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Aletheia 30, jul./dez. 2009 113 Aletheia 30, p.113-128, jul./dez. 2009 Atuação de psicólogos no Programa de Saúde da Família: o cotidiano de trabalho oportunizando repensar a formação e as práticas profissionais Juliana M. Fermino Zuleica M. Patrício Edite Krawulski Maristela C. Sisson Resumo: Pesquisa de abordagem qualitativa desenvolvida com psicólogos que atuam em serviços de saúde mental dos municípios pertencentes à região abrangida pela Associação dos Municípios do Médio Vale do Itajaí (AMMVI), em Santa Catarina. O objetivo foi conhecer suas percepções sobre as práticas que desenvolvem articuladas ao Programa de Saúde da Família (PSF). Os participantes do estudo consideram a importância do seu papel nesse trabalho; não terem pleno conhecimento das atribuições e nem competência suficiente para atender a demanda dos serviços de saúde coletiva. As limitações decorrem pela formação acadêmica, que ainda não os capacita a transcender o foco de atuação individual, no contexto clínico, para uma abordagem voltada à saúde coletiva, e pela inserção incipiente do profissional psicólogo na equipe de saúde básica, o que dificulta sua capacitação continuada e a legitimidade de seu trabalho nesse contexto. Palavras-chave: Trabalho do psicólogo, saúde coletiva, Programa de Saúde da Família. Psychologists performance in Family Health Programme: The work routine motivating the rethinking of professional practices and training Abstract: This is a qualitative research done with psychologists working in Mental Health Services of municipalities in the area assisted by the Associação dos Municípios do Médio Vale do Itajaí (AMMVI) [Association of Municipalities of Itajaí Central Valley], in Santa Catarina state, Brazil. The purpose of this research was to identify the psychologists’ perception of their practices which are part of the Programa de Saúde da Família (PSF) [Family Health Programme]. The study par- ticipants consider the work they carry out as being important, but they also believe that they are not completely aware of the duties required for the task nor are they qualified to meet the demand of the collective health services. These flaws are due to poor academic training, which does not qualify them to transcend individual performance in clinical context to a collective health approach, and to poor insertion of the psychologists in basic health group interfering with their continued qualification and the legitimacy of their work in this context. Keywords: Psychologist work, collective health, Family Health Programme. Introdução A atuação profissional das diversas áreas do campo da saúde, no contexto brasileiro, é questão complexa a ser debatida, haja vista a diversidade de variáveis envolvidas, dentre as quais se destacam as mudanças nas políticas públicas de assistência à saúde e a atual caracterização dos serviços de atenção básica oferecidos à população. Atenção Básica, denominação utilizada no Brasil para a operacionalização da atenção primária de saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), é compreendida

Atuação de Psicólogos No Programa de Saúde Da Família o Cotidiano de Trabalho Oportunizando Repensar a Formação e as Práticas Profissionais

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Psicologos e o PSF

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    Aletheia 30, p.113-128, jul./dez. 2009

    Atuao de psiclogos no Programa de Sade da Famlia:

    o cotidiano de trabalho oportunizando repensar a formao

    e as prticas profi ssionais

    Juliana M. Fermino

    Zuleica M. Patrcio

    Edite Krawulski

    Maristela C. Sisson

    Resumo: Pesquisa de abordagem qualitativa desenvolvida com psiclogos que atuam em servios de sade mental dos municpios pertencentes regio abrangida pela Associao dos Municpios do Mdio Vale do Itaja (AMMVI), em Santa Catarina. O objetivo foi conhecer suas percepes sobre as prticas que desenvolvem articuladas ao Programa de Sade da Famlia (PSF). Os participantes do estudo consideram a importncia do seu papel nesse trabalho; no terem pleno conhecimento das atribuies e nem competncia sufi ciente para atender a demanda dos servios de sade coletiva. As limitaes decorrem pela formao acadmica, que ainda no os capacita a transcender o foco de atuao individual, no contexto clnico, para uma abordagem voltada sade coletiva, e pela insero incipiente do profi ssional psiclogo na equipe de sade bsica, o que difi culta sua capacitao continuada e a legitimidade de seu trabalho nesse contexto.Palavras-chave: Trabalho do psiclogo, sade coletiva, Programa de Sade da Famlia.

    Psychologists performance in Family Health Programme: The work

    routine motivating the rethinking of professional practices and training

    Abstract: This is a qualitative research done with psychologists working in Mental Health Services of municipalities in the area assisted by the Associao dos Municpios do Mdio Vale do Itaja (AMMVI) [Association of Municipalities of Itaja Central Valley], in Santa Catarina state, Brazil. The purpose of this research was to identify the psychologists perception of their practices which are part of the Programa de Sade da Famlia (PSF) [Family Health Programme]. The study par-ticipants consider the work they carry out as being important, but they also believe that they are not completely aware of the duties required for the task nor are they qualifi ed to meet the demand of the collective health services. These fl aws are due to poor academic training, which does not qualify them to transcend individual performance in clinical context to a collective health approach, and to poor insertion of the psychologists in basic health group interfering with their continued qualifi cation and the legitimacy of their work in this context.Keywords: Psychologist work, collective health, Family Health Programme.

    Introduo

    A atuao profi ssional das diversas reas do campo da sade, no contexto brasileiro, questo complexa a ser debatida, haja vista a diversidade de variveis envolvidas, dentre as quais se destacam as mudanas nas polticas pblicas de assistncia sade e a atual caracterizao dos servios de ateno bsica oferecidos populao.

    Ateno Bsica, denominao utilizada no Brasil para a operacionalizao da ateno primria de sade no mbito do Sistema nico de Sade (SUS), compreendida

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    como um conjunto de aes prestadas s pessoas e comunidade, com vistas promoo da sade e preveno de doenas, bem como ao tratamento e reabilitao no primeiro nvel de ateno dos sistemas locais de sade (Brasil, 1998).

    A Organizao Mundial da Sade conceitua a Ateno Primria de Sade como

    baseada em tecnologias e mtodos prticos, cientifi camente comprovados e socialmente aceitveis, tornados universalmente acessveis a indivduos e famlias na comunidade, por meios aceitveis para eles e a um custo que tanto a comunidade como o pas possa arcar em cada estgio de seu desenvolvimento, um esprito de autoconfi ana e autodeterminao. parte integral do sistema de sade do pas, do qual funo central, sendo o enfoque principal do desenvolvimento social e econmico global da comunidade. o primeiro nvel de contato dos indivduos, da famlia e da comunidade com o sistema nacional de sade, levando a ateno sade o mais prximo possvel do local onde as pessoas vivem e trabalham, constituindo o primeiro elemento de um processo de ateno continuada sade (Brasil, 2001, p.30).

    Segundo essa publicao, a Ateno Bsica, ao representar o primeiro nvel de ateno sade do indivduo e da comunidade, direciona o trabalho de todos os demais nveis do sistema de sade. Para que este nvel de ateno atinja verdadeiramente seus propsitos, porm, deve estar articulado a variveis do meio fsico e social no qual as pessoas vivem e trabalham, e no somente focar o objeto imediato de ausncia de doena. A busca por esta articulao rompe com a compreenso predominante por muito tempo, segundo a qual sade era sinnimo de ausncia de doenas fsicas e mentais, determinando aos servios de sade privilegiar na sua organizao a ateno mdica curativa.

    Contrariamente a essa compreenso restrita de sade, a Organizao Mundial de Sade a defi ne como o completo bem-estar fsico, mental e social, e no a simples ausncia de doena (Brasil, 2001). Essa defi nio aponta para a complexidade do tema, que demanda considerar a necessidade de aes intersetoriais e interdisciplinares no sentido de criar condies de vida saudveis. A garantia sade transcende, portanto, a esfera das atividades clnico-assistenciais, trazendo a necessidade de construo de novos conceitos que possam abranger amplamente o processo sade-doena. Trata-se de um conceito de sade ampliado, o qual busca responder complexidade emergente dos problemas de sade na atualidade, relacionando-a com condies e modos de vida, e considerando dimenses que permitem viver no meio, como trabalho, educao, cultura, moradia, saneamento, lazer, convvio social, ecossistema saudvel (Alves, 2003). A aplicao deste conceito ampliado de sade, no entanto, enseja o desenvolvimento de polticas pblicas no campo da sade. Nesse sentido, o SUS, como poltica de Estado pela melhoria da qualidade de vida e pela afi rmao do direito vida e sade, dialoga com as refl exes e os movimentos no mbito da promoo da sade (Brasil, 2006).

    A Promoo Sade como perspectiva de mudana na ateno s populaes aglutina o consenso poltico em todo o mundo e em diferentes sociedades, como paradigma vlido e alternativo complexidade dos problemas de sade e do sistema de sade dos pases. Como uma das estratgias de produo de sade, ou seja, como um modo de pensar e de operar articulado s demais polticas e tecnologias desenvolvidas no sistema de sade,

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    a Promoo da Sade contribui na construo de aes que possibilitam responder s necessidades sociais em sade, tendo como foco aumentar a participao dos indivduos e populaes na compreenso e modifi cao dos determinantes do processo sade-doena, o que envolve trabalhar interdisciplinar e intersetorialmente questes que envolvem as diversas dimenses da qualidade de vida (Brasil, 2006).

    No SUS, a estratgia de promoo sade retomada como uma possibilidade de enfocar os aspectos que determinam o processo sade-adoecimento no contexto brasileiro e, tambm, visando potencializar formas mais amplas de intervir em sade (Brasil, 2006). Essas formas de interveno devem envolver aes e servios que operem sobre os efeitos do adoecer, alcanando o espao para alm dos muros das unidades de sade e do sistema de sade, e incidindo sobre as condies de vida dos sujeitos e coletividades, no territrio onde vivem e trabalham. Essa perspectiva exige que a ateno sade tenha um carter multiprofi ssional e interdisciplinar.

    no contexto do Programa de Sade da Famlia (PSF) que o conceito de Promoo Sade no mbito da Ateno Bsica vem sendo especialmente operacionalizado no Brasil, como uma iniciativa capaz de concretizar seus princpios e prticas. Ofi cializado em 1994 e tendo sua expanso efetiva em mbito nacional em 1995, a formulao desse Programa apoiou-se em experincias internacionais desenvolvidas anteriormente,

    como as da Inglaterra, Canad, Sucia e, em especial, a do Mdico de Famlia de Cuba, e em experincias nacionais, como as prticas de sade e de ensino desenvolvidas em Porto Alegre (Projetos de Sade Comunitria de So Jos do Murialdo e do Centro Hospitalar Conceio), dos Agentes Comunitrios de Sade do Cear, da Pastoral da Sade (Igreja Catlica), do Mdico da Famlia em Niteri (Sisson, 2002, p.13).

    A Sade da Famlia entendida como uma estratgia de reorientao do modelo assistencial, operacionalizada mediante a implantao de equipes multiprofi ssionais em unidades bsicas de sade, as quais so responsveis pelo acompanhamento de um nmero defi nido de famlias, localizadas em uma rea geogrfi ca delimitada. As equipes atuam com aes de promoo da sade, preveno, recuperao, reabilitao de doenas e agravos mais frequentes, e na manuteno da sade desta comunidade. A responsabilidade pelo acompanhamento das famlias coloca para as equipes de sade da famlia a necessidade de ultrapassar os limites classicamente defi nidos para a ateno bsica no Brasil, especialmente no contexto do SUS. Segundo o Ministrio da sade, o PSF foi implantado para promover mudanas no modelo de assistncia sade do pas, historicamente mais centrado na ateno cura do que na preveno das doenas (Brasil, 2008a). A nfase na preveno orienta para o atendimento integral do ser humano e busca romper com o modelo tradicional de prticas de sade apenas focadas em diagnstico e tratamento da doena, a maioria por interveno medicamentosa (Grisotti & Patrcio, 2006).

    Nesse modelo de ateno, os profi ssionais de sade so orientados a estar em maior contato com a comunidade e a trabalhar junto s famlias, incluindo aes que possam ajudar a construir ambientes saudveis. Assim desenvolvida, espera-se que essa prtica promova a humanizao do atendimento s necessidades do cidado, alm de aproximar, em uma relao de confi ana, a equipe de sade e a populao (Brasil, 1994).

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    A rede de unidades bsicas de sade, reorganizadas de acordo com os princpios do PSF, passam a ser responsveis pelo acompanhamento permanente da sade de um nmero determinado de indivduos e famlias que moram ou trabalham num espao territorial prximo, possibilitando o estabelecimento de vnculos de compromisso e de co-responsabilidade entre os profi ssionais de sade e a populao.

    As aes propostas pelo PSF esto sendo desenvolvidas no cotidiano dos servios de ateno sade, em um esforo para alcanar a consolidao e o aprimoramento do SUS, articuladas com os princpios de descentralizao, regionalizao, integralidade e equidade de cuidados e fundadas em estratgias que reorientem o modelo de ateno sade de forma adequada s realidades locais e municipais.

    Para operacionalizar essa proposta, o PSF conta com equipes de sade compostas, no mnimo, por mdico, enfermeiro, tcnico de enfermagem e agentes comunitrios de sade,os quais so orientados a desenvolver suas prticas de maneira multi e interdisciplinar. A perspectiva de trabalho nesta abordagem, no entanto, no dispensa as especifi cidades da atuao de cada um dos profi ssionais, requeridas para atender complexidade e diversidade de demandas apresentadas pela populao.

    Embora a ateno sade mental seja parte importante das necessidades de sade, e se confi gure como demanda cada vez mais frequente, a equipe do PSF no integra o profi ssional psiclogo em sua composio, fi cando as demandas que requerem atuao especfi ca deste campo sob tutela de profi ssionais de outras reas da sade.

    O profi ssional psiclogo responsvel por uma gama bastante ampla de atividades, as quais incluem o estudo e avaliao do desenvolvimento emocional e dos processos mentais e sociais dos indivduos, grupos e instituies, o diagnstico e avaliao de distrbios emocionais e mentais e de adaptao social e, ainda, a coordenao de equipes e atividades da rea (CBO, 2002).

    A tradicional interveno da psicologia no campo da sade mental tornou-se mais complexa e desafi adora com o advento da reforma psiquitrica, ocorrida nos anos 90 do sculo passado. Tal reforma priorizou a desconstruo do dispositivo e do paradigma da psiquiatria manicomial, por meio da humanizao dos servios e desinstitucionalizao dos usurios, tanto agudos quanto crnicos, o que implica em maior participao da famlia e mesmo da sociedade no tratamento, procurando inclusive evitar casos de abandono de portadores de transtornos mentais nas unidades de sade. Possibilita, tambm, o trabalho com questes relacionadas preveno e promoo da sade mental da populao e a reabilitao daqueles que sofreram dfi cits e sequelas ou que se encontram sem tratamento especfi co. Este aspecto possibilita alterar a condio de louco ou alienado, para a de atores do prprio processo de sade-doena, favorecendo a construo da sua cidadania (Frana & Viana, 2006).

    Segundo Spink (1992), o campo de atuao da psicologia at recentemente, se resumia a duas principais dimenses: atividades exercidas em consultrios particulares, restritas a uma clientela derivada das classes mais abastadas e fora do contexto dos servios de sade e atividades realizadas em hospitais e ambulatrios de sade mental. Entretanto, a interveno dessa rea nas unidades de sade ainda se apresenta limitada, carecendo de referenciais norteadores da atuao, bem como de estudos que a caracterizem.

    No Estado de Santa Catarina, psiclogos que atuam em programas pblicos de sade mental, no nvel da ateno bsica, o fazem por meio de sua vinculao aos Centros

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    de Ateno Psicossocial (CAPS). Estes Centros, institudos em 1992, por iniciativa do Ministrio da Sade, possuem como foco a reintegrao social de portadores de transtornos mentais (Correia, 2007). Funcionam como unidades de sade locais ou regionais, prestando atendimento intermedirio entre a assistncia ambulatorial e a internao hospitalar, segundo os princpios da descentralizao e da municipalizao da sade, por meio de equipe multiprofi ssional, da qual faz parte o psiclogo.

    Na maioria das vezes, atravs dos CAPS que se desenvolve a articulao entre a ateno sade mental da populao e as equipes do PSF, atravs de aes ainda pouco sistematizadas e sem avaliao de impacto.

    No contexto brasileiro, pesquisas que tratam da atuao do profi ssional psiclogo junto ao PSF so, em sua grande maioria, baseadas em propostas de atuao ad hoc,desenvolvidas pelo municpio-base onde realizado o estudo (Bittencourt & Mateus, 2006; Cardoso, 2002; Mejias, 1995; Souza & Carvalho, 2003).

    Na perspectiva de conhecer a atuao destes profi ssionais atravs da viso dos prprios protagonistas do processo, desenvolveu-se a pesquisa aqui relatada, cujo objetivo foi conhecer suas percepes sobre as prticas em sade mental que desenvolvem articuladas ao Programa de Sade da Famlia (PSF), com fi ns de contribuir ao desenvolvimento e insero adequada destes profi ssionais de sade mental no modelo assistencial brasileiro, particularmente em cenrios de prtica de ateno bsica.

    Mtodo

    A pesquisa foi desenvolvida atravs de abordagem qualitativa. Esta abordagem possibilita responder a questes muito particulares, focalizadas, segundo Minayo (1994, p.22), no universo de signifi cados, motivos, aspiraes, crenas, valores, atitudes, o que corresponde a um espao mais profundo das relaes, dos processos e dos fenmenos que no podem ser reduzidos operacionalizao de variveis.

    Os mtodos qualitativos tm contribudo para ampliar conhecimentos sobre a realidade social e, por seu potencial indutivo, tm fortalecido a construo de referenciais tericos nessa rea a partir dos dados da realidade identifi cada, os quais, posteriormente, orientam outros estudos. A abordagem qualitativa a mais adequada para pesquisas que envolvem concepes de processo de movimento e a criao de mtodos para a interveno social, avaliao de processos e de aplicao de produtos ou de atividades que envolvam a participao humana (Patrcio, 1999).

    Foram sujeitos participantes os quinze profi ssionais que atuavam como psiclogos nos Centros de Ateno Psicossocial (CAPS) que atendiam a populao abrangida pela Associao dos Municpios do Mdio Vale do Itaja (AMMVI), em Santa Catarina, e cujas aes esto integradas a servios de ateno bsica ligados ao PSF. O nico critrio de incluso adotado, alm do aceite voluntrio em participar da pesquisa, foi o de exercer esta atividade h, no mnimo, cinco anos.

    Do total dos quinze psiclogos participantes, treze eram do sexo feminino e dois do sexo masculino, com idades entre 25 e 50 anos; dois se formaram entre 1970 a 1980, onze entre 1990 a 2000 e dois aps o ano de 2001.

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    Quanto a formao complementar, apenas um no fez ps-graduao lato sensu.Destaca-se que, das especializaes cursadas, somente duas relacionam-se especifi camente demanda do PSF. Dois psiclogos tinham formao stricto sensu, fora da rea especfi ca da sade coletiva.

    A pesquisa foi aprovada pelo Comit de tica da Universidade do Sul de Santa Catarina. Os preceitos ticos que a nortearam foram discutidos com os sujeitos nos momentos de entrega da carta de apresentao aos Secretrios de Sade dos Municpios da AMMVI e de assinatura do Consentimento Livre e Esclarecido pelos participantes, conforme preceitua a Resoluo n. 196/96, do Conselho Nacional de Sade (Brasil, 2008b).

    Os dados foram levantados por meio de entrevistas individuais, gravadas e posteriormente transcritas, realizadas no prprio local de trabalho. Em um primeiro momento, as entrevistas seguiram um roteiro composto por duas questes bsicas: Quais suas atividades no Programa de Sade da Famlia? e Como voc percebe a atuao do psiclogo nas atividades desse Programa?. Em um segundo momento, os dados coletados foram apresentados e discutidos com cada sujeito, aps estes terem ouvido a gravao de seu prprio depoimento, com a inteno de que o validasse ou aperfeioasse.

    Os dados foram analisados com base no modelo de anlise de contedo, segundo Bardin (1991) e Minayo (1994), centrado na identifi cao de categorias. Em seguida, pelo processo de anlise-refl exo, realizou-se a anlise das categorias identifi cadas para defi nio de temas emergentes (Strauss & Corbin, 1990).

    Na perspectiva de atender princpios ticos que valorizam a devoluo dos dados aos sujeitos da pesquisa, os resultados foram apresentados aos participantes, no mbito da AMMVI, com vistas a promover a discusso e refl exo do que foi encontrado, de forma a contribuir para o aperfeioamento de suas prticas.

    Resultados

    Prticas dos psiclogos no PSF e papel destes profi ssionais nas aes de sade

    As atividades dos psiclogos participantes do estudo so desenvolvidas nas unidades bsicas de sade, ou unidades do PSF, e nos servios de sade mental dos respectivos municpios. Os profi ssionais descrevem suas atividades cotidianas diferenciando entre aquelas relativas diretamente aos atendimentos prestados populao no PSF, e aquelas que se desenvolvem para alm do espao da comunidade, como as reunies que realizam com a equipe de sade.

    O trabalho cotidiano do psiclogo, segundo relatado, desenvolvido, tipicamente, em cooperao com os outros profi ssionais da equipe: participa da equipe multiprofi ssional, realizando atividades especfi cas relativas sade mental do paciente e de sua famlia, como, por exemplo, visitas domiciliares e atendimento clnico individual e coletivo (grupos teraputicos). Tambm presta assessoria na defi nio de planos teraputicos e desenvolve atividades de cunho educativo, na perspectiva da promoo da sade da populao:

    Tenho grupo de coterapia com assistente social para jovens de pouca idade e primeiro surto. Alm disso, participo de reunies interdisciplinares em equipes do PSF e fao pronto atendimento e grupo operativo semanal com a equipe de auxiliares de enfermagem (...)

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    Como rotina dos postos que tm o PSF, ns participamos de visita domiciliar. Tambm, prestamos atendimentos de emergncia, realizamos palestras com o grupo de gestantes, agentes comunitrios de sade e com pessoas hipertensas e idosas, e tentamos abranger um nmero variado de pacientes com diversas queixas. (...)

    Os dados tambm mostraram que a maioria dos participantes do estudo no tem pleno conhecimento das atribuies e da competncia necessria para atender s expectativas da demanda dos servios de sade coletiva que seguem o modelo de estratgia de Sade da Famlia.

    Na viso dos psiclogos, existe uma grande valorizao, por parte dos outros profi ssionais, sobre a sua contribuio como membro da equipe do PSF, ainda que percebam diferenas entre prticas esperadas por estes profi ssionais e aquelas que realmente so desenvolvidas no cotidiano do trabalho, como psiclogo e como membro de uma equipe de sade.

    Esta importncia atribuda especialmente ao desempenho na construo do trabalho interdisciplinar, sendo apontada como fundamental sua participao na compreenso do processo psicodinmico do paciente e da famlia.

    Por outro lado, consideram que no h valorizao correspondente acerca de seu trabalho pelos rgos ofi ciais:

    Infelizmente o Ministrio da Sade no contempla a nossa categoria. Eu acho que esse profi ssional essencial. O psiclogo no PSF poderia se aproximar mais desta realidade, fazendo um trabalho junto comunidade, um trabalho especialmente preventivo. (...)

    Em outros estudos realizados no pas, como no de Bittencourt e Mateus (2006), foi igualmente percebida como positiva, por profi ssionais e usurios, a presena cotidiana do psiclogo na equipe de sade, embora nem todos destacassem a necessidade da incluso deste profi ssional psiclogo na equipe bsica.

    Embora os relatos tenham mostrado diversidade significativa de atividades desenvolvidas, bem como reconhecimento e legitimao por parte dos demais profi ssionais do campo da sade, os psiclogos entrevistados percebem que suas prticas profi ssionais cotidianas no PSF, como tambm o papel a ser desempenhado por eles, principalmente no interior das equipes de sade, so de construo ambgua, indefi nidos ou mesmo contraditrios. Questionamentos acerca de como deveria ser, como participar, o qu e como fazer e como estar como psiclogo e como membro de uma equipe de sade foram expressos pela maioria, como ilustram os depoimentos a seguir:

    H um preconceito de que vamos fazer clnica no PSF, e no esse o papel do psiclogo nesse Programa. (...)

    Nossa funo no de atendimento individual, acredito que isso seja trabalho de sade mental pblica e que deveramos estar oferecendo, mas estamos sempre buscando esta questo preventiva. Nas reunies buscamos alguma inovao, para chegar nesse preventivo, o que ainda no conseguimos fazer, temos uma lista de espera muito grande. (...)

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    Alguns profi ssionais, inclusive, demonstram pretender outras funes, no mbito da defi nio de prticas a serem desenvolvidas pelo conjunto dos profi ssionais e no se envolver apenas com a sade mental do indivduo; outros querem ampliar a viso para o mbito social e h os que expressam mais diretamente suas dvidas em relao ao papel do psiclogo na ateno sade.

    A psicologia deveria trabalhar com a terapia comunitria e com atendimento de casos mais leves, em grupos como os diabticos, gestantes, embora eu no tenha muito contato com isso. (...)

    Teramos que trabalhar muito com a preveno, apesar de nunca poder descartar o modelo curativo... Seramos um mediador para realizarmos a soluo dos problemas. Creio que o psiclogo deva estar integrado com os outros profi ssionais para conhecer melhor a comunidade, fazendo visitas domiciliares, tendo contato com outros profi ssionais, nas escolas, associaes de bairro, levantando qual a maior demanda da localidade, de cada bairro... (...)

    Estas dvidas apontam para a ocupao tmida de um espao de trabalho, no legitimado pelo poder pblico, no qual as demandas para a interveno da psicologia so abundantes, porm falta clareza aos profi ssionais acerca do que pode e deve ser feito no campo psicolgico, em termos de assistncia sade da populao.

    O Cotidiano de trabalho no PSF: limitaes e possibilidades de transformao da formao e das prticas

    A anlise das falas demonstrou que os profi ssionais psiclogos tm percepo da existncia de limitaes nas suas prticas, tanto provenientes da estruturao do prprio sistema de sade, como da sua formao, diminuindo expectativas quanto participao de seu trabalho no PSF. Por outro lado, tambm foi relatada a percepo da existncia de potencialidades a explorar, e de possibilidades para o desenvolvimento do trabalho que entendem como apropriado.

    Esta ltima questo tem suscitado o desenvolvimento de uma melhor qualidade de participao nas aes de equipe do PSF e, em especial, de um processo de capacitao continuada no cotidiano das prticas, originada das prprias demandas, no decorrer das atividades com a equipe e com a populao.

    Dentre as limitaes, foram apontadas aquelas prprias dos servios de sade pblica que sustentam o trabalho das equipes do PSF: psiclogos atuando nesse servio com vnculo empregatcio precrio, grande sobrecarga de tarefas e baixos salrios. Sobre este aspecto, por conta de planos de cargos e salrios vigentes, comum que o trabalho do psiclogo, tal como o de outros profi ssionais da equipe de sade nos servios pblicos, tenha carga horria maior e salrio menor, comparados ao profi ssional mdico, por exemplo.

    Ainda como fator limitante, sobressaiu-se o pouco conhecimento, por parte dos psiclogos daqueles servios, sobre a populao de sua abrangncia, em razo de no terem uma unidade de sade especfi ca para atuar, como mostra o depoimento a seguir: o que deveria ser e no est acontecendo que o psiclogo tinha que estar

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    concentrado em um ou dois postos no mximo, assim ele poderia conhecer a realidade das comunidades (...)

    Entretanto, a realidade encontrada tambm mostrou existir um leque de possibilidades de trabalho para o profi ssional psiclogo no cuidado sade mental da populao, seja atuando especifi camente em casos de indivduos encaminhados pela equipe do PSF, seja trabalhando com a equipe junto a grupos e famlias, ou, ainda, atuando em demandas oriundas dos processos de trabalho da prpria equipe.

    Nessa dinmica de trabalho, os profi ssionais identifi caram que as demandas do campo da ateno bsica, requerem dos profi ssionais da Psicologia um preparo que a maioria no apresenta. No campo estudado, mesmo aqueles com alguma formao especfi ca para sade pblica, relataram difi culdades com a atuao no PSF, pois o trabalho em equipe multiprofi ssional, voltado comunidade, exige um modelo de referencial terico e metodolgico que a maioria no recebeu em sua formao acadmica.

    Isso vale dizer que a demanda dos servios bsicos de sade exige dos profi ssionais psiclogos uma reviso de conceitos e de procedimentos, que vo alm da simples atualizao de conhecimentos tcnicos e programas ofi ciais.

    A importncia de uma perspectiva terica para o profi ssional psiclogo inserido no PSF foi ressaltada por Ronzani e Rodrigues (2006), como possibilidade de transcender o espao defi nido por algumas prticas da psicologia clnica e da sade tradicionais, e de contribuir para sua insero na promoo, no somente da sade mental, mas tambm de outros setores da sade.

    Outros estudos mostram possibilidades de o profi ssional psiclogo transcender concepes tericas e metodolgicas que orientam para prticas que se limitam prestao de servios ao indivduo com problemas mentais j instalados (Correia, 2007).

    Esse um dos desafi os prtica do psiclogo nesse modelo de assistncia: superar algumas limitaes de sua formao que inibem a ampliao do saber-fazer da Psicologia, tal como ocorre com outros profi ssionais da rea da sade que atuam no PSF e que desenvolvem suas prticas seguindo o modelo mdico predominante, o qual focaliza as aes no tratamento da doena (Grisotti & Patrcio, 2006).

    O psiclogo, segundo Souza (2000), no pode mais ter uma viso estreita de sua interveno, pensando-a como um trabalho voltado para um indivduo, como se este vivesse isolado, como se no tivesse vnculos com a realidade social, construindoa e sendo construdo por ela. A realidade atual mostra que o contexto social infl uencia diretamente tanto na interveno teraputica quanto no desencadeamento do sofrimento psquico. Se considerarmos a Sade Mental um campo eminentemente complexo e uma prxis, preciso repensar as prticas deste campo, principalmente do psiclogo, na perspectiva da preveno, de modo que sua interveno no se d somente sobre algo j instalado, mas sobre os fatores que propiciam os transtornos mentais.

    Bittencourt e Mateus (2006, p.341), estudando as prticas de psiclogos em contextos de sade pblica, identifi cam esse profi ssional como um facilitador das prticas geradoras de sade mental, de melhoria de qualidade de vida; percebido como algum a quem se pode recorrer na busca de acolhimento, em situaes consideradas difceis. Alm disso, para o usurio sua presena na equipe satisfaz o desejo de acesso e humanizao dos servios.

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    Esta diversidade de possibilidades de interveno coaduna-se com o foco do trabalho do psiclogo voltado a questes subjetivas e complexas presentes nas interaes humanas. O trabalho deste profi ssional, segundo Krawulski (2004, p.35),

    caracterizado cotidianamente por tarefas que podem ser consideradas complexas em sua natureza, uma vez que implicam envolvimento em uma relao profi ssional que tem por objeto o ser humano. Essa interveno apresenta especifi cidades, uma vez que no se trata apenas de uma relao em que um ser humano intervm junto a outro: crenas, valores, confl itos, emoes, sentimentos e toda uma gama de elementos prprios da subjetividade humana, constituintes do contexto da Psicologia por excelncia, fazem-se presentes nas interaes do cotidiano de trabalho desse profi ssional.

    Embora seja no transcurso dessa formao que a orientao geral da profi sso transmitida ao futuro profi ssional,

    sabe-se que os cursos de graduao, por via de regra, desenvolvem um currculo formal, cujos contedos e at mesmo atividades de estgios se desenvolvem em nveis abstratos, fi cando distantes da realidade ocupacional complexa com a qual os futuros profi ssionais se defrontaro mais tarde. Em virtude dessa nfase no exame de questes tericas, a maioria das atividades acadmicas acaba no instrumentalizando o sufi ciente para a prtica profi ssional subsequente (Krawulski, 2004, p.137).

    A expectativa de trabalho da maioria dos entrevistados converge para uma concepo segundo a qual a presena do profi ssional de sade mental dentro do PSF possa contribuir para maior valorizao das aes de sade e melhoria das relaes nas equipes, resultando em um trabalho orientado para a meta de promover a sade e o bem estar da populao atendida.

    De fato, trabalhar em equipe, para o psiclogo, dividindo seu saber e suas aes com outros profi ssionais, parece ser um de seus grandes desafi os. este fator que o obrigar a rever suas concepes e ampliar para atitudes interdisciplinares. Conforme Amarante (2005, p.78), o trabalho em equipe multiprofi ssional numa perspectiva transdisciplinar foi considerado como um dos pilares na construo de novas prticas e uma das possibilidades de superao dos limites circunscritos da doena mental, tal como defi nido a partir do advento da medicina mental.

    Nesse contexto, uma das exigncias especfi cas para a atuao do psiclogo no PSF, diz respeito necessidade de fortalecer modelos de ateno sade mental que compreendam o sujeito em sua insero social e que considerem sua famlia tambm como cliente e cuidadora.

    As estratgias de ateno sade da famlia requerem referenciais terico-metodolgicos voltados promoo da sade e preveno de agravos ou riscos, que considerem os diversos fatores envolvidos no processo sade-doena e a participao da populao e dos demais setores afi ns, exigindo muito mais do que teorias psicolgicas utilizadas para explicar os problemas emocionais do indivduo.

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    Evidenciou-se que as aes do psiclogo na sade mental, baseadas na sade da famlia-comunidade, precisam abranger a ateno ao indivduo em suas mltiplas dimenses, tal como prescrito na prtica dos demais profi ssionais da equipe. Esse aspecto exige aes integradas e planejadas e estruturadas nas estratgias de trabalho de grupo, coordenadas entre si, na equipe de sade com a comunidade e outros servios afi ns, contribuindo com o princpio de integralidade do SUS.

    A mudana do modelo de fazer psicologia passa a entender o indivduo dentro de sua realidade e da sade. Nesse sentido, preciso inovar a capacidade de re-criar a Psicologia, adaptando os novos saberes e polticas pblicas demanda de sade mental da populao. Segundo Souza (2000), o psiclogo deve pensar sua interveno de maneira mais ampla, para alm do foco doena, no sentido da promoo da sade da comunidade. Isto signifi ca compreender o sujeito como algum que, ampliando o seu conhecimento e sua compreenso sobre a realidade que o cerca, se torna capaz de intervir, transformar, atuar, modifi car a realidade.

    Resgatando o sentido de ateno integral sade, percebe-se que a maioria dos profi ssionais desse estudo no possui o entendimento da abrangncia dessa ateno; outros tm conhecimento sobre atividades que promovem a sade integral, mas se limitam ao papel da psicologia clnica. Nesta categoria, h aqueles que justifi cam a no participao em aes mais abrangentes, como visitas domiciliares e reunies comunitrias, por falta de tempo.

    O movimento para a melhoria da participao do psiclogo no PSF ainda muito sutil, limitada a alguns profi ssionais j sensibilizados, os quais esto construindo sua formao em sade coletiva no decorrer do seu exerccio profi ssional.

    Para alguns psiclogos, a participao em espaos de debates parte do conjunto de suas atividades profi ssionais. Consideram que fruns e conferncias municipais de sade, nos quais h discusso sobre a sade como um todo, so eventos que possibilitam examinar questes de ateno bsica em equipe e focalizar a construo conjunta de um modelo de atendimento em sade mental efi ciente no contexto do SUS: eu acho que o psiclogo em geral est comeando a procurar seu espao poltico, mas essa participao ainda muito pequena.

    Por conta desses princpios e da demanda do trabalho cotidiano, aqueles profi ssionais esto desenvolvendo em conjunto com os demais profi ssionais da equipe, a prxis da Psicologia Social. Isso porque, mesmo sem compor ofi cialmente a equipe do PSF, alguns profi ssionais, por conta prpria, vo entrando, participando, criando, realizando e assim se aperfeioando e contribuindo com a Psicologia como cincia aplicada tambm no mbito do coletivo.

    Como a gente trabalha nos bairros em situaes particulares, acabamos conhecendo a realidade daquela comunidade, assim estamos nos inserindo dentro do Programa de Sade da Famlia.

    Eu acho que a psicologia est inserida nas polticas pblicas de sade, s que timidamente, mas depende de ns abrirmos este espao, mostrando a importncia do papel do psiclogo nas aes de sade do municpio.

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    Nessa perspectiva, o psiclogo poderia garantir a concretizao de suas competncias, incluindo a possibilidade de atuao profi ssional nas aes de equipes que tm como foco a promoo da sade. Para tanto, a psicologia precisa se desenvolver tambm como prtica socialmente articulada dentro das instituies e com capacidade para compreender os contextos, superando a assistncia individual e direcionando-a para outras reas afi ns, percebendo a doena em sua dimenso social. Sendo assim, no processo de trabalho coletivo, necessitaria integrar seus conhecimentos queles dos demais membros da equipe, na possibilidade de um trabalho social articulado (Campos, 1992). Conforme o estudo mostrou, embora a atuao do psiclogo esteja pautada em diversas possibilidades de atendimento, esse profi ssional ainda necessita se capacitar para o trabalho no contexto da poltica pblica de sade brasileira, na direo de prticas interdisciplinares de ateno bsica em sade coletiva.

    Acredito que os psiclogos que participam nas aes do PSF, estejam construindo suas prticas profi ssionais em conjunto com a prpria demanda, como que em processo de alfabetizao frente s propostas das polticas pblicas mais focadas na promoo da sade.

    Consideraes fi nais

    luz das Polticas Pblicas de ateno sade, que buscam concretizar as estratgias de Promoo da Sade no pas, e tambm das percepes dos psiclogos sobre seu cotidiano de trabalho nas comunidades atendidas pela AMMVI, confi rma-se a importncia desse profi ssional nas aes do Programa de Sade da famlia.

    Para realizar este trabalho, porm, o psiclogo ainda precisa desenvolver competncias especfi cas, em especial para dar conta da complexidade da demanda das situaes do processo sade-doena e das condies da assistncia a ser prestada, em suas dimenses individuais, coletivas e intersetoriais.

    O ponto de vista voltado ao contexto social amplia o signifi cado do processo sade-doena na sade coletiva, representando um grande desafi o aos profi ssionais envolvidos, e apontando a necessidade da formulao e reformulao de prticas voltadas ao coletivo. Neste contexto, a necessidade de reviso de paradigma por parte de profi ssionais da sade parece no ser exclusiva da psicologia, visto que outros profi ssionais da equipe de sade tm igualmente apresentado difi culdades de aplicar as diretrizes preconizadas nas polticas pblicas, especialmente no PSF.

    Percebeu-se que a insero do psiclogo no PSF, modelo assistencial de sade do SUS, se d de modo bastante tmido, e sem a especifi cidade de participante da equipe bsica de sade. Neste aspecto, a recente criao dos Ncleos de Ateno Sade Familiar (NASF), pelo Ministrio da Sade (Brasil, 2008c), nos quais est prevista a participao do psiclogo, certamente contribuir para ampliar esta insero e para legitimar as atividades deste profi ssional no campo da sade pblica.

    No campo da formao, as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Psicologia (Brasil, 2008d) estabelecem a ateno sade como uma das habilidades a ser focalizada durante a formao acadmica, visando que os psiclogos estejam aptos

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    a atuar com preveno, promoo, proteo e reabilitao da sade psicolgica, nos nveis individual e coletivo. Este mesmo dispositivo legal refere-se s interfaces da psicologia com campos afi ns do conhecimento, ressaltando a importncia de que os profi ssionais egressos dos cursos de graduao em Psicologia percebam as interaes entre as diferentes reas, guardadas suas especifi cidades. A partir dessa orientao, os currculos dos cursos, em todo o pas, passam a contemplar na formao acadmica elementos terico-metodolgicos voltados preparao para a interveno no campo da sade, em consonncia com as polticas pblicas que tm absorvido, ainda que de forma lenta, o trabalho deste profi ssional.

    Como apontam Feuerwerker e Sena (1999), a construo de um novo modelo pedaggico deve ter como perspectiva o equilbrio entre excelncia tcnica e relevncia social, como princpio norteador do movimento de mudana, sustentado na integrao curricular e na adoo de metodologias mais adequadas ao processo de ensino e aprendizagem, integrando teoria e prtica j durante a formao.

    O papel do psiclogo no PSF, como um profi ssional mediador na promoo da sade mental da populao, para alm do consultrio e de sua clnica, precisaria estar inserido no contexto do cotidiano de trabalho dos demais colegas da equipe, ativando aes de promoo e trabalhando com a participao da comunidade.

    O estudo mostra que aqueles psiclogos tm o desafi o de aprender a trabalhar em equipe e nas prticas de sade coletiva. Nesse contexto, tais profi ssionais ainda precisam defi nir melhor sua identidade no conjunto das aes de sade desenvolvidas na equipe, seja por conta de sua formao, de suas expectativas ou por concepes particulares que acabam por difi cultar sua insero. E, ainda, precisam aprender a administrar os problemas cotidianos que so comuns aos profi ssionais da equipe de sade e que, na maioria, dizem respeito organizao do sistema de sade e seus desmembramentos locais.

    As limitaes identifi cadas na prtica dos psiclogos, em especial aqueles ligados aplicao das diretrizes preconizadas para as aes de sade no PSF, so acompanhadas, porm, de uma dinmica individual e coletiva desses profi ssionais, que apontam possibilidades de participao mais efetiva naquelas aes junto populao. Alm disso, junto equipe de sade, podem desenvolver uma mediao fundamental na direo de um relacionamento saudvel do grupo de trabalho.

    Esse aspecto evidente em suas percepes. Quando sinalizam expectativas em relao ao papel e s prticas do psiclogo na equipe do PSF, expressam no discurso como deveria ser, como poderia participar, como fazer e estar presente no conjunto das aes... como psiclogo e como membro de uma equipe de sade. Tambm fi ca evidente quando seus discursos remetem ao prprio profi ssional a responsabilidade de abrir mais campo de trabalho no PSF e de se fazer reconhecido e necessrio pelos demais colegas da equipe e pela sociedade.

    A formao acadmica do psiclogo ainda no deu conta sufi cientemente de preparar os profi ssionais para este modelo de ateno sade, e a capacitao que pontualmente possa ocorrer no prprio processo ou contexto de trabalho insufi ciente para viabilizar este preparo, perante a complexidade das situaes enfrentadas na atuao em sade coletiva, especialmente no que se refere postura requerida para atuao interdisciplinar junto equipe de sade e junto populao.

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    Os resultados desse estudo mostram que a psicologia, de maneira particular, na perspectiva de uma prtica voltada ao social, necessita discutir e refl etir criticamente sobre seus programas de ateno sade mental e suas atividades especfi cas, como nos CAPS, para atender as diretrizes do Programa de Sade da Famlia e demais elos de ligao junto s polticas de sade, em especial aquelas voltadas estratgia de Promoo Sade.

    A refl exo sobre os resultados da pesquisa evidenciou outras questes relacionadas, em especial, ao processo de trabalho do psiclogo em ateno sade no mbito da sade pblica. H necessidade de estudos em outros contextos, que focalizem o carter dinmico do cotidiano de suas aes inseridas na complexidade da relao ntima entre os contextos sade-doena e os espaos scio-polticos de atuao, em conjunto com outros profi ssionais. Estas questes suscitam, tambm, temas que envolvem mobilizao profi ssional na conquista de uma formao tcnica e poltica, que favorea a insero efetiva do psiclogo na Estratgia de Sade da Famlia.

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    _____________________________ Recebido em agosto de 2008 Aceito em maro de 2009

    Juliana Martins Fermino Psicloga clnica, especialista em Psicodrama, Mestre em Sade Coletiva (UNI-

    SUL).

    Zuleica Maria Patrcio Enfermeira, Mestre em Assistncia de Enfermagem (UFSC), Doutora em Filosofi a da

    Enfermagem (UFSC), professora e pesquisadora (UNISUL), professora colaboradora (UFSC).

    Edite Krawulski Psicloga, Mestre em Administrao e Doutora em Engenharia de Produo rea de Ergonomia

    (UFSC). Professora do Curso de Graduao e do Programa de Ps-Graduao em Psicologia. Coordenadora do

    Curso de Graduao em Psicologia (UFSC).

    Maristela Chitt Sisson Mdica, Mestre em Sade Pblica e Administrao Sanitria (Escuela Andaluza de

    Salud Publica), Doutora em Cincias pelo Programa de Ps-Graduao em Medicina Preventiva (USP), docente

    do Curso de Mestrado em Cincias da Sade (UNISUL) e pesquisadora (UFSC).

    Endereo para correspondncia: [email protected]