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Tipos de demanda, perfil das partes e formas de administração dos conflitos pelos Juizados Especiais Criminais Marcelo Baumann Burgos 1 [p.159] A explosão dos conflitos no seio das relações sociais primárias, em particular no ambiente doméstico e nas relações de vizinhança, talvez seja a manifestação mais sensível da crise de confiança e de solidariedade que caracterizam a sociabilidade das sociedades democráticas. Os índices alarmantes desse tipo de violência já são bastante conhecidos, vitimando sobretudo as mulheres. Relatório recente da Organização Mundial de Saúde calcula que no mínimo uma em cada cinco mulheres em todo o mundo já foi vítima de alguma forma de violência. Diferentes respostas institucionais têm sido oferecidas ao problema, entre elas a criação de tribunais vicinais de mediação, mencionados por Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 114) em trabalho realizado em fins dos anos 70, que teriam como tônica "facilitar acordos sobre querelas locais e [...] restaurar relacionamentos permanentes e a harmonia na comunidade". No Brasil, os juizados especiais criminais estão vocacionados para a administração desse tipo de conflito; esta a principal indicação extraída da pesquisa que realizamos em juizados criminais. Neste trabalho, apresentamos os dados obtidos por uma pesquisa realizada em dois juizados especiais criminais, localizados em municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro. Os dados da pesquisa foram colhidos entre abril e junho de 2000, com base em uma amostra aleatória, correspondente a 1/3 do total de audiências realizadas em ambos os juizados. A coleta dos dados foi feita por conciliadores, durante as audiências de conciliação, através da aplicação de um questionário. Essa base de dados não inclui, portanto, os feitos que foram arquivados antes de chegarem à fase de [p.160] audiências. Esta última observação é importante, pois é sabido ser muito alto o índice de desistência e arquivamento de feitos, ainda na delegacia, em alguns juizados chegando a representar cerca de 30% do total de processos. 1 Uma primeira versão deste trabalho foi publicada na Revista Cidadania e Justiça, da Associação dos Magistrados Brasileiros, ano 5, n. 10, 1. sem. 2001.

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  • Tipos de demanda, perfil das partes e formas de administrao dos conflitos

    pelos Juizados Especiais Criminais

    Marcelo Baumann Burgos1

    [p.159] A exploso dos conflitos no seio das relaes sociais primrias, em

    particular no ambiente domstico e nas relaes de vizinhana, talvez seja a

    manifestao mais sensvel da crise de confiana e de solidariedade que caracterizam a

    sociabilidade das sociedades democrticas. Os ndices alarmantes desse tipo de

    violncia j so bastante conhecidos, vitimando sobretudo as mulheres. Relatrio

    recente da Organizao Mundial de Sade calcula que no mnimo uma em cada cinco

    mulheres em todo o mundo j foi vtima de alguma forma de violncia.

    Diferentes respostas institucionais tm sido oferecidas ao problema, entre elas a

    criao de tribunais vicinais de mediao, mencionados por Mauro Cappelletti e Bryant

    Garth (1988, p. 114) em trabalho realizado em fins dos anos 70, que teriam como tnica

    "facilitar acordos sobre querelas locais e [...] restaurar relacionamentos permanentes e a

    harmonia na comunidade".

    No Brasil, os juizados especiais criminais esto vocacionados para a

    administrao desse tipo de conflito; esta a principal indicao extrada da pesquisa que

    realizamos em juizados criminais.

    Neste trabalho, apresentamos os dados obtidos por uma pesquisa realizada em

    dois juizados especiais criminais, localizados em municpios da regio metropolitana do

    Rio de Janeiro. Os dados da pesquisa foram colhidos entre abril e junho de 2000, com

    base em uma amostra aleatria, correspondente a 1/3 do total de audincias realizadas

    em ambos os juizados. A coleta dos dados foi feita por conciliadores, durante as

    audincias de conciliao, atravs da aplicao de um questionrio. Essa base de dados

    no inclui, portanto, os feitos que foram arquivados antes de chegarem fase de [p.160]

    audincias. Esta ltima observao importante, pois sabido ser muito alto o ndice de

    desistncia e arquivamento de feitos, ainda na delegacia, em alguns juizados chegando a

    representar cerca de 30% do total de processos.

    1 Uma primeira verso deste trabalho foi publicada na Revista Cidadania e Justia, da Associao dos Magistrados Brasileiros, ano 5, n. 10, 1. sem. 2001.

  • Os dados ora apresentados resultam de um primeiro esforo de sistematizao do

    funcionamento dos juizados. importante registrar, tambm, que este trabalho somente

    foi possvel graas ao entusiasmo da equipe de profissionais que atuam nos JECrim de

    So Gonalo e de Nova Iguau; agradecimento especial ao Juiz Marcelo Antocles,

    titular de So Gonalo, a quem devo o incentivo para realizar este trabalho2.

    1 As partes e os conflitos3

    Os Juizados Especiais Criminais estudados cuidam, basicamente, dos conflitos

    produzidos na sociabilidade primria, que envolve o ambiente familiar - marido e

    mulher, amantes, pai e filho, sogra e genro, av e neto, etc - e os conflitos de

    vizinhana. Neste ltimo caso, importa notar que, muito freqentemente, trata-se de

    uma vizinhana de porta, que se caracteriza por uma relao de proximidade

    psicolgica, em muitos casos, de vizinhos que compartilham o cotidiano.

    As mulheres aparecem como vtimas privilegiadas nesses conflitos, que tm nos

    homens os principais autores do fato, como se pode verificar nos grficos. [p. 161]

    2 Gostaria de agradecer, tambm, a Marcos Andr de Carvalho e Endrich Luiz de Souza Bertholini, que atuam nos cartrios do I e 11Juizado Especial Criminal de Nova Iguau, no apenas pelo apoio logstico realizao do trabalho, mas, sobretudo, pela generosidade com que compartilharam o conhecimento acumulado ao longo de sua intensa experincia de juizado criminal. 3 Flavio Marcelo Neubauer, aluno de Sociologia da PUC-Rio, realizou com extrema competncia a tabulao dos dados e a arte-finalizao dos grficos e tabelas apresentados neste trabalho, cabendo a Paula Rodrigues Baqueiro, aluna de Direito da UNIG, e bolsista da Faperj, o trabalho de digitao de dados.

  • No que se refere ao tipo de relao entre as partes, h uma ligeira variao entre

    os juizados, como se pode constatar nos grficos 3 e 4. Em ambos, contudo, prevalecem

    os conflitos domsticos, envolvendo cnjuges e afins, e parentes. A diferena maior

    entre os juizados refere-se presena dos conflitos de vizinhana, que no juizado Y

    chega a 22,2%, contra 15,8% do juizado X.

    Para alm dessas pequenas diferenas, os dados indicam com muita nfase que

    os juizados esto basicamente colonizados por conflitos originados nas relaes sociais

    primrias, sintoma da crise das instituies bsicas de socializao e de reproduo

    cultural, a comear pela famlia. [p. 162]

  • Quando se cruza o sexo das partes pelo tipo de relao, observa-se que entre os

    autores do fato do sexo masculino 61,4% esto envolvidos em conflitos conjugais e

    afins, ndice correspondente encontrado para as vtimas de sexo feminino. O pequeno

    contingente de vtimas de sexo masculino est mais envolvido em conflitos com

    estranhos, j entre as autoras do fato do sexo feminino predominam os conflitos de

    vizinhana. Assim que, embora a mulher seja a vtima privilegiada em todos os

    conflitos oriundos de relaes primrias [p. 163] (sua presena como vtima s no

    majoritria no conflito entre estranhos), so sobretudo os conflitos desenvolvidos no

    ambiente domstico que as tm feito procurar o Socorro da delegacia e dali a tutela

    judicial.

  • Ainda sobre a natureza dos conflitos que esto chegando aos juizados estudados,

    nossos dados indicam que eles ocorrem em ambientes [p. 164] marcadamente

    populares. Os juizados estudados esto lidando, basicamente, com problemas de

    relacionamento no interior de famlias pobres, o que torna ainda mais evidente o lugar

    estratgico que os juizados podem ocupar no contexto das polticas pblicas para a

    pacificao social.

    Os grficos 7 e 8 informam que autores do fato e vtimas esto majoritariamente

    concentrados nas faixas de renda inferiores: cerca de 80% de ambas as partes tm renda

    individual de at 3 salrios mnimos, sendo que 31 ,8% das vtimas e 19% dos autores

    do fato tm renda de at 1 salrio mnimo.

  • [p. 165] Quanto ao nvel de instruo, os grficos 9 e 10 demonstram que cerca

    de um tero de autores do fato e de vtimas tm at quatro anos de estudo, e outro tero

    tem no mximo oito anos de estudo.

    O baixo nvel de educao formal das partes que esto chegando aos juizados

    estudados deve ser objeto de ateno particular dos juzes, pois impem dificuldades de

    comunicao e de entendimento entre o rnicrossistema e as partes, dificuldades essas

    que podem ser ainda mais importantes exatamente porque a nfase na busca de solues

    informais para os conflitos supe indivduos melhor equipados do que os que ali tm

    chegado.

  • [p.166] Os grficos 11 e 12 trazem algumas informaes importantes sobre o

    universo das ocupaes das partes. Considerando a escala de prestgio social das

    ocupaes no Brasil, construmos uma faixa superior, composta de profissionais de

    nvel superior e de micros e pequenos empresrios. Entre os autores do fato essa faixa

    no chega a representar 8% do total, e entre as vtimas no chega a 9%. Abaixo dela, as

    demais faixas trazem o elenco j conhecido de ocupaes populares. Entre as vtimas,

    que como vimos corresponde a um universo basicamente feminino, alm da categoria

    servios em geral, que agrega diferentes atividades como a de comerciria, caixa de

    supermercado, empacotadora, entre outras, tambm se destacam as mulheres do lar

    (25,5%) e as empregadas domsticas (23,6%). Entre os autores do fato, um universo

    predominantemente masculino, alm da faixa "servios em geral", destacam-se os

    trabalhadores da construo civil e os envolvidos em atividades de segurana. Esta

    ltima, chama particular ateno por apresentar um ndice muito superior ao encontrado

    na populao ocupada do Estado do Rio de Janeiro que, em 1999, era de 3,3%. Em um

    dos juizados estudados, inclusive, o ndice de autores do fato ocupados em atividades

    relacionadas segurana chega a alcanar cerca de 12% do total dos autores do fato.

  • [p. 167]

    Na tabela 1, cruzamos a ocupao do autor pelo tipo de relao entre as partes, e

    algumas correlaes so significativas. Como se pode notar, os conflitos domsticos

    (conjugal e parentesco) aparecem como mais importantes para quase todas as faixas de

    ocupao, exceo dos autores do fato "do lar", composto basicamente de mulheres, e

    daqueles que atuam na rea de segurana, que para 28,6% dos casos esto envolvidos

    em conflitos de vizinhana, e para outros 25% em conflito com estranhos. A propsito,

    esse dado aponta para a necessidade de se estudar melhor o papel que os indivduos que

    exercem atividades de segurana tm desempenhado no seio de suas comunidades, at

    porque, como atesta a sua alta representao no universo estudado, eles demonstram

    particular propenso a protagonizar conflitos.

    Um outro aspecto importante revelado pela tabela 1 relaciona-se aos

    "desempregados", para os quais 71,4% dos conflitos so de tipo conjugal e outros 9,5%

    envolvem relaes de parentesco. Portanto, apesar da presena dos que se declararam

    desempregados ser relativamente pequena (apenas 8%) nos juizados estudados, os

  • dados confirmam a impresso que seus profissionais tm quanto ao efeito

    potencializador do desemprego na produo da violncia domstica. [p.168]

    O perfil socioeconrnico e o tipo de relao entre as partes que esto chegando

    aos juizados estudados autorizam afirmar que os juizados crirninais esto lidando com

    os dramas pessoais das famlias pobres da regio metropolitana do Rio de Janeiro. E se

    essa constatao local puder ser generalizada, confirma-se a hiptese, formulada em "A

    Judicializao da Poltica e das Relaes Sociais no Brasil", de que os juizados

    criminais estariam vocacionados para atuarem como "pronto-socorro", tratando no

    tanto das [p.169] causas da anomia, mas de seus sintomas mais perversos (VIANNA;

    CARVALHO; CUNHA; BURGOS, 1999, pt. 2).

    Ainda sobre a natureza dos conflitos que tm chegado aos juizados estudados,

    nossa pesquisa identificou uma clara predominncia dos artigos 147 e do caput do 129

    do Cdigo Penal, respectivamente, ameaa e leso corporal leve; como se verifica no

    grfico 13, nada menos que 85% dos conflitos foram tipificados em um desses dois

    artigos.

  • [p.170] O grande nmero de conflitos juridicamente tipificados como "ameaa"

    talvez seja o melhor sintoma da crise da sociabilidade primria. Afinal, o que define

    uma situao de ameaa, seno a falta de confiana nos limites do outro? Quando as

    expectativas no so recprocas prevalece um ambiente de incerteza, risco e medo4.

    O levantamento de dados globais realizado em "Judicializao da Poltica e das

    Relaes Sociais no Brasil" identificou que para a totalidade dos juizados do Rio de

    Janeiro, ameaa e leso corporal leve totalizavam cerca de 40%, ndice bem menos

    expressivo, portanto, do que o encontrado nos juizados da regio metropolitana ora

    analisados. O restante dos fatos encontrados pela pesquisa com dados globais distribui-

    se em um amplo leque de tipos de delitos, entre os quais a contraveno penal, que

    responde por 24,4% (VIANNA; CARVALHO; CUNHA; BURGOS, 1999, p. 212).

    Essa diferena na natureza dos conflitos sugere, mais uma vez, que existem

    variaes importantes entre os juizados, relacionadas s caractersticas da sua rea de

    atuao, sugerindo sua vocao para atuar como "justia de bairro". por isso que saber

    qual a natureza local dos conflitos que chegam aos juizados, assume extrema

    importncia para o aperfeioamento da organizao e da capacidade de atuao do

    juizado.

    4 Caracterizando a manifestao desse fenmeno na realidade francesa, Antoine Garapon (1996, p. 109) observa que na sua base estaria presente um individualismo defensivo, mais preocupado com a proteo do que com a privacidade. A ruptura dos laos primrios de solidariedade fazendo com que "a figura ameaadora do outro se aloje de maneira indita num rosto familiar".

  • 2 A forma de administrao dos conflitos

    Nossos dados indicam que o conciliador tem sido o principal personagem da

    administrao do conflito realizada pelo juizado, seja promovendo a desistncia, seja

    realizando a composio cvel. Neste caso, contudo, a varivel juizado importa,

    demarcando diferenas notveis na forma de desfecho.

    Conforme se observa nos grficos 14 e 15, cerca de 81,8% dos conflitos

    estudados no juizado Y, e 61,3% no juizado X foram resolvidos atravs de uma das

    duas formas. No juizado X, 56,5% dos conflitos tiveram como [p.171] desfecho a

    desistncia, e apenas 4,8% a composio civil, perfil quase inverso foi observado no

    juizado Y, onde a composio civil representa 56% do total, ficando a desistncia com

    apenas 25,8%. Considerando que estamos diante, em ambos os juizados, de uma

    populao com perfil homogno, que experimenta conflitos de natureza semelhante, as

    diferenas encontradas no desfecho levam a crer que derivam da orientao que se d

    aos conciliadores, a qual, em ltima instncia, depende do entendimento que o juiz tem

    do rito da Lei n 9.099. As pesquisas qualitativas que temos realizado indicam que a

    desistncia em alguns casos esconde acordos cveis que "no podem ser reduzidos a

    termo"; o que no deixa de ser uma forma de composio civil. Na maior parte dos

    casos, no entanto, o que tem ocorrido a desistncia pura e simples, mediada por um

    conciliador que se percebe como um conselheiro, capaz de reconciliar as partes, pondo

    fim ao conflito. O ndice de transao penal tambm varia em cada juizado, sendo bem

    mais importante no juizado X. Finalmente, o desfecho atravs da Audincia de

    Instruo e Julgamento - AIJ, no passa de 5% em ambos os juizados. Esse dado indica

    que, nos juizados criminais, o papel do juiz bastante diverso daquele desempenhado

    nas varas.

    [p. 172]

  • 3 Concluses

    O retrato extrado dos dois juizados analisados neste trabalho no deixam

    dvidas de que estamos diante de uma instituio estratgica para o tratamento de uma

    patologia que aflige boa parte das sociedades modernas neste incio de sculo, e que se

    exprime sobretudo na violncia cotidiana. Juridicamente, a mulher aparece como vtima

    preferencial desses conflitos, de uma perspectiva sociopsicolgica, entretanto, o homem

    igualmente vtima, uma vez que a forma recorrentemente agressiva com que manifesta

    seu mal-estar atinge fundamentalmente seus laos de sociabilidade primria, destruindo

    seu ltimo dique de proteo em face do isolamento social.

    Diante do exposto, sustentamos que os juizados podem representar uma

    importante porta no quadro institucional brasileiro de acesso a essas vtimas annimas

    de uma sociabilidade esgarada, que expe os indivduos a conflitos com "menor

    potencial ofensivo", mas com repercusses freqentemente dramticas para quem o

    experimenta.

    No bvio, contudo, que os juizados j estejam desempenhando esse papel

    para o qual estariam vocacionados. Nossas pesquisas tm identificado problemas

    importantes em seu funcionamento, que, no limite, cancelam a prpria potencialidade

    do microssistema. Problemas envolvendo as instituies jurdicas, como a promotoria e

    a delegacia so importantes: nem sempre essas instituies tm compreendido o sentido

    da Lei n 9.099, e nossas [p. 173] pesquisas qualitativas tm constatado que esses

    operadores do direito no raramente percebem o juizado como um competidor frente a

    outras formas de resoluo de conflito mais punitivas, que, de algum modo, lhes

    conferiam mais poderes. No caso especfico dos promotores, tambm sabido que no

    existem quadros em nmero suficiente na maior parte dos juizados, obrigando os

  • conciliadores, de modo informal, a conduzirem a transao penal, o que traz uma srie

    de inconvenientes.

    Quanto Defensoria, notrio que a instituio no est aparelhada para atender

    o volume de demanda dos juizados, tanto cveis quanto criminais. Os dados

    apresentados neste trabalho, no entanto, deixam bastante evidente que os juizados

    criminais devem ser vistos como prioridade pela Defensoria Pblica, visto se tratar de

    uma porta de acesso justia para a populao pobre brasileira.

    Os grficos 16 e 17 indicam que as vtimas muitas vezes chegam s audincias

    preliminares sem a assistncia jurdica, o que estabelece relaes de assimetria frente ao

    autor do fato, necessariamente acompanhado de um advogado ou defensor. A falta de

    assistncia jurdica na audincia pode ser particularmente importante quando se

    considera que as vtimas tm baixo nvel de educao formal.

    [p.174]

    Por seu turno, os juzes tampouco tm um entendimento consolidado quanto

    vocao dos juizados criminais. Em estudo anteriormente realizado, identificamos, com

    base em questionrio respondido por 55 juzes de juizados cveis e criminais do Estado

    do Rio de Janeiro, que enquanto os que atuam em juizados cveis tm em geral uma

  • leitura bastante positiva, percebendo os juizados como uma instituio que "simboliza

    um novo tempo na justia do pas", entre os que atuam nos juizados criminais as

    opinies so muito divergentes, e a maior parte traz uma sinalizao negativa, como a

    que entende que os juizados criminais favorecem "a banalizao dos delitos menos

    graves", e que demandam do juiz "um trabalho pouco estimulante intelectualmente".

    Poucos foram os juzes, entre os 18 que atuavam em juizados criminais e que

    responderam pesquisa, que "chamaram a ateno para a importncia do juiz criminal

    em conflitos de vizinhana e familiares, na defesa das mulheres e na realizao de

    campanhas preventivas contra as contravenes penais, o uso de drogas e o porte de

    armas". Nossa concluso, naquele estudo, foi a de que os magistrados que procuram

    desbravar essas novas fronteiras so tambm aqueles que valorizam a positividade dos

    juizados, identificando-se com a imagem de pacificadores da vida social (VIANNA;

    CARVALHO; CUNHA; BURGOS, 1999, p. 252, 253).

    Alm disso, existem problemas operacionais srios que afetam a capacidade do

    microssistema de atuar sobre os conflitos. Conforme se pode verificar no grfico 18, o

    tempo mdio de espera entre a notificao da ocorrncia na delegacia e a sua chegada

    ao juizado varia entre um ms e meio, em um juizado, [p.175] e quase cinco meses no

    outro; para as partes chegarem primeira audincia, no juizado com melhor

    desempenho, so necessrios quase quatro meses. Mesmo no considerando o tempo

    mdio de cerca de onze meses entre o fato e a primeira audincia, verificado no juizado

    Y,podemos indagar se o tempo mdio de 135 dias (4,5 meses) contados no juizado X

    no excessivo, sobretudo se levamos em conta que o tipo de conflito com que o

    juizado lida refere-se s relaes primrias, o que significa que as partes em conflito

    tendem a continuar convivendo, mesmo aps a denncia na delegacia.

  • Um ltimo aspecto diz respeito forma pela qual os juizados vm

    desempenhando sua funo. Em uma leitura estrita do microssistema, o processo se

    encerra com o arquivamento do feito; em uma leitura mais abrangente, contudo, talvez

    ele comece exatamente nesse momento. claro que, a partir de ento, o juiz no pode

    ser o responsvel pela conduo do processo, mas ele tambm no pode ficar fora dele.

    Para isso, contudo, seria necessrio que se construssem redes de proteo social, na

    fronteira entre o sistema judicial e a sociabilidade.

    [p.176]

    Referncias

    CAPPELLETII, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso justia. Porto Alegre: Fabris, 1988.

    GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardio de promessas. Rio de Janeiro:

    Revan, 1996.

    VIANNA. Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; CUNHA, Manuel

    Palcios; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicializao da poltica e das condies

    sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

    Como citar esta obra: BURGOS, Marcelo B. Tipos de demanda, perfil das partes e formas de administrao

    dos conflitos pelos Juizados Especiais Criminais. In: AMORIM, Maria Stella de; KANT

    DE LIMA, Roberto; BURGOS, Marcelo B. (orgs). Juizados Especiais Criminais,

    Sistema Judicial e Sociedade no Brasil: ensaios interdisciplinares. Niteri: Intertexto,

    2003.