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ABRIL CULTURAL 1978 EDITOR: VICTOR CIVITA Os Pensadores

BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. (Os pensadores)

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  • ABRILCULTURAL

    1978

    EDITOR: VICTOR CIVITA

    OsPensadores

  • CIP-Brasil. Catalogao-na-FonteCmara Brasileira do Livro, SP

    Bachelard, Gaston, 1884-1962.BI 19f A filosofia do no ; O novo esprito cientfico ; A potica

    do espao / Gaston Bachelard ; seleo de textos de Jos Am-rico Motta Pessanha ; tradues de Joaquim Jos Moura Ra-mos . . . (et al.). So Paulo : Abril Cultural, 1978.

    (Os pensadores)

    Inclui vida e obra de Bachelard.Bibliografia.

    1. Bachelard, Gaston, 1884-1962 2. Cincia - Filosofia 3.Cincia - Metodologia 4. Espao (Arte) 5. Imaginao 6. PoesiaI. Pessanha, Jos Amrico Mota, 1932- II. Ttulo: A filosofiado no. III. Ttulo: O novo esprito cientfico. IV. Ttulo: Apotica do espao. V. Srie.

    CDD-501-153.3-194-501.8700.1

    78-0777 -809.1

    ndices para catlogo sistemtico:1. Cincia : Filosofia 5012. Espao : Artes 700.13. Filosofia francesa 1944. Filsofos franceses : Biografia e obra 1945. Imaginao : Psicologia 153.36. Metodologia cientfica 501.87. Poesia : Histria e crtica 809.1

  • CASTON BACHELARD

    A FILOSOFIA DO NO*

    O NOVOESPRITO CIENTFICO

    *

    A POTICA DO ESPAO

    Seleo de textos de Jos Amrico Motta Pessanha

    Tradues de Joaquim Jos Moura Ramos, Remberto Francisco KuhnenAntnio da Costa Leal e Ldia do Valle Santos Leal

  • Ttulos originais:La philosophie du non

    Le nouvel esprit cientifiqueLa potique de l 'espace

    c Copyright Abril S.A. Cultural e Industrial, So Paulo. 1979.

    Textos publicados sob licena de Presses Universitairesde France, Paris e Editorial Presena Ltda., Lisboa (A Filosofia do No);

    Presses Universitaires de France, Paris (O Novo Esprito Cientfico);Presses Universitaires de France, Paris e Livraria

    Eldorado-Tijuca Ltda., Rio de Janeiro (A Potica do Espao).

    Tradues publicadas sob licena de EditorialPresena Ltda., Lisboa (A Filosofia do No);

    Livraria Eldorado-Tijuca Ltda., Rio de Janeiro (A Potica do Espao).

    Direitos exclusivos sobre a traduo de O Novo Esprito Cientfico,Abril S.A. Cultural e Industrial, So Paulo.

  • BACHELARD(1884-1962)

    VIDA e OBRA

    Consultrio de Jos Amrico Motta Pessanha

  • OS PENSADORES

    N o dia I () de outubro de 1962 mor-reu em Paris Gastou Bachelard.membro da Academia de CinciasMorais e Polticas Ha Frana, laureadocom o Prmio Nacional de Letras, autorde vasta e inovadora obra filosfica,renomado professor da Sorbonne. cujoscursos eram acompanbados por umamultido de jovens entusiasmados com aprofundidade e a originalidade de seupensamento e com sua personalidadevibrante, acolhedora, inconvencional. Aolongo de suas obras e de seus cursosinsis t i ra freqentemente numa tese: "Afilosofia cientfica de\e ser essencial-mente uma pedagogia cientifica . Suapreocupao com os fundamentos e osrequisitos para o desenvolvimento de um"novo espirito cientifico levaram-no acombater as formas tradicionais He ensi-no e a propor para a cincia nova umapedagogia nova. Vinculando estreita-mente o progresso da pesquisa cientifica libertao das mentes jovens, escre-vera numa de suas obras mais impor-tantes (O Racionalismo Aplicado): "Fre-qentemente os pais abusam ainda maisdo seu saber do que do seu poder. \oniscincia dos pais. logo seguida cmtodos os nveis de instruo pela onis-cincia dos professores, instala um dog-matismo que a negao da cultura.Quando atacado pelas loucas esperanasda juventude, torna-se proftico. Pre-tende se apoiar sobre uma experinciade vida para prever a experincia dav ida. Ora. as condies do progresso sodoravante to mveis que cr experinciada rida passada se que uma sabedo-ria pode resumi-la quase fatalmenteum obstculo a ultrapassar, desde quese queira dirigir a v ida presente .

    O prprio Bachelard. numa demons-trao de permanente jovialidade espiri-tual, no se deixara jamais prender sortodoxias das escolas filosficas. Tal-vez por isso mesmo suas idias repercu-tem nos mais diversos campos de inves-tigao, demolindo velhas concepescristalizadas e propondo novas e svezes surpreendentes solues para osproblemas. Apoiado numa interpretao

    do desenvolvimento histrico das doutri-nas cientfcas. ISachelard formulou seulema de inconformismo intelectual atra-vs do que denominou de "filosolia dono". Para ele. a histria das idias nose faz por evoluo ou continusmo. masatravs de rupturas, revolues, "cortesepistemolgicos . Num de seus livrosescreveu: "A verdade filha da discus-so, no da simpatia . Aplicando eleprprio esse preceito, revestiu toda suaobra de carter polmico, fazendo reite-radas criticas nociva influncia dametafsica tradicional (particularmentea cartesiana) sobre o desenvolvimentoda epistemologia cientifica, tambemno poupou crticas severas a alguns deseus mais ilustres contemporneos,como Freud. Bergson. Sartre. Por outrolado. contrrio aos esterilizantcs siste-mas fechados, fez uso bastante pessoalde vrias noes, como "psicanlise ."fenomenologia ."dia l t ica . "materia-lismo". ao mesmo tempo que defendeuuma nova concepo de racionalismo: oracionalismo setorial e aberto.

    O filsofo do noA vida de Bachelard parece marcada

    pela descontinuidade. da qual ele se tor-nou um dos tericos no pensamentofilosfico contemporneo. Nascido em1881. em Champagne (Bar-sur-Aube).trabalhou nos Correios enquanto estu-dava matemtica, pretendendo formar-se engenheiro. A guerra de 1914/ 18corta-lhe o projeto: inicia ento carreirano magistrio secundrio, ensinandoqumica e fsica em sua cidade natal.Aos 35 anos. outro corte em sua vida:comea novos estudos, agora de filoso-fia. que tambm passa a lecionar. FmI92fi publica as duas teses que haviaapresentado no ano anterior: Essai surla Coanaissance Approch (Ensaio .sobreo Conhecimento Aproximado) e tudesur 1'Evolution d'un Problme de Physi-que: la Propagation Thermique dans lesSolides (Estudo sobre a Evoluo de umProblema de Fsica: a propagao Tr-mica nos Slidos). Na p r i m e i r a apare-ce uma das teses centrais de sua episte-mologia o "aproximacionalismo . ouseja. a idia de que a abordagem do ob-

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  • BACHELARD

    Bachelard no foi apenas o filsofo do "novo esprito cientfico". Investigoutambm a natureza do imaginrio potico e soube extrair novos significadosdas obras de arte. Num ensaio sobre Monet, As Ninfias ou as Surpresas deuma Alvorada de Vero, escreveu: "No se sonha junto gua sem formular

    uma dialtica do reflexo e da profundeza". (Acima, "As Ninfias", de Monet.)durao no-bergsoniana. adota a noode "ritmanlise", que Bachelard declarater encontrado na obra "du philosophebrsilien" Lcio Alberto Pinheiro dosSantos.

    Em 1937 Bachelard publica uma desuas obras mais importantes. La Forma-tion de l'Esprit Scientifique (A Forma-o do Esprito Cientfico), na qual ana-lisa os mais diversos "'obstculosepistemolgicos" que devem ser supera-dos para que se estabelea e se desen-volva uma mentalidade verdadeiramentecientfica. Nessa obra trata tambm da"alquimia potica", que encara aindacomo um entrave cincia. A partirdessa poca, mas sobretudo com a publi-cao de La Psychanalyse du Feu (APsicanlise do Fogo), em 1938. e deLautramont, em 1940, manifestam-se

    VII

    jeto cientfico deve ser feita atravs douso sucessivo de diversos mtodos, jque cada um deles seria destinado a setornar primeiro obsoleto, depois nocivo.

    A partir dessa poca o nome de Bache-lard comea a se projetar. Em 1930 convidado para lecionar na Faculdadede Dijon. Le Nouvel Esprit Scientifique(O Novo Esprito Cientifico) surge anosmais tarde (1934), como sntese de suaepistemologia no-cartesiana e em con-sonncia com as grandes revoluescientificas do sculo XX, como a teoria

    relatividade generalizada e a fsicaquntica. De 1938 L'Intuition del'Instante (A Intuio do Instante) e de1936 la Dialectique de la Dure (ADialtica da Durao), ambas versandosobre a descontinuidade temporal. A l-tima, alm de propor uma noo de

  • OS PENSADORES

    sobre o pensamento de Bachelard duasimportantes influncias, que perduraroao longo de sua obra. embora manipu-ladas e transfiguradas: a do surrealismoe a da psicanlise. Esta. Bachelard apli-car psicologia coletiva, buscandofazer no apenas a "psicanlise doconhecimento objetivo", como tambm a"psicanlise dos elementos" (terra. ar.gua e fogo), fontes dos arqutipos doimaginrio potico.

    Em La Formation de l'Esprit Scienti-fique cincia e poesia apareciam comodois mundos distintos, que deveriam sermantidos separados para beneficio daobjetividade do conhecimento cientfico.Cada vez mais. porm, o imaginriopotico atrai Bachelard. que passa aestud-lo e a valoriz-lo como umaforma prpria de apreenso o de recria-o da realidade. A esse tema dedicauma srie de obras: L'Eau et les Rves(A gua e os Sonhos), de 1912: L'Air etles Songes (O Ar e os Sonhos), de 1943:La Terre et les Rveries de la Volont (ATerra e os Devaneios da Vontade), de1948: e La Terre et les Rveries duRepos (A Terra e os Devaneios doRepouso), de 1948.

    \a fase final de sua obra. Bachelardcontinua trilhando os dois sendeirosparalelos da cincia e da poesia. Nosdois desenvolve o tema do materialismo:a manipulao da matria, a demiurgia.em ampla acepo (artesanal ou onrica,racional ou cientfica), torna-se o pontoonde se cruzam cincia e poesia, razo edevaneio. Os ltimos livros de Bache-lard revelam essa dupla vida de um esp-rito aberto, insacivel e. por isso. sem-pre jovem: Le Rationalisme Appliqu (ORacionalismo Aplicado), 1919:L'Activit Ratinaliste de la PhysiqueContemporaine (A Atividade Raciona-lista da Fsica Contempornea), 1951:Le Matrialisme Rationel (O Materia-lismo Racional), 1952: La Potique del'Espace (A Potica do Espao), 1957:La Potique de la Rverie (A Potica doDevaneio), e La Flamme d'une Chandelle(A Chama de uma Vela), ambas de 1 961.Artigos e ensaios de Bachelard. publica-dos esparsamente. foram reunidos de-pois de sua morte, em coletneas que oseditores denominaram de Etudes (Estu-dos), 1970; Le Droit de Rver (O Direito

    de Sonhar), tambm de 1970: eL'Engagement Rationaliste (O Engaja-mento Racionalista), de 1972.

    Um "idealismo militante"Examinando as grandes conquistas

    da cincia a partir do final do sculoXIX e sobretudo no decorrer do sculoXX. Bachelard assinala nos campos damatemtica, da fsica e da qumica noapenas um avano, mas a instaurao deum "novo esprito cientfico", que partede novos pressupostos epistemolgicos eexercita-os numa atividade que maisdo que uma simples descoberta: antescriao. Na fsica, reconhece que "com acincia einsteiniana comea uma siste-mtica revoluo das noes de base". Eacrescenta: "A cincia experimentaento aquilo que Nietzsche chama de'tremor de conceitos . como se a Terra, oMundo, as coisas adquirissem umaoutra estrutura desde que se coloca aexplicao sobre novas bases". Nomesmo texto (La Dialectique Philoso-phique des Notions de la Relativit, inL'Engagement Rationaliste), Bachelardesclarece que o que ocorre, a partir dasteorias de Einstein. que "no detalhemesmo das noes estabelece-se umrelativismo do racional e do emprico .Do lado da qumica. Bachelard assinalatambm profundas mudanas: a qumicano mais uma "cincia da memria,uma pesada cincia de memria": naqumica, tambm "as primeiras expe-rincias so apenas prembulos": j sepode falar de "uma qumica matemticano mesmo estilo em que. h um sculo emeio. fala-se de uma fsica matemtica".Eis por que Bachelard v na nova qu-mica a manifestao de um "materia-lismo racional". Por outro lado. "as pr-prias matemticas, as cincias maisestveis, as cincias de desenvolvimentomais regular foram levadas a reconsi-derar os elementos de base e, cartertotalmente moderno. a multiplicar ossistemas de base". Em particular a revo-luo operada na geometria por Lobat-chevski (1792-1856) surge fundamentalaos olhos de Bachelard: Lobachevski"criou o humor geomtrico aplicando oesprito de finura ao espirito geom-trico: promoveu a razo polmica con-

    VIII

  • BACHELARD

    Bachelard reconhece no pensamento de Einstein (acima) um dos momentosfundamentais da revoluo cientfica do sculo XX, a exigir dos filsofos

    a construo de uma nova epistemologia: "Com a cincia einsteiniana comeauma sistemtica revoluo das noes de base. no prprio detalhe das noes que

    se estabelece um relativismo do racional e do emprico".

    IX

  • OS PENSADORES

    Bachelard utilizou, de modo pessoal,a psicanlise: criticou aspectos

    fundamentais da doutrina freudianae aproximou-se das teses de Jung.(Acima, fotos de Freud e de Jung.)

    dio de razo constituinte; fundou aliberdade da razo em relao a elamesma, tornando flexvel a aplicao doprincpio de contradio". Essas e ou-tras conquistas do novo esprito cient-fico permitem a Bachelard propor, emlugar das clssicas formulaes dosempiristas e racionalistas, uma novainterpretao do conhecimento cient-fico, na qual a criatividade do esprito(demonstrada, por exemplo, pela cria-o, por via da imaginao cientfica, denovas geometrias) associa-se experin-cia, numa dialtica movida pela conti-nua retificao dos conceitos ("Eu sou olimite de minhas iluses perdidas") epela remoo dos obstculos epistemo-

    lgicos (como a valorizao e o apego experincia primeira). Bachelard carac-teriza sua posio como um "idealismomilitante", como um "racionalismo en-gajado" que se modula diante de cadatipo de objeto, tornando-se essencial-mente "progressivo", "aberto", "seto-rial".

    E prega a necessidade de uma novarazo, dotada de liberdade anloga que o surrealisme instaurou na criaoartstica. Descreve o que entende poresse surracionalismo: " preciso resti-tuir razo humana sua funo deturbulncia e de agressividade. Assim que se contribuir para a fundao deum surracionalismo, que multiplicar asoportunidades de pensar. Quando essesurracionalismo houver encontrado suadoutrina, poder ser posto em relaocom o surrealismo, pois a sensibilidadee a razo tero recuperado, juntas, suafluidez. O mundo fsico ser ento expe-rimentado por meio de novas vias.Compreender-se- de modo diferente esentir-se- de modo diferente. Estabele-cer-se- uma razo experimental susce-tvel de organizar surracionalmente oreal, assim como o sonho experimentalde Tristan Tzara organiza surrealisti-camente a liberdade potica". Mas, poroutro lado insiste na importncia deci-siva da experincia na construo cient-fica: "A situao da cincia atual nopoderia ser esclarecida pelas utopias dasimplicidade filosfica. Eis porque pro-pusemos como nome dessa filosofiamista, que nos parece corresponder situao epistemolgica atual, do nome

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  • BACHELARD

    Num ensaionsobre Chagall As Origens da Luz Bachelard afirma: "MarcChagall tem no olho tantas imagens que o passado, para ele, conserva plenas

    cores, guarda a luz das origens. Tudo o que ele l, ele v. Tudo em queacredita, ele desenha, grava, inscreve na matria, torna cintilante de cor

    e de verdade". (Marc Chagall: "A Alma da Cidade", M. de Arte Moderna, Paris.)

    XI

  • OS PENSADORES

    O desenvolvimento do legtimo esprito cientfico depende, para Bachelard,de uma "psicanlise do conhecimento objetivo", que afaste preconceitos

    e equvocos arraigados na mentalidade corrente e transferidos para doutrinaspseudocientficas ou cientificamente superadas. Depende, por isso mesmo,de uma pedagogia nova, de carter libertrio. (Acima, a Sorbonne, Paris.)

    de racionalismo aplicado. E no aosimples nvel das generalidades que preciso colocar essa filosofia essencial-mente mista. sobre cada valor deracionalidade que necessrio extrairum valor de aplicao. Aqui mostrar oreal no suficiente, preciso demons-tr-lo. E, reciprocamente, as demonstra-es puramente formais devem ser san-cionadas por uma realizao precisa.Nas cincias fsicas, organizao racio-nal e experincia esto em constantecooperao".

    O direito de sonharMesmo nas obras dedicadas episte-

    mologia Gaston Bachelard freqente-mente alude ao vcio de "'ocularidade"que caracteriza a cultura ocidental, ten-dente a privilegiar a causa formal emdetrimento da causa material, na expli-

    cao dos fenmenos. O prprio vocabu-lrio cientfico e filosfico ("evidncia","intuio", "viso de mundo", etc.)revelaria esse preconceito que faz doconhecimento uma extenso da viso,um desdobramento da imaginao for-mal. No terreno da poesia, do devaneio,do onirismo que se manifestaria aimaginao material, desenrolada a par-tir das sugestes dos elementos que jEmpdocles de Agrigento (sc. V a.C.)considerava as "razes" da realidade(gua, ar, terra e fogo). Esses quatro ele-mentos, alimentando o imaginrio poti-co, permitiam classific-lo em quatrotipos fundamentais, decorrentes de"temperamentos" artsticos (aqutico,areo, terrestre e gneo) que se desdobrambram em mltiplos "complexos (deOflia, de Atlas, de Prometeu, etc).

    Bachelard insiste em distinguir aimaginao enquanto simples registro

    XII

  • BACHELARD

    O conhecimmento cientfico semprea ... de uma iluso:" Ao dizer

    issoo, Bachelard sintetizasua concepo do conhecimento comoum contnuo processo de retificao.

    passivo de experincias, da imaginaoque, aliada vontade, poder e criao.Esta " um princpio de multiplicaodos atributos da intimidade das substn-cias. Ela tambm vontade de mais ser,no evasiva, mas prdiga, no contradi-tria, antes bria de oposio. A imagi-nao o ser que se diferencia para estarseguro de tornar-se". Essa concepo deimaginao material como atividade("'as imagens materiais aquelas quefazemos da matria so eminente-mente ativas ) e como_atividade essen-cialmente transformadora, movida pela"vontade de trabalho", est na base decrticas que Bachelard enderea a Freude a Sartre. Em A Terra e os Devaneios daVontade afirma: "A psicanlise, nascidaem meio burgus, negligencia freqente-mente o aspecto materialista da vontadehumana. O trabalho sobre os objetos,contra a matria, uma espcie depsicanlise natural. Oferece oportuni-dades de cura rpida porque a matriano~permite que nos enganemos a res-peito de nossas prprias foras". Apsicanlise, segundo Bachelard, peca namedida em que tenta geralmente "tradu-zir" as imagens materiais, no levandoem conta a autonomia do simbolismo:"Sob a imagem a psicanlise procura arealidade: esquece a pesquisa inversa:sobre a realidade buscar a positividadeda imagem". "

    Tambm em relao concepo sar-triana do imaginrio. Bachelard assi-nala o que considera equvocos funda-mentais: desconhecendo a peculiaridadeda imaginao material e dinmica, Sar-tre reduz toda a imaginao s caracte-rsticas da imaginao formal. Marcadotambm pelo "vcio da ocularidade".Sartre tenderia a traduzir em termosracionais as imagens que seriam, na ver-dade, originrias de outra fonte: do con-tato corpo-a-corpo com a matria. Porisso que imagens como o pastoso ou oviscoso podem simbolizar, para Sartre,a irracionalidade que suscita a nusea.Ao contrrio, Bachelard reivindica alegitimidade e a irredutibilidade dasimagens que a mo recolhe na matria:'"A mo ociosa e acariciadora que per-corre linhas bem feitas, que inspecionaum trabalho j concludo, pode se encan-tar com uma geometria fcil. Ela conduz

    XIII

  • OS PENSADORES

    filosofia de um filsofo que v o traba-lhador trabalhar. No reino da estticaessa visualizaro do trabalho acabadoconduz naturalmente supremacia daimaginao formal. Ao contrrio, a mo

    1884 Nasce Bachelardem Bar-sur-Aube, Cham-pagne (Frana).1914 Tem incio a Pri-meira Guerra Mundial.1912 Einstein recebe oPrmio Nobel de Fsica.1928 Bachelard publicasuas teses: Essai sur la Con-naissance Approch e tudesur l'volution d'un Probl-me de Physique: la Propa-gation Thermique dans lesSolides.1930 Bachelard convi-dado para lecionar na Fa-culdade de Dijon.1934 Publica Le NouvelEsprit Scientifique.

    CRONOLOGIA

    1935 Publica L"Intuitionde flnstant.1936 editada La Dia-lectique de la Dure.1937 Publica La Forma-tion de 1'Esprit Scientifique.1938 Publicao de LaPsychanalyse du Feu.1940 Edita Lautramont.Torna-se professor na Sor-bonne. Publica La Philoso-phie du Non.1942 Publica L'Eau etles Rves.1943 Publica L'Air et lesSonges.1948 Publica La Terre etles Rveries de la Volont eLa Terre et les Rveries du

    BIBLIOGRAFIA

    Repos.1949 Publica Le Rationalisme Applqu.1951 Publica L'ActivitRationaliste de la PhysiqueContemporaine.1952 Publica Le Mat-rialisme Rationel.1955 Morre Einstein.Bachelard entra para a Aca-demia das Cincias Morais ePolticas da Frana.1961 Bachelard laurea-do com o Grande PrmioNacional de Letras. PublicaLa Potique de la Rverie eLa Flamme d'une Chandel-le.1962 Bachelard morre.

    LACROIX, CAGLILHEM. HYPPOLITE. AMBACHER e outros: Introduccion a Bachelard, Edicio-nes. Galdn. Buenos Aires. 1973.CAGLILHEM. G.: tudes d'Histoire et de Philosophie des Sciences. J. Vrin. Paris. 1968.GINESTIER. P.: Pour Connare la Pense de Bachelard, Bordas, Paris. 1968.QLILLET. P.: Bachelard, ditions Seghers. Paris. 1964.DAGOGNET. F.: Gaston Bachelard, Presses Universitaires de France. 1965.HYPPOLITE. J.: Gaston Bachelard ou le Romantisme de 1'Intelligence in Revue Philosophique,janeiro-maro 1954.LALONDE. M.: La Thorie de la Connaissance selon Gaston Bachelard, Fides. Montreal-Paris. 1966.DUFRENNE. M.: Gaston Bachelard et la Posie de l'Imagination in Les tudes Philosophiques,outubro 1963.SOLRIAI . .: L 'Esthtique de Gaston Bachelard, in Annales de l'Universit de Paris, 1963.DURAND. G.: Science Objective et Conscience Svmbolique dans 1'Oeuvre de Gaston Bache-lard in Cahiers Internationaux du Symbolisme, 1964. ,LECOURT, D.: L'pistmologie Historique de Gaston Bachelard, Librairie Philosophique J.Vrin, Paris, 1972.

    Copyright mundial Abril S.A. Cultural eIndustrial. So Paulo, 1979.

    trabalhadora e imperiosa apreende adinamogenia especial da realidade, aotrabalhar uma matria que. ao mesmotempo, resiste e cede como uma carneamante e rebelde".

  • A FILOSOFIA DO NOFILOSOFIA DO NOVO ESPRITO

    CIENTFICO

    Traduo de Joaquim Jos Moura Ramos

  • Prefacio

    PENSAMENTO FILOSFICO E ESPRITO CIENTFICO

    A utilizao dos sistemas filosficos em domnios afastados da sua origemespiritual sempre uma operao delicada, muitas vezes uma operao falaciosa.Assim transplantados, os sistemas filosficos tornam-se estreis ou enganadores;perdem a sua eficcia de coerncia espiritual, eficcia to sensvel quando sorevividos na sua originalidade real com a fidelidade escrupulosa do historiador, eperde-se tambm a satisfao de pensar o que nunca ser pensado duas vezes.Ser pois necessrio concluir que um sistema filosfico no deve ser utilizadopara outros fins para alm dos que ele se atribui. Dito isto, o maior erro contrao esprito filosfico seria precisamente o de no ter em conta esta finalidade nti-ma, esta finalidade espiritual que d vida, fora e clareza a um sistema filosfico.Em particular, se se pretende esclarecer os problemas da cincia atravs da refle-xo metafsica, se se pretende misturar os teoremas e os filosofemos, surgeimediatamente a necessidade de aplicar uma filosofia necessariamente finalista efechada a um pensamento cientfico aberto. Corre-se o risco de no agradar aningum; nem aos cientistas, nem aos filsofos, nem aos historiadores.

    Com efeito, os cientistas consideram intil uma preparao metafsica;declaram aceitar, em primeiro lugar, as lies da experincia se trabalham nascincias experimentais, ou os princpios da evidncia racional se trabalham nascincias matemticas. Para eles, a hora da filosofia s chega depois do trabalhoefetivo; concebem pois a filosofia das cincias como um resumo dos resultadosgerais do pensamento cientfico, como uma coleo de fatos importantes. Dadoque a cincia est sempre inacabada, a filosofia dos cientistas permanece sempremais ou menos ecltica, sempre aberta, sempre precria. Mesmo se os resultadospositivos permanecerem, em alguns aspectos, deficientemente coordenados, estesresultados podem ser assim transmitidos, como estados do esprito cientfico, em

    detrimento da unidade que caracteriza o pensamento filosfico. Para o cientista,a filosofia das cincia est ainda no reino dos fatos.

    Por seu lado os filsofos, justamente conscientes do poder de coordenaodas fuunes espirituais, consideram suficiente uma meditao deste pensamentocoordenado, sem se preocuparem muito com o pluralismo e a variedade dos fatos.Os filsofos podem divergir entre si acerca da razo desta coordenao, acercados princpios da hierarquia experimental. Alguns podero levar suficientementelonge o empirismo para pensarem que a experincia objetiva normal basta para

  • 4 BACHELARD

    explicar a coerncia subjetiva. Mas no se filsofo se no se tomar conscincia,num determinado momento da reflexo, da coerncia e da unidade do pensa-mento, se no se formularem as condies da sntese do saber. E sempre em fun-o desta unidade, desta coerncia, desta sntese, que o filsofo coloca o pro-blema geral do conhecimento. A cincia oferece-lhe ento como que uma recolhaparticularmente rica de conhecimentos bem articulados. Por outras palavras, ofilsofo pede apenas cincia exemplos para provar a atividade harmoniosa dasfunes espirituais, mas pensa ter sem a cincia, antes da cincia, o poder de ana-lisar esta atividade harmoniosa. Deste modo, os exemplos cientficos so sempreevocados e nunca desenvolvidos. Acontece mesmo os exemplos cientficos seremcomentados de acordo com princpios que no so princpios cientficos; susci-tam metforas, analogias, generalizaes. assim que, no discurso do filsofo, aRelatividade degenera muitas vezes em relativismo, a hiptese degenera em supo-sio, o axioma em verdade primeira. Por outras palavras, mantendo-se fora doesprito cientfico, o filsofo pensa que a filosofia das cincias pode limitar-se aosprincpios das cincias, aos temas gerais, ou ento, limitando-se estritamente aosprincpios, o filsofo pensa que a filosofia das cincias tem por misso articularos princpios das cincias com os princpios de um pensamento puro, desinte-ressado dos problemas da aplicao efetiva. Para o filsofo, a filosofia da cincianunca est totalmente no reino dos fatos.

    Assim a filosofia das cincias fica muitas vezes acantonada nas duas extre-midades do saber: no estudo, feito pelos filsofos, dos princpios muito gerais, eno estudo, realizado pelos cientistas, dos resultados particulares.

    Enfraquece-se contra os dois obstculos epistemolgicos contrrios quelimitam todo o pensamento: o geral e o imediato. Ora valoriza o a priori, ora oa posteriori, abstraindo das transmutaes de valores epistemolgicos que o pen-samento cientfico contemporneo permanentemente opera entre o a priori e o aposteriori, entre os valores experimentais e os valores racionais.

    II

    Parece-nos, pois, claro que no dispomos de uma filosofia das cincias quenos mostre em que condies simultaneamente subjetivas e objetivas osprincpios gerais conduzem a resultados particulares, a flutuaes diversas; emque condies os resultados particulares sugerem generalizaes que os comple-tem, dialticas que produzam novos princpios.

    Se pudssemos ento traduzir filosoficamente o duplo movimento que atual-mente anima o pensamento cientfico, aperceber-nos-amos de que a alternnciado a priori e do a posteriori obrigatria, que o empirismo e o racionalismo estoligados, no pensamento cientfico, por um estranho lao, to forte como que uneo prazer dor. Com efeito, um deles triunfa dando razo ao outro: o empirismoprecisa de ser compreendido; o racionalismo precisa de ser aplicado. Um empi-rismo sem leis claras, sem leis coordenadas, sem leis dedutivas no podem ser pen-

  • A FILOSOFIA DO NO 5

    sado nem ensinado; um racionalismo sem provas palpveis, sem aplicao rea-lidade imediata no pode convencer plenamente. O valor de uma lei empricaprova-se fazendo dela a base de um raciocnio. Legitima-se um raciocnio fazen-do dele a base de uma experincia. A cincia, soma de provas e de experincias,soma de regras e de leis, soma de evidncias e de fatos, tem pois necessidade deuma filosofia com dois plos. Mais exatamente ela tem necessidade de um desen-volvimento dialtico, porque cada noo se esclarece de uma forma comple-mentar segundo dois pontos de vista filosficos diferentes.

    Compreender-nos-iam mal se vissem nisto um simples reconhecimento dodualismo. Pelo contrrio, a polaridade epistemolgica para ns a prova de quecada uma das doutrinas filosficas que esquematizamos pelos nomes de empi-rismo e racionalismo o complemento efetivo da outra. Uma acaba a outra. Pen-sar cientificamente colocar-se no campo epistemolgico intermedirio entre teo-ria e prtica, entre matemtica e experincia. Conhecer cientificamente uma leinatural, conhec-la simultaneamente como fenmeno e como nmero.

    Alis, como neste captulo preliminar pretendemos definir to claramentequanto possvel a nossa posio e o nosso objetivo filosficos, devemos acres-centar que em nossa opinio uma das duas direes metafsicas deve ser sobreva-lorizada: a que vai do racionalismo experincia. atravs deste movimentoepistemolgico que tentaremos caracterizar a filosofia da cincia fsica contem-pornea. Interpretaremos pois, no sentido de um racionalismo, a recente supre-macia da Fsica matemtica.

    Este racionalismo aplicado, este racionalismo que retoma os ensinamentosfornecidos pela realidade para os traduzir em programa de realizao, goza alis,segundo pensamos, de um privilgio recente. Para este racionalismo prospetor,muito diferente por isso do racionalismo tradicional, a aplicao no uma muti-lao; a ao cientfica guiada pelo racionalismo matemtico no uma transi-gncia aos princpios. A realizao de um programa racional de experinciadetermina uma realidade experimental sem irracionalidade. Teremos ocasio deprovar que o fenmeno ordenado mais rico que o fenmeno natural. Basta-nospor agora ter afastado do esprito do leitor a idia comum segundo a qual a reali-dade uma quantidade inesgotvel de irracionalidade. A cincia fsica contempo-rnea uma construo racional: ela elimina a irracionalidade dos seus materiaisde construo. O fenmeno realizado deve ser protegido contra toda a perturba-o irracional. O racionalismo que ns defendemos far assim face polmicaque se apia no irracionalismo insondvel do fenmeno para afirmar uma reali-

    dade. Para o racionalismo cientfico, a aplicao no uma derrota, um compro-misso. Ele quer aplicar-se. Se se aplica mal, modifica-se. No nega por isso osseus princpios, dialetiza-os. Finalmente, a filosofia da cincia fsica talvez anica filosofia que se aplica determinando uma superao dos seus princpios.Em sumi ela a nica filosofia aberta. Qualquer outra filosofia coloca os seusprincipios como intocveis, as suas verdades primeiras como totais e acabadas.Qualquer outra filosofia se glorifica pelo seu carter fechado.

  • BACHELARD

    III

    Como pode ento deixar de se ver que uma filosofia que pretenda ser verda-deiramente adequada ao pensamento cientfico em evoluo constante deve enca-rar o efeito reativo dos conhecimentos cientficos sobre a estrutura espiritual? E assim que, desde o incio das nossas reflexes sobre o papel de uma filosofia dascincias, enfrentamos com um problema que nos parece mal colocado tanto peloscientistas como pelos filsofos. Trata-se do problema da estrutura e da evoluodo esprito. Tambm aqui surge a mesma oposio: o cientista pensa partir de umesprito sem estrutura, sem conhecimento; o filsofo apresenta a maior parte dasvezes um esprito constitudo, dotado de todas as categorias indispensveis paraa compreenso do real.

    Para o cientista, o conhecimento sai da ignorncia tal como a luz sai das tre-vas. O cientista no v que a ignorncia um tecido de erros positivos, tenazes,solidrios. No v que as trevas espirituais tm uma estrutura e que, nestas condi-es, toda experincia objetiva correta deve implicar sempre a correo de umerro subjetivo. Mas no fcil destruir os erros um a um. Eles so coordenados.O esprito cientfico s se pode construir destruindo o esprito no cientfico. Mui-tas vezes o cientista entrega-se a uma pedagogia fracionada enquanto o espritocientfico deveria ter em vista uma reforma subjetiva total. Todo o progresso realno pensamento cientfico necessita de uma converso. Os progressos do pensa-mento cientfico contemporneo determinaram transformaes nos prprios prin-cpios do conhecimento.

    Para o filsofo que, por profisso, encontra em si verdades primeiras, o obje-to tomado em bloco no tem dificuldade em confirmar princpios gerais. Asperturbaes, as flutuaes, as variaes tambm no perturbam o filsofo. Ouele as despreza como pormenores inteis, ou as amontoa para se convencer dairracionalidade fundamental do dado. Em qualquer dos casos, o filsofo est pre-parado para desenvolver, a propsito da cincia, uma filosofia clara, rpida, fcil,mas que continua a ser uma filosofia de filsofo. Neste caso, basta uma verdadepara sair da dvida, da ignorncia, do irracionalismo; ela suficiente para ilumi-nar uma alma. A sua evidncia reflete-se em reflexos sem fim. Esta evidncia uma luz nica: no tem espcies nem variedades. O esprito vive uma nicaevidncia. No tenta criar para si outras evidncias. A identidade do esprito noeu penso to clara que a cincia desta conscincia clara imediatamente a cons-cincia de uma cincia, a certeza de fundar uma filosofia do saber. A conscinciada identidade do esprito nestes conhecimentos diversos d-lhe, a ela e s a ela, agarantia de um mtodo permanente, fundamental, definitivo. Perante um talsucesso, como colocar a necessidade de modificar o esprito e de ir em busca denovos conhecimentos? Para o filsofo, as metodologias, to diversas, to mveisnas diferentes cincias, dependem apesar disso de um mtodo inicial, a um mto-do geral que deve dar forma a todo o saber, que deve tratar da mesma formatodos os objetos. Sendo assim, uma tese como a nossa que considera o conheci-mento como uma evoluo do esprito, que aceita variaes, respeitantes unida-de e perenidade do eu penso, deve perturbar o filsofo.

  • A FILOSOFIA DO NO 7E no entanto a essa concluso que devemos chegar se quisermos definir a

    filosofia do conhecimento cientfico como uma filosofia aberta, como a cons-cincia de um esprito que se funda trabalhando sobre o desconhecido, procu-rando no real aquilo que contradiz conhecimentos anteriores. Antes de mais, preciso tomar conscincia do fato de que a experincia nova diz no experinciaantiga; se isso no acontecer, no se trata, evidentemente, de uma experincianova. Mas este no nunca definitivo para um esprito que sabe dialetizar os seusprincpios, constituir em si novas espcies de evidncia, enriquecer o seu corpo deexplicao sem dar nenhum privilgio quilo que seria um corpo de explicaonatural preparado para explicar tudo.

    Este livro dar bastantes exemplos deste enriquecimento. Mas, para esclare-cer bem o nosso ponto de vista, no vamos esperar e daremos, no domnio maisdesfavorvel nossa tese, no prprio campo do empirismo, um exemplo destatranscendncia experimental. Com efeito, pensamos que esta expresso no exa-gerada para definir a cincia instrumentada como uma transcendncia da cinciade observao natural. Existe rotura entre o conhecimento sensvel e o conheci-mento cientfico. Lemos a temperatura num termmetro; no a sentimos. Semteoria nunca saberamos se aquilo que vemos e aquilo que sentimos corres-pondem ao mesmo fenmeno. Ao longo de todo o nosso livro responderemos objeo que impe uma leitura necessariamente sensvel do conhecimento cient-fico, objeo que pretende reduzir a experimentao a uma srie de leituras dendice. De fato, a objetividade da verificao numa leitura de ndice designa comoobjetivo o pensamento que se verifica. O realismo da funo matemtica substi-tui-se rapidamente realidade da curva experimental.

    Alis, para o caso de no sermos compreendidos nesta tese que coloca j oinstrumento como um alm do rgo, reservamos uma srie de argumentos pelosquais provaremos que a microfisica postula um objeto para alm dos objetosusuais. Existe pois, pelo menos, uma rotura na objetividade e por isso que temosrazes para dizer que a experincia nas cincias fsicas tem um alm, uma trans-cendncia, que ela no est fechada sobre si prpria. Portanto o racionalismo queinforma esta experincia deve aceitar uma abertura correlativa desta transcen-dncia emprica. A filosofia criticista, de que sublinharemos a solidez, deve sermodificada em funo desta abertura. Mais simplesmente, dado que os quadrosdo entendimento devem ser tornados flexveis e alargados, a psicologia do esp-rito cientfico deve ser construda em novas bases. A cultura cientifica deve deter-minar modificaes profundas do pensamento.

    Mas o domnio da filosofia das cincias to difcil de delimitar, gostara-mos, neste ensaio, de pedir concesses a toda a gente.

    Aos filsofos reclamaremos o direito de nos servirmos de elementos filos-ficos desligados dos sistemas onde eles nasceram. A fora filosfica de um siste-ma est por vezes concentrada numa funo particular. Por que hesitar em pro-

  • 8 BACHELARD

    por esta funo particular ao pensamento cientfico que tanta necessidade tem deinformao filosfica? Haver por exemplo sacrilgio em tomar um aparelhoepistemolgico to maravilhoso como a categoria kantiana e em demonstrar ointeresse deste para a organizao do pensamento cientfico? Se todos os sistemasso indevidamente penetrados por um ecletismo dos fins, parece no entanto queum ecletismo dos meios poder ser admissvel para uma filosofia das cincias quepretenda fazer face a todas as tarefas do pensamento cientfico, que pretenda darconta dos diferentes tipos de teoria, que pretenda medir o alcance das suas aplica-es, que pretenda, antes de mais, sublinhar os variadssimos processos da desco-berta, mesmo os mais arriscados. Pediremos tambm aos filsofos que acabemcom a ambio de encontrar um ponto de vista nico e fixo para ajuizar do con-junto de uma cincia to vasta e to evolutiva como a Fsica. Para caracterizara filosofia das cincias seremos ento conduzidos a um pluralismo filosfico, onico capaz de informar os elementos to diversos da experincia e da teoria, ele-mentos estes to diferentes no seu grau de maturidade filosfica. Definiremos afilosofia das cincias como uma filosofia dispersa, como uma filosofia distri-buda. Inversamente, o pensamento cientfico surgir-nos- como um mtodo dedisperso bem ordenado, como um mtodo de anlise aprofundada, para os diver-sos filosofemos maciamente agrupados nos sistemas filosficos.

    Aos cientistas, reclamaremos o direito de desviar por um instante a cinciado seu trabalho positivo, da sua vontade de objetividade, para descobrir o quepermanece de subjetivo nos mtodos mais severos. Comearemos por colocar aoscientistas questes de carter aparentemente psicolgico e, a pouco e pouco,provar-lhes-emos que toda a psicologia solidria de postulados metafsicos. Oesprito pode mudar de metafsica; o que no pode passar sem a metafsica.Perguntaremos pois aos cientistas: como pensais, quais so as vossas tentativas,os vossos ensaios, os vossos erros? Quais so as motivaes que vos levam amudar de opinio? Por que razo vocs se exprimem to sucintamente quandofalam das condies psicolgicas de uma nova investigao? Transmiti-nossobretudo as vossas idias vagas, as vossas contradies, as vossas idias fixas,as vossas convices no confirmadas. Dizem que sois realistas. Ser certo queesta filosofia macia, sem articulaes, sem dualidade, sem hierarquia, corres-ponde variedade do vosso pensamento, liberdade das vossas hipteses? Dizei-nos o que pensais, no ao sair do laboratrio, mas sim nas horas em que deixaisa vida comum para entrar na vida cientfica. Dai-nos no o vosso empirismo datarde, mas sim o vosso vigoroso racionalismo da manh, o a priori do vossosonho matemtico, o entusiasmo dos vossos projetos, as vossas intuies incon-.fessadas. Se pudssemos assim alargar a nossa pesquisa psicolgica, parece-nosquase evidente que o esprito cientfico surgiria tambm numa verdadeira disper-so psicolgica e conseqentemente numa verdadeira disperso filosfica, dadoque toda a raiz filosfica nasce num pensamento. Os diferentes problemas dopensamento cientfico deveriam pois receber diferentes coeficientes filosficos.Em particular, o grau de realismo e de racionalismo no seria o mesmo paratodas as noes. pois ao nvel de cada noo que, em nossa opinio, se coloca-

  • A FILOSOFIA DO NO 9

    riam as tarefas precisas da filosofia das cincias. Cada hiptese, cada problema,cada experincia, cada equao reclamaria sua filosofia. Dever-se-ia criar umafilosofia do pormenor epistemolgico, uma filosofia cientfica diferencial quecontrabalanaria a filosofia integral dos filsofos. Esta filosofia diferencial esta-ria encarregada de analisar o devir de um pensamento. Em linhas gerais, o devirde um pensamento cientfico corresponderia a uma normalizao, transfor-mao da forma realista em forma racionalista. Esta transformao nunca total. Nem todas as noes esto no mesmo estdio das suas transformaesmetafsicas. Meditando filosoficamente sobre cada noo, ver-se-ia tambm maisclaramente o carter polmico da definio adotada, tudo o que esta definiodistingue, delimita, recusa. As condies dialticas de uma definio cientficadiferente da definio usual surgiriam ento mais claramente e compreender-se-ia, no pormenor das noes, aquilo a que chamaremos a filosofia do no.

    V

    Eis ento o nosso plano:Para ilustrar as observaes precedentes, obscuras na sua generalidade,

    daremos j no primeiro captulo um exemplo desta filosofia dispersa que , segun-do pensamos, a nica filosofia capaz de analisar a prodigiosa complexidade dopensamento cientfico moderno.

    Depois dos dois primeiros captulos que desenvolvem um problema episte-molgico preciso, estudaremos os esforos de abertura do pensamento cientficoem trs domnios to diferentes quanto possvel.

    Em primeiro lugar, ao nvel de uma categoria fundamental: a substncia,teremos ocasio de mostrar o esboo de um no-kantismo, quer dizer, de umafilosofia de inspirao kantiana que ultrapassa a teoria clssica. Utilizaremosassim uma noo filosfica que funcionou corretamente na cincia newtoniana eque, em nosso entender, necessrio abrir para traduzir a sua funo correta nacincia qumica de amanh. Neste captulo encontraremos correlativamente argu-mentos para um no-realismo, para um no-materialismo, quer dizer, para umaabertura do realismo, do materialismo. A substncia qumica ser ento represen-tada como uma pea uma simples pea de um processo de distino; o realser representado como um instante de uma realizao bem conduzida. O no-realismo (que um realismo) e o no-kantismo (que um racionalismo) tratadossimultaneamente a propsito da noo de substncia surgiro, na sua oposiobem ordenada, como espiritualmente coordenados. Entre os dois plos do rea-lismo e do kantismo clssicos nascer um campo epistemolgico intermedirioparticulamente ativo. A filosofia do no surgir pois no como uma atitude derecusa, toma como uma atitude de conciliao. De uma forma mais precisa, anoo de substncia, to duramente contraditria quando captada na sua infor-mao realista por um lado e na sua informao kantiana por outro, ser clara-mente transitiva na nova doutrina do no-substancialismo. A filosofia do nopermitir resumir, simultaneamente, toda a experincia e todo o pensamento da

  • 10 BACHELARD

    determinao de uma substncia. Uma vez a categoria aberta, ela ser capaz dereunir todos os matizes da filosofia qumica contempornea.

    O segundo domnio a propsito do qual proporemos um alargamento dafilosofia do pensamento cientfico ser a intuio. Tambm neste caso daremosexemplos precisos. Mostraremos que a intuio natural no mais do que umaintuio particular e que, associando-lhes as justas liberdades de sntese, se com-preende melhor a hierarquia das ligaes intuitivas. Mostraremos a atividade dopensamento cientfico na intuio trabalhada.

    Finalmente, abordaremos o terceiro domnio: o domnio lgico. S por si,ele exigiria uma obra inteira. Mas bastaro algumas poucas referncias ativi-dade cientfica para mostrar que os quadros mais simples do entendimento nopodem subsistir na sua inflexibilidade, se se pretender analisar os destinos novosda cincia. A razo ortodoxa pode ser dialetizada em todos os seus princpiosatrays de paradoxos.

    Depois deste esforo de alargamento aplicado a domnios to diferentescomo a categoria, a intuio, a lgica, voltaremos nas concluses, para evitarqualquer equvoco, aos princpios de uma filosofia do no. Com efeito, neces-srio relembrar repetidas vezes que a filosofia do no no psicologicamente umnegativismo e que ela no conduz, face natureza, a um niilismo. Pelo contrrio,ela procede, em ns e fora de ns, de uma atividade construtiva. Ela afirma queo esprito , no seu trabalho, um fator de evoluo. Pensar corretamente o real, aproveitar as suas ambigidades para modificar e alertar o pensamento. Dialeti-zar o pensamento aumentar a garantia de criar cientificamente fenmenos com-pletos, de regenerar todas as variveis degeneradas ou suprimidas que a cincia,como o pensamento ingnuo, havia desprezado no seu primeiro estudo.

  • C A P I T U L O I

    As diversas explicaes metafsicasde um conceito cientfico

    I

    Antes de entrar verdadeiramente no nosso exame filosfico geral vamos,para ser mais claros, encetar toda a polmica em torno de um exemplo preciso.Vamos estudar um conceito cientfico particular que, segundo pensamos, encerrauma perspectiva filosfica completa, isto , pode ser interpretado sob os vriospontos de vista do animismo, do realismo, do positivismo, do racionalismo, doracionalismo complexo e do racionalismo dialtico. Explicaremos precisamente oexemplo escolhido sob os dois ltimos pontos de vista. O racionalismo complexoe o racionalismo dialtico podem alis ser mais brevemente reunidos sob a desig-nao do ultra-racionalismo que j tivemos ocasio de esboar.1 Mostraremosque a evoluo filosfica de um conhecimento cientfico particular um movi-mento que atravessa todas estas doutrinas na ordem indicada.

    evidente que os conceitos cientficos no atingiram todos o mesmo estdiode maturidade; muitos permanecem ainda implicados num realismo mais oumenos ingnuo; muitos so ainda definidos na orgulhosa modstia do positi-vismo; o que faz com que, examinada nos seus elementos, a filosofia do espritocientfico no possa ser uma filosofia homognea. Se as discusses filosficasacerca da cincia permanecem confusas, porque se pretende dar uma respostade conjunto, ao mesmo tempo que se est obnubilado por um comportamentoparticular. Diz-se que o cientista realista fazendo a enumerao dos casos emque ele ainda realista. Diz-se que positivista escolhendo cincias que so aindapositivistas. Diz-se que o matemtico racionalista retendo os pensamentos emque ele ainda kantiano.

    Naturalmente, os j so to infiis verdade filosfica como os ainda.Assim, os epistemlogos dizem que o fsico racionalista fazendo a enumeraodos casos em que ele j racionalista, em que ele deduz certas experincias de leisanteriores; outros dizem que o socilogo positivista escolhendo alguns exem-pite em que ele j positivista, em que ele abstrai dos valores para se limitar aosfatos. Os filsofos aventurosos um exemplo ocorrer imediatamente ao esp-rito do amor devem confessar-se da mesma maneira: para legitimar as suasdoutrina ultra-racionalistas, eles dispem apenas de casos raros em que a cinciasob as suas formas mais recentes e portanto menos confirmadas, j dialtica. . .1 Cf. Artigo, Inquisitions, I, junho de 1936. (N. do A.)

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    Deste modo, os prprios ultra-racionalistas devem reconhecer que a maior partedo pensamento cientfico permanece em estdios de evoluo filosoficamenteprimitivos; devem preparar-se para ser vtimas de uma polmica esmagadora.Tudo est contra eles: a vida comum, o senso comum, o conhecimento imediato,a tcnica industrial e tambm cincias inteiras, cincias incontestveis como abiologia em que o racionalismo ainda no penetra se bem que certos temasdas cincias biolgicas pudessem receber um desenvolvimento rpido desde que acausalidade formal, to desprezada, to levianamente rejeitada pelos realistas,pudesse ser estudada num esprito filosfico novo.

    Perante tantas provas dadas pelos realistas e pelos positivistas, o ultra-racio-nalismo facilmente abalado. Mas aps se ter curvado assim, pode passar contra-ofensiva: a pluralidade das explicaes filosficas da cincia um fato, euma cincia realista no deve levantar problemas metafsicos. A evoluo dasdiversas epistemologias um outro fato: o energetismo mudou totalmente decarter no incio deste sculo. Qualquer que seja o problema particular, o sentidoda evoluo epistemolgica claro e constante: a evoluo de um conhecimentoparticular caminha no sentido de uma coerncia racional. A partir do momentoem que se conhecem duas propriedades de um objeto, tenta-se constantementerelacion-las. Um conhecimento mais profundo sempre acompanhado de umaabundncia de razes coordenadas. Por muito perto do realismo que se permane-a, a menor ordenao introduz fatores racionais; quando se avana no pensa-mento cientfico, aumenta o papel das teorias. Para descobrir os aspectos desco-nhecidos do real pela ao enrgica da cincia, s as teorias so prospectivas.

    Pode-se discutir muito acerca do progresso moral, do progresso social, doprogresso potico, do progresso da felicidade; existe no entanto um progresso que indiscutvel; o progresso cientfico, considerado como hierarquia de conheci-mentos, no seu aspecto especificamente intelectual. Vamos, pois, tomar para eixodo nosso estudo filosfico o sentido deste progresso, e se, sobre a abscissa da suaevoluo, colocarmos regularmente os sistemas filosficos numa ordem idnticapara todos os conceitos, ordem essa que vai do animismo ao ultra-racionalismopassando pelo realismo, pelo positivismo e pelo racionalismo simples, teremos odireito de falar de um progresso filosfico dos conceitos cientficos.

    Insistamos um pouco neste conceito de progresso filosfico. um conceitoque tem pouco significado em filosofia pura. No caberia na cabea de nenhumfilsofo dizer que Leibniz estava adiantado em relao a Descartes, Kant adian-tado em relao a Plato. Mas o sentido da evoluo filosfica dos conceitoscientficos to claro que se torna necessrio concluir que o conhecimento cientfico ordena a prpria filosofia. O pensamento cientfico fornece, pois, um princ-pio para a classificao das filosofias e para o estudo do progresso da razo.

    II

    sobre o conceito cientfico de massa que pretendemos fazer a nossademonstrao da maturao filosfica do pensamento cientfico. J nos servimos

  • A FILOSOFIA DO NO 13

    deste conceito nos nossos livros sobre O Valor Indutivo da Relatividade e A For-mao do Esprito Cientfico para mostrar a conceitualizao ativa, contempo-rnea da mudana de definio de um conceito. Mas no tivemos nessa altura aocasio de esboar toda a perspectiva da conceitualizao. Dado que o conceitode massa, j integrado no racionalismo complexo da Relatividade, encontrourecentemente na mecnica de Dirac uma dialtica clara e curiosa, ele afigura-se-nos com uma perspectiva filosfica completa. Eis, pois, os cinco nveis sobre osquais se estabelecem filosofias cientficas diferentes e, evidentemente, ordenadas,progressivas.

    III

    Sob a sua primeira forma, a noo de massa corresponde a uma apreciaoquantitativa grosseira e como que vida da realidade. Aprecia-se uma massa nelavista. Para uma criana vida, o fruto maior o melhor, aquele que fala mais cla-ramente ao seu desejo, aquele que o objeto substancial do desejo. A noo demassa concretiza o prprio desejo de comer.

    A primeira contradio ento, como sempre, o primeiro conhecimento.Este adquire-se na contradio entre o grande e o pesado. Uma casca vazia con-tradiz a avidez. Desta decepo nasce um acontecimento valorizado que o conta-dor de fbulas apresentar como smbolo da experincia adquirida pelos "ve-lhos". Quando se tem um objeto na palma da mo, comea-se a compreender queo maior no necessariamente o mais rico. Uma perspectiva de intensidades vemrapidamente aprofundar as primeiras vises da quantidade. Logo em seguida anoo de massa interioriza-se. Ela torna-se sinnimo de uma riqueza profunda,de uma riqueza ntima, de uma concentrao dos valores. Torna-se ento objetode curiosas valorizaes a que os mais diversos devaneios animistas do livreexpanso. Neste estdio, a noo de massa um conceito-obstculo. Este con-ceito bloqueia o conhecimento; no o resume.

    Criticar-nos-o talvez por comearmos o nosso estudo por uma fase dema-siado elementar por parodiarmos o conhecimento cientfico e postularmos assimdificuldades que em nada estorvam um esprito refletido. Abandonaremos de boavontade este nvel de anlise, mas com a condio de que fique bem assente quenenhuma convico se vir reconfortar a este lar primitivo, e que se evitar qual-quer emprego metafrico da noo de massa em cincias em que exista o perigode se reencontrar a seduo primitiva. No por exemplo surpreendente que al-

    guns psiclogos falem da massa ou da carga de atividade como se se tratasse deum conceito claro? evidente que eles sabem muito bem a confuso que estacarga encerra. Eles prprios dizem que se trata de uma simples analogia. Masprecisamente esta analogia psicolgica refere-se ao conceito animista de massa.Ela reforma pois o conceito-obstculo atravs de uma utilizao falsamente clara.Eis imediatamente uma prova: quando um psiclogo fala de carga de afetividade,trata-se sempre de uma massa mais ou menos intensa. Seria ridculo falar de umapequena massa, de uma pequena carga de afetividade. Na realidade, nunca se fala

  • 14 BACHELARD

    nestes termos. Perante um doente insensvel, inerte, indiferente, o psiquiatra dirque este doente sofre de uma afetividade reduzida. Neste caso, o psiquiatra aban-dona sub-repticiamente o seu conceito de massa afetiva, de carga afetiva. S carga aquilo que sobrecarrega. O conceito emprega-se mais para o grande do quepara o pequeno. Estranha medida que apenas mede aquilo que cresce !

    Do ponto de vista dinmico, o conceito animista de massa to nebulosocomo do ponto de vista esttico. Para o homo faber a massa sempre uma maa.A maa um instrumento da vontade de poder; o que quer portanto dizer que asua funo no facilmente analisada. Correlativamente, o senso comum des-preza a massa das coisas midas, das coisas "insignificantes". Em resumo, amassa s uma quantidade se for suficientemente grande. Primitivamente, elano portanto um conceito de aplicao geral como seria um conceito elaboradonuma filosofia racionalista.

    Se se desenvolvessem mais estas consideraes, no sentido de uma psican-lise. do conhecimento objetivo, examinando sistematicamente as primitivas utili-zaes da noo de massa, compreender-se-ia melhor como o esprito pr-cien-tfico definiu o conceito de corpos imponderveis, negando rpido demais ageneralidade da lei da gravidade. Teramos nisto um exemplo de uma dialticaprematura, mal instruda, que opera sobre as coisas em vez de operar sobre axio-mas. Daqui extramos um argumento para situar a filosofia dialtica para almdo racionalismo, como uma flexibilizao do racionalismo. A utilizao de umadialtica ao nvel do realismo sempre incerta e provisria.

    Diga-se o que se disser desta digresso metafsica, dissemos o suficiente paradenunciar formas conceituais imprecisas como a idia de massa sob a forma pri-mitiva. Um esprito que aceite um conceito desta natureza no pode aceder cul-tura cientfica. Uma declarao explcita de analogia dificilmente corrige o perigodeste emprego. O animismo no tarda a transbordar a definio e a reintegrar noesprito certezas especiais. Existe alis um sintoma muito curioso sobre o qualnunca demais refletir: a rapidez com a qual um conceito animista compreen-dido. Bastam poucas palavras para ensinar o que uma carga de afetividade.Para ns, isto constitui um mau sinal. No que se refere ao conhecimento tericodo real, isto , no que se refere a um conhecimento que ultrapasse o alcance deuma simples descrio deixando tambm de lado a aritmtica e a geometria, tudo o que fcil de ensinar inexato. Teremos ocasio de voltar a este para-doxo pedaggico. Por agora queramos apenas mostrar a incorreo total da pri-meira noo de massa. Pensamos que existe sempre um erro a corrigir a prop-sito de qualquer noo cientfica. Antes de se comprometer num conhecimentoobjetivo qualquer, o esprito deve ser psicanalisado no s na generalidade comoao nvel de todas as noes particulares. Como uma noo cientfica raramente psicanalisada em todas as suas utilizaes, sendo sempre de temer que existacontaminao de uma utilizao por outra, torna-se sempre neCtmgrf paratodos os conceitos cientficos, indicar os significados no psicanali^dos. Nocaptulo seguinte voltaremos a este pluralismo de significados associalos a ummesmo conceito. Nele encontraremos um argumento para a filosofia tientficadispersa que defendemos nesta obra. *

  • A FILOSOFIA DO NO 15

    IV

    O segundo nvel sobre que se pode estudar a noo de massa corresponde aum emprego cautelosamente emprico, a uma determinao objetiva precisa. Oconceito est ento ligado utilizao da balana. Beneficia-se imediatamente daobjetividade instrumental. Notemos no entanto que se pode evocar um longoperodo em que o instrumento precede a sua teoria. O mesmo no acontece atual-mente, nos domnios verdadeiramente ativos da cincia, em que a teoria precedeo instrumento, de forma que o instrumento de fsica uma teoria realizada,concretizada, de essncia racional. No que diz respeito antiga conceitualizaoda massa, evidente que a balana utilizada antes que se conhea a teoria daalavanca. Ento, o conceito de massa apresenta-se diretamente, como que sempensamento, como o substituto de uma experincia primeira que decidida eclara, simples e infalvel. Notemos alis que, mesmo nos casos em que o conceitofunciona "em composio", ele no pensado em composio: assim, no caso dabalana romana em que a comparao dos pesos se faz por intermdio de umafuno composta do peso e do brao da alavanca, esta composio no efetiva-mente pensada por quem a utiliza. Por outras palavras, cria-se uma conduta dabalana, to simples como a conduta do cabaz estudada por Pierre Janet paracaracterizar uma das primeiras formas da inteligncia humana. Esta conduta dabalana atravessa geraes, transmite-se na sua simplicidade, como uma expe-rincia fundamental. Ela no mais do que um caso particular da utilizao sim-ples de uma mquina complicada, de que encontramos naturalmente inmerosexemplos cada vez mais surpreendentes no nosso tempo em que a mquina maiscomplicada governada simplesmente, com um conjunto de conceitos empricosracionalmente mal concebidos e mal articulados, mas reunidos de uma formapragmaticamente segura.

    A um tal conceito simples e positivo, a uma tal utilizao simples e positivade um instrumento (mesmo que seja teoricamente complicado) corresponde umpensamento emprico, slido, claro, positivo, imvel. fcil imaginar que estaexperincia constitua uma referncia necessria e suficiente para legitimar qual-quer teoria. Pesar pensar. Pensar pesar. E os filsofos repetem infatigavel-mente o aforismo de Lord Kelvin que tinha a pretenso de no ir alm da fsicada balana, nem da aritmtica do escudo. Um pensamento emprico associado auma experincia to peremptria, to simples, recebe ento o nome de pensa-mento realista.

    Mesmo numa cincia muito avanada, as condutas realistas subsistem.Mesmo numa prtica inteiramente comprometida com uma teoria se manifestamretornos a condutas realistas. Estas condutas realistas reinstalam-se porque o te-rico racionalista tem necessidade de ser compreendido por simples experimenta-dores, porque ele quer falar mais depressa regressando conseqentemente s ori-gens animistas da linguagem, porque ele no teme o perigo de pensarsimplificando, porque na sua vida comum ele efetivamente realista. De forma

    - que os valores racionais so tardios, efmeros, raros precrios como todos os

  • 16 BACHELARD

    valores elevados, diria o Sr. Duprel. Tambm no reino do esprito o joio estragao trigo, o realismo leva a melhor sobre o racionalismo. Mas o epistemlogo queestuda os fermentos do pensamento cientfico deve detectar permanentemente osignificado dinmico da descoberta. Insistamos pois agora sobre o aspecto racio-nal que assume o conceito de massa.

    V

    Este terceiro aspecto ganha toda a sua clareza no fim do sculo XVII quan-do nasce, com Newton, a mecnica racional. a poca da solidariedade nocional(notionnelle). utilizao simples e absoluta de uma noo segue-se a utilizaocorrelativa das noes. A noo de massa define-se ento num corpo de noes ej no apenas como um elemento primitivo de uma experincia imediata e direta.Com Newton a massa ser definida como o quociente da fora pela acelerao.Fora, acelerao, massa, estabelecem-se correlativamente numa relao clara-mente racional dado que esta relao perfeitamente analisada pelas leis racio-nais da aritmtica.

    Do ponto de vista realista, as trs noes so o mais diversas possvel. Reu-ni-las numa mesma frmula pareceria um procedimento mais ou menos artificial,que em nenhuma ocasio poderia receber o qualificativo de realista. Com efeito,por que razo concederamos ns ao realista o direito a uma espcie de ecletismoda funo realista? Por que razo no o haveramos de obrigar a responder compreciso seguinte pergunta: "Qual de entre as noes de fora, de massa, deacelerao, real?"E se, como hbito, ele responder: "Tudo real", aceita-remos ns este mtodo de discusso que, por meio de um princpio vago, apagatodas as diferenas filosficas, todas as questes precisas?

    Em nossa opinio, a partir do momento em que se definiram em correlaoas trs noes de fora, de massa, de acelerao, realizou-se imediatamente umafastamento em relao aos princpios fundamentais do realismo, dado que qual-quer destas trs noes pode ser apreciada atravs de substituies que introdu-zem ordens realsticas diferentes. Alis, a partir da existncia da correlao,poder-se- deduzir uma das noes, seja ela qual for, a partir das outras duas.

    Em particular, a noo de massa, to claramente realista sob a sua formaprimeira, de certo modo tornada sutil quando se passa, com a mecnica deNewton, do seu aspecto esttico ao seu aspecto dinmico. Antes de Newton, estu-dava-se a massa do seu ser, como quantidade de matria. Depois de Newton, ela estudada num devir dos fenmenos, como coeficiente de devir. Podemos, alis,fazer uma observao curiosa: a necessidade de compreender o devir que racio-naliza o realismo do ser. Por outras palavras, no sentido da complicao filos-fica que se desenvolvem verdadeiramente os valores racionalistas. Desde a suaprimeira formulao que o racionalismo deixa antever o ultra-racionalismo. Arazo no de forma alguma uma faculdade de simplificao. uma faculdadeque se esclarece enriquecendo-se. Desenvolve-se no sentido de uma complexidadecrescente, como mostraremos mais claramente quando chegarmos aos estdiosepistemolgicos seguintes da noo de massa. \

  • A FILOSOFIA DO NO 17

    Em todo o caso, para interpretar no sentido realista a correlao das trsnoes de fora, massa e acelerao, necessrio passar do realismo das coisasao realismo das leis. Por outras palavras, j necessrio admitir duas ordens derealidade. No deixaremos, alis, o realismo habituar-se a esta cmoda diviso.Ser-lhe- necessrio responder s nossas permanentes objees realizando tiposde leis cada vez mais variados. A bela simplicidade do realismo apagar-se- rapi-damente; o realismo ser vasculhado por todos os lados, em todas as suas noes,sem nunca poder dar conta, utilizando os seus prprios princpios, da hierarquiados nveis. Por que razo no se designam ento os nveis do real e a sua hierar-quia em funo dos prprios princpios que dividem e hierarquizam, isto , emfuno dos princpios racionais?

    Mas esta observao epistemolgica deve ser acentuada. preciso vermosque, uma vez estabelecida a relao fundamental da dinmica, a mecnica setorna toda ela verdadeiramente racional. Uma matemtica especial associasse experincia e racionaliza-a; a mecnica racional situa-se num valor apodtico;permite dedues formais; abre-se sobre um campo de abstrao indefinido;exprime-se nas mais diversas equaes simblicas. Com Lagrange, com Poisson,com Hamilton introduzem-se "formas mecnicas" cada vez mais gerais em que amassa no mais do que um instante da construo racional. Face ao fenmenomecnico, a mecnica racional est exatamente na mesma relao que a geome-tria pura relativamente descrio fenomenal. A mecnica racional conquistarapidamente todas as funes de um a priori kantiano. A mecnica racional deNewton uma doutrina cientfica j dotada de um carter filosfico kantiano. Ametafsica de Kant instruiu-se na mecnica de Newton. Reciprocamente, podeexplicar-se a mecnica newtoniana como uma informao racionalista. Ela satis-faz o esprito independentemente das verificaes da experincia. Se a experinciaviesse desmenti-la, suscitar-lhe correes, tornar-se-ia necessrio uma modifica-o dos princpios espirituais. Um racionalismo alargado no se pode satisfazercom uma retificao parcial. Tudo aquilo que retifica a razo reorganiza-a. Mos-tremos, pois, como o caleidoscpio das mltiplas filosofias reorganizou o sistemadas "luzes naturais".

    VI

    O racionalismo newtoniano dirigiu toda a Fsica matemtica do sculoXIX, Os elementos que ele escolheu como fundamentais: espao absoluto, tempoabsoluto, massa absoluta, permanecem, em todas as construes, elementos sim-ples e separados, sempre reconhecveis. Faz-se deles a base dos sistemas de medi-da, como o sistema CGS, que servem para medir tudo. Estes elementos corres-pondem quilo a que se poderia chamar tomos nocionais (notionnels): no teriasignificado colocar a respeito deles uma questo analtica. Eles so os a priori dafilosofia mtrica. Tudo o que se mede, deve e pode depois apoiar-se nestas basesmtricas.

    Mas eis que, com a era da Relatividade, surge uma poca em que o raciona-

  • 18 BACHELARD

    lismo, essencialmente fechado nas concepes newtonianas e kantianas, vai abrir-se. Vejamos como se realiza esta abertura a propsito da noo de massa queretm presentemente a nossa ateno.

    A abertura realiza-se, por assim dizer, no interior da noo. Constata-se quea noo de massa tem uma estrutura funcional interna, ao passo que at entotodas as funes da noo de massa eram de certo modo externas dado que s seencontravam em composio com outras noes simples. A noo de massa quecaracterizamos como um tomo nocional pode pois ser objeto de anlise. Pelaprimeira vez um tomo nocional pode decompor-se; chega-se pois ao seguinteparadoxo metafsico: o elemento complexo. Correlativamente apercebemo-nosde que a noo de massa s simples em primeira aproximao. Com efeito, aRelatividade descobre que a massa, outrora definida como independente da velo-cidade, como absoluta no tempo e no espao, como base de um sistema de unida-des absolutas, uma funo complicada da velocidade. A massa de um objeto pois relativa ao deslocamento desse objeto. Pensar-se- em vo poder definir umamassa em repouso, que constituiria uma caracterstica prpria desse objeto. Orepouso absoluto no tem significado. Tambm falha de significado a noo demassa absoluta. impossvel escapar Relatividade, tanto no que se refere massa como no que se refere s determinaes do espao-tempo.

    Esta complicao interna da noo de massa acompanhada de complica-es sensveis na utilizao externa: a massa no se comporta da mesma maneirarelativamente acelerao tangencial e relativamente acelerao normal. poisimpossvel defini-la de uma forma to simples como o fazia a dinmica newto-niana. Mais uma complicao nocional: na fsica relativista, a massa j no heterognea energia.

    Em suma, a noo simples d lugar a uma noo complexa, sem declinaralis o seu papel de elemento. A massa permanece uma noo de base e estanoo de base complexa. Apenas em certos casos a noo complexa se podesimplificar. Simplifica-se na aplicao pelo abandono de determinadas sutilezas,pela eliminao, de determinadas variaes delicadas. Mas fora do problema daaplicao, e conseqentemente ao nvel das construes racionais a priori, o n-mero das funes internas da noo multiplica-se. O que eqivale a dizer quenuma noo particular, numa noo elementar, o raconalismo se multiplica, sesegmenta, se pluraliza. O elemento sobre o qual a razo trabalha ser mais oumenos complexo de acordo com o grau de aproximao. O racionalismo tradi-cional profundamente abalado por esta utilizao mltipla das noes elemen-tares. Surgem corpos de aproximao, corpos de explicao, corpos de racionali-zao, sendo estas trs expresses congneres. Estes corpos so tomados nomesmo sentido de um corpus que fixa a organizao de um direito particular. Aomultiplicar-se, o racionalismo torna-se condicional. tocado pela subjetividade:uma organizao racional relativamente a um corpo de noes. No existerazo absoluta. O racionalismo funcional. diverso e vivo.

    Retomemos ento a nossa polmica com o realista. Confessar-se- ele venci-do? Ser-lhe- sempre permitido ampliar a sua definio do real? H pouco, leva-

  • A FILOSOFIA DO NO 19do pela polmica, ele admitia, acima de um realismo das coisas e dos fatos, umrealismo das leis. Ele vai agora seriar este realismo das leis: distinguira uma reali-dade da lei geral e simples e uma realidade da lei mais complicada; entregar-se-a um realismo dos graus de aproximao, a um realismo das ordens de grandeza.Mas, medida que esta hierarquia se estende, quem no v que ela infringe a fun-o filosfica essencial do realismo para qual o dado deve ser um dado sem privi-lgio? Com efeito, a funo mais evidente de um dado, precisamente a recusa dequalquer privilgio.

    Mas na realidade, o realista que assim hierarquiza a realidade cientfica rea-liza os seus prprios fracassos. No foi, com efeito, sob a inspirao do realismoque a cincia captou a estrutura interna das suas noes de base. S existe ummeio de fazer avanar a cincia; o de atacar a cincia j constituda, ou seja,mudar a sua constituio. O realista est mal situado para isto, pois parece queo realismo uma filosofia onde se tem sempre razo. O realismo uma filosofiaque assimila tudo, ou que, pelo menos, absorve tudo. S se constitui porque sepensa sempre constitudo. A fortiori, ele nunca muda de constituio. O realismo uma filosofia que nunca se compromete, ao passo que o racionalismo se com-promete sempre e arrisca totalmente em cada experincia. Mas, tambm nestecaso, o sucesso est ao lado do maior risco. Com efeito, toda a hierarquia quevemos estabelecer-se nas noes obra do esforo de reorganizao terico leva-do a cabo pelo pensamento cientfico. A hierarquia das noes apresenta-se comouma extenso progressiva do domnio da racionalidade, ou melhor, como a cons-tituio ordenada de diferentes domnios de racionalidade, sendo cada um destesdomnios de racionalidade especificado por funes adjuntas. Nenhuma destasextenses o resultado de um estudo realista do fenmeno. Tm todas o carternumenal. Apresentam-se todas inicialmente como nmenos procura do seufenmeno. A razo pois uma atividade autnoma que tende a completar-se.

    VII

    Mas o racionalismo contemporneo no se enriquece apenas por uma multi-plicao ntima, por uma complicao das noes de base; anima-se tambmnuma dialtica de certo modo externa que o realismo impotente para descrevere, naturalmente, mais impotente ainda para inventar. O conceito de massa pode,tambm neste caso, fornecer-nos um exemplo luminoso. Vamos indicar o aspectofilosfico novo sob o qual se apresenta a massa na mecnica de Dirac. Teremosento um exemplo preciso daquilo a que propomos chamar um elemento doultra-racionalismo dialtico, que representa o quinto nvel da filosofia dispersa.

    A mecnica de Dirac , como se sabe, uma parte de uma concepo maisgeral, e mais totalitria possvel do fenmeno da propagao. Se se perguntassej em seguida: "Da propagao de qu?", estaramos perante a necessidade dorealismo ingnuo e urgente, que pretende sempre colocar o objeto antes dos seusfenmenos. De fato, na organizao matemtica do saber, necessrio prepararo domnio de definio antes de definir, exatamente da mesma maneira que, na

  • 20 BACHELARD

    prtica do laboratrio, preciso preparar o fenmeno para o produzir. O pensa-mento cientfico contemporneo comea, pois, por colocar entre parntesis a rea-lidade. E sob uma forma um pouco paradoxal, mas que nos parece sugestiva,pode dizer-se que a mecnica de Dirac examina em primeiro lugar a propagaodos "parntesis" num espao de configurao. a forma de propagao que defi-nir em seguida aquilo que se propaga. A mecnica de Dirac , pois, de sada,desrealizada. Veremos como, no fim do seu desenvolvimento, ela procurar a suarealizao, ou melhor, as suas realizaes.

    Dirac comea por pluralizar as equaes de propagao. Desde que no sesuponha que um objeto que se desloca e que, fiel s intuioes ingnuas do realis-mo, arrasta consigo todos os seus caracteres, -se levado a considerar tantas fun-es de propagao quantos os fenmenos que se propagam. Pauli j haviacompreendido que. dado que o eltron era capaz de dois spins, eram necessriaspelo menos duas funes para estudar a propagao destes dois caracteres produ-tores de fenmenos. Dirac levou mais longe o pluralismo da propagao. Empe-nhou-se em nada perder da funcionalidade dos elementos mecnicos, em defenderde qualquer degenerescncia as diversas variveis. Chegados a este ponto, o cl-culo que opera. As matrizes solidarizam dialeticamente os fenmenos propaga-dos dando a cada um o que lhes cabe, fixando exatamente a sua fase relativa. Emvez da melodia matemtica que outrora acompanhava o trabalho do fsico, todauma harmonia que romanceia matematicamente a propagao. Mais exatamente, um quarteto que o matemtico deve dirigir, na mecnica de Dirac, para combi-nar as quatro funes associadas a qualquer propagao.

    Mas dado que num livro de filosofia no podemos dar mais do que umaidia vaga do "idealismo" da mecnica de Dirac, passemos imediatamente aosresultados e ocupemo-nos apenas da noo de massa.

    O clculo fornece-nos esta noo juntamente com outras, com os momentosmagnticos e eltricos, com os spins, respeitando at ao fim o sincretismo funda-mental to caracterstico de um racionalismo completo. Mas eis a surpresa, eis adescoberta: no final do clculo, a noo de massa -nos fornecida estranhamentedialetizada. Ns tnhamos apenas necessidade de uma massa; o clculo d-nosduas, duas massas para um s objeto.2 Uma destas massas resume perfeitamentetudo o que se sabia da massa nas quatro filosofias precedentes: realismo ingnuo,empirismo claro, racionalismo newtoniano, racionalismo completo einsteiniano.Mas a outra massa, dialtica da primeira, uma massa negativa. Trata-se de umconceito inteiramente inadmissvel nas quatro filosofias antecedentes. Por conse-guinte, uma metade da mecnica de Dirac reencontra e continua a mecnica cls-sica e a mecnica relativista; a outra metade diverge numa noo fundamental;d origem a algo de diferente: suscita uma dialtica externa, uma dialtica quenunca teria sido encontrada meditando sobre a essncia do conceito de massa,aprofundando a noo newtoniana e relativista de massa.

    Qual vai ser a atitude do novo esprito cientfico perante um tal conceito?

    Cf. Louis de Broglie, L 'Electron Magntique, pg. 207. (N. do A.)

  • A FILOSOFIA DO NO 21

    Mas, antes de mais, qual teria sido a atitude de um cientista da poca precedente,ao nvel da Fsica do sculo XIX?

    Sobre esta ltima atitude no nos parece haver dvidas. Para o cientista dosculo XIX, o conceito de uma massa negativa teria sido um conceito mons-truoso. Teria sido, para a teoria que o produziu, um erro fundamental. E isto pormais que se dissesse haver todos os direitos de expresso numa filosofia do comose. Existiam, apesar de tudo, limites liberdade de expresso e a filosofia docomo se nunca teria conseguido interpretar uma quantidade negativa como se elafosse uma massa.

    ento que entra em cena a filosofia dialtica do "por que no?" que caracterstica do novo esprito cientfico. Por que razo a massa no havia de sernegativa? Que modificao terica essencial poderia legitimar uma massa negati-va? Em que perspectiva de experincias se poderia descobrir uma massa negati-va? Qual o carter que, na sua propagao, se revelaria como uma massa negati-va? Em suma, a teoria insiste, no hesita, a preo de algumas modificaes debase, em procurar as realizaes de um conceito inteiramente novo, sem raiz narealidade comum.

    Deste modo a realizao leva a melhor sobre a realidade. Esta primazia darealizao desclassifica a realidade. Um fsico s conhece verdadeiramente umarealidade quando a realizou, quando deste modo senhor do eterno recomeo dascoisas e quando constitui nele um retorno eterno da razo. Alis, o ideal da reali-zao exigente: a teoria que realiza parcialmente deve realizar totalmente. Elano pode ter razo apenas de uma forma fragmentria. A teoria a verdade mate-mtica que ainda no encontrou a sua realizao completa. O cientista deve pro-curar esta realizao completa. preciso forar a natureza a ir to longe quantoo nosso esprito.

    VIII

    No termo do nosso esforo para expor, acerca de um conceito nico, umexemplo de filosofia dispersa, vamos encontrar uma objeo. Poderamos ter evi-tado esta objeo se tivssemos reconhecido para ns o legtimo direito de utilizarconceitos diferentes para ilustrar os diferentes estdios da filosofia dispersa. Masvejamos a objeo que vem ao esprito do leitor. Objetar-nos-o que o conceito demassa negativa no encontrou ainda a sua interpretao experimental e que,conseqentemente, o nosso exemplo de racionalizao dialtica permanece vago;que o conceito de massa negativa levanta, quando muito, um problema. Mas surpreendente que uma tal questo se possa levantar. Esta possibilidade sublinhao valor da interrogao da Fsica matemtica. Insistamos, alis, no carter muitoespecial deste problema. um problema teoricamente preciso, respeitante a umfenmeno totalmente desconhecido. Este desconhecido preciso precisamente oinverso do irracional vago, ao qual o realismo freqentemente atribui um peso,uma funo, uma realidade. Um tal tipo de questo inconcebvel numa filosofiarealista, numa filosofia emprica, numa filosofia positivista. S pode ser interpre-

  • 22 BACHELARD

    tada por um racionalismo aberto. Quando formulada com toda a sua construomatemtica antecedente, ela precisamente uma abertura.

    A nossa tese perderia naturalmente muito da sua fora se no nos puds-semos apoiar noutros exemplos em que a interpretao de uma noo funda-mental dialetizada fosse efetivamente realizada. o caso da energia negativa. Oconceito de energia negativa apresenta-se, na mecnica de Dirac, exatamente damesma forma que o conceito de massa negativa. A propsito dele poderamosretomar ponto por ponto todas as crticas precedentes; poderamos afirmar queum tal conceito teria parecido monstruoso cincia do sculo XIX e que a suaapario numa teoria teria sido interpretada como um erro capital que viciariainteiramente a construo terica. No entanto, Dirac no fez dele uma objeo aoseu sistema. Pelo contrrio, dado que as suas equaes de propagao conduzi-ram ao conceito de energia negativa, Dirac atribuiu para si a tarefa de encontraruma interpretao fenomenal deste conceito. A sua interpretao engenhosa sur-giu inicialmente como uma pura construo do esprito. Mas a descoberta experi-mental do eltroh positivo realizada pro Blackett e Occhialini veio logo dar umaconfirmao inesperada s idias de Dirac. Na realidade, no foi o conceito deenergia negativa que levou a procurar o eltron positivo. Aconteceu, como freqente, uma sntese acidental da descoberta terica e da descoberta experimen-tal, mas, mesmo assim, j estava pronto o leito em que o fenmeno novo se veioestender, justamente sua medida. Havia uma predio terica que esperava pelofato. Podemos, pois, dizer em certo sentido, segundo a construo diraciana, quea dialtica da noo de energia encontrou a sua dupla realizao.

    IX

    Voltemos agora massa negativa. Qual o fenmeno que corresponderia aoconceito de massa negativa preparado pela mecnica de Dirac? Dado que nosabemos responder pergunta como matemtico, acumulemos as interrogaesvagas, as interrogaes filosficas que nos vm ao esprito.

    Ser a massa negativa o carter que se deveria encontrar no processo dedesmaterializao, ao passo que a massa positiva estaria ligada matria resul-tante de uma materializao? Por outras palavras, estaro os processos de cria-o e destruio materiais to recentes para o esprito cientfico ! em rela-o com as dialticas profundas dos conceitos de base tais como as massaspositivas e negativas, as energias positivas e negativas? No existir uma ligaoentre a energia negativa e a massa negativa?

    Ao colocar questes to evasivas, to vagas ao passo que em todas asnossas obras anteriores nunca nos permitimos a menor antecipao , temos umobjetivo. Queramos com efeito dar a impresso de que nesta regio do ultra-ra-cionalismo dialtico que sonha o esprito cientfico. aqui, e no algures, quenasce o sonho anaggico, aquele que se aventura pensando, que pensa aventuran-do-se, que procura uma iluminao do pensamento atravs do pensamento, queencontra uma intuio sbita no alm do pensamento instrudo. O sonho ordin-

  • A FILOSOFIA DO NO 23

    rio trabalha no outro plo, na regio da psicologia das profundidades, de acordocom as sedues da libido, as tentaes do ntimo, as certezas vitais do realismo,a alegria da posse. No se poder conhecer bem a psicologia do esprito cientficoenquanto no se tiver distinguido estas duas espcies de sonho. Jules Romainscompreendeu a realidade desta distino numa curta pgina em que escreve: "Emdeterminados aspectos, sou mesmo ultra-racionalista".3 Em nosso entender, areferncia realidade mais tardia do que Jules Romains supe, o pensamentoinstrudo sonha durante mais tempo em funo da sua instruo. Mas o seu papel indispensvel e uma filosofia dispersa completa deve estudar a regio do sonhoanaggico.

    No seu mpeto cientfico atual, o sonho anaggico , segundo pensamos,essencialmente matematizante. Ele aspira a uma maior matematizao, a funesmatemticas mais complexas, mais numerosas. Quando se acompanham os esfor-os do pensamento contemporneo para compreender o tomo, -se quase legadoa pensar que o papel fundamental do tomo o de obrigar os homens a estudarmatemtica. Matemtica antes de tudo. . . 4 Em suma, a arte potica da Fsicafaz-se com nmeros, com grupos, com spins, excluindo as distribuies monto-nas, os quanta repetidos, sem nunca fixar aquilo que funciona. Qual o poeta quevir cantar este panpitagorismo, esta aritmtica sinttica que comea por dar atodo o ser os seus quatro quanta, o seu nmero de quatro algarismos, como se omais simples, o mais pobre, o mais abstrato dos eltrons tivesse j necessaria-mente mais de mil caras. Apesar de serem em nmero reduzido os eltrons numtomo de hlio ou de li tio, o seu nmero de identificao tem quatro algarismos:um pequeno nmero de eltrons to complicado como um regimento desoldados. . .

    Acabemos com as nossas efuses. Pobres de ns! Precisvamos de umpoeta inspirado e apenas entrevemos a imagem de um coronel que conta os solda-dos do seu regimento. A hierarquia das coisas mais complexa do que a hierar-quia dos homens. O tomo uma sociedade matemtica que ainda no nos reve-lou o seu segredo; no se dirige esta sociedade com uma aritmtica de militar.

    3 Jules Romains, Essai de Repouse Ia plus Vaste Question, N. R. F., 1 de agosto de 1939, pg. 185. (N.

    do A.)4 O autor parafraseia aqui um poema de Paul Verlaine. Art Potique, que comea assim: De Ia musique

    avanl toutechose/Et pour cela prefere fimpairlPlus vague et plus soluble dans l'air. . . (N. do T.)

  • C A P T U L O II

    A noo de perfil epistemolgico

    I

    Conseguimos assim, a propsito de uma nica noo, pr em evidncia umafiliao de doutrinas filosficas que vo do realismo ao ultra-racionalismo. Bas-tou 'jm conceito para dispersar as filosofias, para mostrar que as filosofias par-ciais se debruavam apenas sobre um aspecto, esclareciam apenas uma face doconceito. Temos agora uma escala polmica suficiente para localizar os diversosdebates da filosofia cientfica, para impedir a confuso dos argumentos.

    Como o realista o filsofo mais tranqilamente imvel, reavivemos a nossaquerela atravs das seguintes questes:

    Acreditais verdadeiramente que o cientista seja realista em todos os seuspensamentos? Ser ele realista quando supe, quando resume, ser ele realistaquando esquematiza, quando erra? Ser ele necessariamente realista quandoafirma?

    Os diversos pensamentos de um mesmo esprito no tero coeficientes derealidade diversos? Dever o realismo impedir o emprego de metforas? Estar ametfora necessariamente fora da realidade? Ser que, nestes diversos graus, ametfora mantm os mesmos coeficientes de realidade ou de irrealidade?

    Os coeficientes de realidade no diferiro consoante as noes, de acordocom a evoluo dos conceitos, de acordo com as concepes tericas da poca?

    Em resumo, ns foraremos o realismo a introduzir uma hierarquia na suaexperincia.

    Mas no nos contentaremos com uma hierarquia geral. Mostramos que rela-tivamente a uma noo particular, como a noo de massa, a hierarquia dosconhecimentos se distribui de forma diversa segundo as utilizaes. Perante umatal pluralidade, parece-nos, pois, vo responder em bloco dizendo: "O cientista realista".

    Se muitas vezes necessrio atacar o realista, tambm evidentementenecessrio proteger o racionalista. necessrio vigiar os a priori do racionalista,dar-lhes o seu justo valor de a posteriori. permanentemente necessrio mostraro que permanece de conhecimento comum nos conhecimentos cientficos. necessrio provar que as formas a priori do espao e do tempo implicam apenasum tipo de experincias. Nada pode legitimar um racionalismo absoluto, invari-vel, definitivo.

    Em resumo, preciso chamar tanto um como outro ao pluralismo da cultura

  • A FILOSOFIA DO NO 25filosfica. Nestas condies, parece-nos que uma psicologia do esprito cientficodeveria esboar aquilo a que chamaremos o perfil epistemolgico das diversasconceitualizaes. Seria atravs de um tal perfil mental que poderia medir-se aao psicolgica efetiva das diversas filosofias na obra do conhecimento. Expli-quemos o nosso pensamento sobre o exemplo do conceito de massa.

    II

    Quando ns prprios nos interrogamos, damo-nos conta de que as cincofilosofias que consideramos (realismo ingnuo empirismo claro e positivista racionalismo newtoniano ou kantiano racionalismo completo raciona-lismo dialtico) orientam em direes diversas utilizaes pessoais da noo demassa. Tentaremos ento pr grosseiramente em evidncia a sua importnciarelativa colocando em abscissas as filosofias sucessivas e em ordenadas um valorque se pudesse ser exato mediria a freqncia de utilizao efetiva danoo, a importncia relativa das nossas convices. Com uma certa reservarelativamente a esta medida muito grosseira, obtemos ento para o nosso perfilepistemolgico pessoal da noo de massa um esquema do tipo seguinte (fig. 1).

    Insistimos no fato de um perfil epistemolgico dever sempre referir-se a umconceito designado, de ele apenas ser vlido para um esprito particular que seexamina num estdio particular da sua cultura. esta dupla particularizao quetorna um perfil epistemolgico interessante para uma psicologia do espritocientfico.

    Para melhor nos fazermos compreender, comentemos o nosso perfil episte-molgico, fazendo uma curta confisso acerca da nossa cultura relativamente aoconceito que nos atrai a ateno.

    No nosso esquema reconhece-se a importncia atribuda noo raciona-lista de massa, noo esta formada numa educao matemtica clssica e desen-volvida numa longa prtica do ensino da Fsica elementar. De fato, na maioriados casos, a noo de massa apresenta-se-nos na orientao do racionalismo

  • 26 BACHELARD

    clssico. Enquanto noo clara, a noo de massa para ns sobretudo umanoo racional.

    No entanto, podemos, se necessrio, encarar a noo no sentido da mec-nica relativista ou no sentido da mecnica de Dirac. Mas estas duas orientaes,sobretudo a orientao diraciana, so penosas. Se no nos acautelarmos, seremosdominados pela tendncia simplesmente racional. O nosso racionalismo simplesentrava o nosso racionalismo completo e sobretudo o nosso racionalismo dial-tico. Eis uma prova de como as filosofias mais ss, como o racionalismo newto-niano e kantiano, podem em determinadas circunstncias, constituir um obst-culo ao progresso da cultura.

    Consideremos em seguida, do lado pobre da cultura, a noo de massa soba sua forma emprica. No que nos diz respeito, somos levados a dar-lhe umaimportncia bastante grande. Com efeito, a conduta da balana foi por ns muitopraticada no passado. Foi-o na poca em que trabalhvamos em Qumica e tam-bm na poca mais recuada em que pesvamos, com um cuidado administrativo,as cartas numa estao dos correios. Os escrpulos das finanas reclamam a con-duta da balana de preciso. Admira-se sempre o senso financeiro comum dizen-do que o moedeiro pesa as suas moedas em vez de as contar. Notemos de passa-gem que a conduta da balana de preciso, que tem pela noo de massa umrespeito absoluto, nem sempre uma conduta muito clara: muitos alunos ficamsurpreendidos e perturbados com a lentido da medio precisa. No devemos,pois, atribuir a toda a gente uma noo emprica da massa que seja uma nooautomaticamente clara.

    Finalmente, temos, como toda a gente, as nossas horas de realismo, e mesmoa propsito de um conceito to elaborado como o conceito de massa no nospsicanalisamos inteiramente. Damos demasiado depressa a nossa adeso a met-foras em que a quantidade mais vaga apresentada como uma massa precisa.Sonhamos com matrias que seriam foras, com pesos que seriam riquezas, comtodos os mitos da profundeza do ser. Devemos, pois, deixar sinceramente umpatamar de sombra em frente da construo das nossas idias cl