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AUTOPOÉTICO - FILIPE FREITAS

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“As realidades da vida, as histórias da evolução, têm o poder de unir todos os povos. Integrando os dados de milhares de cientistas e cultivando a dúvida e o ceticismo que são a epítome da investigação científica, essa invenção cultural chamada ciência talvez possa fornecer do mundo uma descrição mais convincente, se bem que sempre corrigível, do que os mitos provincianos e as tradições religiosas, geradoras de cisões e demandantes de fé. Isso não significa que os cientistas estejam sempre certos. No entanto, a história mais significativa da existência, para a humanidade do futuro, é mais provável que resulte da visão mundial evolutiva da ciência do que do hinduísmo, do budismo, do judaico-cristianismo ou do islamismo. A dupla compreensão da investigação científica e do mito da criação pode transformar-se numa visão única: uma narrativa científica rica em fatos comprováveis e sentido pessoal.” Lynn Margulis e Dorion SaganSérie de quatro ensaios que se ligam, de formas diretas ou sutis, à idéia de autopoiese, a autocriação do universo infinito.

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Por Filipe Freitas

Imagem da capa: ©ALEX GREY – www.alexgrey.com

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“As realidades da vida, as histórias da evolução, têm o poder de unir todos os povos.

Integrando os dados de milhares de cientistas e cultivando a dúvida e o ceticismo

que são a epítome da investigação científica, essa invenção cultural chamada ciência

talvez possa fornecer do mundo uma descrição mais convincente, se bem que

sempre corrigível, do que os mitos provincianos e as tradições religiosas, geradoras

de cisões e demandantes de fé. Isso não significa que os cientistas estejam sempre

certos. No entanto, a história mais significativa da existência, para a humanidade do

futuro, é mais provável que resulte da visão mundial evolutiva da ciência do que do

hinduísmo, do budismo, do judaico-cristianismo ou do islamismo. A dupla

compreensão da investigação científica e do mito da criação pode transformar-se

numa visão única: uma narrativa científica rica em fatos comprováveis e sentido

pessoal.”

Lynn Margulis e Dorion Sagan

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COPYLEFT FILIPE FREITASPermitida a reprodução xerográfica e/ou eletrônica quando citados o autor e a ediçãode origem.

Edições Belo MonteNOVEMBRO 2003

Alternativa Educação e Manejo AmbientalRua Viçosa 602 – 30330-160Belo Horizonte – [email protected] 3293 7080 - 31 3284 8175

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O Meio do Caminho do Infinito............................................... 07

ESPAÇO + TEMPO = ARTE.................................................. 09

Mestras Crianças................................................................... 19

Autopoese............................................................................. 25

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O Meio do Caminho do Infinito

“Talvez. Estou falando sobre uma existência da alma do mundo que está além do espaço e do

tempo. Espaço e tempo são ilusões relacionadas com as restrições severas da encarnação

nestes corpos de chimpanzés.”

Ralph Abraham

Ao meio caminho do infinito, a vida me parece uma mera questão de escala. Ou

seja: de onde enxergamos esse espaço de matéria no tempo, é isso que determinará

o processo cognitivo gerador da dimensão real.

Ao nos depararmos com a sugestiva idéia de teias dentro de teias, vidas dentro de

vidas, o micro no macro, que é micro em um outro macro ainda maior, essa

composição holográfica em que as partes são todos e os todos são partes, somos

irresistivelmente induzidos a aceitar a órbita ínfima do alcance do nosso processo

íntimo de conhecer a instância real.

Assim dissipam-se as certezas, entramos na era do inesperado: somos

inesperadamente gigantescos quando pensamos nos quarks (aquilo que os físicos

sugerem ser as entidades elementares que compõem os prótons, nêutrons, píons,

káons e outras partículas sub-atômicas); e somos inesperadamente minúsculos

quando pensamos no universo e seus milhões de aglomerados de galáxias.

Ora, os quarks e o universo seriam os limites da existência real? Talvez sejam para a

cognição humana tridimensional, mas é de se supor que os quarks nos percebem

como universos e que há dimensões ultramicroscópicas que a cognição de um quark

identifica como um próprio quark: o quark dos quarks.

Assim como o universo do universo, aquilo que o universo metaboliza como o limite

macro de sua cognição, torna-se irreconhecivelmente gigantesco em nossa

percepção de quark.

Ao mesmo tempo, esse universo do universo torna-se ínfimo, desprezível, se

pensarmos que essa estrutura tempo-espacial incalculável não chega a ser um quark

do padrão paradoxal do infinito.

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E assim, a meio caminho do infinito, somos, cada um, o ponto central da galáxia, o

universo em si, infinitamente misterioso.

Torno-me, portanto, infinito, quando destranco a cognição e deixo que ela vague por

intuições poéticas autogeradoras que criam o mundo através do processo da vida: o

espírito, em forma de matéria organizada em ciclos catalíticos, que torna-se

inteligente pelo espontâneo fluir do universo.

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ESPAÇO + TEMPO = ARTE

“A metáfora sustenta todo o tecido de interligações mentais.

A metáfora está no âmago do estar vivo.”

Gregory Bateson

ritmos

a vida em padrões de energia

a totalidade como fluir auto-existente desembocando harmonia

a poesia é a melodia produzida pela dança dos fluxos espectrais

a vida se produz como a música: em ritmos

oscilando e flutuando em compassos lógicos e paradoxais

em instantes de ordem e instabilidade

silêncio e algazarra

arranjos e dissonâncias

saltando no caos da matemática das cores e cheiros

criando cartas de amor, programas de computador

concretizando a dualidade emocionada de dor e amor.

Quando o editor desta publicação me convidou para escrever um artigo, percebi

intuitivamente que, sendo eu um artista que inventou de navegar pela ciência,

minha contribuição se daria com um texto cujo objetivo seria aproximar essas duas

instâncias – arte e ciência – que há tanto tempo vêm se desdobrando de forma

isolada, como domínios distintos e incompatíveis.

A idéia que quero apresentar aqui nestas linhas é a seguinte: o cientista que não vê

arte na ciência é igual ao artista que não enxerga ciência na arte. Ambos devem se

atualizar em seus respectivos campos de atuação para que possam se associar ao

vigoroso fluxo integrativo do pensamento humano que vem emergindo nesse início

de milênio.

Para tanto, torna-se oportuno falar um pouco sobre esse tal fluxo integrativo que se

apresenta hoje em inabalável carreira, evoluindo irrefreavelmente, para o qual

versamos o termo “holístico”. A holística é a cena onde todas as correntes já

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existentes podem encontrar-se na busca de soluções criativas para os desafios de

nossa época.

O termo “holístico” vem do grego “holos”, que significa todo, totalidade. Refere-se a

uma nova visão de mundo resultante da revolução epistemológica do século 20. Uma

nova cosmovisão que tem como alicerce o “Princípio Organizador da Totalidade”.

A visão holística enxerga o universo como um todo interconectado, um padrão

energético sintético, ativo, vital e imaginativo que não pode ser fracionado, estando

presente em todas as partes, como uma mente cósmica que abrange a si mesma no

imenso e no ínfimo. Através de frequências diferentes, esse padrão cósmico da

totalidade materializa-se em instâncias complementares, cujas dimensões

simultâneas de todo e parte, YIN e YANG, interagem criativamente gerando vida, em

sua concepção mais ampla possível, em um contexto de imensurável diversidade.

A holística, em sua ênfase na totalidade, vem substituir a visão de mundo

eurocêntrica potencializada a partir do século 16 (mas cuja gênese remonta a

tempos muito mais antigos), caracterizada por mecanicismo, reducionismo,

determinismo, racionalismo. Essa visão de mundo que se espalhou por todo o

planeta nas caravelas dos desbravadores europeus, e sobre a qual foi erigida a

ciência clássica, apresenta-se como o suporte mental para as atitudes humanas que

hoje enxergam em si mesmas o maior obstáculo para o prosseguimento da vida da

Terra.

Todo organismo vivo em expansão acelerada despeja em seu ambiente grande

quantidade de resíduos. Violência, intolerância, miséria em contraste à acumulação

estéril de riqueza. Parece que foi esse o preço pago pela expansão extraordinária da

civilização humana que, sob a forma de tecnologia, nos conectou à interatividade

cibernética da comunicação instantânea. Ao priorizarmos a objetividade,

negligenciando a espiritualidade, focamo-nos nas metas de toda uma época: crescer

como espécie, progredir, nos conectar.

Naquele momento de grandes transformações da consciência, houve grandes

rupturas. Foi como precisássemos dividir as tarefas. Cada um cuidaria de uma parte.

Fragmentamos a totalidade para avançar. Surgiram as disciplinas, os

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compartimentos de conhecimento. Nesse contexto, para ser científico era necessário

que o fenômeno fosse passível de medição. Aquilo que contivesse qualquer traço

subjetivo, expressasse alguma emoção ou qualquer variável não passível de cálculo,

já não poderia ser considerado científico, sendo relegado a um segundo plano na

hierarquia do conhecimento construída sob a égide da expansão materialista.

O mecanicismo foi o postulado filosófico impulsionado por René Descartes e

construído matematicamente por Isaac Newton que estabelecia o universo (e

conseqüentemente suas partes constituintes, tais como o sistema solar, o planeta, o

corpo humano, etc) como sendo uma estrutura mecânica, análoga a um relógio. Esse

espaço tridimensional, no qual o tempo flui uniformemente, era uma máquina

perfeita, previsível, passível de cálculos matemáticos exatos, composta de

inumeráveis peças e engrenagens, no qual uma força criadora externa, Deus,

controlava o seu funcionamento através de cadeias de causa e efeito.

A visão de mundo como uma máquina fez emergir o raciocínio reducionista, segundo

o qual se compartimentássemos esse gigantesco e extremamente complexo

mecanismo em partes cada vez menores e mais simples, ao compreendermos o

funcionamento de cada uma dessas partes, conseguiríamos então determinar o

funcionamento do todo.

Amparava esse método a presença unidimensional de uma razão fundamentada em

uma lógica restrita, construída a partir de cadeias de causa e efeito típicas de uma

estrutura mecânica, com uma ênfase utilitarista das relações vivas. Assim, o Homo

sapiens aboliu sua dimensão demens, o lado afetivo, que nos cega e nos ilumina nos

paradoxos da emoção. Os pólos complementares sapiens-demens, que se

equilibram, foram descompensados pelo racionalismo. Colocou-se peso demasiado

na objetividade e a balança tombou. A eficiência, o progresso, a ordem (as metas da

espécie nessa época), se amparavam no lado lógico, racional, sapiens, mecânico,

cronometrado: Tempo é dinheiro!

Durante os séculos 18 e 19, houve um extraordinário êxito do raciocínio científico. Se

nossos objetivos como espécie eram crescer e se expandir tecnologicamente, essa

visão de mundo atingiu seus objetivos. A visão mecanicista e reducionista da vida

impulsionou a Revolução Industrial, a economia capitalista, a urbanização, se

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impregnando em todas as ciências, inclusive nas ciências sociais, influenciando

decisivamente o iluminismo, além de Darwin, Freud, Marx e outros gigantes da

nossa cultura.

No decorrer desse período, os fabulosos avanços tecnológicos e o crescimento

acelerado fizeram com que os seres humanos acreditassem que haviam realmente

determinado a verdadeira receita de funcionamento da grande máquina universal,

influenciando nosso pensamento e toda a cultura a se orientarem determinis-

ticamente, estruturando-se sob a base da certeza e da previsibilidade. E foram

séculos de um condicionamento progressista, se realimentando pela certeza da

necessidade de crescer que se tornou obsessiva e afastou paulatinamente todo o tipo

de sensibilidade e saber estético da linha de frente do conhecimento humano.

Naquela altura a jovem espécie Homo sapiens, como uma criança egocêntrica, iludiu-

se no seu próprio conhecimento limitado. A ciência determinística elevou-se ao topo

da pirâmide do saber. E, parafraseando Francis Bacon, um dos mentores dessa

cosmovisão progressista, “saber é poder”.

Até o final do século 19, o progresso atrelado ao pensamento tecnicista e a falta de

um novo modelo científico que se sobrepusesse a esse paradigma vigente fizeram

com que os seres humanos permanecessem iludidos acerca das verdades universais.

Naquela altura acreditávamos que já sabíamos como o universo funcionava, restando

apenas alguns detalhes para chegarmos à grande equação geral, à explicação final

para o tudo.

Porém, algo muito grandioso estava por vir. No despontar do século 20, iniciava-se

uma grande revolução do pensamento humano. Max Planck, Albert Einstein, Niels

Bohr, Werner Heisenberg, Erwin Schrodinger, entre outros físicos brilhantes,

acabaram por gerar uma grande ruptura conceitual, colocando abaixo a ilusória

certeza da razão atrelada ao pensamento científico clássico. Ao penetrarmos no

átomo e enxergarmos o universo como fluxos de energia, o mundo deixava de ser

visto como uma máquina. Da física emergia uma nova visão do universo como um

grande organismo que não mais poderia ser fragmentado.

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Brotava, no ínicio do século 20, os alicerces da visão holística do universo. Para se

ter uma idéia do quão diferente as pesquisas apresentavam a matéria, a energia, a

mente e a vida para os físicos daquela época, cito o desabafo de Werner

Heisemberg, que ilustra a profundidade das transformações pelas quais a ciência

passaria depois do conhecimento quântico-relativista:

“Lembro-me de longas discussões com Bohr, até altas horas da noite, que acabavam

quase em desespero. E, quando, ao final de uma dessas discussões, saí para uma

caminhada pelo parque vizinho, fiquei repetindo interiormente a mesma pergunta:

pode a Natureza ser tão absurda como nos tem parecido nessas experiências com os

átomos?”

A partir da nova ciência do século 20, a indeterminação tornou-se inerente ao mundo

físico. Misturada com ordens implícitas, nos colocou diante de uma intrigante

realidade de mistério inerente à matéria. A ilusão da previsibilidade do universo, que

manteve a ciência sob seu feitiço por séculos, foi superada em 1927, quando o

reconhecimento de um autêntico indeterminismo que vigora na natureza veio

através do Princípio da Incerteza de Heisemberg, e depois na década de 1970, com a

formulação da Teoria do Caos na matemática. Assim, as leis eternas da natureza

ruíram e desmoronaram, ou ao menos se mostraram muito, muito mais complexas

do que nossa aprendiz mente reducionista poderia imaginar.

A ciência holística, construída ao longo de todo o século 20, apresenta o universo

com uma fisionomia profundamente diferente daquele modelo clássico inerte e sem

emoção que, desafortunadamente, perdura até hoje nas bases da nossa cultura, se

realimentando pelas mídias, pelas instituições sociais e pelos sistemas de educação

oficiais.

Ainda não chegou para as pessoas comuns, cidadãos e cidadãs, a incrível revolução

do pensamento que vivemos no último século, quando foram introduzidos, no

universo da ciência, a incerteza, o paradoxo, o caos, a metáfora.

Torna-se um tanto significativo perceber que a base da ciência pela qual todas as

gerações que estão vivas atualmente cresceram aprendendo diariamente nas escolas

de todos os continentes é ainda a concepção racionalista, bastante insensível,

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alcançada a partir da visão reducionista do funcionamento da espetacular e perfeita

máquina universal criada e controlada por um deus severo que punia os pecadores.

Estamos no século 21 e ainda estamos orientados pela ciência do século 19.

Ainda hoje o sistema educacional oficial nos leva a acreditar que a ciência é um

formalismo matemático de grande eficácia tecnológica. Os cientistas, em sua

maioria, incorporam a ciência como meio de potencializar o crescimento,

meramente, sem estarem vinculados a um compromisso filosófico, espiritual, de

busca pela compreensão do ser humano no universo. Os animais se tornaram

cobaias, as plantas se tornaram fibras industriais, os fungos se tornaram remédios.

Todos os outros seres que compartilham conosco a biosfera tornaram-se utensílios

para a obsessão por crescimento criada e alimentada por uma cosmovisão

progressista que foi espalhada pelo mundo pelos colonizadores europeus.

Assim, refletindo historicamente acerca da evolução do pensamento científico, faz

sentido o fato de a ciência e a arte estarem tão distantes, em compartimentos

distintos dentro de nossa mente partida. Visto que as sensações, o indeterminismo,

a pluralidade de significações, a ausência de certeza, a intrínseca relação com os

sentidos, a subjetividade, são características essenciais do universo artístico, querer

misturar ciência clássica e arte em uma mesma dimensão seria como tentar diluir

óleo de soja em água.

Já com a nova ciência, o universo deixa de ser uma máquina e torna-se um

organismo (ou um pensamento, visto que a cisão corpo-mente também é

transcendida a partir de teorias sistêmicas de cognição). Essa grande instância

orgânica é vista em toda a sua sensibilidade, imprevisibilidade, instabilidade,

interconexão, complexidade e diversidade.

A ciência, então, nos apresenta uma nova visão da realidade, cujos modelos

matemáticos se tornam fractais de espetacular requinte estético, criando interfaces

essenciais com a arte e tornando-as dimensões complementares.

A ciência, através da sistematização da experiência, da experimentação entre os

sistemas, embasada na incerteza e na instabilidade, faz evoluir a criatividade

humana, ao apresentar novas cosmovisões cada vez mais complexas. A arte, através

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da criatividade inerente ao processo cósmico, faz criarem-se os padrões sobre os

quais a dinâmica da vida opera.

O próprio padrão metabólico da vida, identificado por Humberto Maturana e

Francisco Varela, recebeu a designação de autopoiese, ou seja, a vida como uma

auto-poesia das redes químicas catalíticas que trocam-se numa dança incessante de

energia autogeradora, preservando suas identidades como torrentes de ordem.

Surge então um fluxo de espontaneidade, numa impossibilidade de previsão que

transcende a lógica, incorpora o paradoxo e introduz o caos no fluxo turbulento dos

sistemas vivos. E essa liberdade no espírito da ciência fez aproximarem-se a estética

e a pluralidade de significações, liberando a imaginação dos cientistas.

Uma mudança intelectual e emocional muito profunda, que ainda não foi assimilada

de forma consistente. Como já escreveu Thomas Kuhn, leva tempo para que

transformações dessa magnitude assumam a sua proeminência em âmbito social.

Não é nada fácil para os cientistas acostumados à certeza, ao racionalismo e à

rigidez conceitual compreenderem que todos os modelos são provisórios, que a

certeza foi diluída na imprevisibilidade do comportamento dos seres vivos, que a

função da ciência é projetar um feixe de luz no mistério intrínseco à natureza. E

também não é fácil para o artista se abrir à ciência, depois de tanto tempo sendo

desconsiderado pelo modelo insensível e unidimensional do conhecimento que

imperou por séculos.

O novo paradigma holístico faz ruir os compartimentos que se ergueram nesses

últimos séculos e que serviram para acelerar a expansão tecnológica da humanidade.

A holística incorpora a transdisciplinaridade e parece sugerir que todo cientista, ao

lidar com a incerteza inerente ao universo, torna-se um artista capaz de gerar

metáforas que iluminem o nosso caminho. O artista, por sua vez, tem o caminho

aberto para se aproveitar da luminosidade da ciência, gerando criativamente padrões

singulares que se produzem autopoeticamente.

O cientista e o artista que se negarem a reconhecer a evolução integrativa do

pensamento nos tempos de agora provavelmente se enclausurarão em um modelo

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de mundo ultrapassado, anacrônico, que se refletirá em suas teses e obras. Sua

ciência e sua arte envelhecerão, perderão a sintonia com a frequência morfogenética

que nos induz ao ritmo da dança cósmica. Dança com a qual, a partir da visão

holística, encadeamos um compasso suave e amoroso.

A ciência, contudo, vale ressaltar, mantém um método sobre o qual a importância

dos gênios clássicos é inquestionável. O reconhecimento da importância do

paradigma de Descartes e Newton, que nos catapultou a níveis impressionantes de

desenvolvimento tecnológico, se apresenta na utilização de seus próprios métodos

para transcender o próprio modelo. Esse texto, como exemplo cristalino, se ampara

no método cartesiano para apresentar algumas limitações do paradigma

impulsionado por esse método. Podemos enxergar toda a aventura do pensamento

como degraus para que pudéssemos alcançar a holística. E a holística,

provavelmente, é um novo degrau para alcançarmos dimensões ainda mais belas e

complexas.

Emanemos gratidão àqueles que impulsionaram suas vidas pela odisséia do

conhecer. E estejamos abertos às mudanças fundamentais da nossa percepção para

que sobrevivamos. Cabe a nós nos livrarmos da herança condicionada ao espírito

expansivo que se fez obsessivo em sua fragmentação e insensibilidade, ainda que

seja fundamental termos a clara noção de que não há todo sem as partes.

A arte torna-se assim a via metafórica para embelezar a colisão de duas placas

tectônicas, duas visões de mundo gigantescamente diferentes, uma que nos

estruturou, nos empoderou, nos catapultou à dimensão da auto-suficiência, mas que

nos dividiu e nos colocou em rota rumo ao sumidouro cultural autodestrutivo; e

outra que está nascendo, integrando as pétalas da flor em um miolo cujo néctar une

ciência e arte em uma experiência visionária de amor primordial e incondicional que

dá partida para a nossa regeneração como ser, como espécie, como universo.

A imaginação cósmica penetrou nos caminhos da ciência para fazer brotar a arte

perene nos nossos corações maltratados. Arte e ciência se misturam no deleite dos

deuses da bem aventurança que nos esperam ao longo do horizonte.

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Mestras Crianças

“A sabedoria deve saber que contém em si uma contradição;

é inteiramente loucura viver muito sabiamente.

Devemos reconhecer que na loucura, que é o amor, há a sabedoria do amor.”

Edgar Morin

Experimentar ser pai me faz agradecer intuitivamente os desafios do presente. Esse

texto originalmente foi escrito para a professora de minha filha, a quem agradeço a

atenção, a boa vontade, as intenções amorosas e o carinho com os quais vem

trabalhando nessa difícil missão de apresentar um mundo tão hostil às crianças

desse início de século.

Atento ao caminhar de encontro ao conhecimento que a pequenina vem trilhando,

descubro que meu aprendizado ao acompanhá-la nesse aumento de complexidade é

maior até do que eu costumava imaginar e projetar antes de ajudar a trazê-la à luz.

E seduzido por esse mútuo aprender diário, farei um comentário que, espero,

contribua para ampliar nossa visão diante das crianças.

Bem, ao longo desses últimos anos estamos acompanhando uma série de pesquisas,

estudos, oriundos de todas as partes do mundo, que vêm comprovar o que estamos

sentindo intuitivamente há bastante tempo: a instituição escola não consegue educar

nossos filhos.

Resultados muito aquém dos esperados, comportamentos intrinsecamente

contraditórios, que se refletem no despreparo dos jovens para o enfrentamento da

vida adulta e a clara constatação de adultos igualmente despreparados para

transformar suas relações com o mundo, sem conseguirem torná-lo mais justo,

pacífico e amoroso.

Algo está profundamente errado. Existem fortes indícios que me levam a fomentar a

seguinte questão: não seria um profundo equívoco histórico pensar que nós, adultos,

podemos ensinar às crianças os melhores caminhos para o viver? Não estaríamos

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copiosamente enganados ao exibirmos a certeza adulta de sabermos o que deve ou

não ser ensinado?

As crianças, apesar de pequeninas e de ainda carecerem da sustentação de uma

lógica social, têm em si uma sabedoria imanente, uma suavidade turbulenta que

hospeda um equilíbrio muito sofisticado. Elas são o protoplasma não-afetado,

estruturas biológicas que guardam em si a memória de todas as gerações

antepassadas. Possuem uma criatividade e uma espontaneidade que nós adultos já

não possuímos. E não possuímos justamente por causa dessa mesma educação que

nos foi aplicada e que agora insistimos em reproduzi-la para nossas proles.

Enxergando as crianças sob essa perspectiva, sustento que a educação, em sua

razão de ser essencial, deve buscar potencializar o amor natural, as emoções

autênticas e a legitimidade das ações que elas emanam, mesmo que isso desafie

nossos valores e a moral cristalizada no âmago do nosso sentir.

Ouso dizer que, nos dias de hoje, os pequeninos têm mais a ensinar para nós, do

que nós a eles. Tenhamos a convicção disso. Na medida em que deixamos fluir o

intuito natural do criar e do evoluir que pulsa nas crianças, estaremos introduzindo-

as em um outro patamar de existência.

Há limites? Sim, haverá dúvida que existem limites? Mas estes surgem

naturalmente, ao contrário da visão que prepondera, afirmando a necessidade de

que sejam impostos pelos educadores. Juntos, acabamos estabelecendo esses novos

limites na medida em que vamos interagindo com elas e nos envolvendo em um

fantástico aprendizado mútuo.

Deixamos então cair o véu que nos faz detentores da verdade, em uma ditadura da

experiência, e entramos no jogo encantado do descobrimento de novas formas de

vida e consciência. Sem conter ou reprimir o vigor pela tarefa de viver que elas têm,

abrimos novos campos energéticos capazes de nos surpreender em uma profusão de

belas e inovadoras possibilidades.

Nós, os adultos, estamos condicionados a uma visão de mundo insustentável. O filtro

através do qual estruturamos nossos modelos, nossos valores, nossas crenças, está

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cheio de impurezas que vieram se acumulando ao longo dos séculos e agora ameaça

se entupir.

Limparmo-nos, renovarmo-nos, permitirmo-nos que o novo nos envolva. Para

sobrevivermos, teremos que alterar significativamente o padrão das relações

humanas, a estrutura das instituições sociais e o processo de ensino-aprendizagem.

Não é cabível que desejemos aos nossos filhos o mesmo modelo vital que nos foi

apresentado quando éramos crianças. Assim estaremos impedindo que as jovens

existências de hoje, nossas esperanças mais brilhantes na regeneração de nossa

espécie, cresçam e amadureçam em um contexto saudável, alegre e abundante.

Por conseguinte, a função do educador não é ensinar, pois ele também não sabe o

que tem que ser ensinado. A missão primordial do educador do novo tempo que se

descortina é facilitar um processo de descoberta que é inerente à criança, auxiliá-la

na construção dos próprios limites, estimulá-la a buscar o belo, as relações

amorosas, o senso de interdependência com os outros seres e com a Terra.

E talvez a missão mais importante do educador: aprender com esse incrível processo

e tornar-se um elo de conexão entre a imaginação criativa das crianças e o mundo

rígido e sem esperança dos adultos. Difundir em seus círculos de interação as novas

possibilidades geradas pelas crianças, instigar reflexão, prover de vida a quase-

morte perambulante que espelha a nossa sociedade.

A instituição escola de hoje, contudo, não nos oferece estrutura para mudanças.

Seguimos nos educando para a estabilidade. Não estamos nos preparando para as

transformações necessárias que deverão acontecer, sob pena de não resistirmos aos

nossos próprios equívocos condensados.

A estabilidade é uma tremenda ilusão. Se continuarmos buscando a vida estável,

perpetuando esse atual modelo, vamos sucumbir pela inércia. É como se

estivéssemos em um carro sem freios com o penhasco à frente e nos recusássemos

a virar o volante.

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Fomos presenteados com uma época de rupturas, um momento de transição,

profundamente fértil. Nossa educação deverá espelhar essas mudanças, para que

nos tornemos aptos a efetivar as reformas culturais necessárias.

Essas transformações, estejamos convictos, se darão de qualquer jeito. Podemos

evitar que elas irrompam em catástrofes, gerando as mudanças ativamente,

auxiliados pelas crianças e sua potencialidade regenerativa.

Mas também podemos esperar pelas convulsões, seguindo acreditando em uma

estabilidade fictícia, explorada ao máximo pelas mídias distorcidas, e preservando o

comportamento negligente, comodista e desesperançado típico de nossa civilização.

O penhasco está ali adiante e nós seguimos criando ilusões para acreditarmos que

ele não existe. Possivelmente, quando nos depararmos com a sua fisionomia, vamos

virar o volante do carro bruscamente. E ele, provavelmente, capotará.

Mas tudo poderá ser feito com equilíbrio, moderadamente. Se nos abrirmos agora

para as novas possibilidades, essa transição necessária poderá acontecer em um

ritmo saudável. Se continuarmos fechando os olhos e seguirmos educando nossas

crianças para fechá-los também, é bem provável que experimentemos a sensação do

caos adiante.

Há tempo e há energia. Cabe a nós vencermos o medo, a resignação e a

desconfiança instigados pela cultura de massas e incorporarmos o erro em nossas

vidas. As crianças vão errar, nós vamos errar, não há dúvida. A vida flui através de

rotas e desvios de rota. A autocrítica, o reconhecimento dos próprios erros, o

desculpar-se, o estar aberto aos erros dos parceiros e aceitá-los como sinal de

vitalidade fazem desabar o orgulho e o rancor, sentimentos rígidos que realimentam

a fragmentação autodestrutiva da espécie.

Como diz Edgar Morin, “é necessário compreender que as condições e circunstâncias

históricas podem conduzir os seres humanos a derivas fatais”. Nosso projeto

civilizatório está falido e deverá ser profundamente redirecionado.

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E as crianças, sua espontaneidade e amor natural, são nossas mestras nesse

caminho de reconstrução. Quanta sabedoria elas guardam em cada molécula de

DNA…

Aprender com a natureza humana. Esse parece ser o caminho para evitarmos o fim

de nossas histórias, tão desastradas, tão belas!

As deusas se reerguem na pureza da resposta das crianças.

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AUTOPOESE

“o olho arde no maro mar acalma o olhar”

Sérgio Borges e Eva Queiroz

Este texto, de cunho lírico, tem a finalidade de aproximar o leitor de algumas teorias

científicas acerca do fenômeno da vida que emergiram a partir dos anos 1960, em

cuja base conceitual se encontra a poética idéia de autocriação, característica central

de qualquer forma vivente.

Mas, afinal, o que é vida? Essa pergunta, aparentemente simples, vem

acompanhando a humanidade ao longo de sua conturbada história pioneira.

Sabemos que somos seres vivos. Sabemos também que, embora imóveis aos nossos

olhos, as plantas estão vivas e que há seres vivos tão diminutos que não

conseguimos enxergá-los. Mas o que faz de todas essas instâncias que conhecemos

como vivas estarem vivas realmente? O que é a vida como um fenômeno do existir?

Para pensarmos sobre o conceito da vida, parece conveniente refletirmos sobre o

que todos os seres vivos têm em comum e buscarmos um padrão que os reúna em

uma mesma definição. O que há de comum em todos os seres vivos? O que é

compartilhado pelas menores e mais simples bactérias e pelo Planeta Terra como um

todo, que são, atualmente, os limites micro e macro do fenômeno da vida tal qual o

conhecemos?

Para tanto, faz-se oportuno adentrarmos no domínio das formas não-vivas, de onde,

provavelmente, a vida emergiu há alguns bilhões de anos.

Imaginemos, portanto, um tornado, uma fogueira e um redemoinho que se forma na

água. O que cada um deles tem em comum entre si? E o que eles têm em comum

com os seres vivos?

Todos são centros dinâmicos de atividade e estabelecem-se como estruturas

fechadas – no sentido de serem estáveis, de poderem ser identificadas – mas que ao

mesmo tempo são abertas, ou seja, as suas partes constituintes são continuamente

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substituídas, em um processo ininterrupto de troca de energia e matéria com o

ambiente externo. São o que o químico e físico Ilya Prigogine denominou de

“estruturas dissipativas”.

Assim como o redemoinho, o tornado e a fogueira, os seres vivos também são

estruturas dissipativas. São, ao mesmo tempo, fechados e abertos. Tomemos como

exemplo o Homo sapiens. A cada ano, 98% dos átomos de um corpo humano são

substituídos, mas ainda assim um padrão corporal é preservado.

Como então continuamos sendo a mesma pessoa, se 98% do nosso corpo já não é

mais o mesmo? Como preservamos nossa identidade se aquilo que éramos há até

bem pouco tempo hoje já não faz parte de nós? Como a memória e a personalidade

não se esvaem junto com os átomos que se misturam com o meio adjacente?

Ao constatarmos essa constante substituição de nossa matéria-prima, somos levados

a nos enxergar não como algo sólido que permanece, mas como um padrão que se

perpetua. Contudo, poderíamos questionar tal afirmação, visto que se olhamos para

o nosso organismo no espelho, temos a nítida impressão de sermos algo sólido,

concreto.

Foi somente através da tecnologia, que nos permitiu enxergar para além da

capacidade dos nossos olhos, que pudemos compreender que nosso corpo é, na

verdade, um fluxo perene de energia dançando junto com o ambiente que o encerra.

A cada instante, montantes de células morrem e se decompõem, ao mesmo tempo

em que incorporamos moléculas do ar e dos alimentos para produzir novas células,

utilizando a energia do sol e dos outros seres para fazer movimentar uma fábrica

química autoperpetuante, num amálgama de trilhões de relações celulares

simultâneas.

Podemos então enxergar os seres vivos como estados dinâmicos que incorporam

matéria, mas essa matéria é, fundamentalmente, uma mistura da biosfera. Os fluxos

de matéria e energia se entremesclam no espaço-tempo, se enlaçando ciclicamente.

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Em última instância, não há separação dos seres viventes: todos se complementam

no metabolismo do superorganismo planetário. Como diz Norbert Wiener, um dos

fundadores da cibernética, “somos apenas redemoinhos num rio de águas em fluxo

incessante”.

Mas, de fato, ao contrário do tornado, do redemoinho e da fogueira, que, sem

nenhuma reação, encerram suas atividades no instante em que lhes falta a energia

motriz provida pelo ambiente, os seres vivos tomam caminhos, assumem escolhas,

intuem estratégias de preservação e agem organizadamente no sentido de evitar o

equilíbrio termodinâmico, que se traduz na morte.

Existe, nos seres vivos, um ímpeto de perpetuação, a busca por estabilidade em

meio às flutuações, a criatividade na produção de novas formas de estruturação.

Identificamos a vida nas formas que criam a si mesmas através de uma auto-

organização que se realiza existencialmente como torrentes de ordem em estruturas

que se dissipam na medida em que incorporam novas substâncias e montantes de

energia.

Esse padrão de organização autoperpetuante que emerge em meio à cachoeira

energética que flui através de membranas está relacionado ao fato de os seres vivos

serem redes químicas que se fecham em estruturas metabólicas circulares.

Somos sistemas químicos que estabelecemos uma rede circular na qual o produto é

o produtor daquilo que o produz. Superamos assim o nível meramente químico e

tornamo-nos sistemas biológicos providos de um ímpeto auto-regulador

caracterizado por perseverança evolutiva.

Funcionamos como uma organização circular que se abre para as mudanças na

maneira como a circularidade é mantida, mas que não permite a perda da própria

circularidade. Somos um padrão em rede, no qual a função de cada componente é

ajudar a produzir e transformar outros componentes, enquanto a circularidade global

da rede é mantida. Desse modo, toda a rede, continuamente, produz a si mesma. A

cada momento, o conjunto é produto e, ao mesmo tempo, produtor de si mesmo.

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Esse padrão de redes autogeradoras, comum a todos os seres vivos, recebeu dos

chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela o sugestivo nome de autopoiese ou –

adaptando o termo ao intuito poético desse texto – autopoese. Auto, naturalmente,

significa “si mesmo”, e se refere à autonomia desses sistemas auto-reguladores, e

Poiese (ou Poese) – que compartilha a mesma raiz grega com a palavra Poesia –

significa criação, geração.

Autopoese é a autocriação e a autoperpetuação que caracteriza a vida encerrada em

membranas, qualquer que seja a natureza do ser vivo. E, diante da instigante

compreensão de que a vida se unifica na matéria do planeta misturada em

organismos entrelaçados por fluxos dançarinos, todos os vivos somos tornados

autopoéticos.

Bactérias, protistas, fungos, plantas, animais tornam-se atores fugazes de um

surpreendente espetáculo de substituição química que impulsiona os ciclos da

matéria e mantém a vida em movimento através de processos irreversíveis pela

biosfera que já duram, ininterruptamente, mais de três bilhões de anos.

Incorporando e processando minerais e substâncias orgânicas, os sistemas

autopoéticos reúnem-se e se unificam como o metabolismo do planeta e suas

flutuações em escalas imensas. Esse conjunto planetário, composto por todos os

seres vivos de todos os reinos e seus substratos não-vivos, faz-nos vivenciar a

autopoese da Terra. Cada um somos parte do sistema planetário auto-organizador

que sustenta e é sustentado pela exuberante unicidade autopoética de sua

biodiversidade.

A tendência à auto-organização parece ser intrínseca à autopoese. Sistemas

autopoéticos são capazes de ordenar processos profundamente complexos, gerando

formas sempre criativas no perene desafio de manter sua estrutura, escolhendo

caminhos para prevenir, indefinidamente, o momento inevitável do equilíbrio

termodinâmico, a morte.

Como surge a autopoese dos sistemas biológicos, brotando de sua química

complexa, só a poesia dos mitos divinos a mergulharem nas tentativas de

entendimento. Talvez ainda estejamos bastante distantes da compreensão científica

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do miraculoso espírito autogerador que regula espontaneamente as incalculáveis

reações químicas concomitantes que metabolizam a vida de um organismo e as

infinitas relações desse organismo com o ambiente, em seus vários níveis de

complexidade.

Há profunda beleza nas estratégias de superação da vida em seus saltos e tropeços,

seguindo em não-equilibrio flutuante por incríveis articulações supra-conscientes

através do caminho cósmico. Essa beleza, quando apreciada desprendidamente, com

a mente aberta ao ímpeto autopoético, torna-se, por si mesma, a manifestação da

poesia inerente ao amor universal.

E tal amplitude cognitiva só se ilustra pela metáfora e suas torrentes de significados

abarcando a unicidade da diversidade, o espectro da dualidade da matéria e a

trindade que nutre de energia sagrada as partes pelo todo e o todo entre as partes.

E essa teia de fenômenos que faz aflorar a vida no universo provém, ela própria, do

viver dos seres viventes, que criam o mundo na linguagem compartilhada na medida

em que experienciam uma realidade construída por sua própria cognição.

Os seres vivos, desde as mais simples bactérias, apresentam um processo mental

atrelado à complexidade de suas reações metabólicas. A cognição é imanente ao

surgimento da autopoese em uma estrutura dissipativa. Mesmo as redes

autopoéticas mais simples compreendem-se como instâncias vivas. Há instinto, há

atividade, há escolha, há criação em um espaço-tempo.

E a partir do viver compartilhado, o mundo é criado no processo do conhecer.

Baseada no intuito auto-organizador direcionado à complexidade, a vida flutua,

unificada em uma totalidade que transcende a capacidade conceitual da linguagem

verbal, e oscila em escalas subjetivas, fluindo através da cognição, experimentando

o criar cujo fim é o início da finalidade do existir, afinal.

Faz-se então o espetáculo da vida: a ciranda rítmica que produz a si mesma pelas

metáforas da emoção caminhante, enlaçando a morte no equilíbrio químico do amor

original.

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