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Catullo da Paixão Cearense

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Page 1: Catullo da Paixão Cearense

Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autor

Presidente da RepuacuteblicaJair Messias Bolsonaro

Ministro da EducaccedilatildeoMilton Ribeiro

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARAacute ndash UFCReitorProf Joseacute Cacircndido Lustosa Bittencourt de Albuquerque

Vice-ReitorProf Joseacute Glauco Lobo Filho

Proacute-Reitor de Planejamento e AdministraccedilatildeoProf Almir Bittencourt da Silva

Proacute-Reitor de Pesquisa e Poacutes-GraduaccedilatildeoProf Jorge Herbert Soares de Lira

IMPRENSA UNIVERSITAacuteRIADiretorJoaquim Melo de Albuquerque

CONSELHO EDITORIAL

PresidenteJoaquim Melo de Albuquerque

ConselheirosProf Claudio de Albuquerque MarquesProf Antocircnio Gomes de Souza Filho Prof Rogeacuterio Teixeira MasihProf Augusto Teixeira de Albuquerque Profordf Maria Elias Soares Francisco Jonatan Soares Prof Luiz Gonzaga de Franccedila LopesProf Rodrigo MaggioniProf Armecircnio Aguiar dos SantosProf Maacutercio Viana RamosProf Andreacute Bezerra dos SantosProf Fabiano Andreacute Narciso FernandesProfordf Ana Faacutetima Carvalho FernandesProfordf Renata Bessa PontesProf Alexandre Holanda SampaioProf Alek Sandro DutraProf Joseacute Carlos Laacutezaro da Silva FilhoProf William Paiva Marques JuacuteniorProf Irapuan Peixoto Lima FilhoProf Caacutessio Adriano Braz de AquinoProf Joseacute Carlos Siqueira de SouzaProf Osmar Gonccedilalves dos Reis Filho

membros responsaacuteveis pela seleccedilatildeo das obras de acordo com o Edital nordm 132019

Fortaleza2020

Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autor

Kleiton de Sousa Moraes

Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autorCopyright copy 2020 by Kleiton de Sousa MoraesTodos os direitos reservados

Impresso no BrasIl prInted In BrazIl

Imprensa Universitaacuteria da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)Av da Universidade 2932 fundos ndash Benfica ndash Fortaleza ndash Cearaacute

Coordenaccedilatildeo editorialIvanaldo Maciel de Lima

Revisatildeo de textoAntiacutedio Oliveira

Normalizaccedilatildeo bibliograacuteficaMarilzete Melo Nascimento

Programaccedilatildeo visual Sandro Vasconcellos Thiago Nogueira

DiagramaccedilatildeoSandro Vasconcellos

CapaHeron Cruz

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na PublicaccedilatildeoBibliotecaacuteria Marilzete Melo Nascimento CRB 31135

M827c Moraes Kleiton de Sousa Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autor [livro eletrocircnico] Kleiton de Sousa Moraes - Fortaleza Imprensa Universitaacuteria 2020 2189 kb il color PDF (Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo)

ISBN 978-65-88492-14-7 1 Muacutesica popular ndash Histoacuteria e criacutetica 2 Compositores ndash Brasil 3 Catullo da Paixatildeo Cearense I Tiacutetulo CDD 92781

Para Manoel Luiz Salgado Guimaratildees pelo exemplo de eacutetica na praacutetica historiadora

Para Luiz Inaacutecio Lula da Silva pela dignidade

Para o meu Joatildeo (o que foi e o que viraacute)

AGRADECIMENTOS

Fruto de uma tese defendida em abril de 2014 junto ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro este trabalho seria impossiacutevel sem a ajuda de algumas pessoas que de alguma forma contribuiacuteram para a sua feitura Em primeiro lugar agradeccedilo agrave minha orientadora Marieta de Moraes Ferreira que com um carinho muitas vezes imprevisiacutevel nas relaccedilotildees acadecircmicas abraccedilou esta pesquisa desde os primeiros esboccedilos A ela que me deu a liberdade de criar e ousar na escrita devo muito de minha formaccedilatildeo como historiador e ofereccedilo desde jaacute algum sucesso que este trabalho possa vir a obter

Aos amigos do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro com os quais compartilho uma convivecircncia sempre amaacutevel e discussotildees pautadas por boas garga-lhadas Pela constacircncia (e nunca por uma hierarquia de amabilidade) Joatildeo Henrique Castro Juliana Torres Aline Carrijo Raquel Campos Edianne Nobre Iuri Bauler Aline Monteiro Heraacuteclio Tavares Patriacutecia Franccedila e Suellen Mayara Natildeo os esquecerei depois da uacuteltima linha deste trabalho

Agraves professoras (es) Giselle Venacircncio Eliana de Freitas Dutra Mocircnica Pimenta Velloso Lia Calabre e Francisco Reacutegis Lopes pela lei-tura atenta e dicas fundamentais no processo de qualificaccedilatildeo e de defesa Agrave Rita e Sandra secretaacuterias e amigas do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior que concedeu bolsa de doutorado para a efetivaccedilatildeo da pesquisa

Agrave Jacira e Paulo que tornaram desde o iniacutecio a ponte Fortaleza Rio de Janeiro passagens agradaacuteveis

Agrave Aline Medeiros pelos diaacutelogos amaacuteveis pela presenccedila cons-tante de uma palavra de seguranccedila e a quem tenho tanto orgulho de chamar de minha amiga

Agrave minha matildee Beatriz de Sousa Moraes que me deu a seguranccedila de enfrentar batalhas nem de longe tatildeo difiacuteceis como a que ela mesma travou para nos dar o conforto de buscar nosso proacuteprio caminho Eacute por causa de seu suporte e de sua presenccedila em muitos momentos de minha vida que existe este trabalho

Por fim agrave Sacircmia pelo amor que me conforta pela inteligecircncia que me orienta e pela paz que me envolve

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

CATULLO CEARENSE E O LUAR DA CIDADE 25Catullo e a cultura escrita 25Aos leitores ldquotudo quanto se quizerrdquo autor livro e literatura 55

COMO SE CRIA UMA AUTORIA 69O cancioneiro popular de modinhas 69Um poeta popular 85

SER POETA SER DO SERTAtildeO 98A cidade e o sertatildeo 98A livraria Castilho 112

CATULLO DA PAIXAtildeO NACIONAL 118O meu sertatildeo 118Catullo Satildeo Paulo e os modernos 134O lugar de quem fala 153Modernos e velhos 173

CATULLO EM CENA 198Dos textos aos palcos ou o inverso 198O teatro no texto 213Um boecircmio no ceacuteu 223

POR UMA REPRESENTACcedilAtildeO DE SI 242Tempo de prestar contas 242O testamento da aacutervore 259O livro derradeiro 277Representaccedilotildees sociais de um morto distinto 286

CONCLUSAtildeOA trajetoacuteria autoral de um poeta ordinaacuterio 302

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 309

ANEXO A Livros publicados por Catullo da Paixatildeo Cearense com respectivo ano da primeira ediccedilatildeo 327

O AUTOR 329

INTRODUCcedilAtildeO

O mais elevado seria compreender que tudo o que eacute faacutetico jaacute eacute teoria

J W Goethe

Radiolas Haacute certo glamour nostaacutelgico em apreciar um objeto cujo valor de uso se esvaece diante da incessante mdash e por vezes esqui-zofrecircnica mdash sede por novidades No entanto a novidade para quem volta seu interesse para o passado eacute a estranha presenccedila do velho no presente Muito jaacute se disse que o repertoacuterio de canccedilotildees que se guarda na memoacuteria ajuda a elevar esse imenso e obscuro edifiacutecio das lembranccedilas Desde muito pequeno me acostumei a ouvir e cantarolar no colo de meu ldquovocircrdquo Joatildeo vozes antigas que vinham de uma velha radiola mantida no centro da sala Ateacute onde minhas lembranccedilas desses tempos alcanccedilam consigo enxergar certas imagens cujo sentido natildeo estaria tatildeo claro para mim se natildeo fossem as canccedilotildees que as acompanham como se fosse de-senrolado diante de meus olhos um concerto nostaacutelgico

No longo repertoacuterio que minha memoacuteria acumulou de Ataulfo Alves passando por Stevie Wonder e desembocando num choroso as-sobio cantado por Roberto Carlos duas canccedilotildees durante muito tempo mobilizaram minhas lembranccedilas infantis A primeira eacute um lamento de Luiz Gonzaga sob o nome de Ave Maria sertaneja tocada no raacutedio de meu avocirc paterno todos os dias religiosamente ao findar da tarde A outra canccedilatildeo me pareceu sempre mais estranha de definir o aconteci-

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo12

mento que me liga a ela Natildeo sei bem se eu a ouvia quando visitava na Paacutescoa o sertatildeo de meus avoacutes maternos ndash ou seria apenas uma cons-truccedilatildeo a posteriori da minha memoacuteria ldquoNatildeo haacute oacute gente oacute natildeo luar como esse do sertatildeordquo

A minha certeza eacute que ainda hoje quando escuto esses versos eu componho o quadro de minha infacircncia de menino da cidade no interior O cheiro de mato molhado as casinhas que se escondiam entre uma vasta plantaccedilatildeo que havia na frente da casa de meus avoacutes e a forte pre-senccedila de meu ldquovocircrdquo Joatildeo ouvindo a canccedilatildeo diante da janela que dava para a rua sem nem mesmo esboccedilar um mero sorriso datildeo a essas lem-branccedilas uma atmosfera para mim quase religiosa Os versos eram muito rebuscados para o entendimento de uma crianccedila de seis sete mdash ou se-riam oito anos de idade Natildeo sei bem dizer Mas bem sei que um nome acompanhava a canccedilatildeo em mim Catullo da Paixatildeo E eu na minha inocecircncia de crianccedila de tatildeo pouca idade achava lindo algueacutem que tinha paixatildeo no nome e que era compositor de uma canccedilatildeo cujo tiacutetulo era Luar do sertatildeo De laacute para caacute muita coisa ouvi e vivi Conheci as Carolinas de Chico as Saacute Marinas de Simonal as garotas bonitas de Jorge e bem das paixotildees ainda permanecia em mim uma o Luar do sertatildeo Assim como a radiola que permaneceu em minha casa e cujo ruiacutedo de maacutequina velha hoje me causa essa sensaccedilatildeo mdash coisa quem sabe de historiador mdash que na falta de palavra que melhor defina chamam de deslumbramento E Luar do sertatildeo deslizando ruidosa-mente na agulha da radiola transferia-me para um tempo-espaccedilo outro Assim quase que sem motivo um dia jaacute adulto decidi eu precisava ir atraacutes de saber quem era o tal Catullo da Paixatildeo mdash o leitor natildeo me per-gunte pelo menos por ora um ldquopor quecircrdquo que faccedila muito sentido

Foi aiacute que descobri que Catullo me levava a outros lugares mais distantes do que minha infacircncia As paacuteginas que se seguem satildeo o resul-tado desse encontro onde natildeo faltaram descobertas que me abriam um leque de informaccedilotildees sobre esse personagem Descobri de iniacutecio que Catullo era tambeacutem poeta Natildeo soacute poeta da canccedilatildeo mas daqueles que escreviam livros e mais ainda um raivoso defensor do verso rebuscado mdash tal qual Bilac e o parnaso Fui aos poucos perdendo eacute verdade a paixatildeo pelo Catullo de minhas lembranccedilas a fim de encontrar mais so-

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briamente um personagem mais humano o Catullo funcionaacuterio puacute-blico o Catullo dos salotildees da elite carioca o Catullo que se vangloriava de seu letramento Assim nesse espaccedilo tenso onde paixatildeo e sobriedade se misturavam e onde minha curiosidade de historiador se aguccedilava mais do que o de apreciador de sua canccedilatildeo encontrei-o meio sem querer por inteiro Catullo da Paixatildeo Cearense

Catullo da Paixatildeo Cearense foi um profundo conhecedor das ruas do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo XIX para o XX e esse conheci-mento fez com que a elite letrada carioca aacutevida naqueles tempos por conhecer as ditas ldquocoisas popularesrdquo autorizasse sua entrada nos luxu-osos salotildees frequentados por homens ilustres como Arthur Azevedo Joatildeo do Rio e Rocha Pombo Em pouco tempo Catullo tornou-se bas-tante conhecido na sociedade carioca ainda mais apoacutes publicar pela popular livraria Quaresma coleccedilotildees de livros contendo modinhas com-piladas nas ruas cariocas e algumas mais de sua lavra

Concomitantemente ao que se tornou conhecido como ldquopoeta po-pularrdquo Catullo via no desempenho desse papel um entrave para ser re-conhecido como autor de livros ou propriamente um verdadeiro lite-rato uma vez que modinhas eram consideradas por demais ldquopopularesrdquo para que seu autor chegasse a ser reconhecido como um grande poeta Foi na construccedilatildeo de estrateacutegias textuais visando a regrar uma recepccedilatildeo de sua obra que lhe garantisse um status mais condizente com o de ldquopoetardquo que Catullo construiu sua trajetoacuteria literaacuteria

Ali a uma distacircncia que eu pudesse vislumbrar de maneira mais ldquoprudenterdquo a trajetoacuteria de meu personagem foi sendo construiacuteda uma investigaccedilatildeo que resultaria na tentativa de reconstruir tal trajetoacuteria E a de Catullo foi se constituindo em torno dos livros Em seus livros eacute possiacutevel vislumbrar um poeta se formando e sendo formado no campo literaacuterio brasileiro da primeira metade do seacuteculo XX

De partida a constataccedilatildeo de uma ausecircncia da produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense nos compecircndios de literatura brasileira fez com que este trabalho buscasse escapar de abordagens consagradas na histoacuteria literaacuteria e lanccedilasse matildeo sempre que possiacutevel de uma fuga do para-digma nacional mdash aquele que tenta ver nas obras tatildeo simplesmente expressotildees de uma tentativa de criaccedilatildeo teleoloacutegica da naccedilatildeo Isso fez

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo14

com que desde o princiacutepio do trabalho a investigaccedilatildeo de uma ldquoidenti-dade nacionalrdquo nos livros soacute adentrasse quando fosse necessaacuterio ana-lisar os seus usos mdash e nunca como temaacutetica a ser investigada a priori Se houve alguma advertecircncia admitida de iniacutecio foi a de que esta inves-tigaccedilatildeo da trajetoacuteria literaacuteria de Catullo se guiasse pelos seus textos em seu processo de produccedilatildeo e consumo A temaacutetica ldquonacionalrdquo (por vezes incontornaacutevel) natildeo guiou a narrativa que se iraacute ler mdash o que penso trouxe (e traz) agrave tona outra seacuterie de questionamentos novos no que tange agrave produccedilatildeo de textos no Brasil

A possibilidade de se investigar a trajetoacuteria de um indiviacuteduo no tempo obriga o investigador a uma seacuterie de recomendaccedilotildees de ordem teoacuterica Atentar para a necessidade imperativa de recolocar o investi-gado dentro das vaacuterias temporalidades distintas que o formam e que o fazem agir eacute hoje tarefa primordial para se tentar tal empresa mdash quando quase ningueacutem acredita mais numa coerecircncia inerente ao su-jeito em suas vaacuterias contingecircncias A emergecircncia de se pensar o sujeito em seus muacuteltiplos momentos e mais do que isso captar em cada mo-mento distinto sua accedilatildeo interessada de acordo com um espaccedilo de accedilatildeo dado funda-se numa ideia de tempo natildeo linear Nesse sentido biogra-fias satildeo sem duacutevida um exerciacutecio sempre perigoso para se aventar uma escrita pautada na negaccedilatildeo da ldquotrajetoacuteria exemplarrdquo O caminho esco-lhido por esse trabalho tentou por mais das vezes fugir dessas artima-nhas biograacuteficas e se inserir enfrentando o ldquonome proacutepriordquo num es-paccedilo de diaacutelogo onde o que ganha contorno mais especiacutefico eacute a possibilidade de investigar as estrateacutegias de construccedilatildeo de uma repre-sentaccedilatildeo autoral

O seacuteculo XX farto em produccedilatildeo biograacutefica trouxe com o ldquode-sencantamentordquo progressivo do homem produzido pelas reflexotildees das ciecircncias humanas uma criacutetica agrave narrativa linear ndash que heroificava ou ldquogenializavardquo o biografado dando-lhe um caraacuteter de exemplaridade Isso resultou numa percepccedilatildeo aguda da fragilidade do homem diante do mundo que o rodeia Desde iniacutecios do seacuteculo passado com a psicanaacute-lise de Freud passando pela febre do estigmatizado ldquoestruturalismordquo nos anos 1950 e 1960 ateacute os vaacuterios ldquopoacutesrdquo que constroem nossa moder-nidade o homem foi relativizando progressivamente sua autonomia

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diante das ldquocoisas do mundordquo fazendo com que alguns chegassem agrave absurda tese da ldquomorte do sujeitordquo

Se tal constataccedilatildeo rendeu resultados profiacutecuos na reflexatildeo das Ciecircncias Humanas contingenciando o homem diante do mundo por outro lado a radicalizaccedilatildeo dessa criacutetica em alguns casos perdeu de vista o objeto central de toda reflexatildeo ou seja o proacuteprio homem Tais aportes se disseminaram por diversas aacutereas da chamada Humanidades a Sociologia a Histoacuteria a Psicologia a Antropologia e as Letras A criacutetica literaacuteria se deixou consumir por semelhante guinada de forma tal que foi nela onde o espasmo se mostrou mais fatal

Acostumados a conviver com investigaccedilotildees de obras onde pre-dominava o papel do sujeito-escritor como fundamental e uacutenico na criacutetica historiadores da literatura e criacuteticos literaacuterios sofreram um duro golpe desferido especialmente a partir de algumas proposiccedilotildees vindas da semioacutetica e da linguiacutestica alguns se vangloriavam de haver encon-trado na estruturaccedilatildeo da liacutengua em determinado texto o diagnoacutestico final de uma obra Tudo transcorria em meados da deacutecada de 1960 como se o ldquofim da histoacuteriardquo no tratamento de textos finalmente hou-vesse chegado

Poreacutem foi exatamente pelo inconformismo tanto diante da auto-nomia absoluta do texto quanto da velha criacutetica que dava primazia ao nome como explicaccedilatildeo uacutenica da obra que surgiu de vaacuterios lugares a criacutetica da entatildeo nova criacutetica A esteacutetica da recepccedilatildeo de Jauss Iser e Gumbrecht na Alemanha propunha ainda na deacutecada de 1960 um es-forccedilo para a compreensatildeo do campo literaacuterio como espaccedilo do qual fa-ziam parte tambeacutem os leitores cuja interpretaccedilatildeo dos textos natildeo raras vezes fugia dos limites pensados pelo autor na escrita No mundo an-glo-saxatildeo o novo historicismo recolocava a necessidade de se (re)pensar a historicidade dos textos Na Franccedila onde o estruturalismo reinou de maneira mais imperativa nas Ciecircncias Humanas nomes como Pierre Bourdieu e Michel Foucault reintroduziam o sujeito de escolhas no acircmago dos meios universitaacuterios propondo um tenso casamento entre estrutura e sujeito de tal forma que a compreensatildeo das accedilotildees humanas pudesse ser pensada levando em consideraccedilatildeo o exerciacutecio constante da negociaccedilatildeo entre um e outro No campo historiograacutefico isso resultou

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo16

num novo diaacutelogo estabelecido com a Sociologia e a Criacutetica Literaacuteria e uma reintroduccedilatildeo das reflexotildees acerca do estatuto da produccedilatildeo de uma escrita historiograacutefica cujo aacutepice foram as polecircmicas que envolveram o historiador estadunidense Hayden White

Essas premissas geraram uma visatildeo mais aguda e criacutetica do termo ldquoculturardquo colocando a historicidade de seu uso como mateacuteria de ponta a fim de compreender melhor os atos humanos no tempo Daiacute o ato da leitura ter ganhado um status diferente desembocando nas reflexotildees produzidas pela assim chamada Nova Histoacuteria Cultural um tiacutetulo impreciso que abrigava nomes como Carlo Ginzburg e Raymond Williams que embora tatildeo diacutespares tinham em comum o fato de colocarem a ldquoculturardquo (ou a historicidade dela) no centro de suas reflexotildees Dentre esses autores identificados com a Nova Histoacuteria Cultural o historiador Roger Chartier foi aquele para quem a sistema-tizaccedilatildeo de um projeto historiograacutefico sob esse nome ganhou contornos mais niacutetidos ndash e mais problemaacuteticos pela miscelacircnea de autores que se propotildee evocar

Retomando Norbert Elias dialogando com a fenomenologia do sujeito de Paul Ricouer a sociologia de Bourdieu e as ideias de Michel Foucault introduzindo a criacutetica textual como criacutetica tambeacutem das formas de leitura e fiel agraves reflexotildees instigantes de Michel de Certeau Chartier insistiu no estatuto contingente da leitura num consequente ataque agraves criacuteticas semioticistas que apagavam o espaccedilo de produccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do texto de seus interesses

Seguramente isso natildeo soacute reintroduziu a leitura como momento importante na produccedilatildeo de sentidos do texto mdash em diaacutelogo aberto com a esteacutetica da recepccedilatildeo mdash como lanccedilou luz sobre os elementos que tor-navam uma leitura possiacutevel Daiacute um acentuado interesse sobre a morfo-logia dos textos com o nome do biblioacutegrafo neozelandecircs Don Mckenzie interessado na historicidade das formas dos textos tornando-se comum nos trabalhos de Chartier Mas se tal aventura sobre a produccedilatildeo de sen-tidos de um texto colocava na pauta do dia atentar para as estrateacutegias de leitores editores e tipoacutegrafos a reflexatildeo sobre o papel do ldquoautorrdquo na nova criacutetica textual que se queria ainda se ressentia de uma tendecircncia fundante da literatura ocidental qual seja a da distinccedilatildeo do autor de

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livros na sociedade Ou para dizer mais claramente a constante ldquogenia-lizaccedilatildeordquo do indiviacuteduo que escreve livros

O ldquonome proacutepriordquo ainda era uma barreira difiacutecil de contornar quando se pensavam as relaccedilotildees entre autoria e texto Nesse ponto es-peciacutefico Norbert Elias com seu Mozart e Pierre Bourdieu com As regras da arte jaacute haviam dado suas contribuiccedilotildees na derrubada difiacutecil e edificante do ldquonome proacutepriordquo No campo historiograacutefico isso se daria mais tarde

No Brasil a biografia exemplar ainda absorve grande parte da produccedilatildeo de reflexotildees que pautam uma trajetoacuteria autoral O ldquonome proacute-priordquo muitas vezes ganha as prateleiras com best sellers biograacuteficos de emulaccedilatildeo onde a genialidade e a trajetoacuteria incomum ganham mais es-paccedilo do que a reflexatildeo criacutetica A consolidaccedilatildeo de uma vida distinta se sobrepotildee agrave ldquohumanidaderdquo do indiviacuteduo Na produccedilatildeo historiograacutefica o temor por encarar o ldquonomerdquo segue uma receita ndash jaacute consolidada pelo menos na historiografia mdash que teme pela escrita que possa evocar as foacutermulas das velhas biografias

Ademais no campo da literatura ndash espaccedilo de consagraccedilatildeo do su-jeito em diversos locais do ocidente ndash a produccedilatildeo de um cacircnone tei-mava havia pouco tempo em apagar a pesquisa que introduzisse o papel do editor e leitor no acircmago da produccedilatildeo do texto do autor consa-grado Daiacute da anaacutelise criacutetica da historicidade dos textos os novos pes-quisadores que tentavam fugir do cacircnone buscaram antes proceder agrave anaacutelise criacutetica da historicidade do cacircnone Alcir Peacutecora e Joatildeo Adolfo Hansen satildeo sem sombra de duacutevida os arautos desse tipo de criacutetica no Brasil A partir de seus trabalhos puderam surgir novos problemas para se trabalhar com textos no Brasil e na esteira disso reapareceram nomes de escritores ndash muitos deles pouco reconhecidos por uma ldquoHistoacuteria da Literaturardquo ndash que ganharam as paacuteginas de trabalhos univer-sitaacuterios como Luiz Murat e Benjamin Constallat e novas abordagens de leitura de autores e obras consagradas ganharam contorno1

1 Para citar apenas um livro da vasta bibliografia de Joatildeo Adolfo Hansen e Alcir Peacutecora penso ser de fundamental importacircncia para se pensar a introduccedilatildeo de novas abordagens no tratamento de textos literaacuterios os seguintes HANSEN Joatildeo Adolfo A saacutetira e o en-

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No entanto para a compreensatildeo de uma trajetoacuteria ndash seja ela lite-raacuteria ou natildeo ndash eacute imprescindiacutevel chamar a atenccedilatildeo a algumas outras ad-vertecircncias A primeira eacute natildeo perder de vista o caraacuteter muacuteltiplo de uma vida destacando dentro de uma rede de relaccedilotildees que o indiviacuteduo manteacutem com seus pares os vaacuterios estados em que ela se desenrola atentando para seu caraacuteter natildeo linear

O que equivale a dizer que natildeo podemos compreender uma trajetoacuteria [] sem que tenhamos previamente construiacutedo os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e logo o conjunto das relaccedilotildees obje-tivas que uniram o agente considerado mdash pelo menos em certo nuacutemero de estados pertinentes mdash ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaccedilo dos possiacuteveis2

O trabalho que o leitor tem em matildeos procurou nesse intuito analisar a obra de Catullo da Paixatildeo Cearense a partir de dois vieses fundamentais quais sejam a construccedilatildeo de uma autoridade sobre os textos publicados sob seu nome e o constante e tenso processo de cons-tituiccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do caraacuteter distinto de sua obra O primeiro ponto eacute tanto mais importante uma vez que as publicaccedilotildees iniciais de Catullo destacam-se por uma tentativa de apropriaccedilatildeo do conteuacutedo do texto ndash coletado nas ruas do Rio de Janeiro de entatildeo mdash sob seu nome proacuteprio O leitor veraacute que a singularidade aqui reside no fato de existir uma identificaccedilatildeo dos textos publicados por Catullo com o que se denomi-nava uma forma ldquopopularrdquo ndash com este termo designando agrave eacutepoca muitas vezes uma ausecircncia de autor aproximando-se daquilo que era entendido como parte de um possiacutevel ldquofolclorerdquo Daiacute duas primeiras questotildees se colocaram como Catullo se tornou o autor de textos identi-ficados a priori como sem autor E como se apropriou de outras tantas cuja autoria era relativamente reconhecida A apropriaccedilatildeo de um con-teuacutedo a partir de uma forma como veremos eacute um aspecto importante

genho Gregoacuterio de Matos e a Bahia do seacuteculo XVII Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial Campinas Unicamp 2004 e PEacuteCORA Alcir A maacutequina de Gecircneros Satildeo Paulo Edusp 2001

2 BOURDIEU Pierre A ilusatildeo biograacutefica In FERREIRA Marieta de Moraes AMADO Janaiacutena Usos e abusos da histoacuteria oral Rio de Janeiro FGV 2006 p 190

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desse primeiro questionamento pois eacute sob uma forma dada a ler que se produz uma autoria

Haacute de se salientar que a apropriaccedilatildeo de textos anocircnimos por um indiviacuteduo projeta para seus leitores uma sensaccedilatildeo de se estar lendo um ldquoautorrdquo Na busca por regrar a recepccedilatildeo dos textos publicados sob seu nome o autor Catullo se valia de sua aguda compreensatildeo das formali-dades que governavam a construccedilatildeo de uma ldquoautoriardquo na literatura pro-duzida na virada do seacuteculo XIX e XX no Brasil Ademais nosso perso-nagem era tanto um aacutevido frequentador das rodas boecircmias do Rio de Janeiro quanto dos espaccedilos de consagraccedilatildeo de letrados no periacuteodo Participando desses espaccedilos de sociabilidades parecia procurar as fer-ramentas que auxiliariam a construccedilatildeo da autoria em seus textos Era em busca de uma leitura regrada que Catullo se colocava entre a orali-dade coletada nas ruas e o mundo letrado do periacuteodo dramatizando em textos seu entrecaminho como forma de buscar um reconhecimento de sua autoridade

Atento a essa necessidade de buscar tambeacutem nessas redes de so-ciabilidade elementos para a compreensatildeo dos textos de Catullo com-preendemos como Michel Foucault e Pierre Bourdieu que eacute preciso cotejar os vaacuterios discursos que constroem dentro de determinado campo as relaccedilotildees que tornam possiacutevel a existecircncia de um texto ou seja

Talvez seja o momento de estudar os discursos natildeo mais apenas em seu valor expressivo ou suas transformaccedilotildees formais mas nas moda-lidades de sua existecircncia os modos de circulaccedilatildeo de valorizaccedilatildeo de atribuiccedilatildeo de apropriaccedilatildeo dos discursos variam de acordo com cada cultura e se modificam no interior de cada uma a maneira como eles se articulam nas relaccedilotildees sociais se decifra de modo parece-me mais direto no jogo da funccedilatildeo autor e em suas modificaccedilotildees do que nos temas ou nos conceitos que eles operam3

Essa abordagem abre espaccedilo para que enfatizemos a necessidade de atentar para uma sociologia dos textos que ultrapasse uma histoacuteria

3 FOUCAULT Michel O que eacute um autor In FOUCAULT Michel Ditos e escritos Esteacutetica literatura e pintura muacutesica e cinema Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009 v III p 286

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo20

social dos textos e atente para a maneira pelas quais tambeacutem as suas formas materiais de difusatildeo afetam os sentidos dados a eles pelos lei-tores Aiacute se impotildee uma advertecircncia que diz respeito agrave dimensatildeo morfo-loacutegica do texto a da imprescindibilidade de investigar o seu sentido em suas diversas formas de circulaccedilatildeo De pensar o suporte que o carrega como parte incontornaacutevel na construccedilatildeo do seu sentido Tal abordagem vai ao encontro das reflexotildees do biblioacutegrafo neozelandecircs Don Mckenzie quando salienta que

Un libro nunca es simplemente un objeto extraordinaacuterio Como todas las otras tecnologiacuteas siempre es producto de la actuacioacuten humana en contextos complejos y altamente volaacutetiles que una investigacioacuten cabal tiene que intentar recuperar si desea entender mejor la creacioacuten y la comunicacioacuten de significados como caracteriacutestica definitoria de las so-ciedades humanas4

Ora eacute no espaccedilo de produccedilatildeo de livros ndash o qual adentram autores editores impressores tipoacutegrafos e leitores ndash que se constroem os muacutelti-plos sentidos que por fim vatildeo gerar os textos Eacute nesse espaccedilo de pro-duccedilatildeo cultural historicamente constituiacutedo e em constante movimento que se deve buscar a compreensatildeo das representaccedilotildees construiacutedas por aqueles que se apropriam dos textos seja por meio de uma leitura seja para regrar a leitura como comumente o tentam autores e editores

Assim Chartier relativiza os sentidos de uma obra distribuindo tambeacutem para outras instacircncias o sentido de determinado texto

O autor tal como ele faz a sua reapariccedilatildeo na histoacuteria e na teoria literaacuteria eacute ao mesmo tempo dependente e reprimido Dependente ele natildeo eacute o mestre do sentido e suas intenccedilotildees expressas na produccedilatildeo do texto natildeo se impotildeem necessariamente nem para aqueles que fazem desse texto um livro (livreiro-editores ou operaacuterios da impressatildeo) nem para aqueles que dele se apropriam para a leitura Reprimido ele se submete agraves muacuteltiplas determinaccedilotildees que organizam o espaccedilo social da produccedilatildeo

4 MCKENZIE Donald Francia Bibliografiacutea y sociologia de los textos Madrid Ediciones Akal 2005 p 22

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literaacuteria ou que mais comumente delimitam as categorias e as experi-ecircncias que satildeo as proacuteprias matrizes da escrita5

Aliaacutes contra toda pretensatildeo reificadora do autor levada ao ex-tremo pela afirmaccedilatildeo da figura romacircntica do gecircnio Chartier seguindo o rastro de Michel de Certeau contrapotildee os vaacuterios feixes que podem determinar uma apropriaccedilatildeo em uma cultura escrita e as vaacuterias estrateacute-gias mobilizadas pela figura do autor na tentativa de regrar a apro-priaccedilatildeo dos textos sob seu nome

A formaccedilatildeo de um nome distinto no campo literaacuterio a partir da construccedilatildeo de representaccedilotildees do sujeito que escreve a incorporaccedilatildeo nos textos de elementos que pudessem regrar uma leitura interessada e as lutas de representaccedilatildeo para a manutenccedilatildeo de um status condizente com o de poeta ndash inclusive com a ressignificaccedilatildeo daquilo entendido como ldquopoetardquondash satildeo alguns dos temas que o leitor poderaacute vislumbrar nas paacuteginas que seguiratildeo Se exitosas fundamentalmente elas mostraratildeo na trajetoacuteria de Catullo um questionamento constante de como se cons-troem um autor um poeta e um literato A aparente obviedade da res-posta a essa pergunta esbarra nas vaacuterias compreensotildees que historica-mente tecircm-se da figura do autor do poeta e da literatura Natildeo se deve portanto defini-las sem levar em consideraccedilatildeo as praacuteticas que denun-ciam um processo de construccedilatildeo de tais termos

A partir dessas reflexotildees o capiacutetulo intitulado ldquoCatullo Cea-rense o luar da cidaderdquo discute a cultura letrada do Rio de Janeiro de entatildeo que tornou possiacutevel o aparecimento de Catullo da Paixatildeo Cearense como autor de livros Aiacute o foco se estenderaacute sobre as repre-sentaccedilotildees de modinhas na sociedade carioca da eacutepoca e de como elas foram aos poucos ganhando um novo status aos olhares dos letrados Pretende-se compreender como se constituiacuteam as representaccedilotildees de um ldquohomem letradordquo nesse iniacutecio de seacuteculo e como essas representa-ccedilotildees satildeo fundamentais para se perceber as definiccedilotildees daquilo que se-riam termos relevantes agrave eacutepoca para a configuraccedilatildeo dos sujeitos parti-cipantes do campo literaacuterio tais como ldquopopularrdquo ldquoautorrdquo e ldquopoetardquo

5 CHARTIER Roger A ordem dos livros Brasiacutelia UnB 1996 p 36

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No capiacutetulo seguite ldquoComo se cria uma autoriardquo apresento a anaacute-lise das primeiras publicaccedilotildees de Catullo investigando de maneira mais pormenorizada as estrateacutegias de escrita mobilizadas pelo autor para ser reconhecido como um poeta letrado de fato Nele priorizo o Cancioneiro popular de modinhas brasileiras publicaccedilatildeo que teve incriacuteveis 25 edi-ccedilotildees em menos de dez anos A luta para que sua produccedilatildeo modinheira fosse tambeacutem passiacutevel de ser encarada como ldquopoemardquo e as asserccedilotildees de estrateacutegias editoriais na construccedilatildeo exitosa das suas publicaccedilotildees satildeo ele-mentos que ganham uma anaacutelise pormenorizada nessa parte do trabalho

Em ldquoSer poeta ser do sertatildeordquo discuto o lugar central dos temas sertanejos na sociedade carioca de entatildeo que viu surgir uma febre por temaacuteticas que focavam o interior do Brasil com objetivos vaacuterios entre eles aquele que buscava nas representaccedilotildees sertanejas na literatura a afirmaccedilatildeo de uma ldquosupostardquo alma nacional Aiacute vai ser possiacutevel ver como diversos autores mobilizaram estrategicamente tal temaacutetica a fim de serem reconhecidos como ldquoautores nacionaisrdquo

Tambeacutem foram investigadas as tipologias que marcavam as re-presentaccedilotildees de editoras como a Castilho que buscou inicialmente por meio de seu proprietaacuterio Antocircnio Castilho ser reconhecida como uma editora de literatura ldquoseacuteriardquo Ressaltarei aiacute a necessidade de se buscar tambeacutem nas representaccedilotildees editoriais material necessaacuterio para se compreender o aparecimento de obras literaacuterias

No capiacutetulo ldquoCatullo da Paixatildeo Nacionalrdquo demonstro como pro-gressivamente Catullo foi se arvorando como um poeta conhecedor do ldquosertatildeordquo e como nesse movimento foi construindo uma autoridade a partir tanto de seu capital social adquirido mdash que seu editor fazia aparecer em suas publicaccedilotildees pelas dedicatoacuterias e opiniotildees de conhecidos letrados mdash quanto das proacuteprias representaccedilotildees que fazia aparecer em seus textos Discuto ainda a relaccedilatildeo de Catullo com os modernistas e as discussotildees que se desenrolavam em torno de temas como ldquoliteratura nacionalrdquo para daiacute analisar como essa tensatildeo que debatia no Brasil o que era antigo e moderno aparecia nos textos que Catullo publicou no periacuteodo

No capiacutetulo ldquoCatullo em cenardquo propotildee algumas reflexotildees sobre a relaccedilatildeo de Catullo com o teatro de revista e sobre como essa aproximaccedilatildeo se expressava em seus livros onde apareciam diversas menccedilotildees a uma

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leitura performaacutetica do texto visando a uma encenaccedilatildeo Essa investigaccedilatildeo se pautaraacute principalmente a partir da anaacutelise do livro de Catullo intitu-lado Um boecircmio no ceacuteu Nesse capiacutetulo pretende-se compreender tambeacutem como o sucesso do raacutedio fez com que Catullo retomasse sua representaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo dramatizando essa condiccedilatildeo nos textos

No uacuteltimo capiacutetulo ldquoPor uma representaccedilatildeo de sirdquo o trabalho se foca principalmente na atuaccedilatildeo do herdeiro dos direitos autorais de Catullo quando este ainda vivia o escritor e organizador de suas uacuteltimas obras em vida Guimaratildees Martins A partir disso estabeleci um diaacutelogo com algumas praacuteticas letradas que se esboccedilavam jaacute nos anos 1930 e 40 notadamente a discussatildeo que se seguiu com a criaccedilatildeo de associaccedilotildees para a luta pelos direitos de escritores e tambeacutem de compositores da dita ldquomuacutesica popularrdquo Eacute possiacutevel vislumbrar nos textos produzidos nessa eacutepoca uma luta de representaccedilotildees na construccedilatildeo de um ldquolugar consa-gradordquo para Catullo Essa luta colocou em lados opostos em vaacuterios mo-mentos interesses do organizador do editor e do autor Catullo

Por diversas vezes no texto seraacute possiacutevel vislumbrar vestiacutegios do diaacutelogo de Catullo com seus leitores Por sorte nosso personagem natildeo era um esteta envolto em torre de marfim mas algueacutem atento agrave opiniatildeo de seus leitores mdash natildeo raro por conta de uma forte vaidade O autor lhes respondia inclusive diretamente nas modinhas e poemas por vezes de maneira sutil fazendo novas escolhas temaacuteticas ou mudando a proacutepria linguagem expressiva de seus textos Essa postura foi de grande valia para a compreensatildeo de seus textos como diaacutelogos com os leitores em sua tentativa de regrar uma leitura que quase nunca se submetia ao sen-tido intentado pelo seu autor primeiro

Por fim a partir da trajetoacuteria autoral de Catullo da Paixatildeo Cearense trago agrave tona algumas reflexotildees sobre a construccedilatildeo de uma autoria na primeira metade do seacuteculo XX e como nesse sentido a anaacute-lise singular de uma trajetoacuteria especiacutefica pode contribuir para se pensar tanto a cultura escrita de uma eacutepoca e os sentidos que ela daacute ao objeto ldquolivrordquo quanto a relaccedilatildeo articulada entre autor editor e consumidor de livros nesse iniacutecio de seacuteculo

Pretendo que o possiacutevel estranhamento inicial do leitor ao se deparar com as paacuteginas que viratildeo falando de um autor relativamente

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desconhecido e paradoxalmente best-seller em sua eacutepoca seja afinal um convite para conhecer uma trajetoacuteria quase nunca previsiacutevel Que esse mesmo estranhamento pela contrariedade que traz seja ele mesmo um indiacutecio da necessidade de se conhecer os meandros que condicionam o aparecimento de um autor em determinado campo lite-raacuterio no tempo

Figura 1 ndash Catullo da Paixatildeo Cearense em foto dos anos 1940

Fonte Arquivo do autor

Fonte arquivo do autor

CATULLO CEARENSE E O LUAR DA CIDADE

Catullo e a cultura escrita

Na tarde do dia 12 de setembro de 1918 um distinto puacuteblico aglomerava-se nos corredores do Teatro Satildeo Pedro no centro do Rio de Janeiro para assistir ao espetaacuteculo realizado em homenagem a um poeta Um poeta ldquopopularrdquo como diria o Sr Roquette Pinto orador oficial naquela tarde Ali homens como Assis Chateaubriand Pandiaacute Caloacutegeras e Paulo Barreto (mais conhecido como Joatildeo do Rio) dispu-tavam espaccedilos das fileiras do teatro a fim de prestigiar o famoso poeta que entrou no palco elegantemente trajado trazendo consigo um violatildeo A plateia poreacutem natildeo se espantava uma vez que os versos do homena-geado eram mais comumente ouvidos sendo acompanhados ao som meloacutedico do instrumento Por isso mesmo ningueacutem ali se assustou quando sua poesia foi recitada pelas vozes da Exmordf Srordf D Acircngela Vargas Barboza Vianna e dos senhores Arruda Vallim Mario Pinheiro Frederico Rocha e Alberto Pires com o violatildeo compondo o fundo musi-cal6 O extravagante poeta atendia pelo nome ainda mais extravagante de Catullo da Paixatildeo Cearense

6 Para os eventos narrados cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 17-22 Sobre a programaccedilatildeo daquela noite no Teatro Satildeo Pedro cf O Paiz 12 set 1918 p 5

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A iniciativa daquela homenagem partiu do jovem advogado Assis Chateaubriand que para tanto formou uma ldquoComissatildeo Central de Homenagem a Catullordquo incluindo nomes os mais distintos da sociedade carioca naqueles tempos entre os quais os membros da Academia Brasileira de Letras (ABL) Maacuterio de Alencar e Joatildeo do Rio A festa vi-sava a angariar fundos para a publicaccedilatildeo de um futuro livro de Catullo O ecircxito do evento viria ainda naquele mesmo ano com o lanccedilamento pela livraria Castilho do volume de poesias Meu sertatildeo com prefaacutecios de Afracircnio Peixoto (da Academia Brasileira de Letras) e Alberto drsquoOliveira (da Academia de Ciecircncias de Lisboa) No livro o autor lanccedilava matildeo de representaccedilotildees da fala sertaneja a partir da criaccedilatildeo de personagens oriundos do sertatildeo Apresentado por Afracircnio Peixoto como um ldquogrande poetardquo Catullo Cearense apresentava sua poesia nos meios letrados com a ambiciosa tentativa de representaccedilatildeo de uma espeacutecie de linguajar serta-nejo no texto Em Meu sertatildeo Catullo se valia de um suposto referente oral (a fala sertaneja) que era reproduzido no seu texto ipsis litteris tais quais os poemas de cordel jaacute comuns no Rio de Janeiro do periacuteodo

A foacutermula resultaria num sucesso editorial e ficaria marcada como a primeira obra do intitulado ldquopoeta sertanejordquo Catullo da Paixatildeo Cearense Entretanto embora o volume de poesias Meu sertatildeo revelasse um ldquopoeta sertanejordquo natildeo fora propriamente com esse epiacuteteto que o nome de Catullo Cearense veio agrave luz nos meios letrados de iniacutecios do seacuteculo XX tampouco aquela fora sua primeira publicaccedilatildeo com pretensotildees poeacute-ticas Antes disso Catullo era conhecido por organizar livros de modi-nhas que circulavam pelas livrarias do Rio de Janeiro e por reivindicar para esse tipo de produccedilatildeo um valor literaacuterio nem sempre reconhecido

Entre 1894 (data da publicaccedilatildeo de seu primeiro livro com letras de modinhas) e 1946 (ano de publicaccedilatildeo de seu uacuteltimo livro) contabili-zam-se 29 obras de gecircneros os mais variados com diversas ediccedilotildees lanccediladas (algumas chegando a incriacuteveis 50 ediccedilotildees) que deram a Catullo o reconhecimento ainda em vida como poeta muacutesico teatroacute-logo e compositor de modinhas7

7 Em anexo estatildeo elencadas todas as publicaccedilotildees sob a organizaccedilatildeo ou autoria de Catullo durante esse periacuteodo

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Nascido em Satildeo Luiacutes do Maranhatildeo em data incerta (entre 1863 e 1866) Catullo era filho do ourives Amacircncio Joseacute da Paixatildeo Cearense que por ser natural do Cearaacute acabou assumindo a alcunha tambeacutem no nome8 Quando contava por volta de dez anos de idade Catullo foi morar com os pais e irmatildeos na fazenda dos avoacutes paternos em Maranguape no sertatildeo cearense Ali Catullo viveu por pouco menos de sete anos ateacute que em 1880 mudou-se em definitivo para a capital do ainda Impeacuterio brasileiro o Rio de Janeiro Laacute fixou-se com a fa-miacutelia numa casa na Rua Satildeo Clemente nordm 37 em Botafogo onde seu pai instalou sua ourivesaria e relojoaria De laacute veria participando in-clusive as transformaccedilotildees sociopoliacuteticas pelas quais o Rio passava na-quele fim de seacuteculo

Segundo alguns de seus bioacutegrafos Catullo era um autodidata que aprendeu grego italiano matemaacutetica e francecircs e que posteriormente ateacute iria fazer algumas traduccedilotildees de poesias transformando-as em letras de modinhas como as do poeta francecircs Alphonsus de Lamartine No entanto ao que parece seu pai investia na educaccedilatildeo distinta do filho de modo que eacute possiacutevel encontrar ainda em 1881 nas paacuteginas dos jornais cariocas o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense no chamamento para os exames preparatoacuterios em portuguecircs e em 1883 para os de francecircs embora natildeo haja registros de sucessos nessas investidas9

Do seu periacuteodo de juventude pouco se sabe Mas ao que parece desde muito jovem Catullo frequentava as noites cariocas estabele-cendo contato com grupos de modinheiros e chorotildees Aprendeu a tocar flauta mas logo lhe ensinaram o violatildeo Conta-se que o pai era contra a vida boecircmia do filho e que em uma dessas noitadas ao vecirc-lo voltar para casa depois de uma farra com os amigos chegou a quebrar-lhe o

8 Essa informaccedilatildeo nos eacute dada por um dos bioacutegrafos de Catullo o poeta Carlos Maul que escreve ldquoNo comeccedilo desta histoacuteria saiu Joseacute Amacircncio da Paixatildeo Cearense pai de Catullo como natural do Maranhatildeo quando ao certo ele era do Cearaacute Mudado para o Cearaacute e aiacute instalado com sua oficina de ourives depressa se popularizou e todos o chamavam de lsquoo cearensersquo devido agrave sua procedecircncia De tanto ouvir tratarem-no assim acabou por fazer um registro de seu nome com esse acreacutescimo E ao nascerem-lhe os filhos batizou-os a todos com o sobrenome de lsquoCearensersquordquo Cf MAUL Carlos Catullo sua vida sua obra seu romance 2 ed Rio de Janeiro Livraria Satildeo Joseacute 1971 p 14

9 Cf Gazeta da Tarde 19 nov 1881 p 2 Gazeta de Notiacutecias 4 set 1883 p 2 e 2 out 1883 p 2

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violatildeo na cabeccedila10 Aliaacutes relembrando sua juventude em um de seus livros Catullo contava que o violatildeo era nesse tempo malquisto pela parte mais ldquomodestardquo da sociedade carioca e que natildeo obstante

Aos 19 anos interrompi os estudos para abraccedilar-me fervorosamente ao violatildeo Naquelle tempo esse instrumento era repelido dos lares mais modestos [Grifo meu)] Quem o tocasse era um desacreditado Foi nesse tempo que entrei a escrever e a cantar modinhas []11

Ainda que a afirmaccedilatildeo de que o violatildeo fosse um instrumento malquisto possa ser em parte confirmada mdash aliaacutes afirmaccedilatildeo comu-mente reafirmada pelos estudiosos desse periacuteodo mdash o que Catullo re-lata ao contraacuterio eacute que esse olhar de descreacutedito era encontrado na parte mais ldquomodestardquo da sociedade O que se depreende do testemunho de Catullo eacute que tal afirmativa deve ser relativizada dependendo das repre-sentaccedilotildees sociais do instrumento e das praacuteticas sociais a que se refira Eacute razoaacutevel pensar que a imagem de um violatildeo carregado por algueacutem de um segmento social mais abastado natildeo causasse o ldquodescreacuteditordquo que Catullo observava Ele mesmo reiterava essas impressotildees sobre o ins-trumento quando relembrava o episoacutedio da surra que levou do pai

Foi a primeira sova que apanhei Hoje poreacutem eu compreendo meu pai Naquele tempo o violatildeo era um instrumento maldito A sova foi tamanha que me escondi durante semanas em Copacabana em casa de um negro velho de nome Oliveira soldado reformado da guerra do Paraguai Naquele tempo Copacabana era um areal sem fim E dizer algueacutem como eu digo escondi-me em Copacabana era o mesmo que falar ningueacutem me encontraria Meu pai queria meter-me na Marinha para curar-me do violatildeo Ameaccedilou muitas e muitas vezes []12

10 Todos os dados biograacuteficos narrados ateacute aqui foram retirados aleacutem dos jornais da eacutepoca de depoimentos dados por Catullo e reproduzido em biografias tais como MAUL Carlos Catullo sua vida sua obra seu romance 2 ed Rio de Janeiro Livraria Satildeo Joseacute 1971 ARAUacuteJO Murilo Ontem ao luar Rio de Janeiro A Noite 1951 COSTA Haroldo Catullo da paixatildeo vida e obra Rio de Janeiro ND Comunicaccedilatildeo 2009

11 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Notas In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illumi-nada Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 235 (1ordf ediccedilatildeo em 1924)

12 Apud COSTA Op cit p 29

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Copacabana seria lugar onde Catullo iria se aprofundar mais ainda no conhecimento da boecircmia carioca Na Rua Barroso (hoje Siqueira Campos) numa repuacuteblica de estudantes ele se reunia com bo-ecircmios para beber e tocar Foi ali que aprendeu a tocar violatildeo e segundo informa o pesquisador Ary Vasconcelos compocircs sua primeira modinha Ao luar13 Pertencendo a uma famiacutelia ldquomodestardquo Catullo poderia ser compreendido como um desqualificado por portar um violatildeo mas em-bora o violatildeo fosse representado como ldquoinstrumento malditordquo essa mesma estigmatizaccedilatildeo do instrumento natildeo se poderia encontrar quando da sua presenccedila nos grandes salotildees a acompanhar modinhas E foram nos salotildees da elite carioca que em pouco tempo Catullo adentrou em-punhando o instrumento

Em fins do seacuteculo XIX o jovem Catullo da Paixatildeo Cearense co-meccedilou a frequentar as noites da cidade e tomou contato com jovens muacutesicos posteriormente consagrados como o ainda estudante de muacute-sica Anacleto de Medeiros o ldquolendaacuteriordquo violonista Quincas Laranjeiras e o futuro cantor Cadete mdash um dos primeiros a ter sua voz gravada no Brasil em cilindros das Casas Edison A partir daiacute se tornaria um co-nhecido frequentador das rodas boecircmias e serenatas nas ruas do Rio de Janeiro travando amizade com nomes como Villa Lobos e Joatildeo Pernambuco Tais rodas eram natildeo raramente frequentadas por mem-bros da elite letrada carioca fazendo com que nomes da boecircmia vez ou outra fossem chamados para as festas nos salotildees de ldquofigurotildeesrdquo

Com a morte de sua matildee (em 1880) e de seu pai (em 1883) Catullo foi trabalhar na administraccedilatildeo do Cais do Porto primeiramente como contiacutenuo e depois como estivador alternando seu tempo com tra-balhos no cais durante o dia e apresentaccedilatildeo de modinhas durante a noite Nesse mesmo momento a atraccedilatildeo pelo exoacutetico abria os salotildees das residecircncias de famiacutelias mais ilustres para apresentaccedilotildees de motivos ditos ldquopopularesrdquo A curiosidade por expressotildees ldquopopularesrdquo ia cons-truindo a ideia de um folclore nacional

13 VASCONCELOS Ary Panorama da muacutesica popular brasileira na Belle Eacutepoque Rio de Janeiro Livraria SantrsquoAnna 1977 p 116

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Jaacute embrenhado nas rodas boecircmias da cidade Catullo tinha entrada livre para frequentar os salotildees de gente importante especialmente quando comeccedilou a fazer letras para canccedilotildees jaacute conhecidas pela elite letrada A foacutermula usada por Catullo era criar letras nas composiccedilotildees de valsas schottisch mazurcas e tangos mdash repertoacuterio comum nos salotildees Outras vezes traduzia versos de poetas estrangeiros conhecidos e adaptava-os para uma canccedilatildeo conhecida Assim era comumente representado como um ldquomoccedilo distintordquo e letrado Esse capital social adquirido progressiva-mente o autorizou a seguir o caminho das letras pouco a pouco se arvo-rando como algueacutem conhecedor das coisas ditas ldquodo povordquo

A sede por estudos das ldquocoisas do povordquo no Brasil veio de uma necessidade criada na virada do seacuteculo XIX para o XX em definir aquilo que nos tornava singulares num mundo que cada vez mais primava por procurar em seus costumes ditos do ldquopovordquo a ldquoessecircnciardquo definidora do que seria a ldquonaccedilatildeordquo A ldquoalma do povordquo supostamente contida em ldquopraacute-ticas popularesrdquo era o foco principal daqueles que se interessavam por definir o que seria proacuteprio da cultura brasileira

Haacute de se chamar atenccedilatildeo que desde finais do seacuteculo XIX a va-lorizaccedilatildeo do ldquofolclore brasileirordquo se fazia tanto com a proliferaccedilatildeo de estudos pretensamente cientiacuteficos (como os de Siacutelvio Romero e do Baratildeo de Santa-Anna Nery) como pela produccedilatildeo de narrativas que en-focavam os chamados ldquocostumes do sertatildeordquo (como os contos de Coelho Neto) Esse interesse pelas ldquocoisas popularesrdquo vinha na esteira de uma necessidade que parte dos letrados de entatildeo tinha de definir uma su-posta ldquoalma popularrdquo que definisse a ldquoessecircnciardquo do ldquopovo brasileirordquo

[] em meio a uma seacuterie de disputas e conflitos reais e simboacutelicos sobre a identidade cultural brasileira o campo musical e folcloacuterico tornou-se uma importante arena nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX Nessa arena as disputas foram travadas entre variados atores e giravam em torno dos significados das muacutesicas e canccedilotildees populares nos sertotildees nas ruas nos teatros no carnaval na induacutestria fonograacutefica e no proacuteprio imaginaacuterio social sobre a naccedilatildeo14

14 ABREU Martha DANTAS Carolina Vianna Muacutesica popular folclore e naccedilatildeo no Brasil 1890-1920 In CARVALHO Joseacute Murilo de Naccedilatildeo e cidadania no Impeacuterio novos ho-rizontes Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2007 p 131

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Muitos desses letrados participavam dos espaccedilos de sociabili-dade noturnos que se criavam no Rio de Janeiro de entatildeo tomando contato com muacutesicos e poetas de diversas camadas sociais Estimado por ser cantor e criador de modinhas Catullo ganhou o interesse de grande parte do grupo letrado de boecircmios por ser conhecedor de um universo que era identificado como sendo ldquodo povordquo Boecircmia que era frequentada por nomes ilustres da cidade como Emiacutelio de Menezes Joseacute do Patrociacutenio e Paula Ney

Frequentar a noite tornou-se um atrativo para homens de todos os grupos sociais de forma que o significado que algueacutem poderia ter ao ser tachado de ldquoboecircmiordquo agrave eacutepoca deslizava desde a simples desquali-ficaccedilatildeo de um indiviacuteduo ateacute a mera identificaccedilatildeo de um sujeito apre-ciador da noite A coexistecircncia no universo boecircmio de muacuteltiplos seg-mentos sociais eacute um fator importante para compreender a sede pelas ditas ldquocoisas do povordquo

As modinhas a bebida as serenatas ao luar eram praacuteticas co-muns nas noites do Rio de Janeiro da transiccedilatildeo entre o seacuteculo XIX e o XX Em uma dessas noites em iniacutecios de 1885 Catullo foi convidado agrave casa do senador Silveira Martins entatildeo conselheiro do Impeacuterio que depois de um aplaudido espetaacuteculo em sua residecircncia mdash com a pre-senccedila inevitaacutevel do violatildeo mdash e reconhecendo em Catullo um letrado convidou-o para ser o ldquoexplicadorrdquo de seus filhos Laacute Catullo perma-neceria por pouco tempo pois se envolveria num pouco explicado caso sexual15

Entender algueacutem como um boecircmio poderia bem conduzi-lo a uma representaccedilatildeo de ldquoalgueacutem natildeo muito seacuteriordquo Essa receita por vezes alimentava representaccedilotildees como a que nos conta o poeta Paula Ney conhecido por sua verve humoriacutestica aguccedilada Eram comuns piadas tais como a publicada no Gazeta da Tarde onde o personagem do boecircmio era assim representado

15 Assim conta Haroldo Costa ldquoNuma madrugada ao entrar no seu quarto qual natildeo foi a surpresa ao encontrar acomodada em sua cama semidespida segundo alguns semi-vestida segundo outros uma bela jovem que ao vecirc-lo comeccedilou a gritar por socorro afirmando ter sido violentada por elerdquo Cf COSTA Op cit p 37

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Um bohemio depois de estragar a fortuna que herdou dos seus paes resolve casar-seApresentam-no a uma mulher feia como 300 jacareacutesndash Tem dote Pergunta ele a um amigondash 400 contosndash Bem jaacute servem como indemnizaccedilatildeo respondeu16

Mas se Paula Ney por exemplo era identificado como um bo-ecircmio sua representaccedilatildeo como letrado garantia um status diferenciado diante de outros tipos boecircmios Daiacute apresentar-se como um letrado apesar de frequentador da boecircmia era uma receita que podia render a um indiviacuteduo outra representaccedilatildeo

Catullo por exemplo ainda em iniacutecios do seacuteculo XX abriu uma escola na Rua Martins Costa na estaccedilatildeo da Piedade e laacute se tornou co-nhecido por suas aulas de portuguecircs e francecircs Das 9 horas da manhatilde agraves 3 horas da tarde dava aulas no curso primaacuterio das 8 horas da noite ateacute meia-noite era a vez das aulas para pessoas do curso secundaacuterio as quais muitas eram amigas do professor No final das aulas comeccedilava a vida boecircmia do bardo Um de seus alunos dessa eacutepoca recordaria mais tarde em livro do proacuteprio Catullo

A essa hora reuniam-se os teus amigos muacutesicos Anacleto Medeiros o grande mestre do Corpo de Bombeiros Luis de Souza ndash o primeiro pis-tonista do Brasil Irineu de Almeida ndash oficleidista sem rival Pingussa ndash o mago dos choros ao violatildeo Kalut ndash flauta caladiano Oliacutempio ndash o saxofonista do sereno Maacuterio e Galdino ndash os dois cavaquinhos geme-dores Neacuteco Chico Borges Quincas Laranjeiras ndash os violotildees chorosos todos se juntavam e saiacutea de tua casa a serenata cantando as gloacuterias do teu Talento17

A evocaccedilatildeo de seu passado como professor de liacutenguas foi uma constante em seus livros posteriores O bardo dizia que chegou a ter 100 alunos18 Essa lembranccedila fez parte do cardaacutepio de representaccedilotildees le-

16 Gazeta da Tarde 28 abr 1896 p 217 Depoimento de Otaacutevio de Barros Thompson que fez parte dos juiacutezos-criacuteticos do livro

de Catullo CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Rio de Janeiro Aurora 1945 p 107-108

18 Assim se expressara em prefaacutecio para seu livro de modinhas jaacute nos anos 1940 Cf

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tradas de que Catullo lanccedilava matildeo e que foram constituindo seu reco-nhecimento social posterior como um poeta letrado Isso visava a afastar de um olhar estigmatizado que marcava agrave eacutepoca algueacutem identificado como um ldquocantor de modinhasrdquo Poreacutem foi nesse mesmo periacuteodo que progressivamente as modinhas foram ganhando nova representaccedilatildeo social com a sua valorizaccedilatildeo por ser entendida como parte da produccedilatildeo do ldquopovordquo

A valorizaccedilatildeo das modinhas como elemento importante para a de-finiccedilatildeo do ldquopovordquo e de sua ldquoculturardquo era naquele iniacutecio de seacuteculo uma discussatildeo jaacute bastante conhecida no mundo letrado do Brasil Sob a deno-minaccedilatildeo de ldquomodinhasrdquo aparecia uma vasta produccedilatildeo musical comu-mente ouvida nas ruas do Rio de Janeiro de entatildeo Entre detratores e apologistas a modinha foi se tornando temaacutetica comum nos debates acerca daquilo que deveria ser entendido como algo ldquobrasileirordquo Os versos cantados que a acompanhavam nem sempre eram vistos com bons olhos Daiacute muitos negarem a esse tipo de verso o epiacuteteto de ldquopoesiardquo

O criacutetico literaacuterio Siacutelvio Romero por exemplo entre 1910 e 1912 publicou o ensaio Novas contribuiccedilotildees para o estudo do folclore brasileiro mdash que depois viria a fazer parte do claacutessico livro Histoacuteria da literatura brasileira mdash no qual escrevia ao tentar delimitar aquilo que entendia como sendo uma ldquopoesia popularrdquo que

Um erro muito repetido entre os criacuteticos principalmente portugueses que se tecircm ocupado da poesia popular brasileira eacute confundirem-na com certo gecircnero a que entre noacutes se deu o nome de modinhas []Natildeo eacute raro ler coisas assim ldquoA modinha eacute a mais rica das formas por que se manifesta a inspiraccedilatildeo poeacutetica do nosso povordquoEacute isto inexato A modinha nem eacute a forma mais rica do nosso lirismo popular nem eacute a forma mais perfeita de nosso lirismo cultoA forma mais rica da poesia popular satildeo os romances as xaacutecaras as oraccedilotildees os reisados as cheganccedilas os versos gerais O povo natildeo faz nunca fez modinhas

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas 2 ed Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1956 p 17 (1ordf ediccedilatildeo em 1946)

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Por outro lado as mais extraordinaacuterias manifestaccedilotildees do gecircnero liacuterico dos grandes poetas brasileiros natildeo consistiram jamais em modinhas19

Para Siacutelvio Romero por exemplo as modinhas urbanas natildeo fa-riam parte do que ele entendia como sendo ldquopopularrdquo pois aleacutem de aquilo que ele chamava de ldquopovordquo natildeo fazer modinhas elas eram de ldquomau gostordquo Em sua criacutetica Romero arrematava contra o representante mais conhecido das modinhas daqueles tempos ldquotais produccedilotildees hiacute-bridas nem satildeo a genuiacutena poesia anocircnima filha do gecircnio da raccedila nem satildeo obras literaacuterias de valor Constituem um gecircnero secundaacuterio em que se deliciam os Catullos Cearenses de todos os temposrdquo20

O diagnoacutestico de Siacutelvio Romero poreacutem natildeo era uniacutessono entre aqueles que se interessavam pelas manifestaccedilotildees ditas do ldquopovordquo e progressivamente a modinha foi ganhando o status de ldquomanifestaccedilatildeo popularrdquo digna de ser compreendida como parte do ser nacional

Os termos usados por Romero balizavam as discussotildees agrave eacutepoca a modinha era perscrutada a partir da indagaccedilatildeo se ela seria ldquopoesia popular brasileirardquo ldquofilha do gecircnio da raccedilardquo ldquoinspiraccedilatildeo poeacutetica do povordquo e sobretudo uma ldquogenuiacutena poesia anocircnimardquo O anonimato ga-rantia para Siacutelvio Romero a certa produccedilatildeo um preacute-requisito fatal para defini-la como ldquopopularrdquo Mas para o criacutetico modinhas seriam coisas tatildeo somente dos ldquoCatullos Cearensesrdquo

Essa opiniatildeo natildeo era unacircnime entre os letrados Num domingo de Carnaval em reportagem publicada nas paacuteginas do jornal O Paiz redis-cutia-se a posiccedilatildeo da muacutesica como ldquoarte popularrdquo Vale a citaccedilatildeo

19 ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1943 p 173 O artigo foi originalmente publicado na revista da Academia Brasileira de Letras (n 2 4 e 7) A referecircncia que Siacutelvio Romero faz aos criacuteticos portugueses se deve ao fato de haver desde fins do seacuteculo XIX um debate apaixonado sobre o caraacuteter nacional da literatura de liacutengua portuguesa que envolvia inclusive criacuteticos portugueses aos quais Siacutelvio Romero fazia reiteradas censuras De ambos os lados do Atlacircntico a questatildeo do ldquonacionalrdquo colocava em posiccedilotildees opostas estudiosos que tentavam definir em que consistia a literatura nacional de seus respectivos paiacuteses e se havia complementari-dade entre ambas Para um estudo do mais famoso debate aquele que envolveu Siacutelvio Romero e Teophilo Braga cf PAREDES Marccedilal de Menezes A querela dos originais notas sobre a polecircmica entre Siacutelvio Romero e Teoacutefilo Braga Porto Alegre Estudos Ibero-Americanos PUCRS 2006 p 103-119 (Ediccedilatildeo Especial n 2)

20 Idem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 35

Todos os povos tecircm a sua arte popular Ella eacute por excelecircncia a muacutesica As manifestaccedilotildees dessa arte satildeo typicas a muacutesica popular eacute o espelho fiel da iacutendole de cada povo e nella se encontram o seu caracteriacutestico o seu gecircnio as suas inclinaccedilotildees as suas ambiccedilotildees os seus desiacutegnios enfim que nella domine fielmente reproduzido pelo seu folk-lore ver-dadeiro patrimocircnio nacional21

Atestando os progressos da ldquomuacutesica popularrdquo produzida no Brasil e negando qualquer tese que pudesse apontar o trovador como um poeta menor a reportagem do jornal O Paiz destacava o fato de o violatildeo e a modinha estarem invadindo os salotildees nos uacuteltimos quinze anos ndash novidade que indicaria segundo o perioacutedico seu caraacuteter ldquomo-dernordquo ndash e disparava contra os detratores deles

[] A nossa muacutesica popular progride rapidamente cada vez mais expressiva cada vez mais aprimorada dizendo bem quanto amor se contecircm nos nossos espiacuteritos meridionaes aberto a todas as ideacuteas gene-rosas francos e leaes ateacute aos extremos

O violatildeo exprime a alma popular brasileira em suas canccedilotildees dedi-lhadas indolentemente vai toda a anciatilde de carinho e de amor que a magocirca que a fatiga que a fere profundamente

O violatildeo eacute o lenitivo doce amargo para essa iacutendole nossa muito nossa

O trovador tem pois uma grande saliecircncia entre os seus patriacutecios Elle lhes encarna a alma nos accordes dos seus instrumentos nas modula-ccedilotildees de sua voz

[]

Entre noacutes esses menestreacuteis anocircnimos e o que eacute mais imperterrita-mente perseguidos pela poliacutecia satildeo apreciados devidamente

Os progressos dessa raccedila de artistas vem augmentando de haacute quinze annos a esta parte porque o preconceito que os repelia como symbolos da chalaccedila e da desordem vai decaindo O violatildeo acompanhado das modinhas comeccedila a brilhar nos salotildees embora com menos furos do que o cake-walk Interessam-nos esses progressos [] 22

21 O Paiz 25 fev 1906 p 822 Ibidem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo36

O interesse pelas modinhas levou os repoacuterteres de O Paiz a entre-vistar o mais conhecido modinheiro daqueles idos Catullo da Paixatildeo Cearense Sendo usufruiacuteda a partir de uma relaccedilatildeo ambiacutegua pelos le-trados a modinha foi tornando-se objeto de exotismo a ser discutido e compreendido como expressatildeo de uma ldquoalma popularrdquo Para tanto a vontade de conhecer tais ldquocostumes popularesrdquo muito ajudou nessa em-preitada A grande questatildeo no entanto residia naquilo que deveria ser entendido como ldquopopularrdquo e sobretudo aquelas praacuteticas que podiam figurar como dignas de assim serem chamadas Ademais assumir uma praacutetica como ldquopopularrdquo carregaria sob tal manifestaccedilatildeo uma forte carga poliacutetica em tempos em que se abria um enorme debate em grande parte do mundo sobre as singularidades de uma naccedilatildeo a partir do reconheci-mento do caraacuteter do seu povo

Foi em meio agrave ambiguidade no tratamento dado agrave modinha mdash e na esteira disso a ele proacuteprio mdash que Catullo se inseriu nas discussotildees acerca do que seria ldquopopularrdquo no periacuteodo O estranhamento em consi-derar Catullo ldquopoeta do povordquo (como queria a reportagem de O Paiz) era causado pela contrariedade nas declaraccedilotildees do proacuteprio modinheiro na mesma reportagem ao dizer que ldquoeu natildeo gosto de estar pelas es-quinas Canto nos salotildees calmamente sem incocircmodordquo ou ldquoeu procuro modernizar a arte da modinhardquo23 Eacute possiacutevel que a resposta imprevista de Catullo causasse certo embaraccedilo nos entrevistadores no exato mo-mento em que o modinheiro procurava realccedilar um distanciamento de seu nome com as ruas fazendo com que o leitor do jornal natildeo o confun-disse como um modinheiro mambembe e ao mesmo tempo chamando a atenccedilatildeo do leitor para a modernidade de suas modinhas colocando-se entre aquilo que podia ser efecircmero (ou expressatildeo de um simples mo-dismo da eacutepoca) e aquilo que deveria ser encarado quase como atem-poral por ser parte de uma essecircncia nacional e por consequecircncia re-presentante da ldquoalma popularrdquo

Mas algo representado como moderno a priori natildeo poderia ser visto como fazendo parte de uma ldquoalma popularrdquo ndash assim por exemplo

23 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 37

reiterava o criacutetico Siacutelvio Romero Para esse autor o que podia ser iden-tificado como algo ldquopopularrdquo e digno de figurar como parte de uma suposta ldquoalma nacionalrdquo era validado pelo grau de antiguidade de sua existecircncia de forma que algo considerado por demais ldquomodernordquo fatal-mente natildeo figuraria numa discussatildeo sobre a ldquoarte popularrdquo Ainda que entendesse as modinhas como parte de uma heranccedila popular natildeo via com bons olhos modinhas que tais como as de salatildeo se ldquoafrancesa-zavamrdquo (ldquoA macaqueaccedilatildeo do estrangeiro e especialmente do france-zismo eacute tambeacutem outro mal nossordquo)24 Por isso serem comuns em seus estudos palavras como ldquoressurreiccedilatildeordquo e ldquotradiccedilotildees jaacute esquecidasrdquo quando se referia a ldquopoesia popularrdquo Assim sobre o ldquoprojeto romacircn-ticordquo escrevia

Uma volta aacute poesia popular e aacutes tradiccedilotildees jaacute esquecidas eacute sua pretensatildeo mal definida [] A ressurreiccedilatildeo da poesia popular em um livro eru-dito era cousa exequumliacutevel mas continual-a fazel-a viver sua vida ro-manesca era impossiacutevel sobretudo no Brazil onde natildeo existia uma genuiacutena poesia popular olvidada pelo tempo Natildeo sei se bem pensaram nisto os romacircnticos brazileiros Sei que lhes faltou a paixatildeo pelo pas-sado que tanto animaacutera os da Europa [sic]25

Mello Morais (estudioso que diferentemente de Romero inte-ressava-se tambeacutem pelas novas modinhas que surgiam) tambeacutem parecia corroborar o diagnoacutestico do criacutetico ao enxergar nessa recente produccedilatildeo ldquoecos adormecidosrdquo que faziam a alegria ldquonas festas hoje tatildeo escassas do povo fazendo recordar alegrias extintasrdquo26 O que os aproximava era uma definiccedilatildeo do ldquopopularrdquo por uma referecircncia temporal Se para Romero modinhas natildeo interessavam pois natildeo eram um gecircnero do ldquopovordquo nem havia no Brasil ldquopoesia popular olvidadardquo para Mello Morais ao contraacuterio elas eram expressotildees de algo de outrora e dignas de pesquisa Se Romero desdenhava como sendo uma ldquomacaqueaccedilatildeordquo

24 ROMERO Sylvio Estudos sobre a poesia popular do Brazil Rio de Janeiro Typ Laemmert amp C 1888 p 363

25 Idem p 626 MORAES FILHO Mello Cantares brasileiros cancioneiro fluminense Rio de Janeiro

SEEC-RJDepartamento de CulturaINELIVRO 1981 p 27 (1ordf ediccedilatildeo em 1900 pela Livraria Cruz Coutinho)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo38

Mello Morais regozijava-se por entendecirc-la como sendo genuinamente nacional e mesmo moderna

Tais referecircncias temporais definiam atitudes e objetos no Brasil da virada do seacuteculo e faziam com que as fronteiras que diferenciavam aquilo que era considerado ldquomodernordquo e aquilo que era considerado ldquovelhordquo fossem constantemente motivos de debates acalorados alter-nando-se ora como depreciadores de um objeto discutido ora como enaltecedores A elite letrada do paiacutes na medida em que festejava os novos equipamentos modernos da cidade era atraiacuteda para espaccedilos de sociabilidade onde reinava muitas vezes aquilo que por um entendi-mento do que seria moderno poderia ser considerado em contraste ldquovelhordquo ldquoatrasadordquo mdash poreacutem por vezes redimido por ser ldquopopularrdquo De forma que se tornou muito costumeiro e ateacute um fator de expressatildeo intelectual ver membros os mais distintos da elite carioca conhecer e frequentar tais espaccedilos ou o que tambeacutem era bastante comum levar tais expressotildees ldquopopularesrdquo para serem encenadas nos salotildees dessa mesma elite por meio de uma nova significaccedilatildeo que o termo ldquopopularrdquo foi adquirindo ou seja aquilo que expressaria a verdadeira expressatildeo da terra a sua ldquoalmardquo

Foi nesse limite que a figura de Catullo foi sendo evocada como algueacutem que podia ser reconhecidamente considerado um ldquopoetardquo pois que expressava a sua terra em uma forma considerada exoacutetica as letras de modinhas Poreacutem se a procura por temas ldquopopularesrdquo (sendo a mo-dinha entendida como um deles) atraiacutea um puacuteblico distinto e letrado para a produccedilatildeo modinheira de Catullo isso natildeo o credenciava de pronto a ser considerado um membro dessa mesma elite letrada Ademais ser um autor de modinhas no maacuteximo o credenciaria a ser como se dizia agrave eacutepoca um bardo um trovador um ldquopoeta popularrdquo mas quase nunca o alccedilaria a ser identificado como um ldquopoetardquo tal como eram assim reconhecidos Coelho Neto ou Olavo Bilac Esse investi-mento demandou do autor escolhas inclusive temaacuteticas num diaacutelogo constante e tenso com seus pares no periacuteodo e sobretudo uma aproxi-maccedilatildeo com o universo dos livros

Jaacute em iniacutecios do seacuteculo XX Catullo era presenccedila constante nos salotildees da elite carioca cantando suas modinhas e ao passo que deliciava

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 39

os ouvintes dava agravequelas novo estatuto colocando-as no centro do de-bate entre aquilo que deveria ser cultivado como moderno e civilizado e aquilo que deveria ser colocado de lado por natildeo condizer com os ideais civilizatoacuterios que a elite carioca almejava Na trajetoacuteria de Catullo a tensatildeo que separava ldquomodernidaderdquo e ldquopopularrdquo foi agraves uacutel-timas consequecircncias aquilo que era entendido como ldquopopularrdquo aden-trava em espaccedilos de sociabilidade ldquomodernosrdquo que se multiplicavam nas grandes capitais do Brasil

Ora o Rio de Janeiro a entatildeo capital do paiacutes na virada de seacuteculo passava por uma veloz transformaccedilatildeo modernizante cujo intuito decla-rado era o de ser o espelho civilizado do Brasil para o mundo Esse fator ademais fazia com que novas maneiras de representar o paiacutes fossem construiacutedas e com elas a ressignificaccedilatildeo (ou a pura repressatildeo) de praacuteticas fosse concomitantemente levada a cabo Os salotildees da elite letrada onde se apresentava Catullo com suas modinhas eram eles mesmos a expressatildeo moderna dos novos espaccedilos de sociabilidade que essa elite carioca criara para representar sua nova condiccedilatildeo social Palco privilegiado onde ela natildeo soacute representava rituais de identificaccedilatildeo com seus pares os salotildees tambeacutem eram locais onde se expressavam debates que ganhavam as ruas naqueles tempos de transformaccedilatildeo

Nessa eacutepoca a cidade do Rio de Janeiro mdash que segundo dados do jornal Gazeta de Notiacutecias contava em 1908 em torno de 800 mil habitantes27 mdash vivia um turbilhatildeo de mudanccedilas sociopoliacuteticas cujo ob-jetivo declarado por parte de seus impulsionadores era ldquomodernizarrdquo a cidade Essa sede pelo novo no entanto contrapunha-se agrave obsessatildeo pelos velhos haacutebitos que contraditoriamente eram objetos de seduccedilatildeo para parte dos estudiosos do periacuteodo Se havia um deslumbramento por modernidades que chegavam via Europa concomitantemente havia uma forte impressatildeo de deslocamento e de ldquonatildeo identidaderdquo que os in-telectuais do periacuteodo foram buscar nas ditas ldquopraacuteticas popularesrdquo dando vazatildeo agrave constituiccedilatildeo dos estudos folcloacutericos no paiacutes Afonso Arinos e

27 Gazeta de Notiacutecias 1ordm dez 1908 p 1

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo40

Alexandre Joseacute de Mello Moraes foram nesse tempo dois dos maiores incentivadores desses estudos no Brasil

Mello Moraes era conhecido por organizar saraus e apresenta-ccedilotildees de motivos ldquopopularesrdquo em sua residecircncia no que era seguido por Afonso Arinos que abria sua casa na praia de Botafogo para apresen-taccedilotildees de ldquobatucadasrdquo com bastante sucesso patrocinadas por muacutesicos como Donga Pixinguinha e Heitor dos Prazeres Esses eventos torna-ram-se famosos sendo Catullo Cearense na condiccedilatildeo de modinheiro um dos frequentadores assiacuteduos Nesses espaccedilos a elite se deliciava com apresentaccedilotildees dos tais costumes ldquoexoacuteticosrdquo ao passo que os ar-tistas que laacute apareciam se tornavam conhecidos28

A tensatildeo entre considerar uma praacutetica como ldquoantigardquo ou ldquomo-dernardquo e ldquonacionalrdquo ou ldquoestrangeirardquo mdash para citar apenas duas das mais imediatas dicotomias do periacuteodo mdash expressava-se em debates calo-rosos entre os letrados do periacuteodo que construiacuteam eles mesmos temas centrais a serem debatidos por uma sociedade que se pretendia ldquocivili-zadardquo e ldquomodernardquo Daiacute um turbilhatildeo de produtos culturais serem pro-duzidos no periacuteodo visando a representar ldquoo povo brasileirordquo e editores de livros no Brasil usarem do termo ldquopopularrdquo como publicidade que poderia dar ao produto certa visibilidade Daiacute tambeacutem muitos autores no periacuteodo irem ao encontro de representar tais temaacuteticas em livro vi-sando ao ecircxito da publicaccedilatildeo

A investigaccedilatildeo de toda tensatildeo que perpassa a tentativa de defi-niccedilatildeo de textos como ldquopopularesrdquo agrave eacutepoca eacute indissociaacutevel de uma so-ciologia dos usos desses mesmos textos por seu(s) autor(es) editor(es) e leitor(es) inclusive das formas como esses textos eram dados a ler atentando aiacute para o papel do livro naquela cultura Isso tanto eacute mais importante quando se percebe na virada do seacuteculo no Brasil o aumento de indiviacuteduos alfabetizados que criavam seus proacuteprios rituais de identi-ficaccedilatildeo Assim as praacuteticas com o objeto livro nesse processo satildeo funda-mentais para se entender a cultura escrita que nascia Os homens de

28 Sobre a recorrecircncia natildeo rara de ldquomotivos popularesrdquo nos salotildees da elite carioca em iniacutecios do seacuteculo XX Cf VIANNA Hermano Elite brasileira e muacutesica popular In O misteacuterio do samba 7 ed Rio de Janeiro ZaharUFRJ 2010 p 37-54

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 41

letras do periacuteodo conviviam constantemente com a tarefa de responder a questionamentos sobre o que seria o ldquopovordquo ao mesmo tempo em que buscavam juntamente com seus editores fazer-se ouvir por intermeacutedio de seus textos valendo-se de todo tipo de estrateacutegia textual e material que alcanccedilasse o puacuteblico consumidor de livros

A recente saiacuteda do paiacutes da condiccedilatildeo de escravista e a urbani-zaccedilatildeo das grandes cidades criavam as condiccedilotildees para que um novo segmento urbano ficasse em evidecircncia Esse segmento buscava formas proacuteprias de identificar-se a partir de outros rituais procurando diferen-ciar-se de uma heranccedila cultural escravocrata Para tanto esse segmento teve de construir todo um arcabouccedilo de atitudes e espaccedilos para dife-renciar-se de sociabilidades advindas dessa heranccedila escravista A partir de uma busca por distinccedilatildeo e reconhecimento entre seus pares a elite letrada no Brasil criava novos espaccedilos de sociabilidade onde pudesse dar a ver seus ensejos num quadro de transformaccedilotildees nos jornais nos cafeacutes nas praccedilas nas revistas nas instituiccedilotildees intelectuais e nas livra-rias Mas seguramente aquilo que diferenciava essa nova camada so-cial meacutedia de outros segmentos era uma busca por ser identificada como um grupo letrado

Nas livrarias lugar privilegiado para as encenaccedilotildees ldquocivilizadasrdquo leitores com os mais diversos interesses se encontravam para discus-sotildees Na Garnier e na Laemmert ndash duas das mais importantes livrarias na virada do seacuteculo XIX para o XX e localizadas na via mais frequen-tada da cidade a Rua do Ouvidor ndash era possiacutevel encontrar desde o festejado poeta Olavo Bilac e o romancista Machado de Assis pas-sando por jovens escritores como Graccedila Aranha ateacute o mais solenemente autor desconhecido29 Ademais o livro tornava-se ele mesmo um ele-mento de distinccedilatildeo Tecirc-lo ou saber discuti-lo era fator preponderante para ser identificado como um ldquoiniciadordquo nas letras Na sociedade bra-sileira de fins do seacuteculo XIX onde o letramento apesar de haver au-mentado era algo ainda raro ter um livro tornou-se um fator de dis-tinccedilatildeo no exato momento em que aparecia uma camada meacutedia nos

29 BROCA Brito A vida literaacuteria no Brasil - 1900 Rio de Janeiro MEC 1956

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo42

grandes centros urbanos aacutevida por fazer-se presente nas discussotildees acerca dos rumos do paiacutes

A meio caminho entre as massas proletarizadas e os detentores dos meios de produccedilatildeo haviam emergido novas camadas desejosas de afir-maccedilatildeo e ascenccedilatildeo (sic) social Sem tiacutetulos nobiliaacuterquicos sobrenomes tradicionais ou bens de famiacutelia elas vislumbravam uma possibilidade de reconhecimento e ascenccedilatildeo (sic) social atraveacutes da formaccedilatildeo edu-cacional Assim a emergecircncia das camadas meacutedias transparece no plano educacional no aprofundamento das discussotildees acerca dos as-suntos ligados agrave educaccedilatildeo Discutia-se a filosofia os objetivos a accedilatildeo e a abrangecircncia da educaccedilatildeo A posiccedilatildeo social doravante deveria ser marcada pelo grau de ldquoinstruccedilatildeordquo ldquoconhecimentordquo ldquoculturardquo ndash valores defendidos pelas camadas meacutedias ndash e natildeo somente pelo nascimento30

Nesse sentido saber ler era considerado condiccedilatildeo sine qua non para investir algueacutem do termo ldquoinstruiacutedordquo Daiacute ser algo comum apare-cerem nessa eacutepoca vaacuterios planos de alfabetizaccedilatildeo e outros tantos meacute-todos revolucionaacuterios que prometiam ensinar a ler em pouco tempo Certo livro de nome Ensino racional de leitura prometia fazer algueacutem ler em quatro dias Nas paacuteginas do jornal O Paiz o anuacutencio procurava seduzir o comprador afirmando ser a publicaccedilatildeo ldquoUm notaacutevel livro por Magnus Sondahlrdquo e que a obra fora ldquoaprovada pelos Conselhos de Instrucccedilatildeo Puacuteblica do Paranaacute e Sergiperdquo e continuava

O autor garante pelo seu systema que seraacute ao alcance de todos ensinar a ler em 4 dias Por mais extraordinaacuterio que isto pareccedila o grande acolhi-mento que a obra tem tido os elogios unacircnimes dos competentes e da imprensa demonstram o valor do livro31

Essa procura por saber ler e adquirir leituras fez surgir ainda em fins do seacuteculo XIX casas que comercializavam livros aacutevidas por atingir um puacuteblico nascente de leitores Foi nesse fim de seacuteculo que surgiu no Rio de Janeiro o livreiro fluminense Pedro da Silva Quaresma Ele comprou em 1879 a Livraria do Povo de Serafim Alves localizada na

30 DAMAZIO Sylvia Retrato social do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo Rio de Janeiro EDUERJ 1996 p 121

31 O Paiz 15 jul 1908 p 9

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 43

rua Satildeo Joseacute nordm 6567 no centro do Rio de Janeiro e ali instalou sua proacutepria livraria que acabou com o tempo mudando de nome para li-vraria Quaresma Aleacutem de vender livros Pedro Quaresma comeccedilou a editaacute-los priorizando a ediccedilatildeo de obras ditas ldquopopularesrdquo e voltadas para os mais diversos puacuteblicos Pensava o editor que para atingir um puacuteblico letrado nascente o ideal seriam as publicaccedilotildees de linguagem amena e a preccedilos moacutedicos Desse modo o formato em pocket-book que barateava o preccedilo do livro tornando-o assim mais acessiacutevel foi a marca principal das ediccedilotildees Quaresma32

Haacute de se salientar que tais publicaccedilotildees ditas ldquopopularesrdquo eram consumidas tambeacutem por homens de reconhecido capital no mundo le-trado A acreditar no memorialista Luiz Edmundo pela livraria Quaresma passava

[] toda uma legiatildeo de cantores de seresteiros de sereneiros a flocircr da vagabundagem carioca essencia sumo nata da raleacute roccedilando natildeo raro a sobrecasaca do Conselheiro Ruy [Rui Barbosa] a importancia do sr Joseacute Veriacutessimo a sisudez do sr Candido de Oliveira a jurisprudencia do sr dr Coelho Rodrigues33

Se essa busca por um puacuteblico consumidor de livros ldquopopularesrdquo alavancava empreendimentos ambiciosos como a livraria Quaresma natildeo se deve homogeneizar suas publicaccedilotildees como sendo meras frivoli-dades Havia tambeacutem livros editados pela Quaresma que tinham um caraacuteter cientiacutefico ndash ou pelo menos pretendiam ter ndash como a Physiologia das paixotildees contendo a anaacutelise de ldquosentimentos moraes de homens e mulheresrdquo sob a luz da ciecircncia escrito pelo meacutedico francecircs J L

32 Sobre a livraria Quaresma jaacute existem alguns bons estudos efetuados no campo historio-graacutefico Cf EL FAR Alessandra Paacuteginas de sensaccedilatildeo literatura popular e pornograacutefica no Rio de Janeiro (1870-1924) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 OLIVEIRA Liacutevio Lima de A revoluccedilatildeo da brochura experiecircncias de ediccedilotildees de livros acessiacuteveis no Brasil ateacute a primeira metade do seacuteculo XX Trabalho apresentado ao NPE (Produccedilatildeo Editorial) do VI Encontro dos Nuacutecleos de Pesquisa da Intercom Santos Seditora 2006 OLIVEIRA Liacutevio Lima de Pedro da Silva Quaresma entre estrangeiros um brasileiro Disponiacutevel em wwwescritoriodolivrocombrofiacuteciosquaresmaphp Acesso em 10 jun 2020

33 EDMUNDO Luiacutes O Rio de Janeiro do meu tempo Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1938 p 735-7

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo44

Alibert34 e o seriacutessimo Histoacuteria geral do Brasil escrito pelo positivista Annibal Mascarenhas Quando comparados a esses uacuteltimos livros o ldquopopularrdquo que publicizava Quaresma dizia mais respeito ao preccedilo de venda que o editor e livreiro tentava manter sempre baixo

No cataacutelogo da livraria Quaresma ainda figuravam desde ma-nuais (como o Manual do namorado o Manual da Bruxa e o Manual praacutetico do destilador) passando por romances de ldquoscenas empolgantesrdquo (como O calvaacuterio de mulher) ateacute os pioneiros livros voltados para o puacuteblico infantil (como Histoacuterias da carochinha e Histoacuterias da vovozi-nha)35 No entanto os primeiros sucessos de vendas da Quaresma foram mesmo os livros contendo compilaccedilotildees de modinhas dos quais o mais famoso foi o Cancioneiro popular de modinhas brasileiras lanccedilado em 1899 alcanccedilando ateacute 1908 incriacuteveis 25 ediccedilotildees O organizador dessa publicaccedilatildeo exitosa foi justamente Catullo da Paixatildeo Cearense

Eram esses livros com compilaccedilotildees de modinhas e canccedilotildees que faziam sucesso no mundo editorial de iniacutecios do seacuteculo passado Joatildeo do Rio observava surpreso o fato de ldquobardos ocasionais da saacutetira e da paixatildeordquo publicarem e venderem mais que poetas ldquo[] Admiram-se que eles imprimam e o que eacute mais esgotem ediccedilotildees milheiros e milheiros de exemplares Pois imprimem como qualquer poeta Apenas eles vendem e a maioria dos poetas oferece graacutetis aos amigosrdquo36

Embora tenha sido como ldquomodernizadorrdquo das modinhas que Catullo tenha adentrado o mundo letrado essa sua assumida postura se por um lado louvada por outro era vista com algumas reservas Joatildeo do Rio que o via com admiraccedilatildeo em artigo publicado na revista Kosmos em 1905 entendia-o como um ldquoestetardquo algueacutem que traduzia para os salotildees o ldquoespetaacuteculo das ruasrdquo

34 ALIBERT Jean-Louis Physiologia das paixotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 191135 Sobre essas uacuteltimas publicaccedilotildees haacute um denso estudo da socioacuteloga Andrea Borges Leatildeo

Cf LEAtildeO Andrea Borges Brasil em imaginaccedilatildeo livros impressos e leituras infantis Fortaleza Inesp UFC 2012

36 Artigo intitulado ldquoA musa das ruasrdquo publicado na Revista Kosmos de 12 de agosto de 1905 Este artigo foi reproduzido em RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008 p 234-252

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 45

O Sr Catullo uacuteltimo trovador velho-gecircnero eacute o esteta da trova popular Vecirc-lo recitar O poeta e a fidalga com um copo de chopp na matildeo eacute um desses espetaacuteculos de brasserie inesqueciacutevel Catullo emaranhou-se no dogma da moda corrigiu os versos de tudo quanto era quadra estudou Belllini Donnizetti Verdi adaptou os nossos versos a trechos de oacuteperas e finalmente compocircs traduccedilotildees livres de Leconte de Lisle para serem recitadas ao piano37

A partir das publicaccedilotildees da livraria Quaresma Catullo da Paixatildeo Cearense passou a ser consumido pela elite letrada brasileira durante quase 60 anos e conviveu com mudanccedilas socioculturais que marcaram profundamente sua obra Tambeacutem soube delas tirar subsiacutedios para compor sua trajetoacuteria como literato por meio de uma aguda sensibili-dade das formalidades que governavam a construccedilatildeo do que se cha-mava ldquoum autor brasileirordquo agrave sua eacutepoca

Ademais na trajetoacuteria inicial de Catullo salta aos olhos um fato que demanda a atenccedilatildeo mais acurada do historiador de sua produccedilatildeo qual seja o fato de ter sido aos poucos identificado como ldquopoetardquo con-comitantemente em que construiacutea estrateacutegias de escrita a fim de ser re-conhecido como ldquoordquo autor dos livros de modinhas por ele organizados Dito de outra forma Catullo teve de construir autoridade sobre os textos por ele organizados para assim ser reconhecido como um ldquopoetardquo

Nesse sentido reveladora eacute a representaccedilatildeo de si construiacuteda por Catullo na mesma entrevista concedida ao jornal O Paiz em 1906 aqui jaacute citada Introduzindo a entrevista os editores do jornal abordavam questotildees como ldquocultura popularrdquo ldquoarterdquo ldquoalma popularrdquo e atestavam os ldquoprogressosrdquo advindos do aperfeiccediloamento de seus praticantes princi-palmente modinheiros Assim observando tais aperfeiccediloamentos os re-poacuterteres do jornal diziam ficar curiosos por conhecer tais ldquotrovadoresrdquo

Procuramos saber qual era delles o mais apreciado o mais em evi-decircncia Era Catullo da Paixatildeo Cearense Onde mora Fomos para laacute na Estaccedilatildeo da Piedade

37 Idem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo46

Numa das ruas que desembocam a Estaccedilatildeo da linha feacuterrea num tosco chalezinho oculto entre a romaria dos arvoredos escondido por uma cerca de espinheiros numa vivenda sadia florescia o poeta popularBatemos palmas discretas38

Ali no iniacutecio da entrevista nas ligeiras palavras que abriam aquela conversa algumas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre poesia popularnatureza trabalhoinspiraccedilatildeo e gecircnioracionalidade eram postas pelos repoacuterteres e ao avanccedilar a entrevista o proacuteprio Catullo expres-sava como via seu lugar dentro dessas relaccedilotildees e de como entendia o estatuto ldquomodernordquo da modinha que fazia Nesse movimento a partir de uma identificaccedilatildeo do seu objeto a modinha como expressatildeo ldquomo-dernardquo Catullo ia deslocando a imagem estigmatizada do gecircnero como sendo ldquocoisas de vagabundordquo e aproximava suas modinhas de certos ldquoecos de uma alma nacionalrdquo ao passo que construiacutea sua originalidade como autor do gecircnero sua especificidade como um boecircmio letrado e principalmente sua distacircncia em relaccedilatildeo aos trovadores das ruas

O ldquotrovadorrdquo Catullo que florescia por entre as aacutervores da sua casa assim como sua poesia mdash imagem que o jornal tratava de construir dando a ele um ar de ldquoinspirado pela naturezardquo mdash tratava de dizer que

Quando escrevo meus versos sinto que minha alma se eleva que uma nova vida me estua pelo corpo que me esqueccedilo dos contingentes terrenos para pairar muito mais alto na vida espiritual muito mais pura muito mais intensa Vivo mais meu amigo muito mais quando o estro me toni-fica a alma vacillante e amargurada Os meus versos satildeo a minha alma39

Sendo um trabalho oriundo diretamente de sua ldquoalmardquo Catullo afirmava como consequecircncia que a obra estava longe de ser laboriosa e acadecircmica pois

Elles os meus pobres versos natildeo satildeo a obra de um artista na expressatildeo acadecircmica da palavra Natildeo os rebusco no trabalho laborioso e tenaz do parnasianismo Natildeo os talho na mateacuteria-prima da forma []

38 O Paiz 25 fev 1906 p 839 O Paiz 25 fev 1906

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 47

E apesar disso elles satildeo preciosos saem-me da penna sem o menor esforccedilo rithmados pela muacutesica que escolhi para elles40

Catullo Cearense prosseguia indicando que sua poesia natildeo se efetuaria senatildeo acompanhada com a respectiva muacutesica indicada Uma vez que aquilo que escrevia soacute poderia se completar acompanhado pela muacutesica por ele escolhida era por meio da oralidade que seus escritos finalmente se configurariam num fato poeacutetico Observava sobre isso

Disjuntai-vos e aquelles versos que eu cantava haacute pouco que tanto aplaudistes satildeo apenas um corpo sem vida uma flor [sic] sem per-fume porque lhe exauristes o sangue porque lhe tirastes o doce aroma porque os fizestes emmunhecerE eacute uma verdade41

Catullo buscava afirmar-se a partir de uma relaccedilatildeo de proximi-dade de sua arte com sua ldquoalmardquo Essa relaccedilatildeo ainda que o afastasse segundo ele do academicismo de uma poesia consagrada naqueles tempos (a dos ditos parnasianos) credenciava-o a ser reconhecido como poeta em outro acircmbito o da genialidade aquele que expressa a ldquoalmardquo de maneira livre sem a ldquoformardquo

Por outro lado ainda que assumisse ser um modinheiro Catullo tratava de construir-se agrave distacircncia daquilo que homens como Mello Moraes entendiam ser a modinha qual seja parte de um ldquocostume exoacute-ticordquo por ser demais antigo O entrevistado por seu turno observava natildeo fazer coisas antigas pois

O Dr Mello Moraes eacute de parecer que a modinha deve permanecer sempre estacionaacuteria sem avanccedilo nem retrocesso Eu tenho opiniatildeo contraacuteria o canto popular deve acompanhar o espiacuterito popular Jaacute natildeo estamos no tempo do recitativo cheio de melopea sem vibraccedilatildeo A Alma popular activa-se haacute mais intensidade na vida mais educaccedilatildeo artiacutestica O povo quer conhecer o espiacuterito da muacutesica a cujo som se entrega aos torneios da dansa [sic] Como lhe mostrar esse segredo

40 Ibidem41 Ibidem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo48

Emprestando-lhe a letra E o que eu faccedilo escolho umas das muacutesicas em voga estudo-a e faccedilo os meus versos[]Eu procuro como disse modernizar a arte da modinha Canto a muacutesica Os meus versos acompanham a oacutepera a valsa a polka a schotish a quadrilha e brejeiramente o tango e o maxixe voluptuoso42

Movimento tenso que oscila entre aproximar sua ldquoarterdquo das pro-duccedilotildees do ldquopovordquo e resguardar certa distacircncia desse mesmo ldquopovordquo ndash aqui esse termo tem sentido estigmatizado em negativo ndash a fim de que pudesse ser identificado como um letrado Catullo salientava que ao aparecer em entrevista no jornal

[] terei gosto de ver-me recordado ao nosso povo que eu tenho feito gozar do mais alto palaacutecio a mais pequena choupanaNatildeo eacute bom dizer em serenatas eu natildeo gosto de estar pelas esquinas Canto nos salotildees calmamente sem incocircmodo43

Nos limites de algueacutem reconhecido como ldquopopularrdquo e homem dos salotildees poeta e modinheiro adepto do letramento e buscando suas fontes poeacuteticas na oralidade Catullo Cearense construiacutea um espaccedilo dentro do mundo letrado configurando uma trajetoacuteria singular nas letras brasileiras de iniacutecios do seacuteculo Ainda que sempre fizesse questatildeo de salientar sua forte expressatildeo ldquopopularrdquo o ldquotrovadorrdquo negava qualquer vinculaccedilatildeo de sua produccedilatildeo com algo identificado como folclore ou costumes antigos Longe disso Catullo questionava esse caraacuteter exoacutetico da modinha reite-rado por Mello Moraes embora tenha sido presenccedila natildeo rara nos salotildees ndash que aliaacutes se multiplicavam naqueles idos uma vez que a cultura dos salotildees liacutetero-musicais tomou conta da elite letrada carioca do periacuteodo A historiadora Rosa Maria Barbosa observa que

A oferta de lazer noturno da cidade natildeo tornou a famiacutelia boecircmia no sentido de romper com as regras e esquecer as preocupaccedilotildees morais Ao

42 O Paiz 25 fev 190643 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 49

contraacuterio o projeto republicano normatizador condicionou a boemia a tornar-se familiar []A elite boecircmia trocou o espaccedilo da rua os cafeacutes e restaurantes onde se reunia para beber e conversar pelo brilho dos salotildees liacutetero-musicais e pela intimidade dos clubes44

Em 1906 o historiador Rocha Pombo testemunhava para os lei-tores do perioacutedico carioca Correio da Manhatilde uma dessas noites em que presenciara Catullo da Paixatildeo Cearense num encontro ocorrido em casa de Mello Moraes realizado em homenagem ao escritor e acadecirc-mico Alberto de Oliveira

Corria a bella festa serena e sumptuosa como sempre satildeo as daquele doce e carinhoso lar do dr Mello Moraes Filho Tinhamos ouvido jaacute estrophes deliciosas magniacuteficas borbotoantes como catadupas de lavas vinda da alma do nosso grande Alberto OliveiraTinhamos jaacute sentido cantos e muacutesicas ndash tudo isso que tempera as almas para o sagrado conviacutevio e que daacute um tom muito fino muito vivo agrave jovialidade dos coraccedilotildees que se encontram E continuaacutevamos todos numa aclamaccedilatildeo uniacutessona e incessante ao illustre poeta em honra de quem ali estaacutevamosLaacute pela meia noite correcircra entre os convivas a notiacutecia de que havia chegado agrave casa o Catullo CearenseFrancamente este nome natildeo me era estranho Por vezes me havia soado aos ouvidos sob gestos inexpressivos e sem nada que revelasse coisa alguma de excepcional e extraordinaacuterioNatildeo sei bem porque mas o certo eacute que no meu espiacuterito vagava esta Idea ndash fugidia e imprecisa ndash de que Catullo natildeo era mais que um simples cantador de modinhas um desses boecircmios chefes de Lyra bardo de violatildeo ao luar sabendo gemer entre um pigarro e outro uma porccedilatildeo de banalidades sobre o velho estafado thema do amorNatildeo fizemos portanto eu e uns iacutentimos que discreteaacutevamos fora do bulliacutecio da festa muito caso do annuncio que se espalhaacutera

44 ARAUacuteJO Rosa Maria Barboza de A vocaccedilatildeo do prazer a cidade e a famiacutelia no Rio de Janeiro republicano Rio de janeiro Rocco 1993 p 348

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo50

Dahi a pouco fomos chamados agrave sala onde jaacute encontramos todo aquelle mundo em foacuterma numa grande espectaccedilatildeo de coisas solennes []Haacute nos olhares uma como interrogaccedilatildeo de mysteacuterioO homem levanta-se e vem pro meio do salatildeo E des daquelle instante ndash digam os que ali tiveram a fortuna de estar ndash elle foi o senhor daquellas almas como se fosse a alma de todos noacutesCantou creio que os Olhos dela []Na sala entatildeo se fez uma atmosphera de assombro sacudido por aquele verbo de fogo arrebatado por aquella figura de trasgo insurgido ndash o auditoacuterio extasia-se illumina-se exalccedila-se como si a flamma daquella alma passasse subitamente para todas as almasE quando o vulto do cantor minguou n [sic] sala deixando escapar-se--lhe dos laacutebios o uacuteltimo verso houve uma verdadeira explosatildeo de de-liacuterio tatildeo espontacircnea tatildeo ruidosa tatildeo vibrante como si formidaacutevel tufatildeo barafustasse naquelle ambiente Natildeo eram palmas eram gritos de acla-maccedilatildeo transportes arrebatamentos ndash quase insacircnia e desatino []45

A citaccedilatildeo eacute longa e esclarecedora para demonstrar a aceitaccedilatildeo de Catullo e de modinhas entre os letrados de entatildeo Adentrar os espaccedilos de sociabilidade dessa elite e a acreditar no testemunho de Rocha Pombo ser ovacionado por ela era possuir um capital social que autori-zava um indiviacuteduo mesmo um modinheiro como Catullo a ser consi-derado algo mais do que um simples ldquotrovadorrdquo

Digo-o desassombradamente Catullo eacute um grande poetaA meu ver tem elle na alma alguma coisa mais que a exuberante e en-thusiastica poesia do nosso povo nos seus versos nos seus cantos fala a excelsia musa anocircnima e immortal da raccedilaE sente-se isso tanto mais quanto essa musa pelo estro deste poeta nos fere na alma umas grandes notas que nos dizem como Ella se comove agora apercebida do que foi nos tempos do velho culto saudosa das edades mortas e ufana de ressurgir para outras edificaccedilotildees46

O modinheiro Catullo de ldquobardo tocador de violatildeordquo de ldquochefe boecircmio da Lyrardquo passava a ser representado como ldquopoetardquo Essa repre-

45 Correio da Manhatilde 25 ago 1907 p 3 46 Idem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 51

sentaccedilatildeo era construiacuteda pela constataccedilatildeo de que em seus versos falava ldquoa musa anocircnima e immortal da raccedilardquo vinda por fim de ldquoedades mortasrdquo e ressurgida para novas ldquoedificaccedilotildeesrdquo Essa passagem de bardo a poeta se desenrolou paulatinamente de forma que ao chegar o ano do testemunho de Rocha Pombo a representaccedilatildeo de Catullo jaacute diferia substancialmente da criada para definir outros modinheiros cariocas da eacutepoca Na medida em que a modinha passou a ser considerada impor-tante pelos letrados a figura de Catullo que jaacute se arvorava como letrado e organizador de livros de modinhas foi sendo alavancada como al-gueacutem que expressava a ldquopoesia popularrdquo Poreacutem para ser considerado um ldquopoetardquo e por conseguinte um distinto entre os outros modinheiros Catullo usou de estrateacutegias que se expressavam nos textos por ele publi-cados e que seratildeo mateacuteria de nosso exame adiante

Catullo jaacute em iniacutecios do seacuteculo XX poderia ser representado como um ldquoboecircmio modinheirordquo e ao mesmo tempo ldquopoetardquo Podemos flagraacute-lo em notiacutecias em que se avultavam esses dois lados de maneira natildeo contraditoacuteria como no curioso protesto que liderou e que foi noti-ciado nos jornais ldquoUma commissatildeo de poetas chefiados pelo Sr Catullo da Paixatildeo Cearense vae pedir ao ministro da viaccedilatildeo para que de ora em deante natildeo se acenda mais o gaz nas noites de luarrdquo47

Haacute de se chamar a atenccedilatildeo que aleacutem de Afonso Arinos e Mello Moraes jaacute citados Alberto Brandatildeo Pinheiro Machado e ateacute os presi-dentes Nilo Peccedilanha e Hermes da Fonseca eram homens que abriam as portas de suas residecircncias para espetaacuteculos das ditas ldquocoisas brasilei-rasrdquo48 Nilo e Hermes inclusive escandalizaram alguns detratores da modinha abrindo as portas da sede do Governo Federal para receber Catullo Na eacutepoca o caso de Hermes da Fonseca foi o mais comentado Sua mulher Nair de Teffeacute aluna de violatildeo e admiradora de Catullo apresentou em 1914 para um distinto puacuteblico presente no Palaacutecio do Catete entatildeo sede do Governo acompanhando-se ao violatildeo o maxixe Corta jaca de autoria de Chiquinha Gonzaga e com letra de Catullo

47 O Seacuteculo 14 abr 1908 p 148 Hermano Viana tambeacutem daacute um raacutepido quadro de alguns desses salotildees Cf VIANNA

Hermano O misteacuterio do samba 7 ed Rio de Janeiro ZaharUFRJ 2010

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo52

Um escacircndalo que os jornais colocariam na conta do presidente General Hermes da Fonseca nos dias posteriores Nair de Teffeacute admiradora de Catullo tambeacutem intercedeu junto a Hermes para que arrumasse uma vaga para o modinheiro na Imprensa Nacional no que foi atendida Toda essa admiraccedilatildeo fez com que em maio de 1914 Catullo fosse cha-mado ao Palaacutecio do Catete para ele mesmo fazer um recital de modi-nhas Nair de Teffeacute contava que

Essa audiccedilatildeo de Catullo no Palaacutecio do Catete constituiu o maior su-cesso a que um verdadeiro artista poderia aspirar em toda a sua vida Catullo ao teacutermino de cada canccedilatildeo que interpretava recebia da culta assistecircncia uma ovaccedilatildeo delirante Todos os aplausos de peacute E ecircle bem o merecia pelo seu gecircnio e seu irresistiacutevel poder de transmissatildeo de sen-timentos Catullo era pobre modesto educadiacutessimo de uma simplici-dade nazarena Seu orgulho era sua Arte a sua Religiatildeo [] Devo a Catullo a sugestatildeo de cantar de preferecircncia na nossa liacutengua Depois de ouvir Catullo fiquei tatildeo impressionada com o seu prodigioso poder de interpretaccedilatildeo que resolvi estudar letras brasileiras e acompanhar-me ao violatildeo para cantaacute-las49

O contraste que Nair de Teffeacute faz aparecer em seu depoimento era uma representaccedilatildeo que ajudou por diversas vezes as portas dos salotildees a abrirem-se para as modinhas de Catullo O ldquosimplesrdquo e ldquopobrerdquo Catullo poderia ao mesmo tempo por ser ldquoeducadiacutessimordquo ser figura comum nos espaccedilos de uma elite letrada que curtia as mani-festaccedilotildees do ldquopovordquo

Mas se a apresentaccedilatildeo no Palaacutecio do Catete lhe rendera um reconhecimento como artista antes em 1908 usando de seu capital social adquirido Catullo conseguiu aquilo que lembraria para sempre como sendo sua verdadeira consagraccedilatildeo uma apresentaccedilatildeo de modi-nhas acompanhada ao violatildeo no Instituto de Muacutesica mdash que era consi-derado o templo da muacutesica no periacuteodo e no entanto fechava as portas para apresentaccedilotildees de motivos populares Depois de muito hesitar o diretor-maestro do Instituto Nacional de Muacutesica Alberto Nepomuceno consentiu que ali se realizasse um espetaacuteculo de modinhas brasileiras

49 Entrevista de Nair de Teffeacute Apud MAUL Carlos Op cit p 69

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 53

capitaneado por Catullo Daquela noite o escritor Luciano Braga prefaciando um dos livros de modinhas do autor contava que

[] o leitor se laacute natildeo esteve pergunte a algueacutem do proacuteprio Instituto o que foi essa audiccedilatildeoPoucas vezes aquelle estabelecimento teraacute tido uma enchente como a do concerto do illustre poeta O auditoacuterio foi do que a Capital tem de mais fino nas letras sciencias e artes Viam-se senhoras de peacute que o ambiente regorgitava50

Nas palavras de Luciano Braga se expressava a forma como Catullo em 1913 jaacute era conhecido um poeta Essa construccedilatildeo foi pau-latinamente construiacuteda por Catullo em seus livros e em suas apresenta-ccedilotildees nos salotildees Ao referir-se a ele como poeta Luciano Braga ecoava a reabilitaccedilatildeo progressiva que as modinhas recebiam por parte do mundo letrado de entatildeo Reabilitaccedilatildeo em muito advinda do ecircxito editorial das letras de modinhas publicadas a cargo de Catullo Ateacute o ano do teste-munho de Luciano Braga haviam sido publicados 11 livros organizados por Catullo da Paixatildeo Cearense cujo conteuacutedo eram letras de modinhas indicadas com as respectivas muacutesicas a serem acompanhadas

O certo eacute que naquela noite de 5 de junho de 1908 as galerias do Instituto de Muacutesica no Rio de Janeiro nunca haviam recebido tamanha multidatildeo A distinta plateia acostumada a frequentar cafeacutes e livrarias da capital durante o dia aglomerava-se nos corredores para assistir ao es-petaacuteculo em que Catullo da Paixatildeo Cearense cantava modinhas acom-panhando-se ao violatildeo Letrados como Joseacute do Patrociacutenio Filho e Luiz Murat festejavam no modinheiro o triunfo do violatildeo ldquobrasileirordquo nos espaccedilos reservados para espetaacuteculos da dita ldquocivilizaccedilatildeordquo Entre aqueles que ali presenciavam o acontecimento estava o escritor Joatildeo do Rio (Paulo Barreto) que meses depois jaacute saudoso lembraria aquele dia em sua crocircnica no jornal

50 BRAGA Luciano Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Lyra dos salotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1926 p 7

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo54

Certo quando entramos natildeo contaacutevamos com aquele ambienteO theatro estava cheio mas cheio dessa sociedade elegante e fina da sociedade que estaacute no Lyrico nas recepccedilotildees nos chaacutes nos bailes da sociedade que vae para Petroacutepolis51

Essa febre por procurar e definir o que seriam as ldquocoisas brasi-leirasrdquo fez surgir um diaacutelogo fecundo entre uma elite letrada (que necessaacuterio dizer ainda se construiacutea como elite) e as camadas popu-lares que eram identificadas como guardadoras de expressotildees da dita ldquoraccedila brasileirardquo Mesmo maestros do consagrado Instituto de Muacutesica como Alberto Nepomuceno organizavam-se em um movimento de procura das raiacutezes musicais do paiacutes e viam num sujeito como Catullo o representante ideal para mostrar essas ldquocoisas brasileirasrdquo em es-paccedilos ditos ldquocivilizadosrdquo52

Foi assim que Catullo da Paixatildeo Cearense articulando sua circu-laccedilatildeo entre muacutesicos do periacuteodo que o faziam conhecer o universo das ruas (espaccedilo de oralidades fontes de suas produccedilotildees) suas boas rela-ccedilotildees com a elite carioca e seu encontro com um bom editor ndash que o autor dizia ser ldquoum americano nisso de reclamesrdquo pois ldquocada impressatildeo de meus livros editados sempre pela Livraria Quaresma custa os olhos da cara e o resto do resultado gasta-se quase todo em anuacutenciosrdquo53 mdash foi construindo sua representaccedilatildeo de poeta popular letrado

As ruas e os salotildees Com tracircnsito livre pelos dois espaccedilos Catullo se constituiacutea em artista e poeta do povo Mais tarde descobriria que ser poeta do sertatildeo mdash num momento em que tematizar o sertatildeo vira febre mdash lhe daria outro tipo de status que as modinhas natildeo davam o de tatildeo simplesmente poeta Mas antes disso Catullo da Paixatildeo Cearense teve de lidar com os entraves advindos de ser considerado uma ldquoexpressatildeo do povordquo o que lhe retirava a priori a autoria de suas publicaccedilotildees de

51 Gazeta de Notiacutecias set 1908 p 752 Sobre a busca pelo ldquopopularrdquo na muacutesica cf TABORDA Maacutercia Violatildeo e identidade

nacional Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011 Para a atuaccedilatildeo de Alberto Nepomuceno como diretor do Instituto de Muacutesica cf PEREIRA Avelino Romero Muacutesica sociedade e poliacutetica Alberto Nepomuceno e a Repuacuteblica musical Rio de Janeiro UFRJ 2007

53 O Paiz 25 fev 1906 p 8

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 55

modinhas pela livraria Quaresma Essa complexa equaccedilatildeo seraacute melhor compreendida adiante ao observarmos como a publicaccedilatildeo de textos contendo motivos considerados ldquopopularesrdquo (sejam modinhas ou temas sertanejos) forccedilosamente poderia criar entraves para algueacutem que pleite-asse o reconhecimento como literato mdash como era o caso de Catullo Para tanto eacute necessaacuterio atentar a um tema fulcral expresso em publica-ccedilotildees produzidas no periacuteodo a relaccedilatildeo de uma cultura letrada que nascia com a discussatildeo sobre o popular Analisando todos os atores que o construiacuteram desde leitores ateacute autores e editores

Aliaacutes o papel do editor Quaresma deve ser ressaltado pois foi a partir de seu objetivo editorial que pocircde surgir no seio do mundo letrado a obra de Catullo da Paixatildeo Cearense E eacute entendendo a trajetoacuteria de Catullo no espaccedilo de uma cultura escrita da qual ele fazia parte que se compreende a emergecircncia de sua literatura no periacuteodo

Aos leitores ldquotudo quanto se quizerrdquo autor livro e literatura

ndash Mas que quer o puacuteblico Qual eacute essa nova curiosidadendash A curiosidade do veratildeondash Uma curiosidade que desapareceraacute como os figos e as mangasndash Sim natildeo ria Todo o povo razoavelmente constituiacutedo tem duas curiosi-dades intermitentes e de ordem extrapraacutetica saber em que deuses crecircem os seus profetas e o que realmente pensam e satildeo os seus pensadores e os seus artistas Estas curiosidades soacute aparecem quando a Cacircmara fecha A imprensa que fala de toda a gente soacute natildeo falou ainda dos literatos Entretanto noacutes somos um paiacutes de poetas Em cada esquina encontra-se uma escola de arte em cada cafeacute corre desabrido esse processo epica-mente nacional de sova literaacuteria no interior das livrarias fervilham as novas escolas de arte Como os homens variam e os livros natildeo satildeo lido oh Senhor Deus Ler todos esses volumes Seria interessante fixar o que pensam ou o que natildeo pensam os caros iacutedolos da nossa artendash Iacutedolosndash O homem que escreve eacute sempre um iacutedolo Mesmo quando escreve mal o que natildeo eacute raro Quando algueacutem se destina a ser julgado pode ter a certeza de ser pelo menos o culto de uma almaO tom sentencioso do meu veneraacutevel amigo comeccedilava a irritar e a convencer

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo56

Ele poreacutem continuava animadondash Natildeo se pode imaginar a admiraccedilatildeo e o culto que se devota aos homens de letras nossos54

Em 13 de marccedilo de 1905 com a narraccedilatildeo de uma suposta con-versa que Joatildeo do Rio teve com seu amigo o jornal Gazeta de Notiacutecias anunciava uma seacuterie de entrevistas capitaneadas por Joatildeo do Rio com vaacuterios autores da considerada ldquoliteratura brasileirardquo O propoacutesito era mostrar ao puacuteblico leitor do jornal o que pensavam aqueles que o amigo do entrevistador chama no trecho acima citado de ldquoiacutedolosrdquo

A notabilidade do autor de livros no Brasil do periacuteodo eacute atestada pelo interlocutor de Joatildeo do Rio com uma sentenccedila lacocircnica ldquoO homem que escreve eacute sempre um iacutedolordquo E saber escrever ndash ou melhor ser re-conhecido como algueacutem que sabe escrever ndash era um fator que diferen-ciava um indiviacuteduo da grande maioria que natildeo sabia ler nem escrever De forma que para uma nova camada social que enxergava no letra-mento uma caracteriacutestica fundamental para reconhecer-se como elite aqueles ldquohomens de letrasrdquo eram no dizer do companheiro de Joatildeo do Rio seus ldquoiacutedolosrdquo

Revistas e jornais como o Gazeta de Notiacutecias muitas vezes publicavam as efemeacuterides da qual nos fala o amigo de Joatildeo do Rio ndash aquilo que ldquodesapareceraacute como os figos e as mangasrdquo ndash e eram os principais veiacuteculos propagadores dos modismos que interessavam ao puacuteblico leitor Mas que queria esse puacuteblico

A possibilidade de investigaccedilatildeo do mercado consumidor de livros na eacutepoca eacute um campo que ainda causa muitas discussotildees entre historiadores da literatura e criacuteticos literaacuterios De fato infor-maccedilotildees sobre nuacutemero de vendagens satildeo bastante imprecisas (quando natildeo inexistentes) agrave eacutepoca para afirmar com seguranccedila que uma de-terminada obra pudesse ter sido bastante consumida Penso ndash e sigo aqui esse caminho ndash que o que mais aproxima um investigador de cravar uma determinada obra literaacuteria como bastante consumida seja o nuacutemero de ediccedilotildees

54 RIO Joatildeo do O momento literaacuterio Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 2010

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 57

Assim uma obra como Os sertotildees de Euclides da Cunha cujo nuacutemero de ediccedilotildees chegou a trecircs em menos de trecircs anos pode ser con-siderada uma obra bastante consumida Cancioneiro fluminense de 1887 primeira publicaccedilatildeo organizada por Catullo da Paixatildeo Cearense teve em poucos anos as mesmas trecircs ediccedilotildees esgotadas E Cancioneiro popular de modinhas brasileiras do mesmo autor incriacuteveis 25 ediccedilotildees em nove anos Eacute nesses nuacutemeros impressionantes de um autor hoje re-lativamente desconhecido como Catullo que se encontra o cerne da discussatildeo era Catullo um escritor popular

O termo ldquopopularrdquo muitas vezes evocado para salientar o su-cesso de uma obra pode evocar tambeacutem tanto uma definiccedilatildeo do puacuteblico ao qual se destina quanto pode ser a identificaccedilatildeo de um determinado tema na obra como sendo ldquopopularrdquo e ainda mais pode identificar o valor pecuniaacuterio de uma obra quando vendida Essa polissemia no termo ldquopopularrdquo guarda evidentemente alguns debates historiograacute-ficos que tecircm gerado nos uacuteltimos anos um redirecionamento no seu uso55 O historiador Roger Chartier propotildee que a discussatildeo acerca do popular deva ultrapassar o caraacuteter de definiccedilatildeo a priori de uma praacutetica e sugere em contrapartida a investigaccedilatildeo dos seus usos ou dito de outro modo dos seus significados construiacutedos socialmente56 Nesse sentido investigar as apropriaccedilotildees dos objetos culturais seria a melhor forma de se compreender como determinada praacutetica ganha um sentido construiacutedo por seus praticantes E avanccedilando como os praticantes (os leitores por exemplo) compartilham eles mesmos determinados signi-ficados que progressivamente vatildeo se constituindo em uma identidade social atraveacutes do reconhecimento muacutetuo de que participam de uma mesma comunidade

No nosso caso a elite letrada brasileira como procuramos de-monstrar construiu um circuito de espaccedilos de sociabilidades vaacuterios onde

55 Jacques Revel fez uma interessante siacutentese desses debates Cf REVEL Jacques Cultura popular usos e abusos de uma ferramenta historiograacutefica In REVEL Jacques Proposiccedilotildees ensaios de histoacuteria e historiografia Rio de Janeiro EdUERJ 2009 p 163-186

56 CHARTIER Roger Cultura popular revisitando um conceito historiograacutefico Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 8 n 16 1995

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo58

encenavam essa identidade Ao mesmo tempo os literatos ndash ou seja uma parcela dessa mesma elite letrada ndash criavam eles mesmos os seus es-paccedilos de consagraccedilatildeo como a Academia Brasileira de Letras e seus ri-tuais de reconhecimento como as conferecircncias os encontros liacuteteros-mu-sicais etc Um indiviacuteduo identificado como um letrado natildeo era evidentemente um literato Nem algueacutem que escreve um livro era auto-maticamente identificado como tal Isto porque antes disso a construccedilatildeo de uma autoridade sobre os textos demandava duas estrateacutegias a de reco-nhecimento social do candidato a autor como letrado e a concomitante identificaccedilatildeo do seu texto como algo a ser encarado como literatura

Assim livros publicados pela livraria Quaresma por exemplo nem sempre podiam ser reconhecidos como ldquoliteraturardquo pelos seus lei-tores Nesse sentido um autor que tivesse sido publicado pela Quaresma teria de lidar com os diversos entraves para seu reconhecimento como literato mdash ou seja um letrado que era autor de um texto que natildeo pro-priamente figurava com o epiacuteteto de ldquoliteraturardquo

Outrossim o editor natildeo hesitava em definir alguns dos autores que publicava como ldquopopularesrdquo alguns por conter temas identificados por uma elite letrada como ldquopopularrdquo outros por ter a obra um valor de venda bem menor quando comparada a publicaccedilotildees da Garnier e da Laemmert duas das maiores casas editoriais do periacuteodo e muitos por seus livros terem mais de uma ediccedilatildeo da obra publicada sendo jaacute um sucesso de vendas Definir um texto como sendo da lavra ldquodo povordquo automaticamente fazia desaparecer a figura do autor tornando-o mero coletor de expressotildees ldquopopularesrdquo

Assim a publicaccedilatildeo de livros contendo ldquotemas popularesrdquo carre-gava outros tipos de constrangimentos para o organizador da obra Este poderia ser reconhecido como um letrado pelo puacuteblico mas natildeo o autor do texto por ele publicado Neste uacuteltimo caso o criador do texto teria de se afirmar antes como ldquoautorrdquo a fim de construir para o leitor o reco-nhecimento de sua ldquoautoridaderdquo sobre os textos Essa afirmaccedilatildeo autoral se fundava por meio de lentas e progressivas estrateacutegias de escrita le-vadas a cabo pelo candidato a autor

Se o texto publicado era digno de ser considerado um texto lite-raacuterio logo o autor era alccedilado a literato Para isso a criacutetica de jaacute reconhe-

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 59

cidos literatos era fatal Maacuterio Pederneiras assim fala de seu iniacutecio como poeta a Joatildeo do Rio

Para desespero dos amadores da literatura de peso em brochuras de quilo todo o meu trabalho literaacuterio ateacute hoje aparecido estaacute enfeixado em duas plaquettes esgalgas excelentemente impressas Agonia e Rondas NoturnasA primeira meu livro de estreacuteia sofreu coitadinha todos os maus tratos da veneranda Criacutetica indiacutegena disseram-lhe nomes feios chamaram-na de produto posticcedilo de preconceito escolar e ateacute Joatildeo chegaram a arru-mar-lhe em cima o peso vigoroso de insultos em francecircs Um horrorLembro-me ainda de que o egreacutegio Sr Antocircnio Sales no seu beliacutes-simo estilo pompadour deu-lhe pra baixo de rijo em meio palmo de excelente prosa gramatical pelas colunas de honra de um diaacuterio de efecircmera duraccedilatildeoDesesperei Joatildeo Porque contava bastante com a autorizada opiniatildeo de S Exordf para a minha consagraccedilatildeo de poeta novo57

Maacuterio Pederneiras mostra que se natildeo fosse reconhecido por ldquosu-midadesrdquo ainda que se reconhecesse sua autoria sobre o texto estava fadado a ser simplesmente um autor letrado Para todas essas opccedilotildees havia uma que as antecedia a aparentemente trivial necessidade de construccedilatildeo da autoria sobre a obra

Sem duacutevida em geral havia dois caminhos a serem seguidos publicar um livro e ser reverenciado como um literato (o que jaacute garan-tiria ao criador do texto obviamente sua autoria) ou publicar um livro no qual se garantia sua autoria e natildeo ser identificado como um literato (caso de muitas das publicaccedilotildees a cargo da livraria Quaresma) A traje-toacuteria seguida por Catullo Cearense difere de ambas

Ainda que se tenham em alta conta suas publicaccedilotildees de modi-nhas por serem identificadas como ldquopopularesrdquo e expressatildeo de uma ldquoalma nacionalrdquo eacute exatamente seu sucesso como organizador de livros ditos ldquopopularesrdquo (neste caso entendido no sentido de que vinha do ldquopovordquo) que entravava seu reconhecimento como autor Uma vez reco-

57 RIO Joatildeo do O momento literaacuterio Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 1905 p 70

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo60

nhecido como ldquopoeta popularrdquo a ecircnfase no ldquopopularrdquo (e ldquopopularrdquo aqui porque expressatildeo de uma ldquonaturezardquo de uma ldquoalmardquo) ao mesmo tempo em que daria o sucesso de puacuteblico retiraria parte da autoridade sobre o texto publicado Afinal de contas ldquopopularrdquo era identificado por muitos estudiosos das coisas ditas ldquopopularesrdquo do periacuteodo (como Melo Moraes) como coisa do ldquopovordquo e natildeo de um autor que tatildeo so-mente expressaria a tal ldquoalma do povordquo

O sucesso de puacuteblico garantido por qualquer publicaccedilatildeo que se arvorasse como ldquopopularrdquo ao que parece poderia ser frustrante para um escritor mas por outro lado entusiasmava o editor Quaresma em publicar seus tiacutetulos com a adjetivaccedilatildeo ldquopopularrdquo E ele publicou vaacuterios tiacutetulos que vinham com essa adjetivaccedilatildeo O cozinheiro popular que prometia ser uma ldquoverdadeira enciclopeacutedia culinaacuteriardquo oferecendo ao leitor receitas de ldquotudo quanto se quiserrdquo58 O orador do povo que reunia discursos familiares e populares proacuteprias para qualquer evento social e Cancioneiro popular organizado por Catullo59

Nesse sentido ser ldquopopularrdquo como expressatildeo do povo soava po-sitivamente para o editor Quaresma mas podia ser diferentemente com-preendido pelo organizador ou escritor da obra Tanto mais porque ao passo que lhe dava o reconhecimento de letrado punha-o em situaccedilatildeo menor entre os letrados exatamente por natildeo ser de uma elite letrada mas daquilo que chamavam ldquopovordquo Para entender esse movimento eacute necessaacuterio compreender os rituais que governavam essa sutil separaccedilatildeo no mundo letrado de entatildeo

Um passeio pelas livrarias do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo XIX para o XX bem poderia provocar espanto para um transeunte desa-visado Nelas podia-se encontrar desde aquela considerada a mais ldquoalta literaturardquo representada naqueles tempos por homens como Machado de Assis e Coelho Neto ateacute um tipo de literatura entendida como ldquopo-pularrdquo escrita para o passatempo do leitor ou marcadamente produzida para ser uacutetil nas praacuteticas cotidianas como manuais receitas e livros de

58 Cataacutelogo da Livraria Quaresma In NEVES Eduardo das Mysteacuterios do violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1905 p 125

59 MASCARENHAS Annibal O orador do povo Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1924

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 61

pornografia Naqueles espaccedilos era comum segundo o memorialista Luiacutes Edmundo encontrar um reconhecidamente ilustrado como Rui Barbosa a disputar espaccedilos ao lado de

[] toda uma freguezia perguntona espalhafatosa vozeiruda que ar-ranca notas de dois e cinco mil reacuteis do fundo de lenccedilos de chita muito sujos armados em carteiras para comprar as brochurinhas postas em capas de espavento natildeo raro aos empurrotildees aos gritos60

Natildeo eram somente nas livrarias que se podia encontrar essa elite letrada aacutevida por um livro Nas ruas cariocas o comeacutercio livreiro fa-zia-se presente com os ldquocaixeirosrdquo gente que ao comprar as brochuras nas livrarias saiacutea vendendo-as pela cidade

Observando essa efervescecircncia livresca o cronista Joatildeo do Rio escrevia que

Os vendedores de livro satildeo uma chusma incontaacutevel que todas as manhatildes se espalha pela cidade entra nas casas comerciais sobe aos morros percorre os subuacuterbios estaciona nos lugares de movimento61

Esses vendedores se beneficiavam de uma progressiva consta-taccedilatildeo arraigada nos grandes centros urbanos do paiacutes na eacutepoca de que possuir um livro era sinal de distinccedilatildeo Ora uma vez que no Brasil eram poucos os que sabiam ler e escrever aqueles que detinham essa teacutecnica fatalmente se distinguiam dos demais de forma que muitas vezes o caraacuteter de reconhecimento social se dava pelo fato de um indi-viacuteduo ser iniciado ou natildeo nas letras Isso criou condiccedilotildees para que a elite citadina brasileira se reconhecesse cada vez mais pelo letramento

De fato inuacutemeros satildeo os casos de autores que ainda por natildeo possuiacuterem socialmente uma vida confortaacutevel e com as regalias de uma possiacutevel ldquoelite econocircmicardquo eram entendidos como fazendo parte de um restrito grupo de uma elite letrada As representaccedilotildees construiacutedas para

60 EDMUNDO Luiacutes O Rio de Janeiro do meu tempo Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1938 p 735-7

61 RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008 p 85 Essa crocircnica foi publicada em 12 fev de 1906 no jornal Gazeta de Notiacutecias do Rio de Janeiro

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo62

serem definidoras daquilo que se entendia como uma ldquoeliterdquo teriam de inevitavelmente passar pela proximidade do indiviacuteduo com o objeto livro Foi a partir disso que o mercado consumidor de livros foi impul-sionado e com ele os editores comeccedilaram a publicar livros que aten-dessem agrave demanda por um puacuteblico leitor que nascia

Esses consumidores interessavam-se por livros que poderiam servir inclusive como presente para uma ldquosenhorardquo bastando ser no caso dos romances ldquoconvenientemente encadernadordquo como indicava na eacutepoca o famoso Manual do namorado62 Ademais livros como ma-nuais eram presenccedila constante nas listas dos mais vendidos Manual do namorado Manual do chofer Manual praacutetico do destilador Manual do padeiro Todos esses tiacutetulos eram publicaccedilotildees que visavam a al-canccedilar um puacuteblico letrado nascente e que poderiam encontrar nesses livros uma leitura uacutetil e de simples acesso ou mesmo apenas frivoli-dades para o passatempo no dia a dia63

A necessidade de seduzir os leitores fazia com que os livreiros e editores do periacuteodo natildeo soacute tratassem de chamar a atenccedilatildeo para o con-teuacutedo do livro bem como salientassem a proacutepria materialidade do livro O editor Quaresma por exemplo ficou conhecido por seu esforccedilo pu-blicitaacuterio ao fazer grandes cartazes e pregar por toda cidade anunciando a chegada de um livro Das propagandas estampadas nos grandes jor-nais do Rio agraves chamadas em que anunciava natildeo soacute o conteuacutedo da publi-caccedilatildeo mas tambeacutem seu caraacuteter esteacutetico tudo era mobilizado como forma de seduzir um possiacutevel consumidor tal como aparece no anuacutencio do livro com letras de modinhas intitulado Lyra dos salotildees ldquoUm grosso volume de 608 paacuteginas com dezenas e dezenas de retratos de todos os poetas e deslumbrante capa em chromo-lythographia do insigne artista brasileiro Raulrdquo64

62 BOTAFOGO Don Juan de Manual do namorado Rio de Janeiro Ediccedilotildees Quaresma sd p 8

63 Na Franccedila havia muito tempo que existia uma tradiccedilatildeo na publicaccedilatildeo de manuais Cf EL FAR Alessandra Paacuteginas de sensaccedilatildeo literatura popular e pornograacutefica no Rio de Janeiro (1870-1924) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004

64 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 224

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 63

O texto referia-se ao famoso caricaturista Raul Pederneiras O investimento da abordagem esteacutetica da obra fazia com que as casas edi-toriais tivessem um rol de artistas que tratavam de assegurar a beleza do objeto livro visando a criar o fasciacutenio do potencial consumidor Era comum trabalharem nessas casas homens como Raul Pederneiras Bastos Tigre e vaacuterios outros ilustradores muitos ganhando fama inicial com a produccedilatildeo de capas

Tambeacutem da livraria Quaresma se deu a iniciativa de publicar a chamada ldquoBiblioteca Infantilrdquo a primeira accedilatildeo editorial no Brasil que visava ao puacuteblico infantil ainda nos anos 1910 No anuacutencio de Histoacuteria da Baratinha o editor Quaresma salientava natildeo soacute o con-teuacutedo com ldquonarraccedilotildees phantaacutesticasrdquo mas tambeacutem o fato de o livro formar ldquo[] um grosso volume de 320 a 400 paacuteginas com milhares de vinhetas e gravuras impresso em papel de boa qualidade typo novo e letras de fantasia encadernado e sempre com a mesma capa lithogra-phada a coresrdquo65

A necessidade de seduzir pela materialidade do livro foi um arti-fiacutecio comum na publicizaccedilatildeo das obras literaacuterias de entatildeo Ademais isso revelava as estrateacutegias editoriais que buscavam alcanccedilar um puacute-blico semiletrado Estrateacutegia essa que por fim visava agravequeles cujo ldquoob-jetordquo livro demandava natildeo raro mais interesse do que o proacuteprio texto que ele carregava

Ora perder de vista essa dimensatildeo seria desdenhar toda uma re-laccedilatildeo que o consumidor de livros tinha quando da sua posse no Brasil da eacutepoca e aleacutem disso seria menosprezar o valor que subjazia ter um livro numa sociedade que paulatinamente valorizava o ldquocidadatildeo le-tradordquo Essa constataccedilatildeo nos coloca diante da possibilidade de vislum-brar nos textos produzidos no periacuteodo natildeo soacute a construccedilatildeo de artifiacutecios que pudessem ldquopescarrdquo o leitor ndash fossem eles artifiacutecios editoriais temaacute-ticos e narrativos ndash mas como os proacuteprios sujeitos construiacuteam para si um lugar entre aqueles que pudessem ser reconhecidos como ldquoletradosrdquo Mais como essa produccedilatildeo de autoridade sobre o objeto livro passava

65 Cataacutelogo da Bibliotheca Infantil da Livraria Quaresma In DEMOSTHENES Annibal O orador do povo Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1924

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo64

por um entendimento profundo de que sua posse representava de al-guma forma poder ― fosse do autor do editor ou do leitor

O escritor Lima Barreto nos conta acerca de seu personagem Policarpo Quaresma que ele possuiacutea muitos livros em casa e que por isso mesmo acabou ganhando a desafeiccedilatildeo de certo doutor Segadas um cliacutenico afamado no bairro de Satildeo Januaacuterio que natildeo admitia essa extravagacircncia dizendo ldquoSe natildeo era formado para quecirc Pedantismordquo66 Nesse pequeno causo Lima Barreto nos conta como a possibilidade de possuir livros no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX era algo que poderia causar certo incocircmodo e como consequecircncia mostra o quanto possuir um livro podia ser considerado um simples ldquopedantismordquo sendo a posse do objeto um fator que poderia credenciar seu possuidor a ser chamado de pedante ndash ou seja algueacutem que se pretende algo mais do que eacute Lima Barreto atenta para o fato de que ter a posse de um livro po-deria naqueles idos ter diversos significados inclusive com vistas a uma representaccedilatildeo hieraacuterquica do indiviacuteduo que o possui podendo ser identificado como um pedante

Um exemplo sintomaacutetico dessa relaccedilatildeo poderosa que o possuidor de livros podia obter na sociedade carioca pode-se encontrar nos jornais do periacuteodo No Jornal do Comeacutercio de setembro de 1915 ladeado a anuacutencios de cosmeacuteticos e modernas maacutequinas aparecia o anuacutencio de uma estante contendo livros do mundo inteiro a chamada Biblioteca Internacional e entre os elogios aos grandes nomes da literatura uni-versal que a estante trazia (numa tentativa oacutebvia de seduzir o leitor para a compra) o anunciante chamava a atenccedilatildeo para a distinccedilatildeo que traria para a casa que possuiacutesse tal estante de livros

A magnificecircncia da ediccedilatildeo mesmo considerada simplesmente como um adorno a Biblioteca Internacional com a sua luxuosa encadernaccedilatildeo e magniacutefica estante augmentaraacute a distinccedilatildeo da residecircncia mais rica-mente mobiliada Uma vez em casa nunca faltaraacute lsquoalguma coisa para lecircrrsquo seja para dez minutos seja para dez horas67

66 BARRETO Lima Triste fim de Policarpo Quaresma Fortaleza ABC Editora 1999 p 1167 Jornal do Comeacutercio 7 set 1915 p 28

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 65

Esses significados no Brasil da virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo podem ser compreendidos apenas a partir de uma relaccedilatildeo in-diviacuteduo-livro Haacute de se levar em conta tambeacutem o caraacuteter de mudanccedilas pelas quais passavam as grandes capitais do paiacutes naquele momento e que rotulavam certas praacuteticas como modernas em detrimento de outras a cujos praticantes (mesmo tendo a posse e o domiacutenio da leitura e de um livro) era negado o status de letrado Isso porque ser ldquoletradordquo de-mandava diversos artifiacutecios Um caso extremo pode ser observado no modinheiro e palhaccedilo Eduardo das Neves que tinha livros publicados sob o seu nome

Ele um cantor negro famoso por compor muacutesicas sobre os grandes acontecimentos ocorridos naqueles tempos68 ao publicar a co-letacircnea de modinhas de sua autoria sob o tiacutetulo Misteacuterios do violatildeo era apresentado pelo editor Quaresma como um ldquotrovador popularrdquo que ainda que escutado ldquoem muitas casas de famiacutelia nos aristocraacuteticos sa-lotildees de Petroacutepolis Botafogo Larangeiras [sic] Tijuca etcrdquo por ldquose-nhoritas distinctissimas e virtuoses conhecidos [] natildeo seraacute um poeta impeccavel um Bilac um Medeiros de Albuquerque um Raimundo Correcirca um Luiz Delfino um Arthur Azevecircdo um Murat um Figueiredo Pimentel []rdquo mas ainda assim ldquoeacute com certeza um poeta na legiacutetima acepccedilatildeo do termo como o puacuteblico os aprecia os lecirc os decora e os traz constantemente na imaginaccedilatildeordquo e deveria ser reconhecido como um ldquoextraordinaacuterio bardo do povo filho do povordquo69

A passagem exposta acima traz alguns apontamentos para se compreender a cultura escrita do periacuteodo aleacutem de poder ser encarada como uma das facetas sob as quais a relaccedilatildeo entre ldquopovordquo e ldquoescritardquo era entendida naquele momento

Ora havia sem duacutevida uma valorizaccedilatildeo do puacuteblico receacutem-le-trado visado como potencial consumidor do objeto ldquolivrordquo criando grandes investimentos em barateamento do livro e produccedilatildeo editorial tornando-o um objeto de seduccedilatildeo e aguccedilando a vontade de potenciais

68 Uma canccedilatildeo famosa de Eduardo das Neves eacute a que foi composta em homenagem a Santos Dumont apoacutes o primeiro voo do brasileiro em Paris

69 NEVES Eduardo das Misteacuterios do violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1905 p IV-V

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo66

consumidores Atrelada a isso sobretudo houve uma mudanccedila no sen-tido e no conteuacutedo do proacuteprio livro que por fim passou a trazer ex-pressotildees e temaacuteticas daquilo entendido como ldquopopularrdquo agrave eacutepoca Entretanto mdash e aiacute reside a especificidade da literatura produzida no periacuteodo mdash isso natildeo credenciava tal expressatildeo quando publicada em livro a ser entendida como ldquopraacutetica letradardquo nem tampouco fazia de seu escritor algueacutem ldquoletradordquo ndash muito menos um ldquopoetardquo Como no caso de Eduardo das Neves no maacuteximo esse escritor seria como es-crevia seu editor um ldquotrovador popularrdquo e natildeo poeta Essa uacuteltima cons-truccedilatildeo demandava muito mais estrateacutegias a serem mobilizadas

Se Neves poderia publicar sob seu nome um texto do ldquopovordquo ser identificado como ldquopopularrdquo lhe retirava a autoridade para falar sobre se natildeo fosse um iniciado um letrado que pode falar sobre mas natildeo pode ser um

Acerca disso o exemplo da publicaccedilatildeo que em 1900 a livraria Quaresma incumbiu a organizaccedilatildeo a Catullo eacute emblemaacutetica Intitulada O cantor de modinhas brasileiras ela deveria conter as modinhas de Eduardo das Neves e do bariacutetono Geraldo Magalhatildees Na publicaccedilatildeo Catullo dizia que seu trabalho de organizaccedilatildeo das modinhas de Eduardo das Neves tinha por fim que ldquoos seus innumeros apreciadores pu-dessem admiral-o mais de perto conhecendo a sua verve satyrica e o seu bello talento embora natildeo cultivado pelo estudordquo [grifo meu]70

Aiacute no proacuteprio texto construiacutea-se uma hierarquia entre produtor e autor-organizador em que o segundo era apresentado como sendo aquele detentor do estudo necessaacuterio para corrigindo as modinhas mostraacute-las da melhor maneira aos leitores de seu texto enquanto o pri-meiro era identificado como algueacutem ldquonatildeo cultivado pelo estudordquo por-tanto natildeo possuindo aptidotildees para ser ele mesmo o autor de suas modi-nhas transcritas para um texto A autoria aiacute advinha da identificaccedilatildeo do sujeito como possuidor de aptidotildees letradas

Essa sutil separaccedilatildeo demarcava no texto as divisotildees sociais que se construiacuteam naqueles idos delimitando um espaccedilo que separava

70 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O cantor de modinhas brasileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1927 p 5

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 67

aquele que podia ser identificado como um letrado daquele que natildeo podia ser detentor desse epiacuteteto Seguramente a proposta da livraria Quaresma colocava de maneira mais clara essa tensatildeo ao optar por pu-blicar textos de indiviacuteduos natildeo propriamente entendidos como letrados como foi o caso de Eduardo das Neves e mesmo inicialmente de Catullo da Paixatildeo Cearense

No que tange a Catullo foi desenrolado um curioso caso de pau-latina construccedilatildeo de autoridade sobre seus textos e na esteira disso uma progressiva identificaccedilatildeo de seu nome como poeta letrado Esse processo esteve intimamente ligado agraves propostas editoriais de seus edi-tores e por consequecircncia agraves expectativas de um puacuteblico leitor visado pelo mesmo editor Nesse espaccedilo Catullo traccedilava suas estrateacutegias auto-rais no intuito de fazer com que fosse entendido como um autor de li-vros de modinhas em vez de somente autor de modinhas mdash diferen-ciaccedilatildeo que acarretava uma mudanccedila draacutestica no reconhecimento do sujeito entre os letrados

Ainda que nas suas primeiras publicaccedilotildees exista uma mescla entre modinhas escritas pelo proacuteprio Catullo e letras de modinhas de outros modinheiros sendo Catullo o organizador delas natildeo eram esses ldquooutros modinheirosrdquo que apareciam como autores mas ele mesmo pois possuiacutea o poder da escrita A partir dessas publicaccedilotildees o modi-nheiro Catullo foi progressivamente sendo identificado como ldquopoeta popularrdquo e mais tarde jaacute reconhecido como poeta deixaria de lado as modinhas para lanccedilar com bastante ecircxito livros de poemas sertanejos pela livraria Castilho especialista em publicaccedilotildees das ditas ldquocoisas brasileirasrdquo71

A partir de um universo dito popular que cada vez mais era objeto de curiosidade de letrados de uma proposta editorial que alavan-cava seus empreendimentos em cima das expectativas de um puacuteblico leitor e por fim de uma intenccedilatildeo claramente expressa em seus livros (progressivamente afirmados) pelo seu reconhecimento como letrado a

71 Com essa proposta aliaacutes Castilho lanccedilaria Antocircnio Torres Gastatildeo Cruls Leonardo Mota e Joseacute Ameacuterico de Almeida Cf BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 67-70

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo68

obra de Catullo da Paixatildeo Cearense ascendeu no mundo literaacuterio da virada do seacuteculo XIX para o XX Na interseccedilatildeo entre autor editor e leitor reside a compreensatildeo de seu ecircxito editorial Foi equilibrando-se sobre esses pilares que Catullo foi construindo a autoridade sobre os textos por ele publicados e por conseguinte o reconhecimento de sua posiccedilatildeo letrada

A primeira publicaccedilatildeo na qual Catullo investe na produccedilatildeo de sua autoridade sobre os textos eacute a que mais sucesso obteve no mundo le-trado de entatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras Daiacute em diante e progressivamente a figura de Catullo da Paixatildeo Cearense vai sendo investida de representaccedilotildees que variam desde o modinheiro pas-sando pelo de bardo poeta ateacute chegar agrave imagem de poeta culto Para a construccedilatildeo de tais representaccedilotildees muito valeram as estrateacutegias textuais construiacutedas em seus livros o que obriga ao investigador uma atenccedilatildeo acurada para as formalidades que subjazia na produccedilatildeo de um livro no Brasil da primeira metade do seacuteculo XX e as consequecircncias advindas dessas praacuteticas letradas

COMO SE CRIA UMA AUTORIA

Nada eacute mais repisado do que o cenaacuterio que consiste em apresentar uma narrativa de ficccedilatildeo como uma revelaccedilatildeo anacrocircnica Nada eacute mais comum do que um autor que pretende ser editor do seu texto72

O cancioneiro popular de modinhas

O Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa de 1913 definia ldquoautorrdquo como tendo seis significados Satildeo eles ldquocausa principal de uma coisa Inventor Aquelle que escreveu obra literaacuteria ou scientiacutefica Fundador Aquelle que intenta demanda judicial Aquelle de quem pro-cede ou nasce algueacutem ou alguma coisardquo73 Natildeo obstante o caraacuteter muacutel-tiplo de sentidos dados ao termo o ldquoautorrdquo seria algueacutem de quem par-tiria uma consequecircncia algueacutem de quem resultaria uma causa material A construccedilatildeo de algo materializado ndash e assim identificado socialmente ndash parecia ser um preacute-requisito necessaacuterio para se considerar algueacutem como um autor O caraacuteter daquilo que se convencionou chamar de ldquocriaccedilatildeo intelectualrdquo de um indiviacuteduo aiacute natildeo aparece O criador natildeo eacute um ldquoautorrdquo senatildeo quando seu ato produz uma consequecircncia que pode

72 SCHLANGER Judith Apud CHARTIER Roger Cardenio entre Cervantes e Shakeaspeare histoacuteria de uma peccedila perdida Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012 p 8

73 FIGUEIREDO Cacircndido Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa Lisboa Livraria Claacutessica 1913 p 225

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo70

garantir-lhe finalmente uma representaccedilatildeo de ldquoautorrdquo O caraacuteter in-transitivo do criador afastaria assim o seu reconhecimento imediato como um autor

Assim dizendo aquele que escrevia uma obra literaacuteria (ldquoautorrdquo) nem sempre era o criador de tal obra ndash e nem sempre o criador da obra era por conseguinte um ldquoautorrdquo Foi percorrendo esses meandros para a consolidaccedilatildeo de seu nome proacuteprio como ldquoautorrdquo que Catullo da Paixatildeo Cearense construiu inicialmente sua trajetoacuteria com os livros Dialo-gando com as diversas praacuteticas letradas do periacuteodo e construindo nesse processo um lugar para sua autoridade sobre as publicaccedilotildees lanccediladas sob seu nome o trajeto seguido por Catullo eacute sobretudo um trajeto de consagraccedilatildeo edificado na sua relaccedilatildeo com o objeto livro

Em fins do seacuteculo XIX jaacute conhecido como modinheiro e pre-senccedila constante nos salotildees da elite carioca Catullo da Paixatildeo Cearense foi trabalhar junto agrave livraria Quaresma na organizaccedilatildeo de volumes de modinhas Antes o primeiro grande sucesso editorial organizado por ele foi o livro de canccedilotildees musicadas O cantor fluminense publicado pela primeira vez em 1894 com trecircs ediccedilotildees pela livraria Democraacutetica Usando de sua boa circulaccedilatildeo entre os boecircmios modinheiros e de seu conhecimento de modinhas Catullo Cearense trazia para o universo letrado os sons das ruas as mais famosas modinhas cantadas agrave eacutepoca Doze anos depois com a publicaccedilatildeo em 1899 de Cancioneiro popular de modinhas brasileiras pela livraria Quaresma seu nome ficaria ainda mais em evidecircncia no universo letrado Cancioneiro popular teria nada menos do que 25 ediccedilotildees em menos de dez anos74

O livro possui em sua 25ordf ediccedilatildeo 155 modinhas sendo 48 da lavra de Catullo Os primeiros versos que aparecem na publicaccedilatildeo satildeo uma poesia explicativa escrita pelo proacuteprio Catullo intitulada Ao violatildeo em que expressa com certo ar de desgosto o fato de o violatildeo (o instrumento-mor que deveria acompanhar todas as modinhas ali publi-cadas) ser ainda malquisto O autor-organizador em passagens que

74 A ediccedilatildeo agrave qual vamos fazer referecircncia neste estudo eacute a 25ordf ediccedilatildeo de 1908 e a pri-meira em que Catullo aparece como prefaciador do livro

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 71

abusa de ironias observa o fato paradoxal que fazia do violatildeo um ins-trumento odiado e ao mesmo tempo amado por seus ouvintes

Anda caacute meu violatildeo eu quero agoraafinar-te e baixinho em tom maguadoexplicar-te a razatildeo por que dos Grandestu eacutes foste e seraacutes tatildeo diffamadoElles gostam de ouvir-te as harmoniasOs accoacuterdes de vagos sentimentosMas se escutam teu nome empallidecemque eacutes a escoacuteria lethal dos instrumentos[]Se dos Grandes tu eacutes ludibriadoSe elles fecham-te as portas dos salotildeeseacute porque soacute tu tens essa magia de render os mais feros coraccedilotildeesPois emquanto vagueas ao relentoE uma endeixa em menor aacute lua exhalasOs pianos calados jazem tristesEm sudaacuterios envoltos laacute nas salas75

Essa ldquonota explicativardquo em forma de poesia visava a provocar o leitor ainda natildeo convencido da qualidade das modinhas ali publicadas fazendo com que este ficasse instigado pela ironia do autor a comeccedilar a leitura de fato Sendo uma publicaccedilatildeo que visava ao puacuteblico letrado Catullo Cearense construiacutea representaccedilotildees da modinha e do violatildeo que pudessem ldquofisgarrdquo o leitor mais ceacutetico com relaccedilatildeo agrave qualidade da obra Para tanto valia inclusive evocar o nome de homens reconhecidos que pudessem ajudar na corroboraccedilatildeo do material

O Castro Alves te amava os sons plangentesO Fagundes Varella te adoravaE Tobias Barreto o bardo excelsoOs lampejos do estro em ti cantava

75 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 1316

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo72

E Laurindo Rabello O cysne albenteCujos carmes libravam-se aacutes alturasEra louco por ti Pois muitas vezesOlvidava comtigo as amarguras76

Ainda que os primeiros versos publicados em Cancioneiro po-pular sejam de um poema agrave maneira como comumente Bilac ou Coelho Neto publicavam o caraacuteter de performance oral que visava agrave publi-caccedilatildeo ndash afinal eram versos para serem cantados ndash eacute reiterado na uacuteltima estrofe do poema inicial quando Catullo emenda o poema com a pri-meira modinha propriamente dita intitulada de O luar de sua autoria

[]Fere um doce menor Geme soluccedilaQue este pranto te orvalhe as cordas ChoraJaacute natildeo posso soffrer a dor prementeQue por ella a gemer padeccedilo agora

Ella eacute filha do Norte e tem no peitoUm brando um meigo um puro coraccedilatildeoA noite em meio estaacute vibra uma notaQue eu vou cantar-lhe agora esta canccedilatildeo

Ao Luar(A Muacutesica eacute assaz conhecida)

Vecirc que amenidadeque serenidadetem a noite em meioquando em brando enleiovem lenir o seiode algum trovador []77

Esse procedimento que reiterava o caraacuteter oral da publicaccedilatildeo construiacutea o efeito performaacutetico que deveria ter a apresentaccedilatildeo da mo-dinha seguinte O resultado que deveria ter a poesia-nota explicativa

76 Idem p 1677 Idem p 24

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 73

Ao violatildeo sobre a modinha Ao luar que ela emendava era aleacutem de criar uma ponte que dava agrave modinha o status de poesia cantada cons-truir a representaccedilatildeo do modinheiro Catullo como algueacutem tambeacutem apto a figurar como um civilizado um letrado e no limite um poeta da palavra cantada

A histoacuteria das ediccedilotildees de Cancioneiro popular eacute expressiva do tipo de representaccedilatildeo que o personagem Catullo foi ganhando na socie-dade carioca do periacuteodo As primeiras ediccedilotildees de Cancioneiro popular por exemplo natildeo constam de prefaacutecios explicativos de Catullo apenas uma raacutepida apresentaccedilatildeo inicial da obra feita pelos editores da livraria Quaresma responsaacuteveis pela publicaccedilatildeo

A partir da 25ordf ediccedilatildeo de 1908 Cancioneiro popular jaacute vem acompanhado de um prefaacutecio assinado por Catullo Cearense que se arvora na representaccedilatildeo de si como algueacutem que trabalha na organizaccedilatildeo das modinhas por ele coletadas Esse ineditismo veio na esteira do su-cesso de Catullo na sociedade carioca jaacute que 1908 foi o ano em que nosso personagem saiu ovacionado ao apresentar-se pela primeira vez no Instituto de Muacutesica do Rio acompanhado de um naqueles tempos ldquoineacuteditordquo violatildeo mdash fato que jaacute narramos no capiacutetulo 1

Esse ineditismo em apresentar-se tambeacutem como algueacutem que tra-balhou as modinhas inclusive assinando um prefaacutecio eacute tanto mais sur-preendente se investigarmos as publicaccedilotildees anteriores a cargo de Catullo Antes da 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro popular ainda em 1902 foi lanccedilado Chocircros ao violatildeo contendo coleccedilotildees de modinhas tambeacutem organizadas e coletadas por Catullo Mas ainda nessa publicaccedilatildeo Catullo se restringe a ser apresentado pelo editor Quaresma com as se-guintes indicaccedilotildees acerca do livro ldquoContendo as mais populares co-nhecidas e apreciadas modinhas brasileiras com a indicaccedilatildeo das muacute-sicas com que devem ser cantadas Escriptas e collecionadas por Catullo da Paixatildeo Cearense auctor do lsquoCancioneiro Popularrsquordquo78

Agrave eacutepoca uma publicaccedilatildeo que se apresentava contendo modinhas ldquopopularesrdquo era um fator a mais para um mundo letrado aacutevido deste tipo

78 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Chocircros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902 Folha de rosto

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo74

de publicaccedilatildeo aumentar o desejo de possuir um livro como o de Catullo e o editor Quaresma investia com ecircnfase no caraacuteter ldquopopularrdquo das mo-dinhas ali contidas Mas o que mais chama a atenccedilatildeo eacute que em Chocircros ao violatildeo Catullo aparece apenas como o comentador de algumas mo-dinhas publicadas com algumas indicaccedilotildees raacutepidas das muacutesicas a acompanhar cada uma delas Apenas em uma uacutenica modinha ele reapa-rece oferecendo ldquoaos amigos Galdino e Maacuteriordquo79 Diferentemente em Cancioneiro popular na ediccedilatildeo de 1908 o autor Catullo ganha mais espaccedilo na publicaccedilatildeo inclusive com a possibilidade de oferececirc-la ldquoAo primoroso e distincto comediographo brasileiro Arthur Azevedo como singela prova de admiraccedilatildeo ao seu talento omnido dedica o Auctor [grifo meu]rdquo80

Eacute expressiva a mudanccedila ocorrida entre a publicaccedilatildeo de Chocircros ao violatildeo de 1902 e Cancioneiro popular de 1908 Nesta uacuteltima pu-blicaccedilatildeo inclusive contrastando com uma maior presenccedila de Catullo como autor aparece algo que se tornaraacute comum daiacute para frente nas ediccedilotildees Quaresma o certificado de direitos do editor sobre a obra Enquanto que nas publicaccedilotildees anteriores inexiste esse certificado a partir de 1908 apareceraacute nos livros a seguinte indicaccedilatildeo ldquoOs editores QUARESMA amp C avisam ao puacuteblico que todos os livros editados por sua casa ndash Livraria do Povo ndash satildeo de sua exclusiva propriedade literaacuteria Capital Federal Janeiro de 1908 Quaresma amp Crdquo81

Concomitantemente a um maior espaccedilo para o autor-organizador da obra expressar-se o editor Quaresma via a oportunidade de colo-car-se tambeacutem como detentor dos direitos da publicaccedilatildeo Na medida em que Catullo aparecia como o autor da obra impressa os editores Quaresma reafirmavam deter a propriedade uacuteltima dela

Ademais a matildeo do editor pode ser vista em vaacuterios momentos do texto O Cancioneiro popular natildeo destoava do objetivo inicial do editor Quaresma pois era um empreendimento que buscava difundir para o

79 Idem p 380 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio

de Janeiro Livraria Quaresma 1908 Folha de rosto81 Idem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 75

puacuteblico letrado as letras das modinhas cantadas nas ruas do Rio de Janeiro agrave eacutepoca Sua especificidade residia em um objetivo declarado o de ldquomelhorarrdquo a modinha corrigindo os versos cantados de forma considerada ldquoerrocircneardquo para serem finalmente consumidos da forma considerada ldquocorretardquo pelos leitores A chamada do editor Quaresma na contracapa do livro resume bem esse intuito

Esplendida e escolhida collecccedilatildeo de beliacutessimas modinhas populares es-criptas umas e outras collecionadas revistas e melhoradas postas taes quaes seus auctores as escreveram e natildeo estropeaacutedas incorrectas e es-phaceladas como por ahi andam de boca em boca na tradicccedilatildeo oral82

A aversatildeo ao erro e a sua identificaccedilatildeo com a ldquotradiccedilatildeo oralrdquo chama a atenccedilatildeo para a tentativa de distinccedilatildeo entre cultura letrada e cultura oral em processo naquele comeccedilo de seacuteculo A correccedilatildeo do ele-mento oral pela palavra escrita era ela mesma uma tentativa de estig-matizaccedilatildeo da oralidade em detrimento do letramento Ademais a neces-sidade de hierarquizaccedilatildeo das duas formas de expressatildeo com a oacutebvia hegemonia da palavra escrita era fundamental e previsiacutevel em publica-ccedilotildees que como as da livraria Quaresma buscavam tambeacutem desse modo criar um puacuteblico leitor-consumidor de livros

Por sua vez assumindo o papel de tradutor entre a cultura letrada e a cultura oral Catullo Cearense tratava em seus textos de colocar-se como autoridade a partir de sua condiccedilatildeo de um letrado conhecedor do oral Na esteira disso ele buscava direcionar a leitura de cada letra in-dicando a modinha correspondente a acompanhaacute-la

A partir da identificaccedilatildeo de Catullo Cearense como algueacutem que poderia se chamar de ldquocivilizadordquo o editor Quaresma afirmava por consequecircncia o caraacuteter ldquocivilizadorrdquo da obra de Catullo De sua parte o autor reafirmava essa posiccedilatildeo atraveacutes de seus prefaacutecios onde indicava o plano de sua obra

No prefaacutecio do Cancioneiro popular de modinhas brasileiras aleacutem de caracterizar o seu leitor Catullo indicava o objetivo do livro

82 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 Folha de rosto

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo76

dizendo antes que resultara de um trabalho ldquoimprobordquo em cima de modinhas coletadas com as ldquomais baacuterbaras e repugnantes incorrec-ccedilotildeesrdquo onde foi necessaacuterio ldquocorrigil-a grammaticalmente ligar o pensa-mento desconexo cuidando tambeacutem um pouco da parte meacutetrica de modo a natildeo ficar um aleijatildeo impiamente ferindo o ouvido educadordquo83

Observa-se pela passagem acima citada que Catullo natildeo soacute or-ganiza a publicaccedilatildeo das modinhas como tambeacutem se apropria delas de maneira tal que as corrige com o intuito de afinal natildeo ferir o ldquoouvido educadordquo Indicando sua autoridade sobre o texto e acima de tudo apontando seus possiacuteveis leitores Catullo se interpotildee entre o leitor e o criador da modinha para assim tentar regrar a recepccedilatildeo do texto publi-cado E ainda no prefaacutecio Catullo chama a atenccedilatildeo para sua compre-ensatildeo de que um autor de modinhas tambeacutem possa ser chamado de poeta ldquoPor isso peccedilo perdatildeo a todo poeta que deparar nrsquoeste volume com alguma composiccedilatildeo sua a qual natildeo esteja como lhe gottejou da pennardquo84 e conclui defendendo que aquele tipo de publicaccedilatildeo deveria ser considerado ldquoliteraturardquo

Concluacuteo lamentando natildeo ver neste volume o que seria um trabalho colossal todas as nossas ternas meigas doces e saudosas modinhas brasileiras preciosiacutessimas joacuteias do escriacutenio do estro popular Mas ainda assim o Srs Quaresma amp C vatildeo prestando conscientemente inestimaacutevel serviccedilo agrave literatura mais nacional ndash a do povo85

O ouvido ldquoeducadordquo por conseguinte seria informado pelo texto escrito que se fazia assim como mediador entre dois tipos de orali-dades que estavam em jogo naquele momento o oral sem o crivo da letra e o oral apoacutes passar por esse crivo Dito de outra forma as modi-nhas cantadas nas ruas e as modinhas a serem cantadas apoacutes o ldquofunil civilizadorrdquo do texto de Catullo

O ldquofunil civilizadorrdquo do qual fala Catullo era exatamente seu tra-balho sobre as letras de modinhas por ele corrigidas Catullo fazia o

83 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p IX

84 Idem p XI85 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 77

papel de funil natildeo soacute porque selecionava mas porque isto eacute importante frisar corrigia as modinhas inteiramente como bem observa

Natildeo experimentei o prazer de me vir agraves matildeos uma soacute que fosse a qual natildeo contivesse as mais baacuterbaras e repugnantes incorrecccedilotildees Explico-me Desejando incluir nrsquoeste volume uma qualquer modinha que por ser bella e popular preenche os dous fins primordiaes depois de muito procurar chega-me agraves matildeos quase inteiramente estropeaacutedas86

Assim na medida em que ia corrigindo as modinhas elevava-as a um tipo de produccedilatildeo literaacuteria que pudesse autorizar tambeacutem a sua produccedilatildeo modinheira ser considerada literatura ldquoQuanto agraves poesias de minha lavra nada direi Tivesse eu talento illustraccedilatildeo e estro e dedicar--me-hia de corpo e alma a esse gecircnero de litteratura o mais profiacutecuo de todosrdquo pois se colocava como um dos que estavam ldquoconvencidos de que nessas composiccedilotildees do povo scintillam fulgurantes pensamentos que rariacutesimas vezes satildeo lobrigrados nas obras da alta litteraturardquo87

A passagem acima tem o intuito de ser esclarecedora nela expotildee Catullo mais claramente seu ponto de vista com relaccedilatildeo agraves letras de mo-dinhas Num soacute prefaacutecio ele natildeo soacute constroacutei uma autoridade sobre o texto (pois que assume sua correccedilatildeo e portanto tambeacutem parte conside-raacutevel de sua autoria sobre elas) como enfatiza a qualidade de um tipo de produccedilatildeo oral que ele traduz para o texto escrito Autoridade sobre o texto para afirmar-se uma autoria e reivindicaccedilatildeo da qualidade do texto para ser entendido como literatura Sobre esses dois pedestais e articu-lando termos como ldquopopularrdquo ldquoalmardquo e ldquoliteratura nacionalrdquo Catullo ia construindo um lugar para o consumo de seu texto pelos leitores

No texto o autor ia construindo uma representaccedilatildeo social para si concomitantemente ao fato de que os leitores demandavam um tipo de produccedilatildeo ldquopopularrdquo que Catullo conhecia Ainda que tentasse manter certa distacircncia de um vieacutes do popular (a boecircmia o barulho das ruas a vagabundagem etc) tentava articular dentro dessa direccedilatildeo elementos

86 Ibidem p IX87 Ibidem p X

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo78

que pudessem oferecer ao seu puacuteblico um tipo de produccedilatildeo que fosse identificada como ldquocivilizadardquo e para tanto natildeo se poupou de alccedilar-se sobre algumas autoridades jaacute reconhecidas

[] noacutes que preferimos uma modinha uma canccedilatildeo ruacutestica um lunduacute requebrado a um qualquer trecho de Wagner que natildeo comprehendemos e que natildeo nos produz a miacutenima sensaccedilatildeo natildeo nos importemos com os pedantis o estulto dos que menoscabam do violatildeo por ser elle dizem o instrumento dos desoccupados e perdidos Quando encontrardes um desses typos nrsquouma sala em que haja algueacutem que vos deseje ouvir re-citae com emphase e enthusiasmo a poesia que dediquei ao violatildeo e depois cantae a modinha que se segue a essa poesia mas eacute a uacutenica cousa qye vos peccedilo com todo sentimento Quando proferirdes os nome [sic] de Aureliano Lessa Bernardo Guimaratildees Laurindo Varella Castro Alves e Tobias Barreto principalmente fitaes com vehemencia os minguados paspalhotildees e deixae-os eclypsados na immensidade de suas insignificantes pessoas Esses gecircnios superiores eram sinceros ado-radores do violatildeo88

Essa aproximaccedilatildeo com letrados reconhecidos revestia suas mo-dinhas de um caraacuteter mais respeitaacutevel de forma que pudesse tambeacutem conseguir o mesmo respeito Essa identificaccedilatildeo com um mundo letrado aparecia comumente tambeacutem em raacutepidos comentaacuterios no meio de sua obra onde tentava enfatizar a todo o momento o caraacuteter corretor das modinhas por ele transcritas em texto

Ao transcrever a modinha O poeta e a fidalga Catullo Cearense fazia aparecer no final uma observaccedilatildeo esclarecedora do sentido de sua obra tornar corretas letras que foram estropiadas pela tradiccedilatildeo oral por ldquodesleixordquo Assim conclui o autor

Eacute a primeira vez que em livro de modinhas estes versos vecircm aacute [sic] luz da publicidade completos e como o Sr Vanderley os escreveu Existem no seu livro de poesias e aqui vatildeo como laacute se encontram Os pequenos retoques que fiz satildeo com certeza oriundos do desleixo dos composi-tores O tiacutetulo natildeo eacute ndash Desprezo ndash e sim o que encima estes versos89

88 Ibidem89 Ibidem p 117

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 79

O curioso dessa modinha encontra-se no fato de ela ser como conta Catullo primeiramente um poema do ldquoSr Vanderleyrdquo musi-cado ainda segundo o organizador da obra por compositores ldquodeslei-xadosrdquo Ali O poeta e a fidalga retornava ao texto pelas matildeos de Catullo depois de circular pelas ruas cariocas (como ele leva a crer) com ecircxito pois eacute uma das modinhas em que o autor natildeo se preocupou em indicar a muacutesica a ser acompanhada procedimento comum quando a modinha jaacute era por demais conhecida do puacuteblico leitor Aliaacutes em Cancioneiro popular haacute vaacuterios exemplos desse tipo Essa ausecircncia de muacutesica a acompanhar a letra transcrita dava ainda mais a impressatildeo de se estar lendo de fato natildeo letras de modinhas mas poemas que foram musicados

Na tentativa de demonstrar intervenccedilotildees suas sobre as modi-nhas e de seu conhecimento de temas ditos ldquopopularesrdquo Catullo fazia aparecer palavras e termos que sentia a necessidade de explicar ao leitor Em Canccedilatildeo do africano da lavra de Catullo expressotildees como Zambi innan inzoacute xequereacute e Jupaacute eram explicadas em notas de ro-dapeacute como sendo respectivamente Deus amor choccedila uma espeacutecie de marimba e lua

O procedimento de se mostrar conhecedor e ilustrado natildeo eacute novo Em Choros ao violatildeo publicaccedilatildeo de 1902 tambeacutem organizado por Catullo ao transcrever a letra da modinha Alzira de sua autoria Catullo no afatilde de mostrar ao leitor o caraacuteter letrado da produccedilatildeo e de se afirmar como um autor tambeacutem letrado observa no uacuteltimo verso uma ldquoincorrecccedilatildeordquo

Se queres que um cantoSaudoso desfiraVem tu minha AlziraMeu peito afinarvem logo natildeo tardesvem dar-me um alentoque o meu pensamentonatildeo quer te deixar (1)

DO AUCTOR

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo80

Muacutesica da modinha ndash As horas que eu passo contigo na mente(1) Uma incorrecccedilatildeo consciente90

Uma ldquoincorrecccedilatildeordquo que rapidamente o autor buscou explicar como sendo uma ldquoincorrecccedilatildeo conscienterdquo e natildeo um lapso na norma culta pela qual dava a conhecer a modinha ao leitor Tais comentaacuterios visavam a assegurar o caraacuteter corretor da sua escrita com relaccedilatildeo agrave voz e daiacute alertar para o fato de o corretor (Catullo) ser um conhe-cedor da norma culta Como orientador de tal empreendimento Catullo Cea rense tratava de construir-se como autor culto a partir da construccedilatildeo de representaccedilotildees de sua funccedilatildeo de autor Construccedilotildees que jaacute apareciam nas indicaccedilotildees do cataacutelogo das ediccedilotildees Quaresma onde o editor apresentava Catullo como um ldquodistincto moccedilo conhecido poeta e prosador excellente professor de liacutenguas mdash nome que toda gente conhece e tem aplaudidordquo91

Exemplos de demonstraccedilatildeo de letramento se avultam no texto Valendo-se da tradiccedilatildeo oral das ruas do Rio de Janeiro de entatildeo Catullo fazia emendas em trovas conhecidas como a que fez na modinha Gosto de ti cuja muacutesica era do violonista Satyro Bilhar

Gosto de ti porque gostoporque meu gosto eacute gostarmas tu de mim natildeo te lembrasPor que me fazer penar

Ausente de ti distanteNatildeo posso a vida soffrerSentindo tantas saudads [sic]Como eacute possiacutevel viver

Gosto de ti por que te amoPorque meu gosto eacute te amarmas natildeo te lembras ingrataque eu vivo longe a penar

90 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Chocircros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902 p 35

91 Cataacutelogo das Ediccedilotildees Quaresma Em CEARENSE Catullo da Paixatildeo Choros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 81

As noites passo velando Os dias passo a gemerSentindo tantas saudadesComo eacute possiacutevel viver

Que tu me estimes deverasmeu coraccedilatildeo natildeo mais crecircGosto de ti porque gosto sem mesmo saber porquecirc92

Abaixo da modinha uma nota de rodapeacute explicava para os lei-tores que conheciam a primeira quadra que se tratava de uma emenda ldquoA primeira quadra natildeo eacute minha Como a muacutesica que eacute do meu amigo Bilhar eacute beliacutessima escrevi as quatro que se lhe seguemrdquo e acrescenta que a muacutesica de Bilhar estaacute por demais ldquopopularizadardquo93

A indicaccedilatildeo da muacutesica a acompanhar as modinhas publicadas aparecia sempre no iniacutecio da letra sem que Catullo se interessasse em publicar as devidas partituras Esse procedimento no entanto natildeo era algo comum no periacuteodo Mello Moraes Filho por exemplo publicara seu Cantares brasileiros em 1902 com o mesmo objetivo corretor de Catullo poreacutem com uma parte da publicaccedilatildeo voltada para as partituras de algumas das canccedilotildees ali publicadas Ao que parece natildeo produzia efeito algum para o reconhecidamente letrado Mello Moraes apro-ximar as modinhas que publicava de letras pois seu objetivo era tatildeo somente publicar modinhas e natildeo como queria Catullo publicar e ser reconhecido como um autor letrado

O natildeo aparecimento de partituras no livro de Catullo pode indicar o caraacuteter hiacutebrido com que o autor via as modinhas e queria que elas fossem lidas ou seja como poemas e letras Eacute tatildeo forte essa mescla em Cancioneiro Popular que Catullo muitas vezes intercala no meio das modinhas poesias de sua lavra e ateacute mesmo uma historieta em prosa intercalada com uma modinha como eacute o caso de Feliz aventura que o autor indica que eacute ldquoprosa e versordquo e que ldquoa muacutesica eacute da modinha ndash Ao

92 Ibidem p 7493 Ibidem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo82

virar da esquina eu vi em Lisboa uma rapariga catita e bem boardquo A estrutura de Feliz aventura remete diretamente agrave oralidade pois era algo para ser contado expresso em termos como ldquoum caso eu vos contordquo Tal iacutendice de oralidade jaacute eacute demonstrado no iniacutecio da histoacuteria

Um caso eu vos conto que se bem me lembropassou-se haacute dous annos no mez de NovembroFazia um tremendo calor de racharVagava nas ruas sem rumo a flanar

Como voz dizia o calor era insurpotaacutevel Fatigado pelo trabalho do dia buscava desesperadamente um logar nesta vasta Capital onde pudesse respirar mais livremente O acaso levou-me ao Passeio Puacuteblico Entrei EBuscando de prompto matar o cangaccediloFui logo assentar-me nrsquoum banco ao terraccedilo94

Se partituras natildeo apareciam estavam ali sempre as muacutesicas a acompanhar as modinhas Muacutesicas que supomos serem conhecidas do puacuteblico leitor Essa suposiccedilatildeo ganhava forccedila pois quando a muacutesica natildeo era assim tatildeo conhecida o autor fazia questatildeo de dizer ao leitor com ldquoquemrdquo se podia aprender Era o caso da modinha Bem-te-vi de Mello Moraes a respeito da qual Catullo em nota de rodapeacute observa

Estes beliacutessimos versos genuianamente [sic] brasileiros satildeo do talen-toso e erudito Dr Mello Moraes Filho A muacutesica eacute das mais bellas e inspiradas que eu conheccedilo Pena eacute natildeo poder indical-a ao leitor por ter sido feita especialmente para estes primorosos versos do illustre poeta e abalisado mestre Em todo caso apontarei aqui algumas pessoas com quem o leitor poderaacute aprendel-a

Costinha pianistaEduardo Velho pianistaJoatildeo dos Santos funccionaacuterio do correioTafi o seu auctor95

94 Ibidem p 6895 Ibidem p 97-98

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 83

Em outras modinhas simplesmente aparece a observaccedilatildeo de que ldquoa muacutesica eacute conhecidardquo (na modinha Ao ver-te por exemplo)96 Daiacute natildeo precisar do recurso de indicar algueacutem com quem se possa aprender a canccedilatildeo Cotejando as publicaccedilotildees de modinhas do periacuteodo obser-vam-se aleacutem da intervenccedilatildeo do organizador-autor da publicaccedilatildeo sobre as letras as distintas representaccedilotildees dadas ao material oral coletado

Mello Morais (em Cantares brasileiros de 1902) e Catullo Cearense (em Cancioneiro popular de 1908) publicaram a modinha Marietta com letras diferentes atestando assim as alteraccedilotildees tanto de caraacuteter oral quanto oriundas da transcriccedilatildeo da letra da modinha por le-trados Enquanto Mello Morais indica ser a letra uma poesia de Antocircnio A Figueira a autoria na publicaccedilatildeo organizada por Catullo eacute descar-tada Vale a transcriccedilatildeo

Versatildeo de Mello Morais Versatildeo de CatulloNestes teus laacutebios de anjo Nestes teus olhos de archanjoBebo harmonias dos ceacuteus Bebo harmonias dos ceacuteusO teu olhar eacute tatildeo casto O teu olhar eacute tatildeo castoComo o sorriso de Deus como uma benccedilatildeo de Deus

Que aroma tatildeo singular Que aroma tatildeo seductorNessa trancinha tatildeo preta Nesta trancinha tatildeo pretaQuero morrer em teus braccedilos quero morrer em teus braccedilosOh Formosa Marietta Oacute formosa Marietta[]Longe de ti eu suspiro Longe de ti vivo tristeVivo sem ter alegria no mais acarbo soffrerJunto de ti eacutes meu anjo perto de ti oacute meu anjoEacutes minha vida oacute Maria97 suspiro ateacute de prazer98

Em cada Marietta de Catullo e de Mello Morais as distintas re-presentaccedilotildees se chocam chamando a atenccedilatildeo para o caraacuteter muacuteltiplo das modinhas coletadas Ademais o fato de Catullo natildeo fazer aparecer

96 Ibidem p 7897 MORAIS FILHO Mello Cantares brasileiros Rio de Janeiro SEEC-RJ 1981 p 30898 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio

de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 142-143

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo84

o autor da letra (diferentemente de Mello Morais) faz parte de uma in-tenccedilatildeo exposta em seus prefaacutecios de afirmar sua intervenccedilatildeo sobre a letra e portanto sua autoria A partir do momento em que Catullo ence-tava uma mudanccedila (e quase sempre eram vaacuterias) nas letras das modi-nhas transcritas (natildeo indicando tambeacutem sua autoria) ele proacuteprio auto-rizava-se a ser entendido pelo leitor como o ldquoautorrdquo

O enorme sucesso que obteve Cancioneiro ndash alavancado em muito pelas famosas publicidades das ediccedilotildees Quaresma99 ndash fez com que a publicaccedilatildeo chegasse a 25 ediccedilotildees em nove anos um verdadeiro su-cesso editorial em seu tempo fazendo jus ao objetivo editorial de Pedro da Silva Quaresma qual seja o de a partir de ediccedilotildees vendidas a preccedilos moacutedicos boa publicidade e com temaacuteticas que pudessem aticcedilar o puacute-blico letrado nascente aumentar a lucratividade com a venda de livros

Um ilustre consumidor das ediccedilotildees Quaresma foi o teatroacutelogo e jornalista Arthur Azevedo Ele era admirador dos livros contendo le-tras de modinhas e assim se manifestou sobre o Cancioneiro Popular de Catullo

No Brasil haacute um livro e um livro de versos que conta nada menos de vinte e cinco ediccedilotildees eacute o Cancioneiro Popular compilado em parte e em parte escrito pelo poeta Catullo da Paixatildeo Cearense elo-quumlente e simpaacutetico defensor do nosso esquecido e saudoso violatildeo dos outros tempos[]O nosso Catullo a quem para ser tatildeo grande como seu homocircnimo la-tino soacute faltou viver em Roma e ser amante de Leacutesbia deliciosa e fe-cunda fonte de inspiraccedilatildeo e poesia o nosso Catullo sentiu bem quanto de suave e de inteligente na modinha brasileira que natildeo vai agrave Avenida nem agrave rua do Ouvidor e eacute mal vista dos smarts do corso e das batalhas de flores100

99 O criacutetico literaacuterio Brito Broca dizia que o livreiro e editor Quaresma ldquofoi o precursor da publicidade modernardquo pois ldquoquando lanccedilava uma ediccedilatildeo costumava fazer grandes cartazes com o nome do livro e mandava pregaacute-los por todos os pontos da cidaderdquo Cf BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 49

100 Citado por Luciano Braga Cf BRAGA Luciano Catullo Cearense In CEARENSE Catullo (org) Lyra dos salotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1926 p 18 (1ordf ediccedilatildeo em 1913)

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 85

Esse reconhecimento por um credenciado teatroacutelogo o editor Quaresma fez aparecer convenientemente na 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro Com isso o editor evocava na publicaccedilatildeo a opiniatildeo de um letrado reco-nhecido visando a uma maior aceitaccedilatildeo da obra posta a puacuteblico

O reconhecimento do leitor Arthur de Azevedo natildeo era uacutenico Eacute possiacutevel vislumbrar no processo de reconhecimento de Catullo como autor uma seacuterie de manifestaccedilotildees de leituras de sua obra no periacuteodo e que lhe foram garantindo um lugar dentre os literatos Se o ecircxito editorial de Cancioneiro Popular foi possiacutevel isso se deveu em muito agraves leituras dos livros de Catullo que eram feitas mediadas pelas discussotildees acerca do universo identificado como ldquopopularrdquo no periacuteodo Formava-se assim uma comunidade de leitores de temas populares que catapultaram a su-cesso imediato muitas publicaccedilotildees que saiacuteram com essa identificaccedilatildeo

O fato eacute que Cancioneiro Popular ficaria dali por diante conhe-cido como a referecircncia literaacuteria de Catullo Cearense de forma que nas suas publicaccedilotildees posteriores era apresentado como o ldquoauctor do Cancioneiro Popularrdquo101 Mas o sucesso de Cancioneiro Popular natildeo findou a incessante busca de Catullo por ser reconhecido como literato

Um poeta popular

O jornal A Noite em iniacutecios de 1912 publicava em sua primeira paacutegina uma crocircnica-reportagem com um tiacutetulo questionador ldquoA popu-laridade existiraacute realmente Algumas observaccedilotildees eloquentesrdquo O autor contava para seu interlocutor tambeacutem personagem da crocircnica que ao caminhar no Passeio Puacuteblico parou diante da herma do poeta Gonccedilalves Dias e ao avistar um jardineiro perguntou

ndash De quem eacute istoO homem parou um instante olhou a herma do nosso primeiro cantor lyrico e resmungoundash IstoE depois de pensar

101 Essa observaccedilatildeo encontra-se por exemplo nas capas dos livros ldquoChocircros ao Violatildeordquo (de 1902) e ldquoLyra Brasileirardquo (de 1905)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo86

ndash Eacute do Sr Dr Juacutelio FurtadoPara o jardineiro que cuida do canteiro onde Gonccedilalves Dias floresce no bronze votivo o nosso grande poeta era apenas um adorno dos vastos domiacutenios do director da Inspectoria dos Jardins102

O embaraccedilo do autor do texto ficava ainda mais evidente quando buscando insistir numa resposta que fosse compatiacutevel com sua expecta-tiva contava que quando da morte do poeta portuguecircs Eccedila de Queiroz algueacutem o interrogou na rua

ndash Quem Morreundash O Eccedila de Queirozndash Ah Coitado O Queiroz das fazendas Pretas103

O caraacuteter risiacutevel das respostas contrastava com aquilo que o autor da crocircnica-reportagem procurava discutir seriamente qual seja o ca-raacuteter ldquopopularrdquo dos personagens que ele supunha serem dignos de re-ceber tal identificaccedilatildeo Frustrado com as respostas imprevisiacuteveis ndash e risiacuteveis ndash das pessoas que encontrava na rua o autor do texto contou que ainda insistiu uma vez mais

ndash Paremos na rua interroguemos aquele mulato pernoacutestico de pastinha atrevida cahindo sob a aba do chapeacuteu de pallha Conheces o Catullo da Paixatildeo Cearensendash Ah Patratildeo Quem natildeo conhece o Catullo Eacute um ldquocabra bonzatildeordquo para a modinhandash E o Coelho Nettondash O Netto o cheirosinho Aquelle que trabalha na estiva104

Inconformado o autor da narrativa punha-se a lamentar ldquoAhi tens meu caro um que conhece o Catullo mas natildeo conhece o Coelho Nettordquo Frustrado concluiacutea dizendo o que pensava ser popularidade de-pois de toda aquela enquete

102 A Noite 9 jan 1912 p 1103 A Noite 9 jan 1912 p 1104 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 87

A popularidadeA popularidade eacute bem uma fantasia que agraves vezes chega a ser dolorosa especialmente quando se acredita que as multidotildees reconhecem o po-pular e ellas interrogam allucinadasndash Quem eacute essa figura105

Os ldquopopularesrdquo citados pelo autor da crocircnica eram rendidos diante do desconhecimento deles pelas pessoas nas ruas Soacute Catullo passou ndash para a frustraccedilatildeo do cronista ndash incoacutelume na pesquisa

Em iniacutecios dos anos 1910 o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense era jaacute bastante conhecido no Rio de Janeiro e sua fama se estendia entre vaacuterios grupos sociais da cidade O editor Quaresma que continuava a publicar e reeditar seus livros aumentava o nuacutemero de letrados dos mais diversos setores da sociedade entre seus clientes Catullo por sua vez aleacutem de ser reconhecido como um ldquopoeta popularrdquo pelo mundo letrado acumulava a satisfaccedilatildeo de ser conhecido por pessoas comuns que cantavam suas modinhas nas ruas cariocas Essa satisfaccedilatildeo natildeo dis-farccedilava o ressentimento com que lidava quando o assunto era ser cha-mado (ou natildeo) de ldquopoetardquo

Os poetas julgam mal os trovadores como eu Eacute uma injusticcedila grande Eu pelo menos nunca pretendi chegar ao ideal da formaEu canto Canto pela alma Embebo-me da muacutesica a que devo dar as minhas palavras degusto-a penetro-lhe no sentimento e escrevo106

Um ldquotrovadorrdquo injusticcedilado pelos ldquopoetasrdquo Assim Catullo se auto representava mas mesmo ressentido por lhe negarem um lugar que ele achava ser compatiacutevel com seus versos procurava chamar a atenccedilatildeo para o fato de que seu canto era acompanhado sempre da escrita reve-lando seu caraacuteter distinto dos demais trovadores pois

Escrevo e canto Embora conheccedila bem a meacutetrica tanto que vou pu-blicar um livro de poesias traduzidas prefiro estabelecer esse consoacutercio

105 Ibidem106 O Paiz 25 fev 1906

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entre melodia e a poesia tirando daquela a vida de meus versos Sei que os meus versos natildeo tem arte mas alma107

Afirmava assim sua produccedilatildeo natildeo pela arte mas pelo que ela tem de ldquoalmardquo E ldquoalmardquo era um fator determinante para se qualificar positivamente uma produccedilatildeo no periacuteodo Advogar para suas modinhas um valor intriacutenseco agrave alma era colocar-se dentro de um rol de produtos que desde o seacuteculo XIX reivindicava o caraacuteter de arte para objetos em que se reconhecia a expressatildeo do indiviacuteduo da sua alma

Esse reconhecimento natildeo poderia ser dado no entanto para qualquer produto ndash muito menos para um indiviacuteduo qualquer Catullo sabedor dessa tensatildeo entre alma e arte e mais ainda sabedor dos cami-nhos que poderiam referendar suas modinhas como ldquoarterdquo fazia de-monstraccedilotildees constantes de sua condiccedilatildeo de letrado E em 1910 quando veio a lume pelas ediccedilotildees Quaresma o seu Trovas e canccedilotildees uma im-portante mudanccedila se verificou a primeira parte da publicaccedilatildeo vinha como de costume com ldquoPoesias de cantordquo em que eram transcritas as modinhas enquanto que em uma segunda parte estrategicamente inti-tulada ldquoPoesias de recitaccedilatildeordquo seguiam-se os versos escritos pelo proacute-prio Catullo alternando-se com suas traduccedilotildees de poesias de Chateaubriand Fuentes e outros poetas estrangeiros conhecidos

Poreacutem enquanto a primeira parte da publicaccedilatildeo (a das modi-nhas) era colocada em relevo pela publicidade das ediccedilotildees Quaresma a segunda parte (com poemas de Catullo e traduccedilotildees feitas por ele) desaparecia dos reclames que apareciam nos jornais Ora Catullo Cearense era reconhecido como modinheiro e portanto ressaltar o caraacuteter musical da produccedilatildeo era para o editor Quaresma condiccedilatildeo necessaacuteria para que ela se tornasse um sucesso de vendagem ou como queria o editor ldquopopularrdquo

TROVAS E CANCcedilOtildeESUacuteltimo livro de modinhas de Catullo CearenseTrazendo uma extraordinaacuteria collecccedilatildeo de formosiacutessimas modinhas para serem cantadas em salotildees familiares festas collegiaes concertos

107 Idem

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etc etc e a indicccedilatildeo [sic] das muacutesicas que devem ser cantadas []Um volume com linda capa com o retrato do grande poeta e cantor 2$000108

Por outro lado os prefaciadores do livro tentavam chamar a atenccedilatildeo do leitor para o caraacuteter poeacutetico das canccedilotildees ali transcritas in-clusive dando outra denominaccedilatildeo a Catullo qual seja a de poeta O prefaacutecio escrito pelo major Moreira Guimaratildees eacute emblemaacutetico Apoacutes elogiar a inteligecircncia de Catullo ndash ao ouvi-lo dizer seus versos num trem suburbano ndash arrematava que ldquome convenci de que o popular tro-vador eacute um grande poetardquo e concluiacutea

A muacutesica gemedora que elle arranca das cordas do seu dilecto violatildeo constitue apenas o fundo do quadro em que fulgura o intenso lyrismo de suas encantadoras poesiasEm verdade Catullo canta e sabe cantar com sua voz inconfundiacutevel Mas elle a cantar diz mais do que cantaNatildeo haacute duacutevida a figura do primoroso artista do verso e de maravilhoso e original diseur eacute a que bem lhe ajustaNatildeo lhe quero negar todavia as explendidas qualidades de cantor emeacute-rito que vae prestando ao patriotismo brazileiro o inestimaacutevel serviccedilo de rehabilitar o mais democraacutetico dos instrumentos Mas eacute preciso que a genearlidade dos compatriotas lhe natildeo escute simplesmente as lango-rosas harmonias do querido violatildeo109

No prefaacutecio da publicaccedilatildeo a condiccedilatildeo de poeta de Catullo eacute co-locada diante do interesse oposto do editor Quaresma de salientar as qualidades do modinheiro e cantor ndash ainda que poeta Apesar das diver-gecircncias quanto agrave preponderacircncia dada a modinhas e poemas ambos visavam sem duacutevida a chamar a atenccedilatildeo do leitor para a qualidade da publicaccedilatildeo e do autor Do lado do editor Quaresma visando agrave maior lucratividade do produto por outro lado o interesse do prefaciador era indicar uma leitura mais distinta ndash e assim podemos dizer para ele

108 O Paiz 17 jun 1910109 GUIMARAtildeES Moreira Catullo Cearense In CEARENSE Catullo Cearense Trovas e

canccedilotildees Rio de Janeiro Livraria do Povo 1910 p 12

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melhor ndash de Catullo como poeta original Se Quaresma fazia questatildeo de dizer que as modinhas eram ldquocoleccedilotildeesrdquo escritas por Catullo o prefa-ciador atentava para a originalidade do mesmo

Trovas e canccedilotildees aflorava as contradiccedilotildees da produccedilatildeo de Catullo Cearense de forma latente Uma primeira parte que satisfazia o inte-resse do editor por modinhas colecionadas por um trovador e uma se-gunda parte que buscava mostrar para o leitor o poeta o letrado que escreve poesias o autor original primeiro e definitivo de sua produccedilatildeo e aquele que conhecedor das letras traduz poetas estrangeiros

De sua parte Catullo fazia de sua publicaccedilatildeo elemento funda-mental para sua afirmaccedilatildeo como poeta e autor Em um dos poemas de Trovas e canccedilotildees intitulado ldquoSegundas Trovas Satyricasrdquo responde aos seus criacuteticos evocando autoridades que saudavam seus versos

E quando eu canto com arteO burro o critico atrozProclama por toda parteQue canto bem mas sem voz

[]

Responderei com um sorrisoComo devo responderDe mais voz eu natildeo precisoPorque canto e sei dizer

Depreciar-me eacute dislateeacute fazer figura maacutetendo elogios de um vateda estatura de Murat

Eacute esforccedilo inuacutetil baldadoeacute uma completa asneiraporque em verso fui saudadopor Alberto de Oliveira

Natildeo me causam calefriosos zoilos dos zoilos zombodecircs que tive os elogiosdo provecto Rocha Pombo

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Que ladre o bobo o pascaacutecioFicarei a gargalharSempre que ler o prefaacutecioDe Pethion de Villar110

Ainda que houvesse disputas de representaccedilotildees entre autor e editor elas natildeo se davam de maneira a criar um mal-estar entre ambas as partes e embora Catullo se apercebesse do entrave causado por objetivos distintos entre ele e Quaresma isso ao que parece nunca o colocou em confronto direto com o editor Aliaacutes o progressivo reco-nhecimento social de Catullo se devia agraves estrateacutegias editoriais de Quaresma e mesmo que o primeiro conduzisse suas modinhas para um entendimento proacuteximo ao de um poema pareceu sempre estabelecer com elas uma relaccedilatildeo de ambiguidade tentando afirmaacute-las enquanto modinhas como poesia ao passo que flertava com outro tipo de pro-duccedilatildeo que natildeo a modinheira

Isso se dava de maneira sutil e criava uma aporia exatamente no momento em que se comeccedilou a reconhecer Catullo como poeta uma vez que um poeta que publicava modinhas era representado como poeta ldquopopularrdquo e ldquopopularrdquo natildeo podia a priori ser considerado poeta Ali se desenrolaram dois movimentos paralelos que se encon-traram o ldquopoeta popularrdquo vai sendo alccedilado a um indiviacuteduo digno de ser notado (pois expressaria uma suposta alma do povo) e os temas popu-lares satildeo procurados como subsiacutedios para a produccedilatildeo de uma literatura brasileira por letrados consagrados Eacute nesse encontro que vai ser de-senrolada uma mudanccedila na produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense que marcaraacute sua trajetoacuteria

Jaacute na entrada dos anos 1910 e com as publicaccedilotildees exitosas da li-vraria Quaresma reverbera na imprensa outra representaccedilatildeo de Catullo ldquo[] o Sr Catullo da Paixatildeo Cearense eacute a mais tremenda gloacuteria da poesia nacionalrdquo111 assim afirmava o redator de um perioacutedico ca-rioca em iniacutecios de 1911 numa seacuterie de crocircnicas sob o tiacutetulo de O Rio

110 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Trovas e canccedilotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1910 p 136-137

111 O Paiz 7 abr 1911

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por dentro O autor sob o pseudocircnimo de Argus saudava a poesia de Catullo como digna de ser tachada de uma gloacuteria

Catullo da Paixatildeo Cearense encontrava-se na deacutecada de 1910 do seacuteculo XX envolvido numa ambiguidade que o traraacute como tema funda-mental em diversas reportagens do periacuteodo quando se tratava de pensar no seu lugar dentro do panteatildeo da ldquopoesia nacionalrdquo Respeitado por uns ignorado por outros era possiacutevel vislumbrar inclusive ambas as atitudes em um uacutenico sujeito Respeitado por conhecer ldquocoisas popu-laresrdquo desdenhado por ser entendido como um ldquoautor popularrdquo Essa nuance de opiniotildees natildeo era absolutamente desconsiderada por Catullo Ao contraacuterio parecia guiar sua produccedilatildeo numa incessante busca pelo reconhecimento A recepccedilatildeo de sua obra deve ser entendida como parte fundamental de seu processo de criaccedilatildeo tanto mais porque Catullo fazia aparecer comentaacuterios de leitores em seus livros e respondeu mais de uma vez em poemas e prefaacutecios os seus detratores

Anna Ceacutesar cronista de O Paiz testemunha para os leitores do jornal a sua leitura de Novos cantares publicaccedilatildeo de Catullo Eacute possiacutevel observar em suas palavras todas as ambiguidades que definiam Catullo nesse tempo

Venho de concluir a leitura de dois livros interessantes que tenho sobre a mesa Cada qual em seu gecircnero ambos preciosos e jaacute recommen-dados pelas assignaturas que os illustramSatildeo elles Estudos e reflexotildees de Moreira Guimaratildees e Novos Cantares de Catullo CearensePedem-me sobre os mesmos algo dizerQue ousaraacute traccedilar a minha obscura Penna de chronista quando jaacute se tem dito e com maior competecircncia sobre os trabalhos desses dois bellos ornamentos da literatura patriacutecia112

Depois de fazer comentaacuterios elogiosos agrave publicaccedilatildeo de Moreira Guimaratildees exaltando seus ldquoarroubos literaacuteriosrdquo a cronista segue para a apreciaccedilatildeo de Novos cantares

112 O Paiz 30 jul 1911 p 2

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Quanto ao livro de Catullo Cearense eu que o conheccedilo e o admiro que o tenho applaudido em minhas salas natildeo lhe posso expender opiniotildees sem que me torne suspeitaCatullo natildeo eacute somente o poeta primoroso querido de seus collegas de letras e um talento prodiacutegio de originalidade conjunto de muacutesica de poesia e de arte Alma que chora canta e vibra nas cordas do violatildeo todos os segredos do coraccedilatildeo todas as nuances do sentimentoMeditativo e despretensioso transfigura-se ao declamar os versos que escreve cheios de delicadezas alados ninhos em que se abrigam [] inspiraccedilotildees de artistasCatullo natildeo eacute para os leigos em mateacuteria de literatura nem para literatos improvizados desses que abundam por ahi com pretensotildees a criacuteticosCatullo eacute para os mestres que o podem admirar julgar e comprehenderPena seraacute que esse espiacuterito ao partir da vida terrena para alar-se aacute [sic] regiotildees superiores natildeo possa talvez deixar como sequencia um disciacutepulo que perpetue a escola genuinamente sua e por ningueacutem ainda imitada apesar da criacutetica severa e ateacute ridiacutecula que se lhe tem tentado lanccedilar113

Elogiosa e mesmo apologeacutetica essa criacutetica coloca Catullo em alta conta dentro da literatura ao mesmo tempo em que abstendo-se de falar de seus versos contidos em Novos cantares chama a atenccedilatildeo para o caraacuteter performaacutetico da sua poesia ldquoao declamar versos que escreverdquo Essa imagem de Catullo declamando eacute muito cara agrave sua representaccedilatildeo e o seguiraacute durante toda a vida

A premissa eacute que seus versos soacute se expressariam diante da orali-dade aqui levada ao extremo pela sua imagem a declamar nos salotildees Poeta dos salotildees homem de literatura Natildeo a voz do canto a serviccedilo da poesia mas voz e verso como elementos indissociaacuteveis para a consu-maccedilatildeo da poesia propriamente Para Anna Cesar a poesia em Catullo eacute acontecimento Para completar a criacutetica apologeacutetica ela termina escre-vendo ldquoPeccedilo desculpas aos leitores por me ter expandido desta forma sobre o nosso menestrel fazendo-lhe a apreciaccedilatildeo individual ao envez da criacutetica aos seus versos []rdquo114

113 Idem114 Idem

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Anna Ceacutesar vai de frente a outro tipo de recepccedilatildeo das publica-ccedilotildees de Catullo aquela que o vecirc como algo menor Gilberto Amado entatildeo ainda estudante de direito e articulista escrevendo um artigo em sua coluna ldquoA Semanardquo no jornal O Paiz sobre o teatro produzido no paiacutes observa de modo irocircnico o fato de que no Brasil soacute as operetas e revistas tecircm puacuteblico e compara

Em literatura de outro gecircnero eacute a mesma coisa Raul Pompeacuteia escreveu o Atheneu e a segunda ediccedilatildeo desse livro monumental feita ultimamente a custa de esforccedilos de amigos estaacute quase intacta ainda na casa Alves Entretanto tecircm sido innumeras as ediccedilotildees dos volumes de poesias eroacute-ticas que se esgotam e creio natildeo haacute modinha de Catullo Cearense que natildeo voe em um instante todos os vetos da publicidadePara que tratar do theatro Eacute uma superfluidade O nosso povo no seu crasso analphabetismo no seu desdeacutem das ideacuteas pensa laacute em coisas seacuterias115

Esse olhar lanccedilado sobre as publicaccedilotildees de Catullo vindo de um conhecido articulista do periacuteodo resguardava para o autor certa distacircncia de um reconhecimento como literato Poreacutem ao mesmo tempo em que parecia negar-lhe um lugar no panteatildeo de uma literatura respeitaacutevel en-tregava-lhe estigmatizando-o negativamente a autoria de textos consi-derados ldquonatildeo-seacuteriosrdquo ou seja conferia-lhe a autoridade sobre eles de modo que desdenhava do fato de que muitas das modinhas publicadas em livros sob o nome proacuteprio Catullo Cearense serem originalmente criadas por vaacuterios artistas e soacute depois reunidos em textos por Catullo Assim era o nome proacuteprio Catullo que era responsabilizado pelas publi-caccedilotildees consumidas pelo ldquopovordquo no seu ldquocrasso analphabetismordquo Mais tarde o proacuteprio Gilberto Amado reafirmaria seu ponto de vista

Na Inglaterra na Franccedila na Alemanha qualquer menino de lyceu recita Homero e tem a alma cheia de maravilhas authenticas do Parnaso Diz as coacuteleras de Agammenon os desejos luminosos de Anacreonte e a sua alma se engrandece no grande rythmo das paixotildees heroicas

115 O Paiz 9 abr 1911 p 1

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Aqui as nossas primeiras impressotildees literaacuterias vecircm dos gorgeios de Catullo Cearense e nas piadas das revistas populares116

A essas impressotildees em negativo Catullo fazia acudir em seus livros como jaacute o vimos a opiniatildeo de gente respeitada da elite letrada carioca Outro elemento deve ser sublinhado as dedicatoacuterias das poe-sias e modinhas que Catullo fazia aparecer em seus textos

Fazendo o uso de praacutetica comum no periacuteodo o autor dedicava suas publicaccedilotildees quase sempre a um membro distinto da sociedade ca-rioca Assim na 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro popular de 1908 dedica ldquoao primoroso e distincto comediographo brasileiro Arthur Azevedo como singela prova de admiraccedilatildeo ao seu talento omnidordquo A publicaccedilatildeo Lyra brasileira vai dedicada ao ldquoabalisado mestre do provecto forma-lista ao eminente criacutetico ao inspirado e mavioso poeta Medeiros e Albuquerquerdquo Trovas e canccedilotildees de 1910 vai dedicado ao ldquoExmo Sr M Moreira da Silva doutor em Odontologia Lente Cathedraacutetico da Escola Livre do Rio de Janeirordquo Esse recurso comum era ampliado nas obras de Catullo pelas dedicatoacuterias que fazia aparecer em cada modinha e em eventuais poesias que fazia publicar Assim em Novos cantares de 1909 enquanto aparece uma rara dedicatoacuteria do livro para a matildee de Catullo falecida em 1908 cada modinha e cada poesia vinham acom-panhadas com dedicatoacuterias a pessoas ilustres entre as quais ldquoao grande poeta Dr Luis Muratrdquo (a quem dedica o poema Ode ao violatildeo) ldquoAo glorioso luminar do exeacutercito brasileiro Marechal Hermes da Fonsecardquo (a quem dedica a modinha Templo ideal) ldquoao Dr Luacutecio de Mendonccedilardquo (a quem dedica a modinha O teu cabello) e ateacute mesmo ao seu editor Pedro da Silva Quaresma (a quem dedica a modinha Rasga coraccedilatildeo)

Natildeo soacute Catullo lanccedilava matildeo dessa receita Por essa mesma eacutepoca em 1915 a livraria Castilho lanccedilava sua primeira publicaccedilatildeo de autor nacional Carmen tropicale livro de poesias de Antocircnio Torres (que seria posteriormente reconhecido por suas Pasquinadas cariocas) A maioria dos seus 33 poemas ia acompanhada de dedicatoacuterias a indiviacute-duos como Goulart de Andrade Oscar Lopes e Nestor Victor

116 O Paiz 16 out 1913 p 1

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Praacutetica comum as dedicatoacuterias poderiam atender a vaacuterias de-mandas inclusive a necessidade vital para um escritor de mirar seu puacute-blico consumidor fosse pela autoridade evocada na dedicatoacuteria fosse no mero agradecimento por serviccedilos prestados mdash ora citar um ilustre dedi-cando-lhe um poema poderia soar como estar proacuteximo do ilustre o que poderia abalizar o indiviacuteduo que escreve como algueacutem ldquoreconhecidordquo

Haacute de se levar em conta que a publicaccedilatildeo de um livro demandava vaacuterios empreendimentos por parte de um escritor inclusive se valendo da ajuda de proacuteximos Antocircnio Torres ao publicar seu volume de poe-sias Carmen tropicale embora levasse o selo da livraria Castilho pagou com o proacuteprio bolso toda a ediccedilatildeo Conta-se que o proprietaacuterio Antocircnio Castilho que jaacute publicara algumas traduccedilotildees de estrangeiros como Dostoievski suspeitava de lanccedilar um escritor nacional por sua casa117 De qualquer forma temeroso de um possiacutevel fracasso Antocircnio Torres advertia ao seu leitor em uma nota-posfaacutecio que fez aparecer no livro ldquoO encontrar coisas boas num livro depende apenas de saber lerrdquo118

O aumento de um puacuteblico letrado fazia aparecer inuacutemeros lei-tores que por sua vez criavam expectativas a cada publicaccedilatildeo que saiacutea Isso demandava de autor e editor estrateacutegias que pudessem ser bem avaliadas por um possiacutevel consumidor Dedicatoacuterias preccedilos formas materiais do livro convencimentos por prefaacutecios e posfaacutecios opiniotildees em perioacutedicos tudo isso entrava no rol de elementos a serem pensados por aqueles que visavam ao sucesso da publicaccedilatildeo Esse empreendi-mento dispendioso e arriscado num paiacutes potencialmente de natildeo lei-tores fazia aparecer aspirantes a escritores a cada dia que almejavam serem lanccedilados sob a proteccedilatildeo de um ilustre Se o ecircxito da livraria Quaresma podia ser tomado como exemplo para outros editores natildeo era faacutecil e barato imitaacute-la ainda mais quando o editor e o escritor natildeo abriam matildeo de produzir e publicar livros de ldquocoisas seacuteriasrdquo como queria Gilberto Amado anteriormente citado

A editora e livraria Castilho vinha com essa pretensatildeo mas en-contrava um mercado de ldquoobras seacuteriasrdquo jaacute inchado sob a eacutegide da

117 BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 68118 TORRES Antocircnio Carmen tropicale Rio de Janeiro Livraria Castilho 1915 p 80

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Garnier Ainda assim apostando na boa aprovaccedilatildeo feita ao livro do as-pirante Antocircnio Torres Antocircnio Castilho natildeo abriu matildeo de publicar li-vros ldquomais seacuteriosrdquo e imitar um pouco da publicidade exitosa de Pedro Quaresma Por seu lado escritores novos e antigos procuravam o aval de selos mais seacuterios visando a ganhar mais credibilidade dos leitores

Catullo da Paixatildeo Cearense o maior sucesso de vendas da Quaresma afastar-se-ia dessa editora e se aproximaria da Castilho Em 1918 lanccedilaria sob o selo de Antocircnio Castilho o livro de poemas Meu sertatildeo Mas daiacute ateacute esse rompimento com Quaresma se daria um flerte com a temaacutetica sertaneja que contaminava o Rio de Janeiro do periacuteodo Sempre atento e sensiacutevel agraves mudanccedilas que se processavam na literatura Catullo se viu diante de uma possibilidade iacutempar de reconhecimento em definitivo como poeta (e natildeo soacute ldquopoeta popularrdquo) escrevendo temaacuteticas mais ldquoseacuteriasrdquo e deixando as modinhas de lado ao aproximar-se de um editor que visava a tal seriedade buscada Nesse iacutenterim poreacutem foi ainda uma modinha de sucesso que lhe deu essa oportunidade o Luar do sertatildeo

Figura 2 ndash Catullo da Paixatildeo Cearense em foto publicada em Lyra brasileira de 1908 pela livraria Quaresma

Fonte arquivo do autor

SER POETA SER DO SERTAtildeO

Catullo Cearense tu

tens o defeito bem fortede arranjar termos do Sue dizer que satildeo do Norte

Joatildeo Carvalho119

A cidade e o sertatildeo

Em 1915 a livraria Quaresma publicava aquele que era anun-ciado pelo editor como o ldquouacuteltimo livro de modinhas de Catullo Cearenserdquo Florileacutegio dos cantores eacute uma publicaccedilatildeo dividida em trecircs partes 1) Florileacutegio dos cantores 2) Flores do sertatildeo e 3) Flores dispersas Em Flores do sertatildeo apareciam pela primeira vez em livro as modinhas com temaacuteticas sertanejas de Catullo incluindo Luar do sertatildeo e Poeta do sertatildeo Era a primeira vez que Catullo se revelava um bardo das coisas sertanejas Em Poeta do sertatildeo ndash que segundo Catullo deveria ser acom-panhada da muacutesica do ldquomaestro Francisco Nunes que logo depois ficaraacute popularizadardquo ndash o autor buscava representar a fala sertaneja

Si chora u pinhoIn disafiugemedocirc

119 Apud ALENCAR Edigar de Claridade e sombra na muacutesica do povo Rio de Janeiro Francisco Alves Brasiacutelia INL 1984 p 54

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Natildeo haacute puetaComo u fiudo sertatildeo sem secircdoutoOs oio quentiDa caboca faz a gentiSecirc pueta di repentequi a puesiavem do amocirc120

O ecircxito daquelas modinhas sertanejas daria a Catullo a oportuni-dade para em pouco tempo arvorar-se de bardo modinheiro a poeta do sertatildeo Naquele mesmo ano saiu pela Papelaria e Typografia Sportiva o volume intitulado Canccedilotildees das madrugadas com letras de Catullo adaptadas para canccedilotildees conhecidas Era a primeira vez depois de muitos anos que Catullo natildeo publicava pela Quaresma

Nessa publicaccedilatildeo novamente aparece a letra de Poeta do sertatildeo acompanhada de uma dedicatoacuteria ao poliacutetico cearense Floro Bartholomeu mas com a seguinte mudanccedila na indicaccedilatildeo da muacutesica a acompanhar ldquoPara ser cantada com a toada Caboca de Caxangaacute de minha lavra disco da Casa Edisonrdquo121 A mudanccedila na escolha da muacutesica a acompa-nhar a canccedilatildeo natildeo parece deliberada Da erudiccedilatildeo de um maestro Catullo parecia visar agravequilo que identificava como ldquopopularrdquo preferindo a muacute-sica da famosa toada sertaneja Caboca de Caxangaacute A mudanccedila tambeacutem chama a atenccedilatildeo para a possiblidade agrave eacutepoca da existecircncia de uma letra adaptada a vaacuterias muacutesicas ou ao contraacuterio o que era muito comum uma muacutesica poderia circular com letras diferentes

Caboca de Caxangaacute era uma canccedilatildeo que fora sucesso no car-naval de 1913 nas ruas cariocas com letra diferente daquela dada por Catullo Seu formato de embolada remetia a um canto falado proacuteximo ao dos repentistas comuns do nordeste do paiacutes Comos vimos o Rio de

120 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Florileacutegio dos cantores Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1915 p 93-98

121 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Canccedilotildees das madrugadas Rio de Janeiro Papelaria amp Typografia Sportiva 1915 p 21

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Janeiro desde finais do seacuteculo XIX acostumara-se a assistir a espetaacute-culos como esse cujo tema central era o interior o sertatildeo

Ladeada por equipamentos modernos que criavam novos espaccedilos de sociabilidade e armada das ldquopalpitantesrdquo obras literaacuterias que atra-cavam nos portos das grandes cidades a elite letrada brasileira de iniacute-cios do seacuteculo XX convivia com o dilema cotidiano de ver-se como parte importante do desejo de civilizar-se ao passo que enxergava agrave sua volta a sobrevivecircncia (e por que natildeo a ameaccedila) da existecircncia de coisas ditas ldquobaacuterbarasrdquo Agrave pretensa busca de um ideal civilizatoacuterio que fosse corporificado pela sede de progresso (palavra de ordem daqueles tempos) juntou-se para a elite letrada uma vontade de encontrar algo que singularizasse o Brasil no mundo Ambos os movimentos ndash o de buscar inserir-se e o de singularizar-se ndash faziam parte da mesma von-tade de representar-se diante do mundo Parte constitutiva desse para-doxo e aquela onde mais se expressou esse dilema foi a sede por temas sertanejos que se disseminou nas produccedilotildees de grande parte do uni-verso letrado das capitais

No Rio de Janeiro capital federal de entatildeo onde desde fins do seacuteculo XIX processava-se aleacutem de raacutepidas mudanccedilas de natureza soacute-cio-poliacutetica uma triunfante racionalizaccedilatildeo espacial que culminaria na gestatildeo de Pereira Passos (1902-1906) ndash cujo maior siacutembolo foram as obras de construccedilatildeo da Avenida Central ndash essa ldquovoga sertanejardquo se expressava como ldquoum lugar comum alambicado um exerciacutecio de ca-riocas deslumbrados por Parisrdquo e tal ldquovogardquo entatildeo ldquopersistiria por duas ou trecircs deacutecadasrdquo disseminando-se por diversas produccedilotildees de natureza literaacuteria musical teatral e mesmo historiograacutefica122 ldquoCariocas des-lumbrados por Parisrdquo pois que na Franccedila do seacuteculo XIX uma enxur-rada de publicaccedilotildees literaacuterias tambeacutem buscou falar do interior numa tarefa francesa de buscar as suas raiacutezes como naccedilatildeo ldquoRaiacutezesrdquo e ldquonaccedilatildeordquo dois termos que se tornaram incontornaacuteveis na definiccedilatildeo do que seria a literatura do periacuteodo inclusive no Brasil Tambeacutem neste paiacutes tal temaacutetica tornou-se terreno feacutertil para construir uma represen-

122 GALVAtildeO Walnice Nogueira Metamorfoses do sertatildeo Revista de Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 18 n 52 setdez 2004

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 101

taccedilatildeo singular do brasileiro e na esteira disso um iacutendice de definiccedilatildeo do que seria uma literatura nacional

Quando Euclides da Cunha publicou Os sertotildees em dezembro de 1902 a produccedilatildeo em torno do ldquosertatildeordquo jaacute era reivindicada por uma gama de autores e estudiosos que desde meados do seacuteculo XIX esco-lheram falar das ldquocoisas do interiorrdquo Essa sede de ldquosertatildeordquo vinha desde os oitocentos e exemplifica-se nas viagens promovidas pelo Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) que respondiam agrave demanda de conhecer o vasto territoacuterio do paiacutes como parte de um projeto na-cional do Estado imperial Concomitantemente a isso Joseacute de Alencar Gonccedilalves Dias Bernardo Guimaratildees Visconde de Taunay entre ou-tros tantos autores do seacuteculo XIX mobilizavam artifiacutecios literaacuterios para contar sobre o paiacutes encontrando no sertatildeo o berccedilo idiacutelico de uma nacio-nalidade que se forjava no Brasil

Esses homens comumente fincavam no sertatildeo o passado e as ori-gens da naccedilatildeo na sua marcha irreversiacutevel para a civilizaccedilatildeo num gesto que muitas vezes parecia tentar colocar nos trilhos um paiacutes de passado colonial O sertatildeo autorizava a marcha do presente por guardar as raiacutezes do paiacutes Ele o sertatildeo deveria ser conhecido para que se pudesse vis-lumbrar uma identidade que no presente precisava ser construiacuteda mas que no passado (que o sertatildeo guardava) eacute que poderia ser reconhecida Isso explicava a motivaccedilatildeo de Taunay ao desembarcar em Santos e ver-se feliz com ldquoa perspectiva de percorrer grandes extensotildees e varar ateacute sertotildees pouco conhecidosrdquo123 ou a lamentaccedilatildeo de Alencar pela che-gada da ldquocivilizaccedilatildeordquo nos sertotildees dizendo ldquoQuando te tornarei a ver sertatildeo da minha terra que atravessei haacute muitos anos na aurora serena e feliz de minha infacircnciardquo pois ldquoa civilizaccedilatildeo que penetra pelo interior corta os campos de estradas e semeia pelo vastiacutessimo deserto as casas e mais tarde as povoaccedilotildeesrdquo124

123 TAUNAY Visconde de Dias de guerra e de sertatildeo Satildeo Paulo Revista do Brasil 1920 p 11

124 ALENCAR Joseacute O sertanejo 6 ed Satildeo Paulo Melhoramentos sd p 9-10 (1ordf ediccedilatildeo em 1875)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo102

A geraccedilatildeo do final do seacuteculo XIX poreacutem passaria a conviver com um dilema diferente O novo que se expressava de maneira veloz nas grandes cidades concomitantemente demandava uma inserccedilatildeo dos citadinos naquilo que se convencionou chamar de ldquomodernidaderdquo Haacutebitos foram (re)fundados e velhas praacuteticas sofriam aversatildeo entre os apologistas do moderno O regozijo fuacutenebre do passado era exortado em textos que cantavam os novos prazeres das ruas que triunfavam nos espaccedilos urbanizados As cidades com suas ruas modernamente retiliacute-neas impulsionavam uma nova percepccedilatildeo de tempo e espaccedilo Ao es-paccedilo citadino aderiu-se uma qualificaccedilatildeo temporal agrave ldquoantigardquo cidade veio sobrepor-se a ldquomodernardquo cidade

Nesse contexto sertotildees e cidades tornaram-se temas fundamen-tais para se pensar a naccedilatildeo Espaccedilos apartados por profundas contradi-ccedilotildees entre si e que por isso mesmo eram representados provocando a vertigem de viajantes desavisados como se expressava nas impressotildees sintomaacuteticas de Isaiacuteas Caminha personagem criado por Lima Barreto quando adentrava a baiacutea de Guanabara agraves portas da cidade do Rio de Janeiro vindo do sertatildeo capixaba

O espetaacuteculo chocou-me Repentinamente senti-me outro Os meus sentidos aguccedilaram-se a minha inteligecircncia entorpecida durante a viagem despertou com forccedila alegre e cantante Eu via nitidamente as coisas e elas penetraram em mim ateacute o acircmago Convergi todo o meu aparelho de exame para o espetaacuteculo que me surpreendia Estive por uns instantes espamodicamente arrebatado para um outro mundo adi-vinhado aleacutem das coisas sensiacuteveis e materiais Voluptuosamente cerrei os olhos depois aos poucos descerrei as paacutelpebras para olhar embaixo o mar espelhento e misterioso []125

Essa sensaccedilatildeo de estar num espaccedilo onde as mutaccedilotildees se corpori-ficavam quase como um encantamento se fazia aparecer como bem salientava o cronista Joatildeo do Rio inclusive nas formas com que os ldquomodernos artistasrdquo davam luz a suas obras ldquoOs artistas modernos jaacute natildeo se limitam a exprimir os aspectos proteiformes da rua a analisar

125 BARRETO Lima Recordaccedilotildees do escrivatildeo Isaiacuteas Caminha Satildeo Paulo Publifolha 1997 p 50

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 103

traccedilo por traccedilo o perfil fiacutesico e moral de cada rua Vatildeo mais longe so-nham a rua ideal como sonharam um mundo melhorrdquo126

Na dramaacutetica espera por esse ldquomundo melhorrdquo onde a rua do-mesticada pudesse desaguar por todos os espaccedilos e onde as novidades triunfariam diante da relutacircncia do velho foi que os limites do moderno se figuraram diante do rechaccedilo do sertatildeo A cidade modernizada desco-bria o sertatildeo O sertatildeo era o ldquooutro geograacuteficordquo incontornaacutevel diante do arrivismo moderno Mas um ldquooutrordquo que segundo as liccedilotildees dos romacircn-ticos era o guardador das raiacutezes do paiacutes e portanto o sertatildeo era con-comitantemente um ldquooutrordquo e um ldquomesmordquo O discurso nacionalista o aproximava das cidades enquanto o discurso cosmopolita da moderni-dade o repelia

Essa dualidade na forma de tratar os espaccedilos se manifestou num imenso debate acerca do sentido do sertatildeo nos novos tempos de forma que falar dele era uma operaccedilatildeo que atravessava toda tensatildeo expressa em dualidades qualificadoras tais como ldquobaacuterbarordquo poreacutem ldquoabando-nadordquo ldquoberccedilo da nacionalidaderdquo mas ldquoespaccedilo do atrasordquo ldquodoenterdquo contudo ldquoforterdquo Dicotomias expressas de maneira dramaacutetica na obra de Euclides da Cunha mas que apareciam em inuacutemeras outras publicaccedilotildees que surgiram na febre de sertatildeo que a ela proacutepria secundou como ve-remos a seguir

A produccedilatildeo literaacuteria usando de temaacuteticas e formas identificadas como sertanejas vinha numa crescente desde fins do seacuteculo XIX A cha-mada literatura de cordel jaacute era conhecida pelos citadinos cariocas a ponto de a livraria Quaresma lanccedilar algumas publicaccedilotildees dedicadas a esse tipo de produccedilatildeo127 Temas sertanejos avultaram inclusive publi-cados por autores consagrados do periacuteodo

126 RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Belo Horizonte Crisaacutelida 2007 p 33 (1ordf ediccedilatildeo em 1910)

127 Maacutercia Abreu observa que A Guerra de Canudos do fanaacutetico Conselheiro de Joatildeo de Souza Conegundes teve pelo menos duas ediccedilotildees pela Quaresma a primeira em 1897 e a segunda em 1913 Cf ABREU Maacutercia Cordel portuguecircsfolhetos nordestinos con-frontos 1993 360 f Tese (Doutorado em Literatura Comparada) ndash Departamento de Teoria Literaacuteria Instituto de Estudos de Linguagem Universidade Estadual de Campinas CampinasSP 1993 p 123

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo104

O escritor Coelho Neto ainda em 1893 aventurava-se na temaacute-tica sertaneja publicando Capital Federal impressotildees de um sertanejo no qual criava um narrador oriundo do sertatildeo que contava seu estranha-mento ao deparar-se com o ambiente citadino Entre estranhamentos sustos com novos haacutebitos e liccedilotildees ldquomoraisrdquo o distanciamento do serta-nejo diante da sociedade carioca eacute a tocircnica do romance Em 1896 Coelho Neto lanccedilava seu livro de contos sertanejos denominado Sertatildeo marcadamente construiacutedo numa tentativa de reproduccedilatildeo do linguajar do morador do sertatildeo distinguindo assim expressotildees e palavras do dizer sertanejo acentuando particularidades de comportamentos do homem do sertatildeo bem como marcando sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao modo de falar das cidades

No ano seguinte o teatroacutelogo Arthur Azevedo encenava no Teatro Recreio Dramaacutetico sua peccedila A conquista cujo enredo se pas-sava em torno de uma famiacutelia mineira que vinha agrave capital federal e depois de um deslumbramento inicial acabava descobrindo o viacutecio e a corrupccedilatildeo das cidades A negativizaccedilatildeo das cidades nessas produccedilotildees era uma postura que desconcertava os citadinos regozijantes diante da modernidade urbana e aproximava o sertatildeo de adjetivaccedilotildees positivas e ateacute mesmo do progresso Na mesma peccedila citada Azevedo por exemplo terminava demonstrando o desencantamento de um dos personagens sertanejos Euseacutebio que desabafava em voz alta ldquo[] A vida da capitaacute natildeo se fez para noacutes E que tem isso Eacute na roccedila eacute no campo eacute no sertatildeo eacute na lavoura que estaacute a vida e o progresso da nossa querida paacute-tria [grifo meu]rdquo128

Se por um lado tais autores escolhiam enredos que se pas-savam em torno do sertatildeo por outro natildeo se restringiam somente a ele Coelho Neto Arthur Azevedo Afonso Arinos Franklin Taacutevora e Antocircnio Sales mdash alguns dos primeiros dessa safra de ldquoautores serta-nejosrdquo mdash traziam no bojo do sertatildeo de suas histoacuterias natildeo mais apenas elementos para contar sobre eles mas para a partir de sua presenccedila comparaacute-los agraves cidades

128 AZEVEDO Arthur A conquista Rio de Janeiro Ediouro sd p 245 (1ordf ediccedilatildeo em 1897)

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A comparaccedilatildeo sertatildeo-cidade foi um iacutendice que se fez presente nas obras de diversos autores do periacuteodo tornando o sertatildeo um criteacuterio comparativo importante para pensar as cidades O sertatildeo deixava de ser simplesmente o ldquopassadordquo um guardador das raiacutezes que autorizaria o presente e passava a ser ele mesmo uma presenccedila constante na com-paraccedilatildeo com as cidades Assim seria por todas as trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo XX A voga sertaneja que acompanhou as modernidades que emergiam nas cidades fez com que o escritor Lima Barreto jaacute em 1919 atraveacutes de seu personagem Gonzaga de Saacute afirmasse frustrado ldquoA nossa emotividade literaacuteria soacute se interessa pelos populares do sertatildeo unicamente porque satildeo pitorescos e talvez natildeo se possa verificar a ver-dade de suas criaccedilotildeesrdquo129

Um pouco mais louvado ou um pouco menos o certo eacute que sertatildeo tornou-se um (sub)tema absolutamente incontornaacutevel quando o assunto versava sobre por exemplo cidades naccedilatildeo civilizaccedilatildeo progresso mo-dernidade e ateacute mesmo literatura nacional

Ademais na produccedilatildeo literaacuteria brasileira do periacuteodo sertatildeo virou quase que um meta-tema uma vez que escolhecirc-lo como tema central ou um pouco menos fazecirc-lo simplesmente aparecer na narra-tiva em breves comentaacuterios era afirmar fazer parte de uma tradiccedilatildeo de literatura que cantava sua terra identificada assim como uma litera-tura tipicamente nacional Poreacutem se descrever o sertatildeo e seus cos-tumes era a tocircnica na literatura anterior a essa geraccedilatildeo comumente na denominada ldquogeraccedilatildeo romacircnticardquo para essa geraccedilatildeo moderna o sertatildeo comparecia ao mesmo tempo como embaraccediloso e inspirador A che-gada dos anos 1900 veria aparecer o livro que mais impulsionou tal voga Os sertotildees

O embaraccediloso nas representaccedilotildees de campo e cidade eacute que natildeo raro ambos se mesclam e se complementam Essa relaccedilatildeo de comple-mentaridade eacute comumente fruto das relaccedilotildees afetivas que o sujeito manteacutem com esses espaccedilos bem como de maniqueiacutesmos que os apro-ximam como forma de defini-los em pares opostos Publicado em fins de

129 Apud BARBOSA Francisco de Assis Prefaacutecio In BARRETO Lima Recordaccedilotildees do escrivatildeo Isaiacuteas Caminha Satildeo Paulo Publifolha 1997 p 16 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)

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1902 Os sertotildees de Euclides da Cunha expressava nesse sentido um entrelaccedilamento embaraccediloso entre afeto e razatildeo entre maniqueiacutesmos classificatoacuterios e paixotildees identitaacuterias que agrave primeira vista contraditoria-mente aproximavam a simpatia do autor Euclides Cunha mais do sertatildeo que das cidades na sua tentativa de vislumbrar a desejada ldquocivilizaccedilatildeordquo atraveacutes da comparaccedilatildeo criacutetica entre sertotildees e cidades brasileiras

Para Euclides o sertanejo era ele proacuteprio a singularizaccedilatildeo do Brasil no mundo e a negaccedilatildeo da racionalizaccedilatildeo arrivista do pro-gresso cosmopolita ndash progresso de que aliaacutes o engenheiro Euclides da Cunha era um dos arautos Contestando o famoso historiador Thomas Buckle bastante consumido pela elite letrada de entatildeo que falava em apequenamento do homem brasileiro diante da natureza Euclides escrevia

Mas o nosso sertanejo faz exceccedilatildeo agrave regra A seca natildeo o apavora Eacute um complemento agrave sua vida tormentosa emoldurando-se em cenaacuterios tremendos Enfrenta-a estoacuteico Apesar das dolorosas tradiccedilotildees que co-nhece atraveacutes de um sem nuacutemero de terriacuteveis episoacutedios alimenta a todo o transe esperanccedilas de uma resistecircncia impossiacutevel130

Ao passo que o mesmo Euclides qualificava a vida no sertatildeo de ldquomonoacutetona e primitivardquo131 tambeacutem afirmava o sertanejo como ldquoantes de tudo um forterdquo por natildeo ter o ldquoraquitismo exaustivo dos mesticcedilos neurastecircnicos do litoralrdquo natildeo deixava de ser no entanto ldquodesgracioso desengonccedilado e tortordquo132 A hesitaccedilatildeo de Euclides em definir o serta-nejo era na verdade a hesitaccedilatildeo em definir-se uma vez que positivaacute-lo era fazer apologia do natildeo civilizado (e Euclides acreditava na civili-zaccedilatildeo) e negativizar os sertotildees em definitivo por outro lado era excluir o ldquoforte sertanejordquo na construccedilatildeo de uma naccedilatildeo moderna e portanto civilizada no Brasil Por isso mesmo para o autor o sertanejo soacute podia ser definido pela imagem duacutebia do Heacutercules-Quasiacutemodo Tensatildeo se-

130 CUNHA Euclides Os sertotildees In CUNHA Euclides Obras completas Rio de Janeiro Joseacute Aguilar 1966 p 182

131 Idem p 182132 Ibidem p 170

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macircntica que aparece em toda a obra do autor e que foi seminal para reintroduzir de maneira cabal o sertatildeo no discurso literaacuterio

Apoacutes o sucesso de Os sertotildees um excesso de sertatildeo se fez pre-sente em publicaccedilotildees do periacuteodo sejam elas literaacuterias cientiacuteficas ou musicais Foi nessa eacutepoca tambeacutem que o Estado republicano brasi-leiro enviou cientistas e engenheiros aos sertotildees natildeo mais apenas com o intuito de conhececirc-los mas para intervir neles com as ferramentas do ldquoprogressordquo133A corporificaccedilatildeo do ideal euclidiano de intervenccedilatildeo nos sertotildees pelas armas do ldquoprogressordquo bem como as implicaccedilotildees da sua obra maior nas formas e significados que os sertotildees do paiacutes te-riam dali para frente satildeo dois pontos fulcrais que criaram uma avidez pela temaacutetica sertaneja no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX Contudo o que avultou na literatura sertaneja poacutes-Os sertotildees foi uma tensatildeo ex-pressa em paradoxos semacircnticos que por um lado inviabilizavam qualquer qualificaccedilatildeo em definitivo do sertatildeosertanejo na narrativa mas por outro sugeriam a existecircncia de uma vontade ainda que frus-trada de representaacute-los

Essa indefiniccedilatildeo na representaccedilatildeo do sertatildeo era produto ainda de uma percepccedilatildeo espacial cujos referenciais eram tomados a partir de um olhar citadino e portanto que julgavam a espacialidade a partir de valores tais como civilizaccedilatildeo modernidade e progresso Referenciais que garantiriam ao sertatildeo epiacutetetos sem duacutevida antocircnimos a estes Contudo isso soacute seria possiacutevel se muitas dessas representaccedilotildees natildeo fossem construiacutedas por sujeitos que herdaram toda uma forma de dizer o sertatildeo que o encarava como o berccedilo da nacionalidade em oposiccedilatildeo ao cosmopolitismo das cidades

133 Eacute desse periacuteodo que data a criaccedilatildeo de projetos de intervenccedilatildeo cientiacuteficos no interior do paiacutes tais como o Serviccedilo Geoloacutegico e Mineraloacutegico do Brasil (1907) das Comissotildees Rondon (1910) do Superintendecircncia Nacional de Desenvolvimento da Amazocircnia (1910) e da Inspetoria de Obras Contra as Secas (1909) Sobre esta uacuteltima haacute de se atentar que Euclides da Cunha ajudou no projeto de criaccedilatildeo junto ao Ministeacuterio da Viaccedilatildeo Cf MORAES Kleiton de Sousa O sertatildeo descoberto aos olhos do progresso a inspetoria de obras contra as secas (1909-1918) 2010 184 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) - Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social Instituto de Histoacuteria Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2010

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Mas natildeo foi bem isso que aconteceu Daiacute na ldquovoga sertanejardquo que se seguiu em iniacutecios do seacuteculo XX um verdadeiro contorcionismo intelectual tentaria abarcar o sertatildeo na esteira de representaccedilotildees posi-tivas de forma que o ldquoessencialmente nacionalrdquo (o sertatildeo) natildeo ficasse comprometido diante das ondas modernizantes que os estigmatizariam como negaccedilatildeo do novo A literatura euclidiana caminharia sobre esses dois planos de forma tal que essa tensatildeo seria a marca registrada de seu estilo ele mesmo construiacutedo sobre os alicerces de uma narrativa que dramatizava essa tensatildeo

A vitimizaccedilatildeo era uma caracteriacutestica constante da ldquovoga serta-nejardquo e era um artifiacutecio que buscava uma saiacuteda para o desconforto cau-sado pela existecircncia de um sertatildeo pela criaccedilatildeo na literatura de perso-nagens sertanejos que sofriam as agruras das grandes cidades e de seus moradores Uma vitimizaccedilatildeo que nem sempre heroificava o sertanejo Monteiro Lobato exemplifica esse movimento Num primeiro mo-mento representando o caipira Jeca como um degenerado Lobato logo seguiria a pista da vitimizaccedilatildeo do seu personagem Na literatura loba-tiana agrave tensatildeo na definiccedilatildeo do sertanejo veio juntar-se um difuso ponto de vista com relaccedilatildeo ao estado do Jeca que logo se tornou viacutetima de seu abandono cuja consequecircncia direta era a ausecircncia de salubridade Essa literatura com temaacutetica sertaneja fez surgir uma febre por aquilo que ficou conhecido como ldquoliteratura regionalrdquo

O criacutetico e ensaiacutesta Antocircnio Cacircndido ao tecer reflexotildees acerca do papel do que ele denominou de ldquoregionalismordquo na literatura brasi-leira observou aproximaccedilotildees nos discursos de uma literatura ldquoregionalrdquo produzida no seacuteculo XIX (e Cacircndido cita autores como Franklin Taacutevora e Bernardo Guimaratildees) e aquela produzida no iniacutecio do seacuteculo XX Explica o estudioso que

Gecircnero artificial e pretensioso criando um sentimento subalterno e de faacutecil condescendecircncia em relaccedilatildeo ao proacuteprio paiacutes a pretexto de amor da terra ilustra bem a posiccedilatildeo dessa fase que procurava na sua vocaccedilatildeo cos-mopolita um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais tiacutepicas Esse meio foi o ldquotonto sertanejordquo que tratou o homem rural do acircngulo pitoresco sentimemtal e jocoso favorecendo a seu respeito ideacuteias-feitas perigosas do ponto de vista social quanto sobretudo esteacute-tico Eacute a banalidade dessorada de Catulo da Paixatildeo Cearense a ingenui-

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dade de Corneacutelio Pires o pretensioso exotismo de Valdomiro Silveira ou o do Coelho Neto do Sertatildeo eacute toda a aluviatildeo sertaneja que desabou sobre o paiacutes entre 1900 e 1930 e ainda perdura na subliteratura e no raacutedio134

A bem da verdade estudar essas muacuteltiplas obras e trataacute-las como produtos que optavam por narrar o ldquoruralrdquo do ponto de vista do ldquopito-rescordquo ldquosentimentalrdquo e ldquojocosordquo como salienta Cacircndido eacute uma atitude que natildeo pode ser sustentada diante da complexidade das representaccedilotildees dadas ao mundo rural pelos autores anteriormente citados pelo criacutetico Como procurei demonstrar o seacuteculo XX trouxe elementos difusos e novos para se pensar e falar sobre espacialidades no Brasil Essas formas tiveram ecos na literatura produzida no Brasil no iniacutecio do seacute-culo XX que as diferiam daquela produzida pela geraccedilatildeo anterior mesmo que ambas elegessem o ldquosertatildeordquo como temaacutetica mdash e isso eacute o que pode ter impulsionado Cacircndido a aproximar narrativas tatildeo diacutespares do ponto de vista do tratamento e significado dado ao sertatildeo A tensatildeo expressa em narrativas que teimavam em definir sertatildeo com ldquoolhares civilizadosrdquo pode ser uma ldquochaverdquo prudente para se entender esta pro-duccedilatildeo ldquosertanejardquo de iniacutecios do seacuteculo XX bem como ajuda a fugir atentando para seus usos de definiccedilotildees faacuteceis como a que comumente tacha essa literatura como sendo ldquoregionalistardquo

Por outro lado Cacircndido interessado em salientar o caraacuteter for-mativo da literatura em termos de naccedilatildeo perde de vista os usos estrateacute-gicos da temaacutetica sertaneja em diversos produtos literaacuterios do periacuteodo Perde de vista sobretudo o fato de que escrever sobre o ldquosertatildeordquo era parte de um desejo de representar o universo ldquopopularrdquo do paiacutes E avanccedilando o fato de que tais produtos eram inclusive materiais alvis-sareiros para publicaccedilotildees por editores procurados para serem com-prados por leitores curiosos e operacionalizados por autores que se que-riam representados como ldquonacionaisrdquo pois entendiam do ldquosertatildeordquo

Natildeo se pode desdenhar de que nos primeiros anos do seacuteculo XX uma seacuterie de obras que tematizavam o chamado ldquointerior do paiacutesrdquo foram publicadas Pela editora Chardron de Portugal Osoacuterio Duque Estrada

134 CAcircNDIDO Antocircnio Literatura e sociedade Rio de Janeiro Ouro sobre Azul 2006 p 119

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publicou O Norte em 1909 Mello Moraes Filho lanccedila pela Garnier em 1901 seu Festas e tradiccedilotildees populares do Brasil e em 1903 a Typographia Minerva em Fortaleza publica o primeiro registro edito-rial de canccedilotildees do norte-nordeste do paiacutes Cancioneiro do Norte de Rodrigues de Carvalho Tais empreendimentos editoriais devem ser vistos tanto como parte de um movimento na produccedilatildeo literaacuteria que tematizava o interior do paiacutes ndash com vislumbres para se pensar a ldquonaccedilatildeordquo ndash como uma estrateacutegia editorial de vendas de temas entendidos como ldquopopularesrdquo o que lhe rendia uma possiacutevel lucratividade

O circuito de sociabilidades cariocas tambeacutem ia ao encontro disso A produccedilatildeo teatral do periacuteodo foi invadida por temaacuteticas serta-nejas desde a revista Ouro socircbre azul de Maria Lina no Teatro Recreio em 1915 agrave burleta A cabocircca de Caxangaacute de Gastatildeo Tojeiro no ldquopo-pularrdquo Teatro Satildeo Joseacute em dezembro do mesmo ano

Nas trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo XX o sertatildeo ganhou as ruas e os salotildees do Rio de Janeiro e apareceu nos mais diferentes espaccedilos da capital federal e nas mais diferentes produccedilotildees culturais do periacuteodo Foi nas ruas que no ano de 1913 a canccedilatildeo Cabocla de Caxangaacute (conhecida como de autoria de Catullo Cearense) fez um grande sucesso no car-naval carioca Interpretada pelo grupo Caxangaacute formado por nomes futuramente conhecidos como Pixinguinha Donga e Joatildeo Pernambuco a canccedilatildeo de temaacutetica sertaneja foi apresentada com sucesso pelas ruas da capital federal por muacutesicos vestidos como vaqueiros do sertatildeo135 Com o triunfo de Cabocla de Caxangaacute nas ruas Catullo da Paixatildeo tambeacutem voltaria sua produccedilatildeo para temaacuteticas sertanejas

Entusiasmado com o sucesso da muacutesica Catullo apropriou-se do tema sertanejo e comeccedilou a compor modinhas sertanejas como Luar do sertatildeo gravada em disco pela primeira vez por Eduardo das Neves em 1914

Em 1915 foi encenado com bastante sucesso no palco do Teatro Satildeo Joseacute (hoje Teatro Joatildeo Caetano) no centro do Rio de Janeiro a opereta sertaneja escrita por Catullo intitulada de O marrueiro que re-

135 COSTA Op cit p 121

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velaria Vicente Celestino como o personagem do sertanejo-cantador e onde o proacuteprio autor cantaria algumas vezes Catullo jaacute vinha colabo-rando na feitura de pequenas peccedilas como o musical O diabo entre as freiras ou o tambeacutem musical Agrave procura de uma noiva ambas apresen-tadas no Circo Spinelli respectivamente nos anos de 1910 e 1911136 Mas o ecircxito de O marrueiro o notabilizaria cada vez mais como conhe-cedor do sertatildeo A par disso Catullo era presenccedila constante nos saraus a apresentar seus motivos populares que cada vez mais se voltavam natildeo para as modinhas mas para as canccedilotildees com temaacuteticas sertanejas

Sintomaacutetico disso eacute que em 1910 o jornal O Paiz anunciava a conferecircncia A modinha brazileira no Theatro Recreio Dramaacutetico do qual Catullo fez parte como cantor137 e jaacute em 1914 no Thetro Phoenix Catullo participaria de outra conferecircncia desta feita com Viriato Correcirca Na primeira parte dessa conferecircncia de 1914 Catullo cantaria suas mo-dinhas e na segunda parte o programa seria composto tatildeo somente de coisas do sertatildeo quando recitaria [grifo meu] Preto do sertatildeo e cantaria Caboca de Caxangaacute ldquotal como ela eacute verdadeiramenterdquo e Luar do sertatildeo Caboca de Caxangaacute ldquotal como ela eacuterdquo pois dezenas de versotildees dessa canccedilatildeo corriam nas ruas do Rio de Janeiro agrave eacutepoca tamanho seu su-cesso Sucesso soacute natildeo equiparado agravequela canccedilatildeo pela qual Catullo fi-caria fortemente identificado e que causaria uma seacuterie de discussotildees acerca de sua autoria o Luar do sertatildeo

Em 16 de marccedilo de 1914 o jornal O Paiz reportava ldquoRecebemos a interessante canccedilatildeo lsquoO Luar do Sertatildeorsquo muacutesica e letra do apreciado trovador Catullo Cearenserdquo138

O Luar do Sertatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense era uma mo-dinha que contava as coisas do sertatildeo com uma letra enorme ndash tal e qual as modinhas do poeta ndash com oito versos que se intercalavam com o re-fratildeo ldquoNatildeo haacute oacute gente oacute natildeo Luar como esse do sertatildeordquo O enorme sucesso da toada daria a Catullo uma visibilidade ainda maior e o intro-duziria de maneira definitiva nas produccedilotildees com temaacuteticas sobre o

136 ldquoO diabo entre as freirasrdquo teve reapresentaccedilotildees no ano de 1912 Cf O Paiz 28 fev 1912137 O Paiz 13 out 1910138 O Paiz 16 mar 1914

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sertatildeo A fama da modinha sertaneja estendeu-se agrave capital paulista que ainda em 1915 o chamou para uma conferecircncia na receacutem-fundada (pela nata da elite letrada paulistana) Sociedade de Cultura Artiacutestica que se reunia no Trianon139

Foi nesse contexto jaacute laureado nos recitais e presenccedila constante nas rodas boecircmias que Catullo da Paixatildeo Cearense apoiado por le-trados como Joatildeo do Rio Capistrano de Abreu e Roquette Pinto pu-blicou em 1918 seu primeiro livro de poesias com temaacuteticas serta-nejas intitulado Meu sertatildeo por um editor que comeccedilava seu empreendimento com livros Antocircnio Castilho

A livraria Castilho

Conta-se que Machado de Assis um habitueacute da livraria Garnier costumava passar pela rua Satildeo Joseacute a caminho do Ministeacuterio da Agricultura e nesse percurso parava na livraria Quaresma para ler os claacutessicos portugueses ldquondash Sabe Gosto mais de sua casa porque eacute silen-ciosa natildeo haacute aquecircle zunzum da Garnierrdquo 140

Situada no centro da cidade os frequentadores da Rua Satildeo Joseacute ainda podiam gabar-se de certa distinccedilatildeo diante da noviacutessima avenida Central e da barulhenta rua do Ouvidor onde aliaacutes situava-se a livraria Garnier Ainda contando com preacutedios antigos que avanccedilavam sobre as calccediladas a Satildeo Joseacute natildeo era um convite para um apologista das ldquocoisas novasrdquo Mas ali resguardados do glamour que entorpecia os mais afoitos pelas novidades da modernidade desfilavam desde escritores consagrados como Machado de Assis obtusos homens agrave procura do Dr Feio Galvatildeo reclamando de dores de dente poliacuteticos reunindo-se para reuniatildeo no Centro Paraibano ateacute cantores e seresteiros que procuravam a livraria Quaresma agrave procura de folhetos de muacutesica editados pela casa

Tambeacutem ali bem proacuteximo na deacutecada de 1910 floresciam outros sebos e livrarias como a livraria Cruz e Coutinho cujo proprietaacuterio Jacinto Ribeiro de Santos orgulhava-se de editar peccedilas teatrais e os

139 Catullo acabou natildeo podendo ir por problemas pessoais Cf O Paiz 26 mar 1915140 BROCA Brito A vida literaacuteria no Brasil - 1900 Rio de Janeiro MEC 1956 p 50

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 113

melhores livros juriacutedicos e didaacuteticos141 Descendo um pouco mais proacute-ximo ao botequim Silva Valverdi amp Co e da estaccedilatildeo de bondes e entre o Hotel Avenida e o Largo da Carioca o livreiro Antocircnio Joaquim de Castilho comandava a sua livraria Castilho

Desde 1902 quando transferiu o pequeno sebo localizado na rua Santo Antocircnio para a rua Satildeo Joseacute Castilho dedicou-se a vender livros novos especialmente obras francesas e portuguesas Foi por sua inicia-tiva que se comeccedilou a ler os romances em francecircs de Marcel Preacutevost como Les demi-vierges os de Henry Bordeaux como La petite made-moiselle ou as novelas de Paul Hervieu como Lrsquoarmature142 Mas Castilho tambeacutem se lanccedilou na ediccedilatildeo de livros e eacute possiacutevel encontrar seu nome em anuacutencios dos jornais como editor de livros juriacutedicos Um exemplo eacute A verdadeira revisatildeo constitucional de Samuel Oliveira apresentada como uma ediccedilatildeo ldquobem cuidada e feita com todo o ca-pricho revelando o carinho que mereceu o livrordquo143

A publicidade de livros nos jornais cariocas parecia ser um vieacutes que Castilho soube copiar do seu vizinho Pedro Quaresma de forma profiacutecua embora diferentemente deste uacuteltimo natildeo investisse na publi-caccedilatildeo de ldquofrivolidadesrdquo Mas isso natildeo demoraria muito tempo

Apesar de no iniacutecio Antocircnio Castilho natildeo ver com bons olhos a ediccedilatildeo de romances e poesias de autores nacionais esse ramo logo o excitaria a novos voos Em 1915 Antocircnio Torres lanccedilou sob o selo da livraria Castilho o seu livro de estreia Carmen tropicale Embora nesse caso o autor pagasse a ediccedilatildeo do proacuteprio bolso o editor gostava de vangloriar-se de nunca ler um original mas que sempre se deixou ldquolevar pelo faro e jamais me enganeirdquo144 Perspicaacutecia faro ou oportunismo o fato eacute que Antocircnio Torres ficaria conhecido por outros livros lanccedilados pela Castilho como o best-seller Pasquinadas cariocas em 1921 ele-vando o lucro do editor e livreiro ao passo que encorajava o editor re-ticente na aposta de outros escritores nacionais Antes disso Castilho

141 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 134142 Cataacutelogo de livros franceses da Livraria Castilho Em A Noite 3 jun 1914 p 5143 Gazeta de Notiacutecias 17 maio 1912 p 4144 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 136

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo114

apenas se aventurou na ediccedilatildeo de pequenos livros impressos na tipo-grafia que fazia funcionar aos fundos da livraria

A ecircnfase dada pelo livreiro agrave comercializaccedilatildeo de livros estran-geiros fez crescer em sua casa o nuacutemero de visitantes ilustres que bem ao gosto do periacuteodo acorriam em busca da novidade literaacuteria da Europa Gastatildeo Cruls Gilberto Amado Joaquim de Sales Costa Recircgo Lima Barreto e mais tarde Leonardo Mota eram alguns dos homens de le-tras que ficavam conversando ateacute as 22 horas e de laacute seguiam para o bar Nacional na rua Santo Antocircnio145

Natildeo eacute muito difiacutecil imaginar que a clientela frequentadora da Quaresma e da Cruz Coutinho tambeacutem passasse por laacute Foi nessa eacutepoca que Castilho comeccedilou a apostar nas traduccedilotildees de romances estran-geiros O primeiro lanccedilamento veio em 1914 Lua crescente volume de poesias do indiano Rabindranath Tagore com traduccedilatildeo de Plaacutecido Barbosa Tagore acabara de ganhar o precircmio Nobel de literatura de 1913 sendo o primeiro natildeo europeu a alcanccedilar esse feito O sucesso da publicaccedilatildeo foi tatildeo grande que trecircs anos depois veio uma segunda ediccedilatildeo resenhada entusiasticamente por Joseacute Oiticica o anarquista entatildeo articulista do Correio da Manhatilde

O Sr A J de Castilho da conhecida livraria Castilho resolveu ree-ditar a Lua Crescente do poeta indiano Rabindranath Tagore traduzida pelo dr Plaacutecido Barbosa Moveu-o a tal resoluccedilatildeo a incessante procura do livro cuja primeira tiragem se esgotou em um mecircs Poucos livros realmente tecircm agradado tanto ao puacuteblico ledor qual ali vatildeo achar a poesia liacutempida suavisiacutessima de um pantheista encantado das creanccedilas O livro eacute o que se poacutede chamar um mimo e o novo editor procurou dar a esta reimprressatildeo toda a simplicidade e toda a riqueza compatiacuteveis com a poesia do autor[]A nova ediccedilatildeo estou certo se esgotaraacute com a mesma rapidez da pri-meira pois os pedidos mal podem ser satisfeitos146

145 Ibidem146 Correio da Manhatilde 9 abr 1917 p 8

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 115

Dostoieacutevski tambeacutem foi alvo das ediccedilotildees Castilho com a publi-caccedilatildeo de Recordaccedilatildeo da casa dos mortos que teve a traduccedilatildeo de Fernando Nery entatildeo secretaacuterio da Academia Brasileira de Letras que assinava suas traduccedilotildees com o pseudocircnimo de Fernatildeo Neves O sucesso na publicaccedilatildeo de traduccedilatildeo dos romances estrangeiros fez com que o edi-tor-livreiro visasse tambeacutem ao puacuteblico feminino (maior consumidor de romances) sendo logo sua casa conhecida como especialista em ldquolitera-tura para moccedilasrdquo A publicidade no jornal Correio da Manhatilde indicava o livro de M Delly Escrava ou rainha como sendo ldquoO Mais lindo romance para Moccedilasrdquo com ldquoprimorosa traducccedilatildeo de Fernatildeo Nevesrdquo147

Uma das publicaccedilotildees de grande sucesso das ediccedilotildees Castilho foi Lazarina do romancista francecircs Paul Bourget lanccedilado em 1917 com traduccedilatildeo de Fernatildeo Neves O sucesso foi saudado tanto mais porque desde iniacutecios da grande guerra europeia o paiacutes passava por uma crise do papel o que dificultava novos lanccedilamentos

A livraria Castilho resolveu haacute tempos tornar-se editora apesar de todas as crises inclusive a do papel A sua especialidade parece querer ser a das traducccedilotildees Ainda agora temos quasi a seguir os dois uacuteltimos livros de Paul Bourget Lazarina e O Sentimento da Morte traducccedilatildeo portu-gueza do Sr Fernatildeo NevesO Sr Fernatildeo Neves traduziu muito bem os dois volumes com uma tatildeo exagerada preocupaccedilatildeo de vernaculista que ella salta aos olhosOra entre ser vernaacuteculo e fazer questatildeo de mostrar ser vai muita vez ser o estorvo dos escriptores O Sr Fernatildeo Neves eacute entretanto um tra-ductor pouco commum E francamente vale mais ler Bourget sempre tatildeo despreocupado no estylo [] na traducccedilatildeo do Sr Neves Os dois romances da guerra conservam todas as belezas do grande romancista num estojo mais cuidado148

Criacutetica como essas que apareciam em jornais e revistas era fatal para o sucesso ou a estigmatizaccedilatildeo da obra especialmente quando se sabia que muitos dos autores que resenhavam as novas publicaccedilotildees eram eles mesmos letrados que acorriam agraves livrarias em busca do novo

147 Correio da Manhatilde 10 jun 1918 p 9148 O Paiz 14 set 1917 p 2

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo116

livro na praccedila Oliveira Vianna por exemplo resenhou negativamente o livro de Carneiro Leatildeo Problemas de educaccedilatildeo ndash lanccedilado pela Livraria Jornal do Comeacutercio em 1919 ndash por discordar do autor de que a edu-caccedilatildeo poderia elevar a moral da populaccedilatildeo pois

Pela mesma razatildeo que a educaccedilatildeo intelectual natildeo poacutede dar caracter a ningueacutem ou melhor natildeo poacutede modificar aquilo que podemos chamar a lsquoespinha dorsal do caracterrsquo de ningueacutem O caracter bom ou maacuteo egoiacutesta ou abnegado doce ou rude submisso ou autoritaacuterio inerte ou activo eacute coisa que preexiste a qualquer processo educativo eacute coisa que concerne aacute hereditariedade e a estructura cerebral de cada um149

Criacutetica que rendeu uma resposta discordante da opiniatildeo de Oliveira Vianna trecircs dias depois no mesmo jornal Eacute possiacutevel pensar como essas querelas eram parte constitutiva da publicizaccedilatildeo da obra tanto mais porque no caso acima citado discutia-se exatamente um plano de educaccedilatildeo que colocasse fim ao analfabetismo no paiacutes mdash e o analfabetismo era um tema central entre os leitores e livreiros do pe-riacuteodo Discutia-se desde a ineacutepcia do paiacutes em colocar em accedilatildeo um plano de alfabetizaccedilatildeo ateacute o nuacutemero de livrarias que a cidade do Rio de Janeiro possuiacutea em relaccedilatildeo a Buenos Aires

Natildeo haacute exagero Buenos Aires eacute a cidade dos hoteacuteis e das livrarias Possue-os em grande nuacutemero Eacute o patildeo do estocircmago e o do espiacuterito por toda a parte A abundacircncia de livrarias eacute ali justificada porque metade da populaccedilatildeo sabe ler Como entre noacutes 85 dos indiviacuteduos satildeo analpha-betos contamos poucas livrarias O Rio possue trecircs de primeira ordem (Garnier Briguiet e Alves) quatro de segunda e uns trecircs belchioresAo todo dez casas onde se vendem livros isso para uma capital de cerca de um milhatildeo de habitantes Havemos de convir que eacute muito analphabetismoO nosso puacuteblico ledor prefere aacutes nossas poucas boas letras qualquer revista de caricatura E ainda haacute quem alimente vaidades literaacuterias num paiz como o Brazil onde o coefficiente da ignoracircncia eacute uma causa que assombra e onde um homem de gecircnio como Ruy Barbosa pensa e escreve para ser lido drsquoaqui 300 anos150

149 O Paiz 8 ago 1919 p 3150 O Paiz 21 jul 1913 p 2

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O ldquopuacuteblico ledorrdquo de livros no Brasil que preferia ldquorevista de caricaturardquo era o alvo principal de todos os empreendimentos literaacuterios da eacutepoca Conhecedor do assunto Quaresma como vimos fazia su-cesso com a sensibilidade que tinha de seu puacuteblico As poucas livrarias que existiam na cidade teriam que lidar com esses entraves mesmo aquelas que se propunham a publicar livros como diziam para serem lidos ldquodrsquoaqui 300 anosrdquo ou seja aqueles considerados literatura ldquoseacuteriardquo

Quaresma descobriu Catullo da Paixatildeo Cearense para o grande puacuteblico e Catullo pretendia que sua poesia fosse levada de maneira mais seacuteria Desde a publicaccedilatildeo de suas modinhas buscava que elas fossem consideradas parte constitutiva da literatura do paiacutes Com o tempo tambeacutem passou a publicar poemas e a flertar com temaacuteticas ser-tanejas a fim de ser considerado de fato um escritor de poemas De sua parte Antocircnio Castilho exibia satisfaccedilatildeo pelo seu empreendimento como editor e estava disposto a abraccedilar um autor que se dispusesse a publicar um livro que jaacute poderia vir agrave luz com ecircxito

Foi do encontro de um puacuteblico sedento por temaacuteticas sertanejas um editor disposto a fazer uma aposta lucrativa e um autor com preten-sotildees literaacuterias que foi lanccedilado em outubro de 1918 o primeiro livro de poemas sertanejos de Catullo da Paixatildeo Cearense Meu sertatildeo

CATULLO DA PAIXAtildeO NACIONAL

O meu sertatildeo

Natildeo seria exagero afirmar que Meu sertatildeo nasceu de uma festa O festival organizado para angariar dinheiro visando a sua publi-caccedilatildeo que se realizara em setembro de 1918 foi saudado pela imprensa carioca como um grande evento onde um concorrido lugar era alme-jado por uma ilustre plateia Natildeo foram poucos os ilustres participantes desse esforccedilo A comissatildeo promotora do evento foi formada por le-trados como Afracircnio Peixoto Rocha Leatildeo Pandiaacute Caloacutegeras Roquette Pinto A Austregeacutesilo Pires Brandatildeo Castro Menezes Maacuterio Alencar Eloy de Souza Fernando Magalhatildees Assis Chateaubriand Carlos Costa Paulo Silva Arauacutejo Francisco Solano Afracircnio de Mello Franco Antocircnio Neves Raul Brandatildeo e Castro Barreto Ilustres que aliaacutes or-ganizaram com esmero o festival fazendo ldquovaacuterias reuniotildeesrdquo antes do ocorrido151 O editor Castilho as Casas Mozart e o Jornal do Commercio ficariam por sua vez responsaacuteveis pela venda dos bilhetes que ajuda-riam a publicar o livro de Catullo152 O editor Castilho ainda parecia reticente em publicar autores nacionais angariar dinheiro para a publi-

151 Correio de Notiacutecias 23 ago 1918 p 3152 A Eacutepoca 8 set 1918 p 11

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 119

caccedilatildeo representava uma boa foacutermula para arriscados empreendimentos na publicaccedilatildeo de livros

O sucesso foi imediato e em fins de novembro daquele mesmo ano o livro de Catullo jaacute aparecia como a ldquonovidade literaacuteriardquo nos anuacutencios de jornais e revistas do Rio de Janeiro apresentado como ldquoobra genuinamente nacional do grande poeta sertanejo Catullo da Paixatildeo Cearenserdquo153 O adjetivo nacional colocava dessa forma a obra de Catullo no rol daquelas que poderiam figurar ao lado da de reno-mados escritores como Euclides da Cunha e Alberto Rangel ambos tambeacutem conhecidos como literatos do sertatildeo Ainda a alcunha de ser-tanejo conferia a Catullo a autoridade irrefutaacutevel para que o mesmo tematizasse melhor do que ningueacutem o sertatildeo em sua obra uma vez que essa identificaccedilatildeo natildeo dizia respeito tatildeo somente a um traccedilo da obra (temas sertanejos) mas a um lugar de origem do autor

Na praacutetica de reconhecido como ldquopopularrdquo desde quando co-meccedilou a fazer sucesso com suas modinhas Catullo gozava agora do prestiacutegio de ser apresentado em livro como poeta nacional e gabaritado para falar em seus poemas sobre o sertatildeo pois oriundo dele

Sintomaacutetico foi um artigo aparecido em O Imparcial assinado pelo respeitado historiador e criacutetico Joatildeo Ribeiro em que apresentava a obra nos seguintes termos

lsquoMeu Sertatildeorsquo ndash eacute uma seacuterie de poemas sertanejos sentidos e escriptos por Catullo da Paixatildeo Cearense trovador querido e aplaudido em palcos e salas como o mais genuiacuteno representante da alma popular brasileiraO poeta eacute do Norte da regiatildeo mais antiga do paiz onde os primeiros co-lonizadores realizaram a penetraccedilatildeo mais profunda de povoamento154

Joatildeo Ribeiro ao indicar Catullo como ldquopoeta do Norterdquo atribuiacutea--lhe ao mesmo tempo a autoridade de conhecedor de um lugar e cha-mava a confianccedila do leitor para a leitura de um autor que pode contar sobre o sertatildeo mdash ou como o tiacutetulo deixa entrever o seu sertatildeo Joatildeo

153 Correio de Notiacutecias 24 nov 1918 p 3154 O Imparcial 2 dez 1918 p 5

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo120

Ribeiro observa essa nuance embora sua criacutetica ao livro natildeo fosse boa Voltaremos a ela adiante

Salientando o lugar geograacutefico de onde vinha o autor o articu-lista autorizava o poeta a falar de sertatildeo Adicionado a isso o fato de Catullo ser reconhecido por modinhas sertanejas como Luar do sertatildeo sem duacutevida ajudava nessa representaccedilatildeo de homem do sertatildeo Inclusive o proacuteprio Catullo natildeo poupava esforccedilos para ser assim identificado quando fazia apresentaccedilotildees vestido de ldquomarrueirordquo Apresentaccedilotildees nos palcos natildeo eram algo incomum para Catullo uma vez que vecirc-lo apre-sentando-se em espetaacuteculos circenses e em musicais do chamado ldquote-atro ligeirordquo comeccedilou a ser normal para o puacuteblico carioca da eacutepoca

Esse vatildeo caminho entre um indiviacuteduo da cidade formado nos salotildees e na boecircmia da elite carioca e um autor que se rendia a temaacuteticas sertanejas e se apropriava das representaccedilotildees citadinas dadas ao sertatildeo rendeu a Catullo resultados profiacutecuos para sua apresentaccedilatildeo como poeta Aliaacutes as representaccedilotildees citadinas do espaccedilo sertanejo satildeo la-tentes na maneira como eacute apresentado o sertatildeo tanto em seu livro de estreia Meu sertatildeo como em seu segundo livro editado pela livraria Castilho em 1919 Sertatildeo em flor tambeacutem de temaacutetica sertaneja Em ambas as publicaccedilotildees eacute possiacutevel enxergar a apropriaccedilatildeo de certos topoi que marcavam a maneira de expressar o espaccedilo sertanejo no periacuteodo Dicotomias tais como espaccedilo atrasado versus espaccedilo moderno baacuterbaro versus educado sertanejo bom versus citadino corrompido expressas em seus livros eram comuns na forma de tratar o sertatildeo Aliado a isso os poemas de Catullo vinham com um diferencial a representaccedilatildeo da oralidade sertaneja nos textos o que dava ao leitor a sensaccedilatildeo de estar diante de uma genuiacutena transcriccedilatildeo do linguajar do sertatildeo

Assim se por um lado Meu sertatildeo representou a chegada de mais um artefato cultural que elegia o ldquosertatildeordquo como tema por outro no texto construiacutedo por Catullo expressava-se grande parte das ten-sotildees das temaacuteticas das formas e das ambiguidades com que o tema era tratado no periacuteodo

Meu sertatildeo eacute composto por nove histoacuterias contadas em versos nas quais o ambiente rural aparece como cenaacuterio principal e onde o sertanejo eacute alccedilado a grande heroacutei do enredo O fato fundamental de que

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o autor era um homem que vivia na cidade do Rio de Janeiro num tempo de raacutepidas transformaccedilotildees esclarece muitas das denominaccedilotildees que o sertanejo ganhava em sua obra tais como ldquoignoranterdquo ldquobaacuterbarordquo e ldquoalma purardquo em contraposiccedilatildeo ao mundo ldquocivilizadordquo das cidades Esses limites definidores do que seria o ldquosertatildeordquo para Catullo consti-tuem um importante toacutepico para a compreensatildeo do lugar em que Meu sertatildeo foi produzido uma vez que o autor em constante diaacutelogo com o puacuteblico leitor da entatildeo capital federal de seu tempo fez aparecer em seu texto adjetivaccedilotildees do sertatildeo que tratavam de colocaacute-lo comumente como a antiacutetese da cidade

Antes de lanccedilar matildeo da descriccedilatildeo do espaccedilo sertanejo Meu sertatildeo comeccedila com um convite de viagem lanccedilado pelo autor ao seu leitor Assim o autor iniciava seu primeiro poema (na verdade um pre-faacutecio do livro) intitulado convenientemente A caminho do sertatildeo com um convite aos poetas para deixarem a ldquoAvenidardquo e irem rumo aos ldquomattos sombriosrdquo e com um alerta para as ldquogentis senhoritasrdquo tomarem cuidado com ldquoa liacutengua baacuterbarardquo dos sertotildees do norte que ele iria apre-sentar155 Foi atraveacutes desse convite ndash ao modo inclusive de como Euclides da Cunha havia feito no primeiro capiacutetulo de Os sertotildees ndash que Catullo se fazia aparecer como o cicerone de uma viagem a um ldquooutro geograacuteficordquo que para o autor era abandonado pelo paiacutes o sertatildeo

A forma pela qual Catullo se apresentava como autor de poesias em Meu sertatildeo obedecia a dois movimentos em primeiro lugar a afir-maccedilatildeo de sua poesia como autecircntica como o inverso daquilo que con-siderava estrangeira (daiacute os pedidos que o autor faz aos leitores no poema A caminho do sertatildeo tais como ldquoDeixa a Greacutecia Deixa a Itaacutelia Deixa a fonte de Castaacuteliardquo)156 o segundo seria a afirmaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo como poeta da terra a expressatildeo profunda daquilo que o autor chamava de a ldquoterra em que nascirdquo De resto essa delimitaccedilatildeo de seu lugar como ldquopoetardquo ndash escritor da poesia autecircntica pois escritor da ldquoterrardquo ndash respondia a uma percepccedilatildeo aguda que o autor tinha do seu

155 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 25-26

156 Idem p 27

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo122

espaccedilo no mundo literaacuterio Era por esse caminho que ele poderia vir a ser reconhecido como um verdadeiro poeta Ademais a poesia de Catullo aparecia no meio letrado com uma pretensiosa mudanccedila na forma a escrita ipsis litteris de falas sertanejas assim como a inclusatildeo de um enorme nuacutemero de termos e coisas do sertatildeo Para atingir seu objetivo todos os poemas vinham acompanhados de uma seccedilatildeo deno-minada ldquovocabulaacuteriordquo ao fim do texto onde explicava ao leitor expres-sotildees que este supostamente poderia desconhecer Essa ousada forma de mostrar o sertatildeo lhe renderia posteriormente severas criacuteticas tais como as de Monteiro Lobato que em 1918 escrevia na Revista do Brasil

A publicaccedilatildeo das poesias de Catullo Cearense potildee de peacute uma interes-sante questatildeo eacute possiacutevel aceitar como liacutengua no qual se vazem versos o modo de falar do caboclo Cremos que natildeo porque tal modo de falar natildeo eacute sequer um dialeto e sim mera corrupccedilatildeo do dialeto brasileiro [] Pensando assim lamentamos o grande o maior poeta deste paiacutes o poeta-poeta o poeta cujas composiccedilotildees feitas em muacutesicas vivem de Norte a Sul cantadas por todas as bocas despertando em todos os peitos as mais suaves emoccedilotildees natildeo tenha escrito seu livro em nossa liacutengua a liacutengua brasileira filha da portuguesa [] Se Catullo traduzir seus versos em nossa liacutengua natildeo receamos em afirmaacute-lo faraacute uma obra que marcaraacute eacutepoca criaraacute escola determinaraacute correntes Estaacute em suas matildeos ser apenas um poeta caipira ou ser o maior poeta popular do Brasil157

Essa criacutetica feita no mesmo ano em que Lobato publicava seu natildeo menos controverso Urupecircs mdash aliaacutes mais um produto literaacuterio te-matizando o sertatildeo mdash demonstra de um lado a presenccedila de distintas e conflitantes representaccedilotildees do sertatildeo que circulavam no periacuteodo e por outro como o uso da liacutengua tambeacutem era um toacutepico importante para definir-se ldquoliteratura nacionalrdquo Para Lobato Catullo errara ao escolher expressar-se atraveacutes de uma liacutengua do sertatildeo pois ldquoliacutengua do sertatildeordquo natildeo podia ser confundida com a ldquoliacutengua brasileirardquo que deveria apa-recer em livros O linguajar sertanejo era apenas uma ldquocorrupccedilatildeordquo do dialeto brasileiro falado talvez para Lobato apenas pelos letrados ci-

157 Apud VASCONCELOS Ary Panorama da muacutesica popular brasileira na Belle Eacutepoque Rio de Janeiro Livraria SantrsquoAnna 1977 p 130

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tadinos ou que pelo menos estes letrados deveriam cultivar No en-tanto Catullo ficaria por um tempo avesso a essas criacuteticas

Ainda em Meu sertatildeo Catullo se autorrepresentava como um autor exilado do sertatildeo e por isso em A caminho do sertatildeo apresenta-va-se como um homem sem aspiraccedilatildeo literaacuteria Ironizando os poetas do Brasil por conta de suas escolhas de soacute cantar ldquosaudadesrdquo dizia que natildeo seria reconhecido por um paiacutes que se interessava somente por ldquoOrpheusrdquo e ldquodivindadesrdquo cujos poetas recitavam em rodas onde soacute se dizia ldquoem francezrdquo158 Soacute depois dessa necessaacuteria explicaccedilatildeo de seus poemas Catullo comeccedilaria a narrar seus poemas sertanejos

A histoacuteria contada por Catullo no primeiro poema de Meu sertatildeo intitulado Quinca Micuaacute (o gaiteiro do sertatildeo) eacute emblemaacutetica e expres-sava as formas pelas quais o sertatildeo seria tratado dentro da proposta apresentada pelo poeta A histoacuteria de um amor impossiacutevel entre o heroacutei (o sertanejo Quinca Micuaacute apaixonado por sua gaita) e Cunceiccedilatildeo (a filha de um rico fazendeiro que estudara na capital federal desde pe-quena e agora retornava ao sertatildeo) eacute ilustrativa Enamorada por Quinca Micuaacute Cunceiccedilatildeo o encontrava agraves escondidas do pai ateacute que um dia propotildee a Quinca beijaacute-la algo que o sertanejo refuta imediatamente por considerar uma atitude desrespeitosa Descobertos pelo pai da moccedila esta uacuteltima acaba jogando a culpa em Quinca insinuando que este lhe havia proposto fugir Quinca acaba tendo sua gaita quebrada pelo fa-zendeiro tendo de fugir do sertatildeo indo em direccedilatildeo agrave cidade onde conta sua histoacuteria para o primeiro que encontra

No poema escrito em 1ordf pessoa o narrador Quinca Micuaacute traz impressotildees do sertatildeo definindo-o como ldquoatrasadordquo em relaccedilatildeo agraves ci-dades poreacutem natildeo contaminado pela ldquoInducaccedilatildeordquo da qual a personagem de Cunceiccedilatildeo eacute a expressatildeo Numa longa passagem em que Quinca Micuaacute confronta a personalidade de Cunceiccedilatildeo moccedila da cidade com a de sua antiacutetese Tudinha moccedila do sertatildeo aparecem muitas definiccedilotildees do que seria a cidade e o sertatildeo para o narrador definiccedilotildees estas cujas ten-

158 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 28

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo124

sotildees e antinomias satildeo elencadas como forma de traccedilar as distacircncias que separavam duas realidades distintas

Tudinha era uma muieacuteinguinorante sarvageTodo que vancecirc quizeacuteera burra mas poreacutemaquillo sim meu patratildeo aquillo eacute que era muieacute[]A Tudinha natildeo prendeuA batecirc liacutengua ispritada cumo essa moccedila inducadaque tinha o tempo vadioMas poreacutem a Cunceiccedilatildeonatildeo sabia batecirc roupacomo a Tudinha a cabocirccalavando a becircra do rio159

Nos poemas seguintes todos eles com histoacuterias construiacutedas em torno de um personagem ou de um costume entendido como sendo do sertatildeo (O marrueiro O lenhador A promessa O passador de gado A vaquejada O cangaceiro e A terra cahida) Catullo esboccedilou imagens dos espaccedilos sertanejos embasadas em grande parte pela leitura de nar-rativas consagradas tais como as de Gustavo Barroso (citado em O cangaceiro) e Alberto Rangel (citado em Terra cahida) Ademais neste uacuteltimo poema o autor assume que se ldquoinspirarardquo num conto homocircnimo de Rangel jaacute conhecido autor de contos sertanejos e estudioso das ldquocoisas do sertatildeordquo160 A propoacutesito Rangel travou estreitas relaccedilotildees com Euclides da Cunha que o ajudou a se tornar conhecido no mundo le-trado A evocaccedilatildeo de um jaacute conhecido escritor natildeo era gratuita uma vez que reservava para si um lugar no campo literaacuterio em torno de figuras consagradas literariamente

O sexto poema de Meu sertatildeo sob o tiacutetulo de O passador de gado eacute aquele em que o autor tece mais claramente criacuteticas ao mundo citadino

159 Idem p 65-68160 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 232

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aparecendo algumas definiccedilotildees do que ele entendia ser o ldquohomem da cidaderdquo e o ldquohomem do sertatildeordquo A histoacuteria se desenvolve em torno do passador de gado e morador dos sertotildees do norte Chico Mironga que a convite de seu compadre Dezideacuterio vai visitar a capital federal O nar-rador (que eacute o proacuteprio Chico) de volta agrave sua terra comeccedila a contar sua visita agrave ldquoAvinida Cintraacuterdquo A partir dessa experiecircncia eacute iniciada uma seacuterie de impressotildees do narrador sobre o espaccedilo citadino nas quais pululam adjetivaccedilotildees e comparaccedilotildees entre sertatildeo e cidade Entre os sustos e pas-sagens cocircmicas narradas pelo personagem-narrador Chico Mironga Catullo parece responder agrave definiccedilatildeo tatildeo comum em seu tempo do sertatildeo como lugar do ldquoatrasordquo quando afirma por intermeacutedio de Chico o progresso das cidades como sendo meramente ldquopruacute forardquo mas ldquopruacute dentro Nadardquo Isso desemboca no uacuteltimo verso em uma criacutetica di-reta agrave chamada ldquocivilizaccedilatildeordquo ldquovale mais que essa porquecircra da taacute Civilizaccedilatildeo ndash um carro de boi cantando pulos matos do sertatildeordquo161

Catullo que manifesta em seus poemas uma ldquodessoradardquo paixatildeo pelo rural ndash diagnoacutestico estigmatizador de Antocircnio Cacircndido agrave obra de Catullo162 ndash constroacutei representaccedilotildees do espaccedilo sertanejo que o dignifi-cavam e o enobreciam em relaccedilatildeo agraves grandes cidades compartilhando um tipo de representaccedilatildeo bastante comum Isso porque autor tambeacutem estaacute impregnado de referenciais oriundos de sua posiccedilatildeo de citadino dos quais seguramente ele se valia como foacutermula para melhor ser re-cepcionado como escritor Essa percepccedilatildeo de um lugar a ser construiacutedo na literatura que pudesse abarcar um poeta que se autodenomina serta-nejo mas que produzia nas cidades demandava um reconhecimento por aqueles que podiam definir o que deveria ser considerado literatura no periacuteodo ndash e Catullo natildeo era propriamente um desconhecido das elites letradas da eacutepoca A poesia de Catullo era reverenciada por diversos li-teratos por transmitir ainda que numa linguagem considerada ldquoruderdquo e ldquosimplesrdquo as belezas do sertatildeo para o leitor citadino Assim foi que o poeta Humberto de Campos tratou de salientar que Catullo deveria ser encarado como

161 Ibidem p 162162 CAcircNDIDO Antocircnio Literatura e Sociedade Rio de Janeiro Ouro sobre Azul 2006 p 121

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo126

O ourives que trabalhou no ouro virgem da linguagem popular as joacuteias ruacutesticas e maravilhosas que por ahi andam eacute necessariamente um grande e liacutedimo artista um fidalgo poeta que se disfarccedila em ave can-tadeira para melhor espalhar a mancheias [] a rutilante pedraria do seu eraacuterio Catullo eacute realmente um mixto de singeleza e de opulecircncia [] A sua poesia simples doce e ingecircnua mas em versos de meacutetrica perfeita eacute uma resina do sertatildeo a arder cheirosa num thuriacutebulo de prata ou de ouro163

O fato de Catullo escrever seus poemas em um linguajar dito ldquoser-tanejordquo ndash criticado por Lobato como vimos ndash exigiu a explicaccedilatildeo do mesmo Humberto de Campos que apontou esse modo como um fator que o distinguia positivamente de outros poetas pois ldquoPassados esses versos para a linguagem correntia natildeo teriacuteamos noacutes entre os dos nossos melhores lyricos outros que se lhe avantajassem em meiguicerdquo164

A linguagem ldquosertanejardquo usada por Catullo era indicada como um fator a mais para reivindicar o caraacuteter nacional de sua poesia A aproximaccedilatildeo de Catullo com a natureza como queria Humberto de Campos dava-lhe a autoridade de poeta da terra e portanto de um ldquoverdadeirordquo poeta Por outro lado o poeta e acadecircmico Maacuterio de Alencar prefaciando o segundo livro publicado por Catullo intitulado Sertatildeo em flor em 1919 jaacute apresentava o autor como um poeta das ci-dades poreacutem nascido no interior Para reafirmar isso o mesmo Maacuterio de Alencar indicava a necessidade do auditoacuterio das cidades como ele-mento fundamental para um poeta virar um ldquoverdadeiro poetardquo pois

Permanecesse Catullo no sertatildeo teria sido naturalmente poeta como satildeo poetas as criaturas simples na sua fala ingecircnua de tom concreto inspiradas na natureza vizinha e familiar e o teria sido ainda pelo dom pessoal do sentimento e da imaginaccedilatildeo vivaz A sua concepccedilatildeo poeacutetica poreacutem ficaria restrita em virtude da mesma familiaridade dos costumes e pela habituaccedilatildeo do cenaacuterio natildeo iria talvez aleacutem das impressotildees inci-sivas embora mas curtas que datildeo a mateacuteria dos versos populares raro excedentes de uma quadra jamais dilatados agrave proporccedilatildeo de um canto

163 CAMPOS Humberto de Homenagem a Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 18-19

164 Ibidem p 19

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 127

Nem o auditoacuterio que estimula o cantor tem ali capacidade de atenccedilatildeo para o desenvolvimento dos temas nem mesmo cantor possui condi-ccedilotildees de coordenaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de demorados assuntos de poesia []O bem ou mal do Catullo foi o seu afastamento do sertatildeo natal Distante sob a experiecircncia de outros costumes deixou de ser ator no cenaacuterio na-tivo para ser espectador alongado e mais sensiacutevel dele A humanidade embrionaacuteria do sertatildeo cresceu aos seus olhos em figuras acabadas os sentimentos limitados aos desafios tomaram a intensidade de estados de alma estuosos e ardentes os usos quotidianos tocaram-se do pres-tiacutegio para a revelaccedilatildeo a estranhos surgiu o cenaacuterio em relevo nas suas partes mais indiferentes aos seus olhos de outrora tornou-se possiacutevel a perspectiva cresceu a saudade deu-se o choque vibratoacuterio de todas as sensaccedilotildees adormecidas e da saturaccedilatildeo dos sentidos virgens resultou a forccedila imaginativa do poeta sertanejo165

Essa tentativa de afirmaccedilatildeo de Catullo como poeta sertanejo atre-lava-se a um movimento que visava natildeo soacute a chamar a atenccedilatildeo do leitor para entender a poesia de Catullo poreacutem mais do que isso de afirmaacute-lo como poeta e como autor de uma poesia nacional ou seja poesia pro-duzida por algueacutem que deveria ser entendido a partir desse lugar Porque para Maacuterio de Alencar o poeta se expressaria somente nas ci-dades Nesse sentido ele explicava que

A mesma relaccedilatildeo necessaacuteria entre o objeto inspirador e a emoccedilatildeo ex-pressiva haacute entre o poeta e o auditoacuterio O isolamento ndash e estar no campo eacute como estar isolado ndash eacute negativo para a criaccedilatildeo O trabalho espiritual procede com a condiccedilatildeo da dualidade da luz e do som que natildeo existem sem o meio transmissor natildeo haacute luz no vaacutecuo natildeo haacute som sem a ondulaccedilatildeo do ar ou a vibraccedilatildeo de um corpo A voz do passado soacute ressoa para o ouvido alheio proacuteximo ou distante mas possiacutevel que a esperanccedila realizaAgora na cidade havia auditoacuterio para escutar o poeta sertanejo e curio-sidade para estimulaacute-loO tema encurtado em cantigas dilatou-se em poemas166

165 ALENCAR Maacuterio A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Bedeschi 1939 p 21 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)

166 Idem

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Esse movimento que agrave primeira vista pode parecer paradoxal esclarece a duacutebia posiccedilatildeo de Catullo no meio letrado de entatildeo ser um autor de poemas sertanejos (embora poeta citadino) e ser reconhecido como algueacutem que conhecia o sertatildeo mas que o representava com os referenciais e coacutedigos reconhecidamente das cidades Dubiedade que era evocada como parte intriacutenseca e fundante de sua condiccedilatildeo de poeta Essa posiccedilatildeo o proacuteprio Catullo a compreendia e a expressava inclusive em seus poemas O novo poeta sertanejo exercitava por diversas vezes em seu texto uma autorrepresentaccedilatildeo visando a um convencimento do leitor de seu lugar como poeta nem tatildeo perto das cidades nem tatildeo longe do sertatildeo

Perspectiva que demonstrava o quanto Catullo era ciente de sua posiccedilatildeo no campo literaacuterio de entatildeo Se por um lado ele assumia seu lugar duacutebio de um poeta sertanejo produzindo nas cidades como forma de marcar a diferenccedila de sua poesia diante de outras produccedilotildees que se voltavam para o sertatildeo por outro o poeta tratava de confirmar sua re-presentaccedilatildeo melhor do espaccedilo sertanejo pela criaccedilatildeo em seus poemas de personagens que dialogavam diretamente com alguns homens im-portantes daqueles tempos

Um desses diaacutelogos por exemplo foi travado no poema intitu-lado Geca-Tatuacute sabidamente uma referecircncia ao personagem criado na mesma eacutepoca pelo escritor Monteiro Lobato para representar o homem do interior Uma vez que Lobato por meio do seu Jeca-Tatuacute pintou a figura do sertanejo num primeiro momento como um fraco ndash represen-taccedilatildeo que de resto tornou-se bastante citada por homens como o con-selheiro e senador Rui Barbosa ndash Catullo tratou de desconstruir essa figura em prol de uma representaccedilatildeo menos condenatoacuteria do sertanejo Assim seu personagem Geca tratava de admoestar o homem da capital um tal ldquoConseiecircrordquo e ldquo Senadocircrdquo que andava falando de uma imagem sua como ldquopreguiccedilosordquo como demonstra a passagem abaixo

Os home caacute da cidademe agarante que o sinhocirceacute o precircmero entre os precircmeroeacute o mais grande brasileiroeacute o Dunga dos inscrito

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Mas poreacutem Macaco veionatildeo mete a matildeo cumbucavazia ansim seu douto[]Preguiccediloso MandracecircroNatildeo sinhocirc seu Conseiecircro

Eacute pruquecirc vancecirc natildeo sabeo que secircje um boiadecircrocriaacute cum tanto cuidado cum tanto amo e alegriaumas cabeccedila de gadoe despois a impidimiacarregaacute tudo cum os diaboim mecircno de quatro dia167

As representaccedilotildees dadas aos sertotildees ndash e por consequecircncia agraves ci-dades ndash construiacutedas numa narrativa (como o texto de Catullo) satildeo com-preensiacuteveis somente se as entendemos como produto de um diaacutelogo tra-vado num ambiente ele proacuteprio citadino e por isso mesmo referenciado por definiccedilotildees oriundas de uma percepccedilatildeo do ldquonovordquo que se expressava na cidade bem como tangenciada pelas discussotildees do lugar ldquosertatildeordquo num discurso de nacional notadamente no campo literaacuterio As lutas de representaccedilotildees do sertatildeo empreendidas nos textos respondiam direta-mente ao interesse especiacutefico de um novo autor que surgia com preten-sotildees literaacuterias Os elementos mobilizados no texto visavam desta forma agrave produccedilatildeo de uma crenccedila no caraacuteter distinto da obra diante de outras que tematizavam o sertatildeo E livros sobre o sertatildeo bem o vimos eram o que natildeo faltava Daiacute a escolha de Catullo de representar o linguajar do homem do sertatildeo ter sido uma foacutermula que gerou grande controveacutersia

Entre os letrados Joatildeo Ribeiro via como problema a reproduccedilatildeo de oralidades sertanejas na obra de Catullo Em resenha para o jornal O Imparcial observa que o leitor deve se resguardar ao imaginar estar lendo um poeta do sertatildeo e faz observaccedilotildees acerca do poema ldquoO le-nhadorrdquo que aparece no livro Meu sertatildeo

167 ALENCAR Maacuterio A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Bedeschi 1939 p 131-135 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)

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Eis um bello poema cuja inspiraccedilatildeo literaacuteria eacute evidenteDe mim se ouso falar escrevi tambeacutem uma poesia baacuterbara e imperfeita ndash a ldquoVinganccedila da aacutervorerdquo que soffre do ineditismo cruel do esqueci-mento e natildeo creio que entrasse nrsquoella nenhuma inspiraccedilatildeo sertanejaA de Catullo eacute muito melhor mais perfeita menos artificiosa e sem o pedantismo de foacutermulas meacutetricas exoacuteticas entretanto eacute ainda uma creaccedilatildeo erudita disfarccedilada sob a phraseologia inculta de idiotismos vo-caacutebullos e locuccedilotildees sertanejas168

Essa observaccedilatildeo cautelosa sobre os poemas de Catullo feita por um letrado respeitado como Joatildeo Ribeiro chama a atenccedilatildeo para os vaacute-rios criteacuterios de aceitaccedilatildeo de um novo autor em determinado campo li-teraacuterio e de como as contraditoacuterias opiniotildees sobre a obra de Catullo lanccedilam luz para se pensar as vaacuterias foacutermulas possiacuteveis visando a esse reconhecimento imprescindiacutevel para o pretendente a cargo de ldquopoetardquo

Se a busca de Catullo pelo reconhecimento como poeta (e natildeo soacute ldquopoeta popularrdquo) o levou a flertar com temas sertanejos o mesmo mo-vimento que o levava a esse reconhecimento retirava-lhe a pecha de ldquopoeta do sertatildeordquo por natildeo ser sertanejo ou como se expressa nas pala-vras de Joatildeo Ribeiro acima o seu sertatildeo era criticado por ser ldquouma creaccedilatildeo erudita disfarccedilada sob a phraseologia incultardquo

Sim Catullo era poeta mas natildeo poderia ser representado como dizia Joatildeo Ribeiro como ldquodo sertatildeordquo Paradoxalmente a erudiccedilatildeo ndash aiacute entendida como oposiccedilatildeo ao inculto ndash tatildeo buscada por Catullo o traiacutea pelo fato de que um dos caminhos para ser reconhecido como erudito era tematizar o ldquopopularrdquo poreacutem natildeo um ldquopopularrdquo qualquer mas um ldquopopularrdquo jaacute canonizado qual seja aquele que fala sobre o sertatildeo A representaccedilatildeo da liacutengua sertaneja certamente natildeo era uma receita levada a cabo por poetas consagrados Haveria Catullo de construir esse es-paccedilo para seus poemas

Diferente de Joatildeo Ribeiro seguia o criacutetico Miguel Mello que em artigo no Correio da Manhatilde convenientemente intitulado O poeta da moda dava suas impressotildees sobre a leitura que havia feito do livro

168 O Imparcial 2 dez 1918 p 5

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de Catullo Assim como Ribeiro Mello exorta algumas poesias que considera belas em Meu sertatildeo (inclusive citando versos do poema O lenhador) poreacutem diferentemente daquele natildeo considera seu autor um erudito a falar do sertatildeo tampouco o condena por isso Ao contraacuterio Numa forma de dar a Catullo o lugar que pensava o criacutetico seu livro merecia explica aos leitores como deve ser lido Meu sertatildeo

Quem percorrer as nossas selectas de trovas populares onde tanta peacute-rola vae no meio da abundancia do folk-lore reconheceraacute que no gecirc-nero Catullo da Paixatildeo Cearense eacute um mestreNingueacutem de certo o ouviraacute ao violatildeo sem sentir prazer no saborear-lhe o pittoresco do seu sertanismoEacute um consumado cantor de modinhas Os apreciadores devem apres-sar-se em lhe comprar o livro Mas os homens de letras natildeo o devem desnaturar com emprestar-lhe pretensotildees literaacuterias que soacute podem ter-minar num snobismo peor que o dos cortesatildeos do marechal Hermes bastante nativistas para instalarem como um dia instalaram o corta--jaca nos salotildees do palaacutecio do Catete169

As diversas opiniotildees sobre a leitura dos livros de Catullo colo-cavam em discussatildeo o caraacuteter literaacuterio (ou natildeo) de sua produccedilatildeo Joatildeo Ribeiro nega-lhe a pretensatildeo por ser erudito demais para falar sobre o sertatildeo e Miguel Mello por sua vez natildeo o aceita como literato mas como cantor de modinhas exatamente pela pouca erudiccedilatildeo de sua po-esia Essa nuance na recepccedilatildeo da obra de Catullo fundamentada numa possiacutevel leitura de Meu sertatildeo deixa entrever o fato de que as preten-sotildees literaacuterias do autor teriam de passar pela aceitaccedilatildeo de literatos do periacuteodo nem sempre dispostos de maneira paciacutefica a canonizar um can-didato a literato ndash mesmo que o autor conhecedor sensiacutevel daquilo que movia o campo escolhesse como seu tema um tipo de produccedilatildeo conve-nientemente aceita na literatura produzida no Brasil

Eacute preciso pensar que as obras de autoria de Catullo da Paixatildeo Cearense participam desse (re)encontro com o sertatildeo tatildeo comum na li-teratura de iniacutecios do seacuteculo XX em que os referenciais definidores

169 Correio da Manhatilde 19 dez 1918

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desse espaccedilo sofriam mudanccedilas a partir do contato com o novo que surgia nas cidades Esse movimento que pode parecer agrave primeira vista paradoxal introduzia o ldquoatrasadordquo sertatildeo nas cidades para defini-las para si mas tambeacutem introduzia referenciais citadinos para afirmar os sertotildees como potencialidade e como devir da naccedilatildeo reconstruindo-o para um mundo que almejava ser ldquomodernordquo Isso nos leva pretensiosamente a arriscar a dizer que a paixatildeo de Catullo pelo ldquoatrasadordquo sertatildeo eacute tambeacutem paixatildeo por uma forma de expressar o sertatildeo para ldquomodernosrdquo

Por outro lado e principalmente voltar-se para esse tipo de pro-duccedilatildeo lanccedilando matildeo de versos identificados com o sertatildeo nordestino era uma tentativa de construir (e este era o objetivo de Catullo) a corro-boraccedilatildeo de seus pares para assim identificaacute-lo como um autor que fazia parte do rol de autores sertanejos ndash que diferentemente dos au-tores de livros de modinhas jaacute era uma produccedilatildeo havia bastante tempo respeitada nos meios letrados

Ora promovido a assunto maior na literatura brasileira desde meados do seacuteculo XIX e mesmo um indicador fulcral na definiccedilatildeo do nacional na literatura o sertatildeo jaacute era um tema fundamental na eacutepoca A historiadora Mocircnica Pimenta Velloso vecirc nessa busca por representar a ldquonaccedilatildeordquo uma velha obsessatildeo regradora do campo literaacuterio o que fez com que no Brasil a autorizaccedilatildeo para a afirmaccedilatildeo de uma obra se pau-tasse pelo reconhecimento de que sua obra representasse a naccedilatildeo170 Acrescente-se que como nos diz o criacutetico portuguecircs Abel Barros Baptista a literatura produzida no Brasil eacute ndash de maneira problemaacutetica ndash nacional antes mesmo de ser literatura171 Atento a esse criteacuterio muitas produccedilotildees tematizam a ldquonaccedilatildeordquo inclusive como receita para ser aceito como ldquoliteraturardquo Poreacutem a mesma tradiccedilatildeo de documentar o real eleita por diversos criacuteticos da literatura brasileira desde aquele periacuteodo como criteacuterio que determinaria a canonizaccedilatildeo de uma obra ou de um autor faz com que comumente seja desdenhada a existecircncia de algo para o qual poucos autores chamam atenccedilatildeo a saber a ldquovoga ser-

170 Cf VELLOSO Mocircnica Pimenta A literatura como espelho da naccedilatildeo Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 1 n 2 1988 p 239-263

171 Cf BAPTISTA Abel Barros O livro agreste Campinas Unicamp 2005

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tanejardquo no iniacutecio do seacuteculo XX quando inuacutemeras publicaccedilotildees obtinham sucesso de puacuteblico contendo temaacuteticas sertanejas Essa produccedilatildeo foi desqualificada como sendo demais ldquoimaginosardquo e ldquopitorescardquo sendo que essa ldquovogardquo mobilizada nos textos de diferentes maneiras visou por diversas vezes a uma aceitaccedilatildeo num espaccedilo jaacute ldquoinchadordquo de obras sobre o sertatildeo agrave eacutepoca

Na literatura da virada do seacuteculo XIX para o XX letrados hoje tatildeo reconhecidos ndash como Coelho Neto Afonso Arinos Arthur Azevedo Euclides da Cunha e Monteiro Lobato ndash rivalizavam ou compartilhavam representaccedilotildees dos sertotildees com autores cujos nomes satildeo praticamente hoje ignorados mas que no periacuteodo foram grande sucesso de puacuteblico por suas produccedilotildees sertanejas como Alberto Rangel Valdomiro Silveira Corneacutelio Pires e Catullo da Paixatildeo Cearense

Sobre este uacuteltimo cujo desconhecimento posterior agrave consa-graccedilatildeo de sua obra por seus contemporacircneos reservou-lhe o papel de subliteratura (diagnoacutestico por exemplo de Dante Moreira Leite)172 pesam ateacute hoje epiacutetetos de autor-menor fruto de uma negaccedilatildeo analiacute-tica jaacute haacute muito cultivada que acompanha a literatura estigmatizada como ldquopreacute-modernistardquo Isso lhe renderia a adjetivaccedilatildeo de ldquofora da modardquo pelos modernistas de 1922 Ironicamente Catullo foi descrito pelo cronista Joatildeo do Rio ainda em 1906 como um poeta que ldquoemara-nhou-se no dogma da modardquo e entusiasmava o cronista que por sua vez manifestava seu ecircxtase ao ver Catullo com um ldquocopo de chopp na matildeordquo recitando O poeta e a fidalga uma cena que era para o cronista ldquoum desses espetaacuteculos de brasserie inesqueciacutevelrdquo

Com a publicaccedilatildeo de poemas com temaacuteticas sertanejas em pouco tempo Catullo se tornou um poeta conhecido entre literatos por sua distinta forma de apresentar a poesia sertaneja para citadinos Contudo o caraacuteter controverso de sua poesia natildeo lhe rendia um lugar estaacutevel como poeta nacional De modinheiro reconhecido e ldquopoeta popularrdquo Catullo virava ldquopoeta sertanejordquo visando a um reconhecimento literaacuterio de sua obra nem sempre garantido uma vez que as regras de consa-

172 LEITE Dante Moreira O caraacuteter nacional brasileiro histoacuteria de uma ideologia Satildeo Paulo Unesp 2002

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graccedilatildeo de um poeta a literato diferiam das de um ldquopoeta popularrdquo Por outro lado Meu sertatildeo se tornou um sucesso entre os leitores chegando a ter em 28 anos 41 ediccedilotildees

O esquecimento posterior de sua obra em parte processou-se penso a partir de um cacircnone estabelecido pelos novos escritores cata-pultados especialmente apoacutes 1922 e referendado continuamente por uma criacutetica literaacuteria aacutevida de estabelecer esteacuteticas dentro de uma conti-nuidade Isso relegou a um plano secundaacuterio a anaacutelise histoacuterica das re-gras que regiam a produccedilatildeo literaacuteria em cada obra estudada Esse pro-cesso foi sendo configurado lentamente durante os anos que se seguiram agrave movimentaccedilatildeo de 1922

Mais do que isso o singular no interstiacutecio entre 1902 e 1930 que viu surgir a ldquovoga sertanejardquo foi a introduccedilatildeo de maneira difusa de uma modernidade que viria apaixonadamente se expressar numa ressig-nificaccedilatildeo da produccedilatildeo da literatura no paiacutes produzida no periacuteodo173 Isso demandou novos questionamentos sobre velhos temas (como os temas ldquosertanejosrdquo) forjando representaccedilotildees literaacuterias outras que a partir de um olhar moderno sobre os espaccedilos ansiaram por construir tambeacutem um novo significado para o ldquosertatildeordquo Esse novo significado que objetivava ser partilhado pelos leitores ia tambeacutem construindo um lugar que pudesse alccedilar seu autor como um ldquopoeta sertanejordquo Trajetoacuteria seguida por Catullo no seu afatilde de ser reconhecido como poeta e natildeo somente um bardo trovador

Catullo Satildeo Paulo e os modernos

Satildeo Paulo iniacutecios de 1918 O jovem poeta paulista Guilherme de Almeida comentava sobre um sarau que iria ser realizado na ca-pital paulista para uma distinta plateia da Sociedade de Cultura Artiacutestica Entusiasmado o escritor natildeo poupava elogios agrave principal atraccedilatildeo da noite

173 GALVAtildeO Walnice Nogueira Metamorfoses do sertatildeo Revista de Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 18 n 52 2004

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Eacute um poeta sertanejo que vae dizer versos no sarau de quarta-feira proacute-xima no Trianon Elle natildeo nos era desconhecido porque natildeo haacute quem acompanhando com um pouquinho de amor a vida artiacutestica brasileira natildeo conheccedila Catullo Cearense Qualquer violeiro de esquina canta por ahi versos seus e qualquer de noacutes sabe de cor essas quadras tatildeo cheias de sentimento e verdades do ldquoLuar do Sertatildeordquo []E a gente applaude irresistivelmente sem saber porque aquella histoacuteria corriqueira de amor applaude inconscientemente talvez porque pela primeira vez tenha sentido nella cantante e sincera a alma brasileira a nossa alma bem caipira escondida no fundo do matto e trazida assim de repente aacute flor da arte e da verdade174

Agrave apresentaccedilatildeo no Trianon secundaria outra a realizar-se no Teatro Municipal o chamado ldquoFestival de Catullo Cearenserdquo com apresentaccedilotildees de Amadeu Amaral Martins Fontes Armando Prado Roberto Moreira e do proacuteprio Guilherme de Almeida Desde fins de dezembro na capital paulista Catullo era saudado pela elite letrada da cidade como o ldquopoeta sertanejordquo

Catullo da Paixatildeo Cearense apareceu para o puacuteblico paulistano na esteira do sucesso das conferecircncias sobre o sertatildeo introduzidas por Afonso Arinos ali mesmo na Sociedade de Cultura Artiacutestica no ano de 1915175 Ele acabou natildeo podendo ir a Satildeo Paulo com Arinos mas este uacuteltimo preparava na capital paulista o terreno para o vertiginoso apare-cimento de uma febre por temas sertanejos Se nos anos 1920 em Satildeo Paulo os temas sertanejos se tornaram febre176 no Rio de Janeiro a capital federal essa efervescecircncia alcanccedilou seu aacutepice na deacutecada ante-

174 Apreciaccedilotildees sobre Catullo Cearense Em CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas bra-vios Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 286

175 A Sociedade de Cultura Artiacutestica fora fundada em 1912 e promovia saraus conferecircncias e apresentaccedilotildees musicais capitaneadas por escritores e artistas dos mais respeitados pela elite letrada paulistana de entatildeo O intuito era a ldquovulgarizaccedilatildeordquo das artes para o puacuteblico paulistano como salientou Antocircnio Piccarolo na conferecircncia de abertura Ali frequentavam homens como Maacuterio de Andrade e uma parte consideraacutevel daqueles es-critores que posteriormente ficariam conhecidos como modernistas bem como aqueles cujas obras seriam relegadas ao ostracismo mesmo tendo sido bastante consumidas como Amadeu Amaral um dos soacutecio-fundadores da sociedade e membro da Academia Brasileira de Letras

176 Para a efervescecircncia de temas sertanejos em Satildeo Paulo cf SEVCENKO Nicolau Um jequitibaacute no palco In Orfeu extaacutetico na metroacutepole Satildeo Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992 p 224-257

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rior e revelaria um grande nuacutemero de ldquoautores sertanejosrdquo dentre os quais o personagem principal do entusiasmo do futuro poeta moder-nista Guilherme de Almeida

Alavancado pelo sucesso de criacutetica que Meu sertatildeo e Sertatildeo em flor alcanccedilaram na capital paulista Catullo Cearense se tornou um iacutecone sertanejo no imaginaacuterio dos letrados paulistanos Iacutecone que como vimos chegava a incomodar a Monteiro Lobato agraves voltas com a cons-truccedilatildeo do Jeca sua tentativa de uma representaccedilatildeo definitiva do homem do interior Mas ateacute mesmo Lobato parecia se render a Catullo O editor Castilho fazia desse reconhecimento vindo de Lobato parte da obra do autor uma vez que fez publicar a partir de Sertatildeo em flor trechos das criacuteticas positivas recebidas em jornais e revistas a Catullo

Assim de uma criacutetica positiva de Monteiro Lobato na Revista do Brasil o editor fez aparecer no livro de Catullo o seguinte trecho em que o criador de Jeca-Tatuacute fala do autor ldquo[] o grande poeta o maior poeta deste paiz o poeta-poeta o poeta cujas composiccedilotildees feitas em muacutesica vivem de norte a sul cantadas por todas as bocas despertando em todos os peitos as mais suaves emoccedilotildees []rdquo177

Esse reconhecimento por um letrado respeitaacutevel nas hostes pau-listas natildeo era fortuito Satildeo Paulo jaacute era nos anos 1910 uma cidade cuja efervescecircncia cultural se fazia ver As exposiccedilotildees de Anita Malfatti as primeiras publicaccedilotildees de Maacuterio de Andrade e Oswald de Andrade as apresentaccedilotildees de Isadora Duncan o baleacute de Nijinski as conferecircncias em ataque aos poetas parnasianos e agrave Academia preparavam o clima para a Semana de Arte Moderna de 1922 ndash marco histoacuterico do moder-nismo no Brasil Cacircndido Mota Filho articulista do jornal Correio Paulistano escreve no calor da hora

O anno de 1922 tem sido para S Paulo um anno prodigo de obras lite-raacuterias E de acordo com as estatiacutesticas foram editados nada menos de 250 livros A criacutetica do paiz alviccedilareira procurou desde logo concluir que a razatildeo dessa abastanccedila estava no rearranjo comercial dos editores que encontravam em Satildeo Paulo campo para fazer lucros e fortunas

177 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p 227

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Procurassem os indagadores do caso a verdade com maior criteacuterio e sem vislumbre de parcialidade que haviam de encontral-a na corrente loacutegica que liga o adeantamento intellectual de S Paulo ao seu adeanta-mento materialAbandonando um pouco o rigorismo de Hippolyto Taine para pedir apoio aos ensaiacutestas e socioacutelogos modernos concluir-se-ia banaliacutessima-mente que S Paulo produz mais quer intellectualmente quer editorial-mente porque eacute o Estado onde a porcetagem de analphabetos eacute menor onde o elemento cultural eacute mais forte onde portanto os livros satildeo ab-sorvidos mais sofregamente178

Ao mesmo tempo o cosmopolitismo paulista cedia passagem para a discussatildeo que jaacute mobilizava grande parte da elite letrada carioca e que ganhou novos ares em Satildeo Paulo especialmente a partir de 1924 afinal o que seria o Brasil A resposta a essa pergunta era buscada no entrelaccedilamento entre uma cultura denominada de ldquoregionalistardquo e outra que chegava identificada com o termo ldquomodernordquo e que viria com uma profunda discussatildeo acerca daquilo que era entendido como ldquoa naccedilatildeo brasileirardquo Nesse sentido o tema ldquosertatildeordquo ganhou novo focirclego pois se o futuro a ser buscado prescindia de um passado cujo modelo carioca da belle eacutepoque era o exemplo mais acabado esse mesmo futuro natildeo poderia ser autecircntico se natildeo ganhasse cores locais Assim refundar a modernidade em Satildeo Paulo parecia ser um dos pilares fundamentais para se estabelecer o moderno no paiacutes de forma que a imitaccedilatildeo mdash ou o ldquopapagaiamentordquo como se costumou dizer mdash natildeo tomasse dessa vez a dianteira como era assim entendido o exemplo carioca Dessa forma pensar o paiacutes era uma receita prudente para que vingasse essa sede de moderno assumindo inclusive suas mazelas e seu exotismo Daiacute era possiacutevel enxergar nos mesmos locais em que se apresentavam os apo-logistas da modernidade em Satildeo Paulo espetaacuteculos que buscavam trazer representaccedilotildees do exoacutetico e mesmo do risiacutevel como forma de representar o paiacutes

Repensar o ldquomodernordquo era uma receita que atraiacutea diversos inte-lectuais desde iniacutecios do seacuteculo XX A historiadora Acircngela de Castro

178 ldquoA literatura em S Paulordquo publicado no Correio Paulistano 8 set 1922 p 3

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Gomes em seu livro Essa Gente do Rio chama a atenccedilatildeo para ldquoa possi-bilidade de uma variedade de projetos de modernizaccedilatildeo que se expres-sariam por numerosas mas natildeo arbitraacuterias esteacuteticas modernistasrdquo179 Essas inuacutemeras possibilidades de tratamento do que se entendia ser ldquomodernordquo conduz a uma reflexatildeo que esmaece as fronteiras delimi-tadas quando se pensa o ldquomodernismordquo no Brasil e reintroduz no acircmago da discussatildeo a historicidade do termo Isso possibilita uma de-sestigmatizaccedilatildeo da produccedilatildeo letrada natildeo paulistana que durante algum tempo foi eclipsada por uma Histoacuteria Literaacuteria que via a discussatildeo sobre o ldquomodernordquo em Satildeo Paulo como o modelo propulsor e acabado do que se convencionou chamar de ldquomodernismordquo nas artes O que se visa natildeo eacute estabelecer rivalidades regionais na produccedilatildeo literaacuteria dos anos 1920 mas discutir os usos compartilhados que se fizeram de temas estilos e termos independente de limites regionais

O sucesso de temas sertanejos na capital paulista ao que parece eacute um desses toacutepicos que podem estabelecer uma anaacutelise mais dialoacutegica e profunda do que foi o ldquomodernordquo no paiacutes Ora foi na construccedilatildeo da-quilo que seria canonizado como ldquomodernismordquo que letrados paulistas compartilharam com seus amigos cariocas a discussatildeo sobre o ldquoatra-sadordquo sertatildeo A negaccedilatildeo da experiecircncia carioca de modernidade por jo-vens escritores paulistas natildeo deixou de conduzi-los para a busca por um elemento que jaacute aparecia como incocircmodo para os cariocas da virada do seacuteculo e que reaparecia como assunto intransponiacutevel para se pensar a modernidade no Brasil os temas sertanejos Daiacute que em Satildeo Paulo na Sociedade de Cultura Artiacutestica as apresentaccedilotildees de temas considerados ldquomodernosrdquo revezavam-se com espetaacuteculos como os capitaneados por Afonso Arinos que trazia do Rio para os palcos paulistanos nomes como Catullo Cearense ou Joatildeo Pernambuco Este uacuteltimo apresentou-se na Sociedade juntamente com Corneacutelio Pires em dezembro de 1916 e teve na plateia um Monteiro Lobato extasiado

179 GOMES Acircngela Castro Essa gente do Rio Modernismo e Nacionalismo Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas 1999 p 12

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Nunca uma plateia como a nossa viacutetima de azia crocircnica pelo abuso de orchatas francesas como essa que o Lugneacute-Poe nos forccedilou a in-gerir a 10$000 a dose vascolejou diafragmas e adjacecircncias com mais sinceros saudaacuteveis e tonificantes risos Natildeo era o risinho espremido e forccedilado verdadeira careta de maacutertir de quem sorri por injunccedilotildees do snobismo ndash sorriso palerma que eacute um esgar simiesco ndash repuxo cocircmico de muacutesculos faciais O que no puacuteblico ria natildeo era a atitude nem a francelha cultura do es-piacuterito era a carne o sangue a raccedila era esse substrato mental e sen-timental que noacutes medrosos da criacutetica escarninha dos elegantes que cheiravam Paris e no-lo embutem como padratildeo supremo conservamos timidamente em caacutercere privado Que bem faz rir assim[] A outra consoladora manifestaccedilatildeo de arte nossa proporcionou-nos Joatildeo Pernambuco Eacute um belo tipo de homem Nele se estampam em grau acentuado todas as caracteriacutesticas do brasileiro puro criado ao ar livre no contacto direto com a natureza bravia Dentro do seu peito bate um coraccedilatildeo Sursquoalma eacute a proacutepria alma da terra Paris natildeo contaminou um gloacutebulo sequer daquele sangue oxigenado pelo ar das florestasCantou o ldquoLuar do Sertatildeordquo com tanto sentimento que inuacutemeros olhos se humedeceram da mais pura emoccedilatildeo esteacutetica Que soberbo versos satildeo aqueles Quanta poesia ali da verdadeira da autecircntica da que brota espontacircnea do coraccedilatildeo Rudes sem atenccedilatildeo para com a forma []180

Para Lobato era a proacutepria ldquoformardquo da poesia cantada por Pernambuco que se colocava em contraste com coisas francesas ndash e natildeo soacute o conteuacutedo expresso ldquoForma afrancesadardquo essa que jaacute era contestada pelos letrados cariocas de maneira que Catullo pocircde ser agraciado com o tiacutetulo de poeta nacional por escrever seus versos numa forma da terra a linguagem sertaneja A forma o academicismo o afrancesamento todos esses elementos que surgiam como questotildees para um novo tipo de expressatildeo cultural em Satildeo Paulo (que rompesse afinal com os cha-mados passadismos identificados com tais elementos) eram discussotildees que tambeacutem aticcedilavam os letrados cariocas e que deram a oportunidade para empreendimentos no campo literaacuterio que como o de Catullo em

180 LOBATO Monteiro Arte brasileira In LOBATO Monteiro Ideacuteias de Jeca-Tatuacute Satildeo Paulo Brasiliense 1956 p 191-192

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Meu sertatildeo e em Sertatildeo em flor colocavam em pauta as expressotildees da liacutengua como definidora de uma autenticidade em detrimento de mo-dismos agrave francesa

De resto esse eacute o mesmo impulso que levaraacute os novos artistas paulistas a buscarem uma arte nacional e moderna O grande entrave que se tornou uma discussatildeo comum entre os autores ligados agraves letras no periacuteodo (mas natildeo somente) era a questatildeo de qual seria o lugar do sertatildeo na modernidade que se pretendia Entrave que como visto ante-riormente era um mal-estar compartilhado pela elite citadina do Rio de Janeiro Na esteira disso natildeo deveria causar incocircmodo para os novos artistas paulistas evocar o nome de Euclides da Cunha como o pioneiro carioca do modernismo paulista Nele se expressavam todas as dicoto-mias advindas do tratamento do paiacutes a partir de termos como moderni-dade das cidades versus sertatildeo autecircntico-atrasado

Natildeo se pode esquecer que no mesmo momento em que se apro-ximava a fase heroica do primeiro modernismo paulista escritores que tematizavam o mundo rural como Amadeu Amaral Godofredo Rangel Ricardo Gonccedilalves e Valdomiro Silveira viveram seus aacutepices como li-teratos ndash para natildeo falar de Monteiro Lobato Como esquecer o apareci-mento de Corneacutelio Pires fazendo o papel de como hoje eacute comum dizer ldquoagitador culturalrdquo ao levar aos palcos causos e piadas dos homens do interior e mostrar para o grande puacuteblico as primeiras duplas sertanejas de que se tem notiacutecia como Zico Dias amp Ferrinho Mandi amp Sorocabinha e Mariano amp Caccedilula Aliaacutes o mesmo Corneacutelio Pires criou a ldquoTurma de Corneacutelio Piresrdquo um grupo de vaacuterios artistas que vestidos de caipiras chegou a rodar o estado de Satildeo Paulo com sucesso a partir de 1924 chegando a gravar um raro disco em 1929181

Foi nesse clima que a poesia de Catullo chegou aos salotildees pau-listas A mesma mocidade que em iniacutecios de 1922 veio a chacoalhar as letras brasileiras a partir de Satildeo Paulo se espremia por um espaccedilo para ver o conhecido ldquopoeta sertanejordquo declamar suas poesias

181 Trata-se de um 78 rpm pela Columbia contendo duas canccedilotildees A moda da revoluccedilatildeo e Vida apertada Cf DICIONAacuteRIO Houaiss Ilustrado da Muacutesica Popular Brasileira Rio de Janeiro Paracatu 2006 p 1131

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Estudando o modernismo de 1922 o filoacutesofo Eduardo Jardim chama a atenccedilatildeo para uma mudanccedila no interior do movimento paulista a partir de 1924 Diz o filoacutesofo que por volta de 1924 o caminho das experimentaccedilotildees esteacuteticas foi progressivamente sendo substituiacutedo por uma agenda que colocava em primeiro plano a necessaacuteria construccedilatildeo de uma nova literatura que estivesse mais de acordo com o paiacutes Nesse sentido para ele a obra Canaatilde de Graccedila Aranha seria paradigmaacutetica dos rumos que se pretendeu dar agrave movimentaccedilatildeo paulista182

O filoacutesofo argumenta que uma inflexatildeo teria se dado no momento em que se deixou progressivamente uma tentativa de buscar uma nova ex-pressatildeo esteacutetica ndash tema muito discutido no periacuteodo imediatamente anterior a 1922 ndash e uma reviravolta fez recolocar sob nova roupagem o tema do melhor representar o paiacutes na literatura do periacuteodo Essa tarefa teve direccedilotildees distintas em figuras como Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade

Embora tal reflexatildeo revele uma mudanccedila seminal na produccedilatildeo ldquomo-dernistardquo do periacuteodo o fato eacute que a agenda de melhor representar o paiacutes e na esteira disso a criaccedilatildeo de uma nova esteacutetica que pudesse melhor ex-pressar esse desejo de representaccedilatildeo da naccedilatildeo era buscada pelos proacuteprios participantes paulistas do movimento de 1922 bem antes desse periacuteodo

Assim natildeo eacute agrave toa que na tentativa de revelar a movimentaccedilatildeo que se dava nas artes brasileiras para o puacuteblico francecircs Oswald de Andrade em conferecircncia na Sorbonne um ano apoacutes a Semana de Arte Moderna expressava essa busca de uma ldquoverdade nacionalrdquo

[] Outros espiacuteritos procuram tambeacutem aproximar-se da pura verdade nacional anunciada pelos cantos anocircnimos dos sertotildees a cantiga nos-taacutelgica do vaqueiro do almocreve do negro e do caipiraO regionalismo surge nos quadros ruacutesticos de Ricardo Gonccedilalves e Corneacutelio Pires em Satildeo Paulo e sobretudo nos poemas espontacircneos e liacutericos de Catullo da Paixatildeo Cearense Ele canta a lua que magnetiza as panteras os diluacutevios perioacutedicos do Amazonas que engole florestas e aldeias183

182 JARDIM Eduardo Brasilidade modernista Rio de Janeiro Grall 1978183 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 47 Esse artigo foi

reproduzido na Revista do Brasil em seu nuacutemero 96 de dezembro de 1923

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Essa conferecircncia tem uma importacircncia fundamental para o en-tendimento do que foi o ldquomodernismordquo no Brasil pois natildeo se trata soacute de um balanccedilo criacutetico das artes brasileiras do periacuteodo mas de uma tenta-tiva de produccedilatildeo de um discurso histoacuterico do ldquomodernismordquo Haacute no evento uma apropriaccedilatildeo dos nomes de diversos autores de liacutengua por-tuguesa de forma a culminar nos nomes dos modernistas paulistas Mas se posteriormente muitos desses nomes elencados por Oswald desapa-receriam dos estudos literaacuterios brasileiros ali ainda em 1923 na proxi-midade dos acontecimentos de 1922 em Satildeo Paulo surgiam nomes inesperados que o conferencista evocava para construir uma racionali-dade histoacuterica para o movimento diante do puacuteblico francecircs

Nesse caminho o regionalismo surge no discurso de Oswald como um dos exemplos preacute-22 de busca por uma ldquoverdade nacionalrdquo Haacute ali uma constataccedilatildeo de que uma ldquoverdade do paiacutesrdquo fora procurada na literatura antes da assunccedilatildeo dos modernistas de 1922 Entretanto se para o estudioso atual da literatura brasileira o aparecimento de nomes consagrados como ldquopreacute-modernistasrdquo seria fatal eacute com espanto que se vecirc surgirem na conferecircncia de Oswald nomes improvaacuteveis como os de Amadeu Amaral Corneacutelio Pires Joatildeo Ribeiro e Catullo da Paixatildeo Cearense Esses nomes aparecem inclusive como fundadores de uma liacutengua nacional diferente da liacutengua portuguesa

Estamos assistindo ao esforccedilo cientiacutefico da criaccedilatildeo de uma liacutengua independente por sua evoluccedilatildeo da liacutengua portuguesa da Europa Recebemos como benefiacutecio todos os erros de sintaxe do romancista Joseacute de Alencar e do poeta Castro Alves e o folclore natildeo atingiu so-mente o domiacutenio filosoacuteficoDois filoacutesofos de boa cultura cumprem os desejos esboccedilados pela graccedila sertaneja de Corneacutelio Pires e pelo poder de expressatildeo de Catullo Enquanto o Sr Joatildeo Ribeiro tratava de fundar em 32 notaacuteveis liccedilotildees uma liacutengua nacional o Sr Amadeu Amaral construiacutea a nossa primeira gramaacutetica regionalista184

184 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 46

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Adiante contrabalanceando dentro de sua perspectiva um diaacutelogo entre autores anteriores e novas referecircncias Oswald dispara ldquoA Obra dos dois ilustres acadecircmicos esqueceu entretanto a contribuiccedilatildeo do jargatildeo das grandes cidades brasileiras onde comeccedila a brotar em Satildeo Paulo principal-mente uma surpreendente literatura de novos imigrantesrdquo185

Daiacute ao caraacuteter documental da liacutengua expresso pelos trabalhos de Amadeu Amaral e Joatildeo Ribeiro secundaria diz-nos Oswald a audaacutecia de Monteiro Lobato que com o seu Jeca-Tatuacute viu-se apesar do su-cesso contrariado pelo imaginaacuterio popular sobre o homem do interior Vale a citaccedilatildeo

O Sr Lobato teve a audaacutecia de sair do domiacutenio puramente documental em que se acantonavam Veiga Miranda Albertino Moreira Godofredo Rangel e Valdomiro Silveira reagindo tambeacutem contra o urbanismo que dava a visatildeo histoacuterica do poliacutegrafo Eliacutesio de Carvalho a obra de Tomaacutes Lopes e Joatildeo do Rio e a primeira fase poeacutetica de Guilherme de AlmeidaLobato tinha um longo conhecimento do Brasil tendo feito seus es-tudos em Satildeo Paulo tornando-se fazendeiro em seguida A obra de ficccedilatildeo desejada por Machado de Assis realizou-se com a criaccedilatildeo do tipo de Jeca Tatu Era o inseto inuacutetil da terra magniacutefica que para gozar um espetaacuteculo e ter ocupaccedilatildeo queimava as matas []O siacutembolo vingou-se A imaginaccedilatildeo popular viu nele o Brasil tenaz cheio de resistecircncias fiacutesicas e morais fatalizado mas natildeo fatalista tendo adotado pelas circunstacircncias das suas origens e do seu exiacutelio esta espeacutecie de vocaccedilatildeo para a infelicidade observada inconsciente-mente pelos etnoacutelogos e romancistas186

Oswald conta-nos do triunfo do imaginaacuterio popular sobre a obra de Lobato A representaccedilatildeo ficcional de Lobato ganhava outros cami-nhos pelo imaginaacuterio popular de onde se expressaria uma possiacutevel ldquoverdade uacuteltimardquo O ldquopopularrdquo em contradiccedilatildeo com a ldquoficccedilatildeordquo

O desfile de referecircncias a autores da literatura denominada ldquore-gionalistardquo por Oswald conduz a um questionamento basilar no que diz

185 Idem p 46186 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 47

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respeito agrave construccedilatildeo do modernismo na literatura brasileira qual o sentido de construir na histoacuteria modernista tatildeo constantemente identi-ficada como uma histoacuteria de ruptura um elo que possa ligar a nova produccedilatildeo poacutes-22 com autores regionalistas anteriores Se essa eacute a in-tenccedilatildeo exposta por Oswald muitas vezes considerado o mais radical dos modernistas haacute de se fazer uma (re)apreciaccedilatildeo do que foi o moder-nismo Mais o problema nos coloca no cerne da discussatildeo do termo ldquomodernordquo como uso criativo de forma que eacute soacute pelo exame da histori-cidade dessa criaccedilatildeo que se podem entender as disputas pelo moderno que satildeo por uacuteltimo disputas por construir um sentido para o termo em meio agrave sua construccedilatildeo Se essa construccedilatildeo foi permeada por disputas estas tambeacutem podem ser entrevistas nos textos que produziram aquela

O dilema que se reintroduz entre os ldquonovos modernistasrdquo eacute como se percebe nas reflexotildees do proacuteprio Oswald de Andrade o dilema ins-transponiacutevel jaacute observado na virada do seacuteculo nas produccedilotildees literaacuterias do Rio de Janeiro qual seja a necessaacuteria aproximaccedilatildeo de um discurso literaacuterio de um discurso sobre a naccedilatildeo E se certos autores entre os quais Catullo puderam ser evocados nos argumentos que pudessem fazer entender 1922 eacute que essa tensatildeo em definir o moderno no paiacutes era dramatizada em suas proacuteprias produccedilotildees fosse numa tentativa delibe-rada de representar o moderno (ou o seu avesso) no texto fosse na possibilidade sempre buscada de construir uma autoridade pelo que se representa por meio de artifiacutecios formais tais como ldquoeu conheccedilordquo ldquoeu virdquo ou ldquoeu sintordquo De acordo com o capital social de cada candidato a autor essas escolhas poderiam resultar como definitivas para sua con-sagraccedilatildeo como integrante no rol de uma possiacutevel ldquoliteratura nacionalrdquo

O que se discute afinal com a eclosatildeo do modernismo paulista eacute novamente a disputa por quem melhor representa medida a partir da representaccedilatildeo da autoridade daquele que representa Se em 1923 data da conferecircncia de Oswald de Andrade como nos alerta o filoacutesofo Eduardo Jardim ainda natildeo estava tatildeo clara uma escolha pelo papel construtor de uma representaccedilatildeo do nacional na literatura produzida pelos modernos paulistas progressivamente essa escolha vai sendo construiacuteda a fim de lanccedilar em pares opostos imaginaccedilatildeo versus co-nhecimento Embora essa dualidade ganhe contornos claros com a cha-

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mada primeira geraccedilatildeo modernista tal dilema jaacute herdava uma discussatildeo fortemente em voga de forma dramaacutetica na virada do seacuteculo XIX para o XX e ateacute antes disso

A questatildeo da brasilidade literaacuteria em 24 natildeo constitui a inauguraccedilatildeo de uma problemaacutetica nova em nossa histoacuteria cultural Desde o roman-tismo este problema vinha sendo debatido pela elite culta do paiacutes O fato de ela ter novamente despertado no interior do modernismo pos-sivelmente estabelecendo elos com as discussotildees a respeito do primi-tivismo na arte europeia natildeo dispensa o exame de sua relaccedilatildeo com outros momentos de sua formulaccedilatildeo na histoacuteria cultural do Brasil [] Assim poderemos perceber que o modernismo constitui a retomada e o adiantamento de um caminho jaacute aberto na nossa vida intelectual Poderemos perceber igualmente que ele opera uma releitura do passado da discussatildeo em torno do tema da brasilidade e mais ainda teremos a possibilidade de esclarecer o movimento que fez com que muitas vezes recorrecircssemos aacute [sic] mensagem modernista para a elucidaccedilatildeo da nossa proacutepria situaccedilatildeo cultural Eacute que continuamos a discutir com o moder-nismo como ele o fez com os momentos que o antecederam187

Acrescentado a isso diria que eacute urgente flagrar a construccedilatildeo do termo ldquomodernismordquo a partir das obras que lhe iam dando corpo Voltar portanto agrave indagaccedilatildeo fundante sobre o que os termos ldquomodernidaderdquo ldquomodernordquo ldquomodernismordquo e correlatos guardam neles quando vistos numa perspectiva histoacuterica dentro de sua proacutepria historicidade Dessa forma qualquer anaacutelise acerca do ldquomodernismordquo como movimento de renovaccedilatildeo das artes brasileiras deve levar em consideraccedilatildeo uma re-laccedilatildeo de tempo ou dito de outra maneira a compreensatildeo de usos do passado processados em determinada historicidade como paracircmetro para a definiccedilatildeo daquilo que se enxerga como ldquomodernordquo Eacute a esse ca-minho que nos ateremos a seguir para balizar o lugar de Catullo da Paixatildeo Cearense nessa discussatildeo

Quando eclode a Semana de 22 Catullo havia publicado seu novo livro pela livraria Castilho Poemas bravios O novo volume de poesias deixava de lado parte da foacutermula da poesia com linguajar serta-nejo Isto eacute em parte pois metade do livro ainda usava da mesma foacuter-

187 JARDIM Eduardo Brasilidade modernista Rio de Janeiro Grall 1978 p 16

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mula mas diferentemente das outras publicaccedilotildees havia vaacuterios poemas em que o narrador natildeo mais usava tal princiacutepio E havia algo mais contos sertanejos em prosa

Se essa mudanccedila pode ser atribuiacuteda agraves vaacuterias criacuteticas recebidas eacute algo difiacutecil de dimensionar O fato eacute que como diz o historiador Joatildeo Ribeiro nas apreciaccedilotildees expostas no final do livro de Catullo ele agora poderia ser visto como ldquoum poeta nacional natildeo tenho duacutevidardquo188 Eacute essa caracterizaccedilatildeo de Catullo como ldquopoeta nacionalrdquo que sofreraacute uma inflexatildeo com a chegada de 1922

Trazendo o termo ldquomodernordquo para o centro das reflexotildees sobre as formas de expressatildeo os modernistas de 22 construiacuteram novos paracircme-tros que pudessem ser sinalizados para se definir uma obra literaacuteria como nacional A tarefa de modernizar a literatura passaria pelo impe-rativo do conhecimento daquilo que se narra especialmente poacutes-1924 Haveria uma exterioridade na obra a ser buscada para que ela fosse definida como ldquonacionalrdquo

Esse ponto era procurado inclusive na biografia do autor da obra Natildeo que as formas de expressatildeo natildeo fossem desdenhadas nas mo-tivaccedilotildees definidoras dos modernistas do que seria a nova literatura ndash certamente a poesia identificada como parnasiana seria deixada de lado ndash mas o que se nota eacute uma intransigente busca por retratar no texto a ldquorealidade nacionalrdquo de forma que ao contraacuterio a imaginaccedilatildeo era co-locada agrave parte como coisa desvirtuadora da realidade Daiacute o tema do ldquonacionalrdquo para o investigador de textos literaacuterios produzidos no Brasil nesse periacuteodo ser intransponiacutevel Mas se uma receita antiga da histoacuteria literaacuteria busca flagrar a ldquoconstruccedilatildeo da naccedilatildeo nos textosrdquo seguimos outro caminho que pensamos ser mais profiacutecuo com o questionamento sobre como os usos diferenciados do nacional em textos faziam com que um rol de obras impressas fossem alavancadas no rol de obras na-cionais e de como isso era operacionalizado pelos candidatos a autores nacionais e seus editores nas produccedilotildees impressas do periacuteodo

188 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas bravios Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 270

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Nunca eacute demais considerar que aquilo que no senso comum de-nomina-se ldquomodernistas de 22rdquo eacute um termo que abrange inuacutemeros au-tores natildeo raras vezes de opiniotildees e representaccedilotildees profundamente dis-tintas quando se propunham a construir uma literatura definida como ldquonacionalrdquo Ademais consideraacute-los um grupo de paulistas como fre-quentemente eacute caracterizado seria desdenhar figuras natildeo paulistas como Ronald de Carvalho Manuel Bandeira e Seacutergio Buarque de Holanda que a despeito de seus locais de origem intervieram de forma decisiva na construccedilatildeo do que se convencionou chamar ldquomodernismordquo Aleacutem disso o termo ldquomodernismordquo pode esconder as leituras consu-midas e evocadas pelos seus protagonistas na construccedilatildeo de uma nova literatura O exemplo de Oswald anteriormente citado como leitor simpaacutetico de Catullo pode bem trazer tais desconfianccedilas quanto agraves construccedilotildees a priori sobre o movimento de 1922

Mais provocador ainda eacute observar os editores de alguns dos mais ilustres natildeo paulistas que continuaram a publicar por casas cariocas Ronald de Carvalho permanece com seu editor Aacutelvares Pinto em pelo menos duas publicaccedilotildees (Espelho de Ariel e Estudos brasileiros) vindo depois a publicar pela Leite Ribeiro e pela F Briguet e Comp ambas cariocas Graccedila Aranha continuou a publicar pela Garnier ainda no Rio Prudente de Moraes Neto e Seacutergio Buarque de Holanda potildeem para frente o projeto da Revista Esthetica Aleacutem desses O ritmo dissoluto de Manuel Bandeira publicado em 1924 sai pela Paulo Pongetti amp Comp e posteriormente Libertinagem de 1930 sai pela mesma edi-tora carioca Aliaacutes a editora graacutefica dos Irmatildeos Pongetti se valeu muito das inovaccedilotildees teacutecnicas trazidas pela modernizaccedilatildeo das artes brasileiras e dos processos poliacuteticos que catapultavam tais mudanccedilas Henrique Pongetti ainda diria da Revoluccedilatildeo de 1930 que ldquoEm nenhuma outra parte da vida nacional a transformaccedilatildeo teve um jeito tatildeo perfeito de milagre como nas oficinas graacuteficasrdquo189

189 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 195 Ainda estaacute por se fazer uma histoacuteria editorial do Modernismo de 1922 de forma a se compreender o diaacutelogo entre produtores de livros e a difusatildeo da litera-tura modernista ndash que natildeo se restringia a editores brasileiros diga-se de passagem Eacute possiacutevel que esse esforccedilo traga uma maior dimensatildeo criacutetica do Movimento de 22 de

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Essa efervescecircncia editorial pode ser pensada tambeacutem como pro-dutora de uma esteacutetica modernista bem como pela produccedilatildeo de um gosto por certos autores que seriam posteriormente consagrados Leite Ribeiro que galvanizou nos anos 1920 grande parte das publicaccedilotildees de sucesso no Rio de Janeiro (antes de passar a empresa para seu soacutecio Freitas Bastos) representava bem a tentativa de criaccedilatildeo de um mercado consumidor para novas obras Na sua livraria publicavam-se desde au-tores de livros juriacutedicos a literatos famosos como Humberto de Campos e Coelho Neto e era frequentada pela nata da elite letrada carioca Na Leite Ribeiro deu-se o maior escacircndalo do mundo literaacuterio do periacuteodo a apreensatildeo em massa de Mademoiselle Cinema romance de Benjamin Constallat mdash inclusive com a prisatildeo dos empregados da livraria190 Sob a eacutegide de Freitas Bastos a livraria tem sua fase de aacutepice inaugurando inclusive uma filial na cidade de Satildeo Paulo nos anos 1930 Dentre as publicaccedilotildees exitosas da casa destacam-se as obras de Mendes Fradique mdash um enorme sucesso no periacuteodo especialmente a Histoacuteria do Brasil pelo methodo confuso e A loacutegica do absurdo Suas ediccedilotildees luxuosa-mente produzidas e sempre com belas ilustraccedilotildees de capa atraiacuteam o leitor mais exigente

Em meio a isso a grande jogada da livraria foi sem duacutevida a ldquoCollecccedilatildeo dos Cine-Romancesrdquo que se propunha a publicar ldquoos ro-mances e novellas sobre que se baseiam os principais superfilmsrdquo e vendecirc-los para o grande puacuteblico indicando que ldquosatildeo volumes profusa-mente illustrados com as melhores scenas do filme e trazem photogra-phias dos principais inteacuterpretesrdquo191 Suas publicidades vinham inclu-

forma a enxergaacute-lo tambeacutem como uma movimentaccedilatildeo que se valeu de um campo de produccedilatildeo de livros pungente no Brasil de entatildeo Apesar da lacuna vale a leitura do artigo de Regina Zilberman sobre as relaccedilotildees de Maacuterio de Andrade e seus editores onde a autora esboccedila essa compreensatildeo do caraacuteter editorial do ldquoprojeto modernistardquo Cf ZILBERMAN Regina Maacuterio de Andrade ou Como um modernista editava Revista Itineraacuterios Araraquara n 7 1994

190 Haacute uma oacutetima dissertaccedilatildeo acerca dos ldquonegoacutecios com livrosrdquo de Benjamin Constallat nesses idos chamando a atenccedilatildeo para o caraacuteter empreendedor do escritor no ramo editorial Cf FRANCcedilA Patriacutecia de Souza Uma campanha pelo livro nacional a atuaccedilatildeo editorial de Benjamim Costallat no Rio de Janeiro dos anos 1920 113 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria Social) ndash Programa Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2012

191 Cataacutelogo da Livraria que consta na contracapa de ldquoAlma do sertatildeordquo de Catullo da

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sive acompanhando a publicidade dos filmes em cartaz nos cinemas a nova febre das cidades

Catullo da Paixatildeo Cearense tambeacutem seria publicado por Leite Ribeiro Alma do sertatildeo veio agrave luz em 1928 com uma colorida ilustraccedilatildeo de capa marca da editora Leite Ribeiro assim como Antocircnio Castilho (agora antigo editor de Catullo) jaacute investia em publicaccedilotildees com temaacute-ticas ditas ldquoregionalistasrdquo desde os anos 1910 Foi Leite Ribeiro quem primeiro publicou Joatildeo do Norte (pseudocircnimo de Gustavo Barroso) com o sucesso de Ao som da viola em 1921 Antes disso ainda em 1917 usando o pseudocircnimo de Joatildeo Phoca Joatildeo Batista Coelho publicava o volume de contos praianos Os caiccedilaras Em 1922 Carlos de Vasconcelos publicava pela Leite Ribeiro Deserdados ndash romance da Amazocircnia Essa profusatildeo de livros identificados com temaacuteticas ldquopopularesrdquo atendia agrave demanda pelo consumo de tais produtos que supostamente davam a co-nhecer o restante do paiacutes Assim quando Catullo publicou Alma do sertatildeo a foacutermula jaacute era bem conhecida na livraria Editora mas agrave dife-renccedila de seus livros anteriores aparece um Catullo prosador de temas natildeo sertanejos ndash aleacutem eacute claro de suas poesias sertanejas que faziam a apresentaccedilatildeo da publicaccedilatildeo em sua primeira parte

A colocaccedilatildeo de tais escritos natildeo sertanejos algo ineacutedito na obra de Catullo ateacute aquele momento deve ser pensada a partir de uma exi-gecircncia que se coloca dentro da literatura do periacuteodo Se em 1918 com Meu sertatildeo a foacutermula operada por Catullo em seu texto era encarada em termos tais como autenticidade versus falsificaccedilatildeo onde o autor era definido como um autecircntico poeta que traduziria uma alma em 1928 a ldquoalma sertanejardquo de Catullo era colocada em xeque cada vez mais pela demanda por representaccedilotildees do mesmo sertanejo que fugisse do caraacuteter subjetivo para um caraacuteter mais realista Catullo ao assumir por sua vez em sua prosa a liacutengua culta (em detrimento do linguajar sertanejo das foacutermulas anteriores) assumia sua produccedilatildeo fora do espaccedilo de iden-tificaccedilatildeo de uma possiacutevel traduccedilatildeo da alma para a afirmaccedilatildeo de uma produccedilatildeo narrativa sua sem traduccedilotildees Isso veio na esteira das criacuteticas

Paixatildeo Cearense Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo150

recebidas apoacutes a progressiva consolidaccedilatildeo de uma esteacutetica vinda do modernismo de 1922 Voltaremos a essa criacutetica adiante

O livro de Catullo Alma do sertatildeo pode ser lido como uma rup-tura na trajetoacuteria literaacuteria do poeta Pouco a pouco o caraacuteter regional na literatura produzida no periacuteodo se desenrola no sentido de identificar a escolha pelo regional agrave submissatildeo do termo a uma alma brasileira e daiacute a criaccedilatildeo de artifiacutecios textuais que pudesse conduzir o leitor a identi-ficar aquele que escreve como autor de literatura nacional A citaccedilatildeo de um poema de autoria de Bastos Tigre publicado no prefaacutecio da obra assinado pelo escritor Maacuterio Joseacute de Almeida confere a tocircnica da mu-danccedila que se segue naquele momento No poema Bastos Tigre mostra uma representaccedilatildeo do poeta Catullo da Paixatildeo Cearense em sua tran-siccedilatildeo do regional para o brasileiro

Nesse idioma de ldquopru moderdquoDe ldquoapois natildeordquo de ldquoseu doutordquoSoacute o gecircnio das selvas poacutedeTer ressonacircncias de Hugo

Nestes teus poemas se sentendash Eacute questatildeo de os entender ndashldquoO cheiro da terra quenteQuando comeccedila a choverrdquo

No coraccedilatildeo desta terraExplorador penestrasteE os diamantes que elle encerraPotildees dos teus versos no engaste

Rondon bravo estuda o soloRios vaacuterzeas chapadotildeesCatullo eacute o Rondon que ApolloMandou aacute alma dos sertotildees

E tendo os teus poemas tem-seEsta impressatildeo verdadeiraNatildeo eacutes da Paixatildeo CearenseEacutes da paixatildeo brasileira192

192 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928 p 22-23

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Haacute aqui uma primeira expressatildeo de mudanccedila ainda que sutil Bastos Tigre observa algo que jaacute naquele momento (radicalizado logo depois) iria ser a tocircnica da produccedilatildeo literaacuteria no Brasil Se antes o caraacuteter regional ou popular de uma produccedilatildeo poderia ser um iacutendice de definiccedilatildeo de algo a ser compreendido como ldquoliteratura brasileirardquo e a construccedilatildeo de um know-how para o pretendente a entrar nesse panteatildeo podia ser medida como vimos anteriormente por preacute-condiccedilotildees tais como uma autoridade intelectual que pode falar sem ter visto ou por algueacutem que por uma genialidade comprovada podia expressar uma suposta alma do povo em fins dos anos 1920 com o advento dos mo-dernistas de 1922 no campo literaacuterio essa frente muda de local O que se propunha natildeo era mais soacute a expressatildeo subjetiva de um referente mas a representaccedilatildeo de um espaccedilo pautada numa pesquisa ideia cujo maior defensor era o poeta e intelectual paulista Maacuterio de Andrade

Dessa forma grande parte do caraacuteter regionalista da produccedilatildeo literaacuteria anterior foi sendo medida a partir de tais termos Mais se o atestado de um caraacuteter regional poderia ser um toacutepico que ajudaria na assunccedilatildeo de um nome ao panteatildeo da literatura brasileira tal caraacuteter natildeo poderia mais ser aceito se natildeo estivesse subordinado a algo mais impor-tante a essa nova leva de escritores advindos do movimento de 22 qual seja a construccedilatildeo de uma identidade para a naccedilatildeo Daiacute Catullo no poema de Bastos Tigre ser representado natildeo mais como ldquoda Paixatildeo Cearense mas lsquoda Paixatildeo Brasileirarsquordquo Metaacutefora que expressa no texto de Catullo uma representaccedilatildeo condizente com uma mudanccedila que se processava a partir da produccedilatildeo de uma autorrepresentaccedilatildeo buscada para a literatura produzida no Brasil agrave eacutepoca

Penso que afinal a ldquomodernardquo literatura brasileira (digamos aquela identificada com o marco de 1922) natildeo pode ser subordinada a uma anaacutelise que incorpore sob o termo ldquomodernismordquo produccedilotildees tatildeo diacutespares entre si e mesmo discordantes sob o risco de perder sob o mesmo termo toda uma discussatildeo que colocou em lugares opostos Maacuterio de Andrade e Oswald de Andrade para citar soacute um entre tantos exemplos Maacuterio por exemplo tinha grande apreccedilo por Manuel Bandeira um entusiasta da poesia de Catullo da Paixatildeo Cearense que por sua vez possuiacutea uma atitude desconfiada com relaccedilatildeo aos novos

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modernistas ndash que contava entre aqueles assim identificados o proacute-prio Bandeira

Outro ponto a ser salientado eacute o reiterado (e discutiacutevel) triunfo da movimentaccedilatildeo entre o puacuteblico letrado que teve em 1922 um marco Como os nuacutemeros de vendagens das produccedilotildees dos autores identifi-cados como ldquomodernistasrdquo satildeo imprecisos quando natildeo inexistentes eacute difiacutecil dimensionar o alcance de seus escritos Talvez um evento escla-reccedila os limites do triunfo modernista sobre os leitores o Concurso Nacional ldquoOs maiores brasileiros vivosrdquo promovido pela revista ca-rioca Fon-Fon em iniacutecios de 1925

Durante os meses de marccedilo e abril de 1925 a Fon-Fon de circu-laccedilatildeo natildeo soacute restrita agrave cidade do Rio de Janeiro promoveu um concurso para que seus leitores pudessem escolher por conta proacutepria os maiores brasileiros vivos em suas aacutereas meacutedico educador industrial escritor cantor poeta muacutesico ator financista etc Entre os escritores o vencedor foi o jaacute consagrado Coelho Netto ficando Gustavo Barroso com seus contos sertanejos em segundo lugar e Oliveira Lima em terceiro Os trecircs escritores eram membros destacados da Academia Brasileira de Letras

Na categoria ldquoo maior poeta vivordquo o vencedor foi Alberto de Oliveira membro da Academia Brasileira de Letras ficando em segundo lugar Hermes Fontes e em terceiro lugar Catullo da Paixatildeo Cearense

Se o alcance da produccedilatildeo modernista natildeo havia triunfado no gosto do puacuteblico letrado carioca a ruptura pensada em 1922 natildeo pode ser reificada numa narrativa histoacuterica que busca fundar pontos demar-catoacuterios Talvez enriqueccedila mais a anaacutelise pensar que uma esteacutetica mo-dernista teve de lidar com uma produccedilatildeo anterior ao advento dos escri-tores modernistas e que essa produccedilatildeo tampouco estava ldquodecadenterdquo como se costumou dizer Antes foi preciso construir um gosto por obras ldquomodernistasrdquo e isto natildeo se deu da noite para o dia sem uma apropriaccedilatildeo de certas temaacuteticas consagradas entre o puacuteblico leitor Daiacute ser necessaacuterio flagrar a construccedilatildeo do ldquomodernismordquo em suas disputas natildeo soacute internas (perspectiva mais comum que consiste em buscar dentro da esteacutetica modernista desavenccedilas entre seus partiacutecipes) mas tambeacutem em seu diaacutelogo com toda produccedilatildeo que antecede ndash e continua apoacutes ndash a sua ascensatildeo e com as demandas do puacuteblico leitor E avan-

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ccedilando investigar na esteira disso como os novos escritores provo-caram uma mudanccedila na produccedilatildeo dos autores que o antecederam e como estes tiveram suas temaacuteticas muitas vezes apropriadas de ma-neira criacutetica pelos novos autores

Essa linha de investigaccedilatildeo torna-se importante inclusive numa tentativa de identificar como se deram os usos inventivos do termo ldquomodernordquo naquele periacuteodo a partir das obras Conduziremos nesse liame a investigaccedilatildeo da postura expressa nos textos de Catullo nessa discussatildeo e como ele foi apropriado por seus leitores criacuteticos atentando que essa discussatildeo deve ser encarada antes de tudo como uma disputa pelo tempo conduzida a partir da representaccedilatildeo do tempo ldquomodernordquo nos textos de seus autores Essa disputa pela representaccedilatildeo colocava em xeque inclusive a forma de expressatildeo textual inventando nesse pro-cesso uma praacutetica de representaccedilatildeo na medida em que criavam as for-malidades necessaacuterias para conduzi-la

O lugar de quem fala

Haacute vozes que se destrinchadas a partir de seus ecos conduzem o ouvinte a uma voz original ao momento primeiro da palavra viva agrave palavra-palavra Mas essa experiecircncia de pesquisa pela escuta nem sempre conduz invariavelmente a um lugar de origem ou a um ponto de onde se desdobraria um indiviacuteduo uacutenico possuidor indeleacutevel da sin-gularidade de sua voz Nesse momento eacute com espanto que surge a cons-tataccedilatildeo de que agraves vezes o indiviacuteduo que fala natildeo eacute o sujeito falante

Dito de outra maneira nem sempre o sujeito falante se subtrai ao corpo do indiviacuteduo de onde se fala Esse desencontro entre corpo e voz desloca de maneira incocircmoda um pesquisador humanista que vecirc no encontro entre voz e corpo o espaccedilo de autonomia uacuteltimo do sujeito em sua liberdade sobre aquilo que diz Para este uacuteltimo a voz constitui sob todos os monopoacutelios reivindicados para se ser livre o uacuteltimo reduto a ser conquistado a fortaleza indestrutiacutevel do indiviacuteduo em sua singula-ridade de forma que eacute impossiacutevel nesse ponto natildeo encontrar na fala a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em sujeito Poreacutem estranhamente esse en-contro nem sempre pode se dar Natildeo por uma forccedila exterior que se-

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questra a voz do indiviacuteduo mas pelo proacuteprio indiviacuteduo que sequestra a si mesmo fazendo por um momento falar-se por outro

Michel Foucault talvez tenha sido aquele que melhor sistema-tizou a questatildeo quando se propotildee a pensar a pergunta ldquoQue importa quem falardquo Jaacute Michel de Certeau talvez tenha sido aquele que mais dramatizou a experiecircncia de confrontaccedilatildeo de um indiviacuteduo com um Outro que natildeo se diz mas que se deixa dizer Confronta-se com a ideia insuportaacutevel de encontrar na singularidade inescapaacutevel de um indi-viacuteduo que fala a voz de um Outro que natildeo estaacute193

Embora em geral escape da criacutetica moderna o estatuto de cons-truccedilatildeo de um discurso a partir de um indiviacuteduo o regime que ainda governa muitas das produccedilotildees literaacuterias contemporacircneas eacute a de identifi-caccedilatildeo daquilo que se diz (e que se escreve) sob um nome proacuteprio E aiacute se chega a raacutepidas conclusotildees como a que trata de reivindicar a pro-priedade irrefutaacutevel do sujeito sob seu objeto seja voz ou escrita Naquele identificado como artista essa linearidade se torna quase um imperativo Ora quem haacute de negar o caraacuteter de propriedade (de mono-poacutelio autoral digamos) de uma produccedilatildeo artiacutestica vinda agrave luz sob um nome proacuteprio de algueacutem que comprovadamente existe Mas essa equaccedilatildeo que a priori parece fatal nem sempre se consuma

Quando em setembro de 1918 Catullo da Paixatildeo Cearense pu-blicou o livro de poemas sertanejos Meu sertatildeo ele o construiu jaacute o dissemos a partir de uma forma incomum os poemas satildeo a transcriccedilatildeo da fala de um sertanejo O novo poeta se apropriava de um tipo de es-crita da oralidade que era identificada jaacute agravequela eacutepoca com a fala de poetas populares do nordeste do paiacutes publicada comumente nos jaacute co-nhecidos livretos de cordel O referente oral eacute supostamente transferido para o impresso ipsis litteris de forma que um leitor possa escutar na sonoridade das palavras e dos versos lidos a ldquovoz sertanejardquo

193 Tais reflexotildees foram defrontadas pelos autores em pelo menos dois livros FOUCAULT Michel O que eacute um autor In FOUCAULT Michel Ditos e Escritos Esteacutetica literatura e pintura muacutesica e cinema Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009 v III CERTEAU Michel de La Fabula Mistica siglos XVI-XVII Meacutexico Universidad Iberoamericana 2004 Penso especialmente no toacutepico 1 do capiacutetulo III ldquoLa ciecircncia nuevardquo

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Nosso sinhocirc decirc bons diaa vasmincecirc meu patratildeoe a toda a sua famiacutea

Cheguei haacute cinco sumananesta grande capitaacute

Sou musgoMusgo gaitecircroE natildeo eacute pruacute me gavaacutefui o terrocirc dos violeirodos sertatildeo do Cearaacute194

Assim consumada a escrita e construiacutedo um personagem ldquoserta-nejordquo Catullo ele mesmo que viveu por um pequeno periacuteodo no sertatildeo e importante sendo identificado nominalmente como Cearense po-deria dessa forma ser reconhecido como um ldquopoeta do sertatildeordquo O ciacuter-culo se fecha de forma a natildeo restar duacutevida de que a partir de todo esse esquema traccedilado a identificaccedilatildeo do autor com seu personagem condu-zisse Catullo ao panteatildeo de um poeta diferente de todos os outros que tematizavam o sertatildeo naquele periacuteodo ele seria pela proacutepria coinci-decircncia biograacutefica o proacuteprio povo do sertatildeo Mas se em suas estrateacutegias para ser reconhecido como poeta todos os elementos postos acima natildeo foram negligenciados por Catullo eles por si natildeo explicariam o fato de o autor nunca se identificar como um ldquopopularrdquo e paradoxalmente querer ser lido como um melhor conhecedor do ldquopopularrdquo Daiacute sua in-cessante busca por ser representado como algueacutem conhecedor das ldquoboas letrasrdquo ldquoEmbora conheccedila bem a meacutetrica tanto que vou publicar um livro de poesias traduzidas prefiro estabelecer esse consoacutercio entre a melodia e a poesiardquo195

Catullo precisou negar sua posiccedilatildeo de iletrado no mesmo mo-mento em que buscava se expressar como tal Essa ambiguidade soacute pocircde se dar pela evocaccedilatildeo de um terceiro personagem entre Catullo e o popular-sertanejo que dava a autenticidade para a sua poesia e que ele representava como sendo uma nova vida a alma ldquoQuando escrevo os

194 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 39195 O Paiz 25 fev 1906 p 6

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meus versos sinto que minha alma se eleva que uma nova vida se estua pelo corpordquo196

Apresentando Meu sertatildeo aos leitores de Catullo os escritores Humberto de Campos e Alberto DrsquoOliveira transmitem uma primeira impressatildeo do livro explicando o estranho fato de aparecer ali uma lin-guagem ruacutestica

Catullo natildeo quer poreacutem que os seus fructos nasccedilam no jardim ou brilhem em vasos de porcellana quer conserval-os no mato envoltos nas folhas A seiva para o fructo quem daacute eacute Deus Agrave aacutervore compete apenas dar foacuterma ao pomo Catullo tem toda inspiraccedilatildeo dos grandes e verdadeiros poetas e como eacute sertanejo vasa essa forte seiva nos ruacutes-ticos moldes que lhe fornece o sertatildeo197

A analogia com a aacutervore natildeo eacute gratuita O escritor tenta estabe-lecer um espaccedilo distinto para a recepccedilatildeo de Catullo pelo uso da ana-logia para explicar ao leitor que a poesia ali publicada natildeo era propria-mente de Catullo Este daria a forma Competia ao autor a expressatildeo de algo anterior a ele mesmo que natildeo eacute soacute dele natildeo se subtrai a ele mas que se expressa melhor nele o povo Seu texto eacute evento eacute aconteci-mento efecircmero de algo sem tempo que veio antes dele

[] poeta bravio poeta cujos versos natildeo foi preciso semear e ainda menos cultivar poeta egualmente entendido e apreciado pelos saacutebios e pelos ignorantes poeta do povo e da raccedila poeta e soacute poeta que soacute pode dar poesia como as abelhas soacute podem dar mel198

A natildeo coincidecircncia de Catullo com sua poesia residia no fato de que ele natildeo precisava ldquosemearrdquo e ldquocultivarrdquo pois era ldquopoeta do povo e da raccedilardquo de forma que dele soacute poderia se extrair tal tipo de poesia tal qual inescapavelmente a abelha soacute daacute mel Aqui cada palavra eacute revela-dora A aproximaccedilatildeo desinteressada de Catullo com uma produccedilatildeo que

196 Idem197 CAMPOS Humberto de Homenagem a Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da

Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 19198 DrsquoOLIVEIRA Alberto Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo

Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 13

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leva seu nome era um fato em conformidade com o que ele era ou seja um poeta da raccedila ldquoSemearrdquo e ldquocultivarrdquo seriam trabalhos reservados para outros tipos de poetas porque na poesia de Catullo ldquo[] natildeo haacute elaboraccedilatildeo de raciociacutenio nem analyse haacute transbordamento de sensa-ccedilotildees de sentidos que viveram concretamente a vida da naturezardquo199

Esse afastamento do nome de Catullo de sua poesia era enten-dido inclusive como indissociaacutevel para a compreensatildeo da forma como os poemas eram apresentados na publicaccedilatildeo Mesmo Meu sertatildeo tra-zendo a novidade da escrita de uma suposta oralidade sertaneja no texto nessas mesmas poesias eacute necessaacuterio salientar o personagem principal natildeo podia ser identificado ao proacuteprio Catullo Por causa disso o proacuteprio Catullo apresentava-os ao seu leitor como fez com o perso-nagem Quinca-Micuaacute

Natildeo Leacutede com dor com maguaessa histoacuteria essa romanccedilade um homem feito creanccedilaesse ldquoQuinca Micuaacuterdquoalma pura nobre e santacomo uma flor redolenteque talvez tatildeo innocentenatildeo exista outra por caacute200

Os personagens satildeo revelados nos poemas e aos poucos vatildeo surgindo os donos das vozes que Catullo faz aparecer no seu texto Quinca Micuaacute o gaiteiro do sertatildeo o marrueiro o lenhador Chico Mironga o passador de gado o vaqueiro o cangaceiro e o violeiro Chico Mindello Ateacute aiacute nada incomum A diferenccedila aqui reside na pos-siacutevel e inevitaacutevel associaccedilatildeo pelo leitor do nome Catullo da Paixatildeo Cearense com os seus personagens representados no texto Uma vez que estes expressavam uma suposta ldquoalma sertanejardquo e sendo Catullo jaacute havia algum tempo conhecido como poeta sertanejo apresen tando-se

199 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p XIII

200 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Em caminho do sertatildeo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 34

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em alguns momentos inclusive vestido tal e qual a coincidecircncia entre Catullo seus personagens e a ldquoalma sertanejardquo que ali expressava era inevitaacutevel para o leitor daquela eacutepoca Catullo era muitas vezes repre-sentado como sendo ele mesmo o sertanejo de suas poesias

Ao mesmo tempo em que era apresentado como um autecircntico poeta sertanejo Catullo buscava estrategicamente afastar-se de toda re-presentaccedilatildeo que pudesse identificaacute-lo tatildeo somente como um dos seus personagens No poema Em caminho do sertatildeo que apresenta o livro Meu sertatildeo Catullo dirige-se diretamente a seus leitores

Tenho lido desde Homerotudo o que se tem escriptoem versos de ouro e granitode impeccavel perfeiccedilatildeomas talvez seja ignoracircnciaaacutes vezes fico pasmadocom um verso immetrificadode um Manoel Riachatildeo201

Um poeta que faz aparecer personagens em seus livros para serem identificados como sertanejos e que ao mesmo tempo procura apresentar-se como algueacutem que lecirc Homero Ou melhor como algueacutem que natildeo pode ser confundido com seu personagem iletrado Um letrado que fica ldquopasmadordquo com o verso imetrificado do seu personagem Manoel Riachatildeo ndash que natildeo eacute e nem pode ser Catullo Este o expressa ndash e ateacute se assusta com ele mas Catullo natildeo o eacute e embora seja apresentado em seus prefaacutecios por homens distintos das letras brasileiras e portu-guesas do periacuteodo tal qual um sertanejo nega a representaccedilatildeo de um sertanejo iletrado para si

O que se potildee no centro da discussatildeo eacute o caraacuteter da invenccedilatildeo Catullo assume um tipo de invenccedilatildeo que se daacute a partir de uma traduccedilatildeo Ele eacute em uacuteltima instacircncia o indiviacuteduo que se apresenta como um esco-lhido para expressar algo anterior a ele Esse algo anterior por outro lado poderia ser tachado de ldquoantigordquo ldquovelhordquo ldquobaacuterbarordquo

201 Ibidem p 35

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Monteiro Lobato por exemplo vai colocar em xeque a literatura produzida por Catullo por caracterizaacute-la como a expressatildeo de um barba-rismo da liacutengua ndash o que travaria inclusive a ascensatildeo do autor a ldquogrande poetardquo O editor dos livros de Catullo Antocircnio Castilho parecia pro-curar nesse paradoxo um irresistiacutevel caminho para apresentar o autor como um poeta distinto de todos os outros No segundo livro de poemas sertanejos de Catullo intitulado de Sertatildeo em flor o editor fez surgir duas criacuteticas agrave poesia de Catullo Cearense a primeira eacute a jaacute citada criacutetica de Monteiro Lobato sobre sua impossibilidade de ser um grande poeta escrevendo num linguajar baacuterbaro a segunda criacutetica era de Joseacute Oiticica

Catullo fez-se elle mesmo cangaceiro marroeiro lenhador pas-sador de gado adoptou o semi-dialecto sertanista com uma justeza raras vezes claudicante O sabor que nos adveacutem desse processo eacute delicioso Seu livro perderia cincoenta por cento si fora escripto em liacutengua de branco202

Embora saltasse aos olhos a discordacircncia dos dois criacuteticos acerca da poesia de Catullo o editor encontrava um caminho por onde Catullo poderia e deveria ser lido pelo leitor e arrematava dizendo ldquoCATULLO CEARENSE soacute desejava dar razatildeo aos doisrdquo203

No espaccedilo tecircnue entre aceitar a criacutetica de Lobato ndash que de resto chama atenccedilatildeo para as regras que governavam a consagraccedilatildeo de um indiviacuteduo a poeta ndash e no mesmo movimento corroborar a criacutetica elo-giosa de Oiticica que contrastava com a do primeiro o editor de Catullo via a possibilidade de mostrar ao puacuteblico leitor a novidade daquela pu-blicaccedilatildeo Para ele Catullo expressaria em suas publicaccedilotildees a vontade de ser aquilo que Lobato chama de ldquogrande poetardquo ao mesmo tempo em que via na representaccedilatildeo da fala de seus personagens que Lobato acreditava ser algo negativo um fator fundamental para a sua consa-graccedilatildeo tal como pensava Oiticica

202 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Nota preacutevia In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p XX

203 Idem

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Ainda eacute o editor Castilho que daraacute uma explicaccedilatildeo sobre a forma da poesia de Catullo visando agrave compreensatildeo do autor como um letrado Para o editor escrever versos num linguajar ldquobaacuterbarordquo era uma opccedilatildeo que Catullo aceitava conscientemente de bom grado como um empreacutes-timo da alma do sertanejo mesmo podendo escrever de forma mais palataacutevel para o puacuteblico leitor cioso da boa liacutengua

Embora soubesse e pudesse escrever os seus versos em portuguecircs vulgar entendeu Catullo Cearense conservar-lhes a ingenuidade nativa nas palavras rudes e simples imprevistas e encantadoras como os di-riam os sertanejos que lhe emprestaram o coraccedilatildeo e a alma204

Essa escolha era encarada pelo editor como proposital pelo autor visando a deixar o ldquocoraccedilatildeordquo e a ldquoalmardquo agrave mostra para os seus leitores Assim o que avultaria positivamente aos olhos dos leitores do autor seria ainda a sua capacidade de expressar-se em outro linguajar Isso era um sinal de que entre o linguajar e o poema escrito existia o poeta um ldquomelhor-tradutorrdquo e que este natildeo poderia ser confundido com aquele para quem ele escreve traduzindo

E qual o lugar distinto e original reservado a Catullo no campo literaacuterio no periacuteodo Essa questatildeo soacute fica mais compreensiacutevel com a leitura da apresentaccedilatildeo do segundo livro de poemas sertanejos de Catullo Sertatildeo em flor feita pelo acadecircmico Maacuterio de Alencar Nela Maacuterio explica a posiccedilatildeo de Catullo pela evocaccedilatildeo de um terceiro

Na voz de Catullo canta natildeo a pessoa delle mas o sertatildeo e o serta-nejo [] Eacute em summa a alma humana tatildeo vivamente dramatizada [] Tecircm-se a impressatildeo de que o poeta natildeo descreve por palavras senatildeo as que as proacuteprias cousas e pessoas surgem vivas em imagens da natureza205

A passagem exige uma explicaccedilatildeo Havia como mostrei ante-riormente uma aproximaccedilatildeo entre o Catullo escritor e os seus persona-

204 Ibidem205 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em

flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p XXI-XXII

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gens de forma que Catullo poderia facilmente ser identificado como sendo um deles Embora essa aproximaccedilatildeo parecesse ser objeto que atestasse a autenticidade do escritor estar tatildeo perto assim de seu perso-nagem travaria sua consagraccedilatildeo como poeta ndash ser o ldquomaior poeta po-pular do Brasilrdquo como queria Lobato

A consagraccedilatildeo soacute poderia advir com um afastamento de seu nome dos de seus personagens poreacutem isso perigosamente afastaacute-lo-ia da autenticidade que era evocada tambeacutem como fator de distinccedilatildeo em sua produccedilatildeo Soacute restava entatildeo a saiacuteda que eacute a de Maacuterio de Alencar quando propotildee que aquilo que era transcrito no texto era Catullo e ao mesmo tempo natildeo era Uma ldquoalmardquo falaria em Catullo de forma que apenas ele poderia expressar da melhor maneira essa ldquoalmardquo Uma alma anterior a Catullo e que ele mesmo por ser poeta conhecedor das coisas do sertatildeo era o mais autorizado para traduzir Na apresentaccedilatildeo de Meu sertatildeo o autor reafirmava essa posiccedilatildeo

Se natildeo traduzo a contentoas queixas laacute da violauma coisa me consola ndasheacute contar tudo o que ouviE embora vilipendiadocom inoffensiacutevel ferezapertencer aacute naturezadesta terra em que nasci206

Catullo levou ateacute as uacuteltimas consequecircncias o caraacuteter representa-cional do acontecimento ldquoescreverrdquo de forma que ldquoquem escreverdquo eacute um Outro a partir do escritor O Outro (a alma) fala nele e ele eacute a corpori-ficaccedilatildeo (o autor em uacuteltima instacircncia) de um Outro que estaacute ausente Eacute a ausecircncia do outro (o sertanejo o popular) que vai possibilitar a Catullo ser reconhecido como poeta sertanejo e ele por sua vez precisava dessa ausecircncia para construir-se como tal Catullo da Paixatildeo Cearense quer ser reconhecido como um autor que expressa o Outro da melhor

206 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 28

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forma Por isso ele traduz a fala do Outro Eacute na traduccedilatildeo que reside a funccedilatildeo-autor nos seus poemas sertanejos

Essa ausecircncia da fala do sertanejo fundamental para a represen-taccedilatildeo de Catullo como algueacutem que ldquoescreve porrdquo foi constantemente dramatizada no mundo letrado do periacuteodo que a via como uma perda irreparaacutevel de forma que a novidade de Catullo poeta sertanejo era a novidade de se conhecer o ldquoverdadeiro povordquo em seus livros Eacute dessa crenccedila na busca de uma ldquoverdaderdquo no texto que Catullo vai se valer para conduzir sua literatura a um ecircxito final O caraacuteter de suas poesias serta-nejas o colocava no centro de uma comunicaccedilatildeo que se fazia povoelite letrada E embora o autor nunca quisesse ser confundido com esse ldquopovordquo o momento da escrita monumentalizado por ele e por seus criacuteticos como sendo o momento performaacutetico da alma era o momento de um Catullo sertanejo que operacionalizava essa comunicaccedilatildeo

Ora a autoridade de um artefato literaacuterio comeccedila a se dar quando o indiviacuteduo assume o caraacuteter de invenccedilatildeo do objeto que estaacute escrito mesmo que esse objeto o texto expresse uma conformidade tatildeo veros-similhante que no limite apague seu autor ou se confunda com ele Nesse uacuteltimo caso seu nome parece confundir-se com as coisas que inventa ou conta Catullo assume a traduccedilatildeo como invenccedilatildeo A traduccedilatildeo que liga um ldquoque natildeo estaacuterdquo para seu leitor

Se Catullo eacute tradutor haacute de se fazer a pergunta tradutor de quecirc Aiacute reside a confusatildeo entre ldquoquem escreverdquo e ldquoquem fala por quem es-creverdquo A autoria que eacute retirada de Catullo ndash pela constataccedilatildeo de que afinal natildeo haacute invenccedilatildeo mas traduccedilatildeo de uma alma ndash logo eacute reintrodu-zida por um regime autoral outro que natildeo eacute a de ldquoquem escreverdquo mas de ldquoonde se escreverdquo E quem escreve afinal no caso de Catullo dis-corre da cidade Paixatildeo Cearense eacute apresentado como a autoridade para representar o sertanejo jaacute por ser um homem citadino O sertanejo mesmo natildeo poderia ser poeta pois o interior eacute uma fase ldquoda infacircncia do mundordquo e no interior natildeo haacute poetas Maacuterio de Alencar daacute disso a me-lhor explicaccedilatildeo em prefaacutecio ao livro de Catullo Vejamos

[] A poesia do homem moderno em condiccedilatildeo progressiva devecircra exprimir-se na linguagem da prosa que eacute a forma proacutepria da analyse Perduraria a expressatildeo symmetrica somente em raros poetas que pu-

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 163

dessem ficar alheios aacute marcha analytica e prosaica do espiacuterito humano preservando a alma elementar que foi a da infacircncia do mundo igno-rante na ilusatildeo e no sonho do mysterio A sobrevivecircncia da poesia em verso na maior parte dos que versejam procede da imitaccedilatildeo deleituosa e em si mesma artiacutestica das formas consagradas da belleza Por isso subsistem ainda os gecircneros conservados pelo talento a serviccedilo da von-tade por arte alliada aacute eloquecircncia por economia do esforccedilo e pelo re-flexo inspirador das gloacuterias antigas207

Catullo para Maacuterio de Alencar faria parte desses uacuteltimos pois seria um daqueles que apareceram ldquoem plena civilizaccedilatildeo de desencanto encantados quase selvagens extremes de sciecircncia com os sentidos vir-ginalmente cheios da sensaccedilatildeo directa e simples da vidardquo208 E Maacuterio avanccedilava articulando o autor com a cidade de forma que ldquoo bem ou mal do Catullo foi seu afastamento do sertatildeo natalrdquo pois seria soacute na cidade que certo trabalho espiritual poderia ser dar

O trabalho espiritual procede com a condiccedilatildeo da dualidade da luz e do som que natildeo existem sem o meio transmissor natildeo haacute luz no vaacutecuo natildeo haacute som sem a ondulaccedilatildeo do ar ou a vibraccedilatildeo de um corpo A voz do passado soacute ressoa para o ouvido alheio proacuteximo ou distante mas possiacutevel que a esperanccedila realizaAgora na cidade havia auditoacuterio para escutar o poeta sertanejo e curio-sidade para estimulal-o O thema encurtado em cantigas dilatou-se em poemas209

Esse trabalho ldquoespiritualrdquo do poeta era ainda mais entendido como trabalho empreendido nele (e natildeo soacute dele) quando Maacuterio de Alencar atenta que ldquoTem-se a impressatildeo de que o poeta natildeo descreve por pala-vras senatildeo que as proacuteprias cousas e pessoas surgem vivas em imagens da naturezardquo Ou em outra passagem ldquoA pessoa do poeta se desvanece [] o poeta age inconscientemente sob o domiacutenio da emoccedilatildeordquo210 Ainda

207 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p VIIndashVII

208 Ibidem p VIII209 Ibidem p XI210 Ibidem p X

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo164

ldquoNesse gecircnero e com esse talento natildeo existe continuidade de poesia senatildeo momentos de poesia que natildeo hatildeo de ser buscadosrdquo211

Maacuterio de Alencar traz agrave tona a escrita como acontecimento uacutenico como expressatildeo de uma alma anterior ao poeta que se vale dele para se comunicar Daiacute pensar ldquoImagens dessas natildeo se premeditam natildeo se rebuscam natildeo se inventam em toda uma vida de espiacuterito porque nascem por si sem esforccedilo satildeo a proacutepria linguagem de quem soacute per-cebe por imagemrdquo212

ldquoImagens [] que natildeo se inventamrdquo Eacute neste ponto que haacute uma negaccedilatildeo positiva da invenccedilatildeo no poeta Positiva pois que eacute nessa ne-gaccedilatildeo da invenccedilatildeo que possibilita a construccedilatildeo de um espaccedilo de tra-duccedilatildeo autorizada A inspiraccedilatildeo eacute expressatildeo de algo que jaacute existe A es-crita eacute o momento reservado para essa expressatildeo e Catullo eacute nesse momento uacutenico a alma ldquoCatullo Cearense eacute o vate explosivo emo-cional em quem a alma do sertatildeo e da raccedila brasileira e sua mesticcedilagem faz maravilhosa erupccedilatildeo de sentimentalismo e de sonoridaderdquo213

O escritor na esteira disso eacute o gecircnio autorizado a expressar-se por ser oriundo do sertatildeo embora natildeo seja um sertanejo Essa asserccedilatildeo foi necessaacuteria para estabelecer o diferencial de Catullo com outras pro-duccedilotildees do periacuteodo que se propunham a fazer ver o povo Para fazer essa distinccedilatildeo Catullo natildeo poderia ser apresentado como um coletador um observador um intelectual do folclore Sua autoridade natildeo advinha de uma possiacutevel autoridade intelectual socialmente referendada por uma pesquisa Ele natildeo observa tal qual Siacutelvio Romero Melo Moraes Maacuterio de Andrade ou Afonso Arinos Ele na escrita eacute o popular sertanejo Embora fora desse momento da escrita natildeo o seja E eacute por esse ldquonatildeo ser sertanejordquo que pode ser chamado de poeta Porque tal como afirma Maacuterio de Alencar vivendo no sertatildeo Catullo natildeo seria poeta O poeta soacute existe na cidade Paixatildeo Cearense eacute colocado num espaccedilo hieraacuter-quico onde eacute menos do que um intelectual e mais do que um sertanejo

211 Ibidem p XI212 Ibidem p XIII213 Opiniatildeo do intelectual Faacutebio Luz na Revista das Revistas em 29 de novembro de 1919

em que o editor Castilho fez aparecer em publicaccedilatildeo de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illuminada Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 282 (1ordf ediccedilatildeo em 1924)

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 165

Assertiva esta que fica entendida quando apresentando em versos seu livro Meu sertatildeo ao leitor Catullo dispara

Quizera eu ser ignorantecomo um cantor sertanejoEra esse o me desejoNatildeo ter nenhuma instrucccedilatildeoMas ter o dom do improvisopara dizer de momentoas dores do pensamento e as maguas do coraccedilatildeo214

Natildeo ser um sertanejo dava ainda mais a impressatildeo (de resto ins-tigada por Catullo) de que seus poemas natildeo sendo invenccedilotildees eram a expressatildeo de um Outro E ele por diversas vezes buscou afastar-se de sua identificaccedilatildeo com um sertanejo exatamente como maneira de se afirmar como poeta

Eu sou o maior inteacuterprete do sertatildeoO meu grande meacuterito estaacute nisso em natildeo conhecer o sertatildeo e descrevecirc-lo tatildeo admiravelmentePor isso eacute que eu me considero o maior inteacuterprete do sertatildeo do Brasil 215

Nesse movimento fazia representaccedilotildees de si por meio de compa-raccedilotildees com outros letrados que tematizaram o sertatildeo

[] Naturalmente vocecirc vai me falar de Euclides da Cunha Mas Euclides foi um estudioso um cientista O sertatildeo estaacute em sua obra como uma rosa num livro de botacircnica E a alma do povo E o povo vivendo O povo como ele eacute e natildeo como a gente quer que ele seja Abra um livro meu laacute estaacute o povo cantando e sofrendo o sertanejo vivo dentro do seu ldquohabitatrdquo216

214 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Em caminho do Sertatildeo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 26

215 Em entrevista a Joel Silveira In BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os ho-mens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 192

216 Idem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo166

Aqui a citaccedilatildeo eacute expliacutecita Catullo eacute a expressatildeo da alma ele eacute o ldquointeacuterpreterdquo do sertatildeo Mas como interpretar algo que natildeo conhece O autor tem sua proacutepria resposta a alma Se Euclides conheceu o sertatildeo viu com os proacuteprios olhos Catullo deixa falar em si a alma do povo Seu texto natildeo eacute soacute representaccedilatildeo de um ausente eacute tambeacutem a apresen-taccedilatildeo da representaccedilatildeo em si eacute a proacutepria expressatildeo da coisa que soacute eacute possiacutevel porque Catullo natildeo inventa ele a incorpora em seu momento de escrita

A escolha pelo caminho que melhor levava a uma aceitaccedilatildeo pas-sava inclusive pela construccedilatildeo de poemas que visavam por meio de metaacuteforas a conduzir e regrar a leitura do impresso de forma a compre-ender quem eacute aquele que escreve de construir no texto uma represen-taccedilatildeo de si distinta da de seus personagens No texto de O sonho que eacute uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo do livro feita por Catullo ele se dirige a outros poetas para contar-lhes um sonho que tivera

Poetas Vou contar-vos um sonho em que nrsquoum surto espiritual me transportei ao sertatildeo onde nasci A noite era de pleniluacutenio Bebendo os misteacuterios da lua pelas matildeos da saudade dos 25 anos de ausecircncia alli no regaccedilo dos Mattos indomesticados entrei a cantar os versos que escrevi a essa Virgem Maria dos trovadores Sentia-me opulento mil vezes mi-lionaacuterio porque me encontrava outra vez no coraccedilatildeo do meu palco de folhas E cantava ldquondash Natildeo haacute oacute gente oh natildeo luar como esse do sertatildeordquo ndash quando um velho jequitibaacute onde outrrsquoora me encostava para conversar com os paacutessaros errantes comeccedilou a falar assim lsquoQuem te deu o direito de violar o silecircncio desta noite misericordiosa Que vens aqui fazer nestas soledades onde depois de teres sido confi-dente de nossos melindres jaacute fostes amaldiccediloados pelos nossos cora-ccedilotildees Natildeo nos pertences mais O teu estro estaacute eivado de civilizaccedilatildeo [] Fita a lua O seu brial inturvou-se Como agradercer-te as estro-phes que lhe fizeste se as offerecestes aacute maldita civilizaccedilatildeo217

Catullo construiacutea sua proacutepria representaccedilatildeo de forma a descons-truir uma outra que o via como um proacuteprio homem da natureza receita esta que lhe retiraria a identificaccedilatildeo de poeta A coincidecircncia de seu

217 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p 1

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 167

nome com a de seus personagens se esvaziaria Natildeo foi portanto gra-tuito o aparecimento de uma explicaccedilatildeo no comeccedilo do livro Era a ten-tativa de regrar uma leitura que Catullo sabia poderia enveredar pelos caminhos da criacutetica produzida por Monteiro Lobato Sem o conheci-mento dessa criacutetica seria incompreensiacutevel entender como algueacutem que se avultava como poeta sertanejo introduzia seu livro exatamente com a representaccedilatildeo oposta de si ou seja como algueacutem que era odiado pela natureza do sertatildeo representado no texto pela fala de um velho jequitibaacute

A manhatilde vae despertar e eacute conveniente que ella natildeo te encontre aqui sob a proteccedilatildeo dos meus ramosA alvorada do sertatildeo te odeiaNunca te lembrar-te della que tanto te inspirava Ella estaacute enciumada Cantaste a noite de luar e esqueceste-a Vae miseraacutevel218

Essa representaccedilatildeo visava a afastar o nome de Catullo da identi-ficaccedilatildeo como um sertanejo ndash que lembremos novamente de acordo com Maacuterio de Alencar era uma identidade que natildeo faria do autor um poeta No entanto se de um lado o autor buscava afastar-se do sertatildeo por outro a cidade ainda era encarada como sendo arredia a seus po-emas O ciacuterculo se fecha Assim ainda em O sonho o velho jequitibaacute fala da representaccedilatildeo de Catullo na cidade

Porque natildeo nos offerecestes o livro que publicaste como era do teu dever e gratidatildeo Os poetas e os literatos de laacute te consideram um reacuteles modinheiro um capadoacutecio de insiacutepidas serenatas Fomos vingadosSe estivesses entre noacutes seria um sabiaacute honoraacuterio e o teu livro jaacute teria sido laureado pelos applausos de toda a Natureza219

Todo esse contorcionismo tornava-se necessaacuterio antes de tudo para fazer frente agraves criacuteticas acerca de sua representaccedilatildeo do sertatildeo e do sertanejo Essa receita era tanto mais importante porque avultavam

218 Ibidem p 3219 Ibidem p 4

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo168

no mesmo periacuteodo outras obras que buscavam uma representaccedilatildeo ve-rossimilhante do sertatildeo E essa verossimilhanccedila era imprescindiacutevel uma vez que natildeo se buscava nessas obras com temaacuteticas sertanejas apenas a invenccedilatildeo deliberada do autor mas por uma conveniecircncia histoacuterica a necessidade de conhecer o sertatildeo como forma de entender a naccedilatildeo Esse tema era intransponiacutevel naqueles idos e tornou-se in-clusive algo necessaacuterio para se definir aquilo entendido no rol de ldquoli-teratura nacionalrdquo

Assim a recepccedilatildeo positiva das primeiras obras contendo os po-emas sertanejos de Catullo reafirmou uma predileccedilatildeo por temaacuteticas sertanejas no universo de leitores do periacuteodo Jaacute em 1921 outra publi-caccedilatildeo foi esgotada em sua primeira ediccedilatildeo rapidamente Tratava-se da obra Cantadores a primeira publicada pelo folclorista do Cearaacute Leonardo Mota que veio agrave luz sob o selo da livraria Castilho a mesma de Catullo Cearense

Entusiasmado com o sucesso de vendas ndash alavancado tambeacutem pela polecircmica causada em torno da representaccedilatildeo de um linguajar serta-nejo na obra de Catullo ndash o editor Castilho apostou em novas publicaccedilotildees cujo tema ldquosertatildeordquo fosse o mote Leonardo Mota por seu lado vinha do Cearaacute trazendo na bagagem os resultados de suas pesquisas sobre os ldquocantadores do norterdquo Castilho seguindo a mesma foacutermula usada nas publicaccedilotildees dos livros do autor de Meu sertatildeo fez aparecer vaacuterias opi-niotildees abalizadas no texto de Mota a fim de apresentaacute-lo ao grande puacute-blico O resultado foi uma primeira ediccedilatildeo com dez mil exemplares esgo-tados em pouco tempo que confirmaram o tino de Antocircnio Castilho

Agrave diferenccedila dos livros de Catullo Mota era apresentado como um autor que escrevia o que vira e vivera O recurso agrave alma desaparece do discurso e o recurso da autoacutepsia eacute evocado como o argumento de autoridade Mas ainda aqui era traccedilada uma diferenciaccedilatildeo com outras produccedilotildees proacuteximas agraves dele De Afonso Arinos a diferenccedila eacute essa pro-ximidade que fazia Mota ver melhor do que ningueacutem

Leonardo Motta eacute o confidente da grande alma poeacutetica do sertanejo cea-rense Elle natildeo eacute um estheta como Arinos que amava essas cousas aacute dis-tacircncia que tinha todos os enthusiasmos possiacuteveis pelas nossas tradiccedilotildees e pelas nossas lendas mas natildeo passava de um boulevardier incorrigiacutevel

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 169

[]Leonardo Motta natildeo Tudo o que elle sabe eacute porque viu e porque viveu porque se compraz nisso com um carinho que chega ao sacrifico de si mesmo porque esteve ao lado de nosso homem ruacutestico intimamente natildeo como um viajante apressado mas como um amigo um camarada um irmatildeo misturado com elle integralizado no seu pensamento e nos seus sentimentos mais iacutentimos220

Se essa aproximaccedilatildeo iacutentima com o sertanejo fazia Leonardo Mota ser considerado autoridade para representar o sertatildeo no mundo letrado a falta dessa aproximaccedilatildeo resultava naqueles que a natildeo tinham em constantes recursos a exageros O escritor e criacutetico Joseacute Ameacuterico de Almeida faz dessa comparaccedilatildeo com outros escritores do sertatildeo o seu paracircmetro para representar Leonardo Mota Nela aparece o inevitaacutevel nome de Catullo

Juvenal Galeno Hermiacutenio Castello Branco e Catullo Cearense cada qual com o seu feitio afinam entre noacutes as suas lyras pelas trovas do sertatildeo ndash o uacuteltimo com um deleitoso poder de imagens Mas todos elles incidem em exaggeros que prejudicam aacutes mais das vezes a naturali-dade de suas composiccedilotildees ora elevando a forma acima da meacutedia intel-lectual dos cantadores ora deprimindo-a a uma algaravia com preoccu-paccedilotildees dialectaes extranhas aos modismos populares221

As constantes lutas acerca da melhor forma de representar o homem do sertatildeo faziam com que diversas produccedilotildees buscassem cada qual mobilizando suas respectivas estrateacutegias a autoridade final para expressar o sertatildeo e o sertanejo em seus textos Ademais essa tarefa mesclava-se com um caraacuteter poliacutetico de conhecer melhor o sertatildeo para melhor conhecer a naccedilatildeo Se seguramente essa agenda natildeo esteve tatildeo claramente expressa nas primeiras produccedilotildees sertanejas de Catullo natildeo eacute possiacutevel desdenhar que o sucesso (e a quantidade) de temaacuteticas serta-

220 Opiniatildeo do jornalista Annibal Fernandes que o editor Castilho fez incluir ao final do livro ldquoCantadoresrdquo In MOTTA Leonardo Cantadores poesia e linguagem do sertatildeo cearense Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 391

221 Opiniatildeo do escritor Joseacute Ameacuterico de Almeida que o editor Castilho fez incluir ao final do livro ldquoCantadoresrdquo In MOTTA Leonardo Cantadores poesia e linguagem do sertatildeo cearense Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 395

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo170

nejas na literatura do periacuteodo fosse resultado dessa agenda essencial-mente poliacutetica e que essa mesma agenda tornou-se absolutamente um tema incontornaacutevel para aqueles que buscavam para as suas respec-tivas produccedilotildees o status de nacional que lhes garantisse um lugar na literatura do periacuteodo Afinal a construccedilatildeo da literatura brasileira se pautou historicamente pela regra de que ela deveria ser ldquobrasileira antes de ser literaturardquo Tal eacute o lugar de Catullo

A grande tensatildeo que perpassa essas produccedilotildees eacute a incocircmoda questatildeo de como representar melhor o sertatildeo Se por um lado a voz autorizada da ciecircncia era vista como uma entre as tradutoras mais aba-lizadas desse empreendimento alguns nomes da literatura que desde o seacuteculo XIX construiacuteam esse status buscaram suas proacuteprias estrateacutegias de construccedilatildeo de autoridade

Participando desse lugar de produccedilatildeo textual Catullo da Paixatildeo Cearense evocou a alma como um terceiro elemento entre o poeta e a coisa e buscou a partir dessa tensatildeo a consolidaccedilatildeo de seu nome dentro do panteatildeo da literatura do periacuteodo Esse espaccedilo soacute pocircde ser buscado a partir de um diaacutelogo tenso com outras representaccedilotildees que tambeacutem se faziam no periacuteodo e que faziam elas mesmas suas estrateacute-gias de forma a dar verossimilhanccedila ao que se contava nos livros Tais lutas de representaccedilotildees satildeo perceptiacuteveis nas publicaccedilotildees produzidas e soacute podem ser compreendidas se levado em conta o caraacuteter muacuteltiplo e imprevisiacutevel das escolhas levadas pelos agentes que fizeram o espaccedilo de produccedilatildeo textual da eacutepoca

Esse consoacutercio entre poeta e alma na obra de Catullo teve seu lugar central em 1928 com a publicaccedilatildeo do volume de poesias alvissa-reiramente intitulado Alma do sertatildeo pela livraria editora Leite Ribeiro Seu proprietaacuterio associado a Mauriacutelio Quaresma irmatildeo do antigo editor de Catullo Pedro da Silva Quaresma transformou a editora numa potecircncia a ponto de ser citada em publicaccedilotildees estrangeiras como uma das mais belas do Rio de Janeiro aleacutem de ser frequentada por grandes intelectuais que iam agrave sua loja procurar desde traduccedilotildees de po-etas estrangeiros a jornais

Catullo da Paixatildeo Cearense tornou-se frequentador assiacuteduo de sua casa e teve seu Alma do sertatildeo publicado pela editora e prefaciado

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 171

pelo escritor Maacuterio Joseacute de Almeida A publicaccedilatildeo divide-se em duas partes uma com desafios sertanejos onde o autor repetia a foacutermula consagrada em seus livros anteriores qual seja a de reproduzir a fala sertaneja em poemas sertanejos e outra que constava de reflexotildees em prosa acerca da mulher em julgamentos de personagens de diversos tipos tais como o operaacuterio o anarquista e o mineiro

Maacuterio Joseacute de Almeida escreveu o prefaacutecio sob o tiacutetulo de ldquoAlgumas notas sobre o occupante da cadeira quarenta-e-umrdquo numa clara alusatildeo agrave Academia Brasileira de Letras que por sua vez possuiacutea quarenta cadeiras de ldquoimortaisrdquo da literatura do paiacutes Apresentando-o como o ocupante de tal cadeira de nuacutemero 41 e como um entre aqueles imortais Maacuterio fala dos versos de Catullo ldquoNo verso Catullo tem a expressatildeo que eacute um ldquotrouvaillerdquo da sua singulariacutessima inteligecircncia e uma interpretaccedilatildeo do sentimento humano que ainda natildeo encontrei em outros poetasrdquo222

ldquoInterpretaccedilatildeo do sentimento humanordquo Eacute novamente como tra-dutor que Catullo eacute apresentado Natildeo que isso lhe retirasse a geniali-dade que aqui estaacute ligada a um ldquotrouvaillerdquo um encontro ndash requisito para a expressatildeo traduzida do sertanejo em seus versos no texto Maacuterio avanccedila na explicaccedilatildeo de sua apresentaccedilatildeo-representaccedilatildeo de Catullo a partir dos versos de seus Desafios ldquo[] Estes Desafios satildeo feitos no seu rythmo predilecto Alguns satildeo variantes do folk-lore e ganham brilho na officina de Catullo como as anedoctas tambeacutem produccedilotildees do povo revivem na arte de contar de Humberto de Camposrdquo223

Representaccedilatildeo que garante a Catullo seu reconhecimento como poeta a partir da expressatildeo de um sertanejo que ele traduz De um en-contro que o torna genial por natildeo vir de um trabalho de ldquovirtude dos prosadores que eacute a paciecircncia de Renan de Flaubert de Anatole de Francerdquo mas que por essa falta mesma de virtude transformaacute-lo-ia afinal em algueacutem com uma ldquoingenuidade genialrdquo224

222 ALMEIDA Maacuterio Joseacute de Algumas notas sobre o occupante da cadeira quarenta-e-um In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928 p 21

223 Idem p 21224 Ibidem p 21-23

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Aqui cabe uma reflexatildeo O exerciacutecio da traduccedilatildeo eacute muitas vezes entendido como uma impossibilidade de partida A necessidade de ldquolevar o leitor ao autorrdquo e ao contraacuterio ldquolevar o autor ao leitorrdquo com-preenderia uma aporia inescapaacutevel onde algo sempre se perderia nessa transiccedilatildeo Traduzir aiacute seria servir a dois mestres o estrangeiro em sua obra e o leitor em seu desejo de apropriaccedilatildeo em que o desejo de apro-priaccedilatildeo seria ele mesmo configurado numa traiccedilatildeo agrave obra

No entanto eacute nessa proacutepria incapacidade de traduzir de maneira ldquocorretardquo o escrito ou a fala de um outro que o papel do tradutor dessa figura num lugar equidistante entre o ldquoautor-primeirordquo e o leitor eacute (ou deveria ser) lido para o filoacutesofo Paul Ricouer como um trabalho de criaccedilatildeo A partir daiacute o filoacutesofo sugere a saiacuteda pelo abandono dos dois polos traduziacutevel versus intraduziacutevel e uma aceitaccedilatildeo do luto que resul-taria num ganho ldquo[] o sonho da traduccedilatildeo perfeita equivale ao desejo de um ganho para a traduccedilatildeo de um ganho que seria sem perda Eacute jus-tamente desse ganho sem perda que eacute preciso fazer o luto ateacute a acei-taccedilatildeo da diferenccedila incontornaacutevel do proacuteprio e do estrangeirordquo225

Essa aceitaccedilatildeo do luto estaacute intrinsecamente ligada penso agraves es-trateacutegias empreendidas por Catullo na construccedilatildeo de um espaccedilo distinto para sua autoridade Distinto pois que abriu um caminho possiacutevel no rol de escolhas postas pelo campo literaacuterio brasileiro daqueles tempos O ganho na tarefa de traduccedilatildeo da liacutengua sertaneja por Catullo eacute exata-mente a possibilidade de criaccedilatildeo que reside na representaccedilatildeo do serta-nejo e do seu linguajar exatamente no momento em que o cria

A representaccedilatildeo de um poeta distante do sertanejo soacute pode ser entendida a partir da proacutepria representaccedilatildeo que Catullo cria no texto apresentado como uma espeacutecie de reacutegua medidora diante do seu autor Eacute pela representaccedilatildeo do sertanejo produzido por Catullo que o leitor pode medir a distacircncia daquele que escreve diante daquele que repre-senta e soacute aiacute como o queria entendecirc-lo como um natildeo sertanejo

O texto de Catullo eacute a representaccedilatildeo em suas duas dimensotildees eacute transitiva pois que representa algo (o sertanejo) e reflexiva pois que se

225 RICOUER Paul Sobre a traduccedilatildeo Belo Horizonte UFMG 2011 p 29

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apresenta representando alguma coisa (o texto apresenta o proacuteprio ser-tanejo) Coloca-se como uma tentativa de traduccedilatildeo e criaccedilatildeo Em Catullo a criaccedilatildeo daacute um sentido agrave representaccedilatildeo e natildeo soacute a mostra tal como eacute a coisa que busca representar ou como bem salienta Jacques Le Brun ldquoO texto eacute o sinal de um acontecimento que ele natildeo eacute capaz de dizer Ele apenas diz que um acontecimento teve lugar descreve o que foi feito desse acontecimento como um sentido cristalizou nele []rdquo226

A perspicaacutecia em apresentar Catullo como algueacutem por onde um outro fala eacute a estrateacutegia final nesse jogo de representaccedilotildees que cria aquele que escreve de forma a entregar por meio de diversos artifiacutecios de construccedilatildeo de autoridade a condiccedilatildeo de poeta a este uacuteltimo

Modernos e velhos

O jornal Correio Paulistano em iniacutecios de marccedilo de 1925 vinha em sua sessatildeo de ldquoChronica Socialrdquo assinada por Helios (pseudocircnimo do poeta Menotti Del Pichia) com um tiacutetulo provocador Pau Neles Tratava-se de um comentaacuterio de artigo escrito por Tristatildeo de Athayde em jornal carioca A partir dele Helios fazia um balanccedilo da histoacuteria da literatura brasileira e uma criacutetica agraves novas produccedilotildees literaacuterias

Ateacute hoje nossa arte natildeo tem passado de um reflexo Somos cultural-mente ldquosatellitesrdquo Natildeo temos luz proacutepria Sentimos e creamos por pura repercussatildeoTirante Euclydes da Cunha ou mais algum outro illuminado todo o resto que se fez reproduziu o que veio a bordo de navio de mistura com viacutecios gaulezes e modas das costureiras da extranja E o que eacute peor o ldquomodernismordquo ndash cubismo futurismo dadaiacutesmo etc tecircm a mesma origem natildeo passando afinal de decalques forasteiros servilmente co-piados por alguns espiacuteritos improvisadamente originaes doidinhos para fazerem furos227

226 LE BRUN Jacques Da criacutetica textual agrave leitura do texto Projeto Histoacuteria Satildeo Paulo n 17 p 48 nov 1990

227 Correio Paulistano 6 mar 1925 p 3

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo174

E fazendo uma autocriacutetica de sua proacutepria posiccedilatildeo jaacute que se con-siderava um ldquomodernordquo continuava

A uacutenica coisa uacutetil que se deve aproveitar com o terremoto esthetico do ldquofuturismordquo que sempre defendi eacute uma reacccedilatildeo decisiva contra a cul-tura de importaccedilatildeo para um saacutebio retorno aacute infacircncia esthetica nacional no bom propoacutesito de vermos si no meio desses cacos de artificialidade nos encontraremos a noacutes mesmos228

Conquanto natildeo visse ainda entre os ldquonovosrdquo uma produccedilatildeo ldquobra-sileirardquo Helios se perguntava provocativamente sobre o futuro evo-cando um autor consagrado naquele passado recente como um exemplo de produccedilatildeo autecircntica Enquanto isso disparava contra recentes com-panheiros de busca pelo ldquomodernordquo

Quando noacutes seremos noacutes Quando nos abrasileiraremos Nossa or-chestra mental parece obedecer a uma batuta parisiense O Sr Graccedila Aranha empresaacuterio da uacuteltima temporada literaacuteria nacional trouxe de Paris suas partituras uma irrisatildeoFalam mal de Catullo da Paixatildeo Cearense Esse eacute pelo menos um Homero da raccedila Mil vezes sua rude e agreste poesia que as exque-sitices amaneiradas e exoacuteticas dos escravos do Sr Appolinaire do Sr Defunnto Rimbaud e do meu querido CendrarsTristatildeo de Athayde eacute um valente Quero ler mais artigos como esse para ter a alegria de registrar que haacute ainda em meio da nossa anemia cerebral gente que ndash fora do picadeiro organizado pelo Sr Graccedila e fora do amphitheatro grego do Sr Coelho Netto - enxerga as cousas com olhos puros para conduzir as geraccedilotildees literaacuterias do Brasil ao caminho da sinceridade da beleza e da originalidade real229

A posiccedilatildeo de Menotti com relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo literaacuteria de sua eacutepoca eacute pelo menos provocadora Se por um lado enaltece o ldquofutu-rismordquo por outro destrata a postura de Graccedila Aranha um companheiro que inclusive organizou a Semana de Arte Moderna de 1922 da qual participara Menotti ndash e que jaacute naquele momento incompatibilizava-se

228 Idem229 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 175

com muitos dos participantes da Semana Critica certos estrangeirismos modernos ainda assim natildeo deixa de enxergar no consagrado Coelho Netto a imagem da nossa ldquoanemia cerebralrdquo Embora acredite na con-duccedilatildeo de novas ldquogeraccedilotildees literaacuteriasrdquo ao ldquocaminho da sinceridade da beleza e da originalidaderdquo observa em Catullo da Paixatildeo Cearense um siacutembolo jaacute existente dessa originalidade porvir identificando-o como um ldquoHomero da raccedilardquo

A presenccedila de Catullo no excerto natildeo eacute gratuita Catullo era um artista consagrado pela elite letrada paulista que via em seus poemas sertanejos a expressatildeo de uma originalidade popular Mas aqui o que salta aos olhos eacute o conteuacutedo ambiacuteguo de uma prospectiva acerca da li-teratura Prospectiva que mescla num discurso que visa agrave mudanccedila tanto elementos considerados antigos quanto modernos de forma a compor aquilo que Menotti considerava vaacutelido como ideal para ser cha-mado nas palavras do autor de construccedilotildees com valor de ldquooriginali-dade realrdquo

Entretanto haacute de se salientar a opiniatildeo de Menotti e seu olhar sobre a produccedilatildeo contemporacircnea natildeo devem ser entendidos como uma voz uniacutessona dos participantes da Semana de 1922 Maacuterio de Andrade em uma criacutetica aguda escrita no Diaacuterio Nacional em 1931 dispara contra uma pretensatildeo aventada por Menotti de considerar a produccedilatildeo de Catullo como expressatildeo de um tipo ldquopopularrdquo Maacuterio argumenta rai-vosamente que o que poetas como

[] um Catullo Cearense realizam natildeo eacute nem de nenhuma maneira se podem comparar com a poesia popular Eacute arte arte da mais livre tatildeo esteticamente livre como qualquer Parnasianismo O que eles tiram do povo eacute apenas o elemento de curiosidade de prazer Na verdade eles estatildeo fazendo arte contra o povo arte burguesa em que os elementos po-pulares se tornam motivos de divertimento e natildeo de comoccedilatildeo Enfim o popularesco de que eles se servem eacute um exotismo romacircntico laccedilo de fita enfeite para uma obra-de-arte visceralmente individualista e que como individualista pode ser magniacutefica E este eacute de fato o caso de Catullo Cearense que nos seus primeiros livros chegou a ser magniacutefico230

230 ANDRADE Maacuterio de Taacutexi e crocircnicas no Diaacuterio Nacional Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1976 p 51

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo176

O que se depreende dos trechos acima citados eacute que para uma compreensatildeo do campo literaacuterio brasileiro dos anos 1920 e 1930 tor-na-se imperativa uma investigaccedilatildeo ainda sobre a operacionalizaccedilatildeo do termo ldquopopularrdquo no seio de uma nova concepccedilatildeo de literatura Se alguns aspectos de busca pela originalidade na produccedilatildeo cultural do periacuteodo podem ser definidos por uma apologia do novo ndash termo que se confunde muitas vezes com original mas que natildeo diz a mesma coisa ndash esse novo tematizado dentro de certas produccedilotildees era constituiacutedo natildeo soacute de ele-mentos formais de velhas produccedilotildees mas tambeacutem da discussatildeo reno-vada de velhas temaacuteticas entre as quais aquilo que assegurava o reco-nhecimento de Catullo como ldquoHomero da raccedilardquo qual seja certa noccedilatildeo de ldquocultura popularrdquo

Se os projetos modernistas se propunham a renovar e criticar aquilo entendido como velho e ultrapassado esses mesmos velhos e ultrapassados eram visados como totalmente incontornaacuteveis para se buscar uma originalidade que como ainda natildeo existia como fato artiacutes-tico (diagnoacutestico de Menotti) deveria ser buscado como projeto cul-tural (ideal de Maacuterio) Daiacute buscar naquilo que se entendia vir do ldquopovordquo a expressatildeo verdadeira da ldquoculturardquo Eacute nesse espaccedilo de busca por uma nova expressatildeo que eacute renovada a discussatildeo do ldquopopularrdquo

Entretanto se artistas considerados ldquovelhosrdquo nutriam-se de seu reconhecimento como ldquopopularesrdquo os termos para se definir ldquopo-pularrdquo foram reavaliados Catullo sendo um dos consagrados sob esse termo seria objeto de discussotildees e reflexotildees acaloradas no seio dessa renovaccedilatildeo

Ser ldquomodernordquo autorizava na eacutepoca distintas representaccedilotildees O jornal O Paiz de fins de 1920 vinha com uma chamada em letras grandes de um conselho ldquoMonsenhor Dubois arcebispo de Paris con-cita o elemento feminino a abster-se das modas e dansas ditadas pelo modernismordquo231 Aqui o modernismo eacute tomado em negativo mas po-deria ser tambeacutem um adjetivo positivo quando o objetivo era vender um produto ldquoAo 1ordm Barateiro a casa que daacute sempre a nota em artigos finos

231 O Paiz 20 dez 1920

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 177

do mais alto luxo e maior modernismo parisienserdquo232 E se havia em-polgados com as novidades havia aqueles que desdenhavam de alguma mudanccedila vendo apenas um tempo igual aos outros A escritora Branca Colaccedilo assim pensava

Tambeacutem a mim [] me natildeo empolga o modernismoNatildeo quer isto dizer que natildeo aprove certos modernismos se me parecem sensatos O nosso tempo tem senotildees sem duacutevida mas tambeacutem tem vantagensEste conceito eacute profundo Se lhe acrescentarmos que a maior parte das qualidades e dos defeitos de uma eacutepoca depende da subjectividade da pessoa que os aprecia chegamos aacute conclusatildeo transcendente de que es-tamos num tempo como outro qualquer233

Por seu lado a renovaccedilatildeo das artes brasileiras ndash postura assumida tanto por Menotti quanto por Maacuterio ndash recolocava no caminho da dis-cussatildeo sobre a literatura moderna um uso especiacutefico do termo ldquopo-pularrdquo Na produccedilatildeo literaacuteria que antecedeu a movimentaccedilatildeo de 22 a denominada ldquoregionalistardquo era de longe a que possuiacutea mais know-how entre os letrados

Como jaacute analisamos ainda entre os novos modernistas paulistas o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense era saudado com entusiasmo e de fato ele era aquele que mais controveacutersia iria causar pois que se de um lado Monteiro Lobato Valdomiro Silveira Corneacutelio Pires (autores paulistas tambeacutem reconhecidos como ldquoregionalistasrdquo) podiam facil-mente ser definidos como letrados que tematizavam o interior por outro a figura ambiacutegua de Catullo soava bem mais incocircmoda e de di-fiacutecil qualificaccedilatildeo entre os ldquomodernistasrdquo Isso porque o autor era tido como um sertanejo e a proacutepria postura de Catullo apresentando-se ves-tido de marrueiro fazia com que essa representaccedilatildeo ganhasse forccedila Poreacutem seu ingresso em temas natildeo sertanejos representados em seus

232 O Paiz 7 ago 1921 233 Trecho do folhetim ldquoCartas aacute Maroquinhardquo da lisbonense Branca de Gonta Colaccedilo

publicada em partes no jornal O Paiz em 1921 O trecho exposto eacute de 1ordm de outubro daquele ano

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo178

uacuteltimos livros e principalmente seus escritos natildeo sertanejos ao sabor de parnasianos contendo palavras dificiacutelimas de compreensatildeo mesmo para um letrado da eacutepoca desautorizavam-no a ser compreendido como um produto de ldquooriginalidade realrdquo ou como Maacuterio de Andrade frisava Catullo se parecia mais com um ldquoexotismo romacircnticordquo

A grande questatildeo que se colocou foi o que fazer com uma pro-duccedilatildeo ldquoregionalistardquo jaacute consagrada Desqualificaacute-la somente levaria agrave negaccedilatildeo de partida da necessidade de se voltar para uma produccedilatildeo brasileira que tematizava o interior pois o interior era tido como espaccedilo de conhecimento essencial para se produzir uma ldquoliteratura nacionalrdquo tambeacutem pelos novos artistas Natildeo foi agrave toa que a figura de Euclides da Cunha foi constantemente evocada como membro seleto da ldquogeraccedilatildeo preacute-modernistardquo

A produccedilatildeo de Catullo com temas sertanejos eacute vasta Meu sertatildeo (1918) Sertatildeo em flor (1919) Poemas bravios (1921) Mata iluminada (1924) O evangelho das aves (1927) Alma do sertatildeo (1928) Faacutebulas e alegorias (1928) e Meu Brasil (1928) aleacutem de alguns musicais para o teatro Mas no meio dessa bibliografia haacute de se destacar um pequeno livro de poemas dedicados aos pescadores com o tiacutetulo de Os pesca-dores editado pela Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores do Brasil em 1923 Escrito em homenagem ao Dr Paulo Vianna presidente da Confederaccedilatildeo nesse livro ao deixar de lado a temaacutetica sertaneja que o consagrou Catullo faz algumas observaccedilotildees sobre a publicaccedilatildeo diri-gindo-se no prefaacutecio ao comandante do barco ldquoRepuacuteblicardquo o Filoacute

Aqui estaacute o Poema que vocecirc e seus collegas me pediram que escre-vesse Penso eu que estas paacuteginas satildeo o documento fiel de tudo o que ouvi de sua bocca [] Como veraacute este Poema natildeo eacute uma fantasia Os arrebatamentos de enthusiasmo que explodem de quando em quando natildeo prejudicam a veracidade da documentaccedilatildeo234

Vou me ater a um termo que reputo fundamental para avanccedilar na compreensatildeo da relaccedilatildeo de Catullo com a(s) criacutetica(s) ldquomodernista(s)rdquo

234 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Aos pescadores Rio de Janeiro Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 1923 p 11-12

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 179

documento Na passagem anterior o caraacuteter verossiacutemil do poema apre-sentado eacute atestado por um ldquoouvi de sua boccardquo mdash no caso da boca de um pescador Essa condiccedilatildeo de ouvinte visava a transmitir para seu leitor uma sensaccedilatildeo de veracidade Aqui o ldquosentirrdquo evocado por Catullo nos seus poemas sertanejos eacute substituiacutedo por um ldquoouvirrdquo Em ambos os casos buscava-se um objetivo comum que eacute a fidelidade com um real que existe fora do texto O texto eacute aqui tambeacutem como nos poemas serta-nejos ldquodocumento fielrdquo e por isso Catullo alerta ao seu leitor que seu ldquoenthusiasmordquo natildeo deveria prejudicar a ldquoveracidade da documentaccedilatildeordquo

Eacute exatamente esse vieacutes documental da escrita literaacuteria que vai ser questionado pelos novos escritores acerca da dita ldquoliteratura regiona-listardquo ateacute ali Natildeo que essa tradiccedilatildeo documental fosse algo a ser cons-truiacutedo na produccedilatildeo literaacuteria do periacuteodo mas naquele momento essa mesma tradiccedilatildeo foi sendo ressignificada como projeto literaacuterio ga-nhando novos contornos e balizas definidoras de aceitaccedilatildeo de uma obra ou de um autor como literatura brasileira Aqui haacute um corte quase im-perceptiacutevel mas fundamental na histoacuteria literaacuteria no Brasil que visa construir um novo projeto de literatura que coloque em xeque toda tra-diccedilatildeo recebida Daiacute aspectos como velhonovo antigomoderno ga-nharem realces nessa produccedilatildeo natildeo tanto como constataccedilotildees temporais de uma literatura anterior mas termos (des) qualificadores e baliza-dores de uma nova esteacutetica que se propunha criar Daiacute a literatura nas-cente com a provocaccedilatildeo modernista de 1922 ser portadora de uma con-cepccedilatildeo literaacuteria que visa tambeacutem a construir uma Histoacuteria A escrita de uma histoacuteria literaacuteria eacute tambeacutem projeto de afirmaccedilatildeo da nova produccedilatildeo que surgia

Essas mesmas qualificaccedilotildees temporais Catullo da Paixatildeo Cea-rense vai dramatizar em seus poemas Ainda no iniacutecio do livro de po-emas Os pescadores o narrador de Catullo assim fala ao proacuteprio autor explicando-lhe como deve ser escrito o poema e o porquecirc da escolha do poeta para contar os feitos dos pescadores

Peccedila aacute Musa sertanejaque lhe tempere aacute violaa viola que lhe consolasuas tristeza e maguas

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo180

e cante alegre e saudosaa nossa vida penosamas sempre linda e gloriosaque o mar eacute o sertatildeo das aacuteguas

[]

Tome a viola predilectaVenha com a gente viverNatildeo nos importa saberse o seu Catullo eacute um artistafuturista ou penumbristabello feio antigo ou novoporque soacute nos interessasaber se cumpre a promessao poeta do nosso povo235

Os termos qualificadores de si aparecem na proacutepria represen-taccedilatildeo que Catullo faz aparecer em seus textos E se essa tensatildeo expressa obrigava a uma posiccedilatildeo do autor diante de seu puacuteblico leitor nem sempre isso se deu de forma paciacutefica

Em seu livro Faacutebulas e alegorias (1928) Catullo fez aparecer em uacuteltimo poema que encerra a publicaccedilatildeo uma raivosa declaraccedilatildeo de triunfo sobre todos os seus criacuteticos entre eles aqueles que identificava como ldquoFuturistas-legionaacuteriosrdquo Intitulada de A carta de um trovador o narrador do poema diz de uma carta que recebeu de um trovador conhe-cido Vale a transcriccedilatildeo

Um trovador conhecido grande rival das cigarrasamigo das antigas farrase orgulhoso do seu ldquoEurdquoa cada um dos seus ldquocriacuteticosrdquondash pavotildees sapos e ldquocatitasrdquo ndashe outros mais hermaphroditas ndashque eu transcrevo linha a linhatal como elle as escreveu

235 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Aos pescadores Rio de Janeiro Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 1923 p 15-16

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ldquoZoilos Parvos AretinosCriticoacuteides pequeninosPassadistas refractaacuteriosFuturistas-legionaacuteriosdos mais tolos desatinosPoetastros retardataacuteriosReis e Priacutencipes cretinosVecircde pobres cerebrinosMinha glorificaccedilatildeo

Nrsquouma dessas noites bellasToda branca toda nua ndash noite de recordaccedilatildeo ndasheu ouvi Deos e seus archanjosem serenatas aacutes estrellascantando dentro da Luao meu lsquoLuar do Sertatildeorsquordquo236

Informaccedilatildeo importante o poema eacute dedicado ldquoAacute minha megalo-mania ndash a mais humilde das virtudes que Deos me deurdquo Em geral re-presentado como algueacutem muito vaidoso e com pretensotildees poeacuteticas aleacutem do que realmente merecia Catullo parecia cada vez mais assumir sua vaidade argumentando como sendo uma mera constataccedilatildeo de sua gran-deza Natildeo eacute de se admirar que o mesmo poema acima citado voltasse a aparecer em seu livro seguinte Meu Brasil mas jaacute sem a primeira es-trofe que antecede a carta do suposto ldquotrovadorrdquo As apreciaccedilotildees sobre suas poesias que os seus editores faziam aparecer soacute aumentava para seus criacuteticos essa representaccedilatildeo exagerada do poeta

Uma das opiniotildees que fez gravar em um de seus livros Matta iluminada em sua 27ordf ediccedilatildeo foi a de Maacuterio de Andrade agrave qual nos reportaremos pois nela reside um dos artifiacutecios que constroem a repre-sentaccedilatildeo de si como grande poeta Vejamos

No livro do poeta publicado pela livraria Castilho a opiniatildeo de Maacuterio estaacute assim publicada ldquoCatullo eacute o maior criador de imagens da

236 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Faacutebulas e alegorias Rio de Janeiro Officina Industrial Graphica 1928 p 242-243

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo182

poesia brasileira O seu livro ldquoMeu Sertatildeordquo eacute pouco menos que genial Eacute o espantoso criador de imagemrdquo237

Trata-se portanto de uma elogiosa criacutetica de um Maacuterio de Andrade consagrado nos anos 1930 como um dos maiores literatos do paiacutes O curioso eacute que em tal apreciaccedilatildeo foi suprimido todo o resto da criacutetica maior e aacutecida de Maacuterio de Andrade leitor de Catullo da Paixatildeo Cearense O trecho eacute parte de uma crocircnica publicada no Diaacuterio Nacional de 20 de dezembro de 1931 em que eacute verdade depois de elogiosas observaccedilotildees sobre o primeiro livro de Catullo Meu sertatildeo Maacuterio dispara contra toda a produccedilatildeo posterior do poeta sertanejo

Andei relendo Catullo Cearense estes dias Catullo depois dos seus livros de modinhas e lundus acariocados que pouca gente conhece e franqueza natildeo ultrapassam o valor da literatura de cordel do mesmo gecircnero redescobriu pra uso proacuteprio a poesia rural duma regiatildeo Nessa imitaccedilatildeo eacute que ele tornou-se um poeta admiraacutevel certamente o maior criador de imagens da poesia brasileira Com Meu Sertatildeo dava um livro pouco menos que genial E acabou Nos outros livros de primeiro inda surgia quando senatildeo quando um lampejo do imaginista maravilhoso de Meu Sertatildeo mas era um lampejo soacute ateacute que o poeta se esbandalhou inteiramente em livros escurecidos pela vaidade E principalmente pela civilizaccedilatildeo []Mas esta civilizaccedilatildeo era falsa importada Deu um brilho momentacircneo fulgurante pro pobre do brasileiro mas depois foi corroendo corroendo ele por dentro deformando-o nulificando Os uacuteltimos livros de Catullo Cearense natildeo satildeo nada238

A insinuaccedilatildeo no texto publicado pelo editor de Catullo de uma aprovaccedilatildeo vinda de um criacutetico jaacute consagrado em iniacutecios dos anos 1930 predispunha a aquisiccedilatildeo e leitura regrada do mesmo texto Funcionava antes como publicidade editorial e daiacute conduzia o leitor agrave crenccedila de que estaria lendo um autor aprovado por seus pares literatos

237 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illuminada 27 ed Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 230

238 ANDRADE Maacuterio de Taacutexi e crocircnicas no Diaacuterio Nacional Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1976 p 375-377

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Esses artifiacutecios foram mais de uma vez utilizados nas publicaccedilotildees de Catullo No volume de poemas intitulado O evangelho das aves (1927) seu editor Castilho fez aparecer um elogio de Joatildeo Ribeiro ldquoCatullo Cearense eacute um poeta nacional natildeo tenho duacutevidardquo239 Mas desa-parece o restante da criacutetica que originalmente foi publicada no jornal O Imparcial em dezembro de 1918 e que se completa com ldquo[] mas tatildeo artificioso como os outros poetas cultos e talvez mais do que ellesrdquo240

O contato da obra de Catullo da Paixatildeo Cearense com o puacuteblico paulista e o sucesso de puacuteblico que obteve exatamente no momento imediatamente anterior agrave explosatildeo da Semana de Arte Moderna de 22 potildee um questionamento fundamental para se compreender as escolhas posteriores da movimentaccedilatildeo modernista quais foram os limites para a determinaccedilatildeo do caraacuteter ldquomodernordquo de uma obra E jaacute avanccedilando uma resposta teraacute havido ainda nos anos 1920 uma definiccedilatildeo da movimen-taccedilatildeo de 22 com criteacuterios que buscassem estabelecer o que poderia caber sob o nome de ldquomodernismordquo

Aqui o que se deve reaver me parece eacute uma histoacuteria que lanccedilou para o passado um olhar em linha reta sobre o modernismo e que nessa tarefa buscou fincar as raiacutezes de uma ruptura no evento de 1922 Mais buscou nos seus antecedentes traccedilos que ldquopreparassemrdquo para a ruptura que viria naquele ano Essa anaacutelise natildeo obstante ter resultado numa infin-daacutevel bibliografia que construiu os alicerces do que hoje compreendemos como ldquomodernismordquo na literatura brasileira esqueceu-se natildeo raras vezes de historicizar na movimentaccedilatildeo aquilo que ela mais procurou construir ou seja a definiccedilatildeo de algo entendido como ldquomodernistardquo

O ldquoregionalismordquo ndash termo que por si soacute jaacute indicava algo proble-maacutetico para se definir a produccedilatildeo de autores muito diferentes entre si ndash era na construccedilatildeo de um tipo de literatura brasileira canonizada nos ma-nuais especialmente poacutes-anos 1940 um tipo de produccedilatildeo negada por alguns ldquomodernistasrdquo Mas quando se observa que os mesmos artistas que participaram da Semana de 22 eram aqueles que patrocinavam as

239 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O evangelho das aves Rio de Janeiro Livraria Castilho 1927 p 270

240 O Imparcial 2 dez1918 p 2

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apresentaccedilotildees de motivos regionais e saudavam a apariccedilatildeo de autores que faziam de suas obras uma apresentaccedilatildeo do homem do interior algo parece para um investigador atento natildeo estar tatildeo bem problematizado

Em um famoso artigo com um tiacutetulo explicativo de ldquoRegio-nalismordquo em que Menotti Del Pichia defende a necessidade imperativa do ldquoregionalismordquo nas artes produzidas no Brasil o escritor inicia criti-cando um tipo de ldquoregionalismordquo que assustaria os proacuteprios persona-gens dessas produccedilotildees

Quem vecirc o Brasil com olhos parisienses acha qualquer manifestaccedilatildeo de brasilidade cheirando a regionalismo Eacute tatildeo pequeno o trato que nossos escriptores tecircm com a nossa terra e com nossa gente e tatildeo afinados pelo diapasatildeo forasteiro estatildeo seus rhythimos e sua arte que extranham nossos Tiotildees e Maricoacutetas nossos bragados e sacysO regionalismo reside numa demarcaccedilatildeo exacta de fronteiras numa uti-lizaccedilatildeo em ambiente local de pequenos episoacutedios locaes vasado numa linguagem com caracteriacutesticos typicamente locaes Esta arte interessa relativamente apenas como contribuiccedilatildeo de material Agora quaesquer desses themas quando contecircm episoacutedio humano cujo sentido eacute uni-versal isto eacute comum a todas as raccedilas mesmo que sejam vincados por uma forte physionomia ambiental perdem facilmente seu caracter re-gionalista pelo espiacuterito de universalizaccedilatildeo que o artista lhe daacute241

Menotti daacute sua opiniatildeo sobre um tipo de praacutetica que para ele sob a forma de um ldquoregionalismordquo faria exatamente o contraacuterio de mostrar o regional apresentaria na realidade no momento mesmo em que era produzido o sentido uacuteltimo daqueles que o faziam

O que haacute em certos escriptores nossos eacute o pudor de parecerem brasi-leiros Eacute um viacutecio do caipirismo intransigente exacerbado por viagens elegantes Isso ou mania de espantar brasileiro com um jaacute desmorali-zado cosmopolitismo beoacutecio e contra matildeoO regionalismo tem-se expressado entre noacutes por documentaccedilotildees muito typicas mas quase todas mediacuteocres Seu transito eacute curto Fechas-se dentro de uma compilaccedilatildeo do ldquofolk-lorerdquo Tem accusado uma grande indigecircncia mental

241 DEL PICHIA Menotti Regionalismo Correio Paulistano 3 out 1926 p 3

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[]Entre noacutes pela razatildeo desse pudor invenciacutevel que muitos escriptores ainda tecircm de revoltar-se na cacircndida expressatildeo do caracter da nossa raccedila achando mais elegante pensar e sentir aacute moda extrangeira a questatildeo do regionalismo eacute muito mal comprehendida []Precisamos mudar de rumo Olhar com olhos exactos sem daltonismos gaulezas nossa terra nossa gente este ldquoimmenso e colosso giganterdquo que se chama Brasil[]Eacute diffiacutecil confesso Para se ver o Brasil como elle eacute necessita-se ter es-tado em contacto directo e commovedor com a alma da terra Eacute preciso a coragem vibrante de ser brasileiro bem brasileiro em todos os defeito [sic] e em todo o primitivismo inaugural da grande paacutetria nascente Eacute preciso ter a alma cacircndida natildeo viciada em gallicismos sensoriaes e es-pirituaes Eacute preciso afinal integrar-se no seu admiraacutevel rhythmo para poder exprimir sua majestosa belleza242

Trata-se de um verdadeiro libelo contra um tipo de ldquoregiona-lismordquo que para Menotti natildeo poderia se dar mais Daiacute propotildee uma nova postura de ldquocontacto directordquo com a ldquoalma da terrardquo como uacutenica saiacuteda para se representar de fato o paiacutes Aiacute natildeo se trata da condenaccedilatildeo do ldquoregionalismordquo nas artes brasileiras mas da necessidade de uma natildeo estilizaccedilatildeo do regional em nome de algo maior que seria o ser brasi-leiro que natildeo negaria a regiatildeo ao contraacuterio ele teria de conhececirc-la di-retamente sem intermediaacuterios sem ldquogallicismosrdquo a fim de desco-brir-se assim o brasileiro

A sentenccedila eacute longa mas esclarecedora da complexidade subja-cente agrave discussatildeo sobre ldquoregionalismosrdquo nas artes brasileiras O perigo aqui eacute tomar um discurso que se traduz na escrita de um modernista como Menotti como uma opiniatildeo uniacutessona dentro daquilo entendido como ldquomodernismordquo Eacute bem verdade que uma histoacuteria da literatura bra-sileira se debateu sobre conflituosas discussotildees que se deram quase que imediatamente apoacutes a Semana de 22 Mas se esses debates se davam naquilo que deveria ser entendido como ldquomodernordquo deixaram de lado

242 DEL PICHIA Menotti Regionalismo Correio Paulistano 3 out 1926 p 3

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a anaacutelise histoacuterica do momento em que algumas obras identificadas jaacute existentes e entendidas como ldquoregionalistasrdquo estiveram em disputa no meio dessa discussatildeo sobre o ldquomodernordquo

Embora Catullo mantivesse um conflito aberto com o chamado ldquofuturismordquo nas artes brasileiras eacute necessaacuterio salientar que se vivia um momento de construccedilatildeo histoacuterica de um termo o ldquomodernismordquo A se-leccedilatildeo de autores que pairavam abaixo desse epiacuteteto em fins dos anos 1920 e comeccedilo dos anos 1930 natildeo era de faacutecil delimitaccedilatildeo

Manuel Bandeira consagrado pela histoacuteria literaacuteria brasileira como um modernista era amigo pessoal de Catullo e nessa relaccedilatildeo havia uma admiraccedilatildeo muacutetua Isto nunca foi entrave para que Bandeira se referisse a Catullo como muitas vezes o fez como um personagem caricato Na esteira da necessidade novamente imposta pelos ldquonovosrdquo de representar melhor o paiacutes em sua literatura Bandeira tal qual Maacuterio de Andrade relega a poesia de Catullo a uma simples ldquocriaccedilatildeo de ima-gensrdquo e portanto superficial passando longe do que seria um suposto sertatildeo de verdade Explica

Catullo da Paixatildeo Cearense Eacute sem duacutevida um poetatildeo um sujeito que fabrica imagens com surpreendente facilidade Mas eacute tatildeo cidade quanto noacutes outros Natildeo se confunde com o sertatildeo Eacute um sertatildeo de saudade o seu Um sertatildeo muito saiacutedo de vocabulaacuterios regionais O que tem mais gosto de sertatildeo nos seus poemas satildeo as lagoas do Nordeste cujo en-canto sentiu e sabe transmitir como ningueacutem em dois trecircs versos ele potildee nos olhos e no coraccedilatildeo da gente a deliacutecia de uma Pajuccedilara243

Bandeira ainda termina sua criacutetica arrematando que Catullo era como o romacircntico francecircs ldquoo Victor Hugo do sertatildeordquo Haacute aqui uma desqualificaccedilatildeo exatamente no ponto onde eacute mais enobrecida sua po-esia Ela eacute positiva pois joga com imagens e negativa para as novas pretensotildees almejadas por Maacuterio pois essas imagens satildeo meras criaccedilotildees A nova literatura ao que parece natildeo poderia lanccedilar matildeo da imaginaccedilatildeo

243 A Proviacutencia 14 abr 1929 Reeditado em BANDEIRA Manuel Crocircnicas da proviacutencia do Brasil Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2006 p 144

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Ela deveria como nos faz crer Maacuterio e Bandeira jogar com a realidade Ela se confundiria com o documento

Nas opiniotildees de Maacuterio de Andrade e Manuel Bandeira vecirc-se o flagrante de um processo de construccedilatildeo do ldquomodernismordquo que se deu de forma a elencar os autores que pudessem ser natildeo tanto identificados como ldquomodernosrdquo mas antes que pudessem natildeo figurar como autores de uma literatura brasileira Essa tarefa desloca a anaacutelise para uma questatildeo fundante que ficou ao que parece de fora de toda uma dis-cussatildeo acerca da construccedilatildeo do ldquomodernismordquo de 22 a concomitante refundaccedilatildeo da ldquoliteratura brasileirardquo

O rompimento com certos autores excluiacutedos do rol dos ldquomoder-nistasrdquo eacute antes de tudo um apagamento E se o criteacuterio para essa exclusatildeo nem sempre foi consensual tamanhas distinccedilotildees daqueles que reivindicavam o caraacuteter moderno de suas produccedilotildees ela mesma foi sistemaacutetica Daiacute soar estranho dizer conforme eacute comum em anaacute-lises de 22 em linhas gerais que o modernismo foi uma reaccedilatildeo contra o parnasianismo poeacutetico o regionalismo e o romantismo Isso pocircde provocar mais um desentendimento sobre o que estava posto nos anos 1920 e 1930 no Brasil literaacuterio

Catullo da Paixatildeo Cearense natildeo eacute criticado em nenhum mo-mento por seu regionalismo dignificador da figura sertaneja nem Monteiro Lobato eacute criticado por assumir posteriormente a imagem de um Jeca viacutetima tampouco Euclides da Cunha eacute apagado de uma histoacuteria literaacuteria em construccedilatildeo pela ambiguidade muitas vezes eno-brecedora com que trata o homem do sertatildeo Pelo contraacuterio Maacuterio de Andrade e Manuel Bandeira amplificam a necessidade irrevogaacutevel da literatura voltar-se de maneira menos imaginosa ao Brasil Eacute aiacute que residem suas criacuteticas severas a Catullo Ao que parece natildeo se trata da busca por uma literatura que procura narrar uma suposta re-alidade como uma literatura em documento mas de uma literatura que persiga a verossimilhanccedila mesmo que se valha de elementos de uma poesia ou prosa formais Essa era uma caracteriacutestica visada nos textos de modo que estes pudessem pela mediccedilatildeo de uma imagi-naccedilatildeo deturpadora ou natildeo da realidade ser separados entre ldquofutu-ristasrdquo e ldquopassadistasrdquo

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo188

O criteacuterio para se decidir o ldquograu imaginativordquo de uma produccedilatildeo literaacuteria esse sim era algo que provocava desentendimentos entre os proacuteprios modernistas de primeira hora Quando da publicaccedilatildeo do polecirc-mico Pau Brasil de Oswald de Andrade o prefaacutecio do livro escrito pelo maior mecenas da invasatildeo modernista paulista nas artes Paulo Prado trazia uma opiniatildeo controversa sobre Catullo Defendendo a criaccedilatildeo de uma arte brasileira Prado faz um balanccedilo de uma histoacuteria literaacuteria para ele ultrapassada mas que mesmo com suas idiossincra-sias trouxe pelo menos dois grandes artistas Casimiro de Abreu e Catullo da Paixatildeo Cearense Vejamos

Em poliacutetica o chamado ldquogrito do Ipirangardquo inaugurou a deformaccedilatildeo da realidade de que ainda natildeo nos libertamos e nos faz viver num sonho de que soacute acordaraacute alguma cataacutestrofe benfeitora Em literatura nenhuma outra influecircncia poderia ser mais deleteacuteria para o espiacuterito nacional Desde o aparecimento dos Suspiros poeacuteticos e saudades de Gonccedilalves de Magalhatildees que os nossos poetas e escritores ateacute os claros dias de hoje tecircm bebido inspiraccedilotildees no cracircnio humano cheio de bourgogne com que se embebedava Child Harold nas orgias de Newstead O li-rismo puro simples e ingecircnuo como um canto de paacutessaro soacute o ex-primiram talvez dois poetas quase desprezados ndash um Casimiro de Abreu relegado agrave admiraccedilatildeo das melindrosas provincianas e caixeiros apaixonados outro Catullo Cearense trovador sertanejo que a mania literaacuteria jaacute envenenou Foram esses melancoacutelicos desalinhados e sin-ceros os dois uacutenicos inteacuterpretes do ritmo profundo e iacutentimo da Raccedila como Ronsard e Musset na Franccedila Moeriken e Uhland na Alemanha Chaucer e Burns na Inglaterra e Whitman nos Estados Unidos Os outros satildeo lusitanos franceses espanhoacuteis ingleses e alematildees versifi-cando numa liacutengua estranha que eacute o portuguecircs de Portugal esbanjando talento e mesmo gecircnio num desperdiacutecio lamentaacutevel e nacional244

Eacute possiacutevel observar no trecho citado a opiniatildeo de Paulo Prado acerca de certa nova literatura que se procurava construir atraveacutes dos exemplos tanto de antigos autores (Casimiro e Catullo) quanto de au-tores estrangeiros (Ronsard Musset Whitman etc) Eacute importante frisar que havia para o mesmo autor um tipo de literatura que poderia con-

244 PRADO Paulo Poesia Pau Brasil In ANDRADE Oswald Pau Brasil Satildeo Paulo Globo 2003 p 90 (1ordf ediccedilatildeo em 1925)

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 189

duzir um escritor a certa mania literaacuteria se assim ela fosse obsessiva-mente buscada Essa visada a uma ldquomania literaacuteriardquo eacute que deveria para Prado ser evitada Daiacute sua criacutetica a Catullo que se embrenhava se-gundo ele nesse caminho

Ademais dentro da mesma argumentaccedilatildeo haacute um elogio do que fora produzido de modo que tornava absolutamente impossiacutevel traccedilar marcos de ruptura que pudessem balizar a nova produccedilatildeo literaacuteria pela simples supressatildeo de uma anterior A poesia Pau-Brasil que Prado apresentava era o iniacutecio de ldquoum periacuteodo de construccedilatildeo cria-dorardquo que sucederia agravequela da ldquodestruiccedilatildeo revolucionaacuteria das lsquopala-vras em liberdadersquordquo245

O jornalista do perioacutedico O Paiz Abner Mouratildeo discorria sobre essa estranha relaccedilatildeo contrastante de ldquofuturistasrdquo e ldquopassadistasrdquo e de maneira perspicaz sobre as fronteiras fluiacutedas que os separavam evo-cando um possiacutevel ldquopresentismordquo entre os dois

O que nos falta em literatura sobra-nos em discussotildees literaacuterias que an-tigamente acabavam em vias de facto e hoje em queixas-crimes apre-sentadas aos juiacutezes competentes Benefiacutecios da lei da imprensa e de um evidente aperfeiccediloamento dos costumesA discussatildeo agora generalizada e cada vez mais acesa eacute como estaacute-se vendo entre futuristas e passadistas O movimento de ousadia mental e de anceios de renovaccedilatildeo que tem o nome jaacute claacutessico de futurismo tenta aqui o seu primeiro grande surto []Permitto-me entretanto insinuar (oacute desenvoltura proacutepria dos jorna-listas) entre passadismo e futurismo a escola presentista []Os adeptos desta escola deveratildeo pensar que o futuro a Deos pertence e por conseguinte natildeo se preocupar com elle mais do que com a primeira camisa que vestiram O passado eacute tatildeo necessaacuterio aacute [sic] cultura como os alicerces de uma casa Extraiacutedo dele poreacutem o que poacutede fornecer como ornamento do espiacuterito e esclarecimento da visatildeo o escriptor presentista deve igualmente pol-o departe O seu esforccedilo deve ser olhar a vida que passa e tudo que se acha em torno de si246

245 Idem p 91246 MOURAtildeO Abner Nos domiacutenios da literatura nacional O Paiz 28 mar 1924 p 3

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo190

Na impossibilidade de definir o que seria o ldquofuturismordquo e o ldquopas-sadismordquo nas letras brasileiras Abner Mouratildeo propotildee a saiacuteda do ldquopre-sentismordquo Poreacutem se sua foacutermula buscava uma saiacuteda para a aporia que envolvia ambos os lados ainda assim ela pautava um tema que seria buscado de maneira freneacutetica pelos ldquomodernistasrdquo e que estava no cerne das criacuteticas de Maacuterio e de Bandeira expostas anteriormente

A nossa vida os nossos sertotildees ahi estatildeo a offerecer admiraacutevel mateacuteria prima aos homenns de letras Mas seraacute sempre preciso viajar pene-trar nelles Querer vecirc-los e fixaacute-los drsquoaqui passeando na avenida Rio Branco como fazem os Srs Coelho Netto Afracircnio Peixoto Catullo da Paixatildeo Cearense e outras figuras illustres natildeo poacutede dar resultados reco-mendaacuteveis Um relatoacuterio do general Rondon embora mal escripto seraacute sempre mais visto e interessante que romance ou poema elaborado num acto de pura imaginaccedilatildeo que consiste em arrumar palavras de um modo natildeo muito differente daquelle como o pedreiro dispotildee os seus tijolos247

Natildeo eacute agrave toa que o caso de Catullo eacute novamente empregado como um exemplo em negativo de uma literatura que se ressente de uma ver-dadeira imagem do real Eacute nessa mesma esteira que eacute colocada a obra consagrada de Coelho Netto Natildeo eacute seu regionalismo que eacute rejeitado mas sua imaginaccedilatildeo

Ainda no mesmo artigo uma comparaccedilatildeo busca comprovar o estatuto em negativo de representar na nova literatura algo de fato desconhecido Trata-se da comparaccedilatildeo que Abner faz das novas produ-ccedilotildees com a obra de Machado de Assis que segundo o articulista de O Paiz construiu sempre sua literatura com as ferramentas com as quais se cercava em seu cotidiano

Machado de Assis era um homem tiacutemido fechado que vivia entre a sua casa e a reparticcedilatildeo Pois com as suas paacuteginas burocraacuteticas e de meias tintas e de sentimento interior fez a maior obra da literatura brasileira do seu tempo Assim esse Mestre admiraacutevel ensina ao escriptor a natildeo sair de si mesmo e do ciacuterculo das coisas que o cercam embora mesquinho se quizer ser na verdade grande

247 MOURAtildeO Abner Nos domiacutenios da literatura nacional O Paiz 28 mar 1924 p 3

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Deixemos passado e futuro Fiquemos simplesmente no presente que soacute elle poacutede efficazmente propiciar a obra de arte248

Parecia que a melhor representaccedilatildeo soacute poderia ser buscada a partir do conhecimento e nunca da imaginaccedilatildeo Ainda que a forma natildeo tenha sido desdenhada ndash pois expressar-se numa forma anterior era tambeacutem vaacutelido ndash o que era pautado era o estatuto natildeo imaginoso de uma representaccedilatildeo A nova literatura deveria ter como subsiacutedio funda-mental a realidade E essa busca natildeo era de todo uma tentativa siste-maacutetica de relegar o que ateacute ali havia sido produzido Existia em meio agrave criacutetica um reconhecimento pelos benefiacutecios de uma literatura ante-rior como dizia Ribeiro Couto membro participante da Semana de 22 em Satildeo Paulo ldquoNatildeo queremos destruir o passado Queremos construir um presente diverso do dia de hontemrdquo249 Essa opiniatildeo vai ao en-contro das anteriormente expostas que traduzem certa ambiguidade com relaccedilatildeo agravequeles que criticam Mesmo a Academia Brasileira de Letras local de consagraccedilatildeo de muitos dos literatos criticados eacute pou-pada pois o que se critica natildeo eacute ainda nas palavras de Ribeiro Couto a Academia mas o academicismo

A Academia natildeo entendeu o Sr Graccedila Aranha Elle natildeo quer matal-a quer que ela se interesse pela vida tome parte na agitaccedilatildeo das ideacuteas na festa da construcccedilatildeo de um Brasil mental independente e activo Ele natildeo quer enfim uma Academia acadecircmica250

A confusatildeo de opiniotildees que se mesclavam e se digladiavam na representaccedilatildeo do novo do moderno e do modernismo literaacuterio era ex-pressa nos perioacutedicos da eacutepoca Essa confusatildeo natildeo pode ser compreen-dida sem levar-se em conta a historicidade dos termos em disputa seus usos aleacutem das apropriaccedilotildees feitas das obras produzidas no periacuteodo

A representaccedilatildeo da produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense ao que parece nunca foi vinculada a algo que o aproximasse de um autor passadista Ao contraacuterio ele era desdenhado pelos modernistas pelo

248 Idem249 COUTO Ribeiro Futurismo versus Passadismo O Paiz 29 jun 1924 p 6250 Idem

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fato de ser um moderno que se lanccedilava a criar em sua imaginaccedilatildeo o linguajar do sertanejo Imaginar uma liacutengua era inaceitaacutevel Se de um lado era moderno conhecer por outro imaginar algo de que se natildeo tem conhecimento era demais para ser considerado modernista Essa ambi-guidade ndash em ser identificada como moderna e natildeo ser modernista ndash era uma temaacutetica comum na obra de Catullo No prefaacutecio que abre seu livro O evangelho das aves (1927) escrito por Maacuterio Joseacute de Almeida o poeta eacute apresentado ateacute como o verdadeiro criador do modernismo

Natildeo o comparo a La Fontaine nem a Tagore nem a Mistral como eacute tatildeo comum fazer-se no julgamento do mais brasileiro de nossos escrip-tores elle eacute um phenomeno literaacuterio inteiramente agrave parte a qualquer ponto de vista Mesmo sem grande penetraccedilatildeo criacutetica quem quer que o analyse desde o iniacutecio da sua prodigiosa actividade intellectual veraacute que o creador da feiccedilatildeo constructora do modernismo na nossa poesia eacute simplesmente e genialmente ndash Catullo Cearense251

Ribeiro Couto por sua vez tambeacutem buscava expressar essa mis-celacircnea de opiniotildees acerca do que significava ser um ldquofuturistardquo Aliaacutes ldquofuturistardquo eacute o termo mais comum que aparece em vaacuterias publicaccedilotildees para se referir agrave movimentaccedilatildeo dos novos artistas Sobre esses novos artistas o depoimento de Ribeiro Couto eacute esclarecedor

O que somos eacute uma geraccedilatildeo independente aspirando a uma literatura feita a maneira do sentimento creador de cada um de noacutes e natildeo a uma literatura colonial Entre noacutes temos differenccedilas profundas O Sr Mario de Andrade por exemplo detesta a ldquopoesia da penumbrardquo Eu natildeo tenho que lhe dar satisfaccedilotildees e vou escrevendo como sinto Por meu lado acho uma pilheria o primitivismo do Sr Oswald de Andrade O Sr Maacuterio de Andrade acha o Sr Oswald de Andrade um gecircnio Elles se comprehendem natildeo me datildeo satisfaccedilotildees e continuam Boa viagemO que nos une a todos agrave nossa geraccedilatildeo cujo presidente de honras eacute o Sr Graccedila Aranha eacute o oacutedio commum ao modelo claacutessico ao gramma-tiquismo de empreacutestimo ao Sr Cacircndido Figueiredo ao cultivo bem educado e sorrateiro do quinhentismo portuguez aacute plantaccedilatildeo do soneto

251 ALMEIDA Maacuterio Joseacute de A arte universal de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo O evangelho das aves Rio de Janeiro Livraria Castilho 1927 p 13

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 193

aacute paixatildeo pela Greacutecia de cuja mythologia o Sr Coelho Netto eacute o cocircnsul do BrasilIsso eacute futurismo Entatildeo tchiiiiiiii poacute poacute Viva o futurismo252

O que se depreende do trecho acima eacute a falta de exatidatildeo para a definiccedilatildeo do chamado ldquofuturismordquo Aleacutem do mais chama a atenccedilatildeo para as distintas formas de conceber o ldquomodernordquo na literatura Ora se existia uma falta de unidade no grupo ldquomodernistardquo eacute possiacutevel portanto falar de uma ldquoliteratura modernistardquo Tal resposta deve ser buscada antes nas escolhas daqueles que buscaram sistematizar a histoacuteria de um grupo de autores E essa escolha sem duacutevida foi feita a posteriori O caminho para a compreensatildeo da produccedilatildeo daquelas obras identificadas como mo-dernistas eacute voltar-se assim para as proacuteprias obras a fim de que a dis-cussatildeo se eacute que ela existiu seja compreendida em sua historicidade

Arriscariacuteamos assim dizer que na primeira deacutecada que se se-guiu agrave Semana de 22 houve menos uma definiccedilatildeo do que viria a ser o ldquomodernismordquo do que uma tentativa de definir o que ldquonatildeo poderia serrdquo na literatura produzida O modernismo vai nessa visatildeo progressiva-mente sendo definido por uma negaccedilatildeo Eacute por isso que ao contraacuterio de muitas anaacutelises que foram realizadas sobre o chamado ldquomodernismo de 22rdquo e que deram ecircnfase na construccedilatildeo do termo a partir da defesa e ataque que seus protagonistas fizeram de suas obras e daqueles a quem criticavam eacute necessaacuterio fazer o caminho oposto qual seja analisar antes como e em quais termos se pautou uma estigmatizaccedilatildeo pelos mo-dernistas de obras tidas sem interesse para a nova literatura Daiacute ser bem mais proveitoso para uma histoacuteria literaacuteria um olhar que se des-loque para a produccedilatildeo de sentido com relaccedilatildeo natildeo soacute agraves proacuteprias obras denominadas modernistas mas antes de tudo para aquelas que so-freram as criacuteticas como natildeo modernas Dito de outra forma uma anaacutelise que saia das obras modernistas na compreensatildeo do ldquomomento moder-nistardquo e se desloque para as ldquoobras natildeo modernistasrdquo e seus autores muitos deles consagrados na Academia Brasileira de Letras (como

252 Depoimento de Ribeiro Couto na coluna literaacuteria do jornal O Paiz Em Futurismo versus Passadismo O Paiz 29 jun 1924

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo194

Coelho Netto) ou com uma vasta produccedilatildeo consumida pelo mundo le-trado (como Catullo da Paixatildeo Cearense) Haacute no processo fundamen-talmente uma negaccedilatildeo de autores e obras e pelo menos num primeiro momento pouco de uma sistematizaccedilatildeo homogecircnea do modernismo constataccedilatildeo feita pelos proacuteprios autores consagrados sob esse epiacuteteto jaacute naquele momento

Por esse vieacutes de anaacutelise a obra de Catullo eacute sintomaacutetica dessa estigmatizaccedilatildeo Se a procura pela identificaccedilatildeo de sua obra como litera-tura e de sua condiccedilatildeo como poeta foi uma constante em sua trajetoacuteria eacute interessante notar um processo que se daacute ao avesso o de sua desauto-rizaccedilatildeo como poeta sertanejo ou dito de outra forma uma descons-truccedilatildeo de sua poesia sertaneja com uma consequente retirada de seu nome de qualquer identificaccedilatildeo como um poeta nacional Aqui eacute impor-tante salientar que o ldquonacionalrdquo eacute ressignificado pelos novos artistas de forma a natildeo caberem nele alguns autores estigmatizados

Na incapacidade de afirmaccedilatildeo de sua produccedilatildeo pelos novos cri-teacuterios criacuteticos e pelas novas crenccedilas esteacuteticas em construccedilatildeo havia a saiacuteda de buscar a referendaccedilatildeo de seu nome por estrangeiros especial-mente da Europa Isso natildeo passava despercebido pelos candidatos a autores nacionais E essa demanda foi outro artifiacutecio colocado agrave prova por Catullo e seus editores nos textos que publicou

Ainda em Meu sertatildeo o editor Castilho fez aparecer a criacutetica do poeta portuguecircs Alberto drsquoOliveira (Academia de Sciencias de Lisboa) que em prefaacutecio apresentava Catullo como aquele que ldquomais entende o amor aacute nossa modardquo e que encarnava a ldquoalma brasileira com fideli-daderdquo e ldquoum descendente e um continuador dos nossos trovadores po-pulares da Edade-Mediardquo253

Por outro lado outro recurso muito usado para desdenhar uma produccedilatildeo anterior foi sem duacutevida definhaacute-la atraveacutes do riso A carica-tura de um autor se mostrou de uma eficaacutecia fundamental nesse pro-cesso Nessa perspectiva eacute possiacutevel encontrar vaacuterios exemplos de re-presentaccedilatildeo risiacutevel da postura de Catullo da Paixatildeo Cearense

253 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 14-15

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 195

O jornalista Paulo Silveira que em sua coluna no jornal carioca O Paiz fazia uma verdadeira apologia aos novos escritores daacute um exemplo dessa cruzada que buscava atraveacutes da negaccedilatildeo de uns afirmar a produccedilatildeo dos novos A piada com Catullo eacute nesse sentido funda-mental para essa afirmaccedilatildeo

Jaacute laacute se foram os dolorosos tempos das poesias de assobio que satildeo feitas para ser recitadas nos tuberculosos sons de uma Dalila executada pellas matildeos romacircnticas de donzellas indefluxadas pelo catharros lyricos do patildeo drsquoaacutegua de seu Fagundes e pela remela manhosa dos versos de Casimirinho Essa eacutepoca passou e natildeo volta mais como canta o estro do fallecido Guerra Junqueiro poeta que conseguiu chegar aacute immortali-dade levando nos peacutes um estrondoso par de asas de bacalhao254

Continua atacando agora Catullo

Sr Catullo da Paixatildeo Cearense o Victor Hugo dos pobres de espiacuterito que o ministro Francisco Saacute mentalidade irocircnica e tolerante levou na sua comitiva com a incumbecircncia de medir com o tamanho de seus poemas a distacircncia que vai drsquoaqui do Rio de Janeiro aacute [sic] Baixa da Eacutegua Dizem que o selvaacutetico cantor [] abriu o bico na gare da Central e soacute foi acabar de recitar na ponta dos trilhos de Montes Claros Bateu assim o Record da distacircncia poeacutetica conseguindo com a extensatildeo de seus poemas transformar o Dr Carvalho Arauacutejo na Bella adormecida no wagon da Central do Brasil255

Essa representaccedilatildeo risiacutevel e caricatural de Catullo natildeo era novi-dade e foi usada muitas vezes pelos novos poetas para desqualificar a poesia sertaneja de Catullo Uma das receitas preferidas era fazer piadas com a reconhecida megalomania do poeta Natildeo passava agraves cegas tambeacutem a representaccedilatildeo da constante busca de reconhecimento que Catullo em sua trajetoacuteria sempre almejou

Ainda em 1918 quando a fama de Catullo como poeta do sertatildeo comeccedilava a se esboccedilar a revista O Malho trazia em sua seccedilatildeo ldquoA ane-docta da semanardquo escrita por certo Falconet um causo que acontecera

254 O Paiz 8 jun 1924255 Idem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo196

num bond da cidade do Rio de Janeiro Tratava-se de um encontro entre o poeta e acadecircmico Alberto de Oliveira e Catullo

O poeta Alberto de Oliveira tem como se sabe o curso de Pharmacia feito na Faculdade de Medicina drsquoesta capital Haacute quatro ou cinco dias vinha o cantor do Livro de Emma para a cidade quando tomou o mesmo Bond o poeta popular Catullo da Paixatildeo Cearense Descobrindo-o no banco fronteiro Catullo estendeu-lhe a dextra com effusatildeo exclamandondash Collega bom diaAlberto Oliveira levou o pollegar de ambas as matildeos aacutes pontas do bi-gode encerado e hieraacutetico para o receacutem-chegado perguntou-lhe com gravidadeO senhor tambeacutem eacute pharmaceuticoO autor do Marroeiro enfiado ganhou o matto256

Tempos depois quando o sucesso de Catullo como poeta serta-nejo jaacute se fazia ver Manuel Bandeira amigo de Catullo e modernista participante de primeira hora da Semana de 22 conta como conheceu Joseacute do Patrociacutenio Filho (o Zeca) No encontro estava laacute o Catullo megalocircmano

Eu conheci-o ultimamente numa farra em certa casa inconfessaacutevel da rua Riachuelo Estava laacute o Villa-Lobos o Ovalle o Joatildeo Pernambuco o Catulo O violatildeo passava de matildeo em matildeo porque todos tocavam Catulo estava impossiacutevel Bebera cerveja e deu para declamar poemas Noacutes queriacuteamos que ele cantasse umas modinhas bem bestas bem per-noacutesticas como ldquoA tua almardquo ou ldquoCeacutelia adeusrdquo ou ldquoTalento e formo-surardquo Mas o bardo estava em mareacute de grandeza e dizia muito seacuterio a duas belezas veniaisndash Minhas senhoras eu tenho sessenta anos e jaacute li todos os grandes po-emas de todas as literatura li todo o Homero todo o Virgiacutelio li Goethe Shakespeare Ariosto nunca encontrei nada como este poema da minha lavra que vou lhes recitarQuando ele puxava o pigarro para comeccedilar e a versalhada parecia ine-vitaacutevel o Zeca salvava a situaccedilatildeo

256 O Malho mar 1918

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 197

ndash Oacute Catulo canta aquela modinhandash Que modinhandash Aquela em que vocecirc compara um peacute a um pensamento de PascalE como Catulo estava por conta da cerveja esquecia imediatamente o poema e cantava a modinha pedida257

O caraacuteter corrosivo da anedota buscava representar um sujeito risiacutevel definhando a aura de poeta que Catullo buscava construir258 Eacute certo que essa representaccedilatildeo de um Catullo risiacutevel eacute antiga e aliaacutes acompanhou o poeta durante quase toda a sua vida Mas ela ganhou focirclego com o advento dos ldquonovos modernos de 22rdquo e era uma receita bastante repetida pelos construtores de uma esteacutetica modernista Contra essa representaccedilatildeo Catullo tentou jaacute nos anos 1930 deixar a poesia sertaneja jaacute entatildeo em processo de estigmatizaccedilatildeo pelo mundo literaacuterio embora sucesso entre o puacuteblico leitor e voltar-se para outra produccedilatildeo naquele momento alvissareira para a sua afirmaccedilatildeo como poeta uma poesia ufanista sobre o Brasil

257 A crocircnica foi publicada no jornal A Proviacutencia no dia 12 de outubro de 1929 e repro-duzido em BANDEIRA Manuel Na cacircmara ardente de Joseacute do Patrociacutenio Filho Satildeo Paulo CosacampNaify 2006 p 93-94

258 O caraacuteter corrosivo e agregador do riso no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX eacute discutido belissimamente em SALIBA Elias Thomeacute Raiacutezes do riso a representaccedilatildeo humoriacutestica na histoacuteria brasileira Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

CATULLO EM CENA

Dos textos aos palcos ou o inverso

O circo-teatro Trianon no Rio de Janeiro oferecia no mecircs de julho de 1930 um espetaacuteculo agrave parte O ator Procoacutepio Ferreira tomaria parte com o ldquogrande poetardquo Catullo da Paixatildeo Cearense o ldquogrande galatilderdquo Raul Roulien o cantor e violonista Patriacutecio Teixeira e a jovem cantora e jaacute ldquoapplaudidardquo Carmen Miranda (em comeccedilo de carreira prestigiosa no Brasil) de um ldquocolossal acto variadordquo intitulado Nossa vida eacute uma fita O jornal A Criacutetica de Maacuterio Rodrigues noticiava com entusiasmo o evento avisando ser o espetaacuteculo uma comeacutedia do ldquogrande escriptor da geraccedilatildeordquo Henrique Pongetti cujo enredo se desenrolava ldquonos bastidores cinematographicos da alucinante Hollywoodrdquo259 O evento se realizaria pela manhatilde

O dia parecia ser bastante rico em eventos pois para o final da tarde o mesmo jornal conclamava seus leitores para outro espetaacuteculo Este a ser realizado no Teatro Lyrico teria novamente a presenccedila de Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhado de seus companheiros com o espetaacuteculo musical Uma noite no sertatildeo A participaccedilatildeo do autor em ambas as produccedilotildees teatrais chama a atenccedilatildeo para uma mudanccedila na trajetoacuteria do poeta

259 A Criacutetica 15 jul 1930 p 4

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Desdenhado por suas produccedilotildees literaacuterias possuiacuterem representa-ccedilotildees por demais imaginosas do sertatildeo e do sertanejo Catullo encon-trava no teatro o ecircxito negado a ele pelos criacuteticos da sua produccedilatildeo lite-raacuteria Nos anos 1930 e 1940 o poeta foi figura constante nos palcos de teatros participando de musicais e por vezes cantando nos cinemas

A entrada de diversos escritores no mundo do teatro natildeo foi uma singularidade de Catullo Em fins da deacutecada de 1920 e iniacutecio da deacutecada de1930 era possiacutevel enxergar muitos de conhecidos literatos comparti-lhando o palco com artistas como Carmen Miranda Donga Abigail Maia muacutesicos como Luperce Miranda Jayme Florence (o Meira) e atores como Procoacutepio Ferreira e Oduvaldo Viana O teatro de revista ndash assim eram chamados os espetaacuteculos que misturavam musical burletas dramas hu-moriacutesticos etc ndash virou febre na sociedade brasileira da eacutepoca Aleacutem de usar de uma linguagem mais acessiacutevel ao grande puacuteblico o teatro de re-vista era fonte de grande lucro para os patrocinadores dos espetaacuteculos

Nos palcos eram encenados verdadeiros shows de variedades com o objetivo principal de entreter o puacuteblico Sintomaacutetica eacute a publici-dade de um evento que aconteceria no Theatro Imperial em Niteacuteroi em julho de 1930 onde a chamada pedia a atenccedilatildeo do leitor para uma pre-senccedila ilustre a da Miss Brasil ao lado de outros artistas

Estaacute sendo esperado com grande ansiedade o grandioso festival de ca-ridade que a directoria da Caixa de Esmolas de Nictheroy estaacute organi-sando para amanhatilde aacutes 20 horas no Cine Theatro Imperial dessa cidade [] o qual seraacute honrado com a presenccedila da formosa senhorita Yolanda Pereira ldquoMiss Brasilrdquo que prometteu ao mesmo comparecer em com-panhia de outras ldquomissesrdquo estaduaesA parte literaacuteria do programma ficou a cargo de Raul Perdeneiras Bastos Tigre e Catullo da Paixatildeo Cearense que diratildeo conferecircncias humoriacutesticasA parte musical foi confiada aos elementos artiacutesticos da Raacutedio Sociedade do Rio de Janeiro entre os quaes as senhoritas Carmen Miranda e Gecy Barbosa aacute professora Anna de Albuquerque Mello e os festejados inteacuterpretes da nossa muacutesica regional Gastatildeo Formenti Sylvio Salema Paulo Rodrigues Tomam parte no attrahente espetaacute-culo o tenor Oscar Gonccedilalves Ignaacutecio Guimaratildees e outros260

260 A Noite 22 jul 1930 p 2

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo200

Essa miscelacircnea de atraccedilotildees tornou-se muito comum com a po-pularizaccedilatildeo do que se convencionou chamar de festivais Sob esse termo era incluiacuteda uma variedade grande de entretenimentos desde co-meacutedias musicais desfiles de ldquocelebridadesrdquo ateacute a encenaccedilatildeo de uma produccedilatildeo anteriormente consagrada como aquelas com temaacuteticas ser-tanejas as chamadas burletas A adaptaccedilatildeo de diversos artistas a essa nova forma de expressatildeo e de puacuteblico fazia com que fosse possiacutevel en-contrar por exemplo Catullo da Paixatildeo Cearense fazendo parte de con-ferecircncias humoriacutesticas ao lado de caricaturistas e humoristas como Bastos Tigre e Raul Pederneiras anteriormente citados Ainda que re-conhecidos como poetas esses uacuteltimos se destacavam pela verve hu-moriacutestica assumida por eles e em Catullo quase inexistente

O palco natildeo era algo ineacutedito para Catullo que jaacute frequentava o mundo do teatro desde os anos 1910 e laacute havia feito muitos amigos Escrevendo em fins da deacutecada de 1920 o volume de poesias Faacutebulas e alegorias Catullo reconhecia no ator Procoacutepio Ferreira (aliaacutes finan-ciador do livro) a genialidade teatral oferecendo-lhe a publicaccedilatildeo com estas palavras ldquoA ti Procoacutepio que viste nascer estas fabulas e foste o primeiro a recital-as offereccedilo este livro como um preito de minha ad-miraccedilatildeo pelo teu talento genial glorificado por Melpoacutemene e Thaliacuteardquo261

O flerte de Catullo com os palcos foi tatildeo grande que ele chegou a organizar festivais em que contava inclusive com cenoacutegrafos consa-grados como quando organizou a ldquofesta de Catullo Cearense [] num ambiente sertanejo cujo scenaacuterio Jayme Silva faraacute sob as indicaccedilotildees do grande rapsodordquo262 No Trianon no Lyrico no Satildeo Joseacute no Imperial e em vaacuterios outros teatros cariocas e paulistas o nome de Catullo era encarado como sucesso de puacuteblico

Como vimos a presenccedila cecircnica de sua poesia conduzia a uma leitura performaacutetica do escrito quando oralizado A nova caracteriacutestica de sua produccedilatildeo qual seja como tambeacutem passiacutevel de um vieacutes cocircmico eacute que eacute parte do processo de um diaacutelogo com uma produccedilatildeo cecircnica que se

261 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Faacutebulas e alegorias Rio de Janeiro Officina Industrial Graphica 1928 p 4

262 Correio da Manhatilde 5 jun 1930 p 5

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fazia no periacuteodo Nesse momento foi possiacutevel vislumbrar em sua pro-duccedilatildeo uma veia mais humoriacutestica sintetizada sem duacutevida nas suas apresentaccedilotildees teatrais Sua chegada aos palcos vai ao encontro de uma febre por uma produccedilatildeo existente no Brasil desde os finais do seacuteculo XIX o teatro ligeiro Essas festas eram estruturadas em vaacuterios mo-mentos misturando espetaacuteculos danccedilantes apresentaccedilotildees humoriacutesticas musicais e peccedilas que dramatizavam fatos do cotidiano O teatro de re-vista (um dos gecircneros do teatro ligeiro) no Brasil e em especial na capital federal tornou-se especialmente nos anos 1920 um dos princi-pais espaccedilos de sociabilidade da elite letrada Para ele seguiram vaacuterios literatos que viam no seu sucesso de puacuteblico um lugar para a exibiccedilatildeo de suas produccedilotildees Procoacutepio Ferreira homem de teatro fez fama nesse periacuteodo como promotor diretor e ator de vaacuterias peccedilas e ao redor dele arregimentaram-se vaacuterios intelectuais do quilate de Bastos Tigre

O teatro ganhara novo focirclego com a ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ao poder em outubro de 1930 Admirador de espetaacuteculos teatrais Vargas quando ainda deputado federal pelo estado do Rio Grande do Sul ajudara a aprovar decreto que normatizava as empresas teatrais e reconhecia direitos trabalhistas para os artistas que participavam desse mundo especialmente no que concerne aos direitos autorais A lei ga-nhou ateacute um nome extra-oficial de ldquoLei Getuacutelio Vargasrdquo263

Aliaacutes a poliacutetica cultural de Getuacutelio Vargas catapultava uma seacuterie de demandas que jaacute se faziam ouvir antes de sua ascensatildeo Com a criaccedilatildeo do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Sauacutede (MES) em 1930 chefiado por Francisco Campos e principalmente a partir de 1934 quando co-meccedilou a administraccedilatildeo do ministro Gustavo Capanema vaacuterios veiacuteculos de comunicaccedilatildeo sofreram o impacto da poliacutetica varguista de pedagogia do cidadatildeo Havia poliacuteticas voltadas para o livro para o teatro para o cinema para a radiodifusatildeo e para diversas outras aacutereas da comuni-caccedilatildeo e cultura que tiveram como consequecircncia conviver com uma

263 Sobre a simpatia de Vargas nos meios teatrais Cf CAMARGO Angela Ricci A poliacutetica dos palcos teatro no primeiro governo Vargas (1930-1945) Rio de Janeiro FGV 2013 Sobre os decretos que foram construindo uma poliacutetica cultural para o teatro no periacuteodo varguista Cf CALABRE Lia Poliacuteticas culturais no Brasil Rio de Janeiro FGV 2009

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maior atenccedilatildeo do Estado para suas produccedilotildees Dessa forma muitos dos escritores e artistas consagrados desde antes da assunccedilatildeo de Vargas to-maram parte desse projeto

Foi tambeacutem nesse momento que o advento do raacutedio como objeto de entretenimento mobilizou os artistas ligados agrave musica

O raacutedio buscava o caminho da profissionalizaccedilatildeo A maior parte das emissoras passava a irradiar seus programas em todos os dias da se-mana Novas empresas de radiodifusatildeo se formavam anunciando projetos que conquistariam definitivamente o puacuteblico ouvinte trans-formando o raacutedio em um elemento indispensaacutevel em todos os lares264

Nas Raacutedios Sociedade e Mayrink Veiga as apresentaccedilotildees de Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhado por Joatildeo Pernambuco e Pixinguinha eram esperadas com ansiedade Na deacutecada de 1930 a pro-duccedilatildeo de Catullo afastou-se da produccedilatildeo estritamente literaacuteria e ganhou os palcos e o raacutedio com poemas declamados e muacutesicas cantadas Sua produccedilatildeo textual que sempre continha fortes marcas de oralidade vol-tou-se para uma apresentaccedilatildeo da qual o escrito estaacute submetido agrave perfor-mance como momento final da produccedilatildeo

Ao que parece Catullo criticado no espaccedilo das hostes literaacuterias e sabedor do novo momento que alccedilava o teatro e o raacutedio a espaccedilos com um aacutevido puacuteblico consumidor vai-se aproximando dos palcos e se rea-proximando assim da muacutesica Embora tentasse manter um status de poeta sua produccedilatildeo visaria a partir dos anos 1930 menos agrave aceitaccedilatildeo no campo literaacuterio brasileiro ndash agora sob os bombardeios modernos dos novos escritores surgidos na deacutecada de 1920 o que eacute possiacutevel pensar afasta-o ainda mais de um reconhecimento como poeta nacional ndash do que ao seu reconhecimento como artista Com as criacuteticas recebidas em fins da deacutecada de 1920 e a ascensatildeo exitosa do teatro de revista com um farto cardaacutepio de musicais o poeta sertanejo voltou-se para o rees-tabelecimento de sua representaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo

264 CALABRE Lia No tempo do Raacutedio radiodifusatildeo e cotidiano no Brasil 1923-1960 2002 277 f Tese (Doutorado em Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Universidade Federal Fluminense NiteroiacuteRJ 2002 p 60

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Por outro lado a emergecircncia de uma produccedilatildeo literaacuteria reivindi-cada pelos novos escritores que tratavam de tematizar o Brasil de forma mais realista e criacutetica conduziu o proacuteprio Catullo a fazer nos seus textos publicados em forma de livro que apareceram nos anos 1930 uma poesia mais ufanista bem ao gosto dos intelectuais abraccedilados pelo governo de Getuacutelio Vargas A aproximaccedilatildeo de suas temaacuteticas sertanejas com certo ufanismo nacional ia ao encontro de um tipo de produccedilatildeo li-teraacuteria que ganhou focirclego com o advento de Vargas ao poder Contudo se por um lado suas poesias eram defenestradas por representar um imaginoso sertatildeo por outro eram saudadas por representar de maneira ufanista o paiacutes ndash de resto tocircnica das poliacuteticas culturais do governo Vargas nesse periacuteodo

Tal ufanismo se tornou modelo propulsor do bom cidadatildeo brasi-leiro e foi um dos pilares do primeiro periacuteodo desse governo (1930-1945) A ideia de um Brasil grande promissor e com um povo trabalhador foi construiacuteda com a ajuda de inuacutemeros meios inclusive o cinema e o raacutedio que nesse contexto surgiram como uma forccedila fundamental para a propa-ganda governista A muacutesica vinculada ao projeto pedagoacutegico do Estado Novo varguista tomava as raacutedios pelo paiacutes afora fazendo parte do rol propagandiacutestico da figura de Getuacutelio Vargas265 No teatro foi o tempo de grandes produccedilotildees que tematizavam tipos nacionais de forma ufanista mas fundamentalmente foi o iniacutecio de um boom no mercado livreiro

A reivindicaccedilatildeo de uma identidade nacional ou de uma ldquoorientaccedilatildeo brasileirardquo como dizia o escritor Maacuterio de Andrade foi a forma orga-nizadora por excelecircncia dos discursos sobre a cultura bem como dos diagnoacutesticos e estrateacutegias de escritores intelectuais e homens puacuteblicos agrave eacutepoca ciosos natildeo sem divergecircncias de afirmar a existecircncia de uma cultura brasileira266

265 Joseacute Miguel Wisnik faz uma rica discussatildeo acerca da inclusatildeo da muacutesica especialmente a partir de Villa-Lobos no rol de elementos utilizados pelo Estado brasileiro em sua poliacute-tica de construccedilatildeo do nacional poacutes- anos 30 Cf WISNIK Joseacute Miguel Getuacutelio da Paixatildeo Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo) In SQUEFF Ecircnio WISNIK Joseacute Miguel Muacutesica o nacional e o popular na cultura brasileira Satildeo Paulo Brasiliense 2004 p 129-190

266 DUTRA Eliana de Freitas Cultura In GOMES Acircngela de Castro (coord) Histoacuteria do Brasil Naccedilatildeo (1808-2010) olhando pra dentro (1930-1964) Rio de Janeiro Objetiva 2013 v 4 p 229

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As estrateacutegias de escritores ndash e sem duacutevida de editores ndash aproxi-maram-se de certo ufanismo oficial que teve no ministro da Educaccedilatildeo do governo Vargas Gustavo Capanema um entusiasta e mecenas Ainda que muitos artistas e escritores natildeo estivessem interessados na construccedilatildeo oficial de certa representaccedilatildeo do ldquopovo brasileirordquo o fato de tais produccedilotildees obterem relativo sucesso com o puacuteblico consumidor fez com que cada vez mais tal temaacutetica nacionalista fosse procurada nas produccedilotildees culturais do periacuteodo

Nesse momento Catullo da Paixatildeo Cearense jaacute fazia bastante sucesso na produccedilatildeo de musicais e o teatro ligeiro se tornava um es-paccedilo de entretenimento disputado inclusive por grandes figuras poliacute-ticas Por isso sua relaccedilatildeo com as poliacuteticas oficiais de Vargas demandam uma anaacutelise mais detida a fim de se compreender os caminhos traccedilados pelo poeta em seus livros no periacuteodo

A ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ao poder por meio de um movi-mento revolucionaacuterio no ano de 1930 representou para a produccedilatildeo cultural do Brasil um corte profundo ndash jaacute bastante estudado por pesqui-sadores em diversas aacutereas Sua chegada ao poder representou na pri-meira hora a vitoacuteria de um movimento que se pretendia modernizador da poliacutetica sendo saudado por muitos intelectuais e tambeacutem em di-versas canccedilotildees que tratavam de difundir a ideia de uma revoluccedilatildeo que viria para mudar Assim pode ser compreendida uma composiccedilatildeo que foi reiteradas vezes tocada nas raacutedios da capital federal em 1930 intitu-lada 24 de outubro um hino em homenagem agrave revoluccedilatildeo daquele ano

Lanccedilada pela gravadora Brunswick e interpretada por Gastatildeo Formenti acompanhado da orquestra Brunswick a letra de Catullo da Paixatildeo Cearense sintetiza o tom ufanista com que a chegada de Vargas ao poder era encarada naqueles idos

Cantemos um hino agrave GloacuteriaPais e filhos de leotildeesQue os pampas estatildeo cantandoAbraccedilados com os sertotildees

Vinde a noacutes bravos GetuliosDestemidos Florianos

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Voacutes Juarezes soberanosGenerais triunfadoresMas trazeis na vossa frenteConduzindo a cavalgadaA liberdade montadaNum corcel cheio de flores

Derribado o despotismoExpulsai num grande exemploEsses vendilhotildees do temploDa Repuacuteblica altaneiraAteacute que venham de joelhosPedir-nos perdatildeo um diaRezando uma Ave MariaAos peacutes de nossa bandeira

Vinde a noacutes bravos GetuliosDestemidos FlorianosVoacutes Juarezes soberanosGenerais triunfadoresMas trazeis na vossa frenteConduzindo a cavalgadaA liberdade montadaNum corcel cheio de flores

De arma em punho brasileirosNesse ardoroso momentoErgamos o pensamentoComo quem reza uma missaSuplicando a Deus de joelhosQue o Brasil reerguenteSeja o berccedilo florescenteDo amor da paz e justiccedila267

Registre-se tambeacutem que no mesmo LP em que foi gravado o hino anteriormente transcrito constava no lado A do disco um hino em

267 24 de outubro canccedilatildeo de composiccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense e maestro H Vogeler Gravada em dezembro de 1930 por Gastatildeo Formenti e orquestra Brunswick pela gravadora Brunswick Fonte Base de Dados da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco Disponiacutevel em httpwwweducadoresdiaadiaprgovbrmodulesdebasersinglefilephpid=17896 Acesso em 11 jun 2020

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homenagem aos tenentes grupo fundamental para o triunfo da Revo-luccedilatildeo de 30 intitulado Os 18 de Copacabana ndash uma referecircncia agrave revolta armada tenentista ocorrida em 1922 no Forte de Copacabana

Essa aproximaccedilatildeo de artistas com a poliacutetica oficial foi progressi-vamente se estreitando vindo a ser um dos elementos fundamentais para a construccedilatildeo de toda uma representaccedilatildeo de Vargas durante os quinze anos em que esteve no poder O proacuteprio Catullo que se benefi-ciara dos governos anteriores com uma vaga de datiloacutegrafo no Ministeacuterio da Viaccedilatildeo em 1922 (ocupaccedilatildeo que de fato nunca exerceu) voltou-se estrategicamente para produccedilotildees que estivessem de acordo com o novo tom da poliacutetica cultural implementada pelo novo chefe de Estado Em troca o Governo Provisoacuterio tratou de mantecirc-lo no posto de datiloacutegrafo do Ministeacuterio da Viaccedilatildeo por decreto em 1932268

Paralela a isso a Revoluccedilatildeo de 30 ocorreu num momento em que o paiacutes comeccedilava a escutar raacutedio O puacuteblico consumidor de programas radiofocircnicos cresceu vertiginosamente tendo como grande triunfo a muacutesica que exerceu nesses segmentos um produto de grande rentabili-dade As casas de discos lucravam com a venda de aparelhos e LPs bem como a publicidade de produtos fazia aumentar a rentabilidade das estaccedilotildees de raacutedio A Mayrink Veiga e a Raacutedio Sociedade ambas no Rio de Janeiro capitaneavam essa efervescecircncia com programas musicais diaacuterios Cantores foram rapidamente consagrados Francisco Alves Carmen Miranda e Orestes Barbosa foram alguns dos novos artistas catapultados pela nova miacutedia

No teatro tambeacutem a muacutesica era a vedete principal havia bastante tempo Os musicais ganhavam maior relevo na produccedilatildeo teatral sendo comum artistas de raacutedio apresentarem-se nos palcos com grande su-cesso de puacuteblico e compositores antes desconhecidos terem suas muacute-sicas repentinamente cantaroladas nas ruas cariocas Aiacute tambeacutem surgiu um velho problema com tanta gente cantando para um puacuteblico cres-cente quem ganha com esse boom musical Ou seja quem deteacutem os

268 O jornal A Noite noticia em sua primeira paacutegina o decreto que confirma Catullo e ldquoAneacutesia Pinheiro Machado para dactylographos da Secretaria de Estados (sic) Cf A Noite 9 abr 1932

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direitos de reproduccedilatildeo da canccedilatildeo Um incidente noticiado pelo jornal A Noite revela algo dessas dificuldades que surgiam da publicidade de uma obra por um terceiro

Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhava a gravaccedilatildeo de Talento e formosura modinha de sua autoria de iniacutecios do seacuteculo XX pelo jovem cantor Francisco Alves posteriormente consagrado ldquorei da vozrdquo De repente Catullo fica incomodado com a dicccedilatildeo do cantor que ldquofor-ccedilara algumas palavras do versordquo Em jornal concluiacutea

Dahi a prova de que as gravaccedilotildees devem sempre ser feitas na presenccedila do autor ao qual natildeo poderatildeo escapar os miacutenimos defeitos para o bem do proacuteprio cantor que muitas vezes daacute a muacutesica uma interpretaccedilatildeo diversa da idealizada pelo musicista causando contrariedades Aleacutem disso no caso de dificuldade na gravaccedilatildeo dos versos ou da muacutesica estando o autor presente seraacute faacutecil uma modificaccedilatildeo que auxilie a gra-vaccedilatildeo do disco269

Num momento de maior difusatildeo da canccedilatildeo atraveacutes de raacutedios e discos houve tambeacutem uma tentativa de regrar a interpretaccedilatildeo de forma que o autor da muacutesica natildeo fosse contrariado em suas intenccedilotildees quando da gravaccedilatildeo da canccedilatildeo Esse incidente poreacutem parece ser um caso raro num momento em que a autoria de vaacuterias canccedilotildees gravadas natildeo impor-tava tanto para o puacuteblico quanto o inteacuterprete que natildeo raro ganhava os louros de artista e autor Era algo muito comum agrave eacutepoca os artistas mais pobres do Rio de Janeiro venderem suas composiccedilotildees a fim de angariar algum dividendo mesmo natildeo tendo seu nome exposto na obra publicada Satildeo conhecidas as constantes subidas ao morro por Maacuterio Reis para comprar muacutesicas uma das quais revelou em sua voz o sam-bista e compositor Cartola Contudo aquele incidente de Catullo com Francisco Alves natildeo era assim tatildeo comum num periacuteodo em que o com-positor pouco se preocupava com a interpretaccedilatildeo de sua canccedilatildeo

O que parece irocircnico eacute que se fora como inteacuterprete textual de can-ccedilotildees que escutava nas ruas que Catullo se tornara inicialmente conhecido anos depois sua luta parecia ser defender suas letras regrando a interpre-

269 A Noite 13 out 1930 p 4

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taccedilatildeo oral da canccedilatildeo A oralidade tornava-se assim um problema para o primeiro autor do produto exatamente num momento em que ela ganhava cada vez mais um puacuteblico consumidor assiacuteduo O texto estaria dessa forma submetido agrave interpretaccedilatildeo oral do inteacuterprete cabendo muitas vezes a esse uacuteltimo o reconhecimento como autor e grande artista

Esse retorno de puacuteblico causou grande rebuliccedilo no que concerne agrave definiccedilatildeo de direitos autorais A lei que defendia os direitos autorais dos compositores da canccedilatildeo era negligenciada e raramente se pagava pelo uso desses direitos A situaccedilatildeo soacute comeccedilou a mudar aos poucos com a criaccedilatildeo do Centro Musical do Rio de Janeiro em maio de 1907 tendo agrave frente o maestro Francisco Braga O Centro funcionava como um sindicato que lutava pelos direitos dos muacutesicos cariocas

Poreacutem a criaccedilatildeo natildeo melhorou muito a situaccedilatildeo dos muacutesicos natildeo profissionais e letristas entendidos sempre sob o termo autoexplicativo de ldquodireito menorrdquo Esses uacuteltimos eram quase sempre desconsiderados dentro do universo musical da eacutepoca havendo soacute a possibilidade de patentear uma letra registrando-a na Biblioteca Nacional coisa que ra-ramente aconteceu de fato Soacute em 1917 sob o impacto do Coacutedigo Civil que regulou a propriedade intelectual e com a criaccedilatildeo de uma divisatildeo de muacutesica na Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais (SBAT) as letras compostas para serem apresentadas nos espetaacuteculos ganharam um status de algo a ser considerado propriedade de um compositor-letrista A SBAT ficaria conhecida como um modelo para os demais profissio-nais de outras aacutereas reivindicarem direitos autorais270

A confusatildeo acerca do atestado de paternidade de uma letra era expressa nas vaacuterias alteraccedilotildees possiacuteveis na composiccedilatildeo quando acom-panhada de determinada canccedilatildeo Se a canccedilatildeo se mantinha a letra quase sempre ganhava adendos ou eram subtraiacutedos trechos ndash fato para o qual jaacute atentamos quando Catullo organizava letras de modinhas O fato eacute que viver de muacutesica era algo muito difiacutecil nas primeiras deacutecadas do

270 Interessante notar que a Associaccedilatildeo Brasileira de Imprensa propunha a seus soacutecios a ldquoinstalaccedilatildeo de um serviccedilo idecircntico ao existente na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais para a fiscalizaccedilatildeo e cobranccedila dos direitos autorais devidos pela imprensa tanto do paiacutes como quiccedilaacute do estrangeirordquo Cf Diaacuterio de Notiacutecias 5 jun 1940

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seacuteculo XX no Rio de Janeiro e ser tatildeo somente um letrista acarretava ainda mais problemas para o candidato a autor de letras

Nos anos 1920 quando a febre por musicais ganhava a sociedade carioca jaacute era possiacutevel registrar as canccedilotildees que faziam parte de espetaacute-culos teatrais por intermeacutedio da SBAT que repassava ao autor a quantia devida Tal serviccedilo prestado pela sociedade no entanto era mateacuteria de acirradas criacuteticas por parte dos compositores sendo criado jaacute em 1938 por alguns deles entre os quais Braguinha e Maacuterio Lago a Associaccedilatildeo Brasileira de Compositores e Autores (ABCA) para reunir os autores brasileiros do ldquopequeno direitordquo Essa mudanccedila provocou um grande debate entre a nova Associaccedilatildeo e a SBAT que natildeo queria perder o mo-nopoacutelio de cobranccedila por direitos autorais Esse debate chegou a en-volver o presidente da Sociedade de Autores e Compositores da Argentina Francisco Canaro que se dispocircs a mediar um entendimento entre as duas entidades271 Mais tarde a ABCA se encarregaria de criar um estatuto proacuteprio e mudaria de nome em 1942 para Uniatildeo Brasileira de Compositores (UBC) tendo agrave frente Ary Barroso

Eacute bem verdade que os compositores se dividiram alguns enten-dendo que a criaccedilatildeo de uma nova associaccedilatildeo ajudaria no esforccedilo da luta por direitos autorais enquanto outros consideravam que a SBAT em-bora deficiente ainda representava bem os interesses da classe

Jaacute conhecido por suas apresentaccedilotildees de sucesso nos teatros es-crevendo peccedilas e participando de musicais Catullo da Paixatildeo Cearense foi um dos que resolveram jaacute em iniacutecios dos anos 1940 permanecer ligados agrave SBAT indicando a sociedade como responsaacutevel por seus di-reitos tendo Guimaratildees Martins como seu representante

De acordo com a lei somente a SOCIEDADE BRASILEIRA DE AUTORES TEATRAIS agrave Avenida Almirante Barroso nordm 97 3ordm andar (Esplanada do Castelo) Rio de Janeiro Brasil pode em nome do meu cessionaacuterio e uacutenico representante Guimaratildees Martins autorizar repre-sentaccedilotildees traduccedilatildeo adaptaccedilatildeo irradiaccedilatildeo etc desta peccedila272

271 Diaacuterio de Notiacutecias 12 dez 1939272 Parte constante na contracapa de Um boecircmio no ceacuteu O livro trata-se de uma peccedila

recheada de canccedilotildees incidentais em que um boecircmio que seria Catullo dialoga com

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Contudo Catullo natildeo foi o uacutenico que resolveu ceder agrave SBAT os direitos para a cobranccedila de direitos autorais Um grupo de consagrados compositores lanccedilou um abaixo-assinado assegurando a confianccedila na arrecadaccedilatildeo de direitos autorais pela sociedade Esse manifesto se so-bressaiu pelos nomes consagrados que o assinaram

Agrave Sociedade Brasileira de Autores Teatrais ndash Os abaixo assinados compositores brasileiros de muacutesica desejam por este meio assegurar a sua solidariedade agrave SBAT sob cuja bandeira permanece e a cujos ser-viccedilos especializados entregam a administraccedilatildeo e arrecadaccedilatildeo dos seus direitos autorais de execuccedilatildeo Eacute oportuno consignar a estranheza dos signataacuterios desta ante a fundaccedilatildeo de um grecircmio de compositores que se apresenta como representante da classe quando eacute certo que pelos nomes sem duacutevida merecedores de todo o aplauso puacuteblico que lhe compotildeem o quadro social deveraacute ele denominar-se de compositores de muacutesica popular o que teria a elementar vantagem de pelo menos evitar interpretaccedilotildees errocircneas ou maliciosas que bem podem ser no-civas ao prestiacutegio da cultura artiacutestica nacional (ass) Francisco Braga J Otaviano H Vila Lobos Assis Republicano Oscar Lorenzo Fernandez Joanidia Sodreacute Newton Paacutedua Eleazar de Carvalho Afonso Martinez Grau Henriquel Vogeler Joseacute Vieira Brandatildeo Otaacutevio Bevilaacutequa Heckel Tavares273

Os nomes que assinam o abaixo-assinado eram jaacute nessa eacutepoca reconhecidos compositores e embora reiterassem que a nova asso-ciaccedilatildeo tinha nomes ldquomerecedores de todo o aplauso puacuteblicordquo natildeo se isentavam de frisar uma diferenccedila chamando a atenccedilatildeo do leitor para o fato de que a nova associaccedilatildeo surgida seria de ldquocompositores de muacutesica popularrdquo o que acarretaria em consequecircncia um efeito nocivo ldquoao prestiacutegio da cultura artiacutestica nacionalrdquo

A sutileza e mesmo o respeito com que os signataacuterios se re-portam agrave nova associaccedilatildeo natildeo escondem a tecircnue mas fundamental dis-tinccedilatildeo que buscavam dar a dois tipos de produtos sendo um deles iden-tificado com o termo ldquopopularrdquo A separaccedilatildeo na classe de compositores era o resultado de uma distinta representaccedilatildeo daquilo que se entendia

Satildeo Pedro no ceacuteu Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946

273 Reproduzido em Diaacuterio de Notiacutecias 16 jul 1942 p 9

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como ldquomuacutesica popularrdquo e daquilo que natildeo deveria ser entendido por tal definiccedilatildeo A diferenccedila de interesses daqueles que os signataacuterios enten-diam serem os compositores populares era uma agenda necessaacuteria para afirmar a disparidade de seus interesses daqueles de um grupo que con-trariando os autores do manifesto ldquose apresenta como representante da classerdquo Mas de fato natildeo se pode dizer que aqueles que ficaram na SBAT foram tatildeo somente os artistas da chamada muacutesica distinta da ldquopo-pularrdquo ndash como parecem fazer crer os assinantes do documento acima ndash pois um daqueles que continuaram sob a eacutegide da SBAT foi justamente Catullo da Paixatildeo Cearense que seguramente natildeo era representado como um artista que natildeo fosse da ldquomuacutesica popularrdquo

Catullo aliaacutes publicou como seu uacuteltimo livro em vida uma cole-tacircnea de todas as suas modinhas sendo a primeira vez conforme a lei de direitos autorais ou seja citando os respectivos compositores de cada muacutesica que acompanhava a letra transcrita Com a publicaccedilatildeo intitu-lada Modinhas o poeta reafirmava sua autoria sobre as letras podendo com a execuccedilatildeo e interpretaccedilatildeo delas dali por diante ter os direitos zelados pela SBAT Guimaratildees Martins organizador e prefaciador da obra destacava o fato de reeditar aquelas velhas modinhas mesmo que Catullo num primeiro momento natildeo o quisesse

Catullo tinha razatildeo para natildeo desejar a reediccedilatildeo dos livros de suas can-ccedilotildees musicadas como estavam Eacute que aqueles livros eram impressos descuidadamente sem a sua revisatildeo pela popular e hoje extinta Livraria Quaresma que aleacutem do mais misturava por sua conta proacute-pria em alguns desses livros canccedilotildees da autoria de Catullo com can-ccedilotildees da autoria de outros autores sem lhes mencionar os nomes Tudo isso em completo desrespeito agrave Lei e dando a impressatildeo de que todas as modinhas eram da autoria exclusiva de Catullo274

Sem duacutevida em um momento em que a muacutesica eacute protagonista de um estouro do entretenimento na sociedade brasileira impulsionados pelo raacutedio e teatro as leis de direitos autorais vieram regrar a repro-duccedilatildeo de tal artefato cultural nas novas miacutedias Essas leis vieram cons-

274 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1946 (Contracapa)

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tituir um novo debate que recolocava no centro da discussatildeo uma ten-tativa de classificaccedilatildeo social do que viria a ser o termo ldquopopularrdquo

A organizaccedilatildeo de entidades classistas que buscavam seus direitos recolocava em novas roupagens questotildees como a separaccedilatildeo entre ldquopo-pularrdquo e ldquoeruditordquo (visando a construir representaccedilotildees diferentes e con-trastantes) a disputa pela propriedade legal da produccedilatildeo musical (com a construccedilatildeo de entidades zeladoras da lei autoral que pudesse penalizar aqueles que a burlassem) e a profissionalizaccedilatildeo do compositor temas estes que se esboccedilavam desde pelo menos o comeccedilo do seacuteculo XX Haacute de se frisar que tais debates nascem de uma separaccedilatildeo alavancada pela exposiccedilatildeo midiaacutetica dos novos cantores de raacutedio

O sucesso dos cantores de raacutedio consequecircncia de sua maior ex-posiccedilatildeo ameaccedilava eclipsar o nome do autor ndash problema que de resto jaacute era bastante comum Em contrapartida cria-se um sistema que mesmo eclipsando o autor diante do sucesso do inteacuterprete da canccedilatildeo daria ao primeiro a vantagem de ganhar financeiramente pela execuccedilatildeo de sua muacutesica pela cobranccedila dos direitos autorais Natildeo eacute sem espanto que vemos Catullo ndash que tinha nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX com a publicaccedilatildeo de livros um trunfo que fazia com que se apropriasse de muitas canccedilotildees sob o seu nome ndash jaacute nos anos 1930 e 1940 quando suas modinhas tendem a ser publicizadas com mais sucesso nas raacutedios do que nos livros vecirc-se na defensiva questionando o apagamento de sua autoria pelo inteacuterprete Agrave apropriaccedilatildeo do material oral pelo autor de um texto impresso sucede desta feita uma apropriaccedilatildeo do texto pelo indiviacuteduo no uso de sua voz ou seja o cantor da raacutedio que de resto era o novo iacutedolo de um paiacutes que comeccedilava a escutar essa nova tecnologia

Vale uma raacutepida reflexatildeo sobre esse processo Havia muito tempo o letrista (o poeta ou o bardo como poderia ser reconhecido o autor de uma letra) gozava de uma fama em detrimento do muacutesico autor da canccedilatildeo Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX para um muacutesico ter reconhecimento diz o jornalista Edigar de Alencar ldquoera preciso ser um Carlos Gomes para fazer desaparecer o poetardquo275 Eacute possiacutevel que por essa inferioridade do

275 ALENCAR Edigar de Claridade e sombra na muacutesica do povo Rio de Janeiro Francisco Alves Brasiacutelia INL 1984 p 56

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 213

muacutesico em relaccedilatildeo ao letrista ndash este uacuteltimo quase sempre criando em cima da muacutesica e sendo natildeo raras vezes ele mesmo cantor ndash tenha feito com que os muacutesicos fossem os primeiros a se organizar em pequenas associa-ccedilotildees para lutar pelos seus direitos considerado ldquogrande direitordquo

A proeminecircncia do letrista soacute era sobrepujada pela do cantor sempre mais conhecido Isso quando o letrista natildeo era o proacuteprio cantor a exemplo de Eduardo das Neves e Geraldo Magalhatildees cantores e com-positores do iniacutecio do seacuteculo XX Catullo representa uma exceccedilatildeo entre os demais sobressaiacutea pelo fato de ser um letrado e de publicar livros ndash e como dizia o interlocutor de Joatildeo do Rio no famoso Momento lite-raacuterio ainda no comeccedilo do seacuteculo XX quem escrevia era ldquosempre um iacutedolordquo ldquomesmo que escreva malrdquo Se a publicaccedilatildeo de livros de canccedilotildees o distinguiu durante muito tempo no campo das canccedilotildees com o advento do raacutedio os autores de livros tiveram de conviver com outro tipo de entretenimento que invadia os lares e com ele a criaccedilatildeo de novos iacutedolos os artistas de raacutedio

Agrave primeira vista pareciam campos distintos mas consideran-do-se que o livro fazia parte de um entretenimento que comeccedilava a in-vadir os lares brasileiros o raacutedio surgiu como um forte rival no passa-tempo diaacuterio O autor de livros teria a companhia de novos iacutedolos como Carmen Miranda e Ary Barroso Na praacutetica haacute uma mudanccedila na repre-sentaccedilatildeo do cantor que deixava de ser caracterizado por adjetivos estig-matizadores como ldquoboecircmiordquo e ldquotrovadorrdquo (quando natildeo ldquovagabundordquo) para ser representado tatildeo simplesmente como um ldquoartistardquo ndash e artista de uma nova tecnologia que foi incansavelmente usada pelo proacuteprio go-verno Vargas e catapultou assim o sucesso da radiofonia no Brasil Raacutedio literatura e teatro nessa triacuteade Vargas buscava criar um polo de comunicaccedilatildeo com a sociedade pelos canais que vendiam entreteni-mento para o grande puacuteblico Nessa mesma triacuteade alternava-se Catullo que tambeacutem natildeo ficou imune ao projeto varguista

O teatro no texto

Em iniacutecios dos anos 1930 o palco tornou-se o lugar constante de Catullo da Paixatildeo Cearense que havia muito tinha na performance

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo214

declamando ou cantando a imagem mais representativa para seu puacute-blico As descriccedilotildees de Catullo apresentando-se no teatro datildeo conta de seu poder interpretativo de poemas e canccedilotildees como bem salientava uma reportagem do Correio da Manhatilde ao descrever a cena de Catullo no palco

Antes de se rasgar a cortina do palco estava a sala imersa numa suave interrogaccedilatildeo numa nuanccedila de luar de luar que chegasse ateacute noacutes depois de se haver banhado em montanhas longiacutenquas []Abre-se o panno e a impressatildeo se confirma Os aplausos natildeo cessamO semblante de Catullo tem qualquer coisa das nobrezas melancoacutelicas e insatisfeitasDeclamando transfigura-se cresce aumenta faz-se creanccedila o velho a sua testa que eacute o seu maior symbolo vasta ampla lumindo de modo singular como se houvesse metalizado em outras edades subia em busca do cabelo quase inexistente e estendia-se pela cabeccedila toda de onde pa-recia que a matildeo resvalaria como por sobre uma superfiacutecie polidaA luz do olhar transmuda-se []276

A representaccedilatildeo de um Catullo performaacutetico especialmente quando o palco tornou-se espaccedilo constante para o poeta trabalhava a favor de seu grande sucesso no teatro Isto fez com que sensiacutevel agrave forccedila do teatro como espaccedilo de sociabilidade do mundo letrado no periacuteodo os palcos fossem por um bom tempo o espaccedilo de atuaccedilatildeo principal da produccedilatildeo do poeta No teatro Catullo poderia exercer dois de seus principais trunfos como artista declamar seus poemas e cantar suas canccedilotildees

Ladeando sua maior participaccedilatildeo no teatro Catullo tambeacutem comparecia de maneira frequente agrave raacutedio Mayrink Veiga (a de maior audiecircncia em iniacutecios dos anos 1930) onde por um tempo foi acompa-nhado de muacutesicos como Luperce Miranda Patriacutecio Teixeira Pixinguinha e Tute apresentando-se no programa conhecido como Velha Guarda277

Entre 1931 e 1937 periacuteodo em que muito comumente partici-pava de musicais teatrais e programas de raacutedio a uacutenica publicaccedilatildeo

276 Correio da Manhatilde 25 jun 1930 p 5277 Correio da Manhatilde 1ordm jan 1938 p 3

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 215

lanccedilada com o nome de Catullo foi o livro de poemas O sol e a lua em 1934 Embora colocado de lado por muitos autores da nova lite-ratura por natildeo estar de acordo com os novos criteacuterios estabelecidos para se representar um grande poeta Catullo continuou sendo consi-derado um grande poeta por grande parte do mundo letrado inclu-sive pelo novo chefe de Estado Getuacutelio Vargas A admiraccedilatildeo de Vargas por Catullo inclusive fez com que sabendo de seu cargo como datiloacutegrafo Vargas o fizesse aposentar por serviccedilos prestados agrave cultura do paiacutes

Esse reconhecimento por um chefe de Estado se expressaraacute nas obras de Catullo que publicaraacute o seu O sol e a lua pela Imprensa Nacional Mas mais importante do que essa publicaccedilatildeo Catullo lan-ccedilaraacute em iniacutecios de 1938 um livro dedicado ao chefe da poliacutecia de Vargas (neste momento atuando como ditador apoacutes um golpe em novembro de 1937) o capitatildeo Filinto Miller A obra tinha como tiacutetulo Oraccedilatildeo agrave bandeira A publicaccedilatildeo foi lanccedilada e editada pelo Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal

Experimentando com ecircxito novas formas de expressatildeo Catullo da Paixatildeo Cearense natildeo deixaria de representar em seu texto uma imagem sua como grande poeta Atento aos novos caminhos que a pro-duccedilatildeo artiacutestica no Brasil tomava o poeta tratou de dar um novo sentido para seus livros de acordo com as novas formalidades que regravam a consagraccedilatildeo de seu nome como poeta ou agora como artista da pa-lavra fosse ela cantada ou escrita

Seu livro O sol e a lua era um longo poema de duas partes onde na primeira delas um ldquopoetardquo urbano diante de um puacuteblico re-cita um poema ao sol e na segunda um bardo sertanejo de nome Chico Azulatildeo munido de um linguajar tiacutepico (foacutermula consagrada por Catullo em obras anteriores) declama um poema agrave lua Nele Catullo reafirmava o caraacuteter performaacutetico de seus poemas com os versos en-trecortados por cenas em que personagens (uma moccedila bela o puacuteblico velhos) apareciam como que dando motes para que os personagens principais (o violeiro Chico Azulatildeo e o poeta citadino) pudessem contar o poema Para criar esse efeito Catullo lanccedilava matildeo da des-criccedilatildeo do local onde o poema seria declamado

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo216

SCENARIO

Era noite O Plenilunio clareava o terreiro de uma fazendo [sic] no sertatildeo onde um ldquocardumerdquo de moccedilas moccedilos velhas e velhos se agitava na tumultuosa alegria de uma festa tradicional Flautas violas cava-quinhos harmocircnicas e violotildees gemiam sua queixa amorosa ao espiacute-rito da noite que parecia ter sido convidada para o rumoroso festival Achando-se presentes um poeta da cidade e um afamado cantador da-quelas paragens (quero dizer ndash a Lyra e a Viola) acedendo ao convite de todos os convivas para que saudassem o sol que estivera esplendido naquele dia e aacute Lua que vinha desabrochando nrsquouma das suas mais encantadoras apariccedilotildees depois de vibrante salvas de palmas em meio de profundo silecircncio assim comeccedilou o poeta a sua oraccedilatildeo278

A entrada de elementos cecircnicos em um livro de poemas de Catullo revestia o texto de um caraacuteter teatral que fazia com que seus leitores representassem a leitura com a teatralizaccedilatildeo do texto Isso era necessaacuterio lembrar uma constante nos livros publicados por Catullo desde pelo menos o lanccedilamento de Meu sertatildeo (1918) e como vimos o primeiro com temaacuteticas sertanejas O que parece ser novo eacute que en-quanto naquele se expressa uma oralidade impressa no texto com o texto repleto de iacutendices de oralidade neste O sol e a lua o que objeti-vava o autor era um entendimento de que o texto natildeo era soacute a represen-taccedilatildeo do oral como tambeacutem ele deveria ser lido tendo em mente a per-formance necessaacuteria para sua efetivaccedilatildeo O texto natildeo visava tatildeo somente a uma leitura oralizada mas sobretudo performaacutetica Essa mudanccedila seguramente remete ao maior envolvimento de Catullo com o mundo do teatro A escrita alimenta-se de elementos cecircnicos obrigando o leitor a ter em mente a representaccedilatildeo cecircnica do poema

O proacuteprio tiacutetulo do preacircmbulo do poema O sol e a lua (ldquoScenariordquo) remete a uma representaccedilatildeo no palco E os personagens durante o poema vatildeo comumente participando da recitaccedilatildeo com palmas vaias ruiacutedos e mesmo com a intervenccedilatildeo direta no poema como no trecho seguinte ldquoNeste ponto o bardo interrompeu o curso da sua oraccedilatildeo porque a moccedila mais bela do divino cenaacuteculo levantou-se e veio ofere-

278 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p 9

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 217

cer-lhe a flor que ornamentava o diadema dourado dos seus cabelos lourosrdquo279 Podemos perceber ainda no final da declamaccedilatildeo do vio-leiro Chico Azulatildeo a intervenccedilatildeo do puacuteblico

Depois dos uacuteltimos aplausos coroando o final do poema sertanejo o violeiro a pedido geral cantou o lsquoLuar do sertatildeordquo acompanhado por todo o auditoacuterio que inundava o amplo terreiro da Fazenda E assim terminou a festa daquela noite memoraacutevel que ficou sendo chamada em todo sertatildeo ndash A noite do Sol e da Lua280

Com O sol e a lua a produccedilatildeo de Catullo adentra um modelo que poderaacute ser visto na maioria de seus livros posteriores qual seja a refe-recircncia latente ao mundo do teatro Foi justamente seu contato cada vez mais frequente com esse espaccedilo que produziu uma reviravolta na sua produccedilatildeo textual A sutileza nas inclusotildees de passagens que remetiam ao espaccedilo do teatro buscando assim regrar uma leitura fazia lembrar seus primeiros livros de modinhas quando buscava regrar as letras de modi-nhas com as muacutesicas a acompanhaacute-las No entanto O sol e a lua embora com intervenccedilotildees musicais fundamentais natildeo tratava de canccedilotildees mas tambeacutem remetia a um desempenho um desempenho gestual tiacutepico do teatro entremeado com personagens que se revezavam no poema

Se nos livros de modinhas o que dava o tom do texto eram as muacutesicas que deveriam acompanhar a letra aqui o que pontua as decla-maccedilotildees eacute o ambiente com o puacuteblico e os personagens que adentram o texto Mas em um ponto ambos se aproximavam o texto pedia um complemento que soacute poderia ser dado fora dele fosse pela muacutesica fosse pelos personagens que pontuavam o ambiente de declamaccedilatildeo Assim nos livros de modinhas o clima do texto depende de uma exte-rioridade que natildeo estaacute nele ndash comumente na muacutesica de outro autor que natildeo aparecia no livro jaacute que Catullo escrevia (ou transcrevia) somente as letras Nesses livros havia inclusive a possibilidade de ler as letras como se fossem poemas Jaacute no texto teatralizado de Catullo em O sol e a lua a exterioridade (os elementos para a sua encenaccedilatildeo) encontra-

279 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p 28280 Ibidem p 85

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo218

va-se no proacuteprio texto impresso O autor torna-se a autoridade uacuteltima do texto criando inclusive os complementos necessaacuterios para o texto ser desenvolvido fora

Haacute ainda em O sol e a lua um elemento importante que visava a alertar o leitor para a anterioridade do poema A representaccedilatildeo do dia em que leu O sol e a lua pela primeira vez A descriccedilatildeo do ambiente antes da declamaccedilatildeo do poema eacute uma tentativa de criar um efeito formal naquilo que seraacute lido pela exemplaridade de um acontecimento A forma com que ele deveria ser entendido (lido) era receita fundamental para Catullo Daiacute o autor conta na seccedilatildeo intitulada ldquoAo leitorrdquo do dia em que leu pela primeira vez o poema publicado chamando a atenccedilatildeo para a ldquoatmosferardquo em que fora lido

Aproveitando o ensejo quero dizer-vos que recitei pela primeira vez estes poemas no palacete do Dr Leite Garcia no Alto da Bocirca Vista e a lembranccedila dessa noite me fez precedel-os do ldquoscenariordquo que ides ler []O auditoacuterio era a essecircncia do que haacute de mais bello formoso e intelec-tual Rodeado de senhoras e senhoritas tendo ao meu lado uma or-chestra de violotildees regida por Joatildeo Pernambuco o priacutencipe dos vio-latildeonistas [sic] brasileiros sob o firmamento pintalgado de estrelas naquele ambiente marchetado de luzes multicores irradiadas de todos os acircngulos do palacete parecia-me estar nrsquoum palaacutecio de Fadas Ao ter-minar o primeiro poema recebendo prolongada salva de palmas o Dr Leite Garcia depois de um fervoroso improviso aos meus versos con-vidou uma senhorita para que executasse ao piano a sonata ldquoAo luarrdquo do imortal Beethoven em homenagem aacute Lua e aacute Mulher Apagaram-se entatildeo todas as luzes toda a iluminaccedilatildeo do palacete para que soacute se visse a da Lua que vinha nascendo []Foi a vez de Pernambuco que tocou ao violatildeo um dos seus mais belos choros acompanhado brilhantemente pelo terno281

A descriccedilatildeo dessa noite serviria para o leitor como premissa na leitura do texto que seguiria Construiacutea assim uma modalidade de leitura do texto levando em consideraccedilatildeo sua existecircncia anterior como acontecimento e afirmava a efemeridade dele O texto impresso como

281 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p XVIII-XIX

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 219

lugar de passagem cuja finalidade era ou a sua leitura como aconteci-mento que passou ou como indicaccedilatildeo de como ele deveria se passar Ambas as modalidades de leitura remetiam o texto a um desempenho que ndash embora Catullo indicasse e garantisse sua autoridade inclusive sobre a encenaccedilatildeo posterior ndash teria acontecimento num espaccedilo teatral

Essa organizaccedilatildeo textual era algo comum na produccedilatildeo do teatro de revista do periacuteodo Foram famosas nos anos 1930 as apresentaccedilotildees de Catullo caracterizado como ldquomarroeirordquo na ldquoCasa do Cabocircclordquo an-tigo Teatro Satildeo Joseacute no centro do Rio de Janeiro Laacute o teatro de revista tematizou cenas sertanejas com sucesso e consagrou muitos artistas novos como certo J Lucas que rivalizava com Catullo quem era o me-lhor cantor sertanejo ao lado de jovens atrizes do teatro brasileiro

E ningueacutem poacutede dizer qual dos dois eacute maior mais impressionante O que sabe sim eacute que se o programma da ldquoCasa do Caboclordquo jaacute era so-berbo com os elementos de que dispunha e entre os quaes eacute justo que se destaquem Jararaca Ratinho Joatildeo Lino maior ainda ficou com a par-ticipaccedilatildeo de J Lucas o cantor novo e de Catullo da Paixatildeo Cearense o poeta do nordeste Dercy Gonccedilalves e Victoria Regia282

De Caboclo brasileiro (1930) a O sol e a lua (1934) com sua maior inserccedilatildeo no teatro a produccedilatildeo de Catullo ganharia um efeito mais performaacutetico do texto com alusotildees a ldquoscenaacuteriosrdquo ldquoauditoacuteriordquo ldquoaplausosrdquo intervenccedilotildees de personagens e muacutesicas a acompanhar Embora desde os primeiros livros de poesia escritos por Catullo a narrativa de um evento que antecedia a declamaccedilatildeo oral do poema fosse expliacutecita as referecircn-cias ao mundo do teatro se tornam bem mais claras aparecendo inclu-sive como advertecircncia ao leitor para a necessaacuteria ldquoambiecircnciardquo que pre-cederia a leitura

Essas convenccedilotildees teatrais eram parte imprescindiacutevel de uma pro-duccedilatildeo teatral do Teatro de Revista que mesclava diaacutelogos e muacutesicas a partir de um argumento o fio condutor A partir daiacute desenrolava-se no palco a histoacuteria encenada De muito sucesso por exemplo foi a peccedila O tribofe de Arthur Azevedo encenada ainda em 1891 que serviu de

282 Correio da Manhatilde 29 set 1932 p 8

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo220

base para o lanccedilamento posterior do livro A capital federal do mesmo autor Na peccedila de Azevedo aparecia um argumento que virou regra de muito sucesso em vaacuterias produccedilotildees desse tipo no seacuteculo XX o motivo sertanejo Quase sempre um sertanejo (ou vaacuterios) adentravam a capital federal onde se desenrolava a trama misturando humor e muacutesicas para o deleite do puacuteblico Essa foacutermula de sucesso foi usada por diversas vezes e representava quase sempre uma aposta certeira no sucesso de puacuteblico

Aleacutem do teatro era comum ver Catullo nos cines-teatro que se tornaram em meados da deacutecada de 1920 locais muito frequentados que rendiam ao artista alguns dividendos a mais O ator e empresaacuterio do teatro Procoacutepio Ferreira ndash que como empresaacuterio ocupou durante bom tempo o famoso Teatro Trianon ndash assim falava dessa inclinaccedilatildeo de Catullo para diversas atividades na arte dramaacutetica

Catullo natildeo tinha nada de bonito Era baixo cabeccedila grande raspada nariz adunco Andava a passos largos e curvado A voz sim era bela abaritonada dicccedilatildeo clariacutessima Tudo nele funcionava pata [sic] dar ex-pressatildeo aos seus poemas Gesticulava com propriedade e sabia calcular bem o tempo das pausas Possuiacutea todas as qualidades de um bom ator Fomos grandes amigos Durante o tempo que ocupei o Teatro Trianon Catullo deu ali vaacuterios recitais sempre com sucesso Outras vezes apre-sentava-se em cinemas cantando ao violatildeo Era esse o seu meio de vida Com as rendas dos livros natildeo podia contar Os editores exploravam-no ateacute a medula283

Num tempo em que os direitos autorais ainda natildeo eram formal-mente mateacuteria de disputa sujeitando determinado autor a contrato fir-mado com o editor voltar-se para o teatro (ou para o cinema) parecia um caminho possiacutevel Tanto mais pois que no teatro essa produccedilatildeo renderia mais dividendos para o artista ndash jaacute que era espaccedilo bastante frequentado entrando no rol das modas cariocas ndash e o autor de teatro ainda tinha a possiblidade de lutar por seus direitos a partir de associa-

283 FERREIRA Procoacutepio Procoacutepio Ferreira apresenta Procoacutepio Ferreira Rio de Janeiro Rocco 2000 p 311

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 221

ccedilotildees como a SBAT Desse modo quase sempre o artista de teatro era tambeacutem um autor

Catullo natildeo fugiu agrave regra Embora mantivesse suas produccedilotildees impressas por editoras durante algum tempo ndash desde pelo menos 1915 quando haacute registro de peccedila sob seu nome ndash era comum vecirc-lo no teatro como nos conta Procoacutepio Ferreira Sua presenccedila cecircnica e sua voz apre-ciada faziam com que acorresse ao teatro um puacuteblico interessado em suas apariccedilotildees Sua presenccedila constante a partir dos anos 1930 e seus textos repletos de referecircncias ao espaccedilo teatral eacute que podem ser enten-didos como uma reviravolta em sua produccedilatildeo Isso num momento em que sua produccedilatildeo poeacutetica como vimos sofria muitas criacuteticas especial-mente pelos novos escritores

Por outro lado a manutenccedilatildeo de uma ldquoaurardquo de poeta natildeo parecia faacutecil e apresentar-se no palco implodia cada vez mais essa manutenccedilatildeo pois havia um espaccedilo que separava o artista do escritor ndash ainda mais quando se deve levar em conta que mesmo algueacutem que escrevia para o teatro era considerado um autor menor O termo ldquoteatro ligeirordquo usado para designar as produccedilotildees do teatro de revista no Brasil marcava a di-ferenccedila em relaccedilatildeo a um teatro dito ldquomais seacuteriordquo Nas peccedilas mais ldquoseacute-riasrdquo eram encenadas em geral traduccedilotildees de claacutessicos europeus ca-bendo ao teatro de revista a produccedilatildeo do teatro por autores nacionais

O theatro entre noacutes vem atravessando ultimamente uma crise aguda de autores As companhias nacionais de declamaccedilatildeo que trabalham em nossos theatros tecircm os seus repertoacuterios todos de traducccedilotildees e adapta-ccedilotildees ou cousas mais ou menos parecida [sic] e agora muito e [sic] uso entre noacutes Soacute no theatro ligeiro de revista surgem os autores naciones nos quadros typicos ou sketches jaacute que os quadros de fantasia e baile satildeo geralmente copias de revistas estrangeiras e filmsAqui somente nos theatros de revista podemos mostrar obra nossa e cousas typicas nos quadros nacionais No theatro seacuterio de decla-maccedilatildeo temos somente traducccedilotildees adaptaccedilotildees e arranjos e o peor nem sempre confessados284

284 Jornal do Brasil 3 jun 1930 p 5

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo222

Essa coincidecircncia do autor nacional com um teatro menor o ldquoteatro ligeirordquo imediatamente conduzia a uma representaccedilatildeo do es-critor de teatro no Brasil como um autor menor diante do escritor de livros natildeo teatrais impressos Embora o primeiro pudesse com o su-cesso da peccedila ganhar alguma renda a mais do que o autor de livros natildeo voltados para a representaccedilatildeo cecircnica (quase sempre isso era uma regra) a representaccedilatildeo do escritor de peccedilas diante de um escritor de livros seguramente sofria menos glamourizaccedilatildeo Que diraacute algueacutem como Catullo que se arvorava natildeo soacute como autor de textos teatrais mas tambeacutem como ator encenando tanto em teatros como cinemas

Quando a crise o apertava demais punha umas barbas posticcedilas e laacute ia para o palco Era um espetaacuteculo de cortar o coraccedilatildeo ver aquele gigante da poesia metido na caracterizaccedilatildeo de um pobre sertanejo a cantar e recitar seus poemas e canccedilotildees para uma plateia boccedilal de cinemas ldquopo-eirardquo de bairros285

Essa dupla condiccedilatildeo de artista e autor traduzia-se em uma apre-ensatildeo cada vez mais difiacutecil de Catullo no campo literaacuterio de entatildeo Indicava por outro lado que o espaccedilo de produccedilatildeo de literatura sofria uma mudanccedila e que nos anos 1930 muitos autores consagrados em nuacutemero de vendagens de livros se voltaram para a produccedilatildeo teatral como forma de dar vazatildeo a uma produccedilatildeo literaacuteria que era colocada de lado pelas novas regras do campo literaacuterio Essas eram cada vez mais regidas por uma nova geraccedilatildeo de escritores que surgiam Foi o caso natildeo soacute de Catullo mas de Olegaacuterio Mariano por exemplo que de escritor conhecido voltou-se tambeacutem para uma produccedilatildeo teatral que se expres-sava na produccedilatildeo para o teatro ligeiro

A maior inserccedilatildeo de Catullo como autor teatral se expressaria de maneira definitiva no livro que eacute de fato quase uma autobiografia do escritor e no qual ele se assume em definitivo autor de uma obra que visava agrave representaccedilatildeo teatral Um boecircmio no ceacuteu de 1937

285 FERREIRA Procoacutepio Procoacutepio Ferreira apresenta Procoacutepio Ferreira Rio de Janeiro Rocco 2000 p 311

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 223

Um boecircmio no ceacuteu

Noite de 25 de junho de 1937 No 22ordm pavimento do edifiacutecio drsquoA Noite no centro do Rio de Janeiro Catullo da Paixatildeo Cearense declamava trechos de seu novo livro de poemas para os ouvintes da Raacutedio Nacional O autor intercalava as declamaccedilotildees com algumas canccedilotildees acompanhado de um violatildeo286 A Raacutedio Nacional possuiacutea agrave eacutepoca ao lado da Raacutedio Mayrink Veiga o maior nuacutemero de ouvintes do paiacutes O livro apresentado tinha como tiacutetulo Um boecircmio no ceacuteu e foi lanccedilado pela editora A Noite dona de um jornal homocircnimo que anun-ciava repetidamente a nova publicaccedilatildeo de Catullo considerado um ldquopoeta ateacute o acircmago da inteligecircncia e da sensibilidaderdquo O autor era apresentado como um ldquomenestrel sertanejordquo que ldquocontinua a ser de-pois de setenta anos bem e belamente vividos uma pinturesca ex-pressatildeo da naturezardquo287

Catullo ainda identificado como poeta sertanejo aparecendo em programas de raacutedio via sua fama como tal a aumentar com a irra-diaccedilatildeo para todo o Brasil de sua canccedilatildeo Luar do sertatildeo escolhida como tema da Raacutedio Nacional A retomada de uma representaccedilatildeo de Catullo como poeta da canccedilatildeo vinha ao encontro de uma valorizaccedilatildeo da muacutesica catapultada pelo advento exitoso da raacutedio nesses primeiros tempos Ao ldquomenestrel sertanejordquo que ganhara fama com livros de po-emas sertanejos Catullo retomava com Um boecircmio no ceacuteu sua repre-sentaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo na figura de um boecircmio tocador de violatildeo Isso porque em Um boecircmio no ceacuteu o personagem principal parecia ser o proacuteprio Catullo O Rio Social por exemplo dizia ldquoo bohemio eacute o proacuteprio Catullordquo288 Essa coincidecircncia do autor com seu personagem fazia com que os livros publicados por Catullo tivessem afinal um efeito de autenticidade O autor era o sujeito mais indicado para contar sobre algo E esse efeito como jaacute vimos foi muitas vezes

286 O evento foi noticiado pelo jornal A Noite 25 jun 1937287 A Noite 22 jun 1937288 Apud A Pacotilha 23 abr 1938 p 1 A Pacotilha era um jornal publicado no Maranhatildeo

terra natal de Catullo

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo224

uma maneira encontrada por Catullo para dar credibilidade agrave sua po-siccedilatildeo como autor de literatura

Em Um boecircmio no ceacuteu Catullo parecia novamente buscar tal foacutermula Mas se o poeta tentara um dia criar sua autoridade como conhecedor daquilo que escreve (no caso das modinhas publicadas pela Quaresma) ou pela identificaccedilatildeo nele de uma alma (nos poemas serta-nejos) na nova publicaccedilatildeo a coincidecircncia oacutebvia do autor com seu per-sonagem logo atestada por seus leitores tornava a autoridade daquele que escreve irrefutaacutevel Afinal quem melhor do que o autor Catullo poderia contar sobre o boecircmio Catullo

Um boecircmio no ceacuteu contava em versos a histoacuteria de um boecircmio que ao morrer era recebido no ceacuteu por Satildeo Pedro que passava a inter-rogaacute-lo A cada pergunta do santo o homem respondia com passagens de sua vida terrena As respostas vinham repletas de reflexotildees sobre a vida boecircmia mulheres criacuteticos acadecircmicos bebidas etc Depois de desconfiar das atitudes do receacutem-chegado aos poucos o santo vai sendo convencido de que estava diante de algueacutem temente a Deus e mais do que isso um poeta no que vai ser seguido por Santo Antocircnio e Satildeo Joatildeo que a tudo assistem escondidos Ao final Santo Onofre pro-tetor dos becircbados leva o boecircmio para viver na lua onde eacute recebido pela Virgem Maria ao som do Hino Nacional

Um elemento importante no texto eacute a retomada de uma nar-raccedilatildeo entremeada de indicaccedilotildees cecircnicas O livro eacute dividido em dois atos e algumas passagens sugerem uma escrita voltada para o teatro como a indicaccedilatildeo dos movimentos e tons de vozes que deveriam ser dados agrave leitura (como Satildeo Pedro pensando Boecircmio com ironia Santo Antocircnio entrando com Satildeo Joatildeo e dirigindo-se ao boecircmio) ou indicaccedilotildees do ldquocenaacuteriordquo (ldquoAo levantar o pano o boecircmio ainda estaacute dormindo e roncando escandalosamenterdquo) Tais artifiacutecios eram co-muns numa escrita para o teatro e jaacute haviam sido esboccedilados por Catullo em O sol e a lua No novo livro o personagem sertanejo daacute lugar ao personagem boecircmio com inuacutemeras indicaccedilotildees de que a repre-sentaccedilatildeo do personagem se confundia com seu autor como na pas-sagem a seguir

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 225

S PEDRO[]Mas como viveste laacute na Terra vivendo assim com Deus e o seu AmorBOEcircMIOJaacute voacutes Senhor de certo advinhastesPois fui poeta fui muacutesico e cantorS PEDRO (maravilhado)Poeta Tu focircste poeta Falas seacuterioQual eacute teu nomeBOEcircMIOEu vos direi no ouvidoSAtildeO PEDRO (sorrindo)Eu de haacute muito jaacute tinha pressentidoTu eacutes o grande poeta regionalJaacute pertences agrave nossa AcademiaFocircste eleito por Deus Eacutes imortalEm que paiacutes do mundo tu nascestes com teu estro bravio e senhorilBOEcircMIONum paraiacuteso esplecircndido ndash O BrasilSAtildeO PEDROQual foi o teu estado o teu torratildeoBOEcircMIOO Estado do Talento ndash O Maranhatildeo[] 289

A passagem buscava natildeo deixar duacutevidas de qual poeta estaacute sendo representado no texto Essa coincidecircncia entre autor e personagem eacute mais de uma vez expressa no texto de Catullo Com esse efeito Catullo se arvora a fazer algumas observaccedilotildees de maneira muitas vezes irocirc-nica sobre alguns temas que lhe satildeo caros Numa passagem do texto em que o boecircmio se potildee a questionar Satildeo Pedro sobre o destino de alguns homens veem-se representados alguns desafetos de longas datas do autor Catullo Sobre os membros da Academia Brasileira de Letras o boecircmio questiona Satildeo Pedro

289 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 97-98

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo226

BOEcircMIOPelo que vejo os nobres acadecircmicosTecircm um lugar distinto entre os demaisSAtildeO PEDROComo te enganas pois talvez satildeo elesos que padecem os que sofrem maisVecirc que castigo horrendo ndash quando morremsobem ao Ceacuteu e vatildeo para Mercuacuterioouvir Francisco Alves declamaros discursos de todos os colegasque eacute o castigo maior mais tormentosoque Deus a um pobre homem pode darRaros chegam ao fim ficam exaustosE mergulham num sono tatildeo profundoque eacute difiacutecil fazecirc-los acordar290

Numa raacutepida passagem o narrador Catullo dispara contra duas ldquoentidadesrdquo que lhe proporcionaram indisposiccedilatildeo a Academia que natildeo reconhecera Catullo como um imortal e Francisco Alves agravequela altura um famoso cantor de raacutedio que anos antes tivera um atrito com Catullo no registro fonograacutefico de uma canccedilatildeo deste uacuteltimo

Aliaacutes a contrariedade do poeta com a Academia Brasileira de Letras que nunca lhe dera o fardatildeo de imortal jaacute vinha de longa data e era mateacuteria ateacute de anedotas O escritor Terra de Senna em seu livro Rua da Amargura contava a anedota em que agrave porta de um engraxate en-contravam-se Catullo e o poeta Olegaacuterio Mariano membro da Academia e conhecido por suas manias de grandeza

ndash Eu sou o priacutencipe dos poetas ndash disse Olegaacuterio Tenho um fardatildeo e a admiraccedilatildeo das mais lindas mulheres deste mundo Os meus livros estatildeo nas montras das mais ricas livrarias do Riondash Eu sou o rei dos poetas sertanejos ndash respondeu Catullo Veja a minha corte (e apontou para os outros livros que se ostentavam na vitrine do engraxate) Ibsen Victor Hugo Zola291

290 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 137

291 Apud Correio da Manhatilde 7 jun 1934 p 4

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 227

Um boecircmio no ceacuteu parece ser sobretudo uma prestaccedilatildeo de contas de Catullo com sua histoacuteria A dramatizaccedilatildeo da chegada do bo-ecircmio ao ceacuteu ao que parece representou uma oportunidade para que o autor expressasse suas opiniotildees sobre coisas e pessoas a partir de um personagem que se confundia com sua proacutepria histoacuteria ndash pela biografia traccedilada no diaacutelogo do boecircmio com Satildeo Pedro Eacute possiacutevel que aiacute resida o fato de Catullo ter deixado de lado a escrita de um prefaacutecio ou uma nota ao leitor tatildeo comum em suas publicaccedilotildees anteriores A explicaccedilatildeo reside no fato autoexplicativo da narrativa contada onde pensava fosse obviamente identificado com sua pessoa o personagem do bo-ecircmio ndash diferentemente dos livros anteriores em que por vezes tinha de se afastar de seus personagens sertanejos a fim de construir uma dis-tacircncia necessaacuteria para que pudesse ser entendido como poeta

Em vaacuterias passagens tambeacutem aparece um boecircmio que se van-gloria de sua posiccedilatildeo tal qual Catullo que seguidamente era ironizado por arvorar-se como maior poeta do mundo Essas passagens eram muitas vezes contadas pelos leitores de Catullo para representaacute-lo como um megalomaniacuteaco O papel do criacutetico Gondin da Fonseca um leitor autorizado nesse periacuteodo eacute sintomaacutetico Ao ler o Um boecircmio no ceacuteu disparou nas paacuteginas do Correio da Manhatilde

Nesse livro extremamente mediacuteocre ou melhor positivamente ruim Catullo diz apenas de si mesmo que eacute irmatildeo de Christo Redemptor ndash muito maior poreacutem do que o mano que fugiu da terra com medo do sofrimento emquanto que ele Catullo estando no Ceacuteo quer vir de novo para este valle de laacutegrimas pois a Docircr eacute seu patildeo de cada dia Tem inveja da fama de toda a gente ateacute mesmo de Einstein que con-sidera com azedume ldquoo Pacheco dos saacutebios actuaesrdquo Julga o seu estro ldquosobrehumanordquo Um anjo do Senhor com reverecircncia ldquopoeta da raccedilardquo e Satildeo Pedro fala com assombro do seu ldquoviolatildeo de cordas de ourordquo oferecendo-lhe o Ceacuteo [] declarando-o super-santo super-philosopho super-tudo ldquoeleito de Deusrdquo na Academia dos gecircnios celestiais pois a terra eacute demasiado pequena para a sua gloacuteria Nunca se viu tamanho narcisismo No mundo ningueacutem presta soacute ele292

292 Correio da Manhatilde 25 jul 1937 p 2

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo228

Gondin da Fonseca era um criacutetico comum de Catullo Aqui cabe um parecircntesis Ele ao tecer criacuteticas agrave produccedilatildeo de Catullo (e o fez mais de uma vez) lanccedilava matildeo de uma representaccedilatildeo jocosa do poeta Em uma dessas criacuteticas assim apresentava o poeta

Um dia desses eu estava no Quaresma vendo uns livros velhos e conver-sando com o meu bom Alarico Silveira quando o Catullo se aproximou de mim com os olhos esgazeados fulgurantes os braccedilos estendidos a voz rouca ndash e me bradou com uma estranha vehemencia

ndash Louco Louco Louco Jaacute fui trecircs psychiatrasEu logo me acerquei soliacutecito do grande poeta e velho amigo do peito afim de o acalmar de trazer algum conforto aacute sua exaltaccedilatildeondash Isso natildeo haacute de ser nada Catullo Nervos Eu aacutes vezes tambeacutem ando assim Qualquer coisa me irrita Pareccedilo uma pilha electrica Soffro ateacute com a luz do sol e tenho que fechar as janelas de dia para poder traba-lhar Nervos Que tal se fossemos ahi aacute esquina tomar qualquer coisandash Loucondash Natildeo te exaltes meu velhondash Louco Eacute o tiacutetulo do meu novo poema Li-os a trecircs psychiatras Assombroso Eacute o que te digo Gondin For-mi-daacute-vel Nunca ningueacutem escreveu alguma coisa semelhante Nem Shakespeare293

A representaccedilatildeo risiacutevel de Catullo (algo que virou comum) por um lado arranhava a aura que o poeta tentava construir em seus textos mas por outro tambeacutem foi usada pelo poeta fazendo com que ele se apropriasse dessa representaccedilatildeo em seus livros E era nesses mesmos textos que Catullo respondia aos criacuteticos Ao questionar Satildeo Pedro sobre o destino dos criacuteticos depois que morriam o personagem boecircmio obtinha como resposta

SAtildeO PEDROEssa gente feroz gente danadaque sabe tudo mas natildeo sabe nadapor castigo de Deus expiatoacuteriovai fazer elogios celebeacuterrimosque noacutes mandamos para o Purgatoacuterio

293 Correio da Manhatilde 25 jul 1937 p 2

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 229

BOEcircMIOSenhor Esses canalhas quixotescosOs criticoacuteides nunca me poupavamSAtildeO PEDROE te faziam mal se te insultavamBOEcircMIOTodos eles me beneficiavamPois quando pelo meu jardim passavamroubando-me uma rosa ou um jasmin com o lixo que passando me atiravamas terras do jardim fertilizavame mais flores eu tinha em meu jardim294

Sem duacutevida resultado da apropriaccedilatildeo de um tipo de produccedilatildeo que Catullo conhecia bem ndash o teatro de revista ndash o texto eacute entremeado de passagens risiacuteveis Tratando-se de um texto preparado para ser encenado nada mais oacutebvio que elementos do teatro de revista fossem colocados nele por Catullo ndash como a comeacutedia o diaacutelogo de dois personagens e a muacutesica Essa uacuteltima aparece quando o boecircmio vai-se encaminhando fi-nalmente para o ceacuteu ao se despedir dos santos que o receberam na porta

(Escurece Muda o cenaacuterio da Portaria do Ceacuteu em um amplo espaccedilo vendo-se a lua ao longe para onde vai caminhando o boecircmio com seu violatildeo O boecircmio fitando a lua recita estes versos Enquanto recita ouve-se ao longe uma viola sertaneja)BOEcircMIO(recitando)Oh Que saudadesdo luar da minha Terralaacute na serrabranquejandofolhas secas pelo chatildeoEste luar caacute da cidade Tatildeo escuronatildeo tem aquela saudade do luar laacute do sertatildeo295

294 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 132

295 Idem p 178

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo230

Esse aporte retirado do teatro de revista de entatildeo tornou-se muito comum na obra de Catullo Ademais o material cocircmico de alguns dos seus textos da deacutecada de 1930 tem relaccedilatildeo com suas participaccedilotildees cons-tantes em peccedilas de caraacuteter risiacutevel Participando ativamente como artista na Companhia de Procoacutepio Ferreira eacute possiacutevel flagrar Catullo sendo anunciado em jornais do periacuteodo como integrante de algumas comeacutedias musicais Em Um homem e oito mulheres que foi apresentada no Teatro Carlos Gomes em maio de 1938 (tendo a participaccedilatildeo de Almirante Oscarito Gilda Abreu Manezinho Arauacutejo e Sylvio Caldas) e que era indicada como uma comeacutedia musical a participaccedilatildeo de Catulllo era saudada como a do ldquoGrande Catullo da Paixatildeo Cearenserdquo296

Seu contato no palco com homens como o desenhista Bastos Tigre e o ator Procoacutepio Ferreira conduziu sua produccedilatildeo para um caraacuteter cocircmico tiacutepico do teatro que se fazia agrave eacutepoca

Dessa forma Catullo ia mesclando no texto elementos de sua atividade como poeta da canccedilatildeo poeta literato e artista dos palcos Fazia isso construindo no texto de Um boecircmio no ceacuteu um personagem cuja representaccedilatildeo aproximava-se da de sua pessoa A partir dessa apro-ximaccedilatildeo ia tecendo comentaacuterios sobre sua vida e sobre seus desafetos a fim de construir uma representaccedilatildeo de si mesmo para seus leitores

Ao que parece depois de ter sido excluiacutedo como grande poeta pela nova geraccedilatildeo que surgiu nos anos 1920 Catullo passou a flertar com uma produccedilatildeo textual que tornasse possiacutevel um sentido diferente para o termo ldquopopularrdquo Aqui eacute necessaacuterio pensar a construccedilatildeo de um cacircnone literaacuterio para a literatura produzida no Brasil (em processo nos anos 1930) que se valia de uma forma original do termo ldquopopularrdquo e ao mesmo tempo a emergecircncia de uma cultura de massa proveniente de outros espaccedilos de entretenimento na sociedade cuja circulaccedilatildeo tambeacutem se valia em grande parte para a sua publicidade de uma representaccedilatildeo distinta do ldquopopularrdquo

Essa mobilidade de circulaccedilatildeo entre os diversos locais de pro-duccedilatildeo cultural fazia com que o leque de opccedilotildees de atuaccedilatildeo do poeta se

296 Na propaganda estampada no jornal Correio da Manhatilde 7 maio 1938

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 231

abrisse para aleacutem da produccedilatildeo textual Ademais o capital social cons-truiacutedo por Catullo fazia com que seu nome apesar de parcialmente des-denhado pela criacutetica literaacuteria do periacuteodo fosse ao contraacuterio sinocircnimo de ecircxito tanto para produtores dos palcos do teatro ligeiro como para editores de seus textos e livreiros Estes uacuteltimos interessados no valor da obra de Catullo como algo passiacutevel de ser consumido por um grande puacuteblico letrado viam no poeta uma opccedilatildeo altamente vendaacutevel tanto que avultaram nos anos 1930 reediccedilotildees das obras de Catullo embora o poeta visse como mais rentaacutevel sua participaccedilatildeo nos palcos ndash mesmo que estes fossem espaccedilos onde o ecircxito financeiro poderia render mais para um artista como Catullo natildeo eram seguramente espaccedilos de con-sagraccedilatildeo social para um poeta

Navegar pela literatura natildeo era por si soacute algo que fizesse (mesmo para um reconhecido grande autor) um escritor sobreviver tatildeo somente da publicaccedilatildeo de livros Um autor ganhar dinheiro com a produccedilatildeo de textos simplesmente era algo difiacutecil quase impossiacutevel Isso quando muito tornava-se possiacutevel para um editor de livros

No periacuteodo em que contabilizamos as ediccedilotildees que vatildeo da publi-caccedilatildeo do primeiro livro de poemas de Catullo (Meu sertatildeo 1918) ateacute o ano de 1946 o nuacutemero de ediccedilotildees das obras de Catullo soacute aumentou Embora o nuacutemero de vendagens seja algo difiacutecil de mensurar podemos observar a seguir pelo nuacutemero de ediccedilotildees de uma publicaccedilatildeo o sucesso do consumo desses livros

Tabela 1 ndash Publicaccedilotildees de Catullo Paixatildeo Cearense

Publicaccedilatildeo Ano Editora Nordm de ediccedilotildees

Meu sertatildeo 1918 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 41Sertatildeo em flor 1919 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 31Poemas bravios 1921 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 29Aos pescadores 1923 Ediccedilatildeo da Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 13Mata iluminada 1924 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 28O evangelho das aves 1927 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 8

Meu Brasil 1928 Casa Annuaacuterio do Brasil e posteriormente Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 3

Faacutebulas e alegorias 1928 Officina Industrial Graphica e posteriormente

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira e Editora A Noite 6

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo232

Publicaccedilatildeo Ano Editora No de ediccedilotildees

Alma do sertatildeo 1928 Livraria Editora Leite Ribeiro e posteriormente Editora Bedeschi 7

O sol e a lua 1934 Imprensa Nacional e posteriormente Editora Bedeschi e Editora A Noite 3

Um boecircmio no ceacuteu ndash Poema teatral

1937 Editora A Noite 5

Oraccedilatildeo agrave bandeira 1937 Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal 1

Um caboclo brasileiro 1940 Editora A Noite 3

O milagre de Satildeo Joatildeo ndash Teatro 1943 Editora A Noite 2

Poemas escolhidos 1944 Editora Zeacutelio Valverde 2

Modinhas1943 ou 1945

Livraria Impeacuterio 2

O testamento da aacutervore 1945 Aurora 2

Fonte CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946

Se seus livros eram reeditados tantas vezes denotando um grande consumo por parte dos leitores isso natildeo lhe dava grandes dividendos pois os direitos autorais das obras em geral eram de propriedade dos editores Isso soacute veio a mudar em 1943 quando Catullo cedeu seus di-reitos para Guimaratildees Martins seu amigo que conhecedor dos tracirc-mites dos direitos autorais no Brasil a partir daiacute ficaria responsaacutevel pelo recebimento de parte dos direitos autorais junto agrave SBAT

Tambeacutem o teatro de revista pagava pouco Maacuterio Lago ator e compositor em entrevista a Joel Silveira em 1942 dizia

ndash Faz de conta que vocecirc escreveu uma ldquorevistardquo A sua revista foi en-saiada Demorou um mecircs certinho no cartaz com um sucesso relativo Muito bem Sabe quanto vocecirc ganhou com a histoacuteriandash Uns dez contecosndash Que dez contecos laacute que nada Vamos fazer as contas Demorou um mecircs rendeu de direitos autorais 6840$000 batatamente Vocecirc tem que tirar 50 para o poemandash Qual poema

(continuaccedilatildeo Tabela 1)

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 233

ndash A parte escrita da ldquorevistardquo Geralmente quem escreve eacute oubo Quer dizer vocecirc fica com metade daquela importacircncia Desta grana vocecirc ainda tira 10 para SBAT Pegue no laacutepis e veja quanto leva para casa Aacutes vezes a coisa eacute tatildeo pouca que a gente nem leva para a casa deixa no chopp297

Afinal entre o mercado de produccedilatildeo de livros o espaccedilo de pro-duccedilatildeo de teatro e o mundo da muacutesica este uacuteltimo parecia levar na-queles idos grande vantagem O raacutedio pelo forte poder de comuni-caccedilatildeo comumente catapultava tal produto a sucesso de vendagens Daiacute a criaccedilatildeo pelos compositores de muacutesica popular de uma associaccedilatildeo que defendesse seus direitos Soacute o raacutedio podia no dizer de A L Machado Neto ldquolanccedilar uma ponte para o prestiacutegiordquo298 e ao mesmo tempo render alguns dividendos para o autor de canccedilotildees de sucesso Maacuterio Lago agravequela altura jaacute conhecido por ser o compositor de Aurora que tocava sem cessar nas raacutedios observava a distinccedilatildeo pecuniaacuteria entre fazer te-atro e fazer muacutesica

(Fazer teatro) Natildeo eacute vantagem nenhuma Eacute porque afinal de contas a gente tem que fazer alguma coisa Natildeo posso ser unicamente um com-positor porque nem soacute de muacutesica vive o homem Mas se eu tivesse uma inspiraccedilatildeo diaacuteria vecirc laacute se ia me meter em teatro Soacute ldquoAurorardquo me rendeu jaacute 9 contos299

Lago atestava que isso se dava porque o cinema matava o teatro Natildeo agrave toa o compositor foi um dos primeiros a romper com a SBAT ainda em 1938

Os escritores de livros ao contraacuterio natildeo tinham uma asso-ciaccedilatildeo classista que zelasse por seus direitos Em geral acontecia de o autor ceder os direitos das obras ao seu editor que ficaria encarre-gado de repassar-lhe a porcentagem que bem achasse conveniente

297 BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os homens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 143

298 MACHADO NETO Antocircnio Luiz Estrutura social da Repuacuteblica das Letras sociologia da vida intelectual brasileira ndash 1870-1930 Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 1973 p 101

299 Idem p 144

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo234

diante das vendas Daiacute ser comum o autor mudar de editor e ainda ver seus livros serem publicados por outras editoras sem que tivesse ne-nhum lucro com isso

Do quadro acima um exemplo sintomaacutetico satildeo as ediccedilotildees de obras de Catullo publicadas pela livraria Castilho Depois que seu dono vendeu o espoacutelio para Ameacuterico Bedeschi este continuou a publicar as obras de Catullo sem que o poeta lucrasse com os livros Isso se deu tambeacutem com a livraria Quaresma que reeditou muitas vezes as obras modinheiras de Catullo O acordo entre editores excluiacutea natildeo raro qualquer reivindicaccedilatildeo do autor que houvesse cedido os direitos de publicaccedilatildeo

Os direitos autorais de diversas produccedilotildees culturais como vimos jaacute eram objeto de reivindicaccedilotildees A SBAT desde 1917 era responsaacutevel pela cobranccedila de textos teatrais e muacutesicas divulgadas no teatro Na muacute-sica surgiu ainda em 1937 uma dissidecircncia de compositores populares que criaram a ABCA Nas letras essa iniciativa se concretizou no Rio de Janeiro em marccedilo de 1937 com a criaccedilatildeo do Instituto Brasileiro das Letras (IBL)

A criaccedilatildeo de uma associaccedilatildeo que pudesse reivindicar os direitos autorais de escritores brasileiros era um projeto antigo e havia obtido focirclego quando o projeto de criar uma associaccedilatildeo vinha sendo pensado desde 1932 mas efetivamente a criaccedilatildeo do IBL soacute veio a se dar em 1937 de maneira polecircmica Desdenhado pelos membros da Academia Brasileira de Letras e por parte da Academia Carioca de Letras o IBL surgiu como forma de lutar pelos direitos dos escritores A iniciativa contava com a presenccedila do poeta Renato Travassos seu primeiro presi-dente e tinha a intenccedilatildeo de

[] fazer a defesa dos autores e das suas respectivas obras O Instituto Brasileiro de Letras pleitearaacute junto ao governo leis que regulando o comeacutercio de traducccedilotildees de livros estrangeiros e a transcripccedilatildeo de traba-lhos intellectuaes em todo paiz assegurem de modo praacutetico e eficiente os direitos autoraes e a correcccedilatildeo das traducccedilotildees evitando assim usurpaccedilotildees e incorrecccedilotildees umas e outras perfeitamente censuraacuteveis em mais do que isto damninhas aacute nossa cultura e a nossa probidade intelectual e moral[]Ao que parece desta feita os escriptores brasileiros encontraram uma

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 235

foacutermula pela qual os seus interesses e os seus direitos se defendam com eficiecircncia criando a um tempo uma instituiccedilatildeo e classe onde tudo seja comunhatildeo de vistas e propoacutesitos fraternaes300

A associaccedilatildeo de escritores foi fundada em 5 de setembro de 1937

no luxuoso preacutedio da Associaccedilatildeo Brasileira de Imprensa e teve entre seus signataacuterios aleacutem de Catullo da Paixatildeo Cearense outros autores jaacute consagrados agrave eacutepoca como Gustavo Barroso Olegaacuterio Mariano Maacuterio Linhares Bastos Tigre Prado Kelly Carlos Drummond de Andrade Oduvaldo Viana Manuel Bandeira e Jorge de Lima

A tentativa de fazer com que houvesse maior controle na circu-laccedilatildeo e na ldquotranscripccedilatildeo de trabalhos intellectuaesrdquo era uma antiga rei-vindicaccedilatildeo da classe Afinal tal esforccedilo tratava-se de uma tentativa de regrar a produccedilatildeo e o consumo de uma obra que aparecia sob o nome de um autor Uma vez que muitos dos acordos entre editores e escritores culminavam na apropriaccedilatildeo pecuniaacuteria da obra pelo editor a associaccedilatildeo se propunha a regrar pela criaccedilatildeo de leis essa relaccedilatildeo tornando menos vulneraacutevel a ligaccedilatildeo do escritor-autor com a casa editorial que o publi-cava Poreacutem havia muito o IBL tambeacutem travava outro tipo de luta pelo controle da circulaccedilatildeo existia no campo literaacuterio as ediccedilotildees que circu-lavam muitas vezes com erros que comprometiam a leitura regrada intentada pelo autor

Catullo que aparece entre os signataacuterios foi um dos que comu-mente tratavam de corrigir nas suas publicaccedilotildees incorreccedilotildees publi-cadas sem o seu crivo que pudessem deturpar o sentido da obra Ademais esse sentido poderia mudar a cada ediccedilatildeo vinda a puacuteblico ndash mesmo aquelas que tiveram o consentimento do autor Haacute de se sa-lientar que uma nova ediccedilatildeo modificada tende a criar novos sentidos e podem inclusive visar agrave leitura de novos leitores Para tanto as estra-teacutegias autorais e editoriais satildeo fundamentais para alcanccedilar tal objetivo A histoacuteria das ediccedilotildees de Um boecircmio no ceacuteu datildeo conta disso

A editora A Noite que lanccedilou essa publicaccedilatildeo tem uma trajetoacuteria curiosa Irineu Marinho que criara o jornal A Noite em 1911 havia

300 Gazeta de Notiacutecias 14 jan 1938 p 1

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo236

publicado um ou outro livro mas a editora soacute surgiria mesmo nos anos 1930 sob a eacutegide do francecircs Paul de Leuze Antes dessa uacuteltima data as oficinas do jornal eram usadas tatildeo somente para a impressatildeo de livros Em 1935 surgiram os primeiros livros de sucesso Vida de Santos Dumont por Ofeacutelia e Narbal Pontes e Vida e Amores de Castro Alves de Pedro Calmon

Antes de lanccedilar Um boecircmio no ceacuteu o texto obteve outra modali-dade de circulaccedilatildeo Ele foi lido pelo proacuteprio Catullo na casa do poeta carioca Luiz Edmundo O escritor Carlos Maul testemunhou tal apre-sentaccedilatildeo e conta que apresentaccedilatildeo do ldquopoema dramaacuteticordquo teve a partici-paccedilatildeo de ldquouma victrola orthophonicardquo que executava a ldquomuacutesica a pro-poacutesito canccedilotildees folk-loacutericas que o bohemio vai indicando nos momentos oportunosrdquo No entanto o ldquobohemiordquo que vai indicando as muacutesicas segundo Maul ao que parece natildeo eacute soacute um personagem do poema de Catullo ele eacute o proacuteprio poeta pois o personagem ldquobohemiordquo do poema era o ldquoproacuteprio Catullordquo301

A primeira ediccedilatildeo de Um boecircmio no ceacuteu foi publicada em junho de 1937 Sua capa continha apenas o nome do livro e a indicaccedilatildeo do autor A apresentaccedilatildeo da obra natildeo fazia nenhuma alusatildeo especial ao fato de algum personagem do texto de Catullo ser identificado com o proacute-prio autor

Na segunda ediccedilatildeo lanccedilada em meados de 1938 ndash estendida em 16 paacuteginas com apreciaccedilatildeo positiva de Catullo feita pelo jorna-lista advogado e historiador Rocha Pombo reafirmando sua gran-deza como poeta ndash traz na capa uma ilustraccedilatildeo de Catullo segurando um violatildeo e conversando com Satildeo Pedro Tal alusatildeo visava a dar ao leitor um caraacuteter referencial ou seja uma clara aproximaccedilatildeo do per-sonagem do boecircmio com a figura de Catullo Indicava assim que uma possiacutevel leitura para o texto seria a de que seu autor eacute o proacuteprio personagem e portanto os juiacutezos criacuteticos ali expostos ao boecircmio e pelo boecircmio (vaacuterios aliaacutes) poderiam imediatamente ser remetidos a

301 Correio da Manhatilde 11 mar 1937 p 6

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 237

seu autor Afinal a ediccedilatildeo dava conta para o leitor de que Catullo era seu proacuteprio personagem

Na terceira ediccedilatildeo da obra de 1943 haacute na contracapa uma clas-sificaccedilatildeo inexistente nas ediccedilotildees anteriores indicando tratar-se de ldquoTeatrordquo O leitor do poema deveria ter pela indicaccedilatildeo a clara noccedilatildeo do efeito performaacutetico do que seria lido Aleacutem do mais Catullo usa uma separaccedilatildeo do texto em atos tal qual um texto dramaacutetico Embora jaacute nas ediccedilotildees anteriores existissem no poema alusotildees ao mundo do teatro indicando um texto dramaacutetico a ser lido a indicaccedilatildeo na contracapa natildeo deixava duacutevida do que se tratava o impresso para o leitor Inclusive a editora A Noite cuja administraccedilatildeo tambeacutem era responsaacutevel pelo jornal A Noite fez a publicidade do livro em seu jornal chamando a atenccedilatildeo para que ldquoo poema decorre de uma situaccedilatildeo de caraacuteter teatralrdquo e que Catullo ldquotocando um gecircnero novo conseguiu completo ecircxito e manteve a mesma altura de sua poesiardquo302

Na quinta ediccedilatildeo de 1946 haacute um aumento do nuacutemero de paacuteginas com inserccedilotildees de juiacutezos criacuteticos de Catullo agora morto Aliaacutes tambeacutem eacute nessa ediccedilatildeo que Guimaratildees Martins herdeiro do espoacutelio de Catullo fez aparecer texto do poeta atribuindo-se Guimaratildees a ldquoautoridaderdquo sobre aquele livro no caso de quaisquer ldquorepresentaccedilotildees filmagem tra-duccedilatildeo adaptaccedilatildeo irradiaccedilatildeo etc desta peccedilardquo303

Como se pode ver na medida em que se vatildeo sucedendo as edi-ccedilotildees haacute uma mudanccedila no sentido que se quer dar ao impresso numa tentativa de regrar o caraacuteter da leitura ou pelo menos deixar claro o propoacutesito do interessado ndash seja o proacuteprio autor Catullo nas ediccedilotildees em que ele ainda estaacute vivo seja seu cessionaacuterio Guimaratildees Martins depois que Catullo morre seja o editor da obra impressa Ademais as dife-rentes modalidades de circulaccedilatildeo do texto ndash a primeira leitura oralizada de Catullo na casa de Luiz Edmundo e as posteriores que foram im-pressas pela editora A Noite ndash conduzem a uma recepccedilatildeo distinta que

302 A Noite Ilustrada 2 nov 1943 Suplemento p 25 303 Contracapa de Um bohemio no ceacuteo Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no

ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo238

vai da necessidade de uma leitura entrecortada por canccedilotildees a uma lei-tura silenciosa do livro

Essa vontade de ser melhor lido pode ser demonstrada no final da segunda ediccedilatildeo de Um boecircmio no ceacuteu quando Catullo aproveita para passar a limpo os erros graacuteficos de ediccedilotildees anteriores Em nota ele se explica ldquoComo presumo que ldquoBohemio no Ceacuteordquo tenha favoraacutevel acei-taccedilatildeo aproveito a oportunidade fazendo aqui as emendas de alguns erros que infelizmente se encontram nos meus livrosrdquo304 Daiacute o autor elenca as obras onde existem os erros tipograacuteficos Seis publicadas pela editora Bedeschi (Meu sertatildeo Sertatildeo em flor Poemas bravios Matta illuminada O evangelho das aves e O sol e a lua) e uma pela livraria Castilho (a ediccedilatildeo de 1928 de Matta illuminada)

Catullo vai descrevendo cada erro e sua respectiva paacutegina para no final disparar de maneira explicativa que ldquosatildeo estes os erros princi-paes que natildeo por minha culpa e sim dos senhores compositores [grifo meu] afeiam esses meus livrosrdquo305

As estrateacutegias para que o texto tenha o efeito pensado pelo autor passavam pela mediaccedilatildeo de editores compositores-graacuteficos e final-mente leitores fazendo com que aparecessem nos textos diversos arti-fiacutecios para que o objetivo de uma leitura autorizada fosse enfim pos-siacutevel A emergecircncia de uma associaccedilatildeo de classe que pudesse fazer frente agraves muitas instacircncias que mediavam a relaccedilatildeo do leitor com seu puacuteblico surgiu dessa ldquodeficiecircnciardquo constatada que muitas vezes bar-rava o reconhecimento do autor do livro como grande escritor fosse por supostas deficiecircncias materiais ou esteacuteticas A difiacutecil propriedade do objeto livro afinal obrigava a uma luta de forccedilas do escritor expressa muitas vezes no proacuteprio texto do autor com as demais instacircncias que pudessem desvirtuar o sentido alterando no iacutenterim que separa escrita e leitura o sentido de um texto

Essa constataccedilatildeo talvez possa explicar a emergecircncia do IBL num contexto em que o livro se tornava cada vez mais um objeto a ser con-

304 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 2 ed Rio de Janeiro A Noite 1938 p 154

305 Idem p 161

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 239

sumido inclusive com apoio irrestrito do presidente Getuacutelio Vargas ele mesmo um membro eleito da Academia Brasileira de Letras A editora A Noite por exemplo que publicou nos anos 1930 e 1940 vaacuterias edi-ccedilotildees da obra de Catullo tornou-se desde 1939 propriedade do Estado Este criou vaacuterios programas oficiais que incentivavam o consumo de livros A aproximaccedilatildeo de Vargas dos escritores e o seu apoio a inicia-tivas como o IBL deram aos escritores o suporte para uma luta que se desenrolava nos textos havia muito tempo tal qual um cabo de guerra onde se digladiavam autores graacuteficos editores publicistas e leitores

O flerte entre escritores e o governo Vargas rendeu bons frutos para vaacuterios deles Muitos foram absorvidos na estrutura estatal em pro-gramas diretamente administrados pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Obras foram editadas a fim de dar suporte ao governo Vargas especialmente apoacutes novembro de 1937 quando Getuacutelio tornou-se ditador Natildeo obs-tante eacute possiacutevel flagrar em muitas obras publicadas agrave eacutepoca um ufa-nismo gritante das quais um exemplo cabal eacute Oraccedilatildeo agrave bandeira li-vreto de poemas escrito por Catullo da Paixatildeo Cearense

Essa simbiose entre poliacutetica cultural e produccedilatildeo de uma repre-sentaccedilatildeo mais proacutexima da realidade do paiacutes resultou em inuacutemeros pro-jetos e obras que tiveram o aval do Estado brasileiro no periacuteodo A his-toriadora Acircngela de Castro Gomes chama a atenccedilatildeo para uma poliacutetica cultural fundada na formaccedilatildeo de ldquocidadatildeos nacionaisrdquo306 Sob o go-verno de Getuacutelio Vargas a temaacutetica nacional ganhou novo focirclego e trouxe como consequecircncia uma aproximaccedilatildeo do discurso nacionalista e centralizador da poliacutetica varguista da velha necessidade posta pelos intelectuais brasileiros de construir a naccedilatildeo Isso resultou em projetos editoriais que tiveram a simpatia do Estado varguista que atuava como uma espeacutecie de mecenas da cultura A coleccedilatildeo Brasiliana pensada pelo socioacutelogo Fernando Azevedo que ajudou a difundir uma seacuterie de publi-caccedilotildees que almejavam uma reflexatildeo sobre o paiacutes daacute conta desse mo-mento em que segundo nos conta a historiadora Eliana Dutra estabele-

306 Cf GOMES Acircngela de Castro Histoacuteria e Historiadores Rio de Janeiro FGV 1996 O desdobramento dessa poliacutetica em projetos culturais pode ser pensado com as reflexotildees da historiadora Lia Calabre In CALABRE Lia Op cit

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo240

cia-se ldquoa crenccedila no papel determinante que as Ciecircncias Sociais poderiam jogar na configuraccedilatildeo de um imaginaacuterio nacional e de uma identidade coletiva no Brasilrdquo307

Natildeo obstante a guinada da poliacutetica cultural comandada espe-cialmente pelo ministro da Educaccedilatildeo de Vargas Gustavo Capanema foi simpaacutetica agraves produccedilotildees que ao representar o paiacutes tratavam em seus textos de legitimar o otimismo do novo projeto nacionalista do Estado brasileiro Oraccedilatildeo agrave bandeira faz parte dessa leva

O argumento do livreto foi a cerimocircnia do Dia da Bandeira em que Vargas ordenou a incineraccedilatildeo das bandeiras estaduais para simbo-licamente afastar qualquer onda de regionalismo em prol de uma uacutenica bandeira a nacional O editor da publicaccedilatildeo assim explica

A Constituiccedilatildeo de 10 de novembro outorgada agrave Naccedilatildeo pelo presi-dente Getuacutelio Vargas estabelece entre seus princiacutepios baacutesicos a existecircncia de um uacutenico pavilhatildeo para todo o territoacuterio nacional ndash a Bandeira da PaacutetriaEsse Serviccedilo julgou assim oportuno editar a ldquoOraccedilatildeo aacute Bandeirardquo cujos originaes foram oferecidos pelo autor ndash Catullo da Paixatildeo Cearense ndash ao cap Filinto Muller308

Oraccedilatildeo agrave bandeira foi distribuiacutedo nas escolas pelo Brasil e Catullo ganharia em 1941 uma aposentadoria dada pelo proacuteprio Vargas por ldquoserviccedilos prestados agrave cultura nacionalrdquo As duas ediccedilotildees de Oraccedilatildeo financiadas pelo Governo natildeo foram poreacutem suficientes para que o poeta se resignasse em reclamar da ediccedilatildeo e fazer publicar nos jornais incorreccedilotildees publicadas no livro

Catullo nos procurou agrave noite para dizer-nos de uma incorrecccedilatildeo que aacute sua revelia se vecirc a paacuteginas 59 de sua formosa ldquoOraccedilatildeo aacute Bandeirardquo E o poeta indicando-nos o lapso

307 DUTRA Eliana de Freitas Histoacuteria e Historiadores na Coleccedilatildeo Brasiliana o presentismo como perspectiva In DUTRA Eliana de Freitas (org) O Brasil em dois tempos Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 47-76

308 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Oraccedilatildeo agrave bandeira Rio de Janeiro Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal 1937 Contracapa

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 241

ndash Aqui Em logar neste primeiro verso de ldquoJesus Christo que aben-ccediloasrdquo eu escrevi ldquoOacute Christo que abeccediloaesrdquo Assim devia ter sido im-presso e natildeo como laacute se vecirc Espero que me faccedila a advertecircncia ao leitor menos avisado309

Seguramente natildeo era por numa publicaccedilatildeo financiada pelo Estado que Catullo deixaria passar algo que pudesse natildeo conduzir o puacuteblico a uma boa leitura de sua obra

309 Correio da Manhatilde 17 dez 1937 p 3

Figura 3 ndash Capa da 2ordf ediccedilatildeo de Um bohemio no Ceacuteo Nota-se o desenho de Catullo segurando o violatildeo diante de S Pedro

Fonte arquivo do autor

POR UMA REPRESENTACcedilAtildeO DE SI

Quando eu tiver uma estaacutetua nesta cidadeCatullo em conversa com Joatildeo Ribeiro310

Tempo de prestar contas

Um naufraacutegio aticcedilava os leitores da revista O Malho de me-ados de 1936 Tratava-se de uma brincadeira A revista dava uma lista de uma centena de escritores e perguntava para seus leitores se vocecirc estivesse num bote que estivesse naufragando quais os trecircs vates na-cionais vocecirc salvaria A enquete era uma promoccedilatildeo organizada por O Malho com a livraria Freitas Bastos que daria como precircmio ao ven-cedor 50 mil cruzeiros em livros

Depois de semanas de disputas os vencedores foram Olegaacuterio Mariano Cassiano Ricardo e Leatildeo de Vasconcelos Em 14ordm lugar na frente de nomes como Jorge de Lima e Maacuterio de Andrade apareceu Catullo da Paixatildeo Cearense Tais disputas imaginaacuterias entre escritores conhecidos era algo comum nas revistas brasileiras Ainda em 1925 como vimos anteriormente Catullo fora um dos vencedores em con-curso promovido pela revista Fon-Fon para a escolha do priacutencipe dos poetas brasileiros311

310 Letras e Artes 8 out 1950311 Catullo ficara em terceiro atraacutes de Alberto de Oliveira e Hermes Fontes

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 243

Se agraves vezes a pilheacuteria tinha o caraacuteter visivelmente risiacutevel nou-tras a disputa soava como polecircmica como quando em meados de 1937 com a morte do escritor Paulo Setuacutebal O Malho perguntava a seus lei-tores a quem dava o seu voto para o lugar de Paulo Setuacutebal O resul-tado pode surpreender um leitor atual acostumado a ver nomes como Graciliano Ramos que agrave eacutepoca jaacute despontara como escritor fora de uma lista de 50 escolhidos O vencedor da disputa foi Pliacutenio Salgado ficando em segundo e em terceiro lugar respectivamente Cassiano Ricardo e Catullo da Paixatildeo Cearense

Se tais revistas expressam muito das preferecircncias do puacuteblico leitor carioca ndash fundamentalmente os nomes citados eram de escritores do Rio de Janeiro ndash tal pesquisa revela por um lado a necessidade de se pensar a histoacuteria literaacuteria no Brasil como produto de uma construccedilatildeo tambeacutem ela produzida por diversos autores de histoacuteria literaacuteria o que faz com que se deva historicizar certa histoacuteria da literatura

Por outro lado o espasmo agrave primeira olhadela para a pesquisa conduz o leitor ao questionamento sobre como se deve escrever uma histoacuteria literaacuteria que leve em consideraccedilatildeo aquilo que era lido pelos leitores da eacutepoca A preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de uma maneira de se representar um panteatildeo de autores brasileiros natildeo foi algo desde-nhado por muitos autores Para a introduccedilatildeo de seus nomes entre aqueles que poderiam figurar numa histoacuteria literaacuteria as estrateacutegias de escrita foram fundamentais nessa empresa Muitos em vida construiacuteram eles mesmos uma histoacuteria literaacuteria que os incluiacutesse como parte fundante de um processo de canonizaccedilatildeo das obras

O que tais enquetes realizadas trazem de mais instigante talvez seja mais do que dar respostas sobre quem era o ldquomelhorrdquo em sua eacutepoca ndash o que jaacute valeria uma atenccedilatildeo do historiador da literatura ndash a possibili-dade de buscar novos caminhos para a produccedilatildeo de uma reflexatildeo sobre o campo literaacuterio no Brasil Vale a pena citar os dez primeiros colocados da pesquisa de O Malho em 1936 1ordm) Olegaacuterio Mariano 2ordm) Cassiano Ricardo 3ordm) Leatildeo de Vasconcelos 4ordm) Menotti Del Picchia 5ordm) Adelmar Tavares 6ordm) Guilherme de Almeida 7ordm) Paulo Setuacutebal 8ordm) Attiacutelio Milano 9ordm) Alberto de Oliveira e 10ordm) Paulo Gustavo Alguns como vemos ilus-tres desconhecidos em compecircndios da literatura brasileira posteriores

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo244

A consagraccedilatildeo do nome era uma empresa que demandava boa dose de sensibilidade do autor diante de um puacuteblico leitor Um diaacutelogo constante com os leitores a fim de seduzir pelo texto e por tudo que o rodeia Noutras vezes era necessaacuterio estabelecer uma histoacuteria de vida ndash e ter uma ldquoHistoacuteriardquo era um forte argumento para fincar seu nome entre os chamados autores nacionais Em muitos outros casos era ne-cessaacuterio simplesmente aparecer Buscar alternativas para aleacutem do texto escrito de forma a ter o reconhecimento do texto escrito

Em tempos em que raacutedio cinema e teatro construiacuteam seus proacute-prios iacutedolos usando foacutermulas ineacuteditas a literatura mantinha apesar dos concorrentes um vieacutes de distinccedilatildeo social que o cantor de raacutedio o ator de teatro e o artista de cinema no Brasil agrave eacutepoca desconheciam Se o escritor natildeo era mais propriamente um ldquoiacutedolordquo como evocava Joatildeo do Rio em sua famosa enquete de iniacutecios do seacuteculo o escritor ganhou progressivamente uma aura de construtor da naccedilatildeo Ganhou assim a responsabilidade de opinar em grandes questotildees de caraacuteter mais ldquoseacuteriordquo Representar a naccedilatildeo que teimava em tornar-se tema intransponiacutevel para um candidato a novo escritor era um imperativo formal no estabe-lecimento do que viria a ser chamado de Literatura Nacional

Catullo da Paixatildeo Cearense cuja trajetoacuteria natildeo retiliacutenea em torno do tema da naccedilatildeo o faz um autor menor na histoacuteria literaacuteria do Brasil representa um caso espantoso de escritor reconhecido em vida pelos lei-tores e constantemente agraves voltas com a possibilidade de natildeo reconheci-mento de sua obra pelas instacircncias de consagraccedilatildeo de um escritor

Natildeo eacute agrave toa que no final de sua vida Catullo procurou estabe-lecer em seus uacuteltimos livros uma histoacuteria para si que enobrecesse seu nome como poeta nacional digno da distinccedilatildeo no campo literaacuterio Essa tarefa demandou do poeta certo malabarismo uma vez que sua traje-toacuteria o indicava como modinheiro e ator de teatro duas ocupaccedilotildees que por diversas vezes travaram seu reconhecimento em vida como grande poeta A construccedilatildeo de uma memoacuteria de si uma escrita autobiograacutefica visando a uma canonizaccedilatildeo foi um projeto na escrita de Catullo que pode ser vislumbrado nos seus uacuteltimos textos Para a investigaccedilatildeo desse arsenal eacute urgente chamar a atenccedilatildeo para a morfologia do proacuteprio texto e os sentidos visados na construccedilatildeo dele para uma possiacutevel leitura re-

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grada visando a um convencimento por meio de fotos prefaacutecios juiacutezos criacuteticos e demais mecanismos de escrita

Em 1943 a editora A Noite publicou a peccedila O milagre de Satildeo Joatildeo Nela Catullo novamente repetia a foacutermula de Um boecircmio no ceacuteu retomando uma escrita que visasse a uma performance nos palcos O livro eacute recheado de juiacutezos criacuteticos e fatos da vida de Catullo inclusive a histoacuteria de sua aposentadoria concedida pelo presidente Vargas

Nessa eacutepoca em fevereiro de 1941 Catullo que em tese traba-lhava como datiloacutegrafo no Ministeacuterio da Viaccedilatildeo desde 1921 havia re-cebido aposentadoria de sua funccedilatildeo Isso se deu depois de um artigo escrito pelo poeta e desenhista Bastos Tigre cheio de passagens risiacute-veis bem no estilo do autor em que ele assinalava a necessidade de aposentar Catullo de forma que ele recebesse bem mais do que uma simples aposentadoria Bastos falava do encontro que havia tido com Catullo e de um busto do poeta que estava sendo feito pelo jornal A Noite Vale a transcriccedilatildeo

Passei-le a matildeo sobre o cracircnio raspado com um certo respeito ndash afinal aquillo natildeo deixa de ser um altar ndash e perguntei a Catullo por que assim o trazia liso e cheio de arranhotildees da ldquogiletterdquondash Aquele busto meu amigo aquelle busto Andam dizendo por ahi que o meu busto no jardim do Monroe natildeo se parece commigo E como eu respeito e amo todas as artes faccedilo o possiacutevel para me parecer com o busto O meu cracircnio assim raspado daacute mais impressatildeo de granito vocecirc natildeo acha312

Depois de apresentar esse encontro ao leitor Bastos Tigre contesta

Catullo foi haacute pouco aposentado Contaram-lhe os anos de serviccedilo puacute-blico e acharam que ele soacute tinha dez ou doze E deram-lhe uns trezentos e taes mil reacuteisVocecircs natildeo contaram bem meus compatriacutecios do Dasp Catullo natildeo tem nem uma hora sequer de percussatildeo com os dedos na ldquoRemingtonrdquo ou

312 Correio da Manhatilde 2 fev 1941 p 4

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo246

na ldquoRoyalrdquo mas ele tem sessenta natildeos de trabalho de coraccedilatildeo e ceacuterebro pela nossa Paacutetria pelo Brasil de todos noacutes313

Dez dias apoacutes a publicaccedilatildeo desse artigo Catullo da Paixatildeo Cearense foi aposentado por serviccedilos prestados agrave cultura do paiacutes Em seu novo livro O milagre de Satildeo Joatildeo o editor de A Noite fez aparecer o artigo de Bastos Tigre Poreacutem o que mais salta aos olhos na publi-caccedilatildeo eacute a tentativa de construir uma narrativa de vida que consagrasse Catullo como um poeta diferente e maior aleacutem da insistente tentativa de regrar uma leitura exposta desde as primeiras paacuteginas inclusive com a indicaccedilatildeo de discos para serem ouvidos em cada momento exato da leitura dos poemas

O milagre de Satildeo Joatildeo era uma reediccedilatildeo do poema A promessa publicado no primeiro livro de poemas sertanejos Meu sertatildeo O su-cesso desse poema fez com que Catullo alargasse sua estrutura e o pu-blicasse como um livro inteiro A publicaccedilatildeo eacute iniciada com um pre-faacutecio do escritor Maacuterio Joseacute de Almeida intitulado ldquoO poema da transfiguraccedilatildeordquo em que faz rasgados elogios a Catullo chamando a atenccedilatildeo do leitor para o fato de que o poeta era conhecido por ser um dos ldquomaiores enriquecedores do idioma luso-brasileirordquo e que havia en-cantado homens como Rui Barbosa Procoacutepio Ferreira e Coelho Netto recitando o poema A promessa Fundamentalmente Maacuterio pede a atenccedilatildeo do leitor para as indicaccedilotildees das muacutesicas que deveriam acompa-nhar a sua leitura sob risco de a leitura natildeo se ldquocompletarrdquo

Mesmo natildeo sendo possiacutevel ouvir o poema com os discos especialmente feitos para completar-lhe a essecircncia musical lucraraacute quem o ouvir se respeitando as observaccedilotildees que o autor publica no final deste volume souber impregnaacute-los de recursos musicais que se harmonizem no ritmo misterioso do poema314

Com essa recomendaccedilatildeo Maacuterio Joseacute de Almeida afirmava o ca-raacuteter natildeo soacute visual da leitura mas tambeacutem auditivo dos poemas que

313 Idem314 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943 p 2

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seriam lidos A incorporaccedilatildeo do elemento musical nos poemas era fun-damental para a leitura se concretizar Isso se explica segundo Maacuterio porque o poeta em questatildeo era tambeacutem cantor e muacutesico

Cantor muacutesico e poeta Catullo recomenda altruisticamente que o ldquoO Milagre de Satildeo Joatildeordquo seja acompanhado com os discos em que tanto insiste porque o maior dos cantores do nosso misterioso idioma conhece em surtos esplendorosos o encanto essencial que a muacutesica produz315

Cabe aqui uma pausa Deve-se levar em conta que a reintroduccedilatildeo do elemento musical na obra de Catullo acontece num momento em que a canccedilatildeo brasileira sofre um boom de prestiacutegio por meio da transmissatildeo radiofocircnica Luar do sertatildeo era o prefixo da Raacutedio Nacional que se convertia a partir de 1939 na principal rede transmissora com suas ondas chegando a todo o Brasil O novo sucesso de Luar do sertatildeo aliado a uma maior discussatildeo acerca de direitos autorais no Brasil rein-troduz um debate na imprensa sobre quem seria o verdadeiro autor da canccedilatildeo Catullo da Paixatildeo Cearense ou Joatildeo Pernambuco

Esse debate ganhou as paacuteginas dos jornais e foi motivo de polecirc-mica na qual intervieram por exemplo o compositor Almirante o criacute-tico Gondin da Fonseca e o maestro Villa Lobos um amigo dos dois muacutesicos envolvidos que absolveu Catullo de plaacutegio O poeta em entre-vista explicava o caso

ndash Eacute verdade que o ldquoLuar do Sertatildeordquo natildeo eacute seundash Eacute meu simndash Falam por aiacute que a muacutesica eacute de Joatildeo Pernambucondash Conversa compus o ldquoLuar do Sertatildeordquo ouvindo uma melodia antiga que era cantada com uns versos cujo estribilho era assimlsquoEacute do maitaacuteEacute do maitaacutersquoVersos banaliacutessimos A melodia que eacute tambeacutem banal eacute anocircnima Eacute quase centenaacuteria Com leves modificaccedilotildees adaptei-lhes as estrofes

315 Idem p 3

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do ldquoLuarrdquo Parece-me que agradou porque tem sido cantada no mundo inteiro316

Essa necessaacuteria explicaccedilatildeo surgia exatamente num momento em que compositores de muacutesica no Brasil organizavam-se para discutir di-reitos autorais A polecircmica ainda se estenderia por alguns anos sem que de fato fosse indicado quem era afinal o autor da canccedilatildeo O que se mostrou claramente nas polecircmicas que surgiram foi o caraacuteter impre-ciso do termo ldquoautorrdquo

Em carta aberta a Joatildeo Pernambuco ndash na verdade endereccedilada a Almirante que promovia em seu programa de raacutedio a campanha para a exclusatildeo de Catullo como autor original da canccedilatildeo Luar do sertatildeo ndash Catullo explicava o caso cheio de ironias a Almirante a quem chamava ldquoadvogadordquo A passagem eacute longa e rica de reflexotildees sobre o entendi-mento acerca de ldquoautoriardquo no periacuteodo

Escrevo-te porque tenho pena de ver um velho camarada exposto ao baixo ridiacuteculo por um indiviacuteduo que num programa radiofocircnico ca-luniou torpemente a minha pessoa dizendo que tu eras o inspirador de meus poemas admirados pelo Brasil e pelo estrangeiro Natildeo focircsses tu o alvo dessa leviandade e eu riria a bandeiras despregadas do seu autor[] Tu deves possuir todos esses livros que te ofertei Num deles a ldquoca-bocla de Caxangaacuterdquo estaacute a ti dedicada Por que natildeo reclamaste nessa ocasiatildeo Eacute porque a embolada sertaneja a tal ldquoMeu Engenho eacute de Humaitaacuterdquo nunca foi tua eacute do folclore pernambucano Quando a trou-xeste de Pernambuco com versos banais com que a cantavas eu es-tilizando-a transformei-a na melodia para qual escrevi os versos do meu ldquoLuar do Sertatildeordquo Quando tu cantavas mais frequentemente essa minha canccedilatildeo jaacute a cantavas com a minha estilizaccedilatildeo Apelo para o teu caraacuteter e honestidade ndash na nossa convivecircncia de vinte anos dia a dia estando juntos e ouvindo os discos da famosa ldquoCasa Edisonrdquo do Rio de Janeiro falando em Catullo da Paixatildeo Cearense e natildeo falando teu nome nunca protestaste Soacute o fizeste agora depois que a tal embolada ldquoMeu engenho eacute de Humaitaacuterdquo transformou-se e nesse Hino Nacional do

316 BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os homens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 194

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Sentimento Brasileiro [] O teu ldquoadvogadordquo disse que eu estava rece-bendo os direitos dessa minha canccedilatildeo sem repartir contigo Eacute outra ca-luacutenia O meu amigo sr Fred Figner a quem vendi no tempo da antiga ldquoCasa Edisonrdquo os direitos de algumas das minhas modinhas inclusive o ldquoLuar do Sertatildeordquo eacute quem recebe os direitos das mesmas []Segundo as nossas leis todo motivo folcloacuterico que sofreu alteraccedilotildees fica pertencendo a quem as fez Ecircsse teu conselheiro injuriando-me perpetrou um crime puniacutevel Antes de ecircle acusar-me pelo microfone devia ter-me procurado para ouvir-meCom a ldquoCabocla de Caxangaacuterdquo deu-se o mesmo modifiquei-a e escrevi versos para elaA ldquofortunardquo que eu ganhei com o ldquoLuar do Sertatildeordquo e a ldquoCabocla de caxangaacuterdquo foi 50$000 por uma e 30$000 por outra vendidas em 1913 ao sr Fred Figner que as registrou na Biblioteca nacional em 1914Quando registrei na Escola Nacional de Muacutesica essa minha canccedilatildeo fi-lo como sempre declarei ldquo Composiccedilatildeo musical de minha autoria intitulada ldquoLuar do Sertatildeordquo gecircnero canccedilatildeo cuja muacutesica eacute uma estili-zaccedilatildeo do folclore brasileirordquoSou tatildeo pobre ou mais pobre do que tu Mas se quiseres comparti-lhar dessa ldquofortunardquo sem teres direito para isso eu te darei a quinta parte dela Com essa quinta parte poderaacutes pagar os honoraacuterios do teu ilustre ldquoadvogadordquo317

Como expressava Catullo a autoria de uma obra poderia ser decla-

rada se sob um material original um indiviacuteduo fizesse alteraccedilotildees Eacute a partir dessa premissa que mesmo reconhecendo que Joatildeo Pernambuco foi quem ensinou o motivo folcloacuterico Eacute de Humaitaacute Catullo chama a atenccedilatildeo para haver sido ele mesmo o estilizador daquilo que era reconhe-cido como Luar do sertatildeo Tambeacutem observava que vendera as duas can-ccedilotildees que Pernambuco por intermeacutedio do seu ldquoadvogadordquo reivindicava ndash Cabocla de Caxangaacute e Luar do sertatildeo ndash para Fred Figner e que este a registrou na Biblioteca Nacional o que lhe dava a propriedade da canccedilatildeo

Portanto o poeta observava a partir da constataccedilatildeo de que nada mais recebera por aquelas canccedilotildees que o caraacuteter autoral de uma obra nem sempre indicava a propriedade dela Registrar na Escola Nacional

317 Diaacuterio de Notiacutecias 29 abr 1945 p 2 e 5

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo250

de Muacutesica embora garantisse a canccedilatildeo sob seu nome natildeo lhe dava os direitos juriacutedicos sobre ela que eram de Fred Figner Eacute ele que diz Catullo ldquorecebe os direitos das mesmasrdquo Mas se natildeo era sua proprie-dade Luar do sertatildeo era de sua autoria daiacute Catullo chamar a atenccedilatildeo para o fato de que contestar sua autoria era um ldquocrime puniacutevelrdquo

Almirante questionara inclusive o fato de que Catullo ndash que havia ganhado do jornal A Noite com a ajuda do dinheiro doado por seus leitores uma herma no saguatildeo do edifiacutecio da empresa e na Raacutedio Nacional um retrato em sua homenagem ndash teria sua gloacuteria conquistada agrave custa de Pernambuco ao que o bardo responde ironicamente

Quanto ao meu retrato que estaacute na ldquoRaacutedio Nacionalrdquo penso que o teu ldquoadvogadordquo deve solicitar permissatildeo a todas as pessoas illustres que espontaneamente aplaudiram essa homenagem para em lugar dele co-locar a sua efiacutegie por ser ele a maior patente e a maacutexima autoridade e gloacuteria do BrasilQuanto agrave minha herma erigida com o tostatildeo do povo brasileiro sob o patrociacutenio do brilhante vespertino ldquoA Noiterdquo com o consentimento desse mesmo povo por determinaccedilatildeo do teu patrono seja em seu lugar implantada a tua imagem que me ldquodeurdquo dois nomes de paacutessaros e foi inspiradora colossal sesquipedal de toda a minha antologia de PoetaNo dia da substituiccedilatildeo da minha herma e do meu retrato procurar-te-ei para juntos fazermos uma esplecircndida serenata sob a janela do teu no-taacutevel ldquoadvogadordquo desse Eschino brasileiro cantando o meu imortal ldquoLuar do Sertatildeordquo318

A raivosa e irocircnica resposta de Catullo visava natildeo soacute a desquali-ficar a acusaccedilatildeo pela evocaccedilatildeo dos meios legais mas sobretudo pela construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo consagrada de si diante de Joatildeo Pernambuco Haacute de se salientar que natildeo era a propriedade de Luar do sertatildeo que estava em jogo pois esta diz Catullo tinha sido vendida a Fred Figner O que se debatia afinal era a representaccedilatildeo de autoria sobre a canccedilatildeo O valor pecuniaacuterio da obra era sobrepujado por uma preocupaccedilatildeo autoral que daria ao possiacutevel autor uma identificaccedilatildeo dis-

318 Ibidem p 5

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 251

tinta Para alcanccedilar esse objetivo valiam inclusive criacuteticas agrave produccedilatildeo contemporacircnea de canccedilotildees bem como a construccedilatildeo de uma histoacuteria para si que o dignificasse como grande poeta

Haacute cinquenta anos que venho aclamando o Brasil em todas as minhas modinhas e poemas Ateacute chamaram-me de louco por eu natildeo escrever um verso sem falar na minha PaacutetriaO grande jurisconsulto Pontes de Miranda diz no meu livro ldquoPoemas Braviosrdquo que Rui Barbosa prefaciou ediccedilatildeo Bedeschi paacutegina 275ldquoCatullo eacute o precursor a voz avanccedilada do clarim genial que nos con-voca para querermos mais vivamente a nossa PaacutetriardquoDe certo tempo para caacute eacute que apareceram os ldquobardos nacionalistasrdquo tatildeo patriotas que chegam ateacute a comparar o Brasil com um pandeiro319

A estrateacutegia de evocar o passado como forma de fincar seu lugar no espaccedilo de produccedilatildeo cultural do Brasil dos anos 1940 foi uma receita muito usada por Catullo em seus livros E natildeo era somente nessas polecirc-micas que o poeta ativava essa receita A representaccedilatildeo de si como grande artista vem expressa em O milagre de Satildeo Joatildeo quando ele narra ao leitor vaacuterias passagens de sua vida Na seccedilatildeo conveniente-mente intitulada ldquoUma palestra com os leitoresrdquo o autor apresenta a publicaccedilatildeo adiantando que se o poema ali escrito fosse bem lido os leitores ldquopoderiam se convencer de que este lsquoMilagrersquo eacute um verdadeiro milagre de poesiardquo320 Vai mais longe confirmando ldquoEu considero este meu trabalho (e natildeo soacute eu mas muitos poetas e escritores) a poesia mais brasileira do nosso folclorerdquo321

Catullo na sua introduccedilatildeo vale-se de todos os artifiacutecios necessaacute-rios para a representaccedilatildeo de si como um escritor distinto visando a in-dicar antes da leitura de O milagre pelo leitor a expectativa de estar lendo um autor autorizado Constatando a necessidade de apresentar-se a novos leitores Catullo diferenciava sua poesia da dos ldquomodernistasrdquo pela citaccedilatildeo de autoridades literaacuterias que o haviam consagrado Daiacute

319 Ibidem320 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943 p 6321 Idem p 7

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo252

valer citar que ldquopoetas e escritoresrdquo achavam o poema que seria lido o ldquomais brasileirordquo e para que natildeo restassem duacutevidas quanto a isso para algum desavisado de sua trajetoacuteria literaacuteria o poeta faz desfilar em seu texto o nome dos ldquopoetas e escritoresrdquo que o consagraram

Os poetas do modernismo quiseram-me expulsar do Brasil e soacute natildeo conseguiram por saiacuterem em minha defesa homens como estes Rui Barbosa Coecirclho Neto Alberto Rangel Alberto de Oliveira Luiz Murat Rocha Pombo Capistrano de Abreu Afranio Peixoto Roquette Pinto Evaristo de Morais Maacuterio de Alencar Monteiro Lobato Juacutelio Dantas Agostinho de Campos Branco Colaccedilo Tomaz Ribeiro Filho Bastos Tigre Gastatildeo Pereira da Silva Maacuterio Joseacute de Almeida Alcindo Guanabara Luiz Carlos Paulo Silva Arauacutejo Rosalina Coelho Lisboa Pedro Lessa Guimaratildees Natal Muniz Barreto Assis Chateaubriand Fernando Magalhatildees Joseacute Oiticica e ateacute estrangeiros como Salvador Rueda e Vilaespesa os dois grandes poetas da Espanha e o grande cientista o grande meacutedico italiano ndash o Dr Ernesto Bertarelli322

Afirmar por meio da aprovaccedilatildeo de autoridades das letras sua condiccedilatildeo de ldquogrande poetardquo confirmava a publicaccedilatildeo que se iria ler como a produccedilatildeo de algueacutem que natildeo poderia ser desdenhado como autor de poesias E para os novos leitores que jaacute estivessem acostu-mados com poetas ldquomodernosrdquo Catullo tratava de chamar atenccedilatildeo para sua histoacuteria natildeo soacute como poeta mas tambeacutem como muacutesico

[] Mas ainda hoje os vates modernos dizem que eacute preciso queimar os meus livros que maculam a nossa literatura Que dizer sobre esses ldquoimortaisrdquo Haacute poucas excepccedilotildees Manoel Bandeira e outros de que natildeo me lembro[]Leitor jaacute escrevi muitas modinhas cantadas de norte a sul Reabilitei o violatildeo impondo-o nas salas dos nobres dos aristocratas Citarei ndash Pedro Lessa Rui Barbosa Nuno de Andrade Pinheiro Machado Luacutecio de Mendonccedila Nilo Peccedilanha Artur Bernardes e Epitaacutecio Pessoa no proacuteprio palaacutecio do Catete e muitos outros pois natildeo acabaria a lista se os fosse enumerar Basta dizer que em 1908 dei uma audiccedilatildeo no Conservatoacuterio de Muacutesica de que era diretor o maestro Nepomuceno

322 Ibidem p 7-8

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 253

Fiz do instrumento vagabundo um instrumento que hoje toda moccedila da alta roda tem orgulho em dedilhar Cantei como ningueacutem e nunca mais ouviacute quem cantasse essas modinhas como eu cantei No gecircnero fui um Caruso Quem duvidar pergunte a um velho da passada geraccedilatildeo323

Retomar velhas consagraccedilotildees fazia com que o leitor criasse a expectativa de uma leitura de autor consagrado Ademais tal lembranccedila veio num momento alvissareiro especialmente porque nos anos 1940 a muacutesica como jaacute atentamos torna-se objeto de consumo progressivo com o advento do raacutedio como forccedila comunicadora Aiacute reside uma dife-renciaccedilatildeo nas estrateacutegias de escrita operacionalizadas por Catullo em seus uacuteltimos livros

Desde o advento do Catullo ldquopoeta sertanejordquo ndash o aacutepice tendo sido a publicaccedilatildeo de Meu sertatildeo em 1918 ndash o bardo tratou de afastar seu nome de uma produccedilatildeo musical que embora o tivesse consagrado e o fizesse reconhecido distanciaacute-lo-ia de um reconhecimento como es-critor de livros ou poeta letrado Isso natildeo impediu que Catullo fosse por diversas vezes chamado para cantar suas modinhas em salotildees e teatros

Com a ascensatildeo do raacutedio no Brasil e a elevaccedilatildeo jaacute nos anos 1930 de Luar do sertatildeo ao status de muacutesica representativa da naccedilatildeo com sua transmissatildeo incessante como prefixo da Raacutedio Nacional ser reconhe-cido como autor de muacutesicas natildeo soaria de maneira pejorativa a um poeta Ademais se na deacutecada de 1930 o raacutedio aos poucos invadiu os lares brasileiros nos anos 1940 especialmente com a aguda sensibili-dade de Getuacutelio Vargas que via no radio um potencial veiacuteculo de comu-nicaccedilatildeo com a populaccedilatildeo o aparelho de raacutedio se tornou febre de con-sumo A historiadora Lia Calabre observa que essa mudanccedila se deu pois ldquoo raacutedio do final da deacutecada de 1930 jaacute era visto como um meio de comunicaccedilatildeo fundamental e indispensaacutevel soacute ele poderia informar transmitir as notiacutecias com a velocidade necessaacuteria dos novos tem-posrdquo324 Daiacute ser comum nas publicaccedilotildees de Catullo dessa eacutepoca o que

323 Ibidem p 9324 CALABRE Lia No tempo do Raacutedio radiodifusatildeo e cotidiano no Brasil 1923-1960

2002 277 f Tese (Doutorado em Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Universidade Federal Fluminense NiteroiacuteRJ 2002 p 68

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo254

poderiacuteamos chamar de volta agrave produccedilatildeo musical tentando fincar seu espaccedilo tambeacutem como muacutesico e cantor consagrado algo inexistente nas produccedilotildees anteriores O milagre de Satildeo Joatildeo representa essa guinada na obra impressa do poeta de maneira tatildeo sintomaacutetica que a leitura do poema do livro soacute poderia ser efetuada com a ajuda das suas canccedilotildees

Aiacute Catullo busca representar em sua obra aquilo que o leitor atento deveria entender como um ldquobardo nacionalrdquo Nesse processo Catullo esmaece as fronteiras que poderiam separar o poeta do bardo da muacutesica construindo uma aproximaccedilatildeo entre ambos e indicando que a leitura do texto e audiccedilatildeo de uma canccedilatildeo eram dois pares fundamentais para o entendimento de sua poesia

Catullo afinal cria um plano de leitura da sua obra buscando superar a contradiccedilatildeo que separava o poeta de livros e o compositor de canccedilotildees ndash e que era como vimos argumento importante para classificar um autor com um poeta letrado (ou natildeo) nos anos 1910 e 1920 Ele mesmo que assumira anteriormente em sua obra esse projeto figu-rava com O milagre uma reaproximaccedilatildeo com sua produccedilatildeo musical Mas da mesma forma como houvera tentado construir seu lugar como poeta sertanejo era necessaacuterio tambeacutem distinguir-se de outros compo-sitores de muacutesicas de preferecircncia os mais novos estigmatizando-os em negativo ao passo que dando o creacutedito a compositores mais antigos se afirmasse como dentre eles o maior

Hoje no Brasil pululam os ldquobardos nacionaisrdquo e nenhum deles deixa de compor sua marchinha seu samba ou sua canccedilatildeo falando sempre na ldquoca-boclardquo no ldquomalandrordquo no ldquoBrasil pandeirordquo nome este acapadoccedilado que ateacute melindra a nossa brasilidade Os ceacutelebres trovadores natildeo sei porque fizeram dos morros o seu Parnaso esses lugares evitados em outros tempos por todas as pessoas decentes Os morros com os seus desordeiros e os seus assassinos nos apavoravam Hoje satildeo aclamados por senhoras e senhores da alta nobresa Basta que um sujeito escreva um samba em que capadoccedilalmente fale em Brasil para que logo seja considerado um poeta de votildeos [sic] nacionais Agora tudo eacute ldquoBrasil Brasil Brasilrdquo e no entanto haacute 50 anos quando eu jaacute dedicava os meus descantes ao Brasil brasileiro era chamado de maniacuteaco porque soacute cantava a minha paacutetria325

325 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943 p 7

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 255

Daiacute representar o passado tornou-se um exerciacutecio de produccedilatildeo de uma crenccedila na distinccedilatildeo positiva do autor de O milagre Se o pre-sente dava novo status ao compositor de muacutesica que ldquopululavardquo em todo canto como queria Catullo necessaacuterio seria produzir uma repre-sentaccedilatildeo que o diferenciasse em meio a todos eles Numa clara alusatildeo aos sambistas que apareciam o trecho acima expressa essa operaccedilatildeo onde a construccedilatildeo de um passado glorioso para o poeta respondia agrave demanda por um lugar dentro do universo da muacutesica no Brasil do pe-riacuteodo Contra os novos poetas e muacutesicos o autor natildeo economizava nos comentaacuterios autoelogiosos

Fui um tocador de violatildeo e um cantador de modinhas uacutenico no gecircnero Fui um seresteiro notaacutevel estupendo sesquipedal Quando queria um favor a Deus pedia-o numa serenata Que ideacuteia faz o leitor de uma se-renata Eu as fiz com os mais notaacuteveis muacutesicos desta capital 326

Temendo que no futuro as pessoas esquecessem sua obra Catullo conclui

Mas se por ventura os homens o esquecerem nada perderaacute a poste-ridade Nada perderatildeo os poetas de que minha terra estaacute cheia nada perderatildeo os artistas nada perderatildeo os saacutebios nada perderatildeo os filoacute-sofos ningueacutem perderaacute com esse esquecimento Soacute trecircs estou certo lamentaratildeo o olviacutedio dessa epopeia nacional desse portentoso desse milagroso ldquoMilagre de S JoatildeordquoSoacute trecircs ndash o Passado a Tradiccedilatildeo e a Natureza do Brasil327

Todo o arcabouccedilo de autoencocircmio o poeta mobilizava em sua ldquoPalestra com os leitoresrdquo Todo o arsenal de autorrepresentaccedilatildeo eacute mo-bilizado de forma que o leitor natildeo o confunda com sambistas e o co-loque no patamar de homens socialmente distintos na cultura letrada do periacuteodo Mas como achasse que criar essa crenccedila em sua distinccedilatildeo como poeta e muacutesico natildeo fosse o suficiente para a posterior leitura do texto que seguiria o autor anuncia a necessidade de ler ouvindo as can-

326 Ibidem p 11327 Ibidem p 12-13

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo256

ccedilotildees que iria indicar pois para que a publicaccedilatildeo do livro ldquotenha uma estupenda realidade deve ser acompanhada de todos os discos fonograacute-ficos que dela fazem parterdquo328

Ainda na introduccedilatildeo ldquoPalestra com os leitoresrdquo Catullo abusou das explicaccedilotildees dadas ao leitor de como o livro O milagre de Satildeo Joatildeo deveria ser lido Eacute interessante notar que nessa advertecircncia em forma de prefaacutecio Catullo jaacute entatildeo quase um octogenaacuterio retomava sua re-presentaccedilatildeo de compositor e fazia assim daquele novo livro que publi-cava um curioso casamento entre poesia teatro e muacutesica Essa guinada natildeo poderia ser entendida sem levar em conta as mudanccedilas em torno do papel da canccedilatildeo popular no Brasil da deacutecada de 1940

Mas voltemos agrave ldquoPalestra com os leitoresrdquo Nela Catullo busca explicar ao leitor do que se trata a poesia que se iria ler fazendo uma grave advertecircncia ao final ldquoChico Mironga o sertanejo que aqui na capital vai contar sua histoacuteria de amor com Joaninha hoje jaacute estaacute velho mas era rapazola quando se deu este caso Esta epopeia sera uma epo-peia maravilhosa se o leitor quiser seguir as minhas indicaccedilotildeesrdquo329

A advertecircncia do poeta serve como tentativa de regrar a leitura Existiam no texto do poema marcaccedilotildees que separavam em ldquopartesrdquo a histoacuteria do sertanejo Chico Mironga e Catullo vecirc a possibilidade de a leitura do poema ser seguida pela audiccedilatildeo dos ldquodiscos fonograacuteficosrdquo pois assim como queria ldquoa epopeia seraacute uma epopeia maravilhosardquo Para reiterar a necessidade de articulaccedilatildeo do texto com a muacutesica o poeta ainda insistia por vaacuterias vezes em seu texto para que o leitor natildeo perdesse de vista aquela advertecircncia e via nessa passagem uma opor-tunidade para demonstrar um pouco de sua trajetoacuteria como muacutesico Reiterando o papel da audiccedilatildeo da muacutesica no momento da leitura do poema de O milagre ele observa

[] Tenho comigo todos os discos que o ilustramPor insinuaccedilotildees minhas foram eles gravados haacute muitos anos e haacute muitos anos estatildeo esgotados Fosse eu um homem rico mandaria gravaacute-los de

328 Ibidem p 5329 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 257

novo para proveito dos leitores Com eles poderiam se convencer que este ldquoMilagrerdquo eacute um verdadeiro milagre de poesia Eacute inuacutetil dar o nome dos meus discos porque eacute quase impossiacutevel serem hoje encontradosO leitor com seu gosto apurado e a sua inteligecircncia pode substituiacute-los por outros antigos ou mesmo modernos desde que eles condigam com o assunto a que tecircm de se adaptar330

Haacute de se observar que aquilo que Catullo chama ldquomeus discosrdquo natildeo eacute como poderia pensar um leitor atual os discos gravados por ele proacuteprio Natildeo consta na historiografia e mesmo em pesquisas sobre o disco no Brasil que o poeta tenha gravado algum disco O que Catullo chama de ldquomeus discosrdquo satildeo suas muacutesicas gravadas por outros Por isso na passagem acima transcrita afirma que ldquopor insinuaccedilotildees mi-nhas foram eles gravadosrdquo Ora a forma comum agrave eacutepoca de chamar ldquomeus discosrdquo diz muito sobre o fato ldquoautoralrdquo A autoridade uacuteltima da canccedilatildeo gravada era do compositor pelo menos assim nos diz Catullo Mas a mudanccedila no status do cantor no Brasil nos anos 1930 distorcia a opiniatildeo o poeta No novo regime era comum o desaparecimento do autor em prol do cantor muitas vezes identificado como o autor ori-ginal da canccedilatildeo A representaccedilatildeo da canccedilatildeo gravada por outro como ldquomeus discosrdquo como queria Catullo era arranhada pela proeminecircncia do cantor que naquela eacutepoca bem poderia dizer em resposta ao poeta ldquoos meus discosrdquo

Em O milagre de Satildeo Joatildeo embora jaacute indicasse a necessidade da muacutesica no texto Catullo vai mais longe em seu afatilde regrador da re-cepccedilatildeo ele indica os momentos exatos do poema em que uma canccedilatildeo deve ser ouvida pelo leitor Para tanto ao final do livro em seccedilatildeo inti-tulada ldquoExplicaccedilatildeo e indicaccedilatildeo dos discos que devem musicalmente completar este poemardquo explica pormenorizadamente os detalhes da muacutesica e dos momentos em que devem ser tocadas para o deleite do poema Antes explica que

Sempre que funcionar o aparelho fonograacutefico o leitor deve interromper a leitura continuando-a depois de o disco terminado Alguns discos po-

330 Ibidem p 5-6

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo258

deratildeo ser tocados na iacutentegra outros em parte O Guarani por exemplo seraacute discado apenas nos primeiros compassos salvo se o recitador re-solver o contraacuterio Repito recomendo todo cuidado e inteligecircncia na escolha desses discos Se natildeo forem bem escolhidos em lugar de em-belezarem prejudicaratildeo a beleza do poema331

Ao final do poema Catullo indica cada paacutegina em que a canccedilatildeo deve ser tocada o verso que deve findar para que a muacutesica toque e em que momento ele deve continuar a ser lido depois da canccedilatildeo Com uma observaccedilatildeo salutar ao final dessa explicaccedilatildeo o autor observa que ldquotodos os discos deveratildeo ser tocados imediatamente sem perda de um se-gundo logo depois de ser proferido o verso que lhe serve de deixardquo332 Assim

PAacuteGINA 35Depois do verso ldquovasmincecirc vae iscutaacuterdquo deve-se ouvir um samba an-tigo e natildeo samba moderno estrangeirado Esse samba deveraacute ser can-tado Seguir-se-aacute o verso ldquoE noacutes fumo caminhandordquo[]PAacuteGINA 47Depois do verso ldquofaz os veacuteio se alembraacuterdquo ouvir-se-aacute um terno de flauta ou uma banda tocando uma parte de quadrilha Seguir-se-aacute o verso ldquoLogo ao despois da quadrilhardquoPAacuteGINA 48Depois do verso ldquoFoi assubiando o balatildeordquo disque-se um tango de Ernesto Nazareth ou Chiquinha Gonzaga Seguir-se-aacute o verso ldquoAgora todo mundatildeordquo[]PAacuteGINA 145Depois do verso ldquoo Brasil tem um sordadordquo uma banda de muacutesica para terminar executaraacute o Hino Nacional333

O milagre de Satildeo Joatildeo representa natildeo soacute a retomada definitiva da muacutesica nos textos de Catullo ndash algo que jaacute vinha sendo esboccedilado desde O boecircmio no ceacuteu ndash mas uma nova estrateacutegia autoral visando a fisgar o leitor mais desavisado de sua trajetoacuteria como muacutesico Um novo leitor

331 Ibidem p 6332 Ibidem p 162333 Ibidem p 159-162

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 259

que agravequela eacutepoca tambeacutem se regozijava com os sucessos radiofocircnicos e fonograacuteficos Um leitor que se acostumara tambeacutem a ouvir inclusive o proacuteprio Catullo recitando nas raacutedios e que construiacutea seus novos iacutedolos atraveacutes das ondas radiofocircnicas Escrever um livro e publicaacute-lo natildeo era mais a receita uacutenica de consagraccedilatildeo de um indiviacuteduo A canccedilatildeo entroni-zava de maneira mais consagradora cantores e compositores de muacutesica e embora o puacuteblico consumidor de livros tenha aumentado substancial-mente desde iniacutecios do seacuteculo XX ndash inclusive com programas do Governo Federal comandado por Vargas ndash a radiofonia sequestrara a aura que era uacutenica e exclusiva do poeta de livros

O milagre de Satildeo Joatildeo eacute uma tentativa de (re)construccedilatildeo do ldquopoeta das modinhasrdquo que consagrara Catullo em iniacutecios daquele seacute-culo de forma a rivalizar incorporando-a na sua escrita com o mundo das canccedilotildees no Brasil Dali em diante o poeta Catullo da Paixatildeo Cearense assumindo de vez seu lugar como muacutesico publicou em li-vros posteriores sua autorrepresentaccedilatildeo constantemente de forma a evocar um passado de consagraccedilatildeo com as letras e mais do que tudo com a muacutesica

O testamento da aacutervore

Em meados dos anos 1940 as produccedilotildees nacionais catapultadas pela poliacutetica cultural do governo Vargas invadiam a Europa e principal-mente os Estados Unidos J J Robins empresaacuterio que vinha editando muacutesica brasileira em Nova Iorque ndash desde Mamatildee eu quero de autoria de Jararaca e Vicente Paiva ndash anunciava que a uniatildeo dos compositores ligados agrave SBAT e agrave ABCA tinha sido uma ldquoexcelente ideacuteiardquo334 pois segundo ele isso fazia com que natildeo houvesse problemas com paga-mentos de direitos autorais em separado De fato a resoluccedilatildeo do con-flito que envolvia a arrecadaccedilatildeo de direitos autorais envolvendo as duas entidades havia chegado a um acordo em que ambas as partes resolveram aceitar a existecircncia uma da outra

334 A Noite 7 ago 1942

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo260

O jornal A Noite citava (aleacutem de Robins) Ralph Peers como outro editor de muacutesicas brasileiras em terras estadounidenses Peers lanccedilava de maneira ldquoafortunadardquo dizia o perioacutedico Aquarela do Brasil de Ary Barroso Robins por sua vez estava obtendo ecircxito com duas canccedilotildees A primeira era Que eacute que a baiana tem de Dorival Caymmi gravada pelos ldquofamosos cantores negros Mills Brothers que a cantaram num estilo tipicamente semelhante ao das canccedilotildees dos pretos americanos em que se especializaramrdquo A segunda era Luar do sertatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense sob o tiacutetulo In Old Brazil em arranjo de Eddy Duchin num estilo fox-trot Luar tambeacutem era usada salientava A Noite como ldquotema para caracterizar o Brasil na peccedila orfeocircnica The Two Americas poema de Mary Carolyn Davies e muacutesica de Domenico Savinordquo Na ediccedilatildeo preparada por Robbins apareciam trechos do Hino Nacional Brasileiro e a primeira audiccedilatildeo seria feita em agosto de 1942 na Escola de Muacutesica Juvenil de Interlochen em Michigan335

Do outro lado do Atlacircntico o poeta portuguecircs Joatildeo de Barros saudava o poeta Catullo chamando-o de ldquoinspirador das energias do povo brasileirordquo Procoacutepio Ferreira por sua vez mandava notiacutecias de que os livros de Catullo eram lidos com frequecircncia em Lisboa capital de Portugal

Esse sucesso pegara um jaacute octogenaacuterio Catullo que entregara a Guimaratildees Martins a responsabilidade de cuidar de seus direitos auto-rais exatamente no momento de ecircxito internacional de suas produccedilotildees Martins era maranhense e tambeacutem se metia a escrever poesia e cantar canccedilotildees muitas vezes acompanhando o proacuteprio Catullo na Raacutedio Nacional Ganhara a confianccedila do poeta de maneira tal que Catullo leigo nos tracircmites para a reivindicaccedilatildeo de direitos autorais colocou em suas matildeos a tarefa de resolver tais problemas

Jaacute sob responsabilidade de Guimaratildees Martins Catullo publicou trecircs livros Poemas escolhidos (1944) Modinhas (1946) e O testamento da aacutervore (1945) Os dois primeiros satildeo coletacircneas de poemas e modi-nhas respectivamente Modinhas continha no texto os nomes dos com-

335 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 261

positores das muacutesicas que acompanhariam as letras de Catullo ndash algo inexistente nas antigas publicaccedilotildees de modinhas de Catullo pela livraria Quaresma ndash numa tentativa tambeacutem de resolver um longo capiacutetulo das produccedilotildees de Catullo a autoria

Como jaacute haviacuteamos observado Catullo resolvera inscrever suas canccedilotildees na SBAT que por sua vez cedia a parte concernente aos seus direitos a Guimaratildees Martins como procurador do poeta Essa cessatildeo de direitos de propriedade a Guimaratildees eacute indicada na contracapa de seu livro Poemas escolhidos onde faz publicar a seguinte explicaccedilatildeo

Direitos de propriedadeDe GUIMARAtildeES MARTINSReservados todos os direitos de traduccedilatildeo adaptaccedilatildeo reproduccedilatildeo etc nos paiacuteses que aderiram agrave Convenccedilatildeo de Berna336

A primeira ediccedilatildeo da publicaccedilatildeo de Poemas escolhidos foi lan-ccedilada em 1944 pela editora Zeacutelio Valverde localizada na travessa do Ouvidor nordm 27 centro do Rio de Janeiro Zeacutelio era ainda jovem quando se iniciou como editor ndash com pouco mais de 17 anos de idade Aleacutem de vender desde 1937 livros histoacutericos e claacutessicos da literatura brasileira em sua livraria sua figura ficou conhecida por ele ser bastante gordo Em 1939 sua editora nascente se fundiu com a Schmidt Editora do poeta e homem de negoacutecios Augusto Frederico Schmidt

A fusatildeo fez aumentar ainda mais a procura por livros especial-mente com a reediccedilatildeo da seacuterie ldquoGrandes Poetas do Brasilrdquo empreendi-mento que obtivera enorme sucesso desde 1938 e a coleccedilatildeo ldquoBiblioteca das Grandes Biografiasrdquo cujo livro inaugural foi uma biografia do poeta Coelho Neto escrita por seu filho Paulo Coelho Netto337 Zeacutelio causava grande alvoroccedilo no mundo editorial ao publicar aquilo que chamou de o ldquoprimeiro livro brasileiro sobre os horrores da ocupaccedilatildeo nazistardquo intitulado Viagem atraveacutes do caos de Ary Pavatildeo que vendeu

336 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 Contracapa

337 Diretrizes 16 abr 1942 p 29

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo262

trecircs mil exemplares soacute no Rio de Janeiro em poucos dias Um verda-deiro ldquorecorderdquo segundo o perioacutedico Diretrizes338

Poemas escolhidos tratava-se de uma seleccedilatildeo dos poemas orga-nizado e anotada por Guimaratildees Martins e revista pelo autor Zeacutelio fez uma tiragem de 150 exemplares numerados e rubricados pelo autor contendo 17 caricaturas de Catullo produzidas por diversos artistas Entre os poemas escolhidos havia vaacuterias letras de modinhas de Catullo afirmando uma necessidade antiga do poeta que via essas letras como passiacuteveis de serem representadas tambeacutem como poemas Por isso o livro tem uma primeira parte intitulada ldquoO poeta muacutesico e cantorrdquo uma segunda parte chamada de ldquoO poeta braviordquo e uma terceira parte com o tiacutetulo de ldquoO poeta cultordquo Essa separaccedilatildeo dizia muito da representaccedilatildeo de poesia que tanto Catullo quanto Guimaratildees Martins e o editor Zeacutelio queriam atribuir agrave obra que o leitor teria em matildeos Cada poema era acompanhado com a explicaccedilatildeo necessaacuteria ndash muitas vezes uma histoacuteria de consagraccedilatildeo de Catullo ndash para que o leitor compreendesse o contexto de sua produccedilatildeo

A publicaccedilatildeo se inicia com uma ldquoNota explicativa ndash servindo de prefaacuteciordquo escrita pelo proacuteprio poeta Nela Catullo explica ao puacute-blico o objetivo da publicaccedilatildeo e o porquecirc de nela aparecerem tambeacutem as modinhas

Solicitado pelo meu querido amigo Guimaratildees Martins para que eu fizesse uma seleccedilatildeo dos meus poemas de acordo com ecircle resolvi fazer esta escolha que natildeo sei se foi a melhor Tambeacutem aplaudi a ideacuteia que teve esse belo amigo de incluir na coletacircnea algumas das minhas Modinhas da Velha Guarda para que o leitor pudesse me conhecer como trovador das antigas serenatas Essas canccedilotildees perdem muito sem a muacutesica com que satildeo cantadas Mas como Guimaratildees Martins vai pu-blicar algumas delas com as respectivas melodias o leitor poderaacute sen-tiacute-las com a beleza integral Eacute mais um serviccedilo que Guimaratildees Martins prestaraacute ao povo da nossa terra339

338 Idem 1ordm out 1942 p 7339 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 15

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A nota procura alertar o futuro leitor que pudesse desconhecer sua faceta ldquotrovador Velha Guardardquo para uma leitura de suas modinhas Anunciadas como poemas Catullo chama a atenccedilatildeo para o fato de que aquelas modinhas poderiam perder muito sem a muacutesica Entretanto inexiste na nota uma representaccedilatildeo das modinhas transcritas como tatildeo simplesmente letras Ali incluiacutedas num livro cujo tiacutetulo era Poemas escolhidos suas modinhas deveriam ser lidas como poemas que deve-riam ter a ldquobeleza integralrdquo se acompanhadas das muacutesicas Sutilmente o autor vai realccedilando uma representaccedilatildeo que de resto vinha sendo por ele tentada desde suas primeiras publicaccedilotildees de fazer com que suas modinhas pudessem ter o caraacuteter de poesia Essa representaccedilatildeo aproxi-maria como consequecircncia sua produccedilatildeo modinheira de um status poeacute-tico e portanto diferenciado

A nota tambeacutem tinha um vieacutes explicativo para aquele que natildeo conhecera o Catullo modinheiro jaacute que algumas das modinhas publi-cadas em Poemas escolhidos havia muito tempo natildeo eram mais publi-cadas ou reeditadas em livros Para isso chama a atenccedilatildeo a segunda contracapa da publicaccedilatildeo contendo uma lista de todas as obras de Catullo Na lista eacute possiacutevel ver que embora alguns livros de ldquocanccedilotildees musicadasrdquo tivessem chegado a 50 ediccedilotildees (caso de Cancioneiro po-pular de modinhas brasileiras aqui jaacute citado) todos eles estavam esgo-tados havia muito tempo A nota preacutevia servia portanto tambeacutem para aqueles novos leitores que desconhecessem o Catullo da muacutesica O proacute-prio tiacutetulo da publicaccedilatildeo Poemas escolhidos deixa entrever o caraacuteter de coletacircnea da obra que o criacutetico do jornal Gazeta de Notiacutecias alerta para aqueles leitores que ainda desconheciam o ldquobardo sertanistardquo

Todos admiram o cantor do Luar do Sertatildeo [sic] cujos harmoniosos versos penetraram a alma do povo e cuja melodia serve ateacute de prefixo radiofocircnico Haacute entretanto admiradores da musa de Catulo Cearense que ainda natildeo conhecem todos os seus vigorosos poemas as maravi-lhosas paacuteginas decircsse prodigioso criador de tipos sertanejosNa brochura que surgiu e lemos com sincero embevecimento os leitores encontram uma perfeita seleccedilatildeo de todas as poesias do bardo sertanista340

340 Gazeta de Notiacutecias 19 nov 1944 Suplemento p 4

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Um texto de Guimaratildees Martins que segue ao de Catullo sugere bem essa uacuteltima serventia da ldquoNotardquo do autor Sob o tiacutetulo de ldquoCatulo Poeta Muacutesico e Cantorrdquo Guimaratildees Martins destaca fundamentalmente o lado musical do poeta

Das figuras artiacutesticas a que dediquei sempre uma veneraccedilatildeo profunda destaco a de Catulo como objeto uacutenico deste livro Poeta genial pela inspiraccedilatildeo e cantor popular maravilhoso de brilho apoliacutenio alccedilou o violatildeo nacional agrave altura dos demais instrumentos tidos como aristocraacute-ticos O violatildeo com ecircle subiu das rodas familiares ao Conservatoacuterio Nacional de Muacutesica da ingenuidade do sertatildeo enluarado ao tabernaacute-culo esplecircndido das artesCatulo abriu as portas da imortalidade com o prodiacutegio do toque natildeo menos maacutegico das cordas gemedoras341

A esse texto seguem os ldquoDados Biograacuteficosrdquo do poeta escritos pelo mesmo Guimaratildees Martins A biografia traccedila uma imagem de um poeta ilustre que ganhara em comemoraccedilatildeo ao dia de seu nascimento 8 de outubro de 1940 uma placa na casa onde nasceu no Maranhatildeo e um busto no jardim Monroe ldquonas margens da maravilhosa Guanabarardquo Guimaratildees na breve biografia novamente realccedila o muacutesico Catullo con-tando um velho fato consagrador de sua vida qual seja a sua apresen-taccedilatildeo acompanhado do violatildeo no Conservatoacuterio Nacional de Muacutesica no jaacute distante ano de 1908

Foi no antigo Conservatoacuterio Nacional de Muacutesica agrave rua Luiz de Camotildees que com o apoio do maestro Alberto Nepomuceno o violatildeo ressurgiu consagrado pelo prestiacutegio artiacutestico de Catullo Ecircsse acontecimento que marca tatildeo dignamente a evoluccedilatildeo da muacutesica popular brasileira ocorreu em 1908 []342

A ocorrecircncia insistente da descriccedilatildeo da consagraccedilatildeo do poeta no espaccedilo da muacutesica expressa nas notas de Guimaratildees Martins pode ser

341 MARTINS Guimaratildees Catulo Poeta Muacutesico e Cantor In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 p 17

342 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 p 20

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entendida pelo estatuto recente da muacutesica no Brasil Possivelmente a constataccedilatildeo desse estatuto diferenciado e glamourizado que agravequela eacutepoca o cantor popular atingia especiamente com o aumento do puacute-blico de raacutedio fazia com que Guimaratildees Martins investisse numa repre-sentaccedilatildeo de Catullo que realccedilasse mais seu lado musical e chamasse a atenccedilatildeo do leitor para um ldquoprestiacutegio artiacutesticordquo na carreira musical do poeta que o marcasse na ldquoevoluccedilatildeo da muacutesica popular brasileirardquo

Essa aposta em um Catullo muacutesico e cantor chega a fazer prati-camente desaparecer nas notas e prefaacutecio que antecedem a leitura do livro o poeta dos livros Ao que parece assumindo o papel de organi-zador da obra e uma espeacutecie de braccedilo direito de Catullo Martins foi construindo uma representaccedilatildeo de poeta mais condizente com o periacuteodo de publicaccedilatildeo do livro Para isso vai realccedilando alguns toacutepicos e expli-cando outros de forma a melhor representar o autor para o puacuteblico fa-zendo com que a posterior leitura levasse em conta tais elementos

Seguindo essa receita aparece na publicaccedilatildeo uma ldquoNota impor-tanterdquo natildeo assinada possivelmente escrita pelo mesmo Guimaratildees Nela o objetivo eacute ir de encontro a uma representaccedilatildeo caricatural de Catullo Para tanto o texto comeccedila por lanccedilar culpa na construccedilatildeo dessa imagem aos repoacuterteres que procurando fazer rir o leitor preferem pelo ldquoalto valorrdquo do poeta usaacute-lo como objeto de uma ldquoblaguerdquo

Catulo tem sido viacutetima de alguns repoacuterteres menos avisados que o vatildeo procurar em sua casa para entrevistaacute-lo Muita vez o Poeta sur-preende-se com o resultado da palestra que concedera ao jornalista encontra a cada passo coisas que jamais afirmara Natildeo se aborrece por isso Vecirc no caso apenas uma blague vontade de fazer rir o leitor Eacute natural que eles faccedilam isso com o Poeta dado o seu alto valor Se o fizessem com um indiviacuteduo vulgar um desconhecido a blague natildeo teria repercussatildeo343

Essa representaccedilatildeo risiacutevel do poeta embora a nota chame a atenccedilatildeo como sendo algo criado por ldquorepoacuterteresrdquo natildeo se pode dizer que eacute de todo correta uma vez que o proacuteprio Catullo aleacutem de assumir

343 Ibidem p 23

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muitas vezes nos palcos de teatro performances visando a nitidamente divertir nos proacuteprios livros fazia de sua representaccedilatildeo algo que provo-casse o riso do leitor Para citar um caso havia uma famosa piada criada por Bastos Tigre e publicada por Catullo em O milagre de Satildeo Joatildeo da sua funccedilatildeo (que nunca chegou a exercer) como datiloacutegrafo no Ministeacuterio da Viaccedilatildeo Quando da Revoluccedilatildeo de 30 o novo chefe de reparticcedilatildeo mandou chamaacute-lo e indagado sobre qual maacutequina preferia Catullo depois de coccedilar a cabeccedila respondeu ldquoPrefiro uma Singerrdquo ldquoSingerrdquo era a marca de uma maacutequina de costura344

A compreensatildeo portanto daquela desconstruccedilatildeo soacute pode ser en-tendida pela necessidade de reconstruccedilatildeo do poeta vista pelo novo ces-sionaacuterio dos direitos do autor Para melhor dizer de uma reabilitaccedilatildeo de Catullo pela construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo diferente de um poeta pelo qual tinha uma ldquoveneraccedilatildeo profundardquo As lutas de representaccedilotildees no iniacutecio do texto de Poemas escolhidos satildeo incessantes

A ldquoNotardquo continua tentando atacar outra representaccedilatildeo cara ao poeta aquela que o descreve como algueacutem com excesso de orgulho Essa empresa como vimos anteriormente era muito comum na carac-terizaccedilatildeo de Catullo inclusive sendo reafirmado pelo poeta em seus prefaacutecios e alguns poemas muitas vezes como forma de afirmar seu lugar como poeta distinto em vaacuterios momentos de sua trajetoacuteria

Evocando o fato de conhececirc-lo proacuteximo o autor da nota defende o poeta daqueles que o julgam ldquosem conhecer o nosso grande Cantorrdquo

Haacute indiviacuteduos que sem conhecer o nosso grande Cantor da selva e da cidade datildeo elementos ao historiador e ao criacutetico para uma biografia apoacutecrifa Julgam-no em excesso de orgulhoso Quando os que o co-nhecem pessoalmente sabem que ecircle eacute um homem de pasmosa sim-plicidade O que haacute em Catulo natildeo eacute orgulho eacute a exata compreensatildeo do valor de sua obra valor aliaacutes reconhecido pelos grandes vultos da intelectualidade universal345

344 Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Op cit p 184345 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 23

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Por fim o autor da nota atira contra uma compreensatildeo que en-xerga Catullo ndash que escrevera muitos dos seus poemas com a represen-taccedilatildeo de um personagem dotado de um linguajar sertanejo cheio de erros gramaticais ndash como algueacutem que como seus personagens escrevia errado A nota dispara que ldquoCatulo escreve no linguajar sertanejo ou na linguagem gramatical portanto com gramaacutetica ou sem gramaacutetica ele eacute um grande Poetardquo346

Os textos que antecedem a leitura de Poemas escolhidos no en-tanto natildeo se encerram com os dados biograacuteficos e notas explicativas Seguindo uma foacutermula jaacute bastante comum nos livros anteriores do poeta aparecem na publicaccedilatildeo os ldquoJuiacutezos Criacuteticosrdquo de nomes ilustres do mundo das letras A diferenccedila eacute que se nos livros anteriores de Catullo as apreciaccedilotildees sobre sua pessoa e sobre sua obra aparecem ao final da publicaccedilatildeo em Poemas escolhidos o editor faz publicar antes da apresentaccedilatildeo dos poemas A colocaccedilatildeo desses ldquoJuiacutezosrdquo no iniacutecio do livro parecia visar a fazer parte de toda uma preparaccedilatildeo para que a apro-priaccedilatildeo do livro pelo leitor pudesse se dar a partir daquelas apreciaccedilotildees positivas Trata-se portanto de uma preparaccedilatildeo para uma leitura

Nos ldquoJuiacutezosrdquo eacute possiacutevel ver o desfile de vaacuterios representantes letrados conhecidos do periacuteodo dando opiniotildees sobre Catullo Desde o jurista Cloacutevis Bevilaacutequa que abre os textos chamando Catullo de ldquopoeta genialrdquo347 passando por Juacutelio Dantas escritor portuguecircs que diz ser o autor um ldquogenial Virgiacutelio caboclordquo e que seria ldquomuito maior do que os seus admiradores o julgamrdquo348 Rui Barbosa para quem os versos de Catullo satildeo ldquode um encanto irresistiacutevel satildeo mais belo docu-mento da natureza e da vida dos sertotildees brasileiros que a sua musa enfeiticcedila e parece recriarrdquo349 Raul Pederneiras ldquoCatulo honra os seus mestres (pois que nunca os teve) tendo-se feito por si mesmordquo350

346 Idem347 Ibidem p 31348 Ibidem p 31349 Ibidem p 32350 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 39

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Monteiro Lobato ldquoSoacute tu eacutes Brasil da cabeccedila aos peacutes e escreves para o Brasil []rdquo351 e o maestro Heitor Villa Lobos

Acompanhando-se ao violatildeo e cantando uma das suas composiccedilotildees Catullo eacute extraordinaacuterio eacute arrebatador Duvido que haja coraccedilatildeo insen-siacutevel aacute sua arte No seu gecircnero foi o maior cantor do Brasil[]O Catulo eacute o maior da terra que o Brasil possui352

Aquela antologia respondia sem duacutevida ao desejo de Guimaratildees Martins de uma leitura enviesada do livro que reafirmasse uma repre-sentaccedilatildeo que desse mais credibilidade a um autor que como Catullo tinha sua trajetoacuteria questionada por diversas vezes

Tambeacutem natildeo se podem perder de vista os objetivos editoriais da publicaccedilatildeo que ganhava com a demonstraccedilatildeo para o leitor de que ele acabara de adquirir um livro de autor consagrado por pessoas distintas E Poemas escolhidos chegaria a quatro ediccedilotildees em dois anos Zeacutelio Valverde inclusive publicizava-a em jornais chamando a atenccedilatildeo para a antologia de opiniotildees por intelectuais consagrados Apresentava a pu-blicaccedilatildeo como tendo ldquoaleacutem das melhores produccedilotildees do apreciado poeta muacutesico e cantor contecircm essa obra vaacuterios trabalhos ineacuteditos do mesmo e juiacutezos criacuteticos de diversos intelectuais a seu respeitordquo353

Zeacutelio tambeacutem apostou na promoccedilatildeo de uma tiragem diferente e mais cara Sendo vendido por 18 cruzeiros a ediccedilatildeo comum de Poemas escolhidos natildeo teria o mesmo formato de 150 exemplares especiais que seriam vendidos por 100 cruzeiros cada A tiragem mais cara se justifi-cava por trazer aleacutem do autoacutegrafo do proacuteprio autor caricaturas de Catullo feitas por diversos artistas e vendagem em ldquopapel especialrdquo Para o leitor atual ter uma ideia do preccedilo da publicaccedilatildeo bastaria citar o preccedilo de um livro de Eacutemile Zola O paraiacuteso das damas que era vendido ao preccedilo de 25 cruzeiros enquanto o Contrato social de Rousseau saiacutea

351 Ibidem p 37352 Ibidem p 35353 Correio da Manhatilde 19 nov 1944 p 6

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por 13 cruzeiros e Meu sertatildeo do proacuteprio Catullo em sua 40ordf ediccedilatildeo pela editora A Noite era comercializado por 10 cruzeiros na livraria ParaTodos354 do Rio de Janeiro Embora obviamente o preccedilo dependa de vaacuterios criteacuterios (novidade ediccedilatildeo luxuosa autor volumes etc) eacute possiacutevel compreender em parte o valor de uma tiragem diferente como a de Poemas escolhidos

Juizos criacuteticos se encerra depois de 66 paacuteginas de notas antolo-gias e advertecircncias A primeira parte do livro ldquoO poeta muacutesico e cantorrdquo consta de letras (poemas) de Catullo Poreacutem antes da apresen-taccedilatildeo delas ao leitor o autor volta a aparecer explicando o porquecirc de publicar modinhas naquela ediccedilatildeo Com um tiacutetulo-dedicatoacuteria ldquoAos companheiros da lsquoVelha Guardarsquordquo o poeta conta que a ideia do livro com poemas partira de Guimaratildees Martins

Ecircsse gigante argumentador convenceu-me de que eu devia publicar esta antologia para o consocirclo dos velhos natildeo os privando decircsse prazer muito embora todos noacutes saibamos que a poesia antiga vai mor-rendo com a entrada triunfal da poesia moderna E acrescentou esta verdade ldquoSe ela jaacute vitoriosa conquistou os moccedilos natildeo conquistaraacute os velhosrdquo Guimaratildees Martins me disse tais coisas que eu acabei apro-vando a sua ideacuteia355

Se o criacutetico do jornal Gazeta de Notiacutecias como vimos acima e o proacuteprio esforccedilo de Guimaratildees Martins nas notas explicativas da publi-caccedilatildeo procuravam chamar a atenccedilatildeo para o sentido de mostrar o poeta aos novos leitores em um novo livro Catullo na contramatildeo via uma oportunidade para se deleitar ao lado do que ele chamava de ldquoVelha Guardardquo com a rememoraccedilatildeo daqueles velhos poemas em contraposiccedilatildeo agrave ldquopoesia modernardquo Mas conta Catullo ateacute aiacute natildeo pensava em incluir suas velhas modinhas de que foi convencido novamente por Martins

As diferenccedilas de objetivos de Catullo e Guimaratildees satildeo aqui ex-plicitas Enquanto o primeiro via na publicaccedilatildeo de Poemas escolhidos a oportunidade para com o seu sucesso disparar contra o que ele cha-

354 Publicidade da Livraria Paratodos Cf Correio da Manhatilde 7 set 1945 p 10355 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 71

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mava de ldquopoesia modernardquo Guimaratildees Martins como organizador e novo cessionaacuterio das obras de Catullo buscava dar prioridade agrave criaccedilatildeo de um novo puacuteblico consumidor de livros

A Catullo ainda interessava reafirmar suas poesias contra os novos poetas ndash que ele chama ldquoprofetasrdquo Daiacute nessa explicaccedilatildeo que abre a seccedilatildeo em que contava o porquecirc de publicar as suas modinhas interessar antes dizer para quem as escrevia

Eacute natural que os profetas de hoje riam dessas canccedilotildees mas os velhos choraratildeo sentindo ao lecirc-las beneacutevolas lembranccedilas da sua juventude Meus amigos estas modinhas pertencem a vocecircs Vocecircs natildeo estra-nharatildeo a meacutetrica irregular pois que as poesias musicadas obedecem agraves exigecircncias da melodia Ainda se lembram dessas melodias Pois entatildeo peguem nos seus pinhos e cantem-nas Agradeccedilam a Guimaratildees Martins vecirc-las relembradas neste livro356

A Catullo interessava reapresentaacute-las a seu puacuteblico relembraacute-las para aqueles que jaacute as conheciam A Guimaratildees Martins o objetivo era mais do que o poeta angariar um maior nuacutemero de leitores Talvez por isso mesmo o organizador buscasse a cada apresentaccedilatildeo das modinhas e dos poemas explicar do que se tratava cada uma quase sempre con-tando uma histoacuteria consagradora Explicaccedilatildeo desnecessaacuteria se visasse tatildeo somente agrave ldquoVelha Guardardquo como dizia Catullo sabedor das ldquogloacute-riasrdquo do poeta

Daiacute quando apresenta a poesia O violatildeo que abre a seccedilatildeo ldquoO poeta o muacutesico e o cantorrdquo Martins explicar a histoacuteria da poesia

Quando Catulo depois de muito instado e haacute [sic] muito custo frequen-tava os salotildees da alta sociedade no tempo em que era dela repudiado antes de cantar costumava recitar a bela poesia de que vamos extrair apenas estas estrofes []357

Enquanto isso Catullo investia em sua dedicatoacuteria contra os ldquopo-etas modernistasrdquo

356 Ibidem p 70357 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 72

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Tocircda essa poesia dos poetas modernistas (com rariacutessimas exceccedilotildees) natildeo vale a canccedilatildeo de uma serenata que passa aleacutem dos jardins da noite dialogando com a celestinagem das estrelas e as claridades da lua a inspiradora dos sonhos da nossa saudosiacutessima mocidade358

A seccedilatildeo continua com o desfile de modinhas como o Luar do sertatildeo e Cabocircca de Caxangaacute Todas as modinhas transcritas ndash assim como os poemas das seccedilotildees posteriores ndash vinham legendadas com ex-plicaccedilotildees de Guimaratildees Martins Em Cabocircca de Caxangaacute por exemplo o organizador observa ter sido um sucesso no carnaval de 1913 ldquoo que causou grande desgosto a seu autor que natildeo a escreveu para tal fimrdquo359 enquanto Luar do sertatildeo conhecida pelas novas geraccedilotildees por tocar as-siduamente nas raacutedios e motivo de grandes controveacutersias por conta de sua autoria aparece sem nenhuma explicaccedilatildeo aleacutem de uma dedicatoacuteria a Antocircnio Barnabeacute de Campos e uma nota de que fora publicada pela primeira vez no livro Florileacutegio dos cantores360

A publicaccedilatildeo segue com a mesma foacutermula para as outras seccedilotildees (ldquoO poeta braviordquo e ldquoO poeta cultordquo) Nota-se que tais separaccedilotildees vi-savam a demonstrar trecircs fases distintas de Catullo Na primeira enten-dia-se que o autor fora um poeta de modinhas daiacute as poesias-modinhas transcritas serem indicadas como tendo sido publicadas em livros pu-blicados por ele antes de Meu sertatildeo Um poema dessa obra por sua vez aparece abrindo a segunda seccedilatildeo ndash sob o tiacutetulo de ldquoO poeta braviordquo ndash demonstrando para o leitor que nesse livro aparecia o poeta sertanejo que falava o linguajar do sertanejo Portanto o poeta natildeo culto ldquoO poeta cultordquo tiacutetulo natildeo gratuito aparece na terceira seccedilatildeo que abre com um poema escrito num linguajar ldquogramaticalrdquo retirado do livro Um ca-boclo brasileiro

Essa separaccedilatildeo da trajetoacuteria de Catullo era jaacute uma representaccedilatildeo bastante difundida por aqueles que conheciam sua produccedilatildeo O poeta das modinhas o poeta sertanejo e o poeta do linguajar culto represen-tavam os trecircs cortes fundamentais em sua trajetoacuteria literaacuteria O curioso

358 Ibidem p 71 359 Ibidem p 99360 Ibidem p 85-91

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eacute que se o poeta das modinhas aparecera como organizador de livros com letras de modinhas e tentando regrar a leitura de tais versos em Poemas escolhidos os versos de Catullo eram regrados com insistecircncia por Guimaratildees Martins com paacuteginas recheadas de notas explicativas e notas de rodapeacute legendando para o leitor o contexto de produccedilatildeo de cada poema

Um exemplo disso pode ser visto no uacuteltimo poema do livro cujo tiacutetulo eacute uma dedicatoacuteria ldquoAgrave lsquoMiss Maranhatildeorsquo senhorita Maria de Lourdes Pantoja por ocasiatildeo do concurso para lsquoMiss Brasilrsquordquo Gui-maratildees Martins escreve a nota de rodapeacute do poema que eacute uma expli-caccedilatildeo para o leitor

Esta poesia foi publicada em vaacuterios jornais do Brasil por ocasiatildeo do concurso de beleza para a escolha de ldquoMiss Brasilrdquo ldquoMiss Maranhatildeordquo apesar de ser de uma beleza rara de esmerada educaccedilatildeo e cultura inte-lectual nem foi classificada O grande Catulo poreacutem retratou-a moral e psicologicamente nestes versos361

Poreacutem se as notas explicativas abrem e avultam em todo livro elas tambeacutem o encerram Com o tiacutetulo de ldquoDeclaraccedilatildeo necessaacuteriardquo estrategicamente Guimaratildees Martins faz aparecer todos os docu-mentos do processo que cedeu os direitos autorais das obras de Catullo para sua pessoa

Esses documentos representam pela riqueza com que transmitem os tracircmites necessaacuterios para o repassamento de uma propriedade autoral agrave eacutepoca e pelas pessoas que dela participam um raro vestiacutegio de como se dava o processo de transmissatildeo autoral no Brasil da deacutecada de 1940 e pela forma como ele aparece (fazendo parte da publicaccedilatildeo) cons-tando inclusive no iacutendice que abre o livro um exemplo completo das diversas representaccedilotildees da autoridade sobre o impresso no Brasil Sobretudo de uma disputa por essa autoridade nas paacuteginas de uma obra natildeo faltando apariccedilotildees de editores organizadores autor e leitor

Voltemos portanto a ela ldquoDeclaraccedilatildeo necessaacuteriardquo trata-se de um documento escrito por Catullo datado de 9 de abril de 1944 e registrado

361 Ibidem p 392

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no Cartoacuterio Frontim de registros de tiacutetulos e documentos cedendo os direitos das suas obras a Guimaratildees Martins advertindo penalidades agravequeles que os tentassem infringir

Pelo presente documento declaro que o meu cessionaacuterio e represen-tante Joseacute Martins de Moraes Guimaratildees que se assina artiacutestica e lite-rariamente Guimaratildees Martins eacute o uacutenico autorizado durante a minha vida e depois do meu falecimento a reproduzir anotar comentar ou melhorar qualquer das minhas obras autorizaccedilatildeo que dou de acordo com o Coacutedigo Civil Qualquer pessoa que infringir os dispositivos do Coacutedigo Civil fazendo traduccedilotildees adaptaccedilotildees arranjos fantasias pre-fixos musicais ou quaisquer outras modificaccedilotildees sem a expressa au-torizaccedilatildeo escrita do meu referido cessionaacuterio e representante seraacute por este processado civil e criminalmente362

Lanccedilando matildeo na proacutepria publicaccedilatildeo de advertecircncia escrita por Catullo Guimaratildees Martins estabelecia a propriedade da publicaccedilatildeo atraveacutes da lei e de quebra tratava de demonstrar para o leitor sua auto-ridade pela autorizaccedilatildeo do autor Portanto o que se configurava eacute que mesmo Catullo sendo o autor da publicaccedilatildeo a autoridade sobre ela re-caiacutea nas matildeos de Martins O ldquoParecerrdquo assinado por Cloacutevis Bevilaacutequa que Martins tambeacutem faz publicar no livro deixa isso mais claro

Tendo lido os bem elaborados Pareceres dos ilustres colegas drs Prado Kelly e Monteiro da Silva o instrumento de cessatildeo que Catullo da Paixatildeo Cearense faz dos seus direitos autorais ao sr Guimaratildees Martins e mais documentos que acompanham a Consulta opino do modo seguintea) A lei nordm 496 de 1ordm de agosto de 1898 artigo 4ordm sect1ordm estatuiu que as cessotildees entre vivos do direito autoral durariam trinta anos findos os quais recobraria o autor os seus direitos se ainda existisse Lei suple-tiva permitia que o prazo fosse diminuiacutedo mas nunca aumentadob) Essa determinaccedilatildeo da lei entendia-se incerta em toda cessatildeo entre vivos de direito autoral ex vi legisc) Portanto a cessatildeo atual feita a Guimaratildees Martins compreende 1ordm todos os contratos anteriores realizados na vigecircncia da lei de 1ordm agosto de 1898 que jaacute perfizeram trinta anos a contar da respectiva data 2ordm

362 Ibidem p 393

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todos os contratos realizados na vigecircncia da referida lei logo que se complete o prazo de trinta anos contados da respectiva data porque em ambos os casos ou jaacute se operou ou iraacute operar-se a reversatildeo dos direitos autorais ao autord) Quanto agraves cessotildees anteriores realizadas na vigecircncia do Coacutedigo Civil entendo que se regem pelo direito comum regulado no mesmo Coacutedigo Salvo claacuteusula em contraacuterio o cessionaacuterio sucede o autor nos direitos que lhe reconhece o Coacutedigo Civil artigo 649 sectsect 1ordm e 2ordmEssas cessotildees natildeo entram na aquisiccedilatildeo feita por Guimaratildees Como o dr Otaacutevio Moreira da Silva penso que a lei nordm 496 de 1ordm de agosto de 1898 foi revogada pelo Coacutedigo CivilA restauraccedilatildeo que faz de alguns artigos dela a lei nordm 4790 de 2 de ja-neiro de 1924 somente a esses dispositivos se refereRio de Janeiro 10 de abril de 1944363

A passagem requer algumas explicaccedilotildees A Lei Medeiros e Albuquerque como ficou conhecida a lei criada em 1898 para proteger direitos autorais reconhecia juridicamente direitos autorais como pro-priedade Portanto o caraacuteter de invenccedilatildeo subjacente a uma obra natildeo era coroada senatildeo quando ela fosse assim registrada ou seja ldquogarantia o registro da obra como condiccedilatildeo de sua protegibilidade e garantia sua proteccedilatildeo por apenas 50 anos contados da primeira publicaccedilatildeordquo364 Aleacutem disso estabelecia que a cessatildeo de um direito a um terceiro duraria trinta anos O Coacutedigo Civil de 1917 reafirmava tais prerrogativas e alertava para os locais de registro de tais propriedades na Biblioteca Nacional para obras literaacuterias e cientiacuteficas no Instituto de Muacutesica para composi-ccedilotildees musicais na Escola de Belas Artes para aquelas de caraacuteter artiacutes-tico Associaccedilotildees como a SBAT ficariam encarregadas de fazer tais registros e fazer a cobranccedila pelos artistas

Todas essas leis tentavam responder pela questatildeo do direito de uma produccedilatildeo intelectual Se socialmente a representaccedilatildeo do indi-

363 MARTINS Guimaratildees Advertecircncia sobre direitos autoraes In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 sp

364 SARDAS Letiacutecia de Farias Lineamentos do direito de autor na sociedade da infor-maccedilatildeo Coimbra Faculdade de Direito de Coimbra sd Disponiacutevel em httpwwwtjrjjusbrcdocument_libraryget_fileuuid=9ff3a1c9-8bc5-4392-a036-e86b815a4c58amp-groupId=10136 Acesso em 11 jun 2020

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viacuteduo que cria era glamourizada a lei natildeo referendava tal representaccedilatildeo criando o autor-proprietaacuterio dono dos direitos autorais O regime de propriedade vigente no comeccedilo do seacuteculo trouxe vaacuterias vezes uma dis-cussatildeo sobre quem detinha a autoridade uacuteltima sobre um produto inte-lectual se o autor ou o proprietaacuterio

Por isso eacute algo compreensiacutevel que diversos criadores de obras natildeo vissem problemas em vender suas produccedilotildees para um comprador pois por diversas vezes vender daria mais lucro do que obter direitos autorais sobre determinada produccedilatildeo Assim era comum nesse pe-riacuteodo ver anuacutencios como o do jornal A Noite em que chamava a atenccedilatildeo para os compositores de muacutesica ldquoCompram-se os direitos autoraes de todas as ldquoNovidades Carnavalescasrdquo para perfuraccedilatildeo de ldquoRolos de Muacutesicardquo Para tratar na ldquoFaacutebrica Excelsior ndash R Villela amp C Rua Evaristo da Veiga nordm 28 ndash Riordquo365

A Guimaratildees Martins eram cedidos todos os direitos pecuniaacuterios das obras de Catullo registrados desde a criaccedilatildeo da lei de 1898 ateacute 1914 ndash portanto aquelas que se estivessem em propriedade de terceiros completariam em 1944 trinta anos E mais os contratos firmados de-pois dessa data (1914) com editores dos livros de Catullo estariam com a cessatildeo de direitos dividida entre Martins e os donos de tais direitos de propriedade (como a editora Bedeschi e a editora A Noite que continu-aram a publicar ediccedilotildees dos livros de Catullo por direito de contrato)

A advertecircncia sobre essas prerrogativas judiciais aparece ao final do livro quando finalmente Guimaratildees Martins declara

Toda poesia poema ou canccedilatildeo constante deste e dos demais livros de Catulo da Paixatildeo Cearense soacute poderaacute ser recitado cantado ou execu-tado por instrumento ou conjunto em raacutedio teatro ou cinema com ingresso pago ou outra forma de remuneraccedilatildeo sendo dado conheci-mento agrave Sociedade Brasileira de Autores Teatrais agrave Avenida Almirante Barroso nordm 97 3ordm andar Esplanada do Castelo Rio de Janeiro Brasil ou a seus representantes nos Estados do Brasil e no estrangeiro que eacute uacutenica entidade juriacutedica autorizada para efetuar o recebimento da taxa de execuccedilatildeo puacuteblica Guimaratildees Martins366

365 A Noite 11 dez 1918 p 6366 MARTINS Guimaratildees Advertecircncia sobre direitos autoraes In CEARENSE Catullo da

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo276

Os meandros da produccedilatildeo de autoridade sobre os impressos no Brasil da primeira deacutecada do seacuteculo XX instituiacuteram diversas taacuteticas autorais que cotidianamente jogavam com as estrateacutegias dos deten-tores de propriedade Essas lutas foram travadas diversas vezes nas proacuteprias publicaccedilotildees A uma tentativa de regrar a circulaccedilatildeo de textos juridicamente contrapunha-se uma receita inventiva de construccedilatildeo so-cial de autoridade sobre os mesmos textos de forma que eacute possiacutevel pensar que existiam pelo menos dois tipos de autoridade sobre im-pressos aquela juridicamente referendada que Guimaratildees Martins ten-tava estabelecer por meio dos proacuteprios textos publicados sob sua res-ponsabilidade e aquela socialmente construiacuteda que fazia com que determinado criador fosse representado como autor mesmo natildeo sendo o dono de sua criaccedilatildeo

O caso de Catullo em Poemas escolhidos eacute emblemaacutetico princi-palmente se compararmos com a sua querela com Joatildeo Pernambuco acerca de Luar do sertatildeo Laacute como vimos Catullo lanccedilou matildeo de um discurso de autoria que levava em conta a propriedade ldquoregistrei na Escola Nacional de Muacutesicardquo Em seus antigos livros de modinhas as estrateacutegias autorais eram construiacutedas nos livros pela correccedilatildeo das modi-nhas e pela sua representaccedilatildeo como um homem letrado e em outros momentos a autoria era construiacuteda pela traduccedilatildeo ndash no caso dos poemas sertanejos onde Catullo evocava a alma sertaneja que melhor falava por ele como forma de afirmar sua autoridade na representaccedilatildeo do sertatildeo Em Poemas escolhidos flagramos a tensatildeo subjacente na disputa entre um organizador que diferentemente de Catullo com seus livros de modinhas dialogava e contrastava muitas vezes com o regra-mento da leitura intentada pelo poeta

Essa foacutermula se repetiria com a publicaccedilatildeo pela editora Aurora de O testamento da aacutervore uacuteltimo livro publicado por Catullo em vida em fins de 1945

Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 277

O livro derradeiro

Ainda em meados dos anos 1930 o jornal A Noite saiu com uma reportagem pelo menos curiosa O Serviccedilo Photographico do jornal mandava de Londres (Inglaterra) a fotografia de uma inglesa deitada com oacuteculos estranhos no rosto lendo um livro distraidamente Com o tiacutetulo de ldquoDescansar o corpo deleitando o espiacuteritordquo a reportagem expli-cava a fotografia alertando para novas formas de se ler

Ler deitado eacute a preocupaccedilatildeo de muita gente Principalmente dos como-distas que apreciam reunir o uacutetil ao agradaacutevelEsta preocupaccedilatildeo quase que utoacutepica de descanccedilar o corpo deleitando o espiacuterito entretanto eacute agora perfeitamente viaacutevel Um assiacuteduo leitor britacircnico acaba de inventar um par de oacuteculos que permite ler-se no livro emquanto o corpo em posiccedilatildeo horizontal descanccedila confortavel-mente estirado numa cama ou numa ldquochaise-longuerdquoA gravura mostra os oacuteculos retrospectivos cumprindo a sua uacutetil funccedilatildeo367

Ler deitado era como diz a reportagem uma preocupaccedilatildeo jaacute sa-bida O incocircmodo que poderia causar tal leitura jaacute estava sendo contor-nado em Londres tornando possiacutevel uma leitura ldquouacutetilrdquo e ldquoagradaacutevelrdquo principalmente dos ldquocomodistasrdquo Os curiosos oacuteculos lanccedilam luz sobre as diversas praacuteticas de leitura possiacuteveis A necessidade de uma leitura ldquoagradaacutevelrdquo e confortaacutevel frisada pela reportagem natildeo passou desa-percebida pelos editores brasileiros do periacuteodo

O boom editorial no Brasil consequecircncia do bloqueio de impor-taccedilotildees provocado pela Segunda Guerra Mundial resultou em um maior espaccedilo para o consumo do livro de autor nacional Os projetos editoriais do governo por sua vez fizeram com que coleccedilotildees envolvendo autores nacionais avultassem nas livrarias e embora com seacuterios problemas de materiais para a produccedilatildeo de livros com os custos crescentes de uma ediccedilatildeo e sob forte interferecircncia poliacutetica depois da instituiccedilatildeo do Estado

367 A Noite 24 jun 1936 p 6

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo278

Novo varguista a partir de 1937 nada disso foi empecilho para que o haacutebito do consumo de livros no Brasil aumentasse assustadoramente Isso fez que inuacutemeros projetos editoriais surgissem no paiacutes Instalada no centro do Rio de Janeiro a editora Aurora lanccedilou um projeto auda-cioso de pocket-books que ganhou o nome de ldquoColeccedilatildeo Azulrdquo

A editora que tinha sua proacutepria graacutefica (localizada no mesmo endereccedilo) comeccedilou a produzir livros em pequenos formatos com obras de autores nacionais e estrangeiros Visando a um novo leitor em cons-tante movimento o editor tratava de salientar os benefiacutecios da coleccedilatildeo para seus leitores

Coleccedilatildeo Azul apresenta-se num formato elegante e praacutetico O cava-lheiro pode trazecirc-lo no bolso de seu casaco a senhora em um canto de sua bolsa sem que isso lhes cause o menor transtorno A variedade dos gecircneros publicados proporcionaraacute ao leitor a escolha da leitura de sua preferecircncia a modicidade do preccedilo tornando os livros acessiacuteveis a qualquer orccedilamento colocam sem duacutevida a Coleccedilatildeo Azul entre as que mais diretamente atendem aacutes exigecircncias do leitor []368

Reeditando uma foacutermula de sucesso desde o comeccedilo do seacuteculo (vide a livraria Quaresma no primeiro capiacutetulo desse trabalho) a edi-tora Aurora apostava no livro barato e voltado para um puacuteblico diferen-ciado A Coleccedilatildeo Azul assim colocava agrave disposiccedilatildeo para o consumidor de livros ldquoos mais famosos livros dos mais ceacutelebres autores e facili-tando a escolha entre os gecircneros que mais lhe agradem pela impor-tacircncia de Cr$ 600 apenasrdquo369 e apostava na publicidade das obras sa-lientando nelas uma ldquobem cuidada confecccedilatildeordquo de ldquosuave entretenimento no aconchego do lar ou a caminho do trabalhordquo370

Contudo a editora Aurora natildeo era especialista apenas em pu-blicar livros claacutessicos Manuais praacuteticos como O volante profissional

368 Publicidade constante na contracapa do livro de Catullo Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Rio de Janeiro Aurora 1945 Contracapa

369 Idem370 Publicidade no jornal A Noite 19 jul 1946

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 279

anunciado como um ldquomeacutetodo faacutecil e praacutetico para conhecer o motor [] e outros oacutergatildeos do automoacutevelrdquo371 era vendido com bastante sucesso

Outro grande investimento da editora Aurora foi a publicaccedilatildeo de livros para mulheres Novelas como Racilba a mulher sem coraccedilatildeo escrita por F de Carvalho que era anunciada como tendo sido ldquoescrita especialmente para a sensibilidade da mulher brasileirardquo e o editor ainda alertava que

A leitora poucas vezes teraacute encontrado uma obra tatildeo profundamente humana com diaacutelogos claros numa sucessatildeo constante de sorrisos e laacutegrimas riqueza de cenaacuterios e vivacidade de accedilatildeo[] Uma linguagem clara que todos perfeitamente compreendem372

Anunciado como o livro do momento Racilba mulher sem co-raccedilatildeo o editor ainda afirmava ser ldquouma histoacuteria que ensina a jovem a viver e a se livrar dos perigos da vidardquo373 Racilba era um texto que tinha feito muito sucesso com sua representaccedilatildeo nos microfones da Raacutedio Club em 1942 e acarretado grandes concursos entre o puacuteblico feminino que se digladiava para ganhar perfumes e poacute de arroz Antevendo o sucesso que a publicaccedilatildeo da novela de Edgar de Carvalho poderia ter o editor preparou uma brochura de 250 paacuteginas que apre-sentava como tendo uma capa em ldquoGoulart tricromiardquo

Mas essa tentativa de seduzir o leitor teve mesmo grande reper-cussatildeo com o lanccedilamento da Coleccedilatildeo Azul A coleccedilatildeo com obras de claacutessicos com o preccedilo barateado e o seu formato compatiacutevel com qual-quer tipo de portabilidade fez sucesso agrave eacutepoca O cataacutelogo da coleccedilatildeo indica-nos os autores comercializados

1 - Amores do Diabo J Gazotte2 - O iacutendio Afonso Bernardo Guimaratildees3 - O correio de Liatildeo P Zaccone4 - O uacuteltimo dia de um condenadoV Hugo

371 Publicidade no jornal Gazeta de Notiacutecias 18 out 1946 sn372 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Op cit sn373 Idem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo280

5 - Noites brancas Dostoievski6 - Acuso E Zola7 - Luz interior Balzac8 - O corcunda de Notre Dame V Hugo

Salta aos olhos a quantidade de traduccedilotildees efetuadas nas primeiras publicaccedilotildees da Coleccedilatildeo Com exceccedilatildeo de Bernardo Guimaratildees todos os autores satildeo estrangeiros e nenhum autor entatildeo vivo A primeira pu-blicaccedilatildeo de um autor vivo pela Coleccedilatildeo Azul saiu na segunda metade de 1945 era O testamento da aacutervore de Catullo Para o autor tratava-se de uma publicaccedilatildeo que jaacute vinha agrave luz com ecircxito pois fora declamada com sucesso em vaacuterios eventos

A publicaccedilatildeo era apresentada em duas ediccedilotildees diferenciadas A primeira vinha com ldquoesmerada feitura artiacutesticardquo como foi anunciada e era destinada aos ldquointelectuaisrdquo Foi publicada pela livraria Pan Ameri-cana do meacutedico gauacutecho Jorge Gertum Carneiro e seu irmatildeo o enge-nheiro Antocircnio e pelo refugiado de guerra da Alemanha Frederico Mannheimer que se iniciara na publicaccedilatildeo de livros em 1939 A se-gunda ediccedilatildeo era destinada agrave ldquovulgarizaccedilatildeordquo para ldquoser difundida pelas escolas e pelo povordquo374 Essa uacuteltima sairia pela Coleccedilatildeo Azul

A diferenccedila da publicaccedilatildeo pela editora Aurora aleacutem do preccedilo mais barato do que a ediccedilatildeo destinada aos intelectuais era a inserccedilatildeo de vaacuterias ilustraccedilotildees de Catullo feitas por diferentes artistas Laacute eacute possiacutevel ver um desenho de capa e charges de Catullo produzidos por Moura Jordatildeo de Oliveira Mendez Jerocircnimo Ribeiro todos em preto e branco e uma imagem colorida do poeta vestido de marrueiro o personagem que o consagrara feita por Armando Pacheco A obra tambeacutem traz vaacute-rias fotografias do autor em vaacuterios momentos da sua vida

Na obra ndash que Catullo dedica a Apollonia Pinto Coelho Netto Humberto de Campos Fred Figner e ao General Tasso Fragoso ndash os direitos de propriedade satildeo relembrados por Guimaratildees Martins que faz publicar no final do livro todo o processo de cessatildeo dos direitos que anteriormente havia publicado em Poemas escolhidos

374 Gazeta de Notiacutecias 4 nov 1945

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 281

O testamento da aacutervore lido aliaacutes por Catullo em eventos dos quais participara parecia ser uma obra jaacute havia algum tempo espe-rada pelo puacuteblico admirador do poeta A histoacuteria do poema tratava de um testamento ditado por uma aacutervore moribunda aos paacutessaros e outras aacutervores e que um poeta escondido atraacutes da aacutervore ouviu Catullo ex-plica no iniacutecio

Assim falou a aacutervore moribunda aos paacutessaros e aacutes outras aacutervores da floresta antes de ditar seu testamentoUm poeta escondido por detraacutes de um copatildeo de mato sem que ela o visse anotando as suas palavras traduziu-as para a nossa liacutengua nas estrofes que se seguem375

Natildeo faltaram em O testamento as conhecidas opiniotildees sobre ele mesmo No iniacutecio da publicaccedilatildeo sob o tiacutetulo de ldquoAo leitorrdquo o poeta explica o nascimento do poema

De umas poucas sementinhas de Trilussa em dialeto brotou este jardim de flores tatildeo variadasMuitos poetas tecircm escrito sobre as aacutervores mas nenhum com mais ca-rinho do que euAssim poderei ficar sem orgulho de ora em diante como um dos seus maiores cantores e incontestavelmente o seu maior inteacuterprete376

O poema se divide em trecircs partes com tiacutetulos autoexplicativos ldquoA aacutervore assim ditou seu testamentordquo ldquoA aacutervore vai contar o sonho que sonhourdquo e ldquoA aacutervore ditando as suas uacuteltimas vontadesrdquo Ao final o editor e o organizador fazem aparecer duas sessotildees A primeira com o tiacutetulo de ldquoPolianteacuteia sobre o poeta organizada e anotada por Guimaratildees Martinsrdquo na explicaccedilatildeo do editor da obra satildeo ldquofragmentos de juiacutezo-criacute-ticos de maranhenses terra de Catullo selecionados e anotados por Guimaratildees Martinsrdquo377

375 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Op cit p 25376 Idem p 21377 Idem p 87

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo282

Continuando uma foacutermula que apareceu em vaacuterias publicaccedilotildees de Catullo o organizador do livro faz aparecer opiniotildees elogiosas sobre o poeta Nessa primeira seccedilatildeo aparecem vaacuterios nomes de le-trados maranhenses Aleacutem do proacuteprio Guimaratildees Martins desfilam opiniotildees elogiosas de entre outros Padre Astolfo Serra o poeta Manoel Sobrinho o interventor Paulo Ramos Inaacutecio Raposo (que es-crevera juntamente com o poeta a primeira grande peccedila de Catullo O marrueiro) Coelho Neto Artur Azevedo Humberto de Campos e Domingos Barbosa que tem o seu texto publicado no Jornal do Brasil do Rio de Janeiro citado na iacutentegra Nele fazendo uma apreciaccedilatildeo sobre o livro Poemas escolhidos Domingos vai atirar contra os criacute-ticos de Catullo Vale a citaccedilatildeo

A obra poeacutetica de Catullo natildeo pode ser mais objeto de criacuteticaPassou em julgado[]Ecircle eacute o maior poeta popular do BrasilMuito bem andou Guimaratildees Martins com enfeixar no volume em apreccedilo tanto a letra de modinhas que Catullo compocircs e cantava quando mocircccedilo e seresteiro quanto versos que o poeta escreveu natildeo no linguajar sertanejo da maioria de suas poesias e que lhes daacute intenso sabor local mas em linguagem eruditaServem as modinhas para mostrar aos estudiosos como eacute que se deu a evoluccedilatildeo da sua arteE servem os versos rimados e metrificados em linguagem culta para mostrar a julgadores levianos e imponderados que Catullo quando se utiliza do modo de falar roceiro ou popular eacute muito propositalmente que o faz para dar um tom mais fortemente regional aacutes suas poesias de gecircnero sertanejo[]Realmente a gente hesita em dizer em qual dos dois modos de versejar Catullo eacute maior Em ambos eacute grande378

O investimento do organizador de O testamento em explicar para o leitor que o autor Catullo era um grande poeta ao que parece

378 Ibidem p 98-99

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 283

baseava-se fundamentalmente na insistecircncia com que faz publicar opiniotildees que salientavam o caraacuteter complementar das trecircs fases da carreira literaacuteria de Catullo (o modinheiro o poeta sertanejo e o poeta culto)

Essa insistecircncia na explicaccedilatildeo de certas poesias escritas num lin-guajar natildeo culto volta a figurar na segunda parte dos juiacutezos criacuteticos sobre Catullo ndash agora com opiniotildees de ilustres maranhenses ou natildeo Nele o organizador faz publicar a opiniatildeo de Bandeira Duarte que por sua vez cita a opiniatildeo do criacutetico teatral Eduardo Vitorino

Criou-se em torno do genial poeta maranhense uma fama de ignoracircncia absolutamente falsa Para a maioria dos que examinaram a sua obra de uma opulecircncia jamais igualada em nossa poesia Catullo eacute um analfa-beto que faz versos sem gramaacutetica e cheios de erros Olham o ruacutestico onde soacute existe o simples o espontacircneo duas qualidades que fazem a grandeza de um poeta e a beleza de uma poesiaUm dia Maacuterio Joseacute de Almeida revelou-me um Catullo desconhecido para quase todosVocecircs estatildeo enganadosCatullo eacute um dos homens que melhor co-nhecem os autores claacutessicos e jaacute foi professor de francecircsEspecialmente as figuras maacuteximas do teatro e mais especialmente Moliegravere que ecircle discute e comenta com profundeza379

Aqui queriacuteamos lanccedilar uma hipoacutetese das causas desse investi-mento de negaccedilatildeo de Catullo como um ldquoignoranterdquo De posse dos di-reitos autorais completos da maioria das modinhas de Catullo (pois grande parte dela fora registrada fazia mais de trinta anos) Guimaratildees Martins arriscamos pensar antevendo o promissor lucro com suas re-publicaccedilotildees sente a necessidade de desestigmatizar a figura do poeta tachado de ldquoignoranterdquo por suas modinhas e seu linguajar sertanejo Isso demandou do organizador um maior foco nas questotildees que dizem respeito a uma reabilitaccedilatildeo das modinhas Daiacute em Poemas escolhidos ter insistido (segundo Catullo explicava ao seu leitor) nas publicaccedilotildees de algumas dessas modinhas e no O testamento da aacutervore fazer apa-

379 Ibidem p 132

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo284

recer juiacutezos criacuteticos de ilustres chamando atenccedilatildeo para o lado culto e jaacute consagrado de Catullo desde iniacutecios de sua trajetoacuteria incluindo a eacutepoca em que soacute publicava modinhas

A (re)construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo de Catullo operada por Guimaratildees Martins tendia a produzir irremediavelmente um discurso voltado para o passado Por um lado por haver um interesse na reabi-litaccedilatildeo das antigas modinhas de Catullo mas por outro a volta para o passado se valia de juiacutezos criacuteticos coletados em vaacuterios momentos dessa trajetoacuteria de forma a construir uma narrativa da vida do autor entremeada de momentos consagradores

Essa tarefa foi levada a cabo exatamente no momento em que se esboccedilava a construccedilatildeo de um cacircnone na literatura brasileira no qual o nome de Catullo estava ausente Nelson Werneck Sodreacute que publicara o seu Histoacuteria da literatura brasileira em 1938 recebia na criacutetica de Gondin da Fonseca um questionamento irocircnico ldquoE o Catullo Natildeo eacute que o senhor se esqueceu de o citar Elle vae ficar brabo com tal silecircncio e concordamos que natildeo deixaraacute de ter o seu bocado de razatildeordquo380

Resultado de uma narrativa que (re)criava a literatura no Brasil historicamente o livro de Sodreacute era uma das formulaccedilotildees exitosas dessa histoacuteria que ficaram comuns depois dos anos 1930 Nelas haacute uma nar-rativa desembocadura no ldquoModernismo de 22rdquo de forma que muitos autores do periacuteodo natildeo identificados com o ldquomovimentordquo eram exclu-iacutedos O resultado disso foi por um lado uma postura irocircnica de Catullo sobre os modernos em seus livros e por outro a construccedilatildeo de uma narrativa e de seccedilotildees nos livros do poeta que visavam a consagraacute-lo voltando o olhar para seu passado

A reediccedilatildeo de alguns de seus livros e a publicaccedilatildeo de livros que criavam uma narrativa biograacutefica para o poeta faziam parte da receita levada a cabo fundamentalmente pelo organizador Daiacute duas publica-ccedilotildees que tinham um caraacuteter de painel serem anunciadas ainda em Poemas escolhidos de 1944 Uma delas era intitulada Canccedilotildees de

380 Correio da Manhatilde 30 mar 1938 p 2

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 285

Catullo sendo uma ldquoseleccedilatildeo das mais famosas modinhas de Catulo da Paixatildeo Cearense (letra e muacutesica) organizada e anotada por Guimaratildees Martins e revista pelo autorrdquo A outra tinha como tiacutetulo Episoacutedios da minha vida de boecircmio apresentada como um livro de prosa Esta uacutel-tima teria sido uma biografia escrita pelo autor que ao que parece nunca foi publicada

Figura 4 ndash Contracapa do livro O testamento da aacutervore em sua 2ordf ediccedilatildeo

Fonte arquivo do autor

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Representaccedilotildees sociais de um morto distinto

O testamento da aacutervore foi o uacuteltimo livro de Catullo publicado em vida Na manhatilde do dia 10 de maio de 1946 o coraccedilatildeo do poeta deixou de bater viacutetima de um ataque fulminante Antes de morrer poreacutem ele deixara preparada uma uacuteltima obra uma coletacircnea de letras de modinhas que seria publicada ainda em 1946 apoacutes a sua morte com o tiacutetulo Modinhas381

Penso que a narrativa de uma trajetoacuteria autoral que se queira completa natildeo pode prescindir da construccedilatildeo representativa que se faz tambeacutem nos textos publicados em seu nome Embora haja muito o que

381 A ediccedilatildeo agrave qual nos reportaremos nas paacuteginas seguintes eacute a 2ordf ediccedilatildeo publicada pela livraria Impeacuterio jaacute no ano de 1956 Pensamos ser a 1ordf ediccedilatildeo de 1946 pois na paacuteg 175 da 2ordf ediccedilatildeo haacute uma nota de rodapeacute onde na explicaccedilatildeo da letra de modinha Minha matildee diz-se que esta fora cantada em 1946 apoacutes a morte de Catullo Haacute tambeacutem in-diacutecios de a publicaccedilatildeo ter tido uma 1ordf ediccedilatildeo posterior a 1945 pois haacute prefaacutecio escrito por Catullo em janeiro de 1945

Figura 5 ndash No verso do livro O testamento da aacutervore o edi tor explica ao leitor o objetivo editorial da ldquoColeccedilatildeo Azulrdquo

Fonte arquivo do autor

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dizer sobre as ediccedilotildees subsequentes de Catullo creio que por uma anterior escolha narrativa priorizo neste trabalho uma abordagem que leve em consideraccedilatildeo a trajetoacuteria literaacuteria do autor em vida Na esteira disso natildeo negligencio a tentativa derradeira do poeta de regrar uma leitura dos seus textos como eacute possiacutevel vislumbrar ainda em uma pu-blicaccedilatildeo como Modinhas que mesmo poacutestuma foi prefaciada pelo proacuteprio poeta

Nessa nova publicaccedilatildeo lanccedilada sob o impacto da morte de Catullo e publicada no momento de construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo memorialiacutestica do poeta haacute uma curiosa operaccedilatildeo narrativa nos textos tanto pelo editor quanto por parte de Guimaratildees Martins Em sessatildeo com o auspicioso tiacutetulo ldquoPalavras de Catullordquo incluiacuteda no prefaacutecio da publicaccedilatildeo poacutes-morte o poeta explica o porquecirc de estar publicando um livro com letras de modinhas

Eis mais um livro que o meu talentoso e adorado amigo e conterracircneo Guimaratildees Martins me obriga a publicar Se a sua publicaccedilatildeo natildeo ob-tiver o ecircxito almejado o editor a que felicito pela coragem de publi-caacute-lo deve culpar a ecircle e natildeo a mim Eacute um livro de velhas canccedilotildees que tiveram seu tempo mas esse tempo jaacute passou382

Modinhas veio agrave luz em um movimento que se seguiu com a morte do poeta No final de sua vida Catullo era cada vez mais reco-nhecido como autor de modinhas O esforccedilo premente de Guimaratildees Martins no sentido de estabelecer uma distinccedilatildeo sobre suas letras de modinhas no campo musical resultou numa recepccedilatildeo da obra do poeta que ficou centrada fundamentalmente no seu lado modinheiro

Atentando que ao publicar canccedilotildees com modinhas bem sabia que elas ldquojaacute tiveram seu tempo mas esse tempo jaacute passourdquo Catullo lanccedila para um passado consagrador o olhar do leitor da publicaccedilatildeo Mas a forma de apresentaccedilatildeo ao leitor operada pelo poeta no prefaacutecio guarda em sua aparente modeacutestia uma tentativa irocircnica de desqualificaccedilatildeo da-quilo entendido como ldquonovordquo

382 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas 2 ed Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1956 p 16

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Cotejando a passagem acima referida com outras apariccedilotildees em livro de Catullo nota-se um insistente incocircmodo do autor em circuns-crever um tema em categorias temporais tais como passadista ou futu-rista Essa postura pode ser vislumbrada inclusive nos textos em que Catullo aparece como prefaciador O escritor Sabino de Campos teve o seu livro Catimboacute (Romance nordestino) prefaciado pelo poeta em 1945 Nele ao exaltar as qualidades do escritor especialmente ao saber que ldquoo romance tinha um fundo real e verdadeirordquo Catullo se questiona

Natildeo sei se vocecirc eacute passadista modernista ou futurista Isto fico para os criacuteticos da atualidade Por mim soacute proclamo aos quatro ventos que vocecirc eacute um poeta eacute um escritor brasileiro universal de todos os tempos do passado do presente e do futuro Falo em nome do Belo e natildeo em nome de Escolas O seu talento eacute muito grande natildeo se pode amesqui-nhar em espaccedilos augustos383

O incocircmodo de Catullo em definir escritores com referecircncias temporais revestia suas opiniotildees de um caraacuteter irocircnico e de certo humor aacutecido uma vez que ele proacuteprio era estigmatizado e se via por conse-guinte perseguido por essas definiccedilotildees de sua obra Pelo menos desde a ascensatildeo dos novos escritores surgidos na esteira do modernismo de 1922 a alusatildeo frequente agrave obra de Catullo como o contraacuterio de publica-ccedilotildees ldquomodernistasrdquo o levava a ser representado como um poeta desatu-alizado senatildeo superado

Mais adiante lemos uma definiccedilatildeo do que seja para Catullo um grande poeta Definiccedilatildeo que ele mesmo lanccedilava para definir o escritor do livro Sabino de Campos ndash mas bem que podemos pensar ser uma autodefiniccedilatildeo uma vez que como anteriormente temos visto o proacuteprio Catullo se representava como um grande poeta ldquoVocecirc tem o orgulho humilde e tiacutemido dos grandes poetas porque natildeo tem orgulho nem ti-midez nem humildade e escreve tatildeo somente para cumprir uma missatildeo que Deus lhe deurdquo384

383 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Prefaacutecio de Catullo In CAMPOS Sabino de Catimboacute (Romance Nordestino) Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1946 p 5

384 Idem p 6

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Voltando a Modinhas o tom ironicamente modesto que Catullo emprega em seu prefaacutecio eacute contrastado pelo olhar do seu organizador Guimaratildees Martins aparece fundamentalmente como um primeiro leitor que vai apresentar o poeta a outros leitores Essa ilusatildeo dis-farccedila o caraacuteter de organizador investindo-o de um consumidor auto-rizado da publicaccedilatildeo pois conhece bem o poeta para apresentaacute-lo a outros leitores

Desde havia muito tempo interessado na reabilitaccedilatildeo de Catullo como modinheiro Martins ataca na publicaccedilatildeo uma representaccedilatildeo do poeta como poeta da canccedilatildeo Estabelecendo-o como um grande artista de muacutesica Martins investiria na publicaccedilatildeo dessas canccedilotildees os focos de sua atenccedilatildeo Em 1943 ano em que os direitos de publicaccedilatildeo de suas obras foram cedidos a Martins Catullo passou a ser representado em seus livros cada vez mais como muacutesico Ademais esses livros pas-saram natildeo gratuitamente a ser apresentados por Martins

Nas palavras que antecedem a apresentaccedilatildeo de Modinhas Martins em seccedilatildeo intitulada ldquoAs divinas canccedilotildees de Catullordquo revela seu objetivo central como organizador o de que a publicaccedilatildeo seja vol-tada para os mais jovens Assim depois de explicar o que eacute uma mo-dinha ele finalmente completa

Colecionei revi prefaciei e anotei estas canccedilotildees de Catullo tatildeo ge-nialmente interpretadas por ecircle na linda eacutepoca de suas Serenatas ao Luar porque as sucessivas ediccedilotildees estatildeo esgotadas Ineacuteditas decircsse modo para a geraccedilatildeo atual encobertas que foram pelo invasor e exoacute-tico lirismo hodierno Elas conservam e conservaratildeo eternamente a sua Beleza primitivaForam compostas por Catullo ndash o Caruso das Modinhas ndash no seu pe-riacuteodo inicial ndash de Poeta Musico e Cantor ndash de 1880 a 1910 quando veio a lume em 1887 o ldquoCantor Fluminenserdquo o seu verdadeiro livro de estreia385

Pela passagem citada eacute possiacutevel enxergar que a aproximaccedilatildeo de sua trajetoacuteria modinheira inicial supervalorizada por Martins natildeo o

385 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 15

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afasta de ser identificado como ldquopoetardquo Essa identificaccedilatildeo vai ao en-contro daquela jaacute buscada por Catullo desde seus primeiros livros qual seja a aproximaccedilatildeo das letras de canccedilotildees com uma representaccedilatildeo poeacute-tica Essa trajetoacuteria agrave parte feita por Catullo por ser antiga eacute explicada aos mais novos visando a um olhar diferente daqueles que o conheciam tatildeo simplesmente como um ldquopoeta cultordquo ou ldquopoeta sertanejordquo Aliaacutes essa separaccedilatildeo eacute criada por Guimaratildees e reafirmada nos textos de Catullo visando agrave compreensatildeo da carreira do poeta

Em Modinhas quem tambeacutem daacute o tom da reabilitaccedilatildeo da fase modinheira de Catullo eacute o seu futuro bioacutegrafo Carlos Maul Em texto que aparece no livro logo apoacutes o prefaacutecio do autor intitulado ldquoO Catullo que eu conhecirdquo Maul explica o teor do livro organizado por Martins

O que estas paacuteginas da antologia que Guimaratildees Martins organizou com a devoccedilatildeo de um crente e a fidelidade de um irmatildeo nos oferecem daacute [sic] uma ideacuteia niacutetida de um Catullo que ainda natildeo atingiu a plena originalidade da composiccedilatildeo e dos temas mas eacute um capiacutetulo essencial da sua biografia um marco da sua evoluccedilatildeo386

Ainda na apresentaccedilatildeo que faz de Catullo ndash e antes de o proacuteprio poeta explicar a publicaccedilatildeo para seus leitores ndash Guimaratildees Martins re-afirma o objetivo de entendimento de Maul atraveacutes de ldquofasesrdquo especiacute-ficas em sua trajetoacuteria

Como Trovador jamais houve quem se pudesse equiparar a esse gi-gante do canto que foi incontestavelmente o maior no gecircnero apare-cido no Brasil ateacute hojeDe 1910 data a segunda fase do genial maranhense fase a que deno-minaremos do Poeta Bravio Surgiu depois a fase a que poderemos chamar a do Poeta Culto387

Todas essas explicaccedilotildees visavam a assegurar agrave publicaccedilatildeo um lugar importante na trajetoacuteria de Catullo Uma vez que natildeo se tratava dos poemas que o consagraram como um poeta culto elas faziam parte

386 MAUL Carlos O Catullo que eu conheci In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 20

387 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Op cit p 16

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de uma fase do poeta em sua ldquoevoluccedilatildeordquo ndash tentavam demonstrar Carlos Maul e Guimaratildees Martins Fase que senatildeo de todo consagrada por grandes letrados da eacutepoca ldquoNesse tempo remoto Catullo jaacute conquistara a popularidade que vem da estima das massas anocircnimas que lhe repe-tiam as modinhasrdquo388

Maul parece natildeo achar o suficiente a explicaccedilatildeo das modinhas como sendo uma fase do poeta Ele avanccedila resguardando-o contra uma representaccedilatildeo que possa vecirc-las como uma produccedilatildeo menor Para tanto explica que

Antes poreacutem do aparecimento de Catullo o que havia entre noacutes no gecirc-nero ldquomodinhardquo se dividia com vaacuterios poetas solares que se chamavam Castro Alves Casimiro de Abreu Gonccedilalves Dias Fagundes Varela que tiveram as suas canccedilotildees musicadas por grades muacutesicos Essa era a modinha que se cantava ao piano nos serotildees domeacutesticos389

Entretanto se aquela aproximaccedilatildeo do nome de Catullo com os ldquograndesrdquo natildeo fosse ainda o suficiente Maul alega que diferentemente dessas modinhas o reconhecimento ldquode Catullo era a voz da rua que se fazia acompanhar de violatildeo cavaquinho e flauta E ecircle tem algumas que lhe garantem uma gloacuteria idecircntica agrave dos seus antecessores iminentesrdquo390

Catullo por sua vez que dedica a publicaccedilatildeo ao ldquomeu adorado Guimaratildees Martinsrdquo o ldquoconstrutor deste livrordquo foi no mesmo sentido de reafirmar sua trajetoacuteria inicial quando no prefaacutecio sob o tiacutetulo de ldquoPrefaacutecios ao leitorrdquo fez um resumo em trecircs paacuteginas eloquentes de sua ldquofaserdquo de muacutesico ldquoDigamos que eu fui o introdutor do violatildeo na alta sociedade Os cantadores de festas e de raacutedios sabem disto mas fingem ignorar Nada perderei com esse esquecimentordquo391 E tentando regrar uma recepccedilatildeo observa em tom grave

Agora um conselho de altiacutessima importacircncia Ecircstes versos desacom-panhados das respectivas melodias perdem muito do seu valor Ligados agrave ela como o fecircz o meu adorado Guimaratildees Martins noutra seleccedilatildeo

388 MAUL Carlos Op cit p 20389 Ibidem p 21390 Ibidem391 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 18

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cujo primeiro volume ecircle intitulou ldquoTu passaste por este jardimrdquo tenho certeza de que o leitor acha-los-aacute de excelsa Beleza392

A outra seleccedilatildeo citada por Catullo que seria intitulada Tu pas-saste por este jardim e que contaria com as partes musicais das modi-nhas natildeo haacute registro de que tenha sido publicada Talvez nela o autor fizesse aparecer os dados de Luar do sertatildeo cuja letra curiosamente e apesar de toda controveacutersia com Joatildeo Pernambuco em torno de sua au-toria natildeo aparece na publicaccedilatildeo de Modinhas como tendo outro autor senatildeo Catullo A canccedilatildeo eacute apenas dedicada ao jornalista Assis Chateaubriand e ganha uma observaccedilatildeo do organizador em nota de ro-dapeacute com a seguinte explicaccedilatildeo ldquo[] O tiacutetulo ldquoLuar do Sertatildeordquo estaacute devidamente registrado no Departamento da Propriedade Industrial E a letra e a muacutesica estatildeo registradas respectivamente na Biblioteca Nacional e na Escola Nacional de Muacutesica da Universidade do Brasilrdquo393

Isso parece demonstrar que o caso Luar do sertatildeo natildeo ficara re-solvido apesar de na abertura da publicaccedilatildeo novamente Martins tentar explicar que aquele livro havia nascido quase agrave revelia do poeta que natildeo queria ver a reediccedilatildeo dos livros de suas canccedilotildees musicadas

Eacute que aqueles livros eram impressos descuidadamente sem a sua re-visatildeo pela popular e hoje extinta Livraria Quaresma que aleacutem do mais misturava por conta proacutepria em alguns desses livros canccedilotildees de autoria de Catullo com canccedilotildees da autoria de outros autores sem lhes mencionar os nomes Tudo isso em completo desrespeito agrave Lei e dando a impressatildeo de que todas as modinhas eram da autoria exclusiva de CatulloHoje poreacutem que sou cessionaacuterio uacutenico de todas essas composiccedilotildees liacutetero-musicais satisfaccedilo o desejo do seu autor o meu venerado Catullo da Paixatildeo Cearense394

392 Ibidem p 19393 Ibidem p 57394 MARTINS Guimaratildees Explicaccedilatildeo Necessaacuteria In CEARENSE Catullo da Paixatildeo

Modinhas Op cit p 11

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Como bom empresaacuterio e dono dos direitos autorais do poeta Martins ainda faz no final dessa explicaccedilatildeo uma propaganda dos discos com canccedilotildees de Catullo

A RCA Victor vem gravando em discos da sua marca as divinas can-ccedilotildees do ldquonosso Catullordquo na interpretaccedilatildeo do maior tenor popular do Brasil Vicente Celestino e da ilustre folclorista patriacutecia Stellinha Egg discos que se encontram agrave venda em todo o Brasil em todas as casa [sic] especializadas395

O artifiacutecio mobilizado pelo organizador da obra rende frutos no ano da publicaccedilatildeo Ao morrer Catullo (aos 82 anos de idade) foi alvo de vaacuterias manifestaccedilotildees de letrados que saudavam sua grande traje-toacuteria Essas manifestaccedilotildees foram fartamente publicadas pelos jornais cariocas do periacuteodo e apesar de uma vida quase totalmente voltada para a publicaccedilatildeo de livros o que mais sobressai nas opiniotildees dos ado-radores do poeta eacute seu lado ldquoautor de modinhasrdquo Essa reviravolta na representaccedilatildeo de Catullo operada em muito por Guimaratildees Martins pode ser notada uma vez mais quando vemos numa publicaccedilatildeo ante-rior de 1936 escrita por Alexandre Gonccedilalves Pinto e intitulada O choro que tentava dar conta de explicar aos novos leitores quem eram os chorotildees da velha guarda O autor de O choro pedira um prefaacutecio e a correccedilatildeo do livro para Catullo que agravequela eacutepoca displicente quanto agrave sua representaccedilatildeo como um daqueles ldquochorotildeesrdquo respondeu tatildeo sim-plesmente que ldquoO prefaacutecio que me pediste para o teu livro fica para outra vez Natildeo te posso ser uacutetil nas correcccedilotildees dos erros porque soacute uma revisatildeo geral poderia melhoraacute-lo o que eacute impossiacutevel depois de o teres quase promptordquo396

A progressiva retomada de uma representaccedilatildeo como um poeta da canccedilatildeo soacute viria com a cessatildeo dos direitos autorais das modinhas para Guimaratildees Martins jaacute nos anos 1940 que tratava de reavivar esse lado de Catullo com a publicaccedilatildeo de Poemas escolhidos e de Modinhas no

395 Idem396 PINTO Alexandre Gonccedilalves O chocircro reminiscecircncias dos chorotildees antigos Rio de

Janeiro Tipografia Gloacuteria 1936 (ediccedilatildeo fac-siacutemile pela FUNARTE 2009) Sn

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exato momento necessaacuterio lembrar em que a canccedilatildeo identificada como ldquopopularrdquo comeccedila a sobressair-se como uma produccedilatildeo digna do mere-cimento do aplauso puacuteblico e portanto ganhando um novo estatuto representacional na sociedade ndash isso catapultado principalmente pela accedilatildeo difusora das raacutedios no Brasil da qual jaacute falamos

Todos esses elementos renderam a Catullo depois de morto o reconhecimento por seu papel como produtor de canccedilotildees no Brasil O jornal A Noite cuja editora da empresa tinha os direitos de publicaccedilatildeo de alguns livros de Catullo agrave eacutepoca dedicou um suplemento especial ao poeta morto

Aliaacutes dona dos direitos de cinco livros (Alma do sertatildeo Faacutebulas e alegorias Um boecircmio no ceacuteu O milagre de Satildeo Joatildeo e Caboclo bra-sileiro) a empresa A Noite que publicara a uacuteltima ediccedilatildeo dos livros de Catullo em vida (a 5ordf ediccedilatildeo de Faacutebulas e alegorias) foi aquela que mais homenagens rendeu ao poeta morto Durante algumas semanas entrevistou vaacuterios personagens que conviveram intimamente com ele entre os quais Fred Figner o filho do editor Quaresma e o escritor Maacuterio Joseacute de Almeida que tratava de desmentir a representaccedilatildeo de Catullo como poeta apenas intuitivo e rude

Catullo [] tinha uma bem organizada cultura literaacuteria e foi aluno no-taacutevel do Coleacutegio Teles de Menezes onde tirava notas que lhe conferiam o direito de sentar-se no ldquobanco de honrardquo Dedicou-se principalmente ao estudo claacutessico dos idiomas de Camotildees e de Racine Cito de prefe-recircncia dois poetas porque a leitura predileta de Catullo era a poesia Essas duas mateacuterias portuguecircs e francecircs ele viria alecionar [sic] exi-miamente no seu pequeno coleacutegio da Piedade397

Afinal embora se apresentasse o poeta morto como um exitoso modinheiro antes de ser o conhecido poeta do sertatildeo era necessaacuterio cuidar nesse sentido pela natildeo desvinculaccedilatildeo de seu nome do de um poeta letrado Assim Catullo poderia ser visto como um poeta da canccedilatildeo ndash poeta da canccedilatildeo sim mas poeta letrado conhecedor de Camotildees e Racine

397 A Noite 19 jul 1946 p 5

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Ademais a repentina morte de Catullo criou condiccedilotildees para que o autor fosse alvo de diversos empreendimentos no campo artiacutestico e literaacuterio A Noite aproveitou a oportunidade para reeditar O sol e a lua e Um caboclo brasileiro Aliaacutes foi justamente com sua morte que vaacute-rias ediccedilotildees dos livros de Catullo ganharam novas ediccedilotildees em 1946

Naquele mesmo ano aleacutem dos livros publicados pela A Noite acima citados a editora Bedeschi anunciava a reediccedilatildeo de Meu sertatildeo Sertatildeo em flor Poemas bravios e Mata iluminada A publicidade de tais livros no momento da morte do poeta indicava que as reediccedilotildees eram uma homenagem ao poeta morto pois

Quanto mais civilizado eacute um povo mais respeito e orgulho tem aacute [sic] obra dos seus grandes Artistas pois eacute a estes que se deve essa Civilizaccedilatildeo Pouco se fez ateacute hoje pelas nossas gloriosas tradiccedilotildees que permanecem ainda no mais triste esquecimento Faltavam-nos en-tretanto uma oportunidade para despertar em nossos coraccedilotildees esse sen-timento magniacutefico transformando-nos em orgulhosos admiradores dos legiacutetimos representantes de nossa Cultura Se hoje natildeo podemos ajuizar o que muitos brasileiros fizeram pelo nosso Paiacutes natildeo nos cabe a culpa mas compete-nos fazer com que nossos filhos possam sentir melhor por que o Brasil eacute digno de tanto amor e respeito398

Toda a atenccedilatildeo em torno do poeta morto criava a oportunidade editorial para que diversos anuacutencios usassem o nome de Catullo para vender seus produtos E natildeo somente livros O curioso anuacutencio do Perfume Azul daacute a ver essa repentina apropriaccedilatildeo da representaccedilatildeo do poeta amante da mulher e da natureza

CATULO SE ENGANOUndash CatuloldquoQuereis conquistar a mulher Enchei-lhe a cabeccedila de ilusotildees O con-quistador precisa mentir desbragadamente Elogiai-lhe a beleza Os olhos os cabelos a boca o corpo o vestido tudo o que ela natildeo pos-suir Nunca lhe deveis confessar a verdaderdquondash GRANFINO ndash Natildeo meu caro Catulo vocecirc que compreendeu tatildeo bem

398 Idem p 7

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e soube traduzir em versos magistrais a alma e as belezas do sertatildeo natildeo conhece a mulherPara conquista-la precisamos dizer-lhe a verdade elogiar a sua beleza seus olhos seus cabelos sua boca seu corpo e aconselhar para que conserve esses dons divinos o uso do perfume Narciso Azul de galllySim Narciso Azul de Gally enriquece ainda mais a beleza e a juventude da mulher399

Esse estouro publicitaacuterio e editorial em torno do nome de Catullo deu a nova oportunidade para que Guimaratildees Martins agora totalmente responsaacutevel pelo espoacutelio de Catullo desconstruiacutesse algumas imagens construiacutedas em torno do poeta como sua representaccedilatildeo como um pe-dante Chamado por diversos perioacutedicos para falar sobre a morte de Catullo e contar passagens sobre a vida do poeta Martins tentava de-monstrar para o leitor a ldquomodeacutestiardquo do autor

Convidado pelo presidente Epitaacutecio Pessoa para cantar e recitar no Palaacutecio Rio Negro em Petroacutepolis Catullo encontrando o Palaacutecio todo iluminado natildeo entrou pensando haver alguma reuniatildeo soleneDepois foi informado de que o presidente nessa noite o esperava mo [sic] salatildeo principal em companhia de amigos O autor do ldquoTalento e Formosurardquo caiu das nuvens e no outro dia aparecia em Palaacutecio de violatildeo em punhoO Dr Epitaacutecio riu-se muito da encantadora modeacutestia do aedo mara-nhense pois havia mandado iluminar o Rio Negro especialmente para recebe-lo400

A contraposiccedilatildeo a esses depoimentos vinha ironicamente do uacutel-timo prefaacutecio escrito por Catullo em Modinhas no qual conta envaide-cido suas memoacuterias A principal era a de sua conhecida audiccedilatildeo no Instituto de Muacutesica no distante ano de 1908

O Instituto ficou cheio das personagens mais ilustres desta Capital Muacutesicos literatos meacutedicos jornalistas advogados engenheiros pro-

399 Ibidem 19 jul 1946 p 27400 Ibidem p 32

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fessores pintores o escoacutel da nossa sociedade diplomatas como o Conde de Prozoor entatildeo ministro plenipotenciaacuterio da Ruacutessia tudo se encontrava ali no meio da massa popular Inuacutemeras pessoas ficaram de peacute por natildeo haver mais lugar Os aplausos eram tatildeo retumbantes que se ouviam da rua []No dia seguinte os jornais teceram-me elogios []Como vecirc o leitor venci em tudo Depois da audiccedilatildeo do Instituto dei muitas outras no Teatro Carlos Gomes no antigo Satildeo Pedro no Fenix no Recreio Dramaacutetico no Liacuterico em muitas outras casas de espetaacuteculosEm 1912 escrevi o meu primeiro poema sertanejo ldquoO Marrueirordquo Animado pela aceitaccedilatildeo que ecircle teve continuiei [sic] a escrever outros e hoje jaacute estatildeo publicados mais de vinte volumes das minhas obras Tocircdas elas estatildeo prefaciadas pelos mais iminentes intelectuais da nossa terra401

Passagens como essa mostravam para um leitor atento como nas paacuteginas da publicaccedilatildeo ele poderia defrontar-se com representaccedilotildees distintas do poeta ndash isso resultado de opccedilotildees conflitantes quanto a uma imagem consagrada que se deva dar ao autor

Ainda sobre a ldquomodeacutestiardquo de Catullo Fred Figner ndash que gravara em discos pelas Casas Edison as primeiras canccedilotildees de Catullo e por isso foi um dos procurados para declarar algo sobre ele ndash tratava de explicar como sendo expressatildeo da bondade do poeta morto

Catullo foi uma grande alma Um boecircmio um sonhador que jamais se preocupou com dinheiro Era um desinteresse espantoso[]Soacute lhe posso dizer com absoluta seguranccedila eacute que Catullo tinha um grande coraccedilatildeo Era um bonachatildeo que nunca explorou comercialmente o talento que lhe brotava espontacircneo402

O depoimento de Figner ia ao encontro exato da imagem do poeta desinteressado que natildeo se preocupava com dinheiro O que pode parecer irocircnico eacute pensar que muitas daquelas canccedilotildees de Catullo foram durante

401 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 17-18402 A Noite 22 maio 1946 p 7

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algum tempo propriedade de Figner e que ele tenha feito uma boa for-tuna com elas A exploraccedilatildeo econocircmica do nome Catullo embora lhe ti-vesse trazido reconhecimento natildeo rendeu ao poeta grandes dividendos ateacute porque rendia mais para um autor no comeccedilo do seacuteculo vender suas canccedilotildees como salientamos anteriormente ndash coisa que Catullo fez por di-versas vezes Isso acentuava o contraste da representaccedilatildeo de Catullo como um poeta modesto diante de um novo regime de representaccedilatildeo de autoria centrada desde os anos 1930 numa preocupaccedilatildeo autoral interes-sada no valor de moeda da criaccedilatildeo Ora foi jogando com essa represen-taccedilatildeo do ldquodesinteresserdquo ndash que inclusive era evocada por Catullo como na querela com Joatildeo Pernambuco ndash que o papel de Guimaratildees Martins se sobressaiacutea como algueacutem responsaacutevel pelos direitos autorais do poeta fa-zendo com que Catullo natildeo ldquosujasse as matildeosrdquo com ldquocoisas mundanasrdquo

A coincidecircncia biograacutefica de Catullo no final de sua vida com sua representaccedilatildeo como um poeta modesto vinha como que para confirmar tal construccedilatildeo A ldquomodestardquo casa onde o poeta morou nos seus uacuteltimos anos de vida tornou-se imediatamente o siacutembolo de sua modeacutestia Essa repentina consagraccedilatildeo de Catullo ecoou de forma tal que uma movi-mentaccedilatildeo na imprensa com apoio de Guimaratildees Martins fez surgir uma mobilizaccedilatildeo popular para angariar fundos visando agrave aquisiccedilatildeo da casa e a transformaccedilatildeo dela num mausoleacuteu ao poeta

A casa representava Catullo em sua modeacutestia A uma imagem de Catullo pedante que insistentemente o perseguira durante toda sua tra-jetoacuteria literaacuteria vaacuterios interessados na reabilitaccedilatildeo do poeta contrapu-nham a representaccedilatildeo da casa A casa era a testemunha de um poeta modesto em sua vida

A casa de Catullo testemunha de sua existecircncia modesta quase francis-cana de um homem simples e bom afaacutevel e acolhedor que soacute conhecia uma espeacutecie de orgulho ndash o orgulho de artista consciente dos finos louvores que produzia mas em tudo o mais de uma excessiva humildade ndash eacute um ver-dadeiro museu sentimental devendo ser preservada tal como era quando o seu glorioso morador desapareceu Os objetos de uso pessoal de Catullo da Paixatildeo Cearense documentam a sua simplicidade o seu ascetismo403

403 A Noite 19 jul 1946 Suplemento p 20

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A casa era o poeta patrimonializado era como dizia a repor-tagem ndash que ainda mostrava as peccedilas que ali se encontravam ndash um museu sentimental As fotografias do jornal estampavam os objetos do poeta monumentalizando-os Laacute estavam a caneca a cadeira onde morreu os quadros a cama mas tambeacutem ndash e principalmente para um poeta letrado ndash parte da biblioteca o tinteiro e a caneta ldquoverdadeiras e preciosas peccedilas de museu que ajudaram a fixar tantas e tatildeo maravi-lhosas obras poeacuteticasrdquo404

Essa construccedilatildeo que se operava tatildeo logo a morte do poeta foi anunciada alimentou-se da comoccedilatildeo puacuteblica que se abateu sobre uma multidatildeo que foi ao enterro de Catullo Transmitidos ao vivo pela Raacutedio Roquete Pinto os funerais no cemiteacuterio de Catumbi foram eivados de apresentaccedilotildees de artistas e para laacute tambeacutem acorreu como deixam ver as fotos publicadas nos jornais da eacutepoca uma multidatildeo ineacutedita Escritores muacutesicos e poliacuteticos compareceram agrave cerimocircnia na qual Agripino Grieco e o acadecircmico Viriato Correcirca pronunciaram seus discursos de adeus A apoteose segundo os jornais teria sido a entrada do cantor mexicano Ortiz Tirado amigo de Catullo que cantou Luar do sertatildeo acompa-nhado no estribilho pela multidatildeo emocionada

A narrativa do enterro pela imprensa a organizaccedilatildeo de festas para angariar fundos para a compra da casa de Catullo ndash primeira-mente por A Noite que organizou uma festa no Teatro Municipal e depois a festa organizada em colaboraccedilatildeo conjunta da Raacutedio Globo Raacutedio Nacional e Empresa Teatral Ferreira da Silva com a ldquopopula-riacutessima lsquoestrelarsquo Dercy Gonccedilalvesrdquo405 ndash e a reediccedilatildeo de pelo menos oito publicaccedilotildees suas nos primeiros trecircs meses que se seguiram agrave sua morte revelam a configuraccedilatildeo progressiva do poeta morto em poeta distinto

A surpreendente imagem de uma multidatildeo nos funerais dava o tom da definiccedilatildeo de ldquopopularrdquo que se buscava assegurar a Catullo ldquoTeve expressatildeo de uma apoteose popular a cerimocircnia do enterramento de Catullordquo insistia A Noite em legenda de fotografia que mostrava a

404 Idem405 A Noite 21 jun 1946 p 8

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multidatildeo em volta do caixatildeo Atentando para o fato de que o comeacutercio carioca fechou com a passagem do enterro o editor do jornal afirmava a necessidade de uma patrimonializaccedilatildeo do poeta

[] Se a memoacuteria do trovador necessitasse de novas credenciais para ser incorporado ao patrimocircnio espiritual da nacionalidade te-lasndashia na expressatildeo glorificadora de seus funerais e na exaltaccedilatildeo de sua obra e de seu nome agrave beira da tumba que o acolheu para a eternidade406

Eacute possiacutevel como jaacute dissemos para um investigador atento supor que o investimento insistente da representaccedilatildeo popular e consagradora do poeta Catullo natildeo fosse um ato gratuito uma vez que A Noite publi-cava os livros do poeta Ademais embora sua morte fosse mateacuteria de grandes reportagens naqueles dias seguramente ao investigar as di-versas reportagens do periacuteodo observamos que a empresa A Noite foi aquela que liderou com Guimaratildees Martins a promoccedilatildeo de uma con-sagraccedilatildeo do poeta depois de morto

Na nova ediccedilatildeo de Um boecircmio no ceacuteu lanccedilada menos de um ano apoacutes a morte de Catullo com uma nova seacuterie de juiacutezos criacuteticos organi-zados por Guimaratildees Martins aparece uma advertecircncia do herdeiro dos direitos do poeta endereccedilada ldquoaos leitores do livrordquo

Aos que pelo valor incontestaacutevel do ldquoMaravilhoso Poetardquo acharem dispensaacuteveis as polianteacuteias de juiacutezos-criacuteticos que venho organizando em quase todos os seus livros devo dizer que se faccedilo eacute para facilitar aos seus futuros bioacutegrafos e evitar as inverdades que haacute sobre a sua vida principalmente agora depois do seu desaparecimento material da terra407

Aiacute se operava uma construccedilatildeo retrospectiva do poeta capitaneada por Martins herdeiro dos direitos autorais de Catullo a Raacutedio Nacional que tocava insistentemente as canccedilotildees do poeta e a empresa A Noite

406 A Noite 14 maio 1946 p 1407 MARTINS Guimaratildees Aos leitores deste livro In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um

boecircmio no ceacuteu Rio de Janeiro sd p 184 Esta ediccedilatildeo pensamos ser de fins de 1946 jaacute que aparece como novo lanccedilamento no perioacutedico Letras e Artes de 12 de janeiro de 1947 p 3

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que publicava as ediccedilotildees de vaacuterios de seus livros Por fim da editora Bedeschi que como A Noite investia naquele momento de luto na re-ediccedilatildeo de antigos livros do bardo

Desde a venda dos direitos autorais para Guimaratildees Martins a produccedilatildeo de uma estrateacutegia autoral jaacute prescindia em muito da estrateacutegia da autoridade de Catullo que apoacutes sua morte deixava-a definitiva-mente agrave mercecirc do editor leitor organizador tipoacutegrafo etc Embora ainda apresentasse seu uacuteltimo livro havia uma clara contraposiccedilatildeo com os objetivos encetados pelo organizador da obra que nunca chegou poreacutem a causar algum problema nessa relaccedilatildeo Pelo contraacuterio Catullo tinha muita estima por Martins Mas com a morte do poeta a histoacuteria das ediccedilotildees das obras de Catullo teria de levar em consideraccedilatildeo dali para frente a ausecircncia daquele que apareceu durante 52 anos produ-zindo naqueles textos que saiacuteam sob seu nome suas estrateacutegias de con-sagraccedilatildeo A autoridade sobre os textos tantas vezes reivindicada pelo poeta passaria a ser reivindicada por outras instacircncias O texto na au-secircncia do seu autor-primeiro evocaria desse modo sua memoacuteria E ca-minhos da memoacuteria seguem outras trilhas em geral mistificadoras da-quele a quem apresenta

Assim de uma trajetoacuteria literaacuteria inteira devotada agrave represen-taccedilatildeo de sua autoridade (de letrado de autor e de poeta) Catullo dei-xava a vida e as letras revivido em seus livros como o poeta que melhor soube representar nas suas modinhas e em seus livros o ldquopovordquo e o ldquosertatildeordquo Contudo o ecircxito editorial de grande parte de sua trajetoacuteria natildeo foi suficiente para que figurasse entre aqueles que eram jaacute agravequela eacutepoca elevados ao elenco de grandes mestres da literatura

Em 1946 ano da morte do autor de Luar do sertatildeo a Raacutedio Nacional direto do Teatro Municipal transmitia para todo o paiacutes du-rante a festa de consagraccedilatildeo poacutes-morte do ldquopoeta do sertatildeordquo um convi-dado que apresentava em homenagem a Catullo uma canccedilatildeo para a qual o poeta morto havia criado uma letra Sertanejo enamorado O convidado era um jovem que subiu ao palco com sua sanfona em punho algo comum pois jaacute era conhecido pelos ouvintes do cast da raacutedio Com seu sorriso ele contrastava com o ambiente de homenagem poacutes-tuma Seu nome era Luiz Gonzaga Talvez Catullo natildeo gostasse daquela

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo302

apresentaccedilatildeo Talvez em suas tentativas de regrar uma recepccedilatildeo impe-disse aquilo Talvez Mas para que conjecturar Definitivamente o poeta natildeo estava mais laacute

Conclusatildeo

A trajetoacuteria autoral de um poeta ordinaacuterio

O trabalho que o leitor tem em matildeos se insere no espaccedilo de in-vestigaccedilatildeo da literatura cujo ldquonome proacutepriordquo teima em reaparecer Catullo da Paixatildeo Cearense o poeta ordinaacuterio o eacute pela trajetoacuteria lite-raacuteria natildeo canonizada pela histoacuteria literaacuteria pela abordagem aqui ten-tada natildeo biograacutefica de seus textos pelas escolhas estrateacutegicas de sua intromissatildeo no mundo das letras pela sensibilidade ldquosafadardquo com que tentava se impor como poeta e sobretudo pela abordagem natildeo ldquogenia-lizadardquo com que se buscou aqui tratar

Talvez o leitor nas paacuteginas que se sucederam tenha enxergado menos Catullo do que o editor Quaresma ou menos o poeta inspirado do que os leitores autorizados Maacuterio de Andrade e Gondin da Fonseca menos o saudado bardo do que a ascensatildeo dos artistas de raacutedio e teatro menos o gecircnio edificador da alma mais as conduccedilotildees de seus textos por Guimaratildees Martins seu herdeiro Contudo se assim foi feito foi porque o autor deste trabalho natildeo se negou a alertar por vezes implicitamente eacute verdade que a compressatildeo de uma produccedilatildeo textual estaacute condicio-nada em muito pelas contingecircncias do espaccedilo que lhe daacute sentido

A chegada de Catullo ao espaccedilo de produccedilatildeo de livros no Brasil ainda na uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX veio no exato momento em que a representaccedilatildeo do leitor de livros era construiacuteda de forma a distingui-lo do restante da sociedade Nesse periacuteodo como vimos ser identificado como autor literaacuterio era um meio de ser considerado sujeito de algum status numa sociedade em grande parte analfabeta e receacutem-saiacuteda da escravidatildeo Foi aliado a isso que o modinheiro Catullo Cearense e seu editor Quaresma interessados na identificaccedilatildeo do autor de livros de modinhas como letrado construiacuteram nos livros uma aproximaccedilatildeo do nome de Catullo como algueacutem das letras

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Natildeo obstante outros modinheiros como Geraldo Magalhatildees e Eduardo das Neves terem seus nomes nas capas de livros de modi-nhas foi somente Catullo que teve seu nome considerado um autor Aqui seguramente reside uma primeira provocaccedilatildeo do trabalho que pode parecer embaraccedilosa para um leitor atual a desnecessaacuteria confor-midade de um nome proacuteprio escrito na capa com aquilo que se entende como um ldquoautorrdquo A autoria eacute tambeacutem ela uma construccedilatildeo histoacuterica que se funda a partir de estrateacutegias textuais A representaccedilatildeo de Catullo como ldquoautorrdquo construiacuteda em seus livros fez com que o bardo modi-nheiro conseguisse que seu nome fosse progressivamente identificado como um ldquopoeta popularrdquo

Nesse segundo momento da trajetoacuteria de Catullo reside o ponto nevraacutelgico de uma reflexatildeo que se pauta pela problematizaccedilatildeo de uma autoria O termo ldquopopularrdquo agrave eacutepoca evocava tanto algueacutem de reconhe-cido sucesso entre as pessoas quanto um tipo de produccedilatildeo consagrada naqueles idos por mostrar uma suposta praacutetica do ldquopovordquo Daiacute ser ldquopoeta popularrdquo (ou ser assim representado) era de bom tom para que o editor Quaresma lucrasse com a produccedilatildeo de Catullo Para este uacuteltimo no seu afatilde de consagraccedilatildeo letrada isso travaria o reconhecimento de seu nome como tatildeo simplesmente um poeta ndash tal qual Bilac ou Coelho Netto nomes distintos da literatura do periacuteodo Daiacute tambeacutem seu flerte com uma produccedilatildeo de literatura sertaneja que agravequela eacutepoca consa-graria homens como Godofredo Rangel Monteiro Lobato e sobretudo Euclides da Cunha Natildeo era somente pelo sucesso de vendagens que se consagrava um autor a poeta mas pelo reconhecimento de sua pro-duccedilatildeo como digna de ser chamada literatura

Flagramos assim a constituiccedilatildeo daquilo entendido como ldquolitera-turardquo agrave eacutepoca Essa demanda veio ao encontro de um entendimento de que o termo ldquoliteraturardquo teria de ter uma conformidade com o ldquonacionalrdquo daiacute a condicionante ldquonacionalrdquo na afirmaccedilatildeo de uma obra como ldquolitera-turardquo Dizendo de outra forma natildeo havia uma representaccedilatildeo da ldquoli-teraturardquo se essa natildeo contivesse um elemento nacional que a impusesse como digna de assim ser tachada Catullo soube bem casar sua aposta no reconhecimento como poeta letrado e suas escolhas temaacuteticas O sertatildeo nasce em sua poesia no exato momento de sua consagraccedilatildeo como

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poeta digno de entrar no panteatildeo da ldquoliteratura nacionalrdquo Ser publicado assim por uma editora ldquomais seacuteriardquo como a Castilho respondia ao in-tuito de mudanccedila de prestiacutegio dos textos visando a uma consagraccedilatildeo E essa consagraccedilatildeo eacute dramatizada em seus prefaacutecios ndash muitos deles es-critos por nomes distintos da sociedade carioca de entatildeo apaixonados desde havia muito tempo pelas modinhas de Catullo

Essa representaccedilatildeo de seu nome como tatildeo somente um ldquopoetardquo soacute vai perder status quando haacute uma revisatildeo da mesma ldquoliteraturardquo vinda de novos escritores que surgem nos anos 1920 Embora natildeo haja unidade nos pontos de vista de nomes como Maacuterio de Andrade e Oswald de Andrade esses novos escritores dramatizavam em seus textos a emergecircncia de uma nova ldquoliteraturardquo na qual o que seria ldquoliteratura nacionalrdquo sofreria uma revisatildeo

A tarefa de melhor representar o paiacutes ganhou cores fortes espe-cialmente nas reflexotildees de Maacuterio de Andrade que desqualificaria a obra de Catullo por ser imaginosa Mas eacute exatamente nesse momento que Catullo vai lanccedilar matildeo de uma aproximaccedilatildeo de seu nome com o ldquopopularrdquo sem no entanto subtrair-se a ele Surge em seus livros o re-curso da alma e para explicar a seu leitor o que seria isso o novo editor de Catullo Castilho mobilizava os escritores mais consagrados do pe-riacuteodo para apresentar o poeta do sertatildeo Surge Catullo poeta que no momento da escrita fala a alma do povo mas que natildeo eacute povo pois poeta natildeo pode ser povo Isso porque os artifiacutecios de consagraccedilatildeo elen-cados no periacuteodo passavam pelo reconhecimento do autor como algueacutem que conhece o que conta Falar por uma ldquoalmardquo daria um caraacuteter veros-similhante agrave sua poesia o que natildeo se daria por exemplo em um Monteiro Lobato ndash que aliaacutes Catullo como vimos tematizou em um de seus poemas numa tentativa de negativizar o Jeca de Lobato em detrimento do seu proacuteprio sertanejo

Nos anos 1920 muitos escritores foram relegados nesse pro-cesso por um novo cacircnone que se construiacutea e o refuacutegio na produccedilatildeo de textos teatrais foi uma constante Ademais o teatro surgiu como uma atividade lucrativa pelo menos quando se pensa que os espaccedilos de produccedilatildeo textual se comprimiram com o advento da nova geraccedilatildeo de escritores Catullo que jaacute era reconhecido por sua presenccedila cecircnica de-

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clamando poemas ou antes disso cantando modinhas acabou en-trando nesse filatildeo fazendo o caminho inverso ou seja indo ao en-contro de sua produccedilatildeo musical que o revelara havia muito tempo com as modinhas

Foi nesse momento que mudou tambeacutem o status dos composi-tores no Brasil O sucesso da raacutedio alavanca compositores e cantores agrave condiccedilatildeo de iacutedolos fazendo com que os primeiros comeccedilassem a rei-vindicar seus direitos autorais Catullo reassumindo sua condiccedilatildeo de poeta da canccedilatildeo exatamente em um momento em que a muacutesica ganha novo status atraveacutes do raacutedio vai reivindicar sua consagraccedilatildeo como compositor das coisas brasileiras aproximando sua produccedilatildeo textual das suas modinhas Daiacute serem publicados nesse periacuteodo livros contendo poemas para serem dramatizados nos palcos como vaacuterias intervenccedilotildees musicais Teatro literatura e muacutesica se mesclaram no texto fazendo com que o poeta ldquoatacasserdquo na construccedilatildeo de sua consagraccedilatildeo em vaacuterias frentes A face ldquopretensiosardquo do poeta ganha contornos em seus livros dos anos 1930 e 1940 especialmente na peccedila O boecircmio no ceacuteu que nas ediccedilotildees sucessivas foi ganhando progressivamente elementos que pu-dessem identificar Catullo aos maiores poetas e o autor ao seu perso-nagem boecircmio do texto que atirava criacuteticas contra os mais diversos segmentos do campo literaacuterio de entatildeo desde os criacuteticos aos cantores

Eacute necessaacuterio salientar que todas essas estrateacutegias faziam parte de uma aguda sensibilidade de Catullo e de seus editores para os elementos de consagraccedilatildeo de seu nome como algueacutem de algum status em determi-nado momento do campo de produccedilatildeo textual Nesse iacutenterim natildeo fal-taram em suas publicaccedilotildees os depoimentos de leitores sobre sua obra e sua presenccedila cecircnica recitando ou cantando Natildeo faltaram intervenccedilotildees de seus editores explicando o caraacuteter da obra e do escritor com termos sempre emuladores como ldquocivilizadordquo ldquoletradordquo ldquobom moccedilordquo ldquogrande poetardquo etc Mas acima de tudo natildeo faltaram tentativas de Catullo de regrar uma leitura de seus textos que pudessem tornar possiacutevel seu de-sejo nunca escondido de reconhecimento consagrador

Atravessar os textos produzidos por Catullo eacute fazer uma leitura em filigranas interessado em flagrar o poeta se construindo e se recons-truindo a cada momento Contra um entendimento de que haacute uma ver-

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dade escondida no texto contrapotildee-se a necessidade de compreensatildeo de sua produccedilatildeo textual numa rede de discursos que natildeo se findam na escritura De radicalizar uma experiecircncia de histoacuteria da literatura que questione de saiacuteda a noccedilatildeo ldquoliteraacuteriardquo De estabelecer que um texto comunica visando a um puacuteblico leitor De chamar a atenccedilatildeo para a ma-terialidade do livro atribuindo ao trabalho interessado do editor um significado fundamental na criaccedilatildeo de um sucesso literaacuterio

O que se arvora na investigaccedilatildeo sobre Catullo eacute uma possibili-dade de compressatildeo da trajetoacuteria literaacuteria de um indiviacuteduo que natildeo se paute tatildeo somente com elementos extra-textuais Isso deve ser tentado com cuidado pois ainda que natildeo inexistam no texto aqui apresentado tais elementos a consideraccedilatildeo de uma representaccedilatildeo autoral construiacuteda nos textos pode obrigar o pesquisador a mais do que procurar na bio-grafia do autor uma explicaccedilatildeo a problematizar criticamente o proacuteprio texto pois que afinal eacute por meio dos textos (e com eles) que a comu-nicaccedilatildeo com os espaccedilos de reconhecimento se fazem para um escritor Nesse caminho haacute uma seacuterie de indiviacuteduos que contribuem para essa comunicaccedilatildeo desde editores passando por tipoacutegrafos e publicitaacuterios ou mesmo pela pena de um leitor autorizado o criacutetico literaacuterio

Introduzir na investigaccedilatildeo de textos sob o nome de ldquoliteraturardquo o questionamento sobre o proacuteprio estatuto literaacuterio de tal texto ainda eacute em nosso paiacutes um desafio ndash e como todo desafio tarefa instigadora Isso porque por essas praias a identificaccedilatildeo de um leitor continua sendo um aspecto distintivo de forma que questionar um texto consagrado sem cair na emulaccedilatildeo se torna tarefa perigosa e mal vista O suporte de reflexotildees trazidos pela nova criacutetica literaacuteria e pela denominada nova histoacuteria cultural satildeo nesse sentido de grande valia para a historicizaccedilatildeo dos textos Sobre essa uacuteltima vale ainda dizer que tal tarefa ademais se ressente de uma natildeo compressatildeo de sua proacutepria histoacuteria ndash expressa por vezes em maacute-feacute de seus criacuteticos Aiacute vale uma passagem importante de Chartier mas muitas vezes negligenciada por seus leitores que evi-tando um entendimento de suas propostas como uma retomada do texto em si recomenda que o estudo das representaccedilotildees produzidas nas di-versas praacuteticas culturais possa redimensionar uma antiga histoacuteria social Assim diz-nos o historiador ldquoa histoacuteria cultural pode regressar util-

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mente ao social jaacute que faz incidir a sua atenccedilatildeo sobre as estrateacutegias que determinam posiccedilotildees e relaccedilotildees e que atribuem a cada classe grupo ou meio um lsquoser-apreendidorsquo constitutivo da sua identidaderdquo408

Ademais o desafio para a escrita da trajetoacuteria de um indiviacuteduo recoloca em cena o velho debate sobre a possiblidade de se narrar uma parte da vida desse indiviacuteduo Embora exista de saiacuteda uma impossibi-lidade aceita pelo historiador de reconstruccedilatildeo de uma vida pensamos que o que natildeo se deve esquecer eacute o caraacuteter representacional da criaccedilatildeo do personagem A representaccedilatildeo de um sujeito numa narrativa joga fundamentalmente ela tambeacutem com um acordo entre historiador e leitor visando a construir por meio das fontes a crenccedila numa escrita que se paute por um referencial

Aiacute reside uma questatildeo eacutetica a ser enfrentada Eacute necessaacuterio pensar que a escrita de uma trajetoacuteria ndash e a de Catullo aqui produzida eacute ela mesma um exemplo ndash eacute parte de um acordo Poreacutem de um acordo que se estabelece entre um autor que escreve e um leitor que tambeacutem produz a partir de uma leitura criacutetica sua proacutepria representaccedilatildeo do per-sonagem da trajetoacuteria Perder de vista a possibilidade de invenccedilatildeo cor-roboraccedilatildeo e criacutetica do leitor diante daquilo que lecirc eacute negar (ou pior idiotizar) de partida a capacidade do leitor diante do texto Na con-tramatildeo disso ou seja atentando para o diaacutelogo do autor com os leitores em suas leituras insubmissas a trajetoacuteria autoral de Catullo da Paixatildeo Cearense foi aqui escrita Pensando nisso o autor deste trabalho bem sabe que enfrentar um ldquonome proacutepriordquo carregaraacute controversas leituras ndash mas necessaacuterio dizer natildeo se furtou desde o iniacutecio a desafiar o leitor em sua ldquocaccedila furtivardquo no texto

Por fim quero crer que tal empresa se exitosa possa de alguma forma provocar tambeacutem uma contribuiccedilatildeo para a abertura de novas pesquisas que tematizem o ldquonome proacutepriordquo doravante escapando das teias biograacuteficas que teimam em ldquocanonizarrdquo o sujeito biografado Por outro lado sou otimista que este trabalho lance luz para a necessidade de uma criacutetica literaacuteria que deixe de se fundar na construccedilatildeo de monu-

408 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural entre praacutetica e representaccedilotildees Lisboa DIFEL 1990 p 23

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mentos sob o nome pretensioso de ldquoliteratura nacionalrdquo e que esta criacute-tica possa repensar-se inserindo nela um caraacuteter historicizante que leve em conta os demais sujeitos que fazem parte do espaccedilo de pro-duccedilatildeo textual Afinal foi nessa aventura com o livro (e no livro) que um dia certo bardo ordinaacuterio se transformou no poeta Catullo da Paixatildeo Cearense

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MURARI Luciana Tudo mais eacute paisagem representaccedilotildees da natureza na cultura brasileira 304 p Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2002NAXARA Maacutercia Regina Capelari Cientificismo e sensibilidade ro-macircntica em busca de um sentido explicativo para o Brasil no seacuteculo XIX Brasiacutelia UNB 2004NAXARA Maacutercia Regina Capelari Estrangeiro em sua proacutepria terra representaccedilotildees do brasileiro (1870-1920) Satildeo Paulo Annablume 1998MACHADO NETO Antocircnio Luiz Estrutura social da repuacuteblica das letras sociologia da vida intelectual brasileira ndash 1870-1930 Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 1973OLIVEIRA Liacutevio Lima de A revoluccedilatildeo da brochura experiecircncias de ediccedilotildees de livros acessiacuteveis no Brasil ateacute a primeira metade do seacuteculo XX Disponiacutevel em wwwescritoriodolivrocombr ofiacuteciosquaresmahtml Acesso em 23 abr 2011OLIVEIRA Liacutevio Lima de Pedro da Silva Quaresma entre estran-geiros um brasileiro Disponiacutevel em http wwwescritoriodolivrocombr ofiacuteciosquaresmahtml Acesso em 23 abr 2011 OLIVEIRA Luacutecia Lippi A conquista do espaccedilo sertatildeo e fronteira no pensamento brasileiro Histoacuteria Ciecircncia Sauacutede ManguinhosRJ v V (supl) p 195-215 jul 1998OLIVEIRA Luacutecia Lippi A questatildeo nacional na Primeira Repuacuteblica Satildeo Paulo Brasiliense 1990PAREDES Marccedilal de Menezes A querela dos originais notas sobre a polecircmica entre Siacutelvio Romero e Teoacutefilo Braga Estudos Ibero-Americanos Porto Alegre PUCRS 2006 p 103-119 Ediccedilatildeo Especial n 2 PECAUT Daniel Os intelectuais e a poliacutetica no Brasil entre o povo e a naccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 1990PEacuteCORA Alcir A maacutequina de gecircneros Satildeo Paulo Edusp 2001 PEREIRA Avelino Romero Simotildees Muacutesica sociedade e poliacutetica Alberto Nepomuceno e a Repuacuteblica musical Rio de Janeiro UFRJ 2007

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo318

PONS Anacleto SERNA Justo La histoacuteria cultural Madrid Ediciones Akal 2005

RANCIEgraveRE Jacques A partilha do sensiacutevel esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Editora 34 2005

REVEL Jacques Cultura popular usos e abusos de uma ferramenta historiograacutefica In REVEL Jacques Proposiccedilotildees ensaios de histoacuteria e historiografia Rio de Janeiro EdUERJ 2009 p 163-186

RIBEIRO Cristina Betioli O norte um lugar para a nacionalidade 2003 215 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Teoria e Histoacuteria Literaacuteria) ndash Curso de Teoria e Histoacuteria Literaacuteria Instituto de Estudos da Linguagem Universidade Estadual de Campinas CampinasSP 2003

RICOUER Paul Sobre a traduccedilatildeo Belo Horizonte UFMG 2011

RODRIGUES Joatildeo Paulo Coelho de Souza A danccedila das cadeiras li-teratura e poliacutetica na Academia Brasileira de Letras (1896-1913) Campinas Cecult 2001

SALIBA Elias Thomeacute Raiacutezes do riso a representaccedilatildeo humoriacutestica na histoacuteria brasileira Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

SARDAS Letiacutecia de Farias Lineamentos do direito de autor na socie-dade da informaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwtjrjjusbrcdocu-ment_libraryget_fileuuid=b0c1e0e1-dbec-417e-92d2-b65ec732b-8d2ampgroupId=10136 Acesso em 19 nov 2013

SCHAMA Simon Paisagem e memoacuteria Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996

SEVCENKO Nicolau Literatura como missatildeo tensotildees sociais e criaccedilatildeo cultural na Primeira Repuacuteblica Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003

SEVCENKO Nicolau Um jequitibaacute no palco In Orfeu extaacutetico na Metroacutepole Satildeo Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992

SUSSEKIND Flora Cinematoacutegrafo de letras literatura teacutecnica e mo-dernizaccedilatildeo no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 319

SUSSEKIND Flora O Brasil natildeo eacute longe daqui o narrador a viagem Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990TABORDA Maacutercia Violatildeo e identidade nacional Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011VASCONCELOS Ary Panorama da muacutesica popular brasileira na Belle Eacutepoque Rio de Janeiro Livraria SantrsquoAnna 1977VELLOSO Mocircnica Pimenta A cultura das ruas no Rio de Janeiro (1900-1930) mediaccedilotildees linguagens e espaccedilo Rio de Janeiro Ediccedilotildees Casa de Rui Barbosa 2004VELLOSO Mocircnica Pimenta Falas da cidade conflitos e negociaccedilotildees em torno da identidade cultural no Rio de Janeiro Artcultura Uber-lacircndia v 7 n 11 p 159-172 juldez 2005VELLOSO Mocircnica Pimenta A literatura como espelho da naccedilatildeo Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 1 n 2 p 239-263 1998VELLOSO Mocircnica Pimenta Histoacuteria e modernismo Belo Horizonte Autecircntica 2010VELLOSO Mocircnica Pimenta Modernismo no Rio de Janeiro Rio de Janeiro FGV 1996VELLOSO Mocircnica Pimenta Os intelectuais e a poliacutetica cultural do Estado Novo In FERREIRA Jorge DELAGADO Luciacutelia de Almeida Neves O Brasil Republicano o tempo do nacional-estatismo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012VELLOSO Mocircnica Pimenta Um folhetinista oral representaccedilotildees e dramatizaccedilotildees da vida intelectual na virada do seacuteculo XIX In VELLOSO Mocircnica Pimenta LOPES Antocircnio Herculano PESAVENTO Sandra Jatahy (org) Histoacuteria e linguagens texto imagem oralidade e representaccedilotildees Rio de Janeiro 7 Letras 2006VELLOSO Mocircnica Pimenta OLIVEIRA Claacuteudia LINS Vera O mo-derno em revistas representaccedilotildees do Rio de Janeiro de 1890 a 1930 Rio de Janeiro Garamon 2010VENAcircNCIO Giselle Martins Na trama do arquivo a trajetoacuteria de Oliveira Vianna (1883-1951) 2003 340 f Tese (Doutorado em Histoacuteria

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo320

Social) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003

VENEZIANO Neyde O teatro de revista no Brasil Campinas Ponte Unicamp 1991

VIANNA Hermano Elite brasileira e muacutesica popular In O misteacuterio do samba 7 ed Rio de Janeiro ZaharUFRJ 2010

VIALA Alain Naissance de lrsquoeacutecrivain sociologie de la litteacuterature agrave lrsquoacircge classique Paris Editions de Minuit 1985

WILLIAMS Raymond O campo e a cidade na histoacuteria e na literatura Satildeo Paulo Companhia das Letras 1989

WISNIK Joseacute Miguel Getuacutelio da Paixatildeo Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo) In SQUEFF Ecircnio WISNIK Joseacute Miguel Muacutesica o nacional e o popular na cultura brasileira Satildeo Paulo Brasiliense 2004 p 129-190

WOODMANSEE Martha On the author effect recovering collectivity In WOODMANSEE Martha JASZI Peter (ed) The Construction of Authorship textual appropriation in law and literature Durham and London Duke University Press 1994 p 15-28

ZUMTHOR Paul A letra e a voz Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993

ZUMTHOR Paul Introduccedilatildeo agrave poesia oral Belo Horizonte UFMG 2010

FontesALENCAR Joseacute O sertanejo 6 ed Satildeo Paulo Melhoramentos Satildeo Paulo sd (1a ediccedilatildeo em 1875)

ALIBERT Jean-Louis Physiologia das paixotildees Rio de Janeiro Quaresma 1911

ALMIRANTE No tempo de Noel Rosa Rio de Janeiro Francisco Alves 1963

ANDRADE Maacuterio de Taacutexi e crocircnicas no Diaacuterio Nacional Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1976

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 321

ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011

ANDRADE Oswald de Pau Brasil Satildeo Paulo Globo 2003

AZEVEDO Artur A capital federal Rio de Janeiro Ediouro sd

AZEVEDO Artur A conquista Rio de Janeiro Ediouro sd

BANDEIRA Manuel Crocircnicas da proviacutencia do Brasil Satildeo Paulo CosacampNaify 2006

BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os homens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942

BARRETO Lima Recordaccedilotildees do escrivatildeo Isaiacuteas Caminha Satildeo Paulo Publifolha 1997 (1ordf ediccedilatildeo em 1907)

BARRETO Lima Triste fim de Policarpo Quaresma Fortaleza ABC Editora 1999

BARROSO Gustavo Terra de sol Rio de JaneiroSatildeo PauloFortaleza ABC Editora 2006 (1ordf ediccedilatildeo em 1912)

BOAVENTURA Maria Eugecircnia (org) 22 por 22 a Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporacircneos Satildeo Paulo Edusp 2008

BOTAFOGO Don Juan de Manual do namorado Rio de Janeiro Ediccedilotildees Quaresma sd

CARVALHO Joseacute Perfis sertanejos costumes do Cearaacute Fortaleza Typographia Minerva 1897

CARVALHO Rodrigues de Cancioneiro do Norte Fortaleza Tipografia Minerva 1903

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Aos pescadores Rio de Janeiro Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 1923

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas bra-sileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 (1ordf ediccedilatildeo em 1899)

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Canccedilotildees das madrugadas Rio de Janeiro Papelaria e Typografia Sportiva 1915

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo322

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Chocircros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Faacutebulas e alegorias Rio de Janeiro Officina Industrial Graphica 1928

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Florileacutegio dos cantores Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1915

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Lyra dos salotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1905

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta iluminada Rio de Janeiro Bedeschi 1944 (1ordf ediccedilatildeo em 1924)

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu Brasil 2 ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira SA sd (1ordf ediccedilatildeo em 1928)

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas 2 ed Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1956 (1ordf ediccedilatildeo em 1946)

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Novos cantares Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1909

CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943

CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Rio de Janeiro Aurora 1945

CEARENSE Catullo da Paixatildeo O cantor de modinhas brasileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1927 (1ordf ediccedilatildeo em 1907)

CEARENSE Catullo da Paixatildeo O evangelho das aves Rio de Janeiro Livraria Castilho 1927

CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Oraccedilatildeo agrave bandeira Rio de Janeiro Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal 1937

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 323

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas bravios Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 2 ed Rio de Janeiro A Noite 1938

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 3ed Rio de Janeiro A Noite 1943

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Trovas e canccedilotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1910

COacuteDIGO Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado por Cloacutevis Bevilaacutequa Rio de Janeiro Livraria Francisco Alves 1917

CUNHA Euclides da Contrastes e confrontos Rio de Janeiro Nova Aguilar 1966 (Coleccedilatildeo Obra Completa) (1ordf ediccedilatildeo em 1907)

CUNHA Euclides da Os sertotildees Rio de Janeiro Nova Aguilar 2002 (Coleccedilatildeo Inteacuterpretes do Brasil) (1ordf ediccedilatildeo em 1902)

EDMUNDO Luiacutes O Rio de Janeiro do meu tempo Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1938

FERREIRA Procoacutepio Procoacutepio Ferreira apresenta Procoacutepio Ferreira Rio de Janeiro Rocco 2000

FIGUEIREDO Cacircndido Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa Lisboa Livraria Claacutessica 1913

LAGO Maacuterio Bagaccedilo de beira-estrada Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1977

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo324

LAGO Maacuterio Na rolanccedila do tempo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1976

LOBATO Monteiro Ideacuteias de Jeca-Tatuacute Satildeo Paulo Brasiliense 1956

MORAIS FILHO Mello Cantares brasileiros Rio de Janeiro SEEC-RJ 1981

MORAIS FILHO Mello Festas e tradiccedilotildees populares do Brasil Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2002

MASCARENHAS Annibal O orador do povo Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1924

MOTTA Leonardo Cantares brasileiros cancioneiro fluminense Rio de Janeiro SEEC-RJDepartamento de Cultura INELIVRO 1981 (1ordf ediccedilatildeo em 1900)

MOTTA Leonardo Cantadores poesia e linguagem do sertatildeo cea-rense Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921

NEVES Eduardo das Mysteacuterios do violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1905

NERY Frederico Joseacute de Santa-Anna Folclore brasileiro Recife FundajMassan gana 1992 (1ordf ediccedilatildeo em 1889)

NETO Coelho A conquista Disponiacutevel em wwwdominiopublicogovbr Acesso em 14 jan 2012 (1ordf ediccedilatildeo em 1899)

PINTO Alexandre Gonccedilalves O chocircro reminiscecircncias dos chorotildees antigos Rio de Janeiro Tipografia Gloacuteria 1936 (ediccedilatildeo fac-siacutemile pela FUNARTE 2009)

RANGEL Alberto Os sertotildees brasileiros In ANNAES DA BIBLIOTECA NACIONAL Rio de Janeiro Officinas Graphicas da Bibliotheca Nacional 1916 v XXXV p 115

RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Belo Horizonte Crisaacutelida 2007 (1ordf ediccedilatildeo em 1910)

RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 325

RIO Joatildeo do O momento literaacuterio Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 2010

ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 2008

ROMERO Sylvio Estudos sobre a poesia popular do Brazil Rio de Janeiro Typ Laemmert amp C 1888

SALES Antocircnio Aves de arribaccedilatildeo Rio de JaneiroSatildeo PauloFortaleza ABC Editora 2006 (1ordf ediccedilatildeo em 1903)

TAUNAY Visconde de Dias de guerra e de sertatildeo Satildeo Paulo Revista do Brasil 1920

TELES Gilberto Mendonccedila (org) Vanguarda europeia e modernismo brasileiro Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2012

TEOacuteFILO Rodolfo A fome Fortaleza Ediccedilotildees Demoacutecrito Rocha 2002 (1ordf ediccedilatildeo em 1890)

TORRES Antocircnio Carmen tropicale Rio de Janeiro Livraria Castilho 1915

VERIacuteSSIMO Joseacute O que eacute literatura E outros escritos Satildeo Paulo Landy 2001

Site consultadoBase de Dados da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco Disponiacutevel em httpbasesfundajgovbrcgi-binisis3g-bpl Acesso em 22 set 2012

Perioacutedicos consultadosA CriacuteticaA EacutepocaA NoiteA PacotilhaA SemanaAnaes da Biblioteca Nacional

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo326

Correio da ManhatildeCorreio de NotiacuteciasCorreio PaulistanoDiretrizesGazeta da TardeGazeta de NotiacuteciasJornal do Comeacutercio do Rio de Janeiro Jornal do BrasilO Estado de Satildeo Paulo O ImparcialO PaizRevista ldquoFon-FonrdquoRevista ldquoO MalhordquoA Noite (Suplemento)

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 327

ANEXO A

Livros publicados por Catullo da Paixatildeo Cearense com respectivo ano da primeira ediccedilatildeo

A canccedilatildeo do africano ndash ano de publicaccedilatildeo incertoO vagabundo ndash ano de publicaccedilatildeo incertoCantor fluminense (1894)Cancioneiro popular de modinhas brasileiras (1899)Choros ao violatildeo (1902) Lyra dos salotildees (1905) O cantor das modinhas brasileiras (1907)Lyra brasileira (1908)Novos cantares (1909)Trovas e canccedilotildees (1910)Canccedilotildees da madrugada (1910) Florileacutegio dos cantores (1915)Meu sertatildeo (1918)Sertatildeo em flor (1919)Poemas bravios (1921)Aos pescadores (1923) Mata iluminada (1924)O evangelho das aves (1927)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo328

Alma do sertatildeo (1928)Faacutebulas e alegorias (1928)Meu Brasil (1928)O sol e a lua (1934)Um boecircmio no ceacuteu (1937)Oraccedilatildeo agrave bandeira (1938)Um caboclo brasileiro (1940)O milagre de Satildeo Joatildeo (1942) Poemas escolhidos (1944)O testamento da aacutervore (1945)Modinhas (1946)

O AUTOR

Kleiton de Sousa Moraes

Possui doutorado (2014) e mestrado (2010) em Histoacuteria Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014)

Atualmente eacute professor da Universidade Federal do Cearaacute (UFC) Anteriormente atuou como professor da Universidade Estadual do Cearaacute (UECE) e do Instituto Federal do Cearaacute (IFCE)

Desempenhou atividades de pesquisa durante a formaccedilatildeo traba-lhando na aacuterea de Histoacuteria do Brasil com ecircnfase em Histoacuteria Cultural Sua tese foi agraciada com menccedilatildeo honrosa no ldquoPrecircmio Manoel Luiz Salgado Guimaratildeesrdquo da Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 2014 Tem interesse e desenvolve pesquisas nas seguintes aacutereas Teoria e Metodologia da Histoacuteria Histoacuteria das Praacuteticas Letradas Histoacuteria da Educaccedilatildeo Poder e Crenccedilas na Modernidade Narrativas Espaciais no Seacuteculo XIX e XX e Histoacuteria do Brasil Repuacuteblica

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Page 2: Catullo da Paixão Cearense

Presidente da RepuacuteblicaJair Messias Bolsonaro

Ministro da EducaccedilatildeoMilton Ribeiro

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARAacute ndash UFCReitorProf Joseacute Cacircndido Lustosa Bittencourt de Albuquerque

Vice-ReitorProf Joseacute Glauco Lobo Filho

Proacute-Reitor de Planejamento e AdministraccedilatildeoProf Almir Bittencourt da Silva

Proacute-Reitor de Pesquisa e Poacutes-GraduaccedilatildeoProf Jorge Herbert Soares de Lira

IMPRENSA UNIVERSITAacuteRIADiretorJoaquim Melo de Albuquerque

CONSELHO EDITORIAL

PresidenteJoaquim Melo de Albuquerque

ConselheirosProf Claudio de Albuquerque MarquesProf Antocircnio Gomes de Souza Filho Prof Rogeacuterio Teixeira MasihProf Augusto Teixeira de Albuquerque Profordf Maria Elias Soares Francisco Jonatan Soares Prof Luiz Gonzaga de Franccedila LopesProf Rodrigo MaggioniProf Armecircnio Aguiar dos SantosProf Maacutercio Viana RamosProf Andreacute Bezerra dos SantosProf Fabiano Andreacute Narciso FernandesProfordf Ana Faacutetima Carvalho FernandesProfordf Renata Bessa PontesProf Alexandre Holanda SampaioProf Alek Sandro DutraProf Joseacute Carlos Laacutezaro da Silva FilhoProf William Paiva Marques JuacuteniorProf Irapuan Peixoto Lima FilhoProf Caacutessio Adriano Braz de AquinoProf Joseacute Carlos Siqueira de SouzaProf Osmar Gonccedilalves dos Reis Filho

membros responsaacuteveis pela seleccedilatildeo das obras de acordo com o Edital nordm 132019

Fortaleza2020

Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autor

Kleiton de Sousa Moraes

Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autorCopyright copy 2020 by Kleiton de Sousa MoraesTodos os direitos reservados

Impresso no BrasIl prInted In BrazIl

Imprensa Universitaacuteria da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)Av da Universidade 2932 fundos ndash Benfica ndash Fortaleza ndash Cearaacute

Coordenaccedilatildeo editorialIvanaldo Maciel de Lima

Revisatildeo de textoAntiacutedio Oliveira

Normalizaccedilatildeo bibliograacuteficaMarilzete Melo Nascimento

Programaccedilatildeo visual Sandro Vasconcellos Thiago Nogueira

DiagramaccedilatildeoSandro Vasconcellos

CapaHeron Cruz

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na PublicaccedilatildeoBibliotecaacuteria Marilzete Melo Nascimento CRB 31135

M827c Moraes Kleiton de Sousa Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autor [livro eletrocircnico] Kleiton de Sousa Moraes - Fortaleza Imprensa Universitaacuteria 2020 2189 kb il color PDF (Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo)

ISBN 978-65-88492-14-7 1 Muacutesica popular ndash Histoacuteria e criacutetica 2 Compositores ndash Brasil 3 Catullo da Paixatildeo Cearense I Tiacutetulo CDD 92781

Para Manoel Luiz Salgado Guimaratildees pelo exemplo de eacutetica na praacutetica historiadora

Para Luiz Inaacutecio Lula da Silva pela dignidade

Para o meu Joatildeo (o que foi e o que viraacute)

AGRADECIMENTOS

Fruto de uma tese defendida em abril de 2014 junto ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro este trabalho seria impossiacutevel sem a ajuda de algumas pessoas que de alguma forma contribuiacuteram para a sua feitura Em primeiro lugar agradeccedilo agrave minha orientadora Marieta de Moraes Ferreira que com um carinho muitas vezes imprevisiacutevel nas relaccedilotildees acadecircmicas abraccedilou esta pesquisa desde os primeiros esboccedilos A ela que me deu a liberdade de criar e ousar na escrita devo muito de minha formaccedilatildeo como historiador e ofereccedilo desde jaacute algum sucesso que este trabalho possa vir a obter

Aos amigos do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro com os quais compartilho uma convivecircncia sempre amaacutevel e discussotildees pautadas por boas garga-lhadas Pela constacircncia (e nunca por uma hierarquia de amabilidade) Joatildeo Henrique Castro Juliana Torres Aline Carrijo Raquel Campos Edianne Nobre Iuri Bauler Aline Monteiro Heraacuteclio Tavares Patriacutecia Franccedila e Suellen Mayara Natildeo os esquecerei depois da uacuteltima linha deste trabalho

Agraves professoras (es) Giselle Venacircncio Eliana de Freitas Dutra Mocircnica Pimenta Velloso Lia Calabre e Francisco Reacutegis Lopes pela lei-tura atenta e dicas fundamentais no processo de qualificaccedilatildeo e de defesa Agrave Rita e Sandra secretaacuterias e amigas do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior que concedeu bolsa de doutorado para a efetivaccedilatildeo da pesquisa

Agrave Jacira e Paulo que tornaram desde o iniacutecio a ponte Fortaleza Rio de Janeiro passagens agradaacuteveis

Agrave Aline Medeiros pelos diaacutelogos amaacuteveis pela presenccedila cons-tante de uma palavra de seguranccedila e a quem tenho tanto orgulho de chamar de minha amiga

Agrave minha matildee Beatriz de Sousa Moraes que me deu a seguranccedila de enfrentar batalhas nem de longe tatildeo difiacuteceis como a que ela mesma travou para nos dar o conforto de buscar nosso proacuteprio caminho Eacute por causa de seu suporte e de sua presenccedila em muitos momentos de minha vida que existe este trabalho

Por fim agrave Sacircmia pelo amor que me conforta pela inteligecircncia que me orienta e pela paz que me envolve

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

CATULLO CEARENSE E O LUAR DA CIDADE 25Catullo e a cultura escrita 25Aos leitores ldquotudo quanto se quizerrdquo autor livro e literatura 55

COMO SE CRIA UMA AUTORIA 69O cancioneiro popular de modinhas 69Um poeta popular 85

SER POETA SER DO SERTAtildeO 98A cidade e o sertatildeo 98A livraria Castilho 112

CATULLO DA PAIXAtildeO NACIONAL 118O meu sertatildeo 118Catullo Satildeo Paulo e os modernos 134O lugar de quem fala 153Modernos e velhos 173

CATULLO EM CENA 198Dos textos aos palcos ou o inverso 198O teatro no texto 213Um boecircmio no ceacuteu 223

POR UMA REPRESENTACcedilAtildeO DE SI 242Tempo de prestar contas 242O testamento da aacutervore 259O livro derradeiro 277Representaccedilotildees sociais de um morto distinto 286

CONCLUSAtildeOA trajetoacuteria autoral de um poeta ordinaacuterio 302

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 309

ANEXO A Livros publicados por Catullo da Paixatildeo Cearense com respectivo ano da primeira ediccedilatildeo 327

O AUTOR 329

INTRODUCcedilAtildeO

O mais elevado seria compreender que tudo o que eacute faacutetico jaacute eacute teoria

J W Goethe

Radiolas Haacute certo glamour nostaacutelgico em apreciar um objeto cujo valor de uso se esvaece diante da incessante mdash e por vezes esqui-zofrecircnica mdash sede por novidades No entanto a novidade para quem volta seu interesse para o passado eacute a estranha presenccedila do velho no presente Muito jaacute se disse que o repertoacuterio de canccedilotildees que se guarda na memoacuteria ajuda a elevar esse imenso e obscuro edifiacutecio das lembranccedilas Desde muito pequeno me acostumei a ouvir e cantarolar no colo de meu ldquovocircrdquo Joatildeo vozes antigas que vinham de uma velha radiola mantida no centro da sala Ateacute onde minhas lembranccedilas desses tempos alcanccedilam consigo enxergar certas imagens cujo sentido natildeo estaria tatildeo claro para mim se natildeo fossem as canccedilotildees que as acompanham como se fosse de-senrolado diante de meus olhos um concerto nostaacutelgico

No longo repertoacuterio que minha memoacuteria acumulou de Ataulfo Alves passando por Stevie Wonder e desembocando num choroso as-sobio cantado por Roberto Carlos duas canccedilotildees durante muito tempo mobilizaram minhas lembranccedilas infantis A primeira eacute um lamento de Luiz Gonzaga sob o nome de Ave Maria sertaneja tocada no raacutedio de meu avocirc paterno todos os dias religiosamente ao findar da tarde A outra canccedilatildeo me pareceu sempre mais estranha de definir o aconteci-

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo12

mento que me liga a ela Natildeo sei bem se eu a ouvia quando visitava na Paacutescoa o sertatildeo de meus avoacutes maternos ndash ou seria apenas uma cons-truccedilatildeo a posteriori da minha memoacuteria ldquoNatildeo haacute oacute gente oacute natildeo luar como esse do sertatildeordquo

A minha certeza eacute que ainda hoje quando escuto esses versos eu componho o quadro de minha infacircncia de menino da cidade no interior O cheiro de mato molhado as casinhas que se escondiam entre uma vasta plantaccedilatildeo que havia na frente da casa de meus avoacutes e a forte pre-senccedila de meu ldquovocircrdquo Joatildeo ouvindo a canccedilatildeo diante da janela que dava para a rua sem nem mesmo esboccedilar um mero sorriso datildeo a essas lem-branccedilas uma atmosfera para mim quase religiosa Os versos eram muito rebuscados para o entendimento de uma crianccedila de seis sete mdash ou se-riam oito anos de idade Natildeo sei bem dizer Mas bem sei que um nome acompanhava a canccedilatildeo em mim Catullo da Paixatildeo E eu na minha inocecircncia de crianccedila de tatildeo pouca idade achava lindo algueacutem que tinha paixatildeo no nome e que era compositor de uma canccedilatildeo cujo tiacutetulo era Luar do sertatildeo De laacute para caacute muita coisa ouvi e vivi Conheci as Carolinas de Chico as Saacute Marinas de Simonal as garotas bonitas de Jorge e bem das paixotildees ainda permanecia em mim uma o Luar do sertatildeo Assim como a radiola que permaneceu em minha casa e cujo ruiacutedo de maacutequina velha hoje me causa essa sensaccedilatildeo mdash coisa quem sabe de historiador mdash que na falta de palavra que melhor defina chamam de deslumbramento E Luar do sertatildeo deslizando ruidosa-mente na agulha da radiola transferia-me para um tempo-espaccedilo outro Assim quase que sem motivo um dia jaacute adulto decidi eu precisava ir atraacutes de saber quem era o tal Catullo da Paixatildeo mdash o leitor natildeo me per-gunte pelo menos por ora um ldquopor quecircrdquo que faccedila muito sentido

Foi aiacute que descobri que Catullo me levava a outros lugares mais distantes do que minha infacircncia As paacuteginas que se seguem satildeo o resul-tado desse encontro onde natildeo faltaram descobertas que me abriam um leque de informaccedilotildees sobre esse personagem Descobri de iniacutecio que Catullo era tambeacutem poeta Natildeo soacute poeta da canccedilatildeo mas daqueles que escreviam livros e mais ainda um raivoso defensor do verso rebuscado mdash tal qual Bilac e o parnaso Fui aos poucos perdendo eacute verdade a paixatildeo pelo Catullo de minhas lembranccedilas a fim de encontrar mais so-

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briamente um personagem mais humano o Catullo funcionaacuterio puacute-blico o Catullo dos salotildees da elite carioca o Catullo que se vangloriava de seu letramento Assim nesse espaccedilo tenso onde paixatildeo e sobriedade se misturavam e onde minha curiosidade de historiador se aguccedilava mais do que o de apreciador de sua canccedilatildeo encontrei-o meio sem querer por inteiro Catullo da Paixatildeo Cearense

Catullo da Paixatildeo Cearense foi um profundo conhecedor das ruas do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo XIX para o XX e esse conheci-mento fez com que a elite letrada carioca aacutevida naqueles tempos por conhecer as ditas ldquocoisas popularesrdquo autorizasse sua entrada nos luxu-osos salotildees frequentados por homens ilustres como Arthur Azevedo Joatildeo do Rio e Rocha Pombo Em pouco tempo Catullo tornou-se bas-tante conhecido na sociedade carioca ainda mais apoacutes publicar pela popular livraria Quaresma coleccedilotildees de livros contendo modinhas com-piladas nas ruas cariocas e algumas mais de sua lavra

Concomitantemente ao que se tornou conhecido como ldquopoeta po-pularrdquo Catullo via no desempenho desse papel um entrave para ser re-conhecido como autor de livros ou propriamente um verdadeiro lite-rato uma vez que modinhas eram consideradas por demais ldquopopularesrdquo para que seu autor chegasse a ser reconhecido como um grande poeta Foi na construccedilatildeo de estrateacutegias textuais visando a regrar uma recepccedilatildeo de sua obra que lhe garantisse um status mais condizente com o de ldquopoetardquo que Catullo construiu sua trajetoacuteria literaacuteria

Ali a uma distacircncia que eu pudesse vislumbrar de maneira mais ldquoprudenterdquo a trajetoacuteria de meu personagem foi sendo construiacuteda uma investigaccedilatildeo que resultaria na tentativa de reconstruir tal trajetoacuteria E a de Catullo foi se constituindo em torno dos livros Em seus livros eacute possiacutevel vislumbrar um poeta se formando e sendo formado no campo literaacuterio brasileiro da primeira metade do seacuteculo XX

De partida a constataccedilatildeo de uma ausecircncia da produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense nos compecircndios de literatura brasileira fez com que este trabalho buscasse escapar de abordagens consagradas na histoacuteria literaacuteria e lanccedilasse matildeo sempre que possiacutevel de uma fuga do para-digma nacional mdash aquele que tenta ver nas obras tatildeo simplesmente expressotildees de uma tentativa de criaccedilatildeo teleoloacutegica da naccedilatildeo Isso fez

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com que desde o princiacutepio do trabalho a investigaccedilatildeo de uma ldquoidenti-dade nacionalrdquo nos livros soacute adentrasse quando fosse necessaacuterio ana-lisar os seus usos mdash e nunca como temaacutetica a ser investigada a priori Se houve alguma advertecircncia admitida de iniacutecio foi a de que esta inves-tigaccedilatildeo da trajetoacuteria literaacuteria de Catullo se guiasse pelos seus textos em seu processo de produccedilatildeo e consumo A temaacutetica ldquonacionalrdquo (por vezes incontornaacutevel) natildeo guiou a narrativa que se iraacute ler mdash o que penso trouxe (e traz) agrave tona outra seacuterie de questionamentos novos no que tange agrave produccedilatildeo de textos no Brasil

A possibilidade de se investigar a trajetoacuteria de um indiviacuteduo no tempo obriga o investigador a uma seacuterie de recomendaccedilotildees de ordem teoacuterica Atentar para a necessidade imperativa de recolocar o investi-gado dentro das vaacuterias temporalidades distintas que o formam e que o fazem agir eacute hoje tarefa primordial para se tentar tal empresa mdash quando quase ningueacutem acredita mais numa coerecircncia inerente ao su-jeito em suas vaacuterias contingecircncias A emergecircncia de se pensar o sujeito em seus muacuteltiplos momentos e mais do que isso captar em cada mo-mento distinto sua accedilatildeo interessada de acordo com um espaccedilo de accedilatildeo dado funda-se numa ideia de tempo natildeo linear Nesse sentido biogra-fias satildeo sem duacutevida um exerciacutecio sempre perigoso para se aventar uma escrita pautada na negaccedilatildeo da ldquotrajetoacuteria exemplarrdquo O caminho esco-lhido por esse trabalho tentou por mais das vezes fugir dessas artima-nhas biograacuteficas e se inserir enfrentando o ldquonome proacutepriordquo num es-paccedilo de diaacutelogo onde o que ganha contorno mais especiacutefico eacute a possibilidade de investigar as estrateacutegias de construccedilatildeo de uma repre-sentaccedilatildeo autoral

O seacuteculo XX farto em produccedilatildeo biograacutefica trouxe com o ldquode-sencantamentordquo progressivo do homem produzido pelas reflexotildees das ciecircncias humanas uma criacutetica agrave narrativa linear ndash que heroificava ou ldquogenializavardquo o biografado dando-lhe um caraacuteter de exemplaridade Isso resultou numa percepccedilatildeo aguda da fragilidade do homem diante do mundo que o rodeia Desde iniacutecios do seacuteculo passado com a psicanaacute-lise de Freud passando pela febre do estigmatizado ldquoestruturalismordquo nos anos 1950 e 1960 ateacute os vaacuterios ldquopoacutesrdquo que constroem nossa moder-nidade o homem foi relativizando progressivamente sua autonomia

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diante das ldquocoisas do mundordquo fazendo com que alguns chegassem agrave absurda tese da ldquomorte do sujeitordquo

Se tal constataccedilatildeo rendeu resultados profiacutecuos na reflexatildeo das Ciecircncias Humanas contingenciando o homem diante do mundo por outro lado a radicalizaccedilatildeo dessa criacutetica em alguns casos perdeu de vista o objeto central de toda reflexatildeo ou seja o proacuteprio homem Tais aportes se disseminaram por diversas aacutereas da chamada Humanidades a Sociologia a Histoacuteria a Psicologia a Antropologia e as Letras A criacutetica literaacuteria se deixou consumir por semelhante guinada de forma tal que foi nela onde o espasmo se mostrou mais fatal

Acostumados a conviver com investigaccedilotildees de obras onde pre-dominava o papel do sujeito-escritor como fundamental e uacutenico na criacutetica historiadores da literatura e criacuteticos literaacuterios sofreram um duro golpe desferido especialmente a partir de algumas proposiccedilotildees vindas da semioacutetica e da linguiacutestica alguns se vangloriavam de haver encon-trado na estruturaccedilatildeo da liacutengua em determinado texto o diagnoacutestico final de uma obra Tudo transcorria em meados da deacutecada de 1960 como se o ldquofim da histoacuteriardquo no tratamento de textos finalmente hou-vesse chegado

Poreacutem foi exatamente pelo inconformismo tanto diante da auto-nomia absoluta do texto quanto da velha criacutetica que dava primazia ao nome como explicaccedilatildeo uacutenica da obra que surgiu de vaacuterios lugares a criacutetica da entatildeo nova criacutetica A esteacutetica da recepccedilatildeo de Jauss Iser e Gumbrecht na Alemanha propunha ainda na deacutecada de 1960 um es-forccedilo para a compreensatildeo do campo literaacuterio como espaccedilo do qual fa-ziam parte tambeacutem os leitores cuja interpretaccedilatildeo dos textos natildeo raras vezes fugia dos limites pensados pelo autor na escrita No mundo an-glo-saxatildeo o novo historicismo recolocava a necessidade de se (re)pensar a historicidade dos textos Na Franccedila onde o estruturalismo reinou de maneira mais imperativa nas Ciecircncias Humanas nomes como Pierre Bourdieu e Michel Foucault reintroduziam o sujeito de escolhas no acircmago dos meios universitaacuterios propondo um tenso casamento entre estrutura e sujeito de tal forma que a compreensatildeo das accedilotildees humanas pudesse ser pensada levando em consideraccedilatildeo o exerciacutecio constante da negociaccedilatildeo entre um e outro No campo historiograacutefico isso resultou

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num novo diaacutelogo estabelecido com a Sociologia e a Criacutetica Literaacuteria e uma reintroduccedilatildeo das reflexotildees acerca do estatuto da produccedilatildeo de uma escrita historiograacutefica cujo aacutepice foram as polecircmicas que envolveram o historiador estadunidense Hayden White

Essas premissas geraram uma visatildeo mais aguda e criacutetica do termo ldquoculturardquo colocando a historicidade de seu uso como mateacuteria de ponta a fim de compreender melhor os atos humanos no tempo Daiacute o ato da leitura ter ganhado um status diferente desembocando nas reflexotildees produzidas pela assim chamada Nova Histoacuteria Cultural um tiacutetulo impreciso que abrigava nomes como Carlo Ginzburg e Raymond Williams que embora tatildeo diacutespares tinham em comum o fato de colocarem a ldquoculturardquo (ou a historicidade dela) no centro de suas reflexotildees Dentre esses autores identificados com a Nova Histoacuteria Cultural o historiador Roger Chartier foi aquele para quem a sistema-tizaccedilatildeo de um projeto historiograacutefico sob esse nome ganhou contornos mais niacutetidos ndash e mais problemaacuteticos pela miscelacircnea de autores que se propotildee evocar

Retomando Norbert Elias dialogando com a fenomenologia do sujeito de Paul Ricouer a sociologia de Bourdieu e as ideias de Michel Foucault introduzindo a criacutetica textual como criacutetica tambeacutem das formas de leitura e fiel agraves reflexotildees instigantes de Michel de Certeau Chartier insistiu no estatuto contingente da leitura num consequente ataque agraves criacuteticas semioticistas que apagavam o espaccedilo de produccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do texto de seus interesses

Seguramente isso natildeo soacute reintroduziu a leitura como momento importante na produccedilatildeo de sentidos do texto mdash em diaacutelogo aberto com a esteacutetica da recepccedilatildeo mdash como lanccedilou luz sobre os elementos que tor-navam uma leitura possiacutevel Daiacute um acentuado interesse sobre a morfo-logia dos textos com o nome do biblioacutegrafo neozelandecircs Don Mckenzie interessado na historicidade das formas dos textos tornando-se comum nos trabalhos de Chartier Mas se tal aventura sobre a produccedilatildeo de sen-tidos de um texto colocava na pauta do dia atentar para as estrateacutegias de leitores editores e tipoacutegrafos a reflexatildeo sobre o papel do ldquoautorrdquo na nova criacutetica textual que se queria ainda se ressentia de uma tendecircncia fundante da literatura ocidental qual seja a da distinccedilatildeo do autor de

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livros na sociedade Ou para dizer mais claramente a constante ldquogenia-lizaccedilatildeordquo do indiviacuteduo que escreve livros

O ldquonome proacutepriordquo ainda era uma barreira difiacutecil de contornar quando se pensavam as relaccedilotildees entre autoria e texto Nesse ponto es-peciacutefico Norbert Elias com seu Mozart e Pierre Bourdieu com As regras da arte jaacute haviam dado suas contribuiccedilotildees na derrubada difiacutecil e edificante do ldquonome proacutepriordquo No campo historiograacutefico isso se daria mais tarde

No Brasil a biografia exemplar ainda absorve grande parte da produccedilatildeo de reflexotildees que pautam uma trajetoacuteria autoral O ldquonome proacute-priordquo muitas vezes ganha as prateleiras com best sellers biograacuteficos de emulaccedilatildeo onde a genialidade e a trajetoacuteria incomum ganham mais es-paccedilo do que a reflexatildeo criacutetica A consolidaccedilatildeo de uma vida distinta se sobrepotildee agrave ldquohumanidaderdquo do indiviacuteduo Na produccedilatildeo historiograacutefica o temor por encarar o ldquonomerdquo segue uma receita ndash jaacute consolidada pelo menos na historiografia mdash que teme pela escrita que possa evocar as foacutermulas das velhas biografias

Ademais no campo da literatura ndash espaccedilo de consagraccedilatildeo do su-jeito em diversos locais do ocidente ndash a produccedilatildeo de um cacircnone tei-mava havia pouco tempo em apagar a pesquisa que introduzisse o papel do editor e leitor no acircmago da produccedilatildeo do texto do autor consa-grado Daiacute da anaacutelise criacutetica da historicidade dos textos os novos pes-quisadores que tentavam fugir do cacircnone buscaram antes proceder agrave anaacutelise criacutetica da historicidade do cacircnone Alcir Peacutecora e Joatildeo Adolfo Hansen satildeo sem sombra de duacutevida os arautos desse tipo de criacutetica no Brasil A partir de seus trabalhos puderam surgir novos problemas para se trabalhar com textos no Brasil e na esteira disso reapareceram nomes de escritores ndash muitos deles pouco reconhecidos por uma ldquoHistoacuteria da Literaturardquo ndash que ganharam as paacuteginas de trabalhos univer-sitaacuterios como Luiz Murat e Benjamin Constallat e novas abordagens de leitura de autores e obras consagradas ganharam contorno1

1 Para citar apenas um livro da vasta bibliografia de Joatildeo Adolfo Hansen e Alcir Peacutecora penso ser de fundamental importacircncia para se pensar a introduccedilatildeo de novas abordagens no tratamento de textos literaacuterios os seguintes HANSEN Joatildeo Adolfo A saacutetira e o en-

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No entanto para a compreensatildeo de uma trajetoacuteria ndash seja ela lite-raacuteria ou natildeo ndash eacute imprescindiacutevel chamar a atenccedilatildeo a algumas outras ad-vertecircncias A primeira eacute natildeo perder de vista o caraacuteter muacuteltiplo de uma vida destacando dentro de uma rede de relaccedilotildees que o indiviacuteduo manteacutem com seus pares os vaacuterios estados em que ela se desenrola atentando para seu caraacuteter natildeo linear

O que equivale a dizer que natildeo podemos compreender uma trajetoacuteria [] sem que tenhamos previamente construiacutedo os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e logo o conjunto das relaccedilotildees obje-tivas que uniram o agente considerado mdash pelo menos em certo nuacutemero de estados pertinentes mdash ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaccedilo dos possiacuteveis2

O trabalho que o leitor tem em matildeos procurou nesse intuito analisar a obra de Catullo da Paixatildeo Cearense a partir de dois vieses fundamentais quais sejam a construccedilatildeo de uma autoridade sobre os textos publicados sob seu nome e o constante e tenso processo de cons-tituiccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do caraacuteter distinto de sua obra O primeiro ponto eacute tanto mais importante uma vez que as publicaccedilotildees iniciais de Catullo destacam-se por uma tentativa de apropriaccedilatildeo do conteuacutedo do texto ndash coletado nas ruas do Rio de Janeiro de entatildeo mdash sob seu nome proacuteprio O leitor veraacute que a singularidade aqui reside no fato de existir uma identificaccedilatildeo dos textos publicados por Catullo com o que se denomi-nava uma forma ldquopopularrdquo ndash com este termo designando agrave eacutepoca muitas vezes uma ausecircncia de autor aproximando-se daquilo que era entendido como parte de um possiacutevel ldquofolclorerdquo Daiacute duas primeiras questotildees se colocaram como Catullo se tornou o autor de textos identi-ficados a priori como sem autor E como se apropriou de outras tantas cuja autoria era relativamente reconhecida A apropriaccedilatildeo de um con-teuacutedo a partir de uma forma como veremos eacute um aspecto importante

genho Gregoacuterio de Matos e a Bahia do seacuteculo XVII Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial Campinas Unicamp 2004 e PEacuteCORA Alcir A maacutequina de Gecircneros Satildeo Paulo Edusp 2001

2 BOURDIEU Pierre A ilusatildeo biograacutefica In FERREIRA Marieta de Moraes AMADO Janaiacutena Usos e abusos da histoacuteria oral Rio de Janeiro FGV 2006 p 190

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desse primeiro questionamento pois eacute sob uma forma dada a ler que se produz uma autoria

Haacute de se salientar que a apropriaccedilatildeo de textos anocircnimos por um indiviacuteduo projeta para seus leitores uma sensaccedilatildeo de se estar lendo um ldquoautorrdquo Na busca por regrar a recepccedilatildeo dos textos publicados sob seu nome o autor Catullo se valia de sua aguda compreensatildeo das formali-dades que governavam a construccedilatildeo de uma ldquoautoriardquo na literatura pro-duzida na virada do seacuteculo XIX e XX no Brasil Ademais nosso perso-nagem era tanto um aacutevido frequentador das rodas boecircmias do Rio de Janeiro quanto dos espaccedilos de consagraccedilatildeo de letrados no periacuteodo Participando desses espaccedilos de sociabilidades parecia procurar as fer-ramentas que auxiliariam a construccedilatildeo da autoria em seus textos Era em busca de uma leitura regrada que Catullo se colocava entre a orali-dade coletada nas ruas e o mundo letrado do periacuteodo dramatizando em textos seu entrecaminho como forma de buscar um reconhecimento de sua autoridade

Atento a essa necessidade de buscar tambeacutem nessas redes de so-ciabilidade elementos para a compreensatildeo dos textos de Catullo com-preendemos como Michel Foucault e Pierre Bourdieu que eacute preciso cotejar os vaacuterios discursos que constroem dentro de determinado campo as relaccedilotildees que tornam possiacutevel a existecircncia de um texto ou seja

Talvez seja o momento de estudar os discursos natildeo mais apenas em seu valor expressivo ou suas transformaccedilotildees formais mas nas moda-lidades de sua existecircncia os modos de circulaccedilatildeo de valorizaccedilatildeo de atribuiccedilatildeo de apropriaccedilatildeo dos discursos variam de acordo com cada cultura e se modificam no interior de cada uma a maneira como eles se articulam nas relaccedilotildees sociais se decifra de modo parece-me mais direto no jogo da funccedilatildeo autor e em suas modificaccedilotildees do que nos temas ou nos conceitos que eles operam3

Essa abordagem abre espaccedilo para que enfatizemos a necessidade de atentar para uma sociologia dos textos que ultrapasse uma histoacuteria

3 FOUCAULT Michel O que eacute um autor In FOUCAULT Michel Ditos e escritos Esteacutetica literatura e pintura muacutesica e cinema Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009 v III p 286

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social dos textos e atente para a maneira pelas quais tambeacutem as suas formas materiais de difusatildeo afetam os sentidos dados a eles pelos lei-tores Aiacute se impotildee uma advertecircncia que diz respeito agrave dimensatildeo morfo-loacutegica do texto a da imprescindibilidade de investigar o seu sentido em suas diversas formas de circulaccedilatildeo De pensar o suporte que o carrega como parte incontornaacutevel na construccedilatildeo do seu sentido Tal abordagem vai ao encontro das reflexotildees do biblioacutegrafo neozelandecircs Don Mckenzie quando salienta que

Un libro nunca es simplemente un objeto extraordinaacuterio Como todas las otras tecnologiacuteas siempre es producto de la actuacioacuten humana en contextos complejos y altamente volaacutetiles que una investigacioacuten cabal tiene que intentar recuperar si desea entender mejor la creacioacuten y la comunicacioacuten de significados como caracteriacutestica definitoria de las so-ciedades humanas4

Ora eacute no espaccedilo de produccedilatildeo de livros ndash o qual adentram autores editores impressores tipoacutegrafos e leitores ndash que se constroem os muacutelti-plos sentidos que por fim vatildeo gerar os textos Eacute nesse espaccedilo de pro-duccedilatildeo cultural historicamente constituiacutedo e em constante movimento que se deve buscar a compreensatildeo das representaccedilotildees construiacutedas por aqueles que se apropriam dos textos seja por meio de uma leitura seja para regrar a leitura como comumente o tentam autores e editores

Assim Chartier relativiza os sentidos de uma obra distribuindo tambeacutem para outras instacircncias o sentido de determinado texto

O autor tal como ele faz a sua reapariccedilatildeo na histoacuteria e na teoria literaacuteria eacute ao mesmo tempo dependente e reprimido Dependente ele natildeo eacute o mestre do sentido e suas intenccedilotildees expressas na produccedilatildeo do texto natildeo se impotildeem necessariamente nem para aqueles que fazem desse texto um livro (livreiro-editores ou operaacuterios da impressatildeo) nem para aqueles que dele se apropriam para a leitura Reprimido ele se submete agraves muacuteltiplas determinaccedilotildees que organizam o espaccedilo social da produccedilatildeo

4 MCKENZIE Donald Francia Bibliografiacutea y sociologia de los textos Madrid Ediciones Akal 2005 p 22

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literaacuteria ou que mais comumente delimitam as categorias e as experi-ecircncias que satildeo as proacuteprias matrizes da escrita5

Aliaacutes contra toda pretensatildeo reificadora do autor levada ao ex-tremo pela afirmaccedilatildeo da figura romacircntica do gecircnio Chartier seguindo o rastro de Michel de Certeau contrapotildee os vaacuterios feixes que podem determinar uma apropriaccedilatildeo em uma cultura escrita e as vaacuterias estrateacute-gias mobilizadas pela figura do autor na tentativa de regrar a apro-priaccedilatildeo dos textos sob seu nome

A formaccedilatildeo de um nome distinto no campo literaacuterio a partir da construccedilatildeo de representaccedilotildees do sujeito que escreve a incorporaccedilatildeo nos textos de elementos que pudessem regrar uma leitura interessada e as lutas de representaccedilatildeo para a manutenccedilatildeo de um status condizente com o de poeta ndash inclusive com a ressignificaccedilatildeo daquilo entendido como ldquopoetardquondash satildeo alguns dos temas que o leitor poderaacute vislumbrar nas paacuteginas que seguiratildeo Se exitosas fundamentalmente elas mostraratildeo na trajetoacuteria de Catullo um questionamento constante de como se cons-troem um autor um poeta e um literato A aparente obviedade da res-posta a essa pergunta esbarra nas vaacuterias compreensotildees que historica-mente tecircm-se da figura do autor do poeta e da literatura Natildeo se deve portanto defini-las sem levar em consideraccedilatildeo as praacuteticas que denun-ciam um processo de construccedilatildeo de tais termos

A partir dessas reflexotildees o capiacutetulo intitulado ldquoCatullo Cea-rense o luar da cidaderdquo discute a cultura letrada do Rio de Janeiro de entatildeo que tornou possiacutevel o aparecimento de Catullo da Paixatildeo Cearense como autor de livros Aiacute o foco se estenderaacute sobre as repre-sentaccedilotildees de modinhas na sociedade carioca da eacutepoca e de como elas foram aos poucos ganhando um novo status aos olhares dos letrados Pretende-se compreender como se constituiacuteam as representaccedilotildees de um ldquohomem letradordquo nesse iniacutecio de seacuteculo e como essas representa-ccedilotildees satildeo fundamentais para se perceber as definiccedilotildees daquilo que se-riam termos relevantes agrave eacutepoca para a configuraccedilatildeo dos sujeitos parti-cipantes do campo literaacuterio tais como ldquopopularrdquo ldquoautorrdquo e ldquopoetardquo

5 CHARTIER Roger A ordem dos livros Brasiacutelia UnB 1996 p 36

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No capiacutetulo seguite ldquoComo se cria uma autoriardquo apresento a anaacute-lise das primeiras publicaccedilotildees de Catullo investigando de maneira mais pormenorizada as estrateacutegias de escrita mobilizadas pelo autor para ser reconhecido como um poeta letrado de fato Nele priorizo o Cancioneiro popular de modinhas brasileiras publicaccedilatildeo que teve incriacuteveis 25 edi-ccedilotildees em menos de dez anos A luta para que sua produccedilatildeo modinheira fosse tambeacutem passiacutevel de ser encarada como ldquopoemardquo e as asserccedilotildees de estrateacutegias editoriais na construccedilatildeo exitosa das suas publicaccedilotildees satildeo ele-mentos que ganham uma anaacutelise pormenorizada nessa parte do trabalho

Em ldquoSer poeta ser do sertatildeordquo discuto o lugar central dos temas sertanejos na sociedade carioca de entatildeo que viu surgir uma febre por temaacuteticas que focavam o interior do Brasil com objetivos vaacuterios entre eles aquele que buscava nas representaccedilotildees sertanejas na literatura a afirmaccedilatildeo de uma ldquosupostardquo alma nacional Aiacute vai ser possiacutevel ver como diversos autores mobilizaram estrategicamente tal temaacutetica a fim de serem reconhecidos como ldquoautores nacionaisrdquo

Tambeacutem foram investigadas as tipologias que marcavam as re-presentaccedilotildees de editoras como a Castilho que buscou inicialmente por meio de seu proprietaacuterio Antocircnio Castilho ser reconhecida como uma editora de literatura ldquoseacuteriardquo Ressaltarei aiacute a necessidade de se buscar tambeacutem nas representaccedilotildees editoriais material necessaacuterio para se compreender o aparecimento de obras literaacuterias

No capiacutetulo ldquoCatullo da Paixatildeo Nacionalrdquo demonstro como pro-gressivamente Catullo foi se arvorando como um poeta conhecedor do ldquosertatildeordquo e como nesse movimento foi construindo uma autoridade a partir tanto de seu capital social adquirido mdash que seu editor fazia aparecer em suas publicaccedilotildees pelas dedicatoacuterias e opiniotildees de conhecidos letrados mdash quanto das proacuteprias representaccedilotildees que fazia aparecer em seus textos Discuto ainda a relaccedilatildeo de Catullo com os modernistas e as discussotildees que se desenrolavam em torno de temas como ldquoliteratura nacionalrdquo para daiacute analisar como essa tensatildeo que debatia no Brasil o que era antigo e moderno aparecia nos textos que Catullo publicou no periacuteodo

No capiacutetulo ldquoCatullo em cenardquo propotildee algumas reflexotildees sobre a relaccedilatildeo de Catullo com o teatro de revista e sobre como essa aproximaccedilatildeo se expressava em seus livros onde apareciam diversas menccedilotildees a uma

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leitura performaacutetica do texto visando a uma encenaccedilatildeo Essa investigaccedilatildeo se pautaraacute principalmente a partir da anaacutelise do livro de Catullo intitu-lado Um boecircmio no ceacuteu Nesse capiacutetulo pretende-se compreender tambeacutem como o sucesso do raacutedio fez com que Catullo retomasse sua representaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo dramatizando essa condiccedilatildeo nos textos

No uacuteltimo capiacutetulo ldquoPor uma representaccedilatildeo de sirdquo o trabalho se foca principalmente na atuaccedilatildeo do herdeiro dos direitos autorais de Catullo quando este ainda vivia o escritor e organizador de suas uacuteltimas obras em vida Guimaratildees Martins A partir disso estabeleci um diaacutelogo com algumas praacuteticas letradas que se esboccedilavam jaacute nos anos 1930 e 40 notadamente a discussatildeo que se seguiu com a criaccedilatildeo de associaccedilotildees para a luta pelos direitos de escritores e tambeacutem de compositores da dita ldquomuacutesica popularrdquo Eacute possiacutevel vislumbrar nos textos produzidos nessa eacutepoca uma luta de representaccedilotildees na construccedilatildeo de um ldquolugar consa-gradordquo para Catullo Essa luta colocou em lados opostos em vaacuterios mo-mentos interesses do organizador do editor e do autor Catullo

Por diversas vezes no texto seraacute possiacutevel vislumbrar vestiacutegios do diaacutelogo de Catullo com seus leitores Por sorte nosso personagem natildeo era um esteta envolto em torre de marfim mas algueacutem atento agrave opiniatildeo de seus leitores mdash natildeo raro por conta de uma forte vaidade O autor lhes respondia inclusive diretamente nas modinhas e poemas por vezes de maneira sutil fazendo novas escolhas temaacuteticas ou mudando a proacutepria linguagem expressiva de seus textos Essa postura foi de grande valia para a compreensatildeo de seus textos como diaacutelogos com os leitores em sua tentativa de regrar uma leitura que quase nunca se submetia ao sen-tido intentado pelo seu autor primeiro

Por fim a partir da trajetoacuteria autoral de Catullo da Paixatildeo Cearense trago agrave tona algumas reflexotildees sobre a construccedilatildeo de uma autoria na primeira metade do seacuteculo XX e como nesse sentido a anaacute-lise singular de uma trajetoacuteria especiacutefica pode contribuir para se pensar tanto a cultura escrita de uma eacutepoca e os sentidos que ela daacute ao objeto ldquolivrordquo quanto a relaccedilatildeo articulada entre autor editor e consumidor de livros nesse iniacutecio de seacuteculo

Pretendo que o possiacutevel estranhamento inicial do leitor ao se deparar com as paacuteginas que viratildeo falando de um autor relativamente

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desconhecido e paradoxalmente best-seller em sua eacutepoca seja afinal um convite para conhecer uma trajetoacuteria quase nunca previsiacutevel Que esse mesmo estranhamento pela contrariedade que traz seja ele mesmo um indiacutecio da necessidade de se conhecer os meandros que condicionam o aparecimento de um autor em determinado campo lite-raacuterio no tempo

Figura 1 ndash Catullo da Paixatildeo Cearense em foto dos anos 1940

Fonte Arquivo do autor

Fonte arquivo do autor

CATULLO CEARENSE E O LUAR DA CIDADE

Catullo e a cultura escrita

Na tarde do dia 12 de setembro de 1918 um distinto puacuteblico aglomerava-se nos corredores do Teatro Satildeo Pedro no centro do Rio de Janeiro para assistir ao espetaacuteculo realizado em homenagem a um poeta Um poeta ldquopopularrdquo como diria o Sr Roquette Pinto orador oficial naquela tarde Ali homens como Assis Chateaubriand Pandiaacute Caloacutegeras e Paulo Barreto (mais conhecido como Joatildeo do Rio) dispu-tavam espaccedilos das fileiras do teatro a fim de prestigiar o famoso poeta que entrou no palco elegantemente trajado trazendo consigo um violatildeo A plateia poreacutem natildeo se espantava uma vez que os versos do homena-geado eram mais comumente ouvidos sendo acompanhados ao som meloacutedico do instrumento Por isso mesmo ningueacutem ali se assustou quando sua poesia foi recitada pelas vozes da Exmordf Srordf D Acircngela Vargas Barboza Vianna e dos senhores Arruda Vallim Mario Pinheiro Frederico Rocha e Alberto Pires com o violatildeo compondo o fundo musi-cal6 O extravagante poeta atendia pelo nome ainda mais extravagante de Catullo da Paixatildeo Cearense

6 Para os eventos narrados cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 17-22 Sobre a programaccedilatildeo daquela noite no Teatro Satildeo Pedro cf O Paiz 12 set 1918 p 5

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A iniciativa daquela homenagem partiu do jovem advogado Assis Chateaubriand que para tanto formou uma ldquoComissatildeo Central de Homenagem a Catullordquo incluindo nomes os mais distintos da sociedade carioca naqueles tempos entre os quais os membros da Academia Brasileira de Letras (ABL) Maacuterio de Alencar e Joatildeo do Rio A festa vi-sava a angariar fundos para a publicaccedilatildeo de um futuro livro de Catullo O ecircxito do evento viria ainda naquele mesmo ano com o lanccedilamento pela livraria Castilho do volume de poesias Meu sertatildeo com prefaacutecios de Afracircnio Peixoto (da Academia Brasileira de Letras) e Alberto drsquoOliveira (da Academia de Ciecircncias de Lisboa) No livro o autor lanccedilava matildeo de representaccedilotildees da fala sertaneja a partir da criaccedilatildeo de personagens oriundos do sertatildeo Apresentado por Afracircnio Peixoto como um ldquogrande poetardquo Catullo Cearense apresentava sua poesia nos meios letrados com a ambiciosa tentativa de representaccedilatildeo de uma espeacutecie de linguajar serta-nejo no texto Em Meu sertatildeo Catullo se valia de um suposto referente oral (a fala sertaneja) que era reproduzido no seu texto ipsis litteris tais quais os poemas de cordel jaacute comuns no Rio de Janeiro do periacuteodo

A foacutermula resultaria num sucesso editorial e ficaria marcada como a primeira obra do intitulado ldquopoeta sertanejordquo Catullo da Paixatildeo Cearense Entretanto embora o volume de poesias Meu sertatildeo revelasse um ldquopoeta sertanejordquo natildeo fora propriamente com esse epiacuteteto que o nome de Catullo Cearense veio agrave luz nos meios letrados de iniacutecios do seacuteculo XX tampouco aquela fora sua primeira publicaccedilatildeo com pretensotildees poeacute-ticas Antes disso Catullo era conhecido por organizar livros de modi-nhas que circulavam pelas livrarias do Rio de Janeiro e por reivindicar para esse tipo de produccedilatildeo um valor literaacuterio nem sempre reconhecido

Entre 1894 (data da publicaccedilatildeo de seu primeiro livro com letras de modinhas) e 1946 (ano de publicaccedilatildeo de seu uacuteltimo livro) contabili-zam-se 29 obras de gecircneros os mais variados com diversas ediccedilotildees lanccediladas (algumas chegando a incriacuteveis 50 ediccedilotildees) que deram a Catullo o reconhecimento ainda em vida como poeta muacutesico teatroacute-logo e compositor de modinhas7

7 Em anexo estatildeo elencadas todas as publicaccedilotildees sob a organizaccedilatildeo ou autoria de Catullo durante esse periacuteodo

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Nascido em Satildeo Luiacutes do Maranhatildeo em data incerta (entre 1863 e 1866) Catullo era filho do ourives Amacircncio Joseacute da Paixatildeo Cearense que por ser natural do Cearaacute acabou assumindo a alcunha tambeacutem no nome8 Quando contava por volta de dez anos de idade Catullo foi morar com os pais e irmatildeos na fazenda dos avoacutes paternos em Maranguape no sertatildeo cearense Ali Catullo viveu por pouco menos de sete anos ateacute que em 1880 mudou-se em definitivo para a capital do ainda Impeacuterio brasileiro o Rio de Janeiro Laacute fixou-se com a fa-miacutelia numa casa na Rua Satildeo Clemente nordm 37 em Botafogo onde seu pai instalou sua ourivesaria e relojoaria De laacute veria participando in-clusive as transformaccedilotildees sociopoliacuteticas pelas quais o Rio passava na-quele fim de seacuteculo

Segundo alguns de seus bioacutegrafos Catullo era um autodidata que aprendeu grego italiano matemaacutetica e francecircs e que posteriormente ateacute iria fazer algumas traduccedilotildees de poesias transformando-as em letras de modinhas como as do poeta francecircs Alphonsus de Lamartine No entanto ao que parece seu pai investia na educaccedilatildeo distinta do filho de modo que eacute possiacutevel encontrar ainda em 1881 nas paacuteginas dos jornais cariocas o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense no chamamento para os exames preparatoacuterios em portuguecircs e em 1883 para os de francecircs embora natildeo haja registros de sucessos nessas investidas9

Do seu periacuteodo de juventude pouco se sabe Mas ao que parece desde muito jovem Catullo frequentava as noites cariocas estabele-cendo contato com grupos de modinheiros e chorotildees Aprendeu a tocar flauta mas logo lhe ensinaram o violatildeo Conta-se que o pai era contra a vida boecircmia do filho e que em uma dessas noitadas ao vecirc-lo voltar para casa depois de uma farra com os amigos chegou a quebrar-lhe o

8 Essa informaccedilatildeo nos eacute dada por um dos bioacutegrafos de Catullo o poeta Carlos Maul que escreve ldquoNo comeccedilo desta histoacuteria saiu Joseacute Amacircncio da Paixatildeo Cearense pai de Catullo como natural do Maranhatildeo quando ao certo ele era do Cearaacute Mudado para o Cearaacute e aiacute instalado com sua oficina de ourives depressa se popularizou e todos o chamavam de lsquoo cearensersquo devido agrave sua procedecircncia De tanto ouvir tratarem-no assim acabou por fazer um registro de seu nome com esse acreacutescimo E ao nascerem-lhe os filhos batizou-os a todos com o sobrenome de lsquoCearensersquordquo Cf MAUL Carlos Catullo sua vida sua obra seu romance 2 ed Rio de Janeiro Livraria Satildeo Joseacute 1971 p 14

9 Cf Gazeta da Tarde 19 nov 1881 p 2 Gazeta de Notiacutecias 4 set 1883 p 2 e 2 out 1883 p 2

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violatildeo na cabeccedila10 Aliaacutes relembrando sua juventude em um de seus livros Catullo contava que o violatildeo era nesse tempo malquisto pela parte mais ldquomodestardquo da sociedade carioca e que natildeo obstante

Aos 19 anos interrompi os estudos para abraccedilar-me fervorosamente ao violatildeo Naquelle tempo esse instrumento era repelido dos lares mais modestos [Grifo meu)] Quem o tocasse era um desacreditado Foi nesse tempo que entrei a escrever e a cantar modinhas []11

Ainda que a afirmaccedilatildeo de que o violatildeo fosse um instrumento malquisto possa ser em parte confirmada mdash aliaacutes afirmaccedilatildeo comu-mente reafirmada pelos estudiosos desse periacuteodo mdash o que Catullo re-lata ao contraacuterio eacute que esse olhar de descreacutedito era encontrado na parte mais ldquomodestardquo da sociedade O que se depreende do testemunho de Catullo eacute que tal afirmativa deve ser relativizada dependendo das repre-sentaccedilotildees sociais do instrumento e das praacuteticas sociais a que se refira Eacute razoaacutevel pensar que a imagem de um violatildeo carregado por algueacutem de um segmento social mais abastado natildeo causasse o ldquodescreacuteditordquo que Catullo observava Ele mesmo reiterava essas impressotildees sobre o ins-trumento quando relembrava o episoacutedio da surra que levou do pai

Foi a primeira sova que apanhei Hoje poreacutem eu compreendo meu pai Naquele tempo o violatildeo era um instrumento maldito A sova foi tamanha que me escondi durante semanas em Copacabana em casa de um negro velho de nome Oliveira soldado reformado da guerra do Paraguai Naquele tempo Copacabana era um areal sem fim E dizer algueacutem como eu digo escondi-me em Copacabana era o mesmo que falar ningueacutem me encontraria Meu pai queria meter-me na Marinha para curar-me do violatildeo Ameaccedilou muitas e muitas vezes []12

10 Todos os dados biograacuteficos narrados ateacute aqui foram retirados aleacutem dos jornais da eacutepoca de depoimentos dados por Catullo e reproduzido em biografias tais como MAUL Carlos Catullo sua vida sua obra seu romance 2 ed Rio de Janeiro Livraria Satildeo Joseacute 1971 ARAUacuteJO Murilo Ontem ao luar Rio de Janeiro A Noite 1951 COSTA Haroldo Catullo da paixatildeo vida e obra Rio de Janeiro ND Comunicaccedilatildeo 2009

11 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Notas In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illumi-nada Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 235 (1ordf ediccedilatildeo em 1924)

12 Apud COSTA Op cit p 29

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Copacabana seria lugar onde Catullo iria se aprofundar mais ainda no conhecimento da boecircmia carioca Na Rua Barroso (hoje Siqueira Campos) numa repuacuteblica de estudantes ele se reunia com bo-ecircmios para beber e tocar Foi ali que aprendeu a tocar violatildeo e segundo informa o pesquisador Ary Vasconcelos compocircs sua primeira modinha Ao luar13 Pertencendo a uma famiacutelia ldquomodestardquo Catullo poderia ser compreendido como um desqualificado por portar um violatildeo mas em-bora o violatildeo fosse representado como ldquoinstrumento malditordquo essa mesma estigmatizaccedilatildeo do instrumento natildeo se poderia encontrar quando da sua presenccedila nos grandes salotildees a acompanhar modinhas E foram nos salotildees da elite carioca que em pouco tempo Catullo adentrou em-punhando o instrumento

Em fins do seacuteculo XIX o jovem Catullo da Paixatildeo Cearense co-meccedilou a frequentar as noites da cidade e tomou contato com jovens muacutesicos posteriormente consagrados como o ainda estudante de muacute-sica Anacleto de Medeiros o ldquolendaacuteriordquo violonista Quincas Laranjeiras e o futuro cantor Cadete mdash um dos primeiros a ter sua voz gravada no Brasil em cilindros das Casas Edison A partir daiacute se tornaria um co-nhecido frequentador das rodas boecircmias e serenatas nas ruas do Rio de Janeiro travando amizade com nomes como Villa Lobos e Joatildeo Pernambuco Tais rodas eram natildeo raramente frequentadas por mem-bros da elite letrada carioca fazendo com que nomes da boecircmia vez ou outra fossem chamados para as festas nos salotildees de ldquofigurotildeesrdquo

Com a morte de sua matildee (em 1880) e de seu pai (em 1883) Catullo foi trabalhar na administraccedilatildeo do Cais do Porto primeiramente como contiacutenuo e depois como estivador alternando seu tempo com tra-balhos no cais durante o dia e apresentaccedilatildeo de modinhas durante a noite Nesse mesmo momento a atraccedilatildeo pelo exoacutetico abria os salotildees das residecircncias de famiacutelias mais ilustres para apresentaccedilotildees de motivos ditos ldquopopularesrdquo A curiosidade por expressotildees ldquopopularesrdquo ia cons-truindo a ideia de um folclore nacional

13 VASCONCELOS Ary Panorama da muacutesica popular brasileira na Belle Eacutepoque Rio de Janeiro Livraria SantrsquoAnna 1977 p 116

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Jaacute embrenhado nas rodas boecircmias da cidade Catullo tinha entrada livre para frequentar os salotildees de gente importante especialmente quando comeccedilou a fazer letras para canccedilotildees jaacute conhecidas pela elite letrada A foacutermula usada por Catullo era criar letras nas composiccedilotildees de valsas schottisch mazurcas e tangos mdash repertoacuterio comum nos salotildees Outras vezes traduzia versos de poetas estrangeiros conhecidos e adaptava-os para uma canccedilatildeo conhecida Assim era comumente representado como um ldquomoccedilo distintordquo e letrado Esse capital social adquirido progressiva-mente o autorizou a seguir o caminho das letras pouco a pouco se arvo-rando como algueacutem conhecedor das coisas ditas ldquodo povordquo

A sede por estudos das ldquocoisas do povordquo no Brasil veio de uma necessidade criada na virada do seacuteculo XIX para o XX em definir aquilo que nos tornava singulares num mundo que cada vez mais primava por procurar em seus costumes ditos do ldquopovordquo a ldquoessecircnciardquo definidora do que seria a ldquonaccedilatildeordquo A ldquoalma do povordquo supostamente contida em ldquopraacute-ticas popularesrdquo era o foco principal daqueles que se interessavam por definir o que seria proacuteprio da cultura brasileira

Haacute de se chamar atenccedilatildeo que desde finais do seacuteculo XIX a va-lorizaccedilatildeo do ldquofolclore brasileirordquo se fazia tanto com a proliferaccedilatildeo de estudos pretensamente cientiacuteficos (como os de Siacutelvio Romero e do Baratildeo de Santa-Anna Nery) como pela produccedilatildeo de narrativas que en-focavam os chamados ldquocostumes do sertatildeordquo (como os contos de Coelho Neto) Esse interesse pelas ldquocoisas popularesrdquo vinha na esteira de uma necessidade que parte dos letrados de entatildeo tinha de definir uma su-posta ldquoalma popularrdquo que definisse a ldquoessecircnciardquo do ldquopovo brasileirordquo

[] em meio a uma seacuterie de disputas e conflitos reais e simboacutelicos sobre a identidade cultural brasileira o campo musical e folcloacuterico tornou-se uma importante arena nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX Nessa arena as disputas foram travadas entre variados atores e giravam em torno dos significados das muacutesicas e canccedilotildees populares nos sertotildees nas ruas nos teatros no carnaval na induacutestria fonograacutefica e no proacuteprio imaginaacuterio social sobre a naccedilatildeo14

14 ABREU Martha DANTAS Carolina Vianna Muacutesica popular folclore e naccedilatildeo no Brasil 1890-1920 In CARVALHO Joseacute Murilo de Naccedilatildeo e cidadania no Impeacuterio novos ho-rizontes Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2007 p 131

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Muitos desses letrados participavam dos espaccedilos de sociabili-dade noturnos que se criavam no Rio de Janeiro de entatildeo tomando contato com muacutesicos e poetas de diversas camadas sociais Estimado por ser cantor e criador de modinhas Catullo ganhou o interesse de grande parte do grupo letrado de boecircmios por ser conhecedor de um universo que era identificado como sendo ldquodo povordquo Boecircmia que era frequentada por nomes ilustres da cidade como Emiacutelio de Menezes Joseacute do Patrociacutenio e Paula Ney

Frequentar a noite tornou-se um atrativo para homens de todos os grupos sociais de forma que o significado que algueacutem poderia ter ao ser tachado de ldquoboecircmiordquo agrave eacutepoca deslizava desde a simples desquali-ficaccedilatildeo de um indiviacuteduo ateacute a mera identificaccedilatildeo de um sujeito apre-ciador da noite A coexistecircncia no universo boecircmio de muacuteltiplos seg-mentos sociais eacute um fator importante para compreender a sede pelas ditas ldquocoisas do povordquo

As modinhas a bebida as serenatas ao luar eram praacuteticas co-muns nas noites do Rio de Janeiro da transiccedilatildeo entre o seacuteculo XIX e o XX Em uma dessas noites em iniacutecios de 1885 Catullo foi convidado agrave casa do senador Silveira Martins entatildeo conselheiro do Impeacuterio que depois de um aplaudido espetaacuteculo em sua residecircncia mdash com a pre-senccedila inevitaacutevel do violatildeo mdash e reconhecendo em Catullo um letrado convidou-o para ser o ldquoexplicadorrdquo de seus filhos Laacute Catullo perma-neceria por pouco tempo pois se envolveria num pouco explicado caso sexual15

Entender algueacutem como um boecircmio poderia bem conduzi-lo a uma representaccedilatildeo de ldquoalgueacutem natildeo muito seacuteriordquo Essa receita por vezes alimentava representaccedilotildees como a que nos conta o poeta Paula Ney conhecido por sua verve humoriacutestica aguccedilada Eram comuns piadas tais como a publicada no Gazeta da Tarde onde o personagem do boecircmio era assim representado

15 Assim conta Haroldo Costa ldquoNuma madrugada ao entrar no seu quarto qual natildeo foi a surpresa ao encontrar acomodada em sua cama semidespida segundo alguns semi-vestida segundo outros uma bela jovem que ao vecirc-lo comeccedilou a gritar por socorro afirmando ter sido violentada por elerdquo Cf COSTA Op cit p 37

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Um bohemio depois de estragar a fortuna que herdou dos seus paes resolve casar-seApresentam-no a uma mulher feia como 300 jacareacutesndash Tem dote Pergunta ele a um amigondash 400 contosndash Bem jaacute servem como indemnizaccedilatildeo respondeu16

Mas se Paula Ney por exemplo era identificado como um bo-ecircmio sua representaccedilatildeo como letrado garantia um status diferenciado diante de outros tipos boecircmios Daiacute apresentar-se como um letrado apesar de frequentador da boecircmia era uma receita que podia render a um indiviacuteduo outra representaccedilatildeo

Catullo por exemplo ainda em iniacutecios do seacuteculo XX abriu uma escola na Rua Martins Costa na estaccedilatildeo da Piedade e laacute se tornou co-nhecido por suas aulas de portuguecircs e francecircs Das 9 horas da manhatilde agraves 3 horas da tarde dava aulas no curso primaacuterio das 8 horas da noite ateacute meia-noite era a vez das aulas para pessoas do curso secundaacuterio as quais muitas eram amigas do professor No final das aulas comeccedilava a vida boecircmia do bardo Um de seus alunos dessa eacutepoca recordaria mais tarde em livro do proacuteprio Catullo

A essa hora reuniam-se os teus amigos muacutesicos Anacleto Medeiros o grande mestre do Corpo de Bombeiros Luis de Souza ndash o primeiro pis-tonista do Brasil Irineu de Almeida ndash oficleidista sem rival Pingussa ndash o mago dos choros ao violatildeo Kalut ndash flauta caladiano Oliacutempio ndash o saxofonista do sereno Maacuterio e Galdino ndash os dois cavaquinhos geme-dores Neacuteco Chico Borges Quincas Laranjeiras ndash os violotildees chorosos todos se juntavam e saiacutea de tua casa a serenata cantando as gloacuterias do teu Talento17

A evocaccedilatildeo de seu passado como professor de liacutenguas foi uma constante em seus livros posteriores O bardo dizia que chegou a ter 100 alunos18 Essa lembranccedila fez parte do cardaacutepio de representaccedilotildees le-

16 Gazeta da Tarde 28 abr 1896 p 217 Depoimento de Otaacutevio de Barros Thompson que fez parte dos juiacutezos-criacuteticos do livro

de Catullo CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Rio de Janeiro Aurora 1945 p 107-108

18 Assim se expressara em prefaacutecio para seu livro de modinhas jaacute nos anos 1940 Cf

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tradas de que Catullo lanccedilava matildeo e que foram constituindo seu reco-nhecimento social posterior como um poeta letrado Isso visava a afastar de um olhar estigmatizado que marcava agrave eacutepoca algueacutem identificado como um ldquocantor de modinhasrdquo Poreacutem foi nesse mesmo periacuteodo que progressivamente as modinhas foram ganhando nova representaccedilatildeo social com a sua valorizaccedilatildeo por ser entendida como parte da produccedilatildeo do ldquopovordquo

A valorizaccedilatildeo das modinhas como elemento importante para a de-finiccedilatildeo do ldquopovordquo e de sua ldquoculturardquo era naquele iniacutecio de seacuteculo uma discussatildeo jaacute bastante conhecida no mundo letrado do Brasil Sob a deno-minaccedilatildeo de ldquomodinhasrdquo aparecia uma vasta produccedilatildeo musical comu-mente ouvida nas ruas do Rio de Janeiro de entatildeo Entre detratores e apologistas a modinha foi se tornando temaacutetica comum nos debates acerca daquilo que deveria ser entendido como algo ldquobrasileirordquo Os versos cantados que a acompanhavam nem sempre eram vistos com bons olhos Daiacute muitos negarem a esse tipo de verso o epiacuteteto de ldquopoesiardquo

O criacutetico literaacuterio Siacutelvio Romero por exemplo entre 1910 e 1912 publicou o ensaio Novas contribuiccedilotildees para o estudo do folclore brasileiro mdash que depois viria a fazer parte do claacutessico livro Histoacuteria da literatura brasileira mdash no qual escrevia ao tentar delimitar aquilo que entendia como sendo uma ldquopoesia popularrdquo que

Um erro muito repetido entre os criacuteticos principalmente portugueses que se tecircm ocupado da poesia popular brasileira eacute confundirem-na com certo gecircnero a que entre noacutes se deu o nome de modinhas []Natildeo eacute raro ler coisas assim ldquoA modinha eacute a mais rica das formas por que se manifesta a inspiraccedilatildeo poeacutetica do nosso povordquoEacute isto inexato A modinha nem eacute a forma mais rica do nosso lirismo popular nem eacute a forma mais perfeita de nosso lirismo cultoA forma mais rica da poesia popular satildeo os romances as xaacutecaras as oraccedilotildees os reisados as cheganccedilas os versos gerais O povo natildeo faz nunca fez modinhas

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas 2 ed Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1956 p 17 (1ordf ediccedilatildeo em 1946)

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Por outro lado as mais extraordinaacuterias manifestaccedilotildees do gecircnero liacuterico dos grandes poetas brasileiros natildeo consistiram jamais em modinhas19

Para Siacutelvio Romero por exemplo as modinhas urbanas natildeo fa-riam parte do que ele entendia como sendo ldquopopularrdquo pois aleacutem de aquilo que ele chamava de ldquopovordquo natildeo fazer modinhas elas eram de ldquomau gostordquo Em sua criacutetica Romero arrematava contra o representante mais conhecido das modinhas daqueles tempos ldquotais produccedilotildees hiacute-bridas nem satildeo a genuiacutena poesia anocircnima filha do gecircnio da raccedila nem satildeo obras literaacuterias de valor Constituem um gecircnero secundaacuterio em que se deliciam os Catullos Cearenses de todos os temposrdquo20

O diagnoacutestico de Siacutelvio Romero poreacutem natildeo era uniacutessono entre aqueles que se interessavam pelas manifestaccedilotildees ditas do ldquopovordquo e progressivamente a modinha foi ganhando o status de ldquomanifestaccedilatildeo popularrdquo digna de ser compreendida como parte do ser nacional

Os termos usados por Romero balizavam as discussotildees agrave eacutepoca a modinha era perscrutada a partir da indagaccedilatildeo se ela seria ldquopoesia popular brasileirardquo ldquofilha do gecircnio da raccedilardquo ldquoinspiraccedilatildeo poeacutetica do povordquo e sobretudo uma ldquogenuiacutena poesia anocircnimardquo O anonimato ga-rantia para Siacutelvio Romero a certa produccedilatildeo um preacute-requisito fatal para defini-la como ldquopopularrdquo Mas para o criacutetico modinhas seriam coisas tatildeo somente dos ldquoCatullos Cearensesrdquo

Essa opiniatildeo natildeo era unacircnime entre os letrados Num domingo de Carnaval em reportagem publicada nas paacuteginas do jornal O Paiz redis-cutia-se a posiccedilatildeo da muacutesica como ldquoarte popularrdquo Vale a citaccedilatildeo

19 ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1943 p 173 O artigo foi originalmente publicado na revista da Academia Brasileira de Letras (n 2 4 e 7) A referecircncia que Siacutelvio Romero faz aos criacuteticos portugueses se deve ao fato de haver desde fins do seacuteculo XIX um debate apaixonado sobre o caraacuteter nacional da literatura de liacutengua portuguesa que envolvia inclusive criacuteticos portugueses aos quais Siacutelvio Romero fazia reiteradas censuras De ambos os lados do Atlacircntico a questatildeo do ldquonacionalrdquo colocava em posiccedilotildees opostas estudiosos que tentavam definir em que consistia a literatura nacional de seus respectivos paiacuteses e se havia complementari-dade entre ambas Para um estudo do mais famoso debate aquele que envolveu Siacutelvio Romero e Teophilo Braga cf PAREDES Marccedilal de Menezes A querela dos originais notas sobre a polecircmica entre Siacutelvio Romero e Teoacutefilo Braga Porto Alegre Estudos Ibero-Americanos PUCRS 2006 p 103-119 (Ediccedilatildeo Especial n 2)

20 Idem

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Todos os povos tecircm a sua arte popular Ella eacute por excelecircncia a muacutesica As manifestaccedilotildees dessa arte satildeo typicas a muacutesica popular eacute o espelho fiel da iacutendole de cada povo e nella se encontram o seu caracteriacutestico o seu gecircnio as suas inclinaccedilotildees as suas ambiccedilotildees os seus desiacutegnios enfim que nella domine fielmente reproduzido pelo seu folk-lore ver-dadeiro patrimocircnio nacional21

Atestando os progressos da ldquomuacutesica popularrdquo produzida no Brasil e negando qualquer tese que pudesse apontar o trovador como um poeta menor a reportagem do jornal O Paiz destacava o fato de o violatildeo e a modinha estarem invadindo os salotildees nos uacuteltimos quinze anos ndash novidade que indicaria segundo o perioacutedico seu caraacuteter ldquomo-dernordquo ndash e disparava contra os detratores deles

[] A nossa muacutesica popular progride rapidamente cada vez mais expressiva cada vez mais aprimorada dizendo bem quanto amor se contecircm nos nossos espiacuteritos meridionaes aberto a todas as ideacuteas gene-rosas francos e leaes ateacute aos extremos

O violatildeo exprime a alma popular brasileira em suas canccedilotildees dedi-lhadas indolentemente vai toda a anciatilde de carinho e de amor que a magocirca que a fatiga que a fere profundamente

O violatildeo eacute o lenitivo doce amargo para essa iacutendole nossa muito nossa

O trovador tem pois uma grande saliecircncia entre os seus patriacutecios Elle lhes encarna a alma nos accordes dos seus instrumentos nas modula-ccedilotildees de sua voz

[]

Entre noacutes esses menestreacuteis anocircnimos e o que eacute mais imperterrita-mente perseguidos pela poliacutecia satildeo apreciados devidamente

Os progressos dessa raccedila de artistas vem augmentando de haacute quinze annos a esta parte porque o preconceito que os repelia como symbolos da chalaccedila e da desordem vai decaindo O violatildeo acompanhado das modinhas comeccedila a brilhar nos salotildees embora com menos furos do que o cake-walk Interessam-nos esses progressos [] 22

21 O Paiz 25 fev 1906 p 822 Ibidem

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O interesse pelas modinhas levou os repoacuterteres de O Paiz a entre-vistar o mais conhecido modinheiro daqueles idos Catullo da Paixatildeo Cearense Sendo usufruiacuteda a partir de uma relaccedilatildeo ambiacutegua pelos le-trados a modinha foi tornando-se objeto de exotismo a ser discutido e compreendido como expressatildeo de uma ldquoalma popularrdquo Para tanto a vontade de conhecer tais ldquocostumes popularesrdquo muito ajudou nessa em-preitada A grande questatildeo no entanto residia naquilo que deveria ser entendido como ldquopopularrdquo e sobretudo aquelas praacuteticas que podiam figurar como dignas de assim serem chamadas Ademais assumir uma praacutetica como ldquopopularrdquo carregaria sob tal manifestaccedilatildeo uma forte carga poliacutetica em tempos em que se abria um enorme debate em grande parte do mundo sobre as singularidades de uma naccedilatildeo a partir do reconheci-mento do caraacuteter do seu povo

Foi em meio agrave ambiguidade no tratamento dado agrave modinha mdash e na esteira disso a ele proacuteprio mdash que Catullo se inseriu nas discussotildees acerca do que seria ldquopopularrdquo no periacuteodo O estranhamento em consi-derar Catullo ldquopoeta do povordquo (como queria a reportagem de O Paiz) era causado pela contrariedade nas declaraccedilotildees do proacuteprio modinheiro na mesma reportagem ao dizer que ldquoeu natildeo gosto de estar pelas es-quinas Canto nos salotildees calmamente sem incocircmodordquo ou ldquoeu procuro modernizar a arte da modinhardquo23 Eacute possiacutevel que a resposta imprevista de Catullo causasse certo embaraccedilo nos entrevistadores no exato mo-mento em que o modinheiro procurava realccedilar um distanciamento de seu nome com as ruas fazendo com que o leitor do jornal natildeo o confun-disse como um modinheiro mambembe e ao mesmo tempo chamando a atenccedilatildeo do leitor para a modernidade de suas modinhas colocando-se entre aquilo que podia ser efecircmero (ou expressatildeo de um simples mo-dismo da eacutepoca) e aquilo que deveria ser encarado quase como atem-poral por ser parte de uma essecircncia nacional e por consequecircncia re-presentante da ldquoalma popularrdquo

Mas algo representado como moderno a priori natildeo poderia ser visto como fazendo parte de uma ldquoalma popularrdquo ndash assim por exemplo

23 Ibidem

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reiterava o criacutetico Siacutelvio Romero Para esse autor o que podia ser iden-tificado como algo ldquopopularrdquo e digno de figurar como parte de uma suposta ldquoalma nacionalrdquo era validado pelo grau de antiguidade de sua existecircncia de forma que algo considerado por demais ldquomodernordquo fatal-mente natildeo figuraria numa discussatildeo sobre a ldquoarte popularrdquo Ainda que entendesse as modinhas como parte de uma heranccedila popular natildeo via com bons olhos modinhas que tais como as de salatildeo se ldquoafrancesa-zavamrdquo (ldquoA macaqueaccedilatildeo do estrangeiro e especialmente do france-zismo eacute tambeacutem outro mal nossordquo)24 Por isso serem comuns em seus estudos palavras como ldquoressurreiccedilatildeordquo e ldquotradiccedilotildees jaacute esquecidasrdquo quando se referia a ldquopoesia popularrdquo Assim sobre o ldquoprojeto romacircn-ticordquo escrevia

Uma volta aacute poesia popular e aacutes tradiccedilotildees jaacute esquecidas eacute sua pretensatildeo mal definida [] A ressurreiccedilatildeo da poesia popular em um livro eru-dito era cousa exequumliacutevel mas continual-a fazel-a viver sua vida ro-manesca era impossiacutevel sobretudo no Brazil onde natildeo existia uma genuiacutena poesia popular olvidada pelo tempo Natildeo sei se bem pensaram nisto os romacircnticos brazileiros Sei que lhes faltou a paixatildeo pelo pas-sado que tanto animaacutera os da Europa [sic]25

Mello Morais (estudioso que diferentemente de Romero inte-ressava-se tambeacutem pelas novas modinhas que surgiam) tambeacutem parecia corroborar o diagnoacutestico do criacutetico ao enxergar nessa recente produccedilatildeo ldquoecos adormecidosrdquo que faziam a alegria ldquonas festas hoje tatildeo escassas do povo fazendo recordar alegrias extintasrdquo26 O que os aproximava era uma definiccedilatildeo do ldquopopularrdquo por uma referecircncia temporal Se para Romero modinhas natildeo interessavam pois natildeo eram um gecircnero do ldquopovordquo nem havia no Brasil ldquopoesia popular olvidadardquo para Mello Morais ao contraacuterio elas eram expressotildees de algo de outrora e dignas de pesquisa Se Romero desdenhava como sendo uma ldquomacaqueaccedilatildeordquo

24 ROMERO Sylvio Estudos sobre a poesia popular do Brazil Rio de Janeiro Typ Laemmert amp C 1888 p 363

25 Idem p 626 MORAES FILHO Mello Cantares brasileiros cancioneiro fluminense Rio de Janeiro

SEEC-RJDepartamento de CulturaINELIVRO 1981 p 27 (1ordf ediccedilatildeo em 1900 pela Livraria Cruz Coutinho)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo38

Mello Morais regozijava-se por entendecirc-la como sendo genuinamente nacional e mesmo moderna

Tais referecircncias temporais definiam atitudes e objetos no Brasil da virada do seacuteculo e faziam com que as fronteiras que diferenciavam aquilo que era considerado ldquomodernordquo e aquilo que era considerado ldquovelhordquo fossem constantemente motivos de debates acalorados alter-nando-se ora como depreciadores de um objeto discutido ora como enaltecedores A elite letrada do paiacutes na medida em que festejava os novos equipamentos modernos da cidade era atraiacuteda para espaccedilos de sociabilidade onde reinava muitas vezes aquilo que por um entendi-mento do que seria moderno poderia ser considerado em contraste ldquovelhordquo ldquoatrasadordquo mdash poreacutem por vezes redimido por ser ldquopopularrdquo De forma que se tornou muito costumeiro e ateacute um fator de expressatildeo intelectual ver membros os mais distintos da elite carioca conhecer e frequentar tais espaccedilos ou o que tambeacutem era bastante comum levar tais expressotildees ldquopopularesrdquo para serem encenadas nos salotildees dessa mesma elite por meio de uma nova significaccedilatildeo que o termo ldquopopularrdquo foi adquirindo ou seja aquilo que expressaria a verdadeira expressatildeo da terra a sua ldquoalmardquo

Foi nesse limite que a figura de Catullo foi sendo evocada como algueacutem que podia ser reconhecidamente considerado um ldquopoetardquo pois que expressava a sua terra em uma forma considerada exoacutetica as letras de modinhas Poreacutem se a procura por temas ldquopopularesrdquo (sendo a mo-dinha entendida como um deles) atraiacutea um puacuteblico distinto e letrado para a produccedilatildeo modinheira de Catullo isso natildeo o credenciava de pronto a ser considerado um membro dessa mesma elite letrada Ademais ser um autor de modinhas no maacuteximo o credenciaria a ser como se dizia agrave eacutepoca um bardo um trovador um ldquopoeta popularrdquo mas quase nunca o alccedilaria a ser identificado como um ldquopoetardquo tal como eram assim reconhecidos Coelho Neto ou Olavo Bilac Esse investi-mento demandou do autor escolhas inclusive temaacuteticas num diaacutelogo constante e tenso com seus pares no periacuteodo e sobretudo uma aproxi-maccedilatildeo com o universo dos livros

Jaacute em iniacutecios do seacuteculo XX Catullo era presenccedila constante nos salotildees da elite carioca cantando suas modinhas e ao passo que deliciava

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 39

os ouvintes dava agravequelas novo estatuto colocando-as no centro do de-bate entre aquilo que deveria ser cultivado como moderno e civilizado e aquilo que deveria ser colocado de lado por natildeo condizer com os ideais civilizatoacuterios que a elite carioca almejava Na trajetoacuteria de Catullo a tensatildeo que separava ldquomodernidaderdquo e ldquopopularrdquo foi agraves uacutel-timas consequecircncias aquilo que era entendido como ldquopopularrdquo aden-trava em espaccedilos de sociabilidade ldquomodernosrdquo que se multiplicavam nas grandes capitais do Brasil

Ora o Rio de Janeiro a entatildeo capital do paiacutes na virada de seacuteculo passava por uma veloz transformaccedilatildeo modernizante cujo intuito decla-rado era o de ser o espelho civilizado do Brasil para o mundo Esse fator ademais fazia com que novas maneiras de representar o paiacutes fossem construiacutedas e com elas a ressignificaccedilatildeo (ou a pura repressatildeo) de praacuteticas fosse concomitantemente levada a cabo Os salotildees da elite letrada onde se apresentava Catullo com suas modinhas eram eles mesmos a expressatildeo moderna dos novos espaccedilos de sociabilidade que essa elite carioca criara para representar sua nova condiccedilatildeo social Palco privilegiado onde ela natildeo soacute representava rituais de identificaccedilatildeo com seus pares os salotildees tambeacutem eram locais onde se expressavam debates que ganhavam as ruas naqueles tempos de transformaccedilatildeo

Nessa eacutepoca a cidade do Rio de Janeiro mdash que segundo dados do jornal Gazeta de Notiacutecias contava em 1908 em torno de 800 mil habitantes27 mdash vivia um turbilhatildeo de mudanccedilas sociopoliacuteticas cujo ob-jetivo declarado por parte de seus impulsionadores era ldquomodernizarrdquo a cidade Essa sede pelo novo no entanto contrapunha-se agrave obsessatildeo pelos velhos haacutebitos que contraditoriamente eram objetos de seduccedilatildeo para parte dos estudiosos do periacuteodo Se havia um deslumbramento por modernidades que chegavam via Europa concomitantemente havia uma forte impressatildeo de deslocamento e de ldquonatildeo identidaderdquo que os in-telectuais do periacuteodo foram buscar nas ditas ldquopraacuteticas popularesrdquo dando vazatildeo agrave constituiccedilatildeo dos estudos folcloacutericos no paiacutes Afonso Arinos e

27 Gazeta de Notiacutecias 1ordm dez 1908 p 1

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo40

Alexandre Joseacute de Mello Moraes foram nesse tempo dois dos maiores incentivadores desses estudos no Brasil

Mello Moraes era conhecido por organizar saraus e apresenta-ccedilotildees de motivos ldquopopularesrdquo em sua residecircncia no que era seguido por Afonso Arinos que abria sua casa na praia de Botafogo para apresen-taccedilotildees de ldquobatucadasrdquo com bastante sucesso patrocinadas por muacutesicos como Donga Pixinguinha e Heitor dos Prazeres Esses eventos torna-ram-se famosos sendo Catullo Cearense na condiccedilatildeo de modinheiro um dos frequentadores assiacuteduos Nesses espaccedilos a elite se deliciava com apresentaccedilotildees dos tais costumes ldquoexoacuteticosrdquo ao passo que os ar-tistas que laacute apareciam se tornavam conhecidos28

A tensatildeo entre considerar uma praacutetica como ldquoantigardquo ou ldquomo-dernardquo e ldquonacionalrdquo ou ldquoestrangeirardquo mdash para citar apenas duas das mais imediatas dicotomias do periacuteodo mdash expressava-se em debates calo-rosos entre os letrados do periacuteodo que construiacuteam eles mesmos temas centrais a serem debatidos por uma sociedade que se pretendia ldquocivili-zadardquo e ldquomodernardquo Daiacute um turbilhatildeo de produtos culturais serem pro-duzidos no periacuteodo visando a representar ldquoo povo brasileirordquo e editores de livros no Brasil usarem do termo ldquopopularrdquo como publicidade que poderia dar ao produto certa visibilidade Daiacute tambeacutem muitos autores no periacuteodo irem ao encontro de representar tais temaacuteticas em livro vi-sando ao ecircxito da publicaccedilatildeo

A investigaccedilatildeo de toda tensatildeo que perpassa a tentativa de defi-niccedilatildeo de textos como ldquopopularesrdquo agrave eacutepoca eacute indissociaacutevel de uma so-ciologia dos usos desses mesmos textos por seu(s) autor(es) editor(es) e leitor(es) inclusive das formas como esses textos eram dados a ler atentando aiacute para o papel do livro naquela cultura Isso tanto eacute mais importante quando se percebe na virada do seacuteculo no Brasil o aumento de indiviacuteduos alfabetizados que criavam seus proacuteprios rituais de identi-ficaccedilatildeo Assim as praacuteticas com o objeto livro nesse processo satildeo funda-mentais para se entender a cultura escrita que nascia Os homens de

28 Sobre a recorrecircncia natildeo rara de ldquomotivos popularesrdquo nos salotildees da elite carioca em iniacutecios do seacuteculo XX Cf VIANNA Hermano Elite brasileira e muacutesica popular In O misteacuterio do samba 7 ed Rio de Janeiro ZaharUFRJ 2010 p 37-54

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 41

letras do periacuteodo conviviam constantemente com a tarefa de responder a questionamentos sobre o que seria o ldquopovordquo ao mesmo tempo em que buscavam juntamente com seus editores fazer-se ouvir por intermeacutedio de seus textos valendo-se de todo tipo de estrateacutegia textual e material que alcanccedilasse o puacuteblico consumidor de livros

A recente saiacuteda do paiacutes da condiccedilatildeo de escravista e a urbani-zaccedilatildeo das grandes cidades criavam as condiccedilotildees para que um novo segmento urbano ficasse em evidecircncia Esse segmento buscava formas proacuteprias de identificar-se a partir de outros rituais procurando diferen-ciar-se de uma heranccedila cultural escravocrata Para tanto esse segmento teve de construir todo um arcabouccedilo de atitudes e espaccedilos para dife-renciar-se de sociabilidades advindas dessa heranccedila escravista A partir de uma busca por distinccedilatildeo e reconhecimento entre seus pares a elite letrada no Brasil criava novos espaccedilos de sociabilidade onde pudesse dar a ver seus ensejos num quadro de transformaccedilotildees nos jornais nos cafeacutes nas praccedilas nas revistas nas instituiccedilotildees intelectuais e nas livra-rias Mas seguramente aquilo que diferenciava essa nova camada so-cial meacutedia de outros segmentos era uma busca por ser identificada como um grupo letrado

Nas livrarias lugar privilegiado para as encenaccedilotildees ldquocivilizadasrdquo leitores com os mais diversos interesses se encontravam para discus-sotildees Na Garnier e na Laemmert ndash duas das mais importantes livrarias na virada do seacuteculo XIX para o XX e localizadas na via mais frequen-tada da cidade a Rua do Ouvidor ndash era possiacutevel encontrar desde o festejado poeta Olavo Bilac e o romancista Machado de Assis pas-sando por jovens escritores como Graccedila Aranha ateacute o mais solenemente autor desconhecido29 Ademais o livro tornava-se ele mesmo um ele-mento de distinccedilatildeo Tecirc-lo ou saber discuti-lo era fator preponderante para ser identificado como um ldquoiniciadordquo nas letras Na sociedade bra-sileira de fins do seacuteculo XIX onde o letramento apesar de haver au-mentado era algo ainda raro ter um livro tornou-se um fator de dis-tinccedilatildeo no exato momento em que aparecia uma camada meacutedia nos

29 BROCA Brito A vida literaacuteria no Brasil - 1900 Rio de Janeiro MEC 1956

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grandes centros urbanos aacutevida por fazer-se presente nas discussotildees acerca dos rumos do paiacutes

A meio caminho entre as massas proletarizadas e os detentores dos meios de produccedilatildeo haviam emergido novas camadas desejosas de afir-maccedilatildeo e ascenccedilatildeo (sic) social Sem tiacutetulos nobiliaacuterquicos sobrenomes tradicionais ou bens de famiacutelia elas vislumbravam uma possibilidade de reconhecimento e ascenccedilatildeo (sic) social atraveacutes da formaccedilatildeo edu-cacional Assim a emergecircncia das camadas meacutedias transparece no plano educacional no aprofundamento das discussotildees acerca dos as-suntos ligados agrave educaccedilatildeo Discutia-se a filosofia os objetivos a accedilatildeo e a abrangecircncia da educaccedilatildeo A posiccedilatildeo social doravante deveria ser marcada pelo grau de ldquoinstruccedilatildeordquo ldquoconhecimentordquo ldquoculturardquo ndash valores defendidos pelas camadas meacutedias ndash e natildeo somente pelo nascimento30

Nesse sentido saber ler era considerado condiccedilatildeo sine qua non para investir algueacutem do termo ldquoinstruiacutedordquo Daiacute ser algo comum apare-cerem nessa eacutepoca vaacuterios planos de alfabetizaccedilatildeo e outros tantos meacute-todos revolucionaacuterios que prometiam ensinar a ler em pouco tempo Certo livro de nome Ensino racional de leitura prometia fazer algueacutem ler em quatro dias Nas paacuteginas do jornal O Paiz o anuacutencio procurava seduzir o comprador afirmando ser a publicaccedilatildeo ldquoUm notaacutevel livro por Magnus Sondahlrdquo e que a obra fora ldquoaprovada pelos Conselhos de Instrucccedilatildeo Puacuteblica do Paranaacute e Sergiperdquo e continuava

O autor garante pelo seu systema que seraacute ao alcance de todos ensinar a ler em 4 dias Por mais extraordinaacuterio que isto pareccedila o grande acolhi-mento que a obra tem tido os elogios unacircnimes dos competentes e da imprensa demonstram o valor do livro31

Essa procura por saber ler e adquirir leituras fez surgir ainda em fins do seacuteculo XIX casas que comercializavam livros aacutevidas por atingir um puacuteblico nascente de leitores Foi nesse fim de seacuteculo que surgiu no Rio de Janeiro o livreiro fluminense Pedro da Silva Quaresma Ele comprou em 1879 a Livraria do Povo de Serafim Alves localizada na

30 DAMAZIO Sylvia Retrato social do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo Rio de Janeiro EDUERJ 1996 p 121

31 O Paiz 15 jul 1908 p 9

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rua Satildeo Joseacute nordm 6567 no centro do Rio de Janeiro e ali instalou sua proacutepria livraria que acabou com o tempo mudando de nome para li-vraria Quaresma Aleacutem de vender livros Pedro Quaresma comeccedilou a editaacute-los priorizando a ediccedilatildeo de obras ditas ldquopopularesrdquo e voltadas para os mais diversos puacuteblicos Pensava o editor que para atingir um puacuteblico letrado nascente o ideal seriam as publicaccedilotildees de linguagem amena e a preccedilos moacutedicos Desse modo o formato em pocket-book que barateava o preccedilo do livro tornando-o assim mais acessiacutevel foi a marca principal das ediccedilotildees Quaresma32

Haacute de se salientar que tais publicaccedilotildees ditas ldquopopularesrdquo eram consumidas tambeacutem por homens de reconhecido capital no mundo le-trado A acreditar no memorialista Luiz Edmundo pela livraria Quaresma passava

[] toda uma legiatildeo de cantores de seresteiros de sereneiros a flocircr da vagabundagem carioca essencia sumo nata da raleacute roccedilando natildeo raro a sobrecasaca do Conselheiro Ruy [Rui Barbosa] a importancia do sr Joseacute Veriacutessimo a sisudez do sr Candido de Oliveira a jurisprudencia do sr dr Coelho Rodrigues33

Se essa busca por um puacuteblico consumidor de livros ldquopopularesrdquo alavancava empreendimentos ambiciosos como a livraria Quaresma natildeo se deve homogeneizar suas publicaccedilotildees como sendo meras frivoli-dades Havia tambeacutem livros editados pela Quaresma que tinham um caraacuteter cientiacutefico ndash ou pelo menos pretendiam ter ndash como a Physiologia das paixotildees contendo a anaacutelise de ldquosentimentos moraes de homens e mulheresrdquo sob a luz da ciecircncia escrito pelo meacutedico francecircs J L

32 Sobre a livraria Quaresma jaacute existem alguns bons estudos efetuados no campo historio-graacutefico Cf EL FAR Alessandra Paacuteginas de sensaccedilatildeo literatura popular e pornograacutefica no Rio de Janeiro (1870-1924) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 OLIVEIRA Liacutevio Lima de A revoluccedilatildeo da brochura experiecircncias de ediccedilotildees de livros acessiacuteveis no Brasil ateacute a primeira metade do seacuteculo XX Trabalho apresentado ao NPE (Produccedilatildeo Editorial) do VI Encontro dos Nuacutecleos de Pesquisa da Intercom Santos Seditora 2006 OLIVEIRA Liacutevio Lima de Pedro da Silva Quaresma entre estrangeiros um brasileiro Disponiacutevel em wwwescritoriodolivrocombrofiacuteciosquaresmaphp Acesso em 10 jun 2020

33 EDMUNDO Luiacutes O Rio de Janeiro do meu tempo Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1938 p 735-7

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Alibert34 e o seriacutessimo Histoacuteria geral do Brasil escrito pelo positivista Annibal Mascarenhas Quando comparados a esses uacuteltimos livros o ldquopopularrdquo que publicizava Quaresma dizia mais respeito ao preccedilo de venda que o editor e livreiro tentava manter sempre baixo

No cataacutelogo da livraria Quaresma ainda figuravam desde ma-nuais (como o Manual do namorado o Manual da Bruxa e o Manual praacutetico do destilador) passando por romances de ldquoscenas empolgantesrdquo (como O calvaacuterio de mulher) ateacute os pioneiros livros voltados para o puacuteblico infantil (como Histoacuterias da carochinha e Histoacuterias da vovozi-nha)35 No entanto os primeiros sucessos de vendas da Quaresma foram mesmo os livros contendo compilaccedilotildees de modinhas dos quais o mais famoso foi o Cancioneiro popular de modinhas brasileiras lanccedilado em 1899 alcanccedilando ateacute 1908 incriacuteveis 25 ediccedilotildees O organizador dessa publicaccedilatildeo exitosa foi justamente Catullo da Paixatildeo Cearense

Eram esses livros com compilaccedilotildees de modinhas e canccedilotildees que faziam sucesso no mundo editorial de iniacutecios do seacuteculo passado Joatildeo do Rio observava surpreso o fato de ldquobardos ocasionais da saacutetira e da paixatildeordquo publicarem e venderem mais que poetas ldquo[] Admiram-se que eles imprimam e o que eacute mais esgotem ediccedilotildees milheiros e milheiros de exemplares Pois imprimem como qualquer poeta Apenas eles vendem e a maioria dos poetas oferece graacutetis aos amigosrdquo36

Embora tenha sido como ldquomodernizadorrdquo das modinhas que Catullo tenha adentrado o mundo letrado essa sua assumida postura se por um lado louvada por outro era vista com algumas reservas Joatildeo do Rio que o via com admiraccedilatildeo em artigo publicado na revista Kosmos em 1905 entendia-o como um ldquoestetardquo algueacutem que traduzia para os salotildees o ldquoespetaacuteculo das ruasrdquo

34 ALIBERT Jean-Louis Physiologia das paixotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 191135 Sobre essas uacuteltimas publicaccedilotildees haacute um denso estudo da socioacuteloga Andrea Borges Leatildeo

Cf LEAtildeO Andrea Borges Brasil em imaginaccedilatildeo livros impressos e leituras infantis Fortaleza Inesp UFC 2012

36 Artigo intitulado ldquoA musa das ruasrdquo publicado na Revista Kosmos de 12 de agosto de 1905 Este artigo foi reproduzido em RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008 p 234-252

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O Sr Catullo uacuteltimo trovador velho-gecircnero eacute o esteta da trova popular Vecirc-lo recitar O poeta e a fidalga com um copo de chopp na matildeo eacute um desses espetaacuteculos de brasserie inesqueciacutevel Catullo emaranhou-se no dogma da moda corrigiu os versos de tudo quanto era quadra estudou Belllini Donnizetti Verdi adaptou os nossos versos a trechos de oacuteperas e finalmente compocircs traduccedilotildees livres de Leconte de Lisle para serem recitadas ao piano37

A partir das publicaccedilotildees da livraria Quaresma Catullo da Paixatildeo Cearense passou a ser consumido pela elite letrada brasileira durante quase 60 anos e conviveu com mudanccedilas socioculturais que marcaram profundamente sua obra Tambeacutem soube delas tirar subsiacutedios para compor sua trajetoacuteria como literato por meio de uma aguda sensibili-dade das formalidades que governavam a construccedilatildeo do que se cha-mava ldquoum autor brasileirordquo agrave sua eacutepoca

Ademais na trajetoacuteria inicial de Catullo salta aos olhos um fato que demanda a atenccedilatildeo mais acurada do historiador de sua produccedilatildeo qual seja o fato de ter sido aos poucos identificado como ldquopoetardquo con-comitantemente em que construiacutea estrateacutegias de escrita a fim de ser re-conhecido como ldquoordquo autor dos livros de modinhas por ele organizados Dito de outra forma Catullo teve de construir autoridade sobre os textos por ele organizados para assim ser reconhecido como um ldquopoetardquo

Nesse sentido reveladora eacute a representaccedilatildeo de si construiacuteda por Catullo na mesma entrevista concedida ao jornal O Paiz em 1906 aqui jaacute citada Introduzindo a entrevista os editores do jornal abordavam questotildees como ldquocultura popularrdquo ldquoarterdquo ldquoalma popularrdquo e atestavam os ldquoprogressosrdquo advindos do aperfeiccediloamento de seus praticantes princi-palmente modinheiros Assim observando tais aperfeiccediloamentos os re-poacuterteres do jornal diziam ficar curiosos por conhecer tais ldquotrovadoresrdquo

Procuramos saber qual era delles o mais apreciado o mais em evi-decircncia Era Catullo da Paixatildeo Cearense Onde mora Fomos para laacute na Estaccedilatildeo da Piedade

37 Idem

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Numa das ruas que desembocam a Estaccedilatildeo da linha feacuterrea num tosco chalezinho oculto entre a romaria dos arvoredos escondido por uma cerca de espinheiros numa vivenda sadia florescia o poeta popularBatemos palmas discretas38

Ali no iniacutecio da entrevista nas ligeiras palavras que abriam aquela conversa algumas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre poesia popularnatureza trabalhoinspiraccedilatildeo e gecircnioracionalidade eram postas pelos repoacuterteres e ao avanccedilar a entrevista o proacuteprio Catullo expres-sava como via seu lugar dentro dessas relaccedilotildees e de como entendia o estatuto ldquomodernordquo da modinha que fazia Nesse movimento a partir de uma identificaccedilatildeo do seu objeto a modinha como expressatildeo ldquomo-dernardquo Catullo ia deslocando a imagem estigmatizada do gecircnero como sendo ldquocoisas de vagabundordquo e aproximava suas modinhas de certos ldquoecos de uma alma nacionalrdquo ao passo que construiacutea sua originalidade como autor do gecircnero sua especificidade como um boecircmio letrado e principalmente sua distacircncia em relaccedilatildeo aos trovadores das ruas

O ldquotrovadorrdquo Catullo que florescia por entre as aacutervores da sua casa assim como sua poesia mdash imagem que o jornal tratava de construir dando a ele um ar de ldquoinspirado pela naturezardquo mdash tratava de dizer que

Quando escrevo meus versos sinto que minha alma se eleva que uma nova vida me estua pelo corpo que me esqueccedilo dos contingentes terrenos para pairar muito mais alto na vida espiritual muito mais pura muito mais intensa Vivo mais meu amigo muito mais quando o estro me toni-fica a alma vacillante e amargurada Os meus versos satildeo a minha alma39

Sendo um trabalho oriundo diretamente de sua ldquoalmardquo Catullo afirmava como consequecircncia que a obra estava longe de ser laboriosa e acadecircmica pois

Elles os meus pobres versos natildeo satildeo a obra de um artista na expressatildeo acadecircmica da palavra Natildeo os rebusco no trabalho laborioso e tenaz do parnasianismo Natildeo os talho na mateacuteria-prima da forma []

38 O Paiz 25 fev 1906 p 839 O Paiz 25 fev 1906

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E apesar disso elles satildeo preciosos saem-me da penna sem o menor esforccedilo rithmados pela muacutesica que escolhi para elles40

Catullo Cearense prosseguia indicando que sua poesia natildeo se efetuaria senatildeo acompanhada com a respectiva muacutesica indicada Uma vez que aquilo que escrevia soacute poderia se completar acompanhado pela muacutesica por ele escolhida era por meio da oralidade que seus escritos finalmente se configurariam num fato poeacutetico Observava sobre isso

Disjuntai-vos e aquelles versos que eu cantava haacute pouco que tanto aplaudistes satildeo apenas um corpo sem vida uma flor [sic] sem per-fume porque lhe exauristes o sangue porque lhe tirastes o doce aroma porque os fizestes emmunhecerE eacute uma verdade41

Catullo buscava afirmar-se a partir de uma relaccedilatildeo de proximi-dade de sua arte com sua ldquoalmardquo Essa relaccedilatildeo ainda que o afastasse segundo ele do academicismo de uma poesia consagrada naqueles tempos (a dos ditos parnasianos) credenciava-o a ser reconhecido como poeta em outro acircmbito o da genialidade aquele que expressa a ldquoalmardquo de maneira livre sem a ldquoformardquo

Por outro lado ainda que assumisse ser um modinheiro Catullo tratava de construir-se agrave distacircncia daquilo que homens como Mello Moraes entendiam ser a modinha qual seja parte de um ldquocostume exoacute-ticordquo por ser demais antigo O entrevistado por seu turno observava natildeo fazer coisas antigas pois

O Dr Mello Moraes eacute de parecer que a modinha deve permanecer sempre estacionaacuteria sem avanccedilo nem retrocesso Eu tenho opiniatildeo contraacuteria o canto popular deve acompanhar o espiacuterito popular Jaacute natildeo estamos no tempo do recitativo cheio de melopea sem vibraccedilatildeo A Alma popular activa-se haacute mais intensidade na vida mais educaccedilatildeo artiacutestica O povo quer conhecer o espiacuterito da muacutesica a cujo som se entrega aos torneios da dansa [sic] Como lhe mostrar esse segredo

40 Ibidem41 Ibidem

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Emprestando-lhe a letra E o que eu faccedilo escolho umas das muacutesicas em voga estudo-a e faccedilo os meus versos[]Eu procuro como disse modernizar a arte da modinha Canto a muacutesica Os meus versos acompanham a oacutepera a valsa a polka a schotish a quadrilha e brejeiramente o tango e o maxixe voluptuoso42

Movimento tenso que oscila entre aproximar sua ldquoarterdquo das pro-duccedilotildees do ldquopovordquo e resguardar certa distacircncia desse mesmo ldquopovordquo ndash aqui esse termo tem sentido estigmatizado em negativo ndash a fim de que pudesse ser identificado como um letrado Catullo salientava que ao aparecer em entrevista no jornal

[] terei gosto de ver-me recordado ao nosso povo que eu tenho feito gozar do mais alto palaacutecio a mais pequena choupanaNatildeo eacute bom dizer em serenatas eu natildeo gosto de estar pelas esquinas Canto nos salotildees calmamente sem incocircmodo43

Nos limites de algueacutem reconhecido como ldquopopularrdquo e homem dos salotildees poeta e modinheiro adepto do letramento e buscando suas fontes poeacuteticas na oralidade Catullo Cearense construiacutea um espaccedilo dentro do mundo letrado configurando uma trajetoacuteria singular nas letras brasileiras de iniacutecios do seacuteculo Ainda que sempre fizesse questatildeo de salientar sua forte expressatildeo ldquopopularrdquo o ldquotrovadorrdquo negava qualquer vinculaccedilatildeo de sua produccedilatildeo com algo identificado como folclore ou costumes antigos Longe disso Catullo questionava esse caraacuteter exoacutetico da modinha reite-rado por Mello Moraes embora tenha sido presenccedila natildeo rara nos salotildees ndash que aliaacutes se multiplicavam naqueles idos uma vez que a cultura dos salotildees liacutetero-musicais tomou conta da elite letrada carioca do periacuteodo A historiadora Rosa Maria Barbosa observa que

A oferta de lazer noturno da cidade natildeo tornou a famiacutelia boecircmia no sentido de romper com as regras e esquecer as preocupaccedilotildees morais Ao

42 O Paiz 25 fev 190643 Ibidem

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contraacuterio o projeto republicano normatizador condicionou a boemia a tornar-se familiar []A elite boecircmia trocou o espaccedilo da rua os cafeacutes e restaurantes onde se reunia para beber e conversar pelo brilho dos salotildees liacutetero-musicais e pela intimidade dos clubes44

Em 1906 o historiador Rocha Pombo testemunhava para os lei-tores do perioacutedico carioca Correio da Manhatilde uma dessas noites em que presenciara Catullo da Paixatildeo Cearense num encontro ocorrido em casa de Mello Moraes realizado em homenagem ao escritor e acadecirc-mico Alberto de Oliveira

Corria a bella festa serena e sumptuosa como sempre satildeo as daquele doce e carinhoso lar do dr Mello Moraes Filho Tinhamos ouvido jaacute estrophes deliciosas magniacuteficas borbotoantes como catadupas de lavas vinda da alma do nosso grande Alberto OliveiraTinhamos jaacute sentido cantos e muacutesicas ndash tudo isso que tempera as almas para o sagrado conviacutevio e que daacute um tom muito fino muito vivo agrave jovialidade dos coraccedilotildees que se encontram E continuaacutevamos todos numa aclamaccedilatildeo uniacutessona e incessante ao illustre poeta em honra de quem ali estaacutevamosLaacute pela meia noite correcircra entre os convivas a notiacutecia de que havia chegado agrave casa o Catullo CearenseFrancamente este nome natildeo me era estranho Por vezes me havia soado aos ouvidos sob gestos inexpressivos e sem nada que revelasse coisa alguma de excepcional e extraordinaacuterioNatildeo sei bem porque mas o certo eacute que no meu espiacuterito vagava esta Idea ndash fugidia e imprecisa ndash de que Catullo natildeo era mais que um simples cantador de modinhas um desses boecircmios chefes de Lyra bardo de violatildeo ao luar sabendo gemer entre um pigarro e outro uma porccedilatildeo de banalidades sobre o velho estafado thema do amorNatildeo fizemos portanto eu e uns iacutentimos que discreteaacutevamos fora do bulliacutecio da festa muito caso do annuncio que se espalhaacutera

44 ARAUacuteJO Rosa Maria Barboza de A vocaccedilatildeo do prazer a cidade e a famiacutelia no Rio de Janeiro republicano Rio de janeiro Rocco 1993 p 348

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Dahi a pouco fomos chamados agrave sala onde jaacute encontramos todo aquelle mundo em foacuterma numa grande espectaccedilatildeo de coisas solennes []Haacute nos olhares uma como interrogaccedilatildeo de mysteacuterioO homem levanta-se e vem pro meio do salatildeo E des daquelle instante ndash digam os que ali tiveram a fortuna de estar ndash elle foi o senhor daquellas almas como se fosse a alma de todos noacutesCantou creio que os Olhos dela []Na sala entatildeo se fez uma atmosphera de assombro sacudido por aquele verbo de fogo arrebatado por aquella figura de trasgo insurgido ndash o auditoacuterio extasia-se illumina-se exalccedila-se como si a flamma daquella alma passasse subitamente para todas as almasE quando o vulto do cantor minguou n [sic] sala deixando escapar-se--lhe dos laacutebios o uacuteltimo verso houve uma verdadeira explosatildeo de de-liacuterio tatildeo espontacircnea tatildeo ruidosa tatildeo vibrante como si formidaacutevel tufatildeo barafustasse naquelle ambiente Natildeo eram palmas eram gritos de acla-maccedilatildeo transportes arrebatamentos ndash quase insacircnia e desatino []45

A citaccedilatildeo eacute longa e esclarecedora para demonstrar a aceitaccedilatildeo de Catullo e de modinhas entre os letrados de entatildeo Adentrar os espaccedilos de sociabilidade dessa elite e a acreditar no testemunho de Rocha Pombo ser ovacionado por ela era possuir um capital social que autori-zava um indiviacuteduo mesmo um modinheiro como Catullo a ser consi-derado algo mais do que um simples ldquotrovadorrdquo

Digo-o desassombradamente Catullo eacute um grande poetaA meu ver tem elle na alma alguma coisa mais que a exuberante e en-thusiastica poesia do nosso povo nos seus versos nos seus cantos fala a excelsia musa anocircnima e immortal da raccedilaE sente-se isso tanto mais quanto essa musa pelo estro deste poeta nos fere na alma umas grandes notas que nos dizem como Ella se comove agora apercebida do que foi nos tempos do velho culto saudosa das edades mortas e ufana de ressurgir para outras edificaccedilotildees46

O modinheiro Catullo de ldquobardo tocador de violatildeordquo de ldquochefe boecircmio da Lyrardquo passava a ser representado como ldquopoetardquo Essa repre-

45 Correio da Manhatilde 25 ago 1907 p 3 46 Idem

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sentaccedilatildeo era construiacuteda pela constataccedilatildeo de que em seus versos falava ldquoa musa anocircnima e immortal da raccedilardquo vinda por fim de ldquoedades mortasrdquo e ressurgida para novas ldquoedificaccedilotildeesrdquo Essa passagem de bardo a poeta se desenrolou paulatinamente de forma que ao chegar o ano do testemunho de Rocha Pombo a representaccedilatildeo de Catullo jaacute diferia substancialmente da criada para definir outros modinheiros cariocas da eacutepoca Na medida em que a modinha passou a ser considerada impor-tante pelos letrados a figura de Catullo que jaacute se arvorava como letrado e organizador de livros de modinhas foi sendo alavancada como al-gueacutem que expressava a ldquopoesia popularrdquo Poreacutem para ser considerado um ldquopoetardquo e por conseguinte um distinto entre os outros modinheiros Catullo usou de estrateacutegias que se expressavam nos textos por ele publi-cados e que seratildeo mateacuteria de nosso exame adiante

Catullo jaacute em iniacutecios do seacuteculo XX poderia ser representado como um ldquoboecircmio modinheirordquo e ao mesmo tempo ldquopoetardquo Podemos flagraacute-lo em notiacutecias em que se avultavam esses dois lados de maneira natildeo contraditoacuteria como no curioso protesto que liderou e que foi noti-ciado nos jornais ldquoUma commissatildeo de poetas chefiados pelo Sr Catullo da Paixatildeo Cearense vae pedir ao ministro da viaccedilatildeo para que de ora em deante natildeo se acenda mais o gaz nas noites de luarrdquo47

Haacute de se chamar a atenccedilatildeo que aleacutem de Afonso Arinos e Mello Moraes jaacute citados Alberto Brandatildeo Pinheiro Machado e ateacute os presi-dentes Nilo Peccedilanha e Hermes da Fonseca eram homens que abriam as portas de suas residecircncias para espetaacuteculos das ditas ldquocoisas brasilei-rasrdquo48 Nilo e Hermes inclusive escandalizaram alguns detratores da modinha abrindo as portas da sede do Governo Federal para receber Catullo Na eacutepoca o caso de Hermes da Fonseca foi o mais comentado Sua mulher Nair de Teffeacute aluna de violatildeo e admiradora de Catullo apresentou em 1914 para um distinto puacuteblico presente no Palaacutecio do Catete entatildeo sede do Governo acompanhando-se ao violatildeo o maxixe Corta jaca de autoria de Chiquinha Gonzaga e com letra de Catullo

47 O Seacuteculo 14 abr 1908 p 148 Hermano Viana tambeacutem daacute um raacutepido quadro de alguns desses salotildees Cf VIANNA

Hermano O misteacuterio do samba 7 ed Rio de Janeiro ZaharUFRJ 2010

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo52

Um escacircndalo que os jornais colocariam na conta do presidente General Hermes da Fonseca nos dias posteriores Nair de Teffeacute admiradora de Catullo tambeacutem intercedeu junto a Hermes para que arrumasse uma vaga para o modinheiro na Imprensa Nacional no que foi atendida Toda essa admiraccedilatildeo fez com que em maio de 1914 Catullo fosse cha-mado ao Palaacutecio do Catete para ele mesmo fazer um recital de modi-nhas Nair de Teffeacute contava que

Essa audiccedilatildeo de Catullo no Palaacutecio do Catete constituiu o maior su-cesso a que um verdadeiro artista poderia aspirar em toda a sua vida Catullo ao teacutermino de cada canccedilatildeo que interpretava recebia da culta assistecircncia uma ovaccedilatildeo delirante Todos os aplausos de peacute E ecircle bem o merecia pelo seu gecircnio e seu irresistiacutevel poder de transmissatildeo de sen-timentos Catullo era pobre modesto educadiacutessimo de uma simplici-dade nazarena Seu orgulho era sua Arte a sua Religiatildeo [] Devo a Catullo a sugestatildeo de cantar de preferecircncia na nossa liacutengua Depois de ouvir Catullo fiquei tatildeo impressionada com o seu prodigioso poder de interpretaccedilatildeo que resolvi estudar letras brasileiras e acompanhar-me ao violatildeo para cantaacute-las49

O contraste que Nair de Teffeacute faz aparecer em seu depoimento era uma representaccedilatildeo que ajudou por diversas vezes as portas dos salotildees a abrirem-se para as modinhas de Catullo O ldquosimplesrdquo e ldquopobrerdquo Catullo poderia ao mesmo tempo por ser ldquoeducadiacutessimordquo ser figura comum nos espaccedilos de uma elite letrada que curtia as mani-festaccedilotildees do ldquopovordquo

Mas se a apresentaccedilatildeo no Palaacutecio do Catete lhe rendera um reconhecimento como artista antes em 1908 usando de seu capital social adquirido Catullo conseguiu aquilo que lembraria para sempre como sendo sua verdadeira consagraccedilatildeo uma apresentaccedilatildeo de modi-nhas acompanhada ao violatildeo no Instituto de Muacutesica mdash que era consi-derado o templo da muacutesica no periacuteodo e no entanto fechava as portas para apresentaccedilotildees de motivos populares Depois de muito hesitar o diretor-maestro do Instituto Nacional de Muacutesica Alberto Nepomuceno consentiu que ali se realizasse um espetaacuteculo de modinhas brasileiras

49 Entrevista de Nair de Teffeacute Apud MAUL Carlos Op cit p 69

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capitaneado por Catullo Daquela noite o escritor Luciano Braga prefaciando um dos livros de modinhas do autor contava que

[] o leitor se laacute natildeo esteve pergunte a algueacutem do proacuteprio Instituto o que foi essa audiccedilatildeoPoucas vezes aquelle estabelecimento teraacute tido uma enchente como a do concerto do illustre poeta O auditoacuterio foi do que a Capital tem de mais fino nas letras sciencias e artes Viam-se senhoras de peacute que o ambiente regorgitava50

Nas palavras de Luciano Braga se expressava a forma como Catullo em 1913 jaacute era conhecido um poeta Essa construccedilatildeo foi pau-latinamente construiacuteda por Catullo em seus livros e em suas apresenta-ccedilotildees nos salotildees Ao referir-se a ele como poeta Luciano Braga ecoava a reabilitaccedilatildeo progressiva que as modinhas recebiam por parte do mundo letrado de entatildeo Reabilitaccedilatildeo em muito advinda do ecircxito editorial das letras de modinhas publicadas a cargo de Catullo Ateacute o ano do teste-munho de Luciano Braga haviam sido publicados 11 livros organizados por Catullo da Paixatildeo Cearense cujo conteuacutedo eram letras de modinhas indicadas com as respectivas muacutesicas a serem acompanhadas

O certo eacute que naquela noite de 5 de junho de 1908 as galerias do Instituto de Muacutesica no Rio de Janeiro nunca haviam recebido tamanha multidatildeo A distinta plateia acostumada a frequentar cafeacutes e livrarias da capital durante o dia aglomerava-se nos corredores para assistir ao es-petaacuteculo em que Catullo da Paixatildeo Cearense cantava modinhas acom-panhando-se ao violatildeo Letrados como Joseacute do Patrociacutenio Filho e Luiz Murat festejavam no modinheiro o triunfo do violatildeo ldquobrasileirordquo nos espaccedilos reservados para espetaacuteculos da dita ldquocivilizaccedilatildeordquo Entre aqueles que ali presenciavam o acontecimento estava o escritor Joatildeo do Rio (Paulo Barreto) que meses depois jaacute saudoso lembraria aquele dia em sua crocircnica no jornal

50 BRAGA Luciano Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Lyra dos salotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1926 p 7

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo54

Certo quando entramos natildeo contaacutevamos com aquele ambienteO theatro estava cheio mas cheio dessa sociedade elegante e fina da sociedade que estaacute no Lyrico nas recepccedilotildees nos chaacutes nos bailes da sociedade que vae para Petroacutepolis51

Essa febre por procurar e definir o que seriam as ldquocoisas brasi-leirasrdquo fez surgir um diaacutelogo fecundo entre uma elite letrada (que necessaacuterio dizer ainda se construiacutea como elite) e as camadas popu-lares que eram identificadas como guardadoras de expressotildees da dita ldquoraccedila brasileirardquo Mesmo maestros do consagrado Instituto de Muacutesica como Alberto Nepomuceno organizavam-se em um movimento de procura das raiacutezes musicais do paiacutes e viam num sujeito como Catullo o representante ideal para mostrar essas ldquocoisas brasileirasrdquo em es-paccedilos ditos ldquocivilizadosrdquo52

Foi assim que Catullo da Paixatildeo Cearense articulando sua circu-laccedilatildeo entre muacutesicos do periacuteodo que o faziam conhecer o universo das ruas (espaccedilo de oralidades fontes de suas produccedilotildees) suas boas rela-ccedilotildees com a elite carioca e seu encontro com um bom editor ndash que o autor dizia ser ldquoum americano nisso de reclamesrdquo pois ldquocada impressatildeo de meus livros editados sempre pela Livraria Quaresma custa os olhos da cara e o resto do resultado gasta-se quase todo em anuacutenciosrdquo53 mdash foi construindo sua representaccedilatildeo de poeta popular letrado

As ruas e os salotildees Com tracircnsito livre pelos dois espaccedilos Catullo se constituiacutea em artista e poeta do povo Mais tarde descobriria que ser poeta do sertatildeo mdash num momento em que tematizar o sertatildeo vira febre mdash lhe daria outro tipo de status que as modinhas natildeo davam o de tatildeo simplesmente poeta Mas antes disso Catullo da Paixatildeo Cearense teve de lidar com os entraves advindos de ser considerado uma ldquoexpressatildeo do povordquo o que lhe retirava a priori a autoria de suas publicaccedilotildees de

51 Gazeta de Notiacutecias set 1908 p 752 Sobre a busca pelo ldquopopularrdquo na muacutesica cf TABORDA Maacutercia Violatildeo e identidade

nacional Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011 Para a atuaccedilatildeo de Alberto Nepomuceno como diretor do Instituto de Muacutesica cf PEREIRA Avelino Romero Muacutesica sociedade e poliacutetica Alberto Nepomuceno e a Repuacuteblica musical Rio de Janeiro UFRJ 2007

53 O Paiz 25 fev 1906 p 8

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modinhas pela livraria Quaresma Essa complexa equaccedilatildeo seraacute melhor compreendida adiante ao observarmos como a publicaccedilatildeo de textos contendo motivos considerados ldquopopularesrdquo (sejam modinhas ou temas sertanejos) forccedilosamente poderia criar entraves para algueacutem que pleite-asse o reconhecimento como literato mdash como era o caso de Catullo Para tanto eacute necessaacuterio atentar a um tema fulcral expresso em publica-ccedilotildees produzidas no periacuteodo a relaccedilatildeo de uma cultura letrada que nascia com a discussatildeo sobre o popular Analisando todos os atores que o construiacuteram desde leitores ateacute autores e editores

Aliaacutes o papel do editor Quaresma deve ser ressaltado pois foi a partir de seu objetivo editorial que pocircde surgir no seio do mundo letrado a obra de Catullo da Paixatildeo Cearense E eacute entendendo a trajetoacuteria de Catullo no espaccedilo de uma cultura escrita da qual ele fazia parte que se compreende a emergecircncia de sua literatura no periacuteodo

Aos leitores ldquotudo quanto se quizerrdquo autor livro e literatura

ndash Mas que quer o puacuteblico Qual eacute essa nova curiosidadendash A curiosidade do veratildeondash Uma curiosidade que desapareceraacute como os figos e as mangasndash Sim natildeo ria Todo o povo razoavelmente constituiacutedo tem duas curiosi-dades intermitentes e de ordem extrapraacutetica saber em que deuses crecircem os seus profetas e o que realmente pensam e satildeo os seus pensadores e os seus artistas Estas curiosidades soacute aparecem quando a Cacircmara fecha A imprensa que fala de toda a gente soacute natildeo falou ainda dos literatos Entretanto noacutes somos um paiacutes de poetas Em cada esquina encontra-se uma escola de arte em cada cafeacute corre desabrido esse processo epica-mente nacional de sova literaacuteria no interior das livrarias fervilham as novas escolas de arte Como os homens variam e os livros natildeo satildeo lido oh Senhor Deus Ler todos esses volumes Seria interessante fixar o que pensam ou o que natildeo pensam os caros iacutedolos da nossa artendash Iacutedolosndash O homem que escreve eacute sempre um iacutedolo Mesmo quando escreve mal o que natildeo eacute raro Quando algueacutem se destina a ser julgado pode ter a certeza de ser pelo menos o culto de uma almaO tom sentencioso do meu veneraacutevel amigo comeccedilava a irritar e a convencer

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo56

Ele poreacutem continuava animadondash Natildeo se pode imaginar a admiraccedilatildeo e o culto que se devota aos homens de letras nossos54

Em 13 de marccedilo de 1905 com a narraccedilatildeo de uma suposta con-versa que Joatildeo do Rio teve com seu amigo o jornal Gazeta de Notiacutecias anunciava uma seacuterie de entrevistas capitaneadas por Joatildeo do Rio com vaacuterios autores da considerada ldquoliteratura brasileirardquo O propoacutesito era mostrar ao puacuteblico leitor do jornal o que pensavam aqueles que o amigo do entrevistador chama no trecho acima citado de ldquoiacutedolosrdquo

A notabilidade do autor de livros no Brasil do periacuteodo eacute atestada pelo interlocutor de Joatildeo do Rio com uma sentenccedila lacocircnica ldquoO homem que escreve eacute sempre um iacutedolordquo E saber escrever ndash ou melhor ser re-conhecido como algueacutem que sabe escrever ndash era um fator que diferen-ciava um indiviacuteduo da grande maioria que natildeo sabia ler nem escrever De forma que para uma nova camada social que enxergava no letra-mento uma caracteriacutestica fundamental para reconhecer-se como elite aqueles ldquohomens de letrasrdquo eram no dizer do companheiro de Joatildeo do Rio seus ldquoiacutedolosrdquo

Revistas e jornais como o Gazeta de Notiacutecias muitas vezes publicavam as efemeacuterides da qual nos fala o amigo de Joatildeo do Rio ndash aquilo que ldquodesapareceraacute como os figos e as mangasrdquo ndash e eram os principais veiacuteculos propagadores dos modismos que interessavam ao puacuteblico leitor Mas que queria esse puacuteblico

A possibilidade de investigaccedilatildeo do mercado consumidor de livros na eacutepoca eacute um campo que ainda causa muitas discussotildees entre historiadores da literatura e criacuteticos literaacuterios De fato infor-maccedilotildees sobre nuacutemero de vendagens satildeo bastante imprecisas (quando natildeo inexistentes) agrave eacutepoca para afirmar com seguranccedila que uma de-terminada obra pudesse ter sido bastante consumida Penso ndash e sigo aqui esse caminho ndash que o que mais aproxima um investigador de cravar uma determinada obra literaacuteria como bastante consumida seja o nuacutemero de ediccedilotildees

54 RIO Joatildeo do O momento literaacuterio Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 2010

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Assim uma obra como Os sertotildees de Euclides da Cunha cujo nuacutemero de ediccedilotildees chegou a trecircs em menos de trecircs anos pode ser con-siderada uma obra bastante consumida Cancioneiro fluminense de 1887 primeira publicaccedilatildeo organizada por Catullo da Paixatildeo Cearense teve em poucos anos as mesmas trecircs ediccedilotildees esgotadas E Cancioneiro popular de modinhas brasileiras do mesmo autor incriacuteveis 25 ediccedilotildees em nove anos Eacute nesses nuacutemeros impressionantes de um autor hoje re-lativamente desconhecido como Catullo que se encontra o cerne da discussatildeo era Catullo um escritor popular

O termo ldquopopularrdquo muitas vezes evocado para salientar o su-cesso de uma obra pode evocar tambeacutem tanto uma definiccedilatildeo do puacuteblico ao qual se destina quanto pode ser a identificaccedilatildeo de um determinado tema na obra como sendo ldquopopularrdquo e ainda mais pode identificar o valor pecuniaacuterio de uma obra quando vendida Essa polissemia no termo ldquopopularrdquo guarda evidentemente alguns debates historiograacute-ficos que tecircm gerado nos uacuteltimos anos um redirecionamento no seu uso55 O historiador Roger Chartier propotildee que a discussatildeo acerca do popular deva ultrapassar o caraacuteter de definiccedilatildeo a priori de uma praacutetica e sugere em contrapartida a investigaccedilatildeo dos seus usos ou dito de outro modo dos seus significados construiacutedos socialmente56 Nesse sentido investigar as apropriaccedilotildees dos objetos culturais seria a melhor forma de se compreender como determinada praacutetica ganha um sentido construiacutedo por seus praticantes E avanccedilando como os praticantes (os leitores por exemplo) compartilham eles mesmos determinados signi-ficados que progressivamente vatildeo se constituindo em uma identidade social atraveacutes do reconhecimento muacutetuo de que participam de uma mesma comunidade

No nosso caso a elite letrada brasileira como procuramos de-monstrar construiu um circuito de espaccedilos de sociabilidades vaacuterios onde

55 Jacques Revel fez uma interessante siacutentese desses debates Cf REVEL Jacques Cultura popular usos e abusos de uma ferramenta historiograacutefica In REVEL Jacques Proposiccedilotildees ensaios de histoacuteria e historiografia Rio de Janeiro EdUERJ 2009 p 163-186

56 CHARTIER Roger Cultura popular revisitando um conceito historiograacutefico Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 8 n 16 1995

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encenavam essa identidade Ao mesmo tempo os literatos ndash ou seja uma parcela dessa mesma elite letrada ndash criavam eles mesmos os seus es-paccedilos de consagraccedilatildeo como a Academia Brasileira de Letras e seus ri-tuais de reconhecimento como as conferecircncias os encontros liacuteteros-mu-sicais etc Um indiviacuteduo identificado como um letrado natildeo era evidentemente um literato Nem algueacutem que escreve um livro era auto-maticamente identificado como tal Isto porque antes disso a construccedilatildeo de uma autoridade sobre os textos demandava duas estrateacutegias a de reco-nhecimento social do candidato a autor como letrado e a concomitante identificaccedilatildeo do seu texto como algo a ser encarado como literatura

Assim livros publicados pela livraria Quaresma por exemplo nem sempre podiam ser reconhecidos como ldquoliteraturardquo pelos seus lei-tores Nesse sentido um autor que tivesse sido publicado pela Quaresma teria de lidar com os diversos entraves para seu reconhecimento como literato mdash ou seja um letrado que era autor de um texto que natildeo pro-priamente figurava com o epiacuteteto de ldquoliteraturardquo

Outrossim o editor natildeo hesitava em definir alguns dos autores que publicava como ldquopopularesrdquo alguns por conter temas identificados por uma elite letrada como ldquopopularrdquo outros por ter a obra um valor de venda bem menor quando comparada a publicaccedilotildees da Garnier e da Laemmert duas das maiores casas editoriais do periacuteodo e muitos por seus livros terem mais de uma ediccedilatildeo da obra publicada sendo jaacute um sucesso de vendas Definir um texto como sendo da lavra ldquodo povordquo automaticamente fazia desaparecer a figura do autor tornando-o mero coletor de expressotildees ldquopopularesrdquo

Assim a publicaccedilatildeo de livros contendo ldquotemas popularesrdquo carre-gava outros tipos de constrangimentos para o organizador da obra Este poderia ser reconhecido como um letrado pelo puacuteblico mas natildeo o autor do texto por ele publicado Neste uacuteltimo caso o criador do texto teria de se afirmar antes como ldquoautorrdquo a fim de construir para o leitor o reco-nhecimento de sua ldquoautoridaderdquo sobre os textos Essa afirmaccedilatildeo autoral se fundava por meio de lentas e progressivas estrateacutegias de escrita le-vadas a cabo pelo candidato a autor

Se o texto publicado era digno de ser considerado um texto lite-raacuterio logo o autor era alccedilado a literato Para isso a criacutetica de jaacute reconhe-

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cidos literatos era fatal Maacuterio Pederneiras assim fala de seu iniacutecio como poeta a Joatildeo do Rio

Para desespero dos amadores da literatura de peso em brochuras de quilo todo o meu trabalho literaacuterio ateacute hoje aparecido estaacute enfeixado em duas plaquettes esgalgas excelentemente impressas Agonia e Rondas NoturnasA primeira meu livro de estreacuteia sofreu coitadinha todos os maus tratos da veneranda Criacutetica indiacutegena disseram-lhe nomes feios chamaram-na de produto posticcedilo de preconceito escolar e ateacute Joatildeo chegaram a arru-mar-lhe em cima o peso vigoroso de insultos em francecircs Um horrorLembro-me ainda de que o egreacutegio Sr Antocircnio Sales no seu beliacutes-simo estilo pompadour deu-lhe pra baixo de rijo em meio palmo de excelente prosa gramatical pelas colunas de honra de um diaacuterio de efecircmera duraccedilatildeoDesesperei Joatildeo Porque contava bastante com a autorizada opiniatildeo de S Exordf para a minha consagraccedilatildeo de poeta novo57

Maacuterio Pederneiras mostra que se natildeo fosse reconhecido por ldquosu-midadesrdquo ainda que se reconhecesse sua autoria sobre o texto estava fadado a ser simplesmente um autor letrado Para todas essas opccedilotildees havia uma que as antecedia a aparentemente trivial necessidade de construccedilatildeo da autoria sobre a obra

Sem duacutevida em geral havia dois caminhos a serem seguidos publicar um livro e ser reverenciado como um literato (o que jaacute garan-tiria ao criador do texto obviamente sua autoria) ou publicar um livro no qual se garantia sua autoria e natildeo ser identificado como um literato (caso de muitas das publicaccedilotildees a cargo da livraria Quaresma) A traje-toacuteria seguida por Catullo Cearense difere de ambas

Ainda que se tenham em alta conta suas publicaccedilotildees de modi-nhas por serem identificadas como ldquopopularesrdquo e expressatildeo de uma ldquoalma nacionalrdquo eacute exatamente seu sucesso como organizador de livros ditos ldquopopularesrdquo (neste caso entendido no sentido de que vinha do ldquopovordquo) que entravava seu reconhecimento como autor Uma vez reco-

57 RIO Joatildeo do O momento literaacuterio Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 1905 p 70

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nhecido como ldquopoeta popularrdquo a ecircnfase no ldquopopularrdquo (e ldquopopularrdquo aqui porque expressatildeo de uma ldquonaturezardquo de uma ldquoalmardquo) ao mesmo tempo em que daria o sucesso de puacuteblico retiraria parte da autoridade sobre o texto publicado Afinal de contas ldquopopularrdquo era identificado por muitos estudiosos das coisas ditas ldquopopularesrdquo do periacuteodo (como Melo Moraes) como coisa do ldquopovordquo e natildeo de um autor que tatildeo so-mente expressaria a tal ldquoalma do povordquo

O sucesso de puacuteblico garantido por qualquer publicaccedilatildeo que se arvorasse como ldquopopularrdquo ao que parece poderia ser frustrante para um escritor mas por outro lado entusiasmava o editor Quaresma em publicar seus tiacutetulos com a adjetivaccedilatildeo ldquopopularrdquo E ele publicou vaacuterios tiacutetulos que vinham com essa adjetivaccedilatildeo O cozinheiro popular que prometia ser uma ldquoverdadeira enciclopeacutedia culinaacuteriardquo oferecendo ao leitor receitas de ldquotudo quanto se quiserrdquo58 O orador do povo que reunia discursos familiares e populares proacuteprias para qualquer evento social e Cancioneiro popular organizado por Catullo59

Nesse sentido ser ldquopopularrdquo como expressatildeo do povo soava po-sitivamente para o editor Quaresma mas podia ser diferentemente com-preendido pelo organizador ou escritor da obra Tanto mais porque ao passo que lhe dava o reconhecimento de letrado punha-o em situaccedilatildeo menor entre os letrados exatamente por natildeo ser de uma elite letrada mas daquilo que chamavam ldquopovordquo Para entender esse movimento eacute necessaacuterio compreender os rituais que governavam essa sutil separaccedilatildeo no mundo letrado de entatildeo

Um passeio pelas livrarias do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo XIX para o XX bem poderia provocar espanto para um transeunte desa-visado Nelas podia-se encontrar desde aquela considerada a mais ldquoalta literaturardquo representada naqueles tempos por homens como Machado de Assis e Coelho Neto ateacute um tipo de literatura entendida como ldquopo-pularrdquo escrita para o passatempo do leitor ou marcadamente produzida para ser uacutetil nas praacuteticas cotidianas como manuais receitas e livros de

58 Cataacutelogo da Livraria Quaresma In NEVES Eduardo das Mysteacuterios do violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1905 p 125

59 MASCARENHAS Annibal O orador do povo Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1924

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 61

pornografia Naqueles espaccedilos era comum segundo o memorialista Luiacutes Edmundo encontrar um reconhecidamente ilustrado como Rui Barbosa a disputar espaccedilos ao lado de

[] toda uma freguezia perguntona espalhafatosa vozeiruda que ar-ranca notas de dois e cinco mil reacuteis do fundo de lenccedilos de chita muito sujos armados em carteiras para comprar as brochurinhas postas em capas de espavento natildeo raro aos empurrotildees aos gritos60

Natildeo eram somente nas livrarias que se podia encontrar essa elite letrada aacutevida por um livro Nas ruas cariocas o comeacutercio livreiro fa-zia-se presente com os ldquocaixeirosrdquo gente que ao comprar as brochuras nas livrarias saiacutea vendendo-as pela cidade

Observando essa efervescecircncia livresca o cronista Joatildeo do Rio escrevia que

Os vendedores de livro satildeo uma chusma incontaacutevel que todas as manhatildes se espalha pela cidade entra nas casas comerciais sobe aos morros percorre os subuacuterbios estaciona nos lugares de movimento61

Esses vendedores se beneficiavam de uma progressiva consta-taccedilatildeo arraigada nos grandes centros urbanos do paiacutes na eacutepoca de que possuir um livro era sinal de distinccedilatildeo Ora uma vez que no Brasil eram poucos os que sabiam ler e escrever aqueles que detinham essa teacutecnica fatalmente se distinguiam dos demais de forma que muitas vezes o caraacuteter de reconhecimento social se dava pelo fato de um indi-viacuteduo ser iniciado ou natildeo nas letras Isso criou condiccedilotildees para que a elite citadina brasileira se reconhecesse cada vez mais pelo letramento

De fato inuacutemeros satildeo os casos de autores que ainda por natildeo possuiacuterem socialmente uma vida confortaacutevel e com as regalias de uma possiacutevel ldquoelite econocircmicardquo eram entendidos como fazendo parte de um restrito grupo de uma elite letrada As representaccedilotildees construiacutedas para

60 EDMUNDO Luiacutes O Rio de Janeiro do meu tempo Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1938 p 735-7

61 RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008 p 85 Essa crocircnica foi publicada em 12 fev de 1906 no jornal Gazeta de Notiacutecias do Rio de Janeiro

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo62

serem definidoras daquilo que se entendia como uma ldquoeliterdquo teriam de inevitavelmente passar pela proximidade do indiviacuteduo com o objeto livro Foi a partir disso que o mercado consumidor de livros foi impul-sionado e com ele os editores comeccedilaram a publicar livros que aten-dessem agrave demanda por um puacuteblico leitor que nascia

Esses consumidores interessavam-se por livros que poderiam servir inclusive como presente para uma ldquosenhorardquo bastando ser no caso dos romances ldquoconvenientemente encadernadordquo como indicava na eacutepoca o famoso Manual do namorado62 Ademais livros como ma-nuais eram presenccedila constante nas listas dos mais vendidos Manual do namorado Manual do chofer Manual praacutetico do destilador Manual do padeiro Todos esses tiacutetulos eram publicaccedilotildees que visavam a al-canccedilar um puacuteblico letrado nascente e que poderiam encontrar nesses livros uma leitura uacutetil e de simples acesso ou mesmo apenas frivoli-dades para o passatempo no dia a dia63

A necessidade de seduzir os leitores fazia com que os livreiros e editores do periacuteodo natildeo soacute tratassem de chamar a atenccedilatildeo para o con-teuacutedo do livro bem como salientassem a proacutepria materialidade do livro O editor Quaresma por exemplo ficou conhecido por seu esforccedilo pu-blicitaacuterio ao fazer grandes cartazes e pregar por toda cidade anunciando a chegada de um livro Das propagandas estampadas nos grandes jor-nais do Rio agraves chamadas em que anunciava natildeo soacute o conteuacutedo da publi-caccedilatildeo mas tambeacutem seu caraacuteter esteacutetico tudo era mobilizado como forma de seduzir um possiacutevel consumidor tal como aparece no anuacutencio do livro com letras de modinhas intitulado Lyra dos salotildees ldquoUm grosso volume de 608 paacuteginas com dezenas e dezenas de retratos de todos os poetas e deslumbrante capa em chromo-lythographia do insigne artista brasileiro Raulrdquo64

62 BOTAFOGO Don Juan de Manual do namorado Rio de Janeiro Ediccedilotildees Quaresma sd p 8

63 Na Franccedila havia muito tempo que existia uma tradiccedilatildeo na publicaccedilatildeo de manuais Cf EL FAR Alessandra Paacuteginas de sensaccedilatildeo literatura popular e pornograacutefica no Rio de Janeiro (1870-1924) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004

64 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 224

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 63

O texto referia-se ao famoso caricaturista Raul Pederneiras O investimento da abordagem esteacutetica da obra fazia com que as casas edi-toriais tivessem um rol de artistas que tratavam de assegurar a beleza do objeto livro visando a criar o fasciacutenio do potencial consumidor Era comum trabalharem nessas casas homens como Raul Pederneiras Bastos Tigre e vaacuterios outros ilustradores muitos ganhando fama inicial com a produccedilatildeo de capas

Tambeacutem da livraria Quaresma se deu a iniciativa de publicar a chamada ldquoBiblioteca Infantilrdquo a primeira accedilatildeo editorial no Brasil que visava ao puacuteblico infantil ainda nos anos 1910 No anuacutencio de Histoacuteria da Baratinha o editor Quaresma salientava natildeo soacute o con-teuacutedo com ldquonarraccedilotildees phantaacutesticasrdquo mas tambeacutem o fato de o livro formar ldquo[] um grosso volume de 320 a 400 paacuteginas com milhares de vinhetas e gravuras impresso em papel de boa qualidade typo novo e letras de fantasia encadernado e sempre com a mesma capa lithogra-phada a coresrdquo65

A necessidade de seduzir pela materialidade do livro foi um arti-fiacutecio comum na publicizaccedilatildeo das obras literaacuterias de entatildeo Ademais isso revelava as estrateacutegias editoriais que buscavam alcanccedilar um puacute-blico semiletrado Estrateacutegia essa que por fim visava agravequeles cujo ldquoob-jetordquo livro demandava natildeo raro mais interesse do que o proacuteprio texto que ele carregava

Ora perder de vista essa dimensatildeo seria desdenhar toda uma re-laccedilatildeo que o consumidor de livros tinha quando da sua posse no Brasil da eacutepoca e aleacutem disso seria menosprezar o valor que subjazia ter um livro numa sociedade que paulatinamente valorizava o ldquocidadatildeo le-tradordquo Essa constataccedilatildeo nos coloca diante da possibilidade de vislum-brar nos textos produzidos no periacuteodo natildeo soacute a construccedilatildeo de artifiacutecios que pudessem ldquopescarrdquo o leitor ndash fossem eles artifiacutecios editoriais temaacute-ticos e narrativos ndash mas como os proacuteprios sujeitos construiacuteam para si um lugar entre aqueles que pudessem ser reconhecidos como ldquoletradosrdquo Mais como essa produccedilatildeo de autoridade sobre o objeto livro passava

65 Cataacutelogo da Bibliotheca Infantil da Livraria Quaresma In DEMOSTHENES Annibal O orador do povo Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1924

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo64

por um entendimento profundo de que sua posse representava de al-guma forma poder ― fosse do autor do editor ou do leitor

O escritor Lima Barreto nos conta acerca de seu personagem Policarpo Quaresma que ele possuiacutea muitos livros em casa e que por isso mesmo acabou ganhando a desafeiccedilatildeo de certo doutor Segadas um cliacutenico afamado no bairro de Satildeo Januaacuterio que natildeo admitia essa extravagacircncia dizendo ldquoSe natildeo era formado para quecirc Pedantismordquo66 Nesse pequeno causo Lima Barreto nos conta como a possibilidade de possuir livros no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX era algo que poderia causar certo incocircmodo e como consequecircncia mostra o quanto possuir um livro podia ser considerado um simples ldquopedantismordquo sendo a posse do objeto um fator que poderia credenciar seu possuidor a ser chamado de pedante ndash ou seja algueacutem que se pretende algo mais do que eacute Lima Barreto atenta para o fato de que ter a posse de um livro po-deria naqueles idos ter diversos significados inclusive com vistas a uma representaccedilatildeo hieraacuterquica do indiviacuteduo que o possui podendo ser identificado como um pedante

Um exemplo sintomaacutetico dessa relaccedilatildeo poderosa que o possuidor de livros podia obter na sociedade carioca pode-se encontrar nos jornais do periacuteodo No Jornal do Comeacutercio de setembro de 1915 ladeado a anuacutencios de cosmeacuteticos e modernas maacutequinas aparecia o anuacutencio de uma estante contendo livros do mundo inteiro a chamada Biblioteca Internacional e entre os elogios aos grandes nomes da literatura uni-versal que a estante trazia (numa tentativa oacutebvia de seduzir o leitor para a compra) o anunciante chamava a atenccedilatildeo para a distinccedilatildeo que traria para a casa que possuiacutesse tal estante de livros

A magnificecircncia da ediccedilatildeo mesmo considerada simplesmente como um adorno a Biblioteca Internacional com a sua luxuosa encadernaccedilatildeo e magniacutefica estante augmentaraacute a distinccedilatildeo da residecircncia mais rica-mente mobiliada Uma vez em casa nunca faltaraacute lsquoalguma coisa para lecircrrsquo seja para dez minutos seja para dez horas67

66 BARRETO Lima Triste fim de Policarpo Quaresma Fortaleza ABC Editora 1999 p 1167 Jornal do Comeacutercio 7 set 1915 p 28

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 65

Esses significados no Brasil da virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo podem ser compreendidos apenas a partir de uma relaccedilatildeo in-diviacuteduo-livro Haacute de se levar em conta tambeacutem o caraacuteter de mudanccedilas pelas quais passavam as grandes capitais do paiacutes naquele momento e que rotulavam certas praacuteticas como modernas em detrimento de outras a cujos praticantes (mesmo tendo a posse e o domiacutenio da leitura e de um livro) era negado o status de letrado Isso porque ser ldquoletradordquo de-mandava diversos artifiacutecios Um caso extremo pode ser observado no modinheiro e palhaccedilo Eduardo das Neves que tinha livros publicados sob o seu nome

Ele um cantor negro famoso por compor muacutesicas sobre os grandes acontecimentos ocorridos naqueles tempos68 ao publicar a co-letacircnea de modinhas de sua autoria sob o tiacutetulo Misteacuterios do violatildeo era apresentado pelo editor Quaresma como um ldquotrovador popularrdquo que ainda que escutado ldquoem muitas casas de famiacutelia nos aristocraacuteticos sa-lotildees de Petroacutepolis Botafogo Larangeiras [sic] Tijuca etcrdquo por ldquose-nhoritas distinctissimas e virtuoses conhecidos [] natildeo seraacute um poeta impeccavel um Bilac um Medeiros de Albuquerque um Raimundo Correcirca um Luiz Delfino um Arthur Azevecircdo um Murat um Figueiredo Pimentel []rdquo mas ainda assim ldquoeacute com certeza um poeta na legiacutetima acepccedilatildeo do termo como o puacuteblico os aprecia os lecirc os decora e os traz constantemente na imaginaccedilatildeordquo e deveria ser reconhecido como um ldquoextraordinaacuterio bardo do povo filho do povordquo69

A passagem exposta acima traz alguns apontamentos para se compreender a cultura escrita do periacuteodo aleacutem de poder ser encarada como uma das facetas sob as quais a relaccedilatildeo entre ldquopovordquo e ldquoescritardquo era entendida naquele momento

Ora havia sem duacutevida uma valorizaccedilatildeo do puacuteblico receacutem-le-trado visado como potencial consumidor do objeto ldquolivrordquo criando grandes investimentos em barateamento do livro e produccedilatildeo editorial tornando-o um objeto de seduccedilatildeo e aguccedilando a vontade de potenciais

68 Uma canccedilatildeo famosa de Eduardo das Neves eacute a que foi composta em homenagem a Santos Dumont apoacutes o primeiro voo do brasileiro em Paris

69 NEVES Eduardo das Misteacuterios do violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1905 p IV-V

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo66

consumidores Atrelada a isso sobretudo houve uma mudanccedila no sen-tido e no conteuacutedo do proacuteprio livro que por fim passou a trazer ex-pressotildees e temaacuteticas daquilo entendido como ldquopopularrdquo agrave eacutepoca Entretanto mdash e aiacute reside a especificidade da literatura produzida no periacuteodo mdash isso natildeo credenciava tal expressatildeo quando publicada em livro a ser entendida como ldquopraacutetica letradardquo nem tampouco fazia de seu escritor algueacutem ldquoletradordquo ndash muito menos um ldquopoetardquo Como no caso de Eduardo das Neves no maacuteximo esse escritor seria como es-crevia seu editor um ldquotrovador popularrdquo e natildeo poeta Essa uacuteltima cons-truccedilatildeo demandava muito mais estrateacutegias a serem mobilizadas

Se Neves poderia publicar sob seu nome um texto do ldquopovordquo ser identificado como ldquopopularrdquo lhe retirava a autoridade para falar sobre se natildeo fosse um iniciado um letrado que pode falar sobre mas natildeo pode ser um

Acerca disso o exemplo da publicaccedilatildeo que em 1900 a livraria Quaresma incumbiu a organizaccedilatildeo a Catullo eacute emblemaacutetica Intitulada O cantor de modinhas brasileiras ela deveria conter as modinhas de Eduardo das Neves e do bariacutetono Geraldo Magalhatildees Na publicaccedilatildeo Catullo dizia que seu trabalho de organizaccedilatildeo das modinhas de Eduardo das Neves tinha por fim que ldquoos seus innumeros apreciadores pu-dessem admiral-o mais de perto conhecendo a sua verve satyrica e o seu bello talento embora natildeo cultivado pelo estudordquo [grifo meu]70

Aiacute no proacuteprio texto construiacutea-se uma hierarquia entre produtor e autor-organizador em que o segundo era apresentado como sendo aquele detentor do estudo necessaacuterio para corrigindo as modinhas mostraacute-las da melhor maneira aos leitores de seu texto enquanto o pri-meiro era identificado como algueacutem ldquonatildeo cultivado pelo estudordquo por-tanto natildeo possuindo aptidotildees para ser ele mesmo o autor de suas modi-nhas transcritas para um texto A autoria aiacute advinha da identificaccedilatildeo do sujeito como possuidor de aptidotildees letradas

Essa sutil separaccedilatildeo demarcava no texto as divisotildees sociais que se construiacuteam naqueles idos delimitando um espaccedilo que separava

70 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O cantor de modinhas brasileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1927 p 5

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 67

aquele que podia ser identificado como um letrado daquele que natildeo podia ser detentor desse epiacuteteto Seguramente a proposta da livraria Quaresma colocava de maneira mais clara essa tensatildeo ao optar por pu-blicar textos de indiviacuteduos natildeo propriamente entendidos como letrados como foi o caso de Eduardo das Neves e mesmo inicialmente de Catullo da Paixatildeo Cearense

No que tange a Catullo foi desenrolado um curioso caso de pau-latina construccedilatildeo de autoridade sobre seus textos e na esteira disso uma progressiva identificaccedilatildeo de seu nome como poeta letrado Esse processo esteve intimamente ligado agraves propostas editoriais de seus edi-tores e por consequecircncia agraves expectativas de um puacuteblico leitor visado pelo mesmo editor Nesse espaccedilo Catullo traccedilava suas estrateacutegias auto-rais no intuito de fazer com que fosse entendido como um autor de li-vros de modinhas em vez de somente autor de modinhas mdash diferen-ciaccedilatildeo que acarretava uma mudanccedila draacutestica no reconhecimento do sujeito entre os letrados

Ainda que nas suas primeiras publicaccedilotildees exista uma mescla entre modinhas escritas pelo proacuteprio Catullo e letras de modinhas de outros modinheiros sendo Catullo o organizador delas natildeo eram esses ldquooutros modinheirosrdquo que apareciam como autores mas ele mesmo pois possuiacutea o poder da escrita A partir dessas publicaccedilotildees o modi-nheiro Catullo foi progressivamente sendo identificado como ldquopoeta popularrdquo e mais tarde jaacute reconhecido como poeta deixaria de lado as modinhas para lanccedilar com bastante ecircxito livros de poemas sertanejos pela livraria Castilho especialista em publicaccedilotildees das ditas ldquocoisas brasileirasrdquo71

A partir de um universo dito popular que cada vez mais era objeto de curiosidade de letrados de uma proposta editorial que alavan-cava seus empreendimentos em cima das expectativas de um puacuteblico leitor e por fim de uma intenccedilatildeo claramente expressa em seus livros (progressivamente afirmados) pelo seu reconhecimento como letrado a

71 Com essa proposta aliaacutes Castilho lanccedilaria Antocircnio Torres Gastatildeo Cruls Leonardo Mota e Joseacute Ameacuterico de Almeida Cf BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 67-70

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo68

obra de Catullo da Paixatildeo Cearense ascendeu no mundo literaacuterio da virada do seacuteculo XIX para o XX Na interseccedilatildeo entre autor editor e leitor reside a compreensatildeo de seu ecircxito editorial Foi equilibrando-se sobre esses pilares que Catullo foi construindo a autoridade sobre os textos por ele publicados e por conseguinte o reconhecimento de sua posiccedilatildeo letrada

A primeira publicaccedilatildeo na qual Catullo investe na produccedilatildeo de sua autoridade sobre os textos eacute a que mais sucesso obteve no mundo le-trado de entatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras Daiacute em diante e progressivamente a figura de Catullo da Paixatildeo Cearense vai sendo investida de representaccedilotildees que variam desde o modinheiro pas-sando pelo de bardo poeta ateacute chegar agrave imagem de poeta culto Para a construccedilatildeo de tais representaccedilotildees muito valeram as estrateacutegias textuais construiacutedas em seus livros o que obriga ao investigador uma atenccedilatildeo acurada para as formalidades que subjazia na produccedilatildeo de um livro no Brasil da primeira metade do seacuteculo XX e as consequecircncias advindas dessas praacuteticas letradas

COMO SE CRIA UMA AUTORIA

Nada eacute mais repisado do que o cenaacuterio que consiste em apresentar uma narrativa de ficccedilatildeo como uma revelaccedilatildeo anacrocircnica Nada eacute mais comum do que um autor que pretende ser editor do seu texto72

O cancioneiro popular de modinhas

O Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa de 1913 definia ldquoautorrdquo como tendo seis significados Satildeo eles ldquocausa principal de uma coisa Inventor Aquelle que escreveu obra literaacuteria ou scientiacutefica Fundador Aquelle que intenta demanda judicial Aquelle de quem pro-cede ou nasce algueacutem ou alguma coisardquo73 Natildeo obstante o caraacuteter muacutel-tiplo de sentidos dados ao termo o ldquoautorrdquo seria algueacutem de quem par-tiria uma consequecircncia algueacutem de quem resultaria uma causa material A construccedilatildeo de algo materializado ndash e assim identificado socialmente ndash parecia ser um preacute-requisito necessaacuterio para se considerar algueacutem como um autor O caraacuteter daquilo que se convencionou chamar de ldquocriaccedilatildeo intelectualrdquo de um indiviacuteduo aiacute natildeo aparece O criador natildeo eacute um ldquoautorrdquo senatildeo quando seu ato produz uma consequecircncia que pode

72 SCHLANGER Judith Apud CHARTIER Roger Cardenio entre Cervantes e Shakeaspeare histoacuteria de uma peccedila perdida Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012 p 8

73 FIGUEIREDO Cacircndido Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa Lisboa Livraria Claacutessica 1913 p 225

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo70

garantir-lhe finalmente uma representaccedilatildeo de ldquoautorrdquo O caraacuteter in-transitivo do criador afastaria assim o seu reconhecimento imediato como um autor

Assim dizendo aquele que escrevia uma obra literaacuteria (ldquoautorrdquo) nem sempre era o criador de tal obra ndash e nem sempre o criador da obra era por conseguinte um ldquoautorrdquo Foi percorrendo esses meandros para a consolidaccedilatildeo de seu nome proacuteprio como ldquoautorrdquo que Catullo da Paixatildeo Cearense construiu inicialmente sua trajetoacuteria com os livros Dialo-gando com as diversas praacuteticas letradas do periacuteodo e construindo nesse processo um lugar para sua autoridade sobre as publicaccedilotildees lanccediladas sob seu nome o trajeto seguido por Catullo eacute sobretudo um trajeto de consagraccedilatildeo edificado na sua relaccedilatildeo com o objeto livro

Em fins do seacuteculo XIX jaacute conhecido como modinheiro e pre-senccedila constante nos salotildees da elite carioca Catullo da Paixatildeo Cearense foi trabalhar junto agrave livraria Quaresma na organizaccedilatildeo de volumes de modinhas Antes o primeiro grande sucesso editorial organizado por ele foi o livro de canccedilotildees musicadas O cantor fluminense publicado pela primeira vez em 1894 com trecircs ediccedilotildees pela livraria Democraacutetica Usando de sua boa circulaccedilatildeo entre os boecircmios modinheiros e de seu conhecimento de modinhas Catullo Cearense trazia para o universo letrado os sons das ruas as mais famosas modinhas cantadas agrave eacutepoca Doze anos depois com a publicaccedilatildeo em 1899 de Cancioneiro popular de modinhas brasileiras pela livraria Quaresma seu nome ficaria ainda mais em evidecircncia no universo letrado Cancioneiro popular teria nada menos do que 25 ediccedilotildees em menos de dez anos74

O livro possui em sua 25ordf ediccedilatildeo 155 modinhas sendo 48 da lavra de Catullo Os primeiros versos que aparecem na publicaccedilatildeo satildeo uma poesia explicativa escrita pelo proacuteprio Catullo intitulada Ao violatildeo em que expressa com certo ar de desgosto o fato de o violatildeo (o instrumento-mor que deveria acompanhar todas as modinhas ali publi-cadas) ser ainda malquisto O autor-organizador em passagens que

74 A ediccedilatildeo agrave qual vamos fazer referecircncia neste estudo eacute a 25ordf ediccedilatildeo de 1908 e a pri-meira em que Catullo aparece como prefaciador do livro

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 71

abusa de ironias observa o fato paradoxal que fazia do violatildeo um ins-trumento odiado e ao mesmo tempo amado por seus ouvintes

Anda caacute meu violatildeo eu quero agoraafinar-te e baixinho em tom maguadoexplicar-te a razatildeo por que dos Grandestu eacutes foste e seraacutes tatildeo diffamadoElles gostam de ouvir-te as harmoniasOs accoacuterdes de vagos sentimentosMas se escutam teu nome empallidecemque eacutes a escoacuteria lethal dos instrumentos[]Se dos Grandes tu eacutes ludibriadoSe elles fecham-te as portas dos salotildeeseacute porque soacute tu tens essa magia de render os mais feros coraccedilotildeesPois emquanto vagueas ao relentoE uma endeixa em menor aacute lua exhalasOs pianos calados jazem tristesEm sudaacuterios envoltos laacute nas salas75

Essa ldquonota explicativardquo em forma de poesia visava a provocar o leitor ainda natildeo convencido da qualidade das modinhas ali publicadas fazendo com que este ficasse instigado pela ironia do autor a comeccedilar a leitura de fato Sendo uma publicaccedilatildeo que visava ao puacuteblico letrado Catullo Cearense construiacutea representaccedilotildees da modinha e do violatildeo que pudessem ldquofisgarrdquo o leitor mais ceacutetico com relaccedilatildeo agrave qualidade da obra Para tanto valia inclusive evocar o nome de homens reconhecidos que pudessem ajudar na corroboraccedilatildeo do material

O Castro Alves te amava os sons plangentesO Fagundes Varella te adoravaE Tobias Barreto o bardo excelsoOs lampejos do estro em ti cantava

75 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 1316

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo72

E Laurindo Rabello O cysne albenteCujos carmes libravam-se aacutes alturasEra louco por ti Pois muitas vezesOlvidava comtigo as amarguras76

Ainda que os primeiros versos publicados em Cancioneiro po-pular sejam de um poema agrave maneira como comumente Bilac ou Coelho Neto publicavam o caraacuteter de performance oral que visava agrave publi-caccedilatildeo ndash afinal eram versos para serem cantados ndash eacute reiterado na uacuteltima estrofe do poema inicial quando Catullo emenda o poema com a pri-meira modinha propriamente dita intitulada de O luar de sua autoria

[]Fere um doce menor Geme soluccedilaQue este pranto te orvalhe as cordas ChoraJaacute natildeo posso soffrer a dor prementeQue por ella a gemer padeccedilo agora

Ella eacute filha do Norte e tem no peitoUm brando um meigo um puro coraccedilatildeoA noite em meio estaacute vibra uma notaQue eu vou cantar-lhe agora esta canccedilatildeo

Ao Luar(A Muacutesica eacute assaz conhecida)

Vecirc que amenidadeque serenidadetem a noite em meioquando em brando enleiovem lenir o seiode algum trovador []77

Esse procedimento que reiterava o caraacuteter oral da publicaccedilatildeo construiacutea o efeito performaacutetico que deveria ter a apresentaccedilatildeo da mo-dinha seguinte O resultado que deveria ter a poesia-nota explicativa

76 Idem p 1677 Idem p 24

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 73

Ao violatildeo sobre a modinha Ao luar que ela emendava era aleacutem de criar uma ponte que dava agrave modinha o status de poesia cantada cons-truir a representaccedilatildeo do modinheiro Catullo como algueacutem tambeacutem apto a figurar como um civilizado um letrado e no limite um poeta da palavra cantada

A histoacuteria das ediccedilotildees de Cancioneiro popular eacute expressiva do tipo de representaccedilatildeo que o personagem Catullo foi ganhando na socie-dade carioca do periacuteodo As primeiras ediccedilotildees de Cancioneiro popular por exemplo natildeo constam de prefaacutecios explicativos de Catullo apenas uma raacutepida apresentaccedilatildeo inicial da obra feita pelos editores da livraria Quaresma responsaacuteveis pela publicaccedilatildeo

A partir da 25ordf ediccedilatildeo de 1908 Cancioneiro popular jaacute vem acompanhado de um prefaacutecio assinado por Catullo Cearense que se arvora na representaccedilatildeo de si como algueacutem que trabalha na organizaccedilatildeo das modinhas por ele coletadas Esse ineditismo veio na esteira do su-cesso de Catullo na sociedade carioca jaacute que 1908 foi o ano em que nosso personagem saiu ovacionado ao apresentar-se pela primeira vez no Instituto de Muacutesica do Rio acompanhado de um naqueles tempos ldquoineacuteditordquo violatildeo mdash fato que jaacute narramos no capiacutetulo 1

Esse ineditismo em apresentar-se tambeacutem como algueacutem que tra-balhou as modinhas inclusive assinando um prefaacutecio eacute tanto mais sur-preendente se investigarmos as publicaccedilotildees anteriores a cargo de Catullo Antes da 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro popular ainda em 1902 foi lanccedilado Chocircros ao violatildeo contendo coleccedilotildees de modinhas tambeacutem organizadas e coletadas por Catullo Mas ainda nessa publicaccedilatildeo Catullo se restringe a ser apresentado pelo editor Quaresma com as se-guintes indicaccedilotildees acerca do livro ldquoContendo as mais populares co-nhecidas e apreciadas modinhas brasileiras com a indicaccedilatildeo das muacute-sicas com que devem ser cantadas Escriptas e collecionadas por Catullo da Paixatildeo Cearense auctor do lsquoCancioneiro Popularrsquordquo78

Agrave eacutepoca uma publicaccedilatildeo que se apresentava contendo modinhas ldquopopularesrdquo era um fator a mais para um mundo letrado aacutevido deste tipo

78 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Chocircros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902 Folha de rosto

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo74

de publicaccedilatildeo aumentar o desejo de possuir um livro como o de Catullo e o editor Quaresma investia com ecircnfase no caraacuteter ldquopopularrdquo das mo-dinhas ali contidas Mas o que mais chama a atenccedilatildeo eacute que em Chocircros ao violatildeo Catullo aparece apenas como o comentador de algumas mo-dinhas publicadas com algumas indicaccedilotildees raacutepidas das muacutesicas a acompanhar cada uma delas Apenas em uma uacutenica modinha ele reapa-rece oferecendo ldquoaos amigos Galdino e Maacuteriordquo79 Diferentemente em Cancioneiro popular na ediccedilatildeo de 1908 o autor Catullo ganha mais espaccedilo na publicaccedilatildeo inclusive com a possibilidade de oferececirc-la ldquoAo primoroso e distincto comediographo brasileiro Arthur Azevedo como singela prova de admiraccedilatildeo ao seu talento omnido dedica o Auctor [grifo meu]rdquo80

Eacute expressiva a mudanccedila ocorrida entre a publicaccedilatildeo de Chocircros ao violatildeo de 1902 e Cancioneiro popular de 1908 Nesta uacuteltima pu-blicaccedilatildeo inclusive contrastando com uma maior presenccedila de Catullo como autor aparece algo que se tornaraacute comum daiacute para frente nas ediccedilotildees Quaresma o certificado de direitos do editor sobre a obra Enquanto que nas publicaccedilotildees anteriores inexiste esse certificado a partir de 1908 apareceraacute nos livros a seguinte indicaccedilatildeo ldquoOs editores QUARESMA amp C avisam ao puacuteblico que todos os livros editados por sua casa ndash Livraria do Povo ndash satildeo de sua exclusiva propriedade literaacuteria Capital Federal Janeiro de 1908 Quaresma amp Crdquo81

Concomitantemente a um maior espaccedilo para o autor-organizador da obra expressar-se o editor Quaresma via a oportunidade de colo-car-se tambeacutem como detentor dos direitos da publicaccedilatildeo Na medida em que Catullo aparecia como o autor da obra impressa os editores Quaresma reafirmavam deter a propriedade uacuteltima dela

Ademais a matildeo do editor pode ser vista em vaacuterios momentos do texto O Cancioneiro popular natildeo destoava do objetivo inicial do editor Quaresma pois era um empreendimento que buscava difundir para o

79 Idem p 380 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio

de Janeiro Livraria Quaresma 1908 Folha de rosto81 Idem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 75

puacuteblico letrado as letras das modinhas cantadas nas ruas do Rio de Janeiro agrave eacutepoca Sua especificidade residia em um objetivo declarado o de ldquomelhorarrdquo a modinha corrigindo os versos cantados de forma considerada ldquoerrocircneardquo para serem finalmente consumidos da forma considerada ldquocorretardquo pelos leitores A chamada do editor Quaresma na contracapa do livro resume bem esse intuito

Esplendida e escolhida collecccedilatildeo de beliacutessimas modinhas populares es-criptas umas e outras collecionadas revistas e melhoradas postas taes quaes seus auctores as escreveram e natildeo estropeaacutedas incorrectas e es-phaceladas como por ahi andam de boca em boca na tradicccedilatildeo oral82

A aversatildeo ao erro e a sua identificaccedilatildeo com a ldquotradiccedilatildeo oralrdquo chama a atenccedilatildeo para a tentativa de distinccedilatildeo entre cultura letrada e cultura oral em processo naquele comeccedilo de seacuteculo A correccedilatildeo do ele-mento oral pela palavra escrita era ela mesma uma tentativa de estig-matizaccedilatildeo da oralidade em detrimento do letramento Ademais a neces-sidade de hierarquizaccedilatildeo das duas formas de expressatildeo com a oacutebvia hegemonia da palavra escrita era fundamental e previsiacutevel em publica-ccedilotildees que como as da livraria Quaresma buscavam tambeacutem desse modo criar um puacuteblico leitor-consumidor de livros

Por sua vez assumindo o papel de tradutor entre a cultura letrada e a cultura oral Catullo Cearense tratava em seus textos de colocar-se como autoridade a partir de sua condiccedilatildeo de um letrado conhecedor do oral Na esteira disso ele buscava direcionar a leitura de cada letra in-dicando a modinha correspondente a acompanhaacute-la

A partir da identificaccedilatildeo de Catullo Cearense como algueacutem que poderia se chamar de ldquocivilizadordquo o editor Quaresma afirmava por consequecircncia o caraacuteter ldquocivilizadorrdquo da obra de Catullo De sua parte o autor reafirmava essa posiccedilatildeo atraveacutes de seus prefaacutecios onde indicava o plano de sua obra

No prefaacutecio do Cancioneiro popular de modinhas brasileiras aleacutem de caracterizar o seu leitor Catullo indicava o objetivo do livro

82 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 Folha de rosto

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo76

dizendo antes que resultara de um trabalho ldquoimprobordquo em cima de modinhas coletadas com as ldquomais baacuterbaras e repugnantes incorrec-ccedilotildeesrdquo onde foi necessaacuterio ldquocorrigil-a grammaticalmente ligar o pensa-mento desconexo cuidando tambeacutem um pouco da parte meacutetrica de modo a natildeo ficar um aleijatildeo impiamente ferindo o ouvido educadordquo83

Observa-se pela passagem acima citada que Catullo natildeo soacute or-ganiza a publicaccedilatildeo das modinhas como tambeacutem se apropria delas de maneira tal que as corrige com o intuito de afinal natildeo ferir o ldquoouvido educadordquo Indicando sua autoridade sobre o texto e acima de tudo apontando seus possiacuteveis leitores Catullo se interpotildee entre o leitor e o criador da modinha para assim tentar regrar a recepccedilatildeo do texto publi-cado E ainda no prefaacutecio Catullo chama a atenccedilatildeo para sua compre-ensatildeo de que um autor de modinhas tambeacutem possa ser chamado de poeta ldquoPor isso peccedilo perdatildeo a todo poeta que deparar nrsquoeste volume com alguma composiccedilatildeo sua a qual natildeo esteja como lhe gottejou da pennardquo84 e conclui defendendo que aquele tipo de publicaccedilatildeo deveria ser considerado ldquoliteraturardquo

Concluacuteo lamentando natildeo ver neste volume o que seria um trabalho colossal todas as nossas ternas meigas doces e saudosas modinhas brasileiras preciosiacutessimas joacuteias do escriacutenio do estro popular Mas ainda assim o Srs Quaresma amp C vatildeo prestando conscientemente inestimaacutevel serviccedilo agrave literatura mais nacional ndash a do povo85

O ouvido ldquoeducadordquo por conseguinte seria informado pelo texto escrito que se fazia assim como mediador entre dois tipos de orali-dades que estavam em jogo naquele momento o oral sem o crivo da letra e o oral apoacutes passar por esse crivo Dito de outra forma as modi-nhas cantadas nas ruas e as modinhas a serem cantadas apoacutes o ldquofunil civilizadorrdquo do texto de Catullo

O ldquofunil civilizadorrdquo do qual fala Catullo era exatamente seu tra-balho sobre as letras de modinhas por ele corrigidas Catullo fazia o

83 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p IX

84 Idem p XI85 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 77

papel de funil natildeo soacute porque selecionava mas porque isto eacute importante frisar corrigia as modinhas inteiramente como bem observa

Natildeo experimentei o prazer de me vir agraves matildeos uma soacute que fosse a qual natildeo contivesse as mais baacuterbaras e repugnantes incorrecccedilotildees Explico-me Desejando incluir nrsquoeste volume uma qualquer modinha que por ser bella e popular preenche os dous fins primordiaes depois de muito procurar chega-me agraves matildeos quase inteiramente estropeaacutedas86

Assim na medida em que ia corrigindo as modinhas elevava-as a um tipo de produccedilatildeo literaacuteria que pudesse autorizar tambeacutem a sua produccedilatildeo modinheira ser considerada literatura ldquoQuanto agraves poesias de minha lavra nada direi Tivesse eu talento illustraccedilatildeo e estro e dedicar--me-hia de corpo e alma a esse gecircnero de litteratura o mais profiacutecuo de todosrdquo pois se colocava como um dos que estavam ldquoconvencidos de que nessas composiccedilotildees do povo scintillam fulgurantes pensamentos que rariacutesimas vezes satildeo lobrigrados nas obras da alta litteraturardquo87

A passagem acima tem o intuito de ser esclarecedora nela expotildee Catullo mais claramente seu ponto de vista com relaccedilatildeo agraves letras de mo-dinhas Num soacute prefaacutecio ele natildeo soacute constroacutei uma autoridade sobre o texto (pois que assume sua correccedilatildeo e portanto tambeacutem parte conside-raacutevel de sua autoria sobre elas) como enfatiza a qualidade de um tipo de produccedilatildeo oral que ele traduz para o texto escrito Autoridade sobre o texto para afirmar-se uma autoria e reivindicaccedilatildeo da qualidade do texto para ser entendido como literatura Sobre esses dois pedestais e articu-lando termos como ldquopopularrdquo ldquoalmardquo e ldquoliteratura nacionalrdquo Catullo ia construindo um lugar para o consumo de seu texto pelos leitores

No texto o autor ia construindo uma representaccedilatildeo social para si concomitantemente ao fato de que os leitores demandavam um tipo de produccedilatildeo ldquopopularrdquo que Catullo conhecia Ainda que tentasse manter certa distacircncia de um vieacutes do popular (a boecircmia o barulho das ruas a vagabundagem etc) tentava articular dentro dessa direccedilatildeo elementos

86 Ibidem p IX87 Ibidem p X

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que pudessem oferecer ao seu puacuteblico um tipo de produccedilatildeo que fosse identificada como ldquocivilizadardquo e para tanto natildeo se poupou de alccedilar-se sobre algumas autoridades jaacute reconhecidas

[] noacutes que preferimos uma modinha uma canccedilatildeo ruacutestica um lunduacute requebrado a um qualquer trecho de Wagner que natildeo comprehendemos e que natildeo nos produz a miacutenima sensaccedilatildeo natildeo nos importemos com os pedantis o estulto dos que menoscabam do violatildeo por ser elle dizem o instrumento dos desoccupados e perdidos Quando encontrardes um desses typos nrsquouma sala em que haja algueacutem que vos deseje ouvir re-citae com emphase e enthusiasmo a poesia que dediquei ao violatildeo e depois cantae a modinha que se segue a essa poesia mas eacute a uacutenica cousa qye vos peccedilo com todo sentimento Quando proferirdes os nome [sic] de Aureliano Lessa Bernardo Guimaratildees Laurindo Varella Castro Alves e Tobias Barreto principalmente fitaes com vehemencia os minguados paspalhotildees e deixae-os eclypsados na immensidade de suas insignificantes pessoas Esses gecircnios superiores eram sinceros ado-radores do violatildeo88

Essa aproximaccedilatildeo com letrados reconhecidos revestia suas mo-dinhas de um caraacuteter mais respeitaacutevel de forma que pudesse tambeacutem conseguir o mesmo respeito Essa identificaccedilatildeo com um mundo letrado aparecia comumente tambeacutem em raacutepidos comentaacuterios no meio de sua obra onde tentava enfatizar a todo o momento o caraacuteter corretor das modinhas por ele transcritas em texto

Ao transcrever a modinha O poeta e a fidalga Catullo Cearense fazia aparecer no final uma observaccedilatildeo esclarecedora do sentido de sua obra tornar corretas letras que foram estropiadas pela tradiccedilatildeo oral por ldquodesleixordquo Assim conclui o autor

Eacute a primeira vez que em livro de modinhas estes versos vecircm aacute [sic] luz da publicidade completos e como o Sr Vanderley os escreveu Existem no seu livro de poesias e aqui vatildeo como laacute se encontram Os pequenos retoques que fiz satildeo com certeza oriundos do desleixo dos composi-tores O tiacutetulo natildeo eacute ndash Desprezo ndash e sim o que encima estes versos89

88 Ibidem89 Ibidem p 117

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O curioso dessa modinha encontra-se no fato de ela ser como conta Catullo primeiramente um poema do ldquoSr Vanderleyrdquo musi-cado ainda segundo o organizador da obra por compositores ldquodeslei-xadosrdquo Ali O poeta e a fidalga retornava ao texto pelas matildeos de Catullo depois de circular pelas ruas cariocas (como ele leva a crer) com ecircxito pois eacute uma das modinhas em que o autor natildeo se preocupou em indicar a muacutesica a ser acompanhada procedimento comum quando a modinha jaacute era por demais conhecida do puacuteblico leitor Aliaacutes em Cancioneiro popular haacute vaacuterios exemplos desse tipo Essa ausecircncia de muacutesica a acompanhar a letra transcrita dava ainda mais a impressatildeo de se estar lendo de fato natildeo letras de modinhas mas poemas que foram musicados

Na tentativa de demonstrar intervenccedilotildees suas sobre as modi-nhas e de seu conhecimento de temas ditos ldquopopularesrdquo Catullo fazia aparecer palavras e termos que sentia a necessidade de explicar ao leitor Em Canccedilatildeo do africano da lavra de Catullo expressotildees como Zambi innan inzoacute xequereacute e Jupaacute eram explicadas em notas de ro-dapeacute como sendo respectivamente Deus amor choccedila uma espeacutecie de marimba e lua

O procedimento de se mostrar conhecedor e ilustrado natildeo eacute novo Em Choros ao violatildeo publicaccedilatildeo de 1902 tambeacutem organizado por Catullo ao transcrever a letra da modinha Alzira de sua autoria Catullo no afatilde de mostrar ao leitor o caraacuteter letrado da produccedilatildeo e de se afirmar como um autor tambeacutem letrado observa no uacuteltimo verso uma ldquoincorrecccedilatildeordquo

Se queres que um cantoSaudoso desfiraVem tu minha AlziraMeu peito afinarvem logo natildeo tardesvem dar-me um alentoque o meu pensamentonatildeo quer te deixar (1)

DO AUCTOR

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo80

Muacutesica da modinha ndash As horas que eu passo contigo na mente(1) Uma incorrecccedilatildeo consciente90

Uma ldquoincorrecccedilatildeordquo que rapidamente o autor buscou explicar como sendo uma ldquoincorrecccedilatildeo conscienterdquo e natildeo um lapso na norma culta pela qual dava a conhecer a modinha ao leitor Tais comentaacuterios visavam a assegurar o caraacuteter corretor da sua escrita com relaccedilatildeo agrave voz e daiacute alertar para o fato de o corretor (Catullo) ser um conhe-cedor da norma culta Como orientador de tal empreendimento Catullo Cea rense tratava de construir-se como autor culto a partir da construccedilatildeo de representaccedilotildees de sua funccedilatildeo de autor Construccedilotildees que jaacute apareciam nas indicaccedilotildees do cataacutelogo das ediccedilotildees Quaresma onde o editor apresentava Catullo como um ldquodistincto moccedilo conhecido poeta e prosador excellente professor de liacutenguas mdash nome que toda gente conhece e tem aplaudidordquo91

Exemplos de demonstraccedilatildeo de letramento se avultam no texto Valendo-se da tradiccedilatildeo oral das ruas do Rio de Janeiro de entatildeo Catullo fazia emendas em trovas conhecidas como a que fez na modinha Gosto de ti cuja muacutesica era do violonista Satyro Bilhar

Gosto de ti porque gostoporque meu gosto eacute gostarmas tu de mim natildeo te lembrasPor que me fazer penar

Ausente de ti distanteNatildeo posso a vida soffrerSentindo tantas saudads [sic]Como eacute possiacutevel viver

Gosto de ti por que te amoPorque meu gosto eacute te amarmas natildeo te lembras ingrataque eu vivo longe a penar

90 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Chocircros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902 p 35

91 Cataacutelogo das Ediccedilotildees Quaresma Em CEARENSE Catullo da Paixatildeo Choros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902

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As noites passo velando Os dias passo a gemerSentindo tantas saudadesComo eacute possiacutevel viver

Que tu me estimes deverasmeu coraccedilatildeo natildeo mais crecircGosto de ti porque gosto sem mesmo saber porquecirc92

Abaixo da modinha uma nota de rodapeacute explicava para os lei-tores que conheciam a primeira quadra que se tratava de uma emenda ldquoA primeira quadra natildeo eacute minha Como a muacutesica que eacute do meu amigo Bilhar eacute beliacutessima escrevi as quatro que se lhe seguemrdquo e acrescenta que a muacutesica de Bilhar estaacute por demais ldquopopularizadardquo93

A indicaccedilatildeo da muacutesica a acompanhar as modinhas publicadas aparecia sempre no iniacutecio da letra sem que Catullo se interessasse em publicar as devidas partituras Esse procedimento no entanto natildeo era algo comum no periacuteodo Mello Moraes Filho por exemplo publicara seu Cantares brasileiros em 1902 com o mesmo objetivo corretor de Catullo poreacutem com uma parte da publicaccedilatildeo voltada para as partituras de algumas das canccedilotildees ali publicadas Ao que parece natildeo produzia efeito algum para o reconhecidamente letrado Mello Moraes apro-ximar as modinhas que publicava de letras pois seu objetivo era tatildeo somente publicar modinhas e natildeo como queria Catullo publicar e ser reconhecido como um autor letrado

O natildeo aparecimento de partituras no livro de Catullo pode indicar o caraacuteter hiacutebrido com que o autor via as modinhas e queria que elas fossem lidas ou seja como poemas e letras Eacute tatildeo forte essa mescla em Cancioneiro Popular que Catullo muitas vezes intercala no meio das modinhas poesias de sua lavra e ateacute mesmo uma historieta em prosa intercalada com uma modinha como eacute o caso de Feliz aventura que o autor indica que eacute ldquoprosa e versordquo e que ldquoa muacutesica eacute da modinha ndash Ao

92 Ibidem p 7493 Ibidem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo82

virar da esquina eu vi em Lisboa uma rapariga catita e bem boardquo A estrutura de Feliz aventura remete diretamente agrave oralidade pois era algo para ser contado expresso em termos como ldquoum caso eu vos contordquo Tal iacutendice de oralidade jaacute eacute demonstrado no iniacutecio da histoacuteria

Um caso eu vos conto que se bem me lembropassou-se haacute dous annos no mez de NovembroFazia um tremendo calor de racharVagava nas ruas sem rumo a flanar

Como voz dizia o calor era insurpotaacutevel Fatigado pelo trabalho do dia buscava desesperadamente um logar nesta vasta Capital onde pudesse respirar mais livremente O acaso levou-me ao Passeio Puacuteblico Entrei EBuscando de prompto matar o cangaccediloFui logo assentar-me nrsquoum banco ao terraccedilo94

Se partituras natildeo apareciam estavam ali sempre as muacutesicas a acompanhar as modinhas Muacutesicas que supomos serem conhecidas do puacuteblico leitor Essa suposiccedilatildeo ganhava forccedila pois quando a muacutesica natildeo era assim tatildeo conhecida o autor fazia questatildeo de dizer ao leitor com ldquoquemrdquo se podia aprender Era o caso da modinha Bem-te-vi de Mello Moraes a respeito da qual Catullo em nota de rodapeacute observa

Estes beliacutessimos versos genuianamente [sic] brasileiros satildeo do talen-toso e erudito Dr Mello Moraes Filho A muacutesica eacute das mais bellas e inspiradas que eu conheccedilo Pena eacute natildeo poder indical-a ao leitor por ter sido feita especialmente para estes primorosos versos do illustre poeta e abalisado mestre Em todo caso apontarei aqui algumas pessoas com quem o leitor poderaacute aprendel-a

Costinha pianistaEduardo Velho pianistaJoatildeo dos Santos funccionaacuterio do correioTafi o seu auctor95

94 Ibidem p 6895 Ibidem p 97-98

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Em outras modinhas simplesmente aparece a observaccedilatildeo de que ldquoa muacutesica eacute conhecidardquo (na modinha Ao ver-te por exemplo)96 Daiacute natildeo precisar do recurso de indicar algueacutem com quem se possa aprender a canccedilatildeo Cotejando as publicaccedilotildees de modinhas do periacuteodo obser-vam-se aleacutem da intervenccedilatildeo do organizador-autor da publicaccedilatildeo sobre as letras as distintas representaccedilotildees dadas ao material oral coletado

Mello Morais (em Cantares brasileiros de 1902) e Catullo Cearense (em Cancioneiro popular de 1908) publicaram a modinha Marietta com letras diferentes atestando assim as alteraccedilotildees tanto de caraacuteter oral quanto oriundas da transcriccedilatildeo da letra da modinha por le-trados Enquanto Mello Morais indica ser a letra uma poesia de Antocircnio A Figueira a autoria na publicaccedilatildeo organizada por Catullo eacute descar-tada Vale a transcriccedilatildeo

Versatildeo de Mello Morais Versatildeo de CatulloNestes teus laacutebios de anjo Nestes teus olhos de archanjoBebo harmonias dos ceacuteus Bebo harmonias dos ceacuteusO teu olhar eacute tatildeo casto O teu olhar eacute tatildeo castoComo o sorriso de Deus como uma benccedilatildeo de Deus

Que aroma tatildeo singular Que aroma tatildeo seductorNessa trancinha tatildeo preta Nesta trancinha tatildeo pretaQuero morrer em teus braccedilos quero morrer em teus braccedilosOh Formosa Marietta Oacute formosa Marietta[]Longe de ti eu suspiro Longe de ti vivo tristeVivo sem ter alegria no mais acarbo soffrerJunto de ti eacutes meu anjo perto de ti oacute meu anjoEacutes minha vida oacute Maria97 suspiro ateacute de prazer98

Em cada Marietta de Catullo e de Mello Morais as distintas re-presentaccedilotildees se chocam chamando a atenccedilatildeo para o caraacuteter muacuteltiplo das modinhas coletadas Ademais o fato de Catullo natildeo fazer aparecer

96 Ibidem p 7897 MORAIS FILHO Mello Cantares brasileiros Rio de Janeiro SEEC-RJ 1981 p 30898 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio

de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 142-143

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo84

o autor da letra (diferentemente de Mello Morais) faz parte de uma in-tenccedilatildeo exposta em seus prefaacutecios de afirmar sua intervenccedilatildeo sobre a letra e portanto sua autoria A partir do momento em que Catullo ence-tava uma mudanccedila (e quase sempre eram vaacuterias) nas letras das modi-nhas transcritas (natildeo indicando tambeacutem sua autoria) ele proacuteprio auto-rizava-se a ser entendido pelo leitor como o ldquoautorrdquo

O enorme sucesso que obteve Cancioneiro ndash alavancado em muito pelas famosas publicidades das ediccedilotildees Quaresma99 ndash fez com que a publicaccedilatildeo chegasse a 25 ediccedilotildees em nove anos um verdadeiro su-cesso editorial em seu tempo fazendo jus ao objetivo editorial de Pedro da Silva Quaresma qual seja o de a partir de ediccedilotildees vendidas a preccedilos moacutedicos boa publicidade e com temaacuteticas que pudessem aticcedilar o puacute-blico letrado nascente aumentar a lucratividade com a venda de livros

Um ilustre consumidor das ediccedilotildees Quaresma foi o teatroacutelogo e jornalista Arthur Azevedo Ele era admirador dos livros contendo le-tras de modinhas e assim se manifestou sobre o Cancioneiro Popular de Catullo

No Brasil haacute um livro e um livro de versos que conta nada menos de vinte e cinco ediccedilotildees eacute o Cancioneiro Popular compilado em parte e em parte escrito pelo poeta Catullo da Paixatildeo Cearense elo-quumlente e simpaacutetico defensor do nosso esquecido e saudoso violatildeo dos outros tempos[]O nosso Catullo a quem para ser tatildeo grande como seu homocircnimo la-tino soacute faltou viver em Roma e ser amante de Leacutesbia deliciosa e fe-cunda fonte de inspiraccedilatildeo e poesia o nosso Catullo sentiu bem quanto de suave e de inteligente na modinha brasileira que natildeo vai agrave Avenida nem agrave rua do Ouvidor e eacute mal vista dos smarts do corso e das batalhas de flores100

99 O criacutetico literaacuterio Brito Broca dizia que o livreiro e editor Quaresma ldquofoi o precursor da publicidade modernardquo pois ldquoquando lanccedilava uma ediccedilatildeo costumava fazer grandes cartazes com o nome do livro e mandava pregaacute-los por todos os pontos da cidaderdquo Cf BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 49

100 Citado por Luciano Braga Cf BRAGA Luciano Catullo Cearense In CEARENSE Catullo (org) Lyra dos salotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1926 p 18 (1ordf ediccedilatildeo em 1913)

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Esse reconhecimento por um credenciado teatroacutelogo o editor Quaresma fez aparecer convenientemente na 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro Com isso o editor evocava na publicaccedilatildeo a opiniatildeo de um letrado reco-nhecido visando a uma maior aceitaccedilatildeo da obra posta a puacuteblico

O reconhecimento do leitor Arthur de Azevedo natildeo era uacutenico Eacute possiacutevel vislumbrar no processo de reconhecimento de Catullo como autor uma seacuterie de manifestaccedilotildees de leituras de sua obra no periacuteodo e que lhe foram garantindo um lugar dentre os literatos Se o ecircxito editorial de Cancioneiro Popular foi possiacutevel isso se deveu em muito agraves leituras dos livros de Catullo que eram feitas mediadas pelas discussotildees acerca do universo identificado como ldquopopularrdquo no periacuteodo Formava-se assim uma comunidade de leitores de temas populares que catapultaram a su-cesso imediato muitas publicaccedilotildees que saiacuteram com essa identificaccedilatildeo

O fato eacute que Cancioneiro Popular ficaria dali por diante conhe-cido como a referecircncia literaacuteria de Catullo Cearense de forma que nas suas publicaccedilotildees posteriores era apresentado como o ldquoauctor do Cancioneiro Popularrdquo101 Mas o sucesso de Cancioneiro Popular natildeo findou a incessante busca de Catullo por ser reconhecido como literato

Um poeta popular

O jornal A Noite em iniacutecios de 1912 publicava em sua primeira paacutegina uma crocircnica-reportagem com um tiacutetulo questionador ldquoA popu-laridade existiraacute realmente Algumas observaccedilotildees eloquentesrdquo O autor contava para seu interlocutor tambeacutem personagem da crocircnica que ao caminhar no Passeio Puacuteblico parou diante da herma do poeta Gonccedilalves Dias e ao avistar um jardineiro perguntou

ndash De quem eacute istoO homem parou um instante olhou a herma do nosso primeiro cantor lyrico e resmungoundash IstoE depois de pensar

101 Essa observaccedilatildeo encontra-se por exemplo nas capas dos livros ldquoChocircros ao Violatildeordquo (de 1902) e ldquoLyra Brasileirardquo (de 1905)

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ndash Eacute do Sr Dr Juacutelio FurtadoPara o jardineiro que cuida do canteiro onde Gonccedilalves Dias floresce no bronze votivo o nosso grande poeta era apenas um adorno dos vastos domiacutenios do director da Inspectoria dos Jardins102

O embaraccedilo do autor do texto ficava ainda mais evidente quando buscando insistir numa resposta que fosse compatiacutevel com sua expecta-tiva contava que quando da morte do poeta portuguecircs Eccedila de Queiroz algueacutem o interrogou na rua

ndash Quem Morreundash O Eccedila de Queirozndash Ah Coitado O Queiroz das fazendas Pretas103

O caraacuteter risiacutevel das respostas contrastava com aquilo que o autor da crocircnica-reportagem procurava discutir seriamente qual seja o ca-raacuteter ldquopopularrdquo dos personagens que ele supunha serem dignos de re-ceber tal identificaccedilatildeo Frustrado com as respostas imprevisiacuteveis ndash e risiacuteveis ndash das pessoas que encontrava na rua o autor do texto contou que ainda insistiu uma vez mais

ndash Paremos na rua interroguemos aquele mulato pernoacutestico de pastinha atrevida cahindo sob a aba do chapeacuteu de pallha Conheces o Catullo da Paixatildeo Cearensendash Ah Patratildeo Quem natildeo conhece o Catullo Eacute um ldquocabra bonzatildeordquo para a modinhandash E o Coelho Nettondash O Netto o cheirosinho Aquelle que trabalha na estiva104

Inconformado o autor da narrativa punha-se a lamentar ldquoAhi tens meu caro um que conhece o Catullo mas natildeo conhece o Coelho Nettordquo Frustrado concluiacutea dizendo o que pensava ser popularidade de-pois de toda aquela enquete

102 A Noite 9 jan 1912 p 1103 A Noite 9 jan 1912 p 1104 Ibidem

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A popularidadeA popularidade eacute bem uma fantasia que agraves vezes chega a ser dolorosa especialmente quando se acredita que as multidotildees reconhecem o po-pular e ellas interrogam allucinadasndash Quem eacute essa figura105

Os ldquopopularesrdquo citados pelo autor da crocircnica eram rendidos diante do desconhecimento deles pelas pessoas nas ruas Soacute Catullo passou ndash para a frustraccedilatildeo do cronista ndash incoacutelume na pesquisa

Em iniacutecios dos anos 1910 o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense era jaacute bastante conhecido no Rio de Janeiro e sua fama se estendia entre vaacuterios grupos sociais da cidade O editor Quaresma que continuava a publicar e reeditar seus livros aumentava o nuacutemero de letrados dos mais diversos setores da sociedade entre seus clientes Catullo por sua vez aleacutem de ser reconhecido como um ldquopoeta popularrdquo pelo mundo letrado acumulava a satisfaccedilatildeo de ser conhecido por pessoas comuns que cantavam suas modinhas nas ruas cariocas Essa satisfaccedilatildeo natildeo dis-farccedilava o ressentimento com que lidava quando o assunto era ser cha-mado (ou natildeo) de ldquopoetardquo

Os poetas julgam mal os trovadores como eu Eacute uma injusticcedila grande Eu pelo menos nunca pretendi chegar ao ideal da formaEu canto Canto pela alma Embebo-me da muacutesica a que devo dar as minhas palavras degusto-a penetro-lhe no sentimento e escrevo106

Um ldquotrovadorrdquo injusticcedilado pelos ldquopoetasrdquo Assim Catullo se auto representava mas mesmo ressentido por lhe negarem um lugar que ele achava ser compatiacutevel com seus versos procurava chamar a atenccedilatildeo para o fato de que seu canto era acompanhado sempre da escrita reve-lando seu caraacuteter distinto dos demais trovadores pois

Escrevo e canto Embora conheccedila bem a meacutetrica tanto que vou pu-blicar um livro de poesias traduzidas prefiro estabelecer esse consoacutercio

105 Ibidem106 O Paiz 25 fev 1906

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entre melodia e a poesia tirando daquela a vida de meus versos Sei que os meus versos natildeo tem arte mas alma107

Afirmava assim sua produccedilatildeo natildeo pela arte mas pelo que ela tem de ldquoalmardquo E ldquoalmardquo era um fator determinante para se qualificar positivamente uma produccedilatildeo no periacuteodo Advogar para suas modinhas um valor intriacutenseco agrave alma era colocar-se dentro de um rol de produtos que desde o seacuteculo XIX reivindicava o caraacuteter de arte para objetos em que se reconhecia a expressatildeo do indiviacuteduo da sua alma

Esse reconhecimento natildeo poderia ser dado no entanto para qualquer produto ndash muito menos para um indiviacuteduo qualquer Catullo sabedor dessa tensatildeo entre alma e arte e mais ainda sabedor dos cami-nhos que poderiam referendar suas modinhas como ldquoarterdquo fazia de-monstraccedilotildees constantes de sua condiccedilatildeo de letrado E em 1910 quando veio a lume pelas ediccedilotildees Quaresma o seu Trovas e canccedilotildees uma im-portante mudanccedila se verificou a primeira parte da publicaccedilatildeo vinha como de costume com ldquoPoesias de cantordquo em que eram transcritas as modinhas enquanto que em uma segunda parte estrategicamente inti-tulada ldquoPoesias de recitaccedilatildeordquo seguiam-se os versos escritos pelo proacute-prio Catullo alternando-se com suas traduccedilotildees de poesias de Chateaubriand Fuentes e outros poetas estrangeiros conhecidos

Poreacutem enquanto a primeira parte da publicaccedilatildeo (a das modi-nhas) era colocada em relevo pela publicidade das ediccedilotildees Quaresma a segunda parte (com poemas de Catullo e traduccedilotildees feitas por ele) desaparecia dos reclames que apareciam nos jornais Ora Catullo Cearense era reconhecido como modinheiro e portanto ressaltar o caraacuteter musical da produccedilatildeo era para o editor Quaresma condiccedilatildeo necessaacuteria para que ela se tornasse um sucesso de vendagem ou como queria o editor ldquopopularrdquo

TROVAS E CANCcedilOtildeESUacuteltimo livro de modinhas de Catullo CearenseTrazendo uma extraordinaacuteria collecccedilatildeo de formosiacutessimas modinhas para serem cantadas em salotildees familiares festas collegiaes concertos

107 Idem

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etc etc e a indicccedilatildeo [sic] das muacutesicas que devem ser cantadas []Um volume com linda capa com o retrato do grande poeta e cantor 2$000108

Por outro lado os prefaciadores do livro tentavam chamar a atenccedilatildeo do leitor para o caraacuteter poeacutetico das canccedilotildees ali transcritas in-clusive dando outra denominaccedilatildeo a Catullo qual seja a de poeta O prefaacutecio escrito pelo major Moreira Guimaratildees eacute emblemaacutetico Apoacutes elogiar a inteligecircncia de Catullo ndash ao ouvi-lo dizer seus versos num trem suburbano ndash arrematava que ldquome convenci de que o popular tro-vador eacute um grande poetardquo e concluiacutea

A muacutesica gemedora que elle arranca das cordas do seu dilecto violatildeo constitue apenas o fundo do quadro em que fulgura o intenso lyrismo de suas encantadoras poesiasEm verdade Catullo canta e sabe cantar com sua voz inconfundiacutevel Mas elle a cantar diz mais do que cantaNatildeo haacute duacutevida a figura do primoroso artista do verso e de maravilhoso e original diseur eacute a que bem lhe ajustaNatildeo lhe quero negar todavia as explendidas qualidades de cantor emeacute-rito que vae prestando ao patriotismo brazileiro o inestimaacutevel serviccedilo de rehabilitar o mais democraacutetico dos instrumentos Mas eacute preciso que a genearlidade dos compatriotas lhe natildeo escute simplesmente as lango-rosas harmonias do querido violatildeo109

No prefaacutecio da publicaccedilatildeo a condiccedilatildeo de poeta de Catullo eacute co-locada diante do interesse oposto do editor Quaresma de salientar as qualidades do modinheiro e cantor ndash ainda que poeta Apesar das diver-gecircncias quanto agrave preponderacircncia dada a modinhas e poemas ambos visavam sem duacutevida a chamar a atenccedilatildeo do leitor para a qualidade da publicaccedilatildeo e do autor Do lado do editor Quaresma visando agrave maior lucratividade do produto por outro lado o interesse do prefaciador era indicar uma leitura mais distinta ndash e assim podemos dizer para ele

108 O Paiz 17 jun 1910109 GUIMARAtildeES Moreira Catullo Cearense In CEARENSE Catullo Cearense Trovas e

canccedilotildees Rio de Janeiro Livraria do Povo 1910 p 12

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo90

melhor ndash de Catullo como poeta original Se Quaresma fazia questatildeo de dizer que as modinhas eram ldquocoleccedilotildeesrdquo escritas por Catullo o prefa-ciador atentava para a originalidade do mesmo

Trovas e canccedilotildees aflorava as contradiccedilotildees da produccedilatildeo de Catullo Cearense de forma latente Uma primeira parte que satisfazia o inte-resse do editor por modinhas colecionadas por um trovador e uma se-gunda parte que buscava mostrar para o leitor o poeta o letrado que escreve poesias o autor original primeiro e definitivo de sua produccedilatildeo e aquele que conhecedor das letras traduz poetas estrangeiros

De sua parte Catullo fazia de sua publicaccedilatildeo elemento funda-mental para sua afirmaccedilatildeo como poeta e autor Em um dos poemas de Trovas e canccedilotildees intitulado ldquoSegundas Trovas Satyricasrdquo responde aos seus criacuteticos evocando autoridades que saudavam seus versos

E quando eu canto com arteO burro o critico atrozProclama por toda parteQue canto bem mas sem voz

[]

Responderei com um sorrisoComo devo responderDe mais voz eu natildeo precisoPorque canto e sei dizer

Depreciar-me eacute dislateeacute fazer figura maacutetendo elogios de um vateda estatura de Murat

Eacute esforccedilo inuacutetil baldadoeacute uma completa asneiraporque em verso fui saudadopor Alberto de Oliveira

Natildeo me causam calefriosos zoilos dos zoilos zombodecircs que tive os elogiosdo provecto Rocha Pombo

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 91

Que ladre o bobo o pascaacutecioFicarei a gargalharSempre que ler o prefaacutecioDe Pethion de Villar110

Ainda que houvesse disputas de representaccedilotildees entre autor e editor elas natildeo se davam de maneira a criar um mal-estar entre ambas as partes e embora Catullo se apercebesse do entrave causado por objetivos distintos entre ele e Quaresma isso ao que parece nunca o colocou em confronto direto com o editor Aliaacutes o progressivo reco-nhecimento social de Catullo se devia agraves estrateacutegias editoriais de Quaresma e mesmo que o primeiro conduzisse suas modinhas para um entendimento proacuteximo ao de um poema pareceu sempre estabelecer com elas uma relaccedilatildeo de ambiguidade tentando afirmaacute-las enquanto modinhas como poesia ao passo que flertava com outro tipo de pro-duccedilatildeo que natildeo a modinheira

Isso se dava de maneira sutil e criava uma aporia exatamente no momento em que se comeccedilou a reconhecer Catullo como poeta uma vez que um poeta que publicava modinhas era representado como poeta ldquopopularrdquo e ldquopopularrdquo natildeo podia a priori ser considerado poeta Ali se desenrolaram dois movimentos paralelos que se encon-traram o ldquopoeta popularrdquo vai sendo alccedilado a um indiviacuteduo digno de ser notado (pois expressaria uma suposta alma do povo) e os temas popu-lares satildeo procurados como subsiacutedios para a produccedilatildeo de uma literatura brasileira por letrados consagrados Eacute nesse encontro que vai ser de-senrolada uma mudanccedila na produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense que marcaraacute sua trajetoacuteria

Jaacute na entrada dos anos 1910 e com as publicaccedilotildees exitosas da li-vraria Quaresma reverbera na imprensa outra representaccedilatildeo de Catullo ldquo[] o Sr Catullo da Paixatildeo Cearense eacute a mais tremenda gloacuteria da poesia nacionalrdquo111 assim afirmava o redator de um perioacutedico ca-rioca em iniacutecios de 1911 numa seacuterie de crocircnicas sob o tiacutetulo de O Rio

110 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Trovas e canccedilotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1910 p 136-137

111 O Paiz 7 abr 1911

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo92

por dentro O autor sob o pseudocircnimo de Argus saudava a poesia de Catullo como digna de ser tachada de uma gloacuteria

Catullo da Paixatildeo Cearense encontrava-se na deacutecada de 1910 do seacuteculo XX envolvido numa ambiguidade que o traraacute como tema funda-mental em diversas reportagens do periacuteodo quando se tratava de pensar no seu lugar dentro do panteatildeo da ldquopoesia nacionalrdquo Respeitado por uns ignorado por outros era possiacutevel vislumbrar inclusive ambas as atitudes em um uacutenico sujeito Respeitado por conhecer ldquocoisas popu-laresrdquo desdenhado por ser entendido como um ldquoautor popularrdquo Essa nuance de opiniotildees natildeo era absolutamente desconsiderada por Catullo Ao contraacuterio parecia guiar sua produccedilatildeo numa incessante busca pelo reconhecimento A recepccedilatildeo de sua obra deve ser entendida como parte fundamental de seu processo de criaccedilatildeo tanto mais porque Catullo fazia aparecer comentaacuterios de leitores em seus livros e respondeu mais de uma vez em poemas e prefaacutecios os seus detratores

Anna Ceacutesar cronista de O Paiz testemunha para os leitores do jornal a sua leitura de Novos cantares publicaccedilatildeo de Catullo Eacute possiacutevel observar em suas palavras todas as ambiguidades que definiam Catullo nesse tempo

Venho de concluir a leitura de dois livros interessantes que tenho sobre a mesa Cada qual em seu gecircnero ambos preciosos e jaacute recommen-dados pelas assignaturas que os illustramSatildeo elles Estudos e reflexotildees de Moreira Guimaratildees e Novos Cantares de Catullo CearensePedem-me sobre os mesmos algo dizerQue ousaraacute traccedilar a minha obscura Penna de chronista quando jaacute se tem dito e com maior competecircncia sobre os trabalhos desses dois bellos ornamentos da literatura patriacutecia112

Depois de fazer comentaacuterios elogiosos agrave publicaccedilatildeo de Moreira Guimaratildees exaltando seus ldquoarroubos literaacuteriosrdquo a cronista segue para a apreciaccedilatildeo de Novos cantares

112 O Paiz 30 jul 1911 p 2

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 93

Quanto ao livro de Catullo Cearense eu que o conheccedilo e o admiro que o tenho applaudido em minhas salas natildeo lhe posso expender opiniotildees sem que me torne suspeitaCatullo natildeo eacute somente o poeta primoroso querido de seus collegas de letras e um talento prodiacutegio de originalidade conjunto de muacutesica de poesia e de arte Alma que chora canta e vibra nas cordas do violatildeo todos os segredos do coraccedilatildeo todas as nuances do sentimentoMeditativo e despretensioso transfigura-se ao declamar os versos que escreve cheios de delicadezas alados ninhos em que se abrigam [] inspiraccedilotildees de artistasCatullo natildeo eacute para os leigos em mateacuteria de literatura nem para literatos improvizados desses que abundam por ahi com pretensotildees a criacuteticosCatullo eacute para os mestres que o podem admirar julgar e comprehenderPena seraacute que esse espiacuterito ao partir da vida terrena para alar-se aacute [sic] regiotildees superiores natildeo possa talvez deixar como sequencia um disciacutepulo que perpetue a escola genuinamente sua e por ningueacutem ainda imitada apesar da criacutetica severa e ateacute ridiacutecula que se lhe tem tentado lanccedilar113

Elogiosa e mesmo apologeacutetica essa criacutetica coloca Catullo em alta conta dentro da literatura ao mesmo tempo em que abstendo-se de falar de seus versos contidos em Novos cantares chama a atenccedilatildeo para o caraacuteter performaacutetico da sua poesia ldquoao declamar versos que escreverdquo Essa imagem de Catullo declamando eacute muito cara agrave sua representaccedilatildeo e o seguiraacute durante toda a vida

A premissa eacute que seus versos soacute se expressariam diante da orali-dade aqui levada ao extremo pela sua imagem a declamar nos salotildees Poeta dos salotildees homem de literatura Natildeo a voz do canto a serviccedilo da poesia mas voz e verso como elementos indissociaacuteveis para a consu-maccedilatildeo da poesia propriamente Para Anna Cesar a poesia em Catullo eacute acontecimento Para completar a criacutetica apologeacutetica ela termina escre-vendo ldquoPeccedilo desculpas aos leitores por me ter expandido desta forma sobre o nosso menestrel fazendo-lhe a apreciaccedilatildeo individual ao envez da criacutetica aos seus versos []rdquo114

113 Idem114 Idem

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Anna Ceacutesar vai de frente a outro tipo de recepccedilatildeo das publica-ccedilotildees de Catullo aquela que o vecirc como algo menor Gilberto Amado entatildeo ainda estudante de direito e articulista escrevendo um artigo em sua coluna ldquoA Semanardquo no jornal O Paiz sobre o teatro produzido no paiacutes observa de modo irocircnico o fato de que no Brasil soacute as operetas e revistas tecircm puacuteblico e compara

Em literatura de outro gecircnero eacute a mesma coisa Raul Pompeacuteia escreveu o Atheneu e a segunda ediccedilatildeo desse livro monumental feita ultimamente a custa de esforccedilos de amigos estaacute quase intacta ainda na casa Alves Entretanto tecircm sido innumeras as ediccedilotildees dos volumes de poesias eroacute-ticas que se esgotam e creio natildeo haacute modinha de Catullo Cearense que natildeo voe em um instante todos os vetos da publicidadePara que tratar do theatro Eacute uma superfluidade O nosso povo no seu crasso analphabetismo no seu desdeacutem das ideacuteas pensa laacute em coisas seacuterias115

Esse olhar lanccedilado sobre as publicaccedilotildees de Catullo vindo de um conhecido articulista do periacuteodo resguardava para o autor certa distacircncia de um reconhecimento como literato Poreacutem ao mesmo tempo em que parecia negar-lhe um lugar no panteatildeo de uma literatura respeitaacutevel en-tregava-lhe estigmatizando-o negativamente a autoria de textos consi-derados ldquonatildeo-seacuteriosrdquo ou seja conferia-lhe a autoridade sobre eles de modo que desdenhava do fato de que muitas das modinhas publicadas em livros sob o nome proacuteprio Catullo Cearense serem originalmente criadas por vaacuterios artistas e soacute depois reunidos em textos por Catullo Assim era o nome proacuteprio Catullo que era responsabilizado pelas publi-caccedilotildees consumidas pelo ldquopovordquo no seu ldquocrasso analphabetismordquo Mais tarde o proacuteprio Gilberto Amado reafirmaria seu ponto de vista

Na Inglaterra na Franccedila na Alemanha qualquer menino de lyceu recita Homero e tem a alma cheia de maravilhas authenticas do Parnaso Diz as coacuteleras de Agammenon os desejos luminosos de Anacreonte e a sua alma se engrandece no grande rythmo das paixotildees heroicas

115 O Paiz 9 abr 1911 p 1

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 95

Aqui as nossas primeiras impressotildees literaacuterias vecircm dos gorgeios de Catullo Cearense e nas piadas das revistas populares116

A essas impressotildees em negativo Catullo fazia acudir em seus livros como jaacute o vimos a opiniatildeo de gente respeitada da elite letrada carioca Outro elemento deve ser sublinhado as dedicatoacuterias das poe-sias e modinhas que Catullo fazia aparecer em seus textos

Fazendo o uso de praacutetica comum no periacuteodo o autor dedicava suas publicaccedilotildees quase sempre a um membro distinto da sociedade ca-rioca Assim na 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro popular de 1908 dedica ldquoao primoroso e distincto comediographo brasileiro Arthur Azevedo como singela prova de admiraccedilatildeo ao seu talento omnidordquo A publicaccedilatildeo Lyra brasileira vai dedicada ao ldquoabalisado mestre do provecto forma-lista ao eminente criacutetico ao inspirado e mavioso poeta Medeiros e Albuquerquerdquo Trovas e canccedilotildees de 1910 vai dedicado ao ldquoExmo Sr M Moreira da Silva doutor em Odontologia Lente Cathedraacutetico da Escola Livre do Rio de Janeirordquo Esse recurso comum era ampliado nas obras de Catullo pelas dedicatoacuterias que fazia aparecer em cada modinha e em eventuais poesias que fazia publicar Assim em Novos cantares de 1909 enquanto aparece uma rara dedicatoacuteria do livro para a matildee de Catullo falecida em 1908 cada modinha e cada poesia vinham acom-panhadas com dedicatoacuterias a pessoas ilustres entre as quais ldquoao grande poeta Dr Luis Muratrdquo (a quem dedica o poema Ode ao violatildeo) ldquoAo glorioso luminar do exeacutercito brasileiro Marechal Hermes da Fonsecardquo (a quem dedica a modinha Templo ideal) ldquoao Dr Luacutecio de Mendonccedilardquo (a quem dedica a modinha O teu cabello) e ateacute mesmo ao seu editor Pedro da Silva Quaresma (a quem dedica a modinha Rasga coraccedilatildeo)

Natildeo soacute Catullo lanccedilava matildeo dessa receita Por essa mesma eacutepoca em 1915 a livraria Castilho lanccedilava sua primeira publicaccedilatildeo de autor nacional Carmen tropicale livro de poesias de Antocircnio Torres (que seria posteriormente reconhecido por suas Pasquinadas cariocas) A maioria dos seus 33 poemas ia acompanhada de dedicatoacuterias a indiviacute-duos como Goulart de Andrade Oscar Lopes e Nestor Victor

116 O Paiz 16 out 1913 p 1

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Praacutetica comum as dedicatoacuterias poderiam atender a vaacuterias de-mandas inclusive a necessidade vital para um escritor de mirar seu puacute-blico consumidor fosse pela autoridade evocada na dedicatoacuteria fosse no mero agradecimento por serviccedilos prestados mdash ora citar um ilustre dedi-cando-lhe um poema poderia soar como estar proacuteximo do ilustre o que poderia abalizar o indiviacuteduo que escreve como algueacutem ldquoreconhecidordquo

Haacute de se levar em conta que a publicaccedilatildeo de um livro demandava vaacuterios empreendimentos por parte de um escritor inclusive se valendo da ajuda de proacuteximos Antocircnio Torres ao publicar seu volume de poe-sias Carmen tropicale embora levasse o selo da livraria Castilho pagou com o proacuteprio bolso toda a ediccedilatildeo Conta-se que o proprietaacuterio Antocircnio Castilho que jaacute publicara algumas traduccedilotildees de estrangeiros como Dostoievski suspeitava de lanccedilar um escritor nacional por sua casa117 De qualquer forma temeroso de um possiacutevel fracasso Antocircnio Torres advertia ao seu leitor em uma nota-posfaacutecio que fez aparecer no livro ldquoO encontrar coisas boas num livro depende apenas de saber lerrdquo118

O aumento de um puacuteblico letrado fazia aparecer inuacutemeros lei-tores que por sua vez criavam expectativas a cada publicaccedilatildeo que saiacutea Isso demandava de autor e editor estrateacutegias que pudessem ser bem avaliadas por um possiacutevel consumidor Dedicatoacuterias preccedilos formas materiais do livro convencimentos por prefaacutecios e posfaacutecios opiniotildees em perioacutedicos tudo isso entrava no rol de elementos a serem pensados por aqueles que visavam ao sucesso da publicaccedilatildeo Esse empreendi-mento dispendioso e arriscado num paiacutes potencialmente de natildeo lei-tores fazia aparecer aspirantes a escritores a cada dia que almejavam serem lanccedilados sob a proteccedilatildeo de um ilustre Se o ecircxito da livraria Quaresma podia ser tomado como exemplo para outros editores natildeo era faacutecil e barato imitaacute-la ainda mais quando o editor e o escritor natildeo abriam matildeo de produzir e publicar livros de ldquocoisas seacuteriasrdquo como queria Gilberto Amado anteriormente citado

A editora e livraria Castilho vinha com essa pretensatildeo mas en-contrava um mercado de ldquoobras seacuteriasrdquo jaacute inchado sob a eacutegide da

117 BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 68118 TORRES Antocircnio Carmen tropicale Rio de Janeiro Livraria Castilho 1915 p 80

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Garnier Ainda assim apostando na boa aprovaccedilatildeo feita ao livro do as-pirante Antocircnio Torres Antocircnio Castilho natildeo abriu matildeo de publicar li-vros ldquomais seacuteriosrdquo e imitar um pouco da publicidade exitosa de Pedro Quaresma Por seu lado escritores novos e antigos procuravam o aval de selos mais seacuterios visando a ganhar mais credibilidade dos leitores

Catullo da Paixatildeo Cearense o maior sucesso de vendas da Quaresma afastar-se-ia dessa editora e se aproximaria da Castilho Em 1918 lanccedilaria sob o selo de Antocircnio Castilho o livro de poemas Meu sertatildeo Mas daiacute ateacute esse rompimento com Quaresma se daria um flerte com a temaacutetica sertaneja que contaminava o Rio de Janeiro do periacuteodo Sempre atento e sensiacutevel agraves mudanccedilas que se processavam na literatura Catullo se viu diante de uma possibilidade iacutempar de reconhecimento em definitivo como poeta (e natildeo soacute ldquopoeta popularrdquo) escrevendo temaacuteticas mais ldquoseacuteriasrdquo e deixando as modinhas de lado ao aproximar-se de um editor que visava a tal seriedade buscada Nesse iacutenterim poreacutem foi ainda uma modinha de sucesso que lhe deu essa oportunidade o Luar do sertatildeo

Figura 2 ndash Catullo da Paixatildeo Cearense em foto publicada em Lyra brasileira de 1908 pela livraria Quaresma

Fonte arquivo do autor

SER POETA SER DO SERTAtildeO

Catullo Cearense tu

tens o defeito bem fortede arranjar termos do Sue dizer que satildeo do Norte

Joatildeo Carvalho119

A cidade e o sertatildeo

Em 1915 a livraria Quaresma publicava aquele que era anun-ciado pelo editor como o ldquouacuteltimo livro de modinhas de Catullo Cearenserdquo Florileacutegio dos cantores eacute uma publicaccedilatildeo dividida em trecircs partes 1) Florileacutegio dos cantores 2) Flores do sertatildeo e 3) Flores dispersas Em Flores do sertatildeo apareciam pela primeira vez em livro as modinhas com temaacuteticas sertanejas de Catullo incluindo Luar do sertatildeo e Poeta do sertatildeo Era a primeira vez que Catullo se revelava um bardo das coisas sertanejas Em Poeta do sertatildeo ndash que segundo Catullo deveria ser acom-panhada da muacutesica do ldquomaestro Francisco Nunes que logo depois ficaraacute popularizadardquo ndash o autor buscava representar a fala sertaneja

Si chora u pinhoIn disafiugemedocirc

119 Apud ALENCAR Edigar de Claridade e sombra na muacutesica do povo Rio de Janeiro Francisco Alves Brasiacutelia INL 1984 p 54

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Natildeo haacute puetaComo u fiudo sertatildeo sem secircdoutoOs oio quentiDa caboca faz a gentiSecirc pueta di repentequi a puesiavem do amocirc120

O ecircxito daquelas modinhas sertanejas daria a Catullo a oportuni-dade para em pouco tempo arvorar-se de bardo modinheiro a poeta do sertatildeo Naquele mesmo ano saiu pela Papelaria e Typografia Sportiva o volume intitulado Canccedilotildees das madrugadas com letras de Catullo adaptadas para canccedilotildees conhecidas Era a primeira vez depois de muitos anos que Catullo natildeo publicava pela Quaresma

Nessa publicaccedilatildeo novamente aparece a letra de Poeta do sertatildeo acompanhada de uma dedicatoacuteria ao poliacutetico cearense Floro Bartholomeu mas com a seguinte mudanccedila na indicaccedilatildeo da muacutesica a acompanhar ldquoPara ser cantada com a toada Caboca de Caxangaacute de minha lavra disco da Casa Edisonrdquo121 A mudanccedila na escolha da muacutesica a acompa-nhar a canccedilatildeo natildeo parece deliberada Da erudiccedilatildeo de um maestro Catullo parecia visar agravequilo que identificava como ldquopopularrdquo preferindo a muacute-sica da famosa toada sertaneja Caboca de Caxangaacute A mudanccedila tambeacutem chama a atenccedilatildeo para a possiblidade agrave eacutepoca da existecircncia de uma letra adaptada a vaacuterias muacutesicas ou ao contraacuterio o que era muito comum uma muacutesica poderia circular com letras diferentes

Caboca de Caxangaacute era uma canccedilatildeo que fora sucesso no car-naval de 1913 nas ruas cariocas com letra diferente daquela dada por Catullo Seu formato de embolada remetia a um canto falado proacuteximo ao dos repentistas comuns do nordeste do paiacutes Comos vimos o Rio de

120 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Florileacutegio dos cantores Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1915 p 93-98

121 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Canccedilotildees das madrugadas Rio de Janeiro Papelaria amp Typografia Sportiva 1915 p 21

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo100

Janeiro desde finais do seacuteculo XIX acostumara-se a assistir a espetaacute-culos como esse cujo tema central era o interior o sertatildeo

Ladeada por equipamentos modernos que criavam novos espaccedilos de sociabilidade e armada das ldquopalpitantesrdquo obras literaacuterias que atra-cavam nos portos das grandes cidades a elite letrada brasileira de iniacute-cios do seacuteculo XX convivia com o dilema cotidiano de ver-se como parte importante do desejo de civilizar-se ao passo que enxergava agrave sua volta a sobrevivecircncia (e por que natildeo a ameaccedila) da existecircncia de coisas ditas ldquobaacuterbarasrdquo Agrave pretensa busca de um ideal civilizatoacuterio que fosse corporificado pela sede de progresso (palavra de ordem daqueles tempos) juntou-se para a elite letrada uma vontade de encontrar algo que singularizasse o Brasil no mundo Ambos os movimentos ndash o de buscar inserir-se e o de singularizar-se ndash faziam parte da mesma von-tade de representar-se diante do mundo Parte constitutiva desse para-doxo e aquela onde mais se expressou esse dilema foi a sede por temas sertanejos que se disseminou nas produccedilotildees de grande parte do uni-verso letrado das capitais

No Rio de Janeiro capital federal de entatildeo onde desde fins do seacuteculo XIX processava-se aleacutem de raacutepidas mudanccedilas de natureza soacute-cio-poliacutetica uma triunfante racionalizaccedilatildeo espacial que culminaria na gestatildeo de Pereira Passos (1902-1906) ndash cujo maior siacutembolo foram as obras de construccedilatildeo da Avenida Central ndash essa ldquovoga sertanejardquo se expressava como ldquoum lugar comum alambicado um exerciacutecio de ca-riocas deslumbrados por Parisrdquo e tal ldquovogardquo entatildeo ldquopersistiria por duas ou trecircs deacutecadasrdquo disseminando-se por diversas produccedilotildees de natureza literaacuteria musical teatral e mesmo historiograacutefica122 ldquoCariocas des-lumbrados por Parisrdquo pois que na Franccedila do seacuteculo XIX uma enxur-rada de publicaccedilotildees literaacuterias tambeacutem buscou falar do interior numa tarefa francesa de buscar as suas raiacutezes como naccedilatildeo ldquoRaiacutezesrdquo e ldquonaccedilatildeordquo dois termos que se tornaram incontornaacuteveis na definiccedilatildeo do que seria a literatura do periacuteodo inclusive no Brasil Tambeacutem neste paiacutes tal temaacutetica tornou-se terreno feacutertil para construir uma represen-

122 GALVAtildeO Walnice Nogueira Metamorfoses do sertatildeo Revista de Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 18 n 52 setdez 2004

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taccedilatildeo singular do brasileiro e na esteira disso um iacutendice de definiccedilatildeo do que seria uma literatura nacional

Quando Euclides da Cunha publicou Os sertotildees em dezembro de 1902 a produccedilatildeo em torno do ldquosertatildeordquo jaacute era reivindicada por uma gama de autores e estudiosos que desde meados do seacuteculo XIX esco-lheram falar das ldquocoisas do interiorrdquo Essa sede de ldquosertatildeordquo vinha desde os oitocentos e exemplifica-se nas viagens promovidas pelo Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) que respondiam agrave demanda de conhecer o vasto territoacuterio do paiacutes como parte de um projeto na-cional do Estado imperial Concomitantemente a isso Joseacute de Alencar Gonccedilalves Dias Bernardo Guimaratildees Visconde de Taunay entre ou-tros tantos autores do seacuteculo XIX mobilizavam artifiacutecios literaacuterios para contar sobre o paiacutes encontrando no sertatildeo o berccedilo idiacutelico de uma nacio-nalidade que se forjava no Brasil

Esses homens comumente fincavam no sertatildeo o passado e as ori-gens da naccedilatildeo na sua marcha irreversiacutevel para a civilizaccedilatildeo num gesto que muitas vezes parecia tentar colocar nos trilhos um paiacutes de passado colonial O sertatildeo autorizava a marcha do presente por guardar as raiacutezes do paiacutes Ele o sertatildeo deveria ser conhecido para que se pudesse vis-lumbrar uma identidade que no presente precisava ser construiacuteda mas que no passado (que o sertatildeo guardava) eacute que poderia ser reconhecida Isso explicava a motivaccedilatildeo de Taunay ao desembarcar em Santos e ver-se feliz com ldquoa perspectiva de percorrer grandes extensotildees e varar ateacute sertotildees pouco conhecidosrdquo123 ou a lamentaccedilatildeo de Alencar pela che-gada da ldquocivilizaccedilatildeordquo nos sertotildees dizendo ldquoQuando te tornarei a ver sertatildeo da minha terra que atravessei haacute muitos anos na aurora serena e feliz de minha infacircnciardquo pois ldquoa civilizaccedilatildeo que penetra pelo interior corta os campos de estradas e semeia pelo vastiacutessimo deserto as casas e mais tarde as povoaccedilotildeesrdquo124

123 TAUNAY Visconde de Dias de guerra e de sertatildeo Satildeo Paulo Revista do Brasil 1920 p 11

124 ALENCAR Joseacute O sertanejo 6 ed Satildeo Paulo Melhoramentos sd p 9-10 (1ordf ediccedilatildeo em 1875)

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A geraccedilatildeo do final do seacuteculo XIX poreacutem passaria a conviver com um dilema diferente O novo que se expressava de maneira veloz nas grandes cidades concomitantemente demandava uma inserccedilatildeo dos citadinos naquilo que se convencionou chamar de ldquomodernidaderdquo Haacutebitos foram (re)fundados e velhas praacuteticas sofriam aversatildeo entre os apologistas do moderno O regozijo fuacutenebre do passado era exortado em textos que cantavam os novos prazeres das ruas que triunfavam nos espaccedilos urbanizados As cidades com suas ruas modernamente retiliacute-neas impulsionavam uma nova percepccedilatildeo de tempo e espaccedilo Ao es-paccedilo citadino aderiu-se uma qualificaccedilatildeo temporal agrave ldquoantigardquo cidade veio sobrepor-se a ldquomodernardquo cidade

Nesse contexto sertotildees e cidades tornaram-se temas fundamen-tais para se pensar a naccedilatildeo Espaccedilos apartados por profundas contradi-ccedilotildees entre si e que por isso mesmo eram representados provocando a vertigem de viajantes desavisados como se expressava nas impressotildees sintomaacuteticas de Isaiacuteas Caminha personagem criado por Lima Barreto quando adentrava a baiacutea de Guanabara agraves portas da cidade do Rio de Janeiro vindo do sertatildeo capixaba

O espetaacuteculo chocou-me Repentinamente senti-me outro Os meus sentidos aguccedilaram-se a minha inteligecircncia entorpecida durante a viagem despertou com forccedila alegre e cantante Eu via nitidamente as coisas e elas penetraram em mim ateacute o acircmago Convergi todo o meu aparelho de exame para o espetaacuteculo que me surpreendia Estive por uns instantes espamodicamente arrebatado para um outro mundo adi-vinhado aleacutem das coisas sensiacuteveis e materiais Voluptuosamente cerrei os olhos depois aos poucos descerrei as paacutelpebras para olhar embaixo o mar espelhento e misterioso []125

Essa sensaccedilatildeo de estar num espaccedilo onde as mutaccedilotildees se corpori-ficavam quase como um encantamento se fazia aparecer como bem salientava o cronista Joatildeo do Rio inclusive nas formas com que os ldquomodernos artistasrdquo davam luz a suas obras ldquoOs artistas modernos jaacute natildeo se limitam a exprimir os aspectos proteiformes da rua a analisar

125 BARRETO Lima Recordaccedilotildees do escrivatildeo Isaiacuteas Caminha Satildeo Paulo Publifolha 1997 p 50

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traccedilo por traccedilo o perfil fiacutesico e moral de cada rua Vatildeo mais longe so-nham a rua ideal como sonharam um mundo melhorrdquo126

Na dramaacutetica espera por esse ldquomundo melhorrdquo onde a rua do-mesticada pudesse desaguar por todos os espaccedilos e onde as novidades triunfariam diante da relutacircncia do velho foi que os limites do moderno se figuraram diante do rechaccedilo do sertatildeo A cidade modernizada desco-bria o sertatildeo O sertatildeo era o ldquooutro geograacuteficordquo incontornaacutevel diante do arrivismo moderno Mas um ldquooutrordquo que segundo as liccedilotildees dos romacircn-ticos era o guardador das raiacutezes do paiacutes e portanto o sertatildeo era con-comitantemente um ldquooutrordquo e um ldquomesmordquo O discurso nacionalista o aproximava das cidades enquanto o discurso cosmopolita da moderni-dade o repelia

Essa dualidade na forma de tratar os espaccedilos se manifestou num imenso debate acerca do sentido do sertatildeo nos novos tempos de forma que falar dele era uma operaccedilatildeo que atravessava toda tensatildeo expressa em dualidades qualificadoras tais como ldquobaacuterbarordquo poreacutem ldquoabando-nadordquo ldquoberccedilo da nacionalidaderdquo mas ldquoespaccedilo do atrasordquo ldquodoenterdquo contudo ldquoforterdquo Dicotomias expressas de maneira dramaacutetica na obra de Euclides da Cunha mas que apareciam em inuacutemeras outras publicaccedilotildees que surgiram na febre de sertatildeo que a ela proacutepria secundou como ve-remos a seguir

A produccedilatildeo literaacuteria usando de temaacuteticas e formas identificadas como sertanejas vinha numa crescente desde fins do seacuteculo XIX A cha-mada literatura de cordel jaacute era conhecida pelos citadinos cariocas a ponto de a livraria Quaresma lanccedilar algumas publicaccedilotildees dedicadas a esse tipo de produccedilatildeo127 Temas sertanejos avultaram inclusive publi-cados por autores consagrados do periacuteodo

126 RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Belo Horizonte Crisaacutelida 2007 p 33 (1ordf ediccedilatildeo em 1910)

127 Maacutercia Abreu observa que A Guerra de Canudos do fanaacutetico Conselheiro de Joatildeo de Souza Conegundes teve pelo menos duas ediccedilotildees pela Quaresma a primeira em 1897 e a segunda em 1913 Cf ABREU Maacutercia Cordel portuguecircsfolhetos nordestinos con-frontos 1993 360 f Tese (Doutorado em Literatura Comparada) ndash Departamento de Teoria Literaacuteria Instituto de Estudos de Linguagem Universidade Estadual de Campinas CampinasSP 1993 p 123

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O escritor Coelho Neto ainda em 1893 aventurava-se na temaacute-tica sertaneja publicando Capital Federal impressotildees de um sertanejo no qual criava um narrador oriundo do sertatildeo que contava seu estranha-mento ao deparar-se com o ambiente citadino Entre estranhamentos sustos com novos haacutebitos e liccedilotildees ldquomoraisrdquo o distanciamento do serta-nejo diante da sociedade carioca eacute a tocircnica do romance Em 1896 Coelho Neto lanccedilava seu livro de contos sertanejos denominado Sertatildeo marcadamente construiacutedo numa tentativa de reproduccedilatildeo do linguajar do morador do sertatildeo distinguindo assim expressotildees e palavras do dizer sertanejo acentuando particularidades de comportamentos do homem do sertatildeo bem como marcando sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao modo de falar das cidades

No ano seguinte o teatroacutelogo Arthur Azevedo encenava no Teatro Recreio Dramaacutetico sua peccedila A conquista cujo enredo se pas-sava em torno de uma famiacutelia mineira que vinha agrave capital federal e depois de um deslumbramento inicial acabava descobrindo o viacutecio e a corrupccedilatildeo das cidades A negativizaccedilatildeo das cidades nessas produccedilotildees era uma postura que desconcertava os citadinos regozijantes diante da modernidade urbana e aproximava o sertatildeo de adjetivaccedilotildees positivas e ateacute mesmo do progresso Na mesma peccedila citada Azevedo por exemplo terminava demonstrando o desencantamento de um dos personagens sertanejos Euseacutebio que desabafava em voz alta ldquo[] A vida da capitaacute natildeo se fez para noacutes E que tem isso Eacute na roccedila eacute no campo eacute no sertatildeo eacute na lavoura que estaacute a vida e o progresso da nossa querida paacute-tria [grifo meu]rdquo128

Se por um lado tais autores escolhiam enredos que se pas-savam em torno do sertatildeo por outro natildeo se restringiam somente a ele Coelho Neto Arthur Azevedo Afonso Arinos Franklin Taacutevora e Antocircnio Sales mdash alguns dos primeiros dessa safra de ldquoautores serta-nejosrdquo mdash traziam no bojo do sertatildeo de suas histoacuterias natildeo mais apenas elementos para contar sobre eles mas para a partir de sua presenccedila comparaacute-los agraves cidades

128 AZEVEDO Arthur A conquista Rio de Janeiro Ediouro sd p 245 (1ordf ediccedilatildeo em 1897)

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A comparaccedilatildeo sertatildeo-cidade foi um iacutendice que se fez presente nas obras de diversos autores do periacuteodo tornando o sertatildeo um criteacuterio comparativo importante para pensar as cidades O sertatildeo deixava de ser simplesmente o ldquopassadordquo um guardador das raiacutezes que autorizaria o presente e passava a ser ele mesmo uma presenccedila constante na com-paraccedilatildeo com as cidades Assim seria por todas as trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo XX A voga sertaneja que acompanhou as modernidades que emergiam nas cidades fez com que o escritor Lima Barreto jaacute em 1919 atraveacutes de seu personagem Gonzaga de Saacute afirmasse frustrado ldquoA nossa emotividade literaacuteria soacute se interessa pelos populares do sertatildeo unicamente porque satildeo pitorescos e talvez natildeo se possa verificar a ver-dade de suas criaccedilotildeesrdquo129

Um pouco mais louvado ou um pouco menos o certo eacute que sertatildeo tornou-se um (sub)tema absolutamente incontornaacutevel quando o assunto versava sobre por exemplo cidades naccedilatildeo civilizaccedilatildeo progresso mo-dernidade e ateacute mesmo literatura nacional

Ademais na produccedilatildeo literaacuteria brasileira do periacuteodo sertatildeo virou quase que um meta-tema uma vez que escolhecirc-lo como tema central ou um pouco menos fazecirc-lo simplesmente aparecer na narra-tiva em breves comentaacuterios era afirmar fazer parte de uma tradiccedilatildeo de literatura que cantava sua terra identificada assim como uma litera-tura tipicamente nacional Poreacutem se descrever o sertatildeo e seus cos-tumes era a tocircnica na literatura anterior a essa geraccedilatildeo comumente na denominada ldquogeraccedilatildeo romacircnticardquo para essa geraccedilatildeo moderna o sertatildeo comparecia ao mesmo tempo como embaraccediloso e inspirador A che-gada dos anos 1900 veria aparecer o livro que mais impulsionou tal voga Os sertotildees

O embaraccediloso nas representaccedilotildees de campo e cidade eacute que natildeo raro ambos se mesclam e se complementam Essa relaccedilatildeo de comple-mentaridade eacute comumente fruto das relaccedilotildees afetivas que o sujeito manteacutem com esses espaccedilos bem como de maniqueiacutesmos que os apro-ximam como forma de defini-los em pares opostos Publicado em fins de

129 Apud BARBOSA Francisco de Assis Prefaacutecio In BARRETO Lima Recordaccedilotildees do escrivatildeo Isaiacuteas Caminha Satildeo Paulo Publifolha 1997 p 16 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)

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1902 Os sertotildees de Euclides da Cunha expressava nesse sentido um entrelaccedilamento embaraccediloso entre afeto e razatildeo entre maniqueiacutesmos classificatoacuterios e paixotildees identitaacuterias que agrave primeira vista contraditoria-mente aproximavam a simpatia do autor Euclides Cunha mais do sertatildeo que das cidades na sua tentativa de vislumbrar a desejada ldquocivilizaccedilatildeordquo atraveacutes da comparaccedilatildeo criacutetica entre sertotildees e cidades brasileiras

Para Euclides o sertanejo era ele proacuteprio a singularizaccedilatildeo do Brasil no mundo e a negaccedilatildeo da racionalizaccedilatildeo arrivista do pro-gresso cosmopolita ndash progresso de que aliaacutes o engenheiro Euclides da Cunha era um dos arautos Contestando o famoso historiador Thomas Buckle bastante consumido pela elite letrada de entatildeo que falava em apequenamento do homem brasileiro diante da natureza Euclides escrevia

Mas o nosso sertanejo faz exceccedilatildeo agrave regra A seca natildeo o apavora Eacute um complemento agrave sua vida tormentosa emoldurando-se em cenaacuterios tremendos Enfrenta-a estoacuteico Apesar das dolorosas tradiccedilotildees que co-nhece atraveacutes de um sem nuacutemero de terriacuteveis episoacutedios alimenta a todo o transe esperanccedilas de uma resistecircncia impossiacutevel130

Ao passo que o mesmo Euclides qualificava a vida no sertatildeo de ldquomonoacutetona e primitivardquo131 tambeacutem afirmava o sertanejo como ldquoantes de tudo um forterdquo por natildeo ter o ldquoraquitismo exaustivo dos mesticcedilos neurastecircnicos do litoralrdquo natildeo deixava de ser no entanto ldquodesgracioso desengonccedilado e tortordquo132 A hesitaccedilatildeo de Euclides em definir o serta-nejo era na verdade a hesitaccedilatildeo em definir-se uma vez que positivaacute-lo era fazer apologia do natildeo civilizado (e Euclides acreditava na civili-zaccedilatildeo) e negativizar os sertotildees em definitivo por outro lado era excluir o ldquoforte sertanejordquo na construccedilatildeo de uma naccedilatildeo moderna e portanto civilizada no Brasil Por isso mesmo para o autor o sertanejo soacute podia ser definido pela imagem duacutebia do Heacutercules-Quasiacutemodo Tensatildeo se-

130 CUNHA Euclides Os sertotildees In CUNHA Euclides Obras completas Rio de Janeiro Joseacute Aguilar 1966 p 182

131 Idem p 182132 Ibidem p 170

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macircntica que aparece em toda a obra do autor e que foi seminal para reintroduzir de maneira cabal o sertatildeo no discurso literaacuterio

Apoacutes o sucesso de Os sertotildees um excesso de sertatildeo se fez pre-sente em publicaccedilotildees do periacuteodo sejam elas literaacuterias cientiacuteficas ou musicais Foi nessa eacutepoca tambeacutem que o Estado republicano brasi-leiro enviou cientistas e engenheiros aos sertotildees natildeo mais apenas com o intuito de conhececirc-los mas para intervir neles com as ferramentas do ldquoprogressordquo133A corporificaccedilatildeo do ideal euclidiano de intervenccedilatildeo nos sertotildees pelas armas do ldquoprogressordquo bem como as implicaccedilotildees da sua obra maior nas formas e significados que os sertotildees do paiacutes te-riam dali para frente satildeo dois pontos fulcrais que criaram uma avidez pela temaacutetica sertaneja no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX Contudo o que avultou na literatura sertaneja poacutes-Os sertotildees foi uma tensatildeo ex-pressa em paradoxos semacircnticos que por um lado inviabilizavam qualquer qualificaccedilatildeo em definitivo do sertatildeosertanejo na narrativa mas por outro sugeriam a existecircncia de uma vontade ainda que frus-trada de representaacute-los

Essa indefiniccedilatildeo na representaccedilatildeo do sertatildeo era produto ainda de uma percepccedilatildeo espacial cujos referenciais eram tomados a partir de um olhar citadino e portanto que julgavam a espacialidade a partir de valores tais como civilizaccedilatildeo modernidade e progresso Referenciais que garantiriam ao sertatildeo epiacutetetos sem duacutevida antocircnimos a estes Contudo isso soacute seria possiacutevel se muitas dessas representaccedilotildees natildeo fossem construiacutedas por sujeitos que herdaram toda uma forma de dizer o sertatildeo que o encarava como o berccedilo da nacionalidade em oposiccedilatildeo ao cosmopolitismo das cidades

133 Eacute desse periacuteodo que data a criaccedilatildeo de projetos de intervenccedilatildeo cientiacuteficos no interior do paiacutes tais como o Serviccedilo Geoloacutegico e Mineraloacutegico do Brasil (1907) das Comissotildees Rondon (1910) do Superintendecircncia Nacional de Desenvolvimento da Amazocircnia (1910) e da Inspetoria de Obras Contra as Secas (1909) Sobre esta uacuteltima haacute de se atentar que Euclides da Cunha ajudou no projeto de criaccedilatildeo junto ao Ministeacuterio da Viaccedilatildeo Cf MORAES Kleiton de Sousa O sertatildeo descoberto aos olhos do progresso a inspetoria de obras contra as secas (1909-1918) 2010 184 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) - Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social Instituto de Histoacuteria Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2010

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Mas natildeo foi bem isso que aconteceu Daiacute na ldquovoga sertanejardquo que se seguiu em iniacutecios do seacuteculo XX um verdadeiro contorcionismo intelectual tentaria abarcar o sertatildeo na esteira de representaccedilotildees posi-tivas de forma que o ldquoessencialmente nacionalrdquo (o sertatildeo) natildeo ficasse comprometido diante das ondas modernizantes que os estigmatizariam como negaccedilatildeo do novo A literatura euclidiana caminharia sobre esses dois planos de forma tal que essa tensatildeo seria a marca registrada de seu estilo ele mesmo construiacutedo sobre os alicerces de uma narrativa que dramatizava essa tensatildeo

A vitimizaccedilatildeo era uma caracteriacutestica constante da ldquovoga serta-nejardquo e era um artifiacutecio que buscava uma saiacuteda para o desconforto cau-sado pela existecircncia de um sertatildeo pela criaccedilatildeo na literatura de perso-nagens sertanejos que sofriam as agruras das grandes cidades e de seus moradores Uma vitimizaccedilatildeo que nem sempre heroificava o sertanejo Monteiro Lobato exemplifica esse movimento Num primeiro mo-mento representando o caipira Jeca como um degenerado Lobato logo seguiria a pista da vitimizaccedilatildeo do seu personagem Na literatura loba-tiana agrave tensatildeo na definiccedilatildeo do sertanejo veio juntar-se um difuso ponto de vista com relaccedilatildeo ao estado do Jeca que logo se tornou viacutetima de seu abandono cuja consequecircncia direta era a ausecircncia de salubridade Essa literatura com temaacutetica sertaneja fez surgir uma febre por aquilo que ficou conhecido como ldquoliteratura regionalrdquo

O criacutetico e ensaiacutesta Antocircnio Cacircndido ao tecer reflexotildees acerca do papel do que ele denominou de ldquoregionalismordquo na literatura brasi-leira observou aproximaccedilotildees nos discursos de uma literatura ldquoregionalrdquo produzida no seacuteculo XIX (e Cacircndido cita autores como Franklin Taacutevora e Bernardo Guimaratildees) e aquela produzida no iniacutecio do seacuteculo XX Explica o estudioso que

Gecircnero artificial e pretensioso criando um sentimento subalterno e de faacutecil condescendecircncia em relaccedilatildeo ao proacuteprio paiacutes a pretexto de amor da terra ilustra bem a posiccedilatildeo dessa fase que procurava na sua vocaccedilatildeo cos-mopolita um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais tiacutepicas Esse meio foi o ldquotonto sertanejordquo que tratou o homem rural do acircngulo pitoresco sentimemtal e jocoso favorecendo a seu respeito ideacuteias-feitas perigosas do ponto de vista social quanto sobretudo esteacute-tico Eacute a banalidade dessorada de Catulo da Paixatildeo Cearense a ingenui-

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dade de Corneacutelio Pires o pretensioso exotismo de Valdomiro Silveira ou o do Coelho Neto do Sertatildeo eacute toda a aluviatildeo sertaneja que desabou sobre o paiacutes entre 1900 e 1930 e ainda perdura na subliteratura e no raacutedio134

A bem da verdade estudar essas muacuteltiplas obras e trataacute-las como produtos que optavam por narrar o ldquoruralrdquo do ponto de vista do ldquopito-rescordquo ldquosentimentalrdquo e ldquojocosordquo como salienta Cacircndido eacute uma atitude que natildeo pode ser sustentada diante da complexidade das representaccedilotildees dadas ao mundo rural pelos autores anteriormente citados pelo criacutetico Como procurei demonstrar o seacuteculo XX trouxe elementos difusos e novos para se pensar e falar sobre espacialidades no Brasil Essas formas tiveram ecos na literatura produzida no Brasil no iniacutecio do seacute-culo XX que as diferiam daquela produzida pela geraccedilatildeo anterior mesmo que ambas elegessem o ldquosertatildeordquo como temaacutetica mdash e isso eacute o que pode ter impulsionado Cacircndido a aproximar narrativas tatildeo diacutespares do ponto de vista do tratamento e significado dado ao sertatildeo A tensatildeo expressa em narrativas que teimavam em definir sertatildeo com ldquoolhares civilizadosrdquo pode ser uma ldquochaverdquo prudente para se entender esta pro-duccedilatildeo ldquosertanejardquo de iniacutecios do seacuteculo XX bem como ajuda a fugir atentando para seus usos de definiccedilotildees faacuteceis como a que comumente tacha essa literatura como sendo ldquoregionalistardquo

Por outro lado Cacircndido interessado em salientar o caraacuteter for-mativo da literatura em termos de naccedilatildeo perde de vista os usos estrateacute-gicos da temaacutetica sertaneja em diversos produtos literaacuterios do periacuteodo Perde de vista sobretudo o fato de que escrever sobre o ldquosertatildeordquo era parte de um desejo de representar o universo ldquopopularrdquo do paiacutes E avanccedilando o fato de que tais produtos eram inclusive materiais alvis-sareiros para publicaccedilotildees por editores procurados para serem com-prados por leitores curiosos e operacionalizados por autores que se que-riam representados como ldquonacionaisrdquo pois entendiam do ldquosertatildeordquo

Natildeo se pode desdenhar de que nos primeiros anos do seacuteculo XX uma seacuterie de obras que tematizavam o chamado ldquointerior do paiacutesrdquo foram publicadas Pela editora Chardron de Portugal Osoacuterio Duque Estrada

134 CAcircNDIDO Antocircnio Literatura e sociedade Rio de Janeiro Ouro sobre Azul 2006 p 119

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publicou O Norte em 1909 Mello Moraes Filho lanccedila pela Garnier em 1901 seu Festas e tradiccedilotildees populares do Brasil e em 1903 a Typographia Minerva em Fortaleza publica o primeiro registro edito-rial de canccedilotildees do norte-nordeste do paiacutes Cancioneiro do Norte de Rodrigues de Carvalho Tais empreendimentos editoriais devem ser vistos tanto como parte de um movimento na produccedilatildeo literaacuteria que tematizava o interior do paiacutes ndash com vislumbres para se pensar a ldquonaccedilatildeordquo ndash como uma estrateacutegia editorial de vendas de temas entendidos como ldquopopularesrdquo o que lhe rendia uma possiacutevel lucratividade

O circuito de sociabilidades cariocas tambeacutem ia ao encontro disso A produccedilatildeo teatral do periacuteodo foi invadida por temaacuteticas serta-nejas desde a revista Ouro socircbre azul de Maria Lina no Teatro Recreio em 1915 agrave burleta A cabocircca de Caxangaacute de Gastatildeo Tojeiro no ldquopo-pularrdquo Teatro Satildeo Joseacute em dezembro do mesmo ano

Nas trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo XX o sertatildeo ganhou as ruas e os salotildees do Rio de Janeiro e apareceu nos mais diferentes espaccedilos da capital federal e nas mais diferentes produccedilotildees culturais do periacuteodo Foi nas ruas que no ano de 1913 a canccedilatildeo Cabocla de Caxangaacute (conhecida como de autoria de Catullo Cearense) fez um grande sucesso no car-naval carioca Interpretada pelo grupo Caxangaacute formado por nomes futuramente conhecidos como Pixinguinha Donga e Joatildeo Pernambuco a canccedilatildeo de temaacutetica sertaneja foi apresentada com sucesso pelas ruas da capital federal por muacutesicos vestidos como vaqueiros do sertatildeo135 Com o triunfo de Cabocla de Caxangaacute nas ruas Catullo da Paixatildeo tambeacutem voltaria sua produccedilatildeo para temaacuteticas sertanejas

Entusiasmado com o sucesso da muacutesica Catullo apropriou-se do tema sertanejo e comeccedilou a compor modinhas sertanejas como Luar do sertatildeo gravada em disco pela primeira vez por Eduardo das Neves em 1914

Em 1915 foi encenado com bastante sucesso no palco do Teatro Satildeo Joseacute (hoje Teatro Joatildeo Caetano) no centro do Rio de Janeiro a opereta sertaneja escrita por Catullo intitulada de O marrueiro que re-

135 COSTA Op cit p 121

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velaria Vicente Celestino como o personagem do sertanejo-cantador e onde o proacuteprio autor cantaria algumas vezes Catullo jaacute vinha colabo-rando na feitura de pequenas peccedilas como o musical O diabo entre as freiras ou o tambeacutem musical Agrave procura de uma noiva ambas apresen-tadas no Circo Spinelli respectivamente nos anos de 1910 e 1911136 Mas o ecircxito de O marrueiro o notabilizaria cada vez mais como conhe-cedor do sertatildeo A par disso Catullo era presenccedila constante nos saraus a apresentar seus motivos populares que cada vez mais se voltavam natildeo para as modinhas mas para as canccedilotildees com temaacuteticas sertanejas

Sintomaacutetico disso eacute que em 1910 o jornal O Paiz anunciava a conferecircncia A modinha brazileira no Theatro Recreio Dramaacutetico do qual Catullo fez parte como cantor137 e jaacute em 1914 no Thetro Phoenix Catullo participaria de outra conferecircncia desta feita com Viriato Correcirca Na primeira parte dessa conferecircncia de 1914 Catullo cantaria suas mo-dinhas e na segunda parte o programa seria composto tatildeo somente de coisas do sertatildeo quando recitaria [grifo meu] Preto do sertatildeo e cantaria Caboca de Caxangaacute ldquotal como ela eacute verdadeiramenterdquo e Luar do sertatildeo Caboca de Caxangaacute ldquotal como ela eacuterdquo pois dezenas de versotildees dessa canccedilatildeo corriam nas ruas do Rio de Janeiro agrave eacutepoca tamanho seu su-cesso Sucesso soacute natildeo equiparado agravequela canccedilatildeo pela qual Catullo fi-caria fortemente identificado e que causaria uma seacuterie de discussotildees acerca de sua autoria o Luar do sertatildeo

Em 16 de marccedilo de 1914 o jornal O Paiz reportava ldquoRecebemos a interessante canccedilatildeo lsquoO Luar do Sertatildeorsquo muacutesica e letra do apreciado trovador Catullo Cearenserdquo138

O Luar do Sertatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense era uma mo-dinha que contava as coisas do sertatildeo com uma letra enorme ndash tal e qual as modinhas do poeta ndash com oito versos que se intercalavam com o re-fratildeo ldquoNatildeo haacute oacute gente oacute natildeo Luar como esse do sertatildeordquo O enorme sucesso da toada daria a Catullo uma visibilidade ainda maior e o intro-duziria de maneira definitiva nas produccedilotildees com temaacuteticas sobre o

136 ldquoO diabo entre as freirasrdquo teve reapresentaccedilotildees no ano de 1912 Cf O Paiz 28 fev 1912137 O Paiz 13 out 1910138 O Paiz 16 mar 1914

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sertatildeo A fama da modinha sertaneja estendeu-se agrave capital paulista que ainda em 1915 o chamou para uma conferecircncia na receacutem-fundada (pela nata da elite letrada paulistana) Sociedade de Cultura Artiacutestica que se reunia no Trianon139

Foi nesse contexto jaacute laureado nos recitais e presenccedila constante nas rodas boecircmias que Catullo da Paixatildeo Cearense apoiado por le-trados como Joatildeo do Rio Capistrano de Abreu e Roquette Pinto pu-blicou em 1918 seu primeiro livro de poesias com temaacuteticas serta-nejas intitulado Meu sertatildeo por um editor que comeccedilava seu empreendimento com livros Antocircnio Castilho

A livraria Castilho

Conta-se que Machado de Assis um habitueacute da livraria Garnier costumava passar pela rua Satildeo Joseacute a caminho do Ministeacuterio da Agricultura e nesse percurso parava na livraria Quaresma para ler os claacutessicos portugueses ldquondash Sabe Gosto mais de sua casa porque eacute silen-ciosa natildeo haacute aquecircle zunzum da Garnierrdquo 140

Situada no centro da cidade os frequentadores da Rua Satildeo Joseacute ainda podiam gabar-se de certa distinccedilatildeo diante da noviacutessima avenida Central e da barulhenta rua do Ouvidor onde aliaacutes situava-se a livraria Garnier Ainda contando com preacutedios antigos que avanccedilavam sobre as calccediladas a Satildeo Joseacute natildeo era um convite para um apologista das ldquocoisas novasrdquo Mas ali resguardados do glamour que entorpecia os mais afoitos pelas novidades da modernidade desfilavam desde escritores consagrados como Machado de Assis obtusos homens agrave procura do Dr Feio Galvatildeo reclamando de dores de dente poliacuteticos reunindo-se para reuniatildeo no Centro Paraibano ateacute cantores e seresteiros que procuravam a livraria Quaresma agrave procura de folhetos de muacutesica editados pela casa

Tambeacutem ali bem proacuteximo na deacutecada de 1910 floresciam outros sebos e livrarias como a livraria Cruz e Coutinho cujo proprietaacuterio Jacinto Ribeiro de Santos orgulhava-se de editar peccedilas teatrais e os

139 Catullo acabou natildeo podendo ir por problemas pessoais Cf O Paiz 26 mar 1915140 BROCA Brito A vida literaacuteria no Brasil - 1900 Rio de Janeiro MEC 1956 p 50

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melhores livros juriacutedicos e didaacuteticos141 Descendo um pouco mais proacute-ximo ao botequim Silva Valverdi amp Co e da estaccedilatildeo de bondes e entre o Hotel Avenida e o Largo da Carioca o livreiro Antocircnio Joaquim de Castilho comandava a sua livraria Castilho

Desde 1902 quando transferiu o pequeno sebo localizado na rua Santo Antocircnio para a rua Satildeo Joseacute Castilho dedicou-se a vender livros novos especialmente obras francesas e portuguesas Foi por sua inicia-tiva que se comeccedilou a ler os romances em francecircs de Marcel Preacutevost como Les demi-vierges os de Henry Bordeaux como La petite made-moiselle ou as novelas de Paul Hervieu como Lrsquoarmature142 Mas Castilho tambeacutem se lanccedilou na ediccedilatildeo de livros e eacute possiacutevel encontrar seu nome em anuacutencios dos jornais como editor de livros juriacutedicos Um exemplo eacute A verdadeira revisatildeo constitucional de Samuel Oliveira apresentada como uma ediccedilatildeo ldquobem cuidada e feita com todo o ca-pricho revelando o carinho que mereceu o livrordquo143

A publicidade de livros nos jornais cariocas parecia ser um vieacutes que Castilho soube copiar do seu vizinho Pedro Quaresma de forma profiacutecua embora diferentemente deste uacuteltimo natildeo investisse na publi-caccedilatildeo de ldquofrivolidadesrdquo Mas isso natildeo demoraria muito tempo

Apesar de no iniacutecio Antocircnio Castilho natildeo ver com bons olhos a ediccedilatildeo de romances e poesias de autores nacionais esse ramo logo o excitaria a novos voos Em 1915 Antocircnio Torres lanccedilou sob o selo da livraria Castilho o seu livro de estreia Carmen tropicale Embora nesse caso o autor pagasse a ediccedilatildeo do proacuteprio bolso o editor gostava de vangloriar-se de nunca ler um original mas que sempre se deixou ldquolevar pelo faro e jamais me enganeirdquo144 Perspicaacutecia faro ou oportunismo o fato eacute que Antocircnio Torres ficaria conhecido por outros livros lanccedilados pela Castilho como o best-seller Pasquinadas cariocas em 1921 ele-vando o lucro do editor e livreiro ao passo que encorajava o editor re-ticente na aposta de outros escritores nacionais Antes disso Castilho

141 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 134142 Cataacutelogo de livros franceses da Livraria Castilho Em A Noite 3 jun 1914 p 5143 Gazeta de Notiacutecias 17 maio 1912 p 4144 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 136

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apenas se aventurou na ediccedilatildeo de pequenos livros impressos na tipo-grafia que fazia funcionar aos fundos da livraria

A ecircnfase dada pelo livreiro agrave comercializaccedilatildeo de livros estran-geiros fez crescer em sua casa o nuacutemero de visitantes ilustres que bem ao gosto do periacuteodo acorriam em busca da novidade literaacuteria da Europa Gastatildeo Cruls Gilberto Amado Joaquim de Sales Costa Recircgo Lima Barreto e mais tarde Leonardo Mota eram alguns dos homens de le-tras que ficavam conversando ateacute as 22 horas e de laacute seguiam para o bar Nacional na rua Santo Antocircnio145

Natildeo eacute muito difiacutecil imaginar que a clientela frequentadora da Quaresma e da Cruz Coutinho tambeacutem passasse por laacute Foi nessa eacutepoca que Castilho comeccedilou a apostar nas traduccedilotildees de romances estran-geiros O primeiro lanccedilamento veio em 1914 Lua crescente volume de poesias do indiano Rabindranath Tagore com traduccedilatildeo de Plaacutecido Barbosa Tagore acabara de ganhar o precircmio Nobel de literatura de 1913 sendo o primeiro natildeo europeu a alcanccedilar esse feito O sucesso da publicaccedilatildeo foi tatildeo grande que trecircs anos depois veio uma segunda ediccedilatildeo resenhada entusiasticamente por Joseacute Oiticica o anarquista entatildeo articulista do Correio da Manhatilde

O Sr A J de Castilho da conhecida livraria Castilho resolveu ree-ditar a Lua Crescente do poeta indiano Rabindranath Tagore traduzida pelo dr Plaacutecido Barbosa Moveu-o a tal resoluccedilatildeo a incessante procura do livro cuja primeira tiragem se esgotou em um mecircs Poucos livros realmente tecircm agradado tanto ao puacuteblico ledor qual ali vatildeo achar a poesia liacutempida suavisiacutessima de um pantheista encantado das creanccedilas O livro eacute o que se poacutede chamar um mimo e o novo editor procurou dar a esta reimprressatildeo toda a simplicidade e toda a riqueza compatiacuteveis com a poesia do autor[]A nova ediccedilatildeo estou certo se esgotaraacute com a mesma rapidez da pri-meira pois os pedidos mal podem ser satisfeitos146

145 Ibidem146 Correio da Manhatilde 9 abr 1917 p 8

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Dostoieacutevski tambeacutem foi alvo das ediccedilotildees Castilho com a publi-caccedilatildeo de Recordaccedilatildeo da casa dos mortos que teve a traduccedilatildeo de Fernando Nery entatildeo secretaacuterio da Academia Brasileira de Letras que assinava suas traduccedilotildees com o pseudocircnimo de Fernatildeo Neves O sucesso na publicaccedilatildeo de traduccedilatildeo dos romances estrangeiros fez com que o edi-tor-livreiro visasse tambeacutem ao puacuteblico feminino (maior consumidor de romances) sendo logo sua casa conhecida como especialista em ldquolitera-tura para moccedilasrdquo A publicidade no jornal Correio da Manhatilde indicava o livro de M Delly Escrava ou rainha como sendo ldquoO Mais lindo romance para Moccedilasrdquo com ldquoprimorosa traducccedilatildeo de Fernatildeo Nevesrdquo147

Uma das publicaccedilotildees de grande sucesso das ediccedilotildees Castilho foi Lazarina do romancista francecircs Paul Bourget lanccedilado em 1917 com traduccedilatildeo de Fernatildeo Neves O sucesso foi saudado tanto mais porque desde iniacutecios da grande guerra europeia o paiacutes passava por uma crise do papel o que dificultava novos lanccedilamentos

A livraria Castilho resolveu haacute tempos tornar-se editora apesar de todas as crises inclusive a do papel A sua especialidade parece querer ser a das traducccedilotildees Ainda agora temos quasi a seguir os dois uacuteltimos livros de Paul Bourget Lazarina e O Sentimento da Morte traducccedilatildeo portu-gueza do Sr Fernatildeo NevesO Sr Fernatildeo Neves traduziu muito bem os dois volumes com uma tatildeo exagerada preocupaccedilatildeo de vernaculista que ella salta aos olhosOra entre ser vernaacuteculo e fazer questatildeo de mostrar ser vai muita vez ser o estorvo dos escriptores O Sr Fernatildeo Neves eacute entretanto um tra-ductor pouco commum E francamente vale mais ler Bourget sempre tatildeo despreocupado no estylo [] na traducccedilatildeo do Sr Neves Os dois romances da guerra conservam todas as belezas do grande romancista num estojo mais cuidado148

Criacutetica como essas que apareciam em jornais e revistas era fatal para o sucesso ou a estigmatizaccedilatildeo da obra especialmente quando se sabia que muitos dos autores que resenhavam as novas publicaccedilotildees eram eles mesmos letrados que acorriam agraves livrarias em busca do novo

147 Correio da Manhatilde 10 jun 1918 p 9148 O Paiz 14 set 1917 p 2

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo116

livro na praccedila Oliveira Vianna por exemplo resenhou negativamente o livro de Carneiro Leatildeo Problemas de educaccedilatildeo ndash lanccedilado pela Livraria Jornal do Comeacutercio em 1919 ndash por discordar do autor de que a edu-caccedilatildeo poderia elevar a moral da populaccedilatildeo pois

Pela mesma razatildeo que a educaccedilatildeo intelectual natildeo poacutede dar caracter a ningueacutem ou melhor natildeo poacutede modificar aquilo que podemos chamar a lsquoespinha dorsal do caracterrsquo de ningueacutem O caracter bom ou maacuteo egoiacutesta ou abnegado doce ou rude submisso ou autoritaacuterio inerte ou activo eacute coisa que preexiste a qualquer processo educativo eacute coisa que concerne aacute hereditariedade e a estructura cerebral de cada um149

Criacutetica que rendeu uma resposta discordante da opiniatildeo de Oliveira Vianna trecircs dias depois no mesmo jornal Eacute possiacutevel pensar como essas querelas eram parte constitutiva da publicizaccedilatildeo da obra tanto mais porque no caso acima citado discutia-se exatamente um plano de educaccedilatildeo que colocasse fim ao analfabetismo no paiacutes mdash e o analfabetismo era um tema central entre os leitores e livreiros do pe-riacuteodo Discutia-se desde a ineacutepcia do paiacutes em colocar em accedilatildeo um plano de alfabetizaccedilatildeo ateacute o nuacutemero de livrarias que a cidade do Rio de Janeiro possuiacutea em relaccedilatildeo a Buenos Aires

Natildeo haacute exagero Buenos Aires eacute a cidade dos hoteacuteis e das livrarias Possue-os em grande nuacutemero Eacute o patildeo do estocircmago e o do espiacuterito por toda a parte A abundacircncia de livrarias eacute ali justificada porque metade da populaccedilatildeo sabe ler Como entre noacutes 85 dos indiviacuteduos satildeo analpha-betos contamos poucas livrarias O Rio possue trecircs de primeira ordem (Garnier Briguiet e Alves) quatro de segunda e uns trecircs belchioresAo todo dez casas onde se vendem livros isso para uma capital de cerca de um milhatildeo de habitantes Havemos de convir que eacute muito analphabetismoO nosso puacuteblico ledor prefere aacutes nossas poucas boas letras qualquer revista de caricatura E ainda haacute quem alimente vaidades literaacuterias num paiz como o Brazil onde o coefficiente da ignoracircncia eacute uma causa que assombra e onde um homem de gecircnio como Ruy Barbosa pensa e escreve para ser lido drsquoaqui 300 anos150

149 O Paiz 8 ago 1919 p 3150 O Paiz 21 jul 1913 p 2

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 117

O ldquopuacuteblico ledorrdquo de livros no Brasil que preferia ldquorevista de caricaturardquo era o alvo principal de todos os empreendimentos literaacuterios da eacutepoca Conhecedor do assunto Quaresma como vimos fazia su-cesso com a sensibilidade que tinha de seu puacuteblico As poucas livrarias que existiam na cidade teriam que lidar com esses entraves mesmo aquelas que se propunham a publicar livros como diziam para serem lidos ldquodrsquoaqui 300 anosrdquo ou seja aqueles considerados literatura ldquoseacuteriardquo

Quaresma descobriu Catullo da Paixatildeo Cearense para o grande puacuteblico e Catullo pretendia que sua poesia fosse levada de maneira mais seacuteria Desde a publicaccedilatildeo de suas modinhas buscava que elas fossem consideradas parte constitutiva da literatura do paiacutes Com o tempo tambeacutem passou a publicar poemas e a flertar com temaacuteticas ser-tanejas a fim de ser considerado de fato um escritor de poemas De sua parte Antocircnio Castilho exibia satisfaccedilatildeo pelo seu empreendimento como editor e estava disposto a abraccedilar um autor que se dispusesse a publicar um livro que jaacute poderia vir agrave luz com ecircxito

Foi do encontro de um puacuteblico sedento por temaacuteticas sertanejas um editor disposto a fazer uma aposta lucrativa e um autor com preten-sotildees literaacuterias que foi lanccedilado em outubro de 1918 o primeiro livro de poemas sertanejos de Catullo da Paixatildeo Cearense Meu sertatildeo

CATULLO DA PAIXAtildeO NACIONAL

O meu sertatildeo

Natildeo seria exagero afirmar que Meu sertatildeo nasceu de uma festa O festival organizado para angariar dinheiro visando a sua publi-caccedilatildeo que se realizara em setembro de 1918 foi saudado pela imprensa carioca como um grande evento onde um concorrido lugar era alme-jado por uma ilustre plateia Natildeo foram poucos os ilustres participantes desse esforccedilo A comissatildeo promotora do evento foi formada por le-trados como Afracircnio Peixoto Rocha Leatildeo Pandiaacute Caloacutegeras Roquette Pinto A Austregeacutesilo Pires Brandatildeo Castro Menezes Maacuterio Alencar Eloy de Souza Fernando Magalhatildees Assis Chateaubriand Carlos Costa Paulo Silva Arauacutejo Francisco Solano Afracircnio de Mello Franco Antocircnio Neves Raul Brandatildeo e Castro Barreto Ilustres que aliaacutes or-ganizaram com esmero o festival fazendo ldquovaacuterias reuniotildeesrdquo antes do ocorrido151 O editor Castilho as Casas Mozart e o Jornal do Commercio ficariam por sua vez responsaacuteveis pela venda dos bilhetes que ajuda-riam a publicar o livro de Catullo152 O editor Castilho ainda parecia reticente em publicar autores nacionais angariar dinheiro para a publi-

151 Correio de Notiacutecias 23 ago 1918 p 3152 A Eacutepoca 8 set 1918 p 11

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 119

caccedilatildeo representava uma boa foacutermula para arriscados empreendimentos na publicaccedilatildeo de livros

O sucesso foi imediato e em fins de novembro daquele mesmo ano o livro de Catullo jaacute aparecia como a ldquonovidade literaacuteriardquo nos anuacutencios de jornais e revistas do Rio de Janeiro apresentado como ldquoobra genuinamente nacional do grande poeta sertanejo Catullo da Paixatildeo Cearenserdquo153 O adjetivo nacional colocava dessa forma a obra de Catullo no rol daquelas que poderiam figurar ao lado da de reno-mados escritores como Euclides da Cunha e Alberto Rangel ambos tambeacutem conhecidos como literatos do sertatildeo Ainda a alcunha de ser-tanejo conferia a Catullo a autoridade irrefutaacutevel para que o mesmo tematizasse melhor do que ningueacutem o sertatildeo em sua obra uma vez que essa identificaccedilatildeo natildeo dizia respeito tatildeo somente a um traccedilo da obra (temas sertanejos) mas a um lugar de origem do autor

Na praacutetica de reconhecido como ldquopopularrdquo desde quando co-meccedilou a fazer sucesso com suas modinhas Catullo gozava agora do prestiacutegio de ser apresentado em livro como poeta nacional e gabaritado para falar em seus poemas sobre o sertatildeo pois oriundo dele

Sintomaacutetico foi um artigo aparecido em O Imparcial assinado pelo respeitado historiador e criacutetico Joatildeo Ribeiro em que apresentava a obra nos seguintes termos

lsquoMeu Sertatildeorsquo ndash eacute uma seacuterie de poemas sertanejos sentidos e escriptos por Catullo da Paixatildeo Cearense trovador querido e aplaudido em palcos e salas como o mais genuiacuteno representante da alma popular brasileiraO poeta eacute do Norte da regiatildeo mais antiga do paiz onde os primeiros co-lonizadores realizaram a penetraccedilatildeo mais profunda de povoamento154

Joatildeo Ribeiro ao indicar Catullo como ldquopoeta do Norterdquo atribuiacutea--lhe ao mesmo tempo a autoridade de conhecedor de um lugar e cha-mava a confianccedila do leitor para a leitura de um autor que pode contar sobre o sertatildeo mdash ou como o tiacutetulo deixa entrever o seu sertatildeo Joatildeo

153 Correio de Notiacutecias 24 nov 1918 p 3154 O Imparcial 2 dez 1918 p 5

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo120

Ribeiro observa essa nuance embora sua criacutetica ao livro natildeo fosse boa Voltaremos a ela adiante

Salientando o lugar geograacutefico de onde vinha o autor o articu-lista autorizava o poeta a falar de sertatildeo Adicionado a isso o fato de Catullo ser reconhecido por modinhas sertanejas como Luar do sertatildeo sem duacutevida ajudava nessa representaccedilatildeo de homem do sertatildeo Inclusive o proacuteprio Catullo natildeo poupava esforccedilos para ser assim identificado quando fazia apresentaccedilotildees vestido de ldquomarrueirordquo Apresentaccedilotildees nos palcos natildeo eram algo incomum para Catullo uma vez que vecirc-lo apre-sentando-se em espetaacuteculos circenses e em musicais do chamado ldquote-atro ligeirordquo comeccedilou a ser normal para o puacuteblico carioca da eacutepoca

Esse vatildeo caminho entre um indiviacuteduo da cidade formado nos salotildees e na boecircmia da elite carioca e um autor que se rendia a temaacuteticas sertanejas e se apropriava das representaccedilotildees citadinas dadas ao sertatildeo rendeu a Catullo resultados profiacutecuos para sua apresentaccedilatildeo como poeta Aliaacutes as representaccedilotildees citadinas do espaccedilo sertanejo satildeo la-tentes na maneira como eacute apresentado o sertatildeo tanto em seu livro de estreia Meu sertatildeo como em seu segundo livro editado pela livraria Castilho em 1919 Sertatildeo em flor tambeacutem de temaacutetica sertaneja Em ambas as publicaccedilotildees eacute possiacutevel enxergar a apropriaccedilatildeo de certos topoi que marcavam a maneira de expressar o espaccedilo sertanejo no periacuteodo Dicotomias tais como espaccedilo atrasado versus espaccedilo moderno baacuterbaro versus educado sertanejo bom versus citadino corrompido expressas em seus livros eram comuns na forma de tratar o sertatildeo Aliado a isso os poemas de Catullo vinham com um diferencial a representaccedilatildeo da oralidade sertaneja nos textos o que dava ao leitor a sensaccedilatildeo de estar diante de uma genuiacutena transcriccedilatildeo do linguajar do sertatildeo

Assim se por um lado Meu sertatildeo representou a chegada de mais um artefato cultural que elegia o ldquosertatildeordquo como tema por outro no texto construiacutedo por Catullo expressava-se grande parte das ten-sotildees das temaacuteticas das formas e das ambiguidades com que o tema era tratado no periacuteodo

Meu sertatildeo eacute composto por nove histoacuterias contadas em versos nas quais o ambiente rural aparece como cenaacuterio principal e onde o sertanejo eacute alccedilado a grande heroacutei do enredo O fato fundamental de que

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 121

o autor era um homem que vivia na cidade do Rio de Janeiro num tempo de raacutepidas transformaccedilotildees esclarece muitas das denominaccedilotildees que o sertanejo ganhava em sua obra tais como ldquoignoranterdquo ldquobaacuterbarordquo e ldquoalma purardquo em contraposiccedilatildeo ao mundo ldquocivilizadordquo das cidades Esses limites definidores do que seria o ldquosertatildeordquo para Catullo consti-tuem um importante toacutepico para a compreensatildeo do lugar em que Meu sertatildeo foi produzido uma vez que o autor em constante diaacutelogo com o puacuteblico leitor da entatildeo capital federal de seu tempo fez aparecer em seu texto adjetivaccedilotildees do sertatildeo que tratavam de colocaacute-lo comumente como a antiacutetese da cidade

Antes de lanccedilar matildeo da descriccedilatildeo do espaccedilo sertanejo Meu sertatildeo comeccedila com um convite de viagem lanccedilado pelo autor ao seu leitor Assim o autor iniciava seu primeiro poema (na verdade um pre-faacutecio do livro) intitulado convenientemente A caminho do sertatildeo com um convite aos poetas para deixarem a ldquoAvenidardquo e irem rumo aos ldquomattos sombriosrdquo e com um alerta para as ldquogentis senhoritasrdquo tomarem cuidado com ldquoa liacutengua baacuterbarardquo dos sertotildees do norte que ele iria apre-sentar155 Foi atraveacutes desse convite ndash ao modo inclusive de como Euclides da Cunha havia feito no primeiro capiacutetulo de Os sertotildees ndash que Catullo se fazia aparecer como o cicerone de uma viagem a um ldquooutro geograacuteficordquo que para o autor era abandonado pelo paiacutes o sertatildeo

A forma pela qual Catullo se apresentava como autor de poesias em Meu sertatildeo obedecia a dois movimentos em primeiro lugar a afir-maccedilatildeo de sua poesia como autecircntica como o inverso daquilo que con-siderava estrangeira (daiacute os pedidos que o autor faz aos leitores no poema A caminho do sertatildeo tais como ldquoDeixa a Greacutecia Deixa a Itaacutelia Deixa a fonte de Castaacuteliardquo)156 o segundo seria a afirmaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo como poeta da terra a expressatildeo profunda daquilo que o autor chamava de a ldquoterra em que nascirdquo De resto essa delimitaccedilatildeo de seu lugar como ldquopoetardquo ndash escritor da poesia autecircntica pois escritor da ldquoterrardquo ndash respondia a uma percepccedilatildeo aguda que o autor tinha do seu

155 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 25-26

156 Idem p 27

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo122

espaccedilo no mundo literaacuterio Era por esse caminho que ele poderia vir a ser reconhecido como um verdadeiro poeta Ademais a poesia de Catullo aparecia no meio letrado com uma pretensiosa mudanccedila na forma a escrita ipsis litteris de falas sertanejas assim como a inclusatildeo de um enorme nuacutemero de termos e coisas do sertatildeo Para atingir seu objetivo todos os poemas vinham acompanhados de uma seccedilatildeo deno-minada ldquovocabulaacuteriordquo ao fim do texto onde explicava ao leitor expres-sotildees que este supostamente poderia desconhecer Essa ousada forma de mostrar o sertatildeo lhe renderia posteriormente severas criacuteticas tais como as de Monteiro Lobato que em 1918 escrevia na Revista do Brasil

A publicaccedilatildeo das poesias de Catullo Cearense potildee de peacute uma interes-sante questatildeo eacute possiacutevel aceitar como liacutengua no qual se vazem versos o modo de falar do caboclo Cremos que natildeo porque tal modo de falar natildeo eacute sequer um dialeto e sim mera corrupccedilatildeo do dialeto brasileiro [] Pensando assim lamentamos o grande o maior poeta deste paiacutes o poeta-poeta o poeta cujas composiccedilotildees feitas em muacutesicas vivem de Norte a Sul cantadas por todas as bocas despertando em todos os peitos as mais suaves emoccedilotildees natildeo tenha escrito seu livro em nossa liacutengua a liacutengua brasileira filha da portuguesa [] Se Catullo traduzir seus versos em nossa liacutengua natildeo receamos em afirmaacute-lo faraacute uma obra que marcaraacute eacutepoca criaraacute escola determinaraacute correntes Estaacute em suas matildeos ser apenas um poeta caipira ou ser o maior poeta popular do Brasil157

Essa criacutetica feita no mesmo ano em que Lobato publicava seu natildeo menos controverso Urupecircs mdash aliaacutes mais um produto literaacuterio te-matizando o sertatildeo mdash demonstra de um lado a presenccedila de distintas e conflitantes representaccedilotildees do sertatildeo que circulavam no periacuteodo e por outro como o uso da liacutengua tambeacutem era um toacutepico importante para definir-se ldquoliteratura nacionalrdquo Para Lobato Catullo errara ao escolher expressar-se atraveacutes de uma liacutengua do sertatildeo pois ldquoliacutengua do sertatildeordquo natildeo podia ser confundida com a ldquoliacutengua brasileirardquo que deveria apa-recer em livros O linguajar sertanejo era apenas uma ldquocorrupccedilatildeordquo do dialeto brasileiro falado talvez para Lobato apenas pelos letrados ci-

157 Apud VASCONCELOS Ary Panorama da muacutesica popular brasileira na Belle Eacutepoque Rio de Janeiro Livraria SantrsquoAnna 1977 p 130

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tadinos ou que pelo menos estes letrados deveriam cultivar No en-tanto Catullo ficaria por um tempo avesso a essas criacuteticas

Ainda em Meu sertatildeo Catullo se autorrepresentava como um autor exilado do sertatildeo e por isso em A caminho do sertatildeo apresenta-va-se como um homem sem aspiraccedilatildeo literaacuteria Ironizando os poetas do Brasil por conta de suas escolhas de soacute cantar ldquosaudadesrdquo dizia que natildeo seria reconhecido por um paiacutes que se interessava somente por ldquoOrpheusrdquo e ldquodivindadesrdquo cujos poetas recitavam em rodas onde soacute se dizia ldquoem francezrdquo158 Soacute depois dessa necessaacuteria explicaccedilatildeo de seus poemas Catullo comeccedilaria a narrar seus poemas sertanejos

A histoacuteria contada por Catullo no primeiro poema de Meu sertatildeo intitulado Quinca Micuaacute (o gaiteiro do sertatildeo) eacute emblemaacutetica e expres-sava as formas pelas quais o sertatildeo seria tratado dentro da proposta apresentada pelo poeta A histoacuteria de um amor impossiacutevel entre o heroacutei (o sertanejo Quinca Micuaacute apaixonado por sua gaita) e Cunceiccedilatildeo (a filha de um rico fazendeiro que estudara na capital federal desde pe-quena e agora retornava ao sertatildeo) eacute ilustrativa Enamorada por Quinca Micuaacute Cunceiccedilatildeo o encontrava agraves escondidas do pai ateacute que um dia propotildee a Quinca beijaacute-la algo que o sertanejo refuta imediatamente por considerar uma atitude desrespeitosa Descobertos pelo pai da moccedila esta uacuteltima acaba jogando a culpa em Quinca insinuando que este lhe havia proposto fugir Quinca acaba tendo sua gaita quebrada pelo fa-zendeiro tendo de fugir do sertatildeo indo em direccedilatildeo agrave cidade onde conta sua histoacuteria para o primeiro que encontra

No poema escrito em 1ordf pessoa o narrador Quinca Micuaacute traz impressotildees do sertatildeo definindo-o como ldquoatrasadordquo em relaccedilatildeo agraves ci-dades poreacutem natildeo contaminado pela ldquoInducaccedilatildeordquo da qual a personagem de Cunceiccedilatildeo eacute a expressatildeo Numa longa passagem em que Quinca Micuaacute confronta a personalidade de Cunceiccedilatildeo moccedila da cidade com a de sua antiacutetese Tudinha moccedila do sertatildeo aparecem muitas definiccedilotildees do que seria a cidade e o sertatildeo para o narrador definiccedilotildees estas cujas ten-

158 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 28

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo124

sotildees e antinomias satildeo elencadas como forma de traccedilar as distacircncias que separavam duas realidades distintas

Tudinha era uma muieacuteinguinorante sarvageTodo que vancecirc quizeacuteera burra mas poreacutemaquillo sim meu patratildeo aquillo eacute que era muieacute[]A Tudinha natildeo prendeuA batecirc liacutengua ispritada cumo essa moccedila inducadaque tinha o tempo vadioMas poreacutem a Cunceiccedilatildeonatildeo sabia batecirc roupacomo a Tudinha a cabocirccalavando a becircra do rio159

Nos poemas seguintes todos eles com histoacuterias construiacutedas em torno de um personagem ou de um costume entendido como sendo do sertatildeo (O marrueiro O lenhador A promessa O passador de gado A vaquejada O cangaceiro e A terra cahida) Catullo esboccedilou imagens dos espaccedilos sertanejos embasadas em grande parte pela leitura de nar-rativas consagradas tais como as de Gustavo Barroso (citado em O cangaceiro) e Alberto Rangel (citado em Terra cahida) Ademais neste uacuteltimo poema o autor assume que se ldquoinspirarardquo num conto homocircnimo de Rangel jaacute conhecido autor de contos sertanejos e estudioso das ldquocoisas do sertatildeordquo160 A propoacutesito Rangel travou estreitas relaccedilotildees com Euclides da Cunha que o ajudou a se tornar conhecido no mundo le-trado A evocaccedilatildeo de um jaacute conhecido escritor natildeo era gratuita uma vez que reservava para si um lugar no campo literaacuterio em torno de figuras consagradas literariamente

O sexto poema de Meu sertatildeo sob o tiacutetulo de O passador de gado eacute aquele em que o autor tece mais claramente criacuteticas ao mundo citadino

159 Idem p 65-68160 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 232

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 125

aparecendo algumas definiccedilotildees do que ele entendia ser o ldquohomem da cidaderdquo e o ldquohomem do sertatildeordquo A histoacuteria se desenvolve em torno do passador de gado e morador dos sertotildees do norte Chico Mironga que a convite de seu compadre Dezideacuterio vai visitar a capital federal O nar-rador (que eacute o proacuteprio Chico) de volta agrave sua terra comeccedila a contar sua visita agrave ldquoAvinida Cintraacuterdquo A partir dessa experiecircncia eacute iniciada uma seacuterie de impressotildees do narrador sobre o espaccedilo citadino nas quais pululam adjetivaccedilotildees e comparaccedilotildees entre sertatildeo e cidade Entre os sustos e pas-sagens cocircmicas narradas pelo personagem-narrador Chico Mironga Catullo parece responder agrave definiccedilatildeo tatildeo comum em seu tempo do sertatildeo como lugar do ldquoatrasordquo quando afirma por intermeacutedio de Chico o progresso das cidades como sendo meramente ldquopruacute forardquo mas ldquopruacute dentro Nadardquo Isso desemboca no uacuteltimo verso em uma criacutetica di-reta agrave chamada ldquocivilizaccedilatildeordquo ldquovale mais que essa porquecircra da taacute Civilizaccedilatildeo ndash um carro de boi cantando pulos matos do sertatildeordquo161

Catullo que manifesta em seus poemas uma ldquodessoradardquo paixatildeo pelo rural ndash diagnoacutestico estigmatizador de Antocircnio Cacircndido agrave obra de Catullo162 ndash constroacutei representaccedilotildees do espaccedilo sertanejo que o dignifi-cavam e o enobreciam em relaccedilatildeo agraves grandes cidades compartilhando um tipo de representaccedilatildeo bastante comum Isso porque autor tambeacutem estaacute impregnado de referenciais oriundos de sua posiccedilatildeo de citadino dos quais seguramente ele se valia como foacutermula para melhor ser re-cepcionado como escritor Essa percepccedilatildeo de um lugar a ser construiacutedo na literatura que pudesse abarcar um poeta que se autodenomina serta-nejo mas que produzia nas cidades demandava um reconhecimento por aqueles que podiam definir o que deveria ser considerado literatura no periacuteodo ndash e Catullo natildeo era propriamente um desconhecido das elites letradas da eacutepoca A poesia de Catullo era reverenciada por diversos li-teratos por transmitir ainda que numa linguagem considerada ldquoruderdquo e ldquosimplesrdquo as belezas do sertatildeo para o leitor citadino Assim foi que o poeta Humberto de Campos tratou de salientar que Catullo deveria ser encarado como

161 Ibidem p 162162 CAcircNDIDO Antocircnio Literatura e Sociedade Rio de Janeiro Ouro sobre Azul 2006 p 121

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo126

O ourives que trabalhou no ouro virgem da linguagem popular as joacuteias ruacutesticas e maravilhosas que por ahi andam eacute necessariamente um grande e liacutedimo artista um fidalgo poeta que se disfarccedila em ave can-tadeira para melhor espalhar a mancheias [] a rutilante pedraria do seu eraacuterio Catullo eacute realmente um mixto de singeleza e de opulecircncia [] A sua poesia simples doce e ingecircnua mas em versos de meacutetrica perfeita eacute uma resina do sertatildeo a arder cheirosa num thuriacutebulo de prata ou de ouro163

O fato de Catullo escrever seus poemas em um linguajar dito ldquoser-tanejordquo ndash criticado por Lobato como vimos ndash exigiu a explicaccedilatildeo do mesmo Humberto de Campos que apontou esse modo como um fator que o distinguia positivamente de outros poetas pois ldquoPassados esses versos para a linguagem correntia natildeo teriacuteamos noacutes entre os dos nossos melhores lyricos outros que se lhe avantajassem em meiguicerdquo164

A linguagem ldquosertanejardquo usada por Catullo era indicada como um fator a mais para reivindicar o caraacuteter nacional de sua poesia A aproximaccedilatildeo de Catullo com a natureza como queria Humberto de Campos dava-lhe a autoridade de poeta da terra e portanto de um ldquoverdadeirordquo poeta Por outro lado o poeta e acadecircmico Maacuterio de Alencar prefaciando o segundo livro publicado por Catullo intitulado Sertatildeo em flor em 1919 jaacute apresentava o autor como um poeta das ci-dades poreacutem nascido no interior Para reafirmar isso o mesmo Maacuterio de Alencar indicava a necessidade do auditoacuterio das cidades como ele-mento fundamental para um poeta virar um ldquoverdadeiro poetardquo pois

Permanecesse Catullo no sertatildeo teria sido naturalmente poeta como satildeo poetas as criaturas simples na sua fala ingecircnua de tom concreto inspiradas na natureza vizinha e familiar e o teria sido ainda pelo dom pessoal do sentimento e da imaginaccedilatildeo vivaz A sua concepccedilatildeo poeacutetica poreacutem ficaria restrita em virtude da mesma familiaridade dos costumes e pela habituaccedilatildeo do cenaacuterio natildeo iria talvez aleacutem das impressotildees inci-sivas embora mas curtas que datildeo a mateacuteria dos versos populares raro excedentes de uma quadra jamais dilatados agrave proporccedilatildeo de um canto

163 CAMPOS Humberto de Homenagem a Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 18-19

164 Ibidem p 19

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 127

Nem o auditoacuterio que estimula o cantor tem ali capacidade de atenccedilatildeo para o desenvolvimento dos temas nem mesmo cantor possui condi-ccedilotildees de coordenaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de demorados assuntos de poesia []O bem ou mal do Catullo foi o seu afastamento do sertatildeo natal Distante sob a experiecircncia de outros costumes deixou de ser ator no cenaacuterio na-tivo para ser espectador alongado e mais sensiacutevel dele A humanidade embrionaacuteria do sertatildeo cresceu aos seus olhos em figuras acabadas os sentimentos limitados aos desafios tomaram a intensidade de estados de alma estuosos e ardentes os usos quotidianos tocaram-se do pres-tiacutegio para a revelaccedilatildeo a estranhos surgiu o cenaacuterio em relevo nas suas partes mais indiferentes aos seus olhos de outrora tornou-se possiacutevel a perspectiva cresceu a saudade deu-se o choque vibratoacuterio de todas as sensaccedilotildees adormecidas e da saturaccedilatildeo dos sentidos virgens resultou a forccedila imaginativa do poeta sertanejo165

Essa tentativa de afirmaccedilatildeo de Catullo como poeta sertanejo atre-lava-se a um movimento que visava natildeo soacute a chamar a atenccedilatildeo do leitor para entender a poesia de Catullo poreacutem mais do que isso de afirmaacute-lo como poeta e como autor de uma poesia nacional ou seja poesia pro-duzida por algueacutem que deveria ser entendido a partir desse lugar Porque para Maacuterio de Alencar o poeta se expressaria somente nas ci-dades Nesse sentido ele explicava que

A mesma relaccedilatildeo necessaacuteria entre o objeto inspirador e a emoccedilatildeo ex-pressiva haacute entre o poeta e o auditoacuterio O isolamento ndash e estar no campo eacute como estar isolado ndash eacute negativo para a criaccedilatildeo O trabalho espiritual procede com a condiccedilatildeo da dualidade da luz e do som que natildeo existem sem o meio transmissor natildeo haacute luz no vaacutecuo natildeo haacute som sem a ondulaccedilatildeo do ar ou a vibraccedilatildeo de um corpo A voz do passado soacute ressoa para o ouvido alheio proacuteximo ou distante mas possiacutevel que a esperanccedila realizaAgora na cidade havia auditoacuterio para escutar o poeta sertanejo e curio-sidade para estimulaacute-loO tema encurtado em cantigas dilatou-se em poemas166

165 ALENCAR Maacuterio A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Bedeschi 1939 p 21 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)

166 Idem

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Esse movimento que agrave primeira vista pode parecer paradoxal esclarece a duacutebia posiccedilatildeo de Catullo no meio letrado de entatildeo ser um autor de poemas sertanejos (embora poeta citadino) e ser reconhecido como algueacutem que conhecia o sertatildeo mas que o representava com os referenciais e coacutedigos reconhecidamente das cidades Dubiedade que era evocada como parte intriacutenseca e fundante de sua condiccedilatildeo de poeta Essa posiccedilatildeo o proacuteprio Catullo a compreendia e a expressava inclusive em seus poemas O novo poeta sertanejo exercitava por diversas vezes em seu texto uma autorrepresentaccedilatildeo visando a um convencimento do leitor de seu lugar como poeta nem tatildeo perto das cidades nem tatildeo longe do sertatildeo

Perspectiva que demonstrava o quanto Catullo era ciente de sua posiccedilatildeo no campo literaacuterio de entatildeo Se por um lado ele assumia seu lugar duacutebio de um poeta sertanejo produzindo nas cidades como forma de marcar a diferenccedila de sua poesia diante de outras produccedilotildees que se voltavam para o sertatildeo por outro o poeta tratava de confirmar sua re-presentaccedilatildeo melhor do espaccedilo sertanejo pela criaccedilatildeo em seus poemas de personagens que dialogavam diretamente com alguns homens im-portantes daqueles tempos

Um desses diaacutelogos por exemplo foi travado no poema intitu-lado Geca-Tatuacute sabidamente uma referecircncia ao personagem criado na mesma eacutepoca pelo escritor Monteiro Lobato para representar o homem do interior Uma vez que Lobato por meio do seu Jeca-Tatuacute pintou a figura do sertanejo num primeiro momento como um fraco ndash represen-taccedilatildeo que de resto tornou-se bastante citada por homens como o con-selheiro e senador Rui Barbosa ndash Catullo tratou de desconstruir essa figura em prol de uma representaccedilatildeo menos condenatoacuteria do sertanejo Assim seu personagem Geca tratava de admoestar o homem da capital um tal ldquoConseiecircrordquo e ldquo Senadocircrdquo que andava falando de uma imagem sua como ldquopreguiccedilosordquo como demonstra a passagem abaixo

Os home caacute da cidademe agarante que o sinhocirceacute o precircmero entre os precircmeroeacute o mais grande brasileiroeacute o Dunga dos inscrito

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Mas poreacutem Macaco veionatildeo mete a matildeo cumbucavazia ansim seu douto[]Preguiccediloso MandracecircroNatildeo sinhocirc seu Conseiecircro

Eacute pruquecirc vancecirc natildeo sabeo que secircje um boiadecircrocriaacute cum tanto cuidado cum tanto amo e alegriaumas cabeccedila de gadoe despois a impidimiacarregaacute tudo cum os diaboim mecircno de quatro dia167

As representaccedilotildees dadas aos sertotildees ndash e por consequecircncia agraves ci-dades ndash construiacutedas numa narrativa (como o texto de Catullo) satildeo com-preensiacuteveis somente se as entendemos como produto de um diaacutelogo tra-vado num ambiente ele proacuteprio citadino e por isso mesmo referenciado por definiccedilotildees oriundas de uma percepccedilatildeo do ldquonovordquo que se expressava na cidade bem como tangenciada pelas discussotildees do lugar ldquosertatildeordquo num discurso de nacional notadamente no campo literaacuterio As lutas de representaccedilotildees do sertatildeo empreendidas nos textos respondiam direta-mente ao interesse especiacutefico de um novo autor que surgia com preten-sotildees literaacuterias Os elementos mobilizados no texto visavam desta forma agrave produccedilatildeo de uma crenccedila no caraacuteter distinto da obra diante de outras que tematizavam o sertatildeo E livros sobre o sertatildeo bem o vimos eram o que natildeo faltava Daiacute a escolha de Catullo de representar o linguajar do homem do sertatildeo ter sido uma foacutermula que gerou grande controveacutersia

Entre os letrados Joatildeo Ribeiro via como problema a reproduccedilatildeo de oralidades sertanejas na obra de Catullo Em resenha para o jornal O Imparcial observa que o leitor deve se resguardar ao imaginar estar lendo um poeta do sertatildeo e faz observaccedilotildees acerca do poema ldquoO le-nhadorrdquo que aparece no livro Meu sertatildeo

167 ALENCAR Maacuterio A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Bedeschi 1939 p 131-135 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)

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Eis um bello poema cuja inspiraccedilatildeo literaacuteria eacute evidenteDe mim se ouso falar escrevi tambeacutem uma poesia baacuterbara e imperfeita ndash a ldquoVinganccedila da aacutervorerdquo que soffre do ineditismo cruel do esqueci-mento e natildeo creio que entrasse nrsquoella nenhuma inspiraccedilatildeo sertanejaA de Catullo eacute muito melhor mais perfeita menos artificiosa e sem o pedantismo de foacutermulas meacutetricas exoacuteticas entretanto eacute ainda uma creaccedilatildeo erudita disfarccedilada sob a phraseologia inculta de idiotismos vo-caacutebullos e locuccedilotildees sertanejas168

Essa observaccedilatildeo cautelosa sobre os poemas de Catullo feita por um letrado respeitado como Joatildeo Ribeiro chama a atenccedilatildeo para os vaacute-rios criteacuterios de aceitaccedilatildeo de um novo autor em determinado campo li-teraacuterio e de como as contraditoacuterias opiniotildees sobre a obra de Catullo lanccedilam luz para se pensar as vaacuterias foacutermulas possiacuteveis visando a esse reconhecimento imprescindiacutevel para o pretendente a cargo de ldquopoetardquo

Se a busca de Catullo pelo reconhecimento como poeta (e natildeo soacute ldquopoeta popularrdquo) o levou a flertar com temas sertanejos o mesmo mo-vimento que o levava a esse reconhecimento retirava-lhe a pecha de ldquopoeta do sertatildeordquo por natildeo ser sertanejo ou como se expressa nas pala-vras de Joatildeo Ribeiro acima o seu sertatildeo era criticado por ser ldquouma creaccedilatildeo erudita disfarccedilada sob a phraseologia incultardquo

Sim Catullo era poeta mas natildeo poderia ser representado como dizia Joatildeo Ribeiro como ldquodo sertatildeordquo Paradoxalmente a erudiccedilatildeo ndash aiacute entendida como oposiccedilatildeo ao inculto ndash tatildeo buscada por Catullo o traiacutea pelo fato de que um dos caminhos para ser reconhecido como erudito era tematizar o ldquopopularrdquo poreacutem natildeo um ldquopopularrdquo qualquer mas um ldquopopularrdquo jaacute canonizado qual seja aquele que fala sobre o sertatildeo A representaccedilatildeo da liacutengua sertaneja certamente natildeo era uma receita levada a cabo por poetas consagrados Haveria Catullo de construir esse es-paccedilo para seus poemas

Diferente de Joatildeo Ribeiro seguia o criacutetico Miguel Mello que em artigo no Correio da Manhatilde convenientemente intitulado O poeta da moda dava suas impressotildees sobre a leitura que havia feito do livro

168 O Imparcial 2 dez 1918 p 5

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de Catullo Assim como Ribeiro Mello exorta algumas poesias que considera belas em Meu sertatildeo (inclusive citando versos do poema O lenhador) poreacutem diferentemente daquele natildeo considera seu autor um erudito a falar do sertatildeo tampouco o condena por isso Ao contraacuterio Numa forma de dar a Catullo o lugar que pensava o criacutetico seu livro merecia explica aos leitores como deve ser lido Meu sertatildeo

Quem percorrer as nossas selectas de trovas populares onde tanta peacute-rola vae no meio da abundancia do folk-lore reconheceraacute que no gecirc-nero Catullo da Paixatildeo Cearense eacute um mestreNingueacutem de certo o ouviraacute ao violatildeo sem sentir prazer no saborear-lhe o pittoresco do seu sertanismoEacute um consumado cantor de modinhas Os apreciadores devem apres-sar-se em lhe comprar o livro Mas os homens de letras natildeo o devem desnaturar com emprestar-lhe pretensotildees literaacuterias que soacute podem ter-minar num snobismo peor que o dos cortesatildeos do marechal Hermes bastante nativistas para instalarem como um dia instalaram o corta--jaca nos salotildees do palaacutecio do Catete169

As diversas opiniotildees sobre a leitura dos livros de Catullo colo-cavam em discussatildeo o caraacuteter literaacuterio (ou natildeo) de sua produccedilatildeo Joatildeo Ribeiro nega-lhe a pretensatildeo por ser erudito demais para falar sobre o sertatildeo e Miguel Mello por sua vez natildeo o aceita como literato mas como cantor de modinhas exatamente pela pouca erudiccedilatildeo de sua po-esia Essa nuance na recepccedilatildeo da obra de Catullo fundamentada numa possiacutevel leitura de Meu sertatildeo deixa entrever o fato de que as preten-sotildees literaacuterias do autor teriam de passar pela aceitaccedilatildeo de literatos do periacuteodo nem sempre dispostos de maneira paciacutefica a canonizar um can-didato a literato ndash mesmo que o autor conhecedor sensiacutevel daquilo que movia o campo escolhesse como seu tema um tipo de produccedilatildeo conve-nientemente aceita na literatura produzida no Brasil

Eacute preciso pensar que as obras de autoria de Catullo da Paixatildeo Cearense participam desse (re)encontro com o sertatildeo tatildeo comum na li-teratura de iniacutecios do seacuteculo XX em que os referenciais definidores

169 Correio da Manhatilde 19 dez 1918

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desse espaccedilo sofriam mudanccedilas a partir do contato com o novo que surgia nas cidades Esse movimento que pode parecer agrave primeira vista paradoxal introduzia o ldquoatrasadordquo sertatildeo nas cidades para defini-las para si mas tambeacutem introduzia referenciais citadinos para afirmar os sertotildees como potencialidade e como devir da naccedilatildeo reconstruindo-o para um mundo que almejava ser ldquomodernordquo Isso nos leva pretensiosamente a arriscar a dizer que a paixatildeo de Catullo pelo ldquoatrasadordquo sertatildeo eacute tambeacutem paixatildeo por uma forma de expressar o sertatildeo para ldquomodernosrdquo

Por outro lado e principalmente voltar-se para esse tipo de pro-duccedilatildeo lanccedilando matildeo de versos identificados com o sertatildeo nordestino era uma tentativa de construir (e este era o objetivo de Catullo) a corro-boraccedilatildeo de seus pares para assim identificaacute-lo como um autor que fazia parte do rol de autores sertanejos ndash que diferentemente dos au-tores de livros de modinhas jaacute era uma produccedilatildeo havia bastante tempo respeitada nos meios letrados

Ora promovido a assunto maior na literatura brasileira desde meados do seacuteculo XIX e mesmo um indicador fulcral na definiccedilatildeo do nacional na literatura o sertatildeo jaacute era um tema fundamental na eacutepoca A historiadora Mocircnica Pimenta Velloso vecirc nessa busca por representar a ldquonaccedilatildeordquo uma velha obsessatildeo regradora do campo literaacuterio o que fez com que no Brasil a autorizaccedilatildeo para a afirmaccedilatildeo de uma obra se pau-tasse pelo reconhecimento de que sua obra representasse a naccedilatildeo170 Acrescente-se que como nos diz o criacutetico portuguecircs Abel Barros Baptista a literatura produzida no Brasil eacute ndash de maneira problemaacutetica ndash nacional antes mesmo de ser literatura171 Atento a esse criteacuterio muitas produccedilotildees tematizam a ldquonaccedilatildeordquo inclusive como receita para ser aceito como ldquoliteraturardquo Poreacutem a mesma tradiccedilatildeo de documentar o real eleita por diversos criacuteticos da literatura brasileira desde aquele periacuteodo como criteacuterio que determinaria a canonizaccedilatildeo de uma obra ou de um autor faz com que comumente seja desdenhada a existecircncia de algo para o qual poucos autores chamam atenccedilatildeo a saber a ldquovoga ser-

170 Cf VELLOSO Mocircnica Pimenta A literatura como espelho da naccedilatildeo Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 1 n 2 1988 p 239-263

171 Cf BAPTISTA Abel Barros O livro agreste Campinas Unicamp 2005

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tanejardquo no iniacutecio do seacuteculo XX quando inuacutemeras publicaccedilotildees obtinham sucesso de puacuteblico contendo temaacuteticas sertanejas Essa produccedilatildeo foi desqualificada como sendo demais ldquoimaginosardquo e ldquopitorescardquo sendo que essa ldquovogardquo mobilizada nos textos de diferentes maneiras visou por diversas vezes a uma aceitaccedilatildeo num espaccedilo jaacute ldquoinchadordquo de obras sobre o sertatildeo agrave eacutepoca

Na literatura da virada do seacuteculo XIX para o XX letrados hoje tatildeo reconhecidos ndash como Coelho Neto Afonso Arinos Arthur Azevedo Euclides da Cunha e Monteiro Lobato ndash rivalizavam ou compartilhavam representaccedilotildees dos sertotildees com autores cujos nomes satildeo praticamente hoje ignorados mas que no periacuteodo foram grande sucesso de puacuteblico por suas produccedilotildees sertanejas como Alberto Rangel Valdomiro Silveira Corneacutelio Pires e Catullo da Paixatildeo Cearense

Sobre este uacuteltimo cujo desconhecimento posterior agrave consa-graccedilatildeo de sua obra por seus contemporacircneos reservou-lhe o papel de subliteratura (diagnoacutestico por exemplo de Dante Moreira Leite)172 pesam ateacute hoje epiacutetetos de autor-menor fruto de uma negaccedilatildeo analiacute-tica jaacute haacute muito cultivada que acompanha a literatura estigmatizada como ldquopreacute-modernistardquo Isso lhe renderia a adjetivaccedilatildeo de ldquofora da modardquo pelos modernistas de 1922 Ironicamente Catullo foi descrito pelo cronista Joatildeo do Rio ainda em 1906 como um poeta que ldquoemara-nhou-se no dogma da modardquo e entusiasmava o cronista que por sua vez manifestava seu ecircxtase ao ver Catullo com um ldquocopo de chopp na matildeordquo recitando O poeta e a fidalga uma cena que era para o cronista ldquoum desses espetaacuteculos de brasserie inesqueciacutevelrdquo

Com a publicaccedilatildeo de poemas com temaacuteticas sertanejas em pouco tempo Catullo se tornou um poeta conhecido entre literatos por sua distinta forma de apresentar a poesia sertaneja para citadinos Contudo o caraacuteter controverso de sua poesia natildeo lhe rendia um lugar estaacutevel como poeta nacional De modinheiro reconhecido e ldquopoeta popularrdquo Catullo virava ldquopoeta sertanejordquo visando a um reconhecimento literaacuterio de sua obra nem sempre garantido uma vez que as regras de consa-

172 LEITE Dante Moreira O caraacuteter nacional brasileiro histoacuteria de uma ideologia Satildeo Paulo Unesp 2002

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graccedilatildeo de um poeta a literato diferiam das de um ldquopoeta popularrdquo Por outro lado Meu sertatildeo se tornou um sucesso entre os leitores chegando a ter em 28 anos 41 ediccedilotildees

O esquecimento posterior de sua obra em parte processou-se penso a partir de um cacircnone estabelecido pelos novos escritores cata-pultados especialmente apoacutes 1922 e referendado continuamente por uma criacutetica literaacuteria aacutevida de estabelecer esteacuteticas dentro de uma conti-nuidade Isso relegou a um plano secundaacuterio a anaacutelise histoacuterica das re-gras que regiam a produccedilatildeo literaacuteria em cada obra estudada Esse pro-cesso foi sendo configurado lentamente durante os anos que se seguiram agrave movimentaccedilatildeo de 1922

Mais do que isso o singular no interstiacutecio entre 1902 e 1930 que viu surgir a ldquovoga sertanejardquo foi a introduccedilatildeo de maneira difusa de uma modernidade que viria apaixonadamente se expressar numa ressig-nificaccedilatildeo da produccedilatildeo da literatura no paiacutes produzida no periacuteodo173 Isso demandou novos questionamentos sobre velhos temas (como os temas ldquosertanejosrdquo) forjando representaccedilotildees literaacuterias outras que a partir de um olhar moderno sobre os espaccedilos ansiaram por construir tambeacutem um novo significado para o ldquosertatildeordquo Esse novo significado que objetivava ser partilhado pelos leitores ia tambeacutem construindo um lugar que pudesse alccedilar seu autor como um ldquopoeta sertanejordquo Trajetoacuteria seguida por Catullo no seu afatilde de ser reconhecido como poeta e natildeo somente um bardo trovador

Catullo Satildeo Paulo e os modernos

Satildeo Paulo iniacutecios de 1918 O jovem poeta paulista Guilherme de Almeida comentava sobre um sarau que iria ser realizado na ca-pital paulista para uma distinta plateia da Sociedade de Cultura Artiacutestica Entusiasmado o escritor natildeo poupava elogios agrave principal atraccedilatildeo da noite

173 GALVAtildeO Walnice Nogueira Metamorfoses do sertatildeo Revista de Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 18 n 52 2004

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Eacute um poeta sertanejo que vae dizer versos no sarau de quarta-feira proacute-xima no Trianon Elle natildeo nos era desconhecido porque natildeo haacute quem acompanhando com um pouquinho de amor a vida artiacutestica brasileira natildeo conheccedila Catullo Cearense Qualquer violeiro de esquina canta por ahi versos seus e qualquer de noacutes sabe de cor essas quadras tatildeo cheias de sentimento e verdades do ldquoLuar do Sertatildeordquo []E a gente applaude irresistivelmente sem saber porque aquella histoacuteria corriqueira de amor applaude inconscientemente talvez porque pela primeira vez tenha sentido nella cantante e sincera a alma brasileira a nossa alma bem caipira escondida no fundo do matto e trazida assim de repente aacute flor da arte e da verdade174

Agrave apresentaccedilatildeo no Trianon secundaria outra a realizar-se no Teatro Municipal o chamado ldquoFestival de Catullo Cearenserdquo com apresentaccedilotildees de Amadeu Amaral Martins Fontes Armando Prado Roberto Moreira e do proacuteprio Guilherme de Almeida Desde fins de dezembro na capital paulista Catullo era saudado pela elite letrada da cidade como o ldquopoeta sertanejordquo

Catullo da Paixatildeo Cearense apareceu para o puacuteblico paulistano na esteira do sucesso das conferecircncias sobre o sertatildeo introduzidas por Afonso Arinos ali mesmo na Sociedade de Cultura Artiacutestica no ano de 1915175 Ele acabou natildeo podendo ir a Satildeo Paulo com Arinos mas este uacuteltimo preparava na capital paulista o terreno para o vertiginoso apare-cimento de uma febre por temas sertanejos Se nos anos 1920 em Satildeo Paulo os temas sertanejos se tornaram febre176 no Rio de Janeiro a capital federal essa efervescecircncia alcanccedilou seu aacutepice na deacutecada ante-

174 Apreciaccedilotildees sobre Catullo Cearense Em CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas bra-vios Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 286

175 A Sociedade de Cultura Artiacutestica fora fundada em 1912 e promovia saraus conferecircncias e apresentaccedilotildees musicais capitaneadas por escritores e artistas dos mais respeitados pela elite letrada paulistana de entatildeo O intuito era a ldquovulgarizaccedilatildeordquo das artes para o puacuteblico paulistano como salientou Antocircnio Piccarolo na conferecircncia de abertura Ali frequentavam homens como Maacuterio de Andrade e uma parte consideraacutevel daqueles es-critores que posteriormente ficariam conhecidos como modernistas bem como aqueles cujas obras seriam relegadas ao ostracismo mesmo tendo sido bastante consumidas como Amadeu Amaral um dos soacutecio-fundadores da sociedade e membro da Academia Brasileira de Letras

176 Para a efervescecircncia de temas sertanejos em Satildeo Paulo cf SEVCENKO Nicolau Um jequitibaacute no palco In Orfeu extaacutetico na metroacutepole Satildeo Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992 p 224-257

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rior e revelaria um grande nuacutemero de ldquoautores sertanejosrdquo dentre os quais o personagem principal do entusiasmo do futuro poeta moder-nista Guilherme de Almeida

Alavancado pelo sucesso de criacutetica que Meu sertatildeo e Sertatildeo em flor alcanccedilaram na capital paulista Catullo Cearense se tornou um iacutecone sertanejo no imaginaacuterio dos letrados paulistanos Iacutecone que como vimos chegava a incomodar a Monteiro Lobato agraves voltas com a cons-truccedilatildeo do Jeca sua tentativa de uma representaccedilatildeo definitiva do homem do interior Mas ateacute mesmo Lobato parecia se render a Catullo O editor Castilho fazia desse reconhecimento vindo de Lobato parte da obra do autor uma vez que fez publicar a partir de Sertatildeo em flor trechos das criacuteticas positivas recebidas em jornais e revistas a Catullo

Assim de uma criacutetica positiva de Monteiro Lobato na Revista do Brasil o editor fez aparecer no livro de Catullo o seguinte trecho em que o criador de Jeca-Tatuacute fala do autor ldquo[] o grande poeta o maior poeta deste paiz o poeta-poeta o poeta cujas composiccedilotildees feitas em muacutesica vivem de norte a sul cantadas por todas as bocas despertando em todos os peitos as mais suaves emoccedilotildees []rdquo177

Esse reconhecimento por um letrado respeitaacutevel nas hostes pau-listas natildeo era fortuito Satildeo Paulo jaacute era nos anos 1910 uma cidade cuja efervescecircncia cultural se fazia ver As exposiccedilotildees de Anita Malfatti as primeiras publicaccedilotildees de Maacuterio de Andrade e Oswald de Andrade as apresentaccedilotildees de Isadora Duncan o baleacute de Nijinski as conferecircncias em ataque aos poetas parnasianos e agrave Academia preparavam o clima para a Semana de Arte Moderna de 1922 ndash marco histoacuterico do moder-nismo no Brasil Cacircndido Mota Filho articulista do jornal Correio Paulistano escreve no calor da hora

O anno de 1922 tem sido para S Paulo um anno prodigo de obras lite-raacuterias E de acordo com as estatiacutesticas foram editados nada menos de 250 livros A criacutetica do paiz alviccedilareira procurou desde logo concluir que a razatildeo dessa abastanccedila estava no rearranjo comercial dos editores que encontravam em Satildeo Paulo campo para fazer lucros e fortunas

177 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p 227

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Procurassem os indagadores do caso a verdade com maior criteacuterio e sem vislumbre de parcialidade que haviam de encontral-a na corrente loacutegica que liga o adeantamento intellectual de S Paulo ao seu adeanta-mento materialAbandonando um pouco o rigorismo de Hippolyto Taine para pedir apoio aos ensaiacutestas e socioacutelogos modernos concluir-se-ia banaliacutessima-mente que S Paulo produz mais quer intellectualmente quer editorial-mente porque eacute o Estado onde a porcetagem de analphabetos eacute menor onde o elemento cultural eacute mais forte onde portanto os livros satildeo ab-sorvidos mais sofregamente178

Ao mesmo tempo o cosmopolitismo paulista cedia passagem para a discussatildeo que jaacute mobilizava grande parte da elite letrada carioca e que ganhou novos ares em Satildeo Paulo especialmente a partir de 1924 afinal o que seria o Brasil A resposta a essa pergunta era buscada no entrelaccedilamento entre uma cultura denominada de ldquoregionalistardquo e outra que chegava identificada com o termo ldquomodernordquo e que viria com uma profunda discussatildeo acerca daquilo que era entendido como ldquoa naccedilatildeo brasileirardquo Nesse sentido o tema ldquosertatildeordquo ganhou novo focirclego pois se o futuro a ser buscado prescindia de um passado cujo modelo carioca da belle eacutepoque era o exemplo mais acabado esse mesmo futuro natildeo poderia ser autecircntico se natildeo ganhasse cores locais Assim refundar a modernidade em Satildeo Paulo parecia ser um dos pilares fundamentais para se estabelecer o moderno no paiacutes de forma que a imitaccedilatildeo mdash ou o ldquopapagaiamentordquo como se costumou dizer mdash natildeo tomasse dessa vez a dianteira como era assim entendido o exemplo carioca Dessa forma pensar o paiacutes era uma receita prudente para que vingasse essa sede de moderno assumindo inclusive suas mazelas e seu exotismo Daiacute era possiacutevel enxergar nos mesmos locais em que se apresentavam os apo-logistas da modernidade em Satildeo Paulo espetaacuteculos que buscavam trazer representaccedilotildees do exoacutetico e mesmo do risiacutevel como forma de representar o paiacutes

Repensar o ldquomodernordquo era uma receita que atraiacutea diversos inte-lectuais desde iniacutecios do seacuteculo XX A historiadora Acircngela de Castro

178 ldquoA literatura em S Paulordquo publicado no Correio Paulistano 8 set 1922 p 3

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Gomes em seu livro Essa Gente do Rio chama a atenccedilatildeo para ldquoa possi-bilidade de uma variedade de projetos de modernizaccedilatildeo que se expres-sariam por numerosas mas natildeo arbitraacuterias esteacuteticas modernistasrdquo179 Essas inuacutemeras possibilidades de tratamento do que se entendia ser ldquomodernordquo conduz a uma reflexatildeo que esmaece as fronteiras delimi-tadas quando se pensa o ldquomodernismordquo no Brasil e reintroduz no acircmago da discussatildeo a historicidade do termo Isso possibilita uma de-sestigmatizaccedilatildeo da produccedilatildeo letrada natildeo paulistana que durante algum tempo foi eclipsada por uma Histoacuteria Literaacuteria que via a discussatildeo sobre o ldquomodernordquo em Satildeo Paulo como o modelo propulsor e acabado do que se convencionou chamar de ldquomodernismordquo nas artes O que se visa natildeo eacute estabelecer rivalidades regionais na produccedilatildeo literaacuteria dos anos 1920 mas discutir os usos compartilhados que se fizeram de temas estilos e termos independente de limites regionais

O sucesso de temas sertanejos na capital paulista ao que parece eacute um desses toacutepicos que podem estabelecer uma anaacutelise mais dialoacutegica e profunda do que foi o ldquomodernordquo no paiacutes Ora foi na construccedilatildeo da-quilo que seria canonizado como ldquomodernismordquo que letrados paulistas compartilharam com seus amigos cariocas a discussatildeo sobre o ldquoatra-sadordquo sertatildeo A negaccedilatildeo da experiecircncia carioca de modernidade por jo-vens escritores paulistas natildeo deixou de conduzi-los para a busca por um elemento que jaacute aparecia como incocircmodo para os cariocas da virada do seacuteculo e que reaparecia como assunto intransponiacutevel para se pensar a modernidade no Brasil os temas sertanejos Daiacute que em Satildeo Paulo na Sociedade de Cultura Artiacutestica as apresentaccedilotildees de temas considerados ldquomodernosrdquo revezavam-se com espetaacuteculos como os capitaneados por Afonso Arinos que trazia do Rio para os palcos paulistanos nomes como Catullo Cearense ou Joatildeo Pernambuco Este uacuteltimo apresentou-se na Sociedade juntamente com Corneacutelio Pires em dezembro de 1916 e teve na plateia um Monteiro Lobato extasiado

179 GOMES Acircngela Castro Essa gente do Rio Modernismo e Nacionalismo Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas 1999 p 12

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Nunca uma plateia como a nossa viacutetima de azia crocircnica pelo abuso de orchatas francesas como essa que o Lugneacute-Poe nos forccedilou a in-gerir a 10$000 a dose vascolejou diafragmas e adjacecircncias com mais sinceros saudaacuteveis e tonificantes risos Natildeo era o risinho espremido e forccedilado verdadeira careta de maacutertir de quem sorri por injunccedilotildees do snobismo ndash sorriso palerma que eacute um esgar simiesco ndash repuxo cocircmico de muacutesculos faciais O que no puacuteblico ria natildeo era a atitude nem a francelha cultura do es-piacuterito era a carne o sangue a raccedila era esse substrato mental e sen-timental que noacutes medrosos da criacutetica escarninha dos elegantes que cheiravam Paris e no-lo embutem como padratildeo supremo conservamos timidamente em caacutercere privado Que bem faz rir assim[] A outra consoladora manifestaccedilatildeo de arte nossa proporcionou-nos Joatildeo Pernambuco Eacute um belo tipo de homem Nele se estampam em grau acentuado todas as caracteriacutesticas do brasileiro puro criado ao ar livre no contacto direto com a natureza bravia Dentro do seu peito bate um coraccedilatildeo Sursquoalma eacute a proacutepria alma da terra Paris natildeo contaminou um gloacutebulo sequer daquele sangue oxigenado pelo ar das florestasCantou o ldquoLuar do Sertatildeordquo com tanto sentimento que inuacutemeros olhos se humedeceram da mais pura emoccedilatildeo esteacutetica Que soberbo versos satildeo aqueles Quanta poesia ali da verdadeira da autecircntica da que brota espontacircnea do coraccedilatildeo Rudes sem atenccedilatildeo para com a forma []180

Para Lobato era a proacutepria ldquoformardquo da poesia cantada por Pernambuco que se colocava em contraste com coisas francesas ndash e natildeo soacute o conteuacutedo expresso ldquoForma afrancesadardquo essa que jaacute era contestada pelos letrados cariocas de maneira que Catullo pocircde ser agraciado com o tiacutetulo de poeta nacional por escrever seus versos numa forma da terra a linguagem sertaneja A forma o academicismo o afrancesamento todos esses elementos que surgiam como questotildees para um novo tipo de expressatildeo cultural em Satildeo Paulo (que rompesse afinal com os cha-mados passadismos identificados com tais elementos) eram discussotildees que tambeacutem aticcedilavam os letrados cariocas e que deram a oportunidade para empreendimentos no campo literaacuterio que como o de Catullo em

180 LOBATO Monteiro Arte brasileira In LOBATO Monteiro Ideacuteias de Jeca-Tatuacute Satildeo Paulo Brasiliense 1956 p 191-192

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Meu sertatildeo e em Sertatildeo em flor colocavam em pauta as expressotildees da liacutengua como definidora de uma autenticidade em detrimento de mo-dismos agrave francesa

De resto esse eacute o mesmo impulso que levaraacute os novos artistas paulistas a buscarem uma arte nacional e moderna O grande entrave que se tornou uma discussatildeo comum entre os autores ligados agraves letras no periacuteodo (mas natildeo somente) era a questatildeo de qual seria o lugar do sertatildeo na modernidade que se pretendia Entrave que como visto ante-riormente era um mal-estar compartilhado pela elite citadina do Rio de Janeiro Na esteira disso natildeo deveria causar incocircmodo para os novos artistas paulistas evocar o nome de Euclides da Cunha como o pioneiro carioca do modernismo paulista Nele se expressavam todas as dicoto-mias advindas do tratamento do paiacutes a partir de termos como moderni-dade das cidades versus sertatildeo autecircntico-atrasado

Natildeo se pode esquecer que no mesmo momento em que se apro-ximava a fase heroica do primeiro modernismo paulista escritores que tematizavam o mundo rural como Amadeu Amaral Godofredo Rangel Ricardo Gonccedilalves e Valdomiro Silveira viveram seus aacutepices como li-teratos ndash para natildeo falar de Monteiro Lobato Como esquecer o apareci-mento de Corneacutelio Pires fazendo o papel de como hoje eacute comum dizer ldquoagitador culturalrdquo ao levar aos palcos causos e piadas dos homens do interior e mostrar para o grande puacuteblico as primeiras duplas sertanejas de que se tem notiacutecia como Zico Dias amp Ferrinho Mandi amp Sorocabinha e Mariano amp Caccedilula Aliaacutes o mesmo Corneacutelio Pires criou a ldquoTurma de Corneacutelio Piresrdquo um grupo de vaacuterios artistas que vestidos de caipiras chegou a rodar o estado de Satildeo Paulo com sucesso a partir de 1924 chegando a gravar um raro disco em 1929181

Foi nesse clima que a poesia de Catullo chegou aos salotildees pau-listas A mesma mocidade que em iniacutecios de 1922 veio a chacoalhar as letras brasileiras a partir de Satildeo Paulo se espremia por um espaccedilo para ver o conhecido ldquopoeta sertanejordquo declamar suas poesias

181 Trata-se de um 78 rpm pela Columbia contendo duas canccedilotildees A moda da revoluccedilatildeo e Vida apertada Cf DICIONAacuteRIO Houaiss Ilustrado da Muacutesica Popular Brasileira Rio de Janeiro Paracatu 2006 p 1131

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Estudando o modernismo de 1922 o filoacutesofo Eduardo Jardim chama a atenccedilatildeo para uma mudanccedila no interior do movimento paulista a partir de 1924 Diz o filoacutesofo que por volta de 1924 o caminho das experimentaccedilotildees esteacuteticas foi progressivamente sendo substituiacutedo por uma agenda que colocava em primeiro plano a necessaacuteria construccedilatildeo de uma nova literatura que estivesse mais de acordo com o paiacutes Nesse sentido para ele a obra Canaatilde de Graccedila Aranha seria paradigmaacutetica dos rumos que se pretendeu dar agrave movimentaccedilatildeo paulista182

O filoacutesofo argumenta que uma inflexatildeo teria se dado no momento em que se deixou progressivamente uma tentativa de buscar uma nova ex-pressatildeo esteacutetica ndash tema muito discutido no periacuteodo imediatamente anterior a 1922 ndash e uma reviravolta fez recolocar sob nova roupagem o tema do melhor representar o paiacutes na literatura do periacuteodo Essa tarefa teve direccedilotildees distintas em figuras como Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade

Embora tal reflexatildeo revele uma mudanccedila seminal na produccedilatildeo ldquomo-dernistardquo do periacuteodo o fato eacute que a agenda de melhor representar o paiacutes e na esteira disso a criaccedilatildeo de uma nova esteacutetica que pudesse melhor ex-pressar esse desejo de representaccedilatildeo da naccedilatildeo era buscada pelos proacuteprios participantes paulistas do movimento de 1922 bem antes desse periacuteodo

Assim natildeo eacute agrave toa que na tentativa de revelar a movimentaccedilatildeo que se dava nas artes brasileiras para o puacuteblico francecircs Oswald de Andrade em conferecircncia na Sorbonne um ano apoacutes a Semana de Arte Moderna expressava essa busca de uma ldquoverdade nacionalrdquo

[] Outros espiacuteritos procuram tambeacutem aproximar-se da pura verdade nacional anunciada pelos cantos anocircnimos dos sertotildees a cantiga nos-taacutelgica do vaqueiro do almocreve do negro e do caipiraO regionalismo surge nos quadros ruacutesticos de Ricardo Gonccedilalves e Corneacutelio Pires em Satildeo Paulo e sobretudo nos poemas espontacircneos e liacutericos de Catullo da Paixatildeo Cearense Ele canta a lua que magnetiza as panteras os diluacutevios perioacutedicos do Amazonas que engole florestas e aldeias183

182 JARDIM Eduardo Brasilidade modernista Rio de Janeiro Grall 1978183 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 47 Esse artigo foi

reproduzido na Revista do Brasil em seu nuacutemero 96 de dezembro de 1923

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo142

Essa conferecircncia tem uma importacircncia fundamental para o en-tendimento do que foi o ldquomodernismordquo no Brasil pois natildeo se trata soacute de um balanccedilo criacutetico das artes brasileiras do periacuteodo mas de uma tenta-tiva de produccedilatildeo de um discurso histoacuterico do ldquomodernismordquo Haacute no evento uma apropriaccedilatildeo dos nomes de diversos autores de liacutengua por-tuguesa de forma a culminar nos nomes dos modernistas paulistas Mas se posteriormente muitos desses nomes elencados por Oswald desapa-receriam dos estudos literaacuterios brasileiros ali ainda em 1923 na proxi-midade dos acontecimentos de 1922 em Satildeo Paulo surgiam nomes inesperados que o conferencista evocava para construir uma racionali-dade histoacuterica para o movimento diante do puacuteblico francecircs

Nesse caminho o regionalismo surge no discurso de Oswald como um dos exemplos preacute-22 de busca por uma ldquoverdade nacionalrdquo Haacute ali uma constataccedilatildeo de que uma ldquoverdade do paiacutesrdquo fora procurada na literatura antes da assunccedilatildeo dos modernistas de 1922 Entretanto se para o estudioso atual da literatura brasileira o aparecimento de nomes consagrados como ldquopreacute-modernistasrdquo seria fatal eacute com espanto que se vecirc surgirem na conferecircncia de Oswald nomes improvaacuteveis como os de Amadeu Amaral Corneacutelio Pires Joatildeo Ribeiro e Catullo da Paixatildeo Cearense Esses nomes aparecem inclusive como fundadores de uma liacutengua nacional diferente da liacutengua portuguesa

Estamos assistindo ao esforccedilo cientiacutefico da criaccedilatildeo de uma liacutengua independente por sua evoluccedilatildeo da liacutengua portuguesa da Europa Recebemos como benefiacutecio todos os erros de sintaxe do romancista Joseacute de Alencar e do poeta Castro Alves e o folclore natildeo atingiu so-mente o domiacutenio filosoacuteficoDois filoacutesofos de boa cultura cumprem os desejos esboccedilados pela graccedila sertaneja de Corneacutelio Pires e pelo poder de expressatildeo de Catullo Enquanto o Sr Joatildeo Ribeiro tratava de fundar em 32 notaacuteveis liccedilotildees uma liacutengua nacional o Sr Amadeu Amaral construiacutea a nossa primeira gramaacutetica regionalista184

184 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 46

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 143

Adiante contrabalanceando dentro de sua perspectiva um diaacutelogo entre autores anteriores e novas referecircncias Oswald dispara ldquoA Obra dos dois ilustres acadecircmicos esqueceu entretanto a contribuiccedilatildeo do jargatildeo das grandes cidades brasileiras onde comeccedila a brotar em Satildeo Paulo principal-mente uma surpreendente literatura de novos imigrantesrdquo185

Daiacute ao caraacuteter documental da liacutengua expresso pelos trabalhos de Amadeu Amaral e Joatildeo Ribeiro secundaria diz-nos Oswald a audaacutecia de Monteiro Lobato que com o seu Jeca-Tatuacute viu-se apesar do su-cesso contrariado pelo imaginaacuterio popular sobre o homem do interior Vale a citaccedilatildeo

O Sr Lobato teve a audaacutecia de sair do domiacutenio puramente documental em que se acantonavam Veiga Miranda Albertino Moreira Godofredo Rangel e Valdomiro Silveira reagindo tambeacutem contra o urbanismo que dava a visatildeo histoacuterica do poliacutegrafo Eliacutesio de Carvalho a obra de Tomaacutes Lopes e Joatildeo do Rio e a primeira fase poeacutetica de Guilherme de AlmeidaLobato tinha um longo conhecimento do Brasil tendo feito seus es-tudos em Satildeo Paulo tornando-se fazendeiro em seguida A obra de ficccedilatildeo desejada por Machado de Assis realizou-se com a criaccedilatildeo do tipo de Jeca Tatu Era o inseto inuacutetil da terra magniacutefica que para gozar um espetaacuteculo e ter ocupaccedilatildeo queimava as matas []O siacutembolo vingou-se A imaginaccedilatildeo popular viu nele o Brasil tenaz cheio de resistecircncias fiacutesicas e morais fatalizado mas natildeo fatalista tendo adotado pelas circunstacircncias das suas origens e do seu exiacutelio esta espeacutecie de vocaccedilatildeo para a infelicidade observada inconsciente-mente pelos etnoacutelogos e romancistas186

Oswald conta-nos do triunfo do imaginaacuterio popular sobre a obra de Lobato A representaccedilatildeo ficcional de Lobato ganhava outros cami-nhos pelo imaginaacuterio popular de onde se expressaria uma possiacutevel ldquoverdade uacuteltimardquo O ldquopopularrdquo em contradiccedilatildeo com a ldquoficccedilatildeordquo

O desfile de referecircncias a autores da literatura denominada ldquore-gionalistardquo por Oswald conduz a um questionamento basilar no que diz

185 Idem p 46186 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 47

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo144

respeito agrave construccedilatildeo do modernismo na literatura brasileira qual o sentido de construir na histoacuteria modernista tatildeo constantemente identi-ficada como uma histoacuteria de ruptura um elo que possa ligar a nova produccedilatildeo poacutes-22 com autores regionalistas anteriores Se essa eacute a in-tenccedilatildeo exposta por Oswald muitas vezes considerado o mais radical dos modernistas haacute de se fazer uma (re)apreciaccedilatildeo do que foi o moder-nismo Mais o problema nos coloca no cerne da discussatildeo do termo ldquomodernordquo como uso criativo de forma que eacute soacute pelo exame da histori-cidade dessa criaccedilatildeo que se podem entender as disputas pelo moderno que satildeo por uacuteltimo disputas por construir um sentido para o termo em meio agrave sua construccedilatildeo Se essa construccedilatildeo foi permeada por disputas estas tambeacutem podem ser entrevistas nos textos que produziram aquela

O dilema que se reintroduz entre os ldquonovos modernistasrdquo eacute como se percebe nas reflexotildees do proacuteprio Oswald de Andrade o dilema ins-transponiacutevel jaacute observado na virada do seacuteculo nas produccedilotildees literaacuterias do Rio de Janeiro qual seja a necessaacuteria aproximaccedilatildeo de um discurso literaacuterio de um discurso sobre a naccedilatildeo E se certos autores entre os quais Catullo puderam ser evocados nos argumentos que pudessem fazer entender 1922 eacute que essa tensatildeo em definir o moderno no paiacutes era dramatizada em suas proacuteprias produccedilotildees fosse numa tentativa delibe-rada de representar o moderno (ou o seu avesso) no texto fosse na possibilidade sempre buscada de construir uma autoridade pelo que se representa por meio de artifiacutecios formais tais como ldquoeu conheccedilordquo ldquoeu virdquo ou ldquoeu sintordquo De acordo com o capital social de cada candidato a autor essas escolhas poderiam resultar como definitivas para sua con-sagraccedilatildeo como integrante no rol de uma possiacutevel ldquoliteratura nacionalrdquo

O que se discute afinal com a eclosatildeo do modernismo paulista eacute novamente a disputa por quem melhor representa medida a partir da representaccedilatildeo da autoridade daquele que representa Se em 1923 data da conferecircncia de Oswald de Andrade como nos alerta o filoacutesofo Eduardo Jardim ainda natildeo estava tatildeo clara uma escolha pelo papel construtor de uma representaccedilatildeo do nacional na literatura produzida pelos modernos paulistas progressivamente essa escolha vai sendo construiacuteda a fim de lanccedilar em pares opostos imaginaccedilatildeo versus co-nhecimento Embora essa dualidade ganhe contornos claros com a cha-

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 145

mada primeira geraccedilatildeo modernista tal dilema jaacute herdava uma discussatildeo fortemente em voga de forma dramaacutetica na virada do seacuteculo XIX para o XX e ateacute antes disso

A questatildeo da brasilidade literaacuteria em 24 natildeo constitui a inauguraccedilatildeo de uma problemaacutetica nova em nossa histoacuteria cultural Desde o roman-tismo este problema vinha sendo debatido pela elite culta do paiacutes O fato de ela ter novamente despertado no interior do modernismo pos-sivelmente estabelecendo elos com as discussotildees a respeito do primi-tivismo na arte europeia natildeo dispensa o exame de sua relaccedilatildeo com outros momentos de sua formulaccedilatildeo na histoacuteria cultural do Brasil [] Assim poderemos perceber que o modernismo constitui a retomada e o adiantamento de um caminho jaacute aberto na nossa vida intelectual Poderemos perceber igualmente que ele opera uma releitura do passado da discussatildeo em torno do tema da brasilidade e mais ainda teremos a possibilidade de esclarecer o movimento que fez com que muitas vezes recorrecircssemos aacute [sic] mensagem modernista para a elucidaccedilatildeo da nossa proacutepria situaccedilatildeo cultural Eacute que continuamos a discutir com o moder-nismo como ele o fez com os momentos que o antecederam187

Acrescentado a isso diria que eacute urgente flagrar a construccedilatildeo do termo ldquomodernismordquo a partir das obras que lhe iam dando corpo Voltar portanto agrave indagaccedilatildeo fundante sobre o que os termos ldquomodernidaderdquo ldquomodernordquo ldquomodernismordquo e correlatos guardam neles quando vistos numa perspectiva histoacuterica dentro de sua proacutepria historicidade Dessa forma qualquer anaacutelise acerca do ldquomodernismordquo como movimento de renovaccedilatildeo das artes brasileiras deve levar em consideraccedilatildeo uma re-laccedilatildeo de tempo ou dito de outra maneira a compreensatildeo de usos do passado processados em determinada historicidade como paracircmetro para a definiccedilatildeo daquilo que se enxerga como ldquomodernordquo Eacute a esse ca-minho que nos ateremos a seguir para balizar o lugar de Catullo da Paixatildeo Cearense nessa discussatildeo

Quando eclode a Semana de 22 Catullo havia publicado seu novo livro pela livraria Castilho Poemas bravios O novo volume de poesias deixava de lado parte da foacutermula da poesia com linguajar serta-nejo Isto eacute em parte pois metade do livro ainda usava da mesma foacuter-

187 JARDIM Eduardo Brasilidade modernista Rio de Janeiro Grall 1978 p 16

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo146

mula mas diferentemente das outras publicaccedilotildees havia vaacuterios poemas em que o narrador natildeo mais usava tal princiacutepio E havia algo mais contos sertanejos em prosa

Se essa mudanccedila pode ser atribuiacuteda agraves vaacuterias criacuteticas recebidas eacute algo difiacutecil de dimensionar O fato eacute que como diz o historiador Joatildeo Ribeiro nas apreciaccedilotildees expostas no final do livro de Catullo ele agora poderia ser visto como ldquoum poeta nacional natildeo tenho duacutevidardquo188 Eacute essa caracterizaccedilatildeo de Catullo como ldquopoeta nacionalrdquo que sofreraacute uma inflexatildeo com a chegada de 1922

Trazendo o termo ldquomodernordquo para o centro das reflexotildees sobre as formas de expressatildeo os modernistas de 22 construiacuteram novos paracircme-tros que pudessem ser sinalizados para se definir uma obra literaacuteria como nacional A tarefa de modernizar a literatura passaria pelo impe-rativo do conhecimento daquilo que se narra especialmente poacutes-1924 Haveria uma exterioridade na obra a ser buscada para que ela fosse definida como ldquonacionalrdquo

Esse ponto era procurado inclusive na biografia do autor da obra Natildeo que as formas de expressatildeo natildeo fossem desdenhadas nas mo-tivaccedilotildees definidoras dos modernistas do que seria a nova literatura ndash certamente a poesia identificada como parnasiana seria deixada de lado ndash mas o que se nota eacute uma intransigente busca por retratar no texto a ldquorealidade nacionalrdquo de forma que ao contraacuterio a imaginaccedilatildeo era co-locada agrave parte como coisa desvirtuadora da realidade Daiacute o tema do ldquonacionalrdquo para o investigador de textos literaacuterios produzidos no Brasil nesse periacuteodo ser intransponiacutevel Mas se uma receita antiga da histoacuteria literaacuteria busca flagrar a ldquoconstruccedilatildeo da naccedilatildeo nos textosrdquo seguimos outro caminho que pensamos ser mais profiacutecuo com o questionamento sobre como os usos diferenciados do nacional em textos faziam com que um rol de obras impressas fossem alavancadas no rol de obras na-cionais e de como isso era operacionalizado pelos candidatos a autores nacionais e seus editores nas produccedilotildees impressas do periacuteodo

188 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas bravios Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 270

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 147

Nunca eacute demais considerar que aquilo que no senso comum de-nomina-se ldquomodernistas de 22rdquo eacute um termo que abrange inuacutemeros au-tores natildeo raras vezes de opiniotildees e representaccedilotildees profundamente dis-tintas quando se propunham a construir uma literatura definida como ldquonacionalrdquo Ademais consideraacute-los um grupo de paulistas como fre-quentemente eacute caracterizado seria desdenhar figuras natildeo paulistas como Ronald de Carvalho Manuel Bandeira e Seacutergio Buarque de Holanda que a despeito de seus locais de origem intervieram de forma decisiva na construccedilatildeo do que se convencionou chamar ldquomodernismordquo Aleacutem disso o termo ldquomodernismordquo pode esconder as leituras consu-midas e evocadas pelos seus protagonistas na construccedilatildeo de uma nova literatura O exemplo de Oswald anteriormente citado como leitor simpaacutetico de Catullo pode bem trazer tais desconfianccedilas quanto agraves construccedilotildees a priori sobre o movimento de 1922

Mais provocador ainda eacute observar os editores de alguns dos mais ilustres natildeo paulistas que continuaram a publicar por casas cariocas Ronald de Carvalho permanece com seu editor Aacutelvares Pinto em pelo menos duas publicaccedilotildees (Espelho de Ariel e Estudos brasileiros) vindo depois a publicar pela Leite Ribeiro e pela F Briguet e Comp ambas cariocas Graccedila Aranha continuou a publicar pela Garnier ainda no Rio Prudente de Moraes Neto e Seacutergio Buarque de Holanda potildeem para frente o projeto da Revista Esthetica Aleacutem desses O ritmo dissoluto de Manuel Bandeira publicado em 1924 sai pela Paulo Pongetti amp Comp e posteriormente Libertinagem de 1930 sai pela mesma edi-tora carioca Aliaacutes a editora graacutefica dos Irmatildeos Pongetti se valeu muito das inovaccedilotildees teacutecnicas trazidas pela modernizaccedilatildeo das artes brasileiras e dos processos poliacuteticos que catapultavam tais mudanccedilas Henrique Pongetti ainda diria da Revoluccedilatildeo de 1930 que ldquoEm nenhuma outra parte da vida nacional a transformaccedilatildeo teve um jeito tatildeo perfeito de milagre como nas oficinas graacuteficasrdquo189

189 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 195 Ainda estaacute por se fazer uma histoacuteria editorial do Modernismo de 1922 de forma a se compreender o diaacutelogo entre produtores de livros e a difusatildeo da litera-tura modernista ndash que natildeo se restringia a editores brasileiros diga-se de passagem Eacute possiacutevel que esse esforccedilo traga uma maior dimensatildeo criacutetica do Movimento de 22 de

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo148

Essa efervescecircncia editorial pode ser pensada tambeacutem como pro-dutora de uma esteacutetica modernista bem como pela produccedilatildeo de um gosto por certos autores que seriam posteriormente consagrados Leite Ribeiro que galvanizou nos anos 1920 grande parte das publicaccedilotildees de sucesso no Rio de Janeiro (antes de passar a empresa para seu soacutecio Freitas Bastos) representava bem a tentativa de criaccedilatildeo de um mercado consumidor para novas obras Na sua livraria publicavam-se desde au-tores de livros juriacutedicos a literatos famosos como Humberto de Campos e Coelho Neto e era frequentada pela nata da elite letrada carioca Na Leite Ribeiro deu-se o maior escacircndalo do mundo literaacuterio do periacuteodo a apreensatildeo em massa de Mademoiselle Cinema romance de Benjamin Constallat mdash inclusive com a prisatildeo dos empregados da livraria190 Sob a eacutegide de Freitas Bastos a livraria tem sua fase de aacutepice inaugurando inclusive uma filial na cidade de Satildeo Paulo nos anos 1930 Dentre as publicaccedilotildees exitosas da casa destacam-se as obras de Mendes Fradique mdash um enorme sucesso no periacuteodo especialmente a Histoacuteria do Brasil pelo methodo confuso e A loacutegica do absurdo Suas ediccedilotildees luxuosa-mente produzidas e sempre com belas ilustraccedilotildees de capa atraiacuteam o leitor mais exigente

Em meio a isso a grande jogada da livraria foi sem duacutevida a ldquoCollecccedilatildeo dos Cine-Romancesrdquo que se propunha a publicar ldquoos ro-mances e novellas sobre que se baseiam os principais superfilmsrdquo e vendecirc-los para o grande puacuteblico indicando que ldquosatildeo volumes profusa-mente illustrados com as melhores scenas do filme e trazem photogra-phias dos principais inteacuterpretesrdquo191 Suas publicidades vinham inclu-

forma a enxergaacute-lo tambeacutem como uma movimentaccedilatildeo que se valeu de um campo de produccedilatildeo de livros pungente no Brasil de entatildeo Apesar da lacuna vale a leitura do artigo de Regina Zilberman sobre as relaccedilotildees de Maacuterio de Andrade e seus editores onde a autora esboccedila essa compreensatildeo do caraacuteter editorial do ldquoprojeto modernistardquo Cf ZILBERMAN Regina Maacuterio de Andrade ou Como um modernista editava Revista Itineraacuterios Araraquara n 7 1994

190 Haacute uma oacutetima dissertaccedilatildeo acerca dos ldquonegoacutecios com livrosrdquo de Benjamin Constallat nesses idos chamando a atenccedilatildeo para o caraacuteter empreendedor do escritor no ramo editorial Cf FRANCcedilA Patriacutecia de Souza Uma campanha pelo livro nacional a atuaccedilatildeo editorial de Benjamim Costallat no Rio de Janeiro dos anos 1920 113 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria Social) ndash Programa Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2012

191 Cataacutelogo da Livraria que consta na contracapa de ldquoAlma do sertatildeordquo de Catullo da

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sive acompanhando a publicidade dos filmes em cartaz nos cinemas a nova febre das cidades

Catullo da Paixatildeo Cearense tambeacutem seria publicado por Leite Ribeiro Alma do sertatildeo veio agrave luz em 1928 com uma colorida ilustraccedilatildeo de capa marca da editora Leite Ribeiro assim como Antocircnio Castilho (agora antigo editor de Catullo) jaacute investia em publicaccedilotildees com temaacute-ticas ditas ldquoregionalistasrdquo desde os anos 1910 Foi Leite Ribeiro quem primeiro publicou Joatildeo do Norte (pseudocircnimo de Gustavo Barroso) com o sucesso de Ao som da viola em 1921 Antes disso ainda em 1917 usando o pseudocircnimo de Joatildeo Phoca Joatildeo Batista Coelho publicava o volume de contos praianos Os caiccedilaras Em 1922 Carlos de Vasconcelos publicava pela Leite Ribeiro Deserdados ndash romance da Amazocircnia Essa profusatildeo de livros identificados com temaacuteticas ldquopopularesrdquo atendia agrave demanda pelo consumo de tais produtos que supostamente davam a co-nhecer o restante do paiacutes Assim quando Catullo publicou Alma do sertatildeo a foacutermula jaacute era bem conhecida na livraria Editora mas agrave dife-renccedila de seus livros anteriores aparece um Catullo prosador de temas natildeo sertanejos ndash aleacutem eacute claro de suas poesias sertanejas que faziam a apresentaccedilatildeo da publicaccedilatildeo em sua primeira parte

A colocaccedilatildeo de tais escritos natildeo sertanejos algo ineacutedito na obra de Catullo ateacute aquele momento deve ser pensada a partir de uma exi-gecircncia que se coloca dentro da literatura do periacuteodo Se em 1918 com Meu sertatildeo a foacutermula operada por Catullo em seu texto era encarada em termos tais como autenticidade versus falsificaccedilatildeo onde o autor era definido como um autecircntico poeta que traduziria uma alma em 1928 a ldquoalma sertanejardquo de Catullo era colocada em xeque cada vez mais pela demanda por representaccedilotildees do mesmo sertanejo que fugisse do caraacuteter subjetivo para um caraacuteter mais realista Catullo ao assumir por sua vez em sua prosa a liacutengua culta (em detrimento do linguajar sertanejo das foacutermulas anteriores) assumia sua produccedilatildeo fora do espaccedilo de iden-tificaccedilatildeo de uma possiacutevel traduccedilatildeo da alma para a afirmaccedilatildeo de uma produccedilatildeo narrativa sua sem traduccedilotildees Isso veio na esteira das criacuteticas

Paixatildeo Cearense Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo150

recebidas apoacutes a progressiva consolidaccedilatildeo de uma esteacutetica vinda do modernismo de 1922 Voltaremos a essa criacutetica adiante

O livro de Catullo Alma do sertatildeo pode ser lido como uma rup-tura na trajetoacuteria literaacuteria do poeta Pouco a pouco o caraacuteter regional na literatura produzida no periacuteodo se desenrola no sentido de identificar a escolha pelo regional agrave submissatildeo do termo a uma alma brasileira e daiacute a criaccedilatildeo de artifiacutecios textuais que pudesse conduzir o leitor a identi-ficar aquele que escreve como autor de literatura nacional A citaccedilatildeo de um poema de autoria de Bastos Tigre publicado no prefaacutecio da obra assinado pelo escritor Maacuterio Joseacute de Almeida confere a tocircnica da mu-danccedila que se segue naquele momento No poema Bastos Tigre mostra uma representaccedilatildeo do poeta Catullo da Paixatildeo Cearense em sua tran-siccedilatildeo do regional para o brasileiro

Nesse idioma de ldquopru moderdquoDe ldquoapois natildeordquo de ldquoseu doutordquoSoacute o gecircnio das selvas poacutedeTer ressonacircncias de Hugo

Nestes teus poemas se sentendash Eacute questatildeo de os entender ndashldquoO cheiro da terra quenteQuando comeccedila a choverrdquo

No coraccedilatildeo desta terraExplorador penestrasteE os diamantes que elle encerraPotildees dos teus versos no engaste

Rondon bravo estuda o soloRios vaacuterzeas chapadotildeesCatullo eacute o Rondon que ApolloMandou aacute alma dos sertotildees

E tendo os teus poemas tem-seEsta impressatildeo verdadeiraNatildeo eacutes da Paixatildeo CearenseEacutes da paixatildeo brasileira192

192 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928 p 22-23

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 151

Haacute aqui uma primeira expressatildeo de mudanccedila ainda que sutil Bastos Tigre observa algo que jaacute naquele momento (radicalizado logo depois) iria ser a tocircnica da produccedilatildeo literaacuteria no Brasil Se antes o caraacuteter regional ou popular de uma produccedilatildeo poderia ser um iacutendice de definiccedilatildeo de algo a ser compreendido como ldquoliteratura brasileirardquo e a construccedilatildeo de um know-how para o pretendente a entrar nesse panteatildeo podia ser medida como vimos anteriormente por preacute-condiccedilotildees tais como uma autoridade intelectual que pode falar sem ter visto ou por algueacutem que por uma genialidade comprovada podia expressar uma suposta alma do povo em fins dos anos 1920 com o advento dos mo-dernistas de 1922 no campo literaacuterio essa frente muda de local O que se propunha natildeo era mais soacute a expressatildeo subjetiva de um referente mas a representaccedilatildeo de um espaccedilo pautada numa pesquisa ideia cujo maior defensor era o poeta e intelectual paulista Maacuterio de Andrade

Dessa forma grande parte do caraacuteter regionalista da produccedilatildeo literaacuteria anterior foi sendo medida a partir de tais termos Mais se o atestado de um caraacuteter regional poderia ser um toacutepico que ajudaria na assunccedilatildeo de um nome ao panteatildeo da literatura brasileira tal caraacuteter natildeo poderia mais ser aceito se natildeo estivesse subordinado a algo mais impor-tante a essa nova leva de escritores advindos do movimento de 22 qual seja a construccedilatildeo de uma identidade para a naccedilatildeo Daiacute Catullo no poema de Bastos Tigre ser representado natildeo mais como ldquoda Paixatildeo Cearense mas lsquoda Paixatildeo Brasileirarsquordquo Metaacutefora que expressa no texto de Catullo uma representaccedilatildeo condizente com uma mudanccedila que se processava a partir da produccedilatildeo de uma autorrepresentaccedilatildeo buscada para a literatura produzida no Brasil agrave eacutepoca

Penso que afinal a ldquomodernardquo literatura brasileira (digamos aquela identificada com o marco de 1922) natildeo pode ser subordinada a uma anaacutelise que incorpore sob o termo ldquomodernismordquo produccedilotildees tatildeo diacutespares entre si e mesmo discordantes sob o risco de perder sob o mesmo termo toda uma discussatildeo que colocou em lugares opostos Maacuterio de Andrade e Oswald de Andrade para citar soacute um entre tantos exemplos Maacuterio por exemplo tinha grande apreccedilo por Manuel Bandeira um entusiasta da poesia de Catullo da Paixatildeo Cearense que por sua vez possuiacutea uma atitude desconfiada com relaccedilatildeo aos novos

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo152

modernistas ndash que contava entre aqueles assim identificados o proacute-prio Bandeira

Outro ponto a ser salientado eacute o reiterado (e discutiacutevel) triunfo da movimentaccedilatildeo entre o puacuteblico letrado que teve em 1922 um marco Como os nuacutemeros de vendagens das produccedilotildees dos autores identifi-cados como ldquomodernistasrdquo satildeo imprecisos quando natildeo inexistentes eacute difiacutecil dimensionar o alcance de seus escritos Talvez um evento escla-reccedila os limites do triunfo modernista sobre os leitores o Concurso Nacional ldquoOs maiores brasileiros vivosrdquo promovido pela revista ca-rioca Fon-Fon em iniacutecios de 1925

Durante os meses de marccedilo e abril de 1925 a Fon-Fon de circu-laccedilatildeo natildeo soacute restrita agrave cidade do Rio de Janeiro promoveu um concurso para que seus leitores pudessem escolher por conta proacutepria os maiores brasileiros vivos em suas aacutereas meacutedico educador industrial escritor cantor poeta muacutesico ator financista etc Entre os escritores o vencedor foi o jaacute consagrado Coelho Netto ficando Gustavo Barroso com seus contos sertanejos em segundo lugar e Oliveira Lima em terceiro Os trecircs escritores eram membros destacados da Academia Brasileira de Letras

Na categoria ldquoo maior poeta vivordquo o vencedor foi Alberto de Oliveira membro da Academia Brasileira de Letras ficando em segundo lugar Hermes Fontes e em terceiro lugar Catullo da Paixatildeo Cearense

Se o alcance da produccedilatildeo modernista natildeo havia triunfado no gosto do puacuteblico letrado carioca a ruptura pensada em 1922 natildeo pode ser reificada numa narrativa histoacuterica que busca fundar pontos demar-catoacuterios Talvez enriqueccedila mais a anaacutelise pensar que uma esteacutetica mo-dernista teve de lidar com uma produccedilatildeo anterior ao advento dos escri-tores modernistas e que essa produccedilatildeo tampouco estava ldquodecadenterdquo como se costumou dizer Antes foi preciso construir um gosto por obras ldquomodernistasrdquo e isto natildeo se deu da noite para o dia sem uma apropriaccedilatildeo de certas temaacuteticas consagradas entre o puacuteblico leitor Daiacute ser necessaacuterio flagrar a construccedilatildeo do ldquomodernismordquo em suas disputas natildeo soacute internas (perspectiva mais comum que consiste em buscar dentro da esteacutetica modernista desavenccedilas entre seus partiacutecipes) mas tambeacutem em seu diaacutelogo com toda produccedilatildeo que antecede ndash e continua apoacutes ndash a sua ascensatildeo e com as demandas do puacuteblico leitor E avan-

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ccedilando investigar na esteira disso como os novos escritores provo-caram uma mudanccedila na produccedilatildeo dos autores que o antecederam e como estes tiveram suas temaacuteticas muitas vezes apropriadas de ma-neira criacutetica pelos novos autores

Essa linha de investigaccedilatildeo torna-se importante inclusive numa tentativa de identificar como se deram os usos inventivos do termo ldquomodernordquo naquele periacuteodo a partir das obras Conduziremos nesse liame a investigaccedilatildeo da postura expressa nos textos de Catullo nessa discussatildeo e como ele foi apropriado por seus leitores criacuteticos atentando que essa discussatildeo deve ser encarada antes de tudo como uma disputa pelo tempo conduzida a partir da representaccedilatildeo do tempo ldquomodernordquo nos textos de seus autores Essa disputa pela representaccedilatildeo colocava em xeque inclusive a forma de expressatildeo textual inventando nesse pro-cesso uma praacutetica de representaccedilatildeo na medida em que criavam as for-malidades necessaacuterias para conduzi-la

O lugar de quem fala

Haacute vozes que se destrinchadas a partir de seus ecos conduzem o ouvinte a uma voz original ao momento primeiro da palavra viva agrave palavra-palavra Mas essa experiecircncia de pesquisa pela escuta nem sempre conduz invariavelmente a um lugar de origem ou a um ponto de onde se desdobraria um indiviacuteduo uacutenico possuidor indeleacutevel da sin-gularidade de sua voz Nesse momento eacute com espanto que surge a cons-tataccedilatildeo de que agraves vezes o indiviacuteduo que fala natildeo eacute o sujeito falante

Dito de outra maneira nem sempre o sujeito falante se subtrai ao corpo do indiviacuteduo de onde se fala Esse desencontro entre corpo e voz desloca de maneira incocircmoda um pesquisador humanista que vecirc no encontro entre voz e corpo o espaccedilo de autonomia uacuteltimo do sujeito em sua liberdade sobre aquilo que diz Para este uacuteltimo a voz constitui sob todos os monopoacutelios reivindicados para se ser livre o uacuteltimo reduto a ser conquistado a fortaleza indestrutiacutevel do indiviacuteduo em sua singula-ridade de forma que eacute impossiacutevel nesse ponto natildeo encontrar na fala a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em sujeito Poreacutem estranhamente esse en-contro nem sempre pode se dar Natildeo por uma forccedila exterior que se-

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo154

questra a voz do indiviacuteduo mas pelo proacuteprio indiviacuteduo que sequestra a si mesmo fazendo por um momento falar-se por outro

Michel Foucault talvez tenha sido aquele que melhor sistema-tizou a questatildeo quando se propotildee a pensar a pergunta ldquoQue importa quem falardquo Jaacute Michel de Certeau talvez tenha sido aquele que mais dramatizou a experiecircncia de confrontaccedilatildeo de um indiviacuteduo com um Outro que natildeo se diz mas que se deixa dizer Confronta-se com a ideia insuportaacutevel de encontrar na singularidade inescapaacutevel de um indi-viacuteduo que fala a voz de um Outro que natildeo estaacute193

Embora em geral escape da criacutetica moderna o estatuto de cons-truccedilatildeo de um discurso a partir de um indiviacuteduo o regime que ainda governa muitas das produccedilotildees literaacuterias contemporacircneas eacute a de identifi-caccedilatildeo daquilo que se diz (e que se escreve) sob um nome proacuteprio E aiacute se chega a raacutepidas conclusotildees como a que trata de reivindicar a pro-priedade irrefutaacutevel do sujeito sob seu objeto seja voz ou escrita Naquele identificado como artista essa linearidade se torna quase um imperativo Ora quem haacute de negar o caraacuteter de propriedade (de mono-poacutelio autoral digamos) de uma produccedilatildeo artiacutestica vinda agrave luz sob um nome proacuteprio de algueacutem que comprovadamente existe Mas essa equaccedilatildeo que a priori parece fatal nem sempre se consuma

Quando em setembro de 1918 Catullo da Paixatildeo Cearense pu-blicou o livro de poemas sertanejos Meu sertatildeo ele o construiu jaacute o dissemos a partir de uma forma incomum os poemas satildeo a transcriccedilatildeo da fala de um sertanejo O novo poeta se apropriava de um tipo de es-crita da oralidade que era identificada jaacute agravequela eacutepoca com a fala de poetas populares do nordeste do paiacutes publicada comumente nos jaacute co-nhecidos livretos de cordel O referente oral eacute supostamente transferido para o impresso ipsis litteris de forma que um leitor possa escutar na sonoridade das palavras e dos versos lidos a ldquovoz sertanejardquo

193 Tais reflexotildees foram defrontadas pelos autores em pelo menos dois livros FOUCAULT Michel O que eacute um autor In FOUCAULT Michel Ditos e Escritos Esteacutetica literatura e pintura muacutesica e cinema Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009 v III CERTEAU Michel de La Fabula Mistica siglos XVI-XVII Meacutexico Universidad Iberoamericana 2004 Penso especialmente no toacutepico 1 do capiacutetulo III ldquoLa ciecircncia nuevardquo

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 155

Nosso sinhocirc decirc bons diaa vasmincecirc meu patratildeoe a toda a sua famiacutea

Cheguei haacute cinco sumananesta grande capitaacute

Sou musgoMusgo gaitecircroE natildeo eacute pruacute me gavaacutefui o terrocirc dos violeirodos sertatildeo do Cearaacute194

Assim consumada a escrita e construiacutedo um personagem ldquoserta-nejordquo Catullo ele mesmo que viveu por um pequeno periacuteodo no sertatildeo e importante sendo identificado nominalmente como Cearense po-deria dessa forma ser reconhecido como um ldquopoeta do sertatildeordquo O ciacuter-culo se fecha de forma a natildeo restar duacutevida de que a partir de todo esse esquema traccedilado a identificaccedilatildeo do autor com seu personagem condu-zisse Catullo ao panteatildeo de um poeta diferente de todos os outros que tematizavam o sertatildeo naquele periacuteodo ele seria pela proacutepria coinci-decircncia biograacutefica o proacuteprio povo do sertatildeo Mas se em suas estrateacutegias para ser reconhecido como poeta todos os elementos postos acima natildeo foram negligenciados por Catullo eles por si natildeo explicariam o fato de o autor nunca se identificar como um ldquopopularrdquo e paradoxalmente querer ser lido como um melhor conhecedor do ldquopopularrdquo Daiacute sua in-cessante busca por ser representado como algueacutem conhecedor das ldquoboas letrasrdquo ldquoEmbora conheccedila bem a meacutetrica tanto que vou publicar um livro de poesias traduzidas prefiro estabelecer esse consoacutercio entre a melodia e a poesiardquo195

Catullo precisou negar sua posiccedilatildeo de iletrado no mesmo mo-mento em que buscava se expressar como tal Essa ambiguidade soacute pocircde se dar pela evocaccedilatildeo de um terceiro personagem entre Catullo e o popular-sertanejo que dava a autenticidade para a sua poesia e que ele representava como sendo uma nova vida a alma ldquoQuando escrevo os

194 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 39195 O Paiz 25 fev 1906 p 6

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo156

meus versos sinto que minha alma se eleva que uma nova vida se estua pelo corpordquo196

Apresentando Meu sertatildeo aos leitores de Catullo os escritores Humberto de Campos e Alberto DrsquoOliveira transmitem uma primeira impressatildeo do livro explicando o estranho fato de aparecer ali uma lin-guagem ruacutestica

Catullo natildeo quer poreacutem que os seus fructos nasccedilam no jardim ou brilhem em vasos de porcellana quer conserval-os no mato envoltos nas folhas A seiva para o fructo quem daacute eacute Deus Agrave aacutervore compete apenas dar foacuterma ao pomo Catullo tem toda inspiraccedilatildeo dos grandes e verdadeiros poetas e como eacute sertanejo vasa essa forte seiva nos ruacutes-ticos moldes que lhe fornece o sertatildeo197

A analogia com a aacutervore natildeo eacute gratuita O escritor tenta estabe-lecer um espaccedilo distinto para a recepccedilatildeo de Catullo pelo uso da ana-logia para explicar ao leitor que a poesia ali publicada natildeo era propria-mente de Catullo Este daria a forma Competia ao autor a expressatildeo de algo anterior a ele mesmo que natildeo eacute soacute dele natildeo se subtrai a ele mas que se expressa melhor nele o povo Seu texto eacute evento eacute aconteci-mento efecircmero de algo sem tempo que veio antes dele

[] poeta bravio poeta cujos versos natildeo foi preciso semear e ainda menos cultivar poeta egualmente entendido e apreciado pelos saacutebios e pelos ignorantes poeta do povo e da raccedila poeta e soacute poeta que soacute pode dar poesia como as abelhas soacute podem dar mel198

A natildeo coincidecircncia de Catullo com sua poesia residia no fato de que ele natildeo precisava ldquosemearrdquo e ldquocultivarrdquo pois era ldquopoeta do povo e da raccedilardquo de forma que dele soacute poderia se extrair tal tipo de poesia tal qual inescapavelmente a abelha soacute daacute mel Aqui cada palavra eacute revela-dora A aproximaccedilatildeo desinteressada de Catullo com uma produccedilatildeo que

196 Idem197 CAMPOS Humberto de Homenagem a Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da

Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 19198 DrsquoOLIVEIRA Alberto Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo

Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 13

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 157

leva seu nome era um fato em conformidade com o que ele era ou seja um poeta da raccedila ldquoSemearrdquo e ldquocultivarrdquo seriam trabalhos reservados para outros tipos de poetas porque na poesia de Catullo ldquo[] natildeo haacute elaboraccedilatildeo de raciociacutenio nem analyse haacute transbordamento de sensa-ccedilotildees de sentidos que viveram concretamente a vida da naturezardquo199

Esse afastamento do nome de Catullo de sua poesia era enten-dido inclusive como indissociaacutevel para a compreensatildeo da forma como os poemas eram apresentados na publicaccedilatildeo Mesmo Meu sertatildeo tra-zendo a novidade da escrita de uma suposta oralidade sertaneja no texto nessas mesmas poesias eacute necessaacuterio salientar o personagem principal natildeo podia ser identificado ao proacuteprio Catullo Por causa disso o proacuteprio Catullo apresentava-os ao seu leitor como fez com o perso-nagem Quinca-Micuaacute

Natildeo Leacutede com dor com maguaessa histoacuteria essa romanccedilade um homem feito creanccedilaesse ldquoQuinca Micuaacuterdquoalma pura nobre e santacomo uma flor redolenteque talvez tatildeo innocentenatildeo exista outra por caacute200

Os personagens satildeo revelados nos poemas e aos poucos vatildeo surgindo os donos das vozes que Catullo faz aparecer no seu texto Quinca Micuaacute o gaiteiro do sertatildeo o marrueiro o lenhador Chico Mironga o passador de gado o vaqueiro o cangaceiro e o violeiro Chico Mindello Ateacute aiacute nada incomum A diferenccedila aqui reside na pos-siacutevel e inevitaacutevel associaccedilatildeo pelo leitor do nome Catullo da Paixatildeo Cearense com os seus personagens representados no texto Uma vez que estes expressavam uma suposta ldquoalma sertanejardquo e sendo Catullo jaacute havia algum tempo conhecido como poeta sertanejo apresen tando-se

199 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p XIII

200 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Em caminho do sertatildeo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 34

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo158

em alguns momentos inclusive vestido tal e qual a coincidecircncia entre Catullo seus personagens e a ldquoalma sertanejardquo que ali expressava era inevitaacutevel para o leitor daquela eacutepoca Catullo era muitas vezes repre-sentado como sendo ele mesmo o sertanejo de suas poesias

Ao mesmo tempo em que era apresentado como um autecircntico poeta sertanejo Catullo buscava estrategicamente afastar-se de toda re-presentaccedilatildeo que pudesse identificaacute-lo tatildeo somente como um dos seus personagens No poema Em caminho do sertatildeo que apresenta o livro Meu sertatildeo Catullo dirige-se diretamente a seus leitores

Tenho lido desde Homerotudo o que se tem escriptoem versos de ouro e granitode impeccavel perfeiccedilatildeomas talvez seja ignoracircnciaaacutes vezes fico pasmadocom um verso immetrificadode um Manoel Riachatildeo201

Um poeta que faz aparecer personagens em seus livros para serem identificados como sertanejos e que ao mesmo tempo procura apresentar-se como algueacutem que lecirc Homero Ou melhor como algueacutem que natildeo pode ser confundido com seu personagem iletrado Um letrado que fica ldquopasmadordquo com o verso imetrificado do seu personagem Manoel Riachatildeo ndash que natildeo eacute e nem pode ser Catullo Este o expressa ndash e ateacute se assusta com ele mas Catullo natildeo o eacute e embora seja apresentado em seus prefaacutecios por homens distintos das letras brasileiras e portu-guesas do periacuteodo tal qual um sertanejo nega a representaccedilatildeo de um sertanejo iletrado para si

O que se potildee no centro da discussatildeo eacute o caraacuteter da invenccedilatildeo Catullo assume um tipo de invenccedilatildeo que se daacute a partir de uma traduccedilatildeo Ele eacute em uacuteltima instacircncia o indiviacuteduo que se apresenta como um esco-lhido para expressar algo anterior a ele Esse algo anterior por outro lado poderia ser tachado de ldquoantigordquo ldquovelhordquo ldquobaacuterbarordquo

201 Ibidem p 35

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 159

Monteiro Lobato por exemplo vai colocar em xeque a literatura produzida por Catullo por caracterizaacute-la como a expressatildeo de um barba-rismo da liacutengua ndash o que travaria inclusive a ascensatildeo do autor a ldquogrande poetardquo O editor dos livros de Catullo Antocircnio Castilho parecia pro-curar nesse paradoxo um irresistiacutevel caminho para apresentar o autor como um poeta distinto de todos os outros No segundo livro de poemas sertanejos de Catullo intitulado de Sertatildeo em flor o editor fez surgir duas criacuteticas agrave poesia de Catullo Cearense a primeira eacute a jaacute citada criacutetica de Monteiro Lobato sobre sua impossibilidade de ser um grande poeta escrevendo num linguajar baacuterbaro a segunda criacutetica era de Joseacute Oiticica

Catullo fez-se elle mesmo cangaceiro marroeiro lenhador pas-sador de gado adoptou o semi-dialecto sertanista com uma justeza raras vezes claudicante O sabor que nos adveacutem desse processo eacute delicioso Seu livro perderia cincoenta por cento si fora escripto em liacutengua de branco202

Embora saltasse aos olhos a discordacircncia dos dois criacuteticos acerca da poesia de Catullo o editor encontrava um caminho por onde Catullo poderia e deveria ser lido pelo leitor e arrematava dizendo ldquoCATULLO CEARENSE soacute desejava dar razatildeo aos doisrdquo203

No espaccedilo tecircnue entre aceitar a criacutetica de Lobato ndash que de resto chama atenccedilatildeo para as regras que governavam a consagraccedilatildeo de um indiviacuteduo a poeta ndash e no mesmo movimento corroborar a criacutetica elo-giosa de Oiticica que contrastava com a do primeiro o editor de Catullo via a possibilidade de mostrar ao puacuteblico leitor a novidade daquela pu-blicaccedilatildeo Para ele Catullo expressaria em suas publicaccedilotildees a vontade de ser aquilo que Lobato chama de ldquogrande poetardquo ao mesmo tempo em que via na representaccedilatildeo da fala de seus personagens que Lobato acreditava ser algo negativo um fator fundamental para a sua consa-graccedilatildeo tal como pensava Oiticica

202 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Nota preacutevia In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p XX

203 Idem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo160

Ainda eacute o editor Castilho que daraacute uma explicaccedilatildeo sobre a forma da poesia de Catullo visando agrave compreensatildeo do autor como um letrado Para o editor escrever versos num linguajar ldquobaacuterbarordquo era uma opccedilatildeo que Catullo aceitava conscientemente de bom grado como um empreacutes-timo da alma do sertanejo mesmo podendo escrever de forma mais palataacutevel para o puacuteblico leitor cioso da boa liacutengua

Embora soubesse e pudesse escrever os seus versos em portuguecircs vulgar entendeu Catullo Cearense conservar-lhes a ingenuidade nativa nas palavras rudes e simples imprevistas e encantadoras como os di-riam os sertanejos que lhe emprestaram o coraccedilatildeo e a alma204

Essa escolha era encarada pelo editor como proposital pelo autor visando a deixar o ldquocoraccedilatildeordquo e a ldquoalmardquo agrave mostra para os seus leitores Assim o que avultaria positivamente aos olhos dos leitores do autor seria ainda a sua capacidade de expressar-se em outro linguajar Isso era um sinal de que entre o linguajar e o poema escrito existia o poeta um ldquomelhor-tradutorrdquo e que este natildeo poderia ser confundido com aquele para quem ele escreve traduzindo

E qual o lugar distinto e original reservado a Catullo no campo literaacuterio no periacuteodo Essa questatildeo soacute fica mais compreensiacutevel com a leitura da apresentaccedilatildeo do segundo livro de poemas sertanejos de Catullo Sertatildeo em flor feita pelo acadecircmico Maacuterio de Alencar Nela Maacuterio explica a posiccedilatildeo de Catullo pela evocaccedilatildeo de um terceiro

Na voz de Catullo canta natildeo a pessoa delle mas o sertatildeo e o serta-nejo [] Eacute em summa a alma humana tatildeo vivamente dramatizada [] Tecircm-se a impressatildeo de que o poeta natildeo descreve por palavras senatildeo as que as proacuteprias cousas e pessoas surgem vivas em imagens da natureza205

A passagem exige uma explicaccedilatildeo Havia como mostrei ante-riormente uma aproximaccedilatildeo entre o Catullo escritor e os seus persona-

204 Ibidem205 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em

flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p XXI-XXII

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 161

gens de forma que Catullo poderia facilmente ser identificado como sendo um deles Embora essa aproximaccedilatildeo parecesse ser objeto que atestasse a autenticidade do escritor estar tatildeo perto assim de seu perso-nagem travaria sua consagraccedilatildeo como poeta ndash ser o ldquomaior poeta po-pular do Brasilrdquo como queria Lobato

A consagraccedilatildeo soacute poderia advir com um afastamento de seu nome dos de seus personagens poreacutem isso perigosamente afastaacute-lo-ia da autenticidade que era evocada tambeacutem como fator de distinccedilatildeo em sua produccedilatildeo Soacute restava entatildeo a saiacuteda que eacute a de Maacuterio de Alencar quando propotildee que aquilo que era transcrito no texto era Catullo e ao mesmo tempo natildeo era Uma ldquoalmardquo falaria em Catullo de forma que apenas ele poderia expressar da melhor maneira essa ldquoalmardquo Uma alma anterior a Catullo e que ele mesmo por ser poeta conhecedor das coisas do sertatildeo era o mais autorizado para traduzir Na apresentaccedilatildeo de Meu sertatildeo o autor reafirmava essa posiccedilatildeo

Se natildeo traduzo a contentoas queixas laacute da violauma coisa me consola ndasheacute contar tudo o que ouviE embora vilipendiadocom inoffensiacutevel ferezapertencer aacute naturezadesta terra em que nasci206

Catullo levou ateacute as uacuteltimas consequecircncias o caraacuteter representa-cional do acontecimento ldquoescreverrdquo de forma que ldquoquem escreverdquo eacute um Outro a partir do escritor O Outro (a alma) fala nele e ele eacute a corpori-ficaccedilatildeo (o autor em uacuteltima instacircncia) de um Outro que estaacute ausente Eacute a ausecircncia do outro (o sertanejo o popular) que vai possibilitar a Catullo ser reconhecido como poeta sertanejo e ele por sua vez precisava dessa ausecircncia para construir-se como tal Catullo da Paixatildeo Cearense quer ser reconhecido como um autor que expressa o Outro da melhor

206 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 28

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo162

forma Por isso ele traduz a fala do Outro Eacute na traduccedilatildeo que reside a funccedilatildeo-autor nos seus poemas sertanejos

Essa ausecircncia da fala do sertanejo fundamental para a represen-taccedilatildeo de Catullo como algueacutem que ldquoescreve porrdquo foi constantemente dramatizada no mundo letrado do periacuteodo que a via como uma perda irreparaacutevel de forma que a novidade de Catullo poeta sertanejo era a novidade de se conhecer o ldquoverdadeiro povordquo em seus livros Eacute dessa crenccedila na busca de uma ldquoverdaderdquo no texto que Catullo vai se valer para conduzir sua literatura a um ecircxito final O caraacuteter de suas poesias serta-nejas o colocava no centro de uma comunicaccedilatildeo que se fazia povoelite letrada E embora o autor nunca quisesse ser confundido com esse ldquopovordquo o momento da escrita monumentalizado por ele e por seus criacuteticos como sendo o momento performaacutetico da alma era o momento de um Catullo sertanejo que operacionalizava essa comunicaccedilatildeo

Ora a autoridade de um artefato literaacuterio comeccedila a se dar quando o indiviacuteduo assume o caraacuteter de invenccedilatildeo do objeto que estaacute escrito mesmo que esse objeto o texto expresse uma conformidade tatildeo veros-similhante que no limite apague seu autor ou se confunda com ele Nesse uacuteltimo caso seu nome parece confundir-se com as coisas que inventa ou conta Catullo assume a traduccedilatildeo como invenccedilatildeo A traduccedilatildeo que liga um ldquoque natildeo estaacuterdquo para seu leitor

Se Catullo eacute tradutor haacute de se fazer a pergunta tradutor de quecirc Aiacute reside a confusatildeo entre ldquoquem escreverdquo e ldquoquem fala por quem es-creverdquo A autoria que eacute retirada de Catullo ndash pela constataccedilatildeo de que afinal natildeo haacute invenccedilatildeo mas traduccedilatildeo de uma alma ndash logo eacute reintrodu-zida por um regime autoral outro que natildeo eacute a de ldquoquem escreverdquo mas de ldquoonde se escreverdquo E quem escreve afinal no caso de Catullo dis-corre da cidade Paixatildeo Cearense eacute apresentado como a autoridade para representar o sertanejo jaacute por ser um homem citadino O sertanejo mesmo natildeo poderia ser poeta pois o interior eacute uma fase ldquoda infacircncia do mundordquo e no interior natildeo haacute poetas Maacuterio de Alencar daacute disso a me-lhor explicaccedilatildeo em prefaacutecio ao livro de Catullo Vejamos

[] A poesia do homem moderno em condiccedilatildeo progressiva devecircra exprimir-se na linguagem da prosa que eacute a forma proacutepria da analyse Perduraria a expressatildeo symmetrica somente em raros poetas que pu-

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 163

dessem ficar alheios aacute marcha analytica e prosaica do espiacuterito humano preservando a alma elementar que foi a da infacircncia do mundo igno-rante na ilusatildeo e no sonho do mysterio A sobrevivecircncia da poesia em verso na maior parte dos que versejam procede da imitaccedilatildeo deleituosa e em si mesma artiacutestica das formas consagradas da belleza Por isso subsistem ainda os gecircneros conservados pelo talento a serviccedilo da von-tade por arte alliada aacute eloquecircncia por economia do esforccedilo e pelo re-flexo inspirador das gloacuterias antigas207

Catullo para Maacuterio de Alencar faria parte desses uacuteltimos pois seria um daqueles que apareceram ldquoem plena civilizaccedilatildeo de desencanto encantados quase selvagens extremes de sciecircncia com os sentidos vir-ginalmente cheios da sensaccedilatildeo directa e simples da vidardquo208 E Maacuterio avanccedilava articulando o autor com a cidade de forma que ldquoo bem ou mal do Catullo foi seu afastamento do sertatildeo natalrdquo pois seria soacute na cidade que certo trabalho espiritual poderia ser dar

O trabalho espiritual procede com a condiccedilatildeo da dualidade da luz e do som que natildeo existem sem o meio transmissor natildeo haacute luz no vaacutecuo natildeo haacute som sem a ondulaccedilatildeo do ar ou a vibraccedilatildeo de um corpo A voz do passado soacute ressoa para o ouvido alheio proacuteximo ou distante mas possiacutevel que a esperanccedila realizaAgora na cidade havia auditoacuterio para escutar o poeta sertanejo e curio-sidade para estimulal-o O thema encurtado em cantigas dilatou-se em poemas209

Esse trabalho ldquoespiritualrdquo do poeta era ainda mais entendido como trabalho empreendido nele (e natildeo soacute dele) quando Maacuterio de Alencar atenta que ldquoTem-se a impressatildeo de que o poeta natildeo descreve por pala-vras senatildeo que as proacuteprias cousas e pessoas surgem vivas em imagens da naturezardquo Ou em outra passagem ldquoA pessoa do poeta se desvanece [] o poeta age inconscientemente sob o domiacutenio da emoccedilatildeordquo210 Ainda

207 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p VIIndashVII

208 Ibidem p VIII209 Ibidem p XI210 Ibidem p X

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo164

ldquoNesse gecircnero e com esse talento natildeo existe continuidade de poesia senatildeo momentos de poesia que natildeo hatildeo de ser buscadosrdquo211

Maacuterio de Alencar traz agrave tona a escrita como acontecimento uacutenico como expressatildeo de uma alma anterior ao poeta que se vale dele para se comunicar Daiacute pensar ldquoImagens dessas natildeo se premeditam natildeo se rebuscam natildeo se inventam em toda uma vida de espiacuterito porque nascem por si sem esforccedilo satildeo a proacutepria linguagem de quem soacute per-cebe por imagemrdquo212

ldquoImagens [] que natildeo se inventamrdquo Eacute neste ponto que haacute uma negaccedilatildeo positiva da invenccedilatildeo no poeta Positiva pois que eacute nessa ne-gaccedilatildeo da invenccedilatildeo que possibilita a construccedilatildeo de um espaccedilo de tra-duccedilatildeo autorizada A inspiraccedilatildeo eacute expressatildeo de algo que jaacute existe A es-crita eacute o momento reservado para essa expressatildeo e Catullo eacute nesse momento uacutenico a alma ldquoCatullo Cearense eacute o vate explosivo emo-cional em quem a alma do sertatildeo e da raccedila brasileira e sua mesticcedilagem faz maravilhosa erupccedilatildeo de sentimentalismo e de sonoridaderdquo213

O escritor na esteira disso eacute o gecircnio autorizado a expressar-se por ser oriundo do sertatildeo embora natildeo seja um sertanejo Essa asserccedilatildeo foi necessaacuteria para estabelecer o diferencial de Catullo com outras pro-duccedilotildees do periacuteodo que se propunham a fazer ver o povo Para fazer essa distinccedilatildeo Catullo natildeo poderia ser apresentado como um coletador um observador um intelectual do folclore Sua autoridade natildeo advinha de uma possiacutevel autoridade intelectual socialmente referendada por uma pesquisa Ele natildeo observa tal qual Siacutelvio Romero Melo Moraes Maacuterio de Andrade ou Afonso Arinos Ele na escrita eacute o popular sertanejo Embora fora desse momento da escrita natildeo o seja E eacute por esse ldquonatildeo ser sertanejordquo que pode ser chamado de poeta Porque tal como afirma Maacuterio de Alencar vivendo no sertatildeo Catullo natildeo seria poeta O poeta soacute existe na cidade Paixatildeo Cearense eacute colocado num espaccedilo hieraacuter-quico onde eacute menos do que um intelectual e mais do que um sertanejo

211 Ibidem p XI212 Ibidem p XIII213 Opiniatildeo do intelectual Faacutebio Luz na Revista das Revistas em 29 de novembro de 1919

em que o editor Castilho fez aparecer em publicaccedilatildeo de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illuminada Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 282 (1ordf ediccedilatildeo em 1924)

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 165

Assertiva esta que fica entendida quando apresentando em versos seu livro Meu sertatildeo ao leitor Catullo dispara

Quizera eu ser ignorantecomo um cantor sertanejoEra esse o me desejoNatildeo ter nenhuma instrucccedilatildeoMas ter o dom do improvisopara dizer de momentoas dores do pensamento e as maguas do coraccedilatildeo214

Natildeo ser um sertanejo dava ainda mais a impressatildeo (de resto ins-tigada por Catullo) de que seus poemas natildeo sendo invenccedilotildees eram a expressatildeo de um Outro E ele por diversas vezes buscou afastar-se de sua identificaccedilatildeo com um sertanejo exatamente como maneira de se afirmar como poeta

Eu sou o maior inteacuterprete do sertatildeoO meu grande meacuterito estaacute nisso em natildeo conhecer o sertatildeo e descrevecirc-lo tatildeo admiravelmentePor isso eacute que eu me considero o maior inteacuterprete do sertatildeo do Brasil 215

Nesse movimento fazia representaccedilotildees de si por meio de compa-raccedilotildees com outros letrados que tematizaram o sertatildeo

[] Naturalmente vocecirc vai me falar de Euclides da Cunha Mas Euclides foi um estudioso um cientista O sertatildeo estaacute em sua obra como uma rosa num livro de botacircnica E a alma do povo E o povo vivendo O povo como ele eacute e natildeo como a gente quer que ele seja Abra um livro meu laacute estaacute o povo cantando e sofrendo o sertanejo vivo dentro do seu ldquohabitatrdquo216

214 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Em caminho do Sertatildeo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 26

215 Em entrevista a Joel Silveira In BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os ho-mens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 192

216 Idem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo166

Aqui a citaccedilatildeo eacute expliacutecita Catullo eacute a expressatildeo da alma ele eacute o ldquointeacuterpreterdquo do sertatildeo Mas como interpretar algo que natildeo conhece O autor tem sua proacutepria resposta a alma Se Euclides conheceu o sertatildeo viu com os proacuteprios olhos Catullo deixa falar em si a alma do povo Seu texto natildeo eacute soacute representaccedilatildeo de um ausente eacute tambeacutem a apresen-taccedilatildeo da representaccedilatildeo em si eacute a proacutepria expressatildeo da coisa que soacute eacute possiacutevel porque Catullo natildeo inventa ele a incorpora em seu momento de escrita

A escolha pelo caminho que melhor levava a uma aceitaccedilatildeo pas-sava inclusive pela construccedilatildeo de poemas que visavam por meio de metaacuteforas a conduzir e regrar a leitura do impresso de forma a compre-ender quem eacute aquele que escreve de construir no texto uma represen-taccedilatildeo de si distinta da de seus personagens No texto de O sonho que eacute uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo do livro feita por Catullo ele se dirige a outros poetas para contar-lhes um sonho que tivera

Poetas Vou contar-vos um sonho em que nrsquoum surto espiritual me transportei ao sertatildeo onde nasci A noite era de pleniluacutenio Bebendo os misteacuterios da lua pelas matildeos da saudade dos 25 anos de ausecircncia alli no regaccedilo dos Mattos indomesticados entrei a cantar os versos que escrevi a essa Virgem Maria dos trovadores Sentia-me opulento mil vezes mi-lionaacuterio porque me encontrava outra vez no coraccedilatildeo do meu palco de folhas E cantava ldquondash Natildeo haacute oacute gente oh natildeo luar como esse do sertatildeordquo ndash quando um velho jequitibaacute onde outrrsquoora me encostava para conversar com os paacutessaros errantes comeccedilou a falar assim lsquoQuem te deu o direito de violar o silecircncio desta noite misericordiosa Que vens aqui fazer nestas soledades onde depois de teres sido confi-dente de nossos melindres jaacute fostes amaldiccediloados pelos nossos cora-ccedilotildees Natildeo nos pertences mais O teu estro estaacute eivado de civilizaccedilatildeo [] Fita a lua O seu brial inturvou-se Como agradercer-te as estro-phes que lhe fizeste se as offerecestes aacute maldita civilizaccedilatildeo217

Catullo construiacutea sua proacutepria representaccedilatildeo de forma a descons-truir uma outra que o via como um proacuteprio homem da natureza receita esta que lhe retiraria a identificaccedilatildeo de poeta A coincidecircncia de seu

217 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p 1

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 167

nome com a de seus personagens se esvaziaria Natildeo foi portanto gra-tuito o aparecimento de uma explicaccedilatildeo no comeccedilo do livro Era a ten-tativa de regrar uma leitura que Catullo sabia poderia enveredar pelos caminhos da criacutetica produzida por Monteiro Lobato Sem o conheci-mento dessa criacutetica seria incompreensiacutevel entender como algueacutem que se avultava como poeta sertanejo introduzia seu livro exatamente com a representaccedilatildeo oposta de si ou seja como algueacutem que era odiado pela natureza do sertatildeo representado no texto pela fala de um velho jequitibaacute

A manhatilde vae despertar e eacute conveniente que ella natildeo te encontre aqui sob a proteccedilatildeo dos meus ramosA alvorada do sertatildeo te odeiaNunca te lembrar-te della que tanto te inspirava Ella estaacute enciumada Cantaste a noite de luar e esqueceste-a Vae miseraacutevel218

Essa representaccedilatildeo visava a afastar o nome de Catullo da identi-ficaccedilatildeo como um sertanejo ndash que lembremos novamente de acordo com Maacuterio de Alencar era uma identidade que natildeo faria do autor um poeta No entanto se de um lado o autor buscava afastar-se do sertatildeo por outro a cidade ainda era encarada como sendo arredia a seus po-emas O ciacuterculo se fecha Assim ainda em O sonho o velho jequitibaacute fala da representaccedilatildeo de Catullo na cidade

Porque natildeo nos offerecestes o livro que publicaste como era do teu dever e gratidatildeo Os poetas e os literatos de laacute te consideram um reacuteles modinheiro um capadoacutecio de insiacutepidas serenatas Fomos vingadosSe estivesses entre noacutes seria um sabiaacute honoraacuterio e o teu livro jaacute teria sido laureado pelos applausos de toda a Natureza219

Todo esse contorcionismo tornava-se necessaacuterio antes de tudo para fazer frente agraves criacuteticas acerca de sua representaccedilatildeo do sertatildeo e do sertanejo Essa receita era tanto mais importante porque avultavam

218 Ibidem p 3219 Ibidem p 4

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo168

no mesmo periacuteodo outras obras que buscavam uma representaccedilatildeo ve-rossimilhante do sertatildeo E essa verossimilhanccedila era imprescindiacutevel uma vez que natildeo se buscava nessas obras com temaacuteticas sertanejas apenas a invenccedilatildeo deliberada do autor mas por uma conveniecircncia histoacuterica a necessidade de conhecer o sertatildeo como forma de entender a naccedilatildeo Esse tema era intransponiacutevel naqueles idos e tornou-se in-clusive algo necessaacuterio para se definir aquilo entendido no rol de ldquoli-teratura nacionalrdquo

Assim a recepccedilatildeo positiva das primeiras obras contendo os po-emas sertanejos de Catullo reafirmou uma predileccedilatildeo por temaacuteticas sertanejas no universo de leitores do periacuteodo Jaacute em 1921 outra publi-caccedilatildeo foi esgotada em sua primeira ediccedilatildeo rapidamente Tratava-se da obra Cantadores a primeira publicada pelo folclorista do Cearaacute Leonardo Mota que veio agrave luz sob o selo da livraria Castilho a mesma de Catullo Cearense

Entusiasmado com o sucesso de vendas ndash alavancado tambeacutem pela polecircmica causada em torno da representaccedilatildeo de um linguajar serta-nejo na obra de Catullo ndash o editor Castilho apostou em novas publicaccedilotildees cujo tema ldquosertatildeordquo fosse o mote Leonardo Mota por seu lado vinha do Cearaacute trazendo na bagagem os resultados de suas pesquisas sobre os ldquocantadores do norterdquo Castilho seguindo a mesma foacutermula usada nas publicaccedilotildees dos livros do autor de Meu sertatildeo fez aparecer vaacuterias opi-niotildees abalizadas no texto de Mota a fim de apresentaacute-lo ao grande puacute-blico O resultado foi uma primeira ediccedilatildeo com dez mil exemplares esgo-tados em pouco tempo que confirmaram o tino de Antocircnio Castilho

Agrave diferenccedila dos livros de Catullo Mota era apresentado como um autor que escrevia o que vira e vivera O recurso agrave alma desaparece do discurso e o recurso da autoacutepsia eacute evocado como o argumento de autoridade Mas ainda aqui era traccedilada uma diferenciaccedilatildeo com outras produccedilotildees proacuteximas agraves dele De Afonso Arinos a diferenccedila eacute essa pro-ximidade que fazia Mota ver melhor do que ningueacutem

Leonardo Motta eacute o confidente da grande alma poeacutetica do sertanejo cea-rense Elle natildeo eacute um estheta como Arinos que amava essas cousas aacute dis-tacircncia que tinha todos os enthusiasmos possiacuteveis pelas nossas tradiccedilotildees e pelas nossas lendas mas natildeo passava de um boulevardier incorrigiacutevel

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 169

[]Leonardo Motta natildeo Tudo o que elle sabe eacute porque viu e porque viveu porque se compraz nisso com um carinho que chega ao sacrifico de si mesmo porque esteve ao lado de nosso homem ruacutestico intimamente natildeo como um viajante apressado mas como um amigo um camarada um irmatildeo misturado com elle integralizado no seu pensamento e nos seus sentimentos mais iacutentimos220

Se essa aproximaccedilatildeo iacutentima com o sertanejo fazia Leonardo Mota ser considerado autoridade para representar o sertatildeo no mundo letrado a falta dessa aproximaccedilatildeo resultava naqueles que a natildeo tinham em constantes recursos a exageros O escritor e criacutetico Joseacute Ameacuterico de Almeida faz dessa comparaccedilatildeo com outros escritores do sertatildeo o seu paracircmetro para representar Leonardo Mota Nela aparece o inevitaacutevel nome de Catullo

Juvenal Galeno Hermiacutenio Castello Branco e Catullo Cearense cada qual com o seu feitio afinam entre noacutes as suas lyras pelas trovas do sertatildeo ndash o uacuteltimo com um deleitoso poder de imagens Mas todos elles incidem em exaggeros que prejudicam aacutes mais das vezes a naturali-dade de suas composiccedilotildees ora elevando a forma acima da meacutedia intel-lectual dos cantadores ora deprimindo-a a uma algaravia com preoccu-paccedilotildees dialectaes extranhas aos modismos populares221

As constantes lutas acerca da melhor forma de representar o homem do sertatildeo faziam com que diversas produccedilotildees buscassem cada qual mobilizando suas respectivas estrateacutegias a autoridade final para expressar o sertatildeo e o sertanejo em seus textos Ademais essa tarefa mesclava-se com um caraacuteter poliacutetico de conhecer melhor o sertatildeo para melhor conhecer a naccedilatildeo Se seguramente essa agenda natildeo esteve tatildeo claramente expressa nas primeiras produccedilotildees sertanejas de Catullo natildeo eacute possiacutevel desdenhar que o sucesso (e a quantidade) de temaacuteticas serta-

220 Opiniatildeo do jornalista Annibal Fernandes que o editor Castilho fez incluir ao final do livro ldquoCantadoresrdquo In MOTTA Leonardo Cantadores poesia e linguagem do sertatildeo cearense Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 391

221 Opiniatildeo do escritor Joseacute Ameacuterico de Almeida que o editor Castilho fez incluir ao final do livro ldquoCantadoresrdquo In MOTTA Leonardo Cantadores poesia e linguagem do sertatildeo cearense Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 395

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo170

nejas na literatura do periacuteodo fosse resultado dessa agenda essencial-mente poliacutetica e que essa mesma agenda tornou-se absolutamente um tema incontornaacutevel para aqueles que buscavam para as suas respec-tivas produccedilotildees o status de nacional que lhes garantisse um lugar na literatura do periacuteodo Afinal a construccedilatildeo da literatura brasileira se pautou historicamente pela regra de que ela deveria ser ldquobrasileira antes de ser literaturardquo Tal eacute o lugar de Catullo

A grande tensatildeo que perpassa essas produccedilotildees eacute a incocircmoda questatildeo de como representar melhor o sertatildeo Se por um lado a voz autorizada da ciecircncia era vista como uma entre as tradutoras mais aba-lizadas desse empreendimento alguns nomes da literatura que desde o seacuteculo XIX construiacuteam esse status buscaram suas proacuteprias estrateacutegias de construccedilatildeo de autoridade

Participando desse lugar de produccedilatildeo textual Catullo da Paixatildeo Cearense evocou a alma como um terceiro elemento entre o poeta e a coisa e buscou a partir dessa tensatildeo a consolidaccedilatildeo de seu nome dentro do panteatildeo da literatura do periacuteodo Esse espaccedilo soacute pocircde ser buscado a partir de um diaacutelogo tenso com outras representaccedilotildees que tambeacutem se faziam no periacuteodo e que faziam elas mesmas suas estrateacute-gias de forma a dar verossimilhanccedila ao que se contava nos livros Tais lutas de representaccedilotildees satildeo perceptiacuteveis nas publicaccedilotildees produzidas e soacute podem ser compreendidas se levado em conta o caraacuteter muacuteltiplo e imprevisiacutevel das escolhas levadas pelos agentes que fizeram o espaccedilo de produccedilatildeo textual da eacutepoca

Esse consoacutercio entre poeta e alma na obra de Catullo teve seu lugar central em 1928 com a publicaccedilatildeo do volume de poesias alvissa-reiramente intitulado Alma do sertatildeo pela livraria editora Leite Ribeiro Seu proprietaacuterio associado a Mauriacutelio Quaresma irmatildeo do antigo editor de Catullo Pedro da Silva Quaresma transformou a editora numa potecircncia a ponto de ser citada em publicaccedilotildees estrangeiras como uma das mais belas do Rio de Janeiro aleacutem de ser frequentada por grandes intelectuais que iam agrave sua loja procurar desde traduccedilotildees de po-etas estrangeiros a jornais

Catullo da Paixatildeo Cearense tornou-se frequentador assiacuteduo de sua casa e teve seu Alma do sertatildeo publicado pela editora e prefaciado

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 171

pelo escritor Maacuterio Joseacute de Almeida A publicaccedilatildeo divide-se em duas partes uma com desafios sertanejos onde o autor repetia a foacutermula consagrada em seus livros anteriores qual seja a de reproduzir a fala sertaneja em poemas sertanejos e outra que constava de reflexotildees em prosa acerca da mulher em julgamentos de personagens de diversos tipos tais como o operaacuterio o anarquista e o mineiro

Maacuterio Joseacute de Almeida escreveu o prefaacutecio sob o tiacutetulo de ldquoAlgumas notas sobre o occupante da cadeira quarenta-e-umrdquo numa clara alusatildeo agrave Academia Brasileira de Letras que por sua vez possuiacutea quarenta cadeiras de ldquoimortaisrdquo da literatura do paiacutes Apresentando-o como o ocupante de tal cadeira de nuacutemero 41 e como um entre aqueles imortais Maacuterio fala dos versos de Catullo ldquoNo verso Catullo tem a expressatildeo que eacute um ldquotrouvaillerdquo da sua singulariacutessima inteligecircncia e uma interpretaccedilatildeo do sentimento humano que ainda natildeo encontrei em outros poetasrdquo222

ldquoInterpretaccedilatildeo do sentimento humanordquo Eacute novamente como tra-dutor que Catullo eacute apresentado Natildeo que isso lhe retirasse a geniali-dade que aqui estaacute ligada a um ldquotrouvaillerdquo um encontro ndash requisito para a expressatildeo traduzida do sertanejo em seus versos no texto Maacuterio avanccedila na explicaccedilatildeo de sua apresentaccedilatildeo-representaccedilatildeo de Catullo a partir dos versos de seus Desafios ldquo[] Estes Desafios satildeo feitos no seu rythmo predilecto Alguns satildeo variantes do folk-lore e ganham brilho na officina de Catullo como as anedoctas tambeacutem produccedilotildees do povo revivem na arte de contar de Humberto de Camposrdquo223

Representaccedilatildeo que garante a Catullo seu reconhecimento como poeta a partir da expressatildeo de um sertanejo que ele traduz De um en-contro que o torna genial por natildeo vir de um trabalho de ldquovirtude dos prosadores que eacute a paciecircncia de Renan de Flaubert de Anatole de Francerdquo mas que por essa falta mesma de virtude transformaacute-lo-ia afinal em algueacutem com uma ldquoingenuidade genialrdquo224

222 ALMEIDA Maacuterio Joseacute de Algumas notas sobre o occupante da cadeira quarenta-e-um In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928 p 21

223 Idem p 21224 Ibidem p 21-23

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo172

Aqui cabe uma reflexatildeo O exerciacutecio da traduccedilatildeo eacute muitas vezes entendido como uma impossibilidade de partida A necessidade de ldquolevar o leitor ao autorrdquo e ao contraacuterio ldquolevar o autor ao leitorrdquo com-preenderia uma aporia inescapaacutevel onde algo sempre se perderia nessa transiccedilatildeo Traduzir aiacute seria servir a dois mestres o estrangeiro em sua obra e o leitor em seu desejo de apropriaccedilatildeo em que o desejo de apro-priaccedilatildeo seria ele mesmo configurado numa traiccedilatildeo agrave obra

No entanto eacute nessa proacutepria incapacidade de traduzir de maneira ldquocorretardquo o escrito ou a fala de um outro que o papel do tradutor dessa figura num lugar equidistante entre o ldquoautor-primeirordquo e o leitor eacute (ou deveria ser) lido para o filoacutesofo Paul Ricouer como um trabalho de criaccedilatildeo A partir daiacute o filoacutesofo sugere a saiacuteda pelo abandono dos dois polos traduziacutevel versus intraduziacutevel e uma aceitaccedilatildeo do luto que resul-taria num ganho ldquo[] o sonho da traduccedilatildeo perfeita equivale ao desejo de um ganho para a traduccedilatildeo de um ganho que seria sem perda Eacute jus-tamente desse ganho sem perda que eacute preciso fazer o luto ateacute a acei-taccedilatildeo da diferenccedila incontornaacutevel do proacuteprio e do estrangeirordquo225

Essa aceitaccedilatildeo do luto estaacute intrinsecamente ligada penso agraves es-trateacutegias empreendidas por Catullo na construccedilatildeo de um espaccedilo distinto para sua autoridade Distinto pois que abriu um caminho possiacutevel no rol de escolhas postas pelo campo literaacuterio brasileiro daqueles tempos O ganho na tarefa de traduccedilatildeo da liacutengua sertaneja por Catullo eacute exata-mente a possibilidade de criaccedilatildeo que reside na representaccedilatildeo do serta-nejo e do seu linguajar exatamente no momento em que o cria

A representaccedilatildeo de um poeta distante do sertanejo soacute pode ser entendida a partir da proacutepria representaccedilatildeo que Catullo cria no texto apresentado como uma espeacutecie de reacutegua medidora diante do seu autor Eacute pela representaccedilatildeo do sertanejo produzido por Catullo que o leitor pode medir a distacircncia daquele que escreve diante daquele que repre-senta e soacute aiacute como o queria entendecirc-lo como um natildeo sertanejo

O texto de Catullo eacute a representaccedilatildeo em suas duas dimensotildees eacute transitiva pois que representa algo (o sertanejo) e reflexiva pois que se

225 RICOUER Paul Sobre a traduccedilatildeo Belo Horizonte UFMG 2011 p 29

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 173

apresenta representando alguma coisa (o texto apresenta o proacuteprio ser-tanejo) Coloca-se como uma tentativa de traduccedilatildeo e criaccedilatildeo Em Catullo a criaccedilatildeo daacute um sentido agrave representaccedilatildeo e natildeo soacute a mostra tal como eacute a coisa que busca representar ou como bem salienta Jacques Le Brun ldquoO texto eacute o sinal de um acontecimento que ele natildeo eacute capaz de dizer Ele apenas diz que um acontecimento teve lugar descreve o que foi feito desse acontecimento como um sentido cristalizou nele []rdquo226

A perspicaacutecia em apresentar Catullo como algueacutem por onde um outro fala eacute a estrateacutegia final nesse jogo de representaccedilotildees que cria aquele que escreve de forma a entregar por meio de diversos artifiacutecios de construccedilatildeo de autoridade a condiccedilatildeo de poeta a este uacuteltimo

Modernos e velhos

O jornal Correio Paulistano em iniacutecios de marccedilo de 1925 vinha em sua sessatildeo de ldquoChronica Socialrdquo assinada por Helios (pseudocircnimo do poeta Menotti Del Pichia) com um tiacutetulo provocador Pau Neles Tratava-se de um comentaacuterio de artigo escrito por Tristatildeo de Athayde em jornal carioca A partir dele Helios fazia um balanccedilo da histoacuteria da literatura brasileira e uma criacutetica agraves novas produccedilotildees literaacuterias

Ateacute hoje nossa arte natildeo tem passado de um reflexo Somos cultural-mente ldquosatellitesrdquo Natildeo temos luz proacutepria Sentimos e creamos por pura repercussatildeoTirante Euclydes da Cunha ou mais algum outro illuminado todo o resto que se fez reproduziu o que veio a bordo de navio de mistura com viacutecios gaulezes e modas das costureiras da extranja E o que eacute peor o ldquomodernismordquo ndash cubismo futurismo dadaiacutesmo etc tecircm a mesma origem natildeo passando afinal de decalques forasteiros servilmente co-piados por alguns espiacuteritos improvisadamente originaes doidinhos para fazerem furos227

226 LE BRUN Jacques Da criacutetica textual agrave leitura do texto Projeto Histoacuteria Satildeo Paulo n 17 p 48 nov 1990

227 Correio Paulistano 6 mar 1925 p 3

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo174

E fazendo uma autocriacutetica de sua proacutepria posiccedilatildeo jaacute que se con-siderava um ldquomodernordquo continuava

A uacutenica coisa uacutetil que se deve aproveitar com o terremoto esthetico do ldquofuturismordquo que sempre defendi eacute uma reacccedilatildeo decisiva contra a cul-tura de importaccedilatildeo para um saacutebio retorno aacute infacircncia esthetica nacional no bom propoacutesito de vermos si no meio desses cacos de artificialidade nos encontraremos a noacutes mesmos228

Conquanto natildeo visse ainda entre os ldquonovosrdquo uma produccedilatildeo ldquobra-sileirardquo Helios se perguntava provocativamente sobre o futuro evo-cando um autor consagrado naquele passado recente como um exemplo de produccedilatildeo autecircntica Enquanto isso disparava contra recentes com-panheiros de busca pelo ldquomodernordquo

Quando noacutes seremos noacutes Quando nos abrasileiraremos Nossa or-chestra mental parece obedecer a uma batuta parisiense O Sr Graccedila Aranha empresaacuterio da uacuteltima temporada literaacuteria nacional trouxe de Paris suas partituras uma irrisatildeoFalam mal de Catullo da Paixatildeo Cearense Esse eacute pelo menos um Homero da raccedila Mil vezes sua rude e agreste poesia que as exque-sitices amaneiradas e exoacuteticas dos escravos do Sr Appolinaire do Sr Defunnto Rimbaud e do meu querido CendrarsTristatildeo de Athayde eacute um valente Quero ler mais artigos como esse para ter a alegria de registrar que haacute ainda em meio da nossa anemia cerebral gente que ndash fora do picadeiro organizado pelo Sr Graccedila e fora do amphitheatro grego do Sr Coelho Netto - enxerga as cousas com olhos puros para conduzir as geraccedilotildees literaacuterias do Brasil ao caminho da sinceridade da beleza e da originalidade real229

A posiccedilatildeo de Menotti com relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo literaacuteria de sua eacutepoca eacute pelo menos provocadora Se por um lado enaltece o ldquofutu-rismordquo por outro destrata a postura de Graccedila Aranha um companheiro que inclusive organizou a Semana de Arte Moderna de 1922 da qual participara Menotti ndash e que jaacute naquele momento incompatibilizava-se

228 Idem229 Ibidem

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com muitos dos participantes da Semana Critica certos estrangeirismos modernos ainda assim natildeo deixa de enxergar no consagrado Coelho Netto a imagem da nossa ldquoanemia cerebralrdquo Embora acredite na con-duccedilatildeo de novas ldquogeraccedilotildees literaacuteriasrdquo ao ldquocaminho da sinceridade da beleza e da originalidaderdquo observa em Catullo da Paixatildeo Cearense um siacutembolo jaacute existente dessa originalidade porvir identificando-o como um ldquoHomero da raccedilardquo

A presenccedila de Catullo no excerto natildeo eacute gratuita Catullo era um artista consagrado pela elite letrada paulista que via em seus poemas sertanejos a expressatildeo de uma originalidade popular Mas aqui o que salta aos olhos eacute o conteuacutedo ambiacuteguo de uma prospectiva acerca da li-teratura Prospectiva que mescla num discurso que visa agrave mudanccedila tanto elementos considerados antigos quanto modernos de forma a compor aquilo que Menotti considerava vaacutelido como ideal para ser cha-mado nas palavras do autor de construccedilotildees com valor de ldquooriginali-dade realrdquo

Entretanto haacute de se salientar a opiniatildeo de Menotti e seu olhar sobre a produccedilatildeo contemporacircnea natildeo devem ser entendidos como uma voz uniacutessona dos participantes da Semana de 1922 Maacuterio de Andrade em uma criacutetica aguda escrita no Diaacuterio Nacional em 1931 dispara contra uma pretensatildeo aventada por Menotti de considerar a produccedilatildeo de Catullo como expressatildeo de um tipo ldquopopularrdquo Maacuterio argumenta rai-vosamente que o que poetas como

[] um Catullo Cearense realizam natildeo eacute nem de nenhuma maneira se podem comparar com a poesia popular Eacute arte arte da mais livre tatildeo esteticamente livre como qualquer Parnasianismo O que eles tiram do povo eacute apenas o elemento de curiosidade de prazer Na verdade eles estatildeo fazendo arte contra o povo arte burguesa em que os elementos po-pulares se tornam motivos de divertimento e natildeo de comoccedilatildeo Enfim o popularesco de que eles se servem eacute um exotismo romacircntico laccedilo de fita enfeite para uma obra-de-arte visceralmente individualista e que como individualista pode ser magniacutefica E este eacute de fato o caso de Catullo Cearense que nos seus primeiros livros chegou a ser magniacutefico230

230 ANDRADE Maacuterio de Taacutexi e crocircnicas no Diaacuterio Nacional Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1976 p 51

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O que se depreende dos trechos acima citados eacute que para uma compreensatildeo do campo literaacuterio brasileiro dos anos 1920 e 1930 tor-na-se imperativa uma investigaccedilatildeo ainda sobre a operacionalizaccedilatildeo do termo ldquopopularrdquo no seio de uma nova concepccedilatildeo de literatura Se alguns aspectos de busca pela originalidade na produccedilatildeo cultural do periacuteodo podem ser definidos por uma apologia do novo ndash termo que se confunde muitas vezes com original mas que natildeo diz a mesma coisa ndash esse novo tematizado dentro de certas produccedilotildees era constituiacutedo natildeo soacute de ele-mentos formais de velhas produccedilotildees mas tambeacutem da discussatildeo reno-vada de velhas temaacuteticas entre as quais aquilo que assegurava o reco-nhecimento de Catullo como ldquoHomero da raccedilardquo qual seja certa noccedilatildeo de ldquocultura popularrdquo

Se os projetos modernistas se propunham a renovar e criticar aquilo entendido como velho e ultrapassado esses mesmos velhos e ultrapassados eram visados como totalmente incontornaacuteveis para se buscar uma originalidade que como ainda natildeo existia como fato artiacutes-tico (diagnoacutestico de Menotti) deveria ser buscado como projeto cul-tural (ideal de Maacuterio) Daiacute buscar naquilo que se entendia vir do ldquopovordquo a expressatildeo verdadeira da ldquoculturardquo Eacute nesse espaccedilo de busca por uma nova expressatildeo que eacute renovada a discussatildeo do ldquopopularrdquo

Entretanto se artistas considerados ldquovelhosrdquo nutriam-se de seu reconhecimento como ldquopopularesrdquo os termos para se definir ldquopo-pularrdquo foram reavaliados Catullo sendo um dos consagrados sob esse termo seria objeto de discussotildees e reflexotildees acaloradas no seio dessa renovaccedilatildeo

Ser ldquomodernordquo autorizava na eacutepoca distintas representaccedilotildees O jornal O Paiz de fins de 1920 vinha com uma chamada em letras grandes de um conselho ldquoMonsenhor Dubois arcebispo de Paris con-cita o elemento feminino a abster-se das modas e dansas ditadas pelo modernismordquo231 Aqui o modernismo eacute tomado em negativo mas po-deria ser tambeacutem um adjetivo positivo quando o objetivo era vender um produto ldquoAo 1ordm Barateiro a casa que daacute sempre a nota em artigos finos

231 O Paiz 20 dez 1920

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 177

do mais alto luxo e maior modernismo parisienserdquo232 E se havia em-polgados com as novidades havia aqueles que desdenhavam de alguma mudanccedila vendo apenas um tempo igual aos outros A escritora Branca Colaccedilo assim pensava

Tambeacutem a mim [] me natildeo empolga o modernismoNatildeo quer isto dizer que natildeo aprove certos modernismos se me parecem sensatos O nosso tempo tem senotildees sem duacutevida mas tambeacutem tem vantagensEste conceito eacute profundo Se lhe acrescentarmos que a maior parte das qualidades e dos defeitos de uma eacutepoca depende da subjectividade da pessoa que os aprecia chegamos aacute conclusatildeo transcendente de que es-tamos num tempo como outro qualquer233

Por seu lado a renovaccedilatildeo das artes brasileiras ndash postura assumida tanto por Menotti quanto por Maacuterio ndash recolocava no caminho da dis-cussatildeo sobre a literatura moderna um uso especiacutefico do termo ldquopo-pularrdquo Na produccedilatildeo literaacuteria que antecedeu a movimentaccedilatildeo de 22 a denominada ldquoregionalistardquo era de longe a que possuiacutea mais know-how entre os letrados

Como jaacute analisamos ainda entre os novos modernistas paulistas o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense era saudado com entusiasmo e de fato ele era aquele que mais controveacutersia iria causar pois que se de um lado Monteiro Lobato Valdomiro Silveira Corneacutelio Pires (autores paulistas tambeacutem reconhecidos como ldquoregionalistasrdquo) podiam facil-mente ser definidos como letrados que tematizavam o interior por outro a figura ambiacutegua de Catullo soava bem mais incocircmoda e de di-fiacutecil qualificaccedilatildeo entre os ldquomodernistasrdquo Isso porque o autor era tido como um sertanejo e a proacutepria postura de Catullo apresentando-se ves-tido de marrueiro fazia com que essa representaccedilatildeo ganhasse forccedila Poreacutem seu ingresso em temas natildeo sertanejos representados em seus

232 O Paiz 7 ago 1921 233 Trecho do folhetim ldquoCartas aacute Maroquinhardquo da lisbonense Branca de Gonta Colaccedilo

publicada em partes no jornal O Paiz em 1921 O trecho exposto eacute de 1ordm de outubro daquele ano

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uacuteltimos livros e principalmente seus escritos natildeo sertanejos ao sabor de parnasianos contendo palavras dificiacutelimas de compreensatildeo mesmo para um letrado da eacutepoca desautorizavam-no a ser compreendido como um produto de ldquooriginalidade realrdquo ou como Maacuterio de Andrade frisava Catullo se parecia mais com um ldquoexotismo romacircnticordquo

A grande questatildeo que se colocou foi o que fazer com uma pro-duccedilatildeo ldquoregionalistardquo jaacute consagrada Desqualificaacute-la somente levaria agrave negaccedilatildeo de partida da necessidade de se voltar para uma produccedilatildeo brasileira que tematizava o interior pois o interior era tido como espaccedilo de conhecimento essencial para se produzir uma ldquoliteratura nacionalrdquo tambeacutem pelos novos artistas Natildeo foi agrave toa que a figura de Euclides da Cunha foi constantemente evocada como membro seleto da ldquogeraccedilatildeo preacute-modernistardquo

A produccedilatildeo de Catullo com temas sertanejos eacute vasta Meu sertatildeo (1918) Sertatildeo em flor (1919) Poemas bravios (1921) Mata iluminada (1924) O evangelho das aves (1927) Alma do sertatildeo (1928) Faacutebulas e alegorias (1928) e Meu Brasil (1928) aleacutem de alguns musicais para o teatro Mas no meio dessa bibliografia haacute de se destacar um pequeno livro de poemas dedicados aos pescadores com o tiacutetulo de Os pesca-dores editado pela Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores do Brasil em 1923 Escrito em homenagem ao Dr Paulo Vianna presidente da Confederaccedilatildeo nesse livro ao deixar de lado a temaacutetica sertaneja que o consagrou Catullo faz algumas observaccedilotildees sobre a publicaccedilatildeo diri-gindo-se no prefaacutecio ao comandante do barco ldquoRepuacuteblicardquo o Filoacute

Aqui estaacute o Poema que vocecirc e seus collegas me pediram que escre-vesse Penso eu que estas paacuteginas satildeo o documento fiel de tudo o que ouvi de sua bocca [] Como veraacute este Poema natildeo eacute uma fantasia Os arrebatamentos de enthusiasmo que explodem de quando em quando natildeo prejudicam a veracidade da documentaccedilatildeo234

Vou me ater a um termo que reputo fundamental para avanccedilar na compreensatildeo da relaccedilatildeo de Catullo com a(s) criacutetica(s) ldquomodernista(s)rdquo

234 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Aos pescadores Rio de Janeiro Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 1923 p 11-12

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 179

documento Na passagem anterior o caraacuteter verossiacutemil do poema apre-sentado eacute atestado por um ldquoouvi de sua boccardquo mdash no caso da boca de um pescador Essa condiccedilatildeo de ouvinte visava a transmitir para seu leitor uma sensaccedilatildeo de veracidade Aqui o ldquosentirrdquo evocado por Catullo nos seus poemas sertanejos eacute substituiacutedo por um ldquoouvirrdquo Em ambos os casos buscava-se um objetivo comum que eacute a fidelidade com um real que existe fora do texto O texto eacute aqui tambeacutem como nos poemas serta-nejos ldquodocumento fielrdquo e por isso Catullo alerta ao seu leitor que seu ldquoenthusiasmordquo natildeo deveria prejudicar a ldquoveracidade da documentaccedilatildeordquo

Eacute exatamente esse vieacutes documental da escrita literaacuteria que vai ser questionado pelos novos escritores acerca da dita ldquoliteratura regiona-listardquo ateacute ali Natildeo que essa tradiccedilatildeo documental fosse algo a ser cons-truiacutedo na produccedilatildeo literaacuteria do periacuteodo mas naquele momento essa mesma tradiccedilatildeo foi sendo ressignificada como projeto literaacuterio ga-nhando novos contornos e balizas definidoras de aceitaccedilatildeo de uma obra ou de um autor como literatura brasileira Aqui haacute um corte quase im-perceptiacutevel mas fundamental na histoacuteria literaacuteria no Brasil que visa construir um novo projeto de literatura que coloque em xeque toda tra-diccedilatildeo recebida Daiacute aspectos como velhonovo antigomoderno ga-nharem realces nessa produccedilatildeo natildeo tanto como constataccedilotildees temporais de uma literatura anterior mas termos (des) qualificadores e baliza-dores de uma nova esteacutetica que se propunha criar Daiacute a literatura nas-cente com a provocaccedilatildeo modernista de 1922 ser portadora de uma con-cepccedilatildeo literaacuteria que visa tambeacutem a construir uma Histoacuteria A escrita de uma histoacuteria literaacuteria eacute tambeacutem projeto de afirmaccedilatildeo da nova produccedilatildeo que surgia

Essas mesmas qualificaccedilotildees temporais Catullo da Paixatildeo Cea-rense vai dramatizar em seus poemas Ainda no iniacutecio do livro de po-emas Os pescadores o narrador de Catullo assim fala ao proacuteprio autor explicando-lhe como deve ser escrito o poema e o porquecirc da escolha do poeta para contar os feitos dos pescadores

Peccedila aacute Musa sertanejaque lhe tempere aacute violaa viola que lhe consolasuas tristeza e maguas

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo180

e cante alegre e saudosaa nossa vida penosamas sempre linda e gloriosaque o mar eacute o sertatildeo das aacuteguas

[]

Tome a viola predilectaVenha com a gente viverNatildeo nos importa saberse o seu Catullo eacute um artistafuturista ou penumbristabello feio antigo ou novoporque soacute nos interessasaber se cumpre a promessao poeta do nosso povo235

Os termos qualificadores de si aparecem na proacutepria represen-taccedilatildeo que Catullo faz aparecer em seus textos E se essa tensatildeo expressa obrigava a uma posiccedilatildeo do autor diante de seu puacuteblico leitor nem sempre isso se deu de forma paciacutefica

Em seu livro Faacutebulas e alegorias (1928) Catullo fez aparecer em uacuteltimo poema que encerra a publicaccedilatildeo uma raivosa declaraccedilatildeo de triunfo sobre todos os seus criacuteticos entre eles aqueles que identificava como ldquoFuturistas-legionaacuteriosrdquo Intitulada de A carta de um trovador o narrador do poema diz de uma carta que recebeu de um trovador conhe-cido Vale a transcriccedilatildeo

Um trovador conhecido grande rival das cigarrasamigo das antigas farrase orgulhoso do seu ldquoEurdquoa cada um dos seus ldquocriacuteticosrdquondash pavotildees sapos e ldquocatitasrdquo ndashe outros mais hermaphroditas ndashque eu transcrevo linha a linhatal como elle as escreveu

235 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Aos pescadores Rio de Janeiro Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 1923 p 15-16

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 181

ldquoZoilos Parvos AretinosCriticoacuteides pequeninosPassadistas refractaacuteriosFuturistas-legionaacuteriosdos mais tolos desatinosPoetastros retardataacuteriosReis e Priacutencipes cretinosVecircde pobres cerebrinosMinha glorificaccedilatildeo

Nrsquouma dessas noites bellasToda branca toda nua ndash noite de recordaccedilatildeo ndasheu ouvi Deos e seus archanjosem serenatas aacutes estrellascantando dentro da Luao meu lsquoLuar do Sertatildeorsquordquo236

Informaccedilatildeo importante o poema eacute dedicado ldquoAacute minha megalo-mania ndash a mais humilde das virtudes que Deos me deurdquo Em geral re-presentado como algueacutem muito vaidoso e com pretensotildees poeacuteticas aleacutem do que realmente merecia Catullo parecia cada vez mais assumir sua vaidade argumentando como sendo uma mera constataccedilatildeo de sua gran-deza Natildeo eacute de se admirar que o mesmo poema acima citado voltasse a aparecer em seu livro seguinte Meu Brasil mas jaacute sem a primeira es-trofe que antecede a carta do suposto ldquotrovadorrdquo As apreciaccedilotildees sobre suas poesias que os seus editores faziam aparecer soacute aumentava para seus criacuteticos essa representaccedilatildeo exagerada do poeta

Uma das opiniotildees que fez gravar em um de seus livros Matta iluminada em sua 27ordf ediccedilatildeo foi a de Maacuterio de Andrade agrave qual nos reportaremos pois nela reside um dos artifiacutecios que constroem a repre-sentaccedilatildeo de si como grande poeta Vejamos

No livro do poeta publicado pela livraria Castilho a opiniatildeo de Maacuterio estaacute assim publicada ldquoCatullo eacute o maior criador de imagens da

236 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Faacutebulas e alegorias Rio de Janeiro Officina Industrial Graphica 1928 p 242-243

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo182

poesia brasileira O seu livro ldquoMeu Sertatildeordquo eacute pouco menos que genial Eacute o espantoso criador de imagemrdquo237

Trata-se portanto de uma elogiosa criacutetica de um Maacuterio de Andrade consagrado nos anos 1930 como um dos maiores literatos do paiacutes O curioso eacute que em tal apreciaccedilatildeo foi suprimido todo o resto da criacutetica maior e aacutecida de Maacuterio de Andrade leitor de Catullo da Paixatildeo Cearense O trecho eacute parte de uma crocircnica publicada no Diaacuterio Nacional de 20 de dezembro de 1931 em que eacute verdade depois de elogiosas observaccedilotildees sobre o primeiro livro de Catullo Meu sertatildeo Maacuterio dispara contra toda a produccedilatildeo posterior do poeta sertanejo

Andei relendo Catullo Cearense estes dias Catullo depois dos seus livros de modinhas e lundus acariocados que pouca gente conhece e franqueza natildeo ultrapassam o valor da literatura de cordel do mesmo gecircnero redescobriu pra uso proacuteprio a poesia rural duma regiatildeo Nessa imitaccedilatildeo eacute que ele tornou-se um poeta admiraacutevel certamente o maior criador de imagens da poesia brasileira Com Meu Sertatildeo dava um livro pouco menos que genial E acabou Nos outros livros de primeiro inda surgia quando senatildeo quando um lampejo do imaginista maravilhoso de Meu Sertatildeo mas era um lampejo soacute ateacute que o poeta se esbandalhou inteiramente em livros escurecidos pela vaidade E principalmente pela civilizaccedilatildeo []Mas esta civilizaccedilatildeo era falsa importada Deu um brilho momentacircneo fulgurante pro pobre do brasileiro mas depois foi corroendo corroendo ele por dentro deformando-o nulificando Os uacuteltimos livros de Catullo Cearense natildeo satildeo nada238

A insinuaccedilatildeo no texto publicado pelo editor de Catullo de uma aprovaccedilatildeo vinda de um criacutetico jaacute consagrado em iniacutecios dos anos 1930 predispunha a aquisiccedilatildeo e leitura regrada do mesmo texto Funcionava antes como publicidade editorial e daiacute conduzia o leitor agrave crenccedila de que estaria lendo um autor aprovado por seus pares literatos

237 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illuminada 27 ed Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 230

238 ANDRADE Maacuterio de Taacutexi e crocircnicas no Diaacuterio Nacional Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1976 p 375-377

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Esses artifiacutecios foram mais de uma vez utilizados nas publicaccedilotildees de Catullo No volume de poemas intitulado O evangelho das aves (1927) seu editor Castilho fez aparecer um elogio de Joatildeo Ribeiro ldquoCatullo Cearense eacute um poeta nacional natildeo tenho duacutevidardquo239 Mas desa-parece o restante da criacutetica que originalmente foi publicada no jornal O Imparcial em dezembro de 1918 e que se completa com ldquo[] mas tatildeo artificioso como os outros poetas cultos e talvez mais do que ellesrdquo240

O contato da obra de Catullo da Paixatildeo Cearense com o puacuteblico paulista e o sucesso de puacuteblico que obteve exatamente no momento imediatamente anterior agrave explosatildeo da Semana de Arte Moderna de 22 potildee um questionamento fundamental para se compreender as escolhas posteriores da movimentaccedilatildeo modernista quais foram os limites para a determinaccedilatildeo do caraacuteter ldquomodernordquo de uma obra E jaacute avanccedilando uma resposta teraacute havido ainda nos anos 1920 uma definiccedilatildeo da movimen-taccedilatildeo de 22 com criteacuterios que buscassem estabelecer o que poderia caber sob o nome de ldquomodernismordquo

Aqui o que se deve reaver me parece eacute uma histoacuteria que lanccedilou para o passado um olhar em linha reta sobre o modernismo e que nessa tarefa buscou fincar as raiacutezes de uma ruptura no evento de 1922 Mais buscou nos seus antecedentes traccedilos que ldquopreparassemrdquo para a ruptura que viria naquele ano Essa anaacutelise natildeo obstante ter resultado numa infin-daacutevel bibliografia que construiu os alicerces do que hoje compreendemos como ldquomodernismordquo na literatura brasileira esqueceu-se natildeo raras vezes de historicizar na movimentaccedilatildeo aquilo que ela mais procurou construir ou seja a definiccedilatildeo de algo entendido como ldquomodernistardquo

O ldquoregionalismordquo ndash termo que por si soacute jaacute indicava algo proble-maacutetico para se definir a produccedilatildeo de autores muito diferentes entre si ndash era na construccedilatildeo de um tipo de literatura brasileira canonizada nos ma-nuais especialmente poacutes-anos 1940 um tipo de produccedilatildeo negada por alguns ldquomodernistasrdquo Mas quando se observa que os mesmos artistas que participaram da Semana de 22 eram aqueles que patrocinavam as

239 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O evangelho das aves Rio de Janeiro Livraria Castilho 1927 p 270

240 O Imparcial 2 dez1918 p 2

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo184

apresentaccedilotildees de motivos regionais e saudavam a apariccedilatildeo de autores que faziam de suas obras uma apresentaccedilatildeo do homem do interior algo parece para um investigador atento natildeo estar tatildeo bem problematizado

Em um famoso artigo com um tiacutetulo explicativo de ldquoRegio-nalismordquo em que Menotti Del Pichia defende a necessidade imperativa do ldquoregionalismordquo nas artes produzidas no Brasil o escritor inicia criti-cando um tipo de ldquoregionalismordquo que assustaria os proacuteprios persona-gens dessas produccedilotildees

Quem vecirc o Brasil com olhos parisienses acha qualquer manifestaccedilatildeo de brasilidade cheirando a regionalismo Eacute tatildeo pequeno o trato que nossos escriptores tecircm com a nossa terra e com nossa gente e tatildeo afinados pelo diapasatildeo forasteiro estatildeo seus rhythimos e sua arte que extranham nossos Tiotildees e Maricoacutetas nossos bragados e sacysO regionalismo reside numa demarcaccedilatildeo exacta de fronteiras numa uti-lizaccedilatildeo em ambiente local de pequenos episoacutedios locaes vasado numa linguagem com caracteriacutesticos typicamente locaes Esta arte interessa relativamente apenas como contribuiccedilatildeo de material Agora quaesquer desses themas quando contecircm episoacutedio humano cujo sentido eacute uni-versal isto eacute comum a todas as raccedilas mesmo que sejam vincados por uma forte physionomia ambiental perdem facilmente seu caracter re-gionalista pelo espiacuterito de universalizaccedilatildeo que o artista lhe daacute241

Menotti daacute sua opiniatildeo sobre um tipo de praacutetica que para ele sob a forma de um ldquoregionalismordquo faria exatamente o contraacuterio de mostrar o regional apresentaria na realidade no momento mesmo em que era produzido o sentido uacuteltimo daqueles que o faziam

O que haacute em certos escriptores nossos eacute o pudor de parecerem brasi-leiros Eacute um viacutecio do caipirismo intransigente exacerbado por viagens elegantes Isso ou mania de espantar brasileiro com um jaacute desmorali-zado cosmopolitismo beoacutecio e contra matildeoO regionalismo tem-se expressado entre noacutes por documentaccedilotildees muito typicas mas quase todas mediacuteocres Seu transito eacute curto Fechas-se dentro de uma compilaccedilatildeo do ldquofolk-lorerdquo Tem accusado uma grande indigecircncia mental

241 DEL PICHIA Menotti Regionalismo Correio Paulistano 3 out 1926 p 3

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[]Entre noacutes pela razatildeo desse pudor invenciacutevel que muitos escriptores ainda tecircm de revoltar-se na cacircndida expressatildeo do caracter da nossa raccedila achando mais elegante pensar e sentir aacute moda extrangeira a questatildeo do regionalismo eacute muito mal comprehendida []Precisamos mudar de rumo Olhar com olhos exactos sem daltonismos gaulezas nossa terra nossa gente este ldquoimmenso e colosso giganterdquo que se chama Brasil[]Eacute diffiacutecil confesso Para se ver o Brasil como elle eacute necessita-se ter es-tado em contacto directo e commovedor com a alma da terra Eacute preciso a coragem vibrante de ser brasileiro bem brasileiro em todos os defeito [sic] e em todo o primitivismo inaugural da grande paacutetria nascente Eacute preciso ter a alma cacircndida natildeo viciada em gallicismos sensoriaes e es-pirituaes Eacute preciso afinal integrar-se no seu admiraacutevel rhythmo para poder exprimir sua majestosa belleza242

Trata-se de um verdadeiro libelo contra um tipo de ldquoregiona-lismordquo que para Menotti natildeo poderia se dar mais Daiacute propotildee uma nova postura de ldquocontacto directordquo com a ldquoalma da terrardquo como uacutenica saiacuteda para se representar de fato o paiacutes Aiacute natildeo se trata da condenaccedilatildeo do ldquoregionalismordquo nas artes brasileiras mas da necessidade de uma natildeo estilizaccedilatildeo do regional em nome de algo maior que seria o ser brasi-leiro que natildeo negaria a regiatildeo ao contraacuterio ele teria de conhececirc-la di-retamente sem intermediaacuterios sem ldquogallicismosrdquo a fim de desco-brir-se assim o brasileiro

A sentenccedila eacute longa mas esclarecedora da complexidade subja-cente agrave discussatildeo sobre ldquoregionalismosrdquo nas artes brasileiras O perigo aqui eacute tomar um discurso que se traduz na escrita de um modernista como Menotti como uma opiniatildeo uniacutessona dentro daquilo entendido como ldquomodernismordquo Eacute bem verdade que uma histoacuteria da literatura bra-sileira se debateu sobre conflituosas discussotildees que se deram quase que imediatamente apoacutes a Semana de 22 Mas se esses debates se davam naquilo que deveria ser entendido como ldquomodernordquo deixaram de lado

242 DEL PICHIA Menotti Regionalismo Correio Paulistano 3 out 1926 p 3

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a anaacutelise histoacuterica do momento em que algumas obras identificadas jaacute existentes e entendidas como ldquoregionalistasrdquo estiveram em disputa no meio dessa discussatildeo sobre o ldquomodernordquo

Embora Catullo mantivesse um conflito aberto com o chamado ldquofuturismordquo nas artes brasileiras eacute necessaacuterio salientar que se vivia um momento de construccedilatildeo histoacuterica de um termo o ldquomodernismordquo A se-leccedilatildeo de autores que pairavam abaixo desse epiacuteteto em fins dos anos 1920 e comeccedilo dos anos 1930 natildeo era de faacutecil delimitaccedilatildeo

Manuel Bandeira consagrado pela histoacuteria literaacuteria brasileira como um modernista era amigo pessoal de Catullo e nessa relaccedilatildeo havia uma admiraccedilatildeo muacutetua Isto nunca foi entrave para que Bandeira se referisse a Catullo como muitas vezes o fez como um personagem caricato Na esteira da necessidade novamente imposta pelos ldquonovosrdquo de representar melhor o paiacutes em sua literatura Bandeira tal qual Maacuterio de Andrade relega a poesia de Catullo a uma simples ldquocriaccedilatildeo de ima-gensrdquo e portanto superficial passando longe do que seria um suposto sertatildeo de verdade Explica

Catullo da Paixatildeo Cearense Eacute sem duacutevida um poetatildeo um sujeito que fabrica imagens com surpreendente facilidade Mas eacute tatildeo cidade quanto noacutes outros Natildeo se confunde com o sertatildeo Eacute um sertatildeo de saudade o seu Um sertatildeo muito saiacutedo de vocabulaacuterios regionais O que tem mais gosto de sertatildeo nos seus poemas satildeo as lagoas do Nordeste cujo en-canto sentiu e sabe transmitir como ningueacutem em dois trecircs versos ele potildee nos olhos e no coraccedilatildeo da gente a deliacutecia de uma Pajuccedilara243

Bandeira ainda termina sua criacutetica arrematando que Catullo era como o romacircntico francecircs ldquoo Victor Hugo do sertatildeordquo Haacute aqui uma desqualificaccedilatildeo exatamente no ponto onde eacute mais enobrecida sua po-esia Ela eacute positiva pois joga com imagens e negativa para as novas pretensotildees almejadas por Maacuterio pois essas imagens satildeo meras criaccedilotildees A nova literatura ao que parece natildeo poderia lanccedilar matildeo da imaginaccedilatildeo

243 A Proviacutencia 14 abr 1929 Reeditado em BANDEIRA Manuel Crocircnicas da proviacutencia do Brasil Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2006 p 144

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Ela deveria como nos faz crer Maacuterio e Bandeira jogar com a realidade Ela se confundiria com o documento

Nas opiniotildees de Maacuterio de Andrade e Manuel Bandeira vecirc-se o flagrante de um processo de construccedilatildeo do ldquomodernismordquo que se deu de forma a elencar os autores que pudessem ser natildeo tanto identificados como ldquomodernosrdquo mas antes que pudessem natildeo figurar como autores de uma literatura brasileira Essa tarefa desloca a anaacutelise para uma questatildeo fundante que ficou ao que parece de fora de toda uma dis-cussatildeo acerca da construccedilatildeo do ldquomodernismordquo de 22 a concomitante refundaccedilatildeo da ldquoliteratura brasileirardquo

O rompimento com certos autores excluiacutedos do rol dos ldquomoder-nistasrdquo eacute antes de tudo um apagamento E se o criteacuterio para essa exclusatildeo nem sempre foi consensual tamanhas distinccedilotildees daqueles que reivindicavam o caraacuteter moderno de suas produccedilotildees ela mesma foi sistemaacutetica Daiacute soar estranho dizer conforme eacute comum em anaacute-lises de 22 em linhas gerais que o modernismo foi uma reaccedilatildeo contra o parnasianismo poeacutetico o regionalismo e o romantismo Isso pocircde provocar mais um desentendimento sobre o que estava posto nos anos 1920 e 1930 no Brasil literaacuterio

Catullo da Paixatildeo Cearense natildeo eacute criticado em nenhum mo-mento por seu regionalismo dignificador da figura sertaneja nem Monteiro Lobato eacute criticado por assumir posteriormente a imagem de um Jeca viacutetima tampouco Euclides da Cunha eacute apagado de uma histoacuteria literaacuteria em construccedilatildeo pela ambiguidade muitas vezes eno-brecedora com que trata o homem do sertatildeo Pelo contraacuterio Maacuterio de Andrade e Manuel Bandeira amplificam a necessidade irrevogaacutevel da literatura voltar-se de maneira menos imaginosa ao Brasil Eacute aiacute que residem suas criacuteticas severas a Catullo Ao que parece natildeo se trata da busca por uma literatura que procura narrar uma suposta re-alidade como uma literatura em documento mas de uma literatura que persiga a verossimilhanccedila mesmo que se valha de elementos de uma poesia ou prosa formais Essa era uma caracteriacutestica visada nos textos de modo que estes pudessem pela mediccedilatildeo de uma imagi-naccedilatildeo deturpadora ou natildeo da realidade ser separados entre ldquofutu-ristasrdquo e ldquopassadistasrdquo

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O criteacuterio para se decidir o ldquograu imaginativordquo de uma produccedilatildeo literaacuteria esse sim era algo que provocava desentendimentos entre os proacuteprios modernistas de primeira hora Quando da publicaccedilatildeo do polecirc-mico Pau Brasil de Oswald de Andrade o prefaacutecio do livro escrito pelo maior mecenas da invasatildeo modernista paulista nas artes Paulo Prado trazia uma opiniatildeo controversa sobre Catullo Defendendo a criaccedilatildeo de uma arte brasileira Prado faz um balanccedilo de uma histoacuteria literaacuteria para ele ultrapassada mas que mesmo com suas idiossincra-sias trouxe pelo menos dois grandes artistas Casimiro de Abreu e Catullo da Paixatildeo Cearense Vejamos

Em poliacutetica o chamado ldquogrito do Ipirangardquo inaugurou a deformaccedilatildeo da realidade de que ainda natildeo nos libertamos e nos faz viver num sonho de que soacute acordaraacute alguma cataacutestrofe benfeitora Em literatura nenhuma outra influecircncia poderia ser mais deleteacuteria para o espiacuterito nacional Desde o aparecimento dos Suspiros poeacuteticos e saudades de Gonccedilalves de Magalhatildees que os nossos poetas e escritores ateacute os claros dias de hoje tecircm bebido inspiraccedilotildees no cracircnio humano cheio de bourgogne com que se embebedava Child Harold nas orgias de Newstead O li-rismo puro simples e ingecircnuo como um canto de paacutessaro soacute o ex-primiram talvez dois poetas quase desprezados ndash um Casimiro de Abreu relegado agrave admiraccedilatildeo das melindrosas provincianas e caixeiros apaixonados outro Catullo Cearense trovador sertanejo que a mania literaacuteria jaacute envenenou Foram esses melancoacutelicos desalinhados e sin-ceros os dois uacutenicos inteacuterpretes do ritmo profundo e iacutentimo da Raccedila como Ronsard e Musset na Franccedila Moeriken e Uhland na Alemanha Chaucer e Burns na Inglaterra e Whitman nos Estados Unidos Os outros satildeo lusitanos franceses espanhoacuteis ingleses e alematildees versifi-cando numa liacutengua estranha que eacute o portuguecircs de Portugal esbanjando talento e mesmo gecircnio num desperdiacutecio lamentaacutevel e nacional244

Eacute possiacutevel observar no trecho citado a opiniatildeo de Paulo Prado acerca de certa nova literatura que se procurava construir atraveacutes dos exemplos tanto de antigos autores (Casimiro e Catullo) quanto de au-tores estrangeiros (Ronsard Musset Whitman etc) Eacute importante frisar que havia para o mesmo autor um tipo de literatura que poderia con-

244 PRADO Paulo Poesia Pau Brasil In ANDRADE Oswald Pau Brasil Satildeo Paulo Globo 2003 p 90 (1ordf ediccedilatildeo em 1925)

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duzir um escritor a certa mania literaacuteria se assim ela fosse obsessiva-mente buscada Essa visada a uma ldquomania literaacuteriardquo eacute que deveria para Prado ser evitada Daiacute sua criacutetica a Catullo que se embrenhava se-gundo ele nesse caminho

Ademais dentro da mesma argumentaccedilatildeo haacute um elogio do que fora produzido de modo que tornava absolutamente impossiacutevel traccedilar marcos de ruptura que pudessem balizar a nova produccedilatildeo literaacuteria pela simples supressatildeo de uma anterior A poesia Pau-Brasil que Prado apresentava era o iniacutecio de ldquoum periacuteodo de construccedilatildeo cria-dorardquo que sucederia agravequela da ldquodestruiccedilatildeo revolucionaacuteria das lsquopala-vras em liberdadersquordquo245

O jornalista do perioacutedico O Paiz Abner Mouratildeo discorria sobre essa estranha relaccedilatildeo contrastante de ldquofuturistasrdquo e ldquopassadistasrdquo e de maneira perspicaz sobre as fronteiras fluiacutedas que os separavam evo-cando um possiacutevel ldquopresentismordquo entre os dois

O que nos falta em literatura sobra-nos em discussotildees literaacuterias que an-tigamente acabavam em vias de facto e hoje em queixas-crimes apre-sentadas aos juiacutezes competentes Benefiacutecios da lei da imprensa e de um evidente aperfeiccediloamento dos costumesA discussatildeo agora generalizada e cada vez mais acesa eacute como estaacute-se vendo entre futuristas e passadistas O movimento de ousadia mental e de anceios de renovaccedilatildeo que tem o nome jaacute claacutessico de futurismo tenta aqui o seu primeiro grande surto []Permitto-me entretanto insinuar (oacute desenvoltura proacutepria dos jorna-listas) entre passadismo e futurismo a escola presentista []Os adeptos desta escola deveratildeo pensar que o futuro a Deos pertence e por conseguinte natildeo se preocupar com elle mais do que com a primeira camisa que vestiram O passado eacute tatildeo necessaacuterio aacute [sic] cultura como os alicerces de uma casa Extraiacutedo dele poreacutem o que poacutede fornecer como ornamento do espiacuterito e esclarecimento da visatildeo o escriptor presentista deve igualmente pol-o departe O seu esforccedilo deve ser olhar a vida que passa e tudo que se acha em torno de si246

245 Idem p 91246 MOURAtildeO Abner Nos domiacutenios da literatura nacional O Paiz 28 mar 1924 p 3

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Na impossibilidade de definir o que seria o ldquofuturismordquo e o ldquopas-sadismordquo nas letras brasileiras Abner Mouratildeo propotildee a saiacuteda do ldquopre-sentismordquo Poreacutem se sua foacutermula buscava uma saiacuteda para a aporia que envolvia ambos os lados ainda assim ela pautava um tema que seria buscado de maneira freneacutetica pelos ldquomodernistasrdquo e que estava no cerne das criacuteticas de Maacuterio e de Bandeira expostas anteriormente

A nossa vida os nossos sertotildees ahi estatildeo a offerecer admiraacutevel mateacuteria prima aos homenns de letras Mas seraacute sempre preciso viajar pene-trar nelles Querer vecirc-los e fixaacute-los drsquoaqui passeando na avenida Rio Branco como fazem os Srs Coelho Netto Afracircnio Peixoto Catullo da Paixatildeo Cearense e outras figuras illustres natildeo poacutede dar resultados reco-mendaacuteveis Um relatoacuterio do general Rondon embora mal escripto seraacute sempre mais visto e interessante que romance ou poema elaborado num acto de pura imaginaccedilatildeo que consiste em arrumar palavras de um modo natildeo muito differente daquelle como o pedreiro dispotildee os seus tijolos247

Natildeo eacute agrave toa que o caso de Catullo eacute novamente empregado como um exemplo em negativo de uma literatura que se ressente de uma ver-dadeira imagem do real Eacute nessa mesma esteira que eacute colocada a obra consagrada de Coelho Netto Natildeo eacute seu regionalismo que eacute rejeitado mas sua imaginaccedilatildeo

Ainda no mesmo artigo uma comparaccedilatildeo busca comprovar o estatuto em negativo de representar na nova literatura algo de fato desconhecido Trata-se da comparaccedilatildeo que Abner faz das novas produ-ccedilotildees com a obra de Machado de Assis que segundo o articulista de O Paiz construiu sempre sua literatura com as ferramentas com as quais se cercava em seu cotidiano

Machado de Assis era um homem tiacutemido fechado que vivia entre a sua casa e a reparticcedilatildeo Pois com as suas paacuteginas burocraacuteticas e de meias tintas e de sentimento interior fez a maior obra da literatura brasileira do seu tempo Assim esse Mestre admiraacutevel ensina ao escriptor a natildeo sair de si mesmo e do ciacuterculo das coisas que o cercam embora mesquinho se quizer ser na verdade grande

247 MOURAtildeO Abner Nos domiacutenios da literatura nacional O Paiz 28 mar 1924 p 3

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 191

Deixemos passado e futuro Fiquemos simplesmente no presente que soacute elle poacutede efficazmente propiciar a obra de arte248

Parecia que a melhor representaccedilatildeo soacute poderia ser buscada a partir do conhecimento e nunca da imaginaccedilatildeo Ainda que a forma natildeo tenha sido desdenhada ndash pois expressar-se numa forma anterior era tambeacutem vaacutelido ndash o que era pautado era o estatuto natildeo imaginoso de uma representaccedilatildeo A nova literatura deveria ter como subsiacutedio funda-mental a realidade E essa busca natildeo era de todo uma tentativa siste-maacutetica de relegar o que ateacute ali havia sido produzido Existia em meio agrave criacutetica um reconhecimento pelos benefiacutecios de uma literatura ante-rior como dizia Ribeiro Couto membro participante da Semana de 22 em Satildeo Paulo ldquoNatildeo queremos destruir o passado Queremos construir um presente diverso do dia de hontemrdquo249 Essa opiniatildeo vai ao en-contro das anteriormente expostas que traduzem certa ambiguidade com relaccedilatildeo agravequeles que criticam Mesmo a Academia Brasileira de Letras local de consagraccedilatildeo de muitos dos literatos criticados eacute pou-pada pois o que se critica natildeo eacute ainda nas palavras de Ribeiro Couto a Academia mas o academicismo

A Academia natildeo entendeu o Sr Graccedila Aranha Elle natildeo quer matal-a quer que ela se interesse pela vida tome parte na agitaccedilatildeo das ideacuteas na festa da construcccedilatildeo de um Brasil mental independente e activo Ele natildeo quer enfim uma Academia acadecircmica250

A confusatildeo de opiniotildees que se mesclavam e se digladiavam na representaccedilatildeo do novo do moderno e do modernismo literaacuterio era ex-pressa nos perioacutedicos da eacutepoca Essa confusatildeo natildeo pode ser compreen-dida sem levar-se em conta a historicidade dos termos em disputa seus usos aleacutem das apropriaccedilotildees feitas das obras produzidas no periacuteodo

A representaccedilatildeo da produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense ao que parece nunca foi vinculada a algo que o aproximasse de um autor passadista Ao contraacuterio ele era desdenhado pelos modernistas pelo

248 Idem249 COUTO Ribeiro Futurismo versus Passadismo O Paiz 29 jun 1924 p 6250 Idem

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fato de ser um moderno que se lanccedilava a criar em sua imaginaccedilatildeo o linguajar do sertanejo Imaginar uma liacutengua era inaceitaacutevel Se de um lado era moderno conhecer por outro imaginar algo de que se natildeo tem conhecimento era demais para ser considerado modernista Essa ambi-guidade ndash em ser identificada como moderna e natildeo ser modernista ndash era uma temaacutetica comum na obra de Catullo No prefaacutecio que abre seu livro O evangelho das aves (1927) escrito por Maacuterio Joseacute de Almeida o poeta eacute apresentado ateacute como o verdadeiro criador do modernismo

Natildeo o comparo a La Fontaine nem a Tagore nem a Mistral como eacute tatildeo comum fazer-se no julgamento do mais brasileiro de nossos escrip-tores elle eacute um phenomeno literaacuterio inteiramente agrave parte a qualquer ponto de vista Mesmo sem grande penetraccedilatildeo criacutetica quem quer que o analyse desde o iniacutecio da sua prodigiosa actividade intellectual veraacute que o creador da feiccedilatildeo constructora do modernismo na nossa poesia eacute simplesmente e genialmente ndash Catullo Cearense251

Ribeiro Couto por sua vez tambeacutem buscava expressar essa mis-celacircnea de opiniotildees acerca do que significava ser um ldquofuturistardquo Aliaacutes ldquofuturistardquo eacute o termo mais comum que aparece em vaacuterias publicaccedilotildees para se referir agrave movimentaccedilatildeo dos novos artistas Sobre esses novos artistas o depoimento de Ribeiro Couto eacute esclarecedor

O que somos eacute uma geraccedilatildeo independente aspirando a uma literatura feita a maneira do sentimento creador de cada um de noacutes e natildeo a uma literatura colonial Entre noacutes temos differenccedilas profundas O Sr Mario de Andrade por exemplo detesta a ldquopoesia da penumbrardquo Eu natildeo tenho que lhe dar satisfaccedilotildees e vou escrevendo como sinto Por meu lado acho uma pilheria o primitivismo do Sr Oswald de Andrade O Sr Maacuterio de Andrade acha o Sr Oswald de Andrade um gecircnio Elles se comprehendem natildeo me datildeo satisfaccedilotildees e continuam Boa viagemO que nos une a todos agrave nossa geraccedilatildeo cujo presidente de honras eacute o Sr Graccedila Aranha eacute o oacutedio commum ao modelo claacutessico ao gramma-tiquismo de empreacutestimo ao Sr Cacircndido Figueiredo ao cultivo bem educado e sorrateiro do quinhentismo portuguez aacute plantaccedilatildeo do soneto

251 ALMEIDA Maacuterio Joseacute de A arte universal de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo O evangelho das aves Rio de Janeiro Livraria Castilho 1927 p 13

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aacute paixatildeo pela Greacutecia de cuja mythologia o Sr Coelho Netto eacute o cocircnsul do BrasilIsso eacute futurismo Entatildeo tchiiiiiiii poacute poacute Viva o futurismo252

O que se depreende do trecho acima eacute a falta de exatidatildeo para a definiccedilatildeo do chamado ldquofuturismordquo Aleacutem do mais chama a atenccedilatildeo para as distintas formas de conceber o ldquomodernordquo na literatura Ora se existia uma falta de unidade no grupo ldquomodernistardquo eacute possiacutevel portanto falar de uma ldquoliteratura modernistardquo Tal resposta deve ser buscada antes nas escolhas daqueles que buscaram sistematizar a histoacuteria de um grupo de autores E essa escolha sem duacutevida foi feita a posteriori O caminho para a compreensatildeo da produccedilatildeo daquelas obras identificadas como mo-dernistas eacute voltar-se assim para as proacuteprias obras a fim de que a dis-cussatildeo se eacute que ela existiu seja compreendida em sua historicidade

Arriscariacuteamos assim dizer que na primeira deacutecada que se se-guiu agrave Semana de 22 houve menos uma definiccedilatildeo do que viria a ser o ldquomodernismordquo do que uma tentativa de definir o que ldquonatildeo poderia serrdquo na literatura produzida O modernismo vai nessa visatildeo progressiva-mente sendo definido por uma negaccedilatildeo Eacute por isso que ao contraacuterio de muitas anaacutelises que foram realizadas sobre o chamado ldquomodernismo de 22rdquo e que deram ecircnfase na construccedilatildeo do termo a partir da defesa e ataque que seus protagonistas fizeram de suas obras e daqueles a quem criticavam eacute necessaacuterio fazer o caminho oposto qual seja analisar antes como e em quais termos se pautou uma estigmatizaccedilatildeo pelos mo-dernistas de obras tidas sem interesse para a nova literatura Daiacute ser bem mais proveitoso para uma histoacuteria literaacuteria um olhar que se des-loque para a produccedilatildeo de sentido com relaccedilatildeo natildeo soacute agraves proacuteprias obras denominadas modernistas mas antes de tudo para aquelas que so-freram as criacuteticas como natildeo modernas Dito de outra forma uma anaacutelise que saia das obras modernistas na compreensatildeo do ldquomomento moder-nistardquo e se desloque para as ldquoobras natildeo modernistasrdquo e seus autores muitos deles consagrados na Academia Brasileira de Letras (como

252 Depoimento de Ribeiro Couto na coluna literaacuteria do jornal O Paiz Em Futurismo versus Passadismo O Paiz 29 jun 1924

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo194

Coelho Netto) ou com uma vasta produccedilatildeo consumida pelo mundo le-trado (como Catullo da Paixatildeo Cearense) Haacute no processo fundamen-talmente uma negaccedilatildeo de autores e obras e pelo menos num primeiro momento pouco de uma sistematizaccedilatildeo homogecircnea do modernismo constataccedilatildeo feita pelos proacuteprios autores consagrados sob esse epiacuteteto jaacute naquele momento

Por esse vieacutes de anaacutelise a obra de Catullo eacute sintomaacutetica dessa estigmatizaccedilatildeo Se a procura pela identificaccedilatildeo de sua obra como litera-tura e de sua condiccedilatildeo como poeta foi uma constante em sua trajetoacuteria eacute interessante notar um processo que se daacute ao avesso o de sua desauto-rizaccedilatildeo como poeta sertanejo ou dito de outra forma uma descons-truccedilatildeo de sua poesia sertaneja com uma consequente retirada de seu nome de qualquer identificaccedilatildeo como um poeta nacional Aqui eacute impor-tante salientar que o ldquonacionalrdquo eacute ressignificado pelos novos artistas de forma a natildeo caberem nele alguns autores estigmatizados

Na incapacidade de afirmaccedilatildeo de sua produccedilatildeo pelos novos cri-teacuterios criacuteticos e pelas novas crenccedilas esteacuteticas em construccedilatildeo havia a saiacuteda de buscar a referendaccedilatildeo de seu nome por estrangeiros especial-mente da Europa Isso natildeo passava despercebido pelos candidatos a autores nacionais E essa demanda foi outro artifiacutecio colocado agrave prova por Catullo e seus editores nos textos que publicou

Ainda em Meu sertatildeo o editor Castilho fez aparecer a criacutetica do poeta portuguecircs Alberto drsquoOliveira (Academia de Sciencias de Lisboa) que em prefaacutecio apresentava Catullo como aquele que ldquomais entende o amor aacute nossa modardquo e que encarnava a ldquoalma brasileira com fideli-daderdquo e ldquoum descendente e um continuador dos nossos trovadores po-pulares da Edade-Mediardquo253

Por outro lado outro recurso muito usado para desdenhar uma produccedilatildeo anterior foi sem duacutevida definhaacute-la atraveacutes do riso A carica-tura de um autor se mostrou de uma eficaacutecia fundamental nesse pro-cesso Nessa perspectiva eacute possiacutevel encontrar vaacuterios exemplos de re-presentaccedilatildeo risiacutevel da postura de Catullo da Paixatildeo Cearense

253 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 14-15

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O jornalista Paulo Silveira que em sua coluna no jornal carioca O Paiz fazia uma verdadeira apologia aos novos escritores daacute um exemplo dessa cruzada que buscava atraveacutes da negaccedilatildeo de uns afirmar a produccedilatildeo dos novos A piada com Catullo eacute nesse sentido funda-mental para essa afirmaccedilatildeo

Jaacute laacute se foram os dolorosos tempos das poesias de assobio que satildeo feitas para ser recitadas nos tuberculosos sons de uma Dalila executada pellas matildeos romacircnticas de donzellas indefluxadas pelo catharros lyricos do patildeo drsquoaacutegua de seu Fagundes e pela remela manhosa dos versos de Casimirinho Essa eacutepoca passou e natildeo volta mais como canta o estro do fallecido Guerra Junqueiro poeta que conseguiu chegar aacute immortali-dade levando nos peacutes um estrondoso par de asas de bacalhao254

Continua atacando agora Catullo

Sr Catullo da Paixatildeo Cearense o Victor Hugo dos pobres de espiacuterito que o ministro Francisco Saacute mentalidade irocircnica e tolerante levou na sua comitiva com a incumbecircncia de medir com o tamanho de seus poemas a distacircncia que vai drsquoaqui do Rio de Janeiro aacute [sic] Baixa da Eacutegua Dizem que o selvaacutetico cantor [] abriu o bico na gare da Central e soacute foi acabar de recitar na ponta dos trilhos de Montes Claros Bateu assim o Record da distacircncia poeacutetica conseguindo com a extensatildeo de seus poemas transformar o Dr Carvalho Arauacutejo na Bella adormecida no wagon da Central do Brasil255

Essa representaccedilatildeo risiacutevel e caricatural de Catullo natildeo era novi-dade e foi usada muitas vezes pelos novos poetas para desqualificar a poesia sertaneja de Catullo Uma das receitas preferidas era fazer piadas com a reconhecida megalomania do poeta Natildeo passava agraves cegas tambeacutem a representaccedilatildeo da constante busca de reconhecimento que Catullo em sua trajetoacuteria sempre almejou

Ainda em 1918 quando a fama de Catullo como poeta do sertatildeo comeccedilava a se esboccedilar a revista O Malho trazia em sua seccedilatildeo ldquoA ane-docta da semanardquo escrita por certo Falconet um causo que acontecera

254 O Paiz 8 jun 1924255 Idem

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num bond da cidade do Rio de Janeiro Tratava-se de um encontro entre o poeta e acadecircmico Alberto de Oliveira e Catullo

O poeta Alberto de Oliveira tem como se sabe o curso de Pharmacia feito na Faculdade de Medicina drsquoesta capital Haacute quatro ou cinco dias vinha o cantor do Livro de Emma para a cidade quando tomou o mesmo Bond o poeta popular Catullo da Paixatildeo Cearense Descobrindo-o no banco fronteiro Catullo estendeu-lhe a dextra com effusatildeo exclamandondash Collega bom diaAlberto Oliveira levou o pollegar de ambas as matildeos aacutes pontas do bi-gode encerado e hieraacutetico para o receacutem-chegado perguntou-lhe com gravidadeO senhor tambeacutem eacute pharmaceuticoO autor do Marroeiro enfiado ganhou o matto256

Tempos depois quando o sucesso de Catullo como poeta serta-nejo jaacute se fazia ver Manuel Bandeira amigo de Catullo e modernista participante de primeira hora da Semana de 22 conta como conheceu Joseacute do Patrociacutenio Filho (o Zeca) No encontro estava laacute o Catullo megalocircmano

Eu conheci-o ultimamente numa farra em certa casa inconfessaacutevel da rua Riachuelo Estava laacute o Villa-Lobos o Ovalle o Joatildeo Pernambuco o Catulo O violatildeo passava de matildeo em matildeo porque todos tocavam Catulo estava impossiacutevel Bebera cerveja e deu para declamar poemas Noacutes queriacuteamos que ele cantasse umas modinhas bem bestas bem per-noacutesticas como ldquoA tua almardquo ou ldquoCeacutelia adeusrdquo ou ldquoTalento e formo-surardquo Mas o bardo estava em mareacute de grandeza e dizia muito seacuterio a duas belezas veniaisndash Minhas senhoras eu tenho sessenta anos e jaacute li todos os grandes po-emas de todas as literatura li todo o Homero todo o Virgiacutelio li Goethe Shakespeare Ariosto nunca encontrei nada como este poema da minha lavra que vou lhes recitarQuando ele puxava o pigarro para comeccedilar e a versalhada parecia ine-vitaacutevel o Zeca salvava a situaccedilatildeo

256 O Malho mar 1918

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ndash Oacute Catulo canta aquela modinhandash Que modinhandash Aquela em que vocecirc compara um peacute a um pensamento de PascalE como Catulo estava por conta da cerveja esquecia imediatamente o poema e cantava a modinha pedida257

O caraacuteter corrosivo da anedota buscava representar um sujeito risiacutevel definhando a aura de poeta que Catullo buscava construir258 Eacute certo que essa representaccedilatildeo de um Catullo risiacutevel eacute antiga e aliaacutes acompanhou o poeta durante quase toda a sua vida Mas ela ganhou focirclego com o advento dos ldquonovos modernos de 22rdquo e era uma receita bastante repetida pelos construtores de uma esteacutetica modernista Contra essa representaccedilatildeo Catullo tentou jaacute nos anos 1930 deixar a poesia sertaneja jaacute entatildeo em processo de estigmatizaccedilatildeo pelo mundo literaacuterio embora sucesso entre o puacuteblico leitor e voltar-se para outra produccedilatildeo naquele momento alvissareira para a sua afirmaccedilatildeo como poeta uma poesia ufanista sobre o Brasil

257 A crocircnica foi publicada no jornal A Proviacutencia no dia 12 de outubro de 1929 e repro-duzido em BANDEIRA Manuel Na cacircmara ardente de Joseacute do Patrociacutenio Filho Satildeo Paulo CosacampNaify 2006 p 93-94

258 O caraacuteter corrosivo e agregador do riso no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX eacute discutido belissimamente em SALIBA Elias Thomeacute Raiacutezes do riso a representaccedilatildeo humoriacutestica na histoacuteria brasileira Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

CATULLO EM CENA

Dos textos aos palcos ou o inverso

O circo-teatro Trianon no Rio de Janeiro oferecia no mecircs de julho de 1930 um espetaacuteculo agrave parte O ator Procoacutepio Ferreira tomaria parte com o ldquogrande poetardquo Catullo da Paixatildeo Cearense o ldquogrande galatilderdquo Raul Roulien o cantor e violonista Patriacutecio Teixeira e a jovem cantora e jaacute ldquoapplaudidardquo Carmen Miranda (em comeccedilo de carreira prestigiosa no Brasil) de um ldquocolossal acto variadordquo intitulado Nossa vida eacute uma fita O jornal A Criacutetica de Maacuterio Rodrigues noticiava com entusiasmo o evento avisando ser o espetaacuteculo uma comeacutedia do ldquogrande escriptor da geraccedilatildeordquo Henrique Pongetti cujo enredo se desenrolava ldquonos bastidores cinematographicos da alucinante Hollywoodrdquo259 O evento se realizaria pela manhatilde

O dia parecia ser bastante rico em eventos pois para o final da tarde o mesmo jornal conclamava seus leitores para outro espetaacuteculo Este a ser realizado no Teatro Lyrico teria novamente a presenccedila de Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhado de seus companheiros com o espetaacuteculo musical Uma noite no sertatildeo A participaccedilatildeo do autor em ambas as produccedilotildees teatrais chama a atenccedilatildeo para uma mudanccedila na trajetoacuteria do poeta

259 A Criacutetica 15 jul 1930 p 4

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Desdenhado por suas produccedilotildees literaacuterias possuiacuterem representa-ccedilotildees por demais imaginosas do sertatildeo e do sertanejo Catullo encon-trava no teatro o ecircxito negado a ele pelos criacuteticos da sua produccedilatildeo lite-raacuteria Nos anos 1930 e 1940 o poeta foi figura constante nos palcos de teatros participando de musicais e por vezes cantando nos cinemas

A entrada de diversos escritores no mundo do teatro natildeo foi uma singularidade de Catullo Em fins da deacutecada de 1920 e iniacutecio da deacutecada de1930 era possiacutevel enxergar muitos de conhecidos literatos comparti-lhando o palco com artistas como Carmen Miranda Donga Abigail Maia muacutesicos como Luperce Miranda Jayme Florence (o Meira) e atores como Procoacutepio Ferreira e Oduvaldo Viana O teatro de revista ndash assim eram chamados os espetaacuteculos que misturavam musical burletas dramas hu-moriacutesticos etc ndash virou febre na sociedade brasileira da eacutepoca Aleacutem de usar de uma linguagem mais acessiacutevel ao grande puacuteblico o teatro de re-vista era fonte de grande lucro para os patrocinadores dos espetaacuteculos

Nos palcos eram encenados verdadeiros shows de variedades com o objetivo principal de entreter o puacuteblico Sintomaacutetica eacute a publici-dade de um evento que aconteceria no Theatro Imperial em Niteacuteroi em julho de 1930 onde a chamada pedia a atenccedilatildeo do leitor para uma pre-senccedila ilustre a da Miss Brasil ao lado de outros artistas

Estaacute sendo esperado com grande ansiedade o grandioso festival de ca-ridade que a directoria da Caixa de Esmolas de Nictheroy estaacute organi-sando para amanhatilde aacutes 20 horas no Cine Theatro Imperial dessa cidade [] o qual seraacute honrado com a presenccedila da formosa senhorita Yolanda Pereira ldquoMiss Brasilrdquo que prometteu ao mesmo comparecer em com-panhia de outras ldquomissesrdquo estaduaesA parte literaacuteria do programma ficou a cargo de Raul Perdeneiras Bastos Tigre e Catullo da Paixatildeo Cearense que diratildeo conferecircncias humoriacutesticasA parte musical foi confiada aos elementos artiacutesticos da Raacutedio Sociedade do Rio de Janeiro entre os quaes as senhoritas Carmen Miranda e Gecy Barbosa aacute professora Anna de Albuquerque Mello e os festejados inteacuterpretes da nossa muacutesica regional Gastatildeo Formenti Sylvio Salema Paulo Rodrigues Tomam parte no attrahente espetaacute-culo o tenor Oscar Gonccedilalves Ignaacutecio Guimaratildees e outros260

260 A Noite 22 jul 1930 p 2

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo200

Essa miscelacircnea de atraccedilotildees tornou-se muito comum com a po-pularizaccedilatildeo do que se convencionou chamar de festivais Sob esse termo era incluiacuteda uma variedade grande de entretenimentos desde co-meacutedias musicais desfiles de ldquocelebridadesrdquo ateacute a encenaccedilatildeo de uma produccedilatildeo anteriormente consagrada como aquelas com temaacuteticas ser-tanejas as chamadas burletas A adaptaccedilatildeo de diversos artistas a essa nova forma de expressatildeo e de puacuteblico fazia com que fosse possiacutevel en-contrar por exemplo Catullo da Paixatildeo Cearense fazendo parte de con-ferecircncias humoriacutesticas ao lado de caricaturistas e humoristas como Bastos Tigre e Raul Pederneiras anteriormente citados Ainda que re-conhecidos como poetas esses uacuteltimos se destacavam pela verve hu-moriacutestica assumida por eles e em Catullo quase inexistente

O palco natildeo era algo ineacutedito para Catullo que jaacute frequentava o mundo do teatro desde os anos 1910 e laacute havia feito muitos amigos Escrevendo em fins da deacutecada de 1920 o volume de poesias Faacutebulas e alegorias Catullo reconhecia no ator Procoacutepio Ferreira (aliaacutes finan-ciador do livro) a genialidade teatral oferecendo-lhe a publicaccedilatildeo com estas palavras ldquoA ti Procoacutepio que viste nascer estas fabulas e foste o primeiro a recital-as offereccedilo este livro como um preito de minha ad-miraccedilatildeo pelo teu talento genial glorificado por Melpoacutemene e Thaliacuteardquo261

O flerte de Catullo com os palcos foi tatildeo grande que ele chegou a organizar festivais em que contava inclusive com cenoacutegrafos consa-grados como quando organizou a ldquofesta de Catullo Cearense [] num ambiente sertanejo cujo scenaacuterio Jayme Silva faraacute sob as indicaccedilotildees do grande rapsodordquo262 No Trianon no Lyrico no Satildeo Joseacute no Imperial e em vaacuterios outros teatros cariocas e paulistas o nome de Catullo era encarado como sucesso de puacuteblico

Como vimos a presenccedila cecircnica de sua poesia conduzia a uma leitura performaacutetica do escrito quando oralizado A nova caracteriacutestica de sua produccedilatildeo qual seja como tambeacutem passiacutevel de um vieacutes cocircmico eacute que eacute parte do processo de um diaacutelogo com uma produccedilatildeo cecircnica que se

261 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Faacutebulas e alegorias Rio de Janeiro Officina Industrial Graphica 1928 p 4

262 Correio da Manhatilde 5 jun 1930 p 5

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fazia no periacuteodo Nesse momento foi possiacutevel vislumbrar em sua pro-duccedilatildeo uma veia mais humoriacutestica sintetizada sem duacutevida nas suas apresentaccedilotildees teatrais Sua chegada aos palcos vai ao encontro de uma febre por uma produccedilatildeo existente no Brasil desde os finais do seacuteculo XIX o teatro ligeiro Essas festas eram estruturadas em vaacuterios mo-mentos misturando espetaacuteculos danccedilantes apresentaccedilotildees humoriacutesticas musicais e peccedilas que dramatizavam fatos do cotidiano O teatro de re-vista (um dos gecircneros do teatro ligeiro) no Brasil e em especial na capital federal tornou-se especialmente nos anos 1920 um dos princi-pais espaccedilos de sociabilidade da elite letrada Para ele seguiram vaacuterios literatos que viam no seu sucesso de puacuteblico um lugar para a exibiccedilatildeo de suas produccedilotildees Procoacutepio Ferreira homem de teatro fez fama nesse periacuteodo como promotor diretor e ator de vaacuterias peccedilas e ao redor dele arregimentaram-se vaacuterios intelectuais do quilate de Bastos Tigre

O teatro ganhara novo focirclego com a ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ao poder em outubro de 1930 Admirador de espetaacuteculos teatrais Vargas quando ainda deputado federal pelo estado do Rio Grande do Sul ajudara a aprovar decreto que normatizava as empresas teatrais e reconhecia direitos trabalhistas para os artistas que participavam desse mundo especialmente no que concerne aos direitos autorais A lei ga-nhou ateacute um nome extra-oficial de ldquoLei Getuacutelio Vargasrdquo263

Aliaacutes a poliacutetica cultural de Getuacutelio Vargas catapultava uma seacuterie de demandas que jaacute se faziam ouvir antes de sua ascensatildeo Com a criaccedilatildeo do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Sauacutede (MES) em 1930 chefiado por Francisco Campos e principalmente a partir de 1934 quando co-meccedilou a administraccedilatildeo do ministro Gustavo Capanema vaacuterios veiacuteculos de comunicaccedilatildeo sofreram o impacto da poliacutetica varguista de pedagogia do cidadatildeo Havia poliacuteticas voltadas para o livro para o teatro para o cinema para a radiodifusatildeo e para diversas outras aacutereas da comuni-caccedilatildeo e cultura que tiveram como consequecircncia conviver com uma

263 Sobre a simpatia de Vargas nos meios teatrais Cf CAMARGO Angela Ricci A poliacutetica dos palcos teatro no primeiro governo Vargas (1930-1945) Rio de Janeiro FGV 2013 Sobre os decretos que foram construindo uma poliacutetica cultural para o teatro no periacuteodo varguista Cf CALABRE Lia Poliacuteticas culturais no Brasil Rio de Janeiro FGV 2009

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo202

maior atenccedilatildeo do Estado para suas produccedilotildees Dessa forma muitos dos escritores e artistas consagrados desde antes da assunccedilatildeo de Vargas to-maram parte desse projeto

Foi tambeacutem nesse momento que o advento do raacutedio como objeto de entretenimento mobilizou os artistas ligados agrave musica

O raacutedio buscava o caminho da profissionalizaccedilatildeo A maior parte das emissoras passava a irradiar seus programas em todos os dias da se-mana Novas empresas de radiodifusatildeo se formavam anunciando projetos que conquistariam definitivamente o puacuteblico ouvinte trans-formando o raacutedio em um elemento indispensaacutevel em todos os lares264

Nas Raacutedios Sociedade e Mayrink Veiga as apresentaccedilotildees de Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhado por Joatildeo Pernambuco e Pixinguinha eram esperadas com ansiedade Na deacutecada de 1930 a pro-duccedilatildeo de Catullo afastou-se da produccedilatildeo estritamente literaacuteria e ganhou os palcos e o raacutedio com poemas declamados e muacutesicas cantadas Sua produccedilatildeo textual que sempre continha fortes marcas de oralidade vol-tou-se para uma apresentaccedilatildeo da qual o escrito estaacute submetido agrave perfor-mance como momento final da produccedilatildeo

Ao que parece Catullo criticado no espaccedilo das hostes literaacuterias e sabedor do novo momento que alccedilava o teatro e o raacutedio a espaccedilos com um aacutevido puacuteblico consumidor vai-se aproximando dos palcos e se rea-proximando assim da muacutesica Embora tentasse manter um status de poeta sua produccedilatildeo visaria a partir dos anos 1930 menos agrave aceitaccedilatildeo no campo literaacuterio brasileiro ndash agora sob os bombardeios modernos dos novos escritores surgidos na deacutecada de 1920 o que eacute possiacutevel pensar afasta-o ainda mais de um reconhecimento como poeta nacional ndash do que ao seu reconhecimento como artista Com as criacuteticas recebidas em fins da deacutecada de 1920 e a ascensatildeo exitosa do teatro de revista com um farto cardaacutepio de musicais o poeta sertanejo voltou-se para o rees-tabelecimento de sua representaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo

264 CALABRE Lia No tempo do Raacutedio radiodifusatildeo e cotidiano no Brasil 1923-1960 2002 277 f Tese (Doutorado em Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Universidade Federal Fluminense NiteroiacuteRJ 2002 p 60

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Por outro lado a emergecircncia de uma produccedilatildeo literaacuteria reivindi-cada pelos novos escritores que tratavam de tematizar o Brasil de forma mais realista e criacutetica conduziu o proacuteprio Catullo a fazer nos seus textos publicados em forma de livro que apareceram nos anos 1930 uma poesia mais ufanista bem ao gosto dos intelectuais abraccedilados pelo governo de Getuacutelio Vargas A aproximaccedilatildeo de suas temaacuteticas sertanejas com certo ufanismo nacional ia ao encontro de um tipo de produccedilatildeo li-teraacuteria que ganhou focirclego com o advento de Vargas ao poder Contudo se por um lado suas poesias eram defenestradas por representar um imaginoso sertatildeo por outro eram saudadas por representar de maneira ufanista o paiacutes ndash de resto tocircnica das poliacuteticas culturais do governo Vargas nesse periacuteodo

Tal ufanismo se tornou modelo propulsor do bom cidadatildeo brasi-leiro e foi um dos pilares do primeiro periacuteodo desse governo (1930-1945) A ideia de um Brasil grande promissor e com um povo trabalhador foi construiacuteda com a ajuda de inuacutemeros meios inclusive o cinema e o raacutedio que nesse contexto surgiram como uma forccedila fundamental para a propa-ganda governista A muacutesica vinculada ao projeto pedagoacutegico do Estado Novo varguista tomava as raacutedios pelo paiacutes afora fazendo parte do rol propagandiacutestico da figura de Getuacutelio Vargas265 No teatro foi o tempo de grandes produccedilotildees que tematizavam tipos nacionais de forma ufanista mas fundamentalmente foi o iniacutecio de um boom no mercado livreiro

A reivindicaccedilatildeo de uma identidade nacional ou de uma ldquoorientaccedilatildeo brasileirardquo como dizia o escritor Maacuterio de Andrade foi a forma orga-nizadora por excelecircncia dos discursos sobre a cultura bem como dos diagnoacutesticos e estrateacutegias de escritores intelectuais e homens puacuteblicos agrave eacutepoca ciosos natildeo sem divergecircncias de afirmar a existecircncia de uma cultura brasileira266

265 Joseacute Miguel Wisnik faz uma rica discussatildeo acerca da inclusatildeo da muacutesica especialmente a partir de Villa-Lobos no rol de elementos utilizados pelo Estado brasileiro em sua poliacute-tica de construccedilatildeo do nacional poacutes- anos 30 Cf WISNIK Joseacute Miguel Getuacutelio da Paixatildeo Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo) In SQUEFF Ecircnio WISNIK Joseacute Miguel Muacutesica o nacional e o popular na cultura brasileira Satildeo Paulo Brasiliense 2004 p 129-190

266 DUTRA Eliana de Freitas Cultura In GOMES Acircngela de Castro (coord) Histoacuteria do Brasil Naccedilatildeo (1808-2010) olhando pra dentro (1930-1964) Rio de Janeiro Objetiva 2013 v 4 p 229

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As estrateacutegias de escritores ndash e sem duacutevida de editores ndash aproxi-maram-se de certo ufanismo oficial que teve no ministro da Educaccedilatildeo do governo Vargas Gustavo Capanema um entusiasta e mecenas Ainda que muitos artistas e escritores natildeo estivessem interessados na construccedilatildeo oficial de certa representaccedilatildeo do ldquopovo brasileirordquo o fato de tais produccedilotildees obterem relativo sucesso com o puacuteblico consumidor fez com que cada vez mais tal temaacutetica nacionalista fosse procurada nas produccedilotildees culturais do periacuteodo

Nesse momento Catullo da Paixatildeo Cearense jaacute fazia bastante sucesso na produccedilatildeo de musicais e o teatro ligeiro se tornava um es-paccedilo de entretenimento disputado inclusive por grandes figuras poliacute-ticas Por isso sua relaccedilatildeo com as poliacuteticas oficiais de Vargas demandam uma anaacutelise mais detida a fim de se compreender os caminhos traccedilados pelo poeta em seus livros no periacuteodo

A ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ao poder por meio de um movi-mento revolucionaacuterio no ano de 1930 representou para a produccedilatildeo cultural do Brasil um corte profundo ndash jaacute bastante estudado por pesqui-sadores em diversas aacutereas Sua chegada ao poder representou na pri-meira hora a vitoacuteria de um movimento que se pretendia modernizador da poliacutetica sendo saudado por muitos intelectuais e tambeacutem em di-versas canccedilotildees que tratavam de difundir a ideia de uma revoluccedilatildeo que viria para mudar Assim pode ser compreendida uma composiccedilatildeo que foi reiteradas vezes tocada nas raacutedios da capital federal em 1930 intitu-lada 24 de outubro um hino em homenagem agrave revoluccedilatildeo daquele ano

Lanccedilada pela gravadora Brunswick e interpretada por Gastatildeo Formenti acompanhado da orquestra Brunswick a letra de Catullo da Paixatildeo Cearense sintetiza o tom ufanista com que a chegada de Vargas ao poder era encarada naqueles idos

Cantemos um hino agrave GloacuteriaPais e filhos de leotildeesQue os pampas estatildeo cantandoAbraccedilados com os sertotildees

Vinde a noacutes bravos GetuliosDestemidos Florianos

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 205

Voacutes Juarezes soberanosGenerais triunfadoresMas trazeis na vossa frenteConduzindo a cavalgadaA liberdade montadaNum corcel cheio de flores

Derribado o despotismoExpulsai num grande exemploEsses vendilhotildees do temploDa Repuacuteblica altaneiraAteacute que venham de joelhosPedir-nos perdatildeo um diaRezando uma Ave MariaAos peacutes de nossa bandeira

Vinde a noacutes bravos GetuliosDestemidos FlorianosVoacutes Juarezes soberanosGenerais triunfadoresMas trazeis na vossa frenteConduzindo a cavalgadaA liberdade montadaNum corcel cheio de flores

De arma em punho brasileirosNesse ardoroso momentoErgamos o pensamentoComo quem reza uma missaSuplicando a Deus de joelhosQue o Brasil reerguenteSeja o berccedilo florescenteDo amor da paz e justiccedila267

Registre-se tambeacutem que no mesmo LP em que foi gravado o hino anteriormente transcrito constava no lado A do disco um hino em

267 24 de outubro canccedilatildeo de composiccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense e maestro H Vogeler Gravada em dezembro de 1930 por Gastatildeo Formenti e orquestra Brunswick pela gravadora Brunswick Fonte Base de Dados da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco Disponiacutevel em httpwwweducadoresdiaadiaprgovbrmodulesdebasersinglefilephpid=17896 Acesso em 11 jun 2020

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo206

homenagem aos tenentes grupo fundamental para o triunfo da Revo-luccedilatildeo de 30 intitulado Os 18 de Copacabana ndash uma referecircncia agrave revolta armada tenentista ocorrida em 1922 no Forte de Copacabana

Essa aproximaccedilatildeo de artistas com a poliacutetica oficial foi progressi-vamente se estreitando vindo a ser um dos elementos fundamentais para a construccedilatildeo de toda uma representaccedilatildeo de Vargas durante os quinze anos em que esteve no poder O proacuteprio Catullo que se benefi-ciara dos governos anteriores com uma vaga de datiloacutegrafo no Ministeacuterio da Viaccedilatildeo em 1922 (ocupaccedilatildeo que de fato nunca exerceu) voltou-se estrategicamente para produccedilotildees que estivessem de acordo com o novo tom da poliacutetica cultural implementada pelo novo chefe de Estado Em troca o Governo Provisoacuterio tratou de mantecirc-lo no posto de datiloacutegrafo do Ministeacuterio da Viaccedilatildeo por decreto em 1932268

Paralela a isso a Revoluccedilatildeo de 30 ocorreu num momento em que o paiacutes comeccedilava a escutar raacutedio O puacuteblico consumidor de programas radiofocircnicos cresceu vertiginosamente tendo como grande triunfo a muacutesica que exerceu nesses segmentos um produto de grande rentabili-dade As casas de discos lucravam com a venda de aparelhos e LPs bem como a publicidade de produtos fazia aumentar a rentabilidade das estaccedilotildees de raacutedio A Mayrink Veiga e a Raacutedio Sociedade ambas no Rio de Janeiro capitaneavam essa efervescecircncia com programas musicais diaacuterios Cantores foram rapidamente consagrados Francisco Alves Carmen Miranda e Orestes Barbosa foram alguns dos novos artistas catapultados pela nova miacutedia

No teatro tambeacutem a muacutesica era a vedete principal havia bastante tempo Os musicais ganhavam maior relevo na produccedilatildeo teatral sendo comum artistas de raacutedio apresentarem-se nos palcos com grande su-cesso de puacuteblico e compositores antes desconhecidos terem suas muacute-sicas repentinamente cantaroladas nas ruas cariocas Aiacute tambeacutem surgiu um velho problema com tanta gente cantando para um puacuteblico cres-cente quem ganha com esse boom musical Ou seja quem deteacutem os

268 O jornal A Noite noticia em sua primeira paacutegina o decreto que confirma Catullo e ldquoAneacutesia Pinheiro Machado para dactylographos da Secretaria de Estados (sic) Cf A Noite 9 abr 1932

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 207

direitos de reproduccedilatildeo da canccedilatildeo Um incidente noticiado pelo jornal A Noite revela algo dessas dificuldades que surgiam da publicidade de uma obra por um terceiro

Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhava a gravaccedilatildeo de Talento e formosura modinha de sua autoria de iniacutecios do seacuteculo XX pelo jovem cantor Francisco Alves posteriormente consagrado ldquorei da vozrdquo De repente Catullo fica incomodado com a dicccedilatildeo do cantor que ldquofor-ccedilara algumas palavras do versordquo Em jornal concluiacutea

Dahi a prova de que as gravaccedilotildees devem sempre ser feitas na presenccedila do autor ao qual natildeo poderatildeo escapar os miacutenimos defeitos para o bem do proacuteprio cantor que muitas vezes daacute a muacutesica uma interpretaccedilatildeo diversa da idealizada pelo musicista causando contrariedades Aleacutem disso no caso de dificuldade na gravaccedilatildeo dos versos ou da muacutesica estando o autor presente seraacute faacutecil uma modificaccedilatildeo que auxilie a gra-vaccedilatildeo do disco269

Num momento de maior difusatildeo da canccedilatildeo atraveacutes de raacutedios e discos houve tambeacutem uma tentativa de regrar a interpretaccedilatildeo de forma que o autor da muacutesica natildeo fosse contrariado em suas intenccedilotildees quando da gravaccedilatildeo da canccedilatildeo Esse incidente poreacutem parece ser um caso raro num momento em que a autoria de vaacuterias canccedilotildees gravadas natildeo impor-tava tanto para o puacuteblico quanto o inteacuterprete que natildeo raro ganhava os louros de artista e autor Era algo muito comum agrave eacutepoca os artistas mais pobres do Rio de Janeiro venderem suas composiccedilotildees a fim de angariar algum dividendo mesmo natildeo tendo seu nome exposto na obra publicada Satildeo conhecidas as constantes subidas ao morro por Maacuterio Reis para comprar muacutesicas uma das quais revelou em sua voz o sam-bista e compositor Cartola Contudo aquele incidente de Catullo com Francisco Alves natildeo era assim tatildeo comum num periacuteodo em que o com-positor pouco se preocupava com a interpretaccedilatildeo de sua canccedilatildeo

O que parece irocircnico eacute que se fora como inteacuterprete textual de can-ccedilotildees que escutava nas ruas que Catullo se tornara inicialmente conhecido anos depois sua luta parecia ser defender suas letras regrando a interpre-

269 A Noite 13 out 1930 p 4

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo208

taccedilatildeo oral da canccedilatildeo A oralidade tornava-se assim um problema para o primeiro autor do produto exatamente num momento em que ela ganhava cada vez mais um puacuteblico consumidor assiacuteduo O texto estaria dessa forma submetido agrave interpretaccedilatildeo oral do inteacuterprete cabendo muitas vezes a esse uacuteltimo o reconhecimento como autor e grande artista

Esse retorno de puacuteblico causou grande rebuliccedilo no que concerne agrave definiccedilatildeo de direitos autorais A lei que defendia os direitos autorais dos compositores da canccedilatildeo era negligenciada e raramente se pagava pelo uso desses direitos A situaccedilatildeo soacute comeccedilou a mudar aos poucos com a criaccedilatildeo do Centro Musical do Rio de Janeiro em maio de 1907 tendo agrave frente o maestro Francisco Braga O Centro funcionava como um sindicato que lutava pelos direitos dos muacutesicos cariocas

Poreacutem a criaccedilatildeo natildeo melhorou muito a situaccedilatildeo dos muacutesicos natildeo profissionais e letristas entendidos sempre sob o termo autoexplicativo de ldquodireito menorrdquo Esses uacuteltimos eram quase sempre desconsiderados dentro do universo musical da eacutepoca havendo soacute a possibilidade de patentear uma letra registrando-a na Biblioteca Nacional coisa que ra-ramente aconteceu de fato Soacute em 1917 sob o impacto do Coacutedigo Civil que regulou a propriedade intelectual e com a criaccedilatildeo de uma divisatildeo de muacutesica na Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais (SBAT) as letras compostas para serem apresentadas nos espetaacuteculos ganharam um status de algo a ser considerado propriedade de um compositor-letrista A SBAT ficaria conhecida como um modelo para os demais profissio-nais de outras aacutereas reivindicarem direitos autorais270

A confusatildeo acerca do atestado de paternidade de uma letra era expressa nas vaacuterias alteraccedilotildees possiacuteveis na composiccedilatildeo quando acom-panhada de determinada canccedilatildeo Se a canccedilatildeo se mantinha a letra quase sempre ganhava adendos ou eram subtraiacutedos trechos ndash fato para o qual jaacute atentamos quando Catullo organizava letras de modinhas O fato eacute que viver de muacutesica era algo muito difiacutecil nas primeiras deacutecadas do

270 Interessante notar que a Associaccedilatildeo Brasileira de Imprensa propunha a seus soacutecios a ldquoinstalaccedilatildeo de um serviccedilo idecircntico ao existente na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais para a fiscalizaccedilatildeo e cobranccedila dos direitos autorais devidos pela imprensa tanto do paiacutes como quiccedilaacute do estrangeirordquo Cf Diaacuterio de Notiacutecias 5 jun 1940

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seacuteculo XX no Rio de Janeiro e ser tatildeo somente um letrista acarretava ainda mais problemas para o candidato a autor de letras

Nos anos 1920 quando a febre por musicais ganhava a sociedade carioca jaacute era possiacutevel registrar as canccedilotildees que faziam parte de espetaacute-culos teatrais por intermeacutedio da SBAT que repassava ao autor a quantia devida Tal serviccedilo prestado pela sociedade no entanto era mateacuteria de acirradas criacuteticas por parte dos compositores sendo criado jaacute em 1938 por alguns deles entre os quais Braguinha e Maacuterio Lago a Associaccedilatildeo Brasileira de Compositores e Autores (ABCA) para reunir os autores brasileiros do ldquopequeno direitordquo Essa mudanccedila provocou um grande debate entre a nova Associaccedilatildeo e a SBAT que natildeo queria perder o mo-nopoacutelio de cobranccedila por direitos autorais Esse debate chegou a en-volver o presidente da Sociedade de Autores e Compositores da Argentina Francisco Canaro que se dispocircs a mediar um entendimento entre as duas entidades271 Mais tarde a ABCA se encarregaria de criar um estatuto proacuteprio e mudaria de nome em 1942 para Uniatildeo Brasileira de Compositores (UBC) tendo agrave frente Ary Barroso

Eacute bem verdade que os compositores se dividiram alguns enten-dendo que a criaccedilatildeo de uma nova associaccedilatildeo ajudaria no esforccedilo da luta por direitos autorais enquanto outros consideravam que a SBAT em-bora deficiente ainda representava bem os interesses da classe

Jaacute conhecido por suas apresentaccedilotildees de sucesso nos teatros es-crevendo peccedilas e participando de musicais Catullo da Paixatildeo Cearense foi um dos que resolveram jaacute em iniacutecios dos anos 1940 permanecer ligados agrave SBAT indicando a sociedade como responsaacutevel por seus di-reitos tendo Guimaratildees Martins como seu representante

De acordo com a lei somente a SOCIEDADE BRASILEIRA DE AUTORES TEATRAIS agrave Avenida Almirante Barroso nordm 97 3ordm andar (Esplanada do Castelo) Rio de Janeiro Brasil pode em nome do meu cessionaacuterio e uacutenico representante Guimaratildees Martins autorizar repre-sentaccedilotildees traduccedilatildeo adaptaccedilatildeo irradiaccedilatildeo etc desta peccedila272

271 Diaacuterio de Notiacutecias 12 dez 1939272 Parte constante na contracapa de Um boecircmio no ceacuteu O livro trata-se de uma peccedila

recheada de canccedilotildees incidentais em que um boecircmio que seria Catullo dialoga com

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Contudo Catullo natildeo foi o uacutenico que resolveu ceder agrave SBAT os direitos para a cobranccedila de direitos autorais Um grupo de consagrados compositores lanccedilou um abaixo-assinado assegurando a confianccedila na arrecadaccedilatildeo de direitos autorais pela sociedade Esse manifesto se so-bressaiu pelos nomes consagrados que o assinaram

Agrave Sociedade Brasileira de Autores Teatrais ndash Os abaixo assinados compositores brasileiros de muacutesica desejam por este meio assegurar a sua solidariedade agrave SBAT sob cuja bandeira permanece e a cujos ser-viccedilos especializados entregam a administraccedilatildeo e arrecadaccedilatildeo dos seus direitos autorais de execuccedilatildeo Eacute oportuno consignar a estranheza dos signataacuterios desta ante a fundaccedilatildeo de um grecircmio de compositores que se apresenta como representante da classe quando eacute certo que pelos nomes sem duacutevida merecedores de todo o aplauso puacuteblico que lhe compotildeem o quadro social deveraacute ele denominar-se de compositores de muacutesica popular o que teria a elementar vantagem de pelo menos evitar interpretaccedilotildees errocircneas ou maliciosas que bem podem ser no-civas ao prestiacutegio da cultura artiacutestica nacional (ass) Francisco Braga J Otaviano H Vila Lobos Assis Republicano Oscar Lorenzo Fernandez Joanidia Sodreacute Newton Paacutedua Eleazar de Carvalho Afonso Martinez Grau Henriquel Vogeler Joseacute Vieira Brandatildeo Otaacutevio Bevilaacutequa Heckel Tavares273

Os nomes que assinam o abaixo-assinado eram jaacute nessa eacutepoca reconhecidos compositores e embora reiterassem que a nova asso-ciaccedilatildeo tinha nomes ldquomerecedores de todo o aplauso puacuteblicordquo natildeo se isentavam de frisar uma diferenccedila chamando a atenccedilatildeo do leitor para o fato de que a nova associaccedilatildeo surgida seria de ldquocompositores de muacutesica popularrdquo o que acarretaria em consequecircncia um efeito nocivo ldquoao prestiacutegio da cultura artiacutestica nacionalrdquo

A sutileza e mesmo o respeito com que os signataacuterios se re-portam agrave nova associaccedilatildeo natildeo escondem a tecircnue mas fundamental dis-tinccedilatildeo que buscavam dar a dois tipos de produtos sendo um deles iden-tificado com o termo ldquopopularrdquo A separaccedilatildeo na classe de compositores era o resultado de uma distinta representaccedilatildeo daquilo que se entendia

Satildeo Pedro no ceacuteu Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946

273 Reproduzido em Diaacuterio de Notiacutecias 16 jul 1942 p 9

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como ldquomuacutesica popularrdquo e daquilo que natildeo deveria ser entendido por tal definiccedilatildeo A diferenccedila de interesses daqueles que os signataacuterios enten-diam serem os compositores populares era uma agenda necessaacuteria para afirmar a disparidade de seus interesses daqueles de um grupo que con-trariando os autores do manifesto ldquose apresenta como representante da classerdquo Mas de fato natildeo se pode dizer que aqueles que ficaram na SBAT foram tatildeo somente os artistas da chamada muacutesica distinta da ldquopo-pularrdquo ndash como parecem fazer crer os assinantes do documento acima ndash pois um daqueles que continuaram sob a eacutegide da SBAT foi justamente Catullo da Paixatildeo Cearense que seguramente natildeo era representado como um artista que natildeo fosse da ldquomuacutesica popularrdquo

Catullo aliaacutes publicou como seu uacuteltimo livro em vida uma cole-tacircnea de todas as suas modinhas sendo a primeira vez conforme a lei de direitos autorais ou seja citando os respectivos compositores de cada muacutesica que acompanhava a letra transcrita Com a publicaccedilatildeo intitu-lada Modinhas o poeta reafirmava sua autoria sobre as letras podendo com a execuccedilatildeo e interpretaccedilatildeo delas dali por diante ter os direitos zelados pela SBAT Guimaratildees Martins organizador e prefaciador da obra destacava o fato de reeditar aquelas velhas modinhas mesmo que Catullo num primeiro momento natildeo o quisesse

Catullo tinha razatildeo para natildeo desejar a reediccedilatildeo dos livros de suas can-ccedilotildees musicadas como estavam Eacute que aqueles livros eram impressos descuidadamente sem a sua revisatildeo pela popular e hoje extinta Livraria Quaresma que aleacutem do mais misturava por sua conta proacute-pria em alguns desses livros canccedilotildees da autoria de Catullo com can-ccedilotildees da autoria de outros autores sem lhes mencionar os nomes Tudo isso em completo desrespeito agrave Lei e dando a impressatildeo de que todas as modinhas eram da autoria exclusiva de Catullo274

Sem duacutevida em um momento em que a muacutesica eacute protagonista de um estouro do entretenimento na sociedade brasileira impulsionados pelo raacutedio e teatro as leis de direitos autorais vieram regrar a repro-duccedilatildeo de tal artefato cultural nas novas miacutedias Essas leis vieram cons-

274 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1946 (Contracapa)

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tituir um novo debate que recolocava no centro da discussatildeo uma ten-tativa de classificaccedilatildeo social do que viria a ser o termo ldquopopularrdquo

A organizaccedilatildeo de entidades classistas que buscavam seus direitos recolocava em novas roupagens questotildees como a separaccedilatildeo entre ldquopo-pularrdquo e ldquoeruditordquo (visando a construir representaccedilotildees diferentes e con-trastantes) a disputa pela propriedade legal da produccedilatildeo musical (com a construccedilatildeo de entidades zeladoras da lei autoral que pudesse penalizar aqueles que a burlassem) e a profissionalizaccedilatildeo do compositor temas estes que se esboccedilavam desde pelo menos o comeccedilo do seacuteculo XX Haacute de se frisar que tais debates nascem de uma separaccedilatildeo alavancada pela exposiccedilatildeo midiaacutetica dos novos cantores de raacutedio

O sucesso dos cantores de raacutedio consequecircncia de sua maior ex-posiccedilatildeo ameaccedilava eclipsar o nome do autor ndash problema que de resto jaacute era bastante comum Em contrapartida cria-se um sistema que mesmo eclipsando o autor diante do sucesso do inteacuterprete da canccedilatildeo daria ao primeiro a vantagem de ganhar financeiramente pela execuccedilatildeo de sua muacutesica pela cobranccedila dos direitos autorais Natildeo eacute sem espanto que vemos Catullo ndash que tinha nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX com a publicaccedilatildeo de livros um trunfo que fazia com que se apropriasse de muitas canccedilotildees sob o seu nome ndash jaacute nos anos 1930 e 1940 quando suas modinhas tendem a ser publicizadas com mais sucesso nas raacutedios do que nos livros vecirc-se na defensiva questionando o apagamento de sua autoria pelo inteacuterprete Agrave apropriaccedilatildeo do material oral pelo autor de um texto impresso sucede desta feita uma apropriaccedilatildeo do texto pelo indiviacuteduo no uso de sua voz ou seja o cantor da raacutedio que de resto era o novo iacutedolo de um paiacutes que comeccedilava a escutar essa nova tecnologia

Vale uma raacutepida reflexatildeo sobre esse processo Havia muito tempo o letrista (o poeta ou o bardo como poderia ser reconhecido o autor de uma letra) gozava de uma fama em detrimento do muacutesico autor da canccedilatildeo Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX para um muacutesico ter reconhecimento diz o jornalista Edigar de Alencar ldquoera preciso ser um Carlos Gomes para fazer desaparecer o poetardquo275 Eacute possiacutevel que por essa inferioridade do

275 ALENCAR Edigar de Claridade e sombra na muacutesica do povo Rio de Janeiro Francisco Alves Brasiacutelia INL 1984 p 56

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muacutesico em relaccedilatildeo ao letrista ndash este uacuteltimo quase sempre criando em cima da muacutesica e sendo natildeo raras vezes ele mesmo cantor ndash tenha feito com que os muacutesicos fossem os primeiros a se organizar em pequenas associa-ccedilotildees para lutar pelos seus direitos considerado ldquogrande direitordquo

A proeminecircncia do letrista soacute era sobrepujada pela do cantor sempre mais conhecido Isso quando o letrista natildeo era o proacuteprio cantor a exemplo de Eduardo das Neves e Geraldo Magalhatildees cantores e com-positores do iniacutecio do seacuteculo XX Catullo representa uma exceccedilatildeo entre os demais sobressaiacutea pelo fato de ser um letrado e de publicar livros ndash e como dizia o interlocutor de Joatildeo do Rio no famoso Momento lite-raacuterio ainda no comeccedilo do seacuteculo XX quem escrevia era ldquosempre um iacutedolordquo ldquomesmo que escreva malrdquo Se a publicaccedilatildeo de livros de canccedilotildees o distinguiu durante muito tempo no campo das canccedilotildees com o advento do raacutedio os autores de livros tiveram de conviver com outro tipo de entretenimento que invadia os lares e com ele a criaccedilatildeo de novos iacutedolos os artistas de raacutedio

Agrave primeira vista pareciam campos distintos mas consideran-do-se que o livro fazia parte de um entretenimento que comeccedilava a in-vadir os lares brasileiros o raacutedio surgiu como um forte rival no passa-tempo diaacuterio O autor de livros teria a companhia de novos iacutedolos como Carmen Miranda e Ary Barroso Na praacutetica haacute uma mudanccedila na repre-sentaccedilatildeo do cantor que deixava de ser caracterizado por adjetivos estig-matizadores como ldquoboecircmiordquo e ldquotrovadorrdquo (quando natildeo ldquovagabundordquo) para ser representado tatildeo simplesmente como um ldquoartistardquo ndash e artista de uma nova tecnologia que foi incansavelmente usada pelo proacuteprio go-verno Vargas e catapultou assim o sucesso da radiofonia no Brasil Raacutedio literatura e teatro nessa triacuteade Vargas buscava criar um polo de comunicaccedilatildeo com a sociedade pelos canais que vendiam entreteni-mento para o grande puacuteblico Nessa mesma triacuteade alternava-se Catullo que tambeacutem natildeo ficou imune ao projeto varguista

O teatro no texto

Em iniacutecios dos anos 1930 o palco tornou-se o lugar constante de Catullo da Paixatildeo Cearense que havia muito tinha na performance

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declamando ou cantando a imagem mais representativa para seu puacute-blico As descriccedilotildees de Catullo apresentando-se no teatro datildeo conta de seu poder interpretativo de poemas e canccedilotildees como bem salientava uma reportagem do Correio da Manhatilde ao descrever a cena de Catullo no palco

Antes de se rasgar a cortina do palco estava a sala imersa numa suave interrogaccedilatildeo numa nuanccedila de luar de luar que chegasse ateacute noacutes depois de se haver banhado em montanhas longiacutenquas []Abre-se o panno e a impressatildeo se confirma Os aplausos natildeo cessamO semblante de Catullo tem qualquer coisa das nobrezas melancoacutelicas e insatisfeitasDeclamando transfigura-se cresce aumenta faz-se creanccedila o velho a sua testa que eacute o seu maior symbolo vasta ampla lumindo de modo singular como se houvesse metalizado em outras edades subia em busca do cabelo quase inexistente e estendia-se pela cabeccedila toda de onde pa-recia que a matildeo resvalaria como por sobre uma superfiacutecie polidaA luz do olhar transmuda-se []276

A representaccedilatildeo de um Catullo performaacutetico especialmente quando o palco tornou-se espaccedilo constante para o poeta trabalhava a favor de seu grande sucesso no teatro Isto fez com que sensiacutevel agrave forccedila do teatro como espaccedilo de sociabilidade do mundo letrado no periacuteodo os palcos fossem por um bom tempo o espaccedilo de atuaccedilatildeo principal da produccedilatildeo do poeta No teatro Catullo poderia exercer dois de seus principais trunfos como artista declamar seus poemas e cantar suas canccedilotildees

Ladeando sua maior participaccedilatildeo no teatro Catullo tambeacutem comparecia de maneira frequente agrave raacutedio Mayrink Veiga (a de maior audiecircncia em iniacutecios dos anos 1930) onde por um tempo foi acompa-nhado de muacutesicos como Luperce Miranda Patriacutecio Teixeira Pixinguinha e Tute apresentando-se no programa conhecido como Velha Guarda277

Entre 1931 e 1937 periacuteodo em que muito comumente partici-pava de musicais teatrais e programas de raacutedio a uacutenica publicaccedilatildeo

276 Correio da Manhatilde 25 jun 1930 p 5277 Correio da Manhatilde 1ordm jan 1938 p 3

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lanccedilada com o nome de Catullo foi o livro de poemas O sol e a lua em 1934 Embora colocado de lado por muitos autores da nova lite-ratura por natildeo estar de acordo com os novos criteacuterios estabelecidos para se representar um grande poeta Catullo continuou sendo consi-derado um grande poeta por grande parte do mundo letrado inclu-sive pelo novo chefe de Estado Getuacutelio Vargas A admiraccedilatildeo de Vargas por Catullo inclusive fez com que sabendo de seu cargo como datiloacutegrafo Vargas o fizesse aposentar por serviccedilos prestados agrave cultura do paiacutes

Esse reconhecimento por um chefe de Estado se expressaraacute nas obras de Catullo que publicaraacute o seu O sol e a lua pela Imprensa Nacional Mas mais importante do que essa publicaccedilatildeo Catullo lan-ccedilaraacute em iniacutecios de 1938 um livro dedicado ao chefe da poliacutecia de Vargas (neste momento atuando como ditador apoacutes um golpe em novembro de 1937) o capitatildeo Filinto Miller A obra tinha como tiacutetulo Oraccedilatildeo agrave bandeira A publicaccedilatildeo foi lanccedilada e editada pelo Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal

Experimentando com ecircxito novas formas de expressatildeo Catullo da Paixatildeo Cearense natildeo deixaria de representar em seu texto uma imagem sua como grande poeta Atento aos novos caminhos que a pro-duccedilatildeo artiacutestica no Brasil tomava o poeta tratou de dar um novo sentido para seus livros de acordo com as novas formalidades que regravam a consagraccedilatildeo de seu nome como poeta ou agora como artista da pa-lavra fosse ela cantada ou escrita

Seu livro O sol e a lua era um longo poema de duas partes onde na primeira delas um ldquopoetardquo urbano diante de um puacuteblico re-cita um poema ao sol e na segunda um bardo sertanejo de nome Chico Azulatildeo munido de um linguajar tiacutepico (foacutermula consagrada por Catullo em obras anteriores) declama um poema agrave lua Nele Catullo reafirmava o caraacuteter performaacutetico de seus poemas com os versos en-trecortados por cenas em que personagens (uma moccedila bela o puacuteblico velhos) apareciam como que dando motes para que os personagens principais (o violeiro Chico Azulatildeo e o poeta citadino) pudessem contar o poema Para criar esse efeito Catullo lanccedilava matildeo da des-criccedilatildeo do local onde o poema seria declamado

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo216

SCENARIO

Era noite O Plenilunio clareava o terreiro de uma fazendo [sic] no sertatildeo onde um ldquocardumerdquo de moccedilas moccedilos velhas e velhos se agitava na tumultuosa alegria de uma festa tradicional Flautas violas cava-quinhos harmocircnicas e violotildees gemiam sua queixa amorosa ao espiacute-rito da noite que parecia ter sido convidada para o rumoroso festival Achando-se presentes um poeta da cidade e um afamado cantador da-quelas paragens (quero dizer ndash a Lyra e a Viola) acedendo ao convite de todos os convivas para que saudassem o sol que estivera esplendido naquele dia e aacute Lua que vinha desabrochando nrsquouma das suas mais encantadoras apariccedilotildees depois de vibrante salvas de palmas em meio de profundo silecircncio assim comeccedilou o poeta a sua oraccedilatildeo278

A entrada de elementos cecircnicos em um livro de poemas de Catullo revestia o texto de um caraacuteter teatral que fazia com que seus leitores representassem a leitura com a teatralizaccedilatildeo do texto Isso era necessaacuterio lembrar uma constante nos livros publicados por Catullo desde pelo menos o lanccedilamento de Meu sertatildeo (1918) e como vimos o primeiro com temaacuteticas sertanejas O que parece ser novo eacute que en-quanto naquele se expressa uma oralidade impressa no texto com o texto repleto de iacutendices de oralidade neste O sol e a lua o que objeti-vava o autor era um entendimento de que o texto natildeo era soacute a represen-taccedilatildeo do oral como tambeacutem ele deveria ser lido tendo em mente a per-formance necessaacuteria para sua efetivaccedilatildeo O texto natildeo visava tatildeo somente a uma leitura oralizada mas sobretudo performaacutetica Essa mudanccedila seguramente remete ao maior envolvimento de Catullo com o mundo do teatro A escrita alimenta-se de elementos cecircnicos obrigando o leitor a ter em mente a representaccedilatildeo cecircnica do poema

O proacuteprio tiacutetulo do preacircmbulo do poema O sol e a lua (ldquoScenariordquo) remete a uma representaccedilatildeo no palco E os personagens durante o poema vatildeo comumente participando da recitaccedilatildeo com palmas vaias ruiacutedos e mesmo com a intervenccedilatildeo direta no poema como no trecho seguinte ldquoNeste ponto o bardo interrompeu o curso da sua oraccedilatildeo porque a moccedila mais bela do divino cenaacuteculo levantou-se e veio ofere-

278 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p 9

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 217

cer-lhe a flor que ornamentava o diadema dourado dos seus cabelos lourosrdquo279 Podemos perceber ainda no final da declamaccedilatildeo do vio-leiro Chico Azulatildeo a intervenccedilatildeo do puacuteblico

Depois dos uacuteltimos aplausos coroando o final do poema sertanejo o violeiro a pedido geral cantou o lsquoLuar do sertatildeordquo acompanhado por todo o auditoacuterio que inundava o amplo terreiro da Fazenda E assim terminou a festa daquela noite memoraacutevel que ficou sendo chamada em todo sertatildeo ndash A noite do Sol e da Lua280

Com O sol e a lua a produccedilatildeo de Catullo adentra um modelo que poderaacute ser visto na maioria de seus livros posteriores qual seja a refe-recircncia latente ao mundo do teatro Foi justamente seu contato cada vez mais frequente com esse espaccedilo que produziu uma reviravolta na sua produccedilatildeo textual A sutileza nas inclusotildees de passagens que remetiam ao espaccedilo do teatro buscando assim regrar uma leitura fazia lembrar seus primeiros livros de modinhas quando buscava regrar as letras de modi-nhas com as muacutesicas a acompanhaacute-las No entanto O sol e a lua embora com intervenccedilotildees musicais fundamentais natildeo tratava de canccedilotildees mas tambeacutem remetia a um desempenho um desempenho gestual tiacutepico do teatro entremeado com personagens que se revezavam no poema

Se nos livros de modinhas o que dava o tom do texto eram as muacutesicas que deveriam acompanhar a letra aqui o que pontua as decla-maccedilotildees eacute o ambiente com o puacuteblico e os personagens que adentram o texto Mas em um ponto ambos se aproximavam o texto pedia um complemento que soacute poderia ser dado fora dele fosse pela muacutesica fosse pelos personagens que pontuavam o ambiente de declamaccedilatildeo Assim nos livros de modinhas o clima do texto depende de uma exte-rioridade que natildeo estaacute nele ndash comumente na muacutesica de outro autor que natildeo aparecia no livro jaacute que Catullo escrevia (ou transcrevia) somente as letras Nesses livros havia inclusive a possibilidade de ler as letras como se fossem poemas Jaacute no texto teatralizado de Catullo em O sol e a lua a exterioridade (os elementos para a sua encenaccedilatildeo) encontra-

279 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p 28280 Ibidem p 85

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo218

va-se no proacuteprio texto impresso O autor torna-se a autoridade uacuteltima do texto criando inclusive os complementos necessaacuterios para o texto ser desenvolvido fora

Haacute ainda em O sol e a lua um elemento importante que visava a alertar o leitor para a anterioridade do poema A representaccedilatildeo do dia em que leu O sol e a lua pela primeira vez A descriccedilatildeo do ambiente antes da declamaccedilatildeo do poema eacute uma tentativa de criar um efeito formal naquilo que seraacute lido pela exemplaridade de um acontecimento A forma com que ele deveria ser entendido (lido) era receita fundamental para Catullo Daiacute o autor conta na seccedilatildeo intitulada ldquoAo leitorrdquo do dia em que leu pela primeira vez o poema publicado chamando a atenccedilatildeo para a ldquoatmosferardquo em que fora lido

Aproveitando o ensejo quero dizer-vos que recitei pela primeira vez estes poemas no palacete do Dr Leite Garcia no Alto da Bocirca Vista e a lembranccedila dessa noite me fez precedel-os do ldquoscenariordquo que ides ler []O auditoacuterio era a essecircncia do que haacute de mais bello formoso e intelec-tual Rodeado de senhoras e senhoritas tendo ao meu lado uma or-chestra de violotildees regida por Joatildeo Pernambuco o priacutencipe dos vio-latildeonistas [sic] brasileiros sob o firmamento pintalgado de estrelas naquele ambiente marchetado de luzes multicores irradiadas de todos os acircngulos do palacete parecia-me estar nrsquoum palaacutecio de Fadas Ao ter-minar o primeiro poema recebendo prolongada salva de palmas o Dr Leite Garcia depois de um fervoroso improviso aos meus versos con-vidou uma senhorita para que executasse ao piano a sonata ldquoAo luarrdquo do imortal Beethoven em homenagem aacute Lua e aacute Mulher Apagaram-se entatildeo todas as luzes toda a iluminaccedilatildeo do palacete para que soacute se visse a da Lua que vinha nascendo []Foi a vez de Pernambuco que tocou ao violatildeo um dos seus mais belos choros acompanhado brilhantemente pelo terno281

A descriccedilatildeo dessa noite serviria para o leitor como premissa na leitura do texto que seguiria Construiacutea assim uma modalidade de leitura do texto levando em consideraccedilatildeo sua existecircncia anterior como acontecimento e afirmava a efemeridade dele O texto impresso como

281 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p XVIII-XIX

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 219

lugar de passagem cuja finalidade era ou a sua leitura como aconteci-mento que passou ou como indicaccedilatildeo de como ele deveria se passar Ambas as modalidades de leitura remetiam o texto a um desempenho que ndash embora Catullo indicasse e garantisse sua autoridade inclusive sobre a encenaccedilatildeo posterior ndash teria acontecimento num espaccedilo teatral

Essa organizaccedilatildeo textual era algo comum na produccedilatildeo do teatro de revista do periacuteodo Foram famosas nos anos 1930 as apresentaccedilotildees de Catullo caracterizado como ldquomarroeirordquo na ldquoCasa do Cabocircclordquo an-tigo Teatro Satildeo Joseacute no centro do Rio de Janeiro Laacute o teatro de revista tematizou cenas sertanejas com sucesso e consagrou muitos artistas novos como certo J Lucas que rivalizava com Catullo quem era o me-lhor cantor sertanejo ao lado de jovens atrizes do teatro brasileiro

E ningueacutem poacutede dizer qual dos dois eacute maior mais impressionante O que sabe sim eacute que se o programma da ldquoCasa do Caboclordquo jaacute era so-berbo com os elementos de que dispunha e entre os quaes eacute justo que se destaquem Jararaca Ratinho Joatildeo Lino maior ainda ficou com a par-ticipaccedilatildeo de J Lucas o cantor novo e de Catullo da Paixatildeo Cearense o poeta do nordeste Dercy Gonccedilalves e Victoria Regia282

De Caboclo brasileiro (1930) a O sol e a lua (1934) com sua maior inserccedilatildeo no teatro a produccedilatildeo de Catullo ganharia um efeito mais performaacutetico do texto com alusotildees a ldquoscenaacuteriosrdquo ldquoauditoacuteriordquo ldquoaplausosrdquo intervenccedilotildees de personagens e muacutesicas a acompanhar Embora desde os primeiros livros de poesia escritos por Catullo a narrativa de um evento que antecedia a declamaccedilatildeo oral do poema fosse expliacutecita as referecircn-cias ao mundo do teatro se tornam bem mais claras aparecendo inclu-sive como advertecircncia ao leitor para a necessaacuteria ldquoambiecircnciardquo que pre-cederia a leitura

Essas convenccedilotildees teatrais eram parte imprescindiacutevel de uma pro-duccedilatildeo teatral do Teatro de Revista que mesclava diaacutelogos e muacutesicas a partir de um argumento o fio condutor A partir daiacute desenrolava-se no palco a histoacuteria encenada De muito sucesso por exemplo foi a peccedila O tribofe de Arthur Azevedo encenada ainda em 1891 que serviu de

282 Correio da Manhatilde 29 set 1932 p 8

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo220

base para o lanccedilamento posterior do livro A capital federal do mesmo autor Na peccedila de Azevedo aparecia um argumento que virou regra de muito sucesso em vaacuterias produccedilotildees desse tipo no seacuteculo XX o motivo sertanejo Quase sempre um sertanejo (ou vaacuterios) adentravam a capital federal onde se desenrolava a trama misturando humor e muacutesicas para o deleite do puacuteblico Essa foacutermula de sucesso foi usada por diversas vezes e representava quase sempre uma aposta certeira no sucesso de puacuteblico

Aleacutem do teatro era comum ver Catullo nos cines-teatro que se tornaram em meados da deacutecada de 1920 locais muito frequentados que rendiam ao artista alguns dividendos a mais O ator e empresaacuterio do teatro Procoacutepio Ferreira ndash que como empresaacuterio ocupou durante bom tempo o famoso Teatro Trianon ndash assim falava dessa inclinaccedilatildeo de Catullo para diversas atividades na arte dramaacutetica

Catullo natildeo tinha nada de bonito Era baixo cabeccedila grande raspada nariz adunco Andava a passos largos e curvado A voz sim era bela abaritonada dicccedilatildeo clariacutessima Tudo nele funcionava pata [sic] dar ex-pressatildeo aos seus poemas Gesticulava com propriedade e sabia calcular bem o tempo das pausas Possuiacutea todas as qualidades de um bom ator Fomos grandes amigos Durante o tempo que ocupei o Teatro Trianon Catullo deu ali vaacuterios recitais sempre com sucesso Outras vezes apre-sentava-se em cinemas cantando ao violatildeo Era esse o seu meio de vida Com as rendas dos livros natildeo podia contar Os editores exploravam-no ateacute a medula283

Num tempo em que os direitos autorais ainda natildeo eram formal-mente mateacuteria de disputa sujeitando determinado autor a contrato fir-mado com o editor voltar-se para o teatro (ou para o cinema) parecia um caminho possiacutevel Tanto mais pois que no teatro essa produccedilatildeo renderia mais dividendos para o artista ndash jaacute que era espaccedilo bastante frequentado entrando no rol das modas cariocas ndash e o autor de teatro ainda tinha a possiblidade de lutar por seus direitos a partir de associa-

283 FERREIRA Procoacutepio Procoacutepio Ferreira apresenta Procoacutepio Ferreira Rio de Janeiro Rocco 2000 p 311

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 221

ccedilotildees como a SBAT Desse modo quase sempre o artista de teatro era tambeacutem um autor

Catullo natildeo fugiu agrave regra Embora mantivesse suas produccedilotildees impressas por editoras durante algum tempo ndash desde pelo menos 1915 quando haacute registro de peccedila sob seu nome ndash era comum vecirc-lo no teatro como nos conta Procoacutepio Ferreira Sua presenccedila cecircnica e sua voz apre-ciada faziam com que acorresse ao teatro um puacuteblico interessado em suas apariccedilotildees Sua presenccedila constante a partir dos anos 1930 e seus textos repletos de referecircncias ao espaccedilo teatral eacute que podem ser enten-didos como uma reviravolta em sua produccedilatildeo Isso num momento em que sua produccedilatildeo poeacutetica como vimos sofria muitas criacuteticas especial-mente pelos novos escritores

Por outro lado a manutenccedilatildeo de uma ldquoaurardquo de poeta natildeo parecia faacutecil e apresentar-se no palco implodia cada vez mais essa manutenccedilatildeo pois havia um espaccedilo que separava o artista do escritor ndash ainda mais quando se deve levar em conta que mesmo algueacutem que escrevia para o teatro era considerado um autor menor O termo ldquoteatro ligeirordquo usado para designar as produccedilotildees do teatro de revista no Brasil marcava a di-ferenccedila em relaccedilatildeo a um teatro dito ldquomais seacuteriordquo Nas peccedilas mais ldquoseacute-riasrdquo eram encenadas em geral traduccedilotildees de claacutessicos europeus ca-bendo ao teatro de revista a produccedilatildeo do teatro por autores nacionais

O theatro entre noacutes vem atravessando ultimamente uma crise aguda de autores As companhias nacionais de declamaccedilatildeo que trabalham em nossos theatros tecircm os seus repertoacuterios todos de traducccedilotildees e adapta-ccedilotildees ou cousas mais ou menos parecida [sic] e agora muito e [sic] uso entre noacutes Soacute no theatro ligeiro de revista surgem os autores naciones nos quadros typicos ou sketches jaacute que os quadros de fantasia e baile satildeo geralmente copias de revistas estrangeiras e filmsAqui somente nos theatros de revista podemos mostrar obra nossa e cousas typicas nos quadros nacionais No theatro seacuterio de decla-maccedilatildeo temos somente traducccedilotildees adaptaccedilotildees e arranjos e o peor nem sempre confessados284

284 Jornal do Brasil 3 jun 1930 p 5

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo222

Essa coincidecircncia do autor nacional com um teatro menor o ldquoteatro ligeirordquo imediatamente conduzia a uma representaccedilatildeo do es-critor de teatro no Brasil como um autor menor diante do escritor de livros natildeo teatrais impressos Embora o primeiro pudesse com o su-cesso da peccedila ganhar alguma renda a mais do que o autor de livros natildeo voltados para a representaccedilatildeo cecircnica (quase sempre isso era uma regra) a representaccedilatildeo do escritor de peccedilas diante de um escritor de livros seguramente sofria menos glamourizaccedilatildeo Que diraacute algueacutem como Catullo que se arvorava natildeo soacute como autor de textos teatrais mas tambeacutem como ator encenando tanto em teatros como cinemas

Quando a crise o apertava demais punha umas barbas posticcedilas e laacute ia para o palco Era um espetaacuteculo de cortar o coraccedilatildeo ver aquele gigante da poesia metido na caracterizaccedilatildeo de um pobre sertanejo a cantar e recitar seus poemas e canccedilotildees para uma plateia boccedilal de cinemas ldquopo-eirardquo de bairros285

Essa dupla condiccedilatildeo de artista e autor traduzia-se em uma apre-ensatildeo cada vez mais difiacutecil de Catullo no campo literaacuterio de entatildeo Indicava por outro lado que o espaccedilo de produccedilatildeo de literatura sofria uma mudanccedila e que nos anos 1930 muitos autores consagrados em nuacutemero de vendagens de livros se voltaram para a produccedilatildeo teatral como forma de dar vazatildeo a uma produccedilatildeo literaacuteria que era colocada de lado pelas novas regras do campo literaacuterio Essas eram cada vez mais regidas por uma nova geraccedilatildeo de escritores que surgiam Foi o caso natildeo soacute de Catullo mas de Olegaacuterio Mariano por exemplo que de escritor conhecido voltou-se tambeacutem para uma produccedilatildeo teatral que se expres-sava na produccedilatildeo para o teatro ligeiro

A maior inserccedilatildeo de Catullo como autor teatral se expressaria de maneira definitiva no livro que eacute de fato quase uma autobiografia do escritor e no qual ele se assume em definitivo autor de uma obra que visava agrave representaccedilatildeo teatral Um boecircmio no ceacuteu de 1937

285 FERREIRA Procoacutepio Procoacutepio Ferreira apresenta Procoacutepio Ferreira Rio de Janeiro Rocco 2000 p 311

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 223

Um boecircmio no ceacuteu

Noite de 25 de junho de 1937 No 22ordm pavimento do edifiacutecio drsquoA Noite no centro do Rio de Janeiro Catullo da Paixatildeo Cearense declamava trechos de seu novo livro de poemas para os ouvintes da Raacutedio Nacional O autor intercalava as declamaccedilotildees com algumas canccedilotildees acompanhado de um violatildeo286 A Raacutedio Nacional possuiacutea agrave eacutepoca ao lado da Raacutedio Mayrink Veiga o maior nuacutemero de ouvintes do paiacutes O livro apresentado tinha como tiacutetulo Um boecircmio no ceacuteu e foi lanccedilado pela editora A Noite dona de um jornal homocircnimo que anun-ciava repetidamente a nova publicaccedilatildeo de Catullo considerado um ldquopoeta ateacute o acircmago da inteligecircncia e da sensibilidaderdquo O autor era apresentado como um ldquomenestrel sertanejordquo que ldquocontinua a ser de-pois de setenta anos bem e belamente vividos uma pinturesca ex-pressatildeo da naturezardquo287

Catullo ainda identificado como poeta sertanejo aparecendo em programas de raacutedio via sua fama como tal a aumentar com a irra-diaccedilatildeo para todo o Brasil de sua canccedilatildeo Luar do sertatildeo escolhida como tema da Raacutedio Nacional A retomada de uma representaccedilatildeo de Catullo como poeta da canccedilatildeo vinha ao encontro de uma valorizaccedilatildeo da muacutesica catapultada pelo advento exitoso da raacutedio nesses primeiros tempos Ao ldquomenestrel sertanejordquo que ganhara fama com livros de po-emas sertanejos Catullo retomava com Um boecircmio no ceacuteu sua repre-sentaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo na figura de um boecircmio tocador de violatildeo Isso porque em Um boecircmio no ceacuteu o personagem principal parecia ser o proacuteprio Catullo O Rio Social por exemplo dizia ldquoo bohemio eacute o proacuteprio Catullordquo288 Essa coincidecircncia do autor com seu personagem fazia com que os livros publicados por Catullo tivessem afinal um efeito de autenticidade O autor era o sujeito mais indicado para contar sobre algo E esse efeito como jaacute vimos foi muitas vezes

286 O evento foi noticiado pelo jornal A Noite 25 jun 1937287 A Noite 22 jun 1937288 Apud A Pacotilha 23 abr 1938 p 1 A Pacotilha era um jornal publicado no Maranhatildeo

terra natal de Catullo

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo224

uma maneira encontrada por Catullo para dar credibilidade agrave sua po-siccedilatildeo como autor de literatura

Em Um boecircmio no ceacuteu Catullo parecia novamente buscar tal foacutermula Mas se o poeta tentara um dia criar sua autoridade como conhecedor daquilo que escreve (no caso das modinhas publicadas pela Quaresma) ou pela identificaccedilatildeo nele de uma alma (nos poemas serta-nejos) na nova publicaccedilatildeo a coincidecircncia oacutebvia do autor com seu per-sonagem logo atestada por seus leitores tornava a autoridade daquele que escreve irrefutaacutevel Afinal quem melhor do que o autor Catullo poderia contar sobre o boecircmio Catullo

Um boecircmio no ceacuteu contava em versos a histoacuteria de um boecircmio que ao morrer era recebido no ceacuteu por Satildeo Pedro que passava a inter-rogaacute-lo A cada pergunta do santo o homem respondia com passagens de sua vida terrena As respostas vinham repletas de reflexotildees sobre a vida boecircmia mulheres criacuteticos acadecircmicos bebidas etc Depois de desconfiar das atitudes do receacutem-chegado aos poucos o santo vai sendo convencido de que estava diante de algueacutem temente a Deus e mais do que isso um poeta no que vai ser seguido por Santo Antocircnio e Satildeo Joatildeo que a tudo assistem escondidos Ao final Santo Onofre pro-tetor dos becircbados leva o boecircmio para viver na lua onde eacute recebido pela Virgem Maria ao som do Hino Nacional

Um elemento importante no texto eacute a retomada de uma nar-raccedilatildeo entremeada de indicaccedilotildees cecircnicas O livro eacute dividido em dois atos e algumas passagens sugerem uma escrita voltada para o teatro como a indicaccedilatildeo dos movimentos e tons de vozes que deveriam ser dados agrave leitura (como Satildeo Pedro pensando Boecircmio com ironia Santo Antocircnio entrando com Satildeo Joatildeo e dirigindo-se ao boecircmio) ou indicaccedilotildees do ldquocenaacuteriordquo (ldquoAo levantar o pano o boecircmio ainda estaacute dormindo e roncando escandalosamenterdquo) Tais artifiacutecios eram co-muns numa escrita para o teatro e jaacute haviam sido esboccedilados por Catullo em O sol e a lua No novo livro o personagem sertanejo daacute lugar ao personagem boecircmio com inuacutemeras indicaccedilotildees de que a repre-sentaccedilatildeo do personagem se confundia com seu autor como na pas-sagem a seguir

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 225

S PEDRO[]Mas como viveste laacute na Terra vivendo assim com Deus e o seu AmorBOEcircMIOJaacute voacutes Senhor de certo advinhastesPois fui poeta fui muacutesico e cantorS PEDRO (maravilhado)Poeta Tu focircste poeta Falas seacuterioQual eacute teu nomeBOEcircMIOEu vos direi no ouvidoSAtildeO PEDRO (sorrindo)Eu de haacute muito jaacute tinha pressentidoTu eacutes o grande poeta regionalJaacute pertences agrave nossa AcademiaFocircste eleito por Deus Eacutes imortalEm que paiacutes do mundo tu nascestes com teu estro bravio e senhorilBOEcircMIONum paraiacuteso esplecircndido ndash O BrasilSAtildeO PEDROQual foi o teu estado o teu torratildeoBOEcircMIOO Estado do Talento ndash O Maranhatildeo[] 289

A passagem buscava natildeo deixar duacutevidas de qual poeta estaacute sendo representado no texto Essa coincidecircncia entre autor e personagem eacute mais de uma vez expressa no texto de Catullo Com esse efeito Catullo se arvora a fazer algumas observaccedilotildees de maneira muitas vezes irocirc-nica sobre alguns temas que lhe satildeo caros Numa passagem do texto em que o boecircmio se potildee a questionar Satildeo Pedro sobre o destino de alguns homens veem-se representados alguns desafetos de longas datas do autor Catullo Sobre os membros da Academia Brasileira de Letras o boecircmio questiona Satildeo Pedro

289 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 97-98

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo226

BOEcircMIOPelo que vejo os nobres acadecircmicosTecircm um lugar distinto entre os demaisSAtildeO PEDROComo te enganas pois talvez satildeo elesos que padecem os que sofrem maisVecirc que castigo horrendo ndash quando morremsobem ao Ceacuteu e vatildeo para Mercuacuterioouvir Francisco Alves declamaros discursos de todos os colegasque eacute o castigo maior mais tormentosoque Deus a um pobre homem pode darRaros chegam ao fim ficam exaustosE mergulham num sono tatildeo profundoque eacute difiacutecil fazecirc-los acordar290

Numa raacutepida passagem o narrador Catullo dispara contra duas ldquoentidadesrdquo que lhe proporcionaram indisposiccedilatildeo a Academia que natildeo reconhecera Catullo como um imortal e Francisco Alves agravequela altura um famoso cantor de raacutedio que anos antes tivera um atrito com Catullo no registro fonograacutefico de uma canccedilatildeo deste uacuteltimo

Aliaacutes a contrariedade do poeta com a Academia Brasileira de Letras que nunca lhe dera o fardatildeo de imortal jaacute vinha de longa data e era mateacuteria ateacute de anedotas O escritor Terra de Senna em seu livro Rua da Amargura contava a anedota em que agrave porta de um engraxate en-contravam-se Catullo e o poeta Olegaacuterio Mariano membro da Academia e conhecido por suas manias de grandeza

ndash Eu sou o priacutencipe dos poetas ndash disse Olegaacuterio Tenho um fardatildeo e a admiraccedilatildeo das mais lindas mulheres deste mundo Os meus livros estatildeo nas montras das mais ricas livrarias do Riondash Eu sou o rei dos poetas sertanejos ndash respondeu Catullo Veja a minha corte (e apontou para os outros livros que se ostentavam na vitrine do engraxate) Ibsen Victor Hugo Zola291

290 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 137

291 Apud Correio da Manhatilde 7 jun 1934 p 4

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 227

Um boecircmio no ceacuteu parece ser sobretudo uma prestaccedilatildeo de contas de Catullo com sua histoacuteria A dramatizaccedilatildeo da chegada do bo-ecircmio ao ceacuteu ao que parece representou uma oportunidade para que o autor expressasse suas opiniotildees sobre coisas e pessoas a partir de um personagem que se confundia com sua proacutepria histoacuteria ndash pela biografia traccedilada no diaacutelogo do boecircmio com Satildeo Pedro Eacute possiacutevel que aiacute resida o fato de Catullo ter deixado de lado a escrita de um prefaacutecio ou uma nota ao leitor tatildeo comum em suas publicaccedilotildees anteriores A explicaccedilatildeo reside no fato autoexplicativo da narrativa contada onde pensava fosse obviamente identificado com sua pessoa o personagem do bo-ecircmio ndash diferentemente dos livros anteriores em que por vezes tinha de se afastar de seus personagens sertanejos a fim de construir uma dis-tacircncia necessaacuteria para que pudesse ser entendido como poeta

Em vaacuterias passagens tambeacutem aparece um boecircmio que se van-gloria de sua posiccedilatildeo tal qual Catullo que seguidamente era ironizado por arvorar-se como maior poeta do mundo Essas passagens eram muitas vezes contadas pelos leitores de Catullo para representaacute-lo como um megalomaniacuteaco O papel do criacutetico Gondin da Fonseca um leitor autorizado nesse periacuteodo eacute sintomaacutetico Ao ler o Um boecircmio no ceacuteu disparou nas paacuteginas do Correio da Manhatilde

Nesse livro extremamente mediacuteocre ou melhor positivamente ruim Catullo diz apenas de si mesmo que eacute irmatildeo de Christo Redemptor ndash muito maior poreacutem do que o mano que fugiu da terra com medo do sofrimento emquanto que ele Catullo estando no Ceacuteo quer vir de novo para este valle de laacutegrimas pois a Docircr eacute seu patildeo de cada dia Tem inveja da fama de toda a gente ateacute mesmo de Einstein que con-sidera com azedume ldquoo Pacheco dos saacutebios actuaesrdquo Julga o seu estro ldquosobrehumanordquo Um anjo do Senhor com reverecircncia ldquopoeta da raccedilardquo e Satildeo Pedro fala com assombro do seu ldquoviolatildeo de cordas de ourordquo oferecendo-lhe o Ceacuteo [] declarando-o super-santo super-philosopho super-tudo ldquoeleito de Deusrdquo na Academia dos gecircnios celestiais pois a terra eacute demasiado pequena para a sua gloacuteria Nunca se viu tamanho narcisismo No mundo ningueacutem presta soacute ele292

292 Correio da Manhatilde 25 jul 1937 p 2

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo228

Gondin da Fonseca era um criacutetico comum de Catullo Aqui cabe um parecircntesis Ele ao tecer criacuteticas agrave produccedilatildeo de Catullo (e o fez mais de uma vez) lanccedilava matildeo de uma representaccedilatildeo jocosa do poeta Em uma dessas criacuteticas assim apresentava o poeta

Um dia desses eu estava no Quaresma vendo uns livros velhos e conver-sando com o meu bom Alarico Silveira quando o Catullo se aproximou de mim com os olhos esgazeados fulgurantes os braccedilos estendidos a voz rouca ndash e me bradou com uma estranha vehemencia

ndash Louco Louco Louco Jaacute fui trecircs psychiatrasEu logo me acerquei soliacutecito do grande poeta e velho amigo do peito afim de o acalmar de trazer algum conforto aacute sua exaltaccedilatildeondash Isso natildeo haacute de ser nada Catullo Nervos Eu aacutes vezes tambeacutem ando assim Qualquer coisa me irrita Pareccedilo uma pilha electrica Soffro ateacute com a luz do sol e tenho que fechar as janelas de dia para poder traba-lhar Nervos Que tal se fossemos ahi aacute esquina tomar qualquer coisandash Loucondash Natildeo te exaltes meu velhondash Louco Eacute o tiacutetulo do meu novo poema Li-os a trecircs psychiatras Assombroso Eacute o que te digo Gondin For-mi-daacute-vel Nunca ningueacutem escreveu alguma coisa semelhante Nem Shakespeare293

A representaccedilatildeo risiacutevel de Catullo (algo que virou comum) por um lado arranhava a aura que o poeta tentava construir em seus textos mas por outro tambeacutem foi usada pelo poeta fazendo com que ele se apropriasse dessa representaccedilatildeo em seus livros E era nesses mesmos textos que Catullo respondia aos criacuteticos Ao questionar Satildeo Pedro sobre o destino dos criacuteticos depois que morriam o personagem boecircmio obtinha como resposta

SAtildeO PEDROEssa gente feroz gente danadaque sabe tudo mas natildeo sabe nadapor castigo de Deus expiatoacuteriovai fazer elogios celebeacuterrimosque noacutes mandamos para o Purgatoacuterio

293 Correio da Manhatilde 25 jul 1937 p 2

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 229

BOEcircMIOSenhor Esses canalhas quixotescosOs criticoacuteides nunca me poupavamSAtildeO PEDROE te faziam mal se te insultavamBOEcircMIOTodos eles me beneficiavamPois quando pelo meu jardim passavamroubando-me uma rosa ou um jasmin com o lixo que passando me atiravamas terras do jardim fertilizavame mais flores eu tinha em meu jardim294

Sem duacutevida resultado da apropriaccedilatildeo de um tipo de produccedilatildeo que Catullo conhecia bem ndash o teatro de revista ndash o texto eacute entremeado de passagens risiacuteveis Tratando-se de um texto preparado para ser encenado nada mais oacutebvio que elementos do teatro de revista fossem colocados nele por Catullo ndash como a comeacutedia o diaacutelogo de dois personagens e a muacutesica Essa uacuteltima aparece quando o boecircmio vai-se encaminhando fi-nalmente para o ceacuteu ao se despedir dos santos que o receberam na porta

(Escurece Muda o cenaacuterio da Portaria do Ceacuteu em um amplo espaccedilo vendo-se a lua ao longe para onde vai caminhando o boecircmio com seu violatildeo O boecircmio fitando a lua recita estes versos Enquanto recita ouve-se ao longe uma viola sertaneja)BOEcircMIO(recitando)Oh Que saudadesdo luar da minha Terralaacute na serrabranquejandofolhas secas pelo chatildeoEste luar caacute da cidade Tatildeo escuronatildeo tem aquela saudade do luar laacute do sertatildeo295

294 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 132

295 Idem p 178

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo230

Esse aporte retirado do teatro de revista de entatildeo tornou-se muito comum na obra de Catullo Ademais o material cocircmico de alguns dos seus textos da deacutecada de 1930 tem relaccedilatildeo com suas participaccedilotildees cons-tantes em peccedilas de caraacuteter risiacutevel Participando ativamente como artista na Companhia de Procoacutepio Ferreira eacute possiacutevel flagrar Catullo sendo anunciado em jornais do periacuteodo como integrante de algumas comeacutedias musicais Em Um homem e oito mulheres que foi apresentada no Teatro Carlos Gomes em maio de 1938 (tendo a participaccedilatildeo de Almirante Oscarito Gilda Abreu Manezinho Arauacutejo e Sylvio Caldas) e que era indicada como uma comeacutedia musical a participaccedilatildeo de Catulllo era saudada como a do ldquoGrande Catullo da Paixatildeo Cearenserdquo296

Seu contato no palco com homens como o desenhista Bastos Tigre e o ator Procoacutepio Ferreira conduziu sua produccedilatildeo para um caraacuteter cocircmico tiacutepico do teatro que se fazia agrave eacutepoca

Dessa forma Catullo ia mesclando no texto elementos de sua atividade como poeta da canccedilatildeo poeta literato e artista dos palcos Fazia isso construindo no texto de Um boecircmio no ceacuteu um personagem cuja representaccedilatildeo aproximava-se da de sua pessoa A partir dessa apro-ximaccedilatildeo ia tecendo comentaacuterios sobre sua vida e sobre seus desafetos a fim de construir uma representaccedilatildeo de si mesmo para seus leitores

Ao que parece depois de ter sido excluiacutedo como grande poeta pela nova geraccedilatildeo que surgiu nos anos 1920 Catullo passou a flertar com uma produccedilatildeo textual que tornasse possiacutevel um sentido diferente para o termo ldquopopularrdquo Aqui eacute necessaacuterio pensar a construccedilatildeo de um cacircnone literaacuterio para a literatura produzida no Brasil (em processo nos anos 1930) que se valia de uma forma original do termo ldquopopularrdquo e ao mesmo tempo a emergecircncia de uma cultura de massa proveniente de outros espaccedilos de entretenimento na sociedade cuja circulaccedilatildeo tambeacutem se valia em grande parte para a sua publicidade de uma representaccedilatildeo distinta do ldquopopularrdquo

Essa mobilidade de circulaccedilatildeo entre os diversos locais de pro-duccedilatildeo cultural fazia com que o leque de opccedilotildees de atuaccedilatildeo do poeta se

296 Na propaganda estampada no jornal Correio da Manhatilde 7 maio 1938

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 231

abrisse para aleacutem da produccedilatildeo textual Ademais o capital social cons-truiacutedo por Catullo fazia com que seu nome apesar de parcialmente des-denhado pela criacutetica literaacuteria do periacuteodo fosse ao contraacuterio sinocircnimo de ecircxito tanto para produtores dos palcos do teatro ligeiro como para editores de seus textos e livreiros Estes uacuteltimos interessados no valor da obra de Catullo como algo passiacutevel de ser consumido por um grande puacuteblico letrado viam no poeta uma opccedilatildeo altamente vendaacutevel tanto que avultaram nos anos 1930 reediccedilotildees das obras de Catullo embora o poeta visse como mais rentaacutevel sua participaccedilatildeo nos palcos ndash mesmo que estes fossem espaccedilos onde o ecircxito financeiro poderia render mais para um artista como Catullo natildeo eram seguramente espaccedilos de con-sagraccedilatildeo social para um poeta

Navegar pela literatura natildeo era por si soacute algo que fizesse (mesmo para um reconhecido grande autor) um escritor sobreviver tatildeo somente da publicaccedilatildeo de livros Um autor ganhar dinheiro com a produccedilatildeo de textos simplesmente era algo difiacutecil quase impossiacutevel Isso quando muito tornava-se possiacutevel para um editor de livros

No periacuteodo em que contabilizamos as ediccedilotildees que vatildeo da publi-caccedilatildeo do primeiro livro de poemas de Catullo (Meu sertatildeo 1918) ateacute o ano de 1946 o nuacutemero de ediccedilotildees das obras de Catullo soacute aumentou Embora o nuacutemero de vendagens seja algo difiacutecil de mensurar podemos observar a seguir pelo nuacutemero de ediccedilotildees de uma publicaccedilatildeo o sucesso do consumo desses livros

Tabela 1 ndash Publicaccedilotildees de Catullo Paixatildeo Cearense

Publicaccedilatildeo Ano Editora Nordm de ediccedilotildees

Meu sertatildeo 1918 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 41Sertatildeo em flor 1919 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 31Poemas bravios 1921 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 29Aos pescadores 1923 Ediccedilatildeo da Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 13Mata iluminada 1924 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 28O evangelho das aves 1927 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 8

Meu Brasil 1928 Casa Annuaacuterio do Brasil e posteriormente Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 3

Faacutebulas e alegorias 1928 Officina Industrial Graphica e posteriormente

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira e Editora A Noite 6

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo232

Publicaccedilatildeo Ano Editora No de ediccedilotildees

Alma do sertatildeo 1928 Livraria Editora Leite Ribeiro e posteriormente Editora Bedeschi 7

O sol e a lua 1934 Imprensa Nacional e posteriormente Editora Bedeschi e Editora A Noite 3

Um boecircmio no ceacuteu ndash Poema teatral

1937 Editora A Noite 5

Oraccedilatildeo agrave bandeira 1937 Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal 1

Um caboclo brasileiro 1940 Editora A Noite 3

O milagre de Satildeo Joatildeo ndash Teatro 1943 Editora A Noite 2

Poemas escolhidos 1944 Editora Zeacutelio Valverde 2

Modinhas1943 ou 1945

Livraria Impeacuterio 2

O testamento da aacutervore 1945 Aurora 2

Fonte CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946

Se seus livros eram reeditados tantas vezes denotando um grande consumo por parte dos leitores isso natildeo lhe dava grandes dividendos pois os direitos autorais das obras em geral eram de propriedade dos editores Isso soacute veio a mudar em 1943 quando Catullo cedeu seus di-reitos para Guimaratildees Martins seu amigo que conhecedor dos tracirc-mites dos direitos autorais no Brasil a partir daiacute ficaria responsaacutevel pelo recebimento de parte dos direitos autorais junto agrave SBAT

Tambeacutem o teatro de revista pagava pouco Maacuterio Lago ator e compositor em entrevista a Joel Silveira em 1942 dizia

ndash Faz de conta que vocecirc escreveu uma ldquorevistardquo A sua revista foi en-saiada Demorou um mecircs certinho no cartaz com um sucesso relativo Muito bem Sabe quanto vocecirc ganhou com a histoacuteriandash Uns dez contecosndash Que dez contecos laacute que nada Vamos fazer as contas Demorou um mecircs rendeu de direitos autorais 6840$000 batatamente Vocecirc tem que tirar 50 para o poemandash Qual poema

(continuaccedilatildeo Tabela 1)

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 233

ndash A parte escrita da ldquorevistardquo Geralmente quem escreve eacute oubo Quer dizer vocecirc fica com metade daquela importacircncia Desta grana vocecirc ainda tira 10 para SBAT Pegue no laacutepis e veja quanto leva para casa Aacutes vezes a coisa eacute tatildeo pouca que a gente nem leva para a casa deixa no chopp297

Afinal entre o mercado de produccedilatildeo de livros o espaccedilo de pro-duccedilatildeo de teatro e o mundo da muacutesica este uacuteltimo parecia levar na-queles idos grande vantagem O raacutedio pelo forte poder de comuni-caccedilatildeo comumente catapultava tal produto a sucesso de vendagens Daiacute a criaccedilatildeo pelos compositores de muacutesica popular de uma associaccedilatildeo que defendesse seus direitos Soacute o raacutedio podia no dizer de A L Machado Neto ldquolanccedilar uma ponte para o prestiacutegiordquo298 e ao mesmo tempo render alguns dividendos para o autor de canccedilotildees de sucesso Maacuterio Lago agravequela altura jaacute conhecido por ser o compositor de Aurora que tocava sem cessar nas raacutedios observava a distinccedilatildeo pecuniaacuteria entre fazer te-atro e fazer muacutesica

(Fazer teatro) Natildeo eacute vantagem nenhuma Eacute porque afinal de contas a gente tem que fazer alguma coisa Natildeo posso ser unicamente um com-positor porque nem soacute de muacutesica vive o homem Mas se eu tivesse uma inspiraccedilatildeo diaacuteria vecirc laacute se ia me meter em teatro Soacute ldquoAurorardquo me rendeu jaacute 9 contos299

Lago atestava que isso se dava porque o cinema matava o teatro Natildeo agrave toa o compositor foi um dos primeiros a romper com a SBAT ainda em 1938

Os escritores de livros ao contraacuterio natildeo tinham uma asso-ciaccedilatildeo classista que zelasse por seus direitos Em geral acontecia de o autor ceder os direitos das obras ao seu editor que ficaria encarre-gado de repassar-lhe a porcentagem que bem achasse conveniente

297 BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os homens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 143

298 MACHADO NETO Antocircnio Luiz Estrutura social da Repuacuteblica das Letras sociologia da vida intelectual brasileira ndash 1870-1930 Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 1973 p 101

299 Idem p 144

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo234

diante das vendas Daiacute ser comum o autor mudar de editor e ainda ver seus livros serem publicados por outras editoras sem que tivesse ne-nhum lucro com isso

Do quadro acima um exemplo sintomaacutetico satildeo as ediccedilotildees de obras de Catullo publicadas pela livraria Castilho Depois que seu dono vendeu o espoacutelio para Ameacuterico Bedeschi este continuou a publicar as obras de Catullo sem que o poeta lucrasse com os livros Isso se deu tambeacutem com a livraria Quaresma que reeditou muitas vezes as obras modinheiras de Catullo O acordo entre editores excluiacutea natildeo raro qualquer reivindicaccedilatildeo do autor que houvesse cedido os direitos de publicaccedilatildeo

Os direitos autorais de diversas produccedilotildees culturais como vimos jaacute eram objeto de reivindicaccedilotildees A SBAT desde 1917 era responsaacutevel pela cobranccedila de textos teatrais e muacutesicas divulgadas no teatro Na muacute-sica surgiu ainda em 1937 uma dissidecircncia de compositores populares que criaram a ABCA Nas letras essa iniciativa se concretizou no Rio de Janeiro em marccedilo de 1937 com a criaccedilatildeo do Instituto Brasileiro das Letras (IBL)

A criaccedilatildeo de uma associaccedilatildeo que pudesse reivindicar os direitos autorais de escritores brasileiros era um projeto antigo e havia obtido focirclego quando o projeto de criar uma associaccedilatildeo vinha sendo pensado desde 1932 mas efetivamente a criaccedilatildeo do IBL soacute veio a se dar em 1937 de maneira polecircmica Desdenhado pelos membros da Academia Brasileira de Letras e por parte da Academia Carioca de Letras o IBL surgiu como forma de lutar pelos direitos dos escritores A iniciativa contava com a presenccedila do poeta Renato Travassos seu primeiro presi-dente e tinha a intenccedilatildeo de

[] fazer a defesa dos autores e das suas respectivas obras O Instituto Brasileiro de Letras pleitearaacute junto ao governo leis que regulando o comeacutercio de traducccedilotildees de livros estrangeiros e a transcripccedilatildeo de traba-lhos intellectuaes em todo paiz assegurem de modo praacutetico e eficiente os direitos autoraes e a correcccedilatildeo das traducccedilotildees evitando assim usurpaccedilotildees e incorrecccedilotildees umas e outras perfeitamente censuraacuteveis em mais do que isto damninhas aacute nossa cultura e a nossa probidade intelectual e moral[]Ao que parece desta feita os escriptores brasileiros encontraram uma

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 235

foacutermula pela qual os seus interesses e os seus direitos se defendam com eficiecircncia criando a um tempo uma instituiccedilatildeo e classe onde tudo seja comunhatildeo de vistas e propoacutesitos fraternaes300

A associaccedilatildeo de escritores foi fundada em 5 de setembro de 1937

no luxuoso preacutedio da Associaccedilatildeo Brasileira de Imprensa e teve entre seus signataacuterios aleacutem de Catullo da Paixatildeo Cearense outros autores jaacute consagrados agrave eacutepoca como Gustavo Barroso Olegaacuterio Mariano Maacuterio Linhares Bastos Tigre Prado Kelly Carlos Drummond de Andrade Oduvaldo Viana Manuel Bandeira e Jorge de Lima

A tentativa de fazer com que houvesse maior controle na circu-laccedilatildeo e na ldquotranscripccedilatildeo de trabalhos intellectuaesrdquo era uma antiga rei-vindicaccedilatildeo da classe Afinal tal esforccedilo tratava-se de uma tentativa de regrar a produccedilatildeo e o consumo de uma obra que aparecia sob o nome de um autor Uma vez que muitos dos acordos entre editores e escritores culminavam na apropriaccedilatildeo pecuniaacuteria da obra pelo editor a associaccedilatildeo se propunha a regrar pela criaccedilatildeo de leis essa relaccedilatildeo tornando menos vulneraacutevel a ligaccedilatildeo do escritor-autor com a casa editorial que o publi-cava Poreacutem havia muito o IBL tambeacutem travava outro tipo de luta pelo controle da circulaccedilatildeo existia no campo literaacuterio as ediccedilotildees que circu-lavam muitas vezes com erros que comprometiam a leitura regrada intentada pelo autor

Catullo que aparece entre os signataacuterios foi um dos que comu-mente tratavam de corrigir nas suas publicaccedilotildees incorreccedilotildees publi-cadas sem o seu crivo que pudessem deturpar o sentido da obra Ademais esse sentido poderia mudar a cada ediccedilatildeo vinda a puacuteblico ndash mesmo aquelas que tiveram o consentimento do autor Haacute de se sa-lientar que uma nova ediccedilatildeo modificada tende a criar novos sentidos e podem inclusive visar agrave leitura de novos leitores Para tanto as estra-teacutegias autorais e editoriais satildeo fundamentais para alcanccedilar tal objetivo A histoacuteria das ediccedilotildees de Um boecircmio no ceacuteu datildeo conta disso

A editora A Noite que lanccedilou essa publicaccedilatildeo tem uma trajetoacuteria curiosa Irineu Marinho que criara o jornal A Noite em 1911 havia

300 Gazeta de Notiacutecias 14 jan 1938 p 1

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo236

publicado um ou outro livro mas a editora soacute surgiria mesmo nos anos 1930 sob a eacutegide do francecircs Paul de Leuze Antes dessa uacuteltima data as oficinas do jornal eram usadas tatildeo somente para a impressatildeo de livros Em 1935 surgiram os primeiros livros de sucesso Vida de Santos Dumont por Ofeacutelia e Narbal Pontes e Vida e Amores de Castro Alves de Pedro Calmon

Antes de lanccedilar Um boecircmio no ceacuteu o texto obteve outra modali-dade de circulaccedilatildeo Ele foi lido pelo proacuteprio Catullo na casa do poeta carioca Luiz Edmundo O escritor Carlos Maul testemunhou tal apre-sentaccedilatildeo e conta que apresentaccedilatildeo do ldquopoema dramaacuteticordquo teve a partici-paccedilatildeo de ldquouma victrola orthophonicardquo que executava a ldquomuacutesica a pro-poacutesito canccedilotildees folk-loacutericas que o bohemio vai indicando nos momentos oportunosrdquo No entanto o ldquobohemiordquo que vai indicando as muacutesicas segundo Maul ao que parece natildeo eacute soacute um personagem do poema de Catullo ele eacute o proacuteprio poeta pois o personagem ldquobohemiordquo do poema era o ldquoproacuteprio Catullordquo301

A primeira ediccedilatildeo de Um boecircmio no ceacuteu foi publicada em junho de 1937 Sua capa continha apenas o nome do livro e a indicaccedilatildeo do autor A apresentaccedilatildeo da obra natildeo fazia nenhuma alusatildeo especial ao fato de algum personagem do texto de Catullo ser identificado com o proacute-prio autor

Na segunda ediccedilatildeo lanccedilada em meados de 1938 ndash estendida em 16 paacuteginas com apreciaccedilatildeo positiva de Catullo feita pelo jorna-lista advogado e historiador Rocha Pombo reafirmando sua gran-deza como poeta ndash traz na capa uma ilustraccedilatildeo de Catullo segurando um violatildeo e conversando com Satildeo Pedro Tal alusatildeo visava a dar ao leitor um caraacuteter referencial ou seja uma clara aproximaccedilatildeo do per-sonagem do boecircmio com a figura de Catullo Indicava assim que uma possiacutevel leitura para o texto seria a de que seu autor eacute o proacuteprio personagem e portanto os juiacutezos criacuteticos ali expostos ao boecircmio e pelo boecircmio (vaacuterios aliaacutes) poderiam imediatamente ser remetidos a

301 Correio da Manhatilde 11 mar 1937 p 6

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 237

seu autor Afinal a ediccedilatildeo dava conta para o leitor de que Catullo era seu proacuteprio personagem

Na terceira ediccedilatildeo da obra de 1943 haacute na contracapa uma clas-sificaccedilatildeo inexistente nas ediccedilotildees anteriores indicando tratar-se de ldquoTeatrordquo O leitor do poema deveria ter pela indicaccedilatildeo a clara noccedilatildeo do efeito performaacutetico do que seria lido Aleacutem do mais Catullo usa uma separaccedilatildeo do texto em atos tal qual um texto dramaacutetico Embora jaacute nas ediccedilotildees anteriores existissem no poema alusotildees ao mundo do teatro indicando um texto dramaacutetico a ser lido a indicaccedilatildeo na contracapa natildeo deixava duacutevida do que se tratava o impresso para o leitor Inclusive a editora A Noite cuja administraccedilatildeo tambeacutem era responsaacutevel pelo jornal A Noite fez a publicidade do livro em seu jornal chamando a atenccedilatildeo para que ldquoo poema decorre de uma situaccedilatildeo de caraacuteter teatralrdquo e que Catullo ldquotocando um gecircnero novo conseguiu completo ecircxito e manteve a mesma altura de sua poesiardquo302

Na quinta ediccedilatildeo de 1946 haacute um aumento do nuacutemero de paacuteginas com inserccedilotildees de juiacutezos criacuteticos de Catullo agora morto Aliaacutes tambeacutem eacute nessa ediccedilatildeo que Guimaratildees Martins herdeiro do espoacutelio de Catullo fez aparecer texto do poeta atribuindo-se Guimaratildees a ldquoautoridaderdquo sobre aquele livro no caso de quaisquer ldquorepresentaccedilotildees filmagem tra-duccedilatildeo adaptaccedilatildeo irradiaccedilatildeo etc desta peccedilardquo303

Como se pode ver na medida em que se vatildeo sucedendo as edi-ccedilotildees haacute uma mudanccedila no sentido que se quer dar ao impresso numa tentativa de regrar o caraacuteter da leitura ou pelo menos deixar claro o propoacutesito do interessado ndash seja o proacuteprio autor Catullo nas ediccedilotildees em que ele ainda estaacute vivo seja seu cessionaacuterio Guimaratildees Martins depois que Catullo morre seja o editor da obra impressa Ademais as dife-rentes modalidades de circulaccedilatildeo do texto ndash a primeira leitura oralizada de Catullo na casa de Luiz Edmundo e as posteriores que foram im-pressas pela editora A Noite ndash conduzem a uma recepccedilatildeo distinta que

302 A Noite Ilustrada 2 nov 1943 Suplemento p 25 303 Contracapa de Um bohemio no ceacuteo Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no

ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo238

vai da necessidade de uma leitura entrecortada por canccedilotildees a uma lei-tura silenciosa do livro

Essa vontade de ser melhor lido pode ser demonstrada no final da segunda ediccedilatildeo de Um boecircmio no ceacuteu quando Catullo aproveita para passar a limpo os erros graacuteficos de ediccedilotildees anteriores Em nota ele se explica ldquoComo presumo que ldquoBohemio no Ceacuteordquo tenha favoraacutevel acei-taccedilatildeo aproveito a oportunidade fazendo aqui as emendas de alguns erros que infelizmente se encontram nos meus livrosrdquo304 Daiacute o autor elenca as obras onde existem os erros tipograacuteficos Seis publicadas pela editora Bedeschi (Meu sertatildeo Sertatildeo em flor Poemas bravios Matta illuminada O evangelho das aves e O sol e a lua) e uma pela livraria Castilho (a ediccedilatildeo de 1928 de Matta illuminada)

Catullo vai descrevendo cada erro e sua respectiva paacutegina para no final disparar de maneira explicativa que ldquosatildeo estes os erros princi-paes que natildeo por minha culpa e sim dos senhores compositores [grifo meu] afeiam esses meus livrosrdquo305

As estrateacutegias para que o texto tenha o efeito pensado pelo autor passavam pela mediaccedilatildeo de editores compositores-graacuteficos e final-mente leitores fazendo com que aparecessem nos textos diversos arti-fiacutecios para que o objetivo de uma leitura autorizada fosse enfim pos-siacutevel A emergecircncia de uma associaccedilatildeo de classe que pudesse fazer frente agraves muitas instacircncias que mediavam a relaccedilatildeo do leitor com seu puacuteblico surgiu dessa ldquodeficiecircnciardquo constatada que muitas vezes bar-rava o reconhecimento do autor do livro como grande escritor fosse por supostas deficiecircncias materiais ou esteacuteticas A difiacutecil propriedade do objeto livro afinal obrigava a uma luta de forccedilas do escritor expressa muitas vezes no proacuteprio texto do autor com as demais instacircncias que pudessem desvirtuar o sentido alterando no iacutenterim que separa escrita e leitura o sentido de um texto

Essa constataccedilatildeo talvez possa explicar a emergecircncia do IBL num contexto em que o livro se tornava cada vez mais um objeto a ser con-

304 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 2 ed Rio de Janeiro A Noite 1938 p 154

305 Idem p 161

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 239

sumido inclusive com apoio irrestrito do presidente Getuacutelio Vargas ele mesmo um membro eleito da Academia Brasileira de Letras A editora A Noite por exemplo que publicou nos anos 1930 e 1940 vaacuterias edi-ccedilotildees da obra de Catullo tornou-se desde 1939 propriedade do Estado Este criou vaacuterios programas oficiais que incentivavam o consumo de livros A aproximaccedilatildeo de Vargas dos escritores e o seu apoio a inicia-tivas como o IBL deram aos escritores o suporte para uma luta que se desenrolava nos textos havia muito tempo tal qual um cabo de guerra onde se digladiavam autores graacuteficos editores publicistas e leitores

O flerte entre escritores e o governo Vargas rendeu bons frutos para vaacuterios deles Muitos foram absorvidos na estrutura estatal em pro-gramas diretamente administrados pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Obras foram editadas a fim de dar suporte ao governo Vargas especialmente apoacutes novembro de 1937 quando Getuacutelio tornou-se ditador Natildeo obs-tante eacute possiacutevel flagrar em muitas obras publicadas agrave eacutepoca um ufa-nismo gritante das quais um exemplo cabal eacute Oraccedilatildeo agrave bandeira li-vreto de poemas escrito por Catullo da Paixatildeo Cearense

Essa simbiose entre poliacutetica cultural e produccedilatildeo de uma repre-sentaccedilatildeo mais proacutexima da realidade do paiacutes resultou em inuacutemeros pro-jetos e obras que tiveram o aval do Estado brasileiro no periacuteodo A his-toriadora Acircngela de Castro Gomes chama a atenccedilatildeo para uma poliacutetica cultural fundada na formaccedilatildeo de ldquocidadatildeos nacionaisrdquo306 Sob o go-verno de Getuacutelio Vargas a temaacutetica nacional ganhou novo focirclego e trouxe como consequecircncia uma aproximaccedilatildeo do discurso nacionalista e centralizador da poliacutetica varguista da velha necessidade posta pelos intelectuais brasileiros de construir a naccedilatildeo Isso resultou em projetos editoriais que tiveram a simpatia do Estado varguista que atuava como uma espeacutecie de mecenas da cultura A coleccedilatildeo Brasiliana pensada pelo socioacutelogo Fernando Azevedo que ajudou a difundir uma seacuterie de publi-caccedilotildees que almejavam uma reflexatildeo sobre o paiacutes daacute conta desse mo-mento em que segundo nos conta a historiadora Eliana Dutra estabele-

306 Cf GOMES Acircngela de Castro Histoacuteria e Historiadores Rio de Janeiro FGV 1996 O desdobramento dessa poliacutetica em projetos culturais pode ser pensado com as reflexotildees da historiadora Lia Calabre In CALABRE Lia Op cit

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo240

cia-se ldquoa crenccedila no papel determinante que as Ciecircncias Sociais poderiam jogar na configuraccedilatildeo de um imaginaacuterio nacional e de uma identidade coletiva no Brasilrdquo307

Natildeo obstante a guinada da poliacutetica cultural comandada espe-cialmente pelo ministro da Educaccedilatildeo de Vargas Gustavo Capanema foi simpaacutetica agraves produccedilotildees que ao representar o paiacutes tratavam em seus textos de legitimar o otimismo do novo projeto nacionalista do Estado brasileiro Oraccedilatildeo agrave bandeira faz parte dessa leva

O argumento do livreto foi a cerimocircnia do Dia da Bandeira em que Vargas ordenou a incineraccedilatildeo das bandeiras estaduais para simbo-licamente afastar qualquer onda de regionalismo em prol de uma uacutenica bandeira a nacional O editor da publicaccedilatildeo assim explica

A Constituiccedilatildeo de 10 de novembro outorgada agrave Naccedilatildeo pelo presi-dente Getuacutelio Vargas estabelece entre seus princiacutepios baacutesicos a existecircncia de um uacutenico pavilhatildeo para todo o territoacuterio nacional ndash a Bandeira da PaacutetriaEsse Serviccedilo julgou assim oportuno editar a ldquoOraccedilatildeo aacute Bandeirardquo cujos originaes foram oferecidos pelo autor ndash Catullo da Paixatildeo Cearense ndash ao cap Filinto Muller308

Oraccedilatildeo agrave bandeira foi distribuiacutedo nas escolas pelo Brasil e Catullo ganharia em 1941 uma aposentadoria dada pelo proacuteprio Vargas por ldquoserviccedilos prestados agrave cultura nacionalrdquo As duas ediccedilotildees de Oraccedilatildeo financiadas pelo Governo natildeo foram poreacutem suficientes para que o poeta se resignasse em reclamar da ediccedilatildeo e fazer publicar nos jornais incorreccedilotildees publicadas no livro

Catullo nos procurou agrave noite para dizer-nos de uma incorrecccedilatildeo que aacute sua revelia se vecirc a paacuteginas 59 de sua formosa ldquoOraccedilatildeo aacute Bandeirardquo E o poeta indicando-nos o lapso

307 DUTRA Eliana de Freitas Histoacuteria e Historiadores na Coleccedilatildeo Brasiliana o presentismo como perspectiva In DUTRA Eliana de Freitas (org) O Brasil em dois tempos Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 47-76

308 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Oraccedilatildeo agrave bandeira Rio de Janeiro Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal 1937 Contracapa

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 241

ndash Aqui Em logar neste primeiro verso de ldquoJesus Christo que aben-ccediloasrdquo eu escrevi ldquoOacute Christo que abeccediloaesrdquo Assim devia ter sido im-presso e natildeo como laacute se vecirc Espero que me faccedila a advertecircncia ao leitor menos avisado309

Seguramente natildeo era por numa publicaccedilatildeo financiada pelo Estado que Catullo deixaria passar algo que pudesse natildeo conduzir o puacuteblico a uma boa leitura de sua obra

309 Correio da Manhatilde 17 dez 1937 p 3

Figura 3 ndash Capa da 2ordf ediccedilatildeo de Um bohemio no Ceacuteo Nota-se o desenho de Catullo segurando o violatildeo diante de S Pedro

Fonte arquivo do autor

POR UMA REPRESENTACcedilAtildeO DE SI

Quando eu tiver uma estaacutetua nesta cidadeCatullo em conversa com Joatildeo Ribeiro310

Tempo de prestar contas

Um naufraacutegio aticcedilava os leitores da revista O Malho de me-ados de 1936 Tratava-se de uma brincadeira A revista dava uma lista de uma centena de escritores e perguntava para seus leitores se vocecirc estivesse num bote que estivesse naufragando quais os trecircs vates na-cionais vocecirc salvaria A enquete era uma promoccedilatildeo organizada por O Malho com a livraria Freitas Bastos que daria como precircmio ao ven-cedor 50 mil cruzeiros em livros

Depois de semanas de disputas os vencedores foram Olegaacuterio Mariano Cassiano Ricardo e Leatildeo de Vasconcelos Em 14ordm lugar na frente de nomes como Jorge de Lima e Maacuterio de Andrade apareceu Catullo da Paixatildeo Cearense Tais disputas imaginaacuterias entre escritores conhecidos era algo comum nas revistas brasileiras Ainda em 1925 como vimos anteriormente Catullo fora um dos vencedores em con-curso promovido pela revista Fon-Fon para a escolha do priacutencipe dos poetas brasileiros311

310 Letras e Artes 8 out 1950311 Catullo ficara em terceiro atraacutes de Alberto de Oliveira e Hermes Fontes

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 243

Se agraves vezes a pilheacuteria tinha o caraacuteter visivelmente risiacutevel nou-tras a disputa soava como polecircmica como quando em meados de 1937 com a morte do escritor Paulo Setuacutebal O Malho perguntava a seus lei-tores a quem dava o seu voto para o lugar de Paulo Setuacutebal O resul-tado pode surpreender um leitor atual acostumado a ver nomes como Graciliano Ramos que agrave eacutepoca jaacute despontara como escritor fora de uma lista de 50 escolhidos O vencedor da disputa foi Pliacutenio Salgado ficando em segundo e em terceiro lugar respectivamente Cassiano Ricardo e Catullo da Paixatildeo Cearense

Se tais revistas expressam muito das preferecircncias do puacuteblico leitor carioca ndash fundamentalmente os nomes citados eram de escritores do Rio de Janeiro ndash tal pesquisa revela por um lado a necessidade de se pensar a histoacuteria literaacuteria no Brasil como produto de uma construccedilatildeo tambeacutem ela produzida por diversos autores de histoacuteria literaacuteria o que faz com que se deva historicizar certa histoacuteria da literatura

Por outro lado o espasmo agrave primeira olhadela para a pesquisa conduz o leitor ao questionamento sobre como se deve escrever uma histoacuteria literaacuteria que leve em consideraccedilatildeo aquilo que era lido pelos leitores da eacutepoca A preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de uma maneira de se representar um panteatildeo de autores brasileiros natildeo foi algo desde-nhado por muitos autores Para a introduccedilatildeo de seus nomes entre aqueles que poderiam figurar numa histoacuteria literaacuteria as estrateacutegias de escrita foram fundamentais nessa empresa Muitos em vida construiacuteram eles mesmos uma histoacuteria literaacuteria que os incluiacutesse como parte fundante de um processo de canonizaccedilatildeo das obras

O que tais enquetes realizadas trazem de mais instigante talvez seja mais do que dar respostas sobre quem era o ldquomelhorrdquo em sua eacutepoca ndash o que jaacute valeria uma atenccedilatildeo do historiador da literatura ndash a possibili-dade de buscar novos caminhos para a produccedilatildeo de uma reflexatildeo sobre o campo literaacuterio no Brasil Vale a pena citar os dez primeiros colocados da pesquisa de O Malho em 1936 1ordm) Olegaacuterio Mariano 2ordm) Cassiano Ricardo 3ordm) Leatildeo de Vasconcelos 4ordm) Menotti Del Picchia 5ordm) Adelmar Tavares 6ordm) Guilherme de Almeida 7ordm) Paulo Setuacutebal 8ordm) Attiacutelio Milano 9ordm) Alberto de Oliveira e 10ordm) Paulo Gustavo Alguns como vemos ilus-tres desconhecidos em compecircndios da literatura brasileira posteriores

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A consagraccedilatildeo do nome era uma empresa que demandava boa dose de sensibilidade do autor diante de um puacuteblico leitor Um diaacutelogo constante com os leitores a fim de seduzir pelo texto e por tudo que o rodeia Noutras vezes era necessaacuterio estabelecer uma histoacuteria de vida ndash e ter uma ldquoHistoacuteriardquo era um forte argumento para fincar seu nome entre os chamados autores nacionais Em muitos outros casos era ne-cessaacuterio simplesmente aparecer Buscar alternativas para aleacutem do texto escrito de forma a ter o reconhecimento do texto escrito

Em tempos em que raacutedio cinema e teatro construiacuteam seus proacute-prios iacutedolos usando foacutermulas ineacuteditas a literatura mantinha apesar dos concorrentes um vieacutes de distinccedilatildeo social que o cantor de raacutedio o ator de teatro e o artista de cinema no Brasil agrave eacutepoca desconheciam Se o escritor natildeo era mais propriamente um ldquoiacutedolordquo como evocava Joatildeo do Rio em sua famosa enquete de iniacutecios do seacuteculo o escritor ganhou progressivamente uma aura de construtor da naccedilatildeo Ganhou assim a responsabilidade de opinar em grandes questotildees de caraacuteter mais ldquoseacuteriordquo Representar a naccedilatildeo que teimava em tornar-se tema intransponiacutevel para um candidato a novo escritor era um imperativo formal no estabe-lecimento do que viria a ser chamado de Literatura Nacional

Catullo da Paixatildeo Cearense cuja trajetoacuteria natildeo retiliacutenea em torno do tema da naccedilatildeo o faz um autor menor na histoacuteria literaacuteria do Brasil representa um caso espantoso de escritor reconhecido em vida pelos lei-tores e constantemente agraves voltas com a possibilidade de natildeo reconheci-mento de sua obra pelas instacircncias de consagraccedilatildeo de um escritor

Natildeo eacute agrave toa que no final de sua vida Catullo procurou estabe-lecer em seus uacuteltimos livros uma histoacuteria para si que enobrecesse seu nome como poeta nacional digno da distinccedilatildeo no campo literaacuterio Essa tarefa demandou do poeta certo malabarismo uma vez que sua traje-toacuteria o indicava como modinheiro e ator de teatro duas ocupaccedilotildees que por diversas vezes travaram seu reconhecimento em vida como grande poeta A construccedilatildeo de uma memoacuteria de si uma escrita autobiograacutefica visando a uma canonizaccedilatildeo foi um projeto na escrita de Catullo que pode ser vislumbrado nos seus uacuteltimos textos Para a investigaccedilatildeo desse arsenal eacute urgente chamar a atenccedilatildeo para a morfologia do proacuteprio texto e os sentidos visados na construccedilatildeo dele para uma possiacutevel leitura re-

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 245

grada visando a um convencimento por meio de fotos prefaacutecios juiacutezos criacuteticos e demais mecanismos de escrita

Em 1943 a editora A Noite publicou a peccedila O milagre de Satildeo Joatildeo Nela Catullo novamente repetia a foacutermula de Um boecircmio no ceacuteu retomando uma escrita que visasse a uma performance nos palcos O livro eacute recheado de juiacutezos criacuteticos e fatos da vida de Catullo inclusive a histoacuteria de sua aposentadoria concedida pelo presidente Vargas

Nessa eacutepoca em fevereiro de 1941 Catullo que em tese traba-lhava como datiloacutegrafo no Ministeacuterio da Viaccedilatildeo desde 1921 havia re-cebido aposentadoria de sua funccedilatildeo Isso se deu depois de um artigo escrito pelo poeta e desenhista Bastos Tigre cheio de passagens risiacute-veis bem no estilo do autor em que ele assinalava a necessidade de aposentar Catullo de forma que ele recebesse bem mais do que uma simples aposentadoria Bastos falava do encontro que havia tido com Catullo e de um busto do poeta que estava sendo feito pelo jornal A Noite Vale a transcriccedilatildeo

Passei-le a matildeo sobre o cracircnio raspado com um certo respeito ndash afinal aquillo natildeo deixa de ser um altar ndash e perguntei a Catullo por que assim o trazia liso e cheio de arranhotildees da ldquogiletterdquondash Aquele busto meu amigo aquelle busto Andam dizendo por ahi que o meu busto no jardim do Monroe natildeo se parece commigo E como eu respeito e amo todas as artes faccedilo o possiacutevel para me parecer com o busto O meu cracircnio assim raspado daacute mais impressatildeo de granito vocecirc natildeo acha312

Depois de apresentar esse encontro ao leitor Bastos Tigre contesta

Catullo foi haacute pouco aposentado Contaram-lhe os anos de serviccedilo puacute-blico e acharam que ele soacute tinha dez ou doze E deram-lhe uns trezentos e taes mil reacuteisVocecircs natildeo contaram bem meus compatriacutecios do Dasp Catullo natildeo tem nem uma hora sequer de percussatildeo com os dedos na ldquoRemingtonrdquo ou

312 Correio da Manhatilde 2 fev 1941 p 4

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo246

na ldquoRoyalrdquo mas ele tem sessenta natildeos de trabalho de coraccedilatildeo e ceacuterebro pela nossa Paacutetria pelo Brasil de todos noacutes313

Dez dias apoacutes a publicaccedilatildeo desse artigo Catullo da Paixatildeo Cearense foi aposentado por serviccedilos prestados agrave cultura do paiacutes Em seu novo livro O milagre de Satildeo Joatildeo o editor de A Noite fez aparecer o artigo de Bastos Tigre Poreacutem o que mais salta aos olhos na publi-caccedilatildeo eacute a tentativa de construir uma narrativa de vida que consagrasse Catullo como um poeta diferente e maior aleacutem da insistente tentativa de regrar uma leitura exposta desde as primeiras paacuteginas inclusive com a indicaccedilatildeo de discos para serem ouvidos em cada momento exato da leitura dos poemas

O milagre de Satildeo Joatildeo era uma reediccedilatildeo do poema A promessa publicado no primeiro livro de poemas sertanejos Meu sertatildeo O su-cesso desse poema fez com que Catullo alargasse sua estrutura e o pu-blicasse como um livro inteiro A publicaccedilatildeo eacute iniciada com um pre-faacutecio do escritor Maacuterio Joseacute de Almeida intitulado ldquoO poema da transfiguraccedilatildeordquo em que faz rasgados elogios a Catullo chamando a atenccedilatildeo do leitor para o fato de que o poeta era conhecido por ser um dos ldquomaiores enriquecedores do idioma luso-brasileirordquo e que havia en-cantado homens como Rui Barbosa Procoacutepio Ferreira e Coelho Netto recitando o poema A promessa Fundamentalmente Maacuterio pede a atenccedilatildeo do leitor para as indicaccedilotildees das muacutesicas que deveriam acompa-nhar a sua leitura sob risco de a leitura natildeo se ldquocompletarrdquo

Mesmo natildeo sendo possiacutevel ouvir o poema com os discos especialmente feitos para completar-lhe a essecircncia musical lucraraacute quem o ouvir se respeitando as observaccedilotildees que o autor publica no final deste volume souber impregnaacute-los de recursos musicais que se harmonizem no ritmo misterioso do poema314

Com essa recomendaccedilatildeo Maacuterio Joseacute de Almeida afirmava o ca-raacuteter natildeo soacute visual da leitura mas tambeacutem auditivo dos poemas que

313 Idem314 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943 p 2

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seriam lidos A incorporaccedilatildeo do elemento musical nos poemas era fun-damental para a leitura se concretizar Isso se explica segundo Maacuterio porque o poeta em questatildeo era tambeacutem cantor e muacutesico

Cantor muacutesico e poeta Catullo recomenda altruisticamente que o ldquoO Milagre de Satildeo Joatildeordquo seja acompanhado com os discos em que tanto insiste porque o maior dos cantores do nosso misterioso idioma conhece em surtos esplendorosos o encanto essencial que a muacutesica produz315

Cabe aqui uma pausa Deve-se levar em conta que a reintroduccedilatildeo do elemento musical na obra de Catullo acontece num momento em que a canccedilatildeo brasileira sofre um boom de prestiacutegio por meio da transmissatildeo radiofocircnica Luar do sertatildeo era o prefixo da Raacutedio Nacional que se convertia a partir de 1939 na principal rede transmissora com suas ondas chegando a todo o Brasil O novo sucesso de Luar do sertatildeo aliado a uma maior discussatildeo acerca de direitos autorais no Brasil rein-troduz um debate na imprensa sobre quem seria o verdadeiro autor da canccedilatildeo Catullo da Paixatildeo Cearense ou Joatildeo Pernambuco

Esse debate ganhou as paacuteginas dos jornais e foi motivo de polecirc-mica na qual intervieram por exemplo o compositor Almirante o criacute-tico Gondin da Fonseca e o maestro Villa Lobos um amigo dos dois muacutesicos envolvidos que absolveu Catullo de plaacutegio O poeta em entre-vista explicava o caso

ndash Eacute verdade que o ldquoLuar do Sertatildeordquo natildeo eacute seundash Eacute meu simndash Falam por aiacute que a muacutesica eacute de Joatildeo Pernambucondash Conversa compus o ldquoLuar do Sertatildeordquo ouvindo uma melodia antiga que era cantada com uns versos cujo estribilho era assimlsquoEacute do maitaacuteEacute do maitaacutersquoVersos banaliacutessimos A melodia que eacute tambeacutem banal eacute anocircnima Eacute quase centenaacuteria Com leves modificaccedilotildees adaptei-lhes as estrofes

315 Idem p 3

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do ldquoLuarrdquo Parece-me que agradou porque tem sido cantada no mundo inteiro316

Essa necessaacuteria explicaccedilatildeo surgia exatamente num momento em que compositores de muacutesica no Brasil organizavam-se para discutir di-reitos autorais A polecircmica ainda se estenderia por alguns anos sem que de fato fosse indicado quem era afinal o autor da canccedilatildeo O que se mostrou claramente nas polecircmicas que surgiram foi o caraacuteter impre-ciso do termo ldquoautorrdquo

Em carta aberta a Joatildeo Pernambuco ndash na verdade endereccedilada a Almirante que promovia em seu programa de raacutedio a campanha para a exclusatildeo de Catullo como autor original da canccedilatildeo Luar do sertatildeo ndash Catullo explicava o caso cheio de ironias a Almirante a quem chamava ldquoadvogadordquo A passagem eacute longa e rica de reflexotildees sobre o entendi-mento acerca de ldquoautoriardquo no periacuteodo

Escrevo-te porque tenho pena de ver um velho camarada exposto ao baixo ridiacuteculo por um indiviacuteduo que num programa radiofocircnico ca-luniou torpemente a minha pessoa dizendo que tu eras o inspirador de meus poemas admirados pelo Brasil e pelo estrangeiro Natildeo focircsses tu o alvo dessa leviandade e eu riria a bandeiras despregadas do seu autor[] Tu deves possuir todos esses livros que te ofertei Num deles a ldquoca-bocla de Caxangaacuterdquo estaacute a ti dedicada Por que natildeo reclamaste nessa ocasiatildeo Eacute porque a embolada sertaneja a tal ldquoMeu Engenho eacute de Humaitaacuterdquo nunca foi tua eacute do folclore pernambucano Quando a trou-xeste de Pernambuco com versos banais com que a cantavas eu es-tilizando-a transformei-a na melodia para qual escrevi os versos do meu ldquoLuar do Sertatildeordquo Quando tu cantavas mais frequentemente essa minha canccedilatildeo jaacute a cantavas com a minha estilizaccedilatildeo Apelo para o teu caraacuteter e honestidade ndash na nossa convivecircncia de vinte anos dia a dia estando juntos e ouvindo os discos da famosa ldquoCasa Edisonrdquo do Rio de Janeiro falando em Catullo da Paixatildeo Cearense e natildeo falando teu nome nunca protestaste Soacute o fizeste agora depois que a tal embolada ldquoMeu engenho eacute de Humaitaacuterdquo transformou-se e nesse Hino Nacional do

316 BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os homens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 194

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Sentimento Brasileiro [] O teu ldquoadvogadordquo disse que eu estava rece-bendo os direitos dessa minha canccedilatildeo sem repartir contigo Eacute outra ca-luacutenia O meu amigo sr Fred Figner a quem vendi no tempo da antiga ldquoCasa Edisonrdquo os direitos de algumas das minhas modinhas inclusive o ldquoLuar do Sertatildeordquo eacute quem recebe os direitos das mesmas []Segundo as nossas leis todo motivo folcloacuterico que sofreu alteraccedilotildees fica pertencendo a quem as fez Ecircsse teu conselheiro injuriando-me perpetrou um crime puniacutevel Antes de ecircle acusar-me pelo microfone devia ter-me procurado para ouvir-meCom a ldquoCabocla de Caxangaacuterdquo deu-se o mesmo modifiquei-a e escrevi versos para elaA ldquofortunardquo que eu ganhei com o ldquoLuar do Sertatildeordquo e a ldquoCabocla de caxangaacuterdquo foi 50$000 por uma e 30$000 por outra vendidas em 1913 ao sr Fred Figner que as registrou na Biblioteca nacional em 1914Quando registrei na Escola Nacional de Muacutesica essa minha canccedilatildeo fi-lo como sempre declarei ldquo Composiccedilatildeo musical de minha autoria intitulada ldquoLuar do Sertatildeordquo gecircnero canccedilatildeo cuja muacutesica eacute uma estili-zaccedilatildeo do folclore brasileirordquoSou tatildeo pobre ou mais pobre do que tu Mas se quiseres comparti-lhar dessa ldquofortunardquo sem teres direito para isso eu te darei a quinta parte dela Com essa quinta parte poderaacutes pagar os honoraacuterios do teu ilustre ldquoadvogadordquo317

Como expressava Catullo a autoria de uma obra poderia ser decla-

rada se sob um material original um indiviacuteduo fizesse alteraccedilotildees Eacute a partir dessa premissa que mesmo reconhecendo que Joatildeo Pernambuco foi quem ensinou o motivo folcloacuterico Eacute de Humaitaacute Catullo chama a atenccedilatildeo para haver sido ele mesmo o estilizador daquilo que era reconhe-cido como Luar do sertatildeo Tambeacutem observava que vendera as duas can-ccedilotildees que Pernambuco por intermeacutedio do seu ldquoadvogadordquo reivindicava ndash Cabocla de Caxangaacute e Luar do sertatildeo ndash para Fred Figner e que este a registrou na Biblioteca Nacional o que lhe dava a propriedade da canccedilatildeo

Portanto o poeta observava a partir da constataccedilatildeo de que nada mais recebera por aquelas canccedilotildees que o caraacuteter autoral de uma obra nem sempre indicava a propriedade dela Registrar na Escola Nacional

317 Diaacuterio de Notiacutecias 29 abr 1945 p 2 e 5

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo250

de Muacutesica embora garantisse a canccedilatildeo sob seu nome natildeo lhe dava os direitos juriacutedicos sobre ela que eram de Fred Figner Eacute ele que diz Catullo ldquorecebe os direitos das mesmasrdquo Mas se natildeo era sua proprie-dade Luar do sertatildeo era de sua autoria daiacute Catullo chamar a atenccedilatildeo para o fato de que contestar sua autoria era um ldquocrime puniacutevelrdquo

Almirante questionara inclusive o fato de que Catullo ndash que havia ganhado do jornal A Noite com a ajuda do dinheiro doado por seus leitores uma herma no saguatildeo do edifiacutecio da empresa e na Raacutedio Nacional um retrato em sua homenagem ndash teria sua gloacuteria conquistada agrave custa de Pernambuco ao que o bardo responde ironicamente

Quanto ao meu retrato que estaacute na ldquoRaacutedio Nacionalrdquo penso que o teu ldquoadvogadordquo deve solicitar permissatildeo a todas as pessoas illustres que espontaneamente aplaudiram essa homenagem para em lugar dele co-locar a sua efiacutegie por ser ele a maior patente e a maacutexima autoridade e gloacuteria do BrasilQuanto agrave minha herma erigida com o tostatildeo do povo brasileiro sob o patrociacutenio do brilhante vespertino ldquoA Noiterdquo com o consentimento desse mesmo povo por determinaccedilatildeo do teu patrono seja em seu lugar implantada a tua imagem que me ldquodeurdquo dois nomes de paacutessaros e foi inspiradora colossal sesquipedal de toda a minha antologia de PoetaNo dia da substituiccedilatildeo da minha herma e do meu retrato procurar-te-ei para juntos fazermos uma esplecircndida serenata sob a janela do teu no-taacutevel ldquoadvogadordquo desse Eschino brasileiro cantando o meu imortal ldquoLuar do Sertatildeordquo318

A raivosa e irocircnica resposta de Catullo visava natildeo soacute a desquali-ficar a acusaccedilatildeo pela evocaccedilatildeo dos meios legais mas sobretudo pela construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo consagrada de si diante de Joatildeo Pernambuco Haacute de se salientar que natildeo era a propriedade de Luar do sertatildeo que estava em jogo pois esta diz Catullo tinha sido vendida a Fred Figner O que se debatia afinal era a representaccedilatildeo de autoria sobre a canccedilatildeo O valor pecuniaacuterio da obra era sobrepujado por uma preocupaccedilatildeo autoral que daria ao possiacutevel autor uma identificaccedilatildeo dis-

318 Ibidem p 5

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 251

tinta Para alcanccedilar esse objetivo valiam inclusive criacuteticas agrave produccedilatildeo contemporacircnea de canccedilotildees bem como a construccedilatildeo de uma histoacuteria para si que o dignificasse como grande poeta

Haacute cinquenta anos que venho aclamando o Brasil em todas as minhas modinhas e poemas Ateacute chamaram-me de louco por eu natildeo escrever um verso sem falar na minha PaacutetriaO grande jurisconsulto Pontes de Miranda diz no meu livro ldquoPoemas Braviosrdquo que Rui Barbosa prefaciou ediccedilatildeo Bedeschi paacutegina 275ldquoCatullo eacute o precursor a voz avanccedilada do clarim genial que nos con-voca para querermos mais vivamente a nossa PaacutetriardquoDe certo tempo para caacute eacute que apareceram os ldquobardos nacionalistasrdquo tatildeo patriotas que chegam ateacute a comparar o Brasil com um pandeiro319

A estrateacutegia de evocar o passado como forma de fincar seu lugar no espaccedilo de produccedilatildeo cultural do Brasil dos anos 1940 foi uma receita muito usada por Catullo em seus livros E natildeo era somente nessas polecirc-micas que o poeta ativava essa receita A representaccedilatildeo de si como grande artista vem expressa em O milagre de Satildeo Joatildeo quando ele narra ao leitor vaacuterias passagens de sua vida Na seccedilatildeo conveniente-mente intitulada ldquoUma palestra com os leitoresrdquo o autor apresenta a publicaccedilatildeo adiantando que se o poema ali escrito fosse bem lido os leitores ldquopoderiam se convencer de que este lsquoMilagrersquo eacute um verdadeiro milagre de poesiardquo320 Vai mais longe confirmando ldquoEu considero este meu trabalho (e natildeo soacute eu mas muitos poetas e escritores) a poesia mais brasileira do nosso folclorerdquo321

Catullo na sua introduccedilatildeo vale-se de todos os artifiacutecios necessaacute-rios para a representaccedilatildeo de si como um escritor distinto visando a in-dicar antes da leitura de O milagre pelo leitor a expectativa de estar lendo um autor autorizado Constatando a necessidade de apresentar-se a novos leitores Catullo diferenciava sua poesia da dos ldquomodernistasrdquo pela citaccedilatildeo de autoridades literaacuterias que o haviam consagrado Daiacute

319 Ibidem320 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943 p 6321 Idem p 7

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valer citar que ldquopoetas e escritoresrdquo achavam o poema que seria lido o ldquomais brasileirordquo e para que natildeo restassem duacutevidas quanto a isso para algum desavisado de sua trajetoacuteria literaacuteria o poeta faz desfilar em seu texto o nome dos ldquopoetas e escritoresrdquo que o consagraram

Os poetas do modernismo quiseram-me expulsar do Brasil e soacute natildeo conseguiram por saiacuterem em minha defesa homens como estes Rui Barbosa Coecirclho Neto Alberto Rangel Alberto de Oliveira Luiz Murat Rocha Pombo Capistrano de Abreu Afranio Peixoto Roquette Pinto Evaristo de Morais Maacuterio de Alencar Monteiro Lobato Juacutelio Dantas Agostinho de Campos Branco Colaccedilo Tomaz Ribeiro Filho Bastos Tigre Gastatildeo Pereira da Silva Maacuterio Joseacute de Almeida Alcindo Guanabara Luiz Carlos Paulo Silva Arauacutejo Rosalina Coelho Lisboa Pedro Lessa Guimaratildees Natal Muniz Barreto Assis Chateaubriand Fernando Magalhatildees Joseacute Oiticica e ateacute estrangeiros como Salvador Rueda e Vilaespesa os dois grandes poetas da Espanha e o grande cientista o grande meacutedico italiano ndash o Dr Ernesto Bertarelli322

Afirmar por meio da aprovaccedilatildeo de autoridades das letras sua condiccedilatildeo de ldquogrande poetardquo confirmava a publicaccedilatildeo que se iria ler como a produccedilatildeo de algueacutem que natildeo poderia ser desdenhado como autor de poesias E para os novos leitores que jaacute estivessem acostu-mados com poetas ldquomodernosrdquo Catullo tratava de chamar atenccedilatildeo para sua histoacuteria natildeo soacute como poeta mas tambeacutem como muacutesico

[] Mas ainda hoje os vates modernos dizem que eacute preciso queimar os meus livros que maculam a nossa literatura Que dizer sobre esses ldquoimortaisrdquo Haacute poucas excepccedilotildees Manoel Bandeira e outros de que natildeo me lembro[]Leitor jaacute escrevi muitas modinhas cantadas de norte a sul Reabilitei o violatildeo impondo-o nas salas dos nobres dos aristocratas Citarei ndash Pedro Lessa Rui Barbosa Nuno de Andrade Pinheiro Machado Luacutecio de Mendonccedila Nilo Peccedilanha Artur Bernardes e Epitaacutecio Pessoa no proacuteprio palaacutecio do Catete e muitos outros pois natildeo acabaria a lista se os fosse enumerar Basta dizer que em 1908 dei uma audiccedilatildeo no Conservatoacuterio de Muacutesica de que era diretor o maestro Nepomuceno

322 Ibidem p 7-8

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 253

Fiz do instrumento vagabundo um instrumento que hoje toda moccedila da alta roda tem orgulho em dedilhar Cantei como ningueacutem e nunca mais ouviacute quem cantasse essas modinhas como eu cantei No gecircnero fui um Caruso Quem duvidar pergunte a um velho da passada geraccedilatildeo323

Retomar velhas consagraccedilotildees fazia com que o leitor criasse a expectativa de uma leitura de autor consagrado Ademais tal lembranccedila veio num momento alvissareiro especialmente porque nos anos 1940 a muacutesica como jaacute atentamos torna-se objeto de consumo progressivo com o advento do raacutedio como forccedila comunicadora Aiacute reside uma dife-renciaccedilatildeo nas estrateacutegias de escrita operacionalizadas por Catullo em seus uacuteltimos livros

Desde o advento do Catullo ldquopoeta sertanejordquo ndash o aacutepice tendo sido a publicaccedilatildeo de Meu sertatildeo em 1918 ndash o bardo tratou de afastar seu nome de uma produccedilatildeo musical que embora o tivesse consagrado e o fizesse reconhecido distanciaacute-lo-ia de um reconhecimento como es-critor de livros ou poeta letrado Isso natildeo impediu que Catullo fosse por diversas vezes chamado para cantar suas modinhas em salotildees e teatros

Com a ascensatildeo do raacutedio no Brasil e a elevaccedilatildeo jaacute nos anos 1930 de Luar do sertatildeo ao status de muacutesica representativa da naccedilatildeo com sua transmissatildeo incessante como prefixo da Raacutedio Nacional ser reconhe-cido como autor de muacutesicas natildeo soaria de maneira pejorativa a um poeta Ademais se na deacutecada de 1930 o raacutedio aos poucos invadiu os lares brasileiros nos anos 1940 especialmente com a aguda sensibili-dade de Getuacutelio Vargas que via no radio um potencial veiacuteculo de comu-nicaccedilatildeo com a populaccedilatildeo o aparelho de raacutedio se tornou febre de con-sumo A historiadora Lia Calabre observa que essa mudanccedila se deu pois ldquoo raacutedio do final da deacutecada de 1930 jaacute era visto como um meio de comunicaccedilatildeo fundamental e indispensaacutevel soacute ele poderia informar transmitir as notiacutecias com a velocidade necessaacuteria dos novos tem-posrdquo324 Daiacute ser comum nas publicaccedilotildees de Catullo dessa eacutepoca o que

323 Ibidem p 9324 CALABRE Lia No tempo do Raacutedio radiodifusatildeo e cotidiano no Brasil 1923-1960

2002 277 f Tese (Doutorado em Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Universidade Federal Fluminense NiteroiacuteRJ 2002 p 68

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poderiacuteamos chamar de volta agrave produccedilatildeo musical tentando fincar seu espaccedilo tambeacutem como muacutesico e cantor consagrado algo inexistente nas produccedilotildees anteriores O milagre de Satildeo Joatildeo representa essa guinada na obra impressa do poeta de maneira tatildeo sintomaacutetica que a leitura do poema do livro soacute poderia ser efetuada com a ajuda das suas canccedilotildees

Aiacute Catullo busca representar em sua obra aquilo que o leitor atento deveria entender como um ldquobardo nacionalrdquo Nesse processo Catullo esmaece as fronteiras que poderiam separar o poeta do bardo da muacutesica construindo uma aproximaccedilatildeo entre ambos e indicando que a leitura do texto e audiccedilatildeo de uma canccedilatildeo eram dois pares fundamentais para o entendimento de sua poesia

Catullo afinal cria um plano de leitura da sua obra buscando superar a contradiccedilatildeo que separava o poeta de livros e o compositor de canccedilotildees ndash e que era como vimos argumento importante para classificar um autor com um poeta letrado (ou natildeo) nos anos 1910 e 1920 Ele mesmo que assumira anteriormente em sua obra esse projeto figu-rava com O milagre uma reaproximaccedilatildeo com sua produccedilatildeo musical Mas da mesma forma como houvera tentado construir seu lugar como poeta sertanejo era necessaacuterio tambeacutem distinguir-se de outros compo-sitores de muacutesicas de preferecircncia os mais novos estigmatizando-os em negativo ao passo que dando o creacutedito a compositores mais antigos se afirmasse como dentre eles o maior

Hoje no Brasil pululam os ldquobardos nacionaisrdquo e nenhum deles deixa de compor sua marchinha seu samba ou sua canccedilatildeo falando sempre na ldquoca-boclardquo no ldquomalandrordquo no ldquoBrasil pandeirordquo nome este acapadoccedilado que ateacute melindra a nossa brasilidade Os ceacutelebres trovadores natildeo sei porque fizeram dos morros o seu Parnaso esses lugares evitados em outros tempos por todas as pessoas decentes Os morros com os seus desordeiros e os seus assassinos nos apavoravam Hoje satildeo aclamados por senhoras e senhores da alta nobresa Basta que um sujeito escreva um samba em que capadoccedilalmente fale em Brasil para que logo seja considerado um poeta de votildeos [sic] nacionais Agora tudo eacute ldquoBrasil Brasil Brasilrdquo e no entanto haacute 50 anos quando eu jaacute dedicava os meus descantes ao Brasil brasileiro era chamado de maniacuteaco porque soacute cantava a minha paacutetria325

325 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943 p 7

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Daiacute representar o passado tornou-se um exerciacutecio de produccedilatildeo de uma crenccedila na distinccedilatildeo positiva do autor de O milagre Se o pre-sente dava novo status ao compositor de muacutesica que ldquopululavardquo em todo canto como queria Catullo necessaacuterio seria produzir uma repre-sentaccedilatildeo que o diferenciasse em meio a todos eles Numa clara alusatildeo aos sambistas que apareciam o trecho acima expressa essa operaccedilatildeo onde a construccedilatildeo de um passado glorioso para o poeta respondia agrave demanda por um lugar dentro do universo da muacutesica no Brasil do pe-riacuteodo Contra os novos poetas e muacutesicos o autor natildeo economizava nos comentaacuterios autoelogiosos

Fui um tocador de violatildeo e um cantador de modinhas uacutenico no gecircnero Fui um seresteiro notaacutevel estupendo sesquipedal Quando queria um favor a Deus pedia-o numa serenata Que ideacuteia faz o leitor de uma se-renata Eu as fiz com os mais notaacuteveis muacutesicos desta capital 326

Temendo que no futuro as pessoas esquecessem sua obra Catullo conclui

Mas se por ventura os homens o esquecerem nada perderaacute a poste-ridade Nada perderatildeo os poetas de que minha terra estaacute cheia nada perderatildeo os artistas nada perderatildeo os saacutebios nada perderatildeo os filoacute-sofos ningueacutem perderaacute com esse esquecimento Soacute trecircs estou certo lamentaratildeo o olviacutedio dessa epopeia nacional desse portentoso desse milagroso ldquoMilagre de S JoatildeordquoSoacute trecircs ndash o Passado a Tradiccedilatildeo e a Natureza do Brasil327

Todo o arcabouccedilo de autoencocircmio o poeta mobilizava em sua ldquoPalestra com os leitoresrdquo Todo o arsenal de autorrepresentaccedilatildeo eacute mo-bilizado de forma que o leitor natildeo o confunda com sambistas e o co-loque no patamar de homens socialmente distintos na cultura letrada do periacuteodo Mas como achasse que criar essa crenccedila em sua distinccedilatildeo como poeta e muacutesico natildeo fosse o suficiente para a posterior leitura do texto que seguiria o autor anuncia a necessidade de ler ouvindo as can-

326 Ibidem p 11327 Ibidem p 12-13

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ccedilotildees que iria indicar pois para que a publicaccedilatildeo do livro ldquotenha uma estupenda realidade deve ser acompanhada de todos os discos fonograacute-ficos que dela fazem parterdquo328

Ainda na introduccedilatildeo ldquoPalestra com os leitoresrdquo Catullo abusou das explicaccedilotildees dadas ao leitor de como o livro O milagre de Satildeo Joatildeo deveria ser lido Eacute interessante notar que nessa advertecircncia em forma de prefaacutecio Catullo jaacute entatildeo quase um octogenaacuterio retomava sua re-presentaccedilatildeo de compositor e fazia assim daquele novo livro que publi-cava um curioso casamento entre poesia teatro e muacutesica Essa guinada natildeo poderia ser entendida sem levar em conta as mudanccedilas em torno do papel da canccedilatildeo popular no Brasil da deacutecada de 1940

Mas voltemos agrave ldquoPalestra com os leitoresrdquo Nela Catullo busca explicar ao leitor do que se trata a poesia que se iria ler fazendo uma grave advertecircncia ao final ldquoChico Mironga o sertanejo que aqui na capital vai contar sua histoacuteria de amor com Joaninha hoje jaacute estaacute velho mas era rapazola quando se deu este caso Esta epopeia sera uma epo-peia maravilhosa se o leitor quiser seguir as minhas indicaccedilotildeesrdquo329

A advertecircncia do poeta serve como tentativa de regrar a leitura Existiam no texto do poema marcaccedilotildees que separavam em ldquopartesrdquo a histoacuteria do sertanejo Chico Mironga e Catullo vecirc a possibilidade de a leitura do poema ser seguida pela audiccedilatildeo dos ldquodiscos fonograacuteficosrdquo pois assim como queria ldquoa epopeia seraacute uma epopeia maravilhosardquo Para reiterar a necessidade de articulaccedilatildeo do texto com a muacutesica o poeta ainda insistia por vaacuterias vezes em seu texto para que o leitor natildeo perdesse de vista aquela advertecircncia e via nessa passagem uma opor-tunidade para demonstrar um pouco de sua trajetoacuteria como muacutesico Reiterando o papel da audiccedilatildeo da muacutesica no momento da leitura do poema de O milagre ele observa

[] Tenho comigo todos os discos que o ilustramPor insinuaccedilotildees minhas foram eles gravados haacute muitos anos e haacute muitos anos estatildeo esgotados Fosse eu um homem rico mandaria gravaacute-los de

328 Ibidem p 5329 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 257

novo para proveito dos leitores Com eles poderiam se convencer que este ldquoMilagrerdquo eacute um verdadeiro milagre de poesia Eacute inuacutetil dar o nome dos meus discos porque eacute quase impossiacutevel serem hoje encontradosO leitor com seu gosto apurado e a sua inteligecircncia pode substituiacute-los por outros antigos ou mesmo modernos desde que eles condigam com o assunto a que tecircm de se adaptar330

Haacute de se observar que aquilo que Catullo chama ldquomeus discosrdquo natildeo eacute como poderia pensar um leitor atual os discos gravados por ele proacuteprio Natildeo consta na historiografia e mesmo em pesquisas sobre o disco no Brasil que o poeta tenha gravado algum disco O que Catullo chama de ldquomeus discosrdquo satildeo suas muacutesicas gravadas por outros Por isso na passagem acima transcrita afirma que ldquopor insinuaccedilotildees mi-nhas foram eles gravadosrdquo Ora a forma comum agrave eacutepoca de chamar ldquomeus discosrdquo diz muito sobre o fato ldquoautoralrdquo A autoridade uacuteltima da canccedilatildeo gravada era do compositor pelo menos assim nos diz Catullo Mas a mudanccedila no status do cantor no Brasil nos anos 1930 distorcia a opiniatildeo o poeta No novo regime era comum o desaparecimento do autor em prol do cantor muitas vezes identificado como o autor ori-ginal da canccedilatildeo A representaccedilatildeo da canccedilatildeo gravada por outro como ldquomeus discosrdquo como queria Catullo era arranhada pela proeminecircncia do cantor que naquela eacutepoca bem poderia dizer em resposta ao poeta ldquoos meus discosrdquo

Em O milagre de Satildeo Joatildeo embora jaacute indicasse a necessidade da muacutesica no texto Catullo vai mais longe em seu afatilde regrador da re-cepccedilatildeo ele indica os momentos exatos do poema em que uma canccedilatildeo deve ser ouvida pelo leitor Para tanto ao final do livro em seccedilatildeo inti-tulada ldquoExplicaccedilatildeo e indicaccedilatildeo dos discos que devem musicalmente completar este poemardquo explica pormenorizadamente os detalhes da muacutesica e dos momentos em que devem ser tocadas para o deleite do poema Antes explica que

Sempre que funcionar o aparelho fonograacutefico o leitor deve interromper a leitura continuando-a depois de o disco terminado Alguns discos po-

330 Ibidem p 5-6

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo258

deratildeo ser tocados na iacutentegra outros em parte O Guarani por exemplo seraacute discado apenas nos primeiros compassos salvo se o recitador re-solver o contraacuterio Repito recomendo todo cuidado e inteligecircncia na escolha desses discos Se natildeo forem bem escolhidos em lugar de em-belezarem prejudicaratildeo a beleza do poema331

Ao final do poema Catullo indica cada paacutegina em que a canccedilatildeo deve ser tocada o verso que deve findar para que a muacutesica toque e em que momento ele deve continuar a ser lido depois da canccedilatildeo Com uma observaccedilatildeo salutar ao final dessa explicaccedilatildeo o autor observa que ldquotodos os discos deveratildeo ser tocados imediatamente sem perda de um se-gundo logo depois de ser proferido o verso que lhe serve de deixardquo332 Assim

PAacuteGINA 35Depois do verso ldquovasmincecirc vae iscutaacuterdquo deve-se ouvir um samba an-tigo e natildeo samba moderno estrangeirado Esse samba deveraacute ser can-tado Seguir-se-aacute o verso ldquoE noacutes fumo caminhandordquo[]PAacuteGINA 47Depois do verso ldquofaz os veacuteio se alembraacuterdquo ouvir-se-aacute um terno de flauta ou uma banda tocando uma parte de quadrilha Seguir-se-aacute o verso ldquoLogo ao despois da quadrilhardquoPAacuteGINA 48Depois do verso ldquoFoi assubiando o balatildeordquo disque-se um tango de Ernesto Nazareth ou Chiquinha Gonzaga Seguir-se-aacute o verso ldquoAgora todo mundatildeordquo[]PAacuteGINA 145Depois do verso ldquoo Brasil tem um sordadordquo uma banda de muacutesica para terminar executaraacute o Hino Nacional333

O milagre de Satildeo Joatildeo representa natildeo soacute a retomada definitiva da muacutesica nos textos de Catullo ndash algo que jaacute vinha sendo esboccedilado desde O boecircmio no ceacuteu ndash mas uma nova estrateacutegia autoral visando a fisgar o leitor mais desavisado de sua trajetoacuteria como muacutesico Um novo leitor

331 Ibidem p 6332 Ibidem p 162333 Ibidem p 159-162

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 259

que agravequela eacutepoca tambeacutem se regozijava com os sucessos radiofocircnicos e fonograacuteficos Um leitor que se acostumara tambeacutem a ouvir inclusive o proacuteprio Catullo recitando nas raacutedios e que construiacutea seus novos iacutedolos atraveacutes das ondas radiofocircnicas Escrever um livro e publicaacute-lo natildeo era mais a receita uacutenica de consagraccedilatildeo de um indiviacuteduo A canccedilatildeo entroni-zava de maneira mais consagradora cantores e compositores de muacutesica e embora o puacuteblico consumidor de livros tenha aumentado substancial-mente desde iniacutecios do seacuteculo XX ndash inclusive com programas do Governo Federal comandado por Vargas ndash a radiofonia sequestrara a aura que era uacutenica e exclusiva do poeta de livros

O milagre de Satildeo Joatildeo eacute uma tentativa de (re)construccedilatildeo do ldquopoeta das modinhasrdquo que consagrara Catullo em iniacutecios daquele seacute-culo de forma a rivalizar incorporando-a na sua escrita com o mundo das canccedilotildees no Brasil Dali em diante o poeta Catullo da Paixatildeo Cearense assumindo de vez seu lugar como muacutesico publicou em li-vros posteriores sua autorrepresentaccedilatildeo constantemente de forma a evocar um passado de consagraccedilatildeo com as letras e mais do que tudo com a muacutesica

O testamento da aacutervore

Em meados dos anos 1940 as produccedilotildees nacionais catapultadas pela poliacutetica cultural do governo Vargas invadiam a Europa e principal-mente os Estados Unidos J J Robins empresaacuterio que vinha editando muacutesica brasileira em Nova Iorque ndash desde Mamatildee eu quero de autoria de Jararaca e Vicente Paiva ndash anunciava que a uniatildeo dos compositores ligados agrave SBAT e agrave ABCA tinha sido uma ldquoexcelente ideacuteiardquo334 pois segundo ele isso fazia com que natildeo houvesse problemas com paga-mentos de direitos autorais em separado De fato a resoluccedilatildeo do con-flito que envolvia a arrecadaccedilatildeo de direitos autorais envolvendo as duas entidades havia chegado a um acordo em que ambas as partes resolveram aceitar a existecircncia uma da outra

334 A Noite 7 ago 1942

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo260

O jornal A Noite citava (aleacutem de Robins) Ralph Peers como outro editor de muacutesicas brasileiras em terras estadounidenses Peers lanccedilava de maneira ldquoafortunadardquo dizia o perioacutedico Aquarela do Brasil de Ary Barroso Robins por sua vez estava obtendo ecircxito com duas canccedilotildees A primeira era Que eacute que a baiana tem de Dorival Caymmi gravada pelos ldquofamosos cantores negros Mills Brothers que a cantaram num estilo tipicamente semelhante ao das canccedilotildees dos pretos americanos em que se especializaramrdquo A segunda era Luar do sertatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense sob o tiacutetulo In Old Brazil em arranjo de Eddy Duchin num estilo fox-trot Luar tambeacutem era usada salientava A Noite como ldquotema para caracterizar o Brasil na peccedila orfeocircnica The Two Americas poema de Mary Carolyn Davies e muacutesica de Domenico Savinordquo Na ediccedilatildeo preparada por Robbins apareciam trechos do Hino Nacional Brasileiro e a primeira audiccedilatildeo seria feita em agosto de 1942 na Escola de Muacutesica Juvenil de Interlochen em Michigan335

Do outro lado do Atlacircntico o poeta portuguecircs Joatildeo de Barros saudava o poeta Catullo chamando-o de ldquoinspirador das energias do povo brasileirordquo Procoacutepio Ferreira por sua vez mandava notiacutecias de que os livros de Catullo eram lidos com frequecircncia em Lisboa capital de Portugal

Esse sucesso pegara um jaacute octogenaacuterio Catullo que entregara a Guimaratildees Martins a responsabilidade de cuidar de seus direitos auto-rais exatamente no momento de ecircxito internacional de suas produccedilotildees Martins era maranhense e tambeacutem se metia a escrever poesia e cantar canccedilotildees muitas vezes acompanhando o proacuteprio Catullo na Raacutedio Nacional Ganhara a confianccedila do poeta de maneira tal que Catullo leigo nos tracircmites para a reivindicaccedilatildeo de direitos autorais colocou em suas matildeos a tarefa de resolver tais problemas

Jaacute sob responsabilidade de Guimaratildees Martins Catullo publicou trecircs livros Poemas escolhidos (1944) Modinhas (1946) e O testamento da aacutervore (1945) Os dois primeiros satildeo coletacircneas de poemas e modi-nhas respectivamente Modinhas continha no texto os nomes dos com-

335 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 261

positores das muacutesicas que acompanhariam as letras de Catullo ndash algo inexistente nas antigas publicaccedilotildees de modinhas de Catullo pela livraria Quaresma ndash numa tentativa tambeacutem de resolver um longo capiacutetulo das produccedilotildees de Catullo a autoria

Como jaacute haviacuteamos observado Catullo resolvera inscrever suas canccedilotildees na SBAT que por sua vez cedia a parte concernente aos seus direitos a Guimaratildees Martins como procurador do poeta Essa cessatildeo de direitos de propriedade a Guimaratildees eacute indicada na contracapa de seu livro Poemas escolhidos onde faz publicar a seguinte explicaccedilatildeo

Direitos de propriedadeDe GUIMARAtildeES MARTINSReservados todos os direitos de traduccedilatildeo adaptaccedilatildeo reproduccedilatildeo etc nos paiacuteses que aderiram agrave Convenccedilatildeo de Berna336

A primeira ediccedilatildeo da publicaccedilatildeo de Poemas escolhidos foi lan-ccedilada em 1944 pela editora Zeacutelio Valverde localizada na travessa do Ouvidor nordm 27 centro do Rio de Janeiro Zeacutelio era ainda jovem quando se iniciou como editor ndash com pouco mais de 17 anos de idade Aleacutem de vender desde 1937 livros histoacutericos e claacutessicos da literatura brasileira em sua livraria sua figura ficou conhecida por ele ser bastante gordo Em 1939 sua editora nascente se fundiu com a Schmidt Editora do poeta e homem de negoacutecios Augusto Frederico Schmidt

A fusatildeo fez aumentar ainda mais a procura por livros especial-mente com a reediccedilatildeo da seacuterie ldquoGrandes Poetas do Brasilrdquo empreendi-mento que obtivera enorme sucesso desde 1938 e a coleccedilatildeo ldquoBiblioteca das Grandes Biografiasrdquo cujo livro inaugural foi uma biografia do poeta Coelho Neto escrita por seu filho Paulo Coelho Netto337 Zeacutelio causava grande alvoroccedilo no mundo editorial ao publicar aquilo que chamou de o ldquoprimeiro livro brasileiro sobre os horrores da ocupaccedilatildeo nazistardquo intitulado Viagem atraveacutes do caos de Ary Pavatildeo que vendeu

336 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 Contracapa

337 Diretrizes 16 abr 1942 p 29

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo262

trecircs mil exemplares soacute no Rio de Janeiro em poucos dias Um verda-deiro ldquorecorderdquo segundo o perioacutedico Diretrizes338

Poemas escolhidos tratava-se de uma seleccedilatildeo dos poemas orga-nizado e anotada por Guimaratildees Martins e revista pelo autor Zeacutelio fez uma tiragem de 150 exemplares numerados e rubricados pelo autor contendo 17 caricaturas de Catullo produzidas por diversos artistas Entre os poemas escolhidos havia vaacuterias letras de modinhas de Catullo afirmando uma necessidade antiga do poeta que via essas letras como passiacuteveis de serem representadas tambeacutem como poemas Por isso o livro tem uma primeira parte intitulada ldquoO poeta muacutesico e cantorrdquo uma segunda parte chamada de ldquoO poeta braviordquo e uma terceira parte com o tiacutetulo de ldquoO poeta cultordquo Essa separaccedilatildeo dizia muito da representaccedilatildeo de poesia que tanto Catullo quanto Guimaratildees Martins e o editor Zeacutelio queriam atribuir agrave obra que o leitor teria em matildeos Cada poema era acompanhado com a explicaccedilatildeo necessaacuteria ndash muitas vezes uma histoacuteria de consagraccedilatildeo de Catullo ndash para que o leitor compreendesse o contexto de sua produccedilatildeo

A publicaccedilatildeo se inicia com uma ldquoNota explicativa ndash servindo de prefaacuteciordquo escrita pelo proacuteprio poeta Nela Catullo explica ao puacute-blico o objetivo da publicaccedilatildeo e o porquecirc de nela aparecerem tambeacutem as modinhas

Solicitado pelo meu querido amigo Guimaratildees Martins para que eu fizesse uma seleccedilatildeo dos meus poemas de acordo com ecircle resolvi fazer esta escolha que natildeo sei se foi a melhor Tambeacutem aplaudi a ideacuteia que teve esse belo amigo de incluir na coletacircnea algumas das minhas Modinhas da Velha Guarda para que o leitor pudesse me conhecer como trovador das antigas serenatas Essas canccedilotildees perdem muito sem a muacutesica com que satildeo cantadas Mas como Guimaratildees Martins vai pu-blicar algumas delas com as respectivas melodias o leitor poderaacute sen-tiacute-las com a beleza integral Eacute mais um serviccedilo que Guimaratildees Martins prestaraacute ao povo da nossa terra339

338 Idem 1ordm out 1942 p 7339 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 15

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 263

A nota procura alertar o futuro leitor que pudesse desconhecer sua faceta ldquotrovador Velha Guardardquo para uma leitura de suas modinhas Anunciadas como poemas Catullo chama a atenccedilatildeo para o fato de que aquelas modinhas poderiam perder muito sem a muacutesica Entretanto inexiste na nota uma representaccedilatildeo das modinhas transcritas como tatildeo simplesmente letras Ali incluiacutedas num livro cujo tiacutetulo era Poemas escolhidos suas modinhas deveriam ser lidas como poemas que deve-riam ter a ldquobeleza integralrdquo se acompanhadas das muacutesicas Sutilmente o autor vai realccedilando uma representaccedilatildeo que de resto vinha sendo por ele tentada desde suas primeiras publicaccedilotildees de fazer com que suas modinhas pudessem ter o caraacuteter de poesia Essa representaccedilatildeo aproxi-maria como consequecircncia sua produccedilatildeo modinheira de um status poeacute-tico e portanto diferenciado

A nota tambeacutem tinha um vieacutes explicativo para aquele que natildeo conhecera o Catullo modinheiro jaacute que algumas das modinhas publi-cadas em Poemas escolhidos havia muito tempo natildeo eram mais publi-cadas ou reeditadas em livros Para isso chama a atenccedilatildeo a segunda contracapa da publicaccedilatildeo contendo uma lista de todas as obras de Catullo Na lista eacute possiacutevel ver que embora alguns livros de ldquocanccedilotildees musicadasrdquo tivessem chegado a 50 ediccedilotildees (caso de Cancioneiro po-pular de modinhas brasileiras aqui jaacute citado) todos eles estavam esgo-tados havia muito tempo A nota preacutevia servia portanto tambeacutem para aqueles novos leitores que desconhecessem o Catullo da muacutesica O proacute-prio tiacutetulo da publicaccedilatildeo Poemas escolhidos deixa entrever o caraacuteter de coletacircnea da obra que o criacutetico do jornal Gazeta de Notiacutecias alerta para aqueles leitores que ainda desconheciam o ldquobardo sertanistardquo

Todos admiram o cantor do Luar do Sertatildeo [sic] cujos harmoniosos versos penetraram a alma do povo e cuja melodia serve ateacute de prefixo radiofocircnico Haacute entretanto admiradores da musa de Catulo Cearense que ainda natildeo conhecem todos os seus vigorosos poemas as maravi-lhosas paacuteginas decircsse prodigioso criador de tipos sertanejosNa brochura que surgiu e lemos com sincero embevecimento os leitores encontram uma perfeita seleccedilatildeo de todas as poesias do bardo sertanista340

340 Gazeta de Notiacutecias 19 nov 1944 Suplemento p 4

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo264

Um texto de Guimaratildees Martins que segue ao de Catullo sugere bem essa uacuteltima serventia da ldquoNotardquo do autor Sob o tiacutetulo de ldquoCatulo Poeta Muacutesico e Cantorrdquo Guimaratildees Martins destaca fundamentalmente o lado musical do poeta

Das figuras artiacutesticas a que dediquei sempre uma veneraccedilatildeo profunda destaco a de Catulo como objeto uacutenico deste livro Poeta genial pela inspiraccedilatildeo e cantor popular maravilhoso de brilho apoliacutenio alccedilou o violatildeo nacional agrave altura dos demais instrumentos tidos como aristocraacute-ticos O violatildeo com ecircle subiu das rodas familiares ao Conservatoacuterio Nacional de Muacutesica da ingenuidade do sertatildeo enluarado ao tabernaacute-culo esplecircndido das artesCatulo abriu as portas da imortalidade com o prodiacutegio do toque natildeo menos maacutegico das cordas gemedoras341

A esse texto seguem os ldquoDados Biograacuteficosrdquo do poeta escritos pelo mesmo Guimaratildees Martins A biografia traccedila uma imagem de um poeta ilustre que ganhara em comemoraccedilatildeo ao dia de seu nascimento 8 de outubro de 1940 uma placa na casa onde nasceu no Maranhatildeo e um busto no jardim Monroe ldquonas margens da maravilhosa Guanabarardquo Guimaratildees na breve biografia novamente realccedila o muacutesico Catullo con-tando um velho fato consagrador de sua vida qual seja a sua apresen-taccedilatildeo acompanhado do violatildeo no Conservatoacuterio Nacional de Muacutesica no jaacute distante ano de 1908

Foi no antigo Conservatoacuterio Nacional de Muacutesica agrave rua Luiz de Camotildees que com o apoio do maestro Alberto Nepomuceno o violatildeo ressurgiu consagrado pelo prestiacutegio artiacutestico de Catullo Ecircsse acontecimento que marca tatildeo dignamente a evoluccedilatildeo da muacutesica popular brasileira ocorreu em 1908 []342

A ocorrecircncia insistente da descriccedilatildeo da consagraccedilatildeo do poeta no espaccedilo da muacutesica expressa nas notas de Guimaratildees Martins pode ser

341 MARTINS Guimaratildees Catulo Poeta Muacutesico e Cantor In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 p 17

342 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 p 20

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entendida pelo estatuto recente da muacutesica no Brasil Possivelmente a constataccedilatildeo desse estatuto diferenciado e glamourizado que agravequela eacutepoca o cantor popular atingia especiamente com o aumento do puacute-blico de raacutedio fazia com que Guimaratildees Martins investisse numa repre-sentaccedilatildeo de Catullo que realccedilasse mais seu lado musical e chamasse a atenccedilatildeo do leitor para um ldquoprestiacutegio artiacutesticordquo na carreira musical do poeta que o marcasse na ldquoevoluccedilatildeo da muacutesica popular brasileirardquo

Essa aposta em um Catullo muacutesico e cantor chega a fazer prati-camente desaparecer nas notas e prefaacutecio que antecedem a leitura do livro o poeta dos livros Ao que parece assumindo o papel de organi-zador da obra e uma espeacutecie de braccedilo direito de Catullo Martins foi construindo uma representaccedilatildeo de poeta mais condizente com o periacuteodo de publicaccedilatildeo do livro Para isso vai realccedilando alguns toacutepicos e expli-cando outros de forma a melhor representar o autor para o puacuteblico fa-zendo com que a posterior leitura levasse em conta tais elementos

Seguindo essa receita aparece na publicaccedilatildeo uma ldquoNota impor-tanterdquo natildeo assinada possivelmente escrita pelo mesmo Guimaratildees Nela o objetivo eacute ir de encontro a uma representaccedilatildeo caricatural de Catullo Para tanto o texto comeccedila por lanccedilar culpa na construccedilatildeo dessa imagem aos repoacuterteres que procurando fazer rir o leitor preferem pelo ldquoalto valorrdquo do poeta usaacute-lo como objeto de uma ldquoblaguerdquo

Catulo tem sido viacutetima de alguns repoacuterteres menos avisados que o vatildeo procurar em sua casa para entrevistaacute-lo Muita vez o Poeta sur-preende-se com o resultado da palestra que concedera ao jornalista encontra a cada passo coisas que jamais afirmara Natildeo se aborrece por isso Vecirc no caso apenas uma blague vontade de fazer rir o leitor Eacute natural que eles faccedilam isso com o Poeta dado o seu alto valor Se o fizessem com um indiviacuteduo vulgar um desconhecido a blague natildeo teria repercussatildeo343

Essa representaccedilatildeo risiacutevel do poeta embora a nota chame a atenccedilatildeo como sendo algo criado por ldquorepoacuterteresrdquo natildeo se pode dizer que eacute de todo correta uma vez que o proacuteprio Catullo aleacutem de assumir

343 Ibidem p 23

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muitas vezes nos palcos de teatro performances visando a nitidamente divertir nos proacuteprios livros fazia de sua representaccedilatildeo algo que provo-casse o riso do leitor Para citar um caso havia uma famosa piada criada por Bastos Tigre e publicada por Catullo em O milagre de Satildeo Joatildeo da sua funccedilatildeo (que nunca chegou a exercer) como datiloacutegrafo no Ministeacuterio da Viaccedilatildeo Quando da Revoluccedilatildeo de 30 o novo chefe de reparticcedilatildeo mandou chamaacute-lo e indagado sobre qual maacutequina preferia Catullo depois de coccedilar a cabeccedila respondeu ldquoPrefiro uma Singerrdquo ldquoSingerrdquo era a marca de uma maacutequina de costura344

A compreensatildeo portanto daquela desconstruccedilatildeo soacute pode ser en-tendida pela necessidade de reconstruccedilatildeo do poeta vista pelo novo ces-sionaacuterio dos direitos do autor Para melhor dizer de uma reabilitaccedilatildeo de Catullo pela construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo diferente de um poeta pelo qual tinha uma ldquoveneraccedilatildeo profundardquo As lutas de representaccedilotildees no iniacutecio do texto de Poemas escolhidos satildeo incessantes

A ldquoNotardquo continua tentando atacar outra representaccedilatildeo cara ao poeta aquela que o descreve como algueacutem com excesso de orgulho Essa empresa como vimos anteriormente era muito comum na carac-terizaccedilatildeo de Catullo inclusive sendo reafirmado pelo poeta em seus prefaacutecios e alguns poemas muitas vezes como forma de afirmar seu lugar como poeta distinto em vaacuterios momentos de sua trajetoacuteria

Evocando o fato de conhececirc-lo proacuteximo o autor da nota defende o poeta daqueles que o julgam ldquosem conhecer o nosso grande Cantorrdquo

Haacute indiviacuteduos que sem conhecer o nosso grande Cantor da selva e da cidade datildeo elementos ao historiador e ao criacutetico para uma biografia apoacutecrifa Julgam-no em excesso de orgulhoso Quando os que o co-nhecem pessoalmente sabem que ecircle eacute um homem de pasmosa sim-plicidade O que haacute em Catulo natildeo eacute orgulho eacute a exata compreensatildeo do valor de sua obra valor aliaacutes reconhecido pelos grandes vultos da intelectualidade universal345

344 Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Op cit p 184345 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 23

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 267

Por fim o autor da nota atira contra uma compreensatildeo que en-xerga Catullo ndash que escrevera muitos dos seus poemas com a represen-taccedilatildeo de um personagem dotado de um linguajar sertanejo cheio de erros gramaticais ndash como algueacutem que como seus personagens escrevia errado A nota dispara que ldquoCatulo escreve no linguajar sertanejo ou na linguagem gramatical portanto com gramaacutetica ou sem gramaacutetica ele eacute um grande Poetardquo346

Os textos que antecedem a leitura de Poemas escolhidos no en-tanto natildeo se encerram com os dados biograacuteficos e notas explicativas Seguindo uma foacutermula jaacute bastante comum nos livros anteriores do poeta aparecem na publicaccedilatildeo os ldquoJuiacutezos Criacuteticosrdquo de nomes ilustres do mundo das letras A diferenccedila eacute que se nos livros anteriores de Catullo as apreciaccedilotildees sobre sua pessoa e sobre sua obra aparecem ao final da publicaccedilatildeo em Poemas escolhidos o editor faz publicar antes da apresentaccedilatildeo dos poemas A colocaccedilatildeo desses ldquoJuiacutezosrdquo no iniacutecio do livro parecia visar a fazer parte de toda uma preparaccedilatildeo para que a apro-priaccedilatildeo do livro pelo leitor pudesse se dar a partir daquelas apreciaccedilotildees positivas Trata-se portanto de uma preparaccedilatildeo para uma leitura

Nos ldquoJuiacutezosrdquo eacute possiacutevel ver o desfile de vaacuterios representantes letrados conhecidos do periacuteodo dando opiniotildees sobre Catullo Desde o jurista Cloacutevis Bevilaacutequa que abre os textos chamando Catullo de ldquopoeta genialrdquo347 passando por Juacutelio Dantas escritor portuguecircs que diz ser o autor um ldquogenial Virgiacutelio caboclordquo e que seria ldquomuito maior do que os seus admiradores o julgamrdquo348 Rui Barbosa para quem os versos de Catullo satildeo ldquode um encanto irresistiacutevel satildeo mais belo docu-mento da natureza e da vida dos sertotildees brasileiros que a sua musa enfeiticcedila e parece recriarrdquo349 Raul Pederneiras ldquoCatulo honra os seus mestres (pois que nunca os teve) tendo-se feito por si mesmordquo350

346 Idem347 Ibidem p 31348 Ibidem p 31349 Ibidem p 32350 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 39

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo268

Monteiro Lobato ldquoSoacute tu eacutes Brasil da cabeccedila aos peacutes e escreves para o Brasil []rdquo351 e o maestro Heitor Villa Lobos

Acompanhando-se ao violatildeo e cantando uma das suas composiccedilotildees Catullo eacute extraordinaacuterio eacute arrebatador Duvido que haja coraccedilatildeo insen-siacutevel aacute sua arte No seu gecircnero foi o maior cantor do Brasil[]O Catulo eacute o maior da terra que o Brasil possui352

Aquela antologia respondia sem duacutevida ao desejo de Guimaratildees Martins de uma leitura enviesada do livro que reafirmasse uma repre-sentaccedilatildeo que desse mais credibilidade a um autor que como Catullo tinha sua trajetoacuteria questionada por diversas vezes

Tambeacutem natildeo se podem perder de vista os objetivos editoriais da publicaccedilatildeo que ganhava com a demonstraccedilatildeo para o leitor de que ele acabara de adquirir um livro de autor consagrado por pessoas distintas E Poemas escolhidos chegaria a quatro ediccedilotildees em dois anos Zeacutelio Valverde inclusive publicizava-a em jornais chamando a atenccedilatildeo para a antologia de opiniotildees por intelectuais consagrados Apresentava a pu-blicaccedilatildeo como tendo ldquoaleacutem das melhores produccedilotildees do apreciado poeta muacutesico e cantor contecircm essa obra vaacuterios trabalhos ineacuteditos do mesmo e juiacutezos criacuteticos de diversos intelectuais a seu respeitordquo353

Zeacutelio tambeacutem apostou na promoccedilatildeo de uma tiragem diferente e mais cara Sendo vendido por 18 cruzeiros a ediccedilatildeo comum de Poemas escolhidos natildeo teria o mesmo formato de 150 exemplares especiais que seriam vendidos por 100 cruzeiros cada A tiragem mais cara se justifi-cava por trazer aleacutem do autoacutegrafo do proacuteprio autor caricaturas de Catullo feitas por diversos artistas e vendagem em ldquopapel especialrdquo Para o leitor atual ter uma ideia do preccedilo da publicaccedilatildeo bastaria citar o preccedilo de um livro de Eacutemile Zola O paraiacuteso das damas que era vendido ao preccedilo de 25 cruzeiros enquanto o Contrato social de Rousseau saiacutea

351 Ibidem p 37352 Ibidem p 35353 Correio da Manhatilde 19 nov 1944 p 6

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por 13 cruzeiros e Meu sertatildeo do proacuteprio Catullo em sua 40ordf ediccedilatildeo pela editora A Noite era comercializado por 10 cruzeiros na livraria ParaTodos354 do Rio de Janeiro Embora obviamente o preccedilo dependa de vaacuterios criteacuterios (novidade ediccedilatildeo luxuosa autor volumes etc) eacute possiacutevel compreender em parte o valor de uma tiragem diferente como a de Poemas escolhidos

Juizos criacuteticos se encerra depois de 66 paacuteginas de notas antolo-gias e advertecircncias A primeira parte do livro ldquoO poeta muacutesico e cantorrdquo consta de letras (poemas) de Catullo Poreacutem antes da apresen-taccedilatildeo delas ao leitor o autor volta a aparecer explicando o porquecirc de publicar modinhas naquela ediccedilatildeo Com um tiacutetulo-dedicatoacuteria ldquoAos companheiros da lsquoVelha Guardarsquordquo o poeta conta que a ideia do livro com poemas partira de Guimaratildees Martins

Ecircsse gigante argumentador convenceu-me de que eu devia publicar esta antologia para o consocirclo dos velhos natildeo os privando decircsse prazer muito embora todos noacutes saibamos que a poesia antiga vai mor-rendo com a entrada triunfal da poesia moderna E acrescentou esta verdade ldquoSe ela jaacute vitoriosa conquistou os moccedilos natildeo conquistaraacute os velhosrdquo Guimaratildees Martins me disse tais coisas que eu acabei apro-vando a sua ideacuteia355

Se o criacutetico do jornal Gazeta de Notiacutecias como vimos acima e o proacuteprio esforccedilo de Guimaratildees Martins nas notas explicativas da publi-caccedilatildeo procuravam chamar a atenccedilatildeo para o sentido de mostrar o poeta aos novos leitores em um novo livro Catullo na contramatildeo via uma oportunidade para se deleitar ao lado do que ele chamava de ldquoVelha Guardardquo com a rememoraccedilatildeo daqueles velhos poemas em contraposiccedilatildeo agrave ldquopoesia modernardquo Mas conta Catullo ateacute aiacute natildeo pensava em incluir suas velhas modinhas de que foi convencido novamente por Martins

As diferenccedilas de objetivos de Catullo e Guimaratildees satildeo aqui ex-plicitas Enquanto o primeiro via na publicaccedilatildeo de Poemas escolhidos a oportunidade para com o seu sucesso disparar contra o que ele cha-

354 Publicidade da Livraria Paratodos Cf Correio da Manhatilde 7 set 1945 p 10355 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 71

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo270

mava de ldquopoesia modernardquo Guimaratildees Martins como organizador e novo cessionaacuterio das obras de Catullo buscava dar prioridade agrave criaccedilatildeo de um novo puacuteblico consumidor de livros

A Catullo ainda interessava reafirmar suas poesias contra os novos poetas ndash que ele chama ldquoprofetasrdquo Daiacute nessa explicaccedilatildeo que abre a seccedilatildeo em que contava o porquecirc de publicar as suas modinhas interessar antes dizer para quem as escrevia

Eacute natural que os profetas de hoje riam dessas canccedilotildees mas os velhos choraratildeo sentindo ao lecirc-las beneacutevolas lembranccedilas da sua juventude Meus amigos estas modinhas pertencem a vocecircs Vocecircs natildeo estra-nharatildeo a meacutetrica irregular pois que as poesias musicadas obedecem agraves exigecircncias da melodia Ainda se lembram dessas melodias Pois entatildeo peguem nos seus pinhos e cantem-nas Agradeccedilam a Guimaratildees Martins vecirc-las relembradas neste livro356

A Catullo interessava reapresentaacute-las a seu puacuteblico relembraacute-las para aqueles que jaacute as conheciam A Guimaratildees Martins o objetivo era mais do que o poeta angariar um maior nuacutemero de leitores Talvez por isso mesmo o organizador buscasse a cada apresentaccedilatildeo das modinhas e dos poemas explicar do que se tratava cada uma quase sempre con-tando uma histoacuteria consagradora Explicaccedilatildeo desnecessaacuteria se visasse tatildeo somente agrave ldquoVelha Guardardquo como dizia Catullo sabedor das ldquogloacute-riasrdquo do poeta

Daiacute quando apresenta a poesia O violatildeo que abre a seccedilatildeo ldquoO poeta o muacutesico e o cantorrdquo Martins explicar a histoacuteria da poesia

Quando Catulo depois de muito instado e haacute [sic] muito custo frequen-tava os salotildees da alta sociedade no tempo em que era dela repudiado antes de cantar costumava recitar a bela poesia de que vamos extrair apenas estas estrofes []357

Enquanto isso Catullo investia em sua dedicatoacuteria contra os ldquopo-etas modernistasrdquo

356 Ibidem p 70357 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 72

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Tocircda essa poesia dos poetas modernistas (com rariacutessimas exceccedilotildees) natildeo vale a canccedilatildeo de uma serenata que passa aleacutem dos jardins da noite dialogando com a celestinagem das estrelas e as claridades da lua a inspiradora dos sonhos da nossa saudosiacutessima mocidade358

A seccedilatildeo continua com o desfile de modinhas como o Luar do sertatildeo e Cabocircca de Caxangaacute Todas as modinhas transcritas ndash assim como os poemas das seccedilotildees posteriores ndash vinham legendadas com ex-plicaccedilotildees de Guimaratildees Martins Em Cabocircca de Caxangaacute por exemplo o organizador observa ter sido um sucesso no carnaval de 1913 ldquoo que causou grande desgosto a seu autor que natildeo a escreveu para tal fimrdquo359 enquanto Luar do sertatildeo conhecida pelas novas geraccedilotildees por tocar as-siduamente nas raacutedios e motivo de grandes controveacutersias por conta de sua autoria aparece sem nenhuma explicaccedilatildeo aleacutem de uma dedicatoacuteria a Antocircnio Barnabeacute de Campos e uma nota de que fora publicada pela primeira vez no livro Florileacutegio dos cantores360

A publicaccedilatildeo segue com a mesma foacutermula para as outras seccedilotildees (ldquoO poeta braviordquo e ldquoO poeta cultordquo) Nota-se que tais separaccedilotildees vi-savam a demonstrar trecircs fases distintas de Catullo Na primeira enten-dia-se que o autor fora um poeta de modinhas daiacute as poesias-modinhas transcritas serem indicadas como tendo sido publicadas em livros pu-blicados por ele antes de Meu sertatildeo Um poema dessa obra por sua vez aparece abrindo a segunda seccedilatildeo ndash sob o tiacutetulo de ldquoO poeta braviordquo ndash demonstrando para o leitor que nesse livro aparecia o poeta sertanejo que falava o linguajar do sertanejo Portanto o poeta natildeo culto ldquoO poeta cultordquo tiacutetulo natildeo gratuito aparece na terceira seccedilatildeo que abre com um poema escrito num linguajar ldquogramaticalrdquo retirado do livro Um ca-boclo brasileiro

Essa separaccedilatildeo da trajetoacuteria de Catullo era jaacute uma representaccedilatildeo bastante difundida por aqueles que conheciam sua produccedilatildeo O poeta das modinhas o poeta sertanejo e o poeta do linguajar culto represen-tavam os trecircs cortes fundamentais em sua trajetoacuteria literaacuteria O curioso

358 Ibidem p 71 359 Ibidem p 99360 Ibidem p 85-91

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eacute que se o poeta das modinhas aparecera como organizador de livros com letras de modinhas e tentando regrar a leitura de tais versos em Poemas escolhidos os versos de Catullo eram regrados com insistecircncia por Guimaratildees Martins com paacuteginas recheadas de notas explicativas e notas de rodapeacute legendando para o leitor o contexto de produccedilatildeo de cada poema

Um exemplo disso pode ser visto no uacuteltimo poema do livro cujo tiacutetulo eacute uma dedicatoacuteria ldquoAgrave lsquoMiss Maranhatildeorsquo senhorita Maria de Lourdes Pantoja por ocasiatildeo do concurso para lsquoMiss Brasilrsquordquo Gui-maratildees Martins escreve a nota de rodapeacute do poema que eacute uma expli-caccedilatildeo para o leitor

Esta poesia foi publicada em vaacuterios jornais do Brasil por ocasiatildeo do concurso de beleza para a escolha de ldquoMiss Brasilrdquo ldquoMiss Maranhatildeordquo apesar de ser de uma beleza rara de esmerada educaccedilatildeo e cultura inte-lectual nem foi classificada O grande Catulo poreacutem retratou-a moral e psicologicamente nestes versos361

Poreacutem se as notas explicativas abrem e avultam em todo livro elas tambeacutem o encerram Com o tiacutetulo de ldquoDeclaraccedilatildeo necessaacuteriardquo estrategicamente Guimaratildees Martins faz aparecer todos os docu-mentos do processo que cedeu os direitos autorais das obras de Catullo para sua pessoa

Esses documentos representam pela riqueza com que transmitem os tracircmites necessaacuterios para o repassamento de uma propriedade autoral agrave eacutepoca e pelas pessoas que dela participam um raro vestiacutegio de como se dava o processo de transmissatildeo autoral no Brasil da deacutecada de 1940 e pela forma como ele aparece (fazendo parte da publicaccedilatildeo) cons-tando inclusive no iacutendice que abre o livro um exemplo completo das diversas representaccedilotildees da autoridade sobre o impresso no Brasil Sobretudo de uma disputa por essa autoridade nas paacuteginas de uma obra natildeo faltando apariccedilotildees de editores organizadores autor e leitor

Voltemos portanto a ela ldquoDeclaraccedilatildeo necessaacuteriardquo trata-se de um documento escrito por Catullo datado de 9 de abril de 1944 e registrado

361 Ibidem p 392

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no Cartoacuterio Frontim de registros de tiacutetulos e documentos cedendo os direitos das suas obras a Guimaratildees Martins advertindo penalidades agravequeles que os tentassem infringir

Pelo presente documento declaro que o meu cessionaacuterio e represen-tante Joseacute Martins de Moraes Guimaratildees que se assina artiacutestica e lite-rariamente Guimaratildees Martins eacute o uacutenico autorizado durante a minha vida e depois do meu falecimento a reproduzir anotar comentar ou melhorar qualquer das minhas obras autorizaccedilatildeo que dou de acordo com o Coacutedigo Civil Qualquer pessoa que infringir os dispositivos do Coacutedigo Civil fazendo traduccedilotildees adaptaccedilotildees arranjos fantasias pre-fixos musicais ou quaisquer outras modificaccedilotildees sem a expressa au-torizaccedilatildeo escrita do meu referido cessionaacuterio e representante seraacute por este processado civil e criminalmente362

Lanccedilando matildeo na proacutepria publicaccedilatildeo de advertecircncia escrita por Catullo Guimaratildees Martins estabelecia a propriedade da publicaccedilatildeo atraveacutes da lei e de quebra tratava de demonstrar para o leitor sua auto-ridade pela autorizaccedilatildeo do autor Portanto o que se configurava eacute que mesmo Catullo sendo o autor da publicaccedilatildeo a autoridade sobre ela re-caiacutea nas matildeos de Martins O ldquoParecerrdquo assinado por Cloacutevis Bevilaacutequa que Martins tambeacutem faz publicar no livro deixa isso mais claro

Tendo lido os bem elaborados Pareceres dos ilustres colegas drs Prado Kelly e Monteiro da Silva o instrumento de cessatildeo que Catullo da Paixatildeo Cearense faz dos seus direitos autorais ao sr Guimaratildees Martins e mais documentos que acompanham a Consulta opino do modo seguintea) A lei nordm 496 de 1ordm de agosto de 1898 artigo 4ordm sect1ordm estatuiu que as cessotildees entre vivos do direito autoral durariam trinta anos findos os quais recobraria o autor os seus direitos se ainda existisse Lei suple-tiva permitia que o prazo fosse diminuiacutedo mas nunca aumentadob) Essa determinaccedilatildeo da lei entendia-se incerta em toda cessatildeo entre vivos de direito autoral ex vi legisc) Portanto a cessatildeo atual feita a Guimaratildees Martins compreende 1ordm todos os contratos anteriores realizados na vigecircncia da lei de 1ordm agosto de 1898 que jaacute perfizeram trinta anos a contar da respectiva data 2ordm

362 Ibidem p 393

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todos os contratos realizados na vigecircncia da referida lei logo que se complete o prazo de trinta anos contados da respectiva data porque em ambos os casos ou jaacute se operou ou iraacute operar-se a reversatildeo dos direitos autorais ao autord) Quanto agraves cessotildees anteriores realizadas na vigecircncia do Coacutedigo Civil entendo que se regem pelo direito comum regulado no mesmo Coacutedigo Salvo claacuteusula em contraacuterio o cessionaacuterio sucede o autor nos direitos que lhe reconhece o Coacutedigo Civil artigo 649 sectsect 1ordm e 2ordmEssas cessotildees natildeo entram na aquisiccedilatildeo feita por Guimaratildees Como o dr Otaacutevio Moreira da Silva penso que a lei nordm 496 de 1ordm de agosto de 1898 foi revogada pelo Coacutedigo CivilA restauraccedilatildeo que faz de alguns artigos dela a lei nordm 4790 de 2 de ja-neiro de 1924 somente a esses dispositivos se refereRio de Janeiro 10 de abril de 1944363

A passagem requer algumas explicaccedilotildees A Lei Medeiros e Albuquerque como ficou conhecida a lei criada em 1898 para proteger direitos autorais reconhecia juridicamente direitos autorais como pro-priedade Portanto o caraacuteter de invenccedilatildeo subjacente a uma obra natildeo era coroada senatildeo quando ela fosse assim registrada ou seja ldquogarantia o registro da obra como condiccedilatildeo de sua protegibilidade e garantia sua proteccedilatildeo por apenas 50 anos contados da primeira publicaccedilatildeordquo364 Aleacutem disso estabelecia que a cessatildeo de um direito a um terceiro duraria trinta anos O Coacutedigo Civil de 1917 reafirmava tais prerrogativas e alertava para os locais de registro de tais propriedades na Biblioteca Nacional para obras literaacuterias e cientiacuteficas no Instituto de Muacutesica para composi-ccedilotildees musicais na Escola de Belas Artes para aquelas de caraacuteter artiacutes-tico Associaccedilotildees como a SBAT ficariam encarregadas de fazer tais registros e fazer a cobranccedila pelos artistas

Todas essas leis tentavam responder pela questatildeo do direito de uma produccedilatildeo intelectual Se socialmente a representaccedilatildeo do indi-

363 MARTINS Guimaratildees Advertecircncia sobre direitos autoraes In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 sp

364 SARDAS Letiacutecia de Farias Lineamentos do direito de autor na sociedade da infor-maccedilatildeo Coimbra Faculdade de Direito de Coimbra sd Disponiacutevel em httpwwwtjrjjusbrcdocument_libraryget_fileuuid=9ff3a1c9-8bc5-4392-a036-e86b815a4c58amp-groupId=10136 Acesso em 11 jun 2020

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viacuteduo que cria era glamourizada a lei natildeo referendava tal representaccedilatildeo criando o autor-proprietaacuterio dono dos direitos autorais O regime de propriedade vigente no comeccedilo do seacuteculo trouxe vaacuterias vezes uma dis-cussatildeo sobre quem detinha a autoridade uacuteltima sobre um produto inte-lectual se o autor ou o proprietaacuterio

Por isso eacute algo compreensiacutevel que diversos criadores de obras natildeo vissem problemas em vender suas produccedilotildees para um comprador pois por diversas vezes vender daria mais lucro do que obter direitos autorais sobre determinada produccedilatildeo Assim era comum nesse pe-riacuteodo ver anuacutencios como o do jornal A Noite em que chamava a atenccedilatildeo para os compositores de muacutesica ldquoCompram-se os direitos autoraes de todas as ldquoNovidades Carnavalescasrdquo para perfuraccedilatildeo de ldquoRolos de Muacutesicardquo Para tratar na ldquoFaacutebrica Excelsior ndash R Villela amp C Rua Evaristo da Veiga nordm 28 ndash Riordquo365

A Guimaratildees Martins eram cedidos todos os direitos pecuniaacuterios das obras de Catullo registrados desde a criaccedilatildeo da lei de 1898 ateacute 1914 ndash portanto aquelas que se estivessem em propriedade de terceiros completariam em 1944 trinta anos E mais os contratos firmados de-pois dessa data (1914) com editores dos livros de Catullo estariam com a cessatildeo de direitos dividida entre Martins e os donos de tais direitos de propriedade (como a editora Bedeschi e a editora A Noite que continu-aram a publicar ediccedilotildees dos livros de Catullo por direito de contrato)

A advertecircncia sobre essas prerrogativas judiciais aparece ao final do livro quando finalmente Guimaratildees Martins declara

Toda poesia poema ou canccedilatildeo constante deste e dos demais livros de Catulo da Paixatildeo Cearense soacute poderaacute ser recitado cantado ou execu-tado por instrumento ou conjunto em raacutedio teatro ou cinema com ingresso pago ou outra forma de remuneraccedilatildeo sendo dado conheci-mento agrave Sociedade Brasileira de Autores Teatrais agrave Avenida Almirante Barroso nordm 97 3ordm andar Esplanada do Castelo Rio de Janeiro Brasil ou a seus representantes nos Estados do Brasil e no estrangeiro que eacute uacutenica entidade juriacutedica autorizada para efetuar o recebimento da taxa de execuccedilatildeo puacuteblica Guimaratildees Martins366

365 A Noite 11 dez 1918 p 6366 MARTINS Guimaratildees Advertecircncia sobre direitos autoraes In CEARENSE Catullo da

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Os meandros da produccedilatildeo de autoridade sobre os impressos no Brasil da primeira deacutecada do seacuteculo XX instituiacuteram diversas taacuteticas autorais que cotidianamente jogavam com as estrateacutegias dos deten-tores de propriedade Essas lutas foram travadas diversas vezes nas proacuteprias publicaccedilotildees A uma tentativa de regrar a circulaccedilatildeo de textos juridicamente contrapunha-se uma receita inventiva de construccedilatildeo so-cial de autoridade sobre os mesmos textos de forma que eacute possiacutevel pensar que existiam pelo menos dois tipos de autoridade sobre im-pressos aquela juridicamente referendada que Guimaratildees Martins ten-tava estabelecer por meio dos proacuteprios textos publicados sob sua res-ponsabilidade e aquela socialmente construiacuteda que fazia com que determinado criador fosse representado como autor mesmo natildeo sendo o dono de sua criaccedilatildeo

O caso de Catullo em Poemas escolhidos eacute emblemaacutetico princi-palmente se compararmos com a sua querela com Joatildeo Pernambuco acerca de Luar do sertatildeo Laacute como vimos Catullo lanccedilou matildeo de um discurso de autoria que levava em conta a propriedade ldquoregistrei na Escola Nacional de Muacutesicardquo Em seus antigos livros de modinhas as estrateacutegias autorais eram construiacutedas nos livros pela correccedilatildeo das modi-nhas e pela sua representaccedilatildeo como um homem letrado e em outros momentos a autoria era construiacuteda pela traduccedilatildeo ndash no caso dos poemas sertanejos onde Catullo evocava a alma sertaneja que melhor falava por ele como forma de afirmar sua autoridade na representaccedilatildeo do sertatildeo Em Poemas escolhidos flagramos a tensatildeo subjacente na disputa entre um organizador que diferentemente de Catullo com seus livros de modinhas dialogava e contrastava muitas vezes com o regra-mento da leitura intentada pelo poeta

Essa foacutermula se repetiria com a publicaccedilatildeo pela editora Aurora de O testamento da aacutervore uacuteltimo livro publicado por Catullo em vida em fins de 1945

Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944

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O livro derradeiro

Ainda em meados dos anos 1930 o jornal A Noite saiu com uma reportagem pelo menos curiosa O Serviccedilo Photographico do jornal mandava de Londres (Inglaterra) a fotografia de uma inglesa deitada com oacuteculos estranhos no rosto lendo um livro distraidamente Com o tiacutetulo de ldquoDescansar o corpo deleitando o espiacuteritordquo a reportagem expli-cava a fotografia alertando para novas formas de se ler

Ler deitado eacute a preocupaccedilatildeo de muita gente Principalmente dos como-distas que apreciam reunir o uacutetil ao agradaacutevelEsta preocupaccedilatildeo quase que utoacutepica de descanccedilar o corpo deleitando o espiacuterito entretanto eacute agora perfeitamente viaacutevel Um assiacuteduo leitor britacircnico acaba de inventar um par de oacuteculos que permite ler-se no livro emquanto o corpo em posiccedilatildeo horizontal descanccedila confortavel-mente estirado numa cama ou numa ldquochaise-longuerdquoA gravura mostra os oacuteculos retrospectivos cumprindo a sua uacutetil funccedilatildeo367

Ler deitado era como diz a reportagem uma preocupaccedilatildeo jaacute sa-bida O incocircmodo que poderia causar tal leitura jaacute estava sendo contor-nado em Londres tornando possiacutevel uma leitura ldquouacutetilrdquo e ldquoagradaacutevelrdquo principalmente dos ldquocomodistasrdquo Os curiosos oacuteculos lanccedilam luz sobre as diversas praacuteticas de leitura possiacuteveis A necessidade de uma leitura ldquoagradaacutevelrdquo e confortaacutevel frisada pela reportagem natildeo passou desa-percebida pelos editores brasileiros do periacuteodo

O boom editorial no Brasil consequecircncia do bloqueio de impor-taccedilotildees provocado pela Segunda Guerra Mundial resultou em um maior espaccedilo para o consumo do livro de autor nacional Os projetos editoriais do governo por sua vez fizeram com que coleccedilotildees envolvendo autores nacionais avultassem nas livrarias e embora com seacuterios problemas de materiais para a produccedilatildeo de livros com os custos crescentes de uma ediccedilatildeo e sob forte interferecircncia poliacutetica depois da instituiccedilatildeo do Estado

367 A Noite 24 jun 1936 p 6

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Novo varguista a partir de 1937 nada disso foi empecilho para que o haacutebito do consumo de livros no Brasil aumentasse assustadoramente Isso fez que inuacutemeros projetos editoriais surgissem no paiacutes Instalada no centro do Rio de Janeiro a editora Aurora lanccedilou um projeto auda-cioso de pocket-books que ganhou o nome de ldquoColeccedilatildeo Azulrdquo

A editora que tinha sua proacutepria graacutefica (localizada no mesmo endereccedilo) comeccedilou a produzir livros em pequenos formatos com obras de autores nacionais e estrangeiros Visando a um novo leitor em cons-tante movimento o editor tratava de salientar os benefiacutecios da coleccedilatildeo para seus leitores

Coleccedilatildeo Azul apresenta-se num formato elegante e praacutetico O cava-lheiro pode trazecirc-lo no bolso de seu casaco a senhora em um canto de sua bolsa sem que isso lhes cause o menor transtorno A variedade dos gecircneros publicados proporcionaraacute ao leitor a escolha da leitura de sua preferecircncia a modicidade do preccedilo tornando os livros acessiacuteveis a qualquer orccedilamento colocam sem duacutevida a Coleccedilatildeo Azul entre as que mais diretamente atendem aacutes exigecircncias do leitor []368

Reeditando uma foacutermula de sucesso desde o comeccedilo do seacuteculo (vide a livraria Quaresma no primeiro capiacutetulo desse trabalho) a edi-tora Aurora apostava no livro barato e voltado para um puacuteblico diferen-ciado A Coleccedilatildeo Azul assim colocava agrave disposiccedilatildeo para o consumidor de livros ldquoos mais famosos livros dos mais ceacutelebres autores e facili-tando a escolha entre os gecircneros que mais lhe agradem pela impor-tacircncia de Cr$ 600 apenasrdquo369 e apostava na publicidade das obras sa-lientando nelas uma ldquobem cuidada confecccedilatildeordquo de ldquosuave entretenimento no aconchego do lar ou a caminho do trabalhordquo370

Contudo a editora Aurora natildeo era especialista apenas em pu-blicar livros claacutessicos Manuais praacuteticos como O volante profissional

368 Publicidade constante na contracapa do livro de Catullo Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Rio de Janeiro Aurora 1945 Contracapa

369 Idem370 Publicidade no jornal A Noite 19 jul 1946

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anunciado como um ldquomeacutetodo faacutecil e praacutetico para conhecer o motor [] e outros oacutergatildeos do automoacutevelrdquo371 era vendido com bastante sucesso

Outro grande investimento da editora Aurora foi a publicaccedilatildeo de livros para mulheres Novelas como Racilba a mulher sem coraccedilatildeo escrita por F de Carvalho que era anunciada como tendo sido ldquoescrita especialmente para a sensibilidade da mulher brasileirardquo e o editor ainda alertava que

A leitora poucas vezes teraacute encontrado uma obra tatildeo profundamente humana com diaacutelogos claros numa sucessatildeo constante de sorrisos e laacutegrimas riqueza de cenaacuterios e vivacidade de accedilatildeo[] Uma linguagem clara que todos perfeitamente compreendem372

Anunciado como o livro do momento Racilba mulher sem co-raccedilatildeo o editor ainda afirmava ser ldquouma histoacuteria que ensina a jovem a viver e a se livrar dos perigos da vidardquo373 Racilba era um texto que tinha feito muito sucesso com sua representaccedilatildeo nos microfones da Raacutedio Club em 1942 e acarretado grandes concursos entre o puacuteblico feminino que se digladiava para ganhar perfumes e poacute de arroz Antevendo o sucesso que a publicaccedilatildeo da novela de Edgar de Carvalho poderia ter o editor preparou uma brochura de 250 paacuteginas que apre-sentava como tendo uma capa em ldquoGoulart tricromiardquo

Mas essa tentativa de seduzir o leitor teve mesmo grande reper-cussatildeo com o lanccedilamento da Coleccedilatildeo Azul A coleccedilatildeo com obras de claacutessicos com o preccedilo barateado e o seu formato compatiacutevel com qual-quer tipo de portabilidade fez sucesso agrave eacutepoca O cataacutelogo da coleccedilatildeo indica-nos os autores comercializados

1 - Amores do Diabo J Gazotte2 - O iacutendio Afonso Bernardo Guimaratildees3 - O correio de Liatildeo P Zaccone4 - O uacuteltimo dia de um condenadoV Hugo

371 Publicidade no jornal Gazeta de Notiacutecias 18 out 1946 sn372 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Op cit sn373 Idem

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5 - Noites brancas Dostoievski6 - Acuso E Zola7 - Luz interior Balzac8 - O corcunda de Notre Dame V Hugo

Salta aos olhos a quantidade de traduccedilotildees efetuadas nas primeiras publicaccedilotildees da Coleccedilatildeo Com exceccedilatildeo de Bernardo Guimaratildees todos os autores satildeo estrangeiros e nenhum autor entatildeo vivo A primeira pu-blicaccedilatildeo de um autor vivo pela Coleccedilatildeo Azul saiu na segunda metade de 1945 era O testamento da aacutervore de Catullo Para o autor tratava-se de uma publicaccedilatildeo que jaacute vinha agrave luz com ecircxito pois fora declamada com sucesso em vaacuterios eventos

A publicaccedilatildeo era apresentada em duas ediccedilotildees diferenciadas A primeira vinha com ldquoesmerada feitura artiacutesticardquo como foi anunciada e era destinada aos ldquointelectuaisrdquo Foi publicada pela livraria Pan Ameri-cana do meacutedico gauacutecho Jorge Gertum Carneiro e seu irmatildeo o enge-nheiro Antocircnio e pelo refugiado de guerra da Alemanha Frederico Mannheimer que se iniciara na publicaccedilatildeo de livros em 1939 A se-gunda ediccedilatildeo era destinada agrave ldquovulgarizaccedilatildeordquo para ldquoser difundida pelas escolas e pelo povordquo374 Essa uacuteltima sairia pela Coleccedilatildeo Azul

A diferenccedila da publicaccedilatildeo pela editora Aurora aleacutem do preccedilo mais barato do que a ediccedilatildeo destinada aos intelectuais era a inserccedilatildeo de vaacuterias ilustraccedilotildees de Catullo feitas por diferentes artistas Laacute eacute possiacutevel ver um desenho de capa e charges de Catullo produzidos por Moura Jordatildeo de Oliveira Mendez Jerocircnimo Ribeiro todos em preto e branco e uma imagem colorida do poeta vestido de marrueiro o personagem que o consagrara feita por Armando Pacheco A obra tambeacutem traz vaacute-rias fotografias do autor em vaacuterios momentos da sua vida

Na obra ndash que Catullo dedica a Apollonia Pinto Coelho Netto Humberto de Campos Fred Figner e ao General Tasso Fragoso ndash os direitos de propriedade satildeo relembrados por Guimaratildees Martins que faz publicar no final do livro todo o processo de cessatildeo dos direitos que anteriormente havia publicado em Poemas escolhidos

374 Gazeta de Notiacutecias 4 nov 1945

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O testamento da aacutervore lido aliaacutes por Catullo em eventos dos quais participara parecia ser uma obra jaacute havia algum tempo espe-rada pelo puacuteblico admirador do poeta A histoacuteria do poema tratava de um testamento ditado por uma aacutervore moribunda aos paacutessaros e outras aacutervores e que um poeta escondido atraacutes da aacutervore ouviu Catullo ex-plica no iniacutecio

Assim falou a aacutervore moribunda aos paacutessaros e aacutes outras aacutervores da floresta antes de ditar seu testamentoUm poeta escondido por detraacutes de um copatildeo de mato sem que ela o visse anotando as suas palavras traduziu-as para a nossa liacutengua nas estrofes que se seguem375

Natildeo faltaram em O testamento as conhecidas opiniotildees sobre ele mesmo No iniacutecio da publicaccedilatildeo sob o tiacutetulo de ldquoAo leitorrdquo o poeta explica o nascimento do poema

De umas poucas sementinhas de Trilussa em dialeto brotou este jardim de flores tatildeo variadasMuitos poetas tecircm escrito sobre as aacutervores mas nenhum com mais ca-rinho do que euAssim poderei ficar sem orgulho de ora em diante como um dos seus maiores cantores e incontestavelmente o seu maior inteacuterprete376

O poema se divide em trecircs partes com tiacutetulos autoexplicativos ldquoA aacutervore assim ditou seu testamentordquo ldquoA aacutervore vai contar o sonho que sonhourdquo e ldquoA aacutervore ditando as suas uacuteltimas vontadesrdquo Ao final o editor e o organizador fazem aparecer duas sessotildees A primeira com o tiacutetulo de ldquoPolianteacuteia sobre o poeta organizada e anotada por Guimaratildees Martinsrdquo na explicaccedilatildeo do editor da obra satildeo ldquofragmentos de juiacutezo-criacute-ticos de maranhenses terra de Catullo selecionados e anotados por Guimaratildees Martinsrdquo377

375 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Op cit p 25376 Idem p 21377 Idem p 87

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Continuando uma foacutermula que apareceu em vaacuterias publicaccedilotildees de Catullo o organizador do livro faz aparecer opiniotildees elogiosas sobre o poeta Nessa primeira seccedilatildeo aparecem vaacuterios nomes de le-trados maranhenses Aleacutem do proacuteprio Guimaratildees Martins desfilam opiniotildees elogiosas de entre outros Padre Astolfo Serra o poeta Manoel Sobrinho o interventor Paulo Ramos Inaacutecio Raposo (que es-crevera juntamente com o poeta a primeira grande peccedila de Catullo O marrueiro) Coelho Neto Artur Azevedo Humberto de Campos e Domingos Barbosa que tem o seu texto publicado no Jornal do Brasil do Rio de Janeiro citado na iacutentegra Nele fazendo uma apreciaccedilatildeo sobre o livro Poemas escolhidos Domingos vai atirar contra os criacute-ticos de Catullo Vale a citaccedilatildeo

A obra poeacutetica de Catullo natildeo pode ser mais objeto de criacuteticaPassou em julgado[]Ecircle eacute o maior poeta popular do BrasilMuito bem andou Guimaratildees Martins com enfeixar no volume em apreccedilo tanto a letra de modinhas que Catullo compocircs e cantava quando mocircccedilo e seresteiro quanto versos que o poeta escreveu natildeo no linguajar sertanejo da maioria de suas poesias e que lhes daacute intenso sabor local mas em linguagem eruditaServem as modinhas para mostrar aos estudiosos como eacute que se deu a evoluccedilatildeo da sua arteE servem os versos rimados e metrificados em linguagem culta para mostrar a julgadores levianos e imponderados que Catullo quando se utiliza do modo de falar roceiro ou popular eacute muito propositalmente que o faz para dar um tom mais fortemente regional aacutes suas poesias de gecircnero sertanejo[]Realmente a gente hesita em dizer em qual dos dois modos de versejar Catullo eacute maior Em ambos eacute grande378

O investimento do organizador de O testamento em explicar para o leitor que o autor Catullo era um grande poeta ao que parece

378 Ibidem p 98-99

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 283

baseava-se fundamentalmente na insistecircncia com que faz publicar opiniotildees que salientavam o caraacuteter complementar das trecircs fases da carreira literaacuteria de Catullo (o modinheiro o poeta sertanejo e o poeta culto)

Essa insistecircncia na explicaccedilatildeo de certas poesias escritas num lin-guajar natildeo culto volta a figurar na segunda parte dos juiacutezos criacuteticos sobre Catullo ndash agora com opiniotildees de ilustres maranhenses ou natildeo Nele o organizador faz publicar a opiniatildeo de Bandeira Duarte que por sua vez cita a opiniatildeo do criacutetico teatral Eduardo Vitorino

Criou-se em torno do genial poeta maranhense uma fama de ignoracircncia absolutamente falsa Para a maioria dos que examinaram a sua obra de uma opulecircncia jamais igualada em nossa poesia Catullo eacute um analfa-beto que faz versos sem gramaacutetica e cheios de erros Olham o ruacutestico onde soacute existe o simples o espontacircneo duas qualidades que fazem a grandeza de um poeta e a beleza de uma poesiaUm dia Maacuterio Joseacute de Almeida revelou-me um Catullo desconhecido para quase todosVocecircs estatildeo enganadosCatullo eacute um dos homens que melhor co-nhecem os autores claacutessicos e jaacute foi professor de francecircsEspecialmente as figuras maacuteximas do teatro e mais especialmente Moliegravere que ecircle discute e comenta com profundeza379

Aqui queriacuteamos lanccedilar uma hipoacutetese das causas desse investi-mento de negaccedilatildeo de Catullo como um ldquoignoranterdquo De posse dos di-reitos autorais completos da maioria das modinhas de Catullo (pois grande parte dela fora registrada fazia mais de trinta anos) Guimaratildees Martins arriscamos pensar antevendo o promissor lucro com suas re-publicaccedilotildees sente a necessidade de desestigmatizar a figura do poeta tachado de ldquoignoranterdquo por suas modinhas e seu linguajar sertanejo Isso demandou do organizador um maior foco nas questotildees que dizem respeito a uma reabilitaccedilatildeo das modinhas Daiacute em Poemas escolhidos ter insistido (segundo Catullo explicava ao seu leitor) nas publicaccedilotildees de algumas dessas modinhas e no O testamento da aacutervore fazer apa-

379 Ibidem p 132

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo284

recer juiacutezos criacuteticos de ilustres chamando atenccedilatildeo para o lado culto e jaacute consagrado de Catullo desde iniacutecios de sua trajetoacuteria incluindo a eacutepoca em que soacute publicava modinhas

A (re)construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo de Catullo operada por Guimaratildees Martins tendia a produzir irremediavelmente um discurso voltado para o passado Por um lado por haver um interesse na reabi-litaccedilatildeo das antigas modinhas de Catullo mas por outro a volta para o passado se valia de juiacutezos criacuteticos coletados em vaacuterios momentos dessa trajetoacuteria de forma a construir uma narrativa da vida do autor entremeada de momentos consagradores

Essa tarefa foi levada a cabo exatamente no momento em que se esboccedilava a construccedilatildeo de um cacircnone na literatura brasileira no qual o nome de Catullo estava ausente Nelson Werneck Sodreacute que publicara o seu Histoacuteria da literatura brasileira em 1938 recebia na criacutetica de Gondin da Fonseca um questionamento irocircnico ldquoE o Catullo Natildeo eacute que o senhor se esqueceu de o citar Elle vae ficar brabo com tal silecircncio e concordamos que natildeo deixaraacute de ter o seu bocado de razatildeordquo380

Resultado de uma narrativa que (re)criava a literatura no Brasil historicamente o livro de Sodreacute era uma das formulaccedilotildees exitosas dessa histoacuteria que ficaram comuns depois dos anos 1930 Nelas haacute uma nar-rativa desembocadura no ldquoModernismo de 22rdquo de forma que muitos autores do periacuteodo natildeo identificados com o ldquomovimentordquo eram exclu-iacutedos O resultado disso foi por um lado uma postura irocircnica de Catullo sobre os modernos em seus livros e por outro a construccedilatildeo de uma narrativa e de seccedilotildees nos livros do poeta que visavam a consagraacute-lo voltando o olhar para seu passado

A reediccedilatildeo de alguns de seus livros e a publicaccedilatildeo de livros que criavam uma narrativa biograacutefica para o poeta faziam parte da receita levada a cabo fundamentalmente pelo organizador Daiacute duas publica-ccedilotildees que tinham um caraacuteter de painel serem anunciadas ainda em Poemas escolhidos de 1944 Uma delas era intitulada Canccedilotildees de

380 Correio da Manhatilde 30 mar 1938 p 2

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 285

Catullo sendo uma ldquoseleccedilatildeo das mais famosas modinhas de Catulo da Paixatildeo Cearense (letra e muacutesica) organizada e anotada por Guimaratildees Martins e revista pelo autorrdquo A outra tinha como tiacutetulo Episoacutedios da minha vida de boecircmio apresentada como um livro de prosa Esta uacutel-tima teria sido uma biografia escrita pelo autor que ao que parece nunca foi publicada

Figura 4 ndash Contracapa do livro O testamento da aacutervore em sua 2ordf ediccedilatildeo

Fonte arquivo do autor

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo286

Representaccedilotildees sociais de um morto distinto

O testamento da aacutervore foi o uacuteltimo livro de Catullo publicado em vida Na manhatilde do dia 10 de maio de 1946 o coraccedilatildeo do poeta deixou de bater viacutetima de um ataque fulminante Antes de morrer poreacutem ele deixara preparada uma uacuteltima obra uma coletacircnea de letras de modinhas que seria publicada ainda em 1946 apoacutes a sua morte com o tiacutetulo Modinhas381

Penso que a narrativa de uma trajetoacuteria autoral que se queira completa natildeo pode prescindir da construccedilatildeo representativa que se faz tambeacutem nos textos publicados em seu nome Embora haja muito o que

381 A ediccedilatildeo agrave qual nos reportaremos nas paacuteginas seguintes eacute a 2ordf ediccedilatildeo publicada pela livraria Impeacuterio jaacute no ano de 1956 Pensamos ser a 1ordf ediccedilatildeo de 1946 pois na paacuteg 175 da 2ordf ediccedilatildeo haacute uma nota de rodapeacute onde na explicaccedilatildeo da letra de modinha Minha matildee diz-se que esta fora cantada em 1946 apoacutes a morte de Catullo Haacute tambeacutem in-diacutecios de a publicaccedilatildeo ter tido uma 1ordf ediccedilatildeo posterior a 1945 pois haacute prefaacutecio escrito por Catullo em janeiro de 1945

Figura 5 ndash No verso do livro O testamento da aacutervore o edi tor explica ao leitor o objetivo editorial da ldquoColeccedilatildeo Azulrdquo

Fonte arquivo do autor

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 287

dizer sobre as ediccedilotildees subsequentes de Catullo creio que por uma anterior escolha narrativa priorizo neste trabalho uma abordagem que leve em consideraccedilatildeo a trajetoacuteria literaacuteria do autor em vida Na esteira disso natildeo negligencio a tentativa derradeira do poeta de regrar uma leitura dos seus textos como eacute possiacutevel vislumbrar ainda em uma pu-blicaccedilatildeo como Modinhas que mesmo poacutestuma foi prefaciada pelo proacuteprio poeta

Nessa nova publicaccedilatildeo lanccedilada sob o impacto da morte de Catullo e publicada no momento de construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo memorialiacutestica do poeta haacute uma curiosa operaccedilatildeo narrativa nos textos tanto pelo editor quanto por parte de Guimaratildees Martins Em sessatildeo com o auspicioso tiacutetulo ldquoPalavras de Catullordquo incluiacuteda no prefaacutecio da publicaccedilatildeo poacutes-morte o poeta explica o porquecirc de estar publicando um livro com letras de modinhas

Eis mais um livro que o meu talentoso e adorado amigo e conterracircneo Guimaratildees Martins me obriga a publicar Se a sua publicaccedilatildeo natildeo ob-tiver o ecircxito almejado o editor a que felicito pela coragem de publi-caacute-lo deve culpar a ecircle e natildeo a mim Eacute um livro de velhas canccedilotildees que tiveram seu tempo mas esse tempo jaacute passou382

Modinhas veio agrave luz em um movimento que se seguiu com a morte do poeta No final de sua vida Catullo era cada vez mais reco-nhecido como autor de modinhas O esforccedilo premente de Guimaratildees Martins no sentido de estabelecer uma distinccedilatildeo sobre suas letras de modinhas no campo musical resultou numa recepccedilatildeo da obra do poeta que ficou centrada fundamentalmente no seu lado modinheiro

Atentando que ao publicar canccedilotildees com modinhas bem sabia que elas ldquojaacute tiveram seu tempo mas esse tempo jaacute passourdquo Catullo lanccedila para um passado consagrador o olhar do leitor da publicaccedilatildeo Mas a forma de apresentaccedilatildeo ao leitor operada pelo poeta no prefaacutecio guarda em sua aparente modeacutestia uma tentativa irocircnica de desqualificaccedilatildeo da-quilo entendido como ldquonovordquo

382 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas 2 ed Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1956 p 16

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Cotejando a passagem acima referida com outras apariccedilotildees em livro de Catullo nota-se um insistente incocircmodo do autor em circuns-crever um tema em categorias temporais tais como passadista ou futu-rista Essa postura pode ser vislumbrada inclusive nos textos em que Catullo aparece como prefaciador O escritor Sabino de Campos teve o seu livro Catimboacute (Romance nordestino) prefaciado pelo poeta em 1945 Nele ao exaltar as qualidades do escritor especialmente ao saber que ldquoo romance tinha um fundo real e verdadeirordquo Catullo se questiona

Natildeo sei se vocecirc eacute passadista modernista ou futurista Isto fico para os criacuteticos da atualidade Por mim soacute proclamo aos quatro ventos que vocecirc eacute um poeta eacute um escritor brasileiro universal de todos os tempos do passado do presente e do futuro Falo em nome do Belo e natildeo em nome de Escolas O seu talento eacute muito grande natildeo se pode amesqui-nhar em espaccedilos augustos383

O incocircmodo de Catullo em definir escritores com referecircncias temporais revestia suas opiniotildees de um caraacuteter irocircnico e de certo humor aacutecido uma vez que ele proacuteprio era estigmatizado e se via por conse-guinte perseguido por essas definiccedilotildees de sua obra Pelo menos desde a ascensatildeo dos novos escritores surgidos na esteira do modernismo de 1922 a alusatildeo frequente agrave obra de Catullo como o contraacuterio de publica-ccedilotildees ldquomodernistasrdquo o levava a ser representado como um poeta desatu-alizado senatildeo superado

Mais adiante lemos uma definiccedilatildeo do que seja para Catullo um grande poeta Definiccedilatildeo que ele mesmo lanccedilava para definir o escritor do livro Sabino de Campos ndash mas bem que podemos pensar ser uma autodefiniccedilatildeo uma vez que como anteriormente temos visto o proacuteprio Catullo se representava como um grande poeta ldquoVocecirc tem o orgulho humilde e tiacutemido dos grandes poetas porque natildeo tem orgulho nem ti-midez nem humildade e escreve tatildeo somente para cumprir uma missatildeo que Deus lhe deurdquo384

383 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Prefaacutecio de Catullo In CAMPOS Sabino de Catimboacute (Romance Nordestino) Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1946 p 5

384 Idem p 6

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Voltando a Modinhas o tom ironicamente modesto que Catullo emprega em seu prefaacutecio eacute contrastado pelo olhar do seu organizador Guimaratildees Martins aparece fundamentalmente como um primeiro leitor que vai apresentar o poeta a outros leitores Essa ilusatildeo dis-farccedila o caraacuteter de organizador investindo-o de um consumidor auto-rizado da publicaccedilatildeo pois conhece bem o poeta para apresentaacute-lo a outros leitores

Desde havia muito tempo interessado na reabilitaccedilatildeo de Catullo como modinheiro Martins ataca na publicaccedilatildeo uma representaccedilatildeo do poeta como poeta da canccedilatildeo Estabelecendo-o como um grande artista de muacutesica Martins investiria na publicaccedilatildeo dessas canccedilotildees os focos de sua atenccedilatildeo Em 1943 ano em que os direitos de publicaccedilatildeo de suas obras foram cedidos a Martins Catullo passou a ser representado em seus livros cada vez mais como muacutesico Ademais esses livros pas-saram natildeo gratuitamente a ser apresentados por Martins

Nas palavras que antecedem a apresentaccedilatildeo de Modinhas Martins em seccedilatildeo intitulada ldquoAs divinas canccedilotildees de Catullordquo revela seu objetivo central como organizador o de que a publicaccedilatildeo seja vol-tada para os mais jovens Assim depois de explicar o que eacute uma mo-dinha ele finalmente completa

Colecionei revi prefaciei e anotei estas canccedilotildees de Catullo tatildeo ge-nialmente interpretadas por ecircle na linda eacutepoca de suas Serenatas ao Luar porque as sucessivas ediccedilotildees estatildeo esgotadas Ineacuteditas decircsse modo para a geraccedilatildeo atual encobertas que foram pelo invasor e exoacute-tico lirismo hodierno Elas conservam e conservaratildeo eternamente a sua Beleza primitivaForam compostas por Catullo ndash o Caruso das Modinhas ndash no seu pe-riacuteodo inicial ndash de Poeta Musico e Cantor ndash de 1880 a 1910 quando veio a lume em 1887 o ldquoCantor Fluminenserdquo o seu verdadeiro livro de estreia385

Pela passagem citada eacute possiacutevel enxergar que a aproximaccedilatildeo de sua trajetoacuteria modinheira inicial supervalorizada por Martins natildeo o

385 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 15

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo290

afasta de ser identificado como ldquopoetardquo Essa identificaccedilatildeo vai ao en-contro daquela jaacute buscada por Catullo desde seus primeiros livros qual seja a aproximaccedilatildeo das letras de canccedilotildees com uma representaccedilatildeo poeacute-tica Essa trajetoacuteria agrave parte feita por Catullo por ser antiga eacute explicada aos mais novos visando a um olhar diferente daqueles que o conheciam tatildeo simplesmente como um ldquopoeta cultordquo ou ldquopoeta sertanejordquo Aliaacutes essa separaccedilatildeo eacute criada por Guimaratildees e reafirmada nos textos de Catullo visando agrave compreensatildeo da carreira do poeta

Em Modinhas quem tambeacutem daacute o tom da reabilitaccedilatildeo da fase modinheira de Catullo eacute o seu futuro bioacutegrafo Carlos Maul Em texto que aparece no livro logo apoacutes o prefaacutecio do autor intitulado ldquoO Catullo que eu conhecirdquo Maul explica o teor do livro organizado por Martins

O que estas paacuteginas da antologia que Guimaratildees Martins organizou com a devoccedilatildeo de um crente e a fidelidade de um irmatildeo nos oferecem daacute [sic] uma ideacuteia niacutetida de um Catullo que ainda natildeo atingiu a plena originalidade da composiccedilatildeo e dos temas mas eacute um capiacutetulo essencial da sua biografia um marco da sua evoluccedilatildeo386

Ainda na apresentaccedilatildeo que faz de Catullo ndash e antes de o proacuteprio poeta explicar a publicaccedilatildeo para seus leitores ndash Guimaratildees Martins re-afirma o objetivo de entendimento de Maul atraveacutes de ldquofasesrdquo especiacute-ficas em sua trajetoacuteria

Como Trovador jamais houve quem se pudesse equiparar a esse gi-gante do canto que foi incontestavelmente o maior no gecircnero apare-cido no Brasil ateacute hojeDe 1910 data a segunda fase do genial maranhense fase a que deno-minaremos do Poeta Bravio Surgiu depois a fase a que poderemos chamar a do Poeta Culto387

Todas essas explicaccedilotildees visavam a assegurar agrave publicaccedilatildeo um lugar importante na trajetoacuteria de Catullo Uma vez que natildeo se tratava dos poemas que o consagraram como um poeta culto elas faziam parte

386 MAUL Carlos O Catullo que eu conheci In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 20

387 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Op cit p 16

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 291

de uma fase do poeta em sua ldquoevoluccedilatildeordquo ndash tentavam demonstrar Carlos Maul e Guimaratildees Martins Fase que senatildeo de todo consagrada por grandes letrados da eacutepoca ldquoNesse tempo remoto Catullo jaacute conquistara a popularidade que vem da estima das massas anocircnimas que lhe repe-tiam as modinhasrdquo388

Maul parece natildeo achar o suficiente a explicaccedilatildeo das modinhas como sendo uma fase do poeta Ele avanccedila resguardando-o contra uma representaccedilatildeo que possa vecirc-las como uma produccedilatildeo menor Para tanto explica que

Antes poreacutem do aparecimento de Catullo o que havia entre noacutes no gecirc-nero ldquomodinhardquo se dividia com vaacuterios poetas solares que se chamavam Castro Alves Casimiro de Abreu Gonccedilalves Dias Fagundes Varela que tiveram as suas canccedilotildees musicadas por grades muacutesicos Essa era a modinha que se cantava ao piano nos serotildees domeacutesticos389

Entretanto se aquela aproximaccedilatildeo do nome de Catullo com os ldquograndesrdquo natildeo fosse ainda o suficiente Maul alega que diferentemente dessas modinhas o reconhecimento ldquode Catullo era a voz da rua que se fazia acompanhar de violatildeo cavaquinho e flauta E ecircle tem algumas que lhe garantem uma gloacuteria idecircntica agrave dos seus antecessores iminentesrdquo390

Catullo por sua vez que dedica a publicaccedilatildeo ao ldquomeu adorado Guimaratildees Martinsrdquo o ldquoconstrutor deste livrordquo foi no mesmo sentido de reafirmar sua trajetoacuteria inicial quando no prefaacutecio sob o tiacutetulo de ldquoPrefaacutecios ao leitorrdquo fez um resumo em trecircs paacuteginas eloquentes de sua ldquofaserdquo de muacutesico ldquoDigamos que eu fui o introdutor do violatildeo na alta sociedade Os cantadores de festas e de raacutedios sabem disto mas fingem ignorar Nada perderei com esse esquecimentordquo391 E tentando regrar uma recepccedilatildeo observa em tom grave

Agora um conselho de altiacutessima importacircncia Ecircstes versos desacom-panhados das respectivas melodias perdem muito do seu valor Ligados agrave ela como o fecircz o meu adorado Guimaratildees Martins noutra seleccedilatildeo

388 MAUL Carlos Op cit p 20389 Ibidem p 21390 Ibidem391 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 18

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cujo primeiro volume ecircle intitulou ldquoTu passaste por este jardimrdquo tenho certeza de que o leitor acha-los-aacute de excelsa Beleza392

A outra seleccedilatildeo citada por Catullo que seria intitulada Tu pas-saste por este jardim e que contaria com as partes musicais das modi-nhas natildeo haacute registro de que tenha sido publicada Talvez nela o autor fizesse aparecer os dados de Luar do sertatildeo cuja letra curiosamente e apesar de toda controveacutersia com Joatildeo Pernambuco em torno de sua au-toria natildeo aparece na publicaccedilatildeo de Modinhas como tendo outro autor senatildeo Catullo A canccedilatildeo eacute apenas dedicada ao jornalista Assis Chateaubriand e ganha uma observaccedilatildeo do organizador em nota de ro-dapeacute com a seguinte explicaccedilatildeo ldquo[] O tiacutetulo ldquoLuar do Sertatildeordquo estaacute devidamente registrado no Departamento da Propriedade Industrial E a letra e a muacutesica estatildeo registradas respectivamente na Biblioteca Nacional e na Escola Nacional de Muacutesica da Universidade do Brasilrdquo393

Isso parece demonstrar que o caso Luar do sertatildeo natildeo ficara re-solvido apesar de na abertura da publicaccedilatildeo novamente Martins tentar explicar que aquele livro havia nascido quase agrave revelia do poeta que natildeo queria ver a reediccedilatildeo dos livros de suas canccedilotildees musicadas

Eacute que aqueles livros eram impressos descuidadamente sem a sua re-visatildeo pela popular e hoje extinta Livraria Quaresma que aleacutem do mais misturava por conta proacutepria em alguns desses livros canccedilotildees de autoria de Catullo com canccedilotildees da autoria de outros autores sem lhes mencionar os nomes Tudo isso em completo desrespeito agrave Lei e dando a impressatildeo de que todas as modinhas eram da autoria exclusiva de CatulloHoje poreacutem que sou cessionaacuterio uacutenico de todas essas composiccedilotildees liacutetero-musicais satisfaccedilo o desejo do seu autor o meu venerado Catullo da Paixatildeo Cearense394

392 Ibidem p 19393 Ibidem p 57394 MARTINS Guimaratildees Explicaccedilatildeo Necessaacuteria In CEARENSE Catullo da Paixatildeo

Modinhas Op cit p 11

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Como bom empresaacuterio e dono dos direitos autorais do poeta Martins ainda faz no final dessa explicaccedilatildeo uma propaganda dos discos com canccedilotildees de Catullo

A RCA Victor vem gravando em discos da sua marca as divinas can-ccedilotildees do ldquonosso Catullordquo na interpretaccedilatildeo do maior tenor popular do Brasil Vicente Celestino e da ilustre folclorista patriacutecia Stellinha Egg discos que se encontram agrave venda em todo o Brasil em todas as casa [sic] especializadas395

O artifiacutecio mobilizado pelo organizador da obra rende frutos no ano da publicaccedilatildeo Ao morrer Catullo (aos 82 anos de idade) foi alvo de vaacuterias manifestaccedilotildees de letrados que saudavam sua grande traje-toacuteria Essas manifestaccedilotildees foram fartamente publicadas pelos jornais cariocas do periacuteodo e apesar de uma vida quase totalmente voltada para a publicaccedilatildeo de livros o que mais sobressai nas opiniotildees dos ado-radores do poeta eacute seu lado ldquoautor de modinhasrdquo Essa reviravolta na representaccedilatildeo de Catullo operada em muito por Guimaratildees Martins pode ser notada uma vez mais quando vemos numa publicaccedilatildeo ante-rior de 1936 escrita por Alexandre Gonccedilalves Pinto e intitulada O choro que tentava dar conta de explicar aos novos leitores quem eram os chorotildees da velha guarda O autor de O choro pedira um prefaacutecio e a correccedilatildeo do livro para Catullo que agravequela eacutepoca displicente quanto agrave sua representaccedilatildeo como um daqueles ldquochorotildeesrdquo respondeu tatildeo sim-plesmente que ldquoO prefaacutecio que me pediste para o teu livro fica para outra vez Natildeo te posso ser uacutetil nas correcccedilotildees dos erros porque soacute uma revisatildeo geral poderia melhoraacute-lo o que eacute impossiacutevel depois de o teres quase promptordquo396

A progressiva retomada de uma representaccedilatildeo como um poeta da canccedilatildeo soacute viria com a cessatildeo dos direitos autorais das modinhas para Guimaratildees Martins jaacute nos anos 1940 que tratava de reavivar esse lado de Catullo com a publicaccedilatildeo de Poemas escolhidos e de Modinhas no

395 Idem396 PINTO Alexandre Gonccedilalves O chocircro reminiscecircncias dos chorotildees antigos Rio de

Janeiro Tipografia Gloacuteria 1936 (ediccedilatildeo fac-siacutemile pela FUNARTE 2009) Sn

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exato momento necessaacuterio lembrar em que a canccedilatildeo identificada como ldquopopularrdquo comeccedila a sobressair-se como uma produccedilatildeo digna do mere-cimento do aplauso puacuteblico e portanto ganhando um novo estatuto representacional na sociedade ndash isso catapultado principalmente pela accedilatildeo difusora das raacutedios no Brasil da qual jaacute falamos

Todos esses elementos renderam a Catullo depois de morto o reconhecimento por seu papel como produtor de canccedilotildees no Brasil O jornal A Noite cuja editora da empresa tinha os direitos de publicaccedilatildeo de alguns livros de Catullo agrave eacutepoca dedicou um suplemento especial ao poeta morto

Aliaacutes dona dos direitos de cinco livros (Alma do sertatildeo Faacutebulas e alegorias Um boecircmio no ceacuteu O milagre de Satildeo Joatildeo e Caboclo bra-sileiro) a empresa A Noite que publicara a uacuteltima ediccedilatildeo dos livros de Catullo em vida (a 5ordf ediccedilatildeo de Faacutebulas e alegorias) foi aquela que mais homenagens rendeu ao poeta morto Durante algumas semanas entrevistou vaacuterios personagens que conviveram intimamente com ele entre os quais Fred Figner o filho do editor Quaresma e o escritor Maacuterio Joseacute de Almeida que tratava de desmentir a representaccedilatildeo de Catullo como poeta apenas intuitivo e rude

Catullo [] tinha uma bem organizada cultura literaacuteria e foi aluno no-taacutevel do Coleacutegio Teles de Menezes onde tirava notas que lhe conferiam o direito de sentar-se no ldquobanco de honrardquo Dedicou-se principalmente ao estudo claacutessico dos idiomas de Camotildees e de Racine Cito de prefe-recircncia dois poetas porque a leitura predileta de Catullo era a poesia Essas duas mateacuterias portuguecircs e francecircs ele viria alecionar [sic] exi-miamente no seu pequeno coleacutegio da Piedade397

Afinal embora se apresentasse o poeta morto como um exitoso modinheiro antes de ser o conhecido poeta do sertatildeo era necessaacuterio cuidar nesse sentido pela natildeo desvinculaccedilatildeo de seu nome do de um poeta letrado Assim Catullo poderia ser visto como um poeta da canccedilatildeo ndash poeta da canccedilatildeo sim mas poeta letrado conhecedor de Camotildees e Racine

397 A Noite 19 jul 1946 p 5

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Ademais a repentina morte de Catullo criou condiccedilotildees para que o autor fosse alvo de diversos empreendimentos no campo artiacutestico e literaacuterio A Noite aproveitou a oportunidade para reeditar O sol e a lua e Um caboclo brasileiro Aliaacutes foi justamente com sua morte que vaacute-rias ediccedilotildees dos livros de Catullo ganharam novas ediccedilotildees em 1946

Naquele mesmo ano aleacutem dos livros publicados pela A Noite acima citados a editora Bedeschi anunciava a reediccedilatildeo de Meu sertatildeo Sertatildeo em flor Poemas bravios e Mata iluminada A publicidade de tais livros no momento da morte do poeta indicava que as reediccedilotildees eram uma homenagem ao poeta morto pois

Quanto mais civilizado eacute um povo mais respeito e orgulho tem aacute [sic] obra dos seus grandes Artistas pois eacute a estes que se deve essa Civilizaccedilatildeo Pouco se fez ateacute hoje pelas nossas gloriosas tradiccedilotildees que permanecem ainda no mais triste esquecimento Faltavam-nos en-tretanto uma oportunidade para despertar em nossos coraccedilotildees esse sen-timento magniacutefico transformando-nos em orgulhosos admiradores dos legiacutetimos representantes de nossa Cultura Se hoje natildeo podemos ajuizar o que muitos brasileiros fizeram pelo nosso Paiacutes natildeo nos cabe a culpa mas compete-nos fazer com que nossos filhos possam sentir melhor por que o Brasil eacute digno de tanto amor e respeito398

Toda a atenccedilatildeo em torno do poeta morto criava a oportunidade editorial para que diversos anuacutencios usassem o nome de Catullo para vender seus produtos E natildeo somente livros O curioso anuacutencio do Perfume Azul daacute a ver essa repentina apropriaccedilatildeo da representaccedilatildeo do poeta amante da mulher e da natureza

CATULO SE ENGANOUndash CatuloldquoQuereis conquistar a mulher Enchei-lhe a cabeccedila de ilusotildees O con-quistador precisa mentir desbragadamente Elogiai-lhe a beleza Os olhos os cabelos a boca o corpo o vestido tudo o que ela natildeo pos-suir Nunca lhe deveis confessar a verdaderdquondash GRANFINO ndash Natildeo meu caro Catulo vocecirc que compreendeu tatildeo bem

398 Idem p 7

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e soube traduzir em versos magistrais a alma e as belezas do sertatildeo natildeo conhece a mulherPara conquista-la precisamos dizer-lhe a verdade elogiar a sua beleza seus olhos seus cabelos sua boca seu corpo e aconselhar para que conserve esses dons divinos o uso do perfume Narciso Azul de galllySim Narciso Azul de Gally enriquece ainda mais a beleza e a juventude da mulher399

Esse estouro publicitaacuterio e editorial em torno do nome de Catullo deu a nova oportunidade para que Guimaratildees Martins agora totalmente responsaacutevel pelo espoacutelio de Catullo desconstruiacutesse algumas imagens construiacutedas em torno do poeta como sua representaccedilatildeo como um pe-dante Chamado por diversos perioacutedicos para falar sobre a morte de Catullo e contar passagens sobre a vida do poeta Martins tentava de-monstrar para o leitor a ldquomodeacutestiardquo do autor

Convidado pelo presidente Epitaacutecio Pessoa para cantar e recitar no Palaacutecio Rio Negro em Petroacutepolis Catullo encontrando o Palaacutecio todo iluminado natildeo entrou pensando haver alguma reuniatildeo soleneDepois foi informado de que o presidente nessa noite o esperava mo [sic] salatildeo principal em companhia de amigos O autor do ldquoTalento e Formosurardquo caiu das nuvens e no outro dia aparecia em Palaacutecio de violatildeo em punhoO Dr Epitaacutecio riu-se muito da encantadora modeacutestia do aedo mara-nhense pois havia mandado iluminar o Rio Negro especialmente para recebe-lo400

A contraposiccedilatildeo a esses depoimentos vinha ironicamente do uacutel-timo prefaacutecio escrito por Catullo em Modinhas no qual conta envaide-cido suas memoacuterias A principal era a de sua conhecida audiccedilatildeo no Instituto de Muacutesica no distante ano de 1908

O Instituto ficou cheio das personagens mais ilustres desta Capital Muacutesicos literatos meacutedicos jornalistas advogados engenheiros pro-

399 Ibidem 19 jul 1946 p 27400 Ibidem p 32

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 297

fessores pintores o escoacutel da nossa sociedade diplomatas como o Conde de Prozoor entatildeo ministro plenipotenciaacuterio da Ruacutessia tudo se encontrava ali no meio da massa popular Inuacutemeras pessoas ficaram de peacute por natildeo haver mais lugar Os aplausos eram tatildeo retumbantes que se ouviam da rua []No dia seguinte os jornais teceram-me elogios []Como vecirc o leitor venci em tudo Depois da audiccedilatildeo do Instituto dei muitas outras no Teatro Carlos Gomes no antigo Satildeo Pedro no Fenix no Recreio Dramaacutetico no Liacuterico em muitas outras casas de espetaacuteculosEm 1912 escrevi o meu primeiro poema sertanejo ldquoO Marrueirordquo Animado pela aceitaccedilatildeo que ecircle teve continuiei [sic] a escrever outros e hoje jaacute estatildeo publicados mais de vinte volumes das minhas obras Tocircdas elas estatildeo prefaciadas pelos mais iminentes intelectuais da nossa terra401

Passagens como essa mostravam para um leitor atento como nas paacuteginas da publicaccedilatildeo ele poderia defrontar-se com representaccedilotildees distintas do poeta ndash isso resultado de opccedilotildees conflitantes quanto a uma imagem consagrada que se deva dar ao autor

Ainda sobre a ldquomodeacutestiardquo de Catullo Fred Figner ndash que gravara em discos pelas Casas Edison as primeiras canccedilotildees de Catullo e por isso foi um dos procurados para declarar algo sobre ele ndash tratava de explicar como sendo expressatildeo da bondade do poeta morto

Catullo foi uma grande alma Um boecircmio um sonhador que jamais se preocupou com dinheiro Era um desinteresse espantoso[]Soacute lhe posso dizer com absoluta seguranccedila eacute que Catullo tinha um grande coraccedilatildeo Era um bonachatildeo que nunca explorou comercialmente o talento que lhe brotava espontacircneo402

O depoimento de Figner ia ao encontro exato da imagem do poeta desinteressado que natildeo se preocupava com dinheiro O que pode parecer irocircnico eacute pensar que muitas daquelas canccedilotildees de Catullo foram durante

401 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 17-18402 A Noite 22 maio 1946 p 7

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo298

algum tempo propriedade de Figner e que ele tenha feito uma boa for-tuna com elas A exploraccedilatildeo econocircmica do nome Catullo embora lhe ti-vesse trazido reconhecimento natildeo rendeu ao poeta grandes dividendos ateacute porque rendia mais para um autor no comeccedilo do seacuteculo vender suas canccedilotildees como salientamos anteriormente ndash coisa que Catullo fez por di-versas vezes Isso acentuava o contraste da representaccedilatildeo de Catullo como um poeta modesto diante de um novo regime de representaccedilatildeo de autoria centrada desde os anos 1930 numa preocupaccedilatildeo autoral interes-sada no valor de moeda da criaccedilatildeo Ora foi jogando com essa represen-taccedilatildeo do ldquodesinteresserdquo ndash que inclusive era evocada por Catullo como na querela com Joatildeo Pernambuco ndash que o papel de Guimaratildees Martins se sobressaiacutea como algueacutem responsaacutevel pelos direitos autorais do poeta fa-zendo com que Catullo natildeo ldquosujasse as matildeosrdquo com ldquocoisas mundanasrdquo

A coincidecircncia biograacutefica de Catullo no final de sua vida com sua representaccedilatildeo como um poeta modesto vinha como que para confirmar tal construccedilatildeo A ldquomodestardquo casa onde o poeta morou nos seus uacuteltimos anos de vida tornou-se imediatamente o siacutembolo de sua modeacutestia Essa repentina consagraccedilatildeo de Catullo ecoou de forma tal que uma movi-mentaccedilatildeo na imprensa com apoio de Guimaratildees Martins fez surgir uma mobilizaccedilatildeo popular para angariar fundos visando agrave aquisiccedilatildeo da casa e a transformaccedilatildeo dela num mausoleacuteu ao poeta

A casa representava Catullo em sua modeacutestia A uma imagem de Catullo pedante que insistentemente o perseguira durante toda sua tra-jetoacuteria literaacuteria vaacuterios interessados na reabilitaccedilatildeo do poeta contrapu-nham a representaccedilatildeo da casa A casa era a testemunha de um poeta modesto em sua vida

A casa de Catullo testemunha de sua existecircncia modesta quase francis-cana de um homem simples e bom afaacutevel e acolhedor que soacute conhecia uma espeacutecie de orgulho ndash o orgulho de artista consciente dos finos louvores que produzia mas em tudo o mais de uma excessiva humildade ndash eacute um ver-dadeiro museu sentimental devendo ser preservada tal como era quando o seu glorioso morador desapareceu Os objetos de uso pessoal de Catullo da Paixatildeo Cearense documentam a sua simplicidade o seu ascetismo403

403 A Noite 19 jul 1946 Suplemento p 20

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 299

A casa era o poeta patrimonializado era como dizia a repor-tagem ndash que ainda mostrava as peccedilas que ali se encontravam ndash um museu sentimental As fotografias do jornal estampavam os objetos do poeta monumentalizando-os Laacute estavam a caneca a cadeira onde morreu os quadros a cama mas tambeacutem ndash e principalmente para um poeta letrado ndash parte da biblioteca o tinteiro e a caneta ldquoverdadeiras e preciosas peccedilas de museu que ajudaram a fixar tantas e tatildeo maravi-lhosas obras poeacuteticasrdquo404

Essa construccedilatildeo que se operava tatildeo logo a morte do poeta foi anunciada alimentou-se da comoccedilatildeo puacuteblica que se abateu sobre uma multidatildeo que foi ao enterro de Catullo Transmitidos ao vivo pela Raacutedio Roquete Pinto os funerais no cemiteacuterio de Catumbi foram eivados de apresentaccedilotildees de artistas e para laacute tambeacutem acorreu como deixam ver as fotos publicadas nos jornais da eacutepoca uma multidatildeo ineacutedita Escritores muacutesicos e poliacuteticos compareceram agrave cerimocircnia na qual Agripino Grieco e o acadecircmico Viriato Correcirca pronunciaram seus discursos de adeus A apoteose segundo os jornais teria sido a entrada do cantor mexicano Ortiz Tirado amigo de Catullo que cantou Luar do sertatildeo acompa-nhado no estribilho pela multidatildeo emocionada

A narrativa do enterro pela imprensa a organizaccedilatildeo de festas para angariar fundos para a compra da casa de Catullo ndash primeira-mente por A Noite que organizou uma festa no Teatro Municipal e depois a festa organizada em colaboraccedilatildeo conjunta da Raacutedio Globo Raacutedio Nacional e Empresa Teatral Ferreira da Silva com a ldquopopula-riacutessima lsquoestrelarsquo Dercy Gonccedilalvesrdquo405 ndash e a reediccedilatildeo de pelo menos oito publicaccedilotildees suas nos primeiros trecircs meses que se seguiram agrave sua morte revelam a configuraccedilatildeo progressiva do poeta morto em poeta distinto

A surpreendente imagem de uma multidatildeo nos funerais dava o tom da definiccedilatildeo de ldquopopularrdquo que se buscava assegurar a Catullo ldquoTeve expressatildeo de uma apoteose popular a cerimocircnia do enterramento de Catullordquo insistia A Noite em legenda de fotografia que mostrava a

404 Idem405 A Noite 21 jun 1946 p 8

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo300

multidatildeo em volta do caixatildeo Atentando para o fato de que o comeacutercio carioca fechou com a passagem do enterro o editor do jornal afirmava a necessidade de uma patrimonializaccedilatildeo do poeta

[] Se a memoacuteria do trovador necessitasse de novas credenciais para ser incorporado ao patrimocircnio espiritual da nacionalidade te-lasndashia na expressatildeo glorificadora de seus funerais e na exaltaccedilatildeo de sua obra e de seu nome agrave beira da tumba que o acolheu para a eternidade406

Eacute possiacutevel como jaacute dissemos para um investigador atento supor que o investimento insistente da representaccedilatildeo popular e consagradora do poeta Catullo natildeo fosse um ato gratuito uma vez que A Noite publi-cava os livros do poeta Ademais embora sua morte fosse mateacuteria de grandes reportagens naqueles dias seguramente ao investigar as di-versas reportagens do periacuteodo observamos que a empresa A Noite foi aquela que liderou com Guimaratildees Martins a promoccedilatildeo de uma con-sagraccedilatildeo do poeta depois de morto

Na nova ediccedilatildeo de Um boecircmio no ceacuteu lanccedilada menos de um ano apoacutes a morte de Catullo com uma nova seacuterie de juiacutezos criacuteticos organi-zados por Guimaratildees Martins aparece uma advertecircncia do herdeiro dos direitos do poeta endereccedilada ldquoaos leitores do livrordquo

Aos que pelo valor incontestaacutevel do ldquoMaravilhoso Poetardquo acharem dispensaacuteveis as polianteacuteias de juiacutezos-criacuteticos que venho organizando em quase todos os seus livros devo dizer que se faccedilo eacute para facilitar aos seus futuros bioacutegrafos e evitar as inverdades que haacute sobre a sua vida principalmente agora depois do seu desaparecimento material da terra407

Aiacute se operava uma construccedilatildeo retrospectiva do poeta capitaneada por Martins herdeiro dos direitos autorais de Catullo a Raacutedio Nacional que tocava insistentemente as canccedilotildees do poeta e a empresa A Noite

406 A Noite 14 maio 1946 p 1407 MARTINS Guimaratildees Aos leitores deste livro In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um

boecircmio no ceacuteu Rio de Janeiro sd p 184 Esta ediccedilatildeo pensamos ser de fins de 1946 jaacute que aparece como novo lanccedilamento no perioacutedico Letras e Artes de 12 de janeiro de 1947 p 3

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 301

que publicava as ediccedilotildees de vaacuterios de seus livros Por fim da editora Bedeschi que como A Noite investia naquele momento de luto na re-ediccedilatildeo de antigos livros do bardo

Desde a venda dos direitos autorais para Guimaratildees Martins a produccedilatildeo de uma estrateacutegia autoral jaacute prescindia em muito da estrateacutegia da autoridade de Catullo que apoacutes sua morte deixava-a definitiva-mente agrave mercecirc do editor leitor organizador tipoacutegrafo etc Embora ainda apresentasse seu uacuteltimo livro havia uma clara contraposiccedilatildeo com os objetivos encetados pelo organizador da obra que nunca chegou poreacutem a causar algum problema nessa relaccedilatildeo Pelo contraacuterio Catullo tinha muita estima por Martins Mas com a morte do poeta a histoacuteria das ediccedilotildees das obras de Catullo teria de levar em consideraccedilatildeo dali para frente a ausecircncia daquele que apareceu durante 52 anos produ-zindo naqueles textos que saiacuteam sob seu nome suas estrateacutegias de con-sagraccedilatildeo A autoridade sobre os textos tantas vezes reivindicada pelo poeta passaria a ser reivindicada por outras instacircncias O texto na au-secircncia do seu autor-primeiro evocaria desse modo sua memoacuteria E ca-minhos da memoacuteria seguem outras trilhas em geral mistificadoras da-quele a quem apresenta

Assim de uma trajetoacuteria literaacuteria inteira devotada agrave represen-taccedilatildeo de sua autoridade (de letrado de autor e de poeta) Catullo dei-xava a vida e as letras revivido em seus livros como o poeta que melhor soube representar nas suas modinhas e em seus livros o ldquopovordquo e o ldquosertatildeordquo Contudo o ecircxito editorial de grande parte de sua trajetoacuteria natildeo foi suficiente para que figurasse entre aqueles que eram jaacute agravequela eacutepoca elevados ao elenco de grandes mestres da literatura

Em 1946 ano da morte do autor de Luar do sertatildeo a Raacutedio Nacional direto do Teatro Municipal transmitia para todo o paiacutes du-rante a festa de consagraccedilatildeo poacutes-morte do ldquopoeta do sertatildeordquo um convi-dado que apresentava em homenagem a Catullo uma canccedilatildeo para a qual o poeta morto havia criado uma letra Sertanejo enamorado O convidado era um jovem que subiu ao palco com sua sanfona em punho algo comum pois jaacute era conhecido pelos ouvintes do cast da raacutedio Com seu sorriso ele contrastava com o ambiente de homenagem poacutes-tuma Seu nome era Luiz Gonzaga Talvez Catullo natildeo gostasse daquela

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo302

apresentaccedilatildeo Talvez em suas tentativas de regrar uma recepccedilatildeo impe-disse aquilo Talvez Mas para que conjecturar Definitivamente o poeta natildeo estava mais laacute

Conclusatildeo

A trajetoacuteria autoral de um poeta ordinaacuterio

O trabalho que o leitor tem em matildeos se insere no espaccedilo de in-vestigaccedilatildeo da literatura cujo ldquonome proacutepriordquo teima em reaparecer Catullo da Paixatildeo Cearense o poeta ordinaacuterio o eacute pela trajetoacuteria lite-raacuteria natildeo canonizada pela histoacuteria literaacuteria pela abordagem aqui ten-tada natildeo biograacutefica de seus textos pelas escolhas estrateacutegicas de sua intromissatildeo no mundo das letras pela sensibilidade ldquosafadardquo com que tentava se impor como poeta e sobretudo pela abordagem natildeo ldquogenia-lizadardquo com que se buscou aqui tratar

Talvez o leitor nas paacuteginas que se sucederam tenha enxergado menos Catullo do que o editor Quaresma ou menos o poeta inspirado do que os leitores autorizados Maacuterio de Andrade e Gondin da Fonseca menos o saudado bardo do que a ascensatildeo dos artistas de raacutedio e teatro menos o gecircnio edificador da alma mais as conduccedilotildees de seus textos por Guimaratildees Martins seu herdeiro Contudo se assim foi feito foi porque o autor deste trabalho natildeo se negou a alertar por vezes implicitamente eacute verdade que a compressatildeo de uma produccedilatildeo textual estaacute condicio-nada em muito pelas contingecircncias do espaccedilo que lhe daacute sentido

A chegada de Catullo ao espaccedilo de produccedilatildeo de livros no Brasil ainda na uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX veio no exato momento em que a representaccedilatildeo do leitor de livros era construiacuteda de forma a distingui-lo do restante da sociedade Nesse periacuteodo como vimos ser identificado como autor literaacuterio era um meio de ser considerado sujeito de algum status numa sociedade em grande parte analfabeta e receacutem-saiacuteda da escravidatildeo Foi aliado a isso que o modinheiro Catullo Cearense e seu editor Quaresma interessados na identificaccedilatildeo do autor de livros de modinhas como letrado construiacuteram nos livros uma aproximaccedilatildeo do nome de Catullo como algueacutem das letras

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Natildeo obstante outros modinheiros como Geraldo Magalhatildees e Eduardo das Neves terem seus nomes nas capas de livros de modi-nhas foi somente Catullo que teve seu nome considerado um autor Aqui seguramente reside uma primeira provocaccedilatildeo do trabalho que pode parecer embaraccedilosa para um leitor atual a desnecessaacuteria confor-midade de um nome proacuteprio escrito na capa com aquilo que se entende como um ldquoautorrdquo A autoria eacute tambeacutem ela uma construccedilatildeo histoacuterica que se funda a partir de estrateacutegias textuais A representaccedilatildeo de Catullo como ldquoautorrdquo construiacuteda em seus livros fez com que o bardo modi-nheiro conseguisse que seu nome fosse progressivamente identificado como um ldquopoeta popularrdquo

Nesse segundo momento da trajetoacuteria de Catullo reside o ponto nevraacutelgico de uma reflexatildeo que se pauta pela problematizaccedilatildeo de uma autoria O termo ldquopopularrdquo agrave eacutepoca evocava tanto algueacutem de reconhe-cido sucesso entre as pessoas quanto um tipo de produccedilatildeo consagrada naqueles idos por mostrar uma suposta praacutetica do ldquopovordquo Daiacute ser ldquopoeta popularrdquo (ou ser assim representado) era de bom tom para que o editor Quaresma lucrasse com a produccedilatildeo de Catullo Para este uacuteltimo no seu afatilde de consagraccedilatildeo letrada isso travaria o reconhecimento de seu nome como tatildeo simplesmente um poeta ndash tal qual Bilac ou Coelho Netto nomes distintos da literatura do periacuteodo Daiacute tambeacutem seu flerte com uma produccedilatildeo de literatura sertaneja que agravequela eacutepoca consa-graria homens como Godofredo Rangel Monteiro Lobato e sobretudo Euclides da Cunha Natildeo era somente pelo sucesso de vendagens que se consagrava um autor a poeta mas pelo reconhecimento de sua pro-duccedilatildeo como digna de ser chamada literatura

Flagramos assim a constituiccedilatildeo daquilo entendido como ldquolitera-turardquo agrave eacutepoca Essa demanda veio ao encontro de um entendimento de que o termo ldquoliteraturardquo teria de ter uma conformidade com o ldquonacionalrdquo daiacute a condicionante ldquonacionalrdquo na afirmaccedilatildeo de uma obra como ldquolitera-turardquo Dizendo de outra forma natildeo havia uma representaccedilatildeo da ldquoli-teraturardquo se essa natildeo contivesse um elemento nacional que a impusesse como digna de assim ser tachada Catullo soube bem casar sua aposta no reconhecimento como poeta letrado e suas escolhas temaacuteticas O sertatildeo nasce em sua poesia no exato momento de sua consagraccedilatildeo como

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poeta digno de entrar no panteatildeo da ldquoliteratura nacionalrdquo Ser publicado assim por uma editora ldquomais seacuteriardquo como a Castilho respondia ao in-tuito de mudanccedila de prestiacutegio dos textos visando a uma consagraccedilatildeo E essa consagraccedilatildeo eacute dramatizada em seus prefaacutecios ndash muitos deles es-critos por nomes distintos da sociedade carioca de entatildeo apaixonados desde havia muito tempo pelas modinhas de Catullo

Essa representaccedilatildeo de seu nome como tatildeo somente um ldquopoetardquo soacute vai perder status quando haacute uma revisatildeo da mesma ldquoliteraturardquo vinda de novos escritores que surgem nos anos 1920 Embora natildeo haja unidade nos pontos de vista de nomes como Maacuterio de Andrade e Oswald de Andrade esses novos escritores dramatizavam em seus textos a emergecircncia de uma nova ldquoliteraturardquo na qual o que seria ldquoliteratura nacionalrdquo sofreria uma revisatildeo

A tarefa de melhor representar o paiacutes ganhou cores fortes espe-cialmente nas reflexotildees de Maacuterio de Andrade que desqualificaria a obra de Catullo por ser imaginosa Mas eacute exatamente nesse momento que Catullo vai lanccedilar matildeo de uma aproximaccedilatildeo de seu nome com o ldquopopularrdquo sem no entanto subtrair-se a ele Surge em seus livros o re-curso da alma e para explicar a seu leitor o que seria isso o novo editor de Catullo Castilho mobilizava os escritores mais consagrados do pe-riacuteodo para apresentar o poeta do sertatildeo Surge Catullo poeta que no momento da escrita fala a alma do povo mas que natildeo eacute povo pois poeta natildeo pode ser povo Isso porque os artifiacutecios de consagraccedilatildeo elen-cados no periacuteodo passavam pelo reconhecimento do autor como algueacutem que conhece o que conta Falar por uma ldquoalmardquo daria um caraacuteter veros-similhante agrave sua poesia o que natildeo se daria por exemplo em um Monteiro Lobato ndash que aliaacutes Catullo como vimos tematizou em um de seus poemas numa tentativa de negativizar o Jeca de Lobato em detrimento do seu proacuteprio sertanejo

Nos anos 1920 muitos escritores foram relegados nesse pro-cesso por um novo cacircnone que se construiacutea e o refuacutegio na produccedilatildeo de textos teatrais foi uma constante Ademais o teatro surgiu como uma atividade lucrativa pelo menos quando se pensa que os espaccedilos de produccedilatildeo textual se comprimiram com o advento da nova geraccedilatildeo de escritores Catullo que jaacute era reconhecido por sua presenccedila cecircnica de-

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clamando poemas ou antes disso cantando modinhas acabou en-trando nesse filatildeo fazendo o caminho inverso ou seja indo ao en-contro de sua produccedilatildeo musical que o revelara havia muito tempo com as modinhas

Foi nesse momento que mudou tambeacutem o status dos composi-tores no Brasil O sucesso da raacutedio alavanca compositores e cantores agrave condiccedilatildeo de iacutedolos fazendo com que os primeiros comeccedilassem a rei-vindicar seus direitos autorais Catullo reassumindo sua condiccedilatildeo de poeta da canccedilatildeo exatamente em um momento em que a muacutesica ganha novo status atraveacutes do raacutedio vai reivindicar sua consagraccedilatildeo como compositor das coisas brasileiras aproximando sua produccedilatildeo textual das suas modinhas Daiacute serem publicados nesse periacuteodo livros contendo poemas para serem dramatizados nos palcos como vaacuterias intervenccedilotildees musicais Teatro literatura e muacutesica se mesclaram no texto fazendo com que o poeta ldquoatacasserdquo na construccedilatildeo de sua consagraccedilatildeo em vaacuterias frentes A face ldquopretensiosardquo do poeta ganha contornos em seus livros dos anos 1930 e 1940 especialmente na peccedila O boecircmio no ceacuteu que nas ediccedilotildees sucessivas foi ganhando progressivamente elementos que pu-dessem identificar Catullo aos maiores poetas e o autor ao seu perso-nagem boecircmio do texto que atirava criacuteticas contra os mais diversos segmentos do campo literaacuterio de entatildeo desde os criacuteticos aos cantores

Eacute necessaacuterio salientar que todas essas estrateacutegias faziam parte de uma aguda sensibilidade de Catullo e de seus editores para os elementos de consagraccedilatildeo de seu nome como algueacutem de algum status em determi-nado momento do campo de produccedilatildeo textual Nesse iacutenterim natildeo fal-taram em suas publicaccedilotildees os depoimentos de leitores sobre sua obra e sua presenccedila cecircnica recitando ou cantando Natildeo faltaram intervenccedilotildees de seus editores explicando o caraacuteter da obra e do escritor com termos sempre emuladores como ldquocivilizadordquo ldquoletradordquo ldquobom moccedilordquo ldquogrande poetardquo etc Mas acima de tudo natildeo faltaram tentativas de Catullo de regrar uma leitura de seus textos que pudessem tornar possiacutevel seu de-sejo nunca escondido de reconhecimento consagrador

Atravessar os textos produzidos por Catullo eacute fazer uma leitura em filigranas interessado em flagrar o poeta se construindo e se recons-truindo a cada momento Contra um entendimento de que haacute uma ver-

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dade escondida no texto contrapotildee-se a necessidade de compreensatildeo de sua produccedilatildeo textual numa rede de discursos que natildeo se findam na escritura De radicalizar uma experiecircncia de histoacuteria da literatura que questione de saiacuteda a noccedilatildeo ldquoliteraacuteriardquo De estabelecer que um texto comunica visando a um puacuteblico leitor De chamar a atenccedilatildeo para a ma-terialidade do livro atribuindo ao trabalho interessado do editor um significado fundamental na criaccedilatildeo de um sucesso literaacuterio

O que se arvora na investigaccedilatildeo sobre Catullo eacute uma possibili-dade de compressatildeo da trajetoacuteria literaacuteria de um indiviacuteduo que natildeo se paute tatildeo somente com elementos extra-textuais Isso deve ser tentado com cuidado pois ainda que natildeo inexistam no texto aqui apresentado tais elementos a consideraccedilatildeo de uma representaccedilatildeo autoral construiacuteda nos textos pode obrigar o pesquisador a mais do que procurar na bio-grafia do autor uma explicaccedilatildeo a problematizar criticamente o proacuteprio texto pois que afinal eacute por meio dos textos (e com eles) que a comu-nicaccedilatildeo com os espaccedilos de reconhecimento se fazem para um escritor Nesse caminho haacute uma seacuterie de indiviacuteduos que contribuem para essa comunicaccedilatildeo desde editores passando por tipoacutegrafos e publicitaacuterios ou mesmo pela pena de um leitor autorizado o criacutetico literaacuterio

Introduzir na investigaccedilatildeo de textos sob o nome de ldquoliteraturardquo o questionamento sobre o proacuteprio estatuto literaacuterio de tal texto ainda eacute em nosso paiacutes um desafio ndash e como todo desafio tarefa instigadora Isso porque por essas praias a identificaccedilatildeo de um leitor continua sendo um aspecto distintivo de forma que questionar um texto consagrado sem cair na emulaccedilatildeo se torna tarefa perigosa e mal vista O suporte de reflexotildees trazidos pela nova criacutetica literaacuteria e pela denominada nova histoacuteria cultural satildeo nesse sentido de grande valia para a historicizaccedilatildeo dos textos Sobre essa uacuteltima vale ainda dizer que tal tarefa ademais se ressente de uma natildeo compressatildeo de sua proacutepria histoacuteria ndash expressa por vezes em maacute-feacute de seus criacuteticos Aiacute vale uma passagem importante de Chartier mas muitas vezes negligenciada por seus leitores que evi-tando um entendimento de suas propostas como uma retomada do texto em si recomenda que o estudo das representaccedilotildees produzidas nas di-versas praacuteticas culturais possa redimensionar uma antiga histoacuteria social Assim diz-nos o historiador ldquoa histoacuteria cultural pode regressar util-

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mente ao social jaacute que faz incidir a sua atenccedilatildeo sobre as estrateacutegias que determinam posiccedilotildees e relaccedilotildees e que atribuem a cada classe grupo ou meio um lsquoser-apreendidorsquo constitutivo da sua identidaderdquo408

Ademais o desafio para a escrita da trajetoacuteria de um indiviacuteduo recoloca em cena o velho debate sobre a possiblidade de se narrar uma parte da vida desse indiviacuteduo Embora exista de saiacuteda uma impossibi-lidade aceita pelo historiador de reconstruccedilatildeo de uma vida pensamos que o que natildeo se deve esquecer eacute o caraacuteter representacional da criaccedilatildeo do personagem A representaccedilatildeo de um sujeito numa narrativa joga fundamentalmente ela tambeacutem com um acordo entre historiador e leitor visando a construir por meio das fontes a crenccedila numa escrita que se paute por um referencial

Aiacute reside uma questatildeo eacutetica a ser enfrentada Eacute necessaacuterio pensar que a escrita de uma trajetoacuteria ndash e a de Catullo aqui produzida eacute ela mesma um exemplo ndash eacute parte de um acordo Poreacutem de um acordo que se estabelece entre um autor que escreve e um leitor que tambeacutem produz a partir de uma leitura criacutetica sua proacutepria representaccedilatildeo do per-sonagem da trajetoacuteria Perder de vista a possibilidade de invenccedilatildeo cor-roboraccedilatildeo e criacutetica do leitor diante daquilo que lecirc eacute negar (ou pior idiotizar) de partida a capacidade do leitor diante do texto Na con-tramatildeo disso ou seja atentando para o diaacutelogo do autor com os leitores em suas leituras insubmissas a trajetoacuteria autoral de Catullo da Paixatildeo Cearense foi aqui escrita Pensando nisso o autor deste trabalho bem sabe que enfrentar um ldquonome proacutepriordquo carregaraacute controversas leituras ndash mas necessaacuterio dizer natildeo se furtou desde o iniacutecio a desafiar o leitor em sua ldquocaccedila furtivardquo no texto

Por fim quero crer que tal empresa se exitosa possa de alguma forma provocar tambeacutem uma contribuiccedilatildeo para a abertura de novas pesquisas que tematizem o ldquonome proacutepriordquo doravante escapando das teias biograacuteficas que teimam em ldquocanonizarrdquo o sujeito biografado Por outro lado sou otimista que este trabalho lance luz para a necessidade de uma criacutetica literaacuteria que deixe de se fundar na construccedilatildeo de monu-

408 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural entre praacutetica e representaccedilotildees Lisboa DIFEL 1990 p 23

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mentos sob o nome pretensioso de ldquoliteratura nacionalrdquo e que esta criacute-tica possa repensar-se inserindo nela um caraacuteter historicizante que leve em conta os demais sujeitos que fazem parte do espaccedilo de pro-duccedilatildeo textual Afinal foi nessa aventura com o livro (e no livro) que um dia certo bardo ordinaacuterio se transformou no poeta Catullo da Paixatildeo Cearense

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NEVES Eduardo das Mysteacuterios do violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1905

NERY Frederico Joseacute de Santa-Anna Folclore brasileiro Recife FundajMassan gana 1992 (1ordf ediccedilatildeo em 1889)

NETO Coelho A conquista Disponiacutevel em wwwdominiopublicogovbr Acesso em 14 jan 2012 (1ordf ediccedilatildeo em 1899)

PINTO Alexandre Gonccedilalves O chocircro reminiscecircncias dos chorotildees antigos Rio de Janeiro Tipografia Gloacuteria 1936 (ediccedilatildeo fac-siacutemile pela FUNARTE 2009)

RANGEL Alberto Os sertotildees brasileiros In ANNAES DA BIBLIOTECA NACIONAL Rio de Janeiro Officinas Graphicas da Bibliotheca Nacional 1916 v XXXV p 115

RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Belo Horizonte Crisaacutelida 2007 (1ordf ediccedilatildeo em 1910)

RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 325

RIO Joatildeo do O momento literaacuterio Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 2010

ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 2008

ROMERO Sylvio Estudos sobre a poesia popular do Brazil Rio de Janeiro Typ Laemmert amp C 1888

SALES Antocircnio Aves de arribaccedilatildeo Rio de JaneiroSatildeo PauloFortaleza ABC Editora 2006 (1ordf ediccedilatildeo em 1903)

TAUNAY Visconde de Dias de guerra e de sertatildeo Satildeo Paulo Revista do Brasil 1920

TELES Gilberto Mendonccedila (org) Vanguarda europeia e modernismo brasileiro Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2012

TEOacuteFILO Rodolfo A fome Fortaleza Ediccedilotildees Demoacutecrito Rocha 2002 (1ordf ediccedilatildeo em 1890)

TORRES Antocircnio Carmen tropicale Rio de Janeiro Livraria Castilho 1915

VERIacuteSSIMO Joseacute O que eacute literatura E outros escritos Satildeo Paulo Landy 2001

Site consultadoBase de Dados da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco Disponiacutevel em httpbasesfundajgovbrcgi-binisis3g-bpl Acesso em 22 set 2012

Perioacutedicos consultadosA CriacuteticaA EacutepocaA NoiteA PacotilhaA SemanaAnaes da Biblioteca Nacional

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo326

Correio da ManhatildeCorreio de NotiacuteciasCorreio PaulistanoDiretrizesGazeta da TardeGazeta de NotiacuteciasJornal do Comeacutercio do Rio de Janeiro Jornal do BrasilO Estado de Satildeo Paulo O ImparcialO PaizRevista ldquoFon-FonrdquoRevista ldquoO MalhordquoA Noite (Suplemento)

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 327

ANEXO A

Livros publicados por Catullo da Paixatildeo Cearense com respectivo ano da primeira ediccedilatildeo

A canccedilatildeo do africano ndash ano de publicaccedilatildeo incertoO vagabundo ndash ano de publicaccedilatildeo incertoCantor fluminense (1894)Cancioneiro popular de modinhas brasileiras (1899)Choros ao violatildeo (1902) Lyra dos salotildees (1905) O cantor das modinhas brasileiras (1907)Lyra brasileira (1908)Novos cantares (1909)Trovas e canccedilotildees (1910)Canccedilotildees da madrugada (1910) Florileacutegio dos cantores (1915)Meu sertatildeo (1918)Sertatildeo em flor (1919)Poemas bravios (1921)Aos pescadores (1923) Mata iluminada (1924)O evangelho das aves (1927)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo328

Alma do sertatildeo (1928)Faacutebulas e alegorias (1928)Meu Brasil (1928)O sol e a lua (1934)Um boecircmio no ceacuteu (1937)Oraccedilatildeo agrave bandeira (1938)Um caboclo brasileiro (1940)O milagre de Satildeo Joatildeo (1942) Poemas escolhidos (1944)O testamento da aacutervore (1945)Modinhas (1946)

O AUTOR

Kleiton de Sousa Moraes

Possui doutorado (2014) e mestrado (2010) em Histoacuteria Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014)

Atualmente eacute professor da Universidade Federal do Cearaacute (UFC) Anteriormente atuou como professor da Universidade Estadual do Cearaacute (UECE) e do Instituto Federal do Cearaacute (IFCE)

Desempenhou atividades de pesquisa durante a formaccedilatildeo traba-lhando na aacuterea de Histoacuteria do Brasil com ecircnfase em Histoacuteria Cultural Sua tese foi agraciada com menccedilatildeo honrosa no ldquoPrecircmio Manoel Luiz Salgado Guimaratildeesrdquo da Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 2014 Tem interesse e desenvolve pesquisas nas seguintes aacutereas Teoria e Metodologia da Histoacuteria Histoacuteria das Praacuteticas Letradas Histoacuteria da Educaccedilatildeo Poder e Crenccedilas na Modernidade Narrativas Espaciais no Seacuteculo XIX e XX e Histoacuteria do Brasil Repuacuteblica

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Page 3: Catullo da Paixão Cearense

Fortaleza2020

Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autor

Kleiton de Sousa Moraes

Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autorCopyright copy 2020 by Kleiton de Sousa MoraesTodos os direitos reservados

Impresso no BrasIl prInted In BrazIl

Imprensa Universitaacuteria da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)Av da Universidade 2932 fundos ndash Benfica ndash Fortaleza ndash Cearaacute

Coordenaccedilatildeo editorialIvanaldo Maciel de Lima

Revisatildeo de textoAntiacutedio Oliveira

Normalizaccedilatildeo bibliograacuteficaMarilzete Melo Nascimento

Programaccedilatildeo visual Sandro Vasconcellos Thiago Nogueira

DiagramaccedilatildeoSandro Vasconcellos

CapaHeron Cruz

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na PublicaccedilatildeoBibliotecaacuteria Marilzete Melo Nascimento CRB 31135

M827c Moraes Kleiton de Sousa Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autor [livro eletrocircnico] Kleiton de Sousa Moraes - Fortaleza Imprensa Universitaacuteria 2020 2189 kb il color PDF (Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo)

ISBN 978-65-88492-14-7 1 Muacutesica popular ndash Histoacuteria e criacutetica 2 Compositores ndash Brasil 3 Catullo da Paixatildeo Cearense I Tiacutetulo CDD 92781

Para Manoel Luiz Salgado Guimaratildees pelo exemplo de eacutetica na praacutetica historiadora

Para Luiz Inaacutecio Lula da Silva pela dignidade

Para o meu Joatildeo (o que foi e o que viraacute)

AGRADECIMENTOS

Fruto de uma tese defendida em abril de 2014 junto ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro este trabalho seria impossiacutevel sem a ajuda de algumas pessoas que de alguma forma contribuiacuteram para a sua feitura Em primeiro lugar agradeccedilo agrave minha orientadora Marieta de Moraes Ferreira que com um carinho muitas vezes imprevisiacutevel nas relaccedilotildees acadecircmicas abraccedilou esta pesquisa desde os primeiros esboccedilos A ela que me deu a liberdade de criar e ousar na escrita devo muito de minha formaccedilatildeo como historiador e ofereccedilo desde jaacute algum sucesso que este trabalho possa vir a obter

Aos amigos do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro com os quais compartilho uma convivecircncia sempre amaacutevel e discussotildees pautadas por boas garga-lhadas Pela constacircncia (e nunca por uma hierarquia de amabilidade) Joatildeo Henrique Castro Juliana Torres Aline Carrijo Raquel Campos Edianne Nobre Iuri Bauler Aline Monteiro Heraacuteclio Tavares Patriacutecia Franccedila e Suellen Mayara Natildeo os esquecerei depois da uacuteltima linha deste trabalho

Agraves professoras (es) Giselle Venacircncio Eliana de Freitas Dutra Mocircnica Pimenta Velloso Lia Calabre e Francisco Reacutegis Lopes pela lei-tura atenta e dicas fundamentais no processo de qualificaccedilatildeo e de defesa Agrave Rita e Sandra secretaacuterias e amigas do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior que concedeu bolsa de doutorado para a efetivaccedilatildeo da pesquisa

Agrave Jacira e Paulo que tornaram desde o iniacutecio a ponte Fortaleza Rio de Janeiro passagens agradaacuteveis

Agrave Aline Medeiros pelos diaacutelogos amaacuteveis pela presenccedila cons-tante de uma palavra de seguranccedila e a quem tenho tanto orgulho de chamar de minha amiga

Agrave minha matildee Beatriz de Sousa Moraes que me deu a seguranccedila de enfrentar batalhas nem de longe tatildeo difiacuteceis como a que ela mesma travou para nos dar o conforto de buscar nosso proacuteprio caminho Eacute por causa de seu suporte e de sua presenccedila em muitos momentos de minha vida que existe este trabalho

Por fim agrave Sacircmia pelo amor que me conforta pela inteligecircncia que me orienta e pela paz que me envolve

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

CATULLO CEARENSE E O LUAR DA CIDADE 25Catullo e a cultura escrita 25Aos leitores ldquotudo quanto se quizerrdquo autor livro e literatura 55

COMO SE CRIA UMA AUTORIA 69O cancioneiro popular de modinhas 69Um poeta popular 85

SER POETA SER DO SERTAtildeO 98A cidade e o sertatildeo 98A livraria Castilho 112

CATULLO DA PAIXAtildeO NACIONAL 118O meu sertatildeo 118Catullo Satildeo Paulo e os modernos 134O lugar de quem fala 153Modernos e velhos 173

CATULLO EM CENA 198Dos textos aos palcos ou o inverso 198O teatro no texto 213Um boecircmio no ceacuteu 223

POR UMA REPRESENTACcedilAtildeO DE SI 242Tempo de prestar contas 242O testamento da aacutervore 259O livro derradeiro 277Representaccedilotildees sociais de um morto distinto 286

CONCLUSAtildeOA trajetoacuteria autoral de um poeta ordinaacuterio 302

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 309

ANEXO A Livros publicados por Catullo da Paixatildeo Cearense com respectivo ano da primeira ediccedilatildeo 327

O AUTOR 329

INTRODUCcedilAtildeO

O mais elevado seria compreender que tudo o que eacute faacutetico jaacute eacute teoria

J W Goethe

Radiolas Haacute certo glamour nostaacutelgico em apreciar um objeto cujo valor de uso se esvaece diante da incessante mdash e por vezes esqui-zofrecircnica mdash sede por novidades No entanto a novidade para quem volta seu interesse para o passado eacute a estranha presenccedila do velho no presente Muito jaacute se disse que o repertoacuterio de canccedilotildees que se guarda na memoacuteria ajuda a elevar esse imenso e obscuro edifiacutecio das lembranccedilas Desde muito pequeno me acostumei a ouvir e cantarolar no colo de meu ldquovocircrdquo Joatildeo vozes antigas que vinham de uma velha radiola mantida no centro da sala Ateacute onde minhas lembranccedilas desses tempos alcanccedilam consigo enxergar certas imagens cujo sentido natildeo estaria tatildeo claro para mim se natildeo fossem as canccedilotildees que as acompanham como se fosse de-senrolado diante de meus olhos um concerto nostaacutelgico

No longo repertoacuterio que minha memoacuteria acumulou de Ataulfo Alves passando por Stevie Wonder e desembocando num choroso as-sobio cantado por Roberto Carlos duas canccedilotildees durante muito tempo mobilizaram minhas lembranccedilas infantis A primeira eacute um lamento de Luiz Gonzaga sob o nome de Ave Maria sertaneja tocada no raacutedio de meu avocirc paterno todos os dias religiosamente ao findar da tarde A outra canccedilatildeo me pareceu sempre mais estranha de definir o aconteci-

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo12

mento que me liga a ela Natildeo sei bem se eu a ouvia quando visitava na Paacutescoa o sertatildeo de meus avoacutes maternos ndash ou seria apenas uma cons-truccedilatildeo a posteriori da minha memoacuteria ldquoNatildeo haacute oacute gente oacute natildeo luar como esse do sertatildeordquo

A minha certeza eacute que ainda hoje quando escuto esses versos eu componho o quadro de minha infacircncia de menino da cidade no interior O cheiro de mato molhado as casinhas que se escondiam entre uma vasta plantaccedilatildeo que havia na frente da casa de meus avoacutes e a forte pre-senccedila de meu ldquovocircrdquo Joatildeo ouvindo a canccedilatildeo diante da janela que dava para a rua sem nem mesmo esboccedilar um mero sorriso datildeo a essas lem-branccedilas uma atmosfera para mim quase religiosa Os versos eram muito rebuscados para o entendimento de uma crianccedila de seis sete mdash ou se-riam oito anos de idade Natildeo sei bem dizer Mas bem sei que um nome acompanhava a canccedilatildeo em mim Catullo da Paixatildeo E eu na minha inocecircncia de crianccedila de tatildeo pouca idade achava lindo algueacutem que tinha paixatildeo no nome e que era compositor de uma canccedilatildeo cujo tiacutetulo era Luar do sertatildeo De laacute para caacute muita coisa ouvi e vivi Conheci as Carolinas de Chico as Saacute Marinas de Simonal as garotas bonitas de Jorge e bem das paixotildees ainda permanecia em mim uma o Luar do sertatildeo Assim como a radiola que permaneceu em minha casa e cujo ruiacutedo de maacutequina velha hoje me causa essa sensaccedilatildeo mdash coisa quem sabe de historiador mdash que na falta de palavra que melhor defina chamam de deslumbramento E Luar do sertatildeo deslizando ruidosa-mente na agulha da radiola transferia-me para um tempo-espaccedilo outro Assim quase que sem motivo um dia jaacute adulto decidi eu precisava ir atraacutes de saber quem era o tal Catullo da Paixatildeo mdash o leitor natildeo me per-gunte pelo menos por ora um ldquopor quecircrdquo que faccedila muito sentido

Foi aiacute que descobri que Catullo me levava a outros lugares mais distantes do que minha infacircncia As paacuteginas que se seguem satildeo o resul-tado desse encontro onde natildeo faltaram descobertas que me abriam um leque de informaccedilotildees sobre esse personagem Descobri de iniacutecio que Catullo era tambeacutem poeta Natildeo soacute poeta da canccedilatildeo mas daqueles que escreviam livros e mais ainda um raivoso defensor do verso rebuscado mdash tal qual Bilac e o parnaso Fui aos poucos perdendo eacute verdade a paixatildeo pelo Catullo de minhas lembranccedilas a fim de encontrar mais so-

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 13

briamente um personagem mais humano o Catullo funcionaacuterio puacute-blico o Catullo dos salotildees da elite carioca o Catullo que se vangloriava de seu letramento Assim nesse espaccedilo tenso onde paixatildeo e sobriedade se misturavam e onde minha curiosidade de historiador se aguccedilava mais do que o de apreciador de sua canccedilatildeo encontrei-o meio sem querer por inteiro Catullo da Paixatildeo Cearense

Catullo da Paixatildeo Cearense foi um profundo conhecedor das ruas do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo XIX para o XX e esse conheci-mento fez com que a elite letrada carioca aacutevida naqueles tempos por conhecer as ditas ldquocoisas popularesrdquo autorizasse sua entrada nos luxu-osos salotildees frequentados por homens ilustres como Arthur Azevedo Joatildeo do Rio e Rocha Pombo Em pouco tempo Catullo tornou-se bas-tante conhecido na sociedade carioca ainda mais apoacutes publicar pela popular livraria Quaresma coleccedilotildees de livros contendo modinhas com-piladas nas ruas cariocas e algumas mais de sua lavra

Concomitantemente ao que se tornou conhecido como ldquopoeta po-pularrdquo Catullo via no desempenho desse papel um entrave para ser re-conhecido como autor de livros ou propriamente um verdadeiro lite-rato uma vez que modinhas eram consideradas por demais ldquopopularesrdquo para que seu autor chegasse a ser reconhecido como um grande poeta Foi na construccedilatildeo de estrateacutegias textuais visando a regrar uma recepccedilatildeo de sua obra que lhe garantisse um status mais condizente com o de ldquopoetardquo que Catullo construiu sua trajetoacuteria literaacuteria

Ali a uma distacircncia que eu pudesse vislumbrar de maneira mais ldquoprudenterdquo a trajetoacuteria de meu personagem foi sendo construiacuteda uma investigaccedilatildeo que resultaria na tentativa de reconstruir tal trajetoacuteria E a de Catullo foi se constituindo em torno dos livros Em seus livros eacute possiacutevel vislumbrar um poeta se formando e sendo formado no campo literaacuterio brasileiro da primeira metade do seacuteculo XX

De partida a constataccedilatildeo de uma ausecircncia da produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense nos compecircndios de literatura brasileira fez com que este trabalho buscasse escapar de abordagens consagradas na histoacuteria literaacuteria e lanccedilasse matildeo sempre que possiacutevel de uma fuga do para-digma nacional mdash aquele que tenta ver nas obras tatildeo simplesmente expressotildees de uma tentativa de criaccedilatildeo teleoloacutegica da naccedilatildeo Isso fez

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo14

com que desde o princiacutepio do trabalho a investigaccedilatildeo de uma ldquoidenti-dade nacionalrdquo nos livros soacute adentrasse quando fosse necessaacuterio ana-lisar os seus usos mdash e nunca como temaacutetica a ser investigada a priori Se houve alguma advertecircncia admitida de iniacutecio foi a de que esta inves-tigaccedilatildeo da trajetoacuteria literaacuteria de Catullo se guiasse pelos seus textos em seu processo de produccedilatildeo e consumo A temaacutetica ldquonacionalrdquo (por vezes incontornaacutevel) natildeo guiou a narrativa que se iraacute ler mdash o que penso trouxe (e traz) agrave tona outra seacuterie de questionamentos novos no que tange agrave produccedilatildeo de textos no Brasil

A possibilidade de se investigar a trajetoacuteria de um indiviacuteduo no tempo obriga o investigador a uma seacuterie de recomendaccedilotildees de ordem teoacuterica Atentar para a necessidade imperativa de recolocar o investi-gado dentro das vaacuterias temporalidades distintas que o formam e que o fazem agir eacute hoje tarefa primordial para se tentar tal empresa mdash quando quase ningueacutem acredita mais numa coerecircncia inerente ao su-jeito em suas vaacuterias contingecircncias A emergecircncia de se pensar o sujeito em seus muacuteltiplos momentos e mais do que isso captar em cada mo-mento distinto sua accedilatildeo interessada de acordo com um espaccedilo de accedilatildeo dado funda-se numa ideia de tempo natildeo linear Nesse sentido biogra-fias satildeo sem duacutevida um exerciacutecio sempre perigoso para se aventar uma escrita pautada na negaccedilatildeo da ldquotrajetoacuteria exemplarrdquo O caminho esco-lhido por esse trabalho tentou por mais das vezes fugir dessas artima-nhas biograacuteficas e se inserir enfrentando o ldquonome proacutepriordquo num es-paccedilo de diaacutelogo onde o que ganha contorno mais especiacutefico eacute a possibilidade de investigar as estrateacutegias de construccedilatildeo de uma repre-sentaccedilatildeo autoral

O seacuteculo XX farto em produccedilatildeo biograacutefica trouxe com o ldquode-sencantamentordquo progressivo do homem produzido pelas reflexotildees das ciecircncias humanas uma criacutetica agrave narrativa linear ndash que heroificava ou ldquogenializavardquo o biografado dando-lhe um caraacuteter de exemplaridade Isso resultou numa percepccedilatildeo aguda da fragilidade do homem diante do mundo que o rodeia Desde iniacutecios do seacuteculo passado com a psicanaacute-lise de Freud passando pela febre do estigmatizado ldquoestruturalismordquo nos anos 1950 e 1960 ateacute os vaacuterios ldquopoacutesrdquo que constroem nossa moder-nidade o homem foi relativizando progressivamente sua autonomia

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 15

diante das ldquocoisas do mundordquo fazendo com que alguns chegassem agrave absurda tese da ldquomorte do sujeitordquo

Se tal constataccedilatildeo rendeu resultados profiacutecuos na reflexatildeo das Ciecircncias Humanas contingenciando o homem diante do mundo por outro lado a radicalizaccedilatildeo dessa criacutetica em alguns casos perdeu de vista o objeto central de toda reflexatildeo ou seja o proacuteprio homem Tais aportes se disseminaram por diversas aacutereas da chamada Humanidades a Sociologia a Histoacuteria a Psicologia a Antropologia e as Letras A criacutetica literaacuteria se deixou consumir por semelhante guinada de forma tal que foi nela onde o espasmo se mostrou mais fatal

Acostumados a conviver com investigaccedilotildees de obras onde pre-dominava o papel do sujeito-escritor como fundamental e uacutenico na criacutetica historiadores da literatura e criacuteticos literaacuterios sofreram um duro golpe desferido especialmente a partir de algumas proposiccedilotildees vindas da semioacutetica e da linguiacutestica alguns se vangloriavam de haver encon-trado na estruturaccedilatildeo da liacutengua em determinado texto o diagnoacutestico final de uma obra Tudo transcorria em meados da deacutecada de 1960 como se o ldquofim da histoacuteriardquo no tratamento de textos finalmente hou-vesse chegado

Poreacutem foi exatamente pelo inconformismo tanto diante da auto-nomia absoluta do texto quanto da velha criacutetica que dava primazia ao nome como explicaccedilatildeo uacutenica da obra que surgiu de vaacuterios lugares a criacutetica da entatildeo nova criacutetica A esteacutetica da recepccedilatildeo de Jauss Iser e Gumbrecht na Alemanha propunha ainda na deacutecada de 1960 um es-forccedilo para a compreensatildeo do campo literaacuterio como espaccedilo do qual fa-ziam parte tambeacutem os leitores cuja interpretaccedilatildeo dos textos natildeo raras vezes fugia dos limites pensados pelo autor na escrita No mundo an-glo-saxatildeo o novo historicismo recolocava a necessidade de se (re)pensar a historicidade dos textos Na Franccedila onde o estruturalismo reinou de maneira mais imperativa nas Ciecircncias Humanas nomes como Pierre Bourdieu e Michel Foucault reintroduziam o sujeito de escolhas no acircmago dos meios universitaacuterios propondo um tenso casamento entre estrutura e sujeito de tal forma que a compreensatildeo das accedilotildees humanas pudesse ser pensada levando em consideraccedilatildeo o exerciacutecio constante da negociaccedilatildeo entre um e outro No campo historiograacutefico isso resultou

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo16

num novo diaacutelogo estabelecido com a Sociologia e a Criacutetica Literaacuteria e uma reintroduccedilatildeo das reflexotildees acerca do estatuto da produccedilatildeo de uma escrita historiograacutefica cujo aacutepice foram as polecircmicas que envolveram o historiador estadunidense Hayden White

Essas premissas geraram uma visatildeo mais aguda e criacutetica do termo ldquoculturardquo colocando a historicidade de seu uso como mateacuteria de ponta a fim de compreender melhor os atos humanos no tempo Daiacute o ato da leitura ter ganhado um status diferente desembocando nas reflexotildees produzidas pela assim chamada Nova Histoacuteria Cultural um tiacutetulo impreciso que abrigava nomes como Carlo Ginzburg e Raymond Williams que embora tatildeo diacutespares tinham em comum o fato de colocarem a ldquoculturardquo (ou a historicidade dela) no centro de suas reflexotildees Dentre esses autores identificados com a Nova Histoacuteria Cultural o historiador Roger Chartier foi aquele para quem a sistema-tizaccedilatildeo de um projeto historiograacutefico sob esse nome ganhou contornos mais niacutetidos ndash e mais problemaacuteticos pela miscelacircnea de autores que se propotildee evocar

Retomando Norbert Elias dialogando com a fenomenologia do sujeito de Paul Ricouer a sociologia de Bourdieu e as ideias de Michel Foucault introduzindo a criacutetica textual como criacutetica tambeacutem das formas de leitura e fiel agraves reflexotildees instigantes de Michel de Certeau Chartier insistiu no estatuto contingente da leitura num consequente ataque agraves criacuteticas semioticistas que apagavam o espaccedilo de produccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do texto de seus interesses

Seguramente isso natildeo soacute reintroduziu a leitura como momento importante na produccedilatildeo de sentidos do texto mdash em diaacutelogo aberto com a esteacutetica da recepccedilatildeo mdash como lanccedilou luz sobre os elementos que tor-navam uma leitura possiacutevel Daiacute um acentuado interesse sobre a morfo-logia dos textos com o nome do biblioacutegrafo neozelandecircs Don Mckenzie interessado na historicidade das formas dos textos tornando-se comum nos trabalhos de Chartier Mas se tal aventura sobre a produccedilatildeo de sen-tidos de um texto colocava na pauta do dia atentar para as estrateacutegias de leitores editores e tipoacutegrafos a reflexatildeo sobre o papel do ldquoautorrdquo na nova criacutetica textual que se queria ainda se ressentia de uma tendecircncia fundante da literatura ocidental qual seja a da distinccedilatildeo do autor de

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 17

livros na sociedade Ou para dizer mais claramente a constante ldquogenia-lizaccedilatildeordquo do indiviacuteduo que escreve livros

O ldquonome proacutepriordquo ainda era uma barreira difiacutecil de contornar quando se pensavam as relaccedilotildees entre autoria e texto Nesse ponto es-peciacutefico Norbert Elias com seu Mozart e Pierre Bourdieu com As regras da arte jaacute haviam dado suas contribuiccedilotildees na derrubada difiacutecil e edificante do ldquonome proacutepriordquo No campo historiograacutefico isso se daria mais tarde

No Brasil a biografia exemplar ainda absorve grande parte da produccedilatildeo de reflexotildees que pautam uma trajetoacuteria autoral O ldquonome proacute-priordquo muitas vezes ganha as prateleiras com best sellers biograacuteficos de emulaccedilatildeo onde a genialidade e a trajetoacuteria incomum ganham mais es-paccedilo do que a reflexatildeo criacutetica A consolidaccedilatildeo de uma vida distinta se sobrepotildee agrave ldquohumanidaderdquo do indiviacuteduo Na produccedilatildeo historiograacutefica o temor por encarar o ldquonomerdquo segue uma receita ndash jaacute consolidada pelo menos na historiografia mdash que teme pela escrita que possa evocar as foacutermulas das velhas biografias

Ademais no campo da literatura ndash espaccedilo de consagraccedilatildeo do su-jeito em diversos locais do ocidente ndash a produccedilatildeo de um cacircnone tei-mava havia pouco tempo em apagar a pesquisa que introduzisse o papel do editor e leitor no acircmago da produccedilatildeo do texto do autor consa-grado Daiacute da anaacutelise criacutetica da historicidade dos textos os novos pes-quisadores que tentavam fugir do cacircnone buscaram antes proceder agrave anaacutelise criacutetica da historicidade do cacircnone Alcir Peacutecora e Joatildeo Adolfo Hansen satildeo sem sombra de duacutevida os arautos desse tipo de criacutetica no Brasil A partir de seus trabalhos puderam surgir novos problemas para se trabalhar com textos no Brasil e na esteira disso reapareceram nomes de escritores ndash muitos deles pouco reconhecidos por uma ldquoHistoacuteria da Literaturardquo ndash que ganharam as paacuteginas de trabalhos univer-sitaacuterios como Luiz Murat e Benjamin Constallat e novas abordagens de leitura de autores e obras consagradas ganharam contorno1

1 Para citar apenas um livro da vasta bibliografia de Joatildeo Adolfo Hansen e Alcir Peacutecora penso ser de fundamental importacircncia para se pensar a introduccedilatildeo de novas abordagens no tratamento de textos literaacuterios os seguintes HANSEN Joatildeo Adolfo A saacutetira e o en-

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo18

No entanto para a compreensatildeo de uma trajetoacuteria ndash seja ela lite-raacuteria ou natildeo ndash eacute imprescindiacutevel chamar a atenccedilatildeo a algumas outras ad-vertecircncias A primeira eacute natildeo perder de vista o caraacuteter muacuteltiplo de uma vida destacando dentro de uma rede de relaccedilotildees que o indiviacuteduo manteacutem com seus pares os vaacuterios estados em que ela se desenrola atentando para seu caraacuteter natildeo linear

O que equivale a dizer que natildeo podemos compreender uma trajetoacuteria [] sem que tenhamos previamente construiacutedo os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e logo o conjunto das relaccedilotildees obje-tivas que uniram o agente considerado mdash pelo menos em certo nuacutemero de estados pertinentes mdash ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaccedilo dos possiacuteveis2

O trabalho que o leitor tem em matildeos procurou nesse intuito analisar a obra de Catullo da Paixatildeo Cearense a partir de dois vieses fundamentais quais sejam a construccedilatildeo de uma autoridade sobre os textos publicados sob seu nome e o constante e tenso processo de cons-tituiccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do caraacuteter distinto de sua obra O primeiro ponto eacute tanto mais importante uma vez que as publicaccedilotildees iniciais de Catullo destacam-se por uma tentativa de apropriaccedilatildeo do conteuacutedo do texto ndash coletado nas ruas do Rio de Janeiro de entatildeo mdash sob seu nome proacuteprio O leitor veraacute que a singularidade aqui reside no fato de existir uma identificaccedilatildeo dos textos publicados por Catullo com o que se denomi-nava uma forma ldquopopularrdquo ndash com este termo designando agrave eacutepoca muitas vezes uma ausecircncia de autor aproximando-se daquilo que era entendido como parte de um possiacutevel ldquofolclorerdquo Daiacute duas primeiras questotildees se colocaram como Catullo se tornou o autor de textos identi-ficados a priori como sem autor E como se apropriou de outras tantas cuja autoria era relativamente reconhecida A apropriaccedilatildeo de um con-teuacutedo a partir de uma forma como veremos eacute um aspecto importante

genho Gregoacuterio de Matos e a Bahia do seacuteculo XVII Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial Campinas Unicamp 2004 e PEacuteCORA Alcir A maacutequina de Gecircneros Satildeo Paulo Edusp 2001

2 BOURDIEU Pierre A ilusatildeo biograacutefica In FERREIRA Marieta de Moraes AMADO Janaiacutena Usos e abusos da histoacuteria oral Rio de Janeiro FGV 2006 p 190

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 19

desse primeiro questionamento pois eacute sob uma forma dada a ler que se produz uma autoria

Haacute de se salientar que a apropriaccedilatildeo de textos anocircnimos por um indiviacuteduo projeta para seus leitores uma sensaccedilatildeo de se estar lendo um ldquoautorrdquo Na busca por regrar a recepccedilatildeo dos textos publicados sob seu nome o autor Catullo se valia de sua aguda compreensatildeo das formali-dades que governavam a construccedilatildeo de uma ldquoautoriardquo na literatura pro-duzida na virada do seacuteculo XIX e XX no Brasil Ademais nosso perso-nagem era tanto um aacutevido frequentador das rodas boecircmias do Rio de Janeiro quanto dos espaccedilos de consagraccedilatildeo de letrados no periacuteodo Participando desses espaccedilos de sociabilidades parecia procurar as fer-ramentas que auxiliariam a construccedilatildeo da autoria em seus textos Era em busca de uma leitura regrada que Catullo se colocava entre a orali-dade coletada nas ruas e o mundo letrado do periacuteodo dramatizando em textos seu entrecaminho como forma de buscar um reconhecimento de sua autoridade

Atento a essa necessidade de buscar tambeacutem nessas redes de so-ciabilidade elementos para a compreensatildeo dos textos de Catullo com-preendemos como Michel Foucault e Pierre Bourdieu que eacute preciso cotejar os vaacuterios discursos que constroem dentro de determinado campo as relaccedilotildees que tornam possiacutevel a existecircncia de um texto ou seja

Talvez seja o momento de estudar os discursos natildeo mais apenas em seu valor expressivo ou suas transformaccedilotildees formais mas nas moda-lidades de sua existecircncia os modos de circulaccedilatildeo de valorizaccedilatildeo de atribuiccedilatildeo de apropriaccedilatildeo dos discursos variam de acordo com cada cultura e se modificam no interior de cada uma a maneira como eles se articulam nas relaccedilotildees sociais se decifra de modo parece-me mais direto no jogo da funccedilatildeo autor e em suas modificaccedilotildees do que nos temas ou nos conceitos que eles operam3

Essa abordagem abre espaccedilo para que enfatizemos a necessidade de atentar para uma sociologia dos textos que ultrapasse uma histoacuteria

3 FOUCAULT Michel O que eacute um autor In FOUCAULT Michel Ditos e escritos Esteacutetica literatura e pintura muacutesica e cinema Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009 v III p 286

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social dos textos e atente para a maneira pelas quais tambeacutem as suas formas materiais de difusatildeo afetam os sentidos dados a eles pelos lei-tores Aiacute se impotildee uma advertecircncia que diz respeito agrave dimensatildeo morfo-loacutegica do texto a da imprescindibilidade de investigar o seu sentido em suas diversas formas de circulaccedilatildeo De pensar o suporte que o carrega como parte incontornaacutevel na construccedilatildeo do seu sentido Tal abordagem vai ao encontro das reflexotildees do biblioacutegrafo neozelandecircs Don Mckenzie quando salienta que

Un libro nunca es simplemente un objeto extraordinaacuterio Como todas las otras tecnologiacuteas siempre es producto de la actuacioacuten humana en contextos complejos y altamente volaacutetiles que una investigacioacuten cabal tiene que intentar recuperar si desea entender mejor la creacioacuten y la comunicacioacuten de significados como caracteriacutestica definitoria de las so-ciedades humanas4

Ora eacute no espaccedilo de produccedilatildeo de livros ndash o qual adentram autores editores impressores tipoacutegrafos e leitores ndash que se constroem os muacutelti-plos sentidos que por fim vatildeo gerar os textos Eacute nesse espaccedilo de pro-duccedilatildeo cultural historicamente constituiacutedo e em constante movimento que se deve buscar a compreensatildeo das representaccedilotildees construiacutedas por aqueles que se apropriam dos textos seja por meio de uma leitura seja para regrar a leitura como comumente o tentam autores e editores

Assim Chartier relativiza os sentidos de uma obra distribuindo tambeacutem para outras instacircncias o sentido de determinado texto

O autor tal como ele faz a sua reapariccedilatildeo na histoacuteria e na teoria literaacuteria eacute ao mesmo tempo dependente e reprimido Dependente ele natildeo eacute o mestre do sentido e suas intenccedilotildees expressas na produccedilatildeo do texto natildeo se impotildeem necessariamente nem para aqueles que fazem desse texto um livro (livreiro-editores ou operaacuterios da impressatildeo) nem para aqueles que dele se apropriam para a leitura Reprimido ele se submete agraves muacuteltiplas determinaccedilotildees que organizam o espaccedilo social da produccedilatildeo

4 MCKENZIE Donald Francia Bibliografiacutea y sociologia de los textos Madrid Ediciones Akal 2005 p 22

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literaacuteria ou que mais comumente delimitam as categorias e as experi-ecircncias que satildeo as proacuteprias matrizes da escrita5

Aliaacutes contra toda pretensatildeo reificadora do autor levada ao ex-tremo pela afirmaccedilatildeo da figura romacircntica do gecircnio Chartier seguindo o rastro de Michel de Certeau contrapotildee os vaacuterios feixes que podem determinar uma apropriaccedilatildeo em uma cultura escrita e as vaacuterias estrateacute-gias mobilizadas pela figura do autor na tentativa de regrar a apro-priaccedilatildeo dos textos sob seu nome

A formaccedilatildeo de um nome distinto no campo literaacuterio a partir da construccedilatildeo de representaccedilotildees do sujeito que escreve a incorporaccedilatildeo nos textos de elementos que pudessem regrar uma leitura interessada e as lutas de representaccedilatildeo para a manutenccedilatildeo de um status condizente com o de poeta ndash inclusive com a ressignificaccedilatildeo daquilo entendido como ldquopoetardquondash satildeo alguns dos temas que o leitor poderaacute vislumbrar nas paacuteginas que seguiratildeo Se exitosas fundamentalmente elas mostraratildeo na trajetoacuteria de Catullo um questionamento constante de como se cons-troem um autor um poeta e um literato A aparente obviedade da res-posta a essa pergunta esbarra nas vaacuterias compreensotildees que historica-mente tecircm-se da figura do autor do poeta e da literatura Natildeo se deve portanto defini-las sem levar em consideraccedilatildeo as praacuteticas que denun-ciam um processo de construccedilatildeo de tais termos

A partir dessas reflexotildees o capiacutetulo intitulado ldquoCatullo Cea-rense o luar da cidaderdquo discute a cultura letrada do Rio de Janeiro de entatildeo que tornou possiacutevel o aparecimento de Catullo da Paixatildeo Cearense como autor de livros Aiacute o foco se estenderaacute sobre as repre-sentaccedilotildees de modinhas na sociedade carioca da eacutepoca e de como elas foram aos poucos ganhando um novo status aos olhares dos letrados Pretende-se compreender como se constituiacuteam as representaccedilotildees de um ldquohomem letradordquo nesse iniacutecio de seacuteculo e como essas representa-ccedilotildees satildeo fundamentais para se perceber as definiccedilotildees daquilo que se-riam termos relevantes agrave eacutepoca para a configuraccedilatildeo dos sujeitos parti-cipantes do campo literaacuterio tais como ldquopopularrdquo ldquoautorrdquo e ldquopoetardquo

5 CHARTIER Roger A ordem dos livros Brasiacutelia UnB 1996 p 36

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No capiacutetulo seguite ldquoComo se cria uma autoriardquo apresento a anaacute-lise das primeiras publicaccedilotildees de Catullo investigando de maneira mais pormenorizada as estrateacutegias de escrita mobilizadas pelo autor para ser reconhecido como um poeta letrado de fato Nele priorizo o Cancioneiro popular de modinhas brasileiras publicaccedilatildeo que teve incriacuteveis 25 edi-ccedilotildees em menos de dez anos A luta para que sua produccedilatildeo modinheira fosse tambeacutem passiacutevel de ser encarada como ldquopoemardquo e as asserccedilotildees de estrateacutegias editoriais na construccedilatildeo exitosa das suas publicaccedilotildees satildeo ele-mentos que ganham uma anaacutelise pormenorizada nessa parte do trabalho

Em ldquoSer poeta ser do sertatildeordquo discuto o lugar central dos temas sertanejos na sociedade carioca de entatildeo que viu surgir uma febre por temaacuteticas que focavam o interior do Brasil com objetivos vaacuterios entre eles aquele que buscava nas representaccedilotildees sertanejas na literatura a afirmaccedilatildeo de uma ldquosupostardquo alma nacional Aiacute vai ser possiacutevel ver como diversos autores mobilizaram estrategicamente tal temaacutetica a fim de serem reconhecidos como ldquoautores nacionaisrdquo

Tambeacutem foram investigadas as tipologias que marcavam as re-presentaccedilotildees de editoras como a Castilho que buscou inicialmente por meio de seu proprietaacuterio Antocircnio Castilho ser reconhecida como uma editora de literatura ldquoseacuteriardquo Ressaltarei aiacute a necessidade de se buscar tambeacutem nas representaccedilotildees editoriais material necessaacuterio para se compreender o aparecimento de obras literaacuterias

No capiacutetulo ldquoCatullo da Paixatildeo Nacionalrdquo demonstro como pro-gressivamente Catullo foi se arvorando como um poeta conhecedor do ldquosertatildeordquo e como nesse movimento foi construindo uma autoridade a partir tanto de seu capital social adquirido mdash que seu editor fazia aparecer em suas publicaccedilotildees pelas dedicatoacuterias e opiniotildees de conhecidos letrados mdash quanto das proacuteprias representaccedilotildees que fazia aparecer em seus textos Discuto ainda a relaccedilatildeo de Catullo com os modernistas e as discussotildees que se desenrolavam em torno de temas como ldquoliteratura nacionalrdquo para daiacute analisar como essa tensatildeo que debatia no Brasil o que era antigo e moderno aparecia nos textos que Catullo publicou no periacuteodo

No capiacutetulo ldquoCatullo em cenardquo propotildee algumas reflexotildees sobre a relaccedilatildeo de Catullo com o teatro de revista e sobre como essa aproximaccedilatildeo se expressava em seus livros onde apareciam diversas menccedilotildees a uma

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leitura performaacutetica do texto visando a uma encenaccedilatildeo Essa investigaccedilatildeo se pautaraacute principalmente a partir da anaacutelise do livro de Catullo intitu-lado Um boecircmio no ceacuteu Nesse capiacutetulo pretende-se compreender tambeacutem como o sucesso do raacutedio fez com que Catullo retomasse sua representaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo dramatizando essa condiccedilatildeo nos textos

No uacuteltimo capiacutetulo ldquoPor uma representaccedilatildeo de sirdquo o trabalho se foca principalmente na atuaccedilatildeo do herdeiro dos direitos autorais de Catullo quando este ainda vivia o escritor e organizador de suas uacuteltimas obras em vida Guimaratildees Martins A partir disso estabeleci um diaacutelogo com algumas praacuteticas letradas que se esboccedilavam jaacute nos anos 1930 e 40 notadamente a discussatildeo que se seguiu com a criaccedilatildeo de associaccedilotildees para a luta pelos direitos de escritores e tambeacutem de compositores da dita ldquomuacutesica popularrdquo Eacute possiacutevel vislumbrar nos textos produzidos nessa eacutepoca uma luta de representaccedilotildees na construccedilatildeo de um ldquolugar consa-gradordquo para Catullo Essa luta colocou em lados opostos em vaacuterios mo-mentos interesses do organizador do editor e do autor Catullo

Por diversas vezes no texto seraacute possiacutevel vislumbrar vestiacutegios do diaacutelogo de Catullo com seus leitores Por sorte nosso personagem natildeo era um esteta envolto em torre de marfim mas algueacutem atento agrave opiniatildeo de seus leitores mdash natildeo raro por conta de uma forte vaidade O autor lhes respondia inclusive diretamente nas modinhas e poemas por vezes de maneira sutil fazendo novas escolhas temaacuteticas ou mudando a proacutepria linguagem expressiva de seus textos Essa postura foi de grande valia para a compreensatildeo de seus textos como diaacutelogos com os leitores em sua tentativa de regrar uma leitura que quase nunca se submetia ao sen-tido intentado pelo seu autor primeiro

Por fim a partir da trajetoacuteria autoral de Catullo da Paixatildeo Cearense trago agrave tona algumas reflexotildees sobre a construccedilatildeo de uma autoria na primeira metade do seacuteculo XX e como nesse sentido a anaacute-lise singular de uma trajetoacuteria especiacutefica pode contribuir para se pensar tanto a cultura escrita de uma eacutepoca e os sentidos que ela daacute ao objeto ldquolivrordquo quanto a relaccedilatildeo articulada entre autor editor e consumidor de livros nesse iniacutecio de seacuteculo

Pretendo que o possiacutevel estranhamento inicial do leitor ao se deparar com as paacuteginas que viratildeo falando de um autor relativamente

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desconhecido e paradoxalmente best-seller em sua eacutepoca seja afinal um convite para conhecer uma trajetoacuteria quase nunca previsiacutevel Que esse mesmo estranhamento pela contrariedade que traz seja ele mesmo um indiacutecio da necessidade de se conhecer os meandros que condicionam o aparecimento de um autor em determinado campo lite-raacuterio no tempo

Figura 1 ndash Catullo da Paixatildeo Cearense em foto dos anos 1940

Fonte Arquivo do autor

Fonte arquivo do autor

CATULLO CEARENSE E O LUAR DA CIDADE

Catullo e a cultura escrita

Na tarde do dia 12 de setembro de 1918 um distinto puacuteblico aglomerava-se nos corredores do Teatro Satildeo Pedro no centro do Rio de Janeiro para assistir ao espetaacuteculo realizado em homenagem a um poeta Um poeta ldquopopularrdquo como diria o Sr Roquette Pinto orador oficial naquela tarde Ali homens como Assis Chateaubriand Pandiaacute Caloacutegeras e Paulo Barreto (mais conhecido como Joatildeo do Rio) dispu-tavam espaccedilos das fileiras do teatro a fim de prestigiar o famoso poeta que entrou no palco elegantemente trajado trazendo consigo um violatildeo A plateia poreacutem natildeo se espantava uma vez que os versos do homena-geado eram mais comumente ouvidos sendo acompanhados ao som meloacutedico do instrumento Por isso mesmo ningueacutem ali se assustou quando sua poesia foi recitada pelas vozes da Exmordf Srordf D Acircngela Vargas Barboza Vianna e dos senhores Arruda Vallim Mario Pinheiro Frederico Rocha e Alberto Pires com o violatildeo compondo o fundo musi-cal6 O extravagante poeta atendia pelo nome ainda mais extravagante de Catullo da Paixatildeo Cearense

6 Para os eventos narrados cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 17-22 Sobre a programaccedilatildeo daquela noite no Teatro Satildeo Pedro cf O Paiz 12 set 1918 p 5

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A iniciativa daquela homenagem partiu do jovem advogado Assis Chateaubriand que para tanto formou uma ldquoComissatildeo Central de Homenagem a Catullordquo incluindo nomes os mais distintos da sociedade carioca naqueles tempos entre os quais os membros da Academia Brasileira de Letras (ABL) Maacuterio de Alencar e Joatildeo do Rio A festa vi-sava a angariar fundos para a publicaccedilatildeo de um futuro livro de Catullo O ecircxito do evento viria ainda naquele mesmo ano com o lanccedilamento pela livraria Castilho do volume de poesias Meu sertatildeo com prefaacutecios de Afracircnio Peixoto (da Academia Brasileira de Letras) e Alberto drsquoOliveira (da Academia de Ciecircncias de Lisboa) No livro o autor lanccedilava matildeo de representaccedilotildees da fala sertaneja a partir da criaccedilatildeo de personagens oriundos do sertatildeo Apresentado por Afracircnio Peixoto como um ldquogrande poetardquo Catullo Cearense apresentava sua poesia nos meios letrados com a ambiciosa tentativa de representaccedilatildeo de uma espeacutecie de linguajar serta-nejo no texto Em Meu sertatildeo Catullo se valia de um suposto referente oral (a fala sertaneja) que era reproduzido no seu texto ipsis litteris tais quais os poemas de cordel jaacute comuns no Rio de Janeiro do periacuteodo

A foacutermula resultaria num sucesso editorial e ficaria marcada como a primeira obra do intitulado ldquopoeta sertanejordquo Catullo da Paixatildeo Cearense Entretanto embora o volume de poesias Meu sertatildeo revelasse um ldquopoeta sertanejordquo natildeo fora propriamente com esse epiacuteteto que o nome de Catullo Cearense veio agrave luz nos meios letrados de iniacutecios do seacuteculo XX tampouco aquela fora sua primeira publicaccedilatildeo com pretensotildees poeacute-ticas Antes disso Catullo era conhecido por organizar livros de modi-nhas que circulavam pelas livrarias do Rio de Janeiro e por reivindicar para esse tipo de produccedilatildeo um valor literaacuterio nem sempre reconhecido

Entre 1894 (data da publicaccedilatildeo de seu primeiro livro com letras de modinhas) e 1946 (ano de publicaccedilatildeo de seu uacuteltimo livro) contabili-zam-se 29 obras de gecircneros os mais variados com diversas ediccedilotildees lanccediladas (algumas chegando a incriacuteveis 50 ediccedilotildees) que deram a Catullo o reconhecimento ainda em vida como poeta muacutesico teatroacute-logo e compositor de modinhas7

7 Em anexo estatildeo elencadas todas as publicaccedilotildees sob a organizaccedilatildeo ou autoria de Catullo durante esse periacuteodo

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Nascido em Satildeo Luiacutes do Maranhatildeo em data incerta (entre 1863 e 1866) Catullo era filho do ourives Amacircncio Joseacute da Paixatildeo Cearense que por ser natural do Cearaacute acabou assumindo a alcunha tambeacutem no nome8 Quando contava por volta de dez anos de idade Catullo foi morar com os pais e irmatildeos na fazenda dos avoacutes paternos em Maranguape no sertatildeo cearense Ali Catullo viveu por pouco menos de sete anos ateacute que em 1880 mudou-se em definitivo para a capital do ainda Impeacuterio brasileiro o Rio de Janeiro Laacute fixou-se com a fa-miacutelia numa casa na Rua Satildeo Clemente nordm 37 em Botafogo onde seu pai instalou sua ourivesaria e relojoaria De laacute veria participando in-clusive as transformaccedilotildees sociopoliacuteticas pelas quais o Rio passava na-quele fim de seacuteculo

Segundo alguns de seus bioacutegrafos Catullo era um autodidata que aprendeu grego italiano matemaacutetica e francecircs e que posteriormente ateacute iria fazer algumas traduccedilotildees de poesias transformando-as em letras de modinhas como as do poeta francecircs Alphonsus de Lamartine No entanto ao que parece seu pai investia na educaccedilatildeo distinta do filho de modo que eacute possiacutevel encontrar ainda em 1881 nas paacuteginas dos jornais cariocas o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense no chamamento para os exames preparatoacuterios em portuguecircs e em 1883 para os de francecircs embora natildeo haja registros de sucessos nessas investidas9

Do seu periacuteodo de juventude pouco se sabe Mas ao que parece desde muito jovem Catullo frequentava as noites cariocas estabele-cendo contato com grupos de modinheiros e chorotildees Aprendeu a tocar flauta mas logo lhe ensinaram o violatildeo Conta-se que o pai era contra a vida boecircmia do filho e que em uma dessas noitadas ao vecirc-lo voltar para casa depois de uma farra com os amigos chegou a quebrar-lhe o

8 Essa informaccedilatildeo nos eacute dada por um dos bioacutegrafos de Catullo o poeta Carlos Maul que escreve ldquoNo comeccedilo desta histoacuteria saiu Joseacute Amacircncio da Paixatildeo Cearense pai de Catullo como natural do Maranhatildeo quando ao certo ele era do Cearaacute Mudado para o Cearaacute e aiacute instalado com sua oficina de ourives depressa se popularizou e todos o chamavam de lsquoo cearensersquo devido agrave sua procedecircncia De tanto ouvir tratarem-no assim acabou por fazer um registro de seu nome com esse acreacutescimo E ao nascerem-lhe os filhos batizou-os a todos com o sobrenome de lsquoCearensersquordquo Cf MAUL Carlos Catullo sua vida sua obra seu romance 2 ed Rio de Janeiro Livraria Satildeo Joseacute 1971 p 14

9 Cf Gazeta da Tarde 19 nov 1881 p 2 Gazeta de Notiacutecias 4 set 1883 p 2 e 2 out 1883 p 2

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violatildeo na cabeccedila10 Aliaacutes relembrando sua juventude em um de seus livros Catullo contava que o violatildeo era nesse tempo malquisto pela parte mais ldquomodestardquo da sociedade carioca e que natildeo obstante

Aos 19 anos interrompi os estudos para abraccedilar-me fervorosamente ao violatildeo Naquelle tempo esse instrumento era repelido dos lares mais modestos [Grifo meu)] Quem o tocasse era um desacreditado Foi nesse tempo que entrei a escrever e a cantar modinhas []11

Ainda que a afirmaccedilatildeo de que o violatildeo fosse um instrumento malquisto possa ser em parte confirmada mdash aliaacutes afirmaccedilatildeo comu-mente reafirmada pelos estudiosos desse periacuteodo mdash o que Catullo re-lata ao contraacuterio eacute que esse olhar de descreacutedito era encontrado na parte mais ldquomodestardquo da sociedade O que se depreende do testemunho de Catullo eacute que tal afirmativa deve ser relativizada dependendo das repre-sentaccedilotildees sociais do instrumento e das praacuteticas sociais a que se refira Eacute razoaacutevel pensar que a imagem de um violatildeo carregado por algueacutem de um segmento social mais abastado natildeo causasse o ldquodescreacuteditordquo que Catullo observava Ele mesmo reiterava essas impressotildees sobre o ins-trumento quando relembrava o episoacutedio da surra que levou do pai

Foi a primeira sova que apanhei Hoje poreacutem eu compreendo meu pai Naquele tempo o violatildeo era um instrumento maldito A sova foi tamanha que me escondi durante semanas em Copacabana em casa de um negro velho de nome Oliveira soldado reformado da guerra do Paraguai Naquele tempo Copacabana era um areal sem fim E dizer algueacutem como eu digo escondi-me em Copacabana era o mesmo que falar ningueacutem me encontraria Meu pai queria meter-me na Marinha para curar-me do violatildeo Ameaccedilou muitas e muitas vezes []12

10 Todos os dados biograacuteficos narrados ateacute aqui foram retirados aleacutem dos jornais da eacutepoca de depoimentos dados por Catullo e reproduzido em biografias tais como MAUL Carlos Catullo sua vida sua obra seu romance 2 ed Rio de Janeiro Livraria Satildeo Joseacute 1971 ARAUacuteJO Murilo Ontem ao luar Rio de Janeiro A Noite 1951 COSTA Haroldo Catullo da paixatildeo vida e obra Rio de Janeiro ND Comunicaccedilatildeo 2009

11 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Notas In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illumi-nada Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 235 (1ordf ediccedilatildeo em 1924)

12 Apud COSTA Op cit p 29

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Copacabana seria lugar onde Catullo iria se aprofundar mais ainda no conhecimento da boecircmia carioca Na Rua Barroso (hoje Siqueira Campos) numa repuacuteblica de estudantes ele se reunia com bo-ecircmios para beber e tocar Foi ali que aprendeu a tocar violatildeo e segundo informa o pesquisador Ary Vasconcelos compocircs sua primeira modinha Ao luar13 Pertencendo a uma famiacutelia ldquomodestardquo Catullo poderia ser compreendido como um desqualificado por portar um violatildeo mas em-bora o violatildeo fosse representado como ldquoinstrumento malditordquo essa mesma estigmatizaccedilatildeo do instrumento natildeo se poderia encontrar quando da sua presenccedila nos grandes salotildees a acompanhar modinhas E foram nos salotildees da elite carioca que em pouco tempo Catullo adentrou em-punhando o instrumento

Em fins do seacuteculo XIX o jovem Catullo da Paixatildeo Cearense co-meccedilou a frequentar as noites da cidade e tomou contato com jovens muacutesicos posteriormente consagrados como o ainda estudante de muacute-sica Anacleto de Medeiros o ldquolendaacuteriordquo violonista Quincas Laranjeiras e o futuro cantor Cadete mdash um dos primeiros a ter sua voz gravada no Brasil em cilindros das Casas Edison A partir daiacute se tornaria um co-nhecido frequentador das rodas boecircmias e serenatas nas ruas do Rio de Janeiro travando amizade com nomes como Villa Lobos e Joatildeo Pernambuco Tais rodas eram natildeo raramente frequentadas por mem-bros da elite letrada carioca fazendo com que nomes da boecircmia vez ou outra fossem chamados para as festas nos salotildees de ldquofigurotildeesrdquo

Com a morte de sua matildee (em 1880) e de seu pai (em 1883) Catullo foi trabalhar na administraccedilatildeo do Cais do Porto primeiramente como contiacutenuo e depois como estivador alternando seu tempo com tra-balhos no cais durante o dia e apresentaccedilatildeo de modinhas durante a noite Nesse mesmo momento a atraccedilatildeo pelo exoacutetico abria os salotildees das residecircncias de famiacutelias mais ilustres para apresentaccedilotildees de motivos ditos ldquopopularesrdquo A curiosidade por expressotildees ldquopopularesrdquo ia cons-truindo a ideia de um folclore nacional

13 VASCONCELOS Ary Panorama da muacutesica popular brasileira na Belle Eacutepoque Rio de Janeiro Livraria SantrsquoAnna 1977 p 116

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Jaacute embrenhado nas rodas boecircmias da cidade Catullo tinha entrada livre para frequentar os salotildees de gente importante especialmente quando comeccedilou a fazer letras para canccedilotildees jaacute conhecidas pela elite letrada A foacutermula usada por Catullo era criar letras nas composiccedilotildees de valsas schottisch mazurcas e tangos mdash repertoacuterio comum nos salotildees Outras vezes traduzia versos de poetas estrangeiros conhecidos e adaptava-os para uma canccedilatildeo conhecida Assim era comumente representado como um ldquomoccedilo distintordquo e letrado Esse capital social adquirido progressiva-mente o autorizou a seguir o caminho das letras pouco a pouco se arvo-rando como algueacutem conhecedor das coisas ditas ldquodo povordquo

A sede por estudos das ldquocoisas do povordquo no Brasil veio de uma necessidade criada na virada do seacuteculo XIX para o XX em definir aquilo que nos tornava singulares num mundo que cada vez mais primava por procurar em seus costumes ditos do ldquopovordquo a ldquoessecircnciardquo definidora do que seria a ldquonaccedilatildeordquo A ldquoalma do povordquo supostamente contida em ldquopraacute-ticas popularesrdquo era o foco principal daqueles que se interessavam por definir o que seria proacuteprio da cultura brasileira

Haacute de se chamar atenccedilatildeo que desde finais do seacuteculo XIX a va-lorizaccedilatildeo do ldquofolclore brasileirordquo se fazia tanto com a proliferaccedilatildeo de estudos pretensamente cientiacuteficos (como os de Siacutelvio Romero e do Baratildeo de Santa-Anna Nery) como pela produccedilatildeo de narrativas que en-focavam os chamados ldquocostumes do sertatildeordquo (como os contos de Coelho Neto) Esse interesse pelas ldquocoisas popularesrdquo vinha na esteira de uma necessidade que parte dos letrados de entatildeo tinha de definir uma su-posta ldquoalma popularrdquo que definisse a ldquoessecircnciardquo do ldquopovo brasileirordquo

[] em meio a uma seacuterie de disputas e conflitos reais e simboacutelicos sobre a identidade cultural brasileira o campo musical e folcloacuterico tornou-se uma importante arena nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX Nessa arena as disputas foram travadas entre variados atores e giravam em torno dos significados das muacutesicas e canccedilotildees populares nos sertotildees nas ruas nos teatros no carnaval na induacutestria fonograacutefica e no proacuteprio imaginaacuterio social sobre a naccedilatildeo14

14 ABREU Martha DANTAS Carolina Vianna Muacutesica popular folclore e naccedilatildeo no Brasil 1890-1920 In CARVALHO Joseacute Murilo de Naccedilatildeo e cidadania no Impeacuterio novos ho-rizontes Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2007 p 131

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Muitos desses letrados participavam dos espaccedilos de sociabili-dade noturnos que se criavam no Rio de Janeiro de entatildeo tomando contato com muacutesicos e poetas de diversas camadas sociais Estimado por ser cantor e criador de modinhas Catullo ganhou o interesse de grande parte do grupo letrado de boecircmios por ser conhecedor de um universo que era identificado como sendo ldquodo povordquo Boecircmia que era frequentada por nomes ilustres da cidade como Emiacutelio de Menezes Joseacute do Patrociacutenio e Paula Ney

Frequentar a noite tornou-se um atrativo para homens de todos os grupos sociais de forma que o significado que algueacutem poderia ter ao ser tachado de ldquoboecircmiordquo agrave eacutepoca deslizava desde a simples desquali-ficaccedilatildeo de um indiviacuteduo ateacute a mera identificaccedilatildeo de um sujeito apre-ciador da noite A coexistecircncia no universo boecircmio de muacuteltiplos seg-mentos sociais eacute um fator importante para compreender a sede pelas ditas ldquocoisas do povordquo

As modinhas a bebida as serenatas ao luar eram praacuteticas co-muns nas noites do Rio de Janeiro da transiccedilatildeo entre o seacuteculo XIX e o XX Em uma dessas noites em iniacutecios de 1885 Catullo foi convidado agrave casa do senador Silveira Martins entatildeo conselheiro do Impeacuterio que depois de um aplaudido espetaacuteculo em sua residecircncia mdash com a pre-senccedila inevitaacutevel do violatildeo mdash e reconhecendo em Catullo um letrado convidou-o para ser o ldquoexplicadorrdquo de seus filhos Laacute Catullo perma-neceria por pouco tempo pois se envolveria num pouco explicado caso sexual15

Entender algueacutem como um boecircmio poderia bem conduzi-lo a uma representaccedilatildeo de ldquoalgueacutem natildeo muito seacuteriordquo Essa receita por vezes alimentava representaccedilotildees como a que nos conta o poeta Paula Ney conhecido por sua verve humoriacutestica aguccedilada Eram comuns piadas tais como a publicada no Gazeta da Tarde onde o personagem do boecircmio era assim representado

15 Assim conta Haroldo Costa ldquoNuma madrugada ao entrar no seu quarto qual natildeo foi a surpresa ao encontrar acomodada em sua cama semidespida segundo alguns semi-vestida segundo outros uma bela jovem que ao vecirc-lo comeccedilou a gritar por socorro afirmando ter sido violentada por elerdquo Cf COSTA Op cit p 37

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo32

Um bohemio depois de estragar a fortuna que herdou dos seus paes resolve casar-seApresentam-no a uma mulher feia como 300 jacareacutesndash Tem dote Pergunta ele a um amigondash 400 contosndash Bem jaacute servem como indemnizaccedilatildeo respondeu16

Mas se Paula Ney por exemplo era identificado como um bo-ecircmio sua representaccedilatildeo como letrado garantia um status diferenciado diante de outros tipos boecircmios Daiacute apresentar-se como um letrado apesar de frequentador da boecircmia era uma receita que podia render a um indiviacuteduo outra representaccedilatildeo

Catullo por exemplo ainda em iniacutecios do seacuteculo XX abriu uma escola na Rua Martins Costa na estaccedilatildeo da Piedade e laacute se tornou co-nhecido por suas aulas de portuguecircs e francecircs Das 9 horas da manhatilde agraves 3 horas da tarde dava aulas no curso primaacuterio das 8 horas da noite ateacute meia-noite era a vez das aulas para pessoas do curso secundaacuterio as quais muitas eram amigas do professor No final das aulas comeccedilava a vida boecircmia do bardo Um de seus alunos dessa eacutepoca recordaria mais tarde em livro do proacuteprio Catullo

A essa hora reuniam-se os teus amigos muacutesicos Anacleto Medeiros o grande mestre do Corpo de Bombeiros Luis de Souza ndash o primeiro pis-tonista do Brasil Irineu de Almeida ndash oficleidista sem rival Pingussa ndash o mago dos choros ao violatildeo Kalut ndash flauta caladiano Oliacutempio ndash o saxofonista do sereno Maacuterio e Galdino ndash os dois cavaquinhos geme-dores Neacuteco Chico Borges Quincas Laranjeiras ndash os violotildees chorosos todos se juntavam e saiacutea de tua casa a serenata cantando as gloacuterias do teu Talento17

A evocaccedilatildeo de seu passado como professor de liacutenguas foi uma constante em seus livros posteriores O bardo dizia que chegou a ter 100 alunos18 Essa lembranccedila fez parte do cardaacutepio de representaccedilotildees le-

16 Gazeta da Tarde 28 abr 1896 p 217 Depoimento de Otaacutevio de Barros Thompson que fez parte dos juiacutezos-criacuteticos do livro

de Catullo CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Rio de Janeiro Aurora 1945 p 107-108

18 Assim se expressara em prefaacutecio para seu livro de modinhas jaacute nos anos 1940 Cf

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 33

tradas de que Catullo lanccedilava matildeo e que foram constituindo seu reco-nhecimento social posterior como um poeta letrado Isso visava a afastar de um olhar estigmatizado que marcava agrave eacutepoca algueacutem identificado como um ldquocantor de modinhasrdquo Poreacutem foi nesse mesmo periacuteodo que progressivamente as modinhas foram ganhando nova representaccedilatildeo social com a sua valorizaccedilatildeo por ser entendida como parte da produccedilatildeo do ldquopovordquo

A valorizaccedilatildeo das modinhas como elemento importante para a de-finiccedilatildeo do ldquopovordquo e de sua ldquoculturardquo era naquele iniacutecio de seacuteculo uma discussatildeo jaacute bastante conhecida no mundo letrado do Brasil Sob a deno-minaccedilatildeo de ldquomodinhasrdquo aparecia uma vasta produccedilatildeo musical comu-mente ouvida nas ruas do Rio de Janeiro de entatildeo Entre detratores e apologistas a modinha foi se tornando temaacutetica comum nos debates acerca daquilo que deveria ser entendido como algo ldquobrasileirordquo Os versos cantados que a acompanhavam nem sempre eram vistos com bons olhos Daiacute muitos negarem a esse tipo de verso o epiacuteteto de ldquopoesiardquo

O criacutetico literaacuterio Siacutelvio Romero por exemplo entre 1910 e 1912 publicou o ensaio Novas contribuiccedilotildees para o estudo do folclore brasileiro mdash que depois viria a fazer parte do claacutessico livro Histoacuteria da literatura brasileira mdash no qual escrevia ao tentar delimitar aquilo que entendia como sendo uma ldquopoesia popularrdquo que

Um erro muito repetido entre os criacuteticos principalmente portugueses que se tecircm ocupado da poesia popular brasileira eacute confundirem-na com certo gecircnero a que entre noacutes se deu o nome de modinhas []Natildeo eacute raro ler coisas assim ldquoA modinha eacute a mais rica das formas por que se manifesta a inspiraccedilatildeo poeacutetica do nosso povordquoEacute isto inexato A modinha nem eacute a forma mais rica do nosso lirismo popular nem eacute a forma mais perfeita de nosso lirismo cultoA forma mais rica da poesia popular satildeo os romances as xaacutecaras as oraccedilotildees os reisados as cheganccedilas os versos gerais O povo natildeo faz nunca fez modinhas

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas 2 ed Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1956 p 17 (1ordf ediccedilatildeo em 1946)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo34

Por outro lado as mais extraordinaacuterias manifestaccedilotildees do gecircnero liacuterico dos grandes poetas brasileiros natildeo consistiram jamais em modinhas19

Para Siacutelvio Romero por exemplo as modinhas urbanas natildeo fa-riam parte do que ele entendia como sendo ldquopopularrdquo pois aleacutem de aquilo que ele chamava de ldquopovordquo natildeo fazer modinhas elas eram de ldquomau gostordquo Em sua criacutetica Romero arrematava contra o representante mais conhecido das modinhas daqueles tempos ldquotais produccedilotildees hiacute-bridas nem satildeo a genuiacutena poesia anocircnima filha do gecircnio da raccedila nem satildeo obras literaacuterias de valor Constituem um gecircnero secundaacuterio em que se deliciam os Catullos Cearenses de todos os temposrdquo20

O diagnoacutestico de Siacutelvio Romero poreacutem natildeo era uniacutessono entre aqueles que se interessavam pelas manifestaccedilotildees ditas do ldquopovordquo e progressivamente a modinha foi ganhando o status de ldquomanifestaccedilatildeo popularrdquo digna de ser compreendida como parte do ser nacional

Os termos usados por Romero balizavam as discussotildees agrave eacutepoca a modinha era perscrutada a partir da indagaccedilatildeo se ela seria ldquopoesia popular brasileirardquo ldquofilha do gecircnio da raccedilardquo ldquoinspiraccedilatildeo poeacutetica do povordquo e sobretudo uma ldquogenuiacutena poesia anocircnimardquo O anonimato ga-rantia para Siacutelvio Romero a certa produccedilatildeo um preacute-requisito fatal para defini-la como ldquopopularrdquo Mas para o criacutetico modinhas seriam coisas tatildeo somente dos ldquoCatullos Cearensesrdquo

Essa opiniatildeo natildeo era unacircnime entre os letrados Num domingo de Carnaval em reportagem publicada nas paacuteginas do jornal O Paiz redis-cutia-se a posiccedilatildeo da muacutesica como ldquoarte popularrdquo Vale a citaccedilatildeo

19 ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1943 p 173 O artigo foi originalmente publicado na revista da Academia Brasileira de Letras (n 2 4 e 7) A referecircncia que Siacutelvio Romero faz aos criacuteticos portugueses se deve ao fato de haver desde fins do seacuteculo XIX um debate apaixonado sobre o caraacuteter nacional da literatura de liacutengua portuguesa que envolvia inclusive criacuteticos portugueses aos quais Siacutelvio Romero fazia reiteradas censuras De ambos os lados do Atlacircntico a questatildeo do ldquonacionalrdquo colocava em posiccedilotildees opostas estudiosos que tentavam definir em que consistia a literatura nacional de seus respectivos paiacuteses e se havia complementari-dade entre ambas Para um estudo do mais famoso debate aquele que envolveu Siacutelvio Romero e Teophilo Braga cf PAREDES Marccedilal de Menezes A querela dos originais notas sobre a polecircmica entre Siacutelvio Romero e Teoacutefilo Braga Porto Alegre Estudos Ibero-Americanos PUCRS 2006 p 103-119 (Ediccedilatildeo Especial n 2)

20 Idem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 35

Todos os povos tecircm a sua arte popular Ella eacute por excelecircncia a muacutesica As manifestaccedilotildees dessa arte satildeo typicas a muacutesica popular eacute o espelho fiel da iacutendole de cada povo e nella se encontram o seu caracteriacutestico o seu gecircnio as suas inclinaccedilotildees as suas ambiccedilotildees os seus desiacutegnios enfim que nella domine fielmente reproduzido pelo seu folk-lore ver-dadeiro patrimocircnio nacional21

Atestando os progressos da ldquomuacutesica popularrdquo produzida no Brasil e negando qualquer tese que pudesse apontar o trovador como um poeta menor a reportagem do jornal O Paiz destacava o fato de o violatildeo e a modinha estarem invadindo os salotildees nos uacuteltimos quinze anos ndash novidade que indicaria segundo o perioacutedico seu caraacuteter ldquomo-dernordquo ndash e disparava contra os detratores deles

[] A nossa muacutesica popular progride rapidamente cada vez mais expressiva cada vez mais aprimorada dizendo bem quanto amor se contecircm nos nossos espiacuteritos meridionaes aberto a todas as ideacuteas gene-rosas francos e leaes ateacute aos extremos

O violatildeo exprime a alma popular brasileira em suas canccedilotildees dedi-lhadas indolentemente vai toda a anciatilde de carinho e de amor que a magocirca que a fatiga que a fere profundamente

O violatildeo eacute o lenitivo doce amargo para essa iacutendole nossa muito nossa

O trovador tem pois uma grande saliecircncia entre os seus patriacutecios Elle lhes encarna a alma nos accordes dos seus instrumentos nas modula-ccedilotildees de sua voz

[]

Entre noacutes esses menestreacuteis anocircnimos e o que eacute mais imperterrita-mente perseguidos pela poliacutecia satildeo apreciados devidamente

Os progressos dessa raccedila de artistas vem augmentando de haacute quinze annos a esta parte porque o preconceito que os repelia como symbolos da chalaccedila e da desordem vai decaindo O violatildeo acompanhado das modinhas comeccedila a brilhar nos salotildees embora com menos furos do que o cake-walk Interessam-nos esses progressos [] 22

21 O Paiz 25 fev 1906 p 822 Ibidem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo36

O interesse pelas modinhas levou os repoacuterteres de O Paiz a entre-vistar o mais conhecido modinheiro daqueles idos Catullo da Paixatildeo Cearense Sendo usufruiacuteda a partir de uma relaccedilatildeo ambiacutegua pelos le-trados a modinha foi tornando-se objeto de exotismo a ser discutido e compreendido como expressatildeo de uma ldquoalma popularrdquo Para tanto a vontade de conhecer tais ldquocostumes popularesrdquo muito ajudou nessa em-preitada A grande questatildeo no entanto residia naquilo que deveria ser entendido como ldquopopularrdquo e sobretudo aquelas praacuteticas que podiam figurar como dignas de assim serem chamadas Ademais assumir uma praacutetica como ldquopopularrdquo carregaria sob tal manifestaccedilatildeo uma forte carga poliacutetica em tempos em que se abria um enorme debate em grande parte do mundo sobre as singularidades de uma naccedilatildeo a partir do reconheci-mento do caraacuteter do seu povo

Foi em meio agrave ambiguidade no tratamento dado agrave modinha mdash e na esteira disso a ele proacuteprio mdash que Catullo se inseriu nas discussotildees acerca do que seria ldquopopularrdquo no periacuteodo O estranhamento em consi-derar Catullo ldquopoeta do povordquo (como queria a reportagem de O Paiz) era causado pela contrariedade nas declaraccedilotildees do proacuteprio modinheiro na mesma reportagem ao dizer que ldquoeu natildeo gosto de estar pelas es-quinas Canto nos salotildees calmamente sem incocircmodordquo ou ldquoeu procuro modernizar a arte da modinhardquo23 Eacute possiacutevel que a resposta imprevista de Catullo causasse certo embaraccedilo nos entrevistadores no exato mo-mento em que o modinheiro procurava realccedilar um distanciamento de seu nome com as ruas fazendo com que o leitor do jornal natildeo o confun-disse como um modinheiro mambembe e ao mesmo tempo chamando a atenccedilatildeo do leitor para a modernidade de suas modinhas colocando-se entre aquilo que podia ser efecircmero (ou expressatildeo de um simples mo-dismo da eacutepoca) e aquilo que deveria ser encarado quase como atem-poral por ser parte de uma essecircncia nacional e por consequecircncia re-presentante da ldquoalma popularrdquo

Mas algo representado como moderno a priori natildeo poderia ser visto como fazendo parte de uma ldquoalma popularrdquo ndash assim por exemplo

23 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 37

reiterava o criacutetico Siacutelvio Romero Para esse autor o que podia ser iden-tificado como algo ldquopopularrdquo e digno de figurar como parte de uma suposta ldquoalma nacionalrdquo era validado pelo grau de antiguidade de sua existecircncia de forma que algo considerado por demais ldquomodernordquo fatal-mente natildeo figuraria numa discussatildeo sobre a ldquoarte popularrdquo Ainda que entendesse as modinhas como parte de uma heranccedila popular natildeo via com bons olhos modinhas que tais como as de salatildeo se ldquoafrancesa-zavamrdquo (ldquoA macaqueaccedilatildeo do estrangeiro e especialmente do france-zismo eacute tambeacutem outro mal nossordquo)24 Por isso serem comuns em seus estudos palavras como ldquoressurreiccedilatildeordquo e ldquotradiccedilotildees jaacute esquecidasrdquo quando se referia a ldquopoesia popularrdquo Assim sobre o ldquoprojeto romacircn-ticordquo escrevia

Uma volta aacute poesia popular e aacutes tradiccedilotildees jaacute esquecidas eacute sua pretensatildeo mal definida [] A ressurreiccedilatildeo da poesia popular em um livro eru-dito era cousa exequumliacutevel mas continual-a fazel-a viver sua vida ro-manesca era impossiacutevel sobretudo no Brazil onde natildeo existia uma genuiacutena poesia popular olvidada pelo tempo Natildeo sei se bem pensaram nisto os romacircnticos brazileiros Sei que lhes faltou a paixatildeo pelo pas-sado que tanto animaacutera os da Europa [sic]25

Mello Morais (estudioso que diferentemente de Romero inte-ressava-se tambeacutem pelas novas modinhas que surgiam) tambeacutem parecia corroborar o diagnoacutestico do criacutetico ao enxergar nessa recente produccedilatildeo ldquoecos adormecidosrdquo que faziam a alegria ldquonas festas hoje tatildeo escassas do povo fazendo recordar alegrias extintasrdquo26 O que os aproximava era uma definiccedilatildeo do ldquopopularrdquo por uma referecircncia temporal Se para Romero modinhas natildeo interessavam pois natildeo eram um gecircnero do ldquopovordquo nem havia no Brasil ldquopoesia popular olvidadardquo para Mello Morais ao contraacuterio elas eram expressotildees de algo de outrora e dignas de pesquisa Se Romero desdenhava como sendo uma ldquomacaqueaccedilatildeordquo

24 ROMERO Sylvio Estudos sobre a poesia popular do Brazil Rio de Janeiro Typ Laemmert amp C 1888 p 363

25 Idem p 626 MORAES FILHO Mello Cantares brasileiros cancioneiro fluminense Rio de Janeiro

SEEC-RJDepartamento de CulturaINELIVRO 1981 p 27 (1ordf ediccedilatildeo em 1900 pela Livraria Cruz Coutinho)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo38

Mello Morais regozijava-se por entendecirc-la como sendo genuinamente nacional e mesmo moderna

Tais referecircncias temporais definiam atitudes e objetos no Brasil da virada do seacuteculo e faziam com que as fronteiras que diferenciavam aquilo que era considerado ldquomodernordquo e aquilo que era considerado ldquovelhordquo fossem constantemente motivos de debates acalorados alter-nando-se ora como depreciadores de um objeto discutido ora como enaltecedores A elite letrada do paiacutes na medida em que festejava os novos equipamentos modernos da cidade era atraiacuteda para espaccedilos de sociabilidade onde reinava muitas vezes aquilo que por um entendi-mento do que seria moderno poderia ser considerado em contraste ldquovelhordquo ldquoatrasadordquo mdash poreacutem por vezes redimido por ser ldquopopularrdquo De forma que se tornou muito costumeiro e ateacute um fator de expressatildeo intelectual ver membros os mais distintos da elite carioca conhecer e frequentar tais espaccedilos ou o que tambeacutem era bastante comum levar tais expressotildees ldquopopularesrdquo para serem encenadas nos salotildees dessa mesma elite por meio de uma nova significaccedilatildeo que o termo ldquopopularrdquo foi adquirindo ou seja aquilo que expressaria a verdadeira expressatildeo da terra a sua ldquoalmardquo

Foi nesse limite que a figura de Catullo foi sendo evocada como algueacutem que podia ser reconhecidamente considerado um ldquopoetardquo pois que expressava a sua terra em uma forma considerada exoacutetica as letras de modinhas Poreacutem se a procura por temas ldquopopularesrdquo (sendo a mo-dinha entendida como um deles) atraiacutea um puacuteblico distinto e letrado para a produccedilatildeo modinheira de Catullo isso natildeo o credenciava de pronto a ser considerado um membro dessa mesma elite letrada Ademais ser um autor de modinhas no maacuteximo o credenciaria a ser como se dizia agrave eacutepoca um bardo um trovador um ldquopoeta popularrdquo mas quase nunca o alccedilaria a ser identificado como um ldquopoetardquo tal como eram assim reconhecidos Coelho Neto ou Olavo Bilac Esse investi-mento demandou do autor escolhas inclusive temaacuteticas num diaacutelogo constante e tenso com seus pares no periacuteodo e sobretudo uma aproxi-maccedilatildeo com o universo dos livros

Jaacute em iniacutecios do seacuteculo XX Catullo era presenccedila constante nos salotildees da elite carioca cantando suas modinhas e ao passo que deliciava

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 39

os ouvintes dava agravequelas novo estatuto colocando-as no centro do de-bate entre aquilo que deveria ser cultivado como moderno e civilizado e aquilo que deveria ser colocado de lado por natildeo condizer com os ideais civilizatoacuterios que a elite carioca almejava Na trajetoacuteria de Catullo a tensatildeo que separava ldquomodernidaderdquo e ldquopopularrdquo foi agraves uacutel-timas consequecircncias aquilo que era entendido como ldquopopularrdquo aden-trava em espaccedilos de sociabilidade ldquomodernosrdquo que se multiplicavam nas grandes capitais do Brasil

Ora o Rio de Janeiro a entatildeo capital do paiacutes na virada de seacuteculo passava por uma veloz transformaccedilatildeo modernizante cujo intuito decla-rado era o de ser o espelho civilizado do Brasil para o mundo Esse fator ademais fazia com que novas maneiras de representar o paiacutes fossem construiacutedas e com elas a ressignificaccedilatildeo (ou a pura repressatildeo) de praacuteticas fosse concomitantemente levada a cabo Os salotildees da elite letrada onde se apresentava Catullo com suas modinhas eram eles mesmos a expressatildeo moderna dos novos espaccedilos de sociabilidade que essa elite carioca criara para representar sua nova condiccedilatildeo social Palco privilegiado onde ela natildeo soacute representava rituais de identificaccedilatildeo com seus pares os salotildees tambeacutem eram locais onde se expressavam debates que ganhavam as ruas naqueles tempos de transformaccedilatildeo

Nessa eacutepoca a cidade do Rio de Janeiro mdash que segundo dados do jornal Gazeta de Notiacutecias contava em 1908 em torno de 800 mil habitantes27 mdash vivia um turbilhatildeo de mudanccedilas sociopoliacuteticas cujo ob-jetivo declarado por parte de seus impulsionadores era ldquomodernizarrdquo a cidade Essa sede pelo novo no entanto contrapunha-se agrave obsessatildeo pelos velhos haacutebitos que contraditoriamente eram objetos de seduccedilatildeo para parte dos estudiosos do periacuteodo Se havia um deslumbramento por modernidades que chegavam via Europa concomitantemente havia uma forte impressatildeo de deslocamento e de ldquonatildeo identidaderdquo que os in-telectuais do periacuteodo foram buscar nas ditas ldquopraacuteticas popularesrdquo dando vazatildeo agrave constituiccedilatildeo dos estudos folcloacutericos no paiacutes Afonso Arinos e

27 Gazeta de Notiacutecias 1ordm dez 1908 p 1

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo40

Alexandre Joseacute de Mello Moraes foram nesse tempo dois dos maiores incentivadores desses estudos no Brasil

Mello Moraes era conhecido por organizar saraus e apresenta-ccedilotildees de motivos ldquopopularesrdquo em sua residecircncia no que era seguido por Afonso Arinos que abria sua casa na praia de Botafogo para apresen-taccedilotildees de ldquobatucadasrdquo com bastante sucesso patrocinadas por muacutesicos como Donga Pixinguinha e Heitor dos Prazeres Esses eventos torna-ram-se famosos sendo Catullo Cearense na condiccedilatildeo de modinheiro um dos frequentadores assiacuteduos Nesses espaccedilos a elite se deliciava com apresentaccedilotildees dos tais costumes ldquoexoacuteticosrdquo ao passo que os ar-tistas que laacute apareciam se tornavam conhecidos28

A tensatildeo entre considerar uma praacutetica como ldquoantigardquo ou ldquomo-dernardquo e ldquonacionalrdquo ou ldquoestrangeirardquo mdash para citar apenas duas das mais imediatas dicotomias do periacuteodo mdash expressava-se em debates calo-rosos entre os letrados do periacuteodo que construiacuteam eles mesmos temas centrais a serem debatidos por uma sociedade que se pretendia ldquocivili-zadardquo e ldquomodernardquo Daiacute um turbilhatildeo de produtos culturais serem pro-duzidos no periacuteodo visando a representar ldquoo povo brasileirordquo e editores de livros no Brasil usarem do termo ldquopopularrdquo como publicidade que poderia dar ao produto certa visibilidade Daiacute tambeacutem muitos autores no periacuteodo irem ao encontro de representar tais temaacuteticas em livro vi-sando ao ecircxito da publicaccedilatildeo

A investigaccedilatildeo de toda tensatildeo que perpassa a tentativa de defi-niccedilatildeo de textos como ldquopopularesrdquo agrave eacutepoca eacute indissociaacutevel de uma so-ciologia dos usos desses mesmos textos por seu(s) autor(es) editor(es) e leitor(es) inclusive das formas como esses textos eram dados a ler atentando aiacute para o papel do livro naquela cultura Isso tanto eacute mais importante quando se percebe na virada do seacuteculo no Brasil o aumento de indiviacuteduos alfabetizados que criavam seus proacuteprios rituais de identi-ficaccedilatildeo Assim as praacuteticas com o objeto livro nesse processo satildeo funda-mentais para se entender a cultura escrita que nascia Os homens de

28 Sobre a recorrecircncia natildeo rara de ldquomotivos popularesrdquo nos salotildees da elite carioca em iniacutecios do seacuteculo XX Cf VIANNA Hermano Elite brasileira e muacutesica popular In O misteacuterio do samba 7 ed Rio de Janeiro ZaharUFRJ 2010 p 37-54

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letras do periacuteodo conviviam constantemente com a tarefa de responder a questionamentos sobre o que seria o ldquopovordquo ao mesmo tempo em que buscavam juntamente com seus editores fazer-se ouvir por intermeacutedio de seus textos valendo-se de todo tipo de estrateacutegia textual e material que alcanccedilasse o puacuteblico consumidor de livros

A recente saiacuteda do paiacutes da condiccedilatildeo de escravista e a urbani-zaccedilatildeo das grandes cidades criavam as condiccedilotildees para que um novo segmento urbano ficasse em evidecircncia Esse segmento buscava formas proacuteprias de identificar-se a partir de outros rituais procurando diferen-ciar-se de uma heranccedila cultural escravocrata Para tanto esse segmento teve de construir todo um arcabouccedilo de atitudes e espaccedilos para dife-renciar-se de sociabilidades advindas dessa heranccedila escravista A partir de uma busca por distinccedilatildeo e reconhecimento entre seus pares a elite letrada no Brasil criava novos espaccedilos de sociabilidade onde pudesse dar a ver seus ensejos num quadro de transformaccedilotildees nos jornais nos cafeacutes nas praccedilas nas revistas nas instituiccedilotildees intelectuais e nas livra-rias Mas seguramente aquilo que diferenciava essa nova camada so-cial meacutedia de outros segmentos era uma busca por ser identificada como um grupo letrado

Nas livrarias lugar privilegiado para as encenaccedilotildees ldquocivilizadasrdquo leitores com os mais diversos interesses se encontravam para discus-sotildees Na Garnier e na Laemmert ndash duas das mais importantes livrarias na virada do seacuteculo XIX para o XX e localizadas na via mais frequen-tada da cidade a Rua do Ouvidor ndash era possiacutevel encontrar desde o festejado poeta Olavo Bilac e o romancista Machado de Assis pas-sando por jovens escritores como Graccedila Aranha ateacute o mais solenemente autor desconhecido29 Ademais o livro tornava-se ele mesmo um ele-mento de distinccedilatildeo Tecirc-lo ou saber discuti-lo era fator preponderante para ser identificado como um ldquoiniciadordquo nas letras Na sociedade bra-sileira de fins do seacuteculo XIX onde o letramento apesar de haver au-mentado era algo ainda raro ter um livro tornou-se um fator de dis-tinccedilatildeo no exato momento em que aparecia uma camada meacutedia nos

29 BROCA Brito A vida literaacuteria no Brasil - 1900 Rio de Janeiro MEC 1956

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo42

grandes centros urbanos aacutevida por fazer-se presente nas discussotildees acerca dos rumos do paiacutes

A meio caminho entre as massas proletarizadas e os detentores dos meios de produccedilatildeo haviam emergido novas camadas desejosas de afir-maccedilatildeo e ascenccedilatildeo (sic) social Sem tiacutetulos nobiliaacuterquicos sobrenomes tradicionais ou bens de famiacutelia elas vislumbravam uma possibilidade de reconhecimento e ascenccedilatildeo (sic) social atraveacutes da formaccedilatildeo edu-cacional Assim a emergecircncia das camadas meacutedias transparece no plano educacional no aprofundamento das discussotildees acerca dos as-suntos ligados agrave educaccedilatildeo Discutia-se a filosofia os objetivos a accedilatildeo e a abrangecircncia da educaccedilatildeo A posiccedilatildeo social doravante deveria ser marcada pelo grau de ldquoinstruccedilatildeordquo ldquoconhecimentordquo ldquoculturardquo ndash valores defendidos pelas camadas meacutedias ndash e natildeo somente pelo nascimento30

Nesse sentido saber ler era considerado condiccedilatildeo sine qua non para investir algueacutem do termo ldquoinstruiacutedordquo Daiacute ser algo comum apare-cerem nessa eacutepoca vaacuterios planos de alfabetizaccedilatildeo e outros tantos meacute-todos revolucionaacuterios que prometiam ensinar a ler em pouco tempo Certo livro de nome Ensino racional de leitura prometia fazer algueacutem ler em quatro dias Nas paacuteginas do jornal O Paiz o anuacutencio procurava seduzir o comprador afirmando ser a publicaccedilatildeo ldquoUm notaacutevel livro por Magnus Sondahlrdquo e que a obra fora ldquoaprovada pelos Conselhos de Instrucccedilatildeo Puacuteblica do Paranaacute e Sergiperdquo e continuava

O autor garante pelo seu systema que seraacute ao alcance de todos ensinar a ler em 4 dias Por mais extraordinaacuterio que isto pareccedila o grande acolhi-mento que a obra tem tido os elogios unacircnimes dos competentes e da imprensa demonstram o valor do livro31

Essa procura por saber ler e adquirir leituras fez surgir ainda em fins do seacuteculo XIX casas que comercializavam livros aacutevidas por atingir um puacuteblico nascente de leitores Foi nesse fim de seacuteculo que surgiu no Rio de Janeiro o livreiro fluminense Pedro da Silva Quaresma Ele comprou em 1879 a Livraria do Povo de Serafim Alves localizada na

30 DAMAZIO Sylvia Retrato social do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo Rio de Janeiro EDUERJ 1996 p 121

31 O Paiz 15 jul 1908 p 9

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rua Satildeo Joseacute nordm 6567 no centro do Rio de Janeiro e ali instalou sua proacutepria livraria que acabou com o tempo mudando de nome para li-vraria Quaresma Aleacutem de vender livros Pedro Quaresma comeccedilou a editaacute-los priorizando a ediccedilatildeo de obras ditas ldquopopularesrdquo e voltadas para os mais diversos puacuteblicos Pensava o editor que para atingir um puacuteblico letrado nascente o ideal seriam as publicaccedilotildees de linguagem amena e a preccedilos moacutedicos Desse modo o formato em pocket-book que barateava o preccedilo do livro tornando-o assim mais acessiacutevel foi a marca principal das ediccedilotildees Quaresma32

Haacute de se salientar que tais publicaccedilotildees ditas ldquopopularesrdquo eram consumidas tambeacutem por homens de reconhecido capital no mundo le-trado A acreditar no memorialista Luiz Edmundo pela livraria Quaresma passava

[] toda uma legiatildeo de cantores de seresteiros de sereneiros a flocircr da vagabundagem carioca essencia sumo nata da raleacute roccedilando natildeo raro a sobrecasaca do Conselheiro Ruy [Rui Barbosa] a importancia do sr Joseacute Veriacutessimo a sisudez do sr Candido de Oliveira a jurisprudencia do sr dr Coelho Rodrigues33

Se essa busca por um puacuteblico consumidor de livros ldquopopularesrdquo alavancava empreendimentos ambiciosos como a livraria Quaresma natildeo se deve homogeneizar suas publicaccedilotildees como sendo meras frivoli-dades Havia tambeacutem livros editados pela Quaresma que tinham um caraacuteter cientiacutefico ndash ou pelo menos pretendiam ter ndash como a Physiologia das paixotildees contendo a anaacutelise de ldquosentimentos moraes de homens e mulheresrdquo sob a luz da ciecircncia escrito pelo meacutedico francecircs J L

32 Sobre a livraria Quaresma jaacute existem alguns bons estudos efetuados no campo historio-graacutefico Cf EL FAR Alessandra Paacuteginas de sensaccedilatildeo literatura popular e pornograacutefica no Rio de Janeiro (1870-1924) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 OLIVEIRA Liacutevio Lima de A revoluccedilatildeo da brochura experiecircncias de ediccedilotildees de livros acessiacuteveis no Brasil ateacute a primeira metade do seacuteculo XX Trabalho apresentado ao NPE (Produccedilatildeo Editorial) do VI Encontro dos Nuacutecleos de Pesquisa da Intercom Santos Seditora 2006 OLIVEIRA Liacutevio Lima de Pedro da Silva Quaresma entre estrangeiros um brasileiro Disponiacutevel em wwwescritoriodolivrocombrofiacuteciosquaresmaphp Acesso em 10 jun 2020

33 EDMUNDO Luiacutes O Rio de Janeiro do meu tempo Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1938 p 735-7

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Alibert34 e o seriacutessimo Histoacuteria geral do Brasil escrito pelo positivista Annibal Mascarenhas Quando comparados a esses uacuteltimos livros o ldquopopularrdquo que publicizava Quaresma dizia mais respeito ao preccedilo de venda que o editor e livreiro tentava manter sempre baixo

No cataacutelogo da livraria Quaresma ainda figuravam desde ma-nuais (como o Manual do namorado o Manual da Bruxa e o Manual praacutetico do destilador) passando por romances de ldquoscenas empolgantesrdquo (como O calvaacuterio de mulher) ateacute os pioneiros livros voltados para o puacuteblico infantil (como Histoacuterias da carochinha e Histoacuterias da vovozi-nha)35 No entanto os primeiros sucessos de vendas da Quaresma foram mesmo os livros contendo compilaccedilotildees de modinhas dos quais o mais famoso foi o Cancioneiro popular de modinhas brasileiras lanccedilado em 1899 alcanccedilando ateacute 1908 incriacuteveis 25 ediccedilotildees O organizador dessa publicaccedilatildeo exitosa foi justamente Catullo da Paixatildeo Cearense

Eram esses livros com compilaccedilotildees de modinhas e canccedilotildees que faziam sucesso no mundo editorial de iniacutecios do seacuteculo passado Joatildeo do Rio observava surpreso o fato de ldquobardos ocasionais da saacutetira e da paixatildeordquo publicarem e venderem mais que poetas ldquo[] Admiram-se que eles imprimam e o que eacute mais esgotem ediccedilotildees milheiros e milheiros de exemplares Pois imprimem como qualquer poeta Apenas eles vendem e a maioria dos poetas oferece graacutetis aos amigosrdquo36

Embora tenha sido como ldquomodernizadorrdquo das modinhas que Catullo tenha adentrado o mundo letrado essa sua assumida postura se por um lado louvada por outro era vista com algumas reservas Joatildeo do Rio que o via com admiraccedilatildeo em artigo publicado na revista Kosmos em 1905 entendia-o como um ldquoestetardquo algueacutem que traduzia para os salotildees o ldquoespetaacuteculo das ruasrdquo

34 ALIBERT Jean-Louis Physiologia das paixotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 191135 Sobre essas uacuteltimas publicaccedilotildees haacute um denso estudo da socioacuteloga Andrea Borges Leatildeo

Cf LEAtildeO Andrea Borges Brasil em imaginaccedilatildeo livros impressos e leituras infantis Fortaleza Inesp UFC 2012

36 Artigo intitulado ldquoA musa das ruasrdquo publicado na Revista Kosmos de 12 de agosto de 1905 Este artigo foi reproduzido em RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008 p 234-252

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 45

O Sr Catullo uacuteltimo trovador velho-gecircnero eacute o esteta da trova popular Vecirc-lo recitar O poeta e a fidalga com um copo de chopp na matildeo eacute um desses espetaacuteculos de brasserie inesqueciacutevel Catullo emaranhou-se no dogma da moda corrigiu os versos de tudo quanto era quadra estudou Belllini Donnizetti Verdi adaptou os nossos versos a trechos de oacuteperas e finalmente compocircs traduccedilotildees livres de Leconte de Lisle para serem recitadas ao piano37

A partir das publicaccedilotildees da livraria Quaresma Catullo da Paixatildeo Cearense passou a ser consumido pela elite letrada brasileira durante quase 60 anos e conviveu com mudanccedilas socioculturais que marcaram profundamente sua obra Tambeacutem soube delas tirar subsiacutedios para compor sua trajetoacuteria como literato por meio de uma aguda sensibili-dade das formalidades que governavam a construccedilatildeo do que se cha-mava ldquoum autor brasileirordquo agrave sua eacutepoca

Ademais na trajetoacuteria inicial de Catullo salta aos olhos um fato que demanda a atenccedilatildeo mais acurada do historiador de sua produccedilatildeo qual seja o fato de ter sido aos poucos identificado como ldquopoetardquo con-comitantemente em que construiacutea estrateacutegias de escrita a fim de ser re-conhecido como ldquoordquo autor dos livros de modinhas por ele organizados Dito de outra forma Catullo teve de construir autoridade sobre os textos por ele organizados para assim ser reconhecido como um ldquopoetardquo

Nesse sentido reveladora eacute a representaccedilatildeo de si construiacuteda por Catullo na mesma entrevista concedida ao jornal O Paiz em 1906 aqui jaacute citada Introduzindo a entrevista os editores do jornal abordavam questotildees como ldquocultura popularrdquo ldquoarterdquo ldquoalma popularrdquo e atestavam os ldquoprogressosrdquo advindos do aperfeiccediloamento de seus praticantes princi-palmente modinheiros Assim observando tais aperfeiccediloamentos os re-poacuterteres do jornal diziam ficar curiosos por conhecer tais ldquotrovadoresrdquo

Procuramos saber qual era delles o mais apreciado o mais em evi-decircncia Era Catullo da Paixatildeo Cearense Onde mora Fomos para laacute na Estaccedilatildeo da Piedade

37 Idem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo46

Numa das ruas que desembocam a Estaccedilatildeo da linha feacuterrea num tosco chalezinho oculto entre a romaria dos arvoredos escondido por uma cerca de espinheiros numa vivenda sadia florescia o poeta popularBatemos palmas discretas38

Ali no iniacutecio da entrevista nas ligeiras palavras que abriam aquela conversa algumas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre poesia popularnatureza trabalhoinspiraccedilatildeo e gecircnioracionalidade eram postas pelos repoacuterteres e ao avanccedilar a entrevista o proacuteprio Catullo expres-sava como via seu lugar dentro dessas relaccedilotildees e de como entendia o estatuto ldquomodernordquo da modinha que fazia Nesse movimento a partir de uma identificaccedilatildeo do seu objeto a modinha como expressatildeo ldquomo-dernardquo Catullo ia deslocando a imagem estigmatizada do gecircnero como sendo ldquocoisas de vagabundordquo e aproximava suas modinhas de certos ldquoecos de uma alma nacionalrdquo ao passo que construiacutea sua originalidade como autor do gecircnero sua especificidade como um boecircmio letrado e principalmente sua distacircncia em relaccedilatildeo aos trovadores das ruas

O ldquotrovadorrdquo Catullo que florescia por entre as aacutervores da sua casa assim como sua poesia mdash imagem que o jornal tratava de construir dando a ele um ar de ldquoinspirado pela naturezardquo mdash tratava de dizer que

Quando escrevo meus versos sinto que minha alma se eleva que uma nova vida me estua pelo corpo que me esqueccedilo dos contingentes terrenos para pairar muito mais alto na vida espiritual muito mais pura muito mais intensa Vivo mais meu amigo muito mais quando o estro me toni-fica a alma vacillante e amargurada Os meus versos satildeo a minha alma39

Sendo um trabalho oriundo diretamente de sua ldquoalmardquo Catullo afirmava como consequecircncia que a obra estava longe de ser laboriosa e acadecircmica pois

Elles os meus pobres versos natildeo satildeo a obra de um artista na expressatildeo acadecircmica da palavra Natildeo os rebusco no trabalho laborioso e tenaz do parnasianismo Natildeo os talho na mateacuteria-prima da forma []

38 O Paiz 25 fev 1906 p 839 O Paiz 25 fev 1906

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 47

E apesar disso elles satildeo preciosos saem-me da penna sem o menor esforccedilo rithmados pela muacutesica que escolhi para elles40

Catullo Cearense prosseguia indicando que sua poesia natildeo se efetuaria senatildeo acompanhada com a respectiva muacutesica indicada Uma vez que aquilo que escrevia soacute poderia se completar acompanhado pela muacutesica por ele escolhida era por meio da oralidade que seus escritos finalmente se configurariam num fato poeacutetico Observava sobre isso

Disjuntai-vos e aquelles versos que eu cantava haacute pouco que tanto aplaudistes satildeo apenas um corpo sem vida uma flor [sic] sem per-fume porque lhe exauristes o sangue porque lhe tirastes o doce aroma porque os fizestes emmunhecerE eacute uma verdade41

Catullo buscava afirmar-se a partir de uma relaccedilatildeo de proximi-dade de sua arte com sua ldquoalmardquo Essa relaccedilatildeo ainda que o afastasse segundo ele do academicismo de uma poesia consagrada naqueles tempos (a dos ditos parnasianos) credenciava-o a ser reconhecido como poeta em outro acircmbito o da genialidade aquele que expressa a ldquoalmardquo de maneira livre sem a ldquoformardquo

Por outro lado ainda que assumisse ser um modinheiro Catullo tratava de construir-se agrave distacircncia daquilo que homens como Mello Moraes entendiam ser a modinha qual seja parte de um ldquocostume exoacute-ticordquo por ser demais antigo O entrevistado por seu turno observava natildeo fazer coisas antigas pois

O Dr Mello Moraes eacute de parecer que a modinha deve permanecer sempre estacionaacuteria sem avanccedilo nem retrocesso Eu tenho opiniatildeo contraacuteria o canto popular deve acompanhar o espiacuterito popular Jaacute natildeo estamos no tempo do recitativo cheio de melopea sem vibraccedilatildeo A Alma popular activa-se haacute mais intensidade na vida mais educaccedilatildeo artiacutestica O povo quer conhecer o espiacuterito da muacutesica a cujo som se entrega aos torneios da dansa [sic] Como lhe mostrar esse segredo

40 Ibidem41 Ibidem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo48

Emprestando-lhe a letra E o que eu faccedilo escolho umas das muacutesicas em voga estudo-a e faccedilo os meus versos[]Eu procuro como disse modernizar a arte da modinha Canto a muacutesica Os meus versos acompanham a oacutepera a valsa a polka a schotish a quadrilha e brejeiramente o tango e o maxixe voluptuoso42

Movimento tenso que oscila entre aproximar sua ldquoarterdquo das pro-duccedilotildees do ldquopovordquo e resguardar certa distacircncia desse mesmo ldquopovordquo ndash aqui esse termo tem sentido estigmatizado em negativo ndash a fim de que pudesse ser identificado como um letrado Catullo salientava que ao aparecer em entrevista no jornal

[] terei gosto de ver-me recordado ao nosso povo que eu tenho feito gozar do mais alto palaacutecio a mais pequena choupanaNatildeo eacute bom dizer em serenatas eu natildeo gosto de estar pelas esquinas Canto nos salotildees calmamente sem incocircmodo43

Nos limites de algueacutem reconhecido como ldquopopularrdquo e homem dos salotildees poeta e modinheiro adepto do letramento e buscando suas fontes poeacuteticas na oralidade Catullo Cearense construiacutea um espaccedilo dentro do mundo letrado configurando uma trajetoacuteria singular nas letras brasileiras de iniacutecios do seacuteculo Ainda que sempre fizesse questatildeo de salientar sua forte expressatildeo ldquopopularrdquo o ldquotrovadorrdquo negava qualquer vinculaccedilatildeo de sua produccedilatildeo com algo identificado como folclore ou costumes antigos Longe disso Catullo questionava esse caraacuteter exoacutetico da modinha reite-rado por Mello Moraes embora tenha sido presenccedila natildeo rara nos salotildees ndash que aliaacutes se multiplicavam naqueles idos uma vez que a cultura dos salotildees liacutetero-musicais tomou conta da elite letrada carioca do periacuteodo A historiadora Rosa Maria Barbosa observa que

A oferta de lazer noturno da cidade natildeo tornou a famiacutelia boecircmia no sentido de romper com as regras e esquecer as preocupaccedilotildees morais Ao

42 O Paiz 25 fev 190643 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 49

contraacuterio o projeto republicano normatizador condicionou a boemia a tornar-se familiar []A elite boecircmia trocou o espaccedilo da rua os cafeacutes e restaurantes onde se reunia para beber e conversar pelo brilho dos salotildees liacutetero-musicais e pela intimidade dos clubes44

Em 1906 o historiador Rocha Pombo testemunhava para os lei-tores do perioacutedico carioca Correio da Manhatilde uma dessas noites em que presenciara Catullo da Paixatildeo Cearense num encontro ocorrido em casa de Mello Moraes realizado em homenagem ao escritor e acadecirc-mico Alberto de Oliveira

Corria a bella festa serena e sumptuosa como sempre satildeo as daquele doce e carinhoso lar do dr Mello Moraes Filho Tinhamos ouvido jaacute estrophes deliciosas magniacuteficas borbotoantes como catadupas de lavas vinda da alma do nosso grande Alberto OliveiraTinhamos jaacute sentido cantos e muacutesicas ndash tudo isso que tempera as almas para o sagrado conviacutevio e que daacute um tom muito fino muito vivo agrave jovialidade dos coraccedilotildees que se encontram E continuaacutevamos todos numa aclamaccedilatildeo uniacutessona e incessante ao illustre poeta em honra de quem ali estaacutevamosLaacute pela meia noite correcircra entre os convivas a notiacutecia de que havia chegado agrave casa o Catullo CearenseFrancamente este nome natildeo me era estranho Por vezes me havia soado aos ouvidos sob gestos inexpressivos e sem nada que revelasse coisa alguma de excepcional e extraordinaacuterioNatildeo sei bem porque mas o certo eacute que no meu espiacuterito vagava esta Idea ndash fugidia e imprecisa ndash de que Catullo natildeo era mais que um simples cantador de modinhas um desses boecircmios chefes de Lyra bardo de violatildeo ao luar sabendo gemer entre um pigarro e outro uma porccedilatildeo de banalidades sobre o velho estafado thema do amorNatildeo fizemos portanto eu e uns iacutentimos que discreteaacutevamos fora do bulliacutecio da festa muito caso do annuncio que se espalhaacutera

44 ARAUacuteJO Rosa Maria Barboza de A vocaccedilatildeo do prazer a cidade e a famiacutelia no Rio de Janeiro republicano Rio de janeiro Rocco 1993 p 348

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo50

Dahi a pouco fomos chamados agrave sala onde jaacute encontramos todo aquelle mundo em foacuterma numa grande espectaccedilatildeo de coisas solennes []Haacute nos olhares uma como interrogaccedilatildeo de mysteacuterioO homem levanta-se e vem pro meio do salatildeo E des daquelle instante ndash digam os que ali tiveram a fortuna de estar ndash elle foi o senhor daquellas almas como se fosse a alma de todos noacutesCantou creio que os Olhos dela []Na sala entatildeo se fez uma atmosphera de assombro sacudido por aquele verbo de fogo arrebatado por aquella figura de trasgo insurgido ndash o auditoacuterio extasia-se illumina-se exalccedila-se como si a flamma daquella alma passasse subitamente para todas as almasE quando o vulto do cantor minguou n [sic] sala deixando escapar-se--lhe dos laacutebios o uacuteltimo verso houve uma verdadeira explosatildeo de de-liacuterio tatildeo espontacircnea tatildeo ruidosa tatildeo vibrante como si formidaacutevel tufatildeo barafustasse naquelle ambiente Natildeo eram palmas eram gritos de acla-maccedilatildeo transportes arrebatamentos ndash quase insacircnia e desatino []45

A citaccedilatildeo eacute longa e esclarecedora para demonstrar a aceitaccedilatildeo de Catullo e de modinhas entre os letrados de entatildeo Adentrar os espaccedilos de sociabilidade dessa elite e a acreditar no testemunho de Rocha Pombo ser ovacionado por ela era possuir um capital social que autori-zava um indiviacuteduo mesmo um modinheiro como Catullo a ser consi-derado algo mais do que um simples ldquotrovadorrdquo

Digo-o desassombradamente Catullo eacute um grande poetaA meu ver tem elle na alma alguma coisa mais que a exuberante e en-thusiastica poesia do nosso povo nos seus versos nos seus cantos fala a excelsia musa anocircnima e immortal da raccedilaE sente-se isso tanto mais quanto essa musa pelo estro deste poeta nos fere na alma umas grandes notas que nos dizem como Ella se comove agora apercebida do que foi nos tempos do velho culto saudosa das edades mortas e ufana de ressurgir para outras edificaccedilotildees46

O modinheiro Catullo de ldquobardo tocador de violatildeordquo de ldquochefe boecircmio da Lyrardquo passava a ser representado como ldquopoetardquo Essa repre-

45 Correio da Manhatilde 25 ago 1907 p 3 46 Idem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 51

sentaccedilatildeo era construiacuteda pela constataccedilatildeo de que em seus versos falava ldquoa musa anocircnima e immortal da raccedilardquo vinda por fim de ldquoedades mortasrdquo e ressurgida para novas ldquoedificaccedilotildeesrdquo Essa passagem de bardo a poeta se desenrolou paulatinamente de forma que ao chegar o ano do testemunho de Rocha Pombo a representaccedilatildeo de Catullo jaacute diferia substancialmente da criada para definir outros modinheiros cariocas da eacutepoca Na medida em que a modinha passou a ser considerada impor-tante pelos letrados a figura de Catullo que jaacute se arvorava como letrado e organizador de livros de modinhas foi sendo alavancada como al-gueacutem que expressava a ldquopoesia popularrdquo Poreacutem para ser considerado um ldquopoetardquo e por conseguinte um distinto entre os outros modinheiros Catullo usou de estrateacutegias que se expressavam nos textos por ele publi-cados e que seratildeo mateacuteria de nosso exame adiante

Catullo jaacute em iniacutecios do seacuteculo XX poderia ser representado como um ldquoboecircmio modinheirordquo e ao mesmo tempo ldquopoetardquo Podemos flagraacute-lo em notiacutecias em que se avultavam esses dois lados de maneira natildeo contraditoacuteria como no curioso protesto que liderou e que foi noti-ciado nos jornais ldquoUma commissatildeo de poetas chefiados pelo Sr Catullo da Paixatildeo Cearense vae pedir ao ministro da viaccedilatildeo para que de ora em deante natildeo se acenda mais o gaz nas noites de luarrdquo47

Haacute de se chamar a atenccedilatildeo que aleacutem de Afonso Arinos e Mello Moraes jaacute citados Alberto Brandatildeo Pinheiro Machado e ateacute os presi-dentes Nilo Peccedilanha e Hermes da Fonseca eram homens que abriam as portas de suas residecircncias para espetaacuteculos das ditas ldquocoisas brasilei-rasrdquo48 Nilo e Hermes inclusive escandalizaram alguns detratores da modinha abrindo as portas da sede do Governo Federal para receber Catullo Na eacutepoca o caso de Hermes da Fonseca foi o mais comentado Sua mulher Nair de Teffeacute aluna de violatildeo e admiradora de Catullo apresentou em 1914 para um distinto puacuteblico presente no Palaacutecio do Catete entatildeo sede do Governo acompanhando-se ao violatildeo o maxixe Corta jaca de autoria de Chiquinha Gonzaga e com letra de Catullo

47 O Seacuteculo 14 abr 1908 p 148 Hermano Viana tambeacutem daacute um raacutepido quadro de alguns desses salotildees Cf VIANNA

Hermano O misteacuterio do samba 7 ed Rio de Janeiro ZaharUFRJ 2010

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo52

Um escacircndalo que os jornais colocariam na conta do presidente General Hermes da Fonseca nos dias posteriores Nair de Teffeacute admiradora de Catullo tambeacutem intercedeu junto a Hermes para que arrumasse uma vaga para o modinheiro na Imprensa Nacional no que foi atendida Toda essa admiraccedilatildeo fez com que em maio de 1914 Catullo fosse cha-mado ao Palaacutecio do Catete para ele mesmo fazer um recital de modi-nhas Nair de Teffeacute contava que

Essa audiccedilatildeo de Catullo no Palaacutecio do Catete constituiu o maior su-cesso a que um verdadeiro artista poderia aspirar em toda a sua vida Catullo ao teacutermino de cada canccedilatildeo que interpretava recebia da culta assistecircncia uma ovaccedilatildeo delirante Todos os aplausos de peacute E ecircle bem o merecia pelo seu gecircnio e seu irresistiacutevel poder de transmissatildeo de sen-timentos Catullo era pobre modesto educadiacutessimo de uma simplici-dade nazarena Seu orgulho era sua Arte a sua Religiatildeo [] Devo a Catullo a sugestatildeo de cantar de preferecircncia na nossa liacutengua Depois de ouvir Catullo fiquei tatildeo impressionada com o seu prodigioso poder de interpretaccedilatildeo que resolvi estudar letras brasileiras e acompanhar-me ao violatildeo para cantaacute-las49

O contraste que Nair de Teffeacute faz aparecer em seu depoimento era uma representaccedilatildeo que ajudou por diversas vezes as portas dos salotildees a abrirem-se para as modinhas de Catullo O ldquosimplesrdquo e ldquopobrerdquo Catullo poderia ao mesmo tempo por ser ldquoeducadiacutessimordquo ser figura comum nos espaccedilos de uma elite letrada que curtia as mani-festaccedilotildees do ldquopovordquo

Mas se a apresentaccedilatildeo no Palaacutecio do Catete lhe rendera um reconhecimento como artista antes em 1908 usando de seu capital social adquirido Catullo conseguiu aquilo que lembraria para sempre como sendo sua verdadeira consagraccedilatildeo uma apresentaccedilatildeo de modi-nhas acompanhada ao violatildeo no Instituto de Muacutesica mdash que era consi-derado o templo da muacutesica no periacuteodo e no entanto fechava as portas para apresentaccedilotildees de motivos populares Depois de muito hesitar o diretor-maestro do Instituto Nacional de Muacutesica Alberto Nepomuceno consentiu que ali se realizasse um espetaacuteculo de modinhas brasileiras

49 Entrevista de Nair de Teffeacute Apud MAUL Carlos Op cit p 69

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 53

capitaneado por Catullo Daquela noite o escritor Luciano Braga prefaciando um dos livros de modinhas do autor contava que

[] o leitor se laacute natildeo esteve pergunte a algueacutem do proacuteprio Instituto o que foi essa audiccedilatildeoPoucas vezes aquelle estabelecimento teraacute tido uma enchente como a do concerto do illustre poeta O auditoacuterio foi do que a Capital tem de mais fino nas letras sciencias e artes Viam-se senhoras de peacute que o ambiente regorgitava50

Nas palavras de Luciano Braga se expressava a forma como Catullo em 1913 jaacute era conhecido um poeta Essa construccedilatildeo foi pau-latinamente construiacuteda por Catullo em seus livros e em suas apresenta-ccedilotildees nos salotildees Ao referir-se a ele como poeta Luciano Braga ecoava a reabilitaccedilatildeo progressiva que as modinhas recebiam por parte do mundo letrado de entatildeo Reabilitaccedilatildeo em muito advinda do ecircxito editorial das letras de modinhas publicadas a cargo de Catullo Ateacute o ano do teste-munho de Luciano Braga haviam sido publicados 11 livros organizados por Catullo da Paixatildeo Cearense cujo conteuacutedo eram letras de modinhas indicadas com as respectivas muacutesicas a serem acompanhadas

O certo eacute que naquela noite de 5 de junho de 1908 as galerias do Instituto de Muacutesica no Rio de Janeiro nunca haviam recebido tamanha multidatildeo A distinta plateia acostumada a frequentar cafeacutes e livrarias da capital durante o dia aglomerava-se nos corredores para assistir ao es-petaacuteculo em que Catullo da Paixatildeo Cearense cantava modinhas acom-panhando-se ao violatildeo Letrados como Joseacute do Patrociacutenio Filho e Luiz Murat festejavam no modinheiro o triunfo do violatildeo ldquobrasileirordquo nos espaccedilos reservados para espetaacuteculos da dita ldquocivilizaccedilatildeordquo Entre aqueles que ali presenciavam o acontecimento estava o escritor Joatildeo do Rio (Paulo Barreto) que meses depois jaacute saudoso lembraria aquele dia em sua crocircnica no jornal

50 BRAGA Luciano Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Lyra dos salotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1926 p 7

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo54

Certo quando entramos natildeo contaacutevamos com aquele ambienteO theatro estava cheio mas cheio dessa sociedade elegante e fina da sociedade que estaacute no Lyrico nas recepccedilotildees nos chaacutes nos bailes da sociedade que vae para Petroacutepolis51

Essa febre por procurar e definir o que seriam as ldquocoisas brasi-leirasrdquo fez surgir um diaacutelogo fecundo entre uma elite letrada (que necessaacuterio dizer ainda se construiacutea como elite) e as camadas popu-lares que eram identificadas como guardadoras de expressotildees da dita ldquoraccedila brasileirardquo Mesmo maestros do consagrado Instituto de Muacutesica como Alberto Nepomuceno organizavam-se em um movimento de procura das raiacutezes musicais do paiacutes e viam num sujeito como Catullo o representante ideal para mostrar essas ldquocoisas brasileirasrdquo em es-paccedilos ditos ldquocivilizadosrdquo52

Foi assim que Catullo da Paixatildeo Cearense articulando sua circu-laccedilatildeo entre muacutesicos do periacuteodo que o faziam conhecer o universo das ruas (espaccedilo de oralidades fontes de suas produccedilotildees) suas boas rela-ccedilotildees com a elite carioca e seu encontro com um bom editor ndash que o autor dizia ser ldquoum americano nisso de reclamesrdquo pois ldquocada impressatildeo de meus livros editados sempre pela Livraria Quaresma custa os olhos da cara e o resto do resultado gasta-se quase todo em anuacutenciosrdquo53 mdash foi construindo sua representaccedilatildeo de poeta popular letrado

As ruas e os salotildees Com tracircnsito livre pelos dois espaccedilos Catullo se constituiacutea em artista e poeta do povo Mais tarde descobriria que ser poeta do sertatildeo mdash num momento em que tematizar o sertatildeo vira febre mdash lhe daria outro tipo de status que as modinhas natildeo davam o de tatildeo simplesmente poeta Mas antes disso Catullo da Paixatildeo Cearense teve de lidar com os entraves advindos de ser considerado uma ldquoexpressatildeo do povordquo o que lhe retirava a priori a autoria de suas publicaccedilotildees de

51 Gazeta de Notiacutecias set 1908 p 752 Sobre a busca pelo ldquopopularrdquo na muacutesica cf TABORDA Maacutercia Violatildeo e identidade

nacional Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011 Para a atuaccedilatildeo de Alberto Nepomuceno como diretor do Instituto de Muacutesica cf PEREIRA Avelino Romero Muacutesica sociedade e poliacutetica Alberto Nepomuceno e a Repuacuteblica musical Rio de Janeiro UFRJ 2007

53 O Paiz 25 fev 1906 p 8

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 55

modinhas pela livraria Quaresma Essa complexa equaccedilatildeo seraacute melhor compreendida adiante ao observarmos como a publicaccedilatildeo de textos contendo motivos considerados ldquopopularesrdquo (sejam modinhas ou temas sertanejos) forccedilosamente poderia criar entraves para algueacutem que pleite-asse o reconhecimento como literato mdash como era o caso de Catullo Para tanto eacute necessaacuterio atentar a um tema fulcral expresso em publica-ccedilotildees produzidas no periacuteodo a relaccedilatildeo de uma cultura letrada que nascia com a discussatildeo sobre o popular Analisando todos os atores que o construiacuteram desde leitores ateacute autores e editores

Aliaacutes o papel do editor Quaresma deve ser ressaltado pois foi a partir de seu objetivo editorial que pocircde surgir no seio do mundo letrado a obra de Catullo da Paixatildeo Cearense E eacute entendendo a trajetoacuteria de Catullo no espaccedilo de uma cultura escrita da qual ele fazia parte que se compreende a emergecircncia de sua literatura no periacuteodo

Aos leitores ldquotudo quanto se quizerrdquo autor livro e literatura

ndash Mas que quer o puacuteblico Qual eacute essa nova curiosidadendash A curiosidade do veratildeondash Uma curiosidade que desapareceraacute como os figos e as mangasndash Sim natildeo ria Todo o povo razoavelmente constituiacutedo tem duas curiosi-dades intermitentes e de ordem extrapraacutetica saber em que deuses crecircem os seus profetas e o que realmente pensam e satildeo os seus pensadores e os seus artistas Estas curiosidades soacute aparecem quando a Cacircmara fecha A imprensa que fala de toda a gente soacute natildeo falou ainda dos literatos Entretanto noacutes somos um paiacutes de poetas Em cada esquina encontra-se uma escola de arte em cada cafeacute corre desabrido esse processo epica-mente nacional de sova literaacuteria no interior das livrarias fervilham as novas escolas de arte Como os homens variam e os livros natildeo satildeo lido oh Senhor Deus Ler todos esses volumes Seria interessante fixar o que pensam ou o que natildeo pensam os caros iacutedolos da nossa artendash Iacutedolosndash O homem que escreve eacute sempre um iacutedolo Mesmo quando escreve mal o que natildeo eacute raro Quando algueacutem se destina a ser julgado pode ter a certeza de ser pelo menos o culto de uma almaO tom sentencioso do meu veneraacutevel amigo comeccedilava a irritar e a convencer

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo56

Ele poreacutem continuava animadondash Natildeo se pode imaginar a admiraccedilatildeo e o culto que se devota aos homens de letras nossos54

Em 13 de marccedilo de 1905 com a narraccedilatildeo de uma suposta con-versa que Joatildeo do Rio teve com seu amigo o jornal Gazeta de Notiacutecias anunciava uma seacuterie de entrevistas capitaneadas por Joatildeo do Rio com vaacuterios autores da considerada ldquoliteratura brasileirardquo O propoacutesito era mostrar ao puacuteblico leitor do jornal o que pensavam aqueles que o amigo do entrevistador chama no trecho acima citado de ldquoiacutedolosrdquo

A notabilidade do autor de livros no Brasil do periacuteodo eacute atestada pelo interlocutor de Joatildeo do Rio com uma sentenccedila lacocircnica ldquoO homem que escreve eacute sempre um iacutedolordquo E saber escrever ndash ou melhor ser re-conhecido como algueacutem que sabe escrever ndash era um fator que diferen-ciava um indiviacuteduo da grande maioria que natildeo sabia ler nem escrever De forma que para uma nova camada social que enxergava no letra-mento uma caracteriacutestica fundamental para reconhecer-se como elite aqueles ldquohomens de letrasrdquo eram no dizer do companheiro de Joatildeo do Rio seus ldquoiacutedolosrdquo

Revistas e jornais como o Gazeta de Notiacutecias muitas vezes publicavam as efemeacuterides da qual nos fala o amigo de Joatildeo do Rio ndash aquilo que ldquodesapareceraacute como os figos e as mangasrdquo ndash e eram os principais veiacuteculos propagadores dos modismos que interessavam ao puacuteblico leitor Mas que queria esse puacuteblico

A possibilidade de investigaccedilatildeo do mercado consumidor de livros na eacutepoca eacute um campo que ainda causa muitas discussotildees entre historiadores da literatura e criacuteticos literaacuterios De fato infor-maccedilotildees sobre nuacutemero de vendagens satildeo bastante imprecisas (quando natildeo inexistentes) agrave eacutepoca para afirmar com seguranccedila que uma de-terminada obra pudesse ter sido bastante consumida Penso ndash e sigo aqui esse caminho ndash que o que mais aproxima um investigador de cravar uma determinada obra literaacuteria como bastante consumida seja o nuacutemero de ediccedilotildees

54 RIO Joatildeo do O momento literaacuterio Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 2010

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Assim uma obra como Os sertotildees de Euclides da Cunha cujo nuacutemero de ediccedilotildees chegou a trecircs em menos de trecircs anos pode ser con-siderada uma obra bastante consumida Cancioneiro fluminense de 1887 primeira publicaccedilatildeo organizada por Catullo da Paixatildeo Cearense teve em poucos anos as mesmas trecircs ediccedilotildees esgotadas E Cancioneiro popular de modinhas brasileiras do mesmo autor incriacuteveis 25 ediccedilotildees em nove anos Eacute nesses nuacutemeros impressionantes de um autor hoje re-lativamente desconhecido como Catullo que se encontra o cerne da discussatildeo era Catullo um escritor popular

O termo ldquopopularrdquo muitas vezes evocado para salientar o su-cesso de uma obra pode evocar tambeacutem tanto uma definiccedilatildeo do puacuteblico ao qual se destina quanto pode ser a identificaccedilatildeo de um determinado tema na obra como sendo ldquopopularrdquo e ainda mais pode identificar o valor pecuniaacuterio de uma obra quando vendida Essa polissemia no termo ldquopopularrdquo guarda evidentemente alguns debates historiograacute-ficos que tecircm gerado nos uacuteltimos anos um redirecionamento no seu uso55 O historiador Roger Chartier propotildee que a discussatildeo acerca do popular deva ultrapassar o caraacuteter de definiccedilatildeo a priori de uma praacutetica e sugere em contrapartida a investigaccedilatildeo dos seus usos ou dito de outro modo dos seus significados construiacutedos socialmente56 Nesse sentido investigar as apropriaccedilotildees dos objetos culturais seria a melhor forma de se compreender como determinada praacutetica ganha um sentido construiacutedo por seus praticantes E avanccedilando como os praticantes (os leitores por exemplo) compartilham eles mesmos determinados signi-ficados que progressivamente vatildeo se constituindo em uma identidade social atraveacutes do reconhecimento muacutetuo de que participam de uma mesma comunidade

No nosso caso a elite letrada brasileira como procuramos de-monstrar construiu um circuito de espaccedilos de sociabilidades vaacuterios onde

55 Jacques Revel fez uma interessante siacutentese desses debates Cf REVEL Jacques Cultura popular usos e abusos de uma ferramenta historiograacutefica In REVEL Jacques Proposiccedilotildees ensaios de histoacuteria e historiografia Rio de Janeiro EdUERJ 2009 p 163-186

56 CHARTIER Roger Cultura popular revisitando um conceito historiograacutefico Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 8 n 16 1995

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encenavam essa identidade Ao mesmo tempo os literatos ndash ou seja uma parcela dessa mesma elite letrada ndash criavam eles mesmos os seus es-paccedilos de consagraccedilatildeo como a Academia Brasileira de Letras e seus ri-tuais de reconhecimento como as conferecircncias os encontros liacuteteros-mu-sicais etc Um indiviacuteduo identificado como um letrado natildeo era evidentemente um literato Nem algueacutem que escreve um livro era auto-maticamente identificado como tal Isto porque antes disso a construccedilatildeo de uma autoridade sobre os textos demandava duas estrateacutegias a de reco-nhecimento social do candidato a autor como letrado e a concomitante identificaccedilatildeo do seu texto como algo a ser encarado como literatura

Assim livros publicados pela livraria Quaresma por exemplo nem sempre podiam ser reconhecidos como ldquoliteraturardquo pelos seus lei-tores Nesse sentido um autor que tivesse sido publicado pela Quaresma teria de lidar com os diversos entraves para seu reconhecimento como literato mdash ou seja um letrado que era autor de um texto que natildeo pro-priamente figurava com o epiacuteteto de ldquoliteraturardquo

Outrossim o editor natildeo hesitava em definir alguns dos autores que publicava como ldquopopularesrdquo alguns por conter temas identificados por uma elite letrada como ldquopopularrdquo outros por ter a obra um valor de venda bem menor quando comparada a publicaccedilotildees da Garnier e da Laemmert duas das maiores casas editoriais do periacuteodo e muitos por seus livros terem mais de uma ediccedilatildeo da obra publicada sendo jaacute um sucesso de vendas Definir um texto como sendo da lavra ldquodo povordquo automaticamente fazia desaparecer a figura do autor tornando-o mero coletor de expressotildees ldquopopularesrdquo

Assim a publicaccedilatildeo de livros contendo ldquotemas popularesrdquo carre-gava outros tipos de constrangimentos para o organizador da obra Este poderia ser reconhecido como um letrado pelo puacuteblico mas natildeo o autor do texto por ele publicado Neste uacuteltimo caso o criador do texto teria de se afirmar antes como ldquoautorrdquo a fim de construir para o leitor o reco-nhecimento de sua ldquoautoridaderdquo sobre os textos Essa afirmaccedilatildeo autoral se fundava por meio de lentas e progressivas estrateacutegias de escrita le-vadas a cabo pelo candidato a autor

Se o texto publicado era digno de ser considerado um texto lite-raacuterio logo o autor era alccedilado a literato Para isso a criacutetica de jaacute reconhe-

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cidos literatos era fatal Maacuterio Pederneiras assim fala de seu iniacutecio como poeta a Joatildeo do Rio

Para desespero dos amadores da literatura de peso em brochuras de quilo todo o meu trabalho literaacuterio ateacute hoje aparecido estaacute enfeixado em duas plaquettes esgalgas excelentemente impressas Agonia e Rondas NoturnasA primeira meu livro de estreacuteia sofreu coitadinha todos os maus tratos da veneranda Criacutetica indiacutegena disseram-lhe nomes feios chamaram-na de produto posticcedilo de preconceito escolar e ateacute Joatildeo chegaram a arru-mar-lhe em cima o peso vigoroso de insultos em francecircs Um horrorLembro-me ainda de que o egreacutegio Sr Antocircnio Sales no seu beliacutes-simo estilo pompadour deu-lhe pra baixo de rijo em meio palmo de excelente prosa gramatical pelas colunas de honra de um diaacuterio de efecircmera duraccedilatildeoDesesperei Joatildeo Porque contava bastante com a autorizada opiniatildeo de S Exordf para a minha consagraccedilatildeo de poeta novo57

Maacuterio Pederneiras mostra que se natildeo fosse reconhecido por ldquosu-midadesrdquo ainda que se reconhecesse sua autoria sobre o texto estava fadado a ser simplesmente um autor letrado Para todas essas opccedilotildees havia uma que as antecedia a aparentemente trivial necessidade de construccedilatildeo da autoria sobre a obra

Sem duacutevida em geral havia dois caminhos a serem seguidos publicar um livro e ser reverenciado como um literato (o que jaacute garan-tiria ao criador do texto obviamente sua autoria) ou publicar um livro no qual se garantia sua autoria e natildeo ser identificado como um literato (caso de muitas das publicaccedilotildees a cargo da livraria Quaresma) A traje-toacuteria seguida por Catullo Cearense difere de ambas

Ainda que se tenham em alta conta suas publicaccedilotildees de modi-nhas por serem identificadas como ldquopopularesrdquo e expressatildeo de uma ldquoalma nacionalrdquo eacute exatamente seu sucesso como organizador de livros ditos ldquopopularesrdquo (neste caso entendido no sentido de que vinha do ldquopovordquo) que entravava seu reconhecimento como autor Uma vez reco-

57 RIO Joatildeo do O momento literaacuterio Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 1905 p 70

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nhecido como ldquopoeta popularrdquo a ecircnfase no ldquopopularrdquo (e ldquopopularrdquo aqui porque expressatildeo de uma ldquonaturezardquo de uma ldquoalmardquo) ao mesmo tempo em que daria o sucesso de puacuteblico retiraria parte da autoridade sobre o texto publicado Afinal de contas ldquopopularrdquo era identificado por muitos estudiosos das coisas ditas ldquopopularesrdquo do periacuteodo (como Melo Moraes) como coisa do ldquopovordquo e natildeo de um autor que tatildeo so-mente expressaria a tal ldquoalma do povordquo

O sucesso de puacuteblico garantido por qualquer publicaccedilatildeo que se arvorasse como ldquopopularrdquo ao que parece poderia ser frustrante para um escritor mas por outro lado entusiasmava o editor Quaresma em publicar seus tiacutetulos com a adjetivaccedilatildeo ldquopopularrdquo E ele publicou vaacuterios tiacutetulos que vinham com essa adjetivaccedilatildeo O cozinheiro popular que prometia ser uma ldquoverdadeira enciclopeacutedia culinaacuteriardquo oferecendo ao leitor receitas de ldquotudo quanto se quiserrdquo58 O orador do povo que reunia discursos familiares e populares proacuteprias para qualquer evento social e Cancioneiro popular organizado por Catullo59

Nesse sentido ser ldquopopularrdquo como expressatildeo do povo soava po-sitivamente para o editor Quaresma mas podia ser diferentemente com-preendido pelo organizador ou escritor da obra Tanto mais porque ao passo que lhe dava o reconhecimento de letrado punha-o em situaccedilatildeo menor entre os letrados exatamente por natildeo ser de uma elite letrada mas daquilo que chamavam ldquopovordquo Para entender esse movimento eacute necessaacuterio compreender os rituais que governavam essa sutil separaccedilatildeo no mundo letrado de entatildeo

Um passeio pelas livrarias do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo XIX para o XX bem poderia provocar espanto para um transeunte desa-visado Nelas podia-se encontrar desde aquela considerada a mais ldquoalta literaturardquo representada naqueles tempos por homens como Machado de Assis e Coelho Neto ateacute um tipo de literatura entendida como ldquopo-pularrdquo escrita para o passatempo do leitor ou marcadamente produzida para ser uacutetil nas praacuteticas cotidianas como manuais receitas e livros de

58 Cataacutelogo da Livraria Quaresma In NEVES Eduardo das Mysteacuterios do violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1905 p 125

59 MASCARENHAS Annibal O orador do povo Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1924

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pornografia Naqueles espaccedilos era comum segundo o memorialista Luiacutes Edmundo encontrar um reconhecidamente ilustrado como Rui Barbosa a disputar espaccedilos ao lado de

[] toda uma freguezia perguntona espalhafatosa vozeiruda que ar-ranca notas de dois e cinco mil reacuteis do fundo de lenccedilos de chita muito sujos armados em carteiras para comprar as brochurinhas postas em capas de espavento natildeo raro aos empurrotildees aos gritos60

Natildeo eram somente nas livrarias que se podia encontrar essa elite letrada aacutevida por um livro Nas ruas cariocas o comeacutercio livreiro fa-zia-se presente com os ldquocaixeirosrdquo gente que ao comprar as brochuras nas livrarias saiacutea vendendo-as pela cidade

Observando essa efervescecircncia livresca o cronista Joatildeo do Rio escrevia que

Os vendedores de livro satildeo uma chusma incontaacutevel que todas as manhatildes se espalha pela cidade entra nas casas comerciais sobe aos morros percorre os subuacuterbios estaciona nos lugares de movimento61

Esses vendedores se beneficiavam de uma progressiva consta-taccedilatildeo arraigada nos grandes centros urbanos do paiacutes na eacutepoca de que possuir um livro era sinal de distinccedilatildeo Ora uma vez que no Brasil eram poucos os que sabiam ler e escrever aqueles que detinham essa teacutecnica fatalmente se distinguiam dos demais de forma que muitas vezes o caraacuteter de reconhecimento social se dava pelo fato de um indi-viacuteduo ser iniciado ou natildeo nas letras Isso criou condiccedilotildees para que a elite citadina brasileira se reconhecesse cada vez mais pelo letramento

De fato inuacutemeros satildeo os casos de autores que ainda por natildeo possuiacuterem socialmente uma vida confortaacutevel e com as regalias de uma possiacutevel ldquoelite econocircmicardquo eram entendidos como fazendo parte de um restrito grupo de uma elite letrada As representaccedilotildees construiacutedas para

60 EDMUNDO Luiacutes O Rio de Janeiro do meu tempo Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1938 p 735-7

61 RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008 p 85 Essa crocircnica foi publicada em 12 fev de 1906 no jornal Gazeta de Notiacutecias do Rio de Janeiro

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serem definidoras daquilo que se entendia como uma ldquoeliterdquo teriam de inevitavelmente passar pela proximidade do indiviacuteduo com o objeto livro Foi a partir disso que o mercado consumidor de livros foi impul-sionado e com ele os editores comeccedilaram a publicar livros que aten-dessem agrave demanda por um puacuteblico leitor que nascia

Esses consumidores interessavam-se por livros que poderiam servir inclusive como presente para uma ldquosenhorardquo bastando ser no caso dos romances ldquoconvenientemente encadernadordquo como indicava na eacutepoca o famoso Manual do namorado62 Ademais livros como ma-nuais eram presenccedila constante nas listas dos mais vendidos Manual do namorado Manual do chofer Manual praacutetico do destilador Manual do padeiro Todos esses tiacutetulos eram publicaccedilotildees que visavam a al-canccedilar um puacuteblico letrado nascente e que poderiam encontrar nesses livros uma leitura uacutetil e de simples acesso ou mesmo apenas frivoli-dades para o passatempo no dia a dia63

A necessidade de seduzir os leitores fazia com que os livreiros e editores do periacuteodo natildeo soacute tratassem de chamar a atenccedilatildeo para o con-teuacutedo do livro bem como salientassem a proacutepria materialidade do livro O editor Quaresma por exemplo ficou conhecido por seu esforccedilo pu-blicitaacuterio ao fazer grandes cartazes e pregar por toda cidade anunciando a chegada de um livro Das propagandas estampadas nos grandes jor-nais do Rio agraves chamadas em que anunciava natildeo soacute o conteuacutedo da publi-caccedilatildeo mas tambeacutem seu caraacuteter esteacutetico tudo era mobilizado como forma de seduzir um possiacutevel consumidor tal como aparece no anuacutencio do livro com letras de modinhas intitulado Lyra dos salotildees ldquoUm grosso volume de 608 paacuteginas com dezenas e dezenas de retratos de todos os poetas e deslumbrante capa em chromo-lythographia do insigne artista brasileiro Raulrdquo64

62 BOTAFOGO Don Juan de Manual do namorado Rio de Janeiro Ediccedilotildees Quaresma sd p 8

63 Na Franccedila havia muito tempo que existia uma tradiccedilatildeo na publicaccedilatildeo de manuais Cf EL FAR Alessandra Paacuteginas de sensaccedilatildeo literatura popular e pornograacutefica no Rio de Janeiro (1870-1924) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004

64 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 224

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O texto referia-se ao famoso caricaturista Raul Pederneiras O investimento da abordagem esteacutetica da obra fazia com que as casas edi-toriais tivessem um rol de artistas que tratavam de assegurar a beleza do objeto livro visando a criar o fasciacutenio do potencial consumidor Era comum trabalharem nessas casas homens como Raul Pederneiras Bastos Tigre e vaacuterios outros ilustradores muitos ganhando fama inicial com a produccedilatildeo de capas

Tambeacutem da livraria Quaresma se deu a iniciativa de publicar a chamada ldquoBiblioteca Infantilrdquo a primeira accedilatildeo editorial no Brasil que visava ao puacuteblico infantil ainda nos anos 1910 No anuacutencio de Histoacuteria da Baratinha o editor Quaresma salientava natildeo soacute o con-teuacutedo com ldquonarraccedilotildees phantaacutesticasrdquo mas tambeacutem o fato de o livro formar ldquo[] um grosso volume de 320 a 400 paacuteginas com milhares de vinhetas e gravuras impresso em papel de boa qualidade typo novo e letras de fantasia encadernado e sempre com a mesma capa lithogra-phada a coresrdquo65

A necessidade de seduzir pela materialidade do livro foi um arti-fiacutecio comum na publicizaccedilatildeo das obras literaacuterias de entatildeo Ademais isso revelava as estrateacutegias editoriais que buscavam alcanccedilar um puacute-blico semiletrado Estrateacutegia essa que por fim visava agravequeles cujo ldquoob-jetordquo livro demandava natildeo raro mais interesse do que o proacuteprio texto que ele carregava

Ora perder de vista essa dimensatildeo seria desdenhar toda uma re-laccedilatildeo que o consumidor de livros tinha quando da sua posse no Brasil da eacutepoca e aleacutem disso seria menosprezar o valor que subjazia ter um livro numa sociedade que paulatinamente valorizava o ldquocidadatildeo le-tradordquo Essa constataccedilatildeo nos coloca diante da possibilidade de vislum-brar nos textos produzidos no periacuteodo natildeo soacute a construccedilatildeo de artifiacutecios que pudessem ldquopescarrdquo o leitor ndash fossem eles artifiacutecios editoriais temaacute-ticos e narrativos ndash mas como os proacuteprios sujeitos construiacuteam para si um lugar entre aqueles que pudessem ser reconhecidos como ldquoletradosrdquo Mais como essa produccedilatildeo de autoridade sobre o objeto livro passava

65 Cataacutelogo da Bibliotheca Infantil da Livraria Quaresma In DEMOSTHENES Annibal O orador do povo Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1924

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por um entendimento profundo de que sua posse representava de al-guma forma poder ― fosse do autor do editor ou do leitor

O escritor Lima Barreto nos conta acerca de seu personagem Policarpo Quaresma que ele possuiacutea muitos livros em casa e que por isso mesmo acabou ganhando a desafeiccedilatildeo de certo doutor Segadas um cliacutenico afamado no bairro de Satildeo Januaacuterio que natildeo admitia essa extravagacircncia dizendo ldquoSe natildeo era formado para quecirc Pedantismordquo66 Nesse pequeno causo Lima Barreto nos conta como a possibilidade de possuir livros no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX era algo que poderia causar certo incocircmodo e como consequecircncia mostra o quanto possuir um livro podia ser considerado um simples ldquopedantismordquo sendo a posse do objeto um fator que poderia credenciar seu possuidor a ser chamado de pedante ndash ou seja algueacutem que se pretende algo mais do que eacute Lima Barreto atenta para o fato de que ter a posse de um livro po-deria naqueles idos ter diversos significados inclusive com vistas a uma representaccedilatildeo hieraacuterquica do indiviacuteduo que o possui podendo ser identificado como um pedante

Um exemplo sintomaacutetico dessa relaccedilatildeo poderosa que o possuidor de livros podia obter na sociedade carioca pode-se encontrar nos jornais do periacuteodo No Jornal do Comeacutercio de setembro de 1915 ladeado a anuacutencios de cosmeacuteticos e modernas maacutequinas aparecia o anuacutencio de uma estante contendo livros do mundo inteiro a chamada Biblioteca Internacional e entre os elogios aos grandes nomes da literatura uni-versal que a estante trazia (numa tentativa oacutebvia de seduzir o leitor para a compra) o anunciante chamava a atenccedilatildeo para a distinccedilatildeo que traria para a casa que possuiacutesse tal estante de livros

A magnificecircncia da ediccedilatildeo mesmo considerada simplesmente como um adorno a Biblioteca Internacional com a sua luxuosa encadernaccedilatildeo e magniacutefica estante augmentaraacute a distinccedilatildeo da residecircncia mais rica-mente mobiliada Uma vez em casa nunca faltaraacute lsquoalguma coisa para lecircrrsquo seja para dez minutos seja para dez horas67

66 BARRETO Lima Triste fim de Policarpo Quaresma Fortaleza ABC Editora 1999 p 1167 Jornal do Comeacutercio 7 set 1915 p 28

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Esses significados no Brasil da virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo podem ser compreendidos apenas a partir de uma relaccedilatildeo in-diviacuteduo-livro Haacute de se levar em conta tambeacutem o caraacuteter de mudanccedilas pelas quais passavam as grandes capitais do paiacutes naquele momento e que rotulavam certas praacuteticas como modernas em detrimento de outras a cujos praticantes (mesmo tendo a posse e o domiacutenio da leitura e de um livro) era negado o status de letrado Isso porque ser ldquoletradordquo de-mandava diversos artifiacutecios Um caso extremo pode ser observado no modinheiro e palhaccedilo Eduardo das Neves que tinha livros publicados sob o seu nome

Ele um cantor negro famoso por compor muacutesicas sobre os grandes acontecimentos ocorridos naqueles tempos68 ao publicar a co-letacircnea de modinhas de sua autoria sob o tiacutetulo Misteacuterios do violatildeo era apresentado pelo editor Quaresma como um ldquotrovador popularrdquo que ainda que escutado ldquoem muitas casas de famiacutelia nos aristocraacuteticos sa-lotildees de Petroacutepolis Botafogo Larangeiras [sic] Tijuca etcrdquo por ldquose-nhoritas distinctissimas e virtuoses conhecidos [] natildeo seraacute um poeta impeccavel um Bilac um Medeiros de Albuquerque um Raimundo Correcirca um Luiz Delfino um Arthur Azevecircdo um Murat um Figueiredo Pimentel []rdquo mas ainda assim ldquoeacute com certeza um poeta na legiacutetima acepccedilatildeo do termo como o puacuteblico os aprecia os lecirc os decora e os traz constantemente na imaginaccedilatildeordquo e deveria ser reconhecido como um ldquoextraordinaacuterio bardo do povo filho do povordquo69

A passagem exposta acima traz alguns apontamentos para se compreender a cultura escrita do periacuteodo aleacutem de poder ser encarada como uma das facetas sob as quais a relaccedilatildeo entre ldquopovordquo e ldquoescritardquo era entendida naquele momento

Ora havia sem duacutevida uma valorizaccedilatildeo do puacuteblico receacutem-le-trado visado como potencial consumidor do objeto ldquolivrordquo criando grandes investimentos em barateamento do livro e produccedilatildeo editorial tornando-o um objeto de seduccedilatildeo e aguccedilando a vontade de potenciais

68 Uma canccedilatildeo famosa de Eduardo das Neves eacute a que foi composta em homenagem a Santos Dumont apoacutes o primeiro voo do brasileiro em Paris

69 NEVES Eduardo das Misteacuterios do violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1905 p IV-V

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consumidores Atrelada a isso sobretudo houve uma mudanccedila no sen-tido e no conteuacutedo do proacuteprio livro que por fim passou a trazer ex-pressotildees e temaacuteticas daquilo entendido como ldquopopularrdquo agrave eacutepoca Entretanto mdash e aiacute reside a especificidade da literatura produzida no periacuteodo mdash isso natildeo credenciava tal expressatildeo quando publicada em livro a ser entendida como ldquopraacutetica letradardquo nem tampouco fazia de seu escritor algueacutem ldquoletradordquo ndash muito menos um ldquopoetardquo Como no caso de Eduardo das Neves no maacuteximo esse escritor seria como es-crevia seu editor um ldquotrovador popularrdquo e natildeo poeta Essa uacuteltima cons-truccedilatildeo demandava muito mais estrateacutegias a serem mobilizadas

Se Neves poderia publicar sob seu nome um texto do ldquopovordquo ser identificado como ldquopopularrdquo lhe retirava a autoridade para falar sobre se natildeo fosse um iniciado um letrado que pode falar sobre mas natildeo pode ser um

Acerca disso o exemplo da publicaccedilatildeo que em 1900 a livraria Quaresma incumbiu a organizaccedilatildeo a Catullo eacute emblemaacutetica Intitulada O cantor de modinhas brasileiras ela deveria conter as modinhas de Eduardo das Neves e do bariacutetono Geraldo Magalhatildees Na publicaccedilatildeo Catullo dizia que seu trabalho de organizaccedilatildeo das modinhas de Eduardo das Neves tinha por fim que ldquoos seus innumeros apreciadores pu-dessem admiral-o mais de perto conhecendo a sua verve satyrica e o seu bello talento embora natildeo cultivado pelo estudordquo [grifo meu]70

Aiacute no proacuteprio texto construiacutea-se uma hierarquia entre produtor e autor-organizador em que o segundo era apresentado como sendo aquele detentor do estudo necessaacuterio para corrigindo as modinhas mostraacute-las da melhor maneira aos leitores de seu texto enquanto o pri-meiro era identificado como algueacutem ldquonatildeo cultivado pelo estudordquo por-tanto natildeo possuindo aptidotildees para ser ele mesmo o autor de suas modi-nhas transcritas para um texto A autoria aiacute advinha da identificaccedilatildeo do sujeito como possuidor de aptidotildees letradas

Essa sutil separaccedilatildeo demarcava no texto as divisotildees sociais que se construiacuteam naqueles idos delimitando um espaccedilo que separava

70 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O cantor de modinhas brasileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1927 p 5

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aquele que podia ser identificado como um letrado daquele que natildeo podia ser detentor desse epiacuteteto Seguramente a proposta da livraria Quaresma colocava de maneira mais clara essa tensatildeo ao optar por pu-blicar textos de indiviacuteduos natildeo propriamente entendidos como letrados como foi o caso de Eduardo das Neves e mesmo inicialmente de Catullo da Paixatildeo Cearense

No que tange a Catullo foi desenrolado um curioso caso de pau-latina construccedilatildeo de autoridade sobre seus textos e na esteira disso uma progressiva identificaccedilatildeo de seu nome como poeta letrado Esse processo esteve intimamente ligado agraves propostas editoriais de seus edi-tores e por consequecircncia agraves expectativas de um puacuteblico leitor visado pelo mesmo editor Nesse espaccedilo Catullo traccedilava suas estrateacutegias auto-rais no intuito de fazer com que fosse entendido como um autor de li-vros de modinhas em vez de somente autor de modinhas mdash diferen-ciaccedilatildeo que acarretava uma mudanccedila draacutestica no reconhecimento do sujeito entre os letrados

Ainda que nas suas primeiras publicaccedilotildees exista uma mescla entre modinhas escritas pelo proacuteprio Catullo e letras de modinhas de outros modinheiros sendo Catullo o organizador delas natildeo eram esses ldquooutros modinheirosrdquo que apareciam como autores mas ele mesmo pois possuiacutea o poder da escrita A partir dessas publicaccedilotildees o modi-nheiro Catullo foi progressivamente sendo identificado como ldquopoeta popularrdquo e mais tarde jaacute reconhecido como poeta deixaria de lado as modinhas para lanccedilar com bastante ecircxito livros de poemas sertanejos pela livraria Castilho especialista em publicaccedilotildees das ditas ldquocoisas brasileirasrdquo71

A partir de um universo dito popular que cada vez mais era objeto de curiosidade de letrados de uma proposta editorial que alavan-cava seus empreendimentos em cima das expectativas de um puacuteblico leitor e por fim de uma intenccedilatildeo claramente expressa em seus livros (progressivamente afirmados) pelo seu reconhecimento como letrado a

71 Com essa proposta aliaacutes Castilho lanccedilaria Antocircnio Torres Gastatildeo Cruls Leonardo Mota e Joseacute Ameacuterico de Almeida Cf BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 67-70

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obra de Catullo da Paixatildeo Cearense ascendeu no mundo literaacuterio da virada do seacuteculo XIX para o XX Na interseccedilatildeo entre autor editor e leitor reside a compreensatildeo de seu ecircxito editorial Foi equilibrando-se sobre esses pilares que Catullo foi construindo a autoridade sobre os textos por ele publicados e por conseguinte o reconhecimento de sua posiccedilatildeo letrada

A primeira publicaccedilatildeo na qual Catullo investe na produccedilatildeo de sua autoridade sobre os textos eacute a que mais sucesso obteve no mundo le-trado de entatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras Daiacute em diante e progressivamente a figura de Catullo da Paixatildeo Cearense vai sendo investida de representaccedilotildees que variam desde o modinheiro pas-sando pelo de bardo poeta ateacute chegar agrave imagem de poeta culto Para a construccedilatildeo de tais representaccedilotildees muito valeram as estrateacutegias textuais construiacutedas em seus livros o que obriga ao investigador uma atenccedilatildeo acurada para as formalidades que subjazia na produccedilatildeo de um livro no Brasil da primeira metade do seacuteculo XX e as consequecircncias advindas dessas praacuteticas letradas

COMO SE CRIA UMA AUTORIA

Nada eacute mais repisado do que o cenaacuterio que consiste em apresentar uma narrativa de ficccedilatildeo como uma revelaccedilatildeo anacrocircnica Nada eacute mais comum do que um autor que pretende ser editor do seu texto72

O cancioneiro popular de modinhas

O Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa de 1913 definia ldquoautorrdquo como tendo seis significados Satildeo eles ldquocausa principal de uma coisa Inventor Aquelle que escreveu obra literaacuteria ou scientiacutefica Fundador Aquelle que intenta demanda judicial Aquelle de quem pro-cede ou nasce algueacutem ou alguma coisardquo73 Natildeo obstante o caraacuteter muacutel-tiplo de sentidos dados ao termo o ldquoautorrdquo seria algueacutem de quem par-tiria uma consequecircncia algueacutem de quem resultaria uma causa material A construccedilatildeo de algo materializado ndash e assim identificado socialmente ndash parecia ser um preacute-requisito necessaacuterio para se considerar algueacutem como um autor O caraacuteter daquilo que se convencionou chamar de ldquocriaccedilatildeo intelectualrdquo de um indiviacuteduo aiacute natildeo aparece O criador natildeo eacute um ldquoautorrdquo senatildeo quando seu ato produz uma consequecircncia que pode

72 SCHLANGER Judith Apud CHARTIER Roger Cardenio entre Cervantes e Shakeaspeare histoacuteria de uma peccedila perdida Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012 p 8

73 FIGUEIREDO Cacircndido Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa Lisboa Livraria Claacutessica 1913 p 225

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garantir-lhe finalmente uma representaccedilatildeo de ldquoautorrdquo O caraacuteter in-transitivo do criador afastaria assim o seu reconhecimento imediato como um autor

Assim dizendo aquele que escrevia uma obra literaacuteria (ldquoautorrdquo) nem sempre era o criador de tal obra ndash e nem sempre o criador da obra era por conseguinte um ldquoautorrdquo Foi percorrendo esses meandros para a consolidaccedilatildeo de seu nome proacuteprio como ldquoautorrdquo que Catullo da Paixatildeo Cearense construiu inicialmente sua trajetoacuteria com os livros Dialo-gando com as diversas praacuteticas letradas do periacuteodo e construindo nesse processo um lugar para sua autoridade sobre as publicaccedilotildees lanccediladas sob seu nome o trajeto seguido por Catullo eacute sobretudo um trajeto de consagraccedilatildeo edificado na sua relaccedilatildeo com o objeto livro

Em fins do seacuteculo XIX jaacute conhecido como modinheiro e pre-senccedila constante nos salotildees da elite carioca Catullo da Paixatildeo Cearense foi trabalhar junto agrave livraria Quaresma na organizaccedilatildeo de volumes de modinhas Antes o primeiro grande sucesso editorial organizado por ele foi o livro de canccedilotildees musicadas O cantor fluminense publicado pela primeira vez em 1894 com trecircs ediccedilotildees pela livraria Democraacutetica Usando de sua boa circulaccedilatildeo entre os boecircmios modinheiros e de seu conhecimento de modinhas Catullo Cearense trazia para o universo letrado os sons das ruas as mais famosas modinhas cantadas agrave eacutepoca Doze anos depois com a publicaccedilatildeo em 1899 de Cancioneiro popular de modinhas brasileiras pela livraria Quaresma seu nome ficaria ainda mais em evidecircncia no universo letrado Cancioneiro popular teria nada menos do que 25 ediccedilotildees em menos de dez anos74

O livro possui em sua 25ordf ediccedilatildeo 155 modinhas sendo 48 da lavra de Catullo Os primeiros versos que aparecem na publicaccedilatildeo satildeo uma poesia explicativa escrita pelo proacuteprio Catullo intitulada Ao violatildeo em que expressa com certo ar de desgosto o fato de o violatildeo (o instrumento-mor que deveria acompanhar todas as modinhas ali publi-cadas) ser ainda malquisto O autor-organizador em passagens que

74 A ediccedilatildeo agrave qual vamos fazer referecircncia neste estudo eacute a 25ordf ediccedilatildeo de 1908 e a pri-meira em que Catullo aparece como prefaciador do livro

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 71

abusa de ironias observa o fato paradoxal que fazia do violatildeo um ins-trumento odiado e ao mesmo tempo amado por seus ouvintes

Anda caacute meu violatildeo eu quero agoraafinar-te e baixinho em tom maguadoexplicar-te a razatildeo por que dos Grandestu eacutes foste e seraacutes tatildeo diffamadoElles gostam de ouvir-te as harmoniasOs accoacuterdes de vagos sentimentosMas se escutam teu nome empallidecemque eacutes a escoacuteria lethal dos instrumentos[]Se dos Grandes tu eacutes ludibriadoSe elles fecham-te as portas dos salotildeeseacute porque soacute tu tens essa magia de render os mais feros coraccedilotildeesPois emquanto vagueas ao relentoE uma endeixa em menor aacute lua exhalasOs pianos calados jazem tristesEm sudaacuterios envoltos laacute nas salas75

Essa ldquonota explicativardquo em forma de poesia visava a provocar o leitor ainda natildeo convencido da qualidade das modinhas ali publicadas fazendo com que este ficasse instigado pela ironia do autor a comeccedilar a leitura de fato Sendo uma publicaccedilatildeo que visava ao puacuteblico letrado Catullo Cearense construiacutea representaccedilotildees da modinha e do violatildeo que pudessem ldquofisgarrdquo o leitor mais ceacutetico com relaccedilatildeo agrave qualidade da obra Para tanto valia inclusive evocar o nome de homens reconhecidos que pudessem ajudar na corroboraccedilatildeo do material

O Castro Alves te amava os sons plangentesO Fagundes Varella te adoravaE Tobias Barreto o bardo excelsoOs lampejos do estro em ti cantava

75 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 1316

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo72

E Laurindo Rabello O cysne albenteCujos carmes libravam-se aacutes alturasEra louco por ti Pois muitas vezesOlvidava comtigo as amarguras76

Ainda que os primeiros versos publicados em Cancioneiro po-pular sejam de um poema agrave maneira como comumente Bilac ou Coelho Neto publicavam o caraacuteter de performance oral que visava agrave publi-caccedilatildeo ndash afinal eram versos para serem cantados ndash eacute reiterado na uacuteltima estrofe do poema inicial quando Catullo emenda o poema com a pri-meira modinha propriamente dita intitulada de O luar de sua autoria

[]Fere um doce menor Geme soluccedilaQue este pranto te orvalhe as cordas ChoraJaacute natildeo posso soffrer a dor prementeQue por ella a gemer padeccedilo agora

Ella eacute filha do Norte e tem no peitoUm brando um meigo um puro coraccedilatildeoA noite em meio estaacute vibra uma notaQue eu vou cantar-lhe agora esta canccedilatildeo

Ao Luar(A Muacutesica eacute assaz conhecida)

Vecirc que amenidadeque serenidadetem a noite em meioquando em brando enleiovem lenir o seiode algum trovador []77

Esse procedimento que reiterava o caraacuteter oral da publicaccedilatildeo construiacutea o efeito performaacutetico que deveria ter a apresentaccedilatildeo da mo-dinha seguinte O resultado que deveria ter a poesia-nota explicativa

76 Idem p 1677 Idem p 24

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 73

Ao violatildeo sobre a modinha Ao luar que ela emendava era aleacutem de criar uma ponte que dava agrave modinha o status de poesia cantada cons-truir a representaccedilatildeo do modinheiro Catullo como algueacutem tambeacutem apto a figurar como um civilizado um letrado e no limite um poeta da palavra cantada

A histoacuteria das ediccedilotildees de Cancioneiro popular eacute expressiva do tipo de representaccedilatildeo que o personagem Catullo foi ganhando na socie-dade carioca do periacuteodo As primeiras ediccedilotildees de Cancioneiro popular por exemplo natildeo constam de prefaacutecios explicativos de Catullo apenas uma raacutepida apresentaccedilatildeo inicial da obra feita pelos editores da livraria Quaresma responsaacuteveis pela publicaccedilatildeo

A partir da 25ordf ediccedilatildeo de 1908 Cancioneiro popular jaacute vem acompanhado de um prefaacutecio assinado por Catullo Cearense que se arvora na representaccedilatildeo de si como algueacutem que trabalha na organizaccedilatildeo das modinhas por ele coletadas Esse ineditismo veio na esteira do su-cesso de Catullo na sociedade carioca jaacute que 1908 foi o ano em que nosso personagem saiu ovacionado ao apresentar-se pela primeira vez no Instituto de Muacutesica do Rio acompanhado de um naqueles tempos ldquoineacuteditordquo violatildeo mdash fato que jaacute narramos no capiacutetulo 1

Esse ineditismo em apresentar-se tambeacutem como algueacutem que tra-balhou as modinhas inclusive assinando um prefaacutecio eacute tanto mais sur-preendente se investigarmos as publicaccedilotildees anteriores a cargo de Catullo Antes da 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro popular ainda em 1902 foi lanccedilado Chocircros ao violatildeo contendo coleccedilotildees de modinhas tambeacutem organizadas e coletadas por Catullo Mas ainda nessa publicaccedilatildeo Catullo se restringe a ser apresentado pelo editor Quaresma com as se-guintes indicaccedilotildees acerca do livro ldquoContendo as mais populares co-nhecidas e apreciadas modinhas brasileiras com a indicaccedilatildeo das muacute-sicas com que devem ser cantadas Escriptas e collecionadas por Catullo da Paixatildeo Cearense auctor do lsquoCancioneiro Popularrsquordquo78

Agrave eacutepoca uma publicaccedilatildeo que se apresentava contendo modinhas ldquopopularesrdquo era um fator a mais para um mundo letrado aacutevido deste tipo

78 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Chocircros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902 Folha de rosto

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo74

de publicaccedilatildeo aumentar o desejo de possuir um livro como o de Catullo e o editor Quaresma investia com ecircnfase no caraacuteter ldquopopularrdquo das mo-dinhas ali contidas Mas o que mais chama a atenccedilatildeo eacute que em Chocircros ao violatildeo Catullo aparece apenas como o comentador de algumas mo-dinhas publicadas com algumas indicaccedilotildees raacutepidas das muacutesicas a acompanhar cada uma delas Apenas em uma uacutenica modinha ele reapa-rece oferecendo ldquoaos amigos Galdino e Maacuteriordquo79 Diferentemente em Cancioneiro popular na ediccedilatildeo de 1908 o autor Catullo ganha mais espaccedilo na publicaccedilatildeo inclusive com a possibilidade de oferececirc-la ldquoAo primoroso e distincto comediographo brasileiro Arthur Azevedo como singela prova de admiraccedilatildeo ao seu talento omnido dedica o Auctor [grifo meu]rdquo80

Eacute expressiva a mudanccedila ocorrida entre a publicaccedilatildeo de Chocircros ao violatildeo de 1902 e Cancioneiro popular de 1908 Nesta uacuteltima pu-blicaccedilatildeo inclusive contrastando com uma maior presenccedila de Catullo como autor aparece algo que se tornaraacute comum daiacute para frente nas ediccedilotildees Quaresma o certificado de direitos do editor sobre a obra Enquanto que nas publicaccedilotildees anteriores inexiste esse certificado a partir de 1908 apareceraacute nos livros a seguinte indicaccedilatildeo ldquoOs editores QUARESMA amp C avisam ao puacuteblico que todos os livros editados por sua casa ndash Livraria do Povo ndash satildeo de sua exclusiva propriedade literaacuteria Capital Federal Janeiro de 1908 Quaresma amp Crdquo81

Concomitantemente a um maior espaccedilo para o autor-organizador da obra expressar-se o editor Quaresma via a oportunidade de colo-car-se tambeacutem como detentor dos direitos da publicaccedilatildeo Na medida em que Catullo aparecia como o autor da obra impressa os editores Quaresma reafirmavam deter a propriedade uacuteltima dela

Ademais a matildeo do editor pode ser vista em vaacuterios momentos do texto O Cancioneiro popular natildeo destoava do objetivo inicial do editor Quaresma pois era um empreendimento que buscava difundir para o

79 Idem p 380 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio

de Janeiro Livraria Quaresma 1908 Folha de rosto81 Idem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 75

puacuteblico letrado as letras das modinhas cantadas nas ruas do Rio de Janeiro agrave eacutepoca Sua especificidade residia em um objetivo declarado o de ldquomelhorarrdquo a modinha corrigindo os versos cantados de forma considerada ldquoerrocircneardquo para serem finalmente consumidos da forma considerada ldquocorretardquo pelos leitores A chamada do editor Quaresma na contracapa do livro resume bem esse intuito

Esplendida e escolhida collecccedilatildeo de beliacutessimas modinhas populares es-criptas umas e outras collecionadas revistas e melhoradas postas taes quaes seus auctores as escreveram e natildeo estropeaacutedas incorrectas e es-phaceladas como por ahi andam de boca em boca na tradicccedilatildeo oral82

A aversatildeo ao erro e a sua identificaccedilatildeo com a ldquotradiccedilatildeo oralrdquo chama a atenccedilatildeo para a tentativa de distinccedilatildeo entre cultura letrada e cultura oral em processo naquele comeccedilo de seacuteculo A correccedilatildeo do ele-mento oral pela palavra escrita era ela mesma uma tentativa de estig-matizaccedilatildeo da oralidade em detrimento do letramento Ademais a neces-sidade de hierarquizaccedilatildeo das duas formas de expressatildeo com a oacutebvia hegemonia da palavra escrita era fundamental e previsiacutevel em publica-ccedilotildees que como as da livraria Quaresma buscavam tambeacutem desse modo criar um puacuteblico leitor-consumidor de livros

Por sua vez assumindo o papel de tradutor entre a cultura letrada e a cultura oral Catullo Cearense tratava em seus textos de colocar-se como autoridade a partir de sua condiccedilatildeo de um letrado conhecedor do oral Na esteira disso ele buscava direcionar a leitura de cada letra in-dicando a modinha correspondente a acompanhaacute-la

A partir da identificaccedilatildeo de Catullo Cearense como algueacutem que poderia se chamar de ldquocivilizadordquo o editor Quaresma afirmava por consequecircncia o caraacuteter ldquocivilizadorrdquo da obra de Catullo De sua parte o autor reafirmava essa posiccedilatildeo atraveacutes de seus prefaacutecios onde indicava o plano de sua obra

No prefaacutecio do Cancioneiro popular de modinhas brasileiras aleacutem de caracterizar o seu leitor Catullo indicava o objetivo do livro

82 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 Folha de rosto

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo76

dizendo antes que resultara de um trabalho ldquoimprobordquo em cima de modinhas coletadas com as ldquomais baacuterbaras e repugnantes incorrec-ccedilotildeesrdquo onde foi necessaacuterio ldquocorrigil-a grammaticalmente ligar o pensa-mento desconexo cuidando tambeacutem um pouco da parte meacutetrica de modo a natildeo ficar um aleijatildeo impiamente ferindo o ouvido educadordquo83

Observa-se pela passagem acima citada que Catullo natildeo soacute or-ganiza a publicaccedilatildeo das modinhas como tambeacutem se apropria delas de maneira tal que as corrige com o intuito de afinal natildeo ferir o ldquoouvido educadordquo Indicando sua autoridade sobre o texto e acima de tudo apontando seus possiacuteveis leitores Catullo se interpotildee entre o leitor e o criador da modinha para assim tentar regrar a recepccedilatildeo do texto publi-cado E ainda no prefaacutecio Catullo chama a atenccedilatildeo para sua compre-ensatildeo de que um autor de modinhas tambeacutem possa ser chamado de poeta ldquoPor isso peccedilo perdatildeo a todo poeta que deparar nrsquoeste volume com alguma composiccedilatildeo sua a qual natildeo esteja como lhe gottejou da pennardquo84 e conclui defendendo que aquele tipo de publicaccedilatildeo deveria ser considerado ldquoliteraturardquo

Concluacuteo lamentando natildeo ver neste volume o que seria um trabalho colossal todas as nossas ternas meigas doces e saudosas modinhas brasileiras preciosiacutessimas joacuteias do escriacutenio do estro popular Mas ainda assim o Srs Quaresma amp C vatildeo prestando conscientemente inestimaacutevel serviccedilo agrave literatura mais nacional ndash a do povo85

O ouvido ldquoeducadordquo por conseguinte seria informado pelo texto escrito que se fazia assim como mediador entre dois tipos de orali-dades que estavam em jogo naquele momento o oral sem o crivo da letra e o oral apoacutes passar por esse crivo Dito de outra forma as modi-nhas cantadas nas ruas e as modinhas a serem cantadas apoacutes o ldquofunil civilizadorrdquo do texto de Catullo

O ldquofunil civilizadorrdquo do qual fala Catullo era exatamente seu tra-balho sobre as letras de modinhas por ele corrigidas Catullo fazia o

83 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p IX

84 Idem p XI85 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 77

papel de funil natildeo soacute porque selecionava mas porque isto eacute importante frisar corrigia as modinhas inteiramente como bem observa

Natildeo experimentei o prazer de me vir agraves matildeos uma soacute que fosse a qual natildeo contivesse as mais baacuterbaras e repugnantes incorrecccedilotildees Explico-me Desejando incluir nrsquoeste volume uma qualquer modinha que por ser bella e popular preenche os dous fins primordiaes depois de muito procurar chega-me agraves matildeos quase inteiramente estropeaacutedas86

Assim na medida em que ia corrigindo as modinhas elevava-as a um tipo de produccedilatildeo literaacuteria que pudesse autorizar tambeacutem a sua produccedilatildeo modinheira ser considerada literatura ldquoQuanto agraves poesias de minha lavra nada direi Tivesse eu talento illustraccedilatildeo e estro e dedicar--me-hia de corpo e alma a esse gecircnero de litteratura o mais profiacutecuo de todosrdquo pois se colocava como um dos que estavam ldquoconvencidos de que nessas composiccedilotildees do povo scintillam fulgurantes pensamentos que rariacutesimas vezes satildeo lobrigrados nas obras da alta litteraturardquo87

A passagem acima tem o intuito de ser esclarecedora nela expotildee Catullo mais claramente seu ponto de vista com relaccedilatildeo agraves letras de mo-dinhas Num soacute prefaacutecio ele natildeo soacute constroacutei uma autoridade sobre o texto (pois que assume sua correccedilatildeo e portanto tambeacutem parte conside-raacutevel de sua autoria sobre elas) como enfatiza a qualidade de um tipo de produccedilatildeo oral que ele traduz para o texto escrito Autoridade sobre o texto para afirmar-se uma autoria e reivindicaccedilatildeo da qualidade do texto para ser entendido como literatura Sobre esses dois pedestais e articu-lando termos como ldquopopularrdquo ldquoalmardquo e ldquoliteratura nacionalrdquo Catullo ia construindo um lugar para o consumo de seu texto pelos leitores

No texto o autor ia construindo uma representaccedilatildeo social para si concomitantemente ao fato de que os leitores demandavam um tipo de produccedilatildeo ldquopopularrdquo que Catullo conhecia Ainda que tentasse manter certa distacircncia de um vieacutes do popular (a boecircmia o barulho das ruas a vagabundagem etc) tentava articular dentro dessa direccedilatildeo elementos

86 Ibidem p IX87 Ibidem p X

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo78

que pudessem oferecer ao seu puacuteblico um tipo de produccedilatildeo que fosse identificada como ldquocivilizadardquo e para tanto natildeo se poupou de alccedilar-se sobre algumas autoridades jaacute reconhecidas

[] noacutes que preferimos uma modinha uma canccedilatildeo ruacutestica um lunduacute requebrado a um qualquer trecho de Wagner que natildeo comprehendemos e que natildeo nos produz a miacutenima sensaccedilatildeo natildeo nos importemos com os pedantis o estulto dos que menoscabam do violatildeo por ser elle dizem o instrumento dos desoccupados e perdidos Quando encontrardes um desses typos nrsquouma sala em que haja algueacutem que vos deseje ouvir re-citae com emphase e enthusiasmo a poesia que dediquei ao violatildeo e depois cantae a modinha que se segue a essa poesia mas eacute a uacutenica cousa qye vos peccedilo com todo sentimento Quando proferirdes os nome [sic] de Aureliano Lessa Bernardo Guimaratildees Laurindo Varella Castro Alves e Tobias Barreto principalmente fitaes com vehemencia os minguados paspalhotildees e deixae-os eclypsados na immensidade de suas insignificantes pessoas Esses gecircnios superiores eram sinceros ado-radores do violatildeo88

Essa aproximaccedilatildeo com letrados reconhecidos revestia suas mo-dinhas de um caraacuteter mais respeitaacutevel de forma que pudesse tambeacutem conseguir o mesmo respeito Essa identificaccedilatildeo com um mundo letrado aparecia comumente tambeacutem em raacutepidos comentaacuterios no meio de sua obra onde tentava enfatizar a todo o momento o caraacuteter corretor das modinhas por ele transcritas em texto

Ao transcrever a modinha O poeta e a fidalga Catullo Cearense fazia aparecer no final uma observaccedilatildeo esclarecedora do sentido de sua obra tornar corretas letras que foram estropiadas pela tradiccedilatildeo oral por ldquodesleixordquo Assim conclui o autor

Eacute a primeira vez que em livro de modinhas estes versos vecircm aacute [sic] luz da publicidade completos e como o Sr Vanderley os escreveu Existem no seu livro de poesias e aqui vatildeo como laacute se encontram Os pequenos retoques que fiz satildeo com certeza oriundos do desleixo dos composi-tores O tiacutetulo natildeo eacute ndash Desprezo ndash e sim o que encima estes versos89

88 Ibidem89 Ibidem p 117

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 79

O curioso dessa modinha encontra-se no fato de ela ser como conta Catullo primeiramente um poema do ldquoSr Vanderleyrdquo musi-cado ainda segundo o organizador da obra por compositores ldquodeslei-xadosrdquo Ali O poeta e a fidalga retornava ao texto pelas matildeos de Catullo depois de circular pelas ruas cariocas (como ele leva a crer) com ecircxito pois eacute uma das modinhas em que o autor natildeo se preocupou em indicar a muacutesica a ser acompanhada procedimento comum quando a modinha jaacute era por demais conhecida do puacuteblico leitor Aliaacutes em Cancioneiro popular haacute vaacuterios exemplos desse tipo Essa ausecircncia de muacutesica a acompanhar a letra transcrita dava ainda mais a impressatildeo de se estar lendo de fato natildeo letras de modinhas mas poemas que foram musicados

Na tentativa de demonstrar intervenccedilotildees suas sobre as modi-nhas e de seu conhecimento de temas ditos ldquopopularesrdquo Catullo fazia aparecer palavras e termos que sentia a necessidade de explicar ao leitor Em Canccedilatildeo do africano da lavra de Catullo expressotildees como Zambi innan inzoacute xequereacute e Jupaacute eram explicadas em notas de ro-dapeacute como sendo respectivamente Deus amor choccedila uma espeacutecie de marimba e lua

O procedimento de se mostrar conhecedor e ilustrado natildeo eacute novo Em Choros ao violatildeo publicaccedilatildeo de 1902 tambeacutem organizado por Catullo ao transcrever a letra da modinha Alzira de sua autoria Catullo no afatilde de mostrar ao leitor o caraacuteter letrado da produccedilatildeo e de se afirmar como um autor tambeacutem letrado observa no uacuteltimo verso uma ldquoincorrecccedilatildeordquo

Se queres que um cantoSaudoso desfiraVem tu minha AlziraMeu peito afinarvem logo natildeo tardesvem dar-me um alentoque o meu pensamentonatildeo quer te deixar (1)

DO AUCTOR

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo80

Muacutesica da modinha ndash As horas que eu passo contigo na mente(1) Uma incorrecccedilatildeo consciente90

Uma ldquoincorrecccedilatildeordquo que rapidamente o autor buscou explicar como sendo uma ldquoincorrecccedilatildeo conscienterdquo e natildeo um lapso na norma culta pela qual dava a conhecer a modinha ao leitor Tais comentaacuterios visavam a assegurar o caraacuteter corretor da sua escrita com relaccedilatildeo agrave voz e daiacute alertar para o fato de o corretor (Catullo) ser um conhe-cedor da norma culta Como orientador de tal empreendimento Catullo Cea rense tratava de construir-se como autor culto a partir da construccedilatildeo de representaccedilotildees de sua funccedilatildeo de autor Construccedilotildees que jaacute apareciam nas indicaccedilotildees do cataacutelogo das ediccedilotildees Quaresma onde o editor apresentava Catullo como um ldquodistincto moccedilo conhecido poeta e prosador excellente professor de liacutenguas mdash nome que toda gente conhece e tem aplaudidordquo91

Exemplos de demonstraccedilatildeo de letramento se avultam no texto Valendo-se da tradiccedilatildeo oral das ruas do Rio de Janeiro de entatildeo Catullo fazia emendas em trovas conhecidas como a que fez na modinha Gosto de ti cuja muacutesica era do violonista Satyro Bilhar

Gosto de ti porque gostoporque meu gosto eacute gostarmas tu de mim natildeo te lembrasPor que me fazer penar

Ausente de ti distanteNatildeo posso a vida soffrerSentindo tantas saudads [sic]Como eacute possiacutevel viver

Gosto de ti por que te amoPorque meu gosto eacute te amarmas natildeo te lembras ingrataque eu vivo longe a penar

90 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Chocircros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902 p 35

91 Cataacutelogo das Ediccedilotildees Quaresma Em CEARENSE Catullo da Paixatildeo Choros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 81

As noites passo velando Os dias passo a gemerSentindo tantas saudadesComo eacute possiacutevel viver

Que tu me estimes deverasmeu coraccedilatildeo natildeo mais crecircGosto de ti porque gosto sem mesmo saber porquecirc92

Abaixo da modinha uma nota de rodapeacute explicava para os lei-tores que conheciam a primeira quadra que se tratava de uma emenda ldquoA primeira quadra natildeo eacute minha Como a muacutesica que eacute do meu amigo Bilhar eacute beliacutessima escrevi as quatro que se lhe seguemrdquo e acrescenta que a muacutesica de Bilhar estaacute por demais ldquopopularizadardquo93

A indicaccedilatildeo da muacutesica a acompanhar as modinhas publicadas aparecia sempre no iniacutecio da letra sem que Catullo se interessasse em publicar as devidas partituras Esse procedimento no entanto natildeo era algo comum no periacuteodo Mello Moraes Filho por exemplo publicara seu Cantares brasileiros em 1902 com o mesmo objetivo corretor de Catullo poreacutem com uma parte da publicaccedilatildeo voltada para as partituras de algumas das canccedilotildees ali publicadas Ao que parece natildeo produzia efeito algum para o reconhecidamente letrado Mello Moraes apro-ximar as modinhas que publicava de letras pois seu objetivo era tatildeo somente publicar modinhas e natildeo como queria Catullo publicar e ser reconhecido como um autor letrado

O natildeo aparecimento de partituras no livro de Catullo pode indicar o caraacuteter hiacutebrido com que o autor via as modinhas e queria que elas fossem lidas ou seja como poemas e letras Eacute tatildeo forte essa mescla em Cancioneiro Popular que Catullo muitas vezes intercala no meio das modinhas poesias de sua lavra e ateacute mesmo uma historieta em prosa intercalada com uma modinha como eacute o caso de Feliz aventura que o autor indica que eacute ldquoprosa e versordquo e que ldquoa muacutesica eacute da modinha ndash Ao

92 Ibidem p 7493 Ibidem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo82

virar da esquina eu vi em Lisboa uma rapariga catita e bem boardquo A estrutura de Feliz aventura remete diretamente agrave oralidade pois era algo para ser contado expresso em termos como ldquoum caso eu vos contordquo Tal iacutendice de oralidade jaacute eacute demonstrado no iniacutecio da histoacuteria

Um caso eu vos conto que se bem me lembropassou-se haacute dous annos no mez de NovembroFazia um tremendo calor de racharVagava nas ruas sem rumo a flanar

Como voz dizia o calor era insurpotaacutevel Fatigado pelo trabalho do dia buscava desesperadamente um logar nesta vasta Capital onde pudesse respirar mais livremente O acaso levou-me ao Passeio Puacuteblico Entrei EBuscando de prompto matar o cangaccediloFui logo assentar-me nrsquoum banco ao terraccedilo94

Se partituras natildeo apareciam estavam ali sempre as muacutesicas a acompanhar as modinhas Muacutesicas que supomos serem conhecidas do puacuteblico leitor Essa suposiccedilatildeo ganhava forccedila pois quando a muacutesica natildeo era assim tatildeo conhecida o autor fazia questatildeo de dizer ao leitor com ldquoquemrdquo se podia aprender Era o caso da modinha Bem-te-vi de Mello Moraes a respeito da qual Catullo em nota de rodapeacute observa

Estes beliacutessimos versos genuianamente [sic] brasileiros satildeo do talen-toso e erudito Dr Mello Moraes Filho A muacutesica eacute das mais bellas e inspiradas que eu conheccedilo Pena eacute natildeo poder indical-a ao leitor por ter sido feita especialmente para estes primorosos versos do illustre poeta e abalisado mestre Em todo caso apontarei aqui algumas pessoas com quem o leitor poderaacute aprendel-a

Costinha pianistaEduardo Velho pianistaJoatildeo dos Santos funccionaacuterio do correioTafi o seu auctor95

94 Ibidem p 6895 Ibidem p 97-98

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 83

Em outras modinhas simplesmente aparece a observaccedilatildeo de que ldquoa muacutesica eacute conhecidardquo (na modinha Ao ver-te por exemplo)96 Daiacute natildeo precisar do recurso de indicar algueacutem com quem se possa aprender a canccedilatildeo Cotejando as publicaccedilotildees de modinhas do periacuteodo obser-vam-se aleacutem da intervenccedilatildeo do organizador-autor da publicaccedilatildeo sobre as letras as distintas representaccedilotildees dadas ao material oral coletado

Mello Morais (em Cantares brasileiros de 1902) e Catullo Cearense (em Cancioneiro popular de 1908) publicaram a modinha Marietta com letras diferentes atestando assim as alteraccedilotildees tanto de caraacuteter oral quanto oriundas da transcriccedilatildeo da letra da modinha por le-trados Enquanto Mello Morais indica ser a letra uma poesia de Antocircnio A Figueira a autoria na publicaccedilatildeo organizada por Catullo eacute descar-tada Vale a transcriccedilatildeo

Versatildeo de Mello Morais Versatildeo de CatulloNestes teus laacutebios de anjo Nestes teus olhos de archanjoBebo harmonias dos ceacuteus Bebo harmonias dos ceacuteusO teu olhar eacute tatildeo casto O teu olhar eacute tatildeo castoComo o sorriso de Deus como uma benccedilatildeo de Deus

Que aroma tatildeo singular Que aroma tatildeo seductorNessa trancinha tatildeo preta Nesta trancinha tatildeo pretaQuero morrer em teus braccedilos quero morrer em teus braccedilosOh Formosa Marietta Oacute formosa Marietta[]Longe de ti eu suspiro Longe de ti vivo tristeVivo sem ter alegria no mais acarbo soffrerJunto de ti eacutes meu anjo perto de ti oacute meu anjoEacutes minha vida oacute Maria97 suspiro ateacute de prazer98

Em cada Marietta de Catullo e de Mello Morais as distintas re-presentaccedilotildees se chocam chamando a atenccedilatildeo para o caraacuteter muacuteltiplo das modinhas coletadas Ademais o fato de Catullo natildeo fazer aparecer

96 Ibidem p 7897 MORAIS FILHO Mello Cantares brasileiros Rio de Janeiro SEEC-RJ 1981 p 30898 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio

de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 142-143

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo84

o autor da letra (diferentemente de Mello Morais) faz parte de uma in-tenccedilatildeo exposta em seus prefaacutecios de afirmar sua intervenccedilatildeo sobre a letra e portanto sua autoria A partir do momento em que Catullo ence-tava uma mudanccedila (e quase sempre eram vaacuterias) nas letras das modi-nhas transcritas (natildeo indicando tambeacutem sua autoria) ele proacuteprio auto-rizava-se a ser entendido pelo leitor como o ldquoautorrdquo

O enorme sucesso que obteve Cancioneiro ndash alavancado em muito pelas famosas publicidades das ediccedilotildees Quaresma99 ndash fez com que a publicaccedilatildeo chegasse a 25 ediccedilotildees em nove anos um verdadeiro su-cesso editorial em seu tempo fazendo jus ao objetivo editorial de Pedro da Silva Quaresma qual seja o de a partir de ediccedilotildees vendidas a preccedilos moacutedicos boa publicidade e com temaacuteticas que pudessem aticcedilar o puacute-blico letrado nascente aumentar a lucratividade com a venda de livros

Um ilustre consumidor das ediccedilotildees Quaresma foi o teatroacutelogo e jornalista Arthur Azevedo Ele era admirador dos livros contendo le-tras de modinhas e assim se manifestou sobre o Cancioneiro Popular de Catullo

No Brasil haacute um livro e um livro de versos que conta nada menos de vinte e cinco ediccedilotildees eacute o Cancioneiro Popular compilado em parte e em parte escrito pelo poeta Catullo da Paixatildeo Cearense elo-quumlente e simpaacutetico defensor do nosso esquecido e saudoso violatildeo dos outros tempos[]O nosso Catullo a quem para ser tatildeo grande como seu homocircnimo la-tino soacute faltou viver em Roma e ser amante de Leacutesbia deliciosa e fe-cunda fonte de inspiraccedilatildeo e poesia o nosso Catullo sentiu bem quanto de suave e de inteligente na modinha brasileira que natildeo vai agrave Avenida nem agrave rua do Ouvidor e eacute mal vista dos smarts do corso e das batalhas de flores100

99 O criacutetico literaacuterio Brito Broca dizia que o livreiro e editor Quaresma ldquofoi o precursor da publicidade modernardquo pois ldquoquando lanccedilava uma ediccedilatildeo costumava fazer grandes cartazes com o nome do livro e mandava pregaacute-los por todos os pontos da cidaderdquo Cf BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 49

100 Citado por Luciano Braga Cf BRAGA Luciano Catullo Cearense In CEARENSE Catullo (org) Lyra dos salotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1926 p 18 (1ordf ediccedilatildeo em 1913)

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 85

Esse reconhecimento por um credenciado teatroacutelogo o editor Quaresma fez aparecer convenientemente na 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro Com isso o editor evocava na publicaccedilatildeo a opiniatildeo de um letrado reco-nhecido visando a uma maior aceitaccedilatildeo da obra posta a puacuteblico

O reconhecimento do leitor Arthur de Azevedo natildeo era uacutenico Eacute possiacutevel vislumbrar no processo de reconhecimento de Catullo como autor uma seacuterie de manifestaccedilotildees de leituras de sua obra no periacuteodo e que lhe foram garantindo um lugar dentre os literatos Se o ecircxito editorial de Cancioneiro Popular foi possiacutevel isso se deveu em muito agraves leituras dos livros de Catullo que eram feitas mediadas pelas discussotildees acerca do universo identificado como ldquopopularrdquo no periacuteodo Formava-se assim uma comunidade de leitores de temas populares que catapultaram a su-cesso imediato muitas publicaccedilotildees que saiacuteram com essa identificaccedilatildeo

O fato eacute que Cancioneiro Popular ficaria dali por diante conhe-cido como a referecircncia literaacuteria de Catullo Cearense de forma que nas suas publicaccedilotildees posteriores era apresentado como o ldquoauctor do Cancioneiro Popularrdquo101 Mas o sucesso de Cancioneiro Popular natildeo findou a incessante busca de Catullo por ser reconhecido como literato

Um poeta popular

O jornal A Noite em iniacutecios de 1912 publicava em sua primeira paacutegina uma crocircnica-reportagem com um tiacutetulo questionador ldquoA popu-laridade existiraacute realmente Algumas observaccedilotildees eloquentesrdquo O autor contava para seu interlocutor tambeacutem personagem da crocircnica que ao caminhar no Passeio Puacuteblico parou diante da herma do poeta Gonccedilalves Dias e ao avistar um jardineiro perguntou

ndash De quem eacute istoO homem parou um instante olhou a herma do nosso primeiro cantor lyrico e resmungoundash IstoE depois de pensar

101 Essa observaccedilatildeo encontra-se por exemplo nas capas dos livros ldquoChocircros ao Violatildeordquo (de 1902) e ldquoLyra Brasileirardquo (de 1905)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo86

ndash Eacute do Sr Dr Juacutelio FurtadoPara o jardineiro que cuida do canteiro onde Gonccedilalves Dias floresce no bronze votivo o nosso grande poeta era apenas um adorno dos vastos domiacutenios do director da Inspectoria dos Jardins102

O embaraccedilo do autor do texto ficava ainda mais evidente quando buscando insistir numa resposta que fosse compatiacutevel com sua expecta-tiva contava que quando da morte do poeta portuguecircs Eccedila de Queiroz algueacutem o interrogou na rua

ndash Quem Morreundash O Eccedila de Queirozndash Ah Coitado O Queiroz das fazendas Pretas103

O caraacuteter risiacutevel das respostas contrastava com aquilo que o autor da crocircnica-reportagem procurava discutir seriamente qual seja o ca-raacuteter ldquopopularrdquo dos personagens que ele supunha serem dignos de re-ceber tal identificaccedilatildeo Frustrado com as respostas imprevisiacuteveis ndash e risiacuteveis ndash das pessoas que encontrava na rua o autor do texto contou que ainda insistiu uma vez mais

ndash Paremos na rua interroguemos aquele mulato pernoacutestico de pastinha atrevida cahindo sob a aba do chapeacuteu de pallha Conheces o Catullo da Paixatildeo Cearensendash Ah Patratildeo Quem natildeo conhece o Catullo Eacute um ldquocabra bonzatildeordquo para a modinhandash E o Coelho Nettondash O Netto o cheirosinho Aquelle que trabalha na estiva104

Inconformado o autor da narrativa punha-se a lamentar ldquoAhi tens meu caro um que conhece o Catullo mas natildeo conhece o Coelho Nettordquo Frustrado concluiacutea dizendo o que pensava ser popularidade de-pois de toda aquela enquete

102 A Noite 9 jan 1912 p 1103 A Noite 9 jan 1912 p 1104 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 87

A popularidadeA popularidade eacute bem uma fantasia que agraves vezes chega a ser dolorosa especialmente quando se acredita que as multidotildees reconhecem o po-pular e ellas interrogam allucinadasndash Quem eacute essa figura105

Os ldquopopularesrdquo citados pelo autor da crocircnica eram rendidos diante do desconhecimento deles pelas pessoas nas ruas Soacute Catullo passou ndash para a frustraccedilatildeo do cronista ndash incoacutelume na pesquisa

Em iniacutecios dos anos 1910 o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense era jaacute bastante conhecido no Rio de Janeiro e sua fama se estendia entre vaacuterios grupos sociais da cidade O editor Quaresma que continuava a publicar e reeditar seus livros aumentava o nuacutemero de letrados dos mais diversos setores da sociedade entre seus clientes Catullo por sua vez aleacutem de ser reconhecido como um ldquopoeta popularrdquo pelo mundo letrado acumulava a satisfaccedilatildeo de ser conhecido por pessoas comuns que cantavam suas modinhas nas ruas cariocas Essa satisfaccedilatildeo natildeo dis-farccedilava o ressentimento com que lidava quando o assunto era ser cha-mado (ou natildeo) de ldquopoetardquo

Os poetas julgam mal os trovadores como eu Eacute uma injusticcedila grande Eu pelo menos nunca pretendi chegar ao ideal da formaEu canto Canto pela alma Embebo-me da muacutesica a que devo dar as minhas palavras degusto-a penetro-lhe no sentimento e escrevo106

Um ldquotrovadorrdquo injusticcedilado pelos ldquopoetasrdquo Assim Catullo se auto representava mas mesmo ressentido por lhe negarem um lugar que ele achava ser compatiacutevel com seus versos procurava chamar a atenccedilatildeo para o fato de que seu canto era acompanhado sempre da escrita reve-lando seu caraacuteter distinto dos demais trovadores pois

Escrevo e canto Embora conheccedila bem a meacutetrica tanto que vou pu-blicar um livro de poesias traduzidas prefiro estabelecer esse consoacutercio

105 Ibidem106 O Paiz 25 fev 1906

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo88

entre melodia e a poesia tirando daquela a vida de meus versos Sei que os meus versos natildeo tem arte mas alma107

Afirmava assim sua produccedilatildeo natildeo pela arte mas pelo que ela tem de ldquoalmardquo E ldquoalmardquo era um fator determinante para se qualificar positivamente uma produccedilatildeo no periacuteodo Advogar para suas modinhas um valor intriacutenseco agrave alma era colocar-se dentro de um rol de produtos que desde o seacuteculo XIX reivindicava o caraacuteter de arte para objetos em que se reconhecia a expressatildeo do indiviacuteduo da sua alma

Esse reconhecimento natildeo poderia ser dado no entanto para qualquer produto ndash muito menos para um indiviacuteduo qualquer Catullo sabedor dessa tensatildeo entre alma e arte e mais ainda sabedor dos cami-nhos que poderiam referendar suas modinhas como ldquoarterdquo fazia de-monstraccedilotildees constantes de sua condiccedilatildeo de letrado E em 1910 quando veio a lume pelas ediccedilotildees Quaresma o seu Trovas e canccedilotildees uma im-portante mudanccedila se verificou a primeira parte da publicaccedilatildeo vinha como de costume com ldquoPoesias de cantordquo em que eram transcritas as modinhas enquanto que em uma segunda parte estrategicamente inti-tulada ldquoPoesias de recitaccedilatildeordquo seguiam-se os versos escritos pelo proacute-prio Catullo alternando-se com suas traduccedilotildees de poesias de Chateaubriand Fuentes e outros poetas estrangeiros conhecidos

Poreacutem enquanto a primeira parte da publicaccedilatildeo (a das modi-nhas) era colocada em relevo pela publicidade das ediccedilotildees Quaresma a segunda parte (com poemas de Catullo e traduccedilotildees feitas por ele) desaparecia dos reclames que apareciam nos jornais Ora Catullo Cearense era reconhecido como modinheiro e portanto ressaltar o caraacuteter musical da produccedilatildeo era para o editor Quaresma condiccedilatildeo necessaacuteria para que ela se tornasse um sucesso de vendagem ou como queria o editor ldquopopularrdquo

TROVAS E CANCcedilOtildeESUacuteltimo livro de modinhas de Catullo CearenseTrazendo uma extraordinaacuteria collecccedilatildeo de formosiacutessimas modinhas para serem cantadas em salotildees familiares festas collegiaes concertos

107 Idem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 89

etc etc e a indicccedilatildeo [sic] das muacutesicas que devem ser cantadas []Um volume com linda capa com o retrato do grande poeta e cantor 2$000108

Por outro lado os prefaciadores do livro tentavam chamar a atenccedilatildeo do leitor para o caraacuteter poeacutetico das canccedilotildees ali transcritas in-clusive dando outra denominaccedilatildeo a Catullo qual seja a de poeta O prefaacutecio escrito pelo major Moreira Guimaratildees eacute emblemaacutetico Apoacutes elogiar a inteligecircncia de Catullo ndash ao ouvi-lo dizer seus versos num trem suburbano ndash arrematava que ldquome convenci de que o popular tro-vador eacute um grande poetardquo e concluiacutea

A muacutesica gemedora que elle arranca das cordas do seu dilecto violatildeo constitue apenas o fundo do quadro em que fulgura o intenso lyrismo de suas encantadoras poesiasEm verdade Catullo canta e sabe cantar com sua voz inconfundiacutevel Mas elle a cantar diz mais do que cantaNatildeo haacute duacutevida a figura do primoroso artista do verso e de maravilhoso e original diseur eacute a que bem lhe ajustaNatildeo lhe quero negar todavia as explendidas qualidades de cantor emeacute-rito que vae prestando ao patriotismo brazileiro o inestimaacutevel serviccedilo de rehabilitar o mais democraacutetico dos instrumentos Mas eacute preciso que a genearlidade dos compatriotas lhe natildeo escute simplesmente as lango-rosas harmonias do querido violatildeo109

No prefaacutecio da publicaccedilatildeo a condiccedilatildeo de poeta de Catullo eacute co-locada diante do interesse oposto do editor Quaresma de salientar as qualidades do modinheiro e cantor ndash ainda que poeta Apesar das diver-gecircncias quanto agrave preponderacircncia dada a modinhas e poemas ambos visavam sem duacutevida a chamar a atenccedilatildeo do leitor para a qualidade da publicaccedilatildeo e do autor Do lado do editor Quaresma visando agrave maior lucratividade do produto por outro lado o interesse do prefaciador era indicar uma leitura mais distinta ndash e assim podemos dizer para ele

108 O Paiz 17 jun 1910109 GUIMARAtildeES Moreira Catullo Cearense In CEARENSE Catullo Cearense Trovas e

canccedilotildees Rio de Janeiro Livraria do Povo 1910 p 12

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo90

melhor ndash de Catullo como poeta original Se Quaresma fazia questatildeo de dizer que as modinhas eram ldquocoleccedilotildeesrdquo escritas por Catullo o prefa-ciador atentava para a originalidade do mesmo

Trovas e canccedilotildees aflorava as contradiccedilotildees da produccedilatildeo de Catullo Cearense de forma latente Uma primeira parte que satisfazia o inte-resse do editor por modinhas colecionadas por um trovador e uma se-gunda parte que buscava mostrar para o leitor o poeta o letrado que escreve poesias o autor original primeiro e definitivo de sua produccedilatildeo e aquele que conhecedor das letras traduz poetas estrangeiros

De sua parte Catullo fazia de sua publicaccedilatildeo elemento funda-mental para sua afirmaccedilatildeo como poeta e autor Em um dos poemas de Trovas e canccedilotildees intitulado ldquoSegundas Trovas Satyricasrdquo responde aos seus criacuteticos evocando autoridades que saudavam seus versos

E quando eu canto com arteO burro o critico atrozProclama por toda parteQue canto bem mas sem voz

[]

Responderei com um sorrisoComo devo responderDe mais voz eu natildeo precisoPorque canto e sei dizer

Depreciar-me eacute dislateeacute fazer figura maacutetendo elogios de um vateda estatura de Murat

Eacute esforccedilo inuacutetil baldadoeacute uma completa asneiraporque em verso fui saudadopor Alberto de Oliveira

Natildeo me causam calefriosos zoilos dos zoilos zombodecircs que tive os elogiosdo provecto Rocha Pombo

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 91

Que ladre o bobo o pascaacutecioFicarei a gargalharSempre que ler o prefaacutecioDe Pethion de Villar110

Ainda que houvesse disputas de representaccedilotildees entre autor e editor elas natildeo se davam de maneira a criar um mal-estar entre ambas as partes e embora Catullo se apercebesse do entrave causado por objetivos distintos entre ele e Quaresma isso ao que parece nunca o colocou em confronto direto com o editor Aliaacutes o progressivo reco-nhecimento social de Catullo se devia agraves estrateacutegias editoriais de Quaresma e mesmo que o primeiro conduzisse suas modinhas para um entendimento proacuteximo ao de um poema pareceu sempre estabelecer com elas uma relaccedilatildeo de ambiguidade tentando afirmaacute-las enquanto modinhas como poesia ao passo que flertava com outro tipo de pro-duccedilatildeo que natildeo a modinheira

Isso se dava de maneira sutil e criava uma aporia exatamente no momento em que se comeccedilou a reconhecer Catullo como poeta uma vez que um poeta que publicava modinhas era representado como poeta ldquopopularrdquo e ldquopopularrdquo natildeo podia a priori ser considerado poeta Ali se desenrolaram dois movimentos paralelos que se encon-traram o ldquopoeta popularrdquo vai sendo alccedilado a um indiviacuteduo digno de ser notado (pois expressaria uma suposta alma do povo) e os temas popu-lares satildeo procurados como subsiacutedios para a produccedilatildeo de uma literatura brasileira por letrados consagrados Eacute nesse encontro que vai ser de-senrolada uma mudanccedila na produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense que marcaraacute sua trajetoacuteria

Jaacute na entrada dos anos 1910 e com as publicaccedilotildees exitosas da li-vraria Quaresma reverbera na imprensa outra representaccedilatildeo de Catullo ldquo[] o Sr Catullo da Paixatildeo Cearense eacute a mais tremenda gloacuteria da poesia nacionalrdquo111 assim afirmava o redator de um perioacutedico ca-rioca em iniacutecios de 1911 numa seacuterie de crocircnicas sob o tiacutetulo de O Rio

110 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Trovas e canccedilotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1910 p 136-137

111 O Paiz 7 abr 1911

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo92

por dentro O autor sob o pseudocircnimo de Argus saudava a poesia de Catullo como digna de ser tachada de uma gloacuteria

Catullo da Paixatildeo Cearense encontrava-se na deacutecada de 1910 do seacuteculo XX envolvido numa ambiguidade que o traraacute como tema funda-mental em diversas reportagens do periacuteodo quando se tratava de pensar no seu lugar dentro do panteatildeo da ldquopoesia nacionalrdquo Respeitado por uns ignorado por outros era possiacutevel vislumbrar inclusive ambas as atitudes em um uacutenico sujeito Respeitado por conhecer ldquocoisas popu-laresrdquo desdenhado por ser entendido como um ldquoautor popularrdquo Essa nuance de opiniotildees natildeo era absolutamente desconsiderada por Catullo Ao contraacuterio parecia guiar sua produccedilatildeo numa incessante busca pelo reconhecimento A recepccedilatildeo de sua obra deve ser entendida como parte fundamental de seu processo de criaccedilatildeo tanto mais porque Catullo fazia aparecer comentaacuterios de leitores em seus livros e respondeu mais de uma vez em poemas e prefaacutecios os seus detratores

Anna Ceacutesar cronista de O Paiz testemunha para os leitores do jornal a sua leitura de Novos cantares publicaccedilatildeo de Catullo Eacute possiacutevel observar em suas palavras todas as ambiguidades que definiam Catullo nesse tempo

Venho de concluir a leitura de dois livros interessantes que tenho sobre a mesa Cada qual em seu gecircnero ambos preciosos e jaacute recommen-dados pelas assignaturas que os illustramSatildeo elles Estudos e reflexotildees de Moreira Guimaratildees e Novos Cantares de Catullo CearensePedem-me sobre os mesmos algo dizerQue ousaraacute traccedilar a minha obscura Penna de chronista quando jaacute se tem dito e com maior competecircncia sobre os trabalhos desses dois bellos ornamentos da literatura patriacutecia112

Depois de fazer comentaacuterios elogiosos agrave publicaccedilatildeo de Moreira Guimaratildees exaltando seus ldquoarroubos literaacuteriosrdquo a cronista segue para a apreciaccedilatildeo de Novos cantares

112 O Paiz 30 jul 1911 p 2

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Quanto ao livro de Catullo Cearense eu que o conheccedilo e o admiro que o tenho applaudido em minhas salas natildeo lhe posso expender opiniotildees sem que me torne suspeitaCatullo natildeo eacute somente o poeta primoroso querido de seus collegas de letras e um talento prodiacutegio de originalidade conjunto de muacutesica de poesia e de arte Alma que chora canta e vibra nas cordas do violatildeo todos os segredos do coraccedilatildeo todas as nuances do sentimentoMeditativo e despretensioso transfigura-se ao declamar os versos que escreve cheios de delicadezas alados ninhos em que se abrigam [] inspiraccedilotildees de artistasCatullo natildeo eacute para os leigos em mateacuteria de literatura nem para literatos improvizados desses que abundam por ahi com pretensotildees a criacuteticosCatullo eacute para os mestres que o podem admirar julgar e comprehenderPena seraacute que esse espiacuterito ao partir da vida terrena para alar-se aacute [sic] regiotildees superiores natildeo possa talvez deixar como sequencia um disciacutepulo que perpetue a escola genuinamente sua e por ningueacutem ainda imitada apesar da criacutetica severa e ateacute ridiacutecula que se lhe tem tentado lanccedilar113

Elogiosa e mesmo apologeacutetica essa criacutetica coloca Catullo em alta conta dentro da literatura ao mesmo tempo em que abstendo-se de falar de seus versos contidos em Novos cantares chama a atenccedilatildeo para o caraacuteter performaacutetico da sua poesia ldquoao declamar versos que escreverdquo Essa imagem de Catullo declamando eacute muito cara agrave sua representaccedilatildeo e o seguiraacute durante toda a vida

A premissa eacute que seus versos soacute se expressariam diante da orali-dade aqui levada ao extremo pela sua imagem a declamar nos salotildees Poeta dos salotildees homem de literatura Natildeo a voz do canto a serviccedilo da poesia mas voz e verso como elementos indissociaacuteveis para a consu-maccedilatildeo da poesia propriamente Para Anna Cesar a poesia em Catullo eacute acontecimento Para completar a criacutetica apologeacutetica ela termina escre-vendo ldquoPeccedilo desculpas aos leitores por me ter expandido desta forma sobre o nosso menestrel fazendo-lhe a apreciaccedilatildeo individual ao envez da criacutetica aos seus versos []rdquo114

113 Idem114 Idem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo94

Anna Ceacutesar vai de frente a outro tipo de recepccedilatildeo das publica-ccedilotildees de Catullo aquela que o vecirc como algo menor Gilberto Amado entatildeo ainda estudante de direito e articulista escrevendo um artigo em sua coluna ldquoA Semanardquo no jornal O Paiz sobre o teatro produzido no paiacutes observa de modo irocircnico o fato de que no Brasil soacute as operetas e revistas tecircm puacuteblico e compara

Em literatura de outro gecircnero eacute a mesma coisa Raul Pompeacuteia escreveu o Atheneu e a segunda ediccedilatildeo desse livro monumental feita ultimamente a custa de esforccedilos de amigos estaacute quase intacta ainda na casa Alves Entretanto tecircm sido innumeras as ediccedilotildees dos volumes de poesias eroacute-ticas que se esgotam e creio natildeo haacute modinha de Catullo Cearense que natildeo voe em um instante todos os vetos da publicidadePara que tratar do theatro Eacute uma superfluidade O nosso povo no seu crasso analphabetismo no seu desdeacutem das ideacuteas pensa laacute em coisas seacuterias115

Esse olhar lanccedilado sobre as publicaccedilotildees de Catullo vindo de um conhecido articulista do periacuteodo resguardava para o autor certa distacircncia de um reconhecimento como literato Poreacutem ao mesmo tempo em que parecia negar-lhe um lugar no panteatildeo de uma literatura respeitaacutevel en-tregava-lhe estigmatizando-o negativamente a autoria de textos consi-derados ldquonatildeo-seacuteriosrdquo ou seja conferia-lhe a autoridade sobre eles de modo que desdenhava do fato de que muitas das modinhas publicadas em livros sob o nome proacuteprio Catullo Cearense serem originalmente criadas por vaacuterios artistas e soacute depois reunidos em textos por Catullo Assim era o nome proacuteprio Catullo que era responsabilizado pelas publi-caccedilotildees consumidas pelo ldquopovordquo no seu ldquocrasso analphabetismordquo Mais tarde o proacuteprio Gilberto Amado reafirmaria seu ponto de vista

Na Inglaterra na Franccedila na Alemanha qualquer menino de lyceu recita Homero e tem a alma cheia de maravilhas authenticas do Parnaso Diz as coacuteleras de Agammenon os desejos luminosos de Anacreonte e a sua alma se engrandece no grande rythmo das paixotildees heroicas

115 O Paiz 9 abr 1911 p 1

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Aqui as nossas primeiras impressotildees literaacuterias vecircm dos gorgeios de Catullo Cearense e nas piadas das revistas populares116

A essas impressotildees em negativo Catullo fazia acudir em seus livros como jaacute o vimos a opiniatildeo de gente respeitada da elite letrada carioca Outro elemento deve ser sublinhado as dedicatoacuterias das poe-sias e modinhas que Catullo fazia aparecer em seus textos

Fazendo o uso de praacutetica comum no periacuteodo o autor dedicava suas publicaccedilotildees quase sempre a um membro distinto da sociedade ca-rioca Assim na 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro popular de 1908 dedica ldquoao primoroso e distincto comediographo brasileiro Arthur Azevedo como singela prova de admiraccedilatildeo ao seu talento omnidordquo A publicaccedilatildeo Lyra brasileira vai dedicada ao ldquoabalisado mestre do provecto forma-lista ao eminente criacutetico ao inspirado e mavioso poeta Medeiros e Albuquerquerdquo Trovas e canccedilotildees de 1910 vai dedicado ao ldquoExmo Sr M Moreira da Silva doutor em Odontologia Lente Cathedraacutetico da Escola Livre do Rio de Janeirordquo Esse recurso comum era ampliado nas obras de Catullo pelas dedicatoacuterias que fazia aparecer em cada modinha e em eventuais poesias que fazia publicar Assim em Novos cantares de 1909 enquanto aparece uma rara dedicatoacuteria do livro para a matildee de Catullo falecida em 1908 cada modinha e cada poesia vinham acom-panhadas com dedicatoacuterias a pessoas ilustres entre as quais ldquoao grande poeta Dr Luis Muratrdquo (a quem dedica o poema Ode ao violatildeo) ldquoAo glorioso luminar do exeacutercito brasileiro Marechal Hermes da Fonsecardquo (a quem dedica a modinha Templo ideal) ldquoao Dr Luacutecio de Mendonccedilardquo (a quem dedica a modinha O teu cabello) e ateacute mesmo ao seu editor Pedro da Silva Quaresma (a quem dedica a modinha Rasga coraccedilatildeo)

Natildeo soacute Catullo lanccedilava matildeo dessa receita Por essa mesma eacutepoca em 1915 a livraria Castilho lanccedilava sua primeira publicaccedilatildeo de autor nacional Carmen tropicale livro de poesias de Antocircnio Torres (que seria posteriormente reconhecido por suas Pasquinadas cariocas) A maioria dos seus 33 poemas ia acompanhada de dedicatoacuterias a indiviacute-duos como Goulart de Andrade Oscar Lopes e Nestor Victor

116 O Paiz 16 out 1913 p 1

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Praacutetica comum as dedicatoacuterias poderiam atender a vaacuterias de-mandas inclusive a necessidade vital para um escritor de mirar seu puacute-blico consumidor fosse pela autoridade evocada na dedicatoacuteria fosse no mero agradecimento por serviccedilos prestados mdash ora citar um ilustre dedi-cando-lhe um poema poderia soar como estar proacuteximo do ilustre o que poderia abalizar o indiviacuteduo que escreve como algueacutem ldquoreconhecidordquo

Haacute de se levar em conta que a publicaccedilatildeo de um livro demandava vaacuterios empreendimentos por parte de um escritor inclusive se valendo da ajuda de proacuteximos Antocircnio Torres ao publicar seu volume de poe-sias Carmen tropicale embora levasse o selo da livraria Castilho pagou com o proacuteprio bolso toda a ediccedilatildeo Conta-se que o proprietaacuterio Antocircnio Castilho que jaacute publicara algumas traduccedilotildees de estrangeiros como Dostoievski suspeitava de lanccedilar um escritor nacional por sua casa117 De qualquer forma temeroso de um possiacutevel fracasso Antocircnio Torres advertia ao seu leitor em uma nota-posfaacutecio que fez aparecer no livro ldquoO encontrar coisas boas num livro depende apenas de saber lerrdquo118

O aumento de um puacuteblico letrado fazia aparecer inuacutemeros lei-tores que por sua vez criavam expectativas a cada publicaccedilatildeo que saiacutea Isso demandava de autor e editor estrateacutegias que pudessem ser bem avaliadas por um possiacutevel consumidor Dedicatoacuterias preccedilos formas materiais do livro convencimentos por prefaacutecios e posfaacutecios opiniotildees em perioacutedicos tudo isso entrava no rol de elementos a serem pensados por aqueles que visavam ao sucesso da publicaccedilatildeo Esse empreendi-mento dispendioso e arriscado num paiacutes potencialmente de natildeo lei-tores fazia aparecer aspirantes a escritores a cada dia que almejavam serem lanccedilados sob a proteccedilatildeo de um ilustre Se o ecircxito da livraria Quaresma podia ser tomado como exemplo para outros editores natildeo era faacutecil e barato imitaacute-la ainda mais quando o editor e o escritor natildeo abriam matildeo de produzir e publicar livros de ldquocoisas seacuteriasrdquo como queria Gilberto Amado anteriormente citado

A editora e livraria Castilho vinha com essa pretensatildeo mas en-contrava um mercado de ldquoobras seacuteriasrdquo jaacute inchado sob a eacutegide da

117 BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 68118 TORRES Antocircnio Carmen tropicale Rio de Janeiro Livraria Castilho 1915 p 80

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Garnier Ainda assim apostando na boa aprovaccedilatildeo feita ao livro do as-pirante Antocircnio Torres Antocircnio Castilho natildeo abriu matildeo de publicar li-vros ldquomais seacuteriosrdquo e imitar um pouco da publicidade exitosa de Pedro Quaresma Por seu lado escritores novos e antigos procuravam o aval de selos mais seacuterios visando a ganhar mais credibilidade dos leitores

Catullo da Paixatildeo Cearense o maior sucesso de vendas da Quaresma afastar-se-ia dessa editora e se aproximaria da Castilho Em 1918 lanccedilaria sob o selo de Antocircnio Castilho o livro de poemas Meu sertatildeo Mas daiacute ateacute esse rompimento com Quaresma se daria um flerte com a temaacutetica sertaneja que contaminava o Rio de Janeiro do periacuteodo Sempre atento e sensiacutevel agraves mudanccedilas que se processavam na literatura Catullo se viu diante de uma possibilidade iacutempar de reconhecimento em definitivo como poeta (e natildeo soacute ldquopoeta popularrdquo) escrevendo temaacuteticas mais ldquoseacuteriasrdquo e deixando as modinhas de lado ao aproximar-se de um editor que visava a tal seriedade buscada Nesse iacutenterim poreacutem foi ainda uma modinha de sucesso que lhe deu essa oportunidade o Luar do sertatildeo

Figura 2 ndash Catullo da Paixatildeo Cearense em foto publicada em Lyra brasileira de 1908 pela livraria Quaresma

Fonte arquivo do autor

SER POETA SER DO SERTAtildeO

Catullo Cearense tu

tens o defeito bem fortede arranjar termos do Sue dizer que satildeo do Norte

Joatildeo Carvalho119

A cidade e o sertatildeo

Em 1915 a livraria Quaresma publicava aquele que era anun-ciado pelo editor como o ldquouacuteltimo livro de modinhas de Catullo Cearenserdquo Florileacutegio dos cantores eacute uma publicaccedilatildeo dividida em trecircs partes 1) Florileacutegio dos cantores 2) Flores do sertatildeo e 3) Flores dispersas Em Flores do sertatildeo apareciam pela primeira vez em livro as modinhas com temaacuteticas sertanejas de Catullo incluindo Luar do sertatildeo e Poeta do sertatildeo Era a primeira vez que Catullo se revelava um bardo das coisas sertanejas Em Poeta do sertatildeo ndash que segundo Catullo deveria ser acom-panhada da muacutesica do ldquomaestro Francisco Nunes que logo depois ficaraacute popularizadardquo ndash o autor buscava representar a fala sertaneja

Si chora u pinhoIn disafiugemedocirc

119 Apud ALENCAR Edigar de Claridade e sombra na muacutesica do povo Rio de Janeiro Francisco Alves Brasiacutelia INL 1984 p 54

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 99

Natildeo haacute puetaComo u fiudo sertatildeo sem secircdoutoOs oio quentiDa caboca faz a gentiSecirc pueta di repentequi a puesiavem do amocirc120

O ecircxito daquelas modinhas sertanejas daria a Catullo a oportuni-dade para em pouco tempo arvorar-se de bardo modinheiro a poeta do sertatildeo Naquele mesmo ano saiu pela Papelaria e Typografia Sportiva o volume intitulado Canccedilotildees das madrugadas com letras de Catullo adaptadas para canccedilotildees conhecidas Era a primeira vez depois de muitos anos que Catullo natildeo publicava pela Quaresma

Nessa publicaccedilatildeo novamente aparece a letra de Poeta do sertatildeo acompanhada de uma dedicatoacuteria ao poliacutetico cearense Floro Bartholomeu mas com a seguinte mudanccedila na indicaccedilatildeo da muacutesica a acompanhar ldquoPara ser cantada com a toada Caboca de Caxangaacute de minha lavra disco da Casa Edisonrdquo121 A mudanccedila na escolha da muacutesica a acompa-nhar a canccedilatildeo natildeo parece deliberada Da erudiccedilatildeo de um maestro Catullo parecia visar agravequilo que identificava como ldquopopularrdquo preferindo a muacute-sica da famosa toada sertaneja Caboca de Caxangaacute A mudanccedila tambeacutem chama a atenccedilatildeo para a possiblidade agrave eacutepoca da existecircncia de uma letra adaptada a vaacuterias muacutesicas ou ao contraacuterio o que era muito comum uma muacutesica poderia circular com letras diferentes

Caboca de Caxangaacute era uma canccedilatildeo que fora sucesso no car-naval de 1913 nas ruas cariocas com letra diferente daquela dada por Catullo Seu formato de embolada remetia a um canto falado proacuteximo ao dos repentistas comuns do nordeste do paiacutes Comos vimos o Rio de

120 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Florileacutegio dos cantores Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1915 p 93-98

121 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Canccedilotildees das madrugadas Rio de Janeiro Papelaria amp Typografia Sportiva 1915 p 21

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Janeiro desde finais do seacuteculo XIX acostumara-se a assistir a espetaacute-culos como esse cujo tema central era o interior o sertatildeo

Ladeada por equipamentos modernos que criavam novos espaccedilos de sociabilidade e armada das ldquopalpitantesrdquo obras literaacuterias que atra-cavam nos portos das grandes cidades a elite letrada brasileira de iniacute-cios do seacuteculo XX convivia com o dilema cotidiano de ver-se como parte importante do desejo de civilizar-se ao passo que enxergava agrave sua volta a sobrevivecircncia (e por que natildeo a ameaccedila) da existecircncia de coisas ditas ldquobaacuterbarasrdquo Agrave pretensa busca de um ideal civilizatoacuterio que fosse corporificado pela sede de progresso (palavra de ordem daqueles tempos) juntou-se para a elite letrada uma vontade de encontrar algo que singularizasse o Brasil no mundo Ambos os movimentos ndash o de buscar inserir-se e o de singularizar-se ndash faziam parte da mesma von-tade de representar-se diante do mundo Parte constitutiva desse para-doxo e aquela onde mais se expressou esse dilema foi a sede por temas sertanejos que se disseminou nas produccedilotildees de grande parte do uni-verso letrado das capitais

No Rio de Janeiro capital federal de entatildeo onde desde fins do seacuteculo XIX processava-se aleacutem de raacutepidas mudanccedilas de natureza soacute-cio-poliacutetica uma triunfante racionalizaccedilatildeo espacial que culminaria na gestatildeo de Pereira Passos (1902-1906) ndash cujo maior siacutembolo foram as obras de construccedilatildeo da Avenida Central ndash essa ldquovoga sertanejardquo se expressava como ldquoum lugar comum alambicado um exerciacutecio de ca-riocas deslumbrados por Parisrdquo e tal ldquovogardquo entatildeo ldquopersistiria por duas ou trecircs deacutecadasrdquo disseminando-se por diversas produccedilotildees de natureza literaacuteria musical teatral e mesmo historiograacutefica122 ldquoCariocas des-lumbrados por Parisrdquo pois que na Franccedila do seacuteculo XIX uma enxur-rada de publicaccedilotildees literaacuterias tambeacutem buscou falar do interior numa tarefa francesa de buscar as suas raiacutezes como naccedilatildeo ldquoRaiacutezesrdquo e ldquonaccedilatildeordquo dois termos que se tornaram incontornaacuteveis na definiccedilatildeo do que seria a literatura do periacuteodo inclusive no Brasil Tambeacutem neste paiacutes tal temaacutetica tornou-se terreno feacutertil para construir uma represen-

122 GALVAtildeO Walnice Nogueira Metamorfoses do sertatildeo Revista de Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 18 n 52 setdez 2004

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 101

taccedilatildeo singular do brasileiro e na esteira disso um iacutendice de definiccedilatildeo do que seria uma literatura nacional

Quando Euclides da Cunha publicou Os sertotildees em dezembro de 1902 a produccedilatildeo em torno do ldquosertatildeordquo jaacute era reivindicada por uma gama de autores e estudiosos que desde meados do seacuteculo XIX esco-lheram falar das ldquocoisas do interiorrdquo Essa sede de ldquosertatildeordquo vinha desde os oitocentos e exemplifica-se nas viagens promovidas pelo Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) que respondiam agrave demanda de conhecer o vasto territoacuterio do paiacutes como parte de um projeto na-cional do Estado imperial Concomitantemente a isso Joseacute de Alencar Gonccedilalves Dias Bernardo Guimaratildees Visconde de Taunay entre ou-tros tantos autores do seacuteculo XIX mobilizavam artifiacutecios literaacuterios para contar sobre o paiacutes encontrando no sertatildeo o berccedilo idiacutelico de uma nacio-nalidade que se forjava no Brasil

Esses homens comumente fincavam no sertatildeo o passado e as ori-gens da naccedilatildeo na sua marcha irreversiacutevel para a civilizaccedilatildeo num gesto que muitas vezes parecia tentar colocar nos trilhos um paiacutes de passado colonial O sertatildeo autorizava a marcha do presente por guardar as raiacutezes do paiacutes Ele o sertatildeo deveria ser conhecido para que se pudesse vis-lumbrar uma identidade que no presente precisava ser construiacuteda mas que no passado (que o sertatildeo guardava) eacute que poderia ser reconhecida Isso explicava a motivaccedilatildeo de Taunay ao desembarcar em Santos e ver-se feliz com ldquoa perspectiva de percorrer grandes extensotildees e varar ateacute sertotildees pouco conhecidosrdquo123 ou a lamentaccedilatildeo de Alencar pela che-gada da ldquocivilizaccedilatildeordquo nos sertotildees dizendo ldquoQuando te tornarei a ver sertatildeo da minha terra que atravessei haacute muitos anos na aurora serena e feliz de minha infacircnciardquo pois ldquoa civilizaccedilatildeo que penetra pelo interior corta os campos de estradas e semeia pelo vastiacutessimo deserto as casas e mais tarde as povoaccedilotildeesrdquo124

123 TAUNAY Visconde de Dias de guerra e de sertatildeo Satildeo Paulo Revista do Brasil 1920 p 11

124 ALENCAR Joseacute O sertanejo 6 ed Satildeo Paulo Melhoramentos sd p 9-10 (1ordf ediccedilatildeo em 1875)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo102

A geraccedilatildeo do final do seacuteculo XIX poreacutem passaria a conviver com um dilema diferente O novo que se expressava de maneira veloz nas grandes cidades concomitantemente demandava uma inserccedilatildeo dos citadinos naquilo que se convencionou chamar de ldquomodernidaderdquo Haacutebitos foram (re)fundados e velhas praacuteticas sofriam aversatildeo entre os apologistas do moderno O regozijo fuacutenebre do passado era exortado em textos que cantavam os novos prazeres das ruas que triunfavam nos espaccedilos urbanizados As cidades com suas ruas modernamente retiliacute-neas impulsionavam uma nova percepccedilatildeo de tempo e espaccedilo Ao es-paccedilo citadino aderiu-se uma qualificaccedilatildeo temporal agrave ldquoantigardquo cidade veio sobrepor-se a ldquomodernardquo cidade

Nesse contexto sertotildees e cidades tornaram-se temas fundamen-tais para se pensar a naccedilatildeo Espaccedilos apartados por profundas contradi-ccedilotildees entre si e que por isso mesmo eram representados provocando a vertigem de viajantes desavisados como se expressava nas impressotildees sintomaacuteticas de Isaiacuteas Caminha personagem criado por Lima Barreto quando adentrava a baiacutea de Guanabara agraves portas da cidade do Rio de Janeiro vindo do sertatildeo capixaba

O espetaacuteculo chocou-me Repentinamente senti-me outro Os meus sentidos aguccedilaram-se a minha inteligecircncia entorpecida durante a viagem despertou com forccedila alegre e cantante Eu via nitidamente as coisas e elas penetraram em mim ateacute o acircmago Convergi todo o meu aparelho de exame para o espetaacuteculo que me surpreendia Estive por uns instantes espamodicamente arrebatado para um outro mundo adi-vinhado aleacutem das coisas sensiacuteveis e materiais Voluptuosamente cerrei os olhos depois aos poucos descerrei as paacutelpebras para olhar embaixo o mar espelhento e misterioso []125

Essa sensaccedilatildeo de estar num espaccedilo onde as mutaccedilotildees se corpori-ficavam quase como um encantamento se fazia aparecer como bem salientava o cronista Joatildeo do Rio inclusive nas formas com que os ldquomodernos artistasrdquo davam luz a suas obras ldquoOs artistas modernos jaacute natildeo se limitam a exprimir os aspectos proteiformes da rua a analisar

125 BARRETO Lima Recordaccedilotildees do escrivatildeo Isaiacuteas Caminha Satildeo Paulo Publifolha 1997 p 50

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traccedilo por traccedilo o perfil fiacutesico e moral de cada rua Vatildeo mais longe so-nham a rua ideal como sonharam um mundo melhorrdquo126

Na dramaacutetica espera por esse ldquomundo melhorrdquo onde a rua do-mesticada pudesse desaguar por todos os espaccedilos e onde as novidades triunfariam diante da relutacircncia do velho foi que os limites do moderno se figuraram diante do rechaccedilo do sertatildeo A cidade modernizada desco-bria o sertatildeo O sertatildeo era o ldquooutro geograacuteficordquo incontornaacutevel diante do arrivismo moderno Mas um ldquooutrordquo que segundo as liccedilotildees dos romacircn-ticos era o guardador das raiacutezes do paiacutes e portanto o sertatildeo era con-comitantemente um ldquooutrordquo e um ldquomesmordquo O discurso nacionalista o aproximava das cidades enquanto o discurso cosmopolita da moderni-dade o repelia

Essa dualidade na forma de tratar os espaccedilos se manifestou num imenso debate acerca do sentido do sertatildeo nos novos tempos de forma que falar dele era uma operaccedilatildeo que atravessava toda tensatildeo expressa em dualidades qualificadoras tais como ldquobaacuterbarordquo poreacutem ldquoabando-nadordquo ldquoberccedilo da nacionalidaderdquo mas ldquoespaccedilo do atrasordquo ldquodoenterdquo contudo ldquoforterdquo Dicotomias expressas de maneira dramaacutetica na obra de Euclides da Cunha mas que apareciam em inuacutemeras outras publicaccedilotildees que surgiram na febre de sertatildeo que a ela proacutepria secundou como ve-remos a seguir

A produccedilatildeo literaacuteria usando de temaacuteticas e formas identificadas como sertanejas vinha numa crescente desde fins do seacuteculo XIX A cha-mada literatura de cordel jaacute era conhecida pelos citadinos cariocas a ponto de a livraria Quaresma lanccedilar algumas publicaccedilotildees dedicadas a esse tipo de produccedilatildeo127 Temas sertanejos avultaram inclusive publi-cados por autores consagrados do periacuteodo

126 RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Belo Horizonte Crisaacutelida 2007 p 33 (1ordf ediccedilatildeo em 1910)

127 Maacutercia Abreu observa que A Guerra de Canudos do fanaacutetico Conselheiro de Joatildeo de Souza Conegundes teve pelo menos duas ediccedilotildees pela Quaresma a primeira em 1897 e a segunda em 1913 Cf ABREU Maacutercia Cordel portuguecircsfolhetos nordestinos con-frontos 1993 360 f Tese (Doutorado em Literatura Comparada) ndash Departamento de Teoria Literaacuteria Instituto de Estudos de Linguagem Universidade Estadual de Campinas CampinasSP 1993 p 123

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O escritor Coelho Neto ainda em 1893 aventurava-se na temaacute-tica sertaneja publicando Capital Federal impressotildees de um sertanejo no qual criava um narrador oriundo do sertatildeo que contava seu estranha-mento ao deparar-se com o ambiente citadino Entre estranhamentos sustos com novos haacutebitos e liccedilotildees ldquomoraisrdquo o distanciamento do serta-nejo diante da sociedade carioca eacute a tocircnica do romance Em 1896 Coelho Neto lanccedilava seu livro de contos sertanejos denominado Sertatildeo marcadamente construiacutedo numa tentativa de reproduccedilatildeo do linguajar do morador do sertatildeo distinguindo assim expressotildees e palavras do dizer sertanejo acentuando particularidades de comportamentos do homem do sertatildeo bem como marcando sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao modo de falar das cidades

No ano seguinte o teatroacutelogo Arthur Azevedo encenava no Teatro Recreio Dramaacutetico sua peccedila A conquista cujo enredo se pas-sava em torno de uma famiacutelia mineira que vinha agrave capital federal e depois de um deslumbramento inicial acabava descobrindo o viacutecio e a corrupccedilatildeo das cidades A negativizaccedilatildeo das cidades nessas produccedilotildees era uma postura que desconcertava os citadinos regozijantes diante da modernidade urbana e aproximava o sertatildeo de adjetivaccedilotildees positivas e ateacute mesmo do progresso Na mesma peccedila citada Azevedo por exemplo terminava demonstrando o desencantamento de um dos personagens sertanejos Euseacutebio que desabafava em voz alta ldquo[] A vida da capitaacute natildeo se fez para noacutes E que tem isso Eacute na roccedila eacute no campo eacute no sertatildeo eacute na lavoura que estaacute a vida e o progresso da nossa querida paacute-tria [grifo meu]rdquo128

Se por um lado tais autores escolhiam enredos que se pas-savam em torno do sertatildeo por outro natildeo se restringiam somente a ele Coelho Neto Arthur Azevedo Afonso Arinos Franklin Taacutevora e Antocircnio Sales mdash alguns dos primeiros dessa safra de ldquoautores serta-nejosrdquo mdash traziam no bojo do sertatildeo de suas histoacuterias natildeo mais apenas elementos para contar sobre eles mas para a partir de sua presenccedila comparaacute-los agraves cidades

128 AZEVEDO Arthur A conquista Rio de Janeiro Ediouro sd p 245 (1ordf ediccedilatildeo em 1897)

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A comparaccedilatildeo sertatildeo-cidade foi um iacutendice que se fez presente nas obras de diversos autores do periacuteodo tornando o sertatildeo um criteacuterio comparativo importante para pensar as cidades O sertatildeo deixava de ser simplesmente o ldquopassadordquo um guardador das raiacutezes que autorizaria o presente e passava a ser ele mesmo uma presenccedila constante na com-paraccedilatildeo com as cidades Assim seria por todas as trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo XX A voga sertaneja que acompanhou as modernidades que emergiam nas cidades fez com que o escritor Lima Barreto jaacute em 1919 atraveacutes de seu personagem Gonzaga de Saacute afirmasse frustrado ldquoA nossa emotividade literaacuteria soacute se interessa pelos populares do sertatildeo unicamente porque satildeo pitorescos e talvez natildeo se possa verificar a ver-dade de suas criaccedilotildeesrdquo129

Um pouco mais louvado ou um pouco menos o certo eacute que sertatildeo tornou-se um (sub)tema absolutamente incontornaacutevel quando o assunto versava sobre por exemplo cidades naccedilatildeo civilizaccedilatildeo progresso mo-dernidade e ateacute mesmo literatura nacional

Ademais na produccedilatildeo literaacuteria brasileira do periacuteodo sertatildeo virou quase que um meta-tema uma vez que escolhecirc-lo como tema central ou um pouco menos fazecirc-lo simplesmente aparecer na narra-tiva em breves comentaacuterios era afirmar fazer parte de uma tradiccedilatildeo de literatura que cantava sua terra identificada assim como uma litera-tura tipicamente nacional Poreacutem se descrever o sertatildeo e seus cos-tumes era a tocircnica na literatura anterior a essa geraccedilatildeo comumente na denominada ldquogeraccedilatildeo romacircnticardquo para essa geraccedilatildeo moderna o sertatildeo comparecia ao mesmo tempo como embaraccediloso e inspirador A che-gada dos anos 1900 veria aparecer o livro que mais impulsionou tal voga Os sertotildees

O embaraccediloso nas representaccedilotildees de campo e cidade eacute que natildeo raro ambos se mesclam e se complementam Essa relaccedilatildeo de comple-mentaridade eacute comumente fruto das relaccedilotildees afetivas que o sujeito manteacutem com esses espaccedilos bem como de maniqueiacutesmos que os apro-ximam como forma de defini-los em pares opostos Publicado em fins de

129 Apud BARBOSA Francisco de Assis Prefaacutecio In BARRETO Lima Recordaccedilotildees do escrivatildeo Isaiacuteas Caminha Satildeo Paulo Publifolha 1997 p 16 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)

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1902 Os sertotildees de Euclides da Cunha expressava nesse sentido um entrelaccedilamento embaraccediloso entre afeto e razatildeo entre maniqueiacutesmos classificatoacuterios e paixotildees identitaacuterias que agrave primeira vista contraditoria-mente aproximavam a simpatia do autor Euclides Cunha mais do sertatildeo que das cidades na sua tentativa de vislumbrar a desejada ldquocivilizaccedilatildeordquo atraveacutes da comparaccedilatildeo criacutetica entre sertotildees e cidades brasileiras

Para Euclides o sertanejo era ele proacuteprio a singularizaccedilatildeo do Brasil no mundo e a negaccedilatildeo da racionalizaccedilatildeo arrivista do pro-gresso cosmopolita ndash progresso de que aliaacutes o engenheiro Euclides da Cunha era um dos arautos Contestando o famoso historiador Thomas Buckle bastante consumido pela elite letrada de entatildeo que falava em apequenamento do homem brasileiro diante da natureza Euclides escrevia

Mas o nosso sertanejo faz exceccedilatildeo agrave regra A seca natildeo o apavora Eacute um complemento agrave sua vida tormentosa emoldurando-se em cenaacuterios tremendos Enfrenta-a estoacuteico Apesar das dolorosas tradiccedilotildees que co-nhece atraveacutes de um sem nuacutemero de terriacuteveis episoacutedios alimenta a todo o transe esperanccedilas de uma resistecircncia impossiacutevel130

Ao passo que o mesmo Euclides qualificava a vida no sertatildeo de ldquomonoacutetona e primitivardquo131 tambeacutem afirmava o sertanejo como ldquoantes de tudo um forterdquo por natildeo ter o ldquoraquitismo exaustivo dos mesticcedilos neurastecircnicos do litoralrdquo natildeo deixava de ser no entanto ldquodesgracioso desengonccedilado e tortordquo132 A hesitaccedilatildeo de Euclides em definir o serta-nejo era na verdade a hesitaccedilatildeo em definir-se uma vez que positivaacute-lo era fazer apologia do natildeo civilizado (e Euclides acreditava na civili-zaccedilatildeo) e negativizar os sertotildees em definitivo por outro lado era excluir o ldquoforte sertanejordquo na construccedilatildeo de uma naccedilatildeo moderna e portanto civilizada no Brasil Por isso mesmo para o autor o sertanejo soacute podia ser definido pela imagem duacutebia do Heacutercules-Quasiacutemodo Tensatildeo se-

130 CUNHA Euclides Os sertotildees In CUNHA Euclides Obras completas Rio de Janeiro Joseacute Aguilar 1966 p 182

131 Idem p 182132 Ibidem p 170

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macircntica que aparece em toda a obra do autor e que foi seminal para reintroduzir de maneira cabal o sertatildeo no discurso literaacuterio

Apoacutes o sucesso de Os sertotildees um excesso de sertatildeo se fez pre-sente em publicaccedilotildees do periacuteodo sejam elas literaacuterias cientiacuteficas ou musicais Foi nessa eacutepoca tambeacutem que o Estado republicano brasi-leiro enviou cientistas e engenheiros aos sertotildees natildeo mais apenas com o intuito de conhececirc-los mas para intervir neles com as ferramentas do ldquoprogressordquo133A corporificaccedilatildeo do ideal euclidiano de intervenccedilatildeo nos sertotildees pelas armas do ldquoprogressordquo bem como as implicaccedilotildees da sua obra maior nas formas e significados que os sertotildees do paiacutes te-riam dali para frente satildeo dois pontos fulcrais que criaram uma avidez pela temaacutetica sertaneja no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX Contudo o que avultou na literatura sertaneja poacutes-Os sertotildees foi uma tensatildeo ex-pressa em paradoxos semacircnticos que por um lado inviabilizavam qualquer qualificaccedilatildeo em definitivo do sertatildeosertanejo na narrativa mas por outro sugeriam a existecircncia de uma vontade ainda que frus-trada de representaacute-los

Essa indefiniccedilatildeo na representaccedilatildeo do sertatildeo era produto ainda de uma percepccedilatildeo espacial cujos referenciais eram tomados a partir de um olhar citadino e portanto que julgavam a espacialidade a partir de valores tais como civilizaccedilatildeo modernidade e progresso Referenciais que garantiriam ao sertatildeo epiacutetetos sem duacutevida antocircnimos a estes Contudo isso soacute seria possiacutevel se muitas dessas representaccedilotildees natildeo fossem construiacutedas por sujeitos que herdaram toda uma forma de dizer o sertatildeo que o encarava como o berccedilo da nacionalidade em oposiccedilatildeo ao cosmopolitismo das cidades

133 Eacute desse periacuteodo que data a criaccedilatildeo de projetos de intervenccedilatildeo cientiacuteficos no interior do paiacutes tais como o Serviccedilo Geoloacutegico e Mineraloacutegico do Brasil (1907) das Comissotildees Rondon (1910) do Superintendecircncia Nacional de Desenvolvimento da Amazocircnia (1910) e da Inspetoria de Obras Contra as Secas (1909) Sobre esta uacuteltima haacute de se atentar que Euclides da Cunha ajudou no projeto de criaccedilatildeo junto ao Ministeacuterio da Viaccedilatildeo Cf MORAES Kleiton de Sousa O sertatildeo descoberto aos olhos do progresso a inspetoria de obras contra as secas (1909-1918) 2010 184 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) - Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social Instituto de Histoacuteria Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2010

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Mas natildeo foi bem isso que aconteceu Daiacute na ldquovoga sertanejardquo que se seguiu em iniacutecios do seacuteculo XX um verdadeiro contorcionismo intelectual tentaria abarcar o sertatildeo na esteira de representaccedilotildees posi-tivas de forma que o ldquoessencialmente nacionalrdquo (o sertatildeo) natildeo ficasse comprometido diante das ondas modernizantes que os estigmatizariam como negaccedilatildeo do novo A literatura euclidiana caminharia sobre esses dois planos de forma tal que essa tensatildeo seria a marca registrada de seu estilo ele mesmo construiacutedo sobre os alicerces de uma narrativa que dramatizava essa tensatildeo

A vitimizaccedilatildeo era uma caracteriacutestica constante da ldquovoga serta-nejardquo e era um artifiacutecio que buscava uma saiacuteda para o desconforto cau-sado pela existecircncia de um sertatildeo pela criaccedilatildeo na literatura de perso-nagens sertanejos que sofriam as agruras das grandes cidades e de seus moradores Uma vitimizaccedilatildeo que nem sempre heroificava o sertanejo Monteiro Lobato exemplifica esse movimento Num primeiro mo-mento representando o caipira Jeca como um degenerado Lobato logo seguiria a pista da vitimizaccedilatildeo do seu personagem Na literatura loba-tiana agrave tensatildeo na definiccedilatildeo do sertanejo veio juntar-se um difuso ponto de vista com relaccedilatildeo ao estado do Jeca que logo se tornou viacutetima de seu abandono cuja consequecircncia direta era a ausecircncia de salubridade Essa literatura com temaacutetica sertaneja fez surgir uma febre por aquilo que ficou conhecido como ldquoliteratura regionalrdquo

O criacutetico e ensaiacutesta Antocircnio Cacircndido ao tecer reflexotildees acerca do papel do que ele denominou de ldquoregionalismordquo na literatura brasi-leira observou aproximaccedilotildees nos discursos de uma literatura ldquoregionalrdquo produzida no seacuteculo XIX (e Cacircndido cita autores como Franklin Taacutevora e Bernardo Guimaratildees) e aquela produzida no iniacutecio do seacuteculo XX Explica o estudioso que

Gecircnero artificial e pretensioso criando um sentimento subalterno e de faacutecil condescendecircncia em relaccedilatildeo ao proacuteprio paiacutes a pretexto de amor da terra ilustra bem a posiccedilatildeo dessa fase que procurava na sua vocaccedilatildeo cos-mopolita um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais tiacutepicas Esse meio foi o ldquotonto sertanejordquo que tratou o homem rural do acircngulo pitoresco sentimemtal e jocoso favorecendo a seu respeito ideacuteias-feitas perigosas do ponto de vista social quanto sobretudo esteacute-tico Eacute a banalidade dessorada de Catulo da Paixatildeo Cearense a ingenui-

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dade de Corneacutelio Pires o pretensioso exotismo de Valdomiro Silveira ou o do Coelho Neto do Sertatildeo eacute toda a aluviatildeo sertaneja que desabou sobre o paiacutes entre 1900 e 1930 e ainda perdura na subliteratura e no raacutedio134

A bem da verdade estudar essas muacuteltiplas obras e trataacute-las como produtos que optavam por narrar o ldquoruralrdquo do ponto de vista do ldquopito-rescordquo ldquosentimentalrdquo e ldquojocosordquo como salienta Cacircndido eacute uma atitude que natildeo pode ser sustentada diante da complexidade das representaccedilotildees dadas ao mundo rural pelos autores anteriormente citados pelo criacutetico Como procurei demonstrar o seacuteculo XX trouxe elementos difusos e novos para se pensar e falar sobre espacialidades no Brasil Essas formas tiveram ecos na literatura produzida no Brasil no iniacutecio do seacute-culo XX que as diferiam daquela produzida pela geraccedilatildeo anterior mesmo que ambas elegessem o ldquosertatildeordquo como temaacutetica mdash e isso eacute o que pode ter impulsionado Cacircndido a aproximar narrativas tatildeo diacutespares do ponto de vista do tratamento e significado dado ao sertatildeo A tensatildeo expressa em narrativas que teimavam em definir sertatildeo com ldquoolhares civilizadosrdquo pode ser uma ldquochaverdquo prudente para se entender esta pro-duccedilatildeo ldquosertanejardquo de iniacutecios do seacuteculo XX bem como ajuda a fugir atentando para seus usos de definiccedilotildees faacuteceis como a que comumente tacha essa literatura como sendo ldquoregionalistardquo

Por outro lado Cacircndido interessado em salientar o caraacuteter for-mativo da literatura em termos de naccedilatildeo perde de vista os usos estrateacute-gicos da temaacutetica sertaneja em diversos produtos literaacuterios do periacuteodo Perde de vista sobretudo o fato de que escrever sobre o ldquosertatildeordquo era parte de um desejo de representar o universo ldquopopularrdquo do paiacutes E avanccedilando o fato de que tais produtos eram inclusive materiais alvis-sareiros para publicaccedilotildees por editores procurados para serem com-prados por leitores curiosos e operacionalizados por autores que se que-riam representados como ldquonacionaisrdquo pois entendiam do ldquosertatildeordquo

Natildeo se pode desdenhar de que nos primeiros anos do seacuteculo XX uma seacuterie de obras que tematizavam o chamado ldquointerior do paiacutesrdquo foram publicadas Pela editora Chardron de Portugal Osoacuterio Duque Estrada

134 CAcircNDIDO Antocircnio Literatura e sociedade Rio de Janeiro Ouro sobre Azul 2006 p 119

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publicou O Norte em 1909 Mello Moraes Filho lanccedila pela Garnier em 1901 seu Festas e tradiccedilotildees populares do Brasil e em 1903 a Typographia Minerva em Fortaleza publica o primeiro registro edito-rial de canccedilotildees do norte-nordeste do paiacutes Cancioneiro do Norte de Rodrigues de Carvalho Tais empreendimentos editoriais devem ser vistos tanto como parte de um movimento na produccedilatildeo literaacuteria que tematizava o interior do paiacutes ndash com vislumbres para se pensar a ldquonaccedilatildeordquo ndash como uma estrateacutegia editorial de vendas de temas entendidos como ldquopopularesrdquo o que lhe rendia uma possiacutevel lucratividade

O circuito de sociabilidades cariocas tambeacutem ia ao encontro disso A produccedilatildeo teatral do periacuteodo foi invadida por temaacuteticas serta-nejas desde a revista Ouro socircbre azul de Maria Lina no Teatro Recreio em 1915 agrave burleta A cabocircca de Caxangaacute de Gastatildeo Tojeiro no ldquopo-pularrdquo Teatro Satildeo Joseacute em dezembro do mesmo ano

Nas trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo XX o sertatildeo ganhou as ruas e os salotildees do Rio de Janeiro e apareceu nos mais diferentes espaccedilos da capital federal e nas mais diferentes produccedilotildees culturais do periacuteodo Foi nas ruas que no ano de 1913 a canccedilatildeo Cabocla de Caxangaacute (conhecida como de autoria de Catullo Cearense) fez um grande sucesso no car-naval carioca Interpretada pelo grupo Caxangaacute formado por nomes futuramente conhecidos como Pixinguinha Donga e Joatildeo Pernambuco a canccedilatildeo de temaacutetica sertaneja foi apresentada com sucesso pelas ruas da capital federal por muacutesicos vestidos como vaqueiros do sertatildeo135 Com o triunfo de Cabocla de Caxangaacute nas ruas Catullo da Paixatildeo tambeacutem voltaria sua produccedilatildeo para temaacuteticas sertanejas

Entusiasmado com o sucesso da muacutesica Catullo apropriou-se do tema sertanejo e comeccedilou a compor modinhas sertanejas como Luar do sertatildeo gravada em disco pela primeira vez por Eduardo das Neves em 1914

Em 1915 foi encenado com bastante sucesso no palco do Teatro Satildeo Joseacute (hoje Teatro Joatildeo Caetano) no centro do Rio de Janeiro a opereta sertaneja escrita por Catullo intitulada de O marrueiro que re-

135 COSTA Op cit p 121

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velaria Vicente Celestino como o personagem do sertanejo-cantador e onde o proacuteprio autor cantaria algumas vezes Catullo jaacute vinha colabo-rando na feitura de pequenas peccedilas como o musical O diabo entre as freiras ou o tambeacutem musical Agrave procura de uma noiva ambas apresen-tadas no Circo Spinelli respectivamente nos anos de 1910 e 1911136 Mas o ecircxito de O marrueiro o notabilizaria cada vez mais como conhe-cedor do sertatildeo A par disso Catullo era presenccedila constante nos saraus a apresentar seus motivos populares que cada vez mais se voltavam natildeo para as modinhas mas para as canccedilotildees com temaacuteticas sertanejas

Sintomaacutetico disso eacute que em 1910 o jornal O Paiz anunciava a conferecircncia A modinha brazileira no Theatro Recreio Dramaacutetico do qual Catullo fez parte como cantor137 e jaacute em 1914 no Thetro Phoenix Catullo participaria de outra conferecircncia desta feita com Viriato Correcirca Na primeira parte dessa conferecircncia de 1914 Catullo cantaria suas mo-dinhas e na segunda parte o programa seria composto tatildeo somente de coisas do sertatildeo quando recitaria [grifo meu] Preto do sertatildeo e cantaria Caboca de Caxangaacute ldquotal como ela eacute verdadeiramenterdquo e Luar do sertatildeo Caboca de Caxangaacute ldquotal como ela eacuterdquo pois dezenas de versotildees dessa canccedilatildeo corriam nas ruas do Rio de Janeiro agrave eacutepoca tamanho seu su-cesso Sucesso soacute natildeo equiparado agravequela canccedilatildeo pela qual Catullo fi-caria fortemente identificado e que causaria uma seacuterie de discussotildees acerca de sua autoria o Luar do sertatildeo

Em 16 de marccedilo de 1914 o jornal O Paiz reportava ldquoRecebemos a interessante canccedilatildeo lsquoO Luar do Sertatildeorsquo muacutesica e letra do apreciado trovador Catullo Cearenserdquo138

O Luar do Sertatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense era uma mo-dinha que contava as coisas do sertatildeo com uma letra enorme ndash tal e qual as modinhas do poeta ndash com oito versos que se intercalavam com o re-fratildeo ldquoNatildeo haacute oacute gente oacute natildeo Luar como esse do sertatildeordquo O enorme sucesso da toada daria a Catullo uma visibilidade ainda maior e o intro-duziria de maneira definitiva nas produccedilotildees com temaacuteticas sobre o

136 ldquoO diabo entre as freirasrdquo teve reapresentaccedilotildees no ano de 1912 Cf O Paiz 28 fev 1912137 O Paiz 13 out 1910138 O Paiz 16 mar 1914

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo112

sertatildeo A fama da modinha sertaneja estendeu-se agrave capital paulista que ainda em 1915 o chamou para uma conferecircncia na receacutem-fundada (pela nata da elite letrada paulistana) Sociedade de Cultura Artiacutestica que se reunia no Trianon139

Foi nesse contexto jaacute laureado nos recitais e presenccedila constante nas rodas boecircmias que Catullo da Paixatildeo Cearense apoiado por le-trados como Joatildeo do Rio Capistrano de Abreu e Roquette Pinto pu-blicou em 1918 seu primeiro livro de poesias com temaacuteticas serta-nejas intitulado Meu sertatildeo por um editor que comeccedilava seu empreendimento com livros Antocircnio Castilho

A livraria Castilho

Conta-se que Machado de Assis um habitueacute da livraria Garnier costumava passar pela rua Satildeo Joseacute a caminho do Ministeacuterio da Agricultura e nesse percurso parava na livraria Quaresma para ler os claacutessicos portugueses ldquondash Sabe Gosto mais de sua casa porque eacute silen-ciosa natildeo haacute aquecircle zunzum da Garnierrdquo 140

Situada no centro da cidade os frequentadores da Rua Satildeo Joseacute ainda podiam gabar-se de certa distinccedilatildeo diante da noviacutessima avenida Central e da barulhenta rua do Ouvidor onde aliaacutes situava-se a livraria Garnier Ainda contando com preacutedios antigos que avanccedilavam sobre as calccediladas a Satildeo Joseacute natildeo era um convite para um apologista das ldquocoisas novasrdquo Mas ali resguardados do glamour que entorpecia os mais afoitos pelas novidades da modernidade desfilavam desde escritores consagrados como Machado de Assis obtusos homens agrave procura do Dr Feio Galvatildeo reclamando de dores de dente poliacuteticos reunindo-se para reuniatildeo no Centro Paraibano ateacute cantores e seresteiros que procuravam a livraria Quaresma agrave procura de folhetos de muacutesica editados pela casa

Tambeacutem ali bem proacuteximo na deacutecada de 1910 floresciam outros sebos e livrarias como a livraria Cruz e Coutinho cujo proprietaacuterio Jacinto Ribeiro de Santos orgulhava-se de editar peccedilas teatrais e os

139 Catullo acabou natildeo podendo ir por problemas pessoais Cf O Paiz 26 mar 1915140 BROCA Brito A vida literaacuteria no Brasil - 1900 Rio de Janeiro MEC 1956 p 50

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 113

melhores livros juriacutedicos e didaacuteticos141 Descendo um pouco mais proacute-ximo ao botequim Silva Valverdi amp Co e da estaccedilatildeo de bondes e entre o Hotel Avenida e o Largo da Carioca o livreiro Antocircnio Joaquim de Castilho comandava a sua livraria Castilho

Desde 1902 quando transferiu o pequeno sebo localizado na rua Santo Antocircnio para a rua Satildeo Joseacute Castilho dedicou-se a vender livros novos especialmente obras francesas e portuguesas Foi por sua inicia-tiva que se comeccedilou a ler os romances em francecircs de Marcel Preacutevost como Les demi-vierges os de Henry Bordeaux como La petite made-moiselle ou as novelas de Paul Hervieu como Lrsquoarmature142 Mas Castilho tambeacutem se lanccedilou na ediccedilatildeo de livros e eacute possiacutevel encontrar seu nome em anuacutencios dos jornais como editor de livros juriacutedicos Um exemplo eacute A verdadeira revisatildeo constitucional de Samuel Oliveira apresentada como uma ediccedilatildeo ldquobem cuidada e feita com todo o ca-pricho revelando o carinho que mereceu o livrordquo143

A publicidade de livros nos jornais cariocas parecia ser um vieacutes que Castilho soube copiar do seu vizinho Pedro Quaresma de forma profiacutecua embora diferentemente deste uacuteltimo natildeo investisse na publi-caccedilatildeo de ldquofrivolidadesrdquo Mas isso natildeo demoraria muito tempo

Apesar de no iniacutecio Antocircnio Castilho natildeo ver com bons olhos a ediccedilatildeo de romances e poesias de autores nacionais esse ramo logo o excitaria a novos voos Em 1915 Antocircnio Torres lanccedilou sob o selo da livraria Castilho o seu livro de estreia Carmen tropicale Embora nesse caso o autor pagasse a ediccedilatildeo do proacuteprio bolso o editor gostava de vangloriar-se de nunca ler um original mas que sempre se deixou ldquolevar pelo faro e jamais me enganeirdquo144 Perspicaacutecia faro ou oportunismo o fato eacute que Antocircnio Torres ficaria conhecido por outros livros lanccedilados pela Castilho como o best-seller Pasquinadas cariocas em 1921 ele-vando o lucro do editor e livreiro ao passo que encorajava o editor re-ticente na aposta de outros escritores nacionais Antes disso Castilho

141 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 134142 Cataacutelogo de livros franceses da Livraria Castilho Em A Noite 3 jun 1914 p 5143 Gazeta de Notiacutecias 17 maio 1912 p 4144 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 136

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo114

apenas se aventurou na ediccedilatildeo de pequenos livros impressos na tipo-grafia que fazia funcionar aos fundos da livraria

A ecircnfase dada pelo livreiro agrave comercializaccedilatildeo de livros estran-geiros fez crescer em sua casa o nuacutemero de visitantes ilustres que bem ao gosto do periacuteodo acorriam em busca da novidade literaacuteria da Europa Gastatildeo Cruls Gilberto Amado Joaquim de Sales Costa Recircgo Lima Barreto e mais tarde Leonardo Mota eram alguns dos homens de le-tras que ficavam conversando ateacute as 22 horas e de laacute seguiam para o bar Nacional na rua Santo Antocircnio145

Natildeo eacute muito difiacutecil imaginar que a clientela frequentadora da Quaresma e da Cruz Coutinho tambeacutem passasse por laacute Foi nessa eacutepoca que Castilho comeccedilou a apostar nas traduccedilotildees de romances estran-geiros O primeiro lanccedilamento veio em 1914 Lua crescente volume de poesias do indiano Rabindranath Tagore com traduccedilatildeo de Plaacutecido Barbosa Tagore acabara de ganhar o precircmio Nobel de literatura de 1913 sendo o primeiro natildeo europeu a alcanccedilar esse feito O sucesso da publicaccedilatildeo foi tatildeo grande que trecircs anos depois veio uma segunda ediccedilatildeo resenhada entusiasticamente por Joseacute Oiticica o anarquista entatildeo articulista do Correio da Manhatilde

O Sr A J de Castilho da conhecida livraria Castilho resolveu ree-ditar a Lua Crescente do poeta indiano Rabindranath Tagore traduzida pelo dr Plaacutecido Barbosa Moveu-o a tal resoluccedilatildeo a incessante procura do livro cuja primeira tiragem se esgotou em um mecircs Poucos livros realmente tecircm agradado tanto ao puacuteblico ledor qual ali vatildeo achar a poesia liacutempida suavisiacutessima de um pantheista encantado das creanccedilas O livro eacute o que se poacutede chamar um mimo e o novo editor procurou dar a esta reimprressatildeo toda a simplicidade e toda a riqueza compatiacuteveis com a poesia do autor[]A nova ediccedilatildeo estou certo se esgotaraacute com a mesma rapidez da pri-meira pois os pedidos mal podem ser satisfeitos146

145 Ibidem146 Correio da Manhatilde 9 abr 1917 p 8

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Dostoieacutevski tambeacutem foi alvo das ediccedilotildees Castilho com a publi-caccedilatildeo de Recordaccedilatildeo da casa dos mortos que teve a traduccedilatildeo de Fernando Nery entatildeo secretaacuterio da Academia Brasileira de Letras que assinava suas traduccedilotildees com o pseudocircnimo de Fernatildeo Neves O sucesso na publicaccedilatildeo de traduccedilatildeo dos romances estrangeiros fez com que o edi-tor-livreiro visasse tambeacutem ao puacuteblico feminino (maior consumidor de romances) sendo logo sua casa conhecida como especialista em ldquolitera-tura para moccedilasrdquo A publicidade no jornal Correio da Manhatilde indicava o livro de M Delly Escrava ou rainha como sendo ldquoO Mais lindo romance para Moccedilasrdquo com ldquoprimorosa traducccedilatildeo de Fernatildeo Nevesrdquo147

Uma das publicaccedilotildees de grande sucesso das ediccedilotildees Castilho foi Lazarina do romancista francecircs Paul Bourget lanccedilado em 1917 com traduccedilatildeo de Fernatildeo Neves O sucesso foi saudado tanto mais porque desde iniacutecios da grande guerra europeia o paiacutes passava por uma crise do papel o que dificultava novos lanccedilamentos

A livraria Castilho resolveu haacute tempos tornar-se editora apesar de todas as crises inclusive a do papel A sua especialidade parece querer ser a das traducccedilotildees Ainda agora temos quasi a seguir os dois uacuteltimos livros de Paul Bourget Lazarina e O Sentimento da Morte traducccedilatildeo portu-gueza do Sr Fernatildeo NevesO Sr Fernatildeo Neves traduziu muito bem os dois volumes com uma tatildeo exagerada preocupaccedilatildeo de vernaculista que ella salta aos olhosOra entre ser vernaacuteculo e fazer questatildeo de mostrar ser vai muita vez ser o estorvo dos escriptores O Sr Fernatildeo Neves eacute entretanto um tra-ductor pouco commum E francamente vale mais ler Bourget sempre tatildeo despreocupado no estylo [] na traducccedilatildeo do Sr Neves Os dois romances da guerra conservam todas as belezas do grande romancista num estojo mais cuidado148

Criacutetica como essas que apareciam em jornais e revistas era fatal para o sucesso ou a estigmatizaccedilatildeo da obra especialmente quando se sabia que muitos dos autores que resenhavam as novas publicaccedilotildees eram eles mesmos letrados que acorriam agraves livrarias em busca do novo

147 Correio da Manhatilde 10 jun 1918 p 9148 O Paiz 14 set 1917 p 2

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo116

livro na praccedila Oliveira Vianna por exemplo resenhou negativamente o livro de Carneiro Leatildeo Problemas de educaccedilatildeo ndash lanccedilado pela Livraria Jornal do Comeacutercio em 1919 ndash por discordar do autor de que a edu-caccedilatildeo poderia elevar a moral da populaccedilatildeo pois

Pela mesma razatildeo que a educaccedilatildeo intelectual natildeo poacutede dar caracter a ningueacutem ou melhor natildeo poacutede modificar aquilo que podemos chamar a lsquoespinha dorsal do caracterrsquo de ningueacutem O caracter bom ou maacuteo egoiacutesta ou abnegado doce ou rude submisso ou autoritaacuterio inerte ou activo eacute coisa que preexiste a qualquer processo educativo eacute coisa que concerne aacute hereditariedade e a estructura cerebral de cada um149

Criacutetica que rendeu uma resposta discordante da opiniatildeo de Oliveira Vianna trecircs dias depois no mesmo jornal Eacute possiacutevel pensar como essas querelas eram parte constitutiva da publicizaccedilatildeo da obra tanto mais porque no caso acima citado discutia-se exatamente um plano de educaccedilatildeo que colocasse fim ao analfabetismo no paiacutes mdash e o analfabetismo era um tema central entre os leitores e livreiros do pe-riacuteodo Discutia-se desde a ineacutepcia do paiacutes em colocar em accedilatildeo um plano de alfabetizaccedilatildeo ateacute o nuacutemero de livrarias que a cidade do Rio de Janeiro possuiacutea em relaccedilatildeo a Buenos Aires

Natildeo haacute exagero Buenos Aires eacute a cidade dos hoteacuteis e das livrarias Possue-os em grande nuacutemero Eacute o patildeo do estocircmago e o do espiacuterito por toda a parte A abundacircncia de livrarias eacute ali justificada porque metade da populaccedilatildeo sabe ler Como entre noacutes 85 dos indiviacuteduos satildeo analpha-betos contamos poucas livrarias O Rio possue trecircs de primeira ordem (Garnier Briguiet e Alves) quatro de segunda e uns trecircs belchioresAo todo dez casas onde se vendem livros isso para uma capital de cerca de um milhatildeo de habitantes Havemos de convir que eacute muito analphabetismoO nosso puacuteblico ledor prefere aacutes nossas poucas boas letras qualquer revista de caricatura E ainda haacute quem alimente vaidades literaacuterias num paiz como o Brazil onde o coefficiente da ignoracircncia eacute uma causa que assombra e onde um homem de gecircnio como Ruy Barbosa pensa e escreve para ser lido drsquoaqui 300 anos150

149 O Paiz 8 ago 1919 p 3150 O Paiz 21 jul 1913 p 2

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 117

O ldquopuacuteblico ledorrdquo de livros no Brasil que preferia ldquorevista de caricaturardquo era o alvo principal de todos os empreendimentos literaacuterios da eacutepoca Conhecedor do assunto Quaresma como vimos fazia su-cesso com a sensibilidade que tinha de seu puacuteblico As poucas livrarias que existiam na cidade teriam que lidar com esses entraves mesmo aquelas que se propunham a publicar livros como diziam para serem lidos ldquodrsquoaqui 300 anosrdquo ou seja aqueles considerados literatura ldquoseacuteriardquo

Quaresma descobriu Catullo da Paixatildeo Cearense para o grande puacuteblico e Catullo pretendia que sua poesia fosse levada de maneira mais seacuteria Desde a publicaccedilatildeo de suas modinhas buscava que elas fossem consideradas parte constitutiva da literatura do paiacutes Com o tempo tambeacutem passou a publicar poemas e a flertar com temaacuteticas ser-tanejas a fim de ser considerado de fato um escritor de poemas De sua parte Antocircnio Castilho exibia satisfaccedilatildeo pelo seu empreendimento como editor e estava disposto a abraccedilar um autor que se dispusesse a publicar um livro que jaacute poderia vir agrave luz com ecircxito

Foi do encontro de um puacuteblico sedento por temaacuteticas sertanejas um editor disposto a fazer uma aposta lucrativa e um autor com preten-sotildees literaacuterias que foi lanccedilado em outubro de 1918 o primeiro livro de poemas sertanejos de Catullo da Paixatildeo Cearense Meu sertatildeo

CATULLO DA PAIXAtildeO NACIONAL

O meu sertatildeo

Natildeo seria exagero afirmar que Meu sertatildeo nasceu de uma festa O festival organizado para angariar dinheiro visando a sua publi-caccedilatildeo que se realizara em setembro de 1918 foi saudado pela imprensa carioca como um grande evento onde um concorrido lugar era alme-jado por uma ilustre plateia Natildeo foram poucos os ilustres participantes desse esforccedilo A comissatildeo promotora do evento foi formada por le-trados como Afracircnio Peixoto Rocha Leatildeo Pandiaacute Caloacutegeras Roquette Pinto A Austregeacutesilo Pires Brandatildeo Castro Menezes Maacuterio Alencar Eloy de Souza Fernando Magalhatildees Assis Chateaubriand Carlos Costa Paulo Silva Arauacutejo Francisco Solano Afracircnio de Mello Franco Antocircnio Neves Raul Brandatildeo e Castro Barreto Ilustres que aliaacutes or-ganizaram com esmero o festival fazendo ldquovaacuterias reuniotildeesrdquo antes do ocorrido151 O editor Castilho as Casas Mozart e o Jornal do Commercio ficariam por sua vez responsaacuteveis pela venda dos bilhetes que ajuda-riam a publicar o livro de Catullo152 O editor Castilho ainda parecia reticente em publicar autores nacionais angariar dinheiro para a publi-

151 Correio de Notiacutecias 23 ago 1918 p 3152 A Eacutepoca 8 set 1918 p 11

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 119

caccedilatildeo representava uma boa foacutermula para arriscados empreendimentos na publicaccedilatildeo de livros

O sucesso foi imediato e em fins de novembro daquele mesmo ano o livro de Catullo jaacute aparecia como a ldquonovidade literaacuteriardquo nos anuacutencios de jornais e revistas do Rio de Janeiro apresentado como ldquoobra genuinamente nacional do grande poeta sertanejo Catullo da Paixatildeo Cearenserdquo153 O adjetivo nacional colocava dessa forma a obra de Catullo no rol daquelas que poderiam figurar ao lado da de reno-mados escritores como Euclides da Cunha e Alberto Rangel ambos tambeacutem conhecidos como literatos do sertatildeo Ainda a alcunha de ser-tanejo conferia a Catullo a autoridade irrefutaacutevel para que o mesmo tematizasse melhor do que ningueacutem o sertatildeo em sua obra uma vez que essa identificaccedilatildeo natildeo dizia respeito tatildeo somente a um traccedilo da obra (temas sertanejos) mas a um lugar de origem do autor

Na praacutetica de reconhecido como ldquopopularrdquo desde quando co-meccedilou a fazer sucesso com suas modinhas Catullo gozava agora do prestiacutegio de ser apresentado em livro como poeta nacional e gabaritado para falar em seus poemas sobre o sertatildeo pois oriundo dele

Sintomaacutetico foi um artigo aparecido em O Imparcial assinado pelo respeitado historiador e criacutetico Joatildeo Ribeiro em que apresentava a obra nos seguintes termos

lsquoMeu Sertatildeorsquo ndash eacute uma seacuterie de poemas sertanejos sentidos e escriptos por Catullo da Paixatildeo Cearense trovador querido e aplaudido em palcos e salas como o mais genuiacuteno representante da alma popular brasileiraO poeta eacute do Norte da regiatildeo mais antiga do paiz onde os primeiros co-lonizadores realizaram a penetraccedilatildeo mais profunda de povoamento154

Joatildeo Ribeiro ao indicar Catullo como ldquopoeta do Norterdquo atribuiacutea--lhe ao mesmo tempo a autoridade de conhecedor de um lugar e cha-mava a confianccedila do leitor para a leitura de um autor que pode contar sobre o sertatildeo mdash ou como o tiacutetulo deixa entrever o seu sertatildeo Joatildeo

153 Correio de Notiacutecias 24 nov 1918 p 3154 O Imparcial 2 dez 1918 p 5

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo120

Ribeiro observa essa nuance embora sua criacutetica ao livro natildeo fosse boa Voltaremos a ela adiante

Salientando o lugar geograacutefico de onde vinha o autor o articu-lista autorizava o poeta a falar de sertatildeo Adicionado a isso o fato de Catullo ser reconhecido por modinhas sertanejas como Luar do sertatildeo sem duacutevida ajudava nessa representaccedilatildeo de homem do sertatildeo Inclusive o proacuteprio Catullo natildeo poupava esforccedilos para ser assim identificado quando fazia apresentaccedilotildees vestido de ldquomarrueirordquo Apresentaccedilotildees nos palcos natildeo eram algo incomum para Catullo uma vez que vecirc-lo apre-sentando-se em espetaacuteculos circenses e em musicais do chamado ldquote-atro ligeirordquo comeccedilou a ser normal para o puacuteblico carioca da eacutepoca

Esse vatildeo caminho entre um indiviacuteduo da cidade formado nos salotildees e na boecircmia da elite carioca e um autor que se rendia a temaacuteticas sertanejas e se apropriava das representaccedilotildees citadinas dadas ao sertatildeo rendeu a Catullo resultados profiacutecuos para sua apresentaccedilatildeo como poeta Aliaacutes as representaccedilotildees citadinas do espaccedilo sertanejo satildeo la-tentes na maneira como eacute apresentado o sertatildeo tanto em seu livro de estreia Meu sertatildeo como em seu segundo livro editado pela livraria Castilho em 1919 Sertatildeo em flor tambeacutem de temaacutetica sertaneja Em ambas as publicaccedilotildees eacute possiacutevel enxergar a apropriaccedilatildeo de certos topoi que marcavam a maneira de expressar o espaccedilo sertanejo no periacuteodo Dicotomias tais como espaccedilo atrasado versus espaccedilo moderno baacuterbaro versus educado sertanejo bom versus citadino corrompido expressas em seus livros eram comuns na forma de tratar o sertatildeo Aliado a isso os poemas de Catullo vinham com um diferencial a representaccedilatildeo da oralidade sertaneja nos textos o que dava ao leitor a sensaccedilatildeo de estar diante de uma genuiacutena transcriccedilatildeo do linguajar do sertatildeo

Assim se por um lado Meu sertatildeo representou a chegada de mais um artefato cultural que elegia o ldquosertatildeordquo como tema por outro no texto construiacutedo por Catullo expressava-se grande parte das ten-sotildees das temaacuteticas das formas e das ambiguidades com que o tema era tratado no periacuteodo

Meu sertatildeo eacute composto por nove histoacuterias contadas em versos nas quais o ambiente rural aparece como cenaacuterio principal e onde o sertanejo eacute alccedilado a grande heroacutei do enredo O fato fundamental de que

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o autor era um homem que vivia na cidade do Rio de Janeiro num tempo de raacutepidas transformaccedilotildees esclarece muitas das denominaccedilotildees que o sertanejo ganhava em sua obra tais como ldquoignoranterdquo ldquobaacuterbarordquo e ldquoalma purardquo em contraposiccedilatildeo ao mundo ldquocivilizadordquo das cidades Esses limites definidores do que seria o ldquosertatildeordquo para Catullo consti-tuem um importante toacutepico para a compreensatildeo do lugar em que Meu sertatildeo foi produzido uma vez que o autor em constante diaacutelogo com o puacuteblico leitor da entatildeo capital federal de seu tempo fez aparecer em seu texto adjetivaccedilotildees do sertatildeo que tratavam de colocaacute-lo comumente como a antiacutetese da cidade

Antes de lanccedilar matildeo da descriccedilatildeo do espaccedilo sertanejo Meu sertatildeo comeccedila com um convite de viagem lanccedilado pelo autor ao seu leitor Assim o autor iniciava seu primeiro poema (na verdade um pre-faacutecio do livro) intitulado convenientemente A caminho do sertatildeo com um convite aos poetas para deixarem a ldquoAvenidardquo e irem rumo aos ldquomattos sombriosrdquo e com um alerta para as ldquogentis senhoritasrdquo tomarem cuidado com ldquoa liacutengua baacuterbarardquo dos sertotildees do norte que ele iria apre-sentar155 Foi atraveacutes desse convite ndash ao modo inclusive de como Euclides da Cunha havia feito no primeiro capiacutetulo de Os sertotildees ndash que Catullo se fazia aparecer como o cicerone de uma viagem a um ldquooutro geograacuteficordquo que para o autor era abandonado pelo paiacutes o sertatildeo

A forma pela qual Catullo se apresentava como autor de poesias em Meu sertatildeo obedecia a dois movimentos em primeiro lugar a afir-maccedilatildeo de sua poesia como autecircntica como o inverso daquilo que con-siderava estrangeira (daiacute os pedidos que o autor faz aos leitores no poema A caminho do sertatildeo tais como ldquoDeixa a Greacutecia Deixa a Itaacutelia Deixa a fonte de Castaacuteliardquo)156 o segundo seria a afirmaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo como poeta da terra a expressatildeo profunda daquilo que o autor chamava de a ldquoterra em que nascirdquo De resto essa delimitaccedilatildeo de seu lugar como ldquopoetardquo ndash escritor da poesia autecircntica pois escritor da ldquoterrardquo ndash respondia a uma percepccedilatildeo aguda que o autor tinha do seu

155 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 25-26

156 Idem p 27

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo122

espaccedilo no mundo literaacuterio Era por esse caminho que ele poderia vir a ser reconhecido como um verdadeiro poeta Ademais a poesia de Catullo aparecia no meio letrado com uma pretensiosa mudanccedila na forma a escrita ipsis litteris de falas sertanejas assim como a inclusatildeo de um enorme nuacutemero de termos e coisas do sertatildeo Para atingir seu objetivo todos os poemas vinham acompanhados de uma seccedilatildeo deno-minada ldquovocabulaacuteriordquo ao fim do texto onde explicava ao leitor expres-sotildees que este supostamente poderia desconhecer Essa ousada forma de mostrar o sertatildeo lhe renderia posteriormente severas criacuteticas tais como as de Monteiro Lobato que em 1918 escrevia na Revista do Brasil

A publicaccedilatildeo das poesias de Catullo Cearense potildee de peacute uma interes-sante questatildeo eacute possiacutevel aceitar como liacutengua no qual se vazem versos o modo de falar do caboclo Cremos que natildeo porque tal modo de falar natildeo eacute sequer um dialeto e sim mera corrupccedilatildeo do dialeto brasileiro [] Pensando assim lamentamos o grande o maior poeta deste paiacutes o poeta-poeta o poeta cujas composiccedilotildees feitas em muacutesicas vivem de Norte a Sul cantadas por todas as bocas despertando em todos os peitos as mais suaves emoccedilotildees natildeo tenha escrito seu livro em nossa liacutengua a liacutengua brasileira filha da portuguesa [] Se Catullo traduzir seus versos em nossa liacutengua natildeo receamos em afirmaacute-lo faraacute uma obra que marcaraacute eacutepoca criaraacute escola determinaraacute correntes Estaacute em suas matildeos ser apenas um poeta caipira ou ser o maior poeta popular do Brasil157

Essa criacutetica feita no mesmo ano em que Lobato publicava seu natildeo menos controverso Urupecircs mdash aliaacutes mais um produto literaacuterio te-matizando o sertatildeo mdash demonstra de um lado a presenccedila de distintas e conflitantes representaccedilotildees do sertatildeo que circulavam no periacuteodo e por outro como o uso da liacutengua tambeacutem era um toacutepico importante para definir-se ldquoliteratura nacionalrdquo Para Lobato Catullo errara ao escolher expressar-se atraveacutes de uma liacutengua do sertatildeo pois ldquoliacutengua do sertatildeordquo natildeo podia ser confundida com a ldquoliacutengua brasileirardquo que deveria apa-recer em livros O linguajar sertanejo era apenas uma ldquocorrupccedilatildeordquo do dialeto brasileiro falado talvez para Lobato apenas pelos letrados ci-

157 Apud VASCONCELOS Ary Panorama da muacutesica popular brasileira na Belle Eacutepoque Rio de Janeiro Livraria SantrsquoAnna 1977 p 130

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tadinos ou que pelo menos estes letrados deveriam cultivar No en-tanto Catullo ficaria por um tempo avesso a essas criacuteticas

Ainda em Meu sertatildeo Catullo se autorrepresentava como um autor exilado do sertatildeo e por isso em A caminho do sertatildeo apresenta-va-se como um homem sem aspiraccedilatildeo literaacuteria Ironizando os poetas do Brasil por conta de suas escolhas de soacute cantar ldquosaudadesrdquo dizia que natildeo seria reconhecido por um paiacutes que se interessava somente por ldquoOrpheusrdquo e ldquodivindadesrdquo cujos poetas recitavam em rodas onde soacute se dizia ldquoem francezrdquo158 Soacute depois dessa necessaacuteria explicaccedilatildeo de seus poemas Catullo comeccedilaria a narrar seus poemas sertanejos

A histoacuteria contada por Catullo no primeiro poema de Meu sertatildeo intitulado Quinca Micuaacute (o gaiteiro do sertatildeo) eacute emblemaacutetica e expres-sava as formas pelas quais o sertatildeo seria tratado dentro da proposta apresentada pelo poeta A histoacuteria de um amor impossiacutevel entre o heroacutei (o sertanejo Quinca Micuaacute apaixonado por sua gaita) e Cunceiccedilatildeo (a filha de um rico fazendeiro que estudara na capital federal desde pe-quena e agora retornava ao sertatildeo) eacute ilustrativa Enamorada por Quinca Micuaacute Cunceiccedilatildeo o encontrava agraves escondidas do pai ateacute que um dia propotildee a Quinca beijaacute-la algo que o sertanejo refuta imediatamente por considerar uma atitude desrespeitosa Descobertos pelo pai da moccedila esta uacuteltima acaba jogando a culpa em Quinca insinuando que este lhe havia proposto fugir Quinca acaba tendo sua gaita quebrada pelo fa-zendeiro tendo de fugir do sertatildeo indo em direccedilatildeo agrave cidade onde conta sua histoacuteria para o primeiro que encontra

No poema escrito em 1ordf pessoa o narrador Quinca Micuaacute traz impressotildees do sertatildeo definindo-o como ldquoatrasadordquo em relaccedilatildeo agraves ci-dades poreacutem natildeo contaminado pela ldquoInducaccedilatildeordquo da qual a personagem de Cunceiccedilatildeo eacute a expressatildeo Numa longa passagem em que Quinca Micuaacute confronta a personalidade de Cunceiccedilatildeo moccedila da cidade com a de sua antiacutetese Tudinha moccedila do sertatildeo aparecem muitas definiccedilotildees do que seria a cidade e o sertatildeo para o narrador definiccedilotildees estas cujas ten-

158 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 28

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo124

sotildees e antinomias satildeo elencadas como forma de traccedilar as distacircncias que separavam duas realidades distintas

Tudinha era uma muieacuteinguinorante sarvageTodo que vancecirc quizeacuteera burra mas poreacutemaquillo sim meu patratildeo aquillo eacute que era muieacute[]A Tudinha natildeo prendeuA batecirc liacutengua ispritada cumo essa moccedila inducadaque tinha o tempo vadioMas poreacutem a Cunceiccedilatildeonatildeo sabia batecirc roupacomo a Tudinha a cabocirccalavando a becircra do rio159

Nos poemas seguintes todos eles com histoacuterias construiacutedas em torno de um personagem ou de um costume entendido como sendo do sertatildeo (O marrueiro O lenhador A promessa O passador de gado A vaquejada O cangaceiro e A terra cahida) Catullo esboccedilou imagens dos espaccedilos sertanejos embasadas em grande parte pela leitura de nar-rativas consagradas tais como as de Gustavo Barroso (citado em O cangaceiro) e Alberto Rangel (citado em Terra cahida) Ademais neste uacuteltimo poema o autor assume que se ldquoinspirarardquo num conto homocircnimo de Rangel jaacute conhecido autor de contos sertanejos e estudioso das ldquocoisas do sertatildeordquo160 A propoacutesito Rangel travou estreitas relaccedilotildees com Euclides da Cunha que o ajudou a se tornar conhecido no mundo le-trado A evocaccedilatildeo de um jaacute conhecido escritor natildeo era gratuita uma vez que reservava para si um lugar no campo literaacuterio em torno de figuras consagradas literariamente

O sexto poema de Meu sertatildeo sob o tiacutetulo de O passador de gado eacute aquele em que o autor tece mais claramente criacuteticas ao mundo citadino

159 Idem p 65-68160 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 232

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 125

aparecendo algumas definiccedilotildees do que ele entendia ser o ldquohomem da cidaderdquo e o ldquohomem do sertatildeordquo A histoacuteria se desenvolve em torno do passador de gado e morador dos sertotildees do norte Chico Mironga que a convite de seu compadre Dezideacuterio vai visitar a capital federal O nar-rador (que eacute o proacuteprio Chico) de volta agrave sua terra comeccedila a contar sua visita agrave ldquoAvinida Cintraacuterdquo A partir dessa experiecircncia eacute iniciada uma seacuterie de impressotildees do narrador sobre o espaccedilo citadino nas quais pululam adjetivaccedilotildees e comparaccedilotildees entre sertatildeo e cidade Entre os sustos e pas-sagens cocircmicas narradas pelo personagem-narrador Chico Mironga Catullo parece responder agrave definiccedilatildeo tatildeo comum em seu tempo do sertatildeo como lugar do ldquoatrasordquo quando afirma por intermeacutedio de Chico o progresso das cidades como sendo meramente ldquopruacute forardquo mas ldquopruacute dentro Nadardquo Isso desemboca no uacuteltimo verso em uma criacutetica di-reta agrave chamada ldquocivilizaccedilatildeordquo ldquovale mais que essa porquecircra da taacute Civilizaccedilatildeo ndash um carro de boi cantando pulos matos do sertatildeordquo161

Catullo que manifesta em seus poemas uma ldquodessoradardquo paixatildeo pelo rural ndash diagnoacutestico estigmatizador de Antocircnio Cacircndido agrave obra de Catullo162 ndash constroacutei representaccedilotildees do espaccedilo sertanejo que o dignifi-cavam e o enobreciam em relaccedilatildeo agraves grandes cidades compartilhando um tipo de representaccedilatildeo bastante comum Isso porque autor tambeacutem estaacute impregnado de referenciais oriundos de sua posiccedilatildeo de citadino dos quais seguramente ele se valia como foacutermula para melhor ser re-cepcionado como escritor Essa percepccedilatildeo de um lugar a ser construiacutedo na literatura que pudesse abarcar um poeta que se autodenomina serta-nejo mas que produzia nas cidades demandava um reconhecimento por aqueles que podiam definir o que deveria ser considerado literatura no periacuteodo ndash e Catullo natildeo era propriamente um desconhecido das elites letradas da eacutepoca A poesia de Catullo era reverenciada por diversos li-teratos por transmitir ainda que numa linguagem considerada ldquoruderdquo e ldquosimplesrdquo as belezas do sertatildeo para o leitor citadino Assim foi que o poeta Humberto de Campos tratou de salientar que Catullo deveria ser encarado como

161 Ibidem p 162162 CAcircNDIDO Antocircnio Literatura e Sociedade Rio de Janeiro Ouro sobre Azul 2006 p 121

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo126

O ourives que trabalhou no ouro virgem da linguagem popular as joacuteias ruacutesticas e maravilhosas que por ahi andam eacute necessariamente um grande e liacutedimo artista um fidalgo poeta que se disfarccedila em ave can-tadeira para melhor espalhar a mancheias [] a rutilante pedraria do seu eraacuterio Catullo eacute realmente um mixto de singeleza e de opulecircncia [] A sua poesia simples doce e ingecircnua mas em versos de meacutetrica perfeita eacute uma resina do sertatildeo a arder cheirosa num thuriacutebulo de prata ou de ouro163

O fato de Catullo escrever seus poemas em um linguajar dito ldquoser-tanejordquo ndash criticado por Lobato como vimos ndash exigiu a explicaccedilatildeo do mesmo Humberto de Campos que apontou esse modo como um fator que o distinguia positivamente de outros poetas pois ldquoPassados esses versos para a linguagem correntia natildeo teriacuteamos noacutes entre os dos nossos melhores lyricos outros que se lhe avantajassem em meiguicerdquo164

A linguagem ldquosertanejardquo usada por Catullo era indicada como um fator a mais para reivindicar o caraacuteter nacional de sua poesia A aproximaccedilatildeo de Catullo com a natureza como queria Humberto de Campos dava-lhe a autoridade de poeta da terra e portanto de um ldquoverdadeirordquo poeta Por outro lado o poeta e acadecircmico Maacuterio de Alencar prefaciando o segundo livro publicado por Catullo intitulado Sertatildeo em flor em 1919 jaacute apresentava o autor como um poeta das ci-dades poreacutem nascido no interior Para reafirmar isso o mesmo Maacuterio de Alencar indicava a necessidade do auditoacuterio das cidades como ele-mento fundamental para um poeta virar um ldquoverdadeiro poetardquo pois

Permanecesse Catullo no sertatildeo teria sido naturalmente poeta como satildeo poetas as criaturas simples na sua fala ingecircnua de tom concreto inspiradas na natureza vizinha e familiar e o teria sido ainda pelo dom pessoal do sentimento e da imaginaccedilatildeo vivaz A sua concepccedilatildeo poeacutetica poreacutem ficaria restrita em virtude da mesma familiaridade dos costumes e pela habituaccedilatildeo do cenaacuterio natildeo iria talvez aleacutem das impressotildees inci-sivas embora mas curtas que datildeo a mateacuteria dos versos populares raro excedentes de uma quadra jamais dilatados agrave proporccedilatildeo de um canto

163 CAMPOS Humberto de Homenagem a Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 18-19

164 Ibidem p 19

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 127

Nem o auditoacuterio que estimula o cantor tem ali capacidade de atenccedilatildeo para o desenvolvimento dos temas nem mesmo cantor possui condi-ccedilotildees de coordenaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de demorados assuntos de poesia []O bem ou mal do Catullo foi o seu afastamento do sertatildeo natal Distante sob a experiecircncia de outros costumes deixou de ser ator no cenaacuterio na-tivo para ser espectador alongado e mais sensiacutevel dele A humanidade embrionaacuteria do sertatildeo cresceu aos seus olhos em figuras acabadas os sentimentos limitados aos desafios tomaram a intensidade de estados de alma estuosos e ardentes os usos quotidianos tocaram-se do pres-tiacutegio para a revelaccedilatildeo a estranhos surgiu o cenaacuterio em relevo nas suas partes mais indiferentes aos seus olhos de outrora tornou-se possiacutevel a perspectiva cresceu a saudade deu-se o choque vibratoacuterio de todas as sensaccedilotildees adormecidas e da saturaccedilatildeo dos sentidos virgens resultou a forccedila imaginativa do poeta sertanejo165

Essa tentativa de afirmaccedilatildeo de Catullo como poeta sertanejo atre-lava-se a um movimento que visava natildeo soacute a chamar a atenccedilatildeo do leitor para entender a poesia de Catullo poreacutem mais do que isso de afirmaacute-lo como poeta e como autor de uma poesia nacional ou seja poesia pro-duzida por algueacutem que deveria ser entendido a partir desse lugar Porque para Maacuterio de Alencar o poeta se expressaria somente nas ci-dades Nesse sentido ele explicava que

A mesma relaccedilatildeo necessaacuteria entre o objeto inspirador e a emoccedilatildeo ex-pressiva haacute entre o poeta e o auditoacuterio O isolamento ndash e estar no campo eacute como estar isolado ndash eacute negativo para a criaccedilatildeo O trabalho espiritual procede com a condiccedilatildeo da dualidade da luz e do som que natildeo existem sem o meio transmissor natildeo haacute luz no vaacutecuo natildeo haacute som sem a ondulaccedilatildeo do ar ou a vibraccedilatildeo de um corpo A voz do passado soacute ressoa para o ouvido alheio proacuteximo ou distante mas possiacutevel que a esperanccedila realizaAgora na cidade havia auditoacuterio para escutar o poeta sertanejo e curio-sidade para estimulaacute-loO tema encurtado em cantigas dilatou-se em poemas166

165 ALENCAR Maacuterio A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Bedeschi 1939 p 21 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)

166 Idem

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Esse movimento que agrave primeira vista pode parecer paradoxal esclarece a duacutebia posiccedilatildeo de Catullo no meio letrado de entatildeo ser um autor de poemas sertanejos (embora poeta citadino) e ser reconhecido como algueacutem que conhecia o sertatildeo mas que o representava com os referenciais e coacutedigos reconhecidamente das cidades Dubiedade que era evocada como parte intriacutenseca e fundante de sua condiccedilatildeo de poeta Essa posiccedilatildeo o proacuteprio Catullo a compreendia e a expressava inclusive em seus poemas O novo poeta sertanejo exercitava por diversas vezes em seu texto uma autorrepresentaccedilatildeo visando a um convencimento do leitor de seu lugar como poeta nem tatildeo perto das cidades nem tatildeo longe do sertatildeo

Perspectiva que demonstrava o quanto Catullo era ciente de sua posiccedilatildeo no campo literaacuterio de entatildeo Se por um lado ele assumia seu lugar duacutebio de um poeta sertanejo produzindo nas cidades como forma de marcar a diferenccedila de sua poesia diante de outras produccedilotildees que se voltavam para o sertatildeo por outro o poeta tratava de confirmar sua re-presentaccedilatildeo melhor do espaccedilo sertanejo pela criaccedilatildeo em seus poemas de personagens que dialogavam diretamente com alguns homens im-portantes daqueles tempos

Um desses diaacutelogos por exemplo foi travado no poema intitu-lado Geca-Tatuacute sabidamente uma referecircncia ao personagem criado na mesma eacutepoca pelo escritor Monteiro Lobato para representar o homem do interior Uma vez que Lobato por meio do seu Jeca-Tatuacute pintou a figura do sertanejo num primeiro momento como um fraco ndash represen-taccedilatildeo que de resto tornou-se bastante citada por homens como o con-selheiro e senador Rui Barbosa ndash Catullo tratou de desconstruir essa figura em prol de uma representaccedilatildeo menos condenatoacuteria do sertanejo Assim seu personagem Geca tratava de admoestar o homem da capital um tal ldquoConseiecircrordquo e ldquo Senadocircrdquo que andava falando de uma imagem sua como ldquopreguiccedilosordquo como demonstra a passagem abaixo

Os home caacute da cidademe agarante que o sinhocirceacute o precircmero entre os precircmeroeacute o mais grande brasileiroeacute o Dunga dos inscrito

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 129

Mas poreacutem Macaco veionatildeo mete a matildeo cumbucavazia ansim seu douto[]Preguiccediloso MandracecircroNatildeo sinhocirc seu Conseiecircro

Eacute pruquecirc vancecirc natildeo sabeo que secircje um boiadecircrocriaacute cum tanto cuidado cum tanto amo e alegriaumas cabeccedila de gadoe despois a impidimiacarregaacute tudo cum os diaboim mecircno de quatro dia167

As representaccedilotildees dadas aos sertotildees ndash e por consequecircncia agraves ci-dades ndash construiacutedas numa narrativa (como o texto de Catullo) satildeo com-preensiacuteveis somente se as entendemos como produto de um diaacutelogo tra-vado num ambiente ele proacuteprio citadino e por isso mesmo referenciado por definiccedilotildees oriundas de uma percepccedilatildeo do ldquonovordquo que se expressava na cidade bem como tangenciada pelas discussotildees do lugar ldquosertatildeordquo num discurso de nacional notadamente no campo literaacuterio As lutas de representaccedilotildees do sertatildeo empreendidas nos textos respondiam direta-mente ao interesse especiacutefico de um novo autor que surgia com preten-sotildees literaacuterias Os elementos mobilizados no texto visavam desta forma agrave produccedilatildeo de uma crenccedila no caraacuteter distinto da obra diante de outras que tematizavam o sertatildeo E livros sobre o sertatildeo bem o vimos eram o que natildeo faltava Daiacute a escolha de Catullo de representar o linguajar do homem do sertatildeo ter sido uma foacutermula que gerou grande controveacutersia

Entre os letrados Joatildeo Ribeiro via como problema a reproduccedilatildeo de oralidades sertanejas na obra de Catullo Em resenha para o jornal O Imparcial observa que o leitor deve se resguardar ao imaginar estar lendo um poeta do sertatildeo e faz observaccedilotildees acerca do poema ldquoO le-nhadorrdquo que aparece no livro Meu sertatildeo

167 ALENCAR Maacuterio A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Bedeschi 1939 p 131-135 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo130

Eis um bello poema cuja inspiraccedilatildeo literaacuteria eacute evidenteDe mim se ouso falar escrevi tambeacutem uma poesia baacuterbara e imperfeita ndash a ldquoVinganccedila da aacutervorerdquo que soffre do ineditismo cruel do esqueci-mento e natildeo creio que entrasse nrsquoella nenhuma inspiraccedilatildeo sertanejaA de Catullo eacute muito melhor mais perfeita menos artificiosa e sem o pedantismo de foacutermulas meacutetricas exoacuteticas entretanto eacute ainda uma creaccedilatildeo erudita disfarccedilada sob a phraseologia inculta de idiotismos vo-caacutebullos e locuccedilotildees sertanejas168

Essa observaccedilatildeo cautelosa sobre os poemas de Catullo feita por um letrado respeitado como Joatildeo Ribeiro chama a atenccedilatildeo para os vaacute-rios criteacuterios de aceitaccedilatildeo de um novo autor em determinado campo li-teraacuterio e de como as contraditoacuterias opiniotildees sobre a obra de Catullo lanccedilam luz para se pensar as vaacuterias foacutermulas possiacuteveis visando a esse reconhecimento imprescindiacutevel para o pretendente a cargo de ldquopoetardquo

Se a busca de Catullo pelo reconhecimento como poeta (e natildeo soacute ldquopoeta popularrdquo) o levou a flertar com temas sertanejos o mesmo mo-vimento que o levava a esse reconhecimento retirava-lhe a pecha de ldquopoeta do sertatildeordquo por natildeo ser sertanejo ou como se expressa nas pala-vras de Joatildeo Ribeiro acima o seu sertatildeo era criticado por ser ldquouma creaccedilatildeo erudita disfarccedilada sob a phraseologia incultardquo

Sim Catullo era poeta mas natildeo poderia ser representado como dizia Joatildeo Ribeiro como ldquodo sertatildeordquo Paradoxalmente a erudiccedilatildeo ndash aiacute entendida como oposiccedilatildeo ao inculto ndash tatildeo buscada por Catullo o traiacutea pelo fato de que um dos caminhos para ser reconhecido como erudito era tematizar o ldquopopularrdquo poreacutem natildeo um ldquopopularrdquo qualquer mas um ldquopopularrdquo jaacute canonizado qual seja aquele que fala sobre o sertatildeo A representaccedilatildeo da liacutengua sertaneja certamente natildeo era uma receita levada a cabo por poetas consagrados Haveria Catullo de construir esse es-paccedilo para seus poemas

Diferente de Joatildeo Ribeiro seguia o criacutetico Miguel Mello que em artigo no Correio da Manhatilde convenientemente intitulado O poeta da moda dava suas impressotildees sobre a leitura que havia feito do livro

168 O Imparcial 2 dez 1918 p 5

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 131

de Catullo Assim como Ribeiro Mello exorta algumas poesias que considera belas em Meu sertatildeo (inclusive citando versos do poema O lenhador) poreacutem diferentemente daquele natildeo considera seu autor um erudito a falar do sertatildeo tampouco o condena por isso Ao contraacuterio Numa forma de dar a Catullo o lugar que pensava o criacutetico seu livro merecia explica aos leitores como deve ser lido Meu sertatildeo

Quem percorrer as nossas selectas de trovas populares onde tanta peacute-rola vae no meio da abundancia do folk-lore reconheceraacute que no gecirc-nero Catullo da Paixatildeo Cearense eacute um mestreNingueacutem de certo o ouviraacute ao violatildeo sem sentir prazer no saborear-lhe o pittoresco do seu sertanismoEacute um consumado cantor de modinhas Os apreciadores devem apres-sar-se em lhe comprar o livro Mas os homens de letras natildeo o devem desnaturar com emprestar-lhe pretensotildees literaacuterias que soacute podem ter-minar num snobismo peor que o dos cortesatildeos do marechal Hermes bastante nativistas para instalarem como um dia instalaram o corta--jaca nos salotildees do palaacutecio do Catete169

As diversas opiniotildees sobre a leitura dos livros de Catullo colo-cavam em discussatildeo o caraacuteter literaacuterio (ou natildeo) de sua produccedilatildeo Joatildeo Ribeiro nega-lhe a pretensatildeo por ser erudito demais para falar sobre o sertatildeo e Miguel Mello por sua vez natildeo o aceita como literato mas como cantor de modinhas exatamente pela pouca erudiccedilatildeo de sua po-esia Essa nuance na recepccedilatildeo da obra de Catullo fundamentada numa possiacutevel leitura de Meu sertatildeo deixa entrever o fato de que as preten-sotildees literaacuterias do autor teriam de passar pela aceitaccedilatildeo de literatos do periacuteodo nem sempre dispostos de maneira paciacutefica a canonizar um can-didato a literato ndash mesmo que o autor conhecedor sensiacutevel daquilo que movia o campo escolhesse como seu tema um tipo de produccedilatildeo conve-nientemente aceita na literatura produzida no Brasil

Eacute preciso pensar que as obras de autoria de Catullo da Paixatildeo Cearense participam desse (re)encontro com o sertatildeo tatildeo comum na li-teratura de iniacutecios do seacuteculo XX em que os referenciais definidores

169 Correio da Manhatilde 19 dez 1918

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo132

desse espaccedilo sofriam mudanccedilas a partir do contato com o novo que surgia nas cidades Esse movimento que pode parecer agrave primeira vista paradoxal introduzia o ldquoatrasadordquo sertatildeo nas cidades para defini-las para si mas tambeacutem introduzia referenciais citadinos para afirmar os sertotildees como potencialidade e como devir da naccedilatildeo reconstruindo-o para um mundo que almejava ser ldquomodernordquo Isso nos leva pretensiosamente a arriscar a dizer que a paixatildeo de Catullo pelo ldquoatrasadordquo sertatildeo eacute tambeacutem paixatildeo por uma forma de expressar o sertatildeo para ldquomodernosrdquo

Por outro lado e principalmente voltar-se para esse tipo de pro-duccedilatildeo lanccedilando matildeo de versos identificados com o sertatildeo nordestino era uma tentativa de construir (e este era o objetivo de Catullo) a corro-boraccedilatildeo de seus pares para assim identificaacute-lo como um autor que fazia parte do rol de autores sertanejos ndash que diferentemente dos au-tores de livros de modinhas jaacute era uma produccedilatildeo havia bastante tempo respeitada nos meios letrados

Ora promovido a assunto maior na literatura brasileira desde meados do seacuteculo XIX e mesmo um indicador fulcral na definiccedilatildeo do nacional na literatura o sertatildeo jaacute era um tema fundamental na eacutepoca A historiadora Mocircnica Pimenta Velloso vecirc nessa busca por representar a ldquonaccedilatildeordquo uma velha obsessatildeo regradora do campo literaacuterio o que fez com que no Brasil a autorizaccedilatildeo para a afirmaccedilatildeo de uma obra se pau-tasse pelo reconhecimento de que sua obra representasse a naccedilatildeo170 Acrescente-se que como nos diz o criacutetico portuguecircs Abel Barros Baptista a literatura produzida no Brasil eacute ndash de maneira problemaacutetica ndash nacional antes mesmo de ser literatura171 Atento a esse criteacuterio muitas produccedilotildees tematizam a ldquonaccedilatildeordquo inclusive como receita para ser aceito como ldquoliteraturardquo Poreacutem a mesma tradiccedilatildeo de documentar o real eleita por diversos criacuteticos da literatura brasileira desde aquele periacuteodo como criteacuterio que determinaria a canonizaccedilatildeo de uma obra ou de um autor faz com que comumente seja desdenhada a existecircncia de algo para o qual poucos autores chamam atenccedilatildeo a saber a ldquovoga ser-

170 Cf VELLOSO Mocircnica Pimenta A literatura como espelho da naccedilatildeo Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 1 n 2 1988 p 239-263

171 Cf BAPTISTA Abel Barros O livro agreste Campinas Unicamp 2005

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 133

tanejardquo no iniacutecio do seacuteculo XX quando inuacutemeras publicaccedilotildees obtinham sucesso de puacuteblico contendo temaacuteticas sertanejas Essa produccedilatildeo foi desqualificada como sendo demais ldquoimaginosardquo e ldquopitorescardquo sendo que essa ldquovogardquo mobilizada nos textos de diferentes maneiras visou por diversas vezes a uma aceitaccedilatildeo num espaccedilo jaacute ldquoinchadordquo de obras sobre o sertatildeo agrave eacutepoca

Na literatura da virada do seacuteculo XIX para o XX letrados hoje tatildeo reconhecidos ndash como Coelho Neto Afonso Arinos Arthur Azevedo Euclides da Cunha e Monteiro Lobato ndash rivalizavam ou compartilhavam representaccedilotildees dos sertotildees com autores cujos nomes satildeo praticamente hoje ignorados mas que no periacuteodo foram grande sucesso de puacuteblico por suas produccedilotildees sertanejas como Alberto Rangel Valdomiro Silveira Corneacutelio Pires e Catullo da Paixatildeo Cearense

Sobre este uacuteltimo cujo desconhecimento posterior agrave consa-graccedilatildeo de sua obra por seus contemporacircneos reservou-lhe o papel de subliteratura (diagnoacutestico por exemplo de Dante Moreira Leite)172 pesam ateacute hoje epiacutetetos de autor-menor fruto de uma negaccedilatildeo analiacute-tica jaacute haacute muito cultivada que acompanha a literatura estigmatizada como ldquopreacute-modernistardquo Isso lhe renderia a adjetivaccedilatildeo de ldquofora da modardquo pelos modernistas de 1922 Ironicamente Catullo foi descrito pelo cronista Joatildeo do Rio ainda em 1906 como um poeta que ldquoemara-nhou-se no dogma da modardquo e entusiasmava o cronista que por sua vez manifestava seu ecircxtase ao ver Catullo com um ldquocopo de chopp na matildeordquo recitando O poeta e a fidalga uma cena que era para o cronista ldquoum desses espetaacuteculos de brasserie inesqueciacutevelrdquo

Com a publicaccedilatildeo de poemas com temaacuteticas sertanejas em pouco tempo Catullo se tornou um poeta conhecido entre literatos por sua distinta forma de apresentar a poesia sertaneja para citadinos Contudo o caraacuteter controverso de sua poesia natildeo lhe rendia um lugar estaacutevel como poeta nacional De modinheiro reconhecido e ldquopoeta popularrdquo Catullo virava ldquopoeta sertanejordquo visando a um reconhecimento literaacuterio de sua obra nem sempre garantido uma vez que as regras de consa-

172 LEITE Dante Moreira O caraacuteter nacional brasileiro histoacuteria de uma ideologia Satildeo Paulo Unesp 2002

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo134

graccedilatildeo de um poeta a literato diferiam das de um ldquopoeta popularrdquo Por outro lado Meu sertatildeo se tornou um sucesso entre os leitores chegando a ter em 28 anos 41 ediccedilotildees

O esquecimento posterior de sua obra em parte processou-se penso a partir de um cacircnone estabelecido pelos novos escritores cata-pultados especialmente apoacutes 1922 e referendado continuamente por uma criacutetica literaacuteria aacutevida de estabelecer esteacuteticas dentro de uma conti-nuidade Isso relegou a um plano secundaacuterio a anaacutelise histoacuterica das re-gras que regiam a produccedilatildeo literaacuteria em cada obra estudada Esse pro-cesso foi sendo configurado lentamente durante os anos que se seguiram agrave movimentaccedilatildeo de 1922

Mais do que isso o singular no interstiacutecio entre 1902 e 1930 que viu surgir a ldquovoga sertanejardquo foi a introduccedilatildeo de maneira difusa de uma modernidade que viria apaixonadamente se expressar numa ressig-nificaccedilatildeo da produccedilatildeo da literatura no paiacutes produzida no periacuteodo173 Isso demandou novos questionamentos sobre velhos temas (como os temas ldquosertanejosrdquo) forjando representaccedilotildees literaacuterias outras que a partir de um olhar moderno sobre os espaccedilos ansiaram por construir tambeacutem um novo significado para o ldquosertatildeordquo Esse novo significado que objetivava ser partilhado pelos leitores ia tambeacutem construindo um lugar que pudesse alccedilar seu autor como um ldquopoeta sertanejordquo Trajetoacuteria seguida por Catullo no seu afatilde de ser reconhecido como poeta e natildeo somente um bardo trovador

Catullo Satildeo Paulo e os modernos

Satildeo Paulo iniacutecios de 1918 O jovem poeta paulista Guilherme de Almeida comentava sobre um sarau que iria ser realizado na ca-pital paulista para uma distinta plateia da Sociedade de Cultura Artiacutestica Entusiasmado o escritor natildeo poupava elogios agrave principal atraccedilatildeo da noite

173 GALVAtildeO Walnice Nogueira Metamorfoses do sertatildeo Revista de Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 18 n 52 2004

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 135

Eacute um poeta sertanejo que vae dizer versos no sarau de quarta-feira proacute-xima no Trianon Elle natildeo nos era desconhecido porque natildeo haacute quem acompanhando com um pouquinho de amor a vida artiacutestica brasileira natildeo conheccedila Catullo Cearense Qualquer violeiro de esquina canta por ahi versos seus e qualquer de noacutes sabe de cor essas quadras tatildeo cheias de sentimento e verdades do ldquoLuar do Sertatildeordquo []E a gente applaude irresistivelmente sem saber porque aquella histoacuteria corriqueira de amor applaude inconscientemente talvez porque pela primeira vez tenha sentido nella cantante e sincera a alma brasileira a nossa alma bem caipira escondida no fundo do matto e trazida assim de repente aacute flor da arte e da verdade174

Agrave apresentaccedilatildeo no Trianon secundaria outra a realizar-se no Teatro Municipal o chamado ldquoFestival de Catullo Cearenserdquo com apresentaccedilotildees de Amadeu Amaral Martins Fontes Armando Prado Roberto Moreira e do proacuteprio Guilherme de Almeida Desde fins de dezembro na capital paulista Catullo era saudado pela elite letrada da cidade como o ldquopoeta sertanejordquo

Catullo da Paixatildeo Cearense apareceu para o puacuteblico paulistano na esteira do sucesso das conferecircncias sobre o sertatildeo introduzidas por Afonso Arinos ali mesmo na Sociedade de Cultura Artiacutestica no ano de 1915175 Ele acabou natildeo podendo ir a Satildeo Paulo com Arinos mas este uacuteltimo preparava na capital paulista o terreno para o vertiginoso apare-cimento de uma febre por temas sertanejos Se nos anos 1920 em Satildeo Paulo os temas sertanejos se tornaram febre176 no Rio de Janeiro a capital federal essa efervescecircncia alcanccedilou seu aacutepice na deacutecada ante-

174 Apreciaccedilotildees sobre Catullo Cearense Em CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas bra-vios Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 286

175 A Sociedade de Cultura Artiacutestica fora fundada em 1912 e promovia saraus conferecircncias e apresentaccedilotildees musicais capitaneadas por escritores e artistas dos mais respeitados pela elite letrada paulistana de entatildeo O intuito era a ldquovulgarizaccedilatildeordquo das artes para o puacuteblico paulistano como salientou Antocircnio Piccarolo na conferecircncia de abertura Ali frequentavam homens como Maacuterio de Andrade e uma parte consideraacutevel daqueles es-critores que posteriormente ficariam conhecidos como modernistas bem como aqueles cujas obras seriam relegadas ao ostracismo mesmo tendo sido bastante consumidas como Amadeu Amaral um dos soacutecio-fundadores da sociedade e membro da Academia Brasileira de Letras

176 Para a efervescecircncia de temas sertanejos em Satildeo Paulo cf SEVCENKO Nicolau Um jequitibaacute no palco In Orfeu extaacutetico na metroacutepole Satildeo Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992 p 224-257

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo136

rior e revelaria um grande nuacutemero de ldquoautores sertanejosrdquo dentre os quais o personagem principal do entusiasmo do futuro poeta moder-nista Guilherme de Almeida

Alavancado pelo sucesso de criacutetica que Meu sertatildeo e Sertatildeo em flor alcanccedilaram na capital paulista Catullo Cearense se tornou um iacutecone sertanejo no imaginaacuterio dos letrados paulistanos Iacutecone que como vimos chegava a incomodar a Monteiro Lobato agraves voltas com a cons-truccedilatildeo do Jeca sua tentativa de uma representaccedilatildeo definitiva do homem do interior Mas ateacute mesmo Lobato parecia se render a Catullo O editor Castilho fazia desse reconhecimento vindo de Lobato parte da obra do autor uma vez que fez publicar a partir de Sertatildeo em flor trechos das criacuteticas positivas recebidas em jornais e revistas a Catullo

Assim de uma criacutetica positiva de Monteiro Lobato na Revista do Brasil o editor fez aparecer no livro de Catullo o seguinte trecho em que o criador de Jeca-Tatuacute fala do autor ldquo[] o grande poeta o maior poeta deste paiz o poeta-poeta o poeta cujas composiccedilotildees feitas em muacutesica vivem de norte a sul cantadas por todas as bocas despertando em todos os peitos as mais suaves emoccedilotildees []rdquo177

Esse reconhecimento por um letrado respeitaacutevel nas hostes pau-listas natildeo era fortuito Satildeo Paulo jaacute era nos anos 1910 uma cidade cuja efervescecircncia cultural se fazia ver As exposiccedilotildees de Anita Malfatti as primeiras publicaccedilotildees de Maacuterio de Andrade e Oswald de Andrade as apresentaccedilotildees de Isadora Duncan o baleacute de Nijinski as conferecircncias em ataque aos poetas parnasianos e agrave Academia preparavam o clima para a Semana de Arte Moderna de 1922 ndash marco histoacuterico do moder-nismo no Brasil Cacircndido Mota Filho articulista do jornal Correio Paulistano escreve no calor da hora

O anno de 1922 tem sido para S Paulo um anno prodigo de obras lite-raacuterias E de acordo com as estatiacutesticas foram editados nada menos de 250 livros A criacutetica do paiz alviccedilareira procurou desde logo concluir que a razatildeo dessa abastanccedila estava no rearranjo comercial dos editores que encontravam em Satildeo Paulo campo para fazer lucros e fortunas

177 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p 227

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 137

Procurassem os indagadores do caso a verdade com maior criteacuterio e sem vislumbre de parcialidade que haviam de encontral-a na corrente loacutegica que liga o adeantamento intellectual de S Paulo ao seu adeanta-mento materialAbandonando um pouco o rigorismo de Hippolyto Taine para pedir apoio aos ensaiacutestas e socioacutelogos modernos concluir-se-ia banaliacutessima-mente que S Paulo produz mais quer intellectualmente quer editorial-mente porque eacute o Estado onde a porcetagem de analphabetos eacute menor onde o elemento cultural eacute mais forte onde portanto os livros satildeo ab-sorvidos mais sofregamente178

Ao mesmo tempo o cosmopolitismo paulista cedia passagem para a discussatildeo que jaacute mobilizava grande parte da elite letrada carioca e que ganhou novos ares em Satildeo Paulo especialmente a partir de 1924 afinal o que seria o Brasil A resposta a essa pergunta era buscada no entrelaccedilamento entre uma cultura denominada de ldquoregionalistardquo e outra que chegava identificada com o termo ldquomodernordquo e que viria com uma profunda discussatildeo acerca daquilo que era entendido como ldquoa naccedilatildeo brasileirardquo Nesse sentido o tema ldquosertatildeordquo ganhou novo focirclego pois se o futuro a ser buscado prescindia de um passado cujo modelo carioca da belle eacutepoque era o exemplo mais acabado esse mesmo futuro natildeo poderia ser autecircntico se natildeo ganhasse cores locais Assim refundar a modernidade em Satildeo Paulo parecia ser um dos pilares fundamentais para se estabelecer o moderno no paiacutes de forma que a imitaccedilatildeo mdash ou o ldquopapagaiamentordquo como se costumou dizer mdash natildeo tomasse dessa vez a dianteira como era assim entendido o exemplo carioca Dessa forma pensar o paiacutes era uma receita prudente para que vingasse essa sede de moderno assumindo inclusive suas mazelas e seu exotismo Daiacute era possiacutevel enxergar nos mesmos locais em que se apresentavam os apo-logistas da modernidade em Satildeo Paulo espetaacuteculos que buscavam trazer representaccedilotildees do exoacutetico e mesmo do risiacutevel como forma de representar o paiacutes

Repensar o ldquomodernordquo era uma receita que atraiacutea diversos inte-lectuais desde iniacutecios do seacuteculo XX A historiadora Acircngela de Castro

178 ldquoA literatura em S Paulordquo publicado no Correio Paulistano 8 set 1922 p 3

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo138

Gomes em seu livro Essa Gente do Rio chama a atenccedilatildeo para ldquoa possi-bilidade de uma variedade de projetos de modernizaccedilatildeo que se expres-sariam por numerosas mas natildeo arbitraacuterias esteacuteticas modernistasrdquo179 Essas inuacutemeras possibilidades de tratamento do que se entendia ser ldquomodernordquo conduz a uma reflexatildeo que esmaece as fronteiras delimi-tadas quando se pensa o ldquomodernismordquo no Brasil e reintroduz no acircmago da discussatildeo a historicidade do termo Isso possibilita uma de-sestigmatizaccedilatildeo da produccedilatildeo letrada natildeo paulistana que durante algum tempo foi eclipsada por uma Histoacuteria Literaacuteria que via a discussatildeo sobre o ldquomodernordquo em Satildeo Paulo como o modelo propulsor e acabado do que se convencionou chamar de ldquomodernismordquo nas artes O que se visa natildeo eacute estabelecer rivalidades regionais na produccedilatildeo literaacuteria dos anos 1920 mas discutir os usos compartilhados que se fizeram de temas estilos e termos independente de limites regionais

O sucesso de temas sertanejos na capital paulista ao que parece eacute um desses toacutepicos que podem estabelecer uma anaacutelise mais dialoacutegica e profunda do que foi o ldquomodernordquo no paiacutes Ora foi na construccedilatildeo da-quilo que seria canonizado como ldquomodernismordquo que letrados paulistas compartilharam com seus amigos cariocas a discussatildeo sobre o ldquoatra-sadordquo sertatildeo A negaccedilatildeo da experiecircncia carioca de modernidade por jo-vens escritores paulistas natildeo deixou de conduzi-los para a busca por um elemento que jaacute aparecia como incocircmodo para os cariocas da virada do seacuteculo e que reaparecia como assunto intransponiacutevel para se pensar a modernidade no Brasil os temas sertanejos Daiacute que em Satildeo Paulo na Sociedade de Cultura Artiacutestica as apresentaccedilotildees de temas considerados ldquomodernosrdquo revezavam-se com espetaacuteculos como os capitaneados por Afonso Arinos que trazia do Rio para os palcos paulistanos nomes como Catullo Cearense ou Joatildeo Pernambuco Este uacuteltimo apresentou-se na Sociedade juntamente com Corneacutelio Pires em dezembro de 1916 e teve na plateia um Monteiro Lobato extasiado

179 GOMES Acircngela Castro Essa gente do Rio Modernismo e Nacionalismo Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas 1999 p 12

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Nunca uma plateia como a nossa viacutetima de azia crocircnica pelo abuso de orchatas francesas como essa que o Lugneacute-Poe nos forccedilou a in-gerir a 10$000 a dose vascolejou diafragmas e adjacecircncias com mais sinceros saudaacuteveis e tonificantes risos Natildeo era o risinho espremido e forccedilado verdadeira careta de maacutertir de quem sorri por injunccedilotildees do snobismo ndash sorriso palerma que eacute um esgar simiesco ndash repuxo cocircmico de muacutesculos faciais O que no puacuteblico ria natildeo era a atitude nem a francelha cultura do es-piacuterito era a carne o sangue a raccedila era esse substrato mental e sen-timental que noacutes medrosos da criacutetica escarninha dos elegantes que cheiravam Paris e no-lo embutem como padratildeo supremo conservamos timidamente em caacutercere privado Que bem faz rir assim[] A outra consoladora manifestaccedilatildeo de arte nossa proporcionou-nos Joatildeo Pernambuco Eacute um belo tipo de homem Nele se estampam em grau acentuado todas as caracteriacutesticas do brasileiro puro criado ao ar livre no contacto direto com a natureza bravia Dentro do seu peito bate um coraccedilatildeo Sursquoalma eacute a proacutepria alma da terra Paris natildeo contaminou um gloacutebulo sequer daquele sangue oxigenado pelo ar das florestasCantou o ldquoLuar do Sertatildeordquo com tanto sentimento que inuacutemeros olhos se humedeceram da mais pura emoccedilatildeo esteacutetica Que soberbo versos satildeo aqueles Quanta poesia ali da verdadeira da autecircntica da que brota espontacircnea do coraccedilatildeo Rudes sem atenccedilatildeo para com a forma []180

Para Lobato era a proacutepria ldquoformardquo da poesia cantada por Pernambuco que se colocava em contraste com coisas francesas ndash e natildeo soacute o conteuacutedo expresso ldquoForma afrancesadardquo essa que jaacute era contestada pelos letrados cariocas de maneira que Catullo pocircde ser agraciado com o tiacutetulo de poeta nacional por escrever seus versos numa forma da terra a linguagem sertaneja A forma o academicismo o afrancesamento todos esses elementos que surgiam como questotildees para um novo tipo de expressatildeo cultural em Satildeo Paulo (que rompesse afinal com os cha-mados passadismos identificados com tais elementos) eram discussotildees que tambeacutem aticcedilavam os letrados cariocas e que deram a oportunidade para empreendimentos no campo literaacuterio que como o de Catullo em

180 LOBATO Monteiro Arte brasileira In LOBATO Monteiro Ideacuteias de Jeca-Tatuacute Satildeo Paulo Brasiliense 1956 p 191-192

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo140

Meu sertatildeo e em Sertatildeo em flor colocavam em pauta as expressotildees da liacutengua como definidora de uma autenticidade em detrimento de mo-dismos agrave francesa

De resto esse eacute o mesmo impulso que levaraacute os novos artistas paulistas a buscarem uma arte nacional e moderna O grande entrave que se tornou uma discussatildeo comum entre os autores ligados agraves letras no periacuteodo (mas natildeo somente) era a questatildeo de qual seria o lugar do sertatildeo na modernidade que se pretendia Entrave que como visto ante-riormente era um mal-estar compartilhado pela elite citadina do Rio de Janeiro Na esteira disso natildeo deveria causar incocircmodo para os novos artistas paulistas evocar o nome de Euclides da Cunha como o pioneiro carioca do modernismo paulista Nele se expressavam todas as dicoto-mias advindas do tratamento do paiacutes a partir de termos como moderni-dade das cidades versus sertatildeo autecircntico-atrasado

Natildeo se pode esquecer que no mesmo momento em que se apro-ximava a fase heroica do primeiro modernismo paulista escritores que tematizavam o mundo rural como Amadeu Amaral Godofredo Rangel Ricardo Gonccedilalves e Valdomiro Silveira viveram seus aacutepices como li-teratos ndash para natildeo falar de Monteiro Lobato Como esquecer o apareci-mento de Corneacutelio Pires fazendo o papel de como hoje eacute comum dizer ldquoagitador culturalrdquo ao levar aos palcos causos e piadas dos homens do interior e mostrar para o grande puacuteblico as primeiras duplas sertanejas de que se tem notiacutecia como Zico Dias amp Ferrinho Mandi amp Sorocabinha e Mariano amp Caccedilula Aliaacutes o mesmo Corneacutelio Pires criou a ldquoTurma de Corneacutelio Piresrdquo um grupo de vaacuterios artistas que vestidos de caipiras chegou a rodar o estado de Satildeo Paulo com sucesso a partir de 1924 chegando a gravar um raro disco em 1929181

Foi nesse clima que a poesia de Catullo chegou aos salotildees pau-listas A mesma mocidade que em iniacutecios de 1922 veio a chacoalhar as letras brasileiras a partir de Satildeo Paulo se espremia por um espaccedilo para ver o conhecido ldquopoeta sertanejordquo declamar suas poesias

181 Trata-se de um 78 rpm pela Columbia contendo duas canccedilotildees A moda da revoluccedilatildeo e Vida apertada Cf DICIONAacuteRIO Houaiss Ilustrado da Muacutesica Popular Brasileira Rio de Janeiro Paracatu 2006 p 1131

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Estudando o modernismo de 1922 o filoacutesofo Eduardo Jardim chama a atenccedilatildeo para uma mudanccedila no interior do movimento paulista a partir de 1924 Diz o filoacutesofo que por volta de 1924 o caminho das experimentaccedilotildees esteacuteticas foi progressivamente sendo substituiacutedo por uma agenda que colocava em primeiro plano a necessaacuteria construccedilatildeo de uma nova literatura que estivesse mais de acordo com o paiacutes Nesse sentido para ele a obra Canaatilde de Graccedila Aranha seria paradigmaacutetica dos rumos que se pretendeu dar agrave movimentaccedilatildeo paulista182

O filoacutesofo argumenta que uma inflexatildeo teria se dado no momento em que se deixou progressivamente uma tentativa de buscar uma nova ex-pressatildeo esteacutetica ndash tema muito discutido no periacuteodo imediatamente anterior a 1922 ndash e uma reviravolta fez recolocar sob nova roupagem o tema do melhor representar o paiacutes na literatura do periacuteodo Essa tarefa teve direccedilotildees distintas em figuras como Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade

Embora tal reflexatildeo revele uma mudanccedila seminal na produccedilatildeo ldquomo-dernistardquo do periacuteodo o fato eacute que a agenda de melhor representar o paiacutes e na esteira disso a criaccedilatildeo de uma nova esteacutetica que pudesse melhor ex-pressar esse desejo de representaccedilatildeo da naccedilatildeo era buscada pelos proacuteprios participantes paulistas do movimento de 1922 bem antes desse periacuteodo

Assim natildeo eacute agrave toa que na tentativa de revelar a movimentaccedilatildeo que se dava nas artes brasileiras para o puacuteblico francecircs Oswald de Andrade em conferecircncia na Sorbonne um ano apoacutes a Semana de Arte Moderna expressava essa busca de uma ldquoverdade nacionalrdquo

[] Outros espiacuteritos procuram tambeacutem aproximar-se da pura verdade nacional anunciada pelos cantos anocircnimos dos sertotildees a cantiga nos-taacutelgica do vaqueiro do almocreve do negro e do caipiraO regionalismo surge nos quadros ruacutesticos de Ricardo Gonccedilalves e Corneacutelio Pires em Satildeo Paulo e sobretudo nos poemas espontacircneos e liacutericos de Catullo da Paixatildeo Cearense Ele canta a lua que magnetiza as panteras os diluacutevios perioacutedicos do Amazonas que engole florestas e aldeias183

182 JARDIM Eduardo Brasilidade modernista Rio de Janeiro Grall 1978183 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 47 Esse artigo foi

reproduzido na Revista do Brasil em seu nuacutemero 96 de dezembro de 1923

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Essa conferecircncia tem uma importacircncia fundamental para o en-tendimento do que foi o ldquomodernismordquo no Brasil pois natildeo se trata soacute de um balanccedilo criacutetico das artes brasileiras do periacuteodo mas de uma tenta-tiva de produccedilatildeo de um discurso histoacuterico do ldquomodernismordquo Haacute no evento uma apropriaccedilatildeo dos nomes de diversos autores de liacutengua por-tuguesa de forma a culminar nos nomes dos modernistas paulistas Mas se posteriormente muitos desses nomes elencados por Oswald desapa-receriam dos estudos literaacuterios brasileiros ali ainda em 1923 na proxi-midade dos acontecimentos de 1922 em Satildeo Paulo surgiam nomes inesperados que o conferencista evocava para construir uma racionali-dade histoacuterica para o movimento diante do puacuteblico francecircs

Nesse caminho o regionalismo surge no discurso de Oswald como um dos exemplos preacute-22 de busca por uma ldquoverdade nacionalrdquo Haacute ali uma constataccedilatildeo de que uma ldquoverdade do paiacutesrdquo fora procurada na literatura antes da assunccedilatildeo dos modernistas de 1922 Entretanto se para o estudioso atual da literatura brasileira o aparecimento de nomes consagrados como ldquopreacute-modernistasrdquo seria fatal eacute com espanto que se vecirc surgirem na conferecircncia de Oswald nomes improvaacuteveis como os de Amadeu Amaral Corneacutelio Pires Joatildeo Ribeiro e Catullo da Paixatildeo Cearense Esses nomes aparecem inclusive como fundadores de uma liacutengua nacional diferente da liacutengua portuguesa

Estamos assistindo ao esforccedilo cientiacutefico da criaccedilatildeo de uma liacutengua independente por sua evoluccedilatildeo da liacutengua portuguesa da Europa Recebemos como benefiacutecio todos os erros de sintaxe do romancista Joseacute de Alencar e do poeta Castro Alves e o folclore natildeo atingiu so-mente o domiacutenio filosoacuteficoDois filoacutesofos de boa cultura cumprem os desejos esboccedilados pela graccedila sertaneja de Corneacutelio Pires e pelo poder de expressatildeo de Catullo Enquanto o Sr Joatildeo Ribeiro tratava de fundar em 32 notaacuteveis liccedilotildees uma liacutengua nacional o Sr Amadeu Amaral construiacutea a nossa primeira gramaacutetica regionalista184

184 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 46

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Adiante contrabalanceando dentro de sua perspectiva um diaacutelogo entre autores anteriores e novas referecircncias Oswald dispara ldquoA Obra dos dois ilustres acadecircmicos esqueceu entretanto a contribuiccedilatildeo do jargatildeo das grandes cidades brasileiras onde comeccedila a brotar em Satildeo Paulo principal-mente uma surpreendente literatura de novos imigrantesrdquo185

Daiacute ao caraacuteter documental da liacutengua expresso pelos trabalhos de Amadeu Amaral e Joatildeo Ribeiro secundaria diz-nos Oswald a audaacutecia de Monteiro Lobato que com o seu Jeca-Tatuacute viu-se apesar do su-cesso contrariado pelo imaginaacuterio popular sobre o homem do interior Vale a citaccedilatildeo

O Sr Lobato teve a audaacutecia de sair do domiacutenio puramente documental em que se acantonavam Veiga Miranda Albertino Moreira Godofredo Rangel e Valdomiro Silveira reagindo tambeacutem contra o urbanismo que dava a visatildeo histoacuterica do poliacutegrafo Eliacutesio de Carvalho a obra de Tomaacutes Lopes e Joatildeo do Rio e a primeira fase poeacutetica de Guilherme de AlmeidaLobato tinha um longo conhecimento do Brasil tendo feito seus es-tudos em Satildeo Paulo tornando-se fazendeiro em seguida A obra de ficccedilatildeo desejada por Machado de Assis realizou-se com a criaccedilatildeo do tipo de Jeca Tatu Era o inseto inuacutetil da terra magniacutefica que para gozar um espetaacuteculo e ter ocupaccedilatildeo queimava as matas []O siacutembolo vingou-se A imaginaccedilatildeo popular viu nele o Brasil tenaz cheio de resistecircncias fiacutesicas e morais fatalizado mas natildeo fatalista tendo adotado pelas circunstacircncias das suas origens e do seu exiacutelio esta espeacutecie de vocaccedilatildeo para a infelicidade observada inconsciente-mente pelos etnoacutelogos e romancistas186

Oswald conta-nos do triunfo do imaginaacuterio popular sobre a obra de Lobato A representaccedilatildeo ficcional de Lobato ganhava outros cami-nhos pelo imaginaacuterio popular de onde se expressaria uma possiacutevel ldquoverdade uacuteltimardquo O ldquopopularrdquo em contradiccedilatildeo com a ldquoficccedilatildeordquo

O desfile de referecircncias a autores da literatura denominada ldquore-gionalistardquo por Oswald conduz a um questionamento basilar no que diz

185 Idem p 46186 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 47

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respeito agrave construccedilatildeo do modernismo na literatura brasileira qual o sentido de construir na histoacuteria modernista tatildeo constantemente identi-ficada como uma histoacuteria de ruptura um elo que possa ligar a nova produccedilatildeo poacutes-22 com autores regionalistas anteriores Se essa eacute a in-tenccedilatildeo exposta por Oswald muitas vezes considerado o mais radical dos modernistas haacute de se fazer uma (re)apreciaccedilatildeo do que foi o moder-nismo Mais o problema nos coloca no cerne da discussatildeo do termo ldquomodernordquo como uso criativo de forma que eacute soacute pelo exame da histori-cidade dessa criaccedilatildeo que se podem entender as disputas pelo moderno que satildeo por uacuteltimo disputas por construir um sentido para o termo em meio agrave sua construccedilatildeo Se essa construccedilatildeo foi permeada por disputas estas tambeacutem podem ser entrevistas nos textos que produziram aquela

O dilema que se reintroduz entre os ldquonovos modernistasrdquo eacute como se percebe nas reflexotildees do proacuteprio Oswald de Andrade o dilema ins-transponiacutevel jaacute observado na virada do seacuteculo nas produccedilotildees literaacuterias do Rio de Janeiro qual seja a necessaacuteria aproximaccedilatildeo de um discurso literaacuterio de um discurso sobre a naccedilatildeo E se certos autores entre os quais Catullo puderam ser evocados nos argumentos que pudessem fazer entender 1922 eacute que essa tensatildeo em definir o moderno no paiacutes era dramatizada em suas proacuteprias produccedilotildees fosse numa tentativa delibe-rada de representar o moderno (ou o seu avesso) no texto fosse na possibilidade sempre buscada de construir uma autoridade pelo que se representa por meio de artifiacutecios formais tais como ldquoeu conheccedilordquo ldquoeu virdquo ou ldquoeu sintordquo De acordo com o capital social de cada candidato a autor essas escolhas poderiam resultar como definitivas para sua con-sagraccedilatildeo como integrante no rol de uma possiacutevel ldquoliteratura nacionalrdquo

O que se discute afinal com a eclosatildeo do modernismo paulista eacute novamente a disputa por quem melhor representa medida a partir da representaccedilatildeo da autoridade daquele que representa Se em 1923 data da conferecircncia de Oswald de Andrade como nos alerta o filoacutesofo Eduardo Jardim ainda natildeo estava tatildeo clara uma escolha pelo papel construtor de uma representaccedilatildeo do nacional na literatura produzida pelos modernos paulistas progressivamente essa escolha vai sendo construiacuteda a fim de lanccedilar em pares opostos imaginaccedilatildeo versus co-nhecimento Embora essa dualidade ganhe contornos claros com a cha-

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mada primeira geraccedilatildeo modernista tal dilema jaacute herdava uma discussatildeo fortemente em voga de forma dramaacutetica na virada do seacuteculo XIX para o XX e ateacute antes disso

A questatildeo da brasilidade literaacuteria em 24 natildeo constitui a inauguraccedilatildeo de uma problemaacutetica nova em nossa histoacuteria cultural Desde o roman-tismo este problema vinha sendo debatido pela elite culta do paiacutes O fato de ela ter novamente despertado no interior do modernismo pos-sivelmente estabelecendo elos com as discussotildees a respeito do primi-tivismo na arte europeia natildeo dispensa o exame de sua relaccedilatildeo com outros momentos de sua formulaccedilatildeo na histoacuteria cultural do Brasil [] Assim poderemos perceber que o modernismo constitui a retomada e o adiantamento de um caminho jaacute aberto na nossa vida intelectual Poderemos perceber igualmente que ele opera uma releitura do passado da discussatildeo em torno do tema da brasilidade e mais ainda teremos a possibilidade de esclarecer o movimento que fez com que muitas vezes recorrecircssemos aacute [sic] mensagem modernista para a elucidaccedilatildeo da nossa proacutepria situaccedilatildeo cultural Eacute que continuamos a discutir com o moder-nismo como ele o fez com os momentos que o antecederam187

Acrescentado a isso diria que eacute urgente flagrar a construccedilatildeo do termo ldquomodernismordquo a partir das obras que lhe iam dando corpo Voltar portanto agrave indagaccedilatildeo fundante sobre o que os termos ldquomodernidaderdquo ldquomodernordquo ldquomodernismordquo e correlatos guardam neles quando vistos numa perspectiva histoacuterica dentro de sua proacutepria historicidade Dessa forma qualquer anaacutelise acerca do ldquomodernismordquo como movimento de renovaccedilatildeo das artes brasileiras deve levar em consideraccedilatildeo uma re-laccedilatildeo de tempo ou dito de outra maneira a compreensatildeo de usos do passado processados em determinada historicidade como paracircmetro para a definiccedilatildeo daquilo que se enxerga como ldquomodernordquo Eacute a esse ca-minho que nos ateremos a seguir para balizar o lugar de Catullo da Paixatildeo Cearense nessa discussatildeo

Quando eclode a Semana de 22 Catullo havia publicado seu novo livro pela livraria Castilho Poemas bravios O novo volume de poesias deixava de lado parte da foacutermula da poesia com linguajar serta-nejo Isto eacute em parte pois metade do livro ainda usava da mesma foacuter-

187 JARDIM Eduardo Brasilidade modernista Rio de Janeiro Grall 1978 p 16

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mula mas diferentemente das outras publicaccedilotildees havia vaacuterios poemas em que o narrador natildeo mais usava tal princiacutepio E havia algo mais contos sertanejos em prosa

Se essa mudanccedila pode ser atribuiacuteda agraves vaacuterias criacuteticas recebidas eacute algo difiacutecil de dimensionar O fato eacute que como diz o historiador Joatildeo Ribeiro nas apreciaccedilotildees expostas no final do livro de Catullo ele agora poderia ser visto como ldquoum poeta nacional natildeo tenho duacutevidardquo188 Eacute essa caracterizaccedilatildeo de Catullo como ldquopoeta nacionalrdquo que sofreraacute uma inflexatildeo com a chegada de 1922

Trazendo o termo ldquomodernordquo para o centro das reflexotildees sobre as formas de expressatildeo os modernistas de 22 construiacuteram novos paracircme-tros que pudessem ser sinalizados para se definir uma obra literaacuteria como nacional A tarefa de modernizar a literatura passaria pelo impe-rativo do conhecimento daquilo que se narra especialmente poacutes-1924 Haveria uma exterioridade na obra a ser buscada para que ela fosse definida como ldquonacionalrdquo

Esse ponto era procurado inclusive na biografia do autor da obra Natildeo que as formas de expressatildeo natildeo fossem desdenhadas nas mo-tivaccedilotildees definidoras dos modernistas do que seria a nova literatura ndash certamente a poesia identificada como parnasiana seria deixada de lado ndash mas o que se nota eacute uma intransigente busca por retratar no texto a ldquorealidade nacionalrdquo de forma que ao contraacuterio a imaginaccedilatildeo era co-locada agrave parte como coisa desvirtuadora da realidade Daiacute o tema do ldquonacionalrdquo para o investigador de textos literaacuterios produzidos no Brasil nesse periacuteodo ser intransponiacutevel Mas se uma receita antiga da histoacuteria literaacuteria busca flagrar a ldquoconstruccedilatildeo da naccedilatildeo nos textosrdquo seguimos outro caminho que pensamos ser mais profiacutecuo com o questionamento sobre como os usos diferenciados do nacional em textos faziam com que um rol de obras impressas fossem alavancadas no rol de obras na-cionais e de como isso era operacionalizado pelos candidatos a autores nacionais e seus editores nas produccedilotildees impressas do periacuteodo

188 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas bravios Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 270

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Nunca eacute demais considerar que aquilo que no senso comum de-nomina-se ldquomodernistas de 22rdquo eacute um termo que abrange inuacutemeros au-tores natildeo raras vezes de opiniotildees e representaccedilotildees profundamente dis-tintas quando se propunham a construir uma literatura definida como ldquonacionalrdquo Ademais consideraacute-los um grupo de paulistas como fre-quentemente eacute caracterizado seria desdenhar figuras natildeo paulistas como Ronald de Carvalho Manuel Bandeira e Seacutergio Buarque de Holanda que a despeito de seus locais de origem intervieram de forma decisiva na construccedilatildeo do que se convencionou chamar ldquomodernismordquo Aleacutem disso o termo ldquomodernismordquo pode esconder as leituras consu-midas e evocadas pelos seus protagonistas na construccedilatildeo de uma nova literatura O exemplo de Oswald anteriormente citado como leitor simpaacutetico de Catullo pode bem trazer tais desconfianccedilas quanto agraves construccedilotildees a priori sobre o movimento de 1922

Mais provocador ainda eacute observar os editores de alguns dos mais ilustres natildeo paulistas que continuaram a publicar por casas cariocas Ronald de Carvalho permanece com seu editor Aacutelvares Pinto em pelo menos duas publicaccedilotildees (Espelho de Ariel e Estudos brasileiros) vindo depois a publicar pela Leite Ribeiro e pela F Briguet e Comp ambas cariocas Graccedila Aranha continuou a publicar pela Garnier ainda no Rio Prudente de Moraes Neto e Seacutergio Buarque de Holanda potildeem para frente o projeto da Revista Esthetica Aleacutem desses O ritmo dissoluto de Manuel Bandeira publicado em 1924 sai pela Paulo Pongetti amp Comp e posteriormente Libertinagem de 1930 sai pela mesma edi-tora carioca Aliaacutes a editora graacutefica dos Irmatildeos Pongetti se valeu muito das inovaccedilotildees teacutecnicas trazidas pela modernizaccedilatildeo das artes brasileiras e dos processos poliacuteticos que catapultavam tais mudanccedilas Henrique Pongetti ainda diria da Revoluccedilatildeo de 1930 que ldquoEm nenhuma outra parte da vida nacional a transformaccedilatildeo teve um jeito tatildeo perfeito de milagre como nas oficinas graacuteficasrdquo189

189 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 195 Ainda estaacute por se fazer uma histoacuteria editorial do Modernismo de 1922 de forma a se compreender o diaacutelogo entre produtores de livros e a difusatildeo da litera-tura modernista ndash que natildeo se restringia a editores brasileiros diga-se de passagem Eacute possiacutevel que esse esforccedilo traga uma maior dimensatildeo criacutetica do Movimento de 22 de

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo148

Essa efervescecircncia editorial pode ser pensada tambeacutem como pro-dutora de uma esteacutetica modernista bem como pela produccedilatildeo de um gosto por certos autores que seriam posteriormente consagrados Leite Ribeiro que galvanizou nos anos 1920 grande parte das publicaccedilotildees de sucesso no Rio de Janeiro (antes de passar a empresa para seu soacutecio Freitas Bastos) representava bem a tentativa de criaccedilatildeo de um mercado consumidor para novas obras Na sua livraria publicavam-se desde au-tores de livros juriacutedicos a literatos famosos como Humberto de Campos e Coelho Neto e era frequentada pela nata da elite letrada carioca Na Leite Ribeiro deu-se o maior escacircndalo do mundo literaacuterio do periacuteodo a apreensatildeo em massa de Mademoiselle Cinema romance de Benjamin Constallat mdash inclusive com a prisatildeo dos empregados da livraria190 Sob a eacutegide de Freitas Bastos a livraria tem sua fase de aacutepice inaugurando inclusive uma filial na cidade de Satildeo Paulo nos anos 1930 Dentre as publicaccedilotildees exitosas da casa destacam-se as obras de Mendes Fradique mdash um enorme sucesso no periacuteodo especialmente a Histoacuteria do Brasil pelo methodo confuso e A loacutegica do absurdo Suas ediccedilotildees luxuosa-mente produzidas e sempre com belas ilustraccedilotildees de capa atraiacuteam o leitor mais exigente

Em meio a isso a grande jogada da livraria foi sem duacutevida a ldquoCollecccedilatildeo dos Cine-Romancesrdquo que se propunha a publicar ldquoos ro-mances e novellas sobre que se baseiam os principais superfilmsrdquo e vendecirc-los para o grande puacuteblico indicando que ldquosatildeo volumes profusa-mente illustrados com as melhores scenas do filme e trazem photogra-phias dos principais inteacuterpretesrdquo191 Suas publicidades vinham inclu-

forma a enxergaacute-lo tambeacutem como uma movimentaccedilatildeo que se valeu de um campo de produccedilatildeo de livros pungente no Brasil de entatildeo Apesar da lacuna vale a leitura do artigo de Regina Zilberman sobre as relaccedilotildees de Maacuterio de Andrade e seus editores onde a autora esboccedila essa compreensatildeo do caraacuteter editorial do ldquoprojeto modernistardquo Cf ZILBERMAN Regina Maacuterio de Andrade ou Como um modernista editava Revista Itineraacuterios Araraquara n 7 1994

190 Haacute uma oacutetima dissertaccedilatildeo acerca dos ldquonegoacutecios com livrosrdquo de Benjamin Constallat nesses idos chamando a atenccedilatildeo para o caraacuteter empreendedor do escritor no ramo editorial Cf FRANCcedilA Patriacutecia de Souza Uma campanha pelo livro nacional a atuaccedilatildeo editorial de Benjamim Costallat no Rio de Janeiro dos anos 1920 113 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria Social) ndash Programa Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2012

191 Cataacutelogo da Livraria que consta na contracapa de ldquoAlma do sertatildeordquo de Catullo da

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 149

sive acompanhando a publicidade dos filmes em cartaz nos cinemas a nova febre das cidades

Catullo da Paixatildeo Cearense tambeacutem seria publicado por Leite Ribeiro Alma do sertatildeo veio agrave luz em 1928 com uma colorida ilustraccedilatildeo de capa marca da editora Leite Ribeiro assim como Antocircnio Castilho (agora antigo editor de Catullo) jaacute investia em publicaccedilotildees com temaacute-ticas ditas ldquoregionalistasrdquo desde os anos 1910 Foi Leite Ribeiro quem primeiro publicou Joatildeo do Norte (pseudocircnimo de Gustavo Barroso) com o sucesso de Ao som da viola em 1921 Antes disso ainda em 1917 usando o pseudocircnimo de Joatildeo Phoca Joatildeo Batista Coelho publicava o volume de contos praianos Os caiccedilaras Em 1922 Carlos de Vasconcelos publicava pela Leite Ribeiro Deserdados ndash romance da Amazocircnia Essa profusatildeo de livros identificados com temaacuteticas ldquopopularesrdquo atendia agrave demanda pelo consumo de tais produtos que supostamente davam a co-nhecer o restante do paiacutes Assim quando Catullo publicou Alma do sertatildeo a foacutermula jaacute era bem conhecida na livraria Editora mas agrave dife-renccedila de seus livros anteriores aparece um Catullo prosador de temas natildeo sertanejos ndash aleacutem eacute claro de suas poesias sertanejas que faziam a apresentaccedilatildeo da publicaccedilatildeo em sua primeira parte

A colocaccedilatildeo de tais escritos natildeo sertanejos algo ineacutedito na obra de Catullo ateacute aquele momento deve ser pensada a partir de uma exi-gecircncia que se coloca dentro da literatura do periacuteodo Se em 1918 com Meu sertatildeo a foacutermula operada por Catullo em seu texto era encarada em termos tais como autenticidade versus falsificaccedilatildeo onde o autor era definido como um autecircntico poeta que traduziria uma alma em 1928 a ldquoalma sertanejardquo de Catullo era colocada em xeque cada vez mais pela demanda por representaccedilotildees do mesmo sertanejo que fugisse do caraacuteter subjetivo para um caraacuteter mais realista Catullo ao assumir por sua vez em sua prosa a liacutengua culta (em detrimento do linguajar sertanejo das foacutermulas anteriores) assumia sua produccedilatildeo fora do espaccedilo de iden-tificaccedilatildeo de uma possiacutevel traduccedilatildeo da alma para a afirmaccedilatildeo de uma produccedilatildeo narrativa sua sem traduccedilotildees Isso veio na esteira das criacuteticas

Paixatildeo Cearense Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo150

recebidas apoacutes a progressiva consolidaccedilatildeo de uma esteacutetica vinda do modernismo de 1922 Voltaremos a essa criacutetica adiante

O livro de Catullo Alma do sertatildeo pode ser lido como uma rup-tura na trajetoacuteria literaacuteria do poeta Pouco a pouco o caraacuteter regional na literatura produzida no periacuteodo se desenrola no sentido de identificar a escolha pelo regional agrave submissatildeo do termo a uma alma brasileira e daiacute a criaccedilatildeo de artifiacutecios textuais que pudesse conduzir o leitor a identi-ficar aquele que escreve como autor de literatura nacional A citaccedilatildeo de um poema de autoria de Bastos Tigre publicado no prefaacutecio da obra assinado pelo escritor Maacuterio Joseacute de Almeida confere a tocircnica da mu-danccedila que se segue naquele momento No poema Bastos Tigre mostra uma representaccedilatildeo do poeta Catullo da Paixatildeo Cearense em sua tran-siccedilatildeo do regional para o brasileiro

Nesse idioma de ldquopru moderdquoDe ldquoapois natildeordquo de ldquoseu doutordquoSoacute o gecircnio das selvas poacutedeTer ressonacircncias de Hugo

Nestes teus poemas se sentendash Eacute questatildeo de os entender ndashldquoO cheiro da terra quenteQuando comeccedila a choverrdquo

No coraccedilatildeo desta terraExplorador penestrasteE os diamantes que elle encerraPotildees dos teus versos no engaste

Rondon bravo estuda o soloRios vaacuterzeas chapadotildeesCatullo eacute o Rondon que ApolloMandou aacute alma dos sertotildees

E tendo os teus poemas tem-seEsta impressatildeo verdadeiraNatildeo eacutes da Paixatildeo CearenseEacutes da paixatildeo brasileira192

192 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928 p 22-23

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 151

Haacute aqui uma primeira expressatildeo de mudanccedila ainda que sutil Bastos Tigre observa algo que jaacute naquele momento (radicalizado logo depois) iria ser a tocircnica da produccedilatildeo literaacuteria no Brasil Se antes o caraacuteter regional ou popular de uma produccedilatildeo poderia ser um iacutendice de definiccedilatildeo de algo a ser compreendido como ldquoliteratura brasileirardquo e a construccedilatildeo de um know-how para o pretendente a entrar nesse panteatildeo podia ser medida como vimos anteriormente por preacute-condiccedilotildees tais como uma autoridade intelectual que pode falar sem ter visto ou por algueacutem que por uma genialidade comprovada podia expressar uma suposta alma do povo em fins dos anos 1920 com o advento dos mo-dernistas de 1922 no campo literaacuterio essa frente muda de local O que se propunha natildeo era mais soacute a expressatildeo subjetiva de um referente mas a representaccedilatildeo de um espaccedilo pautada numa pesquisa ideia cujo maior defensor era o poeta e intelectual paulista Maacuterio de Andrade

Dessa forma grande parte do caraacuteter regionalista da produccedilatildeo literaacuteria anterior foi sendo medida a partir de tais termos Mais se o atestado de um caraacuteter regional poderia ser um toacutepico que ajudaria na assunccedilatildeo de um nome ao panteatildeo da literatura brasileira tal caraacuteter natildeo poderia mais ser aceito se natildeo estivesse subordinado a algo mais impor-tante a essa nova leva de escritores advindos do movimento de 22 qual seja a construccedilatildeo de uma identidade para a naccedilatildeo Daiacute Catullo no poema de Bastos Tigre ser representado natildeo mais como ldquoda Paixatildeo Cearense mas lsquoda Paixatildeo Brasileirarsquordquo Metaacutefora que expressa no texto de Catullo uma representaccedilatildeo condizente com uma mudanccedila que se processava a partir da produccedilatildeo de uma autorrepresentaccedilatildeo buscada para a literatura produzida no Brasil agrave eacutepoca

Penso que afinal a ldquomodernardquo literatura brasileira (digamos aquela identificada com o marco de 1922) natildeo pode ser subordinada a uma anaacutelise que incorpore sob o termo ldquomodernismordquo produccedilotildees tatildeo diacutespares entre si e mesmo discordantes sob o risco de perder sob o mesmo termo toda uma discussatildeo que colocou em lugares opostos Maacuterio de Andrade e Oswald de Andrade para citar soacute um entre tantos exemplos Maacuterio por exemplo tinha grande apreccedilo por Manuel Bandeira um entusiasta da poesia de Catullo da Paixatildeo Cearense que por sua vez possuiacutea uma atitude desconfiada com relaccedilatildeo aos novos

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo152

modernistas ndash que contava entre aqueles assim identificados o proacute-prio Bandeira

Outro ponto a ser salientado eacute o reiterado (e discutiacutevel) triunfo da movimentaccedilatildeo entre o puacuteblico letrado que teve em 1922 um marco Como os nuacutemeros de vendagens das produccedilotildees dos autores identifi-cados como ldquomodernistasrdquo satildeo imprecisos quando natildeo inexistentes eacute difiacutecil dimensionar o alcance de seus escritos Talvez um evento escla-reccedila os limites do triunfo modernista sobre os leitores o Concurso Nacional ldquoOs maiores brasileiros vivosrdquo promovido pela revista ca-rioca Fon-Fon em iniacutecios de 1925

Durante os meses de marccedilo e abril de 1925 a Fon-Fon de circu-laccedilatildeo natildeo soacute restrita agrave cidade do Rio de Janeiro promoveu um concurso para que seus leitores pudessem escolher por conta proacutepria os maiores brasileiros vivos em suas aacutereas meacutedico educador industrial escritor cantor poeta muacutesico ator financista etc Entre os escritores o vencedor foi o jaacute consagrado Coelho Netto ficando Gustavo Barroso com seus contos sertanejos em segundo lugar e Oliveira Lima em terceiro Os trecircs escritores eram membros destacados da Academia Brasileira de Letras

Na categoria ldquoo maior poeta vivordquo o vencedor foi Alberto de Oliveira membro da Academia Brasileira de Letras ficando em segundo lugar Hermes Fontes e em terceiro lugar Catullo da Paixatildeo Cearense

Se o alcance da produccedilatildeo modernista natildeo havia triunfado no gosto do puacuteblico letrado carioca a ruptura pensada em 1922 natildeo pode ser reificada numa narrativa histoacuterica que busca fundar pontos demar-catoacuterios Talvez enriqueccedila mais a anaacutelise pensar que uma esteacutetica mo-dernista teve de lidar com uma produccedilatildeo anterior ao advento dos escri-tores modernistas e que essa produccedilatildeo tampouco estava ldquodecadenterdquo como se costumou dizer Antes foi preciso construir um gosto por obras ldquomodernistasrdquo e isto natildeo se deu da noite para o dia sem uma apropriaccedilatildeo de certas temaacuteticas consagradas entre o puacuteblico leitor Daiacute ser necessaacuterio flagrar a construccedilatildeo do ldquomodernismordquo em suas disputas natildeo soacute internas (perspectiva mais comum que consiste em buscar dentro da esteacutetica modernista desavenccedilas entre seus partiacutecipes) mas tambeacutem em seu diaacutelogo com toda produccedilatildeo que antecede ndash e continua apoacutes ndash a sua ascensatildeo e com as demandas do puacuteblico leitor E avan-

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 153

ccedilando investigar na esteira disso como os novos escritores provo-caram uma mudanccedila na produccedilatildeo dos autores que o antecederam e como estes tiveram suas temaacuteticas muitas vezes apropriadas de ma-neira criacutetica pelos novos autores

Essa linha de investigaccedilatildeo torna-se importante inclusive numa tentativa de identificar como se deram os usos inventivos do termo ldquomodernordquo naquele periacuteodo a partir das obras Conduziremos nesse liame a investigaccedilatildeo da postura expressa nos textos de Catullo nessa discussatildeo e como ele foi apropriado por seus leitores criacuteticos atentando que essa discussatildeo deve ser encarada antes de tudo como uma disputa pelo tempo conduzida a partir da representaccedilatildeo do tempo ldquomodernordquo nos textos de seus autores Essa disputa pela representaccedilatildeo colocava em xeque inclusive a forma de expressatildeo textual inventando nesse pro-cesso uma praacutetica de representaccedilatildeo na medida em que criavam as for-malidades necessaacuterias para conduzi-la

O lugar de quem fala

Haacute vozes que se destrinchadas a partir de seus ecos conduzem o ouvinte a uma voz original ao momento primeiro da palavra viva agrave palavra-palavra Mas essa experiecircncia de pesquisa pela escuta nem sempre conduz invariavelmente a um lugar de origem ou a um ponto de onde se desdobraria um indiviacuteduo uacutenico possuidor indeleacutevel da sin-gularidade de sua voz Nesse momento eacute com espanto que surge a cons-tataccedilatildeo de que agraves vezes o indiviacuteduo que fala natildeo eacute o sujeito falante

Dito de outra maneira nem sempre o sujeito falante se subtrai ao corpo do indiviacuteduo de onde se fala Esse desencontro entre corpo e voz desloca de maneira incocircmoda um pesquisador humanista que vecirc no encontro entre voz e corpo o espaccedilo de autonomia uacuteltimo do sujeito em sua liberdade sobre aquilo que diz Para este uacuteltimo a voz constitui sob todos os monopoacutelios reivindicados para se ser livre o uacuteltimo reduto a ser conquistado a fortaleza indestrutiacutevel do indiviacuteduo em sua singula-ridade de forma que eacute impossiacutevel nesse ponto natildeo encontrar na fala a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em sujeito Poreacutem estranhamente esse en-contro nem sempre pode se dar Natildeo por uma forccedila exterior que se-

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo154

questra a voz do indiviacuteduo mas pelo proacuteprio indiviacuteduo que sequestra a si mesmo fazendo por um momento falar-se por outro

Michel Foucault talvez tenha sido aquele que melhor sistema-tizou a questatildeo quando se propotildee a pensar a pergunta ldquoQue importa quem falardquo Jaacute Michel de Certeau talvez tenha sido aquele que mais dramatizou a experiecircncia de confrontaccedilatildeo de um indiviacuteduo com um Outro que natildeo se diz mas que se deixa dizer Confronta-se com a ideia insuportaacutevel de encontrar na singularidade inescapaacutevel de um indi-viacuteduo que fala a voz de um Outro que natildeo estaacute193

Embora em geral escape da criacutetica moderna o estatuto de cons-truccedilatildeo de um discurso a partir de um indiviacuteduo o regime que ainda governa muitas das produccedilotildees literaacuterias contemporacircneas eacute a de identifi-caccedilatildeo daquilo que se diz (e que se escreve) sob um nome proacuteprio E aiacute se chega a raacutepidas conclusotildees como a que trata de reivindicar a pro-priedade irrefutaacutevel do sujeito sob seu objeto seja voz ou escrita Naquele identificado como artista essa linearidade se torna quase um imperativo Ora quem haacute de negar o caraacuteter de propriedade (de mono-poacutelio autoral digamos) de uma produccedilatildeo artiacutestica vinda agrave luz sob um nome proacuteprio de algueacutem que comprovadamente existe Mas essa equaccedilatildeo que a priori parece fatal nem sempre se consuma

Quando em setembro de 1918 Catullo da Paixatildeo Cearense pu-blicou o livro de poemas sertanejos Meu sertatildeo ele o construiu jaacute o dissemos a partir de uma forma incomum os poemas satildeo a transcriccedilatildeo da fala de um sertanejo O novo poeta se apropriava de um tipo de es-crita da oralidade que era identificada jaacute agravequela eacutepoca com a fala de poetas populares do nordeste do paiacutes publicada comumente nos jaacute co-nhecidos livretos de cordel O referente oral eacute supostamente transferido para o impresso ipsis litteris de forma que um leitor possa escutar na sonoridade das palavras e dos versos lidos a ldquovoz sertanejardquo

193 Tais reflexotildees foram defrontadas pelos autores em pelo menos dois livros FOUCAULT Michel O que eacute um autor In FOUCAULT Michel Ditos e Escritos Esteacutetica literatura e pintura muacutesica e cinema Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009 v III CERTEAU Michel de La Fabula Mistica siglos XVI-XVII Meacutexico Universidad Iberoamericana 2004 Penso especialmente no toacutepico 1 do capiacutetulo III ldquoLa ciecircncia nuevardquo

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 155

Nosso sinhocirc decirc bons diaa vasmincecirc meu patratildeoe a toda a sua famiacutea

Cheguei haacute cinco sumananesta grande capitaacute

Sou musgoMusgo gaitecircroE natildeo eacute pruacute me gavaacutefui o terrocirc dos violeirodos sertatildeo do Cearaacute194

Assim consumada a escrita e construiacutedo um personagem ldquoserta-nejordquo Catullo ele mesmo que viveu por um pequeno periacuteodo no sertatildeo e importante sendo identificado nominalmente como Cearense po-deria dessa forma ser reconhecido como um ldquopoeta do sertatildeordquo O ciacuter-culo se fecha de forma a natildeo restar duacutevida de que a partir de todo esse esquema traccedilado a identificaccedilatildeo do autor com seu personagem condu-zisse Catullo ao panteatildeo de um poeta diferente de todos os outros que tematizavam o sertatildeo naquele periacuteodo ele seria pela proacutepria coinci-decircncia biograacutefica o proacuteprio povo do sertatildeo Mas se em suas estrateacutegias para ser reconhecido como poeta todos os elementos postos acima natildeo foram negligenciados por Catullo eles por si natildeo explicariam o fato de o autor nunca se identificar como um ldquopopularrdquo e paradoxalmente querer ser lido como um melhor conhecedor do ldquopopularrdquo Daiacute sua in-cessante busca por ser representado como algueacutem conhecedor das ldquoboas letrasrdquo ldquoEmbora conheccedila bem a meacutetrica tanto que vou publicar um livro de poesias traduzidas prefiro estabelecer esse consoacutercio entre a melodia e a poesiardquo195

Catullo precisou negar sua posiccedilatildeo de iletrado no mesmo mo-mento em que buscava se expressar como tal Essa ambiguidade soacute pocircde se dar pela evocaccedilatildeo de um terceiro personagem entre Catullo e o popular-sertanejo que dava a autenticidade para a sua poesia e que ele representava como sendo uma nova vida a alma ldquoQuando escrevo os

194 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 39195 O Paiz 25 fev 1906 p 6

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo156

meus versos sinto que minha alma se eleva que uma nova vida se estua pelo corpordquo196

Apresentando Meu sertatildeo aos leitores de Catullo os escritores Humberto de Campos e Alberto DrsquoOliveira transmitem uma primeira impressatildeo do livro explicando o estranho fato de aparecer ali uma lin-guagem ruacutestica

Catullo natildeo quer poreacutem que os seus fructos nasccedilam no jardim ou brilhem em vasos de porcellana quer conserval-os no mato envoltos nas folhas A seiva para o fructo quem daacute eacute Deus Agrave aacutervore compete apenas dar foacuterma ao pomo Catullo tem toda inspiraccedilatildeo dos grandes e verdadeiros poetas e como eacute sertanejo vasa essa forte seiva nos ruacutes-ticos moldes que lhe fornece o sertatildeo197

A analogia com a aacutervore natildeo eacute gratuita O escritor tenta estabe-lecer um espaccedilo distinto para a recepccedilatildeo de Catullo pelo uso da ana-logia para explicar ao leitor que a poesia ali publicada natildeo era propria-mente de Catullo Este daria a forma Competia ao autor a expressatildeo de algo anterior a ele mesmo que natildeo eacute soacute dele natildeo se subtrai a ele mas que se expressa melhor nele o povo Seu texto eacute evento eacute aconteci-mento efecircmero de algo sem tempo que veio antes dele

[] poeta bravio poeta cujos versos natildeo foi preciso semear e ainda menos cultivar poeta egualmente entendido e apreciado pelos saacutebios e pelos ignorantes poeta do povo e da raccedila poeta e soacute poeta que soacute pode dar poesia como as abelhas soacute podem dar mel198

A natildeo coincidecircncia de Catullo com sua poesia residia no fato de que ele natildeo precisava ldquosemearrdquo e ldquocultivarrdquo pois era ldquopoeta do povo e da raccedilardquo de forma que dele soacute poderia se extrair tal tipo de poesia tal qual inescapavelmente a abelha soacute daacute mel Aqui cada palavra eacute revela-dora A aproximaccedilatildeo desinteressada de Catullo com uma produccedilatildeo que

196 Idem197 CAMPOS Humberto de Homenagem a Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da

Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 19198 DrsquoOLIVEIRA Alberto Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo

Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 13

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 157

leva seu nome era um fato em conformidade com o que ele era ou seja um poeta da raccedila ldquoSemearrdquo e ldquocultivarrdquo seriam trabalhos reservados para outros tipos de poetas porque na poesia de Catullo ldquo[] natildeo haacute elaboraccedilatildeo de raciociacutenio nem analyse haacute transbordamento de sensa-ccedilotildees de sentidos que viveram concretamente a vida da naturezardquo199

Esse afastamento do nome de Catullo de sua poesia era enten-dido inclusive como indissociaacutevel para a compreensatildeo da forma como os poemas eram apresentados na publicaccedilatildeo Mesmo Meu sertatildeo tra-zendo a novidade da escrita de uma suposta oralidade sertaneja no texto nessas mesmas poesias eacute necessaacuterio salientar o personagem principal natildeo podia ser identificado ao proacuteprio Catullo Por causa disso o proacuteprio Catullo apresentava-os ao seu leitor como fez com o perso-nagem Quinca-Micuaacute

Natildeo Leacutede com dor com maguaessa histoacuteria essa romanccedilade um homem feito creanccedilaesse ldquoQuinca Micuaacuterdquoalma pura nobre e santacomo uma flor redolenteque talvez tatildeo innocentenatildeo exista outra por caacute200

Os personagens satildeo revelados nos poemas e aos poucos vatildeo surgindo os donos das vozes que Catullo faz aparecer no seu texto Quinca Micuaacute o gaiteiro do sertatildeo o marrueiro o lenhador Chico Mironga o passador de gado o vaqueiro o cangaceiro e o violeiro Chico Mindello Ateacute aiacute nada incomum A diferenccedila aqui reside na pos-siacutevel e inevitaacutevel associaccedilatildeo pelo leitor do nome Catullo da Paixatildeo Cearense com os seus personagens representados no texto Uma vez que estes expressavam uma suposta ldquoalma sertanejardquo e sendo Catullo jaacute havia algum tempo conhecido como poeta sertanejo apresen tando-se

199 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p XIII

200 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Em caminho do sertatildeo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 34

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo158

em alguns momentos inclusive vestido tal e qual a coincidecircncia entre Catullo seus personagens e a ldquoalma sertanejardquo que ali expressava era inevitaacutevel para o leitor daquela eacutepoca Catullo era muitas vezes repre-sentado como sendo ele mesmo o sertanejo de suas poesias

Ao mesmo tempo em que era apresentado como um autecircntico poeta sertanejo Catullo buscava estrategicamente afastar-se de toda re-presentaccedilatildeo que pudesse identificaacute-lo tatildeo somente como um dos seus personagens No poema Em caminho do sertatildeo que apresenta o livro Meu sertatildeo Catullo dirige-se diretamente a seus leitores

Tenho lido desde Homerotudo o que se tem escriptoem versos de ouro e granitode impeccavel perfeiccedilatildeomas talvez seja ignoracircnciaaacutes vezes fico pasmadocom um verso immetrificadode um Manoel Riachatildeo201

Um poeta que faz aparecer personagens em seus livros para serem identificados como sertanejos e que ao mesmo tempo procura apresentar-se como algueacutem que lecirc Homero Ou melhor como algueacutem que natildeo pode ser confundido com seu personagem iletrado Um letrado que fica ldquopasmadordquo com o verso imetrificado do seu personagem Manoel Riachatildeo ndash que natildeo eacute e nem pode ser Catullo Este o expressa ndash e ateacute se assusta com ele mas Catullo natildeo o eacute e embora seja apresentado em seus prefaacutecios por homens distintos das letras brasileiras e portu-guesas do periacuteodo tal qual um sertanejo nega a representaccedilatildeo de um sertanejo iletrado para si

O que se potildee no centro da discussatildeo eacute o caraacuteter da invenccedilatildeo Catullo assume um tipo de invenccedilatildeo que se daacute a partir de uma traduccedilatildeo Ele eacute em uacuteltima instacircncia o indiviacuteduo que se apresenta como um esco-lhido para expressar algo anterior a ele Esse algo anterior por outro lado poderia ser tachado de ldquoantigordquo ldquovelhordquo ldquobaacuterbarordquo

201 Ibidem p 35

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 159

Monteiro Lobato por exemplo vai colocar em xeque a literatura produzida por Catullo por caracterizaacute-la como a expressatildeo de um barba-rismo da liacutengua ndash o que travaria inclusive a ascensatildeo do autor a ldquogrande poetardquo O editor dos livros de Catullo Antocircnio Castilho parecia pro-curar nesse paradoxo um irresistiacutevel caminho para apresentar o autor como um poeta distinto de todos os outros No segundo livro de poemas sertanejos de Catullo intitulado de Sertatildeo em flor o editor fez surgir duas criacuteticas agrave poesia de Catullo Cearense a primeira eacute a jaacute citada criacutetica de Monteiro Lobato sobre sua impossibilidade de ser um grande poeta escrevendo num linguajar baacuterbaro a segunda criacutetica era de Joseacute Oiticica

Catullo fez-se elle mesmo cangaceiro marroeiro lenhador pas-sador de gado adoptou o semi-dialecto sertanista com uma justeza raras vezes claudicante O sabor que nos adveacutem desse processo eacute delicioso Seu livro perderia cincoenta por cento si fora escripto em liacutengua de branco202

Embora saltasse aos olhos a discordacircncia dos dois criacuteticos acerca da poesia de Catullo o editor encontrava um caminho por onde Catullo poderia e deveria ser lido pelo leitor e arrematava dizendo ldquoCATULLO CEARENSE soacute desejava dar razatildeo aos doisrdquo203

No espaccedilo tecircnue entre aceitar a criacutetica de Lobato ndash que de resto chama atenccedilatildeo para as regras que governavam a consagraccedilatildeo de um indiviacuteduo a poeta ndash e no mesmo movimento corroborar a criacutetica elo-giosa de Oiticica que contrastava com a do primeiro o editor de Catullo via a possibilidade de mostrar ao puacuteblico leitor a novidade daquela pu-blicaccedilatildeo Para ele Catullo expressaria em suas publicaccedilotildees a vontade de ser aquilo que Lobato chama de ldquogrande poetardquo ao mesmo tempo em que via na representaccedilatildeo da fala de seus personagens que Lobato acreditava ser algo negativo um fator fundamental para a sua consa-graccedilatildeo tal como pensava Oiticica

202 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Nota preacutevia In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p XX

203 Idem

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Ainda eacute o editor Castilho que daraacute uma explicaccedilatildeo sobre a forma da poesia de Catullo visando agrave compreensatildeo do autor como um letrado Para o editor escrever versos num linguajar ldquobaacuterbarordquo era uma opccedilatildeo que Catullo aceitava conscientemente de bom grado como um empreacutes-timo da alma do sertanejo mesmo podendo escrever de forma mais palataacutevel para o puacuteblico leitor cioso da boa liacutengua

Embora soubesse e pudesse escrever os seus versos em portuguecircs vulgar entendeu Catullo Cearense conservar-lhes a ingenuidade nativa nas palavras rudes e simples imprevistas e encantadoras como os di-riam os sertanejos que lhe emprestaram o coraccedilatildeo e a alma204

Essa escolha era encarada pelo editor como proposital pelo autor visando a deixar o ldquocoraccedilatildeordquo e a ldquoalmardquo agrave mostra para os seus leitores Assim o que avultaria positivamente aos olhos dos leitores do autor seria ainda a sua capacidade de expressar-se em outro linguajar Isso era um sinal de que entre o linguajar e o poema escrito existia o poeta um ldquomelhor-tradutorrdquo e que este natildeo poderia ser confundido com aquele para quem ele escreve traduzindo

E qual o lugar distinto e original reservado a Catullo no campo literaacuterio no periacuteodo Essa questatildeo soacute fica mais compreensiacutevel com a leitura da apresentaccedilatildeo do segundo livro de poemas sertanejos de Catullo Sertatildeo em flor feita pelo acadecircmico Maacuterio de Alencar Nela Maacuterio explica a posiccedilatildeo de Catullo pela evocaccedilatildeo de um terceiro

Na voz de Catullo canta natildeo a pessoa delle mas o sertatildeo e o serta-nejo [] Eacute em summa a alma humana tatildeo vivamente dramatizada [] Tecircm-se a impressatildeo de que o poeta natildeo descreve por palavras senatildeo as que as proacuteprias cousas e pessoas surgem vivas em imagens da natureza205

A passagem exige uma explicaccedilatildeo Havia como mostrei ante-riormente uma aproximaccedilatildeo entre o Catullo escritor e os seus persona-

204 Ibidem205 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em

flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p XXI-XXII

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 161

gens de forma que Catullo poderia facilmente ser identificado como sendo um deles Embora essa aproximaccedilatildeo parecesse ser objeto que atestasse a autenticidade do escritor estar tatildeo perto assim de seu perso-nagem travaria sua consagraccedilatildeo como poeta ndash ser o ldquomaior poeta po-pular do Brasilrdquo como queria Lobato

A consagraccedilatildeo soacute poderia advir com um afastamento de seu nome dos de seus personagens poreacutem isso perigosamente afastaacute-lo-ia da autenticidade que era evocada tambeacutem como fator de distinccedilatildeo em sua produccedilatildeo Soacute restava entatildeo a saiacuteda que eacute a de Maacuterio de Alencar quando propotildee que aquilo que era transcrito no texto era Catullo e ao mesmo tempo natildeo era Uma ldquoalmardquo falaria em Catullo de forma que apenas ele poderia expressar da melhor maneira essa ldquoalmardquo Uma alma anterior a Catullo e que ele mesmo por ser poeta conhecedor das coisas do sertatildeo era o mais autorizado para traduzir Na apresentaccedilatildeo de Meu sertatildeo o autor reafirmava essa posiccedilatildeo

Se natildeo traduzo a contentoas queixas laacute da violauma coisa me consola ndasheacute contar tudo o que ouviE embora vilipendiadocom inoffensiacutevel ferezapertencer aacute naturezadesta terra em que nasci206

Catullo levou ateacute as uacuteltimas consequecircncias o caraacuteter representa-cional do acontecimento ldquoescreverrdquo de forma que ldquoquem escreverdquo eacute um Outro a partir do escritor O Outro (a alma) fala nele e ele eacute a corpori-ficaccedilatildeo (o autor em uacuteltima instacircncia) de um Outro que estaacute ausente Eacute a ausecircncia do outro (o sertanejo o popular) que vai possibilitar a Catullo ser reconhecido como poeta sertanejo e ele por sua vez precisava dessa ausecircncia para construir-se como tal Catullo da Paixatildeo Cearense quer ser reconhecido como um autor que expressa o Outro da melhor

206 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 28

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo162

forma Por isso ele traduz a fala do Outro Eacute na traduccedilatildeo que reside a funccedilatildeo-autor nos seus poemas sertanejos

Essa ausecircncia da fala do sertanejo fundamental para a represen-taccedilatildeo de Catullo como algueacutem que ldquoescreve porrdquo foi constantemente dramatizada no mundo letrado do periacuteodo que a via como uma perda irreparaacutevel de forma que a novidade de Catullo poeta sertanejo era a novidade de se conhecer o ldquoverdadeiro povordquo em seus livros Eacute dessa crenccedila na busca de uma ldquoverdaderdquo no texto que Catullo vai se valer para conduzir sua literatura a um ecircxito final O caraacuteter de suas poesias serta-nejas o colocava no centro de uma comunicaccedilatildeo que se fazia povoelite letrada E embora o autor nunca quisesse ser confundido com esse ldquopovordquo o momento da escrita monumentalizado por ele e por seus criacuteticos como sendo o momento performaacutetico da alma era o momento de um Catullo sertanejo que operacionalizava essa comunicaccedilatildeo

Ora a autoridade de um artefato literaacuterio comeccedila a se dar quando o indiviacuteduo assume o caraacuteter de invenccedilatildeo do objeto que estaacute escrito mesmo que esse objeto o texto expresse uma conformidade tatildeo veros-similhante que no limite apague seu autor ou se confunda com ele Nesse uacuteltimo caso seu nome parece confundir-se com as coisas que inventa ou conta Catullo assume a traduccedilatildeo como invenccedilatildeo A traduccedilatildeo que liga um ldquoque natildeo estaacuterdquo para seu leitor

Se Catullo eacute tradutor haacute de se fazer a pergunta tradutor de quecirc Aiacute reside a confusatildeo entre ldquoquem escreverdquo e ldquoquem fala por quem es-creverdquo A autoria que eacute retirada de Catullo ndash pela constataccedilatildeo de que afinal natildeo haacute invenccedilatildeo mas traduccedilatildeo de uma alma ndash logo eacute reintrodu-zida por um regime autoral outro que natildeo eacute a de ldquoquem escreverdquo mas de ldquoonde se escreverdquo E quem escreve afinal no caso de Catullo dis-corre da cidade Paixatildeo Cearense eacute apresentado como a autoridade para representar o sertanejo jaacute por ser um homem citadino O sertanejo mesmo natildeo poderia ser poeta pois o interior eacute uma fase ldquoda infacircncia do mundordquo e no interior natildeo haacute poetas Maacuterio de Alencar daacute disso a me-lhor explicaccedilatildeo em prefaacutecio ao livro de Catullo Vejamos

[] A poesia do homem moderno em condiccedilatildeo progressiva devecircra exprimir-se na linguagem da prosa que eacute a forma proacutepria da analyse Perduraria a expressatildeo symmetrica somente em raros poetas que pu-

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 163

dessem ficar alheios aacute marcha analytica e prosaica do espiacuterito humano preservando a alma elementar que foi a da infacircncia do mundo igno-rante na ilusatildeo e no sonho do mysterio A sobrevivecircncia da poesia em verso na maior parte dos que versejam procede da imitaccedilatildeo deleituosa e em si mesma artiacutestica das formas consagradas da belleza Por isso subsistem ainda os gecircneros conservados pelo talento a serviccedilo da von-tade por arte alliada aacute eloquecircncia por economia do esforccedilo e pelo re-flexo inspirador das gloacuterias antigas207

Catullo para Maacuterio de Alencar faria parte desses uacuteltimos pois seria um daqueles que apareceram ldquoem plena civilizaccedilatildeo de desencanto encantados quase selvagens extremes de sciecircncia com os sentidos vir-ginalmente cheios da sensaccedilatildeo directa e simples da vidardquo208 E Maacuterio avanccedilava articulando o autor com a cidade de forma que ldquoo bem ou mal do Catullo foi seu afastamento do sertatildeo natalrdquo pois seria soacute na cidade que certo trabalho espiritual poderia ser dar

O trabalho espiritual procede com a condiccedilatildeo da dualidade da luz e do som que natildeo existem sem o meio transmissor natildeo haacute luz no vaacutecuo natildeo haacute som sem a ondulaccedilatildeo do ar ou a vibraccedilatildeo de um corpo A voz do passado soacute ressoa para o ouvido alheio proacuteximo ou distante mas possiacutevel que a esperanccedila realizaAgora na cidade havia auditoacuterio para escutar o poeta sertanejo e curio-sidade para estimulal-o O thema encurtado em cantigas dilatou-se em poemas209

Esse trabalho ldquoespiritualrdquo do poeta era ainda mais entendido como trabalho empreendido nele (e natildeo soacute dele) quando Maacuterio de Alencar atenta que ldquoTem-se a impressatildeo de que o poeta natildeo descreve por pala-vras senatildeo que as proacuteprias cousas e pessoas surgem vivas em imagens da naturezardquo Ou em outra passagem ldquoA pessoa do poeta se desvanece [] o poeta age inconscientemente sob o domiacutenio da emoccedilatildeordquo210 Ainda

207 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p VIIndashVII

208 Ibidem p VIII209 Ibidem p XI210 Ibidem p X

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo164

ldquoNesse gecircnero e com esse talento natildeo existe continuidade de poesia senatildeo momentos de poesia que natildeo hatildeo de ser buscadosrdquo211

Maacuterio de Alencar traz agrave tona a escrita como acontecimento uacutenico como expressatildeo de uma alma anterior ao poeta que se vale dele para se comunicar Daiacute pensar ldquoImagens dessas natildeo se premeditam natildeo se rebuscam natildeo se inventam em toda uma vida de espiacuterito porque nascem por si sem esforccedilo satildeo a proacutepria linguagem de quem soacute per-cebe por imagemrdquo212

ldquoImagens [] que natildeo se inventamrdquo Eacute neste ponto que haacute uma negaccedilatildeo positiva da invenccedilatildeo no poeta Positiva pois que eacute nessa ne-gaccedilatildeo da invenccedilatildeo que possibilita a construccedilatildeo de um espaccedilo de tra-duccedilatildeo autorizada A inspiraccedilatildeo eacute expressatildeo de algo que jaacute existe A es-crita eacute o momento reservado para essa expressatildeo e Catullo eacute nesse momento uacutenico a alma ldquoCatullo Cearense eacute o vate explosivo emo-cional em quem a alma do sertatildeo e da raccedila brasileira e sua mesticcedilagem faz maravilhosa erupccedilatildeo de sentimentalismo e de sonoridaderdquo213

O escritor na esteira disso eacute o gecircnio autorizado a expressar-se por ser oriundo do sertatildeo embora natildeo seja um sertanejo Essa asserccedilatildeo foi necessaacuteria para estabelecer o diferencial de Catullo com outras pro-duccedilotildees do periacuteodo que se propunham a fazer ver o povo Para fazer essa distinccedilatildeo Catullo natildeo poderia ser apresentado como um coletador um observador um intelectual do folclore Sua autoridade natildeo advinha de uma possiacutevel autoridade intelectual socialmente referendada por uma pesquisa Ele natildeo observa tal qual Siacutelvio Romero Melo Moraes Maacuterio de Andrade ou Afonso Arinos Ele na escrita eacute o popular sertanejo Embora fora desse momento da escrita natildeo o seja E eacute por esse ldquonatildeo ser sertanejordquo que pode ser chamado de poeta Porque tal como afirma Maacuterio de Alencar vivendo no sertatildeo Catullo natildeo seria poeta O poeta soacute existe na cidade Paixatildeo Cearense eacute colocado num espaccedilo hieraacuter-quico onde eacute menos do que um intelectual e mais do que um sertanejo

211 Ibidem p XI212 Ibidem p XIII213 Opiniatildeo do intelectual Faacutebio Luz na Revista das Revistas em 29 de novembro de 1919

em que o editor Castilho fez aparecer em publicaccedilatildeo de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illuminada Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 282 (1ordf ediccedilatildeo em 1924)

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Assertiva esta que fica entendida quando apresentando em versos seu livro Meu sertatildeo ao leitor Catullo dispara

Quizera eu ser ignorantecomo um cantor sertanejoEra esse o me desejoNatildeo ter nenhuma instrucccedilatildeoMas ter o dom do improvisopara dizer de momentoas dores do pensamento e as maguas do coraccedilatildeo214

Natildeo ser um sertanejo dava ainda mais a impressatildeo (de resto ins-tigada por Catullo) de que seus poemas natildeo sendo invenccedilotildees eram a expressatildeo de um Outro E ele por diversas vezes buscou afastar-se de sua identificaccedilatildeo com um sertanejo exatamente como maneira de se afirmar como poeta

Eu sou o maior inteacuterprete do sertatildeoO meu grande meacuterito estaacute nisso em natildeo conhecer o sertatildeo e descrevecirc-lo tatildeo admiravelmentePor isso eacute que eu me considero o maior inteacuterprete do sertatildeo do Brasil 215

Nesse movimento fazia representaccedilotildees de si por meio de compa-raccedilotildees com outros letrados que tematizaram o sertatildeo

[] Naturalmente vocecirc vai me falar de Euclides da Cunha Mas Euclides foi um estudioso um cientista O sertatildeo estaacute em sua obra como uma rosa num livro de botacircnica E a alma do povo E o povo vivendo O povo como ele eacute e natildeo como a gente quer que ele seja Abra um livro meu laacute estaacute o povo cantando e sofrendo o sertanejo vivo dentro do seu ldquohabitatrdquo216

214 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Em caminho do Sertatildeo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 26

215 Em entrevista a Joel Silveira In BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os ho-mens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 192

216 Idem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo166

Aqui a citaccedilatildeo eacute expliacutecita Catullo eacute a expressatildeo da alma ele eacute o ldquointeacuterpreterdquo do sertatildeo Mas como interpretar algo que natildeo conhece O autor tem sua proacutepria resposta a alma Se Euclides conheceu o sertatildeo viu com os proacuteprios olhos Catullo deixa falar em si a alma do povo Seu texto natildeo eacute soacute representaccedilatildeo de um ausente eacute tambeacutem a apresen-taccedilatildeo da representaccedilatildeo em si eacute a proacutepria expressatildeo da coisa que soacute eacute possiacutevel porque Catullo natildeo inventa ele a incorpora em seu momento de escrita

A escolha pelo caminho que melhor levava a uma aceitaccedilatildeo pas-sava inclusive pela construccedilatildeo de poemas que visavam por meio de metaacuteforas a conduzir e regrar a leitura do impresso de forma a compre-ender quem eacute aquele que escreve de construir no texto uma represen-taccedilatildeo de si distinta da de seus personagens No texto de O sonho que eacute uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo do livro feita por Catullo ele se dirige a outros poetas para contar-lhes um sonho que tivera

Poetas Vou contar-vos um sonho em que nrsquoum surto espiritual me transportei ao sertatildeo onde nasci A noite era de pleniluacutenio Bebendo os misteacuterios da lua pelas matildeos da saudade dos 25 anos de ausecircncia alli no regaccedilo dos Mattos indomesticados entrei a cantar os versos que escrevi a essa Virgem Maria dos trovadores Sentia-me opulento mil vezes mi-lionaacuterio porque me encontrava outra vez no coraccedilatildeo do meu palco de folhas E cantava ldquondash Natildeo haacute oacute gente oh natildeo luar como esse do sertatildeordquo ndash quando um velho jequitibaacute onde outrrsquoora me encostava para conversar com os paacutessaros errantes comeccedilou a falar assim lsquoQuem te deu o direito de violar o silecircncio desta noite misericordiosa Que vens aqui fazer nestas soledades onde depois de teres sido confi-dente de nossos melindres jaacute fostes amaldiccediloados pelos nossos cora-ccedilotildees Natildeo nos pertences mais O teu estro estaacute eivado de civilizaccedilatildeo [] Fita a lua O seu brial inturvou-se Como agradercer-te as estro-phes que lhe fizeste se as offerecestes aacute maldita civilizaccedilatildeo217

Catullo construiacutea sua proacutepria representaccedilatildeo de forma a descons-truir uma outra que o via como um proacuteprio homem da natureza receita esta que lhe retiraria a identificaccedilatildeo de poeta A coincidecircncia de seu

217 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p 1

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nome com a de seus personagens se esvaziaria Natildeo foi portanto gra-tuito o aparecimento de uma explicaccedilatildeo no comeccedilo do livro Era a ten-tativa de regrar uma leitura que Catullo sabia poderia enveredar pelos caminhos da criacutetica produzida por Monteiro Lobato Sem o conheci-mento dessa criacutetica seria incompreensiacutevel entender como algueacutem que se avultava como poeta sertanejo introduzia seu livro exatamente com a representaccedilatildeo oposta de si ou seja como algueacutem que era odiado pela natureza do sertatildeo representado no texto pela fala de um velho jequitibaacute

A manhatilde vae despertar e eacute conveniente que ella natildeo te encontre aqui sob a proteccedilatildeo dos meus ramosA alvorada do sertatildeo te odeiaNunca te lembrar-te della que tanto te inspirava Ella estaacute enciumada Cantaste a noite de luar e esqueceste-a Vae miseraacutevel218

Essa representaccedilatildeo visava a afastar o nome de Catullo da identi-ficaccedilatildeo como um sertanejo ndash que lembremos novamente de acordo com Maacuterio de Alencar era uma identidade que natildeo faria do autor um poeta No entanto se de um lado o autor buscava afastar-se do sertatildeo por outro a cidade ainda era encarada como sendo arredia a seus po-emas O ciacuterculo se fecha Assim ainda em O sonho o velho jequitibaacute fala da representaccedilatildeo de Catullo na cidade

Porque natildeo nos offerecestes o livro que publicaste como era do teu dever e gratidatildeo Os poetas e os literatos de laacute te consideram um reacuteles modinheiro um capadoacutecio de insiacutepidas serenatas Fomos vingadosSe estivesses entre noacutes seria um sabiaacute honoraacuterio e o teu livro jaacute teria sido laureado pelos applausos de toda a Natureza219

Todo esse contorcionismo tornava-se necessaacuterio antes de tudo para fazer frente agraves criacuteticas acerca de sua representaccedilatildeo do sertatildeo e do sertanejo Essa receita era tanto mais importante porque avultavam

218 Ibidem p 3219 Ibidem p 4

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo168

no mesmo periacuteodo outras obras que buscavam uma representaccedilatildeo ve-rossimilhante do sertatildeo E essa verossimilhanccedila era imprescindiacutevel uma vez que natildeo se buscava nessas obras com temaacuteticas sertanejas apenas a invenccedilatildeo deliberada do autor mas por uma conveniecircncia histoacuterica a necessidade de conhecer o sertatildeo como forma de entender a naccedilatildeo Esse tema era intransponiacutevel naqueles idos e tornou-se in-clusive algo necessaacuterio para se definir aquilo entendido no rol de ldquoli-teratura nacionalrdquo

Assim a recepccedilatildeo positiva das primeiras obras contendo os po-emas sertanejos de Catullo reafirmou uma predileccedilatildeo por temaacuteticas sertanejas no universo de leitores do periacuteodo Jaacute em 1921 outra publi-caccedilatildeo foi esgotada em sua primeira ediccedilatildeo rapidamente Tratava-se da obra Cantadores a primeira publicada pelo folclorista do Cearaacute Leonardo Mota que veio agrave luz sob o selo da livraria Castilho a mesma de Catullo Cearense

Entusiasmado com o sucesso de vendas ndash alavancado tambeacutem pela polecircmica causada em torno da representaccedilatildeo de um linguajar serta-nejo na obra de Catullo ndash o editor Castilho apostou em novas publicaccedilotildees cujo tema ldquosertatildeordquo fosse o mote Leonardo Mota por seu lado vinha do Cearaacute trazendo na bagagem os resultados de suas pesquisas sobre os ldquocantadores do norterdquo Castilho seguindo a mesma foacutermula usada nas publicaccedilotildees dos livros do autor de Meu sertatildeo fez aparecer vaacuterias opi-niotildees abalizadas no texto de Mota a fim de apresentaacute-lo ao grande puacute-blico O resultado foi uma primeira ediccedilatildeo com dez mil exemplares esgo-tados em pouco tempo que confirmaram o tino de Antocircnio Castilho

Agrave diferenccedila dos livros de Catullo Mota era apresentado como um autor que escrevia o que vira e vivera O recurso agrave alma desaparece do discurso e o recurso da autoacutepsia eacute evocado como o argumento de autoridade Mas ainda aqui era traccedilada uma diferenciaccedilatildeo com outras produccedilotildees proacuteximas agraves dele De Afonso Arinos a diferenccedila eacute essa pro-ximidade que fazia Mota ver melhor do que ningueacutem

Leonardo Motta eacute o confidente da grande alma poeacutetica do sertanejo cea-rense Elle natildeo eacute um estheta como Arinos que amava essas cousas aacute dis-tacircncia que tinha todos os enthusiasmos possiacuteveis pelas nossas tradiccedilotildees e pelas nossas lendas mas natildeo passava de um boulevardier incorrigiacutevel

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 169

[]Leonardo Motta natildeo Tudo o que elle sabe eacute porque viu e porque viveu porque se compraz nisso com um carinho que chega ao sacrifico de si mesmo porque esteve ao lado de nosso homem ruacutestico intimamente natildeo como um viajante apressado mas como um amigo um camarada um irmatildeo misturado com elle integralizado no seu pensamento e nos seus sentimentos mais iacutentimos220

Se essa aproximaccedilatildeo iacutentima com o sertanejo fazia Leonardo Mota ser considerado autoridade para representar o sertatildeo no mundo letrado a falta dessa aproximaccedilatildeo resultava naqueles que a natildeo tinham em constantes recursos a exageros O escritor e criacutetico Joseacute Ameacuterico de Almeida faz dessa comparaccedilatildeo com outros escritores do sertatildeo o seu paracircmetro para representar Leonardo Mota Nela aparece o inevitaacutevel nome de Catullo

Juvenal Galeno Hermiacutenio Castello Branco e Catullo Cearense cada qual com o seu feitio afinam entre noacutes as suas lyras pelas trovas do sertatildeo ndash o uacuteltimo com um deleitoso poder de imagens Mas todos elles incidem em exaggeros que prejudicam aacutes mais das vezes a naturali-dade de suas composiccedilotildees ora elevando a forma acima da meacutedia intel-lectual dos cantadores ora deprimindo-a a uma algaravia com preoccu-paccedilotildees dialectaes extranhas aos modismos populares221

As constantes lutas acerca da melhor forma de representar o homem do sertatildeo faziam com que diversas produccedilotildees buscassem cada qual mobilizando suas respectivas estrateacutegias a autoridade final para expressar o sertatildeo e o sertanejo em seus textos Ademais essa tarefa mesclava-se com um caraacuteter poliacutetico de conhecer melhor o sertatildeo para melhor conhecer a naccedilatildeo Se seguramente essa agenda natildeo esteve tatildeo claramente expressa nas primeiras produccedilotildees sertanejas de Catullo natildeo eacute possiacutevel desdenhar que o sucesso (e a quantidade) de temaacuteticas serta-

220 Opiniatildeo do jornalista Annibal Fernandes que o editor Castilho fez incluir ao final do livro ldquoCantadoresrdquo In MOTTA Leonardo Cantadores poesia e linguagem do sertatildeo cearense Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 391

221 Opiniatildeo do escritor Joseacute Ameacuterico de Almeida que o editor Castilho fez incluir ao final do livro ldquoCantadoresrdquo In MOTTA Leonardo Cantadores poesia e linguagem do sertatildeo cearense Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 395

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo170

nejas na literatura do periacuteodo fosse resultado dessa agenda essencial-mente poliacutetica e que essa mesma agenda tornou-se absolutamente um tema incontornaacutevel para aqueles que buscavam para as suas respec-tivas produccedilotildees o status de nacional que lhes garantisse um lugar na literatura do periacuteodo Afinal a construccedilatildeo da literatura brasileira se pautou historicamente pela regra de que ela deveria ser ldquobrasileira antes de ser literaturardquo Tal eacute o lugar de Catullo

A grande tensatildeo que perpassa essas produccedilotildees eacute a incocircmoda questatildeo de como representar melhor o sertatildeo Se por um lado a voz autorizada da ciecircncia era vista como uma entre as tradutoras mais aba-lizadas desse empreendimento alguns nomes da literatura que desde o seacuteculo XIX construiacuteam esse status buscaram suas proacuteprias estrateacutegias de construccedilatildeo de autoridade

Participando desse lugar de produccedilatildeo textual Catullo da Paixatildeo Cearense evocou a alma como um terceiro elemento entre o poeta e a coisa e buscou a partir dessa tensatildeo a consolidaccedilatildeo de seu nome dentro do panteatildeo da literatura do periacuteodo Esse espaccedilo soacute pocircde ser buscado a partir de um diaacutelogo tenso com outras representaccedilotildees que tambeacutem se faziam no periacuteodo e que faziam elas mesmas suas estrateacute-gias de forma a dar verossimilhanccedila ao que se contava nos livros Tais lutas de representaccedilotildees satildeo perceptiacuteveis nas publicaccedilotildees produzidas e soacute podem ser compreendidas se levado em conta o caraacuteter muacuteltiplo e imprevisiacutevel das escolhas levadas pelos agentes que fizeram o espaccedilo de produccedilatildeo textual da eacutepoca

Esse consoacutercio entre poeta e alma na obra de Catullo teve seu lugar central em 1928 com a publicaccedilatildeo do volume de poesias alvissa-reiramente intitulado Alma do sertatildeo pela livraria editora Leite Ribeiro Seu proprietaacuterio associado a Mauriacutelio Quaresma irmatildeo do antigo editor de Catullo Pedro da Silva Quaresma transformou a editora numa potecircncia a ponto de ser citada em publicaccedilotildees estrangeiras como uma das mais belas do Rio de Janeiro aleacutem de ser frequentada por grandes intelectuais que iam agrave sua loja procurar desde traduccedilotildees de po-etas estrangeiros a jornais

Catullo da Paixatildeo Cearense tornou-se frequentador assiacuteduo de sua casa e teve seu Alma do sertatildeo publicado pela editora e prefaciado

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pelo escritor Maacuterio Joseacute de Almeida A publicaccedilatildeo divide-se em duas partes uma com desafios sertanejos onde o autor repetia a foacutermula consagrada em seus livros anteriores qual seja a de reproduzir a fala sertaneja em poemas sertanejos e outra que constava de reflexotildees em prosa acerca da mulher em julgamentos de personagens de diversos tipos tais como o operaacuterio o anarquista e o mineiro

Maacuterio Joseacute de Almeida escreveu o prefaacutecio sob o tiacutetulo de ldquoAlgumas notas sobre o occupante da cadeira quarenta-e-umrdquo numa clara alusatildeo agrave Academia Brasileira de Letras que por sua vez possuiacutea quarenta cadeiras de ldquoimortaisrdquo da literatura do paiacutes Apresentando-o como o ocupante de tal cadeira de nuacutemero 41 e como um entre aqueles imortais Maacuterio fala dos versos de Catullo ldquoNo verso Catullo tem a expressatildeo que eacute um ldquotrouvaillerdquo da sua singulariacutessima inteligecircncia e uma interpretaccedilatildeo do sentimento humano que ainda natildeo encontrei em outros poetasrdquo222

ldquoInterpretaccedilatildeo do sentimento humanordquo Eacute novamente como tra-dutor que Catullo eacute apresentado Natildeo que isso lhe retirasse a geniali-dade que aqui estaacute ligada a um ldquotrouvaillerdquo um encontro ndash requisito para a expressatildeo traduzida do sertanejo em seus versos no texto Maacuterio avanccedila na explicaccedilatildeo de sua apresentaccedilatildeo-representaccedilatildeo de Catullo a partir dos versos de seus Desafios ldquo[] Estes Desafios satildeo feitos no seu rythmo predilecto Alguns satildeo variantes do folk-lore e ganham brilho na officina de Catullo como as anedoctas tambeacutem produccedilotildees do povo revivem na arte de contar de Humberto de Camposrdquo223

Representaccedilatildeo que garante a Catullo seu reconhecimento como poeta a partir da expressatildeo de um sertanejo que ele traduz De um en-contro que o torna genial por natildeo vir de um trabalho de ldquovirtude dos prosadores que eacute a paciecircncia de Renan de Flaubert de Anatole de Francerdquo mas que por essa falta mesma de virtude transformaacute-lo-ia afinal em algueacutem com uma ldquoingenuidade genialrdquo224

222 ALMEIDA Maacuterio Joseacute de Algumas notas sobre o occupante da cadeira quarenta-e-um In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928 p 21

223 Idem p 21224 Ibidem p 21-23

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo172

Aqui cabe uma reflexatildeo O exerciacutecio da traduccedilatildeo eacute muitas vezes entendido como uma impossibilidade de partida A necessidade de ldquolevar o leitor ao autorrdquo e ao contraacuterio ldquolevar o autor ao leitorrdquo com-preenderia uma aporia inescapaacutevel onde algo sempre se perderia nessa transiccedilatildeo Traduzir aiacute seria servir a dois mestres o estrangeiro em sua obra e o leitor em seu desejo de apropriaccedilatildeo em que o desejo de apro-priaccedilatildeo seria ele mesmo configurado numa traiccedilatildeo agrave obra

No entanto eacute nessa proacutepria incapacidade de traduzir de maneira ldquocorretardquo o escrito ou a fala de um outro que o papel do tradutor dessa figura num lugar equidistante entre o ldquoautor-primeirordquo e o leitor eacute (ou deveria ser) lido para o filoacutesofo Paul Ricouer como um trabalho de criaccedilatildeo A partir daiacute o filoacutesofo sugere a saiacuteda pelo abandono dos dois polos traduziacutevel versus intraduziacutevel e uma aceitaccedilatildeo do luto que resul-taria num ganho ldquo[] o sonho da traduccedilatildeo perfeita equivale ao desejo de um ganho para a traduccedilatildeo de um ganho que seria sem perda Eacute jus-tamente desse ganho sem perda que eacute preciso fazer o luto ateacute a acei-taccedilatildeo da diferenccedila incontornaacutevel do proacuteprio e do estrangeirordquo225

Essa aceitaccedilatildeo do luto estaacute intrinsecamente ligada penso agraves es-trateacutegias empreendidas por Catullo na construccedilatildeo de um espaccedilo distinto para sua autoridade Distinto pois que abriu um caminho possiacutevel no rol de escolhas postas pelo campo literaacuterio brasileiro daqueles tempos O ganho na tarefa de traduccedilatildeo da liacutengua sertaneja por Catullo eacute exata-mente a possibilidade de criaccedilatildeo que reside na representaccedilatildeo do serta-nejo e do seu linguajar exatamente no momento em que o cria

A representaccedilatildeo de um poeta distante do sertanejo soacute pode ser entendida a partir da proacutepria representaccedilatildeo que Catullo cria no texto apresentado como uma espeacutecie de reacutegua medidora diante do seu autor Eacute pela representaccedilatildeo do sertanejo produzido por Catullo que o leitor pode medir a distacircncia daquele que escreve diante daquele que repre-senta e soacute aiacute como o queria entendecirc-lo como um natildeo sertanejo

O texto de Catullo eacute a representaccedilatildeo em suas duas dimensotildees eacute transitiva pois que representa algo (o sertanejo) e reflexiva pois que se

225 RICOUER Paul Sobre a traduccedilatildeo Belo Horizonte UFMG 2011 p 29

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 173

apresenta representando alguma coisa (o texto apresenta o proacuteprio ser-tanejo) Coloca-se como uma tentativa de traduccedilatildeo e criaccedilatildeo Em Catullo a criaccedilatildeo daacute um sentido agrave representaccedilatildeo e natildeo soacute a mostra tal como eacute a coisa que busca representar ou como bem salienta Jacques Le Brun ldquoO texto eacute o sinal de um acontecimento que ele natildeo eacute capaz de dizer Ele apenas diz que um acontecimento teve lugar descreve o que foi feito desse acontecimento como um sentido cristalizou nele []rdquo226

A perspicaacutecia em apresentar Catullo como algueacutem por onde um outro fala eacute a estrateacutegia final nesse jogo de representaccedilotildees que cria aquele que escreve de forma a entregar por meio de diversos artifiacutecios de construccedilatildeo de autoridade a condiccedilatildeo de poeta a este uacuteltimo

Modernos e velhos

O jornal Correio Paulistano em iniacutecios de marccedilo de 1925 vinha em sua sessatildeo de ldquoChronica Socialrdquo assinada por Helios (pseudocircnimo do poeta Menotti Del Pichia) com um tiacutetulo provocador Pau Neles Tratava-se de um comentaacuterio de artigo escrito por Tristatildeo de Athayde em jornal carioca A partir dele Helios fazia um balanccedilo da histoacuteria da literatura brasileira e uma criacutetica agraves novas produccedilotildees literaacuterias

Ateacute hoje nossa arte natildeo tem passado de um reflexo Somos cultural-mente ldquosatellitesrdquo Natildeo temos luz proacutepria Sentimos e creamos por pura repercussatildeoTirante Euclydes da Cunha ou mais algum outro illuminado todo o resto que se fez reproduziu o que veio a bordo de navio de mistura com viacutecios gaulezes e modas das costureiras da extranja E o que eacute peor o ldquomodernismordquo ndash cubismo futurismo dadaiacutesmo etc tecircm a mesma origem natildeo passando afinal de decalques forasteiros servilmente co-piados por alguns espiacuteritos improvisadamente originaes doidinhos para fazerem furos227

226 LE BRUN Jacques Da criacutetica textual agrave leitura do texto Projeto Histoacuteria Satildeo Paulo n 17 p 48 nov 1990

227 Correio Paulistano 6 mar 1925 p 3

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo174

E fazendo uma autocriacutetica de sua proacutepria posiccedilatildeo jaacute que se con-siderava um ldquomodernordquo continuava

A uacutenica coisa uacutetil que se deve aproveitar com o terremoto esthetico do ldquofuturismordquo que sempre defendi eacute uma reacccedilatildeo decisiva contra a cul-tura de importaccedilatildeo para um saacutebio retorno aacute infacircncia esthetica nacional no bom propoacutesito de vermos si no meio desses cacos de artificialidade nos encontraremos a noacutes mesmos228

Conquanto natildeo visse ainda entre os ldquonovosrdquo uma produccedilatildeo ldquobra-sileirardquo Helios se perguntava provocativamente sobre o futuro evo-cando um autor consagrado naquele passado recente como um exemplo de produccedilatildeo autecircntica Enquanto isso disparava contra recentes com-panheiros de busca pelo ldquomodernordquo

Quando noacutes seremos noacutes Quando nos abrasileiraremos Nossa or-chestra mental parece obedecer a uma batuta parisiense O Sr Graccedila Aranha empresaacuterio da uacuteltima temporada literaacuteria nacional trouxe de Paris suas partituras uma irrisatildeoFalam mal de Catullo da Paixatildeo Cearense Esse eacute pelo menos um Homero da raccedila Mil vezes sua rude e agreste poesia que as exque-sitices amaneiradas e exoacuteticas dos escravos do Sr Appolinaire do Sr Defunnto Rimbaud e do meu querido CendrarsTristatildeo de Athayde eacute um valente Quero ler mais artigos como esse para ter a alegria de registrar que haacute ainda em meio da nossa anemia cerebral gente que ndash fora do picadeiro organizado pelo Sr Graccedila e fora do amphitheatro grego do Sr Coelho Netto - enxerga as cousas com olhos puros para conduzir as geraccedilotildees literaacuterias do Brasil ao caminho da sinceridade da beleza e da originalidade real229

A posiccedilatildeo de Menotti com relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo literaacuteria de sua eacutepoca eacute pelo menos provocadora Se por um lado enaltece o ldquofutu-rismordquo por outro destrata a postura de Graccedila Aranha um companheiro que inclusive organizou a Semana de Arte Moderna de 1922 da qual participara Menotti ndash e que jaacute naquele momento incompatibilizava-se

228 Idem229 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 175

com muitos dos participantes da Semana Critica certos estrangeirismos modernos ainda assim natildeo deixa de enxergar no consagrado Coelho Netto a imagem da nossa ldquoanemia cerebralrdquo Embora acredite na con-duccedilatildeo de novas ldquogeraccedilotildees literaacuteriasrdquo ao ldquocaminho da sinceridade da beleza e da originalidaderdquo observa em Catullo da Paixatildeo Cearense um siacutembolo jaacute existente dessa originalidade porvir identificando-o como um ldquoHomero da raccedilardquo

A presenccedila de Catullo no excerto natildeo eacute gratuita Catullo era um artista consagrado pela elite letrada paulista que via em seus poemas sertanejos a expressatildeo de uma originalidade popular Mas aqui o que salta aos olhos eacute o conteuacutedo ambiacuteguo de uma prospectiva acerca da li-teratura Prospectiva que mescla num discurso que visa agrave mudanccedila tanto elementos considerados antigos quanto modernos de forma a compor aquilo que Menotti considerava vaacutelido como ideal para ser cha-mado nas palavras do autor de construccedilotildees com valor de ldquooriginali-dade realrdquo

Entretanto haacute de se salientar a opiniatildeo de Menotti e seu olhar sobre a produccedilatildeo contemporacircnea natildeo devem ser entendidos como uma voz uniacutessona dos participantes da Semana de 1922 Maacuterio de Andrade em uma criacutetica aguda escrita no Diaacuterio Nacional em 1931 dispara contra uma pretensatildeo aventada por Menotti de considerar a produccedilatildeo de Catullo como expressatildeo de um tipo ldquopopularrdquo Maacuterio argumenta rai-vosamente que o que poetas como

[] um Catullo Cearense realizam natildeo eacute nem de nenhuma maneira se podem comparar com a poesia popular Eacute arte arte da mais livre tatildeo esteticamente livre como qualquer Parnasianismo O que eles tiram do povo eacute apenas o elemento de curiosidade de prazer Na verdade eles estatildeo fazendo arte contra o povo arte burguesa em que os elementos po-pulares se tornam motivos de divertimento e natildeo de comoccedilatildeo Enfim o popularesco de que eles se servem eacute um exotismo romacircntico laccedilo de fita enfeite para uma obra-de-arte visceralmente individualista e que como individualista pode ser magniacutefica E este eacute de fato o caso de Catullo Cearense que nos seus primeiros livros chegou a ser magniacutefico230

230 ANDRADE Maacuterio de Taacutexi e crocircnicas no Diaacuterio Nacional Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1976 p 51

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo176

O que se depreende dos trechos acima citados eacute que para uma compreensatildeo do campo literaacuterio brasileiro dos anos 1920 e 1930 tor-na-se imperativa uma investigaccedilatildeo ainda sobre a operacionalizaccedilatildeo do termo ldquopopularrdquo no seio de uma nova concepccedilatildeo de literatura Se alguns aspectos de busca pela originalidade na produccedilatildeo cultural do periacuteodo podem ser definidos por uma apologia do novo ndash termo que se confunde muitas vezes com original mas que natildeo diz a mesma coisa ndash esse novo tematizado dentro de certas produccedilotildees era constituiacutedo natildeo soacute de ele-mentos formais de velhas produccedilotildees mas tambeacutem da discussatildeo reno-vada de velhas temaacuteticas entre as quais aquilo que assegurava o reco-nhecimento de Catullo como ldquoHomero da raccedilardquo qual seja certa noccedilatildeo de ldquocultura popularrdquo

Se os projetos modernistas se propunham a renovar e criticar aquilo entendido como velho e ultrapassado esses mesmos velhos e ultrapassados eram visados como totalmente incontornaacuteveis para se buscar uma originalidade que como ainda natildeo existia como fato artiacutes-tico (diagnoacutestico de Menotti) deveria ser buscado como projeto cul-tural (ideal de Maacuterio) Daiacute buscar naquilo que se entendia vir do ldquopovordquo a expressatildeo verdadeira da ldquoculturardquo Eacute nesse espaccedilo de busca por uma nova expressatildeo que eacute renovada a discussatildeo do ldquopopularrdquo

Entretanto se artistas considerados ldquovelhosrdquo nutriam-se de seu reconhecimento como ldquopopularesrdquo os termos para se definir ldquopo-pularrdquo foram reavaliados Catullo sendo um dos consagrados sob esse termo seria objeto de discussotildees e reflexotildees acaloradas no seio dessa renovaccedilatildeo

Ser ldquomodernordquo autorizava na eacutepoca distintas representaccedilotildees O jornal O Paiz de fins de 1920 vinha com uma chamada em letras grandes de um conselho ldquoMonsenhor Dubois arcebispo de Paris con-cita o elemento feminino a abster-se das modas e dansas ditadas pelo modernismordquo231 Aqui o modernismo eacute tomado em negativo mas po-deria ser tambeacutem um adjetivo positivo quando o objetivo era vender um produto ldquoAo 1ordm Barateiro a casa que daacute sempre a nota em artigos finos

231 O Paiz 20 dez 1920

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 177

do mais alto luxo e maior modernismo parisienserdquo232 E se havia em-polgados com as novidades havia aqueles que desdenhavam de alguma mudanccedila vendo apenas um tempo igual aos outros A escritora Branca Colaccedilo assim pensava

Tambeacutem a mim [] me natildeo empolga o modernismoNatildeo quer isto dizer que natildeo aprove certos modernismos se me parecem sensatos O nosso tempo tem senotildees sem duacutevida mas tambeacutem tem vantagensEste conceito eacute profundo Se lhe acrescentarmos que a maior parte das qualidades e dos defeitos de uma eacutepoca depende da subjectividade da pessoa que os aprecia chegamos aacute conclusatildeo transcendente de que es-tamos num tempo como outro qualquer233

Por seu lado a renovaccedilatildeo das artes brasileiras ndash postura assumida tanto por Menotti quanto por Maacuterio ndash recolocava no caminho da dis-cussatildeo sobre a literatura moderna um uso especiacutefico do termo ldquopo-pularrdquo Na produccedilatildeo literaacuteria que antecedeu a movimentaccedilatildeo de 22 a denominada ldquoregionalistardquo era de longe a que possuiacutea mais know-how entre os letrados

Como jaacute analisamos ainda entre os novos modernistas paulistas o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense era saudado com entusiasmo e de fato ele era aquele que mais controveacutersia iria causar pois que se de um lado Monteiro Lobato Valdomiro Silveira Corneacutelio Pires (autores paulistas tambeacutem reconhecidos como ldquoregionalistasrdquo) podiam facil-mente ser definidos como letrados que tematizavam o interior por outro a figura ambiacutegua de Catullo soava bem mais incocircmoda e de di-fiacutecil qualificaccedilatildeo entre os ldquomodernistasrdquo Isso porque o autor era tido como um sertanejo e a proacutepria postura de Catullo apresentando-se ves-tido de marrueiro fazia com que essa representaccedilatildeo ganhasse forccedila Poreacutem seu ingresso em temas natildeo sertanejos representados em seus

232 O Paiz 7 ago 1921 233 Trecho do folhetim ldquoCartas aacute Maroquinhardquo da lisbonense Branca de Gonta Colaccedilo

publicada em partes no jornal O Paiz em 1921 O trecho exposto eacute de 1ordm de outubro daquele ano

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo178

uacuteltimos livros e principalmente seus escritos natildeo sertanejos ao sabor de parnasianos contendo palavras dificiacutelimas de compreensatildeo mesmo para um letrado da eacutepoca desautorizavam-no a ser compreendido como um produto de ldquooriginalidade realrdquo ou como Maacuterio de Andrade frisava Catullo se parecia mais com um ldquoexotismo romacircnticordquo

A grande questatildeo que se colocou foi o que fazer com uma pro-duccedilatildeo ldquoregionalistardquo jaacute consagrada Desqualificaacute-la somente levaria agrave negaccedilatildeo de partida da necessidade de se voltar para uma produccedilatildeo brasileira que tematizava o interior pois o interior era tido como espaccedilo de conhecimento essencial para se produzir uma ldquoliteratura nacionalrdquo tambeacutem pelos novos artistas Natildeo foi agrave toa que a figura de Euclides da Cunha foi constantemente evocada como membro seleto da ldquogeraccedilatildeo preacute-modernistardquo

A produccedilatildeo de Catullo com temas sertanejos eacute vasta Meu sertatildeo (1918) Sertatildeo em flor (1919) Poemas bravios (1921) Mata iluminada (1924) O evangelho das aves (1927) Alma do sertatildeo (1928) Faacutebulas e alegorias (1928) e Meu Brasil (1928) aleacutem de alguns musicais para o teatro Mas no meio dessa bibliografia haacute de se destacar um pequeno livro de poemas dedicados aos pescadores com o tiacutetulo de Os pesca-dores editado pela Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores do Brasil em 1923 Escrito em homenagem ao Dr Paulo Vianna presidente da Confederaccedilatildeo nesse livro ao deixar de lado a temaacutetica sertaneja que o consagrou Catullo faz algumas observaccedilotildees sobre a publicaccedilatildeo diri-gindo-se no prefaacutecio ao comandante do barco ldquoRepuacuteblicardquo o Filoacute

Aqui estaacute o Poema que vocecirc e seus collegas me pediram que escre-vesse Penso eu que estas paacuteginas satildeo o documento fiel de tudo o que ouvi de sua bocca [] Como veraacute este Poema natildeo eacute uma fantasia Os arrebatamentos de enthusiasmo que explodem de quando em quando natildeo prejudicam a veracidade da documentaccedilatildeo234

Vou me ater a um termo que reputo fundamental para avanccedilar na compreensatildeo da relaccedilatildeo de Catullo com a(s) criacutetica(s) ldquomodernista(s)rdquo

234 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Aos pescadores Rio de Janeiro Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 1923 p 11-12

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 179

documento Na passagem anterior o caraacuteter verossiacutemil do poema apre-sentado eacute atestado por um ldquoouvi de sua boccardquo mdash no caso da boca de um pescador Essa condiccedilatildeo de ouvinte visava a transmitir para seu leitor uma sensaccedilatildeo de veracidade Aqui o ldquosentirrdquo evocado por Catullo nos seus poemas sertanejos eacute substituiacutedo por um ldquoouvirrdquo Em ambos os casos buscava-se um objetivo comum que eacute a fidelidade com um real que existe fora do texto O texto eacute aqui tambeacutem como nos poemas serta-nejos ldquodocumento fielrdquo e por isso Catullo alerta ao seu leitor que seu ldquoenthusiasmordquo natildeo deveria prejudicar a ldquoveracidade da documentaccedilatildeordquo

Eacute exatamente esse vieacutes documental da escrita literaacuteria que vai ser questionado pelos novos escritores acerca da dita ldquoliteratura regiona-listardquo ateacute ali Natildeo que essa tradiccedilatildeo documental fosse algo a ser cons-truiacutedo na produccedilatildeo literaacuteria do periacuteodo mas naquele momento essa mesma tradiccedilatildeo foi sendo ressignificada como projeto literaacuterio ga-nhando novos contornos e balizas definidoras de aceitaccedilatildeo de uma obra ou de um autor como literatura brasileira Aqui haacute um corte quase im-perceptiacutevel mas fundamental na histoacuteria literaacuteria no Brasil que visa construir um novo projeto de literatura que coloque em xeque toda tra-diccedilatildeo recebida Daiacute aspectos como velhonovo antigomoderno ga-nharem realces nessa produccedilatildeo natildeo tanto como constataccedilotildees temporais de uma literatura anterior mas termos (des) qualificadores e baliza-dores de uma nova esteacutetica que se propunha criar Daiacute a literatura nas-cente com a provocaccedilatildeo modernista de 1922 ser portadora de uma con-cepccedilatildeo literaacuteria que visa tambeacutem a construir uma Histoacuteria A escrita de uma histoacuteria literaacuteria eacute tambeacutem projeto de afirmaccedilatildeo da nova produccedilatildeo que surgia

Essas mesmas qualificaccedilotildees temporais Catullo da Paixatildeo Cea-rense vai dramatizar em seus poemas Ainda no iniacutecio do livro de po-emas Os pescadores o narrador de Catullo assim fala ao proacuteprio autor explicando-lhe como deve ser escrito o poema e o porquecirc da escolha do poeta para contar os feitos dos pescadores

Peccedila aacute Musa sertanejaque lhe tempere aacute violaa viola que lhe consolasuas tristeza e maguas

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo180

e cante alegre e saudosaa nossa vida penosamas sempre linda e gloriosaque o mar eacute o sertatildeo das aacuteguas

[]

Tome a viola predilectaVenha com a gente viverNatildeo nos importa saberse o seu Catullo eacute um artistafuturista ou penumbristabello feio antigo ou novoporque soacute nos interessasaber se cumpre a promessao poeta do nosso povo235

Os termos qualificadores de si aparecem na proacutepria represen-taccedilatildeo que Catullo faz aparecer em seus textos E se essa tensatildeo expressa obrigava a uma posiccedilatildeo do autor diante de seu puacuteblico leitor nem sempre isso se deu de forma paciacutefica

Em seu livro Faacutebulas e alegorias (1928) Catullo fez aparecer em uacuteltimo poema que encerra a publicaccedilatildeo uma raivosa declaraccedilatildeo de triunfo sobre todos os seus criacuteticos entre eles aqueles que identificava como ldquoFuturistas-legionaacuteriosrdquo Intitulada de A carta de um trovador o narrador do poema diz de uma carta que recebeu de um trovador conhe-cido Vale a transcriccedilatildeo

Um trovador conhecido grande rival das cigarrasamigo das antigas farrase orgulhoso do seu ldquoEurdquoa cada um dos seus ldquocriacuteticosrdquondash pavotildees sapos e ldquocatitasrdquo ndashe outros mais hermaphroditas ndashque eu transcrevo linha a linhatal como elle as escreveu

235 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Aos pescadores Rio de Janeiro Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 1923 p 15-16

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 181

ldquoZoilos Parvos AretinosCriticoacuteides pequeninosPassadistas refractaacuteriosFuturistas-legionaacuteriosdos mais tolos desatinosPoetastros retardataacuteriosReis e Priacutencipes cretinosVecircde pobres cerebrinosMinha glorificaccedilatildeo

Nrsquouma dessas noites bellasToda branca toda nua ndash noite de recordaccedilatildeo ndasheu ouvi Deos e seus archanjosem serenatas aacutes estrellascantando dentro da Luao meu lsquoLuar do Sertatildeorsquordquo236

Informaccedilatildeo importante o poema eacute dedicado ldquoAacute minha megalo-mania ndash a mais humilde das virtudes que Deos me deurdquo Em geral re-presentado como algueacutem muito vaidoso e com pretensotildees poeacuteticas aleacutem do que realmente merecia Catullo parecia cada vez mais assumir sua vaidade argumentando como sendo uma mera constataccedilatildeo de sua gran-deza Natildeo eacute de se admirar que o mesmo poema acima citado voltasse a aparecer em seu livro seguinte Meu Brasil mas jaacute sem a primeira es-trofe que antecede a carta do suposto ldquotrovadorrdquo As apreciaccedilotildees sobre suas poesias que os seus editores faziam aparecer soacute aumentava para seus criacuteticos essa representaccedilatildeo exagerada do poeta

Uma das opiniotildees que fez gravar em um de seus livros Matta iluminada em sua 27ordf ediccedilatildeo foi a de Maacuterio de Andrade agrave qual nos reportaremos pois nela reside um dos artifiacutecios que constroem a repre-sentaccedilatildeo de si como grande poeta Vejamos

No livro do poeta publicado pela livraria Castilho a opiniatildeo de Maacuterio estaacute assim publicada ldquoCatullo eacute o maior criador de imagens da

236 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Faacutebulas e alegorias Rio de Janeiro Officina Industrial Graphica 1928 p 242-243

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poesia brasileira O seu livro ldquoMeu Sertatildeordquo eacute pouco menos que genial Eacute o espantoso criador de imagemrdquo237

Trata-se portanto de uma elogiosa criacutetica de um Maacuterio de Andrade consagrado nos anos 1930 como um dos maiores literatos do paiacutes O curioso eacute que em tal apreciaccedilatildeo foi suprimido todo o resto da criacutetica maior e aacutecida de Maacuterio de Andrade leitor de Catullo da Paixatildeo Cearense O trecho eacute parte de uma crocircnica publicada no Diaacuterio Nacional de 20 de dezembro de 1931 em que eacute verdade depois de elogiosas observaccedilotildees sobre o primeiro livro de Catullo Meu sertatildeo Maacuterio dispara contra toda a produccedilatildeo posterior do poeta sertanejo

Andei relendo Catullo Cearense estes dias Catullo depois dos seus livros de modinhas e lundus acariocados que pouca gente conhece e franqueza natildeo ultrapassam o valor da literatura de cordel do mesmo gecircnero redescobriu pra uso proacuteprio a poesia rural duma regiatildeo Nessa imitaccedilatildeo eacute que ele tornou-se um poeta admiraacutevel certamente o maior criador de imagens da poesia brasileira Com Meu Sertatildeo dava um livro pouco menos que genial E acabou Nos outros livros de primeiro inda surgia quando senatildeo quando um lampejo do imaginista maravilhoso de Meu Sertatildeo mas era um lampejo soacute ateacute que o poeta se esbandalhou inteiramente em livros escurecidos pela vaidade E principalmente pela civilizaccedilatildeo []Mas esta civilizaccedilatildeo era falsa importada Deu um brilho momentacircneo fulgurante pro pobre do brasileiro mas depois foi corroendo corroendo ele por dentro deformando-o nulificando Os uacuteltimos livros de Catullo Cearense natildeo satildeo nada238

A insinuaccedilatildeo no texto publicado pelo editor de Catullo de uma aprovaccedilatildeo vinda de um criacutetico jaacute consagrado em iniacutecios dos anos 1930 predispunha a aquisiccedilatildeo e leitura regrada do mesmo texto Funcionava antes como publicidade editorial e daiacute conduzia o leitor agrave crenccedila de que estaria lendo um autor aprovado por seus pares literatos

237 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illuminada 27 ed Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 230

238 ANDRADE Maacuterio de Taacutexi e crocircnicas no Diaacuterio Nacional Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1976 p 375-377

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Esses artifiacutecios foram mais de uma vez utilizados nas publicaccedilotildees de Catullo No volume de poemas intitulado O evangelho das aves (1927) seu editor Castilho fez aparecer um elogio de Joatildeo Ribeiro ldquoCatullo Cearense eacute um poeta nacional natildeo tenho duacutevidardquo239 Mas desa-parece o restante da criacutetica que originalmente foi publicada no jornal O Imparcial em dezembro de 1918 e que se completa com ldquo[] mas tatildeo artificioso como os outros poetas cultos e talvez mais do que ellesrdquo240

O contato da obra de Catullo da Paixatildeo Cearense com o puacuteblico paulista e o sucesso de puacuteblico que obteve exatamente no momento imediatamente anterior agrave explosatildeo da Semana de Arte Moderna de 22 potildee um questionamento fundamental para se compreender as escolhas posteriores da movimentaccedilatildeo modernista quais foram os limites para a determinaccedilatildeo do caraacuteter ldquomodernordquo de uma obra E jaacute avanccedilando uma resposta teraacute havido ainda nos anos 1920 uma definiccedilatildeo da movimen-taccedilatildeo de 22 com criteacuterios que buscassem estabelecer o que poderia caber sob o nome de ldquomodernismordquo

Aqui o que se deve reaver me parece eacute uma histoacuteria que lanccedilou para o passado um olhar em linha reta sobre o modernismo e que nessa tarefa buscou fincar as raiacutezes de uma ruptura no evento de 1922 Mais buscou nos seus antecedentes traccedilos que ldquopreparassemrdquo para a ruptura que viria naquele ano Essa anaacutelise natildeo obstante ter resultado numa infin-daacutevel bibliografia que construiu os alicerces do que hoje compreendemos como ldquomodernismordquo na literatura brasileira esqueceu-se natildeo raras vezes de historicizar na movimentaccedilatildeo aquilo que ela mais procurou construir ou seja a definiccedilatildeo de algo entendido como ldquomodernistardquo

O ldquoregionalismordquo ndash termo que por si soacute jaacute indicava algo proble-maacutetico para se definir a produccedilatildeo de autores muito diferentes entre si ndash era na construccedilatildeo de um tipo de literatura brasileira canonizada nos ma-nuais especialmente poacutes-anos 1940 um tipo de produccedilatildeo negada por alguns ldquomodernistasrdquo Mas quando se observa que os mesmos artistas que participaram da Semana de 22 eram aqueles que patrocinavam as

239 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O evangelho das aves Rio de Janeiro Livraria Castilho 1927 p 270

240 O Imparcial 2 dez1918 p 2

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo184

apresentaccedilotildees de motivos regionais e saudavam a apariccedilatildeo de autores que faziam de suas obras uma apresentaccedilatildeo do homem do interior algo parece para um investigador atento natildeo estar tatildeo bem problematizado

Em um famoso artigo com um tiacutetulo explicativo de ldquoRegio-nalismordquo em que Menotti Del Pichia defende a necessidade imperativa do ldquoregionalismordquo nas artes produzidas no Brasil o escritor inicia criti-cando um tipo de ldquoregionalismordquo que assustaria os proacuteprios persona-gens dessas produccedilotildees

Quem vecirc o Brasil com olhos parisienses acha qualquer manifestaccedilatildeo de brasilidade cheirando a regionalismo Eacute tatildeo pequeno o trato que nossos escriptores tecircm com a nossa terra e com nossa gente e tatildeo afinados pelo diapasatildeo forasteiro estatildeo seus rhythimos e sua arte que extranham nossos Tiotildees e Maricoacutetas nossos bragados e sacysO regionalismo reside numa demarcaccedilatildeo exacta de fronteiras numa uti-lizaccedilatildeo em ambiente local de pequenos episoacutedios locaes vasado numa linguagem com caracteriacutesticos typicamente locaes Esta arte interessa relativamente apenas como contribuiccedilatildeo de material Agora quaesquer desses themas quando contecircm episoacutedio humano cujo sentido eacute uni-versal isto eacute comum a todas as raccedilas mesmo que sejam vincados por uma forte physionomia ambiental perdem facilmente seu caracter re-gionalista pelo espiacuterito de universalizaccedilatildeo que o artista lhe daacute241

Menotti daacute sua opiniatildeo sobre um tipo de praacutetica que para ele sob a forma de um ldquoregionalismordquo faria exatamente o contraacuterio de mostrar o regional apresentaria na realidade no momento mesmo em que era produzido o sentido uacuteltimo daqueles que o faziam

O que haacute em certos escriptores nossos eacute o pudor de parecerem brasi-leiros Eacute um viacutecio do caipirismo intransigente exacerbado por viagens elegantes Isso ou mania de espantar brasileiro com um jaacute desmorali-zado cosmopolitismo beoacutecio e contra matildeoO regionalismo tem-se expressado entre noacutes por documentaccedilotildees muito typicas mas quase todas mediacuteocres Seu transito eacute curto Fechas-se dentro de uma compilaccedilatildeo do ldquofolk-lorerdquo Tem accusado uma grande indigecircncia mental

241 DEL PICHIA Menotti Regionalismo Correio Paulistano 3 out 1926 p 3

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 185

[]Entre noacutes pela razatildeo desse pudor invenciacutevel que muitos escriptores ainda tecircm de revoltar-se na cacircndida expressatildeo do caracter da nossa raccedila achando mais elegante pensar e sentir aacute moda extrangeira a questatildeo do regionalismo eacute muito mal comprehendida []Precisamos mudar de rumo Olhar com olhos exactos sem daltonismos gaulezas nossa terra nossa gente este ldquoimmenso e colosso giganterdquo que se chama Brasil[]Eacute diffiacutecil confesso Para se ver o Brasil como elle eacute necessita-se ter es-tado em contacto directo e commovedor com a alma da terra Eacute preciso a coragem vibrante de ser brasileiro bem brasileiro em todos os defeito [sic] e em todo o primitivismo inaugural da grande paacutetria nascente Eacute preciso ter a alma cacircndida natildeo viciada em gallicismos sensoriaes e es-pirituaes Eacute preciso afinal integrar-se no seu admiraacutevel rhythmo para poder exprimir sua majestosa belleza242

Trata-se de um verdadeiro libelo contra um tipo de ldquoregiona-lismordquo que para Menotti natildeo poderia se dar mais Daiacute propotildee uma nova postura de ldquocontacto directordquo com a ldquoalma da terrardquo como uacutenica saiacuteda para se representar de fato o paiacutes Aiacute natildeo se trata da condenaccedilatildeo do ldquoregionalismordquo nas artes brasileiras mas da necessidade de uma natildeo estilizaccedilatildeo do regional em nome de algo maior que seria o ser brasi-leiro que natildeo negaria a regiatildeo ao contraacuterio ele teria de conhececirc-la di-retamente sem intermediaacuterios sem ldquogallicismosrdquo a fim de desco-brir-se assim o brasileiro

A sentenccedila eacute longa mas esclarecedora da complexidade subja-cente agrave discussatildeo sobre ldquoregionalismosrdquo nas artes brasileiras O perigo aqui eacute tomar um discurso que se traduz na escrita de um modernista como Menotti como uma opiniatildeo uniacutessona dentro daquilo entendido como ldquomodernismordquo Eacute bem verdade que uma histoacuteria da literatura bra-sileira se debateu sobre conflituosas discussotildees que se deram quase que imediatamente apoacutes a Semana de 22 Mas se esses debates se davam naquilo que deveria ser entendido como ldquomodernordquo deixaram de lado

242 DEL PICHIA Menotti Regionalismo Correio Paulistano 3 out 1926 p 3

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a anaacutelise histoacuterica do momento em que algumas obras identificadas jaacute existentes e entendidas como ldquoregionalistasrdquo estiveram em disputa no meio dessa discussatildeo sobre o ldquomodernordquo

Embora Catullo mantivesse um conflito aberto com o chamado ldquofuturismordquo nas artes brasileiras eacute necessaacuterio salientar que se vivia um momento de construccedilatildeo histoacuterica de um termo o ldquomodernismordquo A se-leccedilatildeo de autores que pairavam abaixo desse epiacuteteto em fins dos anos 1920 e comeccedilo dos anos 1930 natildeo era de faacutecil delimitaccedilatildeo

Manuel Bandeira consagrado pela histoacuteria literaacuteria brasileira como um modernista era amigo pessoal de Catullo e nessa relaccedilatildeo havia uma admiraccedilatildeo muacutetua Isto nunca foi entrave para que Bandeira se referisse a Catullo como muitas vezes o fez como um personagem caricato Na esteira da necessidade novamente imposta pelos ldquonovosrdquo de representar melhor o paiacutes em sua literatura Bandeira tal qual Maacuterio de Andrade relega a poesia de Catullo a uma simples ldquocriaccedilatildeo de ima-gensrdquo e portanto superficial passando longe do que seria um suposto sertatildeo de verdade Explica

Catullo da Paixatildeo Cearense Eacute sem duacutevida um poetatildeo um sujeito que fabrica imagens com surpreendente facilidade Mas eacute tatildeo cidade quanto noacutes outros Natildeo se confunde com o sertatildeo Eacute um sertatildeo de saudade o seu Um sertatildeo muito saiacutedo de vocabulaacuterios regionais O que tem mais gosto de sertatildeo nos seus poemas satildeo as lagoas do Nordeste cujo en-canto sentiu e sabe transmitir como ningueacutem em dois trecircs versos ele potildee nos olhos e no coraccedilatildeo da gente a deliacutecia de uma Pajuccedilara243

Bandeira ainda termina sua criacutetica arrematando que Catullo era como o romacircntico francecircs ldquoo Victor Hugo do sertatildeordquo Haacute aqui uma desqualificaccedilatildeo exatamente no ponto onde eacute mais enobrecida sua po-esia Ela eacute positiva pois joga com imagens e negativa para as novas pretensotildees almejadas por Maacuterio pois essas imagens satildeo meras criaccedilotildees A nova literatura ao que parece natildeo poderia lanccedilar matildeo da imaginaccedilatildeo

243 A Proviacutencia 14 abr 1929 Reeditado em BANDEIRA Manuel Crocircnicas da proviacutencia do Brasil Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2006 p 144

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Ela deveria como nos faz crer Maacuterio e Bandeira jogar com a realidade Ela se confundiria com o documento

Nas opiniotildees de Maacuterio de Andrade e Manuel Bandeira vecirc-se o flagrante de um processo de construccedilatildeo do ldquomodernismordquo que se deu de forma a elencar os autores que pudessem ser natildeo tanto identificados como ldquomodernosrdquo mas antes que pudessem natildeo figurar como autores de uma literatura brasileira Essa tarefa desloca a anaacutelise para uma questatildeo fundante que ficou ao que parece de fora de toda uma dis-cussatildeo acerca da construccedilatildeo do ldquomodernismordquo de 22 a concomitante refundaccedilatildeo da ldquoliteratura brasileirardquo

O rompimento com certos autores excluiacutedos do rol dos ldquomoder-nistasrdquo eacute antes de tudo um apagamento E se o criteacuterio para essa exclusatildeo nem sempre foi consensual tamanhas distinccedilotildees daqueles que reivindicavam o caraacuteter moderno de suas produccedilotildees ela mesma foi sistemaacutetica Daiacute soar estranho dizer conforme eacute comum em anaacute-lises de 22 em linhas gerais que o modernismo foi uma reaccedilatildeo contra o parnasianismo poeacutetico o regionalismo e o romantismo Isso pocircde provocar mais um desentendimento sobre o que estava posto nos anos 1920 e 1930 no Brasil literaacuterio

Catullo da Paixatildeo Cearense natildeo eacute criticado em nenhum mo-mento por seu regionalismo dignificador da figura sertaneja nem Monteiro Lobato eacute criticado por assumir posteriormente a imagem de um Jeca viacutetima tampouco Euclides da Cunha eacute apagado de uma histoacuteria literaacuteria em construccedilatildeo pela ambiguidade muitas vezes eno-brecedora com que trata o homem do sertatildeo Pelo contraacuterio Maacuterio de Andrade e Manuel Bandeira amplificam a necessidade irrevogaacutevel da literatura voltar-se de maneira menos imaginosa ao Brasil Eacute aiacute que residem suas criacuteticas severas a Catullo Ao que parece natildeo se trata da busca por uma literatura que procura narrar uma suposta re-alidade como uma literatura em documento mas de uma literatura que persiga a verossimilhanccedila mesmo que se valha de elementos de uma poesia ou prosa formais Essa era uma caracteriacutestica visada nos textos de modo que estes pudessem pela mediccedilatildeo de uma imagi-naccedilatildeo deturpadora ou natildeo da realidade ser separados entre ldquofutu-ristasrdquo e ldquopassadistasrdquo

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O criteacuterio para se decidir o ldquograu imaginativordquo de uma produccedilatildeo literaacuteria esse sim era algo que provocava desentendimentos entre os proacuteprios modernistas de primeira hora Quando da publicaccedilatildeo do polecirc-mico Pau Brasil de Oswald de Andrade o prefaacutecio do livro escrito pelo maior mecenas da invasatildeo modernista paulista nas artes Paulo Prado trazia uma opiniatildeo controversa sobre Catullo Defendendo a criaccedilatildeo de uma arte brasileira Prado faz um balanccedilo de uma histoacuteria literaacuteria para ele ultrapassada mas que mesmo com suas idiossincra-sias trouxe pelo menos dois grandes artistas Casimiro de Abreu e Catullo da Paixatildeo Cearense Vejamos

Em poliacutetica o chamado ldquogrito do Ipirangardquo inaugurou a deformaccedilatildeo da realidade de que ainda natildeo nos libertamos e nos faz viver num sonho de que soacute acordaraacute alguma cataacutestrofe benfeitora Em literatura nenhuma outra influecircncia poderia ser mais deleteacuteria para o espiacuterito nacional Desde o aparecimento dos Suspiros poeacuteticos e saudades de Gonccedilalves de Magalhatildees que os nossos poetas e escritores ateacute os claros dias de hoje tecircm bebido inspiraccedilotildees no cracircnio humano cheio de bourgogne com que se embebedava Child Harold nas orgias de Newstead O li-rismo puro simples e ingecircnuo como um canto de paacutessaro soacute o ex-primiram talvez dois poetas quase desprezados ndash um Casimiro de Abreu relegado agrave admiraccedilatildeo das melindrosas provincianas e caixeiros apaixonados outro Catullo Cearense trovador sertanejo que a mania literaacuteria jaacute envenenou Foram esses melancoacutelicos desalinhados e sin-ceros os dois uacutenicos inteacuterpretes do ritmo profundo e iacutentimo da Raccedila como Ronsard e Musset na Franccedila Moeriken e Uhland na Alemanha Chaucer e Burns na Inglaterra e Whitman nos Estados Unidos Os outros satildeo lusitanos franceses espanhoacuteis ingleses e alematildees versifi-cando numa liacutengua estranha que eacute o portuguecircs de Portugal esbanjando talento e mesmo gecircnio num desperdiacutecio lamentaacutevel e nacional244

Eacute possiacutevel observar no trecho citado a opiniatildeo de Paulo Prado acerca de certa nova literatura que se procurava construir atraveacutes dos exemplos tanto de antigos autores (Casimiro e Catullo) quanto de au-tores estrangeiros (Ronsard Musset Whitman etc) Eacute importante frisar que havia para o mesmo autor um tipo de literatura que poderia con-

244 PRADO Paulo Poesia Pau Brasil In ANDRADE Oswald Pau Brasil Satildeo Paulo Globo 2003 p 90 (1ordf ediccedilatildeo em 1925)

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duzir um escritor a certa mania literaacuteria se assim ela fosse obsessiva-mente buscada Essa visada a uma ldquomania literaacuteriardquo eacute que deveria para Prado ser evitada Daiacute sua criacutetica a Catullo que se embrenhava se-gundo ele nesse caminho

Ademais dentro da mesma argumentaccedilatildeo haacute um elogio do que fora produzido de modo que tornava absolutamente impossiacutevel traccedilar marcos de ruptura que pudessem balizar a nova produccedilatildeo literaacuteria pela simples supressatildeo de uma anterior A poesia Pau-Brasil que Prado apresentava era o iniacutecio de ldquoum periacuteodo de construccedilatildeo cria-dorardquo que sucederia agravequela da ldquodestruiccedilatildeo revolucionaacuteria das lsquopala-vras em liberdadersquordquo245

O jornalista do perioacutedico O Paiz Abner Mouratildeo discorria sobre essa estranha relaccedilatildeo contrastante de ldquofuturistasrdquo e ldquopassadistasrdquo e de maneira perspicaz sobre as fronteiras fluiacutedas que os separavam evo-cando um possiacutevel ldquopresentismordquo entre os dois

O que nos falta em literatura sobra-nos em discussotildees literaacuterias que an-tigamente acabavam em vias de facto e hoje em queixas-crimes apre-sentadas aos juiacutezes competentes Benefiacutecios da lei da imprensa e de um evidente aperfeiccediloamento dos costumesA discussatildeo agora generalizada e cada vez mais acesa eacute como estaacute-se vendo entre futuristas e passadistas O movimento de ousadia mental e de anceios de renovaccedilatildeo que tem o nome jaacute claacutessico de futurismo tenta aqui o seu primeiro grande surto []Permitto-me entretanto insinuar (oacute desenvoltura proacutepria dos jorna-listas) entre passadismo e futurismo a escola presentista []Os adeptos desta escola deveratildeo pensar que o futuro a Deos pertence e por conseguinte natildeo se preocupar com elle mais do que com a primeira camisa que vestiram O passado eacute tatildeo necessaacuterio aacute [sic] cultura como os alicerces de uma casa Extraiacutedo dele poreacutem o que poacutede fornecer como ornamento do espiacuterito e esclarecimento da visatildeo o escriptor presentista deve igualmente pol-o departe O seu esforccedilo deve ser olhar a vida que passa e tudo que se acha em torno de si246

245 Idem p 91246 MOURAtildeO Abner Nos domiacutenios da literatura nacional O Paiz 28 mar 1924 p 3

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Na impossibilidade de definir o que seria o ldquofuturismordquo e o ldquopas-sadismordquo nas letras brasileiras Abner Mouratildeo propotildee a saiacuteda do ldquopre-sentismordquo Poreacutem se sua foacutermula buscava uma saiacuteda para a aporia que envolvia ambos os lados ainda assim ela pautava um tema que seria buscado de maneira freneacutetica pelos ldquomodernistasrdquo e que estava no cerne das criacuteticas de Maacuterio e de Bandeira expostas anteriormente

A nossa vida os nossos sertotildees ahi estatildeo a offerecer admiraacutevel mateacuteria prima aos homenns de letras Mas seraacute sempre preciso viajar pene-trar nelles Querer vecirc-los e fixaacute-los drsquoaqui passeando na avenida Rio Branco como fazem os Srs Coelho Netto Afracircnio Peixoto Catullo da Paixatildeo Cearense e outras figuras illustres natildeo poacutede dar resultados reco-mendaacuteveis Um relatoacuterio do general Rondon embora mal escripto seraacute sempre mais visto e interessante que romance ou poema elaborado num acto de pura imaginaccedilatildeo que consiste em arrumar palavras de um modo natildeo muito differente daquelle como o pedreiro dispotildee os seus tijolos247

Natildeo eacute agrave toa que o caso de Catullo eacute novamente empregado como um exemplo em negativo de uma literatura que se ressente de uma ver-dadeira imagem do real Eacute nessa mesma esteira que eacute colocada a obra consagrada de Coelho Netto Natildeo eacute seu regionalismo que eacute rejeitado mas sua imaginaccedilatildeo

Ainda no mesmo artigo uma comparaccedilatildeo busca comprovar o estatuto em negativo de representar na nova literatura algo de fato desconhecido Trata-se da comparaccedilatildeo que Abner faz das novas produ-ccedilotildees com a obra de Machado de Assis que segundo o articulista de O Paiz construiu sempre sua literatura com as ferramentas com as quais se cercava em seu cotidiano

Machado de Assis era um homem tiacutemido fechado que vivia entre a sua casa e a reparticcedilatildeo Pois com as suas paacuteginas burocraacuteticas e de meias tintas e de sentimento interior fez a maior obra da literatura brasileira do seu tempo Assim esse Mestre admiraacutevel ensina ao escriptor a natildeo sair de si mesmo e do ciacuterculo das coisas que o cercam embora mesquinho se quizer ser na verdade grande

247 MOURAtildeO Abner Nos domiacutenios da literatura nacional O Paiz 28 mar 1924 p 3

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Deixemos passado e futuro Fiquemos simplesmente no presente que soacute elle poacutede efficazmente propiciar a obra de arte248

Parecia que a melhor representaccedilatildeo soacute poderia ser buscada a partir do conhecimento e nunca da imaginaccedilatildeo Ainda que a forma natildeo tenha sido desdenhada ndash pois expressar-se numa forma anterior era tambeacutem vaacutelido ndash o que era pautado era o estatuto natildeo imaginoso de uma representaccedilatildeo A nova literatura deveria ter como subsiacutedio funda-mental a realidade E essa busca natildeo era de todo uma tentativa siste-maacutetica de relegar o que ateacute ali havia sido produzido Existia em meio agrave criacutetica um reconhecimento pelos benefiacutecios de uma literatura ante-rior como dizia Ribeiro Couto membro participante da Semana de 22 em Satildeo Paulo ldquoNatildeo queremos destruir o passado Queremos construir um presente diverso do dia de hontemrdquo249 Essa opiniatildeo vai ao en-contro das anteriormente expostas que traduzem certa ambiguidade com relaccedilatildeo agravequeles que criticam Mesmo a Academia Brasileira de Letras local de consagraccedilatildeo de muitos dos literatos criticados eacute pou-pada pois o que se critica natildeo eacute ainda nas palavras de Ribeiro Couto a Academia mas o academicismo

A Academia natildeo entendeu o Sr Graccedila Aranha Elle natildeo quer matal-a quer que ela se interesse pela vida tome parte na agitaccedilatildeo das ideacuteas na festa da construcccedilatildeo de um Brasil mental independente e activo Ele natildeo quer enfim uma Academia acadecircmica250

A confusatildeo de opiniotildees que se mesclavam e se digladiavam na representaccedilatildeo do novo do moderno e do modernismo literaacuterio era ex-pressa nos perioacutedicos da eacutepoca Essa confusatildeo natildeo pode ser compreen-dida sem levar-se em conta a historicidade dos termos em disputa seus usos aleacutem das apropriaccedilotildees feitas das obras produzidas no periacuteodo

A representaccedilatildeo da produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense ao que parece nunca foi vinculada a algo que o aproximasse de um autor passadista Ao contraacuterio ele era desdenhado pelos modernistas pelo

248 Idem249 COUTO Ribeiro Futurismo versus Passadismo O Paiz 29 jun 1924 p 6250 Idem

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fato de ser um moderno que se lanccedilava a criar em sua imaginaccedilatildeo o linguajar do sertanejo Imaginar uma liacutengua era inaceitaacutevel Se de um lado era moderno conhecer por outro imaginar algo de que se natildeo tem conhecimento era demais para ser considerado modernista Essa ambi-guidade ndash em ser identificada como moderna e natildeo ser modernista ndash era uma temaacutetica comum na obra de Catullo No prefaacutecio que abre seu livro O evangelho das aves (1927) escrito por Maacuterio Joseacute de Almeida o poeta eacute apresentado ateacute como o verdadeiro criador do modernismo

Natildeo o comparo a La Fontaine nem a Tagore nem a Mistral como eacute tatildeo comum fazer-se no julgamento do mais brasileiro de nossos escrip-tores elle eacute um phenomeno literaacuterio inteiramente agrave parte a qualquer ponto de vista Mesmo sem grande penetraccedilatildeo criacutetica quem quer que o analyse desde o iniacutecio da sua prodigiosa actividade intellectual veraacute que o creador da feiccedilatildeo constructora do modernismo na nossa poesia eacute simplesmente e genialmente ndash Catullo Cearense251

Ribeiro Couto por sua vez tambeacutem buscava expressar essa mis-celacircnea de opiniotildees acerca do que significava ser um ldquofuturistardquo Aliaacutes ldquofuturistardquo eacute o termo mais comum que aparece em vaacuterias publicaccedilotildees para se referir agrave movimentaccedilatildeo dos novos artistas Sobre esses novos artistas o depoimento de Ribeiro Couto eacute esclarecedor

O que somos eacute uma geraccedilatildeo independente aspirando a uma literatura feita a maneira do sentimento creador de cada um de noacutes e natildeo a uma literatura colonial Entre noacutes temos differenccedilas profundas O Sr Mario de Andrade por exemplo detesta a ldquopoesia da penumbrardquo Eu natildeo tenho que lhe dar satisfaccedilotildees e vou escrevendo como sinto Por meu lado acho uma pilheria o primitivismo do Sr Oswald de Andrade O Sr Maacuterio de Andrade acha o Sr Oswald de Andrade um gecircnio Elles se comprehendem natildeo me datildeo satisfaccedilotildees e continuam Boa viagemO que nos une a todos agrave nossa geraccedilatildeo cujo presidente de honras eacute o Sr Graccedila Aranha eacute o oacutedio commum ao modelo claacutessico ao gramma-tiquismo de empreacutestimo ao Sr Cacircndido Figueiredo ao cultivo bem educado e sorrateiro do quinhentismo portuguez aacute plantaccedilatildeo do soneto

251 ALMEIDA Maacuterio Joseacute de A arte universal de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo O evangelho das aves Rio de Janeiro Livraria Castilho 1927 p 13

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aacute paixatildeo pela Greacutecia de cuja mythologia o Sr Coelho Netto eacute o cocircnsul do BrasilIsso eacute futurismo Entatildeo tchiiiiiiii poacute poacute Viva o futurismo252

O que se depreende do trecho acima eacute a falta de exatidatildeo para a definiccedilatildeo do chamado ldquofuturismordquo Aleacutem do mais chama a atenccedilatildeo para as distintas formas de conceber o ldquomodernordquo na literatura Ora se existia uma falta de unidade no grupo ldquomodernistardquo eacute possiacutevel portanto falar de uma ldquoliteratura modernistardquo Tal resposta deve ser buscada antes nas escolhas daqueles que buscaram sistematizar a histoacuteria de um grupo de autores E essa escolha sem duacutevida foi feita a posteriori O caminho para a compreensatildeo da produccedilatildeo daquelas obras identificadas como mo-dernistas eacute voltar-se assim para as proacuteprias obras a fim de que a dis-cussatildeo se eacute que ela existiu seja compreendida em sua historicidade

Arriscariacuteamos assim dizer que na primeira deacutecada que se se-guiu agrave Semana de 22 houve menos uma definiccedilatildeo do que viria a ser o ldquomodernismordquo do que uma tentativa de definir o que ldquonatildeo poderia serrdquo na literatura produzida O modernismo vai nessa visatildeo progressiva-mente sendo definido por uma negaccedilatildeo Eacute por isso que ao contraacuterio de muitas anaacutelises que foram realizadas sobre o chamado ldquomodernismo de 22rdquo e que deram ecircnfase na construccedilatildeo do termo a partir da defesa e ataque que seus protagonistas fizeram de suas obras e daqueles a quem criticavam eacute necessaacuterio fazer o caminho oposto qual seja analisar antes como e em quais termos se pautou uma estigmatizaccedilatildeo pelos mo-dernistas de obras tidas sem interesse para a nova literatura Daiacute ser bem mais proveitoso para uma histoacuteria literaacuteria um olhar que se des-loque para a produccedilatildeo de sentido com relaccedilatildeo natildeo soacute agraves proacuteprias obras denominadas modernistas mas antes de tudo para aquelas que so-freram as criacuteticas como natildeo modernas Dito de outra forma uma anaacutelise que saia das obras modernistas na compreensatildeo do ldquomomento moder-nistardquo e se desloque para as ldquoobras natildeo modernistasrdquo e seus autores muitos deles consagrados na Academia Brasileira de Letras (como

252 Depoimento de Ribeiro Couto na coluna literaacuteria do jornal O Paiz Em Futurismo versus Passadismo O Paiz 29 jun 1924

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Coelho Netto) ou com uma vasta produccedilatildeo consumida pelo mundo le-trado (como Catullo da Paixatildeo Cearense) Haacute no processo fundamen-talmente uma negaccedilatildeo de autores e obras e pelo menos num primeiro momento pouco de uma sistematizaccedilatildeo homogecircnea do modernismo constataccedilatildeo feita pelos proacuteprios autores consagrados sob esse epiacuteteto jaacute naquele momento

Por esse vieacutes de anaacutelise a obra de Catullo eacute sintomaacutetica dessa estigmatizaccedilatildeo Se a procura pela identificaccedilatildeo de sua obra como litera-tura e de sua condiccedilatildeo como poeta foi uma constante em sua trajetoacuteria eacute interessante notar um processo que se daacute ao avesso o de sua desauto-rizaccedilatildeo como poeta sertanejo ou dito de outra forma uma descons-truccedilatildeo de sua poesia sertaneja com uma consequente retirada de seu nome de qualquer identificaccedilatildeo como um poeta nacional Aqui eacute impor-tante salientar que o ldquonacionalrdquo eacute ressignificado pelos novos artistas de forma a natildeo caberem nele alguns autores estigmatizados

Na incapacidade de afirmaccedilatildeo de sua produccedilatildeo pelos novos cri-teacuterios criacuteticos e pelas novas crenccedilas esteacuteticas em construccedilatildeo havia a saiacuteda de buscar a referendaccedilatildeo de seu nome por estrangeiros especial-mente da Europa Isso natildeo passava despercebido pelos candidatos a autores nacionais E essa demanda foi outro artifiacutecio colocado agrave prova por Catullo e seus editores nos textos que publicou

Ainda em Meu sertatildeo o editor Castilho fez aparecer a criacutetica do poeta portuguecircs Alberto drsquoOliveira (Academia de Sciencias de Lisboa) que em prefaacutecio apresentava Catullo como aquele que ldquomais entende o amor aacute nossa modardquo e que encarnava a ldquoalma brasileira com fideli-daderdquo e ldquoum descendente e um continuador dos nossos trovadores po-pulares da Edade-Mediardquo253

Por outro lado outro recurso muito usado para desdenhar uma produccedilatildeo anterior foi sem duacutevida definhaacute-la atraveacutes do riso A carica-tura de um autor se mostrou de uma eficaacutecia fundamental nesse pro-cesso Nessa perspectiva eacute possiacutevel encontrar vaacuterios exemplos de re-presentaccedilatildeo risiacutevel da postura de Catullo da Paixatildeo Cearense

253 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 14-15

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O jornalista Paulo Silveira que em sua coluna no jornal carioca O Paiz fazia uma verdadeira apologia aos novos escritores daacute um exemplo dessa cruzada que buscava atraveacutes da negaccedilatildeo de uns afirmar a produccedilatildeo dos novos A piada com Catullo eacute nesse sentido funda-mental para essa afirmaccedilatildeo

Jaacute laacute se foram os dolorosos tempos das poesias de assobio que satildeo feitas para ser recitadas nos tuberculosos sons de uma Dalila executada pellas matildeos romacircnticas de donzellas indefluxadas pelo catharros lyricos do patildeo drsquoaacutegua de seu Fagundes e pela remela manhosa dos versos de Casimirinho Essa eacutepoca passou e natildeo volta mais como canta o estro do fallecido Guerra Junqueiro poeta que conseguiu chegar aacute immortali-dade levando nos peacutes um estrondoso par de asas de bacalhao254

Continua atacando agora Catullo

Sr Catullo da Paixatildeo Cearense o Victor Hugo dos pobres de espiacuterito que o ministro Francisco Saacute mentalidade irocircnica e tolerante levou na sua comitiva com a incumbecircncia de medir com o tamanho de seus poemas a distacircncia que vai drsquoaqui do Rio de Janeiro aacute [sic] Baixa da Eacutegua Dizem que o selvaacutetico cantor [] abriu o bico na gare da Central e soacute foi acabar de recitar na ponta dos trilhos de Montes Claros Bateu assim o Record da distacircncia poeacutetica conseguindo com a extensatildeo de seus poemas transformar o Dr Carvalho Arauacutejo na Bella adormecida no wagon da Central do Brasil255

Essa representaccedilatildeo risiacutevel e caricatural de Catullo natildeo era novi-dade e foi usada muitas vezes pelos novos poetas para desqualificar a poesia sertaneja de Catullo Uma das receitas preferidas era fazer piadas com a reconhecida megalomania do poeta Natildeo passava agraves cegas tambeacutem a representaccedilatildeo da constante busca de reconhecimento que Catullo em sua trajetoacuteria sempre almejou

Ainda em 1918 quando a fama de Catullo como poeta do sertatildeo comeccedilava a se esboccedilar a revista O Malho trazia em sua seccedilatildeo ldquoA ane-docta da semanardquo escrita por certo Falconet um causo que acontecera

254 O Paiz 8 jun 1924255 Idem

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num bond da cidade do Rio de Janeiro Tratava-se de um encontro entre o poeta e acadecircmico Alberto de Oliveira e Catullo

O poeta Alberto de Oliveira tem como se sabe o curso de Pharmacia feito na Faculdade de Medicina drsquoesta capital Haacute quatro ou cinco dias vinha o cantor do Livro de Emma para a cidade quando tomou o mesmo Bond o poeta popular Catullo da Paixatildeo Cearense Descobrindo-o no banco fronteiro Catullo estendeu-lhe a dextra com effusatildeo exclamandondash Collega bom diaAlberto Oliveira levou o pollegar de ambas as matildeos aacutes pontas do bi-gode encerado e hieraacutetico para o receacutem-chegado perguntou-lhe com gravidadeO senhor tambeacutem eacute pharmaceuticoO autor do Marroeiro enfiado ganhou o matto256

Tempos depois quando o sucesso de Catullo como poeta serta-nejo jaacute se fazia ver Manuel Bandeira amigo de Catullo e modernista participante de primeira hora da Semana de 22 conta como conheceu Joseacute do Patrociacutenio Filho (o Zeca) No encontro estava laacute o Catullo megalocircmano

Eu conheci-o ultimamente numa farra em certa casa inconfessaacutevel da rua Riachuelo Estava laacute o Villa-Lobos o Ovalle o Joatildeo Pernambuco o Catulo O violatildeo passava de matildeo em matildeo porque todos tocavam Catulo estava impossiacutevel Bebera cerveja e deu para declamar poemas Noacutes queriacuteamos que ele cantasse umas modinhas bem bestas bem per-noacutesticas como ldquoA tua almardquo ou ldquoCeacutelia adeusrdquo ou ldquoTalento e formo-surardquo Mas o bardo estava em mareacute de grandeza e dizia muito seacuterio a duas belezas veniaisndash Minhas senhoras eu tenho sessenta anos e jaacute li todos os grandes po-emas de todas as literatura li todo o Homero todo o Virgiacutelio li Goethe Shakespeare Ariosto nunca encontrei nada como este poema da minha lavra que vou lhes recitarQuando ele puxava o pigarro para comeccedilar e a versalhada parecia ine-vitaacutevel o Zeca salvava a situaccedilatildeo

256 O Malho mar 1918

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ndash Oacute Catulo canta aquela modinhandash Que modinhandash Aquela em que vocecirc compara um peacute a um pensamento de PascalE como Catulo estava por conta da cerveja esquecia imediatamente o poema e cantava a modinha pedida257

O caraacuteter corrosivo da anedota buscava representar um sujeito risiacutevel definhando a aura de poeta que Catullo buscava construir258 Eacute certo que essa representaccedilatildeo de um Catullo risiacutevel eacute antiga e aliaacutes acompanhou o poeta durante quase toda a sua vida Mas ela ganhou focirclego com o advento dos ldquonovos modernos de 22rdquo e era uma receita bastante repetida pelos construtores de uma esteacutetica modernista Contra essa representaccedilatildeo Catullo tentou jaacute nos anos 1930 deixar a poesia sertaneja jaacute entatildeo em processo de estigmatizaccedilatildeo pelo mundo literaacuterio embora sucesso entre o puacuteblico leitor e voltar-se para outra produccedilatildeo naquele momento alvissareira para a sua afirmaccedilatildeo como poeta uma poesia ufanista sobre o Brasil

257 A crocircnica foi publicada no jornal A Proviacutencia no dia 12 de outubro de 1929 e repro-duzido em BANDEIRA Manuel Na cacircmara ardente de Joseacute do Patrociacutenio Filho Satildeo Paulo CosacampNaify 2006 p 93-94

258 O caraacuteter corrosivo e agregador do riso no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX eacute discutido belissimamente em SALIBA Elias Thomeacute Raiacutezes do riso a representaccedilatildeo humoriacutestica na histoacuteria brasileira Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

CATULLO EM CENA

Dos textos aos palcos ou o inverso

O circo-teatro Trianon no Rio de Janeiro oferecia no mecircs de julho de 1930 um espetaacuteculo agrave parte O ator Procoacutepio Ferreira tomaria parte com o ldquogrande poetardquo Catullo da Paixatildeo Cearense o ldquogrande galatilderdquo Raul Roulien o cantor e violonista Patriacutecio Teixeira e a jovem cantora e jaacute ldquoapplaudidardquo Carmen Miranda (em comeccedilo de carreira prestigiosa no Brasil) de um ldquocolossal acto variadordquo intitulado Nossa vida eacute uma fita O jornal A Criacutetica de Maacuterio Rodrigues noticiava com entusiasmo o evento avisando ser o espetaacuteculo uma comeacutedia do ldquogrande escriptor da geraccedilatildeordquo Henrique Pongetti cujo enredo se desenrolava ldquonos bastidores cinematographicos da alucinante Hollywoodrdquo259 O evento se realizaria pela manhatilde

O dia parecia ser bastante rico em eventos pois para o final da tarde o mesmo jornal conclamava seus leitores para outro espetaacuteculo Este a ser realizado no Teatro Lyrico teria novamente a presenccedila de Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhado de seus companheiros com o espetaacuteculo musical Uma noite no sertatildeo A participaccedilatildeo do autor em ambas as produccedilotildees teatrais chama a atenccedilatildeo para uma mudanccedila na trajetoacuteria do poeta

259 A Criacutetica 15 jul 1930 p 4

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Desdenhado por suas produccedilotildees literaacuterias possuiacuterem representa-ccedilotildees por demais imaginosas do sertatildeo e do sertanejo Catullo encon-trava no teatro o ecircxito negado a ele pelos criacuteticos da sua produccedilatildeo lite-raacuteria Nos anos 1930 e 1940 o poeta foi figura constante nos palcos de teatros participando de musicais e por vezes cantando nos cinemas

A entrada de diversos escritores no mundo do teatro natildeo foi uma singularidade de Catullo Em fins da deacutecada de 1920 e iniacutecio da deacutecada de1930 era possiacutevel enxergar muitos de conhecidos literatos comparti-lhando o palco com artistas como Carmen Miranda Donga Abigail Maia muacutesicos como Luperce Miranda Jayme Florence (o Meira) e atores como Procoacutepio Ferreira e Oduvaldo Viana O teatro de revista ndash assim eram chamados os espetaacuteculos que misturavam musical burletas dramas hu-moriacutesticos etc ndash virou febre na sociedade brasileira da eacutepoca Aleacutem de usar de uma linguagem mais acessiacutevel ao grande puacuteblico o teatro de re-vista era fonte de grande lucro para os patrocinadores dos espetaacuteculos

Nos palcos eram encenados verdadeiros shows de variedades com o objetivo principal de entreter o puacuteblico Sintomaacutetica eacute a publici-dade de um evento que aconteceria no Theatro Imperial em Niteacuteroi em julho de 1930 onde a chamada pedia a atenccedilatildeo do leitor para uma pre-senccedila ilustre a da Miss Brasil ao lado de outros artistas

Estaacute sendo esperado com grande ansiedade o grandioso festival de ca-ridade que a directoria da Caixa de Esmolas de Nictheroy estaacute organi-sando para amanhatilde aacutes 20 horas no Cine Theatro Imperial dessa cidade [] o qual seraacute honrado com a presenccedila da formosa senhorita Yolanda Pereira ldquoMiss Brasilrdquo que prometteu ao mesmo comparecer em com-panhia de outras ldquomissesrdquo estaduaesA parte literaacuteria do programma ficou a cargo de Raul Perdeneiras Bastos Tigre e Catullo da Paixatildeo Cearense que diratildeo conferecircncias humoriacutesticasA parte musical foi confiada aos elementos artiacutesticos da Raacutedio Sociedade do Rio de Janeiro entre os quaes as senhoritas Carmen Miranda e Gecy Barbosa aacute professora Anna de Albuquerque Mello e os festejados inteacuterpretes da nossa muacutesica regional Gastatildeo Formenti Sylvio Salema Paulo Rodrigues Tomam parte no attrahente espetaacute-culo o tenor Oscar Gonccedilalves Ignaacutecio Guimaratildees e outros260

260 A Noite 22 jul 1930 p 2

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo200

Essa miscelacircnea de atraccedilotildees tornou-se muito comum com a po-pularizaccedilatildeo do que se convencionou chamar de festivais Sob esse termo era incluiacuteda uma variedade grande de entretenimentos desde co-meacutedias musicais desfiles de ldquocelebridadesrdquo ateacute a encenaccedilatildeo de uma produccedilatildeo anteriormente consagrada como aquelas com temaacuteticas ser-tanejas as chamadas burletas A adaptaccedilatildeo de diversos artistas a essa nova forma de expressatildeo e de puacuteblico fazia com que fosse possiacutevel en-contrar por exemplo Catullo da Paixatildeo Cearense fazendo parte de con-ferecircncias humoriacutesticas ao lado de caricaturistas e humoristas como Bastos Tigre e Raul Pederneiras anteriormente citados Ainda que re-conhecidos como poetas esses uacuteltimos se destacavam pela verve hu-moriacutestica assumida por eles e em Catullo quase inexistente

O palco natildeo era algo ineacutedito para Catullo que jaacute frequentava o mundo do teatro desde os anos 1910 e laacute havia feito muitos amigos Escrevendo em fins da deacutecada de 1920 o volume de poesias Faacutebulas e alegorias Catullo reconhecia no ator Procoacutepio Ferreira (aliaacutes finan-ciador do livro) a genialidade teatral oferecendo-lhe a publicaccedilatildeo com estas palavras ldquoA ti Procoacutepio que viste nascer estas fabulas e foste o primeiro a recital-as offereccedilo este livro como um preito de minha ad-miraccedilatildeo pelo teu talento genial glorificado por Melpoacutemene e Thaliacuteardquo261

O flerte de Catullo com os palcos foi tatildeo grande que ele chegou a organizar festivais em que contava inclusive com cenoacutegrafos consa-grados como quando organizou a ldquofesta de Catullo Cearense [] num ambiente sertanejo cujo scenaacuterio Jayme Silva faraacute sob as indicaccedilotildees do grande rapsodordquo262 No Trianon no Lyrico no Satildeo Joseacute no Imperial e em vaacuterios outros teatros cariocas e paulistas o nome de Catullo era encarado como sucesso de puacuteblico

Como vimos a presenccedila cecircnica de sua poesia conduzia a uma leitura performaacutetica do escrito quando oralizado A nova caracteriacutestica de sua produccedilatildeo qual seja como tambeacutem passiacutevel de um vieacutes cocircmico eacute que eacute parte do processo de um diaacutelogo com uma produccedilatildeo cecircnica que se

261 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Faacutebulas e alegorias Rio de Janeiro Officina Industrial Graphica 1928 p 4

262 Correio da Manhatilde 5 jun 1930 p 5

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fazia no periacuteodo Nesse momento foi possiacutevel vislumbrar em sua pro-duccedilatildeo uma veia mais humoriacutestica sintetizada sem duacutevida nas suas apresentaccedilotildees teatrais Sua chegada aos palcos vai ao encontro de uma febre por uma produccedilatildeo existente no Brasil desde os finais do seacuteculo XIX o teatro ligeiro Essas festas eram estruturadas em vaacuterios mo-mentos misturando espetaacuteculos danccedilantes apresentaccedilotildees humoriacutesticas musicais e peccedilas que dramatizavam fatos do cotidiano O teatro de re-vista (um dos gecircneros do teatro ligeiro) no Brasil e em especial na capital federal tornou-se especialmente nos anos 1920 um dos princi-pais espaccedilos de sociabilidade da elite letrada Para ele seguiram vaacuterios literatos que viam no seu sucesso de puacuteblico um lugar para a exibiccedilatildeo de suas produccedilotildees Procoacutepio Ferreira homem de teatro fez fama nesse periacuteodo como promotor diretor e ator de vaacuterias peccedilas e ao redor dele arregimentaram-se vaacuterios intelectuais do quilate de Bastos Tigre

O teatro ganhara novo focirclego com a ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ao poder em outubro de 1930 Admirador de espetaacuteculos teatrais Vargas quando ainda deputado federal pelo estado do Rio Grande do Sul ajudara a aprovar decreto que normatizava as empresas teatrais e reconhecia direitos trabalhistas para os artistas que participavam desse mundo especialmente no que concerne aos direitos autorais A lei ga-nhou ateacute um nome extra-oficial de ldquoLei Getuacutelio Vargasrdquo263

Aliaacutes a poliacutetica cultural de Getuacutelio Vargas catapultava uma seacuterie de demandas que jaacute se faziam ouvir antes de sua ascensatildeo Com a criaccedilatildeo do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Sauacutede (MES) em 1930 chefiado por Francisco Campos e principalmente a partir de 1934 quando co-meccedilou a administraccedilatildeo do ministro Gustavo Capanema vaacuterios veiacuteculos de comunicaccedilatildeo sofreram o impacto da poliacutetica varguista de pedagogia do cidadatildeo Havia poliacuteticas voltadas para o livro para o teatro para o cinema para a radiodifusatildeo e para diversas outras aacutereas da comuni-caccedilatildeo e cultura que tiveram como consequecircncia conviver com uma

263 Sobre a simpatia de Vargas nos meios teatrais Cf CAMARGO Angela Ricci A poliacutetica dos palcos teatro no primeiro governo Vargas (1930-1945) Rio de Janeiro FGV 2013 Sobre os decretos que foram construindo uma poliacutetica cultural para o teatro no periacuteodo varguista Cf CALABRE Lia Poliacuteticas culturais no Brasil Rio de Janeiro FGV 2009

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo202

maior atenccedilatildeo do Estado para suas produccedilotildees Dessa forma muitos dos escritores e artistas consagrados desde antes da assunccedilatildeo de Vargas to-maram parte desse projeto

Foi tambeacutem nesse momento que o advento do raacutedio como objeto de entretenimento mobilizou os artistas ligados agrave musica

O raacutedio buscava o caminho da profissionalizaccedilatildeo A maior parte das emissoras passava a irradiar seus programas em todos os dias da se-mana Novas empresas de radiodifusatildeo se formavam anunciando projetos que conquistariam definitivamente o puacuteblico ouvinte trans-formando o raacutedio em um elemento indispensaacutevel em todos os lares264

Nas Raacutedios Sociedade e Mayrink Veiga as apresentaccedilotildees de Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhado por Joatildeo Pernambuco e Pixinguinha eram esperadas com ansiedade Na deacutecada de 1930 a pro-duccedilatildeo de Catullo afastou-se da produccedilatildeo estritamente literaacuteria e ganhou os palcos e o raacutedio com poemas declamados e muacutesicas cantadas Sua produccedilatildeo textual que sempre continha fortes marcas de oralidade vol-tou-se para uma apresentaccedilatildeo da qual o escrito estaacute submetido agrave perfor-mance como momento final da produccedilatildeo

Ao que parece Catullo criticado no espaccedilo das hostes literaacuterias e sabedor do novo momento que alccedilava o teatro e o raacutedio a espaccedilos com um aacutevido puacuteblico consumidor vai-se aproximando dos palcos e se rea-proximando assim da muacutesica Embora tentasse manter um status de poeta sua produccedilatildeo visaria a partir dos anos 1930 menos agrave aceitaccedilatildeo no campo literaacuterio brasileiro ndash agora sob os bombardeios modernos dos novos escritores surgidos na deacutecada de 1920 o que eacute possiacutevel pensar afasta-o ainda mais de um reconhecimento como poeta nacional ndash do que ao seu reconhecimento como artista Com as criacuteticas recebidas em fins da deacutecada de 1920 e a ascensatildeo exitosa do teatro de revista com um farto cardaacutepio de musicais o poeta sertanejo voltou-se para o rees-tabelecimento de sua representaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo

264 CALABRE Lia No tempo do Raacutedio radiodifusatildeo e cotidiano no Brasil 1923-1960 2002 277 f Tese (Doutorado em Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Universidade Federal Fluminense NiteroiacuteRJ 2002 p 60

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 203

Por outro lado a emergecircncia de uma produccedilatildeo literaacuteria reivindi-cada pelos novos escritores que tratavam de tematizar o Brasil de forma mais realista e criacutetica conduziu o proacuteprio Catullo a fazer nos seus textos publicados em forma de livro que apareceram nos anos 1930 uma poesia mais ufanista bem ao gosto dos intelectuais abraccedilados pelo governo de Getuacutelio Vargas A aproximaccedilatildeo de suas temaacuteticas sertanejas com certo ufanismo nacional ia ao encontro de um tipo de produccedilatildeo li-teraacuteria que ganhou focirclego com o advento de Vargas ao poder Contudo se por um lado suas poesias eram defenestradas por representar um imaginoso sertatildeo por outro eram saudadas por representar de maneira ufanista o paiacutes ndash de resto tocircnica das poliacuteticas culturais do governo Vargas nesse periacuteodo

Tal ufanismo se tornou modelo propulsor do bom cidadatildeo brasi-leiro e foi um dos pilares do primeiro periacuteodo desse governo (1930-1945) A ideia de um Brasil grande promissor e com um povo trabalhador foi construiacuteda com a ajuda de inuacutemeros meios inclusive o cinema e o raacutedio que nesse contexto surgiram como uma forccedila fundamental para a propa-ganda governista A muacutesica vinculada ao projeto pedagoacutegico do Estado Novo varguista tomava as raacutedios pelo paiacutes afora fazendo parte do rol propagandiacutestico da figura de Getuacutelio Vargas265 No teatro foi o tempo de grandes produccedilotildees que tematizavam tipos nacionais de forma ufanista mas fundamentalmente foi o iniacutecio de um boom no mercado livreiro

A reivindicaccedilatildeo de uma identidade nacional ou de uma ldquoorientaccedilatildeo brasileirardquo como dizia o escritor Maacuterio de Andrade foi a forma orga-nizadora por excelecircncia dos discursos sobre a cultura bem como dos diagnoacutesticos e estrateacutegias de escritores intelectuais e homens puacuteblicos agrave eacutepoca ciosos natildeo sem divergecircncias de afirmar a existecircncia de uma cultura brasileira266

265 Joseacute Miguel Wisnik faz uma rica discussatildeo acerca da inclusatildeo da muacutesica especialmente a partir de Villa-Lobos no rol de elementos utilizados pelo Estado brasileiro em sua poliacute-tica de construccedilatildeo do nacional poacutes- anos 30 Cf WISNIK Joseacute Miguel Getuacutelio da Paixatildeo Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo) In SQUEFF Ecircnio WISNIK Joseacute Miguel Muacutesica o nacional e o popular na cultura brasileira Satildeo Paulo Brasiliense 2004 p 129-190

266 DUTRA Eliana de Freitas Cultura In GOMES Acircngela de Castro (coord) Histoacuteria do Brasil Naccedilatildeo (1808-2010) olhando pra dentro (1930-1964) Rio de Janeiro Objetiva 2013 v 4 p 229

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo204

As estrateacutegias de escritores ndash e sem duacutevida de editores ndash aproxi-maram-se de certo ufanismo oficial que teve no ministro da Educaccedilatildeo do governo Vargas Gustavo Capanema um entusiasta e mecenas Ainda que muitos artistas e escritores natildeo estivessem interessados na construccedilatildeo oficial de certa representaccedilatildeo do ldquopovo brasileirordquo o fato de tais produccedilotildees obterem relativo sucesso com o puacuteblico consumidor fez com que cada vez mais tal temaacutetica nacionalista fosse procurada nas produccedilotildees culturais do periacuteodo

Nesse momento Catullo da Paixatildeo Cearense jaacute fazia bastante sucesso na produccedilatildeo de musicais e o teatro ligeiro se tornava um es-paccedilo de entretenimento disputado inclusive por grandes figuras poliacute-ticas Por isso sua relaccedilatildeo com as poliacuteticas oficiais de Vargas demandam uma anaacutelise mais detida a fim de se compreender os caminhos traccedilados pelo poeta em seus livros no periacuteodo

A ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ao poder por meio de um movi-mento revolucionaacuterio no ano de 1930 representou para a produccedilatildeo cultural do Brasil um corte profundo ndash jaacute bastante estudado por pesqui-sadores em diversas aacutereas Sua chegada ao poder representou na pri-meira hora a vitoacuteria de um movimento que se pretendia modernizador da poliacutetica sendo saudado por muitos intelectuais e tambeacutem em di-versas canccedilotildees que tratavam de difundir a ideia de uma revoluccedilatildeo que viria para mudar Assim pode ser compreendida uma composiccedilatildeo que foi reiteradas vezes tocada nas raacutedios da capital federal em 1930 intitu-lada 24 de outubro um hino em homenagem agrave revoluccedilatildeo daquele ano

Lanccedilada pela gravadora Brunswick e interpretada por Gastatildeo Formenti acompanhado da orquestra Brunswick a letra de Catullo da Paixatildeo Cearense sintetiza o tom ufanista com que a chegada de Vargas ao poder era encarada naqueles idos

Cantemos um hino agrave GloacuteriaPais e filhos de leotildeesQue os pampas estatildeo cantandoAbraccedilados com os sertotildees

Vinde a noacutes bravos GetuliosDestemidos Florianos

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Voacutes Juarezes soberanosGenerais triunfadoresMas trazeis na vossa frenteConduzindo a cavalgadaA liberdade montadaNum corcel cheio de flores

Derribado o despotismoExpulsai num grande exemploEsses vendilhotildees do temploDa Repuacuteblica altaneiraAteacute que venham de joelhosPedir-nos perdatildeo um diaRezando uma Ave MariaAos peacutes de nossa bandeira

Vinde a noacutes bravos GetuliosDestemidos FlorianosVoacutes Juarezes soberanosGenerais triunfadoresMas trazeis na vossa frenteConduzindo a cavalgadaA liberdade montadaNum corcel cheio de flores

De arma em punho brasileirosNesse ardoroso momentoErgamos o pensamentoComo quem reza uma missaSuplicando a Deus de joelhosQue o Brasil reerguenteSeja o berccedilo florescenteDo amor da paz e justiccedila267

Registre-se tambeacutem que no mesmo LP em que foi gravado o hino anteriormente transcrito constava no lado A do disco um hino em

267 24 de outubro canccedilatildeo de composiccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense e maestro H Vogeler Gravada em dezembro de 1930 por Gastatildeo Formenti e orquestra Brunswick pela gravadora Brunswick Fonte Base de Dados da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco Disponiacutevel em httpwwweducadoresdiaadiaprgovbrmodulesdebasersinglefilephpid=17896 Acesso em 11 jun 2020

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo206

homenagem aos tenentes grupo fundamental para o triunfo da Revo-luccedilatildeo de 30 intitulado Os 18 de Copacabana ndash uma referecircncia agrave revolta armada tenentista ocorrida em 1922 no Forte de Copacabana

Essa aproximaccedilatildeo de artistas com a poliacutetica oficial foi progressi-vamente se estreitando vindo a ser um dos elementos fundamentais para a construccedilatildeo de toda uma representaccedilatildeo de Vargas durante os quinze anos em que esteve no poder O proacuteprio Catullo que se benefi-ciara dos governos anteriores com uma vaga de datiloacutegrafo no Ministeacuterio da Viaccedilatildeo em 1922 (ocupaccedilatildeo que de fato nunca exerceu) voltou-se estrategicamente para produccedilotildees que estivessem de acordo com o novo tom da poliacutetica cultural implementada pelo novo chefe de Estado Em troca o Governo Provisoacuterio tratou de mantecirc-lo no posto de datiloacutegrafo do Ministeacuterio da Viaccedilatildeo por decreto em 1932268

Paralela a isso a Revoluccedilatildeo de 30 ocorreu num momento em que o paiacutes comeccedilava a escutar raacutedio O puacuteblico consumidor de programas radiofocircnicos cresceu vertiginosamente tendo como grande triunfo a muacutesica que exerceu nesses segmentos um produto de grande rentabili-dade As casas de discos lucravam com a venda de aparelhos e LPs bem como a publicidade de produtos fazia aumentar a rentabilidade das estaccedilotildees de raacutedio A Mayrink Veiga e a Raacutedio Sociedade ambas no Rio de Janeiro capitaneavam essa efervescecircncia com programas musicais diaacuterios Cantores foram rapidamente consagrados Francisco Alves Carmen Miranda e Orestes Barbosa foram alguns dos novos artistas catapultados pela nova miacutedia

No teatro tambeacutem a muacutesica era a vedete principal havia bastante tempo Os musicais ganhavam maior relevo na produccedilatildeo teatral sendo comum artistas de raacutedio apresentarem-se nos palcos com grande su-cesso de puacuteblico e compositores antes desconhecidos terem suas muacute-sicas repentinamente cantaroladas nas ruas cariocas Aiacute tambeacutem surgiu um velho problema com tanta gente cantando para um puacuteblico cres-cente quem ganha com esse boom musical Ou seja quem deteacutem os

268 O jornal A Noite noticia em sua primeira paacutegina o decreto que confirma Catullo e ldquoAneacutesia Pinheiro Machado para dactylographos da Secretaria de Estados (sic) Cf A Noite 9 abr 1932

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direitos de reproduccedilatildeo da canccedilatildeo Um incidente noticiado pelo jornal A Noite revela algo dessas dificuldades que surgiam da publicidade de uma obra por um terceiro

Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhava a gravaccedilatildeo de Talento e formosura modinha de sua autoria de iniacutecios do seacuteculo XX pelo jovem cantor Francisco Alves posteriormente consagrado ldquorei da vozrdquo De repente Catullo fica incomodado com a dicccedilatildeo do cantor que ldquofor-ccedilara algumas palavras do versordquo Em jornal concluiacutea

Dahi a prova de que as gravaccedilotildees devem sempre ser feitas na presenccedila do autor ao qual natildeo poderatildeo escapar os miacutenimos defeitos para o bem do proacuteprio cantor que muitas vezes daacute a muacutesica uma interpretaccedilatildeo diversa da idealizada pelo musicista causando contrariedades Aleacutem disso no caso de dificuldade na gravaccedilatildeo dos versos ou da muacutesica estando o autor presente seraacute faacutecil uma modificaccedilatildeo que auxilie a gra-vaccedilatildeo do disco269

Num momento de maior difusatildeo da canccedilatildeo atraveacutes de raacutedios e discos houve tambeacutem uma tentativa de regrar a interpretaccedilatildeo de forma que o autor da muacutesica natildeo fosse contrariado em suas intenccedilotildees quando da gravaccedilatildeo da canccedilatildeo Esse incidente poreacutem parece ser um caso raro num momento em que a autoria de vaacuterias canccedilotildees gravadas natildeo impor-tava tanto para o puacuteblico quanto o inteacuterprete que natildeo raro ganhava os louros de artista e autor Era algo muito comum agrave eacutepoca os artistas mais pobres do Rio de Janeiro venderem suas composiccedilotildees a fim de angariar algum dividendo mesmo natildeo tendo seu nome exposto na obra publicada Satildeo conhecidas as constantes subidas ao morro por Maacuterio Reis para comprar muacutesicas uma das quais revelou em sua voz o sam-bista e compositor Cartola Contudo aquele incidente de Catullo com Francisco Alves natildeo era assim tatildeo comum num periacuteodo em que o com-positor pouco se preocupava com a interpretaccedilatildeo de sua canccedilatildeo

O que parece irocircnico eacute que se fora como inteacuterprete textual de can-ccedilotildees que escutava nas ruas que Catullo se tornara inicialmente conhecido anos depois sua luta parecia ser defender suas letras regrando a interpre-

269 A Noite 13 out 1930 p 4

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taccedilatildeo oral da canccedilatildeo A oralidade tornava-se assim um problema para o primeiro autor do produto exatamente num momento em que ela ganhava cada vez mais um puacuteblico consumidor assiacuteduo O texto estaria dessa forma submetido agrave interpretaccedilatildeo oral do inteacuterprete cabendo muitas vezes a esse uacuteltimo o reconhecimento como autor e grande artista

Esse retorno de puacuteblico causou grande rebuliccedilo no que concerne agrave definiccedilatildeo de direitos autorais A lei que defendia os direitos autorais dos compositores da canccedilatildeo era negligenciada e raramente se pagava pelo uso desses direitos A situaccedilatildeo soacute comeccedilou a mudar aos poucos com a criaccedilatildeo do Centro Musical do Rio de Janeiro em maio de 1907 tendo agrave frente o maestro Francisco Braga O Centro funcionava como um sindicato que lutava pelos direitos dos muacutesicos cariocas

Poreacutem a criaccedilatildeo natildeo melhorou muito a situaccedilatildeo dos muacutesicos natildeo profissionais e letristas entendidos sempre sob o termo autoexplicativo de ldquodireito menorrdquo Esses uacuteltimos eram quase sempre desconsiderados dentro do universo musical da eacutepoca havendo soacute a possibilidade de patentear uma letra registrando-a na Biblioteca Nacional coisa que ra-ramente aconteceu de fato Soacute em 1917 sob o impacto do Coacutedigo Civil que regulou a propriedade intelectual e com a criaccedilatildeo de uma divisatildeo de muacutesica na Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais (SBAT) as letras compostas para serem apresentadas nos espetaacuteculos ganharam um status de algo a ser considerado propriedade de um compositor-letrista A SBAT ficaria conhecida como um modelo para os demais profissio-nais de outras aacutereas reivindicarem direitos autorais270

A confusatildeo acerca do atestado de paternidade de uma letra era expressa nas vaacuterias alteraccedilotildees possiacuteveis na composiccedilatildeo quando acom-panhada de determinada canccedilatildeo Se a canccedilatildeo se mantinha a letra quase sempre ganhava adendos ou eram subtraiacutedos trechos ndash fato para o qual jaacute atentamos quando Catullo organizava letras de modinhas O fato eacute que viver de muacutesica era algo muito difiacutecil nas primeiras deacutecadas do

270 Interessante notar que a Associaccedilatildeo Brasileira de Imprensa propunha a seus soacutecios a ldquoinstalaccedilatildeo de um serviccedilo idecircntico ao existente na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais para a fiscalizaccedilatildeo e cobranccedila dos direitos autorais devidos pela imprensa tanto do paiacutes como quiccedilaacute do estrangeirordquo Cf Diaacuterio de Notiacutecias 5 jun 1940

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seacuteculo XX no Rio de Janeiro e ser tatildeo somente um letrista acarretava ainda mais problemas para o candidato a autor de letras

Nos anos 1920 quando a febre por musicais ganhava a sociedade carioca jaacute era possiacutevel registrar as canccedilotildees que faziam parte de espetaacute-culos teatrais por intermeacutedio da SBAT que repassava ao autor a quantia devida Tal serviccedilo prestado pela sociedade no entanto era mateacuteria de acirradas criacuteticas por parte dos compositores sendo criado jaacute em 1938 por alguns deles entre os quais Braguinha e Maacuterio Lago a Associaccedilatildeo Brasileira de Compositores e Autores (ABCA) para reunir os autores brasileiros do ldquopequeno direitordquo Essa mudanccedila provocou um grande debate entre a nova Associaccedilatildeo e a SBAT que natildeo queria perder o mo-nopoacutelio de cobranccedila por direitos autorais Esse debate chegou a en-volver o presidente da Sociedade de Autores e Compositores da Argentina Francisco Canaro que se dispocircs a mediar um entendimento entre as duas entidades271 Mais tarde a ABCA se encarregaria de criar um estatuto proacuteprio e mudaria de nome em 1942 para Uniatildeo Brasileira de Compositores (UBC) tendo agrave frente Ary Barroso

Eacute bem verdade que os compositores se dividiram alguns enten-dendo que a criaccedilatildeo de uma nova associaccedilatildeo ajudaria no esforccedilo da luta por direitos autorais enquanto outros consideravam que a SBAT em-bora deficiente ainda representava bem os interesses da classe

Jaacute conhecido por suas apresentaccedilotildees de sucesso nos teatros es-crevendo peccedilas e participando de musicais Catullo da Paixatildeo Cearense foi um dos que resolveram jaacute em iniacutecios dos anos 1940 permanecer ligados agrave SBAT indicando a sociedade como responsaacutevel por seus di-reitos tendo Guimaratildees Martins como seu representante

De acordo com a lei somente a SOCIEDADE BRASILEIRA DE AUTORES TEATRAIS agrave Avenida Almirante Barroso nordm 97 3ordm andar (Esplanada do Castelo) Rio de Janeiro Brasil pode em nome do meu cessionaacuterio e uacutenico representante Guimaratildees Martins autorizar repre-sentaccedilotildees traduccedilatildeo adaptaccedilatildeo irradiaccedilatildeo etc desta peccedila272

271 Diaacuterio de Notiacutecias 12 dez 1939272 Parte constante na contracapa de Um boecircmio no ceacuteu O livro trata-se de uma peccedila

recheada de canccedilotildees incidentais em que um boecircmio que seria Catullo dialoga com

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Contudo Catullo natildeo foi o uacutenico que resolveu ceder agrave SBAT os direitos para a cobranccedila de direitos autorais Um grupo de consagrados compositores lanccedilou um abaixo-assinado assegurando a confianccedila na arrecadaccedilatildeo de direitos autorais pela sociedade Esse manifesto se so-bressaiu pelos nomes consagrados que o assinaram

Agrave Sociedade Brasileira de Autores Teatrais ndash Os abaixo assinados compositores brasileiros de muacutesica desejam por este meio assegurar a sua solidariedade agrave SBAT sob cuja bandeira permanece e a cujos ser-viccedilos especializados entregam a administraccedilatildeo e arrecadaccedilatildeo dos seus direitos autorais de execuccedilatildeo Eacute oportuno consignar a estranheza dos signataacuterios desta ante a fundaccedilatildeo de um grecircmio de compositores que se apresenta como representante da classe quando eacute certo que pelos nomes sem duacutevida merecedores de todo o aplauso puacuteblico que lhe compotildeem o quadro social deveraacute ele denominar-se de compositores de muacutesica popular o que teria a elementar vantagem de pelo menos evitar interpretaccedilotildees errocircneas ou maliciosas que bem podem ser no-civas ao prestiacutegio da cultura artiacutestica nacional (ass) Francisco Braga J Otaviano H Vila Lobos Assis Republicano Oscar Lorenzo Fernandez Joanidia Sodreacute Newton Paacutedua Eleazar de Carvalho Afonso Martinez Grau Henriquel Vogeler Joseacute Vieira Brandatildeo Otaacutevio Bevilaacutequa Heckel Tavares273

Os nomes que assinam o abaixo-assinado eram jaacute nessa eacutepoca reconhecidos compositores e embora reiterassem que a nova asso-ciaccedilatildeo tinha nomes ldquomerecedores de todo o aplauso puacuteblicordquo natildeo se isentavam de frisar uma diferenccedila chamando a atenccedilatildeo do leitor para o fato de que a nova associaccedilatildeo surgida seria de ldquocompositores de muacutesica popularrdquo o que acarretaria em consequecircncia um efeito nocivo ldquoao prestiacutegio da cultura artiacutestica nacionalrdquo

A sutileza e mesmo o respeito com que os signataacuterios se re-portam agrave nova associaccedilatildeo natildeo escondem a tecircnue mas fundamental dis-tinccedilatildeo que buscavam dar a dois tipos de produtos sendo um deles iden-tificado com o termo ldquopopularrdquo A separaccedilatildeo na classe de compositores era o resultado de uma distinta representaccedilatildeo daquilo que se entendia

Satildeo Pedro no ceacuteu Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946

273 Reproduzido em Diaacuterio de Notiacutecias 16 jul 1942 p 9

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como ldquomuacutesica popularrdquo e daquilo que natildeo deveria ser entendido por tal definiccedilatildeo A diferenccedila de interesses daqueles que os signataacuterios enten-diam serem os compositores populares era uma agenda necessaacuteria para afirmar a disparidade de seus interesses daqueles de um grupo que con-trariando os autores do manifesto ldquose apresenta como representante da classerdquo Mas de fato natildeo se pode dizer que aqueles que ficaram na SBAT foram tatildeo somente os artistas da chamada muacutesica distinta da ldquopo-pularrdquo ndash como parecem fazer crer os assinantes do documento acima ndash pois um daqueles que continuaram sob a eacutegide da SBAT foi justamente Catullo da Paixatildeo Cearense que seguramente natildeo era representado como um artista que natildeo fosse da ldquomuacutesica popularrdquo

Catullo aliaacutes publicou como seu uacuteltimo livro em vida uma cole-tacircnea de todas as suas modinhas sendo a primeira vez conforme a lei de direitos autorais ou seja citando os respectivos compositores de cada muacutesica que acompanhava a letra transcrita Com a publicaccedilatildeo intitu-lada Modinhas o poeta reafirmava sua autoria sobre as letras podendo com a execuccedilatildeo e interpretaccedilatildeo delas dali por diante ter os direitos zelados pela SBAT Guimaratildees Martins organizador e prefaciador da obra destacava o fato de reeditar aquelas velhas modinhas mesmo que Catullo num primeiro momento natildeo o quisesse

Catullo tinha razatildeo para natildeo desejar a reediccedilatildeo dos livros de suas can-ccedilotildees musicadas como estavam Eacute que aqueles livros eram impressos descuidadamente sem a sua revisatildeo pela popular e hoje extinta Livraria Quaresma que aleacutem do mais misturava por sua conta proacute-pria em alguns desses livros canccedilotildees da autoria de Catullo com can-ccedilotildees da autoria de outros autores sem lhes mencionar os nomes Tudo isso em completo desrespeito agrave Lei e dando a impressatildeo de que todas as modinhas eram da autoria exclusiva de Catullo274

Sem duacutevida em um momento em que a muacutesica eacute protagonista de um estouro do entretenimento na sociedade brasileira impulsionados pelo raacutedio e teatro as leis de direitos autorais vieram regrar a repro-duccedilatildeo de tal artefato cultural nas novas miacutedias Essas leis vieram cons-

274 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1946 (Contracapa)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo212

tituir um novo debate que recolocava no centro da discussatildeo uma ten-tativa de classificaccedilatildeo social do que viria a ser o termo ldquopopularrdquo

A organizaccedilatildeo de entidades classistas que buscavam seus direitos recolocava em novas roupagens questotildees como a separaccedilatildeo entre ldquopo-pularrdquo e ldquoeruditordquo (visando a construir representaccedilotildees diferentes e con-trastantes) a disputa pela propriedade legal da produccedilatildeo musical (com a construccedilatildeo de entidades zeladoras da lei autoral que pudesse penalizar aqueles que a burlassem) e a profissionalizaccedilatildeo do compositor temas estes que se esboccedilavam desde pelo menos o comeccedilo do seacuteculo XX Haacute de se frisar que tais debates nascem de uma separaccedilatildeo alavancada pela exposiccedilatildeo midiaacutetica dos novos cantores de raacutedio

O sucesso dos cantores de raacutedio consequecircncia de sua maior ex-posiccedilatildeo ameaccedilava eclipsar o nome do autor ndash problema que de resto jaacute era bastante comum Em contrapartida cria-se um sistema que mesmo eclipsando o autor diante do sucesso do inteacuterprete da canccedilatildeo daria ao primeiro a vantagem de ganhar financeiramente pela execuccedilatildeo de sua muacutesica pela cobranccedila dos direitos autorais Natildeo eacute sem espanto que vemos Catullo ndash que tinha nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX com a publicaccedilatildeo de livros um trunfo que fazia com que se apropriasse de muitas canccedilotildees sob o seu nome ndash jaacute nos anos 1930 e 1940 quando suas modinhas tendem a ser publicizadas com mais sucesso nas raacutedios do que nos livros vecirc-se na defensiva questionando o apagamento de sua autoria pelo inteacuterprete Agrave apropriaccedilatildeo do material oral pelo autor de um texto impresso sucede desta feita uma apropriaccedilatildeo do texto pelo indiviacuteduo no uso de sua voz ou seja o cantor da raacutedio que de resto era o novo iacutedolo de um paiacutes que comeccedilava a escutar essa nova tecnologia

Vale uma raacutepida reflexatildeo sobre esse processo Havia muito tempo o letrista (o poeta ou o bardo como poderia ser reconhecido o autor de uma letra) gozava de uma fama em detrimento do muacutesico autor da canccedilatildeo Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX para um muacutesico ter reconhecimento diz o jornalista Edigar de Alencar ldquoera preciso ser um Carlos Gomes para fazer desaparecer o poetardquo275 Eacute possiacutevel que por essa inferioridade do

275 ALENCAR Edigar de Claridade e sombra na muacutesica do povo Rio de Janeiro Francisco Alves Brasiacutelia INL 1984 p 56

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 213

muacutesico em relaccedilatildeo ao letrista ndash este uacuteltimo quase sempre criando em cima da muacutesica e sendo natildeo raras vezes ele mesmo cantor ndash tenha feito com que os muacutesicos fossem os primeiros a se organizar em pequenas associa-ccedilotildees para lutar pelos seus direitos considerado ldquogrande direitordquo

A proeminecircncia do letrista soacute era sobrepujada pela do cantor sempre mais conhecido Isso quando o letrista natildeo era o proacuteprio cantor a exemplo de Eduardo das Neves e Geraldo Magalhatildees cantores e com-positores do iniacutecio do seacuteculo XX Catullo representa uma exceccedilatildeo entre os demais sobressaiacutea pelo fato de ser um letrado e de publicar livros ndash e como dizia o interlocutor de Joatildeo do Rio no famoso Momento lite-raacuterio ainda no comeccedilo do seacuteculo XX quem escrevia era ldquosempre um iacutedolordquo ldquomesmo que escreva malrdquo Se a publicaccedilatildeo de livros de canccedilotildees o distinguiu durante muito tempo no campo das canccedilotildees com o advento do raacutedio os autores de livros tiveram de conviver com outro tipo de entretenimento que invadia os lares e com ele a criaccedilatildeo de novos iacutedolos os artistas de raacutedio

Agrave primeira vista pareciam campos distintos mas consideran-do-se que o livro fazia parte de um entretenimento que comeccedilava a in-vadir os lares brasileiros o raacutedio surgiu como um forte rival no passa-tempo diaacuterio O autor de livros teria a companhia de novos iacutedolos como Carmen Miranda e Ary Barroso Na praacutetica haacute uma mudanccedila na repre-sentaccedilatildeo do cantor que deixava de ser caracterizado por adjetivos estig-matizadores como ldquoboecircmiordquo e ldquotrovadorrdquo (quando natildeo ldquovagabundordquo) para ser representado tatildeo simplesmente como um ldquoartistardquo ndash e artista de uma nova tecnologia que foi incansavelmente usada pelo proacuteprio go-verno Vargas e catapultou assim o sucesso da radiofonia no Brasil Raacutedio literatura e teatro nessa triacuteade Vargas buscava criar um polo de comunicaccedilatildeo com a sociedade pelos canais que vendiam entreteni-mento para o grande puacuteblico Nessa mesma triacuteade alternava-se Catullo que tambeacutem natildeo ficou imune ao projeto varguista

O teatro no texto

Em iniacutecios dos anos 1930 o palco tornou-se o lugar constante de Catullo da Paixatildeo Cearense que havia muito tinha na performance

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo214

declamando ou cantando a imagem mais representativa para seu puacute-blico As descriccedilotildees de Catullo apresentando-se no teatro datildeo conta de seu poder interpretativo de poemas e canccedilotildees como bem salientava uma reportagem do Correio da Manhatilde ao descrever a cena de Catullo no palco

Antes de se rasgar a cortina do palco estava a sala imersa numa suave interrogaccedilatildeo numa nuanccedila de luar de luar que chegasse ateacute noacutes depois de se haver banhado em montanhas longiacutenquas []Abre-se o panno e a impressatildeo se confirma Os aplausos natildeo cessamO semblante de Catullo tem qualquer coisa das nobrezas melancoacutelicas e insatisfeitasDeclamando transfigura-se cresce aumenta faz-se creanccedila o velho a sua testa que eacute o seu maior symbolo vasta ampla lumindo de modo singular como se houvesse metalizado em outras edades subia em busca do cabelo quase inexistente e estendia-se pela cabeccedila toda de onde pa-recia que a matildeo resvalaria como por sobre uma superfiacutecie polidaA luz do olhar transmuda-se []276

A representaccedilatildeo de um Catullo performaacutetico especialmente quando o palco tornou-se espaccedilo constante para o poeta trabalhava a favor de seu grande sucesso no teatro Isto fez com que sensiacutevel agrave forccedila do teatro como espaccedilo de sociabilidade do mundo letrado no periacuteodo os palcos fossem por um bom tempo o espaccedilo de atuaccedilatildeo principal da produccedilatildeo do poeta No teatro Catullo poderia exercer dois de seus principais trunfos como artista declamar seus poemas e cantar suas canccedilotildees

Ladeando sua maior participaccedilatildeo no teatro Catullo tambeacutem comparecia de maneira frequente agrave raacutedio Mayrink Veiga (a de maior audiecircncia em iniacutecios dos anos 1930) onde por um tempo foi acompa-nhado de muacutesicos como Luperce Miranda Patriacutecio Teixeira Pixinguinha e Tute apresentando-se no programa conhecido como Velha Guarda277

Entre 1931 e 1937 periacuteodo em que muito comumente partici-pava de musicais teatrais e programas de raacutedio a uacutenica publicaccedilatildeo

276 Correio da Manhatilde 25 jun 1930 p 5277 Correio da Manhatilde 1ordm jan 1938 p 3

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 215

lanccedilada com o nome de Catullo foi o livro de poemas O sol e a lua em 1934 Embora colocado de lado por muitos autores da nova lite-ratura por natildeo estar de acordo com os novos criteacuterios estabelecidos para se representar um grande poeta Catullo continuou sendo consi-derado um grande poeta por grande parte do mundo letrado inclu-sive pelo novo chefe de Estado Getuacutelio Vargas A admiraccedilatildeo de Vargas por Catullo inclusive fez com que sabendo de seu cargo como datiloacutegrafo Vargas o fizesse aposentar por serviccedilos prestados agrave cultura do paiacutes

Esse reconhecimento por um chefe de Estado se expressaraacute nas obras de Catullo que publicaraacute o seu O sol e a lua pela Imprensa Nacional Mas mais importante do que essa publicaccedilatildeo Catullo lan-ccedilaraacute em iniacutecios de 1938 um livro dedicado ao chefe da poliacutecia de Vargas (neste momento atuando como ditador apoacutes um golpe em novembro de 1937) o capitatildeo Filinto Miller A obra tinha como tiacutetulo Oraccedilatildeo agrave bandeira A publicaccedilatildeo foi lanccedilada e editada pelo Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal

Experimentando com ecircxito novas formas de expressatildeo Catullo da Paixatildeo Cearense natildeo deixaria de representar em seu texto uma imagem sua como grande poeta Atento aos novos caminhos que a pro-duccedilatildeo artiacutestica no Brasil tomava o poeta tratou de dar um novo sentido para seus livros de acordo com as novas formalidades que regravam a consagraccedilatildeo de seu nome como poeta ou agora como artista da pa-lavra fosse ela cantada ou escrita

Seu livro O sol e a lua era um longo poema de duas partes onde na primeira delas um ldquopoetardquo urbano diante de um puacuteblico re-cita um poema ao sol e na segunda um bardo sertanejo de nome Chico Azulatildeo munido de um linguajar tiacutepico (foacutermula consagrada por Catullo em obras anteriores) declama um poema agrave lua Nele Catullo reafirmava o caraacuteter performaacutetico de seus poemas com os versos en-trecortados por cenas em que personagens (uma moccedila bela o puacuteblico velhos) apareciam como que dando motes para que os personagens principais (o violeiro Chico Azulatildeo e o poeta citadino) pudessem contar o poema Para criar esse efeito Catullo lanccedilava matildeo da des-criccedilatildeo do local onde o poema seria declamado

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo216

SCENARIO

Era noite O Plenilunio clareava o terreiro de uma fazendo [sic] no sertatildeo onde um ldquocardumerdquo de moccedilas moccedilos velhas e velhos se agitava na tumultuosa alegria de uma festa tradicional Flautas violas cava-quinhos harmocircnicas e violotildees gemiam sua queixa amorosa ao espiacute-rito da noite que parecia ter sido convidada para o rumoroso festival Achando-se presentes um poeta da cidade e um afamado cantador da-quelas paragens (quero dizer ndash a Lyra e a Viola) acedendo ao convite de todos os convivas para que saudassem o sol que estivera esplendido naquele dia e aacute Lua que vinha desabrochando nrsquouma das suas mais encantadoras apariccedilotildees depois de vibrante salvas de palmas em meio de profundo silecircncio assim comeccedilou o poeta a sua oraccedilatildeo278

A entrada de elementos cecircnicos em um livro de poemas de Catullo revestia o texto de um caraacuteter teatral que fazia com que seus leitores representassem a leitura com a teatralizaccedilatildeo do texto Isso era necessaacuterio lembrar uma constante nos livros publicados por Catullo desde pelo menos o lanccedilamento de Meu sertatildeo (1918) e como vimos o primeiro com temaacuteticas sertanejas O que parece ser novo eacute que en-quanto naquele se expressa uma oralidade impressa no texto com o texto repleto de iacutendices de oralidade neste O sol e a lua o que objeti-vava o autor era um entendimento de que o texto natildeo era soacute a represen-taccedilatildeo do oral como tambeacutem ele deveria ser lido tendo em mente a per-formance necessaacuteria para sua efetivaccedilatildeo O texto natildeo visava tatildeo somente a uma leitura oralizada mas sobretudo performaacutetica Essa mudanccedila seguramente remete ao maior envolvimento de Catullo com o mundo do teatro A escrita alimenta-se de elementos cecircnicos obrigando o leitor a ter em mente a representaccedilatildeo cecircnica do poema

O proacuteprio tiacutetulo do preacircmbulo do poema O sol e a lua (ldquoScenariordquo) remete a uma representaccedilatildeo no palco E os personagens durante o poema vatildeo comumente participando da recitaccedilatildeo com palmas vaias ruiacutedos e mesmo com a intervenccedilatildeo direta no poema como no trecho seguinte ldquoNeste ponto o bardo interrompeu o curso da sua oraccedilatildeo porque a moccedila mais bela do divino cenaacuteculo levantou-se e veio ofere-

278 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p 9

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 217

cer-lhe a flor que ornamentava o diadema dourado dos seus cabelos lourosrdquo279 Podemos perceber ainda no final da declamaccedilatildeo do vio-leiro Chico Azulatildeo a intervenccedilatildeo do puacuteblico

Depois dos uacuteltimos aplausos coroando o final do poema sertanejo o violeiro a pedido geral cantou o lsquoLuar do sertatildeordquo acompanhado por todo o auditoacuterio que inundava o amplo terreiro da Fazenda E assim terminou a festa daquela noite memoraacutevel que ficou sendo chamada em todo sertatildeo ndash A noite do Sol e da Lua280

Com O sol e a lua a produccedilatildeo de Catullo adentra um modelo que poderaacute ser visto na maioria de seus livros posteriores qual seja a refe-recircncia latente ao mundo do teatro Foi justamente seu contato cada vez mais frequente com esse espaccedilo que produziu uma reviravolta na sua produccedilatildeo textual A sutileza nas inclusotildees de passagens que remetiam ao espaccedilo do teatro buscando assim regrar uma leitura fazia lembrar seus primeiros livros de modinhas quando buscava regrar as letras de modi-nhas com as muacutesicas a acompanhaacute-las No entanto O sol e a lua embora com intervenccedilotildees musicais fundamentais natildeo tratava de canccedilotildees mas tambeacutem remetia a um desempenho um desempenho gestual tiacutepico do teatro entremeado com personagens que se revezavam no poema

Se nos livros de modinhas o que dava o tom do texto eram as muacutesicas que deveriam acompanhar a letra aqui o que pontua as decla-maccedilotildees eacute o ambiente com o puacuteblico e os personagens que adentram o texto Mas em um ponto ambos se aproximavam o texto pedia um complemento que soacute poderia ser dado fora dele fosse pela muacutesica fosse pelos personagens que pontuavam o ambiente de declamaccedilatildeo Assim nos livros de modinhas o clima do texto depende de uma exte-rioridade que natildeo estaacute nele ndash comumente na muacutesica de outro autor que natildeo aparecia no livro jaacute que Catullo escrevia (ou transcrevia) somente as letras Nesses livros havia inclusive a possibilidade de ler as letras como se fossem poemas Jaacute no texto teatralizado de Catullo em O sol e a lua a exterioridade (os elementos para a sua encenaccedilatildeo) encontra-

279 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p 28280 Ibidem p 85

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo218

va-se no proacuteprio texto impresso O autor torna-se a autoridade uacuteltima do texto criando inclusive os complementos necessaacuterios para o texto ser desenvolvido fora

Haacute ainda em O sol e a lua um elemento importante que visava a alertar o leitor para a anterioridade do poema A representaccedilatildeo do dia em que leu O sol e a lua pela primeira vez A descriccedilatildeo do ambiente antes da declamaccedilatildeo do poema eacute uma tentativa de criar um efeito formal naquilo que seraacute lido pela exemplaridade de um acontecimento A forma com que ele deveria ser entendido (lido) era receita fundamental para Catullo Daiacute o autor conta na seccedilatildeo intitulada ldquoAo leitorrdquo do dia em que leu pela primeira vez o poema publicado chamando a atenccedilatildeo para a ldquoatmosferardquo em que fora lido

Aproveitando o ensejo quero dizer-vos que recitei pela primeira vez estes poemas no palacete do Dr Leite Garcia no Alto da Bocirca Vista e a lembranccedila dessa noite me fez precedel-os do ldquoscenariordquo que ides ler []O auditoacuterio era a essecircncia do que haacute de mais bello formoso e intelec-tual Rodeado de senhoras e senhoritas tendo ao meu lado uma or-chestra de violotildees regida por Joatildeo Pernambuco o priacutencipe dos vio-latildeonistas [sic] brasileiros sob o firmamento pintalgado de estrelas naquele ambiente marchetado de luzes multicores irradiadas de todos os acircngulos do palacete parecia-me estar nrsquoum palaacutecio de Fadas Ao ter-minar o primeiro poema recebendo prolongada salva de palmas o Dr Leite Garcia depois de um fervoroso improviso aos meus versos con-vidou uma senhorita para que executasse ao piano a sonata ldquoAo luarrdquo do imortal Beethoven em homenagem aacute Lua e aacute Mulher Apagaram-se entatildeo todas as luzes toda a iluminaccedilatildeo do palacete para que soacute se visse a da Lua que vinha nascendo []Foi a vez de Pernambuco que tocou ao violatildeo um dos seus mais belos choros acompanhado brilhantemente pelo terno281

A descriccedilatildeo dessa noite serviria para o leitor como premissa na leitura do texto que seguiria Construiacutea assim uma modalidade de leitura do texto levando em consideraccedilatildeo sua existecircncia anterior como acontecimento e afirmava a efemeridade dele O texto impresso como

281 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p XVIII-XIX

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 219

lugar de passagem cuja finalidade era ou a sua leitura como aconteci-mento que passou ou como indicaccedilatildeo de como ele deveria se passar Ambas as modalidades de leitura remetiam o texto a um desempenho que ndash embora Catullo indicasse e garantisse sua autoridade inclusive sobre a encenaccedilatildeo posterior ndash teria acontecimento num espaccedilo teatral

Essa organizaccedilatildeo textual era algo comum na produccedilatildeo do teatro de revista do periacuteodo Foram famosas nos anos 1930 as apresentaccedilotildees de Catullo caracterizado como ldquomarroeirordquo na ldquoCasa do Cabocircclordquo an-tigo Teatro Satildeo Joseacute no centro do Rio de Janeiro Laacute o teatro de revista tematizou cenas sertanejas com sucesso e consagrou muitos artistas novos como certo J Lucas que rivalizava com Catullo quem era o me-lhor cantor sertanejo ao lado de jovens atrizes do teatro brasileiro

E ningueacutem poacutede dizer qual dos dois eacute maior mais impressionante O que sabe sim eacute que se o programma da ldquoCasa do Caboclordquo jaacute era so-berbo com os elementos de que dispunha e entre os quaes eacute justo que se destaquem Jararaca Ratinho Joatildeo Lino maior ainda ficou com a par-ticipaccedilatildeo de J Lucas o cantor novo e de Catullo da Paixatildeo Cearense o poeta do nordeste Dercy Gonccedilalves e Victoria Regia282

De Caboclo brasileiro (1930) a O sol e a lua (1934) com sua maior inserccedilatildeo no teatro a produccedilatildeo de Catullo ganharia um efeito mais performaacutetico do texto com alusotildees a ldquoscenaacuteriosrdquo ldquoauditoacuteriordquo ldquoaplausosrdquo intervenccedilotildees de personagens e muacutesicas a acompanhar Embora desde os primeiros livros de poesia escritos por Catullo a narrativa de um evento que antecedia a declamaccedilatildeo oral do poema fosse expliacutecita as referecircn-cias ao mundo do teatro se tornam bem mais claras aparecendo inclu-sive como advertecircncia ao leitor para a necessaacuteria ldquoambiecircnciardquo que pre-cederia a leitura

Essas convenccedilotildees teatrais eram parte imprescindiacutevel de uma pro-duccedilatildeo teatral do Teatro de Revista que mesclava diaacutelogos e muacutesicas a partir de um argumento o fio condutor A partir daiacute desenrolava-se no palco a histoacuteria encenada De muito sucesso por exemplo foi a peccedila O tribofe de Arthur Azevedo encenada ainda em 1891 que serviu de

282 Correio da Manhatilde 29 set 1932 p 8

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo220

base para o lanccedilamento posterior do livro A capital federal do mesmo autor Na peccedila de Azevedo aparecia um argumento que virou regra de muito sucesso em vaacuterias produccedilotildees desse tipo no seacuteculo XX o motivo sertanejo Quase sempre um sertanejo (ou vaacuterios) adentravam a capital federal onde se desenrolava a trama misturando humor e muacutesicas para o deleite do puacuteblico Essa foacutermula de sucesso foi usada por diversas vezes e representava quase sempre uma aposta certeira no sucesso de puacuteblico

Aleacutem do teatro era comum ver Catullo nos cines-teatro que se tornaram em meados da deacutecada de 1920 locais muito frequentados que rendiam ao artista alguns dividendos a mais O ator e empresaacuterio do teatro Procoacutepio Ferreira ndash que como empresaacuterio ocupou durante bom tempo o famoso Teatro Trianon ndash assim falava dessa inclinaccedilatildeo de Catullo para diversas atividades na arte dramaacutetica

Catullo natildeo tinha nada de bonito Era baixo cabeccedila grande raspada nariz adunco Andava a passos largos e curvado A voz sim era bela abaritonada dicccedilatildeo clariacutessima Tudo nele funcionava pata [sic] dar ex-pressatildeo aos seus poemas Gesticulava com propriedade e sabia calcular bem o tempo das pausas Possuiacutea todas as qualidades de um bom ator Fomos grandes amigos Durante o tempo que ocupei o Teatro Trianon Catullo deu ali vaacuterios recitais sempre com sucesso Outras vezes apre-sentava-se em cinemas cantando ao violatildeo Era esse o seu meio de vida Com as rendas dos livros natildeo podia contar Os editores exploravam-no ateacute a medula283

Num tempo em que os direitos autorais ainda natildeo eram formal-mente mateacuteria de disputa sujeitando determinado autor a contrato fir-mado com o editor voltar-se para o teatro (ou para o cinema) parecia um caminho possiacutevel Tanto mais pois que no teatro essa produccedilatildeo renderia mais dividendos para o artista ndash jaacute que era espaccedilo bastante frequentado entrando no rol das modas cariocas ndash e o autor de teatro ainda tinha a possiblidade de lutar por seus direitos a partir de associa-

283 FERREIRA Procoacutepio Procoacutepio Ferreira apresenta Procoacutepio Ferreira Rio de Janeiro Rocco 2000 p 311

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 221

ccedilotildees como a SBAT Desse modo quase sempre o artista de teatro era tambeacutem um autor

Catullo natildeo fugiu agrave regra Embora mantivesse suas produccedilotildees impressas por editoras durante algum tempo ndash desde pelo menos 1915 quando haacute registro de peccedila sob seu nome ndash era comum vecirc-lo no teatro como nos conta Procoacutepio Ferreira Sua presenccedila cecircnica e sua voz apre-ciada faziam com que acorresse ao teatro um puacuteblico interessado em suas apariccedilotildees Sua presenccedila constante a partir dos anos 1930 e seus textos repletos de referecircncias ao espaccedilo teatral eacute que podem ser enten-didos como uma reviravolta em sua produccedilatildeo Isso num momento em que sua produccedilatildeo poeacutetica como vimos sofria muitas criacuteticas especial-mente pelos novos escritores

Por outro lado a manutenccedilatildeo de uma ldquoaurardquo de poeta natildeo parecia faacutecil e apresentar-se no palco implodia cada vez mais essa manutenccedilatildeo pois havia um espaccedilo que separava o artista do escritor ndash ainda mais quando se deve levar em conta que mesmo algueacutem que escrevia para o teatro era considerado um autor menor O termo ldquoteatro ligeirordquo usado para designar as produccedilotildees do teatro de revista no Brasil marcava a di-ferenccedila em relaccedilatildeo a um teatro dito ldquomais seacuteriordquo Nas peccedilas mais ldquoseacute-riasrdquo eram encenadas em geral traduccedilotildees de claacutessicos europeus ca-bendo ao teatro de revista a produccedilatildeo do teatro por autores nacionais

O theatro entre noacutes vem atravessando ultimamente uma crise aguda de autores As companhias nacionais de declamaccedilatildeo que trabalham em nossos theatros tecircm os seus repertoacuterios todos de traducccedilotildees e adapta-ccedilotildees ou cousas mais ou menos parecida [sic] e agora muito e [sic] uso entre noacutes Soacute no theatro ligeiro de revista surgem os autores naciones nos quadros typicos ou sketches jaacute que os quadros de fantasia e baile satildeo geralmente copias de revistas estrangeiras e filmsAqui somente nos theatros de revista podemos mostrar obra nossa e cousas typicas nos quadros nacionais No theatro seacuterio de decla-maccedilatildeo temos somente traducccedilotildees adaptaccedilotildees e arranjos e o peor nem sempre confessados284

284 Jornal do Brasil 3 jun 1930 p 5

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo222

Essa coincidecircncia do autor nacional com um teatro menor o ldquoteatro ligeirordquo imediatamente conduzia a uma representaccedilatildeo do es-critor de teatro no Brasil como um autor menor diante do escritor de livros natildeo teatrais impressos Embora o primeiro pudesse com o su-cesso da peccedila ganhar alguma renda a mais do que o autor de livros natildeo voltados para a representaccedilatildeo cecircnica (quase sempre isso era uma regra) a representaccedilatildeo do escritor de peccedilas diante de um escritor de livros seguramente sofria menos glamourizaccedilatildeo Que diraacute algueacutem como Catullo que se arvorava natildeo soacute como autor de textos teatrais mas tambeacutem como ator encenando tanto em teatros como cinemas

Quando a crise o apertava demais punha umas barbas posticcedilas e laacute ia para o palco Era um espetaacuteculo de cortar o coraccedilatildeo ver aquele gigante da poesia metido na caracterizaccedilatildeo de um pobre sertanejo a cantar e recitar seus poemas e canccedilotildees para uma plateia boccedilal de cinemas ldquopo-eirardquo de bairros285

Essa dupla condiccedilatildeo de artista e autor traduzia-se em uma apre-ensatildeo cada vez mais difiacutecil de Catullo no campo literaacuterio de entatildeo Indicava por outro lado que o espaccedilo de produccedilatildeo de literatura sofria uma mudanccedila e que nos anos 1930 muitos autores consagrados em nuacutemero de vendagens de livros se voltaram para a produccedilatildeo teatral como forma de dar vazatildeo a uma produccedilatildeo literaacuteria que era colocada de lado pelas novas regras do campo literaacuterio Essas eram cada vez mais regidas por uma nova geraccedilatildeo de escritores que surgiam Foi o caso natildeo soacute de Catullo mas de Olegaacuterio Mariano por exemplo que de escritor conhecido voltou-se tambeacutem para uma produccedilatildeo teatral que se expres-sava na produccedilatildeo para o teatro ligeiro

A maior inserccedilatildeo de Catullo como autor teatral se expressaria de maneira definitiva no livro que eacute de fato quase uma autobiografia do escritor e no qual ele se assume em definitivo autor de uma obra que visava agrave representaccedilatildeo teatral Um boecircmio no ceacuteu de 1937

285 FERREIRA Procoacutepio Procoacutepio Ferreira apresenta Procoacutepio Ferreira Rio de Janeiro Rocco 2000 p 311

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 223

Um boecircmio no ceacuteu

Noite de 25 de junho de 1937 No 22ordm pavimento do edifiacutecio drsquoA Noite no centro do Rio de Janeiro Catullo da Paixatildeo Cearense declamava trechos de seu novo livro de poemas para os ouvintes da Raacutedio Nacional O autor intercalava as declamaccedilotildees com algumas canccedilotildees acompanhado de um violatildeo286 A Raacutedio Nacional possuiacutea agrave eacutepoca ao lado da Raacutedio Mayrink Veiga o maior nuacutemero de ouvintes do paiacutes O livro apresentado tinha como tiacutetulo Um boecircmio no ceacuteu e foi lanccedilado pela editora A Noite dona de um jornal homocircnimo que anun-ciava repetidamente a nova publicaccedilatildeo de Catullo considerado um ldquopoeta ateacute o acircmago da inteligecircncia e da sensibilidaderdquo O autor era apresentado como um ldquomenestrel sertanejordquo que ldquocontinua a ser de-pois de setenta anos bem e belamente vividos uma pinturesca ex-pressatildeo da naturezardquo287

Catullo ainda identificado como poeta sertanejo aparecendo em programas de raacutedio via sua fama como tal a aumentar com a irra-diaccedilatildeo para todo o Brasil de sua canccedilatildeo Luar do sertatildeo escolhida como tema da Raacutedio Nacional A retomada de uma representaccedilatildeo de Catullo como poeta da canccedilatildeo vinha ao encontro de uma valorizaccedilatildeo da muacutesica catapultada pelo advento exitoso da raacutedio nesses primeiros tempos Ao ldquomenestrel sertanejordquo que ganhara fama com livros de po-emas sertanejos Catullo retomava com Um boecircmio no ceacuteu sua repre-sentaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo na figura de um boecircmio tocador de violatildeo Isso porque em Um boecircmio no ceacuteu o personagem principal parecia ser o proacuteprio Catullo O Rio Social por exemplo dizia ldquoo bohemio eacute o proacuteprio Catullordquo288 Essa coincidecircncia do autor com seu personagem fazia com que os livros publicados por Catullo tivessem afinal um efeito de autenticidade O autor era o sujeito mais indicado para contar sobre algo E esse efeito como jaacute vimos foi muitas vezes

286 O evento foi noticiado pelo jornal A Noite 25 jun 1937287 A Noite 22 jun 1937288 Apud A Pacotilha 23 abr 1938 p 1 A Pacotilha era um jornal publicado no Maranhatildeo

terra natal de Catullo

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo224

uma maneira encontrada por Catullo para dar credibilidade agrave sua po-siccedilatildeo como autor de literatura

Em Um boecircmio no ceacuteu Catullo parecia novamente buscar tal foacutermula Mas se o poeta tentara um dia criar sua autoridade como conhecedor daquilo que escreve (no caso das modinhas publicadas pela Quaresma) ou pela identificaccedilatildeo nele de uma alma (nos poemas serta-nejos) na nova publicaccedilatildeo a coincidecircncia oacutebvia do autor com seu per-sonagem logo atestada por seus leitores tornava a autoridade daquele que escreve irrefutaacutevel Afinal quem melhor do que o autor Catullo poderia contar sobre o boecircmio Catullo

Um boecircmio no ceacuteu contava em versos a histoacuteria de um boecircmio que ao morrer era recebido no ceacuteu por Satildeo Pedro que passava a inter-rogaacute-lo A cada pergunta do santo o homem respondia com passagens de sua vida terrena As respostas vinham repletas de reflexotildees sobre a vida boecircmia mulheres criacuteticos acadecircmicos bebidas etc Depois de desconfiar das atitudes do receacutem-chegado aos poucos o santo vai sendo convencido de que estava diante de algueacutem temente a Deus e mais do que isso um poeta no que vai ser seguido por Santo Antocircnio e Satildeo Joatildeo que a tudo assistem escondidos Ao final Santo Onofre pro-tetor dos becircbados leva o boecircmio para viver na lua onde eacute recebido pela Virgem Maria ao som do Hino Nacional

Um elemento importante no texto eacute a retomada de uma nar-raccedilatildeo entremeada de indicaccedilotildees cecircnicas O livro eacute dividido em dois atos e algumas passagens sugerem uma escrita voltada para o teatro como a indicaccedilatildeo dos movimentos e tons de vozes que deveriam ser dados agrave leitura (como Satildeo Pedro pensando Boecircmio com ironia Santo Antocircnio entrando com Satildeo Joatildeo e dirigindo-se ao boecircmio) ou indicaccedilotildees do ldquocenaacuteriordquo (ldquoAo levantar o pano o boecircmio ainda estaacute dormindo e roncando escandalosamenterdquo) Tais artifiacutecios eram co-muns numa escrita para o teatro e jaacute haviam sido esboccedilados por Catullo em O sol e a lua No novo livro o personagem sertanejo daacute lugar ao personagem boecircmio com inuacutemeras indicaccedilotildees de que a repre-sentaccedilatildeo do personagem se confundia com seu autor como na pas-sagem a seguir

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 225

S PEDRO[]Mas como viveste laacute na Terra vivendo assim com Deus e o seu AmorBOEcircMIOJaacute voacutes Senhor de certo advinhastesPois fui poeta fui muacutesico e cantorS PEDRO (maravilhado)Poeta Tu focircste poeta Falas seacuterioQual eacute teu nomeBOEcircMIOEu vos direi no ouvidoSAtildeO PEDRO (sorrindo)Eu de haacute muito jaacute tinha pressentidoTu eacutes o grande poeta regionalJaacute pertences agrave nossa AcademiaFocircste eleito por Deus Eacutes imortalEm que paiacutes do mundo tu nascestes com teu estro bravio e senhorilBOEcircMIONum paraiacuteso esplecircndido ndash O BrasilSAtildeO PEDROQual foi o teu estado o teu torratildeoBOEcircMIOO Estado do Talento ndash O Maranhatildeo[] 289

A passagem buscava natildeo deixar duacutevidas de qual poeta estaacute sendo representado no texto Essa coincidecircncia entre autor e personagem eacute mais de uma vez expressa no texto de Catullo Com esse efeito Catullo se arvora a fazer algumas observaccedilotildees de maneira muitas vezes irocirc-nica sobre alguns temas que lhe satildeo caros Numa passagem do texto em que o boecircmio se potildee a questionar Satildeo Pedro sobre o destino de alguns homens veem-se representados alguns desafetos de longas datas do autor Catullo Sobre os membros da Academia Brasileira de Letras o boecircmio questiona Satildeo Pedro

289 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 97-98

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo226

BOEcircMIOPelo que vejo os nobres acadecircmicosTecircm um lugar distinto entre os demaisSAtildeO PEDROComo te enganas pois talvez satildeo elesos que padecem os que sofrem maisVecirc que castigo horrendo ndash quando morremsobem ao Ceacuteu e vatildeo para Mercuacuterioouvir Francisco Alves declamaros discursos de todos os colegasque eacute o castigo maior mais tormentosoque Deus a um pobre homem pode darRaros chegam ao fim ficam exaustosE mergulham num sono tatildeo profundoque eacute difiacutecil fazecirc-los acordar290

Numa raacutepida passagem o narrador Catullo dispara contra duas ldquoentidadesrdquo que lhe proporcionaram indisposiccedilatildeo a Academia que natildeo reconhecera Catullo como um imortal e Francisco Alves agravequela altura um famoso cantor de raacutedio que anos antes tivera um atrito com Catullo no registro fonograacutefico de uma canccedilatildeo deste uacuteltimo

Aliaacutes a contrariedade do poeta com a Academia Brasileira de Letras que nunca lhe dera o fardatildeo de imortal jaacute vinha de longa data e era mateacuteria ateacute de anedotas O escritor Terra de Senna em seu livro Rua da Amargura contava a anedota em que agrave porta de um engraxate en-contravam-se Catullo e o poeta Olegaacuterio Mariano membro da Academia e conhecido por suas manias de grandeza

ndash Eu sou o priacutencipe dos poetas ndash disse Olegaacuterio Tenho um fardatildeo e a admiraccedilatildeo das mais lindas mulheres deste mundo Os meus livros estatildeo nas montras das mais ricas livrarias do Riondash Eu sou o rei dos poetas sertanejos ndash respondeu Catullo Veja a minha corte (e apontou para os outros livros que se ostentavam na vitrine do engraxate) Ibsen Victor Hugo Zola291

290 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 137

291 Apud Correio da Manhatilde 7 jun 1934 p 4

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 227

Um boecircmio no ceacuteu parece ser sobretudo uma prestaccedilatildeo de contas de Catullo com sua histoacuteria A dramatizaccedilatildeo da chegada do bo-ecircmio ao ceacuteu ao que parece representou uma oportunidade para que o autor expressasse suas opiniotildees sobre coisas e pessoas a partir de um personagem que se confundia com sua proacutepria histoacuteria ndash pela biografia traccedilada no diaacutelogo do boecircmio com Satildeo Pedro Eacute possiacutevel que aiacute resida o fato de Catullo ter deixado de lado a escrita de um prefaacutecio ou uma nota ao leitor tatildeo comum em suas publicaccedilotildees anteriores A explicaccedilatildeo reside no fato autoexplicativo da narrativa contada onde pensava fosse obviamente identificado com sua pessoa o personagem do bo-ecircmio ndash diferentemente dos livros anteriores em que por vezes tinha de se afastar de seus personagens sertanejos a fim de construir uma dis-tacircncia necessaacuteria para que pudesse ser entendido como poeta

Em vaacuterias passagens tambeacutem aparece um boecircmio que se van-gloria de sua posiccedilatildeo tal qual Catullo que seguidamente era ironizado por arvorar-se como maior poeta do mundo Essas passagens eram muitas vezes contadas pelos leitores de Catullo para representaacute-lo como um megalomaniacuteaco O papel do criacutetico Gondin da Fonseca um leitor autorizado nesse periacuteodo eacute sintomaacutetico Ao ler o Um boecircmio no ceacuteu disparou nas paacuteginas do Correio da Manhatilde

Nesse livro extremamente mediacuteocre ou melhor positivamente ruim Catullo diz apenas de si mesmo que eacute irmatildeo de Christo Redemptor ndash muito maior poreacutem do que o mano que fugiu da terra com medo do sofrimento emquanto que ele Catullo estando no Ceacuteo quer vir de novo para este valle de laacutegrimas pois a Docircr eacute seu patildeo de cada dia Tem inveja da fama de toda a gente ateacute mesmo de Einstein que con-sidera com azedume ldquoo Pacheco dos saacutebios actuaesrdquo Julga o seu estro ldquosobrehumanordquo Um anjo do Senhor com reverecircncia ldquopoeta da raccedilardquo e Satildeo Pedro fala com assombro do seu ldquoviolatildeo de cordas de ourordquo oferecendo-lhe o Ceacuteo [] declarando-o super-santo super-philosopho super-tudo ldquoeleito de Deusrdquo na Academia dos gecircnios celestiais pois a terra eacute demasiado pequena para a sua gloacuteria Nunca se viu tamanho narcisismo No mundo ningueacutem presta soacute ele292

292 Correio da Manhatilde 25 jul 1937 p 2

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo228

Gondin da Fonseca era um criacutetico comum de Catullo Aqui cabe um parecircntesis Ele ao tecer criacuteticas agrave produccedilatildeo de Catullo (e o fez mais de uma vez) lanccedilava matildeo de uma representaccedilatildeo jocosa do poeta Em uma dessas criacuteticas assim apresentava o poeta

Um dia desses eu estava no Quaresma vendo uns livros velhos e conver-sando com o meu bom Alarico Silveira quando o Catullo se aproximou de mim com os olhos esgazeados fulgurantes os braccedilos estendidos a voz rouca ndash e me bradou com uma estranha vehemencia

ndash Louco Louco Louco Jaacute fui trecircs psychiatrasEu logo me acerquei soliacutecito do grande poeta e velho amigo do peito afim de o acalmar de trazer algum conforto aacute sua exaltaccedilatildeondash Isso natildeo haacute de ser nada Catullo Nervos Eu aacutes vezes tambeacutem ando assim Qualquer coisa me irrita Pareccedilo uma pilha electrica Soffro ateacute com a luz do sol e tenho que fechar as janelas de dia para poder traba-lhar Nervos Que tal se fossemos ahi aacute esquina tomar qualquer coisandash Loucondash Natildeo te exaltes meu velhondash Louco Eacute o tiacutetulo do meu novo poema Li-os a trecircs psychiatras Assombroso Eacute o que te digo Gondin For-mi-daacute-vel Nunca ningueacutem escreveu alguma coisa semelhante Nem Shakespeare293

A representaccedilatildeo risiacutevel de Catullo (algo que virou comum) por um lado arranhava a aura que o poeta tentava construir em seus textos mas por outro tambeacutem foi usada pelo poeta fazendo com que ele se apropriasse dessa representaccedilatildeo em seus livros E era nesses mesmos textos que Catullo respondia aos criacuteticos Ao questionar Satildeo Pedro sobre o destino dos criacuteticos depois que morriam o personagem boecircmio obtinha como resposta

SAtildeO PEDROEssa gente feroz gente danadaque sabe tudo mas natildeo sabe nadapor castigo de Deus expiatoacuteriovai fazer elogios celebeacuterrimosque noacutes mandamos para o Purgatoacuterio

293 Correio da Manhatilde 25 jul 1937 p 2

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 229

BOEcircMIOSenhor Esses canalhas quixotescosOs criticoacuteides nunca me poupavamSAtildeO PEDROE te faziam mal se te insultavamBOEcircMIOTodos eles me beneficiavamPois quando pelo meu jardim passavamroubando-me uma rosa ou um jasmin com o lixo que passando me atiravamas terras do jardim fertilizavame mais flores eu tinha em meu jardim294

Sem duacutevida resultado da apropriaccedilatildeo de um tipo de produccedilatildeo que Catullo conhecia bem ndash o teatro de revista ndash o texto eacute entremeado de passagens risiacuteveis Tratando-se de um texto preparado para ser encenado nada mais oacutebvio que elementos do teatro de revista fossem colocados nele por Catullo ndash como a comeacutedia o diaacutelogo de dois personagens e a muacutesica Essa uacuteltima aparece quando o boecircmio vai-se encaminhando fi-nalmente para o ceacuteu ao se despedir dos santos que o receberam na porta

(Escurece Muda o cenaacuterio da Portaria do Ceacuteu em um amplo espaccedilo vendo-se a lua ao longe para onde vai caminhando o boecircmio com seu violatildeo O boecircmio fitando a lua recita estes versos Enquanto recita ouve-se ao longe uma viola sertaneja)BOEcircMIO(recitando)Oh Que saudadesdo luar da minha Terralaacute na serrabranquejandofolhas secas pelo chatildeoEste luar caacute da cidade Tatildeo escuronatildeo tem aquela saudade do luar laacute do sertatildeo295

294 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 132

295 Idem p 178

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo230

Esse aporte retirado do teatro de revista de entatildeo tornou-se muito comum na obra de Catullo Ademais o material cocircmico de alguns dos seus textos da deacutecada de 1930 tem relaccedilatildeo com suas participaccedilotildees cons-tantes em peccedilas de caraacuteter risiacutevel Participando ativamente como artista na Companhia de Procoacutepio Ferreira eacute possiacutevel flagrar Catullo sendo anunciado em jornais do periacuteodo como integrante de algumas comeacutedias musicais Em Um homem e oito mulheres que foi apresentada no Teatro Carlos Gomes em maio de 1938 (tendo a participaccedilatildeo de Almirante Oscarito Gilda Abreu Manezinho Arauacutejo e Sylvio Caldas) e que era indicada como uma comeacutedia musical a participaccedilatildeo de Catulllo era saudada como a do ldquoGrande Catullo da Paixatildeo Cearenserdquo296

Seu contato no palco com homens como o desenhista Bastos Tigre e o ator Procoacutepio Ferreira conduziu sua produccedilatildeo para um caraacuteter cocircmico tiacutepico do teatro que se fazia agrave eacutepoca

Dessa forma Catullo ia mesclando no texto elementos de sua atividade como poeta da canccedilatildeo poeta literato e artista dos palcos Fazia isso construindo no texto de Um boecircmio no ceacuteu um personagem cuja representaccedilatildeo aproximava-se da de sua pessoa A partir dessa apro-ximaccedilatildeo ia tecendo comentaacuterios sobre sua vida e sobre seus desafetos a fim de construir uma representaccedilatildeo de si mesmo para seus leitores

Ao que parece depois de ter sido excluiacutedo como grande poeta pela nova geraccedilatildeo que surgiu nos anos 1920 Catullo passou a flertar com uma produccedilatildeo textual que tornasse possiacutevel um sentido diferente para o termo ldquopopularrdquo Aqui eacute necessaacuterio pensar a construccedilatildeo de um cacircnone literaacuterio para a literatura produzida no Brasil (em processo nos anos 1930) que se valia de uma forma original do termo ldquopopularrdquo e ao mesmo tempo a emergecircncia de uma cultura de massa proveniente de outros espaccedilos de entretenimento na sociedade cuja circulaccedilatildeo tambeacutem se valia em grande parte para a sua publicidade de uma representaccedilatildeo distinta do ldquopopularrdquo

Essa mobilidade de circulaccedilatildeo entre os diversos locais de pro-duccedilatildeo cultural fazia com que o leque de opccedilotildees de atuaccedilatildeo do poeta se

296 Na propaganda estampada no jornal Correio da Manhatilde 7 maio 1938

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 231

abrisse para aleacutem da produccedilatildeo textual Ademais o capital social cons-truiacutedo por Catullo fazia com que seu nome apesar de parcialmente des-denhado pela criacutetica literaacuteria do periacuteodo fosse ao contraacuterio sinocircnimo de ecircxito tanto para produtores dos palcos do teatro ligeiro como para editores de seus textos e livreiros Estes uacuteltimos interessados no valor da obra de Catullo como algo passiacutevel de ser consumido por um grande puacuteblico letrado viam no poeta uma opccedilatildeo altamente vendaacutevel tanto que avultaram nos anos 1930 reediccedilotildees das obras de Catullo embora o poeta visse como mais rentaacutevel sua participaccedilatildeo nos palcos ndash mesmo que estes fossem espaccedilos onde o ecircxito financeiro poderia render mais para um artista como Catullo natildeo eram seguramente espaccedilos de con-sagraccedilatildeo social para um poeta

Navegar pela literatura natildeo era por si soacute algo que fizesse (mesmo para um reconhecido grande autor) um escritor sobreviver tatildeo somente da publicaccedilatildeo de livros Um autor ganhar dinheiro com a produccedilatildeo de textos simplesmente era algo difiacutecil quase impossiacutevel Isso quando muito tornava-se possiacutevel para um editor de livros

No periacuteodo em que contabilizamos as ediccedilotildees que vatildeo da publi-caccedilatildeo do primeiro livro de poemas de Catullo (Meu sertatildeo 1918) ateacute o ano de 1946 o nuacutemero de ediccedilotildees das obras de Catullo soacute aumentou Embora o nuacutemero de vendagens seja algo difiacutecil de mensurar podemos observar a seguir pelo nuacutemero de ediccedilotildees de uma publicaccedilatildeo o sucesso do consumo desses livros

Tabela 1 ndash Publicaccedilotildees de Catullo Paixatildeo Cearense

Publicaccedilatildeo Ano Editora Nordm de ediccedilotildees

Meu sertatildeo 1918 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 41Sertatildeo em flor 1919 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 31Poemas bravios 1921 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 29Aos pescadores 1923 Ediccedilatildeo da Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 13Mata iluminada 1924 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 28O evangelho das aves 1927 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 8

Meu Brasil 1928 Casa Annuaacuterio do Brasil e posteriormente Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 3

Faacutebulas e alegorias 1928 Officina Industrial Graphica e posteriormente

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira e Editora A Noite 6

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo232

Publicaccedilatildeo Ano Editora No de ediccedilotildees

Alma do sertatildeo 1928 Livraria Editora Leite Ribeiro e posteriormente Editora Bedeschi 7

O sol e a lua 1934 Imprensa Nacional e posteriormente Editora Bedeschi e Editora A Noite 3

Um boecircmio no ceacuteu ndash Poema teatral

1937 Editora A Noite 5

Oraccedilatildeo agrave bandeira 1937 Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal 1

Um caboclo brasileiro 1940 Editora A Noite 3

O milagre de Satildeo Joatildeo ndash Teatro 1943 Editora A Noite 2

Poemas escolhidos 1944 Editora Zeacutelio Valverde 2

Modinhas1943 ou 1945

Livraria Impeacuterio 2

O testamento da aacutervore 1945 Aurora 2

Fonte CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946

Se seus livros eram reeditados tantas vezes denotando um grande consumo por parte dos leitores isso natildeo lhe dava grandes dividendos pois os direitos autorais das obras em geral eram de propriedade dos editores Isso soacute veio a mudar em 1943 quando Catullo cedeu seus di-reitos para Guimaratildees Martins seu amigo que conhecedor dos tracirc-mites dos direitos autorais no Brasil a partir daiacute ficaria responsaacutevel pelo recebimento de parte dos direitos autorais junto agrave SBAT

Tambeacutem o teatro de revista pagava pouco Maacuterio Lago ator e compositor em entrevista a Joel Silveira em 1942 dizia

ndash Faz de conta que vocecirc escreveu uma ldquorevistardquo A sua revista foi en-saiada Demorou um mecircs certinho no cartaz com um sucesso relativo Muito bem Sabe quanto vocecirc ganhou com a histoacuteriandash Uns dez contecosndash Que dez contecos laacute que nada Vamos fazer as contas Demorou um mecircs rendeu de direitos autorais 6840$000 batatamente Vocecirc tem que tirar 50 para o poemandash Qual poema

(continuaccedilatildeo Tabela 1)

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 233

ndash A parte escrita da ldquorevistardquo Geralmente quem escreve eacute oubo Quer dizer vocecirc fica com metade daquela importacircncia Desta grana vocecirc ainda tira 10 para SBAT Pegue no laacutepis e veja quanto leva para casa Aacutes vezes a coisa eacute tatildeo pouca que a gente nem leva para a casa deixa no chopp297

Afinal entre o mercado de produccedilatildeo de livros o espaccedilo de pro-duccedilatildeo de teatro e o mundo da muacutesica este uacuteltimo parecia levar na-queles idos grande vantagem O raacutedio pelo forte poder de comuni-caccedilatildeo comumente catapultava tal produto a sucesso de vendagens Daiacute a criaccedilatildeo pelos compositores de muacutesica popular de uma associaccedilatildeo que defendesse seus direitos Soacute o raacutedio podia no dizer de A L Machado Neto ldquolanccedilar uma ponte para o prestiacutegiordquo298 e ao mesmo tempo render alguns dividendos para o autor de canccedilotildees de sucesso Maacuterio Lago agravequela altura jaacute conhecido por ser o compositor de Aurora que tocava sem cessar nas raacutedios observava a distinccedilatildeo pecuniaacuteria entre fazer te-atro e fazer muacutesica

(Fazer teatro) Natildeo eacute vantagem nenhuma Eacute porque afinal de contas a gente tem que fazer alguma coisa Natildeo posso ser unicamente um com-positor porque nem soacute de muacutesica vive o homem Mas se eu tivesse uma inspiraccedilatildeo diaacuteria vecirc laacute se ia me meter em teatro Soacute ldquoAurorardquo me rendeu jaacute 9 contos299

Lago atestava que isso se dava porque o cinema matava o teatro Natildeo agrave toa o compositor foi um dos primeiros a romper com a SBAT ainda em 1938

Os escritores de livros ao contraacuterio natildeo tinham uma asso-ciaccedilatildeo classista que zelasse por seus direitos Em geral acontecia de o autor ceder os direitos das obras ao seu editor que ficaria encarre-gado de repassar-lhe a porcentagem que bem achasse conveniente

297 BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os homens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 143

298 MACHADO NETO Antocircnio Luiz Estrutura social da Repuacuteblica das Letras sociologia da vida intelectual brasileira ndash 1870-1930 Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 1973 p 101

299 Idem p 144

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo234

diante das vendas Daiacute ser comum o autor mudar de editor e ainda ver seus livros serem publicados por outras editoras sem que tivesse ne-nhum lucro com isso

Do quadro acima um exemplo sintomaacutetico satildeo as ediccedilotildees de obras de Catullo publicadas pela livraria Castilho Depois que seu dono vendeu o espoacutelio para Ameacuterico Bedeschi este continuou a publicar as obras de Catullo sem que o poeta lucrasse com os livros Isso se deu tambeacutem com a livraria Quaresma que reeditou muitas vezes as obras modinheiras de Catullo O acordo entre editores excluiacutea natildeo raro qualquer reivindicaccedilatildeo do autor que houvesse cedido os direitos de publicaccedilatildeo

Os direitos autorais de diversas produccedilotildees culturais como vimos jaacute eram objeto de reivindicaccedilotildees A SBAT desde 1917 era responsaacutevel pela cobranccedila de textos teatrais e muacutesicas divulgadas no teatro Na muacute-sica surgiu ainda em 1937 uma dissidecircncia de compositores populares que criaram a ABCA Nas letras essa iniciativa se concretizou no Rio de Janeiro em marccedilo de 1937 com a criaccedilatildeo do Instituto Brasileiro das Letras (IBL)

A criaccedilatildeo de uma associaccedilatildeo que pudesse reivindicar os direitos autorais de escritores brasileiros era um projeto antigo e havia obtido focirclego quando o projeto de criar uma associaccedilatildeo vinha sendo pensado desde 1932 mas efetivamente a criaccedilatildeo do IBL soacute veio a se dar em 1937 de maneira polecircmica Desdenhado pelos membros da Academia Brasileira de Letras e por parte da Academia Carioca de Letras o IBL surgiu como forma de lutar pelos direitos dos escritores A iniciativa contava com a presenccedila do poeta Renato Travassos seu primeiro presi-dente e tinha a intenccedilatildeo de

[] fazer a defesa dos autores e das suas respectivas obras O Instituto Brasileiro de Letras pleitearaacute junto ao governo leis que regulando o comeacutercio de traducccedilotildees de livros estrangeiros e a transcripccedilatildeo de traba-lhos intellectuaes em todo paiz assegurem de modo praacutetico e eficiente os direitos autoraes e a correcccedilatildeo das traducccedilotildees evitando assim usurpaccedilotildees e incorrecccedilotildees umas e outras perfeitamente censuraacuteveis em mais do que isto damninhas aacute nossa cultura e a nossa probidade intelectual e moral[]Ao que parece desta feita os escriptores brasileiros encontraram uma

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 235

foacutermula pela qual os seus interesses e os seus direitos se defendam com eficiecircncia criando a um tempo uma instituiccedilatildeo e classe onde tudo seja comunhatildeo de vistas e propoacutesitos fraternaes300

A associaccedilatildeo de escritores foi fundada em 5 de setembro de 1937

no luxuoso preacutedio da Associaccedilatildeo Brasileira de Imprensa e teve entre seus signataacuterios aleacutem de Catullo da Paixatildeo Cearense outros autores jaacute consagrados agrave eacutepoca como Gustavo Barroso Olegaacuterio Mariano Maacuterio Linhares Bastos Tigre Prado Kelly Carlos Drummond de Andrade Oduvaldo Viana Manuel Bandeira e Jorge de Lima

A tentativa de fazer com que houvesse maior controle na circu-laccedilatildeo e na ldquotranscripccedilatildeo de trabalhos intellectuaesrdquo era uma antiga rei-vindicaccedilatildeo da classe Afinal tal esforccedilo tratava-se de uma tentativa de regrar a produccedilatildeo e o consumo de uma obra que aparecia sob o nome de um autor Uma vez que muitos dos acordos entre editores e escritores culminavam na apropriaccedilatildeo pecuniaacuteria da obra pelo editor a associaccedilatildeo se propunha a regrar pela criaccedilatildeo de leis essa relaccedilatildeo tornando menos vulneraacutevel a ligaccedilatildeo do escritor-autor com a casa editorial que o publi-cava Poreacutem havia muito o IBL tambeacutem travava outro tipo de luta pelo controle da circulaccedilatildeo existia no campo literaacuterio as ediccedilotildees que circu-lavam muitas vezes com erros que comprometiam a leitura regrada intentada pelo autor

Catullo que aparece entre os signataacuterios foi um dos que comu-mente tratavam de corrigir nas suas publicaccedilotildees incorreccedilotildees publi-cadas sem o seu crivo que pudessem deturpar o sentido da obra Ademais esse sentido poderia mudar a cada ediccedilatildeo vinda a puacuteblico ndash mesmo aquelas que tiveram o consentimento do autor Haacute de se sa-lientar que uma nova ediccedilatildeo modificada tende a criar novos sentidos e podem inclusive visar agrave leitura de novos leitores Para tanto as estra-teacutegias autorais e editoriais satildeo fundamentais para alcanccedilar tal objetivo A histoacuteria das ediccedilotildees de Um boecircmio no ceacuteu datildeo conta disso

A editora A Noite que lanccedilou essa publicaccedilatildeo tem uma trajetoacuteria curiosa Irineu Marinho que criara o jornal A Noite em 1911 havia

300 Gazeta de Notiacutecias 14 jan 1938 p 1

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publicado um ou outro livro mas a editora soacute surgiria mesmo nos anos 1930 sob a eacutegide do francecircs Paul de Leuze Antes dessa uacuteltima data as oficinas do jornal eram usadas tatildeo somente para a impressatildeo de livros Em 1935 surgiram os primeiros livros de sucesso Vida de Santos Dumont por Ofeacutelia e Narbal Pontes e Vida e Amores de Castro Alves de Pedro Calmon

Antes de lanccedilar Um boecircmio no ceacuteu o texto obteve outra modali-dade de circulaccedilatildeo Ele foi lido pelo proacuteprio Catullo na casa do poeta carioca Luiz Edmundo O escritor Carlos Maul testemunhou tal apre-sentaccedilatildeo e conta que apresentaccedilatildeo do ldquopoema dramaacuteticordquo teve a partici-paccedilatildeo de ldquouma victrola orthophonicardquo que executava a ldquomuacutesica a pro-poacutesito canccedilotildees folk-loacutericas que o bohemio vai indicando nos momentos oportunosrdquo No entanto o ldquobohemiordquo que vai indicando as muacutesicas segundo Maul ao que parece natildeo eacute soacute um personagem do poema de Catullo ele eacute o proacuteprio poeta pois o personagem ldquobohemiordquo do poema era o ldquoproacuteprio Catullordquo301

A primeira ediccedilatildeo de Um boecircmio no ceacuteu foi publicada em junho de 1937 Sua capa continha apenas o nome do livro e a indicaccedilatildeo do autor A apresentaccedilatildeo da obra natildeo fazia nenhuma alusatildeo especial ao fato de algum personagem do texto de Catullo ser identificado com o proacute-prio autor

Na segunda ediccedilatildeo lanccedilada em meados de 1938 ndash estendida em 16 paacuteginas com apreciaccedilatildeo positiva de Catullo feita pelo jorna-lista advogado e historiador Rocha Pombo reafirmando sua gran-deza como poeta ndash traz na capa uma ilustraccedilatildeo de Catullo segurando um violatildeo e conversando com Satildeo Pedro Tal alusatildeo visava a dar ao leitor um caraacuteter referencial ou seja uma clara aproximaccedilatildeo do per-sonagem do boecircmio com a figura de Catullo Indicava assim que uma possiacutevel leitura para o texto seria a de que seu autor eacute o proacuteprio personagem e portanto os juiacutezos criacuteticos ali expostos ao boecircmio e pelo boecircmio (vaacuterios aliaacutes) poderiam imediatamente ser remetidos a

301 Correio da Manhatilde 11 mar 1937 p 6

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seu autor Afinal a ediccedilatildeo dava conta para o leitor de que Catullo era seu proacuteprio personagem

Na terceira ediccedilatildeo da obra de 1943 haacute na contracapa uma clas-sificaccedilatildeo inexistente nas ediccedilotildees anteriores indicando tratar-se de ldquoTeatrordquo O leitor do poema deveria ter pela indicaccedilatildeo a clara noccedilatildeo do efeito performaacutetico do que seria lido Aleacutem do mais Catullo usa uma separaccedilatildeo do texto em atos tal qual um texto dramaacutetico Embora jaacute nas ediccedilotildees anteriores existissem no poema alusotildees ao mundo do teatro indicando um texto dramaacutetico a ser lido a indicaccedilatildeo na contracapa natildeo deixava duacutevida do que se tratava o impresso para o leitor Inclusive a editora A Noite cuja administraccedilatildeo tambeacutem era responsaacutevel pelo jornal A Noite fez a publicidade do livro em seu jornal chamando a atenccedilatildeo para que ldquoo poema decorre de uma situaccedilatildeo de caraacuteter teatralrdquo e que Catullo ldquotocando um gecircnero novo conseguiu completo ecircxito e manteve a mesma altura de sua poesiardquo302

Na quinta ediccedilatildeo de 1946 haacute um aumento do nuacutemero de paacuteginas com inserccedilotildees de juiacutezos criacuteticos de Catullo agora morto Aliaacutes tambeacutem eacute nessa ediccedilatildeo que Guimaratildees Martins herdeiro do espoacutelio de Catullo fez aparecer texto do poeta atribuindo-se Guimaratildees a ldquoautoridaderdquo sobre aquele livro no caso de quaisquer ldquorepresentaccedilotildees filmagem tra-duccedilatildeo adaptaccedilatildeo irradiaccedilatildeo etc desta peccedilardquo303

Como se pode ver na medida em que se vatildeo sucedendo as edi-ccedilotildees haacute uma mudanccedila no sentido que se quer dar ao impresso numa tentativa de regrar o caraacuteter da leitura ou pelo menos deixar claro o propoacutesito do interessado ndash seja o proacuteprio autor Catullo nas ediccedilotildees em que ele ainda estaacute vivo seja seu cessionaacuterio Guimaratildees Martins depois que Catullo morre seja o editor da obra impressa Ademais as dife-rentes modalidades de circulaccedilatildeo do texto ndash a primeira leitura oralizada de Catullo na casa de Luiz Edmundo e as posteriores que foram im-pressas pela editora A Noite ndash conduzem a uma recepccedilatildeo distinta que

302 A Noite Ilustrada 2 nov 1943 Suplemento p 25 303 Contracapa de Um bohemio no ceacuteo Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no

ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo238

vai da necessidade de uma leitura entrecortada por canccedilotildees a uma lei-tura silenciosa do livro

Essa vontade de ser melhor lido pode ser demonstrada no final da segunda ediccedilatildeo de Um boecircmio no ceacuteu quando Catullo aproveita para passar a limpo os erros graacuteficos de ediccedilotildees anteriores Em nota ele se explica ldquoComo presumo que ldquoBohemio no Ceacuteordquo tenha favoraacutevel acei-taccedilatildeo aproveito a oportunidade fazendo aqui as emendas de alguns erros que infelizmente se encontram nos meus livrosrdquo304 Daiacute o autor elenca as obras onde existem os erros tipograacuteficos Seis publicadas pela editora Bedeschi (Meu sertatildeo Sertatildeo em flor Poemas bravios Matta illuminada O evangelho das aves e O sol e a lua) e uma pela livraria Castilho (a ediccedilatildeo de 1928 de Matta illuminada)

Catullo vai descrevendo cada erro e sua respectiva paacutegina para no final disparar de maneira explicativa que ldquosatildeo estes os erros princi-paes que natildeo por minha culpa e sim dos senhores compositores [grifo meu] afeiam esses meus livrosrdquo305

As estrateacutegias para que o texto tenha o efeito pensado pelo autor passavam pela mediaccedilatildeo de editores compositores-graacuteficos e final-mente leitores fazendo com que aparecessem nos textos diversos arti-fiacutecios para que o objetivo de uma leitura autorizada fosse enfim pos-siacutevel A emergecircncia de uma associaccedilatildeo de classe que pudesse fazer frente agraves muitas instacircncias que mediavam a relaccedilatildeo do leitor com seu puacuteblico surgiu dessa ldquodeficiecircnciardquo constatada que muitas vezes bar-rava o reconhecimento do autor do livro como grande escritor fosse por supostas deficiecircncias materiais ou esteacuteticas A difiacutecil propriedade do objeto livro afinal obrigava a uma luta de forccedilas do escritor expressa muitas vezes no proacuteprio texto do autor com as demais instacircncias que pudessem desvirtuar o sentido alterando no iacutenterim que separa escrita e leitura o sentido de um texto

Essa constataccedilatildeo talvez possa explicar a emergecircncia do IBL num contexto em que o livro se tornava cada vez mais um objeto a ser con-

304 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 2 ed Rio de Janeiro A Noite 1938 p 154

305 Idem p 161

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 239

sumido inclusive com apoio irrestrito do presidente Getuacutelio Vargas ele mesmo um membro eleito da Academia Brasileira de Letras A editora A Noite por exemplo que publicou nos anos 1930 e 1940 vaacuterias edi-ccedilotildees da obra de Catullo tornou-se desde 1939 propriedade do Estado Este criou vaacuterios programas oficiais que incentivavam o consumo de livros A aproximaccedilatildeo de Vargas dos escritores e o seu apoio a inicia-tivas como o IBL deram aos escritores o suporte para uma luta que se desenrolava nos textos havia muito tempo tal qual um cabo de guerra onde se digladiavam autores graacuteficos editores publicistas e leitores

O flerte entre escritores e o governo Vargas rendeu bons frutos para vaacuterios deles Muitos foram absorvidos na estrutura estatal em pro-gramas diretamente administrados pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Obras foram editadas a fim de dar suporte ao governo Vargas especialmente apoacutes novembro de 1937 quando Getuacutelio tornou-se ditador Natildeo obs-tante eacute possiacutevel flagrar em muitas obras publicadas agrave eacutepoca um ufa-nismo gritante das quais um exemplo cabal eacute Oraccedilatildeo agrave bandeira li-vreto de poemas escrito por Catullo da Paixatildeo Cearense

Essa simbiose entre poliacutetica cultural e produccedilatildeo de uma repre-sentaccedilatildeo mais proacutexima da realidade do paiacutes resultou em inuacutemeros pro-jetos e obras que tiveram o aval do Estado brasileiro no periacuteodo A his-toriadora Acircngela de Castro Gomes chama a atenccedilatildeo para uma poliacutetica cultural fundada na formaccedilatildeo de ldquocidadatildeos nacionaisrdquo306 Sob o go-verno de Getuacutelio Vargas a temaacutetica nacional ganhou novo focirclego e trouxe como consequecircncia uma aproximaccedilatildeo do discurso nacionalista e centralizador da poliacutetica varguista da velha necessidade posta pelos intelectuais brasileiros de construir a naccedilatildeo Isso resultou em projetos editoriais que tiveram a simpatia do Estado varguista que atuava como uma espeacutecie de mecenas da cultura A coleccedilatildeo Brasiliana pensada pelo socioacutelogo Fernando Azevedo que ajudou a difundir uma seacuterie de publi-caccedilotildees que almejavam uma reflexatildeo sobre o paiacutes daacute conta desse mo-mento em que segundo nos conta a historiadora Eliana Dutra estabele-

306 Cf GOMES Acircngela de Castro Histoacuteria e Historiadores Rio de Janeiro FGV 1996 O desdobramento dessa poliacutetica em projetos culturais pode ser pensado com as reflexotildees da historiadora Lia Calabre In CALABRE Lia Op cit

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo240

cia-se ldquoa crenccedila no papel determinante que as Ciecircncias Sociais poderiam jogar na configuraccedilatildeo de um imaginaacuterio nacional e de uma identidade coletiva no Brasilrdquo307

Natildeo obstante a guinada da poliacutetica cultural comandada espe-cialmente pelo ministro da Educaccedilatildeo de Vargas Gustavo Capanema foi simpaacutetica agraves produccedilotildees que ao representar o paiacutes tratavam em seus textos de legitimar o otimismo do novo projeto nacionalista do Estado brasileiro Oraccedilatildeo agrave bandeira faz parte dessa leva

O argumento do livreto foi a cerimocircnia do Dia da Bandeira em que Vargas ordenou a incineraccedilatildeo das bandeiras estaduais para simbo-licamente afastar qualquer onda de regionalismo em prol de uma uacutenica bandeira a nacional O editor da publicaccedilatildeo assim explica

A Constituiccedilatildeo de 10 de novembro outorgada agrave Naccedilatildeo pelo presi-dente Getuacutelio Vargas estabelece entre seus princiacutepios baacutesicos a existecircncia de um uacutenico pavilhatildeo para todo o territoacuterio nacional ndash a Bandeira da PaacutetriaEsse Serviccedilo julgou assim oportuno editar a ldquoOraccedilatildeo aacute Bandeirardquo cujos originaes foram oferecidos pelo autor ndash Catullo da Paixatildeo Cearense ndash ao cap Filinto Muller308

Oraccedilatildeo agrave bandeira foi distribuiacutedo nas escolas pelo Brasil e Catullo ganharia em 1941 uma aposentadoria dada pelo proacuteprio Vargas por ldquoserviccedilos prestados agrave cultura nacionalrdquo As duas ediccedilotildees de Oraccedilatildeo financiadas pelo Governo natildeo foram poreacutem suficientes para que o poeta se resignasse em reclamar da ediccedilatildeo e fazer publicar nos jornais incorreccedilotildees publicadas no livro

Catullo nos procurou agrave noite para dizer-nos de uma incorrecccedilatildeo que aacute sua revelia se vecirc a paacuteginas 59 de sua formosa ldquoOraccedilatildeo aacute Bandeirardquo E o poeta indicando-nos o lapso

307 DUTRA Eliana de Freitas Histoacuteria e Historiadores na Coleccedilatildeo Brasiliana o presentismo como perspectiva In DUTRA Eliana de Freitas (org) O Brasil em dois tempos Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 47-76

308 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Oraccedilatildeo agrave bandeira Rio de Janeiro Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal 1937 Contracapa

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 241

ndash Aqui Em logar neste primeiro verso de ldquoJesus Christo que aben-ccediloasrdquo eu escrevi ldquoOacute Christo que abeccediloaesrdquo Assim devia ter sido im-presso e natildeo como laacute se vecirc Espero que me faccedila a advertecircncia ao leitor menos avisado309

Seguramente natildeo era por numa publicaccedilatildeo financiada pelo Estado que Catullo deixaria passar algo que pudesse natildeo conduzir o puacuteblico a uma boa leitura de sua obra

309 Correio da Manhatilde 17 dez 1937 p 3

Figura 3 ndash Capa da 2ordf ediccedilatildeo de Um bohemio no Ceacuteo Nota-se o desenho de Catullo segurando o violatildeo diante de S Pedro

Fonte arquivo do autor

POR UMA REPRESENTACcedilAtildeO DE SI

Quando eu tiver uma estaacutetua nesta cidadeCatullo em conversa com Joatildeo Ribeiro310

Tempo de prestar contas

Um naufraacutegio aticcedilava os leitores da revista O Malho de me-ados de 1936 Tratava-se de uma brincadeira A revista dava uma lista de uma centena de escritores e perguntava para seus leitores se vocecirc estivesse num bote que estivesse naufragando quais os trecircs vates na-cionais vocecirc salvaria A enquete era uma promoccedilatildeo organizada por O Malho com a livraria Freitas Bastos que daria como precircmio ao ven-cedor 50 mil cruzeiros em livros

Depois de semanas de disputas os vencedores foram Olegaacuterio Mariano Cassiano Ricardo e Leatildeo de Vasconcelos Em 14ordm lugar na frente de nomes como Jorge de Lima e Maacuterio de Andrade apareceu Catullo da Paixatildeo Cearense Tais disputas imaginaacuterias entre escritores conhecidos era algo comum nas revistas brasileiras Ainda em 1925 como vimos anteriormente Catullo fora um dos vencedores em con-curso promovido pela revista Fon-Fon para a escolha do priacutencipe dos poetas brasileiros311

310 Letras e Artes 8 out 1950311 Catullo ficara em terceiro atraacutes de Alberto de Oliveira e Hermes Fontes

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 243

Se agraves vezes a pilheacuteria tinha o caraacuteter visivelmente risiacutevel nou-tras a disputa soava como polecircmica como quando em meados de 1937 com a morte do escritor Paulo Setuacutebal O Malho perguntava a seus lei-tores a quem dava o seu voto para o lugar de Paulo Setuacutebal O resul-tado pode surpreender um leitor atual acostumado a ver nomes como Graciliano Ramos que agrave eacutepoca jaacute despontara como escritor fora de uma lista de 50 escolhidos O vencedor da disputa foi Pliacutenio Salgado ficando em segundo e em terceiro lugar respectivamente Cassiano Ricardo e Catullo da Paixatildeo Cearense

Se tais revistas expressam muito das preferecircncias do puacuteblico leitor carioca ndash fundamentalmente os nomes citados eram de escritores do Rio de Janeiro ndash tal pesquisa revela por um lado a necessidade de se pensar a histoacuteria literaacuteria no Brasil como produto de uma construccedilatildeo tambeacutem ela produzida por diversos autores de histoacuteria literaacuteria o que faz com que se deva historicizar certa histoacuteria da literatura

Por outro lado o espasmo agrave primeira olhadela para a pesquisa conduz o leitor ao questionamento sobre como se deve escrever uma histoacuteria literaacuteria que leve em consideraccedilatildeo aquilo que era lido pelos leitores da eacutepoca A preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de uma maneira de se representar um panteatildeo de autores brasileiros natildeo foi algo desde-nhado por muitos autores Para a introduccedilatildeo de seus nomes entre aqueles que poderiam figurar numa histoacuteria literaacuteria as estrateacutegias de escrita foram fundamentais nessa empresa Muitos em vida construiacuteram eles mesmos uma histoacuteria literaacuteria que os incluiacutesse como parte fundante de um processo de canonizaccedilatildeo das obras

O que tais enquetes realizadas trazem de mais instigante talvez seja mais do que dar respostas sobre quem era o ldquomelhorrdquo em sua eacutepoca ndash o que jaacute valeria uma atenccedilatildeo do historiador da literatura ndash a possibili-dade de buscar novos caminhos para a produccedilatildeo de uma reflexatildeo sobre o campo literaacuterio no Brasil Vale a pena citar os dez primeiros colocados da pesquisa de O Malho em 1936 1ordm) Olegaacuterio Mariano 2ordm) Cassiano Ricardo 3ordm) Leatildeo de Vasconcelos 4ordm) Menotti Del Picchia 5ordm) Adelmar Tavares 6ordm) Guilherme de Almeida 7ordm) Paulo Setuacutebal 8ordm) Attiacutelio Milano 9ordm) Alberto de Oliveira e 10ordm) Paulo Gustavo Alguns como vemos ilus-tres desconhecidos em compecircndios da literatura brasileira posteriores

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo244

A consagraccedilatildeo do nome era uma empresa que demandava boa dose de sensibilidade do autor diante de um puacuteblico leitor Um diaacutelogo constante com os leitores a fim de seduzir pelo texto e por tudo que o rodeia Noutras vezes era necessaacuterio estabelecer uma histoacuteria de vida ndash e ter uma ldquoHistoacuteriardquo era um forte argumento para fincar seu nome entre os chamados autores nacionais Em muitos outros casos era ne-cessaacuterio simplesmente aparecer Buscar alternativas para aleacutem do texto escrito de forma a ter o reconhecimento do texto escrito

Em tempos em que raacutedio cinema e teatro construiacuteam seus proacute-prios iacutedolos usando foacutermulas ineacuteditas a literatura mantinha apesar dos concorrentes um vieacutes de distinccedilatildeo social que o cantor de raacutedio o ator de teatro e o artista de cinema no Brasil agrave eacutepoca desconheciam Se o escritor natildeo era mais propriamente um ldquoiacutedolordquo como evocava Joatildeo do Rio em sua famosa enquete de iniacutecios do seacuteculo o escritor ganhou progressivamente uma aura de construtor da naccedilatildeo Ganhou assim a responsabilidade de opinar em grandes questotildees de caraacuteter mais ldquoseacuteriordquo Representar a naccedilatildeo que teimava em tornar-se tema intransponiacutevel para um candidato a novo escritor era um imperativo formal no estabe-lecimento do que viria a ser chamado de Literatura Nacional

Catullo da Paixatildeo Cearense cuja trajetoacuteria natildeo retiliacutenea em torno do tema da naccedilatildeo o faz um autor menor na histoacuteria literaacuteria do Brasil representa um caso espantoso de escritor reconhecido em vida pelos lei-tores e constantemente agraves voltas com a possibilidade de natildeo reconheci-mento de sua obra pelas instacircncias de consagraccedilatildeo de um escritor

Natildeo eacute agrave toa que no final de sua vida Catullo procurou estabe-lecer em seus uacuteltimos livros uma histoacuteria para si que enobrecesse seu nome como poeta nacional digno da distinccedilatildeo no campo literaacuterio Essa tarefa demandou do poeta certo malabarismo uma vez que sua traje-toacuteria o indicava como modinheiro e ator de teatro duas ocupaccedilotildees que por diversas vezes travaram seu reconhecimento em vida como grande poeta A construccedilatildeo de uma memoacuteria de si uma escrita autobiograacutefica visando a uma canonizaccedilatildeo foi um projeto na escrita de Catullo que pode ser vislumbrado nos seus uacuteltimos textos Para a investigaccedilatildeo desse arsenal eacute urgente chamar a atenccedilatildeo para a morfologia do proacuteprio texto e os sentidos visados na construccedilatildeo dele para uma possiacutevel leitura re-

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grada visando a um convencimento por meio de fotos prefaacutecios juiacutezos criacuteticos e demais mecanismos de escrita

Em 1943 a editora A Noite publicou a peccedila O milagre de Satildeo Joatildeo Nela Catullo novamente repetia a foacutermula de Um boecircmio no ceacuteu retomando uma escrita que visasse a uma performance nos palcos O livro eacute recheado de juiacutezos criacuteticos e fatos da vida de Catullo inclusive a histoacuteria de sua aposentadoria concedida pelo presidente Vargas

Nessa eacutepoca em fevereiro de 1941 Catullo que em tese traba-lhava como datiloacutegrafo no Ministeacuterio da Viaccedilatildeo desde 1921 havia re-cebido aposentadoria de sua funccedilatildeo Isso se deu depois de um artigo escrito pelo poeta e desenhista Bastos Tigre cheio de passagens risiacute-veis bem no estilo do autor em que ele assinalava a necessidade de aposentar Catullo de forma que ele recebesse bem mais do que uma simples aposentadoria Bastos falava do encontro que havia tido com Catullo e de um busto do poeta que estava sendo feito pelo jornal A Noite Vale a transcriccedilatildeo

Passei-le a matildeo sobre o cracircnio raspado com um certo respeito ndash afinal aquillo natildeo deixa de ser um altar ndash e perguntei a Catullo por que assim o trazia liso e cheio de arranhotildees da ldquogiletterdquondash Aquele busto meu amigo aquelle busto Andam dizendo por ahi que o meu busto no jardim do Monroe natildeo se parece commigo E como eu respeito e amo todas as artes faccedilo o possiacutevel para me parecer com o busto O meu cracircnio assim raspado daacute mais impressatildeo de granito vocecirc natildeo acha312

Depois de apresentar esse encontro ao leitor Bastos Tigre contesta

Catullo foi haacute pouco aposentado Contaram-lhe os anos de serviccedilo puacute-blico e acharam que ele soacute tinha dez ou doze E deram-lhe uns trezentos e taes mil reacuteisVocecircs natildeo contaram bem meus compatriacutecios do Dasp Catullo natildeo tem nem uma hora sequer de percussatildeo com os dedos na ldquoRemingtonrdquo ou

312 Correio da Manhatilde 2 fev 1941 p 4

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo246

na ldquoRoyalrdquo mas ele tem sessenta natildeos de trabalho de coraccedilatildeo e ceacuterebro pela nossa Paacutetria pelo Brasil de todos noacutes313

Dez dias apoacutes a publicaccedilatildeo desse artigo Catullo da Paixatildeo Cearense foi aposentado por serviccedilos prestados agrave cultura do paiacutes Em seu novo livro O milagre de Satildeo Joatildeo o editor de A Noite fez aparecer o artigo de Bastos Tigre Poreacutem o que mais salta aos olhos na publi-caccedilatildeo eacute a tentativa de construir uma narrativa de vida que consagrasse Catullo como um poeta diferente e maior aleacutem da insistente tentativa de regrar uma leitura exposta desde as primeiras paacuteginas inclusive com a indicaccedilatildeo de discos para serem ouvidos em cada momento exato da leitura dos poemas

O milagre de Satildeo Joatildeo era uma reediccedilatildeo do poema A promessa publicado no primeiro livro de poemas sertanejos Meu sertatildeo O su-cesso desse poema fez com que Catullo alargasse sua estrutura e o pu-blicasse como um livro inteiro A publicaccedilatildeo eacute iniciada com um pre-faacutecio do escritor Maacuterio Joseacute de Almeida intitulado ldquoO poema da transfiguraccedilatildeordquo em que faz rasgados elogios a Catullo chamando a atenccedilatildeo do leitor para o fato de que o poeta era conhecido por ser um dos ldquomaiores enriquecedores do idioma luso-brasileirordquo e que havia en-cantado homens como Rui Barbosa Procoacutepio Ferreira e Coelho Netto recitando o poema A promessa Fundamentalmente Maacuterio pede a atenccedilatildeo do leitor para as indicaccedilotildees das muacutesicas que deveriam acompa-nhar a sua leitura sob risco de a leitura natildeo se ldquocompletarrdquo

Mesmo natildeo sendo possiacutevel ouvir o poema com os discos especialmente feitos para completar-lhe a essecircncia musical lucraraacute quem o ouvir se respeitando as observaccedilotildees que o autor publica no final deste volume souber impregnaacute-los de recursos musicais que se harmonizem no ritmo misterioso do poema314

Com essa recomendaccedilatildeo Maacuterio Joseacute de Almeida afirmava o ca-raacuteter natildeo soacute visual da leitura mas tambeacutem auditivo dos poemas que

313 Idem314 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943 p 2

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seriam lidos A incorporaccedilatildeo do elemento musical nos poemas era fun-damental para a leitura se concretizar Isso se explica segundo Maacuterio porque o poeta em questatildeo era tambeacutem cantor e muacutesico

Cantor muacutesico e poeta Catullo recomenda altruisticamente que o ldquoO Milagre de Satildeo Joatildeordquo seja acompanhado com os discos em que tanto insiste porque o maior dos cantores do nosso misterioso idioma conhece em surtos esplendorosos o encanto essencial que a muacutesica produz315

Cabe aqui uma pausa Deve-se levar em conta que a reintroduccedilatildeo do elemento musical na obra de Catullo acontece num momento em que a canccedilatildeo brasileira sofre um boom de prestiacutegio por meio da transmissatildeo radiofocircnica Luar do sertatildeo era o prefixo da Raacutedio Nacional que se convertia a partir de 1939 na principal rede transmissora com suas ondas chegando a todo o Brasil O novo sucesso de Luar do sertatildeo aliado a uma maior discussatildeo acerca de direitos autorais no Brasil rein-troduz um debate na imprensa sobre quem seria o verdadeiro autor da canccedilatildeo Catullo da Paixatildeo Cearense ou Joatildeo Pernambuco

Esse debate ganhou as paacuteginas dos jornais e foi motivo de polecirc-mica na qual intervieram por exemplo o compositor Almirante o criacute-tico Gondin da Fonseca e o maestro Villa Lobos um amigo dos dois muacutesicos envolvidos que absolveu Catullo de plaacutegio O poeta em entre-vista explicava o caso

ndash Eacute verdade que o ldquoLuar do Sertatildeordquo natildeo eacute seundash Eacute meu simndash Falam por aiacute que a muacutesica eacute de Joatildeo Pernambucondash Conversa compus o ldquoLuar do Sertatildeordquo ouvindo uma melodia antiga que era cantada com uns versos cujo estribilho era assimlsquoEacute do maitaacuteEacute do maitaacutersquoVersos banaliacutessimos A melodia que eacute tambeacutem banal eacute anocircnima Eacute quase centenaacuteria Com leves modificaccedilotildees adaptei-lhes as estrofes

315 Idem p 3

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do ldquoLuarrdquo Parece-me que agradou porque tem sido cantada no mundo inteiro316

Essa necessaacuteria explicaccedilatildeo surgia exatamente num momento em que compositores de muacutesica no Brasil organizavam-se para discutir di-reitos autorais A polecircmica ainda se estenderia por alguns anos sem que de fato fosse indicado quem era afinal o autor da canccedilatildeo O que se mostrou claramente nas polecircmicas que surgiram foi o caraacuteter impre-ciso do termo ldquoautorrdquo

Em carta aberta a Joatildeo Pernambuco ndash na verdade endereccedilada a Almirante que promovia em seu programa de raacutedio a campanha para a exclusatildeo de Catullo como autor original da canccedilatildeo Luar do sertatildeo ndash Catullo explicava o caso cheio de ironias a Almirante a quem chamava ldquoadvogadordquo A passagem eacute longa e rica de reflexotildees sobre o entendi-mento acerca de ldquoautoriardquo no periacuteodo

Escrevo-te porque tenho pena de ver um velho camarada exposto ao baixo ridiacuteculo por um indiviacuteduo que num programa radiofocircnico ca-luniou torpemente a minha pessoa dizendo que tu eras o inspirador de meus poemas admirados pelo Brasil e pelo estrangeiro Natildeo focircsses tu o alvo dessa leviandade e eu riria a bandeiras despregadas do seu autor[] Tu deves possuir todos esses livros que te ofertei Num deles a ldquoca-bocla de Caxangaacuterdquo estaacute a ti dedicada Por que natildeo reclamaste nessa ocasiatildeo Eacute porque a embolada sertaneja a tal ldquoMeu Engenho eacute de Humaitaacuterdquo nunca foi tua eacute do folclore pernambucano Quando a trou-xeste de Pernambuco com versos banais com que a cantavas eu es-tilizando-a transformei-a na melodia para qual escrevi os versos do meu ldquoLuar do Sertatildeordquo Quando tu cantavas mais frequentemente essa minha canccedilatildeo jaacute a cantavas com a minha estilizaccedilatildeo Apelo para o teu caraacuteter e honestidade ndash na nossa convivecircncia de vinte anos dia a dia estando juntos e ouvindo os discos da famosa ldquoCasa Edisonrdquo do Rio de Janeiro falando em Catullo da Paixatildeo Cearense e natildeo falando teu nome nunca protestaste Soacute o fizeste agora depois que a tal embolada ldquoMeu engenho eacute de Humaitaacuterdquo transformou-se e nesse Hino Nacional do

316 BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os homens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 194

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Sentimento Brasileiro [] O teu ldquoadvogadordquo disse que eu estava rece-bendo os direitos dessa minha canccedilatildeo sem repartir contigo Eacute outra ca-luacutenia O meu amigo sr Fred Figner a quem vendi no tempo da antiga ldquoCasa Edisonrdquo os direitos de algumas das minhas modinhas inclusive o ldquoLuar do Sertatildeordquo eacute quem recebe os direitos das mesmas []Segundo as nossas leis todo motivo folcloacuterico que sofreu alteraccedilotildees fica pertencendo a quem as fez Ecircsse teu conselheiro injuriando-me perpetrou um crime puniacutevel Antes de ecircle acusar-me pelo microfone devia ter-me procurado para ouvir-meCom a ldquoCabocla de Caxangaacuterdquo deu-se o mesmo modifiquei-a e escrevi versos para elaA ldquofortunardquo que eu ganhei com o ldquoLuar do Sertatildeordquo e a ldquoCabocla de caxangaacuterdquo foi 50$000 por uma e 30$000 por outra vendidas em 1913 ao sr Fred Figner que as registrou na Biblioteca nacional em 1914Quando registrei na Escola Nacional de Muacutesica essa minha canccedilatildeo fi-lo como sempre declarei ldquo Composiccedilatildeo musical de minha autoria intitulada ldquoLuar do Sertatildeordquo gecircnero canccedilatildeo cuja muacutesica eacute uma estili-zaccedilatildeo do folclore brasileirordquoSou tatildeo pobre ou mais pobre do que tu Mas se quiseres comparti-lhar dessa ldquofortunardquo sem teres direito para isso eu te darei a quinta parte dela Com essa quinta parte poderaacutes pagar os honoraacuterios do teu ilustre ldquoadvogadordquo317

Como expressava Catullo a autoria de uma obra poderia ser decla-

rada se sob um material original um indiviacuteduo fizesse alteraccedilotildees Eacute a partir dessa premissa que mesmo reconhecendo que Joatildeo Pernambuco foi quem ensinou o motivo folcloacuterico Eacute de Humaitaacute Catullo chama a atenccedilatildeo para haver sido ele mesmo o estilizador daquilo que era reconhe-cido como Luar do sertatildeo Tambeacutem observava que vendera as duas can-ccedilotildees que Pernambuco por intermeacutedio do seu ldquoadvogadordquo reivindicava ndash Cabocla de Caxangaacute e Luar do sertatildeo ndash para Fred Figner e que este a registrou na Biblioteca Nacional o que lhe dava a propriedade da canccedilatildeo

Portanto o poeta observava a partir da constataccedilatildeo de que nada mais recebera por aquelas canccedilotildees que o caraacuteter autoral de uma obra nem sempre indicava a propriedade dela Registrar na Escola Nacional

317 Diaacuterio de Notiacutecias 29 abr 1945 p 2 e 5

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo250

de Muacutesica embora garantisse a canccedilatildeo sob seu nome natildeo lhe dava os direitos juriacutedicos sobre ela que eram de Fred Figner Eacute ele que diz Catullo ldquorecebe os direitos das mesmasrdquo Mas se natildeo era sua proprie-dade Luar do sertatildeo era de sua autoria daiacute Catullo chamar a atenccedilatildeo para o fato de que contestar sua autoria era um ldquocrime puniacutevelrdquo

Almirante questionara inclusive o fato de que Catullo ndash que havia ganhado do jornal A Noite com a ajuda do dinheiro doado por seus leitores uma herma no saguatildeo do edifiacutecio da empresa e na Raacutedio Nacional um retrato em sua homenagem ndash teria sua gloacuteria conquistada agrave custa de Pernambuco ao que o bardo responde ironicamente

Quanto ao meu retrato que estaacute na ldquoRaacutedio Nacionalrdquo penso que o teu ldquoadvogadordquo deve solicitar permissatildeo a todas as pessoas illustres que espontaneamente aplaudiram essa homenagem para em lugar dele co-locar a sua efiacutegie por ser ele a maior patente e a maacutexima autoridade e gloacuteria do BrasilQuanto agrave minha herma erigida com o tostatildeo do povo brasileiro sob o patrociacutenio do brilhante vespertino ldquoA Noiterdquo com o consentimento desse mesmo povo por determinaccedilatildeo do teu patrono seja em seu lugar implantada a tua imagem que me ldquodeurdquo dois nomes de paacutessaros e foi inspiradora colossal sesquipedal de toda a minha antologia de PoetaNo dia da substituiccedilatildeo da minha herma e do meu retrato procurar-te-ei para juntos fazermos uma esplecircndida serenata sob a janela do teu no-taacutevel ldquoadvogadordquo desse Eschino brasileiro cantando o meu imortal ldquoLuar do Sertatildeordquo318

A raivosa e irocircnica resposta de Catullo visava natildeo soacute a desquali-ficar a acusaccedilatildeo pela evocaccedilatildeo dos meios legais mas sobretudo pela construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo consagrada de si diante de Joatildeo Pernambuco Haacute de se salientar que natildeo era a propriedade de Luar do sertatildeo que estava em jogo pois esta diz Catullo tinha sido vendida a Fred Figner O que se debatia afinal era a representaccedilatildeo de autoria sobre a canccedilatildeo O valor pecuniaacuterio da obra era sobrepujado por uma preocupaccedilatildeo autoral que daria ao possiacutevel autor uma identificaccedilatildeo dis-

318 Ibidem p 5

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 251

tinta Para alcanccedilar esse objetivo valiam inclusive criacuteticas agrave produccedilatildeo contemporacircnea de canccedilotildees bem como a construccedilatildeo de uma histoacuteria para si que o dignificasse como grande poeta

Haacute cinquenta anos que venho aclamando o Brasil em todas as minhas modinhas e poemas Ateacute chamaram-me de louco por eu natildeo escrever um verso sem falar na minha PaacutetriaO grande jurisconsulto Pontes de Miranda diz no meu livro ldquoPoemas Braviosrdquo que Rui Barbosa prefaciou ediccedilatildeo Bedeschi paacutegina 275ldquoCatullo eacute o precursor a voz avanccedilada do clarim genial que nos con-voca para querermos mais vivamente a nossa PaacutetriardquoDe certo tempo para caacute eacute que apareceram os ldquobardos nacionalistasrdquo tatildeo patriotas que chegam ateacute a comparar o Brasil com um pandeiro319

A estrateacutegia de evocar o passado como forma de fincar seu lugar no espaccedilo de produccedilatildeo cultural do Brasil dos anos 1940 foi uma receita muito usada por Catullo em seus livros E natildeo era somente nessas polecirc-micas que o poeta ativava essa receita A representaccedilatildeo de si como grande artista vem expressa em O milagre de Satildeo Joatildeo quando ele narra ao leitor vaacuterias passagens de sua vida Na seccedilatildeo conveniente-mente intitulada ldquoUma palestra com os leitoresrdquo o autor apresenta a publicaccedilatildeo adiantando que se o poema ali escrito fosse bem lido os leitores ldquopoderiam se convencer de que este lsquoMilagrersquo eacute um verdadeiro milagre de poesiardquo320 Vai mais longe confirmando ldquoEu considero este meu trabalho (e natildeo soacute eu mas muitos poetas e escritores) a poesia mais brasileira do nosso folclorerdquo321

Catullo na sua introduccedilatildeo vale-se de todos os artifiacutecios necessaacute-rios para a representaccedilatildeo de si como um escritor distinto visando a in-dicar antes da leitura de O milagre pelo leitor a expectativa de estar lendo um autor autorizado Constatando a necessidade de apresentar-se a novos leitores Catullo diferenciava sua poesia da dos ldquomodernistasrdquo pela citaccedilatildeo de autoridades literaacuterias que o haviam consagrado Daiacute

319 Ibidem320 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943 p 6321 Idem p 7

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo252

valer citar que ldquopoetas e escritoresrdquo achavam o poema que seria lido o ldquomais brasileirordquo e para que natildeo restassem duacutevidas quanto a isso para algum desavisado de sua trajetoacuteria literaacuteria o poeta faz desfilar em seu texto o nome dos ldquopoetas e escritoresrdquo que o consagraram

Os poetas do modernismo quiseram-me expulsar do Brasil e soacute natildeo conseguiram por saiacuterem em minha defesa homens como estes Rui Barbosa Coecirclho Neto Alberto Rangel Alberto de Oliveira Luiz Murat Rocha Pombo Capistrano de Abreu Afranio Peixoto Roquette Pinto Evaristo de Morais Maacuterio de Alencar Monteiro Lobato Juacutelio Dantas Agostinho de Campos Branco Colaccedilo Tomaz Ribeiro Filho Bastos Tigre Gastatildeo Pereira da Silva Maacuterio Joseacute de Almeida Alcindo Guanabara Luiz Carlos Paulo Silva Arauacutejo Rosalina Coelho Lisboa Pedro Lessa Guimaratildees Natal Muniz Barreto Assis Chateaubriand Fernando Magalhatildees Joseacute Oiticica e ateacute estrangeiros como Salvador Rueda e Vilaespesa os dois grandes poetas da Espanha e o grande cientista o grande meacutedico italiano ndash o Dr Ernesto Bertarelli322

Afirmar por meio da aprovaccedilatildeo de autoridades das letras sua condiccedilatildeo de ldquogrande poetardquo confirmava a publicaccedilatildeo que se iria ler como a produccedilatildeo de algueacutem que natildeo poderia ser desdenhado como autor de poesias E para os novos leitores que jaacute estivessem acostu-mados com poetas ldquomodernosrdquo Catullo tratava de chamar atenccedilatildeo para sua histoacuteria natildeo soacute como poeta mas tambeacutem como muacutesico

[] Mas ainda hoje os vates modernos dizem que eacute preciso queimar os meus livros que maculam a nossa literatura Que dizer sobre esses ldquoimortaisrdquo Haacute poucas excepccedilotildees Manoel Bandeira e outros de que natildeo me lembro[]Leitor jaacute escrevi muitas modinhas cantadas de norte a sul Reabilitei o violatildeo impondo-o nas salas dos nobres dos aristocratas Citarei ndash Pedro Lessa Rui Barbosa Nuno de Andrade Pinheiro Machado Luacutecio de Mendonccedila Nilo Peccedilanha Artur Bernardes e Epitaacutecio Pessoa no proacuteprio palaacutecio do Catete e muitos outros pois natildeo acabaria a lista se os fosse enumerar Basta dizer que em 1908 dei uma audiccedilatildeo no Conservatoacuterio de Muacutesica de que era diretor o maestro Nepomuceno

322 Ibidem p 7-8

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 253

Fiz do instrumento vagabundo um instrumento que hoje toda moccedila da alta roda tem orgulho em dedilhar Cantei como ningueacutem e nunca mais ouviacute quem cantasse essas modinhas como eu cantei No gecircnero fui um Caruso Quem duvidar pergunte a um velho da passada geraccedilatildeo323

Retomar velhas consagraccedilotildees fazia com que o leitor criasse a expectativa de uma leitura de autor consagrado Ademais tal lembranccedila veio num momento alvissareiro especialmente porque nos anos 1940 a muacutesica como jaacute atentamos torna-se objeto de consumo progressivo com o advento do raacutedio como forccedila comunicadora Aiacute reside uma dife-renciaccedilatildeo nas estrateacutegias de escrita operacionalizadas por Catullo em seus uacuteltimos livros

Desde o advento do Catullo ldquopoeta sertanejordquo ndash o aacutepice tendo sido a publicaccedilatildeo de Meu sertatildeo em 1918 ndash o bardo tratou de afastar seu nome de uma produccedilatildeo musical que embora o tivesse consagrado e o fizesse reconhecido distanciaacute-lo-ia de um reconhecimento como es-critor de livros ou poeta letrado Isso natildeo impediu que Catullo fosse por diversas vezes chamado para cantar suas modinhas em salotildees e teatros

Com a ascensatildeo do raacutedio no Brasil e a elevaccedilatildeo jaacute nos anos 1930 de Luar do sertatildeo ao status de muacutesica representativa da naccedilatildeo com sua transmissatildeo incessante como prefixo da Raacutedio Nacional ser reconhe-cido como autor de muacutesicas natildeo soaria de maneira pejorativa a um poeta Ademais se na deacutecada de 1930 o raacutedio aos poucos invadiu os lares brasileiros nos anos 1940 especialmente com a aguda sensibili-dade de Getuacutelio Vargas que via no radio um potencial veiacuteculo de comu-nicaccedilatildeo com a populaccedilatildeo o aparelho de raacutedio se tornou febre de con-sumo A historiadora Lia Calabre observa que essa mudanccedila se deu pois ldquoo raacutedio do final da deacutecada de 1930 jaacute era visto como um meio de comunicaccedilatildeo fundamental e indispensaacutevel soacute ele poderia informar transmitir as notiacutecias com a velocidade necessaacuteria dos novos tem-posrdquo324 Daiacute ser comum nas publicaccedilotildees de Catullo dessa eacutepoca o que

323 Ibidem p 9324 CALABRE Lia No tempo do Raacutedio radiodifusatildeo e cotidiano no Brasil 1923-1960

2002 277 f Tese (Doutorado em Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Universidade Federal Fluminense NiteroiacuteRJ 2002 p 68

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo254

poderiacuteamos chamar de volta agrave produccedilatildeo musical tentando fincar seu espaccedilo tambeacutem como muacutesico e cantor consagrado algo inexistente nas produccedilotildees anteriores O milagre de Satildeo Joatildeo representa essa guinada na obra impressa do poeta de maneira tatildeo sintomaacutetica que a leitura do poema do livro soacute poderia ser efetuada com a ajuda das suas canccedilotildees

Aiacute Catullo busca representar em sua obra aquilo que o leitor atento deveria entender como um ldquobardo nacionalrdquo Nesse processo Catullo esmaece as fronteiras que poderiam separar o poeta do bardo da muacutesica construindo uma aproximaccedilatildeo entre ambos e indicando que a leitura do texto e audiccedilatildeo de uma canccedilatildeo eram dois pares fundamentais para o entendimento de sua poesia

Catullo afinal cria um plano de leitura da sua obra buscando superar a contradiccedilatildeo que separava o poeta de livros e o compositor de canccedilotildees ndash e que era como vimos argumento importante para classificar um autor com um poeta letrado (ou natildeo) nos anos 1910 e 1920 Ele mesmo que assumira anteriormente em sua obra esse projeto figu-rava com O milagre uma reaproximaccedilatildeo com sua produccedilatildeo musical Mas da mesma forma como houvera tentado construir seu lugar como poeta sertanejo era necessaacuterio tambeacutem distinguir-se de outros compo-sitores de muacutesicas de preferecircncia os mais novos estigmatizando-os em negativo ao passo que dando o creacutedito a compositores mais antigos se afirmasse como dentre eles o maior

Hoje no Brasil pululam os ldquobardos nacionaisrdquo e nenhum deles deixa de compor sua marchinha seu samba ou sua canccedilatildeo falando sempre na ldquoca-boclardquo no ldquomalandrordquo no ldquoBrasil pandeirordquo nome este acapadoccedilado que ateacute melindra a nossa brasilidade Os ceacutelebres trovadores natildeo sei porque fizeram dos morros o seu Parnaso esses lugares evitados em outros tempos por todas as pessoas decentes Os morros com os seus desordeiros e os seus assassinos nos apavoravam Hoje satildeo aclamados por senhoras e senhores da alta nobresa Basta que um sujeito escreva um samba em que capadoccedilalmente fale em Brasil para que logo seja considerado um poeta de votildeos [sic] nacionais Agora tudo eacute ldquoBrasil Brasil Brasilrdquo e no entanto haacute 50 anos quando eu jaacute dedicava os meus descantes ao Brasil brasileiro era chamado de maniacuteaco porque soacute cantava a minha paacutetria325

325 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943 p 7

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 255

Daiacute representar o passado tornou-se um exerciacutecio de produccedilatildeo de uma crenccedila na distinccedilatildeo positiva do autor de O milagre Se o pre-sente dava novo status ao compositor de muacutesica que ldquopululavardquo em todo canto como queria Catullo necessaacuterio seria produzir uma repre-sentaccedilatildeo que o diferenciasse em meio a todos eles Numa clara alusatildeo aos sambistas que apareciam o trecho acima expressa essa operaccedilatildeo onde a construccedilatildeo de um passado glorioso para o poeta respondia agrave demanda por um lugar dentro do universo da muacutesica no Brasil do pe-riacuteodo Contra os novos poetas e muacutesicos o autor natildeo economizava nos comentaacuterios autoelogiosos

Fui um tocador de violatildeo e um cantador de modinhas uacutenico no gecircnero Fui um seresteiro notaacutevel estupendo sesquipedal Quando queria um favor a Deus pedia-o numa serenata Que ideacuteia faz o leitor de uma se-renata Eu as fiz com os mais notaacuteveis muacutesicos desta capital 326

Temendo que no futuro as pessoas esquecessem sua obra Catullo conclui

Mas se por ventura os homens o esquecerem nada perderaacute a poste-ridade Nada perderatildeo os poetas de que minha terra estaacute cheia nada perderatildeo os artistas nada perderatildeo os saacutebios nada perderatildeo os filoacute-sofos ningueacutem perderaacute com esse esquecimento Soacute trecircs estou certo lamentaratildeo o olviacutedio dessa epopeia nacional desse portentoso desse milagroso ldquoMilagre de S JoatildeordquoSoacute trecircs ndash o Passado a Tradiccedilatildeo e a Natureza do Brasil327

Todo o arcabouccedilo de autoencocircmio o poeta mobilizava em sua ldquoPalestra com os leitoresrdquo Todo o arsenal de autorrepresentaccedilatildeo eacute mo-bilizado de forma que o leitor natildeo o confunda com sambistas e o co-loque no patamar de homens socialmente distintos na cultura letrada do periacuteodo Mas como achasse que criar essa crenccedila em sua distinccedilatildeo como poeta e muacutesico natildeo fosse o suficiente para a posterior leitura do texto que seguiria o autor anuncia a necessidade de ler ouvindo as can-

326 Ibidem p 11327 Ibidem p 12-13

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo256

ccedilotildees que iria indicar pois para que a publicaccedilatildeo do livro ldquotenha uma estupenda realidade deve ser acompanhada de todos os discos fonograacute-ficos que dela fazem parterdquo328

Ainda na introduccedilatildeo ldquoPalestra com os leitoresrdquo Catullo abusou das explicaccedilotildees dadas ao leitor de como o livro O milagre de Satildeo Joatildeo deveria ser lido Eacute interessante notar que nessa advertecircncia em forma de prefaacutecio Catullo jaacute entatildeo quase um octogenaacuterio retomava sua re-presentaccedilatildeo de compositor e fazia assim daquele novo livro que publi-cava um curioso casamento entre poesia teatro e muacutesica Essa guinada natildeo poderia ser entendida sem levar em conta as mudanccedilas em torno do papel da canccedilatildeo popular no Brasil da deacutecada de 1940

Mas voltemos agrave ldquoPalestra com os leitoresrdquo Nela Catullo busca explicar ao leitor do que se trata a poesia que se iria ler fazendo uma grave advertecircncia ao final ldquoChico Mironga o sertanejo que aqui na capital vai contar sua histoacuteria de amor com Joaninha hoje jaacute estaacute velho mas era rapazola quando se deu este caso Esta epopeia sera uma epo-peia maravilhosa se o leitor quiser seguir as minhas indicaccedilotildeesrdquo329

A advertecircncia do poeta serve como tentativa de regrar a leitura Existiam no texto do poema marcaccedilotildees que separavam em ldquopartesrdquo a histoacuteria do sertanejo Chico Mironga e Catullo vecirc a possibilidade de a leitura do poema ser seguida pela audiccedilatildeo dos ldquodiscos fonograacuteficosrdquo pois assim como queria ldquoa epopeia seraacute uma epopeia maravilhosardquo Para reiterar a necessidade de articulaccedilatildeo do texto com a muacutesica o poeta ainda insistia por vaacuterias vezes em seu texto para que o leitor natildeo perdesse de vista aquela advertecircncia e via nessa passagem uma opor-tunidade para demonstrar um pouco de sua trajetoacuteria como muacutesico Reiterando o papel da audiccedilatildeo da muacutesica no momento da leitura do poema de O milagre ele observa

[] Tenho comigo todos os discos que o ilustramPor insinuaccedilotildees minhas foram eles gravados haacute muitos anos e haacute muitos anos estatildeo esgotados Fosse eu um homem rico mandaria gravaacute-los de

328 Ibidem p 5329 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 257

novo para proveito dos leitores Com eles poderiam se convencer que este ldquoMilagrerdquo eacute um verdadeiro milagre de poesia Eacute inuacutetil dar o nome dos meus discos porque eacute quase impossiacutevel serem hoje encontradosO leitor com seu gosto apurado e a sua inteligecircncia pode substituiacute-los por outros antigos ou mesmo modernos desde que eles condigam com o assunto a que tecircm de se adaptar330

Haacute de se observar que aquilo que Catullo chama ldquomeus discosrdquo natildeo eacute como poderia pensar um leitor atual os discos gravados por ele proacuteprio Natildeo consta na historiografia e mesmo em pesquisas sobre o disco no Brasil que o poeta tenha gravado algum disco O que Catullo chama de ldquomeus discosrdquo satildeo suas muacutesicas gravadas por outros Por isso na passagem acima transcrita afirma que ldquopor insinuaccedilotildees mi-nhas foram eles gravadosrdquo Ora a forma comum agrave eacutepoca de chamar ldquomeus discosrdquo diz muito sobre o fato ldquoautoralrdquo A autoridade uacuteltima da canccedilatildeo gravada era do compositor pelo menos assim nos diz Catullo Mas a mudanccedila no status do cantor no Brasil nos anos 1930 distorcia a opiniatildeo o poeta No novo regime era comum o desaparecimento do autor em prol do cantor muitas vezes identificado como o autor ori-ginal da canccedilatildeo A representaccedilatildeo da canccedilatildeo gravada por outro como ldquomeus discosrdquo como queria Catullo era arranhada pela proeminecircncia do cantor que naquela eacutepoca bem poderia dizer em resposta ao poeta ldquoos meus discosrdquo

Em O milagre de Satildeo Joatildeo embora jaacute indicasse a necessidade da muacutesica no texto Catullo vai mais longe em seu afatilde regrador da re-cepccedilatildeo ele indica os momentos exatos do poema em que uma canccedilatildeo deve ser ouvida pelo leitor Para tanto ao final do livro em seccedilatildeo inti-tulada ldquoExplicaccedilatildeo e indicaccedilatildeo dos discos que devem musicalmente completar este poemardquo explica pormenorizadamente os detalhes da muacutesica e dos momentos em que devem ser tocadas para o deleite do poema Antes explica que

Sempre que funcionar o aparelho fonograacutefico o leitor deve interromper a leitura continuando-a depois de o disco terminado Alguns discos po-

330 Ibidem p 5-6

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo258

deratildeo ser tocados na iacutentegra outros em parte O Guarani por exemplo seraacute discado apenas nos primeiros compassos salvo se o recitador re-solver o contraacuterio Repito recomendo todo cuidado e inteligecircncia na escolha desses discos Se natildeo forem bem escolhidos em lugar de em-belezarem prejudicaratildeo a beleza do poema331

Ao final do poema Catullo indica cada paacutegina em que a canccedilatildeo deve ser tocada o verso que deve findar para que a muacutesica toque e em que momento ele deve continuar a ser lido depois da canccedilatildeo Com uma observaccedilatildeo salutar ao final dessa explicaccedilatildeo o autor observa que ldquotodos os discos deveratildeo ser tocados imediatamente sem perda de um se-gundo logo depois de ser proferido o verso que lhe serve de deixardquo332 Assim

PAacuteGINA 35Depois do verso ldquovasmincecirc vae iscutaacuterdquo deve-se ouvir um samba an-tigo e natildeo samba moderno estrangeirado Esse samba deveraacute ser can-tado Seguir-se-aacute o verso ldquoE noacutes fumo caminhandordquo[]PAacuteGINA 47Depois do verso ldquofaz os veacuteio se alembraacuterdquo ouvir-se-aacute um terno de flauta ou uma banda tocando uma parte de quadrilha Seguir-se-aacute o verso ldquoLogo ao despois da quadrilhardquoPAacuteGINA 48Depois do verso ldquoFoi assubiando o balatildeordquo disque-se um tango de Ernesto Nazareth ou Chiquinha Gonzaga Seguir-se-aacute o verso ldquoAgora todo mundatildeordquo[]PAacuteGINA 145Depois do verso ldquoo Brasil tem um sordadordquo uma banda de muacutesica para terminar executaraacute o Hino Nacional333

O milagre de Satildeo Joatildeo representa natildeo soacute a retomada definitiva da muacutesica nos textos de Catullo ndash algo que jaacute vinha sendo esboccedilado desde O boecircmio no ceacuteu ndash mas uma nova estrateacutegia autoral visando a fisgar o leitor mais desavisado de sua trajetoacuteria como muacutesico Um novo leitor

331 Ibidem p 6332 Ibidem p 162333 Ibidem p 159-162

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 259

que agravequela eacutepoca tambeacutem se regozijava com os sucessos radiofocircnicos e fonograacuteficos Um leitor que se acostumara tambeacutem a ouvir inclusive o proacuteprio Catullo recitando nas raacutedios e que construiacutea seus novos iacutedolos atraveacutes das ondas radiofocircnicas Escrever um livro e publicaacute-lo natildeo era mais a receita uacutenica de consagraccedilatildeo de um indiviacuteduo A canccedilatildeo entroni-zava de maneira mais consagradora cantores e compositores de muacutesica e embora o puacuteblico consumidor de livros tenha aumentado substancial-mente desde iniacutecios do seacuteculo XX ndash inclusive com programas do Governo Federal comandado por Vargas ndash a radiofonia sequestrara a aura que era uacutenica e exclusiva do poeta de livros

O milagre de Satildeo Joatildeo eacute uma tentativa de (re)construccedilatildeo do ldquopoeta das modinhasrdquo que consagrara Catullo em iniacutecios daquele seacute-culo de forma a rivalizar incorporando-a na sua escrita com o mundo das canccedilotildees no Brasil Dali em diante o poeta Catullo da Paixatildeo Cearense assumindo de vez seu lugar como muacutesico publicou em li-vros posteriores sua autorrepresentaccedilatildeo constantemente de forma a evocar um passado de consagraccedilatildeo com as letras e mais do que tudo com a muacutesica

O testamento da aacutervore

Em meados dos anos 1940 as produccedilotildees nacionais catapultadas pela poliacutetica cultural do governo Vargas invadiam a Europa e principal-mente os Estados Unidos J J Robins empresaacuterio que vinha editando muacutesica brasileira em Nova Iorque ndash desde Mamatildee eu quero de autoria de Jararaca e Vicente Paiva ndash anunciava que a uniatildeo dos compositores ligados agrave SBAT e agrave ABCA tinha sido uma ldquoexcelente ideacuteiardquo334 pois segundo ele isso fazia com que natildeo houvesse problemas com paga-mentos de direitos autorais em separado De fato a resoluccedilatildeo do con-flito que envolvia a arrecadaccedilatildeo de direitos autorais envolvendo as duas entidades havia chegado a um acordo em que ambas as partes resolveram aceitar a existecircncia uma da outra

334 A Noite 7 ago 1942

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo260

O jornal A Noite citava (aleacutem de Robins) Ralph Peers como outro editor de muacutesicas brasileiras em terras estadounidenses Peers lanccedilava de maneira ldquoafortunadardquo dizia o perioacutedico Aquarela do Brasil de Ary Barroso Robins por sua vez estava obtendo ecircxito com duas canccedilotildees A primeira era Que eacute que a baiana tem de Dorival Caymmi gravada pelos ldquofamosos cantores negros Mills Brothers que a cantaram num estilo tipicamente semelhante ao das canccedilotildees dos pretos americanos em que se especializaramrdquo A segunda era Luar do sertatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense sob o tiacutetulo In Old Brazil em arranjo de Eddy Duchin num estilo fox-trot Luar tambeacutem era usada salientava A Noite como ldquotema para caracterizar o Brasil na peccedila orfeocircnica The Two Americas poema de Mary Carolyn Davies e muacutesica de Domenico Savinordquo Na ediccedilatildeo preparada por Robbins apareciam trechos do Hino Nacional Brasileiro e a primeira audiccedilatildeo seria feita em agosto de 1942 na Escola de Muacutesica Juvenil de Interlochen em Michigan335

Do outro lado do Atlacircntico o poeta portuguecircs Joatildeo de Barros saudava o poeta Catullo chamando-o de ldquoinspirador das energias do povo brasileirordquo Procoacutepio Ferreira por sua vez mandava notiacutecias de que os livros de Catullo eram lidos com frequecircncia em Lisboa capital de Portugal

Esse sucesso pegara um jaacute octogenaacuterio Catullo que entregara a Guimaratildees Martins a responsabilidade de cuidar de seus direitos auto-rais exatamente no momento de ecircxito internacional de suas produccedilotildees Martins era maranhense e tambeacutem se metia a escrever poesia e cantar canccedilotildees muitas vezes acompanhando o proacuteprio Catullo na Raacutedio Nacional Ganhara a confianccedila do poeta de maneira tal que Catullo leigo nos tracircmites para a reivindicaccedilatildeo de direitos autorais colocou em suas matildeos a tarefa de resolver tais problemas

Jaacute sob responsabilidade de Guimaratildees Martins Catullo publicou trecircs livros Poemas escolhidos (1944) Modinhas (1946) e O testamento da aacutervore (1945) Os dois primeiros satildeo coletacircneas de poemas e modi-nhas respectivamente Modinhas continha no texto os nomes dos com-

335 Ibidem

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 261

positores das muacutesicas que acompanhariam as letras de Catullo ndash algo inexistente nas antigas publicaccedilotildees de modinhas de Catullo pela livraria Quaresma ndash numa tentativa tambeacutem de resolver um longo capiacutetulo das produccedilotildees de Catullo a autoria

Como jaacute haviacuteamos observado Catullo resolvera inscrever suas canccedilotildees na SBAT que por sua vez cedia a parte concernente aos seus direitos a Guimaratildees Martins como procurador do poeta Essa cessatildeo de direitos de propriedade a Guimaratildees eacute indicada na contracapa de seu livro Poemas escolhidos onde faz publicar a seguinte explicaccedilatildeo

Direitos de propriedadeDe GUIMARAtildeES MARTINSReservados todos os direitos de traduccedilatildeo adaptaccedilatildeo reproduccedilatildeo etc nos paiacuteses que aderiram agrave Convenccedilatildeo de Berna336

A primeira ediccedilatildeo da publicaccedilatildeo de Poemas escolhidos foi lan-ccedilada em 1944 pela editora Zeacutelio Valverde localizada na travessa do Ouvidor nordm 27 centro do Rio de Janeiro Zeacutelio era ainda jovem quando se iniciou como editor ndash com pouco mais de 17 anos de idade Aleacutem de vender desde 1937 livros histoacutericos e claacutessicos da literatura brasileira em sua livraria sua figura ficou conhecida por ele ser bastante gordo Em 1939 sua editora nascente se fundiu com a Schmidt Editora do poeta e homem de negoacutecios Augusto Frederico Schmidt

A fusatildeo fez aumentar ainda mais a procura por livros especial-mente com a reediccedilatildeo da seacuterie ldquoGrandes Poetas do Brasilrdquo empreendi-mento que obtivera enorme sucesso desde 1938 e a coleccedilatildeo ldquoBiblioteca das Grandes Biografiasrdquo cujo livro inaugural foi uma biografia do poeta Coelho Neto escrita por seu filho Paulo Coelho Netto337 Zeacutelio causava grande alvoroccedilo no mundo editorial ao publicar aquilo que chamou de o ldquoprimeiro livro brasileiro sobre os horrores da ocupaccedilatildeo nazistardquo intitulado Viagem atraveacutes do caos de Ary Pavatildeo que vendeu

336 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 Contracapa

337 Diretrizes 16 abr 1942 p 29

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo262

trecircs mil exemplares soacute no Rio de Janeiro em poucos dias Um verda-deiro ldquorecorderdquo segundo o perioacutedico Diretrizes338

Poemas escolhidos tratava-se de uma seleccedilatildeo dos poemas orga-nizado e anotada por Guimaratildees Martins e revista pelo autor Zeacutelio fez uma tiragem de 150 exemplares numerados e rubricados pelo autor contendo 17 caricaturas de Catullo produzidas por diversos artistas Entre os poemas escolhidos havia vaacuterias letras de modinhas de Catullo afirmando uma necessidade antiga do poeta que via essas letras como passiacuteveis de serem representadas tambeacutem como poemas Por isso o livro tem uma primeira parte intitulada ldquoO poeta muacutesico e cantorrdquo uma segunda parte chamada de ldquoO poeta braviordquo e uma terceira parte com o tiacutetulo de ldquoO poeta cultordquo Essa separaccedilatildeo dizia muito da representaccedilatildeo de poesia que tanto Catullo quanto Guimaratildees Martins e o editor Zeacutelio queriam atribuir agrave obra que o leitor teria em matildeos Cada poema era acompanhado com a explicaccedilatildeo necessaacuteria ndash muitas vezes uma histoacuteria de consagraccedilatildeo de Catullo ndash para que o leitor compreendesse o contexto de sua produccedilatildeo

A publicaccedilatildeo se inicia com uma ldquoNota explicativa ndash servindo de prefaacuteciordquo escrita pelo proacuteprio poeta Nela Catullo explica ao puacute-blico o objetivo da publicaccedilatildeo e o porquecirc de nela aparecerem tambeacutem as modinhas

Solicitado pelo meu querido amigo Guimaratildees Martins para que eu fizesse uma seleccedilatildeo dos meus poemas de acordo com ecircle resolvi fazer esta escolha que natildeo sei se foi a melhor Tambeacutem aplaudi a ideacuteia que teve esse belo amigo de incluir na coletacircnea algumas das minhas Modinhas da Velha Guarda para que o leitor pudesse me conhecer como trovador das antigas serenatas Essas canccedilotildees perdem muito sem a muacutesica com que satildeo cantadas Mas como Guimaratildees Martins vai pu-blicar algumas delas com as respectivas melodias o leitor poderaacute sen-tiacute-las com a beleza integral Eacute mais um serviccedilo que Guimaratildees Martins prestaraacute ao povo da nossa terra339

338 Idem 1ordm out 1942 p 7339 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 15

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A nota procura alertar o futuro leitor que pudesse desconhecer sua faceta ldquotrovador Velha Guardardquo para uma leitura de suas modinhas Anunciadas como poemas Catullo chama a atenccedilatildeo para o fato de que aquelas modinhas poderiam perder muito sem a muacutesica Entretanto inexiste na nota uma representaccedilatildeo das modinhas transcritas como tatildeo simplesmente letras Ali incluiacutedas num livro cujo tiacutetulo era Poemas escolhidos suas modinhas deveriam ser lidas como poemas que deve-riam ter a ldquobeleza integralrdquo se acompanhadas das muacutesicas Sutilmente o autor vai realccedilando uma representaccedilatildeo que de resto vinha sendo por ele tentada desde suas primeiras publicaccedilotildees de fazer com que suas modinhas pudessem ter o caraacuteter de poesia Essa representaccedilatildeo aproxi-maria como consequecircncia sua produccedilatildeo modinheira de um status poeacute-tico e portanto diferenciado

A nota tambeacutem tinha um vieacutes explicativo para aquele que natildeo conhecera o Catullo modinheiro jaacute que algumas das modinhas publi-cadas em Poemas escolhidos havia muito tempo natildeo eram mais publi-cadas ou reeditadas em livros Para isso chama a atenccedilatildeo a segunda contracapa da publicaccedilatildeo contendo uma lista de todas as obras de Catullo Na lista eacute possiacutevel ver que embora alguns livros de ldquocanccedilotildees musicadasrdquo tivessem chegado a 50 ediccedilotildees (caso de Cancioneiro po-pular de modinhas brasileiras aqui jaacute citado) todos eles estavam esgo-tados havia muito tempo A nota preacutevia servia portanto tambeacutem para aqueles novos leitores que desconhecessem o Catullo da muacutesica O proacute-prio tiacutetulo da publicaccedilatildeo Poemas escolhidos deixa entrever o caraacuteter de coletacircnea da obra que o criacutetico do jornal Gazeta de Notiacutecias alerta para aqueles leitores que ainda desconheciam o ldquobardo sertanistardquo

Todos admiram o cantor do Luar do Sertatildeo [sic] cujos harmoniosos versos penetraram a alma do povo e cuja melodia serve ateacute de prefixo radiofocircnico Haacute entretanto admiradores da musa de Catulo Cearense que ainda natildeo conhecem todos os seus vigorosos poemas as maravi-lhosas paacuteginas decircsse prodigioso criador de tipos sertanejosNa brochura que surgiu e lemos com sincero embevecimento os leitores encontram uma perfeita seleccedilatildeo de todas as poesias do bardo sertanista340

340 Gazeta de Notiacutecias 19 nov 1944 Suplemento p 4

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Um texto de Guimaratildees Martins que segue ao de Catullo sugere bem essa uacuteltima serventia da ldquoNotardquo do autor Sob o tiacutetulo de ldquoCatulo Poeta Muacutesico e Cantorrdquo Guimaratildees Martins destaca fundamentalmente o lado musical do poeta

Das figuras artiacutesticas a que dediquei sempre uma veneraccedilatildeo profunda destaco a de Catulo como objeto uacutenico deste livro Poeta genial pela inspiraccedilatildeo e cantor popular maravilhoso de brilho apoliacutenio alccedilou o violatildeo nacional agrave altura dos demais instrumentos tidos como aristocraacute-ticos O violatildeo com ecircle subiu das rodas familiares ao Conservatoacuterio Nacional de Muacutesica da ingenuidade do sertatildeo enluarado ao tabernaacute-culo esplecircndido das artesCatulo abriu as portas da imortalidade com o prodiacutegio do toque natildeo menos maacutegico das cordas gemedoras341

A esse texto seguem os ldquoDados Biograacuteficosrdquo do poeta escritos pelo mesmo Guimaratildees Martins A biografia traccedila uma imagem de um poeta ilustre que ganhara em comemoraccedilatildeo ao dia de seu nascimento 8 de outubro de 1940 uma placa na casa onde nasceu no Maranhatildeo e um busto no jardim Monroe ldquonas margens da maravilhosa Guanabarardquo Guimaratildees na breve biografia novamente realccedila o muacutesico Catullo con-tando um velho fato consagrador de sua vida qual seja a sua apresen-taccedilatildeo acompanhado do violatildeo no Conservatoacuterio Nacional de Muacutesica no jaacute distante ano de 1908

Foi no antigo Conservatoacuterio Nacional de Muacutesica agrave rua Luiz de Camotildees que com o apoio do maestro Alberto Nepomuceno o violatildeo ressurgiu consagrado pelo prestiacutegio artiacutestico de Catullo Ecircsse acontecimento que marca tatildeo dignamente a evoluccedilatildeo da muacutesica popular brasileira ocorreu em 1908 []342

A ocorrecircncia insistente da descriccedilatildeo da consagraccedilatildeo do poeta no espaccedilo da muacutesica expressa nas notas de Guimaratildees Martins pode ser

341 MARTINS Guimaratildees Catulo Poeta Muacutesico e Cantor In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 p 17

342 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 p 20

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entendida pelo estatuto recente da muacutesica no Brasil Possivelmente a constataccedilatildeo desse estatuto diferenciado e glamourizado que agravequela eacutepoca o cantor popular atingia especiamente com o aumento do puacute-blico de raacutedio fazia com que Guimaratildees Martins investisse numa repre-sentaccedilatildeo de Catullo que realccedilasse mais seu lado musical e chamasse a atenccedilatildeo do leitor para um ldquoprestiacutegio artiacutesticordquo na carreira musical do poeta que o marcasse na ldquoevoluccedilatildeo da muacutesica popular brasileirardquo

Essa aposta em um Catullo muacutesico e cantor chega a fazer prati-camente desaparecer nas notas e prefaacutecio que antecedem a leitura do livro o poeta dos livros Ao que parece assumindo o papel de organi-zador da obra e uma espeacutecie de braccedilo direito de Catullo Martins foi construindo uma representaccedilatildeo de poeta mais condizente com o periacuteodo de publicaccedilatildeo do livro Para isso vai realccedilando alguns toacutepicos e expli-cando outros de forma a melhor representar o autor para o puacuteblico fa-zendo com que a posterior leitura levasse em conta tais elementos

Seguindo essa receita aparece na publicaccedilatildeo uma ldquoNota impor-tanterdquo natildeo assinada possivelmente escrita pelo mesmo Guimaratildees Nela o objetivo eacute ir de encontro a uma representaccedilatildeo caricatural de Catullo Para tanto o texto comeccedila por lanccedilar culpa na construccedilatildeo dessa imagem aos repoacuterteres que procurando fazer rir o leitor preferem pelo ldquoalto valorrdquo do poeta usaacute-lo como objeto de uma ldquoblaguerdquo

Catulo tem sido viacutetima de alguns repoacuterteres menos avisados que o vatildeo procurar em sua casa para entrevistaacute-lo Muita vez o Poeta sur-preende-se com o resultado da palestra que concedera ao jornalista encontra a cada passo coisas que jamais afirmara Natildeo se aborrece por isso Vecirc no caso apenas uma blague vontade de fazer rir o leitor Eacute natural que eles faccedilam isso com o Poeta dado o seu alto valor Se o fizessem com um indiviacuteduo vulgar um desconhecido a blague natildeo teria repercussatildeo343

Essa representaccedilatildeo risiacutevel do poeta embora a nota chame a atenccedilatildeo como sendo algo criado por ldquorepoacuterteresrdquo natildeo se pode dizer que eacute de todo correta uma vez que o proacuteprio Catullo aleacutem de assumir

343 Ibidem p 23

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muitas vezes nos palcos de teatro performances visando a nitidamente divertir nos proacuteprios livros fazia de sua representaccedilatildeo algo que provo-casse o riso do leitor Para citar um caso havia uma famosa piada criada por Bastos Tigre e publicada por Catullo em O milagre de Satildeo Joatildeo da sua funccedilatildeo (que nunca chegou a exercer) como datiloacutegrafo no Ministeacuterio da Viaccedilatildeo Quando da Revoluccedilatildeo de 30 o novo chefe de reparticcedilatildeo mandou chamaacute-lo e indagado sobre qual maacutequina preferia Catullo depois de coccedilar a cabeccedila respondeu ldquoPrefiro uma Singerrdquo ldquoSingerrdquo era a marca de uma maacutequina de costura344

A compreensatildeo portanto daquela desconstruccedilatildeo soacute pode ser en-tendida pela necessidade de reconstruccedilatildeo do poeta vista pelo novo ces-sionaacuterio dos direitos do autor Para melhor dizer de uma reabilitaccedilatildeo de Catullo pela construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo diferente de um poeta pelo qual tinha uma ldquoveneraccedilatildeo profundardquo As lutas de representaccedilotildees no iniacutecio do texto de Poemas escolhidos satildeo incessantes

A ldquoNotardquo continua tentando atacar outra representaccedilatildeo cara ao poeta aquela que o descreve como algueacutem com excesso de orgulho Essa empresa como vimos anteriormente era muito comum na carac-terizaccedilatildeo de Catullo inclusive sendo reafirmado pelo poeta em seus prefaacutecios e alguns poemas muitas vezes como forma de afirmar seu lugar como poeta distinto em vaacuterios momentos de sua trajetoacuteria

Evocando o fato de conhececirc-lo proacuteximo o autor da nota defende o poeta daqueles que o julgam ldquosem conhecer o nosso grande Cantorrdquo

Haacute indiviacuteduos que sem conhecer o nosso grande Cantor da selva e da cidade datildeo elementos ao historiador e ao criacutetico para uma biografia apoacutecrifa Julgam-no em excesso de orgulhoso Quando os que o co-nhecem pessoalmente sabem que ecircle eacute um homem de pasmosa sim-plicidade O que haacute em Catulo natildeo eacute orgulho eacute a exata compreensatildeo do valor de sua obra valor aliaacutes reconhecido pelos grandes vultos da intelectualidade universal345

344 Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Op cit p 184345 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 23

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Por fim o autor da nota atira contra uma compreensatildeo que en-xerga Catullo ndash que escrevera muitos dos seus poemas com a represen-taccedilatildeo de um personagem dotado de um linguajar sertanejo cheio de erros gramaticais ndash como algueacutem que como seus personagens escrevia errado A nota dispara que ldquoCatulo escreve no linguajar sertanejo ou na linguagem gramatical portanto com gramaacutetica ou sem gramaacutetica ele eacute um grande Poetardquo346

Os textos que antecedem a leitura de Poemas escolhidos no en-tanto natildeo se encerram com os dados biograacuteficos e notas explicativas Seguindo uma foacutermula jaacute bastante comum nos livros anteriores do poeta aparecem na publicaccedilatildeo os ldquoJuiacutezos Criacuteticosrdquo de nomes ilustres do mundo das letras A diferenccedila eacute que se nos livros anteriores de Catullo as apreciaccedilotildees sobre sua pessoa e sobre sua obra aparecem ao final da publicaccedilatildeo em Poemas escolhidos o editor faz publicar antes da apresentaccedilatildeo dos poemas A colocaccedilatildeo desses ldquoJuiacutezosrdquo no iniacutecio do livro parecia visar a fazer parte de toda uma preparaccedilatildeo para que a apro-priaccedilatildeo do livro pelo leitor pudesse se dar a partir daquelas apreciaccedilotildees positivas Trata-se portanto de uma preparaccedilatildeo para uma leitura

Nos ldquoJuiacutezosrdquo eacute possiacutevel ver o desfile de vaacuterios representantes letrados conhecidos do periacuteodo dando opiniotildees sobre Catullo Desde o jurista Cloacutevis Bevilaacutequa que abre os textos chamando Catullo de ldquopoeta genialrdquo347 passando por Juacutelio Dantas escritor portuguecircs que diz ser o autor um ldquogenial Virgiacutelio caboclordquo e que seria ldquomuito maior do que os seus admiradores o julgamrdquo348 Rui Barbosa para quem os versos de Catullo satildeo ldquode um encanto irresistiacutevel satildeo mais belo docu-mento da natureza e da vida dos sertotildees brasileiros que a sua musa enfeiticcedila e parece recriarrdquo349 Raul Pederneiras ldquoCatulo honra os seus mestres (pois que nunca os teve) tendo-se feito por si mesmordquo350

346 Idem347 Ibidem p 31348 Ibidem p 31349 Ibidem p 32350 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 39

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Monteiro Lobato ldquoSoacute tu eacutes Brasil da cabeccedila aos peacutes e escreves para o Brasil []rdquo351 e o maestro Heitor Villa Lobos

Acompanhando-se ao violatildeo e cantando uma das suas composiccedilotildees Catullo eacute extraordinaacuterio eacute arrebatador Duvido que haja coraccedilatildeo insen-siacutevel aacute sua arte No seu gecircnero foi o maior cantor do Brasil[]O Catulo eacute o maior da terra que o Brasil possui352

Aquela antologia respondia sem duacutevida ao desejo de Guimaratildees Martins de uma leitura enviesada do livro que reafirmasse uma repre-sentaccedilatildeo que desse mais credibilidade a um autor que como Catullo tinha sua trajetoacuteria questionada por diversas vezes

Tambeacutem natildeo se podem perder de vista os objetivos editoriais da publicaccedilatildeo que ganhava com a demonstraccedilatildeo para o leitor de que ele acabara de adquirir um livro de autor consagrado por pessoas distintas E Poemas escolhidos chegaria a quatro ediccedilotildees em dois anos Zeacutelio Valverde inclusive publicizava-a em jornais chamando a atenccedilatildeo para a antologia de opiniotildees por intelectuais consagrados Apresentava a pu-blicaccedilatildeo como tendo ldquoaleacutem das melhores produccedilotildees do apreciado poeta muacutesico e cantor contecircm essa obra vaacuterios trabalhos ineacuteditos do mesmo e juiacutezos criacuteticos de diversos intelectuais a seu respeitordquo353

Zeacutelio tambeacutem apostou na promoccedilatildeo de uma tiragem diferente e mais cara Sendo vendido por 18 cruzeiros a ediccedilatildeo comum de Poemas escolhidos natildeo teria o mesmo formato de 150 exemplares especiais que seriam vendidos por 100 cruzeiros cada A tiragem mais cara se justifi-cava por trazer aleacutem do autoacutegrafo do proacuteprio autor caricaturas de Catullo feitas por diversos artistas e vendagem em ldquopapel especialrdquo Para o leitor atual ter uma ideia do preccedilo da publicaccedilatildeo bastaria citar o preccedilo de um livro de Eacutemile Zola O paraiacuteso das damas que era vendido ao preccedilo de 25 cruzeiros enquanto o Contrato social de Rousseau saiacutea

351 Ibidem p 37352 Ibidem p 35353 Correio da Manhatilde 19 nov 1944 p 6

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por 13 cruzeiros e Meu sertatildeo do proacuteprio Catullo em sua 40ordf ediccedilatildeo pela editora A Noite era comercializado por 10 cruzeiros na livraria ParaTodos354 do Rio de Janeiro Embora obviamente o preccedilo dependa de vaacuterios criteacuterios (novidade ediccedilatildeo luxuosa autor volumes etc) eacute possiacutevel compreender em parte o valor de uma tiragem diferente como a de Poemas escolhidos

Juizos criacuteticos se encerra depois de 66 paacuteginas de notas antolo-gias e advertecircncias A primeira parte do livro ldquoO poeta muacutesico e cantorrdquo consta de letras (poemas) de Catullo Poreacutem antes da apresen-taccedilatildeo delas ao leitor o autor volta a aparecer explicando o porquecirc de publicar modinhas naquela ediccedilatildeo Com um tiacutetulo-dedicatoacuteria ldquoAos companheiros da lsquoVelha Guardarsquordquo o poeta conta que a ideia do livro com poemas partira de Guimaratildees Martins

Ecircsse gigante argumentador convenceu-me de que eu devia publicar esta antologia para o consocirclo dos velhos natildeo os privando decircsse prazer muito embora todos noacutes saibamos que a poesia antiga vai mor-rendo com a entrada triunfal da poesia moderna E acrescentou esta verdade ldquoSe ela jaacute vitoriosa conquistou os moccedilos natildeo conquistaraacute os velhosrdquo Guimaratildees Martins me disse tais coisas que eu acabei apro-vando a sua ideacuteia355

Se o criacutetico do jornal Gazeta de Notiacutecias como vimos acima e o proacuteprio esforccedilo de Guimaratildees Martins nas notas explicativas da publi-caccedilatildeo procuravam chamar a atenccedilatildeo para o sentido de mostrar o poeta aos novos leitores em um novo livro Catullo na contramatildeo via uma oportunidade para se deleitar ao lado do que ele chamava de ldquoVelha Guardardquo com a rememoraccedilatildeo daqueles velhos poemas em contraposiccedilatildeo agrave ldquopoesia modernardquo Mas conta Catullo ateacute aiacute natildeo pensava em incluir suas velhas modinhas de que foi convencido novamente por Martins

As diferenccedilas de objetivos de Catullo e Guimaratildees satildeo aqui ex-plicitas Enquanto o primeiro via na publicaccedilatildeo de Poemas escolhidos a oportunidade para com o seu sucesso disparar contra o que ele cha-

354 Publicidade da Livraria Paratodos Cf Correio da Manhatilde 7 set 1945 p 10355 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 71

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mava de ldquopoesia modernardquo Guimaratildees Martins como organizador e novo cessionaacuterio das obras de Catullo buscava dar prioridade agrave criaccedilatildeo de um novo puacuteblico consumidor de livros

A Catullo ainda interessava reafirmar suas poesias contra os novos poetas ndash que ele chama ldquoprofetasrdquo Daiacute nessa explicaccedilatildeo que abre a seccedilatildeo em que contava o porquecirc de publicar as suas modinhas interessar antes dizer para quem as escrevia

Eacute natural que os profetas de hoje riam dessas canccedilotildees mas os velhos choraratildeo sentindo ao lecirc-las beneacutevolas lembranccedilas da sua juventude Meus amigos estas modinhas pertencem a vocecircs Vocecircs natildeo estra-nharatildeo a meacutetrica irregular pois que as poesias musicadas obedecem agraves exigecircncias da melodia Ainda se lembram dessas melodias Pois entatildeo peguem nos seus pinhos e cantem-nas Agradeccedilam a Guimaratildees Martins vecirc-las relembradas neste livro356

A Catullo interessava reapresentaacute-las a seu puacuteblico relembraacute-las para aqueles que jaacute as conheciam A Guimaratildees Martins o objetivo era mais do que o poeta angariar um maior nuacutemero de leitores Talvez por isso mesmo o organizador buscasse a cada apresentaccedilatildeo das modinhas e dos poemas explicar do que se tratava cada uma quase sempre con-tando uma histoacuteria consagradora Explicaccedilatildeo desnecessaacuteria se visasse tatildeo somente agrave ldquoVelha Guardardquo como dizia Catullo sabedor das ldquogloacute-riasrdquo do poeta

Daiacute quando apresenta a poesia O violatildeo que abre a seccedilatildeo ldquoO poeta o muacutesico e o cantorrdquo Martins explicar a histoacuteria da poesia

Quando Catulo depois de muito instado e haacute [sic] muito custo frequen-tava os salotildees da alta sociedade no tempo em que era dela repudiado antes de cantar costumava recitar a bela poesia de que vamos extrair apenas estas estrofes []357

Enquanto isso Catullo investia em sua dedicatoacuteria contra os ldquopo-etas modernistasrdquo

356 Ibidem p 70357 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde

1944 p 72

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Tocircda essa poesia dos poetas modernistas (com rariacutessimas exceccedilotildees) natildeo vale a canccedilatildeo de uma serenata que passa aleacutem dos jardins da noite dialogando com a celestinagem das estrelas e as claridades da lua a inspiradora dos sonhos da nossa saudosiacutessima mocidade358

A seccedilatildeo continua com o desfile de modinhas como o Luar do sertatildeo e Cabocircca de Caxangaacute Todas as modinhas transcritas ndash assim como os poemas das seccedilotildees posteriores ndash vinham legendadas com ex-plicaccedilotildees de Guimaratildees Martins Em Cabocircca de Caxangaacute por exemplo o organizador observa ter sido um sucesso no carnaval de 1913 ldquoo que causou grande desgosto a seu autor que natildeo a escreveu para tal fimrdquo359 enquanto Luar do sertatildeo conhecida pelas novas geraccedilotildees por tocar as-siduamente nas raacutedios e motivo de grandes controveacutersias por conta de sua autoria aparece sem nenhuma explicaccedilatildeo aleacutem de uma dedicatoacuteria a Antocircnio Barnabeacute de Campos e uma nota de que fora publicada pela primeira vez no livro Florileacutegio dos cantores360

A publicaccedilatildeo segue com a mesma foacutermula para as outras seccedilotildees (ldquoO poeta braviordquo e ldquoO poeta cultordquo) Nota-se que tais separaccedilotildees vi-savam a demonstrar trecircs fases distintas de Catullo Na primeira enten-dia-se que o autor fora um poeta de modinhas daiacute as poesias-modinhas transcritas serem indicadas como tendo sido publicadas em livros pu-blicados por ele antes de Meu sertatildeo Um poema dessa obra por sua vez aparece abrindo a segunda seccedilatildeo ndash sob o tiacutetulo de ldquoO poeta braviordquo ndash demonstrando para o leitor que nesse livro aparecia o poeta sertanejo que falava o linguajar do sertanejo Portanto o poeta natildeo culto ldquoO poeta cultordquo tiacutetulo natildeo gratuito aparece na terceira seccedilatildeo que abre com um poema escrito num linguajar ldquogramaticalrdquo retirado do livro Um ca-boclo brasileiro

Essa separaccedilatildeo da trajetoacuteria de Catullo era jaacute uma representaccedilatildeo bastante difundida por aqueles que conheciam sua produccedilatildeo O poeta das modinhas o poeta sertanejo e o poeta do linguajar culto represen-tavam os trecircs cortes fundamentais em sua trajetoacuteria literaacuteria O curioso

358 Ibidem p 71 359 Ibidem p 99360 Ibidem p 85-91

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eacute que se o poeta das modinhas aparecera como organizador de livros com letras de modinhas e tentando regrar a leitura de tais versos em Poemas escolhidos os versos de Catullo eram regrados com insistecircncia por Guimaratildees Martins com paacuteginas recheadas de notas explicativas e notas de rodapeacute legendando para o leitor o contexto de produccedilatildeo de cada poema

Um exemplo disso pode ser visto no uacuteltimo poema do livro cujo tiacutetulo eacute uma dedicatoacuteria ldquoAgrave lsquoMiss Maranhatildeorsquo senhorita Maria de Lourdes Pantoja por ocasiatildeo do concurso para lsquoMiss Brasilrsquordquo Gui-maratildees Martins escreve a nota de rodapeacute do poema que eacute uma expli-caccedilatildeo para o leitor

Esta poesia foi publicada em vaacuterios jornais do Brasil por ocasiatildeo do concurso de beleza para a escolha de ldquoMiss Brasilrdquo ldquoMiss Maranhatildeordquo apesar de ser de uma beleza rara de esmerada educaccedilatildeo e cultura inte-lectual nem foi classificada O grande Catulo poreacutem retratou-a moral e psicologicamente nestes versos361

Poreacutem se as notas explicativas abrem e avultam em todo livro elas tambeacutem o encerram Com o tiacutetulo de ldquoDeclaraccedilatildeo necessaacuteriardquo estrategicamente Guimaratildees Martins faz aparecer todos os docu-mentos do processo que cedeu os direitos autorais das obras de Catullo para sua pessoa

Esses documentos representam pela riqueza com que transmitem os tracircmites necessaacuterios para o repassamento de uma propriedade autoral agrave eacutepoca e pelas pessoas que dela participam um raro vestiacutegio de como se dava o processo de transmissatildeo autoral no Brasil da deacutecada de 1940 e pela forma como ele aparece (fazendo parte da publicaccedilatildeo) cons-tando inclusive no iacutendice que abre o livro um exemplo completo das diversas representaccedilotildees da autoridade sobre o impresso no Brasil Sobretudo de uma disputa por essa autoridade nas paacuteginas de uma obra natildeo faltando apariccedilotildees de editores organizadores autor e leitor

Voltemos portanto a ela ldquoDeclaraccedilatildeo necessaacuteriardquo trata-se de um documento escrito por Catullo datado de 9 de abril de 1944 e registrado

361 Ibidem p 392

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no Cartoacuterio Frontim de registros de tiacutetulos e documentos cedendo os direitos das suas obras a Guimaratildees Martins advertindo penalidades agravequeles que os tentassem infringir

Pelo presente documento declaro que o meu cessionaacuterio e represen-tante Joseacute Martins de Moraes Guimaratildees que se assina artiacutestica e lite-rariamente Guimaratildees Martins eacute o uacutenico autorizado durante a minha vida e depois do meu falecimento a reproduzir anotar comentar ou melhorar qualquer das minhas obras autorizaccedilatildeo que dou de acordo com o Coacutedigo Civil Qualquer pessoa que infringir os dispositivos do Coacutedigo Civil fazendo traduccedilotildees adaptaccedilotildees arranjos fantasias pre-fixos musicais ou quaisquer outras modificaccedilotildees sem a expressa au-torizaccedilatildeo escrita do meu referido cessionaacuterio e representante seraacute por este processado civil e criminalmente362

Lanccedilando matildeo na proacutepria publicaccedilatildeo de advertecircncia escrita por Catullo Guimaratildees Martins estabelecia a propriedade da publicaccedilatildeo atraveacutes da lei e de quebra tratava de demonstrar para o leitor sua auto-ridade pela autorizaccedilatildeo do autor Portanto o que se configurava eacute que mesmo Catullo sendo o autor da publicaccedilatildeo a autoridade sobre ela re-caiacutea nas matildeos de Martins O ldquoParecerrdquo assinado por Cloacutevis Bevilaacutequa que Martins tambeacutem faz publicar no livro deixa isso mais claro

Tendo lido os bem elaborados Pareceres dos ilustres colegas drs Prado Kelly e Monteiro da Silva o instrumento de cessatildeo que Catullo da Paixatildeo Cearense faz dos seus direitos autorais ao sr Guimaratildees Martins e mais documentos que acompanham a Consulta opino do modo seguintea) A lei nordm 496 de 1ordm de agosto de 1898 artigo 4ordm sect1ordm estatuiu que as cessotildees entre vivos do direito autoral durariam trinta anos findos os quais recobraria o autor os seus direitos se ainda existisse Lei suple-tiva permitia que o prazo fosse diminuiacutedo mas nunca aumentadob) Essa determinaccedilatildeo da lei entendia-se incerta em toda cessatildeo entre vivos de direito autoral ex vi legisc) Portanto a cessatildeo atual feita a Guimaratildees Martins compreende 1ordm todos os contratos anteriores realizados na vigecircncia da lei de 1ordm agosto de 1898 que jaacute perfizeram trinta anos a contar da respectiva data 2ordm

362 Ibidem p 393

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todos os contratos realizados na vigecircncia da referida lei logo que se complete o prazo de trinta anos contados da respectiva data porque em ambos os casos ou jaacute se operou ou iraacute operar-se a reversatildeo dos direitos autorais ao autord) Quanto agraves cessotildees anteriores realizadas na vigecircncia do Coacutedigo Civil entendo que se regem pelo direito comum regulado no mesmo Coacutedigo Salvo claacuteusula em contraacuterio o cessionaacuterio sucede o autor nos direitos que lhe reconhece o Coacutedigo Civil artigo 649 sectsect 1ordm e 2ordmEssas cessotildees natildeo entram na aquisiccedilatildeo feita por Guimaratildees Como o dr Otaacutevio Moreira da Silva penso que a lei nordm 496 de 1ordm de agosto de 1898 foi revogada pelo Coacutedigo CivilA restauraccedilatildeo que faz de alguns artigos dela a lei nordm 4790 de 2 de ja-neiro de 1924 somente a esses dispositivos se refereRio de Janeiro 10 de abril de 1944363

A passagem requer algumas explicaccedilotildees A Lei Medeiros e Albuquerque como ficou conhecida a lei criada em 1898 para proteger direitos autorais reconhecia juridicamente direitos autorais como pro-priedade Portanto o caraacuteter de invenccedilatildeo subjacente a uma obra natildeo era coroada senatildeo quando ela fosse assim registrada ou seja ldquogarantia o registro da obra como condiccedilatildeo de sua protegibilidade e garantia sua proteccedilatildeo por apenas 50 anos contados da primeira publicaccedilatildeordquo364 Aleacutem disso estabelecia que a cessatildeo de um direito a um terceiro duraria trinta anos O Coacutedigo Civil de 1917 reafirmava tais prerrogativas e alertava para os locais de registro de tais propriedades na Biblioteca Nacional para obras literaacuterias e cientiacuteficas no Instituto de Muacutesica para composi-ccedilotildees musicais na Escola de Belas Artes para aquelas de caraacuteter artiacutes-tico Associaccedilotildees como a SBAT ficariam encarregadas de fazer tais registros e fazer a cobranccedila pelos artistas

Todas essas leis tentavam responder pela questatildeo do direito de uma produccedilatildeo intelectual Se socialmente a representaccedilatildeo do indi-

363 MARTINS Guimaratildees Advertecircncia sobre direitos autoraes In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944 sp

364 SARDAS Letiacutecia de Farias Lineamentos do direito de autor na sociedade da infor-maccedilatildeo Coimbra Faculdade de Direito de Coimbra sd Disponiacutevel em httpwwwtjrjjusbrcdocument_libraryget_fileuuid=9ff3a1c9-8bc5-4392-a036-e86b815a4c58amp-groupId=10136 Acesso em 11 jun 2020

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viacuteduo que cria era glamourizada a lei natildeo referendava tal representaccedilatildeo criando o autor-proprietaacuterio dono dos direitos autorais O regime de propriedade vigente no comeccedilo do seacuteculo trouxe vaacuterias vezes uma dis-cussatildeo sobre quem detinha a autoridade uacuteltima sobre um produto inte-lectual se o autor ou o proprietaacuterio

Por isso eacute algo compreensiacutevel que diversos criadores de obras natildeo vissem problemas em vender suas produccedilotildees para um comprador pois por diversas vezes vender daria mais lucro do que obter direitos autorais sobre determinada produccedilatildeo Assim era comum nesse pe-riacuteodo ver anuacutencios como o do jornal A Noite em que chamava a atenccedilatildeo para os compositores de muacutesica ldquoCompram-se os direitos autoraes de todas as ldquoNovidades Carnavalescasrdquo para perfuraccedilatildeo de ldquoRolos de Muacutesicardquo Para tratar na ldquoFaacutebrica Excelsior ndash R Villela amp C Rua Evaristo da Veiga nordm 28 ndash Riordquo365

A Guimaratildees Martins eram cedidos todos os direitos pecuniaacuterios das obras de Catullo registrados desde a criaccedilatildeo da lei de 1898 ateacute 1914 ndash portanto aquelas que se estivessem em propriedade de terceiros completariam em 1944 trinta anos E mais os contratos firmados de-pois dessa data (1914) com editores dos livros de Catullo estariam com a cessatildeo de direitos dividida entre Martins e os donos de tais direitos de propriedade (como a editora Bedeschi e a editora A Noite que continu-aram a publicar ediccedilotildees dos livros de Catullo por direito de contrato)

A advertecircncia sobre essas prerrogativas judiciais aparece ao final do livro quando finalmente Guimaratildees Martins declara

Toda poesia poema ou canccedilatildeo constante deste e dos demais livros de Catulo da Paixatildeo Cearense soacute poderaacute ser recitado cantado ou execu-tado por instrumento ou conjunto em raacutedio teatro ou cinema com ingresso pago ou outra forma de remuneraccedilatildeo sendo dado conheci-mento agrave Sociedade Brasileira de Autores Teatrais agrave Avenida Almirante Barroso nordm 97 3ordm andar Esplanada do Castelo Rio de Janeiro Brasil ou a seus representantes nos Estados do Brasil e no estrangeiro que eacute uacutenica entidade juriacutedica autorizada para efetuar o recebimento da taxa de execuccedilatildeo puacuteblica Guimaratildees Martins366

365 A Noite 11 dez 1918 p 6366 MARTINS Guimaratildees Advertecircncia sobre direitos autoraes In CEARENSE Catullo da

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo276

Os meandros da produccedilatildeo de autoridade sobre os impressos no Brasil da primeira deacutecada do seacuteculo XX instituiacuteram diversas taacuteticas autorais que cotidianamente jogavam com as estrateacutegias dos deten-tores de propriedade Essas lutas foram travadas diversas vezes nas proacuteprias publicaccedilotildees A uma tentativa de regrar a circulaccedilatildeo de textos juridicamente contrapunha-se uma receita inventiva de construccedilatildeo so-cial de autoridade sobre os mesmos textos de forma que eacute possiacutevel pensar que existiam pelo menos dois tipos de autoridade sobre im-pressos aquela juridicamente referendada que Guimaratildees Martins ten-tava estabelecer por meio dos proacuteprios textos publicados sob sua res-ponsabilidade e aquela socialmente construiacuteda que fazia com que determinado criador fosse representado como autor mesmo natildeo sendo o dono de sua criaccedilatildeo

O caso de Catullo em Poemas escolhidos eacute emblemaacutetico princi-palmente se compararmos com a sua querela com Joatildeo Pernambuco acerca de Luar do sertatildeo Laacute como vimos Catullo lanccedilou matildeo de um discurso de autoria que levava em conta a propriedade ldquoregistrei na Escola Nacional de Muacutesicardquo Em seus antigos livros de modinhas as estrateacutegias autorais eram construiacutedas nos livros pela correccedilatildeo das modi-nhas e pela sua representaccedilatildeo como um homem letrado e em outros momentos a autoria era construiacuteda pela traduccedilatildeo ndash no caso dos poemas sertanejos onde Catullo evocava a alma sertaneja que melhor falava por ele como forma de afirmar sua autoridade na representaccedilatildeo do sertatildeo Em Poemas escolhidos flagramos a tensatildeo subjacente na disputa entre um organizador que diferentemente de Catullo com seus livros de modinhas dialogava e contrastava muitas vezes com o regra-mento da leitura intentada pelo poeta

Essa foacutermula se repetiria com a publicaccedilatildeo pela editora Aurora de O testamento da aacutervore uacuteltimo livro publicado por Catullo em vida em fins de 1945

Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 277

O livro derradeiro

Ainda em meados dos anos 1930 o jornal A Noite saiu com uma reportagem pelo menos curiosa O Serviccedilo Photographico do jornal mandava de Londres (Inglaterra) a fotografia de uma inglesa deitada com oacuteculos estranhos no rosto lendo um livro distraidamente Com o tiacutetulo de ldquoDescansar o corpo deleitando o espiacuteritordquo a reportagem expli-cava a fotografia alertando para novas formas de se ler

Ler deitado eacute a preocupaccedilatildeo de muita gente Principalmente dos como-distas que apreciam reunir o uacutetil ao agradaacutevelEsta preocupaccedilatildeo quase que utoacutepica de descanccedilar o corpo deleitando o espiacuterito entretanto eacute agora perfeitamente viaacutevel Um assiacuteduo leitor britacircnico acaba de inventar um par de oacuteculos que permite ler-se no livro emquanto o corpo em posiccedilatildeo horizontal descanccedila confortavel-mente estirado numa cama ou numa ldquochaise-longuerdquoA gravura mostra os oacuteculos retrospectivos cumprindo a sua uacutetil funccedilatildeo367

Ler deitado era como diz a reportagem uma preocupaccedilatildeo jaacute sa-bida O incocircmodo que poderia causar tal leitura jaacute estava sendo contor-nado em Londres tornando possiacutevel uma leitura ldquouacutetilrdquo e ldquoagradaacutevelrdquo principalmente dos ldquocomodistasrdquo Os curiosos oacuteculos lanccedilam luz sobre as diversas praacuteticas de leitura possiacuteveis A necessidade de uma leitura ldquoagradaacutevelrdquo e confortaacutevel frisada pela reportagem natildeo passou desa-percebida pelos editores brasileiros do periacuteodo

O boom editorial no Brasil consequecircncia do bloqueio de impor-taccedilotildees provocado pela Segunda Guerra Mundial resultou em um maior espaccedilo para o consumo do livro de autor nacional Os projetos editoriais do governo por sua vez fizeram com que coleccedilotildees envolvendo autores nacionais avultassem nas livrarias e embora com seacuterios problemas de materiais para a produccedilatildeo de livros com os custos crescentes de uma ediccedilatildeo e sob forte interferecircncia poliacutetica depois da instituiccedilatildeo do Estado

367 A Noite 24 jun 1936 p 6

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo278

Novo varguista a partir de 1937 nada disso foi empecilho para que o haacutebito do consumo de livros no Brasil aumentasse assustadoramente Isso fez que inuacutemeros projetos editoriais surgissem no paiacutes Instalada no centro do Rio de Janeiro a editora Aurora lanccedilou um projeto auda-cioso de pocket-books que ganhou o nome de ldquoColeccedilatildeo Azulrdquo

A editora que tinha sua proacutepria graacutefica (localizada no mesmo endereccedilo) comeccedilou a produzir livros em pequenos formatos com obras de autores nacionais e estrangeiros Visando a um novo leitor em cons-tante movimento o editor tratava de salientar os benefiacutecios da coleccedilatildeo para seus leitores

Coleccedilatildeo Azul apresenta-se num formato elegante e praacutetico O cava-lheiro pode trazecirc-lo no bolso de seu casaco a senhora em um canto de sua bolsa sem que isso lhes cause o menor transtorno A variedade dos gecircneros publicados proporcionaraacute ao leitor a escolha da leitura de sua preferecircncia a modicidade do preccedilo tornando os livros acessiacuteveis a qualquer orccedilamento colocam sem duacutevida a Coleccedilatildeo Azul entre as que mais diretamente atendem aacutes exigecircncias do leitor []368

Reeditando uma foacutermula de sucesso desde o comeccedilo do seacuteculo (vide a livraria Quaresma no primeiro capiacutetulo desse trabalho) a edi-tora Aurora apostava no livro barato e voltado para um puacuteblico diferen-ciado A Coleccedilatildeo Azul assim colocava agrave disposiccedilatildeo para o consumidor de livros ldquoos mais famosos livros dos mais ceacutelebres autores e facili-tando a escolha entre os gecircneros que mais lhe agradem pela impor-tacircncia de Cr$ 600 apenasrdquo369 e apostava na publicidade das obras sa-lientando nelas uma ldquobem cuidada confecccedilatildeordquo de ldquosuave entretenimento no aconchego do lar ou a caminho do trabalhordquo370

Contudo a editora Aurora natildeo era especialista apenas em pu-blicar livros claacutessicos Manuais praacuteticos como O volante profissional

368 Publicidade constante na contracapa do livro de Catullo Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Rio de Janeiro Aurora 1945 Contracapa

369 Idem370 Publicidade no jornal A Noite 19 jul 1946

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 279

anunciado como um ldquomeacutetodo faacutecil e praacutetico para conhecer o motor [] e outros oacutergatildeos do automoacutevelrdquo371 era vendido com bastante sucesso

Outro grande investimento da editora Aurora foi a publicaccedilatildeo de livros para mulheres Novelas como Racilba a mulher sem coraccedilatildeo escrita por F de Carvalho que era anunciada como tendo sido ldquoescrita especialmente para a sensibilidade da mulher brasileirardquo e o editor ainda alertava que

A leitora poucas vezes teraacute encontrado uma obra tatildeo profundamente humana com diaacutelogos claros numa sucessatildeo constante de sorrisos e laacutegrimas riqueza de cenaacuterios e vivacidade de accedilatildeo[] Uma linguagem clara que todos perfeitamente compreendem372

Anunciado como o livro do momento Racilba mulher sem co-raccedilatildeo o editor ainda afirmava ser ldquouma histoacuteria que ensina a jovem a viver e a se livrar dos perigos da vidardquo373 Racilba era um texto que tinha feito muito sucesso com sua representaccedilatildeo nos microfones da Raacutedio Club em 1942 e acarretado grandes concursos entre o puacuteblico feminino que se digladiava para ganhar perfumes e poacute de arroz Antevendo o sucesso que a publicaccedilatildeo da novela de Edgar de Carvalho poderia ter o editor preparou uma brochura de 250 paacuteginas que apre-sentava como tendo uma capa em ldquoGoulart tricromiardquo

Mas essa tentativa de seduzir o leitor teve mesmo grande reper-cussatildeo com o lanccedilamento da Coleccedilatildeo Azul A coleccedilatildeo com obras de claacutessicos com o preccedilo barateado e o seu formato compatiacutevel com qual-quer tipo de portabilidade fez sucesso agrave eacutepoca O cataacutelogo da coleccedilatildeo indica-nos os autores comercializados

1 - Amores do Diabo J Gazotte2 - O iacutendio Afonso Bernardo Guimaratildees3 - O correio de Liatildeo P Zaccone4 - O uacuteltimo dia de um condenadoV Hugo

371 Publicidade no jornal Gazeta de Notiacutecias 18 out 1946 sn372 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Op cit sn373 Idem

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo280

5 - Noites brancas Dostoievski6 - Acuso E Zola7 - Luz interior Balzac8 - O corcunda de Notre Dame V Hugo

Salta aos olhos a quantidade de traduccedilotildees efetuadas nas primeiras publicaccedilotildees da Coleccedilatildeo Com exceccedilatildeo de Bernardo Guimaratildees todos os autores satildeo estrangeiros e nenhum autor entatildeo vivo A primeira pu-blicaccedilatildeo de um autor vivo pela Coleccedilatildeo Azul saiu na segunda metade de 1945 era O testamento da aacutervore de Catullo Para o autor tratava-se de uma publicaccedilatildeo que jaacute vinha agrave luz com ecircxito pois fora declamada com sucesso em vaacuterios eventos

A publicaccedilatildeo era apresentada em duas ediccedilotildees diferenciadas A primeira vinha com ldquoesmerada feitura artiacutesticardquo como foi anunciada e era destinada aos ldquointelectuaisrdquo Foi publicada pela livraria Pan Ameri-cana do meacutedico gauacutecho Jorge Gertum Carneiro e seu irmatildeo o enge-nheiro Antocircnio e pelo refugiado de guerra da Alemanha Frederico Mannheimer que se iniciara na publicaccedilatildeo de livros em 1939 A se-gunda ediccedilatildeo era destinada agrave ldquovulgarizaccedilatildeordquo para ldquoser difundida pelas escolas e pelo povordquo374 Essa uacuteltima sairia pela Coleccedilatildeo Azul

A diferenccedila da publicaccedilatildeo pela editora Aurora aleacutem do preccedilo mais barato do que a ediccedilatildeo destinada aos intelectuais era a inserccedilatildeo de vaacuterias ilustraccedilotildees de Catullo feitas por diferentes artistas Laacute eacute possiacutevel ver um desenho de capa e charges de Catullo produzidos por Moura Jordatildeo de Oliveira Mendez Jerocircnimo Ribeiro todos em preto e branco e uma imagem colorida do poeta vestido de marrueiro o personagem que o consagrara feita por Armando Pacheco A obra tambeacutem traz vaacute-rias fotografias do autor em vaacuterios momentos da sua vida

Na obra ndash que Catullo dedica a Apollonia Pinto Coelho Netto Humberto de Campos Fred Figner e ao General Tasso Fragoso ndash os direitos de propriedade satildeo relembrados por Guimaratildees Martins que faz publicar no final do livro todo o processo de cessatildeo dos direitos que anteriormente havia publicado em Poemas escolhidos

374 Gazeta de Notiacutecias 4 nov 1945

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 281

O testamento da aacutervore lido aliaacutes por Catullo em eventos dos quais participara parecia ser uma obra jaacute havia algum tempo espe-rada pelo puacuteblico admirador do poeta A histoacuteria do poema tratava de um testamento ditado por uma aacutervore moribunda aos paacutessaros e outras aacutervores e que um poeta escondido atraacutes da aacutervore ouviu Catullo ex-plica no iniacutecio

Assim falou a aacutervore moribunda aos paacutessaros e aacutes outras aacutervores da floresta antes de ditar seu testamentoUm poeta escondido por detraacutes de um copatildeo de mato sem que ela o visse anotando as suas palavras traduziu-as para a nossa liacutengua nas estrofes que se seguem375

Natildeo faltaram em O testamento as conhecidas opiniotildees sobre ele mesmo No iniacutecio da publicaccedilatildeo sob o tiacutetulo de ldquoAo leitorrdquo o poeta explica o nascimento do poema

De umas poucas sementinhas de Trilussa em dialeto brotou este jardim de flores tatildeo variadasMuitos poetas tecircm escrito sobre as aacutervores mas nenhum com mais ca-rinho do que euAssim poderei ficar sem orgulho de ora em diante como um dos seus maiores cantores e incontestavelmente o seu maior inteacuterprete376

O poema se divide em trecircs partes com tiacutetulos autoexplicativos ldquoA aacutervore assim ditou seu testamentordquo ldquoA aacutervore vai contar o sonho que sonhourdquo e ldquoA aacutervore ditando as suas uacuteltimas vontadesrdquo Ao final o editor e o organizador fazem aparecer duas sessotildees A primeira com o tiacutetulo de ldquoPolianteacuteia sobre o poeta organizada e anotada por Guimaratildees Martinsrdquo na explicaccedilatildeo do editor da obra satildeo ldquofragmentos de juiacutezo-criacute-ticos de maranhenses terra de Catullo selecionados e anotados por Guimaratildees Martinsrdquo377

375 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Op cit p 25376 Idem p 21377 Idem p 87

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo282

Continuando uma foacutermula que apareceu em vaacuterias publicaccedilotildees de Catullo o organizador do livro faz aparecer opiniotildees elogiosas sobre o poeta Nessa primeira seccedilatildeo aparecem vaacuterios nomes de le-trados maranhenses Aleacutem do proacuteprio Guimaratildees Martins desfilam opiniotildees elogiosas de entre outros Padre Astolfo Serra o poeta Manoel Sobrinho o interventor Paulo Ramos Inaacutecio Raposo (que es-crevera juntamente com o poeta a primeira grande peccedila de Catullo O marrueiro) Coelho Neto Artur Azevedo Humberto de Campos e Domingos Barbosa que tem o seu texto publicado no Jornal do Brasil do Rio de Janeiro citado na iacutentegra Nele fazendo uma apreciaccedilatildeo sobre o livro Poemas escolhidos Domingos vai atirar contra os criacute-ticos de Catullo Vale a citaccedilatildeo

A obra poeacutetica de Catullo natildeo pode ser mais objeto de criacuteticaPassou em julgado[]Ecircle eacute o maior poeta popular do BrasilMuito bem andou Guimaratildees Martins com enfeixar no volume em apreccedilo tanto a letra de modinhas que Catullo compocircs e cantava quando mocircccedilo e seresteiro quanto versos que o poeta escreveu natildeo no linguajar sertanejo da maioria de suas poesias e que lhes daacute intenso sabor local mas em linguagem eruditaServem as modinhas para mostrar aos estudiosos como eacute que se deu a evoluccedilatildeo da sua arteE servem os versos rimados e metrificados em linguagem culta para mostrar a julgadores levianos e imponderados que Catullo quando se utiliza do modo de falar roceiro ou popular eacute muito propositalmente que o faz para dar um tom mais fortemente regional aacutes suas poesias de gecircnero sertanejo[]Realmente a gente hesita em dizer em qual dos dois modos de versejar Catullo eacute maior Em ambos eacute grande378

O investimento do organizador de O testamento em explicar para o leitor que o autor Catullo era um grande poeta ao que parece

378 Ibidem p 98-99

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 283

baseava-se fundamentalmente na insistecircncia com que faz publicar opiniotildees que salientavam o caraacuteter complementar das trecircs fases da carreira literaacuteria de Catullo (o modinheiro o poeta sertanejo e o poeta culto)

Essa insistecircncia na explicaccedilatildeo de certas poesias escritas num lin-guajar natildeo culto volta a figurar na segunda parte dos juiacutezos criacuteticos sobre Catullo ndash agora com opiniotildees de ilustres maranhenses ou natildeo Nele o organizador faz publicar a opiniatildeo de Bandeira Duarte que por sua vez cita a opiniatildeo do criacutetico teatral Eduardo Vitorino

Criou-se em torno do genial poeta maranhense uma fama de ignoracircncia absolutamente falsa Para a maioria dos que examinaram a sua obra de uma opulecircncia jamais igualada em nossa poesia Catullo eacute um analfa-beto que faz versos sem gramaacutetica e cheios de erros Olham o ruacutestico onde soacute existe o simples o espontacircneo duas qualidades que fazem a grandeza de um poeta e a beleza de uma poesiaUm dia Maacuterio Joseacute de Almeida revelou-me um Catullo desconhecido para quase todosVocecircs estatildeo enganadosCatullo eacute um dos homens que melhor co-nhecem os autores claacutessicos e jaacute foi professor de francecircsEspecialmente as figuras maacuteximas do teatro e mais especialmente Moliegravere que ecircle discute e comenta com profundeza379

Aqui queriacuteamos lanccedilar uma hipoacutetese das causas desse investi-mento de negaccedilatildeo de Catullo como um ldquoignoranterdquo De posse dos di-reitos autorais completos da maioria das modinhas de Catullo (pois grande parte dela fora registrada fazia mais de trinta anos) Guimaratildees Martins arriscamos pensar antevendo o promissor lucro com suas re-publicaccedilotildees sente a necessidade de desestigmatizar a figura do poeta tachado de ldquoignoranterdquo por suas modinhas e seu linguajar sertanejo Isso demandou do organizador um maior foco nas questotildees que dizem respeito a uma reabilitaccedilatildeo das modinhas Daiacute em Poemas escolhidos ter insistido (segundo Catullo explicava ao seu leitor) nas publicaccedilotildees de algumas dessas modinhas e no O testamento da aacutervore fazer apa-

379 Ibidem p 132

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo284

recer juiacutezos criacuteticos de ilustres chamando atenccedilatildeo para o lado culto e jaacute consagrado de Catullo desde iniacutecios de sua trajetoacuteria incluindo a eacutepoca em que soacute publicava modinhas

A (re)construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo de Catullo operada por Guimaratildees Martins tendia a produzir irremediavelmente um discurso voltado para o passado Por um lado por haver um interesse na reabi-litaccedilatildeo das antigas modinhas de Catullo mas por outro a volta para o passado se valia de juiacutezos criacuteticos coletados em vaacuterios momentos dessa trajetoacuteria de forma a construir uma narrativa da vida do autor entremeada de momentos consagradores

Essa tarefa foi levada a cabo exatamente no momento em que se esboccedilava a construccedilatildeo de um cacircnone na literatura brasileira no qual o nome de Catullo estava ausente Nelson Werneck Sodreacute que publicara o seu Histoacuteria da literatura brasileira em 1938 recebia na criacutetica de Gondin da Fonseca um questionamento irocircnico ldquoE o Catullo Natildeo eacute que o senhor se esqueceu de o citar Elle vae ficar brabo com tal silecircncio e concordamos que natildeo deixaraacute de ter o seu bocado de razatildeordquo380

Resultado de uma narrativa que (re)criava a literatura no Brasil historicamente o livro de Sodreacute era uma das formulaccedilotildees exitosas dessa histoacuteria que ficaram comuns depois dos anos 1930 Nelas haacute uma nar-rativa desembocadura no ldquoModernismo de 22rdquo de forma que muitos autores do periacuteodo natildeo identificados com o ldquomovimentordquo eram exclu-iacutedos O resultado disso foi por um lado uma postura irocircnica de Catullo sobre os modernos em seus livros e por outro a construccedilatildeo de uma narrativa e de seccedilotildees nos livros do poeta que visavam a consagraacute-lo voltando o olhar para seu passado

A reediccedilatildeo de alguns de seus livros e a publicaccedilatildeo de livros que criavam uma narrativa biograacutefica para o poeta faziam parte da receita levada a cabo fundamentalmente pelo organizador Daiacute duas publica-ccedilotildees que tinham um caraacuteter de painel serem anunciadas ainda em Poemas escolhidos de 1944 Uma delas era intitulada Canccedilotildees de

380 Correio da Manhatilde 30 mar 1938 p 2

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 285

Catullo sendo uma ldquoseleccedilatildeo das mais famosas modinhas de Catulo da Paixatildeo Cearense (letra e muacutesica) organizada e anotada por Guimaratildees Martins e revista pelo autorrdquo A outra tinha como tiacutetulo Episoacutedios da minha vida de boecircmio apresentada como um livro de prosa Esta uacutel-tima teria sido uma biografia escrita pelo autor que ao que parece nunca foi publicada

Figura 4 ndash Contracapa do livro O testamento da aacutervore em sua 2ordf ediccedilatildeo

Fonte arquivo do autor

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Representaccedilotildees sociais de um morto distinto

O testamento da aacutervore foi o uacuteltimo livro de Catullo publicado em vida Na manhatilde do dia 10 de maio de 1946 o coraccedilatildeo do poeta deixou de bater viacutetima de um ataque fulminante Antes de morrer poreacutem ele deixara preparada uma uacuteltima obra uma coletacircnea de letras de modinhas que seria publicada ainda em 1946 apoacutes a sua morte com o tiacutetulo Modinhas381

Penso que a narrativa de uma trajetoacuteria autoral que se queira completa natildeo pode prescindir da construccedilatildeo representativa que se faz tambeacutem nos textos publicados em seu nome Embora haja muito o que

381 A ediccedilatildeo agrave qual nos reportaremos nas paacuteginas seguintes eacute a 2ordf ediccedilatildeo publicada pela livraria Impeacuterio jaacute no ano de 1956 Pensamos ser a 1ordf ediccedilatildeo de 1946 pois na paacuteg 175 da 2ordf ediccedilatildeo haacute uma nota de rodapeacute onde na explicaccedilatildeo da letra de modinha Minha matildee diz-se que esta fora cantada em 1946 apoacutes a morte de Catullo Haacute tambeacutem in-diacutecios de a publicaccedilatildeo ter tido uma 1ordf ediccedilatildeo posterior a 1945 pois haacute prefaacutecio escrito por Catullo em janeiro de 1945

Figura 5 ndash No verso do livro O testamento da aacutervore o edi tor explica ao leitor o objetivo editorial da ldquoColeccedilatildeo Azulrdquo

Fonte arquivo do autor

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dizer sobre as ediccedilotildees subsequentes de Catullo creio que por uma anterior escolha narrativa priorizo neste trabalho uma abordagem que leve em consideraccedilatildeo a trajetoacuteria literaacuteria do autor em vida Na esteira disso natildeo negligencio a tentativa derradeira do poeta de regrar uma leitura dos seus textos como eacute possiacutevel vislumbrar ainda em uma pu-blicaccedilatildeo como Modinhas que mesmo poacutestuma foi prefaciada pelo proacuteprio poeta

Nessa nova publicaccedilatildeo lanccedilada sob o impacto da morte de Catullo e publicada no momento de construccedilatildeo de uma representaccedilatildeo memorialiacutestica do poeta haacute uma curiosa operaccedilatildeo narrativa nos textos tanto pelo editor quanto por parte de Guimaratildees Martins Em sessatildeo com o auspicioso tiacutetulo ldquoPalavras de Catullordquo incluiacuteda no prefaacutecio da publicaccedilatildeo poacutes-morte o poeta explica o porquecirc de estar publicando um livro com letras de modinhas

Eis mais um livro que o meu talentoso e adorado amigo e conterracircneo Guimaratildees Martins me obriga a publicar Se a sua publicaccedilatildeo natildeo ob-tiver o ecircxito almejado o editor a que felicito pela coragem de publi-caacute-lo deve culpar a ecircle e natildeo a mim Eacute um livro de velhas canccedilotildees que tiveram seu tempo mas esse tempo jaacute passou382

Modinhas veio agrave luz em um movimento que se seguiu com a morte do poeta No final de sua vida Catullo era cada vez mais reco-nhecido como autor de modinhas O esforccedilo premente de Guimaratildees Martins no sentido de estabelecer uma distinccedilatildeo sobre suas letras de modinhas no campo musical resultou numa recepccedilatildeo da obra do poeta que ficou centrada fundamentalmente no seu lado modinheiro

Atentando que ao publicar canccedilotildees com modinhas bem sabia que elas ldquojaacute tiveram seu tempo mas esse tempo jaacute passourdquo Catullo lanccedila para um passado consagrador o olhar do leitor da publicaccedilatildeo Mas a forma de apresentaccedilatildeo ao leitor operada pelo poeta no prefaacutecio guarda em sua aparente modeacutestia uma tentativa irocircnica de desqualificaccedilatildeo da-quilo entendido como ldquonovordquo

382 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas 2 ed Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1956 p 16

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Cotejando a passagem acima referida com outras apariccedilotildees em livro de Catullo nota-se um insistente incocircmodo do autor em circuns-crever um tema em categorias temporais tais como passadista ou futu-rista Essa postura pode ser vislumbrada inclusive nos textos em que Catullo aparece como prefaciador O escritor Sabino de Campos teve o seu livro Catimboacute (Romance nordestino) prefaciado pelo poeta em 1945 Nele ao exaltar as qualidades do escritor especialmente ao saber que ldquoo romance tinha um fundo real e verdadeirordquo Catullo se questiona

Natildeo sei se vocecirc eacute passadista modernista ou futurista Isto fico para os criacuteticos da atualidade Por mim soacute proclamo aos quatro ventos que vocecirc eacute um poeta eacute um escritor brasileiro universal de todos os tempos do passado do presente e do futuro Falo em nome do Belo e natildeo em nome de Escolas O seu talento eacute muito grande natildeo se pode amesqui-nhar em espaccedilos augustos383

O incocircmodo de Catullo em definir escritores com referecircncias temporais revestia suas opiniotildees de um caraacuteter irocircnico e de certo humor aacutecido uma vez que ele proacuteprio era estigmatizado e se via por conse-guinte perseguido por essas definiccedilotildees de sua obra Pelo menos desde a ascensatildeo dos novos escritores surgidos na esteira do modernismo de 1922 a alusatildeo frequente agrave obra de Catullo como o contraacuterio de publica-ccedilotildees ldquomodernistasrdquo o levava a ser representado como um poeta desatu-alizado senatildeo superado

Mais adiante lemos uma definiccedilatildeo do que seja para Catullo um grande poeta Definiccedilatildeo que ele mesmo lanccedilava para definir o escritor do livro Sabino de Campos ndash mas bem que podemos pensar ser uma autodefiniccedilatildeo uma vez que como anteriormente temos visto o proacuteprio Catullo se representava como um grande poeta ldquoVocecirc tem o orgulho humilde e tiacutemido dos grandes poetas porque natildeo tem orgulho nem ti-midez nem humildade e escreve tatildeo somente para cumprir uma missatildeo que Deus lhe deurdquo384

383 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Prefaacutecio de Catullo In CAMPOS Sabino de Catimboacute (Romance Nordestino) Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1946 p 5

384 Idem p 6

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Voltando a Modinhas o tom ironicamente modesto que Catullo emprega em seu prefaacutecio eacute contrastado pelo olhar do seu organizador Guimaratildees Martins aparece fundamentalmente como um primeiro leitor que vai apresentar o poeta a outros leitores Essa ilusatildeo dis-farccedila o caraacuteter de organizador investindo-o de um consumidor auto-rizado da publicaccedilatildeo pois conhece bem o poeta para apresentaacute-lo a outros leitores

Desde havia muito tempo interessado na reabilitaccedilatildeo de Catullo como modinheiro Martins ataca na publicaccedilatildeo uma representaccedilatildeo do poeta como poeta da canccedilatildeo Estabelecendo-o como um grande artista de muacutesica Martins investiria na publicaccedilatildeo dessas canccedilotildees os focos de sua atenccedilatildeo Em 1943 ano em que os direitos de publicaccedilatildeo de suas obras foram cedidos a Martins Catullo passou a ser representado em seus livros cada vez mais como muacutesico Ademais esses livros pas-saram natildeo gratuitamente a ser apresentados por Martins

Nas palavras que antecedem a apresentaccedilatildeo de Modinhas Martins em seccedilatildeo intitulada ldquoAs divinas canccedilotildees de Catullordquo revela seu objetivo central como organizador o de que a publicaccedilatildeo seja vol-tada para os mais jovens Assim depois de explicar o que eacute uma mo-dinha ele finalmente completa

Colecionei revi prefaciei e anotei estas canccedilotildees de Catullo tatildeo ge-nialmente interpretadas por ecircle na linda eacutepoca de suas Serenatas ao Luar porque as sucessivas ediccedilotildees estatildeo esgotadas Ineacuteditas decircsse modo para a geraccedilatildeo atual encobertas que foram pelo invasor e exoacute-tico lirismo hodierno Elas conservam e conservaratildeo eternamente a sua Beleza primitivaForam compostas por Catullo ndash o Caruso das Modinhas ndash no seu pe-riacuteodo inicial ndash de Poeta Musico e Cantor ndash de 1880 a 1910 quando veio a lume em 1887 o ldquoCantor Fluminenserdquo o seu verdadeiro livro de estreia385

Pela passagem citada eacute possiacutevel enxergar que a aproximaccedilatildeo de sua trajetoacuteria modinheira inicial supervalorizada por Martins natildeo o

385 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 15

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afasta de ser identificado como ldquopoetardquo Essa identificaccedilatildeo vai ao en-contro daquela jaacute buscada por Catullo desde seus primeiros livros qual seja a aproximaccedilatildeo das letras de canccedilotildees com uma representaccedilatildeo poeacute-tica Essa trajetoacuteria agrave parte feita por Catullo por ser antiga eacute explicada aos mais novos visando a um olhar diferente daqueles que o conheciam tatildeo simplesmente como um ldquopoeta cultordquo ou ldquopoeta sertanejordquo Aliaacutes essa separaccedilatildeo eacute criada por Guimaratildees e reafirmada nos textos de Catullo visando agrave compreensatildeo da carreira do poeta

Em Modinhas quem tambeacutem daacute o tom da reabilitaccedilatildeo da fase modinheira de Catullo eacute o seu futuro bioacutegrafo Carlos Maul Em texto que aparece no livro logo apoacutes o prefaacutecio do autor intitulado ldquoO Catullo que eu conhecirdquo Maul explica o teor do livro organizado por Martins

O que estas paacuteginas da antologia que Guimaratildees Martins organizou com a devoccedilatildeo de um crente e a fidelidade de um irmatildeo nos oferecem daacute [sic] uma ideacuteia niacutetida de um Catullo que ainda natildeo atingiu a plena originalidade da composiccedilatildeo e dos temas mas eacute um capiacutetulo essencial da sua biografia um marco da sua evoluccedilatildeo386

Ainda na apresentaccedilatildeo que faz de Catullo ndash e antes de o proacuteprio poeta explicar a publicaccedilatildeo para seus leitores ndash Guimaratildees Martins re-afirma o objetivo de entendimento de Maul atraveacutes de ldquofasesrdquo especiacute-ficas em sua trajetoacuteria

Como Trovador jamais houve quem se pudesse equiparar a esse gi-gante do canto que foi incontestavelmente o maior no gecircnero apare-cido no Brasil ateacute hojeDe 1910 data a segunda fase do genial maranhense fase a que deno-minaremos do Poeta Bravio Surgiu depois a fase a que poderemos chamar a do Poeta Culto387

Todas essas explicaccedilotildees visavam a assegurar agrave publicaccedilatildeo um lugar importante na trajetoacuteria de Catullo Uma vez que natildeo se tratava dos poemas que o consagraram como um poeta culto elas faziam parte

386 MAUL Carlos O Catullo que eu conheci In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 20

387 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Op cit p 16

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de uma fase do poeta em sua ldquoevoluccedilatildeordquo ndash tentavam demonstrar Carlos Maul e Guimaratildees Martins Fase que senatildeo de todo consagrada por grandes letrados da eacutepoca ldquoNesse tempo remoto Catullo jaacute conquistara a popularidade que vem da estima das massas anocircnimas que lhe repe-tiam as modinhasrdquo388

Maul parece natildeo achar o suficiente a explicaccedilatildeo das modinhas como sendo uma fase do poeta Ele avanccedila resguardando-o contra uma representaccedilatildeo que possa vecirc-las como uma produccedilatildeo menor Para tanto explica que

Antes poreacutem do aparecimento de Catullo o que havia entre noacutes no gecirc-nero ldquomodinhardquo se dividia com vaacuterios poetas solares que se chamavam Castro Alves Casimiro de Abreu Gonccedilalves Dias Fagundes Varela que tiveram as suas canccedilotildees musicadas por grades muacutesicos Essa era a modinha que se cantava ao piano nos serotildees domeacutesticos389

Entretanto se aquela aproximaccedilatildeo do nome de Catullo com os ldquograndesrdquo natildeo fosse ainda o suficiente Maul alega que diferentemente dessas modinhas o reconhecimento ldquode Catullo era a voz da rua que se fazia acompanhar de violatildeo cavaquinho e flauta E ecircle tem algumas que lhe garantem uma gloacuteria idecircntica agrave dos seus antecessores iminentesrdquo390

Catullo por sua vez que dedica a publicaccedilatildeo ao ldquomeu adorado Guimaratildees Martinsrdquo o ldquoconstrutor deste livrordquo foi no mesmo sentido de reafirmar sua trajetoacuteria inicial quando no prefaacutecio sob o tiacutetulo de ldquoPrefaacutecios ao leitorrdquo fez um resumo em trecircs paacuteginas eloquentes de sua ldquofaserdquo de muacutesico ldquoDigamos que eu fui o introdutor do violatildeo na alta sociedade Os cantadores de festas e de raacutedios sabem disto mas fingem ignorar Nada perderei com esse esquecimentordquo391 E tentando regrar uma recepccedilatildeo observa em tom grave

Agora um conselho de altiacutessima importacircncia Ecircstes versos desacom-panhados das respectivas melodias perdem muito do seu valor Ligados agrave ela como o fecircz o meu adorado Guimaratildees Martins noutra seleccedilatildeo

388 MAUL Carlos Op cit p 20389 Ibidem p 21390 Ibidem391 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 18

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cujo primeiro volume ecircle intitulou ldquoTu passaste por este jardimrdquo tenho certeza de que o leitor acha-los-aacute de excelsa Beleza392

A outra seleccedilatildeo citada por Catullo que seria intitulada Tu pas-saste por este jardim e que contaria com as partes musicais das modi-nhas natildeo haacute registro de que tenha sido publicada Talvez nela o autor fizesse aparecer os dados de Luar do sertatildeo cuja letra curiosamente e apesar de toda controveacutersia com Joatildeo Pernambuco em torno de sua au-toria natildeo aparece na publicaccedilatildeo de Modinhas como tendo outro autor senatildeo Catullo A canccedilatildeo eacute apenas dedicada ao jornalista Assis Chateaubriand e ganha uma observaccedilatildeo do organizador em nota de ro-dapeacute com a seguinte explicaccedilatildeo ldquo[] O tiacutetulo ldquoLuar do Sertatildeordquo estaacute devidamente registrado no Departamento da Propriedade Industrial E a letra e a muacutesica estatildeo registradas respectivamente na Biblioteca Nacional e na Escola Nacional de Muacutesica da Universidade do Brasilrdquo393

Isso parece demonstrar que o caso Luar do sertatildeo natildeo ficara re-solvido apesar de na abertura da publicaccedilatildeo novamente Martins tentar explicar que aquele livro havia nascido quase agrave revelia do poeta que natildeo queria ver a reediccedilatildeo dos livros de suas canccedilotildees musicadas

Eacute que aqueles livros eram impressos descuidadamente sem a sua re-visatildeo pela popular e hoje extinta Livraria Quaresma que aleacutem do mais misturava por conta proacutepria em alguns desses livros canccedilotildees de autoria de Catullo com canccedilotildees da autoria de outros autores sem lhes mencionar os nomes Tudo isso em completo desrespeito agrave Lei e dando a impressatildeo de que todas as modinhas eram da autoria exclusiva de CatulloHoje poreacutem que sou cessionaacuterio uacutenico de todas essas composiccedilotildees liacutetero-musicais satisfaccedilo o desejo do seu autor o meu venerado Catullo da Paixatildeo Cearense394

392 Ibidem p 19393 Ibidem p 57394 MARTINS Guimaratildees Explicaccedilatildeo Necessaacuteria In CEARENSE Catullo da Paixatildeo

Modinhas Op cit p 11

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Como bom empresaacuterio e dono dos direitos autorais do poeta Martins ainda faz no final dessa explicaccedilatildeo uma propaganda dos discos com canccedilotildees de Catullo

A RCA Victor vem gravando em discos da sua marca as divinas can-ccedilotildees do ldquonosso Catullordquo na interpretaccedilatildeo do maior tenor popular do Brasil Vicente Celestino e da ilustre folclorista patriacutecia Stellinha Egg discos que se encontram agrave venda em todo o Brasil em todas as casa [sic] especializadas395

O artifiacutecio mobilizado pelo organizador da obra rende frutos no ano da publicaccedilatildeo Ao morrer Catullo (aos 82 anos de idade) foi alvo de vaacuterias manifestaccedilotildees de letrados que saudavam sua grande traje-toacuteria Essas manifestaccedilotildees foram fartamente publicadas pelos jornais cariocas do periacuteodo e apesar de uma vida quase totalmente voltada para a publicaccedilatildeo de livros o que mais sobressai nas opiniotildees dos ado-radores do poeta eacute seu lado ldquoautor de modinhasrdquo Essa reviravolta na representaccedilatildeo de Catullo operada em muito por Guimaratildees Martins pode ser notada uma vez mais quando vemos numa publicaccedilatildeo ante-rior de 1936 escrita por Alexandre Gonccedilalves Pinto e intitulada O choro que tentava dar conta de explicar aos novos leitores quem eram os chorotildees da velha guarda O autor de O choro pedira um prefaacutecio e a correccedilatildeo do livro para Catullo que agravequela eacutepoca displicente quanto agrave sua representaccedilatildeo como um daqueles ldquochorotildeesrdquo respondeu tatildeo sim-plesmente que ldquoO prefaacutecio que me pediste para o teu livro fica para outra vez Natildeo te posso ser uacutetil nas correcccedilotildees dos erros porque soacute uma revisatildeo geral poderia melhoraacute-lo o que eacute impossiacutevel depois de o teres quase promptordquo396

A progressiva retomada de uma representaccedilatildeo como um poeta da canccedilatildeo soacute viria com a cessatildeo dos direitos autorais das modinhas para Guimaratildees Martins jaacute nos anos 1940 que tratava de reavivar esse lado de Catullo com a publicaccedilatildeo de Poemas escolhidos e de Modinhas no

395 Idem396 PINTO Alexandre Gonccedilalves O chocircro reminiscecircncias dos chorotildees antigos Rio de

Janeiro Tipografia Gloacuteria 1936 (ediccedilatildeo fac-siacutemile pela FUNARTE 2009) Sn

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exato momento necessaacuterio lembrar em que a canccedilatildeo identificada como ldquopopularrdquo comeccedila a sobressair-se como uma produccedilatildeo digna do mere-cimento do aplauso puacuteblico e portanto ganhando um novo estatuto representacional na sociedade ndash isso catapultado principalmente pela accedilatildeo difusora das raacutedios no Brasil da qual jaacute falamos

Todos esses elementos renderam a Catullo depois de morto o reconhecimento por seu papel como produtor de canccedilotildees no Brasil O jornal A Noite cuja editora da empresa tinha os direitos de publicaccedilatildeo de alguns livros de Catullo agrave eacutepoca dedicou um suplemento especial ao poeta morto

Aliaacutes dona dos direitos de cinco livros (Alma do sertatildeo Faacutebulas e alegorias Um boecircmio no ceacuteu O milagre de Satildeo Joatildeo e Caboclo bra-sileiro) a empresa A Noite que publicara a uacuteltima ediccedilatildeo dos livros de Catullo em vida (a 5ordf ediccedilatildeo de Faacutebulas e alegorias) foi aquela que mais homenagens rendeu ao poeta morto Durante algumas semanas entrevistou vaacuterios personagens que conviveram intimamente com ele entre os quais Fred Figner o filho do editor Quaresma e o escritor Maacuterio Joseacute de Almeida que tratava de desmentir a representaccedilatildeo de Catullo como poeta apenas intuitivo e rude

Catullo [] tinha uma bem organizada cultura literaacuteria e foi aluno no-taacutevel do Coleacutegio Teles de Menezes onde tirava notas que lhe conferiam o direito de sentar-se no ldquobanco de honrardquo Dedicou-se principalmente ao estudo claacutessico dos idiomas de Camotildees e de Racine Cito de prefe-recircncia dois poetas porque a leitura predileta de Catullo era a poesia Essas duas mateacuterias portuguecircs e francecircs ele viria alecionar [sic] exi-miamente no seu pequeno coleacutegio da Piedade397

Afinal embora se apresentasse o poeta morto como um exitoso modinheiro antes de ser o conhecido poeta do sertatildeo era necessaacuterio cuidar nesse sentido pela natildeo desvinculaccedilatildeo de seu nome do de um poeta letrado Assim Catullo poderia ser visto como um poeta da canccedilatildeo ndash poeta da canccedilatildeo sim mas poeta letrado conhecedor de Camotildees e Racine

397 A Noite 19 jul 1946 p 5

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Ademais a repentina morte de Catullo criou condiccedilotildees para que o autor fosse alvo de diversos empreendimentos no campo artiacutestico e literaacuterio A Noite aproveitou a oportunidade para reeditar O sol e a lua e Um caboclo brasileiro Aliaacutes foi justamente com sua morte que vaacute-rias ediccedilotildees dos livros de Catullo ganharam novas ediccedilotildees em 1946

Naquele mesmo ano aleacutem dos livros publicados pela A Noite acima citados a editora Bedeschi anunciava a reediccedilatildeo de Meu sertatildeo Sertatildeo em flor Poemas bravios e Mata iluminada A publicidade de tais livros no momento da morte do poeta indicava que as reediccedilotildees eram uma homenagem ao poeta morto pois

Quanto mais civilizado eacute um povo mais respeito e orgulho tem aacute [sic] obra dos seus grandes Artistas pois eacute a estes que se deve essa Civilizaccedilatildeo Pouco se fez ateacute hoje pelas nossas gloriosas tradiccedilotildees que permanecem ainda no mais triste esquecimento Faltavam-nos en-tretanto uma oportunidade para despertar em nossos coraccedilotildees esse sen-timento magniacutefico transformando-nos em orgulhosos admiradores dos legiacutetimos representantes de nossa Cultura Se hoje natildeo podemos ajuizar o que muitos brasileiros fizeram pelo nosso Paiacutes natildeo nos cabe a culpa mas compete-nos fazer com que nossos filhos possam sentir melhor por que o Brasil eacute digno de tanto amor e respeito398

Toda a atenccedilatildeo em torno do poeta morto criava a oportunidade editorial para que diversos anuacutencios usassem o nome de Catullo para vender seus produtos E natildeo somente livros O curioso anuacutencio do Perfume Azul daacute a ver essa repentina apropriaccedilatildeo da representaccedilatildeo do poeta amante da mulher e da natureza

CATULO SE ENGANOUndash CatuloldquoQuereis conquistar a mulher Enchei-lhe a cabeccedila de ilusotildees O con-quistador precisa mentir desbragadamente Elogiai-lhe a beleza Os olhos os cabelos a boca o corpo o vestido tudo o que ela natildeo pos-suir Nunca lhe deveis confessar a verdaderdquondash GRANFINO ndash Natildeo meu caro Catulo vocecirc que compreendeu tatildeo bem

398 Idem p 7

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e soube traduzir em versos magistrais a alma e as belezas do sertatildeo natildeo conhece a mulherPara conquista-la precisamos dizer-lhe a verdade elogiar a sua beleza seus olhos seus cabelos sua boca seu corpo e aconselhar para que conserve esses dons divinos o uso do perfume Narciso Azul de galllySim Narciso Azul de Gally enriquece ainda mais a beleza e a juventude da mulher399

Esse estouro publicitaacuterio e editorial em torno do nome de Catullo deu a nova oportunidade para que Guimaratildees Martins agora totalmente responsaacutevel pelo espoacutelio de Catullo desconstruiacutesse algumas imagens construiacutedas em torno do poeta como sua representaccedilatildeo como um pe-dante Chamado por diversos perioacutedicos para falar sobre a morte de Catullo e contar passagens sobre a vida do poeta Martins tentava de-monstrar para o leitor a ldquomodeacutestiardquo do autor

Convidado pelo presidente Epitaacutecio Pessoa para cantar e recitar no Palaacutecio Rio Negro em Petroacutepolis Catullo encontrando o Palaacutecio todo iluminado natildeo entrou pensando haver alguma reuniatildeo soleneDepois foi informado de que o presidente nessa noite o esperava mo [sic] salatildeo principal em companhia de amigos O autor do ldquoTalento e Formosurardquo caiu das nuvens e no outro dia aparecia em Palaacutecio de violatildeo em punhoO Dr Epitaacutecio riu-se muito da encantadora modeacutestia do aedo mara-nhense pois havia mandado iluminar o Rio Negro especialmente para recebe-lo400

A contraposiccedilatildeo a esses depoimentos vinha ironicamente do uacutel-timo prefaacutecio escrito por Catullo em Modinhas no qual conta envaide-cido suas memoacuterias A principal era a de sua conhecida audiccedilatildeo no Instituto de Muacutesica no distante ano de 1908

O Instituto ficou cheio das personagens mais ilustres desta Capital Muacutesicos literatos meacutedicos jornalistas advogados engenheiros pro-

399 Ibidem 19 jul 1946 p 27400 Ibidem p 32

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fessores pintores o escoacutel da nossa sociedade diplomatas como o Conde de Prozoor entatildeo ministro plenipotenciaacuterio da Ruacutessia tudo se encontrava ali no meio da massa popular Inuacutemeras pessoas ficaram de peacute por natildeo haver mais lugar Os aplausos eram tatildeo retumbantes que se ouviam da rua []No dia seguinte os jornais teceram-me elogios []Como vecirc o leitor venci em tudo Depois da audiccedilatildeo do Instituto dei muitas outras no Teatro Carlos Gomes no antigo Satildeo Pedro no Fenix no Recreio Dramaacutetico no Liacuterico em muitas outras casas de espetaacuteculosEm 1912 escrevi o meu primeiro poema sertanejo ldquoO Marrueirordquo Animado pela aceitaccedilatildeo que ecircle teve continuiei [sic] a escrever outros e hoje jaacute estatildeo publicados mais de vinte volumes das minhas obras Tocircdas elas estatildeo prefaciadas pelos mais iminentes intelectuais da nossa terra401

Passagens como essa mostravam para um leitor atento como nas paacuteginas da publicaccedilatildeo ele poderia defrontar-se com representaccedilotildees distintas do poeta ndash isso resultado de opccedilotildees conflitantes quanto a uma imagem consagrada que se deva dar ao autor

Ainda sobre a ldquomodeacutestiardquo de Catullo Fred Figner ndash que gravara em discos pelas Casas Edison as primeiras canccedilotildees de Catullo e por isso foi um dos procurados para declarar algo sobre ele ndash tratava de explicar como sendo expressatildeo da bondade do poeta morto

Catullo foi uma grande alma Um boecircmio um sonhador que jamais se preocupou com dinheiro Era um desinteresse espantoso[]Soacute lhe posso dizer com absoluta seguranccedila eacute que Catullo tinha um grande coraccedilatildeo Era um bonachatildeo que nunca explorou comercialmente o talento que lhe brotava espontacircneo402

O depoimento de Figner ia ao encontro exato da imagem do poeta desinteressado que natildeo se preocupava com dinheiro O que pode parecer irocircnico eacute pensar que muitas daquelas canccedilotildees de Catullo foram durante

401 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Op cit p 17-18402 A Noite 22 maio 1946 p 7

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algum tempo propriedade de Figner e que ele tenha feito uma boa for-tuna com elas A exploraccedilatildeo econocircmica do nome Catullo embora lhe ti-vesse trazido reconhecimento natildeo rendeu ao poeta grandes dividendos ateacute porque rendia mais para um autor no comeccedilo do seacuteculo vender suas canccedilotildees como salientamos anteriormente ndash coisa que Catullo fez por di-versas vezes Isso acentuava o contraste da representaccedilatildeo de Catullo como um poeta modesto diante de um novo regime de representaccedilatildeo de autoria centrada desde os anos 1930 numa preocupaccedilatildeo autoral interes-sada no valor de moeda da criaccedilatildeo Ora foi jogando com essa represen-taccedilatildeo do ldquodesinteresserdquo ndash que inclusive era evocada por Catullo como na querela com Joatildeo Pernambuco ndash que o papel de Guimaratildees Martins se sobressaiacutea como algueacutem responsaacutevel pelos direitos autorais do poeta fa-zendo com que Catullo natildeo ldquosujasse as matildeosrdquo com ldquocoisas mundanasrdquo

A coincidecircncia biograacutefica de Catullo no final de sua vida com sua representaccedilatildeo como um poeta modesto vinha como que para confirmar tal construccedilatildeo A ldquomodestardquo casa onde o poeta morou nos seus uacuteltimos anos de vida tornou-se imediatamente o siacutembolo de sua modeacutestia Essa repentina consagraccedilatildeo de Catullo ecoou de forma tal que uma movi-mentaccedilatildeo na imprensa com apoio de Guimaratildees Martins fez surgir uma mobilizaccedilatildeo popular para angariar fundos visando agrave aquisiccedilatildeo da casa e a transformaccedilatildeo dela num mausoleacuteu ao poeta

A casa representava Catullo em sua modeacutestia A uma imagem de Catullo pedante que insistentemente o perseguira durante toda sua tra-jetoacuteria literaacuteria vaacuterios interessados na reabilitaccedilatildeo do poeta contrapu-nham a representaccedilatildeo da casa A casa era a testemunha de um poeta modesto em sua vida

A casa de Catullo testemunha de sua existecircncia modesta quase francis-cana de um homem simples e bom afaacutevel e acolhedor que soacute conhecia uma espeacutecie de orgulho ndash o orgulho de artista consciente dos finos louvores que produzia mas em tudo o mais de uma excessiva humildade ndash eacute um ver-dadeiro museu sentimental devendo ser preservada tal como era quando o seu glorioso morador desapareceu Os objetos de uso pessoal de Catullo da Paixatildeo Cearense documentam a sua simplicidade o seu ascetismo403

403 A Noite 19 jul 1946 Suplemento p 20

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A casa era o poeta patrimonializado era como dizia a repor-tagem ndash que ainda mostrava as peccedilas que ali se encontravam ndash um museu sentimental As fotografias do jornal estampavam os objetos do poeta monumentalizando-os Laacute estavam a caneca a cadeira onde morreu os quadros a cama mas tambeacutem ndash e principalmente para um poeta letrado ndash parte da biblioteca o tinteiro e a caneta ldquoverdadeiras e preciosas peccedilas de museu que ajudaram a fixar tantas e tatildeo maravi-lhosas obras poeacuteticasrdquo404

Essa construccedilatildeo que se operava tatildeo logo a morte do poeta foi anunciada alimentou-se da comoccedilatildeo puacuteblica que se abateu sobre uma multidatildeo que foi ao enterro de Catullo Transmitidos ao vivo pela Raacutedio Roquete Pinto os funerais no cemiteacuterio de Catumbi foram eivados de apresentaccedilotildees de artistas e para laacute tambeacutem acorreu como deixam ver as fotos publicadas nos jornais da eacutepoca uma multidatildeo ineacutedita Escritores muacutesicos e poliacuteticos compareceram agrave cerimocircnia na qual Agripino Grieco e o acadecircmico Viriato Correcirca pronunciaram seus discursos de adeus A apoteose segundo os jornais teria sido a entrada do cantor mexicano Ortiz Tirado amigo de Catullo que cantou Luar do sertatildeo acompa-nhado no estribilho pela multidatildeo emocionada

A narrativa do enterro pela imprensa a organizaccedilatildeo de festas para angariar fundos para a compra da casa de Catullo ndash primeira-mente por A Noite que organizou uma festa no Teatro Municipal e depois a festa organizada em colaboraccedilatildeo conjunta da Raacutedio Globo Raacutedio Nacional e Empresa Teatral Ferreira da Silva com a ldquopopula-riacutessima lsquoestrelarsquo Dercy Gonccedilalvesrdquo405 ndash e a reediccedilatildeo de pelo menos oito publicaccedilotildees suas nos primeiros trecircs meses que se seguiram agrave sua morte revelam a configuraccedilatildeo progressiva do poeta morto em poeta distinto

A surpreendente imagem de uma multidatildeo nos funerais dava o tom da definiccedilatildeo de ldquopopularrdquo que se buscava assegurar a Catullo ldquoTeve expressatildeo de uma apoteose popular a cerimocircnia do enterramento de Catullordquo insistia A Noite em legenda de fotografia que mostrava a

404 Idem405 A Noite 21 jun 1946 p 8

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multidatildeo em volta do caixatildeo Atentando para o fato de que o comeacutercio carioca fechou com a passagem do enterro o editor do jornal afirmava a necessidade de uma patrimonializaccedilatildeo do poeta

[] Se a memoacuteria do trovador necessitasse de novas credenciais para ser incorporado ao patrimocircnio espiritual da nacionalidade te-lasndashia na expressatildeo glorificadora de seus funerais e na exaltaccedilatildeo de sua obra e de seu nome agrave beira da tumba que o acolheu para a eternidade406

Eacute possiacutevel como jaacute dissemos para um investigador atento supor que o investimento insistente da representaccedilatildeo popular e consagradora do poeta Catullo natildeo fosse um ato gratuito uma vez que A Noite publi-cava os livros do poeta Ademais embora sua morte fosse mateacuteria de grandes reportagens naqueles dias seguramente ao investigar as di-versas reportagens do periacuteodo observamos que a empresa A Noite foi aquela que liderou com Guimaratildees Martins a promoccedilatildeo de uma con-sagraccedilatildeo do poeta depois de morto

Na nova ediccedilatildeo de Um boecircmio no ceacuteu lanccedilada menos de um ano apoacutes a morte de Catullo com uma nova seacuterie de juiacutezos criacuteticos organi-zados por Guimaratildees Martins aparece uma advertecircncia do herdeiro dos direitos do poeta endereccedilada ldquoaos leitores do livrordquo

Aos que pelo valor incontestaacutevel do ldquoMaravilhoso Poetardquo acharem dispensaacuteveis as polianteacuteias de juiacutezos-criacuteticos que venho organizando em quase todos os seus livros devo dizer que se faccedilo eacute para facilitar aos seus futuros bioacutegrafos e evitar as inverdades que haacute sobre a sua vida principalmente agora depois do seu desaparecimento material da terra407

Aiacute se operava uma construccedilatildeo retrospectiva do poeta capitaneada por Martins herdeiro dos direitos autorais de Catullo a Raacutedio Nacional que tocava insistentemente as canccedilotildees do poeta e a empresa A Noite

406 A Noite 14 maio 1946 p 1407 MARTINS Guimaratildees Aos leitores deste livro In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um

boecircmio no ceacuteu Rio de Janeiro sd p 184 Esta ediccedilatildeo pensamos ser de fins de 1946 jaacute que aparece como novo lanccedilamento no perioacutedico Letras e Artes de 12 de janeiro de 1947 p 3

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que publicava as ediccedilotildees de vaacuterios de seus livros Por fim da editora Bedeschi que como A Noite investia naquele momento de luto na re-ediccedilatildeo de antigos livros do bardo

Desde a venda dos direitos autorais para Guimaratildees Martins a produccedilatildeo de uma estrateacutegia autoral jaacute prescindia em muito da estrateacutegia da autoridade de Catullo que apoacutes sua morte deixava-a definitiva-mente agrave mercecirc do editor leitor organizador tipoacutegrafo etc Embora ainda apresentasse seu uacuteltimo livro havia uma clara contraposiccedilatildeo com os objetivos encetados pelo organizador da obra que nunca chegou poreacutem a causar algum problema nessa relaccedilatildeo Pelo contraacuterio Catullo tinha muita estima por Martins Mas com a morte do poeta a histoacuteria das ediccedilotildees das obras de Catullo teria de levar em consideraccedilatildeo dali para frente a ausecircncia daquele que apareceu durante 52 anos produ-zindo naqueles textos que saiacuteam sob seu nome suas estrateacutegias de con-sagraccedilatildeo A autoridade sobre os textos tantas vezes reivindicada pelo poeta passaria a ser reivindicada por outras instacircncias O texto na au-secircncia do seu autor-primeiro evocaria desse modo sua memoacuteria E ca-minhos da memoacuteria seguem outras trilhas em geral mistificadoras da-quele a quem apresenta

Assim de uma trajetoacuteria literaacuteria inteira devotada agrave represen-taccedilatildeo de sua autoridade (de letrado de autor e de poeta) Catullo dei-xava a vida e as letras revivido em seus livros como o poeta que melhor soube representar nas suas modinhas e em seus livros o ldquopovordquo e o ldquosertatildeordquo Contudo o ecircxito editorial de grande parte de sua trajetoacuteria natildeo foi suficiente para que figurasse entre aqueles que eram jaacute agravequela eacutepoca elevados ao elenco de grandes mestres da literatura

Em 1946 ano da morte do autor de Luar do sertatildeo a Raacutedio Nacional direto do Teatro Municipal transmitia para todo o paiacutes du-rante a festa de consagraccedilatildeo poacutes-morte do ldquopoeta do sertatildeordquo um convi-dado que apresentava em homenagem a Catullo uma canccedilatildeo para a qual o poeta morto havia criado uma letra Sertanejo enamorado O convidado era um jovem que subiu ao palco com sua sanfona em punho algo comum pois jaacute era conhecido pelos ouvintes do cast da raacutedio Com seu sorriso ele contrastava com o ambiente de homenagem poacutes-tuma Seu nome era Luiz Gonzaga Talvez Catullo natildeo gostasse daquela

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo302

apresentaccedilatildeo Talvez em suas tentativas de regrar uma recepccedilatildeo impe-disse aquilo Talvez Mas para que conjecturar Definitivamente o poeta natildeo estava mais laacute

Conclusatildeo

A trajetoacuteria autoral de um poeta ordinaacuterio

O trabalho que o leitor tem em matildeos se insere no espaccedilo de in-vestigaccedilatildeo da literatura cujo ldquonome proacutepriordquo teima em reaparecer Catullo da Paixatildeo Cearense o poeta ordinaacuterio o eacute pela trajetoacuteria lite-raacuteria natildeo canonizada pela histoacuteria literaacuteria pela abordagem aqui ten-tada natildeo biograacutefica de seus textos pelas escolhas estrateacutegicas de sua intromissatildeo no mundo das letras pela sensibilidade ldquosafadardquo com que tentava se impor como poeta e sobretudo pela abordagem natildeo ldquogenia-lizadardquo com que se buscou aqui tratar

Talvez o leitor nas paacuteginas que se sucederam tenha enxergado menos Catullo do que o editor Quaresma ou menos o poeta inspirado do que os leitores autorizados Maacuterio de Andrade e Gondin da Fonseca menos o saudado bardo do que a ascensatildeo dos artistas de raacutedio e teatro menos o gecircnio edificador da alma mais as conduccedilotildees de seus textos por Guimaratildees Martins seu herdeiro Contudo se assim foi feito foi porque o autor deste trabalho natildeo se negou a alertar por vezes implicitamente eacute verdade que a compressatildeo de uma produccedilatildeo textual estaacute condicio-nada em muito pelas contingecircncias do espaccedilo que lhe daacute sentido

A chegada de Catullo ao espaccedilo de produccedilatildeo de livros no Brasil ainda na uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX veio no exato momento em que a representaccedilatildeo do leitor de livros era construiacuteda de forma a distingui-lo do restante da sociedade Nesse periacuteodo como vimos ser identificado como autor literaacuterio era um meio de ser considerado sujeito de algum status numa sociedade em grande parte analfabeta e receacutem-saiacuteda da escravidatildeo Foi aliado a isso que o modinheiro Catullo Cearense e seu editor Quaresma interessados na identificaccedilatildeo do autor de livros de modinhas como letrado construiacuteram nos livros uma aproximaccedilatildeo do nome de Catullo como algueacutem das letras

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Natildeo obstante outros modinheiros como Geraldo Magalhatildees e Eduardo das Neves terem seus nomes nas capas de livros de modi-nhas foi somente Catullo que teve seu nome considerado um autor Aqui seguramente reside uma primeira provocaccedilatildeo do trabalho que pode parecer embaraccedilosa para um leitor atual a desnecessaacuteria confor-midade de um nome proacuteprio escrito na capa com aquilo que se entende como um ldquoautorrdquo A autoria eacute tambeacutem ela uma construccedilatildeo histoacuterica que se funda a partir de estrateacutegias textuais A representaccedilatildeo de Catullo como ldquoautorrdquo construiacuteda em seus livros fez com que o bardo modi-nheiro conseguisse que seu nome fosse progressivamente identificado como um ldquopoeta popularrdquo

Nesse segundo momento da trajetoacuteria de Catullo reside o ponto nevraacutelgico de uma reflexatildeo que se pauta pela problematizaccedilatildeo de uma autoria O termo ldquopopularrdquo agrave eacutepoca evocava tanto algueacutem de reconhe-cido sucesso entre as pessoas quanto um tipo de produccedilatildeo consagrada naqueles idos por mostrar uma suposta praacutetica do ldquopovordquo Daiacute ser ldquopoeta popularrdquo (ou ser assim representado) era de bom tom para que o editor Quaresma lucrasse com a produccedilatildeo de Catullo Para este uacuteltimo no seu afatilde de consagraccedilatildeo letrada isso travaria o reconhecimento de seu nome como tatildeo simplesmente um poeta ndash tal qual Bilac ou Coelho Netto nomes distintos da literatura do periacuteodo Daiacute tambeacutem seu flerte com uma produccedilatildeo de literatura sertaneja que agravequela eacutepoca consa-graria homens como Godofredo Rangel Monteiro Lobato e sobretudo Euclides da Cunha Natildeo era somente pelo sucesso de vendagens que se consagrava um autor a poeta mas pelo reconhecimento de sua pro-duccedilatildeo como digna de ser chamada literatura

Flagramos assim a constituiccedilatildeo daquilo entendido como ldquolitera-turardquo agrave eacutepoca Essa demanda veio ao encontro de um entendimento de que o termo ldquoliteraturardquo teria de ter uma conformidade com o ldquonacionalrdquo daiacute a condicionante ldquonacionalrdquo na afirmaccedilatildeo de uma obra como ldquolitera-turardquo Dizendo de outra forma natildeo havia uma representaccedilatildeo da ldquoli-teraturardquo se essa natildeo contivesse um elemento nacional que a impusesse como digna de assim ser tachada Catullo soube bem casar sua aposta no reconhecimento como poeta letrado e suas escolhas temaacuteticas O sertatildeo nasce em sua poesia no exato momento de sua consagraccedilatildeo como

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poeta digno de entrar no panteatildeo da ldquoliteratura nacionalrdquo Ser publicado assim por uma editora ldquomais seacuteriardquo como a Castilho respondia ao in-tuito de mudanccedila de prestiacutegio dos textos visando a uma consagraccedilatildeo E essa consagraccedilatildeo eacute dramatizada em seus prefaacutecios ndash muitos deles es-critos por nomes distintos da sociedade carioca de entatildeo apaixonados desde havia muito tempo pelas modinhas de Catullo

Essa representaccedilatildeo de seu nome como tatildeo somente um ldquopoetardquo soacute vai perder status quando haacute uma revisatildeo da mesma ldquoliteraturardquo vinda de novos escritores que surgem nos anos 1920 Embora natildeo haja unidade nos pontos de vista de nomes como Maacuterio de Andrade e Oswald de Andrade esses novos escritores dramatizavam em seus textos a emergecircncia de uma nova ldquoliteraturardquo na qual o que seria ldquoliteratura nacionalrdquo sofreria uma revisatildeo

A tarefa de melhor representar o paiacutes ganhou cores fortes espe-cialmente nas reflexotildees de Maacuterio de Andrade que desqualificaria a obra de Catullo por ser imaginosa Mas eacute exatamente nesse momento que Catullo vai lanccedilar matildeo de uma aproximaccedilatildeo de seu nome com o ldquopopularrdquo sem no entanto subtrair-se a ele Surge em seus livros o re-curso da alma e para explicar a seu leitor o que seria isso o novo editor de Catullo Castilho mobilizava os escritores mais consagrados do pe-riacuteodo para apresentar o poeta do sertatildeo Surge Catullo poeta que no momento da escrita fala a alma do povo mas que natildeo eacute povo pois poeta natildeo pode ser povo Isso porque os artifiacutecios de consagraccedilatildeo elen-cados no periacuteodo passavam pelo reconhecimento do autor como algueacutem que conhece o que conta Falar por uma ldquoalmardquo daria um caraacuteter veros-similhante agrave sua poesia o que natildeo se daria por exemplo em um Monteiro Lobato ndash que aliaacutes Catullo como vimos tematizou em um de seus poemas numa tentativa de negativizar o Jeca de Lobato em detrimento do seu proacuteprio sertanejo

Nos anos 1920 muitos escritores foram relegados nesse pro-cesso por um novo cacircnone que se construiacutea e o refuacutegio na produccedilatildeo de textos teatrais foi uma constante Ademais o teatro surgiu como uma atividade lucrativa pelo menos quando se pensa que os espaccedilos de produccedilatildeo textual se comprimiram com o advento da nova geraccedilatildeo de escritores Catullo que jaacute era reconhecido por sua presenccedila cecircnica de-

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clamando poemas ou antes disso cantando modinhas acabou en-trando nesse filatildeo fazendo o caminho inverso ou seja indo ao en-contro de sua produccedilatildeo musical que o revelara havia muito tempo com as modinhas

Foi nesse momento que mudou tambeacutem o status dos composi-tores no Brasil O sucesso da raacutedio alavanca compositores e cantores agrave condiccedilatildeo de iacutedolos fazendo com que os primeiros comeccedilassem a rei-vindicar seus direitos autorais Catullo reassumindo sua condiccedilatildeo de poeta da canccedilatildeo exatamente em um momento em que a muacutesica ganha novo status atraveacutes do raacutedio vai reivindicar sua consagraccedilatildeo como compositor das coisas brasileiras aproximando sua produccedilatildeo textual das suas modinhas Daiacute serem publicados nesse periacuteodo livros contendo poemas para serem dramatizados nos palcos como vaacuterias intervenccedilotildees musicais Teatro literatura e muacutesica se mesclaram no texto fazendo com que o poeta ldquoatacasserdquo na construccedilatildeo de sua consagraccedilatildeo em vaacuterias frentes A face ldquopretensiosardquo do poeta ganha contornos em seus livros dos anos 1930 e 1940 especialmente na peccedila O boecircmio no ceacuteu que nas ediccedilotildees sucessivas foi ganhando progressivamente elementos que pu-dessem identificar Catullo aos maiores poetas e o autor ao seu perso-nagem boecircmio do texto que atirava criacuteticas contra os mais diversos segmentos do campo literaacuterio de entatildeo desde os criacuteticos aos cantores

Eacute necessaacuterio salientar que todas essas estrateacutegias faziam parte de uma aguda sensibilidade de Catullo e de seus editores para os elementos de consagraccedilatildeo de seu nome como algueacutem de algum status em determi-nado momento do campo de produccedilatildeo textual Nesse iacutenterim natildeo fal-taram em suas publicaccedilotildees os depoimentos de leitores sobre sua obra e sua presenccedila cecircnica recitando ou cantando Natildeo faltaram intervenccedilotildees de seus editores explicando o caraacuteter da obra e do escritor com termos sempre emuladores como ldquocivilizadordquo ldquoletradordquo ldquobom moccedilordquo ldquogrande poetardquo etc Mas acima de tudo natildeo faltaram tentativas de Catullo de regrar uma leitura de seus textos que pudessem tornar possiacutevel seu de-sejo nunca escondido de reconhecimento consagrador

Atravessar os textos produzidos por Catullo eacute fazer uma leitura em filigranas interessado em flagrar o poeta se construindo e se recons-truindo a cada momento Contra um entendimento de que haacute uma ver-

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dade escondida no texto contrapotildee-se a necessidade de compreensatildeo de sua produccedilatildeo textual numa rede de discursos que natildeo se findam na escritura De radicalizar uma experiecircncia de histoacuteria da literatura que questione de saiacuteda a noccedilatildeo ldquoliteraacuteriardquo De estabelecer que um texto comunica visando a um puacuteblico leitor De chamar a atenccedilatildeo para a ma-terialidade do livro atribuindo ao trabalho interessado do editor um significado fundamental na criaccedilatildeo de um sucesso literaacuterio

O que se arvora na investigaccedilatildeo sobre Catullo eacute uma possibili-dade de compressatildeo da trajetoacuteria literaacuteria de um indiviacuteduo que natildeo se paute tatildeo somente com elementos extra-textuais Isso deve ser tentado com cuidado pois ainda que natildeo inexistam no texto aqui apresentado tais elementos a consideraccedilatildeo de uma representaccedilatildeo autoral construiacuteda nos textos pode obrigar o pesquisador a mais do que procurar na bio-grafia do autor uma explicaccedilatildeo a problematizar criticamente o proacuteprio texto pois que afinal eacute por meio dos textos (e com eles) que a comu-nicaccedilatildeo com os espaccedilos de reconhecimento se fazem para um escritor Nesse caminho haacute uma seacuterie de indiviacuteduos que contribuem para essa comunicaccedilatildeo desde editores passando por tipoacutegrafos e publicitaacuterios ou mesmo pela pena de um leitor autorizado o criacutetico literaacuterio

Introduzir na investigaccedilatildeo de textos sob o nome de ldquoliteraturardquo o questionamento sobre o proacuteprio estatuto literaacuterio de tal texto ainda eacute em nosso paiacutes um desafio ndash e como todo desafio tarefa instigadora Isso porque por essas praias a identificaccedilatildeo de um leitor continua sendo um aspecto distintivo de forma que questionar um texto consagrado sem cair na emulaccedilatildeo se torna tarefa perigosa e mal vista O suporte de reflexotildees trazidos pela nova criacutetica literaacuteria e pela denominada nova histoacuteria cultural satildeo nesse sentido de grande valia para a historicizaccedilatildeo dos textos Sobre essa uacuteltima vale ainda dizer que tal tarefa ademais se ressente de uma natildeo compressatildeo de sua proacutepria histoacuteria ndash expressa por vezes em maacute-feacute de seus criacuteticos Aiacute vale uma passagem importante de Chartier mas muitas vezes negligenciada por seus leitores que evi-tando um entendimento de suas propostas como uma retomada do texto em si recomenda que o estudo das representaccedilotildees produzidas nas di-versas praacuteticas culturais possa redimensionar uma antiga histoacuteria social Assim diz-nos o historiador ldquoa histoacuteria cultural pode regressar util-

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mente ao social jaacute que faz incidir a sua atenccedilatildeo sobre as estrateacutegias que determinam posiccedilotildees e relaccedilotildees e que atribuem a cada classe grupo ou meio um lsquoser-apreendidorsquo constitutivo da sua identidaderdquo408

Ademais o desafio para a escrita da trajetoacuteria de um indiviacuteduo recoloca em cena o velho debate sobre a possiblidade de se narrar uma parte da vida desse indiviacuteduo Embora exista de saiacuteda uma impossibi-lidade aceita pelo historiador de reconstruccedilatildeo de uma vida pensamos que o que natildeo se deve esquecer eacute o caraacuteter representacional da criaccedilatildeo do personagem A representaccedilatildeo de um sujeito numa narrativa joga fundamentalmente ela tambeacutem com um acordo entre historiador e leitor visando a construir por meio das fontes a crenccedila numa escrita que se paute por um referencial

Aiacute reside uma questatildeo eacutetica a ser enfrentada Eacute necessaacuterio pensar que a escrita de uma trajetoacuteria ndash e a de Catullo aqui produzida eacute ela mesma um exemplo ndash eacute parte de um acordo Poreacutem de um acordo que se estabelece entre um autor que escreve e um leitor que tambeacutem produz a partir de uma leitura criacutetica sua proacutepria representaccedilatildeo do per-sonagem da trajetoacuteria Perder de vista a possibilidade de invenccedilatildeo cor-roboraccedilatildeo e criacutetica do leitor diante daquilo que lecirc eacute negar (ou pior idiotizar) de partida a capacidade do leitor diante do texto Na con-tramatildeo disso ou seja atentando para o diaacutelogo do autor com os leitores em suas leituras insubmissas a trajetoacuteria autoral de Catullo da Paixatildeo Cearense foi aqui escrita Pensando nisso o autor deste trabalho bem sabe que enfrentar um ldquonome proacutepriordquo carregaraacute controversas leituras ndash mas necessaacuterio dizer natildeo se furtou desde o iniacutecio a desafiar o leitor em sua ldquocaccedila furtivardquo no texto

Por fim quero crer que tal empresa se exitosa possa de alguma forma provocar tambeacutem uma contribuiccedilatildeo para a abertura de novas pesquisas que tematizem o ldquonome proacutepriordquo doravante escapando das teias biograacuteficas que teimam em ldquocanonizarrdquo o sujeito biografado Por outro lado sou otimista que este trabalho lance luz para a necessidade de uma criacutetica literaacuteria que deixe de se fundar na construccedilatildeo de monu-

408 CHARTIER Roger A histoacuteria cultural entre praacutetica e representaccedilotildees Lisboa DIFEL 1990 p 23

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mentos sob o nome pretensioso de ldquoliteratura nacionalrdquo e que esta criacute-tica possa repensar-se inserindo nela um caraacuteter historicizante que leve em conta os demais sujeitos que fazem parte do espaccedilo de pro-duccedilatildeo textual Afinal foi nessa aventura com o livro (e no livro) que um dia certo bardo ordinaacuterio se transformou no poeta Catullo da Paixatildeo Cearense

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MURARI Luciana Tudo mais eacute paisagem representaccedilotildees da natureza na cultura brasileira 304 p Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2002NAXARA Maacutercia Regina Capelari Cientificismo e sensibilidade ro-macircntica em busca de um sentido explicativo para o Brasil no seacuteculo XIX Brasiacutelia UNB 2004NAXARA Maacutercia Regina Capelari Estrangeiro em sua proacutepria terra representaccedilotildees do brasileiro (1870-1920) Satildeo Paulo Annablume 1998MACHADO NETO Antocircnio Luiz Estrutura social da repuacuteblica das letras sociologia da vida intelectual brasileira ndash 1870-1930 Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 1973OLIVEIRA Liacutevio Lima de A revoluccedilatildeo da brochura experiecircncias de ediccedilotildees de livros acessiacuteveis no Brasil ateacute a primeira metade do seacuteculo XX Disponiacutevel em wwwescritoriodolivrocombr ofiacuteciosquaresmahtml Acesso em 23 abr 2011OLIVEIRA Liacutevio Lima de Pedro da Silva Quaresma entre estran-geiros um brasileiro Disponiacutevel em http wwwescritoriodolivrocombr ofiacuteciosquaresmahtml Acesso em 23 abr 2011 OLIVEIRA Luacutecia Lippi A conquista do espaccedilo sertatildeo e fronteira no pensamento brasileiro Histoacuteria Ciecircncia Sauacutede ManguinhosRJ v V (supl) p 195-215 jul 1998OLIVEIRA Luacutecia Lippi A questatildeo nacional na Primeira Repuacuteblica Satildeo Paulo Brasiliense 1990PAREDES Marccedilal de Menezes A querela dos originais notas sobre a polecircmica entre Siacutelvio Romero e Teoacutefilo Braga Estudos Ibero-Americanos Porto Alegre PUCRS 2006 p 103-119 Ediccedilatildeo Especial n 2 PECAUT Daniel Os intelectuais e a poliacutetica no Brasil entre o povo e a naccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 1990PEacuteCORA Alcir A maacutequina de gecircneros Satildeo Paulo Edusp 2001 PEREIRA Avelino Romero Simotildees Muacutesica sociedade e poliacutetica Alberto Nepomuceno e a Repuacuteblica musical Rio de Janeiro UFRJ 2007

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo318

PONS Anacleto SERNA Justo La histoacuteria cultural Madrid Ediciones Akal 2005

RANCIEgraveRE Jacques A partilha do sensiacutevel esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Editora 34 2005

REVEL Jacques Cultura popular usos e abusos de uma ferramenta historiograacutefica In REVEL Jacques Proposiccedilotildees ensaios de histoacuteria e historiografia Rio de Janeiro EdUERJ 2009 p 163-186

RIBEIRO Cristina Betioli O norte um lugar para a nacionalidade 2003 215 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Teoria e Histoacuteria Literaacuteria) ndash Curso de Teoria e Histoacuteria Literaacuteria Instituto de Estudos da Linguagem Universidade Estadual de Campinas CampinasSP 2003

RICOUER Paul Sobre a traduccedilatildeo Belo Horizonte UFMG 2011

RODRIGUES Joatildeo Paulo Coelho de Souza A danccedila das cadeiras li-teratura e poliacutetica na Academia Brasileira de Letras (1896-1913) Campinas Cecult 2001

SALIBA Elias Thomeacute Raiacutezes do riso a representaccedilatildeo humoriacutestica na histoacuteria brasileira Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002

SARDAS Letiacutecia de Farias Lineamentos do direito de autor na socie-dade da informaccedilatildeo Disponiacutevel em httpwwwtjrjjusbrcdocu-ment_libraryget_fileuuid=b0c1e0e1-dbec-417e-92d2-b65ec732b-8d2ampgroupId=10136 Acesso em 19 nov 2013

SCHAMA Simon Paisagem e memoacuteria Satildeo Paulo Companhia das Letras 1996

SEVCENKO Nicolau Literatura como missatildeo tensotildees sociais e criaccedilatildeo cultural na Primeira Repuacuteblica Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003

SEVCENKO Nicolau Um jequitibaacute no palco In Orfeu extaacutetico na Metroacutepole Satildeo Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992

SUSSEKIND Flora Cinematoacutegrafo de letras literatura teacutecnica e mo-dernizaccedilatildeo no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 319

SUSSEKIND Flora O Brasil natildeo eacute longe daqui o narrador a viagem Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990TABORDA Maacutercia Violatildeo e identidade nacional Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011VASCONCELOS Ary Panorama da muacutesica popular brasileira na Belle Eacutepoque Rio de Janeiro Livraria SantrsquoAnna 1977VELLOSO Mocircnica Pimenta A cultura das ruas no Rio de Janeiro (1900-1930) mediaccedilotildees linguagens e espaccedilo Rio de Janeiro Ediccedilotildees Casa de Rui Barbosa 2004VELLOSO Mocircnica Pimenta Falas da cidade conflitos e negociaccedilotildees em torno da identidade cultural no Rio de Janeiro Artcultura Uber-lacircndia v 7 n 11 p 159-172 juldez 2005VELLOSO Mocircnica Pimenta A literatura como espelho da naccedilatildeo Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 1 n 2 p 239-263 1998VELLOSO Mocircnica Pimenta Histoacuteria e modernismo Belo Horizonte Autecircntica 2010VELLOSO Mocircnica Pimenta Modernismo no Rio de Janeiro Rio de Janeiro FGV 1996VELLOSO Mocircnica Pimenta Os intelectuais e a poliacutetica cultural do Estado Novo In FERREIRA Jorge DELAGADO Luciacutelia de Almeida Neves O Brasil Republicano o tempo do nacional-estatismo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012VELLOSO Mocircnica Pimenta Um folhetinista oral representaccedilotildees e dramatizaccedilotildees da vida intelectual na virada do seacuteculo XIX In VELLOSO Mocircnica Pimenta LOPES Antocircnio Herculano PESAVENTO Sandra Jatahy (org) Histoacuteria e linguagens texto imagem oralidade e representaccedilotildees Rio de Janeiro 7 Letras 2006VELLOSO Mocircnica Pimenta OLIVEIRA Claacuteudia LINS Vera O mo-derno em revistas representaccedilotildees do Rio de Janeiro de 1890 a 1930 Rio de Janeiro Garamon 2010VENAcircNCIO Giselle Martins Na trama do arquivo a trajetoacuteria de Oliveira Vianna (1883-1951) 2003 340 f Tese (Doutorado em Histoacuteria

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo320

Social) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003

VENEZIANO Neyde O teatro de revista no Brasil Campinas Ponte Unicamp 1991

VIANNA Hermano Elite brasileira e muacutesica popular In O misteacuterio do samba 7 ed Rio de Janeiro ZaharUFRJ 2010

VIALA Alain Naissance de lrsquoeacutecrivain sociologie de la litteacuterature agrave lrsquoacircge classique Paris Editions de Minuit 1985

WILLIAMS Raymond O campo e a cidade na histoacuteria e na literatura Satildeo Paulo Companhia das Letras 1989

WISNIK Joseacute Miguel Getuacutelio da Paixatildeo Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo) In SQUEFF Ecircnio WISNIK Joseacute Miguel Muacutesica o nacional e o popular na cultura brasileira Satildeo Paulo Brasiliense 2004 p 129-190

WOODMANSEE Martha On the author effect recovering collectivity In WOODMANSEE Martha JASZI Peter (ed) The Construction of Authorship textual appropriation in law and literature Durham and London Duke University Press 1994 p 15-28

ZUMTHOR Paul A letra e a voz Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993

ZUMTHOR Paul Introduccedilatildeo agrave poesia oral Belo Horizonte UFMG 2010

FontesALENCAR Joseacute O sertanejo 6 ed Satildeo Paulo Melhoramentos Satildeo Paulo sd (1a ediccedilatildeo em 1875)

ALIBERT Jean-Louis Physiologia das paixotildees Rio de Janeiro Quaresma 1911

ALMIRANTE No tempo de Noel Rosa Rio de Janeiro Francisco Alves 1963

ANDRADE Maacuterio de Taacutexi e crocircnicas no Diaacuterio Nacional Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1976

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 321

ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011

ANDRADE Oswald de Pau Brasil Satildeo Paulo Globo 2003

AZEVEDO Artur A capital federal Rio de Janeiro Ediouro sd

AZEVEDO Artur A conquista Rio de Janeiro Ediouro sd

BANDEIRA Manuel Crocircnicas da proviacutencia do Brasil Satildeo Paulo CosacampNaify 2006

BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os homens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942

BARRETO Lima Recordaccedilotildees do escrivatildeo Isaiacuteas Caminha Satildeo Paulo Publifolha 1997 (1ordf ediccedilatildeo em 1907)

BARRETO Lima Triste fim de Policarpo Quaresma Fortaleza ABC Editora 1999

BARROSO Gustavo Terra de sol Rio de JaneiroSatildeo PauloFortaleza ABC Editora 2006 (1ordf ediccedilatildeo em 1912)

BOAVENTURA Maria Eugecircnia (org) 22 por 22 a Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporacircneos Satildeo Paulo Edusp 2008

BOTAFOGO Don Juan de Manual do namorado Rio de Janeiro Ediccedilotildees Quaresma sd

CARVALHO Joseacute Perfis sertanejos costumes do Cearaacute Fortaleza Typographia Minerva 1897

CARVALHO Rodrigues de Cancioneiro do Norte Fortaleza Tipografia Minerva 1903

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Aos pescadores Rio de Janeiro Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 1923

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas bra-sileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 (1ordf ediccedilatildeo em 1899)

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Canccedilotildees das madrugadas Rio de Janeiro Papelaria e Typografia Sportiva 1915

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo322

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Chocircros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Faacutebulas e alegorias Rio de Janeiro Officina Industrial Graphica 1928

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Florileacutegio dos cantores Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1915

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Lyra dos salotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1905

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta iluminada Rio de Janeiro Bedeschi 1944 (1ordf ediccedilatildeo em 1924)

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu Brasil 2 ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira SA sd (1ordf ediccedilatildeo em 1928)

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas 2 ed Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1956 (1ordf ediccedilatildeo em 1946)

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Novos cantares Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1909

CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943

CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Rio de Janeiro Aurora 1945

CEARENSE Catullo da Paixatildeo O cantor de modinhas brasileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1927 (1ordf ediccedilatildeo em 1907)

CEARENSE Catullo da Paixatildeo O evangelho das aves Rio de Janeiro Livraria Castilho 1927

CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Oraccedilatildeo agrave bandeira Rio de Janeiro Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal 1937

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 323

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas bravios Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas escolhidos Rio de Janeiro Zeacutelio Valverde 1944

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 2 ed Rio de Janeiro A Noite 1938

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 3ed Rio de Janeiro A Noite 1943

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946

CEARENSE Catullo da Paixatildeo Trovas e canccedilotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1910

COacuteDIGO Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado por Cloacutevis Bevilaacutequa Rio de Janeiro Livraria Francisco Alves 1917

CUNHA Euclides da Contrastes e confrontos Rio de Janeiro Nova Aguilar 1966 (Coleccedilatildeo Obra Completa) (1ordf ediccedilatildeo em 1907)

CUNHA Euclides da Os sertotildees Rio de Janeiro Nova Aguilar 2002 (Coleccedilatildeo Inteacuterpretes do Brasil) (1ordf ediccedilatildeo em 1902)

EDMUNDO Luiacutes O Rio de Janeiro do meu tempo Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1938

FERREIRA Procoacutepio Procoacutepio Ferreira apresenta Procoacutepio Ferreira Rio de Janeiro Rocco 2000

FIGUEIREDO Cacircndido Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa Lisboa Livraria Claacutessica 1913

LAGO Maacuterio Bagaccedilo de beira-estrada Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1977

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo324

LAGO Maacuterio Na rolanccedila do tempo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1976

LOBATO Monteiro Ideacuteias de Jeca-Tatuacute Satildeo Paulo Brasiliense 1956

MORAIS FILHO Mello Cantares brasileiros Rio de Janeiro SEEC-RJ 1981

MORAIS FILHO Mello Festas e tradiccedilotildees populares do Brasil Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2002

MASCARENHAS Annibal O orador do povo Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1924

MOTTA Leonardo Cantares brasileiros cancioneiro fluminense Rio de Janeiro SEEC-RJDepartamento de Cultura INELIVRO 1981 (1ordf ediccedilatildeo em 1900)

MOTTA Leonardo Cantadores poesia e linguagem do sertatildeo cea-rense Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921

NEVES Eduardo das Mysteacuterios do violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1905

NERY Frederico Joseacute de Santa-Anna Folclore brasileiro Recife FundajMassan gana 1992 (1ordf ediccedilatildeo em 1889)

NETO Coelho A conquista Disponiacutevel em wwwdominiopublicogovbr Acesso em 14 jan 2012 (1ordf ediccedilatildeo em 1899)

PINTO Alexandre Gonccedilalves O chocircro reminiscecircncias dos chorotildees antigos Rio de Janeiro Tipografia Gloacuteria 1936 (ediccedilatildeo fac-siacutemile pela FUNARTE 2009)

RANGEL Alberto Os sertotildees brasileiros In ANNAES DA BIBLIOTECA NACIONAL Rio de Janeiro Officinas Graphicas da Bibliotheca Nacional 1916 v XXXV p 115

RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Belo Horizonte Crisaacutelida 2007 (1ordf ediccedilatildeo em 1910)

RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 325

RIO Joatildeo do O momento literaacuterio Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 2010

ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 2008

ROMERO Sylvio Estudos sobre a poesia popular do Brazil Rio de Janeiro Typ Laemmert amp C 1888

SALES Antocircnio Aves de arribaccedilatildeo Rio de JaneiroSatildeo PauloFortaleza ABC Editora 2006 (1ordf ediccedilatildeo em 1903)

TAUNAY Visconde de Dias de guerra e de sertatildeo Satildeo Paulo Revista do Brasil 1920

TELES Gilberto Mendonccedila (org) Vanguarda europeia e modernismo brasileiro Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2012

TEOacuteFILO Rodolfo A fome Fortaleza Ediccedilotildees Demoacutecrito Rocha 2002 (1ordf ediccedilatildeo em 1890)

TORRES Antocircnio Carmen tropicale Rio de Janeiro Livraria Castilho 1915

VERIacuteSSIMO Joseacute O que eacute literatura E outros escritos Satildeo Paulo Landy 2001

Site consultadoBase de Dados da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco Disponiacutevel em httpbasesfundajgovbrcgi-binisis3g-bpl Acesso em 22 set 2012

Perioacutedicos consultadosA CriacuteticaA EacutepocaA NoiteA PacotilhaA SemanaAnaes da Biblioteca Nacional

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo326

Correio da ManhatildeCorreio de NotiacuteciasCorreio PaulistanoDiretrizesGazeta da TardeGazeta de NotiacuteciasJornal do Comeacutercio do Rio de Janeiro Jornal do BrasilO Estado de Satildeo Paulo O ImparcialO PaizRevista ldquoFon-FonrdquoRevista ldquoO MalhordquoA Noite (Suplemento)

CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 327

ANEXO A

Livros publicados por Catullo da Paixatildeo Cearense com respectivo ano da primeira ediccedilatildeo

A canccedilatildeo do africano ndash ano de publicaccedilatildeo incertoO vagabundo ndash ano de publicaccedilatildeo incertoCantor fluminense (1894)Cancioneiro popular de modinhas brasileiras (1899)Choros ao violatildeo (1902) Lyra dos salotildees (1905) O cantor das modinhas brasileiras (1907)Lyra brasileira (1908)Novos cantares (1909)Trovas e canccedilotildees (1910)Canccedilotildees da madrugada (1910) Florileacutegio dos cantores (1915)Meu sertatildeo (1918)Sertatildeo em flor (1919)Poemas bravios (1921)Aos pescadores (1923) Mata iluminada (1924)O evangelho das aves (1927)

Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo328

Alma do sertatildeo (1928)Faacutebulas e alegorias (1928)Meu Brasil (1928)O sol e a lua (1934)Um boecircmio no ceacuteu (1937)Oraccedilatildeo agrave bandeira (1938)Um caboclo brasileiro (1940)O milagre de Satildeo Joatildeo (1942) Poemas escolhidos (1944)O testamento da aacutervore (1945)Modinhas (1946)

O AUTOR

Kleiton de Sousa Moraes

Possui doutorado (2014) e mestrado (2010) em Histoacuteria Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014)

Atualmente eacute professor da Universidade Federal do Cearaacute (UFC) Anteriormente atuou como professor da Universidade Estadual do Cearaacute (UECE) e do Instituto Federal do Cearaacute (IFCE)

Desempenhou atividades de pesquisa durante a formaccedilatildeo traba-lhando na aacuterea de Histoacuteria do Brasil com ecircnfase em Histoacuteria Cultural Sua tese foi agraciada com menccedilatildeo honrosa no ldquoPrecircmio Manoel Luiz Salgado Guimaratildeesrdquo da Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 2014 Tem interesse e desenvolve pesquisas nas seguintes aacutereas Teoria e Metodologia da Histoacuteria Histoacuteria das Praacuteticas Letradas Histoacuteria da Educaccedilatildeo Poder e Crenccedilas na Modernidade Narrativas Espaciais no Seacuteculo XIX e XX e Histoacuteria do Brasil Repuacuteblica

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