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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 6º Encontro Nacional ABRI - Perspectivas sobre o poder em um mundo em redefinição 25 a 28 de julho de 2017 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG) Área Temática 7: Teoria das Relações Internacionais A RELAÇÃO AGENTE-ESTRUTURA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: PERSPECTIVAS SOBRE A MILITARIZAÇÃO NO “TERCEIRO MUNDO” Jonathan de Araujo de Assis 1 Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP) 1 Pesquisador do Grupo de Estados de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP), com bolsa CAPES/Pró-Defesa 3, sob orientação do Profº Drº Héctor Luis Saint-Pierre. E-mail: [email protected].

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS … · 2017-07-14 · ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 6º Encontro Nacional ABRI - Perspectivas sobre o poder

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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

6º Encontro Nacional ABRI - Perspectivas sobre o poder em um mundo em

redefinição

25 a 28 de julho de 2017

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG)

Área Temática 7: Teoria das Relações Internacionais

A RELAÇÃO AGENTE-ESTRUTURA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS:

PERSPECTIVAS SOBRE A MILITARIZAÇÃO NO “TERCEIRO MUNDO”

Jonathan de Araujo de Assis1

Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP)

1 Pesquisador do Grupo de Estados de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Mestrando em

Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP), com bolsa CAPES/Pró-Defesa 3, sob orientação do Profº Drº Héctor Luis Saint-Pierre. E-mail: [email protected].

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Resumo: Neste trabalho examinamos: 1) como diferentes correntes teóricas das Relações

Internacionais compreendem a prática de militarização dos Estados, particularmente os

pertencentes ao chamado “Terceiro Mundo”, e; 2) as implicações políticas derivadas da

adoção dessas práticas. Assumindo como principais características da militarização o

aumento nos gastos militares, a expansão das Forças Armadas e a importação e produção

de armamentos, buscamos compreender os fatores que motivam os Estados a

empreenderem esforços para o desenvolvimento de uma indústria de defesa. No quadro

teórico, a discussão fundamental orienta-se pela relação agente-estrutura – tendo em vista

que, como argumenta parte da bibliografia, toda teoria da disciplina assenta suas proposições

sobre essa relação, explicitamente ou não. Nossa análise não se restringe aos elementos

ontológicos das teorias, mas também se preocupa com os epistemológicos que embasam a

apreensão da realidade e sua relação com a dimensão política. Assumindo o ponto de vista

sugerido por Robert Cox, entendemos que toda teoria é formulada por alguém e para algum

propósito. Para fins do trabalho, foram adotadas como instrumentos de análise as correntes

teóricas do realismo estrutural, do marxismo e do construtivismo, por entendermos que tais

perspectivas fornecem importantes subsídios para a reflexão acerca dos fatores que levam

os países a buscarem o estabelecimento de uma indústria produtora de armamentos em nível

doméstico.

Palavras-chave: Realismo, Marxismo, Construtivismo

2

Introdução

O corpo teórico da disciplina de Relações Internacionais (RI) está estruturado por um

conjunto de perspectivas que se distinguem em termos ontológicos e epistemológicos,

fornecendo à disciplina um conjunto diverso de princípios e categorias analíticas2. Entretanto,

a despeito dessa pluralidade, assume-se como elemento comum a toda teoria de RI uma

proposta de solução – explícita ou não – do problema agente-estrutura, que, em virtude de

sua natureza ontológica sobre a realidade, acarreta em implicações políticas (WIGHT, 2006).

Dessa forma, adotando-se o pressuposto defendido por Cox (1986) de que toda teoria é

sempre para alguém e para a algum propósito, o presente texto preocupa-se não apenas com

a característica ontológica das teorias, mas também com o vínculo que possuem com a

dimensão política.

Frente a essas questões, Cox (1986) argumenta que a teoria pode atender a dois

propósitos distintos: o de guia para buscar uma resposta às questões postas pela perspectiva

que motivou o processo teórico; ou o de inserir o processo de teorização em um quadro mais

amplo de diferentes esforços para buscar respostas a partir de distintos pontos de vista

teóricos. O segundo propósito embasa a perspectiva crítica defendida pelo autor, ao passo

que o primeiro propósito sustenta teorias do tipo de solução de problemas (problem-solving),

as quais entendem as relações sociais e de poder, bem como as instituições que as

conformam, como elementos definidos da realidade.

Atinente ao primeiro propósito, e em discordância com o entendimento de Aron (2002)

sobre as formulações teóricas da disciplina3, Waltz (1979) incorpora elementos das teorias

econômicas à sua formulação teórica sobre as relações internacionais. Nesse sentido,

entende que as teorias são construídas pela abstração da realidade, isto é, deixam de lado

parte do que vemos e conhecemos. Dessa forma, o papel da teoria é explicar as regularidades

de comportamento, levando-nos a esperar que os resultados derivados da interação das

unidades se enquadrem em âmbitos específicos (MEARSHEIMER, 2001; WALTZ, 1979).

De maneira geral, em contrapartida à essa concepção sobre as possibilidades

instrumentais da teoria, a abordagem marxista assume uma postura de não pretensão de

neutralidade, isto é, problematiza a universalização e a “ahistoricidade” presentes nas

tradições realistas das RI. Dessa forma, os elementos fornecidos pela perspectiva marxista,

2 A despeito dessa pluralidade, é preciso apontar o número limitado de teorias não-ocidentais no campo

das Relações Internacionais. Como indicam Acharya e Buzan (2010), o corpo teórico da disciplina não corresponde à distribuição global de seus objetos de discussão, tendo em vista o predomínio das visões ocidentais. Segundo os autores, essa disparidade manifesta-se tanto por conta da inspiração de grande parte das teorias na filosofia ocidental, quanto pelo enfoque eurocêntrico da história mundial.

3 Para Raymond Aron, não é possível fundar uma teoria geral das relações internacionais em moldes similares às teorias econômicas, tendo em vista que apenas uma sociologia histórica estaria habilitada a compreender os complexos elementos que caracterizam a vida internacional.

3

ao aprofundar a análise sobre os fatores de fundo que influenciam o desenvolvimento das

relações sociais, enriquecem as análises a respeito da ascensão e declínio de hegemonias,

bem como sobre o próprio sistema internacional. Dessa forma, a dimensão histórica compõe

parte fundamental dessa abordagem, que, além de resgatar elementos do passado,

desenvolve-se sobre uma perspectiva do processo histórico contínuo. Nesse quadro, insere-

se a teoria do sistema-mundo, a qual tem em Immanuel Wallerstein um importante expoente,

para quem a teoria não representa apenas um avanço na epistemologia interpretativa do

mundo, mas também uma força de mudança social (MARTINS, 2015).

Assumindo um ponto de vista semelhante em relação à epistemologia interpretativista,

a corrente construtivista das RI contesta a epistemologia objetivista adotada pelas teorias

mais tradicionais da disciplina. De acordo com a abordagem construtivista, a realidade social

existe enquanto produto da ação e da cognição humana. Dessa forma, entende-se que o

mundo das relações internacionais não é fixo como o mundo natural, portanto, apenas as

regras intersubjetivas, criadas e reproduzidas pelas práticas humanas, é que dão sentido às

práticas internacionais, e não um conjunto de elementos permanentes deduzidos da anarquia

internacional (GUZZINI, 2013). O construtivismo não nega a existência de uma realidade

externa ao pensamento. No entanto, contesta a ideia de que esses fenômenos possam ser

observados sem o recurso à linguagem, ou seja, em termos ontológicos, o construtivismo é

uma perspectiva sobre a construção da realidade social. Como aponta Guzzini (2013), do

ponto de vista construtivista, objetos e eventos socialmente significativos são resultados de

uma construção interpretativista do mundo.

Frente aos debates teóricos expostos, o presente texto busca examinar como cada

uma das mencionadas correntes teóricas compreende a prática de militarização adotada

pelos Estados no âmbito internacional, particularmente daqueles países inseridos no quadro

do chamado “Terceiro Mundo”4. Para tanto, são examinados conjuntos analíticos específicos

sobre a prática de militarização embasados sobre os pressupostos das supramencionadas

correntes teóricas.

A partir da perspectiva de Ross (1987), entende-se que existem dois tipos de

militarização: o primeiro diz respeito ao emprego excessivo da violência; enquanto o segundo

tipo possui como principais características o aumento nos gastos militares, no tamanho das

Forças Armadas e nas importações e produção de armamentos. De acordo com o autor, o

segundo tipo de militarização prevalece no caso dos países do “Terceiro Mundo”. Como

veremos a seguir, parte da literatura entende que a militarização consiste em uma resposta

4 Tomando como base as reflexões desenvolvidas por Escobar (1995), entende-se que o termo

“Terceiro Mundo” consiste em um elemento que compõe o discurso do conhecimento sobre o desenvolvimento, o qual, em sua relação com a dimensão política, manifesta uma forma de controle e subjugação. Dessa forma, neste trabalho o termo é grafado com aspas a fim de problematizar os limites do termo enquanto conceito definidor da circunstância de subdesenvolvimento.

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racional à insegurança da configuração anárquica do sistema internacional. No entanto, esse

tipo de abordagem tende a assumir a existência de apenas um mecanismo viável de

militarização, sendo a militarização entendida como um processo pelo qual as capacidades

militares são introduzidas e/ou aprimoradas em um domínio social (KINSELLA, 2013).

Com base nos quadros propostos por Buzan (1991), Kinsella (1998) e Krause (1992),

as perspectivas que discutem e buscam compreender esse fenômeno, particularmente em

países do chamado “Terceiro Mundo”, podem ser alocadas em três categorias diferentes,

assim denominadas: dinâmica regional de segurança, fatores domésticos e ordem militar

global.

O dilema de segurança e a corrida armamentista

Em sua obra Theory of International Politics, Kenneth Waltz segmenta as teorias das

RI em duas categorias, de acordo com a forma como organizam seus materiais: as

reducionistas e as sistêmicas. Para Waltz (1979), a estrutura de um sistema age como força

constrangedora e disciplinadora das ações dos atores, e, por conta disso, as teorias

sistêmicas explicam e predizem continuidades dentro de um sistema, o que demanda

abstrações da realidade. Nesse sentido, o autor argumenta em favor de uma abordagem

sistêmica que, embora reconheça sua importância, abstrai as características e as interações

das unidades. A omissão desses elementos se justifica pela necessidade de distinção entre

as variáveis no nível das unidades e as variáveis no nível do sistema.

Para a construção de sua abordagem estrutural sobre as relações internacionais,

Waltz reflete sobre os elementos componentes das teorias econômicas, particularmente as

teorias de mercado e de firmas. Em sua concepção, a teoria microeconômica fornece

subsídios para explicar o porquê da expectativa de certos efeitos e comportamentos,

particularmente pelo enfoque sobre as relações de causalidade do tipo “se”/“então” entre as

variáveis. Nesse quadro, a estrutura é compreendida como fator que designa um conjunto de

condições que exercem constrangimentos sobre o comportamento dos agentes. De acordo

com Wight (2006), essa abordagem sobre a estrutura é tipicamente associada à tradição

morfológica do fato social de Durkheim, a qual é entendida a partir das relações entre fatos

sociais por meio de padrões regulares law-like.

Dessa forma, a estrutura das relações internacionais é compreendida em termos

similares a uma economia de mercado, sobretudo pelo argumento de que o sistema

internacional se caracteriza pela autoajuda sob o princípio ordenador da anarquia. Ou seja,

diferentemente da dimensão política interna, que é ordenada em relações centralizadas e

hierárquicas, o sistema político internacional é descentralizado e anárquico, não existindo

relações de hierarquia entre as partes do sistema político internacional. Em virtude da

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ausência de agentes com autoridade sistêmica global, relações formais de superioridade e

subordinação não se estabeleceriam na dimensão internacional.

Portanto, enquanto as unidades de um sistema político doméstico têm na entidade

estatal o elemento garantidor de segurança, as unidades que compõem o sistema político

internacional, marcado pela anarquia, agem de acordo com o princípio da autoajuda. Dessa

forma, a partir de um enfoque sobre as continuidades, compreende-se que, enquanto a

estrutura da política internacional permanecer anárquica, um Estado não pode ter a garantia

de que um amigo não possa se tornar um inimigo (WALTZ, 2000). Pelo componente de

autoajuda que caracteriza o contexto anárquico internacional, o enfoque do realismo estrutural

recai sobre as grandes potências. Isto é,

Em relações internacionais, como em qualquer sistema baseado no interesse próprio, as unidades de maior capacidade estabelecem o cenário da ação para os outros, assim como para si mesmos. Em teoria sistêmica, estrutura é uma noção generativa; e a estrutura de um sistema é gerada pelas interações das suas principais partes. As teorias que se aplicam aos sistemas de auto-ajuda são escritas em termos das principais partes dos sistemas [...] A preocupação com as relações internacionais como um sistema requer uma concentração nos Estados que fazem a maior diferença. Uma teoria geral de relações internacionais é necessariamente baseada nas grandes potências (WALTZ, 1979, p. 72-73 [tradução nossa])5.

As grandes potências são definidas em termos de suas capacidades militares relativas,

portanto, para se qualificar como uma grande potência, um Estado deve possuir recursos

militares convencionais suficientes para se equiparar ao Estado mais poderoso do sistema

(MEARSHEIMER, 2001). No quadro do realismo de Waltz, a estrutura incentiva os agentes à

manterem a balança de poder existente, isto é, o status quo. Dessa forma, a preservação do

poder, e não seu incremento, é o objetivo principal dos Estados, tendo como objetivo maior a

preservação de sua posição no sistema. Por outro lado, a perspectiva do realismo ofensivo

de Mearsheimer compreende que a estrutura fornece incentivos para que os Estados

busquem oportunidades de obter maior poder.

Sob esse prisma, compreende-se que, como aponta Kinsella (1998), o envolvimento

recente ou recorrente, bem como potencial, em conflitos militares é o incentivo mais óbvio

para a obtenção de armamentos. Em relação ao desenvolvimento de capacidades para a

produção doméstica de armamentos, o quadro de uma acentuada disputa militar, seja real ou

potencial, emerge como principal fator motivador, tendo em vista os custos políticos

envolvidos na dependência de outros países para armar seus exércitos. Nesse sentido, os

5 “In international politics, as in any self-help system, the units of greatest capability set the scene of

action for others as well for themselves. In systems theory, structure is a generative notion; and the structure of a system is generated by the interactions of its principal parts. Theories that apply to self-help systems are written in terms of the systems’ principal parts [...] Concern with international politics as a system requires concentration on the states that make the most difference. A general theory of international politics is necessarily based on the great powers” (WALTZ, 1979, p. 72-73).

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esforços empreendidos para o desenvolvimento de capacidades para a produção doméstica

de armamentos são compreendidos no sentido de busca por autonomia tecnológica (AYOOB,

1991; BRZOSKA, 1989; MENESES, 1982).

Em mesma medida, a partir das considerações realistas a respeito do dilema de

segurança e da busca pela hegemonia, parte da literatura acerca da militarização pauta-se

sobre a ideia de corrida armamentista. O modelo sobre a corrida armamentista assenta-se

sobre diversos pressupostos, tais como o instrumento de aumento do poder nacional

representado pelas aquisições militares e a natureza racional do Estado. No quadro dessa

perspectiva, o elemento competitivo fundador da rivalidade militar constitui a causa primária

da corrida armamentista. Segundo Huntington (1958 apud MENESES, 1982), o princípio de

uma corrida armamentista baseia-se sobre a tentativa de um Estado em alterar, por meio do

aumento de aquisição de armamentos, um equilíbrio previamente existente.

Dessa forma, considerando como princípio ordenador das relações internacionais a

anarquia, sob a qual as relações se caracterizam pela opacidade e incerteza a respeito das

intenções dos demais atores, o processo de modernização militar de um país pode ser

percebido por seus pares como uma acumulação progressiva de armamentos, o que poderia

resultar em uma corrida armamentista, tendo em vista o mecanismo da balança de poder.

Portanto, segundo Meneses (1982), a acumulação de armamentos reflete a existência de um

conflito – potencial ou real – entre Estados que, indispostos a fazer concessões, têm no uso

da força uma alternativa factível para a resolução desse conflito.

Nesse sentido, entende-se que as abordagens assentadas sobre a perspectiva da

corrida armamentista estão estreitamente associadas ao ponto de vista teórico assumido pelo

realismo estrutural de que é possível formular modelos explicativos – law-like – sobre os

fatores que motivam a militarização. Entretanto, questiona-se o entendimento dessas práticas

como fator implícito à própria existência dos Estados, isto é, a busca pela maximização de

recursos é entendida como algo inevitável e “natural”.

A divisão internacional do trabalho e a militarização dependente

A análise marxista, de tipo estrutural, busca explicar as relações internacionais a partir

das relações sociais e formas de produção, que determinam as características fundamentais

do sistema internacional. Ainda que não tenha trabalhado especificamente sobre o conceito

de nação, as reflexões mais amplas presentes nos trabalhos de Marx fornecem instrumental

importante para as RI. Frente a esse quadro analítico, uma das preocupações da perspectiva

marxista diz respeito à forma como as relações de dominação são ocultadas pelo pressuposto

de igualdade formal entre os Estados. Portanto, o emprego do método marxista implica no

esforço de tensionamento dos conceitos assumidos como centrais pelas abordagens teóricas

tradicionais das RI, tais como anarquia e soberania.

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De acordo com Rosenberg (1994), a soberania deve ser entendida historicamente

como uma forma de poder político peculiar ao capitalismo, o qual, em virtude das

transformações implementadas nas relações sociais, fornece quadro institucional para o

empreendimento das relações estratégicas que promovem sua própria manutenção. Nesse

sentido, ao associar a soberania estatal à dinâmica de reprodução do capitalismo, lança-se

luz sobre os processos históricos que sustentaram a origem e o desenvolvimento do Estado

moderno. Nesse sentido, a fim de formular um melhor entendimento a respeito do conceito de

soberania, afasta-se do pressuposto de que esta compõe uma realidade auto evidente, para

que seja refletida como uma configuração de ordem política de contingência histórica,

sobretudo pela relação que guarda com as dinâmicas que definem a sociedade capitalista.

Enquanto a redefinição da soberania possibilitou pensar a emergência do sistema

internacional associada aos processos mais amplos de transformação social, a releitura sobre

o conceito de anarquia traz implicações para a dimensão teórica. Segundo Rosenberg (1994),

a principal conclusão derivada desse debate é que, o conceito de anarquia, comumente

postulado como objeto exclusivo e definidor da disciplina de RI, também é objeto de

preocupação da perspectiva moderna social. Nesse sentido, busca-se enquadrar

historicamente o conceito de anarquia a partir do processo de acumulação primitiva, que, para

Marx, é o que ajuda a explicar como os indivíduos foram expropriados de seus meios de

produção com a emergência da sociedade capitalista. A construção do Estado é parte

importante no processo de acumulação primitiva, tendo em vista seu papel de pacificar as

relações domésticas e tornar impessoais os mecanismos de obtenção do excedente.

No quadro internacional, esta questão pode ser contemplada pelo enfoque sobre os

processos de mudança derivados da construção de grandes impérios coloniais ao longo da

história, bem como pelas transformações associadas ao processo de industrialização do

século XIX. Nesse quadro, destacam-se processos de transformação na ordem social e

econômica em países que estiveram sob influência europeia. Nesse sentido, questiona-se em

que medida os processos de independência política deixam o caráter formal para

transformarem-se em independência efetiva. No âmbito do sistema capitalista internacional,

observa-se a emergência do corolário geopolítico do capitalismo, que se caracteriza pela

independência soberana baseada na dependência mediada pelas coisas (ROSENBERG,

1994).

Assentados sobre o conceito de divisão internacional do trabalho, o padrão de troca

estabelecido é classificado pelos teóricos do sistema-mundo como desigual, o que alimenta

uma relação de dependência entre os países periféricos e centrais. Nesse sentido, a tese

fundamental do sistema-mundo é a de que uma única economia mundial capitalista está se

desenvolvendo desde o século XVI, e ela tem orientado a força da mudança social moderna

(HOPKNIS; WALLERSTEIN et al, 1982). Na perspectiva do sistema-mundo, a relação entre

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centro e periferia é fundamental, tendo em vista que designa a divisão de trabalho que define

e vincula a economia social mundial. Por definição, o centro e a periferia apenas se formam

e se desenvolvem em relação um ao outro (HOPKINS; WALLERSTEIN et al, 1982).

Do ponto de vista marxista, a estrutura social diz respeito às relações sociais entre

classes, definidas em termos de suas posições na relação de produção em uma sociedade.

Como indica Wight (2006), tais relações de produção constituem a própria identidade dos

agentes, levando a adoção de práticas em função das classes. A partir dessa perspectiva,

infere-se que as relações de produção constituem as identidades, os interesses, e, por

conseguinte, as práticas dos agentes. Ainda, a consideração das esferas econômica, política

e sociocultural como dimensões intrinsicamente conectadas, bem como a centralidade

concedida ao desenvolvimento da economia mundo capitalista, fornecem subsídios

importantes para a reflexão sobre a militarização, sobretudo dos países periféricos.

Em sua obra Arms and the State, Keith Krause reflete acerca dos condicionantes

históricos e econômicos da transferência e produção de armamentos, tendo como

preocupação central os fatores estruturais que explicam tais fenômenos. Nesse quadro, os

Estados que compõem o sistema de transferência de armamentos são classificados em

“camadas” de acordo com suas características de produção de armamentos: a primeira

camada, formada por países capazes de inovar e avançar a fronteira tecnológica; a segunda

camada, composta por países que podem produzir uma relativa variedade de produtos

próximos à fronteira tecnológica, mas, por conta de limitações de capacidades, raramente

inovam; e a terceira camada, formada por países que têm sua produção limitada à reprodução

dos armamentos (KRAUSE, 1992). A conformação desse quadro estrutural deriva dos

processos históricos vinculados ao próprio desenvolvimento do sistema capitalista,

particularmente sobre os processos de inovação tecnológica e de industrialização.

Dessa forma, assume-se o período da Revolução Industrial como marco histórico

essencial para a compreensão do atual sistema de transferência de armamentos e,

consequentemente, dos determinantes que sustentam tal sistema. Ainda que não tenha

marcado o início do processo de produção e inovação em matéria militar, o período da

Revolução Industrial se caracterizou pelo grande número de inovações tecnológicas e a

emergência em larga escala das empresas privadas produtoras de armamentos, marcando

uma correlação fundamental entre as capacidades comerciais e industriais com o poder

político e militar (EARLE, 1986).

Dessa forma, entende-se que a capacidade industrial e tecnológica de um Estado

incide diretamente sobre sua capacidade de produção de armamentos em nível doméstico,

sendo a opção pela transferência de armamentos um produto da inabilidade para a produção

doméstica autônoma por um país. Portanto, ao compreender a transferência de armamentos

como alternativa à produção, é possível inferir que, mais que a troca de produtos, trata-se

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também de um veículo para a transmissão e difusão de tecnologia militar (KRAUSE, 1992).

Tal consideração a respeito da transferência de armamentos aproxima-se dos debates

presentes na teoria do sistema-mundo sobre os padrões de relação centro-periferia, que

caracteriza os países centrais como difusores de tecnologias.

Em relação à militarização dos países não centrais, o arcabouço analítico proposto por

Keith Krause também fornece subsídios importantes. No escopo da tipologia proposta pelo

autor, entende-se que parte destes países estão agrupados na terceira camada, isto é,

aqueles países que possuem capacidade limitada à reprodução dos armamentos. Um dos

fatores que frequentemente é levantado para explicar a motivação inicial para o

desenvolvimento de uma indústria de armamentos em países da terceira camada é a busca

pela redução da dependência estrangeira, a fim de reduzir as incertezas referentes à

importação de armas (KRAUSE, 1992). Entretanto, considerando o quadro teórico proposto

pela corrente marxista, particularmente o sistema-mundo, questiona-se em que medida a

transferência de tecnologias pode representar a dissolução da condição de dependência, uma

vez que é muito improvável que essa transferência seja de conhecimento próximo à fronteira

tecnológica. Tal assertiva baseia-se sobre a consideração acerca dos objetivos econômicos

que motivam os países centrais a cederem tecnologias aos países da periferia, isto é, as

empresas estrangeiras produtoras de armamentos visam ganhos econômicos por meio do

acesso a novos mercados (BRIGAGÃO, 1984).

Ademais, cabe destacar os importantes instrumentos que a corrente marxista fornece

para a compreensão da dinâmica interna aos Estados, que, assim como no sistema

interestatal, refletem padrões de organização social do trabalho. Nesse quadro, entende-se

que as decisões a respeito da aquisição e da produção doméstica de armamentos em países

periféricos são tomadas por uma elite particular que, em muitos casos, mantém uma lógica

similar àquela das elites dos países centrais. Ao observar os processos recentes de aquisição

de produtos de defesa no Brasil, Dagnino (2010) identificou o papel exercido por uma rede de

atores públicos e privados – como militares e empresários – sobre as decisões em torno de

políticas para o fomento da indústria de defesa brasileira. De acordo com o autor, essa “Rede

de Revitalização” tem atuado sob o argumento de que as escolhas políticas frente ao campo

da indústria de defesa são irracionais, uma vez que não consideram as perdas de

oportunidade de desenvolvimento tecnológico e de segurança do país.

Em contraponto à perspectiva realista, a leitura da corrente marxista sobre a

militarização não pressupõe que esse tipo de prática seja adotada pelos atores estatais de

maneira “naturalizada”. Ao contrário, abordagens marxistas sobre a militarização inserem

essas dinâmicas enquanto reflexo do modo de produção sob o qual esses atores estão

associados. Ainda, a análise coordenada das esferas política e econômica, que sustenta a

perspectiva sobre as dimensões política pública e privada, fornece insumos importantes para

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fundamentar uma análise sobre as práticas de militarização em países do “Terceiro Mundo”.

Como discutido anteriormente, um elemento presente na abordagem marxista é o processo

de esvaziamento das atribuições políticas do Estado em benefício da esfera política privada,

o que favoreceria a própria reprodução do sistema capitalista.

Nesse quadro, faz-se referência ao padrão de relações baseadas sobre a coordenação

entre redes políticas e de produção que vinculam o centro e a periferia na produção e

reprodução do sistema-mundo capitalista. Essa concepção sobre a dinâmica das relações

entre os Estados aproxima-se dos debates inerentes ao conceito de império informal,

entendido como “[...] estruturas de autoridade política transnacional que combinam um

princípio igualitário de soberania de jure com um princípio de controle de facto” (WENDT;

FRIEDHEIM, 1995, p. 685).

A construção social da realidade e a o valor simbólico dos armamentos

Como apresentado na seção introdutória deste trabalho, a concepção ontológica social

fundamenta-se sobre o duplo truísmo de que as práticas dos agentes reproduzem ou

transformam a sociedade, enquanto que a sociedade é composta por relações sociais que

tornam possíveis e estruturam a interação entre os atores. Nesse quadro, em negação à

abordagem racionalista, o construtivismo entende que essas estruturas, além de regular o

comportamento dos atores, forjam suas identidades e interesses.

Há, portanto, uma preocupação com a formação das subjetividades sem assumir a

primazia das estruturas sociais. De acordo com Wendt (1989), a constituição diz respeito a

um processo de tornar uma prática possível pela fundamentação das propriedades ou

condições necessárias para sua existência. Assim, tal abordagem mostra-se relevante para

compreender o processo pelo qual um ator estatal se torna disposto a adotar práticas de

militarização, tendo em vista que tal elemento é parte do que ser um “ator estatal” representa.

Entretanto, a disposição estabelecida por meio do processo de constituição não é elemento

suficiente para levar à adoção de práticas específicas por parte dos Estados.

Dessa forma, faz-se necessário considerar o processo de “determinação”, que, em

conjunto da constituição, auxilia a compreensão do porquê os atores adotam determinadas

práticas. Nesse sentido, a “determinação” faz referência a um processo de tornar algo efetivo

pela criação das propriedades ou condições que são aspectos suficientes, apesar de

contingentes, de sua existência. Nesse quadro, o processo pelo qual o ator estatal moderno

passa a buscar a militarização é um processo de determinação, tendo em vista que o desejo

pela militarização não é uma característica essencial de sua existência (WENDT, 1989). Em

relação ao quadro teórico do realismo estrutural, a perspectiva construtivista fornece subsídios

analíticos relevantes para a desnaturalização da prática de militarização por parte dos

Estados.

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Nesse sentido, enquanto a identidade faz referência ao conhecimento que o ator

guarda sobre si mesmo, os interesses refletem os desejos desse ator, designando, portanto,

motivações que ajudam a compreender seu comportamento. Infere-se que há uma relação

estreita entre as identidades e os interesses dos atores, o que nos leva à hipótese de que os

interesses dos atores só podem ser definidos a partir do entendimento que tem sobre si

mesmo, isto é, sua identidade. Como indica Wendt (1999), sem interesses as identidades não

possuem força motivacional, ao passo que, sem identidades, os interesses não têm

orientação. Esse tipo de reflexão proporcionada pela abordagem construtivista torna-se

fundamental para examinar a militarização dos Estados, na medida em que se busca examinar

os fatores que incidem sobre a opção desses agentes por tais práticas.

Para melhor compreender essa questão, dois princípios extensivamente abordados

pelas perspectivas teóricas tradicionais da disciplina devem ser retomados: a soberania e a

anarquia. Ao contrário do que assume a perspectiva realista estrutural, a corrente

construtivista propõe-se a refletir sobre a soberania enquanto princípio constitutivo dos atores

estatais, e não como atributo inerente à sua natureza. Nesse quadro, considera-se que a

constituição dos Estados como atores soberanos pressupõe o reconhecimento formal da

independência desses sujeitos, que, no âmbito das relações internacionais, manifesta-se por

meio da diferenciação territorial entre os atores. Portanto, o reconhecimento das fronteiras

territoriais torna-se essencial para a constituição do modo de subjetividade como a do sistema

moderno de Estados (WENDT, 1989). Dessa forma, frente às questões apresentadas,

entende-se que as práticas realizadas pelos atores estatais no sistema moderno de Estados

não apenas pressupõem como também fundamentam o reconhecimento dessas fronteiras.

Nesse sentido, o princípio da anarquia não apenas deriva desse entendimento

constitutivo, mas também o reproduz na medida em que reforça a percepção de relações

descentralizadas entre os atores estatais. O princípio de soberania produz e reproduz os

sujeitos que têm sua capacidade e disposição à prática de militarização reconhecidos

socialmente (WENDT, 1999). Nesse sentido, entende-se que é por meio dessa produção, e

reprodução, dos sujeitos que o princípio de soberania estrutura os padrões contemporâneos

de militarização global. Em suma, o princípio de soberania constitui os atores estatais como

sujeitos responsáveis pela manutenção da ordem no âmbito doméstico, bem como pela

acumulação e emprego legítimo dos meios organizados de violência.

Nesse quadro, os poderes sociais atribuídos ao significado de “ator estatal” pelas

estruturas constitutivas da vida social pressupõem a militarização como aspecto fundamental

desse ator (WENDT, 1989). Assim, a prática de militarização é compreendida no contexto da

constituição mútua entre agentes e estruturas sociais, afastando-se, portanto, das

concepções sobre o Estado que assumem tal característica como elemento ontologicamente

natural. Nesse sentido, afirma-se que a manutenção de Forças Armadas modernas e bem

12

equipadas é, em parte, produto da crença de que representam o emblema do Estado moderno

(KINSELLA, 2013).

A esse respeito, perspectivas sobre a militarização inspiradas pelas reflexões da

corrente construtivista apontam o atributo simbólico que influenciam a aquisição de

armamentos, particularmente refletindo as percepções dos atores estatais, ou líderes

políticos, a respeito do que constitui um Estado moderno. Dessa forma, tanto as organizações

militares quanto os armamentos “[...] podem ser imaginadas como servindo funções similares

àquelas das bandeiras, linhas aéreas e equipes olímpicas: são parte do que os Estados

modernos creem ser preciso possuir para ser um Estado moderno legítimo” (SAGAN, 1996,

p. 74).

Nesse sentido, tendo em vista a centralidade dos fatores de soberania e

independência como constituintes do ator estatal e os valores de modernidade e autonomia

atribuídos aos armamentos de alta intensidade tecnológica, entende-se que alguns

armamentos são percebidos como altamente institucionalizados à estrutura social da ordem

militar global. Portanto, segundo Eyre e Suchman (1997), além de variarem em termos de

capacidade tecnológica, os armamentos variam em termos de integração institucional ou

“peso simbólico”. Tais considerações tornam-se importantes para subsidiar reflexões acerca

do tipo de militarização empregado pelos Estados (WENDT; BARNETT, 1993).

As típicas Forças Armadas modernas derivam do tipo de militarização de capital-

intensivo, as quais associam suas capacidades a sistemas de armas sofisticados em termos

tecnológicos. A criação e manutenção desse tipo de aparato militar requer gastos substantivos

e um certo nível de organização, tendo em vista a necessidade de manutenção dos

equipamentos e do treinamento constante dos operadores desses sistemas. A difusão desse

modelo leva a similaridades entre a militarização dos países do “Terceiro Mundo” e das

potências ocidentais. Entretanto, tendo em vista os custos de aquisição, produção e

manutenção de sistemas de armas de alta intensidade tecnológica, bem como a recorrente

necessidade de importação de componentes tecnologicamente sensíveis, a militarização dos

países do “Terceiro Mundo” tende a se desenvolver sob um quadro de dependência (WENDT;

BARNETT, 1993).

Portanto, frente ao exposto, vincula-se a ordem militar global a dois aspectos da

sociedade internacional: a emergência de um isomorfismo nas estruturas das forças militares

e em suas doutrinas; e a relação de dependência entre países do centro e da periferia. A partir

dessa perspectiva, entende-se que a transferência de armamentos representa um mecanismo

para o desenvolvimento e manutenção desses elementos estruturais (KINSELLA, 2013). Para

a compreensão da dimensão do isomorfismo, ressalta-se que a importação desse tipo de

armamento implica na difusão da forma pela qual esses armamentos são compreendidos e

operacionalizados pelos países exportadores. Ainda, dada a crescente complexidade e

13

sofisticação tecnológica dos sistemas de armas6, as atividades técnicas específicas para sua

manutenção são cada vez mais necessárias.

Em mesma medida, a produção doméstica dos armamentos tem potencial de

influenciar as percepções dos atores e organizações que compõem o Estado. Tendo em vista

a dependência para obter subsistemas e componentes visando a produção de sistemas de

armas, bem como as produções realizadas sob licença de países industrialmente avançados,

a ordem militar global não afeta apenas a organização militar, mas também a organização

industrial de defesa. A criação de sucursais – militares e industriais – de potências ocidentais

em países do chamado “Terceiro Mundo”, implicando em ideias coletivas sobre sistemas de

armas e organização militar adequada, produzem critérios sobre o que constitui o poder militar

(KALDOR, 1986).

Considerações finais

A partir das questões expostas, derivam-se dois conjuntos de reflexões. O primeiro diz

respeito à forma como a questão agente-estrutura é compreendida por cada uma das teorias

abordadas, bem como as implicações dessas perspectivas para as leituras sobre a

militarização. Em segundo lugar, considera-se algumas limitações de tais perspectivas para a

análise dos fatores que implicam sobre a militarização. Por fim, como um esforço para

convergir elementos das diferentes abordagens, reflete-se sobre a potencialidade de

complementaridade entre os argumentos centrais que embasam cada uma das perspectivas

para melhor compreensão sobre a prática de militarização, particularmente no contexto dos

países do “Terceiro Mundo”.

Nesse sentido, entende-se que a abordagem do realismo estrutural está estreitamente

vinculada à uma tradição que busca explicar a realidade social por meio de padrões regulares

que exerçam o papel de leis gerais. Tal fundamento sustenta análises que examinam relações

de causalidade entre as estruturas e os agentes, ou seja, fatores externos que expliquem o

comportamento das unidades em termos de “se/logo”. Dessa forma, a militarização dos países

do “Terceiro Mundo” é reduzida à incidência de elementos estruturais autônomos que

explicam o comportamento dos Estados, o que, no quadro da teoria realista estrutural,

manifesta-se a partir dos conceitos de anarquia e soberania.

A partir de uma leitura marxista sobre a realidade social, assume-se que a estrutura

social faz referência às relações sociais entre classes, definidas de acordo com a posição que

ocupam na relação de produção em uma sociedade. Sob esse prisma, a identidade dos

agentes e, por conseguinte, seus interesses são fatores constituídos pelas relações de

6 De acordo com Kaldor (1986), a competição por contratos entre empresas produtoras de armamentos

motiva grandes esforços para atingir inovações tecnológicas – o que, como discutido por Kaldor, nem sempre representa um avanço funcional do armamento.

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produção. Sob esse quadro, as práticas de militarização são compreendidas no contexto da

dinâmica de produção, o que sustenta perspectivas sobre a militarização dependente. Como

discutido, a luz lançada pela corrente marxista sobre o processo de desenvolvimento do

sistema capitalista fornece subsídios fundamentais para compreender o contexto da relação

entre os Estados, particularmente sobre os fluxos de transferência de armamentos e

tecnologia entre centro e periferia.

Na perspectiva construtivista, a concepção ontológica fundamental baseia-se sobre o

entendimento de que as práticas da agência reproduzem ou transformam a estrutura social,

ao passo que a estrutura social estrutura a interação entre os agentes. Nesse quadro, a

solução adotada para o problema agente-estrutura, particularmente sobre a perspectiva

wendtiana, foi a de uma abordagem estruturacionista. Sob esse prisma, assume-se que as

propriedades dos agentes são constituídas e determinadas pelas estruturas sociais, enquanto

que as propriedades dessas estruturas são constituídas e determinadas pelas práticas dos

agentes. Dessa forma, infere-se que, em contrapartida ao realismo estrutural, a perspectiva

estruturacionista preocupa-se com a construção das subjetividades sem, entretanto, afirmar

a primazia das estruturas sociais.

Como discutido, tal consideração acerca do problema agente-estrutura fundamenta

análises sobre a militarização pautadas na questão da constituição dos Estados enquanto

atores sociais e a influência da estrutura social – compreendida na literatura como “ordem

militar global” – sobre suas práticas, bem como a forma que estas reproduzem estruturas

sociais específicas. Nesse sentido, os subsídios fornecidos por essa abordagem suscitam à

desnaturalização da prática de militarização dos Estados, sobretudo do tipo de capital-

intensivo, fornecendo reflexões importantes para a análise do “Terceiro Mundo”. Isto é, ao

negligenciar as distinções entre os tipos de militarização, assume-se que os exércitos de

capital-intensivo são inerentemente superiores de um ponto de vista militar, o que levaria,

naturalmente, à escolha desse tipo de militarização por parte dos países do “Terceiro Mundo”.

Entretanto, faz-se necessário refletir sobre as limitações analíticas e as implicações

políticas desses instrumentos para a análise dos fatores que influenciam a adoção de práticas

de militarização de capital-intensivo por parte dos Estados do “Terceiro Mundo”. Como

discutido, o modelo de ação-reação, ao assumir que a adoção dessas práticas se motiva pela

busca de segurança por parte de Estados soberanos que se organizam em um sistema

internacional anárquico baseado na autoajuda, naturaliza os processos de militarização. Por

consequência, ao desconsiderar os elementos específicos do tipo de militarização, tal

abordagem perde de vista não apenas os fatores que motivam a adoção dessas práticas, mas

também as desigualdades em termos de capacidades tecnológicas que fomentam relações

de dependência.

15

A abordagem sobre os fatores domésticos da militarização, apesar de reconhecer os

elementos constrangedores no âmbito econômico, fundamenta a análise sobre o pressuposto

de um tipo particular de militarização. Isto é, ainda que tal perspectiva forneça subsídios

importantes para a compreensão dos fatores que alimentam um quadro de reprodução das

relações de dependência, assume de maneira tácita a inevitabilidade do modelo de

militarização de capital-intensivo. A implicação política dessa abordagem deriva de sua

insuficiência em apontar um sentido alternativo à militarização de capital-intensivo, sob o qual

as relações de dependência são produzidas e reproduzidas.

Especificamente acerca da vertente teórica sobre a ordem militar global, cabe apontar

as restrições atreladas à perspectiva adotada por Wendt a respeito do Estado. Do ponto de

vista do autor, o Estado não se limita à agência, mas também exerce papel como estrutura

social. Tal assertiva sustenta a consideração de que os Estados podem ser compreendidos

como atores unitários, isto é, apresentam interesses e identidades sobre o “Eu” que

representam. Esses fatores derivariam dos mecanismos exercidos pela estrutura social

estatal sobre os agentes que o compõem. Partindo dessa questão, cabe contestar os

pressupostos da teoria que assumem o isomorfismo das organizações militares. Os debates

teóricos apontam para uma tendência de homogeneização no tipo de militarização adotado

pelos países. Contudo, uma perspectiva dessa natureza mostra-se insuficiente para discutir

as disputas internas às organizações militares7.

Por fim, entende-se que as correntes teóricas marxistas – sobretudo a do sistema-

mundo – e construtivista apresentam fundamentos que, em conjunção, qualificam os

instrumentos aplicáveis à análise da militarização nos países do “Terceiro Mundo”.

Particularmente a respeito da concepção de militarização dependente, argumenta-se que os

fundamentos teóricos do sistema-mundo fornecem subsídios importantes para analisar os

padrões das relações entre os países do centro e da periferia, o que, no quadro da

militarização, auxiliaria na compreensão do fluxo de transferência de armamentos e de

tecnologias. Em complemento à tal abordagem, a leitura construtivista sobre a formação das

identidades dos atores estatais enquadra tais dinâmicas de transferências como mecanismos

de socialização que produzem e reproduzem concepções sobre o que constitui o “poder

militar”, favorecendo a manutenção das estruturas sociais que estruturam padrões de

dependência nas relações entre os países.

7 A respeito das divergências no âmbito das instituições militares sobre o modelo organizacional a ser

adotado, ver Rouquié (1982). O autor discute as diferentes perspectivas no âmbito das Forças Armadas brasileiras durante a década de 1930 – particularmente no Exército – sobre o modelo de modernização preferível: o alemão ou o francês.

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