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AUBERT CULTEURGENCE

Aubert - Culteurgence

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Aubert - Culteurgence

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AUBERT

CULTEURGENCE

Segundo Nicole Aubert1, o tempo sempre foi descrito por dois tipos de

metáforas: as que o descreviam como fluxo que passa e que o representava

indissociável da vida que também passa; mais recentemente, no Ocidente, ele

era associado com possessão e rentabilidade (―ter tempo‖, ―falta tempo‖...):

assim, o tempo, normalmente impossível de se agarrar, tornava-se um dado

quantitativo que procuramos segurar e possuir e que queremos submeter e

dominar. Mais recentemente, um terceiro tipo de metáfora invadiu fortemente o

campo das nossas representações: as análises econômicas e sociais falam

muito da contração ou da aceleração do tempo, ou da compressão do tempo

induzidas pela globalização e pelo funcionamento da economia em tempo real.

Ela conferem ao tempo uma dimensão ontológica dando-lhe um estatuto

autônomo, independente dos seres ou das coisas que o teriam conduzido, no

primeiro caso, a fluir ou, no último caso, a contrair-se. É importante mostrar que

são os indivíduos, e não o tempo, que aceleram sempre mais, contraem-se e

comprimem-se sempre mais para responder às exigências de uma economia e

de uma sociedade que giram a uma velocidade cada vez maior, exigem

performances cada vez mais altas e ações cada vez mais imediatas. Nossa

cultura temporal está mudando radicalmente e novas modalidades de relação

com o tempo tornam-se dominantes: a urgência, a instantaneidade e o

imediatismo. As implicações dessa cultura são percebidos a vários níveis e em

diferentes registros, na ideologia, na busca de significado, nos modos de

terapia psíquica, cada um traduzindo a seu modo a evolução dos nossos

contemporâneos em relação ao tempo. O alicerce desta nova relação com o

tempo está na aliança que foi celebrada entre a lógica do retorno financeiro

imediato, a dos mercados financeiros atuais donos da economia, e a

instantaneidade dos novos meios de comunicação. Esta aliança gerou um

indivíduo ―em tempo real‖, funcionando segundo o ritmo da economia e

aparente mestre do tempo. Numa economia que funciona ―just in time‖, este

executivo tornou-se ele mesmo um indivíduo ―just in time‖, um produto de

duração efêmera, do qual a empresa se esforça de comprimir cada vez mais o

ciclo de concepção e o prazo de validade, um produto de consumo do qual é

1 AUBERT, Nicole, Le culte de l’urgence, la société malade du temps, Paris, Champs,

Flammarion, 2003, Introduction

preciso assegurar a rentabilidade imediata e a rotação rápida. Esta urgência

não é simplesmente um dado externo, ela comporta uma dimensão interior:

galvanizados pela urgência, algumas pessoas precisam desta nova forma de

droga para ter a impressão de existir intensamente! Para outros, a perda do

vínculo social, um trabalho de resultados intangíveis e carente de sentido, a

perda do significado de sua ação, levam a uma indiferença amarga e triste. Em

outros casos, o clima de pressão e urgência acaba levando a histeria e corroí

os relacionamentos pessoais e os próprios indivíduos. O desenvolvimento

tecnológico bem como os métodos de gestão a ele associados levaram

também ao aparecimento de novos riscos chamados os ―riscos temporais‖. Nas

tecnologias complexas e sensíveis (por exemplo o nuclear ou a biotecnologia),

o ser humano encontra-se face a horizontes temporais que escapam, o que

pode semear situações incontroláveis e arriscadas. Mais radicalmente ainda, a

compressão do tempo torna as possibilidades de volta atrás para corrigir

eventuais erros e danos quase impossíveis o que pode tirar toda possibilidade

de erro de gestão ou de manipulação das organizações. Isto levanta a pergunta

de saber se nos tornamos ―homens – Presente‖2, incapazes de viver a não ser

no presente mais imediato, mas mais ainda os homens do instante, colados à

intensidade do momento e buscando as sensações fortes ligadas ao único

desfrutar das sensações do momento. A busca do sentido, que se desenvolvia

antigamente durante uma vida inteira, se transformou numa demanda de ―bem

estar‖ aqui e agora; mesmo as terapias psíquicas mais demoradas são as

vezes substituídas por terapias focadas nos sintomas muito mais do que seus

significados. Tudo isso contribui para desenhar uma sociedade imediata que

funciona no registro da reatividade o que compromete sua capacidade de

enfrentar o futuro. Assim, se forma um retrato multifacetado do homem

hipermoderno:

— De um lado, homem instantâneo que vive no ritmo do próprio desejo e

pensa ter abolido o tempo, do outro, um homem afundado no aqui e

agora da urgência e da instantaneidade, como se a velocidade na

resolução dos problemas pudesse, por si só, dar sentido à sua ação.

2 Segundo a expressão de Zaki Laïdi, citada por Aubert. Op. cit. p. 27

— De um lado, o indivíduo ―por excesso‖, conquistador, mestre de sua

performance e empreendedor da própria vida; do outro, o indivíduo ―por

defeito‖, cujo corpo é o único bem e que somente consegue agüentar o

tempo sem conseguir inscrever um projeto pessoal nele.

Entre o indivíduo adaptado que curte a velocidade das informações e do

ritmo de vida atual e o indivíduo pulverizado pela mesma velocidade e o

mesmo ritmo de vida, não existe nenhum vínculo possível.