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Bárbara Enfim anoitecera. As luzes coloridas dos prédios, que aos poucos iam diminuindo durando o percurso, pareciam se despedir de nós. As lâmpadas dos postes passavam agora como estrelas cadentes, rasantes. Horizontalmente. Rendi-me ao silêncio noturno e diminui de forma significativa o volume do rádio. Quase inaudível. Ciente de que a temperatura também caíra, estiquei o braço e fechei as janelas. Bárbara fizera-se quieta e só quando eu olhava para ela, ela me olhava de volta. Sua cara era de sono, com as longas pestanas, pesadas e hesitantes, movimentando-se para cima e para baixo tal qual uma gangorra. De quando em quando arregalava os olhos e sorria esticando exageradamente os lábios. Só depois, quando tentei comentar com ela sobre uma capivara desjeitosa que imprudentemente atravessara a estrada, dei-me conta de que a moça cochilara durante o trajeto. Por fim, tombou. Resignada, sua cabeça descansava em meu ombro; o cabelo longo, macio e perfumado. Uma cena das mais lindas que se pode imaginar. Não sei o que me deliciava mais. Se os seus olhos mortais, o corte generoso e desguarnecido do decote, o ar quente e calmo a sair de suas narinas ou a proximidade de sua boca rosada, entreaberta e acessível... - Acorde, acorde - sussurrei, ajeitando com uma das mãos uma mecha de cabelo que lhe cobria a testa arredondada. - Ah, Bárbara! - murmurei, tocando-lhe levemente o delicado queixo, antes de baixar-me e beijá-la. Receoso, só a despertei depois de tê-la beijado. Não senti remorso algum por ter feito tal coisa, supondo que talvez houvesse me aproveitado em um momento de fragilidade sua. Não era o beijo de um amante, por mais que eu desejasse sê-lo, mas um beijo carinhoso e cheio de ternura, como o dado por uma mãe em seu filho ainda pequeno, cautelosamente agarrado ao peito. Se ela, em algum momento, desde o dia em que nos conhecemos, tivesse tido vontade de me beijar, não com o beijo que eu lhe havia dado, mas com um beijo apaixonado, romanesco, já teria me beijado e eu não o recusaria. O que eu posso dizer? A Bárbara era assim. Impulsiva e inocente. Beijava do nada, sem hesitação e sem avisar. Definitivamente nunca desejara me beijar com aquele tipo de beijo. O "beijo", se posso chamá-lo assim, porquanto fora apenas um toque breve e comedido dos lábios, uma troca de espíritos, teve um efeito contrário ao que eu esperava. Senti-me traído pelos meus sentimentos, pois eram confusos, sem limites definidos. A imprecisão alimentou a chama da tristeza. - O que foi? Já chegamos? - perguntou ela ao despertar, esticando os braços, após um bocejo incontido.

Bárbara

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Bárbara

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Page 1: Bárbara

Bárbara

Enfim anoitecera. As luzes coloridas dos prédios, que aos poucos iam diminuindo durando o percurso, pareciam se despedir de nós. As lâmpadas dos postes passavam agora como estrelas cadentes, rasantes. Horizontalmente. Rendi-me ao silêncio noturno e diminui de forma significativa o volume do rádio. Quase inaudível. Ciente de que a temperaturatambém caíra, estiquei o braço e fechei as janelas.

Bárbara fizera-se quieta e só quando eu olhava para ela, ela me olhava de volta. Sua cara era de sono, com as longas pestanas, pesadas e hesitantes, movimentando-se para cima e para baixo tal qual uma gangorra. De quando em quando arregalava os olhos e sorria esticando exageradamente os lábios. Só depois, quando tentei comentar com ela sobre uma capivara desjeitosa que imprudentemente atravessara a estrada, dei-me conta de que a moça cochilara durante o trajeto.

Por fim, tombou. Resignada, sua cabeça descansava em meu ombro; o cabelolongo, macio e perfumado. Uma cena das mais lindas que se pode imaginar. Não sei o que me deliciava mais. Se os seus olhos mortais, o corte generoso e desguarnecido do decote, o ar quente e calmo a sair de suas narinas ou a proximidade de sua boca rosada, entreaberta e acessível...

- Acorde, acorde - sussurrei, ajeitando com uma das mãos uma mecha de cabelo que lhe cobria a testa arredondada. - Ah, Bárbara! - murmurei, tocando-lhe levemente o delicado queixo, antes de baixar-me e beijá-la. Receoso, só a despertei depois de tê-la beijado.

Não senti remorso algum por ter feito tal coisa, supondo que talvez houvesse me aproveitado em um momento de fragilidade sua. Não era o beijo de um amante, por mais que eu desejasse sê-lo, mas um beijo carinhoso e cheio de ternura, como o dado por uma mãe em seu filho ainda pequeno, cautelosamente agarrado ao peito. Se ela, em algum momento, desde o dia em que nos conhecemos, tivesse tido vontade de me beijar, não com o beijo que eu lhe havia dado, mas com um beijo apaixonado, romanesco, já teria me beijado e eu não o recusaria. O que eu posso dizer? A Bárbara era assim. Impulsiva e inocente. Beijava do nada, sem hesitação e sem avisar. Definitivamente nunca desejara me beijar com aquele tipo de beijo.

O "beijo", se posso chamá-lo assim, porquanto fora apenas um toque breve e comedido dos lábios, uma troca de espíritos, teve um efeito contrário ao que eu esperava. Senti-me traído pelos meus sentimentos, pois eram confusos, sem limites definidos. A imprecisão alimentou a chama da tristeza.

- O que foi? Já chegamos? - perguntou ela ao despertar, esticando os braços, após um bocejo incontido.

Page 2: Bárbara

- Ainda não. Falta pouco. Desculpe tê-la acordado.

Em meio a toda aquela incerteza, a capivara, outrora uma imprescindível fonte de entretenimento, perdera completamente a importância; tornara-se irrelevante.

Bárbara não era nenhuma espécie de Capitu, dotada de toda dissimulação. Era simples de se ler, bastava olhar para ela e pronto. Bingo. Quando estava feliz sorria, quando estava triste chorava, quando sentia vergonha corava. Bastava uma hora de conversa atenta para poder compreendê-la totalmente,sem receio de ser surpreendido futuramente. Também não era nenhuma garotinha ruiva, inalcançável, tal qual a de Charles Schulz. Eu a tinha ao lado o tempo todo e podia tocá-la sempre que quisesse.

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