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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
6º Encontro Nacional ABRI - Perspectivas sobre o poder em um mundo em
redefinição
25 a 28 de julho de 2017
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG)
Área Temática 7: Teoria das Relações Internacionais
A RELAÇÃO AGENTE-ESTRUTURA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
PERSPECTIVAS SOBRE A MILITARIZAÇÃO NO “TERCEIRO MUNDO”
Jonathan de Araujo de Assis1
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP)
1 Pesquisador do Grupo de Estados de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Mestrando em
Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP), com bolsa CAPES/Pró-Defesa 3, sob orientação do Profº Drº Héctor Luis Saint-Pierre. E-mail: [email protected].
1
Resumo: Neste trabalho examinamos: 1) como diferentes correntes teóricas das Relações
Internacionais compreendem a prática de militarização dos Estados, particularmente os
pertencentes ao chamado “Terceiro Mundo”, e; 2) as implicações políticas derivadas da
adoção dessas práticas. Assumindo como principais características da militarização o
aumento nos gastos militares, a expansão das Forças Armadas e a importação e produção
de armamentos, buscamos compreender os fatores que motivam os Estados a
empreenderem esforços para o desenvolvimento de uma indústria de defesa. No quadro
teórico, a discussão fundamental orienta-se pela relação agente-estrutura – tendo em vista
que, como argumenta parte da bibliografia, toda teoria da disciplina assenta suas proposições
sobre essa relação, explicitamente ou não. Nossa análise não se restringe aos elementos
ontológicos das teorias, mas também se preocupa com os epistemológicos que embasam a
apreensão da realidade e sua relação com a dimensão política. Assumindo o ponto de vista
sugerido por Robert Cox, entendemos que toda teoria é formulada por alguém e para algum
propósito. Para fins do trabalho, foram adotadas como instrumentos de análise as correntes
teóricas do realismo estrutural, do marxismo e do construtivismo, por entendermos que tais
perspectivas fornecem importantes subsídios para a reflexão acerca dos fatores que levam
os países a buscarem o estabelecimento de uma indústria produtora de armamentos em nível
doméstico.
Palavras-chave: Realismo, Marxismo, Construtivismo
2
Introdução
O corpo teórico da disciplina de Relações Internacionais (RI) está estruturado por um
conjunto de perspectivas que se distinguem em termos ontológicos e epistemológicos,
fornecendo à disciplina um conjunto diverso de princípios e categorias analíticas2. Entretanto,
a despeito dessa pluralidade, assume-se como elemento comum a toda teoria de RI uma
proposta de solução – explícita ou não – do problema agente-estrutura, que, em virtude de
sua natureza ontológica sobre a realidade, acarreta em implicações políticas (WIGHT, 2006).
Dessa forma, adotando-se o pressuposto defendido por Cox (1986) de que toda teoria é
sempre para alguém e para a algum propósito, o presente texto preocupa-se não apenas com
a característica ontológica das teorias, mas também com o vínculo que possuem com a
dimensão política.
Frente a essas questões, Cox (1986) argumenta que a teoria pode atender a dois
propósitos distintos: o de guia para buscar uma resposta às questões postas pela perspectiva
que motivou o processo teórico; ou o de inserir o processo de teorização em um quadro mais
amplo de diferentes esforços para buscar respostas a partir de distintos pontos de vista
teóricos. O segundo propósito embasa a perspectiva crítica defendida pelo autor, ao passo
que o primeiro propósito sustenta teorias do tipo de solução de problemas (problem-solving),
as quais entendem as relações sociais e de poder, bem como as instituições que as
conformam, como elementos definidos da realidade.
Atinente ao primeiro propósito, e em discordância com o entendimento de Aron (2002)
sobre as formulações teóricas da disciplina3, Waltz (1979) incorpora elementos das teorias
econômicas à sua formulação teórica sobre as relações internacionais. Nesse sentido,
entende que as teorias são construídas pela abstração da realidade, isto é, deixam de lado
parte do que vemos e conhecemos. Dessa forma, o papel da teoria é explicar as regularidades
de comportamento, levando-nos a esperar que os resultados derivados da interação das
unidades se enquadrem em âmbitos específicos (MEARSHEIMER, 2001; WALTZ, 1979).
De maneira geral, em contrapartida à essa concepção sobre as possibilidades
instrumentais da teoria, a abordagem marxista assume uma postura de não pretensão de
neutralidade, isto é, problematiza a universalização e a “ahistoricidade” presentes nas
tradições realistas das RI. Dessa forma, os elementos fornecidos pela perspectiva marxista,
2 A despeito dessa pluralidade, é preciso apontar o número limitado de teorias não-ocidentais no campo
das Relações Internacionais. Como indicam Acharya e Buzan (2010), o corpo teórico da disciplina não corresponde à distribuição global de seus objetos de discussão, tendo em vista o predomínio das visões ocidentais. Segundo os autores, essa disparidade manifesta-se tanto por conta da inspiração de grande parte das teorias na filosofia ocidental, quanto pelo enfoque eurocêntrico da história mundial.
3 Para Raymond Aron, não é possível fundar uma teoria geral das relações internacionais em moldes similares às teorias econômicas, tendo em vista que apenas uma sociologia histórica estaria habilitada a compreender os complexos elementos que caracterizam a vida internacional.
3
ao aprofundar a análise sobre os fatores de fundo que influenciam o desenvolvimento das
relações sociais, enriquecem as análises a respeito da ascensão e declínio de hegemonias,
bem como sobre o próprio sistema internacional. Dessa forma, a dimensão histórica compõe
parte fundamental dessa abordagem, que, além de resgatar elementos do passado,
desenvolve-se sobre uma perspectiva do processo histórico contínuo. Nesse quadro, insere-
se a teoria do sistema-mundo, a qual tem em Immanuel Wallerstein um importante expoente,
para quem a teoria não representa apenas um avanço na epistemologia interpretativa do
mundo, mas também uma força de mudança social (MARTINS, 2015).
Assumindo um ponto de vista semelhante em relação à epistemologia interpretativista,
a corrente construtivista das RI contesta a epistemologia objetivista adotada pelas teorias
mais tradicionais da disciplina. De acordo com a abordagem construtivista, a realidade social
existe enquanto produto da ação e da cognição humana. Dessa forma, entende-se que o
mundo das relações internacionais não é fixo como o mundo natural, portanto, apenas as
regras intersubjetivas, criadas e reproduzidas pelas práticas humanas, é que dão sentido às
práticas internacionais, e não um conjunto de elementos permanentes deduzidos da anarquia
internacional (GUZZINI, 2013). O construtivismo não nega a existência de uma realidade
externa ao pensamento. No entanto, contesta a ideia de que esses fenômenos possam ser
observados sem o recurso à linguagem, ou seja, em termos ontológicos, o construtivismo é
uma perspectiva sobre a construção da realidade social. Como aponta Guzzini (2013), do
ponto de vista construtivista, objetos e eventos socialmente significativos são resultados de
uma construção interpretativista do mundo.
Frente aos debates teóricos expostos, o presente texto busca examinar como cada
uma das mencionadas correntes teóricas compreende a prática de militarização adotada
pelos Estados no âmbito internacional, particularmente daqueles países inseridos no quadro
do chamado “Terceiro Mundo”4. Para tanto, são examinados conjuntos analíticos específicos
sobre a prática de militarização embasados sobre os pressupostos das supramencionadas
correntes teóricas.
A partir da perspectiva de Ross (1987), entende-se que existem dois tipos de
militarização: o primeiro diz respeito ao emprego excessivo da violência; enquanto o segundo
tipo possui como principais características o aumento nos gastos militares, no tamanho das
Forças Armadas e nas importações e produção de armamentos. De acordo com o autor, o
segundo tipo de militarização prevalece no caso dos países do “Terceiro Mundo”. Como
veremos a seguir, parte da literatura entende que a militarização consiste em uma resposta
4 Tomando como base as reflexões desenvolvidas por Escobar (1995), entende-se que o termo
“Terceiro Mundo” consiste em um elemento que compõe o discurso do conhecimento sobre o desenvolvimento, o qual, em sua relação com a dimensão política, manifesta uma forma de controle e subjugação. Dessa forma, neste trabalho o termo é grafado com aspas a fim de problematizar os limites do termo enquanto conceito definidor da circunstância de subdesenvolvimento.
4
racional à insegurança da configuração anárquica do sistema internacional. No entanto, esse
tipo de abordagem tende a assumir a existência de apenas um mecanismo viável de
militarização, sendo a militarização entendida como um processo pelo qual as capacidades
militares são introduzidas e/ou aprimoradas em um domínio social (KINSELLA, 2013).
Com base nos quadros propostos por Buzan (1991), Kinsella (1998) e Krause (1992),
as perspectivas que discutem e buscam compreender esse fenômeno, particularmente em
países do chamado “Terceiro Mundo”, podem ser alocadas em três categorias diferentes,
assim denominadas: dinâmica regional de segurança, fatores domésticos e ordem militar
global.
O dilema de segurança e a corrida armamentista
Em sua obra Theory of International Politics, Kenneth Waltz segmenta as teorias das
RI em duas categorias, de acordo com a forma como organizam seus materiais: as
reducionistas e as sistêmicas. Para Waltz (1979), a estrutura de um sistema age como força
constrangedora e disciplinadora das ações dos atores, e, por conta disso, as teorias
sistêmicas explicam e predizem continuidades dentro de um sistema, o que demanda
abstrações da realidade. Nesse sentido, o autor argumenta em favor de uma abordagem
sistêmica que, embora reconheça sua importância, abstrai as características e as interações
das unidades. A omissão desses elementos se justifica pela necessidade de distinção entre
as variáveis no nível das unidades e as variáveis no nível do sistema.
Para a construção de sua abordagem estrutural sobre as relações internacionais,
Waltz reflete sobre os elementos componentes das teorias econômicas, particularmente as
teorias de mercado e de firmas. Em sua concepção, a teoria microeconômica fornece
subsídios para explicar o porquê da expectativa de certos efeitos e comportamentos,
particularmente pelo enfoque sobre as relações de causalidade do tipo “se”/“então” entre as
variáveis. Nesse quadro, a estrutura é compreendida como fator que designa um conjunto de
condições que exercem constrangimentos sobre o comportamento dos agentes. De acordo
com Wight (2006), essa abordagem sobre a estrutura é tipicamente associada à tradição
morfológica do fato social de Durkheim, a qual é entendida a partir das relações entre fatos
sociais por meio de padrões regulares law-like.
Dessa forma, a estrutura das relações internacionais é compreendida em termos
similares a uma economia de mercado, sobretudo pelo argumento de que o sistema
internacional se caracteriza pela autoajuda sob o princípio ordenador da anarquia. Ou seja,
diferentemente da dimensão política interna, que é ordenada em relações centralizadas e
hierárquicas, o sistema político internacional é descentralizado e anárquico, não existindo
relações de hierarquia entre as partes do sistema político internacional. Em virtude da
5
ausência de agentes com autoridade sistêmica global, relações formais de superioridade e
subordinação não se estabeleceriam na dimensão internacional.
Portanto, enquanto as unidades de um sistema político doméstico têm na entidade
estatal o elemento garantidor de segurança, as unidades que compõem o sistema político
internacional, marcado pela anarquia, agem de acordo com o princípio da autoajuda. Dessa
forma, a partir de um enfoque sobre as continuidades, compreende-se que, enquanto a
estrutura da política internacional permanecer anárquica, um Estado não pode ter a garantia
de que um amigo não possa se tornar um inimigo (WALTZ, 2000). Pelo componente de
autoajuda que caracteriza o contexto anárquico internacional, o enfoque do realismo estrutural
recai sobre as grandes potências. Isto é,
Em relações internacionais, como em qualquer sistema baseado no interesse próprio, as unidades de maior capacidade estabelecem o cenário da ação para os outros, assim como para si mesmos. Em teoria sistêmica, estrutura é uma noção generativa; e a estrutura de um sistema é gerada pelas interações das suas principais partes. As teorias que se aplicam aos sistemas de auto-ajuda são escritas em termos das principais partes dos sistemas [...] A preocupação com as relações internacionais como um sistema requer uma concentração nos Estados que fazem a maior diferença. Uma teoria geral de relações internacionais é necessariamente baseada nas grandes potências (WALTZ, 1979, p. 72-73 [tradução nossa])5.
As grandes potências são definidas em termos de suas capacidades militares relativas,
portanto, para se qualificar como uma grande potência, um Estado deve possuir recursos
militares convencionais suficientes para se equiparar ao Estado mais poderoso do sistema
(MEARSHEIMER, 2001). No quadro do realismo de Waltz, a estrutura incentiva os agentes à
manterem a balança de poder existente, isto é, o status quo. Dessa forma, a preservação do
poder, e não seu incremento, é o objetivo principal dos Estados, tendo como objetivo maior a
preservação de sua posição no sistema. Por outro lado, a perspectiva do realismo ofensivo
de Mearsheimer compreende que a estrutura fornece incentivos para que os Estados
busquem oportunidades de obter maior poder.
Sob esse prisma, compreende-se que, como aponta Kinsella (1998), o envolvimento
recente ou recorrente, bem como potencial, em conflitos militares é o incentivo mais óbvio
para a obtenção de armamentos. Em relação ao desenvolvimento de capacidades para a
produção doméstica de armamentos, o quadro de uma acentuada disputa militar, seja real ou
potencial, emerge como principal fator motivador, tendo em vista os custos políticos
envolvidos na dependência de outros países para armar seus exércitos. Nesse sentido, os
5 “In international politics, as in any self-help system, the units of greatest capability set the scene of
action for others as well for themselves. In systems theory, structure is a generative notion; and the structure of a system is generated by the interactions of its principal parts. Theories that apply to self-help systems are written in terms of the systems’ principal parts [...] Concern with international politics as a system requires concentration on the states that make the most difference. A general theory of international politics is necessarily based on the great powers” (WALTZ, 1979, p. 72-73).
6
esforços empreendidos para o desenvolvimento de capacidades para a produção doméstica
de armamentos são compreendidos no sentido de busca por autonomia tecnológica (AYOOB,
1991; BRZOSKA, 1989; MENESES, 1982).
Em mesma medida, a partir das considerações realistas a respeito do dilema de
segurança e da busca pela hegemonia, parte da literatura acerca da militarização pauta-se
sobre a ideia de corrida armamentista. O modelo sobre a corrida armamentista assenta-se
sobre diversos pressupostos, tais como o instrumento de aumento do poder nacional
representado pelas aquisições militares e a natureza racional do Estado. No quadro dessa
perspectiva, o elemento competitivo fundador da rivalidade militar constitui a causa primária
da corrida armamentista. Segundo Huntington (1958 apud MENESES, 1982), o princípio de
uma corrida armamentista baseia-se sobre a tentativa de um Estado em alterar, por meio do
aumento de aquisição de armamentos, um equilíbrio previamente existente.
Dessa forma, considerando como princípio ordenador das relações internacionais a
anarquia, sob a qual as relações se caracterizam pela opacidade e incerteza a respeito das
intenções dos demais atores, o processo de modernização militar de um país pode ser
percebido por seus pares como uma acumulação progressiva de armamentos, o que poderia
resultar em uma corrida armamentista, tendo em vista o mecanismo da balança de poder.
Portanto, segundo Meneses (1982), a acumulação de armamentos reflete a existência de um
conflito – potencial ou real – entre Estados que, indispostos a fazer concessões, têm no uso
da força uma alternativa factível para a resolução desse conflito.
Nesse sentido, entende-se que as abordagens assentadas sobre a perspectiva da
corrida armamentista estão estreitamente associadas ao ponto de vista teórico assumido pelo
realismo estrutural de que é possível formular modelos explicativos – law-like – sobre os
fatores que motivam a militarização. Entretanto, questiona-se o entendimento dessas práticas
como fator implícito à própria existência dos Estados, isto é, a busca pela maximização de
recursos é entendida como algo inevitável e “natural”.
A divisão internacional do trabalho e a militarização dependente
A análise marxista, de tipo estrutural, busca explicar as relações internacionais a partir
das relações sociais e formas de produção, que determinam as características fundamentais
do sistema internacional. Ainda que não tenha trabalhado especificamente sobre o conceito
de nação, as reflexões mais amplas presentes nos trabalhos de Marx fornecem instrumental
importante para as RI. Frente a esse quadro analítico, uma das preocupações da perspectiva
marxista diz respeito à forma como as relações de dominação são ocultadas pelo pressuposto
de igualdade formal entre os Estados. Portanto, o emprego do método marxista implica no
esforço de tensionamento dos conceitos assumidos como centrais pelas abordagens teóricas
tradicionais das RI, tais como anarquia e soberania.
7
De acordo com Rosenberg (1994), a soberania deve ser entendida historicamente
como uma forma de poder político peculiar ao capitalismo, o qual, em virtude das
transformações implementadas nas relações sociais, fornece quadro institucional para o
empreendimento das relações estratégicas que promovem sua própria manutenção. Nesse
sentido, ao associar a soberania estatal à dinâmica de reprodução do capitalismo, lança-se
luz sobre os processos históricos que sustentaram a origem e o desenvolvimento do Estado
moderno. Nesse sentido, a fim de formular um melhor entendimento a respeito do conceito de
soberania, afasta-se do pressuposto de que esta compõe uma realidade auto evidente, para
que seja refletida como uma configuração de ordem política de contingência histórica,
sobretudo pela relação que guarda com as dinâmicas que definem a sociedade capitalista.
Enquanto a redefinição da soberania possibilitou pensar a emergência do sistema
internacional associada aos processos mais amplos de transformação social, a releitura sobre
o conceito de anarquia traz implicações para a dimensão teórica. Segundo Rosenberg (1994),
a principal conclusão derivada desse debate é que, o conceito de anarquia, comumente
postulado como objeto exclusivo e definidor da disciplina de RI, também é objeto de
preocupação da perspectiva moderna social. Nesse sentido, busca-se enquadrar
historicamente o conceito de anarquia a partir do processo de acumulação primitiva, que, para
Marx, é o que ajuda a explicar como os indivíduos foram expropriados de seus meios de
produção com a emergência da sociedade capitalista. A construção do Estado é parte
importante no processo de acumulação primitiva, tendo em vista seu papel de pacificar as
relações domésticas e tornar impessoais os mecanismos de obtenção do excedente.
No quadro internacional, esta questão pode ser contemplada pelo enfoque sobre os
processos de mudança derivados da construção de grandes impérios coloniais ao longo da
história, bem como pelas transformações associadas ao processo de industrialização do
século XIX. Nesse quadro, destacam-se processos de transformação na ordem social e
econômica em países que estiveram sob influência europeia. Nesse sentido, questiona-se em
que medida os processos de independência política deixam o caráter formal para
transformarem-se em independência efetiva. No âmbito do sistema capitalista internacional,
observa-se a emergência do corolário geopolítico do capitalismo, que se caracteriza pela
independência soberana baseada na dependência mediada pelas coisas (ROSENBERG,
1994).
Assentados sobre o conceito de divisão internacional do trabalho, o padrão de troca
estabelecido é classificado pelos teóricos do sistema-mundo como desigual, o que alimenta
uma relação de dependência entre os países periféricos e centrais. Nesse sentido, a tese
fundamental do sistema-mundo é a de que uma única economia mundial capitalista está se
desenvolvendo desde o século XVI, e ela tem orientado a força da mudança social moderna
(HOPKNIS; WALLERSTEIN et al, 1982). Na perspectiva do sistema-mundo, a relação entre
8
centro e periferia é fundamental, tendo em vista que designa a divisão de trabalho que define
e vincula a economia social mundial. Por definição, o centro e a periferia apenas se formam
e se desenvolvem em relação um ao outro (HOPKINS; WALLERSTEIN et al, 1982).
Do ponto de vista marxista, a estrutura social diz respeito às relações sociais entre
classes, definidas em termos de suas posições na relação de produção em uma sociedade.
Como indica Wight (2006), tais relações de produção constituem a própria identidade dos
agentes, levando a adoção de práticas em função das classes. A partir dessa perspectiva,
infere-se que as relações de produção constituem as identidades, os interesses, e, por
conseguinte, as práticas dos agentes. Ainda, a consideração das esferas econômica, política
e sociocultural como dimensões intrinsicamente conectadas, bem como a centralidade
concedida ao desenvolvimento da economia mundo capitalista, fornecem subsídios
importantes para a reflexão sobre a militarização, sobretudo dos países periféricos.
Em sua obra Arms and the State, Keith Krause reflete acerca dos condicionantes
históricos e econômicos da transferência e produção de armamentos, tendo como
preocupação central os fatores estruturais que explicam tais fenômenos. Nesse quadro, os
Estados que compõem o sistema de transferência de armamentos são classificados em
“camadas” de acordo com suas características de produção de armamentos: a primeira
camada, formada por países capazes de inovar e avançar a fronteira tecnológica; a segunda
camada, composta por países que podem produzir uma relativa variedade de produtos
próximos à fronteira tecnológica, mas, por conta de limitações de capacidades, raramente
inovam; e a terceira camada, formada por países que têm sua produção limitada à reprodução
dos armamentos (KRAUSE, 1992). A conformação desse quadro estrutural deriva dos
processos históricos vinculados ao próprio desenvolvimento do sistema capitalista,
particularmente sobre os processos de inovação tecnológica e de industrialização.
Dessa forma, assume-se o período da Revolução Industrial como marco histórico
essencial para a compreensão do atual sistema de transferência de armamentos e,
consequentemente, dos determinantes que sustentam tal sistema. Ainda que não tenha
marcado o início do processo de produção e inovação em matéria militar, o período da
Revolução Industrial se caracterizou pelo grande número de inovações tecnológicas e a
emergência em larga escala das empresas privadas produtoras de armamentos, marcando
uma correlação fundamental entre as capacidades comerciais e industriais com o poder
político e militar (EARLE, 1986).
Dessa forma, entende-se que a capacidade industrial e tecnológica de um Estado
incide diretamente sobre sua capacidade de produção de armamentos em nível doméstico,
sendo a opção pela transferência de armamentos um produto da inabilidade para a produção
doméstica autônoma por um país. Portanto, ao compreender a transferência de armamentos
como alternativa à produção, é possível inferir que, mais que a troca de produtos, trata-se
9
também de um veículo para a transmissão e difusão de tecnologia militar (KRAUSE, 1992).
Tal consideração a respeito da transferência de armamentos aproxima-se dos debates
presentes na teoria do sistema-mundo sobre os padrões de relação centro-periferia, que
caracteriza os países centrais como difusores de tecnologias.
Em relação à militarização dos países não centrais, o arcabouço analítico proposto por
Keith Krause também fornece subsídios importantes. No escopo da tipologia proposta pelo
autor, entende-se que parte destes países estão agrupados na terceira camada, isto é,
aqueles países que possuem capacidade limitada à reprodução dos armamentos. Um dos
fatores que frequentemente é levantado para explicar a motivação inicial para o
desenvolvimento de uma indústria de armamentos em países da terceira camada é a busca
pela redução da dependência estrangeira, a fim de reduzir as incertezas referentes à
importação de armas (KRAUSE, 1992). Entretanto, considerando o quadro teórico proposto
pela corrente marxista, particularmente o sistema-mundo, questiona-se em que medida a
transferência de tecnologias pode representar a dissolução da condição de dependência, uma
vez que é muito improvável que essa transferência seja de conhecimento próximo à fronteira
tecnológica. Tal assertiva baseia-se sobre a consideração acerca dos objetivos econômicos
que motivam os países centrais a cederem tecnologias aos países da periferia, isto é, as
empresas estrangeiras produtoras de armamentos visam ganhos econômicos por meio do
acesso a novos mercados (BRIGAGÃO, 1984).
Ademais, cabe destacar os importantes instrumentos que a corrente marxista fornece
para a compreensão da dinâmica interna aos Estados, que, assim como no sistema
interestatal, refletem padrões de organização social do trabalho. Nesse quadro, entende-se
que as decisões a respeito da aquisição e da produção doméstica de armamentos em países
periféricos são tomadas por uma elite particular que, em muitos casos, mantém uma lógica
similar àquela das elites dos países centrais. Ao observar os processos recentes de aquisição
de produtos de defesa no Brasil, Dagnino (2010) identificou o papel exercido por uma rede de
atores públicos e privados – como militares e empresários – sobre as decisões em torno de
políticas para o fomento da indústria de defesa brasileira. De acordo com o autor, essa “Rede
de Revitalização” tem atuado sob o argumento de que as escolhas políticas frente ao campo
da indústria de defesa são irracionais, uma vez que não consideram as perdas de
oportunidade de desenvolvimento tecnológico e de segurança do país.
Em contraponto à perspectiva realista, a leitura da corrente marxista sobre a
militarização não pressupõe que esse tipo de prática seja adotada pelos atores estatais de
maneira “naturalizada”. Ao contrário, abordagens marxistas sobre a militarização inserem
essas dinâmicas enquanto reflexo do modo de produção sob o qual esses atores estão
associados. Ainda, a análise coordenada das esferas política e econômica, que sustenta a
perspectiva sobre as dimensões política pública e privada, fornece insumos importantes para
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fundamentar uma análise sobre as práticas de militarização em países do “Terceiro Mundo”.
Como discutido anteriormente, um elemento presente na abordagem marxista é o processo
de esvaziamento das atribuições políticas do Estado em benefício da esfera política privada,
o que favoreceria a própria reprodução do sistema capitalista.
Nesse quadro, faz-se referência ao padrão de relações baseadas sobre a coordenação
entre redes políticas e de produção que vinculam o centro e a periferia na produção e
reprodução do sistema-mundo capitalista. Essa concepção sobre a dinâmica das relações
entre os Estados aproxima-se dos debates inerentes ao conceito de império informal,
entendido como “[...] estruturas de autoridade política transnacional que combinam um
princípio igualitário de soberania de jure com um princípio de controle de facto” (WENDT;
FRIEDHEIM, 1995, p. 685).
A construção social da realidade e a o valor simbólico dos armamentos
Como apresentado na seção introdutória deste trabalho, a concepção ontológica social
fundamenta-se sobre o duplo truísmo de que as práticas dos agentes reproduzem ou
transformam a sociedade, enquanto que a sociedade é composta por relações sociais que
tornam possíveis e estruturam a interação entre os atores. Nesse quadro, em negação à
abordagem racionalista, o construtivismo entende que essas estruturas, além de regular o
comportamento dos atores, forjam suas identidades e interesses.
Há, portanto, uma preocupação com a formação das subjetividades sem assumir a
primazia das estruturas sociais. De acordo com Wendt (1989), a constituição diz respeito a
um processo de tornar uma prática possível pela fundamentação das propriedades ou
condições necessárias para sua existência. Assim, tal abordagem mostra-se relevante para
compreender o processo pelo qual um ator estatal se torna disposto a adotar práticas de
militarização, tendo em vista que tal elemento é parte do que ser um “ator estatal” representa.
Entretanto, a disposição estabelecida por meio do processo de constituição não é elemento
suficiente para levar à adoção de práticas específicas por parte dos Estados.
Dessa forma, faz-se necessário considerar o processo de “determinação”, que, em
conjunto da constituição, auxilia a compreensão do porquê os atores adotam determinadas
práticas. Nesse sentido, a “determinação” faz referência a um processo de tornar algo efetivo
pela criação das propriedades ou condições que são aspectos suficientes, apesar de
contingentes, de sua existência. Nesse quadro, o processo pelo qual o ator estatal moderno
passa a buscar a militarização é um processo de determinação, tendo em vista que o desejo
pela militarização não é uma característica essencial de sua existência (WENDT, 1989). Em
relação ao quadro teórico do realismo estrutural, a perspectiva construtivista fornece subsídios
analíticos relevantes para a desnaturalização da prática de militarização por parte dos
Estados.
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Nesse sentido, enquanto a identidade faz referência ao conhecimento que o ator
guarda sobre si mesmo, os interesses refletem os desejos desse ator, designando, portanto,
motivações que ajudam a compreender seu comportamento. Infere-se que há uma relação
estreita entre as identidades e os interesses dos atores, o que nos leva à hipótese de que os
interesses dos atores só podem ser definidos a partir do entendimento que tem sobre si
mesmo, isto é, sua identidade. Como indica Wendt (1999), sem interesses as identidades não
possuem força motivacional, ao passo que, sem identidades, os interesses não têm
orientação. Esse tipo de reflexão proporcionada pela abordagem construtivista torna-se
fundamental para examinar a militarização dos Estados, na medida em que se busca examinar
os fatores que incidem sobre a opção desses agentes por tais práticas.
Para melhor compreender essa questão, dois princípios extensivamente abordados
pelas perspectivas teóricas tradicionais da disciplina devem ser retomados: a soberania e a
anarquia. Ao contrário do que assume a perspectiva realista estrutural, a corrente
construtivista propõe-se a refletir sobre a soberania enquanto princípio constitutivo dos atores
estatais, e não como atributo inerente à sua natureza. Nesse quadro, considera-se que a
constituição dos Estados como atores soberanos pressupõe o reconhecimento formal da
independência desses sujeitos, que, no âmbito das relações internacionais, manifesta-se por
meio da diferenciação territorial entre os atores. Portanto, o reconhecimento das fronteiras
territoriais torna-se essencial para a constituição do modo de subjetividade como a do sistema
moderno de Estados (WENDT, 1989). Dessa forma, frente às questões apresentadas,
entende-se que as práticas realizadas pelos atores estatais no sistema moderno de Estados
não apenas pressupõem como também fundamentam o reconhecimento dessas fronteiras.
Nesse sentido, o princípio da anarquia não apenas deriva desse entendimento
constitutivo, mas também o reproduz na medida em que reforça a percepção de relações
descentralizadas entre os atores estatais. O princípio de soberania produz e reproduz os
sujeitos que têm sua capacidade e disposição à prática de militarização reconhecidos
socialmente (WENDT, 1999). Nesse sentido, entende-se que é por meio dessa produção, e
reprodução, dos sujeitos que o princípio de soberania estrutura os padrões contemporâneos
de militarização global. Em suma, o princípio de soberania constitui os atores estatais como
sujeitos responsáveis pela manutenção da ordem no âmbito doméstico, bem como pela
acumulação e emprego legítimo dos meios organizados de violência.
Nesse quadro, os poderes sociais atribuídos ao significado de “ator estatal” pelas
estruturas constitutivas da vida social pressupõem a militarização como aspecto fundamental
desse ator (WENDT, 1989). Assim, a prática de militarização é compreendida no contexto da
constituição mútua entre agentes e estruturas sociais, afastando-se, portanto, das
concepções sobre o Estado que assumem tal característica como elemento ontologicamente
natural. Nesse sentido, afirma-se que a manutenção de Forças Armadas modernas e bem
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equipadas é, em parte, produto da crença de que representam o emblema do Estado moderno
(KINSELLA, 2013).
A esse respeito, perspectivas sobre a militarização inspiradas pelas reflexões da
corrente construtivista apontam o atributo simbólico que influenciam a aquisição de
armamentos, particularmente refletindo as percepções dos atores estatais, ou líderes
políticos, a respeito do que constitui um Estado moderno. Dessa forma, tanto as organizações
militares quanto os armamentos “[...] podem ser imaginadas como servindo funções similares
àquelas das bandeiras, linhas aéreas e equipes olímpicas: são parte do que os Estados
modernos creem ser preciso possuir para ser um Estado moderno legítimo” (SAGAN, 1996,
p. 74).
Nesse sentido, tendo em vista a centralidade dos fatores de soberania e
independência como constituintes do ator estatal e os valores de modernidade e autonomia
atribuídos aos armamentos de alta intensidade tecnológica, entende-se que alguns
armamentos são percebidos como altamente institucionalizados à estrutura social da ordem
militar global. Portanto, segundo Eyre e Suchman (1997), além de variarem em termos de
capacidade tecnológica, os armamentos variam em termos de integração institucional ou
“peso simbólico”. Tais considerações tornam-se importantes para subsidiar reflexões acerca
do tipo de militarização empregado pelos Estados (WENDT; BARNETT, 1993).
As típicas Forças Armadas modernas derivam do tipo de militarização de capital-
intensivo, as quais associam suas capacidades a sistemas de armas sofisticados em termos
tecnológicos. A criação e manutenção desse tipo de aparato militar requer gastos substantivos
e um certo nível de organização, tendo em vista a necessidade de manutenção dos
equipamentos e do treinamento constante dos operadores desses sistemas. A difusão desse
modelo leva a similaridades entre a militarização dos países do “Terceiro Mundo” e das
potências ocidentais. Entretanto, tendo em vista os custos de aquisição, produção e
manutenção de sistemas de armas de alta intensidade tecnológica, bem como a recorrente
necessidade de importação de componentes tecnologicamente sensíveis, a militarização dos
países do “Terceiro Mundo” tende a se desenvolver sob um quadro de dependência (WENDT;
BARNETT, 1993).
Portanto, frente ao exposto, vincula-se a ordem militar global a dois aspectos da
sociedade internacional: a emergência de um isomorfismo nas estruturas das forças militares
e em suas doutrinas; e a relação de dependência entre países do centro e da periferia. A partir
dessa perspectiva, entende-se que a transferência de armamentos representa um mecanismo
para o desenvolvimento e manutenção desses elementos estruturais (KINSELLA, 2013). Para
a compreensão da dimensão do isomorfismo, ressalta-se que a importação desse tipo de
armamento implica na difusão da forma pela qual esses armamentos são compreendidos e
operacionalizados pelos países exportadores. Ainda, dada a crescente complexidade e
13
sofisticação tecnológica dos sistemas de armas6, as atividades técnicas específicas para sua
manutenção são cada vez mais necessárias.
Em mesma medida, a produção doméstica dos armamentos tem potencial de
influenciar as percepções dos atores e organizações que compõem o Estado. Tendo em vista
a dependência para obter subsistemas e componentes visando a produção de sistemas de
armas, bem como as produções realizadas sob licença de países industrialmente avançados,
a ordem militar global não afeta apenas a organização militar, mas também a organização
industrial de defesa. A criação de sucursais – militares e industriais – de potências ocidentais
em países do chamado “Terceiro Mundo”, implicando em ideias coletivas sobre sistemas de
armas e organização militar adequada, produzem critérios sobre o que constitui o poder militar
(KALDOR, 1986).
Considerações finais
A partir das questões expostas, derivam-se dois conjuntos de reflexões. O primeiro diz
respeito à forma como a questão agente-estrutura é compreendida por cada uma das teorias
abordadas, bem como as implicações dessas perspectivas para as leituras sobre a
militarização. Em segundo lugar, considera-se algumas limitações de tais perspectivas para a
análise dos fatores que implicam sobre a militarização. Por fim, como um esforço para
convergir elementos das diferentes abordagens, reflete-se sobre a potencialidade de
complementaridade entre os argumentos centrais que embasam cada uma das perspectivas
para melhor compreensão sobre a prática de militarização, particularmente no contexto dos
países do “Terceiro Mundo”.
Nesse sentido, entende-se que a abordagem do realismo estrutural está estreitamente
vinculada à uma tradição que busca explicar a realidade social por meio de padrões regulares
que exerçam o papel de leis gerais. Tal fundamento sustenta análises que examinam relações
de causalidade entre as estruturas e os agentes, ou seja, fatores externos que expliquem o
comportamento das unidades em termos de “se/logo”. Dessa forma, a militarização dos países
do “Terceiro Mundo” é reduzida à incidência de elementos estruturais autônomos que
explicam o comportamento dos Estados, o que, no quadro da teoria realista estrutural,
manifesta-se a partir dos conceitos de anarquia e soberania.
A partir de uma leitura marxista sobre a realidade social, assume-se que a estrutura
social faz referência às relações sociais entre classes, definidas de acordo com a posição que
ocupam na relação de produção em uma sociedade. Sob esse prisma, a identidade dos
agentes e, por conseguinte, seus interesses são fatores constituídos pelas relações de
6 De acordo com Kaldor (1986), a competição por contratos entre empresas produtoras de armamentos
motiva grandes esforços para atingir inovações tecnológicas – o que, como discutido por Kaldor, nem sempre representa um avanço funcional do armamento.
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produção. Sob esse quadro, as práticas de militarização são compreendidas no contexto da
dinâmica de produção, o que sustenta perspectivas sobre a militarização dependente. Como
discutido, a luz lançada pela corrente marxista sobre o processo de desenvolvimento do
sistema capitalista fornece subsídios fundamentais para compreender o contexto da relação
entre os Estados, particularmente sobre os fluxos de transferência de armamentos e
tecnologia entre centro e periferia.
Na perspectiva construtivista, a concepção ontológica fundamental baseia-se sobre o
entendimento de que as práticas da agência reproduzem ou transformam a estrutura social,
ao passo que a estrutura social estrutura a interação entre os agentes. Nesse quadro, a
solução adotada para o problema agente-estrutura, particularmente sobre a perspectiva
wendtiana, foi a de uma abordagem estruturacionista. Sob esse prisma, assume-se que as
propriedades dos agentes são constituídas e determinadas pelas estruturas sociais, enquanto
que as propriedades dessas estruturas são constituídas e determinadas pelas práticas dos
agentes. Dessa forma, infere-se que, em contrapartida ao realismo estrutural, a perspectiva
estruturacionista preocupa-se com a construção das subjetividades sem, entretanto, afirmar
a primazia das estruturas sociais.
Como discutido, tal consideração acerca do problema agente-estrutura fundamenta
análises sobre a militarização pautadas na questão da constituição dos Estados enquanto
atores sociais e a influência da estrutura social – compreendida na literatura como “ordem
militar global” – sobre suas práticas, bem como a forma que estas reproduzem estruturas
sociais específicas. Nesse sentido, os subsídios fornecidos por essa abordagem suscitam à
desnaturalização da prática de militarização dos Estados, sobretudo do tipo de capital-
intensivo, fornecendo reflexões importantes para a análise do “Terceiro Mundo”. Isto é, ao
negligenciar as distinções entre os tipos de militarização, assume-se que os exércitos de
capital-intensivo são inerentemente superiores de um ponto de vista militar, o que levaria,
naturalmente, à escolha desse tipo de militarização por parte dos países do “Terceiro Mundo”.
Entretanto, faz-se necessário refletir sobre as limitações analíticas e as implicações
políticas desses instrumentos para a análise dos fatores que influenciam a adoção de práticas
de militarização de capital-intensivo por parte dos Estados do “Terceiro Mundo”. Como
discutido, o modelo de ação-reação, ao assumir que a adoção dessas práticas se motiva pela
busca de segurança por parte de Estados soberanos que se organizam em um sistema
internacional anárquico baseado na autoajuda, naturaliza os processos de militarização. Por
consequência, ao desconsiderar os elementos específicos do tipo de militarização, tal
abordagem perde de vista não apenas os fatores que motivam a adoção dessas práticas, mas
também as desigualdades em termos de capacidades tecnológicas que fomentam relações
de dependência.
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A abordagem sobre os fatores domésticos da militarização, apesar de reconhecer os
elementos constrangedores no âmbito econômico, fundamenta a análise sobre o pressuposto
de um tipo particular de militarização. Isto é, ainda que tal perspectiva forneça subsídios
importantes para a compreensão dos fatores que alimentam um quadro de reprodução das
relações de dependência, assume de maneira tácita a inevitabilidade do modelo de
militarização de capital-intensivo. A implicação política dessa abordagem deriva de sua
insuficiência em apontar um sentido alternativo à militarização de capital-intensivo, sob o qual
as relações de dependência são produzidas e reproduzidas.
Especificamente acerca da vertente teórica sobre a ordem militar global, cabe apontar
as restrições atreladas à perspectiva adotada por Wendt a respeito do Estado. Do ponto de
vista do autor, o Estado não se limita à agência, mas também exerce papel como estrutura
social. Tal assertiva sustenta a consideração de que os Estados podem ser compreendidos
como atores unitários, isto é, apresentam interesses e identidades sobre o “Eu” que
representam. Esses fatores derivariam dos mecanismos exercidos pela estrutura social
estatal sobre os agentes que o compõem. Partindo dessa questão, cabe contestar os
pressupostos da teoria que assumem o isomorfismo das organizações militares. Os debates
teóricos apontam para uma tendência de homogeneização no tipo de militarização adotado
pelos países. Contudo, uma perspectiva dessa natureza mostra-se insuficiente para discutir
as disputas internas às organizações militares7.
Por fim, entende-se que as correntes teóricas marxistas – sobretudo a do sistema-
mundo – e construtivista apresentam fundamentos que, em conjunção, qualificam os
instrumentos aplicáveis à análise da militarização nos países do “Terceiro Mundo”.
Particularmente a respeito da concepção de militarização dependente, argumenta-se que os
fundamentos teóricos do sistema-mundo fornecem subsídios importantes para analisar os
padrões das relações entre os países do centro e da periferia, o que, no quadro da
militarização, auxiliaria na compreensão do fluxo de transferência de armamentos e de
tecnologias. Em complemento à tal abordagem, a leitura construtivista sobre a formação das
identidades dos atores estatais enquadra tais dinâmicas de transferências como mecanismos
de socialização que produzem e reproduzem concepções sobre o que constitui o “poder
militar”, favorecendo a manutenção das estruturas sociais que estruturam padrões de
dependência nas relações entre os países.
7 A respeito das divergências no âmbito das instituições militares sobre o modelo organizacional a ser
adotado, ver Rouquié (1982). O autor discute as diferentes perspectivas no âmbito das Forças Armadas brasileiras durante a década de 1930 – particularmente no Exército – sobre o modelo de modernização preferível: o alemão ou o francês.
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