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Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ Praia de Botafogo, 480 – 2º andar - Rio de Janeiro – RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380 IGUALDADE, DESIGUALDADE E DIFERENÇA: TRÊS NOÇÕES EM DIÁLOGO José D’Assunção Barros i O texto que aqui se apresenta sintetiza um conjunto de formulações e sistematizações teóricas desenvolvidas em um ensaio mais aprofundado. Partimos da constatação evidente de que Igualdade é uma noção tão antiga quanto complexa, e que, já de princípio, contrasta simultaneamente com duas outras noções que sempre marcaram uma presença análoga no decurso da história humana. Por um lado Igualdade opõe-se a Diferença, mas por outro lado se contradita com Desigualdade. Tem-se afirmado cada vez mais a necessidade, para a História Social, de estabelecer com precisão os sentidos possíveis para estes termos, a implicação de cada um destes sentidos, os desdobramentos das relações de contrariedade ou contraditoriedade que os dois termos estabelecem com a noção de Igualdade, e por fim os deslocamentos imaginários e históricos entre as noções de Desigualdade e Diferença. Neste texto mais sumarizado, apenas pontuaremos uma reflexão introdutória, que para maior interesse poderá ser buscada no livro Igualdade, Desigualdade e Diferença ii . Existe naturalmente uma diferença sutil envolvida nestes dois contrastes. Quando se considera o par ‘Igualdade x Diferença’ (ou ‘igual’ x ‘diferente’), tem-se em vista algo da ordem das essências: uma coisa ou é igual a outra (pelo menos em um determinado aspecto) ou então dela difere. Podemos, no âmbito de um certo número de indivíduos, considerar sua igualdade ou diferença em relação ao aspecto sexual, ao aspecto profissional, ao aspecto étnico, e assim por diante. A oposição entre Igualdade e Diferença, se quisermos colocar a questão dentro de uma perspectiva semiótica, é da ordem dos ‘contrários’ (de duas essências que se opõem). Já o contraste entre Igualdade e Desigualdade refere-se quase sempre não a um aspecto ‘essencial’, mas a uma ‘circunstância’ associada a uma forma de tratamento (mesmo que esta circunstância aparentemente se eternize no interior de determinados sistemas políticos ou situações sociais específicas). Tratam-se dois ou mais indivíduos com igualdade ou desigualdade relativamente a algum aspecto ou direito, conforme sejam concedidos mais privilégios ou restrições a um e a outro (isto pode ocorrer independentemente de serem eles iguais ou diferentes no que se refere ao sexo, à etnia ou à profissão). Se é verdade que as mulheres podem receber um tratamento desigual em relação aos homens no que concerne

BARROS, Igualdade, Desigualdade e Diferença Três Noções Em Diálogo

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BARROS, Igualdade, Desigualdade e Diferença Três Noções Em Diálogo Completo

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  • Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro APERJ

    Praia de Botafogo, 480 2 andar - Rio de Janeiro RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380

    IGUALDADE, DESIGUALDADE E DIFERENA: TRS NOES EM DILOGO

    Jos DAssuno Barrosi

    O texto que aqui se apresenta sintetiza um conjunto de formulaes e sistematizaes tericas desenvolvidas em um ensaio mais aprofundado. Partimos da constatao evidente de que Igualdade uma noo to antiga quanto complexa, e que, j de princpio, contrasta simultaneamente com duas outras noes que sempre marcaram uma presena anloga no decurso da histria humana. Por um lado Igualdade ope-se a Diferena, mas por outro lado se contradita com Desigualdade. Tem-se afirmado cada vez mais a necessidade, para a Histria Social, de estabelecer com preciso os sentidos possveis para estes termos, a implicao de cada um destes sentidos, os desdobramentos das relaes de contrariedade ou contraditoriedade que os dois termos estabelecem com a noo de Igualdade, e por fim os deslocamentos imaginrios e histricos entre as noes de Desigualdade e Diferena. Neste texto mais sumarizado, apenas pontuaremos uma reflexo introdutria, que para maior interesse poder ser buscada no livro Igualdade, Desigualdade e Diferenaii.

    Existe naturalmente uma diferena sutil envolvida nestes dois contrastes. Quando se considera o par Igualdade x Diferena (ou igual x diferente), tem-se em vista algo da ordem das essncias: uma coisa ou igual a outra (pelo menos em um determinado aspecto) ou ento dela difere. Podemos, no mbito de um certo nmero de indivduos, considerar sua igualdade ou diferena em relao ao aspecto

    sexual, ao aspecto profissional, ao aspecto tnico, e assim por diante. A oposio entre Igualdade e Diferena, se quisermos colocar a questo dentro de uma perspectiva semitica, da ordem dos contrrios (de duas essncias que se opem).

    J o contraste entre Igualdade e Desigualdade refere-se quase sempre no a um aspecto essencial, mas a uma circunstncia associada a uma forma de tratamento (mesmo que esta circunstncia aparentemente se eternize no interior de determinados sistemas polticos ou situaes sociais especficas). Tratam-se dois ou mais indivduos com igualdade ou desigualdade relativamente a algum aspecto ou direito, conforme sejam concedidos mais privilgios ou restries a um e a outro (isto pode ocorrer independentemente de serem eles iguais ou diferentes no que se refere ao sexo, etnia ou profisso). Se verdade que as mulheres podem receber um tratamento desigual em relao aos homens no que concerne

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    s oportunidades de trabalho (e aqui estaremos falando na desigualdade entre os sexos), tambm possvel tratar desigualmente dois homens que em nada difiram em relao a alguns dos seus aspectos essenciais (idade, sexo, profisso, etc...). Ou seja, Desigualdade e Diferena no so noes necessariamente interdependentes, embora possam conservar relaes bem definidas no interior de determinados sistemas sociais e polticos.

    Distintamente da oposio por contrariedade que se estabelece entre Igualdade e Diferena, a oposio entre Igualdade e Desigualdade da ordem das contradies. Bem entendido, as contradies so sempre circunstanciais, enquanto os contrrios opem-se ao nvel das essncias. As contradies so geradas no interior de um processo, tm uma histria, aparecem num determinado momento ou situao, e de resto pode-se dizer que os pares contraditrios integram-se dialeticamente dentro dos processos que os fizeram surgir. Por seu turno, os contrrios no se misturam (amor e dio, verdade e mentira, igual e diferente), e desta forma fixam muito claramente o abismo de sua contrariedade. Logo veremos que essa distino entre contrrios e contradies tem as suas implicaes, embora no momento isso possa soar

    como filigrana semitica. Para o caso de que presentemente tratamos, preciso considerar antes de mais nada que as

    diferenas so inerentes ao mundo humano para no falar do mundo natural. De modo geral, a ocorrncia de diferenas de toda a ordem no pode ser evitada atravs da ao humana (embora se deva esclarecer desde j que nem todas as diferenas so naturais, e que muitas so construdas culturalmente)iii. Vale ainda dizer que a ocorrncia de Diferenas no mundo social est atrelada prpria diversidade inerente ao conjunto dos seres humanos, seja no que se refere a caractersticas pessoais (sexo, etnia, idade) seja no que se refere a questes externas (pertencimento por nascimento a esta ou quela localidade, ou cidadania vinculada a este ou quele pas, por exemplo).

    O reconhecimento da inevitabilidade da ocorrncia de diferenas reflete-se no fato de que so bem

    raros os projetos polticos que se proponham a lutar para eliminar certos tipos de diferenas como as sexuais, etrias ou profissionais (no estamos falando ainda da possibilidade de eliminar ou reduzir as desigualdades sexuais, etrias ou profissionais, o que seria uma questo de outra ordem). Com relao s diferenas tnicas, existem no limite os projetos de extermnio, que seguem no entanto sendo excepcionaisiv. De um modo ou de outro, pode-se prever que sempre existiro homens e mulheres, diversificadas variaes tnicas, indivduos de vrias faixas etrias, bem como profisses as mais diversas. Mas pode-se sonhar que um dia estas diferenas sero tratadas socialmente com menos desigualdade. Por isto, as lutas sociais no se orientam em geral para abolir as diferenas, mas sim para abolir ou minimizar as desigualdades.

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    Enquanto pensar Diferenas significa se render prpria diversidade humana, j abordar a questo da Desigualdade implica em considerar a multiplicidade de espaos em que esta pode ser avaliada. Avalia-se a Desigualdade no mbito de determinados critrios ou de certos espaos de critrios: rendas, riquezas,

    liberdades, acesso a servios ou a bens primrios, capacidades. Indagar sobre a Desigualdade significa sempre recolocar uma nova pergunta: Desigualdade de qu? Em relao a qu? Conforme foi ressaltado, a Desigualdade sempre circunstancial, seja porque estar localizada historicamente dentro de um processo, seja porque estar necessariamente situada dentro de um determinado espao de reflexo ou de interpretao que a especificar (um determinado espao terico definidor de critrios, por assim dizer). Falar sobre Desigualdade implica em nos colocarmos em um ponto de vista, em um certo patamar ou espao de reflexo (econmico, poltico, jurdico, social, e assim por diante). Mais ainda, implica em arbitrarmos ou estabelecermos critrios mais ou menos claros dentro de cada espao potencial de reflexo.

    Vale acrescentar, tambm, que qualquer noo de Desigualdade no pode ser seno circunstancial em parte porque esto sempre sujeitos a um incessante devir histrico os prprios critrios diante dos quais a Desigualdade poderia ser pressentida ou avaliada. As noes que afetam o mundo das hierarquias sociais e polticas transfiguram-se, entrelaam-se e desentrelaam-se de acordo com os processos histricos e sociais. Por exemplo, nos tempos modernos, os trs grandes mbitos em que se pode estabelecer uma hierarquia social de qualquer tipo portanto, os trs grandes mbitos que regem o mundo da desigualdade humana so a Riqueza, o Poder e o Prestgio (pode-se discutir, ainda, a Cultura, no sentido institucionalizado). Mas o que falar hoje de Riqueza? certamente falar tambm de Propriedade. Estas noes esto entrelaadas na modernidade capitalista: a Riqueza encobre a Propriedade, abrangendo-a, mesmo que no se reduzindo a ela. Vale dizer, se toda a Riqueza, no mundo moderno, no se expressa

    necessariamente sob a forma de Propriedade ... no h como negar por outro lado que a Propriedade na atualidade uma das formas mais poderosas de expresso da Riqueza (dito de outra forma, a Riqueza compra a Propriedade; a forma de acesso, por excelncia, Propriedade).

    Nem sempre foi assim. Na Antigidade, por exemplo, Riqueza e Propriedade eram noes perfeitamente desentrelaadas. Portanto, os critrios para a avaliao da Desigualdade deveriam considerar cada uma destas noes em separado (como espaos diferentes que integrariam a Desigualdade no sentido complexo). Na Grcia Antiga, a Propriedade significava que o indivduo possua concretamente um lugar no mundo (na polis), e que portanto pertencia ao mundo poltico com os conseqentes direitos Cidadania (ARENDT, 1989: 71). Por isto, a riqueza de um estrangeiro, ou mesmo de um escravo, no substitua esta propriedade que era exclusiva dos cidados, e no lhe conferia obviamente um acesso ao mundo poltico. Percebe-se aqui que o Poder entrelaava-se ento com a Propriedade, e ambos situavam-se em um espao

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    de conexes em separado da Riqueza. Alm de Poder, Propriedade e Riqueza, havia um quarto critrio

    gerador de espaos de desigualdade, que era o da Liberdade. No mundo da Escravido Antiga, como no mundo da Escravido Moderna (o Brasil Colonial, por exemplo), a Liberdade ou a Escravido seriam noes bvias para serem consideradas em uma avaliao mais sistemtica da desigualdade humana isto , se houvesse qualquer interesse, ento, em avaliar no sentido mais amplo a desigualdade humanav.

    Hoje a Liberdade de todos os indivduos, como valor ideal e no sentido lato, fundo comum para qualquer sociedade moderna que se declare democrtica. Deixa, portanto, de ser um critrio a partir do qual se possa pensar a desigualdade (mas claro que podemos pensar na liberdade de expresso ou na liberdade de ir e vir, conforme veremos depois). Por outro lado, no necessrio pontuar a Propriedade como critrio hierrquico (como faziam os antigos gregos) j que na modernidade capitalista a Riqueza abrange a Propriedade. Este contraste entre o mundo antigo e o mundo moderno ser suficiente, por ora,

    para registrar a circunstancialidade dos prprios critrios a partir dos quais se pode pensar a questo da desigualdade social.

    De resto, o que obriga a falar em circunstncias para as questes relacionadas Desigualdade o fato de que qualquer desigualdade que esteja sendo imposta a um grupo ou a um indivduo est sujeita ela mesma circunstancialidade histrica, sendo em ltima instncia reversvel. O grupo humano que est privado de determinados direitos pode reverter a sua situao atravs da ao social sua e de outros. Pelo menos em tese, no existem desigualdades imobilizadas no mundo social. Enquanto isto, no mundo das diferenas teramos na oposio biolgica entre homem e mulher uma realidade contundente, ainda que esta possa se mostrar mais complexa atravs da ocorrncia de outros diferenciais sexuais que sero discutidos mais adiante. Da mesma forma, os seres humanos mostram-se todos sujeitos a atravessarem diferentes faixas etrias sem reversibilidade possvel, e no h como lutar contra isto, mesmo que seja possvel minimizar ou adiar os graduais efeitos da passagem do tempo sobre o corpo humano individual.

    Enfim, para resumir esta primeira aproximao, pode-se dizer que em geral a Diferena se coloca no mbito do Ser, enquanto a Desigualdade pertence inteiramente ao mundo da Circunstncia.

    Para resumir visualmente o que foi discutido com um esquema (ainda incompleto) poderamos traar um tringulo semitico (correspondente metade de um quadrado semitico que ser completado mais tarde). Nele, a Igualdade relaciona-se horizontalmente com a Diferena (em uma coordenada dos contrrios que se refere ao plano das essncias), mas tambm se relaciona diagonalmente com a Desigualdade (em um eixo das contradies que se refere ao plano das circunstncias). A indicao de bilateralidade (uma linha com duas setas) no eixo contraditrio da relao entre Igualdade e Desigualdade indica que esses plos so auto-reversveis, ou que possvel um deslocamento no eixo da desigualdade.

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    J para a coordenada de contrariedade relacionada com os plos Igualdade e Diferena no h de modo

    geral reversibilidade possvel. Trocando em midos, as Desigualdades so reversveis no sentido de que se referem a mudanas de Estado; as Diferenas, de um modo geral, novi.

    Daremos alguns exemplos para ilustrar os aspectos relacionados s gradaes e s possibilidades de reversibilidade que afetam o eixo das Desigualdades. Consideremos o aspecto da Riqueza. Entre o homem mais rico e o mais miservel (aquele que no limite extremo desprovido de qualquer bem), podemos imaginar todas as gradaes possveis. possvel imaginar tambm situaes em que o homem mais rico perca riqueza (e at atinja a misria), ou em que o miservel v gradualmente adquirindo riqueza at se tornar rico. A Desigualdade relativa Riqueza admite tanto reversibilidade como gradaes entre os seus extremos. Raciocnios anlogos poderiam ser feitos para a Desigualdade relativa liberdade de ir e vir. De um lado teramos o homem que pode ir a todos os lugares (que imaginariamente seria aquele que detm um mximo de poder, riqueza e prestgio), e do outro o homem que no pode ir a nenhum lugar (que poderia ser ilustrado com o exemplo de um prisioneiro na solitria). Entre estes limites extremos existem as gradaes, e tambm as reversibilidades (o Ditador pode ser um dia preso, e o prisioneiro libertado). Os exemplos poderiam se estender ao infinito para as Desigualdades relativas liberdade de expresso, acesso a bens e servios, privao de direitos jurdicos, imposies de segregao espacial, e tantas outras situaes.

    Vejamos como costuma se comportar a coordenada de contrariedades relacionada s Diferenas. No existem, por exemplo, gradaes entre Homem e Mulher. Com relao ao Homossexual, deve-se dizer que em primeira instncia ele no se introduz como uma nova diferena biolgica pelo menos a considerar um dimorfismo sexual fundamental baseado na contraposio entre os rgos sexuais e

    reprodutores masculino e feminino e que em todo o caso o homossexual no de nenhuma maneira um intermedirio entre o Homem e a Mulher. Do ponto de vista cultural a considerar a homossexualidade

    como uma nova orientao sexual tambm aqui no estaremos diante de uma mediao entre homem e mulher, mas sim de uma nova diferena. Rigorosamente falando, ningum mais Homem ou mais Mulher. Biologicamente, ou se uma coisa, ou se a outra a ressalvar casos excepcionais como o

    hermafroditismo ou alguns tipos especficos de transgenderismo. E, culturalmente, mesmo que possam ou

    Igualdade Diferena

    Desigualdade (Tringulo Semitico da Igualdade)

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    devam ser admitidas algumas outras categorias, no se poder dizer que um homem mais homossexual

    do que outro, ou que uma mulher mais lsbica do que outra. Ou uma mulher ser considerada lsbica, ou bissexual, ou heterossexual. Em suma, as diferenas sexuais (biolgicas ou culturais) distinguem-se umas das outras como modalidades de ser, e no como pontos focais de um espectro de variaesvii.

    Poderemos raciocinar tambm em termos de uma Diferena pertencente ao mbito cultural, como por exemplo a Nacionalidade. possvel imaginar tantas nacionalidades quantos forem os pases do mundo. Mas no existe uma gradao entre o Norte-americano e o Brasileiro, ou entre o Australiano e o Chins. Estas vrias nacionalidades fixam entre si o abismo que as separa como essncias claramente diferenciadas. Ou se pertence a uma nacionalidade ou a outra. Adicionalmente, deve-se considerar ainda que a mudana de uma destas nacionalidades para outra (ou a transferncia de um indivduo que migrasse de uma destas essncias para outra) no constituiria um processo gradual, mas sim um salto para outro lugar salto este de que, quando muito, um indivduo apenas costuma se beneficiar em um nico momento de sua vida. Um raciocnio anlogo poderia ser desenvolvido para as diferenas religiosas e

    muitas outras.

    Novamente importante se ter em vista um circuito de excees que no afetam o padro conceitual que aqui est sendo desenvolvido. Para o caso das diferenas relativas questo da nacionalidade, os casos de dupla nacionalidade, por exemplo, referem-se a duas essncias (duas diferenas) que se superpem. H indivduos que possuem duas nacionalidades legalmente reconhecidas, e pode-se pensar em outros que construam para si mesmos uma identidade onde se superpem duas essncias relativas ao mbito da nacionalidade. H por fim os indivduos que pertencem legalmente a uma nacionalidade, mas se sentem culturalmente como pertencentes a outra (duas essncias que se contrariam no interior de um mesmo indivduo). E h mesmo os aptridas, que foram privados legalmente de uma essncia, o que no impede que ainda se sintam como pertencentes nacionalidade que lhes foi negada.

    Mas vamos considerar que todos estes casos correspondem a oscilaes e ambigidades que ainda se do no plano das Diferenas (das modalidades de ser).

    A questo das formas de religiosidade tambm se refere ao campo das Diferenas. Quando falamos em sincretismo, estamos trabalhando com superposio de duas religies, ou da incorporao e mistura de aspectos de uma e outra religio original em uma nova realidade, que passar a configurar uma nova essncia (uma religiosidade sincrtica). E h obviamente os casos de dupla religiosidade que so similares aos casos j discutidos de dupla nacionalidade. Mas no seria apropriado falar em um continuum que separasse o Catlico absoluto do Islmico absoluto atravs de um espectro de gradaes.

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    Identificar-se como catlico ou como muulmano assumir uma essncia. Transferir-se para outra

    religio saltar para outra essncia. Tudo se opera dentro do eixo das diferenas. A questo mais complexa refere-se s chamadas diferenas raciais, ou ento s diferenas de

    cor. Quando estabelecida por exemplo uma dicotomia entre Brancos e Negros, fixado imediatamente um contraste entre duas essncias. Isto, conforme veremos oportunamente, ser sempre um problema, pois do ponto de vista cientfico as raas no existem enquanto realidades biolgicas bem definidas. Por um lado diversidade humana to mltipla e aberta a misturas e superposies que no se presta a isto, e por outro lado as pesquisas do Projeto Genoma j demonstraram que todos os homens modernos descendem de uma matriz comum oriunda de certa regio da Etipia pr-histrica (vale acrescentar tambm que as diferenas entre os grupos humanos com caractersticas mais ou menos recorrentes, quando estes se formam, esto muito longe de serem suficientemente significativas para autorizar a que se fale em

    diferentes espcies humanas). Mas o que interessa mais particularmente para a nossa discusso que existem inmeras e indefinidas tonalidades de pele (e no trs ou quatro), e que estas se somam a inmeros tipos de cabelo e constituies labiais, a diversificados padres cranianos e tendncias de estrutura ssea, e a tantas e tantas outras distines biolgicas que a bem da verdade no nos permitiriam falar em absoluto em um tipo unificado de Negro ou de Branco.

    Assim mesmo, quando construda culturalmente uma dicotomia entre Negros e Brancos, so imediatamente constitudas duas essncias, sem mediaes. Se quisermos interpor um tipo intermedirio o Pardo ou o Mulato ele ser uma nova essncia (na verdade uma essncia to ficcional como a dos Negros e a dos Brancos). Mas essas essncias sero sempre ambguas, e contra esta realidade emprica sempre tero de se defrontar os sistemas de classificao que tentarem estabelecer uma tipologia fundada

    predominantemente na cor da pele. Para alm da tipificao em Branco, Mulato ou Negro, poderemos tentar desdobrar novas

    tentativas de classificaes, e criar os conceitos de Mulato Escuro e Mulato Claro. Mas em todos estes casos estaremos apenas criando novas categorias essenciais. No plano essencial das Diferenas no existem gradaes (ou estados), mas sim categorias diferenciadas umas das outras. E aqui temos uma distino bsica entre as Diferenas e as Desigualdades. Enquanto o homem mais rico o outro plo do mais miservel, ou o homem livre o outro plo do escravo mais privado de liberdades sempre considerando o espectro de gradaes que existe nestes casos o Negro no o outro plo do Branco, nem o Ingls o outro plo do Indiano, e nem sequer o Homem o outro plo da Mulher. Aqui temos respectivamente diferenas de cor, diferenas de nacionalidade, diferenas de sexoviii.

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    De uma maneira mais simplificada, pode-se dizer que as Desigualdades relacionam-se mais

    freqentemente ao Estar ou mesmo ao Ter (pode-se ter mais riqueza, mais liberdade, mais direitos polticos), enquanto as Diferenas relacionam-se mais habitualmente ao Ser (ser negro, ser brasileiro, ser mulher). A compreenso destas distines fundamentais entre Diferena e Desigualdade imprescindvel para que se possa perceber como estas duas noes tm se relacionado entre si no mbito social, e como ambas relacionam-se com a noo de Igualdade. Este objeto de uma reflexo que desenvolvemos mais aprofundadamente em outra oportunidade, e cujo principal objetivo foi o de verificar as implicaes imaginrias, histricas e sociais de deslocamentos que ocorrem entre as duas noes como por exemplo, para o caso da Escravido, a possibilidade de avali-la alternativamente como Desigualdade ou Diferena.

    i Doutor em Histria Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor dos cursos de graduao e Mestrado da Universidade Severino Sombra (USS, Vassouras). ii BARROS, Jos. Igualdade, Desigualdade e Diferena. Vassouras: LESC, 2005. Texto publicado tambm em BARROS, Jos

    DAssuno, Igualdade, Desigualdade e Diferena: em torno de trs noes in Analise Social Revista do Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa. Vol.XI, vero de 2005. p.345-366. iii

    As diferenas entre os dois sexos, por exemplo, so naturalmente impositivas e evidentes. Mas pode-se estudar a construo scio-cultural da noo de Negro como designativa de um grupo tnico ou racial mais amplo. A noo de raa, por outro lado, tem sido objeto de muitas controvrsias seja no seio das cincias naturais, seja no seio das cincias humanas. Voltaremos a esta questo oportunamente. iv Neste extremo pode-se exemplificar com o projeto de eugenia proposto por alguns dirigentes do Nazismo alemo, que

    preconizava abolir diferenas seja atravs do extermnio (de judeus, negros, ciganos, eslavos) ou mesmo atravs de experincias genticas para atingir o tipo ariano puro e de programas de esterilizao de indivduos com caractersticas no desejveis. v Quando Aristteles reflete sobre a Desigualdade, por exemplo, no est preocupado com a desigualdade gerada pela escravido.

    Para ele, ponto pacfico que os escravos s poderiam deixar de existir em um mundo onde os fusos trabalhassem sozinhos. Ele pe-se a refletir sobre a desigualdade no mundo poltico, no mundo da cidadania. Tambm no tem qualquer preocupao em refletir sobre a desigualdade relacionada ao contraste entre o mundo feminino e o mundo masculino. vi Apenas em casos limites possvel a um indivduo redefinir o seu diferencial sexual no sentido biolgico (com uma operao de

    mudana de sexos) ou o seu diferencial tnico. Com relao aos diferenciais culturais (como a nacionalidade) podem ser reorientados com menos dificuldade. De qualquer modo, a reversibilidade entre Igualdade e Desigualdade (ou o deslocamento no eixo da igualdade / desigualdade) representa uma mudana de Estado, enquanto a reorientao de aspectos diferenciais implicaria em mudanas de Ser. vii

    A diferenciao biolgica entre os dois sexos talvez a nica espcie de diferenciao que pode ser dicotomizada em uma primeira instncia, parte os j citados casos excepcionais de hermafroditismo e outras ocorrncias raras dentro de um quadro mais amplo, e sem obviamente considerar aqui o mbito cultural e psicolgico das orientaes homossexuais, que j pertencem a outro campo de entendimento. Por outro lado, parte a dicotomia gerada pelo dimorfismo sexual, todos os demais mbitos de diferenciao que afetam os seres humanos nacionalidade, etnias, religio, profisso, faixas etrias, posicionamentos polticos, diferenas de cor da pele admitem mltiplas alternativas. viii

    Como toda regra exige excees, deve-se ressaltar que as diferenas etrias so as nicas que, de algum modo, poderiam ser examinadas a partir de um espectro de gradaes (considerando como extremos a idade zero representada pelo momento do nascimento e a idade limite que at hoje foi possvel de ser atingida pelo mais velho dos homens). Para alm disto, as diferenas etrias tambm constituem um caso especial porque so as nicas pelas quais ter de passar incessante e obrigatoriamente cada ser humano no decurso de sua vida.