BAUDELAIRE E A SIMBÓLICA DO MAL

Embed Size (px)

DESCRIPTION

O conceito agostiniano de pecado original foi uma das principais armas usadas por Charles Baudelaire contra os filósofos do século XVIII. Em seus textos críticos, o poeta francês deixa transparecer que sua adesão ao dogma cristão funciona como um elemento de crítica ao pensamento iluminista, representado, especialmente, pelas teorias do bom selvagem e do progresso contínuo da humanidade. Ocupando um lugar central na cosmovisão de Baudelaire, o conceito de pecado original permanece, contudo, enclausurado no campo da especulação filosófica, isto é, nos limites dos “símbolos racionais”, tornando extremamente problemática sua aplicação direta à leitura de obras literárias como Les Fleurs du mal (1857) e Le Spleen de Paris (1869).

Citation preview

  • BAUDELAIRE E A SIMBLICA DO MAL

    Eduardo Horta Nassif Veras

    Para Julia Magalhes

    Resumo

    O conceito agostiniano de pecado original foi uma das principais armas usadas por Charles Baudelaire

    contra os filsofos do sculo XVIII. Em seus textos crticos, o poeta francs deixa transparecer que sua

    adeso ao dogma cristo funciona como um elemento de crtica ao pensamento iluminista, representado,

    especialmente, pelas teorias do bom selvagem e do progresso contnuo da humanidade. Ocupando um

    lugar central na cosmoviso de Baudelaire, o conceito de pecado original permanece, contudo,

    enclausurado no campo da especulao filosfica, isto , nos limites dos smbolos racionais, tornando extremamente problemtica sua aplicao direta leitura de obras literrias como Les Fleurs du mal

    (1857) e Le Spleen de Paris (1869). Sob o risco de reduzir o discurso potico quele da filosofia,

    preciso, portanto, retroceder na escala simblica traada por Paul Ricur em La Symbolique du mal (1960) a fim de compreender a relao da poesia baudelairiana com o problema do Mal. Para o filsofo

    francs, bom lembrar, por detrs da especulao, no nvel pr-filosfico, sob a gnose e os construtos

    antignsticos, encontram-se os mitos. Dessa forma, possvel afirmar que a experincia viva (exprience

    vive) do Mal se manifesta de maneira muito mais contundente na dimenso simblica do mito da Queda

    do que no conceito de pecado original, associado por Ricur, em La Symbolique du mal interprte (1969), a uma espcie de falso conhecimento (faux savoir). Com base na hermenutica dos smbolos

    secundrios do mito, desenvolvida e colocada em prtica por Paul Ricur em sua anlise do mito de Ado, este artigo pretende refletir acerca da passagem da discusso filosfica para a experincia potica

    do Mal no mbito da obra de Baudelaire.

    Palavras-chave Poesia. Mito. Smbolo. Modernidade. Hermenutica.

    Abstract

    The Augustinian concept of original sin was one of the main weapons used by Charles Baudelaire against

    the philosophers of the eighteenth century. In his critical texts, the French poet suggests that his

    adherence to the Christian dogma works as a critical element to the Enlightenment thought, represented

    especially by the theories of the noble savage and the continuous progress of mankind. The concept of

    original sin occupies a central position in Baudelaires worldview; however, it remains confined in the field of philosophical speculation, that is, within the limits of "rational symbols", making it extremely

    problematic to apply directly to the reading of literary works such as Les Fleurs du mal (1857) and Le

    Spleen de Paris (1869). At the risk of reducing the poetic discourse to that one of philosophy, it is

    therefore necessary to go back to the symbolic scale created by Paul Ricoeur in "La Symbolique du mal"

    (1960) in order to understand the relationship of the Baudelairean poetry with the problem of Evil. For the

    French philosopher, it is good to remember, myths are found behind the speculation, at the pre-

    philosophical level, under the gnosis and the anti-gnostic constructs. In that way, it is possible to state that

    the living experience (exprience vive) of the Evil manifests itself in a much more forceful manner in the

    symbolic dimension of the myth of the Fall than in the concept of original sin, associated by Ricoeur in

    "La Symbolique du mal interprte" (1969) to a sort of false knowledge (faux savoir). Based on the

    hermeneutics of the secondary symbols of myth, developed and put into practice by Paul Ricoeur in his

    analysis of the myth of Adam, this paper intends to reflect on the transition from philosophical discussion

    to poetic experience of Evil in the scope of Baudelaires work.

    Keywords Poetry. Myth. Symbol. Modernity. Hermeneutic.

    Ps-doutorando em Teoria da Literatura / Professor Colaborador Universidade Estadual de Campinas

  • P E R I v . 0 6 n . 0 2 2 0 1 4 p . 3 9 - 5 0 4 0

    Introduo

    O conceito de pecado original foi a principal arma usada por Baudelaire contra

    os filsofos do sculo XVIII e a teoria moderna do progresso defendida pela maioria

    deles. Dialogando com a tradio agostiniana, atravs do contato direto com o

    pensamento de Joseph de Maistre, Baudelaire especulou bastante sobre o tema do

    pecado, especialmente em seus textos ntimos. Em Meu corao a nu, vemos o poeta se

    levantar diversas vezes contra a crena moderna no progresso, baseada exclusivamente

    no avano da tcnica e na melhoria das condies materiais de vida. A essa crena,

    Baudelaire ope a retomada do dogma do pecado original, no qual fundamenta uma

    noo radicalmente oposta de progresso:

    Acreditar no progresso uma crena de preguiosos, uma doutrina belga. Prpria daquele que

    conta com os vizinhos para fazer o seu trabalho. No pode haver progresso (verdadeiro, isto ,

    moral) a no ser no indivduo e pelo prprio indivduo (BAUDELAIRE: 1995, p. 528).

    As implicaes ticas da retomada baudelairiana do conceito agostiniano so

    mais do que evidentes. A teoria do progresso contnuo e automtico da humanidade

    vista pelo poeta como uma forma de reproduzir acriticamente os vcios humanos. Por

    isso, apenas o exerccio de autovigilncia constante, no indivduo e pelo indivduo,

    capaz de fazer a humanidade avanar, no tanto no domnio da natureza exterior, mas no

    combate s ms inclinaes do homem. Esse raciocnio tico s poderia estar

    fundamentado numa antropologia pessimista, que fizesse frente teoria rousseauniana

    do bom selvagem ou da bondade natural do ser humano. nesse sentido que Baudelaire

    planeja, mais uma vez em Meu corao a nu, um captulo sobre a indestrutvel, eterna,

    universal e engenhosa ferocidade dos homens (BAUDELAIRE, 1995, p. 538).

    A viso do homem como um ser naturalmente depravado (BAUDELAIRE:

    1995, p. 515), representada pelo dogma do pecado original, funciona como um

    verdadeiro postulado tico e esttico para Baudelaire, fundamentando todas as

    dimenses de sua viso de mundo, incluindo sua concepo de arte e de poesia. A

    persistncia do pecado, que atravessa todas as fases da histria da humanidade,

    confirmando assim seu carter primordial, mtico, pr-histrico, pode ser apreciada em

    trechos como este, que corresponde ao ltimo pargrafo do ensaio consagrado por

    Baudelaire ao romance Os miserveis, de Victor Hugo: Ai de ns! do Pecado Original,

  • P E R I v . 0 6 n . 0 2 2 0 1 4 p . 3 9 - 5 0 4 1

    mesmo depois de todo o progresso h tanto tempo prometido, sempre restaro traos

    demais para constatar sua imemorial realidade! (BAUDELAIRE: 1995, p. 622). E

    justamente a crena na eternidade do pecado que faz o poeta colocar em xeque a teoria

    moderna do progresso.

    Baudelaire e a simblica do mal

    Mesmo ocupando um lugar central na viso de mundo baudelairiana, o conceito

    de pecado original permanece, contudo, enclausurado no campo da especulao, da

    abstrao filosfica, dos smbolos racionais, para retomar a classificao proposta por

    Paul Ricur (2009). A aplicao desse conceito anlise da experincia potica de

    Baudelaire torna-se, portanto, bastante problemtica. Qualquer tentativa de ler as Flores

    do mal e o Spleen de Paris luz da noo de pecado original enfrentaria srias

    dificuldades para ultrapassar o plano dos temas, isto , do discurso ainda que potico

    sobre o mal. Trata-se, sem dvida, de uma discusso envelhecida no mbito da crtica

    baudelairiana, que j se debruou diversas vezes, e com bastante qualidade, sobre a

    concepo de pecado e sobre o conceito de mal trabalhados pelo poeta em sua obra.

    Nossa inteno fugir da abordagem temtica do mal em prol de um exame formal, e

    em certos aspectos metapotico, da experincia baudelairiana do pecado e do mal. Est

    mais do que evidente que esse projeto nos obriga a abandonar, paulatinamente, o campo

    abstrato dos conceitos e a nos lanarmos na estrada da experincia viva (RICUR,

    2009). Num movimento de meia-volta na escala fenomenolgica traada por Ricur,

    nosso ponto de chegada ser a dimenso do smbolo mtico da Queda, imediatamente

    anterior quela do smbolo racional do pecado original e, portanto, mais prxima da

    experincia primitiva primeira do mal humano.

    preciso retomar o conceito ricuriano de mito para poder avanar. Esse

    conceito se caracteriza pelo encontro das visadas fenomenolgica e hermenutica, pela

    associao direta com a noo de smbolo, que, por sua vez, aponta para a importncia

    central do elemento narrativo inerente ao mito:

    Compreender-se- aqui por mito o mesmo que a histria das religies compreende hoje em dia:

    no uma falsa explicao por meio de imagens e de fbulas, mas uma narrativa tradicional,

    sobre elementos ligados origem dos tempos, e destinada a fundar a ao ritual dos homens de

    hoje e, de maneira geral, a instituir todas as formas de ao e de pensamento pelas quais o

    homem se compreende no seu mundo. Para ns, modernos, o mito somente mito, pois ns

  • P E R I v . 0 6 n . 0 2 2 0 1 4 p . 3 9 - 5 0 4 2

    no podemos mais religar esse tempo ao tempo da histria tal qual ns a escrevemos segundo o

    mtodo crtico, tampouco reatar os lugares do mito ao espao de nossa geografia; por isso, o

    mito no pode mais ser uma explicao; excluir sua inteno etiolgica o tema de toda

    desmitificao necessria. Mas perdendo suas pretenses explicativas o mito revela sua

    vocao exploratria e compreensiva, o que ns chamaremos mais frente sua funo

    simblica, ou seja, seu poder de descobrir, de desvelar a ligao do homem com o seu sagrado.

    Por mais paradoxal que possa parecer, o mito, desmitologizado dessa forma ao contato com a

    histria cientfica e elevado dignidade de smbolo, uma dimenso do pensamento moderno

    (RICUR: 2009, p. 207; traduo nossa)1.

    O ponto de partida de Paul Ricur e tambm o nosso no poderia

    simplesmente negar as conquistas da crtica moderna. Para ns, modernos, que nos

    movemos na episteme do mtodo crtico, o mito no explica, de fato, absolutamente

    nada. Contudo, nossa posio de observadores externos ao contexto cultual nos permite

    entrar em contato, de forma privilegiada, com outras potencialidades do mito,

    diretamente relacionadas, segundo Ricur, sua funo simblica, isto , ao poder de

    descobrir, de desvelar o lao do homem com o seu sagrado. Desmitificado pela

    crtica, mas recuperado pela associao com o smbolo, o mito ganha novo lugar no

    pensamento moderno, que nele encontra um verdadeiro convite reflexo.

    Ricur trabalha com um conceito de smbolo bastante diferente daquele

    defendido pelos romnticos alemes e, anos mais tarde, criticado por Benjamin em

    Origem do drama trgico alemo. Para o filsofo francs, o smbolo se define,

    primeiramente, como um signo que contm em sua visada uma dupla intencionalidade,

    constituda pelo lao analgico dos sentidos literal e simblico. Nessa relao, o

    sentido literal que comanda a analogia. Se para os romnticos alemes o smbolo se

    apresenta como uma espcie de viso epifnica da totalidade, em Ricur, ao contrrio,

    ele constitui o prprio fenmeno lingustico em suas diversas modulaes na escala

    balizada pelos extremos inalcanveis da concretude e da abstrao absolutas,

    1 On entendra ici par mythe ce que lhistoire des religions y discerne aujourdhui : non point une fausse

    explication par le moyen dimages et de fables, mais un recit traditionnel, portant sur des lments arrivs lorigine des temps et destin fonder laction rituelle des hommes daujourdhui et de manire gnrale instituer toutes les formes daction et de pense par lequelles lhomme se comprend lui-mme dans son monde. Pour nous, modernes, le mythe est seulement mythe parce que nous ne

    pouvons plus relier ce temps celui de lhistoire telle que nous lcrivons selon la mthode critique, ni non plus rattacher les lieux du mythe lespace de notre gographie ; cest pourquoi le mythe ne peut plus tre une explication ; exclure son intention tiologique, cest le thme de toute ncessaire dmythologisation. Mais en perdant ses prtentions explicatives le mythe rvle sa porte exploratoire

    et comprhensive, ce que nous appellerons plus loin sa fonction symbolique, cest--dire son pouvoir de dcouvrir, de dvoiler le lien de lhomme son sacr. Aussi paradoxal quil paraisse, le mythe, ainsi dmythologis au contact de lhistoire scientifique et lv la dignit de symbole, est une dimension de la pense moderne. RICUR, Paul. Mythe linterprtation philosophique. IN: Encyclopedia Universalis. Disponvel em http://www.universalis-edu.com/ acessado em 20/04/2012.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 2 2 0 1 4 p . 3 9 - 5 0 4 3

    categorias que extrapolam os limites da conscincia. Nesse sentido, vale ressaltar que,

    para Ricur, nem mesmo os smbolos primrios, aqueles menos contaminados pelo

    logos e, portanto, linguisticamente mais concretos, podem coincidir por completo com a

    experincia viva, que, em ltima instncia, no pode ser recuperada por ns.2 Em outras

    palavras, a superao da fratura que separa as coisas e os smbolos algo inconcebvel

    para a fenomenologia hermenutica de Paul Ricur.

    Esse fato promove um deslocamento do conceito de smbolo, inviabilizando a

    tradicional oposio com a alegoria, identificada na tradio alem que vai dos

    romnticos a Walter Benjamin. Ricur entende que smbolo e alegoria no podem se

    opor pelo simples fato de que no ocupam o mesmo plano. Historicamente, a alegoria

    foi concebida menos como um procedimento literrio que como uma forma de

    tratamento dos mitos, identificando-se, portanto, mais com a instncia do leitor que com

    a do produtor. Ricur cita como exemplo as interpretaes estoicas dos mitos de

    Homero e Hesodo, que buscavam encontrar uma espcie de filosofia disfarada sob as

    narrativas mticas. nesse sentido que o filsofo francs prefere falar em interpretao

    alegrica a falar em alegoria:

    Interpretar , portanto, penetrar o disfarce e, por isso mesmo, torn-lo intil; em outras

    palavras, a alegoria foi muito mais uma modalidade hermenutica que uma criao espontnea

    de signos. Seria melhor falar, pois, em interpretao alegorizante que em alegoria (RICUR: 2009, p. 219; traduo nossa)

    3.

    Assim, possvel dizer, ainda com Paul Ricur, que o smbolo precede a

    hermenutica, ao passo que a alegoria j se realiza como interpretao. Essa

    diferenciao muito importante para a compreenso da inteno alegrica4

    2 Muito se fala a respeito da virada hermenutica que ocorre no pensamento de Paul Ricur no final da

    dcada de setenta. Ora, justamente nesse momento, em A Simblica do mal, que a hermenutica chamada a colaborar com a fenomenologia. O fenmeno da experincia judaico-crist do mal s se

    torna acessvel anlise quando materializado em signos, isto , nos smbolos interpretveis da

    confisso dos pecados (primrio), do mito da Queda (secundrio) e do conceito de pecado original

    (tercirio). Tudo o que extrapola os limites da linguagem, portanto, escapa ao alcance da filosofia

    crtica, passando a interessar somente aos msticos. Sobre a relao entre hermenutica e

    fenomenologia no pensamento de Paul Ricur, cf. os captulos II e III do excelente livro de Marcelino Villaverde, Paul Ricur: a fora da razo compartida (2003).

    3 Intrpreter cest alors percer le dguisement et par l mme le rendre inutile; autrement dit lallgorie a

    t beaucoup plus une modalit de lhermneutique quune cration spontan de signes. Il vaudrait mieux parler alors dinterprtation allgorisante que dallgorie.

    4 Cf. arquivo [J 56,1] da obra das Passagens (2006). Neste trecho, Benjamin chama a ateno para a

    duplicidade da inteno alegrica em Baudelaire e para sua ligao com as runas. Ao afirmar que o impulso destrutivo de Baudelaire em parte alguma est interessado na abolio daquilo que ele atinge

  • P E R I v . 0 6 n . 0 2 2 0 1 4 p . 3 9 - 5 0 4 4

    identificada por Walter Benjamin na poesia de Baudelaire. A adeso baudelairiana

    hermenutica alegrica est longe de deslegitimar o dilogo do poeta com o mito, que,

    pensado luz da teoria simblica de Paul Ricur, constitui o verdadeiro enquadramento

    do processo de alegorizao aos quais os objetos so submetidos na poesia de

    Baudelaire. Em outras palavras, acreditamos que, na potica baudelairiana, o mito

    metonimicamente representado, no ocidente, pelo episdio bblico da Queda contm,

    prev e fundamenta a prpria alegoria5.

    Ricur define o mito como uma espcie de smbolo desenvolvido em

    forma narrativa, articulado num tempo no coordenvel quele da histria e da

    geografia segundo o mtodo crtico (RICUR, 2009, p. 221). Trata-se, como vimos, de

    uma categoria intermediria, posicionada entre os smbolos primrios, mais prximos

    da experincia viva, e os smbolos racionais, identificados aos conceitos filosficos.

    Definitivamente desligado do contexto cultual, no qual desempenhava uma funo

    predominantemente etiolgica, fornecendo explicaes para os fenmenos da realidade,

    o mito ressignificado pelo pensamento moderno. Segundo Ricur,

    precisamente porque ns vivemos e pensamos aps a separao do mito e da histria, a

    desmitificao de nossa histria pode se transformar no inverso de uma compreenso do mito

    como mito e a conquista, pela primeira vez na histria da cultura, da dimenso mtica

    (RICUR: 2009, p. 372; traduo nossa)6.

    Assim, o mito deixa de significar algo, perde sua capacidade de explicar de

    forma direta o sentido das coisas e passa a funcionar como manifestao simblica de

    uma experincia irredutvel abstrao. Em sua hiptese de trabalho, Ricur apresenta

    as trs funes dos mitos do mal, repensados luz da crtica moderna. A primeira delas,

    definida pelo filsofo como universalidade concreta, a de englobar a humanidade

    como um todo em uma histria exemplar; a segunda est ligada capacidade de

    orientao temporal, diretamente relacionada ao carter narrativo dos mitos, e a terceira

    se define como explorao ontolgica, que se fundamenta no poder dos mitos de

    desvelar a relao o salto e a passagem, o corte e a sutura do ser essencial do homem

    (p. 374), Benjamin sugere que o objeto alegorizado, embora segregado das relaes da vida, conserva em seus fragmentos uma espcie de memria da totalidade.

    5 Nesse sentido, a hermenutica alegrica seria um momento da experincia mtica da Queda do homem.

    6 Prcisment parce que nous vivons et pensons aprs la sparation du mythe et de lhistoire, la

    dmythisation de notre histoire peut devenir lenvers dune comprhension du mythe comme mythe et la conqute, pour la premire fois dans lhistoire de la culture, de la dimension mythique.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 2 2 0 1 4 p . 3 9 - 5 0 4 5

    com sua existncia histrica (RICUR, 2009, p. 372-373).7 Essas trs funes marcam

    a diferena do mito em relao s outras duas formas simblicas. Entre a manifestao

    desarticulada dos smbolos primrios e a funo explicativa dos smbolos racionais, aos

    quais se associa o conceito de pecado original, o mito se caracteriza como uma narrativa

    capaz de reproduzir graas ao elemento temporal que lhe intrnseco o movimento,

    a dinmica, o conflito, o drama, a tenso que caracteriza toda histria exemplar

    orientada de um Comeo em direo a um Fim, em outras palavras, a transio de uma

    natureza essencial a uma histria alienada (RICUR: 2009, p. 380).

    O mito da Queda aparece, no quadro tipolgico dos mitos da origem e do fim do

    mundo traado por Paul Ricur, ao lado de trs outras grandes narrativas: o drama da

    criao, identificvel aos mitos teognicos sumero-acadianos e s teogonias de Homero

    e Hesodo; o mito trgico, marcado pela concepo maligna da figura de Deus, presente

    em especial nas tragdias gregas, e finalmente o mito da alma exilada, frequentemente

    confundido com o mito da Queda, mas cuja verdadeira origem se associa ao dualismo

    platnico e viso rfica do mundo. Paul Ricur empreende uma cuidadosa anlise de

    cada um desses mitos, discutindo inclusive seus pontos de contato, mas sempre

    destacando o papel predominante do mito bblico para a cultura ocidental, ponto de

    partida inalienvel da hermenutica proposta pelo filsofo.

    A curta narrativa contida em Gnese 2 3 suficientemente conhecida de todos.

    A histria de Ado e Eva, expulsos por Deus do Jardim do den aps cederem

    tentao da Serpente e comerem do fruto proibido, foi retomada milhares de vezes na

    histria da arte e da literatura. Baudelaire no esteve alheio a essa tradio, tendo

    dialogado, em sua obra, com praticamente todos os mitemas e imagens de que se

    constitui a narrativa bblica. Embora importante para a compreenso da potica

    baudelairiana, a retomada desses elementos no explica por si s o dilogo do poeta

    com o mito da Queda. preciso, portanto, ultrapassar a instncia temtica para

    7 Ao apresentar essas trs funes, Paul Ricur insiste mais uma vez em destacar a distncia que separa

    sua perspectiva da tradicional interpretao alegrica do mito: On peut dj deviner combien nous nous loignons dune interprtation purement allgorisante du mythe. Lallgorie est toujours susceptible dtre traduite dans un texte intelligible par lui-mme ; une fois ce meilleur texte dchiffr, lallgorie tombe comme un vtement inutile ; ce que lallgorie montrait en le cachant peut tre dit dans un discours direct qui se substitue elle. Par sa triple fonction duniversalit concrte, dorientation temporelle et enfin dexploration ontologique, le mythe a une faon de rvler, irrductible toute traduction dun langage chiffr en un langage clair ; comme Schelling la montr dans sa Philosophie de la Mythologie, le mythe est autonome et immdiat : il signifie ce quil dit. (RICUR: 2009, p. 373)

  • P E R I v . 0 6 n . 0 2 2 0 1 4 p . 3 9 - 5 0 4 6

    compreender melhor esse dilogo, que se d principalmente na dinmica, no

    movimento, no ritmo, no carter dramtico e tenso que fundamenta a potica de

    Baudelaire.

    O mito da Queda o mito antropolgico por excelncia. Em contraposio s

    outras trs narrativas tpicas, ele o nico que associa o surgimento do mal diretamente

    criao do homem. Ado o representante mtico de todo ser humano. Quem diz

    Ado, diz Homem. Na perspectiva de Paul Ricur, a ideia segundo a qual o mito de

    Ado o nico propriamente antropognico, pode ser compreendida em funo de trs

    traos: o primeiro deles se refere ao fato de a origem do mal se identificar a um

    ancestral da humanidade atual Ado cuja condio idntica nossa; o segundo

    trao diz respeito tentativa extrema, por parte do mito da Queda, de duplicar a origem

    do mal, demonstrando que ele j estava presente no Jardim, conforme sugere a figura da

    Serpente, mas iniciado de fato pela ao transgressora de Ado; o terceiro trao

    corresponde multiplicidade de personagens, pois, alm da figura central do Homem

    primordial, o mito da Queda coloca em cena uma srie de contrapolos, como as figuras

    de Eva e da Serpente, que desempenham tambm um papel importante na interpretao

    do mito (RICUR: 2009, p. 445 448).

    Alm desses traos, importante considerar que o mito da Queda ou de Ado,

    como queria Paul Ricur concentra-se num evento que simboliza a ruptura de dois

    regimes ontolgicos. Isso nos leva a descartar imediatamente uma leitura cronolgica do

    mito e a consider-lo como origem atemporal dos fatos humanos. A compreenso desse

    evento depende da estrutura narrativa do mito, portanto do seu elemento significante,

    como ocorre de forma mais ou menos intensa com toda manifestao simblica. Ricur

    analisa essa estrutura a partir da convergncia de dois esquemas, que aponta para a

    duplicidade rtmica do mito da Queda: o primeiro deles refere-se ao evento nico do

    pecado de Ado, e o segundo, ao desdobramento do drama em diversos episdios e

    personagens (RICUR: 2009, p. 457). preciso considerar os dois esquemas, ainda

    que paream contraditrios, para compreender o sentido do mito. Em primeiro lugar, a

    ideia de uma ruptura brusca entre os dois regimes ontolgicos coloca em destaque o

    carter ambguo do Homem, criado bom e tornado mau.

    Contudo, a ideia de uma ruptura brusca e radical entre os dois regimes

    ontolgicos deve ser relativizada pelo segundo esquema mtico, que apresenta a

  • P E R I v . 0 6 n . 0 2 2 0 1 4 p . 3 9 - 5 0 4 7

    passagem da inocncia para o pecado como um processo lento de transio, simbolizado

    principalmente na figura da serpente. No ensaio Penser la cration, que integra o livro

    Penser la Bible (1998), escrito em parceria com o telogo Andr LaCoque, Paul Ricur

    desenvolve a contraposio dos dois esquemas mticos, opondo ideia de ruptura

    brusca a ideia de separao progressiva (sparation progressive). Nessa perspectiva, o

    mito da Queda no sugeriria, a despeito de seu carter narrativo, a existncia de dois

    estados sucessivos o da inocncia primordial e o da perdio no seio da histria , mas

    a ideia de uma progresso na separao, no interior mesmo da nica histria

    primordial, separao que culmina na condio miservel representada pelo episdio da

    expulso do jardim (RICUR: 1998, p. 70 traduo nossa).8 Nesse sentido,

    possvel afirmar que os eventos que se passam fora do den, aps a expulso,

    continuam a mesma histria primordial (RICUR: 1998, p. 73).

    O esquema da separao progressiva apresenta, ainda, duas consequncias

    teolgicas considerveis. A primeira delas diz respeito associao direta com a

    Criao. Ricur observa que a separao um elemento constituinte do Homem, pois

    ela que garante a distino essencial entre criador e criatura (RICUR: 1998, p. 66).

    Dessa forma, a separao progressiva funciona ao mesmo tempo como um

    distanciamento do regime ontolgico divino e como afirmao da identidade e da

    responsabilidade humana. A outra consequncia diz respeito permanncia de

    elementos divinos na constituio do Homem decado.

    O que Paul Ricur entende por antropologia da ambiguidade (anthropologie de

    lambiguit) corresponde, primeiramente, dupla experincia da ruptura e do

    distanciamento progressivo em relao a Deus, e, em segundo lugar, tenso insolvel,

    pois essencial condio humana, entre o sentimento da falta e a permanncia de

    elementos divinos, que remetem condio original do Homem.

    Consideraes finais

    Para muito alm da simples retomada de imagens e mitemas, a poesia e a potica

    de Baudelaire apresentam uma srie de elementos afins ao mito da Queda, tal qual ele

    8 (...) lide dune progression dans la sparation, lintrieure de lunique histoire primordiale,

    sparation qui culmine dans la condition misrable reprsente par lpisode de lexpulsion du jardin.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 2 2 0 1 4 p . 3 9 - 5 0 4 8

    pensando pela hermenutica ricuriana. O carter essencialmente ambguo do Homem,

    espremido entre a maldade natural e a sede de infinito, tantas vezes evocado por

    Baudelaire, como no famoso aforismo de Meu corao a nu sobre as duas postulaes

    simultneas presentes, a toda hora, em todo indivduo,9 exerce influncia direta sobre a

    concepo de poesia do poeta francs, conforme sugere o prprio ttulo de sua obra

    prima As Flores do mal. A ideia segundo a qual a separao se constitui na distino

    essencial entre Deus e os homens, contempornea do prprio evento da Criao,

    repercute tambm em Baudelaire, para quem o aparecimento do Homem representa, em

    ltima instncia, a queda do prprio Deus, doravante desnecessrio, pois essencialmente

    distinto e inalcanvel, aventura humana na terra.10

    A poesia, a arte moderna de

    Baudelaire se realiza nesse espao da ambiguidade, da ruptura entre os regimes

    ontolgicos e da experincia da separao progressiva, da conscincia dos limites

    humanos e da permanncia da sede de transcendncia.

    Por fim, o dilogo de Baudelaire com o mito da Queda coloca em evidncia

    outros dois pontos fundamentais para a sua potica: o problema dos resqucios de

    correspondncia presentes na linguagem potica e a postura crtica em relao ao mito

    em geral como instncia de contato com o tempo primordial. Baudelaire concebe a

    linguagem como signo maior da ambiguidade humana. Intimamente associada

    experincia da queda, e, portanto, ruptura entre os regimes ontolgicos de Deus e do

    Homem, a linguagem humana carrega consigo tanto a marca da relatividade quanto os

    resqucios de sacralidade, isto , de ligao com a unidade perdida.

    A passagem da discusso conceitual para a experincia potica deve ser

    acompanhada de uma passagem do conceito de pecado original para o mito da Queda,

    compreendido, luz da hermenutica de Paul Ricur, como um smbolo pr-

    especulativo. Isso significa que a poesia de Baudelaire no deve ser lida luz da teoria

    do pecado, mas aproximada da estrutura simblica do mito de Ado. A experincia

    potica de Baudelaire assemelha-se em diversos aspectos do Homem que se submete

    desde a criao a um processo de separao progressiva em relao ao Criador.

    9 H em todo indivduo, ao mesmo tempo, duas postulaes simultneas: uma em direo a Deus, outra a

    Sat. A invocao a Deus, ou espiritualidade, sempre um desejo de nos elevarmos; a de Sat, ou

    animalidade, um comprazer-se na queda (BAUDELAIRE: 1995, p. 529). 10

    Outra vez em Meu corao a nu, podemos ler o seguinte aforismo: A Teologia. Em que que consiste a queda? Se a unidade feita em dualidade, ento foi Deus quem caiu. Ou, posto em outros termos,

    no ser a criao a prpria queda de Deus? (BAUDELAIRE: 1995, p. 534).

  • P E R I v . 0 6 n . 0 2 2 0 1 4 p . 3 9 - 5 0 4 9

    Todavia, a consequncia mais interessante desse dilogo encontra-se em uma

    espcie de absolutizao da queda empreendida pelo poeta francs. As constantes

    referncias ao cristianismo e figura do Cristo ao longo dos poemas das Flores do mal

    nos levam a crer que a adeso de Baudelaire ao mito da Queda no pode ser

    compreendida sem que se considere seu papel tipolgico, ou seja, sua relao direta

    com a Histria da Salvao, conforme a exegese cannica proposta por So Paulo.

    Segundo essa exegese, a figura de Ado s faz sentido em funo da posterior vinda do

    Cristo. Essa leitura promove a substituio do pessimismo da Queda pelo otimismo da

    Salvao (Cf. RICUR, 2009, p. 489), que est na base do pensamento escatolgico.

    A recusa da salvao em Cristo um dos momentos mais dramticos das Flores

    do mal, podendo ser interpretado como uma afirmao da dignidade da condio

    humana diante do silncio de Deus. Elegendo So Pedro e, mais intensamente, Caim

    como heris, Baudelaire realiza um dos tpicos anunciados no mito da Queda: a

    afirmao da identidade maldita da criatura humana na separao progressiva em

    relao ao Criador.

    A negao de Cristo empreende uma espcie de reverso da tipologia cannica,

    promovendo uma ressignificao do mito da Queda, que passa a reinar absoluto, uma

    vez desmembrado do esquema escatolgico, na viso de mundo baudelairiana. Isso

    significa que o mito de Ado arrancando de seu contexto teolgico, liberado de sua

    priso sistemtica, para se transformar no mito da maldio eternizada, ou seja, num

    smbolo da ciso irreversvel entre os tempos profano e sagrado, num paradoxo que faz

    jus ambiguidade inerente ao pensamento e arte de Baudelaire.

  • P E R I v . 0 6 n . 0 2 2 0 1 4 p . 3 9 - 5 0 5 0

    Referncias

    BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Edio organizada por Ivo Barroso. Rio de

    Janeiro: Nova Aguilar, 1995. Volume nico.

    BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; So Paulo: Imprensa

    Oficial Do Estado de So Paulo, 2006.

    BENJAMIN, Walter. Origem do drama trgico alemo. Edio e trad. Joo Barrento.

    Belo Horizonte: Autntica, 2011b.

    RICUR, Paul. La symbolique du mal. IN: Philosophie de la volont. vol. 1. Paris: Gallimard, 2009.

    RICUR, Paul. Le conflit des interprtations: essais dhermneutique. Paris: ditions du Seuil, 1969.

    RICUR, Paul. Penser la cration. IN: RICUR, Paul; LACOCQUE, Andr. Penser la Bible. Paris: ditions du Seuil, 1998.

    RICUR, Paul. Mythe linterprtation philosophique. IN: Encyclopedia Universalis. Disponvel em http://www.universalis-edu.com/ acessado em

    20/04/2012.