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O conceito agostiniano de pecado original foi uma das principais armas usadas por Charles Baudelaire contra os filósofos do século XVIII. Em seus textos críticos, o poeta francês deixa transparecer que sua adesão ao dogma cristão funciona como um elemento de crítica ao pensamento iluminista, representado, especialmente, pelas teorias do bom selvagem e do progresso contínuo da humanidade. Ocupando um lugar central na cosmovisão de Baudelaire, o conceito de pecado original permanece, contudo, enclausurado no campo da especulação filosófica, isto é, nos limites dos “símbolos racionais”, tornando extremamente problemática sua aplicação direta à leitura de obras literárias como Les Fleurs du mal (1857) e Le Spleen de Paris (1869).
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BAUDELAIRE E A SIMBLICA DO MAL
Eduardo Horta Nassif Veras
Para Julia Magalhes
Resumo
O conceito agostiniano de pecado original foi uma das principais armas usadas por Charles Baudelaire
contra os filsofos do sculo XVIII. Em seus textos crticos, o poeta francs deixa transparecer que sua
adeso ao dogma cristo funciona como um elemento de crtica ao pensamento iluminista, representado,
especialmente, pelas teorias do bom selvagem e do progresso contnuo da humanidade. Ocupando um
lugar central na cosmoviso de Baudelaire, o conceito de pecado original permanece, contudo,
enclausurado no campo da especulao filosfica, isto , nos limites dos smbolos racionais, tornando extremamente problemtica sua aplicao direta leitura de obras literrias como Les Fleurs du mal
(1857) e Le Spleen de Paris (1869). Sob o risco de reduzir o discurso potico quele da filosofia,
preciso, portanto, retroceder na escala simblica traada por Paul Ricur em La Symbolique du mal (1960) a fim de compreender a relao da poesia baudelairiana com o problema do Mal. Para o filsofo
francs, bom lembrar, por detrs da especulao, no nvel pr-filosfico, sob a gnose e os construtos
antignsticos, encontram-se os mitos. Dessa forma, possvel afirmar que a experincia viva (exprience
vive) do Mal se manifesta de maneira muito mais contundente na dimenso simblica do mito da Queda
do que no conceito de pecado original, associado por Ricur, em La Symbolique du mal interprte (1969), a uma espcie de falso conhecimento (faux savoir). Com base na hermenutica dos smbolos
secundrios do mito, desenvolvida e colocada em prtica por Paul Ricur em sua anlise do mito de Ado, este artigo pretende refletir acerca da passagem da discusso filosfica para a experincia potica
do Mal no mbito da obra de Baudelaire.
Palavras-chave Poesia. Mito. Smbolo. Modernidade. Hermenutica.
Abstract
The Augustinian concept of original sin was one of the main weapons used by Charles Baudelaire against
the philosophers of the eighteenth century. In his critical texts, the French poet suggests that his
adherence to the Christian dogma works as a critical element to the Enlightenment thought, represented
especially by the theories of the noble savage and the continuous progress of mankind. The concept of
original sin occupies a central position in Baudelaires worldview; however, it remains confined in the field of philosophical speculation, that is, within the limits of "rational symbols", making it extremely
problematic to apply directly to the reading of literary works such as Les Fleurs du mal (1857) and Le
Spleen de Paris (1869). At the risk of reducing the poetic discourse to that one of philosophy, it is
therefore necessary to go back to the symbolic scale created by Paul Ricoeur in "La Symbolique du mal"
(1960) in order to understand the relationship of the Baudelairean poetry with the problem of Evil. For the
French philosopher, it is good to remember, myths are found behind the speculation, at the pre-
philosophical level, under the gnosis and the anti-gnostic constructs. In that way, it is possible to state that
the living experience (exprience vive) of the Evil manifests itself in a much more forceful manner in the
symbolic dimension of the myth of the Fall than in the concept of original sin, associated by Ricoeur in
"La Symbolique du mal interprte" (1969) to a sort of false knowledge (faux savoir). Based on the
hermeneutics of the secondary symbols of myth, developed and put into practice by Paul Ricoeur in his
analysis of the myth of Adam, this paper intends to reflect on the transition from philosophical discussion
to poetic experience of Evil in the scope of Baudelaires work.
Keywords Poetry. Myth. Symbol. Modernity. Hermeneutic.
Ps-doutorando em Teoria da Literatura / Professor Colaborador Universidade Estadual de Campinas
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Introduo
O conceito de pecado original foi a principal arma usada por Baudelaire contra
os filsofos do sculo XVIII e a teoria moderna do progresso defendida pela maioria
deles. Dialogando com a tradio agostiniana, atravs do contato direto com o
pensamento de Joseph de Maistre, Baudelaire especulou bastante sobre o tema do
pecado, especialmente em seus textos ntimos. Em Meu corao a nu, vemos o poeta se
levantar diversas vezes contra a crena moderna no progresso, baseada exclusivamente
no avano da tcnica e na melhoria das condies materiais de vida. A essa crena,
Baudelaire ope a retomada do dogma do pecado original, no qual fundamenta uma
noo radicalmente oposta de progresso:
Acreditar no progresso uma crena de preguiosos, uma doutrina belga. Prpria daquele que
conta com os vizinhos para fazer o seu trabalho. No pode haver progresso (verdadeiro, isto ,
moral) a no ser no indivduo e pelo prprio indivduo (BAUDELAIRE: 1995, p. 528).
As implicaes ticas da retomada baudelairiana do conceito agostiniano so
mais do que evidentes. A teoria do progresso contnuo e automtico da humanidade
vista pelo poeta como uma forma de reproduzir acriticamente os vcios humanos. Por
isso, apenas o exerccio de autovigilncia constante, no indivduo e pelo indivduo,
capaz de fazer a humanidade avanar, no tanto no domnio da natureza exterior, mas no
combate s ms inclinaes do homem. Esse raciocnio tico s poderia estar
fundamentado numa antropologia pessimista, que fizesse frente teoria rousseauniana
do bom selvagem ou da bondade natural do ser humano. nesse sentido que Baudelaire
planeja, mais uma vez em Meu corao a nu, um captulo sobre a indestrutvel, eterna,
universal e engenhosa ferocidade dos homens (BAUDELAIRE, 1995, p. 538).
A viso do homem como um ser naturalmente depravado (BAUDELAIRE:
1995, p. 515), representada pelo dogma do pecado original, funciona como um
verdadeiro postulado tico e esttico para Baudelaire, fundamentando todas as
dimenses de sua viso de mundo, incluindo sua concepo de arte e de poesia. A
persistncia do pecado, que atravessa todas as fases da histria da humanidade,
confirmando assim seu carter primordial, mtico, pr-histrico, pode ser apreciada em
trechos como este, que corresponde ao ltimo pargrafo do ensaio consagrado por
Baudelaire ao romance Os miserveis, de Victor Hugo: Ai de ns! do Pecado Original,
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mesmo depois de todo o progresso h tanto tempo prometido, sempre restaro traos
demais para constatar sua imemorial realidade! (BAUDELAIRE: 1995, p. 622). E
justamente a crena na eternidade do pecado que faz o poeta colocar em xeque a teoria
moderna do progresso.
Baudelaire e a simblica do mal
Mesmo ocupando um lugar central na viso de mundo baudelairiana, o conceito
de pecado original permanece, contudo, enclausurado no campo da especulao, da
abstrao filosfica, dos smbolos racionais, para retomar a classificao proposta por
Paul Ricur (2009). A aplicao desse conceito anlise da experincia potica de
Baudelaire torna-se, portanto, bastante problemtica. Qualquer tentativa de ler as Flores
do mal e o Spleen de Paris luz da noo de pecado original enfrentaria srias
dificuldades para ultrapassar o plano dos temas, isto , do discurso ainda que potico
sobre o mal. Trata-se, sem dvida, de uma discusso envelhecida no mbito da crtica
baudelairiana, que j se debruou diversas vezes, e com bastante qualidade, sobre a
concepo de pecado e sobre o conceito de mal trabalhados pelo poeta em sua obra.
Nossa inteno fugir da abordagem temtica do mal em prol de um exame formal, e
em certos aspectos metapotico, da experincia baudelairiana do pecado e do mal. Est
mais do que evidente que esse projeto nos obriga a abandonar, paulatinamente, o campo
abstrato dos conceitos e a nos lanarmos na estrada da experincia viva (RICUR,
2009). Num movimento de meia-volta na escala fenomenolgica traada por Ricur,
nosso ponto de chegada ser a dimenso do smbolo mtico da Queda, imediatamente
anterior quela do smbolo racional do pecado original e, portanto, mais prxima da
experincia primitiva primeira do mal humano.
preciso retomar o conceito ricuriano de mito para poder avanar. Esse
conceito se caracteriza pelo encontro das visadas fenomenolgica e hermenutica, pela
associao direta com a noo de smbolo, que, por sua vez, aponta para a importncia
central do elemento narrativo inerente ao mito:
Compreender-se- aqui por mito o mesmo que a histria das religies compreende hoje em dia:
no uma falsa explicao por meio de imagens e de fbulas, mas uma narrativa tradicional,
sobre elementos ligados origem dos tempos, e destinada a fundar a ao ritual dos homens de
hoje e, de maneira geral, a instituir todas as formas de ao e de pensamento pelas quais o
homem se compreende no seu mundo. Para ns, modernos, o mito somente mito, pois ns
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no podemos mais religar esse tempo ao tempo da histria tal qual ns a escrevemos segundo o
mtodo crtico, tampouco reatar os lugares do mito ao espao de nossa geografia; por isso, o
mito no pode mais ser uma explicao; excluir sua inteno etiolgica o tema de toda
desmitificao necessria. Mas perdendo suas pretenses explicativas o mito revela sua
vocao exploratria e compreensiva, o que ns chamaremos mais frente sua funo
simblica, ou seja, seu poder de descobrir, de desvelar a ligao do homem com o seu sagrado.
Por mais paradoxal que possa parecer, o mito, desmitologizado dessa forma ao contato com a
histria cientfica e elevado dignidade de smbolo, uma dimenso do pensamento moderno
(RICUR: 2009, p. 207; traduo nossa)1.
O ponto de partida de Paul Ricur e tambm o nosso no poderia
simplesmente negar as conquistas da crtica moderna. Para ns, modernos, que nos
movemos na episteme do mtodo crtico, o mito no explica, de fato, absolutamente
nada. Contudo, nossa posio de observadores externos ao contexto cultual nos permite
entrar em contato, de forma privilegiada, com outras potencialidades do mito,
diretamente relacionadas, segundo Ricur, sua funo simblica, isto , ao poder de
descobrir, de desvelar o lao do homem com o seu sagrado. Desmitificado pela
crtica, mas recuperado pela associao com o smbolo, o mito ganha novo lugar no
pensamento moderno, que nele encontra um verdadeiro convite reflexo.
Ricur trabalha com um conceito de smbolo bastante diferente daquele
defendido pelos romnticos alemes e, anos mais tarde, criticado por Benjamin em
Origem do drama trgico alemo. Para o filsofo francs, o smbolo se define,
primeiramente, como um signo que contm em sua visada uma dupla intencionalidade,
constituda pelo lao analgico dos sentidos literal e simblico. Nessa relao, o
sentido literal que comanda a analogia. Se para os romnticos alemes o smbolo se
apresenta como uma espcie de viso epifnica da totalidade, em Ricur, ao contrrio,
ele constitui o prprio fenmeno lingustico em suas diversas modulaes na escala
balizada pelos extremos inalcanveis da concretude e da abstrao absolutas,
1 On entendra ici par mythe ce que lhistoire des religions y discerne aujourdhui : non point une fausse
explication par le moyen dimages et de fables, mais un recit traditionnel, portant sur des lments arrivs lorigine des temps et destin fonder laction rituelle des hommes daujourdhui et de manire gnrale instituer toutes les formes daction et de pense par lequelles lhomme se comprend lui-mme dans son monde. Pour nous, modernes, le mythe est seulement mythe parce que nous ne
pouvons plus relier ce temps celui de lhistoire telle que nous lcrivons selon la mthode critique, ni non plus rattacher les lieux du mythe lespace de notre gographie ; cest pourquoi le mythe ne peut plus tre une explication ; exclure son intention tiologique, cest le thme de toute ncessaire dmythologisation. Mais en perdant ses prtentions explicatives le mythe rvle sa porte exploratoire
et comprhensive, ce que nous appellerons plus loin sa fonction symbolique, cest--dire son pouvoir de dcouvrir, de dvoiler le lien de lhomme son sacr. Aussi paradoxal quil paraisse, le mythe, ainsi dmythologis au contact de lhistoire scientifique et lv la dignit de symbole, est une dimension de la pense moderne. RICUR, Paul. Mythe linterprtation philosophique. IN: Encyclopedia Universalis. Disponvel em http://www.universalis-edu.com/ acessado em 20/04/2012.
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categorias que extrapolam os limites da conscincia. Nesse sentido, vale ressaltar que,
para Ricur, nem mesmo os smbolos primrios, aqueles menos contaminados pelo
logos e, portanto, linguisticamente mais concretos, podem coincidir por completo com a
experincia viva, que, em ltima instncia, no pode ser recuperada por ns.2 Em outras
palavras, a superao da fratura que separa as coisas e os smbolos algo inconcebvel
para a fenomenologia hermenutica de Paul Ricur.
Esse fato promove um deslocamento do conceito de smbolo, inviabilizando a
tradicional oposio com a alegoria, identificada na tradio alem que vai dos
romnticos a Walter Benjamin. Ricur entende que smbolo e alegoria no podem se
opor pelo simples fato de que no ocupam o mesmo plano. Historicamente, a alegoria
foi concebida menos como um procedimento literrio que como uma forma de
tratamento dos mitos, identificando-se, portanto, mais com a instncia do leitor que com
a do produtor. Ricur cita como exemplo as interpretaes estoicas dos mitos de
Homero e Hesodo, que buscavam encontrar uma espcie de filosofia disfarada sob as
narrativas mticas. nesse sentido que o filsofo francs prefere falar em interpretao
alegrica a falar em alegoria:
Interpretar , portanto, penetrar o disfarce e, por isso mesmo, torn-lo intil; em outras
palavras, a alegoria foi muito mais uma modalidade hermenutica que uma criao espontnea
de signos. Seria melhor falar, pois, em interpretao alegorizante que em alegoria (RICUR: 2009, p. 219; traduo nossa)
3.
Assim, possvel dizer, ainda com Paul Ricur, que o smbolo precede a
hermenutica, ao passo que a alegoria j se realiza como interpretao. Essa
diferenciao muito importante para a compreenso da inteno alegrica4
2 Muito se fala a respeito da virada hermenutica que ocorre no pensamento de Paul Ricur no final da
dcada de setenta. Ora, justamente nesse momento, em A Simblica do mal, que a hermenutica chamada a colaborar com a fenomenologia. O fenmeno da experincia judaico-crist do mal s se
torna acessvel anlise quando materializado em signos, isto , nos smbolos interpretveis da
confisso dos pecados (primrio), do mito da Queda (secundrio) e do conceito de pecado original
(tercirio). Tudo o que extrapola os limites da linguagem, portanto, escapa ao alcance da filosofia
crtica, passando a interessar somente aos msticos. Sobre a relao entre hermenutica e
fenomenologia no pensamento de Paul Ricur, cf. os captulos II e III do excelente livro de Marcelino Villaverde, Paul Ricur: a fora da razo compartida (2003).
3 Intrpreter cest alors percer le dguisement et par l mme le rendre inutile; autrement dit lallgorie a
t beaucoup plus une modalit de lhermneutique quune cration spontan de signes. Il vaudrait mieux parler alors dinterprtation allgorisante que dallgorie.
4 Cf. arquivo [J 56,1] da obra das Passagens (2006). Neste trecho, Benjamin chama a ateno para a
duplicidade da inteno alegrica em Baudelaire e para sua ligao com as runas. Ao afirmar que o impulso destrutivo de Baudelaire em parte alguma est interessado na abolio daquilo que ele atinge
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identificada por Walter Benjamin na poesia de Baudelaire. A adeso baudelairiana
hermenutica alegrica est longe de deslegitimar o dilogo do poeta com o mito, que,
pensado luz da teoria simblica de Paul Ricur, constitui o verdadeiro enquadramento
do processo de alegorizao aos quais os objetos so submetidos na poesia de
Baudelaire. Em outras palavras, acreditamos que, na potica baudelairiana, o mito
metonimicamente representado, no ocidente, pelo episdio bblico da Queda contm,
prev e fundamenta a prpria alegoria5.
Ricur define o mito como uma espcie de smbolo desenvolvido em
forma narrativa, articulado num tempo no coordenvel quele da histria e da
geografia segundo o mtodo crtico (RICUR, 2009, p. 221). Trata-se, como vimos, de
uma categoria intermediria, posicionada entre os smbolos primrios, mais prximos
da experincia viva, e os smbolos racionais, identificados aos conceitos filosficos.
Definitivamente desligado do contexto cultual, no qual desempenhava uma funo
predominantemente etiolgica, fornecendo explicaes para os fenmenos da realidade,
o mito ressignificado pelo pensamento moderno. Segundo Ricur,
precisamente porque ns vivemos e pensamos aps a separao do mito e da histria, a
desmitificao de nossa histria pode se transformar no inverso de uma compreenso do mito
como mito e a conquista, pela primeira vez na histria da cultura, da dimenso mtica
(RICUR: 2009, p. 372; traduo nossa)6.
Assim, o mito deixa de significar algo, perde sua capacidade de explicar de
forma direta o sentido das coisas e passa a funcionar como manifestao simblica de
uma experincia irredutvel abstrao. Em sua hiptese de trabalho, Ricur apresenta
as trs funes dos mitos do mal, repensados luz da crtica moderna. A primeira delas,
definida pelo filsofo como universalidade concreta, a de englobar a humanidade
como um todo em uma histria exemplar; a segunda est ligada capacidade de
orientao temporal, diretamente relacionada ao carter narrativo dos mitos, e a terceira
se define como explorao ontolgica, que se fundamenta no poder dos mitos de
desvelar a relao o salto e a passagem, o corte e a sutura do ser essencial do homem
(p. 374), Benjamin sugere que o objeto alegorizado, embora segregado das relaes da vida, conserva em seus fragmentos uma espcie de memria da totalidade.
5 Nesse sentido, a hermenutica alegrica seria um momento da experincia mtica da Queda do homem.
6 Prcisment parce que nous vivons et pensons aprs la sparation du mythe et de lhistoire, la
dmythisation de notre histoire peut devenir lenvers dune comprhension du mythe comme mythe et la conqute, pour la premire fois dans lhistoire de la culture, de la dimension mythique.
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com sua existncia histrica (RICUR, 2009, p. 372-373).7 Essas trs funes marcam
a diferena do mito em relao s outras duas formas simblicas. Entre a manifestao
desarticulada dos smbolos primrios e a funo explicativa dos smbolos racionais, aos
quais se associa o conceito de pecado original, o mito se caracteriza como uma narrativa
capaz de reproduzir graas ao elemento temporal que lhe intrnseco o movimento,
a dinmica, o conflito, o drama, a tenso que caracteriza toda histria exemplar
orientada de um Comeo em direo a um Fim, em outras palavras, a transio de uma
natureza essencial a uma histria alienada (RICUR: 2009, p. 380).
O mito da Queda aparece, no quadro tipolgico dos mitos da origem e do fim do
mundo traado por Paul Ricur, ao lado de trs outras grandes narrativas: o drama da
criao, identificvel aos mitos teognicos sumero-acadianos e s teogonias de Homero
e Hesodo; o mito trgico, marcado pela concepo maligna da figura de Deus, presente
em especial nas tragdias gregas, e finalmente o mito da alma exilada, frequentemente
confundido com o mito da Queda, mas cuja verdadeira origem se associa ao dualismo
platnico e viso rfica do mundo. Paul Ricur empreende uma cuidadosa anlise de
cada um desses mitos, discutindo inclusive seus pontos de contato, mas sempre
destacando o papel predominante do mito bblico para a cultura ocidental, ponto de
partida inalienvel da hermenutica proposta pelo filsofo.
A curta narrativa contida em Gnese 2 3 suficientemente conhecida de todos.
A histria de Ado e Eva, expulsos por Deus do Jardim do den aps cederem
tentao da Serpente e comerem do fruto proibido, foi retomada milhares de vezes na
histria da arte e da literatura. Baudelaire no esteve alheio a essa tradio, tendo
dialogado, em sua obra, com praticamente todos os mitemas e imagens de que se
constitui a narrativa bblica. Embora importante para a compreenso da potica
baudelairiana, a retomada desses elementos no explica por si s o dilogo do poeta
com o mito da Queda. preciso, portanto, ultrapassar a instncia temtica para
7 Ao apresentar essas trs funes, Paul Ricur insiste mais uma vez em destacar a distncia que separa
sua perspectiva da tradicional interpretao alegrica do mito: On peut dj deviner combien nous nous loignons dune interprtation purement allgorisante du mythe. Lallgorie est toujours susceptible dtre traduite dans un texte intelligible par lui-mme ; une fois ce meilleur texte dchiffr, lallgorie tombe comme un vtement inutile ; ce que lallgorie montrait en le cachant peut tre dit dans un discours direct qui se substitue elle. Par sa triple fonction duniversalit concrte, dorientation temporelle et enfin dexploration ontologique, le mythe a une faon de rvler, irrductible toute traduction dun langage chiffr en un langage clair ; comme Schelling la montr dans sa Philosophie de la Mythologie, le mythe est autonome et immdiat : il signifie ce quil dit. (RICUR: 2009, p. 373)
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compreender melhor esse dilogo, que se d principalmente na dinmica, no
movimento, no ritmo, no carter dramtico e tenso que fundamenta a potica de
Baudelaire.
O mito da Queda o mito antropolgico por excelncia. Em contraposio s
outras trs narrativas tpicas, ele o nico que associa o surgimento do mal diretamente
criao do homem. Ado o representante mtico de todo ser humano. Quem diz
Ado, diz Homem. Na perspectiva de Paul Ricur, a ideia segundo a qual o mito de
Ado o nico propriamente antropognico, pode ser compreendida em funo de trs
traos: o primeiro deles se refere ao fato de a origem do mal se identificar a um
ancestral da humanidade atual Ado cuja condio idntica nossa; o segundo
trao diz respeito tentativa extrema, por parte do mito da Queda, de duplicar a origem
do mal, demonstrando que ele j estava presente no Jardim, conforme sugere a figura da
Serpente, mas iniciado de fato pela ao transgressora de Ado; o terceiro trao
corresponde multiplicidade de personagens, pois, alm da figura central do Homem
primordial, o mito da Queda coloca em cena uma srie de contrapolos, como as figuras
de Eva e da Serpente, que desempenham tambm um papel importante na interpretao
do mito (RICUR: 2009, p. 445 448).
Alm desses traos, importante considerar que o mito da Queda ou de Ado,
como queria Paul Ricur concentra-se num evento que simboliza a ruptura de dois
regimes ontolgicos. Isso nos leva a descartar imediatamente uma leitura cronolgica do
mito e a consider-lo como origem atemporal dos fatos humanos. A compreenso desse
evento depende da estrutura narrativa do mito, portanto do seu elemento significante,
como ocorre de forma mais ou menos intensa com toda manifestao simblica. Ricur
analisa essa estrutura a partir da convergncia de dois esquemas, que aponta para a
duplicidade rtmica do mito da Queda: o primeiro deles refere-se ao evento nico do
pecado de Ado, e o segundo, ao desdobramento do drama em diversos episdios e
personagens (RICUR: 2009, p. 457). preciso considerar os dois esquemas, ainda
que paream contraditrios, para compreender o sentido do mito. Em primeiro lugar, a
ideia de uma ruptura brusca entre os dois regimes ontolgicos coloca em destaque o
carter ambguo do Homem, criado bom e tornado mau.
Contudo, a ideia de uma ruptura brusca e radical entre os dois regimes
ontolgicos deve ser relativizada pelo segundo esquema mtico, que apresenta a
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passagem da inocncia para o pecado como um processo lento de transio, simbolizado
principalmente na figura da serpente. No ensaio Penser la cration, que integra o livro
Penser la Bible (1998), escrito em parceria com o telogo Andr LaCoque, Paul Ricur
desenvolve a contraposio dos dois esquemas mticos, opondo ideia de ruptura
brusca a ideia de separao progressiva (sparation progressive). Nessa perspectiva, o
mito da Queda no sugeriria, a despeito de seu carter narrativo, a existncia de dois
estados sucessivos o da inocncia primordial e o da perdio no seio da histria , mas
a ideia de uma progresso na separao, no interior mesmo da nica histria
primordial, separao que culmina na condio miservel representada pelo episdio da
expulso do jardim (RICUR: 1998, p. 70 traduo nossa).8 Nesse sentido,
possvel afirmar que os eventos que se passam fora do den, aps a expulso,
continuam a mesma histria primordial (RICUR: 1998, p. 73).
O esquema da separao progressiva apresenta, ainda, duas consequncias
teolgicas considerveis. A primeira delas diz respeito associao direta com a
Criao. Ricur observa que a separao um elemento constituinte do Homem, pois
ela que garante a distino essencial entre criador e criatura (RICUR: 1998, p. 66).
Dessa forma, a separao progressiva funciona ao mesmo tempo como um
distanciamento do regime ontolgico divino e como afirmao da identidade e da
responsabilidade humana. A outra consequncia diz respeito permanncia de
elementos divinos na constituio do Homem decado.
O que Paul Ricur entende por antropologia da ambiguidade (anthropologie de
lambiguit) corresponde, primeiramente, dupla experincia da ruptura e do
distanciamento progressivo em relao a Deus, e, em segundo lugar, tenso insolvel,
pois essencial condio humana, entre o sentimento da falta e a permanncia de
elementos divinos, que remetem condio original do Homem.
Consideraes finais
Para muito alm da simples retomada de imagens e mitemas, a poesia e a potica
de Baudelaire apresentam uma srie de elementos afins ao mito da Queda, tal qual ele
8 (...) lide dune progression dans la sparation, lintrieure de lunique histoire primordiale,
sparation qui culmine dans la condition misrable reprsente par lpisode de lexpulsion du jardin.
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pensando pela hermenutica ricuriana. O carter essencialmente ambguo do Homem,
espremido entre a maldade natural e a sede de infinito, tantas vezes evocado por
Baudelaire, como no famoso aforismo de Meu corao a nu sobre as duas postulaes
simultneas presentes, a toda hora, em todo indivduo,9 exerce influncia direta sobre a
concepo de poesia do poeta francs, conforme sugere o prprio ttulo de sua obra
prima As Flores do mal. A ideia segundo a qual a separao se constitui na distino
essencial entre Deus e os homens, contempornea do prprio evento da Criao,
repercute tambm em Baudelaire, para quem o aparecimento do Homem representa, em
ltima instncia, a queda do prprio Deus, doravante desnecessrio, pois essencialmente
distinto e inalcanvel, aventura humana na terra.10
A poesia, a arte moderna de
Baudelaire se realiza nesse espao da ambiguidade, da ruptura entre os regimes
ontolgicos e da experincia da separao progressiva, da conscincia dos limites
humanos e da permanncia da sede de transcendncia.
Por fim, o dilogo de Baudelaire com o mito da Queda coloca em evidncia
outros dois pontos fundamentais para a sua potica: o problema dos resqucios de
correspondncia presentes na linguagem potica e a postura crtica em relao ao mito
em geral como instncia de contato com o tempo primordial. Baudelaire concebe a
linguagem como signo maior da ambiguidade humana. Intimamente associada
experincia da queda, e, portanto, ruptura entre os regimes ontolgicos de Deus e do
Homem, a linguagem humana carrega consigo tanto a marca da relatividade quanto os
resqucios de sacralidade, isto , de ligao com a unidade perdida.
A passagem da discusso conceitual para a experincia potica deve ser
acompanhada de uma passagem do conceito de pecado original para o mito da Queda,
compreendido, luz da hermenutica de Paul Ricur, como um smbolo pr-
especulativo. Isso significa que a poesia de Baudelaire no deve ser lida luz da teoria
do pecado, mas aproximada da estrutura simblica do mito de Ado. A experincia
potica de Baudelaire assemelha-se em diversos aspectos do Homem que se submete
desde a criao a um processo de separao progressiva em relao ao Criador.
9 H em todo indivduo, ao mesmo tempo, duas postulaes simultneas: uma em direo a Deus, outra a
Sat. A invocao a Deus, ou espiritualidade, sempre um desejo de nos elevarmos; a de Sat, ou
animalidade, um comprazer-se na queda (BAUDELAIRE: 1995, p. 529). 10
Outra vez em Meu corao a nu, podemos ler o seguinte aforismo: A Teologia. Em que que consiste a queda? Se a unidade feita em dualidade, ento foi Deus quem caiu. Ou, posto em outros termos,
no ser a criao a prpria queda de Deus? (BAUDELAIRE: 1995, p. 534).
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Todavia, a consequncia mais interessante desse dilogo encontra-se em uma
espcie de absolutizao da queda empreendida pelo poeta francs. As constantes
referncias ao cristianismo e figura do Cristo ao longo dos poemas das Flores do mal
nos levam a crer que a adeso de Baudelaire ao mito da Queda no pode ser
compreendida sem que se considere seu papel tipolgico, ou seja, sua relao direta
com a Histria da Salvao, conforme a exegese cannica proposta por So Paulo.
Segundo essa exegese, a figura de Ado s faz sentido em funo da posterior vinda do
Cristo. Essa leitura promove a substituio do pessimismo da Queda pelo otimismo da
Salvao (Cf. RICUR, 2009, p. 489), que est na base do pensamento escatolgico.
A recusa da salvao em Cristo um dos momentos mais dramticos das Flores
do mal, podendo ser interpretado como uma afirmao da dignidade da condio
humana diante do silncio de Deus. Elegendo So Pedro e, mais intensamente, Caim
como heris, Baudelaire realiza um dos tpicos anunciados no mito da Queda: a
afirmao da identidade maldita da criatura humana na separao progressiva em
relao ao Criador.
A negao de Cristo empreende uma espcie de reverso da tipologia cannica,
promovendo uma ressignificao do mito da Queda, que passa a reinar absoluto, uma
vez desmembrado do esquema escatolgico, na viso de mundo baudelairiana. Isso
significa que o mito de Ado arrancando de seu contexto teolgico, liberado de sua
priso sistemtica, para se transformar no mito da maldio eternizada, ou seja, num
smbolo da ciso irreversvel entre os tempos profano e sagrado, num paradoxo que faz
jus ambiguidade inerente ao pensamento e arte de Baudelaire.
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Referncias
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20/04/2012.