Titular da Comisso Executiva do Consorcio Latinamericano de Derechos Humanos (rede composta de 10 universidades latino-americanas e 5 europias). Juza do Inter American Human Rights Moot Court Competition (Academy on Human Rights and Humanitarian Law - The American University of Washington). Professora do Programa de Ps-graduao em Direito Constitucional (Mestrado/Doutorado) da Universidade de Fortaleza (UNIFOR); Atualmente encontra-se realizando pesquisa de ps-doutorado (Bolsa CNPq) em The University of Auckland (Faculty of Law).

    2 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Cear. Professora das disciplinas de Direito Constitucional e de Direitos Humanos e Fundamentais da Faculdade Christus e colaboradora do Escritrio de Direitos Humanos - EDH da mesma Faculdade. Coordenou o Centro de Assessoria Jurdica da UFC (CAJU).

    3 Anlise semelhante desenvolveu o professor Arruda Junior (1997) ao propugnar uma nova tipologia das prticas jurdicas emancipatrias nos campos da legalidade relida, da legalidade sonegada e da legalidade negada.

    4 A assistncia judiciria prestada pelos escritrios modelos tambm foi questionada pela OAB, que apresentou uma proposta de estgio interdisciplinar, capaz de atender a novas demandas sociais e a um perfil de ensino jurdico menos tecnicista. A mobilizao da OAB em torno dessa proposta resultou na Portaria n 1886/94 do Ministrio da Educao que criou a figura do ncleo de prtica jurdica. A citada portaria apresentava tambm novas diretrizes curriculares mnimas para os cursos jurdicos do pas.

    5 Vide site: .

    6 Abordando as temticas relativas a Direitos Humanos, deveres dos cidados, direito terra, direito moradia, direito do paciente, direito dos portadores de HIV, direito sade, previdncia e assistncia social, direito do trabalhador, direito educao, direito do deficiente fsico e do idoso, direito da criana e do adolescente, direito da mulher, direito da famlia e direito do consumidor.

    7 Maturi o nome dado castanha de caju ainda verde. 8 Todos os trabalhos do CAJU esto registrados nos relatrios anuais entregues Pr-Reitoria de Extenso da UFC.

    9 A misso do CAJU no est registrada em nenhum documento formal. Fruto das discusses acumuladas com o tempo, a misso foi escrita em um planejamento do projeto, por todos os cajuanos e cajuanas da poca, em um cartaz que est fixado na sala do CAJU.

    10 A promulgao do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) foi fundamental para essa deciso, pois com ele surge um forte documento jurdico que instrumentaliza a luta dos movimentos sociais pelo direito moradia, alm de trazer elementos inovadores sobre a democracia participativa.

    11 Importante atividade deste grupo foi realizada junto comunidade da Terra Prometida, no Bairro Grande Pirambu, em Fortaleza, nos anos de 2001 a 2005, atravs do qual foi desenvolvido um trabalho de Educao Popular sobre Direito Cidade e Regularizao Fundiria, resultando em aes de usucapio em prol daquela comunidade. Tal experincia encontra-se registrada em MAIA, Christianny Digenes. Assessoria Jurdica Popular: teoria e prtica emancipatria. Universidade Federal do Cear UFC, 2007. Dissertao de Mestrado.

    Recebido em: 04/2009

    Avaliado em: 07/2009

    Aprovado para publicao em: 07/2009