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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano IV, Nº 4 e Ano V, Nº 5 - 2003-2004 FRANCISCO DE ASSIS AGUIAR ALVES 527 AUTONOMIA MUNICIPAL E INTERESSE LOCAL COMO PARÂMETROS À COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DOS MUNICÍPIOS Francisco de Assis Aguiar Alves * SUMÁRIO: 1. A evolução da autonomia municipal. 2. Interesse local como variável da repartição de competências – considerações doutrinárias. 3. Interesse local e bens ambientais – o município como também interessado. 4. Competência legislativa do município em matéria ambiental. 4.1. Competência legislativa em matéria ambiental – autonomia municipal em destaque. 1. A evolução da autonomia municipal É lugar comum afirmar que a CRFB/88 é ímpar ao consagrar a importância e o respeito ao ente município. Há, pois, no artigo 30, 1 inciso I, da referida Carta Constitucional, a definição da competência exclusiva do município para as matérias que tenham vinculação com o interesse local. 2 Vale a ressalva de que tal previsão não exclui em absoluto os demais entes da Federação, uma vez que pode haver, sobretudo, em Direito Ambiental, um liame muito tênue entre aquilo que é da esfera do interesse nacional, regional e local. No entanto, * Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos. 1 BRASIL, Constituição Federal, Art. 30: “Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local.” 2 Hely Lopes Meirelles explica o conteúdo de interesse local do seguinte modo: "o interesse local se caracteriza pela predominância e não pela exclusividade do interesse para o município, em relação ao do Estado e da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância." MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. p. 121.

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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano IV, Nº 4 e Ano V, Nº 5 - 2003-2004

FRANCISCO DE ASSIS AGUIAR ALVES 527

AUTONOMIA MUNICIPAL E INTERESSE LOCALCOMO PARÂMETROS À COMPETÊNCIA

LEGISLATIVA DOS MUNICÍPIOS

Francisco de Assis Aguiar Alves*

SUMÁRIO: 1. A evolução da autonomia municipal.2. Interesse local como variável da repartição decompetências – considerações doutrinárias. 3.Interesse local e bens ambientais – o municípiocomo também interessado. 4. Competêncialegislativa do município em matéria ambiental. 4.1.Competência legislativa em matéria ambiental –autonomia municipal em destaque.

1. A evolução da autonomia municipal

É lugar comum afirmar que a CRFB/88 é ímpar aoconsagrar a importância e o respeito ao ente município.Há, pois, no artigo 30,1 inciso I, da referida CartaConstitucional, a definição da competência exclusiva domunicípio para as matérias que tenham vinculação como interesse local.2 Vale a ressalva de que tal previsãonão exclui em absoluto os demais entes da Federação,uma vez que pode haver, sobretudo, em DireitoAmbiental, um liame muito tênue entre aquilo que é daesfera do interesse nacional, regional e local. No entanto,

* Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos.1 BRASIL, Constituição Federal, Art. 30: “Compete aos Municípios: I - legislarsobre assuntos de interesse local.”2 Hely Lopes Meirelles explica o conteúdo de interesse local do seguinte modo:"o interesse local se caracteriza pela predominância e não pela exclusividadedo interesse para o município, em relação ao do Estado e da União. Isso porquenão há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual enacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância." MEIRELLES,Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. p. 121.

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não é a matéria ambiental a questão mais detalhada pelolegislador pátrio para efeito de repartição de competência.Nesse quesito as matérias tributárias foram muito maisdiscriminadas que às referentes ao Direito Ambiental, sejapela relativa “infância” destas questões ou mesmo, porter se dado um grau de importância maior ao status quo

da ordem financeira em nosso ordenamento jurídico. Sejapor este ou aquele motivo mais preponderante, o certo éque os municípios, antes da CFRB/88, nunca tinhamexperimentado em solo pátrio, tamanho reconhecimentoformal de sua autonomia e o interesse local nunca haviatido tamanha vazão no cenário legislativo brasileiro,sobretudo em sede constitucional.

Discutiu-se no primeiro capítulo as dificuldades dereconhecimento do federalismo tal qual fora empregadonos EUA. Apontaram-se, à luz de alguns teóricos, asdificuldades e limitações que a descentralização político-administrativa enfrentou desde a condição do Brasil-Colônia até a rigidez vivenciada com o autoritarismo. Diantedeste histórico é que não se impõem restrições àratificação do marco constitucional que representou aCarta Constitucional de outubro de 1988 em relação aoreconhecimento dos municípios enquanto entes autônomosda administração federal (arts. 1º e 18)3 e, por via deconseqüência, em relação ao também reconhecimento/fortalecimento do poder local.

Quanto a Autonomia Municipal prevista pela CFRB/88, José Afonso da Silva4 coloca que:

A autonomia municipal, assim,assenta em quatro capacidades:

3 BRASIL, Constituição Federal. "Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formadapela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-seem Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) Art. 18. Aorganização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreendea União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nostermos desta Constituição."4 SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. p. 623-624.

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a) Capacidade de auto-organização,mediante a elaboração da lei orgânicaprópria;b) Capacidade de auto-governo,eletividade do Prefeito e dosVereadores às respectivas CâmarasMunicipais;c) Capacidade normativa própria, oucapacidade de autolegislação,mediante a competência de elaboraçãode leis municipais sobre áreas que sãoreservadas à sua competênciaexclusiva ou suplementar;d) Capacidade de auto-administração(administração própria, para manter erestar os serviços de interesse local).

Houve desta feita, o reconhecimento formal dosMunicípios enquanto membros da federação, o queimplicou necessariamente na reestruturação do poder epor via de conseqüência a afirmação do federalismobrasileiro calcado na descentralização político-administrativa,5 na repartição de competências e noavanço do municipalismo pró-interesse local.

Interessante é a assertiva de que o berço federalistaque serviu de inspiração para o Brasil, qual seja, os EstadosUnidos da América, não admite a autonomia municipal nosmesmos moldes do que se vê no ordenamento jurídico

5 BRASIL, Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967: "(...) Art. 4º. A AdministraçãoFederal compreende: I - A Administração Direta, que se constitui dos serviços integradosna estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios. II - AAdministração Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadasde personalidade jurídica própria: a) Autarquias; b) Empresas Públicas; c) Sociedadesde Economia Mista; d) Fundações Públicas. (Alínea acrescentada pela Lei nº 7.596, de10 de abril de 1987). Parágrafo único. As entidades compreendidas na Administraçãoindireta vinculam-se ao Ministério em cuja área de competência estiver enquadradasua principal atividade. (Antigo § 1º, transformado em parágrafo único com a revogaçãodos §§ 2º e 3º, pela Lei nº 7.596, de 10 de abril de 1987). JUNGSTEDT, Luiz OliveiraCastro. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Thex, 2002. p. 265.

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nacional. A bem da verdade, como bem salientou Pontesde Miranda:6

... fujamos à busca no Direito norte-americano e argentino, porque aconcepção brasileira de autonomiamunicipal é diferente.

Em outras palavras, resta certo que o federalismonão se aplica de forma objetiva, ou seja, não há um modelofederalista absoluto que pode ser replicado em qualquertipo de conjuntura. Não se trata, pois, de criar fórmulas dedescentralização político-administrativa.

Neste aspecto, a Constituição de 1988 veioconsagrar formalmente a autonomia do ente município,concretizando-se desta feita um processo idealizado peloBrasil, desde a condição de colônia de Portugal.7

Há ainda muitas imperfeições, afinal a norma,enquanto fonte de direito e delimitação das funções/deveres dos entes federativos, é construção humana.Assim, J. J. Gomes Canotilho8 explica os princípiosestruturantes dos esquemas relacionais entre as fontesdo direto citando o princípio competência, na ConstituiçãoPortuguesa, como se segue:

A função ordenadora dos actosnormativos não assenta apenas numahierarquização dos mesmos através derelações de supra infra-ordenação, mas

6 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a emenda

nº1. T. II, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 345.7 Aléxis de Tocqueville esclarece que é no município que reside a forçademocrática, usando as seguintes palavras: "É na comuna que reside a forçados povos livres. As instituições municipais estão para a liberdade como asescolas primárias estão para a ciência: põem-na ao alcance do povo. Seminstituições comunais, uma nação pode dar-se um governo livre, mas não temo espírito de liberdade." TOCQUEVILLE, Aléxis de. A democracia na América.

3ª ed. São Paulo: Itatiaia e Universidade de São Paulo, 1987. p. 202.8 CANOTILHO, José. Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da

Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 681.

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também numa divisão espacial decompetências. O princípio hierárquicoacentua o carácter de limite negativodos actos normativos superiores emrelação aos actos normativosinferiores: o princípio da competênciapressupõe antes uma delimitaçãopositiva, incluindo-se na competênciade certas entidades a regulamentaçãomaterial de certas matérias (ex.:pertence às regiões autônomaslegislar sobre as matérias de interesseespecífico para a região)O princípio da competência aponta parauma visão plural do ordenamento jurídico.Este não se reduz ao ordenamentoestadual, pois em articulação com eleexistem os ordenamentos regionais, osordenamentos locais e os ordenamentosinstitucionais. De todo modo, ele nãoperturba o princípio da hierarquia e aconfiguração hierárquica da ordemjurídico-constitucional. Põe , todavia,em relevo um aspecto importante dosordenamentos plurais: a existência deespaços normativos autônomos. Istojustifica a competência legislativa eregulamentar, por exemplo, das regiõesautônomas em matérias que têminteresse específico para as regiões(cfr. art. 229, a, b e c) e o poderregulamentador das autarquias locais(art. 242). Por sua vez, a idéia doordenamento estadual comoordenamento geral justificará ainda asupletividade do direito do Estadorelativamente aos poderes normativosdos ordenamentos regionais ou dosordenamentos locais.Finalmente, é ainda o princípio dacompetência a justificar a regulação de

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certas matérias por determinadosórgãos, formando-se, assim, blocos decompetências reservadas dedeterminadas matérias.

Para se ressaltar a importância do direito dasociedade ao meio ambiente sadio Canotilho9 assevera:

... hoje o Estado, além de ser umEstado de direito, um EstadoDemocrático, um Estado Social, devetambém recortar-se como EstadoAmbiental. (grifo nosso) (1998, p.150).

Giselle Cittadino10 ressalta que há, por parte tantode liberais como de comunitários e críticos-deliberativosum compromisso com a Constituição e seus fundamentos,ou seja, império da lei, separação de poderes e direitosfundamentais, ainda que configurados de forma distinta,deste modo:

Parece não haver dúvidas de que omovimento de retorno ao direitointegrado por liberais, comunitários ecríticos-deliberativos, a despeito dasprofundas divergências que osseparam, privilegia alguns temas,especialmente o papel atribuído àConstituição e ao sistema de direitospor ela assegurados e os limitesfixados ao processo de interpretaçãoconstitucional.

A referida autora desenvolve seu pensamento:11

O fundamento ético do ordenamentojurídico se revela, precisamente, no

9 Ibidem, p. 150.10 CITTADINO, Gisele. Pluralismo direito e justiça distributiva. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2000. p. 8-9.11 CITTADINO, Gisele. Op. cit., nota 9, p. 46.

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momento em que a Constituiçãoapresenta, no seu corpo normativo, umsistema de valores. Por conseguinte,a aplicação das suas normas, por viainterpretativa, se torna uma realizaçãode valores.... desta forma, e na linha doconstitucionalismo ‘comunitário’, ocumprimento dos princípiosfundamentais equivale a umarealização de valores. A dimensãoaxiológica supera, portanto, adimensão deontológica, pois oconceito de bom tem primazia sobre ode dever ser, na medida em que osprincípios expressam os ‘valoresfundamentais’ da comunidade.

Neste sentido, resta como parâmetro diferenciadordas realidades dos municípios, na Constituição daRepública Federativa do Brasil, o princípio dapreponderância do interesse, sobretudo em sede de DireitoAmbiental, complementado pelo reforço do interesse local.Este último é de fundamental importância para efeito dese estruturar tratamentos distintos aos que de fato nãosão iguais. Ainda nesse aspecto Sandra Silva12 em suaobra “O Município na constituição federal de 1988,” afirmaque:

Não se pode olvidar que na pirâmidedo Estado Federado, a base, o blocomodular é o Município, pois é nesseque reside a convivência obrigatóriados indivíduos. É nesta pequena célula,que as pessoas exercem os seusdireitos e cumprem suas obrigações;é onde se resolvem os problemasindividuais e coletivos. Está no

12 SILVA, Sandra. O município na Constituição Federal de 1988. p. 107-108.

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Município a escola da democracia. Éno Município que se cuida do meioambiente; é nele que se removem osdetritos industriais e hospitalares e serecolhe o lixo doméstico; é nele queas pessoas transitam de casa para otrabalho nas ruas e avenidas, noscarros, coletivos e variados meios detransporte. É no Município que osserviços públicos são prestadosdiretamente ao cidadão; é nele que osindivíduos nascem e morrem.Para regular tão extenso âmbito defatores e relações, outorgou aConstituição de 1988, ao legisladorlocal, a competência legislativa sobrea vida da comunidade, voltada às suaspróprias peculiaridades, através daedição de normas dotadas de validezpara esse ordenamento local.A expressão haurida do textoconstitucional tem, como sobejamentedito e repetido, a limitar seu âmbito deaplicação, a regra constitucional dacompetência, sem cuja interpretaçãosistemática destinaria toda análise dotema ao fracasso. Isto porque, noâmbito geral, enquanto a competênciafederal privativa é numerada pelaConstituição de 1988, a estadual éresidual e a municipal é expressa, masnão numerada, gravitando em torno doconceito operacional de interesse local.

Complementando este raciocínio faz-se necessárioo aprofundamento na seção subseqüente, do que no planodoutrinário, se entende por interesse local. Este resgate évital a coerência dissertativa do presente trabalho, que aposteriori se debruçará no conteúdo relativo às

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competências legislativas e materiais dos Municípios,tendo como referência de objeto o Direito Ambiental.

2. Interesse local como variável da repartição decompetências – considerações doutrinárias

Do ponto de vista estritamente terminológico apalavra interesse aponta para dois aspectos, quais sejam:a existência de um sujeito com necessidade e de umobjeto idôneo para satisfazer esta mesma necessidade.13

Existem, pois, dois aspectos a serem abordados. Um denatureza objetiva que representa uma necessidade stricto

sensu e uma subjetiva, que personifica uma talnecessidade a uma pessoa ou determinado grupo deinteressados, que por sua vez, fazem parte de um contextocomum, daí serem os anseios comuns pois há, em maiorou menor grau de aproximação, uma identidade construídaa partir das possibilidades e carências no interior destegrupo.

Quando o assunto é meio ambiente,14 este entendido:

... o lugar onde habitam os seres vivos.É o habitat dos seres vivos. Essehabitat (meio físico) interage com osseres vivos (meio biótico), formandoum conjunto harmonioso de condiçõesessenciais para a existência da vidacomo um todo.15

13 Quanto ao aprofundamento do referido conceito, ver RODRIGUES, MarceloAbelha. Instituições de Direito Ambiental.14 O termo meio ambiente por si só, enquanto incluso no texto legal, redundanuma atecnia. Isso porque se trata de um pleonasmo, uma redundância quepouco define a essência de sua concepção. De qualquer sorte, é o termo quevige em sede legal, sobretudo porque é a expressão já consagrada na doutrina,na jurisprudência e no inconsciente coletivo social.15 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. São Paulo: Saraiva,2002. p. 24.

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A determinação de seus interessados e mesmo ograu de interesse é de difícil definição, daí que o meioambiente, enquanto bem jurídico a ser tutelado pelo enteestatal, detém natureza difusa, isto é, pertence a todos e,é passível de titularidade por parte de qualquer cidadão.

Segundo a Lei n.º 6.938/81 (art. 3º, inc. I), entende-se por meio ambiente:

... o conjunto de condições, leis,influências, alterações e interações deordem física, química e biológica, quepermite, abriga e rege a vida em todasas suas formas.

Veja-se o quão difícil é definir qual o tipo denecessidade e seu(s) respectivo(s) interessado(s) quandoa matéria refere-se ao Direito Ambiental. Para Álvaro LuizValery Mirra:16

...no caso específico do direitobrasileiro a análise do estatuto jurídicodo meio ambiente não estariacompleta se não se fizesse referênciaà previsão constitucional do direito aomeio o ambiente ecológica menteequilibrado como direito humanofundamental, de natureza difusa.

Daí ter de haver a discriminação entre os entesfederativos e seus respectivos interesses, muito emboratrate-se, na verdade, de um esforço didático por parte dadoutrina, haja vista que em última análise, pelainterdependência própria das questões ambientais, osreflexos de qualquer dano no contexto ambiental deste oudaquele ente da federação, implicam em prejuízo paratodos. De qualquer sorte, reitera-se que existe, para efeitode repartição de competências em matéria ambiental, uma

16 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao

meio ambiente. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 53.

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divisão de interesses entre os membros do Estado FederalBrasileiro, quais sejam: o interesse nacional (União), ointeresse regional (Estados) e o interesse local(municípios). É neste último que se concentrarão asanálises desta seção.

Trata-se de conceito novo em termos dasConstituições brasileiras.17 Não há registro de que oreferido tenha vigido em outras Cartas. O fato de ser suigeneris atribui a este termo/conceito dupla interpretaçãoem nível doutrinário quanto à definição da CompetênciaMunicipal. Em outras palavras, o interesse local ao serdisciplinado textualmente na CFBR/88 trouxe consigo um“conflito de hermenêutica” em sede doutrinária. Para umavertente teórica, o fato de se haver discriminado no textoconstitucional o elemento interesse local, teria comoobjetivo e conseqüência minimizar a atuação do entemunicípio no que se refere à repartição de competências.Numa postura oposta, parte da doutrina entende que talprevisão, na realidade, veio para ampliar a participaçãodo município junto aos demais membros da Federação.Nesse sentido, Patrícia Silveira18 desenvolve um poucomais sobre as fundamentações de ambas as correntesteóricas:

... a terminologia interesse local implicaredução da competência municipalpois, na medida em que determinadaquestão interessar ao Estado-Membro,a regulação da mesma passa apertencer-lhe. Isto porque, nesse caso,acredita-se que o campo do peculiarinteresse é o que significapreponderância e não exclusividade.Em sentido diametralmente oposto, háquem sustente uma ampliação do

17 Nossas Constituições Republicanas traziam o termo "peculiar interesse",sendo original em 1988 o uso do conceito de "interesse local". SILVEIRA,Patrícia Azevedo da. Competência ambiental, p. 73.18 Ibid., p. 73-74.

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âmbito de competência dos Municípiose que agora os mesmos nãonecessitam demonstrar que dadamatéria é de seu peculiarinteresse, este mais restrito queinteresse local.

Em nossa visão, a melhor doutrina encontra-seresguardada no último entendimento. Isto porquê, nãohaveria outro motivo, senão o reforço à autonomiamunicipal, de se definir textualmente e de forma inovadorao termo interesse local em sede Constitucional e mais, como plus de deixar claro o interesse do legislador deste talreconhecimento formal. Isto porque, o que se dá porconseqüência direta a partir de 1988 é o desuso do termo“peculiar interesse”, que como bem salientou Patrícia daSilveira,19 é dotado de um sentido mais restrito que àqueleinaugurado em 1988 com o conceito de interesse local. Paraalém de uma interpretação meramente literária, a autonomiae fortalecimento do Município se apresentam comofinalidades da lógica constitucional atual, devendo serinterpretada sob esse viés.

Apesar do caminho admitido pela Constituição, éinegável a existência de conflitos de interpretação como osupracitado, bem como os inerentes à indefinição doconceito de “interesse local” por parte da doutrina. Asubjetividade de que se reveste tal conceito o tornaimpreciso e, em terreno doutrinário, não foram poucas asdefinições a ele atribuídas, como por exemplo: RoqueCarrazza20 entende por interesse local “tudo aquilo que opróprio município, por meio de lei, vier a entender de seuinteresse.” E complementa:

... interesses dos municípios são osque atendem, de modo imediato, às

19 SILVEIRA, Patrícia Azevedo da. Op. cit., nota 17.20 CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional tributário. 3ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 109.

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necessidades locais, ainda que comalguma repercussão sobre asnecessidades gerais do Estado ou doPaís.

Celso Ribeiro Bastos,21 por sua vez, assim defineinteresse local:

Os interesses locais dos Municípiossão os que entendem imediatamentecom as suas necessidades imediatase, indiretamente, em maior ou menorrepercussão, com as necessidadesgerais.

Alexandre de Moraes22 esclarece o referido conceitoda seguinte forma:

Apesar de difícil conceituação,interesse local refere-se àquelesinteresses que disserem respeito maisdiretamente às necessidadesimediatas dos municípios, mesmo queacabem gerando reflexos no interesseregional (Estados) ou geral (União),pois, como afirmado por Fernanda DiasMenezes, ‘‘é inegável que mesmoatividade e serviços tradicionalmentedesempenhados pelos municípios,como transporte coletivo, polícia dasedificações, fiscalização dascondições de higiene de restaurante esimilares, coleta de lixo, ordenação douso do solo urbano, etc., dizemsecundariamente com o interesseestadual e nacional.

Dessa forma, fora as tradicionais e reconhecidashipóteses de interesse local, as demais deverão ser

21 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. p. 311.22 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 301.

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analisadas caso a caso, vislumbrando-se qual o interessepredominante (princípio da predominância do interesse).

Èdis Milaré23 ao tratar da competência legislativa dosentes da federação em matéria ambiental lança mão docritério adotado por Paulo Régis Rosa da Silva24 aointerpretar a regra do art. 23 que trata da competênciacomum, dando uma boa orientação na resolução doconteúdo de interesse local, senão vejamos:

a) Matérias de interesse local, isto é,que não extrapolem os limites físicosdo Município, devem ser administradaspelo Executivo Municipal;b) Quando a matéria extrapola oslimites físicos do Município,ou seja, osseus efeitos não ficam confinados naárea física do Município ou envolvammais de um Município, desloca-se acompetência do Executivo Municipalpara o Executivo Estadual;c) Tratando-se de bens públicosestaduais e de questões ambientaissupramunicipais, a competência serádo Executivo Estadual;d) Nas hipóteses em que as matériasenvolvam problemas internacionais depoluição transfronteiriça ou duas oumais unidades federadas brasileiras,a competência será do ExecutivoFederal.

Colocou-se anteriormente quão difícil é a tarefa dedefinir-se a competência de um ente federativo tendocomo referência os interesses mais imediatos dos

23 MILARÉ, Èdis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário.2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2001. p. 264.24 SILVA, Paulo Regis Rosa. Repartição constitucional de competências em

matéria ambiental. Revista do Ministério Público, n. 27. p. 198. Porto Alegre:Nova Fase, 1992.

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mesmos, sejam estes de caráter nacional, regional oumesmo local.

Esse desafio pode ser elevado à décima potência,se a repartição de competência estiver vinculada àsquestões de ordem ambiental.25 Isto porque o meioambiente é uno, seus reflexos (positivos ou negativos) sãode natureza interdependente e atingem a todos os entesda Federação, logo há um ponto de contato indiscutívelentre os referidos interesses. De forma genérica, há emessência apenas um interesse, qual seja: o de proteção epreservação do meio ambiente. E, na defesa desse, osideais de descentralização e cooperação mútua (lógicafederalista) entre os Estados federados é de fundamentalimportância, sob pena de a inércia, ação ou omissão,dolosa ou culposa de seus legítimos representantes,redundarem em prejuízo e danos ambientais a todo o país.

Em razão dessa imprecisão terminológica e damargem de interpretações dúbias e até conflitantes sobreo mesmo tópico, o legislador pátrio teve a seriedade edirecionamento do instituto ambiental “salvo” pela doutrina,que diferentemente das imprecisões interpretativas e

25 Observem-se as seguintes decisões sobre o tema:EMBARGOS À EXECUÇÃO - COMPETÊNCIA MUNICIPAL PARA LEGISLAR SOBREPROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE - Com arrimo na Constituição Federal, arts. 23,VI, e 30,I e II, é competente o município para legislar sobre proteção do meioambiente, nos limites de sua territoriedade, para atender situações de inter-esse local. (TJMG - EI 000.138.453-6/01 - 4ª C.Cív. - Rel. Des. Corrêa de Marins- J. 21.10.1999) (grifo nosso).MANDADO DE SEGURANÇA - MUNICIPALIDADE -DIREITO AMBIENTAL -COMPETÊNCIA - INTELIGÊNCIA DO ART. 30, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL -É de se desconsiderar a irregularidade na postulação se possível a determinaçãodo sujeito, ante o princípio da economia e instrumentalidade processual. É decompetência do Poder Público Municipal revogar licença por ele concedida sepresentes o requisito do interesse público e proteção ao meio ambiente. (TJMG- AC 103.643/3 - 2ª C.Cív. - Rel. Des. Abreu Leite - J. 31.03.1998) (grifo nosso).LEI - MUNICÍPIO - INCONSTITUCIONALIDADE - INOCORRÊNCIA - LEGISLAÇÃOMUNICIPAL QUE VEDA A VENDA DE COMBUSTÍVEIS PELO SISTEMA SELF-SERVICE DE ABASTECIMENTO - Matéria que, pelos riscos inerentes ao serviço,envolve a proteção e a defesa da saúde - Interesse predominante do município- inteligência dos arts. 23, II; 30, I e II; e 196 da CF. (TJSP - Ap. 115.888-5/3-00- 7ª C. de Direito Público - Rel. Des. Sérgio Pitombo - J. 12.02.2001) (grifo nosso).

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conceituais inerentes à letra fria da lei, é unânime emdispor que o poder de legislar sobre o interesse (nacional,regional e local) é expresso, ou seja, é determinado e nãodá margem às interpretações de naturezas distintas,garantindo à segurança das relações entre os entes daFederação. Nesse sentido Pinto Ferreira26 afirma que:

... Os Municípios estão dotados detodos os poderes inerentes à faculdadede dispor sobre tudo aquilo que digarespeito aos interesses locais.... É verdade que o conceito deinteresse local tem certa imprecisão,pois o interesse local se reflete sobreos interesses regionais ou nacionais,visto que o benefício acarretado a umaparte do todo melhora o próprio todo.Os interesses locais são os que dizemrespeito ás necessidades domunicípio, tendo influência sobre asnecessidades gerais.

A Constituição Federal de 1988 afirma que cabe aoMunicípio legislar sobre assuntos de interesse local, emseu art. 30, I. O prof. Celso Bastos lastima “que se tenhaabandonado a noção clássica do peculiar interessemunicipal,” com substanciosa doutrina e não menos ricajurisprudência já existente.

Sandra Silva27 procura resolver a questão dadeterminação do conteúdo de interesse local lançandomão dos ensinamentos de Leal,28 não esquecendo deressalvar que as peculiaridades de um município não sãonecessariamente as mesmas de outro, senão vejamos:

26 FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional, p. 271.27 SILVA, Sandra. Op. cit., nota 12, p. 112-113.28 LEAL, Victor Nunes. Problemas de Direito Público e outros problemas.Brasília: Ministério da Justiça, 1997. v. I. p. 325-326.

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Não se nega que a gama de assuntospeculiares ao Município é infindável,mas é possível esboçar algunsreferenciais que possam ser utilizadoscomo paradigma a situações quecontenham características deidentidade básicas à maioria dosMunicípios, capazes de auxiliar naaferição do interesse local.Todavia, tal referencial não podeignorar, por evidente, ascaracterísticas que tornam certaslocalidades absolutamente distintas deoutros, tais como, população,localização geográfica, dimensãoterritorial, aspectos culturais, grau deplanejamento urbano, distância maiorou menor dos grandes conglomeradosurbanos.Leal, sob a égide da constituiçãobrasileira de 1946, formulou algumasregras para solucionar os conflitosdecorrentes da aplicação da regraconstitucional, que podem sertransportados para a atualidade, soba ótica do interesse local, tendo comoreferente o Poder Municipal: ‘segundoa primeira, os poderes municipaisexpressos e exclusivos afastamqualquer outra competência, sejafederal, seja estadual. Lei federal ouestadual que disponha sobrematéria da competência expressae exclusiva do município não éválida, por infringir a constituição(grifo nosso). É lei exorbitante dacompetência do poder que apromulgou. Não pode produzir efeito.A segunda regra refere-se aos poderesmunicipais implícitos. O mesmo,

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entretanto, não ocorre em relação àcompetência estadual remanescente.E aqui temos a terceira regra do nossoesquema: Os poderes municipaisimplícitos é que prevalecem sobre ospoderes estaduais remanescentes.

Os poderes que a constituição da implicitamenteaos municípios estão vedados aos estados; e logo, diantedos poderes municipais implícitas, cede a competênciaestadual remanescente.

Consoante já se afirmou, a autonomia do Município,com o atributo de princípio constitucional que é, estáintrinsecamente relacionada a este conceito não definidopela Constituição e de 1988: interesse local. Contudo, oalcance de tal proposição é determinado pela conjugaçãodeste com os demais dispositivos constitucionais, comosintetizou o publicista citado, em demonstração clara eevidente em que as leis federais ou estaduais não exercemnenhuma primazia sobre as municipais, quando a áreade ação deste ordenamento jurídico e estiver fulcrado naspeculiaridades locais.

Bem, o fato é que desvios à teleologia constitucionalirão existir no ordenamento jurídico, que como já lembradoanteriormente, trata-se de um produto histórico da açãohumana, portanto, eivada de lacunas e imperfeições.Partindo dessa constatação, faz-se coro com VladimirPassos de Freitas ao denotar que:

... a nova Constituição inovou aosubstituir a expressão tradicional‘peculiar interesse’ por ‘interesse local’.Com isso, perdeu-se entendimentoconsolidado em doutrina de dezenasde anos, já que desde a Constituiçãoda República de 1891 usava-se aexpressão “peculiar interesse” (conf.art. 61).

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Observa-se, no entanto, que o valor do conceito“interesse local” enquanto tipo constitucional estáexatamente na sua forma aberta de se apresentar,ajustando-se ao caso concreto, pois, do contrário, oordenamento jurídico correria o risco de ser engessado,padronizando-se regras e condutas que não atenderiamà dinâmica sócio-jurídica do cotidiano, contrariando emessência, a própria noção de Federalismo.

3. Interesse local e bens ambientais – o municípiocomo também interessado

Ante ao subjetivismo que se pode atribuir ao conceitode interesse local, faz-se necessário vincular tal interessea um dado rol de bens jurídicos. Desta feita, em matériade meio ambiente, que por sua vez, também goza derelativo subjetivismo como antes assinalado, o interesselocal ganha materialidade e concretude quandorelacionado aos bens ambientais resguardados pela CartaConstitucional de 1988. Segundo Rodrigues:29

Considerando que o meio ambientesadio e equilibrado constitui um direitodo homem, cuja tarefa é manter oentorno ecologicamente equilibrado(dever do poder público e dacoletividade) para futuras gerações,torna-se interessantíssimo o estudodos componentes desse bemambiental (do equilíbrio ecológico),porque o próprio homem, sujeito dedireitos, é parte indissociável doecossistema e deve respeitar a suafunção e papel na manutenção do seuequilíbrio, sob pena de exterminar tudo

29 RODRIGUES, Marcelo. Op. cit., nota 13, p. 59.

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que está a sua volta, e inclusive a simesmo.

É exatamente essa lógica interativa e de âmbitocoletivo que denota a natureza jurídica do bem ambiental.Trata-se de um direito difuso conforme esclarece ValeryMirra:30

Os e estudos realizados sobre oestatuto jurídico do meio ambiente emregra preferem limitar o exame damatéria e a qualificação jurídica domeio ambiente e dos bens ambientaise aos regimes jurídicos sobre elesincidentes. Segundo se entende,qualificar juridicamente o meioambiente e dos bens ambientais deextrair o regime jurídico aplicável é oquanto basta para determinar oestatuto jurídico do meio ambiente noordenamento jurídico de umdeterminado país. Acreditamos,porém, que no caso específico dodireito brasileiro a análise do estatutojurídico do meio ambiente não estariacompleta se não se fizesse referênciaà previsão constitucional do direito aomeio o ambiente ecológica menteequilibrado como direito humanofundamental, de natureza difusa.

Consagrar o meio ambiente como direitofundamental é de grande relevância, pois a proteção aoambiente ecologicamente equilibrado, como direitofundamental, implica em proteção á vida e a dignidade dapessoa humana.3132

30 MIRRA, Alvaro Luiz Valery. Op. cit., nota 16, p. 53.31 Ana Paula Costa Barbosa em A fundamentação do princípio da dignidadehumana esclarece o seguinte: "Retornando a Santiago Nino, o princípio dadignidade da pessoa justifica-se, tendo, como ponto de partida teórico, a teseuniversal de John Rawls sobre o direito á livre escolha de um plano de vida,

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Neste sentido continua a explicação Mirra:33

Essa consagração do direitofundamental ao meio ambiente entrenós é de extrema importância.Em primeiro lugar, porque reconhecerum determinado valor como direitofundamental significa considerar a suaproteção como indispensável à vida ea dignidade das pessoas - núcleoessencial dos direitos fundamentais.O texto constitucional diz, inclusive,enfaticamente, que o meio ambienteecológica mente equilibrado é o“essencial à sadia qualidade de vida “de todos.Em segundo lugar, porque proclamarum direito fundamental, qualquer queseja, implica erigir o valor por eleabrangido em elemento básicoessencial do modo democrático quese pretende seja instalado no país, jáque, na lição de Fábio KonderComparato, a construção de um

pluralismo e respeito pelas diferenças. Com efeito, admite o professor argentinoque as manifestações de vontade das pessoas estão condicionadas por suasituação social, suas tendências psicológicas e, em função disso, resulta aidéia de que os homens devem ser tratados segundo essas manifestações devontade, na medida em que são constitutivas de seus planos de vida.32 O princípio da dignidade da pessoa prescreve que todos os homens devemser tratados em conformidade com suas decisões, intenções ou manifestaçõesde consentimento. Mas sua importância se dá pelo fato de que, ao adotarmosesse princípio e não termos justificação para adotar outros que prevejamoutras características dos indivíduos, como a da sua cor de pele ou seu graude inteligência, a diretriz que ele estabelece implica um elemento fundamentalde concepção liberal da sociedade." In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.).Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 89-90.33 O artigo 2º da Lei nº 6.938/81 descreve os objetivos da Política Nacional doMeio Ambiente, nos seguintes termos: "Art. 2º - A Política Nacional do MeioAmbiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidadeambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições aodesenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e àproteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios: (...)(grifo nosso).

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verdadeiro estado democrático dedireito - aspiração incontestável doconstituinte de 1988 e de toda asociedade - não se pode dar sem orespeito aos atributos essenciais dapessoa humana expressos nos direitosfundamentais. Nesses termos, não sepode falar em verdadeira democraciano Brasil, sem que se garanta apreservação desse direito de todos aomeio ambiente sadio e equilibrado.

Corroborando a mesma linha de pensamento, LuizCarlos Carvalho de Almeida34 aponta a essencialidade domeio ambiente equilibrado como garantia da qualidade devida digna, com grande eloqüência, da seguinte forma:

Da análise de tais dispositivosconstitucionais, percebemos,inicialmente, que o meio ambienteecologicamente equilibrado é essencialà qualidade de vida digna.Mais que evidente, é incontestável apercepção que, no atual estágio dahumanidade, toda a vida humana correo imenso risco de perecer. A toda horado dia e da noite, somos informadospelos meios de comunicação emmassa, de quadros deprimentes deguerras tecnológicas, de acidentesambientais de magnânimasproporções, enfim, de infinitosimpactos ambientais negativos damais alta relevância, que induzem einterferem drasticamente em todo ogeossistema planetário, a ponto decomprometer a existência digna de vidade toda a humanidade.

34 ALMEIDA, Luiz Carlos de. Op. cit., p. 53-54.

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Como sabemos, o legisladorconstitucional ao determinar o meioambiente como um direito fundamental,assim o fez por considerar a suaproteção como indispensável à vida eà dignidade das pessoas, essência dosdireitos fundamentais. Sim, poisconforme já comentado nopresente trabalho e repetido agora,mais importante que garantir odireito à vida, é garantir o direito àqualidade de vida. Sendo assim, aonosso ver, o processo democráticosó estará concluído em nosso País,no momento em queconsolidarmos o direito de toda asociedade viver sadia eequilibradamente, no meio doambiente. (grifo nosso)

Verifica-se também que além da proteção ao meioambiente como direito difuso fundamental, existe anecessidade de se proteger cada um dos elementoscorpóreos que compõem o meio ambiente, como expõeÁlvaro Luiz Valery Mirra:35

Os elementos corpóreos integrantesdo meio ambiente têm conceituação eregime próprios e estão submetidos auma legislação própria e específica àlegislação setorial (o Código florestal,a Lei de proteção à fauna, o Código deáguas, a legislação sobre proteção dopatrimônio cultural, etc.). Quando sefala, assim, na proteção da fauna, da

35 Responsabilidade civil offshore: uma concepção holística na perspectivacivil-constitucional no monitoramento dos danos ambientais como expressãoda dignidade humana. 2003. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito deCampos, Campos dos Goytacazes, 2003.

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flora, do ar, da água e do solo, porexemplo, não se busca propriamentea proteção desses elementos em si,mas deles como elementosindispensáveis à proteção do meioambiente como bem imaterial, objetoúltimo e principal visado pelo legislador.

Nesse sentido, o enfoque de Antonio HermanVasconcelos Benjamin:36

Como bem - enxergado como verdadeirouniversitas corporalis é imaterial - nãose confundindo com esta ou aquelacoisa material (floresta, rio, mar, sítiohistórico, espécie protegida, etc.) queo forma, manifestando-se, ao revés,como o complexo de bens agregadosque compõem a realidade ambiental.Assim, o meio ambiente é bem, mascomo entidade, onde se destacamvários bens materiais em que sefirma, ganhando proeminência, nasua identificação, muito mais o valorrelativo à composição, característicaou utilidade da coisa do que aprópria coisa. (grifo nosso).

Uma definição como esta de meio ambiente, comomacro-bem, não é incompatível com a constatação de queo complexo ambiental é composto de entidades singulares(as coisas, por exemplo) que, em si mesmas, também sãobens jurídicos: é o rio, a casa de valor histórico, o bosquecom apelo paisagístico, o ar respirável, a água potável.

Assim, para garantir uma efetiva proteção ao meioambiente como direito fundamental, a CRFB/8837 faz

36 BENJAMIN, Antonio Herman Vasconcelos. Ação civil pública e a reparação dodano ao meio ambiente. p. 179.37 A proteção do meio ambiente nos países menos desenvolvidos: o caso daAmérica Latina. In: Uma vida dedicada ao direito. Homenagem ao Carlos Henriquede Carvalho, o editor dos juristas. São Paulo: RT, 1995. p. 75.

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referendar a um leque de bens ambientais já definidos emoutras Constituições, bem como inaugura outros, a partirdo seu texto maior.

Assim, tendo por base o conceito de interessenacional, definem-se as águas3839 enquanto elementos queintegram os bens da União e dos Estados. O art. 20, incisoIII da referida Constituição dispõe que:

São bens da União: os lagos, rios equaisquer correntes de água emterrenos de seu domínio, ou quebanham mais de um Estado, sirvam

38 A referência quanto ao bem Água não foi originariamente tratada na Cartavigente. Podemos encontrar registros desta lógica de proteção desde aConstituição de 1937 (art. 36, b), como também em outros diplomas de mesmaenvergadura. (EC 1/69, art. 4º, I; CF/67, art. 4º, II e CF/46, art. 34, I). A título deexemplificação da urgente necessidade de maior controle e fiscalização dosrecursos hídricos, cita-se a introdução do Relatório sobre o acidente no rio Paraíbado Sul, em 29 de março de 2003, elaborado pela UENF e apresentado em anexo aeste trabalho: "O derramamento de 1,4 X 1.000.000.000 litros de rejeito da Indústriade Papel Cataguazes no córrego Cágado (MG), afetou a utilização de grandesáreas terrestres marginais (Fig. 1a, 1b e 1c) e da água, não apenas do referidocórrego, mas também dos rios Pomba e Paraíba do Sul (Fig. 2). Em um primeiromomento, através de um efeito agudo, foi observada a mortandade, não só dealgumas espécies da vegetação marginal nas áreas afetadas, como também depeixes, crustáceos e de animais silvestres e domésticos. A mortandade dosorganismos aquáticos foi relacionada principalmente à depleção completa deoxigênio dissolvido no meio e à alterações drásticas na físico-química da água,que apresentou elevação significativa do pH e concentração de solutos, levandoà falência múltipla dos tecidos e órgãos desses organismos, especialmente pordeficiência na pressão osmótica. A interrupção na captação e distribuição deágua dos rios Pomba e Paraíba do Sul em todos os municípios a jusante do córregoCágado, afetou o cotidiano de cerca de 600.000 habitantes, distribuídosespecialmente em oito municípios do norte e noroeste do Estado do Rio de Janeiro,situados ao longo destes rios. Além disso, o espalhamento da 'marcha de jeito' aolongo do litoral norte do Estado e sul do Espírito Santo, durante as duas semanasseguintes ao derramamento do rejeito em Cataguazes (MG), ocasionou ofechamento das praias para recreação e a proibição da pesca no litoral nortefluminense por 90 dias. Tendo em vista o ocorrido, vários pesquisadores daUniversidade Estadual do Norte Fluminense iniciaram um programa de monitoramentoda água do rio Paraíba do Sul, em Campos dos Goytacazes, e da água marinhapróxima a sua foz."39 A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - definiu, para aCampanha da Fraternidade de 2004, o seguinte tema: Fraternidade e Água,demonstrando a preocupação da Igreja Católica com o bom aproveitamentodos recursos hídricos como meio de garantir condições de vida digna.

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de limites com outros países, ou seestendam a território estrangeiro oudele provenham, bem como osterrenos marginais e as praias fluviais.

Nessa mesma linha, porém referendando osinteresses de ordem regional ou estadual o art. 26 daCarta Constitucional vigente dispõe que:

Incluem-se entre os bens dosEstados: as águas superficiais ousubterrâneas, fluentes, emergentesem depósito, ressalvadas, nestecaso, na forma da lei, as decorrentesde obras da União.

Muito embora foco de Constituições anteriores àde 1988, à água enquanto bem jurídico indissociável deoutros recursos ambientais, não era destinado nenhumsistema de integração e proteção ambiental. Em outraspalavras, somente em 1988 que se busca, para além dereconhecê-la como bem ambiental e coletivo, estruturarum sistema que aja de forma integrada e articulada paraefeito de proteção e promoção deste bem e conseqüentedireito. É com tal objetivo que se dá a promoção doSistema Nacional de Gerenciamento de RecursosHídricos, onde se definem:

... o aproveitamento dos cursos d‘água(CRFB/88 – art. 21, XII); a participaçãono resultado da exploração (art 20,§1º); a competência para legislarsobre as águas (“Competeprivativamente à União legislar sobre:(...) as águas (...)” – art. 22, IV) e oaproveitamento de recursos hídricosem terras indígenas (art. 231, § 3º).

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O Sistema Nacional de Gerenciamento dos RecursosHídricos40 foi instituído pela lei nº 9.433/97 e regulamentadopelo Decreto nº 2.612/98 que estabeleceram:

... princípios básicos para a gestão dosrecursos hídricos no país: a) a adoçãoda bacia hidrográfica como unidadesde planejamento; b) o reconhecimentode que a água é um bem econômico;c) a necessidade de seremcontemplados com os usos múltiplosexistentes e potenciais do recurso; d)

40 Luís Henrique Cunha explica o contexto no qual surge a lei que trata doSistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos e seus princípiosorientadores: "Na década de 1970, a legislação destinada a regular o uso e oacesso aos recursos de hídricos no país, embora abrangente, não correspondiamais aos problemas ambientais específicos gerados no contexto dodesenvolvimento industrial. As fontes de conflito entre múltiplos usuários semultiplicavam com a construção de hidrelétricas; com o depósito de esgotosurbanos e industriais no leito dos rios; com a contaminação dos lençóis freáticospela indústria e pela agricultura; com o aumento da demanda de água tratada noscentros urbanos e com a expansão da agricultura irrigada, entre outros fatoresdesestabilizadores das relações sociais contempladas no Código de Águas de1934. Nessa época, países como Canadá, Japão, Inglaterra, Itália e Bélgica sedesenvolveram em processos de revisão de suas legislações sobre os usos daágua. No Brasil, surgiram experiências pioneiras de gestão de baciashidrográficas com histórico de conflitos entre diferentes usuários, especialmentena região Sul e Sudeste, com suas modernas estruturas de produção industriale agrícola, e posteriormente no Nordeste, região marcada pela maior escassezdo recurso. Os modelos de gestão implementados ao nível local ou regional eramfundamentados nas bacias hidrográficas, recorte espacial/ territorial que incluíanão apenas os rios, afluentes e reservatórios subterrâneos, mas, também,outros elementos da paisagem física e social. As áreas de várzea, com tudo,receberam atenção especial por serem ecológica mente mais vulneráveis e porconcentrarem, normalmente, o maior percentual do contingente populacional. Acrescente percepção da necessidade de mudança nos mecanismos de regulaçãodo uso dos recursos hídricos e deu origem ao projeto de lei nº 2.249, encaminhadopelo governo federal ao Congresso Nacional em 1991. Esse projeto foitransformado na lei 9.433/97 (conhecida como lei das águas), que estabeleceuos princípios básicos para a gestão dos recursos hídricos no país: a) a adoçãoda bacia hidrográfica como unidades de deus planejamento; b) o reconhecimentode que a água é um bem econômico; c) a necessidade de serem contempladoscom os usos múltiplos existentes e potenciais do recurso; d) a implementação deum modelo de gestão descentralizada e participativo. (grifo nosso)". Política eGestão Ambiental. In: CUNHA, Sandra Baptista da; GUERRA, Antônio José Teixeira(Org.). A questão ambientel. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p.73.

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a implementação de um modelo degestão descentralizado e participativo.

O referido sistema estabelece regras para a criaçãoe funcionamento dos comitês de bacias,41 os quais sãodefinidos como fóruns de decisão no âmbito de cada baciahidrográfica. Esses comitês são formados porrepresentantes dos usuários dos recursos hídricos, Dasociedade civil organizada e dos três níveis de governo esão apoiados por agências de águas que apóiam um oumais comitês de bacias.

Luis Henrique Cunha e Maria Célia Nunes Coelho42

em estudo sobre política e gestão ambiental fazemesclarecimentos sobre a Agência Nacional de Águas,complementado o assunto:

As discussões travadas no âmbito daSecretaria de Recursos Hídricos(SRH), atualmente vinculada aoMinistério do Meio Ambiente, levaramà criação, em 2000, da AgênciaNacional da Água (ANA), que tem,entre suas atribuições, a cobrança pelouso da água, constitucionalmenteconsiderada como um bem público.Embora o processo de arrecadação

41 Dentre as propostas apresentadas pela equipe da UENF que elaborou orelatório em função do acidente ocorrido no Rio Paraíba do Sul em 29 de MarçoDe 2003 (anexo ao presente estudo), destaca-se, sobre os comitês de bacia,o seguinte: "Este acidente é uma oportunidade para, através do comitê debacia do rio Paraíba do Sul (CEIVAP), órgãos governamentais e sociedade civilorganizada promoverem ações conjuntas pelo fortalecimento dos mecanismosinstitucionais estabelecidos, visando à formulação de políticas públicas e decaráter pró-ativo que previnam a repetição deste tipo de evento catastrófico.Esta seria a forma mais eficiente da sociedade obter uma efetiva transparênciano processo de gerenciamento ambiental, e a aplicação dos recursos oriundosdas multas, para as futuras ações em escalas local, regional e nacional."42 CUNHA, Luis Henrique. COELHO, Maria Célia Nunes. Política e gestão ambiental.In: CUNHA, Sandra B. da; GUERRA, Antônio J. Teixeira (Org.) A questãoambiental. Diferentes abordagens. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 43

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dos recursos financeiros seja umaatribuição da ANA e das entidadesestaduais, a aplicação dessesrecursos deverá ser descentralizada evinculada à contratos de gestão, aserem estabelecidos entre a ANA/entidades estaduais outorgantes ecada agência de água. Todo oprocesso se dará, portanto, sob aintermediação dos comitês de bacias.A definição da bacia hidrográfica comoa unidade geográfica pertinente paraatender a objetivos propostos pororganizações institucionaisemergentes não é apenas umreconhecimento do peso da dimensãoecológica, mas também dasdimensões sociais, culturais e políticasna compreensão da complexidade dosprocessos ambientais.O modelo de gestão das baciashidrográficas, adotado na legislaçãobrasileira, é baseado nos pressupostosdo co-manejo e da descentralizaçãodas tomadas de decisão. Nessesentido, os comitês de bacias e asagências de água representam(re)arranjos institucionais com oobjetivo de conciliar interessesdiversos e muitas vezes antagônicos,assim como controlar conflitos erepartir responsabilidades.

Outro bem ambiental definido em sedeconstitucional são as Cavidades Naturais Subterrâneas.Nas constituições passadas esta matéria não erareferendada, sendo inaugurado seu tratamento no art.20 da constituição vigente. Diz o referido artigo: “São bensda União: (...) X – as cavidades naturais subterrâneas eos sítios arqueológicos e pré-históricos”.

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Quanto a tal dispositivo, Machado43 entende que:

Não há necessidade de cada cavidadenatural subterrânea ser declarada comobem da União. A norma é auto-aplicável. Importa salientar que não seexigiu excepcional ou notável interessecientífico ou turístico para que acavidade natural subterrânea seja bempúblico. De outro lado, a cavidade, pelopróprio Poder Público merece ser maiscontrolada. Foi um primeiro passo dadopela Constituição Federal que,contudo, não esgotou a proteção dacavidade natural subterrânea, como doacesso à mesma, salientando-se queas adjacências de uma cavidadeprecisam da proteção da legislaçãoordinária.

A CFRB/88 em seu artigo 22 trata da energia enquantobem diretamente ligado à questão ambiental, além de serdefinida como matéria de competência privativa da União. Nestesentido, dispõe a Constituição no referido artigo: “Competeprivativamente à União legislar sobre: águas, energia,telecomunicações e radiodifusão”. A mesma matéria foiabordada por outras Constituições, ressalvadas suasespecificidades (EC 1/69, art. 8º, XVII; CF/67, art. 8º, XII; CF/37, art. 16, XIV e CF/34, art. 5º, XIX).

A CRFB/88 inclui no rol de bens ambientais tuteladosos Espaços Territoriais Protegidos e seus componentes,inovando no tratamento da matéria e na:

... proteção dos espaços territoriaiscomo parques nacionais, estaduais,municipais; reservas biológicas,estações ecológicas, áreas de

43 MACHADO. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 103.

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proteção ambiental. Poderão ser essesespaços territoriais criados por decretoe/ou por lei, mas não poderão seralterados e/ou suprimidos pordecreto.44

A matéria neste sentido passa a gozar do caráterde ser permanente, abrindo-se nas esferas competentes,espaços aos ambientalistas45 na definição e proteçãodestes ambientes.

A fauna46 por sua vez, era tratada pelos textosconstitucionais antecessores não por esta terminologia,mas sim por “caça.” Na Constituição vigente encontra-se

44 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Op. cit., nota 43. p. 104.45 “Ambientalismo é o movimento organizado de cidadãos e governantespreocupados em proteger, enriquecer e melhorar o ambiente vital das pessoas.Os ambientalistas estão preocupados com os danos causados ao ecossistemapor mineração predatória, depredação de florestas, chuva ácida, perda dacamada de ozônio na atmosfera, detritos tóxicos e lixo; com a perda de áreasde recreação; e com o aumento de problemas de saúde causados por ar eágua poluídos e alimentos tratados quimicamente, sendo estas preocupaçõesa base do ambientalismo. Os ambientalistas desejam que os custos ambientaissejam considerados na tomada de decisão de fabricantes e consumidores.São favoráveis a impostos e legislação para reduzir os custos sociaisatribuídos ao comportamento ambientalista, exigindo, assim, por parte dasempresas, investimentos em equipamentos antipoluição, a taxação sobregarrafas sem retorno e o banimento de detergentes com alto teor de fosfato,que são vistos como necessários para induzir empresas e consumidores aagirem conforme as normas ambientais.” SUCUPIRA, Talman. Ambientalismo.Direito Ambiental. O Comportamento De Algumas Empresas. In: Revista daFaculdade de Direito da USP. V. 16, nº 2, 1999. p. 205.46 Segundo a zoologia, a quantidade e a variedade das espécies animaisexistentes numa região são proporcionais à quantidade e a qualidade davegetação. Em vista disso, podemos falar de faunas (no plural), como conjuntoos de animais dependente de determinadas regiões ou habitats ou meiosecológicos particulares; por aí se compreende as designaçõescorrespondentes a adaptação animal aos fatores de ordem geográfica ouaos fatores ecológicos. Não se pode esquecer que a fauna está semprerelacionada ao ecossistema. Essa correlação íntima entre animais e plantase deve-se, em grande parte, ao fato de que os animais não fazem a sínteseda matéria orgânica a partir dos elementos orgânicos encontrados na natureza,o que é feito pelas plantas. Conclusão óbvia: se desaparecessem as plantas,todos animais morreriam de inanição. Por outro lado, há um equilíbrio naturale estabelecido no interior dos ecossistemas, de modo que uns são vegetarianosou herbívoros e outros, carnívoros. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente:doutrina, prática, jurisprudência e glossário. p. 171.

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agasalhada no art. 24, VI que dispõe: “Compete à União,aos Estados e ao Distrito Federal – legislarconcorrentemente sobre: (...) fauna (...)”. Segundo a CRFB/88 a Fauna, enquanto bem ambiental, tem sua proteçãoorientada por três direções:

... veda práticas que coloquem em riscoa sua função ecológica (essas práticaspodem ser desde a aplicação depesticidas, o desmatamento ou adestruição dos habitats); práticas queprovoquem a extinção das espécies(além das práticas anteriores,mencionamos a abertura de caça emtemporada inadequada) e práticas quesubmetam os animais à crueldade. Aproteção dada pela Constituição Federalremete sua aplicação à legislaçãoordinária e/ou complementar.

Édis Milaré47 faz comentário sobre a legislaçãoaplicável à fauna, lamentando a falta de uma efetiva políticade preservação da mesma, nos seguintes moldes:

Nos tempos hodiernos, a tutela da flora ede importantes ecossistemas brasileiros,como a floresta amazônica e a mataatlântica, é concebida também comoindispensável para a preservação dafauna. Esse avanço - a tutela jurídica dainteração entre fauna, flora eecossistemas - ocorreu com a edição daConstituição da República de 1988,restando ainda por elaborar-se alegislação infraconstitucional.De fato, a Carta de 1988, em seu art.23, VII, estabelece que a preservaçãoda fauna, juntamente com a flora, é de

47 MILARÉ, Èdis. Op. cit., nota 23, p. 174.

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competência comum da a União, dosEstados, do Distrito Federal e dosMunicípios. E, no art. 24, VI, prevê acompetência concorrente da União,dos Estados e do distrito Federal paralegislar sobre caça, pesca e fauna. Aosmunicípios, nessa matéria, cabesuplementar a legislação federal e aestadual no que couber, conformedispõe o art.30, II.Mais adiante, o art. 225, caput, §1º,VII, inclui a proteção à fauna,novamente com a flora, como meio deassegurar a efetividade do direito aomeio ambiente equilibrado, estandovedadas, na forma da lei, as práticasque coloquem em risco sua funçãoecológica, provoquem a extinção deespécies ou submetam os animais àcrueldade.Da legislação infraconstitucional, valemencionar o decreto-lei nº 221/67, quedispõe sobre a proteção e o estímuloà pesca (Código de Pesca), e a lei nº5197/67, que dispõe sobre a proteçãoà fauna (Código de Caça).

Como se vê, embora a constituição tenha estabelecidoprincípios e regras acerca da matéria, falta ainda uma efetivapolítica de preservação da fauna, sob uma ótica interdisciplinare mais próxima da realidade, para atualizar a legislaçãoinfraconstitucional com o ideal ditado pela lei maior.

Neste mesmo sentido, o termo flora48 é tambéminaugurado pela Carta Constitucional de 1988. Contudo, muito

48 A flora é entendida como a totalidade de espécies que compreende a vegetaçãode uma determinada região, sem qualquer expressão de importância individualdos elementos que a compõem. Elas podem pertencer a grupos botânicos osmais diversos, desde que estes tenham exigências semelhantes quanto aosfatores ambientais, entre eles os biológicos, os do solo e o do clima.

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embora o art. 23 da atual Constituição preveja em seuinciso VII a preservação das florestas, da fauna e da flora,no art. 24, mais por imperfeição textual (Machado, 2000),que propriamente por uma intenção do legislador, ao disporsobre competência concorrente em matéria ambiental,não há previsão literal da flora. Assim, por deduçãoequipara-se tal bem, em matéria de competência paralegislar, às expressões “conservação da natureza, defesado solo e dos recursos naturais” (art. 24, CFRB/88).

Detalhando um pouco mais os bens ambientaisconsagrados pela Carta de 88, temos as florestas comoreferência de preservação nos art. 23, VII e 24, VI (matériade competência comum entre União, Estados, DistritoFederal e municípios). No tocante a este bem, faz-seressalva expressa à Floresta Amazônica e à Mata Atlântica,o primeiro entendido enquanto:

... patrimônio nacional e sua utilizaçãofar-se-á, na forma da lei, dentro decondições que assegurem apreservação do meio ambiente,inclusive quanto ao uso dos recursosnaturais (art. 225, § 4º).

Esta mesma concepção é dispensada à MataAtlântica pela CRFB/88 em seu art. 222, § 4º. Neste sentidovale a assertiva de Machado:49

O parágrafo da Constituição federalconstitui um indicador para olegislador ordinário, que, entretanto,pode ficar como letra morta se não forfeito grande esforço para se reformulara legislação abrangendo tanto aFloresta Amazônica, como a MataAtlântica e outras áreas frágeis e

49 MACHADO. Op. cit., nota 43, p. 110.

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emprego de destruição. Comoaplicação concreta, pode-se extrair dotexto constitucional que esses bensambientais interessam não só à própriaregião onde estão inseridos, mas todaa nação e que as intervenções nessasáreas necessitam da manifestaçãodos Poderes Públicos federais e nãosomente dos órgãos estaduais e/ouregionais.

Como colocado inicialmente, quando a matéria ébem ambiental, seu possível dano50 vincula de formainterdependente os interesses tanto locais, regionais emesmo nacional. Neste sentido, indiscutivelmente, ointeresse local como ferramenta de efetivação daautonomia dos municípios, é de fundamental relevância,sobretudo em matéria de direito ambiental.

Quando se trabalha com o intuito de determinar oconteúdo de dano ambiental, a questão assume umformato distinto da previsão legal dentro somente da esferacível.

José Rubens Morato Leite51 assim aborda a questão:

O evento danoso, como visto, vem aser a resultante de atividades que,direta ou indiretamente, cause adegradação do meio ambiente (=qualidade ambiental) ou a um ou maisde seus componentes.

50 José Rubens Morato Leite explica que: "No direito comum, o regime da responsabilidadee extracontratual ou aquiliana de aplicação geral é o da responsabilidade subjetiva,fundada na culpa ou dolo do agente causador do dano. Na legislação especial, aocontrário, o dano ambiental é regido pelo sistema da responsabilidade objetiva, fundadano risco, que prescinde por completo da culpabilidade do agente e só exige, paratornar efetiva a responsabilidade, a ocorrência do dano e a prova do nexo causal coma atividade. LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivoextrapatrimonial. São Paulo: RT, 2000. p. 220.51 Ibid., p. 107-108.

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Tanto as lesões materiais como as emateriais são suscetíveis decomposição, na linha do queexpressamente prevê hoje a lei nº 7347de 85, em seu artigo 1º, caput, com aredação determinada pelo artigo 88 dalei 8884 de 94.Vem à baila, aqui, intrigante questãode se precisar a linha de fronteira entreo uso e o abuso, isto é, o limite daintensidade do dano é capaz dedetonar a obrigação reparatória.Por certo, como tal não se há deentender toda e qualquer diminuiçãoou perturbação à qualidade doambiente, certo que a mais simplesatividade humana que, de algumaforma, envolva a utilização de recursosnaturais pode causar impactos. Assim,seria lógico sustentar-se que para odireito só interessaria aquelasocorrências de caráter significativo,cujos reflexos negativostranscendessem os padrões desuportabilidade pré-estabelecidos. Asolução, no entanto, não é tão simples.Em primeiro lugar, porque a lei,ressalvados alguns poucos casos(poluição hídrica e atmosférica, porexemplo), não apresenta parâmetrosque permitam uma verificação objetivada significância das modificaçõesinfligidas ao meio ambiente. Demais,“é importante salientar que o merorespeito aos padrões de emissão oude imissão não garante, por si só, queé uma atividade não seja poluidora.Isso porque tais padrões normatizadossão meramente indicativos de que asconcentrações previamente fixadas de

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uma dada substância ou matéria nãocausaram prejuízos à saúde pública,as espécies de fauna e da flora e aosecossistemas. Pode ocorrer, porém,que apesar de plenamente conformeos padrões estabelecidos, olançamento de uma determinadasubstância se mostra nociva e daí seráindispensável a sua redução ouproibição para compatibilizá-lo com oobjetivo básico dessa técnica, que éevitar a poluição”.Em segundo lugar, lembre-se que aconjuração dada a novidade ambientalse pauta pela teoria daresponsabilidade objetiva, fundada norisco, a teor da qual não se perquirir ailicitude da atividade, já que tão-somente a agressividade é suficientea provocar a tutela jurisdicional.Em terceiro lugar, é preciso terpresente que muitas demissões, atéinocentes quando isoladamenteconsideradas, podem, examinadas nocontexto de um conglomeradoindustrial, por exemplo, apresentar oextraordinário potencial poluidor, emrazão de seus efeitos sinérgicos.Por fim, é da própria lei que a poluiçãonão se caracteriza apenas pelainobservância de normas e padrõesespecíficos, mas também peladegradação da qualidade ambientalresultante de atividades que direta ouindiretamente: a) prejudiquem a saúde,segurança e o bem-estar da população;b) criem condições adversas casoatividades sociais e econômicas; c)afetem desfavoravelmente a biota; d)afetem as condições estéticas ou

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sanitárias do meio ambiente. Vale dizer,poluição é degradação que se tipificapelo resultado danoso,independentemente da inobservânciade regras ou padrões específicos.Destaque, à míngua de critériosobjetivos de seguros, pode-se concluirque a aferição da anormalidade ou perdado equilíbrio setor se fundamentalmenteno plano fático e não no planonormativo, segundo normaspreestabelecidas. Conseqüência disso,é que a caracterização do eventodanoso, afinal, acabou entregue aosubjetivismo e descortino dos juízes,no exame da situação enfática e daspeculiaridades de cada caso concreto.

Dando prosseguimento ao rol de bens ambientaistipificados na Carta de 1988, o art. 20, II do referido textodispõe que:

São bens da União: (...) IV – as ilhasfluviais e lacustres nas zonas limítrofescom outros países, as praiasmarítimas, as ilhas oceânicas e ascosteiras, excluídas, destas, as áreasreferidas no art. 26, II.” E, “incluem-seentre os bens do Estado: (...) II – asáreas nas ilhas oceânicas e costeiras,que estiverem no seu domínio,excluídas aquelas sob o domínio daUnião, Municípios ou terceiros; III – asilhas fluviais e lacustres não pertencemà União (art. 26).

A paisagem é de competência comum entre osentes da federação, sobretudo na referência que a CFRB/88 faz às “paisagens naturais notáveis” (art. 23, III).Contudo, acerca da proteção ao patrimônio paisagístico acompetência entre a União e os Estados é de natureza

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concorrente (art. 24, VII). Há uma aparente imprecisãoterminológica e Machado52 faz algumas consideraçõessobre a concepção de patrimônio, patrimônio paisagísticoe paisagem:53

A concepção de patrimônio é maislarga do que a de propriedade e projetaum relacionamento de gerações, poisas gerações presentes conservarãopaisagens não só para si mesmas,mas para as gerações que asucederão. A concepção depaisagem, como patrimônio, não deveimobilizá-la, mas confere-lhedurabilidade, inserindo-a, portanto, nasações por um desenvolvimentosustentado.... A paisagem é a “relação que seestabelece entre um lugar e ummomento concreto, entre umobservador e o espaço que ele abrangecom o olhar”.

A jurista Jacqueline Morand-Deviller, da Universidadede Paris I, aponta a relação entre o sujeito e o objeto, istoé, o sujeito – aquele que olha – e o objeto – a paisagem.Acentua que essa relação não pode ser dissociada.

O mar territorial,54 antes da presente Constituição(art. 20, VI), só teve referência na EC 1/69, art. 4º, VI.Segundo a lei n.º 8.617/93, art. 1º:

52 MACHADO. Op. cit., nota 43, p. 111.53 A paisagem na condição de bem ambiental a ser tutelado, já havia previsãoem Constituições anteriores: CF/37, art. 134; CF/46, art. 175; art. 67, art. 172;EC 1/69, art. 172 e CF/67, art. 172.54 Celso Duvivier de Albuquerque Mello descreve o conteúdo de mar territorial:A noção de mar territorial tem sido dada de maneira mais ou menos uniformepela prática internacional. Uma definição é a que encontramos na Convençãode Genebra sobre mar territorial e a zona contígua (1958), cujo art. 1º afirmaque "A soberania do Estado se estende, além do seu território, e de suaságuas interiores, a uma zona de mar adjacente às suas costas". Pode-se dizerque a mesma definição está repetida no art. 2º da convenção de 1982. Como

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O mar territorial compreende uma faixade doze milhas marítimas de largura,medidas a partir da linha de baixa-mardo litoral continental e insularbrasileiro, tal como indicada nas cartasnáuticas de grande escala,reconhecidas oficialmente no Brasil.

As praias marítimas (CFRB/88, art. 20, IV) e aspraias fluviais (CRFB/88, art. 20, III) não foram previstasenquanto bens ambientais por outras Constituições. E,mesmo a conceituação legal do que tal bem representasó fora definido em 1988, através da Lei n.º 7.661, em seuart. 10, § 3º que dispõe que praia:

... é a área coberta e descobertaperiodicamente pelas águas,acrescidas de faixa subseqüente dematerial detrítico, tal como areias,cascalhos, seixos e pedregulhos atéo limite onde se inicie a vegetaçãonatural, ou e, em sua ausência, ondecomece um outro ecossistema.

bem observa La Pradelle, ele era uma criação do direito, sem corresponder auma moção geográfica. Ele seria o "mar dos juristas". O mar territorial é umanoção ao mesmo tempo do DIP e do direito interno. A expressão "mar territorial"não é a única utilizada para denominar este espaço marítimo. Outras existem,como a de mar litoral e mar nacional. Entretanto, a de mar territorial é apredominante e está consagrada nas convenções de 1958 e 1982. (...) a linhade base do mar territorial é aquela a partir da qual se mede a largura do marterritorial em direção ao alto mar. Ela é a linha que separa o mar territorial daságuas interiores. A sua importância tem sido realçada por que, quanto maismar afora, mais longe se dá o mar territorial, bem como mais larga será a áreadas águas interiores. A linha de base normal é aquela ao longo da costa nabaixa mar. O DI não define o que seja baixa mar. A convenção de Montego Baydeclara que é aquela "Indicada nas cartas marítimas de grande escala,reconhecidas oficialmente pelo Estado ribeirinho". No caso de costas instáveis,a linha de base não é modificada com o recuo da costa, a não ser que o Estadose decida a modificá-la. Esta norma que figura na alínea 2 do artigo 7º daconvenção foi feita para atender a Bangladesh. Curso de Direito InternacionalPúblico. 13ª ed. ver. e aum. V. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 1.116 e1.124.

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A plataforma continental55 e a zona econômicaexclusiva (CRFB/88, art. 20, V) constituem-se tambémcomo bens ambientais a serem protegidos pelos entes daFederação. Em ambos os casos, a CRFB/88 se antecipouà legislação infraconstitucional que trata especificamentede tais matérias. Assim, a Lei Federal n.º 8.617 de 04/01/1993 só veio definir tais bens depois da previsão expressana Carta de 1988. Segundo a referida lei, entende-se porplataforma continental a área que:

... compreende o leito e o subsolo dasáreas submarinas que se estendemalém do seu mar territorial, em toda aextensão do prolongamento natural deseu território terrestre até o bordoexterior da margem continental, ou até

55 Celso Duvivier de Albuquerque Mello descreve o conteúdo de plataformacontinental: "Os continentes não estão diretamente, de modo abrupto, sobre ofundo dos oceanos, mas repousam em uma plataforma, geralmente, de ligeirainclinação. O território de um Estado não desaparece de imediato com mar, masprolonga-se submerso. É a plataforma continental, cuja profundidade médiavai até 200 m ou 100 braças (180 m para os anglo-saxões), quando tem inícioo talude continental ou rebordo oceânico, que vai até a profundidade média de500 m e, posteriormente, vem a região pelágica, para finalmente mergulhar nasgrandes profundidades da região abissal. A noção geográfica de plataformacontinental já era encontrada no século XVII com o Marquês de Marsilli, fundadorda oceanografia. (...) A convenção de 1982 estabelece que: 'A plataformacontinental de um Estado custeio compreende o leito e o subsolo das áreassubmarinas que se estendem além de seu mar territorial e ao longo de todoprolongamento natural de seu território até o bordo exterior da margem conti-nental, ou até uma distância de 200 milhas marinhas, medidas a partir daslinhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial, nos casosem que o bordo exterior não atinja a essa distância'. Entretanto, este conceitoé esclarecido e limitado pelo seguinte: 'A margem continental compreende oprolongamento submerso da massa continental do Estado costeiro, estáconstituída pelo leito e subsolo da plataforma, o talude e a elevação continen-tal'. Acrescenta ainda que não compreende a parte profunda do fundo oceâniconem o seu subsolo. Na verdade, há aqui uma 'espécie de conciliação' vez quena 3ª Conferência das Nações Unidas um grupo de Estados alegava que aplataforma continental era um 'prolongamento do território' do Estado, e comisso pretendiam aumentar este esforço marítimo. Um outro grupo de Estadosafirmava que, em conseqüência, a plataforma continental seria substituídapela margem continental." MELLO. Op. cit., nota 54, p. 1.156-1.157.

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uma distendia de duzentas milhasmarítimas das linhas de base, a partirdas quais se mede a largura do marterritorial, nos casos em que o bordoexterior da margem continental nãoatinja essa distância.

E, a zona econômica exclusiva56 compreende “umafaixa que se estende das doze às duzentas milhasmarítimas, contadas a partir das linhas de base queservem para medir a largura do mar territorial” (art. 12, §único, da Lei nº 8.617/93).

O artigo 20 da CRFB traz inclusos neste rol de bensambientais tutelados, os sítios arqueológicos e pré-históricos, bem com os Terrenos de marinha e seusacrescidos. Em seu inciso X faz-se a previsão que “Sãobens da União: X – as cavidades naturais subterrâneas eos sítios arqueológicos e pré-históricos”. Machado57 dispõeque:

O dispositivo constitucional de 1988,mais amplo ao empregar o termo sítioe não jazida, pois pode abrangertambém a propriedade da superfície.A Lei 3.9924, de 26.7.191, previa quejá que as jazidas arqueológicas ou pré-históricas de qualquer natureza, nãomanifestadas e registradas na formados arts. 4º e 6º desta Lei, sãoconsideradas, para todos os efeitos,bens patrimoniais da União. Doravante,na ausência de expressa ressalva naConstituição, não se poderá maisregistrar ou manifestar tais jazidas e

56 "Parágrafo único. A investigação científica marinha na zona econômicaexclusiva só poderá ser conduzida por outros Estados com o consentimentoprévio do governo brasileiro, nos termos da legislação em vigor que regula amatéria". (art. 8º da Lei nº 8.71/93)57 MACHADO. Op. cit., nota 43, p. 114.

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sítios, ficando todos esses bensexclusivamente da União.

Já o inciso VII deste mesmo art. 20, define que “sãobens da União: VII – os terrenos da Marinha58 e seusacrescidos”. Trata-se de um patrimônio nacional, entendidocomo de uso comum do povo. Neste sentido, “a expressão“uso comum do povo” quando aplicada a bens públicos,refere-se a uma coisa corpórea; ao meio ambiente, refere-se a uma coisa incorpórea.”59

Por fim, temos em sede constitucional a previsãode proteção dos terrenos marginais (art. 20, III). ODecreto-lei nº 9.760/46, em seu art. 4º dispõe que osterrenos marginais são:

... os que banhados pelas correntesnavegáveis, fora do alcance das marés,vão até a distância de 15m medidoshorizontalmente para a parte da terra,contados desde a linha média dasenchentes ordinárias.

Quanto à previsão e estruturação de uma lógicaprotetiva acerca desses bens, Machado60 nos informa que:

... os bens ambientais foramamplamente acrescidos na ConstituiçãoFederal de 1988. O poder de políciaambiental dos Estados e dos Municípiosexiste também sobre os bens federais,

58 Os terrenos da Marinha foram conceituados a partir do Decreto-lei 9.760/46que dispõe compreender os terrenos da marinha a área "em uma profundidadede 33m, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha dapreamar mede de 1831, os situados no continente, na consta marítima e nasmargens dos rios e lagos, até onde se faça sentir a influência das marés e osque contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência dasmarés." (art. 2º)59 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de Direito Administrativo. São Paulo:Atlas, 2000. p. 56.60 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Op. cit., nota 43, p. 117.

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pois competência constitucional ératione materiae e não ratione dominium(art. 24, VI, VII e VIII, da CF). Contudo,os litígios civis que resultarem daaplicação das medidas do poder depolítica ambiental dos Estados e dosMunicípios, serão de competência daJustiça Federal, por força do art. 109. I,da CF, na medida em que a União tiverinteresse com ‘autora, ré, assistente ouoponente’. Não havendo interesse daUnião, a Justiça Estadual poderá sercompetente.

No que tange aos bens ambientais e respectivostitulares e interessados, percebe-se relativa flexibilidade emesmo incerteza das posturas que os entes da Federaçãodevem adotar nos casos em específico, ou seja, osubjetivismo que reveste a lógica de proteção segundo osinteresses (local, regional ou nacional) e que também sefaz presente na definição de meio ambiente, a princípio,em razão de sua imprecisão, pode levar a “conflitos decompetência” entre tais entes, principalmente naprevenção ou mesmo reparação do dano ambiental61. Mas,sobretudo, é refletido na Carta Constitucional atual, umsignificativo ampliar daquilo que é da esfera do município,dando-se vazão e reconhecimento formal à autonomiamunicipal.

61 Dano ambiental é "aquele que se constitui em um atentado ao conjunto deelementos de um sistema e que por sua característica indireta e difusa nãopermite, enquanto tal, que se abra direito a sua reparação". Prieur. ApudMACHADO. Op. cit., p. 171.

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4. Competência legislativa do município em matériaambiental

4.1. Competência legislativa em matéria ambiental– autonomia municipal em destaque

A competência legislativa concorrente é definidapelas expressas normas constitucionais, segundo asquais:

Art. 24. Compete à União, aosEstados e ao Distrito Federal legislarconcorrentemente sobre:..., segue-se um rol com 16 incisos,destacando-se, de acordo com nossotema:I- direito urbanístico;VI- florestas, caça, pesca, fauna,conservação da natureza, defesa dosolo e dos recursos naturais,proteção do meio ambiente e controleda poluição;VII- proteção ao patrimônio histórico,cultural , art íst ico, turíst ico epaisagístico;VIII- responsabilidade por dano aomeio ambiente, ao consumidor, abens e direitos de valor artístico,estét ico, histór ico, turíst ico epaisagístico.

Mesmo diante do silêncio da norma constitucional noque se refere aos municípios, evidencia-se que acompetência legislativa concorrente da União, com osEstados e o Distrito Federal, incluem, implicitamente osmesmos, como importantes unidades da federação,autônomas e integrantes da organização político-administrativa da República Federativa do Brasil, no tocanteàs matérias intimamente ligadas ao conteúdo de interesse

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local como: urbanismo, tributação, meio ambiente,educação, cultura e saúde.62

Mesmo os doutrinadores que divergem quanto àintegração do Município como componente da federação,como José Afonso da Silva,63 reconhecem sua autonomia.Além destes, a corrente majoritária, que tem comoexpressivos adeptos Hely Lopes Meirelles e Celso Bastos,como já demonstrado em capítulo anterior, reconhecemao município a condição de ente da federação, com suaautonomia e em pé de igualdade com os outros entes dafederação.

Assim é que, por força das normas constitucionaisrelativas à repartição de competências, observadas asnormas gerais da lei de competência da União, ouinexistindo a lei federal, as normas gerais de competênciaestadual, a competência legislativa concorrente doMunicípio,64 para legislar sobre específicas matérias deseu evidente interesse local concorrente, justifica-se combase na análise daquilo que preconiza os art. 24, I, VI, VII,VIII, IX, XII, combinados com a previsão constitucional desua autonomia nos arts. 1º e 18; bem como com o queprescrevem os artigos 23, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, XI(competência comum da União, dos Estados, do Distrito

62 BRASIL, Constituição Federal (1988), Art. 24 , I, VI, VII, VIII, IX, XII, CFRB/88.63 Foi equívoco do constituinte incluir os municípios como componente da federação.Município é divisão política do Estado-membro. E agora temos uma federação demunicípios e Estados, ou uma federação de Estados? Faltam outros elementospara a caracterização de federação de municípios. A solução é: o município é umcomponente da federação, mas não entidade federativa. (grifo nosso). SILVA,José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 105.64 Daniella S. Dias defende que: "Caso inexista a regra jurídica de âmbito geral ouregional, o Município não poderá legislar de forma plena para tratamento datemática, até porque seu interesse se cinge a questões locais, e sua competênciatem por isso, definição delimitada", seguindo uma linha que vai de encontro aopensamento de outros doutrinadores como Mukai que prescreve que '"a existênciade competência administrativa pressupõe a existência de competência legislativa,'porque pelo princípio da legalidade, a esfera de poder que recebe determinadoencargo administrativo deve primeiro legiferante sobre essa matéria e paralegitimar a sua ação nessa área.'" DIAS, Daniella S. Desenvolvimento urbano:princípios constitucionais. Curitiba: Juruá, 2002. p. 206-207.

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Federal e dos municípios); 29, 30, incs. I, III, V, VIII(competência privativa do Município para legislar sobre LeiOrgânica e matéria de interesse local); 182 (competênciado Município para a política de desenvolvimento urbano) e225 (meio ambiente), dentre outros.

No tocante à competência suplementar dosmunicípios, esta é expressamente prevista na normaconstitucional, competindo aos municípios suplementar alegislação federal e a estadual no que couber (art. 30, II).Pela abrangência da expressão “no que couber”, patenteé a competência do município para legislarsuplementarmente sobre matérias relacionadas com osrecursos ambientais diante de atividades ou condutaslesivas à qualidade ambiental local. É neste contexto quese inserem as legislações municipais com caráter protetivodo meio ambiente, dando-se ênfase ao conteúdo evidentede interesse local.

Confirmando este entendimento Sandra Silva,65

citando José Afonso, se expressa do seguinte modo:

Segundo o inciso II do mesmo art. 30,da Constituição de 1988, cada ummunicípio “suplementar a legislaçãofederal e estadual no que couber”.

Silva, neste particular exemplifica:

Aí, certamente competirá aosmunicípios legislar supletiva mentesobre: a) proteção do patrimôniohistórico, cultural, artístico, turístico epaisagístico; b) responsabilidade pordano ao meio ambiente, aoconsumidor, a bens e direitos de valorartístico, estético, histórico, turísticoe paisagístico local; c) educação,

65 SILVA, Sandra. Op. cit., nota 12, p. 88-89.

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cultura, ensino e saúde no que tangeà prestação desses serviços noâmbito local; d) direito urbanísticolocal, etc.Assim, mesmo diante da existênciade norma geral sobre preservação dopatrimônio histórico nacional, v. g.,enorme estadual acerca do mesmoassunto, no que tange ao interesseregional, tem o Municípiocompetência legislativa para disporsobre a preservação do patrimôniohistórico municipal. É certo que a leilocal terá de respeitar as linhas ediretr izes das leis nacional eestadual, mas também é certo quepoderá dispor sobre o assunto emnível local, de maneira supletiva, pormenus visando a regra geral em facede seu próprio interesse.Assim, para que essa competênciasuplementar possa ser exercitadaadequadamente, é necessário julgá-la com o interesse local. Diante dasistemática constitucional, é certoafirmar que, frente às matériasconferidas à união, não se podeinvocar apenas o interesse local paradar legitimidade à lei municipal. Deoutro lado, conforme já se acelerou,o interesse local não exclui onacional ou regional, pois inexiste ointeresse exclusivamente municipal.

É relevante observar que a competência legislativado município não é mais ou menos importante que ados outros entes da federação, pois cada um destestem sua esfera de atuação legislativa, inexistindo umahierarquia entre as normas federais, estaduais e

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municipais. Nesta mesma l inha de pensamentoesclarece Fernanda Dias Almeida:66

Afastando-se, em parte, da técnicatradicional, a Constituição de 1988 nãose limitou a demarcar a área dascompetências municipaiscircunscrevendo-as a categoriagenérica dos assuntos concernentesao peculiar interesse do Município. Foimantida, sim, uma área decompetências privativas nãoenumeradas, à medida que osMunicípios legislarão sobre osassuntos de interesse local (art 30, I).Mas o constituinte optou - e aqui estáa diferença em relação a técnicaanterior- por discriminar certascompetências municipaisexclusivas em alguns dos incisos doart. 30 de em outros dispositivosconstitucionais. Destarte, pode-sedizer das competências reservadasdos Municípios, que parte delas foienumerada e outra partecorrespondente a competênciasimplícitas, para cuja identificação ovetor será sempre o interesse local.(grifos nossos)

Para concluir o raciocínio, constata-se apossibilidade de o município editar sua lei orgânica,dispondo sobre os órgãos da administração públicamunicipal, os poderes do município e suas competências,observado o que determina a Carta Magna, sendo estacompetência legislativa uma forte expressão de suaautonomia municipal. Assim a capacidade de auto-

66 ALMEIDA, Fernanda Dias. Competências na Constituição de 1998. São Paulo:Atlas, 1991. p. 122.

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organização do município é concretizada através daedição de sua lei orgânica.

Constata-se, ainda,através de uma interpretaçãosistemática, que a lei orgânica encontra-se em grau desuperioridade em relação às demais leis municipais.Concordando com esta premissa, Sandra Silva afirma:67

Na pirâmide hierárquica doordenamento jurídico brasileiro, a leiorgânica do município representaperante o sistema jurídico local,guardadas as devidas proporções, oque a Constituição da Repúblicarepresenta para o sistema jurídiconacional.

No mesmo sentido assinala Mukai:68 “... a lei orgânicamunicipal será a constituição municipal ...”.

Discorda, no entanto, desta colocação, José AfonsoSilva,69 que assinala que “a lei orgânica do Município seconstitui em lei complementar à Constituição daRepública.”

Sem embargo da doutrina contrária, dada aautonomia municipal para dispor sobre o processolegislativo municipal, é possível que a lei orgânicadetermine que certas matérias sejam reguladas por leicomplementar a ela, desde que estabeleça processo deelaboração com maior rigor que o previsto para leiordinária. É o que de fato ocorre com algumas legislaçõesmunicipais relativas ao meio ambiente e, em especial, como Código Municipal de Meio Ambiente de Macaé/RJ queserá objeto de estudo no presente trabalho, como exemplodo exercício da competência legislativa municipal.Corroborando este entendimento explica Sandra Silva:70

67 SILVA, Sandra. Op. cit., nota 12, p. 100.68 MUKAI. Direito ambiental sistematizado, p. 38-39.69 SILVA, José, Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 229.70 SILVA, Sandra, Op. cit., nota 12, p. 104-105.

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... dada a autonomia do legisladormunicipal para dispor sobre o processoe o procedimento relativo municipal, épossível que este admita anecessidade de certas matérias seremreguladas por lei complementar à leiorgânica do município, com rigor formaldistinto da lei originária. A lei orgânica,neste ponto, pode exigir especialidade,qualificando com o adjetivo“complementar” leis municipais queversem sobre dada matéria.

Assim, no município em que a lei orgânica não oexigir ou for omissa, a matéria poderá ter o tratamento delei ordinária. Nos municípios onde a lei orgânica exigeprevisão de lei complementar para disciplinar certasmatérias, será esta a regular o exercício da competêncialegislativa municipal. Já o meio apropriado para a adição,supressão ou operação de dispositivo da própria leiorgânica será através de emendas a esta.

Como consideração final é fundamental observarque a Constituição (Art. 182, § 1º) estabelece aobrigatoriedade da elaboração do Plano Diretor para osmunicípios com mais de 20.000 habitantes, sem proibi-loaos demais, como instrumento básico da organização eexpansão urbana, cabendo ao município, observado o queestabelece a Lei nº 10. 257/01, executar e concretizar osprocessos urbanos, sejam estes na cidade ou fora dele.71

71 Daniela di Sarno aponta que: "O Município deve ser considerado na totalidadede seu território para fins de Direito Urbanístico (Lei n. 10.257/01, art. 2º, VII).Na cidade, núcleo do município, todos instrumentos poderão e deverão serutilizados para a plena realização dos objetivos urbanísticos. Nos eventuaisdistritos existentes dentro do território do município, também deverá havertratamento urbanístico, observando sua peculiaridade e sua fragilidade.Incluímos, também, área rural, naqueles espaços onde se formam vilas oupequenos aglomerados de casas, pois as pessoas têm, como cidadãs emunícipes, o direito à oferta das funções da cidade e dos equipamentos públicosadequados as suas necessidades." DI SARNO, Daniele. Elementos de direitourbanístico. Barueri: Manole, 2004. p. 41-42.

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