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O VALOR DA NARRATIVIDADE NA REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE 1 Hayden White Levantar a questão da natureza da narrativa é convidar à reflexão sobre a própria natureza da cultura e, possivelmente, também sobre à natureza da humanidade mesma. Tão natural é o impulso para narrar, tão inevitável é a forma de narrativa para qualquer reporte sobre a maneira como as coisas realmente aconteceram, que a narrativa poderia parecer problemática somente em uma cultura na qual estivesse ausente ou, como em alguns domínios da cultura artística e intelectual ocidental contemporânea, programaticamente recusada. Consideradas como fatos panglobais de cultura, narrativa e narração são menos problemas do que simples dados. Como o falecido (e saudoso) Roland Barthes observou, “internacional, transhistórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida” 2 . Longe de ser um problema, então, a narrativa bem poderia ser considerada uma solução para um problema de interesse humano em geral, qual seja: o problema de como traduzir o conhecer em contar, o problema de moldar, a experiência humana em uma forma assimilável a estruturas de significação que são antes genericamente humanas do que especificamente culturais. Como diz Barthes, “a narrativa é traduzível sem prejuízo fundamental” de uma maneira na qual um poema lírico ou um discurso filosófico não é. Isto sugere que, longe de ser um código entre muitos que a cultura pode utilizar para dotar a experiência de significação, a narrativa 3 é um metacódigo, um universal humano, na base do qual mensagens transculturais sobre a natureza de uma realidade compartilhada podem ser transmitidas. Surgindo, como diz Barthes, entre nossa experiência do mundo e nossos esforços para descrever aquela experiência em linguagem, a narrativa “substitui sem cessar a significação da cópia pura e simples dos acontecimentos relatados”. Consequentemente, a ausência de capacidade narrativa ou a recusa da narrativa indica urna ausência ou recusa da própria significação. Mas que tipo de significação está ausente ou é recusado? Os destinos da narrativa na história da escrita histórica nos dão algum discernimento sobre esta questão. Historiadores não 1 WHITE, Hayden. O valor da narratividade na representação da realidade. Tradução de José Luís Jobim. Niterói: Instituto de Letras da UFF, 1991. Cadernos de Letras da UFF, 3. 2 BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In:___ et al. Análise estrutural da narrativa. 4ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1976. pp. 1961. 3 As palavras narrativa, narração, narrar etc. derivam, por meio das formas latinas gnarus (“que sabe”, “que conhece”, “esperto”, “hábil” etc.) e narro (“relatar”, “contar”), do radical sânscrito gnâ (“saber”). O mesmo radical geral (“cognoscível”, “conhecido”). Vejase Emile Boisacq, Dictionaire étymologique de la langue grecque (Heidelberg, 1950).

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O valor da narrativa

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O  VALOR  DA  NARRATIVIDADE  NA  REPRESENTAÇÃO  DA  REALIDADE1  

Hayden  White  

 

Levantar  a  questão  da  natureza  da  narrativa  é  convidar  à  reflexão  sobre  a  própria  natureza  

da   cultura  e,  possivelmente,   também  sobre  à  natureza  da  humanidade  mesma.  Tão  natural   é  o  

impulso  para  narrar,  tão  inevitável  é  a  forma  de  narrativa  para  qualquer  reporte  sobre  a  maneira  

como  as   coisas   realmente   aconteceram,  que  a  narrativa  poderia  parecer  problemática   somente  

em   uma   cultura   na   qual   estivesse   ausente   ou,   como   em   alguns   domínios   da   cultura   artística   e  

intelectual   ocidental   contemporânea,   programaticamente   recusada.   Consideradas   como   fatos  

panglobais  de  cultura,  narrativa  e  narração  são  menos  problemas  do  que  simples  dados.  Como  o  

falecido   (e   saudoso)   Roland   Barthes   observou,   “internacional,   trans-­‐histórica,   transcultural,   a  

narrativa  está  aí,  como  a  vida”2.  Longe  de  ser  um  problema,  então,  a  narrativa  bem  poderia  ser  

considerada  uma  solução  para  um  problema  de  interesse  humano  em  geral,  qual  seja:  o  problema  

de  como  traduzir  o  conhecer  em  contar,  o  problema  de  moldar,  a  experiência  humana  em  uma  

forma   assimilável   a   estruturas   de   significação   que   são   antes   genericamente   humanas   do   que  

especificamente  culturais.  Como  diz  Barthes,  “a  narrativa  é  traduzível  sem  prejuízo  fundamental”  

de  uma  maneira  na  qual  um  poema  lírico  ou  um  discurso  filosófico  não  é.    

Isto  sugere  que,  longe  de  ser  um  código  entre  muitos  que  a  cultura  pode  utilizar  para  dotar  

a   experiência   de   significação,   a   narrativa3   é   um  metacódigo,   um  universal   humano,   na   base   do  

qual   mensagens   transculturais   sobre   a   natureza   de   uma   realidade   compartilhada   podem   ser  

transmitidas.   Surgindo,   como  diz   Barthes,   entre   nossa   experiência   do  mundo   e   nossos   esforços  

para  descrever  aquela  experiência  em  linguagem,  a  narrativa  “substitui  sem  cessar  a  significação  

da   cópia   pura   e   simples   dos   acontecimentos   relatados”.   Consequentemente,   a   ausência   de  

capacidade   narrativa   ou   a   recusa   da   narrativa   indica   urna   ausência   ou   recusa   da   própria  

significação.    

Mas   que   tipo   de   significação   está   ausente   ou   é   recusado?   Os   destinos   da   narrativa   na  

história  da  escrita  histórica  nos  dão  algum  discernimento   sobre  esta  questão.  Historiadores  não  

1  WHITE,   Hayden.  O   valor   da   narratividade   na   representação   da   realidade.   Tradução   de   José   Luís   Jobim.   Niterói:  Instituto  de  Letras  da  UFF,  1991.  Cadernos  de  Letras  da  UFF,  3.    2  BARTHES,  Roland.  Introdução  à  análise  estrutural  da  narrativa.  In:___  et  al.  Análise  estrutural  da  narrativa.  4ª  Ed.  Petrópolis:  Vozes,  1976.  pp.  19-­‐61.    3  As  palavras  narrativa,  narração,  narrar  etc.  derivam,  por  meio  das  formas  latinas  gnarus  (“que  sabe”,  “que  conhece”,  “esperto”,   “hábil”   etc.)   e   narro   (“relatar”,   “contar”),   do   radical   sânscrito   gnâ   (“saber”).   O   mesmo   radical   geral  (“cognoscível”,   “conhecido”).   Veja-­‐se   Emile   Boisacq,   Dictionaire   étymologique   de   la   langue   grecque   (Heidelberg,  1950).    

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têm   que   reportar   em   forma   narrativa   suas   verdades   sobre   a  mundo   real.   Eles   podem   escolher  

outros  modos  de  representação,  não-­‐narrativos  ou  mesmo  anti-­‐narrativos,  tais  como  a  meditação,  

a  anatomia  ou  a  epítome.  Tocqueville,  Burckhardt,  Huizinga  e  Braudel,  para  mencionar  somente  os  

mais  notáveis  mestres  da  historiografia  moderna,  recusaram  a  narrativa  em  algumas  de  suas  obras  

historiográficas,   presumivelmente  baseados  na   suposição  de  que  o   significado  dos  eventos   com  

que  eles  desejavam  lidar  não  se  prestava  à  representação  de  modo  narrativo4.  Eles  se  recusaram  a  

contar   uma   estória   sobre   o   passado,   ou   melhor,   não   contaram   uma   estória   com   fases   inicial,  

média  e  final  bem  marcadas;  não  impuseram  sobre  os  processos  que  os  interessavam  a  forma  que  

normalmente  associamos  a  contar  urna  estória.  Enquanto  certamente  narravam  seus  registros  da  

realidade  que  percebiam   (ou  pensavam  que  percebiam)  existir   na  ou  por   trás  da  evidência  que  

examinavam,  eles  não  narratizavam  aquela  realidade,  não   impunham  sobre  ela  a   forma  de  uma  

estória.  E  seu  exemplo  nos  permite  distinguir  entre  um  discurso  histórico  que  narra  e  um  discurso  

que  narrativiza,  entre  um  discurso  que  abertamente  adota  uma  perspectiva  que  examina  o  mundo  

e  um  discurso  que  inventa,  para  fazer  o  mundo  falar  por  si  próprio  e  falar-­‐se  como  uma  estória.  

A   ideia   de   que   a   narrativa   deveria   ser   considerada   menos   como   uma   forma   de  

representação  do  que  como  uma  maneira  de  falar  sobre  eventos,  sejam  reais  ou  imaginários,  foi  

recentemente  elaborada  no  interior  de  uma  discussão  da  relação  entre  e  discurso  e  narrativa  que  

surgiu  nos  primórdios  do  Estruturalismo  e  está  associada  à  obra  de  Jakobson,  Benveniste,  Genette,  

Todorov  e  Barthes.  Aqui  a  narrativa  é  vista   como  uma  maneira  de   falar   caracterizada,   como  diz  

Genette,  “por  um  certo  número  de  exclusões  e  condições  restritivas”  que  a  forma  mais  “aberta”  

do  discurso  não  impõe  sobre  o  falante.5  De  acordo  com  Genette,  Benveniste  mostrou  que    

 (...)   certas   formas   gramaticais,   como   o   pronome   eu   (e   sua   referência   implícita   tu),   os  indicadores  pronominais  (certos  demonstrativos)  ou  adverbiais  (como  aqui,  agora,  hoje,  ontem,   amanhã   etc.),   e,   pelo   menos   em   francês,   certos   tempos   do   verbo,   como   o  presente,   o   passado   composto   ou   o   futuro,   se   encontram   reservados   ao   discurso,  enquanto  que  a  narrativa   em   sua   forma  estrita   é  marcada  pelo   emprego  exclusivo  da  terceira  pessoa  e  de  formas  como  o  oaristo  (passado  simples)  e  o  mais-­‐que-­‐perfeito.6    

 

Esta  distinção  entre  discurso  e  narrativa  é,  naturalmente,  baseada  só  em  uma  análise  dos  

traços  gramaticais  de  dois  modos  de  discurso  em  que  a  “objetividade”  de  um  e  a  “subjetividade”  

de  outro  são  definíveis  primariamente  por  uma  “ordem  linguística  de  critérios”.  A  “subjetividade”  

do   discurso   é   dada   pela   presença,   explícita   ou   implícita,   de   um   “ego”   que   pode   ser   definido  

4  GENETTE,  Gerard.  Fronteiras  da  narrativa.  In:  BARTHES  et  alii,  op.  cit.,  pp.  255-­‐274.    5  GENETTE,  op.  cit.,  p.  268. 6  Ibidem.  Cf.  Emile  Benveniste.  Problems  in  general  linguistics.  

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“somente   como   a   pessoa   que   mantém   o   discurso”.   Por   contraste,   a   objetividade   narrativa   é  

definida   pela   ausência   de   toda   referência   do   narrador”.   No   discurso   narrativizante,   então,  

podemos  dizer,   com  Benveniste,   que   “verdadeiramente  não  há  mais   um   ‘narrador’.  Os   eventos  

são  cronologicamente  registrados  como  eles  aparecem  no  horizonte  da  estória.  Ninguém  fala.  Os  

eventos  parecem  contar-­‐se  a  si  próprios”.7    

O  que  implica  a  produção  de  um  discurso  no  qual  “eventos  parecem  contar  a  si  próprios”,  

especialmente  quando  se  trata  de  eventos  que  são  explicitamente  identificados  como  reais  em  vez  

de  imaginários,  como  no  caso  das  representações  históricas?8    Num  discurso  que  lida  com  eventos  

manifestamente   imaginários,  que  são  os  “conteúdos”  de  discursos   ficcionais,  a  pergunta  propõe  

poucos   problemas.   Pois   por   que   não   deveriam   eventos   imaginários   ser   representados   como  

“falando  por  si  próprios”?  Por  que,  no  domínio  do  imaginário,  até  as  próprias  rochas  não  poderiam  

falar   –   como   a   coluna   de   Mennon   quando   tocada   pelos   raios   do   sol?   Mas   eventos   reais   não  

deveriam   falar,  não  deveriam  contar-­‐se  a   si  próprios.  Eventos   reais  deveriam  simplesmente   ser;  

eles  podem  perfeitamente  bem  servir  como  referentes  de  um  discurso,  pode-­‐se  falar  sobre  eles,  

mas   eles   não   deveriam   fazer-­‐se   passar   por   sujeitos   de   uma   narrativa.   A   invenção   tardia   do  

discurso  histórico  na  história  humana  e  a  dificuldade  de  sustentá-­‐lo  em  tempos  de  colapso  cultural  

(como   primórdios   da   Idade   Média)   sugerem   a   artificialidade   da   noção   de   que   eventos   reais  

poderiam  “falar  por  si  próprios”  ou  ser   representados  como  “contando  sua  própria  estória”.  Tal  

ficção  não  teria  proposto  nenhum  problema  antes  da  distinção  entre  eventos  reais  imaginários  ser  

imposta  sobre  o  contador  de  estórias:  contar  estórias  se  torna  um  problema  somente  após  duas  

ordens  de  evento:  disporem  diante  do  historiador  como  possíveis  componentes  de  estórias  e  após  

o  ato  de  contar  estórias  ser  compelido  a  separar-­‐se  sob  a  injunção  de  manter  as  duas  ordens  sem  

se   misturarem   discurso.   O   que   gostaríamos   de   chamar   narrativa   mítica   não   tem   obrigação   de  

manter  as  duas  ordens  de  eventos,  reais  e  imaginários,  distintos  um  do  outro.  A  narrativa  se  torna  

um  problema   somente   quando   desejamos   dar   a   forma   de   estória   e   eventos   reais.   É   porque   os  

eventos  reais  não  se  oferecem  como  estórias  que  sua  narrativização  é  tão  difícil.    

O   que   implica,   então,   aquela   descoberta   da   “verdadeira   estória”,   aquela   descoberta   da  

“estória   real”   nos   ou   diante   dos   eventos   que   cheqam   a   nós   na   forma   caótica   de   “registros  

históricos”?  Que   aspiração   é   sancionada,   que  desejo   é   gratificado  pela   fantasia   de  que   eventos  

7  Veja-­‐se  Louis  O.  Mink,  “Narrative  form  as  a  cognitive  instrument”  e  Lionel  Gossrnan,  “Historv  and  literature”,  ambos  em   The   writing   of   history:   literary   form   and   historical   understanding,   ed.   Robert   H.   Canary   and   Henry   Kozicki  (Madison,  Wis.,  1978),  com  uma  completa  bibliografia  sobre  o  problema  da  forma  narrativa  na  escrita  histórica.    8  Por  motivo  de  economia,  uso  como  representativo  da  visão  convencional  da  escrita  histórica  Harry  Elmer  Barnes,  A  history  of  historical  writing   (New  York,  1963),  chap,  3,  que  trata  da  historiografia  medieval  no  ocidente.  Cf.  Robert  Scholes  and  Robert  Kellogg,  The  nature  of  narrative  (Oxford,  1976),  64,  211.  

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reais   sejam   genuinamente   representados   quando   se   pode   mostrar   que   eles   apresentam   a  

coerência   formal   de   uma   estória?   No   enigma   desta   aspiração,   deste   desejo,   vislumbramos   a  

função   cultural   do   discurso   narrativizante   em   geral,   vislumbramos   uma   intimação   do   impulso  

psicológico  por  trás  da  necessidade  aparentemente  universal  não  somente  de  narrar,  mas  de  dar  a  

eventos  um  aspecto  de  narratividade.  

A  historiografia  é  um  campo  especialmente  bom  para  refletir  sobre  a  natureza  da  narração  

e  narratividade  porque  é  aí  que  o  nosso  desejo  do  imaginário,  do  possível,  deve  defrontar-­‐se  com  

os  imperativos  do  real,  do  concreto.  Se  vemos  a  narração  e  a  narratividade  como  os  instrumentos  

com   os   quais   as   aspirações   conflitantes   do   imaginário   e   do   real   são   mediadas,   arbitradas   ou  

resolvidas   em   um   discurso,   começamos   a   compreender   tanto   o   apelo   da   narrativa   quanto   os  

fundamentos  de  sua  recusa.  Se  eventos  supostamente  reais  são  representados  de  uma  forma  não-­‐

narrativa,  que  tipo  de  realidade  é  este  que  se  oferece  (ou  se  imagina  que  se  oferece)  à  percepção  

nesta   forma?  Com  o  que  pareceria  uma   representação  não-­‐narrativa  de   realidade  histórica?  Ao  

responder   esta   pergunta,   não   chegamos   necessariamente   a   uma   solução   para   o   problema   da  

natureza  da  narrativa,  mas  começamos  a  vislumbrar  a  base  para  o  apelo  da  narrativa  como  uma  

forma  para  a  representação  de  eventos,  construída  para  ser  real  em  vez  de  imaginária.    

Felizmente,  temos  muitos  exemplos  de  representações  da  realidade  histórica  que  são  não-­‐

narrativos   na   forma.   Na   verdade,   a   doxa   do   establishment   historiográfico  moderno9   pressupõe  

que  há  três  tipos  básicos  de  representação  histórica  –  os  anais,  a  crônica  e  a  história  genuína  –  dos  

quais   a   imperfeita   “historicidade”   de   dois   se   evidencia   no   seu   fracasso   em   atingir   a   plena  

narratividade  dos  eventos  dos  quais  tratam.  E  desnecessário  dizer  que  é  a  narratividade  por  si  só  

não   permite   a   distinção   dos   três   tipos.   Para   que   um   registro   de   eventos   conte   como   história  

genuína,   mesmo   de   eventos   passados   reais,   não   é   suficiente   que   ele   apresente   todas   as  

características  da  narratividade,  Além  disto,  o  registro  deve  manifestar  uma  preocupação  genuína  

com  o  manuseio  judicioso  da  evidência  e  deve  honrar  a  ordem  cronológica  da  ocorrência  original  

da   qual   trata,   como   uma   linha   de   base   que   não   deve   ser   desrespeitada,   na   classificação   de  

qualquer   evento   dado   tanto   como   causa   quanto   corno   efeito.   Mas,   por   comum   acordo   não   é  

suficiente  que  um  registro  histórico  lide  com  eventos  reais  em  vez  de  meramente  imaginários;  e  

não  é  suficiente  que  o  registro  represente  eventos  em  sua  ordem  de  discurso  correspondente  à  

sequência   cronológica   em   que   originalmente   ocorreram.   Os   eventos   não   devem   ser   somente  

registrados  dentro  do  quadro  cronológico  de  sua  ocorrência  original,  mas  também  narrados,  isto  

9  WHITE,  Metahistory,  318-­‐85.

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é,   revelados   corno  possuidores  de  uma  estrutura,   uma  ordem  de   significado,  que  não  possuem  

como  mera  sequência.    

Desnecessário   dizer   também   que   a   forma   dos   anais   carece   totalmente   do   componente  

narrativo,  já  que  consiste  somente  de  uma  lista  de  eventos  ordenada  em  sequência  cronológica.  A  

crônica,  por  contraste,  frequentemente  parece  querer  contar  uma  estória,  aspira  à  narratividade,  

mas   tipicamente   falha   em   consegui-­‐la.  Mais   especificamente,   a   crônica   usualmente   é  marcada  

pelo  fracasso  em  alcançar  a  conclusão  da  narrativa.Ela  antes  termina  do  que  conclui.  Ela  começa  a  

contar   uma  estória  mas   interrompe   in  media   res,   no   presente   do  próprio   cronista:   ela   deixa   as  

coisas  sem  solução,  melhor,  ela  as  deixa  não  resolvidas  como  estória.    

Enquanto   os   anais   representam   a   realidade   histórica   como   se   eventos   reais   não  

apresentassem  a  forma  de  estória,  o  cronista  a  representa  como  se  eventos  reais  apresentassem  a  

forma  de  estórias  inconclusivas.  E  a  sabedoria  oficial  acredita  que  não  importa  quão  objetivo  um  

historiador  possa  ser  no  seu  reporte  de  eventos,  não  importa  quão  judicioso  ele  tenha  sido  na  sua  

datação  da  res  qestae;  seu  registro  permanece  algo  menos  do  que  uma  história  genuína,  ele  não  

conseguiu  dar  a  forma  de  estória  à  realidade.  Onde  não  há  narrativa,  Croce  disse,  não  há  história.  

E  Peter  Gay,  escrevendo  de  uma  perspectiva  diretamente  oposta  ao  relativismo  de  Croce,  afirma  

de  maneira  direta:  “a  narração  histórica  sem  análise  é   trivial,  a  análise  histórica  sem  narração  é  

incompleta”.10  A   formulação  de  Gay  evoca  a  propensão  Kantiana  da  demanda  pela  narração  na  

representação  histórica,  porque  sugere,  parafraseando  Kant,  que  narrativas  históricas  sem  análise  

são  vazias  enquanto  análises  históricas  sem  narrativa  são  cegas.  Então  podemos  perguntar:  “Que  

tipo   de   discernimento   em   relação   à   natureza   dos   eventos   reais   a   narrativa   dá?   Que   tipo   de  

cegueira  em  relação  à  realidade  a  narrativa  apresenta?”  

A   seguir,   trato   as   formas   (de   anais   e   crônica)   da   representação   histórica   não   como   as  

histórias   imperfeitas   que   convencionalmente   se   concebe   serem,   mas   antes   como   produtos  

particulares  de  possíveis  concepções  da  realidade  histórica,  concepções  que  são  alternativas  ao  –  

em  vez  de  antecipações  falhas  do  –  discurso  histórico  plenamente  realizado,  que  se  supõe  tomar  

corpo   na   moderna   forma   de   história.   Este   procedimento   esclarecerá   os   problemas   tanto   da  

historiografia   quanto   da   narração   e   esclarecerá   o   que   imagino   ser   a   natureza   puramente  

convencional   das   relações   entre   ambas.  O  que   se   revelará,   eu  penso,   é   que   a  própria   distinção  

entre   eventos   reais   e   imaginários,   que   é   básica   para   as   discussões   modernas   sobre   história   e  

ficção,   pressupõe   urna   noção   de   realidade   na   qual   “verdadeiro”   é   identificado   com   “o   real”  

somente  enquanto  se  possa  mostrar  que  possui  o  caráter  de  narratividade.    

10  Peter  Gay.  Style  in  history  (New  York,  1974),  189.  

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Quando  nós,  modernos,  examinamos  um  exemplo  de  anais  medievais,  não  podemos  deixar  

de   nos   surpreender   pela   aparente   ingenuidade   do   analista;   e   inclinamo-­‐nos   a   atribuir   esta  

ingenuidade   à   aparente   recusa,   inabilidade   ou   falta   de   vontade   de   transformar   o   quadro   de  

eventos  ordenado  verticalmente,  como  uma  coluna  de  marcadores  anuais,  em  elementos  de  um  

processo   linear/horizontal.   Em   outras   palavras,   tendemos   a   ficar   desconcertados   pelo   aparente  

fracasso  do  analista  em  fazer  os  eventos  históricos  se  disporem  ao  olho  perceptor  como  estórias  

esperando  para  serem  contadas,  esperando  para  serem  narradas.  Mas  seguramente  um  interesse  

histórico   genuíno   demandaria   que   perguntássemos   não   com   um   por   que   o   analista   falhou   em  

escrever   urna   “narrativa”,   mas,   em   vez   disso,   que   tipo   de   noção   de   realidade   o   conduziu   a  

representar   na   forma   de   anais   o   que,   afinal   de   contas,   ele   considerava   eventos   reais.   Se  

pudéssemos  responder  esta  questão.  poderíamos  ser  capazes  de  compreender  por  que,  em  nosso  

próprio   tempo   e   condição   cultural,   poderíamos   imaginar   a   própria   narratividade   como   um  

problema.    

O  primeiro   volume  das  Monumenta  germaniae  historica,   nas   séries  Scriptores,   contém  o  

texto  dos  Anais  de  Saint  Gall,  uma  lista  de  eventos  que  ocorreram  na  Gália  durante  os  Séculos  VIII,  

IX   e   X   da   nossa   era.   Embora   este   texto   seja   “referencial”   e   contenha   uma   representação   de  

temporalidade  –  a  definição  de  Ducrot  e  Todorov11  do  que  pode  ser  considerado  como  narrativa  –,  

ele  não  possui  nenhuma  das  características  que  normalmente  atribuímos  a  uma  estória:  nenhum  

começo,   meio   e   fim   bem  marcados,   nenhuma   peripécia   (peripeteia),   e   nenhuma   voz   narrativa  

identificável.  Não  há  nenhuma  sugestão  de  qualquer  conexão  necessária  entre  um  evento  e  outro,  

nos   que   são,   para   nós,   os   segmentos   do   texto   teoricamente  mais   interessantes.   Então,   para   o  

período  709-­‐34,  temos  as  seguintes  entradas:      

 

709.  Inverno  rigoroso.  Morreu  o  Duque  Gottfried.    

710.  Ano  duro  e  deficiente  de  colheitas.    

711.  

712.  Enchentes  em  toda  parte.    

713.    

714.  Pippin,  mordomo  do  paço,  morreu.    

715.  716.  717.    

718.  Carlos  devastou  a  Saxônia  com  grande  destruição.    

719.    

11  Oswald  Ducrot  and  Tzveran  TODOROV.  Encyclopedie  dictionary  of  sciences  of    language.    

Page 7: Aula 013 White Hayden o Valor Da Narratividade Na Representac3a7c3a3o Da Realidade

720.  Carlos  lutou  contra  os  Saxões.    

721.  Theudo  expulsou  os  Sarracenos  da  Aquitânia.    

722.  Grandes  colheitas.    

723.    

724.    

725.  Os  sarracenos  vieram  pela  primeira  vez.      

726.  727.  728.  729.  730.    I    

731.  O  abençoado  Bede,  o  presbítero,  morreu.    

732.  Carlos  lutou  contra  os  Sarracenos  em  Poitiers  no  sábado.    

733.    

734.      

 

Esta  história  imediatamente  nos  coloca  em  sua  cultura  pairando  à  beira  da  destruição  uma  

sociedade  de  escassez  radical,  um  mundo  de  grupos  humanos  ameaçados  pela  morte,  devastação,  

enchentes  e  fome.  Todos  os  eventos  são  extremos,  e  o  critério  implícito  para  selecioná-­‐los  para  a  

memória   é   a   sua   natureza   liminar.   Necessidades   básicas   –   comida,   segurança   contra   inimigos  

externos,  liderança  militar  –  e  a  ameaça  de  que  não  fossem  providas  são  os  assuntos  de  interesse;  

mas   a   conexão   entre   necessidades   básicas   e   as   condições   para   sua   possível   satisfação   não   é  

explicitamente   comentada.   Por   que   “Carlos   lutou   contra   os   saxões”   permanece   tão   inexplicado    

quanto  por  que  um  ano   foi  de   “grandes   colheitas”  e  um  outro   teve   “enchente  em   toda  parte”.  

Eventos  sociais  são  aparentemente  tão   incompreensíveis  quanto  eventos  naturais.  Eles  parecem  

meramente  ter  ocorrido,  a  sua  importância  parece  ser  indistinguível  do  fato  de  serem  registrados.  

De  fato,  parece  que  sua  importância  consiste  em  nada  além  de  terem  sido  registrados.    

E  não  temos   ideia  de  por  quem  foram  registrados;  nem  temos  qualquer   ideia  de  quando  

foram   registrados.   A   entrada   725   –   “Sarracenos   vieram   pela   primeira   vez”   –   sugere   que   este  

evento  foi  pelo  menos  registrado  depois  de  os  Sarracenos  terem  vindo  uma  segunda  vez  e  gera  o  

que   poderíamos   considerar   genuína   expectativa   narrativista;  mas   a   vinda   dos   Sarracenos   e   sua  

repulsão  não   é   o   assunto  deste   registro.   A   luta   de  Carlos   “contra   os   Sarracenos   em  Poitiers   no  

sábado”  é  registrada,  mas  não  o  resultado  de  batalha.  E  este  “sábado”  é  perturbador,  porque  o  dia  

e  o  mês  da  batalha  não  são  fornecidos.  Há  muita  desordem  –  nenhum  enredo  visível  –  e,   isto  é  

frustrante,  se  não  perturbador,  tanto  para  as  modernas  expectativas  de  estória  do  leitor  moderno  

quanto  para  seu  desejo  de  informações  específicas.    

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Além  disso  notamos  que  este  registro  não  é  realmente  iniciado.  Ele  simplesmente  começa  

com  o  “título”  (é  um  título?)  Anni  Domini,  que  encabeça  as  duas  colunas,  uma  de  datas,  outra  de  

eventos.  Visualmente,  pelo  menos,  este  título   liga  a  fileira  de  datas  na  coluna  à  esquerda  com  a  

fileira   de   eventos   na   coluna   à   direita,   numa   promessa   de   significação   que   se   poderia   tender   a  

tomar   por   mítica   se   não,   fosse   pelo   fato   de   Anni   Domini   nos   remeter   tanto   a   uma   estória  

cosmológica   dada   na   Escritura   quanto   a   urna   conexão   de   calendário   que   os   historiadores  

ocidentais  ainda  usam  para  marcar  as  unidades  de  suas  histórias.  Não  deveríamos  nos  precipitar  

em  remeter  o  significado  do  texto  ao  quadro  mítico  que  ele   invoca  ao  designar  os  “anos”  como  

sendo  “do  senhor”,  porque  estes  “anos”  têm  uma  regularidade  que  o  mito  cristão,  com  seu  claro  

ordenamento   hipotático   dos   eventos   que   engloba   (Criação,   Pecado   Original,   Encarnação,  

Ressurreição,   Juízo   Final),   não   possui.   A   regularidade   do   calendário   assinala   o   “realismo”   do  

registro,   sua   intenção   de   lidar   com   eventos   reais   em   vez   de   imaginários.   O   calendário   localiza  

eventos,   não   no   tempo   da   eternidade   não   no   tempo  Kairótico,   mas   no   tempo   cronológico,   no  

tempo  como  ele  é  experimentado  humanamente.  Este  tempo  não  tem  pontos  altos  ou  baixos;  ele  

é,  poderíamos  dizer,  paratático  e  sem  fim.  Ele  não  tem  lacunas.  A  lista  de  tempos  está  completa,  

mesmo  se  a  lista  de  eventos  não  estiver.    

Finalmente,  os  anais  não  concluem;  eles  simplesmente  terminam.  As  últimas  entradas  são  

as   seguintes:   “1045.   1046.   1047.   1048.   1049.   1050.   1051.   1052.   1053.1054.   1055.   1056.   O  

imperador  Henrique  morreu;  e  seu  filho  Henrique  o  sucedeu  no  poder.  1057.  1058.  1059.  1060.  

1061.  1062.  1063.  1064.  1065.  1066.  1067.  1068.  1069.  1070.  1071.  1072.”  

A  continuação  da   lista  dos  anos  no  fim  do  registro  seguramente  sugere  uma  continuação  

da  série  ad  infinitum,  ou  melhor,  até  o  Juízo  Final.  Mas  não  há  conclusão  da  estória.  Como  poderia  

haver  se  não  há  tema  central  sobre  o  qual  a  estória  pudesse  ser  contada?    

Contudo,   deve   haver   uma   estória,   já   que   seguramente   há   um   enredo   –   se   por   enredo  

entendemos  uma  estrutura  de  relações  pelo  qual  os  eventos  contidos  no  registro  são   investidos  

de  significado  por  serem  identificados  como  partes  de  um  todo  integrado.  Aqui,  entretanto,  não  

me  refiro  ao  mito  do  Pecado  Original  e  da  Redenção  (das  partes  justas  da  humanidade)  que  está  

na  Bíblia,  mas  à  lista  de  datas  dos  anos  dada  na  fileira  à  esquerda  do  texto,  que  confere  coerência  

e  plenitude  aos  eventos,  ao  registrá-­‐los  nos  anos  em  que  ocorreram.  Em  outras  palavras,  a  lista  de  

datas  pode  ser  vista  como  o  significado  de  que  os  eventos  fornecidos  na  coluna  da  direita  são  os  

significantes.   O   sentido   dos   eventos   é   seu   registro   neste   tipo   de   lista.   Eis   por   que,   suponho,   o  

analista   teria   sentido  pouco  da   ansiedade  que  o   estudioso  moderno   sente  quando   confrontado  

com  o  que  parecem  ser  lacunas,  descontinuidades  e  a  falta  de  conexões  causeis  entre  os  eventos  

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registrados  no  texto.  O  estudioso  moderno  procura  completude  e  continuidade  em  uma  ordem  de  

eventos;  o  analista  possui  ambas,  na  sequência  dos  anos.  Qual  é  a  expectativa  mais  “realista”?    

Recordar  que  não  estamos   lidando  nem  com  o  discurso  onírico  nem  com  o   infantil.  Pode  

até  ser  um  erro  chamá-­‐lo  mesmo  de  discurso,  mas  há  alguma  coisa  discursiva  nele.  O  texto  evoca  

uma   “substância”,   opera   antes   no   domínio   da  memória   do   que   no   do   sonho   ou   fantasia,   e   se  

desdobra   antes   sob   o   signo   do   “real”,   do   que   do   “imaginário”.   De   fato,   o   texto   parece  

eminentemente   racional  e,  à  primeira  vista,  muito  prudente,   tanto  em  seu  desejo  manifesto  de  

registrar  somente  aqueles  eventos  sobre  cuja  ocorrência  poder  haver  pouca  dúvida,  quando  em  

sua  resolução  de  não  interpelar,  especulativamente,  os  fatos  ou  de  não  desenvolver  argumentos  

sobre  como  os  eventos  realmente  estão  ligados  uns  aos  outros.    

Comentaristas  modernos  observam  o  fato  de  que  o  analista  registrou  a  batalha  de  Poitiers  

de   732,   mas   omitiu   a   batalha   de   Tours,   que   ocorreu   no   mesmo   ano   e   que,   como   qualquer  

estudante   sabe,   foi   uma   das   “dez   grandes   batalhas   da   história   mundial”12.   Mas   mesmo   que   o  

analista  tivesse  tomado  conhecimento  de  Tours,  que  princípio  ou  regra  de  significação  o  teria  feito  

registrá-­‐la?  somente  a  partir  de  nosso  conhecimento  da  história  subsequente  da  Europa  Ocidental  

que   podemos   presumir   a   classificação   de   eventos   em   termos   de   sua   significação   histórico-­‐

mundial,   e   mesmo   então   aquela   significância   é   menos   histórico-­‐mundial   do   que   europeia  

ocidental,   representando   uma   tendência   dos   modernos   historiadores   em   classificar   os   eventos  

hierarquicamente  no  registro,  sob  uma  perspectiva  que  é  culturalmente  específica,  absolutamente  

não  universal.    

É  esta  necessidade  ou  impulso  de  classificar  eventos  levando  em  conta  a  sua  significância  

para   a   cultura   ou   grupo   que   está   escrevendo   sua   própria   história   que   torna   possível   uma  

representação  narrativa  de  eventos  reais.  É  seguramente  muito  mais  “universalista”  simplesmente  

registrar  eventos  tais  quais  eles  são  percebidos.  E,  no  nível  mínimo  em  que  os  anais  se  desdobram,  

o  que  é  posto  no  registro  é  de  muito  maior  importância  teórica  para  a  compreensão  da  natureza  

da  narrativa  do  que  aquilo  que  é  deixado  de   fora.  Mas   isto   levanta  a  questão  da   função,  neste  

texto,  do  registro  daqueles  anos  em  que  “nada  aconteceu”.  Toda  narrativa,  não  importa  o  quanto  

pareça   “completa”,   é   construída   com   base   em   uma   série   de   eventos   que   poderiam   ter   sido  

incluídos,   mas   foram   deixados   de   fora;   isto   é   verdadeiro   tanto   para   as   narrativas   imaginárias  

quanto   para   as   realistas.   E   esta   consideração   nos   permite   perguntar   que   tipo   de   noção   de  

realidade  autoriza  a  construção  de  um  registro  narrativo  da  realidade  no  qual  a  continuidade,  em  

vez  da  descontinuidade,  governa  a  articulação  do  discurso.    

12  BARNES,  History  of  historical  writing,  65.  

Page 10: Aula 013 White Hayden o Valor Da Narratividade Na Representac3a7c3a3o Da Realidade

Se   garantirmos   que   este   discurso   se   desdobra   sob   o   signo   de   um   desejo   do   real   (como  

devemos  garantir,   para   justificar   a   inclusão  da   forma  dos  anais  entre  os   tipos  de   representação    

histórica),  devemos  concluir  que  ele  é  um  produto  de  uma  imagem  da  realidade,  de  acordo  com  o  

qual   o   sistema   social   –   que   seria   o   único   a   poder   fornecer   os   marcadores   diacríticos   para   a  

classificação  da  importância  dos  eventos  –  está  apenas  minimamente  presente  na  consciência  do  

escritor,  ou  melhor,  está  presente  como  um  fator  na  composição  do  discurso  somente  em  virtude  

de   sua   ausência.   Em   toda   parte,   são   as   forças   da   desordem,   natural   e   humana,   as   forças   da  

violência  e  destruição,  que  ocupam  o  primeiro  plano  da  atenção.  O  registro  lida  com  atributos  em  

vez  de  agentes  configurando  um  mundo  em  que  as  coisas  acontecem  às  pessoas,  em  vez  de  um  

em  que  as  pessoas  fazem  coisas.  É  a  dureza  do  inverno  de  709,  a  dureza  do  ano  710  e  a  deficiência  

das   colheitas   daquele   ano,   as   enchentes   de   712   e   a   presença   iminente   da   morte   que   são  

recorrentes,  com  uma  frequência  e  regularidade  de  que  é  despojada  a  representação  de  atos  de  

atividade  humana.  A  realidade  para  este  observador  veste-­‐se  com  a  aparência  dos  adjetivos  que  

superam  a  capacidade  dos  nomes  que  modificam,  para  resistir  ao  seu  caráter  determinante.    

Carlos  consegue  devastar  os  saxões,  lutar  contra  eles,  e  Theudo  até  consegue  expulsar  os  

sarracenos  da  Aquitânia,  mas  estas  ações  parecem  pertencer  à  mesma  ordem  de  existência  dos  

eventos   naturais   que   trazem   colheitas   “boas”   ou   “deficientes”,   e   são   aparentemente   tão   tão  

incompreensíveis  quanto  eles.  

A  ausência  de  um  princípio  que  de   importância  ou  significância  aos  eventos  é  assinalada  

acima  de  tudo  nas  lacunas  na  lisa  de  eventos  na  fileira  à  direita,  por  exemplo,  no  ano  de  711,  no  

qual,   parece,   “nada   aconteceu”.  A   superabundância   das   águas   notada  de   712   é   precedida   de   e  

seguida   por   anos   em  que   também   “nada   aconteceu”.  O   que  nos   faz   lembrar   da   observação  de  

Hegel   de  que  períodos  de   felicidade  e   segurança  humana   são  páginas   vazias   na  história.  Mas   a  

presença   destes   anos   vazios   no   registro   do   analista   nos   permite   perceber,   por   contraste,   a  

extensão  em  que  a  narrativa  se  esforça  para  produzir  o  efeito  de  ter  preenchido  tocas  as  lacunas,  

de  ter  construído  uma  imagem  de  continuidade,  coerência  e  significação  em  lugar  das  fantasias  de  

vacuidade,   necessidade   e   desejo   frustrado   que   habitam   nossos   pesadelos   sobre   o   poder  

destruidor  do  tempo.  De  fato,  o  registro  do  analista  exige  um  mundo  em  que  a  necessidade  está  

presente   em   toda  parte,   em  que   a   escassez   é   a   regra   da   existência,   em  que   todos  os   possíveis  

meios  de  satisfação  estão  faltando,  ou  ausentes  ou  existem  sob  a  ameaça  iminente  da  morte.  

A  noção  de  gratificação  possível  está,  entretanto,  implicitamente  presente  na  lista  de  datas  

que  constitui  a  coluna  da  esquerda.  A  completude  desta  lista  atesta  a  completude  do  tempo,  ou  

pelo   menos   a   completude   dos   “anos   do   Senhor”.   Não   há   escassez   dos   anos:   eles   descendem  

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regularmente   de   sua   origem,   o   ano   da   Encarnação,   e   avançam   inexoravelmente   para   seu   fim  

potencial,   o   Juízo   Final.   O   que   falta   na   lista   de   eventos   para   dar-­‐lhe   uma   regularidade   e  

completude  similares  é  uma  noção  de  centro  social  pela  qual  localizá-­‐los  um  em  relação  ao  outro  e  

investi-­‐los  de  significância  moral  e  ética.  E  a  ausência  de  qualquer  consciência  de  um  centro  social  

que   proíbe   o   analista   de   classificar   os   eventos   de   que   trata   como   elementos   de   um   campo  

histórico  de  ocorrência.  É  a  ausência  de  tal  centro  que  preclui  ou  aborta  qualquer  impulso  que  ele  

poderia   ter   para   transformar   seu   discurso   na   forma   de   uma   narrativa.   Sem   tal   centro,   as  

campanhas   de   Carlos   contra   os   saxões   permaneceram   simplesmente   pelejas,   a   invasão   dos  

Sarracenos  simplesmente  uma  vinda,  e  o  fato  de  que  se  travou  a  batalha  de  Poitiers  num  sábado  

permanece   tão   importante   quanto   o   fato   de   algum   dia   se   ter   travado   a   batalha.   Tudo   isto  me  

sugere  que  Hegel  estava  certo  quando  opinou  que  um  registro  genuinamente  histórico  tinha  de  

apresentar  não  somente  uma  certa   forma,   isto  é,  a  narrativa,  mas   também  um  certo  conteúdo,  

isto  é,  uma  ordem  político-­‐social.  

Na  sua  introdução  às  Lições  de  História  da  Filosofia,  Hegel  escreveu:    

 Em  nossa  língua  a  História  une  o  lado  objetivo  com  o  subjetivo,  e  significa  igualmente  a  história  rerum  gestarum  e  a  própria  res  gestae:  é  o  acontecido  e  –  não  menos  –  o  relato  do   acontecido.   Esta   união   de   ambos   os   significados   deve   ser   vista   por   nós   como   algo  mais  do  que  uma  mera  casualidade;  devemos  considerar  que  a  narração  da  história  se  constitui  ao  mesmo  tempo  que  as  ações  e  condições  históricas;  é  um  princípio  comum  interno  que  os  produz.   Lembranças  de   família,   tradições  patriarcais,   têm  um   interesse  confinado  à  família  e  ao  clã.  O  curso  uniforme  de  eventos  não  é  objeto  de  recordação,  embora  ações  distintas  ou  mudanças  de  destino  possam  estimular  Mnemosyne  a  formar  imagens  a  partir  deles  –  do  mesmo  modo  que  o  amor  e  a  sensibilidade  religiosa  incitam  a  fantasia  a  dar  forma  a  um  impulso  anteriormente  informe.  Mas  é  apenas  o  estado  que  primeiro   introduz   um   conteúdo   que   não   é   apenas   adequado   à   prosa   da   história,   que  produz  a  história  e  se  produz  com  ela.13    

 

Hegel  em  seguida  estabelece  distinção  entre  o  tipo  de  “sentimentos  profundos”,  tais  quais  

o   “amor”   e   a   “intuição   religiosa   e   suas   concepções”,   e   “aquela   existência   explícita   de   uma  

constituição   política   que   é   cultuada   em   (...)   leis   e   costumes   racionais”.   Aquela,   ele   diz,   “é   um  

Presente   imperfeito;   e   não   pode   ser   totalmente   compreendida   sem   um   conhecimento   do  

passado”.  É  por   isto  que,  ele  conclui,  há  períodos  que,  embora  embora  repletos  de  “revoluções,  

perambulações  nômades,  e  das  mais  estranhas  mutações”,  são  destituídos  de  qualquer  “história  

objetiva”.  E  sua  destituição  de  uma  história  objetiva  é  em  função  do  fato  de  que  eles  não  podiam  

produzir  “história  subjetiva,  anais”.    

13  HEGEL,  The  philosophy  of  History.  

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Não  necessitamos   supor,   ele   observa,   “que   os   registros   de   tais   períodos   acidentalmente  

desapareceram;   em   vez   disto,   nós   os   achamos   deficientes   porque   eles   não   eram   possíveis”.   E  

insiste   que   “somente   em   um   estado   conhecedor   das   leis   podem   transações   distintas   ocorrer,  

acompanhadas  de  uma  consciência  tão  clara  delas  que  supra  a  habilidade  e  sugira  a  necessidade  

de  um   registro  duradouro”.  Quando,   em   resumo,  é  o   caso  de  prover  uma  narrativa  de  eventos  

reais,  devemos  supor  que  um  sujeito  do  tipo  que  proveria  o  impulso  para  registrar  suas  atividades  

deve  existir.    

Hegel  insiste  que  o  sujeito  próprio  de  tal  registro  é  o  estado,  mas  o  estado  para  ele  é  uma  

abstração.  A  realidade  que  se  presta  à  representação  narrativa  é  o  conflito  entre  o  desejo  e  a  lei.  

Onde  não   existe   o   poder   da   lei,   não   pode  haver   nem  um   sujeito   nem  o   tipo   de   evento   que   se  

presta   à   representação   narrativa.   Isto   não   é   uma   proposição   que   poderia   ser   empiricamente  

verificada   ou   refutada,   certamente;   ela   é   da   natureza   de   uma   pressuposição   ou   hipótese  

possibilitadora,   que   nos   permite   imaginar   corno   ambas,   “historicidade”   e   “narratividade”,   são  

possíveis.  E  ela  nos  autoriza  a  considerar  a  proposição  de  que  nenhuma  das  duas  é  possível  sem  

alguma  noção  do   sujeito   legal  que  pode   servir   como  agente,   instrumento  e   sujeito  da  narrativa  

histórica  em  todas  as   suas  manifestações,  desde  os  anais,  passando  pela  crônica,  até  ó  discurso  

histórico  como  o  conhecemos  em  suas  modernas  realizações  e  fracassos.    

A  questão  da  lei,  legalidade  ou  legitimidade  não  é  levantada  naquelas  partes  dos  Anais  de  

Saint  Gall  que  estivemos  examinando,  pelo  menos  a  questão  da  lei  humana  não  é  levantada.  Não  

há   nenhuma   sugestão   de   que   a   vinda   dos   Sarracenos   representa   uma   trangressão   de   qualquer  

limite,  de  que  não  deveria  ter  acontecido  ou  poderia  ter  acontecido  de  outra  maneira.  Desde  que  

tudo  o  que  aconteceu  ocorreu  assim  aparentemente  de  acordo  com  a  vontade  divina,  é  suficiente  

simplesmente   perceber   sua   ocorrência,   registrá-­‐la   sob   o   apropriado   “ano   do   Senhor”   em   que  

aconteceu.  A  vinda  dos  Sarracenos  é  da  mesma  significância  moral  que  a  luta  de  Carlos  contra  os  

Saxões.  Não  temos  possibilidade  de  saber  se  o  analista  teria  sido  impelido  a  descarnar  sua  lista  de  

eventos   e   aceitar   o   desafio   de   uma   representação   narrativa   daqueles   eventos,   se   ele   tivesse  

escrito  com  a  consciência  da  ameaça  a  um  sistema  social  específico  e  da  possibilidade  de  cair  em  

uma  condição  contra  a  qual  o  sistema  legal  poderia  ter  sido  erigido.    

Mas   já   que   fomos   alertados   para   a   relação   íntima   que   Hegel   sugere   existir   entre   lei,  

historicidade  e  narratividade,  não  podemos  deixar  de  nos  surpreender  pela  frequência  com  que  a  

narratividade,   tanto   do   tipo   ficcional   quanto   do   factual,   pressupõe   a   existência   de   um   sistema  

legal   contra   que,   ou   a   favor   de  que,   os   agentes   típicos   de  um   registro   narrativo  militam.   E   isto  

levanta   a   suspeita   de   que   a   narrativa,   em   geral,   do   conto   folclórico   ao   romance,   dos   anais   à  

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“história”  plenamente  realizada,  tem  a  ver  com  os  tópicos  da   lei,  da   legalidade,  da   legitimidade,  

ou,   mais   genericamente,   da   autoridade.   E   na   verdade,   quando   vemos   o   que   se   supõe   ser   o  

próximo   estágio   na   evolução   da   representação   histórica   depois   da   forma   dos   anais,   isto   é,   a  

crônica,  esta  suspeita  é  confirmada.  Quanto  mais  autoconsciente  historicamente  for  o  escritor  de  

qualquer   forma   de   historiografia,  mais   a   questão   do   sistema   social   e   da   lei   que   o   sustenta,   da  

autoridade   da   lei   e   de   sua   justificativa,   bem   como  das   ameaças   à   lei,   ocupam   sua   atenção.   Se,  

como  Hegel  sugere,  a  historicidade  como  um  modo  distinto  da  existência  humana  é   impensável  

sem   a   pressuposição   de   um   sistema   legal   em   relação   ao   qual   um   sujeito   especificamente   legal  

poderia  ser  constituído,  então  a  autoconsciência  histórica,  o  tipo  de  consciência  capaz  de  imaginar  

a  necessidade  de  representar  a  realidade  como  uma  história  é  concebível  somente  em  termos  de  

seu  interesse  na  lei,  na  legalidade  e  legitimidade,  e  assim  por  diante.    

O   interesse   no   sistema   social,   que   não   é   nada   mais   do   que   um   sistema   de   relações  

humanas  governado  pela  lei,  cria  a  possibilidade  de  imaginar  os  tipos  de  tensões,  conflitos,  lutas  e  

seus  vários  tipos  de  resoluções  que  estamos  acostumados  a  encontrar  em  qualquer  representação  

da  realidade  que  se  apresente  a  nós  como  história.  Isto  nos  permite  especular  que  o  crescimento  e  

desenvolvimento   da   capacidade   narrativa   (do   tipo   encontrado   na   crônica,   contrastando   com   a  

forma  dos  anais),  tem  algo  a  ver  com  a  extensão  em  que  o  sistema  legal  funcionaria  como  objeto  

de   preocupação.   Se   toda   estória   plenamente   realizada,   não   importando   como   definimos   esta  

entidade  familiar  mas  conceitualmente  esquiva,  é  um  tipo  de  alegoria,  aponta  para  uma  moral,  ou  

dota   os   eventos   –   sejam   reais   ou   imaginários   –   de   uma   significância   que   eles   não   possuem  

enquanto  mera  sequência,  então  parece  possível  concluir  que  toda  narrativa  histórica  tem  como,  

propósito   latente   ou   manifesto,   o   desejo   de   moralizar   os   eventos   de   que   trata.   Onde   há  

ambiguidade  ou  ambivalência   com   relação  ao   status  do   sistema   legal,   que  é   a   forma  em  que  o  

sujeito  mais   imediatamente  depara  com  o  sistema  social  no  qual  ele  está   inserido  para  alcançar  

uma  humanidade  plena,   está   faltando  a  base,   na  qual   se   apoia  qualquer   conclusão   (closure)   de  

uma  estória  que  se  poderia  contar   sobre  o  passado,   seja  um  passado  público  ou  privado.  E   isto  

sugere  que  a  narratividade  –  seguramente  a  contar  estórias  factuais  e  provavelmente  também  ao  

contar   estórias   ficcionais   –   está   intimamente   relacionada   com   (se   não   for   uma   função   de)   o  

impulso  para  moralizar  a  realidade,  isto  é,  para  identificá-­‐la  com  o  sistema  social  que  é  a  fonte  de  

qualquer  moralidade  que  possamos  imaginar.    

O   analista   de   Saint   Gall   não   mostra   nenhuma   preocupação   com   qualquer   sistema   de  

moralidade  ou  lei  meramente  humanas.  A  entrada  para  1056,  “O  Imperador  Henrique  morreu;  e  

seu   filho   Henrique   o   sucedeu   no   poder”   contém   embrionariamente   os   elementos   de   uma  

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narrativa.   Na   verdade,   é   uma   narrativa,   e   sua   narratividade,   a   despeito   da   ambiguidade   da  

conexão  entre  o  primeiro  evento   (a  morte  de  Henrique)  e  o   segundo   (a   sucessão  de  Henrique),  

sugerida  pela  partícula  “e”,  atinge  a  conclusão  através  de  sua  invocação  tácita  do  sistema  legal,  do  

poder   da   sucessão   genealógica,   que   o   analista   pressupõe   como   um   princípio   que   governa  

corretamente   a  passagem  da   autoridade  de  uma  geração   a  outra.  Mas   este  pequeno  elemento  

narrativo,   este   “narrema”   flutua   facilmente   no  mar   de   datas   que   configura   a   própria   sucessão  

como   um   principio   de   organização   cósmica.   Aqueles   de   nós   que   conhecem   o   que   estava  

aguardando  por  Henrique  nos  seus  conflitos  com  seus  nobres  e  com  os  papas  durante  o  período  

da  Querela  de  Investidura  –  em  que  a  questão  disputada  foi  sobre  precisamente  onde  se  localizava  

a  autoridade  final  na  Terra  –  podem  ficar  irritados  com  a  economia  com  que  o  analista  registrou  

um  evento  tão  repleto  de  futuras  implicações  morais  e  e  legais.  Os  anos  1058-­‐72,  que  o  analista  

simplesmente   lista   no   fim   de   seu   registro,   proviram   “eventos”   mais   do   que   suficientes   para  

garantir  um  registro  narrativo  pleno  deste  começo.  Mas  o  analista  simplesmente  os   ignorou.  Ele  

aparentemente  sentiu  ter  feito  seu  dever  somente  ao  listar  as  datas  dos  próprios  anos.  Quais  são  

as  implicações,  poderíamos  perguntar  desta  recusa  de  narrar?    

Seguramente,  podemos  concluir  –  corno  Frank  Kermode  sugeriu  –  que  o  analista  de  Saint  

Gall  não  era  um  memorialista  muito  bom;  e   tal   julgamento  do  senso  comum  é  manifestamente  

justificado.  Mas  a  incapacidade  de  manter  um  bom  diário  não  é  teoricamente  diferente  da  falta  de  

vontade  de  fazê-­‐lo.  E  do  ponto  de  vista  de  um  interesse  na  própria  narrativa,  uma  narrativa  “má”  

pode  nos  dizer  mais  sobre  a  narratividade  do  que  uma  boa.  Se  é  verdade  que  o  analista  de  Saint  

Gall  era  um  narrador  desleixado  ou  preguiçoso,  devemos  perguntar  o  que  lhe  faltava  para  fazê-­‐lo  

um  narrador  competente.  O  que  está  ausente  do  seu  registro  que,  se  estivesse  presente,  o  teria  

permitido  transformar  sua  cronologia  uma  narrativa  histórica?    

O   próprio   levantamento   vertical   dos   eventos   sugere   que   nosso   analista   não   carecia   de  

consciência   metafórica   ou   paradigmática.   Ele   não   sofre   do   que   Roman   Jakobson   chama   de  

“distúrbio  de  similaridade”.  Na  verdade,  todos  os  eventos  listados  na  coluna  à  direita  parecem  ser  

considerados  como  o  mesmo  tipo  de  evento;  são  todos  metonímias  da  condição  geral  de  escassez  

ou  abundância  da   “realidade”  que  o  analista  está   registrando.  A  diferença,   variação   significante  

dentro  da   similitude,   é   configurada   somente  na   coluna  à  esquerda   (a   lista  de  datas).   Cada  uma  

destas  funções  como  uma  metáfora  da  plenitude  e  completude  de  tempo  do  Senhor.  A  imagem  da  

sucessão  ordenada  que  esta  coluna  evoca  não  tem  contrapartida  nos  eventos  naturais  e  humanos  

listados  na  coluna  à  direita.  O  que  faltava  ao  analista  para  conduzi-­‐lo  a  produzir  uma  narrativa  a  

partir   do   universo   de   eventos   que   ele   registrou   era   a   capacidade   de   investir   os   eventos   com  o  

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mesmo   tipo   de   “propositura”   que   está   implicitamente   presente   em   sua   representação   da  

sequência   de   datas.   Esta   lacuna   assemelha-­‐se   ao   que   Jakobson   chama   de   “distúrbio   da  

contiguidade”,   um   fenômeno   representado   na   fala   pelo   “agramatismo”   e   no   discurso   por   uma  

dissolução   dos   “vínculos   de   coordenação   e   subordinação   gramaticais”   pelos   quais   “montes   de  

palavras”   podem   ser   agregadas   em   sentenças   significativas.14   Nosso     analista   não   era,   é   claro,  

afásico   –   como   sua   capacidade   de   produzir   frases   significativas  mostra   amplamente   –  mas   lhe  

faltava   a   capacidade   de   substituir   uma   significação   pela   outra   em   cadeias   de   metonímias  

semânticas   que   transformariam   sua   lista   de   eventos   em   um   discurso   sobre   os   eventos  

considerados  como  uma  totalidade  evoluindo  no  tempo.    

Ora,  a  capacidade  de  imaginar  um  universo  de  eventos  como  pertencente  à  mesma  ordem  

de  significado  requer  algum  princípio  metafísico  pelo  qual  se  traduza  a  diferença  em  similaridade.  

Em   outras   palavras,   requer   um   sujeito   comum   a   todos   os   referentes   das   várias   frases   que  

registram   eventos   como   tendo   ocorrido.   Se   tal   sujeito   existe,   é   o   “Senhor”,   cujos   “anos”   são  

tratados  como  manifestações  de  Seu  poder  de  causar  os  eventos  que  ocorrem  neles.  O  sujeito  do  

registro,  então,  não  existe  no  tempo  e  portanto  não  poderia  funcionar  como  sujeito  da  narrativa.  

Isto   implica  que,  para  haver  uma  narrativa,  deve  haver  algum  equivalente  do  Senhor,  algum  ser  

sagrado  investido  da  autoridade  e  poder  do  Senhor,  existindo  no  tempo?  Se  for  assim,  qual  seria  

tal  equivalente?    

A  natureza  de  tal  ser,  capaz  de  servir  como  o  princípio  organizador  central  da  significação  

de   um   discurso   que   é   tanto   realista   quanto   narrativo   na   estrutura,   é   evocada   no   modo   de  

representação   histórica   conhecido   como   crônica.   Por   consenso   comum   entre   historiadores   da  

escrita  histórica,  a  crônica  é  uma  forma  de  conceitualização  histórica  “mais  alta”  e  representa  um  

modo  de   representação  historiográfica   superior   à   forma  dos  anais.15   Sua   superioridade   consiste  

em   sua  maior   abrangência,   sua   organização   de   assuntos   por   “tópicos   e   reinados”,   e   sua  maior  

coerência  narrativa.  A  crônica  também  tem  um  tema  central  –  a  vida  de  um  indivíduo,  cidade  ou  

região;   algum   grande   empreendimento,   como   uma   guerra   ou   cruzada;   ou   alguma     instituição,  

como  urna  monarquia,  episcopado  ou  monastério.  O  vínculo  da  crônica  com  os  anais  é  percebido  

na   perseverança   da   cronologia   como   princípio   organizador   do   discurso,   e   isto   é   o   que   faz   da  

crônica  algo  menos  que  uma  “história”  plenamente  realizada.  Além  disso,  a  crônica,  de  maneira  

semelhante   aos   anais,   mas   diferente   da   história,   não   exatamente   conclui,   mas   termina;  

tipicamente  falta-­‐lhe,  este  sumário  da  “significação”  da  cadeia  de  eventos  com  que  ela   lida,  que  

14  Roman  Jakobson  and  Morris  Halle.  Fundamentals  of  language  (The  Hague,  1971),  85-­‐86.    15  Barnes,  History  of  historical  writing,  65.  ff.

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normalmente   esperamos   de   uma   estória   bem   construída.   A   crônica   tipicamente   promete  

conclusão,  mas  não  a  fornece  –  uma  das  razões  pelas  quais  os  editores  das  crônicas  medievais  no  

século  XIX  negavam  a  elas  o  status  de  “histórias”  genuínas.    

Vamos   supor   que   vejamos   a   questão   de   maneira   diferente.   Vamos   supor   que   nós  

admitamos  não  que  a  Crônica  é  uma  representação  da  realidade  “mais  alta”  ou  mais  sofisticada  do  

que  os  anais,  mas  que  é  meramente  um  tipo  diferente  de  representação,  marcado  por  um  desejo  

de  um   tipo  de  ordem  e   completude  em  um   registro  da   realidade  que  permanece   teoricamente  

injustificado,   um   desejo   que   é,   até   prova   em   contrário,   puramente   gratuito.   O   que   implica   a  

imposição   desta   ordem   e   o   provimento   desta   plenitude   (de   detalhes)   que  marca   as   diferenças  

entre  anais  e  a  crônica?    

Tomo  como  exemplo  do  tipo  de  cônica  de  representação  histórica  a  História  de  França,  de  

um  Richerus  de  Rheims,  escrita  no  limiar  do  ano  1000  A.D.  (circa  998).  16  Não  temos  dificuldades  

em  reconhecer  este  texto  como  narrativa.  Ele  tem  um  tema  central  (“os  conflitos  da  França”);  um  

centro   geográfico   próprio   (a   Gália)   e   um   centro   social   próprio   (o   arcebispado   de   Rheims),  

envolvido  em  uma  disputa  sobre  qual  dos  dois  pretendentes  ao  cargo  de  arcebispo  é  o  ocupante  

legítimo;  e  um  início  adequado  no  tempo  (dado  em  uma  versão  sinótica  da  história  do  mundo,  da  

Encarnação  até  o  tempo  e   lugar  da  própria  escrita  do  registro  de  Richerus).  Mas  a  obra  fracassa  

como  uma  genuína  história,  pelo  menos  de  acordo  com  a  opinião  de  comentaristas  mais  recentes,  

em  virtude  de  duas  considerações.  Primeiro,  a  ordem  do  discurso  segue  a  ordem  da  cronologia;  

ele  apresenta  os  eventos  na  ordem  da   sua  ocorrência  e  não  pode,  portanto,  oferecer  o   tipo  de  

significação   que   se   diz   ser   provida   por   um   registro   narratologicamente   governado.   Segundo,  

provavelmente   devido   à   ordem   “analística”   do   discurso,   o   registro   menos   conclui   do   que  

simplesmente  termina;  ele  meramente  se  interrompe  com  a  partida  de  um  dos  pretendentes  ao  

cargo  de  arcebispo  e  deixa  ao  leitor  o  peso  de  retrospectivamente  refletir  sobre  os  vínculos  entre  

o  começo  do  registro  e  seu  fim.  O  registro  vai  até  o  “ontem”  do  próprio  escritor,  adiciona  um  fato  

mais  à  série  que  iniciou  com  a  Encarnação,  e  então  simplesmente  cessa.  Como  resultado,  todas  as  

expectativas  narratológicas  normais  do  leitor  (este  leitor)  permanecem  insatisfeitas.  A  obra  parece  

estar  desdobrando  um  enredo,  mas  então  desmente  sua  própria  aparência,  meramente  parando  

in  media  res,  com  a  anotação  crítica  “O  Papa  Gregório  autoriza  Arnulfus  a  assumir  provisoriamente  

as   funções  episcopais,   enquanto  espera  a  decisão   legal  que  as   conferira   a  ele  ou   lhe   retiraria  o  

direito  a  elas”  (2:133).    

16  RICHER.  Histoire  de  France,  888-­‐995.    

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No  entanto,  Richerus  é  um  narrador  autoconsciente.  Ele  explicitamente  declara  no   início  

de   seu   registro   que   se   propõe   “especialmente   a   preservar   por   escrito”   (ad  memoriam   recuere  

scripto  specialiter  propositum  est)  as  “guerras”,  “tribulações”  e  “negócios  de  Estado”  dos  franceses  

e,  além  disso,  escrevê-­‐las  de  uma  maneira   superior  a  outros   registros,  especialmente  aquele  de  

um  Flodoard,   um  escriba   anterior   de  Rheims  que   escreveu  os   anais   aos   quais   Richerus   recorria  

para   informação.   Richerus   observa   que   se   baseou   livremente   na   obra   de   Flodoard,   mas   que  

frequentemente  “colocou  outras  palavras”  no   lugar  das  originais  e  “modificou  completamente  o  

estilo   da   apresentação   “pro   aliis   longe   diversissimo   orationis   scernate   disposuisse”   (1:4).   Ele  

também  se   localiza  em  uma  tradição  de  escrita  histórica,  ao  citar  clássicos  como  César,  Orosius,  

Jerônimo  e  Isidoro  como  autoridades  para  a  história  anterior  da  Gália,  e  sugere  que  suas  próprias  

observações  pessoais  lhe  deram  discernimento  sobre  os  fatos  que  está  recontando  –  que  ninguém  

mais  poderia  reivindicar.  Tudo  isto  sugere  urna  certa  autoconsciência  sobre  seu  próprio  discurso  

que  manifestamente  falta  ao  escritor  dos  Anais  de  Saint  Gall.  O  discurso  de  Richerus  é  um  discurso  

moldado,  cuja  narratividade,  comparada  com  aquela  do  analista,  função  da  autoconsciência  com  

que  se  dá  início  a  esta  atividade  de  moldagem.  

Paradoxalmente,   contudo,   é   esta   atividade   autoconsciente   de  moldagem,   uma   atividade  

que   dá   à   obra   de   Richerus   o   aspecto   de   narrativa   histórica,   que   diminui   sua   “objetividade”  

enquanto  registro  histórico  –  ou  assim  o  considera  o  consenso  dos  modernos  analistas  do  texto.  

Por   exemplo,   um  moderno   editor   do   texto,   Robert   Latouche,   culpa   o   orgulho   de   Richerus   pela  

originalidade  de  seu  estilo  como  a  causa  de  seu  fracasso  em  escrever  uma  genuína  história.  “Em  

última   instância,   observa   Latouche,   “a  História   de   Richerus   não   é,   propriamente   falando,   uma  

história,  mas  uma  obra  de  retórica  composta  por  um  monge  (...)  que  procurava  imitar  as  técnicas  

de  Salústio”.  E  acrescenta:  “o  que  interessava  a  ele  não  era  o  assunto,  que  ele  moldava  a  seu  bel-­‐

prazer,  mas  a  forma”  (1:XI).    

Latouche   está   certamente   correto   em   dizer   que   Richerus   fracassa   como   um   historiador,  

supostamente   interessado   nos   “fatos”   de   um   certo   período   da   história,   mas   está   igualmente  

errado  em  sua  sugestão  de  que  a  obra  fracassa  como  história  por  causa  do  interesse  do  escritor  na  

“forma”   em   vez   de   no   “assunto”.   Por   “assunto”,   é   claro,   Latouche   entende   os   referentes   do  

discurso,  os  eventos  tomados  individualmente  como  objetos  de  representação.  Mas  Richerus  está  

interessado   nos   “conflitos   dos   franceses”   (1:2),   especialmente   o   conflito   em   que   seu   patrono,  

Gerbert,   arcebispo   de   Rheims,   estava   na   época   envolvido   pelo   controle   da   sé.   Longe   de   estar  

primariamente   interessado   mais   na   forma   do   que   no   assunto   ou   conteúdo,   Richerus   estava  

somente   interessado  neste,   porque   seu  próprio   futuro  estava   comprometido   com  este   conflito.  

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Onde   ficaria  a  autoridade  para  a  direção  dos  negócios  de  Estado  –  esta  era  a  questão  na   sé  de  

Rheims  que  Richerus  esperava  ajudar  a  resolver  com  a  composição  de  sua  narrativa.  E  podemos  

legitimamente   supor  que   seu   impulso  para  escrever  uma  narrativa  deste   conflito   foi   de   alguma  

maneira   ligado   a   um   desejo   de   sua   parte   de   representar   (tanto   no   sentido   de   escrever   sobre,  

quanto   no   sentido   de   atuar   como   agente   de)   uma   autoridade   cuja   legitimidade   dependia   do  

estabelecimento  de  “fatos”,  de  uma  ordem  especificamente  histórica.    

De   fato,   uma   vez   que   notemos   a   presença   do   tema  da   autoridade   neste   texto,   também  

percebemos  a  extensão  em  que  as  aspirações  da  narrativa  à  verdade  e,  de  fato,  o  próprio  direito  

de   narrar   dependem   de   uma   certa   relação   com   a   autoridade   per   se.   A   primeira   autoridade  

invocada  pelo  autor  é  a  de  seu  patrono,  Gerbert;  é  por  sua  autoridade  que  o  registro  é  feito  (...).  

Há  então  aquelas   “autoridades”   representadas  pelos   textos  clássicos  aos  quais  ele   recorria  para  

sua  construção  da  história  antiga  dos  franceses  (Cesar,  Orósios,  Jerônimo  e  assim  por  diante).  Há  a  

“autoridade”   de   seu   predecessor   como   historiador   na   sé   de   Rheims,   Flodoard,   uma   autoridade  

com   a   qual   se   confronta   enquanto   narrador   e   cujo   estilo   declara  melhorar.   É   baseado   em   sua  

própria  autoridade  que  Richerus  efetua  esta  melhoria,  colocando  “outras  palavras”  no   lugar  das  

de   Flodoard   e   modificando   “completamente   o   estilo   de   apresentação”.   Há,   finalmente,   não  

somente  a  autoridade  do  Pai  Celeste,  que  é  invocada  como  a  causa  em  última  instância  de  tudo  

que   acontece,   mas   a   autoridade   do   próprio   pai   de   Richerus   (a   que   se   refere   ao   longo   do  

manuscrito  como  “p.m.”  [pater  meus]   (1:XIV),  que  figura  como  assunto  central  de  um  segmento  

da  obra    e  como  a  testemunha  em  cuja    autoridade  o  registro,  neste  segmento,  é  baseado.    

O  problema  da  autoridade  permeia  o  texto  escrito  por  Richerus,  de  uma  maneira  que  não  

pode  ser  atribuída  ao  texto  escrito  pelo  analista  de  Saint  Gall.  Para  o  analista  não  há  necessidade  

de  invocar  autoridade  para  narrar  eventos,  já  que  não  há  nada  problemático  sobre  o  status  deles  

como   manifestações   de   uma   realidade   que   está   sendo   contestada.   Desde   que   não   há  

“contestação”,  não  há  nada  a  narrativizar,  nenhuma  necessidade  de  eles  “falarem  por  si  próprios”  

ou   serem  representados  como  se  pudessem  “contar   sua  própria  estória”.  É  necessário   somente  

registrá-­‐los   na   ordem  em  que   se   dão   a   perceber,   porque,   visto   não   haver   controvérsia,   não   há  

estória  a  contar.  É  porque  havia  controvérsia  que  há  algo  a  narrativizar  para  Richerus.  Mas  não  é  

porque  a  contestação  não  foi  resolvida  que  a  narrativa  produzida  por  Richerus  não  tem  conclusão;  

pois  de  fato  a  contestação  foi  resolvida  –  pela  partida  de  Gerbert  para  a  corte  do  Rei  Otto  e  pela  

instalação  de  Arnulfus  como  arcebispo  de  Rheims  pelo  papa  Gregório.    

O  que  faltava  para  uma  genuína  resolução  discursiva,  uma  resolução  narrativizante,  era  o  

princípio  moral   à   luz   do  qual   Richerus   poderia   ter   julgado   a   resolução   como   justa   ou   injusta.   A  

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própria  realidade  julgou  a  resolução,  resolvendo-­‐a  tal  como  foi  resolvida.  Para  estar  seguro,  há  a  

sugestão   de   que   se   proveu   um   tipo   de   justiça   para   Gerbert,   através   do   rei   Otto   que,   “tendo  

reconhecido  a  cultura  e  o  gênio  de  Gerbert,  instalou-­‐o  como  bispo  de  Ravenna”.  Mas  a  justiça  está  

localizada   em   outro   lugar,   e   outra   autoridade,   outro   rei   dispõe   dela.   O   fim   do   discurso   não  

esclarece  os  eventos  originalmente  registrados,  de  maneira  a  redistribuir  a  força  de  um  significado  

que  era  imanente  a  todos  os  eventos  desde  o  princípio.  Não  há  justiça,  somente  força,  ou  melhor,  

somente  uma  autoridade  que  se  apresenta  como  diferentes  tipos  de  forças.    

Ofereço  estas  reflexões  sobre  a  relação  entre  historiografia  e  narrativa  como  nada  mais  do  

que  uma  tentativa  de  esclarecer  a  distinção  entre  elementos  da  estória  e  elementos  do  enredo  no  

discurso  histórico.  O  senso  comum  acredita  que  o  enredo  de  uma  narrativa  impõe  um  significado  

aos  eventos  que  constrói  seu  nível  de  estória,  revelando  no  final  uma  estrutura  que  era  imanente  

aos  eventos   todo  o   tempo.  O  que  estou  tentando  estabelecer  é  a  natureza  desta   imanência  em  

qualquer  registro  narrativo  de  eventos  reais,  eventos  que  são  oferecidos  como  o  conteúdo  próprio  

de  discurso  histórico.  Estes  eventos  são  reais  não  porque  ocorreram,  mas  porque:  primeiro,  eles  

são   lembrados  e,  segundo,  eles  são  capazes  de  encontrar  um   lugar  numa  sequência  cronológica  

ordenada.  Contudo,  não  é  suficiente  que  sejam   lembrados  na  ordem  de  sua  ocorrência  original,  

para   que   um   registro   deles   seja   considerado   um   registro   histórico.   É   o   fato   de   que   podem   ser  

registrados  de  outra  maneira,  em  uma  ordem  de  narrativa,  que  os  faz,  em  certa  época  e  a  mesmo  

tempo,   questionáveis   quanto   a   uma   autenticidade   e   suscetíveis   de   serem   considerados   como  

sinais  da  realidade.  Para  se  qualificar  como  histórico,  um  evento  deve  ser  suscetível  a  pelo  menos  

duas   narrações   de   sua   ocorrência.   Não   há   razão   para   o   historiador   arrogar-­‐se   a   autoridade   de  

prover  o  registro  verdadeiro  do  que  realmente  aconteceu,  a  não  ser  que  pelo  menos  duas  versões  

do  mesmo  universo  de   eventos  possam   ser   imaginadas.  A   autoridade  da  narrativa  histórica   é   a  

autoridade  da  própria  realidade;  o  registro  histórico  confere  forma  a  esta  realidade  e  portanto  a  

faz  desejável  pela  imposição  a  seus  processos  da  coerência  formal  que  somente  estórias  possuem.    

A  história,  então,  pertence  à  categoria  do  que  poderia  ser  chamado  de  “discurso  do  real”,  

contrastando   com   o   “discurso   do   imaginário”   ou   com   o   “discurso   do   desejo”.   A   formulação   é  

Lacaniana,  obviamente,  mas  não  quero  enfatizar  muito  seus  aspectos  lacanianos.  Só  quero  sugerir  

que  podemos  compreender  o  apelo  do  discurso  histórico,  ao  reconhecermos  a  extensão  em  que  

ele  faz  o  real  desejável,  transforme  o  real  em  objeto  de  desejo,  o  faz  através  de  sua  imposição  da  

coerência  formal  que  as  estórias  possuem.  Diferentemente  da  dos  anais,  a  realidade  representada  

na  narrativa  histórica,   ao   “falar  por   si   própria”,   fala  a  nós,  nos   faz  um  apelo  de   longe   (este   “de  

longe”  é  a  terra  das  formas),  e  apresenta  uma  coerência  formal  à  qual  nós  próprios  aspiramos.  A  

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narrativa   histórica,   contrastando   com   a   crônica,   revela-­‐nos   um  mundo   que   está   supostamente  

“acabado”,   terminado,   findo   e   ainda   assim   não   dissolvido,   não   desintegrado.   Neste   mundo,   a  

realidade  veste  a  máscara  de  uma  acão.  cuja  completude  e  plenitude  podemos  somente  imaginar,  

nunca   experimentar.   Na   medida   em   que   se   podem   completar   estórias   históricas,   se   pode   dar  

conclusão  narrativa  a  elas,  se  pode  mostrar  que  elas  possuíram  todo  o  tempo  um  enredo,  elas  dão  

à   realidade  o  aroma  do   ideal.   É  por   isto  que  o  enredo  de  uma  narrativa  histórica  é   sempre  um  

embaraço   e   tem   que   ser   aprescntado   como   “encontrado”   nos   eventos,   em   vez   de   colocado   lá  

pelas  técnicas  narrativas.    

O  embaraço  do  enredo  para  a  narrativa  histórica  reflete-­‐se  no  desdém  quase  universal  com  

que   os   historiadores   modernos   veem   a   “filosofia   da   história”,   da   qual   Hegel   é   o   exemplo  

paradigmático   moderno.   Esta   (quarta)   forma   de   representação   histórica   é   condenada   porque  

consiste   em   nada   além   do   enredo;   seus   elementos   estóricos   existem   só   como   manifestações,  

epifenômenos   da   estrutura   do   enredo,   a   serviço   do   qual   seu   discurso   se   apresenta.   Aqui   a  

realidade  usa  uma  máscara  de  tal  regularidade,  ordem  e  coerência  que  não  deixa  espaço  para  a  

mediação  humana,  apresentando  um  aspecto  de  tal  totalidade  e  completude  que  antes   intimida  

do   que   convida   à   identificação   imaginativa.   Mas   no   enredo   da   filosofia   da   história,   os   vários  

enredos   das   várias   histórias   que   nos   contam   apenas   acontecimentos   regionais   no   passado   são  

revelados  pelo  que  realmente  são:  imagens  daquela  autoridade  que  nos  conclama  à  participação  

em  um  universo  moral  que,  a  não  ser  por  sua  forma  de  estória,  não  teria  nenhum  apelo.    

Isto   nos   coloca   próximos   a   uma   possível   caracterização   da   demanda   por   conclusão   na  

história,  por  cuja  ausência  se  julga  ser  a  forma  de  crônica  deficiente  como  narrativa.  A  demanda  

por   conclusão   na   estória   histórica   é   uma   demanda   –   eu   sugiro   –   por   significação   moral,   uma  

demanda  no  sentido  de  que  as  sequências  de  eventos  reais  sejam  avaliadas  por  sua  significância  

como  elementos  de  um  drama  moral.   Será  que  alguma  narrativa  histórica   já   foi  escrita   sem  ser  

informada   não   apenas   pela   percepção   moral,   mas   também   especificamente,   pela   autoridade  

moral  do  narrador?  E  difícil  pensar  em  qualquer  obra  histórica  produzida  durante  o  século  XIX,  a  

era  clássica  da  narrativa  histórica,  a  que  não  se  tenha  dado  a  força  de  um  julgamento  moral  sobre  

os  eventos  que  registrou.    

Mas   não   temos   de   prejulgar   a   matéria,   observando   textos   compostos   no   século   XIX.  

Podemos  perceber  as  operações  da  consciência  moral,  na  consecução  da  plenitude  narrativa,  em  

um  exemplo  da  historiografia  medieval  mais  próxima,  a  Cronica  de  Diria  Compagni,  escrita  entre  

1310  e  1312  e  geralmente  reconhecida  corno  uma  narrativa  histórica  genuína.  A  obra  de  Dino  não  

somente  “preenche  35   lacunas”  que  poderiam  ter   sido  deixadas  no  manuseio  deste  assunto   (as  

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lutas  entre  as   facções  Brancas  e  Negras  do  Partido  Guelfo  dominante  em  Florença  entre  1280  e  

1312)  por  um  analista,  organizando  sua  estória  de  acordo  com  uma  estrutura  ternária  de  enredo  

bem  marcada,  mas  também  alcança  a  plenitude  narrativa  através  da  evocação  explícita  da  ideia  de  

sistema  social  para   servir   como  ponto  de   referência   fixo  pelo  qual  o   fluxo  de  eventos  efêmeros  

pode  ser   investido  de   significado  especificamente  moral.  Em  relação  a   isto,  a  Cronica   apresenta  

claramente   a   extensão   em   que   a   crônica   deve   se   aproximar   da   alegoria   –  moral   ou   anagógica,  

conforme  for  o  caso  –  para  realizar  tanto  a  narratividade  quanto  a  historicidade.  

É   interessante   observar   que,   quando   a   forma   de   crônica   é   desbancada   pela   história  

genuína,  alguns  dos  traços  daquela  desaparecem.  Primeiro  de  tudo,  nenhum  patrono  explícito  é  

invocado.  A  narrativa  de  Dino  não  se  desdobra  sob  a  autoridade  de  um  patrono  específico,  como  a  

de  Richerus.   Ele,   simplesmente,   assevera   seu  direito  a   recontar  eventos  notáveis  que  ele   “viu  e  

ouviu”,   baseado   em   uma   capacidade   superior   de   previsão.   “Ninguém   viu   estes   eventos   no   seu  

princípio  mais  certamente  do  que  eu”,  ele  diz.  

Sua  audiência  prospectiva  não  é,  então,  um  leitor  ideal  específico,  como  Gerbert  era  para  

Richerus,   mas,   em   vez   disso,   um   grupo   que   se   imaginava   que   compartilhasse   sua   perspectiva  

sobre  a  verdadeira  natureza  de  todos  os  eventos:  aqueles  cidadãos  de  Florença  capazes,  como  ele  

diz,  de  reconhecer  “os  benefícios  de  Deus,  que  manda  e  governa  por  todo  o  tempo”.  Ao  mesmo  

tempo,   fala   a   um   outro   grupo,   os   cidadãos   depravados   de   Florença,   os   responsáveis   pelos  

“conflitos”  que  tinham  arruinado  a  cidade  por  cerca  de  três  décadas.  Para  aqueles,  sua  narrativa  

pretende  oferecer  a  esperança  de  se   livraren  daqueles  conflitos;  para  estes  pretende-­‐se  que  ela  

seja  uma  advertência  a  uma  ameaça  de  punição.  O  caos  dos  últimos  dez  anos  é  contrastado  com  

anos  vindos  os  mais  “prósperos”,  depois  que  o   Imperador  Henrique  VII  veio  a  Florença  a   fim  de  

punir   um   povo   cujos   “maus   costumes   e   falsos   proveitos”   tinham   “corrompido   e   estragado   o  

mundo-­‐todo”.   O   que   Kermode   chama   de   “o   peso   da   significação“   dos   eventos   recontados   é  

“atirado  adiante”  para  um  futuro  imediatamente  além  do  presente  imediato,  um  futuro  repleto  de  

julgamento  moral  e  punição  para  os  maus.    

A   lamúria   com  que   a   obra   de  Dino   se   encerra  marca-­‐a   como  pertencente   a   um  período  

antes  de  qual  uma  genuína   “objetividade”  histórica,  quer  dizer,  uma   ideologia   secularista,   tinha  

sido  estabelecida  –  assim  nos  contam  os  comentadores.  Mas  é  difícil  ver  como  o  tipo  de  plenitude  

narrativa  pelo  qual  Dino  Compagni  é  louvado  poderia  ter  sido  obtido  sem  a  invocação  implícita  do  

padrão  moral  que  ele  emprega  para  distinguir  entre  os  eventos  reais  que  merecern  ser  registrados  

e  os  que  não.  Os  eventos  que  são  de  fato  registrados  na  narrativa  parecem  ser  reais,  precisamente  

na  medida  em  que  pertencem  a  uma  ordem  de  existência  moral,  da  mesma  maneira  que  derivam  

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sua   significação   de   sua   inserção   nesta   ordem.   É   porque   os   eventos   descritos   conduzem,   ou  

fracassam  em   conduzir,   ao   sistema  de  ordem   social   que   eles   encontram  um   lugar   na  narrativa,  

atestando  sua  realidade.  Somente  o  contraste  entre  o  governo  e  a  norma  divina,  de  um  lado,  e  a  

anarquia   da   situação   social   corrente   em   Florenca,   de   outro   lado,   poderia   justificar   o   tom  

apocalíptico  e  função  narrativa  do  último  parágrafo,  com  sua  imagem  do  imperador  que  virá  para  

punir  aqueles  “que   troxeram  o  mal  ao  mundo  através   (de  seus)  maus  hábitos”.  E   somente  uma  

autoridade  moral  poderia  justificar  a  transformação  na  narrativa  que  a  permite  chegar  a  um  final.  

Dino  explicitamente  identifica  o  fim  de  sua  narrativa  com  uma  “transformação”  na  ordem  moral  

do  mundo:  “O  mundo  está  começando  agora  a  se  revolver  uma  vez  mais:  o  imperador  está  vindo  

para  conquistar-­‐vos,  por  terra  e  mar”.  

É   este   final   moralista   que   evita   que   a   Cronica   de   Dino   tenha   o   padrão   de   um   registro  

histórico   moderno,   “objetivo”.   Ainda   assim   é   apenas   este   moralismo   que   permite   que   a   obra  

termine,  ou  melhor,  que  conclua,  de  urna  maneira  diferente  das   formas  dos  anais  e  da  crônica.  

Mas  baseado  em  mais  o  que,  poderia  uma  narrativa  de  eventos  reais  possivelmente  checar  a  uma  

conclusão?   Quando   é   o   caso   de   recontar   a   concorrência   de   eventos   reais,   que   outro   “final”  

poderia  urna  dada  sequência  de  tais  eventos   ter  que  não   fosse  um  final  “moralizante”?  Em  que  

mais  poderia  consistir  a  conclusão  narrativa  do  que  na  passagem  de  uma  ordem  moral  a  outra?  

Confesso  que  não  posso  pensar  em  qualquer  outra  maneira  de  “concluir”  um  registro  de  eventos  

reais,   porque   não   podemos   dizer,   seguramente,   que   qualquer   sequência   de   eventos   reais  

realmente   chega   a   um   fim,   que   a   própria   realidade  desaparece,   que   eventos   da   ordem  do   real  

cessaram   de   acontecer.   Tais   eventos   somente   poderiam   parecer   terem   cessado   de   acontecer  

quando  a  significação  é  deslocada  por  meios  narrativos,  de  um  espaço  físico  ou  social  para  outro.  

Onde   falta   sensibilidade  moral,   como   parece   ser   o   caso   do   registro   da   realidade   feito   por   um  

analista,   ou   onde   ela   está   apenas   potencialmente   presente,   como   parece   ser   o   caso   de   uma  

crônica,   não   somente   a   significação,   mas   também   os  meios   de   rastrear   tais   deslocamentos   de  

significação,  isto  é,  a  narratividade,  parecem  estar  faltando  também.  Onde,  em  qualquer  registro  

da   realidade,   a  narratividade  está  presente,   podemos  estar   certos  de  que  a  moralidade,   ou  um  

impulso  moralizador,  está  presente  também.  Não  há  outra  maneira  pela  qual  a  realidade  possa  ser  

investida  do  tipo  de  significação  que  tanto  se  mostra  em  sua  consumação  quanto  se  nega,  através  

de   seu   deslocamento   para   outra   estória   “esperando   para   ser   contada”   justamente   além   dos  

confins  do  “fim”.    

O   que   tenho   tentado   abordar   é   a   questão   do   valor   atribuído   à   própria   narratividade,  

especialmente  em  representações  da  realidade  do  tipo  corporificado  no  discurso  histórico.  Pode-­‐

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se  pensar  que  preparei  as  cartas  em  favor  de  minha  tese  –  de  que  o  discurso  narrativizador  serve  

ao  propósito  de  julgamentos  moralizadores  –  por  causa  do  meu  uso  de  materiais  esclusivamente  

medievais.  E  talvez  tenha  preparado,  mas  é  a  moderna  comunidade  historiográfica  que  distinguiu  

entre   as   formas   de   discurso   dos   anais,   da   crônica   histórica   e   da   história,   com   base   em   sua  

consecução   da   plenitude   narrativa   ou   fracasso   em   consegui-­‐la.   E   esta   mesma   comunidade  

acadêmica  tem  ainda  de  prestar  contas  do  fato  de  que  justamente  quando,  segundo  seu  próprio  

relato,  a  historiografia   se   transformou  em  uma  disciplina  “objetiva”,  a  narratividade  do  discurso  

histórico   foi   celebrada   como   um   dos   signos   de   sua  maturação   corno   disciplina   completamente  

“objetiva”  –  uma  ciência  de  tipo  especial,  contudo,  uma  ciência.  Os  próprios  historiadores  é  que  

transformam  a   narratividade,   de   uma  maneira   de   falar   em  um  paradigma  da   forma   com  que   a  

própria   realidade   se   apresenta   a   uma   consciência   “realista”.   Eles   é   que   transformaram   a  

narratividade  em  um  valor,  cuja  presença  em  um  discurso  que  lida  com  eventos  “reais”  assinala,  

imediatamente  sua  objetividade,  sua  seriedade  e  seu  realismo.  

O   que   procurei   sugerir   é   que   este   valor   atribuído   à   narratividade   na   representação   de  

eventos  reais  nasce  de  um  desejo  de  que  os  eventos  reais  apresentem  a  coerência,   integridade,  

plenitude  e  conclusão  de  uma   imagem  da  vida  que  é  e   só  pode  ser   imaginária.  A  noção  de  que  

sequências   de   eventos   reais   possuem   os   atributos   formais   das   estórias   que   contamos   sobre  

eventos   imaginários   só   poderia   ter   sua   origem   em   desejos,   fantasias,   devaneios.   Será   que   o  

mundo  realmente  se  mostra  à  percepção  na  forma  de  estórias  bem  feitas,  com  assuntos  centrais,  

inícios,  meios  e  fins  genuínos,  e  uma  coerência  que  nos  permite  ver  “o  fim”  em  cada  começo?  Ou  

será   que   ele   apresenta   mais   nas   formas   que   os   anais   e   a   crônica   sugerem,   quer   como   mera  

sequência  sem  começo  ou  fim,  quer  como  sequência  de  começos  que  apenas  terminam  e  nunca  

concluem?  E  será  que  o  mundo,  mesmo  o  mundo  social,  alguma  vez  chega  realmente  a  nos  como  

já  narrativizado,   já  se  expondo  desde  além  do  horizonte  de  nossa  capacidade  de  compreendê-­‐lo  

cientificamente?  Ou  será  a  ficção  da  existência  de  tal  mundo,  capaz  de  se  expor  e  de  se  mostrar  

como  uma  forma  de  estória,  necessária  paro  o  estabelecimento  daquela  autoridade  moral,  sem  a  

qual  a  noção  de  uma   realidade  especificamente   social   seria   impensável?  Se   fosse   somente  uma  

questão  de  realismo  na  representação,  poder-­‐se-­‐ia   justificar  as  formas  tanto  de  anais  quanto  de  

crônica  como  paradigmas  das  maneiras  pelas  quais  a  realidade  se  oferece  à  percepção.  É  possível  

que  sua  suposta  carência  de  objetividade,  manifestada  em  seu  fracasso  em  narrativizar  a  realidade  

adequadamente,  não   tenha  nada  a  ver   com  os  modos  de  percepção  que  elas  pressupõem,  mas  

com   seu   fracasso   em   representar   a  moral   sob   o   aspecto   do   estético?   E   poderíamos   responder  

aquela   pergunta   sem   fornecer   um   registro   narrativo   da   própria   história   de   objetividade,   um  

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registro  que  já  iria  predispor  o  desfecho  da  estória,  que  contaríamos,  em  favor  da  moralidade  em  

geral?  Será  que  poderíamos  narrativizar  sem  moralizar?