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1 CADERNOS DE ESTUDOS AÇORIANOS Suplemento # 23 - junho 2017 DANIEL DE SÁ II Todas as edições em www.lusofonias.net Editor AICL - Colóquios da Lusofonia Coordenador CHRYS CHRYSTELLO CONVENÇÃO: O Acordo Ortográfico 1990 rege os Colóquios da Lusofonia e é usado em todos os textos escritos após 1911 (data do 1º Acordo Ortográfico) ©™® Editado por COLÓQUIOS DA LUSOFONIA (AICL, ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL COLÓQUIOS DA LUSOFONIA) Em linha ISSN 2183-9239 CD-ROM ISSN 2183-9115 Nota introdutória do Editor dos Cadernos, Os suplementos aos Cadernos Açorianos servem para transcrever textos em homenagem a autores publicados pelos Colóquios da Lusofonia, pelos seus participantes ou até Pelos próprios autores. Este é SUPLEMENTO #23 é o segundo dedicado a DANIEL DE SÁ depois do suplemento nº 2 de março 2010

ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL COLÓQUIOS DA …e-suplementos... · 1 CADERNOS DE ESTUDOS AÇORIANOS Suplemento # 23 - junho 2017 DANIEL DE SÁ II Todas as edições em Editor AICL -

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    CADERNOS DE ESTUDOS

    AORIANOS

    Suplemento # 23 - junho 2017 DANIEL DE S II

    Todas as edies em www.lusofonias.net Editor AICL - Colquios da Lusofonia Coordenador CHRYS CHRYSTELLO

    CONVENO: O Acordo Ortogrfico 1990 rege os Colquios da Lusofonia e usado em todos os textos escritos aps 1911 (data do 1 Acordo Ortogrfico)

    Editado por COLQUIOS DA LUSOFONIA (AICL, ASSOCIAO INTERNACIONAL COLQUIOS DA LUSOFONIA) Em linha ISSN 2183-9239 CD-ROM ISSN 2183-9115

    Nota introdutria do Editor dos Cadernos,

    Os suplementos aos Cadernos Aorianos servem para transcrever textos em homenagem a autores publicados pelos Colquios da Lusofonia, pelos seus participantes ou at Pelos prprios autores.

    Este SUPLEMENTO #23 o segundo dedicado a DANIEL DE S depois do suplemento n 2 de maro 2010

    http://www.lusofonias.net/

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    1. CAROLINA CORDEIRO, ESCRITORA, AORES, 27 COLQUIO DA LUSOFONIA BELMONTE 2017

    TEMA 3.1. OS ATOS ILOCUTRIOS AO SERVIO DA MARCA POTICA NA NOVELA UM DEUS BEIRA DA LOUCURA, DE DANIEL DE S

    uma frase, quer dizer o que diz, mas tambm quer dizer muito mais! John Searle1

    Tendo em mente o estudo dos atos ilocutrios defendidos por John R. Searle, somos

    capazes de delinear o quo pertinentes e eficazes estes so para uma anlise acerca da presena de marcas caratersticas da poesia, na obra narrativa Um Deus Beira da Loucura, de Daniel de S. Fazendo uso de mecanismos prprios, no s da criatividade literria, mas tambm da pragmtica da lngua, a presena da carga emotiva na narrao de S tem a competncia de envolver o leitor em esferas para alm das denotativas marcas da narrao e da descrio.

    Assim, aqui, a poesia, para alm das notas fundamentais deste modo literrio, faz

    conduzir, inequivocamente, a leitura da inteno sub-reptcia em que o autor pretende envolver, e compadecer, o leitor para as probabilidades de interpretao que a obra poder conter. A capacidade que o autor aoriano tem de, amide, deambular entre os modos narrativo e lrico, num s texto, notvel. Num texto indubitavelmente marcado por uma contextualizao histrica, imagem do quo extremo chega a ser a precariedade da condio humana, a palavra potica de Daniel de S suplanta a linear comoo do leitor.

    A Literatura, semelhana da realidade, tem a capacidade de fazer refletir na pele a

    verdade dos sentimentos. Quanto mais o jogo de palavras se for intensificando ou conotativamente mostrado, mais correlao se estabelece entre a palavra imaginada, a palavra lida e a palavra sentida. nesse jogo de identificaes que reside a magia da Poesia.

    No decorrer dos tempos, a composio potica tem tido diferentes e divergentes

    definies. Todavia, no estranheza alguma que, aquando da leitura de um poema, as palavras no papel nos fazem refletir, ponderar, questionar, imaginar e vivenciar todos os sentidos intencionados pelo sujeito potico.

    Quer por uma forma mais discorrida, quer por uma maneira mais ponderada, a verdade

    que a panplia de poesias que se encontra , garantidamente, no nosso pensar, um espelho da emoo do sujeito lrico e, essa emotividade, reflete-se, amide, no resultado analtico das categorias gramaticais, lato senso.

    Nesta aceo, estamos em crer que ao estudar os atos ilocutrios defendidos por John

    R. Searle, somos capazes de delinear o quo pertinentes e eficazes estes so para uma

    1 Searle, J. R. Indirect Speech Acts", in Cole e Morgan (orgs.), 1975: 59-82

    anlise acerca da presena de marcas caratersticas da poesia, na obra narrativa Um Deus Beira da Loucura, de Daniel de S. A obra em questo no , claramente, uma composio potica formal. No obstante, -nos possvel analis-la e exemplificar passagens narrativas claramente poticas.

    O autor aoriano, fazendo uso de mecanismos prprios, no s da sua criatividade

    literria, mas tambm da pragmtica da lngua, faz sobressair no leitor, a tpica carga emotiva das suas palavras. S tem a competncia de envolver o leitor em esferas para alm das denotativas marcas da narrao e da descrio.

    Assim, aqui, a poesia, para alm das notas fundamentais deste modo literrio, faz

    conduzir, inequivocamente, a leitura da inteno sub-reptcia em que o autor pretende envolver, e compadecer o leitor para as probabilidades de interpretao que a obra poder conter. A capacidade que o autor aoriano tem de, amide, deambular entre os modos narrativo e lrico, num s texto, , no nosso entender, notvel.

    A palavra potica de Daniel de S suplanta a linear comoo do leitor. Sabendo, a

    priori, que a poesia imita e recria a realidade atravs da linguagem, do ritmo e da melodia; que desperta sentimentos e sensibiliza o leitor, ento a sua presena numa narrao evoca ainda mais o prazer da leitura e a importncia desta para uma maior compreenso do mundo que nos rodeia.

    Parafraseando Fernando Pessoa, a poesia uma emoo expressa em ritmos atravs

    do pensamento sem o intermdio da ideia ou de uma ideia convertida em emoo, comunicada a outros por meio de um ritmo; poesia constituda por um ritmo verbal ou musical ou de imagem que lhe corresponde, internamente.

    So muitos aqueles que tentaram definir Poesia. Natlia Correia (Correia, 1970) dizia

    que a poesia para se comer. Carlos Bousono (1923) a definia como

    antes de tudo, comunicao, efetuada por palavras apenas, de um contedo psquico (afetivo-sensrio-concetual), aceito pelo esprito como um todo, uma sntese () pois o poeta, ao expressar-se, nunca transmite puros conceitos, quer dizer, nunca transmite conceitos sem mescla de sensorialidade ou sentimentalidade.

    Tambm h quem afirme que toda verdadeira poesia uma viso de mundo. No fundo,

    ao tentar definir Poesia tenta-se obter uma espcie de ligao conceitual filosfico-literria, com uma nfase individual, social e esttico.

    Na viso de A. C. Bradley, aquando do seu estudo Poetry for Poetrys Sake

    (https://cdeassis.wordpress.com/o-que-e-poesia/)

    o grau de pureza de um poema h de ser avaliado na medida em que se torna impossvel obter o mesmo efeito potico atravs de qualquer outra forma verbal

    https://cdeassis.wordpress.com/o-que-e-poesia/

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    que no seja exatamente a dele e por isso mesmo a identidade entre forma e fundo s se encontra quando a poesia corresponde ideia, numa realizao potica pura ou quase pura.

    Ainda segundo a mesma fonte,

    Abade Renri Brmond, que aproxima a poesia da prece mstica em seu livro La Posie Pure, a poesia pura inefvel, consistindo naquele extraordinrio poder que transforma em coisas poticas os elementos impuros ou prosaicos () Outro estudioso, Robert de Souza, em Un Dbat sur Ia Posie, tenta resumir o pensamento do Abade Brmond em seis itens:

    1) Todo poema deve suas caratersticas poticas essenciais a uma espcie

    de realidade unificadora e misteriosa; 2) no basta, nem necessrio, ler poeticamente um poema, para captar-lhe

    o sentido, uma vez que existe certo encantamento obscuro e independente do significado das palavras;

    3) poesia no se pode reduzir a discurso prosaico, pois constitui um meio de expresso que ultrapassa as formas comuns da prosa;

    4) poesia uma espcie de msica e ao mesmo tempo no apenas msica, pois age como uma espcie de condutor de corrente pelo qual se transmite a natureza ntima da alma;

    5) a encantao que proporciona a comunicao inconsciente do estado de alma em que se encontra o poeta at o momento em que se manifesta por ideias e sentimentos, momento esse que se revive confusamente lendo o poema;

    6) a poesia uma espcie de magia mstica semelhante ao estado de orao. (https://cdeassis.wordpress.com/o-que-e-poesia/).

    Poder-se- definir Poesia quanto importncia que as palavras tm no texto: "Na poesia, cada palavra tem seu papel no apenas por seu significado, mas por seu ritmo, pela sua sonoridade, pela forma como se relaciona com as outras palavras, e, modernamente, at mesmo pelo seu aspeto visual..." (https://cdeassis.wordpress.com/o-que-e-poesia/); pela sua forma e, de acordo com Massaud Moiss

    j na Grcia antiga Aristteles afirmava que nem todo verso poesia: "At

    mesmo quando um tratado de medicina ou cincia natural escrito em verso, habitualmente se d o nome de 'poeta' ao autor, porm Homero e Empdocles nada tm em comum alm da mtrica, e, portanto, seria correto chamar o primeiro de poeta e o outro de cientista natural ao invs de poeta."

    (traduzido a partir da traduo inglesa de S. H. Butcher, The Internet Classics Archive - http://classics.mit.edu/Search/index.html).

    Para alm destas duas possveis formas de definir poesia, podemos ainda incluir

    uma terceira: a definio baseada em aspetos mais amplos do seu significado. Neste sentido, temos algumas possveis maneiras de descortinar o sentido deste gnero literrio,

    porm apraz-nos a explicitao de J. Middleton Murry, apud Massaud Moiss, onde lemos que A poesia a expresso natural dos mais violentos modos de emoo pessoal ou ainda segundo William Wordsworth que a interpreta como sento o "extravasar espontneo de poderosos sentimentos", (Wordsworth, 1800).

    Por fim, podemos ainda incluir a hiptese de definir Poesia na sua vertente lingustica,

    como nos definiu Mrio Laranjeira na sua obra Potica da Traduo: O texto potico , pois, aquele em que a funo potica se sobrepe s demais e delas se destaca, sem elimin-las. Uma viso mais radical reside nas afirmaes do poeta americano Robert Frost (1874-1963), que a define como o que ficou para trs na traduo. Assim, nesta conceo um tanto radical, aquando de dvida sobre se um texto ou no potico basta traduzi-lo.

    No nosso entender, a definio de Poesia contempla toda essa variedade de

    probabilidades j que no nosso prprio conceito, este gnero de literrio um que d azo ao correr das emoes, sob o signo da idealizao de um assunto, tendo em conta as regras estabelecidas da gramtica (quer pela sua utilizao quer pela sua usurpao). A interpretao ser to ou mais variada quanto as palavras que o sujeito lrico intencionar colocar no papel. , portanto, neste contexto que surge a questo da pragmtica ligada no s criao potica, mas a criao potica ligada narrativa.

    Olhando para esta noo, na obra de Daniel de S, no encontramos um sujeito lrico,

    mas sim um narrador que nos oferece uma perceo potica de um dos temas e de um dos assuntos mais sombrios da histria da humanidade. Ser no contexto da Segunda Guerra Mundial que a nossa novela decorrer e, com laivos poticos, o autor aoriano mostrar que tambm na narrativa pode, claramente, haver poesia. Tudo ser uma questo de utilizar, a propsito deste estudo, das especificidades do campo da Pragmtica da Lngua.

    Usando a definio de Guervs:

    Pragmtica eres t, y t eres t e tus circunstancias, luego la pragmtica son tus circunstancias y, em definitiva, tus circunstancias vienen a ser lo () contexto: t y tus circunstancias. Ideas innatas e ideas sociales que se conjugan para inferir, para comprender la comunicacin y responder al estmulo. (Guervs, 2005: 183) Na viso de Gumperz, os interlocutores tm um saber sociocultural e o que

    est na base do clculo de mltiplos processos de inferncia e que lhes permite saber delimitar sequencialmente as aes discursivas e as estratgias discursivas que elas configuram (Almeida, 2016: 20 apud Gumperz, 1989: 57). No que concerne Pragmtica, em particular, aqui faremos referncia apenas aos atos ilocutrios propostos por J. R. Searle, nomeadamente aos atos ilocutrios diretivos e compromissivos. Na perspetiva de Gouveia (Gouveia, 1996: 390 apud Austin, 1962: 101)

    um ato ilocutrio corresponde enunciao de uma ou mais palavras numa

    frase, a partir da operao lingustica de atribuio de referncia e codificao de

    https://cdeassis.wordpress.com/o-que-e-poesia/https://cdeassis.wordpress.com/o-que-e-poesia/https://cdeassis.wordpress.com/o-que-e-poesia/http://classics.mit.edu/Search/index.html

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    significado, permitindo ao ouvinte compreender o que foi enunciado. O ato ilocutrio, muito prximo do sentido em que o performativo foi definido, consiste, por sua vez, no uso de uma frase linguisticamente operativa para efetuar algo, para realizar uma ao circunstancialmente funcional, como, por exemplo, prometer, ordenar, etc. Por ltimo, temos o ato perlocutrio que se traduz nos resultados ou efeitos produzidos com o efetivar do enunciado-ao. (Austin, 1962: 101)

    ou seja, aquilo que o autor de um texto faz iniciar um dilogo com o seu leitor

    atravs de um ato ilocutrio que, no nosso entender, tanto diretivo pois

    [o] objeto ilocutrio deste tipo de atos [atos ilocutrios diretivos] traduz-se na vontade de o locutor levar o alocutrio a realizar uma ao futura, verbal ou no verbal, a qual determinada pelo reconhecimento, por parte desse mesmo alocutrio, do contedo preposicional do enunciado proferido pelo locutor e da necessidade por este manifestada para que o alocutrio execute tal ao.

    O querer do locutor , portanto, determinante na configurao destes atos, que, contudo, se diferencia, em funo do modo como as foras locutoras so reguladas pelo objetivo ilocutrio, podendo ir desde a ordem sugesto, desde o pedido ao conselho, por exemplo.

    Tal diferenciao depende de uma srie de condies que determinam e regula, facto que passam sobretudo pelo tipo de relao social mantida pelo locutor e pelo alocutrio. (). De certo modo, o locutor estabelece as normas de comportamento do seu alocutrio, pois quer que ele aja de determinada maneira. (Gouveia, 1996: 394)

    como o compromissivo, dado que

    [o]s membros desta classe de atos [atos ilocutrios compromissivos] tm como objetivo locutrio comprometer o locutor relativamente prtica de uma ao futura, determinada pelo contedo preposicional do enunciado. ().

    Os atos ilocutrios compromissivos, tendo em comum com os diretivos o facto de se repostarem realizao de uma ao futura (por parte do alocutrio, no caso dos diretivos, por parte locutor, no caso dos compromissivos), distinguem-se carateristicamente daqueles e de outros atos, na medida em que expressam proposies cuja predicao temporalmente marcada com o futuro, mesmo que o tempo verbal utilizar seja o presente do indicativo ou outro.

    Nesta narrativa breve de S, os atos ilocutrios diretivos refletem a sugesto, a

    inferncia e, de certo modo, a condio do leitor imaginar determinadas atitudes que podero ser (e sero!) associadas ao contexto da narrativa ficcional. No caso dos atos ilocutrios compromissos, estes sero interpretados na condio do leitor ser levado pelas sugestes apresentadas, direta e/ou indiretamente, pelo autor/narrador.

    A emoo potica estar visvel neste ltimo elemento dado a inteno do autor

    envolver o leitor na sua trama ficcional e faz-lo percorrer o caminho trilhado pelas

    personagens. Se podemos verificar a presena da pragmtica nesta narrativa, tambm no podemos, de todo, descurar um outro aspeto da sua formulao: a noo de que, de certa forma, o autor tenta cativar e persuadir o seu leitor com elementos tpicos da retrica. Seguindo este mote, e segundo Aristteles, a retrica a faculdade de considerar, para cada questo, o que pode ser apropriado para persuadir. (Neto, 2011: 974).

    Neste contexto,

    [o] orador simbolizado pelo ethos: na sua virtude, em suma, na confiana que nele se deposita. O auditrio representado pelo pathos: para o convencer preciso impression-lo, seduzi-lo, e mesmo os argumentos fundamentados na razo devem apoiar-se nas paixes do auditrio para poderem passar e suscitar adeso. Resta, enfim, a terceira componente, sem dvida a mais objetiva: o lgos, o discurso, que pode ser ornamental, literrio, ou ento diretamente literal e argumentativo (Neto, 2011: 974 apud Meyer, 1994: 43).

    No nosso entender, ser o pathos um dos elementos primordiais que se poder ter em

    conta nesta novela. Para tal, nos serve a explicitao de que

    pathos objetiva a influncia afetiva, pretendida e exercida pelo locutor sobre o alocutrio, com a finalidade de nele exercitar, favoravelmente proposio, afetos violentos (movere, comovere).

    Este grau afetivo leva ao, atravs do impulso imediato, e consiste na adeso do esprito proposio apresentada. (Neto, 2011: 975)

    Tendo tal definio em mente,

    o pathos influencia a argumentao e a escolha da cenografia apropriadas ao alocutrio/auditrio, considerando-se que a adeso do alocutrio/auditrio se baseia num contrato intelectual entre esse e o locutor/orador.

    Esse contrato prvio se relaciona ao que mutuamente se concebe e admite entre ambos que revelado nas premissas da argumentao e nas imagens construdas e/ou pressupostas pelo locutor. (Neto, 2011: 978)

    No final, ser a capacidade do locutor de apresentar ao alocutrio, atravs dos

    meandros que a lngua lhe oferece, de forma sugestiva, apelativa, as razes pelas quais ele deve ter em conta um determinado tipo de comportamento/reao ao texto lido. Ou por outra, essas especificidades do texto retrico entram em linha com a noo de que

    [l]a retrica interpreta con un fin persuasivo, para extraer datos que luego

    conformen discursos capaces de convencer a un auditorio, la pragmtica interpreta cualquier mensaje, tambin con un fin no persuasivo, si es que existe una comunicacin en la que no intentemos influir sobre el otro. (Guervs, 2005: 183).

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    Em ltima anlise, sero as propriedades sociais (locutores e recetores legtimos, lngua e contexto legtimos...) no interior de um dado campo social, que a legitimam, que determinam a legitimidade e a aceitabilidade de um discurso. (Barriga, 2009: 35).

    Essa aceitabilidade ser referenciada aquando do uso de sentencias ms trilladas y

    corrientes si son adecuadas, pues por ser corrientes, como todos estn de acuerdo en ellas, dan la impresin de ser verdaderas (Guervs, 2005: 15 apud Aristteles, 1395). Tal s se poder concretizar pelo uso mecnico de determinados jogos sintticos e semnticos, com referncia constante aos j referidos atos ilocutrios defendidos por Searle2.

    Deste ponto de vista, e olhando para a obra em questo como uma narrativa

    ficcional, que de facto, podemos inferir que, [t]he text must allow the reconstruction of an interpretative network of goals, plans, casual relations, and psychological motivations around the narrated events. This implicit network gives coherence and intelligibility to the physical events and turns into a plot. (Ryan, 2004: 9).

    As implicaes so sempre feitas de acordo com o princpio de relevncia. Vamos

    inferir o que relevante dentro daquele contexto e que se adequa ao cenrio dado. (Dewes, 1997: 9) aquilo que faz com que um leitor se deixe contagiar pela linguagem diretiva desse tipo de texto.

    O leitor deixa-se, inequivocamente, contagiar com frases como

    O meu companheiro chorou em silncio, com lgrimas lentas e espaadas,

    Evitei um grito. () E que me fez revoltar por todos os olhares semelhantes com que o Mundo tem sido visto () e subir a vedao do campo na esperana de que o tiro misericordioso fosse certeiro. (S, 1990:21-24)

    ou ento

    () acreditar num farrapo humano, que disfarava os destroos da sua alma sob

    uma aparncia de serenidade. () A minha contradio era essa revolta sem objeto, era argumentar contra o silncio do meu acusado.

    () provava o erro enorme da condio humana. (). De todas as coisas erradas que me aconteciam, aquela seria decerto a que

    poderia trazer-me um menor mal. ()

    2 Aqui, seguimos as categorias de Searle onde podemos, sinteticamente, classific-los como assertivos,

    diretivos, compromissivos, expressivos e declarativos. Contudo, no podemos descurar das contribuies de Austin uma vez que foi ele quem iniciou o estudo dos atos locutrios ao distinguir as afirmaes de locutor sobre um outro e constata que afirmaes no podem ser julgadas por verdadeiras ou falsas, mas sim por felizes ou infelizes, com ou sem sucesso. (Searle, 2005) Os atos ilocutrios expressivos constituem por natureza uma rea

    E era uma recordao boa, a julgar pela aparncia. Sorriu docemente, um sorriso de serenidade, de calam de satisfao plena.

    () apeteceu-me de novo enlouquecer tambm, mas sem que pudesse

    aperceber-me de que enlouquecia. (S, 1990: 25-27). ou ainda,

    H coisas to difceis de imaginar que s podemos imaginar que as imaginamos Morrer de fome uma delas. (S, 1990: 35); At porque a dor, quando no se a sofre, parece mais tnue, mesmo quando memria do que se sofreu, e mais ainda se so outros que a suportam. (S, 1990: 49),

    A finalizar a obra, podemos ler que A Humanidade uma pgina escrita com

    meia dzia de linhas apressadas, num livro de milhes de folhas. E destinada a ser arrancada e dela no ficar memria, nem algum que possa ler o livro. (S, 1990: 51).

    Estes exemplos, no nosso entender, so Poesia. So-no pelo deambular entre razo

    e sentir, entre os meandros da lngua portuguesa e, nesse campo, conseguimos percecionar no s o contexto ficcional das palavras, mas tambm o elev-las ao campo do sensvel e do lgico.

    Em suma, acreditamos que a linguagem usada, seja atravs de uma panplia de

    recursos expressivos, quer atravs dos atos ilocutrios e da capacidade de enamoramento literrio que feito muito com recurso retrica sucede, sem qualquer prejuzo para a sintaxe e semntica da lngua usada.

    Alis, abona muito a seu favor, dado a forma extraordinria como o/a leitor/a a

    interpreta: interpreta o que l/leu, leu-o de forma to pessoal uma mensagem sobejamente universal que, em ltima instncia, vem concretizar a noo de que a lngua, como um organismo social reflexo dos seus utilizadores, meio essencial para veicular inmeras interpretaes a partir de, por vezes, simples emoes espetadas em simples palavras.

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    do eu, mas o eu na sua interao com o outro, agradecendo-lhe, pedindo-lhe desculpa, elogiando-o o, criticando-o, prestando-lhe apoio, numa cadeia de trocas verbais convencionalizadas pelo uso e pela cultura. (Palrilha, Silvria. 2009: 1)

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    2. CAROLINA CORDEIRO, UNIV DOS AORES E AICL, IN 25 COLQUIO DA LUSOFONIA MONTALEGRE 2016

    TEMA DANIEL DE S E A MULTICULTURALIDADE AORIANA DA LITERATURA

    Deus, afinal, est em toda a parte e o Mundo inteiro vem c ter com a gente Daniel de S

    A Literatura, e a sua respetiva leitura, to ou mais variada quanto o nmero de seres humanos capazes de a levar a efeito. Ao correr dos anos, desde os primrdios da espcie humana, o desejo de comunicar esteve sempre patente nas mais variadas circunstncias. Lembremo-nos das pinturas rupestres, do soar dos tambores, de representaes teatrais, do recontar estrias ouvidas at se chegar ao mundo infinito do papel. No esqueamos, tambm, os suportes tecnolgicos que hoje em dia esto disposio de todos. Todos estes elementos confluem para a comunicao e, em todos eles, est patente a noo de transmisso de ideias e ideais, de atitudes e comportamentos e de Histria e cultura; enfim, so reflexo da evoluo dos tempos. Segundo Santiago Posteguillo,

    todos os autores so, em determinada altura, influenciados por um outro autor anterior a ele. So influenciados pelo trabalho e por aquilo que as obras deixam transparecer. (Posteguillo, 2012: 113).

    A influncia tanta que chego a questionar se a literatura no ser toda proveniente de um nico livro (...), mas um livro recuado no tempo, que mal aflora as minhas lembranas (Calvino, 2002: 219)

    Tudo isto, de alguma forma, reporta-nos para a questo: o quo importante a Literatura e a sua leitura? A questo de alterao de forma de leitura de um texto j no nova. Na verdade, o novo coincide muitas vezes com o que j caiu no esquecimento (...) [e] da mesma maneira, sobrevivero outras formas de narrar, outras formas de ler histrias (Posteguillo, 2012: 2016-214). S a literatura no morrer. Ganhar distintos recetores, diferentes metas, mas existir enquanto houver Histria e memria j que um jogo fascinante entre o que escrito, pensado, lido e interpretado. Um dia, os autores empricos morrero, mas as suas palavras no, nem to pouco os seus personagens: [h] mais mundos. Grandiosos mundos (Carvalho, 2014: 21) para alm das aldeias abandonadas deste mundo e h mais leitores do que pases, o que apenas querer dizer que haver, inequivocamente, uma panplia interminvel de posies face leitura, ao livro, interpretao, ao autor e a todos os elementos que rodeiam o mundo da leitura.

    http://www.prof2000.pt/users/dicsoc/soc_s.html#sociedadehttp://www.gutenberg.org/ebooks/8905http://www.webhumanas.net/plat%C3%A3o,arist%C3%B3teleseapoesiadehomerohttp://br.egroups.com/group/acropolis/

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    A Literatura a grande educadora dos sentimentos (Zschirnto, 2002) livro, como fruto de uma forma de estar, o caminho interpretao variada e h-os de todos os tipos, formas, tamanhos, cores e sabores depender da disposio que cada um ter para apreci-lo. E mesmo uma leitura repetida prova-se distinta pois o leitor j no ser o mesmo. J ter sido, quanto muito, influenciado por aquilo que a primeira leitura o fez pensar e sentir. Segundo Gonalo M. Tavares:

    (...) o homem lcido, [] aquele que sabe que a sua sade depende das dietas que a vontade escolhe: dietas de carne, verbo e ideias. E ainda de movimento e aes. O que escolhemos para comer, o que escolhemos para ouvir e falar, o que escolhemos para ocupar a nossa cabea, o nosso pensamento, o que escolhemos fazer. Eis o que determina o vigor de uma existncia ou o seu declnio. (Tavares, 2013: 238).

    Ora, se o comer e o beber suportam o nosso corpo, a literatura suporta a nossa mente e o que far desta uma experincia corporal individual (Ibidem, p. 515); o que a far um projeto de vida, logo, um conjunto de aes essenciais sobrevivncia do Homem. atravs da Literatura (no olhando nem a modos nem a gneros, nem tendo em vista o contexto e interpretao) que o Homem aprender como integrar-se, melhorar-se e compreender-se. Poder no ser quid pro quo. Ela proficiente, mas no milagrosa; , indubitavelmente, uma promessa de sentido, (Steiner, 2006: 13), um meio de propagao de conhecimentos, de gestos e de culturas; uma manifestao de sensibilidade, de esttica, de gosto e de saber. Uma criana ser melhor adulto tanto quanto mais cedo entrar em contacto com o mundo da leitura pois quanto menos se l, menos curioso se , menos se aprende e menos se conhece o mundo e a si prprio. No obstante, e parafraseando Steiner (2006: 25), o ato de ler livros, pressupe um determinado conjunto de circunstncias e, a longo do tempo, leitura tm sido apresentados desafios quer na interpretao, quer na divulgao e quer, ainda, no ensino da prpria Literatura. Entendamo-las como possveis formas de ler os textos literrios (Laranjeira, 1996: 10). Assim, caber a todos, na generalidade, a responsabilidade de comunicar e de divulgar os conhecimentos, estejamos onde estivermos. No ser lgico colocar um livro acima de outro, em termos de qualidade. Ser apenas concebvel considerar o seu valor em termos opinativos. E, mesmo assim, necessrio que haja leituras e leitores. Ora, este facto, cada vez mais, tem vindo a ser discutido dado a constante quebra de leitores vs. a imensido de livros (fsicos e virtuais) publicados e / ou disponveis ao consumidor.

    A noo de leitura literria, como uma forma de pensar e falar, como na viso de Manguel (1998: 58) j se esmoreceu. A procura, o tempo despendido, o conhecer e o questionar j no ocupam o cerne da vivncia. Nos nossos dias, j no existem os atletas[s] da linguagem, como Tavares (2013: 515) sintetiza, metaforicamente. Hoje em dia, entendo o processo de leitura - daqueles que efetivamente a fazem - de forma praticamente isolada, sozinha. Como Steiner (2006, p.48) afirmou,

    [a]s torres que nos isolam so mais slidas do que o marfim. Relembre-se a preocupao que este mesmo autor demonstrou quando profetizou que as prximas geraes desconhecero determinados jogos de palavras e / ou vocbulos (VPRO, 2000: 13:46).

    A dificuldade em levar um jovem a ler atribulada e muitas vezes morosa. Contudo, no impossvel. A Literatura , no nosso entender, um vasto mundo onde a sua influncia fulcral para o bem-estar do ser humano. A leitura que se faz dela, a partir dela, pode e deve variar; pode e deve distinguir-se umas das outras; pode e dever manifestar-se com o corpo e para o corpo; pode e deve espelhar-se nos hbitos e nos costumes de um ser, de uma sociedade, de um povo. A leitura literria o desafio do sculo, a alimentao do nosso futuro. E, s-lo- no s no seu entendimento puramente escolar, mas no seu entendimento como fonte de prazer, de conhecimento e de ajuda. Ter de ser um intercmbio de palavras pensadas, ditas ou escritas por um (uns); lidas, interpretadas e sentidas por outro(s) e exercidas e praticadas por todos. A literatura um convite vida, um convite ao saber, ao querer, revolta e opinio individual. Ao abordarmos um tema to vasto quanto o da Literatura, no podemos dissoci-lo das suas mais variadas nuances. Existem, de facto, diversos tipos de literatura, diferentes contextos literrios, diferentes perspetivas e diferentes leituras do livro. Todos os leitores so influenciados por todos as distintas interpretaes e so, de igual modo, influenciados por todos os escritores. A literatura ajuda a manter o Homem e as suas existncias vivas, em todos os seus parmetros, apesar das suas condicionantes exteriores. No nosso caso, Literatura to vida quanto o o estarmos aqui perante vs e -o como Ler beber e comer [pois o] esprito que no l emagrece como um corpo que no come (Victor Hugo). Culpa mea! No nos alimentamos, pelo menos no a nossa alma, o suficiente pois s h pouco tempo descobrimos a palavra de Daniel de S, no seu total. Algures no tempo, Andr Malraux comentava algo do gnero: um encontro de escritores e de leituras era o pilar, era a utopia de que esses tais eventos poderiam gerar mudanas profundas e duradouras na relao entre o povo e a cultura. Poder j no ser assim, mas, tambm, poder ainda s-lo. E, numa busca por conhecer mais e melhor a literatura aoriana, ou a literatura de teor aoriano ou ainda a literatura cujo escritor e / ou

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    escritora natural ou apaixonado / a por estas ilhas do atlntico, descobrimos um homem que nos deixou sem cho. No, no camos. O nosso cho no abalou fisicamente, mas a nossa viso sobre a nossa prpria existncia curvou-se perante a realidade das palavras escritas por um narrador que, tardiamente, vimos a descobrir. Mas, como a sabedoria popular nos ensina, tarde o que nunca chega quando algo tem de nos chegar e chegmos porta do senhor Daniel de S, mesmo que metaforicamente. No o conhecemos pessoalmente, com muita pena nossa! Apenas lemos sobre ele, ouvimos falarem sobre ele e sentimos o que por ele, outros, sentiram, ao conviver com tamanha personalidade. O adjetivo tamanha nosso pois nosso entender que uma figura como a de Daniel de S estende-se para alm das fronteiras da freguesia da Maia, propaga-se para alm das fronteiras de uma ilha e espalha-se por todo um territrio que, segundo dizem, ele prprio no sentia grandes vontades de conquistar. Mesmo que assim o fosse (ou no fosse), mesmo que a sua vontade no fosse a de conquistar ou visitar esse mundo fora portas, fora da sua calma existncia insular, a verdade que as suas palavras, j chegaram a outros pontos, para alm do anglo-saxnico e, muito em breve chegaro a outros, estamos em crer, pois tal o seu sentir, a sua aceo do mundo e o seu discorrer da vida, na folha de papel, que no possvel que exista s entre ns, ilhus de um mundo literrio, continuamente, por (re)descobrir. Por um lado, verdade: gostaramos, por puro egosmo, que a sua descoberta, por parte de outros, tivesse sido guardada para mais tarde. Mas a s estaramos a agudizar o nosso sentido de posse perante a obra dele; posse, no s enquanto leitores (e unicamente como leitores apaixonados por um relatar de vida, que to nosso como vosso, como de qualquer um que se debruce sobre a aprendizagem da Literatura). E, especialmente por estarmos a falar de Literatura, seria imprprio da nossa parte querer cingir a obra de Daniel de S nossa singular existncia. Seria, efetivamente, deturpar o sentido original do objetivo ltimo de Daniel de S: a partilha das palavras fora de portas. Da que, esperemos, paulatinamente, a que sua obra seja conhecida e estudada por todo o canto onde, pelo menos, haja um aoriano ou uma aoriana. Com isto, no pretendemos minguar a leitura das suas obras por outros que no sejam de origem ou corao aorianos. De todo! Que a sua obra seja lida por todos e em todos os lugares.

    Simultaneamente, no pretendemos relanar ou calcetar a questo de aorianidade nem a questo de haver ou no uma literatura aoriana. Apesar de defendermos que a h, com determinados contingentes, para evitar futuras dbias intenes ou breves confuses, tomaremos a liberdade de atribuir s obras de Daniel de S, aqui referenciadas, o ttulo de obras de literatura da multiculturalidade aoriana no por satisfazer um propsito narcisista qualquer, mas por saber que Daniel de S pensava na literatura como um todo e no como uma parte.

    Segundo ele mesmo:

    [o]s meus cenrios e as minhas personagens so criadas de acordo com a necessidade da obra, nunca para servir o interesse de me mostrar agarrado ao torrozinho natal ou de me fingir universalista. (Freitas, 1998: 143-144).

    Na sua recente obra, Mnica Serpa Cabral (2015: 26), afirma que a literatura aoriana se insere na literatura nacional, porque geminou de sementes trazidas do continente ao longo dos tempos, mas diferente porque cresceu e frutificou em solo igualmente diferente e com esta viso descentralizadora da literatura que nos confessamos defensores de Daniel de S como escritor do mundo e para o mundo. Daniel de S, naquilo que entendemos como literatura, um mestre na declarao da independncia literria (Cabral, 2015: 29).

    No esqueamos o que ele mesmo afirmou numa entrevista a Vamberto Freitas:

    Talvez tenha surpreendido aqueles que julgam que um escritor tem de ser fiel a uma cartilha s. Pessoalmente, nunca pus os Aores nem acima nem abaixo de nada. O que me interessa, sobretudo, a condio humana, e vou tentando retrat-la conforme me sinto (Freitas, 1998:143-144).

    A obra de Daniel de S entranhou-se-nos como algo que no sabemos explicar. Talvez para alguns, o termo entranhar seja demasiado forte, mas a verdade que, ao lermos as linhas de, por exemplo O Esplio (S, 1987) sentimos a presena de uma luta, de um derramar de vida, to vvidos, que nos fez sentir que ramos

    Um oficial que transforma em nmeros para a vitria os corpos que no se mexem, os crebros que nada sentem. A conquista. De uma aldeia to destruda que nem servir para o refgio de feras. Punhos fechados. Contra uma cara que se v pela primeira vez. Ps que machucam corpos. No seu primeiro encontro. O ar incendiado de cheiros, todos os cheiros da morte. O mato percorrido por fugas. Povoado de cadveres. A fria. O medo. A fria sem razo. O medo com toda ela. Muitos sem amanh. Sem um logo sequer. Tudo agora. E o agora to breve que nem existe. bom ser breve um tempo destes. Eternamente longo para quem segura as tripas com as mos. Para quem tapa os olhos que j no tem. Para quem aperta uma ferida sem mos para apert-la. O silncio. O banquete das hienas. Dos chacais. Dos abutres. O espetculo dos msculos desfeitos que no doem. Dos ossos triturados que j no martirizam. Do sangue que nada se sabe. Sem gritos de dor. Sem protestos. O que sobrar do festim ser podrido. Se se dar conta dos vermes. E o que foi feito festim se h de tornar excrementos. Excrementos do que foram corpos. Corpos que fugiram ao medo sem ter para onde fugir. Matria bruta sem vida. Sem saber que viveu. (S, 1987: 34)

    A poesia com que o autor descreve a dor, o vagar do suspiro, a realidade de um confronto e de um ciclo de vida, marcante. To assim o que nos inebria os sentidos e coloca-nos em qualquer parte do mundo, sem que tenhamos a necessidade de nos vermos

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    ou de sermos seres de um arquiplago, onde a ilha sempre foi (literariamente e empiricamente) condicionante da partida e da chegada; do querer e do perder. As palavras de Daniel de S expem apenas a sua capacidade em se outrar numa voz to nacional como internacional. Poder-se-ia aqui explorar as diversas nuances da interpretao das palavras de Daniel de S. Contudo, no o que pretendemos. Pretende-se apenas que ns, leitores, nos consigamos espelhar nelas, como qualquer outro leitor ou leitora o poderia fazer, em qualquer parte do mundo ou naquilo que temos em nosso redor. Assim, e ainda segundo Serpa (2015: 96- 97):

    O grande escritor aquele que, a narrar-nos o seu microcosmo, consegue faz-lo de modo que o leitor veja l tambm o seu. Assim, embora haja uma forte ligao entre o conto aoriano e uma patente referencialidade espacio-temporal, os sentimentos, os valores, as ideias ultrapassam os mundos localizados, mas personagens, com as suas alegrais, com as suas dores, com os seus sonhos, afinal personificam aspetos da condio humana, provocando a reflexo sobre o prprio Homem e sobre o seu lugar no mundo e fazendo-nos mergulhar no ar imenso da solido interior, nos labirintos das emoes e das relaes. Neste sentido, a ilha pode j no ter uma existncia concreta. Pode passar no plano metafsico e espiritual: ser um estado de alma. (Serpa, 2015: 96- 97)

    Confessamos que a vontade de ler as restantes obras de Daniel de S, aps a leitura inicial da obra O Esplio (S, 1987), foi fulminante. E, quanto mais o lamos mais se nos afigurava a noo de que o mundo era to distinto por nunca termos, at ento, tido o discernimento de ler Daniel de S. E, como em qualquer grande voz literria, a voz que sobressai do papel toma vida de tal guisa que parece que as letras ganham perspetivas e formas, parecem marchar nossa frente numa inconfundvel parada onde o nosso saber treme e se confunde com a nossa inquieta insatisfao por nunca antes ter presenciado tamanha beleza. Confessamos, novamente, que assim, igualmente, foi o que sentimos ao termos lido Gnese (S, 1982: 31- 32) e, muito em particular, a seguinte passagem:

    Albachente voltou a ser um lugar sem guerra aparente, repousada no sossego dos seus vales e montanhas. As notcias chegavam coadas por vrias dificuldades e transfiguradas nas vozes correntes que as levavam de casa em casa. S os mais lcidos temiam a dimenso mais ou menos exata do conflito e o imaginavam prolongado muito para alm, da paz ansiada e talvez longe, porque os donos da guerra, se podem fazer no corao dos homens que, legal e patrioticamente, se odeiam e se matam. Nunca, nenhum armistcio, por mais respeitado e prolongado, passou alm de um silenciar de armistrondos, como nunca a quietao das armas

    restabeleceu a paz real, porque os mortos continuam por ressuscitar. As cidades reconstrudas disfaram a aparncia do que houve, mas no reconstroem os homens, porque as almas caiem inteiras, no so parcialmente destrutivos nem de modo algum recuperveis. O remdio que lhes poder dar o da habitao do tempo; os sobreviventes acostumam-se a viver sem alma, e tudo. As mos podem passar a apertar-se num acordo tcito ou declarado de que o respeito voltou, mas o esprito no aceita, porque no compreende, que haja uma dimenso nova por que possa aferir-se o sossego real da inteligncia. Porque se, num dia ou num momento que seja, a morte for justificvel, esse dia ou esse momento bastaram para romper as barreiras do absurdo e fazer com que o homem deixe de ter sentido. E, num homem que perde o sentido de existir, nada est bem e nada est mal; como a chuva a cair no mar: o mesmo ser e no ser. E o pior a conscincia que dessa condio fica. E a insensibilidade para voltar a ser homem. E a capacidade para julgar que causa repulsa verdadeira a Fuzilamentos de maio que Goya pintou, e a capacidade para estar sempre mais disposto a interpretar uma das personagens que disparam do que outra das que lhe esto frente. E o homem sem pensar que, quando mata um seu semelhante, est a cometer a mais trgica forma de suicdio. (S, 1982: 31- 32)

    Pelos tempos que a Humanidade presentemente vive, este excerto resulta como que uma espcie de anteviso, um alerta para o futuro de ento, agora presente. A literatura tem esse poder! Tem o poder de nos transportar para alm de ns mesmos e do nosso tempo. As palavras de Daniel de S tm o poder de nos colocar no nosso lugar e de nos vermos em todos os recantos do universo. to particular como geral; to insular como continental; to pequeno como enorme. No cremos existir adjetivos para qualificar a amplitude com que ns, leitores, podemos abraar aquilo que este senhor nos legou, nas suas obras. Relendo, novamente, a obra de Serpa (2015: 241- 242), e lendo, quase compulsivamente a obra de Daniel de S, -nos impossvel no constatar:

    Conhecer Daniel de S e a sua escrita viajar no tempo, mergulhar no imaginrio, conhecer o processo cultural desenvolvido nos Aores, mas no s. De facto, as preocupaes intelectuais e literrias do autor no se confinam a estas ilhas, j que explora assuntos to variados mo a expanso ultramarina, a Inquisio, o nazismo, a Guerra Civil Espanhola, a ameaa nuclear, os dilemas existenciais do homem moderno, entre outros. Parece evidente a tendncia do escritor para transportar para a fico elementos do real, construindo narrativas a partir de factos histricos e tornando difusas as fronteiras entre os gneros. (Serpa, 2015: 241- 242)

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    De entre as obras do autor, O Pastor das Casas Mortas (2007) tido, por muitos, como a sua melhor obra. Pelo menos a mais lida e, igualmente, a que abarca os melhores adjetivos, pela maior parte dos crticos. Como todas as crticas e crticos, tal assero duvidosa. Mas, devemos assentir que no nos ficamos por menos: a obra O Pastor das Casas Mortas (2007) um marco indelvel na nossa aprendizagem sobre a leitura e sobre a Literatura. Mas -nos difcil aferir se uma obra melhor ou menos apetecvel do que uma outra, pelo menos em alguns escritores e em Daniel de S, tarefa ingrata e quase impossvel. Resta-nos afirmar que, a obra que dedicada []s mulheres e aos homens que ainda acendem o lume nas ltimas aldeias de Portugal (S, 2007: 5) um somatrio de tudo o que nos propusemos a alcanar com esta comunicao. Por outras palavras, com esta estria onde [t]alvez a personagem [passa] a querer escrever a sua prpria histria. E, se isto que quase todas elas fazem, no devem nunca saber que o fazem (S, 2007: 11) e aqui que encontramos a multiculturalidade de Daniel de S, a partir do seu canto aoriano. Talvez o seu mote de se desprender dos limites castradores de um lugar geogrfico e das suas consequentes limitaes para o ser humano seja o que o absorveu e o que o demarcou, no apenas como deputado das nossas I e II legislaturas da Assembleia Regional Aoriana, mas tambm como escritor.

    Segundo o testemunho de Artur Francisco Pereira Martins (ex-presidente da Cmara Municipal da Ribeira Grande), inserido na obra de dirigida e coordenada por Dionsio Sousa (2015: 147) Daniel de S no queria promover a sua carreira, queria ajudar, e isso dava-lhe uma autoridade que todos se sentiam inclinados a respeitar. No sublinhava as diferenas, preferias unir e colaborar. Talvez por isso, e como no nosso entender, um escritor no se pode, jamais, distanciar de forma linear da sua vida emprica, a forma como Daniel de S abordava a literatura era vivendo-a e partilhando-a com os demais, assim como o fez com o seu poder enquanto deputado.

    Ao termos em conta as suas intervenes polticas, onde numa afirma:

    [o] progresso de um povo sempre diretamente proporcional ao seu nvel de cultura. E isto porque ambos - progresso e cultura - geram-se mutuamente, sendo difcil - ou talvez at impossvel - distinguir qual dos dois se sobrepe ao outro. () sem cultura no existe progresso. (Sousa, 2015: 93).

    Ainda, numa outra das suas intervenes, a 26 de junho de 1980, Daniel de S no

    se fez de rogado (alis como era seu apangio) e comprova aquilo que mais tarde diria e mais tarde seria o fio condutor de toda a sua obra.

    Assim, nessa interveno poltica acerca do percurso histrico da ideia autonmica,

    afirma:

    A evoluo da Histria d-se no sentido de que cada homem se senta cada vez mais como cidado do Mundo, J no nos podemos pertencer somente

    ao crculo fechado de uma ilha ou de uma ptria sequer. Somos um ser universal em que vai sempre em aumento a conscincia da sua universalidade. A ptria passou a ser um bero de origem onde se nasce para a fraternidade com todos os homens, mas que no justifica nunca, pelo facto de se a nossa, que se deva ou possa estar contra os cidados de uma outra ptria. (Sousa, 2015: 101)

    Ainda na obra de Dioniso de Sousa (2015), num dos vrios testemunhos sobre a pessoa e a personalidade de Daniel de S, corroboramos a opinio de Ana Lusa Pereira Lus quando afirma que Daniel de S [c]onfessou-se um homem fisicamente isolado por gosto, embora no se identificasse com o isolamento cultural nem intelectual. A sua obra demonstrou isso mesmo: Daniel de S era um universalista. (Sousa, 2015: 209).

    Seguindo a mesma ndole opinativa, vemos que todas so um somatrio de tudo o que temos professado, nessas nossas parcas pginas. Desta feita, temos a de Carlos Csar: [p]ensei, e tinha razo, que ele era um homem do mundo por mais que se reclamasse rural e sedentrio. (Sousa, 2015: 225). Mais frente, a vez de Joo Bosco Mota Amaral afirmar

    () as personagens de fico de Daniel de S no so meras figuras folclricas, antes nelas se descobrem as angustias e as aspiraes que marcam a condio humana. Da a sua universalidade e a universalidade do seu criador, que logrou assim projetar as nossas ilhas e as suas gentes muito para alm dos limites naturais que a todos nos encerram. (Sousa, 2015: 231- 232)

    Toda a obra de Daniel de S , no nosso entender, o reflexo direto da sua mentalidade, da sua viso sobre o que o rodeava, pois [n]a sua escrita pulsam os homens e mulheres de c, com dores comuns a tantos outros de l! (Sousa, 2015: 305).

    Qualquer uma das suas obras literrias revela uma capacidade de se outrar e de se espelhar como sendo o que sempre assumiu que era: um homem entre os Homens, de igual condio para igual sonhar. Se, por um lado somos colocados perante ora uma viso de uma guerra, or uma viso de um conflito vivido fora portas ou ainda uma viso do seu egocentrismo, aquilo que impele o texto de um escritor ou de um autor, sempre a marca desse mesmo autor e desse mesmo homem.

    No nosso caso, o homem Daniel de S faz uso da sua capacidade criadora para

    nos fazer, a ns leitores sedentos das suas palavras, deambular no meio de uma aldeia perdida, que se vai, paulatinamente, perdendo ao longo do tempo, onde s a memria da personagem de Manuel Cordovo vai mantendo acesas a esperana e a saudade de um amor ficado por viver, o companheirismo vivido no meio e pelo meio das pedras a quem a gente d nome quilo que ama. (S, 2007). No nos podemos escusar de constatar que a leitura das obras de Daniel de S pode (e deve) abordar a facilidade e a intencionalidade com que o autor partia do mais

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    singelo facto para se (e nos) transportar para um patamar acima do seu (e nosso) comum conhecimento. Estamos em crer que a sua escrita sempre foi elaborada no sentido de construir mais e melhor para aqueles que se sentissem cativados pelo saber. E, mesmo para os que no o conseguiam ou queriam, havia sempre algo que, na sua escrita e na sua leitura, os pudesse fazer pensar sobra a intencionalidade da sua escrita. assim que interpretmos a primeira leitura do ttulo Ilha Grande Fechada:

    H semanas que no chove, e j se fala em seca. Enche-se o cu de nuvens escuras, compactas, de linha a linha no horizonte, fechando-se sobre a terra que espera gua em vo. Depois desaparecem quase todas, as nuvens, deixando uma incmoda sensao no ar temido, asfixiante nos mil e trinta militares do anticiclone que sempre anda perto. E voltam a formar-se e a desfazer-se. E vem o sol de novo e uma aragem clida que levanta poeira nos caminhos e nas terras lavradas. Desaparece o sol. E a luz uma penumbra. E outra vez pedaos de sol, buracos no cinzento das nuvens. Nuvens somente, a penumbra. O sol. Uma claridade fantasmal. A penumbra. Dias seguintes assim. (S, 2010: 67).

    Como em qualquer narrativa, o leque interpretativo quase sempre to vasto quanto a noo de vida e do conhecimento que o leitor ou leitora possui acerca do assunto Literatura. Neste contexto, tanto poderamos afirmar que esta ltima obra citada to aoriana como internacional. No possvel que por um vocbulo apenas se convirja todo o seu valor a uma nica circunstncia, mas possvel que a partir dela se constate a nossa prpria. Daniel de S , nas palavras da sua filha mais velha, um homem que [c]hegou sozinho, e a partir da sua aldeia da Mais, mais cedo e mas longe que todos ns (Sousa, 2015: 195) Se Literatura abrir o olhar e a mente palavra que tocamos, ento ler Daniel de S ler a mente de um homem cujo caminho de vida se fez volta da cultura e do propagar essa mesma cultura a todos os cantos do seu canto e a todos os outros cantos do mundo, j que nenhum Homem seria completo sem que absorvesse o conhecimento de si e do mundo que o rodeia. E, em todas as suas obras, sem haver a necessidade de estarmos constantemente atentos, -nos mostrada a alma humana nos seus mais bsicos instintos e nas suas mais superiores intenes; e, tal faanha apenas reservada a alguns mestres da palavra, a alguns seres entendidos na matria do saber humano; reservado a homens como Daniel de S. Ele, rapidamente, tornou-se num dos amores da nossa vida. E, como tal, um amor para se ir cuidando e ir-se apreciando medida que o tempo nos escorre pelos dedos e medida que o conhecimento nos vai dilatando a ris do nosso pensar. Ler Daniel de S tanto aprender sobre a nossa terra aoriana como aprender sobre o nosso mundo fechado, como saber do nosso mundo inteiro.

    BIBLIOGRAFIA

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    3. CAROLINA CORDEIRO IN 26 COLQUIO LOMBA DA MAIA 2016

    TEMA A INDELVEL PRESENA DO MUNDO NOS ESCRITOS DE DANIEL DE S,

    As palavras no tm assim um valor prprio: certas palavras no levam imediatamente a certas sensaes. H, portanto, uma mistura entre Situao e Palavra e dessa mistura resulta uma sensao. Gonalo M. Tavares

    A literatura me de inmeras vivncias e sempre uma resposta arte e

    vida. (Dores, 2016: 75)

    https://www.youtube.com/watch?v=Oear9SEXQKQhttps://www.youtube.com/watch?v=Oear9SEXQKQ

  • 13

    Cada espao est intimamente ligado criao artstico-literria de cada autor / a s suas prprias experincias empricas ou pseudoimaginrias. Nenhum(a) criador(a) literrio(a) se desvia das suas vivncias geogrfica e histrica; nenhum(a) criador(a) literrio(a) se esconde da sua infncia, da sua juventude e das suas experincias adultas, mais ou menos felizes.

    Nenhum autor, nenhuma autora, se separa do seu para falar do todo, por muito que se

    mascare de outrem. O impulso artstico a arte de transformar o lugar-comum em espaos de intimidade, o tempo e o espao, entre as palavras do quotidiano autoral e o espao emprico da interpretao, a raiz pela qual uma obra nasce, vive e prevalece o passar dos tempos.

    assim que observamos a influncia das obras de Daniel de S, nos leitores do nosso

    tempo, dado que Daniel de S o homem de seu tempo, mas que tem a sua cultura ancorada solidamente na tradio humanstica (Fagundes. 2016: 18)

    Numa leitura abrangente pelas das obras de S, entre as que so mais conhecidas e

    as que so menos apreciadas, a nossa viso implica a argumentao de que, a partir da exgua morada da sua escrita, desde o seu espao na Maia, h uma unicidade face ao tema (que perpassa todas as suas obras) e, em simultneo, h uma multiplicidade de lugares que lhe / nos so to prximos e, concomitantemente, to distantes. H no escritor Daniel de S uma indelvel presena do mundo.

    Mnica Serpa Cabral afirma que

    [c]onhecer Daniel de S e a sua escrita viajar no tempo, mergulhar no imaginrio, conhecer o processo histrico aoriano, marcado sobretudo pelo fenmeno da emigrao, mas no s, pois Daniel de S e, igualmente, um escritor alm-fronteiras. De facto, a sua obra revela um olhar que no se circunscreve ao espao geogrfico aoriano, percorrendo outros lugares, outros tempos e outras culturas.

    Com um estilo incomparvel, linguagem contida e simples, ironia subtil, , sem dvida, um escritor sem limites, interessado essencialmente na reflexo sobre a condio humana, tendo-se inspirado na Histria, na psicologia das emoes, no tempo, no espao geogrfico e social para contar histrias de forma criativa e autntica.

    Assim, a sua escrita tem como pano de fundo realidades to distintas como Espanha, Portugal continental, Aores, Estado Unido, Brasil, Polnia, cobrindo assuntos to variados como a expanso ultramarina, a Inquisio, o Holocausto, a guerra civil espanhola, a ameaa nuclear, os dilemas existencialistas do homem moderno, entre outros.

    Parece evidente a tendncia do escritor para transportar para a fico elementos do real, construindo narrativas a partir de factos histricos e, por vezes, tornando difusas as fronteiras entre gneros. (Cabral. 2016: 230-231)

    Com estas palavras de Cabral -nos fcil embarcar nas obras de Daniel de S, pois

    corrobora a nossa opinio sobre este nosso escritor da Maia. Ou seja, os smbolos

    paternos e maternos das ilhas da sua existncia, a voz criadora de Daniel de S no se cinge s suas viagens (poucas quando em comparao com outros autores considerados mais conhecedores do mundo), mas d-nos razo no mote a que nos propomos exemplificar, nomeadamente a referncia de que, nas obras de Daniel de S, h uma forte marca do mundo e que nas suas margens literrias, geogrficas e histricas, h na escrita nascida a partir da freguesia da Maia, elementos que as tornam universais.

    Durante largos anos, a escrita vinda dos Aores era marcada pela crena em algo

    superior, divindade ou no. Era ponto assente na vivncia das gentes das ilhas que, estas mesmas ilhas eram marcadas pelo contnuo chamamento das foras ditas celestiais. Mas, tambm inegvel a presena da crena, muitas vezes crendices, em algo que suportaria o queixume do que haveria de vir numa manh, tarde ou noite de nevoeiro.

    Crescemos pensando que somos ilhus propensos a dores, a queixumes e a suicdios,

    face vivncia num isolamento brumoso. Eis que, por isso ou no s por isso, nos aparecem mo uma panplia de escritores, nascidos e criados por uma geografia que condicionou e, de certa forma, ainda condiciona, o nascer de uma palavra num papel.

    Em Daniel de S no precisamos recuar muito tempo para discernir a fora que uma

    palavra pode ter, numa determinada leitura. Esse recuo, infelizmente, no poder ser feito empiricamente, mas podemo-nos apegar s suas palavras e fazer delas jus condio de se ser ilhu num mundo totalmente globalizante e englobador. No contrassenso. um facto. Podemos ser, e muitos de ns o somos, filhos destas pedras que nos marcam para todo o sempre, quer c nasamos ou no. Da que ser ilhu apenas um elemento de uma produo artstica, seja ela a que nvel for. E, no condio castradora! De todo!

    Acreditamos, at, que nos adiciona mundos e que nos faz caminhantes para fora dos

    seus tradicionais eixos. O nascer-se ilhu um extra na experincia de vida. Poderia ser egosta da nossa parte tal assero por no termos nascido noutros belos locais deste mundo, mas nosso entender que s podemos falar do que sabemos. E sabemos que, destas ilhas, muito talento nasceu e estamos aqui, novamente, para vos falar de um que nos apraz, particularmente e que muito cedo nos deixou: Daniel de S.

    Conhecemos o Daniel de S dos livros que deixou. No entraremos em comparao

    com a possvel interpretao da sintaxe e da semntica das suas frases, mas sim, concentrar-nos-emos no fator da sua criao, abraando-a como ponto de partida, numa terra abenoada e, ad aeternum, abensonhada, como nos ensinou Mia Couto.

    As palavras de S recorrem ao que caraterizamos como o mundo adentro da ilha

    descrita. Ele cria mundos (como apangio da literatura) para fora de si enquanto escritor, para o interior do leitor fazendo com que este sinta, mesmo no espao mais recndito do pas, mesmo no tempo mais recuado da sua vontade, a presena da palavra que se transforma em terra, em mar, em casa, em amor, em conflito e em tantas mais palavras e emoes comuns a todos ns que vivemos a vida.

    S desdobra a palavra e marca-a no s com laivos de insularidade aoriana que,

    olhando mais profundamente conseguimos quase que absorver os sentidos da vida dentro

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    de cada ilha, mesmo que distintas, mas no deixa que essa mesma palavra faa do seu texto um texto unicamente insular aoriano.

    Pelo contrrio: a sua palavra marca uma vivncia to insular como universal e foge da

    cedncia aos lugares-comuns. Nas palavras de Luiz Antnio de Assis Brasil e Gabriela Silva, Daniel de S cria um universo que existe: os Aores, ou mesmo Portugal continental, mas se trata de um microuniverso de relaes que tem as ilhas como ponto de visada. (Fagundes. 2016: 20) at porque, e segundo o prprio S o mundo inteiro vem ter c com a gente.

    O escritor Joo de Melo refere que nenhuma cultura tem apenas um molde pois na

    sua substncia que ela existe (Almeida. 1983: 167). Por muito que a literatura aoriana tenha sido marcada pelos registos de ilha, pedras negras, mar, regresso entre tantas e tantas mais, no h um medidor, um molde por onde ns possamos enquadrar e moldar uma literatura j que esta to diversa quanto a diversidade do ser humano. por isso que no h regras, mas sim substncia.

    Muitos so, e inclumo-nos nesse grupo, que acreditam que desde Nemsio o regional

    universalizou-se (Almeida. 1983. 47). Quer-se dizer, nas palavras de Eduno Borges Garcia, que

    () o escritor fale de um homem particular, vivendo em determinadas

    circunstncias, mas que o faa de modo a que a sua criao artstica fale por si prpria. O conto, a novela, o romance, a pea de teatro quer se passem nos Arrifes ou na Ribeira Quente, se realmente valerem, tantos sero compreendidos e sentidos por qualquer San-Miguelense como por qualquer japons ou italianos. (Almeida. 1983: 52) Jos Martins Garcia, em 1987, afirmou que Julgar-se que a literatura aoriana se

    resume num espao geogrfico seria conden-la a fronteiras que ela jamais reconheceu. (Garcia. 1987: 113). Ainda segundo Garcia, note-se que

    [t]orna-se hoje visvel que a literatura aoriana deixou de acatar as normas da

    estreiteza regionaliza para abordar os mais variados problemas da condio humana. No uma literatura caraterizada por uma temtica porque, muito simplesmente, nenhuma literatura o . Pode caraterizar-se, isso sim, pelo modo como os escritores aorianos (dentro ou fora dos Aores; nascidos nos Aores ou algures) tratam o material que esteia as suas obras. Determinar-se esse modo, essa forma especfica de elaborao de tais obras, constitui provavelmente o nico mtodo suscetvel de fornecer uma base conceo duma literatura aoriana. (Garcia. 1987: 114)

    neste mote que nos baseamos. Na obra de Daniel de S, que so de todos os tempos e lugares (Dores. 2016: 69),

    nos contos (Sobre a Verdade das Coisas (1985), A Longa Espera (1987), O Deus dos ltimos (2011)), na crnica (Crnica do Despovoamento das Ilhas (1995)), no ensaio ( A Criao do Tempo, do Bem e do Mal (1993)), na novela ( Gnese (1982), O Esplio (1987),

    Um Deus Beira da Loucura (1990), E Deus Teve Medo de Ser Homem (1997), O Pastor das Casas Mortas (2007)), na poesia (As Rosas de Granada (2011)), no romance ( Ilha Grande Fechada (1992), As Duas Cruzes do Imprio - Memrias da Inquisio (1999), A Terra Permitida (2003)), no teatro ( Bartolomeu (1988)) ou noutros escritos (Aores -Coleo Monumental e Turstica (2003), Santa Maria - A Ilha-Me (2007), So Miguel (2009), Peregrinos do Senhor Santo Cristo dos Milagres (2009), Terceira - Terra de Bravos (2009) e Velhas Energias para um Mundo Novo (2010) denota-se uma mentalidade aoriana afinada ao diapaso universal (Almeida. 1983: 57), uma literatura onde [o] homem aoriano tem os seus direitos cidadania do mundo. [. Tem o direito de] [f]azer literatura regional, mas uma literatura regional que se integre nas literaturas do mundo! (Almeida. 1983: 54); onde o homem, aoriano (), e pese embora a especificidade da sua insalubridade, acaba por revestir-se de universidade. (Costa. 2016: 44).

    Para Daniel de S, a sua ilha era aberta. Disse ele, algures numa entrevista, que

    [q]uando combato a ilha fechada precisamente porque estou convencido que no estou fechado nela. O escritor normalmente vai contra aquelas coisas que ele usufrui, mas que os outros no usufruem.

    O nosso foco, nesta comunicao, mostrar que em algumas obras de S h um

    conjunto de referncias que tanto nos marcariam pela ilha como por qualquer outra parte do globo.

    Comecemos, brevemente, por uma sumarizao breve de obras j referenciadas

    noutras comunicaes. Fazemo-lo por entender que converge para a nossa viso de universalidade e multiculturalidade da escrita de Daniel de S. Assim sendo, falamos de O Esplio (1987) onde sobremaneira marcante a presena de uma luta, de um derramar de vida, to vvidos, que nos fez sentir que ramos

    [u]m oficial que transforma em nmeros para a vitria os corpos que no se

    mexem, os crebros que nada sentem. A conquista. De uma aldeia to destruda que nem servir para o refugio de feras. Punhos fechados. Contra uma cara que se v pela primeira vez. Ps que machucam corpos. No seu primeiro encontro. O ar incendiado de cheiros, todos os cheiros da morte. O mato percorrido por fugas. Povoado de cadveres. A fria. O medo. A fria sem razo. O medo com toda ela. Muitos sem amanh. Sem um logo sequer. Tudo agora. E o agora to breve que nem existe. bom ser breve um tempo destes.

    Eternamente longo para quem segura as tripas com as mos. Para quem tapa os olhos que j no tem. Para quem aperta uma ferida sem mos para apert-la. O silncio. O banquete das hienas. Dos chacais. Dos abutres. O espetculo dos msculos desfeitos que no doem. Dos ossos triturados que j no martirizam. Do sangue que nada se sabe. Sem gritos de dor. Sem protestos. O que sobrar do festim ser podrido. Se se dar conta dos vermes. E o que foi feito festim se h de tornar excrementos. Excrementos do que foram corpos. Corpos que fugiram ao medo sem ter para onde fugir. Matria bruta sem vida. Sem saber que viveu. (S, 1987: 34)

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    Continua a impressionar-nos a forma potica com que o autor descreve a dor, o vagar do suspiro, a realidade de um confronto e de um ciclo de vida. As palavras de S inebriam-nos os sentidos e coloca-nos em qualquer parte do mundo, sem que tenhamos a necessidade de nos vermos ou de sermos seres de um arquiplago, onde a ilha sempre foi (literariamente e empiricamente) condicionante da partida e da chegada; do querer e do perder. As palavras de Daniel de S expem apenas a sua capacidade em se outrar numa voz to nacional como internacional.

    Outra obra a que referiremos sucintamente a obra O Esplio (1987). Ao l-la,

    consecutivamente se nos afigurava a voz que sobressai do papel toma vida de tal guisa que parece que as letras ganham perspetivas e formas, parecem marchar nossa frente numa inconfundvel parada onde o nosso saber treme e se confunde com a nossa inquieta insatisfao por nunca antes ter presenciado tamanha beleza. As palavras de Daniel de S tm o poder de nos colocar no nosso lugar e de nos vermos em todos os recantos do universo. to particular como geral; to insular como continental; to pequeno como enorme. o poder da boa Literatura.

    Uma outra obra j anteriormente referenciada, se bem que superficialmente,

    aquela que uma das mais lidas obras de S: O Pastor das Casas Mortas. Neste romance, o autor mostra os problemas fundamentais da condio humana e as linhas definidoras da escrita de Daniel de S: a vida, o amor, a morte, a reconciliao da vida e da morte atravs do amor. (Dores. 2016: 80).

    Vemo-lo no contar da desertificao das casas de pedra, da aldeia remota onde a

    eletricidade custou a chegar; vemo-lo nas descries da amada Maria da Graa e nos recatos exagerados de uma gerao tambm ela marcada pela mo pesada e dspota da imposta autoridade, quer paternal quer poltica; vemo-la no desejo incansvel da procura de algo melhor, para si e para a sua famlia; vemo-lo na perda da memria de um local, desertificando paulatinamente h medida que a idade de Manuel Cordovo avana; e, vemo-lo no ressoar de uma guerra (que poderia ser qualquer guerra j que todas crescem e disseminam-se da mesma forma, espalhando medo e insegurana):

    Confinadas serra, vivendo a solido e isolamento de uma sociedade fechada

    sobre sim mesma, a contas com inquietaes sociais e polticas e angstias existenciais e metafsicas, as personagens estabelecem entre si relaes de afetividade e solidariedade, de surpresa e contemplao e, em estado latente, h nelas um desejo de evaso, viagem, sonho e felicidade. Porque sabem que a infncia lhes comandar a vida inteira. E depois vivem um tempo em que de ignorncia e intolerncia, de penria e penumbra. O quotidiano penoso e banal. (Dores. 2016: 79)

    As obras que, agora, nos debruamos com um pouco mais de ateno so as obras

    Um Deus Beira da Loucura, E Deus teve medo de ser Homem, Ilha Grande Fechada e, ainda, Terra Permitida.

    Nas duas primeiras obras, as duas novelas, o escritor da Maia faz reviver a histria do

    Holocausto, dando-nos a sentir uma realidade pela qual as ilhas aorianas no

    vivenciaram, em primeira mo, mas que conhecem o desenrolar do real. As duas narrativas suscitam a viso crtica da vinda daquele salvador que, nesse contexto de conflito armado e nesse contexto de total desrespeito pelo outro e contexto extremo de desumanidade, regressou do seu etreo lugar duvidando da sua prpria criao e de lha ter concedido o benefcio do livre arbtrio e, tambm, ao regressar, sentiu-se vtima da sua prpria criao. um mundo fora das ilhas que ensina ao mundo uma estria distinta.

    Nestas narrativas de S, tem-se a noo de que [o] homem coautor e, por isso, ,

    pelo menos, corresponsvel por si mesmo, pelo mundo, e at pelo prprio Deus, pois Deus tambm evolui com o homem. (Ferreira. 2016: 179). Nas palavras de Jos Francisco Costa,

    O personagem, sem nome, ao mesmo tempo que conta a histria do seu

    encontro, vai refletindo sobre as grandes questes que desde sempre tm afligido a humanidade, relatando o contnuo questionar-se de Deus, agora seu companheiro, sobre o sofrimento e a maldade que grassam no mundo. Um Deus humanizado, que enlouquece perante o horrvel espetculo dos fornos crematrios, que chora e se interroga sobre como possvel que o homem tenha sido capaz de ter criado o seu prprio inferno. Um Deus que no entende a sua prpria criatura. ().

    Um homem que acredita profundamente num verdadeiro ressurgir do mundo atravs da esperana para sempre semeada na alma dos homens. A histria termina com o regresso do companheiro de Aharon ao campo de concentrao de onde tinha tentado fugir. Vai ser morto ao som de um concerto preparado pelo amigo violinista, que narra os unimos instante de vida do Deus [que] teve medo de ser homem. (Costa. 2016: 39-41)

    Por um lado, temos nestas duas novelas um afastamento das ilhas, onde nesse mesmo

    distanciamento, conseguimos discernir o sempre tom crtico, direto, lgico, por vezes quase seco e por vezes potico e quase sentimental por parte do seu autor. Por outro lado, temos a obra Ilha Grande Fechada, j tendo sido lida por muitos quer do lado de c, quer do lado de l do oceano, a noo de clausura, quer pela prpria vicissitude de ilha quer pela questo emocional do personagem principal.

    Porque a Ilha nasceu de um bastardo amor, pois aqui no se fez Portugal para

    ser feito, mas para rir a rota que caravelas e naus iam cumprindo de porto em porto, onde houvesse gua e po, at viagem completa, que s haveria de o ser para alm de prpria ndia. (S. 2010: 36)

    Nesta ltima obra, podemos ver que, por muito que se retrate o romeiro, tipicamente

    micaelense, h especificidades que tornam essa mesma obra numa obra que vai muito para alm da ilha vai at ao cerne do ser humano, no importando a sua origem. No caso de Daniel de S, verdade que o autor no nega os temas e a cor local. No foge vocao regionalista aoriana, mas f-lo com o talento artstico e a sensibilidade humana de quem consegue problematizar os tipos humanos. (Amaral. 2016: 314).

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    E, por falar nisso, quem nunca iniciou uma viagem, real e / ou metafsica onde o objetivo ltimo era estar em paz consigo prprio / a e conhecer-se a si mesmo / a, mais ou melhor do que antes? Poucos, estamos em crer. Mas temos de dar o seu a seu dono: esta obra de Daniel de S, mesmo que a sua ao se situe em S. Miguel; mesmo que a sua ao esteja subdividida em captulos que possuem um ttulo de uma obra de nove escritores aorianos (marca clara de intertextualidade, de gneros e de evocao memria de um lugar); mesmo que fale das freguesias por onde estes romeiros caminham, por que no esta obra ser uma obra do mundo?

    No nosso entender, por muito comum que seja, qualquer obra literria concebida para

    alhear o leitor do real, para faz-lo entrar no mundo criado pelas palavras expressas e, tambm, para que este se reconhea nessas mesmas palavras escritas, muito para alm do significado bsico de cada uma. Foi o alcanado por Daniel de S, nesta obra, j que

    Ilha Grande Fechada centra-se na histria de Joo, um homem em

    peregrinao pela ilha de So Miguel, em cumprimento a uma promessa que fizera enquanto soldado da guerra colonial, em frica: caso voltasse vivo sua terra, cumpriria a penitncia em agradecimento por sua salvao. A caminhada realizada em vsperas da partida para o Canad, destino de tantos aorianos. ().

    Percorrer a ilha, sobretudo em tempo santo, () cumpre-se como uma forma de deslindamento do espao original e, ao mesmo

    tempo, como a ltima oportunidade para a absoro da fora da terra, antes da ida para o novo espao, desconhecido e inexplorado.

    (). Nele fundem-se a ilha, o homem e a escrita desse universo, possibilitando que

    se reconhea a fundao do espao, a instituio do homem e a formao da prospia literatura aoriana.

    (). Os pensamentos que povoam sua cabea, no ltimo dia em que percorre a

    terra, so sintomticos do seu conflito e da incapacidade que ele tem de vencer seu drama pessoal. A ilha, enfim, pesa e se a terra no d mais nada, d saudades, pensa ele, e mesmo a sada da ilha entendida como a pior maneira de ficar nela.

    O drama de Joo, , pois, o drama do homem moderno. () Joo poder compreender que a sua casa (ou sua terra) a lngua que ele fala e a terra que ele habita; que deve haver, sim, um povo que diga paz ou casa quando diz ilha e que mesmo longe, em um lugar distante do mundo, a ilha est dentro dele mesmo. (Moreira. 2016: 84-102)

    Numa outra viso, desta feita de Carmen Ramos Villar, Ilha Grande Fechada sai dos

    limites das ilhas, fornecendo uma contribuio valiosa de uma outra forma de ver o mundo, a histria, e o passado colonial. (Villar. 2016: 121). Ainda segundo Villar, Ilha Grande Fechada contribui tambm para a renovao de temas-chave na literatura aoriana mediante novos tratamentos de certas mestias, tais como a atrao e efeitos da emigrao no ilhu. (Ibid.)

    Nestas breves incurses na escrita de Daniel de S, podemos aferir que o autor

    enforma o seu conhecimento em prol da literatura j que [l]er para entender , certamente, o desejo do autor, e a sua dedicatria ao leitor [A todos aqueles que queriam entender esta novela, ou simplesmente a leiam.] funciona como um apelo tentativa de entendimento. (Ferreira. 2016: 164).

    No prefcio a uma outra das suas obras marcantes, A Terra Permitida, Luiz Antnio de

    Assis Brasil afirma:

    Daniel de S um dos escritores portugueses mais ativos, e sua perspetiva esttica simboliza e significa o atual modo aoriano de enxergar o mundo: sem sair emocionalmente da terra, e profundamente ligado a ela, sabe-se integrante de uma realidade maior que, sendo portuguesa, europeia e, por consequncia, universal. J comeam a ficar distantes, na literatura praticada nos Aores, as representaes meramente folclricas e tursticas, que, por autocentradas, so limitastes e, em geral, realizadas com discutvel arte. (S. 2003: 9).

    Blanca Martn-Calero Medrano refora a ideia de que Daniel elege o espao restrito e

    a casa grande da humanidade. (Medrano. 2016: 335). Na mesma senda, verificamos que Vamberto Freitas, acerca deste nosso autor, afirma: Daniel de S talvez o mais isolado escritor aoriano e um dos mais abertos aos mundos que a fico deste arquiplago historicamente contempla. (Freitas. 1998: 141). E, se mais afirmaes necessitssemos para fortalecer a nossa teoria de que em Daniel de S encontramos o universo a partir da freguesia da Maia, poderamos citar, novamente, Mnica Serpa Cabral:

    Daniel de S diz muito em poucas palavras. Numa escrita escorreita e

    poupada, aborda importantes questes e problemas com que o esprito humano desde tempos imemoriais se debate, fruto de uma atitude de desassossego e de introspeo. Estamos, sem dvida, perante um grande escritor, que, com o dom da palavra, abala a alma, instiga a mente e estremece os coraes de todos quanto o leem. (Cabral. 2016: 247)

    e Joo de Melo confirma:

    A vida e obra literria de Daniel de S convergiram entre si para a mesma

    idiossincrasia e para uma s unidade pessoal. Ambas derivaram de uma arte de viver e de criar que sempre pretendeu estar em sintonia com a essncia dos seus valores ticos e sociais. Por isso mesmo, no fao grande distino entre o homem criador de linguagem e o bom cidado dos Aores e do mundo que nele reconhecemos e recordamos. (Melo. 2016: 484)

    A propsito de um outro grande escritor aoriano, Joo de Melo, Vamberto Freitas

    afirma:

    -se o maior escritor do mundo () quando se reconhecido por quem l como aquele que melhor escreve ou escreveu a histria da criao, as paixes

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    dos deuses e a memria pblica e privada dos homens. () O mais fivel mecanismo dimensor da qualidade, na escrita de corao literal, aquele que de num lugar e do todos os lugares, ou seja, a sua verdadeira dimenso da universalidade (Freitas. 1998: 125).

    e neste exato ponto em que conclumos a nossa comunicao. Daniel de S tudo o que afirmamos acima, por nossa direta conceo ou por

    citao de outrem. Ele uma personalidade que muito ainda h de dar que falar, no s acerca do seu desempenho como poltico que foi, mas principalmente, pela forma como soube transmitir a condio humana em diversos aspetos, em diferentes narrativas. Ainda no explanamos a poesia de Daniel de S por acreditarmos que esta merece um estudo muito mais direcionada condio de poesia que achamos que o autor demonstra ter no apenas, obviamente, nos seus poemas, mas como tambm nas suas narrativas.

    Nas obras mencionadas nesta comunicao, a nossa maior preocupao foi fazer

    passar a mensagem de que, quase em unssono, Daniel de S considerado, por muitos escritores, crticos, professores e no s, como um humanista. Enquanto homem, soube espelhar, indubitavelmente, a sua magistral faceta de criador de mundos fictcios, a partir da sua Maia. Foi neste pressuposto que encetamos o nosso estudo, apesar de saber que, por se tratar de literatura, poder haver (e h, por certo!) diferentes interpretaes quelas que propusemos.

    Munimo-nos de obras recentes sobre Daniel de S, pois est na moda l-lo.

    Agradecendo o manancial de estudos acerca de S, no entramos por modas. Entramos por leituras que nos do prazer e concomitantemente nos presenteiam com estrias, histrias e Histria do mundo que nos rodeia. No pretendemos convencer ningum de que ele o melhor de todos entre os que da ilha brotaram. Ele um grande que da ilha nasceu e a quem a ilha deve respeito por ele a ter retratado to fielmente, mesmo quando no se referia diretamente ao pedao de pedra rodeado de mar por todos os lados.

    Ele um grande que da ilha nasceu e a quem os ilhus deveriam conhecer, no s por ser seu conterrneo, mas como algum que viu para alm do mar em frente, da ilha fechada ou das casas que vo morrendo.

    Ser-se escritor , antes de mais, conhecer-se a si mesmo e conhecer o que o

    rodeia. Conhecer no apenas o redor mais prximo, mas tambm o ser mais perto de si e o ser mais longnquo de sim, tambm. Ser-se escritor saber das suas razes e delas construir caminhos at aos mais inimaginveis pontos do querer. Ser-se escritor criar, a partir da palavra pensada, da palavra escrita e entregue aos demais, aquilo que sabemos e aquilo que queremos dizer e que, muitas vezes calamos; aquilo que queremos mudar e no nos alcana a possibilidade. Ser-se escritor ser-se um pedao de sim mesmo e muito do que o resto do mundo . E isso aprendemos com as leituras que vamos fazendo de outros escritores. Isto alimentei com o grande escritor como Daniel de S.

    Esta comunicao, um pouco mais sentimental do devia, prende-se com o estudo,

    ainda preliminar da obra deste autor. Mas prende-se tambm em fazer mostrar que o mais

    nfimo recanto do cho em que pisamos digno de se aventurar e de ser (re)conhecido aqui e alm-mar, sempre e quando nesse cho houver vontade.

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    Fagundes e outros (coord.) Rememorando Daniel de S: Escritor dos Aores e do Mundo. Ponta Delgada: VerAor, 2016, 105 - 123

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    4. MARIA ZLIA BORGES, UPM JUBILADA, 17 COLQUIO DA LUSOFONIA LAGOA 2012

    TEMA 1.4 CIGARRAS AORIANAS TRABALHAM COMO FORMIGAS,

    Tradicionalmente, com base na leitura bblica, o trabalho tem sido visto como castigo

    para o homem em queda. Perdida a felicidade do den, desde o pecado original, toda a humanidade obrigada a ganhar o po com o suor do prprio rosto. E o trabalho se ope ao descanso, ao lazer. Todavia, em nossos dias, em tempos de maior indulgncia, os artistas j podem jactar-se por serem remunerados ao produzir obras que lhes do prazer. O trabalho pode sim, mesmo que a duras penas, ser forte aliado do cio criativo.

    Nesta comunicao, parte-se da Antologia Bilingue de Autores Aorianos, de

    CHRYSTELLO e GIRO (2011), secundada pela Antologia Panormica do Conto Aoriano, de Melo (1978) e tendo por mote a lenda da cigarra e da formiga, tentar-se- mostrar que, para os escritores aorianos, o canto da cigarra no incompatvel com o trabalho da formiga.

    Tabuladas as informaes advindas das antologias, pode-se concluir que a atividade

    artstica, mais vista como lazer, no impede o exerccio de atividades consideradas mais como trabalho propriamente dito. Numa viso bastante maniquesta da vida e do mundo, vive-se num jogo de escolhas entre polos contraditrios e excludentes. Entre as oposies disponveis est a que se faz entre o bem e o mal. Nesta viso o bem o trabalho e o mal, a diverso. Sociedades religiosas e laicas insistiram em perpetuar e passar tal viso. Hoje sabe-se que nem tudo to claro assim, nem to oposto e excludente. Sabedoria popular, por exemplo, nem sempre se ope a sabedoria fundada no conhecimento, no estudo. Do mesmo modo, bem e mal nem sempre aparecem com tanta claridade e excludncia; o trabalho e o lazer podem vir conjugados. Ilustrativa da evoluo deste modo de pensar a lenda da cigarra e da formiga.

    Tal lenda, atribuda a Esopo com raconto de La Fontaine, tradicionalmente ope o

    trabalho da formiga ao