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3 Nº 40. Abril, Maio e Junho de 2006 Se algo tem caracterizado a política lin- güística aplicada na Galiza desde 1981, ano em que cristaliza num Estatuto a Espanha das Autonomias prevista pola Constituiçom de 1978, é umha medida intervençom a ca- minho entre o deixar fazer, esse recurso que Carvalho Calero denominou “liberalis- mo lingüístico”, e umha actuaçom aparen- temente desleixada ou fruto da improvisa- çom, o que poderíamos denominar “fazer de conta que se fai”. No entanto, seria este um diagnóstico simplista de mais. A substituiçom da rígida doutrina fran- quista em matéria lingüística, abertamente intervencionista frente à ameaça do que a ditadura sempre considerou e tratou de “línguas separatistas”, deu passagem, é certo, a um liberalismo muito caro ao espí- rito da Transiçom; bem se pode dizer que essa visom liberal assentou como umha luva a esse processo transformista da arquitec- tura institucional espanhola. O tempo véu a demonstrar que, tal e como calculárom os “pais da Constituiçom”, nada custava re- conhecer determinados direitos individuais em relaçom ao uso das “línguas cooficiais”, desde que ficasse garantida a preservaçom do espanhol como único idioma necessário e obrigatório, e assim de facto continua a ser hoje, 25 anos depois da aprovaçom do Es- tatuto de Autonomia. Tal fica demonstrado, em diferente grau e com diversos matizes, nos casos galego, catalám e basco. Foi com essa perspectiva que se arti- culárom e aplicárom, umha por umha, as medidas legislativas e políticas tendentes a configurar umha nova situaçom de apa- rência democrática, em que o galego, na altura língua maioritária mas subordinada, iria ocupar o papel de língua minoritária digna de protecçom e cuidados especiais, sem em nengum caso pôr em causa a he- gemonia da única língua oficial do Estado. Objectivos assimilistas parcialmente conseguidos A própria aprovaçom do Estatuto (1981) e a posta em andamento da Administraçom autonómica galega um ano antes acompa- nhou a progressiva substituiçom da própria sociedade como agente normalizador. De umha parte, a adscriçom da Política Lingüís- tica ao departamento de Educaçom e Cultura da Junta definiu bem o sentido parcial da pla- nificaçom, reduzida a umha área concreta da actuaçom dos sucessivos governos e alheia a umha visom global e abrangente. De outra parte, a assunçom pola Administraçom auto- nómica da actividade dita “normalizadora”, serviu para desactivar progressivamente, se bem nom por completo, o significativo movi- mento social pola normalizaçom da década anterior. Primeiro objectivo parcialmente conseguido. A acomodaçom do idioma ao guiom previsto obrigou a que os primeiros passos dados pola Junta pré-autonómica (1980), no sentido de ser oficialmente reconhecida a unidade lingüística galego-portuguesa, fossem rapidamente emendados. Forçou- se entom, mediante a intervençom directa do poder político-institucional, a ruptura da linha histórica nom apenas do nacionalismo galego desde os seus primórdios, mas tam- bém do próprio mundo científico da roma- nística tradicional, e inclusive da tradiçom documentalmente recolhida nas enciclopé- dias espanholas, já a partir dos anos 20 do século passado, que sempre reconheceu a unidade lingüística enquanto o nosso idio- ma se mantivo afastado de qualquer possi- bilidade de recuperaçom funcional. Porém, na nova situaçom, o galego devia constituir-se em idioma “indepen- dente”, facilitando assim a sua posiçom de fraqueza face ao todo-poderoso e interna- cional espanhol. Daí que o isolacionismo, umha posiçom sem qualquer sustento teórico anterior, passasse a constituir-se em doutrina oficial, a partir da aprova- çom do Decreto Filgueira, em 1982, e até hoje. Se o objectivo do “golpe normativo” tivesse sido a verdadeira recuperaçom e normalizaçom do galego, em que cabeça teria cabido descartar séculos de história e o seu potencial de futuro como língua Autonomia e substituiçom lingüística na Galiza (1981-2006) Maurício Castro estatal e oficial nos principais organismos internacionais? É certo que a dissidência reintegracionista subsiste, e ainda cresce ao mesmo ritmo que a consciência lingüís- tica dos sectores mais dinámicos do nosso povo; mas as quase três décadas perdidas neste terreno nom deixam de constituir um êxito reconhecível na política lingüísti- ca oficial: o seu segundo objectivo parcial- mente conseguido. A sucessiva aprovaçom do Decreto de Bilingüismo (1979), da Lei de Normaliza- çom Lingüística (1983), e dos decretos e ordens posteriores, deu forma à estraté- gia que iria ser seguida nas décadas se- guintes e até a actualidade, estabelecen- do como impossível objectivo, carente de qualquer referente teórico ou precedente prático em qualquer outro contexto de conflito lingüístico, o chamado “bilin- güismo equilibrado”, assim formulado sobretodo para o ámbito do ensino. Com grandes palavras, os mesmos que até essa altura participaram abertamente na censura e marginalizaçom de quaisquer usos do galego para além das lareiras, as leiras e as tabernas, erigiam-se em novos defensores da convivência lingüística e ini- migos do conflito. Umha grande embalagem legislativa e normativa, embrulhada com crescentes somas de dinheiro e projectos tam caros e fastosos como inúteis para o avanço so- cial do galego, tem servido durante todos estes anos para, como dizíamos, “fazer de conta que se fai”. Seria errado, portanto, concluirmos que nom existiu política lingü- ística, ou que a sua caracterizaçom tenha sido o puro desleixo. Houvo objectivos, estratégia e medidas concretas que con- duzírom à situaçom actual. Houvo também desleixo, é verdade, mas um desleixo medido e aplicado como parte de umha política sistemática e de umha efectividade indiscutível. Além do combate surdo contra os sectores fiéis ao idioma, marginalizados na elaboraçom e aplicaçom dos estéreis projectos; oculto no incumprimento de todo o que a legis- laçom pudesse ter de favorável para o galego (o ensino é o caso paradigmático), mantivo-se durante todo este tempo umha evidente renúncia a conhecer a fundo o terreno sobre o qual se agia, incluídos os resultados das medidas aplicadas pola própria administraçom. Vejamos só dous exemplos significati- vos. O primeiro, visível por contraste num período em que o Governo basco realizou e publicou três inquéritos globais sobre falantes, usos, atitudes, atitudes, etc, de lhor prova do bom desempenho histórico do Estado espanhol nas últimas décadas, e da insuficiência da nossa resposta em chave nacional. A assunçom por parte da maior parte do nosso nacionalismo, no- meadamente por parte da sua direcçom política nas últimas duas décadas, dessa dinámica desnacionalizadora e assimilista imposta na Constituiçom de 78 e encarna- da no Estatuto de Autonomia de 1981, é, nesse sentido, um dos maiores sucessos para um espanholismo hoje trajado de autonomista. Embora relacionado com o primeiro, podemos considerá-lo, pola sua especificidade no plano político-insti- tucional, o quarto objectivo parcialmente conseguido. Presente e futuro do conflito lingüístico A recente publicaçom, por parte do oficialista Conselho da Cultura Galega, de um estudo comparativo entre o referido Mapa Sociolingüístico Galego (com dados de 1992) e o mais recente Inquérito de Condiçons de Vida das Famílias (ECVF) por parte do Instituto Galego de Estatística (dados de 2003) 2 , apesar de nom tomar em consideraçom as falhas do estudo de campo do IGE 3 , só véu a confirmar os prin- cipais problemas detectados em estudos parciais anteriores e no próprio Mapa So- ciolingüístico Galego publicado em 1993. Continua a queda percentual do galego como língua habitual na Galiza (passando de um índice de 2,97 sobre 4 em 1992 para 2,89 em 2003, e ficando por baixo do ponto médio da escala nos menores de 25 anos); o de monolíngües em espanhol é o grupo so- ciolingüístico que mais cresceu nesse mes- mo período (de 10,6% em 1992 para 18,5% em 2003), mantendo-se a diminuiçom do grupo de monolíngües em galego; assisti- mos à primeira geraçom em que o espanhol é a língua habitual maioritária, sem que o ligeiro incremento de monolíngües em ga- lego nas cidades compense a desgaleguiza- çom geral do meio urbano e da gente mais nova; continua a espanholizaçom dos usos lingüísticos no seio das famílias e o espa- nhol é já a língua em que a maioria apren- de a falar; o espanhol continua a ser mui maioritário nos usos escritos (82,3% face a 14%); e carência de monolíngües galegos completados lingüisticamente no próprio idioma (que o falem e escrevam sempre), face ao carácter completo dos monolíngües em espanhol, questiona a solidez do mino- ritário sector caracterizado polos diversos estudos de campo como “monolíngües em galego”. ACTUALIDADE periodicidade quinquenal (1991, 1996, 2001) 1 nom apenas para essa Comunidade Autonóma, mas para o conjunto dos terri- tórios históricos de fala basca. Entretanto, na Galiza só foi publicada umha ediçom do chamado Mapa Sociolingüístico Galego (1993), de alcance só autonómico, e cujos resultados teriam acendido a luz de alarme de qualquer governo que tivesse o mais mí- nimo interesse em levar a bom fim o supos- to objectivo de “bilingüismo equilibrado”. A realidade daquele estudo parcial confirmou a inviabilidade da estratégia autonómica para a normalizaçom do galego, mas nen- gumha medida foi tomada para corrigir o rumo empreendido em 1978-79. O segundo exemplo é referente à ava- liaçom do próprio trabalho concreto da Administraçom. Milhons de euros tenhem sido investidos nestes anos na formaçom do professorado e de pessoas adultas em geral, através dos tam numerosos como limitados “cursos de iniciaçom e aperfeiço- amento”. Alguém conhece a existência de um acompanhamento oficial dos resultados dessas actividades formativas? Todo indica que se tratou apenas de justificar gastos em Política Lingüística sem mais objectivo que fornecer diplomas, tendo sido mui dis- cutida a sua utilidade para a incorporaçom de novos falantes e até para o aumento da competência lingüística das pessoas que os freqüentam. No entanto, nom havendo es- tudos concretos sobre tam ampla como eté- rea rede formativa, quase ninguém se deu nestes anos ao trabalho de pedir contas aos sucessivos executivos autonómicos. Como se vê, estamos diante de exemplos claros de funcionamento exemplar da estratégia de “fazer de conta que se fai”; umha es- tratégia que, além do mais, conseguiu criar umha percepçom social bastante estendida de que, efectivamente, existe umha política oficial favorável ao galego. Terceiro objecti- vo parcialmente conseguido. É verdade que o grau de desfigura- çom actual do que era um país com língua própria de uso muito maioritário, embora subordinada a funçons só primárias e in- formais, responde a umha mais complexa evoluçom socioeconómica do próprio capi- talismo num país secularmente atrasado e incorporado bruscamente à moderniza- çom na sua fase neoliberal. Mas nom é menos certo que o franquismo primeiro, e a segunda Restauraçom bourbónica depois, soubérom acompanhar essa di- námica histórica conduzindo-nos para a inaniçom como povo. Certamente, houvo e há resistências a esse processo, mas a grave situaçom actual da língua é a me- Estamos, como se vê, perante dados contundentes, apesar de maquilhados por um deficiente procedimento estatístico, e à espera de umha nova ediçom do Mapa Sociolingüístico Galego, cuja publicaçom se prevê para o próximo Outono. Nom te- mos nengumha dúvida de que essa nova ediçom, catorze anos depois da primeira, apresentará dados que confirmarám a ameaça histórica que paira sobre o gale- go. Nom devia ser necessário dizê-lo, mas de facto convém sublinharmos que a aba- fante pressom do espanhol, e nom outras variantes estatais do próprio galego como o português ou o brasileiro, é a única ame- aça real que enfrentamos. A evoluçom da processo de substitui- çom lingüística em curso na Galiza conti- nua, ninguém pode negá-lo, a ameaçar seriamente a sobrevivência e o futuro da nossa comunidade lingüística, e a fór- mula política-institucional encarnada no autonomismo tem-se revelado em todos estes anos como a melhor fórmula para dar continuidade ao brutal processo de imposiçom franquista, inclusive superan- do-o, por outras vias de aparência mais amável, no cumprimento de uns objectivos substancialmente comuns. As novas ferramentas que agora se nos oferecem para fazer frente à situaçom nom mudam substancialmente a estratégia dos últimos vinte e cinco anos: nem o falso consenso normativo (assinado em 2003), nem o Plano Geral de Normalizaçom da Lín- gua Galega (aprovado em 2004), que nom passa de umha série de formulaçons incon- cretas que nom questionam os objectivos bilingüistas gestados e impostos entre os anos 1978 e 1981, mas que sim apresenta a novidade de contar com o apoio unánime dos três partidos parlamentares. O próprio ensaio do primeiro ano de governo alterna- tivo ao PP à frente da Junta está a confir- mar o continuísmo em matéria lingüística, enquanto o debate sobre a reforma estatu- tária tampouco parece apontar para qual- quer mudança substancial no novo Estatu- to, que continuará a consagrar a estratégia lingüicida que o espanholismo tem aplicado historicamente na Galiza. Só a articulaçom das forças sociais comprometidas com a língua à volta de uns objectivos verdadeiramente normaliza- dores, para a defesa activa dos nossos di- reitos lingüísticos, individuais e colectivos, em todos os campos da vida social, poderá possibilitar essa mudança, mais necessária do que nunca. Existem iniciativas que cami- nham nessa direcçom, e outras muitas irám surgir sem dúvida. Cumpre insistir, organi- zar, coordenar, empurrar de todas as fren- tes possíveis, com toda a diversidade que quigermos e formos capazes de alimentar; mas numha única direcçom, a da plena e efectiva oficializaçom do galego como lín- gua nacional da Galiza. Só assim evitare- mos que o projecto nacional espanhol poda finalmente entoar, sobre os restos de um corpo nacional galego já liquidado, o que seria o seu quinto e definitivo objectivo conseguido. 1 Os chamados Inquéritos Sociolingüísticos de Euskal Herria (I, II e III) 2 A sociedade galega e o idioma. A evolución sociolingüística de Gali- cia (1992-2003). Consello da Cultura Galega (Sección de Lingua), 2006. 3 Segundo detectou Bernardo Maiz Bar, o ECVF de 2003 falseia a rea- lidade ao sobredimensionar as povoaçons de menos de 10.000 habitantes (as menos espanholizadas) em relaçom às entidades urbanas mais povoadas (as mais espanholizadas), tomando como referência as percentagens reais recolhidas no censo de habi- tantes do mesmo ano. Assim, se as primeiras representavam em 2003 32,58%, no inquérito do IGE representam 56,6% das entre- vistas, dando assim à populaçom rural um peso que já nom lhe corresponde na Galiza actual. Maurício Castro é membro do Comité Central de Primeira Linha

Autonomia e substituiçom lingüística na Galiza (1981-2006)

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Análise de 25 anos de política lingüística na Galiza, após a aprovaçom do Estatuto de Autonomia, publicado por Maurício Castro na revista Abrente nº 40.

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3Nº 40. Abril, Maio e Junho de 2006

Se algo tem caracterizado a política lin-güística aplicada na Galiza desde 1981, ano em que cristaliza num Estatuto a Espanha das Autonomias prevista pola Constituiçom de 1978, é umha medida intervençom a ca-minho entre o deixar fazer, esse recurso que Carvalho Calero denominou “liberalis-mo lingüístico”, e umha actuaçom aparen-temente desleixada ou fruto da improvisa-çom, o que poderíamos denominar “fazer de conta que se fai”. No entanto, seria este um diagnóstico simplista de mais.

A substituiçom da rígida doutrina fran-quista em matéria lingüística, abertamente intervencionista frente à ameaça do que a ditadura sempre considerou e tratou de “línguas separatistas”, deu passagem, é certo, a um liberalismo muito caro ao espí-rito da Transiçom; bem se pode dizer que essa visom liberal assentou como umha luva a esse processo transformista da arquitec-tura institucional espanhola. O tempo véu a demonstrar que, tal e como calculárom os “pais da Constituiçom”, nada custava re-conhecer determinados direitos individuais em relaçom ao uso das “línguas coofi ciais”, desde que fi casse garantida a preservaçom do espanhol como único idioma necessário e obrigatório, e assim de facto continua a ser hoje, 25 anos depois da aprovaçom do Es-tatuto de Autonomia. Tal fi ca demonstrado, em diferente grau e com diversos matizes, nos casos galego, catalám e basco.

Foi com essa perspectiva que se arti-culárom e aplicárom, umha por umha, as medidas legislativas e políticas tendentes a confi gurar umha nova situaçom de apa-rência democrática, em que o galego, na altura língua maioritária mas subordinada, iria ocupar o papel de língua minoritária digna de protecçom e cuidados especiais, sem em nengum caso pôr em causa a he-gemonia da única língua ofi cial do Estado.

Objectivos assimilistas parcialmente conseguidos

A própria aprovaçom do Estatuto (1981) e a posta em andamento da Administraçom autonómica galega um ano antes acompa-nhou a progressiva substituiçom da própria sociedade como agente normalizador. De umha parte, a adscriçom da Política Lingüís-tica ao departamento de Educaçom e Cultura da Junta defi niu bem o sentido parcial da pla-nifi caçom, reduzida a umha área concreta da actuaçom dos sucessivos governos e alheia a umha visom global e abrangente. De outra parte, a assunçom pola Administraçom auto-nómica da actividade dita “normalizadora”, serviu para desactivar progressivamente, se bem nom por completo, o signifi cativo movi-mento social pola normalizaçom da década anterior. Primeiro objectivo parcialmente conseguido.

A acomodaçom do idioma ao guiom previsto obrigou a que os primeiros passos dados pola Junta pré-autonómica (1980), no sentido de ser ofi cialmente reconhecida a unidade lingüística galego-portuguesa, fossem rapidamente emendados. Forçou-se entom, mediante a intervençom directa do poder político-institucional, a ruptura da linha histórica nom apenas do nacionalismo galego desde os seus primórdios, mas tam-bém do próprio mundo científi co da roma-nística tradicional, e inclusive da tradiçom documentalmente recolhida nas enciclopé-dias espanholas, já a partir dos anos 20 do século passado, que sempre reconheceu a unidade lingüística enquanto o nosso idio-ma se mantivo afastado de qualquer possi-bilidade de recuperaçom funcional.

Porém, na nova situaçom, o galego devia constituir-se em idioma “indepen-dente”, facilitando assim a sua posiçom de fraqueza face ao todo-poderoso e interna-cional espanhol. Daí que o isolacionismo, umha posiçom sem qualquer sustento teórico anterior, passasse a constituir-se em doutrina ofi cial, a partir da aprova-çom do Decreto Filgueira, em 1982, e até hoje. Se o objectivo do “golpe normativo” tivesse sido a verdadeira recuperaçom e normalizaçom do galego, em que cabeça teria cabido descartar séculos de história e o seu potencial de futuro como língua

Autonomia e substituiçom lingüística na Galiza (1981-2006)

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estatal e ofi cial nos principais organismos internacionais? É certo que a dissidência reintegracionista subsiste, e ainda cresce ao mesmo ritmo que a consciência lingüís-tica dos sectores mais dinámicos do nosso povo; mas as quase três décadas perdidas neste terreno nom deixam de constituir um êxito reconhecível na política lingüísti-ca ofi cial: o seu segundo objectivo parcial-mente conseguido.

A sucessiva aprovaçom do Decreto de Bilingüismo (1979), da Lei de Normaliza-çom Lingüística (1983), e dos decretos e ordens posteriores, deu forma à estraté-gia que iria ser seguida nas décadas se-guintes e até a actualidade, estabelecen-do como impossível objectivo, carente de qualquer referente teórico ou precedente prático em qualquer outro contexto de confl ito lingüístico, o chamado “bilin-güismo equilibrado”, assim formulado sobretodo para o ámbito do ensino. Com grandes palavras, os mesmos que até essa altura participaram abertamente na censura e marginalizaçom de quaisquer usos do galego para além das lareiras, as leiras e as tabernas, erigiam-se em novos defensores da convivência lingüística e ini-migos do confl ito.

Umha grande embalagem legislativa e normativa, embrulhada com crescentes somas de dinheiro e projectos tam caros e fastosos como inúteis para o avanço so-cial do galego, tem servido durante todos estes anos para, como dizíamos, “fazer de conta que se fai”. Seria errado, portanto, concluirmos que nom existiu política lingü-ística, ou que a sua caracterizaçom tenha sido o puro desleixo. Houvo objectivos, estratégia e medidas concretas que con-duzírom à situaçom actual.

Houvo também desleixo, é verdade, mas um desleixo medido e aplicado como parte de umha política sistemática e de umha efectividade indiscutível. Além do combate surdo contra os sectores fi éis ao idioma, marginalizados na elaboraçom e aplicaçom dos estéreis projectos; oculto no incumprimento de todo o que a legis-laçom pudesse ter de favorável para o galego (o ensino é o caso paradigmático), mantivo-se durante todo este tempo umha evidente renúncia a conhecer a fundo o terreno sobre o qual se agia, incluídos os resultados das medidas aplicadas pola própria administraçom.

Vejamos só dous exemplos signifi cati-vos. O primeiro, visível por contraste num período em que o Governo basco realizou e publicou três inquéritos globais sobre falantes, usos, atitudes, atitudes, etc, de

lhor prova do bom desempenho histórico do Estado espanhol nas últimas décadas, e da insufi ciência da nossa resposta em chave nacional. A assunçom por parte da maior parte do nosso nacionalismo, no-meadamente por parte da sua direcçom política nas últimas duas décadas, dessa dinámica desnacionalizadora e assimilista imposta na Constituiçom de 78 e encarna-da no Estatuto de Autonomia de 1981, é, nesse sentido, um dos maiores sucessos para um espanholismo hoje trajado de autonomista. Embora relacionado com o primeiro, podemos considerá-lo, pola sua especifi cidade no plano político-insti-tucional, o quarto objectivo parcialmente conseguido.

Presente e futuro do conflito lingüístico

A recente publicaçom, por parte do ofi cialista Conselho da Cultura Galega, de um estudo comparativo entre o referido Mapa Sociolingüístico Galego (com dados de 1992) e o mais recente Inquérito de Condiçons de Vida das Famílias (ECVF) por parte do Instituto Galego de Estatística (dados de 2003)2, apesar de nom tomar em consideraçom as falhas do estudo de campo do IGE3, só véu a confi rmar os prin-cipais problemas detectados em estudos parciais anteriores e no próprio Mapa So-ciolingüístico Galego publicado em 1993.

Continua a queda percentual do galego como língua habitual na Galiza (passando de um índice de 2,97 sobre 4 em 1992 para 2,89 em 2003, e fi cando por baixo do ponto médio da escala nos menores de 25 anos); o de monolíngües em espanhol é o grupo so-ciolingüístico que mais cresceu nesse mes-mo período (de 10,6% em 1992 para 18,5% em 2003), mantendo-se a diminuiçom do grupo de monolíngües em galego; assisti-mos à primeira geraçom em que o espanhol é a língua habitual maioritária, sem que o ligeiro incremento de monolíngües em ga-lego nas cidades compense a desgaleguiza-çom geral do meio urbano e da gente mais nova; continua a espanholizaçom dos usos lingüísticos no seio das famílias e o espa-nhol é já a língua em que a maioria apren-de a falar; o espanhol continua a ser mui maioritário nos usos escritos (82,3% face a 14%); e carência de monolíngües galegos completados lingüisticamente no próprio idioma (que o falem e escrevam sempre), face ao carácter completo dos monolíngües em espanhol, questiona a solidez do mino-ritário sector caracterizado polos diversos estudos de campo como “monolíngües em galego”.

ACTUALIDADE

periodicidade quinquenal (1991, 1996, 2001)1 nom apenas para essa Comunidade Autonóma, mas para o conjunto dos terri-tórios históricos de fala basca. Entretanto, na Galiza só foi publicada umha ediçom do chamado Mapa Sociolingüístico Galego (1993), de alcance só autonómico, e cujos resultados teriam acendido a luz de alarme de qualquer governo que tivesse o mais mí-nimo interesse em levar a bom fi m o supos-to objectivo de “bilingüismo equilibrado”. A realidade daquele estudo parcial confi rmou a inviabilidade da estratégia autonómica para a normalizaçom do galego, mas nen-gumha medida foi tomada para corrigir o rumo empreendido em 1978-79.

O segundo exemplo é referente à ava-liaçom do próprio trabalho concreto da Administraçom. Milhons de euros tenhem sido investidos nestes anos na formaçom do professorado e de pessoas adultas em geral, através dos tam numerosos como limitados “cursos de iniciaçom e aperfeiço-amento”. Alguém conhece a existência de um acompanhamento ofi cial dos resultados dessas actividades formativas? Todo indica que se tratou apenas de justifi car gastos em Política Lingüística sem mais objectivo que fornecer diplomas, tendo sido mui dis-cutida a sua utilidade para a incorporaçom de novos falantes e até para o aumento da competência lingüística das pessoas que os freqüentam. No entanto, nom havendo es-tudos concretos sobre tam ampla como eté-rea rede formativa, quase ninguém se deu nestes anos ao trabalho de pedir contas aos sucessivos executivos autonómicos. Como se vê, estamos diante de exemplos claros de funcionamento exemplar da estratégia de “fazer de conta que se fai”; umha es-tratégia que, além do mais, conseguiu criar umha percepçom social bastante estendida de que, efectivamente, existe umha política ofi cial favorável ao galego. Terceiro objecti-vo parcialmente conseguido.

É verdade que o grau de desfi gura-çom actual do que era um país com língua própria de uso muito maioritário, embora subordinada a funçons só primárias e in-formais, responde a umha mais complexa evoluçom socioeconómica do próprio capi-talismo num país secularmente atrasado e incorporado bruscamente à moderniza-çom na sua fase neoliberal. Mas nom é menos certo que o franquismo primeiro, e a segunda Restauraçom bourbónica depois, soubérom acompanhar essa di-námica histórica conduzindo-nos para a inaniçom como povo. Certamente, houvo e há resistências a esse processo, mas a grave situaçom actual da língua é a me-

Estamos, como se vê, perante dados contundentes, apesar de maquilhados por um defi ciente procedimento estatístico, e à espera de umha nova ediçom do Mapa Sociolingüístico Galego, cuja publicaçom se prevê para o próximo Outono. Nom te-mos nengumha dúvida de que essa nova ediçom, catorze anos depois da primeira, apresentará dados que confi rmarám a ameaça histórica que paira sobre o gale-go. Nom devia ser necessário dizê-lo, mas de facto convém sublinharmos que a aba-fante pressom do espanhol, e nom outras variantes estatais do próprio galego como o português ou o brasileiro, é a única ame-aça real que enfrentamos.

A evoluçom da processo de substitui-çom lingüística em curso na Galiza conti-nua, ninguém pode negá-lo, a ameaçar seriamente a sobrevivência e o futuro da nossa comunidade lingüística, e a fór-mula política-institucional encarnada no autonomismo tem-se revelado em todos estes anos como a melhor fórmula para dar continuidade ao brutal processo de imposiçom franquista, inclusive superan-do-o, por outras vias de aparência mais amável, no cumprimento de uns objectivos substancialmente comuns.

As novas ferramentas que agora se nos oferecem para fazer frente à situaçom nom mudam substancialmente a estratégia dos últimos vinte e cinco anos: nem o falso consenso normativo (assinado em 2003), nem o Plano Geral de Normalizaçom da Lín-gua Galega (aprovado em 2004), que nom passa de umha série de formulaçons incon-cretas que nom questionam os objectivos bilingüistas gestados e impostos entre os anos 1978 e 1981, mas que sim apresenta a novidade de contar com o apoio unánime dos três partidos parlamentares. O próprio ensaio do primeiro ano de governo alterna-tivo ao PP à frente da Junta está a confi r-mar o continuísmo em matéria lingüística, enquanto o debate sobre a reforma estatu-tária tampouco parece apontar para qual-quer mudança substancial no novo Estatu-to, que continuará a consagrar a estratégia lingüicida que o espanholismo tem aplicado historicamente na Galiza.

Só a articulaçom das forças sociais comprometidas com a língua à volta de uns objectivos verdadeiramente normaliza-dores, para a defesa activa dos nossos di-reitos lingüísticos, individuais e colectivos, em todos os campos da vida social, poderá possibilitar essa mudança, mais necessária do que nunca. Existem iniciativas que cami-nham nessa direcçom, e outras muitas irám surgir sem dúvida. Cumpre insistir, organi-zar, coordenar, empurrar de todas as fren-tes possíveis, com toda a diversidade que quigermos e formos capazes de alimentar; mas numha única direcçom, a da plena e efectiva ofi cializaçom do galego como lín-gua nacional da Galiza. Só assim evitare-mos que o projecto nacional espanhol poda fi nalmente entoar, sobre os restos de um corpo nacional galego já liquidado, o que seria o seu quinto e defi nitivo objectivo conseguido.

1 Os chamados Inquéritos Sociolingüísticos de Euskal Herria (I, II e III)

2 A sociedade galega e o idioma. A evolución sociolingüística de Gali-cia (1992-2003). Consello da Cultura Galega (Sección de Lingua), 2006.

3 Segundo detectou Bernardo Maiz Bar, o ECVF de 2003 falseia a rea-lidade ao sobredimensionar as povoaçons de menos de 10.000 habitantes (as menos espanholizadas) em relaçom às entidades urbanas mais povoadas (as mais espanholizadas), tomando como referência as percentagens reais recolhidas no censo de habi-tantes do mesmo ano. Assim, se as primeiras representavam em 2003 32,58%, no inquérito do IGE representam 56,6% das entre-vistas, dando assim à populaçom rural um peso que já nom lhe corresponde na Galiza actual.

Maurício Castro é membro do Comité Central de

Primeira Linha

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