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As teorias de justiça entre as gerações 1 Axel Gosseries « (…) como se o homem não estivesse jamais só, como se ele tivesse recebido como partilha uma matéria e uma força, oferenda que ele deveria por sua vez transmitir, por intermédio de um ser ou de um ato...” Introdução Já há muito tempo que nos confrontamos com ameaças sobre o nosso meio ambiente e com o esgotamento dos recursos naturais. A tal ponto que estes fatores aparecem mesmo como sendo determinantes no declínio de algumas civilizações do passado. Uma das explicações prováveis para o desaparecimento da civilização da Ilha de Páscoa seria a exploração exagerada dos recursos naturais disponíveis. 2 Na mesma linha de idéias, a poluição devida ao chumbo na antigüidade teria contribuído para acelerar o declínio de Roma. 3 Apesar dos avanços tecnológicos, a nossa sociedade continua a ser muito dependente do meio ambiente e dos recursos naturais. E mesmo se o alcance e a natureza dos problemas evoluíram com o passar do tempo, não deixa de ser surpreendente constatar que as teorias filosóficas de justiça continuam relativamente desarmadas para tratar de questões normativas relacionadas com estas temáticas. O foco sobre o longo prazo, o problema da poluição ou a questão das externalidades lançam desafios significativos às nossas tentativas de articular regras justas de comportamento individual e de organização da sociedade. Ao mesmo tempo, o debate político e científico constantemente faz sugir novos conceitos, tais como “desenvolvimento sustentável”, “dívida ecológica”, “decrescimento” ou “pegada ecológica” 4 . Cada um destes conceitos constitui um convite a repensar a natureza do que está em jogo em termos normativos. Para tanto, estes devem ser retraduzidos, recorrentemente, na linguagem específica de cada uma das teorias de justiça. Sem este esforço, é impossível articular questões ambientais e relativas aos recursos naturais com o restante dos desafios sociais que devemos enfrentar simultaneamente. A idéia de desenvolvimento sustentável é um conceito que alcança um successo surpreendente. Não há dúvida nenhuma de que as exigências de justiça entre as gerações constituem um de seus componentes-chaves. Neste sentido, é emblemático que a definição mais conhecida de desenvolvimento sustentável seja aquela que o define como um desenvolvimento “que responde às necessidades do presente sem comprometer a 1 Este texto é uma versão bastante modificada de Gosseries A., “The Egalitarian Case Against Brundtland’s Sustainability”, GAIA, Vol.14 (1): 40-46. Gostaríamos de agradecer a B. Gagnon, M. Fleurbaey e P. Savidan por seus comentários durante a elaboração deste artigo. Traduzido pelo autor e a sua esposa, Maria. F. Natario Ramalho, com a ajuda de Fábio Waltenberg. 2 Vejam-se, por exemplo:: Ponting, Cl., A Green History Of The World. The Environment and the Collapse of Great Civilizations, New York:: Penguin, 1993, 448 p. ; Diamond, J., 2005. Collapse. How societies choose to fail or survive, Viking Books. 3 Vejam-se: Gilfillan, S. C., « Lead Poisoning and the Fall of Rome », J. Occup. Med. , 7:: 53-60, 1965; Lessler L., « Lead and Lead Poisoning from Antiquity to Modern Times », Ohio J. Sci 88(3):: 78-84, 1988 ; Brännvall, M.-L. et al., « Four thousand years of atmospheric lead pollution in northern Europe:: a summary from Swedish lake sediments », J. of Paleolimnology, 2001, vol. 25, pp. 421-435. 4 Uma boa publicação sobre desenvolvimento durável é: Maréchal, J.-P. & Quenault, B. (eds), Le développement durable. Une perspective pour le XXIè siècle, Rennes: PUR, 2005, 422 p.

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  • As teorias de justia entre as geraes1

    Axel Gosseries

    () como se o homem no estivesse jamais s, como se ele tivesse recebido como partilha uma matria e uma fora,

    oferenda que ele deveria por sua vez transmitir, por intermdio de um ser ou de um ato...

    Introduo J h muito tempo que nos confrontamos com ameaas sobre o nosso meio ambiente e com o esgotamento dos recursos naturais. A tal ponto que estes fatores aparecem mesmo como sendo determinantes no declnio de algumas civilizaes do passado. Uma das explicaes provveis para o desaparecimento da civilizao da Ilha de Pscoa seria a explorao exagerada dos recursos naturais disponveis.2 Na mesma linha de idias, a poluio devida ao chumbo na antigidade teria contribudo para acelerar o declnio de Roma.3 Apesar dos avanos tecnolgicos, a nossa sociedade continua a ser muito dependente do meio ambiente e dos recursos naturais. E mesmo se o alcance e a natureza dos problemas evoluram com o passar do tempo, no deixa de ser surpreendente constatar que as teorias filosficas de justia continuam relativamente desarmadas para tratar de questes normativas relacionadas com estas temticas. O foco sobre o longo prazo, o problema da poluio ou a questo das externalidades lanam desafios significativos s nossas tentativas de articular regras justas de comportamento individual e de organizao da sociedade. Ao mesmo tempo, o debate poltico e cientfico constantemente faz sugir novos conceitos, tais como desenvolvimento sustentvel, dvida ecolgica, decrescimento ou pegada ecolgica4. Cada um destes conceitos constitui um convite a repensar a natureza do que est em jogo em termos normativos. Para tanto, estes devem ser retraduzidos, recorrentemente, na linguagem especfica de cada uma das teorias de justia. Sem este esforo, impossvel articular questes ambientais e relativas aos recursos naturais com o restante dos desafios sociais que devemos enfrentar simultaneamente. A idia de desenvolvimento sustentvel um conceito que alcana um successo surpreendente. No h dvida nenhuma de que as exigncias de justia entre as geraes constituem um de seus componentes-chaves. Neste sentido, emblemtico que a definio mais conhecida de desenvolvimento sustentvel seja aquela que o define como um desenvolvimento que responde s necessidades do presente sem comprometer a

    1 Este texto uma verso bastante modificada de Gosseries A., The Egalitarian Case Against Brundtlands Sustainability, GAIA, Vol.14 (1): 40-46. Gostaramos de agradecer a B. Gagnon, M. Fleurbaey e P. Savidan por seus comentrios durante a elaborao deste artigo. Traduzido pelo autor e a sua esposa, Maria. F. Natario Ramalho, com a ajuda de Fbio Waltenberg. 2 Vejam-se, por exemplo:: Ponting, Cl., A Green History Of The World. The Environment and the Collapse of Great Civilizations, New York:: Penguin, 1993, 448 p. ; Diamond, J., 2005. Collapse. How societies choose to fail or survive, Viking Books. 3 Vejam-se: Gilfillan, S. C., Lead Poisoning and the Fall of Rome , J. Occup. Med. , 7:: 53-60, 1965; Lessler L., Lead and Lead Poisoning from Antiquity to Modern Times , Ohio J. Sci 88(3):: 78-84, 1988 ; Brnnvall, M.-L. et al., Four thousand years of atmospheric lead pollution in northern Europe:: a summary from Swedish lake sediments , J. of Paleolimnology, 2001, vol. 25, pp. 421-435. 4 Uma boa publicao sobre desenvolvimento durvel : Marchal, J.-P. & Quenault, B. (eds), Le dveloppement durable. Une perspective pour le XXI sicle, Rennes: PUR, 2005, 422 p.

  • capacidade das geraes futuras de responder s suas5. Apesar disso, temos de reconhecer que os debates sobre a sustentabilidade deixam pouco espao a um exame detalhado do que possa significar a justia entre as geraes, em comparao com o grau de refinamento que j conhecemos nas teorias de justia. Tambm preciso sublinhar que vrias outras dimenses normativas devem ser levadas em conta se queremos tratar as questes ambientais de maneira exaustiva. Em primeiro lugar, as questes de justia internacional ou inter-especfica so igualmente cruciais. As questes de justia local (no sentido geogrfico do termo) ou de gnero tambm no podem ser negligenciadas. Para alguns dos desafios ambientais, as dimenses aqui mencionadas podem chegar a importar mais, numa perspectiva prtica, ou chegar a levantar desafios conceituais mais significativos, do que a prpria dimenso inter-geracional. Para alm disso, ao nos debruarmos sobre o debate da sustentabilidade, parece-nos essencial diferenciar bem a questo ser que moralmente obrigatrio que a humanidade continue a existir, e se sim, por que?, daquela que consiste em responder se, dado que provavel que ela continue a existir, como proceder a fim de que continue a existir de uma forma justa?. Podemos responder a ltima pergunta sem nos pronunciar sobre a primeira. No entanto, isto no nos conduz, de forma alguma, a subestimar a importncia duma reflexo profunda sobre a hiptese de que um dia todos decidssemos deixar de procriar. Isto porque tal hiptese desperta vrias interrogaes. Por exemplo, o prprio fato de cessar de procriar, que implicaria o fim por definio, voluntrio da espcie humana, constituiria, enquanto tal, um (conjunto de) ato(s) imoral(is)? A este respeito, as idias de Hans Jonas so freqentemente apontadas como sendo centrais, porm pensamos que elas no chegam a caracterizar de maneira plausvel a natureza dessa imoralidade.6 Alm disso, a hiptese da rejeio generalizada da procriao nos colocaria tambm na situao de ltimos homens, o que suscita uma indagao sobre o status moral dos seres vivos que no sejam humanos.7 importante, portanto, estarmos bem conscientes da posio relativa que ocupada pela dimenso inter-geracional, a fim de no tentarmos recorrer a ela a qualquer custo para analisar problemas que seriam mais bem abordados a partir de outras dimenses. O ambiental no se resume ao inter-geracional. E o inter-geracional tambm contm mais do que o ambiental. crucial, portanto, comparar o que se diz a propsito das questes ambientais com o que seria sugerido a propsito de outras questes inter-geracionais como a gesto da dvida pblica, o financiamento das aposentadorias ou a transmisso duma lngua. Este ensaio visa a mostrar que a justia entre as geraes pode ser compreendida de diversas maneiras, e que algumas delas so mais robustas do que outras. Tambm tem como objetivo ajudar a compreender porque o desenvolvimento sustentvel tal como definido no relatrio Brundtland (1988) ignora dois tipos de injustias inter-geracionais significativas. Caber ao leitor examinar se as intuies de justia que ele defende no contexto inter-geracional so condizentes com as intuies que ele defenderia em problemas anlogos de alada estritamente intra-geracional.

    5 Brundtland, G. H. et al. , Our Common Future,: Oxford University Press, Oxford/New York (1987), p. 53 6 Ns discutimos este ponto em: Gosseries, A., Penser la justice entre les gnrations, Paris: Aubier, 2004, p. 18-22. 7 Para uma breve discusso sobre a hiptese do ltimo homem, veja-se: Gosseries, A., Lthique environnementale aujourdhui, Revue philosophique de Louvain, vol. 96 (3), 1998, pp. 401-405

  • Caixa de ferramentas Em face do grande alcance dos problemas ambientais, pode ser grande a tentao de associ-los, j de incio, a desafios conceituais de natureza indita, que requereriam, portanto, uma reviso completa das teorias gerais de justia. claro que no se pode descartar completamente a possibilidade de que isto seja necessrio. Contudo, ns optamos por nos apoiar sobre a hiptese contrria. Assim, primeiro vamos tentar utilizar da melhor maneira possvel os recursos conceituais j disponveis, para apenas ento verificar se ainda resta algum excedente que reclamaria a criao de conceitos novos. como se, antes de cunhar algum neologismo, ou at inventar um novo idioma, verificssemos primeiro se alguma das lnguas existentes neste caso, uma teoria de justia elaborada com esmero por geraes de interlocutores, j no disporia de um lxico suficiente para tratar as questes em jogo. Existem vrias maneiras de introduzir de forma intuitiva, ao no-iniciado, as questes de justia entre as geraces. Uma delas consiste em se fazer uma analogia com regras de boa utilizao de espaos pblicos por utilizadores sucessivos. Pensemos no caso de um parque natural. Para que o parque seja preservado, preciso estabelecer regras do tipo favor deixar limpo este local, ou no estado em que gostaria de o encontrar, ou num estado to bom quanto aquele em que o encontrou. Eis aqui vrias inspiraces para vises de justia inter-geracional com lgicas e contedos bem distintos. Um outro ponto de partida consiste em comear por conceitos de direito privado que nos so familiares. Trata-se, pois, de explorar por exemplo as diferenas entre afirmaes como: a terra pertence em usufruto a todos os que esto vivos8 (de Thomas Jefferson) ou ns no herdamos a terra dos nossos ancestrais; ns a tomamos emprestada dos nossos filhos9 (provrbio indiano). Ou ainda explorar idias de propriedade comum (presente na constituio da Pensilvnia)10, do conceito prprio ao direito ingls de trust (mencionada na constituio do Japo)11, de hipoteca eterna (defendida por Jean Jaurs)12 e mais geralmente de contrato entre as geraes (j utilizada por Burke no fim do sculo XVIII).13 14 A metfora das regras do parque natural ou as referncias analgicas a diversos tipos de contratos ou de declinaes do direito de propriedade so pontos de partida igualmente interessantes para esta problemtica, os quais, porm nos oferecem esclarecimentos somente parciais. O mtodo adotado aqui ser, no entanto, diferente. Vamos comparar vrias teorias filosficas de justia apoiando-nos em dois postulados. Primeiro, vamos nos concentrar no tamanho do cesto a transmitir gerao seguinte e no na sua composico. O cesto est guarnecido de elementos que constituem um capital no sentido amplo da palavra. Ele no somente material, mas tambm tecnolgico, institucional, ambiental, cultural, relacional etc.. Vamos, ento, apresentar uma tabela que resume as concluses-chaves de cada uma dessas teorias, baseada em duas noes opostas: a poupana e a

    8 Jefferson, Th., Letter to James Madison (6 sept 1789), Disponvel no seguinte stio: http://odur.let.rug.nl/~usa/P/tj3/writings/brf/jefl81.htm 9 Diversas fontes na Internet. 10 Conforme discusso mais abaixo. 11 Veja-se tambm: Constituio japonesa de 1947, art. 97 12

    13 Burke, E., Rflexions sur la rvolution de France ; suivi dun choix de textes de Burke sur la rvolution, Paris: Hachette, 2004 ( Pluriel Histoire )( 165) 14 Veja-se tambm: Locke J., Two Treatises of Government an A Letter Concerning Toleration (I. Shapiro, ed.), New Haven/Londres: Yale University Press, 2003 (Primeiro tomo, 88).

  • despoupana geracionais. Diz-se que existe uma poupana (geracional) desde que uma gerao transfira gerao seguinte um capital (no sentido amplo do termo) superior ao que ela prpria herdou da gerao precedente. Ao contrrio, h despoupana (geracional) quando uma gerao transfere gerao seguinte um capital inferior ao que ela prpria herdou da gerao anterior. Segundo, vamos associar estas duas noes (poupana e despoupana) a trs opes: autorizao, proibio e obrigao. Este mtodo pode parecer ao mesmo tempo exageradamente simplista e excessivamente quantitativo. Todavia, a utilizao das noes de poupana/despoupana alm do fato de que ambas se referem a uma noo ampla de capital tem por objetivo primrio revelar lgicas subjacentes de justia diferentes umas das outras, e indicar as implicaes prticas de tais diferenas. Alm do mais, no negamos de maneira nehuma a importncia nem a possibilidade duma argumentao acerca do contedo do cesto a transmitir duma gerao outra. Tal argumentao exigiria, alis, que a importncia dos problemas ambientais fosse avaliada e comparada com a de outras exigncias, associadas por exemplo transmisso de culturas particulares ou preservao de mecanismos de solidariedade inter-geracional. Notemos que, mesmo no seio das questes ambientais, h arbitragens que tm que ser feitas e prioridades que tm de ser estabelecidas, por exemplo, entre a construo de barragens para a produo de energia renovvel e a proteo de espcies ameacadas, ou entre a preservao do carter natural dos espaos e as intervenees humanas por vezes necessrias para salvar certas espcies que a se encontram.15 Por fim, ressaltem-se ainda dois pontos. Primeiro, dado que este texto pretende ser sinttico, no faremos um exame detalhado de questes mais especficas nas quais a justia inter-geracional tem um papel importante, tais como, por exemplo, a definio de um teto mundial para emisses de C02, a justificao da proteo da biodiversidade ou a escolha de um modo de financiamento para a desativao de usinas nucleares.16 Segundo, a justia entre geraes tambm traz tona a questo das nossas obrigaes para com as geraes passadas. Esta dimenso, que tampouco vamos tratar aqui, est presente em vrios nveis, inclusive nas teorias discutidas neste texto. Ela , para alm disso, particularmente relevante para questes ambientais especficas, tais como, por exemplo, a contabilizao de emisses histricas de C02 na definio da partilha atual de obrigaes de reduo de emisses entre pases.17 Aps esta introduo, comecemos ento o nosso percurso.

    Reciprocidade indireta

    15 Acerca de alguns elementos sobre este ponto, veja-se: Gosseries, A., De la ncessit de distinguer protection de lenvironnement, conservation de la nature et conservation de la biodiversit. Lexemple de lintroduction dune sous-espce non-europenne despce protge (previamente uma nota para discusso: CJCE, C-202/94), 1997, Revue juridique de lenvironnement , vol. 22(2): 220-227 16 Sobre estes trs assuntos, vejam-se, respectivamente: Gosseries, A., Egalitarisme cosmopolite et effet de serre, Les sminaires de lIDDRI (Paris), n 14, 2006, pp. 18-23 ; Gosseries, A., Penser, pp. 241-265 ; Gosseries, A., Radiological Protection and Intergenerational Justice, in G. Eggermont & B. Feltz (eds.), Ethics and Radiological Protection, Louvain-la-Neuve: Academia-Bruylant, 2008, pp. 184-187 17 Veja-se: Gosseries, A., missions historiques et free-riding , Archives de philosophie du droit , 2003, vol. 47: 301-331

  • Uma primeira teoria, discutida particularmente por Brian Barry, a da reciprocidade indireta.18 A idia de reciprocidade pressupe que ao menos se tiver condies de o fazer cada pessoa tem que beneficiar a outrem por aquilo de que ela mesma se beneficiou. No caso da justia entre geraes, acreditamos que se trate de uma viso bastante comum (sociologicamente falando).19 Na sua verso reciprocidade descendente, ela decompe-se em duas mximas. A primeira visa a justificar porque todos temos obrigaes para com a gerao seguinte. Neste caso, pelo fato de termos todos recebido algo dos nossos pais que devemos transmitir algo de volta gerao dos nossos filhos. Esta intuio pode, todavia, ser expressa de vrias formas: atravs do conceito de propriedade, ou simplesmente como o retorno justo a um esforo fornecido pelos nossos pais. Mas ela certamente difere da idia segundo a qual devemos algo aos nossos filhos porque na realidade nada mais fazemos que lhes pedir emprestado o que j lhes pertence. E tambm difere da lgica igualitarista, como veremos em seguida. Quanto segunda mxima, ela define o contedo das nossas obrigaes para com a gerao seguinte. Ento, temos:

    Reciprocidade descendente:

    Mxima justificativa: A gerao atual deve algo gerao seguinte porque recebeu algo da gerao anterior. Mxima substantiva: A gerao atual deve transmitir gerao seguinte um capital pelo menos equivalente ao que ela herdou da gerao anterior.

    Para aqueles que associam justia a reciprocidade, a reciprocidade indireta uma idia bastante potente. De fato, ela permite justificar obrigaces para com pessoas que no nos deram nada at agora e que, no futuro, possivelmente, nos tero dado menos do que lhes teremos dado. Enquanto no caso da reciprocidade direta, o benfeitor inicial quem acaba por recuperar o seu investimento, na reciprocidade indireta, um terceiro beneficirio (neste caso, a gerao seguinte), que toma o lugar do benfeitor inicial (neste caso, a gerao precedente), criando assim uma cadeia de obrigaces. Poderamos levantar como objeo que uma mera doao no requer por si s qualquer tipo de obrigao de retribuio. Contudo, podemos caracterizar a dificuldade criada por uma no-reciprocidade, por exemplo, sublinhando que tal gerao deveria ser considerada como um free-rider (ou carona) que usufrui do trem inter-geracional sem pagar o bilhete, aproveitando assim, sem retribuir, os sacrifcios feitos pelo conjunto das geraces precedentes. Que dificuldades enfrenta o princpio de reciprocidade indireta descendente? Primeiro, se nos recusamos a dissociar a existncia do dever para com o beneficirio inicial e a do dever para com o terceiro beneficirio, a mxima justificativa pressupe a idia segundo a qual temos deveres para com as geraces passadas, e portanto para com os mortos. So de fato essas obrigaces que geram os nossos deveres para com a gerao seguinte. No entanto, que um Estado justifique as suas polticas de desenvolvimento sustentvel invocando deveres para com os mortos constitui um desafio idia (liberal) de uma certa neutralidade do Estado em relao s diferentes concepces metafsicas dos cidados e s suas vises do que vem a ser uma vida boa. Podemos mostrar que tais deveres para com os mortos no

    18 Barry, B., 1989. Justice as Reciprocity , in Liberty and Justice, Oxford, Oxford University Press, p. 211-241 ; Vejam-se tambm: de Shalit, A. Why Posterity Matters. Environmental policies and future generations, London: Routledge, 1995, pp. 96-99 ; Gosseries, A., Dette gnrationnelle et conceptions de la rciprocit, in R. Pellet (ed.) Finances publiques et redistribution sociale , Paris: Economica, 2006, pp. 367-391 19 Veja-se: Wade-Benzoni, K. A., A Golden Rule Over Time: Reciprocity in Intergenerational Allocation Decisions , Academy of Management Journal 45/5 (2002), pp. 1011-1028

  • tm significado se no postularmos que os mortos existem num sentido moralmente relevante. Ora, tal postulado no partilhado por todos ns.20 Em seguida, a mxima justificativa falha em justificar as obrigaes inter-geracionais duma primeira gerao, seja ela hipottica, visto que esta no ter, por definio, nada recebido da gerao anterior. Como explicar ento a natureza problemtica do fato que a primeira gerao tenha podido dilapidar uma parte importante do capital de que dispunha? Alis, se cada gerao fosse considerada numa certa medida como uma primeira gerao em relao aos bens que inventou, imediatamente compreenderamos que esta dificuldade no est necessariamente desprovida de implicaces prticas. Haveria ainda outros pontos a mencionar tais como as dificuldades encontradas pela mxima substantiva no caso de mudana no tamanho da populao. tambm preciso sublinhar que a reciprocidade indireta descendente no a unica traduo possvel da idia de reciprocidade no campo inter-geracional. Uma teoria completa teria que considerar tambm os conceitos de reciprocidade indireta ascendente (relevante, por exemplo, para compreender a lgica interna dos regimes de aposentadoria por repartio) e da dupla reciprocidade, que seria uma forma direta de reciprocidade aplicada ao campo inter-geracional. Estas duas formas alternativas de reciprocidade inter-geracional no so, no entanto, imediatamente relevantes para a problemtica ambiental.21 De todas as formas, o mais importante a se ressaltar aqui a necessidade de identificar se a reciprocidade indireta leva efetivamente em conta as nossas intuies de justia, tanto no nvel inter-geracional, quanto como parte duma teoria geral de justia. Para verificar isso, a maneira mais simples testar a idia de reciprocidade no contexto intra-geracional. Tomemos o exemplo dum indivduo com mltiplas deficincias congnitas e aceitemos por um momento a idia de que esta pessoa nos retribuir com menos do que lhe daremos o que no implica negar os aspectos positivos que a companhia dessa pessoa possa nos trazer. Neste caso, vemos muito bem os limites da idia de reciprocidade. Na sua vertente justificativa, foi porque essa pessoa (ou qualquer outra) nos deu (ou nos dar) alguma coisa que nos sentimos compelidos a proporcionar cuidados especiais a essa pessoa dependente? A resposta dada por muitos de ns ser provavelmente negativa. E na vertente substantiva, devemos calcular o alcance do que ns devemos a esta pessoa deficiente luz do que ela nos dar em troca? Tambm aqui a resposta ser negativa para muitos de ns. Isto nos sugere que, alm das dificuldades de coerncia interna, a idia de reciprocidade apresenta dificuldades no que se refere sua capacidade de levar em conta as nossas intuies de justia em geral, e no campo da justia inter-geracional em particular.

    Vantagens mtuas A idia de vantagens mtuas possui relaes com a de reciprocidade, porm distinta, tanto por sua lgica (o que justifica a existncia dos deveres), quanto por suas exigncias (como, por exemplo, a de garantir as transferncias previstas). Sucintamente, pode-se dizer que uma teoria de justia baseada na idia de vantagens mtuas se preocupar em demonstrar que um agente racional (no sentido de preocupado exclusivamente com o seu interessse pessoal) tem interesse em tomar parte num sistema cooperativo e em se submeter a certas regras de vida em sociedade. Trata-se, portanto, de demonstrar que

    20 Gosseries, A., Penser , op. cit. , cap. 2. 21 Veja-se: Gosseries, A., Dette , op. cit.

  • racional no sentido restrito ser justo, e que as regras de justia devem ser justificadas recorrendo-se idia de racionalidade de novo, no sentido restrito. Isto conduz, na realidade, a demonstrar que certos ganhos podem surgir a partir da cooperao entre indivduos, e que tais ganhos podem fazer de cada um de ns beneficirios lquidos dessa cooperao. importante verificar como a idia de cooperao pode ser expressa no contexto inter-geracional. Uma dificuldade central a este respeito se refere questo da sobreposio de geraes.22 O fato de que nem todas as geraes so nem mesmo temporariamente contemporneas umas das outras representa um desafio em dois nves. Em primeiro lugar, isto no ameaa a prpria possibilidade de que os benefcios da cooperao sejam mtuos? Pois se os benefcios so reais, mas apenas beneficiam algumas geraes, cabendo s outras o papel de contribuintes lquidos, uma teoria das vantagens mtuas ser incapaz de justificar que todas as geraes de submetam a uma regra de justia comum. Responder a esta questo corresponde a nos perguntarmos em que medida a possibilidade de haver benefcios descendentes (duma gerao seguinte) e ascendentes (duma gerao anterior) depende de uma sobreposio entre essas geraes. Em segundo lugar, no apenas preciso ser possvel que os benefcios sejam mtuos, como tambm necessrio que as condies sejam reunidas para se poder garantir que a regra de cooperao seja efetivamente respeitada por cada gerao. Tambm neste caso, a no-contemporaneidade entre diversas geraes nos leva a questionar a possibilidade de se fazer respeitar atravs de restries determinada regra de transferncias inter-geracionais. preciso, portanto, verificar em que medida a ameaa de punio ascendente ou descendente pode se manter crvel na ausncia de sobreposio inter-geracional. A este duplo desafio, acrescenta-se uma questo suplementar: mesmo supondo-se que possamos construir um modelo inter-geracional em que o duplo desafio citado acima encontre soluo, ainda ser preciso verificar o que isto implicar com respeito questo de poupana e despoupana. Isto porque podemos perfeitamente imaginar que seja racional, para cada uma das geraes submeter-se a uma regra que seja, de qualquer forma, compatvel com uma degradao progressiva dos recursos naturais. Sobre este ponto, os autores discordam.23 E o debate no est maduro para que dele se possam tirar concluses claras.24 Mas evidente que toda tentativa sria de articular uma teoria de justia compreendida sob o ngulo das vantagens mtuas no poder se furtar a um exame atento dessas dificuldades.

    Utilitarismo Exploremos agora uma teoria totalmente diferente: o utilitarismo. Ela se caracteriza, no apenas por sua preocupao com o bem-estar de pessoas (utilitas en latin), mas sobretudo pela idia segundo a qual uma organizao justa da sociedade aquela que maximizar o bem-estar agregado dos seus membros. , portanto, uma teoria agregativa. H razes equivocadas para se criticar o utilitarismo. Mas totalmente correto afirmar que esta teoria de justia no tem como preocupao principal a distribuio do bem-estar entre os

    22 Gauthier, D., Morals by agreement , Oxford: Clarendon Press, 1986, cap. IX 6. 23 Vejam-se: Heath, J., 1997. Intergenerational Cooperation and Distributive Justice, Canadian J. of Phil., vol. 27(3): 361-376 ; Arrhenius, G., Mutual Advantage Contractarianism and Future Generations, Theoria, vol. LXV-1, 1999, pp. XXXXX 24 Gauthier d a sua prpria resposta questo na seo 6.3. do captulo IX. Veja-se: Gauthier, D., Morals op. cit. , pp. 302-305.

  • membros da sociedade. o tamanho do bolo de bem-estar do conjunto da sociedade o que importa, e no o tamanho das fatias destinadas a cada um dos seus membros. Assim, se o sacrifcio total do bem-estar de algumas pessoas (ao ponto, por exemplo, de serem rebaixados condio de escravos) permitisse a maximizao do bem-estar do conjunto da sociedade (num caso em que uma grande proporo da sociedade se beneficiasse da escravizao duma minscula minoria), tal poltica seria defendida pelo utilitarista. Mais do que qualquer outra teoria de justia, esta , portanto, uma teoria de justia capaz de trazer como conseqncia grandes sacrifcios, ainda que nas suas verses mais bem elaboradas faam-se esforos uns melhores; outros piores para superar tais obstculos. A este respeito, no contexto inter-geracional, um fato desempenha papel preponderante. Renunciar hoje a consumir parte do nosso capital permite, se este for bem-investido, consumir muito mais deste capital num futuro mais ou menos prximo. Pensemos numa saca de gros, da qual uma parte poderia, ou ser consumida imediatamente, ou semeada a fim de multiplicar o volume de gros. Assim, se somos utilitaristas, a poupana (no sentido geracional) no apenas est autorizada, como ela obrigatria, visto que o objetivo maximizar o tamanho do bolo inter-geracional de bem-estar. Isto significa que as primeiras geraes da histria devem apertar os cintos com vistas a fazer investimentos que apenas daro frutos em prol de geraes seguintes. Note-se que a idia de investimento produtivo, central aqui, no depende do nmero de geraes que nos seguiro, mas sim do mero fato de que elas viro depois de ns. Este resultado que conduz, em certo sentido, a um sacrifcio das primeiras geraes, acentuado por dois fatores independentes. Primeiro, realista admitir a existncia de um certo altrusmo inter-geracional, em parte devido ao fato de que a sucesso de geraes est tambm ligada a relaes biolgicas de reproduo, que geram indubitavelmente um certo grau de altrusmo. Tambm plausvel considerar que este altrusmo assimtrico, sendo mais forte de pais para filhos do que de filhos para pais. Ao integrarmos este altrusmo descendente, a poupana obrigatria indicada acima corre o risco de se ver acrescida de um grau de poupana suplementar puramente voluntrio desta vez. Em outras palavras, o altrusmo descendente aumenta o risco de acentuar a tendncia de poupana geracional presente no modelo utilitarista. No entanto, essa tendncia no se traduzir necessariamente num hiato de bem-estar suplementar se os agentes extrarem bem-estar dos seus atos altrustas. Segundo, a concluso utilitarista torna-se mais preocupante uma vez que se aceite considerar o nmero de geraes seguintes, seno como infinito, ao menos como indefinido. De fato, uma maneira de se interpretar o utilitarismo consistiria em v-lo como a imposio de um sacrifcio sem fim, j que no se saber onde parar. No final das contas, tal sacrifcio no traria benefcios a nenhuma gerao, uma vez que, pelo fato de no saberem quantas geraes lhes sucederiam, todas elas estariam comprometidas com um dever de poupana. Os utilitaristas no ignoram este problema. Sublinhem-se, alis, dois elementos que apontam para a direo contrria. Primeiro, um fator capaz de atenuar o alcance da poupana obrigatria a utilidade marginal decrescente, um postulado (bastante plausvel) classicamente invocado para justificar certa preocupao dos agregativistas com a distribuio do bem-estar.25 Porm, h sobretudo, a questo da taxa social de desconto. Esta taxa objeto de importantes debates filosficos h muitas dcadas,26 e se encontra, por

    25 No contexto inter-geracional, veja-se: Gauthier, Morals , op. cit., p. 305 26 Cowen, T. & Parfit, D., Against the Social Discount Rate, in Justice between age groups and generations, (P. Laslett & J. Fishkin (eds), New Haven/London: Yale University Press, 1992, pp. 144-

  • exemplo, nas discusses sobre o recente relatrio Stern.27 Se a taxa positiva, ento se atribui a uma unidade de bem-estar futuro menos valor que a uma mesma unidade de bem-estar presente. Esta taxa de desconto pode responder a preocupaes de diferentes ordens, no se limitando ao problema do sacrifcio mencionado acima. Por exemplo, pode-se desejar atribuir um valor descontado mais baixo a uma unidade futura em razo da incerteza quanto sua efetiva existncia futura. Porm, quando se trata de uma preferncia pura pelo presente, ela moralmente problemtica, uma vez que ela aplicada a relaes entre indivduos distintos (e no ao planejamento de uma nica existncia). Ora, pode-se dizer que esta no mais do que uma tentativa ad hoc e v, no nosso entender de reduzir o alcance de um problema uma tendncia ao sacrifcio das primeiras geraes que resulta, na realidade, da prpria lgica do utilitarismo. Mesmo deixando-se de lado o altrusmo descendente, a combinao do reconhecimento da natureza produtiva do capital (se bem investido) e do carter indefinido do nmero de geraes futuras faz com que, no contexto inter-geracional, o utilitarismo possa conduzir a prescries de grandes sacrifcios, mesmo quando atenuadas pela considerao da utilidade marginal descrescente e pela introduo de uma taxa social de desconto. Se estas ltimas nos parecem inaceitveis, sem dvida porque nossa concepo da justia exige uma preocupao mais distributiva do que agregativa.

    Clusula lockeana [CHECAR TRAD EM PORTUGUES] Antes de passarmos em revista um exemplo paradigmtico de teoria distributiva de justia o igualitarismo de Rawls , examinemos uma outra famlia de teorias, mais neo-lockeana do que neo-hobbesiana neste caso: o libertarismo. Aqui, mais uma vez, trata-se claramente de um conjunto de teorias que partilham uma lgica comum. Esquematicamente, elas se articulam em torno de duas problemticas. De um lado, uma definio e uma proteo forte da propriedade de si. Do outro lado, uma maneira particular de apreender a propriedade de recursos externos em oposio aos recursos internos, que pertencem ao terreno da propriedade de si. Assim, os libertaristas garantiro, tanto contra a interveno da autoridade estatal, quanto contra a de outrem, uma forte proteo da integridade fsica, mas tambm, por exemplo, da propriedade dos nossos talentos. O que mais nos interessa aqui, contudo, o status dos recursos externos. A este respeito, na realidade, estamos interessados em determinar de que forma devemos atribuir, aos membros da sociedade, a propriedade dos bens que herdamos. Imaginemos que uma primeira gerao deva distribuir a propriedade das terras cultivveis. Alguns libertaristas tendero a atribuir a propriedade desses bens em funo de uma regra do tipo primeiro a chegar, primeiro a servir-se regra, alis, em uso em diferentes esferas da nossa sociedade, como por exemplo na da propriedade intelectual. Outros subordinaro a legitimidade de uma apropriao ao respeito de uma clusula chamada lockeana. Em geral, a diferena entre estas duas abordagens refletir (ou traduzir) percepes diferentes do status patrimonial inicial dos recursos externos. Para uns, geralmente direita no espectro poltico, as terras cultivveis no pertencem inicialmente a ningum, o que explica a aplicao da regra do primeiro a chegar. Para

    161; Birnbacher, D., "Can discounting be justified?", International Journal of Sustainable Development, vol. 6(1), 2003, pp. 42-53 27 URL: http://www.hm-treasury.gov.uk/independent_reviews/stern_review_economics_climate_change/stern_review_report.cfm

  • outros, mais esquerda, o status inicial dos recursos externos seria o de uma propriedade coletiva, o que explica porque a observao de uma clusula lockeana seria necessria. Dificuldades surgem em razo da existncia de diversas tradues da clusula lockeana, conforme se adote aquela sugerida por Nozick ou por outros autores.28 O que Locke realmente quer dizer ao afirmar que uma apropriao de recursos comuns pode ser legtima sempre que dessa coisa fique uma quantidade suficiente e da mesma qualidade?29 Adotemos uma formulao mais direta contanto que reste tanto quanto para os demais. Aplicada ao campo inter-geracional, isto poderia resultar, por exemplo, na formulao de Arneson: a legitimidade persistente da propriedade privada, do ponto de vista da propriedade de si, depende de que cada gerao sucessiva se beneficie do equivalente a uma frao per capita da terra (land) no melhorada e no degradada30. Uma teoria libertarista que deseje valer-se de tal clusula lockena dever, portanto, primeiro determinar o seu contedo (tanto quanto o qu?) e aplic-la de forma especfica ao contexto inter-geracional.31 Esbocemos aqui trs verses adaptadas ao campo das relaes entre geraes. Primeira interpretao possvel: cada gerao deveria deixar seguinte ao menos (o equivalente a) tanto quanto aquilo que a primeira gerao (pr-histrica) se apropriou inicialmente. Para aqueles que estimam que o cesto de bens herdado da gerao imediatamente anterior nossa ultrapassa, com folga, o valor daquilo de que poderia dispor uma gerao pr-histrica, adotar esta formulao da clusula significaria autorizar qualquer gerao a despoupar, contanto que os recursos transmitidos no final das contas gerao seguinte no fosse inferior em nenhum aspecto, em termos de potencial produtivo, aos recursos da (primeira) gerao pr-histrica. Na realidade, possvel aperfeioar tal formulao de duas maneiras. A primeira consiste em levar em conta as modificaes naturais dos nossos recursos ao longo do tempo. Imaginemos que a gerao que nos antecedeu tenha sido a primeira vtima de uma pequena glaciao que durar ainda duas geraes. Isto ter um impacto negativo (em termos de produtividade dos solos, de biodiversidade etc.) Deveria a gerao atual compensar a diferena de origem natural entre o valor do mundo pr-histrico e aquilo que ele realmente se tornou em razo de evolues naturais? Para um lockeano, no h razo particular para que isto seja feito. Pois o que conta como cenrio de referncia para acionar essa clusula lockenana identificar qual teria sido a situao de outrem na nossa ausncia isto , a situao de qualquer uma das geraes anteriores fosse ela a primeira. Uma formulao alternativa parece ser mais adequada: cada gerao deve deixar seguinte ao menos tanto quanto poderia receber a gerao seguinte na ausncia de geraes anteriores, ou ainda melhor,32 na hiptese em que nenhuma das geraes anteriores tenha, por meio

    28 Veja-se: Vallentyne P. & Steiner H. (eds.), Left Libertarianism and its Critics: The Contemporary Debate, New York: Palgrave, 2000. 29 J. Locke, Le second trait du gouvernement, Paris, Vrin (1690) 1994, 27 (trad. J.-F. Spitz, com a colaborao de Chr. Lazzeri). Veja-se, por ex. J. Waldron, Enough And As Good Left For Others, Philosophical Quarterly, vol. 29, 1979, p. 319-328 30 Arneson, Lockean Self-Ownership, op. cit. , p. 53 (notre traduction) [TRADUZIR DA FONTE PARA PORT!] 31 Sobre as teorias lockeanas de justia inter-geracional, vejam-se: Elliot, R. Future Generations, Locke's Proviso and Libertarian Justice, Journal of Applied Philosophy, vol. 3, 1986, p. 217s.; Arneson, R. Lockean Self-Ownership: Towards a Demolition, Political Studies, vol. 39, 1991, p. 52-53; Steiner, H., An Essay on Rights, Oxford, Blackwell, 1994, p. 268-273; Wolf, C. Contemporary Property Rights, Lockean Provisos and the Interests of Future Generations, Ethics, vol. 105, 1995, p. 791s. 32 Devo esta formulao aperfeioada a P. Vallentyne.

  • de sua ao, conduzido a uma melhoria ou a uma degradao lquida daquilo que a gerao que nos sucede herdaria na nossa ausncia. Imaginemos, porm, a hiptese em que ao invs dos fenmenos naturais, o conjunto das geraes precedentes tenha degradado sem compensao via melhorias tecnolgicas o estado dos recursos externos em comparao com o que ele poderia ter sido apenas sob o efeito da natureza. A observao da clusula menciona acima levaria a uma obrigao de poupar. Ora, por que a gerao atual deveria arcar com os custos da compensao de degradaes resultantes das atividades das geraes anteriores pelas quais ela no de nenhuma forma responsvel? Ou, em todo caso, por que esta gerao seria mais reponsvel do que a gerao seguinte, para com a qual ela tenta respeitar suas obrigaes? Alm disso, caso se estime que o capital cultural herdado de sucessivas geraes de ancestrais aumente consideravelmente o potencial produtivo dos recursos naturais, ficar claro a que ponto esta fomulao autoriza, de novo, uma margem significativa de despoupana. Uma reformulao suplementar da clusula lockeana , no entanto, possvel: toda gerao deveria deixar seguinte ao menos tanto quanto receberia a gerao seguinte caso a gerao atual no tivesse, por meio de sua ao, conduzido a nenhuma melhoria ou degradao lquida daquilo que a gerao que nos sucede herdaria na nossa ausncia. Esta terceira interpretao leva em conta, no apenas melhorias ou degradaes desde a pr-histria, mas inclui tambm o produto acumulado da atividade fsica e intelectual das geraes que antecederam a gerao atual. A nica coisa que ela nos obriga a pensar em qual seria a situao de cada gerao em termos de recursos externos (naturais e culturais), no na ausncia do conjunto de geraes precedentes, mas na ausncia apenas da gerao anterior. Na linguagem da poupana e da despoupana, isto quer dizer que a poupana permitida. Por outro lado, em caso algum esta clusula lockena autoriza a despoupana, salvo se o ambiente que herdar a gerao seguinte tenha se degradado em comparao com o que ns herdamos, em razo de causas independentes da nossa prpria ao (a saber, naturais ou resultantes da ao das geraes anteriores). Isto implica, por exemplo, que qualquer mudana climtica resultante de emisses estritamente histricas (isto , resultantes apenas da atividade dos nossos ancestrais) que conduzisse a um clima pior para a gerao seguinte do que para a nossa no implicaria que ns teramos obrigaes particulares.33 Isto contrasta com aquilo que um igualitarista defender. O que um defensor da reciprocidade indireta defenderia neste caso no to claro. Mas o que est em jogo aqui so possveis diferenas entre ao menos tanto quanto G herdou e ao menos tanto quanto G+1 teria herdado na ausncia de G. E o que torna especfica a abordagem lockeana o fato de ela se concentrar sobre a questo de saber em que medida a minha existncia priva outrem de alguma coisa que ele poderia ter beneficiado na minha ausncia.

    Igualitarismo de Rawls Na sua magistral Teoria da Justia (1971)34, Rawls est consciente do enorme problema enfrentado pelo utilitarismo no contexto inter-geracional. Porm, ele estima tambm que

    33 O que isto ilustra, alis, que a questo das emisses histricas levanta no apenas questes de justia trans-geracional, mas tambm questes de justia inter-geracional no sentido estrito. Sobre a primeira dimenso, veja-se: Gosseries, A., Emissions , op. cit. 34 Rawls, J., Thorie de la Justice, Paris: Seuil XXXX, em particular, 44.

  • um descolamento mnimo com relao aos homens pr-histricos necessrio por razes de justia. Como combinar essas duas preocupaes? Atravs do recurso a um model em dois tempos, em que se sucedem uma fase de acumulao e uma fase de cruzeiro. Durante a fase de acumulao, os princpios so idnticos aos do utilitarismo (poupana obrigatria). Mas a durao desta fase deve ser limitada. E o objetivo perseguido por tal acumulao no tem nada a ver com a maximizao do bolo inter-geracional de bem-estar. Para Rawls, a fase de acumulao visa a permitir a consolidao de uma riqueza econmica que garanta uma estabilidade mnima s instituies justas. Assim que este objetivo atingido, a acumulao cessa de ser uma obrigao. Entra-se ento na fase de cruzeiro. E, neste momento, o princpio defendido por Rawls idntico quele defendido pelas teorias da reciprocidade indireta ou da propriedade coletiva. Assim como Rawls, pensamos que uma abordagem em dois tempos necessria. E tambm nos parece que ele tem razo em defender um princpio de poupana obrigatria durante a fase de acumulao.35 Esta segunda tese no evidente. O que h nela de potencialmente chocante para um igualitarista como Rawls fato de propor, para a fase de acumulao, um princpio de poupana obrigatria que vai de encontro a uma preocupao maior em prol dos mais desfavorecidos. Com efeito, deste ltimo ponto de vista, seria injusto, estritamente falando, exigir uma poupana por parte das primeiras geraes, pois tal exigncia nos conduziria a um mundo inter-geracional em que o mais desfavorecido no se encontraria na melhor situao possvel. Aferroar-se a uma proibio da despoupana no traria tais conseqncias. Rawls est consciente deste problema, mas, apesar disso, ele se atm idia de uma poupana obrigatria. Tentemos fazer uma breve defesa de Rawls quanto a este ponto. Sua teoria , no apenas igualitarista, mas tambm liberal liberal num sentido bem preciso, que no deve ser confundido com o termo usado para designar certos participantes do jogo poltico europeu.36 Ela liberal no sentido de que a busca da melhoria da situao do mais desfavorecido deve ser feita no respeito de restries chamadas liberdades de base. Em outras palavras, a defesa dessas liberdades de base (integridade fsica, liberdade de expresso etc.) tem prioridade sobre o objetivo de melhoria da situao scio-econmica do mais desfavorecido. Pode-se dizer ento que uma violao do objetivo igualitarista seria possvel na fase de acumulao desde que servisse ao objetivo de implementar mais rapidamente as instituies aptas a defender as liberdades de base das pessoas, pois este segundo objetivo prioritrio com relao ao primeiro. Ora, caso se possa demonstrar que, quanto mais rico (em termos de PIB) for um Estado democrtico, mais chances sua natureza democrtica tem chances de perdurar, haver um elemento emprico passvel de sustentar a idia segundo a qual a implementao de instituies justas requer um nvel mnimo de meios materiais e de outras naturezas. Se estamos de acordo, portanto, com uma teoria em dois tempos e com o princpio defendido por Rawls na fase de acumulao, pensamos, por outro lado, que um igualitarista de oportunidades deve defender um princpio diferente do de Rawls na fase de cruzeiro. Qual seria ele?

    Igualitarismo revisitado

    35 Para um desenvolvimento completo sobre este ponto, veja-se: Gaspart, F. & Gosseries A., Are Generational Savings Unjust?, Politics, Philosophy & Economics, vol. 6 (2), 2007, pp.193-217. [36 Nota do tradutor: a ressalva do autor tambm vale para o Brasil. Rawls considerado um pensador liberal num sentido conforme explicado pelo autor deste artigo nada tem a ver com os qualificativos liberal ou neo-liberal tais como usados para designar correntes polticas no Brasil.]

  • No nos parece que Rawls traduza de maneira correta o que exigiria o igualitarismo na fase de cruzeiro. Parece-nos, de fato, que proibio de despoupar deveria se acrescentar tambm uma proibio de poupar. Uma exigncia assim pode soar absurda primeira vista. Onde estaria a injustia ao se permitir que os pais apertem voluntariamente os cintos a fim de garantir aos seus filhos uma existncia melhor do que aquela que eles mesmo puderam desfrutar? Haveria injustia para com quem? Resposta: para com os membros mais desfavorecidos da gerao desses pais. De fato, consideremos a hiptese de uma gerao que preveja que, ao final da sua existncia, correr o risco de transferir um supervit gerao seguinte, em comparao com o que recebeu da gerao anterior. A tese que ns defendemos aqui que no gerao seguinte que este conjunto de recursos deveria ser alocado, mas sim aos membros mais desfavorecidos da gerao atual. Transferir para o futuro equivale a sacrificar a situao dos mais desfavorecidos do presente. Ora, somente se cada gerao respeitar o princpio de proibio, tanto de poupana como de despoupana, que o mundo inter-geracional que construirmos poder ser considerado como aquele onde o mais desfavorecido, qualquer que seja a gerao a que pertena, ser mais favorecido do que seria num mundo organizado diferententemente. verdade que bem possvel que, se este supervit fosse transferido gerao seguinte, ele poderia trazer mais benefcios mais aos mais desfavorecidos. Mas o que devemos almejar que os membros mais desfavorecidos da nossa gerao no se encontrem numa situao pior do que a dos desfavorecidos da gerao seguinte. No ser possvel discutir aqui, em detalhes, este princpio bastante contra-intuitivo primeira vista.37 Mas preciso ressaltar que, mesmo que tal abordagem no seja totalmente incompatvel com a idia de crescimento,38 ela certamente se aproxima e se compara a outras idias aparentadas famlia dos argumentos anti-crescimento.39 Entre estes ltimos, mencionemos quatro, todos eles diferentes daquele que defendido aqui. O primeiro consiste em afirmar que o crescimento, na medida em que conduz a aumentar as desigualdades no plano internacional, seria injusta. O segundo ressalta que a adoo por um Estado de uma poltica de acelerao do crescimento contrria idia de neutralidade do Estado no que se refere a diferentes concepes da vida boa.40 O terceiro afirma que o crescimento intil, ou at mesmo contra-produtivo do ponto de vista da busca de concepes da vida boa que realmente tenham algum valor. E o quarto considera que o crescimento, na medida em que faz uso de numerosos recursos fsicos, no seria sustentvel ao ritmo atual. Cada um destes quatro argumentos mereceria um exame aprofundado, tanto no plano dos seus pressupostos factuais, quanto no plano normativo. O que nos importa sublinhar, contudo, que o igualitarismo inter-geracional nos oferece um argumento diferente desses quatro, apesar de remeter a uma preocupao de justia a exemplo dos dois primeiro argumentos anti-crescimento citados acima. Nota-se aqui tambm de que forma as concluses de uma teoria igualitarista no convergem na fase de cruzeiro com as das teorias de reciprocidade indireta, por exemplo. Alm disso, sob outro ngulo significativo, tal convergncia tambm ausente. Isto se revela claramente quando consideramos a hiptese de um fenmeno natural futuro (ex: um terremoto) que afete negativamente a situao da gerao seguinte. Quando nos colocamos

    37 Para desenvolvimentos mais detalhadas, veja-se: Gosseries, A. Penser, op. cit. , cap. 4 ; Gaspart, F. & Gosseries A., op. cit. Uma das hipteses a considerar aquela em que todos os membros de uma gerao inclusive os mais desfavorecidos optassem por uma poupana geracional. 38 Veja-se: Gaspart & Gosseries, op. cit. 39 Veja-se: Gosseries, A., Penser op. cit. , pp. 224-225 40 Bonin, P.-Y., Neutralit librale et croissance conomique , Dialogue, vol. 36 (1997) 683-703

  • no plano intra-geracional, um terremoto destruidor deve dar lugar a medidas de compensao da parte daqueles que no sofreram seus efeitos, com vistas a atenuar ao mximo as conseqncias negativas sofridas pelas pessoas sem sorte, atingidas por um fenmeno sobre os quais no tm a menor responsabilidade. Para um igualitarista de oportunidades, toda desvantagem resultante de circunstncias sobre as quais um indivduo no tm controle deve ser objeto de compensao por parte do restante da sociedade. Uma deficincia congnita ou uma lngua materna so caractersticas que indubitavelmente caracterizam circunstncias para seus titulares. Um igualitarista acrescentar imediatemente que, se as desvantagens resultam, porm, da escolha das pessoas, o seu custo deveria em princpio ser arcado por aquele que efetuou tal escolha. O debate francs relativo legitimidade dos gastos incorridos por prefeituras no socorro a montanhistas que praticam esportes periogososo, ou o debate austraco concernente ao no-reembolso de gastos hospitalares ligados ao tratamento de coma alcolico de jovens apontam claramente na direo de prticas que, em grande medida, poderiam ser consideradas por um igualitarista como o resultado de uma escolha. Nesta medida, no caberia sociedade como um todo arcar com esses custos.41 Como traduzir esta distino entre escolha e circunstncia para o quadro inter-geracional? Retomemos nosso exemplo. Se, extraordinariamente, pudssemos prever a ocorrncia e a magnitude do terremoto, e se pudssemos demonstrar que a gerao que nos segue seria particularmente afetada mas ns no a gerao atual estaria ento sujeita a uma poupana obrigatria com vistas a garantir que, em razo dos terremotos, a gerao seguinte no venha a se encontrar numa situao mais desfavorvel do que a gerao atual. Esta obrigao de poupar responde a uma lgica bem diferente daquela que se apoiaria no utilitarismo ou daquela que est presente na fase de acumulao na teoria igualitarista. Mas, sobretudo, no parece possvel que uma abordagem baseada na reciprocidade indireta seja algum dia capaz de nos obrigar a transmitir mais gerao seguinte do que aquilo que herdamos da anterior.

    Suficientismo de Brundtland Estamos agora, portanto, equipados para desenvolver a hiptese de que a definio de desenvolvimento durvel, de Brundtland, no seria uma definio satisfatria de justia inter-geracional. Conforme apontado acima, o desenvolvimento chamado de durvel se ele responde s necessidades do presente sem comprometer a capacidade das geraes futuras de responder s suas.42 Comparemos este suficientismo de Brundtland com aquele de Daly, segundo o qual as necessidades de base do presente deveriam sempre prevalecer sobre as necessidades de base do futuro; e as necessidades de base do futuro deveriam prevalecer sobre o luxo extravagante do presente.43 A meno ao conceito de necessidade por parte de Brundtland pode ser compreendida num sentido mais amplo ou menos amplo. No nosso entender, a interpretao mais adequada aquela de necessidades de base. Mas, mesmo adotando-se tal viso restritiva, restaria em tal definio, apesar de tudo, a idia de que, uma vez cobertas as necessidades de cada um, a justia no exigiria mais nenhuma redistribuio. Contanto que as necessidades de base de cada um fossem atendidas, este suficientismo apoiado sobre a satisfao das necessidades no exigiria, por exemplo, que uma pessoa portadora de um dedo a menos

    41 Sobre escolha/circunstncias ver: Dworkin, R., Sovereign Virtue. The Theory and Practice of Equality, Cambridge/London: Harvard University Press, 2000 42 Brundtland, G. H. et al. , op. cit., p. 53 43 Daly, H., Beyond Growth. The economics of sustainable development, Boston: Beacon Press, 1996, p. 36.

  • em razo de uma deficincia congnita fosse indenizada, caso a ausncia do dedo no a impedisse de satisfazer suas necessidades de base. Aos olhos de um igualitarista de oportunidades, a injustia tolerada pelo suficientismo de Brundtland dupla. De um lado, autoriza-se uma despoupana, eventualmente considervel, contanto que ela seja compatvel com a manuteno da capacidade da gerao seguinte de atender s suas prprias necessidades. De outra parte, ao se autorizar a despoupana inter-geracional pelo menos desde que esta no comprometa a capacidade do conjunto dos membros da gerao atual de satisfazer suas prprias necessidades no se atende preocupao igualitarista de que a despoupana deva, em princpio, ser proibida em nome duma maior preocupao com a situao do mais desfavorecido no seio da nossa prpria gerao. importante insistir: no fazemos aqui uma crtica interna da teoria de Brundtland. Alm disso, tambm certamente poderamos tentar demonstrar com muito mais detalhes se o espao assim nos permitisse a que ponto o texto de Brundtland possibilita interpretaes alternativas. Entretanto, o que importa aqui que, para aqueles que estimam que o igualitarismo de oportunidades a teoria de justia mais plausvel para abordar questes de alocao de recursos intra-geracionais, no h razo para abandonar esta teoria uma vez ao passarmos a lidar com questes inter-geracionais. Neste caso, os igualitaristas devero rejeitar a teoria de Brundtland.

    Concluso Este texto repousa sobre uam srie de simplificaes. No nos interessamos, por exemplo, pela composio do cesto de bens a transmitir (ex: pode-se substituir o petrleo ou a biodiversidade que dilapidamos por auto-estradas ou patrimnio cultural?) Tratamos o tema da transmisso inter-geracional justa num nvel elevado de generalidade, com base em duas categorias (poupana e despoupana) e trs opes (proibio, autorizao e obrigao). Esta sntese nos permitiu, no entanto, evidenciar dois pontos importantes. De um lado, a partir de um quadro bem simplificado, j possvel ver-se delinear princpios operacionais bem diferentes. V-se, por exemplo, que a poupana obrigatria inter-geracional est presente, tanto entre os utilitaristas, quanto entre os igualitaristas na fase de acumulao (e, em alguns casos especficos, em fase de cruzeiro), mesmo que isto se deva a razes bastante diferentes. Constata-se tambm que a proibio de poupar uma opo a ser levada a srio pelos igualitaristas em fase de cruzeiro. Note-se, por fim, a grande diferena entre a proibio despoupana defendida na abordagem lockeana daquela do suficientismo. De outro lado, torna-se claro que a abordagem-padro do desenvolvimento durvel, tal como proposta por Brundtland no , de maneira alguma, a nica possvel. E para um igualistarista, ela claramente problemtica em duas dimenses. Poupana Despoupana

    Reciprocidade indireta Autorizada Proibida Utilitarismo Obrigatria Proibida Clusula lockeana Autorizada Proibida, salvo Igualitarismo de Rawls Fase 1: obrigatria

    Fase 2: autorizada Proibida

    Igualitarismo revisitado Fase 1: obrigatria Fase 2: proibida, salvo

    Fase 1: proibida Fase 2: proibida, salvo

    Suficientismo de Brundtland Autorizada, salvo Autorizada, salvo

  • Fig.: Sinopse das diferentes teorias de justia inter-geracional Na realidade, essas teorias de justia nos fornecem os recursos para pensar, no apenas em regras diferentes, mas tambm em como abordar a questo da justia inter-geracional atravs de lgicas diferentes cuja compreenso aprofundada poder conduzir a implicaes mltiplas. Isto ser particularmente notado caso se enriquea o mundo ultra-simplificado utilizado aqui com uma srie de variveis adicionais suscetveis de aproxim-lo do mundo real. De fato, cada uma destas teorias reagir diferentemente, por exemplo, face a oscilaes da populao, sendo o caso da reciprocidade indireta provavelmente o mais emblemtico neste aspecto. Para algumas teorias, isto modificar aquilo que devemos gerao seguinte, enquanto que, para outras, no afetar em nada o alcance das nossas obrigaes inter-geracionais. Da mesma forma, determinada intensidade de altrusmo inter-geracional descendente afetar em maior ou menor grau nossas obrigaes para com a gerao seguinte em funo da teoria adotada. A superposio ou no de geraes , tambm, mais importante para certas abordagens do que para outras, e particularmente para as teorias de vantagens mtuas. E o fato de uma gerao anterior ter ou no ter satisfeito s suas prprias obrigaes afetar tambm, em diversos nveis, os deveres impostos gerao atual por cada uma dessas teorias. A este respeito, esclarecedor lembrar-se como uma clusula lockeana apreender o desrespeito, por parte de uma gerao anterior nossa, de seus deveres inter-geracionais, e como uma teoria igualitarista poder levar em conta o risco de desrespeito, por parte de uma gerao que nos suceder, de seus deveres inter-geracionais. Percebe-se que levar a srio as teorias de justia padro um exerccio relativamente esclarecedor com relao s diversas maneiras possveis de se analisar a questo das nossas obrigaes inter-geracionais. Evidentemente, ainda falta percorrer um longo caminho a fim de que se possam determinar seus contornos exatos... e construir as instituies aptas a fazer cumpri-las.