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Ana Sofia Fonseca

Barca Velha

Histórias de Um Vinho

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© Ana Sofia Fonseca, 2012 e Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda.

uma empresa do grupo LeYaRua Cidade de Córdova, 2

2610-038 AlfragideTel: 210 417 410, Fax. 214 717 737

E-mail: [email protected]

Título original: Barca Velha – Histórias de Um VinhoAutoria: Ana Sofia FonsecaRevisão: Silvina de Sousa

Composição: Informaster, Lda.em caracteres Sabon, corpo 12

Capa: Maria Manuel Lacerda / Oficina do LivroImpressão e acabamento: Rolo & Filhos II, S.A.

1.ª edição: Maio de 2012

ISBN 978-989-555-959-6Depósito legal n.º 342024/12

Por vontade expressa da autora, o livro respeita a ortografia anterior ao actual acordo ortográfico

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À minha mãe, pelas histórias contadas

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Prefácio

«É mais difícil ir ao Meão do que a Luanda», diz Nicolau de Almeida neste belíssimo livro de Ana Sofia Fonseca. Eu compreendo-o bem. Nasci muito perto do Meão, aliás da Quinta de Vale Meão, referência completa no mapa da região. Vivi no Pocinho os dias mais felizes da minha infância – ali, onde se colhiam as uvas e se prepa-rava o Barca Velha, e onde era mais difícil chegar do que a Luanda. Compreendo bem o lamento. Ainda hoje é difí-cil chegar por estrada a esse ponto do mapa onde o calor de Agosto é mais do que uma ameaça: nuvens de poeira e nuvens de calor confundem-se, os termómetros ultra-passam com frequência os quarenta graus centígrados, o ruído das cigarras é mais ensurdecedor do que os roman-ces que falavam do assunto, a noite chega como uma pro-messa de alívio. Nessa hora logo depois do crepúsculo esperava-se que a brisa que envolvia a aldeia passasse pelo leito do rio antes de subir as colinas. Era, repito, a única promessa de alívio – a menos que surgissem sob os picos dos montes (na Lousa, em Santo Amaro, para os lados das Mós, vindas de Numão) umas nuvens que sugeriam chuva. Mais tarde, quando aprendi o significado exacto da expressão «chuva tropical», lembrei-me do Pocinho, lembrei-me da Quinta do Campo submersa nessa neblina

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azulada que se confundia com a curva do rio, diante da Quinta do Reguengo, lembrei-me da planície inclinada de vinhas da Quinta do Vale Meão, lembrei-me dos vultos dos pequenos barcos de pescadores fluviais sob a velha ponte de ferro por onde passava um comboio alegre e sal-titante a caminho de Miranda do Douro, preparando-se para subir por entre falésias, reentrâncias, sombras, tufos de mato, até Moncorvo.

As minhas memórias do vinho do Douro têm a ver com esse cenário. Não é por acaso que ele aparece logo a abrir o livro de Ana Sofia Fonseca. O vinho do Douro sempre me pareceu um milagre. O aroma de mosto cru-zando os ares em meados e finais de Setembro, misturado com os últimos tons vivos das amendoeiras, com os picos cobertos de zimbro, com o ruído dos comboios que cir-culavam entre a Barca de Alva e o Porto. E havia aquela música ininteligível, certamente: a das vindimas, a dos tra-balhos no socalco iluminada pela luz fantástica do Douro, entrando pelos pomares, pelas hortas, pelos olivais e amen-doais, atravessando a sombra dos choupos, os juncos à beira da água.

O Douro, por isso tudo, é um rio habituado a ver milagres. Se não existe uma explicação racional, socio-lógica, histórica, económica, eu encontro essa – que me serve perfeitamente: trata-se de um milagre. Certamente que a história do vinho do Douro, e a do vinho do Porto muito mais, explica-se por dinastias de gente atrevida que experimentou, inventou e recriou sabedorias ancestrais até conseguir a bebida que vem em todos os grandes poe-tas desde a Antiguidade, exagerada pelo êxtase.

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Para quem viaja ao longo do Douro no velho com-boio – que hoje parece condenado ao desaparecimento – essa história de milagres parece uma coisa romântica. De certo modo, é. As quintas estacionadas a meio das coli-nas, os ancoradouros presos às falésias, as pequenas baías em lugares insuspeitos, ribeiros que desaguam de repente (vindos da Beira – de um lado – ou de Trás-os-Montes – de outro), pontes que atravessaram o século para que nos habituássemos à sua imagem, tudo isso está povoado de uma mitologia particular, que é romântica e, ao mesmo tempo, de uma história de sofrimentos. Só assim se com-preende a humaníssima natureza daqueles socalcos talha-dos à mão, inclinados sobre o rio.

A quem escreve sobre vinhos, sobre os seus sabores, sobre o carácter delituoso do vinho, eu recomendo sem-pre uma viagem ao longo do Douro. Quanto mais não seja para confirmar a justeza dessa frase que o leitor encon-trará daqui a algumas páginas: «É mais difícil ir ao Meão do que a Luanda.» James Murphy, um interessante inglês que viajou por Portugal no século xviii (e publicou mesmo as suas impressões num Travels in Portugal), escreveu que «um português pode fretar um navio para o Brasil com menos dificuldade do que lhe é preciso para ir de cavalo de Lisboa ao Porto». Imaginem-se agora as dificuldades quase intransponíveis que se lhe ofereciam para ir ao Meão.

Não foi por isso que os ingleses deixaram de se inte-ressar pelo Douro e que alguns, como o lendário barão de Forrester, se fixaram na margem do rio dos milagres. Eu chamo-lhe rio dos milagres – a esse rio que engoliu o barão no cachão da Valeira – e tenho algumas razões. Uma delas tem a ver com o vinho. O poeta Ibris bem-al-Yaman,

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que viveu no Al-Andaluz do século xi, associou o vinho à arte de voar – os corpos cheios de vinho estariam, afi-nal, cheios de espíritos. O Douro favorece esse contacto entre os homens e os espíritos: a doçura contagiante do seu vinho é calorosa e romântica, para dar razão a um dos meus grandes autores, Arquíloco, que – a propósito do vinho, da sua prova – falava de «um raio a deflagrar no espírito». Um vinho prodigioso como o do Douro, res-cendendo a tudo o que a terra inventou para nos separar do que é acessório, merece que invoquemos os clássicos, muito mais do que as lengalengas dos académicos que visi-tam as adegas com o compêndio atado à cintura. Por isso é quase brutal a visita que Ana Sofia Fonseca faz junto deste nome: Nicolau de Almeida – um mago cujo inimitável tra-balho merece distinção e prémio.

Nenhuma filoxera poderia fazer esquecer o seu traba-lho e a sua criação. É certo que (isto é a minha opinião de regionalista) o Douro favorece a sua competência olfac-tiva. O rio dos milagres transporta todos os frutos e todos os aromas. Eu acrescentaria isso ao que Ana Sofia Fonseca refere como a tríade de competências necessárias a um enólogo de excepção, um dos nossos génios, como Soares Franco: «Amor pelo ofício; nariz sensível, dom ganho à nascença e intimamente relacionado com a condição física e intelectual de cada um e, por fim, um bom mestre.»

O Barca Velha faz parte daquilo que o Douro não pode dispensar. Mais do que isso: é uma das glórias do Douro, só possível com essa contribuição de homens como os Nicolau de Almeida, os Soares Franco – a eles deve-mos a construção de uma mitologia danada, inscrita nas águas do rio dos milagres e nas tentações de quem ama

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verdadeiramente o seu ofício. É certo que cada papila pro-cura a sua salvação num vinho diferente do outro – mas o Barca Velha, com o seu rasto de afrontas ao país peque-nino e vulgar (ultrapassando-o, humilhando-o, e à sua mediocridade), é obra de génio. A vasta literatura sobre a idade madura dos vinhos portugueses nunca ficaria com-pleta sem o tributo a prestar aos vizinhos do Meão, aos velhos e aos novos.

De cada vez que visito a minha terra, de cada vez que desço aquela estrada de Foz Côa (onde, de facto, nasci) para o Pocinho de todas as minhas infâncias, procuro iden-tificar as vinhas. O rio já é outro. Já não é o imenso espe-lho rodeando a curva das Frieiras, junto às Cortes – uma barragem interrompeu-lhe o curso, moderando a corrente, para cá do Meão. Muitas vezes ia a pé entre o Pocinho e as correntes de Almendra e Castelo Melhor e apreciava essas vinhas. Sempre me pareceu que se desprendia, dali, um aroma que antecipava o «raio a deflagrar os espíritos» que se lê em Arquíloco. O rio já não recebe, nas suas margens, as sombras salvadoras dos choupos e das oliveiras do Poci-nho, dos seus pomares magníficos, avantajados – apenas o calor imenso, o calor que entorpece, o ruído das cigar-ras nas colinas. Ana Sofia Fonseca presta uma inestimável homenagem à minha terra e ao rio dos milagres, falando de um vinho que se devia associar à nossa cultura mais pro-funda e mais erudita. O Barca Velha é um trabalho de eru-dição, evidentemente. Dispensando os sufrágios das aca-demias, ele entra nos nossos dicionários como sinónimo de poesia («os vinhos odoríferos», de que falava Camões, mas também os vinhos com «mais alma que muito poema ou livro santo», como escrevia Eça), da mais intensa, da

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mais inesquecível. Na sua história está a história de uma paixão pelo vinho e de uma obra de cultura.

Diz-se, na tradição bíblica, que Noé se dedicou a plantar vinhas depois de ter sobrevivido ao dilúvio. Os vários dilúvios do Douro, certamente divinos, por serem tão intensos e tão inesperados, não interromperam essa alquimia que tornou possível o Barca Velha. A nossa alma tem uma enorme dívida de gratidão para com os seus criadores.

Francisco José ViegasLisboa, Novembro de 2004

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Introdução

Há vinhos maiores do que a palavra. Cabe-lhes o tempo, a terra. As gentes que o criaram, do suor da inven-ção ao dom da vindima. Dançam no copo com força de história. São romance engarrafado.

Este livro conta as intimidades do Barca Velha. O tinto português de excepção que agora completa sessenta anos. Nasceu em 1952, da vinha e da vontade de um homem. Sessenta anos e apenas dezassete rótulos – o último lan-çado em Maio de 2012. Estas páginas não se destinam somente a enólogos e curiosos, mas a todos os que gostam de uma boa história. Por vezes, num golpe de imaginação, a realidade supera a ficção. A vida do Barca Velha tem enredo de cinema. Almas penadas, desassossegos de amor, fortunas, crimes de sangue, lutas de adega. Sonhos.

Os capítulos que se seguem são o resultado de um trabalho jornalístico feito em dois momentos distintos – o primeiro no final de 2003 e em 2004, o segundo em 2010 e no início de 2011. Da primeira investigação, resul-tou o livro Barca Velha – Histórias de Um Vinho, edi-tado em Novembro de 2004, pela Dom Quixote. De certa maneira, este livro é uma reedição do primeiro. Mas ape-sar do título e muitas das histórias serem as mesmas, todos os parágrafos foram revistos. Acrescentaram-se episódios,

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segredos e detalhes. De 2003 a 2012, a vida do Barca Velha sofreu alterações. No dever de actualizar esta sua biografia, foram redigidos e adicionados três novos capí-tulos. Por se assinalarem seis décadas, em jeito de cantar de parabéns, foi incluída uma «carta» endereçada ao pro-vador que lhe deu vida, Fernando Nicolau de Almeida, por um dos seus filhos, José Nicolau de Almeida. Assim, de certa maneira, este é um livro novo.

Costumo escrevinhar ideias e possíveis temas de reportagem em papeluchos desordenados. O nome Barca Velha surge, pela primeira vez, numa folha povoada de números de telefone e lista de afazeres de 2003. Esfero-gráfica azul, nenhuma nota. Tudo começou num café de Lisboa, quando o jornalista José Vegar, então responsá-vel pela colecção Cadernos DQ Reportagem, me convi-dou para alinhar no projecto. Sentaram-se à mesa vários temas, entre eles, o Barca Velha.

Pouco depois, começavam as subidas ao Douro. Da Quinta do Vale Meão, berço do Barca Velha, à Quinta da Leda, actual local de produção, e às caves da Ferrei-rinha, em Gaia. Cedo ganhei a convicção de que falar de Barca Velha é, acima de tudo, dar voz a gentes e memó-rias. Pessoas e vinho num só compasso. Tanto no Meão quanto na Leda, foi possível reunir nas adegas e à mesa, com Barca Velha ou sem ele, personagens de diferentes tempos e socalcos, em conversas de hoje e peregrinações ao passado.

Desde o primeiro momento, decidi não me cingir à saga de Fernando Nicolau de Almeida, o criador, nem à de D. Antónia Adelaide Ferreira, a primeira proprietária do Meão e grande obreira do Douro. Tão-pouco à história

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dos seus descendentes ou aos enólogos que continuaram a dar vida ao vinho. Quis conhecer as gentes que trabalha-ram de sol a sol, por entre cepas ou balseiros. Aquelas que, não pertencendo à família proprietária ou à direcção de enologia, sentem como seu o Barca Velha.

Mas escrever sobre este vinho é também dar espaço aos humores das suas quintas, das caves de Gaia, da sala de provas... Cada copo carrega as muitas singularidades do Alto Douro Vinhateiro. Cerca de dez por cento da Região Demarcada do Douro, regulamentada em 1765 pelo mar-quês de Pombal, a primeira do país e uma das mais antigas e conceituadas do mundo, é considerada Património Mun-dial da Humanidade pela UNESCO. Exibe o muito ambi-cionado epíteto de paisagem cultural, destinado aos locais que combinam natureza com trabalho humano e valo-res culturais. O Douro é de uma beleza impressionante, talhada a golpes de picareta e teimosia. Ainda assim a construção da barragem do Tua traz agora a ameaça de desclassificação.

Este retrato do Barca Velha faz-se de instantes decisi-vos, mas ainda mais de cenas do dia-a-dia. Os pequenos tudo e os grandes nada que tecem a realidade.

Esta é a história do Barca Velha.

Prove.

Ana Sofia Fonseca11 de Março de 2012