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Bandeiras, passos e cantorias: dimensões simbólicas vivenciadas pelas folias de reis no Vale do Guaporé (Rondônia) AVACIR GOMES DOS SANTOS SILVA FERNANDA ALEXANDRE 1. Introdução Este artigo é uma tentativa de registramos nossas vivências durante a pesquisa de campo realizada entre os meses de dezembro/2015 a janeiro/2016, quando acompanhamos três grupos de Folia de Reis do Vale do Guaporé (Rondônia): o de Novo Horizonte D’Oeste, de Santa Luzia D’Oeste, e a festa de encerramento da Linha 180, Km-23, localizada no município de Castanheiras e entrevistamos dois integrantes da Folia de Alta Floresta D’Oeste. Nesses grupos de foliões os símbolos, os signos e os seus significados, como: a bandeira, bastião (palhaço), os rituais, os cânticos e a farda, a presença representativa dos três reis magos são elementos fundantes, tanto na visão dos componentes, os quais anunciam chegada do Menino Deus, quanto para aquelas pessoas que seguem as folias durante suas caminhadas. Para alcançar a compreensão dos elementos representativos da folia de reis, propomos como metodologia o uso da história oral tradicional (MEIHY e HOLANDA, 2013), seguida por uma pesquisa etnográfica, por meio de visitas, entrevistas e acompanhamentos dos grupos de foliões, nossos colaboradores, durante os dias em que as folias realizam o giro, para anunciar a “boa nova”, a toda gente simples do vale. Esperamos com a socialização deste artigo proporcionar a visibilidade e reafirmar a importância merecida dos grupos de foliões existentes na região do Vale do Guaporé, por manterem viva uma tradição cultural e religiosa tão complexa e tão singela. 2- As folias de reis no Vale do Guaporé: as espacialidades da fé Durante a nossa pesquisa de campo, realizada entre os meses de dezembro/15 a janeiro/216, acompanhamos diretamente três grupos de Folia de Reis do Vale do Guaporé Universidade Federal de Rondônia/UNIR/RO - Doutora em Geografia - IESA/UFG. Instituto Estadual de Educação Abaitará/RO - Mestre em Geografia - IESA/UFG

Bandeiras, passos e cantorias: dimensões simbólicas ... · finalização do ritual perpassa pela oração do ... A igreja de Santos Reis de Alta Floresta era o sonho dos antepassados

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Bandeiras, passos e cantorias: dimensões simbólicas vivenciadas pelas folias de reis no

Vale do Guaporé (Rondônia)

AVACIR GOMES DOS SANTOS SILVA

FERNANDA ALEXANDRE

1. Introdução

Este artigo é uma tentativa de registramos nossas vivências durante a pesquisa de

campo realizada entre os meses de dezembro/2015 a janeiro/2016, quando acompanhamos

três grupos de Folia de Reis do Vale do Guaporé (Rondônia): o de Novo Horizonte D’Oeste,

de Santa Luzia D’Oeste, e a festa de encerramento da Linha 180, Km-23, localizada no

município de Castanheiras e entrevistamos dois integrantes da Folia de Alta Floresta D’Oeste.

Nesses grupos de foliões os símbolos, os signos e os seus significados, como: a

bandeira, bastião (palhaço), os rituais, os cânticos e a farda, a presença representativa dos três

reis magos são elementos fundantes, tanto na visão dos componentes, os quais anunciam

“chegada do Menino Deus”, quanto para aquelas pessoas que seguem as folias durante suas

caminhadas.

Para alcançar a compreensão dos elementos representativos da folia de reis, propomos

como metodologia o uso da história oral tradicional (MEIHY e HOLANDA, 2013), seguida

por uma pesquisa etnográfica, por meio de visitas, entrevistas e acompanhamentos dos grupos

de foliões, nossos colaboradores, durante os dias em que as folias realizam o giro, para

anunciar a “boa nova”, a toda gente simples do vale.

Esperamos com a socialização deste artigo proporcionar a visibilidade e reafirmar a

importância merecida dos grupos de foliões existentes na região do Vale do Guaporé, por

manterem viva uma tradição cultural e religiosa tão complexa e tão singela.

2- As folias de reis no Vale do Guaporé: as espacialidades da fé

Durante a nossa pesquisa de campo, realizada entre os meses de dezembro/15 a

janeiro/216, acompanhamos diretamente três grupos de Folia de Reis do Vale do Guaporé

Universidade Federal de Rondônia/UNIR/RO - Doutora em Geografia - IESA/UFG. Instituto Estadual de Educação Abaitará/RO - Mestre em Geografia - IESA/UFG

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(Rondônia): o de Novo Horizonte D’Oeste, o de Santa Luzia D’Oeste e o grupo da linha 180,

Km-23, localizada no município de Castanheiras. Ao grupo de Folia de Alta Floresta D’Oeste

tivemos acesso apenas por meio das entrevistas dirigidas a dois integrantes pertencentes a

companhia.

A folia de reis de Novo Horizonte D’Oeste tem como ponto de encontro e articulação

a Comunidade São João Batista1, que se localiza na BR-010 próximo ao trevo que dá acesso

ao município. Os atuais integrantes dessa folia foram seus próprios fundadores. Dona

Rosilene Aleprandi, membro da igreja e da folia, narrou-nos o episódio da seguinte forma,

Todo ano o grupo (folia) tinha que organizar uma apresentação para a população

sobre os Reis Magos, e teve um ano que precisavam terminar o muro da igreja, mas

estavam sem recurso, então surgiu a ideia de fundar a Folia, assim fariam uma

apresentação e arrecadariam doações para terminar a construção do muro da

igreja (Entrevista, 2015).

O senhor NildoTrevizani, o patriarca do grupo, que tinha participado da folia em sua

terra natal, Espírito Santo, foi quem organizou o surgimento do grupo de foliões, junto com

sua filha Rosilene e seu genro Renato. Na porta da igreja fizeram o convite às pessoas que

gostariam de participar da formação do grupo.

A comunidade aceitou o convite. Seu Renato, o embaixador e mestre, calcula que o

grupo possua de 20 a 30 foliões. Alguns são membros de sua família, como: seu sogro, senhor

Nildo (patriarca), sua esposa Rosilene, suas filhas Roberta e Eduarda (cantoras) e um de seus

irmãos (tocador de bumbo).

O segundo grupo de foliões que acompanhamos foi do Município de Santa Luzia. Este

tem como fundador a pessoa do Senhor José Aquino Alves, conhecido como Zé Pedrinho. No

que tange a fundação de sua folia, o senhor Zé Pedrinho nos relata,

Andei 8 anos, mas ele falo assim: “compadre [...], o senhor não quer pegar a

bandeira? Fazer uma bandeirinha?”. Ai peguei e fiz. Ele também saiu junto. Falo

que não podia, não aguentava mais, mas conseguiu. É, inté agora quando ele arriou

mesmo, ai ele não saiu mais, né, mas uns dois anos ainda saiu. (Entrevista, 2016).

1- Na área rural da parte oeste do Estado de Rondônia, as Igrejas Católicas são denominadas de Comunidade. No

caso dos grupos de folias de reis estes são identificados pelo nome correspondente ao município onde o grupo

está localizado.

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A folia do seu Zé Pedrinho tem como origem a continuação da bandeira de seu Zé

Mineirão. Este percebe que não conseguirá conduzir o grupo por muito mais tempo, em

função de suas restrições físicas e idade avançada, inicia na função um dos seus mais antigos

e fieis membros, seu Zé Pedrinho.

A terceira folia é a do embaixador Geraldo Paulo Filho, conhecido com Geraldinho. O

ponto de apoio é a residência dele, localizada na Linha 180, no km-23, em Castanheiras.

Nesse local, a cada ano, uma exuberante festa de devoção aos Santos Reis acontece, assim

possibilitando que a população da zona rural e da cidade possam conhecer e prestigiar a Folia

dos Santos Reis.

Em função do falecimento do senhor que representava a figura do bastião, seu

Geraldinho resolveu que em 2015 não sairia com a folia. No entanto, seus vizinhos,

conhecidos e amigos lhe cobraram que realizasse pelo menos a festa no dia 06 de janeiro,

dedicado aos Santos Reis.

A cerimônia de encerramento, na Linha 180, seguiu orientada pelo mestre, que por

meio de versos cantados une as histórias narradas na bíblia e a devoção aos Santos Reis. A

finalização do ritual perpassa pela oração do terço em redor do presépio, a partilha dos

alimentos e o agradecimento à mesa posta. Para encerramento do ritual acontece um animado

forró. Assim, ocorre a consagração do sagrado pela mediação da profanidade (ROSENDAHL;

1999, 2007).

O nosso contato com companhia de folia de Alta Floresta ocorreu apenas por meio de

entrevistas. O embaixador não aceitou nossa presença na folia e nem tão pouco permitiu que

se filmasse ou fotografasse os rituais realizados pelos foliões. Assim, as informações que

possuímos desse grupo advém das entrevistas conseguimos realizar com a Dona Maria Santos

e o senhor José Hélio Santos.

Os foliões de Alta Floresta saem no 1º dia e retornam no dia 06 janeiro. A caminhada

é de aproximadamente 12 horas diárias. Tarde da noite eles retornam para suas casas e no

outro dia, entre 6 e 7 da manhã recomeçam a jornada. O grupo conta com a participação de 10

pessoas adultas, as crianças não são aceitas em função das dificuldades dos percursos.

Quanto ao trajeto da folia, seu José Hélio que participa como cantador e tocador de

violão, nos informou que o local de concentração é a casa do senhor José Otoni. No primeiro

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dia do giro, o grupo parte desse local, passa na frente da Igreja dos Santos Reis, realiza o giro

no centro da cidade e segue rumo às linhas.

A igreja de Santos Reis de Alta Floresta era o sonho dos antepassados do mestre, que

queriam construí-la para guarda da bandeira. Cruz registra a respeito o seguinte relato,

Olha meu filho eu não consegui fazer a igreja, mas vê o que você pode fazer mais

seus irmãos e os tios. Ai, foi quando nós peguemos e pedimos ajuda para o pessoal

lá do bairro da Cidade Alta. Mais os padres, nós construímos a igreja pra [...] onde

é a comunidade Santo Reis hoje em dia né. É onde nós colocamos a bandeira, a

bandeira fica guardada lá, aí nos finais do ano nós saímos com a bandeira, fazendo

a Jornada (CRUZ, 2015: 37).

Nessa igreja, no dia 06 de janeiro, dedicado aos Santos Reis, no Calendário da Igreja

Católica, os foliões são recebidos por todos da comunidade em um grande festejo, que

envolve a celebração da missa e a partilha (almoço). Esta data é feriado no Município de Alta

Floresta.

3. Caminhos e andanças junto as folias de reis do Vale do Guaporé

Este escrito registra nossas vivências durante o trabalho de campo, que se norteou

pelos caminhos da Tradição Oral: “a mais difícil, intricada e bonita forma da expressão da

história oral [...], que trabalha com o pressuposto do reconhecimento do outro em suas

possibilidades mais dilatadas (MEIHY, HOLANDA, 2013: 40).

Dessa forma, a história oral nos proporcionou vivenciarmos um pouco da trajetória de

vida dos nossos colaboradores. A interpretação da subjetividade do outro requer sensibilidade,

saber as limitações a qual o outro está sujeito, colocar-se no lugar dele, tendo ciência daquilo

que pode ou não trazer benefício para a vida do narrador e a comunidade de destino.

O pesquisador em História Oral se atenta à entrevista em todas as manifestações que

podem não ser identificadas pela captura da voz do narrador, durante a gravação. “Olhar nos

olhos, perceber as vacilações ou o teor emotivo das palavras é algo mais do que a capacidade

de registro pelas máquinas, que se limitam a guardar vozes, sons gerais e imagens” (MEIHY e

HOLANDA, 2013: 22).

A análise dos dados compreende a compilação entre as narrativas apresentadas nas

falas dos colaboradores com as ideias e reflexões formuladas pelos pesquisadores, de forma

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que os aspectos não revelados sejam analisados daquilo que não foi expresso claramente pelo

colaborador, pois,

Muito do que é verbalizado ou integrado à oralidade, como gesto, lágrima, riso,

silêncio, pausas, interjeições ou mesmo as expressões faciais – que na maioria das

vezes não tem registros verbais garantidos em gravações –, pode integrar os

discursos que devem ser trabalhados para dar dimensão física ao que foi expresso

em uma entrevista de história oral. A consideração da entrevista além do que é

gravado registrado em palavras é um dos desafios da história oral (MEIHY e

HOLANDA, 2013: 14).

A História Oral se concretiza pela colaboração mútua entre pesquisador e colaborador

e “ambos são sujeitos da história, que é reelaborada por meio de deduções, induções e

intuições. Com isso, a troca de experiências entre esses sujeitos é o fio condutor para se

conseguir a lapidação da narrativa, que, para o narrador representa um mar de possibilidades

que perpassa o espaço e tempo daquilo que foi vivido.

No que diz respeito a pesquisa etnográfica, esta consistiu na ida a campo e

acompanhamento das companhias das folias dos municípios de Novo Horizonte, Santa Luzia,

Castanheiras, e Alta Floresta, por entre as ruas, linhas, comunidades, residências e cidades

guaporeanas, durante o período dezembro/15 a janeiro/16.

No decorrer desses dias mergulhamos nas águas claras e profundas das folias de reis,

junto aos foliões andamos, cantamos, rimos, choramos, sentimos fome, sede, frio e calor,

festejamos e rezamos, cansamos de tanto andar, emocionamo-nos com histórias de vidas e

depoimentos de graças recebidas dos Santos Reis. Sempre atentas às falas, murmúrios, ações,

hábitos, ao comportamento, ao não-dito, aos rituais, ao silenciado e ao declarado em alto e

bom tom.

Enquanto isso, nas tentativas de registrar o que se passava frente a nossa percepção, a

mão corria entre as páginas do caderno de campo ou dos flashes da máquina fotográfica, mais

vagarosas que o pensamento. Em volta de tanta beleza, saberes, sentimentos e vivências nos

propusemos uma classificação preliminar entre os signos e os significados carregados pelas

folias de reis do Vale do Guaporé.

Frente a riqueza simbólica espacializada pelas folias de reis do Vale do Guaporé como

resultados preliminares identificamos: i) os elementos identitários, ii) os elementos

estruturantes e, iii) os elementos performáticos

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O desejo expresso pelos foliões mais velhos pela continuação da tradição, a presença

efetiva das mulheres e das crianças durante os rituais, a reverência ao sagrado e profano, as

trocas simbólicas, os signos e os significados que identificamos e classificamos, são aspectos

que caracterizam esta manifestação cultural e religiosa como desviante, ao se contraporem a

lógica de compra e venda das relações capitalistas (SANTOS SILVA, 2014).

4. As representações simbólicas das folias de reis: aproximações preliminares

A folia de reis se caracteriza como uma cultura religiosa e popular, que foi trazida da

Espanha para o Brasil no século XVIII. Antes disso, no país de origem a comemoração tinha

como propósito o entretenimento. Nas terras brasileiras o festejo se especializa de forma

diferente, o sagrado ficou em primeiro plano e o profano passou para o segundo. Assim, as

folias se constituíram em uma manifestação cultural desviante (SANTOS SILVA, 2014) de

sua lógica inicial.

Na hileia amazônica, as antigas formas de manifestações das folias foram

(re)significadas por meio de sons e passos dos foliões dos Santos Reis, que trazem uma

miscelânea entre tempos idos e tempos presentes. Parafraseando Bloch (1976), em suma a

questão, não é saber se Jesus nasceu e os três magos foram visitá-lo. O que se pretende

compreender, de agora em diante, é como há tantas pessoas que creem no nascimento de Jesus

e na visitação dos três magos.

Essa crença pode ser manifestada de várias formas, entre elas aprofundaremos a

materialidade dos símbolos. Nos grupos de folias de reis a presença de elementos físicos e

imateriais é reforçada frequentemente. Cassirer (1994), analisa a importância dos símbolos em

relação à vivência humana a partir da existência do universo simbólico. Assim, para o referido

autor,

O homem não pode fugir à sua própria realização. Não pode senão adotar as

condições de sua própria vida. Não estando mais num universo meramente físico, o

homem vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são

partes desse universo (CASSIRER, 1994:48).

Esse universo simbólico, portanto, está ligado às ações antropológicas de forma

inegável. Todavia, o estudo e entendimento dos significados simbólicos, além de legitimar

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sua compleição, farão com que as ações humanas sejam pensadas e interpretadas de forma

menos deterministas.

Os grupos de folias carregam seus símbolos, signos e significados, que estabelecem

uma diferenciação de experiência vivenciada pela fé e compreensão de cada grupo a respeito

desses elementos simbólicos. Nesse sentido,

A cultura, aqui, não são cultos e costumes, mas as estruturas de significado através

das quais os homens dão forma à sua experiência, e a política não são golpes e

constituições, mas uma das principais arenas na qual tais estruturas se desenrolam

publicamente (GEERTZ, 2008: 135).

Dentre as estruturas simbólicas vivenciadas pelas folias do Vale do Guaporé,

destacamos: i) os elementos identitários: bandeira e o fardamento, ii) os elementos

estruturantes: as rezas, os cânticos e os rituais e, iii) os elementos performáticos: o

bastião/palhaço, o alferes, o mestre/embaixador e os 12 foliões.

Os elementos identitários, estruturantes e performáticos estão inteiramente interligados

e dependentes. Eles serão apresentados, neste artigo, separadamente apenas por uma

necessidade didática de análise e interpretação. A exemplo da bandeira, que é um símbolo

identitário, mas que também está relacionada aos símbolos performáticos ao ser conduzida

pelo alferes.

No primeiro caso temos os elementos que marcam a identidade dos grupos, suas

especificidades e a forma de conduzir o ritual. Na folia de Novo Horizonte o alferes é o

senhor Joaquim França, que carrega a bandeira com muita imponência, segue sempre à frente

do grupo, quando chega à porta das comunidades ou casas, ele vira a bandeira de frente para

os foliões, que começam a tocar e a cantar.

Esse grupo realiza a folia no período noturno. A casa ou comunidade que irá receber a

companhia deve ficar com a porta fechada e as luzes apagadas. A porta será aberta quando os

foliões cantarem: “Oh! senhor Dono da casa/abre a porta e acende a luz/Venha receber na

porta/ a bandeira de Jesus”. Neste momento entra em cena o elemento estruturante: o cântico,

que determina como o ritual deverá ser realizado.

Quando o dono da casa ou o coordenador da comunidade abre a porta, o primeiro

símbolo que visualiza é a bandeira. O alfares entrega a bandeira ao anfitrião, que a deposita

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no altar ou num lugar de destaque na residência, depois de ter passado com a bandeira por

todos os cômodos a fim de que a casa seja abençoada.

Em geral as bandeiras têm a imagem da Sagrada Família e o Menino Deus na

manjedoura sendo adorado pelos reis magos, com os dizeres: “O Rei Será Bendito Ele

Voltará de Novo” e ornadas com fitas coloridas, que representam os pedidos dos devotos dos

Santos Reis. Alguns devotos fixam na bandeira fotografias de pessoas que foram abençoadas.

De acordo com o relato do senhor Zezinho,

Na bandeira nós temos os Três Reis do Oriente, tem São José, a Virgem Maria e o

Menino Jesus. Ela representa o nascimento que está todinho na bandeira, e nós

chega com essa bandeira nas casas dos moradores e eles recebem essa bandeira de

Três Reis muito bem”. (In: Revista Aventuras na Amazonas, 2011).

Na folia do Município de Castanheiras no momento da retirada o alfares realiza o

ritual da benção da bandeira. Esta é passada por cima da cabeça dos foliões e das demais

pessoas, que cantam e rezam ajoelhadas. Outra pessoa do grupo de foliões segura a bandeira

para que o alfares também possa ser abençoado.

A bandeira tem um significado especial para os foliões. Ela abre os caminhos para que

eles, representando os próprios Reis Magos, possam anunciar o nascimento do Menino Deus.

Apesar de ser confeccionada com materiais e formatos diferentes, ela tem em comum, em

todas as companhias, o anunciar aqueles que proclamam o nascimento de Jesus.

Outro elemento identitário é o fardamento. Assim, igual a bandeira, ele permite que o

grupo seja reconhecido como tal, aonde e quando chegar. Além disso: “o uniforme torna

todos os homens iguais no nível de sua posição [...], suas diferenças sendo de grau e não de

qualidade (DaMATTA, 1990: 50).

Os foliões de Novo Horizonte usam camiseta e chapéu de palha. Os acompanhantes

que ajudam com os cânticos são identificados por um lenço colorido, amarrado no pescoço. O

grupo de Santa Luzia D’Oeste possui dois fardamentos: um para as caminhadas diárias e

outro para a festa de encerramento da folia. Ambos compostos de camisetas com imagens dos

três Reis Magos a caminho de Belém, com escritos de louvação aos reis e a data natalina.

No encerramento da Folia de Reis de Castanheiras, os foliões vestiam camisetas azuis

e amarelas escrito nas costas “Folias de Reis, linha 180 KM: 23” e na frente uma imagem dos

Reis Magos, além do adorno de uma toalha branca em volta do pescoço, o que significa,

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segundo o embaixador, a pureza da Sagrada Família. Alguns membros da folia trajavam

bonés de cores: vermelha, azul e verde.

Em algumas residências somente adentram o interior aqueles que estão uniformizados.

De acordo com o senhor José Otoni: “É a maneira mais fácil de identificar o pessoal da Folia

de Santos Reis. Eu e esses que tão com os bonés na cabeça significa os reis, por que os reis

magos têm as coroinhas na cabeça”.

Os elementos estruturantes são fixos e presentes em todo e qualquer grupo de folia de

reis: as rezas, os cânticos e os rituais. No entanto, a forma de realizá-los também está sujeita a

uma variedade infinda. Em Novo Horizonte, a abertura e encerramento da folia, são seguidos

da celebração da missa realizada na igreja da comunidade.

Quando chegam nas comunidades, caso as pessoas estejam rezando o terço, os foliões

esperam na porta da igreja o fim da oração para depois se apresentarem. Nas casas eles

seguem aos mesmos rituais. A retirada dos foliões começa com a cantiga de entrega da

bandeira: “Oh, senhor Dono da casa/ entregai nossa bandeira/Pois temos o compromisso/ De

andar a noite inteira”. Neste momento, o dono ou dona da casa, entrega a bandeira para o

alfares.

No grupo de Santa Luzia durante os giros e festejos de encerramento os foliões, os

chamados irmãos de fé e demais participantes acompanham a procissão, aproximadamente a 1

km de distância, da casa do senhor José Aquino Alves até a comunidade Nossa Senhora

Aparecida, com as orações e cânticos da liturgia católica.

Quando esse grupo chega numa residência, caso tenha o presépio, as orações são feitas

na frente desse local, se a pessoa que recebeu a bandeira for viúva, os foliões cantam e fazem

oração em intenção a alma do ente querido.

As visitas nas residências sempre começam do final da Linha, a bandeira não pode

retornar ou andar em ziguezague. De acordo com seu Zé Pedrinho, assim aconteceu com os

três reis magos, que seguiram a estrela guia e retornam por outro caminho. A bandeira e os

instrumentos ficam na última residência visitada naquela noite. Os foliões pedem pouso para

os instrumentos e se preciso for para eles também.

Por fim, temos os elementos performáticos, representados nas figuras do alferes, do

bastião/palhaço, do mestre/embaixador e os 12 foliões. Estes personagens carregam consigo

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os símbolos das folias dos Santos Reis. De forma consciente ou não perpetuam com seus

cânticos, orações, gestos, passos e fé a representação da gente simples a procura do menino

Deus.

O alfares é a figura intimamente ligada à bandeira. A função do alfares é protegê-la.

Esta apenas sai de suas mãos quando da chegada a uma residência ou comunidade. Nesse

momento, a bandeira é passada ao anfitrião, que deve recebê-la com muita devoção e respeito

e entregá-la ao alferes ao fim da visita.

A escolha do alfares é realizada a cada ano, em forma de votação entre os foliões ou

por indicação direta do embaixador. Em geral, os homens assumem este papel. No grupo de

foliões que acompanhamos, apenas no Grupo de Castanheiras a bandeira foi conduzida por

uma mulher.

O bastião, ou o palhaço, segue a frente da companhia. Dentre suas responsabilidades

está a de se antecipar para solicitar permissão para que o grupo possa ser recebido nas casas.

Caso os donos da casa não queiram receber a folia, cabe ao bastião retornar e informar ao

mestre. Assim, o grupo segue em outra direção.

No grupo o bastião, além do alferes, também deve proteger a bandeira. Na figura do

palhaço é ele que anima as pessoas, em especial as crianças com danças, brincadeiras e

distribuição de balas. Cabe ao bastião recolher a oferta dos padrinhos (padrinho e/ou

madrinha) maneira como os foliões chamam aqueles que permitem a visita da bandeira em

suas casas.

O bastião usa uma máscara e fantasia, as quais não permitem que ele seja reconhecido

pelas pessoas e como ornamento carrega uma espada de madeira, usada para suas

coreografias. Cada grupo de foliões deve contar com o número mínimo de dois palhaços. De

acordo com os ensinamentos de seu Geralindo: “o bastião distraiu os soldados do Rei

Herodes, que deveriam seguir os três Reis Magos” (Entrevista, 2016).

O mestre ou embaixador possui no grupo de foliões a responsabilidade de organizar,

coordenar e controlar as atividades das folias antes, durante e após cada giro. Essas figuras

vão se alternando entre os grupos. Quando aparecem os dois, o embaixador cuida da

organização, enquanto o mestre se responsabiliza pelos rituais de cânticos e rezas.

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No grupo de Novo Horizonte, seu Nildo Trevizani realiza as funções de embaixador,

em vista dele ser o patriarca do grupo. Os rituais religiosos ficam a cargo do genro dele, o

senhor Renato Aleprandi, que toca acordeom junto com seu Nildo, puxa os cânticos, orações e

demais rituais, acompanhado da esposa, dona Rosilene.

Os mestres das folias de Santa Luzia, Zé Pedrinho, de Castanheiras seu Geraldinho e

seu Moacir Pereira, este que se reveza entre os dois grupos, realizam suas preces, orações e

cânticos de forma improvisada, a estilo dos bons repentistas. Seu Geraldinho possui algo

peculiar, sua fala é quase inaudível e indecifrável para aqueles que são de fora do grupo, mas

totalmente compreensível para seus foliões.

O número de foliões que completa o grupo dificilmente é seguido à risca. Eles são os

que respondem os versos e orações puxados pelo mestre, zelam, carregam e tocam seus

instrumentos: violão, viola, triângulo, acordeom, reco-reco e tambores. Em geral, os foliões

são devotos dos Santos Reis e deles já receberam alguma graça pessoal ou familiar.

Para o mestre da folia de Santa Luzia, a companhia não pode ter mais de 12 foliões,

pois eles representam os 12 apóstolos de Cristo, que seguiram Jesus durante sua jornada. Seu

Zé Mineirão afirma: “ Os Apóstolo caminharam 12 anos pregando a palavra de Deus no

mundo” (Entrevista, 2016). Em sua obra Landau indica a quantidade de 12 pessoas no grupo

dos sábios: “que eram chamados de Magos na língua de sua terra porque, em silêncio, sem

qualquer som, eles louvam ao Deus de tudo” (LANDAU, 2013: 42).

Com mais ou menos de 12 foliões o certo é que as folias de reis consolidadas na

tradição oral e popular, durante todo período natalino passeiam pelas casas e comunidades,

“levando a boa nova” do nascimento do Menino Jesus, espalhando por onde passa o

sentimento de fraternidade, acolhimento, alegria, amor ao próximo, deixando impregnado na

memória de todos o “verdadeiro” sentido do Natal.

A imagem da folia é uma recorrente na memória da gente simples do Vale do

Guaporé, que abre as portas de suas casas para louvação e adoração dos Santos Reis. Lopes

elabora essa representação: “imaginei por momentos o itinerário da folia pelas casas do bairro

durante o ciclo do Natal, e como ela chegava festivamente ao local da festa sendo esperada

por todos” (LOPES, 2014: 32).

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A tentativa de manter vivas as culturas impregnadas de devoção, que carregam e

reproduzem as práticas de religiosidade, é um fato que marca a identidade das folias de reis,

pois como afirma Chauí: “a cultura funciona como canal de expressão da identidade grupal e

de práticas consideradas desviantes” (CHAUÍ, 2000: 73).

5- Considerações finais

As Folias de Reis, no Vale do Guaporé, se organizam e disseminam essa tradição

cultural e religiosa, por meio de uma rede proximal: familiares, parentes, amigos, conhecidos

e os devotos dos Santos Reis, que se reafirma e se consolida a cada ano.

A guarda dos instrumentos musicais e da bandeira, as despesas com locomoção,

alojamento, fardamento e alimentação dos foliões, as doações e oferendas, e o festejo final

realizado no dia 06 de janeiro, tudo advêm da colaboração dessa rede solidária criada em

torno dos grupos de foliões.

A composição dessa tradição cultural se constitui de elementos advindos por meio de

símbolos, que servem para identificação dos grupos: como a bandeira e o fardamento, ou para

estruturá-los, no caso dos rituais, cânticos e orações, o que culmina na presença performática

dos bastiões, dos alferes e dos 12 reis magos.

A partir das narrativas e entrevistas dos nossos colaboradores, que fizeram parte do

processo da fundação dos grupos das Folias de Reis no Vale do Guaporé, conseguimos

identificar os símbolos e interpretar, de forma preliminar, seus significados, vivenciados

muito mais em função da fé que uma apropriação objetiva das representações simbólicas.

Todavia, podemos entender que para além de ações objetivas, existem as vivências subjetivas,

que ressaltam os significados dos elementos que mantêm vivas a crença e adoração as folias

de reis.

As significâncias presentes nas folias dos Santos Reis estão postas em seus elementos

identitários, fixos e performáticos. Os elementos imateriais/rituais tanto como os

físicos/identitários são indispensáveis para sua concepção. Desta feita, a pluralidade cultural é

representativa do mundo simbólico de fé e devoção, que corrobora os significados das folias

de reis pelas plagas guaporeanas.

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As folias dos Santos Reis, mais que mera curiosidade ou uma indicação no calendário

civil ou religioso, merecem o direito a voz, a vez e ao respeito por interligarem os mundos da

sobrevivência e da transcendência e nos fazer crer que entre criador e criatura a beleza maior

está na criatura, que é capaz de se elevar ao criador.

6- Referências bibliográficas

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