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CAPTURANDO A TERRA: Banco Mundial, políticas fundiárias neoliberais e reforma agrária de mercado

Banco Mundial, políticas fundiárias neoliberais e reforma ...r1.ufrrj.br/geac/portal/wp-content/uploads/2015/01/capturando-a-terra-LIVRO.pdfPartindo do veto dos grandes proprietários

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CAPTURANDO A TERRA:Banco Mundial, políticas fundiárias neoliberais e

reforma agrária de mercado

EDITORAEXPRESSÃO POPULAR

Sérgio SauerJoão Márcio Mendes Pereira (orgs.)

1ª edição

São Paulo, 2006

CAPTURANDO A TERRA:Banco Mundial, políticas fundiárias neoliberais e

reforma agrária de mercado

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Copyright © 2006, by Editora Expressão Popular, Sérgio Sauer e João Márcio Mendes Pereira

Coordenação e edição: Sérgio Sauer e João Márcio Mendes PereiraTradução: Werner Fuchs (inglês) e Sérgio Sauer (espanhol)Revisão geral dos textos: João Márcio Mendes Pereira e Sérgio SauerProjeto gráfico e capa: ZAP DesignDiagramação: Mariana Vieira de AndradeArte da capa: Obra de Candido Portinari, Mulher do pilão, 1945. (Pintura a óleo/tela100x81cm) Imagem do acervo Projeto Portinari, gentilmente autorizada a reprodução porJoão Cândido Portinari.Impressão e acabamento: CromoseteApoio: Action Aid e Terra de Direitos

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro pode ser utilizadaou reproduzida sem a autorização da editora ou dos organizadores.

1ª edição: novembro de 2006

EDITORA EXPRESSÃO POPULARRua Abolição, 266 – Bela VistaCEP 01319-010 – São Paulo-SPFone/Fax: (11) 3112-0941vendas@expressaopopular.com.brwww.expressaopopular.com.br

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SUMÁRIO

APRESENTAPRESENTAPRESENTAPRESENTAPRESENTAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃO ............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 7

PPPPPARARARARARTE ITE ITE ITE ITE I

AJUSTE ESTRAJUSTE ESTRAJUSTE ESTRAJUSTE ESTRAJUSTE ESTRUTURAL E POLÍTICAS PRÓ-MERUTURAL E POLÍTICAS PRÓ-MERUTURAL E POLÍTICAS PRÓ-MERUTURAL E POLÍTICAS PRÓ-MERUTURAL E POLÍTICAS PRÓ-MERCADO DE CADO DE CADO DE CADO DE CADO DE TERRAS DOTERRAS DOTERRAS DOTERRAS DOTERRAS DOBANCO MUNDIALBANCO MUNDIALBANCO MUNDIALBANCO MUNDIALBANCO MUNDIAL

Neoliberalismo, políticas de terra e reforma agrária de mercado na América Latina ............................. 13João Márcio Mendes Pereira

Reestruturação territorial e fundamentação da reforma agrária: comunidades indígenas,mineração de ouro e Banco Mundial .................................................................................................... 49Eric Holt-Giménez

PPPPPARARARARARTE IITE IITE IITE IITE II

EXPEXPEXPEXPEXPERIERIERIERIERIÊÊÊÊÊNCIAS NA AMÉRICA LANCIAS NA AMÉRICA LANCIAS NA AMÉRICA LANCIAS NA AMÉRICA LANCIAS NA AMÉRICA LATINA, ÁFRICA E ÁSIATINA, ÁFRICA E ÁSIATINA, ÁFRICA E ÁSIATINA, ÁFRICA E ÁSIATINA, ÁFRICA E ÁSIA

Aplicação das políticas agrárias do Banco Mundial na Guatemala: 1996 - 2005 .................................. 77Susana Gauster

O Estado, o mercado ou o pior de ambos? A reforma agrária de mercado na África do Sul .............. 103Edward Lahiff

É possível implementar a reforma redistributiva através de esquemas de transferência voluntáriade terra com base no mercado? Evidências e lições das Filipinas ......................................................... 131Saturnino M. Borras Jr.

PPPPPARARARARARTE IIITE IIITE IIITE IIITE IIIEXPEXPEXPEXPEXPERIERIERIERIERIÊÊÊÊÊNCIAS NO BRASILNCIAS NO BRASILNCIAS NO BRASILNCIAS NO BRASILNCIAS NO BRASIL

História e legado da reforma agrária de mercado no Brasil ................................................................. 171João Márcio Mendes Pereira e Sérgio Sauer

O mercado de terras ou a terra como mercadoria no Ceará ................................................................ 205Francisco Amaro Gomes de Alencar

A implantação dos programas orientados pelo modelo de reforma agrária demercado no estado da Bahia ................................................................................................................ 227Guiomar Germani, Alicia Ruiz Olalde, Gilca Garcia de Oliveira e Edmilson Carvalho

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A implementação do Banco da Terra no Rio Grande do Sul: uma leitura política .............................. 257César Augusto Da Ros

Estado, Banco Mundial e protagonismo popular: o caso da reforma agrária de mercado no Brasil .... 281Sérgio Sauer

PPPPPARARARARARTE IVTE IVTE IVTE IVTE IVREFORMA AREFORMA AREFORMA AREFORMA AREFORMA AGRÁRIA, LGRÁRIA, LGRÁRIA, LGRÁRIA, LGRÁRIA, LUTUTUTUTUTA SOCIAL E SOBERANIA ALIMENTA SOCIAL E SOBERANIA ALIMENTA SOCIAL E SOBERANIA ALIMENTA SOCIAL E SOBERANIA ALIMENTA SOCIAL E SOBERANIA ALIMENTARARARARAR

Alternativa à política fundiária de mercado: reforma agrária e soberania alimentar ............................ 311Peter Rosset

Sobre os autores .................................................................................................................................. 339

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Ao longo da década de 1990, sob o impulso das reformas neoliberais, umanova onda de políticas pró-mercados de terra varreu inúmeros países na AméricaLatina, Ásia e África. Em comum, propostas e programas foram implantados emsociedades marcadas por elevada concentração da propriedade da terra, altos ín-dices de pobreza rural, processos anteriores de reforma agrária e, especialmente,histórias de lutas pela democratização da estrutura agrária e econômica nacional.

O principal ator dessa difusão foi, e continua sendo, o Banco Mundial (BIRD).Mediante a concessão cada vez maior de empréstimos, doações e auxílio “não-financeiro” – como, por exemplo, estudos, avaliações e divulgação de programas“inovadores” –, o BIRD desenhou uma agenda de políticas fundiárias “ajustada”à plataforma neoliberal. Crescentemente adotada por diversos governos nacionais,essa agenda tem como eixo a promoção acelerada de transações mercantis de ar-rendamento e compra/venda de terras como base para o aumento da produtivida-de agrícola e o alívio da pobreza rural.

Um dos itens mais significativos dessa agenda é a chamada “reforma agráriade mercado”. Criada para substituir a reforma agrária redistributiva por esquemasde financiamento de compra de terras por trabalhadores rurais, tal política foiaplicada como uma forma supostamente mais barata, eficiente e politicamenteviável de distribuição fundiária e alívio da pobreza rural em sociedades altamentedesiguais. Esse processo ocorreu, em larga medida, contra a oposição de movi-mentos sociais camponeses e das articulações internacionais que os apóiam.

Este conjunto de artigos oferece uma reflexão sobre a teoria, a política e osresultados da “reforma agrária de mercado” no Brasil e em outros países. Sua pu-blicação tem o objetivo de alimentar o debate sobre a configuração da questãoagrária sob o ajuste neoliberal, o perfil e os resultados das ações de governos e doBanco Mundial afinadas com esse processo e, por fim, a necessidade de alternati-

APRESENTAÇÃO

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vas verdadeiramente democratizantes, capazes de promover o acesso sustentável àterra, a reprodução social camponesa e a soberania alimentar dos países “pobres”e “em desenvolvimento”.

O livro está organizado em quatro partes. A primeira é dedicada à discussãodo papel do BIRD na ascensão de políticas pró-mercado de terras. Com foco narealidade latino-americana, o artigo de Pereira discute a teoria e prática da “refor-ma agrária de mercado” à luz da agenda de políticas agrárias do BIRD e dareciclagem da plataforma neoliberal articulada a partir de meados dos anos 1990.

Na seqüência, o trabalho de Holt-Giménez analisa a “reforma agrária de mer-cado” no contexto das políticas para o campo do BIRD, tomando como referên-cia empírica os incentivos à mineração na Guatemala. Segundo o autor, os proje-tos agrários, em conjunto com os ambientais e de infra-estrutura, fazem parte deum pacote mais amplo de intervenções institucionais e financeiras cujo objetivo ébeneficiar empresas extrativas, em detrimento das necessidades e reivindicaçõesde camponeses e povos indígenas do Altiplano Guatemalteco.

A segunda parte reúne textos dedicados à análise empírica da trajetória, dasadaptações e dos resultados da “reforma agrária de mercado” em alguns países.Com base em uma ampla pesquisa de campo, Gauster estuda a implantação deprogramas de acesso à terra via mercado, concebidos e implantados como partedos Acordos de Paz que puseram fim à guerra civil na Guatemala. A autora mos-tra como programas de venda de terras, arrendamento e outros, além de não de-mocratizar a propriedade fundiária, acabam penalizando os supostos beneficiários.

Partindo do veto dos grandes proprietários de terra à reforma agrária na Áfricado Sul após o regime de apartheid, Lahiff estuda os pressupostos da “reforma agráriade mercado” e as adaptações que os programas a ela vinculados sofreram no país.O autor constata o fraco desempenho destes programas, ressaltando ainda mais anecessidade urgente de uma reforma verdadeiramente redistributiva.

Partindo da importância da reforma agrária, em resposta às lutas e demandashistóricas pela democratização da propriedade da terra nas Filipinas, Borras Jr.analisa os programas governamentais agrários. Contextualiza a concepção, pro-blemas e limites na implantação do chamado “programa abrangente de reformaagrária”, nos anos 1990, e o fracasso do componente de “transferência voluntáriade terras”. O artigo deixa claro que, apesar dos freqüentes anúncios internacio-nais, não se implantou nenhum programa de “reforma agrária de mercado” nopaís, apenas um pequeno projeto piloto, financiado pelo BIRD.

A terceira parte abrange a experiência brasileira, de grande importância polí-tica no plano internacional em razão da sua magnitude financeira e social. Pereira

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e Sauer analisam o surgimento, trajetória e resultados da “reforma agrária de mer-cado”, em especial do projeto Cédula da Terra, implementado pelo governo FHCa partir de um empréstimo do BIRD. Fazem um balanço político do caso brasilei-ro, englobando as continuidades e descontinuidades operadas pelo governo Lula,inclusive as mudanças no Fundo de Terras e a situação do Programa Nacional deCrédito Fundiário.

O trabalho de Alencar analisa a implantação e os resultados dos projetos e pro-gramas ligados à política de “reforma agrária de mercado” no Ceará. Localizandogeograficamente a distribuição dessas iniciativas no estado, o autor mapeia as to-madas de posição das agências públicas e de alguns dos principais atores sociaisenvolvidos nesse processo, destacando as resistências e as novas demandas das fa-mílias “beneficiárias” na passagem do governo FHC ao governo seguinte.

O estudo de Germani, Olalde, Oliveira e Carvalho se debruça sobre a experiên-cia da Bahia, mostrando onde e como o Cédula da Terra e o Crédito Fundiário deCombate à Pobreza Rural – também financiado pelo BIRD – foram implantadose que resultados alcançaram. Essa implantação tem sido permeada por problemascomo, por exemplo, o aumento do número de “beneficiários” nos projetos, com-prometendo a capacidade produtiva da área e a própria sobrevivência das famílias.

Com enfoque eminentemente político, o artigo de Da Ros analisa os embatesque configuraram a implantação do Banco da Terra no Rio Grande do Sul, estadoonde tal programa alcançou maior projeção, a despeito da recusa do governo OlívioDutra (1999-2002) em implementá-lo. Da Ros mostra como a experiência gaú-cha trouxe conseqüências importantes não só para o desenho institucional da “re-forma agrária de mercado” no Brasil, mas também rearranjos na sua base social deapoio.

O texto de Sauer problematiza o discurso do BIRD sobre a “participação” e o“empoderamento” dos trabalhadores rurais e camponeses em projetos de “refor-ma agrária de mercado”. Evidencia, com base na trajetória do Cédula da Terra, afalácia do suposto “protagonismo popular”, tanto pela negação explícita do go-verno e do BIRD em reconhecer a mediação política dos movimentos sociais, comopelas dificuldades das associações comunitárias envolvidas em organizar e repre-sentar os interesses das famílias “beneficiárias”.

A quarta parte, dedicada às alternativas à política agrária neoliberal, traz acontribuição de Rosset sobre a relação entre reforma agrária e soberania alimen-tar. Sintonizado com o que vem sendo discutido e proposto por inúmeros movi-mentos sociais e organizações camponesas em âmbito internacional – especial-mente pela Via Campesina –, o texto procura delimitar o terreno político no qual

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as forças populares têm se posicionado. Essa posição é claramente pela paralisaçãodos “programas de mercado” do BIRD e pela realização de reformas agrárias, or-ganicamente associadas, na sua visão, à luta pela soberania alimentar dos povos.

Este livro é resultado do esforço de muitas pessoas, aliás, esforço esse que trans-cende aos trabalhos dos próprios autores e autoras, pois toma como base as lutasde movimentos agrários que, espalhados por vários continentes, reivindicam po-líticas agrárias redistributivas, e não programas “de mercado”. Conseqüentemen-te, este trabalho pretende ser uma contribuição, ainda que modesta, na luta pelademocratização da terra, cuja concentação é a base da profunda desigualdade so-cial que marca o meio rural em muitos países.

Brasília e Rio de Janeiro, outubro de 2006.Sérgio Sauer e João Márcio Mendes Pereira

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PARTE I

AJUSTE ESTRUTURAL E POLÍTICAS PRÓ-MERCADO DETERRAS DO BANCO MUNDIAL

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NEOLIBERALISMO, POLÍTICAS DE TERRA E REFORMAAGRÁRIA DE MERCADO NA AMÉRICA LATINA1

JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

Este artigo analisa os objetivos políticos e os pressupostos teóricos da “reformaagrária de mercado” do Banco Mundial (BIRD), bem como o desempenho e osresultados da sua aplicação na Colômbia, no Brasil e na Guatemala. O texto estáorganizado em cinco itens. O primeiro delimita os contornos gerais da reciclagemdo neoliberalismo operada pelo BIRD em meados da década de 1990, bem comoas razões que o levaram a retomar ações mais firmes no âmbito agrário. O segundoresume em que consiste a atual agenda de políticas agrárias do BIRD. O terceiroanalisa em maior detalhe a lógica política e os pressupostos teóricos de um compo-nente específico dessa agenda: a reforma agrária de mercado. O quarto avalia o de-sempenho deste modelo nos três países latino-americanos que, até o momento, maisse destacaram na sua implementação. Por fim, uma breve conclusão.

1. Banco Mundial: reciclagem da agenda neoliberal e retomada da políticaagrária

Nos primeiros anos da década de 1990, por razões econômicas e políticas, areestruturação capitalista neoliberal parecia não ter limites. A economia mundialvivia uma nova onda de expansão financeira. Com a implosão do chamado “socia-lismo real”, a transição para o capitalismo ocorria na ex-União Soviética e no Les-te Europeu sem qualquer gradualismo. No Oriente Médio, a Guerra do Golfomostrava, entre outras coisas, que a “abertura dos mercados” e a “vitória da demo-cracia” seriam cobradas, inclusive militarmente, pelos Estados Unidos.

Na América Latina, essa reestruturação ocorria com ainda mais força, impul-sionada pelo novo bloco de poder que surgia do manejo da crise da dívida externae das políticas de liberalização (Vilas, 1997 e 1997a). Em poucos anos, uma série

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de governos eleitos passaram a se comprometer firmemente com a implementaçãoda agenda neoliberal. Por outro lado, os planos de integração econômica subordi-nada da região à economia norte-americana caminhavam a passos acelerados, acomeçar pelo Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), iniciadoem janeiro de 1994. Àquela altura, exceto Cuba, todos os governos da região es-tavam alinhados à plataforma neoliberal. Tudo parecia corroborar o discurso daestandartização do mundo e do “fim da história”.

Entretanto, o impacto político provocado pela insurreição zapatista em janei-ro de 1994 e a crise financeira no final do mesmo ano arranharam a confiança dostablishment capitalista (Edwards, 1997a, p. 2-3). Até aquele momento, o Méxicohavia sido a economia “estrela” do Fundo Monetário Internacional (FMI) e doBanco Mundial. Ao mesmo tempo, em vários países, os efeitos socialmente re-gressivos das políticas em curso começaram a se avolumar e as tensões sociais ga-nharam mais visibilidade. Alguns governos da região alinhados ao Consenso deWashington passaram a sofrer uma queda rápida e acentuada de popularidade eas críticas ao neoliberalismo ganharam mais projeção. Por outro lado, os paísesque haviam adotado as receitas dominantes padeciam de baixo crescimento, quandonão estagnação ou franca recessão, enquanto os que haviam decidido trilhar rotascapitalistas alternativas (como os países do sudeste da Ásia) ostentavam taxas ele-vadas de crescimento industrial. Tudo somado, acendeu o sinal de alerta. Algunsatores centrais da ordem internacional, então, passaram a reavaliar a implementaçãoda agenda neoliberal. Com a crise financeira da Ásia em 1997, esse debate ga-nhou ainda mais força.

Parte da rede de poder “infra-estrutural” externo dos Estados Unidos (Wade,1997, p. 386), o BIRD, em especial, passou a advogar a realização de um segundoestágio de “reformas estruturais”, a fim de consolidar a estabilidade da paisagemmacroeconômica criada no estágio anterior2, manter a orientação econômica aoexterior, corrigir eventuais desvios de rota e aprofundar o processo em curso, es-tendendo-o, inclusive, para novas áreas estratégicas.

Para legitimar essa reciclagem do projeto neoliberal, o BIRD adotou o discurso damudança, passando a defender uma agenda de reformas que, supostamente, fosse “além”do Consenso de Washington (Burki & Perry, 1998), ou mesmo que configurasse um“pós-Consenso de Washington” (Stiglitz, 2000 e 1998). Quatro consignas foramestabelecidas e repetidas como a ponta da “nova” agenda de desenvolvimento: a“complementariedade entre estado e mercado”, o abandono da idéia de estado “míni-mo” em favor de um estado “eficaz”, a centralidade das “instituições” e o “combate àpobreza” (Banco, 1997a). Com esse discurso, parte do núcleo da mesma coalizão de

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poder que havia impulsionado a reestruturação capitalista neoliberal tentava, agora,definir a direção e os parâmetros do debate legítimo sobre as alternativas à crise doneoliberalismo (Weinberger, 2005 e 2003). Sem abandonar suas premissas teóricasfundamentais nem os interesses geopolíticos e de classe a que serve3, o BIRD cumpriuo papel de principal formulador do itinerário a ser seguido pelos países periféricos.

Sistematizada pelo BIRD no triênio 1996-1998, a reciclagem do projetoneoliberal para a América Latina e o Caribe estabeleceu como prioridade aimplementação de três ações estratégicas4.

A primeira era a “reforma do Estado”, entendida, resumidamente, como a com-binação de dez medidas: 1) blindagem das agências estatais responsáveis pela con-dução da política econômica contra qualquer tipo de pressão ou controle demo-cráticos; 2) quebra dos direitos dos trabalhadores do setor público; 3) enxugamentoe “racionalização gerencial” de todo funcionalismo público, por meio da adoçãode novas tecnologias e formas de controle e concorrência do processo de trabalhojá utilizadas no setor privado; 4) implementação acelerada da descentralizaçãoadministrativa (na prática, muito mais uma desconcentração seletiva de funçõesdo Executivo federal); 5) expansão de todo tipo de arranjos “público-privados”para a execução de políticas públicas; 6) reorganização do sistema escolar e do poderjudiciário, mediante descentralização administrativa, padrões de remuneração porprodutividade e adoção de formas de concorrência para captação de recursos; 7)finalização do ciclo de privatizações de empresas e bancos públicos; 8)reestruturação da seguridade social, aumentando o tempo de contribuição e abrindoespaço para fundos privados; 9) “modernização” do instrumental jurídico e re-pressivo necessário à segurança dos direitos de propriedade; 10) criação de marcosinstitucionais que garantissem a segurança e a alta rentabilidade dos fluxos de capitalfinanceiro, especialmente os de curto prazo.

A segunda ação estratégica era o “combate à pobreza”. Contra a noção de di-reitos universais de cidadania, as propostas do BIRD consistiam na criação de pro-gramas e projetos de alívio paliativo e focalizado da pobreza, preferencialmenteonde as tensões sociais pudessem de algum modo fugir ao controle político-re-pressivo do estado. Para tal, o BIRD passou a estimular o redesenho da políticasocial na direção de um novo tipo de filantropia, baseada na mobilização e articu-lação de empresas, organizações não-governamentais (ONGs), esferas subnacionaisde governo e associações locais ou comunitárias. Termos como “sociedade civil”,“participação”, “capital social”, “descentralização”, “autonomia” e “empoderamen-to” foram criados ou resignificados para legitimar o ajuste das políticas sociais aoprojeto neoliberal.

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A terceira ação estratégica consistia em avançar na liberalização dos mercadosde trabalho, terra e crédito – até então considerados pouco ou nada atingidos pela“primeira geração” de reformas –, por meio de mudanças na legislação vigente.

Para esse segundo estágio – ainda em curso –, não apenas o conteúdo, mas aforma de execução das “reformas” assume importância central, uma vez que, na ava-liação do BIRD, salvo no caso das ações para o “alívio da pobreza”, a natureza damatéria em disputa torna o processo necessariamente mais lento e complexo, comresultados perceptíveis apenas a médio e longo prazo e sujeito a retrocessos. Preven-do resistência de segmentos organizados (sobretudo da burocracia pública e do ma-gistério) com relativo poder de vocalização, o BIRD sugere diversas medidas especí-ficas para dividi-los e cooptá-los (Burki & Perry, 1998). Porém, a principal diretrizconsiste na construção prévia de um apoio político interno mais amplo às reformas.Para isso, além de criarem espaços para o “diálogo” e a “concertação” de interesses,os operadores locais deveriam dosar de maneira adequada a velocidade e oseqüenciamento tático de execução das reformas, a fim de ajustá-las às “especificidadesnacionais”. Afinal, “o líder eficiente dá ao público o senso de que a reforma pertenceao povo e não foi imposta de fora para dentro” (Banco, 1997a, p. 15).

Para amarrar ainda mais os governos da região à execução desse receituário, oBanco Mundial (1997a), além de chancelar as políticas do FMI e as decisões daOMC, propôs a realização de acordos internacionais pró-liberalização. Num pe-ríodo de ascensão da crítica ao neoliberalismo, essa “contratualização” serviria paraaumentar os “custos políticos” a ser enfrentados por governos que decidissem –ou fossem levados a – trilhar uma rota alternativa de desenvolvimento. Assim,sob a bandeira da “governança” (governance), o direito público internacional de-veria legalizar formas “neocoloniais” de exploração e dominação.

O arcabouço teórico dessa reciclagem é a “Nova Economia Institucional”, ramode conhecimento que ambiciona construir uma teoria sobre a formação e evolu-ção das “instituições”5 compatível com o pensamento neoclássico (Medeiros, 2001).A adoção dessa perspectiva analítica permitiu ao BIRD aceitar a introdução dadimensão política na promoção da “economia de mercado”, desde que reduzida auma questão técnica. Assim, a retórica sobre as “instituições” restringiu-se a umadiscussão basicamente instrumental, cujo fim – a promoção da liberalização eco-nômica – aparece como algo dado (Vilas, 2001 e 2000). Do mesmo modo, asrelações de poder que impõem e projetam tal fim são naturalizadas; portanto, aceitascomo tais.

Não é difícil perceber qual o sentido geral dessas diretrizes: converter o Estadonuma agência mais “funcional” à globalização financeira, neutralizar tensões sociais

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emergentes, potencializar e institucionalizar a ofensiva do capital contra o traba-lho, ajustar e subordinar as políticas sociais ao novo regime de acumulação e, porfim, aprofundar a liberalização das economias domésticas. A expectativa dos seto-res dominantes era a de que, dessa maneira, o gigantesco processo de reconfiguraçãoda riqueza e do poder impulsionado pelas contra-reformas neoliberais se consoli-daria como um traço permanente das sociedades contemporâneas (Edwards, 1997,p. 386).

Foi dito que um dos componentes da agenda de reformas de “segunda gera-ção” do BIRD é a liberalização dos mercados de terra. De fato, ao longo dos anos1990, o BIRD gradativamente retomou e atualizou a sua agenda agrária,secundarizada na década anterior pela prioridade dada aos programas de ajusteestrutural e à renegociação da dívida externa dos países latino-americanos. Comesse novo movimento, o BIRD pretendia adequá-la à agenda macroeconômica epolítica então em curso.

Nesse âmbito, a ação do BIRD passou a se dar em dois eixos complementares(Banco Mundial, 2002, 2002a e 1997). Por um lado, o estímulo à mercantilizaçãototal do acesso à terra rural, a ser viabilizada por mudanças institucionais e legais,com o objetivo de elevar a produtividade da terra, favorecer o livre fluxo de forçade trabalho no campo, atrair o capital privado para a economia rural e potencializara integração subordinada de parcelas específicas do campesinato pobre ao regimede acumulação comandado pela burguesia agroindustrial-financeira. Por outrolado, a defesa de um rol de programas “sociais” no meio rural, a fim de aliviar apobreza de maneira focalizada, especialmente em países ou regiões onde as ten-sões no campo possam ameaçar ou comprometer a “governabilidade” das “demo-cracias de mercado”, conforme a linguagem adotada pelo governo Clinton.

A partir da segunda metade dos anos 1990, a escala e a rapidez da ação doBIRD nessa direção aumentaram sensivelmente. O levantamento feito por Suárez(2005) mostra que, entre 1990 e 1994, o BIRD aprovou apenas 3 projetos cujocomponente principal era uma ou mais linhas de ação de sua política agrária. Jáentre 1995 e 1999 foram aprovados 19 projetos, totalizando US$ 700 milhões.Nos quatro anos seguintes foram aprovados 25 projetos, totalizando US$ 1 bi-lhão. Das 45 operações de empréstimo que o BIRD realizou em 32 países entre1990 e 2005, 33,3% foram para a América Latina e Caribe, 26,6% para o LesteEuropeu e a Ásia Central, 24,4% para o leste da Ásia e região do Pacífico, 13,4%para a África e Oriente Médio e, finalmente, 2,2% para o Sul da Ásia.

Junto com o aumento na concessão de empréstimos, o BIRD passou a realizaroutros três movimentos, sobretudo após o ano 2000. Primeiro, vem publicando

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um conjunto de documentos que estabelecem uma base teórica sistemática e su-postamente universal para a formulação de políticas agrárias (Banco, 2004 e 2003;De Ferranti et al., 2005). Segundo, vem articulando o apoio político e financeirode agências bilaterais e outros organismos internacionais à sua agenda rural (Ban-co, 2004a)6. Terceiro, vem promovendo em diversos países (p.ex., Brasil, Guatemalae Colômbia) seminários e oficinas para um público rigorosamente selecionado depesquisadores, lideranças sociais e sindicais, gestores públicos e ONGs, com oobjetivo não só de influenciar, mas de efetivamente dirigir a definição e a execu-ção da política agrária a ser reclamada legitimamente por parte da “sociedade ci-vil” e praticada pelos governos nacionais.

O que levou o BIRD a assumir uma posição de protagonismo, frente às de-mais organizações internacionais, na elaboração e na implementação de uma agendade políticas agrárias ao longo da década de 1990? Afinal, por que o BIRD passoua enfatizar a necessidade de desconcentração da propriedade da terra, num con-texto em que o tema “reforma agrária” parecia coisa de um passado já superado?Uma explicação possível é a de que o BIRD se viu diante de um conjunto especí-fico de oportunidades e necessidades.

Em primeiro lugar, a oportunidade aberta pelo fim da Guerra Fria de tratar demaneira aparentemente “desideologizada” os problemas associados à concentra-ção fundiária (Deininger & Binswanger, 1999, p. 248). Segundo essa formula-ção, diferentemente dos anos 1960 ou 1970, quando a disputa pela realização dereformas agrárias evocava, em maior ou menor grau, algum ideal considerado “re-volucionário”, a derrocada do bloco soviético teria inaugurado uma nova fase, naqual essas questões poderiam ser tratadas de modo “pragmático” e “inovador” tantopor agências multilaterais como por governos nacionais. Ou seja, o impacto ideo-lógico da derrocada do “socialismo real” teria desarticulado a ligação entre a ban-deira da reforma agrária e referências mais abrangentes, de tal maneira que uma“nova era de políticas de reforma agrária” estaria se iniciando (De Janvry &Sadoulet, 2001, pp. 21-2). Caberia ao BIRD, então, aproveitar essa oportunida-de, tratando de maneira aparentemente “técnica” e “despolitizada” as tensões sociaisno meio rural provocadas ou agravadas pelas políticas neoliberais.

Por outro lado, o próprio processo de liberalização parecia criar novas oportu-nidades para uma ação mais proeminente do BIRD no meio rural. De acordocom o seu staff, a combinação de estabilidade macroeconômica, abertura comer-cial, desregulamentação das economias domésticas e, de maneira geral, o desmontede políticas “desenvolvimentistas” (protecionismo, crédito subsidiado, isençõesfiscais, etc.), estariam eliminando o uso da propriedade da terra como “reserva de

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valor”. Nesse novo ambiente econômico – “aberto” e “orientado para fora” –, se-ria possível romper com a experiência passada e implementar uma reforma agrá-ria que não distorcesse preços, nem criasse regulações que impedissem a livre tran-sação mercantil de terras. Enfim, uma reforma agrária “menos prejudicial aofuncionamento dos mercados” (Deininger & Binswanger, 1999, p. 267).

Em segundo lugar, havia a necessidade – que ainda persiste – de estimular acriação de mecanismos que prevenissem ou equacionassem rapidamente os con-flitos agrários, nas diversas configurações em que se apresentam pelo mundo. Istoporque, para o BIRD, é preciso neutralizar o potencial disruptivo, no plano dapolítica e da economia, que uma eventual escalada de conflitos agrários contém(Binswanger & Deininger, 1995, p. 48). No seu último relatório sobre o tema, oBanco (2003, pp. 157-164) dá atenção especial à construção de mecanismos vol-tados para evitar ou reduzir o impacto das disputas sobre a posse e a propriedadeda terra rural, mostrando não só que muitos dos embates políticos mais impor-tantes vividos por inúmeras sociedades tiveram raízes em lutas por terra (p.ex.,Guatemala, Colômbia, El Salvador), como também que a resolução de conflitosagrários foi fundamental para viabilizar os acordos de paz que recentemente puse-ram fim a longas guerras civis (p.ex., Moçambique, Etiópia, Camboja, Nicará-gua). Recomenda que os Estados evitem o acúmulo de conflitos de “baixa inten-sidade”, pois não apenas a performance do setor agropecuário e da economia comoum todo poderia ficar comprometida pelo sucessivo desinvestimento provocadopela “sensação de insegurança”, como também a escalada potencial de tensõespoderia levar à quebra de legitimidade de governos e Estados. O relatório ratificaa preocupação com a estabilidade política e a segurança do capital, decisiva paraque o BIRD retomasse o tema da reforma agrária nos anos 1990 e criasse a pro-posta de “reforma agrária de mercado”.

Em terceiro lugar, o BIRD foi pressionado pela necessidade de estabelecer ostermos legítimos de como lidar com a pobreza rural nos países periféricos, agrava-da pela implementação das políticas de ajuste estrutural (SAPRIN, 2002). Ao longodos anos 1990, um conjunto de organismos internacionais passou a enfatizar o“combate à pobreza” como questão social central, inclusive mudando do enfoquecentrado da transferência de renda para outro, centrado na geração de renda e namudança de posição na esfera produtiva (De Janvry & Sadoulet, 2002, p. 3). OBanco Mundial (1990 e 2001) acompanhou e influiu nesse movimento, passan-do a reconhecer a necessidade de criação de mecanismos de acesso à terra comoforma de aumentar as “oportunidades” para os “pobres rurais” e reduzir a sua“vulnerabilidade”. Assim, a distribuição de “ativos” (terra, por exemplo) – e a sub-

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seqüente inserção mercantil dos agricultores – passou a ser defendida como uminstrumento de “alívio da pobreza” mais barato, eficiente e afinado ideologica-mente com políticas pró-mercado.

Em quarto lugar, o BIRD teve a necessidade de acelerar e orientar a transiçãocapitalista das sociedades do antigo bloco soviético. Como revelam diversos do-cumentos (Banco, 1996 e 1997), a descoletivização e a desestatização da matrizde propriedade da terra ocuparam lugar central na estratégia do BIRD para aque-les países ao longo dos anos 1990, inclusive figurando como condicionalidadesem empréstimos de ajuste estrutural concedidos em conjunto com o FMI.

Por fim, o BIRD teve necessidade de melhorar a performance dos projetosligados ao desenvolvimento rural, depois do fracasso – comprovado pelo próprioBIRD (1992 e 1997) – da grande maioria das iniciativas feitas nessa área entre osanos 1970 e 1980, normalmente em oposição a propostas de reforma agrária. Decerto modo, tal fracasso desorientou o cerne da formulação do Banco para o setorrural, razão pela qual ele vinha executando desde meados dos anos 1980 apenasações pontuais, desarticuladas de qualquer enfoque mais abrangente, como havianos anos 1970 (Binswanger, 1995). A construção de um enfoque mais abrangenteseria efetuada com base no “neo-institucionalismo”, configurando uma aborda-gem centrada inteiramente na promoção do “livre mercado” de terras.

2. A política agrária do Banco Mundial: objetivos, diretrizes e linhas de ação

A retomada da política agrária pelo BIRD acompanhou a agenda mais ampla dereformas estruturais de “segunda geração”. Assim, embora seja uma política essencial-mente “pró-mercado de terras”, não se sustenta pela dualidade – de todo modo falsa– entre “Estado” e “mercado”, mas sim pela construção do que seria o marcoinstitucional adequado ao “funcionamento eficiente dos mercados”. Nesta lógica,para o BIRD, caberia aos Estados: a) consolidar as reformas macroeconômicas eajustar o setor rural às novas condições vigentes, avançando na implementação dasreformas que estabeleceriam a conexão entre a agenda macroeconômica e a agendamicroeconômica e setorial de “desenvolvimento rural”; b) definir o marco normativomais amplo – as “regras do jogo” – para as relações econômicas; c) eliminar a “rigi-dez” e as “distorções” provocadas pelas políticas econômica e setorial, a fim de esta-belecer um “campo de jogo nivelado” para a “livre concorrência” entre os atores.Este é o carro-chefe do receituário do BIRD para a economia rural. A política agrá-ria a ele se vincula de maneira subordinada. De fato, existe uma cadeia de determi-

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nação que parte do macro e chega ao micro. Isto ocorre da seguinte maneira: a agen-da de reformas de “segunda geração” (nível 1) se traduz numa agenda de “desenvol-vimento rural” (nível 2), a partir da qual se desenha um rol de propostas para oâmbito agrário/fundiário propriamente dito (nível 3).

São quatro os objetivos perseguidos pela política agrária do BIRD: a) comoprioridade máxima, estimular relações de arrendamento; b) potencializar as rela-ções de compra e venda de terras; c) acelerar e aprofundar a privatização de direi-tos de propriedade em fazendas coletivas ou estatais; d) acelerar e profundar aprivatização de terras públicas e comunais. Segundo o Banco Mundial (2004, 2003,2002 e 1997), as quatro ações dinamizariam de tal maneira os mercados fundiáriosque o livre fluxo de transações (arrendamento e compra/venda de terras) permiti-ria a substituição rápida de produtores “menos eficientes” por “mais eficientes”,favorecendo uma distribuição mais equilibrada da propriedade da terra. Isto, porsua vez, contribuiria para atrair capital privado para a economia rural, possibili-tando a emergência ou o fortalecimento de mercados financeiros rurais.

Para viabilizar os objetivos de sua agenda agrária, o BIRD vem promovendo,desde meados dos 1990, duas grandes iniciativas: de um lado, a constituição deum arranjo institucional de administração de terras; de outro, a implementação deum modelo de acesso à terra alternativo à reforma agrária.

A primeira iniciativa busca traduzir a agenda mais ampla de “reforma do esta-do” para o âmbito da gestão fundiária. Aclamada como “novo paradigma”(Melmed-Sanjak & Lavadenz, 2002), a administração de terras consiste namunicipalização dos instrumentos de política agrária e na criação de toda sorte demecanismos de gestão “público-privados” locais. Na prática, isto exige mudançassimultâneas nos âmbitos político-administrativo, jurídico e tributário (Banco, 2004e 2003).

No plano político-administrativo, o BIRD advoga a montagem de uma “es-trutura institucional” que seja capaz de: a) garantir a segurança dos direitos depropriedade e uso da terra, a fim de preservar e estimular o fluxo de capital priva-do – inclusive estrangeiro – para a economia rural; b) formalizar os mercadosfundiários, por meio, sobretudo, de programas de titulação privada; c) unificarinformações relativas à distribuição e à situação legal dos estabelecimentos rurais;d) prover, de maneira rápida, informações necessárias às transações no mercadofundiário (preços, qualidade da terra, oferta e demanda, etc.); e) baixar “custos detransação”, a partir da informatização e da simplificação burocrática do registro edo cadastro de terras; f ) dirimir ou controlar rapidamente tensões no campo, pormeio de instâncias e órgãos locais, impedindo que o acúmulo de conflitos de “baixa

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intensidade” se amplie e possa provocar efeitos politicamente disruptivos. Em talestrutura, as funções de formulação, decisão e coordenação ficariam sob estritocontrole federal, mas sua execução seria descentralizada e articulada em arranjosenvolvendo agências estatais, associações voluntárias, ONGs e “setor privado” emgeral (Deininger & Feder, 2002; Banco, 2003).

No âmbito jurídico, o BIRD preconiza a revisão imediata da legislação agráriavigente, especialmente naqueles países que experimentaram processos de reformaagrária, uma vez que tal quadro legal, ao impedir ou dificultar o arrendamento ea compra/venda de terras, obstaculizaria o “livre funcionamento” do mercadofundiário. O chamado “setor reformado” seria o primeiro território cujas terrasdeveriam ser transacionadas em mercados formais de arrendamento e compra/venda.

No âmbito tributário, o Banco (2003, p. 22) defende a municipalização datributação sobre a terra rural, com o objetivo de financiar a montagem de umaparato local de administração de terras, aumentar as finanças locais – e, com isso,contribuir para o movimento mais amplo de descentralização do Estado – e me-lhorar o uso produtivo da terra. Por outro lado, embora insista que propostas detributação progressiva têm pouca ou nenhuma viabilidade política (Deininger &Feder, 2002: p. 34), faz questão de ressaltar que elas podem configurar uma espé-cie de “expropriação indireta”, o que, na sua visão, não seria recomendável (Ban-co, 2005, p. 104).

As mudanças nos três âmbitos acima mencionados conformariam esse novoaparato institucional capaz de expandir e acelerar as relações de arrendamento ecompra/venda de terras rurais.

A segunda grande iniciativa do BIRD é o modelo de reforma agrária de merca-do, objeto central deste artigo, discutido em maior detalhe daqui para frente.

3. O modelo de reforma agrária de mercado

O modelo de reforma agrária de mercado (MRAM) foi elaborado com o ob-jetivo de substituir a reforma agrária redistributiva, baseada no instrumento dadesapropriação de propriedades rurais que não cumprem a sua função social, porrelações de compra e venda de terras. Posto em prática sob diferentes formatos,teve início em 1994 na Colômbia e, em três anos, já operava na África do Sul, noBrasil e na Guatemala. Uma década depois da sua estréia, países tão distintos comoHonduras, México, Malaui, El Salvador e Filipinas já conheciam experiências a

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ele associadas. De fato, uma onda de políticas de acesso à terra de novo tipo haviase estabelecido internacionalmente.

Para legitimar o seu modelo, o BIRD realizou uma dupla operação. De umlado, procedeu a uma crítica radical ao que ele mesmo denominou de reformaagrária “conduzida pelo Estado”, baseada no instrumento da desapropriação. Deoutro, trabalhou para que o MRAM fosse aceito política e conceitualmente comouma nova modalidade de reforma agrária redistributiva7, depurada de todos ossupostos “defeitos” das experiências do passado e, claro, coerente com os impera-tivos do livre mercado. Com esse duplo movimento, o BIRD ao mesmo tempocontinuou a reconhecer a necessidade da reforma agrária para desconcentrar apropriedade da terra em sociedades altamente desiguais, mas passou a negar a atua-lidade da ação desapropriacionista e redistributiva do Estado. Dessa maneira, oMRAM foi entronizado como a ação fundiária adequada aos países periféricosmarcados por graves problemas agrários e fortes tensões sociais no campo,agudizadas pelos efeitos socialmente regressivos provocados pelas políticasneoliberais.

O pressuposto do MRAM é a falência histórica do que os economistas do BIRDdenominaram de reforma agrária “conduzida pelo Estado”, modelo “desapropria-cionista” ou, simplesmente, modelo “tradicional” de reforma agrária8. Ou seja, oMRAM foi criado para substituir algo que teria deixado de ser viável na atual fasedo capitalismo, porque, segundo o BIRD: a) é politicamente conflituoso e as con-dições para a sua execução não são replicáveis em condições democráticas “nor-mais”, uma vez que contém uma dimensão “confiscatória” (quando a indenizaçãoaos proprietários inexiste ou é fixada abaixo dos preços de mercado) contra a qual,inevitavelmente, insurgem-se os grandes proprietários de terra; b) é insustentávelfinanceiramente, quando compensa os antigos proprietários a preços de mercado,que são distorcidos por políticas econômicas e setoriais que elevam o preço daterra acima da rentabilidade gerada pela atividade agrícola; c) é orientado para“substituir os mercados”, e não para dinamizá-los, resultando num complexo derestrições legais que teriam solapado o funcionamento dos mercados de arrenda-mento e de compra e venda de terras, dificultado o acesso à terra por potenciaisdemandantes mais eficientes e alimentado burocracias centrais encapsuladas embusca de sua auto-reprodução e, freqüentemente, corruptas; d) por ser baseado nadesapropriação, carrega um componente coercitivo que enseja contestações judi-ciais que não apenas elevam a indenização dos antigos proprietários acima dospreços praticados no mercado, mas também retardam o processo de assentamen-to e reforma, prejudicando os potenciais beneficiários; e) em muitos casos consti-

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tui uma doação do Estado, quando os beneficiários não pagam pela terra recebi-da; f ) é pautado pela lógica do conflito, uma vez que só são desapropriadas pro-priedades rurais objeto de ocupações de terra ou tensões sociais; g) quando istonão ocorre, funciona como um modelo dirigido pela oferta, cabendo ao Estadoselecionar a terra ou os beneficiários independentemente da demanda real; histo-ricamente, esse processo de seleção não foi comandado por critérios técnicos oude necessidade, mas sim por ingerências políticas, o que gerou ineficiência econô-mica, baixa competitividade e não necessariamente focalizou a parcela mais pobredo campesinato; h) não resolveu o problema da falta de acesso à terra para umamplo contingente de trabalhadores rurais, situação que estaria na origem de ocu-pações de terra, dos conflitos agrários e da violência rural; i) estabelece a aquisiçãoda terra sem um planejamento prévio das atividades produtivas a serem realizadasposteriormente; j) é um modelo centralizado, estatista e burocrático, quedesestimula a participação social, a transparência e o “empoderamento” dosbeneficiários, e não cria as condições adequadas para as necessárias sinergias entreos setores público e privado; também não permite a fluidez dos mercados e dasinformações necessária à orientação dos agentes econômicos, nem contempla aheterogeneidade socioeconômica e cultural do universo rural; l) de modo geral,restringiu-se tão-somente à distribuição de terra, dando pouca ênfase ao desen-volvimento produtivo dos assentados ou do setor reformado; m) não oferece “op-ções de saída” para os produtores agrícolas ineficientes, seja porque suaimplementação foi acompanhada por medidas restritivas ao funcionamento dosmercados de arrendamento e compra e venda, seja porque não incorporou a ques-tão do trabalho não-agrícola; n) é indissociável do modelo nacional-desenvolvi-mentista, que penaliza os pequenos agricultores e o setor agrícola, protege seg-mentos economicamente ineficientes e não responde aos imperativos daliberalização comercial; o) não reduziu ou eliminou a pobreza rural, nem promo-veu o desenvolvimento rural.

O MRAM é, portanto, um constructo inteiramente baseado na crítica e nadesqualificação de outro tipo de ação fundiária, considerada inviável e anacrô-nica na fase atual do capitalismo. Segundo os teóricos do BIRD, a principaldiferença entre ambos reside na sua natureza: enquanto o modelo “tradicional”é visto como “coercitivo” e “discricionário”, posto que baseado na desapropria-ção, o modelo de mercado é exaltado como “voluntário” e “negociado” (Burki& Perry, 1997, p. 95).

Em essência, o MRAM nada mais é do que uma mera relação de compra evenda de terras entre agentes privados financiada pelo Estado, que fornece um

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subsídio variável para investimentos em infra-estrutura socioprodutiva econtratação de serviços privados de assistência técnica. Quanto menor for o preçopago pela terra (empréstimo), maior será a quantia a fundo perdido disponívelpara investimento, e vice-versa. Os vendedores são pagos previamente em dinhei-ro a preço de mercado, enquanto os compradores assumem integralmente (ou nasua maior parte) os custos da aquisição da terra e os custos de transação. Os com-pradores podem pleitear o acesso ao financiamento individualmente e/ou via as-sociações comunitárias, dependendo do formato dos programas.

De acordo com os teóricos do Banco Mundial9, o MRAM é melhor do que achamada reforma agrária “conduzida pelo Estado” pelas seguintes razões: a) custamenos, uma vez que a terra é adquirida por barganha mercantil entre comprado-res e vendedores voluntários, sobre a qual não cabem disputas judiciais; b) viabilizao acesso à terra por meio de uma operação de mercado entre agentes privados,pela qual o agente financeiro é ressarcido pelo empréstimo concedido; c) tem ca-ráter voluntário, descentralizado e “dirigido pela demanda”, o que favorece a par-ticipação e a autonomia dos beneficiários, estimula ações criativas para a supera-ção de dificuldades e responde melhor às necessidades locais; d) é viávelpoliticamente, pois transações mercantis voluntárias não penalizam os proprietá-rios de terra; e) estimula a cooperação, na medida em que a aquisição de terrasocorre através de associações comunitárias; f ) incentiva o desenvolvimento pro-dutivo dos camponeses, porque pressupõe o planejamento das atividades antes daaquisição da terra, fornece recursos a fundo perdido para tal fim e estimula oassociativismo; g) estimula a criação e/ou dinamização dos mercados de terra, re-quisito básico para a melhoria da eficiência econômica; h) contribui para aformalização dos direitos de propriedade, na medida em que, por um lado, sótransaciona imóveis legalmente titulados e, por outro, dá origem a novos segmen-tos de proprietários; i) estimula o desenvolvimento dos mercados financeiros ru-rais, na medida em que os novos proprietários, com títulos seguros, passam atransacionar nos mercados de terra e a demandar crédito; j) oferece opções de saí-da para os agricultores “menos eficientes”, permitindo que outros (“mais eficien-tes”) possam ter acesso à terra; l) permite a realização simultânea de atividadesagrícolas e não-agrícolas, uma vez que são os próprios agricultores que decidemque tipo de investimento e atividade querem desenvolver; m) é descentralizado epouco burocrático, o que acelera o trâmite administrativo e reduz as condiçõespara a corrupção praticada pela burocracia pública; o) é coerente com a liberalizaçãodas economias nacionais, que pressupõe a fluidez das relações mercantis em todosos setores; p) vincula-se ao processo mais abrangente de reformas estruturais de

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“segunda geração”, direcionadas a consolidar as políticas de ajuste por meio damudança institucional.

Para os economistas do BIRD, a implementação do MRAM pressupõe o au-mento da oferta mercantil de terras, o que, por sua vez, dependeria de uma sériede pré-condições e ações complementares. Seis delas são consideradas indispensá-veis: a) a constituição de um “campo de jogo nivelado”, i.e., a eliminação de sub-sídios, isenções fiscais e tarifas de proteção que privilegiam o segmento de grandesproprietários, os quais, junto com a inflação, contribuem para elevar o preço daterra acima da sua rentabilidade agrícola; b) o fim das restrições legais que impe-dem o “livre funcionamento” dos mercados de compra/venda e arrendamento; c)algum tipo de tributação (não necessariamente progressiva) sobre a terra, a fim dedesestimular a sua subutilização e a especulação fundiária; d) a clareza legal dosdireitos de propriedade e uso da terra, sobretudo por meio de sua formalização eindividualização (titulação privada); e) a criação ou a melhoria dos sistemas deinformação de mercado, a fim de orientar os agentes econômicos sobre preços ecaracterísticas dos imóveis; f ) a redução dos custos de transação, por meio demedidas de simplificação administrativa e jurídica. Seguindo-se todos esses pas-sos, estaria aberta a oportunidade histórica para implementar uma reforma agrá-ria “amistosa com o mercado”.

Articulado à realização das reformas de “segunda geração”, esse conjunto deações criaria um novo ambiente econômico – “aberto” e “orientado para fora” –,no qual diminuiriam as “distorções” que elevam o preço da terra acima da renta-bilidade agrícola e restringem a sua oferta mercantil.

A versão original do MRAM foi elaborada ainda na primeira metade dosanos 1990 para ser aplicada imediatamente na África do Sul pós-apartheid (Aiyaret al., 1995 e 1995a; Christiansen & van den Brink, 1994). Para o BIRD, erapreciso naquele momento (1994-1995) enfrentar a “crise” do setor agropecuárionacional, entendida como a combinação de uma dupla pressão: de um lado, oendividamento de parte dos grandes produtores rurais e pecuaristas; de outro, oaumento potencial da luta por terra, reprimida durante décadas (van Zyl et al.,1995).

Caberia ao MRAM atuar na administração da crise de endividamento de umsegmento específico do setor agropecuário capitalista e, ao mesmo tempo, responderà pressão social. A condição para implementá-lo consistiria no encurtamento dadistância entre o preço da terra e sua rentabilidade agrícola, em função da reduçãoda inflação e da retirada de subsídios e tarifas protecionistas concedidos à grandeagricultura (van Schalkwyk & van Zyl, 1995, p. 204).

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Para os teóricos do BIRD, a realização do MRAM só seria possível se o gover-no sul-africano administrasse a crise de endividamento do patronato rural demaneira seletiva, evitando operações de “socorro geral” que beneficiassem,indiscriminadamente, a todos os devedores. Segundo Binswanger & van Zyl(1995), o esquema seria basicamente o seguinte: a) o segmento “consolidado”seguiria incólume a mudanças ou a qualquer medida de assistência financeira, umavez que já estaria “ajustado” à dinâmica da liberalização econômica; b) o segmen-to considerado “viável” sob as novas condições macroeconômicas, porém altamenteendividado, poderia receber assistência financeira, desde que promovesse sua pró-pria reestruturação produtiva; uma parte dos ativos fundiários sob seu controleseriam ofertados no mercado e o setor bancário ficaria responsável tanto pela de-cisão sobre quais produtores receberiam assistência financeira, como pela revisãodas dívidas desse segmento; c) o segmento considerado “inviável” sob as novascondições deixaria o setor agropecuário mediante “bônus de saída” (p.ex., emprés-timos subsidiados para abertura de novos negócios) e ofertaria as terras sob suapropriedade; d) o setor bancário poderia auxiliar no aumento da oferta de terras,à medida que executasse as dívidas dos segmentos “inviáveis” e participasse dosaneamento financeiro dos segmentos “viáveis” sob reestruturação; f ) o Estadopoderia incrementar a oferta de terras vendendo propriedades públicas; g) pelolado da demanda, conceder-se-iam empréstimos e doações para a compra de terraa trabalhadores rurais pobres; inicialmente, o crédito para a compra da terra e osrecursos a fundo perdido para o desenvolvimento produtivo viriam do governo;com o avanço do processo, o setor privado (em especial, os bancos) seria estimu-lado a também financiar transações patrimoniais.

Estimava-se que o MRAM provocaria impactos estruturais: por influência doBIRD, a meta fixada pelo governo era redistribuir 30% das terras agrícolas entre1994 e 1999, o que equivale a quase 30 milhões de hectares (Deininger, 2001, p.93). Associado a outras ações, como a liberalização das relações de arrendamento(van Zyl, 1995), o MRAM daria origem a uma “nova agricultura”, condizentecom a abertura radical da economia doméstica. Ao converter o mercado comoprincipal mecanismo de alocação de terras (van Schalkwyk & van Zyl, 1995, p.205), o MRAM poderia ajudar a administrar a crise de endividamento de umaparte do setor agropecuário, aliviar as tensões sociais geradas ou agravadas pelaliberalização comercial e favorecer a criação de milhares de empregos no meio rural(Binswanger & van Zyl, 1995, p. 254).

É verdade que entre 1994 e 1996-7 o partido no governo – o CongressoNacional Africano, liderado por Nelson Mandela – abandonou o seu programa

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nacionalista e reformista em prol da agenda neoliberal (Tilley, 2002; Lahiff,2006). Porém, esta versão do MRAM jamais se materializou na África do Sul,nem em qualquer outro país. Sem dúvida, há uma distância entre as propostas doBIRD e o que os governos podem executar, condicionada pela estruturasocioeconômica e pela correlação de forças. Mas, neste caso específico, deve-senotar o caráter altamente idealizado da proposta do BIRD, baseada em pelomenos dois pressupostos equivocados: a crença de que os agentes sociais orien-tam suas ações por razões “puramente econômicas” e a crença de que, no capi-talismo, a especulação fundiária é conjuntural, produto de “distorções políti-cas” e “falhas de mercado”, e não estrutural. Assim, acreditou-se que haveria umaumento substancial da oferta mercantil de terras como resposta imediata àconvergência entre queda relativa da inflação, abertura comercial e redução desubsídios e isenções fiscais a grandes proprietários “ineficientes”. Não se levoudevidamente em conta o que a propriedade da terra rural significa em termosde ganhos financeiros e vantagens econômicas de todo tipo, nem o seu peso naconfiguração das relações de poder entre classes e grupos sociais, em sociedadesaltamente desiguais.

Ao longo da segunda metade dos anos 90, a versão original foi dando lugar aoutra, mais circunscrita ao tema do alívio da pobreza e das políticas agrárias, nobojo das quais o MRAM seria apenas mais uma opção, e não a ação principal (Burki& Perry, 1997, p. 97). As razões que levaram ao abandono da proposta originalem favor de um enfoque mais pragmático e menos ambicioso jamais foram reve-ladas. No entanto, hoje parece claro que qualquer explicação desse processo deveconsiderar – sem prejuízo de quaisquer outros fatores – as contradições que osprogramas orientados pelo MRAM passaram a enfrentar em seqüência na Colôm-bia, na África do Sul, no Brasil e na Guatemala, bem como a oposição políticaque sofreram por parte de organizações camponesas.

Nessa segunda versão (Burki & Perry, 1997; Banco, 2002 e 2003), realmenteexistente, o discurso em favor do MRAM eliminou por completo o tema da “ad-ministração da crise de endividamento do setor comercial”, apesar do mesmo nãoser um fenômeno exclusivamente sul-africano. Ou seja, a dinâmica dos progra-mas orientados pelo MRAM foi desvinculada de qualquer consideração sobre odesempenho dos grandes e médios capitalistas estabelecidos no setor agropecuário.Conseqüentemente, o MRAM deixou de figurar como o instrumento central deuma estratégia de mudança da agricultura nacional, razão pela qual desapareceu aexpectativa sobre os possíveis impactos estruturais que a sua execução poderiaprovocar. Por outro lado, ganhou ênfase a associação direta do MRAM com o

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tema do alívio da pobreza rural, de tal maneira que os programas foram inseridosno rol de políticas paliativas aos efeitos socialmente regressivos provocados pelascontra-reformas neoliberais. Com esse deslocamento, o discurso pró-MRAM dei-xou de almejar uma ampla cobertura social, restringindo-se a segmentos específi-cos de trabalhadores rurais.

Entre ambas as versões há em comum pelo menos cinco elementos principais:a) a centralidade da liberalização dos mercados de compra/venda e arrendamentocomo forma de distribuição de terras dos produtores menos eficientes para os maiseficientes; b) a crítica sistemática à reforma agrária “desapropriacionista”, consi-derada inviável, indesejável e anacrônica; c) a equivalência do MRAM à reformaagrária redistributiva, como se fossem sinônimos; d) a ênfase na necessidade deavanço e aprofundamento das reformas estruturais de “segunda geração”; e) acentralidade absoluta do conceito de compradores e vendedores voluntários/inte-ressados (willing sellers/willing buyers), que dá ao MRAM a característica ineludívelde mera transação patrimonial. Mesmo reduzido à condição de mais um instru-mento de alívio paliativo da pobreza rural, o discurso pró-MRAM insiste na suaviabilidade e replicabilidade.

A forma de implementação dos programas orientados pelo MRAM variousegundo as especificidades nacionais (base institucional-legal, correlação de for-ças, momento político, etc.). Seguindo a proposição de Borras Jr. (2003), pode-secomparar as experiências colombiana, brasileira e guatemalteca pelo grau de cor-respondência às diretrizes centrais do modelo.10

No grau máximo de correspondência, os governos dos três países, cada qual aseu modo: a) adotaram políticas de natureza voluntária e mercantil, método des-centralizado de execução e privatização da prestação de serviços; b) legitimaram aadoção dos programas orientados pelo MRAM a partir da crítica sistemática ao“modelo desapropriacionista”; c) adotaram, em algum momento, tetos de rendacomo critério para acesso ao financiamento, com o objetivo de focalizar os pro-gramas nos segmentos considerados extremamente pobres da população rural; d)estimularam o associativismo como critério de acesso aos programas; e) subordi-naram a política agrária ao receituário das reformas estruturais, ajustando-a aosimperativos do ajuste fiscal, da descentralização e da privatização, e rebaixaram oseu status, inserindo-a no rol de políticas paliativas de alívio da pobreza rural; f )no bojo da reforma neoliberal do estado, internalizaram o MRAM por meio dapromulgação de leis (Colômbia) e da criação de instrumentos permanentes depolítica pública (Brasil e Guatemala), modificando a configuração do aparato es-tatal responsável pelo tratamento dos problemas agrários.

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Num grau médio de correspondência, identifica-se que: a) o arrendamentodas terras adquiridas pelo MRAM foi legalmente proibido na Colômbia, mas nãonos demais países, embora apenas na Guatemala tais relações tenham sido de fatoestimuladas pelo governo central, ainda que tardiamente; b) no Brasil, pôde-seacessar financiamento individualmente e/ou por associações, dependendo do pro-grama; na Guatemala, ambas as formas foram aceitas; na Colômbia, apenas porintermédio de associações; c) somente Brasil e Guatemala adotaram arranjos fle-xíveis de empréstimos e doações, com percentuais variáveis conforme a operaçãode compra e o programa; na Colômbia, 70% do preço da terra eram subsidiados,mas nenhuma doação foi autorizada para investimentos produtivos.

Por fim, alguns componentes do MRAM sequer chegaram a se materializar.Em todos os três países não foram adotadas a tributação progressiva, nem a titulaçãosistemática. Tampouco foi criado um aparato descentralizado de informações demercado e registro de terras. Ou seja, a implementação dos mecanismos de apoioconsiderados necessários para o aumento da oferta de terras, a segurançainstitucional dos direitos de propriedade e, consequentemente, a clareza legal dosbens a serem transacionados no mercado, ficaram, basicamente, no nível das “re-comendações”. Por fim, também em nenhum país o MRAM foi inserido numaestratégia “ampla e efetiva” de redução da pobreza rural.

Todos os três países realizaram operações de empréstimo com o BIRD, embo-ra em proporções bastante distintas: para o Brasil, US$ 90 milhões em 1997 eEUR 218,2 milhões em 2001, com a possibilidade de um adicional até 2012 quetotalizaria um empréstimo de US$ 1 bilhão, com igual contrapartida nacional;para a Guatemala, US$ 77 milhões em 2000 para um projeto de dez anos; para aColômbia, US$ 50 milhões em 1996. Dos três países, o Brasil, de longe, é o quemais tomou empréstimos do BIRD para implementar programas dessa natureza.

4. Da teoria à prática: modus operandi e resultados do MRAM

Em que pese a dificuldade – maior ou menor, mas sempre comum – de se teracesso a dados atualizados sobre o andamento dos programas inspirados pelo MRAMnos três casos latino-americanos, já se dispõe de uma massa crítica suficiente parauma avaliação mais ampla e empiricamente fundamentada sobre o tema. É interes-sante notar que a ação de movimentos sociais tem sido crucial para aclarar algumasquestões, ao estimular o debate, promover pesquisas e articular ações concretas con-tra o MRAM. Além disso, a resistência ao avanço desse modelo não só retardou ou

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obrigou o BIRD e os gestores locais a promoverem modificações no seu formatooperacional, como também permitiu um aprofundamento da relação política entremovimentos sociais, organizações não-governamentais e pesquisadores.

Por outro lado, hoje está claro que a implementação do MRAM contou como apoio de uma gama variada de forças sociais, principalmente de organizaçõespatronais, mas também de entidades sindicais de representação de trabalhadoresrurais. Isto realça a existência de divergências sérias entre as diversas “forças popu-lares” no campo sobre a postura a ser adotada frente a projetos elaborados pororganismos financeiros internacionais, como o BIRD. Evidentemente, tais diver-gências remetem a desacordos mais profundos relacionados ao projeto político,ao método de ação e ao diagnóstico sobre as causas dos problemas que afligem ostrabalhadores rurais e o campesinato. Como não poderia ser diferente, as propos-tas também diferem de maneira significativa.

A crítica aqui empreendida abrange três pontos: o antagonismo do MRAMà qualquer modalidade de reforma agrária redistributiva, a inconsistência dacrítica do BIRD à chamada reforma agrária “conduzida pelo Estado” e os resul-tados concretos da implementação do MRAM na Colômbia, no Brasil e naGuatemala.

A primeira crítica parte da seguinte questão: é correto considerar o MRAMcomo uma modalidade de reforma agrária redistributiva, como tenta fazer crer oBIRD? Definitivamente não, pois o MRAM tem como princípio a compra vo-luntária de terra entre agentes privados mediada e financiada pelo Estado, acresci-da de uma parcela variável de subsídio para investimentos socioprodutivos. Já areforma agrária redistributiva consiste numa ação do Estado que, num curto es-paço de tempo, redistribui para o campesinato pobre uma quantidade significati-va de terras privadas monopolizadas por grandes proprietários e grupos econômi-cos (Barraclough, 2001; El-Ghonemy, 2001). Seu objetivo é democratizar aestrutura agrária de um país e promover o desenvolvimento nacional, o que pres-supõe transformar as relações de poder econômico e político responsáveis pelareprodução da concentração fundiária. Enquanto política redistributiva, implica,antes de tudo, a desapropriação de terras privadas que não cumprem a sua funçãosocial, mediante indenização pelo valor produtivo da terra, abaixo do preço demercado. O pagamento das indenizações em títulos públicos resgatáveis a longoprazo foi a maneira historicamente encontrada para assegurar que o processo pu-desse ganhar escala, uma vez que o pagamento em dinheiro e a preço de mercadoexige uma mobilização de recursos numa magnitude impraticável para os cofrespúblicos de qualquer país.

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Além disso, precisa vir acompanhada não só de um conjunto de ações na área deinfra-estrutura, educação, saúde e transporte, mas também de uma política agrícolaque proteja e favoreça o campesinato, baseada na concessão de crédito subsidiado,na assistência técnica pública, no apoio à construção de agroindústrias e na garantiade acesso a mercados consumidores. Isto sem mencionar toda discussão sobre sobe-rania alimentar, controle popular de sementes e agroecologia, que ganha corpo emresposta a dois processos em curso organicamente ligados: de um lado, a privatizaçãocrescente dos recursos naturais (terra e água, sobretudo); de outro, a concentração,centralização e financeirização do capital no sistema agroalimentar.

Em outras palavras, a reforma agrária tem como objetivo central redistribuirterra e garantir as condições de reprodução social do campesinato, atacando asrelações de poder na sociedade que privilegiam os grandes proprietários, que po-dem ser grandes empresas e bancos, nacionais ou estrangeiros. Ela só é viável sefor compulsória, o que exige a ampliação do poder redistributivo do Estado fren-te ao monopólio privado da terra. Como uma política de desenvolvimento nacio-nal, exige o fortalecimento do papel do Estado na provisão de bens e serviços pú-blicos essenciais à melhoria das condições de vida dos trabalhadores ruraisassentados e à projeção econômica do setor reformado.

Percebe-se que os pressupostos do MRAM são distintos dos da reforma agrá-ria redistributiva (Borras Jr., 2004; El-Ghonemy, 2001). No primeiro caso, a ter-ra é vista como um mero fator de produção, uma mercadoria como outra qual-quer. No segundo caso, a terra é vista pela sua gravitação política, econômica ecultural, razão pela qual os direitos de propriedade sobre ela expressam, antes demais nada, relações de poder entre classes e grupos sociais.

Não há, portanto, qualquer semelhança entre o MRAM e reformas agráriasredistributivas. Transações mercantis e ações paliativas de “alívio” da pobreza ru-ral nada têm a ver com redistribuição do estoque de riqueza (no caso, a terra ru-ral) acumulado por uma classe ou frações de classe. Também em nada se asseme-lham à democratização de poder político e tampouco contribuem para um suposto“empoderamento” dos trabalhadores rurais.11 A natureza voluntária e mercantildo MRAM o distingue completamente de qualquer política de reforma agrária,cuja viabilidade depende da luta social autônoma do campesinato e da ampliaçãodo poder sancionador e redistributivo do Estado contra o monopólio privado daterra (Barraclough, 2001; El-Ghonemy, 2002). Não é demais lembrar que a lógi-ca do MRAM pressupõe a redução de ambos.

A segunda crítica a ser feita diz respeito à inconsistência da “análise” do BancoMundial sobre o que seus teóricos nomearam de reforma agrária “conduzida pelo

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Estado”. Na verdade, o objeto de ataque do BIRD inexiste no mundo real, pois setrata de uma caricatura que concentra em si todas as características supostamentenegativas das reformas agrárias realizadas ao longo do século XX em diferentessociedades. A base do discurso do BIRD não é a análise dos processos de luta sociale política que condicionaram a realização e o desenvolvimento das reformas agrá-rias, mas sim a montagem de um “modelo” ao qual se atribui uma responsabilida-de quase que genética pelo suposto fracasso da imensa maioria das reformas agrá-rias realizadas pelo mundo afora. Em outras palavras, a crítica ao modelo“desapropriacionista” é feita de maneira abstrata, homogeneizadora e universalista,deslocada da análise empírica dos conflitos sociais que definiram a natureza, ograu, a extensão, o ritmo, a direção e mesmo o refluxo ou a desconstituição daspolíticas de reforma agrária, sempre muito heterogêneas entre si, como mostraqualquer estudo sério sobre o tema (Thiesenhusen, 1995; Borras Jr., 2004; Kay,2002 e 1998). Todavia, mais do que caricatural é a repetição desse mesmo discur-so no caso brasileiro: afinal, como lembra Groppo (2000), como considerar “es-gotado” ou “falido” um “modelo” de reforma agrária que, a rigor, jamais foi leva-do adiante em escala substantiva?

Além disso, o núcleo da crítica do BIRD à reforma agrária “conduzida peloEstado” realmente não tem consistência empírica (Borras Jr., 2005 e 2003a). Emprimeiro lugar, a reforma agrária, onde ocorreu, jamais foi “dirigida pela oferta”,pois sempre foi impulsionada, em maior ou menor grau, pela “demanda” por ter-ra provocada pela luta social do campesinato e das coalizões políticas que o apoiam.Em segundo lugar, não é válido atribuir o suposto “fracasso” das reformas agráriasao seu caráter coercitivo e centralizado, uma vez que, nessa matéria, existe histo-ricamente uma associação positiva entre grau de redistribuição, sanção estatal ecentralização político-administrativa. Em terceiro lugar, a lentidão na execuçãode políticas de reforma agrária sempre tendeu a ser maior onde os mecanismos demercado foram privilegiados, em detrimento da ação compulsória do Estado. Emquarto lugar, não é correto atribuir eventuais superindenizações concedidas aosproprietários ao caráter mais ou menos “estatista” da reforma agrária, mas sim àcorrupção e, fundamentalmente, à minimização do poder desapropriatório doEstado, em geral inversamente proporcional ao poder político e social dos gran-des proprietários de terra. Em quinto lugar, é falsa a idéia de que os casos decorrupção nos processos de reforma agrária se devem ao seu caráter “estatista”,como se, na prática, o agente corruptor por excelência não fosse o “mercado”, i.e.,os grandes proprietários interessados na superavaliação de suas terras. Em sextolugar, é igualmente falso atribuir à reforma agrária responsabilidades que não lhe

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competem exclusivamente, uma vez que a ela não é, nunca foi e jamais será umapanacéia. Com razão, Kay (2002) mostra que uma reforma agrária é condiçãopara a redução da pobreza e das desigualdades sociais e de poder no meio rural,mas não uma política suficiente para, por si mesma, alcançar tais fins.

Questionar a crítica enviesada do BIRD não implica desconsiderar que aspolíticas de reforma agrária padeceram – e ainda padecem, nos poucos países ondeestão sendo muito precariamente implementadas, como no Brasil – de enormesdeficiências, provocadas por uma série de razões, dentre as quais destacam-se oveto permanente das classes dominantes à qualquer política de naturezaredistributiva, a manutenção de políticas econômicas que prejudicam o campe-sinato e a desarticulação neoliberal do aparato público responsável por garantir ascondições necessárias ao desenvolvimento econômico e social dos assentamentosrurais. Porém, o que deve ficar claro é que a crítica do BIRD constrói uma carica-tura para disputar política e ideologicamente – eis o cerne da questão – qual deveser o papel do Estado em sociedades marcadas por grave problema agrário na atualfase do capitalismo. Para o BIRD, qualquer política redistributiva – i.e., queredistribua para a base da sociedade parte do estoque de renda e riqueza acumula-do pela burguesia e modifique as relações de poder entre classes e grupos sociais –deve ser a priori rejeitada, preventivamente neutralizada ou implacavelmente com-batida.

A terceira crítica apoia-se em evidências da experimentação do MRAM naColômbia, no Brasil e na Guatemala. No caso colombiano: a) o programa nãoconseguiu atingir escala, pois entre 1995 a 2001 foram financiadas tão-somente12.974 famílias, que adquiriram 180.211 hectares (Suhner, 2005; Mondragón,2003); b) em todos os anos de execução, o número de famílias que solicitou aces-so ao crédito foi muito maior do que o número aceito, assim como a demanda foimaior do que a oferta de terras (Mondragón, 2003); c) o programa incidiu sobreum segmento restrito do mercado de terras, composto por médios proprietáriosarruinados pela abertura comercial, e nunca latifundiários, de sorte que as transa-ções passaram por fora do circuito das terras de melhor localização e qualidade(Mondragón, 2003; Höllinger, 1999); d) segundo o próprio Banco (2003, p. 150),parte significativa dos beneficiários está inadimplente, revelando que mesmo coma alta taxa de subsídio conferida à compra da terra (70%), os “beneficiários” nãoconseguem quitar a dívida; e) os preços pagos pela terra foram largamente arbitra-dos pelos proprietários, em função da fragilidade política dos agricultores(Höllinger, 1999); f ) a implantação do programa levou à sobrevalorização do pre-ço da terra, pelo menos nos dois primeiros anos (Deininger, 2000); g) de modo

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geral, a produção agrícola ficou tão-somente no nível da subsistência das famílias(Borras, 2003, pp. 381-3).

Os resultados do MRAM na Guatemala (Garoz & Gauster, 2003; Garoz etal., 2005) também deixaram a desejar, uma vez que: a) de 1997 a julho de 2005,apenas 17.822 famílias foram financiadas; b) o que predomina é a oferta de terrasprivadas de má qualidade e má localização; c) o processo de seleção dos beneficiáriose de liberação do crédito é extremamente lento e burocratizado, variando, respec-tivamente, de 13 a 24 meses e meio; d) há inúmeros casos de irregularidade e desviosde finalidade no processo de seleção dos beneficiários; e) a grande maioria dosprojetos produtivos não têm rentabilidade comercial, em razão de serviços inade-quados de assistência técnica, da falta de mecanismos de comercialização, da málocalização e qualidade das terras compradas, da insuficiência de recursos parainvestimento e da ausência de preços favoráveis para a produção; f ) é muito baixaa participação dos beneficiários, seja por falta de conhecimento sobre as regrasbásicas do programa, seja pela assimetria de poder entre os agentes envolvidos,seja ainda pelo trâmite burocrático do programa.

No Brasil, levando-se em conta apenas a experiência do Cédula da Terra12, asmetas foram cumpridas. Entre julho de 1997 e dezembro de 2002, 15.267 famí-lias foram financiadas. Porém, em relação aos seus congêneres latino-americanos,as diferenças param por aí. Alardeado como projeto “bem sucedido” e “exemplar”pelo BIRD, o Cédula, na verdade, não chegou a resultados tão animadores assim,pois: a) a maioria dos imóveis adquiridos estavam abandonados ou subutilizados,em razão da seca e da crise da pecuária e das culturas tradicionais (Buainain et al.,1999, p. 31); b) a adesão social ao projeto foi fortemente condicionada pela seca,pelo grave empobrecimento e absoluta falta de perspectivas de trabalho dos traba-lhadores rurais, pelo direcionamento que agentes do estado e políticos locais im-primiram a todo processo – priorizando os “mais pobres” – e pelo “sonho” daterra de trabalho e moradia alimentado por aquelas populações (Buainain et al.,1999, p. 27; Victor & Sauer, 2003, pp. 34-5); c) metade das associações comuni-tárias foi criada exclusivamente para participar do projeto (Buainain et al., 1999,p. 223); d) os recursos destinados a investimentos produtivos foram consumidos,na maioria dos casos, como custeio diário, esgotando-se antes de cobrir o pacotemínimo de investimentos (Buainain et al., 2003, pp. 100-1 e 150); e) sinal datotal falta de transparência e prestação de contas, pouco se sabe sobre o pagamen-to das prestações derivadas da compra de imóveis rurais, pois os dados oferecidospelo BIRD são insuficientes e pouco confiáveis, na medida em que versam apenassobre 243 associações comunitárias, quando no final de 2003 constavam 609 delas

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(Banco Mundial, 2003a, p. 16); f ) as projeções de geração de renda estão longe deser consideradas positivas, ainda mais considerando-se que, na maioria das regiões,estão atreladas ao desempenho comercial de uma só cultura (Buainain et al., 2003,pp. 157-70).

Com base na literatura disponível13, pode-se afirmar que o desempenho dosprogramas de fato contradiz suas supostas vantagens e as expectativas inicialmen-te atribuídas a ele pelos seus proponentes e operadores locais, uma vez que: a) ospreços pagos pela terra não foram tão baratos como havia se pensado, apesar dopagamento à vista, e a má qualidade das terras adquiridas em parcela significativados casos só vem a ressaltar esse fato, de modo que é válido afirmar que os progra-mas se constituíram num “prêmio” a proprietários que por meio deles venderampropriedades abandonadas, falidas e de má localização; b) em nenhum dos trêspaíses foi ofertada no mercado uma quantidade substancial de terras por parte degrandes proprietários endividados, apesar de períodos de queda relativa do preçoda terra, de maneira que o perfil predominante dos vendedores parece ser de mé-dios e até pequenos produtores arruinados pela abertura comercial e pelas políti-cas neoliberais; c) há evidências de que a execução dos programas provocou oaumento do preço da terra em muitas localidades, ainda que tal efeito não tenhasido homogêneo nem constante no tempo; d) majoritariamente, os projetos pro-dutivos são dominados pela agricultura de subsistência, e não por uma agricultu-ra comercial de alta rentabilidade; e) nos casos considerados positivos pelo BIRD,houve a reprodução da dependência à monocultura e ao modelo tecnológico tra-dicional, inviável economicamente para os agricultores pobres e ecologicamenteinsustentável; f ) a quantia concedida a fundo perdido se revelou insuficiente paraalavancar a produção agrícola, razão pela qual os agricultores permanecem depen-dentes de uma política pública substantiva de crédito rural; g) os mercados for-mais de crédito privado permaneceram inacessíveis aos que ingressaram nos pro-gramas orientados pelo MRAM; h) ocorreu enorme deficit de participação socialem diversos – em alguns casos, em todos – componentes e fases dos programasimplementados; i) os beneficiários tiveram poder desigual na negociação com osproprietários de terra, fato que, por si só, demonstra que a formulação do MRAMnão leva em conta as relações realmente existentes de exploração econômica, do-minação política e prestígio social inscritas no monopólio da propriedade da terraem países altamente desiguais; j) ficou evidenciado que são os agentes do Estadoque efetivamente protagonizam todo o processo de compra e venda de terras, enão “compradores e vendedores voluntários e racionais”, como pressupõe oMRAM; l) não ocorreu nas associações comunitárias nenhum processo de “auto-

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seleção” dos mutuários, pois, de diferentes maneiras, houve influência ou tutelade forças externas, como agentes governamentais, proprietários, políticos locais,ONGs, etc.; m) na prática, a elaboração de projetos produtivos viáveis não se deuantes da aquisição da terra, como estabelece o MRAM, de modo que não serviucomo precondição para as transações imobiliárias; n) quando existiu, a assistênciatécnica foi precária e irregular, dificultando sobremaneira o desempenho produti-vo das famílias financiadas; o) não houve transparência na execução dos progra-mas nem prestação de contas dos seus resultados à sociedade, o que realça aindamais a total falta de controle social e participação efetiva dos trabalhadores sem-terra; p) houve inúmeras denúncias de corrupção e favorecimento ilegal a grandese médios proprietários; q) não foram oferecidas condições para os camponeses cons-truírem e gerirem suas próprias agroindústrias; r) tais programas operaram demaneira seletiva e pontual, freqüentemente para aliviar tensões sociais no campoou atender aos interesses dos proprietários ou de políticos locais, sem qualquerarticulação com estratégias de desenvolvimento rural e de redução da pobreza; s)em nenhum país o “setor privado” se dispôs a financiar a compra de terras, ouqualquer outro componente dos programas, de tal maneira que todo o ônus re-caiu sobre o Estado; t) em maior ou menor grau, é significativo contingente detrabalhadores endividados.

Além disso, como já foi mencionado, não foram implementadas as ações deapoio ao MRAM necessárias ao incremento da oferta mercantil de terras e à dimi-nuição dos “custos de transação”, como a tributação sobre a propriedade rural, atitulação privada e a modernização dos sistemas de registro e cadastro de terras.

Igualmente, em lugar algum ocorreu um “campo de jogo nivelado”, tão recla-mado pela retórica neoclássica. Em vez da eliminação dos “privilégios” concedi-dos pelo Estado a grandes proprietários de terra e produtores rurais que“distorceriam” os mercados, houve, isto sim, mudanças significativas na forma dearticulação entre Estado, empresariado rural e capital financeiro, impulsionadaspelas políticas neoliberais. Ainda em curso de maneira altamente diferenciada nostrês países, tais mudanças têm em comum o reforço aos processos de internaciona-lização, concentração, centralização e financeirização do capital no sistemaagroalimentar. Nessas novas condições, o monopólio de classe sobre a terra ruralnem de longe foi questionado; ao contrário, foi reforçado e renovado.

Por fim, em nenhum país os programas foram inseridos numa estratégia am-pla de redução da pobreza rural. Na prática, foram programas mais ou menospontuais, com orçamentos minguados, executados sem qualquer conexão compolíticas públicas de caráter estrutural.

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Tais resultados demonstram que a teoria do MRAM não se sustentaempiricamente. Os seus pressupostos básicos não se materializaram nos progra-mas implementados, assim como suas supostas vantagens não se concretizaram.

Algumas pesquisas sobre as experiências colombiana, brasileira e guatemalteca(Garoz et al., 2005; Mondragón, 2003; Suhner, 2005; Pereira, 2004) permitemconcluir que os programas orientados pelo MRAM não contribuem para democra-tizar a estrutura agrária, nem é esse o seu objetivo, pois foram criados para tão-so-mente aliviar de maneira paliativa e focalizada os efeitos sociais negativos provoca-dos pelas políticas de ajuste estrutural. Além disso, não têm condições deminimamente atenderem à “demanda” por terra existente, porque são desprovidosda capacidade de ganhar escala social devido ao pagamento em dinheiro a preços demercado. Aliás, pela mesma razão, são caros, o que os condena a serem programascompletamente incapazes de fazer frente à magnitude do problema agrário “real-mente existente”. Seguem o objetivo de esvaziar a pressão social pró-reforma agrá-ria, porque propõem uma forma de acesso à terra que concorre com as ocupaçõesorganizadas pelos movimentos sociais. Por fim, em todos os três casos, aimplementação de tais programas requereu a introdução de mudanças no aparatoestatal responsável pelo tratamento do problema agrário, sempre com o mesmo sen-tido: atacar a legitimidade do poder redistributivo do Estado.

Por outro lado, no plano político, está claro que a implementação do MRAMde fato competiu diretamente com os programas de reforma agrária em curso noBrasil e na Colômbia (já precariamente executados, sobretudo nesta). No casoguatemalteco, o MRAM converteu-se na única política pública de acesso à terra,associado, posteriormente, a um programa de fomento a relações de arrendamen-to. Ademais, nos três países a sua execução contribuiu para reforçar a ideologia damercantilização dos direitos sociais e a crítica neoliberal sobre a ineficiência e ainviabilidade de políticas redistributivas massivas na atualidade. Nos três casos,em maior ou menor grau, houve uma relação direta entre a adesão a tais progra-mas e a repressão às ocupações de terra organizadas por movimentos camponeses.

Entretanto, embora tenham cumprido bastante bem a sua função precípua –ajustar a política agrária à agenda neoliberal e desviar a luta popular pela democra-tização do acesso à terra, em sociedades altamente desiguais –, os programas orien-tados pelo MRAM perderam força relativa em nível internacional. Diversos fatorescontribuíram para isso, em especial as suas próprias contradições e inconsistênciasinternas, as margens de ação permitidas pelo quadro legal existente, a debilidade doarranjo institucional montado para geri-los, as mudanças de prioridade dos gover-nos nacionais, a sua incapacidade de resolver os problemas reais dos trabalhadores

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sem-terra e a oposição que sofreram de certos movimentos sociais camponeses. Re-centemente, altos funcionários do BIRD criticaram o fato de os programasimplementados na Colômbia, no Brasil e na Guatemala terem ficado presos à dinâ-mica dos conflitos sociais e operado sem o propósito de reduzir de fato a pobrezarural (De Ferranti et al., 2005, p. 183). Ou seja, o que antes era alardeado comouma panacéia, hoje recebe críticas explícitas de dentro do próprio BIRD.

No caso da Colômbia, a alocação de recursos para o MRAM foi significativaapenas entre 1996 e 1998. Depois de 2000, os recursos foram divididos mais oumenos na mesma proporção entre a compra direta pelo governo federal e o MRAM,porém já em níveis bastante reduzidos (Grusczynski & Jaramillo, 2002). O BIRD,por sua vez, passou a priorizar um projeto de integração subordinada de pequenosprodutores rurais a empresas agroindustriais, liberando em 2002 um novo emprés-timo de US$ 32 milhões. Quanto ao MRAM, o Banco (2004) esmoreceu na suadefesa, mas insiste na centralidade das transações de mercado (arrendamento e com-pra/venda) como meio preferencial de acesso à terra pelo campesinato pobre, emdetrimento das desapropriações. Suas posições mais recentes advogam também amunicipalização da política agrária, o abandono da lei nº 160/94 e a criação de outrosexpedientes legais que viabilizem a dinamização das transações mercantis.

Quanto à experiência guatemalteca, por lei o governo federal terá de injetarrecursos no Fundo de Terras até 2008. Mesmo que essa obrigação legal seja revis-ta, persiste o fato de que grande parte dos mutuários está (ou tende a ficar)inadimplente, o que compromete seriamente a sustentabilidade financeira daqueleinstrumento (Garoz et al., 2005). De resto, mesmo observadores simpáticos aoMRAM reconhecem que programas nele inspirados não são viáveis para ocampesinato mais pobre (Molina, 2001, p. 21).

Dos três casos aqui examinados, foi no Brasil que a implementação de progra-mas orientados pelo MRAM mais avançou e ainda têm potencial para tal, devido,em larga medida, ao apoio de confederações sindicais de trabalhadores rurais e aorespaldo do governo Lula (Pereira, 2005a e 2004). Porém, deve-se notar que, in-dependentemente do resultado das eleições presidenciais de 2006, um novo qua-dro institucional-legal já foi construído para permitir que esse tipo de políticaperdure por muitos anos como política de Estado, embora, evidentemente, o for-mato, a direção e a intensidade de sua execução possam variar de maneira signifi-cativa de um governo para outro.

De todo modo, ainda que de maneira específica, o conflito social em torno daapropriação e do uso da terra rural permanece intenso nos três países. O caso bra-sileiro, exaltado como o mais bem sucedido pelo BIRD na execução do MRAM,

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é emblemático a esse respeito. Nem o legado dos programas criados pelo governoCardoso, nem o seu prosseguimento pelo governo Lula, foram capazes de contero crescimento, após 2002, das ocupações de terra e da população acampada. Esta,no último ano do governo Lula, alcançou um número recorde: 230.813 famílias,segundo levantamento da Ouvidoria Agrária Nacional (Escolese, 2006). Mesmoque tal cifra seja questionável, é indiscutível que a magnitude da pressão socialpelo acesso à terra existente no Brasil hoje nem de longe pode ser atendida porprogramas inspirados no MRAM.

Ainda que o modelo do BIRD tenha perdido força no plano internacional, oseu fim não está posto no horizonte imediato. Longe disso. Dois exemplos bas-tam. Em 2005, o BIRD ofereceu ao governo mexicano um empréstimo paraimplementar um programa de “crédito fundiário” para jovens agricultores, seme-lhante ao que foi criado no Brasil pelo governo Lula no final de 2003. Por sua vez,no Malaui – um pequeno país da África fora das vistas da opinião pública inter-nacional –, o BIRD fez a sua aposta mais ousada: financiar diretamente a comprade terras, e não mais apenas a infra-estrutura socioprodutiva. Uma doação foi li-berada em 2004 no valor de US$ 27 milhões para a compra de terras por vintemil famílias. Esta decisão requereu uma revisão das normas internas do Banco,que proibiam esse tipo de operação. O Banco (2004a) já admite que pretendereplicar essa operação em outros países, dependendo do resultado.

Dos três países aqui examinados, o Brasil sem dúvida é o principal palco dedisputa sobre a continuidade ou não do MRAM enquanto proposta aplicável aospaíses latino-americanos. Se os programas orientados pelo MRAM terão vida longa,dando origem a uma convivência política mais ou menos estável entre “desapro-priação” e “compra e venda”, ou terão vida curta, o tempo mostrará.

Conclusão

Na região da América Latina e do Caribe, as reformas de “segunda geração”preconizadas pelo BIRD aprofundam o cerne do projeto neoliberal, à medida quepotencializam formas de exploração de tipo “neocolonial” e, sobretudo, a ofensi-va do capital sobre o trabalho. As ações de “alívio da pobreza” servem para darfuncionalidade a esse processo, amenizando seletivamente as contradições sociaisprovocadas ou agudizadas por políticas operadas em nível macro.

A política agrária do BIRD para a região não pretende oferecer soluções parao grave quadro de pauperização, dominação e exploração em que vive a maior

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parte dos trabalhadores rurais e do campesinato latino-americano, pois subordi-na-se a uma estratégia de desenvolvimento rural vinculada ao projeto neoliberal.Tal estratégia naturaliza e potencializa o modelo agrícola dominante, comandadopor grandes empresas multinacionais agroindustriais e suas ramificações financei-ras. Além de ser ecologicamente insustentável, esse modelo desemprega trabalha-dores, precariza o contrato de trabalho e tem custos econômicos elevadíssimos.Por tudo isso, tanto a estratégia de desenvolvimento rural como a atual políticaagrária do BIRD favorecem a consolidação de uma nova matriz de poder no cam-po surgida no bojo do ajuste estrutural. Este é o sentido político-estratégico deambas. E é por isso que ambas não preconizam ou admitem políticas redistributivas.

Enquanto objeto da crítica do BIRD, a reforma agrária “conduzida pelo Esta-do” é uma caricatura, como tal inexistente no mundo real. O MRAM, por suavez, é mais um item da agenda agrária do BIRD, razão pela qual segue a mesmalógica macro que a determina. Assim, mesmo que os programas inspirados nessemodelo sejam redefinidos tecnicamente, os fins a que servem permanecemintocáveis.

Em resposta às mudanças regressivas no tecido social e à emergência ou con-solidação de novas configurações de poder no sistema agroalimentar, a ação per-sistente de movimentos sociais camponeses tem alimentado o debate sobre a ne-cessidade da reforma agrária redistributiva, os instrumentos para realizá-la e asmúltiplas exigências que ela precisa atender na fase atual do capitalismo. Na pon-ta da reação liberal-conservadora está o BIRD, cuja agenda intelectual e políticatenta hegemonizar o debate teórico e a formulação de políticas agrárias para o cam-po num sentido muito específico, qual seja, o do fortalecimento de políticas pró-mercado de terras vinculadas ao estilo de desenvolvimento agrícola em curso.

O embate em torno do rol legítimo de ações do Estado prosseguirá. Uma orien-tação mais favorável ao “mundo do trabalho” no meio rural – redistributiva, porassim dizer – depende da mudança nas relações de poder que se expressam e con-formam o próprio Estado. Não se trata apenas, nem fundamentalmente, de umaquestão técnica, e sim política. No fundo, o ponto central da disputa não é sobreo futuro de um ou outro programa, nem sobre o MRAM em si mesmo, mas simsobre qual deve ser o papel do Estado em sociedades altamente desiguais e injus-tas. Considerando, de um lado, o estágio atual de concentração, centralização efinanceirização do capital no agro latino-americano e, de outro, a gravitação daspolíticas neoliberais na região, parece claro que uma alternativa democratizantepressupõe mudanças de caráter macropolítico e macroeconômico, o que traz àtona a questão das coalizões de poder capazes de impulsioná-las e sustentá-las.

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Notas

1 Parte de um programa de pesquisa mais abrangente, este artigo retoma, sintetiza e avança reflexões desen-volvidas em Pereira (2006, 2005 e 2004).

2 Sob o estilo “terapia de choque” – na verdade, mais “choque” do que “terapia” – a agenda de reformas de“primeira geração” abarcou, basicamente, a abertura comercial e financeira, a privatização, adesregulamentação da economia e o ajuste fiscal drástico.

3 Ver Panitch (1997), Hildyard (1998), Fiori (2000), Vilas (2000), Fine (2003), Tabb (2003), Toussaint(2004) e Önis & Senses (2005).

4 Ver Burki & Edwards (1996), Burki & Perry (1998 e 1997), Edwards (1997) e Banco Mundial (2002a,1997a e 1996a).

5 Com base nos trabalhos de Douglas North, o BIRD define as instituições como “normas formais e infor-mais, e os mecanismos para assegurar o seu cumprimento, que configuram o comportamento de indiví-duos e organizações numa sociedade” (Burki & Perry, 1998, p. 11).

6 Evidência recente desse processo é dada pelo fato de que as diretrizes de assistência internacional parapolíticas de terra da União Européia (2004) reproduzem, em linhas gerais, as categorias e as propostas doBIRD.

7 Eis apenas um exemplo: “O Banco ajudou a África do Sul (...) a desenvolver um programa de reformaagrária redistributiva, baseado em transações negociadas ou voluntárias entre compradores e vendedores(...). Essa abordagem, chamada de reforma agrária ‘negociada’ ou ‘assistida pelo mercado’, também estásendo desenvolvida na Colômbia, no Brasil e na Guatemala. Todos os três países tão preparando projetosde reforma agrária com a assistência do Banco” (Banco Mundial, 1997, p. 85).

8 Cf. Banco Mundial (s/d e 2003), Binswanger (1995a), Binswanger & Elgin (1989), Deininger (2001) eDeininger & Binswanger (1999).

9 Cf. Binswanger (1995a), Burki & Perry (1997), Binswanger & van Zyl (1995), Christiansen (1995),Christiansen & van den Brink (1994), van Schalkwyk & van Zyl (1995), van Zyl et al. (1995) e BancoMundial (s/d).

10 Cf. Deininger (2000), Höllinger (1999), Grusczynski & Jaramillo (2002), Banco Mundial (2004, 2003ae 1998), Garoz et al. (2005), Congreso de Colombia (1994) e Congreso de Guatemala (1999).

11 O pressuposto da noção de “empoderamento”, tal como formulada pelo BIRD, é a inexistência de desi-gualdades estruturais produzidas por relações de exploração e dominação capitalistas. Ora, consideran-do-se a fase ultra-regressiva do capitalismo contemporâneo, como imaginar que o “empoderamento” deatores subalternizados possa prescindir da transformação das relações que os subalternizam? Se o poder éuma relação social assimétrica que implica, necessariamente, alguma forma a subjugação do outro, comoimaginar que o “empoderamento” de trabalhadores rurais dominados e explorados não exija, necessaria-mente, o “desempoderamento” daqueles que os dominam e exploram?

12 Uma análise detalhada deste e dos demais programas orientados pelo MRAM no Brasil está em Pereira(2004).

13 Sobre a Colômbia, ver Deininger (2000), Höllinger (1999), Mondragón (2003), Suhner (2005),Grusczynski & Jaramillo (2002) e Banco Mundial (2004). Sobre a Guatemala, ver Molina (2001), Garoz& Gauster (2003) e Garoz et al. (2005). Sobre o Brasil, ver Buainain (1999 e 2003), Victor & Sauer(2002), Groppo et al. (1998) e Banco Mundial (2003a). Sobre o Brasil e a Colômbia, ver Borras (2003).

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REESTRUTURAÇÃO TERRITORIAL E FUNDAMENTAÇÃO DAREFORMA AGRÁRIA: COMUNIDADES INDÍGENAS,MINERAÇÃO DE OURO E BANCO MUNDIAL

ERIC HOLT-GIMÉNEZ

Muitas das críticas atuais aos programas de reforma agrária “assistida pelomercado” do Banco Mundial (BIRD) se concentram nas contradições entre o dis-curso agrário neoliberal do BIRD e os precários resultados distributivos de seusprojetos no campo (Barros, Schwartzman & Sauer, 2003; Martins, 2005). É im-portante chamar o BIRD à responsabilidade pela inconsistência entre sua missãode aliviar a pobreza rural e a natureza regressiva de seus programas de reformaagrária, não apenas porque isso pode auxiliar a amplificar as vozes dos sem-terra,mas porque ajuda a expor, de forma geral, as hipocrisias inerentes ao enfoque não-distributivo do Banco em relação ao crescimento econômico e ao desenvolvimen-to rural.

No entanto, essas críticas não esclarecem necessariamente por que o BIRDimplementa continuamente, com tanta insistência, esses programas malsucedidos.Simplesmente apontar para o “Consenso de Washington” não viabiliza uma com-preensão específica do papel da reforma agrária de mercado no contexto das estra-tégias de desenvolvimento nacional do BIRD. Sem uma análise estrutural da agendado BIRD, será difícil entender a extensão política de seus programas de reformaagrária. Ademais, é importante considerar o conjunto das políticas e projetos emdeterminado país para saber que papel a reforma agrária (ou ausência dela) pode-ria desempenhar na estratégia global do BIRD. Um projeto de reforma agrária demercado pode ser um fracasso rural para o campesinato e, no entanto, pode terrelativo êxito no sentido de ajudar a reestruturar, por exemplo, as instituições so-ciais e econômicas no interior de um país para favorecer a agroindústria, o turis-mo ou as indústrias extrativas.

O presente trabalho argumentará que, para construir estratégias viáveis de re-sistência, de base ampla, que engajam o BIRD em questões rurais e agrárias, épreciso entender o que este de fato está fazendo no campo, ao invés do que parece

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estar fazendo. No caso da Guatemala, como em outras regiões da América Latina,o programa do Banco Mundial para a reforma agrária de mercado complementasua estratégia de abrir os Altiplanos Ocidentais para indústrias extrativas. Enquantomovimentos indígenas e camponeses travam uma batalha verbal contra o progra-ma de reforma agrária de mercado, projetos patrocinados pelo BIRD, que favore-cem interesses estrangeiros de mineração, desencadearam uma transformação muitomais profunda e socioambientalmente destrutiva de terras indígenas. Para com-preendermos esse processo, introduzirei, como um conceito axial do desenvolvi-mento, a reestruturação territorial, acompanhada de seus componentes adicionais,ou seja, o hiperespaço de desenvolvimento e as áreas de mineração.

A carteira de projetos de desenvolvimento do BIRD, em um país qualquer,constitui um reflexo de suas operações para ajudar o capital a conquistar merca-dos e ganhos específicos em favor de empresas privilegiadas e atores políticos emnível nacional e subnacional ou territorial. Muitos dos projetos do BIRD preci-sam ser entendidos no sentido da reestruturação de espaços territoriais e locaispara favorecer tipos selecionados de capital, empresas específicas, e/ou atores po-líticos fundamentais. Na presente análise, “lugares” são as áreas físicas em que acon-tecem a produção e a reestruturação (por exemplo, os Altiplanos indígenas daGuatemala, ricos em minério). “Espaços” são as arenas sociopolíticas em que osdiferentes atores competem pelo poder sobre esses espaços, por exemplo, as estru-turas do mercado, da política e da gestão.

A reestruturação territorial visa o controle sobre os lugares e espaços em que seproduzem excedentes pela adequação e pelo controle das instituições e relaçõessociais que comandam a produção, extração e acumulação. Esse controle inclui,embora não se limita a elas, diferentes formas de gestão nacional e subnacional.Como acontece nas reformas neoliberais, o controle também pode ser exercidoquando se limita a gestão formal para permitir acesso irrestrito a matérias-primaspor parte de empresas estrangeiras. Não é necessário que o BIRD, as empresasprivadas ou os governos nacionais cheguem a consensos sobre o processo dereestruturação territorial. As formas como essas instituições usam o desenvolvi-mento para redefinir e controlar o território dependem muito de interesses indi-viduais, muitas vezes complementares.

O resultado somado das atividades, tensões e alianças entre esses diferentesatores leva à reestruturação de espaços e lugares nacionais, por exemplo, mercadose municípios, fazendas, florestas e estradas que perfazem as instituições e a paisa-gem local. No processo, a reestruturação territorial se depara com atritos, desloca-mentos e resistência, o que pode redundar em resultados inesperados para o BIRD,

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governo ou empresa. A resistência efetiva à reestruturação territorial a favor dasobrevivência indígena, ou da reforma agrária redistributiva, requer que não ape-nas se desmascarem os interesses, predominantemente de capital, por trás das es-tratégias de desenvolvimento rural do BIRD, mas também que se identifiquem asfissuras inerentes às suas alianças.

Deixando de lado, por ora, o discurso de desenvolvimento,1 a estrutura admi-nistrativa do Banco Mundial assegura que suas operações privilegiem o “desenvolvi-mento” do capital do Norte. A fim de facilitar os interesses empresariais dascorporações que apóiam os governos, os membros patrocinadores (o G-8), o BIRDtem que criar condições estáveis para a produção e extração de riqueza de países noHemisfério Sul, onde as condições são social, política ou economicamente instá-veis. Essa tarefa – que não é idêntica ao trabalho para estabilizar esses países em si –é concretizada não apenas pela reestruturação das condições em escalas nacionais,mas territoriais, onde de fato acontece o investimento estrangeiro direto.

Os empréstimos do Banco Mundial na Guatemala constituem um exemploda forma como reforma agrária, projetos ambientais e projetos de infra-estruturafazem parte de um pacote de intervenções institucionais e financeiras que favore-cem o desenvolvimento de indústrias extrativas de base estrangeira nos AltiplanosOcidentais do país. Enquanto os projetos do BIRD para a reforma agrária e servi-ços ambientais fracassam, de acordo com declarações e termos próprios, o pacoteglobal de projetos e políticas é bem sucedido no lançamento de uma ponta-de-lança para indústrias extrativas nos Altiplanos. Ao mesmo tempo em que os em-préstimos públicos do BIRD promoviam a reforma agrária de mercado, seu braçode empréstimos ao setor privado ajudava a Glamis Gold Ltd., uma corporaçãocanadense-americana, a reabrir a mina de Marlin, no Departamento de San Mar-cos. Reativada apesar de protestos locais das comunidades indígenas, a mina abri-rá os Altiplanos para operações com ouro, níquel e – muito em breve – urânio.2

Os projetos de reforma agrária do Banco Mundial precisam ser vistos como partede uma tendência mais abrangente de reestruturação territorial. Comprometer-se como Banco em relação a seus programas de reforma agrária apoiados pelo mercado –quando a pressão da reestruturação territorial vai em direção à expansão do setor damineração – pode não ser a maneira mais efetiva de conservar o meio-ambiente,proteger os interesses de comunidades indígenas ou até mesmo fazer avançar a re-forma agrária redistributiva. É importante compreender a natureza da reestruturaçãoterritorial para analisar o significado do programa de reforma agrária do BIRD,depreender as ameaças estruturais à sobrevivência camponesa na área rural e formu-lar estratégias territoriais eficazes de engajamento ou resistência.

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1. Reforma agrária e controle territorial

Reivindicações privadas sobre a propriedade, legalizadas e sancionadas pelo Estado...podem tornar a ‘economia rural’ segura para investimentos; [esses investimentos vão]em troca conduzir ao crescimento econômico e… à erradicação da pobreza (BancoMundial, 2003, p. xix. In: Borras Jr., 2006).

Na América Latina de hoje, planos de reforma agrária de mercado visam esta-belecer direitos formais de propriedade. Historicamente, foram tendenciosos emfavor do indivíduo, e não de posses comunais ou coletivas. Contudo, a preocupa-ção com a terra não trata apenas da forma social da documentação, mas de comose distribui o poder sobre a produção e de como se distribuem os excedentes. Deacordo com Borras, a reforma agrária redistributiva é “controle real e efetivo sobrea natureza, o ritmo, a extensão e a direção do excedente da produção e extração daterra, bem como a transferência desse excedente” (2006, p. 125) da elite latifun-diária para o campesinato.

Entretanto, ter terra e controlar o fluxo e a acumulação do excedente é con-trolar o território. As condições estruturais determinam as formas e influenciamos tipos de produção, canalizando o fluxo e a acumulação de excedentes dentrodos territórios. Políticas (e projetos) regressivas podem provocar mudanças estru-turais que diminuem ou transferem o controle territorial de matérias-primas dascomunidades rurais pobres e indígenas para elites poderosas ou para interessesestrangeiros.3

A reestruturação territorial envolve negociação, ajuste e recolocação de custose benefícios da produção de excedentes, obedecendo a uma “lógica do território”e a uma “lógica do capital” (Harvey, 2003). A primeira lógica inclui atividadescomo privatização, apêndices ambientais e reformas agrárias, enquanto a segundapode usar os instrumentos de investimento, de liberalização de mercado, de desa-propriação, etc. A primeira está preocupada com o lugar, a segunda com o espaço.A reforma agrária obviamente é apenas uma maneira de apropriação oureestruturação do território. Por causa da fragilidade de planejamento e de capaci-dade reguladora de muitos países sulistas, a infra-estrutura – estradas, eletricidadeou geração de energia – também constitui formas primordiais de organização econtrole.

Pelo fato de, muitas vezes, haver disputas – internacionais e intranacionais –em torno da apropriação do excedente, as tentativas de reforma agrária devem serentendidas no contexto de projetos que competem pelo controle territorial. A

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reforma agrária implementada no contexto de uma reestruturação territorial re-gressiva pode ou não alcançar seus resultados distributivos declarados, ou podeacabar sendo completamente abandonada. Movimentos em prol da reforma agrá-ria redistributiva e uso sustentável e eqüitativo da terra têm que levar em conta ainteração entre os programas oficiais de reforma agrária e o arranjo de projetos epolíticas que influenciam as condições estruturais e determinam o controle sobreo território. O Banco Mundial é, evidentemente, a principal instituição globalresponsável por estabelecer condições estruturais, tanto em escala nacional comosubnacional.

2. O contexto estrutural e o papel de instituições financeiras internacionais

A “condição de superprodução” do capitalismo configura diretamente o con-texto estrutural em proporções globais. Caracteriza-se pela extração excessiva dosexcedentes e por crises cíclicas de acumulação do capital, nas quais a formação econcentração de capitais ficam sem oportunidades viáveis de reinvestimento e/oucapacidades correspondentes do mercado para consumir os bens produzidos. Naesteira de uma tendência de vinte anos de acumulação intensa de capital, as institui-ções financeiras globais se deparam agora com o problema de quitar grandes quan-tias de juros sobre seus ativos. Essas instituições têm de emprestar grandes quantiaspara transferir o ônus da “liquidez excessiva” aos tomadores de empréstimo.

Esses empréstimos abrem oportunidades, particularmente em atividades delucro rápido, elevado, mas arriscado, como as indústrias extrativas.4 Tanto as opor-tunidades de investimento e como a extração são facilitadas e limitadas pelos atuaisambientes de investimento no hemisfério Sul. Por um lado, a dilapidação de paí-ses do Sul pelos programas de ajuste estrutural (SAP) do FMI e Banco Mundial,nas últimas duas décadas, deixou os governos frágeis e incapazes de fornecer ga-rantias políticas, sociais e financeiras a investidores estrangeiros. Por outro, issotambém os tornou dependentes de investimentos estrangeiros para sua sobrevi-vência como países e, por isso, vulneráveis para acordos enviesados a favor de com-panhias estrangeiras. Por causa dos riscos políticos e econômicos envolvidos naexploração dessas oportunidades, companhias e instituições financeiras se dirigema instituições financeiras internacionais (IFI), como o Banco Mundial e os bancosregionais de desenvolvimento (por exemplo, o Banco Interamericano de Desen-volvimento – BID), para que forneçam as garantias financeiras, políticas e sociaispara seus investimentos.5

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Graças à sua natureza poderosa e multilateral, as IFIs conseguem forçar osgovernos tomadores de empréstimos fracos a modificar seus parâmetros regula-dores de investimentos para favorecer investidores estrangeiros. Significativamente,ao contrário de bancos privados, as IFIs também são capazes de moldar as condi-ções estruturais diretamente a nível nacional e subnacional. As grandes IFIs têmdois braços distintos de empréstimos – privado e público – a fim de fazer o servi-ço. Junto ao Grupo do Banco Mundial, a Corporação Internacional de Financia-mento (IFC) concede empréstimos ao setor privado, enquanto o Banco Interna-cional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD) viabiliza empréstimos agovernos. As mesmas pessoas no Conselho de Administração que aprovam osprojetos para reformas governamentais, infra-estrutura, meio-ambiente e saúdetambém aprovam os empréstimos da IFC para projetos do setor privado, nos quaiso BIRD, não raro, tem um interesse de ganhos patrimoniais. Associando o BIRDe a IFC com uma mão e uma foice, um líder camponês comentou certa vez: “Oque o Banco cultiva com uma mão, colhe com a outra.”

3. O caso da Guatemala

Na Guatemala, o desenvolvimento de indústrias extrativas é determinado porum Estado frágil pós-guerra (firmemente controlado por uma poderosa e vitoriosaelite) e por preços extraordinariamente altos do ouro no mercado internacional.

No primeiro caso, o governo do partido de coalizão (GANA), de Oscar Berger,realizou uma campanha de sucesso com uma plataforma de crescimento econô-mico, por meio da “integração regional”, i.e., o Plano Puebla-Panamá e o DR-CAFTA.6 O encolhimento da iniciativa anterior e a incapacidade da segunda paraproduzir benefícios sociais em um futuro próximo e a médio prazo obrigou Berger(assim como aos dois presidentes anteriores) a se voltar para os recursos mineraisdo país como fonte de renda e poder político. Porém, na Guatemala, trinta e seisanos de guerra civil haviam afastado a maioria das companhias da zona rural.Reavivar o setor era uma possibilidade remota até que, nos anos de 2001 a 2004,o preço internacional do ouro saltou de US$ 277 para mais de US$ 400 por onça(Solano, 2005).

De acordo com a IFC, a elevação dos preços do ouro deve-se, em grande par-te, ao “dólar fraco, baixas taxas de juros reais, baixo crescimento econômico, riscogeopolítico maior, mineração em queda, diminuição de medidas compensatóriasde perdas da maioria dos produtores e incerteza no mercado de capitais” (IFC,

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2004, p. 13). Acrescente-se a isso a explosão da demanda nas classes médias altasda Índia e China, em rápido crescimento. Ao redor do mundo, minas antigas, debaixa qualidade, esgotadas ou difíceis de serem exploradas, de repente tornaram-se potencialmente lucrativas. Na Guatemala, essas jazidas se encontram nosAltiplanos Ocidentais, terra natal da maioria da população indígena empobrecidado país.

Durante décadas, os Altiplanos foram o cenário dos mais alastrados e horrí-veis episódios de abusos dos direitos humanos pelo governo e por paramilitares.Depois da assinatura dos Acordos de Paz do país, em 1996, o Banco Mundialrapidamente aconselhou o governo de Arzú para que modernizasse o setor de mi-neração guatemalteco. Isso levou a uma das mais draconianas legislações de mine-ração desde a Conquista espanhola. Sob a nova lei de mineração, as companhiasnão apenas são 100% de propriedade estrangeira, mas os antigos 6% obrigatóriosde royalties foram substituídos por mero 1% e o imposto de 58% sobre os lucrosfoi reduzido a 31%. Em um país onde os consumidores pobres pagam até US$140 por mês pela água, as imensas quantidades de água necessárias para processarminério de ouro são gratuitas para companhias mineradoras.7 O licenciamentofoi agilizado e, embora alguns regulamentos ambientais se tornassem mais rigoro-sos, não se tomou nenhuma providência para aumentar a capacidade reguladorados ministérios de Minas ou Meio-Ambiente, o que torna essas melhorias efetiva-mente simbólicas.

O Banco Mundial e o atual governo de Berger racionalizam essa “corrida aoabismo”, insistindo em que essas concessões atrairão novos investimentos para umsetor politicamente arriscado. Nessa visão, em algum dia no futuro, os benefíciosda mineração levarão ao desenvolvimento econômico e social. Mas esse argumen-to se baseia na suposição de que o preço alto do ouro e as reservas do minério dopaís durarão tempo suficiente para construir, de fato, uma indústria nacional paradepois que expirarem as concessões das companhias mineradoras estrangeiras,dentro de vinte anos.

Ainda que o ouro tenha saltado para os atuais US$ 650/onça, a onda do ouronão durará para sempre. As moedas se estabilizarão, a demanda será saturada e oFundo Monetário Internacional – atualmente com mais de US$ 40 bilhões emreservas de ouro – poderá vender seu ouro em barras no mercado internacionalpara lidar com sua própria crise financeira, derrubando assim os preços internacio-nais e tornando novamente não-rentáveis as minas de baixa produtividade. Atéentão a corporação estrangeira terá obtido seus lucros e provavelmente cairá fora,deixando as sobras para companhias nacionais e toda a limpeza ambiental para os

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pagadores de impostos da Guatemala – ou pior, para os aldeões locais. Nitida-mente, o apoio do Banco Mundial à mineração do ouro na Guatemala é uma es-tratégia de curto prazo para a exploração intensiva, que não apenas requer amanipulação direta do arcabouço jurídico do país, mas também o controle exten-sivo sobre as estruturas territoriais nos Altiplanos Ocidentais, para garantir extra-ção eficiente – se não predatória – de excedentes.

3.1. A reforma agrária na área de mineração: o povo, a zona rural, os projetosControlar a terra, mão-de-obra e amenizar conflitos sociais, políticos e

ambientais são condições essenciais para indústrias extrativas e, por conseqüên-cia, constituem um objetivo primordial da reestruturação territorial do BIRD. Ainfluência territorial da indústria mineradora nos Altiplanos se estende sobre aárea da extração (minérios e água), como também sobre uma área de influência(mercados de terra e mão-de-obra, estradas, madeira, etc.). Com efeito, a mani-pulação do espaço e do lugar, por meio da reestruturação territorial, tanto preparacomo é moldada por atividades que acontecem nas áreas da mineração, que repre-sentam, ao mesmo tempo, o ponto de apoio socioeconômico e político da indús-tria e sua pegada ambiental.

Nas áreas da mineração, a terra, o trabalho, o capital e os serviços ambientaisfluem para, e são afetados por, atividades mineiras. A área de mineração não édistributiva; recursos que fluem para a mina não fluem de volta com a mesmariqueza para os Altiplanos. Privilegiar interesses de mineração “insere estrutural-mente” o acesso do setor a matérias-primas e “exclui estruturalmente” qualquerrepatriação significativa ou distribuição dos lucros. Igualmente, exclui estrutural-mente qualquer alternativa séria ou estratégias de desenvolvimento sustentável quepoderiam melhorar a vida rural. Desse modo, exacerbam a deterioração das con-dições socioeconômicas na zona rural dos Altiplanos. Assim, enquanto algunsrecursos na área de mineração (como terra, água e eletricidade) fluem para a mina,outros (como a mão-de-obra rural) fluem integralmente para fora da área rural.Sem medidas atenuantes efetivas, a mineração drenará, direta e indiretamente, osrecursos naturais e humanos dos Altiplanos.8

Em conseqüência, não é nenhuma coincidência que a área de mineração, nomapa dos Altiplanos Ocidentais, coincida totalmente com as áreas de influênciados projetos do BIRD para infra-estrutura, desenvolvimento econômico, serviçosambientais e reforma agrária. Coincide igualmente com a maioria da populaçãodo país, sobretudo rural, pobre e indígena, as mesmas comunidades devastadaspela guerra civil.

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4. Das Estratégias de Assistência ao País à reestruturação territorial

Ao mesmo tempo, a Guatemala possui a maior economia da América Cen-tral, mas tem um dos graus mais extremos de desigualdade em toda a AméricaLatina, com o segundo pior coeficiente de Gini (0,57) do continente. A pobrezase concentra nas áreas rurais do país e no seio de comunidades indígenas que res-pondem por mais da metade da população da área rural.9 Nos Altiplanos Ociden-tais densamente habitados, povos indígenas de vários grupos maias (Kiché,Kaq’chikel, Mam e Q’eqchi) representam entre 57% e 90% da população. Quase70% dos habitantes dos Altiplanos são agricultores pobres ou extremamente po-bres. Mais da metade da população sobrevive com a agricultura de subsistência(Banco Mundial, 2005).

A atual carteira do Banco Mundial na Guatemala, de US$ 255 milhões, édesembolsada por seu braço de investimento para o setor público “social” (BIRD)nas esferas da educação, nutrição e saúde materno-infantil; desenvolvimento lo-cal e rural (inclusive ambiental), administração agrícola e gestão do setor público.O braço para o setor privado (IFC e MIGA) “complementam os empréstimos doBIRD para mudanças políticas e institucionais… através de investimentos e aju-da técnica no setor de bancos e seguros, infra-estrutura, indústrias extrativas,manufaturas… e os setores de exportação de valor agregado” (Banco Mundial,2005, p. 25). A IFC disponibiliza US$ 139 milhões em sua carteira guatemalteca.

De acordo com o Banco Mundial, desde a assinatura dos Acordos de Paz, em1996, o governo da Guatemala renovou seu enfoque acerca dos programas rurais.O BIRD apóia o plano de reativação econômica do presidente guatemalteco Os-car Berger, denominado “Vamos Guatemala!”, cujos três componentes (GuateSolidaria Rural, Guate-Invierte, Registro Infomación Catastral) são consideradoscapazes de causar um impacto na pobreza e fortalecer a Secretaria de QuestõesFundiárias (ibid).

“Vamos Guatemala!” e o pacote do Banco Mundial pretendem abrir a área ruralpara o recém-aprovado DR-CAFTA, visando “criar oportunidades para acelerar odesenvolvimento e o crescimento na Guatemala – inclusive pela atração de novosinvestimentos para o país…” Em uma comovente passagem de sua Estratégia deAjuda ao País (CAS),10 o Banco Mundial afirma que os camponeses indígenas, de-pendentes de “commodities rurais sensíveis” (i.e., o cultivo de grãos básicos para asubsistência), precisarão de ajuda em “atualização tecnológica, substituição de cul-turas ou ajuda para sair da agricultura, complementadas por ações para estimular odesenvolvimento de mercados financeiros mais profundos… Deficiências na infra-

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estrutura guatemalteca, como a rede viária… precisam ser enfrentadas para que sepossam colher os ganhos potenciais do DR-CAFTA” (Banco Mundial, 2005, p. 26).

Para apoiar a penetração do DR-CAFTA, o BIRD argumenta em favor de umcrescente acesso a ativos produtivos e à infra-estrutura rural, acompanhado poratividades “geradoras de demanda” concentradas nos Altiplanos Ocidentais. Os-tensivamente, os Altiplanos são visados porque sua condição de elevadas taxas ealta densidade de pobreza oferece a melhor oportunidade para impactos positivosde desenvolvimento. Contudo, os Altiplanos são territorialmente estratégicos emtermos de mercados de mão-de-obra, agroindústria, serviços ambientais e mine-rais. Entre outros focos, a estratégia do Banco identifica especificamente “gestãodescentralizada com um foco territorial” (ênfase do autor).

O BIRD recomenda combinar programas de infra-estrutura com a alocação definanciamento (microcrédito) e assistência técnica para desenvolver indústrias locais emicroempresas, através de “propaganda” em nível territorial e também mediante in-tervenções de políticas identificadas, tais como a aprovação de um código das águas.

Como documento de estratégia nacional, o CAS delineia o ambiente de polí-ticas em que os projetos específicos serão implementados pela afirmação das con-dições e objetivos gerais do desenvolvimento financiado pelo BIRD. Contudo,em e por si mesmo, o CAS não é suficiente para determinar o que de fato é feitona base. Apesar da retórica de mercado do Banco Mundial, projetos patrocinadospelo governo e financiados pelo BIRD (também uma instituição pública) se fa-zem necessários para favorecer os interesses do capital privado internacional. Porimplicar em dívida interna, esses projetos freqüentemente são votados em con-gressos ou parlamentos nacionais. Os possíveis impactos ou conseqüências dessesprojetos muitas vezes conflitam com interesses de influentes setores privados eestatal do país que toma o empréstimo.

Enquanto todos os projetos do BIRD para a reforma fiscal, reforma agrária ouserviços ambientais ajudam integralmente o capital financeiro internacional a “pene-trar” das alturas desregulamentadoras do DR-CAFTA em oportunidades específicasde investimento, a nível subnacional, às vezes, esses colidem com os interesses das eli-tes nacionais. Estas têm pouca disposição para assumir uma dívida interna de proje-tos que reduzem sua renda (como a reforma fiscal) ou solapam seu controle sobre ma-térias-primas (como a reforma agrária), que podem favorecer certos enclaves emdetrimento de outros, ou simplesmente podem não oferecer oportunidades suficien-temente interessantes para uma atitude de quem busca rendimentos. Assim, as nego-ciações em torno de projetos freqüentemente refletem disputas nacional-internacio-nais e intranacionais sobre ganhos e matérias-primas em escala territorial.

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A geografia do enfoque territorial do Banco é definida vagamente por umaárea física extensa com camadas de projetos, circunscrita por acordos comerciaisregionais e emoldurada por políticas nacionais. A convergência de políticas naci-onais, projetos do BIRD e acordos regionais, em uma escala subnacional, produzuma arena de desenvolvimento ou “hiperespaço” no qual capitais poderosos desa-lojam capitais mais fracos ou não-consolidados para acessar recursos e extrair ri-quezas. A criação institucional ou espacial desse hiperespaço, por seu turno, defi-ne o lugar da área geográfica em que se concretiza a reestruturação territorial, menospelo traçado inteligente do BIRD que pela conformidade com a lógica do capitale do território, articulada pela mais proeminente instituição do mundo para odesenvolvimento capitalista internacional.

Obviamente, qualquer reestruturação dentro de um território pobre, densamentepovoado e predominantemente agrícola, forçosamente tratará de questões fundiárias,embora não necessariamente com o objetivo de redistribuir ativos, aliviar a pobreza,ou até mesmo intensificar a produção agrícola da pequena propriedade.

Uma leitura do pacote específico de projetos – bem-sucedidos e fracassados –ajuda a depreender (por trás da retórica desenvolvimentista do BIRD e dos parâmetrosdo CAS) o significado dos programas de reforma agrária do Banco Mundial.

5. Rodovias, pavimentadas de boas intenções, até o ouro: o pacote do BancoMundial para o Altiplano

Uma revisão da história de US$ 1,8 bilhão do BIRD na Guatemala revela umatendência gradual de aumento nos desembolsos, graças a um pico de emprésti-mos após a assinatura dos Acordos de Paz, em 1996. Em 1997, o Banco introdu-ziu um projeto de US$ 13 milhões, projetado para preparar as condições daprivatização da companhia telefônica, estradas e portos de propriedade do Esta-do.11 A isso se seguiram rapidamente três projetos que somam mais de US$ 133milhões, todos no mesmo ano. No total, de 1997 a 2005, o BIRD introduziuvinte e quatro projetos distintos que somam US$ 859 milhões, emprestando maisà Guatemala em nove anos que nos quarenta anteriores. A série de projetos pós-Acordos incluía sete projetos de investimento da IFC que totalizam US$ 139milhões, o maior dos quais era a mina de Marlin da companhia Glamis Gold Ltd.,no valor de US$ 45 milhões, em 2004.

A última década de empréstimos do Banco Mundial à Guatemala foi marcadapor uma ênfase renovada no setor privado e por um esforço contínuo para trazer

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as “oportunidades” da desregulamentação e privatização para a zona rural.12 OsAltiplanos Ocidentais recebem atenção especial. Quase um terço dos projetos deempréstimo do BIRD e IFC, depois dos Acordos de Paz, foram direta ou indire-tamente para os Altiplanos Ocidentais:13

- O Projeto de Reconstrução e Desenvolvimento (US$ 33,5 milhões), voltado aSan Marcos e Huehuetenango para projetos de desenvolvimento comunitário emnível de aldeias;- O Projeto Fundo de Terra (US$ 23 milhões), introduzido em janeiro de 1999;- O Segundo Projeto de Estradas Rural e Principais (US$ 46,7 milhões), destina-do especificamente a San Marcos e Huehuetenango, nos Altiplanos Ocidentais,acrescentado em 2003;- O Projeto de Gestão de Recursos Naturais do Planalto Ocidental, formado deum projeto de US$ 8 milhões do Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF)e um projeto de US$ 32,8 milhões do BIRD, aprovado em maio de 2003;- O Projeto de Apoio a um Programa de Desenvolvimento Econômico Rural (US$30 milhões), partilhado com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, foiaprovado em março de 2006;- O Projeto de Administração Fundiária II (US$ 50 milhões) é um esforço paraaplicar aos Altiplanos Ocidentais as “lições aprendidas” do primeiro Projeto deAdministração Fundiária no Petén (no encerramento deste escrito);- A mina de Marlin: empréstimo de US$ 45 milhões para a Glamis Gold Ltd. daIFC para reabrir a mina de ouro Marlin em San Marcos.

Respondendo às condições semifeudais que primordialmente incendiaram aguerra civil de 36 anos, depois dos Acordos de Paz o Banco Mundial introduziu areforma agrária de mercado com o Projeto de Administração Fundiária (1998).14

De acordo com o Documento de Avaliação do Projeto, os objetivos do projeto(ainda em andamento) são: a) aumentar a segurança legal da propriedade da terrana Guatemala e b) fortalecer o marco legal e institucional para registro da terra eserviços de cadastro em âmbito nacional.15

Contudo, contrariando a vontade do BIRD, o governo da Guatemala nãoimplementou o projeto nos Altiplanos Ocidentais:

O Planalto é a área mais densamente povoada e considera-se que contém a maioria dosconflitos de terra… [isso] representava uma área de alto risco, de alto-custo. [Mas] por causada falta de experiência na regularização fundiária no país, o governo guatemalteco pediu que

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essa opção seja descartada devido ao elevado efeito de demonstração de um primeiro piloto,em favor de uma área de risco menor (o Petén) (Banco Mundial, 1998, p. 8).

O Projeto de Fundo de Terras de âmbito nacional, porém, avançou sem protes-to inicial do governo da Guatemala. Com esse projeto, o BIRD tentou ajudar oFONTIERRAS a: a) estabelecer um programa para facilitar o acesso à terra parabeneficiários; b) apoiar beneficiários a acessar a assistência técnica e financiarsubprojetos produtivos e c) melhorar o arcabouço legal e institucional para que omercado imobiliário funcione de forma mais eficiente.

Em suma, porém, entre 1994-2000 o INTA/FONTIERRAS somente bene-ficiou cerca de 4 mil famílias com financiamento público para aquisição de terra,subsídios e assistência técnica (Saldivar & Wittman, 2005). O governo daGuatemala não foi capaz de estabelecer um mercado imobiliário funcional eprivatizou, sobretudo, terras públicas ociosas. Em dado momento, o governo sim-plesmente cancelou o projeto, sem disposição de continuar contraindo dívidaspara um projeto que tinha pouco apoio entre os políticos (Garoz et al., 2005).

6. Enclaves ambientais

Em 2003, o Banco Mundial tentou introduzir um enorme projeto ambientalde cinqüenta milhões de dólares nos Altiplanos Ocidentais. O Projeto de Gestão deRecursos Naturais do Planalto Ocidental (MIRNA) era um sonho de ecologistas doNorte. De acordo com o BIRD, o MIRNA tanto conservaria o ambiente comocombateria a pobreza nos Altiplanos, como segue:

a) aumentando o capital social em torno da gestão de recursos naturais, pelo apoioa comunidades, organizações e autoridades locais (tradicionais e municipais) paradefinir e implementar conjuntamente uma visão de desenvolvimento local queleve em conta os objetivos da gestão de recursos naturais e a sustentabilidade;b) aumentando as oportunidades de melhorar, de forma sustentável, a produ-tividade e a diversificação da agricultura, bem como outros sistemas de subsis-tência (não-agrícolas);c) ampliando e fortalecendo esforços existentes de comunidades indígenas paraestabelecer áreas de conservação permanente dentro de zonas mais amplas debiodiversidade de relevância global e conservar os habitat que sustentam essadiversidade;

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d) estabelecendo e monitorando uma conjuntura para mercados de serviçosambientais, visando a assegurar incentivos locais à conservação.16

O BIRD considerou o MIRNA como um “projeto de desenvolvimento depovos maia”, proposto para assegurar sobrevivência sustentável e conservar abiodiversidade. É evidente que estabelecer reservas de biodiversidade em florestasdensamente povoadas ou intensivamente exploradas exclui necessariamente essesrecursos das estratégias de sustento das aldeias indígenas circunvizinhas. O proje-to propôs medidas para reduzir um “avanço” sobre recursos disponíveis peloenfoque na conservação de florestas, terra e água em propriedades privadas, e pelaintensificação da produção tanto agrícola como não-agrícola. Muitos aspectos daproposta tentaram solidificar o controle indígena comunal sobre os recursos na-turais envolvendo indígenas tradicionais na regulamentação da terra e de recursosnaturais, bem como nas decisões relativas à conservação.

Deixando de lado a viabilidade política e econômica de uma proposta que nãotratou especificamente das causas da pobreza nos Altiplanos – e, sugestivamente, evi-tou qualquer menção ao ouro, o recurso natural mais comerciável da região –, porquequase 15% das florestas e pastagens dos Altiplanos são geridos de forma comunal, oMIRNA também redundou em um enclave ambiental de terras indígenas (BancoMundial, 2003).17 Consistente com o CAS, o projeto presumia que criar mercadospara a conservação seria a chave para a sobrevivência sustentável nos Altiplanos Oci-dentais. Isso demandava a privatização de serviços ambientais, dos recursos acima dosolo, bem como da terra. A fim de criar reservas de biodiversidade e assegurar rendasno fluxo de serviços ambientais do Altiplano, era preciso garantir os direitos de proprie-dade e titular a terra (comunal e privada), tornando prioritária a regularização fundiária.Dessa forma, o MIRNA tentou alcançar, através do planejamento ambiental, o que oProjeto de Administração Fundiária não fora capaz de fazer através dos mercados imo-biliários: titular e privatizar a terra nos Altiplanos Ocidentais.

No entanto, diante de seu potencial de redistribuição, o desmantelando de “ter-ras públicas” pela titulação privada desagrega relações sociais existentes e o mesmoocorre na “criação” de terras públicas para serviços ambientais. Isso conduziu à resis-tência das elites latifundiárias da Guatemala. Não causou surpresa que o MIRNAfosse rejeitado pelo Congresso guatemalteco em 2004. Lamentando o que o BIRDchamava de momento errado, a Nota de Conclusão do Projeto afirma:

Os principais fatores que conduziram ao cancelamento do Projeto de Gestão de Recur-sos Naturais do Planalto Ocidental foram: 1) o fracasso do governo em atingir consen-

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so e obter as aprovações legislativas necessárias para efetivar o projeto antes das elei-ções nacionais e troca da administração e 2) a realidade fiscal muito difícil herdadapelo novo governo, que demandou medidas de austeridade, obrigando os ministériossetoriais a reavaliar suas prioridades (Banco Mundial, 2005, p. 5).

Na essência, o Banco Mundial colidiu com a recusa das elites guatemaltecasem pagar impostos, o desinteresse da burguesia rural pela reforma agrária e a inca-pacidade das classes governantes de ver alguma vantagem em conferir às comuni-dades indígenas qualquer controle substantivo (ainda que limitado) sobre recur-sos naturais nos Altiplanos. A lição de casa do FONTIERRAS e do MIRNA é: osinteresses dos capitais nacionais nem sempre estão em consonância com os doscapitais internacionais. Em 2005, o Banco observou:

[O] programa do CAS teve… dificuldades para atingir suas metas. Isso surgiu, emparte, da falta de compromisso governamental, durante os anos 2000-2003, comaspectos da agenda de reformas apresentadas em 1998. Também se deve a discordânciasno seio da sociedade guatemalteca sobre como prosseguir. Por exemplo, o projeto doFontierras foi afetado pela incongruência do modelo adotado pelo governo; os com-ponentes do financiamento rural e dos recursos naturais do programa do CAS prati-camente evaporaram (Banco Mundial, 2005, p. 37).

7. “Escavando” para a reestruturação territorial

Não desencorajado por sua inépcia em obter o acordo da classe política guatemaltecaacerca das condições ambientais de produção e extração nos Altiplanos Ocidentais, oBIRD se voltou para o comércio internacional, apresentando o Primeiro Empréstimode Política de Desenvolvimento com Base em Crescimento Amplo (US$ 100 milhões) emjunho de 2005. O empréstimo visa promover o comércio e investimentos orientadospelo DR-CAFTA. O BIRD reconheceu que o projeto não seria implementado facil-mente. Entre os riscos, estavam o “congestionamento político” do Congressoguatemalteco e “tensões sociais” relacionadas à realidade de pós-conflito do país, espe-cialmente em áreas controversas como a continuação da liberalização comercial, a pro-moção de maior participação privada na infra-estrutura e questões referentes a direitosde propriedade e à terra. Para lidar com os resultados “mais lentos que previstos” nocrescimento econômico da Guatemala, entre outras coisas o Banco Mundial sugeriu ofortalecimento do clima tanto para investimento doméstico como estrangeiro, mo-

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dernizando os direitos de propriedade e atacando gargalos de infra-estrutura para ocrescimento (Banco Mundial, 2005, p. 8).

Não foi surpresa que o BIRD considerasse como “fundamental para a agendade crescimento da Guatemala – assim como para a obtenção de um aumento nasolidariedade social e um melhor clima para negócios – a questão de assegurassegurassegurassegurassegurararararardirdirdirdirdireitos à terreitos à terreitos à terreitos à terreitos à terraaaaa” (ibid, p. 11).

Contudo, direitos seguros à terra são primordialmente importantes em áreascom potencial para extração privada para mercados globais e do DR-CAFTA.Como parceiro territorial do empréstimo de ênfase nacional, em março de 2006o BIRD introduziu também o Projeto de Apoio a um Programa de DesenvolvimentoEconômico Rural (US$ 60 milhões), partilhado com o Banco Interamericano deDesenvolvimento.

O projeto está centrado na infra-estrutura rural, em facilidades de Internet debanda larga, em planos de gestão territorial e investimentos estratégicos nos AltiplanosOcidentais.18 Especificamente, introduz o Modelo de Gestão Territorial (TMM).Espera-se que o TMM “influencie a política nacional e políticas setoriais, bem comoprioridades de investimento público… por meio de um sistema integrado e descen-tralizado de informação territorial estratégico…”. Também se espera que “tenha umimpacto positivo no aumento da competitividade das atividades produtivas de baseagropecuária que, por sua vez, causarão impacto na expansão empresarial e no cres-cimento das exportações, ajudando desse modo a explorar os benefícios potenciaispara a Guatemala trazidos pelo Acordo de Livre Comércio da América Central, re-centemente ratificado (CAFTA)” (Banco Mundial, 2006, p. 4).

O documento de Avaliação do Banco Mundial, referente ao projeto, soa umpouco como uma operação militar com “objetivos territoriais”, estradas e a pro-dução de “informação estratégica” no âmbito da campanha estrutural do DR-CAFTA. O BIRD não teve nenhum problema para obter a aprovação governa-mental para um empréstimo em que as oportunidades de mercado não implicavamem uma redistribuição de patrimônio. Não é difícil imaginar que setores na socie-dade guatemalteca estão mais bem posicionados para tirar vantagens do plano doprojeto para a capitalização dos Altiplanos.

8. Golpe de ouro no hiperespaço

Enquanto isso, por trás das agendas sociais e ambientais de (des)regulamen-tação, ocultas aos olhos de militantes do desenvolvimento e defensores da refor-

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ma agrária, a única coisa com que o BIRD e o governo de Berger podiam concor-dar cabalmente era abrir os Altiplanos à mineração. De acordo com Solano (2005),antes de 2005, o governo da Guatemala concedeu 115 novas licenças para com-panhias mineradoras estrangeiras, elevando o total a mais de 200 operações po-tenciais, nove décimos dos quais se situavam em territórios indígenas do Altiplano(veja mapa).19

Em junho de 2004, a IFC estendeu um empréstimo de US$ 45 milhões decusteio à Glamis Gold Ltd., de propriedade canadense – quarto maior produtorde ouro do Canadá – para começar as operações no Departamento de San Marcosna mina de Marlin. O projeto não significou nenhum endividamento para o go-verno e a IFC ofereceu à Glamis e ao governo as garantias de que, com o financia-mento e a assistência do BIRD, a Marlin evitaria o conflito social e a degradaçãoambiental freqüentemente associados à mineração. A IFC e a família de Bergerestavam particularmente interessadas em abrir a indústria mineradora daGuatemala para novos investimentos.20

O Banco Mundial foi publicamente otimista sobre as virtudes de seu “Setorde Mineração Ambiental e Socialmente Responsável”:

O setor apresenta um grande potencial para beneficiar a Guatemala se o desenvolvi-mento for apoiado e implementado corretamente. Nesse contexto, a IFC esteve asses-sorando o projeto em várias frentes, inclusive nos aspectos ambientais e sociais, e nodesenvolvimento das comunidades circunvizinhas (sic). Por exemplo, o Departamentode Cidadania Corporativa da IFC subsidiou uma iniciativa de ajuda técnica para pro-piciar treinamento a comunidades indígenas em redor da mina, visando criar e admi-nistrar viveiros florestais para o reflorestamento, bem como ajudando a identificar ou-tros mercados que esses viveiros possam abastecer (Banco Mundial, 2005, p. 38).

O Banco Mundial admite que reativar a mineração nos Altiplanos Ocidentaisnão era algo simples. Também viu uma clara ligação entre problemas fundiários eo desenvolvimento da mineração:

O desenvolvimento [da mineração] também foi um tema bastante controverso e deuorigem a grandes manifestações de grupos indígenas e ONGs locais e estrangeirascontra a mineração, em particular, e o governo de modo geral. De certo modo, amineração se tornou um ponto de afloramento de queixas há muito represadas con-tra o estado e o setor privado com respeito a abusos de direitos humanos, discrimina-ção e exploração econômica no passado. Isso também é flagrante em uma série de

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conflitos pela terra entre camponeses e grupos latifundiários que, em alguns casos, setornaram violentos (Banco Mundial, 2005, p. 57).

Abraçando zelosamente a sugestão do Banco Mundial de que o país “moder-nize” seu setor de mineração através de investimento estrangeiro, o governo daGuatemala já havia reduzido as exigências de royalties de 6% para 1% e impostossobre os lucros de 58% para 31%. Justamente para a Glamis Gold Ltd., o gover-no de Berger ofereceu uma isenção fiscal especial de quatro anos, programada paracoincidir com o período do pico de produção da mina (Solano, 2005).21

Poderosa capitânia do setor minerador da Guatemala, a mina de Marlin rapi-damente se tornou a operação mais lucrativa da Glamis. Espera-se que a minaproduza 2,1 a 2,5 milhões de onças de ouro e 29,2 milhões de onças de pratadurante um período de 11 anos.22 Com respeito à controvérsia internacional rela-tiva à mina, a IFC insiste em que “[esse] projeto… pode ser operado de modoresponsável para ajudar a reduzir a pobreza na região e melhorar a vida das pessoas.Solicitaríamos a qualquer pessoa preocupada com as demandas do povoguatemalteco dessa região empobrecida que considere objetivamente os fatos e arealidade da situação.”23

Certa vez estive em uma reunião com a IFC e vários representantes de aldeiasde San Marcos que tinham vindo a Washington D.C. para exigir que o Bancoretirasse seu apoio à mina de Marlin. O gerente sênior da divisão de investimentoem mineração da IFC enfrentou diretamente os aldeões: “Vocês querem uma mina,ou vocês querem permanecer pobres para o resto de suas vidas?”

Essa importante pergunta revelou não somente a maneira muito limitada comoa IFC encara sua missão de desenvolvimento,24 mas também desmascarou inad-vertidamente a conveniente ficção territorial usada pelo Banco Mundial, quandoinvoca o desenvolvimento local para justificar a extração maciça de riqueza de paísespobres. Nos cálculos das próprias projeções da companhia, nos próximos 11 anos,a Glamis Gold Ltd. provavelmente sairá com mais de US$ 1 bilhão em lucroslíquidos de apenas uma mina. O governo guatemalteco terá permissão para retercerca de US$ 273 milhões, dos quais serão investidos US$ 6,6 milhões nas comu-nidades próximas ao local da mina.25

O Banco Mundial investiu cerca de US$ 228,2 milhões em fundos públicospara a reestruturação territorial dos Altiplanos Ocidentais. Se apenas metade dosganhos com a mina de Marlin fosse aplicada em programas de desenvolvimentonaquela mesma área geográfica, ainda assim totalizaria mais de duas vezes a quan-tia do investimento público do Banco Mundial. Considerando-se que, na realida-

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de, os investimentos do BIRD são empréstimos, a taxas de mercado, ao governoda Guatemala, a nefasta ironia do cálculo de desenvolvimento é que os cidadãosda Guatemala estão pagando ao Banco Mundial pelo privilégio de tornar muitoricas companhias estrangeiras como a Glamis Gold Ltd.

Esses níveis astronômicos de extração de riqueza seriam impossíveis sem elitesnacionais cúmplices e as condições estruturais de viabilização providenciadas peloBanco Mundial. Quando se extrapola o padrão extrativista da área de mineraçãoda Glamis para a escala territorial das 200 ou mais concessões de mineração nosAltiplanos Ocidentais, fica clara a função do hiperespaço de desenvolvimento doBanco Mundial: a pilhagem dos recursos remanescentes em terras indígenas daGuatemala.26

Conclusão: reforma agrária e luta pelo território

O futuro dos povos – tanto indígenas quanto camponeses – da Guatemalaestá infalivelmente amarrado aos Altiplanos Ocidentais. A titulação da terra e odesenvolvimento de mercados imobiliários é apenas uma parte de um pacote deprojetos empurrado pelo Banco Mundial para a reestruturação territorial regressi-va que favorece investimentos e indústrias extrativas estrangeiras, em detrimentoda sobrevivência rural indígena.

Demandas atuais pela reforma agrária redistributiva enfocam corretamente aimportância da terra como fator de produção, recurso social e necessidade cultu-ral para comunidades camponesas indígenas. Essa abordagem reconhece que a posseda terra sempre fez parte de questões agrárias mais amplas que tratam da distri-buição de patrimônios e do controle sobre a produção e a acumulação/distribui-ção da riqueza.

Em decorrência, o debate referente à importância da redistribuição da terracomo fator de produção não pode ignorar as ameaças à condição da terra comopropriedade. A falta de área suficiente de terra e de florestas realmente constituium sério problema para o sustento de camponeses indígenas. Mas a colonizaçãoda terra indígena existente por indústrias extrativas ameaça, da mesma maneira, oscamponeses com e sem-terra. Nesse sentido, na Guatemala, a mineração deve servista como uma ameaça agrária de base ampla, não apenas ao sustento dos campo-neses, mas à existência indígena nos Altiplanos. Essa ameaça não decorre simples-mente da área de mineração – a pegada de incidentes sociais e ambientais secun-dários associados ao ato físico da mineração –, ela é inerente à transformação política

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e econômica do território rural, associada ao hiperespaço de desenvolvimentoreestruturado criado pelo Banco Mundial. O verdadeiro hiperespaço que permiteque, primeiramente, atividades como a mineração predatória de ouro deitem raízes.

Não obstante seu discurso de desenvolvimento humanista, o Banco Mundialnão trata a relação entre terra e recursos do ponto de vista da sobrevivência indí-gena, mas da lógica do capital e da lógica de território. Denunciando a reformaagrária de mercado do Banco, movimentos camponeses reconhecem corretamen-te a lógica do capital embutida nos projetos. No entanto, ao enfocar somente areforma agrária e a agricultura, esses argumentos não atingem a lógica de territó-rio pela qual o Banco fundamenta seus projetos para o capital. Isso permite aoBanco Mundial reestruturar agressivamente o território, de um lado – até mesmoenquanto faz avançar projetos para a reforma agrária –, e a gestão ambiental ou odesenvolvimento agrícola, de outro. A realidade política da reestruturação territorialpropõe a necessidade de fundamentar tanto as lutas pelo sustento como os movi-mentos pela reforma agrária redistributiva em estratégias de resistência territorial.Isso implica não apenas a resistência às formas pelas quais o capital, através doBanco Mundial, redesenha, reforma e reposiciona as comunidades e o sustentoindígena, em função de suas próprias lógicas. Requer também que as comunida-des indígenas implementem suas próprias ações diretas e antecipem suas propos-tas para a reestruturação territorial “de baixo para cima”.

Lutas por sustento que implementam estratégias de agricultura sustentável namão dos camponeses terão pouca utilidade se a terra, a água e agricultores foremperdidos para interesses de mineração. Lutas pela reforma agrária poderão ter su-cesso se agregarem os camponeses sem-terra contra a reforma agrária de mercado,mas sem a participação de pequenos proprietários e as comunidades indígenas nãoé provável que façam pender a balança em favor de reformas redistributivas.Alicerçar a reforma agrária no seio da resistência territorial permite a camponesessem e com terra convergir sobre plataformas comuns para o sustento e a sobrevi-vência.

Também cria uma oportunidade de conectar lutas concretas por terra e sustentocom lutas abstratas – como a resistência ao DR-CAFTA.27 Como em muitas áreasda América Latina, fundamentar lutas pela terra em lutas territoriais também conectaa terra, o sustento e a reestruturação político-econômica ao lugar. Para a maioria dospovos indígenas, o lugar é tão fundamental quanto o idioma. Como a defesa dolugar constitui, na quinta-essência, uma questão de território, o lugar nunca estálonge da superfície das demandas indígenas e camponesas por terra. Pela recíproca,demandas por terra jamais deveriam estar longe da defesa do lugar.

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Durante a próxima década, as lutas agrárias por terra nos Altiplanos Ocidentaisda Guatemala podem muito bem ser eclipsadas por movimentos indígenas contra aextração mineral. Ambas são essencialmente lutas por sustento e sobrevivência cul-tural. A resistência indígena à reestruturação territorial não somente é crucial paraenfrentar as ameaças do capital à sobrevivência indígena, é necessária para embarcarna ação pró-ativa da “reestruturação de baixo para cima” que reafirma o espaço elugar indígenas, não obstante a reestruturação territorial “de cima para baixo”.

Da mesma maneira, como uma compreensão da reestruturação territorial ins-trui a resistência territorial, atos de resistência territorial abrem espaços e lugarespara a soberania territorial, a base da sobrevivência indígena e da melhoria dosustento camponês.

Notas

1 “Nossa Missão: Combater a pobreza com paixão e profissionalismo para resultados duradouros. Ajudarpessoas a ajudarem-se a si mesmas e a seu meio-ambiente, oferecendo recursos, compartilhando conheci-mento, capacitando e construindo parcerias nos setores público e privado.” http://web.worldbank.org

2 “O projeto é considerado, pela indústria de mineração, um teste para o ambiente de investimentos mineirosguatemalteco. Seu sucesso comercial deve encorajar novos investimentos no país e no setor” (IFC, 2004, p. 4).

3 Nesta análise, o “contexto estrutural” se refere às condições político-econômicas (instituições, leis, políti-cas, subvenções) que determinam natureza, ritmo, extensão e direção da produção e apropriação de exce-dentes da terra, bem como a alocação desses excedentes.

4 No caso da mina Marlin, por exemplo, os custos operacionais totais da Glamis são apenas US$ 121/onça(IFC, 2004). Com base nos preços médios do ouro atualmente vigentes no mundo (cerca de US$ 650/onça), isso assegura à companhia uma taxa de retorno do investimento de 437% (!).

5 Diante da missão do Banco Mundial, poderíamos esperar que este ajudasse governos fracos a negociar contra-tos fortes e distributivos que contribuam para a reconstrução do estado e o alívio da pobreza. Isso raramenteacontece, devido à circunstância de que, historicamente, a missão do BIRD é secundária em relação à suafunção: após duas guerras mundiais (diante da industrialização meteórica da União Soviética), as potênciasOcidentais criaram duas instituições financeiras globais multilaterais, a fim de reconstruir a Europa e adminis-trar as crises cíclicas do capital para a consolidação dos países capitalistas. O FMI foi encarregado de manter asmoedas estáveis e o Banco Mundial de criar condições favoráveis para investimentos, mediante a reconstruçãoda infra-estrutura na Europa Ocidental (ambos consolidaram o poder dos Estados Unidos e do dólar norte-americano). O Banco Mundial, particularmente, se tornou um foro de negociação para as potências capitalis-tas predominantes. Nações-membro gozam de direitos de voto proporcionais à sua participação de capital reale “de convencimento”. Na diretoria, o Diretor para cada país é designado pelo ministro das Finanças ou doTesouro de seu país. Embora a “missão” do BM seja aliviar a pobreza, sua “função” é administrar as tensões,crises e contradições do capital entre potências ocidentais, disponibilizando um foro de negociação para o G-8. Osdiretores do Banco Mundial negociam projetos e políticas que facilitarão o respectivo investimento e as opor-tunidades de contratos no mundo em desenvolvimento. Isso também requer que sejam mitigados os inciden-tes secundários sociais e ambientais que resultam desses investimentos, a fim de assegurar condições estáveis

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contínuas para o investimento e a acumulação de capital. O desenvolvimento – missão do BIRD – evoluiucom o passar do tempo. A missão original do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento(BIRD) foi a reconstrução da Europa Ocidental. Ela foi substituída pelo Plano Marshall, obrigando o mesmoa dirigir o olhar para o Terceiro Mundo. Depois que várias décadas de desenvolvimento resultassem na intratáveldívida do Terceiro Mundo, nos SAPs e no esvaziamento do Estado, o BIRD assumiu, cada vez mais funções demitigação social, política e econômica em países que fracassaram em seu desenvolvimento. Uma das tarefasatuais é criar condições favoráveis para descarregar o que agora os banqueiros citam abertamente como “liquidezexcessiva”. As contradições do capital obviamente produzem vencedores e perdedores, e os países do G-8 (do-nos de fato) usam o mesmo para assegurar que os riscos substanciais e custos da ampliação dos investimentossejam suportados pelos tomadores de empréstimos e pagadores de impostos – não pelos emprestadores. A rei-terada ênfase do BIRD no setor privado, na infra-estrutura e nas indústrias extrativas reflete uma estratégia deacumulação pela expropriação projetada, abrindo novas áreas para o investimento privado, particularmenteem investimentos de alto risco e de alto retorno (como a infra-estrutura), e em investimentos de retorno rápido(como indústrias extrativas). Ademais, os novos parâmetros globais do BIRD para a “integração regional”, nosquais pontos novos e antigos de produção e geração de energia são reinseridos em extensas redes de estradas,vias fluviais e portos marítimos, refletem a “lógica do capital” e a “lógica de território”, apresentadas por Harvey(2003) para explicar as estratégias do imperialismo para solucionar as crises cíclicas de produção e consumo. Aestratégia do BIRD segue na esteira do enfraquecimento dos países e do desmantelamento do consenso keynesianoiniciado com os programas de ajuste estrutural dos anos oitenta. Os consensos de Washington e pós-Washing-ton, dos anos noventa até o presente, não apenas tiveram sucesso em expropriar as nações em desenvolvimentode suas indústrias e serviços públicos, mas também desnudaram o Estado de sua capacidade reguladora, abrin-do, pois, caminho para que o capital internacional privado (e predatório) comprasse recursos naturais por ata-cado. Depois da primeira investida sobre indústrias e serviços nacionais, o capital internacional se voltou parao setor primário e as indústrias extrativas como canais adicionais para o capital.

6 O PPP – Plan Puebla-Panamá – é uma iniciativa de integração regional entre os países da América Cen-tral e os nove estados a sudeste do México. O PPP foi lançado no México em 2001. O DR-CAFTA –Acordo de Livre Comércio entre América Central, República Dominicana e Estados Unidos – foi assina-do nos EUA no dia 5 de agosto de 2004.

7 De acordo como informações do Grupo Banco Mundial, a mina Marlin da Glamis consumirá 577 milm3 de água por ano (IFC, 2004).

8 A Mina Marlin ocupa 7 km2 de terra, consome 15,3 MW de eletricidade e 577 mil m3/ano de água (IFC, 2004).9 População rural: 61%; indígena: 39%; pobre: 74%; extremamente pobre: 24%; analfabeta: 43%; povos

indígenas em áreas rurais: 80% (52% da população).10 O CAS é um documento com a matriz geral para operações do BIRD em escala nacional. Às vezes, o

CAS é discutido no parlamento ou congresso do país tomador do empréstimo. Ocasionalmente, são con-vidadas organizações da sociedade civil para que emitam parecer sobre o CAS. Porém, o importante é queo CAS é formulado tipicamente depois que já houve acordo sobre os “empréstimos condicionais” (em-préstimos condicionados a medidas de ajuste estrutural) entre o BIRD e o Executivo, isentando as inter-venções estruturais primárias do BIRD ao escrutínio no congresso ou da discussão pública.

11 “…preparar setores selecionados de infra-estrutura – portos, energia elétrica, telecomunicações, rodoviase o serviço postal – para criar concessões e privatizar...”. Documento de Avaliação de Projeto, Participa-ção Privada em Empréstimo de Ajuda Técnica para a Infra-estrutura, 2 de abril de 1997.

12 Embora o CAS e os Documentos de Avaliação de Projeto do BIRD derramem copiosas quantias de tinta acer-ca dos potenciais benefícios para os pobres nesse aspecto, raramente medem os impactos reais de suas interven-ções com projetos sobre a pobreza, evitando ter que informar se apresentam ou não os resultados planejados.Funcionários tentam ofuscar a crítica, referindo-se à impossibilidade de um “contraditório.” Em outras pala-

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vras, uma vez que lá não existe nenhum “piloto para controle” do desenvolvimento, no qual todas as variáveispodem ser mantidas constantes, é impossível saber se a melhora (ou deterioração) econômica, em determinadopaís, se deve a projetos do BIRD ou a fatores exógenos. A menos que grandes protestos públicos ou eventosincontestáveis sugiram o contrário, o Banco simplesmente presume que seus projetos tiveram êxito.

13 Até mesmo o Projeto de Reforma do Judiciário nacional anunciou suas primeiras atividades nos Altiplanos:“Trabalho no piloto de justiça móvel do tribunal de paz está ocorrendo na Cidade de Guatemala eQuetzaltenango.... O centro judiciário de Quetzaltenango foi inaugurado em outubro de 2004.” (BancoMundial, SOPE, p. 1182). O Projeto de Competitividade também informou apoiar “o IFC no setor damineração…”, uma referência oblíqua à mina de Marlin, em San Marcos.

14 De acordo com o Ministério de Agricultura, na Guatemala, 0,15% dos agricultores ocupam 70% da terraagricultável, enquanto outros 96% ocupam apenas 20% da terra agricultável; 90% da população rural viveabaixo da linha de pobreza; 500 mil famílias vivem abaixo dos níveis de subsistência (Saldivar & Wittman,2005). De 10,6 milhões de hectares na Guatemala, somente 2,8 milhões são cultivados e mais de 2,4 mi-lhões são subutilizados. Cerca de 5,4 milhões de hectares (mais da metade do país) precisam ser distribuídospara agricultores sem-terra e pequenos proprietários para que cada um tenha pelo menos 7 hectares para suasubsistência. No entanto, a reforma agrária foi bloqueada com sucesso pelas elites rurais guatemaltecas des-de que a reforma agrária do Presidente Jacobo Arbenz, de 1954, foi desfeita por um golpe militar apoiadopela CIA. Trinta anos depois, em face de uma crescente insurreição indígena e camponesa, a USAID com-prou 28 fazendas para formar um banco fundiário, distribuindo 1.400 propriedades durante um período deseis anos (Saldivar & Wittman, 2005). De acordo com o Banco Mundial, esforços antigos de reforma agrá-ria de mercado – conduzida pela INTA/FONTIERRAS (1994-1996) – foi relativamente malsucedida, de-vido à relutância por parte dos grandes proprietários de terras, à especulação fundiária, à falta de poupançapor parte do campesinato e à ambigüidade dos direitos de propriedade.

15 “O projeto consiste de três componentes. Primeiro, o cadastro e a regularização fundiária apoiarãoo mapeamento do cadastro de Petén, a adjudicação no campo, conforme a demanda e processamentode dados de áreas sujeitas à regularização. O resultado final é o estabelecimento de um cadastro dasparcelas que pode ser integrado com o sistema de registro. Segundo, o componente de registrofundiário apoiará a abertura de um cartório de registro em Petén e a gestão de modernização dosregistros.” Sumário do Projeto do Banco Mundial, http://web.worldbank.org

16 Sumário do Projeto, 7 de maio de 2003, http://web.worldbank.org17 EIA MIRNA: Os dados do INAB indicam que, para o Planalto Ocidental, existem menos de 1.047,2

km2 de bosques comunais municipais, representando cerca de 50,9% do total das florestas nacionaiscomunais. Simultaneamente esses bosques, cujo número supera 90 florestas, representam 14,6% do totalda cobertura florestal relatada pelo INAB (1999) para o Planalto Ocidental. A distribuição percentualpor departamento do Planalto Ocidental é a seguinte: Totonicapán 7,3%; Sololá 9,6%; Quiche 29,9%;Chimaltenango 3,0%; Huehuetenango 32,2%; Quetzaltenango 17,0% e San Marcos 1,0%. Leiva (2000)analisou algumas características silviculturais de 115 bosques do Planalto Ocidental e constatou que 56deles têm extensões que superam os 100 ha. Elias (1995) realizou um inventário de mais de 95 florestascomunais municipais e constatou que, pelo menos, 17 deles superam os 500 hectares.

18 San Marcos, Huehuetenango, Solalá, Quetzaltenango, Totonicapán, Chimaltenango, Sacatepequez e AltaVerapaz.

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20 Veja Solano (2005) acerca das ligações da família de Berger com interesses de mineração na Guatemala.21 Curvando-se à pressão internacional, em julho de 2006, a Glamis Gold Ltd. anunciou que renunciaria à

isenção do imposto e começaria imediatamente a pagar impostos sobre seus super-lucros.22 “As reservas totais de ouro, inclusive as reservas no plano de mineração, são de 5,6 milhões de onças. Recente-

mente [a Glamis] descobriu outro depósito de alto grau na área circunvizinha da Marlin” (IFC, 2004, p. 8).23 http://web.worldbank.org/24 “Nossa missão é promover o investimento sustentável do setor privado em países em desenvolvimento,

ajudando a reduzir a pobreza e melhorar a vida das pessoas.” http://www.ifc.org/ifcext/about.nsf/Content/Mission

25 A Glamis alega já ter investido US$ 1,3 milhões em assistência social em San Miguel Ixtahuacán, a co-munidade mais próxima do local da mina. Também prometeu pagar anualmente às municipalidades deSan Miguel Ixtahuacán e Sipacapa cerca de US$ 350 mil em royalties. Essas verbas serão destinadas aodesenvolvimento municipal. Enquanto isso, a Glamis e a IFC contrataram o Citizens Development Corps(CDC), com sede em Washington, para estabelecer a Fundação Serra Madre (FSM), a fim de levar a caboprojetos de desenvolvimento comunitário. Os residentes de Sipacapa já têm um plano de desenvolvimen-to municipal integrado desenvolvido por suas próprias comunidades, que nunca foram consideradas. Alémdo mais, foi-lhes negado acesso ao plano de desenvolvimento e às informações financeiras da FSM. Estãopreocupados de que verão pouco desenvolvimento real ou sustentável por parte de uma instituição basi-camente controlada pela companhia mineradora. A IFC alega que “a extração responsável de recursosminerais é uma das poucas maneira pelas quais povos indígenas locais podem esperar quebrar o ciclo dapobreza.” Em reuniões em Washington D.C., com representantes de aldeias, a IFC confrontou os aldeõescom um cenário de “ou-ou”: ou aceitam a mina, ou continuarão vivendo na pobreza. O representante deSipacapa respondeu que “há muitos caminhos para o desenvolvimento. Em qualquer empreendimentohá vencedores e perdedores, custos e benefícios. Precisamos saber a história inteira para tomar boas deci-

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sões.” Nem a IFC nem a Glamis Gold Ltd. jamais apresentaram aos aldeões uma prestação de contas doscustos sociais, econômicos ou ambientais da mina. http://www.bicusa.org/bicusa/issues/latin_america/2019.php. Para ilustrar as diferenças na distribuição de benefícios de empréstimos do Banco Mundial, ésignificativo que os cinco maiores executivos da Glamis receberam nada menos que US$ 19 milhões so-mente em salários durante esse período (não contando suas opções acionárias – agora em US$ 1,4 milhão– e os bônus ou aumentos). Isso é três vezes mais que a quantia que as comunidades locais obterão daMina de Marlin, durante esse mesmo período.

26 Não é preciso ser um ecólogo do Banco Mundial para saber que os Altiplanos Ocidentais estão em sériasdificuldades. Basta um olhar do topo de um monte em San Marcos para constatar que os níveis dedesmatamento, erosão do solo, densidade da população e subemprego alcançaram níveis críticos. Umnovo grande furacão ou terremoto – ou uma crise da moeda nacional – poderia facilmente precipitar aregião no colapso socioeconômico e ambiental. Uma abordagem séria do desenvolvimento teria realizadoextensos estudos, diagnósticos e avaliações ambientais estratégicas (SEAs) nos Altiplanos a fim de deter-minar os níveis de ameaças socioeconômicas e ambientais, oportunidades, limitações, capacidades e re-cursos disponíveis (inclusive minerais); e se envolveria em uma profunda análise participativa e amplapara identificar problemas, causas e possíveis soluções. Então, seriam formulados planos de desenvolvi-mento municipais e territoriais, indicando como os recursos locais de terra, mão-de-obra e capital pode-riam ser organizados para eliminar pobreza e promover o desenvolvimento sustentável. Para tanto, nãohá necessidade de nenhuma grande ciência. Os métodos e ferramentas para esse trabalho são numerosose experimentados, até mesmo no Banco Mundial. Com base nesse tipo de análise e planejamento, ascomunidades, regiões e o governo nacional debateriam e determinariam que tipo de reforma agrária éapropriado, seu nível de redistribuição, e a planejariam e executariam dentro do contexto de reformasagrárias mais amplas e reestruturação territorial a partir de baixo. Não é irracional pensar que a minera-ção poderia desempenhar um papel na geração da riqueza necessária para financiar esse tipo dereestruturação distributiva. A mina de Marlin evidencia o fato de que há, nos Altiplanos Ocidentais, ri-queza mineral mais que suficiente para financiar o desenvolvimento de longo prazo e sustentável da re-gião, se for eqüitativamente distribuída. Isso demandaria um verdadeiro trabalho de desenvolvimento euma instituição de desenvolvimento capaz de criar as condições estruturais para a implementação. Infe-lizmente, o Banco Mundial, a única instituição com os recursos humanos e financeiros necessários paraessa exaustiva tarefa, carece de vontade política para levar a cabo esse tipo de reestruturação distributiva.

27 “A maioria dos camponeses não luta por direitos à água, à terra, ou por noções abstratas de sustentabilidade,justiça ou participação no desenvolvimento… lutam pela comida, água, terra, florestas, por um preçojusto para seus produtos. Lutam por bom atendimento médico, por habitações decentes e por educaçãopara os filhos. Em suma, lutam por seu sustento, não por causas” (Holt-Giménez, 2006, p. 182).

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PARTE II

EXPERIÊNCIAS NA AMÉRICA LATINA, ÁFRICA E ÁSIA

APLICAÇÃO DAS POLÍTICAS AGRÁRIAS DOBANCO MUNDIAL NA GUATEMALA: 1996 - 20051

SUSANA GAUSTER

Guatemala é um dos países que enfrentam maior desigualdade na distribui-ção da terra no mundo. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE),o coeficiente Gini na distribuição da terra é 0,84, muito próximo a 1 que, comosabemos, significa total iniqüidade. Segundo dados do Censo Agropecuário de2003, esta iniqüidade se dá porque 92.06% das e dos pequenos produtores culti-vam apenas 21.86% da superfície, enquanto 1.86% dos produtores comerciaisocupam 56.59% da superfície.

Tabela 1 – Estrutura da propriedade da terra (2003)Número de produtores % de produtores Área(Mz) % da terra

< 1 manzana (Mz)2 (abaixo da subsistência) 375.708 45,23% 172.412,75 3,24%

1-10 Mz (subsistência) 388.976 46,83% 989.790,71 18,62%

10-64 Mz (1 cab) (excedentários) 50.528 6,08% 1.145,318 21,55%

64 e maiores (comerciais) 15.472 1,86% 3.008.316,31 56,59%

Total 830.684 100% 5.315.838,37 100%Fonte: elaboração própria, com base em dados do Censo Agropecuário.

Estes dados indicam que, depois da Revolução de Outubro (1944 – 1954), aspolíticas de acesso à terra na Guatemala feitas pelos diferentes governos – primei-ro com uma alta participação estatal e depois sob o marco do ajuste estrutural,com o mercado como regulador principal – não têm resultado em uma mudançada situação de acesso e distribuição da terra. Ao contrário, um coeficiente Ginique se aproxima cada vez mais da iniqüidade total demonstra que a exclusão estáaumentando.

A política de colonização dos anos de 1960 e 1970 se traduziu unicamente naoutorga de terras para reproduzir o modelo latifúndio-minifúndio, sem afetar aestrutura agrária vigente. Não havia uma visão de reforma agrária integral; aocontrário, desnaturalizou-se o modelo devido à corrupção, ao roubo e ao mono-

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pólio de terras. As principais críticas ao modelo reformista são de que não provo-cou uma mudança substancial na estrutura agrária, mantendo os níveis de con-centração fundiária. Isso provocou um dualismo entre a produção agro-exporta-dora e a produção de consumo interno, reproduzindo um setor moderno e de altaprodutividade para a exportação e outro setor tradicional camponês e pequenoprodutor, marcado pela pobreza. Provocou também tensões e conflitos seculares,com altos níveis de instabilidade, violência e atraso social e político. Já na décadade 1980, produziu-se uma mudança radical em função do ajuste estrutural esetorial, quando o mercado passou a ser a “solução” para a problemática agrária.

Este novo modelo desmantelou o Setor Público Agropecuário (SPA), liberali-zou o comércio, reduzindo as tarifas de produtos alimentícios básicos, promoven-do um enfoque empresarial e a compra de terras via mercado. Para compensar os“perdedores” por essas políticas, foram implementados fundos sociais.

Os Acordos de Paz que, em 1996, puseram fim a um conflito interno de 36 anos,assumiram o enfoque de acesso à terra do Banco Mundial (BIRD) – o mercado deterras e particularmente a “reforma agrária assistida pelo mercado” – como uma solu-ção para o problema agrário, uma das principais causas do conflito interno. Em outraspalavras, a mesma política de terras implantada em outros países do mundo comonovo paradigma do Banco Mundial, na Guatemala foi implantada em nome da paz.

Os Acordos de Paz estabeleceram, então, que o mercado funciona como meca-nismo central para promover a transformação da propriedade e para incrementar aeficiência e a produtividade. Propostas para fomentar o mercado de terras incluíamo fortalecimento dos direitos de propriedade (via regularização/titulação de terras,cadastro, registro de propriedade), a implementação de imposto territorial, o me-lhoramento de mecanismos financeiros para facilitar o acesso à terra (compra deterras), assistência técnica e investimentos econômico e social complementares.

Esta lógica está em total consonância com a política de terra do Banco Mun-dial daquele momento.3 Uma particularidade da Guatemala é o compromissoestabelecido nos Acordos de Paz de recuperar terras fraudulentamente cedidas amilitares e políticos na Franja Transversal do Norte (FTN) 4 e Petén na época dasditaduras militares.

Depois de nove anos da assinatura dos Acordos de Paz e de mais de 20 anos depolíticas de ajuste estrutural, o acesso, o uso e a propriedade da terra, assim comoa pobreza rural continuam iguais, ou ainda piores que antes do conflito armado.Em 2003, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) apre-senta dados de uma pobreza rural de 72.2% e uma pobreza extrema rural de 31.1%na Guatemala.

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1. A relevância da terra nas estratégias de desenvolvimento rural do BancoMundial

Entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundialhá um consenso (pelo menos nos discursos) de que o acesso à terra representa uminstrumento estratégico de fomento ao desenvolvimento de luta contra a pobre-za, especialmente para agricultores não-proprietários, minifundistas e campone-ses sem terra. A importância da terra no meio rural abarca diversos aspectossocioeconômicos, culturais, ambientais etc. Basicamente é um veículo para gerarbem-estar e renda de atividades agrícolas e não agrícolas, mas também é patrimôniocultural e ambiental das zonas rurais.

Por outro lado, em termos gerais, há um consenso de que “políticas claras”em relação à terra podem ajudar a melhorar não apenas a eqüidade, senão tam-bém a eficiência, no sentido de que, em contextos de alta concentração fundiária(como é o caso latino-americano e, em particular, o guatemalteco), umaredistribuição é desejável não apenas em termos de eqüidade e redução da po-breza, mas também em termos de produtividade. Muitos estudos têm demons-trado que na agricultura não-mecanizada, unidades pequenas são mais eficien-tes que as grandes unidades. As propriedades operadas pelos proprietários sãomuito mais eficientes, pois não têm a necessidade de supervisar estreitamenteos trabalhadores contratados.

Sem dúvida, chamam a atenção várias tendências. Em primeiro lugar, no marcodas estratégias de desenvolvimento rural do BID e BIRD, não se está dando ênfa-se ao acesso à terra. Há, no entanto, enfoque forte nas políticas que refletem osprogramas de ajuste estrutural: liberalização do comércio agrícola, integração com-pleta da agricultura aos tratados bi e multilaterais de comércio; apoio àbiotecnologia; diversificação da agricultura; mudança da concepção de soberaniapor segurança alimentar, etc. Neste sentido, destaca-se a estratégia de desenvolvi-mento rural do Banco Mundial de 2003 que, em todo o documento, desvia otema do acesso à terra, ou seja, desenvolve uma estratégia rural na qual o acesso ea distribuição da terra já não existem.

Segundo, quando aborda o tema do acesso à terra diretamente, as medidaspropostas não refletem a análise e o diagnóstico realizados pelas mesmas Institui-ções Financeiras Internacionais (IFIs), como, por exemplo, a contradição (em ter-mos sociais e produtivos) da existência de uma concentração muito alta na pro-priedade da terra. As políticas propostas, descritas nas seções seguintes, não têmnenhum efeito redistributivo.

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Terceiro, o último estudo do Banco Mundial deu uma guinada forte no tema.Pela primeira vez se reduziu quase completamente a importância da terra, tantocomo fator de redução de pobreza como de crescimento econômico (Banco, 2005).

Em relação a este último ponto, a questão é se hoje as pequenas unidades sãorealmente mais produtivas que as grandes. Isso se deve particularmente a umaagricultura mais mecanizada (que já não depende apenas da terra e trabalho, mastambém de capital e tecnologia); maiores riscos de preços, como resultado da aber-tura comercial e a eliminação de intervenções no preço (preços de garantia etc.); eporque geralmente as políticas governamentais, comerciais e o mercado em si ten-dem a favorecer os grandes proprietários.

Em relação à terra como fator de redução da pobreza, argumenta-se que a ren-da total de uma família é mais sensível ao capital humano e à migração de seusmembros do que à terra ou a outros ativos agrícolas. Fala-se de rendas diversificadas,entre as quais está a migração, que joga um papel importante, e a formação –capacitação para ascender a outros mercados laborais. Chega-se a tal grau de ne-gação da terra como fator de redução da pobreza, afirmando que investimentos epolíticas que apóiem aos pequenos produtores e aumentem suas rendas agrícolassão contra-producentes, pois podem resultar em uma busca menor de fontes derendas diversificadas. Afirma-se também que as “reformas agrárias assistidas pelomercado” basicamente têm sido implementadas para reduzir a conflitividade agráriae, assim, gerar governabilidade, mas nãonãonãonãonão para redistribuir a terra.

Ainda assim, alguns pesquisadores do BIRD seguem enfatizando a impor-tância do acesso à terra, inclusive – diante dos resultados negativos da reformaagrária assistida pelo mercado – propondo uma “nova heterodoxia” nas políti-cas de acesso, que inclui a desapropriação (com compensação) em paralelo àspolíticas convencionais do BIRD (de mercado) (Childress & Deininger, 2006).Não obstante, o descrito nos parágrafos anteriores permite supor que a tendên-cia será o abandono do tema do acesso e da redistribuição da terra como fatorde maior eqüidade social e o abandono da terra como elemento cultural, pro-movendo um conceito meramente economicista, refletido pelo enfoque únicoda “competitividade” agrícola em um mundo supostamente livre de barreirascomerciais (ainda que, na realidade, cheio delas nos países do Norte), onde cabeunicamente a produção e os produtores que respondem às exigências de umaeficiência questionável – já que as políticas nacionais (subsídios, incentivos fis-cais, apoio institucional etc) e internacionais (no marco das negociações comer-ciais) fomentam a produtividade e uma suposta “eficiência” de alguns produto-res, os grandes, às custas dos pequenos.

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Nos documentos específicos sobre políticas de terra, o Banco Mundial e o BIDestabelecem basicamente três formas de acesso à terra: a) a “reforma agrária assis-tida pelo mercado”, ou seja, acesso à terra através de um mercado de terras viacompra-venda; b) o acesso via arrendamento e c) o acesso via fortalecimento dosdireitos de propriedade e segurança jurídica, ou seja, a titulação e regularização deterras na posse, com seu respectivo marco jurídico e institucional (registro, cadas-tro) em paralelo a mecanismos judiciais e administrativos que possibilitem a reso-lução de conflitos sobre a propriedade da terra.

2. A “reforma agrária assistida pelo mercado”

Há uns 10 anos, o BIRD começou a incentivar a “reforma agrária assistidapelo mercado” (RAAM), com a suposição de que os mercados funcionam melhore destinam recursos de uma maneira mais eficiente. Esse modelo foi concebidosob a visão pragmática que era politicamente viável, já que se baseia em uma trans-ferência voluntária de terras.

O bom funcionamento do mercado de terras requer um contexto que garantadireitos de propriedade claramente definidos e legalmente reconhecidos, um marcoinstitucional para garantir a segurança desses direitos, melhorar a integração demercados de terra e outros mercados (particularmente os financeiros), assistênciatécnica, eliminação de incentivos setoriais (vantagens de impostos, de créditos,subsídios, etc), impostos territoriais, estabilidade macroeconômica, garantia deque o volume de terra ofertada seja maior do que a demanda, sistemas de infor-mação de mercado, infra-estrutura rural e serviços básicos.

É evidente que, na prática, o BIRD e o BID têm dado maior prioridade aosaspectos jurídicos para fortalecer o mercado de terras, como o fortalecimento dosdireitos de propriedade e a certeza jurídica. Têm desatendido a parte econômica(como os impostos da terra e a garantia de certo equilíbrio entre oferta e deman-da) e social (assistência técnica, infra-estrutura produtiva e social). Por isto, emtermos gerais, o modelo tem se tornado caro, mais benéfico aos grandes proprie-tários vendedores que para os camponeses compradores, e sem impacto real naredistribuição da terra.

Pouco a pouco, as mesmas Instituições Financeiras Internacionais estão reco-nhecendo que este modelo falhou. Enquanto o BID propõe avaliações de custo ebeneficio para determinar o êxito ou fracasso deste modelo (BID, 2002), KlausDeininger, funcionário do Banco Mundial, afirma que “(...) o potencial para uma

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redistribuição territorial (...) através dos mercados de venda tende a ser muito limi-tado” (Deininger, 2003, resumo executivo, p. 30). O estudo mais recente do BancoMundial se refere ao seu modelo estrela de dez anos nos seguintes termos: “(...) emalguns países (...) programas mais modestos de redistribuição de terra estão sendoimplementados, muitas vezes relacionados com conflitos sociais (...), sem objetivosde eficiência ou redução da pobreza. Provavelmente não afetarão significativamenteo coeficiente Gini sobre a distribuição da terra” (Banco, 2005, p. 248).

É estranho saber que o objetivo da “reforma agrária assistida pelo mercado” nuncafoi a redução da pobreza, quando o próprio uso do termo “reforma agrária” eviden-cia uma proposta ambiciosa e, em um determinado momento, as grandes expecta-tivas sobre o impacto que esta estratégia teria sobre a realidade agrária.

3. Características gerais da “reforma agrária assistida pelo mercado” naGuatemala

O programa principal para dar solução à problemática da terra na Guatemalaé o Programa de Acesso à Terra do Fundo de Terras (FONTIERRAS). OFONTIERRAS é um ente autônomo e descentralizado, criado em 1997 no con-texto dos Acordos de Paz; goza de autonomia funcional, com personalidade jurí-dica, patrimônio e recursos próprios.

A criação do FONTIERRAS teve muito apoio do Banco Mundial, ainda queo empréstimo concedido à Guatemala para apoiar as operações do Fundo tenhasido aprovado para o ano 2000. O Banco Mundial garantiu que este projeto “aju-daria a iniciativa do governo de implementar uma reforma agrária assistida pelomercado” (Guatemala – Projeto Fundo de Terras, 1997, p. 3). Um detalhe inte-ressante é que o atual governo recusou o segundo empréstimo que o BIRD haviadestinado para a RAAM na Guatemala.5

O FONTIERRAS, entre 1997 e 2003, teve duas funções principais: regulari-zação de terras e concessão de créditos para a compra de terras. A partir de 2004,implementou também um programa de arrendamento.

As idéias principais do eixo “acesso à terra” do FONTIERRAS são iguais às daRAAM do Banco Mundial: as transferências de terra são voluntárias; baseiam-se naidentificação de terra atrativa por parte dos grupos “beneficiários”, que têm a res-ponsabilidade de selecionar a terra e negociar seu preço; a agência estatal(FONTIERRAS) unicamente facilita a negociação entre compradores (campone-ses) e vendedores (grandes proprietários). O papel do FONTIERRAS é a assistên-

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cia em determinar o preço correto da terra e dar subsídios aos grupos camponeses(máximo de 26 salários mínimos por família para abono do crédito – algo em tornode 60% –, capital de trabalho – algo em torno de 30% – e segurança alimentar –algo em torno de 10%). Também facilita a assistência técnica (mediante sub-contratação de serviço privado) para que os grupos sejam “competitivos”, através dacapacitação para o desenvolvimento dos projetos produtivos e para a comercialização.

Igual ao modelo que o BIRD propõe, o papel do FONTIERRAS é reduzidoà concessão de créditos e a estabelecer mercados mais dinâmicos de terra, não éadministrar o processo. Com isto, supõe-se reduzir ou eliminar ineficiências, di-minuir custos administrativos e corrupção.

Segundo a lei do FONTIERRAS, a população meta são camponeses sem ter-ra ou com terra insuficiente, em condições de pobreza ou pobreza extrema. Estalei estabelece ainda que o Conselho Diretor é o órgão de decisão superior do Fun-do de Terras. Este Conselho é composto pelos seguintes membros: Ministro daAgricultura, Pecuária e Alimentação (MAGA), Ministro das Finanças (MINFIN);Conselho Nacional de Desenvolvimento Agropecuário (CONADEA), Câmarado Agro da Guatemala, Organizações Indígenas da Guatemala (CNP-Terra),Organizações Camponesas da Guatemala (CNOC) e cooperativas.

Apesar da diversidade na representação no Conselho Diretor e da importân-cia da autonomia do FONTIERRAS para evitar que as transações de terras sepolitizem, existem sérias dúvidas sobre o grau de autonomia real de que goza oFundo, especialmente quando são o MAGA e o MINFIN que definem a políticapública agrária e de desenvolvimento rural e controlam o orçamento doFONTIERRAS. Por outro lado, existe uma estratégia de cooptação aberta versusacordos com as representações dos setores “não-alinhados” do Conselho Diretor(basicamente o setor indígena e o camponês), a qual tem impedido que estes seto-res realmente cumpram o seu papel de subsidiar e fortalecer a fiscalização socialdo FONTIERRAS (denunciar as anomalias, etc).

4. Resultados da RAAM na Guatemala

4.1. Terra redistribuída, preços e dívidaForam redistribuídos 87.215,21 hectares entre 1998 e agosto de 2006. Isto é

um resultado bastante modesto, considerando que, de acordo com o CensoAgropecuário de 2003, existem 3.797,027 hectares de terra produtiva naGuatemala. A RAAM atingiu unicamente algo como 2,3% desta terra.6

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Os vendedores têm sido grandes proprietários que, por diversas razões, têminteresse em se desfazer de suas propriedades (falta de estabilidade política, ocu-pação, crise do café, dívidas, falta de rentabilidade da terra etc). Os compradoressão grupos camponeses já formados (entre 20 e 500 famílias) ou grupos que seformaram apenas para terem acesso à terra.

O custo desta redistribuição são dívidas altas que os grupos camponeses ad-quirem. A maioria das propriedades é excessivamente cara e pouco produtiva: “(...)às vezes as e os companheiros se entristecem ao terem acesso à terra e tomaremconsciência da dívida que devem pagar”.7

Os altos preços são produtos da corrupção e da oferta reduzida de terra: “Aquestão na Guatemala é que as melhores terras estão concentradas em poucas mãos,e quem as tem não está disposto a vendê-las”.8 Devido à falta de políticas fiscaisefetivas, como impostos sobre a propriedade da terra ou impostos sobre terraimprodutiva, não existe nenhum incentivo para a venda de terra a preços que re-flitam seu potencial produtivo.

À realidade de um mercado nacional de terras em que os preços comerciais ex-cedem em muito seu valor real, somam-se falhas importantes de transmissão e aces-so à informação, pois uma das razões que explicam porque não se deu melhor nego-ciação nos preços de compra da terra é porque muitos beneficiários pensaram queeste ia ser subsidiado pelo FONTIERRAS e/ou não trabalharam com clareza o temada dívida – tanto em relação ao total por família, como às amortizações ou paga-mentos que devem efetuar (Garoz & Gauster, 2002, p. 74). Em outras palavras,não existe preocupação suficiente por parte do FONTIERRAS em repassar esta in-formação com clareza.

Ademais, muitas propriedades adquiridas carecem de condições adequadaspara a produção, como solos de baixa qualidade e/ou desgastados, vias de acessodifíceis, topografia acidentada, disponibilidade de recursos hídricos ou flores-tais escassos ou esgotados, etc. De acordo com o encarregado do projeto do BancoMundial no FONTIERRAS: “9 de cada 10 propriedades que foram compradasestavam abandonadas e/ou hipotecadas. As abandonadas requerem o dobro deinvestimentos para colocá-las para produzir, necessitando de investimentos cujorisco é elevado”.....

Nesta linha, é necessário assinalar que existem poucas terras de qualidadedisponíveis no mercado nacional – pelas razões já expostas –, levando a que,em determinadas ocasiões, apesar da comprovada inviabilidade produtiva deuma propriedade, dêem-se pressões por parte dos grupos camponeses para ad-quiri-la.

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4.2. Beneficiários e beneficiárias do programaO FONTIERRAS “beneficiou” a 17.822 famílias entre 1997 e julho de 2005.Em relação à seleção das e dos beneficiários, o segmento priorizado não é

majoritariamente a população em situação de extrema pobreza. Isso pode ser re-sultado, por um lado, do fato de que se selecionam indivíduos com maior capaci-dade de pagamento e devolução dos créditos concedidos pelo FONTIERRAS.Por outro lado, a Lei do Fundo de Terras estabelece que as pessoas beneficiáriasnão devem ter rendas familiares superiores a mais de quatro salários mínimos,quando o habitual na produção de subsistência é que não se chegue nem a umsalário mínimo por família.

Outro fator de exclusão dos camponeses mais pobres é um processo altamen-te burocrático na solicitação do crédito. São necessários não apenas recursos eco-nômicos para custear viagens, fotocópias, autenticações de documentos etc, mastambém experiência em gestão junto às instituições estatais.

A seleção dos grupos beneficiários não tem sido sempre a mais adequada, comodemonstram os altos índices de desistência. Segundo um representante do Con-selho Diretor do FONTIERRAS:

Em 30% das propriedades compradas existe uma alta taxa de desistência, entre ou-tras causas porque se elegem diretorias sem capacidades dirigentes, organizativas nemadministrativas; há grupos mal caracterizados, ou seja, com membros que não preen-chem as qualidades estabelecidas na lei e no Regulamento dos Beneficiários e que,portanto, não se interessam em participar nos processos de desenvolvimento produ-tivo das propriedades; e líderes de organizações que se apropriam ou fazem mau usodo capital de trabalho, tirando a motivação dos beneficiários.

Naqueles casos em que se constituem grupos com gente que não vem da agricul-tura e/ou grupos que migram para outra região com características climáticas eambientais diferentes das suas (por exemplo, do altiplano para propriedades da costa),encontrando-se propriedades que não dispõem de serviços básicos vitais, têm-se dadoos níveis mais altos de desistência. Algo similar tem ocorrido normalmente no caso degrupos multiétnicos e multiculturais, constituídos expressamente para acessar a terra.

As mulheres que fazem parte dos grupos beneficiários não têm gozado da açãopositiva explícita, estabelecida pela lei do FONTIERRAS.

Em muitos casos, a lei está em descordo frontal com os direitos dos grupos aodeterminar sua organização e formas de filiação. Também não tem funcionado osistema de titulação conjunta de homens e mulheres, pois mesmo que a lei a exija,

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a realidade dos grupos constituídos para acessar a terra (Empresas CamponesasAssociadas – ECAs, cooperativas, associações) impossibilita a presença das mu-lheres. Em muitos casos, esses grupos são compostos quase exclusivamente porhomens, sendo que as diretorias são exclusivamente de homens.

Adicionalmente, há denúncias de que o enfoque de gênero, que está sendoincorporando às políticas públicas de acesso à terra, busca cumprir com requisitosde organismos financeiros e cooperantes, mas carece de convicção e vontade po-lítica. Isso fez com que fossem beneficiadas, no período 2003 a junho de 2005,somente 426 famílias lideradas por mulheres, de um total de 5.027 famílias bene-ficiadas, representando menos de 10% do total.

4.3. Desenvolvimento após a transferência da terraUm dos fatores determinantes para o alto grau de desistência é a falta de con-

dições de habitação e disponibilidade de serviços sociais básicos: apenas 72% dasnovas comunidades têm centros de saúde, 61% escolas, 67% moradias, 68% acessoà água potável, 71% eletricidade e 31% estradas de acesso. Esta situação precáriase deve à falta de coordenação e a diferentes concepções entre as entidades estataisencarregadas de promover o desenvolvimento rural. Tem sido feito pouco paragarantir o acesso dos grupos “beneficiados” aos serviços básicos.

Para esta preocupante situação de acesso à terra sem melhorias na qualidadede vida das famílias “beneficiadas” contribuem fortemente as escassas possibilida-des de êxito e sustentabilidade dos projetos produtivos nas propriedades adquiri-das com créditos do FONTIERRAS. De acordo com um integrante do ConselhoDiretor do FONTIERRAS, existe um escasso desenvolvimento empresarial e efi-ciência produtiva, bem como pouca geração de empregos e renda que permita àsfamílias satisfazer suas necessidades básicas.

Isso tudo é conseqüência de falhas graves na prestação dos serviços de assistênciatécnica (produtiva, organizativa, administrativa e de gênero). O FONTIERRASaprovou três modelos e nenhum foi exitoso em alterar as condições estruturais dapropriedade e do grupo de maneira que permitisse melhorar as condições de vida deforma sustentável e cancelar a dívida assumida. Os três modelos são:

1) Sistema de empresas e licitação, que falhou em conseqüência de monopólios naexecução e pela falta de pertinência de sua intervenção comunitária (não foram consi-deradas as estruturas organizativas e de poder, as dinâmicas sociais próprias, etc);

2) Sistema de consultores individuais, que falhou porque não podia cobrir todasas áreas de expertise necessárias (produção, organização, administração, gênero, etc);

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3) Sistema de equipes multidisciplinares móveis, que falhou por não dar um se-guimento adequado aos grupos.

Entre os principais gargalos apresentados nos serviços de assistência técnicaoferecidos pelo FONTIERRAS, temos:

• Os convênios não são cumpridos em termos de tempo de assistência e qua-lidade profissional dos técnicos.• Não há possibilidades, por parte dos grupos, de assumir os custos parciais paraa assistência técnica a partir do segundo ano (a regra é que os grupos devemassumir 33% no segundo, 66% no terceiro e 100% a partir do quarto ano);portanto, a presença da assistência técnica nas comunidades diminuiu ainda mais.• Não se reconhece nem se valoriza o conhecimento indígena e camponês; têmacontecido problemas de desconhecimento dos diferentes idiomas do país porparte dos prestadores de assistência técnica, especialmente graves nas áreas depopulação Q´eqchí dos departamentos de Alta Verapaz e Petén.• Não se promove ativamente a segurança alimentar familiar e quando cultivos ali-mentícios são considerados pelos prestadores de serviços de extensão, utilizam-se so-mente de sementes “melhoradas” de duvidosa procedência e composição genética.• Em algumas comunidades, a assistência técnica não realizou nenhum traba-lho de sensibilização sobre organização e participação das mulheres, e naque-las onde se trabalhou com mulheres, os esforços se dirigiram, na maioria doscasos, à legalização de um comitê de mulheres na comunidade.• Tem havido casos de corrupção e favorecimento de amigos, sobretudo nosmodelos de licitação e contratação de empresas prestadoras de serviços.• Não se segue o processo de inovação tecnológica, implementando processosgraduais de transferência tecnológica, para que as e os grupos possam apren-der fazendo, assimilando adequadamente o uso de novas tecnologias e dimi-nuindo os riscos, além de ter a oportunidade de ganhar experiência eautoconfiança.• Em termos gerais, é evidente que a empresa privada não pode assumir res-ponsabilidades sociais, já que seu objetivo principal – o lucro – não é compa-tível com as necessidades de serviço das novas comunidades em seu processode desenvolvimento.

Em relação à geração de renda, a situação é alarmante. Em três das proprieda-des mais bem-sucedidas (segundo o próprio FONTIERRAS), as famílias têm uma

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renda média de 400 Quetzales mensais (igual a US$ 50), o que representa menosde um terço do salário mínimo na Guatemala. Isto implica que a maioria das fa-mílias é obrigada a trabalhar fora da propriedade para obter os recursos que neces-sitam para sobreviver. Muitas delas dizem que sua situação econômica era melhorantes de serem proprietárias da terra. Esta situação dramática se deve aos altosníveis de endividamento, mas também ao fato de que os projetos produtivos nãotêm um êxito garantido (Garoz & Gauster, 2006).

4.4. Custos para o estado e para os “beneficiários”A RAAM na Guatemala tem sido extremamente cara, tanto para o Estado como

para os grupos “beneficiários”, particularmente se considerarmos os poucos avan-ços nos processos de desenvolvimento dos grupos camponeses. A Tabela 2 mostraque, no transcurso da existência do FONTIERRAS, os investimentos médios porfamília foram de US$ 9,146.00.

Tabela 2 – Total de recursos aplicados no Programa de Acesso à Terra via compra doFONTIERRAS (desde o seu início)

Conceito Total em Quetzales Total em US$

Investimentos (crédito + subsídio)* 976,018,114 130,135,749.0

Funcionamento 110,185,420 14,691,389.3

Assistência técnica 59,713,306 7,961,774.13

Subprojetos e infra-estrutura** 76,588,889 10,211,851.9

Investimento global 1,222,505,730 163,000,764.0

Investimento por família 68,595 9,146.0

Custo médio por hectare 7,509 1,001.2* Crédito para a compra da terra mais os subsídios (máximo de 26 salários mínimos por família para amortização da dívida, capital de trabalho e segurança alimentar).** Fundos cedidos basicamente no marco do empréstimo do Banco Mundial a alguns grupos “beneficiados” que solicitam com a finalidade de empreender um determinadoprojeto produtivo e/ou melhorar a infra-estrutura da comunidade.

O alto custo da dívida assumida pelos grupos, junto à incidência de outrosfatores como as falhas da assistência técnica e na implementação dos projetos pro-dutivos, tem levado a que, na maioria dos casos, a dívida pela compra da terra sejaimpagável. Isto, além de colocar em uma situação de alta vulnerabilidade os gru-pos beneficiários, compromete seriamente a sustentabilidade financeira doFONTIERRAS que, a princípio, deixará de receber recursos orçamentários anuaisdo estado a partir de 2008.

Das 214 propriedades compradas, 133 têm prestações da dívida vencendo já,por haver terminado o período de carência (geralmente de quatro anos). Destes133,53 pagaram a prestação referente à terra (a maioria com os subsídios), 16 es-tão com os pagamentos em dia e 64 estão em atraso. Assim, quase a metade dosgrupos tem sérias dificuldades com o pagamento do crédito.

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Os únicos ganhadores deste modelo são os proprietários de terra, que têm tidoa oportunidade de vender suas terras a preços mais altos que os de mercado e re-ceber em dinheiro vivo.

Para mencionar um exemplo, vejamos o caso da propriedade Pueblo Viejo,localizada em Panzós, Alta Verapaz. Esta propriedade foi comprada por um grupode 434 famílias camponesas ao preço de 27 milhões de Quetzales (US$ 3,6 mi-lhões), dos quais 7,683,150 de Quetzales (em torno de US$ 1 milhão) foramamortizados com o subsídio de 17,664 de Quetzales por família (mais ou menosUS$ 2.355), sobrando para capital de trabalho e compra de alimentos unicamen-te 3,786 de Quetzales (Fundo de Terras, Solicitação de Financiamiento, Expediente695). Uma avaliadora independente constatou o valor real da propriedade em 12milhões de Quetzales (US$ 1.6 milhões)!9

Gráfico 1 – Pagamento da dívida pelos grupos “beneficiários”

Fonte: FONTIERRAS e elaboração própria

5. O arrendamento de terras

Ao reconhecer que o modelo de acesso à terra via mercado, pelas diversas ra-zões mencionadas acima, não trouxe os resultados esperados, a aposta do BancoMundial vai agora na direção do arrendamento de terras.

Da mesma forma que na “reforma agrária assistida pelo mercado”, parte-se deque os mercados de arrendamento melhoram a eficiência e equidade. Da mesmaforma que os mercados de venda de terras, os mercados de arrendamento requeremdireitos de propriedade fortalecidos, criação ou fortalecimento de instituições, me-canismos de resolução de conflitos confiáveis e a eliminação de barreiras legais.

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Como na RAAM, os participantes mais pobres devem receber “assistência” queinclua uma dotação mínima de ativos e diferentes formas de convênios, com op-ção de compra, por exemplo.

A vantagem principal deste modelo, segundo o BIRD, é que o arrendamentoé menos exigente politicamente que as reformas agrárias tradicionais, mais eco-nômico que as reformas agrárias pela via do mercado e mais eficiente que a explo-ração livre de mercados de compra e venda de terras.

Outra vantagem é o pouco capital requerido, mesmo se considerarmos umamédia mais flexível que as vendas que transferem terra de produtores menos pro-dutivos para outros mais produtivos. Ademais, pode constituir um ponto de par-tida para que os arrendatários acumulem experiência e, possivelmente, em umaetapa posterior, façam a transição para a condição de proprietários da terra.

As desvantagens se limitam a menores incentivos para investimentos. No en-tanto, não está estabelecido prazo longo de duração do contrato e/ou a opção decompra. Outra desvantagem é um menor acesso ao crédito, instrumento funda-mental para potencializar a produção.

6. Características e resultados do programa de arrendamento

Desde 2004, quando o atual Governo da GANA10 assumiu o poder, coinci-dindo com os novos enfoques do Banco Mundial, existe uma visão diferente dopapel do FONTIERRAS, implicando uma aposta no arrendamento como opçãode acesso à terra.

A partir de maio de 2004, o Ministério de Agricultura, Pecuária e Alimenta-ção (MAGA) e o Fundo de Terras implementam o “Programa Especial para a Pro-dução e Comercialização Agropecuária em Apoio à População Rural Vulnerável”.O mandato deste é aumentar a cobertura do programa de financiamento do Fun-do de Terras através de uma política de arrendamento ágil, transparente e hori-zontal que permita diversificar as opções do acesso à terra. Este deve tambémimpulsionar – como parte da institucionalidade do Estado – o financiamentosubsidiado e sustentável para o arrendamento de terras e a execução de projetosprodutivos de curto prazo.

Os componentes do programa mudaram do ano 2004 para 2005 e incluemuma parte de crédito para arrendamento de terras com juros de 0% por 9 meses.A outra parte é de apoio econômico reembolsável, ambas administradas peloFONTIERRAS. Ademais, inclui um pequeno apoio em insumos agrícolas (2 sa-

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cos de fertilizante químico, 25 libras de sementes melhoradas de milho e um kitde ferramentas) administrado pelo MAGA. O total de apoio diminuiu em 17%de 2004 para 2005, pois aumentou em 19% a proporção do crédito sobre o nú-mero de apoio total para cada família beneficiária.

A população meta é composta de camponeses em condições de pobreza e emextrema pobreza.

Devido a seus baixos custos, o Programa de Acesso à Terra via Arrendamentodo FONTIERRAS/MAGA tem maior cobertura e visibilidade em relação ao Pro-grama de Acesso à Terra via compra. Por isto, vários analistas interpretam que oobjetivo principal do programa é político-eleitoral, ou seja, “beneficiar” mais fa-mílias implica que, ao menos, estas mostrem sua “satisfação” através do voto naspróximas eleições.

O fato de se tratar de um programa de arrendamento simples, mais marca-do pela estratégia de acesso a alimentos a curto prazo – e nãonãonãonãonão pelo acesso à terra–, portanto sem opção de compra e renovável cada ano, implica que não pro-move um retorno seguro para o investimento produtivo a médio prazo. Destaforma, constitui-se em uma solução emergencial e meramente paliativa, comum impacto potencial nulo ou quase nulo na melhoria das capacidades produ-tivas. Não é, portanto, uma opção efetiva para transformar a estruturaconcentradora da terra.

Foram arrendadas 633.15 caballerías11 em dois anos. Obviamente não se pode falarde terra redistribuída, pois segue nas mãos dos mesmos proprietários, questão que nãomuda pelo mesmo fato de que o programa não contempla a opção de compra.

O programa cobre terras de pequena escala, de pouco potencial produtivo,que geralmente permite unicamente a produção de grãos básicos como milho efeijão. O objetivo é contribuir com o acesso a alimentos, e nãonãonãonãonão criar um proces-so de desenvolvimento integral. Isto fica evidente com o fato de que – ao con-trário do que argumenta o BIRD – não existe nenhum tipo de assistência técni-ca, construção de infra-estrutura básica ou serviços básicos no Programa deArrendamento.

Foram “beneficiadas” 30.814 famílias em dois anos, quase o dobro de famíliasque na RAAM em oito anos. Isso demonstra bem que é um programa que politi-camente rende, mesmo que não altere as condições de vida de ninguém.

A população meta são pequenas e pequenos produtores em condições de sub-sistência e com níveis abaixo desta. No primeiro ano de execução do programa seconseguiu chegar melhor à população meta, porque os responsáveis pela distri-buição dos formulários de solicitação foram as mesmas organizações camponesas.

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No entanto, no segundo ano, devido à politização do processo, existe evidênciade que muitos “beneficiários” são pessoas que se envolveram em um processocorrupto, pois compraram o formulário por Q 50 (em torno de US$ 7). Essaspessoas obviamente não são os camponeses mais marginalizados e, às vezes, nemsequer são produtores, mas pessoas aproveitando o subsídio dedicadas a ativida-des não-agrícolas.

Gráfico 2 – Famílias atendidas e caballerías (área) distribuídas pelos Programas de Acesso à Terravia compra (1997 – 2004) e via arrendamento (2004 – 2005)

Não há dados disponíveis sobre o número de mulheres “beneficiadas”.Os custos do programa são baixos, resultando em um número considerável de

camponeses. Sem dúvida, devido à redução do montante total de apoio e do sub-sídio – que baixou de 2004 para 2005 por pressão da Câmara do Agro (setor pri-vado) sobre o Conselho Diretor do FONTIERRAS –, um dos problemas centraisdo programa é a insuficiência de recursos financeiros disponíveis frente à magni-tude da demanda de solicitações de financiamento. Atualmente, este custo con-siste de um crédito de 1,300 Quetzales (US$ 173.3), que tem que ser devolvidonove meses depois (sem encargos financeiros), e um subsídio de 1,200 Quetzales(US$ 160.0) por família (recurso para capital de trabalho e insumos).

Tabela 3 – Total dos componentes do Programa Especial para a Produção e ComercializaçãoAgropecuária em Apoio à População Rural Vulnerável (2004 – 2005)

Ano Total em Quetzales Subsídio Crédito

Capital de trabalho Insumos e ajuda alimentícia

2004 3.000 1.300 700 1.000

2005 2.500 700 500 1.300Fonte: Garoz, Alonso e Gauster, 2005.

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7. Direitos de propriedade e segurança na posse da terra

Fortalecer os direitos de propriedade tem sido – e segue sendo – o enfoqueprincipal das IFIs quando falam do acesso à terra. Independentemente se está namoda o mercado de venda ou o arrendamento de terra, os direitos de propriedadesempre são considerados fundamentais, precisamente porque representam umacondição elementar para o desenvolvimento tanto do mercado de venda como ode arrendamento de terras.

Vêem nos direitos de propriedade a chave para resolver o problema agrário, às vezesde uma maneira míope, ou bem com interesses distintos da melhoria do acesso à terrapelos camponeses sem-terra. Segundo o próprio Banco Mundial, “com direitos segu-ros, podem... vender sua terra e se mudarem para outras atividades (...) No Peru, aformalização de direitos à terra resultou em um incremento de mais de 50% da ofertade trabalho fora do agrário” (Banco, 2005, p. 245) e/ou na redução da pobreza.

Argumentam que os direitos de propriedade incentivam às famílias a investire, geralmente, também lhes proporciona melhor acesso ao crédito (que, em si,viabiliza aos investimentos); facilitam a transferência de terras a baixo custo me-diante arrendamento e venda e ainda melhoram a distribuição das terras.

As reformas administrativas e institucionais necessárias para fortalecer os di-reitos de propriedade incluem o fortalecimento das instituições que respaldam essesdireitos, os organismos responsáveis pelo processo de titulação, regularização, sa-neamento e da administração da terra (com ênfase no registro e cadastro) e aque-las instituições que assumem funções de tributação, além das de resolução de con-flitos. Ainda, dá-se ênfase à importância da implementação de um sistema judicialfuncional e, finalmente, ao fortalecimento da governabilidade.

Partem de três formas de incrementar a segurança da propriedade da terra(Deininger, 2003):

• Reconhecimento legal dos direitos consuetudinários: em sistemasconsuetudinários, o reconhecimento de instituições existentes geralmente émais efetivo que as intenções de estabelecer estruturas formalizadas e pode elevarmuito a segurança de propriedade dos que detêm a posse.• Regularização das terras do estado: é importante regularizar a posse de terrasdo estado, já que, muitas vezes, mesmo com investimentos realizados, os pos-seiros permanecem vulneráveis às ameaças de despejos.• Titulação individual formal: quando a opção são os títulos formais e individuaisde propriedade, é necessário fortalecer as instituições de administração de terras

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(cadastro, registro, regularização, resolução de conflitos), pois, caso contrário, po-dem impedir que se realizem muitos dos benefícios da propriedade segura.

Não surpreende que a primeira opção (reconhecimento legal dos direitos con-suetudinários) na prática nunca tenha sido implementada nem promovida peloBanco Mundial, particularmente na Guatemala, um país com uma população in-dígena majoritária, o que novamente evidencia as contradições na aplicação daspolíticas deste organismo.

8. Regularização na Guatemala: características e resultados12

A segunda função original do FONTIERRAS (ao lado da RAAM) é a regula-rização das terras que foram arrecadadas por instituições estatais em décadas ante-riores sem terem sido legalizadas. As funções, portanto, são a regularização de ter-ras do Estado e a recuperação (expropriação sem indenização) de terrasfraudulentamente concedidas durante as ditaduras militares nos anos 80 na Fran-ja Transversal do Norte e Petén.

O programa de regularização de terras não inclui nenhum subsídio, como capi-tal de trabalho ou assistência técnica aos novos proprietários. Isto, igual ao Progra-ma de Arrendamento, torna-o pouco custoso, tendo um número relativamente altode “beneficiários”, mas pouca viabilidade produtiva e, conseqüentemente, poucaviabilidade de desenvolvimento integral para as famílias. Pela mesma falta de apoioaos camponeses, é fácil entender que o objetivo prioritário é promover um mercadode terras, e não buscar o acesso à terra para os grupos camponeses empobrecidos.

A população meta deste programa são camponeses individuais ou grupos decamponeses, ou seja, pequenos produtores rurais.

A politização do FONTIERRAS afeta a eficiência no desempenho do traba-lho. Um exemplo desta situação foi a demissão, em setembro de 2004, dos 40membros da equipe de regularização que trabalhavam com a metodologia, comos casos, etc. Uma decisão do MAGA, apoiada por setores ligados ao ConselhoDiretor do FONTIERRAS.

O programa de regularização de terras não tem contribuído para umaredistribuição da terra, pois até agora tem se dedicado somente a legalizar terrasque já estavam na posse dos produtores. Em casos muito excepcionais, regulari-zou terra estatal a favor dos camponeses usurpada por grandes proprietários, masunicamente quando esta usurpação foi denunciada por organizações camponesas.

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Não houve nenhum avanço na expropriação das propriedades apropriadas ile-galmente na Franja Transversal do Norte, nem outras estabelecidas na lei doFONTIERRAS e nos Acordos de Paz (Acordo sobre Aspectos Socioeconômicos eSituação Agrária).

O resultado dessa política é que, no lugar de atacar a alta concentração da ter-ra, tem havido um processo de reconcentração da terra. Em Petén, Alta e BaixaVerapaz e nos departamentos circundantes a Quetzaltenango, registra-se uma vendaimediata ou quase imediata de 20% das terras que foram regularizadas. Em al-guns casos, desmembram-se frações e as pessoas ficam somente com o que neces-sitam para a subsistência. Em outros, nos atos mesmo de entrega de escrituras, asmesmas são transferidas para terceiros, perdendo a oportunidade de utilizar a ter-ra como meio para um futuro desenvolvimento pessoal e social.

Ademais, à falta de uma política estatal de apoio aos que regularizam sua pro-priedade, um conjunto de razões subjaz à venda imediata da terra, entre as quais:

• Ausência de um esforço concentrado de conscientização e de instrumentos le-gais que limitem as vendas a casos excepcionais. Naquelas comunidades onde otecido social se encontra fortalecido (bases de organizações camponesas, desaloja-dos, etc), a venda tem sido menor, apesar da titulação individual.• Sobretudo na região das Verapaces e na área compreendida pela Franja Transver-sal do Norte, a venda após a legalização é conseqüência da estratégia de váriosgrandes proprietários (tanto pessoas físicas como jurídicas) que, através da com-pra das parcelas próximas àquela cujo proprietário não tem disposição voluntáriapara vendê-la, provocam a “asfixia” da propriedade, pressionando a seu proprietá-rio para que a coloque à venda.• Especificamente em Petén há denúncias da prática nociva, feitas por algumas pes-soas, de comprar, regularizar, vender e trocar por outra terra para repetir o processo,com graves implicações ao meio ambiente com o avanço da fronteira agrícola.• Necessidades urgentes de dinheiro por parte das famílias, resultado de diferen-tes causas derivadas de altos níveis de vulnerabilidade das famílias pobres ruraiscomo, por exemplo, casos de enfermidade, migração etc.

O Programa de Regularização, como o de acesso e o de arrendamento, nãotem capacidade para atender a demanda existente de legalização de terras no país.Por outro lado, se considerarmos as diversas ações técnicas e administrativas pararegularizar cada expediente, a estrutura organizativa atual deste programa e a de-pendência de trâmites externos, não será possível finalizar o trâmite de tais expe-

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dientes antes do ano 2008, prazo estabelecido na lei do FONTIERRAS para fina-lizar o processo de regularização.

Há uma tabela de preços das terras adquiridas como resultado do processo deregularização. Isto tem permitido definir o custo desta regularização para as e osinteressados, com base nos critérios comuns e nos objetivos. Assim, para que al-guém possa ter sua terra regularizada, deve pagar 10% sobre o valor de um hecta-re estabelecido na tabela oficial (atualmente Q.50 x hectare) e mais o Impostosobre o Valor Agregado (IVA). Se estes custos são muito mais aceitáveis para os“beneficiários” que na RAAM, na prática as famílias e comunidades rurais em si-tuação de pobreza e pobreza extrema têm enfrentado problemas para fazer fren-te à parte dos custos da regularização que lhes corresponde assumir.

Tabela 4 – Carteira do Programa de Regularização de Terras do FONTIERRASTipo de adjudicação Quantidade de adjudicações Valor total (Quetzales) Custo médio por adjudicação Pendente de pagamento (%)

Individual 82.931 231.981.814 2.797 76,5%

Coletiva 920 143.212.335 155.666 70,1%

Total 83.851 375.194.149 4.475 74,1% Fonte: Garoz, Alonso, e Gauster, 2005.

Os custos do programa são relativamente baixos, devido a já mencionada faltade subsídios, capital de trabalho, assistência técnica e infra-estrutura social. Oorçamento com o que conta o Programa de Regularização é bastante modesto,comparado com o de Acesso à Terra do FONTIERRAS.

Tabela 5 – Orçamento do FONTIERRAS (em quetzales) (2000 – 2004)Programa tipo/ano 2000 2001 2002 2003 2004

Acesso à terra 131.280.609 267.887.078 222.172.106 252.214.896 243.164.318

Regularização 728.441 9.978.078 10.462.282 22.573.278 17.731.914Fonte: Garoz e Gauster, 2004.

Funcionários medianos da instituição, especialmente os de campo, têm sidosubmetidos a pressões e ameaças por parte de grandes proprietários para que otrabalho de regularização do FONTIERRAS não afete seus interesses. Esta é umaexplicação mais sobre a pouca contribuição desta instituição no questionamentodas atuais estruturas de poder.

Assim, na prática, tudo indica que o objetivo de gerar certeza jurídica não temsido fomentar a segurança da posse e controle da terra a partir da cosmovisão in-dígena e camponesa, nem implementar maiores capacidades produtivas de quemregularizou sua propriedade. De fato, existem sérias dúvidas se a regularização dapropriedade da terra tem gerado maiores oportunidades de acesso a outros recur-sos produtivos, como o crédito agrícola privado. As evidências mostram que, nas

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condições que se tem dado, a regularização tem gerado o aumento da oferta decrédito, principalmente para produtores excedentários (que possuem entre 10 e64 manzanas) e comerciais, e este efeito tem estimulado a concentração da terraem poucas mãos.

Quadro 1A proatividade camponesa na regularização das terras nacionais

A União Verapacense de Organizações Camponesas (UVOC) aglutina campo-nesas e camponeses sem-terra ou com terra insuficiente para viver dignamentenos departamentos de Alta e Baixa Verapaz na Guatemala. O fato de ressaltar ocaso da UVOC não se relaciona tanto com o tipo de reivindicação de direitosque promove, o que coincide com outras organizações camponesas do país, masmais pelo método utilizado para tornar efetivos esses direitos. Na prática, a es-tratégia da UVOC tem consistido em levar a cabo análises de registros, assimcomo medições físicas reais, daquelas propriedades “suspeitas” de conformar,no todo ou em parte, em “improdutiva” nacional. Esta estratégia – junto com adecisão posterior de ocupar área identificada como terra pública, ocupada e/ouanexada às terras dos grandes proprietários – tem sido utilizada para pressionaro FONTIERRAS para que inicie as investigações e procedimentos pertinentespara a regularização e posterior colocação da referida área na oferta de terrasnacionais disponíveis para sua concessão. Chama a atenção que este tipo de açãoseja considerada mais um problema que um apoio por parte das instituiçõesvinculadas ao processo de regularização de terras no país. Mas chama ainda maisa atenção o fato de que o argumento utilizado para explicar “o problema” estejaligado ao incomodo – e, às vezes, ao perigo – de iniciar um processo de regula-rização de um terreno nacional, ocupado no todo ou em parte, por um ou váriosgrandes proprietários. Quais são então as possibilidades reais de cumprir a lei edesenvolver um processo de regularização de natureza pública e de interesse socialque deve ser acatado, promovido e desenvolvido rigorosamente com a maiorceleridade possível?

Pelo que se tem observado, por detrás da necessidade de gerar certeza jurídicasobre a posse da terra, encontra-se o objetivo de fortalecer e agilizar o mercado deterras, privilegiando o direito da propriedade privada da terra, em vez de outrasformas possíveis de propriedade juridicamente seguras. Efetivamente, a terra le-galizada – sem recursos e capacidades para se fazer produtiva – se desnaturalizacomo bem de produção e se converte em um bem de capital (passível de transaçãocomercial e/ou de arrendamento), o que também tem contribuído fortemente parao fenômeno observado de reconcentração da terra por trás da regularização dapropriedade.

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Conclusões

Os Acordos de Paz geraram grandes expectativas imediatas de uma nova etapade convivência democrática e bem-estar generalizado, gerando um clima políticoe social propício para o aprofundamento das políticas de Ajuste Estrutural e Setorialno país. Sob as premissas da desregulação, liberalização, privatização e retirada doestado como promotor e orientador do desenvolvimento nacional e com a pro-messa de que o “encolhimento” do setor público não afetaria sua força, os diver-sos setores da economia nacional foram atingidos negativamente (especialmenteo agrícola). Estes foram submetidos às regras de competição, em muitos casos,desleais e quase sempre assimétricas (sempre com o Tratado de Livre Comércioentre República Dominicana, América Central e Estados Unidos – DR-CAFTA),que a denominada globalização financeira e produtiva da economia – junto comsuas instituições de articulação e apoio13 – impõe.

Assim, as políticas agrícolas e de desenvolvimento rural têm se baseado no mer-cado. Para a população rural excluída das oportunidades de negócio geradas nonovo contexto competitivo14 e em transição incerta para outros setores de ativida-de econômica, tem-se fomentado medidas paliativas de “alívio” e “luta contra apobreza”.

A incapacidade que tem demonstrado o mercado para redistribuir recursosem contextos oligopolistas, junto com a falta de vontade política de apoio (finan-ceiro, legal etc), têm contribuído para que o modelo de “reforma agrária de mer-cado”, implementado na Guatemala desde 1997, não tenha sido capaz de resolvero problema da injusta distribuição da terra. Um exemplo da falta de vontade realpara dinamizar ativamente os mercados de terra e contribuir para a auto-sustentabilidade do FONTIERRAS é que nunca se implantou um ImpostoTerritorial que taxasse progressivamente as terras ociosas ou subutilizadas, aumen-tando a oferta de terras e pressionando os preços para baixo.

A ausência de mudanças substanciais na estrutura da propriedade da terra –mesmo causando impacto negativo sobre o grau de eqüidade da estrutura agrá-ria (com um índice de Gini sobre a concentração da terra com tendência cres-cente) – mantém um esquema produtivo agrícola absolutamente ineficiente nopaís, com 25% do solo sobre-utilizado e 28% subutilizado em seu potencialprodutivo.

Há evidências de que o resultado da RAAM na Guatemala é que o FONTIER-RAS vem subsidiando, por ação ou omissão, a transformação produtiva de pro-prietários de latifúndios ineficientes, dedicados à produção para exportação tradi-

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cional, para outras atividades mais rentáveis, como podem ser a agroindústria in-tensiva em capital, vinculada a produtos de exportação não-tradicional e/ou aintermediação comercial importação-exportação. Entrementes, a dívida agrária as-sumida pelos grupos camponeses que acessaram a terra – geralmente em contex-tos de inviabilidade produtiva e, portanto, de impossibilidade de pagamento damesma –, os têm colocado em situações de maior vulnerabilidade, o que pode teruma influência negativa, a curto prazo, sobre os conflitos agrários no país.

Ao contrário do que se poderia esperar, diante da ineficácia constatada dosmercados de terra como meio para melhorar a eficiência global da economia ealiviar a pobreza da população rural, as novas propostas de acesso à terra preten-dem aprofundar a ortodoxia do mercado como um ente redistributivo. O arren-damento, principalmente o simples, mas também com a opção de compra, é co-locado como a nova panacéia para o acesso à terra do campesinato pobre, emconsonância com o paradigma da nova ruralidade das IFIs.

Por um lado, o modelo de arrendamento simples e de curto prazo que vem sen-do implementando desde 2004 tem um caráter meramente paliativo, ao não gerarcondições para investimentos e/ou o acesso ao crédito. Por outro lado, a viabilidadedos mercados de arrendamento, a longo prazo e com opção de compra, é altamenteincerta em um contexto de conflitividade e iniqüidade agrária, como o que existena Guatemala. Este mercado enfrentaria os mesmos problemas estruturais que omercado de venda de terras: a falta de oferta de terras produtivas, a falta de incenti-vos para vender (ou dar em concessão) as terras, a falta de infra-estrutura social eprodutiva e a falta de apoio à produção e comercialização dos pequenos produtores.

A opção pelo arrendamento – junto com a negativa governamental de renovar asduas etapas pendentes do projeto de apoio ao FONTIERRAS do Banco Mundial –aponta para uma concepção de ruralidade em que (novamente em concordância comBID e o BIRD) o acesso à terra daquelas camponesas e camponeses sem-terra ou comterra insuficiente deixa de ser um fator crítico para a superação da pobreza.

A política de administração de terras aplicada nos últimos anos não tem resul-tado em uma maior segurança na propriedade e posse da terra para a populaçãoindígena e camponesa empobrecida. Ao contrário, como já foi observado em outrospaíses (FIAN & Via Campesina, 2004), em muitos casos essa política torna aspopulações mais vulneráveis e sujeitas a perder a terra. Isto acontece em um con-texto de Ajuste Estrutural no qual, junto com a titulação, liberaliza-se o comércioagrícola e se desmantelam os serviços estatais de apoio aos pequenos produtores.

A conseqüente quebra de muitos agricultores – que agora contam com títulosalienáveis e passíveis de transações – leva a que os bancos fiquem com essas terras.

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Leva também, diante de condições tão adversas para a pequena produção, a quemuitos camponeses optem por vender sua terra a grandes empresáriosagroexportadores ou a investidores estrangeiros em troca de (pouco) dinheiro. OBanco Mundial denomina este fenômeno de “aumento da eficiência alocativa deprodutores menos eficientes para os mais eficientes” (ALAI, 2004, pp. 5-6). Nãosurpreende que o processo de regularização (bem como o de levantamentocadastral) na Guatemala tem avançado principalmente nas zonas de importânciaestratégica em termos de sua atual ou potencial atração para investimentos decaráter extrativo, agroindustrial e megaprojetos de infra-estrutura.

Isso tudo evidencia que o tema do acesso à terra não pode ser visto de formaisolada do contexto econômico global. Não há possibilidade de êxito naredistribuição de terras se, simultaneamente, inviabilizar-se a pequena economiacamponesa pelo desmantelamento ou privatização dos serviços de extensão, fa-zendo-a enfrentar a uma competição desleal, produto da liberalização comercialimposta e pregada, mas não executada em seu próprio terreno, ou seja, pelos paí-ses do Norte. Uma redistribuição efetiva da terra, portanto, passa por uma mu-dança drástica na lógica da globalização atual, na direção de novas formas de po-líticas que tenham em seu centro a população global empobrecida, cuja maioriasegue se dedicando à atividade agropecuária.

Notas1 Este artigo foi elaborado tendo como base a publicação de Garoz, Alonso e Gauster, (2005). Todo o con-

teúdo, a não ser nos casos de citações explícitas, se encontram nesta publicação, disponível emwww.congcoop.org.gt

2 Manzana é a medida utilizada no Censo Agropecuário da Guatemala e uma (1) manzana corresponde a6.988 metros quadrados ou a 0,7 hectares (nota do tradutor).

3 Mais adiante veremos que, nos últimos anos, a partir do reconhecimento de falhas do modelo, tem havi-do algumas mudanças nesta política.

4 A Franja Transversal do Norte é uma região localizada no norte da Guatemala que se estende do departa-mento de Huehuetenango até Izabal, passando por Quiché e Alta Verapaz.

5 Esta decisão é produto do discurso dual do governo guatemalteco que, de um lado, rechaça e critica aberta-mente a ingerência de organismos internacionais (financeiros e outros) na questão agrária e no desenvolvi-mento rural, mas, por outro, aplica as diretrizes do modelo neoliberal promovido por estes organismos indo,inclusive, mais longe na ortodoxia do mercado como fornecedor de recursos e regulador da economia.

6 Cálculo realizado com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), Censo Agropecuário de 2003.7 Seminário realizado sob a coordenação do Comité Unidad Campesino (Comitê Unidade Camponesa –

CUC) da Costa Sul da Guatemala.8 Fonte anônima: afirmação de uma pessoa ligada a um organismo internacional.9 Entre outras razões, este valor foi pago porque foram contabilizados equipamentos e máquinas que já não

tiveram nenhuma utilidade.

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10 A Gran Alianza Nacional (GANA) é o partido do atual presidente da Guatemala, um partido de direitaque assumiu o poder em janeiro de 2004.

11 A medida de uma (1) caballeria corresponde a 64 manzanas – algo em torno de 45 hectares. Portanto,foram arrendados em torno de 28.500 hectares (nota do tradutor).

12 Trataremos somente da regularização de terras pois, apesar de tem sido iniciado com o levantamento cadastral,não há muita experiência sobre isto e a lei que dá suporte a este processo acaba de ser aprovada pelo Congres-so da República (em agosto de 2005). Da mesma maneira, a instituição a cargo da resolução de conflitos –o CONTIERRA – tem um papel tão marginal que não vale a pena aprofundar a análise sobre seu trabalho.

13 Apesar do novo papel que, a partir do final dos anos 1980, desempenham as instituições de Bretton Woods(Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, junto com suas expressões continentais como o Ban-co Interamericano de Desenvolvimento) no marco do “Consenso de Washington”, desde 1995 a Organi-zação Mundial de Comércio se consolida como um ator determinante das características e do rumo daglobalização corporativa.

14 Nesta categoria estão incluídos, como vimos anteriormente, 92% de produtoras e produtores do país, ouseja, em torno de 764.684 famílias.

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O conceito de “reforma agrária de mercado” (RAM, também chamada refor-ma agrária apoiada pelo mercado ou conduzida pelo mercado) tem sido centralpara a “nova onda” de reforma agrária em evidência internacional desde o iníciodos anos 1990. Essa nova onda sucedeu a uma calmaria de reformas agrárias namaioria das regiões do mundo durante os anos de 1980, que marcou o fim deuma longa trajetória de reformas (capitalistas e socialistas) nas décadas posterioresà II Guerra Mundial. Essa história, e as posições teóricas desenvolvidas em tornodela, foram exaustivamente debatidas em outro lugar e não serão repetidas aqui.1

Ao contrário, a presente seção introdutória enfocará o surgimento relativamenterecente da RAM em âmbito internacional e como o conceito foi interpretado eaplicado no contexto sul-africano. A seção subseqüente analisará em detalhes ocaso da África do Sul, enquanto a conclusão tira lições fundamentais para a regiãoe suas implicações para políticas de reforma agrária mais gerais.

1. Surgimento da reforma agrária de mercado (RAM)

Moyo e Yeros (2005) fazem uma distinção útil entre três modelos amplos dereforma agrária, denominados de “estatal”, “comercial” e “popular”. Embora pro-gramas correntes de RAM pareçam superficialmente pertencer ao modelo do“mercado”, a análise de Moyo e Yeros propõe que muitos deles podem se enqua-drar melhor no modelo estatal modificado (“reformista”), por meio do qual oEstado se engaja em transações voluntárias do mercado.

O Estado também pode adquirir a terra por mecanismos de mercado, o cenário refor-mista do “disposto a vender” e “disposto a comprar”. Nele, o mercado (i.e., os latifun-

O ESTADO, O MERCADO OU O PIOR DE AMBOS? A REFORMAAGRÁRIA DE MERCADO NA ÁFRICA DO SUL

EDWARD LAHIFF

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diários) seleciona a terra (se e quando os latifundiários quiserem), o Estado compra aterra e indeniza os latifundiários (freqüentemente com ajuda externa), o Estado selecio-na os beneficiários (a menos que exerçam o direito de precedência na compra) e lhestransfere o título (Moyo & Yeros 2005, p. 53).

Existe um consenso amplo entre estudiosos de que a RAM emergiu como umareação às debilidades percebidas em formas anteriores de acesso à terra e à reformaagrária conduzidas pelo Estado (dos dois tipos, capitalista e socialista). Entre osargumentos mais comuns citados estão: a ineficiência do Estado e de fazendascoletivas na China e no bloco soviético, bem como de seus satélites na África, Ásiae América Latina; o fracasso (e reversão parcial) de esquemas de redistribuição empartes da América Latina e Ásia; e a distorção de vários mercados pelo protecio-nismo comercial, pela regulação de preços e por subsídios ao produtor.

Os programas de ajuste estrutural econômico, em grande parte promovidos peloBanco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional e que dominaram a políticaeconômica no mundo em desenvolvimento nos anos oitenta, podem ser vistos comocoveiros da “velha ordem” da reforma agrária conduzida pelo Estado e também comoparteiras de novas abordagens amistosas ao mercado. Em reação às alastradas crisesde endividamento e fiscais, os gastos estatais foram dramaticamente reduzidos (oupelo menos redirecionados) em muitos países, os mercados foram liberalizados e asagências estatais responsáveis pela produção e distribuição agrícola foram ou fecha-das ou privatizadas. Em outras palavras, os pilares fundamentais do desenvolvimen-to conduzido pelo Estado e da regulação (“desenvolvimentismo”, na nomenclaturade Bernstein) foram sistematicamente retirados, não somente nas economias orien-tadas para o mercado (por exemplo, Brasil e Malaui), mas também nas que nomi-nalmente são de orientação socialista (por exemplo, Tanzânia e Zimbábue). Agre-gou-se a essa mudança nas políticas econômicas a crise ideológica criada pela quedado comunismo na União Soviética e em seus satélites, que minou a tradicional opo-sição da ala esquerda a reformas orientadas segundo o mercado.

Diante desse pano de fundo econômico e ideológico inconstante, a reformaagrária mais uma vez encontrou seu caminho até o palco da política, mas de for-mas dramaticamente diferentes das que dominaram a era anterior. As discussõespassaram a enfocar um espectro relativamente estreito de reformas, ao invés dareestruturação global das relações agrárias. Na prática, a nacionalização e acoletivização desapareceram da ordem do dia (com a possível exceção deZimbábue); “terra para quem nela trabalha”, considerado amplamente como omodo mais bem-sucedido de reforma agrária ao longo dos séculos XIX e XX, já

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não era uma opção, devido ao desaparecimento prático de grandes imóveis arren-dados na maioria dos países do mundo (com exceções dignas de nota como empartes do Sul da Ásia e Norte da África); o parcelamento de fazendas em favor detrabalhadores e camponeses caiu em descrédito geral, devido às dificuldades per-cebidas na troca da produção em grande escala para pequena escala – e do traba-lho assalariado para o familiar. O remanescente disso é somente a reforma de ter-ras de posse comunal (ou tradicional) e a modesta distribuição de terras de fazendasempresariais para beneficiários selecionados – em geral aqueles considerados ca-pazes de produção “empresarial”, seja individualmente, seja como partes de umgrupo. É essa a forma de redistribuição mais associada à RAM. Contudo, comoserá demonstrado a seguir, o conceito foi usado de várias maneiras.

A RAM se baseia na alegação de que o mercado é capaz de gerar benefíciostanto de eficiência como de lucratividade ao transferir terra de usuários menospara mais produtivos (tipicamente de grandes para pequenos – Deininger &Binswanger, 1999). Isso foi central no pensamento do Banco Mundial e de ou-tros organismos pelo menos desde os anos 1970s (razão pela qual é anterior aoque passou a ser conhecido como RAM). Porém, o que mudou foi um reconheci-mento maior por parte de economistas neoliberais de que é improvável que osmercados sozinhos provoquem a desejada reestruturação das relações de posse,devido a uma gama de imperfeições ou distorções, incluindo o acesso limitado aocrédito e à informação por parte dos compradores mais pobres, bem como a ten-dência de que os preços de terra excedam valores produtivos (ou agronômicos).Em decorrência, defende-se o uso de subsídios para permitir a pequenos agricul-tores (ou a supostos agricultores) com limitado capital ou acesso ao crédito queentram no mercado de terras, contudo de maneira a não “distorcer” o mercado nofuturo (van Zyl & Binswanger, 1996, p. 419), dando origem ao que pode maisbem ser definido como esquemas de apoio para a compra.

Embora a aquisição de terras através de transações espontâneas de mercado fos-se o carimbo oficial da RAM, uma gama de atributos adicionais também foi associadaa esse enfoque, notavelmente a auto-seleção de beneficiários, o co-financiamento(“contribuição própria”) pelos beneficiários, uma ênfase em planejamento rural antesda aprovação de subsídios (e, por conseqüência, antes da aquisição da terra) e a con-fiança no setor privado e em organizações não-governamentais (ONGs, no lugar deagências estatais) para prover o apoio técnico e financeiro aos beneficiários (Deininger& Binswanger, 1999; Borras, 2003).

Para seus defensores, a RAM, portanto, não recorre apenas à redistribuiçãode terra via mercado, mas a um conjunto mais amplo de reformas que buscam

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simultaneamente: fomentar oportunidades de mercado existentes pararedistribuir terra; liberalizar a terra e outros mercados (por exemplo, o crédito,insumos agrícolas, produtos da agricultura);2 atrair pequenos proprietários ou“agricultores emergentes” para uma forma de produção mais “empresarial”; eminimizar o papel do Estado na alocação da terra, na regulagem da economiaagrícola e no desenvolvimento rural (inclusive no apoio a novos ou pequenosagricultores).

Muitas das reformas acima, no setor rural, obviamente estão em andamento nospaíses em que a reforma agrária (em particular a reforma agrária redistributiva) nãoemergiu como prioridade. Nos casos em que se fomenta a reforma agrária de mer-cado, é possível identificar cinco características centrais que definem a proposta:

1) Veto dos proprietários de terras para participar da reforma agrária – o merca-do seleciona a terra;2) Pagamento de “preços de mercado” pela terra (normalmente adiantado e emdinheiro) – o mercado estabelece o preço;3) Auto-seleção de beneficiários (também chamada de “conduzida pela deman-da”) – o mercado seleciona os beneficiários;4) Foco em “formas empresariais de produção” – o mercado determina o que éproduzido;5) Papel proeminente do setor privado no fornecimento de crédito, extensão eoutros serviços aos beneficiários – o mercado provê a assistência.

A importância relativa destes elementos da RAM pode variar de país a país ecom o passar do tempo – por exemplo, sob a constituição do Parlamento deLancaster no Zimbábue, nos anos oitenta, os primeiros dois foram proeminentes,com menos ênfase nos outros três; no Brasil, houve menos ênfase na produçãopara o mercado, embora a dependência dos financiamentos sirva para empurraros beneficiários nessa direção; na África do Sul, tiveram destaque todos os cincoelementos desde meados dos anos 90.

A RAM foi alvo de muitas críticas e de oposição popular, tanto por alegaçõesespecíficas sobre o que é como pelo que deixa de considerar. Entre as questõeslevantadas por analistas estavam a relutância de proprietários de terras em respon-der favoravelmente às induções de mercado; a tendência de elevar os preços daterra; a exclusão de beneficiários mais pobres; um planejamento agrícola impró-prio (que leva a erros de projeto) e o fracasso de agências do setor privado emsubstituir eficazmente serviços agrícolas estatais (Riedinger et al., 2000; El-

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Ghonemy, 2001; Borras, 2003). No entanto, a crítica mais eloqüente foi o ritmolento da transferência de terras em todos os países que realizam a RAM.

Isso impõe perguntas de longo alcance acerca da própria proposta, bem comoda habilidade de Estados implementarem esses programas dependentes do mer-cado. Por exemplo, será que os objetivos da RAM são tão modestos que partemfundamentalmente de entendimentos tradicionais da terra e da reforma agrária?Por acaso programas modestos de reforma, que não desafiam fundamentalmenteo poder das classes latifundiárias atuais e que aceitam a estrutura herdada das eco-nomias rurais (ainda que agora a liberalizando), proporcionarão terra suficiente eoportunidades apropriadas para os pobres do campo (e da cidade) “acumularemde baixo para cima”, enfrentando assim problemas de pobreza e desigualdade crô-nicas?

Respostas a essas perguntas e outras correlatas requerem nitidamente umaanálise aprofundada dos casos de países específicos. Um debate significativo jáaconteceu ao redor da RAM no Brasil e nas Filipinas, porém se sabe muito menosacerca da RAM em outros países. Na África meridional, o que pode ser conside-rado um precursor de políticas posteriores começou no Zimbábue, após a inde-pendência em 1980. Aqui foram adotados mecanismos baseados no mercado comoparte de concessões políticas e econômicas mais amplas feitas a colonos brancosdurante a transição, em particular a proteção de interesses dos brancos pela pro-priedade. Para usar retroativamente o linguajar dos anos noventa, isso poderia servisto como forma de garantir a “cooperação” dos proprietários de terras e evitarque seja “distorcido” o mercado de terras. Contudo, é discutível se um pensamen-to desses gozava de qualquer popularidade na ocasião.

Ao contrário, o conceito de “vendedor disposto, comprador disposto” foi con-siderado (por todas as partes do debate) como um constrangimento ao novo Es-tado para que concedesse um direito de veto aos proprietários de terras no proces-so da reforma e assegurasse a indenização paga à vista, a preços de mercado (asprimeiras duas das cinco características arroladas acima – Moyo, 1995). A desa-propriação foi permitida para casos de subutilização da terra, mas isso tambémrequeria pagamento à vista e em moeda forte. Em outras palavras, no caso doZimbábue, a RAM tratou do processo de aquisição de terras, mas teve pouco ounada a dizer sobre questões como seleção de beneficiários, formas de produção naterra recolonizada ou alocação de serviços de apoio. Tudo isso tendeu a seguir umenfoque mais antigo, dirigido pelo Estado (“desenvolvimentista”); o que Moyo(1995) rotulou de “enfoque de reforma de mercado centrada no Estado”. Em de-corrência, o Zimbábue pode ser considerado um caso de transição entre refor-

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mas do período pós-guerra e pós-colonial conduzidas pelo Estado e as RAM ple-namente desenvolvidas dos anos 1990s.

A África do Sul constitui em um caso bastante diferente. Em contraste compaíses como o Brasil e as Filipinas, em que a RAM evoluiu de (e não substituiucompletamente) processos de reforma em curso há mais tempo (não conduzidaspelo mercado), o programa de reforma agrária da África do Sul caiu inteiramentena era e nos parâmetros da RAM, sendo visto de certa forma como um caso demanual . Os fatores que tornaram a África do Sul candidata a uma RAM, além daépoca de sua libertação, foram a extrema desigualdade na posse da terra (particu-larmente alinhada com categorias raciais), a natureza altamente empresarial da agri-cultura sul-africana, a existência de um mercado de terras bem desenvolvido e ocompromisso do governo do Congresso Nacional Africano com políticas econô-micas neoliberais e com a reconciliação nacional. Ademais, a trajetória históricado desenvolvimento rural na África do Sul – especificamente a destruição ou aextrema marginalização de pequenos proprietários e arrendatários e a consolida-ção da produção nas mãos de relativamente poucos produtores de grande escala –resultam que um enfoque do tipo “terra para quem nela trabalha” não era umaopção realista (Bernstein, 1996, p. 41).

Para ser significativa, uma reforma agrária teria de ser fundamentalmenteredistributiva, não beneficiando somente os que então estavam envolvidos naagricultura, mas também aqueles que há muito estavam excluídos do setor. Em-bora houvesse considerável apoio popular à redistribuição na época da libertação(ainda que com pouca clareza de como isso poderia ou deveria ser feito), as polí-ticas econômicas e ponderações da “realpolitik” do novo governo impediram o usode praticamente todas as formas tradicionais de redistribuição como, por exem-plo, a desapropriação, a nacionalização ou a coletivização. A RAM, portanto, pro-piciou um enfoque oportuno, embora na ocasião ainda não testado, apresentan-do a promessa de uma rápida transferência de ativos a baixo risco para a estabilidadepolítica ou a produção econômica.

2. A RAM na África do Sul

Na África do Sul, o debate em torno da reforma agrária esteve centrado, desde1994, no conceito específico de “vendedor disposto, comprador disposto”(VDCD), e não na categoria mais ampla de RAM (Lahiff, 2005). O VDCD temcerta história de uso na África do Sul, particularmente em redor da prática (con-

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tínua) da Lei de Desapropriação de 1975, sob a qual o preço pago por uma proprie-dade desapropriada (para obras públicas etc) é determinado pela referência com opreço que seria pago pela propriedade se fosse trocada entre um proprietário dis-posto a vender e um comprador. Nesse contexto de desapropriação, o VDCD serefere a um ideal imaginário, e não a uma prática atual. A expressão passou a termais atualidade no país com a extensa cobertura, pela mídia, da reforma agráriano Zimbábue durante os anos 1980s e início dos anos 1990s, e não pode havermuitas dúvidas de que isso contribuiu muito para seu destaque no seio da refor-ma agrária ao sul do Rio Limpopo (Lahiff & Cousins, 2001, p. 653).

Esse empréstimo terminológico – ativamente promovido pelo governo, mascuriosamente não pelo Banco Mundial – serviu para obscurecer as principais di-ferenças entre a política de reforma agrária no Zimbábue (até mesmo em sua fasemais “moderada”, do Parlamento de Lancaster) e da África do Sul. Especificamente,encobriu o papel muito maior do Estado no Zimbábue, incluindo seu direito àprimeira recusa na venda de terras, sua capacidade de iniciar transações e a efetivanacionalização de terras adquiridas – em suma, desapropriação e compra negocia-da, com indenização paga pela equivalência de preços de mercado. Isso contrastanitidamente com o enfoque reativo (“conduzido pela demanda”) praticado naÁfrica do Sul, com a confiança no “mercado livre” e com a liberdade dos proprie-tários de terras para vender ao comprador de sua escolha.

O VDCD penetrou gradativamente no discurso sobre a reforma agrária na Áfricado Sul durante o período de 1993-1996, um reflexo da rápida mudança no pensa-mento econômico do Congresso Nacional Africano (CNA) da esquerda nacionalistapara neoliberal. Estivera completamente ausente da declaração política do CNA “Prontopara Governar”, de 1992, que em lugar dele defendia a desapropriação e outros meca-nismos de não-mercado. De forma análoga, esteve ausente do “Programa de Recons-trução e Desenvolvimento”, o manifesto em que o partido conquistou o poder em 1994.Entretanto, na época do “Documento Branco sobre a Política sul-africana de Terras”, de1997, uma abordagem orientada no mercado e particularmente o conceito de VDCDhaviam se tornado a base da política de reforma agrária.3 Um enfoque desses não foiditado pela Constituição sul-africana, que prevê explicitamente a desapropriação parafins de reforma agrária e a indenização a preços inferiores ao mercado, mas, ao contrá-rio, representou uma opção política alinhada com a estratégia macroeconômicaneoliberal mais ampla (e em acordo com os investidores) adotada pelo CNA em 1996(Banco, 1994; Hall, Jacobs & Lahiff, 2003).

A reforma agrária na África do Sul ficou permanentemente aquém das me-tas fixadas pelo Estado e aquém das expectativas populares. Ao término do

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apartheid,4 praticamente todas as áreas empresariais cultivadas no país (cerca de86% de toda a terra agricultável e 68% da superfície total) estavam nas mãos daminoria branca e concentradas nas mãos de aproximadamente 60 mil proprie-tários (Bernstein, 1996, p. 27). Em 1994, o recém-empossado governo do CNA,fortemente influenciado por conselheiros do Banco Mundial, fixou como metapara todo o programa de reforma agrária (redistribuição, reforma da posse erestituição) redistribuir 30% da terra agrícola detida por brancos dentro de umperíodo de cinco anos (Williams, 1996, p. 157). A data-limite foi subseqüente-mente estendida para vinte anos (i.e., para 2014). Porém segundo números atu-ais de transferência de terras, torna-se improvável atingir até mesmo esse obje-tivo. O programa de Redistribuição de Terra para o Desenvolvimento Agrícola(LRAD), principal instrumento de redistribuição com base no mercado, lança-do após uma revisão maior das políticas em 2001, até o momento alcançouapenas 40% de seu objetivo específico, como se sabe, devido aos altos preços daterra (Thomas, 2005).

Em julho de 2005, um total de 3,1 milhões de hectares havia sido transferidopelos vários canais do programa de reforma agrária, dos quais o percentual maior(42.97%) aconteceu sob o programa de redistribuição (veja tabela adiante). Foramtransferidas quantias menores pela Restituição, Alienação de Terras do Estado e pelaReforma de Posse.5 O total transferido é equivalente a 3,1% da terra agrícola emmãos de brancos em 1994, mas pelo fato de que grande parte da terra transferidacomo Restituição e Reforma de Posse, e toda a terra sob a Alienação de Terras Públi-cas, era de propriedade estatal, o impacto real sobre a terra nas mãos dos brancos éconsideravelmente menor (Hall, 2004a, p. 27).6 Nessas estatísticas, falta a quantiade distribuições “puras” de mercado (i. e. vendas de terras não-ligadas a programasoficiais de reforma agrária) e, mais significativamente, o imenso número de habi-tantes rurais (trabalhadores, arrendatários e seus dependentes) que perderam o aces-so à terra em fazendas empresariais em mãos de brancos desde 1994.

Um recente estudo de Wegerif, Russell e Grundling (2005) constatou que maisde dois milhões de habitantes do meio rural – muitos deles arrendatários que sededicavam à produção independente – tinham sido deslocados entre 1994 e 2004,um número maior que na última década do apartheid (1984-1994) e muito maiorque o número total de pessoas beneficiadas sob todos os aspectos do programa dereforma agrária oficial desde seu início.7

Cabe salientar que as conquistas exatas do programa de reforma agrária repre-sentam uma questão de intenso debate, em grande parte devido à informaçãoprecária por parte das agências estatais competentes.

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Tabela 1 – Transferência de Terras pelos Programas de Reforma Agrária da África do SulPrograma Hectares distribuídos Parcela do total (%)

Redistribuição 1.347.943 42,97

Restituição 916.470 29,21

Alienação de terras públicas 772.626 24,63

Reforma da posse 100.175 3,19

TOTAL 3.137.214 100,00Fonte: Ministério de Agricultura e Questões Fundiárias (África do Sul, 2005).

As seções seguintes examinam o programa sul-africano de reforma agrária sobas cinco características esboçadas acima.

2.1. Veto dos proprietários de terras na participação da reforma agrária: o mercado seleciona a terra

Na África do Sul, a deliberação absoluta do proprietário de terras quantoà participação se tornou uma característica definida do programa de reformaagrária do Estado. Essa discrição se aplica diretamente às áreas de distribuiçãode terra e à reforma da posse de terra de trabalhadores rurais, mas tambéminflui pesadamente no processo de restituição com base em direitos que, nateoria e pela lei, fica fora do paradigma “vendedor disposto, comprador dis-posto”.8 Não satisfeito com a concessão desse poder de veto aos proprietáriosde terras, o Estado evitou assiduamente, por um período de onze anos, qual-quer medida que pudesse ser interpretada como influência sobre os proprie-tários de terras para vender, tais como uma negociação coletiva com organiza-ções de proprietários, afastando violentamente pessoas sem-terra que ocupavamáreas ilegalmente.

Por ironia, tem sido uma queixa periodicamente recorrente de proprietáriosde terras dispostos a vender a terra ao Estado para fins de reforma que suas ofertassão ignoradas, visto que procedimentos oficiais somente são desencadeados pararesponder a potenciais compradores, não aos vendedores.9 O Diretor Geral doDepartamento de Questões Fundiárias (DLA) relatou recentemente a uma co-missão parlamentar que o seu departamento deixa de lado ofertas não-solicitadasde proprietários de terras, devido à falta de capacidade operativa e porque os pos-síveis beneficiários não foram previamente identificados:

Em muitos casos eles [os proprietários de terras] não dizem quem são as pessoas a serbeneficiadas... Não se trata de um sistema orientado pela oferta… O Departamentonão se dispõe a adquirir terras sem um beneficiário imediato em vista, por causa deproblemas de capacidade dentro de suas próprias fileiras (Thomas, 2005).

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Embora haja um mercado imobiliário ativo na África do Sul, existem razõespara acreditar que boa parte da terra negociada não está acessível a beneficiáriosda reforma agrária.10 Houve denúncias de conluio entre proprietários de terra,contrários à reforma agrária, freqüentemente com base em racismo explícito, masa comprovação do alcance dessa ação é limitada (Aliber & Mokoena, 2002; Tilly,2004). Terra de boa qualidade que chega ao mercado livre tende a ser vendida porleilão público ou contrato privado e a transferência da propriedade acontece tipi-camente dentro de aproximadamente três meses a partir da proposta inicial devenda. A provisão de financiamento para futuros beneficiários da reforma agráriaem geral leva significativamente mais tempo ainda para ser processada, devendoser vinculada a uma propriedade específica.

O processo de aprovação requer, entre outras coisas, um acordo de venda porescrito por parte do proprietário da terra, um preço acordado que seja confirmadocomo “adequado ao mercado” por um avaliador independente e um plano agrícoladetalhado. Para reunir tudo isso, a demora pode ser de um período entre três mesese dois anos. Logo, futuros beneficiários não podem participar de leilões, nem “sairàs compras”, nem confirmar uma compra dentro do prazo habitual, de modo quesão excluídos da grande maioria das vendas, em um mercado de terras que continuasendo altamente competitivo.11

Na prática, os “vendedores dispostos” são obrigados a esperar por um períodoextenso até a confirmação da venda, correndo o risco de que a solicitação sejadescartada por motivos técnicos ou pela falta de fundos disponíveis.12 Embora sobreesse ponto pouca comprovação sólida tenha sido produzida até o presente, pareceplausível presumir que somente um proprietário de terras excepcionalmentecompromissado com a causa da reforma agrária, ou que não consegue alienar aterra por outros meios (por exemplo, devido à localização ou à qualidade precáriada terra), tenderá a entrar em uma transação de reforma agrária (Aliber & Mokoena,2002). A alternativa óbvia do próprio Estado comprar a terra em nome debeneficiários aprovados foi rejeitada pelo Departamento de Questões Fundiáriascom os questionáveis argumentos de que isso constituiria um enfoque orientadopela “oferta” e de que haveria o risco do Estado ficar com terra que não poderiaconservar nem se desfazer.

Em uma série de aspectos importantes, as políticas implementadas pelo go-verno sul-africano divergem do modelo de RAM, em formas que tendem a inibira disponibilidade de terra. Primeiro, por muito tempo foi alegada a necessidadede um imposto territorial como meio de encorajar a venda de terra subutilizada elimitar a especulação, mas isso tem sido evitado pelo governo sul-africano como

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parte de sua política geral de reduzir a tributação e encorajar o investimento dosetor privado, e devido à oposição de proprietários de terras. Em segundo lugar, asubdivisão de propriedades grandes é geralmente considerada como elementofundamental da promoção do acesso à terra, especialmente em países com lati-fúndios altamente concentrados.

O parcelamento de propriedades rurais era proibido por lei no regime doapartheid. Embora essa lei tenha sido revogada pelo Parlamento, aguarda, há maisde três anos, a assinatura presidencial necessária para tornar efetivo o ato, e nãoparece desfrutar de respaldo político. Além disso, a subdivisão da terra é conside-rada um processo caro e administrativamente incômodo, sendo improvável queseja feita por proprietários de terras, ainda que legalmente permitida (Aliber &Mokoena 2002, p. 30). A conseqüência é que a terra continua chegando ao mer-cado em lotes relativamente grandes, e grupos de possíveis beneficiários são obri-gados a agrupar seus subsídios para adquiri-los.13 Não há provisão de qualquerajuda para beneficiários que desejam subdividir propriedades depois da aquisi-ção, um processo ativamente desencorajado por gestores da reforma agrária.

Em decorrência, financiamentos restritos, orçamentos limitados, processos deaprovação longos e restritivos e o preconceito dos proprietários de terras conver-gem para assegurar que possíveis beneficiários da reforma agrária fiquem limita-dos a uma pequena porção da terra que entra anualmente no mercado. Com fre-qüência, acabam obtendo terra de qualidade relativamente pobre e mais extensado que desejariam. Candidatos à reforma agrária relativamente pobres, sem expe-riência e mal-informados consideram praticamente impossível competir no “mer-cado livre” com compradores mais experientes e com maiores recursos. Uma par-cela considerável de “redistribuição” de terras, na verdade, envolve terras públicas,não carecendo de uma transação de mercado e, mais importante, em termos po-líticos, deixa predominantemente intactas propriedades em mãos de brancos.14

2.2. Pagamento de “preços de mercado” pela terra (normalmente adiantado e em dinheiro): o mercado estabelece o preçoO pagamento de preços de mercado (ou pela equivalência de mercado) tem sido

central para a RAM na África do Sul, estando intimamente conectado ao direito deveto dos proprietários de terras. Diferente do caso do Zimbábue dos anos de 1980,os proprietários de terras não somente têm a opção de vender ou não a terra, comotambém podem escolher a quem vender e a que preço. O pagamento a preços demercado sofreu insistente oposição por parte de organizações representativas dossem-terra, como foi demonstrado na Cúpula Nacional da Terra, em julho de 2005,

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sendo declarado “inegociável” pelos proprietários de terras. De fato, recentes pro-nunciamentos de proprietários de terras sugerem que poderia haver alguma aceita-ção de medidas de não-mercado, até mesmo a desapropriação, para a obtenção deterra, porém não de pagamento a preços inferiores ao mercado (Crosby, 2005).

Na prática, os preços pagos para fins de reforma agrária são fixados por avalia-dores imobiliários profissionais15 e mantidos pelo DLA, que gera sua própria esti-mativa de preços de mercado baseada em fatores como vendas recentes de proprie-dades comparáveis na região. Quando uma estimativa dessas fica abaixo do preçosolicitado pelo proprietário, acontece uma negociação limitada entre o DLA e oproprietário (normalmente pelo correio). Os proprietários são livres para aceitarou rejeitar a oferta feita pelo DLA. Os possíveis beneficiários não exercem nenhu-ma função direta sobre esse processo, motivo pelo qual não têm nenhum poderpara influenciar o preço pago ou o desfecho das negociações. Houve notícias decasos de transações que fracassam devido a diferenças mínimas entre o preço soli-citado e a quantia oferecida pelo DLA, dando a entender que habilidades na ne-gociação não são comuns entre os funcionários governamentais (Tilly, 2004).

Há amplas acusações de que as transações da reforma agrária pagam mais pelaterra que os preços praticados no mercado, devido a altos preços demandados pelosproprietários e ao possível conluio entre os donos, avaliadores e funcionários, em-bora exista pouca evidência sólida para corroborá-las. Em março de 2005, o Parla-mento ouviu falar de um caso na Província de Mpumalanga, envolvendo o conluioentre um chefe do DLA, avaliadores e proprietários, onde foram adquiridas fazen-das por dez vezes o preço pelo qual haviam sido negociadas há poucos anos.

Na fraude, os fazendeiros inflaram o valor de suas fazendas, e os avaliadores confir-maram essas estimativas falsas, que depois foram apresentadas a funcionários corrup-tos do governo que então emitiram os pagamentos. Em seguida os fazendeiros paga-ram propinas ao funcionário e ao avaliador.16

Aliber e Mokoena (2002, p. 27) argumentam que, na África do Sul, a RAMcoloca os proprietários de terras em uma posição de negociação robusta por causado número limitado de propriedades oferecidas para fins de reforma agrária. Issoacontece porque, freqüentemente, os candidatos têm forte preferência por umapropriedade específica (devido à proximidade de sua moradia atual ou por laçosancestrais), por causa do custo adicional que significaria (para governo e candida-tos) se as negociações fracassassem e o longo processo de planejamento tivesse derecomeçar em relação a outra propriedade.

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Em um estudo sobre a Província Setentrional do Cabo, Tilly (2004) identifi-cou entre proprietários a noção de que candidatos à reforma agrária e o DLA nãoeram parceiros “confiáveis” de negociação; os candidatos porque não têm autono-mia para cuidar das negociações em seu próprio interesse, permanecendo depen-dentes de que funcionários públicos determinem o valor final do subsídio e con-cluam a transação; o DLA por causa de “seus procedimentos protelatórios, estilode negociação e fases cíclicas de projetos” (Tilly, 2004, p. 38). Um agente imobi-liário com experiência no processo de reforma agrária descreveu a visão dos pro-prietários de terra nos seguintes termos:

O processo do DLA é muito lento. O Departamento não parece ser capaz de mantero ritmo das transações de terra e os vendedores se frustram. Os vendedores chegaramagora ao ponto em que preferem evitar negociar com o DLA ou simplesmentedisponibilizar a terra para a reforma agrária por causa do processo burocrático e dolongo período de espera entre cada fase da transação (citado por Tilly, 2004, p. 39).

A fixação do preço, portanto, acontece por meio de processos altamente bu-rocráticos, que mantêm apenas uma relação distante com o funcionamento domercado “real” de terras. Os “vendedores dispostos” e os “compradores dispos-tos”, muitas vezes, encontram-se cativos de um processo protelado e incerto, con-trolado por funcionários, que tentam aplicar “princípios” de mercado, uma resso-nância remota do encontro independente de “compradores e vendedores dispostosno mercado” idealizado por seus proponentes (Deininger, 1999).

Uma alegação específica da RAM é que, se forem pagos preços à vista aos pro-prietários de terras no ato da venda, isso a tornará atraente aos proprietários deterras, mantendo baixos os preços. O oposto parece ocorrer na África do Sul. Osproprietários de terras e seus representantes não somente reclamam dos procedi-mentos burocráticos prolongados e complicados em torno dos acordos de venda,mas também das demoras no pagamento uma vez atingido um acordo.

Em alguns casos os proprietários venderam as fazendas há quatro anos e ainda estãoesperando pelo dinheiro do governo e para que a transação seja consolidada. Conti-nuam nas fazendas, esperando que algum dia possam se mudar (Raal, 2005).

Podemos concluir que, enquanto os preços de mercado servirem como guiapara os valores pagos em transações da reforma agrária, o processo é passível demanipulação e que tanto o processo de negociação quanto o tempo envolvido

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apresentam pouca semelhança com negociações mercantis convencionais. Os fu-turos beneficiários da reforma agrária são incapazes de competir no mercado livreimobiliário, sendo compelidos a se conformar com vendas “fechadas”, negociadasentre proprietários de terras e funcionários públicos. A complexidade burocráticado processo não o torna atraente para proprietários de terras e é provável que, nomínimo, alguns proprietários de terras entram nas transações de reforma agráriapara livrar-se de propriedades que, de outro modo, não conseguiriam vender, ouporque acreditam que podem obter um preço mais favorável do que no mercadolivre.

2.3. Auto-seleção de beneficiários (“conduzida pela demanda”): o mercado seleciona os beneficiários

A RAM é baseada no princípio de que os beneficiários se “auto-selecionarão”,ao invés de serem escolhidos por funcionários do governo. Na prática, a auto-se-leção pode assegurar que sejam excluídas pessoas que não têm nenhum interessena reforma agrária, mas ela não garante que aqueles que se inscrevem no progra-ma consigam a terra que desejam. Isso se deve a uma combinação de fatores demercado (como descritos acima) e não-mercadológicos, especificamente o pro-cesso de candidatura, aprovação e financiamento administrado por funcionáriospúblicos.

Pouco se sabe acerca do tipo de pessoas beneficiadas com a reforma agrária, dosque se inscrevem e são rejeitados, e dos que nem sequer são alcançados pelo progra-ma. Desde o início, o programa de reforma agrária sul-africano é acometido de umafalta de informação básica, resultante de um processo inadequado (e freqüentementeinexistente) de monitoramento e avaliação.17 O resultado é uma falta de dados se-guros acerca das características socioeconômicas dos beneficiários que ingressam noprograma (por exemplo, seu grau de formação, situação de emprego, propriedades,renda, aptidão agrícola), bem como acerca do impacto da reforma agrária no sus-tento familiar e na economia rural. Cumpre salientar que, embora uma parcela dis-so possa ser atribuída à precariedade do sistema de gerenciamento de dados do DLA,e aos relatórios esparsos, grande parte do problema – particularmente no que tangeao perfil socioeconômico dos beneficiários – deve-se ao fato de que dados relevantessimplesmente deixam de ser coletados. Em decorrência, tem havido uma considerá-vel especulação a respeito de quem exatamente está se beneficiando com o progra-ma e como isso poderia mudar com o tempo.

Os poucos estudos disponíveis indicam que somente uma pequena parte dossem-terra e os com pouca terra vem obtendo acesso ao programa. São predomi-

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nantemente homens alfabetizados acima dos quarenta anos de idade e, cada vezmais, se trata de pessoas com salários (inclusive pensões), em lugar de desempre-gados, gozando de acesso relativamente bom à informação (Lahiff, 2000; Wegerif,2004; Jacobs, Lahiff & Hall, 2003; Hall, 2004b). Um estudo do Conselho dePesquisa de Ciências Humanas (HSRC) constatou que o programa de LRAD es-tava alcançando uma gama de interessados, contudo não conseguiu confirmar ainclusão dos extremamente pobres: “Embora seja claro que a LRAD cuida maisde candidatos bem-situados (…), ainda é acessado amplamente por lares pobres.É incerto se ‘os mais pobres dos pobres’ estão acessando ou não a LRAD em nú-meros significativos” (HSRC, 2003). Isso é reflexo tanto da diferença na capaci-dade de indivíduos para acessar o programa estatal, como de opções deliberadasfeitas pelos políticos e gestores.

Embora oficialmente a política de reforma agrária vise alcançar uma gama debeneficiários – incluindo mulheres, pessoas jovens, desempregados, trabalhado-res rurais e aspirantes a empresários rurais –, houve nos anos recentes uma notávelmudança na política em favor dos últimos (Jacobs, Lahiff & Hall, 2003, p. 11).Isso se manifesta de duas maneiras principais: o montante de subsídios (e emprés-timos) individuais concedidos e os critérios de avaliação dos “planos de negócio”(ou seja, planos de uso da terra e prospecções econômicas).

Desde 2001, o montante de subsídios concedidos a candidatos da reformaagrária bem-sucedidos é determinado pela quantia da “contribuição própria” feitapelo candidato. A contrapartida pode ser em dinheiro ou em produtos e equipa-mentos (por exemplo, implementos agrícolas ou gado).18 Os subsídios tambémpodem ser usados para melhorar empréstimos no Banco Agrícola estatal (e vive-versa, ou seja, empréstimos podem ser usados como “contribuição própria” paraaumentar os subsídios), favorecendo ainda mais quem consegue comprovar ati-vos. As contribuições próprias não fluem necessariamente para a aquisição da ter-ra, especialmente quando a contribuição é em produtos ou máquinas, e não emdinheiro. Isso significa que, na maioria dos casos, a terra é adquirida completa-mente com o subsídio da reforma agrária (ou, algo menos comum, por uma com-binação de subsídio e empréstimo – Hall, 2004b).

Longe de ser uma “contribuição” para o empreendimento agrícola, asseguran-do assim o comprometimento (ou “inserção econômica”), como alegariam osdefensores da RAM, a “contribuição própria”, no caso sul-africano, simplesmentequalifica o candidato a um grau maior ou menor de apoio financeiro, já que asestimativas de valor dos ativos são usadas para “recompensar” os candidatos comníveis variáveis de subsídios e empréstimos. Isso parece ser uma prática tosca de

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“apoiar o vencedor” (ou, pelo menos, o mais bem situado), que pode muito bemrender projetos mais “viáveis” ou “bem-sucedidos” para os poucos afortunados,porém não pelas razões geralmente apresentadas. Enquanto a tabela da “contri-buição própria” determina o montante do subsídio, a aprovação do financiamen-to depende da elaboração de um plano de negócios aceitável que demonstre “via-bilidade econômica”. Isso será debatido abaixo.

No início do programa sul-africano de reforma agrária, Zimmerman (2000)identificou uma série de barreiras geradas pelo conceito de “racionamento orien-tado pela demanda”, ou auto-seleção, que provavelmente excluirão grupos maispobres. Zimmerman realça a falta de clareza na política acerca dos beneficiáriosprevistos da reforma agrária, argumentando que sem uma ênfase clara na reduçãode pobreza, um programa orientado pela demanda provavelmente será conduzi-do em grande parte por considerações de eqüidade racial que pressupõem umapopulação negra homogênea:

Um nítido perigo no esquema de distribuição orientado segundo a demanda é que ossegmentos mais ricos da população rural provarão que são mais capazes de participar,perfazendo por isso os beneficiários principais, ao passo que os segmentos mais po-bres serão deixados predominantemente sem os benefícios do programa (Zimmerman,2000, p. 1441).

O constante fracasso em definir com clareza os beneficiários previstos pelareforma agrária, a falta de uma estratégia específica de mitigação da pobreza, aênfase na viabilidade econômica e as falhas crônicas em monitorar o programasugerem que a exclusão dos grupos pobres e marginalizados deverá continuar.

2.4. Foco nas “formas empresariais de produção”: o mercado determina o que é produzidoConforme argumentado acima, a atual política de reforma agrária da África do

Sul faz uso extenso da linguagem da “viabilidade” comercial e econômica. Essa ên-fase aumentou consideravelmente desde o início do programa, em particular desdea introdução do programa de LRAD, em 2001. Com o LRAD visava-se cuidar deum hiato percebido no programa anterior (SLAG)19, que concedia subsídios relati-vamente pequenos a famílias de baixa renda, porém não satisfazia as necessidades deagricultores “emergentes” (i. e., mais bem situados e mais voltados ao mercado).Poucos meses depois de ser lançado como um “subprograma” de redistribuição, aLRAD na prática havia substituído totalmente o SLAG, que agora é usado apenaspara projetos pequenos, não-agrícolas (por exemplo, habitação e desenvolvimento

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da pequena empresa). Em conseqüência, a lógica “empresarial” da LRAD é aplicadaa todos os candidatos à reforma agrária, independente de seus recursos, capacidadesou objetivos declarados (Lahiff, 2001; Lahiff & Cousins, 2005).

Essa lógica “empresarial” é imposta pelos onipresentes planos produtivos, ela-borados por funcionários de assistência rural ou consultores privados designadospelo DLA, que podem estabelecer mero contato superficial com os futurosbeneficiários (HSRC, 2003; Hall, 2004b; Wegerif, 2004). É típico que esses pla-nos prevejam projeções ultra-otimistas de produção e lucros, com base em mode-los de manuais obtidos do setor agrícola empresarial e, além disso, influenciadospelo uso passado da terra em questão (Jacobs, Lahiff & Hall, 2003, p. 25). Emgeral, planos produtivos presumem grandes quantias de capital de giro, que tipi-camente não está disponível nos subsídios de reforma agrária nem pode ser aportadopelos próprios beneficiários. A negativa de concessão de empréstimos, como acon-tece com freqüência, torna inexeqüível o plano produtivo. Contudo, os funcioná-rios públicos via de regra insistem em que os beneficiários obedeçam a esses pla-nos, fazendo disso uma condição para a liberação de subsídios discricionários aque os beneficiários poderiam fazer jus. Nos casos em que foi tomado crédito paraimplementar o plano produtivo, houve amplos informes (mas nenhum dado ofi-cial) de inadimplência, conduzindo a algumas ameaças de recuperação das pro-priedades pelos bancos. O Estado interveio em vários casos, no esforço de preve-nir a retomada, aportando financiamento adicional.

Uma debilidade central da maioria dos planos produtivos é que presumemque a fazenda será operada como uma só unidade (i. e., da forma como foi usadapelo dono anterior), independente do tamanho do grupo beneficiário (HSRC,2003, p. 71). Conforme exposto acima, devido à falta de apoio para o parcelamentoda terra, freqüentemente os beneficiários são obrigados a comprar propriedadesmuito maiores do que necessitam e a ampliar o tamanho dos grupos para agregarsubsídios suficientes para atingir o preço de compra. Isso faz com que muitos pro-jetos assumam empreendimentos maiores do que o previsto e surjam numerososproblemas de dinâmica grupal quando fazendas de um único dono são transfor-madas em coletivos agrícolas.

A forte ênfase na produção coletiva se origina diretamente da necessidade deformar grupos para adquirir grandes propriedades de terra, bem como da recusados funcionários em considerar a subdivisão ou outras alterações na prática agrí-cola tradicional. Documentos oficiais são notoriamente omissos quanto às for-mas preferidas do uso de terra, e em nenhuma parte do discurso oficial se usa otermo “coletivo” ou “agricultura grupal”. Apesar disso, tentativas de agricultura

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coletiva se tornaram marca oficial de projetos de reforma agrária na África do Sul,sendo indubitavelmente uma das principais razões para a elevada taxa de insucessodos projetos.20

Bradstock descreve assim a situação na Província Setentrional do Cabo:

O DLA é responsável para elaborar planos [produtivos], mas normalmente são elabo-rados de forma isolada e escritos principalmente para satisfazer objetivos administrati-vos e não de desenvolvimento. Sem planejamento para orientar os grupos, muitos delesadministram suas propriedades de uma maneira improvisada. Isso freqüentemente levaa uma falta de dinheiro em momentos-chave do calendário agrícola, como o pagamen-to do plantio ou da colheita de uma lavoura. Além disso, por causa das dificuldades deacesso ao crédito, o grupo muitas vezes passa por “crises de caixa” que são solucionadaspela venda dos ativos mais líquidos da fazenda, como gado (…) o que pode pôr emrisco a futura sustentabilidade financeira do projeto (2005, p. 16).

Em suas tentativas constantes de imitar grandes fazendeiros empresariais,mediante um discurso político que privilegia o mercado acima de tudo, os funcio-nários estatais tiveram êxito em criar uma paródia de iniciativa privada: grupos deagricultores negros (predominantemente) pobres, lutando (e muitas vezes fracas-sando) no único programa de coletivização do mundo atual patrocinado peloEstado.

A intensa ênfase na “agricultura empresarial” também levou a um grandenúmero de empreendimentos conjuntos com empresas agrícolas estabelecidas,notavelmente segundo “esquemas de participação no patrimônio líquido”, pormeio dos quais os trabalhadores rurais usam seus subsídios da reforma agráriapara comprar ações em empresas existentes. Preços elevados da terra, altos cus-tos iniciais e mercados extremamente competitivos em setores como horticulturae vitivinicultura significam que os esquemas de participação no patrimônio lí-quido têm sido a principal forma de “redistribuição” de terras em regiões comoa Província Ocidental do Cabo. Estudando uma série de empreendimentos con-juntos, Mayson (2003) constatou que poucos haviam chegado a uma transfe-rência significativa de poder ou benefícios para trabalhadores, particularmentequando os trabalhadores obtiveram somente uma participação minoritária naempresa, e conclui que muitos deles são estimulados pela necessidade do pro-prietário por capital adicional.

A exigência para que planos produtivos evidenciem “viabilidade econômi-ca” e a proibição efetiva da subdivisão significam que a maioria dos projetos de

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reforma agrária é criada à imagem (distorcida) de propriedades empresariais degrande escala. Encontra pouco espaço no programa de reforma agrária oficial adifundida demanda de pequenas parcelas de terra para sustento familiar e em-pregos de tempo parcial, verbalizada em numerosos ensaios (Marcus, Eales &Wildschut, 1996; Levin & Weiner, 1997; Lahiff, 2000) e por meio de organiza-ções dos pobres do campo, como o Landless People Movement (LPM – Movi-mento do Povo Sem-Terra).

2.5. Papel preponderante do setor privado no fornecimento de crédito, extensão e outros serviços aos beneficiários: o mercado provê a assistência

Assim como muitos outros aspectos da reforma agrária de mercado na Áfricado Sul, o papel anunciado do setor privado não se materializou na extensão pre-sumida por seus proponentes. As últimas duas décadas presenciaram uma sensí-vel redução nos serviços governamentais disponíveis para agricultores. Enquantoo grande agronegócio conseguiu superar isso pelo acesso a uma gama de serviçosempresariais e cooperativos, os beneficiários da reforma agrária e outros agricul-tores de pequena escala são geralmente obrigados a se virar sozinhos (Vink &Kirsten, 2003). Estudos recentes demonstram que os beneficiários da reformaagrária passam por numerosos problemas em acessar serviços, tais como crédito,capacitação, assistência técnica, serviços de transporte e aração, atendimento ve-terinário e acesso aos mercados de insumos e produtos (HSRC, 2003; Hall, 2004b;Wegerif, 2004; Bradstock, 2005).

Serviços disponíveis a beneficiários da reforma agrária tendem a ser oferecidospor departamentos de agricultura das províncias e por um pequeno número deorganizações não-governamentais, porém evidências apontam que servem apenasa uma minoria de projetos. Em um estudo dos projetos de LRAD em três provín-cias, o HSRC constatou que “em muitos casos ainda não há nenhuma alternativainstitucionalizada para carregar todo o fardo do treinamento, monitoramento ecapacitação geral nos departamentos agrícolas das províncias” (HSRC, 2003, p.72). Uma análise de nove projetos de LRAD na Província Oriental do Cabo, Hall(2004b) constatou que nenhum deles havia recebido apoio do setor privado, e amaioria não teve qualquer contato com o DLA ou com o Departamento de Agri-cultura depois da obtenção da terra.

Em novembro de 2005, a ministra da Agricultura e Questões Fundiárias in-formou ao Parlamento que 70% dos projetos de reforma agrária na Província deLimpopo não eram funcionais, o que ela atribuiu à precariedade do projeto, àdinâmica negativa dentro dos grupos e à falta de apoio após o assentamento.21

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Para Jacobs (2003), a falta de sucesso geral de apoio pós-assentamento (oupós-transferência) se origina de uma falha em conceituar a reforma agrária alémda fase da transferência de terra, e da comunicação precária entre o DLA nacional(responsável pela reforma agrária) e os nove Departamentos de Agricultura dasprovíncias (responsáveis pelos serviços governamentais aos agricultores). Segun-do ele,

A distinção rígida na política fundiária da África do Sul entre a entrega da terra e odesenvolvimento agrícola fez com que o apoio pós-transferência fosse largamentenegligenciado. Não há nenhuma política abrangente de apoio ao desenvolvimentorural depois da transferência da terra, e as agências encarregadas dessa função avan-çam pouco nesse aspecto. A assistência rural a projetos de reforma agrária específicosacontece pela improvisação… (Jacobs, 2003, p. 7).

Essa falta de coordenação entre os departamentos, voltados para a agriculturae questões fundiárias, se soma à comunicação precária com outras instituiçõesessenciais, como o Departamento Habitacional e o Departamento de Questõesde Água e Florestas, bem como as estruturas governamentais locais (Hall et al.,2004). A necessidade de apoio adicional a beneficiários da reforma agrária foi re-centemente admitida pelo Ministério da Agricultura e Questões Fundiárias, le-vando à introdução, no orçamento nacional de 2004/05, de um novo Programade Apoio Agrícola Abrangente (CASP), com um total de $ 750 milhões de rands(em torno de US$ 125 milhões) alocados para um período de cinco anos. Alémdessa facilidade de subsídios, estão sendo elaborados planos para reintroduzir oesquema de crédito rural, desativados no passado, e igualmente direcionado paracamponeses e agricultores “emergentes” (porém, não exclusivamente parabeneficiários de reforma agrária – Hall & Lahiff, 2004).

O bem-desenvolvido setor do agronegócio (privado) que atende à agriculturaempresarial de grande escala não demonstrou mais que um interesse simbólico emestender suas operações a novos agricultores, cuja maioria de qualquer modo seria in-capaz de pagar por esses serviços. A suposição de que o setor privado “responderia” dealguma maneira à demanda de beneficiários de reforma agrária com necessidades muitodiferentes das dos fazendeiros empresariais estabelecidos não tem sido comprovadapela experiência recente. A explicação principal disso é que os beneficiários de reformaagrária, em geral, estão amarrados financeiramente e não se encontram em condiçõesde evidenciar qualquer demanda efetiva dos serviços em oferta, ainda que esses servi-ços fossem reciclados segundo suas necessidades específicas.

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Conclusão

A reforma agrária de mercado estabelece exigências tanto de patrimônio líquidocomo de eficiência, mas foram levantadas graves preocupações em torno das duasdimensões no caso da África do Sul, como eco à experiência do Zimbábue nos anosoitenta. O ritmo extremamente lento da reforma (muito aquém das metas oficiais)constitui a limitação mais evidente aos ganhos patrimoniais. Porém, a isso se agregauma ênfase na alienação de terras estatais e alteração dos regimes de posse, que deixaintacta a ampla maioria dos proprietários brancos. A alienação de terras já cedidaspara o uso de negros, junto com a remoção em massa de posseiros, somente servepara completar processos iniciados sob o apartheid, resultando em pequenaredistribuição líquida de estoques. Além disso, uma gama de barreiras imposta pelofuncionamento do mercado e por processos burocráticos, aliada à falta de uma es-tratégia digna de crédito para diminuir a pobreza, torna provável que os principaisganhos patrimoniais se circunscrevam às categorias de raça, com benefícios limita-dos fluindo para os mais pobres. Conclusões mais definitivas requererão dados bemmelhores que os atualmente disponíveis. De fato, é sintomático da natureza não-estratégica (ou liberal) do programa operar sem uma retro-alimentação efetiva comdados de qualidade para dentro do processo de planejamento e implementação.

Quanto à eficiência, a informação limitada que emerge do programa indica queo quadro é predominantemente negativo, pelo menos no curto prazo. Os projetoslevam tempo excessivo para começar a operar – demoras de dois ou três anos após adata da transferência do título são comuns – devido a uma combinação de planosprodutivos superambiciosos (e impróprios), escassez de capital de giro e liberaçãolenta de subsídios adicionais pelos departamentos governamentais responsáveis.Aqueles projetos que alcançam a fase de produção geralmente o conseguem a umnível muito baixo, utilizando apenas uma pequena parte da terra adquirida, e combaixos níveis de intensidade, tanto na agricultura como na pecuária.22 Embora issopossa representar certa melhoria na produção agropecuária para os indivíduos en-volvidos (em geral vindos de um patamar muito baixo) e até mesmo para a proprie-dade específica (evidências sugerem que algumas fazendas estavam ociosas nos anosimediatamente anteriores à redistribuição), constitui um retorno precário dos re-cursos públicos investidos e solapa o argumento político em favor da reforma.23

A RAM na África do Sul conseguiu transferir montantes relativamente peque-nos de terra, uma média aproximada de 0,3% da terra agrícola prevista por ano, eapenas cerca de 5% do total de imóveis rurais negociados. As transações de reformaagrária se distanciam consideravelmente das negociações comerciais “normais”, pa-

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recendo estar concentradas em terras menos procuradas, adquiridas por mais do queobteriam no mercado livre. A complexidade burocrática do processo de candidatu-ra e aprovação assegura que os beneficiários previstos não consigam competir nomercado “real”, mas operem em um mercado paralelo controlado por burocratas,tendo pouca influência sobre as negociações finais de compra ou de preços pagos.

Modelos de planos produtivos baseados em premissas questionáveis acerca da“viabilidade econômica”, aliados à ausência de qualquer estratégia de combate àpobreza, servem de discriminação contra os muito pobres, porém não asseguramnecessariamente projetos mais “bem-sucedidos”. Uma predisposição oficial forte emfavor da continuidade da produção e contra o parcelamento fundiário contribui parao baixo desempenho de muitos projetos e efetivamente exclui a maioria dos quebuscam terra e requerem pequenos lotes de terra com a principal finalidade do con-sumo doméstico. Os anunciados serviços de apoio do setor privado a novos agricul-tores e produtores emergentes não se concretizaram, em grande parte devido à baixaprodutividade e disponibilidade limitada de capital de giro entre os beneficiáriosprevistos. Isso demandou a reintrodução de serviços de apoio governamental que,no entanto, continuam mal coordenados e precariamente direcionados.

Uma questão central que se impõe é se o fraco desempenho da RAM na Áfri-ca do Sul pode ser atribuído ao próprio modelo, ou à forma parcial com que omodelo foi aplicado. Não pode haver dúvidas de que um mercado fundiário ativoapresenta oportunidades de redistribuição, mas essas oportunidades estão sendodesperdiçadas em grande parte devido à incapacidade das instituições governa-mentais (ou dos próprios beneficiários previstos) para se engajar efetivamente nes-se mercado.24 Além disso, a não introdução de um imposto territorial, ou deencorajamento à subdivisão, milita contra a redistribuição via mercado, criandouma nova demanda sem atender diretamente à questão da oferta. A única contri-buição positiva que o Estado talvez possa dar nos contornos de uma abordagem“baseada no mercado”, para fazer uso da experiência do Zimbábue, seria adquirirpró-ativamente terras (para beneficiários pré-identificados) à medida que sãotrazidas ao mercado, através de aquisições convencionais ou com base em umaprerrogativa de primeira recusa, sem ter de infligir processos incômodos de plane-jamento e seleção de projetos tanto a futuros beneficiários como a vendedores.

Entretanto, isso foi rejeitado repetidamente pelo Estado, com o questionávelembasamento de que representaria um enfoque “conduzido pela oferta” e quedilapidaria o conceito da “auto-seleção”. Em decorrência, pode ser argumentado,por um lado, que o fraco desempenho do programa de reforma agrária sul-africa-no pode ser atribuído, pelo menos em parte, à maneira ineficiente com que está

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sendo aplicado o modelo baseado no mercado. No entanto, por outro lado, evi-dências sugerem que uma aplicação mais vigorosa da RAM continuaria encon-trando problemas estruturais e administrativos maiores, tanto nos objetivospatrimoniais como de eficiência.

Sem apoio apropriado de um aparato estatal eficaz, é improvável que pessoasrelativamente pobres obtenham terra no mercado livre ou sejam capazes de fazeruso dela de uma forma que tenha um impacto significativo em seu próprio sustentoou na economia mais ampla. Se tiverem a opção, os proprietários de terras continuarãofavorecendo canais convencionais (tanto do tipo “aberto” como “fechado”) para sedesfazer de terras e evitarão as “não-confiáveis” transações de reforma agrária. Aindaque o mercado fosse capaz de propiciar a terra necessária aos que dela precisam, asevidências indicam que a maioria dos beneficiários continuaria dependendo doEstado para ter apoio no futuro próximo e que dificilmente se adaptaria ao modelo“empresarial” dominante que vem sendo promovido atualmente.

Existe nitidamente pouco entusiasmo no seio das forças sociais e políticas pre-dominantes na África do Sul em prol de uma reforma agrária radical, e a RAMforneceu a justificativa para que se evitem os tradicionais enfoques conduzidospelo Estado e populares. A retórica populista sobre a necessidade de olhar “alémdo mercado” continua sendo usada pelos velhos políticos para aplacar os movi-mentos sociais rurais em ocasiões como a Cúpula Nacional da Terra, mas issocontrasta vigorosamente com as repetidas garantias dadas a grandes fazendeirosempresariais em fóruns como o Grupo de Trabalho Presidencial sobre a Agricul-tura, e a interesses empresariais negros que espreitam oportunidades sob o novoprograma AgriBEE (Empoderamento Econômico Rural Negro). Do lado dosproprietários de terras – muitos deles abertamente hostis à nova ordem democrá-tica e aos processos de reforma agrária –, a RAM criou oportunidades para quevendam terras das quais talvez não conseguiriam se desfazer de outra forma, e apreços mais altos que aqueles que o mercado ofereceria. Propiciou injeções dedinheiro vivo com pequenas mudanças no poder ou no fluxo de benefícios nocaso dos esquemas de participação patrimonial, permitindo aos proprietários deterras como um todo alegar que estão “fazendo algo” pela reforma agrária.

Na África do Sul, a RAM concentrou o foco no sentido mais estrito de refor-ma agrária (transferência de terras) e não apenas deixou intacta, mas primordial-mente também não-questionada a estrutura da propriedade da terra e a economiaagrícola. Ao se recusar a intervir decisivamente em favor dos sem-terra (seja pelomercado, seja de outro modo) ou a questionar os interesses de proprietários esta-belecidos e o capital agropecuário, a RAM demonstrou ser incapaz de uma mu-

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dança fundamental nas condições que reproduzem a pobreza, a situação dos sem-terra e a desigualdade. A evidência que emerge da África do Sul (e da recente ex-periência no Zimbábue) indica que a RAM não oferece uma solução política oueconomicamente sustentável para a reforma agrária em sociedades de imigraçãopós-coloniais. Resta verificar se a oposição às políticas atuais por parte dos sem-terra e dos com pouca terra na África do Sul levará a um enfoque maisintervencionista por parte do Estado ou ao surgimento de formas mais “popula-res” de redistribuição.

Notas

1 Veja Bernstein (2002), Borras (2003), e Deininger & Binswanger (1999).2 A introdução de um imposto territorial (particularmente sobre a terra ociosa ou sub-utilizada) foi pro-

movida como parte da RAM, como meio de restringir a especulação e acumulação fundiárias, aumentan-do assim a disponibilidade (e reduzindo o custo) das terras que vêm para o mercado (Banco, 2003). Naprática, tais medidas do lado da “oferta” raramente foram implementadas, de modo que as RAM enfocarampreponderantemente o lado da demanda.

3 “A reforma agrária redistributiva será, em grande parte, baseada em arranjos de vendedor disposto e com-prador disposto. O governo ajudará na compra de terras, mas em geral não será nem comprador nemdono. Ao contrário, disponibilizará verbas para aquisição de terra e apoiará e financiará o processo deplanejamento. Em muitos casos, espera-se que as comunidades reúnam seus recursos para negociar, com-prar e possuir conjuntamente a terra sob um ato de titulação formal.” (Departamento, 1997: 4.3).

4 O regime de segregação racial – denominado apartheid, foi legalmente adotado na África do Sul em 1948– dava total poder aos brancos, a partir de regras que colocavam os negros como cidadãos de segundacategoria, forçando a maioria a viver em guetos. Este regime foi abolido em 1990 e, em 1994, foramrealizadas eleições livres, quando Nelson Mandela, líder do Congresso Nacional Africano, foi eleito pre-sidente (nota do revisor).

5 Grande parte da terra transferida (ou “entregue” para usar o termo oficial) sob o programa de restituiçãosomente foi transferido à propriedade nominal, uma vez que a terra permanece incorporada a reservasnaturais e florestas estatais e, nos termos dos acordos de restituição, não está acessível para uso diretopelos proprietários reemitidos na posse (Hall, 2003, p. 27).

6 O Programa de Redistribuição é o mais discricionário dos programas de reforma agrária na África do Sul(ao contrário da restituição e da reforma de posse, que são fortemente embasadas nos direitos), motivopelo qual constitui o foco principal da RAM. O objetivo explícito desse programa é cuidar do desequilíbrioracial na propriedade da terra. Entretanto, em um estudo da Província de Limpopo, Wegerif (2004) cons-tatou que das primeiras 20 fazendas alocadas sob o LRAD, apenas uma atingiu terra em mãos de brancos(o restante era terra estatal ou, em um caso, terra de propriedade de uma igreja).

7 De uma estimativa de 2.351.086 pessoas expulsas de fazendas desde 1994, constatou-se que 942.303(40%) foram despejadas e outras saíram por uma diversidade de motivos sociais e econômicos (Wegerif etal., 2005, p. 7).

8 No processo de restituição constitucional, pessoas que perderam o direito à terra sob as políticas de discri-minação racial, entre 1913 e 1994, estão autorizadas a reivindicar a restituição. Das 78 mil reivindicações

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de propriedades individuais e comunitárias apresentadas, a vasta maioria foi resolvida por meio de com-pensação monetária, evitando-se a restituição da terra. Na menor parte dos casos em que pretendentesreclamaram a restituição da terra, somente aqueles envolvendo um “vendedor disposto” foram soluciona-dos até hoje (Ministry, 2004). Recentemente, o Estado ameaçou usar seus poderes legais de desapropria-ção contra proprietários remanescentes que não “cooperam”, mas ainda terá que fazê-lo na prática.

9 “O governo destrói ofertas baratas de terra”. In: Farmers Weekly, 29 de abril de 2005.10 Aliber & Mokoena (2002) relatam que uma média de 6,3% da terra rural foi negociada anualmente no

período de 1995 a 2000, mas isso incluiu uma proporção elevada de transferências dentro das famílias (he-ranças) e aquilo a que Lebert (2004, p. 10) se refere como vendas “fechadas” entre vizinhos ou conhecidos.

11 Cada oferta de compra requer aprovação separada e um plano agrícola específico. Foram rejeitadas peloDLA propostas de que futuros beneficiários fossem ”pré-aprovados” para o financiamento com base ematributos pessoais e esboços de planos de negócio, permitindo-lhes entrar no mercado como comprado-res efetivos.

12 Orçamentos insuficientes para financiar projetos aprovados têm sido um problema periodicamente re-corrente desde de 2003, levando a demoras adicionais (pós-aprovação) nas transações (Hall & Lahiff 2004,p. 2).

13 Nos anos iniciais do programa de reforma agrária eram comuns grupos com mais de 100 famílias. Hoje,na esteira do aumento no montante dos subsídios e de critérios de qualificação mais restritivos, os gruposdo programa de redistribuição estão tipicamente na faixa de 5 a 20 famílias. Tamanhos grandes de grupose produção coletiva continuam caracterizando as reivindicações de restituição “baseadas em comunida-des” (Hall, 2004, p. 52).

14 O estudo de Wegerif (2004) sobre o Limpopo conclui que muitas transações não envolvem redistribuiçãode nenhum tipo, visto que os beneficiários usam os financiamentos para adquirir terra que já ocupavam(livre de arrendamento e sem contestação) durante décadas. A questão-chave não é ser contrário adisponibilização de terra estatal ou a transferência de títulos aos que antes estavam em desvantagem, masque os fundos estatais reservados para aquisições de terras (privadas, em mãos de brancos) via mercadosejam usados para esse fim, e catalogados como “redistribuição”.

15 Na África do Sul, os avaliadores de terra constituem uma profissão regulamentada por lei.16 “Milhões malbaratados em ladroagem da Reforma Agrária”. In: Business Day, 11 de março de 2005.17 Veja DLA (1988), Naidoo (1999), May e Roberts (2000) e Ahmed et al. (2003) sobre exemplos de

monitoramento e avaliação, bem como debates acerca de suas limitações.18 Para candidatos sem ativos materiais, uma quantia nominal de $ 5.000,00 rands (mais ou menos US$

834.00) é arbitrada como contribuição em forma de mão de obra (“ativos de suor”), o que credencia ocandidato a um subsídio de $ 20.000 rands (aproximadamente US $ 3,300.00).

19 Conforme já mencionado, o programa Land Redistribuition for Agricultural Development (LRAD) signi-fica “Distribuição de Terra para o Desenvolvimento Rural” e o Settlement/Land Aquisition Grant (SLAG)era um programa de “Subsídio para assentamentos e aquisição de terras”.

20 Enquanto a política oficial (ao contrário da prática oficial) se cala em questões como uso da terra, formade produção e trabalho individual versus grupal, ela é notavelmente clara em relação à posse de terra:todos os projetos da reforma agrária são transferidos desde o princípio com título de propriedade, o quesignifica que podem, na teoria, ser hipotecados e retomados por inadimplência. Persiste, no entanto, umaconsiderável incerteza quanto aos direitos de posse de indivíduos dentro de projetos grupais em que otítulo único está em mãos de uma entidade legal, como uma cooperativa ou associação de propriedadecomunal (CSIR, 2005).

21 “Didiza fornece motivos do insucesso no Limpopo”, em Farmers Weekly, 18 de novembro de 2005.

128

22 Bradstock traz exemplos reveladores de estudos de caso na Província Setentrional do Cabo: “Os resulta-dos da pesquisa demonstraram que poucas famílias se dedicaram a atividades agrícolas, apesar do fato deagora terem acesso à terra. As que tiveram acesso produziram pequenas quantias, predominantementepara o consumo doméstico...” (2005, p. 19).

23 Veja du Toit (2004) quanto a uma avaliação extremamente negativa dos projetos de reforma agrária sobuma perspectiva de direita.

24 Realmente, há indicações de que mais terra está sendo transferida de proprietários brancos para negrospelo mercado livre que sob o programa de reforma agrária (Lyne & Darroch, 2001) mas, como argumen-tou Borras (2005, p. 92), essas transferências somente representam a troca de uma categoria de ativos(dinheiro) para outra (terra) entre os relativamente bem-aquinhoados, razão pela qual não podem serconsideradas reforma agrária (ou redistribuição) no sentido convencional.

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É POSSÍVEL IMPLEMENTAR A REFORMA REDISTRIBUTIVAATRAVÉS DE ESQUEMAS DE TRANSFERÊNCIA VOLUNTÁRIADE TERRA COM BASE NO MERCADO? EVIDÊNCIAS E LIÇÕESDAS FILIPINAS*

SATURNINO M. BORRAS JR.

Depois da popularidade que desfrutou nos primeiros três quartos do século passa-do, a reforma agrária redistributiva foi descartada das agendas políticas de instituiçõesinternacionais de desenvolvimento e dos Estados nacionais. Esse desfavor aconteceuapesar de persistirem monopólios de terra e a reforma agrária continuar nas agendaspolíticas de movimentos camponeses e seus aliados na maioria dos países em desen-volvimento (Herring, 2003; Baranyi, Deere & Morais, 2004). Uma confluência defatores, inclusive a crise da dívida, é responsável por esse abandono político (Kay, 1998;Bernstein, 2002; veja também Byres, 2004). Contudo, em anos recentes, a reformaagrária foi, até certo ponto, ressuscitada. Embora conflitos políticos em torno da terrano Brasil, Zimbábue e Chiapas contribuíssem em parte para essa revitalização políti-ca, pode-se argüir que outro empurrão significativo veio do Banco Mundial (BIRD),com seu pleito em prol do uso economicamente eficiente dos recursos fundiários. Aoinvés de usar o enfoque tradicional da reforma agrária redistributiva para chegar a essameta, o BIRD protagonizou a “reforma agrária de mercado” (RAM), um enfoque dereforma agrária voluntária. A RAM é um modelo de política fundamentado no prin-cípio do “vendedor disposto – comprador disposto”, por meio do qual os latifundiá-rios obtêm 100% em dinheiro vivo a 100% do valor de mercado da terra e os campo-neses beneficiários assumem 100% do custo da terra.

Quase sempre, e formalmente, o BIRD declara que a RAM é uma política com-plementar de outros tipos de reforma agrária, singularmente os mecanismos con-vencionais conduzidos pelo Estado. Há uma década, e em várias dimensões, a RAMfoi implementada em diversos países. Até hoje, porém, poucos estudos sistemáticosforam realizados sobre o modelo de RAM. A maioria das análises existentes é alta-

* Uma versão ampliada deste foi publicado no Journal of Development Studies (vol. 41, nº 1, pp. 90-134),ao qual agradeço pela permissão de traduzir este artigo para o português e publicá-lo no presente volume.

134

mente especulativa, em parte devido à indisponibilidade de dados empíricos. O maiorargumento contra a RAM é que ela não pode servir para redistribuir terras em gran-de escala devido ao enorme montante de verbas que demandaria. No entanto, al-guns críticos reivindicam experimentação adicional de RAM.1

O presente trabalho examina questões de conteúdo e processo relacionadas àRAM e sua implementação, contribuindo, assim, para uma análise mais sistemá-tica da RAM de duas maneiras distintas, porém relacionadas. Principalmente, ecomo crítica ao modelo de RAM, o trabalho argumenta que, na essência, a RAMnão constitui uma reforma redistributiva; em termos de processo, ela solapa, aoinvés de complementar, a reforma agrária potencialmente redistributiva conduzidapelo estado. Secundariamente, analisando a posição de críticos da RAM que soli-citam experimentação adicional do modelo, o presente trabalho afirma que essaexperimentação adicional de fato endossaria a política pró-mercado, ao invés dese opor a ela. Em termos de processo, a experimentação adicional contribuiriainvoluntariamente para minar reformas agrárias redistributivas.

Essa tarefa é executada através do exame de variantes de RAM, na forma de es-quemas de Transferência Voluntária de Terra (VLT), dentro do arcabouçoinstitucional do Programa Abrangente de Reforma Agrária das Filipinas (CARP),pretensamente conduzido pelo estado. Na seqüência, o trabalho passa a examinar oestudo de viabilidade de RAM feito naquele país. O caso filipino de VLT propiciaum excelente material de estudo, porque se trata de uma experiência da vida realmais prolongada e extensa que os testes-piloto de RAM em outros países. Assim,esse caso proporciona uma extensa previsão do que provavelmente aconteceria se aRAM fosse implementada de forma plena em contextos rurais como as Filipinas.Este ensaio não aspira fazer “generalizações estatísticas”, mas apenas estabelecer “ge-neralizações analíticas” (veja Yin, 1984, p. 36-42; Hammersley, 1992, p. 188s) so-bre a natureza e a implicação de esquemas de transferência de terra pela RAM esimilares. Conseqüentemente, o trabalho é organizado como segue: a seção 1 discu-te as questões teóricas subjacentes à problemática em pauta; a seção 2 examina es-quemas atuais de VLT nas Filipinas, inclusive a reforma agrária de mercado do BIRD,oferecendo discussão adicional e conclusões.

1. Discussão teórica

Griffin et al. explicam que reforma agrária significa redistribuir a “proprieda-de da terra de grandes latifundiários privados para pequenos agricultores e traba-

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lhadores rurais sem-terra”, salientando que ela “se empenha na redistribuição dariqueza” (2002, p. 279-280). De forma análoga, Fox explica a reforma redistributivacomo uma política pública que “transforma as cotas-parte dos respectivos gru-pos” na sociedade (1993, p. 10). Concordando com Griffin et al. e Fox, o presen-te ensaio entende que, para ser de fato redistributiva, uma reforma agrária tem decausar, em uma estrutura agrária existente, uma mudança na propriedade da terrae/ou no controle sobre os recursos fundiários. Essa mudança deve transferir estri-tamente a terra dos proprietários para as classes sem-terra e com pouca terra, oude proprietários ricos para camponeses pobres. Aqui, “propriedade” e/ou “contro-le sobre recursos fundiários” significam o controle efetivo sobre a natureza, o rit-mo, a extensão e direção da produção excedente e a extração, bem como adestinação desse excedente agrícola. Em outras palavras, de acordo com Tuma(1965, p. 251), tem por objetivo criar uma “mudança proposital” que possa resul-tar na melhoria da condição dos pobres sem-terra do campo.

É inerente a uma “mudança” ou “reforma proposital” que seja relacional: temde resultar em um aumento líquido do poder de camponeses pobres no controlesobre os recursos fundiários, com uma diminuição correspondente na parcela depoder daqueles que costumavam ter poder sobre os mesmos recursos e os proces-sos de produção. Na realidade, redistribuição da terra é essencialmenteredistribuição de poder. Isso pode suceder pela transferência plena dos direitos depropriedade, inclusive o “direito de alienar”, mas também pode ser alcançado semincluir a propriedade fundiária plena e formal, por exemplo, através de uma re-forma de posse (veja Putzel, 1992, p. 3; Herring, 1983, p. 13).

Logo, o que se quer essencialmente dizer aqui com “reforma” não é uma sim-ples “mudança” nas relações sociais e de produção em determinada estrutura agráriade uma sociedade específica. Essa “mudança” pode ocorrer sem se considerar emque direção ela acontece, seja dentro de, seja entre classes sociais, já que pode in-cluir transferências de elite para elite e de pobres para a elite no controle efetivodos recursos fundiários. Uma “reforma” é limitada a uma direção de mudança quetransfere poder entre classes sociais, especificamente das classes proprietárias paraas sem-terra e carentes de terra, ou de ricos para pobres. Conforme Tai, essa “re-forma” pode ser alcançada através de “programas públicos que visam reestruturarde forma eqüitativa e racional um sistema defeituoso de posse fundiária através demeios compulsórios, drásticos e rápidos. Os objetivos da reforma são atingir a ‘re-lação justa’ entre a população rural e melhorar o uso da terra” (1974, p. 11s).2

Além disso, a reforma agrária redistributiva é inerentemente uma questão degrau. Raramente são 100% redistributiva ou 100% não-redistributiva. Tradicional-

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mente, dois elementos interligados definiam o caráter redistributivo de uma políti-ca de reforma agrária, a saber, a indenização para os latifundiários e o pagamentopelos camponeses. De um lado, a indenização para o proprietário pode estar emalgum ponto entre zero e menos que o “preço de mercado” da terra; a diferença entreo “preço de mercado” e a indenização real define, em parte, o grau de redistribuição.Do outro lado, o pagamento pelos camponeses pela terra pode estar em algum pon-to entre zero e menos que o custo de aquisição; a diferença entre pagamento real doscamponeses e a aquisição também define, em parte, o grau de redistribuição.

Aceitar que a reforma agrária redistributiva é inerentemente uma questão degrau nos proporciona uma ferramenta analítica para entender e comparar refor-mas agrárias entre e dentro de países. Por exemplo, uma reforma agrária que con-fisca terras sem indenizar latifundiários e distribui gratuitamente essas terras aoscamponeses constitui uma reforma redistributiva. De forma análoga, uma refor-ma agrária que desapropria terras com indenização aos latifundiários a preços in-feriores ao mercado e distribui essas terras a camponeses a custos reduzidos/subsi-diados também é redistributiva. Contudo, o grau de reforma redistributiva é maiorna primeira que na segunda modalidade (veja também Tuma, 1965, p. 159). É oque acontece na comparação entre as reformas agrárias da China e de Formosa, àépoca imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial (veja Griffin et al.,2002), e entre as administrações, nos anos 60 e 70, de Allende e Frei, no Chile(veja Thome, 1989, p. 196; Kay e Silva, 1992). Seguindo essas coordenadas, opresente estudo defende que um esquema de transferência de terras não constituireforma agrária redistributiva quando o proprietário recebe 100% em dinheirovivo, a 100% (ou mais) do “valor de mercado” da terra, e quando o compradorassume 100% do custo da terra, inclusive as despesas da transação. Essa é umasimples transação imobiliária capitalista, sendo altamente improvável que, comotal, venha favorecer o pobre sem-terra (veja também Flores, 1970, p. 149; Levin eWeiner, 1997, p. 258).

As duas condições mínimas da reforma agrária redistributiva, a saber, a inde-nização dos latifundiários a preços inferiores ao “preço de mercado” e o pagamen-to pelos camponeses a preços inferiores ao preço real da aquisição devem, por suavez, ser conectados ao princípio de que terra não é mero fator econômico de pro-dução. Ao contrário, a terra tem uma função e um caráter multidimensional (i.e.,com dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais). Na realidade, o “valor”da terra não pode ser reduzido a cifras estritamente monetárias, pois o “preço demercado” de um pedaço de terra representa de fato uma noção questionada, en-volvendo fatores político-econômicos e socioculturais que dependem de quem fixa

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o valor da terra. A noção de que a terra tem um caráter multidimensional: 1) cons-titui a base para a introdução de aspectos imbuídos de um julgamento de valor,tais como “justiça social”, “função social da terra”, “mudança proposital” e“empoderamento”, que não podem ser entendidos em termos puramente mone-tários, e 2) por natureza requer a intervenção do Estado para atingir as desejadasmetas múltiplas da política de reforma agrária.

Logo, mecanismos ligados à compensação para latifundiários, que variam desdeconfisco de terras sem indenização até a desapropriação com indenização a preçosinferiores ao mercado, também são primordialmente determinados por fatores não-econômicos, como as circunstâncias sociohistóricas e as políticas anteriores de mo-nopólio e reforma agrária. A mesma consideração se aplica na definição do nívelde pagamento pelos camponeses. Em conseqüência, o caráter multidimensionalda terra faz do método de avaliação, em termos monetários, uma forma impor-tante, porém incompleta de aferição do valor atual e pleno da terra. O não reco-nhecimento por parte dos defensores do mercado da natureza multidimensional,político-econômica, do monopólio da terra é responsável por muitas das deficiên-cias fundamentais da RAM. Como explica Harriss, “a economia agrícola conven-cional tende a concentrar o foco na análise da eficiência do uso de recursos naprodução e comercialização, e a tratar os fatores sociais e políticos, de relevânciaaxial na atividade prática do ‘desenvolvimento rural’, simplesmente como condi-ções ceteris paribus3 (ou, em outras palavras, presume-se que sejam constantes)”(1982, p. 16).

Ainda em relação à clarificação conceitual sobre a reforma agrária redistributiva,é crucial entender a natureza e as implicações da política da RAM e suas variantes,pois pode surgir confusão entre os estudiosos e políticos quanto aos dados empíricoscom que trabalham. Especificamente, podem ser registradas mudanças em regis-tros formais, oficiais, acerca de quem supostamente controla a terra, quando essasmudanças não acontecem na realidade (veja Herring, 1983, p. 269). Entretanto,o modelo de RAM surgiu da crítica pró-mercado feita ao modelo de reforma agráriaconduzida pelo Estado. Essa crítica se resume a três esferas de políticas: obter acessoà terra, desenvolvimento rural posterior à transferência da terra e estratégia de fi-nanciamento. Os defensores explicam a RAM como um mecanismo para “propi-ciar eficiência – e eqüidade – pelo fomento à redistribuição de ativos” (Deininger,1999, p. 651), e que ela visa superar o problema, há muito existente, da “exclusãosocial” dos pobres do campo (Deininger & Binswanger, 1999, p. 249).4

A RAM é uma reforma agrária voluntária em que os latifundiários recebem opagamento de 100% à vista e 100% pelo “valor de mercado” da terra (Deininger,

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1999, p. 663). Adota um enfoque “orientado pela demanda”: somente famíliaspobres que explicitamente demandam terra e somente as terras que são reivin-dicadas para o programa são negociadas. Para encontrar os beneficiários “maisaptos” (i.e., produtores economicamente eficientes), desencadeia-se um processode “auto-seleção” entre os compradores em potencial para evitar o ingresso debeneficiários “não-aptos” (i.e., os economicamente ineficientes). O modelo adotaum método descentralizado de implementação para transações rápidas, transpa-rência e confiabilidade. “Privatiza e, desse modo, descentraliza o processo essencial(da reforma agrária)”, explica Binswanger (1996, p. 155). Isso evita a procura porrenda, que prevalece em reformas agrárias conduzidas pelo Estado.

Além disso, os defensores afirmam que a política da RAM estimulará, ao in-vés de minar, os mercados de terras (Deininger & Binswanger, 1999, p. 267). Igual-mente explicam que “fechar o hiato entre valores da terra e valores de mercado deterras torna mais acessíveis os preços, melhorando a capacidade de amortização,porque os compradores terão agora mais facilidade de devolver um empréstimo apartir da própria capacidade produtiva da terra” (van Schalkwyk & van Zyl, 1996,p. 333). Espera-se que essa medida de reforma pelo mercado resulte em aumentoda quantia de terra disponível para compra por distintos tipos de produtores. Issopode ser feito em parte pela retirada de subsídios (de grandes fazendeiros), pelatributação progressiva da terra, titulação sistemática da terra (Bryant, 1996),liberalização de vendas e arrendamentos de terras (Banerjee, 1999) e por melho-res sistemas de informação de mercado.

Além do mais, o modelo de RAM obedece ao processo de planejamento agrí-cola anterior à compra de terra. Como tal, alega-se que o desenvolvimento rural éassegurado porque não será adquirida nenhuma terra sem planos viáveis queenfatizem a agricultura empresarial diversificada, inclusive arranjos de empreen-dimento conjunto com investidores externos. E pelo fato de que os beneficiáriosrecebem um subsídio em dinheiro para o desenvolvimento da propriedade, espe-ra-se que este seja rápido (Deininger, 1999, p. 666). Os beneficiários têm de gas-tar uma parcela do subsídio em um serviço de extensão privado e descentralizadoque, como se alega, é eficiente, porque as responsabilidades são mais claras entrebeneficiários e os prestadores do serviço. Ademais, espera-se que se tornem am-plamente acessíveis o crédito e os investimentos, porque o título de terra geradopor uma venda direta será honrado como garantia para empréstimos bancários(Deininger & Binswanger, 1999, p. 265).

O modelo de RAM adota um esquema flexível de financiamento de em-préstimo e subsídio. Cada beneficiário recebe um montante fixo para gastar como

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segue: a parcela usada para comprar terra é considerada um empréstimo e temde ser integralmente reembolsada (inclusive juros a taxas comerciais) pelobeneficiário; o restante é dado ao beneficiário como um subsídio a ser usadopara desenvolver projetos depois da transferência da terra. Imagina-se que essemecanismo seja essencial para reduzir o custo da terra, porque se espera que oscamponeses busquem a melhor barganha para seu dinheiro, a fim de aumentara porção do subsídio (Deininger, 1999). Monetariamente, pensa-se que o mo-delo de RAM é muito mais barato que as reformas agrárias do Estado, princi-palmente porque não carece de uma enorme e dispendiosa burocracia governa-mental, os preços da terra são mais baixos, e os beneficiários assumem 100% docusto da terra. O modelo requer que os governos nacionais financiem a fase inicialdo programa, mas no longo prazo os bancos privados deveriam assumir o fi-nanciamento primário do programa (veja tabela 1, quanto às características fun-damentais da RAM).

Tabela 1: Características fundamentais previstas no modelo de Reforma Agrária de MercadoObtenção do acesso à terra

Método de aquisição voluntário; 100% de pagamento à vista por 100% do valor de mercado da terra

Beneficiários orientados pela demanda; auto-selecionados

Método de implementação privatizado-descentralizado; alto grau de transparência e confiabilidade

Ritmo e natureza rápido; política e legalmente não-conflitante

Preços da terra Baixos

Mercados imobiliários estimulação do mercado de terras; necessário imposto territorial progressivo e programa de titulação

Desenvolvimento da terra e do Beneficiário após a transferência

Seqüência do programa planos de desenvolvimento rural prévios à distribuição de terra

Ritmo do desenvolvimento rápido e seguro

Serviço de extensão privatizado e descentralizado = eficiente

Crédito e investimentos ampliado

Financiamento

Mecanismo mecanismo flexível de empréstimo e subsídios; partilha de riscos; os beneficiários assumem o custo total

da terra; custos do desenvolvimento rural concedidos como subsídios

Custo da reforma baixoFonte: Borras (2003a).

O modelo da RAM foi testado como piloto no Brasil, desde 1998, e imple-mentado em escala nacional na Colômbia (desde 1994) e na África do Sul (desde1995). No entanto, seus proponentes apresentam alegações contraditórias quantoaos resultados iniciais da implementação da política de RAM. Por um lado, e deforma mais geral, alegam que a implementação inicial nesses países foi bem-sucedi-da e impressionante (Deininger & Binswanger, 1999, p. 268; Deininger, 1999;BIRD, 2003, s/data). Por outro, balanços preliminares lançam dúvidas sobre essasalegações otimistas. As visões distintas se classificam em três grupos principais: 1)

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referências diretas, por defensores da RAM, a diferentes graus de problemas einsucessos, embora sejam ágeis para demonstrar que esses problemas são de nature-za operacional e administrativa (veja, por exemplo, Deininger, 1999; Buainain etal., 1999; também Gershman, 1999); 2) visões e memorandos críticos de estudio-sos que, em geral, defendem o modelo e o experimento de RAM (veja, por exem-plo, Carter & Salgado, 2001; Banerjee, 1999; De Janvry et al., 2001; Lipton, 1993);3) alguns ensaios críticos que argumentam que os problemas na implementação daRAM no Brasil, na Colômbia e África do Sul são da natureza ou essência do modelo(veja, por exemplo, Barros, Sauer & Schwartzman, 2003; Lahiff & Cousins, 2001;Lahiff, 2003; Levin & Weiner, 1997; Borras, 2003a, 2002, 2003c), sendo que opresente trabalho se identifica com o terceiro grupo crítico.

2. O Programa Abrangente de Reforma Agrária, o esquema de transferênciavoluntária de terras e a RAM nas Filipinas

O setor agropecuário das Filipinas continua sendo importante para a economianacional. Em 2000, empregou diretamente cerca da metade de toda a mão-de-obraativa do país, e a zona rural continua hospedando cerca de 60% da população filipina.Contudo, de modo geral, o desenvolvimento rural foi menos que dinâmico e apobreza rural predominou (antes de 2000, os pobres do campo perfaziam dois ter-ços dos pobres no país). Aproximadamente um terço da área rural do país de 30milhões de hectares é terra agricultável, e a propriedade e/ou o controle dessas terrasfoi amplamente monopolizada pelas classes proprietárias. O coeficiente de Gini paraa distribuição de terra era 0,64 em 1988, ano em que teve início o ProgramaAbrangente de Reforma Agrária (CARP – Putzel, 1992, p. 30).

A natureza da economia teve um impacto profundo sobre a estrutura das re-lações de poder e instituições políticas do país. A política rural é dominada porchefes políticos locais (os caciques), que dominam a zona rural através de uma redecomplexa de clientelismo, combinando benefícios socioeconômicos para os po-bres com a ameaça ou uso real da violência (Anderson, 1988; Kerkvliet, 1990).Contra esse fundo político, violentas e cíclicas rebeliões camponesas obtiveramapenas concessões intermitentes do Estado (Kerkvliet, 1977; Putzel, 1995; Rutten,2000). A resposta da elite aos distúrbios camponeses foi tradicionalmente umacombinação de repressão, reassentamento e reforma limitada (Wurfel, 1988;Abinales, 2000; Angeles, 1999). O Estado filipino, fortemente influenciado pe-los interesses dos latifundiários, considerou a reforma agrária e da posse da terra

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como uma estratégia para “administrar” a inquietação no campo, ao invés de efe-tuar reformas redistributivas reais em favor da classe sem-terra (Putzel, 1992).

Por conseqüência, de modo geral, a maioria das reformas instituídas duranteo último século foram não-redistributivas. Uma vez que nenhum dos programaspré-CARP de reforma agrária e da posse da terra enfrentou seriamente as causassubjacentes à inquietação rural (a saber, o persistente monopólio da terra), a in-quietação camponesa continuou sendo parte relevante nas políticas rurais ao lon-go do século XX. Tampouco a transição de um regime autoritário para um “regi-me nacional eleitoral clientelista”, em 1986, levou à democratização plena docampo; até mesmo agora, arraigadas elites políticas continuam dominando a po-lítica rural (Franco, 2001; Putzel, 1999; Anderson, 1988). No entanto, comoexplica Franco (2001, 1998), os anos recentes presenciaram certa erosão dessesenclaves rurais autoritários em um processo político que pode ser atribuído prin-cipalmente a dois fatores: 1) as várias eleições, realizadas mediante muita pressãodurante o período de regime autoritário e imediatamente após, e 2) a mobilizaçãosocial contínua de baixo para cima. O período de transição (1986-1988) abriunovas oportunidades políticas para a democratização parcial, levando a um acalo-rado debate político sobre a reforma agrária. Depois de protelar a questão, a ges-tão de Corazón Aquino foi forçada a agir, após o incidente quando o exército abriufogo contra uma marcha de 20 mil camponeses perto do Palácio Presidencial,matando treze agricultores. O processo subseqüente de formulação de políticasde reforma agrária, entre 1986 e 1988, foi marcado por intensas forças a favor econtra a reforma no Estado e na sociedade, oscilando em geral entre as correntespolíticas dos grupos de reforma agrária “conservadora voluntária-não-redistributiva”versus a “liberal desapropriatória-redistributiva” (Putzel, 1992; Hayami et al.,1990). Em dado momento, as ações subseqüentes do governo levaram à legisla-ção de uma nova política de reforma agrária ou CARP (Lara e Morales, 1990;Riedinger, 1995; Putzel, 1992).

O CARP é uma política pública que não se enquadra em nenhum dos tiposideais de reforma voluntária-não-redistributiva ou desapropriatória-redistributiva.Embora possua certo grau de poder de desapropriação, incorpora elementos quesão voluntários e não-redistributivos. A lei do CARP estabelece que todas as áreasagrícolas, privadas e públicas, independente das condições de posse e produtivi-dade, são sujeitas à reforma agrária (com relativamente poucas exceções comoreservas militares e religiosas e espaços educacionais). Há três tipos genéricos dereforma: 1) redistribuição fundiária de terras privadas e públicas, 2) arrendamen-to, inclusive arrendamento em terras legalmente retidas por proprietários, e con-

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tratos de administração de algumas terras públicas, e 3) em pequena escala e limi-tada aos primeiros anos de implementação do CARP, uma opção de distribuiçãoacionária para algumas grandes fazendas empresariais. A cobertura formal de le-que amplo da lei do CARP faz com que ela seja mais progressista que qualqueroutra lei de reforma agrária liberal pós-1980. Essas leis, em outros lugares, comono Brasil (Hall, 1990) e Zimbábue (Bratton, 1990), não atingem terras agricultáveise produtivas.

Em conseqüência, com base na abrangência original de 1988, o CARP pre-tende reformar relações de posse em 10,3 milhões de hectares da terra agricultáveldo país pela redistribuição da terra (e, em proporção limitada, pela distribuiçãoacionária). O número estimado de beneficiários poderia chegar a cerca de 4 mi-lhões de agricultores sem-terra e com pouca terra, abrangendo perto de 80% dapopulação rural.5 Adicionalmente, em torno de 2 milhões de hectares de proprie-dades menores de 5 hectares (terras em mãos de latifundiários) ficaram sujeitas àreforma de arrendamento que beneficiaria um número calculado em 1 milhão dearrendatários pobres. Cabe notar que o tamanho médio da propriedade rural nopaís é de 2 hectares, sendo o teto de obtenção pela reforma agrária fixado em 3hectares. Para terras privadas redistribuídas, emite-se aos beneficiários um Certi-ficado de Concessão de Propriedade da Terra (CLOA).

O CARP está sendo implementado dentro das limitações estruturais einstitucionais do contexto político filipino – na realidade, dentro do mesmo con-texto que ele pretende mudar. Durante a implementação, o CARP foi lançadoem um momento crucial das relações Estado-sociedade, em que vários fatores di-nâmicos influenciam processos e resultados políticos. O processo deimplementação foi uma epopéia de luta entre forças pró e contra a reforma den-tro do Estado e da sociedade, ora empurrando o CARP na direção da correntepolítica voluntária-não-distributiva, ora da desapropriatória-redistributiva.

O conflito pró e contra a reforma, interiorizado no CARP, se reflete parcial-mente nos vários modelos de aquisição do CARP para terras privadas. O primei-ro é a Operação de Transferência de Terra (OLT), mecanismo usado no programade reforma agrária da era Marcos em áreas arrendadas de arroz e milho e posterior-mente integrado ao CARP. O segundo – projetado para reduzir a resistência dosproprietários à reforma – é a Oferta Voluntária para Venda (VOS), que aumentaem 5% a parcela em dinheiro vivo na indenização dos proprietários mediante umadiminuição correspondente de 5% na parcela de papéis. A terceira modalidade éa Transferência Voluntária de Terra (VLT), que visa atrair a cooperação dos pro-prietários no programa. A VLT providencia a transferência direta de terra a cam-

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poneses sob condições mutuamente acordadas entre estes e proprietários, limi-tando o papel do governo ao fornecimento de informações e à legalização de con-tratos. Espera-se que um proprietário interessado em se adequar à lei do CARP,através da VLT, negocie e acerte com os potenciais beneficiários as condições datransação: preço da terra, forma de pagamento e conjunto de beneficiários. Apóso acordo, as partes submetem a proposta de VLT ao Departamento de ReformaAgrária (DAR), que aprova ou rejeita o plano. Quando a proposta é rejeitada, re-começa o processo do CARP, podendo ou não usar o caminho da VLT. Sendoaceita, a transação é considerada um processo bem-sucedido de redistribuição deterra via CARP, sendo oficialmente divulgada como tal.

A diferença entre VOS e VLT é que, na primeira, o latifundiário vende a terraao Estado, enquanto na segunda, o proprietário vende diretamente aos campone-ses. É uma diferença significativa que acarreta implicações estratégicas sobre opotencial desse esquema em uma reforma redistributiva ou de sua ausência (verGutierrez & Borras, 2004, quanto à VOS). Tanto a VOS como a VLT operam nocontexto de desapropriação, ou seja, se os proprietários se negarem a entrar naVOS ou VLT, suas áreas podem mesmo assim ser adquiridas pelo Estado. Por fim,o último modo de aquisição do CARP é a Aquisição Compulsória (CA), pela quala terra é desapropriada com ou sem a cooperação do proprietário, sendo que aOLT é da mesma natureza da CA.

O esquema da VLT, conforme será demonstrado neste texto, representa o idealno eixo voluntário-não-redistributivo, em contraposição à modalidade da Aquisi-ção Compulsória, embora os outros esquemas possam ser igualmente interpretadose implementados segundo uma idéia não-redistributiva, como é o caso da opção dedistribuição acionária usado pela enorme fazenda de cana-de-açúcar em mãos daex-presidente Aquino (Putzel, 1992, p. 332-38), ou da VOS usada em algumasnegociações de terra totalmente anômalas dentro do CARP (ibid., p. 312-319). Osgrandes proprietários não perderam tempo se aproveitando dos esquemas voluntá-rios disponibilizados pela lei do CARP. O agronegócio multinacional realmente nãoviu esse programa de forma negativa já que a maioria, de qualquer modo, arrendavaterras do governo. A questão crítica era, no entanto, saber se os beneficiários da re-forma agrária aumentariam as taxas de arrendamento (ibid, p. 242).

Não obstante, depois de mais de uma década, e contrariando previsões pessi-mistas anteriores, o CARP logrou uma redistribuição modesta, mas significativade terras. Relatórios oficiais estimam que mais de 5 milhões de hectares de terrasprivadas e públicas, representando cerca de dois quintos da área agricultável dopaís, foram redistribuídos a camponeses pobres sem-terra até o final de 2001. Essas

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terras chegaram às mãos de mais de 2 milhões de famílias rurais pobres, perfazen-do cerca de dois quintos da população camponesa das Filipinas. Se esse dado fossedigno de crédito, o nível alcançado de distribuição de terras é comparável ao al-cançado em reformas agrárias historicamente importantes em outros países. Noentanto, as interpretações do montante real de redistribuição variam desde a con-cordância acrítica com os números oficiais até a rejeição total. O presente traba-lho argumenta que, provavelmente, a verdade se situa em algum ponto interme-diário entre a propaganda otimista do Estado e os prenúncios pessimistas dosprimeiros críticos do CARP. Essa visão é apoiada por Putzel, que admite que asprevisões pessimistas iniciais estavam parcialmente erradas, porque “o programacertamente atingiu uma proporção muito maior de terra da população rural dopaís do que predisseram seus críticos iniciais” (2002, p. 219). Esclarecimentos see por que a distribuição de terras através de esquemas baseados no mercado deve-ria ser considerada uma reforma redistributiva constitui um passo importante parauma melhor avaliação da reforma agrária, seja nas Filipinas, seja em outro lugar.

Por fim, em anos recentes, forças anti-reforma no governo e na sociedade inten-sificaram seus esforços para frustrar as iniciativas reformistas dentro do CARP, cujopico aconteceu nos anos 1992-1998 (ver Borras, 2001a, 1999). O Congresso fezconstantes cortes nas provisões orçamentárias anuais para o item de aquisição deterras do CARP, e esse acelerado declínio no orçamento solapou o objetivo ostensi-vo do CARP em desapropriar terras privadas mais produtivas economicamente econtrovertidas politicamente. Usando como desculpa a questão da insuficiência deverbas, as forças conservadoras passaram a usar, cada vez mais, o esquema da VLTcomo uma maneira de contornar a reforma agrária redistributiva. Para o Estadofilipino, uma estratégia de implementação do CARP, com base na VLT, parece ter setornado um meio, politicamente conveniente, para retirar efetivamente a reformaagrária redistributiva da ordem do dia da política governamental. Embora o gover-no não tenha admitido isso em declarações oficiais, tampouco prosseguiu desapro-priando extensões significativas de latifúndios privados de proprietários e agriculto-res ricos. Essa fórmula, portanto, é um “ganha-ganha” em sentido conservador.Ademais, nos anos recentes, o governo parece cada vez mais disposto a manter com-ponentes desapropriatórios no CARP somente na proporção necessária para “admi-nistrar politicamente” as redes de ONGs e organizações camponesas do país, man-tendo-as ocupadas com complicados casos fundiários de alcance relativamentecircunscrito. De certa maneira, isso fez com que muitas ONGs e organizações cam-ponesas perdessem o foco na perspectiva estratégica da reforma redistributiva e sedistanciassem de formas radicais de ação coletiva (ver, por exemplo, Franco, prelo).

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2.1. O esquema da VLTDesde 1988, a VLT foi empregada de forma crescente para transferir terra,

embora as administrações passadas preferissem não ressaltar essas transações nodiscurso político formal. Uma mudança política aconteceu no início de 2002,quando o governo anunciou que adotou a VLT como estratégia principal para“redistribuir” terra.

Fontes oficiais apresentam dados quantitativos sobre transações de VLT de1988 a 2001 (DAR, 2001a). Entre outros, dois aspectos são dignos de nota: 1)uma parte significativa dos dados oficiais do Departamento de Reforma Agráriasobre redistribuição de terra é composta de resultados agregados de VLT, de435.019 hectares, representando 25% da redistribuição total atingida em terrasprivadas, afetando cerca de 200 mil famílias camponesas; 2) os resultados da VLTsão altamente desiguais em relação a locais geográficos, regiões e províncias. Umpouco mais da metade (55%) dos resultados da VLT vem de cinco (Regiões 1, 9,10, 4 e 12) dentre 14 regiões pesquisadas.

Oficialmente, os resultados da VLT são considerados êxitos da reforma agrá-ria distributiva. Infelizmente, os círculos acadêmico, administrativo e político evi-denciaram pouco interesse em examinar criticamente a VLT. Na realidade, algunsaceitaram acriticamente a linha governamental. Um exemplo constitui a declara-ção de Riedinger et al.:

Até 1997, o CARP havia redistribuído mais de 1,03 milhão de hectares de terra agrí-cola privada. A metade dessa área foi completamente redistribuída através dos pro-gramas de VOS (265.744 hectares) e VLT (276.307 hectares), o que sugere que oCARP – baseado na aquisição compulsória – gerou um incentivo poderoso para queos proprietários de terras entrassem em transações voluntárias “de mercado” para trans-ferir suas terras à agência de reforma agrária ou a antigos arrendatários e trabalhado-res rurais (2001, p. 373).

Um exame mais detido das transações de VLT revela sua natureza não-redistributiva. Isso ocorre pela análise da evidência empírica da auditoria anualinterna do CARP e de outros casos. Contudo, primeiramente é importante apre-sentar o sistema de auditoria interna do CARP. Uma das reformas realizadas peloSecretário do DAR, Ernesto Garilao (1992-98), foi a criação, no início de 1994,do Comitê de Controle da Auditoria e de Investigação (AMIC), subordinado aoConselho Presidencial Interagências da Reforma Agrária (PARC). Essa foi a res-posta de Garilao ao clamor público por maior transparência e confiabilidade na

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implementação do CARP. O AMIC é composto por representantes do Serviço deAuditoria Interna do DAR, da Secretaria do PARC e de setores de camponeses elatifundiários representados no PARC. Entre as principais atribuições do AMICestão: a validação de relatórios oficiais de redistribuição de terra pela confirmaçãodos beneficiários; a inspeção, verificação e aprovação de pesquisas; a validação doprocesso de avaliação de terras, a verificação da indenização paga ao proprietáriode terras, registro do título e distribuição de certificados de concessão de terra. OAMIC trabalha por amostragem, examinando duas províncias de cada região etrês municipalidades de cada província pré-selecionada:

(…) As primeiras duas províncias na região em termos de resultados (na aquisição edistribuição de terra) serão selecionadas para a auditoria. Caso as primeiras duas pro-víncias já tenham sido cobertas por atividades prévias de auditoria do CARP, esco-lhem-se, pela ordem, as próximas duas províncias; e (…) na escolha dos três municí-pios a serem examinados na província selecionada, a seleção será aleatória dentre 50%dos municípios com maiores resultados (em termos de aquisição e distribuição deterra) dentro da província (PARC, 2001, p. 3).

Além disso, em cada município são examinados detidamente cerca de 10% daaquisição e distribuição de terra. As auditorias sistemáticas e exaustivas do AMIC,de 1994 a 2001, cobriram todas as províncias do país qualitativa e quantita-tivamente, sendo assim uma fonte segura de ricos dados empíricos sobre o funcio-namento interno da implementação do CARP. Sua base ampla de amostragemfornece uma evidência da provável extensão de problemas na VLT. O presenteensaio se baseia em estudos de caso desses relatórios, a fim de fornecer uma idéiamelhor sobre a natureza da VLT. Para aprofundar nossa compreensão das transa-ções de VLT, foram examinados estudos de caso adicionais pesquisados em pri-meira mão pelo autor. Este estudo identificou quatro tipos “ideais” de VLT: 1)evasão direta da reforma agrária; 2) procura secundária, porém freqüente de ga-nhos; 3) esquema de arrendamento para ser proprietário; e 4) esquemas de VLTque combinam venda e arrendamento da área ao próprio vendedor.

2.1.1. Evasão direta da reforma agráriaAs evasões diretas à desapropriação, via VLT, são constatadas em três categorias

amplas. Primeiro, uma tática bastante comum de evasão é declarar filhos, parentese outros “laranjas” como beneficiários. A lei do CARP permite que crianças e outrosparentes se tornem beneficiários “preferenciais” somente se tiverem pelo menos 15

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anos de idade, a partir de 1988, e de fato cultivem ou pretendam cultivar a terra.Nos procedimentos administrativos normais essas transações são relacionadas comoreivindicações de retenção da propriedade pelos proprietários – de modo que sãoexcluídas dos relatórios dos resultados de aquisição e distribuição de terra (situan-do-se no “setor da não-reforma”). Contudo, ao reportar tais transferências comotransações de VLT, esses casos podem ser catalogados como realizações da reformaagrária (“setor da reforma”). A evidência é de que muitas das “transferências” de VLTlistadas por amostragem nos relatórios de auditoria do AMIC foram feitas em favorde membros da família, mas de membros da família que não se enquadram legal-mente para se tornar beneficiários porque eram menores e/ou não trabalham nafazenda. Por exemplo:

Nos municípios selecionados de Masbate e Sorsogon, a maioria dos receptores nostermos da VLT era de membros da família e parentes dos proprietários de terras. Porconseqüência, a divisão das propriedades do latifundiário entre… herdeiros foi ape-nas facilitada, e todas as custas de documentação, taxas de transferência, pesquisas, etitulação foram debitadas aos fundos do CARP (PARC, 1997, p. 48).

Em outro caso, em Iligan, Lanao del Norte, dentre os 26 agricultoresbeneficiários entrevistados durante a auditoria, alguns não estavam realmentecultivando as terras recebidas: um era gerente de uma farmácia, dois haviam mi-grado aos EUA antes da suposta distribuição da terra, nove eram estudantes detempo integral e ainda menores, e um era gerente de uma gráfica (PARC, 1997,p. 10).6

O segundo tipo de evasão é a prática de declarar como beneficiárias pessoascompletamente desavisadas da transação. Embora, provavelmente, não seja tãodifundido como o primeiro, o segundo tipo é indicativo da criatividade e ousadiade alguns latifundiários, em conivência com funcionários públicos locais corrup-tos, para contornar uma política de reforma agrária potencialmente redistributiva.A lei do CARP impõe uma proibição de dez anos para arrendar ou vender a terra.Depois desse período, prevê que a terra será formalmente “revendida” ao dono“anterior” ou a membros de sua família, completando, assim, um ciclo de transfe-rência de terra no papel, sem qualquer mudança nos direitos reais de controle sobrea propriedade e nas relações fundiárias. Um caso documentado pelo AMIC apon-ta para essa prática: “Em Tandag, Surigao del Sur, foram concedidos CLOAs (…)a três agricultores beneficiários (…) que não sabiam do fato, desconheciam o donoe o local da fazenda, e não desejavam cultivar a terra.”7

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O terceiro tipo ocorre quando camponeses são coagidos a concordar em setornar “beneficiários no papel”. Nesse caso, declara-se que o proprietário se en-quadrou na lei da reforma agrária, embora continue o antigo acordo de arrenda-mento entre proprietário e arrendatários e trabalhadores rurais, a despeito dasformalidades de transferência de terra nos documentos oficiais. Novamente, oproprietário prevê uma recompra, no papel, depois do prazo de dez anos que proíbearrendamentos e vendas. Esse tipo de evasão talvez seja o mais difícil de docu-mentar, porque, quando ocorre, envolve um latifundiário política e economica-mente poderoso e despótico. É o caso de uma grande fazenda em Luzon Central,mas os “beneficiários” se recusaram a falar abertamente sobre o fato, por medo derepresálias da parte de seu fazendeiro protetor.8

2.1.2. Procura secundária mas freqüente de ganhosO esquema de VLT também é usado por alguns funcionários locais do DAR

como empreendimento para fazer dinheiro. Embora similar aos casos supracitados,a diferença dessa segunda categoria é que se trata mais da iniciativa de funcioná-rios locais do DAR que de proprietários. Parece ocorrer de duas formas amplas.Primeiro, é “segredo público” nos círculos internos das agências ligadas à reformaagrária que alguns funcionários do governo treinam os proprietários em comoescapar da reforma agrária pela VLT. Isso acontece mediante a condição de queum conjunto de beneficiários trazidos pelo funcionário público, além dos“beneficiários no papel” preferidos pelo proprietário, seja incluído no rol final debeneficiários. Por exemplo:

Foram beneficiadas quatro (4) crianças com idade de 9, 11, 13 e 15 anos pelo titular dePangasinan (Oficial Provincial de Reforma Agrária ou PARO) (PARC, 1995, p. 11).9

DARMO-Matalam (Cotabato Norte) entregou CLOAs a quatro lavradores ausen-tes. (…) O mesmo vale para a fazenda de Brigida Cubita, cujas propriedades forampassadas para seus 12 filhos que em grande parte não ocupam as referidas proprieda-des. O remanescente de seu latifúndio foi subdividido aos filhos de seus irmãos Do-mingo Cubita e Victor Cubita, que foi o PARO anterior da província de Cotabatodo Norte (PARC, 1997, p. 9).Em Pigcawayan, Cotabato do Norte, o registro do MARO, de 1993, evidenciou quede fato houve 64 CLOAs recebidos por agricultores beneficiários, envolvendo 80hectares, predominantemente sob o esquema da VLT. Cinco (5) beneficiários esco-lhidos aleatoriamente foram confirmados, mas dois (…) eram empregados profissio-nais do governo (PARC, 1994, p.7).

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Em segundo lugar, os funcionários do DAR informam vendas comuns de ter-ra que acontecem na localidade, ou no município, como êxito da redistribuiçãode terras sob o esquema da VLT. Agindo assim, os funcionários locais do DAR, defato, proporcionam às partes da transação imobiliária atraentes incentivos paracometer fraude: pesquisa e emissão de título grátis, bem como isenção de taxas detransferência. Por exemplo: “Em Esperanza, Agusan del Sur, uma operação de vendade um imóvel rural no barangay Dacutan, propriedade de Carmen Sire, vendidaa Antônio Polizon (…) e que cobre uma área de 5 hectares, foi processada comoVLT” (PARC, 1996, p. 17). Além disso, um ex-funcionário provincial do DARrevela:

Até mesmo descobri que, por meio da VLT, o comprador em uma transação comumde venda de terras é declarado beneficiário, e o processo de venda de terra, uma tran-sação do CARP. Conheci pessoalmente uma transação de VLT em Camarines Sur, naqual o comprador, que não sabia que o vendedor fez a transação de venda dentro daVLT, veio a meu escritório para cancelar o CLOA porque disse que não era umbeneficiário da reforma agrária, e sim um comprador legítimo de terra (…) A maio-ria dos relatórios da VLT serve para preenchimento de metas por funcionários muni-cipais do DAR; você pode notar isso porque essas áreas nem sequer faziam parte dofoco de trabalho do CARP, e repentinamente são informadas como execução.10

Os dados oficiais (DAR, 2001a) sobre resultados da transferência de terras pelaVLT incluem a categoria do tamanho de estabelecimentos de “5 hectares e abai-xo”, os quais se supõe que estejam excluídos de redistribuição de terras, porquefazem parte do direito de retenção do proprietário. Pretende-se que o arrenda-mento se dê em estabelecimento dessa categoria de tamanho. No entanto, comoevidenciado em relatórios oficiais do DAR (2001a), uma parte significativa dototal da distribuição de terras com base na VLT vem da categoria de áreas de 5hectares.11

2.1.3. O tipo “arrende para ser proprietário”Recentemente, o tipo de evasão “arrende para ser proprietário” parece ter se

tornado popular entre latifundiários, corporações multinacionais e funcionáriosdo DAR em algumas partes de Mindanao, sul das Filipinas (ver DAR, 2001a).São as regiões em que gigantes globais de frutas, como a Dole, estão ampliandovertiginosamente sua produção de frutas como banana e abacaxi. Essa expansãoda produção é de um tipo relativamente mais recente, visto que já não se baseia na

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produção de fazendas, nas quais vastas terras contíguas são diretamente controla-das e administradas por uma grande companhia multinacional ou elite latifundiárialocal. Ao invés, a expansão atual se alicerça sobre áreas menores e as relações deprodução e troca giram em torno de vários tipos de produção por contrato ouacordos de arrendamento (ver Vellema, 2002).

Um arranjo desse tipo de arrendamento funciona assim: o proprietário e obeneficiário entram em um acordo de VLT; desse modo, o proprietário é classifi-cado como tendo obedecido à lei da reforma agrária. Um aspecto fundamental doarranjo é que o conjunto de beneficiários precisa ser totalmente aceitável e apro-vado pelo proprietário, caso contrário não transferirá voluntariamente a terra.Naturalmente, os beneficiários prioritários – os mais aceitáveis para o latifundiá-rio – são os filhos do proprietário, seus parentes e outros “laranjas”. Contudo, emmuitas ocasiões, arrendatários legítimos e trabalhadores rurais igualmente se tor-nam beneficiários. Na seqüência, submetem-se os termos do contrato ao DARlocal que, segundo parece, automaticamente aprova esses contratos e depressainforma a transação como feito de distribuição de terras. Então, o latifundiário eos beneficiários, junto com os funcionários locais do DAR, submetem o mesmolatifúndio a uma companhia multinacional – a Dole no caso da província deCotabato do Norte – para um acordo especial de arrendamento.

As condições padronizadas da Dole para um contrato desses são as seguintes:1) a renda pela terra é PhP$ 12.000/ha/ano (US$ 240); 2) o contrato é de dezanos, renováveis por mais dez anos, por opção exclusiva da Dole; 3) durante osprimeiros sete anos, toda a renda mensal é paga pela Dole ao proprietário;12 4)depois de sete anos de pagamento regular pela Dole ao proprietário, considera-seque o beneficiário pagou completamente pela terra, portanto, é considerado pro-prietário pleno; 5) a partir do oitavo ano, o beneficiário começará a receber a ren-da anual de PhP$ 12.000/ha até o fim do contrato no décimo (ou vigésimo) ano;6) enquanto isso, a partir do primeiro ano até o fim do contrato, o beneficiárioserá empregado como um funcionário da fazenda operada pela Dole – a um salá-rio mínimo que era de PhP$ 160/dia (US$ 3,20) no início de 2002; 7) a Dolepatrocina todo o processo da VLT, pagando uma “taxa de descobridor” de PhP$1.000/ha a quem trouxer um proprietário com um conjunto de beneficiários parao esquema (segundo notícias, muitos funcionários locais do DAR e do governoacabaram sendo generosamente pagos com as taxas de descobridor). A Dole tam-bém paga uma “gratificação de assinatura” aos camponeses contratados e assumedespesas de cartório e documentação. No entanto, a Dole retém todos os docu-mentos, inclusive os CLOAs.

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Depois de apenas dois anos de rápida expansão (de 2000 a 2002), este esque-ma de transferência de terra baseado na VLT, conduzido por uma multinacional,cobre agora, segundo notícias, cerca de 20 mil hectares de excelente terraagricultável em Cotabato e nas províncias de Bukidnon, envolvendo cerca de 20mil famílias.13 É interessante que, em Cotabato, uma quantidade total ridicula-mente baixa de terra – somente 67 hectares – foi desapropriada sob o esquema deAquisição Compulsória (CA), entre 1988 e 2001, em contraposição ao total de20 mil hectares “distribuídos” sob a forma de VLT (ver DAR, 2001a).

2.1.4. Esquemas combinados com base na VLTTambém há arranjos entrelaçados à VLT, sendo que três destes casos serão

examinados abaixo: 1) a “joint venture” de Danding Cojuangco, 2) o “arrenda-mento de ex-propriedade” de Floirendo e 3) o esquema Marsman de partilha delucros. Somados, os casos examinados abaixo afetam diretamente, no mínimo,10 mil trabalhadores rurais. Entretanto, não existe nenhum dado oficial disponí-vel nacionalmente sobre a proporção em que foram implementados esquemasintegrados baseados na VLT. Talvez seja mais importante, em termos gerais, o im-pacto profundo de casos como esses sobre as políticas de reforma agrária, poisenvolvem grandes famílias latifundiárias do país, sendo presumível que suas açõesinfluenciem o curso da implementação da reforma por toda a nação.

a – O esquema joint venture de Danding CojuangcoA propriedade envolvida é o pomar de mais de 4 mil hectares, onde trabalham

mais de mil trabalhadores rurais na província de Negros Ocidental (região cen-tro-ocidental das Filipinas).14 Esse pomar moderno, de categoria internacional,outrora um canavial, é propriedade de um dos empresários latifundiários maispoderosos do país, Eduardo “Danding” Cojuangco Jr.. Companheiro do ex-pre-sidente Ferdinand Marcos, Danding foi acusado de acumular dezenas de milha-res de hectares de terra sob circunstâncias duvidosas. Mas Danding é um políticoflexível e sobreviveu à transição de regime, de 1986 a 1988, alcançando influêncianas administrações subseqüentes de Joseph Estrada e Gloria Macapagal-Arroyo.

Em meados dos anos 90, Danding começou a negociar com o DAR (administra-ção de Ramos, 1992 a 1998) para implementar o CARP em seu pomar. A propostaera usar a VLT para permitir aos trabalhadores de sua fazenda comprar diretamentea terra, com a condição de que fosse colocada, automaticamente, sob um acordo dejoint venture entre sua companhia e a cooperativa dos trabalhadores beneficiários. Opagamento pela terra viria dos dividendos a ser obtidos pelos beneficiários.

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As condições da proposta de empreendimento conjunto eram: 1) o governonão gastaria dinheiro na aquisição de terras, porque seria uma transação diretaentre Danding e seus trabalhadores, via VLT; 2) Danding manteria a propriedadesobre a infra-estrutura da recém-instalada plantação moderna, como os tubos deirrigação e o maquinário agrícola; 3) Danding investiria na instalação de indústriasde processamento e em um moderno sistema de gerenciamento; 4) o preço deterra seria fixado em PhP$ 350.000/ha (US$ 8.500); 5) os trabalhadores seriamempregados na companhia da joint venture; 6) a propriedade da terra seria coleti-va, em nome da cooperativa dos trabalhadores rurais beneficiários; 7) as ações doempreendimento conjunto seriam divididas na proporção de 30%-70% em favorde Danding; 8) o acordo de joint venture vigoraria durante 25 anos, renováveispor outros 25 anos, condicionados à opção exclusiva de Danding; 9) a cooperati-va dos beneficiários colocaria seu CLOA como patrimônio conjunto na compa-nhia. No entanto, não foi concluída a negociação, à época, como uma transaçãoespecial de reforma agrária especial, porque o mandato de Ramos terminou (emmeados de 1998), embora o CLOA tivesse sido gerado na transação.

Uma nova rodada de negociações iniciou quando a administração de Estradaassumiu o mandato, em meados de 1998. A oferta de Danding permaneceu basi-camente igual à da administração anterior, com duas exceções importantes. Pri-meiro, Danding retirou de “sua” lista de beneficiários várias dúzias de trabalhado-res críticos ao esquema dele. Na prática, Danding foi o único a decidir quem seriaincluído e excluído da lista de beneficiários.15 Além do mais, isso acontecia nocontexto do assédio sistemático de Danding a iniciativas de organização autôno-ma dos trabalhadores rurais, de modo que eles perderam espaços significativos.Em segundo lugar, embora originalmente Danding tivesse negociado um preçode compra de PhP$ 350.000 por hectare, durante a visita do Presidente Estradaao pomar, no início de 1998, fez o surpreendente anúncio de que daria sua terragratuitamente aos trabalhadores. Contudo, ainda sob a condição de que a terrafosse colocada na joint venture. Isso levou Estrada a declarar Danding como “pa-drinho da reforma agrária”, um pronunciamento que foi recebido com protestospopulares por parte de ativistas da reforma agrária.

Reagindo a várias críticas públicas, o DAR fez uma contraproposta, com asseguintes características: o patrimônio que os trabalhadores beneficiários coloca-riam na joint venture seria o “uso da terra” e não o título da terra (ou o CLOA),assim, o direito dos trabalhadores à terra ficaria protegido em caso de falência doempreendimento.16 Como segundo ponto, o governo, representado pelo DAR,teria permissão de participar da joint venture mediante o seguinte arranjo: partici-

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pação de 30% para os beneficiários, 65% para Danding e 5% para o governo.Pretensamente, esse arranjo era para impedir que Danding tivesse voto majoritá-rio de dois terços na companhia e para que o governo pudesse fornecer assistênciae proteção aos beneficiários. Por fim, a duração do empreendimento conjunto seriareduzida para dez anos, renovável em acordo mútuo de todas as partes envolvidas.Não foi surpresa que Danding rejeitasse a proposta do DAR, o que levou o caso aum longo impasse (até a época do presente escrito, em fins de 2003).

b – O esquema de arrendamento da antiga propriedade de FloirendoA família Floirendo foi parte da elite político-econômica das Filipinas mais

influente desde os anos de 1960. Como Danding, a família sobreviveu à transiçãodo regime, de 1986 a 1988, e às subseqüentes rodadas de administrações nacio-nais. Uma das mais poderosas do setor bananeiro e entre a elite doméstica, a famí-lia tem ligações com companhias multinacionais como Del Monte e controlamilhares de hectares de terra, tanto de propriedade particular como arrendadosdo governo. Nas plantações de sua propriedade particular, tentou inicialmentefrustrar a reforma agrária, fixando um pedido de preço elevado para suas terras:PhP$ 750.000/ha (US$ 15.000) em 1997. Contudo, em 1998, o Banco Agríco-la, de propriedade do governo, determinou o valor em apenas US$ 5.500/ha.17

Enquanto isso, em 2001, um tribunal local declarou que uma plantação de bana-nas como a dos Floirendos valia US$ 26.000/ha.

Em decorrência, muitos ficaram surpresos quando os Floirendo venderam suaplantação, em 2002, por apenas PhP$ 92.000/ha (US$ 1.900). Mas a venda foifeita como VLT, vinculada a um contrato de arrendamento da antiga proprieda-de. O contrato tinha cinco características principais: 1) a terra seria comprada dafamília Floirendo diretamente pelos trabalhadores rurais; 2) os trabalhadoresbeneficiários arrendariam a terra de volta para a família Floirendo durante 30 anos,renováveis para outros 30 anos por opção exclusiva dos Floirendo; 3) o pagamen-to pela terra seria amortizado em 30 anos e seria deduzido, automaticamente, darenda devida aos trabalhadores beneficiários; 3) a renda a ser paga era fixa, de PhP$5.000/ha por ano (US$ 100); 4) os trabalhadores beneficiários permaneceriamempregados como operários da fazenda e 5) a família Floirendo teria o direitoexclusivo de comprar de volta a terra de todo beneficiário que deixasse a terra oufosse desqualificado, mais tarde, como beneficiário.

As condições desses contratos integrados revelam as tentativas de latifundiáriospara transformar o esquema de arrendamento de antiga propriedade, via VLT, emuma poderosa fórmula anti-reforma. A decisão da família Floirendo de baixar ra-

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dicalmente o preço solicitado pela terra foi amarrada ao arranjo de arrendamentoda antiga propriedade: quanto mais baixo o preço da terra, tanto mais baixa seriaa renda.18 O contrato de arrendamento de 60 anos é praticamente a duração deuma vida; antes dos 60, a maioria dos beneficiários teria morrido sem jamais pos-suir a terra que supostamente obtiveram da reforma agrária. A família Floirendoofereceu dinheiro adiantado pela renda aos futuros beneficiários e realizou vigo-rosos esforços para “desalistar” do rol de beneficiário trabalhadores rurais perten-centes a organizações autônomas que exigiam a desapropriação das plantações.Houve divisões nas fileiras dos trabalhadores rurais quando os Floirendo agirampara consumar os contratos, com apoio da liderança do DAR, motivada pela VLT(Franco, 2004).

c – O esquema Marsman de partilha de lucrosRoberto Sebastian, ex-secretário do Departamento de Agricultura (1992-1995),

presidente e executivo-mor da companhia bananeira Marsman, propôs um arran-jo modificado para a plantação da Marsman, uma fazenda que fica geografica-mente próxima da dos Floirendo e para a qual Marsman fixou originalmente umpreço de PhP$ 1,2 milhões/ha em 1997.19 A terra seria doada, não vendida, a tra-balhadores rurais beneficiários (transação classificada como VLT), mas com qua-tro condições: 1) os trabalhadores beneficiários permitiriam à Marsman usar a terragratuitamente durante 30 anos, renováveis para outros 30 anos, por opção exclu-siva da Marsman; 2) os trabalhadores beneficiários seriam contratados como mão-de-obra da fazenda; 3) ao contrário do arrendamento direto da antiga proprieda-de pela família Floirendo, a fórmula da Marsman era propiciar a partilha anual daprodução e do lucro aos beneficiários, alegando ser melhor que o arranjo de ar-rendamento, porque lucros e participação nos lucros poderiam subir, ao contrá-rio de uma renda fixa pela terra; 4) a Marsman teria o direito exclusivo de com-prar de volta a terra de todo beneficiário que deixasse sua terra ou fossedesqualificado como beneficiário (Marsman, 2002).

O governo se mobilizou para aprovar essa proposta de contrato, sendo que aprópria presidente Gloria Macapagal-Arroyo ordenou sua aprovação. Durante a31ª reunião do Conselho Presidencial de Reforma Agrária (PARC), em que aMarsman foi solicitada a apresentar sua proposta, a Presidente Arroyo declarouconfiantemente: “A fórmula da reforma agrária é aquisição e redistribuição. [Nes-sa fórmula da Marsman] economizamos a aquisição. Vamos diretamente à distri-buição. Louvado seja Deus!” Ao que o Secretário do DAR, Hernani Braganza,respondeu: “No longo prazo, Senhora Presidente, isso poderia servir como mode-

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lo para toda a indústria. Não se perde a produtividade. Não se perde o valor daterra.” O Secretário Camacho, do Departamento de Finanças, concluiu: “Senho-ra Presidente, gostamos muito de sua fórmula. Com sua fórmula, expressamoscompleto apoio. Pensamos que é excelente.” Roberto Sebastian estava exultante.Os trabalhadores rurais da Marsman diretamente afetados pela proposta nem se-quer foram convidados para participar nessa reunião que decidiria seu destino(PARC, 2002).

2.2. A extensão nacional das transações de VLTDados oficiais mostram a extensão das transações de VLT, em âmbito nacio-

nal, entre 1972 e 2001 (DAR, 2001a). Porém, como outros dados quantitativosoficiais agregados, deixam de mostrar a extensão total das relações dinâmicas depoder que determinam a redistribuição de terra em determinada propriedade. Porduas razões principais é difícil, se não impossível, determinar a dimensão exata detransferências de terra não-redistributivas e não-reformistas com base na VLT.Primeiro, como discutido anteriormente neste ensaio, redistribuição de terra éredistribuição de poder. Faz-se necessária, portanto, uma avaliação caso a caso,para aferir se, e até que ponto, houve uma redistribuição em um latifúndio espe-cífico, disputado por vários atores. Isso vale para todas as modalidades deredistribuição de terra do CARP, inclusive a VLT. Em segundo lugar, como reve-lado nos casos supracitados, quando a VLT é usada por proprietários para se en-quadrar na lei da reforma agrária, ela geralmente vem acompanhada de processosde transação que também são controlados pelos latifundiários, o que torna inviáveldeterminar a quantidade exata de VLTs fraudulentas.

No entanto, informantes confiáveis fornecem estimativas melhores do alcan-ce da VLT não-redistributiva. Três subsecretários do DAR para operações de cam-po e serviços de apoio (USEC-FOSSO), funcionários máximos que supervisio-nam a implementação do CARP em âmbito nacional, são unânimes em sua visãonegativa da VLT. Ding Navarro disse: “Não sei a porcentagem exata, mas a maio-ria [de transferências de terra com base na VLT], talvez algo como 70%, foi usadapelos proprietários de terras (…) para se evadirem do enquadramento”.20 De acordocom Gerry Bulatao, muitas vezes a VLT é uma transação entre parentes (malimitna transakyon ng magkakamag-anak).21 Hector Soliman propôs que todos os re-sultados de transferência de terra pela VLT fossem separados e revistos.22 A posi-ção de Soliman é apoiada pelo presidente do Serviço de Auditoria Interna do DAR,Ding San Andrés, que também é o presidente do AMIC. Ele vem insistindo coma liderança principal do DAR, demandando uma revisão de toda a VLT.23 Além

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disso, na maioria dos casos de VLT discutidos acima, as transações foram registradascomo vendas de terra baseadas em dinheiro vivo 100% à vista. Isso levou LorenzReyes, um membro emérito do Comitê Nacional de Licitação do DAR, a comen-tar: “Você terá sérias dúvidas, porque esses esquemas de VLT são principalmenteà base de dinheiro. Como um arrendatário pobre tem condições de pagar pelaterra 100% à vista? É muito provável que esses sejam meros jogos de cena, especial-mente onde os proprietários de terras têm suficiente força política para controlarseus arrendatários.24

Os dados oficiais sobre aquisição e distribuição de terras (DAR, 2001a) escon-dem mais do que revelam acerca da realidade da VLT. No entanto, exame prelimi-nar dos dados tabulados revela um padrão amplo de VLT não-redistributiva, queprovavelmente foi praticado de forma mais sistemática do que se presumia anterior-mente. Em áreas geográficas onde a presença de movimentos camponeses autôno-mos e seus aliados é esparsa e frágil, os casos de VLT têm incidência mais alta. Exem-plos disso são a região do CAR (as regiões 1, 9, 10, 12 e 13), a província de CotabatoNorte e Quezon II (ver também Borras, prelo e 2001b). Além disso, quatro das cin-co regiões que apresentaram a maior redistribuição geral de terras também são asprincipais “produtoras” de VLT. Isso indica que a VLT é usada como veículo de“redistribuição” nessas regiões, em proporção maior que em outros lugares do país.Em termos gerais, esse é o mesmo padrão registrado no nível provincial, especial-mente em províncias isoladas e menores, como Catanduanes, Batanes e Camiguin,onde geralmente estão ausentes organizações autônomas de camponeses. Contudo,até mesmo em províncias nas quais os trabalhadores rurais autônomos e organiza-ções camponesas têm presença relativamente mais forte, a VLT não-redistributivaconsegue ganhar terreno, como nas províncias de Davao del Norte e Negros Oci-dental. Nessas, latifundiários particularmente poderosos confinaram os movimen-tos favoráveis à reforma em imóveis específicos para obter consentimento para acor-dos de VLT não-redistributiva (como nos casos de Floirendo e Marsman, em Davao,e de Cojuangco, em Negros).

2.3. A Reforma Agrária de Mercado do Banco MundialÉ citado freqüentemente na literatura, tanto pelo BIRD como por seus críti-

cos (ver, por exemplo, Deininger & Binswanger, 1999; El-Ghonemy, 2001) que,a partir de 1998, a RAM foi implementada amplamente nas Filipinas. Não é esseo caso, como concluíram alguns pesquisadores (por exemplo, Franco, 1999a,1999b; Reyes, 1999) e como será demonstrado a seguir, e isso é importante paraesclarecer a questão.

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Desde o início dos anos 1970, o BIRD exerceu uma função importante na con-figuração dos rumos das políticas de desenvolvimento rural nas Filipinas. O BIRD,ao lado de algumas organizações fundamentais no âmbito da política externa dosEUA, como a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID),de forma geral, sustentaram uma posição política contrária à reforma agráriaredistributiva no país, embora essa posição tenha sido, às vezes, questionada inter-namente. Historicamente, o BIRD trabalhou em prol de um enfoque de desenvol-vimento agrícola e rural no país baseado mais no crescimento econômico que naeqüidade (veja Putzel, 1992). Assim, embora o BIRD algumas vezes apoiasse o CARP,sua ajuda foi limitada à construção da infra-estrutura (por exemplo, estradas e pon-tes) em comunidades nas quais houve êxito na redistribuição de terras, ao invés dese estender à redistribuição como tal (veja Fox & Gershman, 2000).

O BIRD e a USAID trabalharam juntos em um teste ou piloto do conceito deesquemas de transferência voluntária de terras, comandados pelo mercado, naAmérica Latina, nos 1970 e 1980 (Dorner, 1992, p. 86-91). Uma argumentaçãosimilar das duas agências esteve presente nas Filipinas durante o processo de defi-nição política do CARP (Putzel, 1992). Mas, enquanto a USAID era mais elo-qüente na defesa de esquemas de transferência voluntária de terra, durante o pro-cesso de definição política do CARP (ibid., p. 293-295), foi o BIRD que insistiusistematicamente com o governo filipino para que se desviasse da desapropriaçãoe adotasse formas voluntárias não-desapropriatórias de “reforma agrária.”

A primeira tentativa do BIRD em recrutar funcionários governamentais paraque adotassem sua RAM foi em 1996, quando insinuou, em seus documentos depolíticas para o país, que o governo filipino teria de parar com a implementaçãoda distribuição de terra do CARP, especialmente na categoria de estabelecimentosentre 5 a 24 hectares, porque supostamente “distorcia” o mercado de terras e erafinanceiramente dispendioso (BIRD, 1996, 1997a, 1997b). No mandato deGarilao, o DAR rejeitou a proposta do BIRD. O ruidoso protesto público subse-qüente de círculos ativistas pela reforma agrária obrigou os funcionários do BIRDa se distanciar rapidamente do CARP filipino. Retornaram três anos depois, comvigor e persistência renovados, fazendo algumas incursões políticas modestas (Fran-co, 1999b).

No começo de 1999, os funcionários do BIRD retornaram às Filipinas paraconvencer a então nova liderança do DAR a apoiar, pelo menos, um pequenoprojeto-piloto de RAM no contexto de experimentar outros “enfoques comple-mentares” na implementação da reforma agrária. Por diferentes razões, inclusive aesperança de receber novos empréstimos do BIRD em meio a uma crescente es-

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cassez de recursos públicos, a liderança do DAR manifestou interesse em experi-mentar as possibilidades da RAM.25 No início de 2000, depois de um longo ecomplexo processo de negociação, houve um acordo de que seria realizado umprojeto muito menor, um estudo de viabilidade.26

O estudo de viabilidade da RAM envolveu amplos estudos de gabinete demacro-políticas, produzindo documentos favoráveis ao modelo de políticas pró-mercado. Por exemplo, Esguerra (2001) prenunciou a viabilidade econômica daRAM, embora advertisse sobre fatores institucionais, organizacionais e financei-ros menos controláveis que poderiam impedir um processo conduzido pela de-manda, entre outros. Edillion (2001) apresentou dados comparativos detalhadosentre diferentes esquemas de aquisição de terra em plantações diversas, anuncian-do igualmente a viabilidade financeira da RAM, embora, como Esguerra, adver-tiu sobre a imprevisibilidade de outros fatores no campo. Mamon (2001) endos-sou a continuação do estudo de viabilidade e do projeto-piloto, mas sublinhou opapel crucial da preparação social autônoma nas comunidades envolvidas. Final-mente, foi produzido um manual operacional (DAR, 2001b) que delineou asformas e os meios pelos quais a RAM poderia ser implementada no país.

O projeto de viabilidade também incluiu dois casos de teste localizados emcomunidades, dos quais foram produzidos relatórios. Contudo, os conteúdos dessesdocumentos são avaliações rotineiras de pré-projeto sobre procedimentosoperacionais padrão: perfis de possíveis compradores e vendedores, característicasdas terras à venda e assim por diante. Entretanto, uma passagem pelos documen-tos e entrevistas com alguns dos diretamente envolvidos no estudo de viabilidade,ao nível comunitário, renderam dados e percepções adicionais.

A primeira localidade do projeto situa-se no barangay Sibula, Lopez Jaena, noMisamis Ocidental, envolvendo uma área arrendada de 178 hectares de proprie-dade do governo provincial (48 hectares estavam ociosos e 130 hectares eramcultivados com coco e outras culturas de subsistência). Há 178 potenciais com-pradores beneficiários. Os compradores foram escolhidos pelo processo habitualdo DAR/CARP, ou seja, principalmente pelo DAR, mas com a participação detodos os potenciais beneficiários e ajuda de uma ONG. No início, o governo fi-xou o preço da terra em PhP$ 31.000/ha, mas foi rejeitado pelos beneficiários eoutras partes no acordo. A oferta final do governo foi de PhP$ 16.000/ha, pagá-veis em dez anos (UPSARDFI, 2001, p. 94-95) e os compradores assumiriam ocusto total da terra (MUCEP, 2001).

O segundo projeto está no barangay Hagonghong, Buenavista, Península deBondoc Quezon, e envolve uma área agricultável marginal privada de 48 hectares,

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arrendada para plantio de coco e outras culturas de subsistência. A terra estivera àvenda desde 1989 e estava sendo vendida ao DAR quando começaram as discussõessobre a viabilidade do projeto da RAM. O proprietário fixara originalmente o preçoda terra em PhP$ 35.000/ha com uma entrada de 25% e o restante a ser saldado emprestações de dez anos. Foram escolhidas dezenove potenciais famílias beneficiáriaspelo processo normal do DAR/CARP (novamente de forma predominante peloDAR, mas com participação ativa dos potenciais beneficiários e ajuda de uma ONG).As potenciais beneficiárias, relativamente organizadas, rejeitaram o preço pedido peloproprietário e barganharam um preço muito mais baixo. O preço final foi estabele-cido em PhP$ 6.000/ha. Os compradores assumiram o custo total da terra, a serpago em dinheiro, através de um empréstimo do Banco Agrícola, a taxas de juroscomerciais (UPSARDFI, 2001, p. 94).

Poucas lições podem ser extraídas desse estudo de viabilidade, exceto talvezas seguintes: do primeiro caso, a lição fundamental parece ser que até mesmoum órgão governamental pode ser tentado a supervalorizar a terra a ser vendidaa camponeses, no processo de venda direta. O segundo caso, à primeira vista,parece interessante, especialmente como o preço de terra foi reduzido pela bar-ganha. No entanto, não podemos tomar esse caso como representativo, porqueo equilíbrio de forças era avassaladoramente a favor dos camponeses, devido àajuda direta dos governos nacional, provincial e local, bem como de atores não-governamentais, no sentido de pressionar o proprietário a cumprir os níveis depreços de terra de uma aldeia isolada. É improvável que uma intervenção arti-culada dessas, de grupos altamente independentes e militantes, seja reproduzidaem grande escala.

Apesar das percepções limitadas, ou por causa delas, que podem ser derivadasdo estudo de viabilidade, o BIRD decidiu continuar e ampliá-lo para um peque-no programa-piloto. Previsto para iniciar em meados de 2003, o piloto visa faci-litar a venda de mil hectares a mil famílias rurais pobres. O custo calculado desseprojeto é US$ 5,24 milhões ou US$ 5.240 (PhP$ 262.000) por família beneficiária.

Conclusão

É a redistribuição de riqueza e poder da elite latifundiária para os camponesespobres sem-terra que constitui a essência da reforma agrária. Como debatido aci-ma, o esquema de transferência de terras pela RAM requer pagamento 100% àvista, em dinheiro vivo, ao proprietário a 100% (ou mais) do valor da terra, e

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100% desse custo (mais os custos da transação) devem ser assumidos integral-mente pelo comprador. Os proponentes da RAM alegam uma inclinação favorá-vel ao pobre, mas as premissas teóricas e operacionais do modelo de política ten-dem a contradizer isso. Logo, pode-se argüir que até mesmo dentro da perspectivaestritamente monetarista acerca da terra, a redistribuição da riqueza está ausentena RAM. A “troca” de bens no mercado entre vendedores e compradores não éigual a, ou necessariamente não constitui, redistribuição de riqueza. Além disso, opresente estudo mostrou casos de VLT em que a redistribuição de poder perma-nece ausente, apesar das formalidades quanto à redistribuição da terra (riqueza).Significa que não houve nenhuma transferência de poder a favor do pobre para ocontrole efetivo dos recursos fundiários. A falha principal desses esquemas de trans-ferência de terra baseadas no mercado reside em conceitos fundamentais sobre areforma redistributiva, bem como sobre mecanismos operacionais.

As evidências das Filipinas tendem a contradizer prenúncios da RAM, comresultados amplamente similares às experiências do Brasil, Colômbia e África doSul (Barros, Sauer & Schwartzman, 2003; Borras, 2003a). No Brasil e na Colôm-bia, pensou-se que a RAM facilitaria transferências de terra que não constituemreforma redistributiva e, agindo assim, solaparia procedimentos prévios, potenci-almente distributivos, de uma reforma agrária conduzida pelo estado (Sauer, 2003;Mondragon, 2003; Borras, 2002). Na África do Sul, a RAM bloqueou as chancesde uma reforma agrária mais radical desapropriatória e redistributiva, consolida-da em lei (Levin & Weiner, 1997; Bernstein, 1998).

Alicerçada sobre as evidências disponíveis, a conclusão preliminar deste estu-do é que esquemas de transferência de terra baseados no mercado – a RAM e suavariante VLT – não promovem uma reforma redistributiva. Politicamente, e emtermos de gestão da política, esses esquemas fornecem aos proprietários meiosmelhores e mais amplos através dos quais conseguem concretizar rapidamente aevasão da reforma agrária redistributiva, especialmente em contextos como o dasFilipinas, onde as classes latifundiárias permanecem entrincheiradas no seio doestado e da sociedade. Assim, a RAM e esquemas similares de VLT arruínam, aoinvés de complementar, reformas agrárias potencialmente redistributivasconduzidas pelo estado.

Implicitamente, críticos da RAM que se concentram em questões de “viabilidadede implementação” (financeira e administrativa) do modelo de política a favor domercado, e não na substância e no processo, podem, na prática, apoiar a RAM. Noentanto, a mazela fundamental da RAM, e de esquemas similares à RAM, reside, emgrande parte, na ênfase excessiva de seus proponentes em doutrinas puramente mone-

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tário-econômicas, e não na natureza multidimensional e político-econômica dos di-reitos de propriedade e de uso da terra, bem como da reforma redistributiva.

Notas

1 Veja, por exemplo, Riedinger et al. (2001), El-Ghonemy (2001) e Ghimire (2001). Além disso, estudio-sos, amplamente pró-mercado, também criticaram, em certa medida, a RAM, argumentando que é cara.Contudo, demandam experimentação adicional de RAM (veja, por exemplo, Carter, 2000; Sadoulet,Murgai & De Janvry, 1998; Banerjee, 1999; de Janvry et al., 2001). As duas “consultas eletrônicas”franqueadas pelo BIRD, em janeiro de 2003 e março de 2001, também permitem uma avaliação dasdiversas visões sobre a RAM, vindas de diferentes políticas, de agrupamentos políticos e de acadêmicos(veja a página do BIRD na web sobre política fundiária).

2 Essa explicação conceitual é consistente com a discussão detalhada dos conceitos de “dotação” e “intitulação”por Lixivie, Mearns & Scoones (1999).

3 A expressão latina “ceteris paribus” significa “em circunstâncias idênticas” (nota do tradutor).4 A privatização de fazendas estatais em antigos países socialistas também é uma parte integrante da RAM,

mas não é analisada neste ensaio. Para estudos críticos, veja, por exemplo, Spoor (1997).5 Contudo, isso foi revisto e reduzido, no início de 1996, para 8,064 milhões de hectares (ver Borras, 2003b).6 A preponderância deste tipo de VLT foi confirmada por diversos altos funcionários do DAR entrevista-

dos para o presente estudo. Entrevista com Gerry Bulatao, 21 de janeiro 2002, na Cidade de Quezon.Em entrevistas pessoais ao autor, dois ex-secretários do DAR (Ernesto Garilao e Horácio Morales) e doisoutros subsecretários para operações (Ding Navarro e Hector Soliman) também concordaram com ospensamentos de Bulatao sobre a VLT, enquanto quase todos os diretores entrevistados das agências nacionale regionais do DAR compartilharam dessa visão de VLT.

7 PARO, Jose Grageda (Camarines Sur); Entrevista, 14 de janeiro de 2002, Cidade de Mandaluyong; vejatambém AMIC-PARC, Relatório para 1998, seção no DAR.

8 Entrevista com Soltero Coronel (pseudônimo), irmão de quatro “beneficiários no papel” desse caso.9 A sigla DARMO significa “Escritório Municipal do DAR” e o MARO é o “Oficial Municipal da Refor-

ma Agrária”.10 PARO Jose Grageda (Camarines Sur), entrevista realizada em 14 de janeiro de 2002, Cidade de

Mandaluyong; ver também AMIC-PARC, Relatório para 1998, seção no DAR.11 Enquanto isso, a mesma categoria de área de 5 hectares com base na VLT obteve as menores deduções em

comparação com outras categorias de tamanho de estabelecimento e modalidades de aquisição ao longodo tempo (Borras, 2003b), fornecendo evidência adicional da probabilidade de um processo institucional,sistematicamente maquiado, de implementação da VLT.

12 Ademais, a plantação existente constitui a única propriedade do fazendeiro.13 Estimativas de funcionários locais do DAR, líderes de ONGs e representantes da indústria bananeira.14 Cultivada com variedades para exportação, de alto valor comercial, como manga e durião.15 A mesma estratégia foi empregada por Cojuangco em sua área rural em Davao del Sur, de acordo com o

diretor do DAR, que cuidou dos casos de lá (entrevista com o diretor regional do DAR, Davao, 11 defevereiro de 2002).

16 Existe aqui uma tensão legal, pois os CLOAs não podem ser revendidos, no prazo de dez anos, após aconcessão.

162

17 Entrevista com Romeo Fernando Cabanial, Oficial de Avaliação de Terras (LBP-XI), em 5 de fevereiro de2002, cidade de Davao.

18 Cabanial (da LBP-XI) disse que, com base no estudo do Banco Agrícola das Filipinas, se o preço de terraé PhP$ 350.000, a renda/ha/ano pelo arrendamento seria de PhP$ 45.000, baseada nos padrões indus-triais vigentes.

19 Em 1999, Klaus Deininger, do BIRD, falou com o dono da Marsman sobre como ele via a possibilidade deque sua terra fosse submetida ao modelo da RAM. Segundo notícias, o dono da Marsman endossou o conceitode RAM, oferecendo sua plantação como projeto-piloto, mas pelo elevadíssimo preço de PhP 1,2 milhões/ha(à vista). Depois deste episódio, não aconteceu mais nenhuma negociação com Marsman quanto à RAM.

20 Entrevista, 16 de janeiro de 2002, Cidade de Quezon.21 Entrevista, 21 de janeiro de 2002, Cidade de Quezon.22 Entrevista, 18 de janeiro de 2002, Cidade de Quezon.23 Entrevista, 1º de março de 2002, Cidade de Quezon.24 Entrevista, 29 de janeiro de 2002, Cidade de Quezon.25 Essas afirmações são baseadas em várias discussões entre o autor e o Secretário do DAR, Horácio Morales,

em 1999.26 O estudo de viabilidade começou em outubro de 2000 (BIRD, 2000a, p. 3) com verbas de US$ 398 mil

(carta do Secretário Assistente do DAR, Toinette Raquiza, ao Secretário Horácio Morales Jr, datada de 27de fevereiro de 2001). Isso é diferente – embora diretamente relacionado – do projeto DENR sobre ges-tão e administração fundiária com verba de US$ 5,4 milhões do BIRD e AusAid (BIRD, 2000b). Duran-te o ano de 1999 e depois, organizações não-governamentais e movimentos camponeses, de amplo espec-tro político, rejeitaram a RAM ou qualquer programa-piloto (ver Franco, 1999a; 1999b; Reyes, 1999;UNORKA, 2000), forçando o BIRD a dar novo rótulo à RAM nas Filipinas: Programa de Reforma AgráriaGerido pela Comunidade ou CMARP.

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PARTE III

EXPERIÊNCIAS NO BRASIL

O modelo de “reforma agrária de mercado” do Banco Mundial (BIRD) en-controu, no Brasil, a partir de 1996, as condições ideais para a sua implementação,as quais abarcavam desde a orientação de uma coalizão de poder interessada empromover uma contra-reforma radical do Estado (diminuindo gastos com políti-cas sociais e descentralizando responsabilidades), até a necessidade de criar políti-cas governamentais capazes de conter a pressão social advinda das lutas históricaspor acesso à terra.

Esse modelo de mercado teve início com a execução de dois empréstimos, sen-do um restrito ao estado do Ceará (denominado “Reforma Agrária Solidária”) e ou-tro – oficialmente reconhecido como o projeto-piloto – implantado em cinco esta-dos do Nordeste, incluindo o próprio Ceará. O “Projeto Piloto de Reforma Agráriae Alívio da Pobreza” – mais conhecido como Cédula da Terra – foi executado entre1997 e 2002 e recebeu fortes críticas de todos os movimentos sociais agrários e en-tidades sindicais de representação de trabalhadores rurais. Apesar disso, o BIRD ale-ga que o Cédula constituiu uma experiência bem sucedida e exemplar, passível deser replicada em maior escala como modelo preferencial de acesso à terra pelocampesinato pobre. No entanto, várias pesquisas realizadas – inclusive as financia-das pelo próprio BIRD – evidenciam os resultados sofríveis desse projeto.

O objetivo deste trabalho é, a partir da avaliação do processo de implantação doCédula, mostrar que o desempenho do modelo proposto pelo BIRD contrasta coma sua racionalidade técnica e com o discurso utilizado para legitimá-lo. A primeiraparte resgata a gênese e o contexto político-ideológico em que se deu sustentação aimplantação dos programas de reforma agrária de mercado. A segunda parte siste-matiza dados sobre o desempenho e os problemas na implantação do Cédula daTerra, inclusive as dificuldades de sobrevivência das famílias nas terras adquiridas ede geração de renda para pagamento das dívidas contraídas. A última parte faz um

HISTÓRIA E LEGADO DA REFORMA AGRÁRIA DE MERCADONO BRASIL

JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

SÉRGIO SAUER

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rápido balanço das mudanças no modelo de mercado e da situação atual do Progra-ma Nacional de Crédito Fundiário, criado e executado pelo governo Lula.

1. Gênese: contexto e intencionalidade política da “reforma agrária de mercado”

Para a coalizão de poder que levou Fernando Henrique Cardoso à presidênciada República, interessada em implementar um projeto radical de liberalização daeconomia brasileira (Fiori, 2001), o tema “reforma agrária” era algo absolutamen-te anacrônico. Segundo a leitura dominante, falar desse tema no início dos anos1990 significava, no máximo, a defesa de ações pontuais de alívio da pobreza ru-ral, sem qualquer intencionalidade redistributiva. Exemplo maior dessa visão foia sua vinculação, no início do governo FHC, ao programa Comunidade Solidá-ria, de caráter nitidamente assistencialista.

Igualmente, não havia espaço para uma política agrícola favorável aos peque-nos agricultores. Embora respondesse à reivindicação das organizações sindicaisde representação de trabalhadores rurais, o Programa Nacional de Fortalecimentoda Agricultura Familiar (PRONAF), criado em 1995, na prática foi restringido auma linha de crédito para financiamento de custeio, com baixo grau de coberturae pouquíssimos recursos para créditos de investimento. Ademais, como instru-mento de política agrícola, era um programa marginal, incapaz de proteger a massade agricultores familiares e camponeses da pressão concentradora e excludenteprovocada pelo padrão de desenvolvimento agropecuário dominante, cujos efei-tos deletérios eram ainda mais agravados pelo Plano Real e pela abertura comercialindiscriminada.

Entretanto, o aumento das ocupações de terra em praticamente todos os esta-dos, conjugado à forte repercussão nacional e internacional dos massacres deCorumbiara (RO) e Eldorado dos Carajás (PA), impuseram ao governo federal oreconhecimento da existência de uma problemática agrária grave no país, trazen-do de volta o tema da “reforma agrária”. A necessidade de dar resposta à opiniãopública forçou o governo a criar, em 1996, o Gabinete do Ministro Extraordiná-rio de Política Fundiária (MEPF). Isto, porém, não foi suficiente para aplacar apressão social. Um ano depois, o MST promoveu a Marcha Nacional por Refor-ma Agrária, Emprego e Justiça, catalisando a insatisfação popular contra a políti-ca econômica e as reformas neoliberais. Naquele momento, ficou claro que o go-verno federal não tinha a capacidade política necessária para calibrar e enquadrara pressão social por acesso à terra e à reforma agrária.

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Para reverter a posição desfavorável na qual havia sido colocado, o governofederal adotou o discurso aparentemente inovador de que era preciso “reformar areforma agrária” (Cardoso, 1997, p. 25). O MEPF, então, iniciou um conjuntorelativamente articulado de ações em cinco direções.

Em primeiro lugar, editou um pacote de medidas com o objetivo de reduzirparcialmente o preço final pago pelo Estado às desapropriações, acelerar o tempode imissão na posse da terra desapropriada pelo INCRA e dificultar a evasão do atodesapropriatório pelos proprietários de terra (Medeiros, 2002).

Em segundo lugar, aumentou a criminalização das ocupações de terra, proi-bindo a realização de vistorias do INCRA em áreas ocupadas (o que inviabilizava asua desapropriação), suspendendo negociações em casos de ocupação de órgãopúblico, penalizando funcionários do INCRA que negociassem com os ocupantes evetando o acesso a recursos públicos por entidades que fossem consideradas sus-peitas de serem participantes, co-participantes ou incentivadoras de ocupações deterra (Medeiros, 2002). Ao mesmo tempo, acionou a Polícia Federal para monitorara ação dos movimentos sociais. O resultado foi o aumento da violência contra ostrabalhadores rurais, praticada impunemente tanto pelo Estado (sob a forma deprisões seletivas, despejos violentos e arbitrários, etc.), como pelo poder “priva-do”, freqüentemente com o auxílio de policiais civis e militares.

Em terceiro lugar, por meio dos grandes meios de comunicação, promoveuuma campanha sistemática no sentido de construir uma imagem positiva do go-verno FHC em relação à reforma agrária e, ao mesmo tempo, uma imagem nega-tiva das ocupações de terra e dos movimentos sociais, num período em que cres-cia o apoio social ao MST (Carvalho Fº., 2001).

Em quarto lugar, contra a posição de todas as entidades reunidas no FórumNacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo1, tomou iniciativas no senti-do de desfederalizar a política de reforma agrária, transferindo para a esfera esta-dual a competência para a condução de todo o processo de obtenção de terras eassentamento. Entendida pelo governo como parte do processo mais amplo de“reforma do Estado” então em curso, a descentralização da política agrária serviriapara desonerar a esfera federal, cujas receitas eram cada vez mais comprometidascom o ajuste fiscal e o serviço da dívida pública externa e interna. Além disso,fragmentaria ainda mais a política fundiária, convertendo a “reforma agrária” emum caso-a-caso negociado localmente.

Em quinto lugar, o governo FHC deu início a uma política agrária “amiga domercado”, em cujo topo estava a aplicação do modelo de reforma agrária de mer-cado do BIRD.

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Já em 1995, à luz das experiências colombiana e sul-africana, o BIRD preco-nizava ao governo brasileiro a transação mercantil entre trabalhadores e proprie-tários como mecanismo mais eficiente para distribuir terra, aliviar a pobreza rurale dinamizar os mercados fundiários (Banco, 1995). Nessa lógica, o governo deve-ria criar imediatamente uma “rede de proteção” que aliviasse, de maneira focaliza-da nos segmentos mais pobres, o impacto do Plano Real e das políticas de ajusteestrutural no campo (van Zyl et al., 1995). O acesso à terra seria um dos compo-nentes desse “colchão amortecedor” necessário para dar “funcionalidade” àimplementação do ajuste. A novidade era que tal acesso deveria se dar, agora, pelavia da negociação mercantil.

A situação brasileira em meados da década de 1990 era ideal para o BIRDtestar o seu novo modelo de “reforma agrária de mercado”, pois havia aqui umaenorme “demanda” por terra, uma tendência de queda relativa do preço dos imó-veis rurais em algumas regiões e, sobretudo, um governo estreitamente alinhado àplataforma neoliberal. Por outro lado, o governo brasileiro precisava responder aoaumento da pressão social por terra e, mais que isso, deter o protagonismo nacondução da maneira pela qual a problemática agrária deveria ser tratada. Foi essaconvergência de interesses que possibilitou a formulação e a implementação noBrasil de projetos e programas orientados pelo modelo de “reforma agrária demercado”.

Repetindo as mesmas justificativas do Banco Mundial (1997b), o discurso dogoverno brasileiro em favor do modelo de mercado sustentou três argumentoscentrais. Em primeiro lugar, afirmou que a desapropriação para fins de reformaagrária havia se tornado um instrumento inadequado, posto que intrinsecamentevinculado a um “modelo” de ação fundiária centralizador, arbitrário, propenso àcorrupção e lento que teria se tornado anacrônico. Nessa lógica, seria preciso subs-tituir esse instrumental por mecanismos mais eficientes, baseados na “livre tran-sação” de mercado entre agentes privados (Teófilo, 2000).

Em segundo lugar, argumentou que o orçamento da União não tinha condi-ções de financiar programas como a reforma agrária, dadas as indenizações eleva-das arbitradas pelo Judiciário (Teófilo, 2000). Ou seja, além de ineficaz e anacrô-nico, o modelo “desapropriacionista” também seria caro demais. Nessa perspectiva,a “oferta” do BIRD permitiria ao governo promover uma “inovação” no rol depolíticas públicas dirigidas ao agro, testando um modelo supostamente “mais efi-ciente” de “reforma agrária”.

Em terceiro lugar, afirmou que as ações do governo federal estavam “a rebo-que” dos movimentos sociais – especialmente do MST –, uma vez que os assenta-

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mentos rurais eram resultado, predominantemente, de ocupações e acampamen-tos. Era preciso, na ótica do governo federal e do BIRD, diminuir a pressãoprovocada pelas ocupações de terra e reverter a ascensão das lutas populares nocampo, introduzindo um mecanismo de mercado que pudesse disputar, pela base,a adesão de trabalhadores sem-terra (Carvalho Fº., 2001). Alguns anos depois, opróprio Banco explicitaria essa intenção com muita clareza:

O modelo governamental de reforma agrária através da distribuição de terras é umcírculo vicioso: a terra é redistribuída onde há conflitos sociais e os conflitos sociaispressionam o programa de redistribuição de terras do governo (...). À medida em quenovas alternativas começam a fazer efeito, o governo poderá reduzir a ênfase nas desa-propriações e, conseqüentemente, quebrar a ligação entre sua política de reforma agráriae os conflitos rurais (2003, p. 127, grifos nossos).

O modelo de reforma agrária de mercado foi implementado no Brasil comuma velocidade impressionante. O primeiro projeto nele inspirado chamou-se“Reforma Agrária Solidária”, uma experiência pequena no estado do Ceará. Suaimplantação se deu pela introdução de um componente fundiário no Projeto SãoJosé, o que, até aquele momento, representava uma “novidade”.2 Criado em agos-to de 1996, o primeiro financiamento para compra de terras foi liberado em feve-reiro de 1997.3

Foi dessa experiência que nasceu, poucos meses depois, o “Projeto-Piloto deReforma Agrária e Alívio da Pobreza” (ou “Cédula da Terra”), a partir da propostado BIRD ao governo brasileiro (MEPF, 1999). Assim, a experiência iniciada no Cearáfoi estendida também para Pernambuco, Bahia, Maranhão e norte de Minas Ge-rais. O acordo de empréstimo para a criação do Cédula foi aprovado pelo BIRD emabril de 1997, com início efetivo no mês de julho do mesmo ano, sem qualqueravaliação sobre o desempenho do Reforma Agrária Solidária, recém iniciado.

Repetindo o mesmo procedimento usado em outros países, o BIRD propôs aimplementação de um projeto-piloto com metas relativamente modestas: finan-ciar a compra de terras por quinze mil famílias em quatro anos. Assim, esperavacontornar eventuais resistências e, por “efeitos de demonstração”, criar as condi-ções políticas para a extensão do modelo de mercado a todo país. Como afirmamDeininger e Binswanger: “Este esquema (apoiado por um empréstimo de US$ 90milhões) tem como objetivo acelerar o processo de reforma agrária, reduzir os custosa menos da metade e fornecer as bases para um modelo que poderá, eventualmen-te, ser adotado nacionalmente” (1998, p. 14). Em outro documento do BIRD,

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fica ainda mais clara a intenção de substituir de vez a desapropriação pelo finan-ciamento à compra de terras: “Se o projeto-piloto demonstrar a viabilidade dareforma agrária assistida pelo mercado e as estimativas de custos para este pilotoforem representativas do país (...), tal programa poderia atender um milhão defamílias em menos de seis anos” (Banco, 1997b, p. 7).

A região escolhida para iniciar o novo modelo foi o meio rural nordestino,onde se concentra o maior contingente de população em condições de pobreza dopaís e onde o BIRD opera desde os anos 1970. Desse modo, contando com umalogística já existente e frente a uma elevada “demanda” por terra, estimava-se quea implementação do projeto-piloto ocorreria de maneira acelerada, dando resul-tados em curtíssimo prazo (Banco, 1997a).

Enquanto os dois projetos-piloto eram implementados no Nordeste, tramita-va no Senado o Projeto de Lei nº 25, que previa a criação de um fundo públicopara o financiamento de compra e venda de terras para camponeses, agricultoresfamiliares e trabalhadores rurais. Sem qualquer tipo de avaliação sobre as experiên-cias anteriores e contra a posição do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Jus-tiça no Campo, o Executivo mobilizou a sua base parlamentar e conseguiu apro-var, em tempo recorde, a criação do chamado Fundo de Terras/Banco da Terrapelo Congresso Nacional, em fevereiro de 1998.

O encadeamento entre as ações do governo federal em favor do modelo demercado foi resumida da seguinte maneira:

Ceará, Bahia, Maranhão, Pernambuco e o Norte de Minas Gerais foram escolhidospara abrigar o programa Cédula da Terra – projeto piloto de combate à pobreza nomeio rural que deu origem ao Banco da Terra. O Banco da Terra é a expansão, paratodo o país, dessa experiência pioneira e bem sucedida de reforma agrária, desenvol-vida pelo governo brasileiro em parceria com o Banco Mundial. Tudo começou em1997 no Ceará, com o nome de “Projeto São José” (MEPF, 1999, p. 14).

Uma das linhas de argumentação usadas pelos parlamentares do bloco governis-ta durante a única sessão na Câmara dos Deputados sobre o Banco da Terra foi osinal de que o BIRD aportaria recursos no novo instrumento (Pereira, 2004). Éinteressante notar como o próprio BIRD, num primeiro momento, tentou assumira “paternidade” do Banco da Terra, ao relacioná-lo diretamente com o Cédula:

O projeto piloto para a reforma agrária com base no mercado [o Cédula da Terra](...) teve sucesso em termos de baixos custos, implementação rápida e um impacto

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positivo na redução da pobreza, como era esperado. O projeto piloto demonstroucomo o Banco pode facilitar inovações de política social e serviu de modelo para umnovo programa complementar de reforma agrária por parte do Governo (Banco daTerra) (Banco, 2000, § 122, item d).

Todavia, diante da resistência dos movimentos sociais agrários, a diretoria doBIRD levou mais de dois anos para aprovar e liberar o empréstimo prometido.Quando isto aconteceu (final de 2000), os recursos não foram direcionados aoBanco da Terra, mas a um quarto programa de financiamento à compra de terras:o Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural, negociado com uma das enti-dades que participam do Fórum, a CONTAG. Malgrado algumas diferenças, sãoestas quatro experiências (Reforma Agrária Solidária, Cédula da Terra, Banco daTerra e Crédito Fundiário) que constituem a materialização da “reforma agráriade mercado” do BIRD no Brasil implantada pelo governo FHC.

2. Avaliação do Cédula da Terra

2.1. Implantação inicial, metas, recursos e gestãoApesar das críticas e da oposição dos movimentos sociais, o projeto-piloto Cédula

da Terra foi implantado e obteve certa adesão social. Esta, porém, esteve longe do en-contro amistoso e voluntário no mercado entre compradores e vendedores, como pro-põem os teóricos do BIRD. Na verdade, é possível identificar quatro fatores principaisque condicionaram fortemente a entrada dos trabalhadores rurais no projeto.

Em primeiro lugar, o Cédula foi implementado em um período de seca e emum ano agrícola péssimo, em uma região sem perspectivas de trabalho e com umapopulação rural imensa e empobrecida. Como destacou a avaliação preliminar,4

em um contexto com tais características, a possibilidade de acesso à terra imedia-to foi encarada como um meio emergencial de sobrevivência, o que conferiu aoprojeto um caráter assistencial (Buainain et al., 1999, p. 30).

Em segundo lugar, houve intensa propaganda enaltecendo a possibilidade deacesso à terra “rápido” e “sem conflitos”, por meio da compra e venda, dirigida auma população rural que, tradicionalmente, alimenta o “sonho” da posse da terra(Victor & Sauer, 2002). Em uma conjuntura de criminalização das ocupações eforte campanha nos meios de comunicação contra a forma de ação dos movimen-tos sociais, seria difícil imaginar que o Cédula não fosse encarado como uma al-ternativa, talvez a única.

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Em terceiro lugar, houve a convergência de interesses políticos entre os pro-motores do Cédula, o que imprimiu à sua implantação uma velocidade singularem relação a outros projetos de “alívio da pobreza” em curso no meio rural. Osgovernos estaduais almejavam capitalizar eleitoralmente a sua participação noprojeto nas eleições de 1998. O governo federal, por sua vez, travava a disputapolítico-ideológica com os movimentos sociais, numa conjuntura eleitoral em queera obrigado a dar resposta ao aumento da pressão social no campo, materializadano aumento das ocupações de terra e em saques por alimento no Nordeste. Porfim, o BIRD tinha total interesse em rapidamente implantar e legitimar o seumodelo de mercado, inclusive para melhor exportá-lo para outros países. A “pres-sa” dos gestores do Cédula em implementá-lo foi assim retratada:

A conjuntura política também contribuiu para aumentar a adesão e acelerar a im-plantação do Programa. Dois fatos merecem destaque: as eleições e a aparente “ansie-dade” do governo federal em viabilizar o programa como instrumento de ação fundiária(...). Os projetos foram implantados sob pressão do governo federal e do BancoMundial, dificultando as tarefas de planejamento e acompanhamento (Buainain etal., 1999, p. 272).

A partir desse trabalho intensivo, acelerou-se enormemente a aprovação dosprojetos do Cédula, de tal maneira que mais da metade dos 223 projetoscontabilizados em janeiro de 1999 havia sido implementada no segundo semestrede 1998 (Buainain et al, 1999, p. 15). O significado e a intencionalidade políticado Cédula naquela conjuntura foram diagnosticados com precisão:

Essa concepção de acesso à terra, fruto de uma “negociação entre as partes, solidária e semconflitos” parece ser eficaz em atrair uma camada do público potencial da reforma agrária(...). Na atual conjuntura de mobilização, ao colocar nova opção de acesso à terra, o Cé-dula da Terra introduz uma disputa política e ideológica com outros movimentos sociaise seus mediadores (...), os quais detém, hoje, a iniciativa política neste campo e defendemo acesso à terra via instituto da desapropriação (Buainain et al., 1999, pp. 280-1).

Em outras palavras, a “demanda” pelo Cédula esteve diretamente ligada a umasituação de extrema pobreza, inexistência de oportunidades de trabalho, ação depolíticos locais e repressão às ocupações de terra. Naquelas condições socioeconômicase conjuntura política, era virtualmente o único meio de acesso à terra disponível oupossível para uma faixa considerável da população rural.

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Os objetivos oficiais do Cédula da Terra eram: a) reduzir a pobreza rural, pormeio do aumento da renda familiar; b) elevar o rendimento agrícola; c) testar omodelo de mercado como alternativa ao modelo “tradicional” de reforma agrária(Buainain et al., 1999). Na base de todo constructo estava a busca por um mode-lo de política fundiária mais barato, a fim de reduzir o gasto público para a áreasocial exigido pelo ajuste fiscal.

Tinha como público-meta trabalhadores sem-terra (assalariados, parceiros,arrendatários) e produtores rurais (proprietários ou não) com terra insuficientepara o auto-sustento. O acesso ao projeto só podia ser feito através de associaçõescomunitárias legalmente constituídas, preexistentes ou criadas para esse fim.

Com implementação esperada para quatro anos, o financiamento do Cédulateve quatro fontes, conforme a tabela 1. Os recursos do BIRD deveriam ser utili-zados para investimentos complementares, enquanto os recursos para a comprade terras viriam do governo federal.

Tabela 1 – Financiamento e desembolsos do Cédula da Terra (1997-2002)Fontes de financiamento Desembolso previsto (US$ milhões) Desembolso executado (US$ milhões)

Banco Mundial 90 68,5

Governo federal 45 45

Governos estaduais 6,6 1,9

Associações comunitárias 8,4 5,9

Total 150 121,3Fonte: Banco Mundial (1997b e 2003a).

Previsto para começar em maio, iniciou apenas em julho de 1997 e foi encer-rado em 31 de dezembro de 2002 (e não em junho de 2001, como era a propostaoriginal). Segundo o Banco (2003a), o projeto foi parcialmente paralisado no fi-nal de 1999 e parte de 2000 devido à falta de aporte de recursos pelo governofederal durante a crise financeira e às duas solicitações ao Painel de Inspeção.5

Com a desvalorização do Real pós-1999, houve uma redução do custo finaldo Cédula em moeda estrangeira. Os itens financiados pelo projeto são indicadosna tabela 2.

Tabela 2 – Itens financiados pelo Cédula da TerraItens financiados Gasto previsto (US$ milhões) Gasto efetivo (US$ milhões)

Compra de terras 45 45

Investimentos complementares 84,3 66,4

Assistência técnica e capacitação 3,9 2,6

Monitoramento, supervisão e administração 10,1 2,1

Avaliação e propaganda 6,7 5,2

Total 150 121,3Fonte: Banco Mundial (1997b e 2003a).

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Até 2000, os recursos para a compra de terras via Cédula vieram do orçamen-to do INCRA, constituindo uma evidente concorrência com a reforma agrária. Apartir de 2000, tais recursos passaram a ter como fonte o orçamento público doFundo de Terras/Banco da Terra.

Seguindo a mesma lógica do projeto Reforma Agrária Solidária, o Cédula foidividido em dois subcomponentes, um voltado para a aquisição de terra (SAT) eoutro para investimentos complementares (SIC). O SAT financiava a aquisiçãode imóveis rurais com prazo de amortização de 10 anos, sendo três anos de carên-cia e correção monetária pela Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP). Em 1999, ogoverno modificou as condições de financiamento do programa, ajustando-as àscondições então oferecidas pelo Banco da Terra (MEPF, 1999). O prazo de amor-tização foi estendido para 20 anos e foram estabelecidos juros fixos de 4% ao anomais correção monetária pelo Índice Geral de Preços da Fundação Getúlio Vargas.Em fevereiro de 2002, a taxa de juros foi elevada para 6% ao ano.

Em tese, a operação de compra de imóveis rurais deveria seguir como critériosprincipais: a) a procura por propriedades que apresentassem potencialidade paraexploração dos recursos naturais com baixo nível de investimento adicional; b) acompatibilidade do preço negociado com os parâmetros de mercado, levando emconta a localização, a fertilidade natural e o potencial econômico da terra; c) ocumprimento de todos requisitos legais que regem o registro e a transferência deimóveis rurais; d) apresentar boas condições de acesso, de fornecimento de água erazoável infra-estrutura; e) dispor de área suficiente, como regra geral igual ousuperior ao módulo mínimo de parcelamento da região (Buainain et al., 1999).

Já o SIC provia recursos a fundo perdido para investimentos comunitários apósa compra da terra em três áreas básicas: infra-estrutura (eletrificação, melhoramentode estradas, fornecimento de água, etc.), social (melhoria de escola ou posto desaúde, centro comunitário, etc.) e produtiva (irrigação, agroprocessamento empequena escala, tratores, etc.).

O limite de crédito para cada família era de US$ 11.200, incluídos os gastoscom a compra da terra, registro, medição, impostos e investimentos comunitários.Cada família podia receber US$ 1.300 a fundo perdido como ajuda para instala-ção. Havia um limite máximo de subsídio de US$ 6.900 por família, no qual es-tavam incluídos a ajuda de instalação, o subsídio de 50% embutido no créditofundiário e os demais subsídios sobre o valor do SIC.

A lógica desse esquema de financiamento era que quanto menor fosse o gastocom a compra da terra (considerada empréstimo, portanto reembolsável), maiorseria o volume de recursos para investimentos complementares (não-reembolsáveis).

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O financiamento era tomado em caráter solidário, de modo que as associaçõeseram responsáveis legais pelo pagamento das prestações. Amortizado o emprésti-mo, cada família receberia o título de propriedade correspondente.

Oficialmente, as associações comunitárias selecionariam o imóvel e negociariamo preço diretamente com o proprietário. Depois, apresentariam a proposta deaquisição do imóvel e a lista de subprojetos comunitários ao órgão responsávelpela gestão do Cédula. Este órgão analisaria a proposta quanto à elegibilidade dosbeneficiários e do imóvel (i.e., sua situação legal, as condições de transação e aadequação do preço negociado aos parâmetros de mercado), elaborando laudotécnico de avaliação do imóvel. Aprovada a proposta, o órgão orientaria a elabo-ração de projeto detalhado para aquisição de terras, emitindo parecer técnico. Osprojetos para investimentos comunitários (SIC) seriam elaborados por terceirosou instituições governamentais que participassem do Cédula.

Caso a proposta para aquisição da terra fosse recusada, o órgão orientaria aassociação a dar continuidade ao processo de negociação. Se fosse aprovada, o agentefinanceiro (no caso, o Banco do Nordeste) estava autorizado a contratar financia-mento com a associação e a efetuar o pagamento ao proprietário e aos prestadoresdos serviços de transferência de titularidade, bem como cobrar e receber os paga-mentos do financiamento de cada beneficiário. O agente financeiro também de-veria repassar diretamente às associações os recursos para investimentos comuni-tários.

Seguindo os parâmetros do modelo de reforma agrária de mercado, o Cédulateve gestão descentralizada, de tal maneira que em cada um dos cinco estadosconstituiu-se um arranjo institucional específico. A estrutura do BIRD montadapara executar os Programas de Combate à Pobreza Rural (PCPRs) foi extensa-mente utilizada (Steil, 2000). Os conselhos municipais – em geral, criados paragerir os PCPRs – também figuravam como instâncias de implementação e parti-cipação social no Cédula, embora coubesse às associações comunitárias o papelprincipal na gestão dos projetos.

O grau de cobertura espacial do Cédula foi amplo, exceto em Minas Gerais,onde se restringiu às regiões Noroeste, Norte e Nordeste, abrangendo cinqüentamunicípios. No Ceará e no Maranhão, praticamente todos os municípios foramcobertos, alcançando grande amplitude nos outros dois estados. De acordo comBuainain et al. (1999), a seleção dos municípios seguiu critérios como a existênciade conflitos agrários latentes ou explícitos, situação de pobreza mais acentuada,existência de sindicatos de trabalhadores rurais favoráveis ao projeto, capacidadeoperacional da unidade técnica e apoio de prefeituras e lideranças políticas locais.

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O Cédula foi implementado para atingir o maior número possível de municí-pios, sem qualquer ligação prévia com a política oficial de reforma agrária, nemtampouco com uma estratégia de desenvolvimento rural. O grau de coberturaalcançado explicita a intenção de espalhar ao máximo a incidência do projeto. Istoderruba o argumento de que o Cédula era uma iniciativa complementar às desa-propriações – cujo número, aliás, sofreu forte desaceleração em todos os estadosonde o Cédula foi implantado (Victor & Sauer, 2002) –, ainda mais se se tem emconta que, nesse período, podiam ser adquiridas pelo projeto áreas passíveis dedesapropriação.

A explicitação dos critérios que orientaram as agências estaduais na implanta-ção do Cédula sugere que houve a intencionalidade política de utilizá-lo comoinstrumento de concorrência com os movimentos sociais. Isso aconteceu na me-dida em que se priorizou áreas conflituosas e segmentos extremamente pobres (emum período de seca e de perdas agrícolas), tendo por base, ao que parece, arranjosclientelistas com agentes políticos locais.

Outra pesquisa financiada pelo BIRD6 mostra que a execução do Cédula nãofoi objeto de controle social, pois os conselhos ligados aos PCPRs tiveram, naprática, uma presença inexpressiva na gestão do projeto (Steil, 2000). Como regrageral, as propostas de compra das áreas e os subprojetos de investimentos comu-nitários foram apresentados diretamente aos órgãos gestores e às unidades técni-cas estaduais, esvaziando o papel dos conselhos municipais, único espaçoinstitucional previsto para algum tipo de participação social na gestão do Cédula.Em outras palavras, diferentemente do que prevê o modelo de reforma agrária demercado, não houve controle social algum sobre o projeto, integralmente mane-jado de uma maneira infensa à prestação de contas à sociedade.

Seguindo o modelo de reforma agrária de mercado, o Cédula da Terra ancora-se no princípio da transação voluntária entre compradores e vendedores interessa-dos. Nenhuma pesquisa chegou a traçar o perfil socioeconômico dos vendedores,mas os dados indicam que os imóveis rurais adquiridos estavam, na maioria doscasos, subutilizados ou abandonados, em razão da seca e da crise da pecuária e dasculturas tradicionais (algodão, cacau e cana de açúcar) (Buainain et al., 1999, p.31). Entre mal utilizadas e abandonadas foram consideradas 76% das proprieda-des na Bahia, 81,3 % no Ceará, 81,3 % no Maranhão, 91,7% em MG e 83,3%em Pernambuco (Id., 2003, p. 105).

Em relação ao tamanho, a área média dos imóveis adquiridos foi de 815,3hectares. Há poucos projetos acima de dois mil hectares, assim como são raros osprojetos com área muito reduzida (o menor tem 68 hectares). 31,86% dos proje-

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tos têm até quinhentos hectares e 71,7% dos projetos têm até mil hectares. Exis-tem apenas vinte projetos com área acima de mil e duzentos hectares (Id., 1999,p. 131). A avaliação preliminar não verificou se os imóveis adquiridos de maiortamanho eram ou não passíveis de desapropriação. Porém, a pesquisa realizadapor entidades que compõem o Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça noCampo7 (Victor & Sauer, 2002) detectou a ocorrência de compra de áreas passí-veis de desapropriação pelo Cédula em todos os estados.

Sobre o perfil dos compradores, de modo geral, trata-se de um segmento combaixíssimo grau de escolarização (37,7% eram analfabetos e 47,1% estudaram entrea 1ª e a 4ª séries) e muito pobre. A renda monetária anual total antes de entrar noCédula foi estimada em R$ 2.057 para uma família cujo tamanho médio era de 5,2membros (algo em torno de R$ 32,90 por pessoa por mês, inferior a um terço dosalário mínimo da época) (Buainain et al., 1999, p. 273). Estimou-se que a imensamaioria era formada de assalariados rurais e agricultores não-proprietários (parcei-ros, arrendatários), normalmente com ocupações complementares. A quase totali-dade dos beneficiários morava no local há muitos anos, sendo que um número sig-nificativo nasceu na própria região ou no entorno próximo, e aproximadamente 90%tinham como local de trabalho a zona rural (ibid, pp. 63-9 e 104).

Outra pesquisa encontrou um perfil socioeconômico dos “beneficiários” rela-tivamente parecido, reforçando a percepção de que a falta de alternativas foi umdos mais poderosos condicionantes da “demanda” pelo Cédula:

A maior parte dos entrevistados tinha condições anteriores instáveis de trabalho (...) emoradia (...), resultando em situações de extrema pobreza. Esta realidade está expressa,por exemplo, no nível educacional, pois quase todos os chefes de família são analfa-betos. (...) As dificuldades (...) [também] estavam presentes nas relações de trabalho.A esmagadora maioria era desempregada ou tinha situações de subempregos, exer-cendo atividades temporárias no meio rural (...) ou no urbano (...). Esse tipo de situa-ção (...) acaba transformando o Cédula em uma “tábua de salvação” (Victor & Sauer,2002, pp. 34-5 – grifos nossos).

A situação de pobreza e a falta de alternativas pressionaram para a entrada noCédula fazendo com que, de modo geral, os “beneficiários” aceitassem preços maiselevados. Conseqüentemente, aceitavam níveis superiores de endividamento paraterem acesso imediato à terra, introduzindo um elemento de tensão em toda aracionalidade do Cédula. Dois exemplos emblemáticos disso: 52% das associa-ções adquiriram a primeira propriedade ofertada sem procurar outra e, mais gra-

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ve, apenas 13,5% consideraram o preço do imóvel como um dado relevante nafase de negociação imobiliária (Buainain et al., 1999, p. 120).

Não é difícil perceber que o princípio da transação voluntária entre “compra-dores e vendedores interessados”, na verdade, põe de lado qualquer referência aocontexto existente, como se as relações mercantis operassem em um vazio socialonde predominaria a livre vontade de agentes econômicos orientados por umaracionalidade utilitária e maximizadora. Os diversos fatores de ordem socioeco-nômica, política e cultural que pressionaram a “demanda” pelo Cédula questio-nam essa situação ideal – típica do raciocínio neoclássico pelo qual os economis-tas do BIRD são conhecidos –, que não encontra correspondência na prosaicarealidade rural do Nordeste brasileiro. Pode-se afirmar, portanto, que a principalcategoria de sustentação do modelo de reforma agrária de mercado carece de con-sistência teórica e empírica. Seu uso só encontra inteligibilidade no âmbito dodiscurso político-ideológico de que procura legitimar o modelo de mercado comoalternativa à reforma agrária constitucional.

2.2. Assistência técnica e produção agrícolaAo contrário do que estabelece o modelo de mercado, a elaboração dos proje-

tos produtivos não se deu antes da compra dos imóveis rurais, mas sim depois,inclusive em função da pressa dos órgãos governamentais em implementar o Cé-dula. Também contribuiu para o atraso dos projetos produtivos a dificuldade dasassociações em obterem uma assistência técnica regular – cuja remuneração, ini-cialmente, não havida sido prevista pelo Cédula – que permitisse formular pro-postas adequadas (Buainain et al., 1999, p. 195). Portanto, a aquisição dos imó-veis acabou não sendo antecedida por qualquer avaliação técnica significativa arespeito das potencialidades agrícolas – e, eventualmente, não-agrícolas – do em-preendimento a ser desenvolvido.8

Tanto a avaliação preliminar como a pesquisa coordenada por Victor e Sauer re-gistraram atrasos sistemáticos na liberação dos recursos para investimentos comple-mentares (SIC), o que prejudicou bastante os beneficiários do Cédula. Porém, em ne-nhuma das duas pesquisas consta que atrasos semelhantes tenham ocorrido nopagamento àqueles que venderam propriedades. Não se pode afirmar, portanto, que oarranjo descentralizado tenha sido imune a falhas operacionais graves, como pretendefazer crer o discurso que associa a descentralização à eficácia administrativa.

Em relação à questão do desenvolvimento produtivo, a avaliação preliminarnão investigou a qualidade das terras compradas através do Cédula, razão pelaqual não oferece qualquer conclusão a respeito da sustentabilidade econômica dos

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projetos. Por outro lado, embora o Cédula tivesse menos de dois anos de existên-cia quando a pesquisa foi concluída, pôde-se constatar algumas evidências a res-peito da dificuldade econômica dos projetos.

Um dado relevante diz respeito à maneira como foram usados os recursos doSIC, em tese destinados a investimentos comunitários em infra-estrutura produ-tiva necessários à futura geração de renda. Na verdade, metade desses recursos foigasta com custeio diário das famílias (Buainain et al., 1999, pp. 196-8 e 290), oque evidencia, mais uma vez, a extrema pobreza dos “demandantes” e ressalta ocaráter emergencial e assistencialista que o Cédula assumiu.

Outro dado bastante significativo é que a metade das aquisições de terra tevevalores abaixo de 75% do valor médio do total dos contratos, o que permitiriaque sobrasse para a maioria das famílias um montante em torno de cinco mil reaispara investimentos comunitários (ibid, p. 138). Na prática, porém, esses recursosforam gastos de modo pulverizado em custeio e construção de infra-estrutura básica(como estradas, água, luz e moradia). O resultado é que tais recursos não foram“(...) suficientes para complementar/adaptar as benfeitorias existentes às novascondições de utilização da propriedade nem para estabelecer uma base produtivasólida a partir da qual os beneficiários poderão gerar renda suficiente para melho-rar de vida e pagar a dívida contraída” (ibid, p. 290). Segundo a avaliação prelimi-nar, a maioria dos projetos com menor número de famílias teria a necessidade decréditos complementares para assegurar a sua viabilidade, criando uma nova fon-te de endividamento e de diferenciação entre os projetos.

Outro problema identificado foi a precariedade dos serviços de assistência téc-nica oferecidos aos beneficiários. Além de desinformados sobre as condições ge-rais e o modo de funcionamento do Cédula, os técnicos restringiram a sua atua-ção a momentos pontuais, sem a necessária continuidade exigida a um trabalhodessa natureza. O problema foi assim resumido:

A desinformação sobre o Programa não se restringe aos associados. (...) Exceto osbancos – com regras próprias e relativamente inflexíveis diante das especificidades enecessidades dos produtores rurais mais pobres –, nos demais órgãos governamentais(...) é grande o desconhecimento das normas legais e dos possíveis desdobramentos.Face a algum impasse, os técnicos têm dificuldade para decidir qual o melhor enca-minhamento. Normalmente o conhecimento mais aprofundado fica sob a responsa-bilidade de uma só pessoa. O restante apenas “cumpre as tarefas”. Além do mais, sãopoucos os que conseguem perceber quem são os associados e qual o perfil das associa-ções. O contato entre técnicos e associados é restrito ao presidente e quando muito,

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à diretoria (...). Há um acompanhamento mais direto e intenso no momento da cria-ção das associações e da adesão ao Programa. A partir daí a presença dos técnicos éirregular e se restringe a questões pontuais (Buainain et al., 1999, p. 109).

A pesquisa coordenada por Victor e Sauer também detectou a debilidade, oequívoco e, em diversas situações, a completa inexistência de assistência técnicanos projetos do Cédula:

De uma maneira geral, na avaliação das pessoas entrevistadas, a assistência técnica(...) é ruim, precária e, via de regra, impositiva em relação ao tipo e a forma de orga-nização da produção. A precariedade dos serviços se traduz pela baixa freqüência epela falta de regularidade dos trabalhos dos técnicos nos projetos (...). Em vários pro-jetos, não há nenhum tipo de assistência técnica (como, por exemplo, no estado dePernambuco) e os técnicos dos órgãos responsáveis estiveram presentes apenas noprocesso inicial de implantação, deixando as famílias sem qualquer tipo de acompa-nhamento (Victor & Sauer, 2002, pp. 49-50).

Além de detectarem a má qualidade e a baixa freqüência do serviço prestado,Victor e Sauer constataram a ocorrência de práticas autoritárias por parte dos téc-nicos responsáveis pela implantação do Cédula, gerando uma série de problemase provocando a resistência das famílias. Verificaram, em especial, a imposição deáreas para produção comunitária com base na monocultura, colocando em segundoplano os lotes familiares, com o objetivo de produzir excedentes comercializáveisque viabilizassem o pagamento do empréstimo. Tal prática não só impunha umelemento estranho à cultura do trabalho familiar e camponês, como também re-produzia a lógica da monocultura.

Essa prática, segundo os pesquisadores, recriou a remuneração em diárias den-tro dos próprios projetos, na tentativa de garantir o fluxo de mão-de-obra necessá-rio para tocar a produção comunitária. Ou seja, em vez de contribuir para superaressa forma de exploração do trabalho, a implementação do Cédula estava exigindoa sua recriação dentro dos projetos financiados, transformando os beneficiários em“empregados” de associações criadas, em tese, para representar os seus interesses.

Além dos problemas anteriores, a assistência técnica prevista no Cédula da Terrapadecia de dois problemas estruturais (Victor & Sauer, 2002). Em primeiro lu-gar, esse tipo de serviço era privatizado e pago com recursos do SIC, financiadopelo BIRD. Na prática, essa situação subordinava o gasto com a assistência técni-ca à administração daquela verba, suscetível a cortes ou remanejamentos de últi-

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ma hora. Em segundo lugar, a prestação desse serviço tinha previsão de um ano,renovável por mais um dependendo da disponibilidade de recursos. É um tempoinsuficiente para capacitar as famílias, inclusive devido, na grande maioria dos casos,à baixa periodicidade e à péssima qualidade com que o serviço era realizado.

Considerando a “excelência” da assistência técnica prestada, não surpreendeque Victor e Sauer (2002, pp. 40-4) tenham encontrado um quadro de grandedificuldade para a produção agrícola. A infra-estrutura social – fornecimento deenergia elétrica e água, estradas e vias de acesso, escolas e postos de saúde – foiavaliada como bastante precária na maioria dos projetos visitados, embora muitosdeles já tivessem, à época da pesquisa de campo, mais de três anos de existência.Ainda que muitos projetos estivessem no período de carência, constatou-se eleva-do grau de desistência e saída de famílias: em média, superior a 50% nos projetospesquisados. Também a necessidade de assalariamento precário (venda ou aluguelde dias de serviço) não havia sido superada, na medida em que a maioria dos en-trevistados relatou que, em virtude das dificuldades de produção e comercialização,a venda da mão-de-obra permanecia um imperativo.

A produção agrícola foi considerada de subsistência na maioria dos projetos.Apenas dois (entre os dezesseis projetos pesquisados) indicaram a existência de pro-dução de excedentes comercializáveis. Ao contrário do que advoga o discurso emfavor do Cédula, tal situação não possibilitava a uma inserção mercantil efetiva:

As famílias entrevistadas revelaram várias estratégias de sobrevivência como, por exem-plo, a venda de dias de serviço e a obtenção de empregos fora dos projetos (trabalhosdomésticos, comércio, etc.), cultivo de outras áreas (parceria, arrendamento, etc.). Acriação de animais e o comércio de alguma produção também se traduzem em op-ções para o sustento familiar. A estratégia mais utilizada para obter renda, no entan-to, é a venda de dias (trabalho assalariado temporário), executando tarefas diversasnas fazendas da região (Victor & Sauer, 2002, p. 54).

As terras compradas por meio do Cédula eram de baixa qualidade e estavamconcentradas em regiões menos dinâmicas e mais empobrecidas, o que repre-sentou mais um fator de dificuldade ao desenvolvimento produtivo dos proje-tos. Na opinião dos autores, isso faria parte da própria lógica do Cédula, umavez que “o limite de recursos para a aquisição das áreas, em geral, leva a implan-tação dos projetos em regiões menos dinâmicas, comprando terras menos valo-rizadas; portanto, fracas e com sérias limitações de produção” (Victor & Sauer,2002, pp. 55-6).

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Isso remete a um problema insolúvel de projetos como o Cédula: se com-pram imóveis baratos, cai a qualidade da terra e das benfeitorias e a quantianecessária para a construção de infra-estrutura e investimentos produtivos temde aumentar; se adquirem imóveis mais caros, o empréstimo se eleva acima dacapacidade de endividamento das famílias, gerando um quadro de inadimplênciageneralizada.

A mesma pesquisa também compilou diversos indícios e denúncias de desviode finalidade, favorecimento e corrupção em inúmeros projetos do Cédula, comoa elaboração de laudos técnicos fraudulentos, o superfaturamento de imóveis ru-rais, a compra de várias áreas de uma mesma empresa ou proprietário, a aquisiçãode imóveis localizados em regiões de Mata Atlântica, a imposição de procedimen-tos por políticos locais, o conluio entre prefeituras e proprietários de terras vendi-das e a compra de áreas passíveis de desapropriação.

A leitura desse material, por si só, é suficiente para situar em outro patamar odebate sobre a implantação do Cédula da Terra. Mais uma vez, o “empírico” des-velou a falácia do discurso do BIRD sobre a “transparência” e a “responsabilizaçãosocial” supostamente inerentes ao seu modelo de mercado.

2.3. Evasão, investimentos e projeções de rendaApós a conclusão da pesquisa promovida por entidades que compõem o Fórum

de Reforma Agrária, o BIRD financiou mais dois relatórios de avaliação do Cé-dula, com o objetivo de traçar o perfil socioeconômico dos beneficiários (Buainainet al., 2002) e avaliar o impacto socioeconômico do projeto (Buainain et al., 2003).9

Mais uma vez, há indicações que desautorizam o discurso sobre o suposto êxitodo projeto-piloto.

No biênio 2000-2001, por exemplo, houve alta evasão em todos os estados –processo que já havia sido notado por Victor e Sauer (2002) – e substituição de“beneficiários” em 2002. De acordo com Buainain et al. (2003, pp. 17-9), trêsrazões explicariam essa descontinuidade na trajetória do projeto. A primeira seriao “desalento das famílias” provocado pela paralisação parcial do Cédula, final de1999 e parte de 2000, devido à falta de aporte de recursos pelo governo brasileiro,como também ao relativo abandono de muitos projetos pelas instituições estaduaisresponsáveis pela sua implantação e acompanhamento – curiosamente, após oprocesso eleitoral. A segunda seria a sucessão de erros de seleção praticados pelosórgãos governamentais em 1998, que haviam priorizado famílias mais pobres atin-gidas pela seca. A terceira razão remeteria às discordâncias entre “beneficiários”,ou entre eles e as associações. Segundo a pesquisa, tais divergências seriam resul-

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tado do “caráter artificial de muitas das associações criadas em 1998 para poderparticipar do programa” (Buainain et al., 2003, p. 18).

Os dados sobre a saída de famílias podem ser conferidos na tabela abaixo.Embora afirme que o grau de evasão foi elevado, não há informações sobre quantasfamílias saíram e foram substituídas, o que permitiria avaliar com maior precisãoa intensidade da evasão.

Tabela 3. Saída e substituição de famílias de projetos do Cédula da Terra – biênio 2000-2001Nº de famílias Projetos

Estado Início do projeto Em 2003 Saíram e não % Nº total Visitados Apresentaram %

foram substituídas saída de famílias

Maranhão 622 552 70 11,2 50 19 6 31,5

Ceará 607 501 106 17,4 92 33 27 81,8

Pernambuco 703 675 28 3,9 20 19 18 94,7

Bahia 1241 1161 80 6,4 41 25 8 32,0

Minas Gerais 508 472 36 7,0 17 12 6 50,0Elaboração: Buainain et al., 2003, p. 19.

Outro dado relevante é que mais da metade dos projetos foi criada a partir dejaneiro de 2002 (Buainain et al., 2003, p. 13), indicando uma aceleração na im-plantação do Cédula semelhante àquela observada no segundo semestre de 1998.Houve, portanto, dois momentos em que os órgãos técnicos imprimiram veloci-dade ao processo: ambos períodos de disputa eleitoral para a presidência da repú-blica, governos estaduais e legislativos federal e estaduais. Até 1999, o maior rit-mo de expansão do Cédula ocorreu no Ceará e, a partir de então, em Pernambucoe no Maranhão.

Nessa segunda fase de maior aceleração, já estava em curso a expansão dosprojetos para áreas novas, iniciada a partir de 1999, elevando o grau de capilarizaçãodo Cédula. Assim, tornou-se “muito pequena a proporção de microrregiões emcada estado que não tem assentamentos do Cédula da Terra” (Buainain et al., 2002,p. 87).

O fato de ter havido um aumento do grau de cobertura e capilarização dosprojetos não invalida o argumento de que o Cédula se concentrou nas áreas maispobres e sem infra-estrutura dos estados. Ao que tudo indica, justamente por te-rem se concentrado em áreas pobres e inadequadas em um primeiro momento –o que ganha densidade com a informação de que houve um intenso processo deevasão das famílias –, os projetos foram posteriormente expandidos para áreasnovas.10 Além disso, mesmo que alguns projetos tenham sido estabelecidos emregiões mais dinâmicas, não significa que as áreas compradas sejam de boa quali-dade em termos de solo, benfeitorias, infra-estrutura, etc.

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Os órgãos responsáveis pela implantação do Cédula da Terra fizeram um ajus-te no programa após 1999, reduzindo de trinta para vinte e dois o número “ideal”de famílias por projeto, com o objetivo de expandi-lo para o maior número pos-sível de microrregiões (Buainain et al., 2002, p. 94). Isso reduziu o volume derecursos disponíveis para investimentos complementares, contrariando a filosofiado projeto e tornando as famílias fortemente dependentes de recursos públicosextraordinários.

Em relação à renda anual auferida, Buainain et al. (2003, pp. 63-8) avaliaramuma amostra de 313 beneficiários entre agosto de 2002 e julho de 2003, chegan-do a uma renda bruta média de aproximadamente R$ 5.777,05, o que dava umarenda mensal por família de R$ 483,64, equivalente a 2,1 salários-mínimos de R$240,00 (valor vigente de maio de 2003 a maio de 2004). Quando essa amostra foidistribuída por estratos, percebeu-se que: a) 25% das famílias continuavamauferindo renda bruta mensal equivalente a um salário-mínimo; b) outros 25%das famílias obtinham renda bruta mensal de 1 a 1,4 salários; c) o restante dasfamílias teve renda superior a 1,4 salários mensais, variando entre a larga faixa deR$ 4.253,00 a R$ 19.894,00 por ano. Tudo indicava que um pequeno grupo debeneficiários (cerca de 10%) obteve renda bem superior aos demais, de modo quea média geral de renda por família foi puxada para cima. Já a renda monetáriamédia atual das famílias foi calculada em R$ 3.947,00 por ano, ou 1,37 salários-mínimos mensais (pouco acima da linha de pobreza, fixada em R$ 70,00 por pessoaao mês).

Quanto à composição da renda, o relatório (Buainain et al., 2003, p. 177)indicou que o peso da renda não-monetária permanecia elevado, correspondendoa aproximadamente 32% da renda bruta total e equivalente a 46% da renda mo-netária. Por outro lado, assinalou que o peso da atividade agropecuária na com-posição da renda havia aumentado significativamente, diminuindo a importân-cia relativa do assalariamento temporário, embora persistisse a dependência emrelação a renda proveniente de aposentadorias e pensões. Se os resultados indica-vam uma elevação da renda em relação à situação anterior à entrada no programa,o quadro apresentado estava longe dos prognósticos de excelência tecidos sobre oCédula:

Os assentamentos visitados, implementados entre 1997 e 1999, têm hoje entre 4 e 6anos. As famílias (...) conseguem hoje em geral retirar da produção agropecuária umarenda superior à que tinham antes do projeto, mas que nem sempre é suficiente parasua subsistência. Muitos assentados complementam sua renda agropecuária com a

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venda de sua força de trabalho e com diversas transferências governamentais (...).Alguns assentamentos visitados encontravam-se em situação muito difícil, com pou-cas famílias estabelecidas e com níveis de renda agropecuária baixíssimos (Buainainet al., 2003, p. 172).

A precariedade do serviço de assistência técnica e do acesso ao crédito foiidentificada como principal fator de restrição ao desenvolvimento produtivo dosprojetos (ibid, p. 151). Em relação à prestação de assistência técnica durante oano 2002-2003, 65,8% dos entrevistados declararam nunca, ou apenas espora-dicamente, ter recebido esse tipo de serviço. Somente 22% declararam que oserviço havia sido prestado mensalmente (ibid, p. 135). Não consta, porém,qualquer indicação sobre a avaliação dos entrevistados sobre a qualidade do ser-viço prestado.

Constatou-se novamente que os recursos do SIC haviam sido aplicados basi-camente em infra-estrutura (construção de casas, rede elétrica e abastecimento deágua), esgotando a quantia a fundo perdido sem que fosse coberto o pacote míni-mo de investimentos produtivos (ibid, pp. 100-1 e 150). Tais recursos não foramapenas insuficientes, mas também mal aplicados, em grande medida por causa da“falta de controle social existente nas associações sobre a atuação de sua diretoriae a falta de compromisso das unidades gestoras (...). Nos assentamentos que estãoem situação mais grave (alguns não têm nem casas construídas), esse fator estásempre presente e chega a inviabilizar o desenvolvimento do assentamento” (ibid,p. 174).

Como os recursos do SIC não se traduziram em investimentos produtivos, oacesso ao PRONAF acabou assumindo uma importância vital para os projetos doCédula. Porém, o acesso a essa linha de crédito se mostrou extremamente difícil e,em alguns casos, a demora na liberação dos recursos tendia a prolongar uma situaçãode precariedade que, provavelmente, segundo o relatório, inviabilizaria o paga-mento das dívidas e estimularia a evasão (ibid, pp. 174-5).

Quanto ao perfil da produção agropecuária, identificou-se uma melhora emrelação à situação anterior. Todavia, isto não quer dizer muito, pois, de acordocom a mesma fonte, “em todos os estados a maioria dos imóveis adquiridos en-contravam-se abandonados ou eram pouco utilizados pelos proprietários anterio-res” (ibid, p. 105).

De modo geral, o padrão produtivo implementado permanecia concentradona produção vegetal (basicamente de lavouras temporárias), com um baixíssimograu de incorporação tecnológica, e realizado de modo individual, contrariando

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as expectativas iniciais de que a pauta de produção agrícola mudaria, a dimensãoassociativa ganharia impulso e o nível tecnológico sofreria um salto de qualidade(ibid, p. 104). Segundo o relatório, o desenvolvimento produtivo da grande maioriados projetos sofria fortes restrições:

Os dados da produção, se por um lado são consistentes e indicam uma variedade deprodutos e diferentes estratégias produtivas, por outro apontam para as sérias dificul-dades enfrentadas pela grande maioria dos beneficiários, que mais uma vez sofrem deuma combinação difícil de limitações de recursos – de acesso a serviços públicos e aocapital e, principalmente, pela falta de apoio técnico para a implantação de projetos(ibid, p. 138).

As dificuldades encontradas na aplicação dos recursos destinados à infra-es-trutura produtiva, a falta de acesso à assistência técnica e outros problemas mos-tram que, em 2002 – ano em que o Cédula foi concluído –, parte significativa dos“beneficiários” enfrentava dificuldades sérias para gerar renda suficiente nas terrasadquiridas, seja para efetivamente melhorar a sua condição de vida, seja paraamortizar as prestações da dívida contraída.

2.4. Capacidade e possibilidade de pagamento da dívidaRealizada ainda no período de carência de muitos projetos, a pesquisa coorde-

nada por Victor e Sauer não conseguiu obter informações oficiais sobre o paga-mento da dívida imobiliária. Porém, pôde constatar que a esmagadora maioriaantecipava uma situação de inadimplência:

Apesar das particularidades encontradas em cada projeto pesquisado, perguntadassobre as condições financeiras, as pessoas entrevistadas foram praticamente unâni-mes em afirmar que não há condições para efetuar o pagamento da primeira parcelado financiamento (...). Mais significativo, no entanto, é o fato de que as pessoas quedizem ter condições de pagar só poderão fazê-lo mediante um processo dedescapitalização. Literalmente, as pessoas terão que se desfazer de seus pertences (al-guns adquiridos antes da entrada no projeto) para pagar a primeira prestação (2002,p. 63).

Durante o trabalho de campo, o governo baiano abriu um processo de“repactuação” de contratos vencidos ou próximos do vencimento, de modo que opagamento das prestações nos dois primeiros anos pudesse ser efetuado de manei-

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ra pouco mais suave. É seguro supor que a ação do governo estadual tenha sidomotivada pela inadimplência iminente dos mutuários.

Com base no trabalho de campo realizado em 2001, a pesquisa concluiu quea grande maioria dos mutuários estava enfrentando – ou enfrentaria em breve,quando terminasse o prazo de carência – dificuldades sérias para quitar o financia-mento:

De uma maneira geral, os projetos não possuem viabilidade econômica em conseqüên-cia de uma série de fatores como, por exemplo, a compra de terras fracas, regiõesáridas (falta de água ou necessidade de altos investimentos para obter água), falta deassistência técnica, falta de recursos para investimento, distantes de mercados consu-midores, etc. Estes fatores inviabilizam completamente a sustentabilidade dos proje-tos, tornando os empréstimos impagáveis (ibid, p. 67).

Embora seja o relatório final da consultoria externa financiada pelo BIRD emuitos projetos já tivessem mais de quatro anos de existência quando a pesquisade campo foi realizada (agosto de 2002 a julho de 2003), o trabalho de Buainainet al., (2003) também não traz informações sobre o pagamento da dívida contraí-da com a compra da terra. Há apenas projeções sobre a evolução da rendaagropecuária familiar anual nos seis principais sistemas agrícolas desenvolvidos nosprojetos.

Assim, nas lavouras de subsistência e cultivo de babaçu do centro maranhense,a pesquisa estimou que a renda gerada estivesse em R$ 4.300,00 por família, quan-tia pouco superior à linha de pobreza, o que, na visão dos pesquisadores, seria suficien-te para permitir o pagamento do empréstimo. Na modelização feita, a renda familiaranual gerada por esse sistema de produção poderia chegar a R$ 7.400,00. Porém,essa evolução dependia da superação das restrições mais gerais de crédito e assistên-cia técnica, como também das precárias condições da infra-estrutura viária que dãoacesso aos centros consumidores. Tais restrições obstaculizavam o acesso aos merca-dos regionais e reforçavam o caráter de subsistência dos projetos (ibid, p. 157).

No Norte do Ceará, os sistemas produtivos principais estavam baseados naprodução de caju e na criação de bovinos e ovinos. Constatou-se que as áreas plan-tadas com caju eram velhas, de sorte que a renda gerada por família era muitobaixa, estimada em três mil reais, abaixo da linha de pobreza. Sem capacidade deinvestimento, o aumento da renda dependia, necessariamente, de investimentosna criação de animais e na melhoria do cajueiral, os quais só poderiam ser realiza-dos pelo acesso ao Pronaf-A (ibid, p. 159). Segundo este relatório, se a situação

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não se modificasse rapidamente, o pagamento da dívida seria impraticável. Mes-mo na hipótese de elevação da renda por meio do acesso ao crédito suplementar,o pagamento das prestações exigiria forte descapitalização.

No sistema de cultivo baseado no binômio inhame-batata do Agrestepernambucano, a renda familiar foi estimada em R$ 8.300,00 ao ano, devido auma situação excepcional de acesso a grandes mercados consumidores (Recife, emespecial) e boas condições climáticas. De acordo com as projeções, a renda pode-ria chegar a R$ 14.700,00, mesmo com o pagamento da dívida. O problema des-se sistema agrícola, segundo o relatório, era a forte dependência da cultura doinhame, que respondia praticamente pela totalidade da renda obtida (ibid, p. 163).

À época da pesquisa, a renda obtida pelo sistema centrado no cultivo da laran-ja e do coco no litoral Norte da Bahia foi estimada em três mil reais por família aoano, abaixo da linha de pobreza. Porém, as projeções indicavam que a renda anualpor família poderia chegar a onze mil reais, graças à proximidade com o pólo defruticultura de Sergipe. No entanto, o problema da dependência frente a uma sócultura (no caso, a laranja) também se repetia nessa região (ibid, pp. 164-5), com-prometendo a sustentabilidade econômica das famílias.

Os sistemas baseados no café e no cacau na região Sul da Bahia também forammodelizados. No caso dos projetos que estavam produzindo café e cacau, a rendafamiliar foi calculada em quatro mil reais por ano, pouco acima da linha de po-breza, ao passo que os projetos que ainda não produziam cacau teriam renda dedois mil e quinhentos reais por ano. A renda projetada em ambos os casos ficouacima do nível de pobreza, o que permitiria alguma capacidade de investimento,mas a possibilidade ou não de pagamento da dívida não foi discutida. Já nas áreasque não produziam cacau, a situação era bastante precária, com baixa produtivi-dade e renda insuficiente (ibid, p. 169).

Por fim, os sistemas de subsistência e criação animal do Semi-Árido encontra-vam-se em situação crítica, a julgar pela leitura do relatório. Os projetos dependiamnecessariamente do Pronaf para fazer investimentos, de modo que a dívida com acompra da terra se somaria à dívida com o crédito. De acordo com as estimativas,“nos anos regulares, fica difícil pagar as dívidas [Cédula e Pronaf ]; nos anos ruins,a renda agropecuária é claramente insuficiente” (ibid, p. 170).

Apesar deste interessante exercício de projeção sobre possíveis rendas, não háqualquer dado real sobre o pagamento das prestações do financiamento. Ao queparece, a informação mais clara a esse respeito divulgada até hoje – quase quatroanos após o fim do Cédula – consta do relatório final do BIRD, conforme a tabe-la abaixo.

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Tabela 4. Pagamento das primeiras prestações do Cédula da Terra no final de 2002Estado Nº de associações Nº de associações que efetuaram pagamento % das associações que efetuaram pagamento

Maranhão 51 42 82,3

Ceará 131 119 90,8

Pernambuco 19 10 52,6

Bahia 42 32 76,1

Minas Gerais Nada consta Nada consta Nada consta

TOTAL 243 203 83,5Fonte: Banco Mundial (2003a, p. 16).

Infelizmente, além de pouco transparentes, os dados apresentados pelo BIRDcarecem da devida análise qualitativa e são incompletos. Primeiro, a julgar peladata dos primeiros pagamentos, os contratos mais antigos do Cédula tiveram pra-zo de carência prolongado, pois, do contrário, as prestações teriam vencido nofinal de 2000. Segundo, ao final de 2003, constavam 609 associações, mais doque o dobro das associações consideradas em dívida pelo BIRD.

Se não houve clareza dos gestores públicos sobre o pagamento das prestaçõesdo Cédula, menos ainda houve em relação ao Banco da Terra. Todavia, umindicativo da “existência de um quadro de irregularidades e desestruturação demuitos projetos” (MDA, 2004, p. 1) foi a elaboração de um plano de “recupera-ção e regularização dos projetos financiados pelo Fundo de Terra”, regulamentadoem 2006 (MDA, 2004). Reconhecendo uma série de problemas e fragilidades dos“programas de crédito fundiário” devido às “condições de financiamento e itensfinanciados” (ibid, p. 1), o objetivo deste documento é retirar os projetos financia-dos pelo Banco da Terra e Cédula “da situação de passivo” (ibid, p. 1).

A resolução correspondente a este plano não trata diretamente, mas pressu-põe o “reescalonamento de dívida” sob responsabilidade das associações e coope-rativas (MDA, 2006, art. 25), abrindo a possibilidade de individualização nos casosem que essas entidades “não conseguirem arcar com a dívida decorrente do finan-ciamento” (ibid, art. 33). Não resta dúvida de que a publicação desta resoluçãofoi motivada pela existência de problemas sérios de sustentabilidade dos projetos.

3. A “reforma agrária de mercado” no governo Lula (2003-2006)

Inevitavelmente, o governo Lula precisaria se manifestar sobre a “reforma agráriade mercado” deixada como legado pelo governo FHC. Das quatro experiências,as duas primeiras (projeto Reforma Agrária Solidária e Cédula da Terra) haviamsido encerradas em 1998 e em 2002, respectivamente. Porém, as outras duas (Bancoda Terra e Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural) demandavam uma

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posição concreta do governo, por duas razões fundamentais: em primeiro lugar,porque o Banco da Terra não era apenas um programa, mas um fundo de financia-mento à compra de terras criado pelo Congresso Nacional, razão pela qual cons-titui um instrumento de caráter permanente, estatal. Em segundo lugar, o Crédi-to Fundiário de Combate à Pobreza Rural tinha sido criado a partir de um acordode empréstimo com o BIRD, mal havia começado a ser implementado e fazia parteda “cota” da CONTAG no governo Lula.

Diante disto, existiam três opções para o novo governo: a) limitar-se a lidarcom o “passivo”, sem aportar novos recursos para a expansão do modelo de mer-cado; b) continuar a implementação do modelo, de forma limitada; c) radicalizara expansão do modelo, tal como seu antecessor, em detrimento da política de re-forma agrária.

A solução foi um híbrido das três opções: passou a lidar com o passivo existente,mas ampliou a implementação do modelo em um patamar superior àquele realiza-do pelo governo FHC. Ao mesmo tempo, comprometeu-se publicamente que aprioridade seria a política de reforma agrária, por meio das desapropriações. Essaestranha combinação aparece nas metas do Plano Nacional de Reforma Agrária(PNRA): financiar a compra de terra por parte de 130 mil famílias em quatro anos,enquanto a reforma agrária deveria abarcar 400 mil famílias (MDA, 2003). Em ter-mos absolutos, os programas de financiamento à compra de terras representam bemmais do que o governo anterior conseguiu pôr em prática. Em termos relativos, re-presentam mais de 30% da meta da “reforma agrária”, o que compromete o discur-so oficial sobre o seu caráter “complementar”. Em outras palavras, sem criminalizara luta por terra e contando com o apoio de todos os movimentos sociais agrários eentidades sindicais de representação de trabalhadores rurais, o governo Lula conse-guiu operar uma espécie de “acomodação” entre a reforma agrária constitucional eos programas de financiamento para a compra de terras propostos pelo BIRD.

Concretamente, o novo governo agiu da seguinte maneira: a) manteve o pro-grama Banco da Terra, com um novo nome (Consolidação da Agricultura Familiar)e com algumas reformulações; b) implementou, de fato, o projeto CréditoFundiário de Combate à Pobreza Rural; c) criou uma linha de financiamento parajovens agricultores comprarem terra; d) reformulou o Fundo de Terras, a fim defortalecê-lo como instrumento de longo prazo para financiamento de compra deterras; e) criou o Programa Nacional de Crédito Fundiário, responsável pela ges-tão do Fundo de Terras e de todos os programas e projetos nessa área.

A primeira destas ações diz respeito à forma pela qual o governo Lula lidoucom o Banco da Terra. No início de 2003, o Ministério do Desenvolvimento

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Agrário (MDA) realizou uma auditoria interna nesse programa, como uma res-posta aos inúmeros indícios de irregularidades e aos questionamentos dos movi-mentos sociais. Embora os resultados da auditoria não tenham sido abertos à con-sulta pública, o MDA anunciou a sua suspensão, alegando a existência de problemassérios em sua gestão.11 Divulgou-se que o programa havia financiado 34.759 fa-mílias, em 18.294 operações, totalizando 2.537.621 hectares, ao custo de R$744.216.746 (MDA, 2004, p. 1).

Corroborando as denúncias feitas pelo Fórum de Reforma Agrária, o MDAassinalou que os mecanismos de gestão do Banco da Terra, sob o governo FHC,eram “frágeis” e haviam permitido “o surgimento de uma série de irregularidades,entre as quais, por exemplo, o financiamento da compra de áreas de proteçãoambiental ou de terras com títulos de propriedade duvidosos, que não podem serexploradas pelos beneficiários” (MDA, 2005, p. 2). Naquele momento, segundoo MDA, havia “mais de 82 sindicâncias ou processos administrativos abertos, alémde várias irregularidades em exame nas instâncias de controle interno e externodo governo (CGU/SFC e TCU)” (ibid). Sem surpresa, mas sem maiores detalhes,afirmou que o programa tinha levado vários empreendimentos financiados ao“sobre-endividamento” (ibid).

Apesar das irregularidades, o MDA não abriu os dados relativos ao Banco daTerra à consulta pública, tão criticado durante o governo FHC pelo Partido dosTrabalhadores (PT) e por todas as entidades que compõem o Fórum. A falta detransparência do MDA em relação à gestão e aos resultados do programa encon-tra uma explicação: o fato de o governo Lula ter mantido o programa, apenasmudando o seu nome para “Consolidação da Agricultura Familiar” (MDA, 2005a).Foram feitas algumas reformulações nos itens financiáveis e nas condições de fi-nanciamento oferecidas, aumentando um pouco o subsídio embutido no crédito(BACEN, 2003). A lógica, porém, é basicamente a mesma: financiar a compra de“ativos fundiários” por trabalhadores rurais sem-terra e pequenos agricultores,preferencialmente nos estados que não foram incluídos no empréstimo do BIRDpara o Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural (MDA, 2005a, p. 4). Adiferença básica – nada desprezível – em relação ao governo FHC é que o Bancoda Terra deixou de figurar como o instrumento preferencial de política agrária.

A fim de implantar o programa “Consolidação da Agricultura Familiar” no maiornúmero possível de estados, o MDA passou a firmar termos de cooperação comgovernos estaduais a partir do final de 2003 (MDA, 2005a, p. 8). Por enquanto, suafonte de financiamento é exclusivamente nacional, ou seja, recursos orçamentáriosdo Fundo de Terras, sem o aporte de recursos do BIRD (MDA, 2004a).

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A segunda ação do governo Lula foi em relação ao Crédito Fundiário de Com-bate à Pobreza Rural, apoiado pela CONTAG. Criado a partir de um emprésti-mo do BIRD autorizado em 2001, este novo projeto deu seqüência ao Cédulada Terra, mas com a participação dos sindicatos e a proibição de compra de áre-as passíveis de desapropriação (embora “exceções” sejam admitidas). Começoua operar de maneira tímida em 2002 e, no ano seguinte, ficou meio à deriva emfunção da mudança de governo e das disputas políticas pela composição doMDA. De fato, iniciou apenas a partir de 2004, razão pela qual sua conclusãofoi adiada para 2006 (MDA, 2005, p. 4). Com essa prorrogação, sua implanta-ção e desempenho inicial devem ser creditados inteiramente ao governo Lula. Adiretoria do BIRD já aprovou mais duas outras fases, as quais, se executadas,prolongariam o projeto até 2012, financiando a compra de terras por cerca de190 mil famílias (MDA, 2003, p. 15). Renomeado de “Combate à PobrezaRural”, abrange quatorze estados, mas pode ser estendido para outros, caso te-nha continuidade.

A terceira ação do governo Lula foi a criação de uma linha de financiamentopara compra de terra dirigida a jovens agricultores. Chamada “Nossa PrimeiraTerra”, tem como público-alvo a população rural pobre entre 18 e 24 anos dostrês estados da região Sul. Conta com o apoio das federações sindicais de traba-lhadores rurais ligados à CONTAG e à CUT.

Em quarto lugar houve a reestruturação do Fundo de Terras/Banco da Ter-ra. Sob uma nova regulamentação,12 foi oficializado como a fonte financiadorade todos os programas de “crédito fundiário” em curso, viabilizando acontrapartida nacional aos empréstimos do BIRD. Na lógica do atual governo,o Fundo deveria ser reorganizado para ter sustentabilidade financeira suficientepara operar durante um longo período: as projeções iniciais estimavam trintaanos de ação ininterrupta. Nesse esquema, até 2010 o Fundo receberia anual-mente cerca de R$ 330 milhões do Tesouro Nacional e, a partir de 2012, jácapitalizado pela aplicação no mercado financeiro e pelo pagamento das presta-ções dos mutuários, poderia devolver ao Tesouro Nacional parte dos recursosaportados (MDA, 2003). Desse modo, poderia funcionar como uma grandeimobiliária pública subsidiada. A existência desse instrumento mostra que osprogramas governamentais de financiamento à compra de terras rurais por agen-tes privados passaram a assumir a lógica e o status de política de Estado, comum caráter permanente.

Em quinto lugar, o governo Lula criou o Programa Nacional de CréditoFundiário (PNCF). Na prática, esse programa apenas unifica a gestão das três

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linhas de financiamento citadas e do Fundo de Terras por um único órgão: aSecretaria de Reordenamento Agrário (SRA) do MDA, hegemonizada pelaCONTAG.

Infelizmente, o MDA não tem disponibilizado informações claras e atualizadassobre a execução do PNCF. Entretanto, há sinais de que o mesmo tem ficado muitoabaixo das expectativas do governo federal e do Banco Mundial. No exercício de2003-2004, previu-se o financiamento de 37.500 famílias pelas três linhas doPNCF, distribuídas da seguinte maneira: 12.800 famílias pela linha “Combate àPobreza Rural”, 8 mil jovens pela “Nossa Primeira Terra” e 16.700 famílias pela“Consolidação da Agricultura Familiar” (MDA, 2003).

Segundo dados oficiais, nesse período foram financiadas apenas 15.707 famí-lias, ou seja, menos de 42% da meta prevista. Desse total, 10.880 famílias foramfinanciadas pelo “Combate à Pobreza Rural” e 4.905 pela linha “Consolidação daAgricultura Familiar” (MDA, 2005). É importante observar que o índice maisalto de execução – algo em torno de 85% da meta do projeto, ou quase 70% dototal dos financiamentos concedidos no período – ocorreu justamente na linhaque recebe recursos do BIRD.

Este fato – que se repete desde o governo FHC – revela que o simples aportede recursos externos estimula a execução desse tipo de programa, em detrimentode outras modalidades de ação fundiária. Por outro lado, coloca em xeque a ver-são oficial de que os recursos aportados pelo BIRD destinam-se, única e exclusi-vamente, ao financiamento de infra-estrutura nos projetos implantados, pois oprimeiro item pago é a terra.

Também não procede o discurso que o PNCF não concorre com os recursospúblicos destinados aos programas agrários constitucionais. É verdade que a suafonte financeira nacional (o Fundo de Terras) constitui uma fonte distinta dosrecursos destinados ao INCRA, mas também são recursos públicos advindos doOrçamento Geral da União. Em segundo lugar, as famílias financiadas têm acessoa outros programas, concorrendo com os parcos recursos destinados ao apoio aosbeneficiários da “reforma agrária” (MDA, 2004, p. 9).

Por fim, vale registrar que, no último ano do governo Lula, foi criado o proje-to “Terra Negra”, que financia a compra de terra para negros não quilombolas, deacordo com uma das três linhas de financiamento que compõem o PNCF. Essa“novidade” mostra o ímpeto em estender para diferentes grupos sociais esquemasde compra e venda entre agentes privados financiados pelo Estado, em detrimen-to de políticas redistributivas de caráter estrutural.

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Considerações finais

Em curso há quase dez anos, a experiência brasileira com os programas orien-tados pelo modelo de reforma agrária de mercado do BIRD é a mais importanteno plano internacional. Em nenhum outro país se gastou tanto ou se contratoutal volume de empréstimos para financiar a compra de terras como no Brasil, cons-tituindo, de fato, um caso exemplar de implementação desse modelo.

Iniciado, não por acaso, em um contexto de intensa polarização política, oprojeto-piloto Cédula da Terra e, sobretudo, o Banco da Terra, angariaram a ade-são imediata de entidades de representação do patronato rural, a exemplo daConfederação Nacional da Agricultura (CNA). Apenas nesse ponto o modelo dereforma agrária de mercado encontrou correspondência com o universo empírico,pois desde cedo o Cédula recebeu o apoio ostensivo do “setor privado”, por tra-tar-se de um instrumento que não só remunera o proprietário à vista, a preço demercado, como compete com a mobilização popular por reforma agrária.

Embora o Cédula tenha sido encerrado em dezembro de 2002, até hoje nãohouve a devida transparência quanto a informações básicas do projeto. As lacunasem termos de conhecimento sobre o mesmo são um reflexo da inexistência de ins-tâncias de controle social, da falta de pesquisas empíricas independentes atualizadase, principalmente, do veto do BIRD e do governo federal (Cardoso e Lula) em dara devida transparência a informações que, por natureza, são públicas.

Em que pese toda a retórica sobre o suposto “sucesso” da experiência brasilei-ra, o fato é que até hoje pouco se sabe sobre os impactos reais desses projetos eprogramas. O caso do Banco da Terra, em especial, chega a ser escandaloso. Nãohá informações claras e atualizadas sobre o número de famílias adimplentes einadimplentes, nem tampouco um levantamento mínimo sobre as condições devida dos “beneficiários”. Sem dúvida é curiosa a experiência brasileira, em que taisprogramas são alardeados como altamente exitosos, mas as devidas informaçõessão negadas ou divulgadas com grande defasagem.

Apesar do discurso atual de maior transparência e participação, esta situaçãoevidencia a existência de um monopólio de informações por parte do BIRD e doMDA. É inegável que as pesquisas empíricas mais abrangentes até o momentoforam realizadas por consultorias encomendas e pagas pelo BIRD. Conseqüente-mente, o BIRD concentra informações e a própria “produção de conhecimento”sobre o seu modelo de “reforma agrária”. A rigor, isto não ocorre apenas no Brasil.

O fato, porém, é que a assimetria de recursos faz com que, para os movimen-tos populares, seja impossível realizar avaliações empíricas com o mesmo grau de

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cobertura e acompanhamento alcançados por pesquisas financiadas pelo BIRD.O caso do Cédula da Terra foi exemplar nesse sentido, pois enquanto a pesquisadas entidades do Fórum Nacional pela Reforma Agrária foi feita com cerca de R$10 mil, o BIRD gastou, entre “avaliação” e “propaganda”, US$ 5,2 milhões.

Esta situação só poderia ser revertida ou, pelo menos, minimizada, se as insti-tuições públicas de pesquisa – as únicas que têm condições de fazer um trabalhoindependente e construir uma visão de conjunto sobre essa experiência – partici-passem dessa discussão. Até o momento, as poucas pesquisas acadêmicas sobre otema são de iniciativa exclusivamente individual, como dissertações de mestradoe teses de doutorado.

Por outro lado, mesmo com todas as limitações, é inegável que já existe umacúmulo significativo de pesquisas empíricas sobre a implantação e o desenvolvi-mento de, pelo menos, uma dessas experiências: o Cédula da Terra. A leitura queaqui se fez sobre esses trabalhos pretendeu mostrar que é nula a validade conceitualdo modelo de reforma agrária de mercado e de todo o discurso que procura legi-timar programas nele inspirados. Os pressupostos básicos do referido modelo nãofuncionaram na prática, assim não se concretizaram as expectativas de que esteprojeto pudesse servir como uma referência viável a ser replicável em maior escalano Brasil. Todavia, o apoio do governo Lula e de uma entidade nacional de repre-sentação de trabalhadores rurais (a CONTAG) tem ajudado o BIRD a legitimarna arena nacional e internacional o seu modelo de acesso à terra pela via da com-pra e venda.

Notas

1 O Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo surgiu em meados dos anos 1990 (substi-tuindo a Campanha Nacional pela Reforma Agrária) como um espaço de articulação e ação conjunta demais de 40 entidades agrárias e sindicais, entre outras, reunindo organizações como o MST, CONTAG,FETRAF, CPT, MPA, MAB.

2 O Projeto São José é, na verdade, o Programa de Combate à Pobreza Rural (PCPR), sucedâneo do antigoPrograma de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PAPP) e de vários projetos financiados pelo BIRD noNordeste desde 1975. Concebidos como ação compensatória às políticas de ajuste estrutural, os PCPRsforam inseridos no programa Comunidade Solidária em 1995, com o objetivo de financiar projetos deinfra-estrutura social e produtiva (Pereira, 2004).

3 O governo do Ceará criou, em 1996, um fundo estadual e aportou pouco mais de R$ 4 milhões,complementados por um empréstimo do BIRD de R$ 6 milhões. O objetivo era financiar a compra de40 mil hectares por 800 famílias durante um ano. Na prática, financiou a compra de 44 imóveis por 694famílias, totalizando 23.622 hectares. Uma das constatações é de que o projeto estimulou a elevação dopreço da terra onde foi implementado (Pereira, 2004).

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4 Em junho de 1999 foi concluída a avaliação preliminar (Buainain et al., 1999), prevista no acordo deempréstimo como “Avaliação de Meio Termo”. Esse documento trouxe evidências que corroboraram emgrande medida as críticas que vinham sendo feitas ao Cédula desde 1997. O trabalho de campo foi rea-lizado em fevereiro de 1999, com a aplicação de extenso questionário a 232 famílias. A amostra realizadaabrangeu 116 projetos, em um total de 223 projetos existentes na época envolvendo 6.642 pessoas.

5 O Painel de Inspeção foi criado em 1994 para proporcionar um fórum “independente” aos agentes sociaisque se sentirem prejudicados direta ou indiretamente pela realização de projetos financiados pelo BIRD.A reclamação deve demonstrar que os efeitos negativos decorrem da não-observância das normas e pro-cedimentos do BIRD na elaboração, execução e avaliação dos projetos financiados (Fox, 2001).

6 Em março de 2000 foi concluída a avaliação de Steil (2000), parte de uma consultoria mais ampla con-tratada pelo BIRD sobre o desempenho dos fundos sociais e ambientais existentes no Brasil financiadosou apoiados por ele. Além da análise documental, teve como base entrevistas com técnicos do Banco,equipes estaduais responsáveis pela implantação do Cédula, representantes da CONTAG e do governobrasileiro.

7 Em outubro de 2002, um conjunto de entidades que compõem esse Fórum concluiu uma pesquisa sobreo desempenho do Cédula (Victor & Sauer, 2002). Entre setembro e novembro de 2001, equipes visita-ram 16 projetos – de um total de 384 projetos à época – e entrevistaram 80 famílias nos cinco estados.

8 No caso de Minas Gerais, não só os projetos produtivos, mas também os laudos técnicos que atestavamqualidade do solo, capacidade de suporte da área (número de famílias em relação ao tamanho da área),viabilidade econômica do empreendimento, entre outras, haviam sido elaborados após as transações decompra (Fórum, 1999).

9 Essas pesquisas praticamente não foram objeto de discussão fora dos círculos oficiais. Somente em mea-dos de 2006 o relatório de 2002 foi disponibilizado na página eletrônica do Programa Nacional de Cré-dito Fundiário.

10 É importante observar que os novos relatórios não apresentam qualquer relação entre a taxa de evasão ea criação de novos projetos e, surpreendentemente, também não analisam a qualidade agronômica dasterras adquiridas.

11 De acordo com o MDA (2005, p. 1), a auditoria resultou “na abertura de processos administrativos, quepor sua vez se desdobraram em inquéritos policiais, comissões de sindicância e outros instrumentos deapuração de responsabilidades administrativa, civil e criminal”.

12 Embora o decreto nº 4.892 de novembro de 2003 que regulamentou o Fundo tenha aberto a possibilida-de de que os recursos nele aportados fossem também utilizados para a construção de infra-estrutura nosprojetos criados pelo programa de reforma agrária, nenhum percentual foi estabelecido.

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O MERCADO DE TERRAS OU A TERRA COMO MERCADORIANO CEARÁ

FRANCISCO AMARO GOMES DE ALENCAR

A proposta deste texto é refletir sobre a questão agrária no Ceará, tendo comoobjeto de análise as intervenções fundiárias implementadas em conjunto pelosgovernos federal e estadual que usaram o mecanismo da compra e venda de terracomo se fosse uma política de reforma agrária. Este instrumento, desde o inícioda sua implantação, foi objeto de algumas pesquisas, em virtude de competir coma desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Portanto, foicriado um cenário de disputa política e econômica entre dois mecanismos de in-tervenções fundiárias que não se complementam, e até se opõem.

Neste contexto, este artigo procura analisar a implementação, entre 1997 e2003, dos quatro programas de compra e venda: Reforma Agrária Solidária doProjeto São José, Cédula da Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário e Combateà Pobreza Rural.

Destaco que estas formas de intervenção fundiária por meio da compra e ven-da de terra, não são restritas ao Ceará, porquanto, de forma geral, ocorreram emquase todo o território brasileiro, contando com o apoio do Banco Mundial. Exis-tem, portanto, muitas situações semelhantes, embora determinados casos sejamespecíficos de cada estado.

1. Antecedentes

No Ceará, os programas de intervenções fundiárias que utilizam a compra evenda de terra como um dos instrumentos de política pública para implementaçãode reformas agrárias remontam à década de 1970.1

O primeiro destes foi o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo àAgroindústria do Norte e Nordeste (Proterra), que teve como subprograma espe-

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cial para compra e venda de terra o Fundo de Redistribuição de Terras (Funterra).Este programa ficou conhecido como Proterra/Funterra e vigorou de 1973 a 1984.Nesse período foram negociados 265 imóveis, distribuídos por 235.060 hectares,e atendidas 2.183 famílias.

O segundo programa foi o Projeto de Desenvolvimento Rural Integrado doCeará (PDRI do Ceará), também conhecido como Projeto Ceará ou Programa deDesenvolvimento das Áreas Integradas do Nordeste (Polonordeste). De 1980 a1985, o subprograma “Organização Fundiária” do Projeto Ceará, além dos traba-lhos de arrecadação desapropriação por interesse social, comprou 23 imóveis, queabrangem uma área de 35.999 ha, distribuídos para 654 famílias. Entretanto, osimóveis não foram vendidos, e sim entregues sem previsão de reembolso do valorde compra às famílias beneficiadas.

O terceiro foi o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PAPP), ouProjeto Nordeste. O componente fundiário do PAPP foi o Programa de Desen-volvimento do Sistema Fundiário Nacional (PDSFN). Para operacionalizá-lo fo-ram utilizados os seguintes instrumentos: desapropriação por interesse social, de-sapropriação negociada, compra e venda de terra e cadastro/regularização fundiária.Quanto à viabilização do financiamento da redistribuição de terra, foi propiciadamediante a criação do Fundo Estadual de Terras (Funest).

No período de 1987 a 1994, além de executar as atividades de cadastro, iden-tificação, discriminação/regularização e desapropriação, o PDSFN, por meio doinstrumento de compra e venda, promoveu a aquisição de cinco imóveis rurais,no total de aproximadamente 5.505 ha, e beneficiou 166 famílias. Não foi previs-ta nenhuma forma de ressarcimento, por parte das famílias, beneficiadas do valorpago pelo Estado.

Estes três programas são oriundos de acordos entre os governos federal e esta-dual e o Banco Mundial e foram executados por meio de parcerias. Tinham comoobjetivos principais desconcentrar a posse da terra, reduzir a pobreza no campo emelhorar a distribuição de renda.

Estas políticas começaram a ser implementados desde a década de 1970. Noentanto, a partir de meados dos anos de 1990, os governos federal e estadual, coma parceria do Banco Mundial, revigoraram os programas de intervenção fundiáriasob a denominação de política “complementar” da reforma agrária, ou “reformaagrária de mercado”.

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2. Programas de compra e venda de terras2

A idéia do governo estadual executar uma reforma agrária, usando como prin-cipal procedimento o estímulo à compra e venda, ressurgiu em 1995 com umestudo do Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) sobre a situa-ção do mercado de terras no estado e da desapropriação como mecanismo histó-rico empregado na reforma agrária (Brandão Jr, 2000).

Com base neste trabalho, aconteceram encontros com a missão do Banco Mun-dial e técnicos do governo do Ceará em 1995. Nestes encontros ficou acertada aimplementação de um programa de financiamento a compra e venda de terras,denominado Reforma Agrária Amiga do Mercado, nos moldes de programas seme-lhantes desenvolvidos na África do Sul e Colômbia, com o apoio do Banco Mun-dial. Para tal, criou-se um componente fundiário no já em curso Projeto São José3,a fim de evitar novas negociações com o Banco Mundial, para a criação de umnovo programa, sendo necessário apenas alterar algumas cláusulas no contrato deempréstimo existente entre o Banco e os governos federal e estadual. Esta ação foichamada de “Reforma Agrária Solidária”.

Seu objetivo era financiar a aquisição de terras diretamente às comunidadesque quisessem comprá-las dos proprietários, sem limite de tamanho. Suas carac-terísticas principais eram: a) uso de metodologia participativa, posto que o com-prador da terra é a comunidade, e não o estado; b) um projeto-piloto com dura-ção de um ano (1997), que deveria acumular experiência para subsidiar umprograma de abrangência regional; c) desburocratização, ação direta entre com-prador e vendedor de terras, transferindo para o comprador as responsabilidadesdas negociação e do desenvolvimento do projeto. Ao Idace cabia a elaboração docomponente fundiário, a demarcação das terras, a análise da viabilidade da com-pra e a reformulação da sua estrutura administrativa para implementar um pro-grama de reforma agrária mediante compra e venda de terra. Ao governo do Cea-rá competia a responsabilidade de encaminhar ao Poder Legislativo do estado umaproposta de política agrária e atualizar a Lei de Terras estadual.

Em cumprimento ao acordado e para viabilizá-lo, o governo estadual criou oFundo Rotativo de Terras (FRT) em 7 de agosto de 1996, administrado pela Se-cretaria de Agricultura e Reforma Agrária (Seara) via Idace. E firmou com o Ban-co Mundial o acordo de empréstimo 3918–BR para implementar o “Projeto deReforma Agrária Solidária – São José”.

O projeto abrangia o território do Ceará, excluído o município de Fortaleza.A meta estabelecida foi atender no ano de 1997 cerca de 800 famílias, distribuí-

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das em aproximadamente 40 mil hectares, orçados em US$ 10 milhões. Destesrecursos, 60% eram provenientes do Banco Mundial e 40% do governo cearenseatravés do FRT. Foram atendidas 694 famílias (o equivalente a 86,75% da metaestabelecida) distribuídas em 44 imóveis, numa área de 23.624,30 hectares (o quecorresponde a 59% da proposta), ao custo de R$ 3.997.701,44. O custo médiopor hectare foi de R$ 169,22 e, por família, R$ 5.760,38 (ver quadro 1).

Quadro 1. Programas de compra e venda de terra – Ceará, 1997 a 2004Programas Nº de imóveis Nº de famílias Custo médio por família (R$ 1,00) Área (ha) Custo médio por ha (R$ 1,00)

São José 44 694 5.760,38 23.624 169,22

Cédula da Terra 114 2.000 5.275,18 72.536 145,55

Banco da Terra 104 1.464 6.126,41 66.503 138,97

Crédito Fundiário 27 381 6.199,39 15.170 155,70Fonte: Alencar, 2005.

A partir da experiência do Projeto São José (“Reforma Agrária Solidária”) foicriado o Projeto de Reforma Agrária e Alívio da Pobreza Rural, mais conhecidocomo Cédula da Terra. No Ceará, o Cédula foi operacionalizado com base nummanual de operações aprovado pelo Gabinete do Ministério Extraordinário dePolítica Fundiária (MEPF), de pleno acordo com o Plano de DesenvolvimentoSustentável estadual.

O manual citado (Ceará, 1997, p. 2) afirma que o Cédula da Terra é simples,sem burocracia, e cede para a associação atendida “a responsabilidade de identifi-car, planejar e executar os seus próprios ‘projetos’ de desenvolvimento, incluindoa terra e demais investimentos de infra-estrutura produtiva e social”. Para o go-verno estadual, o sucesso do projeto depende da compreensão do modelo e daestratégia adotada pelos técnicos, associações e organizações não-governamentais(ONGs). Este mecanismo significa para o Estado brasileiro “uma forma de agilizaro processo de redistribuição de terra financiando a compra de imóveis rurais” (ibid,p. 3). Nesse cenário, excluído o município de Fortaleza, os demais foram conside-rados como áreas de atuação do projeto.

A meta era atender três mil famílias de 1997 a 2000, adquirindo uma área de 120mil hectares a um custo aproximado de US$ 30 milhões. Foram atendidas duas milfamílias (66,6% do previsto) e comprados 114 imóveis, abarcando uma área de 72.536hectares, o equivalente a 60,4% da meta. Os 114 imóveis rurais custaram em torno deR$ 10,5 millhões. O gasto médio por família foi de R$ 5.275,18 e cada hectare cus-tou em média R$ 145,55. As duas mil famílias receberam R$ 8.091.620,00 para in-vestimentos comunitários e R$ 3.029.718,44 como ajuda de custo inicial. Na média,cada família recebeu dessas duas rubricas a quantia de R$ 10.835,85 (ver quadro 1).

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O terceiro programa foi o Fundo de Terras e da Reforma Agrária – Banco daTerra, instituído pela Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998, e regu-lamentado pelo Decreto nº 3.027, de 13 de abril de 1999. Segundo o governofederal, este programa surgiu como expansão dos projetos São José e Cédula daTerra (MEPF, 1999, p. 14).

No Ceará, entre 2000 e 2002, foram comprados 104 imóveis, atendendo a 1.464famílias numa área total de 66.503 hectares. O gasto com a compra de terras foi deaproximadamente R$ 9,7 milhões, o que dá uma média de R$ 6.126,41 por famí-lia e R$ 138,97 por hectare. Já com infra-estrutura o gasto total foi de R$6.726.044,33, e a ajuda de custo de R$ 2.687.100,00 (aproximadamente R$12.069,27 por família).

A quarta iniciativa foi o Projeto Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Ru-ral, criado pelo governo federal a partir do acordo de empréstimo 7037–BR fir-mado com o Banco Mundial. Seu objetivo era melhorar os programas anteriores,favorecendo a descentralização das ações, a atribuição de maior poder aos Conse-lhos de Desenvolvimento Rural Sustentável (CDRS) e a participação mais amplados movimentos sociais na sua execução (MDA, 2002, p. 7). Segundo o governofederal, trata-se de um projeto complementar à reforma agrária, e seus beneficiáriostêm direito aos financiamentos previstos para os demais programas do Ministériodo Desenvolvimento Agrário.

No Ceará, durante os anos de 2002 a 2004, foram comprados por este projeto 27imóveis, que abrangem uma área de 15.170 hectares e atendem a 381 famílias. Coma compra de terras foram gastos R$ 2.226.9998,36, aproximadamente R$ 6.199,39por família e R$ 155,70 por hectare. Com investimentos comunitários foramdispendidos R$ 1.861.191,64 e, com ajuda de custo inicial, cerca de R$ 589.810,00.A soma das duas liberações equivale em média a R$ 6.433,07 por família.

3. Resultados da implantação dos quatro programas no estado

No Ceará, de 1997 a 2004, foram adquiridos pelos quatro projetos 289 imó-veis, que correspondem a 0,2% dos imóveis rurais do estado (134.782). Ocupam180.714,46 hectares, ou seja, 1,9% do território rural (9.351.858 ha) e atendem4.538 famílias. Os imóveis localizam-se em 113 municípios (61,4% dos municí-pios cearenses), o que confere grande capilaridade a tais programas. Há, entretan-to, algumas áreas de concentração, como as regiões nordeste, centro, litoral oestee noroeste do estado, como mostra a figura 1.

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Desta concentração sobressaem quatro municípios: Quixadá, com dezoitoimóveis, numa área de 13.271 hectares e atendimento a 314 famílias; Acaraú, comquatorze imóveis, os quais ocupam 4.083,13 hectares, para 205 famílias; Crateús,onde se localizam onze imóveis, distribuídos por 9.321 hectares, e 203 famíliasbeneficiadas; e Canindé, que possui onze imóveis, abrange 7.061 hectares e aten-de 158 famílias. Deve-se notar também que os municípios de Quixadá,Quixeramobim, Crateús e Acopiara conheceram os quatro programas direcionadosà compra e venda de terras.

A figura 1 revela que os municípios que concentram tais programas são justa-mente aqueles historicamente conhecidos pela concentração de latifúndios eminifúndios; portanto, que possuem uma geografia inadequada da posse e uso daterra e das relações sociais de produção. Em tais municípios, o Estado deveria terusado o instrumento da desapropriação por interesse social, e não programas decompra e venda de terras.

Ademais, os imóveis adquiridos pelos quatro programas situam-se em depres-sões sertanejas e tabuleiros costeiros. Na primeira situação, os solos são poucoprofundos e há pedregosidade, susceptibilidade à erosão, deficiência de água, cli-ma semi-árido e regime pluviométrico irregular. Na segunda situação, os solospredominantes têm boas condições físicas, pois são profundos e suavemente on-dulados, embora algumas condições químicas sejam desfavoráveis, como a baixafertilidade natural e a deficiência de água. Na primeira situação, os programaspoderiam atuar somente quando o imóvel apresentasse boas condições em termosde solos, recursos hídricos e relevo, enquanto na segunda deveriam ter sido maiscomedidos. Desta maneira, não teria havido concentração desses programas emnenhuma das duas unidades geoambientais.

Sobre a concentração desses programas nas depressões sertanejas do estado,regiões nas quais prevalece a concentração de latifúndios, foi expressa assim:

No nosso caso do Ceará, as aquisições desses programas de reforma agráriaconsentida, quando você pega o mapa [do Ceará] e olha... Aqui em cima [litoral],está todo cheio de pontinhos; aqui em baixo Cariri e Iguatu não têm nada. Aquino litoral é um semi-árido, um carrasco duro (...), difícil. E aqui no Cariri e Iguatu,ninguém quis. Por que não compraram aqui nessas regiões, e criavam projetos pi-lotos? [Teria sido] uma experiência maravilhosa. Mas não, fizeram foi disputar car-rasco com o INCRA, comprando [terra]. Prejudicaram as duas coisas. A eles, do Idace,que estavam comprando, e a nós, do INCRA, que estávamos desapropriando. E issosem querer aumentou o preço da terra. Isso para mim foi uma disputa, sem inten-

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ção. E eles achavam que era mais fácil assim, comprando (ex-dirigente do INCRA-CE e da Seagri, 2003).

Quando questionada sobre a concentração da atuação desses programas emalguns municípios, uma liderança do Movimento Sindical dos Trabalhadores eTrabalhadoras Rurais (MSTTR) explicou que, na região do litoral, ela se deve àpouca atuação dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs), pois existe umhiato político ocupado pelos políticos locais:

Geralmente [foi onde] os três maiores movimentos sociais – nós [Fetraece e STR],CPT e MST – não trabalhamos esta questão. Nas regiões onde atuamos menos foionde cresceu o programa. (...) Onde o pessoal participa menos dos movimentos so-ciais é onde os políticos têm mais influência e os projetos interesseiros são maiores(Diretor da Fetraece, 2003).

A fala deste interlocutor é ratificada por outras de diretores de órgãos públicosestaduais e federais, ao afirmarem que os movimentos sociais rurais atuam maisnos sertões. Além deste fato, segundo estes entrevistados, devem ser consideradosa divulgação dos programas e os recursos naturais dos tabuleiros costeiros ou doslitorais.

Existem várias explicações que se complementam e, ao mesmo tempo, sãocontraditórias para justificar o destaque de alguns municípios em termos quanti-tativos na execução desses programas. Quanto à concentração da atuação dos pro-jetos no litoral, é uma premissa aparente, pois apenas o município de Acaraú, re-gião do litoral, apresenta maior número de imóveis adquiridos; e somente peloProjeto Cédula da Terra, porque nos demais programas este município é inferiora Quixadá e se equivale a Crateús e Quixeramobim. Afora isto, não possui ne-nhum imóvel comprado pelo Projeto de Crédito Fundiário e Combate à PobrezaRural.

Neste contexto, além da explicação da concentração dos quatro programasocorrerem nas áreas com concentração de latifúndio, de posseiros, de parceiros/arrendatários e na disputa entre os dois órgãos (Idace e INCRA-CE) pelos sertões,existem outras razões, como por exemplo: a) a angústia da família camponesa paraconquistar um pedaço de terra a “qualquer preço”; b) o Estado aproveita-se dessasituação e “deixar-se levar” pela solicitação das famílias camponesas, sem realizarum estudo detalhado do imóvel como unidade ambiental, com vistas a capacida-de de produção agrícola e pecuária; c) a oferta dos imóveis por parte dos seus pro-

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prietários; d) os sertões são marcados pelos conflitos agrários na história do Cea-rá; e) a região menos privilegiada do estado em termos de recursos naturais (solo,água, clima); queda no preço da terra, entre outros.

As justificativas do Estado para operacionalização dos programas, quando com-parados com a desapropriação por interesse social, são: a) menor custo do imóvel;b) desburocratização; c) participação do público potencial por meio das associa-ções, desde a escolha da terra até o preço da compra desta; d) por ser uma negoci-ação, não existe conflito pela posse da terra; e) no ato do pagamento da terra e datransferência aos camponeses compradores, estes automaticamente são emanci-pados administrativa e juridicamente.

Sobre a desburocratização e a agilidade dos processos efetuados por intermé-dio dos projetos São José, Cédula da Terra e Banco da Terra, o tempo de duraçãoda tramitação do processo aumentou muito, pois no primeiro, o mais demorado,foram 341 dias, enquanto no último foram 1.317 dias (ou seja, quadruplicou otempo de tramitação). Por outro lado, os mais rápidos foram 35 e 77 dias, respec-tivamente, o que significa que o tempo de tramitação duplicou (Brandão Jr, 2000).

Teoricamente, com o aperfeiçoamento da gestão dos projetos deveria ter ocor-rido o contrário. A hipótese é que isto aconteceu porque, no início desses proje-tos, o mercado de terra encontrava-se em queda, com pouca demanda. Com aimplantação do instrumento de compra e venda de terra, verificou-se aumentono preço das terras, impasse nas negociações e maior procura por terra do queoferta. A continuar assim, a operacionalização do Crédito Fundiário e Combate àPobreza Rural não será rápida, nem seu custo será mais baixo que o das desapro-priações.

Quanto ao preço da terra, na opinião de Pereira (2000, p. 30), tal preço é in-fluenciado por muitas variáveis, como:

Urbanização, fluxo migratório, crescimento demográfico, disponibilidade de infra-estrutura, as cotações dos principais produtos agropecuários, as distâncias dos mer-cados consumidores, as relações de troca entre agricultura e indústria, os incentivosfiscais para penetração de capital financeiro no campo, o grau de ocupação do terri-tório as flutuações em mercado de outros ativos e a política econômica.

Ainda conforme Pereira (2000), a baixa de aproximadamente 40% no preçoda terra verificada entre 1980 e 1999 evidencia que ela estava perdendo o podercomo ativo financeiro ou especulativo. Para o autor, a terra não estava caindode preço, mas retornando ao preço normal. O principal componente desta que-

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da foram os planos econômicos, e não os programas implantados a partir de1997.

Na opinião de uma liderança do MSTTR estadual, após 1997, com aoperacionalização desses programas, ocorreu um aumento no preço das proprie-dades rurais, porquanto antes não havia dinheiro ou financiamento para comprade terra. Na sua fala o entrevistado destaca que:

Facilitou muito para o aumento do preço. O que entrava ainda neste mercado eraporque a sociedade não estava interessada em comprar terra em virtude do poder decompra. Agora, o Estado, ao fazer isso com estes programas, poderá elevar bastante(...). Com isso a terra volta a ser valorizada, o que é bom para o campo. Porém, aomesmo tempo, é um complicador, porque à medida que aumenta o preço, você vaisacrificar a pessoa que amanhã pode ter a terra. E para comprar mais caro a terrapode beneficiar quem tem a terra. (...). Se não tivesse acontecido isso, a terra na áreado sertão seria uma coisa que não tinha valor (liderança do MSTTR, 2003).

Sobre as vantagens ou diferenças atribuídas pelo Estado aos programas de com-pra e venda de terra, em comparação com a desapropriação por interesse socialpara fins de reforma agrária, principalmente no tocante ao preço pago em virtudedos recursos jurídicos, assim se expressou um dos dirigentes do Idace:

O grande problema entre um modelo e o outro são as ingerências que há dentro dosprogramas. Tanto na desapropriação quanto na compra e venda existe ingerênciapolítica, corrupção, manipulação. Porém, com a compra e venda, a gente pensou quea organização dos trabalhadores “peitaria” estes problemas. Mas não peitou. Hoje, noprocesso de Reforma Agrária Solidária, a gente vê pessoas agenciando proprietáriosrurais, formando associações para comprar terra, associações brigando para pagar umvalor mais alto do que aquela terra vale. Na realidade, quando a gente pensou em ummodelo complementar, não pensou nas deturpações que existem dentro de um e deoutro (dirigente do Idace, 2003).

O depoimento citado desfaz o argumento, usado pelos defensores dos quatroprogramas, de que as associações, ao negociarem o preço, evitariam manipulaçõescomo a elevação de preço. O mais grave é que este problema é reconhecido porum dos dirigentes responsáveis pela execução destes programas no Ceará.

Ademais, o ato da transformação da terra em mercadoria – portanto, da nego-ciação, do endividamento de quem compra terra – remete a uma pergunta: os

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trabalhadores têm ou terão condições de honrar os compromissos financeirosperante as instituições financeiras?

Conforme os depoimentos dos diretores do Banco do Nordeste das agênciasde Canindé e Quixeramobim, até outubro de 2003 encontravam-se inadimplentes,no primeiro município, com duas parcelas atrasadas, os imóveis Campos do Jordão/Salão, Santa Rita, Cacimba Nova, Boa Vista; e com uma parcela atrasada, SantaClara e Nova Olinda. No segundo município, Pedra Alta e Poço Cercado, amboscom duas parcelas. Segundo esses diretores, nem todos estão inadimplentes porcausa do processo de repactuação do financiamento, isto é, maior (ou novo) pra-zo de carência e mudança da taxa de juro.

A pesquisa Avaliação do Projeto Cédula da Terra destaca que o preço não foi dis-cutido pelos compradores, deixando a negociação com o Idace. Dessa forma, o “Idaceemerge como negociador direto com os vendedores contradizendo seu papel privi-legiado de árbitro ou mediador no processo de compra e venda” (FAO-INCRA, 1998,p. 11-12). Esta constatação foi verificada por Alencar (2002 e 2005) e Navarro (1998).Nos três estudos, porém, não foi constatada nenhuma forma de corrupção por par-te dos técnicos do Idace. Segundo todos os depoimentos, o preço da compra foiinferior ao proposto pelo vendedor. Entretanto, isto não significa obrigatoriamenteque o preço da terra foi baixo. Além disso, alguns compradores afirmam que o pro-prietário ou vendedor solicitava por fora uma complementação, sem o conhecimentodo Idace. O aumento de preço ocorria de várias formas. Cito como exemplo o casode um imóvel de determinado município cujo preço foi acertado em R$ 54 milentre o Idace, o comprador e o vendedor, mas, por fora, o proprietário tentou nego-ciar por R$ 69 mil. A diferença seria paga da seguinte forma:

Dando mais R$ 15 mil por fora, nós estamos desmanchando o orçamento dos ho-mens [técnicos do Idace]. (...). [O proprietário] disse: “eu me responsabilizo por isso,vocês nos dão todo mês quando receberem a ajuda do fomento (...) uma parte atéinteirar os R$ 15 mil (liderança mutuária).Tem alguns lugares em que o Idace calculou corretamente, e nós temos que dar amão a palmatória. E as pessoas se propuseram por fora e à revelia do sindicato a darum preço a mais, a exemplo do Escondido [município de Novo Oriente], que temdenúncia até na Polícia Federal (liderança do MSTR do Ceará e da CUT – RuralNacional, 2003).

Os argumentos em favor dos quatros programas – negociação direta entrecomprador e vendedor sem intermediário, desburocratização, rapidez no proces-

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so, maior participação das associações, menor preço da terra – precisam serrelativizados, posto que foram aqui empiricamente contestados.

4. As transações de terra: encontros e desencontros

As situações de inadimplência perante a instituição financiadora têm provo-cado nos mutuários angústias, noites mal dormidas e dias enfadonhos, mas, poroutro lado, também têm propiciado o reencontro entre a população camponesaendividada com o movimento sindical rural, o Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem-Terra (MST) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Um reencontromarcado pela dor de não honrar o compromisso. Para a fração da classe subalter-na do campo, antes ser morador do que ser desonrado por não pagar o que sedeve. Esta angústia e dor da reaproximação é assim expressa:

Essa distância, hoje, eles percebem o problema que tem lá. Em alguns municípios omovimento sindical ainda abraça, mas a grande maioria ainda está isolada no lugardeles. Porém, hoje eles já estão procurando o movimento sindical, e quando nos pro-curam dizem: e aí, o que vai ser de nós? O que vamos fazer? (diretor da Fetraece,2003).

Alguns técnicos e intelectuais imaginavam que, com estes programas, ocorre-ria o enfraquecimento do MST, da CPT e de setores do MSTTR, ou aumentariamas fissuras entre estes e os camponeses-mutuários. Eles cometeram um equívocoteórico. A dor da subtração da terra e a vergonha da inadimplência dos campone-ses-mutuários estão construindo os caminhos do (re)encontro do que antes haviasido um desencontro:

Acho que o movimento sindical cometeu um grave erro, e disse isso desde 1997 (...).Está melhorando agora, porque a peia veio pra todo mundo. Mas eu disse sempreque nós éramos responsáveis por aquela propriedade que estava sendo comprada (li-derança do MSTR do CE e da CUT-Rural, 2003).O que vai nos unificar é chamar os mutuários das reformas agrárias de mercado paratravar uma luta pedindo a anistia desses pagamentos. Que é uma forma de você darcredibilidade a estes trabalhadores, que estão desesperados nessas áreas. A discussãoque nós temos feito não é de renegociação, é do não pagamento. Então eu vejo queserá uma grande luta (dirigente estadual do MST-CE e assentado).

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A dor e o distanciamento que os dois lados, mutuários e mediadores, carre-gam já faz algum tempo. Tempo anterior aos projetos São José, Cédula da Terra,Banco da Terra e Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural. Sofrimentos edesencontros sublinhados nas falas:

Alguns, inclusive, no momento em que estavam se organizando para fazer a compra,se filiaram. Mas não retornaram ao sindicato (...). Por outro lado, nem o sindicatonem o MST procuram o pessoal para vir para o quadro social. O MST visita essasáreas para convidá-los para as mobilizações. Depois da mobilização eles retornam eficam lá jogados. Não há um acompanhamento ou direção política do MST e dosindicato. Eles também não vêm às organizações e nem elas vão lá, o que é um erro.Acho que as organizações devem ir lá (dirigente sindical e vereador, Canindé, 2003).As famílias beneficiadas eram trazidas por pessoas adversárias do movimento sindi-cal. Num município chegava um vereador que tinha interesse, juntava um grupo depessoas, falava com o proprietário de terras e fazia o negócio. Mas esse pessoal tam-bém não se aproximava da gente. Eles diziam: “o movimento sindical é contra nós”.Isso causou uma distância entre esses grupos e os movimentos sociais. Para eles, ogoverno é Deus. O governo é quem dá a terra, é quem faz não sei o quê. Por isso,hoje, nem o MST nem a CPT os acompanham. O STR acompanha alguns, mas delonge. Porém, não tem essa relação com eles. Por isso eles estão abandonados (Dire-tor da Fetraece, 2003).

Embora o Cédula da Terra tenha sido implantado a despeito da oposição dealguns setores dos movimentos sociais e do movimento sindical rural, ele atingiuas metas antes do tempo previsto, superando as expectativas dos governos federale estadual, na medida em que, em um ano e meio de atividades, atingiu o queestava programado para ser executado em três anos (Navarro, 1998). Já o ProjetoSão José alcançou aproximadamente 90% da meta. Os 10% restantes não foramexecutados em decorrência do preço do hectare ter ficado bem acima do preçomédio planejado (Brandão Jr, 2000).

Com a implantação do Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural, a Con-federação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), as FederaçõesEstaduais dos Trabalhadores na Agricultura (Fetags) e os STRs – que desde mea-dos dos anos de 1980 defendiam uma linha de crédito para compra e venda deterra para seus filiados – entenderam que uma das suas reivindicações históricasestava sendo contemplada. Para o segmento hegemônico da Contag, das Fetags edos STRs, este projeto é diferente dos três programas anteriores.

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O Crédito Fundiário é diferente dos outros programas [de compra e venda de terra].Nós tivemos uma discussão na Contag com a CPT e o MST. Nesta reunião, eles dis-seram que não adotariam o Crédito Fundiário. Mas a Contag, baseada na demandados pequenos agricultores, solicitou um programa complementar. A diferença [emrelação aos] programas anteriores era que o governo dizia que era complementar, masera compra de terra, que dava terra e dinheiro para as pessoas. No Crédito Fundiário,a gente faz reuniões com os pequenos produtores, coloca a realidade do programa(diretor da Fetraece, 2003).

Entretanto, para um dos dirigentes do Idace que participou da elaboração dosprogramas dos governos estaduais desde meados dos anos de 1980, “a primeiraquestão é política, principalmente o MST. Não colocaria o movimento sindical,muito ao contrário. A Fetraece nunca se contrapôs a esses programas [referindo-se aos Projetos São José, Cédula da Terra e Banco da Terra]”. Ainda de acordocom esse interlocutor:

Eles [Fetraece] participavam da câmara velha, e na nova eles apontam melhorias, so-luções e não são taxativos, e nem dizem que esses programas têm que acabar. Isso nãoé posição da Fetraece, nem do movimento sindical. (...) O MST e a CPT têm umaposição clara como mecanismo, que é uma posição muito política. Agora, o MSTexiste por causa das ocupações. Um modelo deste de compra e venda de terra é amorte do MST (dirigente do Idace, 2003).

A questão, portanto, está na concepção de reforma agrária. Além disso, pensarque programas de compra e venda extinguiriam movimentos do porte do MSTdemonstraria a fragilidade deste, bem como dos movimentos sociais do campo demaneira geral. Consoante as falas dos diretores da Contag e da Fetraece ao expli-carem as diferenças, existe contradição quando, a partir de 2002, todos os mutuá-rios dos outros projetos passaram a contar com as condições de pagamento iguaisàs do Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural.

Ademais, o fato do Crédito Fundiário ter sua implementação após o Cédulada Terra e o Banco da Terra foi algo complicado para o movimento sindical rural,pois os defeitos na operacionalização destes projetos foram transferidos para aquele.

Segundo as falas aqui citadas quanto à diferenciação entre os três primeirosprojetos (São José, Cédula da Terra e Banco da Terra) e o Crédito Fundiário eCombate à Pobreza Rural, com a unificação das condições de pagamentos e dosproblemas entre os programas, a diferença entre estes projetos decorre do nome

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de batismo, do tempo em que foi executado e, principalmente, do autor da idéia.Além disso, não se deve esquecer que a denominação “Combate à Pobreza Rural”refere-se ao programa de acordo de empréstimo do governo brasileiro com o Ban-co Mundial. O mesmo empréstimo que apoiou os outros três projetos. ConformeSauer (2003), todos têm a mesma lógica, a mesma fonte de recursos, as mesmastaxas de juro e prazos de pagamento. E o tamanho da propriedade para ser com-prada só posteriormente foi estabelecido.

Nesse contexto permeado de contradições – posto que ocorre a negação e aafirmação dos programas de compra e venda de terra por setores das organizaçõessindicais e movimentos sociais, bem como sua aceitação por uma parcela dos cam-poneses –, uma outra explicação está no desencontro, no distanciamento do cam-ponês e da camponesa das três grandes entidades mediadoras e articuladoras.(Contag/Fetags, MST e CPT). Presentes em todo o território nacional. Essesdesencontros e distanciamentos entre setores das entidades mediadoras e as famí-lias camponesas, aliada a propaganda massiva dos programas, viabilizaram a supe-ração das expectativas das metas planejadas pelos governos federal e estaduais, quesão explicitados nas seguintes falas:

Os trabalhadores não tinham conhecimento de como rezava o programa. E como os tra-balhadores tinham necessidade de terra, foram iludidos pelo programa do governo feitoatravés dos técnicos, de reuniões, encontros nos assentamentos, nas comunidades (diri-gente STR e mutuário do Projeto Cédula da Terra, município de Tamboril, 2002).A palavra proprietário é muito diferente da palavra “nós vamos lutar por um assenta-mento”. Outra palavrinha: “juntem-se numa associação que vai ser comprada terra evocês vão ser os proprietários, essa reforma agrária está garantindo a terra e o recursosai na hora” (dirigente do MST-CE, regional de Canindé, 2002).

Outra variável a ser incorporada para a compreensão dos desencontros-encon-tros é o sonho do camponês de ter um pedaço de terra de trabalho:

Em todos os momentos que nós passávamos nas comunidades discutindo e lutandopelas desapropriações, encontramos muita gente dizendo, propondo e reivindicandoum tipo de financiamento para comprar a [sua própria] propriedade (...). Quandochegávamos nos sindicatos, nas delegacias sindicais, as pessoas reivindicavam ou pe-diam esclarecimento [sobre] se não havia dinheiro no banco para comprar proprie-dade. Eu acho que nesse caso o governo soube aproveitar bem as demandas que nas-ceram das pessoas. E isso não foi a mesma coisa com as direções do movimento sindical,

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nem do movimento social, do MST. Trabalhamos mais a questão da desapropriação,mas a população levantava a demanda da compra de terra. Tem dia que eu ficavaassim meio tonto (liderança sindical CE, 2003).

Esse desejo da terra de trabalho, algumas vezes, gera contradição com as ocu-pações, em virtude da heterogeneidade da população camponesa. Por exemplo,alguns evangélicos explicam a aceitação desses projetos porque não aceitam o con-flito. Eles afirmam:

Eu acho que a ocupação da terra tem gerado conflitos. Eu não sou a favor, porquenós já vivemos num mundo tão ensangüentado e a gente ainda ir criar mais confli-to... Ali podem morrer vários pais de família, mãe de família, criança, ou então setirar vida a de um fazendeiro também. Por que não procurar se entender? (...). Vocêé dono da sua propriedade e eu chego com um monte de gente invadindo, destruin-do até as coisas que você construiu com vários trabalhos (...), cortando as cercas dearame. Tudo custou suor seu. Você não vai achar bom. Mas, se o governo botasseuma equipe e fosse até sua residência, conversasse com você e negociasse de qualquerjeito, acho que seria melhor. O governo tinha tudo para chegar a esse ponto sem pre-cisar de conflito (dirigente e mutuário do Cédula da Terra, Canindé, 2003).

Outro problema está no processo de seleção, fato que precede o ato da com-pra da terra. Primeiro, a rigor não há uma seleção dos futuros mutuários. O queocorre são critérios estabelecidos que, na prática, não selecionam. Nesse cenáriode seleção e criação de associação, algumas falas são reveladoras:

Eu estava numa reunião em Santa Quitéria e quem estava articulando a compra daterra era a associação dos moto-taxistas. Quando fizemos no STR a discussão de queo moto-taxista não poderia ser beneficiário da reforma agrária, criou um clima ruim(liderança sindical do CE e da CUT-Rural nacional, 2003).

Outro depoimento ressalta: “A gente morava tudo espatifado. Até 20 quilô-metros de distância daqui” (Dirigente e mutuário do Projeto São José). Aindaconforme este dirigente e mutuário, nenhuma das sete famílias que moravam nesseimóvel permanecem na área. Todas optaram para serem assentadas no imóvelMaraquetá, desapropriado pelo INCRA em 1997.

Nesse cenário, não passar pela experiência dos acampamentos e das ocupaçõesaumenta muito a probabilidade da pessoa selecionada não se adaptar às condições

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de assentado e do assentamento. A pré-seleção verificada nos acampamentos, nasocupações, entre outras formas de mobilização/organização, redireciona para acooperação, para a solidariedade, para o trabalho coletivo. Esta etapa é o início deum processo de aprendizagem de dissocialização/ressocialização, de inclusão social,que tem os assentamentos como ponto de chegada e partida simultaneamente(Martins, 2003; Fernandes, 2000; Caldart, 2000).

A pré-seleção serve também como período de preparação do camponês para avida nova, diferentemente do ocorrido com a forma de aquisição via mecanismode compra e venda de terra, pois a maioria das associações são formadas para atendera uma das exigências dos programas (FAO-INCRA, 1998). Em muitos casos, inclu-sive, os mutuários não foram selecionados, mas sim escolhidos (Victor & Sauer,2002; Buainain, 1999).

Quando a associação já existia e serviu de “aluguel” para comprar a terra, aseleção, além de não ocorrer, trouxe outros problemas, como a desistência dos mu-tuários. Conforme este relato: “Nós pegamos a associação da fazenda Jitirana queo rapaz doou para comprarem esse terreno” (Mutuário e liderança do Banco daTerra, Quixeramobim, 2003).

Quando questionados acerca destes programas de compra e venda de terra comosendo “reforma agrária”, os mutuários, além de não considerarem os programasde compra e venda de terra como reforma agrária, não aconselham a nenhum cam-ponês entrar num programa desse tipo. Ao contrário, aconselham até a participa-ram das ocupações organizadas pelo MST, posto que somente após tornarem-semutuários é que tomaram conhecimento da importância da ocupação e da desa-propriação para fins de reforma agrária. Mais uma vez o Estado, por caminhostortuosos, colocou algumas famílias camponesas para seguir em direção ao MST,ou a setores do movimento sindical rural que fazem oposição a este mecanismocomo sendo “reforma agrária”.

Os manuais dos quatro programas argumentam que a compra e venda, em vir-tude da negociação entre vendedor e comprador, torna o preço do imóvel menor,quando comparada à desapropriação. Para verificação das hipóteses de negocia-ção, do preço de mercado e do menor custo, foram escolhidos os municípios deCanindé e Quixeramobim4, os imóveis desapropriados a partir de 1997 com áreasmenores, enquanto os imóveis dos programas compra e venda de terra foram aque-les de maior área.5

Em Canindé, o valor do hectare desapropriado fica em torno de R$ 60,00, en-quanto pela compra e venda oscila entre R$ 38,9 e R$ 86,6. Para Quixeramobim, ohectare desapropriado varia de R$ 29,9 a 69,7, enquanto pela compra e venda de

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terra oscila de R$ 59,6 a R$ 85,3. Logo, não há nenhum indício no preço do hec-tare que permita afirmar que um ou outro beneficia a população camponesa. Quantoao preço total do imóvel [terra nua + benfeitoria] por família no município deCanindé, o valor pago pela desapropriação é superior àquele pago pela compra evenda de mercado. Este fato decorra, talvez, dos imóveis desapropriados possuíremmaior número de benfeitorias. No município de Quixeramobim, por exemplo, nãose verifica esta diferença, exceto no imóvel Alegre (ver quadro 2).

Ainda de acordo com o quadro 2, na relação família/hectare nos dois instru-mentos, existem áreas inferiores a um módulo fiscal, haja vista que, para o muni-cípio de Canindé, equivale a 50 ha e em Quixeramobim a 40 ha. Nesse contexto,somente os imóveis Rocilândia [Canindé] e Maraquetá, Pedras Altas e Condado[Quixeramobim] possuem área superior a um módulo fiscal. Os demais, portan-to, são classificados como minifúndios. Com este tipo de política fundiária, oEstado brasileiro continua implementando política pública de geração deminifúndios e latifúndios.

A afirmação de que os camponeses-compradores e os proprietários-vendedo-res acertam o preço precisa ser relativizada. Se, por meio do mecanismo da desa-propriação, o preço é estabelecido pelo INCRA, na compra e venda de terra é peloIdace. Se, no primeiro, a justiça ordena ao INCRA pagar um valor maior, no segun-do alguns proprietários ou vendedores por fora também aumentam o preço doimóvel. Nos dois casos, porém, quando ocorre este aumento no preço da terra,quem paga é a população camponesa (assentada ou mutuária).

Conclusão

Os resultados da implantação dos programas de compra e venda de terra noCeará agravam a situação do território agrário, tornando este mais intricado edesafiador. Intricado porque a mudança da malha fundiária ou da política de re-forma agrária está ocorrendo, principalmente por meio do uso do instrumento decompra e venda de terra, ao invés da utilização do mecanismo da desapropriaçãopor interesse social. Desafiador porque os resultados empíricos constatados atéentão “demonstram que é nula a validade conceitual do modelo de reforma agrá-ria de mercado e de todo o discurso que procura legitimar programas nele inspi-rados” (Pereira, 2005, p. 29).

Nesse caso, há, pois, uma opção política por parte dos governos federal e esta-dual pelo mecanismo da compra e venda, em detrimento do outro. Este fato agra-

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va-se, e muito, quando os camponeses compradores de terra afirmam que não terãocondições de pagar os débitos assumidos perante a instituição financiadora. Nãohonrar ou cumprir seus compromissos significa a perda da sua história de honra-dez e altivez.

Como o banco financiador não vendeu terras, mas emprestou dinheiro, espe-ra e quer receber os recursos emprestados com as taxas de juro, conforme previstoem contrato. Este é um dos problemas das famílias camponesas que compraramterras. Com o passar dos anos, caso não ocorram mudanças radicais nesses con-tratos, a situação tende para a tensão entre o camponês-mutuário e o banco.

Outro fato da multidimensão do camponês-comprador de terra deve-se à dis-tinção, à especificidade jurídica e sociológica deste em relação ao camponês-as-sentado, beneficiado por meio do instrumento da desapropriação por interessesocial para fins de reforma agrária. Segundo previsto, ambos deverão pagar pelaterra. Entretanto, o camponês-comprador de terra mantém uma relação com obanco regida por um contrato jurídico de financiamento, segundo o qual o imó-vel financiado fica hipotecado em primeiro grau, até a quitação plena da dívida.Neste caso, os tomadores do empréstimo são denominados juridicamente demutuários. Além disso, após firmado o contrato, feito o pagamento ao proprietá-rio-vendedor e realizado a transferência do imóvel, o camponês-mutuário torna-se automaticamente emancipado.

Quanto à especificidade sociológica, decorre das formas de lutas encetadas. Ocamponês-mutuário adquiriu o direito de uso e posse da terra de trabalho pormeio do instrumento compra e venda, mas não passou pelas peneiras pedagógicasdas ocupações e dos acampamentos (Caldart, 2000; Fernandes, 2000), nem pelosprocessos de dissocialização-ressocialização (Martins, 2003). Já o camponês-as-sentado passou pela pedagogia das ocupações e dos acampamentos, assim comopelo processo da dissocialização-ressocialização, o que lhe permite identificar-secomo classe social, ver-se no outro camponês e se irmanar.

Desse modo, somente na criação da associação e na negociação da compra evenda do imóvel é que a maioria dos camponeses-mutuários inicia o conhecimentopessoal. Neste caso, todas as diferenças e desavenças irão aflorar com força e vigorsomente após estarem no imóvel.

Neste cenário de disputa político-econômica entre os dois mecanismos, gera-se uma situação paradoxal. O camponês-mutuário, ao enfrentar todos os proble-mas como “novo” sujeito social do campo ou “nova” categoria social camponesa,tem encontrado uma aproximação com os movimentos sindicais dos trabalhado-res rurais, com os movimentos sociais do campo. Nesse embate político, começa

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a ver as ocupações e os acampamentos como a forma correta para adquirir terra.Os enfrentamentos políticos permitem-lhe ver e se perceber como uma classe cam-ponesa, semelhante aos camponeses-assentados, que carregam os mesmos proble-mas, sem contar com as dívidas que o banco começa a cobrar após o período decarência.

Neste contexto, os programas de compra e venda de terra revelam o territóriorural do Ceará como intrincado e desafiador. Nele, a maioria dos mutuários aindanão encontrou o sonhado território da “nova terra prometida”, bem como não seconcretizaram os objetivos dos programas.

Notas

1 Para maior detalhamento dos programas de compra e venda de terra nas décadas de 1970 e 1980 noCeará, ver Alencar (2005, cap. 3).

2 Para maiores detalhes sobre os programas de compra e venda de terra no período de 1995 a 2005 noCeará, ver Alencar (2005, cap. 5).

3 Sobre o Projeto de Combate à Pobreza Rural no Ceará, ver Araújo (2003).4 Escolhi os municípios de Canindé e Quixeramobim porque são os mais representativos em termos de

intervenção fundiária no Ceará.5 A opção entre os critérios tempo, a partir de 1997, e menor área para os imóveis desapropriados e maior

área para os de compra e venda, foi uma forma de aproximar estes tipos de intervenção, para poder “fazercomparações”.

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Este artigo tem como objetivo trazer algumas reflexões sobre a implantaçãodos programas orientados pelo modelo de reforma agrária de mercado no estadoda Bahia, em especial do Projeto Cédula da Terra (PCT) – que vigorou de 1997 a2002 – e de seu sucessor, o Projeto Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural(PCF), iniciado em 2002.

As informações referentes ao PCT estão fundamentadas, basicamente, nosresultados de uma pesquisa realizada para o Fórum Nacional de Reforma Agráriae Justiça no Campo no final de 2001.1 A partir de então, os assentamentos reali-zados pelo PCT e pelo PCF vêm sendo acompanhados por pesquisadores do Pro-jeto GeografAR.2 Este acompanhamento e a realização da recente “Pesquisa Po-pular no Meio Rural sobre o Programa Crédito Fundiário”, da Rede Social deJustiça e Direitos Humanos, permitiram atualizar os dados e a análise sobre a im-plantação da política do Banco Mundial na Bahia. Permitiram, também, consta-tar que, além da troca do nome, houve reconhecidos esforços das instituições en-volvidas no sentido de superar alguns obstáculos e limitações. Contudo, aindapersistem problemas e contradições de conteúdo estrutural identificados na pri-meira pesquisa.

Independentemente das limitações destas pesquisas, no sentido de não con-templar a totalidade de situações existentes no estado, as informações obtidas sãosignificativas para suscitar a seguinte indagação: se aconteceu, e acontece, dessamaneira nos casos estudados, como tais programas estarão operando nos demaiscasos?

É interessante observar que a pesquisa referente à “Avaliação Preliminar doPrograma Cédula da Terra”, realizada na época pelo NEAD/UNICAMP, teve umaamostra mais abrangente e, embora tenha tido outro objetivo e metodologia, emmuitos aspectos conflui na mesma direção, confirmando vários resultados.3

A IMPLANTAÇÃO DOS PROGRAMAS ORIENTADOS PELOMODELO DE REFORMA AGRÁRIA DE MERCADO NO ESTADODA BAHIA

GUIOMAR GERMANI

ALICIA RUIZ OLALDE

GILCA GARCIA DE OLIVEIRA

EDMILSON CARVALHO

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Antes de apresentar estes resultados é interessante situar o contexto intitucionalem que foram implantados os dois programas, recuperando o seu desenvolvimentoe destacando e alguns aspectos da situação atual.

1. Implantação e estrutura do Projeto Cédula da Terra no estado da Bahia

A implantação do PCT na Bahia ocorreu na esteira de outros programas doBanco Mundial voltados para a área rural no Nordeste brasileiro. Em especial, deacordo com informações de diversos técnicos do estado envolvidos na implanta-ção do PCT, devido às experiências “bem sucedidas” no Ceará. O Banco Mundial(BIRD) deu início, naquele estado, a uma experiência-piloto com o Projeto SãoJosé, expandindo-o, posteriormente, ainda como projeto-piloto, para outros esta-dos nordestinos, com a denominação de Projeto Cédula da Terra.

As primeiras notícias sobre o projeto apareceram, em nível nacional, em ja-neiro de 1997. A cobertura na imprensa destacava que o novo programa iria“municipalizar” a reforma agrária. Na Bahia, o PCT foi lançado em novembro de1997, no município de Esplanada, Litoral Norte, com a presença do então Mi-nistro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann. Na ocasião, implantou-se oassentamento do PCT chamado Antônio Conselheiro.

No plano nacional, existia uma estrutura mínima que financiava, acompanhavae controlava o PCT, com a participação articulada do BIRD, do governo federale dos bancos públicos. Completando-a, em cada estado havia uma estrutura localque dava continuidade às mesmas funções de repasse de verbas, acompanhamen-to e controle. Na Bahia, esta estrutura local foi composta pela Coordenação deAção Regional (CAR), empresa vinculada à Secretaria do Planejamento, Ciênciae Tecnologia (SEPLANTEC), oficialmente responsável pelo projeto, e pela Coor-denação de Desenvolvimento Agrário (CDA4), órgão vinculado à Secretaria daAgricultura, responsável pela execução do PCT estadual.

Supunha-se que a estrutura gerencial deveria ser mínima, porque o projetooperaria de modo descentralizado e orientado por mecanismos de mercado basea-dos na livre negociação entre as partes, em concordância com a crítica feita à re-forma agrária tradicional de excessiva centralização e burocratização. Partindo destepressuposto, o governo estadual não montou uma estrutura para acompanhar oprojeto, fato que só aconteceu posteriormente, quando verificou que os mecanis-mos de mercado eram insuficientes e surgiram dificuldades e denúncias. Estasdiziam respeito, principalmente, à qualidade das terras adquiridas e à manipula-

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ção de interesses e recursos de forma muito explícita. As rotinas utilizadas tinhamcomo referência ações que já eram implementadas em projetos estaduais anterio-res. À medida que o PCT se firmava, passou a haver uma disputa pelo seu contro-le político.

Para a divulgação do projeto foram (e continuam sendo) usados diversos meios,como publicação de cartilhas, distribuição de folders e cartazes. Houve tambémdivulgação por meio de palestras realizadas em alguns locais pelos órgãos estaduais.Porém, o mecanismo mais atuante foi a comunicação informal entre os agriculto-res. Além disso, algumas lideranças comunitárias e técnicos da área rural vincula-dos a escritórios de assistência técnica, contribuíram para a divulgação do projeto.Em alguns casos, outros agentes influenciaram na formação das associações, res-pondendo a interesses diversos, como políticos locais e até mesmo alguns proprie-tários de terras interessados em vendê-las.

A Pesquisa Popular constatou que 20% dos entrevistados haviam tomadoconhecimento do projeto através da associação; 3,3% pelo sindicato; 13,3% pormeio de parentes e 45% através de vizinhos e amigos.

Esta divulgação gerou uma grande expectativa nos agricultores, até dezembrode 2001, quando terminou a fase piloto, já tinham se inscrito 609 associaçõespara pleitear o acesso à terra. Isto representava mais de 20 mil famílias. Houveproblemas operacionais para atender a esse elevado número de propostas apenascom aquela estrutura mínima montada.

Na fase posterior, de implementação do Projeto Crédito Fundiário (PCF), aorganização das associações passou a contar com o apoio e a atuação efetiva dosSindicatos dos Trabalhadores Rurais e da Federação dos Trabalhadores na Agri-cultura (FETAG) e, depois, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Fami-liar (FETRAF).

O processo formalmente instituído pelo PCT iniciava-se com a constituiçãode uma associação de pessoas interessadas em adquirir terra. Como muitas nãopossuíam experiência associativista, contavam com um modelo padronizado deassociação, inclusive de estatuto. Em seguida, identificava-se a área para a comprae o proprietário fornecia uma carta de compromisso de venda. Assim, entrava-secom a solicitação na CDA para análise jurídica da documentação.

Em princípio, o tamanho da área não era um fator restritivo para a seleção daspropriedades. No entanto, como decorrência da vinda do Painel de Inspeção doBanco Mundial, no ano 2000, para averiguar denúncias de irregularidades, pas-sou a haver uma definição de limite máximo de área em 15 módulos fiscais5. Istoatendia à demanda dos movimentos sociais sobre o caráter de complementaridade

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ao programa de reforma agrária, posto que as áreas passíveis de desapropriaçãonão poderiam mais ser adquiridas pelo PCT.

Ainda quanto ao aspecto jurídico, seria analisada a documentação referente àárea pretendida, exigindo-se a apresentação da certidão vintenária, isto é, a com-provação de origem da propriedade. Esta exigência tornou-se outro critério daeliminação de vários processos, principalmente na região oeste do estado, demons-trando a ilegalidade na aquisição de muitas delas.

Após o atendimento das exigências jurídicas, era realizada a vistoria da áreapretendida para a avaliação das condições agronômicas (viabilidade técnica) e dopreço da terra.

No momento da implantação do PCT, devido à falta de estrutura da CARpara acompanhar a execução, e mesmo pelas próprias dificuldades da CDA paramontar sua equipe de trabalho, o parecer técnico era emitido por profissionaisnão diretamente vinculados ao projeto, sendo que muitos foram elaborados portécnicos da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA) ou da Comis-são Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC). Isto permitiu que ocor-ressem casos com desdobramentos trágicos, como a aquisição de áreas imprópriase a interferência de técnicos na definição de áreas. A superficialidade e a poucaconfiabilidade de alguns laudos trouxeram muitas dificuldades na implementaçãodos projetos, demonstrando que a qualidade dos mesmos era uma peça funda-mental para o seu sucesso.

As questões relatadas levaram a CDA a assumir as vistorias e a CAR a acompanhare vistoriar todas as áreas indicadas, como uma maneira de referendar a indicação. Istosignificou, para o Estado, uma duplicação de funções e, portanto, de custos. Atual-mente, este procedimento não vem sendo mais adotado, sendo a responsabilidade davistoria técnica atribuída somente à CDA, cabendo à CAR a assinatura do parecerfinal que antecede o envio do Subprojeto de Aquisição de Terras (SAT) ao banco.

Atualmente, o SAT vem sendo elaborado pelo técnico indicado pela associa-ção e credenciado pela CDA, após avaliação jurídica e vistoria da área e aprovaçãopelo Comitê de Avaliação (CAT), composto pela CAR e pela CDA. Também énecessária a aprovação do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural ou doConselho do FUMAC (Fundo Municipal de Apoio Comunitário) do município,além do aval do Sindicato de Trabalhadores Rurais. Estas entidades observam aconveniência da aquisição da área a partir da qualidade, localização e infra-estru-tura disponível, avaliando a adequação do preço pretendido.

O SAT é então submetido ao Conselho Estadual de Desenvolvimento Regio-nal Sustentável (CEDRS), do qual participam Secretaria da Agricultura e a deno-

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minada “rede de apoio” composta pela FETAG, FETRAF e pelo Movimento deOrganização Comunitária (MOC). Essas entidades participam e monitoram ocadastramento das famílias no PCT. Isso demonstra que o projeto vem operandocom uma maior intervenção institucional, e não apenas pela simples atuação dasforças de mercado.

Se algumas das propostas apresentadas no início não foram adiante por apre-sentarem problemas jurídicos e técnicos, outras passaram ao largo do rigor destasvistorias e constituem, hoje, problemas para o estado e prejuízo para as famíliasadquirentes. Devido às características do PCT, o dono da terra está isento de qual-quer sanção, haja vista que a negociação foi realizada dentro de um processo decompra e venda que pressupõe a liberdade de ambas as partes para este ato.

Um dos principais problemas em relação ao comprometimento de áreas ad-quiridas diz respeito às questões ambientais, em especial à implantação de proje-tos em áreas com grande proporção de Mata Atlântica e em Áreas de PreservaçãoPermanente (APP) com sérias limitações para o uso produtivo. Como se podeobservar na Figura 1, que indica a localização dos PCT/PCF, existe uma concen-tração espacial na faixa litorânea, onde predominam remanescentes desseecossistema.

Apesar das conhecidas limitações, muitas são as áreas que foram adquiridas e,hoje, encontram-se com a produção comprometida, como é o caso de Nova Es-perança, no município do Prado. Neste projeto a área adquirida foi de 978 hecta-res, dos quais 435 hectares são de Mata Atlântica. Com a área destinada à produ-ção comprometida, a “esperança” ficou restrita ao nome da associação. Na FazendaBuris, da Associação Comunitária Sem-Terra Entre Rios, no município de EntreRios, foi adquirida uma área de 800 hectares, mas apenas pode ser utilizada 10%da área total. Casos semelhantes de restrições são registrados em Novo Paraíso(município de Alagoinhas), Timbó e Altamira do Conde (município do Conde),Irmãos Unidos (município de Canavieiras) e outros mais.

Após a vistoria da CDA e comprovação da CAR, é elaborado o Subprojeto deAquisição de Terra (SAT) a partir do qual é analisada a relação econômica das cultu-ras, capacidade de pagamento e custo por família. Em seguida o processo é encami-nhado ao Banco do Nordeste que, após levantamento cadastral, libera os recursospara o proprietário. A associação assume a propriedade com o aval dos sócios. Éelaborado o Subprojeto de Investimentos Comunitário (SIC) e começa a contagemregressiva de um processo no qual os assentados assumem o papel de “beneficiários”.

O estado vem tentando resolver questões como a aquisição de áreas imprópri-as e assumindo sua responsabilidade, buscando, inclusive, adquirir outra área,

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solução esta que, na maioria dos casos, ainda continua como intenção. Ao assu-mir sua responsabilidade e buscar meios de sanar os problemas, isto acarreta, comoconseqüência, custos que não são repassados para os responsáveis envolvidos noprocesso de negociação – em especial, os donos da terra, técnicos e profissionais –,mas sim para toda a sociedade, principalmente os beneficiários, os mas prejudica-dos, que acreditaram em um projeto legitimado pelo Estado.

2. A localização geográfica dos projetos

A distribuição espacial dos assentamentos implantados na Bahia pelos proje-tos denominados reforma agrária de mercado do Banco Mundial pode servisualizada na figura 1. Nesta está registrada a localização dos 111 projetos do PCT,implantados entre 1997 e 2002, e os 88 projetos do PCF, implantados entre 2002e 2005, totalizando 199 projetos, em um período de 8 anos.6

A estratégia de localização dos projetos de compra de terras segue uma lógicae se insere em um processo distinto da estratégia de localização dos assentamentosde reforma agrária. Estes surgem a partir da pressão dos movimentos sociais, sen-do antecedidos por conflitos e ocupações. Na grande maioria dos casos, são cons-tituídos onde a valorização e a pressão sobre a terra são mais intensas, concentran-do-se em determinadas regiões que acabam conformando algo próximo a “áreasreformadas”. Já a estratégia de localização do PCT/CF obedece, principalmente,às forças locais do “mercado” de terras, resultando numa distribuição dispersa deassentamentos, com exceção de alguns casos em que as oportunidades locais leva-ram à concentração, como ocorreu no Litoral Norte, com a saída das companhiasreflorestadoras, e no Litoral Sul, com a crise cacaueira, que favoreceram o cresci-mento da oferta de terras.

Com tal estratégia de localização dispersa – não importa se implantada de formaplanejada ou espontânea –, crescem as dificuldades de produção e venda dos as-sentamentos PCT/PCF. Mesmo nos casos em que os projetos estão localizadospróximos a rodovias ou centros urbanos, carecem de todo tipo de assistência. Asdificuldades crescem ainda mais quando ocorre o isolamento das áreas.

A tabela 1 mostra os PCT implantados segundo as regiões econômicas da Bahia,o número de famílias envolvidas e a área adquirida. Estes dados podem ser me-lhor analisados na figura 2, que indica o número de PCT/PCF e também o deacampamentos e assentamentos de reforma agrária por região econômica.

235

Figura 1Estado da Bahia

Programas Cédula da Terra e Crédito Fundiário por região econômica 2005

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Tabela 1 – Bahia. Projetos Cédula da Terra por Região Econômica, 1997-2002Região Econômica Projeto Nº Famílias Área Total (ha)

Baixo Médio São Francisco 0 0 0,00

Chapada 6 309 7.250,10

Extremo Sul 17 846 9.548,80

Irecê 5 160 4.401,50

Litoral Norte 12 463 11.441,00

Litoral Sul 10 277 3.107,90

Médio São Francisco 9 290 7.878,00

Metropolitana SSA 0 0 0,00

Nordeste 12 468 9.600,90

Oeste 12 468 12.187,70

Paraguaçu 6 180 3.211,10

Piemonte da Chapada 8 271 6.384,60

Recôncavo 2 65 1.234,10

Serra Geral 5 200 4.896,00

Sudoeste 7 266 3.115,80

TOTAL 111 4263 84.257,50Fonte: BNB/MDACARElaboração: Projeto GeografAR, 2006.

Os PCTs na Bahia foram implantados em maior número na região do Extre-mo Sul, com 17 assentamentos, tendo sido “beneficiadas” 846 famílias com umaárea total de 9.548,80 hectares. Em termos de superfície, as maiores áreas foramdestinadas na região Oeste, com 12.187,70 hectares, distribuídos em 12 projetosenvolvendo 468 famílias. Foram comercializados 11.441,00 hectares no LitoralNorte, também em 12 projetos, com 463 famílias envolvidas no processo e, naregião Nordeste, 9.600 ha, distribuídos em 12 projetos, com 468 famílias. Asdemais regiões participantes do processo negociaram áreas menores e, conseqüen-temente, apresentam um número reduzido de projetos e famílias.

O desenho dos PCTs na Bahia revela arranjos espaciais que refletem a respos-ta a fatores externos e internos relacionados aos encaminhamentos necessários paraa solicitação do crédito. No primeiro caso – Extremo Sul –, a região é “área dedomínio” do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Aimplementação do PCT nessa região atende a dois objetivos: de um lado, fazerfrente a este Movimento; de outro, aproveitar o clima favorável de expectativagerada nos trabalhadores sem-terra que não se alistam nas fileiras do MST, masque ficam na “expectativa” ao verem seus iguais conseguindo terra. Aliado à extre-ma pobreza e à presença de uma grande massa de trabalhadores rurais excluídos –principalmente como resultado da crise cacaueira, que também gerou a oferta deterras –, este é o contexto que favoreceu a implantação do Projeto.

Soma-se a isto o fato de o MST, apoiado pelos trabalhadores rurais, ter conse-guido eleger o prefeito do município de Itamarajú. Esta conjuntura gerou maior

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expectativa de embate daqueles políticos que anteriormente não levavam em con-sideração o imenso contingente de trabalhadores prontos a ocupar terras e, inclu-sive, com potencial para eleger forças políticas alinhadas com seus interesses. Esteseria um motivo plausível para uma maior atenção dada aos PCTs como instru-mento para angariar o voto dos novos assentados.

No caso do Litoral Norte, outros fatores promoveram a concentração de pro-jetos, como a disponibilidade de terras advindas do abandono das áreas de reflo-restamento pelos antigos proprietários. Somou-se a isto, a ação da Central das As-sociações do Litoral Norte (CEALNOR), criada em 1997, cuja finalidade erafortalecer a organização comunitária para melhorar aspectos como comercialização,infra-estrutura e acesso à terra e à assistência técnica. A CEALNOR teve um pa-pel fundamental para articular os “beneficiários” nas negociações no mercado deterras geradas pelo PCT. Assim, ao lado de uma oferta de terras, havia não só umademanda, mas uma demanda organizada. Devido a essas condições especialmen-te favoráveis, os primeiros assentamentos do PCT na Bahia foram criados no Li-toral Norte, atingindo o total de 12 áreas adquiridas.

Tabela 2 - Estado da Bahia. Projetos Crédito Fundiário por Região Econômica, 2002-2005Região Econômica Projeto Nº Famílias Área Total (ha)

Baixo Médio São Francisco 13 445 4.058,00

Chapada 1 35 752,00

Extremo Sul 0 0 0,00

Irecê 17 579 10.847,60

Litoral Norte 3 74 1.275,00

Litoral Sul 2 44 418,00

Médio São Francisco 7 231 6.395,10

Metropolitana SSA 0 0 0,00

Nordeste 11 343 7.436,76

Oeste 15 598 14.539,70

Paraguaçu 1 25 418,20

Piemonte da Chapada 7 250 5.483,72

Recôncavo 1 35 366,00

Serra Geral 2 70 1.707,00

Sudoeste 8 270 3.605,70

TOTAL 88 2999 57.302,78Fonte: BNB/MDA/CAR ( dados dezembro/2005)Elaboração: Projeto GeografAR, 2006.

Onde o agronegócio era bastante desenvolvido, como nas regiões irrigadas doBaixo Médio São Francisco e na agricultura capitalizada de Irecê, não foi observa-do um elevado número de projetos do PCT. Esta situação se modificou depois,com a implantaçäo do Crédito Fundiário.

Também não se observa muitos projetos em regiões com estrutura agrária frag-mentada e de elevado custo de terra, como o Recôncavo e na Região Metropolita-

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na de Salvador. Isto está de acordo com limites orçamentários estabelecidos paraa aquisição de terras.

No total, o PCT “beneficiou” 4.263 famílias, em 111 projetos que abrangemuma área de 84.257,50 hectares, durante seus cinco anos de vigência na Bahia.

No período seguinte (2002 a 2005), a continuidade se deu através do Projetode Crédito Fundiário (PCF), cuja atuação pode ser visualizada na tabela 2,complementada com as figuras 1 e 2. No total, este projeto “beneficiou” 2.999famílias em 88 projetos, numa área total de 57.302,78 hectares

Nesta nova etapa da reforma agrária de mercado, obteve-se outro desenho re-gional quanto à distribuição dos projetos. Os PCFs concentraram-se, especialmen-te, na região de Irecê, região que apresentava apenas 5 PCTs e passou a ter 17PCFs. Isto aumentou o número de famílias envolvidas de 160 para 579 famílias,numa área de 10.847,60 hectares. A região Oeste também se destaca com umnúmero elevado de 15 áreas adquiridas, com 589 famílias beneficiadas com14.539,70 hectares7. Continua em destaque a região Nordeste, com mais 11 pro-jetos implantados em 7.436,76 hectares, envolvendo 343 famílias. A região Ex-tremo Sul, pioneira e com destaque no período anterior, não participou das açõesdesta fase, bem como a região Metropolitana de Salvador.

Chama atenção a alteração na distribuição espacial dos projetos implantados nesteperíodo, observando-se um aumento significativo de áreas adquiridas nas regiões degrande incidência da agricultura capitalizada, em especial de áreas irrigadas e deculturas voltadas para o agronegócio, a exemplo das regiões de Irecê e do Baixo MédioSão Francisco, além da região Oeste. Contudo, isto não significa que as terras ocu-padas pelo PCF sejam aquelas mais aptas para a agricultura moderna.

Ao mesmo tempo, existe grande dispersão dos projetos, de acordo com a es-tratégia seguida pelas associações e orientada pelas entidades de apoio de procurarterras próximas ao local anterior de moradia, geralmente no próprio municípioou, no máximo, no município vizinho.

No Extremo-Sul, o mercado de terras aquecido pela ação das empresas desilvicultura, em especial da VERACEL, tornou o preço da terra proibitivo. Omesmo ocorreu no Litoral Norte, com a valorização da celulose e da produ-ção do carvão, que fez com que empresas – em especial a FERBASA eCOOPENER, antes ofertantes de terras para o PCT e o PCF – voltassem a seinteressar pela silvicultura e oferecessem o plantio de eucalipto nas áreas ad-quiridas pelo PCT. No Litoral Sul, a recuperação da lavoura cacaueira tam-bém tem diminuído a oferta mercantil de terras, cujo preço elevado não per-mite a aquisição pelo PCF.

239

Tanto no PCT quanto no PCF, os recursos disponibilizados para a negociação sãoescassos, levando à aquisição de propriedades de menor qualidade e em localizaçãopouco favorável. Com isso, a maior parte das terras tende a não ter grande potencialeconômico e nem cumprir com um dos pressupostos do PCF: a aquisição de terrasprodutivas com infra-estrutura e localização adequada.

Figura 2 - Estado da Bahia. Acampamentos, projetosde Reforma Agrária, Cédula da Terra eCrédito Fundiário por região econômica - 2005

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Fonte: INCRA e CAR (dados dezembro/2005)Elaboração: Projeto Gráfico AR, 2006

Em um modelo de concorrência perfeita, pressupõe-se que oferta e demanda ten-dem a buscar um preço de equilíbrio. No entanto, no caso em questão, os comprado-res não têm informações por não realizarem uma ampla pesquisa de mercado, ou amesma se limita às localidades vizinhas e, muitas vezes, à própria fazenda em que tra-balhavam. A negociação que se espera de um programa de crédito fundiário não en-volveria as forças de mercado, mas sim ocorreria num contexto de apoio governamen-tal para a geração de oportunidades para os agricultores familiares carentes. O que seconstata, muitas vezes, é a aquisição de terras induzida pela oferta, pouco viável à pro-dução agrícola e, conseqüentemente, ao pagamento da terra, o que compromete aprópria continuidade do Programa Nacional de Crédito Fundiário.

3. O ritmo da implantação dos projetos

Desde o início, a reforma agrária de mercado do Banco Mundial vem sendoapresentada como uma política complementar à reforma agrária realizada pordesapropriação. Inclusive, foi incorporada no modelo de política agrária propostono documento “Novo Mundo Rural”, enquanto caminho para a “paz no campo”.Para perceber como se efetiva esta “complementaridade” na Bahia, é interessanteobservar o ritmo de implantação das duas políticas agrárias (tabela 3 e figura 3).

A visualização da representação gráfica permite observar a instabilidade quantoao número de projetos implantados no decorrer da atuação destes programas. Atendência de crescimento observada no período de 1999 a 2003 não se manteve,tendo decrescido e voltando a crescer em 2004, contudo não o suficiente para aten-der às metas estabelecidas pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA).

Figura 3 - Projetos de Reforma Agrária, Cédula da Terra e Crédito Fundiário na Bahia 1984-2005

Convém lembrar que a implantação dos programas de reforma agrária ocorrenum contexto em que existe uma demanda explícita por terra, expressa, hoje, nos

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272 acampamentos de trabalhadores sem-terra, com 19.616 famílias, distribuí-das nas diversas regiões do estado.

Nos 20 anos de reforma agrária, foram implantados 422 assentamentosno estado, reunindo 37.023 famílias e alcançando uma área total de1.262.054,03 hectares reformados. Já o número de projetos implantados pelapolítica do Banco Mundial, nestes últimos oito anos, soma 199 áreas adquiri-das, com 7.284 famílias associadas e 141.641,78 hectares negociados. Obser-va-se que, a partir da pressão dos movimentos sociais, houve o crescimentodo ritmo dos projetos de reforma agrária e o início da implantação dos proje-tos de crédito fundiário.

Tabela 3 - Cédula da Terra e Crédito Fundiário na Bahia, 1984-2005Projetos de Reforma Agrária

Ano PRA´s PCT´s + PCF´s

1984 1

1986 8

1987 26

1988 2

1989 1 -

1990 3 -

1992 8 -

1993 1 -

1995 16 -

1996 23 -

1997 41 4

1998 60 38

1999 14 9

2000 39 20

2001 17 23

2002 27 38

2003 22 21

2004 67 16

2005 46 30

Total 422 199Fonte: INCRA e BNB/MDA/CAR (dados dezembro/2005)Elaboração: Projeto GeografAR, 2006.

Constata-se um ritmo bastante semelhante na implantação dos dois progra-mas: enquanto a reforma agrária alcançou uma média de 21 projetos por ano, osprogramas PCT/PCF alcançaram uma média de 24 projetos por ano. Permane-cendo este ritmo (figura 2), percebe-se que a “reforma agrária de mercado” não é,como se preconiza, um programa complementar. Considerando-se a demandaexplícita por terra, refletida nos acampamentos espalhados em todo estado, ficademonstrada a necessidade mais que significativa de se incrementar o acesso à terraatravés da reforma agrária.

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Contudo, nos últimos anos, o ritmo de aquisição de terras via PCF tem sofri-do retração, devido principalmente a travas burocráticas, indicando que o mesmonão está tendo o mesmo nível de prioridade política, em nível estadual, que seobservou no início do Projeto. Esta afirmação se fundamenta no ritmo diferenciadodo assentamento de famílias observado entre os estados. Como a demanda fundiáriacontinua elevada, muitas associações devem esperar um período relativamentelongo, de mais de dois anos, para ter acesso à terra.

Atualmente, há 73.623 famílias cadastradas para ter acesso ao PCF. Das mes-mas, 9.202 correspondem a 294 propostas na Bahia, estado que apresenta o maiornúmero de famílias cadastradas. Contudo, até maio de 2006, enquanto noMaranhão 461 tiveram acesso ao Crédito Fundiário e 760 no Piauí, na Bahia ape-nas 85 famílias foram contratadas através de 3 projetos. Isto apesar de a Bahia sero estado que conta este ano com mais recursos disponíveis para o Projeto.

4. Tendências recentes na gestão do crédito fundiário: da repactuação à regularização

No decorrer deste artigo foram apresentadas informações gerais sobre a im-plantação dos Projetos Cédula da Terra e de Crédito Fundiário na Bahia, cabendoaqui destacar modificações mais recentes sobre a sua operacionalização. Em pri-meiro lugar, a grande diferença que marca a passagem de um projeto a outro é oapoio recebido da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura(CONTAG). Com isto, pressupunha-se superada uma das principais críticas efragilidades, que diz respeito à organização dos demandantes de terra. Assim, aFederação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAG), na escala estadual, e osSindicatos de Trabalhadores Rurais, na escala municipal, passaram a arregimentare organizar os demandantes de terra, participando ativamente da escolha das árease da implantação dos projetos.

A novidade neste aspecto é que, se antes a FETAG atuava praticamente sozi-nha, desde 2004 conta com a participação da Federação dos Trabalhadores naAgricultura Familiar (FETRAF). Esta inserção é recente, pelo que ainda não per-mite uma avaliação de resultados, mas seguramente merece ser acompanhada, poisvai significar a adesão de um segmento organizado e politizado de trabalhadores.

No entanto, a maior preocupação, de acordo com depoimentos de técnicos edirigentes, consiste em viabilizar o pagamento das terras. Ainda eles, alguns agri-cultores conseguirão pagar com relativa tranqüilidade, mas muitos outros não, o

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que justificou o esforço legal para não torná-los automaticamente inadimplentes.Esta avaliação esteve na base do que foi denominado de “repactuação”, que con-sistiu na alteração de cláusulas do contrato original. Houve a dilatação do prazode pagamento de 10 para 20 anos e um novo cálculo para o pagamento das pres-tações, não só adequando-as ao novo prazo, mas estabelecendo prestaçõesescalonadas, com valor praticamente simbólico, para os três primeiros anos. Asprestações tornam-se mais elevadas a partir do quarto ano, de acordo com o retor-no econômico esperado do projeto.

Entretanto, mesmo com todo o esforço da “operação de repactuação”, alémda ocorrência de não pagamentos, há um grande número de desistências, repassesou simples abandono dos lotes nos assentamentos. Isto gera, sem dúvida, umasituação de irregularidade, em especial frente ao compromisso assumido pelo ti-tular do lote com a associação e o banco financiador.

No “Relatório Preliminar dos Impactos Socioeconômicos e Socioambientaisdo Programa Cédula da Terra” (COSTA et al., 2002), já se constatava uma elevadarotatividade dos “beneficiários”. A proporção de desistências dos titulares, nos 26projetos do PCT analisados para a pesquisa na Bahia em 2001, ficou em médiaem 36%, com um mínimo de 10% e máximo de 80%.

Em certos casos, as famílias não chegaram sequer a se instalar na área ou desis-tiram logo no início, devido à demora em concluir o processo de aquisição daterra. Segundo o referido relatório, a escassa consolidação das associações e certaprecipitação na escolha dos beneficiários contribuem para explicar muitas destasdesistências. Em alguns casos, houve dificuldades para iniciar o projeto, pois asfazendas adquiridas, de modo geral, estavam abandonadas ou exigiam a prepara-ção de áreas para a lavoura que nunca tinham sido utilizadas antes para agricultu-ra. Isso exigiu grande esforço e um longo período de trabalho para obter resulta-dos, contrariando a hipótese de que através do Crédito Fundiário, de mododiferente ao que ocorre na reforma agrária via desapropriação, seriam adquiridasterras produtivas, com infra-estrutura, permitindo retorno rápido para os agricul-tores e viabilizando o pagamento da terra.

Outro motivo freqüente de desentendimento e saída de sócios está relaciona-do à gestão dos recursos. Vários membros das diretorias das associações abando-naram os projetos ou foram expulsos por irregularidades na prestação de contas.A alta freqüência com que ocorreram estes problemas talvez seja o indicador maisevidente da fragilidade organizacional dessas associações.

Com o intuito de fazer frente a esta situação, o MDA começou a implementarum “subprograma de regularização fundiária e revitalização nos assentamentos”,

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realizando um balanço da situação, legalizando os contratos com os novosadquirentes, em especial as questões cartoriais, buscando interessados para ocu-par os lotes vazios e assumir o compromisso pela dívida contraída. Esperava-seque a operação fosse realizada em todos os assentamentos, mas o apoio limitadodo MDA, por enquanto, não tem permitido ampliar esta intervenção. No entan-to, os órgãos estaduais responsáveis pelo Projeto assumiram, em caráter piloto, aregularização fundiária dos projetos na região do Extremo Sul do estado. Cabeobservar que, nesta região, só foram implantados projetos do Cédula da Terra,isto é, ainda sem o apoio das federações sindicais.

Em alguns aspectos, a experiência do corpo técnico das instituições envolvi-das tem permitido ações particulares do PCF na Bahia. Um destes aspectos dizrespeito à resistência à aceitação de pessoas solteiras, uma vez que há outra linhade crédito (“Nossa Primeira Terra”) destinada aos jovens. Outro diz respeito à re-sidência no local. Enquanto o MDA não faz exigência para que o assentado residano assentamento, a orientação e exigência da CAR/CDA são da obrigatoriedadedessa residência. Defende-se esse critério para propiciar um direcionamento àsatividades agrícolas e um maior envolvimento dos agricultores com seus compa-nheiros na associação.

Na Bahia houve forte intervenção dos órgãos estaduais na seleção das associa-ções beneficiárias. Conforme o Relatório de Avaliação Preliminar: “em MinasGerais e na Bahia, por exemplo, os órgãos responsáveis parecem ter optado porum maior grau de interferência no processo de seleção, arbitrando, quando ne-cessário, em favor das famílias mais pobres e necessitadas” (BUAINAIN et al. 2000:p.11). No entanto, na medida em que o Projeto não é capaz de modificar o estadode pobreza destas famílias, os ditos beneficiários reconhecem uma situação onde“a única coisa que se tem é a casa e a dívida no banco”. Continuam pobres e comuma dívida impagável no banco.

5. Pesquisas e estudos na Bahia

Segundo a metodologia que orientou a pesquisa “Política do Banco Mundialpara o meio rural com base no Projeto Cédula da Terra”,8 foram selecionados trêsprojetos do PCT para receber o tratamento de estudo de caso: a) o projeto Anto-nio Conselheiro, localizado no município de Esplanada, na Região Litoral Norte,implantado em novembro de 1997, foi o primeiro assentamento deste Programano estado da Bahia; b) o assentamento São Geraldo, no município de Itanhém,

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na Região Extremo Sul, implantado em outubro de 1998; c) o assentamento Valedo Paraguaçu, no município de Boa Vista do Tupim, na Região do Paraguaçu,implantado em janeiro de 1999.

Tanto a seleção das áreas, como a dos sócios ou “beneficiários” entrevistados,obedeceu a uma metodologia previamente estabelecida, procedimento necessáriopara que os resultados de cada estado pudessem ser comparados. A pesquisa decampo foi complementada por entrevistas com técnicos e dirigentes do Projetono estado. Isto permitiu entender mais profundamente os mecanismos de implan-tação do PCT na Bahia e os casos selecionados. Nestes foi possível recompor todoo processo de aquisição da terra, a origem dos beneficiários, sua organização paraadquirir, trabalhar e viver na terra e, finalmente, suas perspectivas.

Os resultados desta pesquisa foram apresentados no seminário “Questão daTerra na Bahia” (Germani & Carvalho, 2001). Destes, foram selecionados algunsaspectos gerais que permitem visualizar tanto os mecanismos como as limitaçõesdo Projeto. Convém observar que estes dados são registros de um momento pre-térito, não sendo considerados neste relato a atualização das informações nem oseu desdobramento ou superação.

Também tomou-se como subsídio a pesquisa “Avaliação Preliminar do Pro-grama Cédula da Terra”, realizada na Bahia pela Escola de Agronomia da UFBAem 2001. Nesta, foram entrevistados beneficiários de 26 projetos em cinco re-giões: Litoral Norte (município de Esplanada), Sul e Extremo Sul (Canavieiras,Jussarí, Guaratinga, Potiraguá, Itanhém, Itamarajú e Prado), Chapada Diamantina(Bonito e Piatá), Sudoeste (Poções), bem como projetos localizados em várias re-giões com predomínio do semi-árido (Euclides da Cunha, Senhor do Bonfim, BomJesus da Lapa, Mairi, Tucano e Sebastião Laranjeiras). A realidade dos projetos foicomparada com assentamentos de reforma agrária e com áreas de agricultura fa-miliar.

Somam-se a estes casos os projetos visitados para realização da “Pesquisa Popu-lar no Meio Rural sobre o Programa Crédito Fundiário”, promovida em 2005 pelaRede Social de Justiça e Direitos Humanos em todos os estados de atuação da “re-forma agrária de mercado”. Na Bahia, foram visitados seis projetos, três do PCT etrês do PCF, onde foram entrevistadas 60 pessoas.9 Participar deste estudo permitiuconstatar a permanência e/ou alteração de certas características identificadas naspesquisas anteriores. Os resultados deste estudo, ainda inéditos, dão uma ordem degrandeza de algumas questões abordadas (Germani & Freitas, 2006).

As informações obtidas permitem pontuar algumas questões gerais que desve-lam o desenvolvimento da política do Banco Mundial na Bahia. Embora algumas

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delas possam já ter sido superadas, outras permanecem e se repetem nos novosprojetos. As principais serão descritas a seguir.

5.1. Relação entre tamanho da área, número de sócios e montante de recursosA relação entre o tamanho da área, o número de sócios e o montante de recursos

disponível por família interfere tanto nas estratégias e nas condições que os pretensoscompradores terão para enfrentar o mercado, como nas condições posteriores parafazer frente aos compromissos assumidos com o sistema financeiro.

Neste aspecto, observou-se que, em muitos casos, aumenta-se o número defamílias nas associações para se atingir o teto financeiro que possibilite a im-plantação de projetos com recursos não reembolsáveis (SIC). Isto traz uma sériede conseqüências: (a) se todos os inscritos permanecerem no projeto, a área porfamília se torna pequena, comprometendo o nível da produção e materializan-do a “minifundização programada” realizada pelo próprio Estado; (b) quandonem todos os inscritos passam a ocupar os lotes, aumenta o ônus por família,pois as mesmas têm que assumir as parcelas correspondentes àquelas abandona-das; (c) em alguns casos, observa-se que, mesmo tendo assumido uma dívidamaior, os agricultores que restaram rejeitam a entrada de outras famílias paraocuparem os lotes abandonados, possivelmente para ficar com uma área maior.Isto nega a concepção do Projeto de atender o maior número de famílias possí-vel, desde que possam pagar e ser eficientes. As famílias que entram em substi-tuição a outras são prejudicadas no acesso aos recursos do SIC (investimentossocioprodutivos), calculado com base no número inicial de adquirentes, levan-do a uma destinação desigual dos recursos que privilegia algumas famílias, emdetrimento de outras.

No caso de PCT São Geraldo, por exemplo, inicialmente havia 130 inscritos,mas, segundo depoimentos, nunca houve este número de beneficiários. O maiornúmero de famílias foi 96, sendo que, pela demora da chegada dos recursos, 41delas desistiram. Quando da realização da pesquisa havia 55 famílias e, segundoinformações posteriores, outras seis saíram. A indicação técnica recomendava umnúmero de 70 beneficiários.

Outros casos ocorreram de forma semelhante, como no PCT Antônio Con-selheiro, onde dos 66 “beneficiários” que participaram inicialmente, 18 desisti-ram. No Vale do Paraguaçu havia 35 famílias, das quais 7 desistiram. No PCTMarcação (Ribeira do Pombal) houve uma evasão quase total das primeiras famí-lias. Nos 26 casos estudados por Costa et al. (2002), verificou-se um percentualmínimo de 10% e um máximo de 80% de desistência nas áreas do PCT.

247

Em quase todos os casos, as áreas individuais sempre são de tamanho inferiorao módulo rural, ao fiscal e mesmo à fração mínima da propriedade. O referidorelatório verificou que o número de módulo/família variou entre 0,18 a 1,04, comuma média de 0,51 e coeficiente de variação de 52,94%, indicando grande varia-bilidade e insuficiência na área destinada a cada família (Costa et al. 2002). Con-siderando que o conceito de módulo fiscal procura levar em conta a capacidadede reprodução social da propriedade familiar, o próprio Estado desrespeita suasregras e contribui para a minifundização.

A maior relação módulo/família está no Litoral Norte, onde a média se apro-xima de 1,0. Possivelmente isto decorre do fato de que tais áreas tenham sidoofertadas em grande quantidade pelas empresas de reflorestamento, e tambémporque estão entre as primeiras áreas adquiridas pelo Projeto na Bahia.

5.2. Formação das associações e participação dos trabalhadores.A formação da associação é um requisito obrigatório para a implementação

do PCT. Tanto a formação das associações como seu funcionamento estão direta-mente vinculadas à origem, ao perfil e à experiência organizativa de seus integran-tes, o que reflete no processo desenvolvido nas áreas adquiridas. É interessanteapresentar o que foi visto sobre este tema.

A associação do PCT Antônio Conselheiro se distingue pois a grande maioriados hoje “beneficiários” já pertencia a uma associação em seu local de origem (La-goa Seca, no município de Rio Real). Essa associação estava vinculada à Centralde Associações do Litoral Norte (CEALNOR), não sendo, portanto, uma associa-ção isolada, mas articulada regionalmente. No entanto, a associação formada como intuito de adquirir terras pelo PCT tem outro caráter e outro nível de responsa-bilidade. Não deve se preocupar apenas em congregar e organizar, mas tambémem administrar e controlar os recursos que recebe, prestando contas aosbeneficiários e às instituições financeiras.

No caso do PCT São Geraldo, apesar de a maioria dos sócios vir da mesmaregião, essas pessoas não se conheciam, o que dificultou, no geral, a sociabilidadena área adquirida. Os associados selecionados foram, em sua grande maioria, in-dicados por políticos regionais, e nem todos têm o perfil exigido pelo Programa.A formação da associação – requisito fundamental para “entrar no Cédula” – deu-se, posteriormente à compra do imóvel. Como se não bastasse, a primeira direto-ria já estava definida. Segundo depoimentos: “O primeiro presidente não foi elei-to, ele já foi associado como presidente (…). Assim que a gente soube que a terrahavia sido comprada e a Associação criada, já chegou presidente, já chegou tesou-

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reiro (...) tudo pronto”. Laços de identidade coletiva se constroem com convivên-cia, trabalho e luta por objetivos comuns, nascidos de necessidades internas aogrupo, e não, como ocorreu ali, impostos de fora para dentro. Numa associaçãoformada desta maneira era de se esperar que sua atuação tampouco seria demo-crática. A solicitação dos recursos não passou por uma discussão entre os sócios,muito menos as definições quanto à sua aplicação.

O afastamento do presidente, após um ano de mandato e de declarada situa-ção de desvio de recursos, não implicou, contudo, uma abertura de inquérito ousindicância para responsabilizá-lo. A nova associação eleita – e, portanto, todos ossócios –, além de assumir o desvio dos recursos, “herdou” uma dívida no comér-cio local, correspondendo a uma porcentagem significativa do SIC a receber. As-sim, embora os associados tenham conseguido afastar a diretoria anterior e legiti-mado outra escolhida por eles, os mesmos teriam que enfrentar, entre outrosdesafios, as dívidas feitas sem o seu aval.

Outro caso é o da formação da Associação do Vale do Paraguaçu que precedeua compra da terra. Participaram desta associação moradores do município deMarcionílio de Souza, que já se conheciam, inclusive com relações de parentesco.Este fato facilitou a sociabilidade entre eles. Isto não quer dizer, porém, que a for-mação da associação não tenha sido induzida. Seu fundador foi o divulgador doPCT e atuou como corretor na compra da terra. Este, após implantar o PCT,desvinculou-se para assumir um cargo na prefeitura de Marcionílio de Souza.

Segundo Costa et al.(2002), a maioria das associações beneficiárias foi criadacom a finalidade exclusiva de aderir ao PCT. Chama atenção a coincidência entreo nome da associação e o nome da fazenda adquirida, além da proximidade dadata criação da associação com o efetivo início do projeto.

De um modo geral, o nível organizativo anterior era relativamente frágil, o queirá se refletir em dificuldades para a auto-seleção dos beneficiários e a própria gestãodas associações e dos projetos. A grande maioria das associações originou-se de reu-niões de grupos interessados, sem grandes vínculos entre si e com frágil propostaassociativista, em geral gerada por estímulo externo. Quanto à atuação de mediado-res que atuaram induzindo a formação de associações, observou-se a presença depolíticos, proprietários de terras e lideranças religiosas (Costa et al., 2002).

Dos entrevistados pela Pesquisa Popular, 58,3% afirmaram que nunca parti-ciparam de nenhum movimento ou associação, enquanto 15% disseram já terparticipado. Algumas lideranças dos assentamentos do Litoral Norte já haviamparticipado de movimentos sociais, mas haviam rompido ou sido expulsos. Inte-ressante registrar o caso do PCT Sempre Vida, no município do Conde. Apesar

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de fazerem parte de uma associação vinculada ao Movimento de Luta pela Terra(MLT) e reivindicarem terra pela reforma agrária, os agricultores foram encami-nhados pela CDA para aderirem ao PCT. Já na fase do Crédito Fundiário, muitasassociações foram formadas por população excedente de acampamentos (que nãofoi assentada pela reforma agrária) e grupos originários de movimentos sociais.

5.3. O perfil dos “beneficiários”Na caracterização do perfil das famílias do PCT (Costa et al. 2002), obser-

vou-se que o nível de escolaridade dos “beneficiários” do PCT na Bahia era, emgeral, baixo: 34,1% eram analfabetos. Somando àquelas pessoas que apenas sa-bem ler e escrever, chega a 43,9%. Com relação à ocupação anterior, constatou-seque 84,4% dos beneficiários do PCT já se ocupavam em atividades agrícolas, so-bretudo como trabalhadores temporários. A renda anterior das famílias ligadas aoPCT era baixa, com uma média mensal de R$ 134,53 em 2001. Essa pesquisatomou como referência assentamentos do INCRA, concluindo que, na Bahia, nãohá diferença significativa no perfil das famílias beneficiárias de ambos programas.Assim, embora o PCT se diga complementar à reforma agrária, ambos disputamo mesmo público.

5.4. A organização espacial, o papel do SIC e o lote coletivoO modelo de organização espacial adotado pelo PCT/PCF na Bahia divide a

área adquirida em quatro: agrovila, área coletiva, lotes individuais e reserva legal.A esta divisão corresponde, também, uma estratégia da organização da produçãoque evidencia algumas contradições entre as atividades do lote coletivo e do indi-vidual relativas à própria natureza do lote coletivo.

Nos assentamentos de reforma agrária, as atividades em lotes coletivos sãoentendidas como um meio de socialização econômica e política mais avançada.No caso do PCT, o lote coletivo foi sugerido como um meio para garantir o paga-mento da prestação da terra ao banco. Esta estratégia de utilização obrigatória dosrecursos do SIC na área coletiva foi definida na Bahia pela coordenação estadual,diferindo do ocorrido em outros estados, o que corrobora a hipótese de forte interfe-rência dos órgãos estaduais na implantação do Projeto.

Na Bahia, os agricultores receberam diárias a partir da participação nas tarefascoletivas na execução dos projetos viabilizados com recursos do SIC. Este meca-nismo ganha um contorno sui generis no sentido de que esta diária funciona como“falso salário” (faux salaire), pois não é produzida pelo próprio trabalhador, vempara ele de fora do ato da produção. Paradoxalmente, esta diária vai garantir, como

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se fosse um verdadeiro salário, a reprodução do portador da força de trabalho e desua família no período inicial.

Na pesquisa de campo da “Avaliação do Programa Cédula da Terra” (Costa etal., 2002), constatou-se que alguns agricultores assumiam comportamento simi-lar ao de assalariados, considerando como “patrão” o órgão estadual encarregadoda fiscalização do Projeto.

Este “falso salário” não é pago por acaso. Na verdade, é a garantia de que omutuário produza, no lote coletivo, não um excedente, mas todo um valor adicio-nado que deve ser destinado ao pagamento da terra. Assim, por meio deste meca-nismo engenhoso – mas arriscado para o Estado –, espera-se que o trabalhador dolote coletivo transfira todo o valor da produção para o pagamento ao banco.

Se o trabalhador, mediante as circunstâncias favoráveis, produzir um valor exce-dente, poderá reunir alguma poupança, mas nada confere que esta seja uma realida-de generalizada. Ao contrário, nos três estudos de caso realizados para a pesquisa“Política do Banco Mundial para o meio rural com base no Projeto Cédula da Ter-ra”, este esquema não funcionou. A produção do lote coletivo foi um fracasso, nãopor falta do recurso para pagamento da diária ou de trabalho, mas por falta de orien-tação ou pelas limitações técnicas e de qualidade da terra. No PCT São Geraldo,todo o café plantado na área coletiva foi perdido. No Vale do Paraguaçu, localizadono semi-árido e às margens do rio Paraguaçu, a viabilidade econômica da área esta-va assentada no projeto de irrigação que nunca chegou. No PCT Antonio Conse-lheiro, contrariando as recomendações, os recursos do SIC foram destinados à plan-tação de maracujá no lote individual, que sofreu sérias perdas.

Para os investimentos nos lotes individuais, deveriam ser mobilizados recur-sos de outras fontes, como os do Pronaf-A. Na prática, estes empréstimos demo-ram e a diária é percebida como um salário que, quando acaba – sem que se te-nham garantido as condições de reprodução –, obriga muitos a buscar.

A gestão do trabalho coletivo é problemática na maioria dos projetos e osproblemas se acentuaram no momento em que acabam os recursos do SIC e,conseqüentemente, o pagamento de diárias (Costa et al, 2002). Algumas áreascoletivas foram divididas em pequenas parcelas, sob a responsabilidade de cadafamília. Outros projetos estabeleceram a sistemática de dedicar um ou dois diaspor semana para a área coletiva. Caso o “beneficiário” não compareça ao traba-lho coletivo ele leva “falta”, sendo essa situação resolvida de modo diferenciadopor cada associação.

É revelador que, em pelo menos dois assentamentos, os agricultores se referi-ram à área coletiva como “área do governo”, vista apenas com a finalidade de pa-

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gar o empréstimo. Isto dá a idéia de que, além das dificuldades inerentes à organi-zação de qualquer trabalho coletivo, no caso do PCT, alguns agricultores perce-bem a área coletiva como alheia a eles. A concentração das atividades no lote co-letivo acaba conflitando com a do lote individual. Com o fracasso do primeiro ea não preparação do segundo, cria-se uma resistência a qualquer atividade coleti-va ou a uma socialização maior na área adquirida.

5.4. Assistência técnicaA assistência técnica nesta estrutura tem também uma função de controle, uma

vez que o técnico deve garantir a execução do projeto previsto para o SIC (cons-trução das casas, plantios ou criações na área coletiva, prestação de contas, dentreoutros). Este técnico, cuja remuneração é extraída dos recursos do SIC é terceirizadoe serve de nexo entre a associação e os órgãos estaduais.

As fragilidades da assistência técnica podem ser analisadas sob três aspectos: operfil da equipe, a carência e a atuação equivocada. A assistência técnica limita-sea uma equipe formada principalmente por agrônomos, pontuada por alguns téc-nicos, definidos vagamente como sendo “do social”. Um projeto de tal enverga-dura e grau de complexidade exige o desenvolvimento de propostas que busquema viabilidade da reprodução social dos beneficiários, e não a reprodução de mode-los como aqueles implantados no Sul, onde plantaram somente pimenta e café,no Oeste (concentrado no caju e capim) e no Litoral Norte (monocultura do coco).

Tomando como exemplo o PCT São Geraldo, pode-se imaginar o ônus quesignificou para esta comunidade não só a ausência de um técnico, mas, antes, suaatuação. Teve início com o próprio parecer agronômico que deu sustentação aoprocesso de aquisição da área, que é questionado pelos “beneficiários”.10 Conti-nuou com a plantação de mamão e de maracujá – que os visitantes do Painel doBanco Mundial viram e avaliaram como positiva –, que nem chegou a ser colhi-da. A primeira morreu infestada por podridão de raiz e a segunda por ácaro bran-co e mosaico. Por fim, foram erradicadas. Como se não bastasse, tiveram orienta-ção para plantar 18 mil mudas de café em terreno impróprio. Segundo depoimentode um agricultor, “foi plantado num lajedo e o café chochou”.

Outros depoimentos revelam que o técnico se dedicava mais ao trabalho bu-rocrático: “Ele vinha para fazer uma prestação de contas, vinha pra fazer um pro-jeto, fazer um SIC. Então não tinha tempo para ir no meu lote (...) ou até mesmona área coletiva. (...) Na assistência técnica, nós sempre ficou pendente disso”.

A CDA reconhece as dificuldades e a importância na seleção do profissionalde agronomia e tem realizado esforços para capacitação e treinamento dos técni-

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cos contratados. Mas, ao mesmo tempo em que terceiriza, mantém o controle eacompanha a atuação do profissional, não estabelecendo nenhum mecanismo ouinformação aos assentados sobre a sua responsabilidade no exercício profissional11.A associação que contratou e destinou recursos do SIC para remunerar o profissio-nal vai arcar com os prejuízos causados por ele.

Por outro lado, não obstante a responsabilidade pelo pagamento ser da associa-ção, esta não tem autonomia na escolha dos técnicos. Há casos em que técnicosrespeitados são desligados de suas atividades pela CDA, principalmente quandopercebem a fragilidade do projeto e estabelecem vínculos de responsabilidade como grupo social que os contrata para a superação dos problemas.

Os técnicos com mais sensibilidade e compromisso fazem todo tipo de traba-lho, desde encaminhar os beneficiários para fazer sua documentação pessoal até,principalmente, organizar e controlar as contas da associação, conseguindo, comisso, imprimir um diferencial e uma perspectiva para os beneficiários.

Assim como em outras experiências de “terceirização”, o técnico ou empresacontratada para prestar assistência técnica assume um “contrato de risco”. Elaboraos projetos, submete à apreciação competente, mas só é remunerado quando é libe-rado o recurso do projeto. Muitas vezes estes recursos não atingem o nível do saláriomínimo profissional. Porém, não basta apenas elaborar bons projetos. Os recursostêm que chegar no tempo certo para viabilizá-los. Portanto, o profissional assumetambém um “contrato de risco” não só financeiro, mas também profissional.

Foi possível perceber que 74,6% dos agricultores tinham recebido algum tipode assistência técnica (Costa et al., 2002). Contudo, ela estava atrelada aos proje-tos do SIC. Esse fato é uma grande falha pois quando os recursos do SIC se esgo-tam, não há qualquer tipo de assistência técnica prevista.

5.5. Nível da produção e nível de vidaAs evidentes limitações do PCT até aqui apontadas demonstram que este está

assentado sobre limites bastante estreitos para uma reprodução ampliada da capaci-dade de produção não só de valores de uso – produtos que deverão ir diretamentepara o consumo dos assentados –, mas também de excedentes intercambiáveis.

A ampliação do nível de vida daquelas populações não pode ficar restrita aoslimites de uma produção agrícola ou artesanal, tal como uma atividade agrícolade subsistência. Isto equivale a decretar, no curto prazo, a falência das associaçõese, no médio prazo, a falência do Projeto.

A Pesquisa Popular verificou que, para 53,3% dos entrevistados, a produçãono assentamento não é suficiente para o sustento da família; 46,7% recebem uma

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complementação do Bolsa Família e 40% têm trabalho fora do assentamento,normalmente com a venda do dia nas fazendas vizinhas. Em algumas áreas adqui-ridas na Chapada, como no Vale do Paraguaçu, os beneficiários estão se deslocan-do para São Paulo para o corte da cana-de-açúcar.

Ao mesmo tempo, 100% dos entrevistados têm habitação, 81,7% têm luzelétrica, 88,3% têm água para o consumo, mas só 13,3% têm água para a produ-ção. Convém lembrar que parte dos recursos para abastecimento de água e luzelétrica vem do governo federal, a exemplo do “Luz no Campo”. Apesar de seremindicadores importantes sobre a qualidade de vida, apenas 26,7% afirmaram termelhorado muito, 46,7% afirmaram ter melhorado um pouco, para 13% está iguale para 5% afirmaram que as condições de vida pioraram.

Das melhorias apontadas, 30% referem-se ao acesso à terra própria e 15% àcasa própria. Esta avaliação deve levar em consideração o patamar em que essaspessoas estavam antes de ingressar no PCT. Para alguns, ter uma terra e uma casajá representa muito. Mas, no caso, ter terra própria e não conseguir torná-la pro-dutiva e viver dela, significa também a perspectiva de não poder vir a pagá-la.

5.6. Condições de pagamentoSem dúvida, com a situação traçada anteriormente, as condições de pagamen-

to da terra ficam bastante comprometidas. A preocupação dos dirigentes diantedeste quadro justificou alterações contratuais numa operação denominada de“repactuação”. Com isto, muitos beneficiários conseguiram pagar as três primei-ras prestações, embora estime-se que, mantidas as condições atuais, muitos nãoconseguirão pagar a quarta parcela, confirmando que, em muitos casos, a situa-ção de inadimplência foi somente postergada, o que evidencia a fragilidade doPrograma.

Tem-se como exemplo, no PCT, a Associação Mocó, em Andaraí, que conse-guiu quitar algumas parcelas, não como resultado da rentabilidade produtiva dolote, mas por meio da venda de bens que possuíam. O mesmo não aconteceu coma Associação Lagoa Nova Arcolan, em Wagner; a Associação Trabalhadores RuraisFazenda Padre Cícero, em Lençóis; a Associação Fazenda Gamelas, em Andaraí; aAssociação Vale do Paraguaçu, em Boa Vista do Tupim; a Associação PequenosAgricultores do Distrito João Amaro (Fazenda Santo Antônio de Pádua), em Iaçu.Todas tiveram a dívida repactuada, as famílias não conseguiram pagar as presta-ções e agora estão resistentes a uma nova proposta de repactuação.

As condições de repactuação, em especial com relação às taxas de juros e mon-tantes devidos, não têm sido devidamente esclarecidas, gerando mais insegurança

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entre os “beneficiários” e resistência a este procedimento. Há de se considerar,também, que muitos beneficiários contrataram os créditos do PRONAF junto aoBanco do Brasil, cujo pagamento pesará ainda mais em seus compromissos finan-ceiros.

Dos entrevistados pela Pesquisa Popular, quando perguntados se a produçãoseria suficiente para pagamento das prestações ao banco, 41,7% responderam quenão, o mesmo número respondeu que sim, 15% estavam em carência e 1,7% nãosabiam. Os sócios da Associação Marcação, por exemplo, estão garantindo o pa-gamento das prestações com as atividades nos lotes individuais e com a venda dodia nas fazendas vizinhas.

Nesta mesma pesquisa, observou-se que, de modo geral, há bastantedesinformação entre os agricultores assentados quanto a normas e condições fi-nanceiras do crédito: 61,7% dos entrevistados não souberam identificar em queprograma haviam comprado a terra. Embora 66,7% dos entrevistados afirmas-sem ter assinado o contrato (13,3% foi assinado pela esposa), apenas 20% disse-ram ter recebido cópia do mesmo. 3,3% não sabiam e 76,7% afirmaram não te-rem recebido.

Questionados sobre as penalidades que sofreriam caso não conseguissem pa-gar a dívida com o banco,12 somente 26,7% apontaram a perda da terra; o mesmonúmero afirmou ter o nome incluído no SPC e 1,7% no SERASA; 3,3% disse-ram que não teriam direito a empréstimo para plantação, cultivo ou criação e 33,3%afirmaram não saber quais seriam as penalidades.

Ao não pagar a terra, o “beneficiário” pode ser executado judicialmente e ficarimpedido de ter acesso a qualquer outro programa governamental, mesmo ao cré-dito em geral, situação que o aprisiona à condição de um excluído absoluto dasociedade. O Projeto se converte, a partir de sua própria concepção, em sua antí-tese. De sem-terra o beneficiário passa a “estar” na terra, mas continua um “sem-terra” legalmente e, também legalmente sem condição de explorá-la.

Situação mais complexa enfrenta os que entraram no Projeto e repassaram o lotepara outro, ou simplesmente o abandonaram. Ignorando sua situação de inadimplentejunto ao sistema financeiro, continua sem-terra e devedor, sem poder entrar em outroprograma. Quem, por ventura, entrou em seu lugar, comprando ou não, também estánuma situação ilegal e tem de se submeter às condições do Projeto.13

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Considerações finais

São inúmeros os traços de improvisação e precariedade presentes não só naefetiva implementação do Projeto, mas, especialmente, na sua concepção origi-nal.

Um deles é que, todos os depoimentos indicam que o “mercado de terras” doPCT/PCF é artificialmente construído. Um mercado em que comprador e ven-dedor não se encontram livremente um diante do outro, mas através de uma in-tervenção, por parte do Estado, se faz sem que haja fluência de informação entreas partes, portanto, fora da lógica do mercado.

A intervenção governamental e a importância estratégica dos laudos técnicosna definição do preço da terra derivam da falácia representada pelo argumentodos “mecanismos de mercado” e da possibilidade de uma livre negociação entreproprietários de terra e associações de sem-terra. Isto se deve às fortes assimetriasentre as partes, à desinformação dos sem-terra, à pressão para entrar na terra (qual-quer terra) o mais rápido possível para garantir o acesso ao projeto e à subsistên-cia, além da evidente capacidade de manipulação de diversos intermediários, in-teressados em extrair lucros financeiros e/ou dividendos políticos com os projetos.Assim, em vários casos foi possível constatar que a “demanda” foi induzida pela“oferta” de determinadas propriedades por proprietários e/ou intermediários in-teressados no negócio.

Outro traço, um dos mais fortes, é a desinformação sistemática dos adquirentessobre as regras tornando-os incapazes de levar um Projeto desse tipo a qualquernível de decisão consciente e resultado positivo. Não se pode pretender êxito numProjeto no qual a tônica é a desinformação e a ignorância, claramente toleradasou manipuladas.

Dessa desinformação e desse alheamento resulta a falta de uma efetiva partici-pação e um efetivo poder de decisão, do que também resulta tornarem-se, as asso-ciações, um agrupamento de pessoas postas à mercê de interesses particulares decorretores, proprietários, políticos do próprio estado.

Na esteira desses traços também se depara com uma assistência técnica unila-teral, incompleta, irregular e insuficiente, incapaz de qualificar associações,beneficiários – e, portanto, projetos – para a elevação dos níveis de produção,produtividade, circulação, mercado e competição. Situação totalmente inviável ade manter uma produção apenas para a subsistência, principalmente num Projetoque pretende ser regido pela lógica do mercado, no estágio em que se encontra aprodução capitalista. Tudo, irônica e paradoxalmente, em nome da “autonomia”,

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do “não paternalismo”, da “liberdade de mercado” e da “participação” como me-canismos para “aliviar a pobreza”. Quando a comunidade não é levada a internalizar,no plano de sua consciência coletiva, a proposta que lhe é oferecida, o perigo damanipulação se torna visível.

A atuação do estado continua ambígua. Terceiriza, faz “reforma agrária demercado”, mas continua com as mesmas práticas intervencionistas. Uma práticaque não é equivocada apenas em uma etapa do processo, mas que vem com a marcade sua concepção. Se, na origem, é uma operação de compra e venda, o papel e aatuação do estado têm que definir os termos da sua relação com uma comunida-de, que tem de assumir os riscos do Projeto. Ao invés de dar condições – no tem-po e em quantidade necessárias – para esta comunidade construir sua autonomia,o estado se limita a mantê-la sobre controle, contrariando o discurso oficial queenfatiza o “princípio da responsabilidade”.

É evidente a inexistência de uma base física e técnica que garanta níveis compa-tíveis de produção e produtividade capazes de garantir a infra-estrutura social detodos os projetos visitados. De todos os aspectos, é a habitação o item reconhecidocomo positivo – mesmo que nem sempre venha acompanhado de saneamento bá-sico –, o que seria aceitável se se tratasse de um programa habitacional no campo.

Examinadas pelos mais diversos ângulos, as disposições estratégicas, conceituais,instrumentais, técnicas, políticas e sociais dos programas de reforma agrária demercado, constata-se que as condições mínimas para que eles “decolem”, no sen-tido entendido e afirmado pelo discurso oficial, não estão dadas. Assim, algunsprojetos que reunam certas condições poderão lograr um nível de produção e tro-ca aceitável, mas não muito além de precárias melhorias no nível de vida.

Uma outra faixa desses projetos poderá perdurar por anos a fio graças a pro-gramas assistencialistas, mantidos e monitorados pelo Estado, por algumas ONGse pelas mesmas instituições internacionais, protelando a reação que no interiordeles se engendra.

Uma outra parcela, certamente a maior, poderá abrir falência pelo fracasso,pela inadimplência, pelo abandono, pela falta de assistência técnica, peladesqualificação, pela pressão do mercado, pela execução judiciária e, com tudoisso, ter em seus beneficiários possíveis candidatos ao engrossamento do atualcontingente dos trabalhadores insatisfeitos que lutam, por conta própria, pelodireito à terra para nela trabalharem.

A título de exemplo, deve-se lembrar que aqueles que não conseguirem pagara terra, mesmo que não expulsos nem executados judicialmente, não poderão maister acesso a outros programas e nem ao crédito em geral. Desta forma, o Projeto

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deixará a família na terra, mas, muito pior, como “prisioneira da terra”. Um pro-grama de “combate à pobreza” que pode converter seres humanos em excluídostotalmente à margem da sociedade.

Notas

1 Resultados disponíveis no Relatório Preliminar do estado da Bahia, de dezembro de 2001. (Germani &Carvalho, 2001)

2 O Grupo de Pesquisa Geografia dos Assentamentos na Área Rural (GeografAR) é vinculado à Universi-dade Federal da Bahia e vem realizando estudos sobre a questão agrária no estado desde 1996.

3 Os dados desta pesquisa para o estado da Bahia constam no “Relatório Preliminar dos ImpactosSocioeconômicos e Socioambientais do Programa Cédula da Terra” e foram apresentados e disponibilizadosdurante o Seminário Questão da Terra na Bahia, (Costa et al. 2002) em “Avaliação Preliminar do ProjetoCédula da Terra”, http//www.nead.org.br/index.php, acesso em 15/06/2005.

4 Até 1999, as atribuições da CDA eram de responsabilidade da Coordenação de Reforma Agrária eAssociativismo (CORA).

5 Dois dos assentamentos selecionados para estudo – Antônio Conselheiro e São Geraldo – enquadram-senos casos de áreas superiores a 15 módulos fiscais.

6 Embora conste um total de 88 PCFs, oito destes referem-se a propostas que foram enviadas ao banco,mas não estavam efetivadas na época da pesquisa. Em janeiro de 2006, foram enviadas mais duas propos-tas para o banco, também não efetivadas.

7 Nesta região cabe destacar o município de Sobradinho, que teve 12 projetos do PCT implantados nesteperíodo. Trata-se de um caso localizado, onde a concentração pode ser explicada pela atuação de um de-putado federal, um deputado estadual e o prefeito, que promoveram esses projetos.

8 Esta pesquisa foi realizada em 2001, simultaneamente e com a mesma metodologia, nos cinco estadosonde foi implantado o PCT, por grupos de pesquisadores vinculados a universidades públicas, como umademanda do Fórum Nacional de Reforma Agrária e Justiça no Campo. O relatório da Bahia consta emGermani & Carvalho (2001) e a síntese dos resultados foi apresentada em Schwartman Barros & Sauer(2003).

9 Foram pesquisados os seguintes projetos do PCT: Associação dos Pequenos Produtores de Alto Paraíso(Faz. Santa Mônica) e Associação dos Pequenos Produtores Vila de Canaã (Faz. Santa Mônica), em Euclidesda Cunha; Associação Comunitária Sem-terra Entre Rios (Faz. Buris), em Entre Rios; Associação Marca-ção (Faz. Diamante), em Ribeira do Pombal. Do PCF foram pesquisadas: a Associação dos PequenosProdutores Rurais Sempre Vida (Faz. Reunidas), no Conde, e a Associação dos Produtores Rurais doBarrocão (faz. Baixa da Jurema), em Ribeira do Amparo.

10 Conforme depoimento de um assentado: “Nossa terra não é apropriada para assentamento. Você vê quetem 55 alqueirões e, desse total, não tem 5 alqueireões que realmente servem para a lavoura. O mais é altoé pedra”.

11 Não se tem notícias de nenhum processo encaminhado aos conselhos regionais de controle do exercícioprofissional (sistema CONFEA/CREA) neste sentido.

12 Vale ressaltar que resposta à pergunta foi espontânea, e não estimulada.13 Estas questões estão sendo objeto da operação de “Regularização Fundiária” já referida.

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O objetivo deste trabalho é analisar a especificidade do processo político deimplementação do programa o Banco da Terra no Rio Grande do Sul, à luz daexpansão do modelo de reforma agrária de mercado no Brasil. Identificamos asprincipais razões que permitiram esse programa ter se convertido na principalmodalidade de política agrária acionada pelo governo federal no estado, entre osanos de 1999 a 2002. Argumentamos que a tese da complementaridade entre oBanco da Terra e o chamado “modelo tradicional” de reforma agrária baseado nasdesapropriações – defendida pelos gestores e pelos agentes sociais favoráveis aoprograma – não se sustenta. Nossa hipótese é a de que tal programa tinha comoobjetivo político principal a quebra da conexão existente entre os processos deocupações de terra protagonizados pelo MST – em ascensão a partir da segundametade da década de 1990 – e as desapropriações realizadas pelo INCRA. Dessemodo, o Banco da Terra acabou operando como um instrumento que visava, porum lado, esvaziar e deslegitimar o instrumento da desapropriação e, por outro,disputar pela base a demanda por terra com os movimentos sociais do campo.Neste caso, o oferecimento de uma alternativa de acesso à terra que não passavapela mediação política do MST possibilitou ao governo federal e aos agentes po-líticos locais um maior nível de controle sobre o processo, em particular no quetange à seleção dos beneficiários.

Foram utilizadas como fontes principais as entrevistas realizadas pelo autorcom os porta-vozes dos movimentos sociais do campo e com gestores públicos2.Como fontes secundárias utilizamos as poucas pesquisas realizadas sobre o pro-grama no estado. O trabalho está organizado em três partes. A primeira pontua osprincipais acontecimentos que marcaram a luta política em torno da questão agráriagaúcha entre os anos de 1999 a 2002, bem como as razões que fizeram com que oBanco da Terra se convertesse na principal modalidade de política agrária do go-

A IMPLEMENTAÇÃO DO BANCO DA TERRA NO RIO GRANDEDO SUL: UMA LEITURA POLÍTICA1

CÉSAR AUGUSTO DA ROS

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verno federal no estado. A segunda parte pontua as principais razões que expli-cam a abrangência assumida pelo Banco da Terra no RS. A terceira apresenta umasíntese da discussão realizada ao longo deste trabalho.

1. O contexto político de implementação do Banco da Terra noRio Grande do Sul

A implementação do Banco da Terra no RS pode ser explicada pela confluên-cia de fatores que marcaram a luta política no meio rural gaúcho entre os anos de1999 a 2002, entre os quais destacam-se: 1) a crise do setor agropecuário; 2) oaumento das ocupações de terra e da pressão política do MST para que a Superin-tendência Regional do INCRA acelerasse a criação de assentamentos; 3) a paralisa-ção quase completa das vistorias de terra pelo INCRA por força do movimento “vis-toria zero” realizado pelo patronato rural gaúcho; 4) a mudança ocorrida nacorrelação de forças políticas no campo com a vitória da Frente Popular nas elei-ções para o governo estadual3.

Em primeiro lugar, é preciso levar em conta que o setor agropecuário gaúchofoi duramente afetado pela política macroeconômica em curso desde a adoção doPlano Real. Tal política causou uma queda na rentabilidade da produçãoagropecuária, provocando um aumento do grau de endividamento dos produto-res rurais, além de ter contribuído para reduzir o preço das terras (Benetti, 1997).Nesse contexto de crise, a alternativa mais viável para muitos dos grandes proprie-tários fundiários endividados era ofertar os seus imóveis à Superintendência Regio-nal do INCRA, ou negociar a realização de uma “desapropriação amigável”. Tal fatopermitiu ao INCRA manter certa continuidade na aquisição de terra para os seusprogramas de assentamentos, notadamente durante os anos de 1995 a 19984.

A maior parte dessas aquisições ocorreu na metade sul do estado, basicamenteem função de quatro razões. A primeira era o baixo preço das terras existente,decorrente da pior qualidade agronômica dos solos (algumas áreas, inclusive, apre-sentam sérias limitações à prática de uma agricultura de grãos nos moldes daquelaexistente na região norte do estado) 5. A segunda era o aumento da oferta de terrasao INCRA em razão da indisposição dos grandes proprietários fundiários em pos-suírem terras limítrofes aos assentamentos de reforma agrária6. A terceira era umamaior identificação de áreas improdutivas, pelo fato da matriz produtiva se basearna pecuária extensiva, o que é mais difícil na região norte do estado, onde existemestabelecimentos com um bom nível de aproveitamento das terras7. A quarta era

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o deslocamento a pressão social do MST para a metade sul, em razão desta regiãoapresentar maior concentração fundiária e da dificuldade de desapropriar terrasna metade norte.

Em segundo lugar, é necessário considerar que a pressão do MST em nívelestadual acompanhou a tendência observada no restante do país de aumento dasocupações de terra com o objetivo de acelerar e dar escala à criação de novos pro-jetos de assentamentos. A tabela abaixo indica a magnitude dessas ações duranteos governos Antônio Brito e Olívio Dutra.

Tabela 1 – Número de ocupações de terras promovidas pelo MST, acampamentos e famíliasacampadas no Rio Grande do Sul entre janeiro de 1995 e junho de 2002

Ano Número de ocupações Número de acampamentos Número de famílias acampadas

1995 2 2 787

1996 5 6 1.581

1997 4 6 695

1998 11 7 1.298

Subtotal do quadriênio 22 21 4.361

1999 12 12 1.700

2000 7 15 750

2001 12 19 875

2002 2 8 2.400

Subtotal do quadriênio 33 54 5.725Fonte: MST/RS e GRA/RS

A resposta governamental à pressão do MST resultou na constituição de inú-meros assentamentos no estado durante o primeiro mandato de FHC. Este qua-dro se modificou significativamente no segundo governo, devido à reação dopatronato rural e às mudanças na política agrária federal, que passou a privilegiaros mecanismos de obtenção de terras baseados no mercado. A tabela a seguir mostraa magnitude dessa redução.

Tabela 2 – Projetos de assentamentos implantados pelo INCRA no Rio Grande do Sul entre 1995 e 2002

Período Número de assentamentos Área total em hectares Número de famílias

Primeiro governo FHC 1995-1998 73 85.505,303 3.476

Segundo governo FHC 1999-2002 27 23.347,00 995

Total geral 100 108.852.303 4.471Fonte: INCRA (posição: 6/10/2003)

Em terceiro lugar, é preciso levar em consideração a reação do patronato ruraldo município de Bagé contra a realização de vistorias de terra pelo INCRA. Talmovimento foi desencadeado no mês de abril de 1998, impedindo que técnicosda autarquia entrassem nas propriedades para efetuarem o recadastramento deimóveis rurais, a partir do qual 370 estabelecimentos com área superior a 420

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hectares seriam vistoriados. Na ocasião, os proprietários montaram barreiras nasentradas das propriedades, bloqueando a entrada dos técnicos do INCRA, a tal pontodeste movimento ter sido denominado de “vistoria zero” 8. As ações de bloqueioocorreram entre 8 de março e 28 de agosto de 1998 e reivindicavam, principal-mente a suspensão das vistorias e a revisão dos índices de lotação pecuária (ZeroHora e Correio do Povo, 9/4/98). O impasse entre o INCRA e o patronato rural gaú-cho somente foi solucionado quando o governo estadual, o INCRA e o Ministérioda Agricultura chegaram a um acordo que estabeleceu a suspensão imediata dasvistorias no estado, o anúncio de que as novas aquisições ocorreriam mediante arealização de leilões de terras e a criação de uma comissão especial para reavaliaros índices de lotação pecuária (Zero Hora, 28/8/98).

Com essa ação ilegal, o patronato rural gaúcho conseguiu impedir o INCRA defiscalizar o cumprimento da função social da terra, obstaculizando a realização denovas desapropriações no estado durante os anos subseqüentes. Essa reação criouum “precedente” político que passou a ser acionado todas as vezes que as ocupa-ções de terra e as ações do INCRA extrapolassem os limites “aceitáveis”. O governofederal não deu apoio político aos superintendentes regionais do INCRA para queas vistorias prosseguissem9. Ademais, tal movimento passou a ser utilizado peloMDA para reforçar o discurso de que no RS a obtenção de terras para a reformaagrária deveria privilegiar a “negociação”, tais como leilões de terras, “desapropria-ções amigáveis”, compras pelo decreto 433/92 e, finalmente, o Banco da Terra.10

Por fim, em quarto lugar, ocorreu a eleição da Frente Popular para o governoestadual, tendo como marcas a oposição ao governo federal e a forte sintonia com asreivindicações dos movimentos sindicais e sociais do campo. Essa sintonia foideterminante na elaboração de um programa agrícola e agrário que estabelecia comometas o fortalecimento da agricultura familiar e o assentamento de dez mil famíliasde agricultores sem-terra. Propunha-se também a tratar os conflitos fundiários pormeio da negociação política, a fim de evitar as ações de despejo mediante o uso daforça policial (Frente Popular, 1998). Para efetivar suas propostas, o governo criou oDepartamento de Desenvolvimento Rural e Reforma Agrária, posteriormente trans-formado em Secretaria Extraordinária da Reforma Agrária. Como resultado da po-lítica agrária estadual, foram implantados 66 projetos de assentamentos, que bene-ficiaram um total de 2.289 famílias em 48.339,55 hectares. Além disso, mais 27projetos de assentamentos foram implantados em convênio com o governo federal,beneficiando 910 famílias em 20.417,32 hectares (GRA, 2002).

Outra marca do governo estadual foi a presença de representantes dos movi-mentos sociais e sindicais na Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento,

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facultando aos mesmos a possibilidade de influenciarem nos rumos tomados pe-las políticas agrícola e agrária estaduais11.

Esse vínculo do governo estadual com os movimentos sociais influenciou narelação deste com governo federal em dois níveis importantes. Um primeiro ex-presso na oposição ao modelo de reforma agrária de mercado, em particular aoBanco da terra. Isso dificultou a viabilização do programa nos moldes pelos quaisele estava sendo concebido, pois a negativa do governo Olívio em assinar o termode cooperação impediu a criação de uma agência estadual para geri-lo, obrigandoo governo federal a realizar convênios com as associações de municípios12.

O segundo nível está relacionado com as expectativas criadas em torno doscompromissos assumidos pelo governo com o MST, as quais contribuíram paraaumentar o número de famílias acampadas à espera de serem assentadas, confor-me indicam os números apresentados na tabela 1. Apesar da meta do governoestadual ser elevada e de haver uma série de limitações de ordem constitucional,financeiras, institucionais e políticas para a sua efetivação, havia o reconhecimen-to, tanto por parte de seus integrantes, quanto por parte dos movimentos sociaise sindicais do campo, de que a política agrária estadual tinha um caráter comple-mentar às ações do governo federal, cabendo a este a maior responsabilidade noprocesso (Da Ros, 2006). Por essa razão, as pressões desencadeadas pelo MST aolongo do quadriênio de 1999 a 2002 recaíram com maior força sobre o INCRA e ogoverno federal, reivindicando a retomada das vistorias obstaculizadas pelopatronato rural gaúcho. Assim, ao questionar as premissas da reforma agrária demercado do governo federal e proporcionar as condições para que o MST aumen-tasse o seu potencial de pressão, mediante a não repressão às ocupações de terras,o governo estadual não só reconhecia a legitimidade das reivindicações dos sem-terra, como também mitigava as tentativas do governo federal e do patronato ru-ral gaúcho em deslegitimar o instrumento das desapropriações.

Apesar das tentativas do MST e do governo Olívio de se contraporem às dire-trizes da política agrária federal, o que ocorreu de fato no estado foi a reduçãodrástica dos projetos de assentamentos implementados pelo INCRA (conformemostra a tabela 2), o recuo no suporte político às vistorias de terras e o reforço àadoção de mecanismos de obtenção de terra via negociação. Entre estes, o Bancoda Terra teve destaque absoluto. Considerando a magnitude do volume de recur-sos investidos e o número de famílias financiadas, foi o principal programa execu-tado pelo governo federal no RS.

O seu lançamento oficial ocorreu em 23 de agosto de 1999, data em que fo-ram assinados os três primeiros convênios de cooperação técnica com associações

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de municípios gaúchos (Correio do Povo, 24/8/99). Entretanto, o programa so-mente ganhou impulso a partir de janeiro de 2000, quando o governo federalanunciou a instalação do Gabinete Regional da Reforma Agrária para a região Sul,viabilizando as primeiras liberações de recursos (Correio do Povo, 7/1/2000). Nasua primeira fase, o programa foi coordenado por Ezídio Pinheiro (PSDB/RS),que permaneceu no cargo até o dia 2 de janeiro de 2001, quando essa função foirepassada para Vulmar Leite (PSDB/RS), que conduziria o trabalho até o final de2002 (Correio do Povo, 14/2/2001). A tabela a seguir mostra o volume de gastos efamílias financiadas pelo Banco da Terra no RS.

Tabela 3 – Volume de gasto com compra de terra e infra-estrutura e famílias financiadas peloBanco da Terra no Brasil e no Rio Grande do Sul entre 1999 e 2002

Ano Brasil (17 estados) Rio Grande do Sul

Nº Famílias Gasto (R$) Nº Famílias Gasto (R$)

1999 1 38.000 –- –-

2000 2.833 61.221.510,00 784 14.692.949

2001 13.198 297.553.471,00 4.275 88.746.559,00

2002 13.683 277.754.483,00 3.425 70.389.759,00

Total 29.715 636.567.464,00 8.484 173.829.267,00Fonte: Unidade Técnica Nacional do Programa Nacional de Crédito Fundiário (apud Pereira, 2004: pp. 229-230).

De acordo com os dados, acima, entre 2000 e 2002 o Banco da Terra finan-ciou 8.484 famílias a um custo total de R$ 173.829.267,00, o que representou28,5% do total das famílias beneficiadas e 27,3% do total dos recursos investidospelo programa em todo o país. Já na pesquisa realizada pelo DESER (2005, p. 5),consta que entre de 2000 e 2003 o Banco da Terra financiou 10.136 contratos,totalizando R$ 209,7 milhões. Apesar das divergências, ambas as fontes atestam aimportância assumida pelo programa no estado, cuja superioridade em relação aoprograma oficial de reforma agrária é espantosa, uma vez que, entre 1999 a 2002,o INCRA assentou apenas 995 famílias. O mesmo ocorre quando somamos os re-sultados obtidos individualmente pelo INCRA àqueles do convênio de aquisiçãocompartilhada com o governo estadual, os quais perfazem um total de 1.905 fa-mílias assentadas em 43.764,32 hectares. Ou seja, dependendo da base de dadosque utilizamos para a comparação, os resultados atingidos pelo INCRA chegam aaproximadamente 1/4 ou 1/5 dos alcançados pelo Banco da Terra. Tendo em vis-ta que o RS foi o estado onde o Banco da Terra obteve a maior abrangência, deve-mos indagar quais razões explicam tal desempenho.

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2. Principais razões da magnitude assumida pelo Banco da Terra no RS

Cinco razões principais explicam a abrangência assumida pelo Banco da Terrano RS: a) a demanda por terra; b) a montagem de uma estrutura descentralizadade gestão do programa; c) a existência de uma conjuntura de baixa nos preços dasterras; d) a predominância dos contratos de financiamento individuais; e) o usodo programa como um instrumento de combate político ao MST.

Em primeiro lugar, é preciso ter presente que existe uma grande demanda porterra no RS que se concentra principalmente nas regiões onde predominam apequena propriedade familiar oriunda dos processos de colonização por imigran-tes europeus, notadamente no norte e no nordeste do estado. Nessas regiões, asucessão hereditária continua gerando um processo de fragmentação das proprie-dades rurais que, somado às dificuldades de inserção econômica da pequena pro-dução familiar nos mercados agrícolas crescentemente oligopolizados da atuali-dade, vêm limitando seriamente as condições de reprodução social das famílias deagricultores.

Com isso, muitas dessas famílias, ou uma parte dos seus integrantes, acabamsendo obrigadas a migrarem para os centros urbanos em busca de trabalho, o quetem resultado num esvaziamento demográfico de algumas regiões rurais do esta-do, principalmente em função da saída dos mais jovens. A conseqüência imediatadesse processo é o aumento da população de idosos nas comunidades rurais, muitosdos quais assim que atingem a idade de aposentadoria, também optam por mi-grar para as cidades, abandonando ou arrendando suas propriedades (Camarano& Abramovay, 1999; Anjos & Caldas, 2005).

Além disso, a fragmentação das pequenas propriedades rurais tem acentuadoa multiplicação de sítios de lazer, cujos novos proprietários freqüentemente sãoprofissionais liberais oriundos dos centros urbanos. Como agravante, no momen-to em que os herdeiros dão entrada no inventário de uma propriedade, muitosadvogados têm cobrado seus honorários em terra, convertendo-se automaticamenteem proprietários13.

Nessas regiões, tal situação tem colocado em evidência dois tipos de proble-mas agrários: de um lado, a existência de uma demanda pelo acesso à terra, prin-cipalmente por parte das populações mais jovens e, de outro lado, a existência depropriedades abandonadas. Neste contexto, as atuais políticas fundiárias preci-sam ampliar o acesso a terra e promover algum tipo de reordenamento fundiárioque recomponha as propriedades a um módulo mínimo, a fim de permitir me-lhores condições para a reprodução social dos seus titulares. Tais medidas necessi-

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tariam ser acompanhadas de políticas públicas para o fortalecimento e a viabilizaçãosocioeconômica das formas familiares de produção agrícola.

Entretanto, convém ressaltar que os problemas agrários do RS não se resu-mem apenas às situações descritas acima, uma vez que é possível constatar a exis-tência de um elevado grau de concentração da propriedade fundiária em diversasregiões do estado, notadamente na região sul, onde predominam as atividades li-gadas às modernas lavouras de arroz irrigado e à pecuária extensiva de corte. Éprecisamente nessas regiões que o INCRA tem conseguido obter terras para a im-plantação dos assentamentos e, certamente, será nelas que os governos interessa-dos em conduzir políticas de reforma agrária continuarão concentrando os seusesforços.

Em linhas gerais, o diagnóstico desses problemas é compartilhado pelas orga-nizações de representação dos trabalhadores rurais, porém as soluções propostassão divergentes. Os movimentos que integram a Via Campesina – dos quais oMST é a sua maior expressão – partem do entendimento de que os problemasagrários encontrados nas regiões norte e nordeste do estado somente serão soluci-onados no âmbito de um programa massivo de reforma agrária que incida sobreas regiões de maior concentração fundiária, no qual já estaria incluído oreordenamento fundiário. A FETAG e a FETRAF-Sul, por sua vez, apresentamuma posição diferente, reivindicando a necessidade de programas de créditofundiário, pois entendem que num contexto de limitações políticas e institucionaisimpostas à reforma agrária, estes seriam a via mais adequada para garantir a repro-dução social das formas familiares de produção.

Além disso, existem diferenças nas formas de ação adotadas por esses movi-mentos sociais e sindicais. O MST, ao longo da sua trajetória, tem optado pelaorganização de acampamentos e ocupações de terras como as suas principais for-mas de luta social. A pressão dessas ações levou os governos federais e estaduais aimplantarem assentamentos rurais, conferindo ao MST um alto grau de legitimi-dade política na luta pelo acesso à terra. Entretanto, pelo tipo de enfrentamentoque essas ações ensejam, pelo sacrifício das famílias em permanecerem acampadaspor tempo indeterminado e pela estigmatização social impingida aos sem-terra –inclusive entre o universo de pequenos agricultores –, uma parcela significativados agricultores que reivindicam terra acabam optando por não ingressar nas fi-leiras do MST. Ademais, o próprio Movimento admite que não tem condições deorganizar todas as pessoas que demandam terra no RS14.

No que diz respeito à FETAG, observamos que desde a retomada das ocupa-ções de terras nos anos 80, sua opção política sempre foi manter uma relação de

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apoio pontual ao MST e à luta por reforma agrária, sem dela participar direta-mente, posicionando-se preferencialmente por políticas de crédito fundiário. É oque indica o depoimento de Ezídio Pinheiro, presidente da entidade:

Aqui no RS, quando surgiram os movimentos de luta por terra, houve em 1983 umadiscussão com eles sobre o papel de cada um, e se entendeu que a FETAG seria maisuma entidade de apoio. (...) Em 2003, num grande congresso, deliberou-se que ossindicatos de trabalhadores rurais, com o apoio da FETAG, deveriam trabalhar paraa realização de ocupações, mas não houve ainda iniciativas. O público da FETAG éo da agricultura familiar, que prefere comprar terras (...) Não vejo prejuízo na exis-tência de mais de um movimento com esse caráter. O problema é que isso não sesustenta no RS (...) A FETAG representa as milhares de pessoas que querem comprarterra, que querem pagar (entrevista ao autor).

Neste depoimento, há uma naturalização da idéia de que a base social daFETAG “prefere comprar terras”, o que em certa medida acaba servindo de justi-ficativa para que a entidade não assuma posições que impliquem um maiorquestionamento da estrutura fundiária e, conseqüentemente, a realização de açõesmais contundentes, como as ocupações de terras, praticadas por muitos sindica-tos e federações ligados à CONTAG em outros estados. Além disso, é preciso terpresente que as organizações políticas de representação de trabalhadores, na maiorparte das vezes, não funcionam como mero reflexo da vontade das suas bases. Aocontrário, o papel das lideranças é de suma importância na construção daquelasque são consideradas as “questões políticas” relevantes.

Como vimos, a implantação do Banco da Terra encontrou terreno fértil parase viabilizar no estado, pois além da existência de uma elevada demanda por terra,contou com o apoio ativo da FETAG em favor de mecanismos de compra e ven-da, identificados como “crédito fundiário”.15

A segunda principal razão que explica a magnitude da adesão ao Banco daTerra está relacionada diretamente à montagem de uma estrutura descentrali-zada de gestão do programa no estado. Isto porque, no plano nacional, os mo-vimentos sociais e sindicais do campo, desde o início, posicionaram-se contraa implantação do Banco da Terra, enquanto que as organizações do patronatorural prontamente o apoiaram (Medeiros, 2002). No RS esse cenário se repe-tiu, uma vez que o MST e as demais organizações que integram a ViaCampesina foram radicalmente contra a implantação do programa. SegundoMário Lill:

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Somos contra a mercantilização da terra. O crédito fundiário só ajuda a elevar o pre-ço da terra e a dificultar a sua redistribuição. Não pode existir crédito fundiário. Éfunção do Estado reorganizar a propriedade da terra. As pessoas que não têm terranão resolvem a questão fundiária comprando terra de outro pequeno, o irmão com-prando de outro irmão, o filho comprando do pai. Isso não muda a relação. É precisodescentralizar a propriedade da terra, e o crédito fundiário não permite essadescentralização, ele não reformula a posse da terra. Por isso o MST é contra o crédi-to fundiário. Trata-se de um princípio filosófico (entrevista ao autor).

A FETRAF-Sul, por sua vez, concentrou suas críticas na forma de conduçãodo programa, uma vez que também considera o crédito fundiário uma políticaimportante para a sua base social. De acordo com Eloir Griseli:

Não concordamos com a forma de implementação do Banco da Terra, com os crité-rios utilizados e com a sua prefeiturização, por uma questão político-partidária. Ago-ra, o crédito fundiário é importante para um setor da agricultura familiar (principal-mente para filhos de agricultores), mas ele precisa melhorar muito. Com R$ 40 milse compra muito pouca terra em alguns lugares. Na minha avaliação o crédito fundiárioé importante, se pensado na lógica do desenvolvimento, e não na lógica dacomercialização da terra e na politicagem que ocorreu. O grande problema do Bancoda Terra foi que a maioria das operações foi terra-papel, sem fiscalização, benefician-do prefeitos e seus parentes, funcionários públicos e outros, principalmente no RS.Não mudou nada a estrutura de produção. A análise do próprio governo detectoumuitos roubos através do Banco da Terra no Brasil inteiro. Mas aqui no RS achamosque o programa é bom e precisa ser melhorado (entrevista ao autor).

Este depoimento revela que não há, por parte da FETRAF-Sul, nenhuma críticaao instrumento do crédito fundiário como uma modalidade de acesso à terra, e sim àforma como foi conduzido o Banco da Terra. Diferentemente da Via Campesina, quecritica a mercantilização da terra e aponta a reforma agrária ampla e massiva comouma medida fundamental para a transformação do campo, a FETRAF-Sul (2003)aposta no crédito fundiário como uma alternativa para garantir a permanência dosjovens no campo. Essa opção se deve, em parte, ao rebaixamento político conferido àreforma agrária como estratégia de transformação do campo brasileiro e à adoção deuma postura mais “pragmática” e “propositiva”, segundo a qual o desenvolvimentorural consistiria na busca de alternativas que fortalecessem a agricultura familiar, po-rém sem rupturas políticas de fundo (Favareto & Bitencourt, 2001, p. 387).

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Das entidades de representação dos trabalhadores rurais, a única exceção à regrafoi a FETAG. Pressionada pelos seus sindicatos, passou a defender a implantaçãodo Banco da Terra no RS, contrariando, inclusive, a posição da CONTAG, que seopunha ao programa em nível nacional16. Segundo Heitor Schuch:

Houve um congresso da CONTAG em que esse assunto estava muito quente, e nósfomos lá com 242 delegados defendendo o Banco da Terra. O Brasil inteiro contranós. Só Santa Catarina e o Paraná nos apoiaram. Aqui existia uma demanda muitogrande de agricultores querendo comprar terra. Outra questão relevante é que os valoresdo Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural eram menores que os do Bancoda Terra, e não possibilitavam comprar terra aqui no RS. Então a polêmica giroumuito mais em torno dos valores de um programa para o outro (entrevista ao autor).

O fato dos movimentos sociais da Via Campesina que integravam o governoestadual serem contra a implantação do Banco da Terra levou o mesmo a não as-sinar o termo de cooperação com o governo federal, a exemplo dos demais esta-dos governados por partidos de oposição. Esse posicionamento foi expresso pelosecretário estadual da agricultura, no Fórum de Agricultura, realizado no dia 10de junho em Brasília: “Não aceitamos o Banco da Terra. Esvazia os movimentossociais e privilegia a reforma agrária de mercado”. Além disso, o governo estadualdestacava que as condições oferecidas pelo programa o tornavam impagável (ZeroHora, 11/06/1999).

Todavia, a negativa do governo estadual em assinar o convênio do Banco daTerra não impediu que este fosse implantado no estado. O Ministério do Desen-volvimento Agrário (MDA), numa ação inédita, realizou convênios diretamentecom as associações de municípios que integravam a Federação dos Municípios doRio Grande do Sul (FAMURS), contando, ainda, com o apoio de professores detrês universidades: a Universidade Regional Integrada (URI), a Universidade Fe-deral de Santa Maria (UFSM) e a Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).17 Aoposição do governo estadual ao Banco da Terra obrigou os seus defensores a cria-rem uma estrutura descentralizada que viabilizou a implantação do programa,conforme explicita o depoimento de Heitor Álvaro Petry:

Embora a decisão do governo tenha sido motivo de críticas de vários setores, ela mereciaum elogio, porque criou a oportunidade para se estabelecer uma relação direta comos municípios, e foi isso que constituiu a base para o programa ter um bom desenvol-vimento. Se fosse via governo estadual, o resultado teria sido outro, porque a máqui-

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na é mais pesada, mais concentrada, não tem capilaridade. O gesto do governo Olívio,embora do ponto de vista político merecesse uma repreensão, do ponto de vista prá-tico foi positivo, pois ficou de fora e isso permitiu que os municípios abraçassem oBanco da Terra (entrevista ao autor).

Desse modo, não foi preciso constituir oficialmente uma Agência Estadual doBanco da Terra. Em vez disso, vinte e três agências regionais foram criadas, funcio-nando nas associações de municípios com o suporte das universidades citadas. Ofato de não ter sido criada uma agência estadual não significa que o programa nãotivesse uma coordenação estadual, a qual era integrada por um coordenador geral,um coordenador técnico e um secretário. Além disso, havia um conselho estadualde caráter “oficioso” integrado pelas seguintes organizações: FETAG, FAMURS,FECOAGRO, UFSM e URI, no qual eram discutidas algumas regras de funciona-mento do programa no estado18 (Antonello, 2003, p. 3). Tal processo dotou o pro-grama de um elevado grau de capilaridade, pois as inscrições eram feitas somentenos STRs e a seleção dos beneficiários era realizada pelos Conselhos Agropecuários,estimulando a sua criação naqueles municípios em que não existiam. A oposição dogoverno estadual ao programa implicou a retirada da assistência técnica oferecidapela EMATER na elaboração dos projetos, que passou a ser feita pelas prefeituras19.

A constituição dessa estrutura descentralizada é apontada pelos representan-tes da FETAG e da FAMURS como um dos principais fatores que permitiram aoprograma ganhar maior velocidade e escala20. No entanto, as entrevistas com osgestores do Banco da Terra indicam também que essa mesma estrutura foi res-ponsável por um descontrole dos financiamentos concedidos, devido à ausênciade critérios válidos para todo o estado.21

Os depoimentos de um dos gestores do Banco da Terra e dos dirigentes daFETAG não negam a existência de irregularidades e favorecimentos na conduçãodo programa, severamente criticadas pelo MST, pela FETRAF-Sul e por algunsdeputados estaduais do PT22. Entretanto, a falta de publicização de informaçõesdetalhadas sobre os resultados do programa pelo governo federal (FHC e Lula),bem como a ausência de trabalhos empíricos nos municípios onde o programaatuou, impossibilita-nos de tecer considerações conclusivas sobre esse assunto23.Ademais, até o momento, não foram divulgados os resultados da suposta audito-ria interna realizada pelo governo Lula sobre as irregularidades ocorridas naimplementação do Banco Terra.

A terceira principal razão que favoreceu a implementação do programa foi aexistência de uma conjuntura de baixa no preço da terra, uma vez que as transações

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de compra e venda de imóveis rurais são indexadas ao preço da soja, naquele perío-do em baixa no mercado internacional. Nesse contexto, os governos federal e esta-dual atuaram praticamente sozinhos no mercado de terras. Segundo Ezídio Pinhei-ro: “As terras, inclusive, eram muito baratas. Nos dois primeiros anos em que eucoordenei a implantação do Banco da Terra, a média das propriedades adquiridasera de R$ 17.500, enquanto que o teto de financiamento era de R$ 30 mil” (entre-vista ao autor). No entanto, o baixo preço dos lotes adquiridos através do Banco daTerra também está relacionado ao fato de que a maioria desses imóveis possuía umaárea média inferior ao módulo rural regional (DESER, 2005, p. 18). Nas regiões,onde as terras eram mais caras, o teto de financiamento não era suficiente para ad-quirir um módulo rural, sendo necessário que os agricultores complementassem comrecursos próprios. Ademais, pouco se sabe sobre a qualidade das terras compradas,já que não havia a definição de um critério de classificação de acordo com a capaci-dade agronômica de uso, a exemplo do que ocorria nas aquisições do governo esta-dual e do INCRA. Por isso, a compra de áreas de baixa qualidade pode também terinfluenciado no baixo preço das terras adquiridas pelo programa24.

Mesmo que as terras tenham sido adquiridas a preços baixos, ainda assim nãoé possível avaliar com exatidão qual será o percentual dos beneficiários do Bancoda Terra que terão ou não condições de pagar as prestações do financiamento. Ospróprios gestores do programa e os agentes sociais a ele favoráveis admitem que,em algumas regiões, haverá problemas de inadimplência. Entretanto, na sua opi-nião, o programa seria viável na maioria dos casos, embora não apresentem ne-nhum tipo de informação que confirme tal assertiva. Segundo Heitor Álvaro Petry:

Quando o Banco da Terra foi lançado, havia índices de correção bastante elevados (oIGP-DI, por exemplo). Na época, nós sabíamos que aqueles índices eram impraticá-veis, mas sempre estimulamos os agricultores a entrarem no programa, porque tínha-mos a convicção de que, se o governo quisesse que o Banco da Terra desse certo, ha-veria mais cedo ou mais tarde uma adequação dos índices, o que efetivamenteaconteceu. (...) Mas, em várias situações, o crédito se tornava impagável. Na regiãodo Vale do Rio Pardo, de produção fumícola, há inúmeros exemplos de arrendatáriosque pagavam mais pelo arrendamento do que eles pagariam pela prestação do Bancoda Terra. Entre 70 e 80% dos casos eram dessa natureza: comprovadamente, o que osarrendatários pagavam anualmente a título de porcentagem no arrendamento, nameação, era bem superior do que as prestações do Banco da Terra. Então pode haversituações de dificuldade de pagamento, mas creio que foi uma experiência viável (en-trevista ao autor).

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A falta de transparência e de informações oficiais sobre a situação das famíliasfinanciadas pelo Banco da Terra constitui uma das mais flagrantes contradiçõesdo discurso apologético dos seus defensores, que enaltecem as virtudes do progra-ma sem apresentar evidências que as comprovem. Tal fato é extremamentepreocupante, tendo em vista que o programa possuía um prazo de carência de trêsanos e os primeiros contratos foram assinados no ano de 2000. O mínimo que sepoderia esperar era a divulgação de um quadro mais sistematizado por parte doMDA, que possibilitasse avaliar o real impacto desse programa na viabilização doacesso à terra no país.

Um levantamento recente feito pelo DESER sobre a capacidade de pagamen-to do programa na região Sul analisou apenas três municípios no RS. Constatou-se que em Pelotas e Encantado/Teotônia, mais de 50% dos beneficiários declara-ram ter pago ao menos uma parcela. O nível de inadimplência foi estimado em13,3% e 9,4%, respectivamente. Em Tenente Portela, 20% dos entrevistados afir-maram ter pago pelo menos uma parcela e ninguém afirmou estar inadimplente.Porém, em virtude da estiagem ocorrida na safra de 2004/05, o estudo apontou aprobabilidade de um alto nível de inadimplência (DESER, 2005, pp. 25-27). Comoconclusão geral, o trabalho destacou que em torno de 60% dos beneficiários teriamcondições de pagar as parcelas do financiamento para o ano de 2004-05, além doscréditos do Pronaf-A.

Por outro lado, o estudo adverte que a análise pode carecer de consistênciaface à inexatidão das informações prestadas pelos beneficiários e a possíveis osci-lações climáticas que costumam afetar a região, principalmente as estiagens (ibid,pp. 62-64). Ou seja, apesar da pouca representatividade dos municípios pesquisadose da possível imprecisão dos dados coletados, os autores ainda deixam em abertoa hipótese de que o nível de inadimplência poderá se tornar um grave problema.Isto confirmaria as críticas de que o programa é impagável25.

A quarta razão principal que permitiu ao Banco da Terra atingir resultados tãoexpressivos diz respeito ao fato de que a imensa maioria dos projetos financiadosterem sido individuais. Segundo Ezídio Pinheiro:

Os contratos individuais não eram permitidos, mas nós dissemos que íamos fazer. Aagricultura familiar, os filhos de pequenos agricultores, não comprariam áreas viaassociações, além do que as áreas eram pequenas. Isso foi um problema seríssimo. Oministro Jungmann não permitia, mas nós fazíamos e ele não nos contrariava. Dos11 mil beneficiários do Banco da Terra no Rio Grande do Sul, me parece que apenasum grupo comprou uma área (maior) via associação (entrevista ao autor).

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Em razão dos contratos individuais terem sido predominantes, o Banco daTerra teve uma maior atuação nas regiões de minifúndio, envolvendo a transaçãode pequenas áreas, como indica o depoimento de Vulmar Leite:

Havia uma grande quantidade de propriedades ociosas no estado e essas proprieda-des foram comercializadas em todos os municípios. Se tu pegares a distribuição dosfinanciamentos vai verificar que ele ocorreu de forma homogênea no estado, em to-das as regiões. E as regiões que mais acessaram financiamento são aquelas onde háuma maior concentração de minifúndios. Na região de Frederico Vestphalen, lá noAlto Uruguai, foram realizados em torno de 600 a 900 contratos e é uma região quenão tem latifúndio. Era um irmão que comprava cinco partes de outros irmãos, atéonze partes para recompor a completa, com casa e instalações abandonadas. Enfim,eram essas áreas que foram comercializadas (entrevistas ao autor).

O fato dos financiamentos terem sido individuais e incidido majoritariamen-te sobre regiões de minifúndio se encaixou muito bem na argumentação defendi-da pelo governo federal, pela FETAG e pela FAMURS de que o Banco da Terrapossuía um caráter complementar, já que, em tese, as áreas financiadas teriamcumprido o papel de aglutinar propriedades fracionadas. O Banco da Terra seria,assim, um programa de “reordenamento fundiário”. 26

Uma das principais contradições do Banco da Terra no RS reside no fato desseprograma ter se baseado, majoritariamente, em transações mercantis entre peque-nos proprietários, sem promover alterações na estrutura concentrada da proprie-dade fundiária. A aglutinação de frações de imóveis rurais para recompô-las a ummódulo mínimo (ou mais) resolve apenas o problema dos agricultores que estãosendo financiados pelo programa. No entanto, não oferece alternativas para aquelesque estão deixando o campo por falta de condições para se viabilizarem. Assim,observa-se que o tão propalado “reordenamento fundiário” precisa ser pensadoem uma perspectiva mais ampla, na qual a recomposição das propriedades estejaacoplada a um programa de reforma agrária que democratize a estrutura fundiária,possibilitando a absorção da maior parte da demanda por terra existente nas regiõesonde predominam os minifúndios, que jamais será suprida integralmente porprogramas de crédito fundiário.

Apesar das tentativas dos gestores do Banco da Terra e dos representantes daFETAG de legitimá-lo como um programa complementar à reforma agrária, pre-cisamos analisá-lo à luz da luta política mais ampla ocorrida no campo. Neste caso,não podemos reduzir o debate a uma oposição estanque entre “crédito fundiário”

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e “desapropriação”, como se fosse apenas um problema de definição do melhorinstrumento, omitindo a discussão sobre os objetivos e as forças sociais subjacentesàs políticas agrárias em disputa. Até porque a maioria dos entrevistados – inclusi-ve alguns integrantes da Via Campesina – não se opõe unilateralmente ao créditofundiário. O que questionavam naquela época, e ainda hoje questionam, é a uti-lização do crédito fundiário como parte de uma estratégia mais geral do governofederal para reforçar o modelo de reforma agrária de mercado, em detrimento dasdesapropriações baseadas no cumprimento da função social da propriedade. Se-gundo Frei Sérgio Görgen:

O crédito fundiário hoje é uma política anti-reforma agrária. Uma política construídapelo Banco Mundial para fortalecer o agronegócio em grandes áreas. É esse o objeti-vo do crédito fundiário. Outra coisa é pensar um programa de crédito fundiário comoum programa complementar a um projeto de reforma agrária massiva. Nesse caso, eudefendo. Isso, aliás, está previsto no Estatuto da Terra como medida para areaglutinação de minifúndios, para combater o fracionamento excessivo da proprie-dade (entrevista ao autor).

Desse modo, ao analisarmos a questão sob uma perspectiva política mais ampla,percebemos que o argumento da “complementaridade” não se sustenta, pois osdados apresentados no início deste trabalho demonstram que a prioridade abso-luta do governo federal, durante os anos de 1999 a 2002, recaiu sobre o Banco daTerra. Além disso, não podemos esquecer que, durante esses quatro anos, o MDAnão deu o respaldo político necessário aos superintendentes regionais do INCRA

para a realização das vistorias, que estavam sendo impedidas pelo patronato ruralgaúcho. Ao aceitar o veto imposto pelos sindicatos ligados à FARSUL à continui-dade das vistorias, o governo federal deu mostras de que a sua prioridade não eraa reforma agrária via desapropriações litigiosas, mas sim o fortalecimento do modelode reforma agrária de mercado.

Por fim, a quinta razão principal da centralidade do Banco da Terra no RS foia sua utilização, pelo governo federal, no combate político e ideológico ao MST,que, naquele momento, contava com o apoio do governo Olívio Dutra. Talintencionalidade não foi admitida nas entrevistas com os gestores do programa,conforme indica Vulmar Leite:

Havia uma convergência de vários fatores: oferta de terra, existência de propriedadesociosas, um público que não acampava no estado, uma demanda por terra de filhos de

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agricultores, de agricultores que não acampavam e estavam na atividade produtiva. Então,a visão do governo federal aplicar mais aqui foi a demanda, houve muita pressão, nóstivemos que inclusive segurar essa pressão para evitar que houvesse uma inflação nopreço da terra, se estabeleceu alguns mecanismos de controle via conselho municipal.Não foi nenhuma razão, a não ser a razão da demanda (entrevista ao autor).

O reconhecimento de que a demanda foi o motivo principal da maior aplica-ção de recursos no RS não exclui a existência de intencionalidade política, umavez que a implantação do Banco da Terra permitia ao governo federal disputarcom o MST o controle sobre a demanda por terra. Essa disputa ocorreu pela base,já que, ao financiar a compra de terras no estado, abriu-se uma nova possibilidadede acesso, na qual os agricultores não precisavam sofrer as agruras de permanece-rem acampados por tempo indeterminado para conseguirem um lote de terra. Comisso, o governo federal esperava quebrar a conexão existente entre a pressão exercidapelas ocupações e a necessidade de implantar novos assentamentos, deixando deatuar “a reboque” da ação do MST, incidindo justamente nas regiões do RS emque a demanda por terra poderia ser canalizada para novos acampamentos. A pos-sibilidade de acesso à terra sem ingressar no MST foi explorada politicamente pelogoverno federal, pelo patronato rural e pelos setores de oposição ao governo esta-dual, com um discurso que polarizava “a reforma agrária da paz” versus “a reformaagrária da invasão, da violência e da lona preta”27.

Embora não seja possível quantificar o impacto produzido sobre a capacidadede convocação do MST, há fortes indícios de que o Banco da Terra contribuiupara diminuir o número agricultores dispostos a acampar, influenciando em al-gum grau a mudança no perfil dos novos acampados, os quais passaram a ser con-vocados nas periferias dos centros urbanos, especialmente na região metropolita-na de Porto Alegre28. Essa constatação é compartilhada inclusive pelos própriosgestores do programa, como mostra o depoimento de Vulmar Leite:

Acho que o movimento social perde força, da forma que ele [Banco da Terra] foipulverizado. O programa atendeu uns 450 municípios. O agricultor sem terra dosmunicípios ia até a prefeitura, se cadastrava e tinha a possibilidade de comprar a suaárea onde queria. Ele próprio escolhia. (...) Quer dizer, era um potencial acampado.Na verdade, eu acho que a reação [do MST] é porque historicamente a via de acessoà terra era através do acampamento, não tinha uma outra alternativa. E eu acho quefoi correta, o assentamento não pode ser monopólio do Movimento (...). Não se podequerer que o governo seja permanentemente refém disso (entrevista ao autor).

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Coincidentemente, esse esvaziamento da capacidade de convocação de novosacampados pelo MST ocorria num momento em que o governo Olívio Dutra sepropugna a assentar dez mil famílias, conferindo um tratamento negociado aosconflitos fundiários. Conforme já destacamos, essa sinalização do governo esta-dual por si só contribuiu para elevar o número de pessoas acampadas no RS. Nes-se cenário, é bastante provável que o Banco da Terra tenha funcionado como umcolchão amortecedor da pressão social por reforma agrária, num estado conheci-do como o berço do MST no Brasil. Ao minar pela base a possibilidade da ampli-ação da pressão social do MST sobre o INCRA, o governo federal livrou-se da ne-cessidade de adotar uma postura de maior enfrentamento com o patronato ruralgaúcho para viabilizar vistorias e desapropriações litigiosas.

Um outro indicativo de que a disputa política se concentrou sobre a demandaé evidenciado pela alta receptividade obtida pelo Banco da Terra junto a prefeitu-ras e sindicatos ligados à FARSUL, uma vez que o programa oportunizou um maiorcontrole dos agentes locais sobre o perfil dos futuros beneficiários, selecionandopreferencialmente aqueles que possuíam a tão propalada “vocação agrícola”,freqüentemente imputada como um critério ausente no público beneficiário dosprogramas de assentamentos. Segundo Heitor Petry: “Tudo tem que ter critério.O programa deve estar voltado para quem tem vocação e se enquadra em requisi-tos mínimos. Entendo que não se deve priorizar pessoas para assentamentos ru-rais que não tenham vocação nem relação com o meio. O primeiro público-alvodeve ser aquele que está identificado com o setor” (entrevista ao autor). Uma li-nha de argumentação similar é apresentada por Nestor Hein: “É preciso ter voca-ção agrícola, a atividade agrícola é absolutamente incompatível com determina-das pessoas. Para as pessoas que vêm morar nas grandes cidades por um tempo, avolta para o campo é muito traumática. O campo brasileiro – não o norte-ameri-cano – ainda não é dotado de uma infra-estrutura capaz de acolher um homemque tenha vivido no meio urbano” (entrevista ao autor).

Essa linha de interpretação entende a “vocação agrícola” como a capacidadeque os indivíduos têm para gerir negócios dentro de uma lógica capitalista deprodução. Neste caso, considera-se que as pessoas que não possuem um vínculodireto com o meio rural não estão capacitadas a se viabilizarem como pequenosprodutores rurais. Entretanto, a transformação da “vocação agrícola” como crité-rio de seleção não é neutra politicamente. No caso em questão, observamos quetal exigência atende aos objetivos dos agentes políticos interessados em restringiro público das políticas agrárias, que utilizam esse expediente para desqualificar aação dos movimentos sociais do campo.

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A adesão dos municípios ao Banco da Terra era justificada também pela pos-sibilidade de beneficiar agricultores locais, evitando-se a sua transferência paraoutras regiões, como freqüentemente ocorre nos programas de assentamentos29.Segundo Heitor Álvaro Petry:

Na lógica da reforma agrária tradicional, a solução seria, então, reunir os pequenosagricultores de uma determinada região, comprar uma área em outra região e trans-feri-los para lá. Porém, isso os retiraria do meio onde eles estavam habituados a pro-duzir, e onde eles viviam havia disponibilidade de terras. Então, o Banco da Terraveio para aquele público-alvo que, no nosso entendimento, pelas suas característicaslogísticas e de inserção social e regional, não se enquadravam na reforma agrária tra-dicional. O Banco da Terra criou a oportunidade de fixar as famílias na região emque elas estivessem acostumadas a viver (entrevista ao autor).

A fixação das famílias na região era encarada como uma das principais virtudes doprograma, a qual também era utilizada como argumento para justificar a complemen-taridade do Banco da Terra à reforma agrária baseada nas desapropriações. No entan-to, tal “virtude” constitui hoje um dos principais limites para a expansão do créditofundiário nas regiões onde o Banco da Terra teve uma atuação expressiva. As áreasdisponíveis para venda escassearam, o que contribuiu para um aumento no preço dasterras, em contraste com a persistência da demanda. Quanto à escassez de proprie-dades à venda, o depoimento de Heitor Álvaro Petry é bastante esclarecedor:

A demanda é grande. O que já existe em alguns municípios é falta de áreas disponí-veis. A maior parte das propriedades que estavam disponíveis já foi absorvida peloBanco da Terra. Sobraram muito poucas áreas disponíveis para o programa. Essa éuma preocupação que temos: começa a se esgotar antes do público as propriedadesdisponíveis. Precisamos pensar em alternativas, talvez formas coletivas de compra deterras maiores para tentar criar lotes e assentar (entrevista ao autor).

O depoimento acima reconhece que o crédito fundiário apresenta limitesobjetivos, pois a demanda por terra nas regiões de minifúndio tende a ser maiordo que a oferta. Tal constatação demonstra que não é possível equacionar os pro-blemas agrários dessas regiões valendo-se apenas do crédito fundiário, seja qualfor o seu formato. Se, por hipótese, admitíssemos que todas as terras ofertadasfossem compradas mediante financiamentos, ainda sim haveria uma demanda aser suprida, o que fatalmente obrigaria a busca de novas áreas em outras regiões,

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contrariando a tese que defende a permanência dos agricultores nos municípiosde origem. Ademais, a alternativa proposta para solucionar tal impasse – a com-pra coletiva de áreas maiores – colocará definitivamente em xeque um dos argu-mentos sobre o caráter supostamente complementar do Banco da Terra.

Por outro lado, desde 2000 vem ocorrendo no Rio Grande do Sul um aumentosignificativo do preço das terras, que chegou a triplicar, em decorrência da sucessãode boas safras e da alta do preço da soja, usada como indexador nas transações decompra e venda de terras. Outros fatores também contribuíram para a elevação nopreço das terras, como o aumento da área e do número de produtores de fumo, aaquisição de áreas por parte de empresas para o reflorestamento com pinus e eucaliptoe a própria atuação do Banco da Terra (DESER, 2005, pp. 17-18).

Neste contexto, os tetos previstos pelos programas de crédito fundiário emcurso não permitem a aquisição de áreas com um módulo suficiente para a repro-dução social dos agricultores, apresentando-se como mais um limite objetivo paraa continuidade da política fundiária que privilegiam a compra de terras.

Considerações finais

Do que foi exposto ao longo deste trabalho, é possível reter as seguintes con-siderações:

• No RS, o Banco da Terra foi a principal política fundiária do governo FHC,cujo grau de prioridade é atestado pelo volume de recursos investidos epelo número de famílias financiadas, o que fez com que o programa obti-vesse um maior alcance e abrangência territorial em comparação aos de-mais estados do país, sendo favorecido por um conjunto de razões aquidestacadas.

• Os depoimentos citados indicam que no Rio Grande do Sul ainda existeespaço para uma política de crédito fundiário, principalmente nas regiõesde minifúndio, onde uma parte significativa da população rural jovemainda deseja permanecer na terra, corroborada pela existência de situaçõesde abandono das propriedades rurais em face das migrações e do envelhe-cimento dos seus titulares. Entretanto, este espaço não pode ser entendi-do como exclusivo ao crédito fundiário, já que essa mesma demanda po-deria ser canalizada para uma política de reforma agrária, desde haja umasinalização por parte dos governos de que esta política será consideradaprioritária.

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• A demanda por terra nas regiões de minifúndio, expressa pela intenção deaderir aos programas de crédito fundiário, precisa ser confrontada com aspossibilidades objetivas destes se converterem em pequenos proprietários.Ou seja, não basta apenas dimensionar a procura por terra, mas é precisotambém dimensionar a sua oferta. Nesse sentido, as entrevistas demons-traram que a continuidade dos programas de crédito fundiário no RioGrande do Sul está sendo confrontada por limites objetivos, tais como alimitação da oferta de terras e o aumento dos seus preços.

• No âmbito político, é preciso analisar qual é o grau de prioridade conferi-do ao crédito fundiário e às desapropriações litigiosas, dentro de uma pers-pectiva mais ampla. Se a prioridade de um governo federal for pelo forta-lecimento da estratégia da reforma agrária via desapropriações, nos pareceóbvio que o espaço destinado ao crédito fundiário tende a ser menor, jáque a maior parte da demanda por terra tende a ser canalizada para osacampamentos e ocupações de terras. Conforme demonstramos, não foiisso o que ocorreu durante o segundo governo FHC, pois o créditofundiário foi utilizado como um mecanismo de fortalecimento e expan-são da reforma agrária de mercado e, também, como uma estratégia dedisputa pelo controle da demanda por terra com os movimentos sociais,esvaziando o potencial de convocação de novos acampados. Com isso, ogoverno federal atuou em dois flancos: a) no esvaziamento e nadeslegitimação do instrumento da desapropriação; b) na tentativa de que-brar a conexão existente entre as ocupações e a necessidade do Estado rea-lizar novos assentamentos para atender as pressões dos movimentos sociaisdo campo. Tais evidências colocam em xeque a argumentação de que oBanco da Terra teve no Rio Grande do Sul um caráter complementar aomodelo tradicional de reforma agrária.

Notas

1 Este artigo tem por base uma pesquisa mais ampla sobre as políticas agrárias implementadas no Rio Grandedo Sul durante o governo Olívio Dutra (Da Ros, 2006). Agradeço imensamente os comentários e suges-tões feitos por Sérgio Sauer e João Márcio M. Pereira, que contribuíram para sanar uma parte das lacunasexistentes na primeira versão apresentada para esta publicação.

2 Por razões de espaço, os entrevistados e as suas respectivas posições ocupadas nas entidades, movimentossociais e órgãos governamentais são apresentadas no final do texto.

3 A Frente Popular abarcava o PT, o PCB, o PSB e o PC do B). No segundo turno das eleições, contou com

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o apoio da Frente Trabalhista (composta pelo PDT, PST e PMN) e do PPS e do PV, que no primeiroturno haviam concorrido com candidaturas avulsas. A chapa vencedora tinha como candidato a governa-dor o ex-bancário Olívio Dutra e, como vice-governador, o deputado federal pelo PT Miguel Rosseto,que no governo Lula viriam a responder, respectivamente, pelo Ministério das Cidades e o Ministério doDesenvolvimento Agrário.

4 Depoimento de Jânio Guedes da Silveira.5 Depoimento de Paulo Schneider.6 Depoimentos de Flávio Santana Xavier e Nestor Hein.7 Depoimento de Carlos Antônio Dai Prá.8 Depoimento de Gedeão Pereira Silveira.9 Depoimentos de Flávio Santana Xavier e José Hermetto Hoffmann.10 Depoimento de Jânio Guedes da Silveira.11 Depoimentos de Isaías Vedodatto, Frei Sérgio Görgen e Antonio Marangon.12 Depoimentos de José Hermetto Hoffmann e Frei Sérgio Görgen.13 Depoimento de Ezídio Pinheiro.14 Depoimento de Mário Lill.15 Segundo E. Pinheiro, presidente da Fetag: “A demanda para o Banco da Terra no RS era de 113 mil

famílias inscritas nos sindicatos. Para fazer o levantamento, nós abrimos inscrições e cada um inscreviaum número de pessoas interessadas” (entrevista ao autor). Apesar desse número ser impressionante, ad-vertimos que não se trata de uma informação pública passível de ser comprovada através do confrontodos cadastros dos sindicatos com o número oficial de inscritos no programa, a exemplo do que ocorrecom as famílias cadastradas no INCRA.

16 Segundo E. Pinheiro: “A Fetag custou a entrar no programa. Os sindicatos entraram rápido, porque aí oprocesso foi de baixo para cima. A Fetag de fato assumiu o Banco da Terra um pouco antes da minhasaída do programa [ocorrida em 2/01/2001], porque a demanda estourou, houve mais de 100 mil inscri-ções. Na verdade, a Fetag nunca foi contra, ela ficou esperando o que ia acontecer, até porque a Contagera contra, então a Fetag não ia se rebelar” (entrevista ao autor).

17 Conforme o depoimento de E. Pinheiro.18 Segundo o depoimento de Heitor Schuch: “Criou-se um conselho estadual que definia algumas regras.

O conselho estadual era oficioso, ele não havia sido instituído por lei. Qualquer coisa que aparecia, oconselho municipal de agricultura definia. Por exemplo, se houvesse 80 inscritos, sorteavam ou escolhiam30. Claro, pelo que ouvimos teve sacanagem também, do tipo: sorteava-se o cunhado do prefeito ou oparente do secretário. Esse tipo de coisa suscitou, inclusive, a interferência do conselho estadual. A estru-tura básica foi essa” (entrevista ao autor).

19 Entrevista concedida ao autor por E. Pinheiro.20 Essa tese é reforçada por Heitor A. Petry: “Acredito que esse sistema descentralizado de gestão micro-

regional, com um envolvimento direto dos municípios, e não do governo estadual, foi o grande respon-sável pelo desempenho do programa no Rio Grande do Sul” (entrevista ao autor).

21 Conforme aponta o depoimento de E. Pinheiro: “Nós procurávamos ser rigorosos, mas não tinha auto-nomia para julgar, devido à descentralização. Tivemos um caso em que um agricultor adquiriu uma terra,e no dia seguinte ela era um sítio de um advogado. Foi devolvido o dinheiro. Houve certamente algunsdesvios, não diria ilegais, mas porque não havia critérios” (entrevista ao autor).

22 Depoimentos de Frei Sérgio Görgen, Dionilso Marcom e Elvino Bon Gass.23 Nas ocasiões em que solicitamos aos gestores do Banco da Terra informações contendo os resultados glo-

bais do programa no estado, obtivemos como resposta que estas deveriam ser encaminhadas ao Ministé-rio do Desenvolvimento Agrário. No entanto, nem mesmo os seus novos ocupantes nos forneceram in-

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formações sobre o programa, o que nos levou a desistir de fazer novos pleitos. Lamentavelmente, os da-dos sobre a atuação do Banco da Terra continuam sob sigilo, quando deveriam ser de livre acesso e deconhecimento do público interessado, principalmente por ter se tratado de uma política que ocupoucentralidade no governo anterior e que prossegue no atual governo com algumas reformulações.

24 Segundo E. Pinheiro: “O Banco da Terra tinha uma vantagem, porque foram compradas terras perto deonde as pessoas moravam. Se um jovem comprava, comprava do pai; se um o arrendatário comprava, jáse sabia que aquela área era produtiva. As compras, então, eram feitas no olho” (entrevista ao autor).

25 Depoimentos de Aurio Scherer, Frei Sérgio Görgen e Mário Lill.26 Segundo E. Pinheiro: “Aqui [o Banco da Terra] foi mais um programa de reordenamento fundiário, por-

que os financiamentos foram individuais. Não tinha como fazer financiamentos grupais, pois foram com-pradas áreas que estavam sobrando, que estavam ou iam ficar ociosas. Por exemplo, de aposentados queiam sair da atividade agrícola” (entrevista ao autor).

27 Depoimentos de Elvino Bohn Gass e Dionilso Marcom.28 Depoimento de Mário Lill.29 Conforme depoimento de Heitor A. Petry.

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Entrevistas realizadas pelo autor1. Antonio Marangon – ex-secretário extraordinário da reforma agrária (governo Olívio Dutra),em 13/11/2004.2. Aurio Scherer – membro da coordenação nacional do MPA, em 27/9/2004.3. Carlos Antônio Daí Pra – engenheiro agrônomo, ex-coordenador da Divisão de Aquisição deTerras da Superintendência Regional do INCRA/RS, em 1/4/2005.4. Dionilso Marcom – ex-dirigente estadual do MST, deputado estadual pelo PT, em 8/11/2004.5. Eloir Griseli – presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar de Erechim,dirigente da Fetraf-Sul, em 16/9/2004.6. Elvino Bohn Gass – ex-dirigente sindical da CUT Missões, deputado estadual pelo PT, em 15/9/2004.7. Ezídio Pinheiro – presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande doSul (Fetag/RS), em 9/9/2004.8. Flávio Santana Xavier – Procurador do INCRA, ex-assessor de assuntos jurídicos do Departa-mento de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (governo Olívio Dutra), em 30/8/2004.9. Frei Sérgio Antonio Görgen – deputado estadual pelo PT, ex-coordenador do Departamentode Desenvolvimento Rural e Reforma Agrária (governo Olívio Dutra), em 16/11/2004.10. Gedeão Pereira Silveira – presidente da Comissão de Assuntos Fundiários da Farsul, em 17/9/2004.

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11. Heitor Álvaro Petry – prefeito de Vera Cruz pelo PP e presidente da FAMURS, em 10/9/2004.12. Heitor Schuch – ex-presidente da Fetag-RS, atualmente deputado estadual pelo PSB, em 1/9/2004.13. Isaías Vedodatto – assentado, ex-secretário adjunto da reforma agrária (governo Olívio Dutra),em 12/12/2002.14. Jânio Guedes da Silveira – ex-superintendente estadual do INCRA (segundo governo FHC),em 9/9/2004.15. José Hermetto Hoffmann – ex-secretário da agricultura (governo Olívio Dutra), em 5/2/2004.16. Mário Lill – membro da direção estadual do MST, concedida em 4/9/2004.17. Nestor Hein –presidente da Comissão de Assuntos Jurídicos da Farsul, em 8/9/2004.18. Paulo Schneider – engenheiro agrônomo, professor aposentado da UFRGS, integrante do Setorde Divisão Racional de Terras do Gabinete de Reforma Agrária e Cooperativismo (governo Rigotto),em 3/2/2004.19. Vulmar Leite – secretário estadual da Reforma Agrária e do Cooperativismo (GRAC) do go-verno Rigotto, em 9/9/2003.

No Brasil, são recorrentes as afirmações e reconhecimentos de que as mobili-zações e lutas dos movimentos agrários são as principais impulsionadoras daspolíticas governamentais na implementação de ações destinadas a redemocratizara propriedade fundiária no país. Esse processo histórico de lutas, no entanto, épermeado por disputas e conflitos, tanto com o Estado como com setores oligár-quicos que ainda baseiam seu domínio político na propriedade da terra, sendoque, constantemente, as “respostas” são permeadas pelo uso da violência contraos camponeses e suas lideranças.

O objetivo deste artigo é explicitar como os recursos e apoio do Banco Mun-dial (BIRD) se encaixaram perfeitamente no embate entre os movimentos agrá-rios e o governo FHC, quando este usou de todos os meios legais e repressivospara retomar as “rédeas” da política agrária e controlar as pressões sociais peloacesso à terra. Em um contexto de política neoliberal, este governo transfor-mou o Estado brasileiro em “um comitê para gerenciar os negócios da burgue-sia”, como afirmou o velho Marx. Por outro lado, longe da tão propalada “isen-ção política” de seus técnicos, os recursos do BIRD deram uma nova perspectivae reforçaram a retórica governamental de que era preciso “reinventar a reformaagrária” no Brasil.

Este artigo procura resgatar os embates políticos que permearam (e aindapermeiam) a implantação do modelo de “reforma agrária de mercado” do BIRDno Brasil, suas implicações e o conseqüente respaldo à “política agrária” do gover-no FHC. Situa a implantação do Cédula da Terra e Banco da Terra – e, mais re-centemente, a continuidade destes via o Programa Nacional de Crédito Fundiário– no contexto da luta pela terra, contrastando a retórica sobre a importância daparticipação com uma prática que nega explicitamente o ideário do BIRD, impe-dindo qualquer protagonismo das famílias “beneficiadas”.

ESTADO, BANCO MUNDIAL E PROTAGONISMO POPULAR:O CASO DA REFORMA AGRÁRIA DE MERCADO NO BRASIL

SÉRGIO SAUER

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A atualidade deste debate não se resume ao fato do governo Lula não apenas man-ter, mas ampliar as metas deste modelo de mercado e redirecionar os recursos orça-mentários do antigo Fundo de Terras/Banco da Terra para o Programa Nacional deCrédito Fundiário. Sua importância está também no fato de que famílias diretamenteafetadas começam a se organizar – não mais em conseqüência de mecanismos artificiaisde participação impostos pelo modelo, mas como resultado de processos sociais e lu-tas pela sobrevivência, criando inclusive o Movimento dos Atingidos pela ReformaAgrária de Mercado, em Minas Gerais –, exigindo desde auditorias nos projetos até oseu enquadramento como beneficiários do programa constitucional de reforma agrá-ria, gerido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

1. Discurso do Banco Mundial: participação como protagonismo?

Historicamente, os empréstimos e investimentos do Banco Mundial gerarammuitas oposições e críticas de setores organizados da sociedade civil a nível inter-nacional, especialmente por seu apoio incondicional aos programas de ajuste es-trutural do Fundo Monetário Internacional (FMI) nos países em desenvolvimen-to. Influenciado pela onda democratizante dos anos 1980/1990 e procurandoamenizar oposições e críticas, o BIRD ampliou o seu portfólio de apoio aos paí-ses, incluindo temas e projetos como, por exemplo, alívio da pobreza, participa-ção das mulheres e preservação ambiental.1

A administração Wolfensohn (1995-2005) foi marcada por uma tentativa demelhorar a imagem do BIRD, fazendo da “eliminação da pobreza a sua missãocentral” (Bello & Guttal, 2006, p. 69). Passou a adotar também uma série de pro-cedimentos internos buscando privilegiar uma “maior participação” de atores não-governamentais – setores organizados da sociedade civil, em especial as Organiza-ções Não-Governamentais (ONGs) – e a disseminação de informações dos projetosque contam com o seu apoio.2

A participação da sociedade civil, segundo normas internas e orientações doBanco Mundial, não é uma condição sine qua non para a aprovação dos projetosde investimentos e empréstimos aos países membros. Essa participação, no en-tanto, passou a fazer parte das políticas do BIRD em conseqüência das pressões edemandas pela democratização de suas ações por muitas organizações não-gover-namentais (ONGs) e setores da sociedade civil.

Diante dessa demanda, o Banco Mundial definiu a sua concepção de partici-pação, a qual deve fazer parte da formulação e implementação de todos os seus

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empréstimos e investimentos. Utilizou estudos de casos e sistematização de expe-riências de financiamentos e empréstimos para formular o seu “participationsourcebook” (Banco, 1996). Segundo esse texto, a participação foi definida como“um processo através do qual as partes interessadas influenciam e compartilham ocontrole sobre as iniciativas de desenvolvimento e sobre as decisões e recursos queas afetam” (Banco, 1996, cap. 1 – grifos meus).

De acordo com um dos itens do Manual de Operações do Banco Mundial –denominado “Boas práticas: envolvendo organizações não-governamentais nasatividades apoiadas pelo Banco”, ou simplesmente GP 14.70 (Banco, 2000d) –,os projetos de financiamento devem ter a participação ativa da sociedade civil.Afirmando que as ONGs e outras entidades da sociedade civil são importantesatores do desenvolvimento,

O Banco, portanto, encoraja tomadores e o corpo de funcionários a consultar asONGs e as envolver, de forma apropriada, nas atividades apoiadas pelo Banco,incluindo trabalho econômico e setorial e em todos os estágios de concepção doprojeto – identificação, formulação, implementação, monitoramento e avaliação(Banco, 2000d, §1).

É importante observar que a formulação e adoção destas diretrizes sobre par-ticipação refletem uma postura essencialmente pragmática, ou seja, além de me-lhorar a imagem do BIRD, a experiência histórica demonstrou uma série de van-tagens na participação da sociedade civil. Na formulação dos projetos, por exemplo,“ONGs – familiares com a área do projeto e que possuem laços com a populaçãolocal – podem dar ao governo e ao Banco informações valiosas sobre circunstân-cias e prioridades locais da comunidade” (Banco, 2000d, §18).

Apesar da noção de participação ter a democracia como justificativa, as for-mulações não são apenas pragmáticas, mas são essencialmente instrumentais,enfatizando vantagens de contar com o apoio da sociedade civil organizada. Alémde fornecer informações (Banco, 2000d, §8), a contribuição das ONGs podebaixar custos (§24), oferecer experiência prática relevante (§7) e, talvez a vanta-gem mais importante, apoiar – conseqüentemente legitimar – as atividades doBIRD (§13).

Além de enfatizar a importância da participação, as normas internas do BIRDestabelecem que os técnicos devem dar oportunidade para que as críticas da socie-dade civil sejam explicitadas antes de aprovar qualquer projeto. De acordo com oreferido Manual de Operações (GP 14.70):

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Quando os funcionários do Banco souberem de questionamentos de ONGs sobreprojetos financiados pelo Banco, eles devem relatar esses questionamentos aos seussuperiores, aos técnicos que trabalham no projeto, e a especialistas envolvidos dentroda rede. Quando projetos propostos são potencialmente controversos, a experiênciatem mostrado que é, normalmente, produtivo assegurar que a opinião pública sejabem informada sobre o projeto em questão e seja dada oportunidade para explicitaros questionamentos, os quais deveriam ser considerados na formulação do projeto(Banco, 2000d, §19).

Essa participação – como qualquer relação social que envolve interesses difusosou mesmo contraditórios – não tem sido tranqüila. Apesar das orientações parauma maior democratização, muitas entidades e movimentos sociais têm feito se-veras críticas aos mecanismos de participação, de consultas, ao Painel de Inspeçãoe às próprias atividades e projetos do Banco Mundial. Uma das críticas freqüentesé a falta de consideração às entidades e movimentos nacionais, pois o BancoMundial tende sempre a privilegiar os interesses e relações com os governos emdetrimento das demandas da sociedade civil (Bello & Guttal, 2006).3

Mesmo que haja uma genuína intencionalidade de democratizar suas ações eintervenções nos países, as experiências do Banco Mundial no Brasil são muitodiferentes.4 O embate político em torno da implementação de seu modelo de re-forma agrária de mercado tem demonstrado, na prática, uma “participação” mui-to diversa da retórica ou das orientações dos manuais. Por exemplo, o BIRD apro-vou em 2000 a então nova solicitação de empréstimo (Pedido de empréstimo nº7037-BR, de 30 de novembro), sem reconhecer a legitimidade das denúnciasapresentadas pelo Fórum Nacional de Reforma Agrária e Justiça no Campo (Sauer& Wolf, 2001).5

Já em 1996 e início de 1997, a CONTAG, através da sua Secretaria de Refor-ma Agrária e Meio Ambiente, fazia duras críticas e oposição à implantação doprojeto piloto da reforma agrária de mercado. Segundo termos do dossiê do Gritoda Terra de 1997:

Esta alternativa do governo vem, portanto, mais uma vez beneficiar os grandes pro-prietários com a abertura de mercados para as terras que foram mantidas improduti-vas e como reserva de valor. O termo utilizado no programa do Ceará caracteriza aintencionalidade da proposta “reforma agrária solidária, amiga do mercado”. O Fun-do de Terras, na verdade, simplesmente mercantiliza o processo, beneficia o latifún-dio improdutivo e desqualifica as desapropriações, transformando-as em meras me-

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didas acessórias na obtenção de terras para a reforma agrária (CONTAG, 1997, pp.28-29).

Apesar desta crítica radical, a CONTAG reivindicava apenas uma “revisão noprograma fundo de terras”, afirmando que deveriam ser considerados aspectoscomo a implantação em “regiões onde o número de imóveis susceptíveis de desa-propriação” fosse insuficiente e “excluir do programa áreas passíveis de desapro-priações” (1997, p. 3).6 Essa pauta levou a CONTAG a reunir-se com represen-tantes do BIRD em Brasília e com autoridades governamentais responsáveis,demandando mudanças no projeto piloto. Havia, no entanto, um “jogo de em-purra-empurra” entre o Banco Mundial e o Executivo Federal, em que um passa-va para o outro a responsabilidade de promover mudanças no projeto.7

Por outro lado, tanto o Governo FHC como o BIRD argumentavam em de-fesa do projeto – inclusive contra a acusação de que este estaria sendo colocado nolugar das desapropriações –, afirmando que o Cédula da Terra se constituía ape-nas em um projeto experimental e limitado. Rapidamente este argumento foi es-vaziado com a criação, em 1998, do Fundo de Terras/Banco da Terra (Lei Com-plementar 93, de 1998), o qual estendeu o mesmo mecanismo de financiamentopara compra de terras em todo o país e passou a contar com a oposição sistemáti-ca de todas as entidades do Fórum Nacional de Reforma Agrária.8

De acordo com Steil e Soares,9 essas manifestações de oposição ao modelo dereforma agrária de mercado demonstram que a sua concepção e implantação“introduz[em] uma disputa política e ideológica com os movimentos sociais e seusmediadores” (2000, p. 12). No mesmo relatório, os consultores concluem que:

O Cédula da Terra se associa a uma tendência mais geral na sociedade de hegemonia domercado. Os trabalhadores rurais que aderiram ao Cédula da Terra acabam reproduzindoo discurso oficial da reforma agrária de mercado, sem conflitos e em parcerias. Neste sen-tido, acaba não apenas se apresentando como uma alternativa às ocupações, mas como uminstrumento de desmobilização dos movimentos sociais no campo (2000, p. 31 – grifos meus).

Esta disputa nunca foi admitida pelo Banco Mundial, que assume, de um lado,um discurso de isenção política-ideológica de seus técnicos, argumentando queos aportes de recursos são puramente técnicos e econômicos. De outro, o BIRDtransformou as oposições e críticas ao seu modelo de mercado em simples“questionamentos” (Banco, 2000, p. 109) ou “discórdias” (Banco, 2000, p. 48)por parte de entidades da sociedade civil.

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Essa “postura condescendente” do BIRD, ou mesmo a negação de conflitosde interesses e disputas políticas, deslegitimou a representatividade dos movimentossociais agrários. Ao contrário da afirmação de Giddens de que “os movimentossociais proporcionam vislumbres de futuros possíveis e são em parte veículos parasua realização” (1991, p. 161), a postura do Banco Mundial sempre foi dedeslegitimar as ações e lutas sociais no meio rural.

O BIRD simplesmente atribuiu todo o protagonismo às associações locais,supostos responsáveis pela concepção e implantação dos projetos (mobilização dasfamílias, negociação da terra, organização interna etc), retirando qualquerrepresentatividade política dos atores nacionais. Essa postura política ficou evi-dente na resposta da diretoria do Banco Mundial ao Painel, por ocasião do pri-meiro pedido de Inspeção, feita pelo Fórum Nacional pela Reforma Agrária, em1999.

O relatório do Painel afirma que a diretoria do BIRD questionou “a legitimi-dade dos solicitantes” nos seguintes termos: “nenhum dos signatários identificáveisda Solicitação é beneficiário do projeto e não há evidências de que os solicitantestenham sido designados para representá-los na Solicitação” (Ministério, 1999, p.5). Como a diretoria do BIRD “quis restringir a legitimidade aos beneficiários,que seriam as associações civis que já participam do Projeto” (Ministério, 1999,p. 8), o Painel não considerou essa alegação correta, pois, conforme termos dopróprio relatório (reproduzindo as normas e procedimentos para pedidos de ins-peção), “qualquer parte que sinta seus direitos ou interesses afetados direta ouindiretamente pela ação ou omissão do Banco” (idem, p. 8) pode solicitar umainspeção.

Mais do que questionar uma possível delegação explícita para representar asfamílias envolvidas nos projetos, a postura do BIRD questiona a própria legitimi-dade das entidades como movimentos sociais. De acordo com Touraine, “movi-mento social é o esforço de um ator coletivo para se apossar de ‘valores’ das orien-tações culturais de uma sociedade, opondo-se à ação de um adversário ao qualestá ligado por relações de poder” (1995, p. 253). A lógica do BIRD é negar alegitimidade desse ator coletivo, negando a relação de poder e a própria disputapolítica, esvaziando o sentido e a ação dos movimentos sociais agrários.

Conseqüentemente, diferente da “postura técnica” de seus funcionários, ascríticas e oposições dos movimentos sociais foram sempre desqualificadas por se-rem essencialmente ideológicas e tendenciosas ou por terem um “caráter filosófi-co” (Medeiros, 2001, p. 101). Este argumento foi amplamente utilizado na reu-nião da diretoria do BIRD que aprovou novo pedido de empréstimo (de US$ 202

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milhões) em novembro de 2000. Questionados por membros da diretoria sobre anão participação de outros movimentos sociais, além da CONTAG, na implanta-ção do Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural, a ata desta reunião regis-trou uma resposta essencialmente política-ideológica dos técnicos do BIRD:

O técnico explicou que o projeto tem sido bem aceito a nível provincial [sic] e local,mas alguns dos comentários negativos sobre o mesmo, a nível nacional, têm haver comas agendas políticas de algumas organizações e não estavam relacionadas ao projeto emsi (Banco, 2000b, § 161 – grifos meus).

Os documentos do Banco Mundial como, por exemplo, a Estratégia de Assis-tência ao Brasil (CAS), de 2000, revelam o pleno conhecimento das denúncias eoposições ao programa. No item dedicado às parcerias do BIRD no Brasil, a CASfaz uma referência a essas oposições ao Cédula da Terra, mas apenas como umdesentendimento com organizações sociais. Segundo a CAS:

Existem ainda áreas de discórdia com as OSC’s [Organizações da Sociedade Civil], sen-do uma delas a reforma agrária, sobre a qual várias OSC’s fizeram duas solicitações depainéis de inspeção em relação ao projeto piloto de reforma agrária apoiado pelo Bancoe que é implementado por associações comunitárias. Tanto nessa área, como em ou-tras, o Banco assumiu o compromisso de um diálogo aberto e mais intenso com asOSC’s (Banco, 2000, p. 48, § 113, item d – grifos meus).

No anexo 6 da CAS, relacionado com as contribuições recebidas durante oprocesso de consultas,10 o Banco Mundial transformou a oposição e as denúnciasrelacionadas à implantação do Cédula da Terra a apenas “alguns questionamentos”.Afirma que “há um forte apoio à reforma agrária e alguns questionamentos sobre oprojeto piloto de reforma agrária de mercado, financiado pelo Banco” (Banco, 2000,Anexo VI, p. 109 – grifos meus).

Desconhecendo esses questionamentos e seguindo as diretrizes gerais sobre aimportância da participação, a nota à imprensa do Banco Mundial de 30 de no-vembro de 2000 – anunciando a aprovação da solicitação de empréstimo para ofinanciamento do Crédito Fundiário – enfatizou o caráter “altamente participativo”do projeto. Segundo essa nota:

O projeto aprovado hoje será altamente participativo, com o envolvimento de gruposcomunitários, dos governos estaduais e municipais e com a participação da Confede-

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ração Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) nos níveis municipal,estadual e nacional (Banco, 2000 – grifos meus).

Conforme já mencionado, a reunião da diretoria do BIRD que aprovou opedido de empréstimo não foi marcada por esse tom otimista da participação dasociedade civil. Na verdade, segundo a ata da reunião do dia 30 de novembro de2000 (Banco, 2000b, §§ 154 à 175), houve questionamentos dos próprios dire-tores do Banco Mundial sobre a exclusividade da participação da CONTAG noprocesso de implantação do projeto (pp. 16ss).

A solicitação de empréstimo foi apresentada na reunião da diretoria do BancoMundial como sendo um projeto “inovador, bem desenhado, consistente com asprioridades do Governo” (Banco, 2000b, §157), sendo que os projetos “pilotosprévios, os quais testaram um enfoque direcionado pela demanda, comunitário,provendo acesso à terra, foram um sucesso” (Banco, 2000b, §155). Alguns dire-tores do BIRD levantaram questionamentos sobre a exclusividade da CONTAGe a ausência de outras entidades da sociedade civil ou mesmo dos Conselhos Con-sultivos Estaduais na concepção e implementação do projeto. Segundo essa ata,

Alguns oradores perguntaram sobre os riscos potenciais originários da exclusividade daparceria estabelecida com a CONTAG para a concepção e implementação do projeto.Um deles perguntou porque outras organizações da sociedade civil não aceitaram oconvite do Banco para participar. Ela questionou a pertinência de permitir que umprojeto seja usado por uma organização para fazer avançar sua agenda política e per-guntou como os técnicos planejaram mitigar esse risco. Outro orador perguntou por-que a participação do conselho consultivo estadual tem sido abaixo das expectativas equais as medidas que foram adotadas para resolver essa questão (Banco, 2000b, § 160).

Respondendo a esses questionamentos, os técnicos responsáveis pela execu-ção do referido projeto afirmaram que “o projeto foi bem aceito” em nível local eque “alguns comentários negativos” sobre o projeto são resultado apenas da “agendapolítica de algumas organizações” (Banco, 2000b, §161). Em outras palavras, osquestionamentos e denúncias não passam de “tendências filosóficas” e de proble-mas políticos internos das próprias entidades e movimentos, como já era afirma-do no CAS.

Mesmo dando uma explicação distorcida, os técnicos admitiram a existênciade uma preocupação em relação à participação da sociedade civil. O Banco Mun-dial no Brasil, segundo esses técnicos, mantém uma porta aberta ao diálogo, pois

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“... o processo de implementação e avaliação permanece aberto para quaisquernovos participantes que desejarem participar. O Banco está mantendo diálogo comigrejas no Nordeste do Brasil sobre o seu apoio ao projeto” (Banco, 2000b, §162).

Mesmo diante dessas explicações, houve ainda outras perguntas sobre a au-sência de importantes movimentos agrários e entidades representativas com lon-ga história de luta pela terra. Segundo a ata:

Uma oradora observou que muitas organizações têm atuado na reforma agrária noBrasil, inclusive o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Algumas têm sido mui-to críticas ao enfoque do projeto. Perguntou se estudos independentes de diferentesenfoques da reforma agrária foram feitos e comparados para ver se eles são comple-mentares. Enfatizou a necessidade de aumentar a colaboração com uma gama deorganizações da sociedade civil (Banco, 2000b, §163).

A ata não registrou, nesse momento, qualquer explicação aos questionamentossobre a participação de outras entidades e movimentos sociais. Em resposta aosquestionamentos sobre os estudos comparativos, os técnicos afirmaram que o pro-jeto de Crédito Fundiário inclui recursos para avaliar não apenas o projeto em apre-ço, mas também o modelo tradicional de reforma agrária (Banco, 2000b, §164).

De acordo com a ata da reunião, houve ainda outras questões relacionadoscom a solicitação de empréstimo. Uma pessoa solicitou aos técnicos uma explica-ção sobre o sentido da expressão “associações comunitárias auto-seletivas” (“self-selected community associations”) e como as informações do projeto serão dissemi-nadas no meio da população rural (Banco, 2000b, §165). Enfatizando “acentralidade da auto-seleção e da disseminação de informações” na implementaçãodo novo projeto, a explicação dos técnicos responsáveis reforçou a importânciado apoio e contribuição da CONTAG, incluindo também o apoio de entidadeslocais e seus representantes nesse processo (Banco, 2000b, §166).

A referida ata não traz todos os detalhes da discussão e aprovação do emprés-timo. Fica claro, no entanto, que o nome da CONTAG foi amplamente utilizadopelos técnicos do Banco Mundial para justificar o apoio, a participação e omonitoramento da sociedade civil brasileira ao novo empréstimo e a continuida-de da reforma agrária de mercado através do Crédito Fundiário. Segundo essestécnicos “a participação da CONTAG, e de outras ONGs que queiram partici-par, irá aumentar a transparência do processo” (Banco, 2000b, § 174).

Este processo é um bom exemplo da distância entre a retórica sobre a importân-cia da participação e da transparência e a prática que impede qualquer protagonismo

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popular. O problema, no entanto, não se restringe à negação de um conflito por partedo Banco Mundial, mas ao fato de que os seus recursos reforçaram as políticas gover-namentais direcionadas à implementação de um “acesso à terra não conflitivo”. Emoutras palavras, as ações do BIRD estavam em perfeita harmonia com a lógica doGoverno FHC que, entre outros objetivos, procurava neutralizar as pressões sociaispela reforma agrária no Brasil, criminalizando as ocupações, como veremos a seguir.

2. Estado e movimentos sociais: embates na implantação do modelo demercado

A orientação política do governo FHC (1995-2002) em relação à questãoagrária se tornou mais explícita e se consolidou no segundo mandato, especial-mente com o lançamento do programa “Novo Mundo Rural”, em 1999. Osparâmetros dessa política, no entanto, já estavam colocados desde o princípio,especialmente a lógica assistencial – aliviar a pobreza rural – de uma política dedistribuição de terras para amenizar conflitos ou responder pontualmente às de-mandas e pressões dos movimentos sociais agrários.

Já em 1995, cumprindo uma promessa de campanha, o então recém-eleitopresidente lançou o seu programa de reforma agrária. Em artigo publicado à épo-ca, Cardoso afirmou: “a reforma agrária, desapropriando terras ociosas para destiná-las aos pobres, é um imperativo para enfrentar a extrema desigualdade ainda exis-tente no agro brasileiro” (1995, p. 1-6 – grifos meus). Ao longo dos dois mandatos,a luta contra a desigualdade deu lugar à construção de uma política agrária basea-da na necessidade de aliviar a pobreza rural, profundamente influenciada pelaretórica e apoio financeiro do Banco Mundial.

Logo no início do primeiro mandato, no entanto, vários acontecimentos11

forçaram o governo FHC a transpor a simples retórica e tomar medidas para atenderas demandas sociais históricas por terra – especialmente o crescimento das ocupa-ções – e coibir a violência no campo (Medeiros, 2002, pp. 59s). A declaração doentão recém-empossado Ministro Extraordinário de Política Fundiária, RaulJungmann, de que “a reforma agrária readquiriu projeção situando-se no primei-ro plano da atividade política e no cenário econômico-social do Brasil” (1996, p.1-3), foi reflexo claro das pressões sociais, em especial das ocupações de terras e doapoio popular a uma política de reforma agrária.

Utilizando uma retórica baseada na necessidade de “reinventar a reforma agrá-ria” (Jungmann, 1996, p. 1-3), o Governo FHC adotou uma série de medidas

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que deveriam baixar custos e agilizar os processos de aquisição de terras para finsde reforma agrária. Essas mudanças foram introduzidas pela edição da MedidaProvisória (MP) 1.577, em 11 de junho de 1997, e devem ser interpretadas emuma perspectiva mais ampla de reforma do Estado, baseada nas concepçõesneoliberais do Estado mínimo.12

Além de acelerar os processos administrativos para aquisição de terras, todas essasmudanças visavam também readquirir o controle sobre as demandas sociais e ame-nizar as pressões dos movimentos agrários sobre a administração federal. De acordocom Medeiros, a própria criação do Ministério Extraordinário visava “retomar ainiciativa política e deixar de ‘estar a reboque dos movimentos’, no que diz respeitoà política fundiária” (2002, p. 60). Esta iniciativa estava em franca oposição ao dis-curso da necessidade de “enxugar a máquina administrativa” (Bresser Pereira, 1997)e à necessidade de romper com as antigas ações governamentais, “marcadas por for-te dirigismo, centralismo e paternalismo técnico-burocrático” (Teófilo, 2000, p.14).

Neste embate político com os movimentos sociais agrários, entre todas as açõesgovernamentais, merece destaque a edição da MP 2.027-38 em 4 de maio de200013, a chamada “MP das ocupações”. Segundo o texto desta MP: “O imóvelrural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário oufundiário de caráter coletivo não será vistoriado nos dois anos seguintes à desocu-pação do imóvel” (§6º do art. 4º).

O texto da MP 2.183-56 de 2001, além de impedir a vistoria e a desapropria-ção de imóveis rurais ocupados, excluiu do programa de reforma agrária todasaquelas pessoas identificadas “como participante direto ou indireto em conflitofundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domíniopúblico ou privado” e também “quem for identificado como participante de inva-são de prédio público” (§7º do art. 4º).

As penalidades não ficaram restritas aos mecanismos para coibir as ações indi-viduais, pois o texto da MP estabeleceu ainda pena para os movimentos sociaisque organizarem as ocupações. De acordo com o §8º (art. 4º), qualquer movi-mento ou entidade que “auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou partici-par” de ocupações ou “em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo” ficaimpedido de receber “a qualquer título, recursos públicos”.

Sem sombra de dúvidas, o principal objetivo dessas medidas governamentais– especialmente das MPs – era coibir as ocupações de terra no país, principal ins-trumento de mobilização popular e expressão da demanda por terra. De acordocom dados da Comissão Pastoral da Terra (2004, p. 111), estas ocupações salta-ram de 197 em 1994, para 592 em 1998, mantendo um número expressivo de

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502 ocupações no ano seguinte. A edição da MP 2.027-38, em 2000, foi extre-mamente eficaz na desmobilização popular, pois as ocupações caíram para apenas195 em 2001 e 183 em 2002 (CPT, 2004, p. 111).

O discurso e as ações governamentais para bloquear as mobilizações populareseram baseados em uma lógica que, de um lado, responsabilizava os movimentossociais pelos conflitos agrários e, conseqüentemente, pela própria violência no cam-po14 e, de outro, atribuía um caráter paternalista às políticas agrárias governamen-tais, resultando na passividade dos camponeses que conquistaram o sonhado acessoà terra. Negando a legitimidade das ocupações de terras como expressão de deman-das sociais históricas e instrumento de luta, o então ministro Jungmann afirmou:

As invasões, por sua vez, são a força e a fraqueza do MST. Força, por lhe propiciar, viaconflitos, uma ampla cobertura de mídia e uma posição nacional de interlocuçãopolítica; fraqueza porque, sem invasões, ele reduz sua capacidade de mobilização (1997,pp. 1-3 – grifos meus).

Além de contraditório – afinal os promotores do conflito agem como “quasetutelados” diante do paternalismo do Estado –, o objetivo era retirar dos parcosprocessos de redemocratização da propriedade fundiária qualquer conteúdo deconquista social e/ou protagonismo popular. De forma complementar, a retóricado governo FHC – seguindo o discurso do BIRD (Deininger, 1998) – vendiasuas propostas e programas, em especial a “reforma agrária de mercado”, comoinovadores, pacíficos, democráticos e promotores de desenvolvimento e cidada-nia no meio rural.15

As ações de reforma agrária do governo direcionam-se, portanto, para modificar ocaráter paternalista que o Estado sempre tratou a questão rural. Isso está muito clarotambém na concepção do Banco da Terra. O beneficiário do Banco da Terra não éum agente passivo, quase tutelado, que não participa dos processos administrativos(MEPF, 1999a, p. 26 – grifos meus).

Se, por um lado, a “MP das ocupações” constituiu um importante instrumentode criminalização e, conseqüentemente, de desmobilização social, os recursos doBIRD, por outro criaram as condições para disputar o protagonismo político comos movimentos sociais agrários no Brasil. A criação de uma linha de crédito paraa compra de terra deslocou parcelas significativas de camponeses das lutas e ocu-pações, que passaram a sonhar com acesso à terra via compra.

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As tentativas governamentais para reassumir o protagonismo na distribui-ção de terras introduziram, ainda, mecanismos que promoviam disputas entreos movimentos sociais. Apesar das várias referências à CONTAG por parte dostécnicos do Banco Mundial no processo de discussão e aprovação do novo em-préstimo, em 2000, o Ministro Raul Jungmann formalizou a participação daForça Sindical – entidade que tinha pouca ou nenhuma inserção no meio rural– e da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) – uma entidade patronaltotalmente avessa a qualquer política de reforma agrária – no Conselho Curadordo Banco da Terra “como representantes dos beneficiários desse projeto” (MDA,2001a, art. 1º).16

A disputa com os movimentos sociais produziu uma retórica que vendia o novomodelo como eficiente, barato e inovador (Deininger, 1998; Teófilo, 2000). Nes-se sentido, o BIRD e o governo FHC produziram uma “mudança” significativano caráter dos projetos e programas, ou seja, a proposta de “reforma agrária demercado” se transformou, magicamente, em um “programa de reforma agráriabaseada na comunidade” (program of community-based land reform).17 Apesar daretórica de que o programa é basicamente operado a partir da mediação de asso-ciações locais, estas não tiveram – e não têm – um desempenho importante noprocesso de implantação dos projetos, especialmente na negociação da terra, con-forme veremos adiante.

A essência da proposta é baseada na lei da oferta e da procura, portanto, todasas medidas, encaminhamentos e propostas estão assentadas na lógica de mercado.A ênfase no aspecto “comunitário” não passa de um desvio semântico como ten-tativa de amenizar críticas ao modelo, utilizando um conceito caro às lutas, mobi-lizações e movimentos populares.

O aspecto comunitário não é o que distingue as diferentes propostas de reformaagrária. O chamado “modelo tradicional” – ou simplesmente “liderado pelo Esta-do” – da desapropriação está fundamentalmente baseado em ações comunitárias oucoletivas de organização, mobilização, ocupação, negociação, essência do conceitode “movimento social”. Definir essa “nova” modalidade (baseada na lógica da ofertae da procura) como uma reforma agrária comunitária se transforma em uma tenta-tiva de deslegitimar as ações históricas dos diversos movimentos sociais, representa-tivos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais no campo brasileiro.

Outro aspecto que merece atenção é o uso do conceito ou denominação de“tradicional” para definir a reforma agrária constitucional. Em primeiro lugar, éum equívoco de leitura da história, pois o Brasil não contou com qualquer tipogenuíno de reforma agrária. Em segundo lugar, é um uso semântico que se con-

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trapõe à “novidade” da proposta de mercado. Em outros termos, o modelo doBIRD é “moderno” – conseqüentemente, um modelo eficiente, ágil, prático etc –e não “arcaico” e “ultrapassado”, como são implicitamente definidos os processosdesapropriatórios “tradicionais”.

Este caráter supostamente inovador aparece em diversos documentos, venden-do o modelo de mercado como algo moderno, barato e não-conflitivo.18 Segundo o“Sumário Mensal de Operações” (MOS), de março de 2001, a aprovação do recur-so de US$ 200 milhões referente ao empréstimo nº 7037-BR tinha como objetivofinanciar uma “abordagem inovadora baseada no mercado” (Banco, 2001). Aindamais importante do que esta “inovação”, a atuação e o apoio do Banco Mundial, naimplementação do projeto piloto Cédula da Terra são colocados, inclusive, comoum dos sinais visíveis do apoio a inovações nas políticas públicas brasileiras.

O Banco Mundial avalia que tem contribuído – com recursos financeiros enão-financeiros – para importantes inovações nas políticas sociais brasileiras. Essetipo de avaliação está explícito na CAS de 2000, quando afirma que, “em outrasáreas, tais como a reforma agrária, o Banco tem dado o seu apoio a importantesinovações de políticas” (2000, § 84), e que “o projeto piloto tem demonstradocomo o Banco pode facilitar inovações em políticas sociais e tem servido como omodelo para um novo programa complementar de reforma agrária do Governo(Banco da Terra)” (2000, § 122, item d).19

Os argumentos teóricos de sustentação desta “inovação” foram baseados em umacrítica genérica ao “modelo tradicional” como uma ação governamental burocráti-ca, cara e ineficiente, pois “a ação paternalista reduz a alocação de esforços por partedos beneficiários e não os qualifica para participar plenamente das instituições domercado” (Buainain, Silveira & Magalhães, s/d, p. 5). Além disso, a reforma agráriadesapropriatória é vista como um processo coercitivo e pautado pela lógica do con-flito (Teófilo, 2000, p. 8), o que se torna negociado no modelo de mercado. É pre-ciso, portanto, buscar uma política agrária “menos nociva”, ou seja, “num claro aban-dono da abordagem tradicional, o novo modelo estimularia, em vez de minar, omercado de terras” (Deininger & Binswanger, 1999, p. 267).

Aqui está a chave ou premissa básica do modelo proposto pelo BIRD, pois oconflito é “bad for business” (ruim para os negócios). O BIRD e seus técnicos nãoconseguem admitir que o conflito é parte fundante de qualquer democracia. Estanão apenas o admite como o pressupõe, pois a simples noção de direitos sociais,políticos e econômicos – portanto, noções de soberania, igualdade e participação– resulta em conflitos que são constituintes da democracia, e não um perigo àmesma.

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Na verdade, justificativas e argumentos teóricos para a implantação do mode-lo de “reforma agrária de mercado” foram baseados em críticas genéricas às açõesgovernamentais e às políticas agrárias conduzidas pelo estado. Argumentos gené-ricos condenaram a reforma agrária “tradicional” como ações politicamenteconflituosas e economicamente caras, portanto insustentáveis e inviáveis em qual-quer país, independentemente do processo histórico que resultou em profundasinjustiças como é o caso da distribuição da propriedade da terra no Brasil.

A proposta de mercado do BIRD, enfatizando a necessidade de aliviar a po-breza, retirou completamente o conteúdo e o potencial de desenvolvimento deuma redistribuição da propriedade fundiária (Pereira, 2004)20 e deslegitimou opapel do Estado como sendo um instrumento caro e ineficiente (Deininger,1998).21 De acordo com Pereira, o Banco Mundial:

de um lado, procedeu a uma crítica radical ao que ele mesmo denominou de reformaagrária ‘conduzida pelo Estado’, baseada no instrumento da desapropriação; de ou-tro, trabalhou para que o MRAM [modelo de reforma agrária de mercado] fosse aceito,política e conceitualmente, como uma modalidade específica de reforma agráriaredistributiva (2005, p. 1).

Conseqüentemente, o BIRD e o governo FHC produziram um “desvio se-mântico” rebaixando politicamente a definição de reforma agrária como “uma meratransferência de terra” (Deininger & Binswanger, 1998, p. 24), sendo necessáriosmecanismos complementares. O objetivo foi, então, alargar este conceito, permi-tindo que até mesmo programas de compra e venda de terras entre agentes priva-dos sejam considerados “instrumentos” de reforma agrária. Essa redefinição dosentido e significado da redemocratização da propriedade fundiária estava em francadisputa com a luta histórica e a plataforma política dos movimentos sociais agrá-rios (Sauer & Pereira, 2005).

3. Descentralização, democratização e protagonismo popular

Seguindo as diretrizes da reforma e modernização (enxugamento) do Estado(Bresser Pereira, 1997), entre as mudanças adotadas com a edição da Medida Pro-visória (MP) 1.577, de 11 de junho de 1997, estava a possibilidade de descentra-lizar “atribuições relativas à execução do Programa Nacional de Reforma Agrá-ria”, delegando-as a estados e municípios mediante convênio (art. 2º). O argumento

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básico para essa descentralização foi de que a “experiência com reforma agráriacentralizada tem se revelado como uma alternativa vagarosa – e mais custosa – emrelação à negociação descentralizada” (Deininger, 1998, p. 19).

Dentro dessa lógica de enxugamento do Estado, a defesa da descentralizaçãofoi recorrente durante todo o governo FHC, colocada sempre como sinônimo dedemocratização ou como um argumento de uma maior eficiência administrativa(Buainain, Silveira & Magalhães, s/d, p.4). Isso não foi diferente em relação àspolíticas agrárias, pois, de acordo com o então ministro Jungmann:

Assim, a descentralização vai possibilitar, em primeiro lugar, maior participação, emsegundo, menor custo; e, em terceiro, elevar as metas de assentamentos. (...) Adescentralização é o caminho mais rápido e seguro para a democratização das ações edos mecanismos da reforma agrária (1996, pp. 1-3).

Esse processo de descentralização – além de ser fundamental na “reconstruçãodo Estado” como um agente “regulador e facilitador ou financiador” do desenvol-vimento (Bresser Pereira, 1997, p. 6) – tinha como objetivos oficiais redirecionaras políticas públicas, desburocratizar as ações governamentais e facilitar a partici-pação popular (essa via os famosos conselhos municipais ou mesmo organizaçõeslocais tipo associações), promovendo a democracia. Além de envolver os demaisentes federados (estados e municípios), a descentralização deveria representar tam-bém uma aproximação com as necessidades imediatas da população – e, conse-qüentemente, uma “transferência de responsabilidade aos próprios beneficiários”(Buainain, Silveira & Magalhães, s/d, p. 2) – ou, traduzindo em termos mercado-lógicos, com a demanda.

Um princípio fundamental do modelo de reforma agrária de mercado é oenfoque “dirigido pela demanda” (demand-driven approach) ou, como já vimos,também chamado de abordagem “dirigida pela comunidade” (community-drivenapproach) (Teófilo, 2000). Segundo esse princípio, o acesso à terra deve se dar deacordo com a demanda manifesta dos indivíduos diretamente interessados, de talmaneira que somente as terras explicitamente demandadas devem ser objeto detransação comerciais de compra e venda.

No processo de implementação do Cédula da Terra – e, agora, nos outrossubprogramas do Programa Nacional de Crédito Fundiário –, essa demanda deve-ria estar organizada em associações comunitárias, as quais foram eleitas “como prin-cipais protagonistas de um novo modelo de política fundiária” (Buainain et al., 1999,p. 220). O modelo prega que essas “associações têm total autonomia para tomar as

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decisões”, resultando em “melhorias do bem-estar e da produtividade associada prin-cipalmente à ausência de tutela do setor público” (Teófilo, 2000, pp. 15 e 14).

Conseqüentemente, as associações comunitárias deveriam funcionar como ascélulas-base de todo projeto (Teófilo, 2000), pois, entre outros benefícios, a for-ma associativa deve reduzir erros de avaliação individual e facilitar a seleção deterras de melhor qualidade e mais adequadas às necessidades dos demandantes.Essa transação mercantil supõe a negociação entre as partes interessadas, de modoque todo o processo de aquisição de terra deve ser realizado com o mínimo deingerência do estado e o máximo de protagonismo dos vendedores e compradores(Teófilo, 2000, p. 17), gerando o famoso “empowerment” (empoderamento) dospobres do campo.22

Apesar de reconhecer a importância das “entidades coletivas de representação”,Navarro já apontava, em 1998, sérios problemas nas associações do Cédula daTerra. Diferente da teoria que sustenta o protagonismo de um comprador livre eautônomo, o autor constatou que “as associações, no geral, não representam osinteresses dos associados que a ela se integram” (1998, p. 12 – grifos no original)e concluiu que:

A formação de associações de pequenos agricultores, por exemplo, da forma como estásendo implementada pelo PCT, nos três estados visitados, acarretará em uma alta proba-bilidade de fracasso, pois não garante nenhuma sustentabilidade da organização constituí-da, tanto para garantir o pagamento do empréstimo como, também, para garantir a via-bilidade produtiva e econômica do empreendimento (Navarro, 1998, p. 14 – grifos meus).

Assim como suas entidades de representação, os camponeses e trabalhadoresrurais não agiram ou agem de acordo com os pressupostos e ideário do modelo dereforma agrária de mercado. Por força da trama de relações sociais e processoshistóricos de dominação existentes no meio rural, a seleção dos imóveis adquiri-dos através do Cédula passou longe do protagonismo dos “demandantes”, comoconstataram Sauer e Victor:

Os trabalhadores e trabalhadoras, assim como na definição dos preços, não tomaramparte das negociações, pois a maioria delas foi feita à revelia das famílias beneficiárias(...). As famílias tiveram pouco, se algum, poder nas decisões sobre as áreas adquiri-das. Todas as pessoas entrevistadas de três estados (Minas Gerais, Bahia e Maranhão)– incluindo os presidentes das associações –, afirmaram que não participaram direta-mente nem da escolha nem da compra da terra (2002, p. 109).

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Essa situação de fragilidade institucional, incapacidade de representação e fal-ta de protagonismo das associações foram constatadas pela equipe de Buainain.O protagonismo não se deu, por exemplo, em um dos momentos mais importan-tes do modelo de mercado, ou seja, na negociação e compra dos imóveis. De acordocom a avaliação preliminar, a “grande maioria das associações, mesmo entre asque declararam ter negociado diretamente com o proprietário, desempenhou umpapel secundário no processo, limitando-se a colher a oferta, levá-la ao órgão res-ponsável, voltar com contraproposta e assim por diante” (Buainain et al., 1999,pp. 120-1).

As evidências sobre a fragilidade das associações no processo de negociaçãoimobiliária são numerosas e revelam que não existiu nenhum protagonismo atri-buído a elas pelo modelo de reforma agrária de mercado. Apesar da retóricaneoliberal contra o Estado e a ênfase na autonomia dos beneficiários, na práticaforam os órgãos governamentais que conduziram o processo de negociação dasáreas e implantação dos projetos:

Em todas as situações arroladas, a negociação é desigual. Os interessados encontram-se divididos em direitos desiguais face ao mercado de terras, e a suposta informaçãoplena é uma ficção. Mesmo nas situações em que a negociação se dá (...) entre proprie-tários e associados sem a participação direta do governo, o que ocorre, na maioria doscasos, [é] uma negociação entre os órgãos governamentais com os proprietários dasterras. Para estes, o comprador potencial é o estado e não lhes interessa se os associa-dos terão ou não condições de pagar. (...) Enfim, quem fecha o negócio é o governo enão a associação (Buainain et al., 1999, p. 121 – grifos meus).

Além de explicitar fragilidades e problemas das entidades dos beneficiários,essa constatação destrói um dos principais pilares do modelo de mercado, mesmoque esse passe a ser denominado de “modelo negociado”. O ideal liberal de nego-ciação entre um vendedor e um comprador “iguais e livres” é, na verdade, deter-minado pelo protagonismo de órgãos governamentais, destruindo o discurso deque essa proposta rompe com a tutela do Estado.23

Essa condição de não-protagonismo e de fragilidade sociopolítica das associa-ções contrasta frontalmente com os esquemas idealizados de participação e de“empoderamento” apregoados pelo Banco Mundial. Na verdade, o problema nãoestá na “política de participação” do BIRD, mas, primeiro, na noção de que essase dá de forma automática, independentemente do contexto histórico e de pro-cessos sociais profundamente marcados pelo autoritarismo. Em segundo lugar, a

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negação explícita ou implícita do protagonismo dos movimentos sociais nacio-nais reforça uma visão míope da realidade, fazendo com que “o mundo ideal departicipação” desenhado nos documentos e projetos do BIRD colida “com omundo real das relações sociais, marcado por práticas paternalistas e clientelistas”(Soares, 2001, p. 55).

Diferente do discurso, a experiência concreta do Cédula não foi capaz de rom-per o “forte dirigismo, centralismo e paternalismo técnico-burocrático” do Estado.Esse discurso de que a implantação do modelo de mercado “deixa aos própriosbeneficiários a decisão de escolher e negociar a terra” (Buainain, Silveira & Maga-lhães, s/d, p. 5) resultou, na prática, que “os órgãos estaduais de coordenação doprojeto” assumiram “a condução do processo de negociação” (Steil, 2000, p. 26),tornando-se os verdadeiros protagonistas da reforma agrária “de mercado”.

Os problemas não se resumem à fragilidade institucional e incapacidade dasassociações para exercer o papel atribuído pelo modelo de mercado, nem à desigual-dade de poder na negociação entre compradores e vendedores, ou mesmo à tutelados órgãos governamentais.24 Diferente do alerta de Navarro de que “o sucesso doprojeto” dependia “fortemente da estratégia de formação das associações” (1998, p. 14– grifos no original), estas entidades foram artificialmente constituídas como umpasso meramente formal para cumprir uma exigência do programa.

De acordo com Buainain e outros, a metade das associações foi criada exclu-sivamente para participar do Cédula (1999, p. 223), revelando um procedimentomeramente burocrático, sem qualquer acúmulo organizativo. A baixa organicidadee a falta de representatividade dessas associações, formadas apenas para garantir oacesso imediato à terra, as tornam vulneráveis e com mínimas condições desustentabilidade (Navarro, 1998).

Mais significativa que a artificialidade – motivada por uma decisão burocráti-ca do modelo proposto –, no entanto, foi a constatação de que muitas associaçõesse constituíram, e sofrem, fortes influências de agentes externos, e não como umasimples iniciativa das famílias “demandantes” de terra:

É expressiva a participação de agentes externos e de outras instituições no processode formação e na própria condução das associações. A proposta oficial caracteriza aadesão dos pequenos produtores rurais ao PCT como um processo cuja iniciativapartiria dos próprios interessados. No entanto, os depoimentos mostram que a cria-ção de associações não é tão “natural” como se espera. Em todos os estados, e particu-larmente na BA e em MG, há uma clara intervenção de atores e instituições externasao grupo, tais como prefeituras, políticos locais, pessoas “bem intencionadas”, pro-

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prietários de terra, técnicos ligados às instituições governamentais, etc (Buainain etal., 1999, p. 279).

Segundo Buainain et al.,(1999, p. 233), esta ingerência de forças externas noprocesso de constituição das associações ocorreu de modo “informal e oficioso”,sendo que os órgãos estaduais, responsáveis pela implantação do Cédula, e de-mais instituições governamentais foram os agentes externos na criação de quase40% das associações então existentes.25 As associações criadas apenas para ter acessoao Cédula tiveram em comum o fato de terem sido predominantemente consti-tuídas a partir da iniciativa de órgãos governamentais direta ou indiretamente li-gados ao projeto, como também de prefeituras, políticos locais e proprietários(Buainain et al., 1999, p. 223).26

A maioria dos casos envolvendo a ação dos órgãos governamentais foi enqua-drada pela equipe de pesquisa como uma ingerência externa através de orientação eorganização. Os casos de organização e controle direto foram observados mais emrelação à ação de políticos locais, prefeituras e ex-proprietários (Buainain et al., 1999,p. 234). É evidente, no entanto, o alto grau de protagonismo de agentes (funcioná-rios e órgãos) governamentais na constituição e “funcionamento” das associaçõesrepresentativas das famílias “beneficiadas”, colocando em cheque tanto a propaladaparticipação social como a noção de um programa sem a tutela do estado.

Além da falta de experiência organizativa e da artificialidade na construçãodas organizações comunitárias, bases da proposta, outro fator que reforçou a fra-gilidade das associações foi o baixíssimo grau de socialização de informações arespeito do projeto. Essa falta limitou estruturalmente a capacidade de participa-ção autônoma dos “beneficiários” do Cédula. A equipe responsável pela avaliaçãopreliminar constatou essa falta de informações e a conseqüente dificuldade emparticipar nas negociações ou mesmo na formulação dos subprojetos produtivosou comunitários:

Outro traço extremamente relevante é o desconhecimento quase total das condições de funcio-namento do próprio Cédula da Terra. Quando indagados se haviam tomado crédito noúltimo ano, a resposta espontânea da grande maioria foi “não”. Lembrados do emprés-timo para comprar a terra, e perguntados sobre a fonte, montante, taxa de juros e tipode garantia dada, praticamente a totalidade não soube responder. Alguns poucos indica-ram partes do que poderia ser a condição de pagamento do Cédula da Terra (tipo “eu seique tenho 7 anos para pagar, mas não sei quanto”), mas praticamente ninguém sabia ascondições precisas do empréstimo (Buainain, 1999, p. 106 – grifos meus).

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Conforme alerta Pereira (2004), não se trata de pressupor que o acesso às in-formações seria suficiente para produzir sujeitos históricos e protagonistas de pro-cessos até então estranhos ao cotidiano de lutas pela sobrevivência. A difusão deinformações, por si só, não é suficiente para gerar novas atitudes e comportamen-tos, muito menos um protagonismo social em condições bastante dispares. Alémde desmentir a política do BIRD de pleno acesso à informação relacionada a seusprojetos, conhecer regras e limites é uma condição fundamental para qualquerparticipação. Conseqüentemente, o não domínio das “regras do jogo” – como,por exemplo, negociar se não se tem conhecimento da disponibilidade de recur-sos – simplesmente revela o não protagonismo das pessoas envolvidas nos proje-tos, favorecendo a proliferação das históricas práticas de tutela.

Apesar de todos estes problemas, amplamente explicitadas nas avaliações ofi-ciais do Cédula da Terra, o BIRD concluiu como uma das importantes lições naimplantação do Cédula da Terra que “a implantação através das associações co-munitárias” foi “um sucesso”. Isso aconteceu porque “as associações mostraramuma impressionante capacidade para mobilizar seus membros, selecionar e nego-ciar a compra da terra, preparar os investimentos produtivos e os executar” (Ban-co, 2003, p. 32).

Esses desencontros e descompassos entre o ideário e a experiência concreta da“reforma agrária negociada” não se restringem ao processo de implantação dosprojetos e à interferência externa na criação das associações. Esses desencontrostêm comprometido não só a proposta mas a própria sobrevivência das famíliasenvolvidas, sendo que a busca pela sobrevivência nos projetos levou as associaçõesdo Banco e do Cédula da Terra, localizadas no Triângulo Mineiro e no AltoParanaíba, a criar, no início de 2006, o Movimento dos Atingidos pela ReformaAgrária de Mercado (Movimento, 2006).

Os documentos deste movimento revelam que, desde 2003, vêm sendo feitasmuitas denúncias relacionadas à implantação do Banco e Cédula da Terra em MinasGerais. Essas denúncias vão da compra de “áreas que não são aptas à agricultura,muitas vezes superfaturadas” (Movimento, 2006a, p. 1), há casos onde o “núme-ro de famílias supera a capacidade das áreas” (Movimento, 2006, p. 1), resultandona exigência de uma auditoria no Banco da Terra no estado.

É significativo que, já em 2003, essas organizações levantassem a questão so-bre “com quem as Associações do Banco da Terra devem negociar” (Movimento,2003, p. 1), buscando uma interlocução com os órgãos oficiais. Em outras pala-vras, não há protagonismo social quando não há interlocução ou canais de nego-ciação entre os diferentes grupos de interesses (aqui os órgãos governamentais). A

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Carta de Uberlândia é mais explícita na demanda de protagonismo, quando exigeque “o governo deve respeitar a autonomia e representatividade das Associações ede sua articulação enquanto movimento” (Movimento, 2006a, p. 1).

Se havia críticas a este mecanismo como um meio incapaz de redemocratizara estrutura fundiária, é muito difícil, diante das avaliações e das mobilizações so-ciais recentes, afirmar que a “reforma agrária de mercado” é um sucesso em ter-mos de participação e “empoderamento” do povo do campo. No final, a insistên-cia nesse tipo de programa acaba penalizando as pessoas que sonham com o acessoà terra como um meio de vida, inclusive competindo com os parcos recursos des-tinados à reforma agrária constitucional.

Conclusão

Apesar de todo o ideário supostamente democrático e participativo, as experiên-cias concretas demonstram que o modelo de reforma agrária de mercado é umagrande falácia. Mesmo que o invólucro ou marketing sejam atraentes, os resulta-dos têm sido desastrosos, o que, infelizmente, nada mudou – a não ser o nome dafonte de financiamento nacional – na implantação da proposta no Brasil, atravésda execução do Programa Nacional de Crédito Fundiário pelo atual governo.

Diante do volume de recursos emprestados e do número de famílias envolvi-das, os desdobramentos da experiência brasileira têm um papel importante nofuturo da proposta de “reforma agrária de mercado” do Banco Mundial. Por ou-tro lado, independentemente se os programas serão plenamente executados oumesmo implantados com algum sucesso no Brasil, o BIRD continuará anuncian-do-o como um sucesso e passível de reprodução em outros países, influenciandooutros organismos multilaterais.

Essa insistência recoloca a proposta na agenda política dos governos e setoresorganizados da sociedade civil. O mais importante, no entanto, são as conseqüên-cias para as famílias diretamente “beneficiadas”. Estas não participaram, muitomenos foram protagonistas, nos processos de decisão na fase inicial, mas come-çam a se articular, buscando uma revisão total do programa ou, como no caso deMinas Gerais, uma reclassificação como assentados dos programas constitucio-nais de reforma agrária, executados pelo INCRA. Certamente nessa nova etapa deluta as famílias serão sujeitos do processo. Resta saber se os governos estaduais efederal e o próprio Banco Mundial irão reconhecer tal protagonismo social e po-lítico.

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Notas

1 A adoção destes temas é um reflexo direto das críticas crescentes à noção de desenvolvimento centrada nocrescimento econômico – noção dominante até meados dos anos 1980 – e das várias cúpulas e conferênciassobre pobreza (desenvolvimento social), desigualdades sociais, de gênero e meio ambiente, organizadas pelaOrganização das Nações Unidas (ONU), em meados dos anos 1990s.

2 Mesmo reconhecendo uma série de problemas, Fox afirma que a criação do Painel de Inspeção – como umorganismo autônomo e fiscalizadas – foi uma experiência inédita e a explicitação de um processo de aberturaou de transparência do BIRD, pois “cidadãos de países em desenvolvimento podem agora fazer reclamações arespeito dos custos sociais e ambientais de projetos do Banco Mundial” (2001, p. 37). Para maiores detalhes,ver os artigos publicados em Barros (2001).

3 De acordo com Fox, os procedimentos do Painel de Inspeção acabaram provocando reações dos governostomadores de empréstimos que os interpretaram como uma ameaça à soberania. Segundo ele, “os governos doBrasil e da Índia lideraram uma contra ofensiva para limitar a abrangência da atuação do Painel. Por exemplo,suas propostas retiravam do Painel a possibilidade de examinar problemas socioambientais que fossem causa-dos conjuntamente por governos e pelo Banco...” (2001, p. 61).

4 O artigo de Bello & Guttal avalia os percalços e conflitos em três experiências concretas de participação, sendouma a Iniciativa de Revisão Participativa do Ajuste Estrutural (SAPRI) e conclui que “agora o Banco está desa-creditado não apenas por não cumprir o seu próprio objetivo de ‘criar um mundo livre da pobreza’, mas tam-bém por sua falta de habilidade e vontade para manter a palavra e cumprir compromissos que fez publicamenteem vários ‘diálogos com partes interessadas’” (2006, p. 80).

5 Para maiores detalhes sobre os pedidos de inspeção do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça noCampo, ver Sauer & Wolf, (2001), e a atuação das entidades agrárias, ver Medeiros, (2002).

6 Medeiros (2002, p. 84) lembra que este tema e a demanda por uma linha de crédito destinada à compra deterras, com condições favoráveis, já haviam aparecido na pauta do Grito da Terra-Brasil de 1996.

7 Em 2000, a CONTAG incluiu novamente em sua pauta de mobilização (Grito da Terra-Brasil) a reivindicaçãode um programa de crédito fundiário. Este foi o caminho aberto para que o BIRD, tendo um sinal positivo dogoverno FHC e a tão desejada “participação” da sociedade civil, aprovasse novo aporte financeiro, colocandorecursos no Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural.

8 O Cédula da Terra não havia sido avaliado – os projetos financiados pelo Banco Mundial sofrem uma Avalia-ção de Meio Termo (middle term evaluation) ou avaliação preliminar – ou mesmo começado a ser implantadono estado do Bahia e os processos de compra de terra já estavam autorizadas para todo o território nacional pormeio do Banco da Terra.

9 O Banco Mundial contratou estes consultores externos para realizar um estudo sobre os fundos sociais finan-ciados ou administrados por esse organismo multilateral no Brasil, os quais incluíram um capítulo sobre oCédula da Terra.

10 O Banco Mundial, no anexo 6 do CAS, afirma que houve consultas a entidades da sociedade civil, parlamen-tares, empresas, governos estaduais, BNDES, CNBB, pesquisadores e professores (Banco, 2000, p. XXXIV,item 1) no processo de elaboração da Estratégia de Assistência ao Brasil (CAS) de 2000 a 2004.

11 Além dos massacres de Corumbiara (RO), ocorrido em agosto de 1995, e de Eldorado dos Carajás, em abril de1996, resultando em pressão internacional sobre o novo governo, a marcha do MST, realizada em 1997, recolocouo tema na opinião pública nacional e “capitalizou insatisfações diversas e se constituiu na primeira manifesta-ção popular contra o governo que, até então parecia gozar de unanimidade absoluta, em função do impactoeconômico do Plano Real e queda da inflação” (Medeiros, 2002, p. 61).

12 Como bem observou Medeiros, essas mudanças e a própria criação do Ministério Extraordinário de PolíticaFundiária eram parte de “marcos mais amplos do que a questão agrária propriamente dita, na medida em que

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se regia[m] pelos parâmetros de uma reforma do Estado, cujas diretrizes centrais eram a descentralização deações, o enxugamento da máquina administrativa e a privatização” (2002, p. 62).

13 A MP 2.027-38 revogou e substituiu a MP 1.577, de 1997, e suas dezenas de reedições, que também foi revogadae substituída, em 24 de agosto de 2001, pela MP 2.183-56, sendo que esta não apenas manteve a proibição devistoriar áreas ocupadas como ampliou a restrição para 4 anos nos casos de reincidência (§... do art. 4º).

14 Para maior discussão sobre a importância da mobilização social na luta pela terra e o significado dos conflitosagrários, distintos de violência no campo, ver Sauer (prelo).

15 De acordo com as críticas do BIRD, “em vez de buscar o aumento da produtividade e sustentavelmente reduzira pobreza, muitas das antigas reformas agrárias foram direcionadas a acalmar a agitação social e amenizar aspressões políticas das organizações camponesas” (Deininger, 1998, p. 3).

16 Medeiros cita ainda outros mecanismos que visavam estimular essas disputas como, por exemplo, a permissãopara que as entidades estaduais sindicais indicassem áreas para desapropriação, mostrando que a intenção era“legitimar as demandas de uns, ignorando as de outros” (2002, p. 65).

17 Essa terminologia “comunitária” passou a ser utilizada em documentos como, por exemplo, na CAS de 2000e no documento (Project Appraisal Document – PAD) que formalizou a solicitação de empréstimo junto aoBanco Mundial, aprovado em 2002 (Banco, 2000b).

18 De acordo com o PID, um dos objetivos do empréstimo era implantar “um piloto como teste do mecanismobaseado no mercado para a reforma agrária no Sul do Brasil, permitindo ao Governo acelerar enormemente oprocesso e diminuir os custos de seu programa de reforma agrária” (Banco, 1998, item iii, § 9).

19 É importante observar que o BIRD tem gastado somas consideráveis em estudos e eventos relacionados aosprojetos. De acordo com uma versão preliminar do Manual de Operações do Crédito Fundiário, “1,9% docusto total do Projeto pode ser destinada à divulgação, à disseminação e à avaliação (2001, p. 11), ou seja, algoem torno de US$ 7,6 milhões, e outros “3% do custo total à difusão do Projeto, assistência técnica e capacitaçãodos beneficiários” (2001, p. 10), algo em torno de US$ 12 milhões.

20 Todos os documentos do BIRD estabelecem apenas uma relação entre reforma agrária e alívio ou combate àpobreza, mas nunca com o combate à desigualdade ou com mecanismos de desenvolvimento econômico, políticoou social. De acordo com o texto do pedido de empréstimo (PAD), “o empréstimo proposto irá apoiar o Brasilno enfrentamento de um dos principais fatores geradores da pobreza no meio rural: o acesso inadequado à terrapelos pobres rurais” (Banco, 2000b, item A, ponto 1).

21 Reforçando o discurso de que “a grande tarefa política dos anos 90 é a reforma ou a reconstrução do estado”(Bresser Pereira, 1997, p. 1), o BIRD construiu uma caricatura neoliberal para disputar a concepção de Estado,afirmando que o desenvolvimento exige “uma forte reorientação das políticas públicas no sentido de superar oquadro de interferência burocrática, ineficiência técnica e operacional característica de políticas centralizadas,baseadas em forte dirigismo e controle por parte do Estado” (Buainain, Silveira & Magalhães, s/d, p. 2).

22 Segundo o BIRD, este é o grande objetivo, pois se “o processo de reforma agrária negociada contribuir paramudar a atitude dos beneficiários e conseguir transformá-los de objetos passivos, que esperam o governo dar assoluções, para sujeitos do processo capazes de converter um subsídio em um melhoramento permanente desuas condições de vida, o modelo negociado de reforma agrária terá atingido mais do que o seu objetivo”(Deininger, 1998, p. 20 – grifos meus).

23 Outro estudo, fruto de um convênio FAO/INCRA, diagnosticou que o IDACE, órgão governamental encarre-gado de coordenar a implantação do Cédula da Terra no Ceará “... tem participação significativa no preço e namodalidade de pagamento da terra em questão principalmente devido à falta de iniciativa ou desconhecimen-to dos preços de mercado por parte dos beneficiários. (...) O IDACE emerge como negociador direto com os ven-dedores, contradizendo seu papel de árbitro ou mediador no processo (Groppo et al., 1998, pp. 3-4 – grifos meus).

24 “As propostas de participação e ‘empoderamento’ comunitários ficam completamente comprometidas pois, narealidade, o Cédula é um programa totalmente protagonizado pelo próprio Estado (...). A pesquisa de campo

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confirmou também o total desequilíbrio nos processos de negociação, constatando a ausência ou submissãodos compradores aos processos conduzidos por proprietários, órgãos governamentais ou outras ‘forças’ alheiasaos interesses das famílias” (Sauer & Victor, 2002, pp. 80 e 87).

25 A pesquisa do Fórum de Reforma Agrária constatou inclusive que houve casos em que a formação da associa-ção foi posterior à compra do imóvel e a primeira diretoria veio definida de fora (Sauer & Victor, 2002, p. 69),rompendo qualquer possibilidade de protagonismo social por parte das famílias envolvidas no projeto.

26 Este relatório aponta também a participação de ex-proprietários de terras na formação das associações. Essainfluência, no entanto, foi mediada “por políticos, prefeitos, técnicos de instituições governamentais, associa-dos, lideranças comunitárias, cabos eleitorais, administradores das fazendas e até mesmo as federações das asso-ciações comunitárias” (Buainain et al., 1999, p. 233).

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PARTE IV

REFORMA AGRÁRIA, LUTA SOCIAL E SOBERANIAALIMENTAR

ALTERNATIVA À POLÍTICA FUNDIÁRIA DE MERCADO:REFORMA AGRÁRIA E SOBERANIA ALIMENTAR

PETER ROSSET

A soberania alimentar envolve a implementação de processos radicais de reformaagrária massiva, adaptada primordialmente às condições de cada país e região e quepropicie ao camponês e sitiante – com oportunidades iguais para indígenas e mulhe-res – acesso eqüitativo a recursos produtivos, primordialmente a terra, água e flores-tas, bem como aos meios de produção, financiamento, treinamento e capacitaçãopara administração e negociação.A reforma agrária, acima de tudo, deveria ser reconhecida como uma obrigação degovernos nacionais... sob o arcabouço dos direitos humanos e como uma políticapública eficiente de combate à pobreza. Os processos de reforma agrária devem sercontrolados por organizações camponesas... e têm de garantir direitos individuais ecoletivos de agricultores em terras compartilhadas, sendo integrada em uma políticaagrícola e comercial coerente. Opomo-nos às políticas e aos programas decomercialização de terra promovidos pelo Banco Mundial em lugar de verdadeirasreformas agrárias pelos governos.

Declaração final do Fórum Mundial de Soberania Alimentar (reuniãopreparatória da sociedade civil para a Cúpula Alimentar Mundial + 5)

O direito à alimentação é um direito humano protegido pela legislação internacio-nal. É o direito ao acesso regular, permanente e desimpedido, de forma direta ou atravésde aquisições em dinheiro, ao alimento quantitativa e qualitativamente adequado esuficiente, que corresponda às tradições culturais dos povos de que faz parte o consu-midor, e assegurando uma vida plena e digna em termos físicos e mentais, individu-ais e coletivos, livre de ansiedade. Os governos têm uma obrigação legal de respeitar,proteger e cumprir o direito à alimentação (…) Embora o Relator Especial acrediteque a cooperação internacional seja fundamental, a obrigação primeira de atender aodireito à alimentação repousa sobre governos nacionais. Nesse nível, é fundamental o

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acesso à terra, e a reforma agrária precisa ser um aspecto-chave nas estratégias gover-namentais visando à redução da fome. Em muitas partes do mundo, as pessoas lutampara sobreviver porque estão sem terra ou porque suas propriedades são tão pequenasque não conseguem sobreviver decentemente. A reforma agrária tem de ser justa, leale transparente… [e] deveria ser dada mais atenção aos modelos alternativos propos-tos pela sociedade civil, em particular o conceito de soberania alimentar. Especial-mente o acesso à terra e a reforma agrária devem ser elementos fundamentais do di-reito à alimentação.

Jean Ziegler – relator especial da Comissão de Direitos Humanos para oDireito à Alimentação.

Introdução: um mundo rural em crise

No começo do novo milênio constatamos que, em todos, os lugares o mundorural está em crise. As origens históricas dessa crise podem ser encontradas, nasnações do Sul, em açambarcamentos de terras coloniais e na expulsão de povosque cultivavam terras férteis com chuva adequada para terrenos íngremes, rocho-sos, margens de desertos e solos inférteis de florestas tropicais, bem como a pro-gressiva incorporação dessas pessoas deslocadas à mão-de-obra sazonal, com re-muneração precária, pela agricultura de exportação. Em decorrência desse legado,modificado apenas ligeiramente no período pós-colonial, os sem-terra e quase-sem-terra por muito tempo foram contados como os mais pobres entre os pobres.Em décadas recentes, políticas econômicas neoliberais normalmente tornaramainda piores as condições nas áreas rurais, quando governos nacionais, muitas vezespor pressão de instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial, oFundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial de Comércio(OMC), agiram como segue:

• Comandaram um conjunto de políticas comerciais, macroeconômicas esetoriais que conspiraram para solapar a viabilidade econômica da agricul-tura camponesa, de pequenos agricultores, de agricultores familiares e daagricultura cooperativa ou coletiva. Essas políticas incluíram a liberalizaçãodo comércio e a subseqüente inundação de mercados locais com importa-ções de alimentos baratos subfaturados, com os quais os agricultores locaisdificilmente conseguem competir; o corte da sustentação de preços e dossubsídios para produtores de alimentos; a privatização do crédito, da

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comercialização e da assistência técnica; a promoção excessiva da exporta-ção; patenteamento de recursos genéticos de cultivares; e um favorecimentoda pesquisa agrícola em prol de tecnologias caras como a engenharia gené-tica. Cada vez mais, pequenos agricultores e pobres descobrem que o crédi-to é inadequado ou muito caro para cobrir os crescentes custos de produ-ção; os compradores são cada vez mais raros e monopolizados, e os preçosestão muito baixos para cobrir os custos do crédito e da produção (Hellingeret al., 2001; Lappé et al., 1998). O resultado líquido foi uma significativa econtínua deterioração no acesso à terra pelos pobres, os que possuem sãoforçados a vender a terra, não conseguem assumir arrendamentos ou arran-jos semelhantes, ou perdem a terra por não quitar empréstimos (ComissãoEuropéia, 1999; Rosset, 2001b; Ziegler, 2002).

• Protelaram a implementação de uma reforma agrária já existente e depolíticas de redistribuição de terra. Geralmente resistiram – às vezes pelouso da força – a esforços por parte de organizações da sociedade civil, comoos movimentos dos sem-terra, para retardar a implementação dessas polí-ticas (Langevin & Rosset, 1997; Agência EFE, 2000; Rosset, 2001b;Ziegler, 2002).

• Ficaram omissos diante do processo de transformação crescente da terra emmercadoria, assistindo passivamente a como interesses – tanto empresariaisagrícolas (p. ex., lavouras) e não-agrícolas (p. ex., petróleo e mineração) – egrandes projetos de infra-estrutura (p. ex., barragens hidroelétricas) avança-ram sobre terras comunais e públicas, e sobre territórios de povos indígenas(Bryant, 1998; Comissão Européia, 1999; Rosset, 2001b).

• Não fizeram nada quando cadeias de commodities agrícolas – tanto na pontados insumos (p. ex., sementes) como na dos produtos (p. ex., comércio degrãos) – foram se concentrando nas mãos de poucas corporaçõestransnacionais que, em vista da condição de quase-monopólio, fixam, demodo crescente, custos e preços desfavoráveis a agricultores, colocandotodos, especialmente os mais pobres, em um arrocho insustentável de custose preços, a ponto de incentivar ainda mais o abandono da agricultura (ETC,2001; Heffernan, 1999; Rosset, 2001b; Ziegler, 2004).

Na realidade, os governos e instituições multilaterais adotaram basicamenteapenas uma iniciativa política, em escala mais ou menos global, apresentando-acomo passo “positivo” para retificar as questões de acesso à terra. Essa iniciativa,ou série de iniciativas, consiste em acelerar, desenvolver e “estrear” políticas

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projetadas e apoiadas pelo Banco Mundial, de titulação de terras, abertura de mer-cados de terra e, de forma crescente, promoção de crédito do tipo “Banco da Terra”para aquisições de terra pelos pobres. Essa é a chamada reforma agrária “impulsio-nada pelo mercado” ou “negociada” (Deininger, 2001 e 2003). Infelizmente existeuma forte evidência de que é muito improvável que essas políticas melhorem signi-ficativamente o acesso dos pobres à terra, ou de que lhes propiciem uma posse maissegura. Na realidade, há boas razões para acreditarmos que de fato tornarão a situa-ção ainda pior em muitos lugares (Borras, 2003a e 2005, prelo).

Portanto, não nos deveria surpreender o fato de que é em áreas rurais que ain-da se podem encontrar a pior miséria e fome. A expansão da produção agrícolapara exportação, controlada por agricultores mais ricos, detentores das melhoresterras, desloca continuamente os pobres para áreas marginais de cultivo. São for-çados a derrubar florestas localizadas em solos pobres, a cultivar terras magras, defácil erosão, em terrenos íngremes, e a tentar conquistar o sustento em margensde desertos e em florestas tropicais (Lappé et al.,1998).

Contudo, muitas vezes, a situação é pior nas terras mais férteis. Na maioriados países, os melhores solos foram concentrados em grandes propriedades usa-das na produção de monoculturas mecanizadas para exportação, com uso intensi-vo de pesticidas e fertilizantes químicos. Muitos dos melhores solos de nosso pla-neta – no passado, administrados de forma sustentável durante milênios pelosagricultores pré-coloniais – estão atualmente sendo degradados com rapidez, e emalguns casos abandonados completamente, no afã imediatista de lucros com aexportação e a competição. A capacidade produtiva dessas terras está em rápidodeclínio devido à compactação do solo, erosão, saturação da água e perda de fer-tilidade, além da crescente resistência das pragas aos pesticidas e da perda dabiodiversidade (Lappé et al., 1998; Pingali et al.,1997).

Os produtos colhidos dessas terras mais férteis fluem majoritariamente paraconsumidores em países ricos. A maioria local empobrecida não tem condiçõesde comprar o que é produzido, e por não formarem um mercado significativo, aselites nacionais vêem a população local essencialmente como fonte de mão-de-obra – um custo de produção a ser minimizado mantendo os salários baixos equebrando sindicatos. O resultado geral é uma espiral descendente de degradaçãoda terra e aprofundamento da pobreza nas áreas rurais. Até mesmo problemasurbanos têm origem rural, visto que o pobre tem de abandonar a zona rural emcontingentes numerosos, migrando para as cidades, onde somente alguns poucosafortunados obtêm um salário para sobreviver, ao passo que a maioria adoece emfavelas e barracos (Lappé et al., 1998).

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Se continuarem sem desaceleração as atuais tendências de maior concentra-ção de terras e da concomitante industrialização da agricultura, será impossívelalcançar a sustentabilidade social ou ecológica. No entanto, pesquisas mostram opotencial que poderia ser atingido pela redistribuição da terra. Agricultores depequena escala, por exemplo os camponeses, são mais produtivos, mais eficientese contribuem mais para o desenvolvimento regional amplo que os grandes agri-cultores empresariais que possuem as melhores terras (Rosset, 1999). Os campo-neses com posse pacífica também conseguem ser melhores zeladores dos recursosnaturais, protegendo a produtividade de longo prazo de suas terras e conservandoa biodiversidade funcional de suas propriedades e arredores (Altieri et al., 1998).

1. Um choque de modelos no mundo rural

Grande número e organizações de pequenos agricultores, camponeses, sem-terra, trabalhadores rurais, povos indígenas, juventude rural e mulheres campo-nesas do mundo se uniram em uma aliança global, a Via Campesina. De acordocom a Via Campesina, estamos enfrentando um choque histórico entre dois mo-delos de desenvolvimento econômico, social e cultural para o contexto rural. Omodelo dominante e seus impactos negativos foram descritos acima, e a ViaCampesina contrapõe o paradigma alternativo chamado soberania alimentar. Asoberania alimentar começa pelo conceito de direitos humanos econômicos e so-ciais que incluem a alimentação adequada (Via Campesina, 2002; Via Campesinaet al., s/da; s/db; 2005), mas é mais amplo, pois como afirma o Relator Especialda ONU para o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, há um decorrente direito àterra e até mesmo o “direito de produzir” das populações rurais (Ziegler, 2002 e2004).

A noção de soberania alimentar argumenta que alimentar o povo de uma na-ção é uma questão de segurança nacional – de soberania, se quisermos. Se, para apróxima refeição, a população de um país depender dos caprichos da economiaglobal, da boa vontade de uma superpotência de não usar o alimento como arma,da imprevisibilidade e do alto custo de transportes a longas distâncias, então essepaís não está seguro, nem no sentido de segurança nacional nem de segurançaalimentar. A soberania alimentar, portanto, vai além do conceito de segurançaalimentar, que foi destituído de significado real (Rosset, 2003).

Segurança alimentar significa que toda criança, mulher e homem precisam estarcertos de ter o suficiente para comer todos os dias, mas o conceito não diz nada

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sobre de onde esse alimento vem ou como é produzido. Logo, Washington podealegar que importar comida barata dos EUA é uma maneira melhor de países po-bres alcançarem a segurança alimentar que produzindo comida eles próprios. Im-portações volumosas de alimento barato e subsidiado, no entanto, arruinaram agri-cultores locais, expulsando-os da terra. Incham as fileiras dos famintos, e sua segurançaalimentar é colocada nas mãos da economia monetária, na medida em que migrampara favelas urbanas onde não conseguem encontrar empregos com salários paragarantir a vida. Para atingir uma segurança alimentar genuína, as pessoas em áreasrurais precisam ter acesso à terra produtiva e obter preços para suas colheitas garan-tindo uma vida digna (Rosset, 2003; Via Campesina et al., s/da; s/db; 2005).

Isso significa também que não basta ter acesso à terra e a recursos produtivos.A ênfase atual nas negociações comerciais acerca do acesso ao mercado exporta-dor, em detrimento da proteção de mercados domésticos para produtores inter-nos, representa um problema crucial. De acordo com a Via Campesina, “a sobe-rania alimentar prioriza o acesso ao mercado para agricultores locais. O comércioagrícola liberalizado, que dá acesso a mercados com base no poder de mercado ea preços baixos, freqüentemente subsidiados, nega o acesso de agricultores locaisa seus próprios mercados” (2002) e, assim, viola o direito de produzir, minando odesenvolvimento econômico local e regional. Uma forma de promover o desen-volvimento econômico local em áreas rurais é criar circuitos locais de produção econsumo em que os pequenos agricultores vendem seu produto em cidades e vilaspróximas, adquirindo outros produtos que necessitam dos fabricantes e comérciosdessas localidades. Como foi demonstrado nitidamente em recente estudo de cam-po no Brasil, a presença de assentamentos da reforma agrária aquece economiaslocais, ainda que um país careça de uma “verdadeira” política de reforma agrária(Leite et al. 2004).

Desse modo, o dinheiro circula diversas vezes na economia local, gerando empre-gos na cidade e possibilitando que os agricultores se sustentem. Se, ao invés disso, tudoo que os agricultores produzirem for exportado para países distantes que pagam pre-ços de mercado internacional (= baixos), e tudo o que comprarem também for impor-tado, todos os lucros serão extraídos do sistema econômico local e tão-somente contri-buirão para o desenvolvimento econômico de locais remotos como Wall Street. Asoberania alimentar coloca a ênfase em mercados locais e economias locais como con-dição básica sine qua non para o combate à fome e à miséria (Rosset, 2003).

Somente mudando os rumos do desenvolvimento voltado para a exportação,do modelo agrícola baseado no livre-comércio e na indústria, da concentração daterra em grandes fazendas e da expulsão das pessoas é que a espiral descendente de

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miséria, baixos salários, migração campo-cidade e degradação ambiental serãointerrompidas. A reforma agrária redistributiva e a reversão da política comercialdominante trazem em seu bojo a promessa de mudança para um modelo agrícolafamiliar ou cooperativo baseado em áreas menores, com o potencial de alimentaro pobre, conduzir a um desenvolvimento econômico de base ampla e conservar abiodiversidade e os recursos produtivos (Rosset, 1999 e 2001a).

Isso nos traz de volta ao argumento da Via Campesina de que estamos enfren-tando um choque de modelos para o mundo rural, um choque de modelos dedesenvolvimento econômico. Não poderia ser mais gritante o contraste entre omodelo dominante, agro-exportador, baseado em políticas econômicas neoliberaise no livre-comércio, e o modelo baseado na soberania alimentar (veja tabela 1).

Em praticamente todos os itens relacionados a alimento, agricultura e vidarural as posições são contrárias. Onde um modelo considera os pequenos agricul-tores como um anacronismo pitoresco e ineficientes que deveriam desaparecer como desenvolvimento (a menos que alguns agricultores fiquem como atrações dotipo Disneylândia para um turismo rural bucólico), o outro os vê como a base deeconomias locais, como o mercado interno que permitiu às potências econômicasindustriais de hoje como os EUA, Japão, China e Coréia do Sul alçarem vôo emtempos passados (Rosset, 1999 e 2003).

No que tange à fome, um modelo considera o impulso às exportações das plan-tações gigantescas dos ricos como maneira de gerar as divisas necessárias paraimportar alimento barato para os famintos; enquanto o outro vê a conversão deglebas que, no passado, pertenceram a pequenos agricultores, camponeses e po-vos indígenas em culturas de exportação precisamente como força motora funda-mental do crescimento da fome e do empobrecimento nas áreas rurais.

Por fim, enquanto o modelo dominante está baseado na monocultura de usointensivo de substâncias químicas e de escala, com sementes geneticamente modifi-cadas (OGMs), o modelo da soberania alimentar considera essas práticas da agri-cultura industrial como possíveis destruidoras da terra para gerações futuras, con-trapondo-se a uma mescla de práticas de conhecimento tradicional e agriculturasustentável, de base agroecológica (Rosset, 2003; Via Campesina et al., s/da; s/db;2005). De modo geral, é por isso que o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra(MST) do Brasil, um membro da Via Campesina, diz que “o inimigo é o modelo”e que o alvo da luta é a “mudança do modelo”, ou uma transição de modelos. Argu-menta que, embora o mundo rural seja uma peça central nessa transição, ele não ésuficiente. Para ter êxito, este precisa estar inserido em uma ênfase política mais amplana soberania alimentar (João Pedro Stédile, comunicação pessoal).

322

Tabela 1 - Modelo dominante versus modelo da soberania alimentarItem Modelo dominante Soberania alimentar

Comércio • Livre-comércio em tudo • Alimento e agricultura fora de acordos comerciais

Prioridade da produção • Agro-exportação • Alimento para mercados locais

Preços de colheita • “Os que o mercado dita” (deixar intactos os • Preços justos que cubram custos de produção e

mecanismos que comandam preços baixos) permitam aos agricultores e trabalhadores rurais

uma vida digna

Acesso ao mercado • Acesso a mercados estrangeiros • Acesso a mercados locais; fim do deslocamento de

agricultores de seus mercados pela agroindústria

Subsídios • Proibidos no Terceiro Mundo, são permitidos • Aceitáveis subsídios que não prejudiquem outros

muitos subsídios nos EUA e na Europa, mas países pelo dumping (i. é., subsídios concedidos

somente pagos aos agricultores maiores somente para pequenos agricultores, para comerciali-

zação direta, garantia de preços, conservação de terra,

conversão para agricultura sustentável, pesquisa, etc.)

Alimento • Predominantemente um só produto; na prática • Um direito humano: especificamente deveria ser

isso significa alimento processado, contaminado, saudável, nutritivo, acessível, culturalmente apropriado

repleto de gordura, açúcar, xarope de milho, e produzido localmente

frutose alta e resíduos tóxicos

Aptidão para produzir • Uma opção para os economicamente eficientes • Um direito de populações rurais

Fome • Devido à baixa produtividade • Problema de acesso e distribuição, devido à pobreza

e desigualdade

Segurança alimentar • Alcançada pela importação de alimentos de onde • Maior quando a produção do alimento está nas mãos

são mais baratos do faminto, ou quando é produzido localmente

Controle dos recursos • Privatizado • Local, a comunidade controla

de produção

(terra, água,florestas)

Terra • Um fator de produção, uma mercadoria • Um direito da população rural

Acesso à terra • Pelo mercado • Pela reforma agrária autêntica

Sementes • Mercadoria patenteável • Herança comum da humanidade, conservada

fiduciariamente pelas comunidades e culturas rurais;

“não ao patenteamento da vida”

Crédito e investimento • De bancos privados e corporações • Do setor público, desenhado para apoiar a

rural agricultura familiar

Dumping • Não é problema • Precisa ser proibido

Monopólio • Não é problema • A raiz da maioria dos problemas

Superprodução • Por definição, não existe isso • Leva à queda dos preços e agricultores à pobreza;

necessidade de políticas de abastecimento nos EUA

e na EU

Tecnologia rural • Industrial, monocultura, uso intensivo de substâncias • Agroecológica, métodos agrícolas sustentáveis, nenhum

químicas; OGMs Organismo Geneticamente modificado (OGM)

Agricultores • Anacronismo; os incompetentes desaparecerão • Guardiões da cultura e do germoplasma das sementes;

ecônomos dos recursos produtivos; acumuladores de

conhecimento; mercado interno de base e construção

amplas; desenvolvimento econômico inclusivo

Consumidores urbanos • Trabalhadores com o menor salário possível • Necessitam de salários justos para viver

Organismos geneticamente • A onda do futuro • Maléficos para a saúde e o meio-ambiente; uma

Modificados (OGMs) tecnologia desnecessária

Outro mundo (alternativas) • Não é possível; não interessa • Possível e amplamente comprovadoFonte: Rosset, 2003.

323

2. Reformas agrárias em andamento

2.1. As reformas “oficiais”O Banco Mundial está liderando a promoção e, em alguns casos, o financia-

mento de reformas amplas de posse da terra, incluindo a titulação, os cadastros eregistros de terra, aquecimento do mercado de terras, reformas redistributivas as-sistidas pelo mercado ou negociadas, bem como o apoio ao crédito, à ajuda técni-ca e à comercialização (Rosset, 2004; Deininger & Binswanger, 2001; Deininger,2001 e 2003; Bond, 2000). Nesse aspecto, o BIRD seguiu a orientação de seuseconomistas de desenvolvimento que constataram que a desigualdade severa naposse da terra retarda o crescimento econômico, o lenimento da pobreza e os es-forços para uso sustentável dos solos (Deininger, 2003; Deininger & Binswanger,2001). Nesse contexto político, outras instituições, inclusive governos, agênciasde cooperação e outros bancos de desenvolvimento estão seguindo a liderança doBanco Mundial e implementando agressivamente algumas ou, em alguns casos,todas essas reformas (De Janvry et al., 2001; Burns et al., 1996).

Enquanto se poderia aplaudir o fato de que, graças ao Banco Mundial, já não étabu propor a reforma agrária como um elemento fundamental do desenvolvimentosustentável (De Janvry et al., 2001; Rosset, 2002), boa parte das políticas fundiáriasdo BIRD deixa de tratar causas subjacentes da pobreza e exclusão (Borras, 2003a e2005; prelo). Programas de titulação de terras podem levar a nova perda de terra, comona Tailândia (Leonard & Ayutthaya, prelo), a conflitos como no México (De Ita, pre-lo) e o custo de bancos da terra lamentavelmente torna sua extensão potencial inade-quada, quando comparada à magnitude do fenômeno dos sem-terra, como naGuatemala (Garoz & Gauster, 2005), ao passo que os beneficiários estão amarrados apesadas dívidas por terras caras de qualidade duvidosa como na Guatemala e no Brasil(Garoz & Gauster, 2005; Sauer, prelo). Além disso, soluções com base no mercadotendem a despolitizar o problema do fenômeno dos sem-terra que, por natureza, so-mente pode ser solucionado mediante mudanças estruturais de um tipo que apenaspode ser tratado na esfera política, e não na do mercado (Rosset, 2002 e 2004). Porfim, essas “reformas” são realizadas deixando intactos o contexto de políticas neoliberais,tão hostil à agricultura familiar, e o “modelo”. Logo, pode-se esperar poucas mudançaspositivas desses esforços (Barraclough, 1999; Borras, prelo).

2.2. Reformas agrárias conduzidas pelo Estado“Em todos os casos latino-americanos em que ocorreu uma redistribuição sig-

nificativa de terras em benefício dos pobres do campo, o Estado teve um papel

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decisivo,” escreveu o falecido Solon Barraclough (1999, p. 33). Infelizmente eletambém escreveu que, em todos os casos em que a reforma foi negada ou deturpa-da, o Estado também exerceu um papel decisivo.

De fato, se pode dizer que somente dois governos contemporâneos, na Amé-rica Latina ou fora dela, têm um compromisso sério com a reforma agrária autên-tica, incluindo uma transição de modelos voltada a tornar mais viável a agricultu-ra familiar e cooperativa. Esses países são Cuba e Venezuela (Rosset et al., prelo).

Enquanto a reforma agrária revolucionária inicial de Cuba aconteceu nos anos1960, Funes et al. (2001) demonstram como uma segunda “reforma dentro da re-forma” permitiu que Cuba escapasse de uma crise de alimentos nos anos de1990,no que poderia ser o exemplo mais próximo de uma verdadeira transição de ummodelo agroexportador para um de maior soberania alimentar, de acordo com oque defende a Via Campesina. A figura 1 condensa os elementos fundamentais quetornaram possível essa transição. Um dos fatores imprescindíveis foi, acima de tudo,o acesso à terra pela maioria camponesa (mostrado no lado interno do modeloesquemático). A segunda reforma agrária de Cuba, dividindo fazendas estatais emunidades de produção menores, tanto cooperativas como individuais, foi possívelporque já havia ocorrido anteriormente a expropriação dos latifundiários.

Em segundo lugar, a proteção real de dumping, causado pelo embargo comer-cial, propiciou uma condição positiva (ainda que devido a um motivo muito ne-gativo), em que preços mais altos pagos aos agricultores propiciaram a viabilidadeeconômica e os incentivos de que a agricultura precisava para sobreviver à crise.Os demais fatores-chave foram o apoio estatal à transição (mudança no crédito,na pesquisa, na educação e extensão etc, apoiando o novo modelo), um setor ru-ral altamente organizado que viabilizou a disseminação rápida da mudança, bemcomo a existência de uma tecnologia agroecológica autóctone (seja do conheci-mento acumulado do camponês, seja de instituições científicas) que ajudou a rom-per com a dependência de importações não mais disponíveis (Funes et al., 2001).

O caso da Venezuela ainda é bastante indefinido. Embora o governo do presi-dente Chávez tenha explicitado seu compromisso com uma reforma agrária autên-tica, vários fatores, inclusive a resistência de latifundiários e burocratas, o fracasso(por ora) em tratar dos efeitos do dumping nas volumosas importações de alimentose a relativa falta de organização dos camponeses para serem protagonistas, ou aomenos, sujeitos ativos para impulsionar a reforma agrária, conspiraram até o mo-mento, mantendo quando muito um avanço desigual (Wilpert, a ser publicado).

325

Figura 1Elementos-chave da transição cubana para um modelo mais condizente com a soberania

alimentar durante os anos noventa.

PPPPPrrrrroteção contra o oteção contra o oteção contra o oteção contra o oteção contra o dumpingdumpingdumpingdumpingdumping (pr (pr (pr (pr (preços justos)eços justos)eços justos)eços justos)eços justos)

2.3. Reforma agrária de baixo para cimaBarraclough notou que “em todos os casos em que aconteceram reformas agrá-

rias significativas, protestos e demandas dos agricultores e trabalhadores rurais or-ganizados deram contribuições cruciais à sua realização” (1999, p. 36). Hoje hámovimentos em todo o mundo que se engajam em uma onda de ocupações deterra que vêm forçando os governos a responder. A segunda metade dos anos de1980 e os anos de 1990 testemunharam o surgimento e, em alguns casos, a matu-ridade de uma geração de novos movimentos bem organizados de camponesessem-terra e de trabalhadores rurais. Enquanto os sem-terra sempre estiveram vol-tados às ocupações ou “recuperação” de terras ociosas, ocorreu uma mudança qua-litativa na organização e perspicácia política de grupos contemporâneos. Movi-mentos de sem-terra estão inserindo a reforma agrária na discussão política nacionale internacional – até mesmo quando se apossam, ocupam e cultivam terras ocio-sas –, muitas vezes sob o risco de um tremendo custo com vidas perdidas e prisõesarbitrárias. Esses movimentos vêm crescendo rapidamente em todo o mundo, comono Brasil, Paraguai, Bolívia, Honduras e Nicarágua até a África do Sul, Zimbábue,Indonésia, Tailândia, Índia e em incontáveis países. De fato, na maior parte doTerceiro Mundo, estamos presenciando o surgimento de uma nova fonte de espe-rança e dinamismo, vinda desses movimentos de pessoas pobres, predominante-

TTTTTecnologiaecnologiaecnologiaecnologiaecnologiaagragragragragroecológicaoecológicaoecológicaoecológicaoecológica

AAAAAcesso à terracesso à terracesso à terracesso à terracesso à terra(reforma agrária)

AAAAApoio estatalpoio estatalpoio estatalpoio estatalpoio estatal(crédito, educação,pesquisa, extensão,infra-estrutura,marketing, etc).OOOOOrganizaçãorganizaçãorganizaçãorganizaçãorganização

326

mente não-violentos, que contornam a inação governamental e tomam firmementeas rédeas nas próprias mãos (Rosset, 2001a).

Um caso de destaque é o Brasil, com o bem sucedido Movimento dos Traba-lhadores Rurais Sem Terra (MST). Enquanto os grandes proprietários, em geral,deixam ociosa mais da metade de suas terras, 25 milhões de camponeses lutampara sobreviver em trabalhos agrícolas temporários. Fundado em 1985, o MSTorganiza os trabalhadores sem-terra para ocupar terras ociosas, usando a cláusulada “função social da terra” na Constituição do Brasil para legitimar suas reivindi-cações. Contudo, precisam se defender contra as milícias privadas contratadas pelosgrandes proprietários e contras as forças públicas de segurança. Hoje, mais de 300mil famílias – que representam mais de um milhão de pessoas – conquistaram odireito de acesso a mais de 8 milhões de hectares de terra através de ações lidera-das principalmente pelo MST, uma verdadeira reforma de debaixo para cima(Langevin & Rosset, 1997; Mançano Fernandes, 2001; Wolford, 2001; Wright& Wolford, 2003).

3. O caso da reforma agrária redistributiva

A redistribuição de terras pode cumprir várias funções em um desenvolvimentomais sustentável (Barraclough, 1999; Ziegler, 2002; Rosset, 1999). Dúzias deprogramas de reforma agrária foram executadas depois da II Guerra Mundial. Emuma retrospectiva sobre sucessos e fracassos, podemos distinguir entre reformasagrárias que poderiam ser chamadas “autênticas” e as que foram mais “cosméti-cas” ou até mesmo “falsas” (Lappé et al., 1998; Sobhan, 1993).

Quando de fato se distribuiu uma parcela significativa de terra de qualidade parauma maioria de agricultores pobres (ou quando a posse foi modificada de tal formaque aboliu as relações de empobrecimento entre proprietário e arrendatário), compolíticas comerciais, macroeconômicas e setoriais favoráveis à agricultura familiar, equando se rompeu o poder de distorcer e “capturar” as políticas das elites rurais, osresultados invariavelmente foram uma redução real e mensurável da pobreza e amelhoria do bem-estar humano (Sobhan, 1993). Os sucessos econômicos do Ja-pão, Coréia do Sul, Formosa, China e Cuba foram resultados de uma reforma des-sas (Sachs, 1987; Ziegler, 2002; Boyce et al., 2005). Em contraposição, quando as“reformas” deram apenas terra de baixa qualidade a famílias pobres e não as apoia-ram com políticas favoráveis como créditos, preços e acesso a mercados, ou quandofracassaram em alterar as estruturas de poder rural que funcionam contra o pobre, a

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reforma agrária deixou de efetuar mudanças de base ampla (Sobhan, 1993; Lappé etal., 1998; Thiesenhusen, 1995; Barraclough, 1999).

As reformas mais bem-sucedidas desencadearam um desenvolvimento econô-mico de base relativamente ampla. Ao inserir os pobres no desenvolvimento eco-nômico, construíram mercados internos para apoiar a atividade econômica nacional(Sachs, 1987). O resultado, muitas vezes trágico, de reformas falhas era condenaros “beneficiários” à marginalização da vida econômica nacional, já que assumiamdívidas pesadas para pagar terras de má qualidade recebidas em locais remotos,sem crédito ou acesso a mercados, e em ambientes políticos hostis a pequenosagricultores (Sobhan, 1993; Thiesenhusen, 1995).

Hoje temos uma oportunidade nova para aprender as lições de reformas pas-sadas e aplicá-las às metas práticas do desenvolvimento. A reforma agrária já nãoé questão de tabu no discurso sobre desenvolvimento, graças em parte às iniciati-vas infelizes do Banco Mundial. Estamos testemunhando uma mobilização mun-dial de povos que tomam os problemas em suas próprias mãos através de ocupa-ções de terra, espontâneas e organizadas, tanto em proporções pequenas comograndes. Da crise de terras no Zimbábue (Moyo & Yeros, 2005), às volumosasaquisições de terra em Chiapas após a rebelião Zapatista (Rosset, 1995) e o MSTno Brasil (Langevin & Rosset, 1999; Wolford, 2001), a “reforma agrária debaixopara cima” é cada vez mais uma realidade, fazendo até mesmo políticos estreme-cerem. Esses movimentos de base, junto com um amplo leque de organizações dasociedade civil, desafiam governos nacionais e políticas de reforma agrária do BancoMundial, apresentando alternativas.

Vamos olhar para a importante função da reforma agrária redistributiva emprol de um desenvolvimento mais sustentável.

3.1. Reforma agrária e pobrezaA história mostra que a distribuição de terras para famílias rurais pobres e sem-

terra pode ser uma maneira muito efetiva de melhorar o bem-estar rural (Ziegler,2002). Sobhan (1993) examinou o resultado de praticamente todos os programasde reforma agrária levados a cabo no Terceiro Mundo desde a II Guerra Mundial.Teve o cuidado de distinguir entre o que ele chama de redistribuição “radical”(que Lappé e outros chamam de “reforma agrária autêntica”) e reformas “não-igua-litárias” (ou reformas agrárias “falsas”, na terminologia de Lappé e outros). Quan-do terras de qualidade realmente foram distribuídas aos pobres, e destruído o poderda oligarquia rural de distorcer e “capturar” políticas de redução da pobreza, oresultado foi invariavelmente uma melhora real e mensurável do bem-estar hu-

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mano. Japão, Coréia do Sul, Formosa, Cuba e China são todos os exemplos posi-tivos. Em contraposição, países com reformas que entregaram somente terra demá qualidade aos beneficiários e/ou não alteraram as estruturas de poder ruralque trabalham contra os pobres, não conseguiram fazer um corte significativo napobreza rural (Sobhan, 1993; Lappé et al., 1998).

Enquanto Sobhan analisou estatísticas a nível nacional para chegar às suasconclusões, Besley e Burgess (2002) olharam recentemente para a história da re-forma agrária, de 1958 a 1992, em 16 estados indianos. Embora essas geralmentenão fossem reformas radicais (no sentido de Sobhan), muitas aboliram o arrenda-mento e reduziram a influência de intermediários. Os autores constataram umarelação forte entre a reforma agrária e a redução de pobreza. Leite et al.,(2004)verificaram que os colonos em assentamentos de reforma agrária no Brasil ganhammais que antes e mais que as próprias famílias sem-terra. Comem melhor, têmmaior poder aquisitivo, têm melhor acesso a oportunidades educacionais e maiorprobabilidade de reunir a família em um só lugar (ao invés de “perder” membrosda família para a migração). Na realidade, a reforma agrária contém a promessade ser um meio de estagnar a migração campo-cidade, que vem fazendo crescer ascidades do Terceiro Mundo além da capacidade das economias urbanas de proverempregos suficientes. Até mesmo no Zimbábue, onde a reforma agrária foi encer-rada prematuramente e ficou incompleta, a evidência mostra que os beneficiáriosestão em condições substancialmente melhores que outros (Deininger et al., 2000).

Outro enfoque é quanto aos custos de se criar um novo posto de trabalho.Estimativas do custo da criação de um emprego no setor comercial do Brasil sesituam entre 2 a 20 vezes acima do custo de estabelecer um chefe de família de-sempregado em terra agricultável por meio da reforma agrária. Os beneficiáriosda reforma agrária têm uma renda anual equivalente a 3,7 salários mínimos, en-quanto os trabalhadores sem-terra auferem, em média, apenas 0,7 do mínimo. Amortalidade infantil entre famílias dos beneficiários caiu para a metade da médianacional (Stédile, 1998).

Isso representa um poderoso argumento a favor de que, para criar uma econo-mia rural camponesa, a reforma agrária não é apenas boa para o desenvolvimentoeconômico local, mas também constitui uma política social mais efetiva do quepermitir ao “mercado” continuar expulsando os pobres de áreas rurais para cida-des superpopulosas.

Sobhan (1993) argumenta que somente a reforma agrária possui o potencialde resolver o subemprego crônico na maioria dos países do Terceiro Mundo. Es-tabelecimentos pequenos, com freqüência, usam mais mão-de-obra – e menos

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capital – para cultivar determinada parcela de terra. Um modelo de pequenas pro-priedades consegue absorver mais pessoas em ocupações mais rentáveis, podendoinverter o fluxo migratório do êxodo rural.

Além disso, se nos movermos para o terreno da ética, a injustiça na distribui-ção da terra e no acesso à terra é moralmente errada. Constitui um pecado a sercorrigido que muitos tenham de sofrer, ou até mesmo passar fome, porque pou-cos têm muito mais do que precisam.

3.2. Reforma agrária e produtividadeNo passado, houve um intenso debate relacionado aos possíveis impactos da

redistribuição da terra agrícola aos pobres que, quase inevitavelmente, resulta empequenas unidades de produção. Uma preocupação era de que, liberto da condi-ção explorada de meeiro, arrendatário ou assalariado, o pobre reteria uma maiorproporção da própria produção para o seu consumo (não necessariamente umacoisa má), conduzindo, assim, a uma diminuição na disponibilidade líquida dealimento para outros consumidores. Porém, esse argumento foi soterado pelas evi-dências (Sobhan, 1993) e pelos ganhos de produtividade que podem ser obtidosna transição para estilos de produção em pequena escala e mais intensivos.

No Brasil, a agricultura camponesa e familiar produz 24% do valor total daprodução nacional de carne de boi, 24% do leite, 58% da carne de porco e 40%da produção avícola e ovos. Também gera 33% do algodão, 31% do arroz, 72%da cebola, 67% da vagem, 97% do tabaco, 84% da mandioca, 49% do milho,32% da soja, 46% do trigo, 58% da banana, 27% da laranja, 47% da uva, 25%do café e 10% do açúcar. No total, a agricultura familiar responde por 40% dovalor bruto da produção nacional, ocupando apenas 30,5% das áreas cultivadas.Gera um total de 76,9% dos empregos nacionais na agricultura, recebendo ape-nas 25,3% do crédito rural (Pengue, 2005).

Esses dados, na verdade, demonstram que propriedades pequenas quase sem-pre geram mais produtos agrícolas por estabelecimento que fazendas maiores,fazendo-o com mais eficácia (Rosset, 1999). Isso se sustenta quando falamos depaíses industrializados ou de qualquer país rural no Terceiro Mundo. Esse fatoé amplamente reconhecido por economistas rurais como a relação inversa “en-tre tamanho da propriedade e produção” (Tomich et al., 1995; Rosset, 1999).Um recente relatório (Rosset, 1999) analisou a relação entre tamanho de esta-belecimento e produção total em quinze países do Terceiro Mundo. Em todosos exemplos, propriedades de tamanho relativamente menor eram muito maisprodutivas por área – de 2 a 10 vezes mais produtivas – que as maiores. Assim,

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não é provável que a reforma agrária redistributiva ande na contramão das ques-tões de produtividade.

3.3. Reforma agrária e desenvolvimento econômico

Uma reforma agrária verdadeiramente transformadora e redistributiva foi comprova-da como fundamental na redução da pobreza e da fome em muitos países, podendoser uma chave para engendrar crescimento econômico que beneficie os mais pobres(Ziegler, 2002).

Seguramente, mais toneladas de grãos não são o único objetivo da produçãoagrícola. Os recursos agrícolas também têm de gerar riqueza para a melhoria geralda vida, inclusive melhores condições de habitação, educação, serviços de saúde,transporte, diversificação econômica local e mais oportunidades recreativas e cul-turais.

Nos Estados Unidos, há mais de meio século, foi feita a pergunta: que signifi-ca o crescimento da agricultura de escala, industrial, para cidades e comunidadesrurais? O estudo clássico de Walter Goldschmidt, nos anos 1940, sobre o ValeSan Joaquin na Califórnia, comparou áreas dominadas por grandes fazendas em-presariais com outras ainda caracterizadas por propriedades menores, familiares(veja Goldschmidt, 1978).

Em comunidades rurais dominadas por grandes fazendas empresariais as ci-dades próximas se extinguiram. A mecanização significou que menos pessoas dolugar eram empregadas e a propriedade em mãos de ausentes significou que jánão se podiam encontrar famílias rurais. Nesses municípios de agricultura empre-sarial, a renda obtida na agricultura era escoada para cidades maiores para apoiarempreendimentos distantes; ao passo que em cidades cercadas por propriedadesfamiliares, a renda circulava em estabelecimentos comerciais do lugar, gerandotrabalho e prosperidade na comunidade. Onde predominavam as propriedadesfamiliares havia mais negócios locais, ruas pavimentadas e calçadas, escolas, par-ques, igrejas, clubes e jornais, melhores serviços, maior número de empregos emais participação cívica. Estudos feitos desde o trabalho original de Goldschmidtconfirmam que os resultados dele permanecem verdadeiros até hoje (Fujimoto,1977; MacCannell, 1988; Durrenberger & Thu, 1996).

As comunidades amish e menonitas,1 situadas no Leste dos Estados Unidos,fornecem um vivo contraste com a devastação geral descrita por Goldschmidt emcidades com fazendas empresariais. O município de Lancaster, na Pensilvânia,

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dominado por esses pequenos agricultores que evitam muita tecnologia modernae freqüentemente até mesmo o crédito bancário, é o município agrícola mais pro-dutivo ao leste do Rio Mississipi. Apresenta vendas totais anuais de produtos agrí-colas de U$ 700 milhões, recebendo um adicional de U$ 250 milhões da parte deturistas que apreciam a beleza das paisagens de pequenas propriedades rurais tra-dicionais (D’Souza & Ikerd, 1996).

Quando nos voltamos ao Terceiro Mundo, encontramos uma situação seme-lhante. De um lado, há a devastação causada pela concentração da terra e pelaindustrialização da agricultura, enquanto de outro constatamos que benefícioslocais são derivados de uma economia de pequenos estabelecimentos rurais – emum caso, criada por uma “reforma agrária de baixo para cima”.

Leite et al. (2004) descrevem como a cidade local é beneficiada pelo comérciogerado quando latifúndios pertencentes a proprietários ausentes são transforma-dos em empreendimentos familiares e cooperativos através de uma reforma agrá-ria obtida por pressão de baixo. Um estudo sobre um desses municípios, Julho deCastilhos (RS), constatou que enquanto o assentamento do MST possuiu apenas0,7% da terra, seus integrantes pagavam 5% dos impostos, fazendo do assenta-mento o segundo maior contribuinte de impostos rurais no município (MST,2001).

É evidente que tanto o desenvolvimento econômico local e regional, como avida e prosperidade de cidades em contexto rural, podem se beneficiar com umaeconomia de pequenas propriedades agrícolas. Mas que dizer do desenvolvimen-to econômico nacional? A história nos mostrou que uma economia agrícola rela-tivamente eqüitativa, baseada na pequena propriedade rural, propicia a base deum desenvolvimento econômico nacional pujante. Essa “via rural para o desen-volvimento” é parte da razão pela qual, por exemplo, os Estados Unidos, no iníciode sua história, se desenvolveram mais rápida e uniformemente que a AméricaLatina, com sua injusta distribuição de terra caracterizada por enormes haciendase plantações entremeadas de indigentes rurícolas de subsistência (De Janvry, 1981).Nas décadas iniciais dos Estados Unidos, agricultores independentes “yeoman”formaram um vigoroso mercado doméstico para produtos manufaturados em áreasurbanas, inclusive implementos agrícolas, vestuário e outros suprimentos. Essademanda interna oxigenou o crescimento econômico nas áreas urbanas e a com-binação deu origem a um crescimento de base ampla (Sachs, 1987).

As experiências do pós-guerra do Japão, Coréia do Sul e Formosa (no mundocapitalista) e da China, de Cuba e, mais recentemente, do Vietnã (no mundo socia-lista), também demonstram como a distribuição eqüitativa de terras impulsiona

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o desenvolvimento econômico. Ao término da II Guerra Mundial, as circunstân-cias, inclusive a devastação e ocupação estrangeira, conspiraram para criar as con-dições para reformas agrárias “radicais” nos primeiros países – enquanto as revo-luções fizeram o mesmo nos últimos – rompendo as garras econômicas da classelatifundiária sobre a atividade econômica rural. Pela combinação com a proteçãocomercial para manter elevados os preços agrícolas e com investimentosdirecionados para áreas rurais, as famílias rurais rapidamente alcançaram um altopoder aquisitivo, que assegurou mercados internos para indústrias incipientes(Rosset, 1999; Lappé et al., 1998; Sachs, 1987; IFAD, 2001).

Os “milagres” econômicos do pós-guerra nos três países capitalistas foram to-dos oxigenados, no início, por mercados internos centrados em áreas rurais, mui-to antes do advento das tão propaladas políticas “voltadas à exportação” que, bemmais tarde, impeliram essas indústrias a competir na economia global. Isso cons-tituiu um real triunfo para economias efervescentes, em que a distribuição de ati-vos produtivos para camadas mais pobres da sociedade criou a base econômicapara um desenvolvimento rápido e relativamente inclusivo. Embora a presenteanálise de forma alguma visa sugerir que todas as políticas seguidas por esses paí-ses foram positivas, ou que deveriam ser reproduzidas cegamente, suas experiên-cias contrastam cabalmente com o fracasso de economias de “transferência des-cendente” ao atingirem praticamente nada, no mesmo período, em áreas dedomínio norte-americano, como grandes extensões da América Latina (Sachs,1987). De forma mais geral, existe atualmente um consenso crescente entre osprincipais economistas do desenvolvimento, há tempo reclamado por muitos dasociedade civil, de que a desigualdade na distribuição de recursos naturais cerceiao crescimento econômico (Solimano, 2000).

Uma distinção fundamental feita por Sobhan (1993) é entre reformas agrá-rias “transformadoras” e outras. Na maioria das reformas redistributivas, aque-les que recebem terra, pelo menos nominalmente, estão em melhores condiçõesque aqueles que permanecem sem-terra (a menos que e até que políticas hostisà agricultura familiar os levem a perder novamente a terra). Contudo, certasreformas agrárias representaram um passo fundamental, possibilitando a naçõesinteiras mudar os rumos do desenvolvimento. Nesses casos, os países “saltaram”fora da espiral excludente rumo à miséria e à degradação ambiental para a espi-ral ascendente de melhorias abrangentes nos padrões de vida, produzindo mer-cados internos vigorosos que levam a um desenvolvimento econômico mais di-nâmico e inclusivo como foram os casos do Japão, Coréia do Sul, China, Formosae outros.

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Por meio de uma análise comparativa, Sobhan mostra o que as reformastransformadoras – as que levaram a transições sociais reais – tinham em comum.Em síntese, a maioria dos sem-terra e dos pobres da terra foi beneficiada, a maiorparte da terra agricultável foi afetada, foram quebradas as garras da estrutura depoder em relação à vida e economia rural e, em seu lugar, entraram políticas eco-nômicas favoráveis, fomentadoras. Uma característica básica das reformas maisbem sucedidas é que as famílias agricultoras foram vistas como atores fundamen-tais a ser mobilizados para o desenvolvimento econômico nacional, enquanto nasreformas fracassadas essas famílias têm sido vistas tipicamente como indigentescarentes de ajuda caritativa.

4. Reforma agrária e meio-ambiente

Os benefícios de economias de agricultura familiar se estendem para além daesfera meramente econômica. Considerando que fazendas grandes de cunho in-dustrial impõem uma mentalidade de terra arrasada na gestão dos recursos natu-rais – sem árvores, sem vida selvagem, monoculturas sem fim –, os camponesespodem ser muito efetivos na preservação de recursos naturais e do solo. Para co-meçar, agricultores camponeses utilizam uma ampla gama de recursos naturais etêm interesse declarado em sua sustentabilidade. Ao mesmo tempo, seus sistemasde cultivo da terra são diversos, incorporando e preservando uma significativabiodiversidade funcional dentro da propriedade. Ao preservar a biodiversidade,espaços livres e árvores, e ao reduzir a degradação de terra, a pequena agriculturamelhora o meio-ambiente para a sociedade em geral.

Nos Estados Unidos, os pequenos agricultores destinam 17% da área parabosques, comparados a meros 5% nas fazendas grandes. Propriedades peque-nas mantêm quase o dobro da terra em “práticas de melhora do solo”, inclu-sive plantios de cobertura e adubos verdes (D’Souza & Ikerd, 1996). No Ter-ceiro Mundo, agricultores camponeses mostram uma tremenda habilidade paraprevenir e até mesmo reverter a degradação da terra, inclusive a erosão dossolos (Templeton & Scherr, 1999). Sabem propiciar, e/ou de fato propiciam,importantes serviços à sociedade em geral, incluindo a gestão sustentável debacias críticas, preservando, assim, recursos hídricos, bem como a conserva-ção local, o desenvolvimento e a gestão dinâmicos de recursos genéticos bási-cos de sementes e animais, dos quais depende a segurança alimentar futura dahumanidade.

334

Comparada ao deserto ecológico de uma moderna plantação agroexportadora,a paisagem da pequena propriedade rural contém uma miríade de biodiversidade.As áreas arborizadas permitem extrair alimentos silvestres e resíduos orgânicos; olote produz lenha; a plantação com plantio alternado e agroflorestais convivemcom animais grandes e pequenos; o viveiro de peixes e o jardim no quintal permi-tem a preservação de centenas, senão de milhares de espécies selvagens e aculturadas.Ao mesmo tempo, o compromisso dos membros da família em manter a fertilida-de da terra na propriedade significa um interesse ativo na sustentabilidade de lon-go prazo, não encontrada em fazendas grandes em mãos de investidores ausentes.Se estivermos verdadeiramente preocupados com ecossistemas rurais, então a pre-servação e a promoção da agricultura camponesa e familiar constituem um passocrucial a ser dado.

Avançando: diretrizes para o futuro

Ao invés de seguir o enfoque de mercado do Banco Mundial, gestores políti-cos e movimentos sociais deveriam aprender com os sucessos e os fracassos doperíodo posterior à II Guerra Mundial e com as reformas em andamento. Umconjunto de diretrizes úteis deveria incluir as seguintes:

• A desigualdade extrema na propriedade da terra – como o padrão de lati-fúndios e minifúndios em muitas partes da América Latina – é ineficiente,ambiental e socialmente destrutiva, imoral e impede o desenvolvimentode base ampla. Uma gama de perspectivas e preocupações – da justiça sociale dos direitos humanos ao crescimento econômico – leva à conclusão deque temos de eliminar os latifúndios de uma vez por todas (Rosset, 2001a;Repartir, 2001; Ziegler, 2002).

• Quando famílias recebem terra, elas não devem ser assentadas com o far-do de pesadas dívidas. Isso pode ser alcançado pela expropriação governa-mental de terras improdutivas, com ou sem indenização aos donos anterio-res (Sobhan, 1993; Borras, 2003b).

• A posse segura e/ou o acesso garantido à propriedade são essenciais paragarantir segurança alimentar de longo prazo às famílias e comunidades.Sem essa segurança e/ou direitos também é difícil que as famílias e comu-nidades invistam na melhoria da terra, nos meios de produção e/ou emmedidas de conservação (Lastarria-Cornhiel et al., 1998).

335

• As mulheres precisam ter pelo menos os mesmos direitos à terra dos ho-mens. Quando títulos são exclusivamente cedidos a chefes masculinos defamília, disputas domésticas ou a morte prematura de um cônjuge levaminevitavelmente à privação das mulheres e crianças (Deere & Léon, 2001;Monsalve, prelo).

• A terra distribuída deve ser de boa qualidade, e não de solo ecologicamen-te frágil, que nunca deveria ser cultivado. Também deve ser livre de de-mandas levantadas por outras pessoas pobres (Rosset, 2001a).

• Devem ser garantidos e protegidos os direitos dos povos indígenas e outrosà terra, às florestas, à água e a outros recursos comuns da propriedade rural;assim como deve ser assegurado seu direito de administrá-los mediante sualei habitual e tradição. É preciso prever direitos individuais e/ou coletivos,dependendo de cada situação sociocultural. Nenhuma receita única podeser aplicada em todos os lugares (Hall, 1998; Stavenhagen, 2004).

• Para serem bem-sucedidas, as pessoas necessitam mais que terra. Deve ha-ver também um ambiente político estimulador e serviços essenciais comocrédito em condições razoáveis, infra-estrutura, apoio para tecnologias eco-logicamente saudáveis, bem como acesso a mercados e preços justos (Sobhan,1993; Sachs, 1987; Adams, 2000; IFAD, 2001). Talvez seja mais crucial evitarpolíticas de livre-comércio prejudiciais e dumping – que fazem cair os pre-ços da agricultura e minam a viabilidade econômica rural – e substituí-laspor uma perspectiva de soberania alimentar que coloque a prioridade maiorna produção nacional para mercados internos (Fórum, 2001; Rosset, 2003).

• Reformas verdadeiramente transformadoras também requererão investi-mentos em áreas rurais para assegurar serviços básicos como escolas, clíni-cas de saúde, água potável e infra-estrutura básica (Sobhan, 1993).

• As reformas precisam efetivamente quebrar o poder de distorcer e captu-rar políticas, subsídios e ganhos inesperados por parte das elites rurais emseu próprio favor (Sobhan, 1993).

• A vasta maioria dos pobres do campo deve ser a beneficiária do processode reforma (Sobhan, 1993).

• Reformas bem-sucedidas se distinguem das fracassadas por uma motiva-ção e percepção de que as novas propriedades camponesas criadas devemser a peça central do desenvolvimento econômico, como foi o caso do Japão,Formosa, China e Cuba. Quando se considerou a reforma agrária como“assistência social” ou como política caritativa para indigentes, o resulta-do inevitável foi o fracasso (Sobhan, 1993; Sachs, 1987; Rosset, 2001a).

336

• No ambiente político conservador e neoliberal de hoje, movimentos depopulações pobres são cruciais para impulsionar o processo de reforma, pararcom as protelações do governo e, quando necessário, tomar o processo emsuas próprias mãos. Ocupações de terra estão entre os métodos mais efica-zes comprovados para pressionar os governos a agirem (Wolford, 2001;Langevin & Rosset, 1997; Barraclough, 1999; Wright & Wolford, 2003).

Por fim, podemos afirmar que a soberania alimentar é um substituto abrangentepara o modelo neoliberal dominante baseado em mecanismos de livre-comércio,de mercado e na privatização. Embora a soberania alimentar cubra um terrenoamplo, incluindo a tecnologia de produção e política de comercialização, umaverdadeira reforma agrária constitui um de seus principais sustentáculos. Quandosituamos a reforma agrária no contexto maior da troca de modelos, fica mais fácilargumentar perante a sociedade em geral que a reforma agrária faz parte das mu-danças que beneficiam todo o mundo, não apenas os pobres do campo.

Notas

1 Essencialmente agrícolas, essas comunidades amish e menonitas foram constituídas a partir das idéias doreformador protestante Menno Simonsz (que viveu no século 16 na Holanda). São pacifistas e, por mo-tivações religiosas, vivem bastante isoladas, mantendo tradições e modos de vida que reportam a meadosdo século XVIII, quando se formaram nos Estados Unidos e Canadá (nota do revisor).

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Alícia RAlícia RAlícia RAlícia RAlícia Ruiz Ouiz Ouiz Ouiz Ouiz OlaldelaldelaldelaldelaldeDoutora em Teoria Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),professora do Centro de Ciências Agrárias e Ambientais da Universidade Federal doRecôncavo da Bahia (UFRB), pesquisadora do GeografAR. Contato: [email protected]

César ACésar ACésar ACésar ACésar Augusto Dugusto Dugusto Dugusto Dugusto Da Ra Ra Ra Ra RosososososEngenheiro Agrônomo formado pela Universidade Federal de Santa Maria, fez mestradoe doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade no Cursode Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Univer-sidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Contato: [email protected]

EEEEEdmilson Cardmilson Cardmilson Cardmilson Cardmilson CarvvvvvalhoalhoalhoalhoalhoArquiteto, professor da Universidade Católica de Salvador (UCSAL) e membro doInstituto de Pesquisa (InP).

EEEEEdwardwardwardwardward Lahiffd Lahiffd Lahiffd Lahiffd LahiffProfessor titular de estudos sobre terra e reforma agrária na University of the WesternCape, África do Sul. Formado pelas National University of Ireland e University ofManchester, é doutor em Estudos sobre Desenvolvimento pela School of Oriental andAfrican Studies (SOAS) da University of London. Participa dos debates acadêmicos epopulares sobre reforma agrária na África do Sul. Contato: [email protected]

EEEEEric Hric Hric Hric Hric Holt-Golt-Golt-Golt-Golt-GiméneiméneiméneiméneiménezzzzzDoutor pela UC Santa Cruz em Estudos Ambientais e mestre em DesenvolvimentoAgrícola Internacional pela UC Davis. É diretor executivo do Food First (Institute forFood and Development Policy), de Oakland, California (USA) e professor visitante do

SOBRE OS AUTORES

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Department of Environmental Science, Policy & Research da University of California,Berkeley (Estados Unidos). Contato: [email protected]

FFFFFrancisco Amarrancisco Amarrancisco Amarrancisco Amarrancisco Amaro Go Go Go Go Gomes de Alencaromes de Alencaromes de Alencaromes de Alencaromes de AlencarGeógrafo, mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente e doutor em Sociologia pelaUniversidade Federal do Ceará (UFC). Professor do Departamento de Geografia daUFC e membro do Laboratório de Estudos Agrários e Territoriais (Leat). Assessor daCPT, colaborador do MST do Ceará e coordenador do Núcleo de Apoio a ReformaAgrária e Agricultura Familiar da UFC (NARA-UFC). Contato: [email protected]

GGGGGuiomar Guiomar Guiomar Guiomar Guiomar GermaniermaniermaniermaniermaniDoutora em Geografia pela Universidad de Barcelona (Espanha), professora do Pro-grama de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências, da Universida-de Federal da Bahia (IGEO/UFBA), pesquisadora do CNPq e coordenadora do gru-po de pesquisa GeografAR. Contato: [email protected]

GGGGGilca Gilca Gilca Gilca Gilca Garararararcia de Ocia de Ocia de Ocia de Ocia de OlivlivlivlivliveiraeiraeiraeiraeiraDoutora em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), profes-sora da Faculdade de Ciências Econômicas (FCE) e do Programa de Pós-Graduaçãoem Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisadora doGeografAR. Contato: [email protected]

JJJJJoão Mároão Mároão Mároão Mároão Márcio Mcio Mcio Mcio Mcio Mendes Pendes Pendes Pendes Pendes PererererereiraeiraeiraeiraeiraHistoriador, graduado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Ciên-cias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pelo CPDA-UFRRJ, dou-torando em História pela UFF. Contato: [email protected]

PPPPPeter Reter Reter Reter Reter RossetossetossetossetossetPh.D pela Universidade de Michigan (Estados Unidos), é co-coordenador da LandResearch Action Network (LRAN – www.acaoterra.org), pesquisador do Centro de Estudiospara el Cambio en el Campo Mexicano (CECCAM), membro do Center for the Study ofthe Americas (CENSA) e professor visitante do Department of Environmental Science,Policy & Research da University of California, Berkeley. Contato: [email protected]

SSSSSaturnino M. Borras Jraturnino M. Borras Jraturnino M. Borras Jraturnino M. Borras Jraturnino M. Borras Jr.....Ativista envolvido com os movimentos sociais agrários das Filipinas e internacionais,é professor associado e chefe de pesquisa em International Development Studies da St.

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Mary’s University, em Halifax (Canadá). Fez doutorado e lecionou no Institute of So-cial Studies, sediado em Haia (Holanda).

Sérgio SSérgio SSérgio SSérgio SSérgio SauerauerauerauerauerDoutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Filosofia daReligião pela Universidade de Bergen (Noruega). Foi assessor da CPT e da CONTAGe professor da Universidade Católica de Goiás (UCG). É assessor da senadora Heloí-sa Helena (PSOL/AL), professor da Universidade Católica de Brasília (UCB) e atuajunto ao Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. Contato:[email protected]

SSSSSusana Gusana Gusana Gusana Gusana GausterausterausterausterausterFormada em Sociologia pela Universidade de Viena (Áustria), é pesquisadora do Pro-grama de Estudios para el Desarrollo Rural da Coordinación de ONG y Cooperativas(CONGCOOP) da Guatemala. Contato: [email protected]

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