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 O NEGRO NA ECONOMIA BRASILEIRA: DA COLÔNIA AOS UMBRAIS DO SÉCULO XXI A PARTICIPAÇÃO DO  NEGRO NAS ECONOMIAS COLONIAL, IMPERIAL E R EPUBLICANA * Wilson do Nascimento Barbosa INTRODUÇÃO A consolidação do racismo antinegro no Brasil, praticamente indestrutível nas condições da sociedade republicana, causou a exclusão do negro e impediu seu acesso à propriedade,  particularmente, àquele dos meios de produção. Na ânsia de transformá-lo em um subproletariado para ser usado em quaisquer necessidades de produção e organização, também, agravou as condições socioeconômicas e morais do trabalhador negro na escravidão. Tal atitude teve impacto negativo sobre o desenvolvimento social ulterior de toda a população negra. O chamado “preconceito racial” - na verdade racismo antinegro – não deriva apenas do racismo no ambiente familiar. Ele expressa o domínio do racismo em todos os círculos da existência social e em cada camada de associação cultural que envolva a vida quotidiana 1 . A desumanidade das relações societárias brasileiras espanta a quantos aqui vêm de visita. Somos um país no qual a pessoa comum está desprovida de direitos econômicos e sociais, e que legalmente, nega a cada membro da população o direito à saúde, habitação e alimentação. Ou seja, a fronteira de subsistência das pessoas passa pelo seu direito à existência, mas não garante tal direito. Por esta razão, o discurso dominador faz uso constante das palavras “cidadão” e “cidadania”, justamente porque eles não existem.  Nessas condições de juridicidade esc ravista mal disfarçada, a população negra é submetida a todas as formas de abjeção, que em seu todo expressam o dimensionamento do racismo. *  Professor Associado do Departamento de História da FFLCH-USP. 1  Vide Clóvis Moura, O preconceito de cor na literatura de cordel: tentativa de análise sociológica. São Paulo, Editora Resenha Universitária, 1976; Joel Rufino dos Santos. Que é Racismo? São Paulo, Brasiliense, 1981; e Rita de Cássia Souza Pierini. Racismo e Sala de Aula no Município de São Paulo: O Caso da Comunidade Negra no Antigo Curso Primário – Zona Norte – 1970 – 1990. Depto. De História – Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH – CAPH - USP, 1998.

BARBOSA - O Negro Na Economia Brasileira. Pag 1-45 (1)

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BARBOSA - O Negro Na Economia Brasileira. Pag 1-45 (1)

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  • O NEGRO NA ECONOMIA BRASILEIRA: DA COLNIA AOS UMBRAIS DO

    SCULO XXI

    A PARTICIPAO DO NEGRO NAS ECONOMIAS COLONIAL, IMPERIAL E REPUBLICANA

    *Wilson do Nascimento Barbosa

    INTRODUO

    A consolidao do racismo antinegro no Brasil, praticamente indestrutvel nas condies

    da sociedade republicana, causou a excluso do negro e impediu seu acesso propriedade,

    particularmente, quele dos meios de produo. Na nsia de transform-lo em um

    subproletariado para ser usado em quaisquer necessidades de produo e organizao, tambm,

    agravou as condies socioeconmicas e morais do trabalhador negro na escravido. Tal atitude

    teve impacto negativo sobre o desenvolvimento social ulterior de toda a populao negra.

    O chamado preconceito racial - na verdade racismo antinegro no deriva apenas do

    racismo no ambiente familiar. Ele expressa o domnio do racismo em todos os crculos da

    existncia social e em cada camada de associao cultural que envolva a vida quotidiana1.

    A desumanidade das relaes societrias brasileiras espanta a quantos aqui vm de visita.

    Somos um pas no qual a pessoa comum est desprovida de direitos econmicos e sociais, e que

    legalmente, nega a cada membro da populao o direito sade, habitao e alimentao. Ou

    seja, a fronteira de subsistncia das pessoas passa pelo seu direito existncia, mas no garante

    tal direito. Por esta razo, o discurso dominador faz uso constante das palavras cidado e

    cidadania, justamente porque eles no existem.

    Nessas condies de juridicidade escravista mal disfarada, a populao negra submetida

    a todas as formas de abjeo, que em seu todo expressam o dimensionamento do racismo.

    * Professor Associado do Departamento de Histria da FFLCH-USP. 1 Vide Clvis Moura, O preconceito de cor na literatura de cordel: tentativa de anlise sociolgica. So Paulo, Editora Resenha Universitria, 1976; Joel Rufino dos Santos. Que Racismo? So Paulo, Brasiliense, 1981; e Rita de Cssia Souza Pierini. Racismo e Sala de Aula no Municpio de So Paulo: O Caso da Comunidade Negra no Antigo Curso Primrio Zona Norte 1970 1990. Depto. De Histria Dissertao de Mestrado. So Paulo, FFLCH CAPH - USP, 1998.

  • 2

    A negao da terra maioria absoluta da populao rural contribuiu para sustentar a baixa

    renda da populao trabalhadora e a prevalncia desorientada da agricultura exportadora, por

    mais de um sculo aps o trmino da escravatura. Por outro lado, a condio de misria do

    migrante interno, dada a ausncia de transformao no mundo rural, tornou possvel a

    reconquista artificial pela burguesia dos frutos do trabalho industrial, tornando o cenrio

    domstico do pas um quadro desanimador diante do progresso social de outros pases. Nas

    ltimas dcadas, por parte das elites desenvolveu-se um desinteresse pela populao local, o que

    de certo modo pode explicar o agravamento das diferenas socioeconmicas, com o

    recrudescimento do racismo e da violncia2 .

    Chegou-se assim ao cenrio da globalizao, em que a convergncia dos mercados

    financeiros metropolitanos com aqueles das regies dependentes permitiu um rpido ocaso da

    propriedade produtiva local, com o desaparecimento dos objetivos nacionais da economia de um

    grande nmero de pases, entre eles o Brasil.

    O balano de vinte anos de globalizao est baseado na convergncia financeira, indica o

    reforo dos diferenciais de pobreza e riqueza, tornando difcil concluir que do seu avano

    resultar, espontaneamente, melhoria para as populaes que j eram pobres e,

    institucionalmente, marginalizadas. Qualquer instituto global reflete a desigualdade e aponta

    para sua exacerbao. A Organizao das Naes Unidas (ONU), a Organizao Mundial do

    Comrcio (OMC) ou a Organizao Ambiental Mundial (OAM) no iriam mudar a estrutura

    interna das sociedades ou economias locais, para torn-las mais racionais, justas ou

    equilibradas3.

    Contrariamente, seu papel institucional acelerar os movimentos transformadores em

    favor de interesses que j so poderosos e cujas vozes ecoam. Isto , com mais poder em tais

    organismos. Exemplo foi a rapidez com que se deu, nos anos 90, a abertura ou liberalizao dos

    mercados locais, exigida pelas necessidades das grandes empresas e de sua expanso financeira.

    2 Vide Clvis Moura, O negro, de bom escravo a mau cidado? Rio de Janeiro, Conquista, 1977; Sociologia do negro brasileiro, So Paulo, Editora tica, 1988 e Dialtica radical do Brasil negro, So Paulo, Editora Anita, 1994. 3 Veja: Eric Hobsbawm. Era dos Extremos, So Paulo, Cia das Letras, 1995 e Franois Chesnais. A mundializao do capital. So Paulo, Xam, 1996.

  • 3

    Uma ordem social mais equilibrada dentro de uma nao e nas condies do mundo em

    globalizao, talvez seja mais difcil de instaurar antes dessa etapa mundializadora. Na verdade,

    na ptica dos poderosos, qualquer distrbio local mal compreendido e deve ser interpretado

    como oposto s grandes direes da mudana globalizadora. Nessa esfera estratgica, no h

    lugar para os perdedores de hoje. Muito menos para os perdedores da vspera.

    Assim, as dificuldades brasileiras refletem as dificuldades de uma classe dominante que

    tem demonstrado, historicamente, pouca habilidade para elaborar e/ou sustentar um projeto

    nacional. Qualquer comparao entre o materialmente gigantesco Brasil e a pequenina e dividida

    Coria deixar sem argumento o defensor das iniciativas pindormicas.

    Subimperialismo industrial, bomba atmica nacional, um s tiro no tigre, etc.,

    podem ser discursos de grande efeito eleitoral ou domstico, mas so igualmente incapazes de

    dar trabalho ou comida aos pobres, restituir a dignidade de cidados, ou diminuir os crimes

    violentos. Ento, seu impacto sobre a virulncia de fundo tnico igual a zero.

    Um dos traos da historiografia analtica periodizar o Brasil, desde a intensificao da

    atividade ocupadora do solo. Desse ponto de vista, poder-se-ia compreender o pas assim:

    Primeiro sculo-1551-1650;

    Segundo sculo-1651-1750;

    Terceiro sculo-1751-1850;

    Quarto sculo-1851-1950;

    Quinto sculo-1951-... .4

    PRIMEIRO SCULO (1551-1650)

    O primeiro sculo logo se destaca com caracteres prprios: (a) instalao do sistema

    escravista, com base na atividade aucareira; (b) crise da autoridade portuguesa nas colnias,

    4 Ver: Nelson Werneck Sodr. Formao Histrica do Brasil. So Paulo, Ed. Brasiliense, 1963.

  • 4

    com a "unio das coroas ibricas"; (c) formao dos quilombos e suas implicaes tnico-

    culturais.

    INSTALAO DO SISTEMA ESCRAVISTA, COM BASE NA ATIVIDADE AUCAREIRA

    Portugal j vinha se expandindo desde o sculo XV, com base no trfico de escravos, ouro

    e marfim da costa africana. Parte dos lucros dessas atividades foi usada para financiar plantaes

    canavieiras nas ilhas afro-portuguesas do Atlntico, que abasteciam Gnova e Amsterd de

    acar, diante da oferta insuficiente da Siclia, da Sria e do Egito.

    As plantaes de cana-de-acar e o estabelecimento de suas moendas deram-se por todo o

    territrio litorneo no primeiro sculo, desde So Vicente at o litoral da atual Paraba. Foram

    mais bem sucedidos os empreendimentos da Baa de Todos Santos para cima, que cresceram de

    3, em 1549, para 227, em 1650. Essa forte expanso deu-se, alis, com altos e baixos, perturbada

    particularmente pelo choque dos interesses de Portugal e da Repblica dos Pases Baixos de um

    lado e da Espanha, de outro.

    Os comerciantes portugueses, liderados pela Ordem de Cristo, eram scios do capital

    comercial de Gnova e das praas dos Pases Baixos, na produo e na comercializao do

    acar. Contudo, com a associao de parte da nobreza de Portugal ao projeto filipino na

    Espanha, a entrega do Trono portugus Coroa de Espanha suscitaria perdas econmicas para os

    grupos neerlandeses que, para compensar-se, invadiram diversas colnias portuguesas.

    UNIO DAS COROAS IBRICAS

    O perodo de 1580-1650 , portanto, conturbado pela invaso da Bahia, de Pernambuco e a

    luta militar que se trava pela posse do Brasil e de outras colnias portuguesas. As propores do

    conflito levaram a forte participao espanhola no mesmo, que declina aps o restabelecimento

    de Portugal como reino independente (1640). A partir de ento, trava-se a luta portuguesa para

    expulsar os neerlandeses do Brasil e do Ndongo ocidental, na Angola.

  • 5

    Durante o perodo da unio das coroas ibricas, o comrcio no Atlntico havia se tornado

    mais complexo. Os reinos africanos, vendedores de escravos do golfo de Benin e Angola,

    tornaram-se fortemente dependentes do abastecimento de produtos europeus e luso-brasileiros,

    de tal forma que sofreriam colapso sem o trfico de escravos. As sociedades mercantis do

    "comrcio triangular" faziam prosperar suas praas na margem do Atlntico, com base nos

    ganhos do fluxo de escravos africanos.

    Por outro lado, os escravos entrados no Brasil em nmeros crescentes e a preos

    decrescentes durante o primeiro sculo, souberam, em parte, valer-se das dificuldades das

    autoridades portuguesas para escapar rumo ao interior. Da cresceu a importncia de aldeias

    independentes de negros foragidos da escravido, durante todo o sculo XVII. Tais aldeias

    tornaram-se mais notveis na repblica de negros da Serra da Barriga, em Alagoas, geralmente

    descrita como uma monarquia aberta, do tipo da democracia militar angolana. Ela subsistiu

    sabidamente no perodo 1603-1697 e ficou conhecida como "Palmares". A palavra "quilombo"

    pode ser livremente interpretada como "fortaleza do rei" e tornou-se extensiva a todos os tipos de

    povoao, fundadas por negros escapados da escravido no Brasil, e ao modo de vida por eles

    gerado5.

    IMPLICAES TCNICO-CULTURAIS DOS QUILOMBOS

    O segundo sculo da colonizao compreender dois movimentos, do ponto de vista da sua

    fora de trabalho, predominantemente negra e escrava: a forte expanso mineradora do ouro e de

    pedras preciosas, e a difuso dos quilombos por vrias partes do que mais tarde se constituiria o

    territrio nacional brasileiro.

    A principal forma de organizao socioeconmica no primeiro sculo da colonizao foi,

    sem dvida, a "fazenda". Fosse ela simples "plantao" ou tambm centro de moagem de cana e

    do fabrico dos "pes de acar", gerou um tipo de vida rural que beirava a auto-suficincia,

    tornando-se para o escravo um mundo isolado que, a depender de seus administradores, podia

    5 Para o assunto, ver: Dcio Freitas. Palmares, a guerra dos escravos. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984; Clvis Moura. Quilombos, resistncia ao escravismo. So Paulo: Editora tica, 1989. Srgio Correa da Costa. As Quatro Coroas de Pedro I, Rio de Janeiro, Grfica Record Editora, 3. ed. 1968.

  • 6

    constituir-se desde uma priso a um verdadeiro inferno. Submetidos a sofisticados sistemas de

    castigos corporais e espirituais, os escravos faziam do horizonte de uma possvel fuga, a fonte da

    utopia quilombola.

    Cumpre recordar que os escravos eram constitudos de dois contingentes, em origem

    distintos, particularmente no primeiro sculo: "os negros da terra", ou seja, as populaes

    aborgines que sob o pretexto da catequese e da guerra justa eram "descidas" de suas aldeias e

    submetidos escravido; e "os negros da costa", em referncia queles que haviam feito a

    travessia do Atlntico, aps a aquisio na costa africana6.

    Uma vez que os escravos da costa, trazidos em grande nmero, vinham na proporo de

    trs homens para uma mulher, associado ao fato da elevada mortandade do indgena masculino

    em sua resistncia ao colonizador, verificou-se, desde o primeiro sculo, a forte tendncia

    miscigenao entre as populaes escravizadas, que tambm viram crescer os eventuais filhos

    dos colonizadores no seu meio. Estes, acidentalmente foram gerados em grande nmero, como

    resultado de relaes sexuais no legalizadas com as escravas. Tal fato contribuiu para criar,

    mais tarde, o mito de uma suposta tolerncia racial do colonizador e as polticas de dissoluo do

    negro, por via do branqueamento fsico e psicolgico, na Repblica contempornea.

    No entanto, no primeiro e segundo sculos, a associao tnica entre negros importados e

    indgenas contribuiu para criar tipos fsicos prprios na colonizao brasileira e para assegurar a

    sobrevivncia quilombola nas matas, no caso sistemtico das fugas e do abandono de escravos

    "decados" ou "quebrados". Eram estes, escravos que haviam perdido o valor econmico, pelo

    efeito de doenas contagiosas ou de trabalho, sendo "mandados embora" pelos amos, que fugiam

    assim responsabilidade de sua manuteno ou tratamento.7

    Embora a lei portuguesa buscasse limitar as condies da escravido, circunscrevendo seu

    ambiente tnico, em virtude de sua generalidade, era possvel ao poder dos escravistas

    simplesmente ignor-la, o que continuou a se dar aps a Independncia (1822). Assim, as

    6 A propsito, ver: dison Carneiro. Antologia do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro, Globo, 1950; Suely Robles Reis de Queiroz. Escravido negra em So Paulo: um estudo das tenses provocadas pelo escravismo no sculo XIX. Rio de Janeiro, J. Olympio Editora, 1977; e Manolo Garcia Florentino. Em costas negras: uma historia do trafico atlntico de escravos entre a frica e o Rio de Janeiro: sculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995. 7 Jos Alpio Goulart. Da palmatria ao patbulo; castigos de escravos no Brasil. Rio de Janeiro, Conquista, 1971.

  • 7

    crianas dos quilombolas ou das aldeias indgenas, apreendidas nas matas e nas beiras dos rios,

    continuaram a ser, indiferentemente, reduzidas escravido, sendo, aps seus batismos em

    igrejas e capelas catlicas, entregues aos seus "padrinhos" para que lhes propiciassem a educao

    trabalhadora adequada. Emassadas nas senzalas e castigadas do mesmo modo dos demais

    escravos, tais crianas logo desapareciam como indivduos que deveriam ser livres, no coletivo

    escravizado.

    Por outro lado, a populao indgena sobrevivente vivia sobre a dupla presso dos capites

    do mato escravizadores, de um lado e escravos foragidos, de outro. Ambos vinham ter s suas

    aldeias, trazendo consigo a presena constante e destruidora do mundo portugus.

    Sendo os quilombos semelhana das democracias militares africanas e uma sociedade de

    incluso, todos os elementos perseguidos ou adversos ao poder luso-brasileiro tinham abrigo

    neles. As circunstncias da sociedade colonial, apenas reconheciam o direito propriedade de

    uma minoria de seus indivduos, com destaque para os senhores de terra e os arrendadores de

    recursos naturais. Conseqentemente, em virtude dos peridicos deslocamentos dos eixos

    econmicos da atividade exportadora, deixava em sua periferia um nmero enorme de alijados

    de toda espcie que, no tinham por que valorizar a hostilidade com os quilombolas, mantendo

    feira e comrcio com eles, em diferentes pontos do territrio. Ficaram clebres os quilombos de

    Palmares e de Canhoto (PE), no primeiro sculo; de Icatu, Turiau (MA), Capim e Moju (no

    PA), no segundo sculo: dos Calungas (GO) e da Rocinha (RJ) no terceiro sculo; quilombo do

    Iguau, no quarto sculo, etc8.

    O mais importante a observar aqui o impacto, no segundo sculo, da atividade

    mineradora com a escravido e a urbanizao. O ouro em circulao na colnia elevou o preo

    de todas as mercadorias - incluindo escravos - e acelerou a imigrao portuguesa. A deficincia

    da economia de servios, que j se fazia sentir nas condies da atividade aucareira, tornou-se

    crtica nas condies mineradoras, exigindo impulso urbanizador, oferta maior de alimentos,

    estradas novas e meios de transporte, etc., tudo a contribuir para uma maior mobilidade da massa

    8 Ver J. A. Goulart. op. cit. e Alar Eduardo Scisnio, Dicionrio da Escravido. Rio de Janeiro, Lo Christiano Editorial Ltda., 1997.

  • 8

    de trabalho escravo, o aumento de seu nmero e a completa entrega de todas as habilidades

    profissionais exigidas pelo mundo em urbanizao a esta massa.

    Com tal aumento da flexibilidade escravista, inmeros quilombos tiveram a possibilidade

    de uma coexistncia no contexto local da sociedade, desempenhando na sua economia certo

    papel de complementaridade no abastecimento das vilas e cidades em expanso. So, portanto,

    caractersticas do segundo sculo de colonizao: (a) diversificao do sistema escravista, com

    base na atividade mineradora; (b) expanso do Estado portugus na colnia, para assegurar-se de

    sua riqueza; (c) ampliao da massa trabalhadora escrava e complexificao de suas habilidades

    tcnico-profissionais.

    SEGUNDO SCULO (1651-1750)

    A explorao da terra, por meio de "fazendas", concentrava o escravo em trs tipos de

    atividades: explorao dos recursos naturais; produo agrcola, em certos centros, e sua

    transformao e, ainda, atividades de servios gerais, destacando-se armazenamento e transporte.

    V-se, portanto, que grande nmero de profisses estava aqui abarcada. A "ponta" tecnolgica da

    poca era a atividade mecnica, sendo que reparaes muito complexas do mecanismo dos

    engenhos eram feitas na metrpole. Com o avano da atividade mineradora, a diviso social do

    trabalho entre os escravos ampliou-se ainda mais, para corresponder s novas necessidades da

    dominao portuguesa. Era tolice para um portugus livre dedicar-se a tarefas fsicas, quando

    podia comprar ou alugar escravos para isso, trein-los, utiliz-los ou revend-los. O

    amoedamento em grande quantidade mercantilizava as prprias relaes de trabalho escravo, e

    permitia ampliar a apropriao efetiva da mais-valia que podia ser produzida9.

    No sculo XVII brasileiro, a propriedade de escravos era to difundida quanto a de

    veculos automveis ou telefones, hoje. A locao ou sublocao do trabalho escravo gerava

    ganhos monetrios imediatos para o seu proprietrio. Desse modo, grande parte da fora de

    9 Charles Ralph Boxer. A idade de ouro do Brasil. So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969; Joo Pandi Calgeras. Minas Do Brasil E Sua Legislao: Geologia Econmica Do Brasil So Paulo, Nacional, 1938; e Luciano

  • 9

    trabalho escrava seria utilizada nas cidades e na economia de servios. Remeiros, barqueiros,

    ferreiros, ourives, calafates, ferramenteiros, barbeiros, marceneiros e carpinteiros; ajudantes de

    cirurgies, soldados, parteiras e mensageiros, quaisquer que fossem as atividades produtivas e de

    servio subalterno, encontradas entre 1550 e 1888, ali se encontravam os escravos.

    V-se assim, que se encontram duas tendncias para a transformao da fora de trabalho

    escrava, no curso do terceiro sculo (1751-1850). A primeira delas a tendncia para a

    desescravizao e a segunda, a tendncia para a diversidade profissional.

    A tendncia para a desescravizao decorria das necessidades naturais do trabalho escravo

    para renovar-se em sua mo-de-obra, acompanhando os ciclos comerciais - 7 a 10 anos.

    Supondo-se uma leva de escravos A1, ela era amortizada e tendia a ser substituda - por depleo

    - no curso completo de tal ciclo comercial, por outra leva A2. Evidentemente, os escravos menos

    produtivos eram transferidos para tarefas secundrias, atividades no exportadoras, manumitidos

    ou simplesmente "mandados embora". Essa capacidade do sistema produtivo para renovar-se

    permitiu, aos ex-escravos, a constituio de um amplo setor demogrfico fora das atividades

    escravistas, dando origem, no terceiro sculo, constituio do negro como um povo

    independente no Brasil. A discusso desse papel independente e possvel nas relaes produtivas

    conhecida na historiografia brasileira como "brecha camponesa" 10.

    Outro elemento interessante da formao do povo brasileiro foi a tendncia para a

    diversidade profissional, que se associa com as complexas demandas urbanas da minerao.

    Devido importncia dos descaminhos, era ao negro, em geral escravo, que competia "pr a

    cara" e "correr riscos" de inmeras operaes ilegais. As ruas principais do Rio de Janeiro e de

    Salvador estavam pontilhadas de oficinas, onde ourives, em grande parte trabalhando a destaque

    - produziam jias e outros objetos - com prata e ouro, aparentemente, legais. As investigaes

    Raposo de Almeida Figueiredo. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na Amrica Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (1640-1721). Tese de Doutorado Depto. Histria; FFLCH, USP So Paulo, 1996. 10 Ciro Flamarion Cardoso Agricultura, Escravido e capitalismo Editora Vozes, Petrpolis, 1979; Economia e sociedade em reas coloniais perifricas, Guiana Francesa e Par, 1750-1817. Rio de Janeiro, Graal, 1984; A Afro-Amrica: a escravido no novo mundo. So Paulo, Brasiliense, 1982; Clovis Moura. Dialtica radical do Brasil negro. So Paulo, Editora Anita, 1994 e Jacques Edgard Franois DAdesky Pluralismo tnico e multiculturalismo - racismos e anti-racismos no Brasil. Tese de Doutorado. So Paulo, FFLCH-DA-USP, 1997.

  • 10

    eventuais, no raro, encontravam uma mesma documentao - muitas vezes clonada -

    acobertando a recepo e consumo de diferentes cargas da matria-prima de elevado valor. No

    caso, a represso policial no atingia os verdadeiros proprietrios, mas os escravos e libertos que,

    aparentemente, cometiam os delitos de motu proprio. O preo de semelhante risco era

    endinheirar-se e/ou comprar a prpria liberdade ou, at mesmo, chegar propriedade de

    escravos. O mesmo se dava com minas, fundies e garimpos clandestinos, que em certa monta

    haviam de ser encontrados, com tais negros penalizados, restando-nos, hoje, a documentao

    como prova das espertezas ento praticadas.

    O fato que a minerao, no segundo e terceiro sculos, deu origem a uma camada de

    negros pequenos-proprietrios, nos mais importantes centros urbanos e ela haveria de subsistir

    at os comeos da Repblica, quando seria finalmente eliminada pela concorrncia da nova

    imigrao europia.

    DIVERSIFICAO DO SISTEMA ESCRAVISTA, COM BASE NA ATIVIDADE MINERADORA

    O problema do desenvolvimento da escravido no mundo colonial no apenas - como

    indicado em geral pela historiografia - um problema de carncia de mo-de-obra em

    determinadas regies exploradas. , principalmente, a necessidade de um tipo de capital em

    romper os impeditivos de suas pr-condies para prosseguir-se acumulando. Acumulado na

    esfera da circulao e nutrido por suas criaturas - o capital comercial e o capital usurrio o

    capital mercantil devia levar a cabo a acumulao primitiva e transformar sua melhor parte no

    capital industrial, para sobreviver historicamente.

    Assim, o amontoamento produtivo de capital mercantil devia dar-se por outras formas que

    negassem essa forma geral - para solucionar de modo especfico - aspectos prprios da

    acumulao primitiva, em cada situao histrica dada. No caso americano, a forma colonial

    principal do capital mercantil havia de dar-se, pois, enquanto capital escravista, pois apenas esta

    forma poderia resolver os dois problemas correlatos necessrios: uma produo a comando e a

    obteno da mo-de-obra escrava.

  • 11

    O capital mercantil deveria "mergulhar" na colnia sob a forma de escravos e maquinrio,

    para vir tona, no fim do ciclo reprodutivo, sob a forma de mercadorias transformveis em mais

    dinheiro, ou seja, lucro.

    Isto conduz a dois outros subconjuntos de problemas, a saber: a natureza econmica do

    capital mercantil e a natureza social do capital mercantil - que subestrutura social ele representa?.

    A maioria dos autores que estudaram o processo de acumulao brasileira, na condio de

    colnia e semicolnia (1530-1888), evitou estabelecer uma tipologia do capital segundo a sua

    natureza e deixaram, portanto, de definir a problemtica da acumulao, dedicando-se apenas a

    discutir o problema do trabalho.

    Infelizmente, no se pode explicar as transformaes sociais sem recorrer a uma

    explicao prvia dos mecanismos da produo e distribuio, ou seja, onde se origina a

    diferenciao social que culmina em novas estruturas de poder: na produo ou na distribuio?

    A resposta que nos diz que o capital mercantil de uma mesma natureza nas metrpoles

    nas colnias, no resolve o problema de explicar os mecanismos da acumulao domstica ou

    interna, quando o caso, nas colnias. Houve nas metrpoles uma crescente diferenciao social,

    demandada por necessidades de seu crescimento interno, pela qual surgiram novas atividades e

    concentrou-se o processo de beneficiamento da produo primria, com sucessivas mudanas

    tecnolgicas que tinham por mecanismo o surgimento de novas atividades ou profisses

    (carpinteiros, marceneiros, ferreiros, mecnicos, tripulantes martimos, fundidores, etc.)11.

    Ocupando-se o capital mercantil, com suas duas formas metropolitanas - capital comercial

    e capital usurrio - de acumular-se no circuito da distribuio, de se entender seu mecanismo

    de interferir na produo, a partir de aumentos excelentes e extraordinrios em seu montante -

    particularmente o capital usurrio. Por via do roubo, da expropriao de produtores e da

    pilhagem, o capital mercantil "acumulava-se", improdutivamente, na esfera da circulao, mas o

    sistema industrial da poca no era capaz de produzir o montante de produtos e mercadorias que

    11 Ver a propsito: Joo Quartim de Moraes e Marcos Del Roio, orgs., Histria do Marxismo no Brasil: Vises do Brasil. Campinas, Unicamp, 2000; e C. Morrison, J. Barrandon, Or du Brsil: monnaie et croissance en France au XVIIIe sicle. Paris, CNRS ditions, 1999. Para a esperteza da minerao, ver Paulo Cavalcante de Oliveira Jr., Negcios de Trapaa: Caminhos e Descaminhos na Amrica Portuguesa (1700 1750). Tese de Doutorado. So Paulo, DH-FFLCH-USP, 2002.

  • 12

    levassem o capital mercantil a um novo patamar de taxas de acumulao. Para manter a taxa

    mdia de acumulao improdutiva, o capital mercantil metropolitano necessitava apropriar-se de

    uma certa quantidade crescente de bens, produzidos fora da sua esfera e que seriam

    transformados em mercadoria nas condies do desenvolvimento desigual - necessidade de

    ganhar nas "duas pontas": ao comprar, e ao vender.

    esta insuficincia de produo que explica a crescente interveno do capital mercantil

    na esfera, que lhe exterior, da produo - txtil florentino dos sculos XIII a XVI; indstria

    lanfera "espanhola" e inglesa nos sculos XIII a XVII; armaria e vidraaria veneziana e

    milanesa nos sculos XIII a XVI; todas contrapostas s esterilizaes correntes da construo

    civil, etc.

    Mas a esfera normal do capital mercantil no era para intervir na produo, ultrapassar

    gargalos produtivos. Seu desempenho normal era ganhar com base na usura e nas insuficincias

    da oferta, e da procura; era tirar partido do desenvolvimento desigual - navegao genovesa e

    portuguesa nos sculos XII a XVI; navegao holandesa e espanhola nos sculos XV a XVIII;

    navegao inglesa no sculo XVI a XVIII; etc. A interveno do capital mercantil na estrutura de

    produo se dava, apenas nos casos em que o nvel de acumulao da produo oficial mostrava-

    se mais rentvel que uma parte das operaes comerciais alternativas. Ou seja, a produo

    artesanal-oficinal havia avanado at um ponto em que carecia de mo-de-obra externa, que ela

    podia remunerar melhor, e a reproduo ampliada das oficinas (crescimento mais rpido da taxa

    do nmero de oficinas que o crescimento populacional e da mo-de-obra oficinal). Este tipo de

    transformao "aberta" era dinmica e modificava o capital mercantil em capital industrial12.

    Ora, a "descida" do capital mercantil metropolitano, por via do "pacto colonial", s se deu

    a partir do saque das grandes navegaes. Portanto, o empreendimento colonial teve dois

    objetivos prticos: (a) o saque e pilhagem que gerariam as colnias; e (b) com os ganhos de

    12 Ver: Carlos Prieto. A Minerao e o Novo Mundo. So Paulo, Cultrix, 1976; Paul Mantoux. A revolucao industrial no seculo XVIIi: estudo sobre os primordios da grande industria moderna na inglaterra, Sao Paulo, Hucitec/unesp, 19--, Phyllis Deane. The state and the economic system :an introduction to the history of political economy, Oxford [England] New York : Oxford University Press, 1989; Revolucao industrial. Rio de Janeiro, Zahar, 1973; Roberto Martins. Minas e o trfico de escravos no sculo XIX, outra vez. In: Histria e Perspectivas, Uberlndia, julho/dezembro de 1994, no. 11; Jorge Siqueira. Contribuio ao estudo da transio do escravismo colonial para o capitalismo urbano-industrial no Rio de Janeiro: A Companhia Luz Stearica (1854-1898). Dissertao de mestrado, Universidade Federal Fluminense, 1984.

  • 13

    (a), levando a um novo patamar de acumulao, complementou o ciclo da produo

    metropolitana, de tal forma que se tornasse sistemtica, a ocorrncia de excedentes na esfera

    produtiva. Qual o objetivo da obteno de tais excedentes? Impedir a esterilizao do excesso de

    capital mercantil na esfera da circulao.

    Como sabemos, o capital mercantil teve que: inventar novos mecanismos de concentrao

    social dos ganhos da troca desigual, a fim de poder concentrar mo-de-obra nas colnias; tal

    concentrao de mo-de-obra, atuando a comando, s podia ser obtida na poca atravs da

    experincia histrica de escravizao; e nessas pr-condies, uma parte do capital mercantil

    precisava "recuar" at formas histricas anteriores, ou seja, imobilizar-se sob a forma de

    patrimnio fsico, para operar a mo-de-obra escrava nas colnias.

    TRANSFORMAES DO CAPITAL MERCANTIL

    evidente que a "imobilizao do capital mercantil" nas colnias, sob a forma de prdios,

    navios, mquinas, etc., no se constitui uma esterilizao do tipo da construo gtica. Esta

    imobilizao no um servio, mas um meio de produo. Se ocorresse na metrpole, seria a

    transformao do capital mercantil no capital industrial, a faceta principal da acumulao

    primitiva, do ponto de vista histrico-econmico. No caso em que a imobilizao ocorresse na

    colnia, o capital mercantil deveria se transformar em capital escravista, porque no seria lgico

    tachar de capital-dinheiro, uma relao social que se estabelecesse a partir da posse de escravos e

    criasse, produtivamente, uma dinmica prpria.

    No se tratava de uma esterilizao. Esta forma do capital mercantil, o capital escravista,

    assumiu assim vida prpria ao mesmo tempo em que transferia bens lquidos da produo para as

    metrpoles, era o Midas da escravizao. Buscava transformar em escravos e meios de produo

    escravistas tudo que tocava, correndo, por esta forma para o elevado ritmo de produo

    comandado pelo comrcio exterior. Quanto mais produzia, mais derrubava o valor da sua

    produo; competia consigo mesmo em cada local; permitia s colnias competirem entre si;

  • 14

    criao degenerada pela especializao que precisaria ser destrudo, quando no fosse mais til.

    A histria evidencia que assim ocorreu, embora houvesse deixado vasta herana cultural13.

    Tabela

    Metamorfose do capital mercantil para fins de acumulao

    Ano Natureza

    do

    capital

    Acumulao

    Bovinocultura

    Acumulao Cafeicultura

    N de cabeas Taxas N de escravos N de cafeeiros Em Produo Taxas

    0 mercantil 0 0 0 0 0 1 colonial 2 2 4.000 2 3 3 10.000 3 1,3195 4 16.000 4 4 5 18.000 5 5 6 19.000 4.000 6 6 8 20.000 10.000 7 8 10 21.000 16.000 8 10 12 22.000 18.000 1.2758 9 12 1,2129 19.000 10 15 20.000 11 18 21.000 12 mercantil 21 22.000

    ------------------

    Fonte: Imaginado.

    A tabela nos mostra dois exemplos de acumulao colonial, sob diferentes formas

    produtivas. O primeiro caso, nos mostra a transformao do capital mercantil em capital

    pecurio, tendo como principais fatores produtivos a terra barata - quase gratuita para a classe

    13 Ver Karl Marx, El Capital. Mxico, FCE, 1956. 3 volumes. Jacob Gorender. O escravismo Colonial, So Paulo, Editora Atica, 1988; e Robert Davis. Capital, State, and White Labour in South Africa, 1900-1960. Atlantic Highlands, N.J., 1979..

  • 15

    dominante da metrpole - ou recursos naturais (RN) abundantes, alguma mo-de-obra e algum

    gado.

    Se pusermos nossa imaginao a trabalhar, entenderemos que probabilisticamente, quanto

    maior for o capital aplicado, maior oportunidade haver de ultrapassagem dos valores mdios

    indicados na tabela. O capital pecurio, por exemplo, indica um crescimento geomtrico de 21%

    ao ano, do stimo ano at o dcimo segundo. Quanto ao capital escravista cafeicultor, indica-se

    um crescimento mdio de 27% ao ano, entre o quinto e o dcimo sexto ano. Ao mesmo tempo,

    observa-se teoricamente o movimento da reproduo simples para ampliada, que tem como

    contrapartida tanto um ciclo bem definido quanto a metamorfose, atravs desse ciclo do capital

    mercantil em capital colonial e a sua reconverso em capital mercantil, ao efetivar-se o

    movimento descendente do ciclo. Vemos, pois, que as diferentes formas do capital colonial so

    apenas metamorfoses histrico-concretas do capital mercantil metropolitano, para se reproduzir

    s taxas mais altas possveis, economicamente14.

    Assim, se o oligarca colonial possui no dois bois, mas 20.000 bois, ele ter tanto

    assegurado menor flutuao na faixa da mdia da acumulao pecuria, quanto apresentar a

    tendncia para o seu capital pecurio se formar acima desta mdia. O raciocnio similar para

    qualquer forma do capital colonial, tornando-se a forma de explorao mais interessante em

    funo da demanda externa, metropolitana, pois a razo de ser da metamorfose do capital sua

    efetiva realizao no nvel do mercado internacional e no a simples produo de montanhas de

    inutilidades coloniais, aspecto "involuntrio" da sua reproduo.

    TERCEIRO SCULO (1751-1850)

    As principais mercadorias brasileiras, no sculo XIX, foram: caf, acar, charque,

    aguardente da terra, milho, feijo, arroz, toucinho, azeite de peixe, drogas do serto, mate,

    tabaco, anil, couros, polvilho, algodo bruto, reses, borracha, madeira, farinha de mandioca,

    14 Ver Oskar Lange. La Reproducin Ampliada, Fundo de Cultura Economica, Mxico; Teoria de la Reproducin y de Acumulacin, Barcelona, Ariel, 1970. Arghiri Emmanuel. Le profit et les crises: une approche nouvelle des contradictions du capitalisme, Paris, F. Maspero, 1974.

  • 16

    queijos e doces em conserva. Vemos que elas cobrem duas naturezas: o consumo local e as

    exportaes. As diferentes organizaes econmicas destas produes eram cobertas pelo

    guarda-chuva de maximizao dos preos, que as grandes exportaes ofereciam do tipo: caf,

    algodo, acar, borracha, minerais preciosos, aguardente, couro e drogas do serto15.

    As taxas de reproduo, nas condies de explorao dos recursos naturais, no eram um

    nico elemento diferenciado no processo do capital produtivo, uma vez que o problema da

    realizao j existia. Portanto, a posio particular de cada produto no nvel da demanda externa

    otimizava a sua maximizao especfica; o fator que explica o retrocesso do capital usurrio e

    da categoria dos mercadores, ao longo do sculo XIX, em proveito do capital industrial. Quanto

    maior o mercado, maior a determinao da procura; quanto maior a procura, maior o espao para

    a produo por mquinas, inovaes tecnolgicas; capital industrial, enfim.

    DIVERSIDADE DO CAPITAL ESCRAVISTA

    Por esta razo, vemos a simbiose aparentemente estranha, da mo-de-obra escravista com

    maquinrio da revoluo industrial. Nas condies do caf, o escravismo deixava de ser uma

    sociedade para se constituir em forma exportadora.

    Ao se converter em "capital colonial", o capital mercantil primeiro pagava pelo tempo de

    espera, necessrio reproduo ampliada. Por isso, a forma mais corrente a sofrer metamorfose

    era o capital usurrio, a partir dos ganhos no circuito da circulao, convertendo aguardente e

    barras de metal em escravos; os escravos em mercadorias coloniais e uma parte reduzida dos

    ganhos com as mercadorias coloniais, num novo momento, em aguardente e barras de metal.

    Vemos assim, que o tempo de carncia necessrio reproduo ampliada era obtido na

    importao da produtividade, fosse africana ou brasileira, para financiar a expanso produtiva da

    colnia.

    15 Veja: Delso Renault. Indstria, escravido, sociedade: uma pesquisa historiogrfica do Rio de Janeiro no sculo XIX, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1976; Mafalda P. Zemella. O Abastecimento da Capitania das Minas Gerais no Sc. XVIII, So Paulo, 1951; Celso Furtado. Formao Econmica do Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Fundo de Cultura, 1959.

  • 17

    Por outro lado, quanto mais se expandiu o capital industrial, maior era a tendncia para que

    os preos das mercadorias fossem determinados no nvel da produo industrial, medindo-se em

    termos de salrio no pagos e reduzindo, cada vez mais, as margens de ganho de capital usurrio.

    Da a necessidade deste de acorrer massivamente produo colonial e semicolonial, para

    transformar-se, em longo prazo, em novas mercadorias e capital industrial.

    Portanto, a peculiaridade de financiamento da produo colonial, do ponto de vista da

    acumulao, era que ela se autofinanciava de patamares de taxas menores de crescimento, para

    aquele de taxas maiores. Este autofinanciamento, pelo mecanismo de transferncia de

    produtividade - maiores quantidades de trabalho exportadas -, era tambm um mecanismo

    relativo de auto-empobrecimento, como se revela na taxa cambial. Em longo prazo, contudo, era

    impossvel drenar toda a riqueza gerada pela necessidade de expandir a produo e manter a taxa

    mdia de lucro16.

    No s se conservavam, mas at se expandiam, setores naturais, seminaturais e de pequena

    produo mercantil, que de fato operavam em grande nmero de produtos e mercadorias, com

    situao compensatria de preos. No devem, contudo, ser confundidos com o lugar ocupado

    pelo pas na diviso internacional do trabalho, que caracterizava mecanismo da acumulao. As

    atividades, que no estavam diretamente destinadas acumulao na esfera produtiva,

    desempenharam o papel geralmente chamado de subsistncia e, em nvel mais avanado, vinham

    formar setores de mercado locais, germens de um futuro mercado interno.

    A REORGANIZAO ESCRAVISTA NO TERCEIRO SCULO E OS EFEITOS DA HEGEMONIA CAFEEIRA

    A organizao escravista da produo no passou indene pelas profundas transformaes

    do mundo e, conseqentemente, do Brasil, no perodo 1770-1830. Este meio sculo assistiu o

    triunfo do industrialismo da Inglaterra e o advento das crises econmicas capitalistas. Assistiu

    Revoluo francesa, com a propagao de seus ideais na Amrica e a libertao generalizada das

    colnias ibricas.

    16 Veja: Arghiri Emmanuel, A troca desigual, B.E.C., Ed. Estampa, 2 vols. Lisboa, 1976; Marina Bianchi, A Teoria do Valor, Lisboa, Edies 70, 1981.

  • 18

    Neste perodo, o avano das formas industriais do capital haviam de significar, tambm,

    uma reorientao do capital mercantil, to bem caracterizada no novo balano de foras do

    congresso de Viena e do impacto das rebelies populares de 1817, 1830, e, logo, 1848.

    O problema nacional se colocaria para o capital industrial que, com o avano do navio a

    vapor e da ferrovia, amadurecia para a grande transformao dos transportes, com mais uma fase

    de "encolhimento do mundo". A derrota do "bloqueio continental" de Napoleo, a derrota dos

    "100 dias", era tambm a derrota irremissvel do capital mercantil em escala internacional e o

    advento da era do industrialismo.

    Como amplamente conhecida, a economia da colnia, logo Reino Unido, passou por

    grave incerteza e comoo no perodo, adaptando-se finalmente ao ciclo das demandas

    industriais, fundamentalmente atravs do caf. Temos assim um novo momento do escravismo

    brasileiro, ligado mo-de-obra na produo intensiva de caf, para a exportao. A queda

    gradual dos valores de exportao, aps esforo do perodo pombalino, avanou at o perodo da

    presena de Dom Joo, agora feita demanda por novos produtos tropicais. O Maranho,

    aproveitando-se da guerra anglo-americana, pde, temporariamente, avantajar sua condio de

    exportador de algodo, sem, contudo, propiciar mudanas estruturais por via desta fase

    favorvel.

    Assim, a deteriorao dos termos de troca criou forte endividamento externo, ampliado

    pela presena da Corte portuguesa e os custos das guerras de Dom Pedro. Faltava um produto-

    guia na pauta de exportaes e este produto novo foi o caf, espalhando sua produo pela

    baixada fluminense e as terras em torno da baa do Rio de Janeiro. A consolidao do caf como

    centro da atividade exportadora e da captao de divisas, portanto, veio a ocorrer no perodo de

    1830-1860, produzindo produto em territrio paulista nos anos 30, em escala econmica17.

    O colapso do Primeiro Reinado pode ser compreendido pela contradio entre uma poltica

    centralista em excesso; e a insuficincia de renda disponvel, de capacidade de pagamento no

    exterior, etc., condies que decorriam da referida ausncia de um produto-guia na economia e

    17 Veja, a propsito: Jos Jobson de A. Arruda. O Brasil no comrcio colonial, 1796-1808: contribuio ao estudo quantitativo da economia colonial, So Paulo: Hucitec, 1982; Brasil Gerson. A escravido no Imprio, Rio de Janeiro,

  • 19

    exportao. Por isto, a efetiva formao e consolidao do estado brasileiro foram um fenmeno

    do perodo da Maioridade, em que a balana comercial j favorecia recursos para as atividades

    mnimas do poder central. O caf permitia a consolidao do Estado, o sucesso da Maioridade e

    traria, pouco a pouco, o supervit das receitas sobre as despesas, fato que permitiu a

    sobrevivncia da monarquia centralizada, no cenrio da segunda metade de um sculo XIX

    instvel e, mesmo, cambiante.

    Este predomnio viria a se caracterizar por todo o espao de um sculo (1830-1930). A

    cafeicultura possua caractersticas parecidas com a cultura da cana-de-acar, embora

    demandasse uma menor plasmao social do que esta. Em contraposio, numa certa medida,

    atividade canavieira, a cafeicultura escravista no necessitava do estabelecimento de uma

    economia social. Esta contraposio era bastante frontal, quando se toma o caso da explorao

    mineradora de bens preciosos, caracterstica da ocupao do territrio de Minas Gerais.

    Esquematicamente, pode-se centrar as diferenciaes vitais nos seguintes pontos: (a) condies

    de circulao no setor produtivo; (b) situao da fora de trabalho; (c) estrutura das unidades

    produtivas; (d) mudanas na orientao da produo; (e) efeitos no papel desempenhado pelo

    setor; (f) posio, para o futuro daquela poca, do setor no desenvolvimento nacional.

    QUARTO SCULO (1851 1950)

    NOVOS TRAOS NAS CONDIES ESCRAVISTAS

    (A) Condies de circulao no setor produtivo. A circulao se coloca, aqui, nos seguintes

    nveis: (1) circulao fsica dos bens, matrias-primas e insumos; (2) circulao dos produtos

    finais para seus mercados consumidores; (3) circulao dos recursos necessrios (mo-de-obra,

    dinheiro, equipamentos) efetivao da produo.

    Pallas, 1975: e Leslie Bethell. A Abolio do Trfico de Escravos no Brasil: A Gr Bretanha, o Brasil e a Questo do Trfico de Escravos: 1807-1867. Trad. Vera Neves Pedroso.

  • 20

    A trao animal e os barcos vela continuaram a predominar nos transportes locais e

    regionais da economia cafeeira, embora em nvel internacional a saca de caf transladou-se

    gradualmente, do lombo de burro e do barco vela para ferrovia e o navio a vapor. O avano da

    organizao, poca da expanso cafeeira, constitua-se de um elemento - ao menos potencial -

    de competio pelos recursos disponveis - mo-de-obra, dinheiro, equipamentos. De fato, o

    apogeu do escravismo cafeicultor seria breve (1830-1880). Isto implica reconhecer o carter

    mais complexo da expanso escravista no caf, frente a outros fatores mercadolgicos, que havia

    ocorrido no caso do ouro e do acar18.

    O crescimento do capital industrial ingls e a formao dos seus nichos de mercado, em

    nvel internacional, tinham por componente as mudanas significativas na economia das colnias

    e semicolnias, em funo da necessidade metropolitana de colocar mquinas, incluindo

    equipamentos produtivos, para efetivar o seu poder de compra no local. Deste modo, havia da

    parte da expanso inglesa um certo grau de induo industrializao local, com presso de

    demandas de poucos itens em grandes quantidades, empurrando, pois, para novas divises

    sociais do trabalho. evidente que estes patamares locais de industrializao podiam,

    teoricamente, ser absorvidos tanto pela expanso escravista quanto por outros segmentos

    produtivos. Em ambos os casos, contudo, haveria de se confirmar nossa hiptese de

    competitividade com maior complexidade.

    (B) Situao da fora de trabalho. No que se refere mo-de-obra escrava, o fim do

    trfico, a partir da frica, colocou elementos estruturais de alterao tanto da sua intensidade no

    uso, quanto de sua renovao por faixas de idade. sabido que o desligamento cultural do

    "Mina" com o meio brasileiro, facilitou seu uso intensivo, particularmente, nos primeiros cinco a

    sete anos aps o desembarque. O "crioulo" no se prestava a esta intensidade mortfera no

    trabalho, por conhecer seus efeitos em outrem, opondo-lhes mesmo diferentes formas de

    resistncia. A estrutura de idade da populao ativa na cafeicultura alterou-se rpida e

    18 Veja: Clvis Moura. O Negro no Mercado de Trabalho, So Paulo, Conselho de Participao e desenvolvimento da Comunidade Negra, Estado de So Paulo, 1988; Dcio Freitas. O Escravismo Brasileiro, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982; e Ciro Flamarion Cardoso (org). Escravido e Abolio no Brasil: novas perspectivas, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

  • 21

    desfavoravelmente, a partir de 1850, apesar dos "meia cara" e das migraes internas.

    Conseqentemente, a mudana tcnica passou a ser o fator decisivo para assegurar o

    desempenho de uma mo-de-obra em envelhecimento e de carter escravo, apesar da introduo

    de mquinas e melhorias das plantas. Por outro lado, competitivamente para o capital escravista,

    o escravo mostrava-se elemento ativo na mudana tcnica nos processos de industrializao e de

    urbanizao.

    (C) Estrutura das unidades produtivas. O caf exigiu, em sua organizao escravista,

    empresas ou unidades produtivas diferentes dos ciclos de produtos anteriores. Como se pode

    observar na literatura, a fazenda cafeeira, muito distinta do engenho ou da plantao de cana-de-

    acar; da mina, de garganta ou de aluvio; dos lavadores de ouro ou diamantes. As mudanas

    na orientao da produo levaram em conta tanto a existncia de novos recursos tcnicos e

    mercadolgicos, quanto experincia histrica acumulada no pas e a expanso dos ncleos

    urbanos, prprio do sculo XIX19.

    (D) Mudanas na orientao da produo. medida que a cafeicultura escravista se

    expandia e se consolidava, tambm formava uma elite proprietria mais cosmopolita que

    qualquer outra no Brasil, incluindo a elite dos mineradores. Nas novas condies, no era

    necessrio renunciar cana para plantar caf. Isto, em parte, refletia o avano da sociedade

    industrial, de seus meios culturais e de comunicao mais profundos, mais mercantilizados; de

    outra parte, refletia o carter nouveau riche desta elite cafeeira, com seu arrivismo, sua

    ideologia cosmopolita, bastante dissociados do Brasil tradicional. Importa dizer que, tal elite

    estava mais disposta a introduzir novas formas organizacionais para a produo, nem sempre

    visualizando a falta da mo-de-obra escrava, do que o canto de cisne da sua condio de

    proprietrios. O monoplio da terra era seu elemento decisivo. Se a libertao da escravatura no

    19 Veja: Francisco Foot. Histria da Indstria e do Trabalho no Brasil, So Paulo, Global Ed., 1982; Trem Fantasma: a modernidade na selva, So Paulo, Cia. das Letras, 1991 e Edgar Carone. Unio e Estado na Vida Poltica da Primeira Repblica, So Paulo, 1971.

  • 22

    estivesse ligada ao fim do monoplio da terra, tal elite poderia tornar-se, mesmo, abolicionista,

    fato que se verificou na prtica.

    importante entender que tal elite no se constitua de empresrios, mas de

    capitalistas no sentido schumpeteriano: indivduos que acumulavam, valendo-se de todos os

    meios disponveis, estavam dispostos a salvar o essencial dos seus privilgios, por meio da

    modernizao e da imigrao. Da a sua abertura para novos mtodos organizacionais, desde que

    fossem exigncias na luta pela sobrevivncia.

    Com a derrocada do nmero fsico do plantel do escravismo, em meados da dcada de

    1860, acelerada pela Guerra do Paraguai e seus efeitos modernizadores sobre o sul e sudeste do

    pas, mesmo a elite cafeeira do Vale do Paraba ou pelo menos sua poro so paulina, adaptou-

    se rapidamente s novas circunstncias, com a substituio de mo-de-obra negra pela imigrao

    europia, fenmeno ocorrido entre 1870-189020.

    (E) Efeitos no papel desempenhado pelo setor escravista. A convergncia desse

    acmulo de experincias e dessas novas situaes histricas veio caracterizar o perodo cafeeiro

    do escravismo como a "derradeira centelha do fsforo" que se apagava. Durante 50 anos (1830-

    1880), ele preenche a cena da vida socioeconmica brasileira e desaparece para sempre. A

    intensidade, o forte ritmo e a sua forma moderna no prenunciavam fora, mas fraqueza. O

    conjunto das foras do escravismo s podia produzir este setor exportador como avanado, capaz

    de oferecer uma bebida quente mesa das unidades consumidoras familiares, dos pases em

    revoluo industrial. Esta efmera mudana era, contudo, significativa. O ciclo do produto

    agrcola voltava, dessa feita, associado s novas necessidades das metrpoles, o industrialismo e

    o comrcio internacional. Dentro deste quadro, inseria o Brasil num lugar prprio na ordem

    mundial, caracterizando-lhe a posio de fornecedor secundrio. O quadro de pobreza interna,

    desacumulao pelo movimento exportador e concentrao da propriedade, e da riqueza tendia,

    assim, a se consolidar, fosse por fatores de ordem social ou cultural.

    20 Veja: Clvis Moura. O Negro, de Bom Escravo a Mau Cidado? Rio de Janeiro, Conquista, 1977 e Roberto C. Simonsen. Evoluo Industrial do Brasil e outros Estudos, So Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1973.

  • 23

    Atravs do caf, na medida em que se criavam as condies para o desaparecimento da

    escravido, consolidavam-se na estrutura social e poltica todos os seus elementos negativos. A

    recusa ruptura da escravido, que a expanso do caf justificava, era tambm a recusa s

    mudanas estruturais, industrializao. Por outro lado, estas presses culturais

    desindustrializantes que o caf expressava eram contra-trabalhadas na prtica, pelo efeito de

    guarda-chuva de seus recursos, acarretando a valorao das terras, das plantaes e da

    agricultura em geral, elevando o preo dos escravos, premissas de uma futura industrializao e

    fonte imediata do movimento imigratrio dos anos 1870-192021.

    (F) Posio da escravido cafeeira para o futuro previsvel poca. No se diz,

    evidentemente, nada de novo ao afirmar que a opo pelo caf era para viabilizar novamente a

    escravido. Dando-se-lhe vigor econmico, era possvel, de fato, a uma elite fraca e incipiente

    como a do Segundo Reinado fazer face Inglaterra, contrapondo a esta a alternativa de mais uma

    repblica de negros. Sem dvida, o espectro era suficiente para apaziguar os mais exaltados

    nimos britnicos22.

    "Assim que, atacar a escravido para transformar o trabalho

    escravo em trabalho livre, mudar completamente no s a face da nossa

    sociedade nos centros populares, mas, e particularmente, no campo;

    tocar em a nossa principal fonte de produo, e, portanto da riqueza

    pblica e privada".

    "Por outro lado, romper as relaes entre senhor e escravo, entre

    a obedincia e o mando, destruir a organizao atual, embora altamente

    defeituosa, desses pequenos ncleos sociais, base de nossa grande

    21 Ver: Francisco Foot. Nem Ptria, nem Patro! So Paulo, Brasiliense, 1984, Lcio Kowarick. Trabalho e Vadiagem: A origem do Trabalho Livre no Brasil, So Paulo, Brasiliense, 1987; e Valentin Lazzarotto. Pobres construtores de riqueza: Absoro da Mo-de-Obra e expanso industrial na metalrgica Abramo Eberle, 1905-1970, Caxias do Sul, 1981. 22 Clia Maria Marinho de Azevedo. Onda Negra, Medo Branco: O Negro no Imaginrio das Elites sc. XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

  • 24

    sociedade: o que de recear se no faa sem comoo nas famlias, que

    repercutir no Estado".23

    V-se no texto que a ruptura das relaes entre senhor e escravo, alm de destruir a

    organizao ento existente, podia levar alterao da sociedade, ou seja, indesejvel

    formao de uma sociedade de indivduos livres. O fim da escravido se daria de outro modo -

    pela extino fsica dos escravos e o caf prspero era o melhor instrumento para isso.

    Do ponto de vista estratgico, pode-se dizer que a opo pelo gradualismo - o fim dos

    escravos e no da escravatura - no foi plenamente efetivada, mas o efeito de bloquear a

    formao de uma economia social, ou seja, de mercado livre, resultou na preservao dos

    odiosos monoplios institucionalizados na vida brasileira do Segundo Reinado e sua

    transferncia Primeira Repblica. Esta viso cultural do problema da escravido contribua,

    segundo se supe, para desmobilizar os recursos obtidos pelo caf e disponveis para todo tipo de

    modernizao, dentre estes o mais importante, qual seja a industrializao efetiva. Havia,

    portanto, uma contradio na riqueza trazida pelo caf: ela condenava a escravido e mantinha,

    pelo lucro elevado, estruturas geradas pela escravido. Nesse sentido que o capital escravista

    voltou a ser capital mercantil e usurrio, em sua "viagem" histrica necessria para tornar-se

    capital industrial, fenmeno que s iria se concretizar no perodo 1913-196224.

    FLUTUAES DO ESCRAVISMO CAFEICULTOR

    Durante o sculo XIX, particularmente aps a extino do trfico, cresceu cada vez mais a

    importncia das atividades dos mercados locais. Isto porque um certo nmero de atividades, ao

    longo do tempo histrico, deixava de se articular indiretamente com o mercado internacional,

    23 Agostinho Marques Perdigo Malheiros. Apud A Escravido no Brasil, Ensaio Histrico-Jurdico-Social, tomo II, Edies Cultura, 1944, pp. 200-201, (1a. edio de 1867). 23 Veja: Caio Prado Jr., Histria Econmica do Brasil, So Paulo, Brasiliense, 1981, Humberto Bastos. Desenvolvimento ou Escravido, So Paulo, Livraria Martins Fontes, 2 Ed., 1964; e V.I. Lenin. Sobre El Problema de Los Mercados, Espanha, Siglo Veintiuno Ed., 1974. 24 Veja: Karl Marx, El Capital. op. cit.

  • 25

    representando, pois, um nvel menos importante no processo de monetarizao da economia, mas

    articulava-se de modo prprio em nvel local. A envergadura dessas atividades local variava,

    obviamente, de regio para regio. Combinando a explorao escravista com outras formas de

    trabalho, estas atividades desempenharam um papel suplementar ao processo da acumulao e

    papel de primeiro plano, com relao formao social brasileira.

    Com o fechamento do trfico de africanos, a mo-de-obra foi, pouco a pouco, se

    transformando de "impeditivo do trabalho livre" para "mo-de-obra especializada de atividades

    exportadoras", pois a intensidade do trabalho na esfera acumulativa s podia ser desempenhada

    por escravos. Evidentemente, a mo-de-obra escrava que, por algum fator, no podia manter o

    ritmo da agricultura de exportao, era desviada por mecanismos apropriados para o setor de

    servios ou do produto suplementar. Nestes, uma vasta gama de formas concreta de trabalho

    podia-se verificar menos intensas.

    H uma diferena muito importante entre o lento crescimento do produto suplementar e a

    rpida expanso das atividades exportadoras, estas submetidas a bruscas viragens e ritmos

    marcadamente flutuantes. Da que a mo-de-obra escrava, constituindo-se em mercado primitivo

    de consumo muito baixo, fornecia a margem elstica para as flutuaes impostas pela demanda

    internacional, comportando-se quase como capital fixo.

    Essa dinmica lenta e quase linear, que caracterizava os setores do produto suplementar,

    emprestava-lhe, tambm, significativa funo complementar para eventuais picos de demanda de

    mo-de-obra, cada vez mais presentes pelo efeito do fechamento institucional do trfico. No

    setor do capital escravista exportador, a separao entre o excedente e o consumo do trabalho

    empregado fazia-se fortemente, pois a produo assumia a forma de mercadorias e estas,

    exportadas, geravam ganhos em divisa, manifestando-se como poder-de-compra no exterior.

    Quanto aos setores do produto suplementar, esta relao de apropriao comumente se

    obscurecia, pela lentido e, s vezes, incerteza da transformao dos produtos em mercadoria;

    em dadas circunstncias, o predomnio do trabalho escravo fazia com que o mesmo fosse

    apropriado concretamente em atividades improdutivas, sem racionalidade para o sistema,

    verificando-se baixa produtividade. Portanto, do ponto de vista da acumulao, os setores do

    produto suplementar no desempenhavam o papel de um fator autnomo, mas de mercados

  • 26

    primitivos que eram incorporados ou desincorporados, de acordo com a lgica histrica da

    produo exportadora25.

    De fato, os setores producentes do produto suplementar, por sua prpria natureza de

    subsistncia, apresentavam um nvel baixo de acumulao, sendo que, inmeras vezes, este

    patamar reduzia-se reproduo simples porque nem ultrapassava o crescimento demogrfico.

    Desvinculados da procura direta no mercado internacional, esses setores manifestavam

    irregularidade no processo de acumulao. Grande parte dos seus ganhos na esfera comercial

    esvaa-se na dependncia das importaes, agravada por ausncia de mecanismo importador

    prprio. Assim, a baixa produtividade do trabalho respondia pelo impedimento da acumulao e

    a dependncia do mecanismo importador. A maior parte dos produtores escravistas, pequeno-

    burgueses urbanos ou rurais, tinha pouca possibilidade de mobilizao de recursos financeiros,

    sendo, muitas vezes, sua capacidade de poupana carreada para o exterior, por motivos culturais.

    Dentro disso, as mudanas tcnico-econmicas na agricultura se passavam mais do lado dos

    grandes proprietrios do setor exportador, de modo que a pequena produo pode ser

    caracterizada como irregular e, mesmo, lenta, quando comparada com o quadro externo da

    revoluo industrial26.

    Temos fortes indicativos do grau elevado de exportao do capital interno, tanto dos

    fazendeiros do setor exportador, quanto dos pequenos-proprietrios. As crenas liberais ento

    dominantes e a estrutura legal existente no visualizavam o chamado "problema nacional",

    apontando mais para um apoio diviso internacional do trabalho, fato que foi um contnuo,

    desde o governo conservador de 1848 (Arajo Lima; Rodrigues Torres;) at Joo Alfredo e a Lei

    urea (1887-88). Havia uma preocupao com depsitos em bancos estrangeiros, com o porte de

    moeda estrangeira, que era entesourada junto com ouro e pedras preciosas. Uma grande

    quantidade de recurso potencial para o investimento produtivo era drenado do mercado pelo

    mecanismo do entesouramento, fazendo-se uma poltica de valorizao dos patrimnios fsicos -

    terras, prdios, embarcaes - e no do patrimnio mobilirio, o que desfavorecia o crescimento

    e a mudana.

    26 Ver: Tom Kemp. Modelos Historicos de Industrializacin. Barcelona, 1981 e Celso Furtado. Subdesenvolvimento e Estagnao na Amrica Latina. Rio de Janeiro. Ed. Civ. Bras. 1967.

  • 27

    A entrada incompleta de lucros auferidos com as exportaes, tendo em vista a formao

    de reservas individuais em bancos metropolitanos, constitua-se mecanismo corrente e

    descompensador da formao da capacidade externa de pagamento. J existiam a sobrefaturao

    de produtos importados, subfaturao de produtos exportados e transferncia de recursos

    financeiros para o exterior fora das normas legais - especulao sobre o cmbio -, com o

    contrabando de moeda, metais e pedras preciosas, etc., tudo organizado por grupos "nacionais" e

    "estrangeiros".

    O Segundo Reinado apresentava, como se sabe, uma insuficincia crnica na produo de

    alimentos, apesar das condies favorveis do espao nacional e suas diferentes ofertas

    climticas. Esta insuficincia era agravada por fatores culturais, pois as classes dominantes, de

    origem europia, tinham forte demanda pelos produtos da rea temperada, sendo a produo

    local encarada como sucedneos inferiores, que eram deixados de lado, quando a renda

    disponvel permitia crescer a preferncia pelos importados.

    O exame das importaes mostra um espectro excessivamente amplo; um consumo em

    excesso dos recursos em divisa, para o pagamento de produtos metropolitanos; a dependncia

    das importaes temporariamente se atenuou de 1863-65, formando-se uma base segura para o

    processo de acumulao, que j era propiciada pelo caf. Assim, a constituio de um ambiente

    basicamente acumulador, propiciado pelos ganhos do caf, vai caracterizar a mudana estrutural,

    perceptvel no desempenho cclico dos principais produtores e agregados, no perodo. O

    fenmeno pr-acumulador foi o aumento radical do rendimento nacional e no o resultado de

    polticas econmicas, que houvessem levado a uma utilizao mais eficiente daquele rendimento.

    No que se refere s condies de utilizao produtiva dos recursos disponveis, o carter

    agrcola da sociedade continuava limitado montagem de unidades agro-pecurias. Mas aqui,

    tambm, o caf trazia inmeras vantagens sobre as propriedades canavieiras, exportadoras ou

    no e as unidades policultoras do setor de produto suplementar. O carter perene do arbusto do

    caf permitia uma mdia produtiva duas vezes maior, que a produtividade da cana-de-acar.

    Conseqentemente, as unidades produtoras podiam partir de diferentes escalas: pequena, mdia

    ou grande, sem bloqueio do acesso procura para as unidades menores. Os recursos

    acumulavam-se, tambm, para os produtores menores, que participavam na expanso

  • 28

    subseqente demandada pelo novo ciclo. Havia maior mobilidade econmica e social entre os

    produtores de caf, do que na estrutura precedente e isso favorecia certamente o processo de

    monetarizao da economia e de urbanizao, numa escala mais vigorosa27.

    Este aumento relativo da eficincia dos investimentos faz-se, de modo mais cabal, a partir

    do conflito com o Paraguai, quando o pas entra num patamar de modernizao, cujo elemento

    central a nova imigrao. A conjuntura do fim de sculo (Grande Depresso: 1873-1896)

    haveria de colocar novos desafios adaptativos, que feriram de modo profundo a lgica da ordem

    econmica baseada na escravido, levando mesmo ao seu desaparecimento.

    Empiricamente, h evidncias de um crescente aumento do capital instalado, embora os

    prazos de funcionamento vital do capital fixo sejam obscuros no perodo e podem apenas ser

    estimados a partir dos movimentos cclicos especficos. Tambm, no se dispe de dados para

    uma avaliao mais cabal do grau de eficincia dos investimentos no perodo, uma vez que o

    predomnio do produto primrio e os amplos recursos fornecidos pela natureza obscurecem o ato

    de medir a efetiva eficincia econmica.

    semelhana do sculo XX, o maior crescimento econmico se deu no perodo de 1840-

    1880, sendo a dcada de 80 (1881-1890), de flutuaes muito fortes e at estagnao em alguns

    ramos. Mas o aumento da populao foi acompanhado por uma expanso dos postos-de-trabalho

    e um aumento gradual da produtividade do trabalho.

    Sendo a produo marcadamente orientada por tcnicas manuais, inclusive em oficinas que

    possuam equipamentos mais modernos - a exemplo de Ponta d'Areia, Arsenal da Marinha,

    estaleiro de Salvador -, os ramos de produo consumiam uma grande quantidade de fora de

    trabalho, havendo uma certa competio por mo-de-obra entre as diferentes atividades. Os

    quase monoplios especficos do circuito de circulao desestimulavam, de fato, o aumento da

    produo e da produtividade, em virtude dos baixos rendimentos da grande massa da populao.

    Sendo, conseqentemente, instvel o excedente de produo, a lucratividade era mxima no

    circuito comercial, que superava as eventuais dificuldades ao evento e venda de mercadorias. A

    baixa margem de lucro, em nvel de produo, diminua a importncia dos investimentos,

    27 Veja: Flvio Versiani J. R. Mendona de Barros (orgs.). Formao Econmica do Brasil. A Experincia da

  • 29

    desestimulando o crescimento da eficincia produtiva e da escala da produo. Particularmente,

    com relao s atividades secundrias, compreendiam grande capacidade ociosa, apesar da

    pequena produo; operavam nas folgas das importaes ou na produo de bens que no

    compensava carregar sobre o oceano. Da que sempre floresceu a posio do "intermedirio".28

    O adiantamento de dinheiro ou mercadorias era repassado pelo intermedirio a um juro

    ainda mais elevado do que dele cobravam; o capital usurrio mantinha, assim, sob seu controle a

    capacidade local de produo e amontoava-se como capital mercantil, passando ao fluxo externo

    da economia. Portanto, aos desequilbrios estruturais que vinham se manifestar nas oscilaes

    dos preos, incorporava-se s diferenas de preos de fonte usurria, tornando o capital mercantil

    local maior e melhor organizado e, a partir da, hbil no processo de internacionalizao.

    As grandes companhias estrangeiras de importao e exportao encontravam-se, no raro,

    associados a estes movimentos expansivos, fornecendo a influncia bancria e governamental

    necessrias a empreendimentos felizes. Pode-se compreender que os pequenos produtores e as

    economias de escala suplementar enfrentaram, deste modo, dificuldades em sua margem de

    lucros, o que em parte explica a sua persistente operao dos mercados primitivos e atividades

    agro-alimentares. A reteno de um certo nvel de mo-de-obra escrava era essencial

    rentabilidade dos seus recursos.

    A ampliao do leque de atividades e a inflao resultante do fechamento do trfico

    levaram a uma valorizao imobiliria e corrida pela massa de escravos, potencialmente, mais

    ativa. Ocorreu a brutal mudana no patamar dos preos, que acompanhou a crise de 1852-54 e

    afetou, inclusive, os inventrios de mercadorias do pas. Davam-se certas pr-condies para

    estimular novas prticas e novos conceitos, onde o papel das diferentes atividades passava a

    requerer um maior profissionalismo, com a transformao da terra em mercadoria e a

    valorizao do trabalho produtivo do escravo. As reduzidas fontes de crdito ampliaram o papel

    do capital mercantil usurrio, vindo a contribuir para a maior correlao entre o desempenho

    cclico da economia e o movimento dos capitais.

    Industrializao. ANPEC. So Paulo, Ed. Saraiva, 1978. 28 Veja: Raymond Goldsmith. Brasil 1850-1984: desenvolvimento financeiro sob um sculo de inflao, So Paulo, Harper & Row do Brasil, 1986; e Christian Palloix. A economia Mundial de Iniciativa Privada, 2 vols., Portugal, Ed. Estampa, 1974.

  • 30

    Nesse aspecto, difcil avaliar o papel das formas mais grotescas do capital, ou seja, em

    que extenso, em cada regio, o capital usurrio, atravs do mecanismo de emprstimos,

    adiantamentos e monoplio do comrcio exterior, contribuiu para sua pauperizao e runa. No

    caso nordestino, a resposta francamente positiva. Devido ao papel, relativamente menor, que a

    renda da terra possua para a pequena explorao, o capital usurrio deve ter desempenhado um

    papel maior do que aquele que geralmente lhe atribudo. Ele pode ter desempenhado um papel

    crucial no enlace entre as formas locais de explorao e as foras de acumulao internacionais.

    O capital estrangeiro devia drenar uns 70 a 80% da capacidade total de acumulao no perodo, o

    que pode ser entendido pelo papel que os emprstimos externos desempenhavam nos

    investimentos de ento. Uma grande parte desta drenagem devia ser efetuada em nvel local,

    pelas estruturas do capital usurrio29.

    Apenas como referncia, quando se compara o nmero de escravos de 1887 com relao a

    1849, este caiu para 39,6%. Os escravos agrcolas da provncia do Rio de Janeiro eram, em 1887,

    cerca de 51,9% do nmero de 1849. No entanto, em So Paulo os escravos na agricultura eram,

    em 1887 o total de 85,3% do nmero de 1849. Isto significa que, enquanto certas provncias

    viam decrescer seu nmero de escravos, eles ainda se mantinham ou se ampliavam, em So

    Paulo, no Segundo Reinado.

    A criadagem escrava do Rio de Janeiro (provncia) era 64,4%, em 1887, em relao ao

    nmero de 1849. Em So Paulo, a cifra decrescera para 39,3%. Ou seja, So Paulo compensou a

    reduo da oferta de escravos, dando preferncia a envi-los para a produo agrcola. Na

    provncia do Rio de Janeiro, em igual perodo (1849 1887), o nmero de escravos em servios

    decresceu em 25,4%; em So Paulo, caiu para 58,3%. Assim, no Rio de Janeiro o trabalho em

    servios apresentava 3 trabalhadores livres para cada 1 escravo, em 1887, comparando-se ao

    total de 4 escravos, em 1849.

    Considerando todo o Brasil, o produto do setor secundrio aumentou em 90,8%, quando se

    compara o ano de 1887 ao de 1849. Quanto ao produto do setor primrio, foi acrescentado em

    29 Veja: Mrcia N. Kuniochi. A Prtica Financeira do Baro de Mau. Dissertao de Mestrado. So Paulo, FFLCH-USP, 1975; Crdito, Negcios e Acumulao. Rio de Janeiro: 1844-1857. Tese de Doutorado. So Paulo, DH-FFLCH-USP, 2001 e Mauro Brando Lopes. Cambial em Moeda Estrangeira. So Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1978.

  • 31

    121%. O setor tercirio foi o que mais se expandiu no perodo, sendo acrescido em 152%. O

    agregado consumo pessoal expandiu-se, de 1849 para 1887, em 128%. Quanto produo de

    caf pelos escravos, apesar do nmero decrescente destes, expandiu-se 247%. O consumo per

    capita, em termos reais, expandiu-se 21,5%. O preo mdio do escravo sofreu elevao de

    246%. A procura por escravos aumentou 145% e o produto da provncia de So Paulo, o que

    mais cresceu no perodo, aumentou 4,6 vezes30.

    A PARTICIPAO DO NEGRO NAS ECONOMIAS AGRRIA E URBANA

    O capital mercantil montou de fora para dentro a colnia aucareira do Brasil, do

    primeiro e segundo sculos (1550 1750), colocando aqui as formas de capital que fossem

    adequadas a obter um ganho mximo na produo de mercadorias. A cana-de-acar, o algodo,

    e o transformador de ambos diante da natureza, o escravo, revelaram-se mercadorias vantajosas.

    Com a descoberta do ouro em quantidades considerveis e outras mercadorias como o gado,

    foram oferecidas ao consumo interno, comrcio externo monopolizado e abastecimento das

    frotas que aqui tocavam.

    Nessas condies, sob suas formas escravista e usurria, o capital mercantil apossou-se de

    uma enorme quantidade de terras e de pessoas, sendo estas, quando escravas, um duplo de mo-

    de-obra e forma de capital usurrio. Os proprietrios da terra, quando no resultavam de doaes

    metropolitanas politicamente justificadas, surgiam da prtica do comrcio, principalmente o

    trfico de escravos, dedicando-se ao comrcio geral; s instituies municipais para efeito de

    servio das ordens; por fim, tornando-se proprietrios de terras. Por qu os mercadores davam

    importncia a terra? Porque s ela podia proteger a propriedade de forma quase absoluta de

    todas as flutuaes das demais formas apropriadoras.

    O carter de acumulao primitiva, que o agro brasileiro facultava ao colonizador, permitia

    ao capital efetuar na colnia uma srie de tarefas que no podia realizar na Europa, devido

    fora ainda existente das instituies feudais e outras formas cristalizadas de propriedade urbana

    e rural. Ao incorporar para si todos os espaos geogrficos e sociais, o capital escravista elevou a

    30 Ver: Wilson do Nascimento Barbosa. A Crislida: 1850-1888. Tese de Livre Docncia. So Paulo, DH-FFLCH-SP, 2 vols. 1994.

  • 32

    classe exploradora dos grandes proprietrios de terra ao seu pice histrico na colnia. No

    entanto, cumprida sua funo de acumulao primitiva, que permitiu incorporar o ciclo agrcola

    das colnias no insuficiente ciclo agrcola das metrpoles, inundadas estas de mercadorias

    coloniais a preos cadentes, colocava-se na ordem-do-dia a necessidade de eliminar o trabalho

    escravo, abrindo mercados para os pases que haviam realizado a revoluo industrial31.

    O recesso do capital escravista deu-se, no Brasil, por duas vias: o retorno ao capital

    mercantil e usurrio, e o avano at o capital industrial.

    O capital industrial imps, portanto, suas solues: a substituio dos escravos como base

    do capital usurrio, transferindo seu valor para o patrimnio das fazendas (1870 1888) e a

    transformao da massa escrava em um subproletariado, remunerado abaixo da fronteira de

    subsistncia. Este duplo movimento foi obtido por: ampliao das reas agricultveis disponveis

    e intensificao da competio interna da agricultura local de exportao; e a intensa imigrao

    europia, capaz de reduzir, ao mnimo, o custo da fora de trabalho ofertada.

    A ampliao desmesurada das reas agrcolas foi obtida com o surto ferrovirio nas

    colnias e semicolnias. No caso brasileiro, aumentando a produo a exportar, os cafeicultores

    concorreram entre si para fornecer s metrpoles produtos tropicais a preos cadentes, ao mesmo

    tempo em que deviam pagar o custo das ferrovias e da imigrao de novos trabalhadores. Por

    outro lado, a introduo de mo-de-obra imigrante em excesso rebaixava o salrio de

    subsistncia e acirrava a competio entre os trabalhadores por um posto-de-trabalho. Em longo

    prazo, jogava a mo-de-obra imigrante para fora das fazendas em cada crise agrcola de

    realizao (vide 1902-04; 1914-15; etc.), colocando-se no cenrio da urbanizao, com o

    crescimento da pequena indstria (1890 1930) e a recusa da nova imigrao proletarizao

    (surgimento de uma pequena-burguesia urbana e rural; 1900 1940)32.

    O processo de formao de um mercado de mo-de-obra livre e da pequena indstria local

    (1890 1930) teve, por suas caractersticas, dois impactos sobre os trabalhadores negros:

    31 Ver: Dcio Freitas. Escravos e senhores de escravos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983; e Brasil Gerson. A Escravido..., Op. cit. 32 Ver: Florestan Fernandes. A integrao do negro na sociedade de classes, So Paulo, 2 vols. 3 ed. Editora tica, 1978; Maria Sylvia de Carvalho Franco. Homens Livres na Ordem Escravocrata, So Paulo, tica, 1974; Alba Maria

  • 33

    destruiu o setor de pequenos proprietrios negros, que havia se formado nas condies da

    produo e circulao aurfera; e desqualificou a mo-de-obra trabalhadora negra, expondo-a

    intensa competio, face os novos imigrantes, que recebiam, de qualquer forma, maior apoio do

    sistema institucional do que os descendentes de escravos e libertos. Na maioria dos municpios,

    por exemplo, foram elaboradas disposies que vetavam crianas negras a freqentar as poucas

    escolas existentes.

    O ciclo de expanso ferroviria, com seus caminhos de ferro urbanos e intermunicipais,

    constituiu o setor de vanguarda das transformaes metal-mecnicas, pagando os melhores

    salrios (18801949). Embora os trabalhadores negros houvessem instalado as ferrovias iniciais,

    junto a um ncleo de trabalhadores etopes e somalis trazidos pelos ingleses, eles desapareceram

    das ferrovias nas dcadas seguintes, sob a alegao de que no possuam habilidades tcnicas

    para tais servios. No comrcio de jias e ourivesaria, no qual os negros se constituram visvel

    maioria at 1880, o desenvolvimento da rede bancria e da imigrao europia os expulsou por

    completo. A formao do complexo ferro-porturios tolerou a presena do negro enquanto

    carregador, porque a totalidade dos servios no estava ainda maquinizada.

    Tem-se, portanto, no perodo da chamada Primeira Repblica (18891930), um recuo

    socioeconmico das camadas de negros livres ou recm-libertos, hostilizados enquanto

    trabalhadores e, tambm, enquanto seres humanos. O crescimento da rede bancria na referida

    fase impactou, com seu surto de industrializao, na gradual reduo do chamado crdito-de-

    armazm, onde formas do capital usurrio, geralmente portugus, forneciam os recursos

    aplicados pelos pequenos proprietrios negros33.

    A sobrevivncia econmica dos negros se concentrou em dois tipos de atividades: a

    primeira de praticantes de servios urbanos e suburbanos - chacareiros; vendedores ambulantes;

    empregados domsticos, pescadores, etc -; e a segunda, de trabalhadores rurais por conta prpria

    ou pequenos lavradores. Esta condio era tolerada porque os desmatamentos promovidos por

    famlias de negros rurais terminavam, mais tarde, por ser ocupados pelos fazendeiros, que os

    Figueiredo Morandini. O Trabalhador Migrante Nacional em So Paulo, 1920-1923, Dissertao de Mestrado, So Paulo, PUC-SP, 1978; e Jos de Souza Martins. O Cativeiro da Terra. So Paulo, Hucitec, 1986. 33 Ver: Bris Fausto. Trabalho Urbano e Conflito Social, 1890-1920, Rio de Janeiro, Difel, 1977 e Relatrios do Banco do Brasil: 1910 a 1930.

  • 34

    empurravam para mais adiante. Desta forma, atuavam os mesmos como desmatadores

    graciosos das fazendas. Quando o trabalho de colonizao era feito longe da frente agrcola, os

    negros davam origem a ocupaes duradouras, quilombos que tambm se constituram

    verdadeiros bolses de cultura negra, afastados totalmente das presses diretas das polticas de

    desafricanizao e do branqueamento. No entanto, no ambiente urbano de Salvador, Recife,

    Rio de Janeiro, So Paulo, Ouro Preto, So Lus e logo Belo Horizonte, os negros constituram-

    se parte importante, quando no dominante, da fora de trabalho34.

    A Revoluo de 1930 e o impacto das chamadas polticas varguistas, com sua lei do

    trabalho nacional, reabriram o caminho ao gradual aproveitamento da mo-de-obra negra nas

    atividades industriais urbanas. Era interesse do Estado varguista reduzir a influncia dos

    sindicatos controlados por imigrantes europeus e seus descendentes, que haviam adquirido

    capacidade de negociao no perodo anterior. A mais ampla industrializao, em surtos do

    perodo seguinte (1933-38; 1939-1946; 1955-62), levaria a amplo crescimento do proletariado e

    compreenderia trabalhadores negros.

    A tendncia dos negros libertados da escravido para deixar as fazendas e formar frentes

    de colonizao dentro das matas resultou, tambm, em choques mais ou menos extensos com as

    autoridades, que refletiam predominantemente os interesses dos proprietrios de terra. Estes no

    gostavam de perder a sua mo-de-obra quase grtis e enviavam foras policiais e militares para

    esmagar tais focos espontneos de reforma agrria. Estes movimentos agraristas ficaram

    conhecidos na literatura como messinicos, quase sempre em atitude que busca ignorar seu

    fundamento libertrio social e econmico: Canudos (1896-1897), o Contestado (19111914), o

    Caldeiro (1937), entre outros, foram movimentos pela terra cujo maior contingente isolado era

    de trabalhadores negros35.

    A resistncia dos capitalistas agrcolas a qualquer repartio da terra enquanto material

    entre trabalhadores sem posses, explica-se pela necessidade de monopolizar a terra enquanto

    34 Ver: Anurio Estatstico do Brasil (IBGE) (dcada 1940); Directoria Geral de Estatstica (DGE) Synopse do Recenseamento de 31 de dezembro de 1890. Rio de Janeiro, 1931 e Directoria Geral de Estatstica (DGE) Recenseamento do Brasil realizado em 1o de setembro de 1920, 5 vols., Rio de Janeiro, 1922 a 1926. 35 Ver: Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares. A Guerra de Canudos, 3 Ed., Rio de Janeiro, I. N. do Livro, 1885 e Rui Fac Cangaceiros e fanaticos: genese e lutas, Rio de Janeiro, Bertrand, 1988; e Brasil sculo XX, Rio de Janeiro, Vitria, 1960.

  • 35

    fonte de toda a riqueza; e a preciso de reduzir dos trabalhadores sem terra a indigncia, com a

    compra potencial posterior de sua fora de trabalho por preos abaixo da fronteira de

    subsistncia. O monoplio da terra permite valoriz-la enquanto capital existente e eliminar

    focos de concorrncia que venham a aumentar a produo. Os proprietrios de terra podem

    aceitar a imposio competitiva o capital industrial externo ou a diviso internacional do trabalho

    e deteriorao dos termos-de-troca, mas no podem tolerar a concorrncia de pobres sem terra,

    particularmente negros ou seus ex-escravos.

    Compreende-se, ento, a outra tendncia dos negros libertados da escravido (18881960).

    Dirigir-se s maiores concentraes urbanas do pas, para reduzir o impacto dos aparatos

    repressivos sobre suas atividades de subsistncia. Nas grandes cidades, os negros puderam

    dedicar-se a tais atividades, porque eram tolerados pela populao pequeno-proprietria, que

    podia utilizar-se de sua mo-de-obra e de seus produtos a preos rebaixados. Particularmente nas

    faixas litorneas e em regies de grandes baas como Belm, Maraj, So Marcos, So Lus,

    Todos os Santos, Rio de Janeiro, Lagoa dos Patos, entre outras, a mo-de-obra negra podia

    entregar enormes quantidades de produtos agrcolas e pesqueiros a baixo preo, valendo-se de

    sua baixa remunerao e das vias lquidas de transporte. Era na constituio de semelhantes

    mercados primitivos que a populao negra garantia a sua sobrevivncia, antes da descolagem da

    industrializao.

    Assim, enquanto os membros da chamada Nova Imigrao (18901960) se consolidavam

    como pequenos-proprietrios e empresrios, a populao negra oriunda da escravido buscava-se

    manter enquanto subproletariado nas cidades e camponeses sem terra nas reas rurais. Evidencia-

    se aqui o fechamento tnico do acesso propriedade como um dos principais instrumentos

    deixados pela acumulao primitiva que asseguram as altas taxas de lucro vigentes no pas e

    perpetuam ou ampliam os diferenciais de renda ligados ao subdesenvolvimento36.

    O impacto da Grande Depresso (187396) nas economias coloniais e semicoloniais se fez

    sentir, no Brasil, pela depresso dos preos de exportao, que levou ao colapso definitivo do

    36 Veja: Petrnio Jos Domingues. Uma Histria no contada: negro, racismo e trabalho no ps-abolio em So Paulo (1889-1930). So Paulo, DH-FFLCH USP, 2000.

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    regime escravista. Isto se caracterizou tambm como: o aumento da concorrncia dos produtos

    de exportao, tanto no plano domstico como externo; e os reajustes econmicos internos, sob

    formas de ondas sucessivas (18901923), que aceleraram a expanso e o colapso do regime de

    colonato, levaram ao crescimento da ocupao do solo agricultvel, com grande nmero de

    fazendas, e reduo da taxa de lucro, durante todo o perodo da Primeira Repblica (18891930).

    A diversificao da oferta exportadora elevou o papel da borracha, do algodo, do cacau e

    de produtos naturais, para compensar a depresso dos preos do caf. Em todos estes cenrios da

    agricultura de exportao, a mo-de-obra das populaes negras desempenhou papel constante.

    A oferta de trabalho da populao negra caracterizou-se, portanto, por dois elementos:

    primeiro pela populao jovem, com alta resistncia para o trabalho intensivo; e segundo, pela

    experincia nas atividades primrias e de servios. Estas duas caractersticas repunham

    periodicamente a fora de trabalho negra entre as de melhor qualidade para as condies

    econmicas da produo brasileira, tipificada pela intensidade de consumo de trabalho vivo e a

    baixa utilizao de maquinrio complexo.

    Minas Gerais, Bahia e estados nordestinos, so reas onde a populao negra predominava

    e sua mo-de-obra era constantemente ofertada para outras regies, com a reduo dos custos

    oriundos do trabalho para as mesmas, e a cesso definitiva de uma populao adulta resistente e

    produtiva. Deve-se observar que os custos com instruo, treinamento, sade, transporte, etc., da

    fora de trabalho interna foram, at bem recentemente, quase inexistentes, na prtica, para as

    empresas e o Estado.

    A posio da economia brasileira, na dcada de 20, apresentou enormes ganhos do

    comrcio exterior, com o xito temporrio das polticas de proteo do caf, diante da forte

    expanso da economia internacional, ligada ao ciclo automotivo norte-americano. Aps a crise

    de 1929-32, na qual o governo brasileiro viu-se compelido a medid