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Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autor
Presidente da RepuacuteblicaJair Messias Bolsonaro
Ministro da EducaccedilatildeoMilton Ribeiro
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARAacute ndash UFCReitorProf Joseacute Cacircndido Lustosa Bittencourt de Albuquerque
Vice-ReitorProf Joseacute Glauco Lobo Filho
Proacute-Reitor de Planejamento e AdministraccedilatildeoProf Almir Bittencourt da Silva
Proacute-Reitor de Pesquisa e Poacutes-GraduaccedilatildeoProf Jorge Herbert Soares de Lira
IMPRENSA UNIVERSITAacuteRIADiretorJoaquim Melo de Albuquerque
CONSELHO EDITORIAL
PresidenteJoaquim Melo de Albuquerque
ConselheirosProf Claudio de Albuquerque MarquesProf Antocircnio Gomes de Souza Filho Prof Rogeacuterio Teixeira MasihProf Augusto Teixeira de Albuquerque Profordf Maria Elias Soares Francisco Jonatan Soares Prof Luiz Gonzaga de Franccedila LopesProf Rodrigo MaggioniProf Armecircnio Aguiar dos SantosProf Maacutercio Viana RamosProf Andreacute Bezerra dos SantosProf Fabiano Andreacute Narciso FernandesProfordf Ana Faacutetima Carvalho FernandesProfordf Renata Bessa PontesProf Alexandre Holanda SampaioProf Alek Sandro DutraProf Joseacute Carlos Laacutezaro da Silva FilhoProf William Paiva Marques JuacuteniorProf Irapuan Peixoto Lima FilhoProf Caacutessio Adriano Braz de AquinoProf Joseacute Carlos Siqueira de SouzaProf Osmar Gonccedilalves dos Reis Filho
membros responsaacuteveis pela seleccedilatildeo das obras de acordo com o Edital nordm 132019
Fortaleza2020
Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autor
Kleiton de Sousa Moraes
Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autorCopyright copy 2020 by Kleiton de Sousa MoraesTodos os direitos reservados
Impresso no BrasIl prInted In BrazIl
Imprensa Universitaacuteria da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)Av da Universidade 2932 fundos ndash Benfica ndash Fortaleza ndash Cearaacute
Coordenaccedilatildeo editorialIvanaldo Maciel de Lima
Revisatildeo de textoAntiacutedio Oliveira
Normalizaccedilatildeo bibliograacuteficaMarilzete Melo Nascimento
Programaccedilatildeo visual Sandro Vasconcellos Thiago Nogueira
DiagramaccedilatildeoSandro Vasconcellos
CapaHeron Cruz
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na PublicaccedilatildeoBibliotecaacuteria Marilzete Melo Nascimento CRB 31135
M827c Moraes Kleiton de Sousa Catullo da Paixatildeo Cearense ou como se constroacutei um autor [livro eletrocircnico] Kleiton de Sousa Moraes - Fortaleza Imprensa Universitaacuteria 2020 2189 kb il color PDF (Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo)
ISBN 978-65-88492-14-7 1 Muacutesica popular ndash Histoacuteria e criacutetica 2 Compositores ndash Brasil 3 Catullo da Paixatildeo Cearense I Tiacutetulo CDD 92781
Para Manoel Luiz Salgado Guimaratildees pelo exemplo de eacutetica na praacutetica historiadora
Para Luiz Inaacutecio Lula da Silva pela dignidade
Para o meu Joatildeo (o que foi e o que viraacute)
AGRADECIMENTOS
Fruto de uma tese defendida em abril de 2014 junto ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro este trabalho seria impossiacutevel sem a ajuda de algumas pessoas que de alguma forma contribuiacuteram para a sua feitura Em primeiro lugar agradeccedilo agrave minha orientadora Marieta de Moraes Ferreira que com um carinho muitas vezes imprevisiacutevel nas relaccedilotildees acadecircmicas abraccedilou esta pesquisa desde os primeiros esboccedilos A ela que me deu a liberdade de criar e ousar na escrita devo muito de minha formaccedilatildeo como historiador e ofereccedilo desde jaacute algum sucesso que este trabalho possa vir a obter
Aos amigos do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro com os quais compartilho uma convivecircncia sempre amaacutevel e discussotildees pautadas por boas garga-lhadas Pela constacircncia (e nunca por uma hierarquia de amabilidade) Joatildeo Henrique Castro Juliana Torres Aline Carrijo Raquel Campos Edianne Nobre Iuri Bauler Aline Monteiro Heraacuteclio Tavares Patriacutecia Franccedila e Suellen Mayara Natildeo os esquecerei depois da uacuteltima linha deste trabalho
Agraves professoras (es) Giselle Venacircncio Eliana de Freitas Dutra Mocircnica Pimenta Velloso Lia Calabre e Francisco Reacutegis Lopes pela lei-tura atenta e dicas fundamentais no processo de qualificaccedilatildeo e de defesa Agrave Rita e Sandra secretaacuterias e amigas do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior que concedeu bolsa de doutorado para a efetivaccedilatildeo da pesquisa
Agrave Jacira e Paulo que tornaram desde o iniacutecio a ponte Fortaleza Rio de Janeiro passagens agradaacuteveis
Agrave Aline Medeiros pelos diaacutelogos amaacuteveis pela presenccedila cons-tante de uma palavra de seguranccedila e a quem tenho tanto orgulho de chamar de minha amiga
Agrave minha matildee Beatriz de Sousa Moraes que me deu a seguranccedila de enfrentar batalhas nem de longe tatildeo difiacuteceis como a que ela mesma travou para nos dar o conforto de buscar nosso proacuteprio caminho Eacute por causa de seu suporte e de sua presenccedila em muitos momentos de minha vida que existe este trabalho
Por fim agrave Sacircmia pelo amor que me conforta pela inteligecircncia que me orienta e pela paz que me envolve
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
CATULLO CEARENSE E O LUAR DA CIDADE 25Catullo e a cultura escrita 25Aos leitores ldquotudo quanto se quizerrdquo autor livro e literatura 55
COMO SE CRIA UMA AUTORIA 69O cancioneiro popular de modinhas 69Um poeta popular 85
SER POETA SER DO SERTAtildeO 98A cidade e o sertatildeo 98A livraria Castilho 112
CATULLO DA PAIXAtildeO NACIONAL 118O meu sertatildeo 118Catullo Satildeo Paulo e os modernos 134O lugar de quem fala 153Modernos e velhos 173
CATULLO EM CENA 198Dos textos aos palcos ou o inverso 198O teatro no texto 213Um boecircmio no ceacuteu 223
POR UMA REPRESENTACcedilAtildeO DE SI 242Tempo de prestar contas 242O testamento da aacutervore 259O livro derradeiro 277Representaccedilotildees sociais de um morto distinto 286
CONCLUSAtildeOA trajetoacuteria autoral de um poeta ordinaacuterio 302
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 309
ANEXO A Livros publicados por Catullo da Paixatildeo Cearense com respectivo ano da primeira ediccedilatildeo 327
O AUTOR 329
INTRODUCcedilAtildeO
O mais elevado seria compreender que tudo o que eacute faacutetico jaacute eacute teoria
J W Goethe
Radiolas Haacute certo glamour nostaacutelgico em apreciar um objeto cujo valor de uso se esvaece diante da incessante mdash e por vezes esqui-zofrecircnica mdash sede por novidades No entanto a novidade para quem volta seu interesse para o passado eacute a estranha presenccedila do velho no presente Muito jaacute se disse que o repertoacuterio de canccedilotildees que se guarda na memoacuteria ajuda a elevar esse imenso e obscuro edifiacutecio das lembranccedilas Desde muito pequeno me acostumei a ouvir e cantarolar no colo de meu ldquovocircrdquo Joatildeo vozes antigas que vinham de uma velha radiola mantida no centro da sala Ateacute onde minhas lembranccedilas desses tempos alcanccedilam consigo enxergar certas imagens cujo sentido natildeo estaria tatildeo claro para mim se natildeo fossem as canccedilotildees que as acompanham como se fosse de-senrolado diante de meus olhos um concerto nostaacutelgico
No longo repertoacuterio que minha memoacuteria acumulou de Ataulfo Alves passando por Stevie Wonder e desembocando num choroso as-sobio cantado por Roberto Carlos duas canccedilotildees durante muito tempo mobilizaram minhas lembranccedilas infantis A primeira eacute um lamento de Luiz Gonzaga sob o nome de Ave Maria sertaneja tocada no raacutedio de meu avocirc paterno todos os dias religiosamente ao findar da tarde A outra canccedilatildeo me pareceu sempre mais estranha de definir o aconteci-
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo12
mento que me liga a ela Natildeo sei bem se eu a ouvia quando visitava na Paacutescoa o sertatildeo de meus avoacutes maternos ndash ou seria apenas uma cons-truccedilatildeo a posteriori da minha memoacuteria ldquoNatildeo haacute oacute gente oacute natildeo luar como esse do sertatildeordquo
A minha certeza eacute que ainda hoje quando escuto esses versos eu componho o quadro de minha infacircncia de menino da cidade no interior O cheiro de mato molhado as casinhas que se escondiam entre uma vasta plantaccedilatildeo que havia na frente da casa de meus avoacutes e a forte pre-senccedila de meu ldquovocircrdquo Joatildeo ouvindo a canccedilatildeo diante da janela que dava para a rua sem nem mesmo esboccedilar um mero sorriso datildeo a essas lem-branccedilas uma atmosfera para mim quase religiosa Os versos eram muito rebuscados para o entendimento de uma crianccedila de seis sete mdash ou se-riam oito anos de idade Natildeo sei bem dizer Mas bem sei que um nome acompanhava a canccedilatildeo em mim Catullo da Paixatildeo E eu na minha inocecircncia de crianccedila de tatildeo pouca idade achava lindo algueacutem que tinha paixatildeo no nome e que era compositor de uma canccedilatildeo cujo tiacutetulo era Luar do sertatildeo De laacute para caacute muita coisa ouvi e vivi Conheci as Carolinas de Chico as Saacute Marinas de Simonal as garotas bonitas de Jorge e bem das paixotildees ainda permanecia em mim uma o Luar do sertatildeo Assim como a radiola que permaneceu em minha casa e cujo ruiacutedo de maacutequina velha hoje me causa essa sensaccedilatildeo mdash coisa quem sabe de historiador mdash que na falta de palavra que melhor defina chamam de deslumbramento E Luar do sertatildeo deslizando ruidosa-mente na agulha da radiola transferia-me para um tempo-espaccedilo outro Assim quase que sem motivo um dia jaacute adulto decidi eu precisava ir atraacutes de saber quem era o tal Catullo da Paixatildeo mdash o leitor natildeo me per-gunte pelo menos por ora um ldquopor quecircrdquo que faccedila muito sentido
Foi aiacute que descobri que Catullo me levava a outros lugares mais distantes do que minha infacircncia As paacuteginas que se seguem satildeo o resul-tado desse encontro onde natildeo faltaram descobertas que me abriam um leque de informaccedilotildees sobre esse personagem Descobri de iniacutecio que Catullo era tambeacutem poeta Natildeo soacute poeta da canccedilatildeo mas daqueles que escreviam livros e mais ainda um raivoso defensor do verso rebuscado mdash tal qual Bilac e o parnaso Fui aos poucos perdendo eacute verdade a paixatildeo pelo Catullo de minhas lembranccedilas a fim de encontrar mais so-
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 13
briamente um personagem mais humano o Catullo funcionaacuterio puacute-blico o Catullo dos salotildees da elite carioca o Catullo que se vangloriava de seu letramento Assim nesse espaccedilo tenso onde paixatildeo e sobriedade se misturavam e onde minha curiosidade de historiador se aguccedilava mais do que o de apreciador de sua canccedilatildeo encontrei-o meio sem querer por inteiro Catullo da Paixatildeo Cearense
Catullo da Paixatildeo Cearense foi um profundo conhecedor das ruas do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo XIX para o XX e esse conheci-mento fez com que a elite letrada carioca aacutevida naqueles tempos por conhecer as ditas ldquocoisas popularesrdquo autorizasse sua entrada nos luxu-osos salotildees frequentados por homens ilustres como Arthur Azevedo Joatildeo do Rio e Rocha Pombo Em pouco tempo Catullo tornou-se bas-tante conhecido na sociedade carioca ainda mais apoacutes publicar pela popular livraria Quaresma coleccedilotildees de livros contendo modinhas com-piladas nas ruas cariocas e algumas mais de sua lavra
Concomitantemente ao que se tornou conhecido como ldquopoeta po-pularrdquo Catullo via no desempenho desse papel um entrave para ser re-conhecido como autor de livros ou propriamente um verdadeiro lite-rato uma vez que modinhas eram consideradas por demais ldquopopularesrdquo para que seu autor chegasse a ser reconhecido como um grande poeta Foi na construccedilatildeo de estrateacutegias textuais visando a regrar uma recepccedilatildeo de sua obra que lhe garantisse um status mais condizente com o de ldquopoetardquo que Catullo construiu sua trajetoacuteria literaacuteria
Ali a uma distacircncia que eu pudesse vislumbrar de maneira mais ldquoprudenterdquo a trajetoacuteria de meu personagem foi sendo construiacuteda uma investigaccedilatildeo que resultaria na tentativa de reconstruir tal trajetoacuteria E a de Catullo foi se constituindo em torno dos livros Em seus livros eacute possiacutevel vislumbrar um poeta se formando e sendo formado no campo literaacuterio brasileiro da primeira metade do seacuteculo XX
De partida a constataccedilatildeo de uma ausecircncia da produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense nos compecircndios de literatura brasileira fez com que este trabalho buscasse escapar de abordagens consagradas na histoacuteria literaacuteria e lanccedilasse matildeo sempre que possiacutevel de uma fuga do para-digma nacional mdash aquele que tenta ver nas obras tatildeo simplesmente expressotildees de uma tentativa de criaccedilatildeo teleoloacutegica da naccedilatildeo Isso fez
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo14
com que desde o princiacutepio do trabalho a investigaccedilatildeo de uma ldquoidenti-dade nacionalrdquo nos livros soacute adentrasse quando fosse necessaacuterio ana-lisar os seus usos mdash e nunca como temaacutetica a ser investigada a priori Se houve alguma advertecircncia admitida de iniacutecio foi a de que esta inves-tigaccedilatildeo da trajetoacuteria literaacuteria de Catullo se guiasse pelos seus textos em seu processo de produccedilatildeo e consumo A temaacutetica ldquonacionalrdquo (por vezes incontornaacutevel) natildeo guiou a narrativa que se iraacute ler mdash o que penso trouxe (e traz) agrave tona outra seacuterie de questionamentos novos no que tange agrave produccedilatildeo de textos no Brasil
A possibilidade de se investigar a trajetoacuteria de um indiviacuteduo no tempo obriga o investigador a uma seacuterie de recomendaccedilotildees de ordem teoacuterica Atentar para a necessidade imperativa de recolocar o investi-gado dentro das vaacuterias temporalidades distintas que o formam e que o fazem agir eacute hoje tarefa primordial para se tentar tal empresa mdash quando quase ningueacutem acredita mais numa coerecircncia inerente ao su-jeito em suas vaacuterias contingecircncias A emergecircncia de se pensar o sujeito em seus muacuteltiplos momentos e mais do que isso captar em cada mo-mento distinto sua accedilatildeo interessada de acordo com um espaccedilo de accedilatildeo dado funda-se numa ideia de tempo natildeo linear Nesse sentido biogra-fias satildeo sem duacutevida um exerciacutecio sempre perigoso para se aventar uma escrita pautada na negaccedilatildeo da ldquotrajetoacuteria exemplarrdquo O caminho esco-lhido por esse trabalho tentou por mais das vezes fugir dessas artima-nhas biograacuteficas e se inserir enfrentando o ldquonome proacutepriordquo num es-paccedilo de diaacutelogo onde o que ganha contorno mais especiacutefico eacute a possibilidade de investigar as estrateacutegias de construccedilatildeo de uma repre-sentaccedilatildeo autoral
O seacuteculo XX farto em produccedilatildeo biograacutefica trouxe com o ldquode-sencantamentordquo progressivo do homem produzido pelas reflexotildees das ciecircncias humanas uma criacutetica agrave narrativa linear ndash que heroificava ou ldquogenializavardquo o biografado dando-lhe um caraacuteter de exemplaridade Isso resultou numa percepccedilatildeo aguda da fragilidade do homem diante do mundo que o rodeia Desde iniacutecios do seacuteculo passado com a psicanaacute-lise de Freud passando pela febre do estigmatizado ldquoestruturalismordquo nos anos 1950 e 1960 ateacute os vaacuterios ldquopoacutesrdquo que constroem nossa moder-nidade o homem foi relativizando progressivamente sua autonomia
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 15
diante das ldquocoisas do mundordquo fazendo com que alguns chegassem agrave absurda tese da ldquomorte do sujeitordquo
Se tal constataccedilatildeo rendeu resultados profiacutecuos na reflexatildeo das Ciecircncias Humanas contingenciando o homem diante do mundo por outro lado a radicalizaccedilatildeo dessa criacutetica em alguns casos perdeu de vista o objeto central de toda reflexatildeo ou seja o proacuteprio homem Tais aportes se disseminaram por diversas aacutereas da chamada Humanidades a Sociologia a Histoacuteria a Psicologia a Antropologia e as Letras A criacutetica literaacuteria se deixou consumir por semelhante guinada de forma tal que foi nela onde o espasmo se mostrou mais fatal
Acostumados a conviver com investigaccedilotildees de obras onde pre-dominava o papel do sujeito-escritor como fundamental e uacutenico na criacutetica historiadores da literatura e criacuteticos literaacuterios sofreram um duro golpe desferido especialmente a partir de algumas proposiccedilotildees vindas da semioacutetica e da linguiacutestica alguns se vangloriavam de haver encon-trado na estruturaccedilatildeo da liacutengua em determinado texto o diagnoacutestico final de uma obra Tudo transcorria em meados da deacutecada de 1960 como se o ldquofim da histoacuteriardquo no tratamento de textos finalmente hou-vesse chegado
Poreacutem foi exatamente pelo inconformismo tanto diante da auto-nomia absoluta do texto quanto da velha criacutetica que dava primazia ao nome como explicaccedilatildeo uacutenica da obra que surgiu de vaacuterios lugares a criacutetica da entatildeo nova criacutetica A esteacutetica da recepccedilatildeo de Jauss Iser e Gumbrecht na Alemanha propunha ainda na deacutecada de 1960 um es-forccedilo para a compreensatildeo do campo literaacuterio como espaccedilo do qual fa-ziam parte tambeacutem os leitores cuja interpretaccedilatildeo dos textos natildeo raras vezes fugia dos limites pensados pelo autor na escrita No mundo an-glo-saxatildeo o novo historicismo recolocava a necessidade de se (re)pensar a historicidade dos textos Na Franccedila onde o estruturalismo reinou de maneira mais imperativa nas Ciecircncias Humanas nomes como Pierre Bourdieu e Michel Foucault reintroduziam o sujeito de escolhas no acircmago dos meios universitaacuterios propondo um tenso casamento entre estrutura e sujeito de tal forma que a compreensatildeo das accedilotildees humanas pudesse ser pensada levando em consideraccedilatildeo o exerciacutecio constante da negociaccedilatildeo entre um e outro No campo historiograacutefico isso resultou
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num novo diaacutelogo estabelecido com a Sociologia e a Criacutetica Literaacuteria e uma reintroduccedilatildeo das reflexotildees acerca do estatuto da produccedilatildeo de uma escrita historiograacutefica cujo aacutepice foram as polecircmicas que envolveram o historiador estadunidense Hayden White
Essas premissas geraram uma visatildeo mais aguda e criacutetica do termo ldquoculturardquo colocando a historicidade de seu uso como mateacuteria de ponta a fim de compreender melhor os atos humanos no tempo Daiacute o ato da leitura ter ganhado um status diferente desembocando nas reflexotildees produzidas pela assim chamada Nova Histoacuteria Cultural um tiacutetulo impreciso que abrigava nomes como Carlo Ginzburg e Raymond Williams que embora tatildeo diacutespares tinham em comum o fato de colocarem a ldquoculturardquo (ou a historicidade dela) no centro de suas reflexotildees Dentre esses autores identificados com a Nova Histoacuteria Cultural o historiador Roger Chartier foi aquele para quem a sistema-tizaccedilatildeo de um projeto historiograacutefico sob esse nome ganhou contornos mais niacutetidos ndash e mais problemaacuteticos pela miscelacircnea de autores que se propotildee evocar
Retomando Norbert Elias dialogando com a fenomenologia do sujeito de Paul Ricouer a sociologia de Bourdieu e as ideias de Michel Foucault introduzindo a criacutetica textual como criacutetica tambeacutem das formas de leitura e fiel agraves reflexotildees instigantes de Michel de Certeau Chartier insistiu no estatuto contingente da leitura num consequente ataque agraves criacuteticas semioticistas que apagavam o espaccedilo de produccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do texto de seus interesses
Seguramente isso natildeo soacute reintroduziu a leitura como momento importante na produccedilatildeo de sentidos do texto mdash em diaacutelogo aberto com a esteacutetica da recepccedilatildeo mdash como lanccedilou luz sobre os elementos que tor-navam uma leitura possiacutevel Daiacute um acentuado interesse sobre a morfo-logia dos textos com o nome do biblioacutegrafo neozelandecircs Don Mckenzie interessado na historicidade das formas dos textos tornando-se comum nos trabalhos de Chartier Mas se tal aventura sobre a produccedilatildeo de sen-tidos de um texto colocava na pauta do dia atentar para as estrateacutegias de leitores editores e tipoacutegrafos a reflexatildeo sobre o papel do ldquoautorrdquo na nova criacutetica textual que se queria ainda se ressentia de uma tendecircncia fundante da literatura ocidental qual seja a da distinccedilatildeo do autor de
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livros na sociedade Ou para dizer mais claramente a constante ldquogenia-lizaccedilatildeordquo do indiviacuteduo que escreve livros
O ldquonome proacutepriordquo ainda era uma barreira difiacutecil de contornar quando se pensavam as relaccedilotildees entre autoria e texto Nesse ponto es-peciacutefico Norbert Elias com seu Mozart e Pierre Bourdieu com As regras da arte jaacute haviam dado suas contribuiccedilotildees na derrubada difiacutecil e edificante do ldquonome proacutepriordquo No campo historiograacutefico isso se daria mais tarde
No Brasil a biografia exemplar ainda absorve grande parte da produccedilatildeo de reflexotildees que pautam uma trajetoacuteria autoral O ldquonome proacute-priordquo muitas vezes ganha as prateleiras com best sellers biograacuteficos de emulaccedilatildeo onde a genialidade e a trajetoacuteria incomum ganham mais es-paccedilo do que a reflexatildeo criacutetica A consolidaccedilatildeo de uma vida distinta se sobrepotildee agrave ldquohumanidaderdquo do indiviacuteduo Na produccedilatildeo historiograacutefica o temor por encarar o ldquonomerdquo segue uma receita ndash jaacute consolidada pelo menos na historiografia mdash que teme pela escrita que possa evocar as foacutermulas das velhas biografias
Ademais no campo da literatura ndash espaccedilo de consagraccedilatildeo do su-jeito em diversos locais do ocidente ndash a produccedilatildeo de um cacircnone tei-mava havia pouco tempo em apagar a pesquisa que introduzisse o papel do editor e leitor no acircmago da produccedilatildeo do texto do autor consa-grado Daiacute da anaacutelise criacutetica da historicidade dos textos os novos pes-quisadores que tentavam fugir do cacircnone buscaram antes proceder agrave anaacutelise criacutetica da historicidade do cacircnone Alcir Peacutecora e Joatildeo Adolfo Hansen satildeo sem sombra de duacutevida os arautos desse tipo de criacutetica no Brasil A partir de seus trabalhos puderam surgir novos problemas para se trabalhar com textos no Brasil e na esteira disso reapareceram nomes de escritores ndash muitos deles pouco reconhecidos por uma ldquoHistoacuteria da Literaturardquo ndash que ganharam as paacuteginas de trabalhos univer-sitaacuterios como Luiz Murat e Benjamin Constallat e novas abordagens de leitura de autores e obras consagradas ganharam contorno1
1 Para citar apenas um livro da vasta bibliografia de Joatildeo Adolfo Hansen e Alcir Peacutecora penso ser de fundamental importacircncia para se pensar a introduccedilatildeo de novas abordagens no tratamento de textos literaacuterios os seguintes HANSEN Joatildeo Adolfo A saacutetira e o en-
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No entanto para a compreensatildeo de uma trajetoacuteria ndash seja ela lite-raacuteria ou natildeo ndash eacute imprescindiacutevel chamar a atenccedilatildeo a algumas outras ad-vertecircncias A primeira eacute natildeo perder de vista o caraacuteter muacuteltiplo de uma vida destacando dentro de uma rede de relaccedilotildees que o indiviacuteduo manteacutem com seus pares os vaacuterios estados em que ela se desenrola atentando para seu caraacuteter natildeo linear
O que equivale a dizer que natildeo podemos compreender uma trajetoacuteria [] sem que tenhamos previamente construiacutedo os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e logo o conjunto das relaccedilotildees obje-tivas que uniram o agente considerado mdash pelo menos em certo nuacutemero de estados pertinentes mdash ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaccedilo dos possiacuteveis2
O trabalho que o leitor tem em matildeos procurou nesse intuito analisar a obra de Catullo da Paixatildeo Cearense a partir de dois vieses fundamentais quais sejam a construccedilatildeo de uma autoridade sobre os textos publicados sob seu nome e o constante e tenso processo de cons-tituiccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do caraacuteter distinto de sua obra O primeiro ponto eacute tanto mais importante uma vez que as publicaccedilotildees iniciais de Catullo destacam-se por uma tentativa de apropriaccedilatildeo do conteuacutedo do texto ndash coletado nas ruas do Rio de Janeiro de entatildeo mdash sob seu nome proacuteprio O leitor veraacute que a singularidade aqui reside no fato de existir uma identificaccedilatildeo dos textos publicados por Catullo com o que se denomi-nava uma forma ldquopopularrdquo ndash com este termo designando agrave eacutepoca muitas vezes uma ausecircncia de autor aproximando-se daquilo que era entendido como parte de um possiacutevel ldquofolclorerdquo Daiacute duas primeiras questotildees se colocaram como Catullo se tornou o autor de textos identi-ficados a priori como sem autor E como se apropriou de outras tantas cuja autoria era relativamente reconhecida A apropriaccedilatildeo de um con-teuacutedo a partir de uma forma como veremos eacute um aspecto importante
genho Gregoacuterio de Matos e a Bahia do seacuteculo XVII Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial Campinas Unicamp 2004 e PEacuteCORA Alcir A maacutequina de Gecircneros Satildeo Paulo Edusp 2001
2 BOURDIEU Pierre A ilusatildeo biograacutefica In FERREIRA Marieta de Moraes AMADO Janaiacutena Usos e abusos da histoacuteria oral Rio de Janeiro FGV 2006 p 190
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desse primeiro questionamento pois eacute sob uma forma dada a ler que se produz uma autoria
Haacute de se salientar que a apropriaccedilatildeo de textos anocircnimos por um indiviacuteduo projeta para seus leitores uma sensaccedilatildeo de se estar lendo um ldquoautorrdquo Na busca por regrar a recepccedilatildeo dos textos publicados sob seu nome o autor Catullo se valia de sua aguda compreensatildeo das formali-dades que governavam a construccedilatildeo de uma ldquoautoriardquo na literatura pro-duzida na virada do seacuteculo XIX e XX no Brasil Ademais nosso perso-nagem era tanto um aacutevido frequentador das rodas boecircmias do Rio de Janeiro quanto dos espaccedilos de consagraccedilatildeo de letrados no periacuteodo Participando desses espaccedilos de sociabilidades parecia procurar as fer-ramentas que auxiliariam a construccedilatildeo da autoria em seus textos Era em busca de uma leitura regrada que Catullo se colocava entre a orali-dade coletada nas ruas e o mundo letrado do periacuteodo dramatizando em textos seu entrecaminho como forma de buscar um reconhecimento de sua autoridade
Atento a essa necessidade de buscar tambeacutem nessas redes de so-ciabilidade elementos para a compreensatildeo dos textos de Catullo com-preendemos como Michel Foucault e Pierre Bourdieu que eacute preciso cotejar os vaacuterios discursos que constroem dentro de determinado campo as relaccedilotildees que tornam possiacutevel a existecircncia de um texto ou seja
Talvez seja o momento de estudar os discursos natildeo mais apenas em seu valor expressivo ou suas transformaccedilotildees formais mas nas moda-lidades de sua existecircncia os modos de circulaccedilatildeo de valorizaccedilatildeo de atribuiccedilatildeo de apropriaccedilatildeo dos discursos variam de acordo com cada cultura e se modificam no interior de cada uma a maneira como eles se articulam nas relaccedilotildees sociais se decifra de modo parece-me mais direto no jogo da funccedilatildeo autor e em suas modificaccedilotildees do que nos temas ou nos conceitos que eles operam3
Essa abordagem abre espaccedilo para que enfatizemos a necessidade de atentar para uma sociologia dos textos que ultrapasse uma histoacuteria
3 FOUCAULT Michel O que eacute um autor In FOUCAULT Michel Ditos e escritos Esteacutetica literatura e pintura muacutesica e cinema Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009 v III p 286
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social dos textos e atente para a maneira pelas quais tambeacutem as suas formas materiais de difusatildeo afetam os sentidos dados a eles pelos lei-tores Aiacute se impotildee uma advertecircncia que diz respeito agrave dimensatildeo morfo-loacutegica do texto a da imprescindibilidade de investigar o seu sentido em suas diversas formas de circulaccedilatildeo De pensar o suporte que o carrega como parte incontornaacutevel na construccedilatildeo do seu sentido Tal abordagem vai ao encontro das reflexotildees do biblioacutegrafo neozelandecircs Don Mckenzie quando salienta que
Un libro nunca es simplemente un objeto extraordinaacuterio Como todas las otras tecnologiacuteas siempre es producto de la actuacioacuten humana en contextos complejos y altamente volaacutetiles que una investigacioacuten cabal tiene que intentar recuperar si desea entender mejor la creacioacuten y la comunicacioacuten de significados como caracteriacutestica definitoria de las so-ciedades humanas4
Ora eacute no espaccedilo de produccedilatildeo de livros ndash o qual adentram autores editores impressores tipoacutegrafos e leitores ndash que se constroem os muacutelti-plos sentidos que por fim vatildeo gerar os textos Eacute nesse espaccedilo de pro-duccedilatildeo cultural historicamente constituiacutedo e em constante movimento que se deve buscar a compreensatildeo das representaccedilotildees construiacutedas por aqueles que se apropriam dos textos seja por meio de uma leitura seja para regrar a leitura como comumente o tentam autores e editores
Assim Chartier relativiza os sentidos de uma obra distribuindo tambeacutem para outras instacircncias o sentido de determinado texto
O autor tal como ele faz a sua reapariccedilatildeo na histoacuteria e na teoria literaacuteria eacute ao mesmo tempo dependente e reprimido Dependente ele natildeo eacute o mestre do sentido e suas intenccedilotildees expressas na produccedilatildeo do texto natildeo se impotildeem necessariamente nem para aqueles que fazem desse texto um livro (livreiro-editores ou operaacuterios da impressatildeo) nem para aqueles que dele se apropriam para a leitura Reprimido ele se submete agraves muacuteltiplas determinaccedilotildees que organizam o espaccedilo social da produccedilatildeo
4 MCKENZIE Donald Francia Bibliografiacutea y sociologia de los textos Madrid Ediciones Akal 2005 p 22
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literaacuteria ou que mais comumente delimitam as categorias e as experi-ecircncias que satildeo as proacuteprias matrizes da escrita5
Aliaacutes contra toda pretensatildeo reificadora do autor levada ao ex-tremo pela afirmaccedilatildeo da figura romacircntica do gecircnio Chartier seguindo o rastro de Michel de Certeau contrapotildee os vaacuterios feixes que podem determinar uma apropriaccedilatildeo em uma cultura escrita e as vaacuterias estrateacute-gias mobilizadas pela figura do autor na tentativa de regrar a apro-priaccedilatildeo dos textos sob seu nome
A formaccedilatildeo de um nome distinto no campo literaacuterio a partir da construccedilatildeo de representaccedilotildees do sujeito que escreve a incorporaccedilatildeo nos textos de elementos que pudessem regrar uma leitura interessada e as lutas de representaccedilatildeo para a manutenccedilatildeo de um status condizente com o de poeta ndash inclusive com a ressignificaccedilatildeo daquilo entendido como ldquopoetardquondash satildeo alguns dos temas que o leitor poderaacute vislumbrar nas paacuteginas que seguiratildeo Se exitosas fundamentalmente elas mostraratildeo na trajetoacuteria de Catullo um questionamento constante de como se cons-troem um autor um poeta e um literato A aparente obviedade da res-posta a essa pergunta esbarra nas vaacuterias compreensotildees que historica-mente tecircm-se da figura do autor do poeta e da literatura Natildeo se deve portanto defini-las sem levar em consideraccedilatildeo as praacuteticas que denun-ciam um processo de construccedilatildeo de tais termos
A partir dessas reflexotildees o capiacutetulo intitulado ldquoCatullo Cea-rense o luar da cidaderdquo discute a cultura letrada do Rio de Janeiro de entatildeo que tornou possiacutevel o aparecimento de Catullo da Paixatildeo Cearense como autor de livros Aiacute o foco se estenderaacute sobre as repre-sentaccedilotildees de modinhas na sociedade carioca da eacutepoca e de como elas foram aos poucos ganhando um novo status aos olhares dos letrados Pretende-se compreender como se constituiacuteam as representaccedilotildees de um ldquohomem letradordquo nesse iniacutecio de seacuteculo e como essas representa-ccedilotildees satildeo fundamentais para se perceber as definiccedilotildees daquilo que se-riam termos relevantes agrave eacutepoca para a configuraccedilatildeo dos sujeitos parti-cipantes do campo literaacuterio tais como ldquopopularrdquo ldquoautorrdquo e ldquopoetardquo
5 CHARTIER Roger A ordem dos livros Brasiacutelia UnB 1996 p 36
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No capiacutetulo seguite ldquoComo se cria uma autoriardquo apresento a anaacute-lise das primeiras publicaccedilotildees de Catullo investigando de maneira mais pormenorizada as estrateacutegias de escrita mobilizadas pelo autor para ser reconhecido como um poeta letrado de fato Nele priorizo o Cancioneiro popular de modinhas brasileiras publicaccedilatildeo que teve incriacuteveis 25 edi-ccedilotildees em menos de dez anos A luta para que sua produccedilatildeo modinheira fosse tambeacutem passiacutevel de ser encarada como ldquopoemardquo e as asserccedilotildees de estrateacutegias editoriais na construccedilatildeo exitosa das suas publicaccedilotildees satildeo ele-mentos que ganham uma anaacutelise pormenorizada nessa parte do trabalho
Em ldquoSer poeta ser do sertatildeordquo discuto o lugar central dos temas sertanejos na sociedade carioca de entatildeo que viu surgir uma febre por temaacuteticas que focavam o interior do Brasil com objetivos vaacuterios entre eles aquele que buscava nas representaccedilotildees sertanejas na literatura a afirmaccedilatildeo de uma ldquosupostardquo alma nacional Aiacute vai ser possiacutevel ver como diversos autores mobilizaram estrategicamente tal temaacutetica a fim de serem reconhecidos como ldquoautores nacionaisrdquo
Tambeacutem foram investigadas as tipologias que marcavam as re-presentaccedilotildees de editoras como a Castilho que buscou inicialmente por meio de seu proprietaacuterio Antocircnio Castilho ser reconhecida como uma editora de literatura ldquoseacuteriardquo Ressaltarei aiacute a necessidade de se buscar tambeacutem nas representaccedilotildees editoriais material necessaacuterio para se compreender o aparecimento de obras literaacuterias
No capiacutetulo ldquoCatullo da Paixatildeo Nacionalrdquo demonstro como pro-gressivamente Catullo foi se arvorando como um poeta conhecedor do ldquosertatildeordquo e como nesse movimento foi construindo uma autoridade a partir tanto de seu capital social adquirido mdash que seu editor fazia aparecer em suas publicaccedilotildees pelas dedicatoacuterias e opiniotildees de conhecidos letrados mdash quanto das proacuteprias representaccedilotildees que fazia aparecer em seus textos Discuto ainda a relaccedilatildeo de Catullo com os modernistas e as discussotildees que se desenrolavam em torno de temas como ldquoliteratura nacionalrdquo para daiacute analisar como essa tensatildeo que debatia no Brasil o que era antigo e moderno aparecia nos textos que Catullo publicou no periacuteodo
No capiacutetulo ldquoCatullo em cenardquo propotildee algumas reflexotildees sobre a relaccedilatildeo de Catullo com o teatro de revista e sobre como essa aproximaccedilatildeo se expressava em seus livros onde apareciam diversas menccedilotildees a uma
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leitura performaacutetica do texto visando a uma encenaccedilatildeo Essa investigaccedilatildeo se pautaraacute principalmente a partir da anaacutelise do livro de Catullo intitu-lado Um boecircmio no ceacuteu Nesse capiacutetulo pretende-se compreender tambeacutem como o sucesso do raacutedio fez com que Catullo retomasse sua representaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo dramatizando essa condiccedilatildeo nos textos
No uacuteltimo capiacutetulo ldquoPor uma representaccedilatildeo de sirdquo o trabalho se foca principalmente na atuaccedilatildeo do herdeiro dos direitos autorais de Catullo quando este ainda vivia o escritor e organizador de suas uacuteltimas obras em vida Guimaratildees Martins A partir disso estabeleci um diaacutelogo com algumas praacuteticas letradas que se esboccedilavam jaacute nos anos 1930 e 40 notadamente a discussatildeo que se seguiu com a criaccedilatildeo de associaccedilotildees para a luta pelos direitos de escritores e tambeacutem de compositores da dita ldquomuacutesica popularrdquo Eacute possiacutevel vislumbrar nos textos produzidos nessa eacutepoca uma luta de representaccedilotildees na construccedilatildeo de um ldquolugar consa-gradordquo para Catullo Essa luta colocou em lados opostos em vaacuterios mo-mentos interesses do organizador do editor e do autor Catullo
Por diversas vezes no texto seraacute possiacutevel vislumbrar vestiacutegios do diaacutelogo de Catullo com seus leitores Por sorte nosso personagem natildeo era um esteta envolto em torre de marfim mas algueacutem atento agrave opiniatildeo de seus leitores mdash natildeo raro por conta de uma forte vaidade O autor lhes respondia inclusive diretamente nas modinhas e poemas por vezes de maneira sutil fazendo novas escolhas temaacuteticas ou mudando a proacutepria linguagem expressiva de seus textos Essa postura foi de grande valia para a compreensatildeo de seus textos como diaacutelogos com os leitores em sua tentativa de regrar uma leitura que quase nunca se submetia ao sen-tido intentado pelo seu autor primeiro
Por fim a partir da trajetoacuteria autoral de Catullo da Paixatildeo Cearense trago agrave tona algumas reflexotildees sobre a construccedilatildeo de uma autoria na primeira metade do seacuteculo XX e como nesse sentido a anaacute-lise singular de uma trajetoacuteria especiacutefica pode contribuir para se pensar tanto a cultura escrita de uma eacutepoca e os sentidos que ela daacute ao objeto ldquolivrordquo quanto a relaccedilatildeo articulada entre autor editor e consumidor de livros nesse iniacutecio de seacuteculo
Pretendo que o possiacutevel estranhamento inicial do leitor ao se deparar com as paacuteginas que viratildeo falando de um autor relativamente
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desconhecido e paradoxalmente best-seller em sua eacutepoca seja afinal um convite para conhecer uma trajetoacuteria quase nunca previsiacutevel Que esse mesmo estranhamento pela contrariedade que traz seja ele mesmo um indiacutecio da necessidade de se conhecer os meandros que condicionam o aparecimento de um autor em determinado campo lite-raacuterio no tempo
Figura 1 ndash Catullo da Paixatildeo Cearense em foto dos anos 1940
Fonte Arquivo do autor
Fonte arquivo do autor
CATULLO CEARENSE E O LUAR DA CIDADE
Catullo e a cultura escrita
Na tarde do dia 12 de setembro de 1918 um distinto puacuteblico aglomerava-se nos corredores do Teatro Satildeo Pedro no centro do Rio de Janeiro para assistir ao espetaacuteculo realizado em homenagem a um poeta Um poeta ldquopopularrdquo como diria o Sr Roquette Pinto orador oficial naquela tarde Ali homens como Assis Chateaubriand Pandiaacute Caloacutegeras e Paulo Barreto (mais conhecido como Joatildeo do Rio) dispu-tavam espaccedilos das fileiras do teatro a fim de prestigiar o famoso poeta que entrou no palco elegantemente trajado trazendo consigo um violatildeo A plateia poreacutem natildeo se espantava uma vez que os versos do homena-geado eram mais comumente ouvidos sendo acompanhados ao som meloacutedico do instrumento Por isso mesmo ningueacutem ali se assustou quando sua poesia foi recitada pelas vozes da Exmordf Srordf D Acircngela Vargas Barboza Vianna e dos senhores Arruda Vallim Mario Pinheiro Frederico Rocha e Alberto Pires com o violatildeo compondo o fundo musi-cal6 O extravagante poeta atendia pelo nome ainda mais extravagante de Catullo da Paixatildeo Cearense
6 Para os eventos narrados cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 17-22 Sobre a programaccedilatildeo daquela noite no Teatro Satildeo Pedro cf O Paiz 12 set 1918 p 5
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A iniciativa daquela homenagem partiu do jovem advogado Assis Chateaubriand que para tanto formou uma ldquoComissatildeo Central de Homenagem a Catullordquo incluindo nomes os mais distintos da sociedade carioca naqueles tempos entre os quais os membros da Academia Brasileira de Letras (ABL) Maacuterio de Alencar e Joatildeo do Rio A festa vi-sava a angariar fundos para a publicaccedilatildeo de um futuro livro de Catullo O ecircxito do evento viria ainda naquele mesmo ano com o lanccedilamento pela livraria Castilho do volume de poesias Meu sertatildeo com prefaacutecios de Afracircnio Peixoto (da Academia Brasileira de Letras) e Alberto drsquoOliveira (da Academia de Ciecircncias de Lisboa) No livro o autor lanccedilava matildeo de representaccedilotildees da fala sertaneja a partir da criaccedilatildeo de personagens oriundos do sertatildeo Apresentado por Afracircnio Peixoto como um ldquogrande poetardquo Catullo Cearense apresentava sua poesia nos meios letrados com a ambiciosa tentativa de representaccedilatildeo de uma espeacutecie de linguajar serta-nejo no texto Em Meu sertatildeo Catullo se valia de um suposto referente oral (a fala sertaneja) que era reproduzido no seu texto ipsis litteris tais quais os poemas de cordel jaacute comuns no Rio de Janeiro do periacuteodo
A foacutermula resultaria num sucesso editorial e ficaria marcada como a primeira obra do intitulado ldquopoeta sertanejordquo Catullo da Paixatildeo Cearense Entretanto embora o volume de poesias Meu sertatildeo revelasse um ldquopoeta sertanejordquo natildeo fora propriamente com esse epiacuteteto que o nome de Catullo Cearense veio agrave luz nos meios letrados de iniacutecios do seacuteculo XX tampouco aquela fora sua primeira publicaccedilatildeo com pretensotildees poeacute-ticas Antes disso Catullo era conhecido por organizar livros de modi-nhas que circulavam pelas livrarias do Rio de Janeiro e por reivindicar para esse tipo de produccedilatildeo um valor literaacuterio nem sempre reconhecido
Entre 1894 (data da publicaccedilatildeo de seu primeiro livro com letras de modinhas) e 1946 (ano de publicaccedilatildeo de seu uacuteltimo livro) contabili-zam-se 29 obras de gecircneros os mais variados com diversas ediccedilotildees lanccediladas (algumas chegando a incriacuteveis 50 ediccedilotildees) que deram a Catullo o reconhecimento ainda em vida como poeta muacutesico teatroacute-logo e compositor de modinhas7
7 Em anexo estatildeo elencadas todas as publicaccedilotildees sob a organizaccedilatildeo ou autoria de Catullo durante esse periacuteodo
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Nascido em Satildeo Luiacutes do Maranhatildeo em data incerta (entre 1863 e 1866) Catullo era filho do ourives Amacircncio Joseacute da Paixatildeo Cearense que por ser natural do Cearaacute acabou assumindo a alcunha tambeacutem no nome8 Quando contava por volta de dez anos de idade Catullo foi morar com os pais e irmatildeos na fazenda dos avoacutes paternos em Maranguape no sertatildeo cearense Ali Catullo viveu por pouco menos de sete anos ateacute que em 1880 mudou-se em definitivo para a capital do ainda Impeacuterio brasileiro o Rio de Janeiro Laacute fixou-se com a fa-miacutelia numa casa na Rua Satildeo Clemente nordm 37 em Botafogo onde seu pai instalou sua ourivesaria e relojoaria De laacute veria participando in-clusive as transformaccedilotildees sociopoliacuteticas pelas quais o Rio passava na-quele fim de seacuteculo
Segundo alguns de seus bioacutegrafos Catullo era um autodidata que aprendeu grego italiano matemaacutetica e francecircs e que posteriormente ateacute iria fazer algumas traduccedilotildees de poesias transformando-as em letras de modinhas como as do poeta francecircs Alphonsus de Lamartine No entanto ao que parece seu pai investia na educaccedilatildeo distinta do filho de modo que eacute possiacutevel encontrar ainda em 1881 nas paacuteginas dos jornais cariocas o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense no chamamento para os exames preparatoacuterios em portuguecircs e em 1883 para os de francecircs embora natildeo haja registros de sucessos nessas investidas9
Do seu periacuteodo de juventude pouco se sabe Mas ao que parece desde muito jovem Catullo frequentava as noites cariocas estabele-cendo contato com grupos de modinheiros e chorotildees Aprendeu a tocar flauta mas logo lhe ensinaram o violatildeo Conta-se que o pai era contra a vida boecircmia do filho e que em uma dessas noitadas ao vecirc-lo voltar para casa depois de uma farra com os amigos chegou a quebrar-lhe o
8 Essa informaccedilatildeo nos eacute dada por um dos bioacutegrafos de Catullo o poeta Carlos Maul que escreve ldquoNo comeccedilo desta histoacuteria saiu Joseacute Amacircncio da Paixatildeo Cearense pai de Catullo como natural do Maranhatildeo quando ao certo ele era do Cearaacute Mudado para o Cearaacute e aiacute instalado com sua oficina de ourives depressa se popularizou e todos o chamavam de lsquoo cearensersquo devido agrave sua procedecircncia De tanto ouvir tratarem-no assim acabou por fazer um registro de seu nome com esse acreacutescimo E ao nascerem-lhe os filhos batizou-os a todos com o sobrenome de lsquoCearensersquordquo Cf MAUL Carlos Catullo sua vida sua obra seu romance 2 ed Rio de Janeiro Livraria Satildeo Joseacute 1971 p 14
9 Cf Gazeta da Tarde 19 nov 1881 p 2 Gazeta de Notiacutecias 4 set 1883 p 2 e 2 out 1883 p 2
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violatildeo na cabeccedila10 Aliaacutes relembrando sua juventude em um de seus livros Catullo contava que o violatildeo era nesse tempo malquisto pela parte mais ldquomodestardquo da sociedade carioca e que natildeo obstante
Aos 19 anos interrompi os estudos para abraccedilar-me fervorosamente ao violatildeo Naquelle tempo esse instrumento era repelido dos lares mais modestos [Grifo meu)] Quem o tocasse era um desacreditado Foi nesse tempo que entrei a escrever e a cantar modinhas []11
Ainda que a afirmaccedilatildeo de que o violatildeo fosse um instrumento malquisto possa ser em parte confirmada mdash aliaacutes afirmaccedilatildeo comu-mente reafirmada pelos estudiosos desse periacuteodo mdash o que Catullo re-lata ao contraacuterio eacute que esse olhar de descreacutedito era encontrado na parte mais ldquomodestardquo da sociedade O que se depreende do testemunho de Catullo eacute que tal afirmativa deve ser relativizada dependendo das repre-sentaccedilotildees sociais do instrumento e das praacuteticas sociais a que se refira Eacute razoaacutevel pensar que a imagem de um violatildeo carregado por algueacutem de um segmento social mais abastado natildeo causasse o ldquodescreacuteditordquo que Catullo observava Ele mesmo reiterava essas impressotildees sobre o ins-trumento quando relembrava o episoacutedio da surra que levou do pai
Foi a primeira sova que apanhei Hoje poreacutem eu compreendo meu pai Naquele tempo o violatildeo era um instrumento maldito A sova foi tamanha que me escondi durante semanas em Copacabana em casa de um negro velho de nome Oliveira soldado reformado da guerra do Paraguai Naquele tempo Copacabana era um areal sem fim E dizer algueacutem como eu digo escondi-me em Copacabana era o mesmo que falar ningueacutem me encontraria Meu pai queria meter-me na Marinha para curar-me do violatildeo Ameaccedilou muitas e muitas vezes []12
10 Todos os dados biograacuteficos narrados ateacute aqui foram retirados aleacutem dos jornais da eacutepoca de depoimentos dados por Catullo e reproduzido em biografias tais como MAUL Carlos Catullo sua vida sua obra seu romance 2 ed Rio de Janeiro Livraria Satildeo Joseacute 1971 ARAUacuteJO Murilo Ontem ao luar Rio de Janeiro A Noite 1951 COSTA Haroldo Catullo da paixatildeo vida e obra Rio de Janeiro ND Comunicaccedilatildeo 2009
11 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Notas In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illumi-nada Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 235 (1ordf ediccedilatildeo em 1924)
12 Apud COSTA Op cit p 29
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Copacabana seria lugar onde Catullo iria se aprofundar mais ainda no conhecimento da boecircmia carioca Na Rua Barroso (hoje Siqueira Campos) numa repuacuteblica de estudantes ele se reunia com bo-ecircmios para beber e tocar Foi ali que aprendeu a tocar violatildeo e segundo informa o pesquisador Ary Vasconcelos compocircs sua primeira modinha Ao luar13 Pertencendo a uma famiacutelia ldquomodestardquo Catullo poderia ser compreendido como um desqualificado por portar um violatildeo mas em-bora o violatildeo fosse representado como ldquoinstrumento malditordquo essa mesma estigmatizaccedilatildeo do instrumento natildeo se poderia encontrar quando da sua presenccedila nos grandes salotildees a acompanhar modinhas E foram nos salotildees da elite carioca que em pouco tempo Catullo adentrou em-punhando o instrumento
Em fins do seacuteculo XIX o jovem Catullo da Paixatildeo Cearense co-meccedilou a frequentar as noites da cidade e tomou contato com jovens muacutesicos posteriormente consagrados como o ainda estudante de muacute-sica Anacleto de Medeiros o ldquolendaacuteriordquo violonista Quincas Laranjeiras e o futuro cantor Cadete mdash um dos primeiros a ter sua voz gravada no Brasil em cilindros das Casas Edison A partir daiacute se tornaria um co-nhecido frequentador das rodas boecircmias e serenatas nas ruas do Rio de Janeiro travando amizade com nomes como Villa Lobos e Joatildeo Pernambuco Tais rodas eram natildeo raramente frequentadas por mem-bros da elite letrada carioca fazendo com que nomes da boecircmia vez ou outra fossem chamados para as festas nos salotildees de ldquofigurotildeesrdquo
Com a morte de sua matildee (em 1880) e de seu pai (em 1883) Catullo foi trabalhar na administraccedilatildeo do Cais do Porto primeiramente como contiacutenuo e depois como estivador alternando seu tempo com tra-balhos no cais durante o dia e apresentaccedilatildeo de modinhas durante a noite Nesse mesmo momento a atraccedilatildeo pelo exoacutetico abria os salotildees das residecircncias de famiacutelias mais ilustres para apresentaccedilotildees de motivos ditos ldquopopularesrdquo A curiosidade por expressotildees ldquopopularesrdquo ia cons-truindo a ideia de um folclore nacional
13 VASCONCELOS Ary Panorama da muacutesica popular brasileira na Belle Eacutepoque Rio de Janeiro Livraria SantrsquoAnna 1977 p 116
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Jaacute embrenhado nas rodas boecircmias da cidade Catullo tinha entrada livre para frequentar os salotildees de gente importante especialmente quando comeccedilou a fazer letras para canccedilotildees jaacute conhecidas pela elite letrada A foacutermula usada por Catullo era criar letras nas composiccedilotildees de valsas schottisch mazurcas e tangos mdash repertoacuterio comum nos salotildees Outras vezes traduzia versos de poetas estrangeiros conhecidos e adaptava-os para uma canccedilatildeo conhecida Assim era comumente representado como um ldquomoccedilo distintordquo e letrado Esse capital social adquirido progressiva-mente o autorizou a seguir o caminho das letras pouco a pouco se arvo-rando como algueacutem conhecedor das coisas ditas ldquodo povordquo
A sede por estudos das ldquocoisas do povordquo no Brasil veio de uma necessidade criada na virada do seacuteculo XIX para o XX em definir aquilo que nos tornava singulares num mundo que cada vez mais primava por procurar em seus costumes ditos do ldquopovordquo a ldquoessecircnciardquo definidora do que seria a ldquonaccedilatildeordquo A ldquoalma do povordquo supostamente contida em ldquopraacute-ticas popularesrdquo era o foco principal daqueles que se interessavam por definir o que seria proacuteprio da cultura brasileira
Haacute de se chamar atenccedilatildeo que desde finais do seacuteculo XIX a va-lorizaccedilatildeo do ldquofolclore brasileirordquo se fazia tanto com a proliferaccedilatildeo de estudos pretensamente cientiacuteficos (como os de Siacutelvio Romero e do Baratildeo de Santa-Anna Nery) como pela produccedilatildeo de narrativas que en-focavam os chamados ldquocostumes do sertatildeordquo (como os contos de Coelho Neto) Esse interesse pelas ldquocoisas popularesrdquo vinha na esteira de uma necessidade que parte dos letrados de entatildeo tinha de definir uma su-posta ldquoalma popularrdquo que definisse a ldquoessecircnciardquo do ldquopovo brasileirordquo
[] em meio a uma seacuterie de disputas e conflitos reais e simboacutelicos sobre a identidade cultural brasileira o campo musical e folcloacuterico tornou-se uma importante arena nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX Nessa arena as disputas foram travadas entre variados atores e giravam em torno dos significados das muacutesicas e canccedilotildees populares nos sertotildees nas ruas nos teatros no carnaval na induacutestria fonograacutefica e no proacuteprio imaginaacuterio social sobre a naccedilatildeo14
14 ABREU Martha DANTAS Carolina Vianna Muacutesica popular folclore e naccedilatildeo no Brasil 1890-1920 In CARVALHO Joseacute Murilo de Naccedilatildeo e cidadania no Impeacuterio novos ho-rizontes Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2007 p 131
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Muitos desses letrados participavam dos espaccedilos de sociabili-dade noturnos que se criavam no Rio de Janeiro de entatildeo tomando contato com muacutesicos e poetas de diversas camadas sociais Estimado por ser cantor e criador de modinhas Catullo ganhou o interesse de grande parte do grupo letrado de boecircmios por ser conhecedor de um universo que era identificado como sendo ldquodo povordquo Boecircmia que era frequentada por nomes ilustres da cidade como Emiacutelio de Menezes Joseacute do Patrociacutenio e Paula Ney
Frequentar a noite tornou-se um atrativo para homens de todos os grupos sociais de forma que o significado que algueacutem poderia ter ao ser tachado de ldquoboecircmiordquo agrave eacutepoca deslizava desde a simples desquali-ficaccedilatildeo de um indiviacuteduo ateacute a mera identificaccedilatildeo de um sujeito apre-ciador da noite A coexistecircncia no universo boecircmio de muacuteltiplos seg-mentos sociais eacute um fator importante para compreender a sede pelas ditas ldquocoisas do povordquo
As modinhas a bebida as serenatas ao luar eram praacuteticas co-muns nas noites do Rio de Janeiro da transiccedilatildeo entre o seacuteculo XIX e o XX Em uma dessas noites em iniacutecios de 1885 Catullo foi convidado agrave casa do senador Silveira Martins entatildeo conselheiro do Impeacuterio que depois de um aplaudido espetaacuteculo em sua residecircncia mdash com a pre-senccedila inevitaacutevel do violatildeo mdash e reconhecendo em Catullo um letrado convidou-o para ser o ldquoexplicadorrdquo de seus filhos Laacute Catullo perma-neceria por pouco tempo pois se envolveria num pouco explicado caso sexual15
Entender algueacutem como um boecircmio poderia bem conduzi-lo a uma representaccedilatildeo de ldquoalgueacutem natildeo muito seacuteriordquo Essa receita por vezes alimentava representaccedilotildees como a que nos conta o poeta Paula Ney conhecido por sua verve humoriacutestica aguccedilada Eram comuns piadas tais como a publicada no Gazeta da Tarde onde o personagem do boecircmio era assim representado
15 Assim conta Haroldo Costa ldquoNuma madrugada ao entrar no seu quarto qual natildeo foi a surpresa ao encontrar acomodada em sua cama semidespida segundo alguns semi-vestida segundo outros uma bela jovem que ao vecirc-lo comeccedilou a gritar por socorro afirmando ter sido violentada por elerdquo Cf COSTA Op cit p 37
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Um bohemio depois de estragar a fortuna que herdou dos seus paes resolve casar-seApresentam-no a uma mulher feia como 300 jacareacutesndash Tem dote Pergunta ele a um amigondash 400 contosndash Bem jaacute servem como indemnizaccedilatildeo respondeu16
Mas se Paula Ney por exemplo era identificado como um bo-ecircmio sua representaccedilatildeo como letrado garantia um status diferenciado diante de outros tipos boecircmios Daiacute apresentar-se como um letrado apesar de frequentador da boecircmia era uma receita que podia render a um indiviacuteduo outra representaccedilatildeo
Catullo por exemplo ainda em iniacutecios do seacuteculo XX abriu uma escola na Rua Martins Costa na estaccedilatildeo da Piedade e laacute se tornou co-nhecido por suas aulas de portuguecircs e francecircs Das 9 horas da manhatilde agraves 3 horas da tarde dava aulas no curso primaacuterio das 8 horas da noite ateacute meia-noite era a vez das aulas para pessoas do curso secundaacuterio as quais muitas eram amigas do professor No final das aulas comeccedilava a vida boecircmia do bardo Um de seus alunos dessa eacutepoca recordaria mais tarde em livro do proacuteprio Catullo
A essa hora reuniam-se os teus amigos muacutesicos Anacleto Medeiros o grande mestre do Corpo de Bombeiros Luis de Souza ndash o primeiro pis-tonista do Brasil Irineu de Almeida ndash oficleidista sem rival Pingussa ndash o mago dos choros ao violatildeo Kalut ndash flauta caladiano Oliacutempio ndash o saxofonista do sereno Maacuterio e Galdino ndash os dois cavaquinhos geme-dores Neacuteco Chico Borges Quincas Laranjeiras ndash os violotildees chorosos todos se juntavam e saiacutea de tua casa a serenata cantando as gloacuterias do teu Talento17
A evocaccedilatildeo de seu passado como professor de liacutenguas foi uma constante em seus livros posteriores O bardo dizia que chegou a ter 100 alunos18 Essa lembranccedila fez parte do cardaacutepio de representaccedilotildees le-
16 Gazeta da Tarde 28 abr 1896 p 217 Depoimento de Otaacutevio de Barros Thompson que fez parte dos juiacutezos-criacuteticos do livro
de Catullo CEARENSE Catullo da Paixatildeo O testamento da aacutervore Rio de Janeiro Aurora 1945 p 107-108
18 Assim se expressara em prefaacutecio para seu livro de modinhas jaacute nos anos 1940 Cf
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tradas de que Catullo lanccedilava matildeo e que foram constituindo seu reco-nhecimento social posterior como um poeta letrado Isso visava a afastar de um olhar estigmatizado que marcava agrave eacutepoca algueacutem identificado como um ldquocantor de modinhasrdquo Poreacutem foi nesse mesmo periacuteodo que progressivamente as modinhas foram ganhando nova representaccedilatildeo social com a sua valorizaccedilatildeo por ser entendida como parte da produccedilatildeo do ldquopovordquo
A valorizaccedilatildeo das modinhas como elemento importante para a de-finiccedilatildeo do ldquopovordquo e de sua ldquoculturardquo era naquele iniacutecio de seacuteculo uma discussatildeo jaacute bastante conhecida no mundo letrado do Brasil Sob a deno-minaccedilatildeo de ldquomodinhasrdquo aparecia uma vasta produccedilatildeo musical comu-mente ouvida nas ruas do Rio de Janeiro de entatildeo Entre detratores e apologistas a modinha foi se tornando temaacutetica comum nos debates acerca daquilo que deveria ser entendido como algo ldquobrasileirordquo Os versos cantados que a acompanhavam nem sempre eram vistos com bons olhos Daiacute muitos negarem a esse tipo de verso o epiacuteteto de ldquopoesiardquo
O criacutetico literaacuterio Siacutelvio Romero por exemplo entre 1910 e 1912 publicou o ensaio Novas contribuiccedilotildees para o estudo do folclore brasileiro mdash que depois viria a fazer parte do claacutessico livro Histoacuteria da literatura brasileira mdash no qual escrevia ao tentar delimitar aquilo que entendia como sendo uma ldquopoesia popularrdquo que
Um erro muito repetido entre os criacuteticos principalmente portugueses que se tecircm ocupado da poesia popular brasileira eacute confundirem-na com certo gecircnero a que entre noacutes se deu o nome de modinhas []Natildeo eacute raro ler coisas assim ldquoA modinha eacute a mais rica das formas por que se manifesta a inspiraccedilatildeo poeacutetica do nosso povordquoEacute isto inexato A modinha nem eacute a forma mais rica do nosso lirismo popular nem eacute a forma mais perfeita de nosso lirismo cultoA forma mais rica da poesia popular satildeo os romances as xaacutecaras as oraccedilotildees os reisados as cheganccedilas os versos gerais O povo natildeo faz nunca fez modinhas
CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas 2 ed Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1956 p 17 (1ordf ediccedilatildeo em 1946)
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Por outro lado as mais extraordinaacuterias manifestaccedilotildees do gecircnero liacuterico dos grandes poetas brasileiros natildeo consistiram jamais em modinhas19
Para Siacutelvio Romero por exemplo as modinhas urbanas natildeo fa-riam parte do que ele entendia como sendo ldquopopularrdquo pois aleacutem de aquilo que ele chamava de ldquopovordquo natildeo fazer modinhas elas eram de ldquomau gostordquo Em sua criacutetica Romero arrematava contra o representante mais conhecido das modinhas daqueles tempos ldquotais produccedilotildees hiacute-bridas nem satildeo a genuiacutena poesia anocircnima filha do gecircnio da raccedila nem satildeo obras literaacuterias de valor Constituem um gecircnero secundaacuterio em que se deliciam os Catullos Cearenses de todos os temposrdquo20
O diagnoacutestico de Siacutelvio Romero poreacutem natildeo era uniacutessono entre aqueles que se interessavam pelas manifestaccedilotildees ditas do ldquopovordquo e progressivamente a modinha foi ganhando o status de ldquomanifestaccedilatildeo popularrdquo digna de ser compreendida como parte do ser nacional
Os termos usados por Romero balizavam as discussotildees agrave eacutepoca a modinha era perscrutada a partir da indagaccedilatildeo se ela seria ldquopoesia popular brasileirardquo ldquofilha do gecircnio da raccedilardquo ldquoinspiraccedilatildeo poeacutetica do povordquo e sobretudo uma ldquogenuiacutena poesia anocircnimardquo O anonimato ga-rantia para Siacutelvio Romero a certa produccedilatildeo um preacute-requisito fatal para defini-la como ldquopopularrdquo Mas para o criacutetico modinhas seriam coisas tatildeo somente dos ldquoCatullos Cearensesrdquo
Essa opiniatildeo natildeo era unacircnime entre os letrados Num domingo de Carnaval em reportagem publicada nas paacuteginas do jornal O Paiz redis-cutia-se a posiccedilatildeo da muacutesica como ldquoarte popularrdquo Vale a citaccedilatildeo
19 ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1943 p 173 O artigo foi originalmente publicado na revista da Academia Brasileira de Letras (n 2 4 e 7) A referecircncia que Siacutelvio Romero faz aos criacuteticos portugueses se deve ao fato de haver desde fins do seacuteculo XIX um debate apaixonado sobre o caraacuteter nacional da literatura de liacutengua portuguesa que envolvia inclusive criacuteticos portugueses aos quais Siacutelvio Romero fazia reiteradas censuras De ambos os lados do Atlacircntico a questatildeo do ldquonacionalrdquo colocava em posiccedilotildees opostas estudiosos que tentavam definir em que consistia a literatura nacional de seus respectivos paiacuteses e se havia complementari-dade entre ambas Para um estudo do mais famoso debate aquele que envolveu Siacutelvio Romero e Teophilo Braga cf PAREDES Marccedilal de Menezes A querela dos originais notas sobre a polecircmica entre Siacutelvio Romero e Teoacutefilo Braga Porto Alegre Estudos Ibero-Americanos PUCRS 2006 p 103-119 (Ediccedilatildeo Especial n 2)
20 Idem
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 35
Todos os povos tecircm a sua arte popular Ella eacute por excelecircncia a muacutesica As manifestaccedilotildees dessa arte satildeo typicas a muacutesica popular eacute o espelho fiel da iacutendole de cada povo e nella se encontram o seu caracteriacutestico o seu gecircnio as suas inclinaccedilotildees as suas ambiccedilotildees os seus desiacutegnios enfim que nella domine fielmente reproduzido pelo seu folk-lore ver-dadeiro patrimocircnio nacional21
Atestando os progressos da ldquomuacutesica popularrdquo produzida no Brasil e negando qualquer tese que pudesse apontar o trovador como um poeta menor a reportagem do jornal O Paiz destacava o fato de o violatildeo e a modinha estarem invadindo os salotildees nos uacuteltimos quinze anos ndash novidade que indicaria segundo o perioacutedico seu caraacuteter ldquomo-dernordquo ndash e disparava contra os detratores deles
[] A nossa muacutesica popular progride rapidamente cada vez mais expressiva cada vez mais aprimorada dizendo bem quanto amor se contecircm nos nossos espiacuteritos meridionaes aberto a todas as ideacuteas gene-rosas francos e leaes ateacute aos extremos
O violatildeo exprime a alma popular brasileira em suas canccedilotildees dedi-lhadas indolentemente vai toda a anciatilde de carinho e de amor que a magocirca que a fatiga que a fere profundamente
O violatildeo eacute o lenitivo doce amargo para essa iacutendole nossa muito nossa
O trovador tem pois uma grande saliecircncia entre os seus patriacutecios Elle lhes encarna a alma nos accordes dos seus instrumentos nas modula-ccedilotildees de sua voz
[]
Entre noacutes esses menestreacuteis anocircnimos e o que eacute mais imperterrita-mente perseguidos pela poliacutecia satildeo apreciados devidamente
Os progressos dessa raccedila de artistas vem augmentando de haacute quinze annos a esta parte porque o preconceito que os repelia como symbolos da chalaccedila e da desordem vai decaindo O violatildeo acompanhado das modinhas comeccedila a brilhar nos salotildees embora com menos furos do que o cake-walk Interessam-nos esses progressos [] 22
21 O Paiz 25 fev 1906 p 822 Ibidem
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo36
O interesse pelas modinhas levou os repoacuterteres de O Paiz a entre-vistar o mais conhecido modinheiro daqueles idos Catullo da Paixatildeo Cearense Sendo usufruiacuteda a partir de uma relaccedilatildeo ambiacutegua pelos le-trados a modinha foi tornando-se objeto de exotismo a ser discutido e compreendido como expressatildeo de uma ldquoalma popularrdquo Para tanto a vontade de conhecer tais ldquocostumes popularesrdquo muito ajudou nessa em-preitada A grande questatildeo no entanto residia naquilo que deveria ser entendido como ldquopopularrdquo e sobretudo aquelas praacuteticas que podiam figurar como dignas de assim serem chamadas Ademais assumir uma praacutetica como ldquopopularrdquo carregaria sob tal manifestaccedilatildeo uma forte carga poliacutetica em tempos em que se abria um enorme debate em grande parte do mundo sobre as singularidades de uma naccedilatildeo a partir do reconheci-mento do caraacuteter do seu povo
Foi em meio agrave ambiguidade no tratamento dado agrave modinha mdash e na esteira disso a ele proacuteprio mdash que Catullo se inseriu nas discussotildees acerca do que seria ldquopopularrdquo no periacuteodo O estranhamento em consi-derar Catullo ldquopoeta do povordquo (como queria a reportagem de O Paiz) era causado pela contrariedade nas declaraccedilotildees do proacuteprio modinheiro na mesma reportagem ao dizer que ldquoeu natildeo gosto de estar pelas es-quinas Canto nos salotildees calmamente sem incocircmodordquo ou ldquoeu procuro modernizar a arte da modinhardquo23 Eacute possiacutevel que a resposta imprevista de Catullo causasse certo embaraccedilo nos entrevistadores no exato mo-mento em que o modinheiro procurava realccedilar um distanciamento de seu nome com as ruas fazendo com que o leitor do jornal natildeo o confun-disse como um modinheiro mambembe e ao mesmo tempo chamando a atenccedilatildeo do leitor para a modernidade de suas modinhas colocando-se entre aquilo que podia ser efecircmero (ou expressatildeo de um simples mo-dismo da eacutepoca) e aquilo que deveria ser encarado quase como atem-poral por ser parte de uma essecircncia nacional e por consequecircncia re-presentante da ldquoalma popularrdquo
Mas algo representado como moderno a priori natildeo poderia ser visto como fazendo parte de uma ldquoalma popularrdquo ndash assim por exemplo
23 Ibidem
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 37
reiterava o criacutetico Siacutelvio Romero Para esse autor o que podia ser iden-tificado como algo ldquopopularrdquo e digno de figurar como parte de uma suposta ldquoalma nacionalrdquo era validado pelo grau de antiguidade de sua existecircncia de forma que algo considerado por demais ldquomodernordquo fatal-mente natildeo figuraria numa discussatildeo sobre a ldquoarte popularrdquo Ainda que entendesse as modinhas como parte de uma heranccedila popular natildeo via com bons olhos modinhas que tais como as de salatildeo se ldquoafrancesa-zavamrdquo (ldquoA macaqueaccedilatildeo do estrangeiro e especialmente do france-zismo eacute tambeacutem outro mal nossordquo)24 Por isso serem comuns em seus estudos palavras como ldquoressurreiccedilatildeordquo e ldquotradiccedilotildees jaacute esquecidasrdquo quando se referia a ldquopoesia popularrdquo Assim sobre o ldquoprojeto romacircn-ticordquo escrevia
Uma volta aacute poesia popular e aacutes tradiccedilotildees jaacute esquecidas eacute sua pretensatildeo mal definida [] A ressurreiccedilatildeo da poesia popular em um livro eru-dito era cousa exequumliacutevel mas continual-a fazel-a viver sua vida ro-manesca era impossiacutevel sobretudo no Brazil onde natildeo existia uma genuiacutena poesia popular olvidada pelo tempo Natildeo sei se bem pensaram nisto os romacircnticos brazileiros Sei que lhes faltou a paixatildeo pelo pas-sado que tanto animaacutera os da Europa [sic]25
Mello Morais (estudioso que diferentemente de Romero inte-ressava-se tambeacutem pelas novas modinhas que surgiam) tambeacutem parecia corroborar o diagnoacutestico do criacutetico ao enxergar nessa recente produccedilatildeo ldquoecos adormecidosrdquo que faziam a alegria ldquonas festas hoje tatildeo escassas do povo fazendo recordar alegrias extintasrdquo26 O que os aproximava era uma definiccedilatildeo do ldquopopularrdquo por uma referecircncia temporal Se para Romero modinhas natildeo interessavam pois natildeo eram um gecircnero do ldquopovordquo nem havia no Brasil ldquopoesia popular olvidadardquo para Mello Morais ao contraacuterio elas eram expressotildees de algo de outrora e dignas de pesquisa Se Romero desdenhava como sendo uma ldquomacaqueaccedilatildeordquo
24 ROMERO Sylvio Estudos sobre a poesia popular do Brazil Rio de Janeiro Typ Laemmert amp C 1888 p 363
25 Idem p 626 MORAES FILHO Mello Cantares brasileiros cancioneiro fluminense Rio de Janeiro
SEEC-RJDepartamento de CulturaINELIVRO 1981 p 27 (1ordf ediccedilatildeo em 1900 pela Livraria Cruz Coutinho)
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo38
Mello Morais regozijava-se por entendecirc-la como sendo genuinamente nacional e mesmo moderna
Tais referecircncias temporais definiam atitudes e objetos no Brasil da virada do seacuteculo e faziam com que as fronteiras que diferenciavam aquilo que era considerado ldquomodernordquo e aquilo que era considerado ldquovelhordquo fossem constantemente motivos de debates acalorados alter-nando-se ora como depreciadores de um objeto discutido ora como enaltecedores A elite letrada do paiacutes na medida em que festejava os novos equipamentos modernos da cidade era atraiacuteda para espaccedilos de sociabilidade onde reinava muitas vezes aquilo que por um entendi-mento do que seria moderno poderia ser considerado em contraste ldquovelhordquo ldquoatrasadordquo mdash poreacutem por vezes redimido por ser ldquopopularrdquo De forma que se tornou muito costumeiro e ateacute um fator de expressatildeo intelectual ver membros os mais distintos da elite carioca conhecer e frequentar tais espaccedilos ou o que tambeacutem era bastante comum levar tais expressotildees ldquopopularesrdquo para serem encenadas nos salotildees dessa mesma elite por meio de uma nova significaccedilatildeo que o termo ldquopopularrdquo foi adquirindo ou seja aquilo que expressaria a verdadeira expressatildeo da terra a sua ldquoalmardquo
Foi nesse limite que a figura de Catullo foi sendo evocada como algueacutem que podia ser reconhecidamente considerado um ldquopoetardquo pois que expressava a sua terra em uma forma considerada exoacutetica as letras de modinhas Poreacutem se a procura por temas ldquopopularesrdquo (sendo a mo-dinha entendida como um deles) atraiacutea um puacuteblico distinto e letrado para a produccedilatildeo modinheira de Catullo isso natildeo o credenciava de pronto a ser considerado um membro dessa mesma elite letrada Ademais ser um autor de modinhas no maacuteximo o credenciaria a ser como se dizia agrave eacutepoca um bardo um trovador um ldquopoeta popularrdquo mas quase nunca o alccedilaria a ser identificado como um ldquopoetardquo tal como eram assim reconhecidos Coelho Neto ou Olavo Bilac Esse investi-mento demandou do autor escolhas inclusive temaacuteticas num diaacutelogo constante e tenso com seus pares no periacuteodo e sobretudo uma aproxi-maccedilatildeo com o universo dos livros
Jaacute em iniacutecios do seacuteculo XX Catullo era presenccedila constante nos salotildees da elite carioca cantando suas modinhas e ao passo que deliciava
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 39
os ouvintes dava agravequelas novo estatuto colocando-as no centro do de-bate entre aquilo que deveria ser cultivado como moderno e civilizado e aquilo que deveria ser colocado de lado por natildeo condizer com os ideais civilizatoacuterios que a elite carioca almejava Na trajetoacuteria de Catullo a tensatildeo que separava ldquomodernidaderdquo e ldquopopularrdquo foi agraves uacutel-timas consequecircncias aquilo que era entendido como ldquopopularrdquo aden-trava em espaccedilos de sociabilidade ldquomodernosrdquo que se multiplicavam nas grandes capitais do Brasil
Ora o Rio de Janeiro a entatildeo capital do paiacutes na virada de seacuteculo passava por uma veloz transformaccedilatildeo modernizante cujo intuito decla-rado era o de ser o espelho civilizado do Brasil para o mundo Esse fator ademais fazia com que novas maneiras de representar o paiacutes fossem construiacutedas e com elas a ressignificaccedilatildeo (ou a pura repressatildeo) de praacuteticas fosse concomitantemente levada a cabo Os salotildees da elite letrada onde se apresentava Catullo com suas modinhas eram eles mesmos a expressatildeo moderna dos novos espaccedilos de sociabilidade que essa elite carioca criara para representar sua nova condiccedilatildeo social Palco privilegiado onde ela natildeo soacute representava rituais de identificaccedilatildeo com seus pares os salotildees tambeacutem eram locais onde se expressavam debates que ganhavam as ruas naqueles tempos de transformaccedilatildeo
Nessa eacutepoca a cidade do Rio de Janeiro mdash que segundo dados do jornal Gazeta de Notiacutecias contava em 1908 em torno de 800 mil habitantes27 mdash vivia um turbilhatildeo de mudanccedilas sociopoliacuteticas cujo ob-jetivo declarado por parte de seus impulsionadores era ldquomodernizarrdquo a cidade Essa sede pelo novo no entanto contrapunha-se agrave obsessatildeo pelos velhos haacutebitos que contraditoriamente eram objetos de seduccedilatildeo para parte dos estudiosos do periacuteodo Se havia um deslumbramento por modernidades que chegavam via Europa concomitantemente havia uma forte impressatildeo de deslocamento e de ldquonatildeo identidaderdquo que os in-telectuais do periacuteodo foram buscar nas ditas ldquopraacuteticas popularesrdquo dando vazatildeo agrave constituiccedilatildeo dos estudos folcloacutericos no paiacutes Afonso Arinos e
27 Gazeta de Notiacutecias 1ordm dez 1908 p 1
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo40
Alexandre Joseacute de Mello Moraes foram nesse tempo dois dos maiores incentivadores desses estudos no Brasil
Mello Moraes era conhecido por organizar saraus e apresenta-ccedilotildees de motivos ldquopopularesrdquo em sua residecircncia no que era seguido por Afonso Arinos que abria sua casa na praia de Botafogo para apresen-taccedilotildees de ldquobatucadasrdquo com bastante sucesso patrocinadas por muacutesicos como Donga Pixinguinha e Heitor dos Prazeres Esses eventos torna-ram-se famosos sendo Catullo Cearense na condiccedilatildeo de modinheiro um dos frequentadores assiacuteduos Nesses espaccedilos a elite se deliciava com apresentaccedilotildees dos tais costumes ldquoexoacuteticosrdquo ao passo que os ar-tistas que laacute apareciam se tornavam conhecidos28
A tensatildeo entre considerar uma praacutetica como ldquoantigardquo ou ldquomo-dernardquo e ldquonacionalrdquo ou ldquoestrangeirardquo mdash para citar apenas duas das mais imediatas dicotomias do periacuteodo mdash expressava-se em debates calo-rosos entre os letrados do periacuteodo que construiacuteam eles mesmos temas centrais a serem debatidos por uma sociedade que se pretendia ldquocivili-zadardquo e ldquomodernardquo Daiacute um turbilhatildeo de produtos culturais serem pro-duzidos no periacuteodo visando a representar ldquoo povo brasileirordquo e editores de livros no Brasil usarem do termo ldquopopularrdquo como publicidade que poderia dar ao produto certa visibilidade Daiacute tambeacutem muitos autores no periacuteodo irem ao encontro de representar tais temaacuteticas em livro vi-sando ao ecircxito da publicaccedilatildeo
A investigaccedilatildeo de toda tensatildeo que perpassa a tentativa de defi-niccedilatildeo de textos como ldquopopularesrdquo agrave eacutepoca eacute indissociaacutevel de uma so-ciologia dos usos desses mesmos textos por seu(s) autor(es) editor(es) e leitor(es) inclusive das formas como esses textos eram dados a ler atentando aiacute para o papel do livro naquela cultura Isso tanto eacute mais importante quando se percebe na virada do seacuteculo no Brasil o aumento de indiviacuteduos alfabetizados que criavam seus proacuteprios rituais de identi-ficaccedilatildeo Assim as praacuteticas com o objeto livro nesse processo satildeo funda-mentais para se entender a cultura escrita que nascia Os homens de
28 Sobre a recorrecircncia natildeo rara de ldquomotivos popularesrdquo nos salotildees da elite carioca em iniacutecios do seacuteculo XX Cf VIANNA Hermano Elite brasileira e muacutesica popular In O misteacuterio do samba 7 ed Rio de Janeiro ZaharUFRJ 2010 p 37-54
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 41
letras do periacuteodo conviviam constantemente com a tarefa de responder a questionamentos sobre o que seria o ldquopovordquo ao mesmo tempo em que buscavam juntamente com seus editores fazer-se ouvir por intermeacutedio de seus textos valendo-se de todo tipo de estrateacutegia textual e material que alcanccedilasse o puacuteblico consumidor de livros
A recente saiacuteda do paiacutes da condiccedilatildeo de escravista e a urbani-zaccedilatildeo das grandes cidades criavam as condiccedilotildees para que um novo segmento urbano ficasse em evidecircncia Esse segmento buscava formas proacuteprias de identificar-se a partir de outros rituais procurando diferen-ciar-se de uma heranccedila cultural escravocrata Para tanto esse segmento teve de construir todo um arcabouccedilo de atitudes e espaccedilos para dife-renciar-se de sociabilidades advindas dessa heranccedila escravista A partir de uma busca por distinccedilatildeo e reconhecimento entre seus pares a elite letrada no Brasil criava novos espaccedilos de sociabilidade onde pudesse dar a ver seus ensejos num quadro de transformaccedilotildees nos jornais nos cafeacutes nas praccedilas nas revistas nas instituiccedilotildees intelectuais e nas livra-rias Mas seguramente aquilo que diferenciava essa nova camada so-cial meacutedia de outros segmentos era uma busca por ser identificada como um grupo letrado
Nas livrarias lugar privilegiado para as encenaccedilotildees ldquocivilizadasrdquo leitores com os mais diversos interesses se encontravam para discus-sotildees Na Garnier e na Laemmert ndash duas das mais importantes livrarias na virada do seacuteculo XIX para o XX e localizadas na via mais frequen-tada da cidade a Rua do Ouvidor ndash era possiacutevel encontrar desde o festejado poeta Olavo Bilac e o romancista Machado de Assis pas-sando por jovens escritores como Graccedila Aranha ateacute o mais solenemente autor desconhecido29 Ademais o livro tornava-se ele mesmo um ele-mento de distinccedilatildeo Tecirc-lo ou saber discuti-lo era fator preponderante para ser identificado como um ldquoiniciadordquo nas letras Na sociedade bra-sileira de fins do seacuteculo XIX onde o letramento apesar de haver au-mentado era algo ainda raro ter um livro tornou-se um fator de dis-tinccedilatildeo no exato momento em que aparecia uma camada meacutedia nos
29 BROCA Brito A vida literaacuteria no Brasil - 1900 Rio de Janeiro MEC 1956
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo42
grandes centros urbanos aacutevida por fazer-se presente nas discussotildees acerca dos rumos do paiacutes
A meio caminho entre as massas proletarizadas e os detentores dos meios de produccedilatildeo haviam emergido novas camadas desejosas de afir-maccedilatildeo e ascenccedilatildeo (sic) social Sem tiacutetulos nobiliaacuterquicos sobrenomes tradicionais ou bens de famiacutelia elas vislumbravam uma possibilidade de reconhecimento e ascenccedilatildeo (sic) social atraveacutes da formaccedilatildeo edu-cacional Assim a emergecircncia das camadas meacutedias transparece no plano educacional no aprofundamento das discussotildees acerca dos as-suntos ligados agrave educaccedilatildeo Discutia-se a filosofia os objetivos a accedilatildeo e a abrangecircncia da educaccedilatildeo A posiccedilatildeo social doravante deveria ser marcada pelo grau de ldquoinstruccedilatildeordquo ldquoconhecimentordquo ldquoculturardquo ndash valores defendidos pelas camadas meacutedias ndash e natildeo somente pelo nascimento30
Nesse sentido saber ler era considerado condiccedilatildeo sine qua non para investir algueacutem do termo ldquoinstruiacutedordquo Daiacute ser algo comum apare-cerem nessa eacutepoca vaacuterios planos de alfabetizaccedilatildeo e outros tantos meacute-todos revolucionaacuterios que prometiam ensinar a ler em pouco tempo Certo livro de nome Ensino racional de leitura prometia fazer algueacutem ler em quatro dias Nas paacuteginas do jornal O Paiz o anuacutencio procurava seduzir o comprador afirmando ser a publicaccedilatildeo ldquoUm notaacutevel livro por Magnus Sondahlrdquo e que a obra fora ldquoaprovada pelos Conselhos de Instrucccedilatildeo Puacuteblica do Paranaacute e Sergiperdquo e continuava
O autor garante pelo seu systema que seraacute ao alcance de todos ensinar a ler em 4 dias Por mais extraordinaacuterio que isto pareccedila o grande acolhi-mento que a obra tem tido os elogios unacircnimes dos competentes e da imprensa demonstram o valor do livro31
Essa procura por saber ler e adquirir leituras fez surgir ainda em fins do seacuteculo XIX casas que comercializavam livros aacutevidas por atingir um puacuteblico nascente de leitores Foi nesse fim de seacuteculo que surgiu no Rio de Janeiro o livreiro fluminense Pedro da Silva Quaresma Ele comprou em 1879 a Livraria do Povo de Serafim Alves localizada na
30 DAMAZIO Sylvia Retrato social do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo Rio de Janeiro EDUERJ 1996 p 121
31 O Paiz 15 jul 1908 p 9
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 43
rua Satildeo Joseacute nordm 6567 no centro do Rio de Janeiro e ali instalou sua proacutepria livraria que acabou com o tempo mudando de nome para li-vraria Quaresma Aleacutem de vender livros Pedro Quaresma comeccedilou a editaacute-los priorizando a ediccedilatildeo de obras ditas ldquopopularesrdquo e voltadas para os mais diversos puacuteblicos Pensava o editor que para atingir um puacuteblico letrado nascente o ideal seriam as publicaccedilotildees de linguagem amena e a preccedilos moacutedicos Desse modo o formato em pocket-book que barateava o preccedilo do livro tornando-o assim mais acessiacutevel foi a marca principal das ediccedilotildees Quaresma32
Haacute de se salientar que tais publicaccedilotildees ditas ldquopopularesrdquo eram consumidas tambeacutem por homens de reconhecido capital no mundo le-trado A acreditar no memorialista Luiz Edmundo pela livraria Quaresma passava
[] toda uma legiatildeo de cantores de seresteiros de sereneiros a flocircr da vagabundagem carioca essencia sumo nata da raleacute roccedilando natildeo raro a sobrecasaca do Conselheiro Ruy [Rui Barbosa] a importancia do sr Joseacute Veriacutessimo a sisudez do sr Candido de Oliveira a jurisprudencia do sr dr Coelho Rodrigues33
Se essa busca por um puacuteblico consumidor de livros ldquopopularesrdquo alavancava empreendimentos ambiciosos como a livraria Quaresma natildeo se deve homogeneizar suas publicaccedilotildees como sendo meras frivoli-dades Havia tambeacutem livros editados pela Quaresma que tinham um caraacuteter cientiacutefico ndash ou pelo menos pretendiam ter ndash como a Physiologia das paixotildees contendo a anaacutelise de ldquosentimentos moraes de homens e mulheresrdquo sob a luz da ciecircncia escrito pelo meacutedico francecircs J L
32 Sobre a livraria Quaresma jaacute existem alguns bons estudos efetuados no campo historio-graacutefico Cf EL FAR Alessandra Paacuteginas de sensaccedilatildeo literatura popular e pornograacutefica no Rio de Janeiro (1870-1924) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004 OLIVEIRA Liacutevio Lima de A revoluccedilatildeo da brochura experiecircncias de ediccedilotildees de livros acessiacuteveis no Brasil ateacute a primeira metade do seacuteculo XX Trabalho apresentado ao NPE (Produccedilatildeo Editorial) do VI Encontro dos Nuacutecleos de Pesquisa da Intercom Santos Seditora 2006 OLIVEIRA Liacutevio Lima de Pedro da Silva Quaresma entre estrangeiros um brasileiro Disponiacutevel em wwwescritoriodolivrocombrofiacuteciosquaresmaphp Acesso em 10 jun 2020
33 EDMUNDO Luiacutes O Rio de Janeiro do meu tempo Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1938 p 735-7
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo44
Alibert34 e o seriacutessimo Histoacuteria geral do Brasil escrito pelo positivista Annibal Mascarenhas Quando comparados a esses uacuteltimos livros o ldquopopularrdquo que publicizava Quaresma dizia mais respeito ao preccedilo de venda que o editor e livreiro tentava manter sempre baixo
No cataacutelogo da livraria Quaresma ainda figuravam desde ma-nuais (como o Manual do namorado o Manual da Bruxa e o Manual praacutetico do destilador) passando por romances de ldquoscenas empolgantesrdquo (como O calvaacuterio de mulher) ateacute os pioneiros livros voltados para o puacuteblico infantil (como Histoacuterias da carochinha e Histoacuterias da vovozi-nha)35 No entanto os primeiros sucessos de vendas da Quaresma foram mesmo os livros contendo compilaccedilotildees de modinhas dos quais o mais famoso foi o Cancioneiro popular de modinhas brasileiras lanccedilado em 1899 alcanccedilando ateacute 1908 incriacuteveis 25 ediccedilotildees O organizador dessa publicaccedilatildeo exitosa foi justamente Catullo da Paixatildeo Cearense
Eram esses livros com compilaccedilotildees de modinhas e canccedilotildees que faziam sucesso no mundo editorial de iniacutecios do seacuteculo passado Joatildeo do Rio observava surpreso o fato de ldquobardos ocasionais da saacutetira e da paixatildeordquo publicarem e venderem mais que poetas ldquo[] Admiram-se que eles imprimam e o que eacute mais esgotem ediccedilotildees milheiros e milheiros de exemplares Pois imprimem como qualquer poeta Apenas eles vendem e a maioria dos poetas oferece graacutetis aos amigosrdquo36
Embora tenha sido como ldquomodernizadorrdquo das modinhas que Catullo tenha adentrado o mundo letrado essa sua assumida postura se por um lado louvada por outro era vista com algumas reservas Joatildeo do Rio que o via com admiraccedilatildeo em artigo publicado na revista Kosmos em 1905 entendia-o como um ldquoestetardquo algueacutem que traduzia para os salotildees o ldquoespetaacuteculo das ruasrdquo
34 ALIBERT Jean-Louis Physiologia das paixotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 191135 Sobre essas uacuteltimas publicaccedilotildees haacute um denso estudo da socioacuteloga Andrea Borges Leatildeo
Cf LEAtildeO Andrea Borges Brasil em imaginaccedilatildeo livros impressos e leituras infantis Fortaleza Inesp UFC 2012
36 Artigo intitulado ldquoA musa das ruasrdquo publicado na Revista Kosmos de 12 de agosto de 1905 Este artigo foi reproduzido em RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008 p 234-252
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 45
O Sr Catullo uacuteltimo trovador velho-gecircnero eacute o esteta da trova popular Vecirc-lo recitar O poeta e a fidalga com um copo de chopp na matildeo eacute um desses espetaacuteculos de brasserie inesqueciacutevel Catullo emaranhou-se no dogma da moda corrigiu os versos de tudo quanto era quadra estudou Belllini Donnizetti Verdi adaptou os nossos versos a trechos de oacuteperas e finalmente compocircs traduccedilotildees livres de Leconte de Lisle para serem recitadas ao piano37
A partir das publicaccedilotildees da livraria Quaresma Catullo da Paixatildeo Cearense passou a ser consumido pela elite letrada brasileira durante quase 60 anos e conviveu com mudanccedilas socioculturais que marcaram profundamente sua obra Tambeacutem soube delas tirar subsiacutedios para compor sua trajetoacuteria como literato por meio de uma aguda sensibili-dade das formalidades que governavam a construccedilatildeo do que se cha-mava ldquoum autor brasileirordquo agrave sua eacutepoca
Ademais na trajetoacuteria inicial de Catullo salta aos olhos um fato que demanda a atenccedilatildeo mais acurada do historiador de sua produccedilatildeo qual seja o fato de ter sido aos poucos identificado como ldquopoetardquo con-comitantemente em que construiacutea estrateacutegias de escrita a fim de ser re-conhecido como ldquoordquo autor dos livros de modinhas por ele organizados Dito de outra forma Catullo teve de construir autoridade sobre os textos por ele organizados para assim ser reconhecido como um ldquopoetardquo
Nesse sentido reveladora eacute a representaccedilatildeo de si construiacuteda por Catullo na mesma entrevista concedida ao jornal O Paiz em 1906 aqui jaacute citada Introduzindo a entrevista os editores do jornal abordavam questotildees como ldquocultura popularrdquo ldquoarterdquo ldquoalma popularrdquo e atestavam os ldquoprogressosrdquo advindos do aperfeiccediloamento de seus praticantes princi-palmente modinheiros Assim observando tais aperfeiccediloamentos os re-poacuterteres do jornal diziam ficar curiosos por conhecer tais ldquotrovadoresrdquo
Procuramos saber qual era delles o mais apreciado o mais em evi-decircncia Era Catullo da Paixatildeo Cearense Onde mora Fomos para laacute na Estaccedilatildeo da Piedade
37 Idem
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo46
Numa das ruas que desembocam a Estaccedilatildeo da linha feacuterrea num tosco chalezinho oculto entre a romaria dos arvoredos escondido por uma cerca de espinheiros numa vivenda sadia florescia o poeta popularBatemos palmas discretas38
Ali no iniacutecio da entrevista nas ligeiras palavras que abriam aquela conversa algumas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre poesia popularnatureza trabalhoinspiraccedilatildeo e gecircnioracionalidade eram postas pelos repoacuterteres e ao avanccedilar a entrevista o proacuteprio Catullo expres-sava como via seu lugar dentro dessas relaccedilotildees e de como entendia o estatuto ldquomodernordquo da modinha que fazia Nesse movimento a partir de uma identificaccedilatildeo do seu objeto a modinha como expressatildeo ldquomo-dernardquo Catullo ia deslocando a imagem estigmatizada do gecircnero como sendo ldquocoisas de vagabundordquo e aproximava suas modinhas de certos ldquoecos de uma alma nacionalrdquo ao passo que construiacutea sua originalidade como autor do gecircnero sua especificidade como um boecircmio letrado e principalmente sua distacircncia em relaccedilatildeo aos trovadores das ruas
O ldquotrovadorrdquo Catullo que florescia por entre as aacutervores da sua casa assim como sua poesia mdash imagem que o jornal tratava de construir dando a ele um ar de ldquoinspirado pela naturezardquo mdash tratava de dizer que
Quando escrevo meus versos sinto que minha alma se eleva que uma nova vida me estua pelo corpo que me esqueccedilo dos contingentes terrenos para pairar muito mais alto na vida espiritual muito mais pura muito mais intensa Vivo mais meu amigo muito mais quando o estro me toni-fica a alma vacillante e amargurada Os meus versos satildeo a minha alma39
Sendo um trabalho oriundo diretamente de sua ldquoalmardquo Catullo afirmava como consequecircncia que a obra estava longe de ser laboriosa e acadecircmica pois
Elles os meus pobres versos natildeo satildeo a obra de um artista na expressatildeo acadecircmica da palavra Natildeo os rebusco no trabalho laborioso e tenaz do parnasianismo Natildeo os talho na mateacuteria-prima da forma []
38 O Paiz 25 fev 1906 p 839 O Paiz 25 fev 1906
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 47
E apesar disso elles satildeo preciosos saem-me da penna sem o menor esforccedilo rithmados pela muacutesica que escolhi para elles40
Catullo Cearense prosseguia indicando que sua poesia natildeo se efetuaria senatildeo acompanhada com a respectiva muacutesica indicada Uma vez que aquilo que escrevia soacute poderia se completar acompanhado pela muacutesica por ele escolhida era por meio da oralidade que seus escritos finalmente se configurariam num fato poeacutetico Observava sobre isso
Disjuntai-vos e aquelles versos que eu cantava haacute pouco que tanto aplaudistes satildeo apenas um corpo sem vida uma flor [sic] sem per-fume porque lhe exauristes o sangue porque lhe tirastes o doce aroma porque os fizestes emmunhecerE eacute uma verdade41
Catullo buscava afirmar-se a partir de uma relaccedilatildeo de proximi-dade de sua arte com sua ldquoalmardquo Essa relaccedilatildeo ainda que o afastasse segundo ele do academicismo de uma poesia consagrada naqueles tempos (a dos ditos parnasianos) credenciava-o a ser reconhecido como poeta em outro acircmbito o da genialidade aquele que expressa a ldquoalmardquo de maneira livre sem a ldquoformardquo
Por outro lado ainda que assumisse ser um modinheiro Catullo tratava de construir-se agrave distacircncia daquilo que homens como Mello Moraes entendiam ser a modinha qual seja parte de um ldquocostume exoacute-ticordquo por ser demais antigo O entrevistado por seu turno observava natildeo fazer coisas antigas pois
O Dr Mello Moraes eacute de parecer que a modinha deve permanecer sempre estacionaacuteria sem avanccedilo nem retrocesso Eu tenho opiniatildeo contraacuteria o canto popular deve acompanhar o espiacuterito popular Jaacute natildeo estamos no tempo do recitativo cheio de melopea sem vibraccedilatildeo A Alma popular activa-se haacute mais intensidade na vida mais educaccedilatildeo artiacutestica O povo quer conhecer o espiacuterito da muacutesica a cujo som se entrega aos torneios da dansa [sic] Como lhe mostrar esse segredo
40 Ibidem41 Ibidem
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo48
Emprestando-lhe a letra E o que eu faccedilo escolho umas das muacutesicas em voga estudo-a e faccedilo os meus versos[]Eu procuro como disse modernizar a arte da modinha Canto a muacutesica Os meus versos acompanham a oacutepera a valsa a polka a schotish a quadrilha e brejeiramente o tango e o maxixe voluptuoso42
Movimento tenso que oscila entre aproximar sua ldquoarterdquo das pro-duccedilotildees do ldquopovordquo e resguardar certa distacircncia desse mesmo ldquopovordquo ndash aqui esse termo tem sentido estigmatizado em negativo ndash a fim de que pudesse ser identificado como um letrado Catullo salientava que ao aparecer em entrevista no jornal
[] terei gosto de ver-me recordado ao nosso povo que eu tenho feito gozar do mais alto palaacutecio a mais pequena choupanaNatildeo eacute bom dizer em serenatas eu natildeo gosto de estar pelas esquinas Canto nos salotildees calmamente sem incocircmodo43
Nos limites de algueacutem reconhecido como ldquopopularrdquo e homem dos salotildees poeta e modinheiro adepto do letramento e buscando suas fontes poeacuteticas na oralidade Catullo Cearense construiacutea um espaccedilo dentro do mundo letrado configurando uma trajetoacuteria singular nas letras brasileiras de iniacutecios do seacuteculo Ainda que sempre fizesse questatildeo de salientar sua forte expressatildeo ldquopopularrdquo o ldquotrovadorrdquo negava qualquer vinculaccedilatildeo de sua produccedilatildeo com algo identificado como folclore ou costumes antigos Longe disso Catullo questionava esse caraacuteter exoacutetico da modinha reite-rado por Mello Moraes embora tenha sido presenccedila natildeo rara nos salotildees ndash que aliaacutes se multiplicavam naqueles idos uma vez que a cultura dos salotildees liacutetero-musicais tomou conta da elite letrada carioca do periacuteodo A historiadora Rosa Maria Barbosa observa que
A oferta de lazer noturno da cidade natildeo tornou a famiacutelia boecircmia no sentido de romper com as regras e esquecer as preocupaccedilotildees morais Ao
42 O Paiz 25 fev 190643 Ibidem
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 49
contraacuterio o projeto republicano normatizador condicionou a boemia a tornar-se familiar []A elite boecircmia trocou o espaccedilo da rua os cafeacutes e restaurantes onde se reunia para beber e conversar pelo brilho dos salotildees liacutetero-musicais e pela intimidade dos clubes44
Em 1906 o historiador Rocha Pombo testemunhava para os lei-tores do perioacutedico carioca Correio da Manhatilde uma dessas noites em que presenciara Catullo da Paixatildeo Cearense num encontro ocorrido em casa de Mello Moraes realizado em homenagem ao escritor e acadecirc-mico Alberto de Oliveira
Corria a bella festa serena e sumptuosa como sempre satildeo as daquele doce e carinhoso lar do dr Mello Moraes Filho Tinhamos ouvido jaacute estrophes deliciosas magniacuteficas borbotoantes como catadupas de lavas vinda da alma do nosso grande Alberto OliveiraTinhamos jaacute sentido cantos e muacutesicas ndash tudo isso que tempera as almas para o sagrado conviacutevio e que daacute um tom muito fino muito vivo agrave jovialidade dos coraccedilotildees que se encontram E continuaacutevamos todos numa aclamaccedilatildeo uniacutessona e incessante ao illustre poeta em honra de quem ali estaacutevamosLaacute pela meia noite correcircra entre os convivas a notiacutecia de que havia chegado agrave casa o Catullo CearenseFrancamente este nome natildeo me era estranho Por vezes me havia soado aos ouvidos sob gestos inexpressivos e sem nada que revelasse coisa alguma de excepcional e extraordinaacuterioNatildeo sei bem porque mas o certo eacute que no meu espiacuterito vagava esta Idea ndash fugidia e imprecisa ndash de que Catullo natildeo era mais que um simples cantador de modinhas um desses boecircmios chefes de Lyra bardo de violatildeo ao luar sabendo gemer entre um pigarro e outro uma porccedilatildeo de banalidades sobre o velho estafado thema do amorNatildeo fizemos portanto eu e uns iacutentimos que discreteaacutevamos fora do bulliacutecio da festa muito caso do annuncio que se espalhaacutera
44 ARAUacuteJO Rosa Maria Barboza de A vocaccedilatildeo do prazer a cidade e a famiacutelia no Rio de Janeiro republicano Rio de janeiro Rocco 1993 p 348
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo50
Dahi a pouco fomos chamados agrave sala onde jaacute encontramos todo aquelle mundo em foacuterma numa grande espectaccedilatildeo de coisas solennes []Haacute nos olhares uma como interrogaccedilatildeo de mysteacuterioO homem levanta-se e vem pro meio do salatildeo E des daquelle instante ndash digam os que ali tiveram a fortuna de estar ndash elle foi o senhor daquellas almas como se fosse a alma de todos noacutesCantou creio que os Olhos dela []Na sala entatildeo se fez uma atmosphera de assombro sacudido por aquele verbo de fogo arrebatado por aquella figura de trasgo insurgido ndash o auditoacuterio extasia-se illumina-se exalccedila-se como si a flamma daquella alma passasse subitamente para todas as almasE quando o vulto do cantor minguou n [sic] sala deixando escapar-se--lhe dos laacutebios o uacuteltimo verso houve uma verdadeira explosatildeo de de-liacuterio tatildeo espontacircnea tatildeo ruidosa tatildeo vibrante como si formidaacutevel tufatildeo barafustasse naquelle ambiente Natildeo eram palmas eram gritos de acla-maccedilatildeo transportes arrebatamentos ndash quase insacircnia e desatino []45
A citaccedilatildeo eacute longa e esclarecedora para demonstrar a aceitaccedilatildeo de Catullo e de modinhas entre os letrados de entatildeo Adentrar os espaccedilos de sociabilidade dessa elite e a acreditar no testemunho de Rocha Pombo ser ovacionado por ela era possuir um capital social que autori-zava um indiviacuteduo mesmo um modinheiro como Catullo a ser consi-derado algo mais do que um simples ldquotrovadorrdquo
Digo-o desassombradamente Catullo eacute um grande poetaA meu ver tem elle na alma alguma coisa mais que a exuberante e en-thusiastica poesia do nosso povo nos seus versos nos seus cantos fala a excelsia musa anocircnima e immortal da raccedilaE sente-se isso tanto mais quanto essa musa pelo estro deste poeta nos fere na alma umas grandes notas que nos dizem como Ella se comove agora apercebida do que foi nos tempos do velho culto saudosa das edades mortas e ufana de ressurgir para outras edificaccedilotildees46
O modinheiro Catullo de ldquobardo tocador de violatildeordquo de ldquochefe boecircmio da Lyrardquo passava a ser representado como ldquopoetardquo Essa repre-
45 Correio da Manhatilde 25 ago 1907 p 3 46 Idem
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 51
sentaccedilatildeo era construiacuteda pela constataccedilatildeo de que em seus versos falava ldquoa musa anocircnima e immortal da raccedilardquo vinda por fim de ldquoedades mortasrdquo e ressurgida para novas ldquoedificaccedilotildeesrdquo Essa passagem de bardo a poeta se desenrolou paulatinamente de forma que ao chegar o ano do testemunho de Rocha Pombo a representaccedilatildeo de Catullo jaacute diferia substancialmente da criada para definir outros modinheiros cariocas da eacutepoca Na medida em que a modinha passou a ser considerada impor-tante pelos letrados a figura de Catullo que jaacute se arvorava como letrado e organizador de livros de modinhas foi sendo alavancada como al-gueacutem que expressava a ldquopoesia popularrdquo Poreacutem para ser considerado um ldquopoetardquo e por conseguinte um distinto entre os outros modinheiros Catullo usou de estrateacutegias que se expressavam nos textos por ele publi-cados e que seratildeo mateacuteria de nosso exame adiante
Catullo jaacute em iniacutecios do seacuteculo XX poderia ser representado como um ldquoboecircmio modinheirordquo e ao mesmo tempo ldquopoetardquo Podemos flagraacute-lo em notiacutecias em que se avultavam esses dois lados de maneira natildeo contraditoacuteria como no curioso protesto que liderou e que foi noti-ciado nos jornais ldquoUma commissatildeo de poetas chefiados pelo Sr Catullo da Paixatildeo Cearense vae pedir ao ministro da viaccedilatildeo para que de ora em deante natildeo se acenda mais o gaz nas noites de luarrdquo47
Haacute de se chamar a atenccedilatildeo que aleacutem de Afonso Arinos e Mello Moraes jaacute citados Alberto Brandatildeo Pinheiro Machado e ateacute os presi-dentes Nilo Peccedilanha e Hermes da Fonseca eram homens que abriam as portas de suas residecircncias para espetaacuteculos das ditas ldquocoisas brasilei-rasrdquo48 Nilo e Hermes inclusive escandalizaram alguns detratores da modinha abrindo as portas da sede do Governo Federal para receber Catullo Na eacutepoca o caso de Hermes da Fonseca foi o mais comentado Sua mulher Nair de Teffeacute aluna de violatildeo e admiradora de Catullo apresentou em 1914 para um distinto puacuteblico presente no Palaacutecio do Catete entatildeo sede do Governo acompanhando-se ao violatildeo o maxixe Corta jaca de autoria de Chiquinha Gonzaga e com letra de Catullo
47 O Seacuteculo 14 abr 1908 p 148 Hermano Viana tambeacutem daacute um raacutepido quadro de alguns desses salotildees Cf VIANNA
Hermano O misteacuterio do samba 7 ed Rio de Janeiro ZaharUFRJ 2010
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo52
Um escacircndalo que os jornais colocariam na conta do presidente General Hermes da Fonseca nos dias posteriores Nair de Teffeacute admiradora de Catullo tambeacutem intercedeu junto a Hermes para que arrumasse uma vaga para o modinheiro na Imprensa Nacional no que foi atendida Toda essa admiraccedilatildeo fez com que em maio de 1914 Catullo fosse cha-mado ao Palaacutecio do Catete para ele mesmo fazer um recital de modi-nhas Nair de Teffeacute contava que
Essa audiccedilatildeo de Catullo no Palaacutecio do Catete constituiu o maior su-cesso a que um verdadeiro artista poderia aspirar em toda a sua vida Catullo ao teacutermino de cada canccedilatildeo que interpretava recebia da culta assistecircncia uma ovaccedilatildeo delirante Todos os aplausos de peacute E ecircle bem o merecia pelo seu gecircnio e seu irresistiacutevel poder de transmissatildeo de sen-timentos Catullo era pobre modesto educadiacutessimo de uma simplici-dade nazarena Seu orgulho era sua Arte a sua Religiatildeo [] Devo a Catullo a sugestatildeo de cantar de preferecircncia na nossa liacutengua Depois de ouvir Catullo fiquei tatildeo impressionada com o seu prodigioso poder de interpretaccedilatildeo que resolvi estudar letras brasileiras e acompanhar-me ao violatildeo para cantaacute-las49
O contraste que Nair de Teffeacute faz aparecer em seu depoimento era uma representaccedilatildeo que ajudou por diversas vezes as portas dos salotildees a abrirem-se para as modinhas de Catullo O ldquosimplesrdquo e ldquopobrerdquo Catullo poderia ao mesmo tempo por ser ldquoeducadiacutessimordquo ser figura comum nos espaccedilos de uma elite letrada que curtia as mani-festaccedilotildees do ldquopovordquo
Mas se a apresentaccedilatildeo no Palaacutecio do Catete lhe rendera um reconhecimento como artista antes em 1908 usando de seu capital social adquirido Catullo conseguiu aquilo que lembraria para sempre como sendo sua verdadeira consagraccedilatildeo uma apresentaccedilatildeo de modi-nhas acompanhada ao violatildeo no Instituto de Muacutesica mdash que era consi-derado o templo da muacutesica no periacuteodo e no entanto fechava as portas para apresentaccedilotildees de motivos populares Depois de muito hesitar o diretor-maestro do Instituto Nacional de Muacutesica Alberto Nepomuceno consentiu que ali se realizasse um espetaacuteculo de modinhas brasileiras
49 Entrevista de Nair de Teffeacute Apud MAUL Carlos Op cit p 69
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 53
capitaneado por Catullo Daquela noite o escritor Luciano Braga prefaciando um dos livros de modinhas do autor contava que
[] o leitor se laacute natildeo esteve pergunte a algueacutem do proacuteprio Instituto o que foi essa audiccedilatildeoPoucas vezes aquelle estabelecimento teraacute tido uma enchente como a do concerto do illustre poeta O auditoacuterio foi do que a Capital tem de mais fino nas letras sciencias e artes Viam-se senhoras de peacute que o ambiente regorgitava50
Nas palavras de Luciano Braga se expressava a forma como Catullo em 1913 jaacute era conhecido um poeta Essa construccedilatildeo foi pau-latinamente construiacuteda por Catullo em seus livros e em suas apresenta-ccedilotildees nos salotildees Ao referir-se a ele como poeta Luciano Braga ecoava a reabilitaccedilatildeo progressiva que as modinhas recebiam por parte do mundo letrado de entatildeo Reabilitaccedilatildeo em muito advinda do ecircxito editorial das letras de modinhas publicadas a cargo de Catullo Ateacute o ano do teste-munho de Luciano Braga haviam sido publicados 11 livros organizados por Catullo da Paixatildeo Cearense cujo conteuacutedo eram letras de modinhas indicadas com as respectivas muacutesicas a serem acompanhadas
O certo eacute que naquela noite de 5 de junho de 1908 as galerias do Instituto de Muacutesica no Rio de Janeiro nunca haviam recebido tamanha multidatildeo A distinta plateia acostumada a frequentar cafeacutes e livrarias da capital durante o dia aglomerava-se nos corredores para assistir ao es-petaacuteculo em que Catullo da Paixatildeo Cearense cantava modinhas acom-panhando-se ao violatildeo Letrados como Joseacute do Patrociacutenio Filho e Luiz Murat festejavam no modinheiro o triunfo do violatildeo ldquobrasileirordquo nos espaccedilos reservados para espetaacuteculos da dita ldquocivilizaccedilatildeordquo Entre aqueles que ali presenciavam o acontecimento estava o escritor Joatildeo do Rio (Paulo Barreto) que meses depois jaacute saudoso lembraria aquele dia em sua crocircnica no jornal
50 BRAGA Luciano Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Lyra dos salotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1926 p 7
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo54
Certo quando entramos natildeo contaacutevamos com aquele ambienteO theatro estava cheio mas cheio dessa sociedade elegante e fina da sociedade que estaacute no Lyrico nas recepccedilotildees nos chaacutes nos bailes da sociedade que vae para Petroacutepolis51
Essa febre por procurar e definir o que seriam as ldquocoisas brasi-leirasrdquo fez surgir um diaacutelogo fecundo entre uma elite letrada (que necessaacuterio dizer ainda se construiacutea como elite) e as camadas popu-lares que eram identificadas como guardadoras de expressotildees da dita ldquoraccedila brasileirardquo Mesmo maestros do consagrado Instituto de Muacutesica como Alberto Nepomuceno organizavam-se em um movimento de procura das raiacutezes musicais do paiacutes e viam num sujeito como Catullo o representante ideal para mostrar essas ldquocoisas brasileirasrdquo em es-paccedilos ditos ldquocivilizadosrdquo52
Foi assim que Catullo da Paixatildeo Cearense articulando sua circu-laccedilatildeo entre muacutesicos do periacuteodo que o faziam conhecer o universo das ruas (espaccedilo de oralidades fontes de suas produccedilotildees) suas boas rela-ccedilotildees com a elite carioca e seu encontro com um bom editor ndash que o autor dizia ser ldquoum americano nisso de reclamesrdquo pois ldquocada impressatildeo de meus livros editados sempre pela Livraria Quaresma custa os olhos da cara e o resto do resultado gasta-se quase todo em anuacutenciosrdquo53 mdash foi construindo sua representaccedilatildeo de poeta popular letrado
As ruas e os salotildees Com tracircnsito livre pelos dois espaccedilos Catullo se constituiacutea em artista e poeta do povo Mais tarde descobriria que ser poeta do sertatildeo mdash num momento em que tematizar o sertatildeo vira febre mdash lhe daria outro tipo de status que as modinhas natildeo davam o de tatildeo simplesmente poeta Mas antes disso Catullo da Paixatildeo Cearense teve de lidar com os entraves advindos de ser considerado uma ldquoexpressatildeo do povordquo o que lhe retirava a priori a autoria de suas publicaccedilotildees de
51 Gazeta de Notiacutecias set 1908 p 752 Sobre a busca pelo ldquopopularrdquo na muacutesica cf TABORDA Maacutercia Violatildeo e identidade
nacional Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2011 Para a atuaccedilatildeo de Alberto Nepomuceno como diretor do Instituto de Muacutesica cf PEREIRA Avelino Romero Muacutesica sociedade e poliacutetica Alberto Nepomuceno e a Repuacuteblica musical Rio de Janeiro UFRJ 2007
53 O Paiz 25 fev 1906 p 8
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modinhas pela livraria Quaresma Essa complexa equaccedilatildeo seraacute melhor compreendida adiante ao observarmos como a publicaccedilatildeo de textos contendo motivos considerados ldquopopularesrdquo (sejam modinhas ou temas sertanejos) forccedilosamente poderia criar entraves para algueacutem que pleite-asse o reconhecimento como literato mdash como era o caso de Catullo Para tanto eacute necessaacuterio atentar a um tema fulcral expresso em publica-ccedilotildees produzidas no periacuteodo a relaccedilatildeo de uma cultura letrada que nascia com a discussatildeo sobre o popular Analisando todos os atores que o construiacuteram desde leitores ateacute autores e editores
Aliaacutes o papel do editor Quaresma deve ser ressaltado pois foi a partir de seu objetivo editorial que pocircde surgir no seio do mundo letrado a obra de Catullo da Paixatildeo Cearense E eacute entendendo a trajetoacuteria de Catullo no espaccedilo de uma cultura escrita da qual ele fazia parte que se compreende a emergecircncia de sua literatura no periacuteodo
Aos leitores ldquotudo quanto se quizerrdquo autor livro e literatura
ndash Mas que quer o puacuteblico Qual eacute essa nova curiosidadendash A curiosidade do veratildeondash Uma curiosidade que desapareceraacute como os figos e as mangasndash Sim natildeo ria Todo o povo razoavelmente constituiacutedo tem duas curiosi-dades intermitentes e de ordem extrapraacutetica saber em que deuses crecircem os seus profetas e o que realmente pensam e satildeo os seus pensadores e os seus artistas Estas curiosidades soacute aparecem quando a Cacircmara fecha A imprensa que fala de toda a gente soacute natildeo falou ainda dos literatos Entretanto noacutes somos um paiacutes de poetas Em cada esquina encontra-se uma escola de arte em cada cafeacute corre desabrido esse processo epica-mente nacional de sova literaacuteria no interior das livrarias fervilham as novas escolas de arte Como os homens variam e os livros natildeo satildeo lido oh Senhor Deus Ler todos esses volumes Seria interessante fixar o que pensam ou o que natildeo pensam os caros iacutedolos da nossa artendash Iacutedolosndash O homem que escreve eacute sempre um iacutedolo Mesmo quando escreve mal o que natildeo eacute raro Quando algueacutem se destina a ser julgado pode ter a certeza de ser pelo menos o culto de uma almaO tom sentencioso do meu veneraacutevel amigo comeccedilava a irritar e a convencer
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo56
Ele poreacutem continuava animadondash Natildeo se pode imaginar a admiraccedilatildeo e o culto que se devota aos homens de letras nossos54
Em 13 de marccedilo de 1905 com a narraccedilatildeo de uma suposta con-versa que Joatildeo do Rio teve com seu amigo o jornal Gazeta de Notiacutecias anunciava uma seacuterie de entrevistas capitaneadas por Joatildeo do Rio com vaacuterios autores da considerada ldquoliteratura brasileirardquo O propoacutesito era mostrar ao puacuteblico leitor do jornal o que pensavam aqueles que o amigo do entrevistador chama no trecho acima citado de ldquoiacutedolosrdquo
A notabilidade do autor de livros no Brasil do periacuteodo eacute atestada pelo interlocutor de Joatildeo do Rio com uma sentenccedila lacocircnica ldquoO homem que escreve eacute sempre um iacutedolordquo E saber escrever ndash ou melhor ser re-conhecido como algueacutem que sabe escrever ndash era um fator que diferen-ciava um indiviacuteduo da grande maioria que natildeo sabia ler nem escrever De forma que para uma nova camada social que enxergava no letra-mento uma caracteriacutestica fundamental para reconhecer-se como elite aqueles ldquohomens de letrasrdquo eram no dizer do companheiro de Joatildeo do Rio seus ldquoiacutedolosrdquo
Revistas e jornais como o Gazeta de Notiacutecias muitas vezes publicavam as efemeacuterides da qual nos fala o amigo de Joatildeo do Rio ndash aquilo que ldquodesapareceraacute como os figos e as mangasrdquo ndash e eram os principais veiacuteculos propagadores dos modismos que interessavam ao puacuteblico leitor Mas que queria esse puacuteblico
A possibilidade de investigaccedilatildeo do mercado consumidor de livros na eacutepoca eacute um campo que ainda causa muitas discussotildees entre historiadores da literatura e criacuteticos literaacuterios De fato infor-maccedilotildees sobre nuacutemero de vendagens satildeo bastante imprecisas (quando natildeo inexistentes) agrave eacutepoca para afirmar com seguranccedila que uma de-terminada obra pudesse ter sido bastante consumida Penso ndash e sigo aqui esse caminho ndash que o que mais aproxima um investigador de cravar uma determinada obra literaacuteria como bastante consumida seja o nuacutemero de ediccedilotildees
54 RIO Joatildeo do O momento literaacuterio Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 2010
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Assim uma obra como Os sertotildees de Euclides da Cunha cujo nuacutemero de ediccedilotildees chegou a trecircs em menos de trecircs anos pode ser con-siderada uma obra bastante consumida Cancioneiro fluminense de 1887 primeira publicaccedilatildeo organizada por Catullo da Paixatildeo Cearense teve em poucos anos as mesmas trecircs ediccedilotildees esgotadas E Cancioneiro popular de modinhas brasileiras do mesmo autor incriacuteveis 25 ediccedilotildees em nove anos Eacute nesses nuacutemeros impressionantes de um autor hoje re-lativamente desconhecido como Catullo que se encontra o cerne da discussatildeo era Catullo um escritor popular
O termo ldquopopularrdquo muitas vezes evocado para salientar o su-cesso de uma obra pode evocar tambeacutem tanto uma definiccedilatildeo do puacuteblico ao qual se destina quanto pode ser a identificaccedilatildeo de um determinado tema na obra como sendo ldquopopularrdquo e ainda mais pode identificar o valor pecuniaacuterio de uma obra quando vendida Essa polissemia no termo ldquopopularrdquo guarda evidentemente alguns debates historiograacute-ficos que tecircm gerado nos uacuteltimos anos um redirecionamento no seu uso55 O historiador Roger Chartier propotildee que a discussatildeo acerca do popular deva ultrapassar o caraacuteter de definiccedilatildeo a priori de uma praacutetica e sugere em contrapartida a investigaccedilatildeo dos seus usos ou dito de outro modo dos seus significados construiacutedos socialmente56 Nesse sentido investigar as apropriaccedilotildees dos objetos culturais seria a melhor forma de se compreender como determinada praacutetica ganha um sentido construiacutedo por seus praticantes E avanccedilando como os praticantes (os leitores por exemplo) compartilham eles mesmos determinados signi-ficados que progressivamente vatildeo se constituindo em uma identidade social atraveacutes do reconhecimento muacutetuo de que participam de uma mesma comunidade
No nosso caso a elite letrada brasileira como procuramos de-monstrar construiu um circuito de espaccedilos de sociabilidades vaacuterios onde
55 Jacques Revel fez uma interessante siacutentese desses debates Cf REVEL Jacques Cultura popular usos e abusos de uma ferramenta historiograacutefica In REVEL Jacques Proposiccedilotildees ensaios de histoacuteria e historiografia Rio de Janeiro EdUERJ 2009 p 163-186
56 CHARTIER Roger Cultura popular revisitando um conceito historiograacutefico Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 8 n 16 1995
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encenavam essa identidade Ao mesmo tempo os literatos ndash ou seja uma parcela dessa mesma elite letrada ndash criavam eles mesmos os seus es-paccedilos de consagraccedilatildeo como a Academia Brasileira de Letras e seus ri-tuais de reconhecimento como as conferecircncias os encontros liacuteteros-mu-sicais etc Um indiviacuteduo identificado como um letrado natildeo era evidentemente um literato Nem algueacutem que escreve um livro era auto-maticamente identificado como tal Isto porque antes disso a construccedilatildeo de uma autoridade sobre os textos demandava duas estrateacutegias a de reco-nhecimento social do candidato a autor como letrado e a concomitante identificaccedilatildeo do seu texto como algo a ser encarado como literatura
Assim livros publicados pela livraria Quaresma por exemplo nem sempre podiam ser reconhecidos como ldquoliteraturardquo pelos seus lei-tores Nesse sentido um autor que tivesse sido publicado pela Quaresma teria de lidar com os diversos entraves para seu reconhecimento como literato mdash ou seja um letrado que era autor de um texto que natildeo pro-priamente figurava com o epiacuteteto de ldquoliteraturardquo
Outrossim o editor natildeo hesitava em definir alguns dos autores que publicava como ldquopopularesrdquo alguns por conter temas identificados por uma elite letrada como ldquopopularrdquo outros por ter a obra um valor de venda bem menor quando comparada a publicaccedilotildees da Garnier e da Laemmert duas das maiores casas editoriais do periacuteodo e muitos por seus livros terem mais de uma ediccedilatildeo da obra publicada sendo jaacute um sucesso de vendas Definir um texto como sendo da lavra ldquodo povordquo automaticamente fazia desaparecer a figura do autor tornando-o mero coletor de expressotildees ldquopopularesrdquo
Assim a publicaccedilatildeo de livros contendo ldquotemas popularesrdquo carre-gava outros tipos de constrangimentos para o organizador da obra Este poderia ser reconhecido como um letrado pelo puacuteblico mas natildeo o autor do texto por ele publicado Neste uacuteltimo caso o criador do texto teria de se afirmar antes como ldquoautorrdquo a fim de construir para o leitor o reco-nhecimento de sua ldquoautoridaderdquo sobre os textos Essa afirmaccedilatildeo autoral se fundava por meio de lentas e progressivas estrateacutegias de escrita le-vadas a cabo pelo candidato a autor
Se o texto publicado era digno de ser considerado um texto lite-raacuterio logo o autor era alccedilado a literato Para isso a criacutetica de jaacute reconhe-
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 59
cidos literatos era fatal Maacuterio Pederneiras assim fala de seu iniacutecio como poeta a Joatildeo do Rio
Para desespero dos amadores da literatura de peso em brochuras de quilo todo o meu trabalho literaacuterio ateacute hoje aparecido estaacute enfeixado em duas plaquettes esgalgas excelentemente impressas Agonia e Rondas NoturnasA primeira meu livro de estreacuteia sofreu coitadinha todos os maus tratos da veneranda Criacutetica indiacutegena disseram-lhe nomes feios chamaram-na de produto posticcedilo de preconceito escolar e ateacute Joatildeo chegaram a arru-mar-lhe em cima o peso vigoroso de insultos em francecircs Um horrorLembro-me ainda de que o egreacutegio Sr Antocircnio Sales no seu beliacutes-simo estilo pompadour deu-lhe pra baixo de rijo em meio palmo de excelente prosa gramatical pelas colunas de honra de um diaacuterio de efecircmera duraccedilatildeoDesesperei Joatildeo Porque contava bastante com a autorizada opiniatildeo de S Exordf para a minha consagraccedilatildeo de poeta novo57
Maacuterio Pederneiras mostra que se natildeo fosse reconhecido por ldquosu-midadesrdquo ainda que se reconhecesse sua autoria sobre o texto estava fadado a ser simplesmente um autor letrado Para todas essas opccedilotildees havia uma que as antecedia a aparentemente trivial necessidade de construccedilatildeo da autoria sobre a obra
Sem duacutevida em geral havia dois caminhos a serem seguidos publicar um livro e ser reverenciado como um literato (o que jaacute garan-tiria ao criador do texto obviamente sua autoria) ou publicar um livro no qual se garantia sua autoria e natildeo ser identificado como um literato (caso de muitas das publicaccedilotildees a cargo da livraria Quaresma) A traje-toacuteria seguida por Catullo Cearense difere de ambas
Ainda que se tenham em alta conta suas publicaccedilotildees de modi-nhas por serem identificadas como ldquopopularesrdquo e expressatildeo de uma ldquoalma nacionalrdquo eacute exatamente seu sucesso como organizador de livros ditos ldquopopularesrdquo (neste caso entendido no sentido de que vinha do ldquopovordquo) que entravava seu reconhecimento como autor Uma vez reco-
57 RIO Joatildeo do O momento literaacuterio Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional 1905 p 70
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo60
nhecido como ldquopoeta popularrdquo a ecircnfase no ldquopopularrdquo (e ldquopopularrdquo aqui porque expressatildeo de uma ldquonaturezardquo de uma ldquoalmardquo) ao mesmo tempo em que daria o sucesso de puacuteblico retiraria parte da autoridade sobre o texto publicado Afinal de contas ldquopopularrdquo era identificado por muitos estudiosos das coisas ditas ldquopopularesrdquo do periacuteodo (como Melo Moraes) como coisa do ldquopovordquo e natildeo de um autor que tatildeo so-mente expressaria a tal ldquoalma do povordquo
O sucesso de puacuteblico garantido por qualquer publicaccedilatildeo que se arvorasse como ldquopopularrdquo ao que parece poderia ser frustrante para um escritor mas por outro lado entusiasmava o editor Quaresma em publicar seus tiacutetulos com a adjetivaccedilatildeo ldquopopularrdquo E ele publicou vaacuterios tiacutetulos que vinham com essa adjetivaccedilatildeo O cozinheiro popular que prometia ser uma ldquoverdadeira enciclopeacutedia culinaacuteriardquo oferecendo ao leitor receitas de ldquotudo quanto se quiserrdquo58 O orador do povo que reunia discursos familiares e populares proacuteprias para qualquer evento social e Cancioneiro popular organizado por Catullo59
Nesse sentido ser ldquopopularrdquo como expressatildeo do povo soava po-sitivamente para o editor Quaresma mas podia ser diferentemente com-preendido pelo organizador ou escritor da obra Tanto mais porque ao passo que lhe dava o reconhecimento de letrado punha-o em situaccedilatildeo menor entre os letrados exatamente por natildeo ser de uma elite letrada mas daquilo que chamavam ldquopovordquo Para entender esse movimento eacute necessaacuterio compreender os rituais que governavam essa sutil separaccedilatildeo no mundo letrado de entatildeo
Um passeio pelas livrarias do Rio de Janeiro na virada do seacuteculo XIX para o XX bem poderia provocar espanto para um transeunte desa-visado Nelas podia-se encontrar desde aquela considerada a mais ldquoalta literaturardquo representada naqueles tempos por homens como Machado de Assis e Coelho Neto ateacute um tipo de literatura entendida como ldquopo-pularrdquo escrita para o passatempo do leitor ou marcadamente produzida para ser uacutetil nas praacuteticas cotidianas como manuais receitas e livros de
58 Cataacutelogo da Livraria Quaresma In NEVES Eduardo das Mysteacuterios do violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1905 p 125
59 MASCARENHAS Annibal O orador do povo Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1924
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 61
pornografia Naqueles espaccedilos era comum segundo o memorialista Luiacutes Edmundo encontrar um reconhecidamente ilustrado como Rui Barbosa a disputar espaccedilos ao lado de
[] toda uma freguezia perguntona espalhafatosa vozeiruda que ar-ranca notas de dois e cinco mil reacuteis do fundo de lenccedilos de chita muito sujos armados em carteiras para comprar as brochurinhas postas em capas de espavento natildeo raro aos empurrotildees aos gritos60
Natildeo eram somente nas livrarias que se podia encontrar essa elite letrada aacutevida por um livro Nas ruas cariocas o comeacutercio livreiro fa-zia-se presente com os ldquocaixeirosrdquo gente que ao comprar as brochuras nas livrarias saiacutea vendendo-as pela cidade
Observando essa efervescecircncia livresca o cronista Joatildeo do Rio escrevia que
Os vendedores de livro satildeo uma chusma incontaacutevel que todas as manhatildes se espalha pela cidade entra nas casas comerciais sobe aos morros percorre os subuacuterbios estaciona nos lugares de movimento61
Esses vendedores se beneficiavam de uma progressiva consta-taccedilatildeo arraigada nos grandes centros urbanos do paiacutes na eacutepoca de que possuir um livro era sinal de distinccedilatildeo Ora uma vez que no Brasil eram poucos os que sabiam ler e escrever aqueles que detinham essa teacutecnica fatalmente se distinguiam dos demais de forma que muitas vezes o caraacuteter de reconhecimento social se dava pelo fato de um indi-viacuteduo ser iniciado ou natildeo nas letras Isso criou condiccedilotildees para que a elite citadina brasileira se reconhecesse cada vez mais pelo letramento
De fato inuacutemeros satildeo os casos de autores que ainda por natildeo possuiacuterem socialmente uma vida confortaacutevel e com as regalias de uma possiacutevel ldquoelite econocircmicardquo eram entendidos como fazendo parte de um restrito grupo de uma elite letrada As representaccedilotildees construiacutedas para
60 EDMUNDO Luiacutes O Rio de Janeiro do meu tempo Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1938 p 735-7
61 RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008 p 85 Essa crocircnica foi publicada em 12 fev de 1906 no jornal Gazeta de Notiacutecias do Rio de Janeiro
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo62
serem definidoras daquilo que se entendia como uma ldquoeliterdquo teriam de inevitavelmente passar pela proximidade do indiviacuteduo com o objeto livro Foi a partir disso que o mercado consumidor de livros foi impul-sionado e com ele os editores comeccedilaram a publicar livros que aten-dessem agrave demanda por um puacuteblico leitor que nascia
Esses consumidores interessavam-se por livros que poderiam servir inclusive como presente para uma ldquosenhorardquo bastando ser no caso dos romances ldquoconvenientemente encadernadordquo como indicava na eacutepoca o famoso Manual do namorado62 Ademais livros como ma-nuais eram presenccedila constante nas listas dos mais vendidos Manual do namorado Manual do chofer Manual praacutetico do destilador Manual do padeiro Todos esses tiacutetulos eram publicaccedilotildees que visavam a al-canccedilar um puacuteblico letrado nascente e que poderiam encontrar nesses livros uma leitura uacutetil e de simples acesso ou mesmo apenas frivoli-dades para o passatempo no dia a dia63
A necessidade de seduzir os leitores fazia com que os livreiros e editores do periacuteodo natildeo soacute tratassem de chamar a atenccedilatildeo para o con-teuacutedo do livro bem como salientassem a proacutepria materialidade do livro O editor Quaresma por exemplo ficou conhecido por seu esforccedilo pu-blicitaacuterio ao fazer grandes cartazes e pregar por toda cidade anunciando a chegada de um livro Das propagandas estampadas nos grandes jor-nais do Rio agraves chamadas em que anunciava natildeo soacute o conteuacutedo da publi-caccedilatildeo mas tambeacutem seu caraacuteter esteacutetico tudo era mobilizado como forma de seduzir um possiacutevel consumidor tal como aparece no anuacutencio do livro com letras de modinhas intitulado Lyra dos salotildees ldquoUm grosso volume de 608 paacuteginas com dezenas e dezenas de retratos de todos os poetas e deslumbrante capa em chromo-lythographia do insigne artista brasileiro Raulrdquo64
62 BOTAFOGO Don Juan de Manual do namorado Rio de Janeiro Ediccedilotildees Quaresma sd p 8
63 Na Franccedila havia muito tempo que existia uma tradiccedilatildeo na publicaccedilatildeo de manuais Cf EL FAR Alessandra Paacuteginas de sensaccedilatildeo literatura popular e pornograacutefica no Rio de Janeiro (1870-1924) Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004
64 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 224
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 63
O texto referia-se ao famoso caricaturista Raul Pederneiras O investimento da abordagem esteacutetica da obra fazia com que as casas edi-toriais tivessem um rol de artistas que tratavam de assegurar a beleza do objeto livro visando a criar o fasciacutenio do potencial consumidor Era comum trabalharem nessas casas homens como Raul Pederneiras Bastos Tigre e vaacuterios outros ilustradores muitos ganhando fama inicial com a produccedilatildeo de capas
Tambeacutem da livraria Quaresma se deu a iniciativa de publicar a chamada ldquoBiblioteca Infantilrdquo a primeira accedilatildeo editorial no Brasil que visava ao puacuteblico infantil ainda nos anos 1910 No anuacutencio de Histoacuteria da Baratinha o editor Quaresma salientava natildeo soacute o con-teuacutedo com ldquonarraccedilotildees phantaacutesticasrdquo mas tambeacutem o fato de o livro formar ldquo[] um grosso volume de 320 a 400 paacuteginas com milhares de vinhetas e gravuras impresso em papel de boa qualidade typo novo e letras de fantasia encadernado e sempre com a mesma capa lithogra-phada a coresrdquo65
A necessidade de seduzir pela materialidade do livro foi um arti-fiacutecio comum na publicizaccedilatildeo das obras literaacuterias de entatildeo Ademais isso revelava as estrateacutegias editoriais que buscavam alcanccedilar um puacute-blico semiletrado Estrateacutegia essa que por fim visava agravequeles cujo ldquoob-jetordquo livro demandava natildeo raro mais interesse do que o proacuteprio texto que ele carregava
Ora perder de vista essa dimensatildeo seria desdenhar toda uma re-laccedilatildeo que o consumidor de livros tinha quando da sua posse no Brasil da eacutepoca e aleacutem disso seria menosprezar o valor que subjazia ter um livro numa sociedade que paulatinamente valorizava o ldquocidadatildeo le-tradordquo Essa constataccedilatildeo nos coloca diante da possibilidade de vislum-brar nos textos produzidos no periacuteodo natildeo soacute a construccedilatildeo de artifiacutecios que pudessem ldquopescarrdquo o leitor ndash fossem eles artifiacutecios editoriais temaacute-ticos e narrativos ndash mas como os proacuteprios sujeitos construiacuteam para si um lugar entre aqueles que pudessem ser reconhecidos como ldquoletradosrdquo Mais como essa produccedilatildeo de autoridade sobre o objeto livro passava
65 Cataacutelogo da Bibliotheca Infantil da Livraria Quaresma In DEMOSTHENES Annibal O orador do povo Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1924
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo64
por um entendimento profundo de que sua posse representava de al-guma forma poder ― fosse do autor do editor ou do leitor
O escritor Lima Barreto nos conta acerca de seu personagem Policarpo Quaresma que ele possuiacutea muitos livros em casa e que por isso mesmo acabou ganhando a desafeiccedilatildeo de certo doutor Segadas um cliacutenico afamado no bairro de Satildeo Januaacuterio que natildeo admitia essa extravagacircncia dizendo ldquoSe natildeo era formado para quecirc Pedantismordquo66 Nesse pequeno causo Lima Barreto nos conta como a possibilidade de possuir livros no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX era algo que poderia causar certo incocircmodo e como consequecircncia mostra o quanto possuir um livro podia ser considerado um simples ldquopedantismordquo sendo a posse do objeto um fator que poderia credenciar seu possuidor a ser chamado de pedante ndash ou seja algueacutem que se pretende algo mais do que eacute Lima Barreto atenta para o fato de que ter a posse de um livro po-deria naqueles idos ter diversos significados inclusive com vistas a uma representaccedilatildeo hieraacuterquica do indiviacuteduo que o possui podendo ser identificado como um pedante
Um exemplo sintomaacutetico dessa relaccedilatildeo poderosa que o possuidor de livros podia obter na sociedade carioca pode-se encontrar nos jornais do periacuteodo No Jornal do Comeacutercio de setembro de 1915 ladeado a anuacutencios de cosmeacuteticos e modernas maacutequinas aparecia o anuacutencio de uma estante contendo livros do mundo inteiro a chamada Biblioteca Internacional e entre os elogios aos grandes nomes da literatura uni-versal que a estante trazia (numa tentativa oacutebvia de seduzir o leitor para a compra) o anunciante chamava a atenccedilatildeo para a distinccedilatildeo que traria para a casa que possuiacutesse tal estante de livros
A magnificecircncia da ediccedilatildeo mesmo considerada simplesmente como um adorno a Biblioteca Internacional com a sua luxuosa encadernaccedilatildeo e magniacutefica estante augmentaraacute a distinccedilatildeo da residecircncia mais rica-mente mobiliada Uma vez em casa nunca faltaraacute lsquoalguma coisa para lecircrrsquo seja para dez minutos seja para dez horas67
66 BARRETO Lima Triste fim de Policarpo Quaresma Fortaleza ABC Editora 1999 p 1167 Jornal do Comeacutercio 7 set 1915 p 28
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 65
Esses significados no Brasil da virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo podem ser compreendidos apenas a partir de uma relaccedilatildeo in-diviacuteduo-livro Haacute de se levar em conta tambeacutem o caraacuteter de mudanccedilas pelas quais passavam as grandes capitais do paiacutes naquele momento e que rotulavam certas praacuteticas como modernas em detrimento de outras a cujos praticantes (mesmo tendo a posse e o domiacutenio da leitura e de um livro) era negado o status de letrado Isso porque ser ldquoletradordquo de-mandava diversos artifiacutecios Um caso extremo pode ser observado no modinheiro e palhaccedilo Eduardo das Neves que tinha livros publicados sob o seu nome
Ele um cantor negro famoso por compor muacutesicas sobre os grandes acontecimentos ocorridos naqueles tempos68 ao publicar a co-letacircnea de modinhas de sua autoria sob o tiacutetulo Misteacuterios do violatildeo era apresentado pelo editor Quaresma como um ldquotrovador popularrdquo que ainda que escutado ldquoem muitas casas de famiacutelia nos aristocraacuteticos sa-lotildees de Petroacutepolis Botafogo Larangeiras [sic] Tijuca etcrdquo por ldquose-nhoritas distinctissimas e virtuoses conhecidos [] natildeo seraacute um poeta impeccavel um Bilac um Medeiros de Albuquerque um Raimundo Correcirca um Luiz Delfino um Arthur Azevecircdo um Murat um Figueiredo Pimentel []rdquo mas ainda assim ldquoeacute com certeza um poeta na legiacutetima acepccedilatildeo do termo como o puacuteblico os aprecia os lecirc os decora e os traz constantemente na imaginaccedilatildeordquo e deveria ser reconhecido como um ldquoextraordinaacuterio bardo do povo filho do povordquo69
A passagem exposta acima traz alguns apontamentos para se compreender a cultura escrita do periacuteodo aleacutem de poder ser encarada como uma das facetas sob as quais a relaccedilatildeo entre ldquopovordquo e ldquoescritardquo era entendida naquele momento
Ora havia sem duacutevida uma valorizaccedilatildeo do puacuteblico receacutem-le-trado visado como potencial consumidor do objeto ldquolivrordquo criando grandes investimentos em barateamento do livro e produccedilatildeo editorial tornando-o um objeto de seduccedilatildeo e aguccedilando a vontade de potenciais
68 Uma canccedilatildeo famosa de Eduardo das Neves eacute a que foi composta em homenagem a Santos Dumont apoacutes o primeiro voo do brasileiro em Paris
69 NEVES Eduardo das Misteacuterios do violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1905 p IV-V
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo66
consumidores Atrelada a isso sobretudo houve uma mudanccedila no sen-tido e no conteuacutedo do proacuteprio livro que por fim passou a trazer ex-pressotildees e temaacuteticas daquilo entendido como ldquopopularrdquo agrave eacutepoca Entretanto mdash e aiacute reside a especificidade da literatura produzida no periacuteodo mdash isso natildeo credenciava tal expressatildeo quando publicada em livro a ser entendida como ldquopraacutetica letradardquo nem tampouco fazia de seu escritor algueacutem ldquoletradordquo ndash muito menos um ldquopoetardquo Como no caso de Eduardo das Neves no maacuteximo esse escritor seria como es-crevia seu editor um ldquotrovador popularrdquo e natildeo poeta Essa uacuteltima cons-truccedilatildeo demandava muito mais estrateacutegias a serem mobilizadas
Se Neves poderia publicar sob seu nome um texto do ldquopovordquo ser identificado como ldquopopularrdquo lhe retirava a autoridade para falar sobre se natildeo fosse um iniciado um letrado que pode falar sobre mas natildeo pode ser um
Acerca disso o exemplo da publicaccedilatildeo que em 1900 a livraria Quaresma incumbiu a organizaccedilatildeo a Catullo eacute emblemaacutetica Intitulada O cantor de modinhas brasileiras ela deveria conter as modinhas de Eduardo das Neves e do bariacutetono Geraldo Magalhatildees Na publicaccedilatildeo Catullo dizia que seu trabalho de organizaccedilatildeo das modinhas de Eduardo das Neves tinha por fim que ldquoos seus innumeros apreciadores pu-dessem admiral-o mais de perto conhecendo a sua verve satyrica e o seu bello talento embora natildeo cultivado pelo estudordquo [grifo meu]70
Aiacute no proacuteprio texto construiacutea-se uma hierarquia entre produtor e autor-organizador em que o segundo era apresentado como sendo aquele detentor do estudo necessaacuterio para corrigindo as modinhas mostraacute-las da melhor maneira aos leitores de seu texto enquanto o pri-meiro era identificado como algueacutem ldquonatildeo cultivado pelo estudordquo por-tanto natildeo possuindo aptidotildees para ser ele mesmo o autor de suas modi-nhas transcritas para um texto A autoria aiacute advinha da identificaccedilatildeo do sujeito como possuidor de aptidotildees letradas
Essa sutil separaccedilatildeo demarcava no texto as divisotildees sociais que se construiacuteam naqueles idos delimitando um espaccedilo que separava
70 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O cantor de modinhas brasileiras Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1927 p 5
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 67
aquele que podia ser identificado como um letrado daquele que natildeo podia ser detentor desse epiacuteteto Seguramente a proposta da livraria Quaresma colocava de maneira mais clara essa tensatildeo ao optar por pu-blicar textos de indiviacuteduos natildeo propriamente entendidos como letrados como foi o caso de Eduardo das Neves e mesmo inicialmente de Catullo da Paixatildeo Cearense
No que tange a Catullo foi desenrolado um curioso caso de pau-latina construccedilatildeo de autoridade sobre seus textos e na esteira disso uma progressiva identificaccedilatildeo de seu nome como poeta letrado Esse processo esteve intimamente ligado agraves propostas editoriais de seus edi-tores e por consequecircncia agraves expectativas de um puacuteblico leitor visado pelo mesmo editor Nesse espaccedilo Catullo traccedilava suas estrateacutegias auto-rais no intuito de fazer com que fosse entendido como um autor de li-vros de modinhas em vez de somente autor de modinhas mdash diferen-ciaccedilatildeo que acarretava uma mudanccedila draacutestica no reconhecimento do sujeito entre os letrados
Ainda que nas suas primeiras publicaccedilotildees exista uma mescla entre modinhas escritas pelo proacuteprio Catullo e letras de modinhas de outros modinheiros sendo Catullo o organizador delas natildeo eram esses ldquooutros modinheirosrdquo que apareciam como autores mas ele mesmo pois possuiacutea o poder da escrita A partir dessas publicaccedilotildees o modi-nheiro Catullo foi progressivamente sendo identificado como ldquopoeta popularrdquo e mais tarde jaacute reconhecido como poeta deixaria de lado as modinhas para lanccedilar com bastante ecircxito livros de poemas sertanejos pela livraria Castilho especialista em publicaccedilotildees das ditas ldquocoisas brasileirasrdquo71
A partir de um universo dito popular que cada vez mais era objeto de curiosidade de letrados de uma proposta editorial que alavan-cava seus empreendimentos em cima das expectativas de um puacuteblico leitor e por fim de uma intenccedilatildeo claramente expressa em seus livros (progressivamente afirmados) pelo seu reconhecimento como letrado a
71 Com essa proposta aliaacutes Castilho lanccedilaria Antocircnio Torres Gastatildeo Cruls Leonardo Mota e Joseacute Ameacuterico de Almeida Cf BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 67-70
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obra de Catullo da Paixatildeo Cearense ascendeu no mundo literaacuterio da virada do seacuteculo XIX para o XX Na interseccedilatildeo entre autor editor e leitor reside a compreensatildeo de seu ecircxito editorial Foi equilibrando-se sobre esses pilares que Catullo foi construindo a autoridade sobre os textos por ele publicados e por conseguinte o reconhecimento de sua posiccedilatildeo letrada
A primeira publicaccedilatildeo na qual Catullo investe na produccedilatildeo de sua autoridade sobre os textos eacute a que mais sucesso obteve no mundo le-trado de entatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras Daiacute em diante e progressivamente a figura de Catullo da Paixatildeo Cearense vai sendo investida de representaccedilotildees que variam desde o modinheiro pas-sando pelo de bardo poeta ateacute chegar agrave imagem de poeta culto Para a construccedilatildeo de tais representaccedilotildees muito valeram as estrateacutegias textuais construiacutedas em seus livros o que obriga ao investigador uma atenccedilatildeo acurada para as formalidades que subjazia na produccedilatildeo de um livro no Brasil da primeira metade do seacuteculo XX e as consequecircncias advindas dessas praacuteticas letradas
COMO SE CRIA UMA AUTORIA
Nada eacute mais repisado do que o cenaacuterio que consiste em apresentar uma narrativa de ficccedilatildeo como uma revelaccedilatildeo anacrocircnica Nada eacute mais comum do que um autor que pretende ser editor do seu texto72
O cancioneiro popular de modinhas
O Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa de 1913 definia ldquoautorrdquo como tendo seis significados Satildeo eles ldquocausa principal de uma coisa Inventor Aquelle que escreveu obra literaacuteria ou scientiacutefica Fundador Aquelle que intenta demanda judicial Aquelle de quem pro-cede ou nasce algueacutem ou alguma coisardquo73 Natildeo obstante o caraacuteter muacutel-tiplo de sentidos dados ao termo o ldquoautorrdquo seria algueacutem de quem par-tiria uma consequecircncia algueacutem de quem resultaria uma causa material A construccedilatildeo de algo materializado ndash e assim identificado socialmente ndash parecia ser um preacute-requisito necessaacuterio para se considerar algueacutem como um autor O caraacuteter daquilo que se convencionou chamar de ldquocriaccedilatildeo intelectualrdquo de um indiviacuteduo aiacute natildeo aparece O criador natildeo eacute um ldquoautorrdquo senatildeo quando seu ato produz uma consequecircncia que pode
72 SCHLANGER Judith Apud CHARTIER Roger Cardenio entre Cervantes e Shakeaspeare histoacuteria de uma peccedila perdida Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012 p 8
73 FIGUEIREDO Cacircndido Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa Lisboa Livraria Claacutessica 1913 p 225
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo70
garantir-lhe finalmente uma representaccedilatildeo de ldquoautorrdquo O caraacuteter in-transitivo do criador afastaria assim o seu reconhecimento imediato como um autor
Assim dizendo aquele que escrevia uma obra literaacuteria (ldquoautorrdquo) nem sempre era o criador de tal obra ndash e nem sempre o criador da obra era por conseguinte um ldquoautorrdquo Foi percorrendo esses meandros para a consolidaccedilatildeo de seu nome proacuteprio como ldquoautorrdquo que Catullo da Paixatildeo Cearense construiu inicialmente sua trajetoacuteria com os livros Dialo-gando com as diversas praacuteticas letradas do periacuteodo e construindo nesse processo um lugar para sua autoridade sobre as publicaccedilotildees lanccediladas sob seu nome o trajeto seguido por Catullo eacute sobretudo um trajeto de consagraccedilatildeo edificado na sua relaccedilatildeo com o objeto livro
Em fins do seacuteculo XIX jaacute conhecido como modinheiro e pre-senccedila constante nos salotildees da elite carioca Catullo da Paixatildeo Cearense foi trabalhar junto agrave livraria Quaresma na organizaccedilatildeo de volumes de modinhas Antes o primeiro grande sucesso editorial organizado por ele foi o livro de canccedilotildees musicadas O cantor fluminense publicado pela primeira vez em 1894 com trecircs ediccedilotildees pela livraria Democraacutetica Usando de sua boa circulaccedilatildeo entre os boecircmios modinheiros e de seu conhecimento de modinhas Catullo Cearense trazia para o universo letrado os sons das ruas as mais famosas modinhas cantadas agrave eacutepoca Doze anos depois com a publicaccedilatildeo em 1899 de Cancioneiro popular de modinhas brasileiras pela livraria Quaresma seu nome ficaria ainda mais em evidecircncia no universo letrado Cancioneiro popular teria nada menos do que 25 ediccedilotildees em menos de dez anos74
O livro possui em sua 25ordf ediccedilatildeo 155 modinhas sendo 48 da lavra de Catullo Os primeiros versos que aparecem na publicaccedilatildeo satildeo uma poesia explicativa escrita pelo proacuteprio Catullo intitulada Ao violatildeo em que expressa com certo ar de desgosto o fato de o violatildeo (o instrumento-mor que deveria acompanhar todas as modinhas ali publi-cadas) ser ainda malquisto O autor-organizador em passagens que
74 A ediccedilatildeo agrave qual vamos fazer referecircncia neste estudo eacute a 25ordf ediccedilatildeo de 1908 e a pri-meira em que Catullo aparece como prefaciador do livro
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 71
abusa de ironias observa o fato paradoxal que fazia do violatildeo um ins-trumento odiado e ao mesmo tempo amado por seus ouvintes
Anda caacute meu violatildeo eu quero agoraafinar-te e baixinho em tom maguadoexplicar-te a razatildeo por que dos Grandestu eacutes foste e seraacutes tatildeo diffamadoElles gostam de ouvir-te as harmoniasOs accoacuterdes de vagos sentimentosMas se escutam teu nome empallidecemque eacutes a escoacuteria lethal dos instrumentos[]Se dos Grandes tu eacutes ludibriadoSe elles fecham-te as portas dos salotildeeseacute porque soacute tu tens essa magia de render os mais feros coraccedilotildeesPois emquanto vagueas ao relentoE uma endeixa em menor aacute lua exhalasOs pianos calados jazem tristesEm sudaacuterios envoltos laacute nas salas75
Essa ldquonota explicativardquo em forma de poesia visava a provocar o leitor ainda natildeo convencido da qualidade das modinhas ali publicadas fazendo com que este ficasse instigado pela ironia do autor a comeccedilar a leitura de fato Sendo uma publicaccedilatildeo que visava ao puacuteblico letrado Catullo Cearense construiacutea representaccedilotildees da modinha e do violatildeo que pudessem ldquofisgarrdquo o leitor mais ceacutetico com relaccedilatildeo agrave qualidade da obra Para tanto valia inclusive evocar o nome de homens reconhecidos que pudessem ajudar na corroboraccedilatildeo do material
O Castro Alves te amava os sons plangentesO Fagundes Varella te adoravaE Tobias Barreto o bardo excelsoOs lampejos do estro em ti cantava
75 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 1316
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo72
E Laurindo Rabello O cysne albenteCujos carmes libravam-se aacutes alturasEra louco por ti Pois muitas vezesOlvidava comtigo as amarguras76
Ainda que os primeiros versos publicados em Cancioneiro po-pular sejam de um poema agrave maneira como comumente Bilac ou Coelho Neto publicavam o caraacuteter de performance oral que visava agrave publi-caccedilatildeo ndash afinal eram versos para serem cantados ndash eacute reiterado na uacuteltima estrofe do poema inicial quando Catullo emenda o poema com a pri-meira modinha propriamente dita intitulada de O luar de sua autoria
[]Fere um doce menor Geme soluccedilaQue este pranto te orvalhe as cordas ChoraJaacute natildeo posso soffrer a dor prementeQue por ella a gemer padeccedilo agora
Ella eacute filha do Norte e tem no peitoUm brando um meigo um puro coraccedilatildeoA noite em meio estaacute vibra uma notaQue eu vou cantar-lhe agora esta canccedilatildeo
Ao Luar(A Muacutesica eacute assaz conhecida)
Vecirc que amenidadeque serenidadetem a noite em meioquando em brando enleiovem lenir o seiode algum trovador []77
Esse procedimento que reiterava o caraacuteter oral da publicaccedilatildeo construiacutea o efeito performaacutetico que deveria ter a apresentaccedilatildeo da mo-dinha seguinte O resultado que deveria ter a poesia-nota explicativa
76 Idem p 1677 Idem p 24
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 73
Ao violatildeo sobre a modinha Ao luar que ela emendava era aleacutem de criar uma ponte que dava agrave modinha o status de poesia cantada cons-truir a representaccedilatildeo do modinheiro Catullo como algueacutem tambeacutem apto a figurar como um civilizado um letrado e no limite um poeta da palavra cantada
A histoacuteria das ediccedilotildees de Cancioneiro popular eacute expressiva do tipo de representaccedilatildeo que o personagem Catullo foi ganhando na socie-dade carioca do periacuteodo As primeiras ediccedilotildees de Cancioneiro popular por exemplo natildeo constam de prefaacutecios explicativos de Catullo apenas uma raacutepida apresentaccedilatildeo inicial da obra feita pelos editores da livraria Quaresma responsaacuteveis pela publicaccedilatildeo
A partir da 25ordf ediccedilatildeo de 1908 Cancioneiro popular jaacute vem acompanhado de um prefaacutecio assinado por Catullo Cearense que se arvora na representaccedilatildeo de si como algueacutem que trabalha na organizaccedilatildeo das modinhas por ele coletadas Esse ineditismo veio na esteira do su-cesso de Catullo na sociedade carioca jaacute que 1908 foi o ano em que nosso personagem saiu ovacionado ao apresentar-se pela primeira vez no Instituto de Muacutesica do Rio acompanhado de um naqueles tempos ldquoineacuteditordquo violatildeo mdash fato que jaacute narramos no capiacutetulo 1
Esse ineditismo em apresentar-se tambeacutem como algueacutem que tra-balhou as modinhas inclusive assinando um prefaacutecio eacute tanto mais sur-preendente se investigarmos as publicaccedilotildees anteriores a cargo de Catullo Antes da 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro popular ainda em 1902 foi lanccedilado Chocircros ao violatildeo contendo coleccedilotildees de modinhas tambeacutem organizadas e coletadas por Catullo Mas ainda nessa publicaccedilatildeo Catullo se restringe a ser apresentado pelo editor Quaresma com as se-guintes indicaccedilotildees acerca do livro ldquoContendo as mais populares co-nhecidas e apreciadas modinhas brasileiras com a indicaccedilatildeo das muacute-sicas com que devem ser cantadas Escriptas e collecionadas por Catullo da Paixatildeo Cearense auctor do lsquoCancioneiro Popularrsquordquo78
Agrave eacutepoca uma publicaccedilatildeo que se apresentava contendo modinhas ldquopopularesrdquo era um fator a mais para um mundo letrado aacutevido deste tipo
78 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Chocircros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902 Folha de rosto
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo74
de publicaccedilatildeo aumentar o desejo de possuir um livro como o de Catullo e o editor Quaresma investia com ecircnfase no caraacuteter ldquopopularrdquo das mo-dinhas ali contidas Mas o que mais chama a atenccedilatildeo eacute que em Chocircros ao violatildeo Catullo aparece apenas como o comentador de algumas mo-dinhas publicadas com algumas indicaccedilotildees raacutepidas das muacutesicas a acompanhar cada uma delas Apenas em uma uacutenica modinha ele reapa-rece oferecendo ldquoaos amigos Galdino e Maacuteriordquo79 Diferentemente em Cancioneiro popular na ediccedilatildeo de 1908 o autor Catullo ganha mais espaccedilo na publicaccedilatildeo inclusive com a possibilidade de oferececirc-la ldquoAo primoroso e distincto comediographo brasileiro Arthur Azevedo como singela prova de admiraccedilatildeo ao seu talento omnido dedica o Auctor [grifo meu]rdquo80
Eacute expressiva a mudanccedila ocorrida entre a publicaccedilatildeo de Chocircros ao violatildeo de 1902 e Cancioneiro popular de 1908 Nesta uacuteltima pu-blicaccedilatildeo inclusive contrastando com uma maior presenccedila de Catullo como autor aparece algo que se tornaraacute comum daiacute para frente nas ediccedilotildees Quaresma o certificado de direitos do editor sobre a obra Enquanto que nas publicaccedilotildees anteriores inexiste esse certificado a partir de 1908 apareceraacute nos livros a seguinte indicaccedilatildeo ldquoOs editores QUARESMA amp C avisam ao puacuteblico que todos os livros editados por sua casa ndash Livraria do Povo ndash satildeo de sua exclusiva propriedade literaacuteria Capital Federal Janeiro de 1908 Quaresma amp Crdquo81
Concomitantemente a um maior espaccedilo para o autor-organizador da obra expressar-se o editor Quaresma via a oportunidade de colo-car-se tambeacutem como detentor dos direitos da publicaccedilatildeo Na medida em que Catullo aparecia como o autor da obra impressa os editores Quaresma reafirmavam deter a propriedade uacuteltima dela
Ademais a matildeo do editor pode ser vista em vaacuterios momentos do texto O Cancioneiro popular natildeo destoava do objetivo inicial do editor Quaresma pois era um empreendimento que buscava difundir para o
79 Idem p 380 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio
de Janeiro Livraria Quaresma 1908 Folha de rosto81 Idem
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 75
puacuteblico letrado as letras das modinhas cantadas nas ruas do Rio de Janeiro agrave eacutepoca Sua especificidade residia em um objetivo declarado o de ldquomelhorarrdquo a modinha corrigindo os versos cantados de forma considerada ldquoerrocircneardquo para serem finalmente consumidos da forma considerada ldquocorretardquo pelos leitores A chamada do editor Quaresma na contracapa do livro resume bem esse intuito
Esplendida e escolhida collecccedilatildeo de beliacutessimas modinhas populares es-criptas umas e outras collecionadas revistas e melhoradas postas taes quaes seus auctores as escreveram e natildeo estropeaacutedas incorrectas e es-phaceladas como por ahi andam de boca em boca na tradicccedilatildeo oral82
A aversatildeo ao erro e a sua identificaccedilatildeo com a ldquotradiccedilatildeo oralrdquo chama a atenccedilatildeo para a tentativa de distinccedilatildeo entre cultura letrada e cultura oral em processo naquele comeccedilo de seacuteculo A correccedilatildeo do ele-mento oral pela palavra escrita era ela mesma uma tentativa de estig-matizaccedilatildeo da oralidade em detrimento do letramento Ademais a neces-sidade de hierarquizaccedilatildeo das duas formas de expressatildeo com a oacutebvia hegemonia da palavra escrita era fundamental e previsiacutevel em publica-ccedilotildees que como as da livraria Quaresma buscavam tambeacutem desse modo criar um puacuteblico leitor-consumidor de livros
Por sua vez assumindo o papel de tradutor entre a cultura letrada e a cultura oral Catullo Cearense tratava em seus textos de colocar-se como autoridade a partir de sua condiccedilatildeo de um letrado conhecedor do oral Na esteira disso ele buscava direcionar a leitura de cada letra in-dicando a modinha correspondente a acompanhaacute-la
A partir da identificaccedilatildeo de Catullo Cearense como algueacutem que poderia se chamar de ldquocivilizadordquo o editor Quaresma afirmava por consequecircncia o caraacuteter ldquocivilizadorrdquo da obra de Catullo De sua parte o autor reafirmava essa posiccedilatildeo atraveacutes de seus prefaacutecios onde indicava o plano de sua obra
No prefaacutecio do Cancioneiro popular de modinhas brasileiras aleacutem de caracterizar o seu leitor Catullo indicava o objetivo do livro
82 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 Folha de rosto
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dizendo antes que resultara de um trabalho ldquoimprobordquo em cima de modinhas coletadas com as ldquomais baacuterbaras e repugnantes incorrec-ccedilotildeesrdquo onde foi necessaacuterio ldquocorrigil-a grammaticalmente ligar o pensa-mento desconexo cuidando tambeacutem um pouco da parte meacutetrica de modo a natildeo ficar um aleijatildeo impiamente ferindo o ouvido educadordquo83
Observa-se pela passagem acima citada que Catullo natildeo soacute or-ganiza a publicaccedilatildeo das modinhas como tambeacutem se apropria delas de maneira tal que as corrige com o intuito de afinal natildeo ferir o ldquoouvido educadordquo Indicando sua autoridade sobre o texto e acima de tudo apontando seus possiacuteveis leitores Catullo se interpotildee entre o leitor e o criador da modinha para assim tentar regrar a recepccedilatildeo do texto publi-cado E ainda no prefaacutecio Catullo chama a atenccedilatildeo para sua compre-ensatildeo de que um autor de modinhas tambeacutem possa ser chamado de poeta ldquoPor isso peccedilo perdatildeo a todo poeta que deparar nrsquoeste volume com alguma composiccedilatildeo sua a qual natildeo esteja como lhe gottejou da pennardquo84 e conclui defendendo que aquele tipo de publicaccedilatildeo deveria ser considerado ldquoliteraturardquo
Concluacuteo lamentando natildeo ver neste volume o que seria um trabalho colossal todas as nossas ternas meigas doces e saudosas modinhas brasileiras preciosiacutessimas joacuteias do escriacutenio do estro popular Mas ainda assim o Srs Quaresma amp C vatildeo prestando conscientemente inestimaacutevel serviccedilo agrave literatura mais nacional ndash a do povo85
O ouvido ldquoeducadordquo por conseguinte seria informado pelo texto escrito que se fazia assim como mediador entre dois tipos de orali-dades que estavam em jogo naquele momento o oral sem o crivo da letra e o oral apoacutes passar por esse crivo Dito de outra forma as modi-nhas cantadas nas ruas e as modinhas a serem cantadas apoacutes o ldquofunil civilizadorrdquo do texto de Catullo
O ldquofunil civilizadorrdquo do qual fala Catullo era exatamente seu tra-balho sobre as letras de modinhas por ele corrigidas Catullo fazia o
83 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p IX
84 Idem p XI85 Ibidem
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 77
papel de funil natildeo soacute porque selecionava mas porque isto eacute importante frisar corrigia as modinhas inteiramente como bem observa
Natildeo experimentei o prazer de me vir agraves matildeos uma soacute que fosse a qual natildeo contivesse as mais baacuterbaras e repugnantes incorrecccedilotildees Explico-me Desejando incluir nrsquoeste volume uma qualquer modinha que por ser bella e popular preenche os dous fins primordiaes depois de muito procurar chega-me agraves matildeos quase inteiramente estropeaacutedas86
Assim na medida em que ia corrigindo as modinhas elevava-as a um tipo de produccedilatildeo literaacuteria que pudesse autorizar tambeacutem a sua produccedilatildeo modinheira ser considerada literatura ldquoQuanto agraves poesias de minha lavra nada direi Tivesse eu talento illustraccedilatildeo e estro e dedicar--me-hia de corpo e alma a esse gecircnero de litteratura o mais profiacutecuo de todosrdquo pois se colocava como um dos que estavam ldquoconvencidos de que nessas composiccedilotildees do povo scintillam fulgurantes pensamentos que rariacutesimas vezes satildeo lobrigrados nas obras da alta litteraturardquo87
A passagem acima tem o intuito de ser esclarecedora nela expotildee Catullo mais claramente seu ponto de vista com relaccedilatildeo agraves letras de mo-dinhas Num soacute prefaacutecio ele natildeo soacute constroacutei uma autoridade sobre o texto (pois que assume sua correccedilatildeo e portanto tambeacutem parte conside-raacutevel de sua autoria sobre elas) como enfatiza a qualidade de um tipo de produccedilatildeo oral que ele traduz para o texto escrito Autoridade sobre o texto para afirmar-se uma autoria e reivindicaccedilatildeo da qualidade do texto para ser entendido como literatura Sobre esses dois pedestais e articu-lando termos como ldquopopularrdquo ldquoalmardquo e ldquoliteratura nacionalrdquo Catullo ia construindo um lugar para o consumo de seu texto pelos leitores
No texto o autor ia construindo uma representaccedilatildeo social para si concomitantemente ao fato de que os leitores demandavam um tipo de produccedilatildeo ldquopopularrdquo que Catullo conhecia Ainda que tentasse manter certa distacircncia de um vieacutes do popular (a boecircmia o barulho das ruas a vagabundagem etc) tentava articular dentro dessa direccedilatildeo elementos
86 Ibidem p IX87 Ibidem p X
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo78
que pudessem oferecer ao seu puacuteblico um tipo de produccedilatildeo que fosse identificada como ldquocivilizadardquo e para tanto natildeo se poupou de alccedilar-se sobre algumas autoridades jaacute reconhecidas
[] noacutes que preferimos uma modinha uma canccedilatildeo ruacutestica um lunduacute requebrado a um qualquer trecho de Wagner que natildeo comprehendemos e que natildeo nos produz a miacutenima sensaccedilatildeo natildeo nos importemos com os pedantis o estulto dos que menoscabam do violatildeo por ser elle dizem o instrumento dos desoccupados e perdidos Quando encontrardes um desses typos nrsquouma sala em que haja algueacutem que vos deseje ouvir re-citae com emphase e enthusiasmo a poesia que dediquei ao violatildeo e depois cantae a modinha que se segue a essa poesia mas eacute a uacutenica cousa qye vos peccedilo com todo sentimento Quando proferirdes os nome [sic] de Aureliano Lessa Bernardo Guimaratildees Laurindo Varella Castro Alves e Tobias Barreto principalmente fitaes com vehemencia os minguados paspalhotildees e deixae-os eclypsados na immensidade de suas insignificantes pessoas Esses gecircnios superiores eram sinceros ado-radores do violatildeo88
Essa aproximaccedilatildeo com letrados reconhecidos revestia suas mo-dinhas de um caraacuteter mais respeitaacutevel de forma que pudesse tambeacutem conseguir o mesmo respeito Essa identificaccedilatildeo com um mundo letrado aparecia comumente tambeacutem em raacutepidos comentaacuterios no meio de sua obra onde tentava enfatizar a todo o momento o caraacuteter corretor das modinhas por ele transcritas em texto
Ao transcrever a modinha O poeta e a fidalga Catullo Cearense fazia aparecer no final uma observaccedilatildeo esclarecedora do sentido de sua obra tornar corretas letras que foram estropiadas pela tradiccedilatildeo oral por ldquodesleixordquo Assim conclui o autor
Eacute a primeira vez que em livro de modinhas estes versos vecircm aacute [sic] luz da publicidade completos e como o Sr Vanderley os escreveu Existem no seu livro de poesias e aqui vatildeo como laacute se encontram Os pequenos retoques que fiz satildeo com certeza oriundos do desleixo dos composi-tores O tiacutetulo natildeo eacute ndash Desprezo ndash e sim o que encima estes versos89
88 Ibidem89 Ibidem p 117
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 79
O curioso dessa modinha encontra-se no fato de ela ser como conta Catullo primeiramente um poema do ldquoSr Vanderleyrdquo musi-cado ainda segundo o organizador da obra por compositores ldquodeslei-xadosrdquo Ali O poeta e a fidalga retornava ao texto pelas matildeos de Catullo depois de circular pelas ruas cariocas (como ele leva a crer) com ecircxito pois eacute uma das modinhas em que o autor natildeo se preocupou em indicar a muacutesica a ser acompanhada procedimento comum quando a modinha jaacute era por demais conhecida do puacuteblico leitor Aliaacutes em Cancioneiro popular haacute vaacuterios exemplos desse tipo Essa ausecircncia de muacutesica a acompanhar a letra transcrita dava ainda mais a impressatildeo de se estar lendo de fato natildeo letras de modinhas mas poemas que foram musicados
Na tentativa de demonstrar intervenccedilotildees suas sobre as modi-nhas e de seu conhecimento de temas ditos ldquopopularesrdquo Catullo fazia aparecer palavras e termos que sentia a necessidade de explicar ao leitor Em Canccedilatildeo do africano da lavra de Catullo expressotildees como Zambi innan inzoacute xequereacute e Jupaacute eram explicadas em notas de ro-dapeacute como sendo respectivamente Deus amor choccedila uma espeacutecie de marimba e lua
O procedimento de se mostrar conhecedor e ilustrado natildeo eacute novo Em Choros ao violatildeo publicaccedilatildeo de 1902 tambeacutem organizado por Catullo ao transcrever a letra da modinha Alzira de sua autoria Catullo no afatilde de mostrar ao leitor o caraacuteter letrado da produccedilatildeo e de se afirmar como um autor tambeacutem letrado observa no uacuteltimo verso uma ldquoincorrecccedilatildeordquo
Se queres que um cantoSaudoso desfiraVem tu minha AlziraMeu peito afinarvem logo natildeo tardesvem dar-me um alentoque o meu pensamentonatildeo quer te deixar (1)
DO AUCTOR
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo80
Muacutesica da modinha ndash As horas que eu passo contigo na mente(1) Uma incorrecccedilatildeo consciente90
Uma ldquoincorrecccedilatildeordquo que rapidamente o autor buscou explicar como sendo uma ldquoincorrecccedilatildeo conscienterdquo e natildeo um lapso na norma culta pela qual dava a conhecer a modinha ao leitor Tais comentaacuterios visavam a assegurar o caraacuteter corretor da sua escrita com relaccedilatildeo agrave voz e daiacute alertar para o fato de o corretor (Catullo) ser um conhe-cedor da norma culta Como orientador de tal empreendimento Catullo Cea rense tratava de construir-se como autor culto a partir da construccedilatildeo de representaccedilotildees de sua funccedilatildeo de autor Construccedilotildees que jaacute apareciam nas indicaccedilotildees do cataacutelogo das ediccedilotildees Quaresma onde o editor apresentava Catullo como um ldquodistincto moccedilo conhecido poeta e prosador excellente professor de liacutenguas mdash nome que toda gente conhece e tem aplaudidordquo91
Exemplos de demonstraccedilatildeo de letramento se avultam no texto Valendo-se da tradiccedilatildeo oral das ruas do Rio de Janeiro de entatildeo Catullo fazia emendas em trovas conhecidas como a que fez na modinha Gosto de ti cuja muacutesica era do violonista Satyro Bilhar
Gosto de ti porque gostoporque meu gosto eacute gostarmas tu de mim natildeo te lembrasPor que me fazer penar
Ausente de ti distanteNatildeo posso a vida soffrerSentindo tantas saudads [sic]Como eacute possiacutevel viver
Gosto de ti por que te amoPorque meu gosto eacute te amarmas natildeo te lembras ingrataque eu vivo longe a penar
90 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Chocircros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902 p 35
91 Cataacutelogo das Ediccedilotildees Quaresma Em CEARENSE Catullo da Paixatildeo Choros ao violatildeo Rio de Janeiro Livraria do Povo 1902
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 81
As noites passo velando Os dias passo a gemerSentindo tantas saudadesComo eacute possiacutevel viver
Que tu me estimes deverasmeu coraccedilatildeo natildeo mais crecircGosto de ti porque gosto sem mesmo saber porquecirc92
Abaixo da modinha uma nota de rodapeacute explicava para os lei-tores que conheciam a primeira quadra que se tratava de uma emenda ldquoA primeira quadra natildeo eacute minha Como a muacutesica que eacute do meu amigo Bilhar eacute beliacutessima escrevi as quatro que se lhe seguemrdquo e acrescenta que a muacutesica de Bilhar estaacute por demais ldquopopularizadardquo93
A indicaccedilatildeo da muacutesica a acompanhar as modinhas publicadas aparecia sempre no iniacutecio da letra sem que Catullo se interessasse em publicar as devidas partituras Esse procedimento no entanto natildeo era algo comum no periacuteodo Mello Moraes Filho por exemplo publicara seu Cantares brasileiros em 1902 com o mesmo objetivo corretor de Catullo poreacutem com uma parte da publicaccedilatildeo voltada para as partituras de algumas das canccedilotildees ali publicadas Ao que parece natildeo produzia efeito algum para o reconhecidamente letrado Mello Moraes apro-ximar as modinhas que publicava de letras pois seu objetivo era tatildeo somente publicar modinhas e natildeo como queria Catullo publicar e ser reconhecido como um autor letrado
O natildeo aparecimento de partituras no livro de Catullo pode indicar o caraacuteter hiacutebrido com que o autor via as modinhas e queria que elas fossem lidas ou seja como poemas e letras Eacute tatildeo forte essa mescla em Cancioneiro Popular que Catullo muitas vezes intercala no meio das modinhas poesias de sua lavra e ateacute mesmo uma historieta em prosa intercalada com uma modinha como eacute o caso de Feliz aventura que o autor indica que eacute ldquoprosa e versordquo e que ldquoa muacutesica eacute da modinha ndash Ao
92 Ibidem p 7493 Ibidem
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo82
virar da esquina eu vi em Lisboa uma rapariga catita e bem boardquo A estrutura de Feliz aventura remete diretamente agrave oralidade pois era algo para ser contado expresso em termos como ldquoum caso eu vos contordquo Tal iacutendice de oralidade jaacute eacute demonstrado no iniacutecio da histoacuteria
Um caso eu vos conto que se bem me lembropassou-se haacute dous annos no mez de NovembroFazia um tremendo calor de racharVagava nas ruas sem rumo a flanar
Como voz dizia o calor era insurpotaacutevel Fatigado pelo trabalho do dia buscava desesperadamente um logar nesta vasta Capital onde pudesse respirar mais livremente O acaso levou-me ao Passeio Puacuteblico Entrei EBuscando de prompto matar o cangaccediloFui logo assentar-me nrsquoum banco ao terraccedilo94
Se partituras natildeo apareciam estavam ali sempre as muacutesicas a acompanhar as modinhas Muacutesicas que supomos serem conhecidas do puacuteblico leitor Essa suposiccedilatildeo ganhava forccedila pois quando a muacutesica natildeo era assim tatildeo conhecida o autor fazia questatildeo de dizer ao leitor com ldquoquemrdquo se podia aprender Era o caso da modinha Bem-te-vi de Mello Moraes a respeito da qual Catullo em nota de rodapeacute observa
Estes beliacutessimos versos genuianamente [sic] brasileiros satildeo do talen-toso e erudito Dr Mello Moraes Filho A muacutesica eacute das mais bellas e inspiradas que eu conheccedilo Pena eacute natildeo poder indical-a ao leitor por ter sido feita especialmente para estes primorosos versos do illustre poeta e abalisado mestre Em todo caso apontarei aqui algumas pessoas com quem o leitor poderaacute aprendel-a
Costinha pianistaEduardo Velho pianistaJoatildeo dos Santos funccionaacuterio do correioTafi o seu auctor95
94 Ibidem p 6895 Ibidem p 97-98
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 83
Em outras modinhas simplesmente aparece a observaccedilatildeo de que ldquoa muacutesica eacute conhecidardquo (na modinha Ao ver-te por exemplo)96 Daiacute natildeo precisar do recurso de indicar algueacutem com quem se possa aprender a canccedilatildeo Cotejando as publicaccedilotildees de modinhas do periacuteodo obser-vam-se aleacutem da intervenccedilatildeo do organizador-autor da publicaccedilatildeo sobre as letras as distintas representaccedilotildees dadas ao material oral coletado
Mello Morais (em Cantares brasileiros de 1902) e Catullo Cearense (em Cancioneiro popular de 1908) publicaram a modinha Marietta com letras diferentes atestando assim as alteraccedilotildees tanto de caraacuteter oral quanto oriundas da transcriccedilatildeo da letra da modinha por le-trados Enquanto Mello Morais indica ser a letra uma poesia de Antocircnio A Figueira a autoria na publicaccedilatildeo organizada por Catullo eacute descar-tada Vale a transcriccedilatildeo
Versatildeo de Mello Morais Versatildeo de CatulloNestes teus laacutebios de anjo Nestes teus olhos de archanjoBebo harmonias dos ceacuteus Bebo harmonias dos ceacuteusO teu olhar eacute tatildeo casto O teu olhar eacute tatildeo castoComo o sorriso de Deus como uma benccedilatildeo de Deus
Que aroma tatildeo singular Que aroma tatildeo seductorNessa trancinha tatildeo preta Nesta trancinha tatildeo pretaQuero morrer em teus braccedilos quero morrer em teus braccedilosOh Formosa Marietta Oacute formosa Marietta[]Longe de ti eu suspiro Longe de ti vivo tristeVivo sem ter alegria no mais acarbo soffrerJunto de ti eacutes meu anjo perto de ti oacute meu anjoEacutes minha vida oacute Maria97 suspiro ateacute de prazer98
Em cada Marietta de Catullo e de Mello Morais as distintas re-presentaccedilotildees se chocam chamando a atenccedilatildeo para o caraacuteter muacuteltiplo das modinhas coletadas Ademais o fato de Catullo natildeo fazer aparecer
96 Ibidem p 7897 MORAIS FILHO Mello Cantares brasileiros Rio de Janeiro SEEC-RJ 1981 p 30898 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Cancioneiro popular de modinhas brasileiras 25 ed Rio
de Janeiro Livraria Quaresma 1908 p 142-143
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo84
o autor da letra (diferentemente de Mello Morais) faz parte de uma in-tenccedilatildeo exposta em seus prefaacutecios de afirmar sua intervenccedilatildeo sobre a letra e portanto sua autoria A partir do momento em que Catullo ence-tava uma mudanccedila (e quase sempre eram vaacuterias) nas letras das modi-nhas transcritas (natildeo indicando tambeacutem sua autoria) ele proacuteprio auto-rizava-se a ser entendido pelo leitor como o ldquoautorrdquo
O enorme sucesso que obteve Cancioneiro ndash alavancado em muito pelas famosas publicidades das ediccedilotildees Quaresma99 ndash fez com que a publicaccedilatildeo chegasse a 25 ediccedilotildees em nove anos um verdadeiro su-cesso editorial em seu tempo fazendo jus ao objetivo editorial de Pedro da Silva Quaresma qual seja o de a partir de ediccedilotildees vendidas a preccedilos moacutedicos boa publicidade e com temaacuteticas que pudessem aticcedilar o puacute-blico letrado nascente aumentar a lucratividade com a venda de livros
Um ilustre consumidor das ediccedilotildees Quaresma foi o teatroacutelogo e jornalista Arthur Azevedo Ele era admirador dos livros contendo le-tras de modinhas e assim se manifestou sobre o Cancioneiro Popular de Catullo
No Brasil haacute um livro e um livro de versos que conta nada menos de vinte e cinco ediccedilotildees eacute o Cancioneiro Popular compilado em parte e em parte escrito pelo poeta Catullo da Paixatildeo Cearense elo-quumlente e simpaacutetico defensor do nosso esquecido e saudoso violatildeo dos outros tempos[]O nosso Catullo a quem para ser tatildeo grande como seu homocircnimo la-tino soacute faltou viver em Roma e ser amante de Leacutesbia deliciosa e fe-cunda fonte de inspiraccedilatildeo e poesia o nosso Catullo sentiu bem quanto de suave e de inteligente na modinha brasileira que natildeo vai agrave Avenida nem agrave rua do Ouvidor e eacute mal vista dos smarts do corso e das batalhas de flores100
99 O criacutetico literaacuterio Brito Broca dizia que o livreiro e editor Quaresma ldquofoi o precursor da publicidade modernardquo pois ldquoquando lanccedilava uma ediccedilatildeo costumava fazer grandes cartazes com o nome do livro e mandava pregaacute-los por todos os pontos da cidaderdquo Cf BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 49
100 Citado por Luciano Braga Cf BRAGA Luciano Catullo Cearense In CEARENSE Catullo (org) Lyra dos salotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1926 p 18 (1ordf ediccedilatildeo em 1913)
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 85
Esse reconhecimento por um credenciado teatroacutelogo o editor Quaresma fez aparecer convenientemente na 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro Com isso o editor evocava na publicaccedilatildeo a opiniatildeo de um letrado reco-nhecido visando a uma maior aceitaccedilatildeo da obra posta a puacuteblico
O reconhecimento do leitor Arthur de Azevedo natildeo era uacutenico Eacute possiacutevel vislumbrar no processo de reconhecimento de Catullo como autor uma seacuterie de manifestaccedilotildees de leituras de sua obra no periacuteodo e que lhe foram garantindo um lugar dentre os literatos Se o ecircxito editorial de Cancioneiro Popular foi possiacutevel isso se deveu em muito agraves leituras dos livros de Catullo que eram feitas mediadas pelas discussotildees acerca do universo identificado como ldquopopularrdquo no periacuteodo Formava-se assim uma comunidade de leitores de temas populares que catapultaram a su-cesso imediato muitas publicaccedilotildees que saiacuteram com essa identificaccedilatildeo
O fato eacute que Cancioneiro Popular ficaria dali por diante conhe-cido como a referecircncia literaacuteria de Catullo Cearense de forma que nas suas publicaccedilotildees posteriores era apresentado como o ldquoauctor do Cancioneiro Popularrdquo101 Mas o sucesso de Cancioneiro Popular natildeo findou a incessante busca de Catullo por ser reconhecido como literato
Um poeta popular
O jornal A Noite em iniacutecios de 1912 publicava em sua primeira paacutegina uma crocircnica-reportagem com um tiacutetulo questionador ldquoA popu-laridade existiraacute realmente Algumas observaccedilotildees eloquentesrdquo O autor contava para seu interlocutor tambeacutem personagem da crocircnica que ao caminhar no Passeio Puacuteblico parou diante da herma do poeta Gonccedilalves Dias e ao avistar um jardineiro perguntou
ndash De quem eacute istoO homem parou um instante olhou a herma do nosso primeiro cantor lyrico e resmungoundash IstoE depois de pensar
101 Essa observaccedilatildeo encontra-se por exemplo nas capas dos livros ldquoChocircros ao Violatildeordquo (de 1902) e ldquoLyra Brasileirardquo (de 1905)
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo86
ndash Eacute do Sr Dr Juacutelio FurtadoPara o jardineiro que cuida do canteiro onde Gonccedilalves Dias floresce no bronze votivo o nosso grande poeta era apenas um adorno dos vastos domiacutenios do director da Inspectoria dos Jardins102
O embaraccedilo do autor do texto ficava ainda mais evidente quando buscando insistir numa resposta que fosse compatiacutevel com sua expecta-tiva contava que quando da morte do poeta portuguecircs Eccedila de Queiroz algueacutem o interrogou na rua
ndash Quem Morreundash O Eccedila de Queirozndash Ah Coitado O Queiroz das fazendas Pretas103
O caraacuteter risiacutevel das respostas contrastava com aquilo que o autor da crocircnica-reportagem procurava discutir seriamente qual seja o ca-raacuteter ldquopopularrdquo dos personagens que ele supunha serem dignos de re-ceber tal identificaccedilatildeo Frustrado com as respostas imprevisiacuteveis ndash e risiacuteveis ndash das pessoas que encontrava na rua o autor do texto contou que ainda insistiu uma vez mais
ndash Paremos na rua interroguemos aquele mulato pernoacutestico de pastinha atrevida cahindo sob a aba do chapeacuteu de pallha Conheces o Catullo da Paixatildeo Cearensendash Ah Patratildeo Quem natildeo conhece o Catullo Eacute um ldquocabra bonzatildeordquo para a modinhandash E o Coelho Nettondash O Netto o cheirosinho Aquelle que trabalha na estiva104
Inconformado o autor da narrativa punha-se a lamentar ldquoAhi tens meu caro um que conhece o Catullo mas natildeo conhece o Coelho Nettordquo Frustrado concluiacutea dizendo o que pensava ser popularidade de-pois de toda aquela enquete
102 A Noite 9 jan 1912 p 1103 A Noite 9 jan 1912 p 1104 Ibidem
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 87
A popularidadeA popularidade eacute bem uma fantasia que agraves vezes chega a ser dolorosa especialmente quando se acredita que as multidotildees reconhecem o po-pular e ellas interrogam allucinadasndash Quem eacute essa figura105
Os ldquopopularesrdquo citados pelo autor da crocircnica eram rendidos diante do desconhecimento deles pelas pessoas nas ruas Soacute Catullo passou ndash para a frustraccedilatildeo do cronista ndash incoacutelume na pesquisa
Em iniacutecios dos anos 1910 o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense era jaacute bastante conhecido no Rio de Janeiro e sua fama se estendia entre vaacuterios grupos sociais da cidade O editor Quaresma que continuava a publicar e reeditar seus livros aumentava o nuacutemero de letrados dos mais diversos setores da sociedade entre seus clientes Catullo por sua vez aleacutem de ser reconhecido como um ldquopoeta popularrdquo pelo mundo letrado acumulava a satisfaccedilatildeo de ser conhecido por pessoas comuns que cantavam suas modinhas nas ruas cariocas Essa satisfaccedilatildeo natildeo dis-farccedilava o ressentimento com que lidava quando o assunto era ser cha-mado (ou natildeo) de ldquopoetardquo
Os poetas julgam mal os trovadores como eu Eacute uma injusticcedila grande Eu pelo menos nunca pretendi chegar ao ideal da formaEu canto Canto pela alma Embebo-me da muacutesica a que devo dar as minhas palavras degusto-a penetro-lhe no sentimento e escrevo106
Um ldquotrovadorrdquo injusticcedilado pelos ldquopoetasrdquo Assim Catullo se auto representava mas mesmo ressentido por lhe negarem um lugar que ele achava ser compatiacutevel com seus versos procurava chamar a atenccedilatildeo para o fato de que seu canto era acompanhado sempre da escrita reve-lando seu caraacuteter distinto dos demais trovadores pois
Escrevo e canto Embora conheccedila bem a meacutetrica tanto que vou pu-blicar um livro de poesias traduzidas prefiro estabelecer esse consoacutercio
105 Ibidem106 O Paiz 25 fev 1906
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entre melodia e a poesia tirando daquela a vida de meus versos Sei que os meus versos natildeo tem arte mas alma107
Afirmava assim sua produccedilatildeo natildeo pela arte mas pelo que ela tem de ldquoalmardquo E ldquoalmardquo era um fator determinante para se qualificar positivamente uma produccedilatildeo no periacuteodo Advogar para suas modinhas um valor intriacutenseco agrave alma era colocar-se dentro de um rol de produtos que desde o seacuteculo XIX reivindicava o caraacuteter de arte para objetos em que se reconhecia a expressatildeo do indiviacuteduo da sua alma
Esse reconhecimento natildeo poderia ser dado no entanto para qualquer produto ndash muito menos para um indiviacuteduo qualquer Catullo sabedor dessa tensatildeo entre alma e arte e mais ainda sabedor dos cami-nhos que poderiam referendar suas modinhas como ldquoarterdquo fazia de-monstraccedilotildees constantes de sua condiccedilatildeo de letrado E em 1910 quando veio a lume pelas ediccedilotildees Quaresma o seu Trovas e canccedilotildees uma im-portante mudanccedila se verificou a primeira parte da publicaccedilatildeo vinha como de costume com ldquoPoesias de cantordquo em que eram transcritas as modinhas enquanto que em uma segunda parte estrategicamente inti-tulada ldquoPoesias de recitaccedilatildeordquo seguiam-se os versos escritos pelo proacute-prio Catullo alternando-se com suas traduccedilotildees de poesias de Chateaubriand Fuentes e outros poetas estrangeiros conhecidos
Poreacutem enquanto a primeira parte da publicaccedilatildeo (a das modi-nhas) era colocada em relevo pela publicidade das ediccedilotildees Quaresma a segunda parte (com poemas de Catullo e traduccedilotildees feitas por ele) desaparecia dos reclames que apareciam nos jornais Ora Catullo Cearense era reconhecido como modinheiro e portanto ressaltar o caraacuteter musical da produccedilatildeo era para o editor Quaresma condiccedilatildeo necessaacuteria para que ela se tornasse um sucesso de vendagem ou como queria o editor ldquopopularrdquo
TROVAS E CANCcedilOtildeESUacuteltimo livro de modinhas de Catullo CearenseTrazendo uma extraordinaacuteria collecccedilatildeo de formosiacutessimas modinhas para serem cantadas em salotildees familiares festas collegiaes concertos
107 Idem
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etc etc e a indicccedilatildeo [sic] das muacutesicas que devem ser cantadas []Um volume com linda capa com o retrato do grande poeta e cantor 2$000108
Por outro lado os prefaciadores do livro tentavam chamar a atenccedilatildeo do leitor para o caraacuteter poeacutetico das canccedilotildees ali transcritas in-clusive dando outra denominaccedilatildeo a Catullo qual seja a de poeta O prefaacutecio escrito pelo major Moreira Guimaratildees eacute emblemaacutetico Apoacutes elogiar a inteligecircncia de Catullo ndash ao ouvi-lo dizer seus versos num trem suburbano ndash arrematava que ldquome convenci de que o popular tro-vador eacute um grande poetardquo e concluiacutea
A muacutesica gemedora que elle arranca das cordas do seu dilecto violatildeo constitue apenas o fundo do quadro em que fulgura o intenso lyrismo de suas encantadoras poesiasEm verdade Catullo canta e sabe cantar com sua voz inconfundiacutevel Mas elle a cantar diz mais do que cantaNatildeo haacute duacutevida a figura do primoroso artista do verso e de maravilhoso e original diseur eacute a que bem lhe ajustaNatildeo lhe quero negar todavia as explendidas qualidades de cantor emeacute-rito que vae prestando ao patriotismo brazileiro o inestimaacutevel serviccedilo de rehabilitar o mais democraacutetico dos instrumentos Mas eacute preciso que a genearlidade dos compatriotas lhe natildeo escute simplesmente as lango-rosas harmonias do querido violatildeo109
No prefaacutecio da publicaccedilatildeo a condiccedilatildeo de poeta de Catullo eacute co-locada diante do interesse oposto do editor Quaresma de salientar as qualidades do modinheiro e cantor ndash ainda que poeta Apesar das diver-gecircncias quanto agrave preponderacircncia dada a modinhas e poemas ambos visavam sem duacutevida a chamar a atenccedilatildeo do leitor para a qualidade da publicaccedilatildeo e do autor Do lado do editor Quaresma visando agrave maior lucratividade do produto por outro lado o interesse do prefaciador era indicar uma leitura mais distinta ndash e assim podemos dizer para ele
108 O Paiz 17 jun 1910109 GUIMARAtildeES Moreira Catullo Cearense In CEARENSE Catullo Cearense Trovas e
canccedilotildees Rio de Janeiro Livraria do Povo 1910 p 12
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melhor ndash de Catullo como poeta original Se Quaresma fazia questatildeo de dizer que as modinhas eram ldquocoleccedilotildeesrdquo escritas por Catullo o prefa-ciador atentava para a originalidade do mesmo
Trovas e canccedilotildees aflorava as contradiccedilotildees da produccedilatildeo de Catullo Cearense de forma latente Uma primeira parte que satisfazia o inte-resse do editor por modinhas colecionadas por um trovador e uma se-gunda parte que buscava mostrar para o leitor o poeta o letrado que escreve poesias o autor original primeiro e definitivo de sua produccedilatildeo e aquele que conhecedor das letras traduz poetas estrangeiros
De sua parte Catullo fazia de sua publicaccedilatildeo elemento funda-mental para sua afirmaccedilatildeo como poeta e autor Em um dos poemas de Trovas e canccedilotildees intitulado ldquoSegundas Trovas Satyricasrdquo responde aos seus criacuteticos evocando autoridades que saudavam seus versos
E quando eu canto com arteO burro o critico atrozProclama por toda parteQue canto bem mas sem voz
[]
Responderei com um sorrisoComo devo responderDe mais voz eu natildeo precisoPorque canto e sei dizer
Depreciar-me eacute dislateeacute fazer figura maacutetendo elogios de um vateda estatura de Murat
Eacute esforccedilo inuacutetil baldadoeacute uma completa asneiraporque em verso fui saudadopor Alberto de Oliveira
Natildeo me causam calefriosos zoilos dos zoilos zombodecircs que tive os elogiosdo provecto Rocha Pombo
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Que ladre o bobo o pascaacutecioFicarei a gargalharSempre que ler o prefaacutecioDe Pethion de Villar110
Ainda que houvesse disputas de representaccedilotildees entre autor e editor elas natildeo se davam de maneira a criar um mal-estar entre ambas as partes e embora Catullo se apercebesse do entrave causado por objetivos distintos entre ele e Quaresma isso ao que parece nunca o colocou em confronto direto com o editor Aliaacutes o progressivo reco-nhecimento social de Catullo se devia agraves estrateacutegias editoriais de Quaresma e mesmo que o primeiro conduzisse suas modinhas para um entendimento proacuteximo ao de um poema pareceu sempre estabelecer com elas uma relaccedilatildeo de ambiguidade tentando afirmaacute-las enquanto modinhas como poesia ao passo que flertava com outro tipo de pro-duccedilatildeo que natildeo a modinheira
Isso se dava de maneira sutil e criava uma aporia exatamente no momento em que se comeccedilou a reconhecer Catullo como poeta uma vez que um poeta que publicava modinhas era representado como poeta ldquopopularrdquo e ldquopopularrdquo natildeo podia a priori ser considerado poeta Ali se desenrolaram dois movimentos paralelos que se encon-traram o ldquopoeta popularrdquo vai sendo alccedilado a um indiviacuteduo digno de ser notado (pois expressaria uma suposta alma do povo) e os temas popu-lares satildeo procurados como subsiacutedios para a produccedilatildeo de uma literatura brasileira por letrados consagrados Eacute nesse encontro que vai ser de-senrolada uma mudanccedila na produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense que marcaraacute sua trajetoacuteria
Jaacute na entrada dos anos 1910 e com as publicaccedilotildees exitosas da li-vraria Quaresma reverbera na imprensa outra representaccedilatildeo de Catullo ldquo[] o Sr Catullo da Paixatildeo Cearense eacute a mais tremenda gloacuteria da poesia nacionalrdquo111 assim afirmava o redator de um perioacutedico ca-rioca em iniacutecios de 1911 numa seacuterie de crocircnicas sob o tiacutetulo de O Rio
110 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Trovas e canccedilotildees Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1910 p 136-137
111 O Paiz 7 abr 1911
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por dentro O autor sob o pseudocircnimo de Argus saudava a poesia de Catullo como digna de ser tachada de uma gloacuteria
Catullo da Paixatildeo Cearense encontrava-se na deacutecada de 1910 do seacuteculo XX envolvido numa ambiguidade que o traraacute como tema funda-mental em diversas reportagens do periacuteodo quando se tratava de pensar no seu lugar dentro do panteatildeo da ldquopoesia nacionalrdquo Respeitado por uns ignorado por outros era possiacutevel vislumbrar inclusive ambas as atitudes em um uacutenico sujeito Respeitado por conhecer ldquocoisas popu-laresrdquo desdenhado por ser entendido como um ldquoautor popularrdquo Essa nuance de opiniotildees natildeo era absolutamente desconsiderada por Catullo Ao contraacuterio parecia guiar sua produccedilatildeo numa incessante busca pelo reconhecimento A recepccedilatildeo de sua obra deve ser entendida como parte fundamental de seu processo de criaccedilatildeo tanto mais porque Catullo fazia aparecer comentaacuterios de leitores em seus livros e respondeu mais de uma vez em poemas e prefaacutecios os seus detratores
Anna Ceacutesar cronista de O Paiz testemunha para os leitores do jornal a sua leitura de Novos cantares publicaccedilatildeo de Catullo Eacute possiacutevel observar em suas palavras todas as ambiguidades que definiam Catullo nesse tempo
Venho de concluir a leitura de dois livros interessantes que tenho sobre a mesa Cada qual em seu gecircnero ambos preciosos e jaacute recommen-dados pelas assignaturas que os illustramSatildeo elles Estudos e reflexotildees de Moreira Guimaratildees e Novos Cantares de Catullo CearensePedem-me sobre os mesmos algo dizerQue ousaraacute traccedilar a minha obscura Penna de chronista quando jaacute se tem dito e com maior competecircncia sobre os trabalhos desses dois bellos ornamentos da literatura patriacutecia112
Depois de fazer comentaacuterios elogiosos agrave publicaccedilatildeo de Moreira Guimaratildees exaltando seus ldquoarroubos literaacuteriosrdquo a cronista segue para a apreciaccedilatildeo de Novos cantares
112 O Paiz 30 jul 1911 p 2
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Quanto ao livro de Catullo Cearense eu que o conheccedilo e o admiro que o tenho applaudido em minhas salas natildeo lhe posso expender opiniotildees sem que me torne suspeitaCatullo natildeo eacute somente o poeta primoroso querido de seus collegas de letras e um talento prodiacutegio de originalidade conjunto de muacutesica de poesia e de arte Alma que chora canta e vibra nas cordas do violatildeo todos os segredos do coraccedilatildeo todas as nuances do sentimentoMeditativo e despretensioso transfigura-se ao declamar os versos que escreve cheios de delicadezas alados ninhos em que se abrigam [] inspiraccedilotildees de artistasCatullo natildeo eacute para os leigos em mateacuteria de literatura nem para literatos improvizados desses que abundam por ahi com pretensotildees a criacuteticosCatullo eacute para os mestres que o podem admirar julgar e comprehenderPena seraacute que esse espiacuterito ao partir da vida terrena para alar-se aacute [sic] regiotildees superiores natildeo possa talvez deixar como sequencia um disciacutepulo que perpetue a escola genuinamente sua e por ningueacutem ainda imitada apesar da criacutetica severa e ateacute ridiacutecula que se lhe tem tentado lanccedilar113
Elogiosa e mesmo apologeacutetica essa criacutetica coloca Catullo em alta conta dentro da literatura ao mesmo tempo em que abstendo-se de falar de seus versos contidos em Novos cantares chama a atenccedilatildeo para o caraacuteter performaacutetico da sua poesia ldquoao declamar versos que escreverdquo Essa imagem de Catullo declamando eacute muito cara agrave sua representaccedilatildeo e o seguiraacute durante toda a vida
A premissa eacute que seus versos soacute se expressariam diante da orali-dade aqui levada ao extremo pela sua imagem a declamar nos salotildees Poeta dos salotildees homem de literatura Natildeo a voz do canto a serviccedilo da poesia mas voz e verso como elementos indissociaacuteveis para a consu-maccedilatildeo da poesia propriamente Para Anna Cesar a poesia em Catullo eacute acontecimento Para completar a criacutetica apologeacutetica ela termina escre-vendo ldquoPeccedilo desculpas aos leitores por me ter expandido desta forma sobre o nosso menestrel fazendo-lhe a apreciaccedilatildeo individual ao envez da criacutetica aos seus versos []rdquo114
113 Idem114 Idem
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Anna Ceacutesar vai de frente a outro tipo de recepccedilatildeo das publica-ccedilotildees de Catullo aquela que o vecirc como algo menor Gilberto Amado entatildeo ainda estudante de direito e articulista escrevendo um artigo em sua coluna ldquoA Semanardquo no jornal O Paiz sobre o teatro produzido no paiacutes observa de modo irocircnico o fato de que no Brasil soacute as operetas e revistas tecircm puacuteblico e compara
Em literatura de outro gecircnero eacute a mesma coisa Raul Pompeacuteia escreveu o Atheneu e a segunda ediccedilatildeo desse livro monumental feita ultimamente a custa de esforccedilos de amigos estaacute quase intacta ainda na casa Alves Entretanto tecircm sido innumeras as ediccedilotildees dos volumes de poesias eroacute-ticas que se esgotam e creio natildeo haacute modinha de Catullo Cearense que natildeo voe em um instante todos os vetos da publicidadePara que tratar do theatro Eacute uma superfluidade O nosso povo no seu crasso analphabetismo no seu desdeacutem das ideacuteas pensa laacute em coisas seacuterias115
Esse olhar lanccedilado sobre as publicaccedilotildees de Catullo vindo de um conhecido articulista do periacuteodo resguardava para o autor certa distacircncia de um reconhecimento como literato Poreacutem ao mesmo tempo em que parecia negar-lhe um lugar no panteatildeo de uma literatura respeitaacutevel en-tregava-lhe estigmatizando-o negativamente a autoria de textos consi-derados ldquonatildeo-seacuteriosrdquo ou seja conferia-lhe a autoridade sobre eles de modo que desdenhava do fato de que muitas das modinhas publicadas em livros sob o nome proacuteprio Catullo Cearense serem originalmente criadas por vaacuterios artistas e soacute depois reunidos em textos por Catullo Assim era o nome proacuteprio Catullo que era responsabilizado pelas publi-caccedilotildees consumidas pelo ldquopovordquo no seu ldquocrasso analphabetismordquo Mais tarde o proacuteprio Gilberto Amado reafirmaria seu ponto de vista
Na Inglaterra na Franccedila na Alemanha qualquer menino de lyceu recita Homero e tem a alma cheia de maravilhas authenticas do Parnaso Diz as coacuteleras de Agammenon os desejos luminosos de Anacreonte e a sua alma se engrandece no grande rythmo das paixotildees heroicas
115 O Paiz 9 abr 1911 p 1
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Aqui as nossas primeiras impressotildees literaacuterias vecircm dos gorgeios de Catullo Cearense e nas piadas das revistas populares116
A essas impressotildees em negativo Catullo fazia acudir em seus livros como jaacute o vimos a opiniatildeo de gente respeitada da elite letrada carioca Outro elemento deve ser sublinhado as dedicatoacuterias das poe-sias e modinhas que Catullo fazia aparecer em seus textos
Fazendo o uso de praacutetica comum no periacuteodo o autor dedicava suas publicaccedilotildees quase sempre a um membro distinto da sociedade ca-rioca Assim na 25ordf ediccedilatildeo de Cancioneiro popular de 1908 dedica ldquoao primoroso e distincto comediographo brasileiro Arthur Azevedo como singela prova de admiraccedilatildeo ao seu talento omnidordquo A publicaccedilatildeo Lyra brasileira vai dedicada ao ldquoabalisado mestre do provecto forma-lista ao eminente criacutetico ao inspirado e mavioso poeta Medeiros e Albuquerquerdquo Trovas e canccedilotildees de 1910 vai dedicado ao ldquoExmo Sr M Moreira da Silva doutor em Odontologia Lente Cathedraacutetico da Escola Livre do Rio de Janeirordquo Esse recurso comum era ampliado nas obras de Catullo pelas dedicatoacuterias que fazia aparecer em cada modinha e em eventuais poesias que fazia publicar Assim em Novos cantares de 1909 enquanto aparece uma rara dedicatoacuteria do livro para a matildee de Catullo falecida em 1908 cada modinha e cada poesia vinham acom-panhadas com dedicatoacuterias a pessoas ilustres entre as quais ldquoao grande poeta Dr Luis Muratrdquo (a quem dedica o poema Ode ao violatildeo) ldquoAo glorioso luminar do exeacutercito brasileiro Marechal Hermes da Fonsecardquo (a quem dedica a modinha Templo ideal) ldquoao Dr Luacutecio de Mendonccedilardquo (a quem dedica a modinha O teu cabello) e ateacute mesmo ao seu editor Pedro da Silva Quaresma (a quem dedica a modinha Rasga coraccedilatildeo)
Natildeo soacute Catullo lanccedilava matildeo dessa receita Por essa mesma eacutepoca em 1915 a livraria Castilho lanccedilava sua primeira publicaccedilatildeo de autor nacional Carmen tropicale livro de poesias de Antocircnio Torres (que seria posteriormente reconhecido por suas Pasquinadas cariocas) A maioria dos seus 33 poemas ia acompanhada de dedicatoacuterias a indiviacute-duos como Goulart de Andrade Oscar Lopes e Nestor Victor
116 O Paiz 16 out 1913 p 1
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Praacutetica comum as dedicatoacuterias poderiam atender a vaacuterias de-mandas inclusive a necessidade vital para um escritor de mirar seu puacute-blico consumidor fosse pela autoridade evocada na dedicatoacuteria fosse no mero agradecimento por serviccedilos prestados mdash ora citar um ilustre dedi-cando-lhe um poema poderia soar como estar proacuteximo do ilustre o que poderia abalizar o indiviacuteduo que escreve como algueacutem ldquoreconhecidordquo
Haacute de se levar em conta que a publicaccedilatildeo de um livro demandava vaacuterios empreendimentos por parte de um escritor inclusive se valendo da ajuda de proacuteximos Antocircnio Torres ao publicar seu volume de poe-sias Carmen tropicale embora levasse o selo da livraria Castilho pagou com o proacuteprio bolso toda a ediccedilatildeo Conta-se que o proprietaacuterio Antocircnio Castilho que jaacute publicara algumas traduccedilotildees de estrangeiros como Dostoievski suspeitava de lanccedilar um escritor nacional por sua casa117 De qualquer forma temeroso de um possiacutevel fracasso Antocircnio Torres advertia ao seu leitor em uma nota-posfaacutecio que fez aparecer no livro ldquoO encontrar coisas boas num livro depende apenas de saber lerrdquo118
O aumento de um puacuteblico letrado fazia aparecer inuacutemeros lei-tores que por sua vez criavam expectativas a cada publicaccedilatildeo que saiacutea Isso demandava de autor e editor estrateacutegias que pudessem ser bem avaliadas por um possiacutevel consumidor Dedicatoacuterias preccedilos formas materiais do livro convencimentos por prefaacutecios e posfaacutecios opiniotildees em perioacutedicos tudo isso entrava no rol de elementos a serem pensados por aqueles que visavam ao sucesso da publicaccedilatildeo Esse empreendi-mento dispendioso e arriscado num paiacutes potencialmente de natildeo lei-tores fazia aparecer aspirantes a escritores a cada dia que almejavam serem lanccedilados sob a proteccedilatildeo de um ilustre Se o ecircxito da livraria Quaresma podia ser tomado como exemplo para outros editores natildeo era faacutecil e barato imitaacute-la ainda mais quando o editor e o escritor natildeo abriam matildeo de produzir e publicar livros de ldquocoisas seacuteriasrdquo como queria Gilberto Amado anteriormente citado
A editora e livraria Castilho vinha com essa pretensatildeo mas en-contrava um mercado de ldquoobras seacuteriasrdquo jaacute inchado sob a eacutegide da
117 BROCA Brito O repoacuterter impenitente Campinas Unicamp 1994 p 68118 TORRES Antocircnio Carmen tropicale Rio de Janeiro Livraria Castilho 1915 p 80
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Garnier Ainda assim apostando na boa aprovaccedilatildeo feita ao livro do as-pirante Antocircnio Torres Antocircnio Castilho natildeo abriu matildeo de publicar li-vros ldquomais seacuteriosrdquo e imitar um pouco da publicidade exitosa de Pedro Quaresma Por seu lado escritores novos e antigos procuravam o aval de selos mais seacuterios visando a ganhar mais credibilidade dos leitores
Catullo da Paixatildeo Cearense o maior sucesso de vendas da Quaresma afastar-se-ia dessa editora e se aproximaria da Castilho Em 1918 lanccedilaria sob o selo de Antocircnio Castilho o livro de poemas Meu sertatildeo Mas daiacute ateacute esse rompimento com Quaresma se daria um flerte com a temaacutetica sertaneja que contaminava o Rio de Janeiro do periacuteodo Sempre atento e sensiacutevel agraves mudanccedilas que se processavam na literatura Catullo se viu diante de uma possibilidade iacutempar de reconhecimento em definitivo como poeta (e natildeo soacute ldquopoeta popularrdquo) escrevendo temaacuteticas mais ldquoseacuteriasrdquo e deixando as modinhas de lado ao aproximar-se de um editor que visava a tal seriedade buscada Nesse iacutenterim poreacutem foi ainda uma modinha de sucesso que lhe deu essa oportunidade o Luar do sertatildeo
Figura 2 ndash Catullo da Paixatildeo Cearense em foto publicada em Lyra brasileira de 1908 pela livraria Quaresma
Fonte arquivo do autor
SER POETA SER DO SERTAtildeO
Catullo Cearense tu
tens o defeito bem fortede arranjar termos do Sue dizer que satildeo do Norte
Joatildeo Carvalho119
A cidade e o sertatildeo
Em 1915 a livraria Quaresma publicava aquele que era anun-ciado pelo editor como o ldquouacuteltimo livro de modinhas de Catullo Cearenserdquo Florileacutegio dos cantores eacute uma publicaccedilatildeo dividida em trecircs partes 1) Florileacutegio dos cantores 2) Flores do sertatildeo e 3) Flores dispersas Em Flores do sertatildeo apareciam pela primeira vez em livro as modinhas com temaacuteticas sertanejas de Catullo incluindo Luar do sertatildeo e Poeta do sertatildeo Era a primeira vez que Catullo se revelava um bardo das coisas sertanejas Em Poeta do sertatildeo ndash que segundo Catullo deveria ser acom-panhada da muacutesica do ldquomaestro Francisco Nunes que logo depois ficaraacute popularizadardquo ndash o autor buscava representar a fala sertaneja
Si chora u pinhoIn disafiugemedocirc
119 Apud ALENCAR Edigar de Claridade e sombra na muacutesica do povo Rio de Janeiro Francisco Alves Brasiacutelia INL 1984 p 54
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Natildeo haacute puetaComo u fiudo sertatildeo sem secircdoutoOs oio quentiDa caboca faz a gentiSecirc pueta di repentequi a puesiavem do amocirc120
O ecircxito daquelas modinhas sertanejas daria a Catullo a oportuni-dade para em pouco tempo arvorar-se de bardo modinheiro a poeta do sertatildeo Naquele mesmo ano saiu pela Papelaria e Typografia Sportiva o volume intitulado Canccedilotildees das madrugadas com letras de Catullo adaptadas para canccedilotildees conhecidas Era a primeira vez depois de muitos anos que Catullo natildeo publicava pela Quaresma
Nessa publicaccedilatildeo novamente aparece a letra de Poeta do sertatildeo acompanhada de uma dedicatoacuteria ao poliacutetico cearense Floro Bartholomeu mas com a seguinte mudanccedila na indicaccedilatildeo da muacutesica a acompanhar ldquoPara ser cantada com a toada Caboca de Caxangaacute de minha lavra disco da Casa Edisonrdquo121 A mudanccedila na escolha da muacutesica a acompa-nhar a canccedilatildeo natildeo parece deliberada Da erudiccedilatildeo de um maestro Catullo parecia visar agravequilo que identificava como ldquopopularrdquo preferindo a muacute-sica da famosa toada sertaneja Caboca de Caxangaacute A mudanccedila tambeacutem chama a atenccedilatildeo para a possiblidade agrave eacutepoca da existecircncia de uma letra adaptada a vaacuterias muacutesicas ou ao contraacuterio o que era muito comum uma muacutesica poderia circular com letras diferentes
Caboca de Caxangaacute era uma canccedilatildeo que fora sucesso no car-naval de 1913 nas ruas cariocas com letra diferente daquela dada por Catullo Seu formato de embolada remetia a um canto falado proacuteximo ao dos repentistas comuns do nordeste do paiacutes Comos vimos o Rio de
120 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Florileacutegio dos cantores Rio de Janeiro Livraria Quaresma 1915 p 93-98
121 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Canccedilotildees das madrugadas Rio de Janeiro Papelaria amp Typografia Sportiva 1915 p 21
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo100
Janeiro desde finais do seacuteculo XIX acostumara-se a assistir a espetaacute-culos como esse cujo tema central era o interior o sertatildeo
Ladeada por equipamentos modernos que criavam novos espaccedilos de sociabilidade e armada das ldquopalpitantesrdquo obras literaacuterias que atra-cavam nos portos das grandes cidades a elite letrada brasileira de iniacute-cios do seacuteculo XX convivia com o dilema cotidiano de ver-se como parte importante do desejo de civilizar-se ao passo que enxergava agrave sua volta a sobrevivecircncia (e por que natildeo a ameaccedila) da existecircncia de coisas ditas ldquobaacuterbarasrdquo Agrave pretensa busca de um ideal civilizatoacuterio que fosse corporificado pela sede de progresso (palavra de ordem daqueles tempos) juntou-se para a elite letrada uma vontade de encontrar algo que singularizasse o Brasil no mundo Ambos os movimentos ndash o de buscar inserir-se e o de singularizar-se ndash faziam parte da mesma von-tade de representar-se diante do mundo Parte constitutiva desse para-doxo e aquela onde mais se expressou esse dilema foi a sede por temas sertanejos que se disseminou nas produccedilotildees de grande parte do uni-verso letrado das capitais
No Rio de Janeiro capital federal de entatildeo onde desde fins do seacuteculo XIX processava-se aleacutem de raacutepidas mudanccedilas de natureza soacute-cio-poliacutetica uma triunfante racionalizaccedilatildeo espacial que culminaria na gestatildeo de Pereira Passos (1902-1906) ndash cujo maior siacutembolo foram as obras de construccedilatildeo da Avenida Central ndash essa ldquovoga sertanejardquo se expressava como ldquoum lugar comum alambicado um exerciacutecio de ca-riocas deslumbrados por Parisrdquo e tal ldquovogardquo entatildeo ldquopersistiria por duas ou trecircs deacutecadasrdquo disseminando-se por diversas produccedilotildees de natureza literaacuteria musical teatral e mesmo historiograacutefica122 ldquoCariocas des-lumbrados por Parisrdquo pois que na Franccedila do seacuteculo XIX uma enxur-rada de publicaccedilotildees literaacuterias tambeacutem buscou falar do interior numa tarefa francesa de buscar as suas raiacutezes como naccedilatildeo ldquoRaiacutezesrdquo e ldquonaccedilatildeordquo dois termos que se tornaram incontornaacuteveis na definiccedilatildeo do que seria a literatura do periacuteodo inclusive no Brasil Tambeacutem neste paiacutes tal temaacutetica tornou-se terreno feacutertil para construir uma represen-
122 GALVAtildeO Walnice Nogueira Metamorfoses do sertatildeo Revista de Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 18 n 52 setdez 2004
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 101
taccedilatildeo singular do brasileiro e na esteira disso um iacutendice de definiccedilatildeo do que seria uma literatura nacional
Quando Euclides da Cunha publicou Os sertotildees em dezembro de 1902 a produccedilatildeo em torno do ldquosertatildeordquo jaacute era reivindicada por uma gama de autores e estudiosos que desde meados do seacuteculo XIX esco-lheram falar das ldquocoisas do interiorrdquo Essa sede de ldquosertatildeordquo vinha desde os oitocentos e exemplifica-se nas viagens promovidas pelo Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) que respondiam agrave demanda de conhecer o vasto territoacuterio do paiacutes como parte de um projeto na-cional do Estado imperial Concomitantemente a isso Joseacute de Alencar Gonccedilalves Dias Bernardo Guimaratildees Visconde de Taunay entre ou-tros tantos autores do seacuteculo XIX mobilizavam artifiacutecios literaacuterios para contar sobre o paiacutes encontrando no sertatildeo o berccedilo idiacutelico de uma nacio-nalidade que se forjava no Brasil
Esses homens comumente fincavam no sertatildeo o passado e as ori-gens da naccedilatildeo na sua marcha irreversiacutevel para a civilizaccedilatildeo num gesto que muitas vezes parecia tentar colocar nos trilhos um paiacutes de passado colonial O sertatildeo autorizava a marcha do presente por guardar as raiacutezes do paiacutes Ele o sertatildeo deveria ser conhecido para que se pudesse vis-lumbrar uma identidade que no presente precisava ser construiacuteda mas que no passado (que o sertatildeo guardava) eacute que poderia ser reconhecida Isso explicava a motivaccedilatildeo de Taunay ao desembarcar em Santos e ver-se feliz com ldquoa perspectiva de percorrer grandes extensotildees e varar ateacute sertotildees pouco conhecidosrdquo123 ou a lamentaccedilatildeo de Alencar pela che-gada da ldquocivilizaccedilatildeordquo nos sertotildees dizendo ldquoQuando te tornarei a ver sertatildeo da minha terra que atravessei haacute muitos anos na aurora serena e feliz de minha infacircnciardquo pois ldquoa civilizaccedilatildeo que penetra pelo interior corta os campos de estradas e semeia pelo vastiacutessimo deserto as casas e mais tarde as povoaccedilotildeesrdquo124
123 TAUNAY Visconde de Dias de guerra e de sertatildeo Satildeo Paulo Revista do Brasil 1920 p 11
124 ALENCAR Joseacute O sertanejo 6 ed Satildeo Paulo Melhoramentos sd p 9-10 (1ordf ediccedilatildeo em 1875)
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A geraccedilatildeo do final do seacuteculo XIX poreacutem passaria a conviver com um dilema diferente O novo que se expressava de maneira veloz nas grandes cidades concomitantemente demandava uma inserccedilatildeo dos citadinos naquilo que se convencionou chamar de ldquomodernidaderdquo Haacutebitos foram (re)fundados e velhas praacuteticas sofriam aversatildeo entre os apologistas do moderno O regozijo fuacutenebre do passado era exortado em textos que cantavam os novos prazeres das ruas que triunfavam nos espaccedilos urbanizados As cidades com suas ruas modernamente retiliacute-neas impulsionavam uma nova percepccedilatildeo de tempo e espaccedilo Ao es-paccedilo citadino aderiu-se uma qualificaccedilatildeo temporal agrave ldquoantigardquo cidade veio sobrepor-se a ldquomodernardquo cidade
Nesse contexto sertotildees e cidades tornaram-se temas fundamen-tais para se pensar a naccedilatildeo Espaccedilos apartados por profundas contradi-ccedilotildees entre si e que por isso mesmo eram representados provocando a vertigem de viajantes desavisados como se expressava nas impressotildees sintomaacuteticas de Isaiacuteas Caminha personagem criado por Lima Barreto quando adentrava a baiacutea de Guanabara agraves portas da cidade do Rio de Janeiro vindo do sertatildeo capixaba
O espetaacuteculo chocou-me Repentinamente senti-me outro Os meus sentidos aguccedilaram-se a minha inteligecircncia entorpecida durante a viagem despertou com forccedila alegre e cantante Eu via nitidamente as coisas e elas penetraram em mim ateacute o acircmago Convergi todo o meu aparelho de exame para o espetaacuteculo que me surpreendia Estive por uns instantes espamodicamente arrebatado para um outro mundo adi-vinhado aleacutem das coisas sensiacuteveis e materiais Voluptuosamente cerrei os olhos depois aos poucos descerrei as paacutelpebras para olhar embaixo o mar espelhento e misterioso []125
Essa sensaccedilatildeo de estar num espaccedilo onde as mutaccedilotildees se corpori-ficavam quase como um encantamento se fazia aparecer como bem salientava o cronista Joatildeo do Rio inclusive nas formas com que os ldquomodernos artistasrdquo davam luz a suas obras ldquoOs artistas modernos jaacute natildeo se limitam a exprimir os aspectos proteiformes da rua a analisar
125 BARRETO Lima Recordaccedilotildees do escrivatildeo Isaiacuteas Caminha Satildeo Paulo Publifolha 1997 p 50
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 103
traccedilo por traccedilo o perfil fiacutesico e moral de cada rua Vatildeo mais longe so-nham a rua ideal como sonharam um mundo melhorrdquo126
Na dramaacutetica espera por esse ldquomundo melhorrdquo onde a rua do-mesticada pudesse desaguar por todos os espaccedilos e onde as novidades triunfariam diante da relutacircncia do velho foi que os limites do moderno se figuraram diante do rechaccedilo do sertatildeo A cidade modernizada desco-bria o sertatildeo O sertatildeo era o ldquooutro geograacuteficordquo incontornaacutevel diante do arrivismo moderno Mas um ldquooutrordquo que segundo as liccedilotildees dos romacircn-ticos era o guardador das raiacutezes do paiacutes e portanto o sertatildeo era con-comitantemente um ldquooutrordquo e um ldquomesmordquo O discurso nacionalista o aproximava das cidades enquanto o discurso cosmopolita da moderni-dade o repelia
Essa dualidade na forma de tratar os espaccedilos se manifestou num imenso debate acerca do sentido do sertatildeo nos novos tempos de forma que falar dele era uma operaccedilatildeo que atravessava toda tensatildeo expressa em dualidades qualificadoras tais como ldquobaacuterbarordquo poreacutem ldquoabando-nadordquo ldquoberccedilo da nacionalidaderdquo mas ldquoespaccedilo do atrasordquo ldquodoenterdquo contudo ldquoforterdquo Dicotomias expressas de maneira dramaacutetica na obra de Euclides da Cunha mas que apareciam em inuacutemeras outras publicaccedilotildees que surgiram na febre de sertatildeo que a ela proacutepria secundou como ve-remos a seguir
A produccedilatildeo literaacuteria usando de temaacuteticas e formas identificadas como sertanejas vinha numa crescente desde fins do seacuteculo XIX A cha-mada literatura de cordel jaacute era conhecida pelos citadinos cariocas a ponto de a livraria Quaresma lanccedilar algumas publicaccedilotildees dedicadas a esse tipo de produccedilatildeo127 Temas sertanejos avultaram inclusive publi-cados por autores consagrados do periacuteodo
126 RIO Joatildeo do A alma encantadora das ruas Belo Horizonte Crisaacutelida 2007 p 33 (1ordf ediccedilatildeo em 1910)
127 Maacutercia Abreu observa que A Guerra de Canudos do fanaacutetico Conselheiro de Joatildeo de Souza Conegundes teve pelo menos duas ediccedilotildees pela Quaresma a primeira em 1897 e a segunda em 1913 Cf ABREU Maacutercia Cordel portuguecircsfolhetos nordestinos con-frontos 1993 360 f Tese (Doutorado em Literatura Comparada) ndash Departamento de Teoria Literaacuteria Instituto de Estudos de Linguagem Universidade Estadual de Campinas CampinasSP 1993 p 123
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O escritor Coelho Neto ainda em 1893 aventurava-se na temaacute-tica sertaneja publicando Capital Federal impressotildees de um sertanejo no qual criava um narrador oriundo do sertatildeo que contava seu estranha-mento ao deparar-se com o ambiente citadino Entre estranhamentos sustos com novos haacutebitos e liccedilotildees ldquomoraisrdquo o distanciamento do serta-nejo diante da sociedade carioca eacute a tocircnica do romance Em 1896 Coelho Neto lanccedilava seu livro de contos sertanejos denominado Sertatildeo marcadamente construiacutedo numa tentativa de reproduccedilatildeo do linguajar do morador do sertatildeo distinguindo assim expressotildees e palavras do dizer sertanejo acentuando particularidades de comportamentos do homem do sertatildeo bem como marcando sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao modo de falar das cidades
No ano seguinte o teatroacutelogo Arthur Azevedo encenava no Teatro Recreio Dramaacutetico sua peccedila A conquista cujo enredo se pas-sava em torno de uma famiacutelia mineira que vinha agrave capital federal e depois de um deslumbramento inicial acabava descobrindo o viacutecio e a corrupccedilatildeo das cidades A negativizaccedilatildeo das cidades nessas produccedilotildees era uma postura que desconcertava os citadinos regozijantes diante da modernidade urbana e aproximava o sertatildeo de adjetivaccedilotildees positivas e ateacute mesmo do progresso Na mesma peccedila citada Azevedo por exemplo terminava demonstrando o desencantamento de um dos personagens sertanejos Euseacutebio que desabafava em voz alta ldquo[] A vida da capitaacute natildeo se fez para noacutes E que tem isso Eacute na roccedila eacute no campo eacute no sertatildeo eacute na lavoura que estaacute a vida e o progresso da nossa querida paacute-tria [grifo meu]rdquo128
Se por um lado tais autores escolhiam enredos que se pas-savam em torno do sertatildeo por outro natildeo se restringiam somente a ele Coelho Neto Arthur Azevedo Afonso Arinos Franklin Taacutevora e Antocircnio Sales mdash alguns dos primeiros dessa safra de ldquoautores serta-nejosrdquo mdash traziam no bojo do sertatildeo de suas histoacuterias natildeo mais apenas elementos para contar sobre eles mas para a partir de sua presenccedila comparaacute-los agraves cidades
128 AZEVEDO Arthur A conquista Rio de Janeiro Ediouro sd p 245 (1ordf ediccedilatildeo em 1897)
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A comparaccedilatildeo sertatildeo-cidade foi um iacutendice que se fez presente nas obras de diversos autores do periacuteodo tornando o sertatildeo um criteacuterio comparativo importante para pensar as cidades O sertatildeo deixava de ser simplesmente o ldquopassadordquo um guardador das raiacutezes que autorizaria o presente e passava a ser ele mesmo uma presenccedila constante na com-paraccedilatildeo com as cidades Assim seria por todas as trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo XX A voga sertaneja que acompanhou as modernidades que emergiam nas cidades fez com que o escritor Lima Barreto jaacute em 1919 atraveacutes de seu personagem Gonzaga de Saacute afirmasse frustrado ldquoA nossa emotividade literaacuteria soacute se interessa pelos populares do sertatildeo unicamente porque satildeo pitorescos e talvez natildeo se possa verificar a ver-dade de suas criaccedilotildeesrdquo129
Um pouco mais louvado ou um pouco menos o certo eacute que sertatildeo tornou-se um (sub)tema absolutamente incontornaacutevel quando o assunto versava sobre por exemplo cidades naccedilatildeo civilizaccedilatildeo progresso mo-dernidade e ateacute mesmo literatura nacional
Ademais na produccedilatildeo literaacuteria brasileira do periacuteodo sertatildeo virou quase que um meta-tema uma vez que escolhecirc-lo como tema central ou um pouco menos fazecirc-lo simplesmente aparecer na narra-tiva em breves comentaacuterios era afirmar fazer parte de uma tradiccedilatildeo de literatura que cantava sua terra identificada assim como uma litera-tura tipicamente nacional Poreacutem se descrever o sertatildeo e seus cos-tumes era a tocircnica na literatura anterior a essa geraccedilatildeo comumente na denominada ldquogeraccedilatildeo romacircnticardquo para essa geraccedilatildeo moderna o sertatildeo comparecia ao mesmo tempo como embaraccediloso e inspirador A che-gada dos anos 1900 veria aparecer o livro que mais impulsionou tal voga Os sertotildees
O embaraccediloso nas representaccedilotildees de campo e cidade eacute que natildeo raro ambos se mesclam e se complementam Essa relaccedilatildeo de comple-mentaridade eacute comumente fruto das relaccedilotildees afetivas que o sujeito manteacutem com esses espaccedilos bem como de maniqueiacutesmos que os apro-ximam como forma de defini-los em pares opostos Publicado em fins de
129 Apud BARBOSA Francisco de Assis Prefaacutecio In BARRETO Lima Recordaccedilotildees do escrivatildeo Isaiacuteas Caminha Satildeo Paulo Publifolha 1997 p 16 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)
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1902 Os sertotildees de Euclides da Cunha expressava nesse sentido um entrelaccedilamento embaraccediloso entre afeto e razatildeo entre maniqueiacutesmos classificatoacuterios e paixotildees identitaacuterias que agrave primeira vista contraditoria-mente aproximavam a simpatia do autor Euclides Cunha mais do sertatildeo que das cidades na sua tentativa de vislumbrar a desejada ldquocivilizaccedilatildeordquo atraveacutes da comparaccedilatildeo criacutetica entre sertotildees e cidades brasileiras
Para Euclides o sertanejo era ele proacuteprio a singularizaccedilatildeo do Brasil no mundo e a negaccedilatildeo da racionalizaccedilatildeo arrivista do pro-gresso cosmopolita ndash progresso de que aliaacutes o engenheiro Euclides da Cunha era um dos arautos Contestando o famoso historiador Thomas Buckle bastante consumido pela elite letrada de entatildeo que falava em apequenamento do homem brasileiro diante da natureza Euclides escrevia
Mas o nosso sertanejo faz exceccedilatildeo agrave regra A seca natildeo o apavora Eacute um complemento agrave sua vida tormentosa emoldurando-se em cenaacuterios tremendos Enfrenta-a estoacuteico Apesar das dolorosas tradiccedilotildees que co-nhece atraveacutes de um sem nuacutemero de terriacuteveis episoacutedios alimenta a todo o transe esperanccedilas de uma resistecircncia impossiacutevel130
Ao passo que o mesmo Euclides qualificava a vida no sertatildeo de ldquomonoacutetona e primitivardquo131 tambeacutem afirmava o sertanejo como ldquoantes de tudo um forterdquo por natildeo ter o ldquoraquitismo exaustivo dos mesticcedilos neurastecircnicos do litoralrdquo natildeo deixava de ser no entanto ldquodesgracioso desengonccedilado e tortordquo132 A hesitaccedilatildeo de Euclides em definir o serta-nejo era na verdade a hesitaccedilatildeo em definir-se uma vez que positivaacute-lo era fazer apologia do natildeo civilizado (e Euclides acreditava na civili-zaccedilatildeo) e negativizar os sertotildees em definitivo por outro lado era excluir o ldquoforte sertanejordquo na construccedilatildeo de uma naccedilatildeo moderna e portanto civilizada no Brasil Por isso mesmo para o autor o sertanejo soacute podia ser definido pela imagem duacutebia do Heacutercules-Quasiacutemodo Tensatildeo se-
130 CUNHA Euclides Os sertotildees In CUNHA Euclides Obras completas Rio de Janeiro Joseacute Aguilar 1966 p 182
131 Idem p 182132 Ibidem p 170
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macircntica que aparece em toda a obra do autor e que foi seminal para reintroduzir de maneira cabal o sertatildeo no discurso literaacuterio
Apoacutes o sucesso de Os sertotildees um excesso de sertatildeo se fez pre-sente em publicaccedilotildees do periacuteodo sejam elas literaacuterias cientiacuteficas ou musicais Foi nessa eacutepoca tambeacutem que o Estado republicano brasi-leiro enviou cientistas e engenheiros aos sertotildees natildeo mais apenas com o intuito de conhececirc-los mas para intervir neles com as ferramentas do ldquoprogressordquo133A corporificaccedilatildeo do ideal euclidiano de intervenccedilatildeo nos sertotildees pelas armas do ldquoprogressordquo bem como as implicaccedilotildees da sua obra maior nas formas e significados que os sertotildees do paiacutes te-riam dali para frente satildeo dois pontos fulcrais que criaram uma avidez pela temaacutetica sertaneja no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX Contudo o que avultou na literatura sertaneja poacutes-Os sertotildees foi uma tensatildeo ex-pressa em paradoxos semacircnticos que por um lado inviabilizavam qualquer qualificaccedilatildeo em definitivo do sertatildeosertanejo na narrativa mas por outro sugeriam a existecircncia de uma vontade ainda que frus-trada de representaacute-los
Essa indefiniccedilatildeo na representaccedilatildeo do sertatildeo era produto ainda de uma percepccedilatildeo espacial cujos referenciais eram tomados a partir de um olhar citadino e portanto que julgavam a espacialidade a partir de valores tais como civilizaccedilatildeo modernidade e progresso Referenciais que garantiriam ao sertatildeo epiacutetetos sem duacutevida antocircnimos a estes Contudo isso soacute seria possiacutevel se muitas dessas representaccedilotildees natildeo fossem construiacutedas por sujeitos que herdaram toda uma forma de dizer o sertatildeo que o encarava como o berccedilo da nacionalidade em oposiccedilatildeo ao cosmopolitismo das cidades
133 Eacute desse periacuteodo que data a criaccedilatildeo de projetos de intervenccedilatildeo cientiacuteficos no interior do paiacutes tais como o Serviccedilo Geoloacutegico e Mineraloacutegico do Brasil (1907) das Comissotildees Rondon (1910) do Superintendecircncia Nacional de Desenvolvimento da Amazocircnia (1910) e da Inspetoria de Obras Contra as Secas (1909) Sobre esta uacuteltima haacute de se atentar que Euclides da Cunha ajudou no projeto de criaccedilatildeo junto ao Ministeacuterio da Viaccedilatildeo Cf MORAES Kleiton de Sousa O sertatildeo descoberto aos olhos do progresso a inspetoria de obras contra as secas (1909-1918) 2010 184 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) - Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social Instituto de Histoacuteria Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2010
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Mas natildeo foi bem isso que aconteceu Daiacute na ldquovoga sertanejardquo que se seguiu em iniacutecios do seacuteculo XX um verdadeiro contorcionismo intelectual tentaria abarcar o sertatildeo na esteira de representaccedilotildees posi-tivas de forma que o ldquoessencialmente nacionalrdquo (o sertatildeo) natildeo ficasse comprometido diante das ondas modernizantes que os estigmatizariam como negaccedilatildeo do novo A literatura euclidiana caminharia sobre esses dois planos de forma tal que essa tensatildeo seria a marca registrada de seu estilo ele mesmo construiacutedo sobre os alicerces de uma narrativa que dramatizava essa tensatildeo
A vitimizaccedilatildeo era uma caracteriacutestica constante da ldquovoga serta-nejardquo e era um artifiacutecio que buscava uma saiacuteda para o desconforto cau-sado pela existecircncia de um sertatildeo pela criaccedilatildeo na literatura de perso-nagens sertanejos que sofriam as agruras das grandes cidades e de seus moradores Uma vitimizaccedilatildeo que nem sempre heroificava o sertanejo Monteiro Lobato exemplifica esse movimento Num primeiro mo-mento representando o caipira Jeca como um degenerado Lobato logo seguiria a pista da vitimizaccedilatildeo do seu personagem Na literatura loba-tiana agrave tensatildeo na definiccedilatildeo do sertanejo veio juntar-se um difuso ponto de vista com relaccedilatildeo ao estado do Jeca que logo se tornou viacutetima de seu abandono cuja consequecircncia direta era a ausecircncia de salubridade Essa literatura com temaacutetica sertaneja fez surgir uma febre por aquilo que ficou conhecido como ldquoliteratura regionalrdquo
O criacutetico e ensaiacutesta Antocircnio Cacircndido ao tecer reflexotildees acerca do papel do que ele denominou de ldquoregionalismordquo na literatura brasi-leira observou aproximaccedilotildees nos discursos de uma literatura ldquoregionalrdquo produzida no seacuteculo XIX (e Cacircndido cita autores como Franklin Taacutevora e Bernardo Guimaratildees) e aquela produzida no iniacutecio do seacuteculo XX Explica o estudioso que
Gecircnero artificial e pretensioso criando um sentimento subalterno e de faacutecil condescendecircncia em relaccedilatildeo ao proacuteprio paiacutes a pretexto de amor da terra ilustra bem a posiccedilatildeo dessa fase que procurava na sua vocaccedilatildeo cos-mopolita um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais tiacutepicas Esse meio foi o ldquotonto sertanejordquo que tratou o homem rural do acircngulo pitoresco sentimemtal e jocoso favorecendo a seu respeito ideacuteias-feitas perigosas do ponto de vista social quanto sobretudo esteacute-tico Eacute a banalidade dessorada de Catulo da Paixatildeo Cearense a ingenui-
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dade de Corneacutelio Pires o pretensioso exotismo de Valdomiro Silveira ou o do Coelho Neto do Sertatildeo eacute toda a aluviatildeo sertaneja que desabou sobre o paiacutes entre 1900 e 1930 e ainda perdura na subliteratura e no raacutedio134
A bem da verdade estudar essas muacuteltiplas obras e trataacute-las como produtos que optavam por narrar o ldquoruralrdquo do ponto de vista do ldquopito-rescordquo ldquosentimentalrdquo e ldquojocosordquo como salienta Cacircndido eacute uma atitude que natildeo pode ser sustentada diante da complexidade das representaccedilotildees dadas ao mundo rural pelos autores anteriormente citados pelo criacutetico Como procurei demonstrar o seacuteculo XX trouxe elementos difusos e novos para se pensar e falar sobre espacialidades no Brasil Essas formas tiveram ecos na literatura produzida no Brasil no iniacutecio do seacute-culo XX que as diferiam daquela produzida pela geraccedilatildeo anterior mesmo que ambas elegessem o ldquosertatildeordquo como temaacutetica mdash e isso eacute o que pode ter impulsionado Cacircndido a aproximar narrativas tatildeo diacutespares do ponto de vista do tratamento e significado dado ao sertatildeo A tensatildeo expressa em narrativas que teimavam em definir sertatildeo com ldquoolhares civilizadosrdquo pode ser uma ldquochaverdquo prudente para se entender esta pro-duccedilatildeo ldquosertanejardquo de iniacutecios do seacuteculo XX bem como ajuda a fugir atentando para seus usos de definiccedilotildees faacuteceis como a que comumente tacha essa literatura como sendo ldquoregionalistardquo
Por outro lado Cacircndido interessado em salientar o caraacuteter for-mativo da literatura em termos de naccedilatildeo perde de vista os usos estrateacute-gicos da temaacutetica sertaneja em diversos produtos literaacuterios do periacuteodo Perde de vista sobretudo o fato de que escrever sobre o ldquosertatildeordquo era parte de um desejo de representar o universo ldquopopularrdquo do paiacutes E avanccedilando o fato de que tais produtos eram inclusive materiais alvis-sareiros para publicaccedilotildees por editores procurados para serem com-prados por leitores curiosos e operacionalizados por autores que se que-riam representados como ldquonacionaisrdquo pois entendiam do ldquosertatildeordquo
Natildeo se pode desdenhar de que nos primeiros anos do seacuteculo XX uma seacuterie de obras que tematizavam o chamado ldquointerior do paiacutesrdquo foram publicadas Pela editora Chardron de Portugal Osoacuterio Duque Estrada
134 CAcircNDIDO Antocircnio Literatura e sociedade Rio de Janeiro Ouro sobre Azul 2006 p 119
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publicou O Norte em 1909 Mello Moraes Filho lanccedila pela Garnier em 1901 seu Festas e tradiccedilotildees populares do Brasil e em 1903 a Typographia Minerva em Fortaleza publica o primeiro registro edito-rial de canccedilotildees do norte-nordeste do paiacutes Cancioneiro do Norte de Rodrigues de Carvalho Tais empreendimentos editoriais devem ser vistos tanto como parte de um movimento na produccedilatildeo literaacuteria que tematizava o interior do paiacutes ndash com vislumbres para se pensar a ldquonaccedilatildeordquo ndash como uma estrateacutegia editorial de vendas de temas entendidos como ldquopopularesrdquo o que lhe rendia uma possiacutevel lucratividade
O circuito de sociabilidades cariocas tambeacutem ia ao encontro disso A produccedilatildeo teatral do periacuteodo foi invadida por temaacuteticas serta-nejas desde a revista Ouro socircbre azul de Maria Lina no Teatro Recreio em 1915 agrave burleta A cabocircca de Caxangaacute de Gastatildeo Tojeiro no ldquopo-pularrdquo Teatro Satildeo Joseacute em dezembro do mesmo ano
Nas trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo XX o sertatildeo ganhou as ruas e os salotildees do Rio de Janeiro e apareceu nos mais diferentes espaccedilos da capital federal e nas mais diferentes produccedilotildees culturais do periacuteodo Foi nas ruas que no ano de 1913 a canccedilatildeo Cabocla de Caxangaacute (conhecida como de autoria de Catullo Cearense) fez um grande sucesso no car-naval carioca Interpretada pelo grupo Caxangaacute formado por nomes futuramente conhecidos como Pixinguinha Donga e Joatildeo Pernambuco a canccedilatildeo de temaacutetica sertaneja foi apresentada com sucesso pelas ruas da capital federal por muacutesicos vestidos como vaqueiros do sertatildeo135 Com o triunfo de Cabocla de Caxangaacute nas ruas Catullo da Paixatildeo tambeacutem voltaria sua produccedilatildeo para temaacuteticas sertanejas
Entusiasmado com o sucesso da muacutesica Catullo apropriou-se do tema sertanejo e comeccedilou a compor modinhas sertanejas como Luar do sertatildeo gravada em disco pela primeira vez por Eduardo das Neves em 1914
Em 1915 foi encenado com bastante sucesso no palco do Teatro Satildeo Joseacute (hoje Teatro Joatildeo Caetano) no centro do Rio de Janeiro a opereta sertaneja escrita por Catullo intitulada de O marrueiro que re-
135 COSTA Op cit p 121
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velaria Vicente Celestino como o personagem do sertanejo-cantador e onde o proacuteprio autor cantaria algumas vezes Catullo jaacute vinha colabo-rando na feitura de pequenas peccedilas como o musical O diabo entre as freiras ou o tambeacutem musical Agrave procura de uma noiva ambas apresen-tadas no Circo Spinelli respectivamente nos anos de 1910 e 1911136 Mas o ecircxito de O marrueiro o notabilizaria cada vez mais como conhe-cedor do sertatildeo A par disso Catullo era presenccedila constante nos saraus a apresentar seus motivos populares que cada vez mais se voltavam natildeo para as modinhas mas para as canccedilotildees com temaacuteticas sertanejas
Sintomaacutetico disso eacute que em 1910 o jornal O Paiz anunciava a conferecircncia A modinha brazileira no Theatro Recreio Dramaacutetico do qual Catullo fez parte como cantor137 e jaacute em 1914 no Thetro Phoenix Catullo participaria de outra conferecircncia desta feita com Viriato Correcirca Na primeira parte dessa conferecircncia de 1914 Catullo cantaria suas mo-dinhas e na segunda parte o programa seria composto tatildeo somente de coisas do sertatildeo quando recitaria [grifo meu] Preto do sertatildeo e cantaria Caboca de Caxangaacute ldquotal como ela eacute verdadeiramenterdquo e Luar do sertatildeo Caboca de Caxangaacute ldquotal como ela eacuterdquo pois dezenas de versotildees dessa canccedilatildeo corriam nas ruas do Rio de Janeiro agrave eacutepoca tamanho seu su-cesso Sucesso soacute natildeo equiparado agravequela canccedilatildeo pela qual Catullo fi-caria fortemente identificado e que causaria uma seacuterie de discussotildees acerca de sua autoria o Luar do sertatildeo
Em 16 de marccedilo de 1914 o jornal O Paiz reportava ldquoRecebemos a interessante canccedilatildeo lsquoO Luar do Sertatildeorsquo muacutesica e letra do apreciado trovador Catullo Cearenserdquo138
O Luar do Sertatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense era uma mo-dinha que contava as coisas do sertatildeo com uma letra enorme ndash tal e qual as modinhas do poeta ndash com oito versos que se intercalavam com o re-fratildeo ldquoNatildeo haacute oacute gente oacute natildeo Luar como esse do sertatildeordquo O enorme sucesso da toada daria a Catullo uma visibilidade ainda maior e o intro-duziria de maneira definitiva nas produccedilotildees com temaacuteticas sobre o
136 ldquoO diabo entre as freirasrdquo teve reapresentaccedilotildees no ano de 1912 Cf O Paiz 28 fev 1912137 O Paiz 13 out 1910138 O Paiz 16 mar 1914
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sertatildeo A fama da modinha sertaneja estendeu-se agrave capital paulista que ainda em 1915 o chamou para uma conferecircncia na receacutem-fundada (pela nata da elite letrada paulistana) Sociedade de Cultura Artiacutestica que se reunia no Trianon139
Foi nesse contexto jaacute laureado nos recitais e presenccedila constante nas rodas boecircmias que Catullo da Paixatildeo Cearense apoiado por le-trados como Joatildeo do Rio Capistrano de Abreu e Roquette Pinto pu-blicou em 1918 seu primeiro livro de poesias com temaacuteticas serta-nejas intitulado Meu sertatildeo por um editor que comeccedilava seu empreendimento com livros Antocircnio Castilho
A livraria Castilho
Conta-se que Machado de Assis um habitueacute da livraria Garnier costumava passar pela rua Satildeo Joseacute a caminho do Ministeacuterio da Agricultura e nesse percurso parava na livraria Quaresma para ler os claacutessicos portugueses ldquondash Sabe Gosto mais de sua casa porque eacute silen-ciosa natildeo haacute aquecircle zunzum da Garnierrdquo 140
Situada no centro da cidade os frequentadores da Rua Satildeo Joseacute ainda podiam gabar-se de certa distinccedilatildeo diante da noviacutessima avenida Central e da barulhenta rua do Ouvidor onde aliaacutes situava-se a livraria Garnier Ainda contando com preacutedios antigos que avanccedilavam sobre as calccediladas a Satildeo Joseacute natildeo era um convite para um apologista das ldquocoisas novasrdquo Mas ali resguardados do glamour que entorpecia os mais afoitos pelas novidades da modernidade desfilavam desde escritores consagrados como Machado de Assis obtusos homens agrave procura do Dr Feio Galvatildeo reclamando de dores de dente poliacuteticos reunindo-se para reuniatildeo no Centro Paraibano ateacute cantores e seresteiros que procuravam a livraria Quaresma agrave procura de folhetos de muacutesica editados pela casa
Tambeacutem ali bem proacuteximo na deacutecada de 1910 floresciam outros sebos e livrarias como a livraria Cruz e Coutinho cujo proprietaacuterio Jacinto Ribeiro de Santos orgulhava-se de editar peccedilas teatrais e os
139 Catullo acabou natildeo podendo ir por problemas pessoais Cf O Paiz 26 mar 1915140 BROCA Brito A vida literaacuteria no Brasil - 1900 Rio de Janeiro MEC 1956 p 50
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 113
melhores livros juriacutedicos e didaacuteticos141 Descendo um pouco mais proacute-ximo ao botequim Silva Valverdi amp Co e da estaccedilatildeo de bondes e entre o Hotel Avenida e o Largo da Carioca o livreiro Antocircnio Joaquim de Castilho comandava a sua livraria Castilho
Desde 1902 quando transferiu o pequeno sebo localizado na rua Santo Antocircnio para a rua Satildeo Joseacute Castilho dedicou-se a vender livros novos especialmente obras francesas e portuguesas Foi por sua inicia-tiva que se comeccedilou a ler os romances em francecircs de Marcel Preacutevost como Les demi-vierges os de Henry Bordeaux como La petite made-moiselle ou as novelas de Paul Hervieu como Lrsquoarmature142 Mas Castilho tambeacutem se lanccedilou na ediccedilatildeo de livros e eacute possiacutevel encontrar seu nome em anuacutencios dos jornais como editor de livros juriacutedicos Um exemplo eacute A verdadeira revisatildeo constitucional de Samuel Oliveira apresentada como uma ediccedilatildeo ldquobem cuidada e feita com todo o ca-pricho revelando o carinho que mereceu o livrordquo143
A publicidade de livros nos jornais cariocas parecia ser um vieacutes que Castilho soube copiar do seu vizinho Pedro Quaresma de forma profiacutecua embora diferentemente deste uacuteltimo natildeo investisse na publi-caccedilatildeo de ldquofrivolidadesrdquo Mas isso natildeo demoraria muito tempo
Apesar de no iniacutecio Antocircnio Castilho natildeo ver com bons olhos a ediccedilatildeo de romances e poesias de autores nacionais esse ramo logo o excitaria a novos voos Em 1915 Antocircnio Torres lanccedilou sob o selo da livraria Castilho o seu livro de estreia Carmen tropicale Embora nesse caso o autor pagasse a ediccedilatildeo do proacuteprio bolso o editor gostava de vangloriar-se de nunca ler um original mas que sempre se deixou ldquolevar pelo faro e jamais me enganeirdquo144 Perspicaacutecia faro ou oportunismo o fato eacute que Antocircnio Torres ficaria conhecido por outros livros lanccedilados pela Castilho como o best-seller Pasquinadas cariocas em 1921 ele-vando o lucro do editor e livreiro ao passo que encorajava o editor re-ticente na aposta de outros escritores nacionais Antes disso Castilho
141 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 134142 Cataacutelogo de livros franceses da Livraria Castilho Em A Noite 3 jun 1914 p 5143 Gazeta de Notiacutecias 17 maio 1912 p 4144 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 136
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apenas se aventurou na ediccedilatildeo de pequenos livros impressos na tipo-grafia que fazia funcionar aos fundos da livraria
A ecircnfase dada pelo livreiro agrave comercializaccedilatildeo de livros estran-geiros fez crescer em sua casa o nuacutemero de visitantes ilustres que bem ao gosto do periacuteodo acorriam em busca da novidade literaacuteria da Europa Gastatildeo Cruls Gilberto Amado Joaquim de Sales Costa Recircgo Lima Barreto e mais tarde Leonardo Mota eram alguns dos homens de le-tras que ficavam conversando ateacute as 22 horas e de laacute seguiam para o bar Nacional na rua Santo Antocircnio145
Natildeo eacute muito difiacutecil imaginar que a clientela frequentadora da Quaresma e da Cruz Coutinho tambeacutem passasse por laacute Foi nessa eacutepoca que Castilho comeccedilou a apostar nas traduccedilotildees de romances estran-geiros O primeiro lanccedilamento veio em 1914 Lua crescente volume de poesias do indiano Rabindranath Tagore com traduccedilatildeo de Plaacutecido Barbosa Tagore acabara de ganhar o precircmio Nobel de literatura de 1913 sendo o primeiro natildeo europeu a alcanccedilar esse feito O sucesso da publicaccedilatildeo foi tatildeo grande que trecircs anos depois veio uma segunda ediccedilatildeo resenhada entusiasticamente por Joseacute Oiticica o anarquista entatildeo articulista do Correio da Manhatilde
O Sr A J de Castilho da conhecida livraria Castilho resolveu ree-ditar a Lua Crescente do poeta indiano Rabindranath Tagore traduzida pelo dr Plaacutecido Barbosa Moveu-o a tal resoluccedilatildeo a incessante procura do livro cuja primeira tiragem se esgotou em um mecircs Poucos livros realmente tecircm agradado tanto ao puacuteblico ledor qual ali vatildeo achar a poesia liacutempida suavisiacutessima de um pantheista encantado das creanccedilas O livro eacute o que se poacutede chamar um mimo e o novo editor procurou dar a esta reimprressatildeo toda a simplicidade e toda a riqueza compatiacuteveis com a poesia do autor[]A nova ediccedilatildeo estou certo se esgotaraacute com a mesma rapidez da pri-meira pois os pedidos mal podem ser satisfeitos146
145 Ibidem146 Correio da Manhatilde 9 abr 1917 p 8
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Dostoieacutevski tambeacutem foi alvo das ediccedilotildees Castilho com a publi-caccedilatildeo de Recordaccedilatildeo da casa dos mortos que teve a traduccedilatildeo de Fernando Nery entatildeo secretaacuterio da Academia Brasileira de Letras que assinava suas traduccedilotildees com o pseudocircnimo de Fernatildeo Neves O sucesso na publicaccedilatildeo de traduccedilatildeo dos romances estrangeiros fez com que o edi-tor-livreiro visasse tambeacutem ao puacuteblico feminino (maior consumidor de romances) sendo logo sua casa conhecida como especialista em ldquolitera-tura para moccedilasrdquo A publicidade no jornal Correio da Manhatilde indicava o livro de M Delly Escrava ou rainha como sendo ldquoO Mais lindo romance para Moccedilasrdquo com ldquoprimorosa traducccedilatildeo de Fernatildeo Nevesrdquo147
Uma das publicaccedilotildees de grande sucesso das ediccedilotildees Castilho foi Lazarina do romancista francecircs Paul Bourget lanccedilado em 1917 com traduccedilatildeo de Fernatildeo Neves O sucesso foi saudado tanto mais porque desde iniacutecios da grande guerra europeia o paiacutes passava por uma crise do papel o que dificultava novos lanccedilamentos
A livraria Castilho resolveu haacute tempos tornar-se editora apesar de todas as crises inclusive a do papel A sua especialidade parece querer ser a das traducccedilotildees Ainda agora temos quasi a seguir os dois uacuteltimos livros de Paul Bourget Lazarina e O Sentimento da Morte traducccedilatildeo portu-gueza do Sr Fernatildeo NevesO Sr Fernatildeo Neves traduziu muito bem os dois volumes com uma tatildeo exagerada preocupaccedilatildeo de vernaculista que ella salta aos olhosOra entre ser vernaacuteculo e fazer questatildeo de mostrar ser vai muita vez ser o estorvo dos escriptores O Sr Fernatildeo Neves eacute entretanto um tra-ductor pouco commum E francamente vale mais ler Bourget sempre tatildeo despreocupado no estylo [] na traducccedilatildeo do Sr Neves Os dois romances da guerra conservam todas as belezas do grande romancista num estojo mais cuidado148
Criacutetica como essas que apareciam em jornais e revistas era fatal para o sucesso ou a estigmatizaccedilatildeo da obra especialmente quando se sabia que muitos dos autores que resenhavam as novas publicaccedilotildees eram eles mesmos letrados que acorriam agraves livrarias em busca do novo
147 Correio da Manhatilde 10 jun 1918 p 9148 O Paiz 14 set 1917 p 2
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livro na praccedila Oliveira Vianna por exemplo resenhou negativamente o livro de Carneiro Leatildeo Problemas de educaccedilatildeo ndash lanccedilado pela Livraria Jornal do Comeacutercio em 1919 ndash por discordar do autor de que a edu-caccedilatildeo poderia elevar a moral da populaccedilatildeo pois
Pela mesma razatildeo que a educaccedilatildeo intelectual natildeo poacutede dar caracter a ningueacutem ou melhor natildeo poacutede modificar aquilo que podemos chamar a lsquoespinha dorsal do caracterrsquo de ningueacutem O caracter bom ou maacuteo egoiacutesta ou abnegado doce ou rude submisso ou autoritaacuterio inerte ou activo eacute coisa que preexiste a qualquer processo educativo eacute coisa que concerne aacute hereditariedade e a estructura cerebral de cada um149
Criacutetica que rendeu uma resposta discordante da opiniatildeo de Oliveira Vianna trecircs dias depois no mesmo jornal Eacute possiacutevel pensar como essas querelas eram parte constitutiva da publicizaccedilatildeo da obra tanto mais porque no caso acima citado discutia-se exatamente um plano de educaccedilatildeo que colocasse fim ao analfabetismo no paiacutes mdash e o analfabetismo era um tema central entre os leitores e livreiros do pe-riacuteodo Discutia-se desde a ineacutepcia do paiacutes em colocar em accedilatildeo um plano de alfabetizaccedilatildeo ateacute o nuacutemero de livrarias que a cidade do Rio de Janeiro possuiacutea em relaccedilatildeo a Buenos Aires
Natildeo haacute exagero Buenos Aires eacute a cidade dos hoteacuteis e das livrarias Possue-os em grande nuacutemero Eacute o patildeo do estocircmago e o do espiacuterito por toda a parte A abundacircncia de livrarias eacute ali justificada porque metade da populaccedilatildeo sabe ler Como entre noacutes 85 dos indiviacuteduos satildeo analpha-betos contamos poucas livrarias O Rio possue trecircs de primeira ordem (Garnier Briguiet e Alves) quatro de segunda e uns trecircs belchioresAo todo dez casas onde se vendem livros isso para uma capital de cerca de um milhatildeo de habitantes Havemos de convir que eacute muito analphabetismoO nosso puacuteblico ledor prefere aacutes nossas poucas boas letras qualquer revista de caricatura E ainda haacute quem alimente vaidades literaacuterias num paiz como o Brazil onde o coefficiente da ignoracircncia eacute uma causa que assombra e onde um homem de gecircnio como Ruy Barbosa pensa e escreve para ser lido drsquoaqui 300 anos150
149 O Paiz 8 ago 1919 p 3150 O Paiz 21 jul 1913 p 2
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O ldquopuacuteblico ledorrdquo de livros no Brasil que preferia ldquorevista de caricaturardquo era o alvo principal de todos os empreendimentos literaacuterios da eacutepoca Conhecedor do assunto Quaresma como vimos fazia su-cesso com a sensibilidade que tinha de seu puacuteblico As poucas livrarias que existiam na cidade teriam que lidar com esses entraves mesmo aquelas que se propunham a publicar livros como diziam para serem lidos ldquodrsquoaqui 300 anosrdquo ou seja aqueles considerados literatura ldquoseacuteriardquo
Quaresma descobriu Catullo da Paixatildeo Cearense para o grande puacuteblico e Catullo pretendia que sua poesia fosse levada de maneira mais seacuteria Desde a publicaccedilatildeo de suas modinhas buscava que elas fossem consideradas parte constitutiva da literatura do paiacutes Com o tempo tambeacutem passou a publicar poemas e a flertar com temaacuteticas ser-tanejas a fim de ser considerado de fato um escritor de poemas De sua parte Antocircnio Castilho exibia satisfaccedilatildeo pelo seu empreendimento como editor e estava disposto a abraccedilar um autor que se dispusesse a publicar um livro que jaacute poderia vir agrave luz com ecircxito
Foi do encontro de um puacuteblico sedento por temaacuteticas sertanejas um editor disposto a fazer uma aposta lucrativa e um autor com preten-sotildees literaacuterias que foi lanccedilado em outubro de 1918 o primeiro livro de poemas sertanejos de Catullo da Paixatildeo Cearense Meu sertatildeo
CATULLO DA PAIXAtildeO NACIONAL
O meu sertatildeo
Natildeo seria exagero afirmar que Meu sertatildeo nasceu de uma festa O festival organizado para angariar dinheiro visando a sua publi-caccedilatildeo que se realizara em setembro de 1918 foi saudado pela imprensa carioca como um grande evento onde um concorrido lugar era alme-jado por uma ilustre plateia Natildeo foram poucos os ilustres participantes desse esforccedilo A comissatildeo promotora do evento foi formada por le-trados como Afracircnio Peixoto Rocha Leatildeo Pandiaacute Caloacutegeras Roquette Pinto A Austregeacutesilo Pires Brandatildeo Castro Menezes Maacuterio Alencar Eloy de Souza Fernando Magalhatildees Assis Chateaubriand Carlos Costa Paulo Silva Arauacutejo Francisco Solano Afracircnio de Mello Franco Antocircnio Neves Raul Brandatildeo e Castro Barreto Ilustres que aliaacutes or-ganizaram com esmero o festival fazendo ldquovaacuterias reuniotildeesrdquo antes do ocorrido151 O editor Castilho as Casas Mozart e o Jornal do Commercio ficariam por sua vez responsaacuteveis pela venda dos bilhetes que ajuda-riam a publicar o livro de Catullo152 O editor Castilho ainda parecia reticente em publicar autores nacionais angariar dinheiro para a publi-
151 Correio de Notiacutecias 23 ago 1918 p 3152 A Eacutepoca 8 set 1918 p 11
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caccedilatildeo representava uma boa foacutermula para arriscados empreendimentos na publicaccedilatildeo de livros
O sucesso foi imediato e em fins de novembro daquele mesmo ano o livro de Catullo jaacute aparecia como a ldquonovidade literaacuteriardquo nos anuacutencios de jornais e revistas do Rio de Janeiro apresentado como ldquoobra genuinamente nacional do grande poeta sertanejo Catullo da Paixatildeo Cearenserdquo153 O adjetivo nacional colocava dessa forma a obra de Catullo no rol daquelas que poderiam figurar ao lado da de reno-mados escritores como Euclides da Cunha e Alberto Rangel ambos tambeacutem conhecidos como literatos do sertatildeo Ainda a alcunha de ser-tanejo conferia a Catullo a autoridade irrefutaacutevel para que o mesmo tematizasse melhor do que ningueacutem o sertatildeo em sua obra uma vez que essa identificaccedilatildeo natildeo dizia respeito tatildeo somente a um traccedilo da obra (temas sertanejos) mas a um lugar de origem do autor
Na praacutetica de reconhecido como ldquopopularrdquo desde quando co-meccedilou a fazer sucesso com suas modinhas Catullo gozava agora do prestiacutegio de ser apresentado em livro como poeta nacional e gabaritado para falar em seus poemas sobre o sertatildeo pois oriundo dele
Sintomaacutetico foi um artigo aparecido em O Imparcial assinado pelo respeitado historiador e criacutetico Joatildeo Ribeiro em que apresentava a obra nos seguintes termos
lsquoMeu Sertatildeorsquo ndash eacute uma seacuterie de poemas sertanejos sentidos e escriptos por Catullo da Paixatildeo Cearense trovador querido e aplaudido em palcos e salas como o mais genuiacuteno representante da alma popular brasileiraO poeta eacute do Norte da regiatildeo mais antiga do paiz onde os primeiros co-lonizadores realizaram a penetraccedilatildeo mais profunda de povoamento154
Joatildeo Ribeiro ao indicar Catullo como ldquopoeta do Norterdquo atribuiacutea--lhe ao mesmo tempo a autoridade de conhecedor de um lugar e cha-mava a confianccedila do leitor para a leitura de um autor que pode contar sobre o sertatildeo mdash ou como o tiacutetulo deixa entrever o seu sertatildeo Joatildeo
153 Correio de Notiacutecias 24 nov 1918 p 3154 O Imparcial 2 dez 1918 p 5
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Ribeiro observa essa nuance embora sua criacutetica ao livro natildeo fosse boa Voltaremos a ela adiante
Salientando o lugar geograacutefico de onde vinha o autor o articu-lista autorizava o poeta a falar de sertatildeo Adicionado a isso o fato de Catullo ser reconhecido por modinhas sertanejas como Luar do sertatildeo sem duacutevida ajudava nessa representaccedilatildeo de homem do sertatildeo Inclusive o proacuteprio Catullo natildeo poupava esforccedilos para ser assim identificado quando fazia apresentaccedilotildees vestido de ldquomarrueirordquo Apresentaccedilotildees nos palcos natildeo eram algo incomum para Catullo uma vez que vecirc-lo apre-sentando-se em espetaacuteculos circenses e em musicais do chamado ldquote-atro ligeirordquo comeccedilou a ser normal para o puacuteblico carioca da eacutepoca
Esse vatildeo caminho entre um indiviacuteduo da cidade formado nos salotildees e na boecircmia da elite carioca e um autor que se rendia a temaacuteticas sertanejas e se apropriava das representaccedilotildees citadinas dadas ao sertatildeo rendeu a Catullo resultados profiacutecuos para sua apresentaccedilatildeo como poeta Aliaacutes as representaccedilotildees citadinas do espaccedilo sertanejo satildeo la-tentes na maneira como eacute apresentado o sertatildeo tanto em seu livro de estreia Meu sertatildeo como em seu segundo livro editado pela livraria Castilho em 1919 Sertatildeo em flor tambeacutem de temaacutetica sertaneja Em ambas as publicaccedilotildees eacute possiacutevel enxergar a apropriaccedilatildeo de certos topoi que marcavam a maneira de expressar o espaccedilo sertanejo no periacuteodo Dicotomias tais como espaccedilo atrasado versus espaccedilo moderno baacuterbaro versus educado sertanejo bom versus citadino corrompido expressas em seus livros eram comuns na forma de tratar o sertatildeo Aliado a isso os poemas de Catullo vinham com um diferencial a representaccedilatildeo da oralidade sertaneja nos textos o que dava ao leitor a sensaccedilatildeo de estar diante de uma genuiacutena transcriccedilatildeo do linguajar do sertatildeo
Assim se por um lado Meu sertatildeo representou a chegada de mais um artefato cultural que elegia o ldquosertatildeordquo como tema por outro no texto construiacutedo por Catullo expressava-se grande parte das ten-sotildees das temaacuteticas das formas e das ambiguidades com que o tema era tratado no periacuteodo
Meu sertatildeo eacute composto por nove histoacuterias contadas em versos nas quais o ambiente rural aparece como cenaacuterio principal e onde o sertanejo eacute alccedilado a grande heroacutei do enredo O fato fundamental de que
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o autor era um homem que vivia na cidade do Rio de Janeiro num tempo de raacutepidas transformaccedilotildees esclarece muitas das denominaccedilotildees que o sertanejo ganhava em sua obra tais como ldquoignoranterdquo ldquobaacuterbarordquo e ldquoalma purardquo em contraposiccedilatildeo ao mundo ldquocivilizadordquo das cidades Esses limites definidores do que seria o ldquosertatildeordquo para Catullo consti-tuem um importante toacutepico para a compreensatildeo do lugar em que Meu sertatildeo foi produzido uma vez que o autor em constante diaacutelogo com o puacuteblico leitor da entatildeo capital federal de seu tempo fez aparecer em seu texto adjetivaccedilotildees do sertatildeo que tratavam de colocaacute-lo comumente como a antiacutetese da cidade
Antes de lanccedilar matildeo da descriccedilatildeo do espaccedilo sertanejo Meu sertatildeo comeccedila com um convite de viagem lanccedilado pelo autor ao seu leitor Assim o autor iniciava seu primeiro poema (na verdade um pre-faacutecio do livro) intitulado convenientemente A caminho do sertatildeo com um convite aos poetas para deixarem a ldquoAvenidardquo e irem rumo aos ldquomattos sombriosrdquo e com um alerta para as ldquogentis senhoritasrdquo tomarem cuidado com ldquoa liacutengua baacuterbarardquo dos sertotildees do norte que ele iria apre-sentar155 Foi atraveacutes desse convite ndash ao modo inclusive de como Euclides da Cunha havia feito no primeiro capiacutetulo de Os sertotildees ndash que Catullo se fazia aparecer como o cicerone de uma viagem a um ldquooutro geograacuteficordquo que para o autor era abandonado pelo paiacutes o sertatildeo
A forma pela qual Catullo se apresentava como autor de poesias em Meu sertatildeo obedecia a dois movimentos em primeiro lugar a afir-maccedilatildeo de sua poesia como autecircntica como o inverso daquilo que con-siderava estrangeira (daiacute os pedidos que o autor faz aos leitores no poema A caminho do sertatildeo tais como ldquoDeixa a Greacutecia Deixa a Itaacutelia Deixa a fonte de Castaacuteliardquo)156 o segundo seria a afirmaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo como poeta da terra a expressatildeo profunda daquilo que o autor chamava de a ldquoterra em que nascirdquo De resto essa delimitaccedilatildeo de seu lugar como ldquopoetardquo ndash escritor da poesia autecircntica pois escritor da ldquoterrardquo ndash respondia a uma percepccedilatildeo aguda que o autor tinha do seu
155 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 25-26
156 Idem p 27
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espaccedilo no mundo literaacuterio Era por esse caminho que ele poderia vir a ser reconhecido como um verdadeiro poeta Ademais a poesia de Catullo aparecia no meio letrado com uma pretensiosa mudanccedila na forma a escrita ipsis litteris de falas sertanejas assim como a inclusatildeo de um enorme nuacutemero de termos e coisas do sertatildeo Para atingir seu objetivo todos os poemas vinham acompanhados de uma seccedilatildeo deno-minada ldquovocabulaacuteriordquo ao fim do texto onde explicava ao leitor expres-sotildees que este supostamente poderia desconhecer Essa ousada forma de mostrar o sertatildeo lhe renderia posteriormente severas criacuteticas tais como as de Monteiro Lobato que em 1918 escrevia na Revista do Brasil
A publicaccedilatildeo das poesias de Catullo Cearense potildee de peacute uma interes-sante questatildeo eacute possiacutevel aceitar como liacutengua no qual se vazem versos o modo de falar do caboclo Cremos que natildeo porque tal modo de falar natildeo eacute sequer um dialeto e sim mera corrupccedilatildeo do dialeto brasileiro [] Pensando assim lamentamos o grande o maior poeta deste paiacutes o poeta-poeta o poeta cujas composiccedilotildees feitas em muacutesicas vivem de Norte a Sul cantadas por todas as bocas despertando em todos os peitos as mais suaves emoccedilotildees natildeo tenha escrito seu livro em nossa liacutengua a liacutengua brasileira filha da portuguesa [] Se Catullo traduzir seus versos em nossa liacutengua natildeo receamos em afirmaacute-lo faraacute uma obra que marcaraacute eacutepoca criaraacute escola determinaraacute correntes Estaacute em suas matildeos ser apenas um poeta caipira ou ser o maior poeta popular do Brasil157
Essa criacutetica feita no mesmo ano em que Lobato publicava seu natildeo menos controverso Urupecircs mdash aliaacutes mais um produto literaacuterio te-matizando o sertatildeo mdash demonstra de um lado a presenccedila de distintas e conflitantes representaccedilotildees do sertatildeo que circulavam no periacuteodo e por outro como o uso da liacutengua tambeacutem era um toacutepico importante para definir-se ldquoliteratura nacionalrdquo Para Lobato Catullo errara ao escolher expressar-se atraveacutes de uma liacutengua do sertatildeo pois ldquoliacutengua do sertatildeordquo natildeo podia ser confundida com a ldquoliacutengua brasileirardquo que deveria apa-recer em livros O linguajar sertanejo era apenas uma ldquocorrupccedilatildeordquo do dialeto brasileiro falado talvez para Lobato apenas pelos letrados ci-
157 Apud VASCONCELOS Ary Panorama da muacutesica popular brasileira na Belle Eacutepoque Rio de Janeiro Livraria SantrsquoAnna 1977 p 130
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tadinos ou que pelo menos estes letrados deveriam cultivar No en-tanto Catullo ficaria por um tempo avesso a essas criacuteticas
Ainda em Meu sertatildeo Catullo se autorrepresentava como um autor exilado do sertatildeo e por isso em A caminho do sertatildeo apresenta-va-se como um homem sem aspiraccedilatildeo literaacuteria Ironizando os poetas do Brasil por conta de suas escolhas de soacute cantar ldquosaudadesrdquo dizia que natildeo seria reconhecido por um paiacutes que se interessava somente por ldquoOrpheusrdquo e ldquodivindadesrdquo cujos poetas recitavam em rodas onde soacute se dizia ldquoem francezrdquo158 Soacute depois dessa necessaacuteria explicaccedilatildeo de seus poemas Catullo comeccedilaria a narrar seus poemas sertanejos
A histoacuteria contada por Catullo no primeiro poema de Meu sertatildeo intitulado Quinca Micuaacute (o gaiteiro do sertatildeo) eacute emblemaacutetica e expres-sava as formas pelas quais o sertatildeo seria tratado dentro da proposta apresentada pelo poeta A histoacuteria de um amor impossiacutevel entre o heroacutei (o sertanejo Quinca Micuaacute apaixonado por sua gaita) e Cunceiccedilatildeo (a filha de um rico fazendeiro que estudara na capital federal desde pe-quena e agora retornava ao sertatildeo) eacute ilustrativa Enamorada por Quinca Micuaacute Cunceiccedilatildeo o encontrava agraves escondidas do pai ateacute que um dia propotildee a Quinca beijaacute-la algo que o sertanejo refuta imediatamente por considerar uma atitude desrespeitosa Descobertos pelo pai da moccedila esta uacuteltima acaba jogando a culpa em Quinca insinuando que este lhe havia proposto fugir Quinca acaba tendo sua gaita quebrada pelo fa-zendeiro tendo de fugir do sertatildeo indo em direccedilatildeo agrave cidade onde conta sua histoacuteria para o primeiro que encontra
No poema escrito em 1ordf pessoa o narrador Quinca Micuaacute traz impressotildees do sertatildeo definindo-o como ldquoatrasadordquo em relaccedilatildeo agraves ci-dades poreacutem natildeo contaminado pela ldquoInducaccedilatildeordquo da qual a personagem de Cunceiccedilatildeo eacute a expressatildeo Numa longa passagem em que Quinca Micuaacute confronta a personalidade de Cunceiccedilatildeo moccedila da cidade com a de sua antiacutetese Tudinha moccedila do sertatildeo aparecem muitas definiccedilotildees do que seria a cidade e o sertatildeo para o narrador definiccedilotildees estas cujas ten-
158 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 28
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sotildees e antinomias satildeo elencadas como forma de traccedilar as distacircncias que separavam duas realidades distintas
Tudinha era uma muieacuteinguinorante sarvageTodo que vancecirc quizeacuteera burra mas poreacutemaquillo sim meu patratildeo aquillo eacute que era muieacute[]A Tudinha natildeo prendeuA batecirc liacutengua ispritada cumo essa moccedila inducadaque tinha o tempo vadioMas poreacutem a Cunceiccedilatildeonatildeo sabia batecirc roupacomo a Tudinha a cabocirccalavando a becircra do rio159
Nos poemas seguintes todos eles com histoacuterias construiacutedas em torno de um personagem ou de um costume entendido como sendo do sertatildeo (O marrueiro O lenhador A promessa O passador de gado A vaquejada O cangaceiro e A terra cahida) Catullo esboccedilou imagens dos espaccedilos sertanejos embasadas em grande parte pela leitura de nar-rativas consagradas tais como as de Gustavo Barroso (citado em O cangaceiro) e Alberto Rangel (citado em Terra cahida) Ademais neste uacuteltimo poema o autor assume que se ldquoinspirarardquo num conto homocircnimo de Rangel jaacute conhecido autor de contos sertanejos e estudioso das ldquocoisas do sertatildeordquo160 A propoacutesito Rangel travou estreitas relaccedilotildees com Euclides da Cunha que o ajudou a se tornar conhecido no mundo le-trado A evocaccedilatildeo de um jaacute conhecido escritor natildeo era gratuita uma vez que reservava para si um lugar no campo literaacuterio em torno de figuras consagradas literariamente
O sexto poema de Meu sertatildeo sob o tiacutetulo de O passador de gado eacute aquele em que o autor tece mais claramente criacuteticas ao mundo citadino
159 Idem p 65-68160 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 232
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aparecendo algumas definiccedilotildees do que ele entendia ser o ldquohomem da cidaderdquo e o ldquohomem do sertatildeordquo A histoacuteria se desenvolve em torno do passador de gado e morador dos sertotildees do norte Chico Mironga que a convite de seu compadre Dezideacuterio vai visitar a capital federal O nar-rador (que eacute o proacuteprio Chico) de volta agrave sua terra comeccedila a contar sua visita agrave ldquoAvinida Cintraacuterdquo A partir dessa experiecircncia eacute iniciada uma seacuterie de impressotildees do narrador sobre o espaccedilo citadino nas quais pululam adjetivaccedilotildees e comparaccedilotildees entre sertatildeo e cidade Entre os sustos e pas-sagens cocircmicas narradas pelo personagem-narrador Chico Mironga Catullo parece responder agrave definiccedilatildeo tatildeo comum em seu tempo do sertatildeo como lugar do ldquoatrasordquo quando afirma por intermeacutedio de Chico o progresso das cidades como sendo meramente ldquopruacute forardquo mas ldquopruacute dentro Nadardquo Isso desemboca no uacuteltimo verso em uma criacutetica di-reta agrave chamada ldquocivilizaccedilatildeordquo ldquovale mais que essa porquecircra da taacute Civilizaccedilatildeo ndash um carro de boi cantando pulos matos do sertatildeordquo161
Catullo que manifesta em seus poemas uma ldquodessoradardquo paixatildeo pelo rural ndash diagnoacutestico estigmatizador de Antocircnio Cacircndido agrave obra de Catullo162 ndash constroacutei representaccedilotildees do espaccedilo sertanejo que o dignifi-cavam e o enobreciam em relaccedilatildeo agraves grandes cidades compartilhando um tipo de representaccedilatildeo bastante comum Isso porque autor tambeacutem estaacute impregnado de referenciais oriundos de sua posiccedilatildeo de citadino dos quais seguramente ele se valia como foacutermula para melhor ser re-cepcionado como escritor Essa percepccedilatildeo de um lugar a ser construiacutedo na literatura que pudesse abarcar um poeta que se autodenomina serta-nejo mas que produzia nas cidades demandava um reconhecimento por aqueles que podiam definir o que deveria ser considerado literatura no periacuteodo ndash e Catullo natildeo era propriamente um desconhecido das elites letradas da eacutepoca A poesia de Catullo era reverenciada por diversos li-teratos por transmitir ainda que numa linguagem considerada ldquoruderdquo e ldquosimplesrdquo as belezas do sertatildeo para o leitor citadino Assim foi que o poeta Humberto de Campos tratou de salientar que Catullo deveria ser encarado como
161 Ibidem p 162162 CAcircNDIDO Antocircnio Literatura e Sociedade Rio de Janeiro Ouro sobre Azul 2006 p 121
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O ourives que trabalhou no ouro virgem da linguagem popular as joacuteias ruacutesticas e maravilhosas que por ahi andam eacute necessariamente um grande e liacutedimo artista um fidalgo poeta que se disfarccedila em ave can-tadeira para melhor espalhar a mancheias [] a rutilante pedraria do seu eraacuterio Catullo eacute realmente um mixto de singeleza e de opulecircncia [] A sua poesia simples doce e ingecircnua mas em versos de meacutetrica perfeita eacute uma resina do sertatildeo a arder cheirosa num thuriacutebulo de prata ou de ouro163
O fato de Catullo escrever seus poemas em um linguajar dito ldquoser-tanejordquo ndash criticado por Lobato como vimos ndash exigiu a explicaccedilatildeo do mesmo Humberto de Campos que apontou esse modo como um fator que o distinguia positivamente de outros poetas pois ldquoPassados esses versos para a linguagem correntia natildeo teriacuteamos noacutes entre os dos nossos melhores lyricos outros que se lhe avantajassem em meiguicerdquo164
A linguagem ldquosertanejardquo usada por Catullo era indicada como um fator a mais para reivindicar o caraacuteter nacional de sua poesia A aproximaccedilatildeo de Catullo com a natureza como queria Humberto de Campos dava-lhe a autoridade de poeta da terra e portanto de um ldquoverdadeirordquo poeta Por outro lado o poeta e acadecircmico Maacuterio de Alencar prefaciando o segundo livro publicado por Catullo intitulado Sertatildeo em flor em 1919 jaacute apresentava o autor como um poeta das ci-dades poreacutem nascido no interior Para reafirmar isso o mesmo Maacuterio de Alencar indicava a necessidade do auditoacuterio das cidades como ele-mento fundamental para um poeta virar um ldquoverdadeiro poetardquo pois
Permanecesse Catullo no sertatildeo teria sido naturalmente poeta como satildeo poetas as criaturas simples na sua fala ingecircnua de tom concreto inspiradas na natureza vizinha e familiar e o teria sido ainda pelo dom pessoal do sentimento e da imaginaccedilatildeo vivaz A sua concepccedilatildeo poeacutetica poreacutem ficaria restrita em virtude da mesma familiaridade dos costumes e pela habituaccedilatildeo do cenaacuterio natildeo iria talvez aleacutem das impressotildees inci-sivas embora mas curtas que datildeo a mateacuteria dos versos populares raro excedentes de uma quadra jamais dilatados agrave proporccedilatildeo de um canto
163 CAMPOS Humberto de Homenagem a Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 18-19
164 Ibidem p 19
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Nem o auditoacuterio que estimula o cantor tem ali capacidade de atenccedilatildeo para o desenvolvimento dos temas nem mesmo cantor possui condi-ccedilotildees de coordenaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de demorados assuntos de poesia []O bem ou mal do Catullo foi o seu afastamento do sertatildeo natal Distante sob a experiecircncia de outros costumes deixou de ser ator no cenaacuterio na-tivo para ser espectador alongado e mais sensiacutevel dele A humanidade embrionaacuteria do sertatildeo cresceu aos seus olhos em figuras acabadas os sentimentos limitados aos desafios tomaram a intensidade de estados de alma estuosos e ardentes os usos quotidianos tocaram-se do pres-tiacutegio para a revelaccedilatildeo a estranhos surgiu o cenaacuterio em relevo nas suas partes mais indiferentes aos seus olhos de outrora tornou-se possiacutevel a perspectiva cresceu a saudade deu-se o choque vibratoacuterio de todas as sensaccedilotildees adormecidas e da saturaccedilatildeo dos sentidos virgens resultou a forccedila imaginativa do poeta sertanejo165
Essa tentativa de afirmaccedilatildeo de Catullo como poeta sertanejo atre-lava-se a um movimento que visava natildeo soacute a chamar a atenccedilatildeo do leitor para entender a poesia de Catullo poreacutem mais do que isso de afirmaacute-lo como poeta e como autor de uma poesia nacional ou seja poesia pro-duzida por algueacutem que deveria ser entendido a partir desse lugar Porque para Maacuterio de Alencar o poeta se expressaria somente nas ci-dades Nesse sentido ele explicava que
A mesma relaccedilatildeo necessaacuteria entre o objeto inspirador e a emoccedilatildeo ex-pressiva haacute entre o poeta e o auditoacuterio O isolamento ndash e estar no campo eacute como estar isolado ndash eacute negativo para a criaccedilatildeo O trabalho espiritual procede com a condiccedilatildeo da dualidade da luz e do som que natildeo existem sem o meio transmissor natildeo haacute luz no vaacutecuo natildeo haacute som sem a ondulaccedilatildeo do ar ou a vibraccedilatildeo de um corpo A voz do passado soacute ressoa para o ouvido alheio proacuteximo ou distante mas possiacutevel que a esperanccedila realizaAgora na cidade havia auditoacuterio para escutar o poeta sertanejo e curio-sidade para estimulaacute-loO tema encurtado em cantigas dilatou-se em poemas166
165 ALENCAR Maacuterio A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Bedeschi 1939 p 21 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)
166 Idem
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Esse movimento que agrave primeira vista pode parecer paradoxal esclarece a duacutebia posiccedilatildeo de Catullo no meio letrado de entatildeo ser um autor de poemas sertanejos (embora poeta citadino) e ser reconhecido como algueacutem que conhecia o sertatildeo mas que o representava com os referenciais e coacutedigos reconhecidamente das cidades Dubiedade que era evocada como parte intriacutenseca e fundante de sua condiccedilatildeo de poeta Essa posiccedilatildeo o proacuteprio Catullo a compreendia e a expressava inclusive em seus poemas O novo poeta sertanejo exercitava por diversas vezes em seu texto uma autorrepresentaccedilatildeo visando a um convencimento do leitor de seu lugar como poeta nem tatildeo perto das cidades nem tatildeo longe do sertatildeo
Perspectiva que demonstrava o quanto Catullo era ciente de sua posiccedilatildeo no campo literaacuterio de entatildeo Se por um lado ele assumia seu lugar duacutebio de um poeta sertanejo produzindo nas cidades como forma de marcar a diferenccedila de sua poesia diante de outras produccedilotildees que se voltavam para o sertatildeo por outro o poeta tratava de confirmar sua re-presentaccedilatildeo melhor do espaccedilo sertanejo pela criaccedilatildeo em seus poemas de personagens que dialogavam diretamente com alguns homens im-portantes daqueles tempos
Um desses diaacutelogos por exemplo foi travado no poema intitu-lado Geca-Tatuacute sabidamente uma referecircncia ao personagem criado na mesma eacutepoca pelo escritor Monteiro Lobato para representar o homem do interior Uma vez que Lobato por meio do seu Jeca-Tatuacute pintou a figura do sertanejo num primeiro momento como um fraco ndash represen-taccedilatildeo que de resto tornou-se bastante citada por homens como o con-selheiro e senador Rui Barbosa ndash Catullo tratou de desconstruir essa figura em prol de uma representaccedilatildeo menos condenatoacuteria do sertanejo Assim seu personagem Geca tratava de admoestar o homem da capital um tal ldquoConseiecircrordquo e ldquo Senadocircrdquo que andava falando de uma imagem sua como ldquopreguiccedilosordquo como demonstra a passagem abaixo
Os home caacute da cidademe agarante que o sinhocirceacute o precircmero entre os precircmeroeacute o mais grande brasileiroeacute o Dunga dos inscrito
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Mas poreacutem Macaco veionatildeo mete a matildeo cumbucavazia ansim seu douto[]Preguiccediloso MandracecircroNatildeo sinhocirc seu Conseiecircro
Eacute pruquecirc vancecirc natildeo sabeo que secircje um boiadecircrocriaacute cum tanto cuidado cum tanto amo e alegriaumas cabeccedila de gadoe despois a impidimiacarregaacute tudo cum os diaboim mecircno de quatro dia167
As representaccedilotildees dadas aos sertotildees ndash e por consequecircncia agraves ci-dades ndash construiacutedas numa narrativa (como o texto de Catullo) satildeo com-preensiacuteveis somente se as entendemos como produto de um diaacutelogo tra-vado num ambiente ele proacuteprio citadino e por isso mesmo referenciado por definiccedilotildees oriundas de uma percepccedilatildeo do ldquonovordquo que se expressava na cidade bem como tangenciada pelas discussotildees do lugar ldquosertatildeordquo num discurso de nacional notadamente no campo literaacuterio As lutas de representaccedilotildees do sertatildeo empreendidas nos textos respondiam direta-mente ao interesse especiacutefico de um novo autor que surgia com preten-sotildees literaacuterias Os elementos mobilizados no texto visavam desta forma agrave produccedilatildeo de uma crenccedila no caraacuteter distinto da obra diante de outras que tematizavam o sertatildeo E livros sobre o sertatildeo bem o vimos eram o que natildeo faltava Daiacute a escolha de Catullo de representar o linguajar do homem do sertatildeo ter sido uma foacutermula que gerou grande controveacutersia
Entre os letrados Joatildeo Ribeiro via como problema a reproduccedilatildeo de oralidades sertanejas na obra de Catullo Em resenha para o jornal O Imparcial observa que o leitor deve se resguardar ao imaginar estar lendo um poeta do sertatildeo e faz observaccedilotildees acerca do poema ldquoO le-nhadorrdquo que aparece no livro Meu sertatildeo
167 ALENCAR Maacuterio A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Bedeschi 1939 p 131-135 (1ordf ediccedilatildeo em 1919)
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Eis um bello poema cuja inspiraccedilatildeo literaacuteria eacute evidenteDe mim se ouso falar escrevi tambeacutem uma poesia baacuterbara e imperfeita ndash a ldquoVinganccedila da aacutervorerdquo que soffre do ineditismo cruel do esqueci-mento e natildeo creio que entrasse nrsquoella nenhuma inspiraccedilatildeo sertanejaA de Catullo eacute muito melhor mais perfeita menos artificiosa e sem o pedantismo de foacutermulas meacutetricas exoacuteticas entretanto eacute ainda uma creaccedilatildeo erudita disfarccedilada sob a phraseologia inculta de idiotismos vo-caacutebullos e locuccedilotildees sertanejas168
Essa observaccedilatildeo cautelosa sobre os poemas de Catullo feita por um letrado respeitado como Joatildeo Ribeiro chama a atenccedilatildeo para os vaacute-rios criteacuterios de aceitaccedilatildeo de um novo autor em determinado campo li-teraacuterio e de como as contraditoacuterias opiniotildees sobre a obra de Catullo lanccedilam luz para se pensar as vaacuterias foacutermulas possiacuteveis visando a esse reconhecimento imprescindiacutevel para o pretendente a cargo de ldquopoetardquo
Se a busca de Catullo pelo reconhecimento como poeta (e natildeo soacute ldquopoeta popularrdquo) o levou a flertar com temas sertanejos o mesmo mo-vimento que o levava a esse reconhecimento retirava-lhe a pecha de ldquopoeta do sertatildeordquo por natildeo ser sertanejo ou como se expressa nas pala-vras de Joatildeo Ribeiro acima o seu sertatildeo era criticado por ser ldquouma creaccedilatildeo erudita disfarccedilada sob a phraseologia incultardquo
Sim Catullo era poeta mas natildeo poderia ser representado como dizia Joatildeo Ribeiro como ldquodo sertatildeordquo Paradoxalmente a erudiccedilatildeo ndash aiacute entendida como oposiccedilatildeo ao inculto ndash tatildeo buscada por Catullo o traiacutea pelo fato de que um dos caminhos para ser reconhecido como erudito era tematizar o ldquopopularrdquo poreacutem natildeo um ldquopopularrdquo qualquer mas um ldquopopularrdquo jaacute canonizado qual seja aquele que fala sobre o sertatildeo A representaccedilatildeo da liacutengua sertaneja certamente natildeo era uma receita levada a cabo por poetas consagrados Haveria Catullo de construir esse es-paccedilo para seus poemas
Diferente de Joatildeo Ribeiro seguia o criacutetico Miguel Mello que em artigo no Correio da Manhatilde convenientemente intitulado O poeta da moda dava suas impressotildees sobre a leitura que havia feito do livro
168 O Imparcial 2 dez 1918 p 5
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de Catullo Assim como Ribeiro Mello exorta algumas poesias que considera belas em Meu sertatildeo (inclusive citando versos do poema O lenhador) poreacutem diferentemente daquele natildeo considera seu autor um erudito a falar do sertatildeo tampouco o condena por isso Ao contraacuterio Numa forma de dar a Catullo o lugar que pensava o criacutetico seu livro merecia explica aos leitores como deve ser lido Meu sertatildeo
Quem percorrer as nossas selectas de trovas populares onde tanta peacute-rola vae no meio da abundancia do folk-lore reconheceraacute que no gecirc-nero Catullo da Paixatildeo Cearense eacute um mestreNingueacutem de certo o ouviraacute ao violatildeo sem sentir prazer no saborear-lhe o pittoresco do seu sertanismoEacute um consumado cantor de modinhas Os apreciadores devem apres-sar-se em lhe comprar o livro Mas os homens de letras natildeo o devem desnaturar com emprestar-lhe pretensotildees literaacuterias que soacute podem ter-minar num snobismo peor que o dos cortesatildeos do marechal Hermes bastante nativistas para instalarem como um dia instalaram o corta--jaca nos salotildees do palaacutecio do Catete169
As diversas opiniotildees sobre a leitura dos livros de Catullo colo-cavam em discussatildeo o caraacuteter literaacuterio (ou natildeo) de sua produccedilatildeo Joatildeo Ribeiro nega-lhe a pretensatildeo por ser erudito demais para falar sobre o sertatildeo e Miguel Mello por sua vez natildeo o aceita como literato mas como cantor de modinhas exatamente pela pouca erudiccedilatildeo de sua po-esia Essa nuance na recepccedilatildeo da obra de Catullo fundamentada numa possiacutevel leitura de Meu sertatildeo deixa entrever o fato de que as preten-sotildees literaacuterias do autor teriam de passar pela aceitaccedilatildeo de literatos do periacuteodo nem sempre dispostos de maneira paciacutefica a canonizar um can-didato a literato ndash mesmo que o autor conhecedor sensiacutevel daquilo que movia o campo escolhesse como seu tema um tipo de produccedilatildeo conve-nientemente aceita na literatura produzida no Brasil
Eacute preciso pensar que as obras de autoria de Catullo da Paixatildeo Cearense participam desse (re)encontro com o sertatildeo tatildeo comum na li-teratura de iniacutecios do seacuteculo XX em que os referenciais definidores
169 Correio da Manhatilde 19 dez 1918
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desse espaccedilo sofriam mudanccedilas a partir do contato com o novo que surgia nas cidades Esse movimento que pode parecer agrave primeira vista paradoxal introduzia o ldquoatrasadordquo sertatildeo nas cidades para defini-las para si mas tambeacutem introduzia referenciais citadinos para afirmar os sertotildees como potencialidade e como devir da naccedilatildeo reconstruindo-o para um mundo que almejava ser ldquomodernordquo Isso nos leva pretensiosamente a arriscar a dizer que a paixatildeo de Catullo pelo ldquoatrasadordquo sertatildeo eacute tambeacutem paixatildeo por uma forma de expressar o sertatildeo para ldquomodernosrdquo
Por outro lado e principalmente voltar-se para esse tipo de pro-duccedilatildeo lanccedilando matildeo de versos identificados com o sertatildeo nordestino era uma tentativa de construir (e este era o objetivo de Catullo) a corro-boraccedilatildeo de seus pares para assim identificaacute-lo como um autor que fazia parte do rol de autores sertanejos ndash que diferentemente dos au-tores de livros de modinhas jaacute era uma produccedilatildeo havia bastante tempo respeitada nos meios letrados
Ora promovido a assunto maior na literatura brasileira desde meados do seacuteculo XIX e mesmo um indicador fulcral na definiccedilatildeo do nacional na literatura o sertatildeo jaacute era um tema fundamental na eacutepoca A historiadora Mocircnica Pimenta Velloso vecirc nessa busca por representar a ldquonaccedilatildeordquo uma velha obsessatildeo regradora do campo literaacuterio o que fez com que no Brasil a autorizaccedilatildeo para a afirmaccedilatildeo de uma obra se pau-tasse pelo reconhecimento de que sua obra representasse a naccedilatildeo170 Acrescente-se que como nos diz o criacutetico portuguecircs Abel Barros Baptista a literatura produzida no Brasil eacute ndash de maneira problemaacutetica ndash nacional antes mesmo de ser literatura171 Atento a esse criteacuterio muitas produccedilotildees tematizam a ldquonaccedilatildeordquo inclusive como receita para ser aceito como ldquoliteraturardquo Poreacutem a mesma tradiccedilatildeo de documentar o real eleita por diversos criacuteticos da literatura brasileira desde aquele periacuteodo como criteacuterio que determinaria a canonizaccedilatildeo de uma obra ou de um autor faz com que comumente seja desdenhada a existecircncia de algo para o qual poucos autores chamam atenccedilatildeo a saber a ldquovoga ser-
170 Cf VELLOSO Mocircnica Pimenta A literatura como espelho da naccedilatildeo Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 1 n 2 1988 p 239-263
171 Cf BAPTISTA Abel Barros O livro agreste Campinas Unicamp 2005
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tanejardquo no iniacutecio do seacuteculo XX quando inuacutemeras publicaccedilotildees obtinham sucesso de puacuteblico contendo temaacuteticas sertanejas Essa produccedilatildeo foi desqualificada como sendo demais ldquoimaginosardquo e ldquopitorescardquo sendo que essa ldquovogardquo mobilizada nos textos de diferentes maneiras visou por diversas vezes a uma aceitaccedilatildeo num espaccedilo jaacute ldquoinchadordquo de obras sobre o sertatildeo agrave eacutepoca
Na literatura da virada do seacuteculo XIX para o XX letrados hoje tatildeo reconhecidos ndash como Coelho Neto Afonso Arinos Arthur Azevedo Euclides da Cunha e Monteiro Lobato ndash rivalizavam ou compartilhavam representaccedilotildees dos sertotildees com autores cujos nomes satildeo praticamente hoje ignorados mas que no periacuteodo foram grande sucesso de puacuteblico por suas produccedilotildees sertanejas como Alberto Rangel Valdomiro Silveira Corneacutelio Pires e Catullo da Paixatildeo Cearense
Sobre este uacuteltimo cujo desconhecimento posterior agrave consa-graccedilatildeo de sua obra por seus contemporacircneos reservou-lhe o papel de subliteratura (diagnoacutestico por exemplo de Dante Moreira Leite)172 pesam ateacute hoje epiacutetetos de autor-menor fruto de uma negaccedilatildeo analiacute-tica jaacute haacute muito cultivada que acompanha a literatura estigmatizada como ldquopreacute-modernistardquo Isso lhe renderia a adjetivaccedilatildeo de ldquofora da modardquo pelos modernistas de 1922 Ironicamente Catullo foi descrito pelo cronista Joatildeo do Rio ainda em 1906 como um poeta que ldquoemara-nhou-se no dogma da modardquo e entusiasmava o cronista que por sua vez manifestava seu ecircxtase ao ver Catullo com um ldquocopo de chopp na matildeordquo recitando O poeta e a fidalga uma cena que era para o cronista ldquoum desses espetaacuteculos de brasserie inesqueciacutevelrdquo
Com a publicaccedilatildeo de poemas com temaacuteticas sertanejas em pouco tempo Catullo se tornou um poeta conhecido entre literatos por sua distinta forma de apresentar a poesia sertaneja para citadinos Contudo o caraacuteter controverso de sua poesia natildeo lhe rendia um lugar estaacutevel como poeta nacional De modinheiro reconhecido e ldquopoeta popularrdquo Catullo virava ldquopoeta sertanejordquo visando a um reconhecimento literaacuterio de sua obra nem sempre garantido uma vez que as regras de consa-
172 LEITE Dante Moreira O caraacuteter nacional brasileiro histoacuteria de uma ideologia Satildeo Paulo Unesp 2002
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graccedilatildeo de um poeta a literato diferiam das de um ldquopoeta popularrdquo Por outro lado Meu sertatildeo se tornou um sucesso entre os leitores chegando a ter em 28 anos 41 ediccedilotildees
O esquecimento posterior de sua obra em parte processou-se penso a partir de um cacircnone estabelecido pelos novos escritores cata-pultados especialmente apoacutes 1922 e referendado continuamente por uma criacutetica literaacuteria aacutevida de estabelecer esteacuteticas dentro de uma conti-nuidade Isso relegou a um plano secundaacuterio a anaacutelise histoacuterica das re-gras que regiam a produccedilatildeo literaacuteria em cada obra estudada Esse pro-cesso foi sendo configurado lentamente durante os anos que se seguiram agrave movimentaccedilatildeo de 1922
Mais do que isso o singular no interstiacutecio entre 1902 e 1930 que viu surgir a ldquovoga sertanejardquo foi a introduccedilatildeo de maneira difusa de uma modernidade que viria apaixonadamente se expressar numa ressig-nificaccedilatildeo da produccedilatildeo da literatura no paiacutes produzida no periacuteodo173 Isso demandou novos questionamentos sobre velhos temas (como os temas ldquosertanejosrdquo) forjando representaccedilotildees literaacuterias outras que a partir de um olhar moderno sobre os espaccedilos ansiaram por construir tambeacutem um novo significado para o ldquosertatildeordquo Esse novo significado que objetivava ser partilhado pelos leitores ia tambeacutem construindo um lugar que pudesse alccedilar seu autor como um ldquopoeta sertanejordquo Trajetoacuteria seguida por Catullo no seu afatilde de ser reconhecido como poeta e natildeo somente um bardo trovador
Catullo Satildeo Paulo e os modernos
Satildeo Paulo iniacutecios de 1918 O jovem poeta paulista Guilherme de Almeida comentava sobre um sarau que iria ser realizado na ca-pital paulista para uma distinta plateia da Sociedade de Cultura Artiacutestica Entusiasmado o escritor natildeo poupava elogios agrave principal atraccedilatildeo da noite
173 GALVAtildeO Walnice Nogueira Metamorfoses do sertatildeo Revista de Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 18 n 52 2004
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Eacute um poeta sertanejo que vae dizer versos no sarau de quarta-feira proacute-xima no Trianon Elle natildeo nos era desconhecido porque natildeo haacute quem acompanhando com um pouquinho de amor a vida artiacutestica brasileira natildeo conheccedila Catullo Cearense Qualquer violeiro de esquina canta por ahi versos seus e qualquer de noacutes sabe de cor essas quadras tatildeo cheias de sentimento e verdades do ldquoLuar do Sertatildeordquo []E a gente applaude irresistivelmente sem saber porque aquella histoacuteria corriqueira de amor applaude inconscientemente talvez porque pela primeira vez tenha sentido nella cantante e sincera a alma brasileira a nossa alma bem caipira escondida no fundo do matto e trazida assim de repente aacute flor da arte e da verdade174
Agrave apresentaccedilatildeo no Trianon secundaria outra a realizar-se no Teatro Municipal o chamado ldquoFestival de Catullo Cearenserdquo com apresentaccedilotildees de Amadeu Amaral Martins Fontes Armando Prado Roberto Moreira e do proacuteprio Guilherme de Almeida Desde fins de dezembro na capital paulista Catullo era saudado pela elite letrada da cidade como o ldquopoeta sertanejordquo
Catullo da Paixatildeo Cearense apareceu para o puacuteblico paulistano na esteira do sucesso das conferecircncias sobre o sertatildeo introduzidas por Afonso Arinos ali mesmo na Sociedade de Cultura Artiacutestica no ano de 1915175 Ele acabou natildeo podendo ir a Satildeo Paulo com Arinos mas este uacuteltimo preparava na capital paulista o terreno para o vertiginoso apare-cimento de uma febre por temas sertanejos Se nos anos 1920 em Satildeo Paulo os temas sertanejos se tornaram febre176 no Rio de Janeiro a capital federal essa efervescecircncia alcanccedilou seu aacutepice na deacutecada ante-
174 Apreciaccedilotildees sobre Catullo Cearense Em CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas bra-vios Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 286
175 A Sociedade de Cultura Artiacutestica fora fundada em 1912 e promovia saraus conferecircncias e apresentaccedilotildees musicais capitaneadas por escritores e artistas dos mais respeitados pela elite letrada paulistana de entatildeo O intuito era a ldquovulgarizaccedilatildeordquo das artes para o puacuteblico paulistano como salientou Antocircnio Piccarolo na conferecircncia de abertura Ali frequentavam homens como Maacuterio de Andrade e uma parte consideraacutevel daqueles es-critores que posteriormente ficariam conhecidos como modernistas bem como aqueles cujas obras seriam relegadas ao ostracismo mesmo tendo sido bastante consumidas como Amadeu Amaral um dos soacutecio-fundadores da sociedade e membro da Academia Brasileira de Letras
176 Para a efervescecircncia de temas sertanejos em Satildeo Paulo cf SEVCENKO Nicolau Um jequitibaacute no palco In Orfeu extaacutetico na metroacutepole Satildeo Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992 p 224-257
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rior e revelaria um grande nuacutemero de ldquoautores sertanejosrdquo dentre os quais o personagem principal do entusiasmo do futuro poeta moder-nista Guilherme de Almeida
Alavancado pelo sucesso de criacutetica que Meu sertatildeo e Sertatildeo em flor alcanccedilaram na capital paulista Catullo Cearense se tornou um iacutecone sertanejo no imaginaacuterio dos letrados paulistanos Iacutecone que como vimos chegava a incomodar a Monteiro Lobato agraves voltas com a cons-truccedilatildeo do Jeca sua tentativa de uma representaccedilatildeo definitiva do homem do interior Mas ateacute mesmo Lobato parecia se render a Catullo O editor Castilho fazia desse reconhecimento vindo de Lobato parte da obra do autor uma vez que fez publicar a partir de Sertatildeo em flor trechos das criacuteticas positivas recebidas em jornais e revistas a Catullo
Assim de uma criacutetica positiva de Monteiro Lobato na Revista do Brasil o editor fez aparecer no livro de Catullo o seguinte trecho em que o criador de Jeca-Tatuacute fala do autor ldquo[] o grande poeta o maior poeta deste paiz o poeta-poeta o poeta cujas composiccedilotildees feitas em muacutesica vivem de norte a sul cantadas por todas as bocas despertando em todos os peitos as mais suaves emoccedilotildees []rdquo177
Esse reconhecimento por um letrado respeitaacutevel nas hostes pau-listas natildeo era fortuito Satildeo Paulo jaacute era nos anos 1910 uma cidade cuja efervescecircncia cultural se fazia ver As exposiccedilotildees de Anita Malfatti as primeiras publicaccedilotildees de Maacuterio de Andrade e Oswald de Andrade as apresentaccedilotildees de Isadora Duncan o baleacute de Nijinski as conferecircncias em ataque aos poetas parnasianos e agrave Academia preparavam o clima para a Semana de Arte Moderna de 1922 ndash marco histoacuterico do moder-nismo no Brasil Cacircndido Mota Filho articulista do jornal Correio Paulistano escreve no calor da hora
O anno de 1922 tem sido para S Paulo um anno prodigo de obras lite-raacuterias E de acordo com as estatiacutesticas foram editados nada menos de 250 livros A criacutetica do paiz alviccedilareira procurou desde logo concluir que a razatildeo dessa abastanccedila estava no rearranjo comercial dos editores que encontravam em Satildeo Paulo campo para fazer lucros e fortunas
177 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p 227
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Procurassem os indagadores do caso a verdade com maior criteacuterio e sem vislumbre de parcialidade que haviam de encontral-a na corrente loacutegica que liga o adeantamento intellectual de S Paulo ao seu adeanta-mento materialAbandonando um pouco o rigorismo de Hippolyto Taine para pedir apoio aos ensaiacutestas e socioacutelogos modernos concluir-se-ia banaliacutessima-mente que S Paulo produz mais quer intellectualmente quer editorial-mente porque eacute o Estado onde a porcetagem de analphabetos eacute menor onde o elemento cultural eacute mais forte onde portanto os livros satildeo ab-sorvidos mais sofregamente178
Ao mesmo tempo o cosmopolitismo paulista cedia passagem para a discussatildeo que jaacute mobilizava grande parte da elite letrada carioca e que ganhou novos ares em Satildeo Paulo especialmente a partir de 1924 afinal o que seria o Brasil A resposta a essa pergunta era buscada no entrelaccedilamento entre uma cultura denominada de ldquoregionalistardquo e outra que chegava identificada com o termo ldquomodernordquo e que viria com uma profunda discussatildeo acerca daquilo que era entendido como ldquoa naccedilatildeo brasileirardquo Nesse sentido o tema ldquosertatildeordquo ganhou novo focirclego pois se o futuro a ser buscado prescindia de um passado cujo modelo carioca da belle eacutepoque era o exemplo mais acabado esse mesmo futuro natildeo poderia ser autecircntico se natildeo ganhasse cores locais Assim refundar a modernidade em Satildeo Paulo parecia ser um dos pilares fundamentais para se estabelecer o moderno no paiacutes de forma que a imitaccedilatildeo mdash ou o ldquopapagaiamentordquo como se costumou dizer mdash natildeo tomasse dessa vez a dianteira como era assim entendido o exemplo carioca Dessa forma pensar o paiacutes era uma receita prudente para que vingasse essa sede de moderno assumindo inclusive suas mazelas e seu exotismo Daiacute era possiacutevel enxergar nos mesmos locais em que se apresentavam os apo-logistas da modernidade em Satildeo Paulo espetaacuteculos que buscavam trazer representaccedilotildees do exoacutetico e mesmo do risiacutevel como forma de representar o paiacutes
Repensar o ldquomodernordquo era uma receita que atraiacutea diversos inte-lectuais desde iniacutecios do seacuteculo XX A historiadora Acircngela de Castro
178 ldquoA literatura em S Paulordquo publicado no Correio Paulistano 8 set 1922 p 3
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Gomes em seu livro Essa Gente do Rio chama a atenccedilatildeo para ldquoa possi-bilidade de uma variedade de projetos de modernizaccedilatildeo que se expres-sariam por numerosas mas natildeo arbitraacuterias esteacuteticas modernistasrdquo179 Essas inuacutemeras possibilidades de tratamento do que se entendia ser ldquomodernordquo conduz a uma reflexatildeo que esmaece as fronteiras delimi-tadas quando se pensa o ldquomodernismordquo no Brasil e reintroduz no acircmago da discussatildeo a historicidade do termo Isso possibilita uma de-sestigmatizaccedilatildeo da produccedilatildeo letrada natildeo paulistana que durante algum tempo foi eclipsada por uma Histoacuteria Literaacuteria que via a discussatildeo sobre o ldquomodernordquo em Satildeo Paulo como o modelo propulsor e acabado do que se convencionou chamar de ldquomodernismordquo nas artes O que se visa natildeo eacute estabelecer rivalidades regionais na produccedilatildeo literaacuteria dos anos 1920 mas discutir os usos compartilhados que se fizeram de temas estilos e termos independente de limites regionais
O sucesso de temas sertanejos na capital paulista ao que parece eacute um desses toacutepicos que podem estabelecer uma anaacutelise mais dialoacutegica e profunda do que foi o ldquomodernordquo no paiacutes Ora foi na construccedilatildeo da-quilo que seria canonizado como ldquomodernismordquo que letrados paulistas compartilharam com seus amigos cariocas a discussatildeo sobre o ldquoatra-sadordquo sertatildeo A negaccedilatildeo da experiecircncia carioca de modernidade por jo-vens escritores paulistas natildeo deixou de conduzi-los para a busca por um elemento que jaacute aparecia como incocircmodo para os cariocas da virada do seacuteculo e que reaparecia como assunto intransponiacutevel para se pensar a modernidade no Brasil os temas sertanejos Daiacute que em Satildeo Paulo na Sociedade de Cultura Artiacutestica as apresentaccedilotildees de temas considerados ldquomodernosrdquo revezavam-se com espetaacuteculos como os capitaneados por Afonso Arinos que trazia do Rio para os palcos paulistanos nomes como Catullo Cearense ou Joatildeo Pernambuco Este uacuteltimo apresentou-se na Sociedade juntamente com Corneacutelio Pires em dezembro de 1916 e teve na plateia um Monteiro Lobato extasiado
179 GOMES Acircngela Castro Essa gente do Rio Modernismo e Nacionalismo Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas 1999 p 12
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Nunca uma plateia como a nossa viacutetima de azia crocircnica pelo abuso de orchatas francesas como essa que o Lugneacute-Poe nos forccedilou a in-gerir a 10$000 a dose vascolejou diafragmas e adjacecircncias com mais sinceros saudaacuteveis e tonificantes risos Natildeo era o risinho espremido e forccedilado verdadeira careta de maacutertir de quem sorri por injunccedilotildees do snobismo ndash sorriso palerma que eacute um esgar simiesco ndash repuxo cocircmico de muacutesculos faciais O que no puacuteblico ria natildeo era a atitude nem a francelha cultura do es-piacuterito era a carne o sangue a raccedila era esse substrato mental e sen-timental que noacutes medrosos da criacutetica escarninha dos elegantes que cheiravam Paris e no-lo embutem como padratildeo supremo conservamos timidamente em caacutercere privado Que bem faz rir assim[] A outra consoladora manifestaccedilatildeo de arte nossa proporcionou-nos Joatildeo Pernambuco Eacute um belo tipo de homem Nele se estampam em grau acentuado todas as caracteriacutesticas do brasileiro puro criado ao ar livre no contacto direto com a natureza bravia Dentro do seu peito bate um coraccedilatildeo Sursquoalma eacute a proacutepria alma da terra Paris natildeo contaminou um gloacutebulo sequer daquele sangue oxigenado pelo ar das florestasCantou o ldquoLuar do Sertatildeordquo com tanto sentimento que inuacutemeros olhos se humedeceram da mais pura emoccedilatildeo esteacutetica Que soberbo versos satildeo aqueles Quanta poesia ali da verdadeira da autecircntica da que brota espontacircnea do coraccedilatildeo Rudes sem atenccedilatildeo para com a forma []180
Para Lobato era a proacutepria ldquoformardquo da poesia cantada por Pernambuco que se colocava em contraste com coisas francesas ndash e natildeo soacute o conteuacutedo expresso ldquoForma afrancesadardquo essa que jaacute era contestada pelos letrados cariocas de maneira que Catullo pocircde ser agraciado com o tiacutetulo de poeta nacional por escrever seus versos numa forma da terra a linguagem sertaneja A forma o academicismo o afrancesamento todos esses elementos que surgiam como questotildees para um novo tipo de expressatildeo cultural em Satildeo Paulo (que rompesse afinal com os cha-mados passadismos identificados com tais elementos) eram discussotildees que tambeacutem aticcedilavam os letrados cariocas e que deram a oportunidade para empreendimentos no campo literaacuterio que como o de Catullo em
180 LOBATO Monteiro Arte brasileira In LOBATO Monteiro Ideacuteias de Jeca-Tatuacute Satildeo Paulo Brasiliense 1956 p 191-192
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Meu sertatildeo e em Sertatildeo em flor colocavam em pauta as expressotildees da liacutengua como definidora de uma autenticidade em detrimento de mo-dismos agrave francesa
De resto esse eacute o mesmo impulso que levaraacute os novos artistas paulistas a buscarem uma arte nacional e moderna O grande entrave que se tornou uma discussatildeo comum entre os autores ligados agraves letras no periacuteodo (mas natildeo somente) era a questatildeo de qual seria o lugar do sertatildeo na modernidade que se pretendia Entrave que como visto ante-riormente era um mal-estar compartilhado pela elite citadina do Rio de Janeiro Na esteira disso natildeo deveria causar incocircmodo para os novos artistas paulistas evocar o nome de Euclides da Cunha como o pioneiro carioca do modernismo paulista Nele se expressavam todas as dicoto-mias advindas do tratamento do paiacutes a partir de termos como moderni-dade das cidades versus sertatildeo autecircntico-atrasado
Natildeo se pode esquecer que no mesmo momento em que se apro-ximava a fase heroica do primeiro modernismo paulista escritores que tematizavam o mundo rural como Amadeu Amaral Godofredo Rangel Ricardo Gonccedilalves e Valdomiro Silveira viveram seus aacutepices como li-teratos ndash para natildeo falar de Monteiro Lobato Como esquecer o apareci-mento de Corneacutelio Pires fazendo o papel de como hoje eacute comum dizer ldquoagitador culturalrdquo ao levar aos palcos causos e piadas dos homens do interior e mostrar para o grande puacuteblico as primeiras duplas sertanejas de que se tem notiacutecia como Zico Dias amp Ferrinho Mandi amp Sorocabinha e Mariano amp Caccedilula Aliaacutes o mesmo Corneacutelio Pires criou a ldquoTurma de Corneacutelio Piresrdquo um grupo de vaacuterios artistas que vestidos de caipiras chegou a rodar o estado de Satildeo Paulo com sucesso a partir de 1924 chegando a gravar um raro disco em 1929181
Foi nesse clima que a poesia de Catullo chegou aos salotildees pau-listas A mesma mocidade que em iniacutecios de 1922 veio a chacoalhar as letras brasileiras a partir de Satildeo Paulo se espremia por um espaccedilo para ver o conhecido ldquopoeta sertanejordquo declamar suas poesias
181 Trata-se de um 78 rpm pela Columbia contendo duas canccedilotildees A moda da revoluccedilatildeo e Vida apertada Cf DICIONAacuteRIO Houaiss Ilustrado da Muacutesica Popular Brasileira Rio de Janeiro Paracatu 2006 p 1131
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Estudando o modernismo de 1922 o filoacutesofo Eduardo Jardim chama a atenccedilatildeo para uma mudanccedila no interior do movimento paulista a partir de 1924 Diz o filoacutesofo que por volta de 1924 o caminho das experimentaccedilotildees esteacuteticas foi progressivamente sendo substituiacutedo por uma agenda que colocava em primeiro plano a necessaacuteria construccedilatildeo de uma nova literatura que estivesse mais de acordo com o paiacutes Nesse sentido para ele a obra Canaatilde de Graccedila Aranha seria paradigmaacutetica dos rumos que se pretendeu dar agrave movimentaccedilatildeo paulista182
O filoacutesofo argumenta que uma inflexatildeo teria se dado no momento em que se deixou progressivamente uma tentativa de buscar uma nova ex-pressatildeo esteacutetica ndash tema muito discutido no periacuteodo imediatamente anterior a 1922 ndash e uma reviravolta fez recolocar sob nova roupagem o tema do melhor representar o paiacutes na literatura do periacuteodo Essa tarefa teve direccedilotildees distintas em figuras como Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade
Embora tal reflexatildeo revele uma mudanccedila seminal na produccedilatildeo ldquomo-dernistardquo do periacuteodo o fato eacute que a agenda de melhor representar o paiacutes e na esteira disso a criaccedilatildeo de uma nova esteacutetica que pudesse melhor ex-pressar esse desejo de representaccedilatildeo da naccedilatildeo era buscada pelos proacuteprios participantes paulistas do movimento de 1922 bem antes desse periacuteodo
Assim natildeo eacute agrave toa que na tentativa de revelar a movimentaccedilatildeo que se dava nas artes brasileiras para o puacuteblico francecircs Oswald de Andrade em conferecircncia na Sorbonne um ano apoacutes a Semana de Arte Moderna expressava essa busca de uma ldquoverdade nacionalrdquo
[] Outros espiacuteritos procuram tambeacutem aproximar-se da pura verdade nacional anunciada pelos cantos anocircnimos dos sertotildees a cantiga nos-taacutelgica do vaqueiro do almocreve do negro e do caipiraO regionalismo surge nos quadros ruacutesticos de Ricardo Gonccedilalves e Corneacutelio Pires em Satildeo Paulo e sobretudo nos poemas espontacircneos e liacutericos de Catullo da Paixatildeo Cearense Ele canta a lua que magnetiza as panteras os diluacutevios perioacutedicos do Amazonas que engole florestas e aldeias183
182 JARDIM Eduardo Brasilidade modernista Rio de Janeiro Grall 1978183 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 47 Esse artigo foi
reproduzido na Revista do Brasil em seu nuacutemero 96 de dezembro de 1923
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Essa conferecircncia tem uma importacircncia fundamental para o en-tendimento do que foi o ldquomodernismordquo no Brasil pois natildeo se trata soacute de um balanccedilo criacutetico das artes brasileiras do periacuteodo mas de uma tenta-tiva de produccedilatildeo de um discurso histoacuterico do ldquomodernismordquo Haacute no evento uma apropriaccedilatildeo dos nomes de diversos autores de liacutengua por-tuguesa de forma a culminar nos nomes dos modernistas paulistas Mas se posteriormente muitos desses nomes elencados por Oswald desapa-receriam dos estudos literaacuterios brasileiros ali ainda em 1923 na proxi-midade dos acontecimentos de 1922 em Satildeo Paulo surgiam nomes inesperados que o conferencista evocava para construir uma racionali-dade histoacuterica para o movimento diante do puacuteblico francecircs
Nesse caminho o regionalismo surge no discurso de Oswald como um dos exemplos preacute-22 de busca por uma ldquoverdade nacionalrdquo Haacute ali uma constataccedilatildeo de que uma ldquoverdade do paiacutesrdquo fora procurada na literatura antes da assunccedilatildeo dos modernistas de 1922 Entretanto se para o estudioso atual da literatura brasileira o aparecimento de nomes consagrados como ldquopreacute-modernistasrdquo seria fatal eacute com espanto que se vecirc surgirem na conferecircncia de Oswald nomes improvaacuteveis como os de Amadeu Amaral Corneacutelio Pires Joatildeo Ribeiro e Catullo da Paixatildeo Cearense Esses nomes aparecem inclusive como fundadores de uma liacutengua nacional diferente da liacutengua portuguesa
Estamos assistindo ao esforccedilo cientiacutefico da criaccedilatildeo de uma liacutengua independente por sua evoluccedilatildeo da liacutengua portuguesa da Europa Recebemos como benefiacutecio todos os erros de sintaxe do romancista Joseacute de Alencar e do poeta Castro Alves e o folclore natildeo atingiu so-mente o domiacutenio filosoacuteficoDois filoacutesofos de boa cultura cumprem os desejos esboccedilados pela graccedila sertaneja de Corneacutelio Pires e pelo poder de expressatildeo de Catullo Enquanto o Sr Joatildeo Ribeiro tratava de fundar em 32 notaacuteveis liccedilotildees uma liacutengua nacional o Sr Amadeu Amaral construiacutea a nossa primeira gramaacutetica regionalista184
184 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 46
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Adiante contrabalanceando dentro de sua perspectiva um diaacutelogo entre autores anteriores e novas referecircncias Oswald dispara ldquoA Obra dos dois ilustres acadecircmicos esqueceu entretanto a contribuiccedilatildeo do jargatildeo das grandes cidades brasileiras onde comeccedila a brotar em Satildeo Paulo principal-mente uma surpreendente literatura de novos imigrantesrdquo185
Daiacute ao caraacuteter documental da liacutengua expresso pelos trabalhos de Amadeu Amaral e Joatildeo Ribeiro secundaria diz-nos Oswald a audaacutecia de Monteiro Lobato que com o seu Jeca-Tatuacute viu-se apesar do su-cesso contrariado pelo imaginaacuterio popular sobre o homem do interior Vale a citaccedilatildeo
O Sr Lobato teve a audaacutecia de sair do domiacutenio puramente documental em que se acantonavam Veiga Miranda Albertino Moreira Godofredo Rangel e Valdomiro Silveira reagindo tambeacutem contra o urbanismo que dava a visatildeo histoacuterica do poliacutegrafo Eliacutesio de Carvalho a obra de Tomaacutes Lopes e Joatildeo do Rio e a primeira fase poeacutetica de Guilherme de AlmeidaLobato tinha um longo conhecimento do Brasil tendo feito seus es-tudos em Satildeo Paulo tornando-se fazendeiro em seguida A obra de ficccedilatildeo desejada por Machado de Assis realizou-se com a criaccedilatildeo do tipo de Jeca Tatu Era o inseto inuacutetil da terra magniacutefica que para gozar um espetaacuteculo e ter ocupaccedilatildeo queimava as matas []O siacutembolo vingou-se A imaginaccedilatildeo popular viu nele o Brasil tenaz cheio de resistecircncias fiacutesicas e morais fatalizado mas natildeo fatalista tendo adotado pelas circunstacircncias das suas origens e do seu exiacutelio esta espeacutecie de vocaccedilatildeo para a infelicidade observada inconsciente-mente pelos etnoacutelogos e romancistas186
Oswald conta-nos do triunfo do imaginaacuterio popular sobre a obra de Lobato A representaccedilatildeo ficcional de Lobato ganhava outros cami-nhos pelo imaginaacuterio popular de onde se expressaria uma possiacutevel ldquoverdade uacuteltimardquo O ldquopopularrdquo em contradiccedilatildeo com a ldquoficccedilatildeordquo
O desfile de referecircncias a autores da literatura denominada ldquore-gionalistardquo por Oswald conduz a um questionamento basilar no que diz
185 Idem p 46186 ANDRADE Oswald de Esteacutetica e poliacutetica Satildeo Paulo Globo 2011 p 47
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respeito agrave construccedilatildeo do modernismo na literatura brasileira qual o sentido de construir na histoacuteria modernista tatildeo constantemente identi-ficada como uma histoacuteria de ruptura um elo que possa ligar a nova produccedilatildeo poacutes-22 com autores regionalistas anteriores Se essa eacute a in-tenccedilatildeo exposta por Oswald muitas vezes considerado o mais radical dos modernistas haacute de se fazer uma (re)apreciaccedilatildeo do que foi o moder-nismo Mais o problema nos coloca no cerne da discussatildeo do termo ldquomodernordquo como uso criativo de forma que eacute soacute pelo exame da histori-cidade dessa criaccedilatildeo que se podem entender as disputas pelo moderno que satildeo por uacuteltimo disputas por construir um sentido para o termo em meio agrave sua construccedilatildeo Se essa construccedilatildeo foi permeada por disputas estas tambeacutem podem ser entrevistas nos textos que produziram aquela
O dilema que se reintroduz entre os ldquonovos modernistasrdquo eacute como se percebe nas reflexotildees do proacuteprio Oswald de Andrade o dilema ins-transponiacutevel jaacute observado na virada do seacuteculo nas produccedilotildees literaacuterias do Rio de Janeiro qual seja a necessaacuteria aproximaccedilatildeo de um discurso literaacuterio de um discurso sobre a naccedilatildeo E se certos autores entre os quais Catullo puderam ser evocados nos argumentos que pudessem fazer entender 1922 eacute que essa tensatildeo em definir o moderno no paiacutes era dramatizada em suas proacuteprias produccedilotildees fosse numa tentativa delibe-rada de representar o moderno (ou o seu avesso) no texto fosse na possibilidade sempre buscada de construir uma autoridade pelo que se representa por meio de artifiacutecios formais tais como ldquoeu conheccedilordquo ldquoeu virdquo ou ldquoeu sintordquo De acordo com o capital social de cada candidato a autor essas escolhas poderiam resultar como definitivas para sua con-sagraccedilatildeo como integrante no rol de uma possiacutevel ldquoliteratura nacionalrdquo
O que se discute afinal com a eclosatildeo do modernismo paulista eacute novamente a disputa por quem melhor representa medida a partir da representaccedilatildeo da autoridade daquele que representa Se em 1923 data da conferecircncia de Oswald de Andrade como nos alerta o filoacutesofo Eduardo Jardim ainda natildeo estava tatildeo clara uma escolha pelo papel construtor de uma representaccedilatildeo do nacional na literatura produzida pelos modernos paulistas progressivamente essa escolha vai sendo construiacuteda a fim de lanccedilar em pares opostos imaginaccedilatildeo versus co-nhecimento Embora essa dualidade ganhe contornos claros com a cha-
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mada primeira geraccedilatildeo modernista tal dilema jaacute herdava uma discussatildeo fortemente em voga de forma dramaacutetica na virada do seacuteculo XIX para o XX e ateacute antes disso
A questatildeo da brasilidade literaacuteria em 24 natildeo constitui a inauguraccedilatildeo de uma problemaacutetica nova em nossa histoacuteria cultural Desde o roman-tismo este problema vinha sendo debatido pela elite culta do paiacutes O fato de ela ter novamente despertado no interior do modernismo pos-sivelmente estabelecendo elos com as discussotildees a respeito do primi-tivismo na arte europeia natildeo dispensa o exame de sua relaccedilatildeo com outros momentos de sua formulaccedilatildeo na histoacuteria cultural do Brasil [] Assim poderemos perceber que o modernismo constitui a retomada e o adiantamento de um caminho jaacute aberto na nossa vida intelectual Poderemos perceber igualmente que ele opera uma releitura do passado da discussatildeo em torno do tema da brasilidade e mais ainda teremos a possibilidade de esclarecer o movimento que fez com que muitas vezes recorrecircssemos aacute [sic] mensagem modernista para a elucidaccedilatildeo da nossa proacutepria situaccedilatildeo cultural Eacute que continuamos a discutir com o moder-nismo como ele o fez com os momentos que o antecederam187
Acrescentado a isso diria que eacute urgente flagrar a construccedilatildeo do termo ldquomodernismordquo a partir das obras que lhe iam dando corpo Voltar portanto agrave indagaccedilatildeo fundante sobre o que os termos ldquomodernidaderdquo ldquomodernordquo ldquomodernismordquo e correlatos guardam neles quando vistos numa perspectiva histoacuterica dentro de sua proacutepria historicidade Dessa forma qualquer anaacutelise acerca do ldquomodernismordquo como movimento de renovaccedilatildeo das artes brasileiras deve levar em consideraccedilatildeo uma re-laccedilatildeo de tempo ou dito de outra maneira a compreensatildeo de usos do passado processados em determinada historicidade como paracircmetro para a definiccedilatildeo daquilo que se enxerga como ldquomodernordquo Eacute a esse ca-minho que nos ateremos a seguir para balizar o lugar de Catullo da Paixatildeo Cearense nessa discussatildeo
Quando eclode a Semana de 22 Catullo havia publicado seu novo livro pela livraria Castilho Poemas bravios O novo volume de poesias deixava de lado parte da foacutermula da poesia com linguajar serta-nejo Isto eacute em parte pois metade do livro ainda usava da mesma foacuter-
187 JARDIM Eduardo Brasilidade modernista Rio de Janeiro Grall 1978 p 16
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mula mas diferentemente das outras publicaccedilotildees havia vaacuterios poemas em que o narrador natildeo mais usava tal princiacutepio E havia algo mais contos sertanejos em prosa
Se essa mudanccedila pode ser atribuiacuteda agraves vaacuterias criacuteticas recebidas eacute algo difiacutecil de dimensionar O fato eacute que como diz o historiador Joatildeo Ribeiro nas apreciaccedilotildees expostas no final do livro de Catullo ele agora poderia ser visto como ldquoum poeta nacional natildeo tenho duacutevidardquo188 Eacute essa caracterizaccedilatildeo de Catullo como ldquopoeta nacionalrdquo que sofreraacute uma inflexatildeo com a chegada de 1922
Trazendo o termo ldquomodernordquo para o centro das reflexotildees sobre as formas de expressatildeo os modernistas de 22 construiacuteram novos paracircme-tros que pudessem ser sinalizados para se definir uma obra literaacuteria como nacional A tarefa de modernizar a literatura passaria pelo impe-rativo do conhecimento daquilo que se narra especialmente poacutes-1924 Haveria uma exterioridade na obra a ser buscada para que ela fosse definida como ldquonacionalrdquo
Esse ponto era procurado inclusive na biografia do autor da obra Natildeo que as formas de expressatildeo natildeo fossem desdenhadas nas mo-tivaccedilotildees definidoras dos modernistas do que seria a nova literatura ndash certamente a poesia identificada como parnasiana seria deixada de lado ndash mas o que se nota eacute uma intransigente busca por retratar no texto a ldquorealidade nacionalrdquo de forma que ao contraacuterio a imaginaccedilatildeo era co-locada agrave parte como coisa desvirtuadora da realidade Daiacute o tema do ldquonacionalrdquo para o investigador de textos literaacuterios produzidos no Brasil nesse periacuteodo ser intransponiacutevel Mas se uma receita antiga da histoacuteria literaacuteria busca flagrar a ldquoconstruccedilatildeo da naccedilatildeo nos textosrdquo seguimos outro caminho que pensamos ser mais profiacutecuo com o questionamento sobre como os usos diferenciados do nacional em textos faziam com que um rol de obras impressas fossem alavancadas no rol de obras na-cionais e de como isso era operacionalizado pelos candidatos a autores nacionais e seus editores nas produccedilotildees impressas do periacuteodo
188 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Poemas bravios Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 270
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Nunca eacute demais considerar que aquilo que no senso comum de-nomina-se ldquomodernistas de 22rdquo eacute um termo que abrange inuacutemeros au-tores natildeo raras vezes de opiniotildees e representaccedilotildees profundamente dis-tintas quando se propunham a construir uma literatura definida como ldquonacionalrdquo Ademais consideraacute-los um grupo de paulistas como fre-quentemente eacute caracterizado seria desdenhar figuras natildeo paulistas como Ronald de Carvalho Manuel Bandeira e Seacutergio Buarque de Holanda que a despeito de seus locais de origem intervieram de forma decisiva na construccedilatildeo do que se convencionou chamar ldquomodernismordquo Aleacutem disso o termo ldquomodernismordquo pode esconder as leituras consu-midas e evocadas pelos seus protagonistas na construccedilatildeo de uma nova literatura O exemplo de Oswald anteriormente citado como leitor simpaacutetico de Catullo pode bem trazer tais desconfianccedilas quanto agraves construccedilotildees a priori sobre o movimento de 1922
Mais provocador ainda eacute observar os editores de alguns dos mais ilustres natildeo paulistas que continuaram a publicar por casas cariocas Ronald de Carvalho permanece com seu editor Aacutelvares Pinto em pelo menos duas publicaccedilotildees (Espelho de Ariel e Estudos brasileiros) vindo depois a publicar pela Leite Ribeiro e pela F Briguet e Comp ambas cariocas Graccedila Aranha continuou a publicar pela Garnier ainda no Rio Prudente de Moraes Neto e Seacutergio Buarque de Holanda potildeem para frente o projeto da Revista Esthetica Aleacutem desses O ritmo dissoluto de Manuel Bandeira publicado em 1924 sai pela Paulo Pongetti amp Comp e posteriormente Libertinagem de 1930 sai pela mesma edi-tora carioca Aliaacutes a editora graacutefica dos Irmatildeos Pongetti se valeu muito das inovaccedilotildees teacutecnicas trazidas pela modernizaccedilatildeo das artes brasileiras e dos processos poliacuteticos que catapultavam tais mudanccedilas Henrique Pongetti ainda diria da Revoluccedilatildeo de 1930 que ldquoEm nenhuma outra parte da vida nacional a transformaccedilatildeo teve um jeito tatildeo perfeito de milagre como nas oficinas graacuteficasrdquo189
189 MACHADO Ubiratan Histoacuteria das livrarias cariocas Rio de Janeiro EDUSP 1912 p 195 Ainda estaacute por se fazer uma histoacuteria editorial do Modernismo de 1922 de forma a se compreender o diaacutelogo entre produtores de livros e a difusatildeo da litera-tura modernista ndash que natildeo se restringia a editores brasileiros diga-se de passagem Eacute possiacutevel que esse esforccedilo traga uma maior dimensatildeo criacutetica do Movimento de 22 de
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Essa efervescecircncia editorial pode ser pensada tambeacutem como pro-dutora de uma esteacutetica modernista bem como pela produccedilatildeo de um gosto por certos autores que seriam posteriormente consagrados Leite Ribeiro que galvanizou nos anos 1920 grande parte das publicaccedilotildees de sucesso no Rio de Janeiro (antes de passar a empresa para seu soacutecio Freitas Bastos) representava bem a tentativa de criaccedilatildeo de um mercado consumidor para novas obras Na sua livraria publicavam-se desde au-tores de livros juriacutedicos a literatos famosos como Humberto de Campos e Coelho Neto e era frequentada pela nata da elite letrada carioca Na Leite Ribeiro deu-se o maior escacircndalo do mundo literaacuterio do periacuteodo a apreensatildeo em massa de Mademoiselle Cinema romance de Benjamin Constallat mdash inclusive com a prisatildeo dos empregados da livraria190 Sob a eacutegide de Freitas Bastos a livraria tem sua fase de aacutepice inaugurando inclusive uma filial na cidade de Satildeo Paulo nos anos 1930 Dentre as publicaccedilotildees exitosas da casa destacam-se as obras de Mendes Fradique mdash um enorme sucesso no periacuteodo especialmente a Histoacuteria do Brasil pelo methodo confuso e A loacutegica do absurdo Suas ediccedilotildees luxuosa-mente produzidas e sempre com belas ilustraccedilotildees de capa atraiacuteam o leitor mais exigente
Em meio a isso a grande jogada da livraria foi sem duacutevida a ldquoCollecccedilatildeo dos Cine-Romancesrdquo que se propunha a publicar ldquoos ro-mances e novellas sobre que se baseiam os principais superfilmsrdquo e vendecirc-los para o grande puacuteblico indicando que ldquosatildeo volumes profusa-mente illustrados com as melhores scenas do filme e trazem photogra-phias dos principais inteacuterpretesrdquo191 Suas publicidades vinham inclu-
forma a enxergaacute-lo tambeacutem como uma movimentaccedilatildeo que se valeu de um campo de produccedilatildeo de livros pungente no Brasil de entatildeo Apesar da lacuna vale a leitura do artigo de Regina Zilberman sobre as relaccedilotildees de Maacuterio de Andrade e seus editores onde a autora esboccedila essa compreensatildeo do caraacuteter editorial do ldquoprojeto modernistardquo Cf ZILBERMAN Regina Maacuterio de Andrade ou Como um modernista editava Revista Itineraacuterios Araraquara n 7 1994
190 Haacute uma oacutetima dissertaccedilatildeo acerca dos ldquonegoacutecios com livrosrdquo de Benjamin Constallat nesses idos chamando a atenccedilatildeo para o caraacuteter empreendedor do escritor no ramo editorial Cf FRANCcedilA Patriacutecia de Souza Uma campanha pelo livro nacional a atuaccedilatildeo editorial de Benjamim Costallat no Rio de Janeiro dos anos 1920 113 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria Social) ndash Programa Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Social Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2012
191 Cataacutelogo da Livraria que consta na contracapa de ldquoAlma do sertatildeordquo de Catullo da
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sive acompanhando a publicidade dos filmes em cartaz nos cinemas a nova febre das cidades
Catullo da Paixatildeo Cearense tambeacutem seria publicado por Leite Ribeiro Alma do sertatildeo veio agrave luz em 1928 com uma colorida ilustraccedilatildeo de capa marca da editora Leite Ribeiro assim como Antocircnio Castilho (agora antigo editor de Catullo) jaacute investia em publicaccedilotildees com temaacute-ticas ditas ldquoregionalistasrdquo desde os anos 1910 Foi Leite Ribeiro quem primeiro publicou Joatildeo do Norte (pseudocircnimo de Gustavo Barroso) com o sucesso de Ao som da viola em 1921 Antes disso ainda em 1917 usando o pseudocircnimo de Joatildeo Phoca Joatildeo Batista Coelho publicava o volume de contos praianos Os caiccedilaras Em 1922 Carlos de Vasconcelos publicava pela Leite Ribeiro Deserdados ndash romance da Amazocircnia Essa profusatildeo de livros identificados com temaacuteticas ldquopopularesrdquo atendia agrave demanda pelo consumo de tais produtos que supostamente davam a co-nhecer o restante do paiacutes Assim quando Catullo publicou Alma do sertatildeo a foacutermula jaacute era bem conhecida na livraria Editora mas agrave dife-renccedila de seus livros anteriores aparece um Catullo prosador de temas natildeo sertanejos ndash aleacutem eacute claro de suas poesias sertanejas que faziam a apresentaccedilatildeo da publicaccedilatildeo em sua primeira parte
A colocaccedilatildeo de tais escritos natildeo sertanejos algo ineacutedito na obra de Catullo ateacute aquele momento deve ser pensada a partir de uma exi-gecircncia que se coloca dentro da literatura do periacuteodo Se em 1918 com Meu sertatildeo a foacutermula operada por Catullo em seu texto era encarada em termos tais como autenticidade versus falsificaccedilatildeo onde o autor era definido como um autecircntico poeta que traduziria uma alma em 1928 a ldquoalma sertanejardquo de Catullo era colocada em xeque cada vez mais pela demanda por representaccedilotildees do mesmo sertanejo que fugisse do caraacuteter subjetivo para um caraacuteter mais realista Catullo ao assumir por sua vez em sua prosa a liacutengua culta (em detrimento do linguajar sertanejo das foacutermulas anteriores) assumia sua produccedilatildeo fora do espaccedilo de iden-tificaccedilatildeo de uma possiacutevel traduccedilatildeo da alma para a afirmaccedilatildeo de uma produccedilatildeo narrativa sua sem traduccedilotildees Isso veio na esteira das criacuteticas
Paixatildeo Cearense Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928
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recebidas apoacutes a progressiva consolidaccedilatildeo de uma esteacutetica vinda do modernismo de 1922 Voltaremos a essa criacutetica adiante
O livro de Catullo Alma do sertatildeo pode ser lido como uma rup-tura na trajetoacuteria literaacuteria do poeta Pouco a pouco o caraacuteter regional na literatura produzida no periacuteodo se desenrola no sentido de identificar a escolha pelo regional agrave submissatildeo do termo a uma alma brasileira e daiacute a criaccedilatildeo de artifiacutecios textuais que pudesse conduzir o leitor a identi-ficar aquele que escreve como autor de literatura nacional A citaccedilatildeo de um poema de autoria de Bastos Tigre publicado no prefaacutecio da obra assinado pelo escritor Maacuterio Joseacute de Almeida confere a tocircnica da mu-danccedila que se segue naquele momento No poema Bastos Tigre mostra uma representaccedilatildeo do poeta Catullo da Paixatildeo Cearense em sua tran-siccedilatildeo do regional para o brasileiro
Nesse idioma de ldquopru moderdquoDe ldquoapois natildeordquo de ldquoseu doutordquoSoacute o gecircnio das selvas poacutedeTer ressonacircncias de Hugo
Nestes teus poemas se sentendash Eacute questatildeo de os entender ndashldquoO cheiro da terra quenteQuando comeccedila a choverrdquo
No coraccedilatildeo desta terraExplorador penestrasteE os diamantes que elle encerraPotildees dos teus versos no engaste
Rondon bravo estuda o soloRios vaacuterzeas chapadotildeesCatullo eacute o Rondon que ApolloMandou aacute alma dos sertotildees
E tendo os teus poemas tem-seEsta impressatildeo verdadeiraNatildeo eacutes da Paixatildeo CearenseEacutes da paixatildeo brasileira192
192 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928 p 22-23
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Haacute aqui uma primeira expressatildeo de mudanccedila ainda que sutil Bastos Tigre observa algo que jaacute naquele momento (radicalizado logo depois) iria ser a tocircnica da produccedilatildeo literaacuteria no Brasil Se antes o caraacuteter regional ou popular de uma produccedilatildeo poderia ser um iacutendice de definiccedilatildeo de algo a ser compreendido como ldquoliteratura brasileirardquo e a construccedilatildeo de um know-how para o pretendente a entrar nesse panteatildeo podia ser medida como vimos anteriormente por preacute-condiccedilotildees tais como uma autoridade intelectual que pode falar sem ter visto ou por algueacutem que por uma genialidade comprovada podia expressar uma suposta alma do povo em fins dos anos 1920 com o advento dos mo-dernistas de 1922 no campo literaacuterio essa frente muda de local O que se propunha natildeo era mais soacute a expressatildeo subjetiva de um referente mas a representaccedilatildeo de um espaccedilo pautada numa pesquisa ideia cujo maior defensor era o poeta e intelectual paulista Maacuterio de Andrade
Dessa forma grande parte do caraacuteter regionalista da produccedilatildeo literaacuteria anterior foi sendo medida a partir de tais termos Mais se o atestado de um caraacuteter regional poderia ser um toacutepico que ajudaria na assunccedilatildeo de um nome ao panteatildeo da literatura brasileira tal caraacuteter natildeo poderia mais ser aceito se natildeo estivesse subordinado a algo mais impor-tante a essa nova leva de escritores advindos do movimento de 22 qual seja a construccedilatildeo de uma identidade para a naccedilatildeo Daiacute Catullo no poema de Bastos Tigre ser representado natildeo mais como ldquoda Paixatildeo Cearense mas lsquoda Paixatildeo Brasileirarsquordquo Metaacutefora que expressa no texto de Catullo uma representaccedilatildeo condizente com uma mudanccedila que se processava a partir da produccedilatildeo de uma autorrepresentaccedilatildeo buscada para a literatura produzida no Brasil agrave eacutepoca
Penso que afinal a ldquomodernardquo literatura brasileira (digamos aquela identificada com o marco de 1922) natildeo pode ser subordinada a uma anaacutelise que incorpore sob o termo ldquomodernismordquo produccedilotildees tatildeo diacutespares entre si e mesmo discordantes sob o risco de perder sob o mesmo termo toda uma discussatildeo que colocou em lugares opostos Maacuterio de Andrade e Oswald de Andrade para citar soacute um entre tantos exemplos Maacuterio por exemplo tinha grande apreccedilo por Manuel Bandeira um entusiasta da poesia de Catullo da Paixatildeo Cearense que por sua vez possuiacutea uma atitude desconfiada com relaccedilatildeo aos novos
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modernistas ndash que contava entre aqueles assim identificados o proacute-prio Bandeira
Outro ponto a ser salientado eacute o reiterado (e discutiacutevel) triunfo da movimentaccedilatildeo entre o puacuteblico letrado que teve em 1922 um marco Como os nuacutemeros de vendagens das produccedilotildees dos autores identifi-cados como ldquomodernistasrdquo satildeo imprecisos quando natildeo inexistentes eacute difiacutecil dimensionar o alcance de seus escritos Talvez um evento escla-reccedila os limites do triunfo modernista sobre os leitores o Concurso Nacional ldquoOs maiores brasileiros vivosrdquo promovido pela revista ca-rioca Fon-Fon em iniacutecios de 1925
Durante os meses de marccedilo e abril de 1925 a Fon-Fon de circu-laccedilatildeo natildeo soacute restrita agrave cidade do Rio de Janeiro promoveu um concurso para que seus leitores pudessem escolher por conta proacutepria os maiores brasileiros vivos em suas aacutereas meacutedico educador industrial escritor cantor poeta muacutesico ator financista etc Entre os escritores o vencedor foi o jaacute consagrado Coelho Netto ficando Gustavo Barroso com seus contos sertanejos em segundo lugar e Oliveira Lima em terceiro Os trecircs escritores eram membros destacados da Academia Brasileira de Letras
Na categoria ldquoo maior poeta vivordquo o vencedor foi Alberto de Oliveira membro da Academia Brasileira de Letras ficando em segundo lugar Hermes Fontes e em terceiro lugar Catullo da Paixatildeo Cearense
Se o alcance da produccedilatildeo modernista natildeo havia triunfado no gosto do puacuteblico letrado carioca a ruptura pensada em 1922 natildeo pode ser reificada numa narrativa histoacuterica que busca fundar pontos demar-catoacuterios Talvez enriqueccedila mais a anaacutelise pensar que uma esteacutetica mo-dernista teve de lidar com uma produccedilatildeo anterior ao advento dos escri-tores modernistas e que essa produccedilatildeo tampouco estava ldquodecadenterdquo como se costumou dizer Antes foi preciso construir um gosto por obras ldquomodernistasrdquo e isto natildeo se deu da noite para o dia sem uma apropriaccedilatildeo de certas temaacuteticas consagradas entre o puacuteblico leitor Daiacute ser necessaacuterio flagrar a construccedilatildeo do ldquomodernismordquo em suas disputas natildeo soacute internas (perspectiva mais comum que consiste em buscar dentro da esteacutetica modernista desavenccedilas entre seus partiacutecipes) mas tambeacutem em seu diaacutelogo com toda produccedilatildeo que antecede ndash e continua apoacutes ndash a sua ascensatildeo e com as demandas do puacuteblico leitor E avan-
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ccedilando investigar na esteira disso como os novos escritores provo-caram uma mudanccedila na produccedilatildeo dos autores que o antecederam e como estes tiveram suas temaacuteticas muitas vezes apropriadas de ma-neira criacutetica pelos novos autores
Essa linha de investigaccedilatildeo torna-se importante inclusive numa tentativa de identificar como se deram os usos inventivos do termo ldquomodernordquo naquele periacuteodo a partir das obras Conduziremos nesse liame a investigaccedilatildeo da postura expressa nos textos de Catullo nessa discussatildeo e como ele foi apropriado por seus leitores criacuteticos atentando que essa discussatildeo deve ser encarada antes de tudo como uma disputa pelo tempo conduzida a partir da representaccedilatildeo do tempo ldquomodernordquo nos textos de seus autores Essa disputa pela representaccedilatildeo colocava em xeque inclusive a forma de expressatildeo textual inventando nesse pro-cesso uma praacutetica de representaccedilatildeo na medida em que criavam as for-malidades necessaacuterias para conduzi-la
O lugar de quem fala
Haacute vozes que se destrinchadas a partir de seus ecos conduzem o ouvinte a uma voz original ao momento primeiro da palavra viva agrave palavra-palavra Mas essa experiecircncia de pesquisa pela escuta nem sempre conduz invariavelmente a um lugar de origem ou a um ponto de onde se desdobraria um indiviacuteduo uacutenico possuidor indeleacutevel da sin-gularidade de sua voz Nesse momento eacute com espanto que surge a cons-tataccedilatildeo de que agraves vezes o indiviacuteduo que fala natildeo eacute o sujeito falante
Dito de outra maneira nem sempre o sujeito falante se subtrai ao corpo do indiviacuteduo de onde se fala Esse desencontro entre corpo e voz desloca de maneira incocircmoda um pesquisador humanista que vecirc no encontro entre voz e corpo o espaccedilo de autonomia uacuteltimo do sujeito em sua liberdade sobre aquilo que diz Para este uacuteltimo a voz constitui sob todos os monopoacutelios reivindicados para se ser livre o uacuteltimo reduto a ser conquistado a fortaleza indestrutiacutevel do indiviacuteduo em sua singula-ridade de forma que eacute impossiacutevel nesse ponto natildeo encontrar na fala a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em sujeito Poreacutem estranhamente esse en-contro nem sempre pode se dar Natildeo por uma forccedila exterior que se-
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questra a voz do indiviacuteduo mas pelo proacuteprio indiviacuteduo que sequestra a si mesmo fazendo por um momento falar-se por outro
Michel Foucault talvez tenha sido aquele que melhor sistema-tizou a questatildeo quando se propotildee a pensar a pergunta ldquoQue importa quem falardquo Jaacute Michel de Certeau talvez tenha sido aquele que mais dramatizou a experiecircncia de confrontaccedilatildeo de um indiviacuteduo com um Outro que natildeo se diz mas que se deixa dizer Confronta-se com a ideia insuportaacutevel de encontrar na singularidade inescapaacutevel de um indi-viacuteduo que fala a voz de um Outro que natildeo estaacute193
Embora em geral escape da criacutetica moderna o estatuto de cons-truccedilatildeo de um discurso a partir de um indiviacuteduo o regime que ainda governa muitas das produccedilotildees literaacuterias contemporacircneas eacute a de identifi-caccedilatildeo daquilo que se diz (e que se escreve) sob um nome proacuteprio E aiacute se chega a raacutepidas conclusotildees como a que trata de reivindicar a pro-priedade irrefutaacutevel do sujeito sob seu objeto seja voz ou escrita Naquele identificado como artista essa linearidade se torna quase um imperativo Ora quem haacute de negar o caraacuteter de propriedade (de mono-poacutelio autoral digamos) de uma produccedilatildeo artiacutestica vinda agrave luz sob um nome proacuteprio de algueacutem que comprovadamente existe Mas essa equaccedilatildeo que a priori parece fatal nem sempre se consuma
Quando em setembro de 1918 Catullo da Paixatildeo Cearense pu-blicou o livro de poemas sertanejos Meu sertatildeo ele o construiu jaacute o dissemos a partir de uma forma incomum os poemas satildeo a transcriccedilatildeo da fala de um sertanejo O novo poeta se apropriava de um tipo de es-crita da oralidade que era identificada jaacute agravequela eacutepoca com a fala de poetas populares do nordeste do paiacutes publicada comumente nos jaacute co-nhecidos livretos de cordel O referente oral eacute supostamente transferido para o impresso ipsis litteris de forma que um leitor possa escutar na sonoridade das palavras e dos versos lidos a ldquovoz sertanejardquo
193 Tais reflexotildees foram defrontadas pelos autores em pelo menos dois livros FOUCAULT Michel O que eacute um autor In FOUCAULT Michel Ditos e Escritos Esteacutetica literatura e pintura muacutesica e cinema Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2009 v III CERTEAU Michel de La Fabula Mistica siglos XVI-XVII Meacutexico Universidad Iberoamericana 2004 Penso especialmente no toacutepico 1 do capiacutetulo III ldquoLa ciecircncia nuevardquo
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Nosso sinhocirc decirc bons diaa vasmincecirc meu patratildeoe a toda a sua famiacutea
Cheguei haacute cinco sumananesta grande capitaacute
Sou musgoMusgo gaitecircroE natildeo eacute pruacute me gavaacutefui o terrocirc dos violeirodos sertatildeo do Cearaacute194
Assim consumada a escrita e construiacutedo um personagem ldquoserta-nejordquo Catullo ele mesmo que viveu por um pequeno periacuteodo no sertatildeo e importante sendo identificado nominalmente como Cearense po-deria dessa forma ser reconhecido como um ldquopoeta do sertatildeordquo O ciacuter-culo se fecha de forma a natildeo restar duacutevida de que a partir de todo esse esquema traccedilado a identificaccedilatildeo do autor com seu personagem condu-zisse Catullo ao panteatildeo de um poeta diferente de todos os outros que tematizavam o sertatildeo naquele periacuteodo ele seria pela proacutepria coinci-decircncia biograacutefica o proacuteprio povo do sertatildeo Mas se em suas estrateacutegias para ser reconhecido como poeta todos os elementos postos acima natildeo foram negligenciados por Catullo eles por si natildeo explicariam o fato de o autor nunca se identificar como um ldquopopularrdquo e paradoxalmente querer ser lido como um melhor conhecedor do ldquopopularrdquo Daiacute sua in-cessante busca por ser representado como algueacutem conhecedor das ldquoboas letrasrdquo ldquoEmbora conheccedila bem a meacutetrica tanto que vou publicar um livro de poesias traduzidas prefiro estabelecer esse consoacutercio entre a melodia e a poesiardquo195
Catullo precisou negar sua posiccedilatildeo de iletrado no mesmo mo-mento em que buscava se expressar como tal Essa ambiguidade soacute pocircde se dar pela evocaccedilatildeo de um terceiro personagem entre Catullo e o popular-sertanejo que dava a autenticidade para a sua poesia e que ele representava como sendo uma nova vida a alma ldquoQuando escrevo os
194 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 39195 O Paiz 25 fev 1906 p 6
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meus versos sinto que minha alma se eleva que uma nova vida se estua pelo corpordquo196
Apresentando Meu sertatildeo aos leitores de Catullo os escritores Humberto de Campos e Alberto DrsquoOliveira transmitem uma primeira impressatildeo do livro explicando o estranho fato de aparecer ali uma lin-guagem ruacutestica
Catullo natildeo quer poreacutem que os seus fructos nasccedilam no jardim ou brilhem em vasos de porcellana quer conserval-os no mato envoltos nas folhas A seiva para o fructo quem daacute eacute Deus Agrave aacutervore compete apenas dar foacuterma ao pomo Catullo tem toda inspiraccedilatildeo dos grandes e verdadeiros poetas e como eacute sertanejo vasa essa forte seiva nos ruacutes-ticos moldes que lhe fornece o sertatildeo197
A analogia com a aacutervore natildeo eacute gratuita O escritor tenta estabe-lecer um espaccedilo distinto para a recepccedilatildeo de Catullo pelo uso da ana-logia para explicar ao leitor que a poesia ali publicada natildeo era propria-mente de Catullo Este daria a forma Competia ao autor a expressatildeo de algo anterior a ele mesmo que natildeo eacute soacute dele natildeo se subtrai a ele mas que se expressa melhor nele o povo Seu texto eacute evento eacute aconteci-mento efecircmero de algo sem tempo que veio antes dele
[] poeta bravio poeta cujos versos natildeo foi preciso semear e ainda menos cultivar poeta egualmente entendido e apreciado pelos saacutebios e pelos ignorantes poeta do povo e da raccedila poeta e soacute poeta que soacute pode dar poesia como as abelhas soacute podem dar mel198
A natildeo coincidecircncia de Catullo com sua poesia residia no fato de que ele natildeo precisava ldquosemearrdquo e ldquocultivarrdquo pois era ldquopoeta do povo e da raccedilardquo de forma que dele soacute poderia se extrair tal tipo de poesia tal qual inescapavelmente a abelha soacute daacute mel Aqui cada palavra eacute revela-dora A aproximaccedilatildeo desinteressada de Catullo com uma produccedilatildeo que
196 Idem197 CAMPOS Humberto de Homenagem a Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da
Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 19198 DrsquoOLIVEIRA Alberto Catullo Cearense In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo
Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 13
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leva seu nome era um fato em conformidade com o que ele era ou seja um poeta da raccedila ldquoSemearrdquo e ldquocultivarrdquo seriam trabalhos reservados para outros tipos de poetas porque na poesia de Catullo ldquo[] natildeo haacute elaboraccedilatildeo de raciociacutenio nem analyse haacute transbordamento de sensa-ccedilotildees de sentidos que viveram concretamente a vida da naturezardquo199
Esse afastamento do nome de Catullo de sua poesia era enten-dido inclusive como indissociaacutevel para a compreensatildeo da forma como os poemas eram apresentados na publicaccedilatildeo Mesmo Meu sertatildeo tra-zendo a novidade da escrita de uma suposta oralidade sertaneja no texto nessas mesmas poesias eacute necessaacuterio salientar o personagem principal natildeo podia ser identificado ao proacuteprio Catullo Por causa disso o proacuteprio Catullo apresentava-os ao seu leitor como fez com o perso-nagem Quinca-Micuaacute
Natildeo Leacutede com dor com maguaessa histoacuteria essa romanccedilade um homem feito creanccedilaesse ldquoQuinca Micuaacuterdquoalma pura nobre e santacomo uma flor redolenteque talvez tatildeo innocentenatildeo exista outra por caacute200
Os personagens satildeo revelados nos poemas e aos poucos vatildeo surgindo os donos das vozes que Catullo faz aparecer no seu texto Quinca Micuaacute o gaiteiro do sertatildeo o marrueiro o lenhador Chico Mironga o passador de gado o vaqueiro o cangaceiro e o violeiro Chico Mindello Ateacute aiacute nada incomum A diferenccedila aqui reside na pos-siacutevel e inevitaacutevel associaccedilatildeo pelo leitor do nome Catullo da Paixatildeo Cearense com os seus personagens representados no texto Uma vez que estes expressavam uma suposta ldquoalma sertanejardquo e sendo Catullo jaacute havia algum tempo conhecido como poeta sertanejo apresen tando-se
199 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p XIII
200 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Em caminho do sertatildeo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 34
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em alguns momentos inclusive vestido tal e qual a coincidecircncia entre Catullo seus personagens e a ldquoalma sertanejardquo que ali expressava era inevitaacutevel para o leitor daquela eacutepoca Catullo era muitas vezes repre-sentado como sendo ele mesmo o sertanejo de suas poesias
Ao mesmo tempo em que era apresentado como um autecircntico poeta sertanejo Catullo buscava estrategicamente afastar-se de toda re-presentaccedilatildeo que pudesse identificaacute-lo tatildeo somente como um dos seus personagens No poema Em caminho do sertatildeo que apresenta o livro Meu sertatildeo Catullo dirige-se diretamente a seus leitores
Tenho lido desde Homerotudo o que se tem escriptoem versos de ouro e granitode impeccavel perfeiccedilatildeomas talvez seja ignoracircnciaaacutes vezes fico pasmadocom um verso immetrificadode um Manoel Riachatildeo201
Um poeta que faz aparecer personagens em seus livros para serem identificados como sertanejos e que ao mesmo tempo procura apresentar-se como algueacutem que lecirc Homero Ou melhor como algueacutem que natildeo pode ser confundido com seu personagem iletrado Um letrado que fica ldquopasmadordquo com o verso imetrificado do seu personagem Manoel Riachatildeo ndash que natildeo eacute e nem pode ser Catullo Este o expressa ndash e ateacute se assusta com ele mas Catullo natildeo o eacute e embora seja apresentado em seus prefaacutecios por homens distintos das letras brasileiras e portu-guesas do periacuteodo tal qual um sertanejo nega a representaccedilatildeo de um sertanejo iletrado para si
O que se potildee no centro da discussatildeo eacute o caraacuteter da invenccedilatildeo Catullo assume um tipo de invenccedilatildeo que se daacute a partir de uma traduccedilatildeo Ele eacute em uacuteltima instacircncia o indiviacuteduo que se apresenta como um esco-lhido para expressar algo anterior a ele Esse algo anterior por outro lado poderia ser tachado de ldquoantigordquo ldquovelhordquo ldquobaacuterbarordquo
201 Ibidem p 35
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Monteiro Lobato por exemplo vai colocar em xeque a literatura produzida por Catullo por caracterizaacute-la como a expressatildeo de um barba-rismo da liacutengua ndash o que travaria inclusive a ascensatildeo do autor a ldquogrande poetardquo O editor dos livros de Catullo Antocircnio Castilho parecia pro-curar nesse paradoxo um irresistiacutevel caminho para apresentar o autor como um poeta distinto de todos os outros No segundo livro de poemas sertanejos de Catullo intitulado de Sertatildeo em flor o editor fez surgir duas criacuteticas agrave poesia de Catullo Cearense a primeira eacute a jaacute citada criacutetica de Monteiro Lobato sobre sua impossibilidade de ser um grande poeta escrevendo num linguajar baacuterbaro a segunda criacutetica era de Joseacute Oiticica
Catullo fez-se elle mesmo cangaceiro marroeiro lenhador pas-sador de gado adoptou o semi-dialecto sertanista com uma justeza raras vezes claudicante O sabor que nos adveacutem desse processo eacute delicioso Seu livro perderia cincoenta por cento si fora escripto em liacutengua de branco202
Embora saltasse aos olhos a discordacircncia dos dois criacuteticos acerca da poesia de Catullo o editor encontrava um caminho por onde Catullo poderia e deveria ser lido pelo leitor e arrematava dizendo ldquoCATULLO CEARENSE soacute desejava dar razatildeo aos doisrdquo203
No espaccedilo tecircnue entre aceitar a criacutetica de Lobato ndash que de resto chama atenccedilatildeo para as regras que governavam a consagraccedilatildeo de um indiviacuteduo a poeta ndash e no mesmo movimento corroborar a criacutetica elo-giosa de Oiticica que contrastava com a do primeiro o editor de Catullo via a possibilidade de mostrar ao puacuteblico leitor a novidade daquela pu-blicaccedilatildeo Para ele Catullo expressaria em suas publicaccedilotildees a vontade de ser aquilo que Lobato chama de ldquogrande poetardquo ao mesmo tempo em que via na representaccedilatildeo da fala de seus personagens que Lobato acreditava ser algo negativo um fator fundamental para a sua consa-graccedilatildeo tal como pensava Oiticica
202 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Nota preacutevia In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p XX
203 Idem
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Ainda eacute o editor Castilho que daraacute uma explicaccedilatildeo sobre a forma da poesia de Catullo visando agrave compreensatildeo do autor como um letrado Para o editor escrever versos num linguajar ldquobaacuterbarordquo era uma opccedilatildeo que Catullo aceitava conscientemente de bom grado como um empreacutes-timo da alma do sertanejo mesmo podendo escrever de forma mais palataacutevel para o puacuteblico leitor cioso da boa liacutengua
Embora soubesse e pudesse escrever os seus versos em portuguecircs vulgar entendeu Catullo Cearense conservar-lhes a ingenuidade nativa nas palavras rudes e simples imprevistas e encantadoras como os di-riam os sertanejos que lhe emprestaram o coraccedilatildeo e a alma204
Essa escolha era encarada pelo editor como proposital pelo autor visando a deixar o ldquocoraccedilatildeordquo e a ldquoalmardquo agrave mostra para os seus leitores Assim o que avultaria positivamente aos olhos dos leitores do autor seria ainda a sua capacidade de expressar-se em outro linguajar Isso era um sinal de que entre o linguajar e o poema escrito existia o poeta um ldquomelhor-tradutorrdquo e que este natildeo poderia ser confundido com aquele para quem ele escreve traduzindo
E qual o lugar distinto e original reservado a Catullo no campo literaacuterio no periacuteodo Essa questatildeo soacute fica mais compreensiacutevel com a leitura da apresentaccedilatildeo do segundo livro de poemas sertanejos de Catullo Sertatildeo em flor feita pelo acadecircmico Maacuterio de Alencar Nela Maacuterio explica a posiccedilatildeo de Catullo pela evocaccedilatildeo de um terceiro
Na voz de Catullo canta natildeo a pessoa delle mas o sertatildeo e o serta-nejo [] Eacute em summa a alma humana tatildeo vivamente dramatizada [] Tecircm-se a impressatildeo de que o poeta natildeo descreve por palavras senatildeo as que as proacuteprias cousas e pessoas surgem vivas em imagens da natureza205
A passagem exige uma explicaccedilatildeo Havia como mostrei ante-riormente uma aproximaccedilatildeo entre o Catullo escritor e os seus persona-
204 Ibidem205 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em
flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p XXI-XXII
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gens de forma que Catullo poderia facilmente ser identificado como sendo um deles Embora essa aproximaccedilatildeo parecesse ser objeto que atestasse a autenticidade do escritor estar tatildeo perto assim de seu perso-nagem travaria sua consagraccedilatildeo como poeta ndash ser o ldquomaior poeta po-pular do Brasilrdquo como queria Lobato
A consagraccedilatildeo soacute poderia advir com um afastamento de seu nome dos de seus personagens poreacutem isso perigosamente afastaacute-lo-ia da autenticidade que era evocada tambeacutem como fator de distinccedilatildeo em sua produccedilatildeo Soacute restava entatildeo a saiacuteda que eacute a de Maacuterio de Alencar quando propotildee que aquilo que era transcrito no texto era Catullo e ao mesmo tempo natildeo era Uma ldquoalmardquo falaria em Catullo de forma que apenas ele poderia expressar da melhor maneira essa ldquoalmardquo Uma alma anterior a Catullo e que ele mesmo por ser poeta conhecedor das coisas do sertatildeo era o mais autorizado para traduzir Na apresentaccedilatildeo de Meu sertatildeo o autor reafirmava essa posiccedilatildeo
Se natildeo traduzo a contentoas queixas laacute da violauma coisa me consola ndasheacute contar tudo o que ouviE embora vilipendiadocom inoffensiacutevel ferezapertencer aacute naturezadesta terra em que nasci206
Catullo levou ateacute as uacuteltimas consequecircncias o caraacuteter representa-cional do acontecimento ldquoescreverrdquo de forma que ldquoquem escreverdquo eacute um Outro a partir do escritor O Outro (a alma) fala nele e ele eacute a corpori-ficaccedilatildeo (o autor em uacuteltima instacircncia) de um Outro que estaacute ausente Eacute a ausecircncia do outro (o sertanejo o popular) que vai possibilitar a Catullo ser reconhecido como poeta sertanejo e ele por sua vez precisava dessa ausecircncia para construir-se como tal Catullo da Paixatildeo Cearense quer ser reconhecido como um autor que expressa o Outro da melhor
206 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 28
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forma Por isso ele traduz a fala do Outro Eacute na traduccedilatildeo que reside a funccedilatildeo-autor nos seus poemas sertanejos
Essa ausecircncia da fala do sertanejo fundamental para a represen-taccedilatildeo de Catullo como algueacutem que ldquoescreve porrdquo foi constantemente dramatizada no mundo letrado do periacuteodo que a via como uma perda irreparaacutevel de forma que a novidade de Catullo poeta sertanejo era a novidade de se conhecer o ldquoverdadeiro povordquo em seus livros Eacute dessa crenccedila na busca de uma ldquoverdaderdquo no texto que Catullo vai se valer para conduzir sua literatura a um ecircxito final O caraacuteter de suas poesias serta-nejas o colocava no centro de uma comunicaccedilatildeo que se fazia povoelite letrada E embora o autor nunca quisesse ser confundido com esse ldquopovordquo o momento da escrita monumentalizado por ele e por seus criacuteticos como sendo o momento performaacutetico da alma era o momento de um Catullo sertanejo que operacionalizava essa comunicaccedilatildeo
Ora a autoridade de um artefato literaacuterio comeccedila a se dar quando o indiviacuteduo assume o caraacuteter de invenccedilatildeo do objeto que estaacute escrito mesmo que esse objeto o texto expresse uma conformidade tatildeo veros-similhante que no limite apague seu autor ou se confunda com ele Nesse uacuteltimo caso seu nome parece confundir-se com as coisas que inventa ou conta Catullo assume a traduccedilatildeo como invenccedilatildeo A traduccedilatildeo que liga um ldquoque natildeo estaacuterdquo para seu leitor
Se Catullo eacute tradutor haacute de se fazer a pergunta tradutor de quecirc Aiacute reside a confusatildeo entre ldquoquem escreverdquo e ldquoquem fala por quem es-creverdquo A autoria que eacute retirada de Catullo ndash pela constataccedilatildeo de que afinal natildeo haacute invenccedilatildeo mas traduccedilatildeo de uma alma ndash logo eacute reintrodu-zida por um regime autoral outro que natildeo eacute a de ldquoquem escreverdquo mas de ldquoonde se escreverdquo E quem escreve afinal no caso de Catullo dis-corre da cidade Paixatildeo Cearense eacute apresentado como a autoridade para representar o sertanejo jaacute por ser um homem citadino O sertanejo mesmo natildeo poderia ser poeta pois o interior eacute uma fase ldquoda infacircncia do mundordquo e no interior natildeo haacute poetas Maacuterio de Alencar daacute disso a me-lhor explicaccedilatildeo em prefaacutecio ao livro de Catullo Vejamos
[] A poesia do homem moderno em condiccedilatildeo progressiva devecircra exprimir-se na linguagem da prosa que eacute a forma proacutepria da analyse Perduraria a expressatildeo symmetrica somente em raros poetas que pu-
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 163
dessem ficar alheios aacute marcha analytica e prosaica do espiacuterito humano preservando a alma elementar que foi a da infacircncia do mundo igno-rante na ilusatildeo e no sonho do mysterio A sobrevivecircncia da poesia em verso na maior parte dos que versejam procede da imitaccedilatildeo deleituosa e em si mesma artiacutestica das formas consagradas da belleza Por isso subsistem ainda os gecircneros conservados pelo talento a serviccedilo da von-tade por arte alliada aacute eloquecircncia por economia do esforccedilo e pelo re-flexo inspirador das gloacuterias antigas207
Catullo para Maacuterio de Alencar faria parte desses uacuteltimos pois seria um daqueles que apareceram ldquoem plena civilizaccedilatildeo de desencanto encantados quase selvagens extremes de sciecircncia com os sentidos vir-ginalmente cheios da sensaccedilatildeo directa e simples da vidardquo208 E Maacuterio avanccedilava articulando o autor com a cidade de forma que ldquoo bem ou mal do Catullo foi seu afastamento do sertatildeo natalrdquo pois seria soacute na cidade que certo trabalho espiritual poderia ser dar
O trabalho espiritual procede com a condiccedilatildeo da dualidade da luz e do som que natildeo existem sem o meio transmissor natildeo haacute luz no vaacutecuo natildeo haacute som sem a ondulaccedilatildeo do ar ou a vibraccedilatildeo de um corpo A voz do passado soacute ressoa para o ouvido alheio proacuteximo ou distante mas possiacutevel que a esperanccedila realizaAgora na cidade havia auditoacuterio para escutar o poeta sertanejo e curio-sidade para estimulal-o O thema encurtado em cantigas dilatou-se em poemas209
Esse trabalho ldquoespiritualrdquo do poeta era ainda mais entendido como trabalho empreendido nele (e natildeo soacute dele) quando Maacuterio de Alencar atenta que ldquoTem-se a impressatildeo de que o poeta natildeo descreve por pala-vras senatildeo que as proacuteprias cousas e pessoas surgem vivas em imagens da naturezardquo Ou em outra passagem ldquoA pessoa do poeta se desvanece [] o poeta age inconscientemente sob o domiacutenio da emoccedilatildeordquo210 Ainda
207 ALENCAR Maacuterio de A poesia de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p VIIndashVII
208 Ibidem p VIII209 Ibidem p XI210 Ibidem p X
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ldquoNesse gecircnero e com esse talento natildeo existe continuidade de poesia senatildeo momentos de poesia que natildeo hatildeo de ser buscadosrdquo211
Maacuterio de Alencar traz agrave tona a escrita como acontecimento uacutenico como expressatildeo de uma alma anterior ao poeta que se vale dele para se comunicar Daiacute pensar ldquoImagens dessas natildeo se premeditam natildeo se rebuscam natildeo se inventam em toda uma vida de espiacuterito porque nascem por si sem esforccedilo satildeo a proacutepria linguagem de quem soacute per-cebe por imagemrdquo212
ldquoImagens [] que natildeo se inventamrdquo Eacute neste ponto que haacute uma negaccedilatildeo positiva da invenccedilatildeo no poeta Positiva pois que eacute nessa ne-gaccedilatildeo da invenccedilatildeo que possibilita a construccedilatildeo de um espaccedilo de tra-duccedilatildeo autorizada A inspiraccedilatildeo eacute expressatildeo de algo que jaacute existe A es-crita eacute o momento reservado para essa expressatildeo e Catullo eacute nesse momento uacutenico a alma ldquoCatullo Cearense eacute o vate explosivo emo-cional em quem a alma do sertatildeo e da raccedila brasileira e sua mesticcedilagem faz maravilhosa erupccedilatildeo de sentimentalismo e de sonoridaderdquo213
O escritor na esteira disso eacute o gecircnio autorizado a expressar-se por ser oriundo do sertatildeo embora natildeo seja um sertanejo Essa asserccedilatildeo foi necessaacuteria para estabelecer o diferencial de Catullo com outras pro-duccedilotildees do periacuteodo que se propunham a fazer ver o povo Para fazer essa distinccedilatildeo Catullo natildeo poderia ser apresentado como um coletador um observador um intelectual do folclore Sua autoridade natildeo advinha de uma possiacutevel autoridade intelectual socialmente referendada por uma pesquisa Ele natildeo observa tal qual Siacutelvio Romero Melo Moraes Maacuterio de Andrade ou Afonso Arinos Ele na escrita eacute o popular sertanejo Embora fora desse momento da escrita natildeo o seja E eacute por esse ldquonatildeo ser sertanejordquo que pode ser chamado de poeta Porque tal como afirma Maacuterio de Alencar vivendo no sertatildeo Catullo natildeo seria poeta O poeta soacute existe na cidade Paixatildeo Cearense eacute colocado num espaccedilo hieraacuter-quico onde eacute menos do que um intelectual e mais do que um sertanejo
211 Ibidem p XI212 Ibidem p XIII213 Opiniatildeo do intelectual Faacutebio Luz na Revista das Revistas em 29 de novembro de 1919
em que o editor Castilho fez aparecer em publicaccedilatildeo de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illuminada Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 282 (1ordf ediccedilatildeo em 1924)
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Assertiva esta que fica entendida quando apresentando em versos seu livro Meu sertatildeo ao leitor Catullo dispara
Quizera eu ser ignorantecomo um cantor sertanejoEra esse o me desejoNatildeo ter nenhuma instrucccedilatildeoMas ter o dom do improvisopara dizer de momentoas dores do pensamento e as maguas do coraccedilatildeo214
Natildeo ser um sertanejo dava ainda mais a impressatildeo (de resto ins-tigada por Catullo) de que seus poemas natildeo sendo invenccedilotildees eram a expressatildeo de um Outro E ele por diversas vezes buscou afastar-se de sua identificaccedilatildeo com um sertanejo exatamente como maneira de se afirmar como poeta
Eu sou o maior inteacuterprete do sertatildeoO meu grande meacuterito estaacute nisso em natildeo conhecer o sertatildeo e descrevecirc-lo tatildeo admiravelmentePor isso eacute que eu me considero o maior inteacuterprete do sertatildeo do Brasil 215
Nesse movimento fazia representaccedilotildees de si por meio de compa-raccedilotildees com outros letrados que tematizaram o sertatildeo
[] Naturalmente vocecirc vai me falar de Euclides da Cunha Mas Euclides foi um estudioso um cientista O sertatildeo estaacute em sua obra como uma rosa num livro de botacircnica E a alma do povo E o povo vivendo O povo como ele eacute e natildeo como a gente quer que ele seja Abra um livro meu laacute estaacute o povo cantando e sofrendo o sertanejo vivo dentro do seu ldquohabitatrdquo216
214 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Em caminho do Sertatildeo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 26
215 Em entrevista a Joel Silveira In BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os ho-mens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 192
216 Idem
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Aqui a citaccedilatildeo eacute expliacutecita Catullo eacute a expressatildeo da alma ele eacute o ldquointeacuterpreterdquo do sertatildeo Mas como interpretar algo que natildeo conhece O autor tem sua proacutepria resposta a alma Se Euclides conheceu o sertatildeo viu com os proacuteprios olhos Catullo deixa falar em si a alma do povo Seu texto natildeo eacute soacute representaccedilatildeo de um ausente eacute tambeacutem a apresen-taccedilatildeo da representaccedilatildeo em si eacute a proacutepria expressatildeo da coisa que soacute eacute possiacutevel porque Catullo natildeo inventa ele a incorpora em seu momento de escrita
A escolha pelo caminho que melhor levava a uma aceitaccedilatildeo pas-sava inclusive pela construccedilatildeo de poemas que visavam por meio de metaacuteforas a conduzir e regrar a leitura do impresso de forma a compre-ender quem eacute aquele que escreve de construir no texto uma represen-taccedilatildeo de si distinta da de seus personagens No texto de O sonho que eacute uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo do livro feita por Catullo ele se dirige a outros poetas para contar-lhes um sonho que tivera
Poetas Vou contar-vos um sonho em que nrsquoum surto espiritual me transportei ao sertatildeo onde nasci A noite era de pleniluacutenio Bebendo os misteacuterios da lua pelas matildeos da saudade dos 25 anos de ausecircncia alli no regaccedilo dos Mattos indomesticados entrei a cantar os versos que escrevi a essa Virgem Maria dos trovadores Sentia-me opulento mil vezes mi-lionaacuterio porque me encontrava outra vez no coraccedilatildeo do meu palco de folhas E cantava ldquondash Natildeo haacute oacute gente oh natildeo luar como esse do sertatildeordquo ndash quando um velho jequitibaacute onde outrrsquoora me encostava para conversar com os paacutessaros errantes comeccedilou a falar assim lsquoQuem te deu o direito de violar o silecircncio desta noite misericordiosa Que vens aqui fazer nestas soledades onde depois de teres sido confi-dente de nossos melindres jaacute fostes amaldiccediloados pelos nossos cora-ccedilotildees Natildeo nos pertences mais O teu estro estaacute eivado de civilizaccedilatildeo [] Fita a lua O seu brial inturvou-se Como agradercer-te as estro-phes que lhe fizeste se as offerecestes aacute maldita civilizaccedilatildeo217
Catullo construiacutea sua proacutepria representaccedilatildeo de forma a descons-truir uma outra que o via como um proacuteprio homem da natureza receita esta que lhe retiraria a identificaccedilatildeo de poeta A coincidecircncia de seu
217 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Sertatildeo em flor Rio de Janeiro Livraria Castilho 1919 p 1
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nome com a de seus personagens se esvaziaria Natildeo foi portanto gra-tuito o aparecimento de uma explicaccedilatildeo no comeccedilo do livro Era a ten-tativa de regrar uma leitura que Catullo sabia poderia enveredar pelos caminhos da criacutetica produzida por Monteiro Lobato Sem o conheci-mento dessa criacutetica seria incompreensiacutevel entender como algueacutem que se avultava como poeta sertanejo introduzia seu livro exatamente com a representaccedilatildeo oposta de si ou seja como algueacutem que era odiado pela natureza do sertatildeo representado no texto pela fala de um velho jequitibaacute
A manhatilde vae despertar e eacute conveniente que ella natildeo te encontre aqui sob a proteccedilatildeo dos meus ramosA alvorada do sertatildeo te odeiaNunca te lembrar-te della que tanto te inspirava Ella estaacute enciumada Cantaste a noite de luar e esqueceste-a Vae miseraacutevel218
Essa representaccedilatildeo visava a afastar o nome de Catullo da identi-ficaccedilatildeo como um sertanejo ndash que lembremos novamente de acordo com Maacuterio de Alencar era uma identidade que natildeo faria do autor um poeta No entanto se de um lado o autor buscava afastar-se do sertatildeo por outro a cidade ainda era encarada como sendo arredia a seus po-emas O ciacuterculo se fecha Assim ainda em O sonho o velho jequitibaacute fala da representaccedilatildeo de Catullo na cidade
Porque natildeo nos offerecestes o livro que publicaste como era do teu dever e gratidatildeo Os poetas e os literatos de laacute te consideram um reacuteles modinheiro um capadoacutecio de insiacutepidas serenatas Fomos vingadosSe estivesses entre noacutes seria um sabiaacute honoraacuterio e o teu livro jaacute teria sido laureado pelos applausos de toda a Natureza219
Todo esse contorcionismo tornava-se necessaacuterio antes de tudo para fazer frente agraves criacuteticas acerca de sua representaccedilatildeo do sertatildeo e do sertanejo Essa receita era tanto mais importante porque avultavam
218 Ibidem p 3219 Ibidem p 4
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo168
no mesmo periacuteodo outras obras que buscavam uma representaccedilatildeo ve-rossimilhante do sertatildeo E essa verossimilhanccedila era imprescindiacutevel uma vez que natildeo se buscava nessas obras com temaacuteticas sertanejas apenas a invenccedilatildeo deliberada do autor mas por uma conveniecircncia histoacuterica a necessidade de conhecer o sertatildeo como forma de entender a naccedilatildeo Esse tema era intransponiacutevel naqueles idos e tornou-se in-clusive algo necessaacuterio para se definir aquilo entendido no rol de ldquoli-teratura nacionalrdquo
Assim a recepccedilatildeo positiva das primeiras obras contendo os po-emas sertanejos de Catullo reafirmou uma predileccedilatildeo por temaacuteticas sertanejas no universo de leitores do periacuteodo Jaacute em 1921 outra publi-caccedilatildeo foi esgotada em sua primeira ediccedilatildeo rapidamente Tratava-se da obra Cantadores a primeira publicada pelo folclorista do Cearaacute Leonardo Mota que veio agrave luz sob o selo da livraria Castilho a mesma de Catullo Cearense
Entusiasmado com o sucesso de vendas ndash alavancado tambeacutem pela polecircmica causada em torno da representaccedilatildeo de um linguajar serta-nejo na obra de Catullo ndash o editor Castilho apostou em novas publicaccedilotildees cujo tema ldquosertatildeordquo fosse o mote Leonardo Mota por seu lado vinha do Cearaacute trazendo na bagagem os resultados de suas pesquisas sobre os ldquocantadores do norterdquo Castilho seguindo a mesma foacutermula usada nas publicaccedilotildees dos livros do autor de Meu sertatildeo fez aparecer vaacuterias opi-niotildees abalizadas no texto de Mota a fim de apresentaacute-lo ao grande puacute-blico O resultado foi uma primeira ediccedilatildeo com dez mil exemplares esgo-tados em pouco tempo que confirmaram o tino de Antocircnio Castilho
Agrave diferenccedila dos livros de Catullo Mota era apresentado como um autor que escrevia o que vira e vivera O recurso agrave alma desaparece do discurso e o recurso da autoacutepsia eacute evocado como o argumento de autoridade Mas ainda aqui era traccedilada uma diferenciaccedilatildeo com outras produccedilotildees proacuteximas agraves dele De Afonso Arinos a diferenccedila eacute essa pro-ximidade que fazia Mota ver melhor do que ningueacutem
Leonardo Motta eacute o confidente da grande alma poeacutetica do sertanejo cea-rense Elle natildeo eacute um estheta como Arinos que amava essas cousas aacute dis-tacircncia que tinha todos os enthusiasmos possiacuteveis pelas nossas tradiccedilotildees e pelas nossas lendas mas natildeo passava de um boulevardier incorrigiacutevel
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 169
[]Leonardo Motta natildeo Tudo o que elle sabe eacute porque viu e porque viveu porque se compraz nisso com um carinho que chega ao sacrifico de si mesmo porque esteve ao lado de nosso homem ruacutestico intimamente natildeo como um viajante apressado mas como um amigo um camarada um irmatildeo misturado com elle integralizado no seu pensamento e nos seus sentimentos mais iacutentimos220
Se essa aproximaccedilatildeo iacutentima com o sertanejo fazia Leonardo Mota ser considerado autoridade para representar o sertatildeo no mundo letrado a falta dessa aproximaccedilatildeo resultava naqueles que a natildeo tinham em constantes recursos a exageros O escritor e criacutetico Joseacute Ameacuterico de Almeida faz dessa comparaccedilatildeo com outros escritores do sertatildeo o seu paracircmetro para representar Leonardo Mota Nela aparece o inevitaacutevel nome de Catullo
Juvenal Galeno Hermiacutenio Castello Branco e Catullo Cearense cada qual com o seu feitio afinam entre noacutes as suas lyras pelas trovas do sertatildeo ndash o uacuteltimo com um deleitoso poder de imagens Mas todos elles incidem em exaggeros que prejudicam aacutes mais das vezes a naturali-dade de suas composiccedilotildees ora elevando a forma acima da meacutedia intel-lectual dos cantadores ora deprimindo-a a uma algaravia com preoccu-paccedilotildees dialectaes extranhas aos modismos populares221
As constantes lutas acerca da melhor forma de representar o homem do sertatildeo faziam com que diversas produccedilotildees buscassem cada qual mobilizando suas respectivas estrateacutegias a autoridade final para expressar o sertatildeo e o sertanejo em seus textos Ademais essa tarefa mesclava-se com um caraacuteter poliacutetico de conhecer melhor o sertatildeo para melhor conhecer a naccedilatildeo Se seguramente essa agenda natildeo esteve tatildeo claramente expressa nas primeiras produccedilotildees sertanejas de Catullo natildeo eacute possiacutevel desdenhar que o sucesso (e a quantidade) de temaacuteticas serta-
220 Opiniatildeo do jornalista Annibal Fernandes que o editor Castilho fez incluir ao final do livro ldquoCantadoresrdquo In MOTTA Leonardo Cantadores poesia e linguagem do sertatildeo cearense Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 391
221 Opiniatildeo do escritor Joseacute Ameacuterico de Almeida que o editor Castilho fez incluir ao final do livro ldquoCantadoresrdquo In MOTTA Leonardo Cantadores poesia e linguagem do sertatildeo cearense Rio de Janeiro Livraria Castilho 1921 p 395
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nejas na literatura do periacuteodo fosse resultado dessa agenda essencial-mente poliacutetica e que essa mesma agenda tornou-se absolutamente um tema incontornaacutevel para aqueles que buscavam para as suas respec-tivas produccedilotildees o status de nacional que lhes garantisse um lugar na literatura do periacuteodo Afinal a construccedilatildeo da literatura brasileira se pautou historicamente pela regra de que ela deveria ser ldquobrasileira antes de ser literaturardquo Tal eacute o lugar de Catullo
A grande tensatildeo que perpassa essas produccedilotildees eacute a incocircmoda questatildeo de como representar melhor o sertatildeo Se por um lado a voz autorizada da ciecircncia era vista como uma entre as tradutoras mais aba-lizadas desse empreendimento alguns nomes da literatura que desde o seacuteculo XIX construiacuteam esse status buscaram suas proacuteprias estrateacutegias de construccedilatildeo de autoridade
Participando desse lugar de produccedilatildeo textual Catullo da Paixatildeo Cearense evocou a alma como um terceiro elemento entre o poeta e a coisa e buscou a partir dessa tensatildeo a consolidaccedilatildeo de seu nome dentro do panteatildeo da literatura do periacuteodo Esse espaccedilo soacute pocircde ser buscado a partir de um diaacutelogo tenso com outras representaccedilotildees que tambeacutem se faziam no periacuteodo e que faziam elas mesmas suas estrateacute-gias de forma a dar verossimilhanccedila ao que se contava nos livros Tais lutas de representaccedilotildees satildeo perceptiacuteveis nas publicaccedilotildees produzidas e soacute podem ser compreendidas se levado em conta o caraacuteter muacuteltiplo e imprevisiacutevel das escolhas levadas pelos agentes que fizeram o espaccedilo de produccedilatildeo textual da eacutepoca
Esse consoacutercio entre poeta e alma na obra de Catullo teve seu lugar central em 1928 com a publicaccedilatildeo do volume de poesias alvissa-reiramente intitulado Alma do sertatildeo pela livraria editora Leite Ribeiro Seu proprietaacuterio associado a Mauriacutelio Quaresma irmatildeo do antigo editor de Catullo Pedro da Silva Quaresma transformou a editora numa potecircncia a ponto de ser citada em publicaccedilotildees estrangeiras como uma das mais belas do Rio de Janeiro aleacutem de ser frequentada por grandes intelectuais que iam agrave sua loja procurar desde traduccedilotildees de po-etas estrangeiros a jornais
Catullo da Paixatildeo Cearense tornou-se frequentador assiacuteduo de sua casa e teve seu Alma do sertatildeo publicado pela editora e prefaciado
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pelo escritor Maacuterio Joseacute de Almeida A publicaccedilatildeo divide-se em duas partes uma com desafios sertanejos onde o autor repetia a foacutermula consagrada em seus livros anteriores qual seja a de reproduzir a fala sertaneja em poemas sertanejos e outra que constava de reflexotildees em prosa acerca da mulher em julgamentos de personagens de diversos tipos tais como o operaacuterio o anarquista e o mineiro
Maacuterio Joseacute de Almeida escreveu o prefaacutecio sob o tiacutetulo de ldquoAlgumas notas sobre o occupante da cadeira quarenta-e-umrdquo numa clara alusatildeo agrave Academia Brasileira de Letras que por sua vez possuiacutea quarenta cadeiras de ldquoimortaisrdquo da literatura do paiacutes Apresentando-o como o ocupante de tal cadeira de nuacutemero 41 e como um entre aqueles imortais Maacuterio fala dos versos de Catullo ldquoNo verso Catullo tem a expressatildeo que eacute um ldquotrouvaillerdquo da sua singulariacutessima inteligecircncia e uma interpretaccedilatildeo do sentimento humano que ainda natildeo encontrei em outros poetasrdquo222
ldquoInterpretaccedilatildeo do sentimento humanordquo Eacute novamente como tra-dutor que Catullo eacute apresentado Natildeo que isso lhe retirasse a geniali-dade que aqui estaacute ligada a um ldquotrouvaillerdquo um encontro ndash requisito para a expressatildeo traduzida do sertanejo em seus versos no texto Maacuterio avanccedila na explicaccedilatildeo de sua apresentaccedilatildeo-representaccedilatildeo de Catullo a partir dos versos de seus Desafios ldquo[] Estes Desafios satildeo feitos no seu rythmo predilecto Alguns satildeo variantes do folk-lore e ganham brilho na officina de Catullo como as anedoctas tambeacutem produccedilotildees do povo revivem na arte de contar de Humberto de Camposrdquo223
Representaccedilatildeo que garante a Catullo seu reconhecimento como poeta a partir da expressatildeo de um sertanejo que ele traduz De um en-contro que o torna genial por natildeo vir de um trabalho de ldquovirtude dos prosadores que eacute a paciecircncia de Renan de Flaubert de Anatole de Francerdquo mas que por essa falta mesma de virtude transformaacute-lo-ia afinal em algueacutem com uma ldquoingenuidade genialrdquo224
222 ALMEIDA Maacuterio Joseacute de Algumas notas sobre o occupante da cadeira quarenta-e-um In CEARENSE Catullo da Paixatildeo Alma do sertatildeo Rio de Janeiro Leite Ribeiro 1928 p 21
223 Idem p 21224 Ibidem p 21-23
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Aqui cabe uma reflexatildeo O exerciacutecio da traduccedilatildeo eacute muitas vezes entendido como uma impossibilidade de partida A necessidade de ldquolevar o leitor ao autorrdquo e ao contraacuterio ldquolevar o autor ao leitorrdquo com-preenderia uma aporia inescapaacutevel onde algo sempre se perderia nessa transiccedilatildeo Traduzir aiacute seria servir a dois mestres o estrangeiro em sua obra e o leitor em seu desejo de apropriaccedilatildeo em que o desejo de apro-priaccedilatildeo seria ele mesmo configurado numa traiccedilatildeo agrave obra
No entanto eacute nessa proacutepria incapacidade de traduzir de maneira ldquocorretardquo o escrito ou a fala de um outro que o papel do tradutor dessa figura num lugar equidistante entre o ldquoautor-primeirordquo e o leitor eacute (ou deveria ser) lido para o filoacutesofo Paul Ricouer como um trabalho de criaccedilatildeo A partir daiacute o filoacutesofo sugere a saiacuteda pelo abandono dos dois polos traduziacutevel versus intraduziacutevel e uma aceitaccedilatildeo do luto que resul-taria num ganho ldquo[] o sonho da traduccedilatildeo perfeita equivale ao desejo de um ganho para a traduccedilatildeo de um ganho que seria sem perda Eacute jus-tamente desse ganho sem perda que eacute preciso fazer o luto ateacute a acei-taccedilatildeo da diferenccedila incontornaacutevel do proacuteprio e do estrangeirordquo225
Essa aceitaccedilatildeo do luto estaacute intrinsecamente ligada penso agraves es-trateacutegias empreendidas por Catullo na construccedilatildeo de um espaccedilo distinto para sua autoridade Distinto pois que abriu um caminho possiacutevel no rol de escolhas postas pelo campo literaacuterio brasileiro daqueles tempos O ganho na tarefa de traduccedilatildeo da liacutengua sertaneja por Catullo eacute exata-mente a possibilidade de criaccedilatildeo que reside na representaccedilatildeo do serta-nejo e do seu linguajar exatamente no momento em que o cria
A representaccedilatildeo de um poeta distante do sertanejo soacute pode ser entendida a partir da proacutepria representaccedilatildeo que Catullo cria no texto apresentado como uma espeacutecie de reacutegua medidora diante do seu autor Eacute pela representaccedilatildeo do sertanejo produzido por Catullo que o leitor pode medir a distacircncia daquele que escreve diante daquele que repre-senta e soacute aiacute como o queria entendecirc-lo como um natildeo sertanejo
O texto de Catullo eacute a representaccedilatildeo em suas duas dimensotildees eacute transitiva pois que representa algo (o sertanejo) e reflexiva pois que se
225 RICOUER Paul Sobre a traduccedilatildeo Belo Horizonte UFMG 2011 p 29
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apresenta representando alguma coisa (o texto apresenta o proacuteprio ser-tanejo) Coloca-se como uma tentativa de traduccedilatildeo e criaccedilatildeo Em Catullo a criaccedilatildeo daacute um sentido agrave representaccedilatildeo e natildeo soacute a mostra tal como eacute a coisa que busca representar ou como bem salienta Jacques Le Brun ldquoO texto eacute o sinal de um acontecimento que ele natildeo eacute capaz de dizer Ele apenas diz que um acontecimento teve lugar descreve o que foi feito desse acontecimento como um sentido cristalizou nele []rdquo226
A perspicaacutecia em apresentar Catullo como algueacutem por onde um outro fala eacute a estrateacutegia final nesse jogo de representaccedilotildees que cria aquele que escreve de forma a entregar por meio de diversos artifiacutecios de construccedilatildeo de autoridade a condiccedilatildeo de poeta a este uacuteltimo
Modernos e velhos
O jornal Correio Paulistano em iniacutecios de marccedilo de 1925 vinha em sua sessatildeo de ldquoChronica Socialrdquo assinada por Helios (pseudocircnimo do poeta Menotti Del Pichia) com um tiacutetulo provocador Pau Neles Tratava-se de um comentaacuterio de artigo escrito por Tristatildeo de Athayde em jornal carioca A partir dele Helios fazia um balanccedilo da histoacuteria da literatura brasileira e uma criacutetica agraves novas produccedilotildees literaacuterias
Ateacute hoje nossa arte natildeo tem passado de um reflexo Somos cultural-mente ldquosatellitesrdquo Natildeo temos luz proacutepria Sentimos e creamos por pura repercussatildeoTirante Euclydes da Cunha ou mais algum outro illuminado todo o resto que se fez reproduziu o que veio a bordo de navio de mistura com viacutecios gaulezes e modas das costureiras da extranja E o que eacute peor o ldquomodernismordquo ndash cubismo futurismo dadaiacutesmo etc tecircm a mesma origem natildeo passando afinal de decalques forasteiros servilmente co-piados por alguns espiacuteritos improvisadamente originaes doidinhos para fazerem furos227
226 LE BRUN Jacques Da criacutetica textual agrave leitura do texto Projeto Histoacuteria Satildeo Paulo n 17 p 48 nov 1990
227 Correio Paulistano 6 mar 1925 p 3
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E fazendo uma autocriacutetica de sua proacutepria posiccedilatildeo jaacute que se con-siderava um ldquomodernordquo continuava
A uacutenica coisa uacutetil que se deve aproveitar com o terremoto esthetico do ldquofuturismordquo que sempre defendi eacute uma reacccedilatildeo decisiva contra a cul-tura de importaccedilatildeo para um saacutebio retorno aacute infacircncia esthetica nacional no bom propoacutesito de vermos si no meio desses cacos de artificialidade nos encontraremos a noacutes mesmos228
Conquanto natildeo visse ainda entre os ldquonovosrdquo uma produccedilatildeo ldquobra-sileirardquo Helios se perguntava provocativamente sobre o futuro evo-cando um autor consagrado naquele passado recente como um exemplo de produccedilatildeo autecircntica Enquanto isso disparava contra recentes com-panheiros de busca pelo ldquomodernordquo
Quando noacutes seremos noacutes Quando nos abrasileiraremos Nossa or-chestra mental parece obedecer a uma batuta parisiense O Sr Graccedila Aranha empresaacuterio da uacuteltima temporada literaacuteria nacional trouxe de Paris suas partituras uma irrisatildeoFalam mal de Catullo da Paixatildeo Cearense Esse eacute pelo menos um Homero da raccedila Mil vezes sua rude e agreste poesia que as exque-sitices amaneiradas e exoacuteticas dos escravos do Sr Appolinaire do Sr Defunnto Rimbaud e do meu querido CendrarsTristatildeo de Athayde eacute um valente Quero ler mais artigos como esse para ter a alegria de registrar que haacute ainda em meio da nossa anemia cerebral gente que ndash fora do picadeiro organizado pelo Sr Graccedila e fora do amphitheatro grego do Sr Coelho Netto - enxerga as cousas com olhos puros para conduzir as geraccedilotildees literaacuterias do Brasil ao caminho da sinceridade da beleza e da originalidade real229
A posiccedilatildeo de Menotti com relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo literaacuteria de sua eacutepoca eacute pelo menos provocadora Se por um lado enaltece o ldquofutu-rismordquo por outro destrata a postura de Graccedila Aranha um companheiro que inclusive organizou a Semana de Arte Moderna de 1922 da qual participara Menotti ndash e que jaacute naquele momento incompatibilizava-se
228 Idem229 Ibidem
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 175
com muitos dos participantes da Semana Critica certos estrangeirismos modernos ainda assim natildeo deixa de enxergar no consagrado Coelho Netto a imagem da nossa ldquoanemia cerebralrdquo Embora acredite na con-duccedilatildeo de novas ldquogeraccedilotildees literaacuteriasrdquo ao ldquocaminho da sinceridade da beleza e da originalidaderdquo observa em Catullo da Paixatildeo Cearense um siacutembolo jaacute existente dessa originalidade porvir identificando-o como um ldquoHomero da raccedilardquo
A presenccedila de Catullo no excerto natildeo eacute gratuita Catullo era um artista consagrado pela elite letrada paulista que via em seus poemas sertanejos a expressatildeo de uma originalidade popular Mas aqui o que salta aos olhos eacute o conteuacutedo ambiacuteguo de uma prospectiva acerca da li-teratura Prospectiva que mescla num discurso que visa agrave mudanccedila tanto elementos considerados antigos quanto modernos de forma a compor aquilo que Menotti considerava vaacutelido como ideal para ser cha-mado nas palavras do autor de construccedilotildees com valor de ldquooriginali-dade realrdquo
Entretanto haacute de se salientar a opiniatildeo de Menotti e seu olhar sobre a produccedilatildeo contemporacircnea natildeo devem ser entendidos como uma voz uniacutessona dos participantes da Semana de 1922 Maacuterio de Andrade em uma criacutetica aguda escrita no Diaacuterio Nacional em 1931 dispara contra uma pretensatildeo aventada por Menotti de considerar a produccedilatildeo de Catullo como expressatildeo de um tipo ldquopopularrdquo Maacuterio argumenta rai-vosamente que o que poetas como
[] um Catullo Cearense realizam natildeo eacute nem de nenhuma maneira se podem comparar com a poesia popular Eacute arte arte da mais livre tatildeo esteticamente livre como qualquer Parnasianismo O que eles tiram do povo eacute apenas o elemento de curiosidade de prazer Na verdade eles estatildeo fazendo arte contra o povo arte burguesa em que os elementos po-pulares se tornam motivos de divertimento e natildeo de comoccedilatildeo Enfim o popularesco de que eles se servem eacute um exotismo romacircntico laccedilo de fita enfeite para uma obra-de-arte visceralmente individualista e que como individualista pode ser magniacutefica E este eacute de fato o caso de Catullo Cearense que nos seus primeiros livros chegou a ser magniacutefico230
230 ANDRADE Maacuterio de Taacutexi e crocircnicas no Diaacuterio Nacional Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1976 p 51
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O que se depreende dos trechos acima citados eacute que para uma compreensatildeo do campo literaacuterio brasileiro dos anos 1920 e 1930 tor-na-se imperativa uma investigaccedilatildeo ainda sobre a operacionalizaccedilatildeo do termo ldquopopularrdquo no seio de uma nova concepccedilatildeo de literatura Se alguns aspectos de busca pela originalidade na produccedilatildeo cultural do periacuteodo podem ser definidos por uma apologia do novo ndash termo que se confunde muitas vezes com original mas que natildeo diz a mesma coisa ndash esse novo tematizado dentro de certas produccedilotildees era constituiacutedo natildeo soacute de ele-mentos formais de velhas produccedilotildees mas tambeacutem da discussatildeo reno-vada de velhas temaacuteticas entre as quais aquilo que assegurava o reco-nhecimento de Catullo como ldquoHomero da raccedilardquo qual seja certa noccedilatildeo de ldquocultura popularrdquo
Se os projetos modernistas se propunham a renovar e criticar aquilo entendido como velho e ultrapassado esses mesmos velhos e ultrapassados eram visados como totalmente incontornaacuteveis para se buscar uma originalidade que como ainda natildeo existia como fato artiacutes-tico (diagnoacutestico de Menotti) deveria ser buscado como projeto cul-tural (ideal de Maacuterio) Daiacute buscar naquilo que se entendia vir do ldquopovordquo a expressatildeo verdadeira da ldquoculturardquo Eacute nesse espaccedilo de busca por uma nova expressatildeo que eacute renovada a discussatildeo do ldquopopularrdquo
Entretanto se artistas considerados ldquovelhosrdquo nutriam-se de seu reconhecimento como ldquopopularesrdquo os termos para se definir ldquopo-pularrdquo foram reavaliados Catullo sendo um dos consagrados sob esse termo seria objeto de discussotildees e reflexotildees acaloradas no seio dessa renovaccedilatildeo
Ser ldquomodernordquo autorizava na eacutepoca distintas representaccedilotildees O jornal O Paiz de fins de 1920 vinha com uma chamada em letras grandes de um conselho ldquoMonsenhor Dubois arcebispo de Paris con-cita o elemento feminino a abster-se das modas e dansas ditadas pelo modernismordquo231 Aqui o modernismo eacute tomado em negativo mas po-deria ser tambeacutem um adjetivo positivo quando o objetivo era vender um produto ldquoAo 1ordm Barateiro a casa que daacute sempre a nota em artigos finos
231 O Paiz 20 dez 1920
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 177
do mais alto luxo e maior modernismo parisienserdquo232 E se havia em-polgados com as novidades havia aqueles que desdenhavam de alguma mudanccedila vendo apenas um tempo igual aos outros A escritora Branca Colaccedilo assim pensava
Tambeacutem a mim [] me natildeo empolga o modernismoNatildeo quer isto dizer que natildeo aprove certos modernismos se me parecem sensatos O nosso tempo tem senotildees sem duacutevida mas tambeacutem tem vantagensEste conceito eacute profundo Se lhe acrescentarmos que a maior parte das qualidades e dos defeitos de uma eacutepoca depende da subjectividade da pessoa que os aprecia chegamos aacute conclusatildeo transcendente de que es-tamos num tempo como outro qualquer233
Por seu lado a renovaccedilatildeo das artes brasileiras ndash postura assumida tanto por Menotti quanto por Maacuterio ndash recolocava no caminho da dis-cussatildeo sobre a literatura moderna um uso especiacutefico do termo ldquopo-pularrdquo Na produccedilatildeo literaacuteria que antecedeu a movimentaccedilatildeo de 22 a denominada ldquoregionalistardquo era de longe a que possuiacutea mais know-how entre os letrados
Como jaacute analisamos ainda entre os novos modernistas paulistas o nome de Catullo da Paixatildeo Cearense era saudado com entusiasmo e de fato ele era aquele que mais controveacutersia iria causar pois que se de um lado Monteiro Lobato Valdomiro Silveira Corneacutelio Pires (autores paulistas tambeacutem reconhecidos como ldquoregionalistasrdquo) podiam facil-mente ser definidos como letrados que tematizavam o interior por outro a figura ambiacutegua de Catullo soava bem mais incocircmoda e de di-fiacutecil qualificaccedilatildeo entre os ldquomodernistasrdquo Isso porque o autor era tido como um sertanejo e a proacutepria postura de Catullo apresentando-se ves-tido de marrueiro fazia com que essa representaccedilatildeo ganhasse forccedila Poreacutem seu ingresso em temas natildeo sertanejos representados em seus
232 O Paiz 7 ago 1921 233 Trecho do folhetim ldquoCartas aacute Maroquinhardquo da lisbonense Branca de Gonta Colaccedilo
publicada em partes no jornal O Paiz em 1921 O trecho exposto eacute de 1ordm de outubro daquele ano
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uacuteltimos livros e principalmente seus escritos natildeo sertanejos ao sabor de parnasianos contendo palavras dificiacutelimas de compreensatildeo mesmo para um letrado da eacutepoca desautorizavam-no a ser compreendido como um produto de ldquooriginalidade realrdquo ou como Maacuterio de Andrade frisava Catullo se parecia mais com um ldquoexotismo romacircnticordquo
A grande questatildeo que se colocou foi o que fazer com uma pro-duccedilatildeo ldquoregionalistardquo jaacute consagrada Desqualificaacute-la somente levaria agrave negaccedilatildeo de partida da necessidade de se voltar para uma produccedilatildeo brasileira que tematizava o interior pois o interior era tido como espaccedilo de conhecimento essencial para se produzir uma ldquoliteratura nacionalrdquo tambeacutem pelos novos artistas Natildeo foi agrave toa que a figura de Euclides da Cunha foi constantemente evocada como membro seleto da ldquogeraccedilatildeo preacute-modernistardquo
A produccedilatildeo de Catullo com temas sertanejos eacute vasta Meu sertatildeo (1918) Sertatildeo em flor (1919) Poemas bravios (1921) Mata iluminada (1924) O evangelho das aves (1927) Alma do sertatildeo (1928) Faacutebulas e alegorias (1928) e Meu Brasil (1928) aleacutem de alguns musicais para o teatro Mas no meio dessa bibliografia haacute de se destacar um pequeno livro de poemas dedicados aos pescadores com o tiacutetulo de Os pesca-dores editado pela Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores do Brasil em 1923 Escrito em homenagem ao Dr Paulo Vianna presidente da Confederaccedilatildeo nesse livro ao deixar de lado a temaacutetica sertaneja que o consagrou Catullo faz algumas observaccedilotildees sobre a publicaccedilatildeo diri-gindo-se no prefaacutecio ao comandante do barco ldquoRepuacuteblicardquo o Filoacute
Aqui estaacute o Poema que vocecirc e seus collegas me pediram que escre-vesse Penso eu que estas paacuteginas satildeo o documento fiel de tudo o que ouvi de sua bocca [] Como veraacute este Poema natildeo eacute uma fantasia Os arrebatamentos de enthusiasmo que explodem de quando em quando natildeo prejudicam a veracidade da documentaccedilatildeo234
Vou me ater a um termo que reputo fundamental para avanccedilar na compreensatildeo da relaccedilatildeo de Catullo com a(s) criacutetica(s) ldquomodernista(s)rdquo
234 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Aos pescadores Rio de Janeiro Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 1923 p 11-12
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documento Na passagem anterior o caraacuteter verossiacutemil do poema apre-sentado eacute atestado por um ldquoouvi de sua boccardquo mdash no caso da boca de um pescador Essa condiccedilatildeo de ouvinte visava a transmitir para seu leitor uma sensaccedilatildeo de veracidade Aqui o ldquosentirrdquo evocado por Catullo nos seus poemas sertanejos eacute substituiacutedo por um ldquoouvirrdquo Em ambos os casos buscava-se um objetivo comum que eacute a fidelidade com um real que existe fora do texto O texto eacute aqui tambeacutem como nos poemas serta-nejos ldquodocumento fielrdquo e por isso Catullo alerta ao seu leitor que seu ldquoenthusiasmordquo natildeo deveria prejudicar a ldquoveracidade da documentaccedilatildeordquo
Eacute exatamente esse vieacutes documental da escrita literaacuteria que vai ser questionado pelos novos escritores acerca da dita ldquoliteratura regiona-listardquo ateacute ali Natildeo que essa tradiccedilatildeo documental fosse algo a ser cons-truiacutedo na produccedilatildeo literaacuteria do periacuteodo mas naquele momento essa mesma tradiccedilatildeo foi sendo ressignificada como projeto literaacuterio ga-nhando novos contornos e balizas definidoras de aceitaccedilatildeo de uma obra ou de um autor como literatura brasileira Aqui haacute um corte quase im-perceptiacutevel mas fundamental na histoacuteria literaacuteria no Brasil que visa construir um novo projeto de literatura que coloque em xeque toda tra-diccedilatildeo recebida Daiacute aspectos como velhonovo antigomoderno ga-nharem realces nessa produccedilatildeo natildeo tanto como constataccedilotildees temporais de uma literatura anterior mas termos (des) qualificadores e baliza-dores de uma nova esteacutetica que se propunha criar Daiacute a literatura nas-cente com a provocaccedilatildeo modernista de 1922 ser portadora de uma con-cepccedilatildeo literaacuteria que visa tambeacutem a construir uma Histoacuteria A escrita de uma histoacuteria literaacuteria eacute tambeacutem projeto de afirmaccedilatildeo da nova produccedilatildeo que surgia
Essas mesmas qualificaccedilotildees temporais Catullo da Paixatildeo Cea-rense vai dramatizar em seus poemas Ainda no iniacutecio do livro de po-emas Os pescadores o narrador de Catullo assim fala ao proacuteprio autor explicando-lhe como deve ser escrito o poema e o porquecirc da escolha do poeta para contar os feitos dos pescadores
Peccedila aacute Musa sertanejaque lhe tempere aacute violaa viola que lhe consolasuas tristeza e maguas
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e cante alegre e saudosaa nossa vida penosamas sempre linda e gloriosaque o mar eacute o sertatildeo das aacuteguas
[]
Tome a viola predilectaVenha com a gente viverNatildeo nos importa saberse o seu Catullo eacute um artistafuturista ou penumbristabello feio antigo ou novoporque soacute nos interessasaber se cumpre a promessao poeta do nosso povo235
Os termos qualificadores de si aparecem na proacutepria represen-taccedilatildeo que Catullo faz aparecer em seus textos E se essa tensatildeo expressa obrigava a uma posiccedilatildeo do autor diante de seu puacuteblico leitor nem sempre isso se deu de forma paciacutefica
Em seu livro Faacutebulas e alegorias (1928) Catullo fez aparecer em uacuteltimo poema que encerra a publicaccedilatildeo uma raivosa declaraccedilatildeo de triunfo sobre todos os seus criacuteticos entre eles aqueles que identificava como ldquoFuturistas-legionaacuteriosrdquo Intitulada de A carta de um trovador o narrador do poema diz de uma carta que recebeu de um trovador conhe-cido Vale a transcriccedilatildeo
Um trovador conhecido grande rival das cigarrasamigo das antigas farrase orgulhoso do seu ldquoEurdquoa cada um dos seus ldquocriacuteticosrdquondash pavotildees sapos e ldquocatitasrdquo ndashe outros mais hermaphroditas ndashque eu transcrevo linha a linhatal como elle as escreveu
235 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Aos pescadores Rio de Janeiro Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 1923 p 15-16
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ldquoZoilos Parvos AretinosCriticoacuteides pequeninosPassadistas refractaacuteriosFuturistas-legionaacuteriosdos mais tolos desatinosPoetastros retardataacuteriosReis e Priacutencipes cretinosVecircde pobres cerebrinosMinha glorificaccedilatildeo
Nrsquouma dessas noites bellasToda branca toda nua ndash noite de recordaccedilatildeo ndasheu ouvi Deos e seus archanjosem serenatas aacutes estrellascantando dentro da Luao meu lsquoLuar do Sertatildeorsquordquo236
Informaccedilatildeo importante o poema eacute dedicado ldquoAacute minha megalo-mania ndash a mais humilde das virtudes que Deos me deurdquo Em geral re-presentado como algueacutem muito vaidoso e com pretensotildees poeacuteticas aleacutem do que realmente merecia Catullo parecia cada vez mais assumir sua vaidade argumentando como sendo uma mera constataccedilatildeo de sua gran-deza Natildeo eacute de se admirar que o mesmo poema acima citado voltasse a aparecer em seu livro seguinte Meu Brasil mas jaacute sem a primeira es-trofe que antecede a carta do suposto ldquotrovadorrdquo As apreciaccedilotildees sobre suas poesias que os seus editores faziam aparecer soacute aumentava para seus criacuteticos essa representaccedilatildeo exagerada do poeta
Uma das opiniotildees que fez gravar em um de seus livros Matta iluminada em sua 27ordf ediccedilatildeo foi a de Maacuterio de Andrade agrave qual nos reportaremos pois nela reside um dos artifiacutecios que constroem a repre-sentaccedilatildeo de si como grande poeta Vejamos
No livro do poeta publicado pela livraria Castilho a opiniatildeo de Maacuterio estaacute assim publicada ldquoCatullo eacute o maior criador de imagens da
236 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Faacutebulas e alegorias Rio de Janeiro Officina Industrial Graphica 1928 p 242-243
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poesia brasileira O seu livro ldquoMeu Sertatildeordquo eacute pouco menos que genial Eacute o espantoso criador de imagemrdquo237
Trata-se portanto de uma elogiosa criacutetica de um Maacuterio de Andrade consagrado nos anos 1930 como um dos maiores literatos do paiacutes O curioso eacute que em tal apreciaccedilatildeo foi suprimido todo o resto da criacutetica maior e aacutecida de Maacuterio de Andrade leitor de Catullo da Paixatildeo Cearense O trecho eacute parte de uma crocircnica publicada no Diaacuterio Nacional de 20 de dezembro de 1931 em que eacute verdade depois de elogiosas observaccedilotildees sobre o primeiro livro de Catullo Meu sertatildeo Maacuterio dispara contra toda a produccedilatildeo posterior do poeta sertanejo
Andei relendo Catullo Cearense estes dias Catullo depois dos seus livros de modinhas e lundus acariocados que pouca gente conhece e franqueza natildeo ultrapassam o valor da literatura de cordel do mesmo gecircnero redescobriu pra uso proacuteprio a poesia rural duma regiatildeo Nessa imitaccedilatildeo eacute que ele tornou-se um poeta admiraacutevel certamente o maior criador de imagens da poesia brasileira Com Meu Sertatildeo dava um livro pouco menos que genial E acabou Nos outros livros de primeiro inda surgia quando senatildeo quando um lampejo do imaginista maravilhoso de Meu Sertatildeo mas era um lampejo soacute ateacute que o poeta se esbandalhou inteiramente em livros escurecidos pela vaidade E principalmente pela civilizaccedilatildeo []Mas esta civilizaccedilatildeo era falsa importada Deu um brilho momentacircneo fulgurante pro pobre do brasileiro mas depois foi corroendo corroendo ele por dentro deformando-o nulificando Os uacuteltimos livros de Catullo Cearense natildeo satildeo nada238
A insinuaccedilatildeo no texto publicado pelo editor de Catullo de uma aprovaccedilatildeo vinda de um criacutetico jaacute consagrado em iniacutecios dos anos 1930 predispunha a aquisiccedilatildeo e leitura regrada do mesmo texto Funcionava antes como publicidade editorial e daiacute conduzia o leitor agrave crenccedila de que estaria lendo um autor aprovado por seus pares literatos
237 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Matta illuminada 27 ed Rio de Janeiro Bedeschi 1944 p 230
238 ANDRADE Maacuterio de Taacutexi e crocircnicas no Diaacuterio Nacional Satildeo Paulo Livraria Duas Cidades 1976 p 375-377
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Esses artifiacutecios foram mais de uma vez utilizados nas publicaccedilotildees de Catullo No volume de poemas intitulado O evangelho das aves (1927) seu editor Castilho fez aparecer um elogio de Joatildeo Ribeiro ldquoCatullo Cearense eacute um poeta nacional natildeo tenho duacutevidardquo239 Mas desa-parece o restante da criacutetica que originalmente foi publicada no jornal O Imparcial em dezembro de 1918 e que se completa com ldquo[] mas tatildeo artificioso como os outros poetas cultos e talvez mais do que ellesrdquo240
O contato da obra de Catullo da Paixatildeo Cearense com o puacuteblico paulista e o sucesso de puacuteblico que obteve exatamente no momento imediatamente anterior agrave explosatildeo da Semana de Arte Moderna de 22 potildee um questionamento fundamental para se compreender as escolhas posteriores da movimentaccedilatildeo modernista quais foram os limites para a determinaccedilatildeo do caraacuteter ldquomodernordquo de uma obra E jaacute avanccedilando uma resposta teraacute havido ainda nos anos 1920 uma definiccedilatildeo da movimen-taccedilatildeo de 22 com criteacuterios que buscassem estabelecer o que poderia caber sob o nome de ldquomodernismordquo
Aqui o que se deve reaver me parece eacute uma histoacuteria que lanccedilou para o passado um olhar em linha reta sobre o modernismo e que nessa tarefa buscou fincar as raiacutezes de uma ruptura no evento de 1922 Mais buscou nos seus antecedentes traccedilos que ldquopreparassemrdquo para a ruptura que viria naquele ano Essa anaacutelise natildeo obstante ter resultado numa infin-daacutevel bibliografia que construiu os alicerces do que hoje compreendemos como ldquomodernismordquo na literatura brasileira esqueceu-se natildeo raras vezes de historicizar na movimentaccedilatildeo aquilo que ela mais procurou construir ou seja a definiccedilatildeo de algo entendido como ldquomodernistardquo
O ldquoregionalismordquo ndash termo que por si soacute jaacute indicava algo proble-maacutetico para se definir a produccedilatildeo de autores muito diferentes entre si ndash era na construccedilatildeo de um tipo de literatura brasileira canonizada nos ma-nuais especialmente poacutes-anos 1940 um tipo de produccedilatildeo negada por alguns ldquomodernistasrdquo Mas quando se observa que os mesmos artistas que participaram da Semana de 22 eram aqueles que patrocinavam as
239 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O evangelho das aves Rio de Janeiro Livraria Castilho 1927 p 270
240 O Imparcial 2 dez1918 p 2
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apresentaccedilotildees de motivos regionais e saudavam a apariccedilatildeo de autores que faziam de suas obras uma apresentaccedilatildeo do homem do interior algo parece para um investigador atento natildeo estar tatildeo bem problematizado
Em um famoso artigo com um tiacutetulo explicativo de ldquoRegio-nalismordquo em que Menotti Del Pichia defende a necessidade imperativa do ldquoregionalismordquo nas artes produzidas no Brasil o escritor inicia criti-cando um tipo de ldquoregionalismordquo que assustaria os proacuteprios persona-gens dessas produccedilotildees
Quem vecirc o Brasil com olhos parisienses acha qualquer manifestaccedilatildeo de brasilidade cheirando a regionalismo Eacute tatildeo pequeno o trato que nossos escriptores tecircm com a nossa terra e com nossa gente e tatildeo afinados pelo diapasatildeo forasteiro estatildeo seus rhythimos e sua arte que extranham nossos Tiotildees e Maricoacutetas nossos bragados e sacysO regionalismo reside numa demarcaccedilatildeo exacta de fronteiras numa uti-lizaccedilatildeo em ambiente local de pequenos episoacutedios locaes vasado numa linguagem com caracteriacutesticos typicamente locaes Esta arte interessa relativamente apenas como contribuiccedilatildeo de material Agora quaesquer desses themas quando contecircm episoacutedio humano cujo sentido eacute uni-versal isto eacute comum a todas as raccedilas mesmo que sejam vincados por uma forte physionomia ambiental perdem facilmente seu caracter re-gionalista pelo espiacuterito de universalizaccedilatildeo que o artista lhe daacute241
Menotti daacute sua opiniatildeo sobre um tipo de praacutetica que para ele sob a forma de um ldquoregionalismordquo faria exatamente o contraacuterio de mostrar o regional apresentaria na realidade no momento mesmo em que era produzido o sentido uacuteltimo daqueles que o faziam
O que haacute em certos escriptores nossos eacute o pudor de parecerem brasi-leiros Eacute um viacutecio do caipirismo intransigente exacerbado por viagens elegantes Isso ou mania de espantar brasileiro com um jaacute desmorali-zado cosmopolitismo beoacutecio e contra matildeoO regionalismo tem-se expressado entre noacutes por documentaccedilotildees muito typicas mas quase todas mediacuteocres Seu transito eacute curto Fechas-se dentro de uma compilaccedilatildeo do ldquofolk-lorerdquo Tem accusado uma grande indigecircncia mental
241 DEL PICHIA Menotti Regionalismo Correio Paulistano 3 out 1926 p 3
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[]Entre noacutes pela razatildeo desse pudor invenciacutevel que muitos escriptores ainda tecircm de revoltar-se na cacircndida expressatildeo do caracter da nossa raccedila achando mais elegante pensar e sentir aacute moda extrangeira a questatildeo do regionalismo eacute muito mal comprehendida []Precisamos mudar de rumo Olhar com olhos exactos sem daltonismos gaulezas nossa terra nossa gente este ldquoimmenso e colosso giganterdquo que se chama Brasil[]Eacute diffiacutecil confesso Para se ver o Brasil como elle eacute necessita-se ter es-tado em contacto directo e commovedor com a alma da terra Eacute preciso a coragem vibrante de ser brasileiro bem brasileiro em todos os defeito [sic] e em todo o primitivismo inaugural da grande paacutetria nascente Eacute preciso ter a alma cacircndida natildeo viciada em gallicismos sensoriaes e es-pirituaes Eacute preciso afinal integrar-se no seu admiraacutevel rhythmo para poder exprimir sua majestosa belleza242
Trata-se de um verdadeiro libelo contra um tipo de ldquoregiona-lismordquo que para Menotti natildeo poderia se dar mais Daiacute propotildee uma nova postura de ldquocontacto directordquo com a ldquoalma da terrardquo como uacutenica saiacuteda para se representar de fato o paiacutes Aiacute natildeo se trata da condenaccedilatildeo do ldquoregionalismordquo nas artes brasileiras mas da necessidade de uma natildeo estilizaccedilatildeo do regional em nome de algo maior que seria o ser brasi-leiro que natildeo negaria a regiatildeo ao contraacuterio ele teria de conhececirc-la di-retamente sem intermediaacuterios sem ldquogallicismosrdquo a fim de desco-brir-se assim o brasileiro
A sentenccedila eacute longa mas esclarecedora da complexidade subja-cente agrave discussatildeo sobre ldquoregionalismosrdquo nas artes brasileiras O perigo aqui eacute tomar um discurso que se traduz na escrita de um modernista como Menotti como uma opiniatildeo uniacutessona dentro daquilo entendido como ldquomodernismordquo Eacute bem verdade que uma histoacuteria da literatura bra-sileira se debateu sobre conflituosas discussotildees que se deram quase que imediatamente apoacutes a Semana de 22 Mas se esses debates se davam naquilo que deveria ser entendido como ldquomodernordquo deixaram de lado
242 DEL PICHIA Menotti Regionalismo Correio Paulistano 3 out 1926 p 3
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a anaacutelise histoacuterica do momento em que algumas obras identificadas jaacute existentes e entendidas como ldquoregionalistasrdquo estiveram em disputa no meio dessa discussatildeo sobre o ldquomodernordquo
Embora Catullo mantivesse um conflito aberto com o chamado ldquofuturismordquo nas artes brasileiras eacute necessaacuterio salientar que se vivia um momento de construccedilatildeo histoacuterica de um termo o ldquomodernismordquo A se-leccedilatildeo de autores que pairavam abaixo desse epiacuteteto em fins dos anos 1920 e comeccedilo dos anos 1930 natildeo era de faacutecil delimitaccedilatildeo
Manuel Bandeira consagrado pela histoacuteria literaacuteria brasileira como um modernista era amigo pessoal de Catullo e nessa relaccedilatildeo havia uma admiraccedilatildeo muacutetua Isto nunca foi entrave para que Bandeira se referisse a Catullo como muitas vezes o fez como um personagem caricato Na esteira da necessidade novamente imposta pelos ldquonovosrdquo de representar melhor o paiacutes em sua literatura Bandeira tal qual Maacuterio de Andrade relega a poesia de Catullo a uma simples ldquocriaccedilatildeo de ima-gensrdquo e portanto superficial passando longe do que seria um suposto sertatildeo de verdade Explica
Catullo da Paixatildeo Cearense Eacute sem duacutevida um poetatildeo um sujeito que fabrica imagens com surpreendente facilidade Mas eacute tatildeo cidade quanto noacutes outros Natildeo se confunde com o sertatildeo Eacute um sertatildeo de saudade o seu Um sertatildeo muito saiacutedo de vocabulaacuterios regionais O que tem mais gosto de sertatildeo nos seus poemas satildeo as lagoas do Nordeste cujo en-canto sentiu e sabe transmitir como ningueacutem em dois trecircs versos ele potildee nos olhos e no coraccedilatildeo da gente a deliacutecia de uma Pajuccedilara243
Bandeira ainda termina sua criacutetica arrematando que Catullo era como o romacircntico francecircs ldquoo Victor Hugo do sertatildeordquo Haacute aqui uma desqualificaccedilatildeo exatamente no ponto onde eacute mais enobrecida sua po-esia Ela eacute positiva pois joga com imagens e negativa para as novas pretensotildees almejadas por Maacuterio pois essas imagens satildeo meras criaccedilotildees A nova literatura ao que parece natildeo poderia lanccedilar matildeo da imaginaccedilatildeo
243 A Proviacutencia 14 abr 1929 Reeditado em BANDEIRA Manuel Crocircnicas da proviacutencia do Brasil Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2006 p 144
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Ela deveria como nos faz crer Maacuterio e Bandeira jogar com a realidade Ela se confundiria com o documento
Nas opiniotildees de Maacuterio de Andrade e Manuel Bandeira vecirc-se o flagrante de um processo de construccedilatildeo do ldquomodernismordquo que se deu de forma a elencar os autores que pudessem ser natildeo tanto identificados como ldquomodernosrdquo mas antes que pudessem natildeo figurar como autores de uma literatura brasileira Essa tarefa desloca a anaacutelise para uma questatildeo fundante que ficou ao que parece de fora de toda uma dis-cussatildeo acerca da construccedilatildeo do ldquomodernismordquo de 22 a concomitante refundaccedilatildeo da ldquoliteratura brasileirardquo
O rompimento com certos autores excluiacutedos do rol dos ldquomoder-nistasrdquo eacute antes de tudo um apagamento E se o criteacuterio para essa exclusatildeo nem sempre foi consensual tamanhas distinccedilotildees daqueles que reivindicavam o caraacuteter moderno de suas produccedilotildees ela mesma foi sistemaacutetica Daiacute soar estranho dizer conforme eacute comum em anaacute-lises de 22 em linhas gerais que o modernismo foi uma reaccedilatildeo contra o parnasianismo poeacutetico o regionalismo e o romantismo Isso pocircde provocar mais um desentendimento sobre o que estava posto nos anos 1920 e 1930 no Brasil literaacuterio
Catullo da Paixatildeo Cearense natildeo eacute criticado em nenhum mo-mento por seu regionalismo dignificador da figura sertaneja nem Monteiro Lobato eacute criticado por assumir posteriormente a imagem de um Jeca viacutetima tampouco Euclides da Cunha eacute apagado de uma histoacuteria literaacuteria em construccedilatildeo pela ambiguidade muitas vezes eno-brecedora com que trata o homem do sertatildeo Pelo contraacuterio Maacuterio de Andrade e Manuel Bandeira amplificam a necessidade irrevogaacutevel da literatura voltar-se de maneira menos imaginosa ao Brasil Eacute aiacute que residem suas criacuteticas severas a Catullo Ao que parece natildeo se trata da busca por uma literatura que procura narrar uma suposta re-alidade como uma literatura em documento mas de uma literatura que persiga a verossimilhanccedila mesmo que se valha de elementos de uma poesia ou prosa formais Essa era uma caracteriacutestica visada nos textos de modo que estes pudessem pela mediccedilatildeo de uma imagi-naccedilatildeo deturpadora ou natildeo da realidade ser separados entre ldquofutu-ristasrdquo e ldquopassadistasrdquo
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O criteacuterio para se decidir o ldquograu imaginativordquo de uma produccedilatildeo literaacuteria esse sim era algo que provocava desentendimentos entre os proacuteprios modernistas de primeira hora Quando da publicaccedilatildeo do polecirc-mico Pau Brasil de Oswald de Andrade o prefaacutecio do livro escrito pelo maior mecenas da invasatildeo modernista paulista nas artes Paulo Prado trazia uma opiniatildeo controversa sobre Catullo Defendendo a criaccedilatildeo de uma arte brasileira Prado faz um balanccedilo de uma histoacuteria literaacuteria para ele ultrapassada mas que mesmo com suas idiossincra-sias trouxe pelo menos dois grandes artistas Casimiro de Abreu e Catullo da Paixatildeo Cearense Vejamos
Em poliacutetica o chamado ldquogrito do Ipirangardquo inaugurou a deformaccedilatildeo da realidade de que ainda natildeo nos libertamos e nos faz viver num sonho de que soacute acordaraacute alguma cataacutestrofe benfeitora Em literatura nenhuma outra influecircncia poderia ser mais deleteacuteria para o espiacuterito nacional Desde o aparecimento dos Suspiros poeacuteticos e saudades de Gonccedilalves de Magalhatildees que os nossos poetas e escritores ateacute os claros dias de hoje tecircm bebido inspiraccedilotildees no cracircnio humano cheio de bourgogne com que se embebedava Child Harold nas orgias de Newstead O li-rismo puro simples e ingecircnuo como um canto de paacutessaro soacute o ex-primiram talvez dois poetas quase desprezados ndash um Casimiro de Abreu relegado agrave admiraccedilatildeo das melindrosas provincianas e caixeiros apaixonados outro Catullo Cearense trovador sertanejo que a mania literaacuteria jaacute envenenou Foram esses melancoacutelicos desalinhados e sin-ceros os dois uacutenicos inteacuterpretes do ritmo profundo e iacutentimo da Raccedila como Ronsard e Musset na Franccedila Moeriken e Uhland na Alemanha Chaucer e Burns na Inglaterra e Whitman nos Estados Unidos Os outros satildeo lusitanos franceses espanhoacuteis ingleses e alematildees versifi-cando numa liacutengua estranha que eacute o portuguecircs de Portugal esbanjando talento e mesmo gecircnio num desperdiacutecio lamentaacutevel e nacional244
Eacute possiacutevel observar no trecho citado a opiniatildeo de Paulo Prado acerca de certa nova literatura que se procurava construir atraveacutes dos exemplos tanto de antigos autores (Casimiro e Catullo) quanto de au-tores estrangeiros (Ronsard Musset Whitman etc) Eacute importante frisar que havia para o mesmo autor um tipo de literatura que poderia con-
244 PRADO Paulo Poesia Pau Brasil In ANDRADE Oswald Pau Brasil Satildeo Paulo Globo 2003 p 90 (1ordf ediccedilatildeo em 1925)
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duzir um escritor a certa mania literaacuteria se assim ela fosse obsessiva-mente buscada Essa visada a uma ldquomania literaacuteriardquo eacute que deveria para Prado ser evitada Daiacute sua criacutetica a Catullo que se embrenhava se-gundo ele nesse caminho
Ademais dentro da mesma argumentaccedilatildeo haacute um elogio do que fora produzido de modo que tornava absolutamente impossiacutevel traccedilar marcos de ruptura que pudessem balizar a nova produccedilatildeo literaacuteria pela simples supressatildeo de uma anterior A poesia Pau-Brasil que Prado apresentava era o iniacutecio de ldquoum periacuteodo de construccedilatildeo cria-dorardquo que sucederia agravequela da ldquodestruiccedilatildeo revolucionaacuteria das lsquopala-vras em liberdadersquordquo245
O jornalista do perioacutedico O Paiz Abner Mouratildeo discorria sobre essa estranha relaccedilatildeo contrastante de ldquofuturistasrdquo e ldquopassadistasrdquo e de maneira perspicaz sobre as fronteiras fluiacutedas que os separavam evo-cando um possiacutevel ldquopresentismordquo entre os dois
O que nos falta em literatura sobra-nos em discussotildees literaacuterias que an-tigamente acabavam em vias de facto e hoje em queixas-crimes apre-sentadas aos juiacutezes competentes Benefiacutecios da lei da imprensa e de um evidente aperfeiccediloamento dos costumesA discussatildeo agora generalizada e cada vez mais acesa eacute como estaacute-se vendo entre futuristas e passadistas O movimento de ousadia mental e de anceios de renovaccedilatildeo que tem o nome jaacute claacutessico de futurismo tenta aqui o seu primeiro grande surto []Permitto-me entretanto insinuar (oacute desenvoltura proacutepria dos jorna-listas) entre passadismo e futurismo a escola presentista []Os adeptos desta escola deveratildeo pensar que o futuro a Deos pertence e por conseguinte natildeo se preocupar com elle mais do que com a primeira camisa que vestiram O passado eacute tatildeo necessaacuterio aacute [sic] cultura como os alicerces de uma casa Extraiacutedo dele poreacutem o que poacutede fornecer como ornamento do espiacuterito e esclarecimento da visatildeo o escriptor presentista deve igualmente pol-o departe O seu esforccedilo deve ser olhar a vida que passa e tudo que se acha em torno de si246
245 Idem p 91246 MOURAtildeO Abner Nos domiacutenios da literatura nacional O Paiz 28 mar 1924 p 3
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Na impossibilidade de definir o que seria o ldquofuturismordquo e o ldquopas-sadismordquo nas letras brasileiras Abner Mouratildeo propotildee a saiacuteda do ldquopre-sentismordquo Poreacutem se sua foacutermula buscava uma saiacuteda para a aporia que envolvia ambos os lados ainda assim ela pautava um tema que seria buscado de maneira freneacutetica pelos ldquomodernistasrdquo e que estava no cerne das criacuteticas de Maacuterio e de Bandeira expostas anteriormente
A nossa vida os nossos sertotildees ahi estatildeo a offerecer admiraacutevel mateacuteria prima aos homenns de letras Mas seraacute sempre preciso viajar pene-trar nelles Querer vecirc-los e fixaacute-los drsquoaqui passeando na avenida Rio Branco como fazem os Srs Coelho Netto Afracircnio Peixoto Catullo da Paixatildeo Cearense e outras figuras illustres natildeo poacutede dar resultados reco-mendaacuteveis Um relatoacuterio do general Rondon embora mal escripto seraacute sempre mais visto e interessante que romance ou poema elaborado num acto de pura imaginaccedilatildeo que consiste em arrumar palavras de um modo natildeo muito differente daquelle como o pedreiro dispotildee os seus tijolos247
Natildeo eacute agrave toa que o caso de Catullo eacute novamente empregado como um exemplo em negativo de uma literatura que se ressente de uma ver-dadeira imagem do real Eacute nessa mesma esteira que eacute colocada a obra consagrada de Coelho Netto Natildeo eacute seu regionalismo que eacute rejeitado mas sua imaginaccedilatildeo
Ainda no mesmo artigo uma comparaccedilatildeo busca comprovar o estatuto em negativo de representar na nova literatura algo de fato desconhecido Trata-se da comparaccedilatildeo que Abner faz das novas produ-ccedilotildees com a obra de Machado de Assis que segundo o articulista de O Paiz construiu sempre sua literatura com as ferramentas com as quais se cercava em seu cotidiano
Machado de Assis era um homem tiacutemido fechado que vivia entre a sua casa e a reparticcedilatildeo Pois com as suas paacuteginas burocraacuteticas e de meias tintas e de sentimento interior fez a maior obra da literatura brasileira do seu tempo Assim esse Mestre admiraacutevel ensina ao escriptor a natildeo sair de si mesmo e do ciacuterculo das coisas que o cercam embora mesquinho se quizer ser na verdade grande
247 MOURAtildeO Abner Nos domiacutenios da literatura nacional O Paiz 28 mar 1924 p 3
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Deixemos passado e futuro Fiquemos simplesmente no presente que soacute elle poacutede efficazmente propiciar a obra de arte248
Parecia que a melhor representaccedilatildeo soacute poderia ser buscada a partir do conhecimento e nunca da imaginaccedilatildeo Ainda que a forma natildeo tenha sido desdenhada ndash pois expressar-se numa forma anterior era tambeacutem vaacutelido ndash o que era pautado era o estatuto natildeo imaginoso de uma representaccedilatildeo A nova literatura deveria ter como subsiacutedio funda-mental a realidade E essa busca natildeo era de todo uma tentativa siste-maacutetica de relegar o que ateacute ali havia sido produzido Existia em meio agrave criacutetica um reconhecimento pelos benefiacutecios de uma literatura ante-rior como dizia Ribeiro Couto membro participante da Semana de 22 em Satildeo Paulo ldquoNatildeo queremos destruir o passado Queremos construir um presente diverso do dia de hontemrdquo249 Essa opiniatildeo vai ao en-contro das anteriormente expostas que traduzem certa ambiguidade com relaccedilatildeo agravequeles que criticam Mesmo a Academia Brasileira de Letras local de consagraccedilatildeo de muitos dos literatos criticados eacute pou-pada pois o que se critica natildeo eacute ainda nas palavras de Ribeiro Couto a Academia mas o academicismo
A Academia natildeo entendeu o Sr Graccedila Aranha Elle natildeo quer matal-a quer que ela se interesse pela vida tome parte na agitaccedilatildeo das ideacuteas na festa da construcccedilatildeo de um Brasil mental independente e activo Ele natildeo quer enfim uma Academia acadecircmica250
A confusatildeo de opiniotildees que se mesclavam e se digladiavam na representaccedilatildeo do novo do moderno e do modernismo literaacuterio era ex-pressa nos perioacutedicos da eacutepoca Essa confusatildeo natildeo pode ser compreen-dida sem levar-se em conta a historicidade dos termos em disputa seus usos aleacutem das apropriaccedilotildees feitas das obras produzidas no periacuteodo
A representaccedilatildeo da produccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense ao que parece nunca foi vinculada a algo que o aproximasse de um autor passadista Ao contraacuterio ele era desdenhado pelos modernistas pelo
248 Idem249 COUTO Ribeiro Futurismo versus Passadismo O Paiz 29 jun 1924 p 6250 Idem
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fato de ser um moderno que se lanccedilava a criar em sua imaginaccedilatildeo o linguajar do sertanejo Imaginar uma liacutengua era inaceitaacutevel Se de um lado era moderno conhecer por outro imaginar algo de que se natildeo tem conhecimento era demais para ser considerado modernista Essa ambi-guidade ndash em ser identificada como moderna e natildeo ser modernista ndash era uma temaacutetica comum na obra de Catullo No prefaacutecio que abre seu livro O evangelho das aves (1927) escrito por Maacuterio Joseacute de Almeida o poeta eacute apresentado ateacute como o verdadeiro criador do modernismo
Natildeo o comparo a La Fontaine nem a Tagore nem a Mistral como eacute tatildeo comum fazer-se no julgamento do mais brasileiro de nossos escrip-tores elle eacute um phenomeno literaacuterio inteiramente agrave parte a qualquer ponto de vista Mesmo sem grande penetraccedilatildeo criacutetica quem quer que o analyse desde o iniacutecio da sua prodigiosa actividade intellectual veraacute que o creador da feiccedilatildeo constructora do modernismo na nossa poesia eacute simplesmente e genialmente ndash Catullo Cearense251
Ribeiro Couto por sua vez tambeacutem buscava expressar essa mis-celacircnea de opiniotildees acerca do que significava ser um ldquofuturistardquo Aliaacutes ldquofuturistardquo eacute o termo mais comum que aparece em vaacuterias publicaccedilotildees para se referir agrave movimentaccedilatildeo dos novos artistas Sobre esses novos artistas o depoimento de Ribeiro Couto eacute esclarecedor
O que somos eacute uma geraccedilatildeo independente aspirando a uma literatura feita a maneira do sentimento creador de cada um de noacutes e natildeo a uma literatura colonial Entre noacutes temos differenccedilas profundas O Sr Mario de Andrade por exemplo detesta a ldquopoesia da penumbrardquo Eu natildeo tenho que lhe dar satisfaccedilotildees e vou escrevendo como sinto Por meu lado acho uma pilheria o primitivismo do Sr Oswald de Andrade O Sr Maacuterio de Andrade acha o Sr Oswald de Andrade um gecircnio Elles se comprehendem natildeo me datildeo satisfaccedilotildees e continuam Boa viagemO que nos une a todos agrave nossa geraccedilatildeo cujo presidente de honras eacute o Sr Graccedila Aranha eacute o oacutedio commum ao modelo claacutessico ao gramma-tiquismo de empreacutestimo ao Sr Cacircndido Figueiredo ao cultivo bem educado e sorrateiro do quinhentismo portuguez aacute plantaccedilatildeo do soneto
251 ALMEIDA Maacuterio Joseacute de A arte universal de Catullo In CEARENSE Catullo da Paixatildeo O evangelho das aves Rio de Janeiro Livraria Castilho 1927 p 13
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aacute paixatildeo pela Greacutecia de cuja mythologia o Sr Coelho Netto eacute o cocircnsul do BrasilIsso eacute futurismo Entatildeo tchiiiiiiii poacute poacute Viva o futurismo252
O que se depreende do trecho acima eacute a falta de exatidatildeo para a definiccedilatildeo do chamado ldquofuturismordquo Aleacutem do mais chama a atenccedilatildeo para as distintas formas de conceber o ldquomodernordquo na literatura Ora se existia uma falta de unidade no grupo ldquomodernistardquo eacute possiacutevel portanto falar de uma ldquoliteratura modernistardquo Tal resposta deve ser buscada antes nas escolhas daqueles que buscaram sistematizar a histoacuteria de um grupo de autores E essa escolha sem duacutevida foi feita a posteriori O caminho para a compreensatildeo da produccedilatildeo daquelas obras identificadas como mo-dernistas eacute voltar-se assim para as proacuteprias obras a fim de que a dis-cussatildeo se eacute que ela existiu seja compreendida em sua historicidade
Arriscariacuteamos assim dizer que na primeira deacutecada que se se-guiu agrave Semana de 22 houve menos uma definiccedilatildeo do que viria a ser o ldquomodernismordquo do que uma tentativa de definir o que ldquonatildeo poderia serrdquo na literatura produzida O modernismo vai nessa visatildeo progressiva-mente sendo definido por uma negaccedilatildeo Eacute por isso que ao contraacuterio de muitas anaacutelises que foram realizadas sobre o chamado ldquomodernismo de 22rdquo e que deram ecircnfase na construccedilatildeo do termo a partir da defesa e ataque que seus protagonistas fizeram de suas obras e daqueles a quem criticavam eacute necessaacuterio fazer o caminho oposto qual seja analisar antes como e em quais termos se pautou uma estigmatizaccedilatildeo pelos mo-dernistas de obras tidas sem interesse para a nova literatura Daiacute ser bem mais proveitoso para uma histoacuteria literaacuteria um olhar que se des-loque para a produccedilatildeo de sentido com relaccedilatildeo natildeo soacute agraves proacuteprias obras denominadas modernistas mas antes de tudo para aquelas que so-freram as criacuteticas como natildeo modernas Dito de outra forma uma anaacutelise que saia das obras modernistas na compreensatildeo do ldquomomento moder-nistardquo e se desloque para as ldquoobras natildeo modernistasrdquo e seus autores muitos deles consagrados na Academia Brasileira de Letras (como
252 Depoimento de Ribeiro Couto na coluna literaacuteria do jornal O Paiz Em Futurismo versus Passadismo O Paiz 29 jun 1924
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Coelho Netto) ou com uma vasta produccedilatildeo consumida pelo mundo le-trado (como Catullo da Paixatildeo Cearense) Haacute no processo fundamen-talmente uma negaccedilatildeo de autores e obras e pelo menos num primeiro momento pouco de uma sistematizaccedilatildeo homogecircnea do modernismo constataccedilatildeo feita pelos proacuteprios autores consagrados sob esse epiacuteteto jaacute naquele momento
Por esse vieacutes de anaacutelise a obra de Catullo eacute sintomaacutetica dessa estigmatizaccedilatildeo Se a procura pela identificaccedilatildeo de sua obra como litera-tura e de sua condiccedilatildeo como poeta foi uma constante em sua trajetoacuteria eacute interessante notar um processo que se daacute ao avesso o de sua desauto-rizaccedilatildeo como poeta sertanejo ou dito de outra forma uma descons-truccedilatildeo de sua poesia sertaneja com uma consequente retirada de seu nome de qualquer identificaccedilatildeo como um poeta nacional Aqui eacute impor-tante salientar que o ldquonacionalrdquo eacute ressignificado pelos novos artistas de forma a natildeo caberem nele alguns autores estigmatizados
Na incapacidade de afirmaccedilatildeo de sua produccedilatildeo pelos novos cri-teacuterios criacuteticos e pelas novas crenccedilas esteacuteticas em construccedilatildeo havia a saiacuteda de buscar a referendaccedilatildeo de seu nome por estrangeiros especial-mente da Europa Isso natildeo passava despercebido pelos candidatos a autores nacionais E essa demanda foi outro artifiacutecio colocado agrave prova por Catullo e seus editores nos textos que publicou
Ainda em Meu sertatildeo o editor Castilho fez aparecer a criacutetica do poeta portuguecircs Alberto drsquoOliveira (Academia de Sciencias de Lisboa) que em prefaacutecio apresentava Catullo como aquele que ldquomais entende o amor aacute nossa modardquo e que encarnava a ldquoalma brasileira com fideli-daderdquo e ldquoum descendente e um continuador dos nossos trovadores po-pulares da Edade-Mediardquo253
Por outro lado outro recurso muito usado para desdenhar uma produccedilatildeo anterior foi sem duacutevida definhaacute-la atraveacutes do riso A carica-tura de um autor se mostrou de uma eficaacutecia fundamental nesse pro-cesso Nessa perspectiva eacute possiacutevel encontrar vaacuterios exemplos de re-presentaccedilatildeo risiacutevel da postura de Catullo da Paixatildeo Cearense
253 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Meu sertatildeo Rio de Janeiro Livraria Castilho 1918 p 14-15
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O jornalista Paulo Silveira que em sua coluna no jornal carioca O Paiz fazia uma verdadeira apologia aos novos escritores daacute um exemplo dessa cruzada que buscava atraveacutes da negaccedilatildeo de uns afirmar a produccedilatildeo dos novos A piada com Catullo eacute nesse sentido funda-mental para essa afirmaccedilatildeo
Jaacute laacute se foram os dolorosos tempos das poesias de assobio que satildeo feitas para ser recitadas nos tuberculosos sons de uma Dalila executada pellas matildeos romacircnticas de donzellas indefluxadas pelo catharros lyricos do patildeo drsquoaacutegua de seu Fagundes e pela remela manhosa dos versos de Casimirinho Essa eacutepoca passou e natildeo volta mais como canta o estro do fallecido Guerra Junqueiro poeta que conseguiu chegar aacute immortali-dade levando nos peacutes um estrondoso par de asas de bacalhao254
Continua atacando agora Catullo
Sr Catullo da Paixatildeo Cearense o Victor Hugo dos pobres de espiacuterito que o ministro Francisco Saacute mentalidade irocircnica e tolerante levou na sua comitiva com a incumbecircncia de medir com o tamanho de seus poemas a distacircncia que vai drsquoaqui do Rio de Janeiro aacute [sic] Baixa da Eacutegua Dizem que o selvaacutetico cantor [] abriu o bico na gare da Central e soacute foi acabar de recitar na ponta dos trilhos de Montes Claros Bateu assim o Record da distacircncia poeacutetica conseguindo com a extensatildeo de seus poemas transformar o Dr Carvalho Arauacutejo na Bella adormecida no wagon da Central do Brasil255
Essa representaccedilatildeo risiacutevel e caricatural de Catullo natildeo era novi-dade e foi usada muitas vezes pelos novos poetas para desqualificar a poesia sertaneja de Catullo Uma das receitas preferidas era fazer piadas com a reconhecida megalomania do poeta Natildeo passava agraves cegas tambeacutem a representaccedilatildeo da constante busca de reconhecimento que Catullo em sua trajetoacuteria sempre almejou
Ainda em 1918 quando a fama de Catullo como poeta do sertatildeo comeccedilava a se esboccedilar a revista O Malho trazia em sua seccedilatildeo ldquoA ane-docta da semanardquo escrita por certo Falconet um causo que acontecera
254 O Paiz 8 jun 1924255 Idem
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num bond da cidade do Rio de Janeiro Tratava-se de um encontro entre o poeta e acadecircmico Alberto de Oliveira e Catullo
O poeta Alberto de Oliveira tem como se sabe o curso de Pharmacia feito na Faculdade de Medicina drsquoesta capital Haacute quatro ou cinco dias vinha o cantor do Livro de Emma para a cidade quando tomou o mesmo Bond o poeta popular Catullo da Paixatildeo Cearense Descobrindo-o no banco fronteiro Catullo estendeu-lhe a dextra com effusatildeo exclamandondash Collega bom diaAlberto Oliveira levou o pollegar de ambas as matildeos aacutes pontas do bi-gode encerado e hieraacutetico para o receacutem-chegado perguntou-lhe com gravidadeO senhor tambeacutem eacute pharmaceuticoO autor do Marroeiro enfiado ganhou o matto256
Tempos depois quando o sucesso de Catullo como poeta serta-nejo jaacute se fazia ver Manuel Bandeira amigo de Catullo e modernista participante de primeira hora da Semana de 22 conta como conheceu Joseacute do Patrociacutenio Filho (o Zeca) No encontro estava laacute o Catullo megalocircmano
Eu conheci-o ultimamente numa farra em certa casa inconfessaacutevel da rua Riachuelo Estava laacute o Villa-Lobos o Ovalle o Joatildeo Pernambuco o Catulo O violatildeo passava de matildeo em matildeo porque todos tocavam Catulo estava impossiacutevel Bebera cerveja e deu para declamar poemas Noacutes queriacuteamos que ele cantasse umas modinhas bem bestas bem per-noacutesticas como ldquoA tua almardquo ou ldquoCeacutelia adeusrdquo ou ldquoTalento e formo-surardquo Mas o bardo estava em mareacute de grandeza e dizia muito seacuterio a duas belezas veniaisndash Minhas senhoras eu tenho sessenta anos e jaacute li todos os grandes po-emas de todas as literatura li todo o Homero todo o Virgiacutelio li Goethe Shakespeare Ariosto nunca encontrei nada como este poema da minha lavra que vou lhes recitarQuando ele puxava o pigarro para comeccedilar e a versalhada parecia ine-vitaacutevel o Zeca salvava a situaccedilatildeo
256 O Malho mar 1918
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ndash Oacute Catulo canta aquela modinhandash Que modinhandash Aquela em que vocecirc compara um peacute a um pensamento de PascalE como Catulo estava por conta da cerveja esquecia imediatamente o poema e cantava a modinha pedida257
O caraacuteter corrosivo da anedota buscava representar um sujeito risiacutevel definhando a aura de poeta que Catullo buscava construir258 Eacute certo que essa representaccedilatildeo de um Catullo risiacutevel eacute antiga e aliaacutes acompanhou o poeta durante quase toda a sua vida Mas ela ganhou focirclego com o advento dos ldquonovos modernos de 22rdquo e era uma receita bastante repetida pelos construtores de uma esteacutetica modernista Contra essa representaccedilatildeo Catullo tentou jaacute nos anos 1930 deixar a poesia sertaneja jaacute entatildeo em processo de estigmatizaccedilatildeo pelo mundo literaacuterio embora sucesso entre o puacuteblico leitor e voltar-se para outra produccedilatildeo naquele momento alvissareira para a sua afirmaccedilatildeo como poeta uma poesia ufanista sobre o Brasil
257 A crocircnica foi publicada no jornal A Proviacutencia no dia 12 de outubro de 1929 e repro-duzido em BANDEIRA Manuel Na cacircmara ardente de Joseacute do Patrociacutenio Filho Satildeo Paulo CosacampNaify 2006 p 93-94
258 O caraacuteter corrosivo e agregador do riso no Brasil de iniacutecios do seacuteculo XX eacute discutido belissimamente em SALIBA Elias Thomeacute Raiacutezes do riso a representaccedilatildeo humoriacutestica na histoacuteria brasileira Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002
CATULLO EM CENA
Dos textos aos palcos ou o inverso
O circo-teatro Trianon no Rio de Janeiro oferecia no mecircs de julho de 1930 um espetaacuteculo agrave parte O ator Procoacutepio Ferreira tomaria parte com o ldquogrande poetardquo Catullo da Paixatildeo Cearense o ldquogrande galatilderdquo Raul Roulien o cantor e violonista Patriacutecio Teixeira e a jovem cantora e jaacute ldquoapplaudidardquo Carmen Miranda (em comeccedilo de carreira prestigiosa no Brasil) de um ldquocolossal acto variadordquo intitulado Nossa vida eacute uma fita O jornal A Criacutetica de Maacuterio Rodrigues noticiava com entusiasmo o evento avisando ser o espetaacuteculo uma comeacutedia do ldquogrande escriptor da geraccedilatildeordquo Henrique Pongetti cujo enredo se desenrolava ldquonos bastidores cinematographicos da alucinante Hollywoodrdquo259 O evento se realizaria pela manhatilde
O dia parecia ser bastante rico em eventos pois para o final da tarde o mesmo jornal conclamava seus leitores para outro espetaacuteculo Este a ser realizado no Teatro Lyrico teria novamente a presenccedila de Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhado de seus companheiros com o espetaacuteculo musical Uma noite no sertatildeo A participaccedilatildeo do autor em ambas as produccedilotildees teatrais chama a atenccedilatildeo para uma mudanccedila na trajetoacuteria do poeta
259 A Criacutetica 15 jul 1930 p 4
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Desdenhado por suas produccedilotildees literaacuterias possuiacuterem representa-ccedilotildees por demais imaginosas do sertatildeo e do sertanejo Catullo encon-trava no teatro o ecircxito negado a ele pelos criacuteticos da sua produccedilatildeo lite-raacuteria Nos anos 1930 e 1940 o poeta foi figura constante nos palcos de teatros participando de musicais e por vezes cantando nos cinemas
A entrada de diversos escritores no mundo do teatro natildeo foi uma singularidade de Catullo Em fins da deacutecada de 1920 e iniacutecio da deacutecada de1930 era possiacutevel enxergar muitos de conhecidos literatos comparti-lhando o palco com artistas como Carmen Miranda Donga Abigail Maia muacutesicos como Luperce Miranda Jayme Florence (o Meira) e atores como Procoacutepio Ferreira e Oduvaldo Viana O teatro de revista ndash assim eram chamados os espetaacuteculos que misturavam musical burletas dramas hu-moriacutesticos etc ndash virou febre na sociedade brasileira da eacutepoca Aleacutem de usar de uma linguagem mais acessiacutevel ao grande puacuteblico o teatro de re-vista era fonte de grande lucro para os patrocinadores dos espetaacuteculos
Nos palcos eram encenados verdadeiros shows de variedades com o objetivo principal de entreter o puacuteblico Sintomaacutetica eacute a publici-dade de um evento que aconteceria no Theatro Imperial em Niteacuteroi em julho de 1930 onde a chamada pedia a atenccedilatildeo do leitor para uma pre-senccedila ilustre a da Miss Brasil ao lado de outros artistas
Estaacute sendo esperado com grande ansiedade o grandioso festival de ca-ridade que a directoria da Caixa de Esmolas de Nictheroy estaacute organi-sando para amanhatilde aacutes 20 horas no Cine Theatro Imperial dessa cidade [] o qual seraacute honrado com a presenccedila da formosa senhorita Yolanda Pereira ldquoMiss Brasilrdquo que prometteu ao mesmo comparecer em com-panhia de outras ldquomissesrdquo estaduaesA parte literaacuteria do programma ficou a cargo de Raul Perdeneiras Bastos Tigre e Catullo da Paixatildeo Cearense que diratildeo conferecircncias humoriacutesticasA parte musical foi confiada aos elementos artiacutesticos da Raacutedio Sociedade do Rio de Janeiro entre os quaes as senhoritas Carmen Miranda e Gecy Barbosa aacute professora Anna de Albuquerque Mello e os festejados inteacuterpretes da nossa muacutesica regional Gastatildeo Formenti Sylvio Salema Paulo Rodrigues Tomam parte no attrahente espetaacute-culo o tenor Oscar Gonccedilalves Ignaacutecio Guimaratildees e outros260
260 A Noite 22 jul 1930 p 2
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Essa miscelacircnea de atraccedilotildees tornou-se muito comum com a po-pularizaccedilatildeo do que se convencionou chamar de festivais Sob esse termo era incluiacuteda uma variedade grande de entretenimentos desde co-meacutedias musicais desfiles de ldquocelebridadesrdquo ateacute a encenaccedilatildeo de uma produccedilatildeo anteriormente consagrada como aquelas com temaacuteticas ser-tanejas as chamadas burletas A adaptaccedilatildeo de diversos artistas a essa nova forma de expressatildeo e de puacuteblico fazia com que fosse possiacutevel en-contrar por exemplo Catullo da Paixatildeo Cearense fazendo parte de con-ferecircncias humoriacutesticas ao lado de caricaturistas e humoristas como Bastos Tigre e Raul Pederneiras anteriormente citados Ainda que re-conhecidos como poetas esses uacuteltimos se destacavam pela verve hu-moriacutestica assumida por eles e em Catullo quase inexistente
O palco natildeo era algo ineacutedito para Catullo que jaacute frequentava o mundo do teatro desde os anos 1910 e laacute havia feito muitos amigos Escrevendo em fins da deacutecada de 1920 o volume de poesias Faacutebulas e alegorias Catullo reconhecia no ator Procoacutepio Ferreira (aliaacutes finan-ciador do livro) a genialidade teatral oferecendo-lhe a publicaccedilatildeo com estas palavras ldquoA ti Procoacutepio que viste nascer estas fabulas e foste o primeiro a recital-as offereccedilo este livro como um preito de minha ad-miraccedilatildeo pelo teu talento genial glorificado por Melpoacutemene e Thaliacuteardquo261
O flerte de Catullo com os palcos foi tatildeo grande que ele chegou a organizar festivais em que contava inclusive com cenoacutegrafos consa-grados como quando organizou a ldquofesta de Catullo Cearense [] num ambiente sertanejo cujo scenaacuterio Jayme Silva faraacute sob as indicaccedilotildees do grande rapsodordquo262 No Trianon no Lyrico no Satildeo Joseacute no Imperial e em vaacuterios outros teatros cariocas e paulistas o nome de Catullo era encarado como sucesso de puacuteblico
Como vimos a presenccedila cecircnica de sua poesia conduzia a uma leitura performaacutetica do escrito quando oralizado A nova caracteriacutestica de sua produccedilatildeo qual seja como tambeacutem passiacutevel de um vieacutes cocircmico eacute que eacute parte do processo de um diaacutelogo com uma produccedilatildeo cecircnica que se
261 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Faacutebulas e alegorias Rio de Janeiro Officina Industrial Graphica 1928 p 4
262 Correio da Manhatilde 5 jun 1930 p 5
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fazia no periacuteodo Nesse momento foi possiacutevel vislumbrar em sua pro-duccedilatildeo uma veia mais humoriacutestica sintetizada sem duacutevida nas suas apresentaccedilotildees teatrais Sua chegada aos palcos vai ao encontro de uma febre por uma produccedilatildeo existente no Brasil desde os finais do seacuteculo XIX o teatro ligeiro Essas festas eram estruturadas em vaacuterios mo-mentos misturando espetaacuteculos danccedilantes apresentaccedilotildees humoriacutesticas musicais e peccedilas que dramatizavam fatos do cotidiano O teatro de re-vista (um dos gecircneros do teatro ligeiro) no Brasil e em especial na capital federal tornou-se especialmente nos anos 1920 um dos princi-pais espaccedilos de sociabilidade da elite letrada Para ele seguiram vaacuterios literatos que viam no seu sucesso de puacuteblico um lugar para a exibiccedilatildeo de suas produccedilotildees Procoacutepio Ferreira homem de teatro fez fama nesse periacuteodo como promotor diretor e ator de vaacuterias peccedilas e ao redor dele arregimentaram-se vaacuterios intelectuais do quilate de Bastos Tigre
O teatro ganhara novo focirclego com a ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ao poder em outubro de 1930 Admirador de espetaacuteculos teatrais Vargas quando ainda deputado federal pelo estado do Rio Grande do Sul ajudara a aprovar decreto que normatizava as empresas teatrais e reconhecia direitos trabalhistas para os artistas que participavam desse mundo especialmente no que concerne aos direitos autorais A lei ga-nhou ateacute um nome extra-oficial de ldquoLei Getuacutelio Vargasrdquo263
Aliaacutes a poliacutetica cultural de Getuacutelio Vargas catapultava uma seacuterie de demandas que jaacute se faziam ouvir antes de sua ascensatildeo Com a criaccedilatildeo do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Sauacutede (MES) em 1930 chefiado por Francisco Campos e principalmente a partir de 1934 quando co-meccedilou a administraccedilatildeo do ministro Gustavo Capanema vaacuterios veiacuteculos de comunicaccedilatildeo sofreram o impacto da poliacutetica varguista de pedagogia do cidadatildeo Havia poliacuteticas voltadas para o livro para o teatro para o cinema para a radiodifusatildeo e para diversas outras aacutereas da comuni-caccedilatildeo e cultura que tiveram como consequecircncia conviver com uma
263 Sobre a simpatia de Vargas nos meios teatrais Cf CAMARGO Angela Ricci A poliacutetica dos palcos teatro no primeiro governo Vargas (1930-1945) Rio de Janeiro FGV 2013 Sobre os decretos que foram construindo uma poliacutetica cultural para o teatro no periacuteodo varguista Cf CALABRE Lia Poliacuteticas culturais no Brasil Rio de Janeiro FGV 2009
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maior atenccedilatildeo do Estado para suas produccedilotildees Dessa forma muitos dos escritores e artistas consagrados desde antes da assunccedilatildeo de Vargas to-maram parte desse projeto
Foi tambeacutem nesse momento que o advento do raacutedio como objeto de entretenimento mobilizou os artistas ligados agrave musica
O raacutedio buscava o caminho da profissionalizaccedilatildeo A maior parte das emissoras passava a irradiar seus programas em todos os dias da se-mana Novas empresas de radiodifusatildeo se formavam anunciando projetos que conquistariam definitivamente o puacuteblico ouvinte trans-formando o raacutedio em um elemento indispensaacutevel em todos os lares264
Nas Raacutedios Sociedade e Mayrink Veiga as apresentaccedilotildees de Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhado por Joatildeo Pernambuco e Pixinguinha eram esperadas com ansiedade Na deacutecada de 1930 a pro-duccedilatildeo de Catullo afastou-se da produccedilatildeo estritamente literaacuteria e ganhou os palcos e o raacutedio com poemas declamados e muacutesicas cantadas Sua produccedilatildeo textual que sempre continha fortes marcas de oralidade vol-tou-se para uma apresentaccedilatildeo da qual o escrito estaacute submetido agrave perfor-mance como momento final da produccedilatildeo
Ao que parece Catullo criticado no espaccedilo das hostes literaacuterias e sabedor do novo momento que alccedilava o teatro e o raacutedio a espaccedilos com um aacutevido puacuteblico consumidor vai-se aproximando dos palcos e se rea-proximando assim da muacutesica Embora tentasse manter um status de poeta sua produccedilatildeo visaria a partir dos anos 1930 menos agrave aceitaccedilatildeo no campo literaacuterio brasileiro ndash agora sob os bombardeios modernos dos novos escritores surgidos na deacutecada de 1920 o que eacute possiacutevel pensar afasta-o ainda mais de um reconhecimento como poeta nacional ndash do que ao seu reconhecimento como artista Com as criacuteticas recebidas em fins da deacutecada de 1920 e a ascensatildeo exitosa do teatro de revista com um farto cardaacutepio de musicais o poeta sertanejo voltou-se para o rees-tabelecimento de sua representaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo
264 CALABRE Lia No tempo do Raacutedio radiodifusatildeo e cotidiano no Brasil 1923-1960 2002 277 f Tese (Doutorado em Histoacuteria) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Universidade Federal Fluminense NiteroiacuteRJ 2002 p 60
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Por outro lado a emergecircncia de uma produccedilatildeo literaacuteria reivindi-cada pelos novos escritores que tratavam de tematizar o Brasil de forma mais realista e criacutetica conduziu o proacuteprio Catullo a fazer nos seus textos publicados em forma de livro que apareceram nos anos 1930 uma poesia mais ufanista bem ao gosto dos intelectuais abraccedilados pelo governo de Getuacutelio Vargas A aproximaccedilatildeo de suas temaacuteticas sertanejas com certo ufanismo nacional ia ao encontro de um tipo de produccedilatildeo li-teraacuteria que ganhou focirclego com o advento de Vargas ao poder Contudo se por um lado suas poesias eram defenestradas por representar um imaginoso sertatildeo por outro eram saudadas por representar de maneira ufanista o paiacutes ndash de resto tocircnica das poliacuteticas culturais do governo Vargas nesse periacuteodo
Tal ufanismo se tornou modelo propulsor do bom cidadatildeo brasi-leiro e foi um dos pilares do primeiro periacuteodo desse governo (1930-1945) A ideia de um Brasil grande promissor e com um povo trabalhador foi construiacuteda com a ajuda de inuacutemeros meios inclusive o cinema e o raacutedio que nesse contexto surgiram como uma forccedila fundamental para a propa-ganda governista A muacutesica vinculada ao projeto pedagoacutegico do Estado Novo varguista tomava as raacutedios pelo paiacutes afora fazendo parte do rol propagandiacutestico da figura de Getuacutelio Vargas265 No teatro foi o tempo de grandes produccedilotildees que tematizavam tipos nacionais de forma ufanista mas fundamentalmente foi o iniacutecio de um boom no mercado livreiro
A reivindicaccedilatildeo de uma identidade nacional ou de uma ldquoorientaccedilatildeo brasileirardquo como dizia o escritor Maacuterio de Andrade foi a forma orga-nizadora por excelecircncia dos discursos sobre a cultura bem como dos diagnoacutesticos e estrateacutegias de escritores intelectuais e homens puacuteblicos agrave eacutepoca ciosos natildeo sem divergecircncias de afirmar a existecircncia de uma cultura brasileira266
265 Joseacute Miguel Wisnik faz uma rica discussatildeo acerca da inclusatildeo da muacutesica especialmente a partir de Villa-Lobos no rol de elementos utilizados pelo Estado brasileiro em sua poliacute-tica de construccedilatildeo do nacional poacutes- anos 30 Cf WISNIK Joseacute Miguel Getuacutelio da Paixatildeo Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo) In SQUEFF Ecircnio WISNIK Joseacute Miguel Muacutesica o nacional e o popular na cultura brasileira Satildeo Paulo Brasiliense 2004 p 129-190
266 DUTRA Eliana de Freitas Cultura In GOMES Acircngela de Castro (coord) Histoacuteria do Brasil Naccedilatildeo (1808-2010) olhando pra dentro (1930-1964) Rio de Janeiro Objetiva 2013 v 4 p 229
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As estrateacutegias de escritores ndash e sem duacutevida de editores ndash aproxi-maram-se de certo ufanismo oficial que teve no ministro da Educaccedilatildeo do governo Vargas Gustavo Capanema um entusiasta e mecenas Ainda que muitos artistas e escritores natildeo estivessem interessados na construccedilatildeo oficial de certa representaccedilatildeo do ldquopovo brasileirordquo o fato de tais produccedilotildees obterem relativo sucesso com o puacuteblico consumidor fez com que cada vez mais tal temaacutetica nacionalista fosse procurada nas produccedilotildees culturais do periacuteodo
Nesse momento Catullo da Paixatildeo Cearense jaacute fazia bastante sucesso na produccedilatildeo de musicais e o teatro ligeiro se tornava um es-paccedilo de entretenimento disputado inclusive por grandes figuras poliacute-ticas Por isso sua relaccedilatildeo com as poliacuteticas oficiais de Vargas demandam uma anaacutelise mais detida a fim de se compreender os caminhos traccedilados pelo poeta em seus livros no periacuteodo
A ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ao poder por meio de um movi-mento revolucionaacuterio no ano de 1930 representou para a produccedilatildeo cultural do Brasil um corte profundo ndash jaacute bastante estudado por pesqui-sadores em diversas aacutereas Sua chegada ao poder representou na pri-meira hora a vitoacuteria de um movimento que se pretendia modernizador da poliacutetica sendo saudado por muitos intelectuais e tambeacutem em di-versas canccedilotildees que tratavam de difundir a ideia de uma revoluccedilatildeo que viria para mudar Assim pode ser compreendida uma composiccedilatildeo que foi reiteradas vezes tocada nas raacutedios da capital federal em 1930 intitu-lada 24 de outubro um hino em homenagem agrave revoluccedilatildeo daquele ano
Lanccedilada pela gravadora Brunswick e interpretada por Gastatildeo Formenti acompanhado da orquestra Brunswick a letra de Catullo da Paixatildeo Cearense sintetiza o tom ufanista com que a chegada de Vargas ao poder era encarada naqueles idos
Cantemos um hino agrave GloacuteriaPais e filhos de leotildeesQue os pampas estatildeo cantandoAbraccedilados com os sertotildees
Vinde a noacutes bravos GetuliosDestemidos Florianos
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Voacutes Juarezes soberanosGenerais triunfadoresMas trazeis na vossa frenteConduzindo a cavalgadaA liberdade montadaNum corcel cheio de flores
Derribado o despotismoExpulsai num grande exemploEsses vendilhotildees do temploDa Repuacuteblica altaneiraAteacute que venham de joelhosPedir-nos perdatildeo um diaRezando uma Ave MariaAos peacutes de nossa bandeira
Vinde a noacutes bravos GetuliosDestemidos FlorianosVoacutes Juarezes soberanosGenerais triunfadoresMas trazeis na vossa frenteConduzindo a cavalgadaA liberdade montadaNum corcel cheio de flores
De arma em punho brasileirosNesse ardoroso momentoErgamos o pensamentoComo quem reza uma missaSuplicando a Deus de joelhosQue o Brasil reerguenteSeja o berccedilo florescenteDo amor da paz e justiccedila267
Registre-se tambeacutem que no mesmo LP em que foi gravado o hino anteriormente transcrito constava no lado A do disco um hino em
267 24 de outubro canccedilatildeo de composiccedilatildeo de Catullo da Paixatildeo Cearense e maestro H Vogeler Gravada em dezembro de 1930 por Gastatildeo Formenti e orquestra Brunswick pela gravadora Brunswick Fonte Base de Dados da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco Disponiacutevel em httpwwweducadoresdiaadiaprgovbrmodulesdebasersinglefilephpid=17896 Acesso em 11 jun 2020
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homenagem aos tenentes grupo fundamental para o triunfo da Revo-luccedilatildeo de 30 intitulado Os 18 de Copacabana ndash uma referecircncia agrave revolta armada tenentista ocorrida em 1922 no Forte de Copacabana
Essa aproximaccedilatildeo de artistas com a poliacutetica oficial foi progressi-vamente se estreitando vindo a ser um dos elementos fundamentais para a construccedilatildeo de toda uma representaccedilatildeo de Vargas durante os quinze anos em que esteve no poder O proacuteprio Catullo que se benefi-ciara dos governos anteriores com uma vaga de datiloacutegrafo no Ministeacuterio da Viaccedilatildeo em 1922 (ocupaccedilatildeo que de fato nunca exerceu) voltou-se estrategicamente para produccedilotildees que estivessem de acordo com o novo tom da poliacutetica cultural implementada pelo novo chefe de Estado Em troca o Governo Provisoacuterio tratou de mantecirc-lo no posto de datiloacutegrafo do Ministeacuterio da Viaccedilatildeo por decreto em 1932268
Paralela a isso a Revoluccedilatildeo de 30 ocorreu num momento em que o paiacutes comeccedilava a escutar raacutedio O puacuteblico consumidor de programas radiofocircnicos cresceu vertiginosamente tendo como grande triunfo a muacutesica que exerceu nesses segmentos um produto de grande rentabili-dade As casas de discos lucravam com a venda de aparelhos e LPs bem como a publicidade de produtos fazia aumentar a rentabilidade das estaccedilotildees de raacutedio A Mayrink Veiga e a Raacutedio Sociedade ambas no Rio de Janeiro capitaneavam essa efervescecircncia com programas musicais diaacuterios Cantores foram rapidamente consagrados Francisco Alves Carmen Miranda e Orestes Barbosa foram alguns dos novos artistas catapultados pela nova miacutedia
No teatro tambeacutem a muacutesica era a vedete principal havia bastante tempo Os musicais ganhavam maior relevo na produccedilatildeo teatral sendo comum artistas de raacutedio apresentarem-se nos palcos com grande su-cesso de puacuteblico e compositores antes desconhecidos terem suas muacute-sicas repentinamente cantaroladas nas ruas cariocas Aiacute tambeacutem surgiu um velho problema com tanta gente cantando para um puacuteblico cres-cente quem ganha com esse boom musical Ou seja quem deteacutem os
268 O jornal A Noite noticia em sua primeira paacutegina o decreto que confirma Catullo e ldquoAneacutesia Pinheiro Machado para dactylographos da Secretaria de Estados (sic) Cf A Noite 9 abr 1932
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direitos de reproduccedilatildeo da canccedilatildeo Um incidente noticiado pelo jornal A Noite revela algo dessas dificuldades que surgiam da publicidade de uma obra por um terceiro
Catullo da Paixatildeo Cearense acompanhava a gravaccedilatildeo de Talento e formosura modinha de sua autoria de iniacutecios do seacuteculo XX pelo jovem cantor Francisco Alves posteriormente consagrado ldquorei da vozrdquo De repente Catullo fica incomodado com a dicccedilatildeo do cantor que ldquofor-ccedilara algumas palavras do versordquo Em jornal concluiacutea
Dahi a prova de que as gravaccedilotildees devem sempre ser feitas na presenccedila do autor ao qual natildeo poderatildeo escapar os miacutenimos defeitos para o bem do proacuteprio cantor que muitas vezes daacute a muacutesica uma interpretaccedilatildeo diversa da idealizada pelo musicista causando contrariedades Aleacutem disso no caso de dificuldade na gravaccedilatildeo dos versos ou da muacutesica estando o autor presente seraacute faacutecil uma modificaccedilatildeo que auxilie a gra-vaccedilatildeo do disco269
Num momento de maior difusatildeo da canccedilatildeo atraveacutes de raacutedios e discos houve tambeacutem uma tentativa de regrar a interpretaccedilatildeo de forma que o autor da muacutesica natildeo fosse contrariado em suas intenccedilotildees quando da gravaccedilatildeo da canccedilatildeo Esse incidente poreacutem parece ser um caso raro num momento em que a autoria de vaacuterias canccedilotildees gravadas natildeo impor-tava tanto para o puacuteblico quanto o inteacuterprete que natildeo raro ganhava os louros de artista e autor Era algo muito comum agrave eacutepoca os artistas mais pobres do Rio de Janeiro venderem suas composiccedilotildees a fim de angariar algum dividendo mesmo natildeo tendo seu nome exposto na obra publicada Satildeo conhecidas as constantes subidas ao morro por Maacuterio Reis para comprar muacutesicas uma das quais revelou em sua voz o sam-bista e compositor Cartola Contudo aquele incidente de Catullo com Francisco Alves natildeo era assim tatildeo comum num periacuteodo em que o com-positor pouco se preocupava com a interpretaccedilatildeo de sua canccedilatildeo
O que parece irocircnico eacute que se fora como inteacuterprete textual de can-ccedilotildees que escutava nas ruas que Catullo se tornara inicialmente conhecido anos depois sua luta parecia ser defender suas letras regrando a interpre-
269 A Noite 13 out 1930 p 4
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taccedilatildeo oral da canccedilatildeo A oralidade tornava-se assim um problema para o primeiro autor do produto exatamente num momento em que ela ganhava cada vez mais um puacuteblico consumidor assiacuteduo O texto estaria dessa forma submetido agrave interpretaccedilatildeo oral do inteacuterprete cabendo muitas vezes a esse uacuteltimo o reconhecimento como autor e grande artista
Esse retorno de puacuteblico causou grande rebuliccedilo no que concerne agrave definiccedilatildeo de direitos autorais A lei que defendia os direitos autorais dos compositores da canccedilatildeo era negligenciada e raramente se pagava pelo uso desses direitos A situaccedilatildeo soacute comeccedilou a mudar aos poucos com a criaccedilatildeo do Centro Musical do Rio de Janeiro em maio de 1907 tendo agrave frente o maestro Francisco Braga O Centro funcionava como um sindicato que lutava pelos direitos dos muacutesicos cariocas
Poreacutem a criaccedilatildeo natildeo melhorou muito a situaccedilatildeo dos muacutesicos natildeo profissionais e letristas entendidos sempre sob o termo autoexplicativo de ldquodireito menorrdquo Esses uacuteltimos eram quase sempre desconsiderados dentro do universo musical da eacutepoca havendo soacute a possibilidade de patentear uma letra registrando-a na Biblioteca Nacional coisa que ra-ramente aconteceu de fato Soacute em 1917 sob o impacto do Coacutedigo Civil que regulou a propriedade intelectual e com a criaccedilatildeo de uma divisatildeo de muacutesica na Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais (SBAT) as letras compostas para serem apresentadas nos espetaacuteculos ganharam um status de algo a ser considerado propriedade de um compositor-letrista A SBAT ficaria conhecida como um modelo para os demais profissio-nais de outras aacutereas reivindicarem direitos autorais270
A confusatildeo acerca do atestado de paternidade de uma letra era expressa nas vaacuterias alteraccedilotildees possiacuteveis na composiccedilatildeo quando acom-panhada de determinada canccedilatildeo Se a canccedilatildeo se mantinha a letra quase sempre ganhava adendos ou eram subtraiacutedos trechos ndash fato para o qual jaacute atentamos quando Catullo organizava letras de modinhas O fato eacute que viver de muacutesica era algo muito difiacutecil nas primeiras deacutecadas do
270 Interessante notar que a Associaccedilatildeo Brasileira de Imprensa propunha a seus soacutecios a ldquoinstalaccedilatildeo de um serviccedilo idecircntico ao existente na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais para a fiscalizaccedilatildeo e cobranccedila dos direitos autorais devidos pela imprensa tanto do paiacutes como quiccedilaacute do estrangeirordquo Cf Diaacuterio de Notiacutecias 5 jun 1940
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seacuteculo XX no Rio de Janeiro e ser tatildeo somente um letrista acarretava ainda mais problemas para o candidato a autor de letras
Nos anos 1920 quando a febre por musicais ganhava a sociedade carioca jaacute era possiacutevel registrar as canccedilotildees que faziam parte de espetaacute-culos teatrais por intermeacutedio da SBAT que repassava ao autor a quantia devida Tal serviccedilo prestado pela sociedade no entanto era mateacuteria de acirradas criacuteticas por parte dos compositores sendo criado jaacute em 1938 por alguns deles entre os quais Braguinha e Maacuterio Lago a Associaccedilatildeo Brasileira de Compositores e Autores (ABCA) para reunir os autores brasileiros do ldquopequeno direitordquo Essa mudanccedila provocou um grande debate entre a nova Associaccedilatildeo e a SBAT que natildeo queria perder o mo-nopoacutelio de cobranccedila por direitos autorais Esse debate chegou a en-volver o presidente da Sociedade de Autores e Compositores da Argentina Francisco Canaro que se dispocircs a mediar um entendimento entre as duas entidades271 Mais tarde a ABCA se encarregaria de criar um estatuto proacuteprio e mudaria de nome em 1942 para Uniatildeo Brasileira de Compositores (UBC) tendo agrave frente Ary Barroso
Eacute bem verdade que os compositores se dividiram alguns enten-dendo que a criaccedilatildeo de uma nova associaccedilatildeo ajudaria no esforccedilo da luta por direitos autorais enquanto outros consideravam que a SBAT em-bora deficiente ainda representava bem os interesses da classe
Jaacute conhecido por suas apresentaccedilotildees de sucesso nos teatros es-crevendo peccedilas e participando de musicais Catullo da Paixatildeo Cearense foi um dos que resolveram jaacute em iniacutecios dos anos 1940 permanecer ligados agrave SBAT indicando a sociedade como responsaacutevel por seus di-reitos tendo Guimaratildees Martins como seu representante
De acordo com a lei somente a SOCIEDADE BRASILEIRA DE AUTORES TEATRAIS agrave Avenida Almirante Barroso nordm 97 3ordm andar (Esplanada do Castelo) Rio de Janeiro Brasil pode em nome do meu cessionaacuterio e uacutenico representante Guimaratildees Martins autorizar repre-sentaccedilotildees traduccedilatildeo adaptaccedilatildeo irradiaccedilatildeo etc desta peccedila272
271 Diaacuterio de Notiacutecias 12 dez 1939272 Parte constante na contracapa de Um boecircmio no ceacuteu O livro trata-se de uma peccedila
recheada de canccedilotildees incidentais em que um boecircmio que seria Catullo dialoga com
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Contudo Catullo natildeo foi o uacutenico que resolveu ceder agrave SBAT os direitos para a cobranccedila de direitos autorais Um grupo de consagrados compositores lanccedilou um abaixo-assinado assegurando a confianccedila na arrecadaccedilatildeo de direitos autorais pela sociedade Esse manifesto se so-bressaiu pelos nomes consagrados que o assinaram
Agrave Sociedade Brasileira de Autores Teatrais ndash Os abaixo assinados compositores brasileiros de muacutesica desejam por este meio assegurar a sua solidariedade agrave SBAT sob cuja bandeira permanece e a cujos ser-viccedilos especializados entregam a administraccedilatildeo e arrecadaccedilatildeo dos seus direitos autorais de execuccedilatildeo Eacute oportuno consignar a estranheza dos signataacuterios desta ante a fundaccedilatildeo de um grecircmio de compositores que se apresenta como representante da classe quando eacute certo que pelos nomes sem duacutevida merecedores de todo o aplauso puacuteblico que lhe compotildeem o quadro social deveraacute ele denominar-se de compositores de muacutesica popular o que teria a elementar vantagem de pelo menos evitar interpretaccedilotildees errocircneas ou maliciosas que bem podem ser no-civas ao prestiacutegio da cultura artiacutestica nacional (ass) Francisco Braga J Otaviano H Vila Lobos Assis Republicano Oscar Lorenzo Fernandez Joanidia Sodreacute Newton Paacutedua Eleazar de Carvalho Afonso Martinez Grau Henriquel Vogeler Joseacute Vieira Brandatildeo Otaacutevio Bevilaacutequa Heckel Tavares273
Os nomes que assinam o abaixo-assinado eram jaacute nessa eacutepoca reconhecidos compositores e embora reiterassem que a nova asso-ciaccedilatildeo tinha nomes ldquomerecedores de todo o aplauso puacuteblicordquo natildeo se isentavam de frisar uma diferenccedila chamando a atenccedilatildeo do leitor para o fato de que a nova associaccedilatildeo surgida seria de ldquocompositores de muacutesica popularrdquo o que acarretaria em consequecircncia um efeito nocivo ldquoao prestiacutegio da cultura artiacutestica nacionalrdquo
A sutileza e mesmo o respeito com que os signataacuterios se re-portam agrave nova associaccedilatildeo natildeo escondem a tecircnue mas fundamental dis-tinccedilatildeo que buscavam dar a dois tipos de produtos sendo um deles iden-tificado com o termo ldquopopularrdquo A separaccedilatildeo na classe de compositores era o resultado de uma distinta representaccedilatildeo daquilo que se entendia
Satildeo Pedro no ceacuteu Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946
273 Reproduzido em Diaacuterio de Notiacutecias 16 jul 1942 p 9
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como ldquomuacutesica popularrdquo e daquilo que natildeo deveria ser entendido por tal definiccedilatildeo A diferenccedila de interesses daqueles que os signataacuterios enten-diam serem os compositores populares era uma agenda necessaacuteria para afirmar a disparidade de seus interesses daqueles de um grupo que con-trariando os autores do manifesto ldquose apresenta como representante da classerdquo Mas de fato natildeo se pode dizer que aqueles que ficaram na SBAT foram tatildeo somente os artistas da chamada muacutesica distinta da ldquopo-pularrdquo ndash como parecem fazer crer os assinantes do documento acima ndash pois um daqueles que continuaram sob a eacutegide da SBAT foi justamente Catullo da Paixatildeo Cearense que seguramente natildeo era representado como um artista que natildeo fosse da ldquomuacutesica popularrdquo
Catullo aliaacutes publicou como seu uacuteltimo livro em vida uma cole-tacircnea de todas as suas modinhas sendo a primeira vez conforme a lei de direitos autorais ou seja citando os respectivos compositores de cada muacutesica que acompanhava a letra transcrita Com a publicaccedilatildeo intitu-lada Modinhas o poeta reafirmava sua autoria sobre as letras podendo com a execuccedilatildeo e interpretaccedilatildeo delas dali por diante ter os direitos zelados pela SBAT Guimaratildees Martins organizador e prefaciador da obra destacava o fato de reeditar aquelas velhas modinhas mesmo que Catullo num primeiro momento natildeo o quisesse
Catullo tinha razatildeo para natildeo desejar a reediccedilatildeo dos livros de suas can-ccedilotildees musicadas como estavam Eacute que aqueles livros eram impressos descuidadamente sem a sua revisatildeo pela popular e hoje extinta Livraria Quaresma que aleacutem do mais misturava por sua conta proacute-pria em alguns desses livros canccedilotildees da autoria de Catullo com can-ccedilotildees da autoria de outros autores sem lhes mencionar os nomes Tudo isso em completo desrespeito agrave Lei e dando a impressatildeo de que todas as modinhas eram da autoria exclusiva de Catullo274
Sem duacutevida em um momento em que a muacutesica eacute protagonista de um estouro do entretenimento na sociedade brasileira impulsionados pelo raacutedio e teatro as leis de direitos autorais vieram regrar a repro-duccedilatildeo de tal artefato cultural nas novas miacutedias Essas leis vieram cons-
274 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Modinhas Rio de Janeiro Livraria Impeacuterio 1946 (Contracapa)
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tituir um novo debate que recolocava no centro da discussatildeo uma ten-tativa de classificaccedilatildeo social do que viria a ser o termo ldquopopularrdquo
A organizaccedilatildeo de entidades classistas que buscavam seus direitos recolocava em novas roupagens questotildees como a separaccedilatildeo entre ldquopo-pularrdquo e ldquoeruditordquo (visando a construir representaccedilotildees diferentes e con-trastantes) a disputa pela propriedade legal da produccedilatildeo musical (com a construccedilatildeo de entidades zeladoras da lei autoral que pudesse penalizar aqueles que a burlassem) e a profissionalizaccedilatildeo do compositor temas estes que se esboccedilavam desde pelo menos o comeccedilo do seacuteculo XX Haacute de se frisar que tais debates nascem de uma separaccedilatildeo alavancada pela exposiccedilatildeo midiaacutetica dos novos cantores de raacutedio
O sucesso dos cantores de raacutedio consequecircncia de sua maior ex-posiccedilatildeo ameaccedilava eclipsar o nome do autor ndash problema que de resto jaacute era bastante comum Em contrapartida cria-se um sistema que mesmo eclipsando o autor diante do sucesso do inteacuterprete da canccedilatildeo daria ao primeiro a vantagem de ganhar financeiramente pela execuccedilatildeo de sua muacutesica pela cobranccedila dos direitos autorais Natildeo eacute sem espanto que vemos Catullo ndash que tinha nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX com a publicaccedilatildeo de livros um trunfo que fazia com que se apropriasse de muitas canccedilotildees sob o seu nome ndash jaacute nos anos 1930 e 1940 quando suas modinhas tendem a ser publicizadas com mais sucesso nas raacutedios do que nos livros vecirc-se na defensiva questionando o apagamento de sua autoria pelo inteacuterprete Agrave apropriaccedilatildeo do material oral pelo autor de um texto impresso sucede desta feita uma apropriaccedilatildeo do texto pelo indiviacuteduo no uso de sua voz ou seja o cantor da raacutedio que de resto era o novo iacutedolo de um paiacutes que comeccedilava a escutar essa nova tecnologia
Vale uma raacutepida reflexatildeo sobre esse processo Havia muito tempo o letrista (o poeta ou o bardo como poderia ser reconhecido o autor de uma letra) gozava de uma fama em detrimento do muacutesico autor da canccedilatildeo Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX para um muacutesico ter reconhecimento diz o jornalista Edigar de Alencar ldquoera preciso ser um Carlos Gomes para fazer desaparecer o poetardquo275 Eacute possiacutevel que por essa inferioridade do
275 ALENCAR Edigar de Claridade e sombra na muacutesica do povo Rio de Janeiro Francisco Alves Brasiacutelia INL 1984 p 56
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muacutesico em relaccedilatildeo ao letrista ndash este uacuteltimo quase sempre criando em cima da muacutesica e sendo natildeo raras vezes ele mesmo cantor ndash tenha feito com que os muacutesicos fossem os primeiros a se organizar em pequenas associa-ccedilotildees para lutar pelos seus direitos considerado ldquogrande direitordquo
A proeminecircncia do letrista soacute era sobrepujada pela do cantor sempre mais conhecido Isso quando o letrista natildeo era o proacuteprio cantor a exemplo de Eduardo das Neves e Geraldo Magalhatildees cantores e com-positores do iniacutecio do seacuteculo XX Catullo representa uma exceccedilatildeo entre os demais sobressaiacutea pelo fato de ser um letrado e de publicar livros ndash e como dizia o interlocutor de Joatildeo do Rio no famoso Momento lite-raacuterio ainda no comeccedilo do seacuteculo XX quem escrevia era ldquosempre um iacutedolordquo ldquomesmo que escreva malrdquo Se a publicaccedilatildeo de livros de canccedilotildees o distinguiu durante muito tempo no campo das canccedilotildees com o advento do raacutedio os autores de livros tiveram de conviver com outro tipo de entretenimento que invadia os lares e com ele a criaccedilatildeo de novos iacutedolos os artistas de raacutedio
Agrave primeira vista pareciam campos distintos mas consideran-do-se que o livro fazia parte de um entretenimento que comeccedilava a in-vadir os lares brasileiros o raacutedio surgiu como um forte rival no passa-tempo diaacuterio O autor de livros teria a companhia de novos iacutedolos como Carmen Miranda e Ary Barroso Na praacutetica haacute uma mudanccedila na repre-sentaccedilatildeo do cantor que deixava de ser caracterizado por adjetivos estig-matizadores como ldquoboecircmiordquo e ldquotrovadorrdquo (quando natildeo ldquovagabundordquo) para ser representado tatildeo simplesmente como um ldquoartistardquo ndash e artista de uma nova tecnologia que foi incansavelmente usada pelo proacuteprio go-verno Vargas e catapultou assim o sucesso da radiofonia no Brasil Raacutedio literatura e teatro nessa triacuteade Vargas buscava criar um polo de comunicaccedilatildeo com a sociedade pelos canais que vendiam entreteni-mento para o grande puacuteblico Nessa mesma triacuteade alternava-se Catullo que tambeacutem natildeo ficou imune ao projeto varguista
O teatro no texto
Em iniacutecios dos anos 1930 o palco tornou-se o lugar constante de Catullo da Paixatildeo Cearense que havia muito tinha na performance
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo214
declamando ou cantando a imagem mais representativa para seu puacute-blico As descriccedilotildees de Catullo apresentando-se no teatro datildeo conta de seu poder interpretativo de poemas e canccedilotildees como bem salientava uma reportagem do Correio da Manhatilde ao descrever a cena de Catullo no palco
Antes de se rasgar a cortina do palco estava a sala imersa numa suave interrogaccedilatildeo numa nuanccedila de luar de luar que chegasse ateacute noacutes depois de se haver banhado em montanhas longiacutenquas []Abre-se o panno e a impressatildeo se confirma Os aplausos natildeo cessamO semblante de Catullo tem qualquer coisa das nobrezas melancoacutelicas e insatisfeitasDeclamando transfigura-se cresce aumenta faz-se creanccedila o velho a sua testa que eacute o seu maior symbolo vasta ampla lumindo de modo singular como se houvesse metalizado em outras edades subia em busca do cabelo quase inexistente e estendia-se pela cabeccedila toda de onde pa-recia que a matildeo resvalaria como por sobre uma superfiacutecie polidaA luz do olhar transmuda-se []276
A representaccedilatildeo de um Catullo performaacutetico especialmente quando o palco tornou-se espaccedilo constante para o poeta trabalhava a favor de seu grande sucesso no teatro Isto fez com que sensiacutevel agrave forccedila do teatro como espaccedilo de sociabilidade do mundo letrado no periacuteodo os palcos fossem por um bom tempo o espaccedilo de atuaccedilatildeo principal da produccedilatildeo do poeta No teatro Catullo poderia exercer dois de seus principais trunfos como artista declamar seus poemas e cantar suas canccedilotildees
Ladeando sua maior participaccedilatildeo no teatro Catullo tambeacutem comparecia de maneira frequente agrave raacutedio Mayrink Veiga (a de maior audiecircncia em iniacutecios dos anos 1930) onde por um tempo foi acompa-nhado de muacutesicos como Luperce Miranda Patriacutecio Teixeira Pixinguinha e Tute apresentando-se no programa conhecido como Velha Guarda277
Entre 1931 e 1937 periacuteodo em que muito comumente partici-pava de musicais teatrais e programas de raacutedio a uacutenica publicaccedilatildeo
276 Correio da Manhatilde 25 jun 1930 p 5277 Correio da Manhatilde 1ordm jan 1938 p 3
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lanccedilada com o nome de Catullo foi o livro de poemas O sol e a lua em 1934 Embora colocado de lado por muitos autores da nova lite-ratura por natildeo estar de acordo com os novos criteacuterios estabelecidos para se representar um grande poeta Catullo continuou sendo consi-derado um grande poeta por grande parte do mundo letrado inclu-sive pelo novo chefe de Estado Getuacutelio Vargas A admiraccedilatildeo de Vargas por Catullo inclusive fez com que sabendo de seu cargo como datiloacutegrafo Vargas o fizesse aposentar por serviccedilos prestados agrave cultura do paiacutes
Esse reconhecimento por um chefe de Estado se expressaraacute nas obras de Catullo que publicaraacute o seu O sol e a lua pela Imprensa Nacional Mas mais importante do que essa publicaccedilatildeo Catullo lan-ccedilaraacute em iniacutecios de 1938 um livro dedicado ao chefe da poliacutecia de Vargas (neste momento atuando como ditador apoacutes um golpe em novembro de 1937) o capitatildeo Filinto Miller A obra tinha como tiacutetulo Oraccedilatildeo agrave bandeira A publicaccedilatildeo foi lanccedilada e editada pelo Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal
Experimentando com ecircxito novas formas de expressatildeo Catullo da Paixatildeo Cearense natildeo deixaria de representar em seu texto uma imagem sua como grande poeta Atento aos novos caminhos que a pro-duccedilatildeo artiacutestica no Brasil tomava o poeta tratou de dar um novo sentido para seus livros de acordo com as novas formalidades que regravam a consagraccedilatildeo de seu nome como poeta ou agora como artista da pa-lavra fosse ela cantada ou escrita
Seu livro O sol e a lua era um longo poema de duas partes onde na primeira delas um ldquopoetardquo urbano diante de um puacuteblico re-cita um poema ao sol e na segunda um bardo sertanejo de nome Chico Azulatildeo munido de um linguajar tiacutepico (foacutermula consagrada por Catullo em obras anteriores) declama um poema agrave lua Nele Catullo reafirmava o caraacuteter performaacutetico de seus poemas com os versos en-trecortados por cenas em que personagens (uma moccedila bela o puacuteblico velhos) apareciam como que dando motes para que os personagens principais (o violeiro Chico Azulatildeo e o poeta citadino) pudessem contar o poema Para criar esse efeito Catullo lanccedilava matildeo da des-criccedilatildeo do local onde o poema seria declamado
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SCENARIO
Era noite O Plenilunio clareava o terreiro de uma fazendo [sic] no sertatildeo onde um ldquocardumerdquo de moccedilas moccedilos velhas e velhos se agitava na tumultuosa alegria de uma festa tradicional Flautas violas cava-quinhos harmocircnicas e violotildees gemiam sua queixa amorosa ao espiacute-rito da noite que parecia ter sido convidada para o rumoroso festival Achando-se presentes um poeta da cidade e um afamado cantador da-quelas paragens (quero dizer ndash a Lyra e a Viola) acedendo ao convite de todos os convivas para que saudassem o sol que estivera esplendido naquele dia e aacute Lua que vinha desabrochando nrsquouma das suas mais encantadoras apariccedilotildees depois de vibrante salvas de palmas em meio de profundo silecircncio assim comeccedilou o poeta a sua oraccedilatildeo278
A entrada de elementos cecircnicos em um livro de poemas de Catullo revestia o texto de um caraacuteter teatral que fazia com que seus leitores representassem a leitura com a teatralizaccedilatildeo do texto Isso era necessaacuterio lembrar uma constante nos livros publicados por Catullo desde pelo menos o lanccedilamento de Meu sertatildeo (1918) e como vimos o primeiro com temaacuteticas sertanejas O que parece ser novo eacute que en-quanto naquele se expressa uma oralidade impressa no texto com o texto repleto de iacutendices de oralidade neste O sol e a lua o que objeti-vava o autor era um entendimento de que o texto natildeo era soacute a represen-taccedilatildeo do oral como tambeacutem ele deveria ser lido tendo em mente a per-formance necessaacuteria para sua efetivaccedilatildeo O texto natildeo visava tatildeo somente a uma leitura oralizada mas sobretudo performaacutetica Essa mudanccedila seguramente remete ao maior envolvimento de Catullo com o mundo do teatro A escrita alimenta-se de elementos cecircnicos obrigando o leitor a ter em mente a representaccedilatildeo cecircnica do poema
O proacuteprio tiacutetulo do preacircmbulo do poema O sol e a lua (ldquoScenariordquo) remete a uma representaccedilatildeo no palco E os personagens durante o poema vatildeo comumente participando da recitaccedilatildeo com palmas vaias ruiacutedos e mesmo com a intervenccedilatildeo direta no poema como no trecho seguinte ldquoNeste ponto o bardo interrompeu o curso da sua oraccedilatildeo porque a moccedila mais bela do divino cenaacuteculo levantou-se e veio ofere-
278 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p 9
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cer-lhe a flor que ornamentava o diadema dourado dos seus cabelos lourosrdquo279 Podemos perceber ainda no final da declamaccedilatildeo do vio-leiro Chico Azulatildeo a intervenccedilatildeo do puacuteblico
Depois dos uacuteltimos aplausos coroando o final do poema sertanejo o violeiro a pedido geral cantou o lsquoLuar do sertatildeordquo acompanhado por todo o auditoacuterio que inundava o amplo terreiro da Fazenda E assim terminou a festa daquela noite memoraacutevel que ficou sendo chamada em todo sertatildeo ndash A noite do Sol e da Lua280
Com O sol e a lua a produccedilatildeo de Catullo adentra um modelo que poderaacute ser visto na maioria de seus livros posteriores qual seja a refe-recircncia latente ao mundo do teatro Foi justamente seu contato cada vez mais frequente com esse espaccedilo que produziu uma reviravolta na sua produccedilatildeo textual A sutileza nas inclusotildees de passagens que remetiam ao espaccedilo do teatro buscando assim regrar uma leitura fazia lembrar seus primeiros livros de modinhas quando buscava regrar as letras de modi-nhas com as muacutesicas a acompanhaacute-las No entanto O sol e a lua embora com intervenccedilotildees musicais fundamentais natildeo tratava de canccedilotildees mas tambeacutem remetia a um desempenho um desempenho gestual tiacutepico do teatro entremeado com personagens que se revezavam no poema
Se nos livros de modinhas o que dava o tom do texto eram as muacutesicas que deveriam acompanhar a letra aqui o que pontua as decla-maccedilotildees eacute o ambiente com o puacuteblico e os personagens que adentram o texto Mas em um ponto ambos se aproximavam o texto pedia um complemento que soacute poderia ser dado fora dele fosse pela muacutesica fosse pelos personagens que pontuavam o ambiente de declamaccedilatildeo Assim nos livros de modinhas o clima do texto depende de uma exte-rioridade que natildeo estaacute nele ndash comumente na muacutesica de outro autor que natildeo aparecia no livro jaacute que Catullo escrevia (ou transcrevia) somente as letras Nesses livros havia inclusive a possibilidade de ler as letras como se fossem poemas Jaacute no texto teatralizado de Catullo em O sol e a lua a exterioridade (os elementos para a sua encenaccedilatildeo) encontra-
279 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p 28280 Ibidem p 85
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va-se no proacuteprio texto impresso O autor torna-se a autoridade uacuteltima do texto criando inclusive os complementos necessaacuterios para o texto ser desenvolvido fora
Haacute ainda em O sol e a lua um elemento importante que visava a alertar o leitor para a anterioridade do poema A representaccedilatildeo do dia em que leu O sol e a lua pela primeira vez A descriccedilatildeo do ambiente antes da declamaccedilatildeo do poema eacute uma tentativa de criar um efeito formal naquilo que seraacute lido pela exemplaridade de um acontecimento A forma com que ele deveria ser entendido (lido) era receita fundamental para Catullo Daiacute o autor conta na seccedilatildeo intitulada ldquoAo leitorrdquo do dia em que leu pela primeira vez o poema publicado chamando a atenccedilatildeo para a ldquoatmosferardquo em que fora lido
Aproveitando o ensejo quero dizer-vos que recitei pela primeira vez estes poemas no palacete do Dr Leite Garcia no Alto da Bocirca Vista e a lembranccedila dessa noite me fez precedel-os do ldquoscenariordquo que ides ler []O auditoacuterio era a essecircncia do que haacute de mais bello formoso e intelec-tual Rodeado de senhoras e senhoritas tendo ao meu lado uma or-chestra de violotildees regida por Joatildeo Pernambuco o priacutencipe dos vio-latildeonistas [sic] brasileiros sob o firmamento pintalgado de estrelas naquele ambiente marchetado de luzes multicores irradiadas de todos os acircngulos do palacete parecia-me estar nrsquoum palaacutecio de Fadas Ao ter-minar o primeiro poema recebendo prolongada salva de palmas o Dr Leite Garcia depois de um fervoroso improviso aos meus versos con-vidou uma senhorita para que executasse ao piano a sonata ldquoAo luarrdquo do imortal Beethoven em homenagem aacute Lua e aacute Mulher Apagaram-se entatildeo todas as luzes toda a iluminaccedilatildeo do palacete para que soacute se visse a da Lua que vinha nascendo []Foi a vez de Pernambuco que tocou ao violatildeo um dos seus mais belos choros acompanhado brilhantemente pelo terno281
A descriccedilatildeo dessa noite serviria para o leitor como premissa na leitura do texto que seguiria Construiacutea assim uma modalidade de leitura do texto levando em consideraccedilatildeo sua existecircncia anterior como acontecimento e afirmava a efemeridade dele O texto impresso como
281 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O sol e a lua Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1934 p XVIII-XIX
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lugar de passagem cuja finalidade era ou a sua leitura como aconteci-mento que passou ou como indicaccedilatildeo de como ele deveria se passar Ambas as modalidades de leitura remetiam o texto a um desempenho que ndash embora Catullo indicasse e garantisse sua autoridade inclusive sobre a encenaccedilatildeo posterior ndash teria acontecimento num espaccedilo teatral
Essa organizaccedilatildeo textual era algo comum na produccedilatildeo do teatro de revista do periacuteodo Foram famosas nos anos 1930 as apresentaccedilotildees de Catullo caracterizado como ldquomarroeirordquo na ldquoCasa do Cabocircclordquo an-tigo Teatro Satildeo Joseacute no centro do Rio de Janeiro Laacute o teatro de revista tematizou cenas sertanejas com sucesso e consagrou muitos artistas novos como certo J Lucas que rivalizava com Catullo quem era o me-lhor cantor sertanejo ao lado de jovens atrizes do teatro brasileiro
E ningueacutem poacutede dizer qual dos dois eacute maior mais impressionante O que sabe sim eacute que se o programma da ldquoCasa do Caboclordquo jaacute era so-berbo com os elementos de que dispunha e entre os quaes eacute justo que se destaquem Jararaca Ratinho Joatildeo Lino maior ainda ficou com a par-ticipaccedilatildeo de J Lucas o cantor novo e de Catullo da Paixatildeo Cearense o poeta do nordeste Dercy Gonccedilalves e Victoria Regia282
De Caboclo brasileiro (1930) a O sol e a lua (1934) com sua maior inserccedilatildeo no teatro a produccedilatildeo de Catullo ganharia um efeito mais performaacutetico do texto com alusotildees a ldquoscenaacuteriosrdquo ldquoauditoacuteriordquo ldquoaplausosrdquo intervenccedilotildees de personagens e muacutesicas a acompanhar Embora desde os primeiros livros de poesia escritos por Catullo a narrativa de um evento que antecedia a declamaccedilatildeo oral do poema fosse expliacutecita as referecircn-cias ao mundo do teatro se tornam bem mais claras aparecendo inclu-sive como advertecircncia ao leitor para a necessaacuteria ldquoambiecircnciardquo que pre-cederia a leitura
Essas convenccedilotildees teatrais eram parte imprescindiacutevel de uma pro-duccedilatildeo teatral do Teatro de Revista que mesclava diaacutelogos e muacutesicas a partir de um argumento o fio condutor A partir daiacute desenrolava-se no palco a histoacuteria encenada De muito sucesso por exemplo foi a peccedila O tribofe de Arthur Azevedo encenada ainda em 1891 que serviu de
282 Correio da Manhatilde 29 set 1932 p 8
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base para o lanccedilamento posterior do livro A capital federal do mesmo autor Na peccedila de Azevedo aparecia um argumento que virou regra de muito sucesso em vaacuterias produccedilotildees desse tipo no seacuteculo XX o motivo sertanejo Quase sempre um sertanejo (ou vaacuterios) adentravam a capital federal onde se desenrolava a trama misturando humor e muacutesicas para o deleite do puacuteblico Essa foacutermula de sucesso foi usada por diversas vezes e representava quase sempre uma aposta certeira no sucesso de puacuteblico
Aleacutem do teatro era comum ver Catullo nos cines-teatro que se tornaram em meados da deacutecada de 1920 locais muito frequentados que rendiam ao artista alguns dividendos a mais O ator e empresaacuterio do teatro Procoacutepio Ferreira ndash que como empresaacuterio ocupou durante bom tempo o famoso Teatro Trianon ndash assim falava dessa inclinaccedilatildeo de Catullo para diversas atividades na arte dramaacutetica
Catullo natildeo tinha nada de bonito Era baixo cabeccedila grande raspada nariz adunco Andava a passos largos e curvado A voz sim era bela abaritonada dicccedilatildeo clariacutessima Tudo nele funcionava pata [sic] dar ex-pressatildeo aos seus poemas Gesticulava com propriedade e sabia calcular bem o tempo das pausas Possuiacutea todas as qualidades de um bom ator Fomos grandes amigos Durante o tempo que ocupei o Teatro Trianon Catullo deu ali vaacuterios recitais sempre com sucesso Outras vezes apre-sentava-se em cinemas cantando ao violatildeo Era esse o seu meio de vida Com as rendas dos livros natildeo podia contar Os editores exploravam-no ateacute a medula283
Num tempo em que os direitos autorais ainda natildeo eram formal-mente mateacuteria de disputa sujeitando determinado autor a contrato fir-mado com o editor voltar-se para o teatro (ou para o cinema) parecia um caminho possiacutevel Tanto mais pois que no teatro essa produccedilatildeo renderia mais dividendos para o artista ndash jaacute que era espaccedilo bastante frequentado entrando no rol das modas cariocas ndash e o autor de teatro ainda tinha a possiblidade de lutar por seus direitos a partir de associa-
283 FERREIRA Procoacutepio Procoacutepio Ferreira apresenta Procoacutepio Ferreira Rio de Janeiro Rocco 2000 p 311
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ccedilotildees como a SBAT Desse modo quase sempre o artista de teatro era tambeacutem um autor
Catullo natildeo fugiu agrave regra Embora mantivesse suas produccedilotildees impressas por editoras durante algum tempo ndash desde pelo menos 1915 quando haacute registro de peccedila sob seu nome ndash era comum vecirc-lo no teatro como nos conta Procoacutepio Ferreira Sua presenccedila cecircnica e sua voz apre-ciada faziam com que acorresse ao teatro um puacuteblico interessado em suas apariccedilotildees Sua presenccedila constante a partir dos anos 1930 e seus textos repletos de referecircncias ao espaccedilo teatral eacute que podem ser enten-didos como uma reviravolta em sua produccedilatildeo Isso num momento em que sua produccedilatildeo poeacutetica como vimos sofria muitas criacuteticas especial-mente pelos novos escritores
Por outro lado a manutenccedilatildeo de uma ldquoaurardquo de poeta natildeo parecia faacutecil e apresentar-se no palco implodia cada vez mais essa manutenccedilatildeo pois havia um espaccedilo que separava o artista do escritor ndash ainda mais quando se deve levar em conta que mesmo algueacutem que escrevia para o teatro era considerado um autor menor O termo ldquoteatro ligeirordquo usado para designar as produccedilotildees do teatro de revista no Brasil marcava a di-ferenccedila em relaccedilatildeo a um teatro dito ldquomais seacuteriordquo Nas peccedilas mais ldquoseacute-riasrdquo eram encenadas em geral traduccedilotildees de claacutessicos europeus ca-bendo ao teatro de revista a produccedilatildeo do teatro por autores nacionais
O theatro entre noacutes vem atravessando ultimamente uma crise aguda de autores As companhias nacionais de declamaccedilatildeo que trabalham em nossos theatros tecircm os seus repertoacuterios todos de traducccedilotildees e adapta-ccedilotildees ou cousas mais ou menos parecida [sic] e agora muito e [sic] uso entre noacutes Soacute no theatro ligeiro de revista surgem os autores naciones nos quadros typicos ou sketches jaacute que os quadros de fantasia e baile satildeo geralmente copias de revistas estrangeiras e filmsAqui somente nos theatros de revista podemos mostrar obra nossa e cousas typicas nos quadros nacionais No theatro seacuterio de decla-maccedilatildeo temos somente traducccedilotildees adaptaccedilotildees e arranjos e o peor nem sempre confessados284
284 Jornal do Brasil 3 jun 1930 p 5
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Essa coincidecircncia do autor nacional com um teatro menor o ldquoteatro ligeirordquo imediatamente conduzia a uma representaccedilatildeo do es-critor de teatro no Brasil como um autor menor diante do escritor de livros natildeo teatrais impressos Embora o primeiro pudesse com o su-cesso da peccedila ganhar alguma renda a mais do que o autor de livros natildeo voltados para a representaccedilatildeo cecircnica (quase sempre isso era uma regra) a representaccedilatildeo do escritor de peccedilas diante de um escritor de livros seguramente sofria menos glamourizaccedilatildeo Que diraacute algueacutem como Catullo que se arvorava natildeo soacute como autor de textos teatrais mas tambeacutem como ator encenando tanto em teatros como cinemas
Quando a crise o apertava demais punha umas barbas posticcedilas e laacute ia para o palco Era um espetaacuteculo de cortar o coraccedilatildeo ver aquele gigante da poesia metido na caracterizaccedilatildeo de um pobre sertanejo a cantar e recitar seus poemas e canccedilotildees para uma plateia boccedilal de cinemas ldquopo-eirardquo de bairros285
Essa dupla condiccedilatildeo de artista e autor traduzia-se em uma apre-ensatildeo cada vez mais difiacutecil de Catullo no campo literaacuterio de entatildeo Indicava por outro lado que o espaccedilo de produccedilatildeo de literatura sofria uma mudanccedila e que nos anos 1930 muitos autores consagrados em nuacutemero de vendagens de livros se voltaram para a produccedilatildeo teatral como forma de dar vazatildeo a uma produccedilatildeo literaacuteria que era colocada de lado pelas novas regras do campo literaacuterio Essas eram cada vez mais regidas por uma nova geraccedilatildeo de escritores que surgiam Foi o caso natildeo soacute de Catullo mas de Olegaacuterio Mariano por exemplo que de escritor conhecido voltou-se tambeacutem para uma produccedilatildeo teatral que se expres-sava na produccedilatildeo para o teatro ligeiro
A maior inserccedilatildeo de Catullo como autor teatral se expressaria de maneira definitiva no livro que eacute de fato quase uma autobiografia do escritor e no qual ele se assume em definitivo autor de uma obra que visava agrave representaccedilatildeo teatral Um boecircmio no ceacuteu de 1937
285 FERREIRA Procoacutepio Procoacutepio Ferreira apresenta Procoacutepio Ferreira Rio de Janeiro Rocco 2000 p 311
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Um boecircmio no ceacuteu
Noite de 25 de junho de 1937 No 22ordm pavimento do edifiacutecio drsquoA Noite no centro do Rio de Janeiro Catullo da Paixatildeo Cearense declamava trechos de seu novo livro de poemas para os ouvintes da Raacutedio Nacional O autor intercalava as declamaccedilotildees com algumas canccedilotildees acompanhado de um violatildeo286 A Raacutedio Nacional possuiacutea agrave eacutepoca ao lado da Raacutedio Mayrink Veiga o maior nuacutemero de ouvintes do paiacutes O livro apresentado tinha como tiacutetulo Um boecircmio no ceacuteu e foi lanccedilado pela editora A Noite dona de um jornal homocircnimo que anun-ciava repetidamente a nova publicaccedilatildeo de Catullo considerado um ldquopoeta ateacute o acircmago da inteligecircncia e da sensibilidaderdquo O autor era apresentado como um ldquomenestrel sertanejordquo que ldquocontinua a ser de-pois de setenta anos bem e belamente vividos uma pinturesca ex-pressatildeo da naturezardquo287
Catullo ainda identificado como poeta sertanejo aparecendo em programas de raacutedio via sua fama como tal a aumentar com a irra-diaccedilatildeo para todo o Brasil de sua canccedilatildeo Luar do sertatildeo escolhida como tema da Raacutedio Nacional A retomada de uma representaccedilatildeo de Catullo como poeta da canccedilatildeo vinha ao encontro de uma valorizaccedilatildeo da muacutesica catapultada pelo advento exitoso da raacutedio nesses primeiros tempos Ao ldquomenestrel sertanejordquo que ganhara fama com livros de po-emas sertanejos Catullo retomava com Um boecircmio no ceacuteu sua repre-sentaccedilatildeo como poeta da canccedilatildeo na figura de um boecircmio tocador de violatildeo Isso porque em Um boecircmio no ceacuteu o personagem principal parecia ser o proacuteprio Catullo O Rio Social por exemplo dizia ldquoo bohemio eacute o proacuteprio Catullordquo288 Essa coincidecircncia do autor com seu personagem fazia com que os livros publicados por Catullo tivessem afinal um efeito de autenticidade O autor era o sujeito mais indicado para contar sobre algo E esse efeito como jaacute vimos foi muitas vezes
286 O evento foi noticiado pelo jornal A Noite 25 jun 1937287 A Noite 22 jun 1937288 Apud A Pacotilha 23 abr 1938 p 1 A Pacotilha era um jornal publicado no Maranhatildeo
terra natal de Catullo
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uma maneira encontrada por Catullo para dar credibilidade agrave sua po-siccedilatildeo como autor de literatura
Em Um boecircmio no ceacuteu Catullo parecia novamente buscar tal foacutermula Mas se o poeta tentara um dia criar sua autoridade como conhecedor daquilo que escreve (no caso das modinhas publicadas pela Quaresma) ou pela identificaccedilatildeo nele de uma alma (nos poemas serta-nejos) na nova publicaccedilatildeo a coincidecircncia oacutebvia do autor com seu per-sonagem logo atestada por seus leitores tornava a autoridade daquele que escreve irrefutaacutevel Afinal quem melhor do que o autor Catullo poderia contar sobre o boecircmio Catullo
Um boecircmio no ceacuteu contava em versos a histoacuteria de um boecircmio que ao morrer era recebido no ceacuteu por Satildeo Pedro que passava a inter-rogaacute-lo A cada pergunta do santo o homem respondia com passagens de sua vida terrena As respostas vinham repletas de reflexotildees sobre a vida boecircmia mulheres criacuteticos acadecircmicos bebidas etc Depois de desconfiar das atitudes do receacutem-chegado aos poucos o santo vai sendo convencido de que estava diante de algueacutem temente a Deus e mais do que isso um poeta no que vai ser seguido por Santo Antocircnio e Satildeo Joatildeo que a tudo assistem escondidos Ao final Santo Onofre pro-tetor dos becircbados leva o boecircmio para viver na lua onde eacute recebido pela Virgem Maria ao som do Hino Nacional
Um elemento importante no texto eacute a retomada de uma nar-raccedilatildeo entremeada de indicaccedilotildees cecircnicas O livro eacute dividido em dois atos e algumas passagens sugerem uma escrita voltada para o teatro como a indicaccedilatildeo dos movimentos e tons de vozes que deveriam ser dados agrave leitura (como Satildeo Pedro pensando Boecircmio com ironia Santo Antocircnio entrando com Satildeo Joatildeo e dirigindo-se ao boecircmio) ou indicaccedilotildees do ldquocenaacuteriordquo (ldquoAo levantar o pano o boecircmio ainda estaacute dormindo e roncando escandalosamenterdquo) Tais artifiacutecios eram co-muns numa escrita para o teatro e jaacute haviam sido esboccedilados por Catullo em O sol e a lua No novo livro o personagem sertanejo daacute lugar ao personagem boecircmio com inuacutemeras indicaccedilotildees de que a repre-sentaccedilatildeo do personagem se confundia com seu autor como na pas-sagem a seguir
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 225
S PEDRO[]Mas como viveste laacute na Terra vivendo assim com Deus e o seu AmorBOEcircMIOJaacute voacutes Senhor de certo advinhastesPois fui poeta fui muacutesico e cantorS PEDRO (maravilhado)Poeta Tu focircste poeta Falas seacuterioQual eacute teu nomeBOEcircMIOEu vos direi no ouvidoSAtildeO PEDRO (sorrindo)Eu de haacute muito jaacute tinha pressentidoTu eacutes o grande poeta regionalJaacute pertences agrave nossa AcademiaFocircste eleito por Deus Eacutes imortalEm que paiacutes do mundo tu nascestes com teu estro bravio e senhorilBOEcircMIONum paraiacuteso esplecircndido ndash O BrasilSAtildeO PEDROQual foi o teu estado o teu torratildeoBOEcircMIOO Estado do Talento ndash O Maranhatildeo[] 289
A passagem buscava natildeo deixar duacutevidas de qual poeta estaacute sendo representado no texto Essa coincidecircncia entre autor e personagem eacute mais de uma vez expressa no texto de Catullo Com esse efeito Catullo se arvora a fazer algumas observaccedilotildees de maneira muitas vezes irocirc-nica sobre alguns temas que lhe satildeo caros Numa passagem do texto em que o boecircmio se potildee a questionar Satildeo Pedro sobre o destino de alguns homens veem-se representados alguns desafetos de longas datas do autor Catullo Sobre os membros da Academia Brasileira de Letras o boecircmio questiona Satildeo Pedro
289 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 97-98
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo226
BOEcircMIOPelo que vejo os nobres acadecircmicosTecircm um lugar distinto entre os demaisSAtildeO PEDROComo te enganas pois talvez satildeo elesos que padecem os que sofrem maisVecirc que castigo horrendo ndash quando morremsobem ao Ceacuteu e vatildeo para Mercuacuterioouvir Francisco Alves declamaros discursos de todos os colegasque eacute o castigo maior mais tormentosoque Deus a um pobre homem pode darRaros chegam ao fim ficam exaustosE mergulham num sono tatildeo profundoque eacute difiacutecil fazecirc-los acordar290
Numa raacutepida passagem o narrador Catullo dispara contra duas ldquoentidadesrdquo que lhe proporcionaram indisposiccedilatildeo a Academia que natildeo reconhecera Catullo como um imortal e Francisco Alves agravequela altura um famoso cantor de raacutedio que anos antes tivera um atrito com Catullo no registro fonograacutefico de uma canccedilatildeo deste uacuteltimo
Aliaacutes a contrariedade do poeta com a Academia Brasileira de Letras que nunca lhe dera o fardatildeo de imortal jaacute vinha de longa data e era mateacuteria ateacute de anedotas O escritor Terra de Senna em seu livro Rua da Amargura contava a anedota em que agrave porta de um engraxate en-contravam-se Catullo e o poeta Olegaacuterio Mariano membro da Academia e conhecido por suas manias de grandeza
ndash Eu sou o priacutencipe dos poetas ndash disse Olegaacuterio Tenho um fardatildeo e a admiraccedilatildeo das mais lindas mulheres deste mundo Os meus livros estatildeo nas montras das mais ricas livrarias do Riondash Eu sou o rei dos poetas sertanejos ndash respondeu Catullo Veja a minha corte (e apontou para os outros livros que se ostentavam na vitrine do engraxate) Ibsen Victor Hugo Zola291
290 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 137
291 Apud Correio da Manhatilde 7 jun 1934 p 4
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 227
Um boecircmio no ceacuteu parece ser sobretudo uma prestaccedilatildeo de contas de Catullo com sua histoacuteria A dramatizaccedilatildeo da chegada do bo-ecircmio ao ceacuteu ao que parece representou uma oportunidade para que o autor expressasse suas opiniotildees sobre coisas e pessoas a partir de um personagem que se confundia com sua proacutepria histoacuteria ndash pela biografia traccedilada no diaacutelogo do boecircmio com Satildeo Pedro Eacute possiacutevel que aiacute resida o fato de Catullo ter deixado de lado a escrita de um prefaacutecio ou uma nota ao leitor tatildeo comum em suas publicaccedilotildees anteriores A explicaccedilatildeo reside no fato autoexplicativo da narrativa contada onde pensava fosse obviamente identificado com sua pessoa o personagem do bo-ecircmio ndash diferentemente dos livros anteriores em que por vezes tinha de se afastar de seus personagens sertanejos a fim de construir uma dis-tacircncia necessaacuteria para que pudesse ser entendido como poeta
Em vaacuterias passagens tambeacutem aparece um boecircmio que se van-gloria de sua posiccedilatildeo tal qual Catullo que seguidamente era ironizado por arvorar-se como maior poeta do mundo Essas passagens eram muitas vezes contadas pelos leitores de Catullo para representaacute-lo como um megalomaniacuteaco O papel do criacutetico Gondin da Fonseca um leitor autorizado nesse periacuteodo eacute sintomaacutetico Ao ler o Um boecircmio no ceacuteu disparou nas paacuteginas do Correio da Manhatilde
Nesse livro extremamente mediacuteocre ou melhor positivamente ruim Catullo diz apenas de si mesmo que eacute irmatildeo de Christo Redemptor ndash muito maior poreacutem do que o mano que fugiu da terra com medo do sofrimento emquanto que ele Catullo estando no Ceacuteo quer vir de novo para este valle de laacutegrimas pois a Docircr eacute seu patildeo de cada dia Tem inveja da fama de toda a gente ateacute mesmo de Einstein que con-sidera com azedume ldquoo Pacheco dos saacutebios actuaesrdquo Julga o seu estro ldquosobrehumanordquo Um anjo do Senhor com reverecircncia ldquopoeta da raccedilardquo e Satildeo Pedro fala com assombro do seu ldquoviolatildeo de cordas de ourordquo oferecendo-lhe o Ceacuteo [] declarando-o super-santo super-philosopho super-tudo ldquoeleito de Deusrdquo na Academia dos gecircnios celestiais pois a terra eacute demasiado pequena para a sua gloacuteria Nunca se viu tamanho narcisismo No mundo ningueacutem presta soacute ele292
292 Correio da Manhatilde 25 jul 1937 p 2
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo228
Gondin da Fonseca era um criacutetico comum de Catullo Aqui cabe um parecircntesis Ele ao tecer criacuteticas agrave produccedilatildeo de Catullo (e o fez mais de uma vez) lanccedilava matildeo de uma representaccedilatildeo jocosa do poeta Em uma dessas criacuteticas assim apresentava o poeta
Um dia desses eu estava no Quaresma vendo uns livros velhos e conver-sando com o meu bom Alarico Silveira quando o Catullo se aproximou de mim com os olhos esgazeados fulgurantes os braccedilos estendidos a voz rouca ndash e me bradou com uma estranha vehemencia
ndash Louco Louco Louco Jaacute fui trecircs psychiatrasEu logo me acerquei soliacutecito do grande poeta e velho amigo do peito afim de o acalmar de trazer algum conforto aacute sua exaltaccedilatildeondash Isso natildeo haacute de ser nada Catullo Nervos Eu aacutes vezes tambeacutem ando assim Qualquer coisa me irrita Pareccedilo uma pilha electrica Soffro ateacute com a luz do sol e tenho que fechar as janelas de dia para poder traba-lhar Nervos Que tal se fossemos ahi aacute esquina tomar qualquer coisandash Loucondash Natildeo te exaltes meu velhondash Louco Eacute o tiacutetulo do meu novo poema Li-os a trecircs psychiatras Assombroso Eacute o que te digo Gondin For-mi-daacute-vel Nunca ningueacutem escreveu alguma coisa semelhante Nem Shakespeare293
A representaccedilatildeo risiacutevel de Catullo (algo que virou comum) por um lado arranhava a aura que o poeta tentava construir em seus textos mas por outro tambeacutem foi usada pelo poeta fazendo com que ele se apropriasse dessa representaccedilatildeo em seus livros E era nesses mesmos textos que Catullo respondia aos criacuteticos Ao questionar Satildeo Pedro sobre o destino dos criacuteticos depois que morriam o personagem boecircmio obtinha como resposta
SAtildeO PEDROEssa gente feroz gente danadaque sabe tudo mas natildeo sabe nadapor castigo de Deus expiatoacuteriovai fazer elogios celebeacuterrimosque noacutes mandamos para o Purgatoacuterio
293 Correio da Manhatilde 25 jul 1937 p 2
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 229
BOEcircMIOSenhor Esses canalhas quixotescosOs criticoacuteides nunca me poupavamSAtildeO PEDROE te faziam mal se te insultavamBOEcircMIOTodos eles me beneficiavamPois quando pelo meu jardim passavamroubando-me uma rosa ou um jasmin com o lixo que passando me atiravamas terras do jardim fertilizavame mais flores eu tinha em meu jardim294
Sem duacutevida resultado da apropriaccedilatildeo de um tipo de produccedilatildeo que Catullo conhecia bem ndash o teatro de revista ndash o texto eacute entremeado de passagens risiacuteveis Tratando-se de um texto preparado para ser encenado nada mais oacutebvio que elementos do teatro de revista fossem colocados nele por Catullo ndash como a comeacutedia o diaacutelogo de dois personagens e a muacutesica Essa uacuteltima aparece quando o boecircmio vai-se encaminhando fi-nalmente para o ceacuteu ao se despedir dos santos que o receberam na porta
(Escurece Muda o cenaacuterio da Portaria do Ceacuteu em um amplo espaccedilo vendo-se a lua ao longe para onde vai caminhando o boecircmio com seu violatildeo O boecircmio fitando a lua recita estes versos Enquanto recita ouve-se ao longe uma viola sertaneja)BOEcircMIO(recitando)Oh Que saudadesdo luar da minha Terralaacute na serrabranquejandofolhas secas pelo chatildeoEste luar caacute da cidade Tatildeo escuronatildeo tem aquela saudade do luar laacute do sertatildeo295
294 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 1 ed Rio de Janeiro A Noite 1937 p 132
295 Idem p 178
Estudos da Poacutes-Graduaccedilatildeo230
Esse aporte retirado do teatro de revista de entatildeo tornou-se muito comum na obra de Catullo Ademais o material cocircmico de alguns dos seus textos da deacutecada de 1930 tem relaccedilatildeo com suas participaccedilotildees cons-tantes em peccedilas de caraacuteter risiacutevel Participando ativamente como artista na Companhia de Procoacutepio Ferreira eacute possiacutevel flagrar Catullo sendo anunciado em jornais do periacuteodo como integrante de algumas comeacutedias musicais Em Um homem e oito mulheres que foi apresentada no Teatro Carlos Gomes em maio de 1938 (tendo a participaccedilatildeo de Almirante Oscarito Gilda Abreu Manezinho Arauacutejo e Sylvio Caldas) e que era indicada como uma comeacutedia musical a participaccedilatildeo de Catulllo era saudada como a do ldquoGrande Catullo da Paixatildeo Cearenserdquo296
Seu contato no palco com homens como o desenhista Bastos Tigre e o ator Procoacutepio Ferreira conduziu sua produccedilatildeo para um caraacuteter cocircmico tiacutepico do teatro que se fazia agrave eacutepoca
Dessa forma Catullo ia mesclando no texto elementos de sua atividade como poeta da canccedilatildeo poeta literato e artista dos palcos Fazia isso construindo no texto de Um boecircmio no ceacuteu um personagem cuja representaccedilatildeo aproximava-se da de sua pessoa A partir dessa apro-ximaccedilatildeo ia tecendo comentaacuterios sobre sua vida e sobre seus desafetos a fim de construir uma representaccedilatildeo de si mesmo para seus leitores
Ao que parece depois de ter sido excluiacutedo como grande poeta pela nova geraccedilatildeo que surgiu nos anos 1920 Catullo passou a flertar com uma produccedilatildeo textual que tornasse possiacutevel um sentido diferente para o termo ldquopopularrdquo Aqui eacute necessaacuterio pensar a construccedilatildeo de um cacircnone literaacuterio para a literatura produzida no Brasil (em processo nos anos 1930) que se valia de uma forma original do termo ldquopopularrdquo e ao mesmo tempo a emergecircncia de uma cultura de massa proveniente de outros espaccedilos de entretenimento na sociedade cuja circulaccedilatildeo tambeacutem se valia em grande parte para a sua publicidade de uma representaccedilatildeo distinta do ldquopopularrdquo
Essa mobilidade de circulaccedilatildeo entre os diversos locais de pro-duccedilatildeo cultural fazia com que o leque de opccedilotildees de atuaccedilatildeo do poeta se
296 Na propaganda estampada no jornal Correio da Manhatilde 7 maio 1938
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 231
abrisse para aleacutem da produccedilatildeo textual Ademais o capital social cons-truiacutedo por Catullo fazia com que seu nome apesar de parcialmente des-denhado pela criacutetica literaacuteria do periacuteodo fosse ao contraacuterio sinocircnimo de ecircxito tanto para produtores dos palcos do teatro ligeiro como para editores de seus textos e livreiros Estes uacuteltimos interessados no valor da obra de Catullo como algo passiacutevel de ser consumido por um grande puacuteblico letrado viam no poeta uma opccedilatildeo altamente vendaacutevel tanto que avultaram nos anos 1930 reediccedilotildees das obras de Catullo embora o poeta visse como mais rentaacutevel sua participaccedilatildeo nos palcos ndash mesmo que estes fossem espaccedilos onde o ecircxito financeiro poderia render mais para um artista como Catullo natildeo eram seguramente espaccedilos de con-sagraccedilatildeo social para um poeta
Navegar pela literatura natildeo era por si soacute algo que fizesse (mesmo para um reconhecido grande autor) um escritor sobreviver tatildeo somente da publicaccedilatildeo de livros Um autor ganhar dinheiro com a produccedilatildeo de textos simplesmente era algo difiacutecil quase impossiacutevel Isso quando muito tornava-se possiacutevel para um editor de livros
No periacuteodo em que contabilizamos as ediccedilotildees que vatildeo da publi-caccedilatildeo do primeiro livro de poemas de Catullo (Meu sertatildeo 1918) ateacute o ano de 1946 o nuacutemero de ediccedilotildees das obras de Catullo soacute aumentou Embora o nuacutemero de vendagens seja algo difiacutecil de mensurar podemos observar a seguir pelo nuacutemero de ediccedilotildees de uma publicaccedilatildeo o sucesso do consumo desses livros
Tabela 1 ndash Publicaccedilotildees de Catullo Paixatildeo Cearense
Publicaccedilatildeo Ano Editora Nordm de ediccedilotildees
Meu sertatildeo 1918 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 41Sertatildeo em flor 1919 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 31Poemas bravios 1921 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 29Aos pescadores 1923 Ediccedilatildeo da Confederaccedilatildeo Geral dos Pescadores 13Mata iluminada 1924 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 28O evangelho das aves 1927 Livraria Castilho e posteriormente Editora Bedeschi 8
Meu Brasil 1928 Casa Annuaacuterio do Brasil e posteriormente Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 3
Faacutebulas e alegorias 1928 Officina Industrial Graphica e posteriormente
Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira e Editora A Noite 6
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Publicaccedilatildeo Ano Editora No de ediccedilotildees
Alma do sertatildeo 1928 Livraria Editora Leite Ribeiro e posteriormente Editora Bedeschi 7
O sol e a lua 1934 Imprensa Nacional e posteriormente Editora Bedeschi e Editora A Noite 3
Um boecircmio no ceacuteu ndash Poema teatral
1937 Editora A Noite 5
Oraccedilatildeo agrave bandeira 1937 Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal 1
Um caboclo brasileiro 1940 Editora A Noite 3
O milagre de Satildeo Joatildeo ndash Teatro 1943 Editora A Noite 2
Poemas escolhidos 1944 Editora Zeacutelio Valverde 2
Modinhas1943 ou 1945
Livraria Impeacuterio 2
O testamento da aacutervore 1945 Aurora 2
Fonte CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946
Se seus livros eram reeditados tantas vezes denotando um grande consumo por parte dos leitores isso natildeo lhe dava grandes dividendos pois os direitos autorais das obras em geral eram de propriedade dos editores Isso soacute veio a mudar em 1943 quando Catullo cedeu seus di-reitos para Guimaratildees Martins seu amigo que conhecedor dos tracirc-mites dos direitos autorais no Brasil a partir daiacute ficaria responsaacutevel pelo recebimento de parte dos direitos autorais junto agrave SBAT
Tambeacutem o teatro de revista pagava pouco Maacuterio Lago ator e compositor em entrevista a Joel Silveira em 1942 dizia
ndash Faz de conta que vocecirc escreveu uma ldquorevistardquo A sua revista foi en-saiada Demorou um mecircs certinho no cartaz com um sucesso relativo Muito bem Sabe quanto vocecirc ganhou com a histoacuteriandash Uns dez contecosndash Que dez contecos laacute que nada Vamos fazer as contas Demorou um mecircs rendeu de direitos autorais 6840$000 batatamente Vocecirc tem que tirar 50 para o poemandash Qual poema
(continuaccedilatildeo Tabela 1)
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 233
ndash A parte escrita da ldquorevistardquo Geralmente quem escreve eacute oubo Quer dizer vocecirc fica com metade daquela importacircncia Desta grana vocecirc ainda tira 10 para SBAT Pegue no laacutepis e veja quanto leva para casa Aacutes vezes a coisa eacute tatildeo pouca que a gente nem leva para a casa deixa no chopp297
Afinal entre o mercado de produccedilatildeo de livros o espaccedilo de pro-duccedilatildeo de teatro e o mundo da muacutesica este uacuteltimo parecia levar na-queles idos grande vantagem O raacutedio pelo forte poder de comuni-caccedilatildeo comumente catapultava tal produto a sucesso de vendagens Daiacute a criaccedilatildeo pelos compositores de muacutesica popular de uma associaccedilatildeo que defendesse seus direitos Soacute o raacutedio podia no dizer de A L Machado Neto ldquolanccedilar uma ponte para o prestiacutegiordquo298 e ao mesmo tempo render alguns dividendos para o autor de canccedilotildees de sucesso Maacuterio Lago agravequela altura jaacute conhecido por ser o compositor de Aurora que tocava sem cessar nas raacutedios observava a distinccedilatildeo pecuniaacuteria entre fazer te-atro e fazer muacutesica
(Fazer teatro) Natildeo eacute vantagem nenhuma Eacute porque afinal de contas a gente tem que fazer alguma coisa Natildeo posso ser unicamente um com-positor porque nem soacute de muacutesica vive o homem Mas se eu tivesse uma inspiraccedilatildeo diaacuteria vecirc laacute se ia me meter em teatro Soacute ldquoAurorardquo me rendeu jaacute 9 contos299
Lago atestava que isso se dava porque o cinema matava o teatro Natildeo agrave toa o compositor foi um dos primeiros a romper com a SBAT ainda em 1938
Os escritores de livros ao contraacuterio natildeo tinham uma asso-ciaccedilatildeo classista que zelasse por seus direitos Em geral acontecia de o autor ceder os direitos das obras ao seu editor que ficaria encarre-gado de repassar-lhe a porcentagem que bem achasse conveniente
297 BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os homens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 143
298 MACHADO NETO Antocircnio Luiz Estrutura social da Repuacuteblica das Letras sociologia da vida intelectual brasileira ndash 1870-1930 Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 1973 p 101
299 Idem p 144
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diante das vendas Daiacute ser comum o autor mudar de editor e ainda ver seus livros serem publicados por outras editoras sem que tivesse ne-nhum lucro com isso
Do quadro acima um exemplo sintomaacutetico satildeo as ediccedilotildees de obras de Catullo publicadas pela livraria Castilho Depois que seu dono vendeu o espoacutelio para Ameacuterico Bedeschi este continuou a publicar as obras de Catullo sem que o poeta lucrasse com os livros Isso se deu tambeacutem com a livraria Quaresma que reeditou muitas vezes as obras modinheiras de Catullo O acordo entre editores excluiacutea natildeo raro qualquer reivindicaccedilatildeo do autor que houvesse cedido os direitos de publicaccedilatildeo
Os direitos autorais de diversas produccedilotildees culturais como vimos jaacute eram objeto de reivindicaccedilotildees A SBAT desde 1917 era responsaacutevel pela cobranccedila de textos teatrais e muacutesicas divulgadas no teatro Na muacute-sica surgiu ainda em 1937 uma dissidecircncia de compositores populares que criaram a ABCA Nas letras essa iniciativa se concretizou no Rio de Janeiro em marccedilo de 1937 com a criaccedilatildeo do Instituto Brasileiro das Letras (IBL)
A criaccedilatildeo de uma associaccedilatildeo que pudesse reivindicar os direitos autorais de escritores brasileiros era um projeto antigo e havia obtido focirclego quando o projeto de criar uma associaccedilatildeo vinha sendo pensado desde 1932 mas efetivamente a criaccedilatildeo do IBL soacute veio a se dar em 1937 de maneira polecircmica Desdenhado pelos membros da Academia Brasileira de Letras e por parte da Academia Carioca de Letras o IBL surgiu como forma de lutar pelos direitos dos escritores A iniciativa contava com a presenccedila do poeta Renato Travassos seu primeiro presi-dente e tinha a intenccedilatildeo de
[] fazer a defesa dos autores e das suas respectivas obras O Instituto Brasileiro de Letras pleitearaacute junto ao governo leis que regulando o comeacutercio de traducccedilotildees de livros estrangeiros e a transcripccedilatildeo de traba-lhos intellectuaes em todo paiz assegurem de modo praacutetico e eficiente os direitos autoraes e a correcccedilatildeo das traducccedilotildees evitando assim usurpaccedilotildees e incorrecccedilotildees umas e outras perfeitamente censuraacuteveis em mais do que isto damninhas aacute nossa cultura e a nossa probidade intelectual e moral[]Ao que parece desta feita os escriptores brasileiros encontraram uma
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 235
foacutermula pela qual os seus interesses e os seus direitos se defendam com eficiecircncia criando a um tempo uma instituiccedilatildeo e classe onde tudo seja comunhatildeo de vistas e propoacutesitos fraternaes300
A associaccedilatildeo de escritores foi fundada em 5 de setembro de 1937
no luxuoso preacutedio da Associaccedilatildeo Brasileira de Imprensa e teve entre seus signataacuterios aleacutem de Catullo da Paixatildeo Cearense outros autores jaacute consagrados agrave eacutepoca como Gustavo Barroso Olegaacuterio Mariano Maacuterio Linhares Bastos Tigre Prado Kelly Carlos Drummond de Andrade Oduvaldo Viana Manuel Bandeira e Jorge de Lima
A tentativa de fazer com que houvesse maior controle na circu-laccedilatildeo e na ldquotranscripccedilatildeo de trabalhos intellectuaesrdquo era uma antiga rei-vindicaccedilatildeo da classe Afinal tal esforccedilo tratava-se de uma tentativa de regrar a produccedilatildeo e o consumo de uma obra que aparecia sob o nome de um autor Uma vez que muitos dos acordos entre editores e escritores culminavam na apropriaccedilatildeo pecuniaacuteria da obra pelo editor a associaccedilatildeo se propunha a regrar pela criaccedilatildeo de leis essa relaccedilatildeo tornando menos vulneraacutevel a ligaccedilatildeo do escritor-autor com a casa editorial que o publi-cava Poreacutem havia muito o IBL tambeacutem travava outro tipo de luta pelo controle da circulaccedilatildeo existia no campo literaacuterio as ediccedilotildees que circu-lavam muitas vezes com erros que comprometiam a leitura regrada intentada pelo autor
Catullo que aparece entre os signataacuterios foi um dos que comu-mente tratavam de corrigir nas suas publicaccedilotildees incorreccedilotildees publi-cadas sem o seu crivo que pudessem deturpar o sentido da obra Ademais esse sentido poderia mudar a cada ediccedilatildeo vinda a puacuteblico ndash mesmo aquelas que tiveram o consentimento do autor Haacute de se sa-lientar que uma nova ediccedilatildeo modificada tende a criar novos sentidos e podem inclusive visar agrave leitura de novos leitores Para tanto as estra-teacutegias autorais e editoriais satildeo fundamentais para alcanccedilar tal objetivo A histoacuteria das ediccedilotildees de Um boecircmio no ceacuteu datildeo conta disso
A editora A Noite que lanccedilou essa publicaccedilatildeo tem uma trajetoacuteria curiosa Irineu Marinho que criara o jornal A Noite em 1911 havia
300 Gazeta de Notiacutecias 14 jan 1938 p 1
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publicado um ou outro livro mas a editora soacute surgiria mesmo nos anos 1930 sob a eacutegide do francecircs Paul de Leuze Antes dessa uacuteltima data as oficinas do jornal eram usadas tatildeo somente para a impressatildeo de livros Em 1935 surgiram os primeiros livros de sucesso Vida de Santos Dumont por Ofeacutelia e Narbal Pontes e Vida e Amores de Castro Alves de Pedro Calmon
Antes de lanccedilar Um boecircmio no ceacuteu o texto obteve outra modali-dade de circulaccedilatildeo Ele foi lido pelo proacuteprio Catullo na casa do poeta carioca Luiz Edmundo O escritor Carlos Maul testemunhou tal apre-sentaccedilatildeo e conta que apresentaccedilatildeo do ldquopoema dramaacuteticordquo teve a partici-paccedilatildeo de ldquouma victrola orthophonicardquo que executava a ldquomuacutesica a pro-poacutesito canccedilotildees folk-loacutericas que o bohemio vai indicando nos momentos oportunosrdquo No entanto o ldquobohemiordquo que vai indicando as muacutesicas segundo Maul ao que parece natildeo eacute soacute um personagem do poema de Catullo ele eacute o proacuteprio poeta pois o personagem ldquobohemiordquo do poema era o ldquoproacuteprio Catullordquo301
A primeira ediccedilatildeo de Um boecircmio no ceacuteu foi publicada em junho de 1937 Sua capa continha apenas o nome do livro e a indicaccedilatildeo do autor A apresentaccedilatildeo da obra natildeo fazia nenhuma alusatildeo especial ao fato de algum personagem do texto de Catullo ser identificado com o proacute-prio autor
Na segunda ediccedilatildeo lanccedilada em meados de 1938 ndash estendida em 16 paacuteginas com apreciaccedilatildeo positiva de Catullo feita pelo jorna-lista advogado e historiador Rocha Pombo reafirmando sua gran-deza como poeta ndash traz na capa uma ilustraccedilatildeo de Catullo segurando um violatildeo e conversando com Satildeo Pedro Tal alusatildeo visava a dar ao leitor um caraacuteter referencial ou seja uma clara aproximaccedilatildeo do per-sonagem do boecircmio com a figura de Catullo Indicava assim que uma possiacutevel leitura para o texto seria a de que seu autor eacute o proacuteprio personagem e portanto os juiacutezos criacuteticos ali expostos ao boecircmio e pelo boecircmio (vaacuterios aliaacutes) poderiam imediatamente ser remetidos a
301 Correio da Manhatilde 11 mar 1937 p 6
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seu autor Afinal a ediccedilatildeo dava conta para o leitor de que Catullo era seu proacuteprio personagem
Na terceira ediccedilatildeo da obra de 1943 haacute na contracapa uma clas-sificaccedilatildeo inexistente nas ediccedilotildees anteriores indicando tratar-se de ldquoTeatrordquo O leitor do poema deveria ter pela indicaccedilatildeo a clara noccedilatildeo do efeito performaacutetico do que seria lido Aleacutem do mais Catullo usa uma separaccedilatildeo do texto em atos tal qual um texto dramaacutetico Embora jaacute nas ediccedilotildees anteriores existissem no poema alusotildees ao mundo do teatro indicando um texto dramaacutetico a ser lido a indicaccedilatildeo na contracapa natildeo deixava duacutevida do que se tratava o impresso para o leitor Inclusive a editora A Noite cuja administraccedilatildeo tambeacutem era responsaacutevel pelo jornal A Noite fez a publicidade do livro em seu jornal chamando a atenccedilatildeo para que ldquoo poema decorre de uma situaccedilatildeo de caraacuteter teatralrdquo e que Catullo ldquotocando um gecircnero novo conseguiu completo ecircxito e manteve a mesma altura de sua poesiardquo302
Na quinta ediccedilatildeo de 1946 haacute um aumento do nuacutemero de paacuteginas com inserccedilotildees de juiacutezos criacuteticos de Catullo agora morto Aliaacutes tambeacutem eacute nessa ediccedilatildeo que Guimaratildees Martins herdeiro do espoacutelio de Catullo fez aparecer texto do poeta atribuindo-se Guimaratildees a ldquoautoridaderdquo sobre aquele livro no caso de quaisquer ldquorepresentaccedilotildees filmagem tra-duccedilatildeo adaptaccedilatildeo irradiaccedilatildeo etc desta peccedilardquo303
Como se pode ver na medida em que se vatildeo sucedendo as edi-ccedilotildees haacute uma mudanccedila no sentido que se quer dar ao impresso numa tentativa de regrar o caraacuteter da leitura ou pelo menos deixar claro o propoacutesito do interessado ndash seja o proacuteprio autor Catullo nas ediccedilotildees em que ele ainda estaacute vivo seja seu cessionaacuterio Guimaratildees Martins depois que Catullo morre seja o editor da obra impressa Ademais as dife-rentes modalidades de circulaccedilatildeo do texto ndash a primeira leitura oralizada de Catullo na casa de Luiz Edmundo e as posteriores que foram im-pressas pela editora A Noite ndash conduzem a uma recepccedilatildeo distinta que
302 A Noite Ilustrada 2 nov 1943 Suplemento p 25 303 Contracapa de Um bohemio no ceacuteo Cf CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no
ceacuteu 5 ed Rio de Janeiro A Noite 1946
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vai da necessidade de uma leitura entrecortada por canccedilotildees a uma lei-tura silenciosa do livro
Essa vontade de ser melhor lido pode ser demonstrada no final da segunda ediccedilatildeo de Um boecircmio no ceacuteu quando Catullo aproveita para passar a limpo os erros graacuteficos de ediccedilotildees anteriores Em nota ele se explica ldquoComo presumo que ldquoBohemio no Ceacuteordquo tenha favoraacutevel acei-taccedilatildeo aproveito a oportunidade fazendo aqui as emendas de alguns erros que infelizmente se encontram nos meus livrosrdquo304 Daiacute o autor elenca as obras onde existem os erros tipograacuteficos Seis publicadas pela editora Bedeschi (Meu sertatildeo Sertatildeo em flor Poemas bravios Matta illuminada O evangelho das aves e O sol e a lua) e uma pela livraria Castilho (a ediccedilatildeo de 1928 de Matta illuminada)
Catullo vai descrevendo cada erro e sua respectiva paacutegina para no final disparar de maneira explicativa que ldquosatildeo estes os erros princi-paes que natildeo por minha culpa e sim dos senhores compositores [grifo meu] afeiam esses meus livrosrdquo305
As estrateacutegias para que o texto tenha o efeito pensado pelo autor passavam pela mediaccedilatildeo de editores compositores-graacuteficos e final-mente leitores fazendo com que aparecessem nos textos diversos arti-fiacutecios para que o objetivo de uma leitura autorizada fosse enfim pos-siacutevel A emergecircncia de uma associaccedilatildeo de classe que pudesse fazer frente agraves muitas instacircncias que mediavam a relaccedilatildeo do leitor com seu puacuteblico surgiu dessa ldquodeficiecircnciardquo constatada que muitas vezes bar-rava o reconhecimento do autor do livro como grande escritor fosse por supostas deficiecircncias materiais ou esteacuteticas A difiacutecil propriedade do objeto livro afinal obrigava a uma luta de forccedilas do escritor expressa muitas vezes no proacuteprio texto do autor com as demais instacircncias que pudessem desvirtuar o sentido alterando no iacutenterim que separa escrita e leitura o sentido de um texto
Essa constataccedilatildeo talvez possa explicar a emergecircncia do IBL num contexto em que o livro se tornava cada vez mais um objeto a ser con-
304 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Um boecircmio no ceacuteu 2 ed Rio de Janeiro A Noite 1938 p 154
305 Idem p 161
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sumido inclusive com apoio irrestrito do presidente Getuacutelio Vargas ele mesmo um membro eleito da Academia Brasileira de Letras A editora A Noite por exemplo que publicou nos anos 1930 e 1940 vaacuterias edi-ccedilotildees da obra de Catullo tornou-se desde 1939 propriedade do Estado Este criou vaacuterios programas oficiais que incentivavam o consumo de livros A aproximaccedilatildeo de Vargas dos escritores e o seu apoio a inicia-tivas como o IBL deram aos escritores o suporte para uma luta que se desenrolava nos textos havia muito tempo tal qual um cabo de guerra onde se digladiavam autores graacuteficos editores publicistas e leitores
O flerte entre escritores e o governo Vargas rendeu bons frutos para vaacuterios deles Muitos foram absorvidos na estrutura estatal em pro-gramas diretamente administrados pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Obras foram editadas a fim de dar suporte ao governo Vargas especialmente apoacutes novembro de 1937 quando Getuacutelio tornou-se ditador Natildeo obs-tante eacute possiacutevel flagrar em muitas obras publicadas agrave eacutepoca um ufa-nismo gritante das quais um exemplo cabal eacute Oraccedilatildeo agrave bandeira li-vreto de poemas escrito por Catullo da Paixatildeo Cearense
Essa simbiose entre poliacutetica cultural e produccedilatildeo de uma repre-sentaccedilatildeo mais proacutexima da realidade do paiacutes resultou em inuacutemeros pro-jetos e obras que tiveram o aval do Estado brasileiro no periacuteodo A his-toriadora Acircngela de Castro Gomes chama a atenccedilatildeo para uma poliacutetica cultural fundada na formaccedilatildeo de ldquocidadatildeos nacionaisrdquo306 Sob o go-verno de Getuacutelio Vargas a temaacutetica nacional ganhou novo focirclego e trouxe como consequecircncia uma aproximaccedilatildeo do discurso nacionalista e centralizador da poliacutetica varguista da velha necessidade posta pelos intelectuais brasileiros de construir a naccedilatildeo Isso resultou em projetos editoriais que tiveram a simpatia do Estado varguista que atuava como uma espeacutecie de mecenas da cultura A coleccedilatildeo Brasiliana pensada pelo socioacutelogo Fernando Azevedo que ajudou a difundir uma seacuterie de publi-caccedilotildees que almejavam uma reflexatildeo sobre o paiacutes daacute conta desse mo-mento em que segundo nos conta a historiadora Eliana Dutra estabele-
306 Cf GOMES Acircngela de Castro Histoacuteria e Historiadores Rio de Janeiro FGV 1996 O desdobramento dessa poliacutetica em projetos culturais pode ser pensado com as reflexotildees da historiadora Lia Calabre In CALABRE Lia Op cit
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cia-se ldquoa crenccedila no papel determinante que as Ciecircncias Sociais poderiam jogar na configuraccedilatildeo de um imaginaacuterio nacional e de uma identidade coletiva no Brasilrdquo307
Natildeo obstante a guinada da poliacutetica cultural comandada espe-cialmente pelo ministro da Educaccedilatildeo de Vargas Gustavo Capanema foi simpaacutetica agraves produccedilotildees que ao representar o paiacutes tratavam em seus textos de legitimar o otimismo do novo projeto nacionalista do Estado brasileiro Oraccedilatildeo agrave bandeira faz parte dessa leva
O argumento do livreto foi a cerimocircnia do Dia da Bandeira em que Vargas ordenou a incineraccedilatildeo das bandeiras estaduais para simbo-licamente afastar qualquer onda de regionalismo em prol de uma uacutenica bandeira a nacional O editor da publicaccedilatildeo assim explica
A Constituiccedilatildeo de 10 de novembro outorgada agrave Naccedilatildeo pelo presi-dente Getuacutelio Vargas estabelece entre seus princiacutepios baacutesicos a existecircncia de um uacutenico pavilhatildeo para todo o territoacuterio nacional ndash a Bandeira da PaacutetriaEsse Serviccedilo julgou assim oportuno editar a ldquoOraccedilatildeo aacute Bandeirardquo cujos originaes foram oferecidos pelo autor ndash Catullo da Paixatildeo Cearense ndash ao cap Filinto Muller308
Oraccedilatildeo agrave bandeira foi distribuiacutedo nas escolas pelo Brasil e Catullo ganharia em 1941 uma aposentadoria dada pelo proacuteprio Vargas por ldquoserviccedilos prestados agrave cultura nacionalrdquo As duas ediccedilotildees de Oraccedilatildeo financiadas pelo Governo natildeo foram poreacutem suficientes para que o poeta se resignasse em reclamar da ediccedilatildeo e fazer publicar nos jornais incorreccedilotildees publicadas no livro
Catullo nos procurou agrave noite para dizer-nos de uma incorrecccedilatildeo que aacute sua revelia se vecirc a paacuteginas 59 de sua formosa ldquoOraccedilatildeo aacute Bandeirardquo E o poeta indicando-nos o lapso
307 DUTRA Eliana de Freitas Histoacuteria e Historiadores na Coleccedilatildeo Brasiliana o presentismo como perspectiva In DUTRA Eliana de Freitas (org) O Brasil em dois tempos Belo Horizonte Autecircntica 2013 p 47-76
308 CEARENSE Catullo da Paixatildeo Oraccedilatildeo agrave bandeira Rio de Janeiro Serviccedilo de Divulgaccedilatildeo da Poliacutecia Civil do Distrito Federal 1937 Contracapa
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ndash Aqui Em logar neste primeiro verso de ldquoJesus Christo que aben-ccediloasrdquo eu escrevi ldquoOacute Christo que abeccediloaesrdquo Assim devia ter sido im-presso e natildeo como laacute se vecirc Espero que me faccedila a advertecircncia ao leitor menos avisado309
Seguramente natildeo era por numa publicaccedilatildeo financiada pelo Estado que Catullo deixaria passar algo que pudesse natildeo conduzir o puacuteblico a uma boa leitura de sua obra
309 Correio da Manhatilde 17 dez 1937 p 3
Figura 3 ndash Capa da 2ordf ediccedilatildeo de Um bohemio no Ceacuteo Nota-se o desenho de Catullo segurando o violatildeo diante de S Pedro
Fonte arquivo do autor
POR UMA REPRESENTACcedilAtildeO DE SI
Quando eu tiver uma estaacutetua nesta cidadeCatullo em conversa com Joatildeo Ribeiro310
Tempo de prestar contas
Um naufraacutegio aticcedilava os leitores da revista O Malho de me-ados de 1936 Tratava-se de uma brincadeira A revista dava uma lista de uma centena de escritores e perguntava para seus leitores se vocecirc estivesse num bote que estivesse naufragando quais os trecircs vates na-cionais vocecirc salvaria A enquete era uma promoccedilatildeo organizada por O Malho com a livraria Freitas Bastos que daria como precircmio ao ven-cedor 50 mil cruzeiros em livros
Depois de semanas de disputas os vencedores foram Olegaacuterio Mariano Cassiano Ricardo e Leatildeo de Vasconcelos Em 14ordm lugar na frente de nomes como Jorge de Lima e Maacuterio de Andrade apareceu Catullo da Paixatildeo Cearense Tais disputas imaginaacuterias entre escritores conhecidos era algo comum nas revistas brasileiras Ainda em 1925 como vimos anteriormente Catullo fora um dos vencedores em con-curso promovido pela revista Fon-Fon para a escolha do priacutencipe dos poetas brasileiros311
310 Letras e Artes 8 out 1950311 Catullo ficara em terceiro atraacutes de Alberto de Oliveira e Hermes Fontes
CATULLO DA PAIXAtildeO CEARENSE OU COMO SE CONSTROacuteI UM AUTOR 243
Se agraves vezes a pilheacuteria tinha o caraacuteter visivelmente risiacutevel nou-tras a disputa soava como polecircmica como quando em meados de 1937 com a morte do escritor Paulo Setuacutebal O Malho perguntava a seus lei-tores a quem dava o seu voto para o lugar de Paulo Setuacutebal O resul-tado pode surpreender um leitor atual acostumado a ver nomes como Graciliano Ramos que agrave eacutepoca jaacute despontara como escritor fora de uma lista de 50 escolhidos O vencedor da disputa foi Pliacutenio Salgado ficando em segundo e em terceiro lugar respectivamente Cassiano Ricardo e Catullo da Paixatildeo Cearense
Se tais revistas expressam muito das preferecircncias do puacuteblico leitor carioca ndash fundamentalmente os nomes citados eram de escritores do Rio de Janeiro ndash tal pesquisa revela por um lado a necessidade de se pensar a histoacuteria literaacuteria no Brasil como produto de uma construccedilatildeo tambeacutem ela produzida por diversos autores de histoacuteria literaacuteria o que faz com que se deva historicizar certa histoacuteria da literatura
Por outro lado o espasmo agrave primeira olhadela para a pesquisa conduz o leitor ao questionamento sobre como se deve escrever uma histoacuteria literaacuteria que leve em consideraccedilatildeo aquilo que era lido pelos leitores da eacutepoca A preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de uma maneira de se representar um panteatildeo de autores brasileiros natildeo foi algo desde-nhado por muitos autores Para a introduccedilatildeo de seus nomes entre aqueles que poderiam figurar numa histoacuteria literaacuteria as estrateacutegias de escrita foram fundamentais nessa empresa Muitos em vida construiacuteram eles mesmos uma histoacuteria literaacuteria que os incluiacutesse como parte fundante de um processo de canonizaccedilatildeo das obras
O que tais enquetes realizadas trazem de mais instigante talvez seja mais do que dar respostas sobre quem era o ldquomelhorrdquo em sua eacutepoca ndash o que jaacute valeria uma atenccedilatildeo do historiador da literatura ndash a possibili-dade de buscar novos caminhos para a produccedilatildeo de uma reflexatildeo sobre o campo literaacuterio no Brasil Vale a pena citar os dez primeiros colocados da pesquisa de O Malho em 1936 1ordm) Olegaacuterio Mariano 2ordm) Cassiano Ricardo 3ordm) Leatildeo de Vasconcelos 4ordm) Menotti Del Picchia 5ordm) Adelmar Tavares 6ordm) Guilherme de Almeida 7ordm) Paulo Setuacutebal 8ordm) Attiacutelio Milano 9ordm) Alberto de Oliveira e 10ordm) Paulo Gustavo Alguns como vemos ilus-tres desconhecidos em compecircndios da literatura brasileira posteriores
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A consagraccedilatildeo do nome era uma empresa que demandava boa dose de sensibilidade do autor diante de um puacuteblico leitor Um diaacutelogo constante com os leitores a fim de seduzir pelo texto e por tudo que o rodeia Noutras vezes era necessaacuterio estabelecer uma histoacuteria de vida ndash e ter uma ldquoHistoacuteriardquo era um forte argumento para fincar seu nome entre os chamados autores nacionais Em muitos outros casos era ne-cessaacuterio simplesmente aparecer Buscar alternativas para aleacutem do texto escrito de forma a ter o reconhecimento do texto escrito
Em tempos em que raacutedio cinema e teatro construiacuteam seus proacute-prios iacutedolos usando foacutermulas ineacuteditas a literatura mantinha apesar dos concorrentes um vieacutes de distinccedilatildeo social que o cantor de raacutedio o ator de teatro e o artista de cinema no Brasil agrave eacutepoca desconheciam Se o escritor natildeo era mais propriamente um ldquoiacutedolordquo como evocava Joatildeo do Rio em sua famosa enquete de iniacutecios do seacuteculo o escritor ganhou progressivamente uma aura de construtor da naccedilatildeo Ganhou assim a responsabilidade de opinar em grandes questotildees de caraacuteter mais ldquoseacuteriordquo Representar a naccedilatildeo que teimava em tornar-se tema intransponiacutevel para um candidato a novo escritor era um imperativo formal no estabe-lecimento do que viria a ser chamado de Literatura Nacional
Catullo da Paixatildeo Cearense cuja trajetoacuteria natildeo retiliacutenea em torno do tema da naccedilatildeo o faz um autor menor na histoacuteria literaacuteria do Brasil representa um caso espantoso de escritor reconhecido em vida pelos lei-tores e constantemente agraves voltas com a possibilidade de natildeo reconheci-mento de sua obra pelas instacircncias de consagraccedilatildeo de um escritor
Natildeo eacute agrave toa que no final de sua vida Catullo procurou estabe-lecer em seus uacuteltimos livros uma histoacuteria para si que enobrecesse seu nome como poeta nacional digno da distinccedilatildeo no campo literaacuterio Essa tarefa demandou do poeta certo malabarismo uma vez que sua traje-toacuteria o indicava como modinheiro e ator de teatro duas ocupaccedilotildees que por diversas vezes travaram seu reconhecimento em vida como grande poeta A construccedilatildeo de uma memoacuteria de si uma escrita autobiograacutefica visando a uma canonizaccedilatildeo foi um projeto na escrita de Catullo que pode ser vislumbrado nos seus uacuteltimos textos Para a investigaccedilatildeo desse arsenal eacute urgente chamar a atenccedilatildeo para a morfologia do proacuteprio texto e os sentidos visados na construccedilatildeo dele para uma possiacutevel leitura re-
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grada visando a um convencimento por meio de fotos prefaacutecios juiacutezos criacuteticos e demais mecanismos de escrita
Em 1943 a editora A Noite publicou a peccedila O milagre de Satildeo Joatildeo Nela Catullo novamente repetia a foacutermula de Um boecircmio no ceacuteu retomando uma escrita que visasse a uma performance nos palcos O livro eacute recheado de juiacutezos criacuteticos e fatos da vida de Catullo inclusive a histoacuteria de sua aposentadoria concedida pelo presidente Vargas
Nessa eacutepoca em fevereiro de 1941 Catullo que em tese traba-lhava como datiloacutegrafo no Ministeacuterio da Viaccedilatildeo desde 1921 havia re-cebido aposentadoria de sua funccedilatildeo Isso se deu depois de um artigo escrito pelo poeta e desenhista Bastos Tigre cheio de passagens risiacute-veis bem no estilo do autor em que ele assinalava a necessidade de aposentar Catullo de forma que ele recebesse bem mais do que uma simples aposentadoria Bastos falava do encontro que havia tido com Catullo e de um busto do poeta que estava sendo feito pelo jornal A Noite Vale a transcriccedilatildeo
Passei-le a matildeo sobre o cracircnio raspado com um certo respeito ndash afinal aquillo natildeo deixa de ser um altar ndash e perguntei a Catullo por que assim o trazia liso e cheio de arranhotildees da ldquogiletterdquondash Aquele busto meu amigo aquelle busto Andam dizendo por ahi que o meu busto no jardim do Monroe natildeo se parece commigo E como eu respeito e amo todas as artes faccedilo o possiacutevel para me parecer com o busto O meu cracircnio assim raspado daacute mais impressatildeo de granito vocecirc natildeo acha312
Depois de apresentar esse encontro ao leitor Bastos Tigre contesta
Catullo foi haacute pouco aposentado Contaram-lhe os anos de serviccedilo puacute-blico e acharam que ele soacute tinha dez ou doze E deram-lhe uns trezentos e taes mil reacuteisVocecircs natildeo contaram bem meus compatriacutecios do Dasp Catullo natildeo tem nem uma hora sequer de percussatildeo com os dedos na ldquoRemingtonrdquo ou
312 Correio da Manhatilde 2 fev 1941 p 4
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na ldquoRoyalrdquo mas ele tem sessenta natildeos de trabalho de coraccedilatildeo e ceacuterebro pela nossa Paacutetria pelo Brasil de todos noacutes313
Dez dias apoacutes a publicaccedilatildeo desse artigo Catullo da Paixatildeo Cearense foi aposentado por serviccedilos prestados agrave cultura do paiacutes Em seu novo livro O milagre de Satildeo Joatildeo o editor de A Noite fez aparecer o artigo de Bastos Tigre Poreacutem o que mais salta aos olhos na publi-caccedilatildeo eacute a tentativa de construir uma narrativa de vida que consagrasse Catullo como um poeta diferente e maior aleacutem da insistente tentativa de regrar uma leitura exposta desde as primeiras paacuteginas inclusive com a indicaccedilatildeo de discos para serem ouvidos em cada momento exato da leitura dos poemas
O milagre de Satildeo Joatildeo era uma reediccedilatildeo do poema A promessa publicado no primeiro livro de poemas sertanejos Meu sertatildeo O su-cesso desse poema fez com que Catullo alargasse sua estrutura e o pu-blicasse como um livro inteiro A publicaccedilatildeo eacute iniciada com um pre-faacutecio do escritor Maacuterio Joseacute de Almeida intitulado ldquoO poema da transfiguraccedilatildeordquo em que faz rasgados elogios a Catullo chamando a atenccedilatildeo do leitor para o fato de que o poeta era conhecido por ser um dos ldquomaiores enriquecedores do idioma luso-brasileirordquo e que havia en-cantado homens como Rui Barbosa Procoacutepio Ferreira e Coelho Netto recitando o poema A promessa Fundamentalmente Maacuterio pede a atenccedilatildeo do leitor para as indicaccedilotildees das muacutesicas que deveriam acompa-nhar a sua leitura sob risco de a leitura natildeo se ldquocompletarrdquo
Mesmo natildeo sendo possiacutevel ouvir o poema com os discos especialmente feitos para completar-lhe a essecircncia musical lucraraacute quem o ouvir se respeitando as observaccedilotildees que o autor publica no final deste volume souber impregnaacute-los de recursos musicais que se harmonizem no ritmo misterioso do poema314
Com essa recomendaccedilatildeo Maacuterio Joseacute de Almeida afirmava o ca-raacuteter natildeo soacute visual da leitura mas tambeacutem auditivo dos poemas que
313 Idem314 CEARENSE Catullo da Paixatildeo O milagre de Satildeo Joatildeo Rio de Janeiro A Noite 1943 p 2
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seriam lidos A incorporaccedilatildeo do elemento musical nos poemas era fun-damental para a leitura se concretizar Isso se explica segundo Maacuterio porque o poeta em questatildeo era tambeacutem cantor e muacutesico
Cantor muacutesico e poeta Catullo recomenda altruisticamente que o ldquoO Milagre de Satildeo Joatildeordquo seja acompanhado com os discos em que tanto insiste porque o maior dos cantores do nosso misterioso idioma conhece em surtos esplendorosos o encanto essencial que a muacutesica produz315
Cabe aqui uma pausa Deve-se levar em conta que a reintroduccedilatildeo do elemento musical na obra de Catullo acontece num momento em que a canccedilatildeo brasileira sofre um boom de prestiacutegio por meio da transmissatildeo radiofocircnica Luar do sertatildeo era o prefixo da Raacutedio Nacional que se convertia a partir de 1939 na principal rede transmissora com suas ondas chegando a todo o Brasil O novo sucesso de Luar do sertatildeo aliado a uma maior discussatildeo acerca de direitos autorais no Brasil rein-troduz um debate na imprensa sobre quem seria o verdadeiro autor da canccedilatildeo Catullo da Paixatildeo Cearense ou Joatildeo Pernambuco
Esse debate ganhou as paacuteginas dos jornais e foi motivo de polecirc-mica na qual intervieram por exemplo o compositor Almirante o criacute-tico Gondin da Fonseca e o maestro Villa Lobos um amigo dos dois muacutesicos envolvidos que absolveu Catullo de plaacutegio O poeta em entre-vista explicava o caso
ndash Eacute verdade que o ldquoLuar do Sertatildeordquo natildeo eacute seundash Eacute meu simndash Falam por aiacute que a muacutesica eacute de Joatildeo Pernambucondash Conversa compus o ldquoLuar do Sertatildeordquo ouvindo uma melodia antiga que era cantada com uns versos cujo estribilho era assimlsquoEacute do maitaacuteEacute do maitaacutersquoVersos banaliacutessimos A melodia que eacute tambeacutem banal eacute anocircnima Eacute quase centenaacuteria Com leves modificaccedilotildees adaptei-lhes as estrofes
315 Idem p 3
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do ldquoLuarrdquo Parece-me que agradou porque tem sido cantada no mundo inteiro316
Essa necessaacuteria explicaccedilatildeo surgia exatamente num momento em que compositores de muacutesica no Brasil organizavam-se para discutir di-reitos autorais A polecircmica ainda se estenderia por alguns anos sem que de fato fosse indicado quem era afinal o autor da canccedilatildeo O que se mostrou claramente nas polecircmicas que surgiram foi o caraacuteter impre-ciso do termo ldquoautorrdquo
Em carta aberta a Joatildeo Pernambuco ndash na verdade endereccedilada a Almirante que promovia em seu programa de raacutedio a campanha para a exclusatildeo de Catullo como autor original da canccedilatildeo Luar do sertatildeo ndash Catullo explicava o caso cheio de ironias a Almirante a quem chamava ldquoadvogadordquo A passagem eacute longa e rica de reflexotildees sobre o entendi-mento acerca de ldquoautoriardquo no periacuteodo
Escrevo-te porque tenho pena de ver um velho camarada exposto ao baixo ridiacuteculo por um indiviacuteduo que num programa radiofocircnico ca-luniou torpemente a minha pessoa dizendo que tu eras o inspirador de meus poemas admirados pelo Brasil e pelo estrangeiro Natildeo focircsses tu o alvo dessa leviandade e eu riria a bandeiras despregadas do seu autor[] Tu deves possuir todos esses livros que te ofertei Num deles a ldquoca-bocla de Caxangaacuterdquo estaacute a ti dedicada Por que natildeo reclamaste nessa ocasiatildeo Eacute porque a embolada sertaneja a tal ldquoMeu Engenho eacute de Humaitaacuterdquo nunca foi tua eacute do folclore pernambucano Quando a trou-xeste de Pernambuco com versos banais com que a cantavas eu es-tilizando-a transformei-a na melodia para qual escrevi os versos do meu ldquoLuar do Sertatildeordquo Quando tu cantavas mais frequentemente essa minha canccedilatildeo jaacute a cantavas com a minha estilizaccedilatildeo Apelo para o teu caraacuteter e honestidade ndash na nossa convivecircncia de vinte anos dia a dia estando juntos e ouvindo os discos da famosa ldquoCasa Edisonrdquo do Rio de Janeiro falando em Catullo da Paixatildeo Cearense e natildeo falando teu nome nunca protestaste Soacute o fizeste agora depois que a tal embolada ldquoMeu engenho eacute de Humaitaacuterdquo transformou-se e nesse Hino Nacional do
316 BARBOSA Francisco de Assis SILVEIRA Joel Os homens natildeo falam de mais Rio de Janeiro Alba 1942 p 194
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Sentimento Brasileiro [] O teu ldquoadvogadordquo disse que eu estava rece-bendo os direitos dessa minha canccedilatildeo sem repartir contigo Eacute outra ca-luacutenia O meu amigo sr Fred Figner a quem vendi no tempo da antiga ldquoCasa Edisonrdquo os direitos de algumas das minhas modinhas inclusive o ldquoLuar do Sertatildeordquo eacute quem recebe os direitos das mesmas []Segundo as nossas leis todo motivo folcloacuterico que sofreu alteraccedilotildees fica pertencendo a quem as fez Ecircsse teu conselheiro injuriando-me perpetrou um crime puniacutevel Antes de ecircle acusar-me pelo microfone devia ter-me procurado para ouvir-meCom a ldquoCabocla de Caxangaacuterdquo deu-se o mesmo modifiquei-a e escrevi versos para elaA ldquofortunardquo que eu ganhei com o ldquoLuar do Sertatildeordquo e a ldquoCabocla de caxangaacuterdquo foi 50$000 por uma e 30$000 por outra vendidas em 1913 ao sr Fred Figner que as registrou na Biblioteca nacional em 1914Quando registrei na Escola Nacional de Muacutesica essa minha canccedilatildeo fi-lo como sempre declarei ldquo Composiccedilatildeo musical de minha autoria intitulada ldquoLuar do Sertatildeordquo gecircnero canccedilatildeo cuja muacutesica eacute uma estili-zaccedilatildeo do folclore brasileirordquoSou tatildeo pobre ou mais pobre do que tu Mas se quiseres comparti-lhar dessa ldquofortunardquo sem teres direito para isso eu te darei a quinta parte dela Com essa quinta parte poderaacutes pagar os honoraacuterios do teu ilustre ldquoadvogadordquo317
Como expressava Catullo a autoria de uma obra poderia ser decla-
rada se sob um material original um indiviacuteduo fizesse alteraccedilotildees Eacute a partir dessa premissa que mesmo reconhecendo que Joatildeo Pernambuco foi quem ensinou o motivo folcloacuterico Eacute de Humaitaacute Catullo chama a atenccedilatildeo para haver sido ele mesmo o estilizador daquilo que era reconhe-cido como Luar do sertatildeo Tambeacutem observava que vendera as duas can-ccedilotildees que Pernambuco por intermeacutedio do seu ldquoadvogadordquo reivindicava ndash Cabocla de Caxangaacute e Luar do sertatildeo ndash para Fred Figner e que este a registrou na Biblioteca Nacional o que lhe dava a propriedade da canccedilatildeo
Portanto o poeta observava a partir da constataccedilatildeo de que nada mais recebera por aquelas canccedilotildees que o caraacuteter autoral de uma obra nem sempre indicava a propriedade dela Registrar na Escola Nacional
317 Diaacuterio de Notiacutecias 29 abr 1945 p 2 e 5