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Até a página dois · era como se fosse morrer – muito pelo contrário, era como se estivesse apenas começando uma nova vida, como se finalmente ... mas sem deixar que ele continuasse

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Até a página dois

marcus quintanilha filho

Até a página dois

Salvador – 2016

Copyright © Quarteto Editora, 2016

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, a não ser com a permissão escrita do autor e da editora, conforme a

Lei no 9610, de 19 de fevereiro de 1998.

Projeto gráficoQuarteto Editora

CapaMax Gabbay

Editor José Carlos Sant Anna

Conselho EditorialCélia Marques Telles – Universidade Federal da BahiaEdivaldo Boaventura – Universidade Federal da BahiaEdleise Mendes – Universidade Federal da BahiaJoão Carlos Salles – Universidade Federal da BahiaSérgio Mattos – Universidade Federal do Recôncavo da BahiaSuzana Alice Marcelino Cardoso – Universidade Federal da Bahia

Todos os direitos desta edição reservados à:Quarteto EditoraAv. Antonio Carlos Magalhães, 3213 Ed. Golden Plaza, s/ 702 – Iguatemi40.280-000 – Salvador – BahiaTelefax: (71) 3452-0210 Email: [email protected]

Impressão e acabamento: Rua Mello Moraes Filho, nº 189, Fazenda Grande do RetiroCEP: 40.352-000 Tels.: (71) 3116-2837/2838/2820Fax: (71) 3116-2902Salvador-BahiaE-mail: [email protected]

869.3B Quintanilha Filho, MarcusQ369m Até a página 2. Marcus Quintanilha Filho. – Salva-

dor: Quarteto, 2016. 70 p. il. ISBN 978-85-8005-105-6 1. Romance brasileiro. 2. Título

CDD 869.3B

Sumário

Capítulo 1 O encontro .................................................................... 7

Capítulo 2 O churrasco ................................................................... 17

Capítulo 3 Depois do beijo... .......................................................... 29

Capítulo 4 O dia seguinte ............................................................... 33

Capítulo 5Descobertas .................................................................. 41

Capítulo. 6 A página dois ................................................................ 51

Capítulo 7 Decisões ........................................................................ 61

Capítulo 8 Desfecho ....................................................................... 67

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RCapítulo 1

O encontro

Robert saiu lentamente da varanda de sua casa de praia, na Bahia, encontrando a grama ainda úmida ao nascer do dia. As pontas dos seus dedos estavam sensíveis. Enquanto caminhava, as lembranças estavam vívidas e traziam suas histórias para o presente. Cheiros, saudade, alegria e o medo da solidão. Tudo aquilo chegava e partia como uma trupe circense surreal. Não era comum imaginar toda sua vida em um momento assim – não era como se fosse morrer – muito pelo contrário, era como se estivesse apenas começando uma nova vida, como se finalmente sua personalidade pudesse trazer algo permanente e sólido.

Seus pés, agora sentindo a areia, perdiam um pouco da-quela sensação de novidade para entrar em uma constante li-gação com a natureza, para uma relação cotidiana com seu final de semana no mar. O momento tornou-se quase perfeito, entre seus pensamentos e seu corpo, entre seu caminho material e sua divagação mental. Robert relembrava todas as relações amoro-sas que teve em seus últimos anos: não exatamente na ordem que ocorreram, mas na forma enigmática que elas compuseram sua trajetória até aquele instante. E lhe trouxe um pensamento recorrente: será que já havia conhecido o amor? Essa era a per-gunta que Robert hesitava em responder.

Seus trinta e dois anos não foram suficientes para encon-trar a “pessoa certa” – pensava Robert, focando em cada despe-

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dida e até nos ensaios de noivado que ele ousou despertar. Mas não! Robert determinadamente não permitiu que o medo da so-lidão tomasse conta das suas decisões e permaneceu à espera de uma mulher que o motivasse de um modo especial.

Caminhava agora sem saber o motivo que o levava naquela direção. Não mudava seu ritmo, estava muito leve para pensar naquilo, apenas continuava a andar. Ele não sabia ao certo se a profissão que escolheu era a ideal. Administração de empresas se tornou algo pertencente à sua formação, mesmo sem ele exercer na prática – a vida tinha seus próprios caminhos – ele havia se tornado um homem de relações públicas, através de sua empre-sa de consultoria. Já estava muito longe para pensar em como teria sido diferente sua vida se escolhesse fazer Engenharia ou Direito, por exemplo. Esses pensamentos existenciais voltavam a dominar suas reflexões enquanto andava mais rápido. Robert chegara à praia: parou e olhou o mar. O dia estava ensolarado na Praia do Forte, com poucas pessoas à beira-mar, algumas apenas caminhavam. A Bahia tem seus lugares únicos, principalmente suas praias. O vilarejo de Praia do Forte é um lugar exuberante, com várias pousadas, uma praia de águas calmas e restaurantes típicos da culinária baiana. Muito sol, muito dendê. É um daque-les lugares que deixam você com vontade de ficar o dia inteiro com roupa de banho. Robert era uma figura conhecida. Acenou para um casal de amigos que andava pela beira do mar. Olhou ao redor e, pela primeira vez no dia, se sentiu realmente animado. Durante um lapso de tempo, esqueceu aquela sensação nostál-gica que teve durante seu curto percurso até ali. Então, numa corrida juvenil, chegou ao mar e mergulhou, inclinou sua cabeça e tentou ver alguns peixes que brincavam entre suas pernas. Co-

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meçou a nadar, apenas por diversão. Podia-se dizer que ele era quase um atleta. Frequentava a academia todos os dias e estava em forma. Nadava quatro vezes por semana. Robert despertava os olhares das mulheres, um tipo alto e charmoso, que cuidava da sua aparência. Não era um homem esteticamente lindo, mas seu olhar brilhante e com certa profundidade, surpreendia quem chegava um pouco mais perto para conversar e se deixar levar pelas suas filosofias sobre a vida.

Era sempre assim na vida de Robert: os melhores momen-tos surgiam de uma forma displicente e tomavam uma dimensão maior de uma hora para outra. Depois de algumas braçadas na água salgada, percebeu o movimento ao seu redor. Alguns casais sentados, crianças correndo de um lado para o outro sem parar.

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Era um final de semana e a praia começava a ficar movimentada. Sentou-se, no raso, em uma poça que ele mesmo denominava de “minha piscina” e recobrou suas recordações mais banais daque-la praia. O seu primeiro banho de mar, fotos com amigos e tan-tas festas de réveillon. Aqueles momentos faziam do pedaço da praia uma parte de sua vida, personificada em um pano de fundo contínuo de lembranças. Ficou então com seus olhos fixos, sem perceber nada em especial, paralisado. Sem foco, aleatoriamente perdido naquela natureza fotográfica. O sol já estava começando a fazê-lo sentir arder sua pele, lembrando que não havia passado o protetor solar ao sair de casa. Saiu apenas para passear, sem a pretensão de ficar no mar. Robert ainda estava sem seu telefone celular, o que fez aumentar sua preocupação. Alguns amigos e seu irmão estavam para chegar. Agora parecia não mais um homem tranquilo, e sim um pouco ansioso, pensando nas possibilidades de não ser um bom anfitrião. Robert gostava de tratar bem as pessoas. Era agradável e tinha orgulho disso. Sua atenção com as pessoas fazia dele um centralizador nos grupos que frequentava.

No caminho para o portão de acesso ao seu condomínio, Robert percebeu uma mulher sentada, lendo um livro. Ele não conseguia vê-la, apenas seus cabelos castanhos sendo agitados pela brisa e seus pés fazendo algum movimento na areia, como se tentasse enterrá-los. Robert parou. Não era daqueles que pa-querava todo o tempo, mas ficou olhando aqueles pés se me-xendo e passou a lembrar das suas primeiras sensações naquele dia. Será que ela estava também reflexiva? Aquele livro era uma distração ou apenas uma forma de se isolar de tudo ao seu re-dor? – pensou ele naquele instante. Colocou as mãos na cintura, como se esperasse algo. Sorriu sem perceber e conseguiu ver

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que o livro era de suspense, pela escritora em destaque: “Agatha Christie”. Achou estranho, pois não era uma leitura comum para a ocasião, nem era um livro que estava na “moda”. Enquanto ele olhava fixamente para o livro, se assustou quando ela colocou seu dedo apontando para a capa e fazendo um gesto como se es-tivesse perguntando se ele gostaria de ler. Robert ficou descon-certado. Mas percebeu que aquela mulher tinha um jeito desi-nibido e pôde então se aproximar. Sabia que sua reação era uma estratégia de abertura para que ele pudesse conhecê-la. Então sorriu, balançou a cabeça confirmando sua vontade e foi em sua direção, sentando-se ao seu lado.

No trajeto que durou apenas alguns segundos, Robert pôde ver uma mulher interessante. Avaliou seu corpo, suas per-nas definidas, seus seios pequenos e um rosto convidativo, qua-se exótico. Convenceu-se de que seria muito bom conhecer al-guém. Apesar de não admitir, já estava ficando carente de uma companhia. Talvez fosse uma nova moradora ou estava simples-mente na casa de amigos, ou ainda estava apenas de passagem. Sua primeira pergunta foi essa. Seus pensamentos saltaram, e ele simplesmente falou:

– Bom dia, está aqui no condomínio?

– Bom dia! Meu nome é Anne – disse-lhe em tom irônico por ele não ter se apresentado.

– Desculpe, me chamo Robert – consertou educadamente acrescentando em seguida:

– Estava pensando alto, porque nunca a vi por aqui, por isso falei. Perdoe minha falta de educação em não me apresen-tar.

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– Tudo bem. Eu percebi que é curioso, quando tentava ler meu livro a distância – disse Anne, voltando a falar da curiosida-de de Robert.

Robert ficou intrigado com a ironia daquela mulher. Ele sempre gostou de ditar as regras das conversas e ela estava to-mando a frente, envolvendo-o, deixando-o sem jeito.

– Achei uma leitura interessante. Algo que não se vê. Vou ser sincero: sua escolha literária me despertou interesse!

Anne sorriu, ficou olhando nos olhos de Robert, se perdeu um pouco. Tentava entender o que aquele homem queria. Não era como os outros, falava instantaneamente, mas era como se pensasse antes, não estava flertando descaradamente, nem es-tava apenas fazendo amizade. Era uma sensação que ela gostava, lhe fazia lembrar sua juventude, quando os garotos conversavam sobre alguma coisa em comum para se aproximar e começar uma amizade, mas sempre com o interesse latente, esperando algum momento ou fazendo-a se envolver com o tempo. Pensou isso em frações de segundos, enquanto passeava com seus pés, agora fazendo rascunhos na areia.

– Eu gosto de leituras com suspense, Robert. Meus pais compraram uma casa aqui nesse condomínio. É o nosso primeiro final de semana. Estamos gostando muito da vizinhança.

Anne elaborou uma resposta completa, pensada. Foi mei-ga e ainda sugeriu um elogio àquele rapaz que havia sentado ao seu lado. Achou um pouco demais para o momento, mas ela ha-via gostado do jeito de Robert. Sempre gostou de homens altos, com um sorriso largo, como o dele.

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Robert ficou mudo. Simplesmente não sabia o que dizer. Estava desconcertado novamente, mas logo recobrou o raciocí-nio.

– Que bom saber que agora tenho uma nova vizinha e que também vou poder aprender sobre livros de suspense – piscou de um jeito insinuante, deixando o clima ainda mais sugestivo, sem medo do que viria pela frente.

Anne sorriu novamente e balançou a cabeça com um sinal positivo, mas fazendo um gesto com os lábios de lado, que era sua marca registrada. Reforçou que entendeu o tom sagaz de Ro-bert, mas sem deixar que ele continuasse com insinuações tão diretas.

– Mas não sabia que você iria querer ler um livro “fora de moda”!

Robert arregalou seus olhos, sem saber novamente o que dizer. Ela estava lendo seus pensamentos? Ele tentou lembrar se falou algo pejorativo sobre seu livro ou apenas pensou sobre isso. Com certeza não havia dito nada assim.

– Não que seja uma leitura moderna, mas a moda é apenas uma convenção social. Achei justamente algo interessante uma mulher bonita sentada na areia lendo um suspense antigo. E ain-da vou acrescentar: foi o que me fez lhe conhecer, então gosto dele.

Anne se desarmou. Não esperava ouvir tamanha sensibili-dade, mesmo sabendo que ele estava querendo agradá-la.

– Você é muito gentil. Coisa rara hoje em dia...

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Robert gostava de elogios, ainda mais quando eram assim tão diretos e vindos de uma mulher que acabara de conhecer. Era sua deixa. Não poderia perder tempo. Sabia que era o mo-mento de avançar um pouco mais. Além disso, percebeu que ela murchava a barriga, tentando demonstrar preocupação com o que ele iria achar de seu corpo. Tudo aquilo acontecia ao mesmo tempo, cada mínimo detalhe era avaliado, mas sem tensão, de forma natural. Robert então fez o que lhe pareceu ser a melhor ideia na ocasião.

– Anne, queria muito lhe fazer um convite, mas não sei se ficaria à vontade...

– Diga... – respondeu como se esperasse algo muito indis-creto.

– Queria que viesse mais tarde a um churrasco que faze-mos todos os sábados. Só vão estar presentes, além da minha pessoa, meu irmão e um casal de amigos. Seria bom ter você conosco. Sempre contamos histórias e damos boas risadas.

– Ufa! Pensei que era algo indiscreto – comentou Anne, dando uma gargalhada – do jeito que você falou...

Anne continuava sorrindo sem saber se aceitava ou não. Seria realmente desconfortável ou também poderia ser uma oportunidade de conhecê-lo melhor? Não sabia o que esperar, mas precisava de uma resposta rápida e decidida.

– Claro que aceito. Preciso apenas saber aonde mora e qual o horário.

– Ótimo! – Robert não escondia a alegria pela resposta po-sitiva e animada de Anne – Vou lhe explicar, é fácil. Quando você

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entrar no condomínio, pela praia, é a quinta casa à sua direita com uma porta grande de madeira envernizada.

Anne sorriu. Colocou a mão no rosto. Robert ficou sem en-tender aquele gesto e perguntou:

– O que foi? Não lhe dei detalhes suficientes?

– Não – disse Anne – É que somos vizinhos mesmo. Achei engraçado e recordei do que aconteceu hoje pela manhã.

– Agora fiquei curioso...

– Foi você quem vi de costas, mais cedo, da minha varanda, indo em direção à praia! Você foi a pessoa que me inspirou a sair de casa. Estava andando em direção ao mar e deu para ver como estava feliz. Eu pensei justamente sobre sua atitude e me permiti tomar um pouco de sol. Preciso lhe agradecer por isso.

Robert ficou feliz pela coincidência, mas percebeu um tom depressivo naquelas palavras. Como uma mulher jovem e bonita estaria pensando em ficar em casa, num sábado de sol? Será que ela estava passando por uma fase difícil? No entanto, Robert, apesar de suas dúvidas, não ousou perguntar algo tão íntimo. Apenas foi gentil, mais uma vez.

– Não precisa agradecer. O importante é que, mesmo sem perceber, inspirei você.

Anne sorriu com os olhos. Não sabia mais o que falar para aquele homem que estava ao seu lado. Voltou-se para o mar, contemplando-o, como forma de disfarçar sua timidez.

Aquele era o momento de silêncio que sempre se estabe-lece numa conversa superficial como a de Robert e Anne. Ele

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também não sabia mais o que falar. Então, se despediu com dois beijos no rosto e marcou para o meio-dia em sua casa. Faltava apenas pouco tempo e Anne continuou na praia enquanto Ro-bert saiu em direção à entrada do condomínio.

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ECapítulo 2

O churrasco

Enquanto Robert seguia o trajeto oposto àquele feito mais cedo, seus pensamentos agora não estavam tão dispersos. Aque-la mulher apareceu de uma forma tão repentina e amável, com algo melancólico e também autêntico que fez Robert ficar hip-notizado. Ele parou. Não percebeu, mas olhou para trás e conti-nuou com o olhar fixo, pela segunda vez na mesma manhã, sem pensar em nada por alguns instantes. Depois, voltou a caminhar em direção à sua casa e ficou sorridente, recordando cada deta-lhe da conversa que teve com uma desconhecida na praia. Mas não continuava pensando assim. Ela já não era uma “desconhe-cida”. Anne já criou uma impressão, havia deixado uma marca.

Alguns passos à frente e chegou a sua casa. Seu irmão Bru-ce e o casal de amigos, Janine e “Surf”, como chamavam o Fran-cisco, já estavam na piscina, conversando e bebendo cerveja. Robert, ainda reflexivo sobre o encontro matinal, chegou mais perto e começou a conversar com o ânimo de sempre.

– Quer dizer que nem me esperam para abrir a primeira cerveja? – perguntou em tom de brincadeira.

Seu irmão retrucou.

– Você demorou demais na praia, já estava pensando em acender a churrasqueira!

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Robert não sabia cozinhar um ovo sequer. Não gostava. Mas o churrasco de final de semana era para ele como uma tera-pia. Ele relaxava enquanto seus olhos viam a carne sendo tostada e, ao fundo, as conversas alheias lhe traziam uma sensação de que participava apenas como ouvinte. Isso era raro na vida dele. As pequenas interrupções vinham de alguém que chegava para lhe pedir carne. Era seu momento. Um momento mágico que não abria mão.

– Você sabe mano, que o churrasco é minha especialidade. Se quiser fazer, pode até me dar uma folga hoje. Eu deixo!

Surf e Janine falaram quase juntos:

– Rob deve estar doente! Os amigos mais próximos chama-vam-no carinhosamente assim.

– Não é isso. Acho que devemos dar uma chance ao Bruce. Depois de tantos anos vendo o “chef” dele, deve estar querendo mostrar o que aprendeu.

– Virou desafio – disse Bruce. – Vou fazer o churrasco hoje!

Bruce levantou rapidamente da piscina, foi pegar o carvão e as carnes para organizar tudo. Robert sorriu e se aproximou para conversar com o casal de amigos. Naquele dia, ele não que-ria fazer o churrasco, precisava falar sobre o que aconteceu na praia.

Janine e Surf se conheciam há mais de dez anos e esta-vam recém-casados. Namoravam desde a escola e há dois anos decidiram casar, mas por questões financeiras apenas no ano anterior oficializaram as bodas. Francisco ou “Surf”, como era conhecido, sempre foi um cara tranquilo, mais para o tipo “zen”.

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Uma pessoa de bem com a vida, praticava o surf todos os dias – a origem de seu apelido – e trabalhava como engenheiro em uma empresa multinacional. Janine era nervosa, estressada. Tinha um salão de beleza e estética, era uma mulher bonita e cuidava bastante de sua aparência. Formavam um casal muito simpático e eram amigos desde sempre de Robert e Bruce. Era realmente difícil entender como eles se davam tão bem, duas pessoas com personalidades tão diferentes. Robert, às vezes, ficava pensando nisso e tentando encontrar alguma razão, em vão. Isso também servia para lembrá-lo que no amor nem tudo precisava ser tão lógico quanto ele imaginava.

Robert mergulhou na piscina, refrescando seu corpo do sol, que já ultrapassava os 30o, e começou a falar:

– Vocês não vão imaginar o que aconteceu agora! Acabei de conhecer uma mulher totalmente diferente. Conversamos sem parar na praia, ela tinha me visto caminhando, isso desper-tou nela o interesse de ir para perto do mar...

Surf interrompeu!

– Calma! Você bebeu o quê, Rob? Nós não estamos enten-dendo!

E soltou uma gargalhada.

– Respire fundo e nos conte pausadamente o que houve.

Robert voltou a falar, agora mais calmo e com todos os de-talhes. Seu sorriso entregava que aquela mulher havia desperta-do algo diferente nele. E Janine, percebendo isso, ao término da conversa, perguntou:

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– Pelo visto foi uma manhã com boas surpresas. Você mar-cou a que horas com ela aqui?

– Meio-dia! Robert olhou seu relógio que já marcava esse horário. Sentiu automaticamente um receio sobre a vinda dela para a sua casa.

– Pelo visto ela deve estar chegando. Quero conhecê-la!

– Eu também, cara – disse Surf. – Para você estar assim, vamos ter uma tarde animada! – Sorriu como se fosse avaliar as atitudes do amigo na presença de Anne.

– É. Ela é... – Robert se perdeu na definição e passou a avaliar o sentimento estranho que tomava conta dele ao falar de Anne.

– Diga! – disse Janine, esperando um complemento adjeti-vado de emoções.

– Surpreendente!

– Surpreendente? Você mal conhece a mulher e a chama de “surpreendente”? Acho que ela lhe enfeitiçou – falou Surf.

Ele percebeu que seu amigo tinha gostado de Anne e como não o via se interessando verdadeiramente por nenhuma mu-lher, não quis continuar com a chacota. Janine também cortou e ignorou a brincadeira, com um olhar de recriminação para seu marido, deixando clara sua reprovação:

– Acho que você deve deixar Rob se apaixonar. Ele sai cada semana com uma mulher e não vejo esse interesse por nenhu-ma. Vamos dar apoio! – sustentou Janine.

Surf respirou, sem perder sua tranquilidade. Ignorou aque-las palavras e voltou a tomar sua cerveja. Janine também não

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quis continuar a conversa com medo de inibir a “paixonite” que Robert estava despertando dentro dele. E assim ficaram conver-sando sobre amenidades enquanto Bruce começava a preparar o churrasco.

Robert estava ficando preocupado. Já era quase uma hora da tarde e Anne não havia chegado. Ele pensava em tudo o que dissera, enquanto respondia quase no automático as perguntas de seus amigos. Por que não dei o meu número de telefone? Refletia Robert como um garoto que não falou a coisa certa na hora certa. Eu poderia mandar uma mensagem agora ou então até ligar. Mas não podia fazer nada além de esperar. Pelo menos ela era sua vi-zinha! Ela não poderia sumir: respirou, aliviado. Pegou mais uma cerveja e voltou a conversar com seus amigos, ainda sem deixar de notar que o tempo passava rápido em seu relógio de pulso.

Naquele momento, Anne estava sentada a meia hora em sua cama, refletindo sobre as possibilidades ao aceitar o convite feito por Robert. Do seu quarto quase dava para ouvir as vozes e sabia que ele já deveria estar esperando por ela. Será que me convidou por educação? Como vou me sentir com esses ami-gos dele que eu não conheço? Anne estava desconfortável com aquela situação e fazia várias perguntas sem encontrar respostas claras. Ela não gostava de se sentir tão insegura, mas sabia que deveria ir. Ele foi tão gentil na praia! Por que não continuaria assim? E, ainda mais, por que havia me convidado? Com certeza gostou de ter me conhecido. Eu fui gentil também na praia, mas não pedi para ser convidada! Anne recordava todas as frases da conversa para se certificar de não ter sido oferecida. Não! Não era isso. Anne estava indecisa e o tempo passando. Sabia tam-bém que ia ter de inventar alguma estória pelo seu atraso.

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Anne então sentiu um frio na barriga que lembrou um tem-po passado, mas levantou decidida e foi em direção à casa do seu vizinho e novo amigo. Seria um amigo? Ela não sabia dizer. Tam-bém não era necessário ficar tão assustada! E assim desceu as escadas de sua casa, encontrou seus pais na sala com seus tios, deu um “tchau” e saiu. Andou alguns passos e parou na porta de entrada da casa de Robert. Ela sentiu como se estivesse num marco decisório – onde aquela ação poderia desencadear um incontrolável desfecho. Teria consequências? É o que veria.

Ainda não havia tocado a campainha. Estava pensando o que dizer. Foi exatamente no momento que Robert abriu a por-ta. Ela sentiu um arrepio em seu corpo e ficou paralisada. Muito mais pela vergonha de estar em pé à porta do que pelo fato de vê-lo novamente. Ele sorriu como se estivesse aliviado e, ao mes-mo tempo, surpreso ao encontrá-la parada na sua frente.

– Eu ia agora mesmo tocar a campainha.

– Desculpe-me! Fiquei ajudando minha mãe na arrumação de um guarda-roupa velho e me atrasei. – Falou Anne após o susto.

– Tudo bem – sorriu Robert – Estava mesmo indo buscá-la!

– Ia? – perguntou Anne ainda sem jeito.

– Não, claro que não! Estava saindo para comprar mais cer-veja. Quer me acompanhar? É melhor do que entrar e ter que se apresentar para meu irmão e um casal de amigos que nunca a viram.

Anne balançou a cabeça concordando. Robert passou pela sua frente indicando seu carro. Abriu gentilmente a porta

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e foram fazer as compras para completar o churrasco da tarde. Robert pediu para Anne colocar o cinto de segurança e foram em direção ao mercado local. Enquanto ele fazia coisas comuns: como dirigir, falar sobre carnes ou mesmo em silêncio, ouvindo a música que tocava no carro, Anne o admirava. Sentia algo di-ferente. Era como se aquele momento fosse importante, único. Seu jeito era muito charmoso – pensava ela – enquanto respon-dia perguntas quase sempre superficiais que surgiam durante o caminho. O mais estranho é que Robert a deixava muito à vonta-de, como se fossem velhos conhecidos.

Anne não estava em sua melhor fase. Aos 27 anos, acabara de terminar um noivado que já durava dois. Estava no relacio-namento há oito anos, entre namoro e noivado. Um dia, Jonas – seu ex-namorado – ligou para ela, após um tempo de desen-tendimento entre o casal e disse que precisavam conversar. Anne já sabia aonde aquilo tudo ia chegar, não estava tão preocupada em terminar. Mas depois, com os dias que se passaram, sem li-gações, mensagens e a presença da pessoa que a acompanhou durante tanto tempo, uma tristeza contínua havia chegado. Não era só por Jonas, mas por tudo que viveram. Anne, apesar de ser uma mulher independente, acreditava no amor que durasse uma vida inteira. Não entendia, nem encontrava razão em suas amigas, que gostavam de contar quantos homens já haviam dei-tado em suas camas. Ela tinha uma visão simples sobre o amor: só poderia tê-lo, se houvesse um longo caminho percorrido a dois. Ela pensava assim, convicta de sua verdade.

Anne agora estava no carro de um “desconhecido”. Era uma sensação nova. Sequer sabia sobre sua vida, se era solteiro, divorciado. Tinha filhos? Começava a se preocupar com ques-

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tões íntimas da vida de Robert. Ao mesmo tempo sabia que era muito cedo para fazer perguntas dessa natureza. As dúvidas permeavam sua mente, enquanto olhava para Robert de forma carinhosa. Entraram no mercado, fizeram as compras e volta-ram para casa, de uma maneira natural e agradável.

Chegaram à casa. Bruce, que não sabia dos detalhes e sempre estava de bom humor, foi logo se apresentando. Surf e Janine estavam na piscina e também foram simpáticos com Anne. Ela foi totalmente acolhida após alguns minutos. Robert foi um tanto prestativo demais, sempre sentado ao lado dela e servindo-a durante toda à tarde. Anne estava se sentindo mui-to bem, não lembrava a última vez que esteve tão leve, livre e ainda sendo cortejada por um homem daquela forma. Ela percebia os olhares de todos ao redor, principalmente quando Robert se dirigia a ela, ou simplesmente quando ele foi buscar uma toalha após seu mergulho na piscina. Ela entendeu clara-mente as intenções de Robert, mas passou a tarde inteira sor-rindo e conversando, enquanto comia e bebia com seus novos amigos.

Próximo ao pôr-do-sol, os quatro decidiram ir até a praia, dar um mergulho no mar. Era um momento especial para eles, um ritual vespertino. Sempre após o churrasco, esperavam o sol adormecer e depois voltavam para a casa. Era o the end do pequeno evento. Seu clímax e também seu término. Explica-ram isso para Anne, como se ela fosse fazer parte de um grupo secreto. Ela gostou muito de ver como aquelas pessoas tinham algo tão bom e tão simples que fazia parte da vida deles, e do modo como Robert transformava tudo em uma festa, em algo que tinha um sentido único.

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– Esse será meu primeiro pôr-do-sol de muitos com vocês! – disse Anne, nitidamente animada.

Todos olharam para Robert e sorriram, enquanto Janine colocou mais lenha na fogueira:

– Claro! E pelo visto, você vai lembrar sempre desse dia!

Todos soltaram risos etílicos e foram caminhando para a praia. Era a segunda vez que Robert fazia aquele mesmo trajeto e estava tão mais feliz à tarde que automaticamente remeteu essa alegria à presença de Anne. Pensava em como seria comum se ela não estivesse com eles. E como ela completava aquele mo-mento que já era tão único. Bruce saiu correndo e jogou-se ao mar, como uma criança. Surf e Janine foram atrás. Finalmente, Robert e Anne podiam novamente falar a sós.

– Foi muito bom te conhecer hoje, aqui – disse Robert apontando para o local onde Anne estava sentada pela manhã.

– Eu também gostei muito. Obrigada.

– Não precisa agradecer. Você fez minha tarde especial – disse Robert olhando profundamente nos olhos esverdeados de Anne.

Ela estremeceu, ficou paralisada. Não beijava outro homem há oito anos. Havia terminado seu noivado a menos de um mês e estava na frente de um rapaz muito interessante que deixava ela desconcertada e, ao mesmo tempo, com vontade de beijá-lo.

– Não precisa ser tão amável. Eu já gosto de você – disse Anne, dando um “tapinha” no ombro de Robert. Anne, que sem-pre conseguiu ter solução para tudo e sempre aconselhava suas amigas, estava ali como uma menina sem jeito.

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Robert não entendeu. Não sabia se podia avançar o sinal e beijá-la ou se deixava o tempo confirmar suas intenções. Ele então tentou mais uma vez encontrar uma “deixa” para tocar os lábios de Anne.

– Eu fiquei a tarde inteira pensando como seria beijá-la – foi direto como uma bala disparada à queima-roupa.

– Foi? – sorriu Anne, sem saber o que dizer.

– Foi.

Robert e Anne se aproximaram, tocaram seus corpos, de-pois suas mãos e logo os lábios. Deram um longo beijo. Molha-do, demorado, sentido. Não eram apenas os corações deles que batiam acelerados, mas havia uma emoção diferente naquele momento. Tudo aconteceu de forma especial, intensa. Ambos não queriam parar de beijar. Primeiro porque estava muito bom e segundo porque não sabiam como reagir ao término do beijo. Mas também estava ficando muito intenso. Precisavam parar. E, lentamente, afastaram seus lábios e olharam um para o outro, como se passasse um filme do dia que tiveram, e também como se soubessem, ao se conhecer, que estariam naquele mesmo lo-cal, se beijando, horas após o primeiro encontro.

Como se nada estivesse mudado entre os dois, se dirigiram ao mar. Mergulharam e viram o sol se pôr. Depois de alguns mi-nutos, os cinco voltaram para a casa e, ainda no caminho, Anne avistou seus pais na varanda, acenando para o grupo. Todos ace-naram para eles de volta e Anne disse que eles já estavam espe-rando por ela para jantar com seus tios. Assim, se despediram, sem cerimônia, com dois beijos em cada e um beijo no canto da boca de Robert. Anne ficou mais uma vez sem reação e aconte-

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ceu naturalmente. Enquanto saía feliz para sua casa, Robert esta-va sem saber direito o que aquilo tudo representava. Ainda não tinha pedido o número do telefone dela. Não se sentia seguro em relação ao que acabara de acontecer entre os dois.

Agora, Robert se perguntava se aquele beijo tinha signi-ficado ou se foi apenas uma diversão, um momento de êxtase. Claro que Surf, Janine e seu irmão Bruce fizeram várias pergun-tas e conversaram até mais tarde sobre Anne. Mas Robert não deixava de pensar no que havia acontecido, em como os lábios de Anne eram macios e apetitosos. Robert gostava de relacionar coisas que faziam um sentido maior para ele. E a boca de Anne era como o “salmão cru”, macia.

Anne chegou a sua casa. Não tinha nenhum jantar especial. Estava apenas confusa e não sabia como agir, por isso inventou que estavam à sua espera. Chamou seus pais no canto e explicou tudo para os dois – existia um diálogo muito aberto com eles – fi-caram conversando e rindo baixo para seu vizinho não perceber. Pareciam três jovens amigos falando sobre a paquera da tarde. E assim terminou o dia que ficaria para sempre na memória de Anne e Robert.

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ACapítulo 3

Depois do beijo...

Antes de Robert dormir, ficou deitado lembrando das pala-vras, do sorriso e de como tudo em Anne fazia sentido para ele. Não era costume se ligar emocionalmente tão rápido, mas era involuntário, inesperado e totalmente oportuno. Não conseguia dormir, seu dia lhe trouxe uma inesperada paixão. Ele mesmo não aceitava a palavra paixão se não estivesse associada a um longo tempo de convivência. Certa vez, escreveu para uma na-morada que passou um longo tempo, quando terminaram: “des-culpe se não lhe ensinei a amar, isso poderia levar uma vida intei-ra!” – Robert pensava assim – Anne havia desafiado algo muito profundo, uma lógica arraigada durante toda sua vida. Aquele encontro foi mais que um acaso – pensava Robert sozinho em seu quarto. Será que ela merecia toda aquela empolgação? Não sabia ao menos sobre sua história, seus medos, suas crenças, seus desejos. Mas sentia uma alegria sem precedente.

Aquela sensação era tamanha que fez Robert colocar para fora, começou a escrever – coisa que não fazia, há muitos anos – procurou um papel, uma caneta, acendeu a luz e passou para o papel em forma de versos, palavras que naquele momento fa-ziam todo o sentido...

Devo estar atento a seus sinaisSeu sorriso

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Seus sonsSeus beijos.

Como quero seus beijos!Noturnos e diurnos

Sempre.Que dia novo lhe trouxe?

Se assim queria passar todos os velhos.Em seus braços

AbraçosEm seu corpo

Uma brisaTodo o mar

Como o tempoSempre.

Você foi um presenteQue descrevo nesse momento

Para nunca esquecer-te.

Robert não riscou uma letra. Não mudou nenhuma pala-vra. Esse não era seu melhor poema! Mas era sobre Anne. Fi-cou orgulhoso de sua atitude, quase infantil, de escrever sobre o amor. Amor? Não poderia sentir isso tão rápido – pensou por um instante. O que aquela mulher tinha? Não era de beleza exube-rante, não era seu “tipo”, mas mudou seu dia e ainda perturbava sua noite. Devagar, leu várias vezes o que havia escrito, colocou no criado mudo e sem esforço, adormeceu.

Anne naquele mesmo momento, lá pelas onze da noite, estava em seu quarto. Deitada, com a insônia que sempre a acompanhava nos últimos meses. Inicialmente, ela achava que

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seu relacionamento estava ruim, por isso, influenciava seu sono. Depois do término, continuou assim. E isso começava a incomo-dá-la. Não era sadio. Uma sensação estranha, ansiedade e falta de sono. Durante o dia ficava cansada, mas bastava se deitar que milhares de pensamentos surgiam e ela ficava acordada.

Como tinha sido bom o beijo! – pensava. Que dia mara-vilhoso, como ele era gentil. Anne não parava de suspirar. Pelo menos naquele dia a insônia não era necessariamente uma coisa ruim. Aquela cena do beijo foi passando lentamente e uma mú-sica que ela não identificava, vindo da rua, dava o tom romântico àquele momento.

Eu não posso estar assim! Ele nem deve ter sentido nada! Se fosse diferente, ele falaria! Falaria? Anne não sabia o que pen-sar. Tudo aconteceu tão inesperadamente que ela não conseguia saber o que estava sentindo e, num passe de mágica, simples-mente dormiu. Como não fazia, há muito tempo.

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ACapítulo 4

O dia seguinte

Anne sonhou. Não lembrou exatamente o quê, mas foi algo que trouxe uma sensação boa ao acordar. Um sentimento de que tudo estava no seu lugar. Olhava para o teto, imóvel. Voltou a fe-char seus olhos e orou como fazia todas as manhãs. Anne estava sensível. Arrumou-se e desceu para tomar seu café matinal.

À mesa, pensou estranhamente sobre como tudo tinha uma infinidade de pontos de vista. Observava o suco e o mel, ambos em sua frente. Como poderiam ser vistos como alimento: o suco sendo preparado, o mel, produzido. Parecia uma reflexão boba, sem nexo. Mas Anne estava parada, avaliando isso. Como poderiam também ser antagônicos! O mel simbolizando a vida, o trabalho. Tantas abelhas sincronizadas, produzindo como uma valsa adocicada. Enquanto a fruta, sendo “morta”, se transfor-mava, abdicando involuntariamente de sua condição inicial, para dar origem a uma fonte de energia para uma pessoa. Mas que tipo de pensamento é esse? – Anne refletia e sorria sozinha. Não havia uma razão aparente para tanta divagação. Seria algo do seu inconsciente que despertava uma curiosidade repentina nos detalhes? Ela não sabia a resposta, mas estava intrigada.

Subitamente, Anne parou de pensar naquilo. Lembrava en-tão de Robert. Como foi bom seu beijo! Como foi especial! Fluiu, assim como um pólen levado de uma planta para outra. Foi doce

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como o mel e de algum modo, fez esvair todo o suco da lem-brança amarga de seu ex-noivo. Como um despertar. Mais ainda, como um néctar, pronto para ser colhido e transformado.

Respirava então aliviada. Levantou, olhou pela janela e o dia estava ensolarado. Subiu para seu quarto, ainda silente. Sentou-se em sua varanda. Anne sorriu, enquanto fazia um mo-vimento com seus pés, em círculos, agora no chão. Sólido. Com uma sensação de certeza absoluta...

Robert já estava acordado, mas relutava em sair da cama. Sentia algo que lhe lembrava as suas despedidas nas viagens de férias quando criança. Não sabia como agir em relação à Anne. Era uma felicidade assustadora, até para ele. Tinha certeza de que se fosse muito rápido, poderia assustá-la, mas também se não to-masse uma atitude, poderia perdê-la. Era assim: Robert acreditava no poder do tempo, às vezes ajudava a curar feridas e muitas vezes não despertava emoções. Ele precisava agir. – O que era isso? – In-dagava Robert em seus pensamentos – Logo ele que sempre dava conselhos, na maioria dos casos de amor dos seus amigos, quando lhe consultavam. – Era ele, agora, que precisava de alguns.

Finalmente, estufou o peito, calçou seu chinelo e seguiu em direção à porta do quarto. A casa era toda feita em madeira e dava para ouvir os passos como se as pessoas estivessem ao seu lado. Surf, Janine e seu irmão já estavam no andar de baixo, prontos para sair, quando Robert desceu. Bruce, que imaginou seu irmão pronto para partir, indagou:

– Mano, não vai conosco?

– Robert sempre saía cedo no domingo por conta do trân-sito lento pela tarde.

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– Não – respondeu Robert secamente, com um olhar dis-tante.

Todos na sala se entreolharam e acharam tudo muito dife-rente dos outros finais de semana. Questionaram se tinha acon-tecido algo, mas Robert desconversou. Janine percebeu que po-deria ser o interesse dele por Anne e sussurrou algo com Surf e logo após com Bruce. Todos se despediram e foram colocar as coisas no carro, para voltar à cidade.

Robert precisava mesmo daquele momento para ficar so-zinho, pensar. Sentou-se à mesa da sala, vazia, apenas com seu café e algumas torradas. A campainha tocou e atrapalhou o início da reflexão que Robert começava a ter sobre como iria falar no-vamente com Anne. Estava sem paciência para Bruce. Ele sem-pre esquecia algo em casa, também era uma rotina de final de semana.

– Você sempre esquecendo tudo! Aprenda a ter mais aten-ção, rapaz! – Falou Robert com tom agressivo.

Ao abrir a porta, ficou mudo! Não era Bruce e sim Anne! Ela estava linda, com um vestido branco de linho amarrado e um colar de flores pequenas, seus olhos brilhavam mais que a luz batendo no vitral da porta.

– Se quiser volto depois – disse Anne com um sorriso no canto da boca, fazendo Robert ficar sem jeito.

– Não... Não! Desculpe. Pode entrar. É que meu irmão sem-pre esquece...

– Eu ouvi. – Interrompeu Anne. – Tenha paciência com ele!

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Robert ficou mesmo sem jeito e, ao mesmo tempo feliz em recebê-la na sua casa. Não sabia por onde começar e já estavam conversando. Era tudo o que ele queria naquele momento.

– Entre – disse Robert a Anne.

Anne estava muito nervosa. Mas uma coisa que ela sabia era disfarçar sua ansiedade. Havia pensado muito antes de sair de sua casa e acreditava que aquele momento era único. Que o tempo passaria e talvez não houvesse outro momento como aquele. Sem ela saber, Robert pensava a mesma coisa. Os dois estavam em sin-tonia. Existia uma reflexão madura, apesar da idade, entendendo que todo receio que tinham não foi causado por Robert e Anne, mas sim pelos outros relacionamentos que tiveram. Eles eram ino-centes de todas as suas frustrações e deveriam seguir como se aquele fosse o primeiro encontro de amor. E assim aconteceu...

– Estou atrapalhando seu café? – perguntou Anne para provocar uma reação de Robert.

– Não... Sente-se comigo! Será um prazer ter sua compa-nhia logo cedo.

Robert percebeu que estava sendo apático e precisava aju-dar Anne, que havia sido muito corajosa em vir até a sua casa.

– Foi bom tê-la conhecido! – disse Robert sendo mais di-reto.

– Também achei você fascinante – disse Anne para não dei-xar dúvidas.

– Gostei do adjetivo! Exatamente como me senti ao acor-dar hoje: fascinado – finalizou Robert olhando profundamente nos olhos de Anne.

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O silêncio tomou conta da sala. Nenhum barulho. Nenhu-ma música. Só os seus olhos e os de Anne vidrados como se não pudessem sair daquele lugar. Ainda que tentassem, todos os ca-minhos os levaram para aquele momento. Anne não sabia o que fazer, já tinha tomado a iniciativa e estava certa de que fez além da sua capacidade. Robert então levantou, se dirigiu para Anne e estendeu a mão, como se convidasse ela para uma dança, le-vantou-a, colando seu corpo firme pela cintura, começou a falar espontaneamente, como nunca havia feito perante uma mulher. Sem medo, sem pensar:

– Não sei medir. Seria como transformar infinitos olhares em céus da boca. Deixaria de falar com você por anos, apenas para lhe contar novidades sobre mim. Deixaria que o tempo pu-desse ensinar sobre a brevidade de um instante, para que não se perca no momento em que meus lábios tocam sua pele, seu corpo. Mas, apesar desse sentimento, tenho medo. Medo de me esquecer em seus sonhos e nada mais fazer sentido. Medo de que se perca nos meus e um dia te deixe numa esquina qual-quer. Não seria um sentimento especial se esses pensamentos não existissem. Apenas quero agora seu ventre apoiado em meu corpo. Dessa parte não abro mão.

Seus olhos não deixavam os de Anne. Ela estremeceu com aquelas palavras! Era como num sonho, mas estava consciente de ter ouvido tudo. E sabia que não esqueceria nunca daquele momento.

Os dois tocaram suas faces quase à mesma hora, como em uma dança rítmica; seus corações aceleraram de forma que cada um podia sentir o compasso do outro. O beijo veio naturalmen-

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te, quente, lento e demorado. Era como se todo o corpo beijasse e não apenas seus lábios.

Robert levantou Anne e colocou-a sob a mesa. Seguiu pelo seu corpo como se já soubesse o caminho. Anne decidiu não pensar mais em nada. Nenhuma negação seria imposta a Robert. Ele beijou entre suas coxas e a despiu sem ela sentir. Seus corpos estavam nus e eles não queriam estar em nenhum outro lugar do mundo. Amaram-se como dois adolescentes, com uma diferença significante: Anne nunca tinha sentido daquele jeito. Arrepios e calafrios que se juntavam, continuava em êxtase. Anne não lem-brava exatamente qual a melhor sensação que teve com um ho-mem. Para ela, o que importava era o contexto. Mas Robert a fez repensar tudo isso. Deitaram exaustos no sofá, calados por alguns instantes.

Robert agora beijava os olhos de Anne que estavam fecha-dos, com um carinho especial. Isso a fez se sentir amada. Ele não deixou nenhuma dúvida ou possibilidade de arrependimento fu-turo. Ela já sabia! Ele comentou algo sobre uma música de Viní-cius de Moraes que falava do “momento de depois” e do “infini-to de nós dois”, como sendo aquele momento que eles estavam vivendo. Anne ficou admirada. Não só pela sensibilidade daquele homem, mas como ele podia ser tão sexy e ainda poético! Como ela poderia ter vivido até aquele momento sem ele? Pensava Anne enquanto recebia carinho nas costas.

Robert convidou Anne para subir. Estava muito quente na sala. Ela foi sem hesitar. Entrou no quarto com a temperatura muito mais agradável. Robert sentia muito calor. Tomaram banho juntos e voltaram a se amar debaixo d’água. Depois, enrolados na toalha, foram para a cama. Era como se eles não quisessem uma pausa, lutando contra o tempo que passava e continuavam

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se amando como dois ávidos, famintos de amor. Suas paradas se resumiram a beber água e um lanche ao final da tarde. Per-to das 22 horas, dormiram exaustos. Não imaginavam, naquele momento, o quanto aquilo tudo teria importância em suas vidas.

Robert abriu os olhos de madrugada, sentiu Anne ainda agarrada à sua cintura, recobrou a memória, sua lucidez e sus-surrou em seu ouvido:

– Anne, você avisou aos seus pais que dormiria em casa?

Anne resmungou ainda dormindo:

– Eles voltaram cedo... Avisei que eu iria somente na se-gunda-feira.

E pegaram no sono novamente.

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ACapítulo 5

Descobertas

Anne acordou. O sol já ensaiava entrar no quarto pelo can-to da cortina. Robert estava abraçando-a com todo o seu corpo, mãos e pernas. Anne apertou mais seu corpo contra o dele. Tudo tinha acontecido muito rápido, mas a sensação de Anne não poderia ser melhor. Ela queria ficar o resto de sua vida naquele quarto. Era como se não existisse mais nada no mundo. E estava tudo bem! Estava perfeito. – Como tinha sido especial – pensa-va Anne repetidamente. O sorriso tomava seu rosto, sua alegria era surpreendente. Simplesmente não poderia prever quando viu aquele rapaz andando em direção à praia na manhã anterior. Agora ele estava atrás dela, abraçando-a, como alguém que era necessário, que já fazia parte de sua história.

Robert também despertou como se percebesse que Anne estava acordada. Beijou sua nuca, ela se moveu em sua direção, bem devagar. Ficaram se observando por alguns minutos para tentar de algum modo eternizar aquele momento. Beijaram-se. Robert falou no ouvido de Anne:

– Não queria nenhuma outra mulher do mundo aqui. Nem em nenhum outro momento de minha vida!

Anne pensava a mesma coisa. Mas sorriu apenas confir-mando o que Robert acabava de dizer. Ambos se levantaram e foram tomar banho. Ainda estavam cansados. O dia anterior não

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fazia parte da rotina de nenhum dos dois. Desceram para o café matinal.

– Tentei fazer o melhor que pude – disse Robert sobre o café com leite e torradas com geleia sobre a mesa.

– Não se preocupe – disse Anne. Você já fez muito além do que um dia imaginei. E beijou novamente aquele homem que tinha despertado nela algo maravilhoso.

Sentaram para tomar o café. Anne sabia pouco sobre Ro-bert e vice-versa. Começaram a falar sobre as questões da vida. Robert começou falando sem parar, sua vida desde criança, seus relacionamentos, seu trabalho, sua família. Tudo que ele podia contar naquele momento. Anne falou sobre o término do noiva-do, um pouco sobre sua vida, que era filha única e interrompeu, dando uma pausa:

– Temos que conversar sobre algo. Sei que tudo isso pode ser passageiro, apesar de não querer de jeito nenhum que seja.

– Eu também não – disse Robert preocupado com essa possível revelação.

– Então, tenho que falar algumas coisas que você precisa saber: faço residência médica no Rio de Janeiro e tenho um voo marcado para hoje, às dezenove horas. Não comentei antes por-que não tinha clima para essa conversa.

– Entendo... – Interrompeu Robert.

– Acho até que estou antecipando as coisas...

– Não...

– Mas se o que sente é parecido com o que sinto, temos

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que falar sobre isso. Eu só volto a morar em Salvador daqui a um ano. Não sei como faremos. Ou se faremos algo. Desculpe, mas tudo isso mexeu muito comigo.

Uma lágrima caiu discreta dos olhos de Anne.

– Não fique assim, vamos encontrar uma solução – disse Robert perplexo, sem saber se poderia cumprir o que acabava de dizer.

Robert sentiu um misto de tristeza e indefinição. Mas pro-curou não demonstrar. Ele tinha uma teoria sobre relacionamen-tos a distância: Simplesmente não dão certo! Ou por ciúmes, ou pela própria distância que acaba tornando tudo fantasioso e, ao mesmo tempo, vazio. Pelas noites no celular sem chegar a lugar nenhum. Não acreditava, e isso o deixava muito confuso. Mas ele precisava responder, dizer algo, tranquilizar Anne:

– Tudo bem! Vamos dar um jeito.

E sorriu como se já tivesse um plano traçado.

Anne também sorriu. Ela sabia que Robert não tinha gos-tado da situação, mas ficou um pouco calma por ele já saber e tentar buscar uma solução com ela. Arrumaram suas coisas e pe-garam a estrada em direção à cidade de Salvador, na Bahia.

No caminho, ambos estavam calados, pensativos. Anne re-fletia sobre a distância que iria separá-la de Robert. Robert tinha certeza de que isso iria ocorrer. Mas disfarçavam bem a situa-ção falando sobre as letras das músicas que tocavam no carro. Davam risada. Assim foram, se distraindo até chegar à casa dos pais de Anne. Não havia muito a dizer naquele momento. Tam-bém não podiam resolver nada. Trocaram beijos, telefones e se

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despediram. Robert sabia que ali, naquele instante, uma página havia passado e a próxima seria uma incógnita.

Anne chegou à sua casa com uma sensação estranha. Como se tudo não passasse de um sonho. Indefesa, sem saber como agir. Conversou rapidamente com seus pais e foi para seu quarto. Enviou uma mensagem para o celular de Robert, que dizia: “Foi tudo inesquecível”. Ele logo respondeu: “Sinto a mesma coisa que você. Não queria sair desse sonho”. Anne leu atentamente. Sair? Seria uma possibilidade para ele? Ou foi apenas força de expressão? Anne preferiu não continuar a pensar dessa forma. Ele respondeu positivamente e pronto – pensou. Lembrava-se da forma carinhosa e amável que ele a tinha tratado em sua casa e bloqueou qualquer pensamento distorcido que pudesse ter. Agora tinha a difícil missão de preparar sua mala e voltar para o Rio de Janeiro e para a “realidade”. Com certeza não era sua vontade! Anne pensava repetidamente. Mas precisava! Não ha-via outra opção.

Robert já estava em seu quarto, deitado, olhando para o teto. Ficou satisfeito em receber a mensagem de Anne, apesar de achar que ela poderia ter continuado a conversa. Robert tinha se doado, estava aberto para o amor. Mas sabia que Anne precisava também demonstrar afeto. Isso deveria acontecer naturalmen-te! As horas passavam e sua angústia só aumentava, sabendo que Anne viajaria naquele dia para quase dois mil quilômetros de distância dele e que tinha uma “vida” esperando ela por lá.

Anne já estava com quase tudo preparado para sua via-gem. Faltavam poucas horas para o voo. O interfone de sua casa tocou. Sua mãe falou alto da cozinha que era alguém lhe procu-

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rando. Seu coração quase saiu pela boca. – Seria Robert? Pensou imediatamente. Aflita, correu para atender. Do outro lado da li-nha, uma voz conhecida:

– Alô.

– Jonas? – Identificou imediatamente a voz rouca do antigo noivo.

– Sim, eu estou aqui. Queria conversar com você. Soube que iria voltar hoje para o Rio. Não sei se fizemos a coisa certa em terminar...

Anne interrompeu Jonas. Ela não se sentia mais ligada a ele. Robert a tinha libertado daquela relação por completo. Exis-tia ainda um carinho por Jonas, mas um sentimento totalmente diferente, sem possibilidade de ser reativado como uma relação amorosa. O dia anterior, com Robert, tinha representado mais que os oito anos de convivência com o ex., pelo menos naquele momento. Assim Anne respondeu de forma segura e decidida:

– Jonas, eu sei que fomos importantes um para o outro, mas tivemos nosso momento, nossa chance. Não deu certo. Foi como um vaso que se quebrou. Não podemos mais colar. Já ten-tamos, eu agora prefiro seguir em frente. Não vou descer, estou arrumando minha mala, espero que entenda minha posição.

– Mas Anne...

– Não quero essa conversa agora, Jonas. Foram oito anos, tempo suficiente para sua decisão. Você sempre postergou essa conversa, me fez sofrer, eu não quero nem voltar a falar nisso. Obrigada por ter vindo aqui. Fique bem!

Anne foi dura, não deixando dúvidas de sua vontade.

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– Tudo bem! Eu pensava que ainda sentisse algo por mim. Mas vejo que acabou mesmo – disse Jonas com uma voz de de-cepção.

– Obrigada. Fique bem – finalizou Anne a conversa e voltou para seu quarto.

Realmente Robert tinha lhe dado algo além da emoção e da paixão que nunca pensou existir. Tinha-lhe apresentado algo que ela sempre buscou. E isso o fez mais forte. Sabia que Jonas nunca lhe daria algo parecido.

Anne lembrou imediatamente de um trecho de uma mú-sica de João Bosco, que diz: “Quando o amor acontece, a gente esquece logo que sofreu um dia”. Era isso. Robert trouxe o amor para a vida de Anne. Ela estava radiante com essa sensação.

Robert continuava em sua cama, relembrando cada instan-te que passaram juntos. Segurava sua ansiedade. Tentava racio-nalizar tudo aquilo para não sentir mais saudade. Ele sabia que não conseguiria sofrer por amor. Sempre preferiu se passar de covarde e desatar os laços do que apostar e correr o risco de perder. Não era uma questão de medo, sabia que não tinha ca-pacidade emocional de ficar “sem chão”. Preservava-se ao máxi-mo. Era um assunto delicado para ele. Aparentava uma pessoa sem problemas, mas a vida já havia sugado e muito suas forças emocionais. Ele tinha consciência até onde poderia chegar. Pri-meiro, ainda moço, teve que vivenciar de perto a aflição de seus pais, com a falência da empresa familiar. Depois vieram outras dificuldades decorrentes disso: a saúde de seus pais, seu irmão que recorria a ele nos momentos difíceis, tudo isso preocupava muito Robert. E ele sabia que ninguém iria entender suas atitu-

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des, muito menos Anne. Mas precisava respeitar esses limites. Era o que mantinha Robert com seu bom humor e uma pessoa que poderia fazer Anne feliz. Era um paradoxo. Mas era também um equilíbrio necessário.

Enquanto Robert refletia, com o celular ao seu lado, imó-vel, o tempo passava. Anne, em sua casa, permanecia sentada, sem coragem para fechar sua mala. Ela, muito inteligente, sabia que estava em uma situação com poucas opções. Achava que precisava ser mais presente, então enviou outra mensagem para Robert: “Não esqueço seu olhar, seu sorriso, seus beijos...”. Ele demorou um pouco para responder dessa vez. Anne fechou suas malas. A tristeza o acolheu. Foi quando Robert respondeu: “Eu também não esqueço nenhum detalhe. Mas estou com medo que isso venha acontecer...”.

Anne sabia que ele estava certo, mas não quis continuar a falar por mensagens de texto e ligou para Robert:

– Oi! – disse Anne após Robert atender.

– Oi! Tudo bem?

– Bem?

Anne sorriu e disse-lhe:

– Também tenho medo de te esquecer.

– Acho que temos que resolver isso. É cedo, eu sei. Mas precisamos de um plano. Eu me apaixonei por você e não sei o que fazer. Eu não acredito em namoro a distância...

– Eu também não, Robert. Estou apaixonada. Eu entendo o que sente. Sinto a mesma coisa, mas não sei a resposta.

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– Tudo bem. Acho que temos que pensar um pouco então, tentar encontrar a solução e conversar. O que acha?

– Está certo... Mas estou com meu coração apertado.

– Eu também, querida! A propósito, quem vai te levar ao aeroporto?

– Meus pais...

– Ok. Poderia levá-la, mas seria injusto com eles.

– Sim, eles já estão prontos. Não gostaria de fazer isso. Você entende?

– Claro!... Assim pode chorar e só eles vão ver – falou em tom de brincadeira com Anne, para diminuir a tensão.

– Não teria problema em chorar pra você. Poderia me abraçar.

– Claro!... Só não deixaria você partir...

Por alguns segundos o telefone ficou mudo. Nenhum dos dois sabia o que dizer. Esse era o momento muito difícil. O senti-mento era tão grande que bloqueava as palavras.

– Então... Boa viagem! – disse Robert quase sem conseguir falar.

– Obrigada, por tudo.

Anne estava com a voz embargada também.

- Beijos.

- Beijos.

Desligaram o telefone e sentiram algo que nunca tinham experimentado. Passaram alguns minutos com o olhar fixo, para

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o nada. Não sabiam o que fazer. Os pais de Anne já estavam prontos e chamaram-na.

– Já vou! – Avisou Anne do seu quarto.

Anne abriu sua bolsa e tomou um calmante que usava an-tes de suas viagens. Ainda atordoada, procurou o que faltava e saiu de casa com seus pais. Antes de chegar ao aeroporto Luís Eduardo Magalhães (SSA), existe um “túnel” de bambus natu-rais. Aquela imagem nunca saiu da memória de Anne – não só pela beleza daquele pequeno trajeto, mas pela imensa saudade que apertava seu peito. Era seu “túnel da saudade”, antes por-que deixava sua cidade natal e agora por Robert.

Anne era só saudade. Tomou outro calmante, se despediu de seus pais e foi para a sala de embarque. Antes de desligar o celular, enviou uma mensagem para Robert: “Estou entrando no avião, mas meu coração ficou...”. Robert, respondeu imediata-mente: “O meu está embarcando com você!”.

Robert, em seu quarto, chorava compulsivamente, solu-çando como uma criança. Abraçado em seu travesseiro, derra-mava lágrimas que pareciam não ter fim. Seu choro não era só por Anne, mas por todas as despedidas, desencontros, saudades e, principalmente, por ela. Suas lágrimas lavaram seu rosto, seus sons eram abafados pelo travesseiro para não preocupar seus familiares em casa. Depois de alguns minutos dormiu, exausto. Anne também havia libertado Robert de algo que estava dentro dele, algo que nem ele sabia, naquele momento.

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Ilustração dos bambuzais na entrada para o aeroporto de Salvador

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OCapítulo. 6

A página dois

Os dias se passaram. Semanas. Robert e Anne se falavam quase todos os dias, mandavam mensagens carinhosas um para o outro. Mas, aos poucos, a intensidade diminuía e a rotina atra-palhava as conversas e o clima de romance do casal. Eles faziam planos que se perdiam no futuro incerto. De algum modo, a falta da presença física era implacável. O trabalho de Anne no hospital estava intenso e Robert começou a se sentir sozinho por conta dos horários cada vez mais escassos que tinham para conversar.

Os desencontros sobrevieram à relação. A insegurança e angústia iam, aos poucos, dominando os pensamentos deles. Apesar dos ensaios para planejar o futuro, não existia resposta para aquela pergunta que eles se faziam quando Anne viajou. Robert, como sempre, decidiu então tomar uma decisão. Não era o que desejava, mas já estava chegando ao limite de sua ca-pacidade de sustentar tudo, seu equilíbrio estava sendo abalado. Pensou durante dois dias e então enviou um e-mail. Ele não con-seguiria falar ao telefone tudo o que estava sentindo. Sabia que era prematuro. Mas sua ansiedade falou mais alto. Seus conflitos internos o deixaram sensível àquela complexidade de sentimen-tos. Então escreveu:

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Anne, meu amor:

Você sabe que nunca senti por outra mulher o que sinto por você. Já lhe falei diversas vezes isso. Mas, depois de pensar bastante, vejo que não temos uma solução rápida. Não quero você triste, nem que-ro ficar também. Você ainda precisa se dedicar muito à sua carreira e estamos lutando contra a maré.

Eu não consigo viver assim. Estou me sentindo sozinho sem você. Sabe que não acredito em rela-cionamentos a distancia e não quero perder o sen-timento bom que temos um pelo outro. É uma deci-são difícil, mas escrevo justamente porque te amo. Se não houvesse sentimento, seria mais fácil deixar tudo como está! Talvez hoje você não entenda, mas com o tempo, vai perceber que essa “separação” foi um ato de amor.

Robert

Anne chegou à sua casa, sábado, às seis horas da manhã, ao término de seu plantão. Antes de tentar dormir, verificou sua caixa de entrada e leu o e-mail de Robert. Releu. Entendeu o que ele havia escrito, mas não compreendeu sua atitude. Por que não ligou? Não esperou um pouco mais? Por que estava abrindo mão de algo tão profundo? Será que ele a amava mesmo? Ou será que tinha conhecido outra mulher? Anne ficou triste. Mas também sentiu raiva da atitude de Robert. Ela não esperava isso dele. Tomada por esse sentimento, Anne respondeu o e-mail:

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Robert,Bom dia!Se essa é a sua decisão, não tenho mais nada

a dizer.Se cuide.

AnneAnne então desabou em lágrimas. Uma grande interroga-

ção a deixava sem saber o que havia acontecido. Chorou bastan-te e adormeceu. O sono mais triste e solitário que poderia existir.

Robert leu o e-mail. Confirmou mentalmente que Anne não estava disposta. Para Robert amor era doação. Ele também ficou triste, mas já esperava algo assim. Preferia, em sua lógica de vida, testar e resolver, do que ficar esperando.

O dia seguinte foi o mais difícil. Os minutos passavam ar-rastados. Toda a história vinha à tona. Ambos passaram o domin-go deitados nas suas casas. O pensamento era o mesmo: como tudo tinha chegado a este ponto? Robert estava um pouco mais calmo apenas pelo fato de trocar a angústia da relação a distân-cia pela ausência de Anne. Mas continuava se sentindo muito mal. Anne já não estava nem um pouco satisfeita com aquele desfecho. Ligou para algumas amigas, recebeu os mais diversos conselhos, mas nada diminuía sua indignação. Ela não entendia o que tinha acontecido! Ainda estava se sentindo culpada pela resposta fria que enviou a Robert. Ele não merecia! Anne nunca tinha se sentido tão perdida.

Ambos estavam solitários. Era uma mistura de decepção e saudade. Mas passaram o dia inteiro sem se falar. O primeiro desde que se conheceram.

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Robert parou. Não só no tempo, mas pensando no que ti-nha feito de errado. – Nada! – Seu pensamento era recorrente. Não poderia aceitar ou fingir alegria. Até porque precisava seguir sua vida. Naquela manhã, naquele momento, percebeu que po-dia ter criado uma ilusão que era só sua. Tomou um banho bem demorado, como se tentasse se livrar das lembranças ao lado de Anne. Ele precisava disso, não mais de palavras dos amigos e parentes, precisava resgatar sua capacidade de viver sem aquele amor. Era um amor? Robert passou dias pensando nisso.

Duas semanas se passaram desde aquele dia. Anne não conseguiu se concentrar no trabalho e Robert também tinha se ausentado da empresa e estava em sua casa de praia – lá onde conheceu Anne.

No domingo, sem aguentar mais aquela aflição, Anne ligou para Robert:

– Alô? – disse Anne com voz suave.

– Oi. – Uma voz feminina atendeu.

– Robert? – engasgou Anne sentindo um tremor em seu corpo.

– Não. Rob está na praia. Mas ele já volta! – respondeu a mulher. – Quer deixar algum recado?

– Não, obrigada. Ele vai ver no celular que liguei! – disse Anne, desligando.

E ficou matutando depois sem entender o que aquela mu-lher fazia atendendo o celular de Robert. Não era Janine, e ainda o chamou de Rob! Quem era ela? – questionou Anne enlouque-cendo de raiva.

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Anne se descontrolou. Seus pensamentos aceleraram. Será que Robert já está com outra mulher? Tudo tinha sido em vão? Anne não aguentava mais aquela angústia e sabia que precisava resolver. Iria até o fim. Esqueceu os conselhos de suas amigas e seguiu o seu coração. Acreditou em Robert e em suas pala-vras. Não só nas atitudes, mas no sentimento único que ela tinha experimentado. Se isso não valesse a pena o que mais valeria? Anne acreditava no amor. Tinha que ver Robert novamente, con-versar com ele, ouvir dele. Precisava esclarecer tudo. Entrou na internet imediatamente, comprou sua passagem, pegou um taxi e um voo direto para Salvador.

Do aeroporto, Anne foi para Praia do Forte. No seu celu-lar, lembretes de ligações que Robert fez enquanto ela estava a bordo, com ele desligado. Preferiu não retornar. No meio do caminho, ele ligou novamente. Anne não sabia o que falar e já estava tão próxima que resolveu não atender. Alguns minutos depois, chegou à sua casa, trancou a porta e foi para seu quarto. De sua pequena varanda circular, puxou a cortina para o lado e, pode ver uma mulher andando pela grama na casa de Robert. Confirmou que não era Janine nem nenhuma outra pessoa que ele havia comentado conhecer. Sentiu imediatamente um frio na barriga. Era uma mulher bonita, com cabelos pretos longos e ainda era muito elegante. Anne desabou. Sozinha ao lado da casa do homem que tinha virado sua vida pelo avesso, imóvel, sem saber como agir naquela situação, começou a chorar. Tinha certeza de que ele estava com outra mulher. – Como fui burra! – repetia Anne mentalmente por ter ido atrás dele. Mas ela ain-da se questionava sobre como tudo poderia ter-se perdido tão rapidamente. – Tudo não passou de ilusão? – Anne não podia

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acreditar. Cada palavra, cada beijo parecia uma encenação. Ago-ra aquele não parecia o homem sensível que conheceu. Anne sentia um misto de tristeza e frustração. O pior de tudo é que ela não conseguia ter raiva dele. Seu e-mail tinha sido cruel, seco. Isso a deixava com uma ponta de culpa por não ter sido mais paciente naquele momento.

O relógio já marcava dezessete horas e Anne ainda estava triste, com seu rosto inchado, olhando para o espelho ao lado de sua cama. Ela sabia que não poderia ter chegado tão longe para nada. Era necessário tomar uma atitude. Sabia que se fosse embora, não teria respostas. Tudo que sentiu em seu coração es-taria perdido para sempre em suas lembranças. Então, levantou, tomou um banho, se maquiou, desceu as escadas, firme, tentan-do ficar serena e foi em direção à casa de Robert.

Estava em frente à porta. Dessa vez, seu sentimento era completamente diferente daquele dia do churrasco. Anne lem-brou imediatamente de como tinha sido bom naquele dia. Mas não poderia continuar pensando assim, precisava enfrentar uma situação difícil, manter a calma, ir adiante.

Tocou a campainha duas vezes. Esperou. Tocou mais duas. Suas mãos já estavam suadas. Ouvia os passos de uma pessoa vindos em sua direção. A porta se abriu como se estivesse em câmera lenta para Anne. Era a mulher desconhecida!

– Boa tarde! – disse a moça num tom de alegria.

– Boa tarde! Meu nome é Anne. Eu gostaria de falar com Robert, ele está?

– Está sim, Anne – respondeu como se ela fosse uma co-nhecida. – Me chamo Samantha, entre!

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Anne não gostou da forma como aquela mulher falava. Era a casa dela? Deveria ter chamado Robert – pensou Anne en-quanto formulava uma resposta.

– Obrigado, Samantha, mas prefiro esperar ele aqui. Não quero atrapalhar.

– Tudo bem! Só um momento que vou chamá-lo.

Samantha se virou, deixando a porta entreaberta.

Aqueles foram os instantes mais constrangedores da vida de Anne. Ela não merecia aquilo. Mas negou seus pensamentos e possível orgulho. Concentrou-se em tudo que viveu com Ro-bert. Ficou firme, focada no que precisava falar.

Finalmente, ele chegou à porta. Olhou para Anne de um jeito que ela não soube interpretar. Algum sentimento entre in-dignação e surpresa.

– Oi, Anne! Entre, por favor. Pensei que não a encontraria mais por aqui – sorriu Robert parecendo sarcástico.

Anne não falou. Apenas entrou na casa. Sentou-se à mesa da sala. A mesma que fizeram amor pela primeira vez. Continuou calada, mas essa lembrança foi imediata e deixou-a ainda mais desconcertada. Robert sentou longe, na outra extremidade. Também relutava em falar, como se esperasse Anne tomar a ini-ciativa da conversa.

– Eu queria...

– Você...

Falaram ao mesmo tempo. Ensaiaram o início de uma fra-se.

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– Diga! – se antecipou Robert.

– Robert, ou melhor, Rob! Não sei se sou íntima para te chamar assim.

– Claro!... Continue...

Robert não quis dar chance para desavenças pela insinua-ção de Anne.

– Então, Rob! Eu não sei quem é Samantha, também nesse momento, pouco importa. Vim do Rio de Janeiro até aqui porque sei que minha resposta ao seu e-mail não foi justa. Queria achar um jeito...

Anne começou a chorar. Não conseguia continuar, não sabia por onde começar. Havia chegado ao seu limite naquela situação.

– Não chore – disse Robert, se aproximando dela.

Anne colocou a mão, como se pedisse para ele manter dis-tância.

– Eu vou buscar um copo d’água para você.

Robert foi à geladeira, fez algum sinal para Samantha, que estava na piscina, e voltou para continuar a conversa.

– Aqui! Beba, por favor.

– Obrigada.

– Se acalme...

– Estou tentando...

Falaram rápido, ansiosos, sabendo que seria difícil contro-lar tantas emoções que sentiam naquele momento.

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Nesse instante, Samantha, apareceu pronta para ir embo-ra, com uma bolsa na mão, vindo na direção deles e falou:

– Rob, sabe, eu preciso voltar para Salvador.

– Você não precisa ir...

– Não... Vou antes que escureça.

Samantha se despediu de Anne e saiu.

Robert pediu desculpas a Anne e foi levá-la até o carro. Voltou com o mesmo olhar que recebera Anne mais cedo. Ela não entendia como ele poderia estar tão frio. Quem era essa Sa-mantha? Anne não compreendia o que estava acontecendo, mas preferiu, novamente, não conversar sobre aquilo e se concentrar em resolver o que a levou até ele.

– Eu vim...

Robert interrompeu.

– Eu não imaginava que viria me ver. Sempre com seus plantões! Sua vida profissional em primeiro lugar. Eu tentei como pude, mas não encontrei uma fórmula para nós dois. Eu não nego que te amo. Não nego que sinto que nasci para ficar com você, mas não quero sofrer mais...

Anne não sorriu, mas por dentro sentia um alívio em saber que mesmo após tantas palavras difíceis de ouvir, ele estava di-zendo o que sentia. – Nasceu para ficar comigo!

– Eu queria te dizer...

– Não. Só um pouco – interrompeu Robert. – O que sinto por você nunca aconteceu com nenhuma outra mulher. Isso se

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confirmou a cada dia que passamos juntos ou mesmo a distân-cia. Mas, hoje, tenho certeza de que não posso viver longe de você. Isso não estava me fazendo bem. Tentei dizer isso no e--mail para despertar uma conversa, mas você respondeu como se nada importasse. Eu acho que esse sentimento era apenas meu! Foram muitos dias tristes com sua ausência. Meu senti-mento é que tudo que faço poderia ser com você. Todas as horas que passamos longe trouxeram sorrisos presos. E isso é único! E não sei como podemos voltar...

– Desculpe! Eu voltei e estou aqui por isso. Perdoe-me! – Pediu Anne de uma forma carinhosa que desarmou Robert. Ela também estava aliviada em ouvir tudo aquilo. Ela sentia a mes-ma coisa!

– Tudo bem! Não quero alongar mais isso. Mas precisamos de uma solução! – Suplicava Robert, após abrir seu coração e sabendo que não seria fácil resolvê-la.

Anne se levantou, sentou no colo de Robert e beijou-o como se nunca mais fossem se separar. Ambos tiveram a mes-ma sensação, e foi como se, num passe de mágica, tudo tivesse uma solução simples para eles. Novamente, como na primeira vez que estavam naquela mesa, seguiram o mesmo roteiro, só que de uma forma ainda mais intensa. Nenhum dos dois pensou em como seria o dia seguinte, aproveitaram cada instante como se fosse o primeiro ou o último.

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NCapítulo 7

Decisões

Na manhã seguinte, os dois já tinham acordado, mas fin-giam estar dormindo. Não queriam se afastar, nem por um se-gundo. Ainda tinham medo do que poderia vir pela frente. Suas próximas palavras, perguntas sem resposta, decisões.

Robert levantou primeiro, nas pontas dos pés, desceu para preparar o café. Sempre tinha pouca coisa na dispensa: café, tor-radas, ovos e manteiga, naquele dia. Ele aproveitou e preparou ovos mexidos para os dois. Anne desceu. Beijou Robert e ficaram quietos abraçados, sentindo uma emoção ainda maior e mais in-tensa, nunca antes vivida. Anne então se lembrou da questão que afligia o casal e começou a falar, durante o café matinal.

– Temos que resolver nossa vida juntos. Você estava certo. Não consigo ficar sem você também.

– Temos...

Robert não esperava uma reação tão imediata e amorosa de Anne. Não daquela forma! E continuou:

– Queria me desculpar por não ter ligado para você. Man-dar um e-mail foi uma atitude muito covarde de minha parte, mas não conseguiria lhe falar tudo aquilo.

– Eu até entendo você. No dia, eu não entendi, é uma situ-ação difícil, o sentimento é grande, tem saudade, insegurança...

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– Pois é...

– Eu queria, Robert, ter uma solução fácil, mas não existe. Sei que sua vida é aqui, que você é muito ligado à sua família, e isso foi uma das coisas que me fez amar você. Eu quero que dê certo, mas minha insegurança não permitiu pensar em abrir mão de minha vida...

Robert pensou em como estar com Anne era a melhor coi-sa que já havia acontecido com ele. Sabia que não conseguiria isso com nenhuma outra mulher no mundo. Sem pensar, nem hesitar, falou com uma seriedade inédita:

– Case comigo!

– Como? – perguntou Anne quase sem voz, querendo con-firmar o que acabava de ouvir.

– Case comigo! Estou te pedindo para ser a mulher que vai passar o resto da vida ao meu lado! Vou lhe dizer todos os dias que nasci para te conhecer – disse Robert com uma certeza absoluta.

Anne começou a chorar. Eram lágrimas de alegria. Nunca esperava aquela reação de Robert. Ela sempre sonhou com um pedido de casamento cheio de romantismo. Mas, naquele mo-mento, nenhum outro poderia ser mais surpreendente e valio-so para ela. Não pela forma, mas pela sinceridade. Era também uma decisão só deles, na mesa que tinha tanto significado para os dois, naquela casa. Era como se, diante de infinitas possibili-dades, tinha chegado àquela que absorvia todos os sentidos de sua vida.

– Sim? – insistiu Robert, vendo Anne perplexa.

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– Claro, sim! – disse Anne ainda sem conseguir falar direito.

Beijaram-se, selando sua decisão. Transformando todas as palavras no ato mais íntimo e fraterno que um casal pode ter. Da mesma forma que fizeram na praia, vendo o pôr-do-sol.

Lembraram-se do dia que se viram pela primeira vez, con-versaram um pouco, voltaram à praia e procuraram uma árvo-re para escrever o nome deles, como dois jovens apaixonados. Eles se sentiam exatamente assim. Sentados embaixo da árvore, próximo do local aonde Anne lia seu livro, fizeram uma oração juntos, à noite, pedindo a Deus uma bênção para aquela decisão tão importante.

Voltaram para a casa, dormiram juntos novamente e, no outro dia, de novo. Robert desmarcou seus compromissos na-quela semana e Anne ligou para seu chefe na residência dizendo que estava resolvendo uma questão familiar importante e que estaria ausente por alguns dias. Decidiram que a prioridade era o amor.

Robert e Anne tinham encontrado uma solução. Bastavam algumas decisões e um plano para ficarem juntos. Tudo aqui-lo parecia loucura, mas para eles fazia todo sentido. A semana passou, Anne foi à casa de seus pais para conversar sobre seu casamento. No primeiro momento, acharam estranho, inespera-do. Mas como nunca tinham visto sua filha tão feliz e decidida, apoiaram-na.

Robert não conseguiu o apoio de sua família tão facilmen-te. O irmão tentava convencê-lo de que era muito prematuro. Os seus pais acabaram concordando, pois sabiam que seu filho

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era responsável e se estava tomando aquela decisão, deveria ser algo especial para ele.

Faltavam então os preparativos e Anne fazer a tentativa de sua transferência para a Bahia. Não era fácil! Ela sempre sonhou em ser cardiologista. Estava tão próximo! Mas ela sabia que manter seu relacionamento a distância seria um risco. Robert até tinha voltado atrás, dizendo que poderia esperar. Mas não era isso! A possibilidade de ficar longe dele não era uma opção. Assim, enviou uma carta formal solicitando a transferência de sua residência para Salvador.

Mergulhou no sonho de viver com Robert. Ainda não sabia se conseguiria ou não terminar a residência. Naquele momen-to, todos os amigos e familiares não estavam satisfeitos com a “solução” que eles encontraram, especialmente por Anne estar abrindo mão de algo tão importante para ela. Robert também não estava confortável com aquilo, mas via como uma prova de amor que ele iria retribuir durante a vida ao lado de Anne.

Era final de tarde do dia dois de julho, apenas sete meses após o primeiro encontro deles e Robert ligou para Anne, saben-do que precisava estar mais perto, agora sempre presente. Ela ouviu o telefone tocar. Só em saber que era seu amor, sorriu e atendeu.

– Oi – disse Robert

– Oi, meu amor.

– Faz sete meses que nos conhecemos!

– Eu sei. Acha que esqueço aquele dia na praia?

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– Sei que não. Queria lhe falar algumas palavras! Não con-segui naquele dia, que lhe enviei um e-mail, mas hoje você me-rece ouvir: Não sei viver sem você. Não saberia mais. Sua pre-sença é algo como o sol, como acordar todas as manhãs. É algo que pertence à minha vida. Sei que sua decisão foi difícil, nunca queria que tivesse aberto mão de nada por nós. Mas você me fez o homem mais feliz do mundo. Não só pela sua atitude, que demonstrou o quanto nosso amor é importante, mas pela forma como tocou meu coração, pelo jeito que chegou à minha vida e pelo futuro, ao meu lado, que vejo em seus olhos. Você não ima-gina como foi triste descobrir que viver sem você era impossível.

Anne ficou sem palavras. Mais uma vez as lágrimas escor-reram silenciosas em sua face. Aquelas não eram as palavras mais bonitas que ele já tinha dito, mas eram sempre nos mo-mentos certos.

– Rob, você não precisa se preocupar com minha escolha. Nunca tive tanta certeza de algo em minha vida. Se isso for erra-do, quero errar mil vezes com você ao meu lado. Não se preocu-pe também, não vou nunca dizer que fiz por você. Fiz por mim. Não viveria mais sem você também.

– Te amo! – disse Robert pela primeira vez. Já tinha dito de outras maneiras, mas não tão direto. Certo de que continuaria dizendo isso por toda a vida.

– Também, amor. Você já ouviu isso de mim e viu em meus olhos desde a primeira vez.

– Sim – confirmou Robert. –Vamos nos encontrar?

– Claro!

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– Estou indo te buscar.

– Ok... – disse Anne suspirando.

- Ok... beijo.

Robert passou a noite com Anne, saíram para jantar, se di-vertiram muito naquela noite. E assim passaram quase dois anos como noivos. Estavam realmente felizes. A chama não se apaga-va. Sabiam a cada dia que tinham decidido o melhor caminho. Aquele que estava nos passos de Robert indo à praia e no primei-ro beijo ao pôr-do-sol.

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ACapítulo 8

Desfecho

Anne conseguiu sua transferência para continuar a resi-dência em Salvador, ainda no segundo ano de noivado. Fizeram depois um casamento simples, à beira-mar. Apenas alguns dos amigos mais próximos estavam presentes. Robert e Anne troca-ram alianças. Sua felicidade era tão radiante que foi notada até pelo olhar mais distraído. Passaram a lua de mel na casa de praia aonde se conheceram, e o sentimento deles continuava a crescer dia após dia. Nunca se cansaram um do outro.

O casal passou por diversas fases. O primeiro filho, Albert, sua filha, Ágata – deram o nome da escritora que chamou à aten-ção de Robert na praia – E o terceiro filho, Robert Jr. Apesar das

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mudanças, rotina e toda energia que uma família necessita, nun-ca deixaram de se amar.

Muitos anos depois, estavam sentados à mesma praia que se conheceram, à noite, numa véspera de Réveillon. Os três fi-lhos atentos, ouvindo essa história que parecia tão perfeita e ao mesmo tempo muito necessária para que todos estivessem ali.

A árvore da praia ainda tinha as iniciais dos nomes deles, borradas pelo tempo. Seus filhos estavam tão felizes em saber que uma série de decisões tão complexas, olhadas de perto, re-sultou no nascimento deles, e que, se uma delas não ocorresse, não estariam juntos, assistindo como a um filme toda essa his-tória.

Já era tarde e voltaram para a casa. Estavam todos reuni-dos: A família de Anne e a de Robert. Janine e “Surf” e alguns amigos mais próximos.

Robert Jr., o mais novo, chamou sua tia no canto e falou, sorrindo:

– Tia Samantha, soube agora que mamãe teve muito ciú-me de você!

Samantha deu uma gargalhada.

– Ela lhe contou? Eu estava aqui com seu pai, nesta casa, esperando seu tio Bruce chegar, mas dei uma desculpa e saí, dei-xando os dois a sós. Ela achou que eu era uma nova namorada de Rob! Depois ela soube de tudo e demos muitas risadas. A his-tória de seus pais é muito bonita! Veja como são carinhosos um com o outro até hoje! – Apontou Samantha para Anne sendo beijada por Robert naquele momento.

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– É verdade – refletia Robert Jr. com quatorze anos de ida-de e entendendo um pouco da história de seus pais.

Agora, os filhos de Robert e Anne, antes de passar a virada do ano, entenderam como foi especial o encontro de seus pais, perceberam que é realmente importante o que vem antes, no início. Aquilo que os uniu, que destoa, que fez sentir, ter força para suprimir os desafetos. A paixão que fortalece qualquer rela-ção, se tornando amor, ultrapassando as páginas da vida, criando uma história de amor que não ficou aprisionada em uma página do tempo. A coragem de sua mãe nas atitudes e a dedicação de seu pai.

Seus três filhos decidiram juntos, escrever um livro regis-trando tudo isso, para que, as palavras não permitissem que o tempo apagasse o sentimento que tomava conta de todos na-quele momento. Era necessário lembrar que, para seguir em frente, todos precisam superar o que vem depois, após a página dois.

Até a página doisé uma edição da Quarteto Editora

Av. Antonio Carlos Magalhães, 3213 – Ed. Golden Plaza, s/702Parque Bela Vista – Brotas – Salvador-Bahia

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