8
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 375-382, jul./set. 2005 João Batista Araujo e Oliveira Ph.D. em Educação, Florida State University Consultor, Presidente da JM-Associados [email protected] Resumo O presente artigo analisa as competências da alfabetização com base nas recentes des- cobertas da Ciência Cognitiva da Leitura. De modo particular demonstra a necessidade de basear as matrizes de avaliação em conceitos claros e sólidos que diferenciam as diferentes competências, especialmente a diferença entre ler e compreender. O artigo também analisa a proposta para avaliação da alfabetização na 2ª. série do ensino fundamental formulada pelo CEALE/UFMG e mostra sua fragilidade para avaliar, de forma indepen- dente, as competências de leitura e compreensão. Palavras-chave: Alfabetiza- ção. Competências da alfabe- tização. Diferença entre leitura e compreensão. Avaliação da alfabetização. Abstract Literacy Evaluation The paper discusses how a wrong definition and partial understanding of the skills involved in teaching to read and write can lead to the development of assessments which do not allow correct inferences about the reading and writing competencies acquired by students. In particular, the confusion between reading and understanding precludes the correct interpretation of test results. The author Avaliação em Alfabetização João Batista Araujo e Oliveira Página Aberta suggests that the definition and competencies shared by the international academic community might be more adequate to assess beginning reading and writing skills. Keywords: Literacy. Literacy skills. Differences between reading and understanding. Literacy evaluation. Resumen Avaluación en la alfabetización Este artículo analiza las competencias de la alfabetización con base a los recientes descubrimientos de la Ciencia Cognitiva de la Lectura. De modo particular demuestra la necesidad de basar las matrices de la evaluación en conceptos claros y sólidos que diferencian las diferentes competencias, especialmente la diferencia entre leer y comprender. El artículo también analiza la propuesta para la evaluación de la alfabetización en la 2º curso de la enseñanza fundamental formulada por CEALE/UFMG y muestra su fragilidad para evaluar, de forma independiente, las competencias de lectura y comprensión. Palabras clave: Alfabetización. Competencias de la alfabetización. Diferencia entre lectura y comprensión. Evaluación de la alfabetización.

Avaliacao Em Alfabetizacao

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Avaliacao Em Alfabetizacao

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 375-382, jul./set. 2005

João Batista Araujo e Oliveira

Ph.D. em Educação,

Florida State University

Consultor, Presidente da

JM-Associados

[email protected]

ResumoO presente artigo analisa as competências

da alfabetização com base nas recentes des-cobertas da Ciência Cognitiva da Leitura. Demodo particular demonstra a necessidade debasear as matrizes de avaliação em conceitosclaros e sólidos que diferenciam as diferentescompetências, especialmente a diferença entreler e compreender. O artigo também analisa aproposta para avaliação da alfabetização na2ª. série do ensino fundamental formulada peloCEALE/UFMG e mostra sua fragilidade paraavaliar, de forma indepen-dente, as competências deleitura e compreensão.Palavras-chave: Alfabetiza-ção. Competências da alfabe-tização. Diferença entre leiturae compreensão. Avaliação daalfabetização.

AbstractLiteracy Evaluation

The paper discusses how a wrong definitionand partial understanding of the skills involvedin teaching to read and write can lead to thedevelopment of assessments which do notallow correct inferences about the reading andwriting competencies acquired by students. Inparticular, the confusion between reading andunderstanding precludes the correctinterpretation of test results. The author

Avaliação em Alfabetização

João Batista Araujo e Oliveira

Página Aberta

suggests that the definition and competenciesshared by the international academiccommunity might be more adequate to assessbeginning reading and writing skills.Keywords: Literacy. Literacy skills.Differences between reading andunderstanding. Literacy evaluation.

ResumenAvaluación en laalfabetización

Este artículo analiza lascompetencias de laalfabetización con base a losrecientes descubrimientosde la Ciencia Cognitiva dela Lectura. De modoparticular demuestra lanecesidad de basar lasmatrices de la evaluación en

conceptos claros y sólidos que diferencian lasdiferentes competencias, especialmente ladiferencia entre leer y comprender. El artículotambién analiza la propuesta para laevaluación de la alfabetización en la 2º cursode la enseñanza fundamental formulada porCEALE/UFMG y muestra su fragilidad paraevaluar, de forma independiente, lascompetencias de lectura y comprensión.Palabras clave: Alfabetización. Competenciasde la alfabetización. Diferencia entre lectura ycomprensión. Evaluación de la alfabetización.

Page 2: Avaliacao Em Alfabetizacao

376 João Batista Araujo e Oliveira

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 375-382, jul./set. 2005

IntroduçãoO Brasil não possui testes padroniza-

dos para avaliar a alfabetização1. Isso seaplica tanto às etapas mais básicas quantomais avançadas da aquisição da leitura eescrita. Diversas Secretarias Municipais deEducação utilizam testes para avaliar com-petências de alfabetização em suas re-des de ensino. O autor tem conhecimentode dezenas desses tipos de testes, normal-mente produzidos de forma artesanal pelasequipes das Secretarias ou das IES locais.Nenhum desses testes respeita os princípi-os psicométricos mais elementares, portan-to geram pouco conhecimento útil ou ge-neralizável.

A elaboração de um teste adequadodepende da definição de alfabetização.Diferentes definições levam a diferentes in-dicadores, diferentes matrizes e, consequen-temente, diferentes itens. O primeiro pro-blema a ser abordado, portanto, é o dadefinição do que seja alfabetizar.

O que é alfabetizarAs definições de alfabetização mais cor-

rentes no Brasil diferem do que se encon-tra nos periódicos científicos de maior cir-culação internacional. A referência usualno Brasil são os PCNs2 - Parâmetros e Re-ferenciais Curriculares Nacionais. Na ver-dade, os PCNs evitam definir alfabetiza-cao, mas quando o tentam fazer, confun-dem leitura com compreensão, escrita comprodução de textos. Em conseqüência, ostestes baseados nessa conceção refletemesse erro conceitual e conseqüentemente

não medem nem leitura nem compreen-são. Trata-se de um problema elementarde lógica: um aluno que não sabe ler podenão responder a uma pergunta de com-preensão porque não sabe ler, e não por-que não a compreenda. Da mesma for-ma, um aluno pode não produzir um textosimplesmente porque não consegue escre-ver as palavras de forma legível ou orto-gráfica, e não porque não possua as com-petências intelectuais para produzir umtexto. Avaliar compreensão e produção detexto sem saber se o aluno domina as com-petências que lhes precedem resulta emtestes que nem medem se o aluno está al-fabetizado nem se é capaz de compreen-der ou produzir textos. Obviamente essaafirmação decorre da definição de alfabe-tização corrente na literatura científica – enão da definição de alfabetização basea-da nos ambíguos conceitos de alfabetiza-ção apresentados nos PCNs.

Se tomarmos como base de referên-cias publicações como por exemplo oNational Reading Panel Report (NATIO-NAL READING PANEL, 2000), o Natio-nal Literacy Strategy (OFFICE FOR STAN-DARDS IN EDUCATION, 2000) ou o Ap-prendre à Lire (FRANCE, 1998), que sãoformalmente equivalentes aos PCNs, ouse tomarmos como referência os autorese as publicações mais citadas na litera-tura cientifica internacional como Ada-ms (1990), Oakhill e Beard (1999), ouMcGuiness (2004), podemos observarum elevado nível de consenso entre oscientistas e formuladores de políticas edu-cacionais dos outros países a respeito do

1 Há testes desenvolvidos por estudiosos da alfabetização como Capovilla (USP), Pinheiro (UFMG) e Scliar-Cabral (UFSC) queavaliam competências associadas a importantes elementos do processo de alfabetização.2 Para uma crítica do conceito de alfabetização nos PCNs ver o relatório Alfabetização Infantil: os novos caminhos da alfabetização(BRASIL, 2003).

Page 3: Avaliacao Em Alfabetizacao

Avaliação em Alfabetização 377

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 375-382, jul./set. 2005

assunto. Ler significa, basicamente, acapacidade de identificar automatica-mente as palavras. Escrever consiste em

transcrever os sons da fala. Ambos en-volvem a capacidade de decodificar fo-nemas em grafemas e vice-versa.

Dado que o objetivo de ler é compre-ender, e o objetivo de escrever é comuni-car, aprender a ler e escrever envolvem trêsníveis de competência:

Ensinar essas competências em níveisprogressivamente mais elaborados consti-tui o cerne do programa de ensino e do“processo” de alfabetização de praticamen-te todos os países do mundo que possuemum sistema alfabético de escrita. O proces-so de alfabetização, como definido ao finaldo parágrafo anterior, não se confunde comletramento, educação permanente ou ou-tros objetivos meritórios da educação: eletem princípio, meio e fim, e seu fim ocorrequando o aluno adquire o nível de fluên-cia necessário para ter um mínimo de au-tonomia na leitura e escrita.

Níveis de desenvolvimento do processo de alfabetização

Nível

1

2

3

Competências de Leitura

Decodificar, isto é, produzir o somda palavra indicado pelas letras

Identificar automaticamentea palavra

Ler com fluência

Competências de Escrita

Caligrafia: escrever de formalegível e com fluência

Ortografia: escrever respeitandoregras ortográficas3

Sintaxe: escrever frases comsentido e ordenação adequada

As competências relacionadas com os“objetivos” da aprendizagem da leitura, acompreensão e produção de textos são denatureza muito mais complexa. O ensinodessas competências antecede, acompa-nha e sucede o processo de alfabetização,mas é independente delas. As pessoas com-preendem antes de saber ler e são capa-zes de contar histórias, fazer descrições ourelatar notícias antes de saber escrever.Tanto do ponto de vista conceitual quantometodológico são independentes do pro-cesso da alfabetização. Embora sejamensinadas durante a alfabetização (e empré-escolas, onde existem), elas não seconstituem no objeto próprio da alfabeti-zação, e sim, no seu objetivo de longoprazo. A confusão entre o objetivo e o pro-cesso de alfabetização precisa ser supera-da para que o conceito possa emergir de

3 O grau de correção ortográfica deve ser graduado ao longo dos primeiros anos da escolaridade. Na língua portuguesa amaioria das convenções ortográficas são muito regulares e podem ser aprendidas ao final do processo de alfabetização (equivalenteao final da 1a. série no sistema público). Da mesma forma a fluência na escrita e leitura devem ser graduadas ao longo do ensinofundamental. No caso da leitura, é necessária uma fluência mínima de 60 a 80 palavras para que haja compreensão. No casoda escrita, a fluência mínima para o aluno enfrentar os desafios da 2a. série é próxima ao ritmo da fala pausada do professor quedita, por exemplo, uma tarefa de casa. Ou ao tempo considerado razoável para copiar um texto ou tarefa. O aluno que nãopossui essa fluência na 2a. série pode ser considerado um analfabeto funcional, pois seu nível de alfabetização não lhe permitefuncionar adequadamente nesse série. Testes adequados de alfabetização devem levar em conta a mensuração da fluência deleitura e escrita de textos, e não apenas de palavras.

Page 4: Avaliacao Em Alfabetizacao

378 João Batista Araujo e Oliveira

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 375-382, jul./set. 2005

forma clara e sem ambigüidades. Defini-da a natureza da alfabetização, cabe es-pecificar as competências que permitem aoaluno tornar-se alfabetizado.

As competênciasda alfabetização

Os avanços da Psicologia Cognitivada Leitura vêm permitindo um mapeamen-to bastante detalhado das competênciasque precedem, acompanham e se tornampossíveis com a alfabetização. Não cabediscutir aqui a forma, momento ou méto-do de ensino dessas competências, trata-se apenas de descrevê-las. Uma apresen-tação sistemática dessas competênciasencontra-se no já mencionado NationalReading Panel Report4:

A- Competências que viabilizam – eportanto antecedem a alfabetização:

- a capacidade de lidar com livros etextos impressos;

- a consciência fonológica, isto é a ca-pacidade de discriminar sons;

- a familiaridade com a metalinguagemda aprendizagem e da escola, incluindocapacidades relativas ao entendimento decomandos e instruções usuais no ambienteescolar.

B- Competências centrais ao proces-so de alfabetização:

B. 1. Na leitura- a consciência fonológica - a idéia

de que diferentes letras produzem dife-rentes sons;

- o princípio alfabético - a idéia de quehá uma relação entre a presença e posiçãode um grafema e o som que ela tem napalavra;

- a decodificação – a capacidadede pronunciar o som de uma palavraescrita ou transformar em escrita umapalavra ouvida;

- a fluência – que inclui a correção eritmo de leitura de textos.

B. 2. Na escrita- capacidade de escrever de forma le-

gível e com fluência (caligrafia);- capacidade de escrever de forma or-

tográfica;- capacidade de escrever frases sintáti-

ca e semanticamente corretas.

C- Competências que precedem,acompanham e sucedem o processode alfabetização – mas são indepen-dentes do mesmo:

- desenvolvimento do léxico – quantomaior o léxico, maior a capacidade de lei-tura e de compreensão;

-desenvolvimento de competênciasde compreensão de texto, e que inclu-em competências sobre a estrutura e es-trutura, estrutura, lógica e usos sociaisdos diferentes tipos de texto, bem comoestratégias gerais de compreensão e pro-dução de textos.

Esta lista de competências constituio currículo dos programas de alfabeti-zação da maioria dos paises do mundoque adotam o sistema alfabético. Amaior parte do tempo de aprendizagemse concentra na aquisição das compe-tências centrais de decodificação e flu-ência – pois são elas que asseguram oreconhecimento automático das pala-vras. Elas são ensinadas num períodoque vai de 1 a 3 anos, dependendo dograu de transparência ou opacidade da

4 Essas competências são descritas no livro “ABC do alfabetizador” (OLIVEIRA, 2005).

Page 5: Avaliacao Em Alfabetizacao

Avaliação em Alfabetização 379

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 375-382, jul./set. 2005

língua5. Esse mero fato demonstra queo processo de alfabetizar é independentedo processo de compreensão. E, natu-ralmente, são essas as competênciasque constituem a matriz de referênciapara o desenvolvimento de instrumen-tos de avaliação.

Instrumentos deavaliação

Definida a alfabetização e as compe-tências que a possibilitam, cabe identificaros instrumentos mais adequados para ava-liar se o aluno está alfabetizado.

Nas escolas tradicionais a avaliação sedá quando o diretor “toma a leitura” dos alu-nos para verificar se estão alfabetizados. Oditado continua sendo um instrumento práti-co eficaz para verificar a capacidade de trans-crição escrita do código alfabético. Professo-res da série seguinte à alfabetização são osmelhores juízes para avaliar se o aluno estáou não alfabetizado: o aluno que não lê otexto do livro, não copia o que precisa copiarno tempo adequado e se não toma notas deforma defina, não tem funcionalidade. Por-tanto, é um analfabeto funcional escolariza-do. Embora não sejam tecnicamente robus-tas, essas práticas contém os elementos es-senciais de uma boa avaliação das compe-tências centrais da avaliação.

Para avaliar a fluência de leitura6, ins-trumentos mais robustos e sofisticados de-vem incluir:

• um texto que o aluno não tenha lido,de estrutura morfo-sintática compa-tível com a idade e nível de desen-volvimento do aluno;

• uma leitura cronometrada;• contagem de erros (gaguejar, parar,

silabar, decodificar).

Para avaliar a capacidade de es-crita o ditado é um instrumento queapresenta um elevado grau de valida-de de face, e normalmente é avaliadolevando em conta:

• a fluência, ou seja, o tempo necessá-rio para escrever;

• a legibilidade;• o nível de correção ortográfica;• o atendimento a regras básicas de

pontuação e uso de maiúsculas;• a disposição da escrita no papel de

acordo com a natureza da mensagem.

Um aluno pode ser considerado al-fabetizado quando domina essas com-petências. Nas séries seguintes a ênfasedo ensino da língua passa para outrosaspectos, tais como o desenvolvimentodo léxico, a correção ortográfica, o do-mínio da sintaxe e a compreensão e pro-dução de textos. Nada impede que es-sas habilidades sejam ensinadas e ava-liadas antes e durante o processo de al-fabetização. No entanto são necessári-os cuidados especiais para que essascompetências sejam avaliadas de formaindependente da avaliação das compe-tências específicas da alfabetização.

5 Os termos transparente e opaco são usados na literatura especializada para indicar o grau de maior ou menor proximidade entreos sons da fala e sua representação gráfica. Essa propriedade da língua faz com que a alfabetização se realize em 1 ano em paísescomo a Finlândia ou Itália, mas leve cerca de dois anos em países francófonos e cerca de 3 nos países de língua inglesa. Trata-se de mais uma evidência de que alfabetizar, no seu sentido próprio, nada tem a ver com compreensão de textos.6 O Programa Alfa e Beto de Alfabetização, desenvolvido pelo autor, utiliza instrumentos dessa natureza para acompanhar o alunoao longo e avaliá-lo ao término do processo de alfabetização. Um aluno alfabetizado deve ser capaz de ler pelo menos 60 a 80palavras por minuto, com um máximo de 5% de erros, compreendendo o que leu de primeira vez. Disponível em: <www.alfaebeto.com.br>.

Page 6: Avaliacao Em Alfabetizacao

380 João Batista Araujo e Oliveira

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 375-382, jul./set. 2005

Compreensão eprodução de textos

Os indicadores descritos na seção anteriorreferem-se às competências centrais e básicasdo processo da alfabetização. O aluno, mes-mo depois de ser considerado alfabetizado,ainda precisa e pode desenvolver fluência deleitura e escrita. Também precisará desenvol-ver sua capacidade ortográfica – que são com-petências próprias da alfabetização. Mas jáalcançou um nível básico que lhe permite fun-cionar numa segunda série, ou seja, usar aleitura e escrita para aprender – ao invés deaprender a ler e escrever. O processo da alfa-betização, como tal tem princípio, meio e fim:não é um processo permanente. E portantopode ser avaliado de forma precisa.

Já a compreensão e a capacidade deprodução de texto são competências que nemcomeçam nem terminam na escola. Antesda escola e ao longo da vida aumentamosnossa capacidade de compreender e escre-ver em função do desenvolvimento de nossacapacidade mental e dos conhecimentos queadquirimos sobre os vários assuntos sobreos quais lemos ou escrevemos.

A criança compreende textos bastantecomplexos antes de ser alfabetizada, e tam-bém é capaz de produzir textos orais. Masa mesma criança recém-alfabetizada care-ce de competências que lhe permitam com-preender esses mesmos textos se ela pró-pria tiver de lê-los. A razão é que ela nãopossui a fluência adequada: ela tem umadificuldade de leitura que, por sua vez, im-pede a compreensão. Mas isso não signifi-ca que essa criança tenha uma dificuldadede compreensão. Daí a necessidade decuidados e técnicas próprias que permitamavaliar a capacidade de leitura e escrita de

forma independente da mensuração dascapacidades de compreensão e produçãode textos, no caso de alunos recém-alfabe-tizados. De outra forma a medida fica con-taminada, e ficamos sem saber se o alunonão compreendeu porque não sabe ler ouporque apenas não soube compreender. Ostestes mencionados no primeiro parágrafodeste artigo cometem essa confusão.

O mesmo ocorre na escrita. O aluno podeser capaz de pensar e ditar um texto razoa-velmente estruturado e elaborado. Mas se nãosouber escrever com legibilidade e fluência,pode nao “produzir um texto” – muito menosdentro de um tempo funcionalmente adequa-do. Portanto, se o avaliador não se assegu-rar, de forma independente, que o aluno pos-sui competências de caligrafia e ortografia,nao tem como avaliar se o aluno deixou deproduzir um texto porque nao possui as com-petências de produção de texto - embora sai-ba escrever no sentido próprio da palavra –ou porque não possui as competências bási-cas da escrita. Nesse caso o teste foi inútil,pois não avaliou nem uma coisa nem outra.

A esse respeito são eloqüentes os resul-tados do SAEB e do PISA. No caso do PISA(ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT, 2001),vemos que mais de 55% dos alunos brasi-leiros com 13 anos de idade, matriculadosna 7ª. e 8a. séries do ensino fundamentalsituam-se no nível mais básico de leitura,que é o nível da identificação das pala-vras. Ou seja, no máximo eles identificamas palavras escritas, sem necessariamenteapreciar o sentido. É provável que se fos-sem submetidos a um teste oral, esses alu-nos tivessem um resultado muito melhor emcompreensão. Eles não compreendem por-que não sabem ler – não porque não sa-

Page 7: Avaliacao Em Alfabetizacao

Avaliação em Alfabetização 381

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 375-382, jul./set. 2005

bem compreender. Diante de um texto, oude um teste, seu esforço cognitivo concen-tra-se no nível mais elementar – porque nãoforam devidamente alfabetizados, e nãoaprenderam a identificar automaticamentepalavras nem a ler com fluência.

Cabe deixar claro que um aluno devi-damente alfabetizado, ainda que com flu-ência limitada de leitura e escrita, deve sercapaz de compreender textos simples e com-patíveis com seu nível de leitura. Bem comodeve ser capaz de redigir frases com umaestrutura sintática simples. Esta não é a ques-tão em pauta. A questão é que quando acriança não adquiriu a base, usar testes comtextos complexos e exigir produção de textostambém complexos não permite saber nemse a criança está alfabetizada nem se con-segue compreender ou produzir textos.

Voltando aoponto de partida

A qualidade de um teste depende, entreoutros fatores, da consistência entre a defi-nição, os indicadores, os instrumentos e ositens utilizados – e sua pertinência à clien-tela avaliada. As concepções equivocadasde alfabetização prevalentes no Brasil im-possibilitam não apenas a alfabetizaçãoadequada das crianças, mas a elaboraçãode testes adequados de alfabetização.

A proposta de Matriz e Referência doSAEB7 para os concluintes da 2ª. série doensino fundamental, que vem circulando

pela Internet a partir de meados de 2004incorre nesse mesmo tipo de erro. Nessaproposta há apenas uma competência re-lacionada com o funcionamento do sis-tema de escrita: dominar o princípio al-fabético. Essa competência, na Matriz doSAEB, é desdobrada em 4 descritores:identificar as relações entre fonemas egrafemas; identificar palavra compostapor sílabas canônicas, identificar pala-vras compostas por sílabas não canôni-cas; relacionar palavra à figura.

Cabe registrar que essa competência éconsiderada como fundamento ou requisi-to para a alfabetização, e não como partedo que deve ser ensinado como próprio deum programa de alfabetização. Seria maisadequado investigar esse tipo de compe-tência para diagnóstico de alunos que vãoiniciar a alfabetização do que para um tes-te de alfabetização propriamente dito. To-dos os outros indicadores da referida Ma-triz referem-se a competências relaciona-das à compreensão de textos.

Ao ignorar os avanços da Ciência Cog-nitiva da Leitura e apoiar-se nos PCNs comofonte de definição do que seja alfabetiza-ção, os responsáveis pela elaboração dostestes de alfabetização deixarão as escolase pais sem saber se os alunos foram ounão alfabetizados. Pouco saberemos sobreas competências de compreensão – comopodemos inferir da história do SAEB e doPISA – e nada saberemos sobre o êxito daalfabetização.

7 A aplicação desse teste em 2005 foi suspensa pelo MEC/INEP.

Page 8: Avaliacao Em Alfabetizacao

382 João Batista Araujo e Oliveira

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 375-382, jul./set. 2005

ReferênciasADAMS, M. J. Beginning to read: thinking and learning about print. Cambridge, MA:MIT Press, 1990.

BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Alfabetização infantil: os novos caminhos:relatório apresentado à Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados.Brasília, DF, 2003.

FRANCE. Ministère de la Jeunesse, de l´Éducation Nationale et de la Recherche. Ap-prende à lire. Paris: MEN, 1998.

McGUINESS, D. Early reading instruction: what science really tells us about how to teachreading. Cambridge, MA: MIT Press, 2004.

NATIONAL READING PANEL. National Reading Panel Report: teaching children to read:an evidence based assessment of the scientific research literature on reading and its im-plications for reading instruction. Washington, DC: National Institute of Child Health andDevelopment, 2000.

OAKHILL, J.; BEARD, R. Reading development and the teaching of reading. Oxford:Blackwell Publ., 1999.

OFFICE FOR STANDARDS IN EDUCATION. The national literacy strategy. London:Ofsted, 2000.

OLIVEIRA, J. B. ABC do alfabetizador. 3. ed. Belo Horizonte: Alfa Educativa, 2005.

ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Knowled-ge and skills for life: first results from the PISA 2000. Paris: OECD, 2001.

Recebido em: 01/02/2005Aceito para publicação em: 08/07/2005